Project Gutenberg's Scenas de viagem, by Alfredo d'Escragnolle Taunay

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Title: Scenas de viagem
       Exploração entre os rios Taquary e Aquidauana no districto
              de Miranda : memoria descriptiva

Author: Alfredo d'Escragnolle Taunay

Release Date: September 2, 2010 [EBook #33611]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Nota de editor: Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Setembro 2010)




SCENAS DE VIAGEM


EXPLORAÇÃO

entre os rios Taquary e Aquidauana
no districto de Miranda.



MEMORIA DESCRIPTIVA

PELO 1º TENENTE D'ARTILHARIA

Alfredo d'Escragnolle Taunay


Engenheiro geographo,
bacharel em bellas letras pelo Imperial collegio de Pedro II,
bacharel em mathematicas e sciencias physicas,
official da Imperial ordem da Rosa,
condecorado com a medalha de campanha
das forças do sul de Mato-Grosso e ex-ajudante da commissão
de engenheiros junto áquellas forças.


RIO DE JANEIRO
Typographia—Americana—rua dos Ourives n. 19

1868








Ao Illm. e Exm. Sr.

Tenente-General Conselheiro

Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão

O. D. C.


O Autor





Exm. Sr. General.



Tomo a liberdade de offerecer a V. Exc. estes apontamentos colhidos n'uma viagem trabalhosa e rodeada de perigos.

Quando eu a executava, o sentimento do dever era o meio seguro para achar menos arduas as contrariedades incessantes que me acommettião. A esse sentimento unia-se o desejo de corresponder á espectativa de minha familia e de meus chefes, cumprindo á risca as ordens que me havião sido dadas.

A lembrança de V. Exc. me era presente n'aquelles momentos e desde então formei a resolução de collocar debaixo de sua prestigiosa protecção qualquer trabalho que emprehendesse sobre essa exploração.

Hoje cumpro com uma divida.

Assigno-me de V. Exc.

Muito respeitoso amigo e subordinado

Alfredo d'Escragnolle Taunay.


Rio de Janeiro, 12 de Outubro de 1867.




PREFAÇÃO



Incumbido de uma exploração importante n'uma zona de mais de cincoenta legoas, colhi os dados que ora apresento, procurando tomar notas minuciosas de tudo quanto pudesse interessar e coordenando-as desde logo, de modo que formassem com pouco custo um trabalho simples e despido de pretenções, porém de alguma vantagem para novos e mais habilitados exploradores, fornecendo-lhes apenas uma base para futuros desenvolvimentos.

Coube-me a felicidade de ter para companheiro n'essa viagem, o muito illustrado e digno engenheiro, o meu amigo Dr. Antonio Florencio Pereira do Lago, capitão d'estado-maior de 1ª classe, cujo espirito eminentemente methodico e cultivado e cuja intelligencia, ornada dos mais preciosos dotes da alma, vão-se tornando, felizmente para a nobre classe a que pertence, de dia em dia mais conhecidos.

Nas crises, porém, de uma peregrinação atribulada, como a que fizemos, vi-o desenvolver qualidades que demonstrão grande energia e sangue-frio, e que, servindo-me de proveitosa lição, tornárão para mim a sua amizade ainda mais preciosa.

Procurei tirar á minha narrativa o caracter official. Em muitas occasiões não pude livrar-me da technologia scientifica; usei d'ella, com parcimonia, e, organisando um trabalho singelo, envidei esforços para que fosse consciencioso e sobretudo veridico.



SCENAS DE VIAGEM




CAPITULO I



As forças destinadas ás operações no districto de Miranda, achavão-se, desde o dia 20 de Dezembro do anno de 1865, acampadas na margem direita do rio Taquary, occupando, desde a confluencia d'este com o rio Coxim, uma extensão de mais de legoa.

Sobre este local existira grande controversia; uns o apresentavão como excellente ponto de estação para os nossos soldados, dando-lhe as honras de posição estrategica, outros, contrariando fortemente tal opinião, fundados no conhecimento da localidade, tiravão-lhe toda a importancia de que era revestido. Na realidade, o melhor possivel para a formação de uma colonia, como existe desde 1862 projecto, acha-se o ponto falto de todas as condições para ser considerado como militar, pronunciando-se a commissão de engenheiros contra a escolha d'elle, quando fôra consultada.

[10] Entretanto ahi passárão as forças os mezes da estação pluviosa. Esta phase do anno, determinada claramente, durante o verão, nas provincias do interior do Brasil, começa geralmente a 8 de Setembro e vai, com mais ou menos regularidade, até os fins de Abril. As enchentes e trasbordamentos de rios n'uma zona baixa e plana, como a de quasi toda a provincia de Mato-Grosso, são correspondentes a esta época chuvosa, formando-se, n'uma extensão importantissima, um immenso terreno alagado, d'onde surgem, de quando em quando, alguns pontos firmes, devidos ás ondulações dos campos. Entre o Coxim e a villa de Miranda estendião-se então, impedindo a passagem até a viajantes escoteiros, esses pantanaes que, chegando em certos corixos a dar nado, impossibilitavão totalmente a marcha da expedição acompanhada por bagagem pesada e viaturas de artilharia.

Achava-se assim, pela força das circumstancias, detida a columna, bem que o commandante d'ella, o bravo coronel Galvão, ardesse em desejos de começar o trabalho de reoccupação do districto, ainda n'aquelle tempo todo em poder do inimigo. Por isso acolheu elle pressuroso as informações que fornecêrão alguns fugitivos da villa de Miranda, refugiados no Coxim, sobre a possibilidade de abrir uma trilha, que, seguindo a base da serra de Maracajú, permittisse, pelo desvio dos pantanaes, a passagem até o rio Aquidauana. Fôra por ahi que se déra a fuga d'elles, havendo encontrado tão sómente pequenas difficuldades. Apressou-se pois o commando em ordenar que dous engenheiros seguissem a reconhecer aquelles terrenos, informando sobre a praticabilidade da viação e [11] procedendo a uma exploração cuidadosa d'aquella fralda de serra. Tocou-nos essa commissão sobremaneira penosa, em companhia do capitão Lago.

No dia 11 de Fevereiro fôra expedida a ordem; fizemo-nos prestes e, no dia 13, effectuou-se a nossa partida depois de melancolica despedida aos nossos companheiros, que deixámos, com as forças, do outro lado do Taquary, onde devião demorar-se ainda perto de tres mezes.

As difficuldades no fornecimento de viveres durante a estada no Coxim, reflectião-se dolorosamente na nossa matalotagem, onde só viamos, em quantidade não muito satisfactoria, os generos da mais urgente necessidade. Não tinhamos a pretenção de viajar como Nababos, nem possibilidade para isso; mas as provisões, ainda quando para uma excursão não muito custosa, nos faltavão de todo e antolhavamos horisontes de certo pouco risonhos. Com immensa dóse de resignação, o melhor dos provimentos para taes casos, partimos, escudados um no outro e estribados n'esse sentimento, natural em todos e eminentemente precioso, que constitue uma opinião philosophica, uma seita; o optimismo. Partimos.—Arcades ambo, ou melhor—milites ambo.

Antes de deixarmos o Coxim, talvez para sempre, algumas palavras; e sejão ellas o nosso adeos, adeos sem saudades, apezar do seu magestoso Taquary[1], de sua verde mataria, de suas lindas garças, de seu facies melancolico, de seu céo puro e noites scintillantes que terião feito surgir em nós poeticos sonhos, se o estomago—e [12] quantas vezes!—não reagisse dolorosamente com exigencias difficeis de satisfazer. A posição do Coxim é pitoresca,—salutar relativamente á zona em que se ergue esse torrão—a vegetação bonita. Os terrenos patenteão superabundancia de arêa, alguma argila; são ondulados sensivelmente, elevando-se até em outeiros que vão se unir á grande cadêa de Maracajú, a qual, dez a doze legoas além, levanta-se ao longo do caminho do rio Negro.

O aspecto phytologico não é novo: continuação dos cerrados de Goyaz, os quaes em occasião opportuna havemos procurado descrever, apresenta os arbustos que lhes são mais communs: muitas myrtaceas, das quaes uma, a eugenia dysenterica (cagaiteira) quando lá chegámos, curvava-se ao peso de seus lindos fructos côr de ouro; várias malpighiaceas, avultando o mureci (byrsonima verbascifolia) que tinha seu valor no mercado improvisado do Coxim, assim como o piqui (caryocar brasiliense) de Saint-Hilaire e a marmelada[2] que é da familia das rubiaceas. Com flôres vimos uma bellissima acanthacea[3], diversas hyptis e outras labiadas que resistião ao término da estacão da florescencia. Muitas melastomaceas das tribus lavoisiera[4] (capsulas seccas) e [13] osbeckia (sementes cochleiformes[5]) salpicavão os prados, formando grupos com araticús (anonaceas) em monticulos, respeitados pelas aguas, onde sempre encontravamos um araçá rasteiro, de folhas largas. As anonaceas ahi são muito frequentes, chegando algumas vezes a attingirem a altura de grandes arbustos.

Junto ao rio, como sempre, a vegetação é mais abundante e luxuriante: madeiras de construcção, como aroeiras, perobas, ipés, etc., muitas figueiras, guanandys[6], etc, corôão as barrancas que encanão o rio.

Na passagem para o outro lado apresenta o Taquary a largura de 70 braças, ganhando em profundidade o que perde em superficie: ahi a velocidade é diminuta; é já um curso importante que mansa e socegadamente obedece á lei da gravidade. Não ha mais o buliçoso movimento, o atirar louco, de encontro ás rochas, de alvos lençóes de liquido, a precipitada corrente ao receber o Coxim, na confusão das aguas; é a calma de quem não acha mais obstaculos que vencer; a tranquillidade do descanço. Comtudo no nado a que forão obrigados os nossos pobres pachidermes, enfraquecidos pelas pessimas pastagens do local, essa correnteza levou-os a percorrer a diagonal de 140 braças, impossibilitando-nos longa viagem. N'esse dia, andámos tão sómente um quarto de legoa até o ribeirão da Fortaleza, caminhando n'uma encosta elevada, coberta por papilionaceas rasteiras e mato baixo de araticús.

[14] Este tributario do Taquary rola limpidas aguas sobre chão de alvacenta arêa, e, já sobre tarde, pudemos distinctamente ver innumeros cardumes de pirapitangas e corimbatás subirem contra a correnteza, descendo todos, ao alvorecer. Na margem direita uma lindissima anonacea, com folhas lustrosas e ramos pendentes, attrahia as vistas, surgindo com uma cecropia (embaiba) de um grupo de melastomaceas (rhexias[7]), solaneas e araticús.

D'este ponto começão os terrenos baixos: a barranca abrupta do ribeirão, na margem esquerda, é o córte alcantilado do ponto firme que se chama Coxim; pelo outro lado não existe ribanceira; um chão plano, a modo de lezira, com ligeiras ondulações, se estende quasi de nivel com as aguas, que, nas enchentes, com summa facilidade invadem grande extensão.

Á noite, furioso furacão açoutou cruelmente as nossas barracas esburacadas: a nossa comitiva muito soffreu. Os soldados, sem abrigo, semi-nús, supportárão a inclemencia do tempo; junto a um fogo extincto que provavelmente os aquecia intencionalmente. Além de dous camaradas, acompanhavão-nos seis praças e um furriel do corpo de cavallaria do coronel Dias, os quaes, achando-se transviados, desde a invasão paraguaya e occultos em diversos pontos, áquem e álém Aquidauana, poucos dias antes se [15] tinhão espontaneamente apresentado ao commandante das forças, que os designára para nos servirem de guias em nossos reconhecimentos.

De alguns dos seus typos conservamos lembrança curiosa. O furriel Salvador Rodrigues da Silva e os dous irmãos Campos Leite muito nós ajudárão, e, apezar de terem sido no principio mal considerados, desmentindo a nossa prevenção contra elles, sempre derão provas de grande dedicação e disciplina.

Começavamos a nossa viagem debaixo das mais tristes impressões. A incerteza que nos dominava sobre o estado da zona a percorrer, inundada completamente,—pantanal medonho—, a approximação dos pontos occupados pelos inimigos com a força de protecção, em nada respeitavel, que nos cercava, a perspectiva desanimadora de pouco fornecimento para a excursão, não constituião motivos para que figurassemos aquella exploração um passeio agradavel, quando de todos os lados assomavão senão perigos, pelo menos innumeras contrariedades.

Era pois explicavel o sentimento de tristeza e melancolia que nos apertou o coração, ao recebermos os abraços de nossos collegas; e, á noute, quando os échos longinquos repercutírão o signal de silencio, que atroava no acampamento do Coxim, pelas bocas metallicas de suas muitas cornetas, alvoroçárão-se em nós, na duvida de crises maiores, as saudades do tempo que tinhamos passado ao lado de nossos companheiros, se bem houvesse sido pouco invejavel. A braços com a fome, na mais completa penuria, ahi se tinhão esgotado dias penosos, angustiados até, em que no soffrer intimo não apparecia o vislumbre de [16] compensação, o raio de esperança por melhores tempos. Como densas nuvens, prenhes de tempestades, mil incommodos, prestes a desfecharem maiores males, pesavão sobre nossos espiritos e relampagos de quando em quando escurecião-nos as vistas. Entretanto a união que sempre existíra entre nós, a cordialidade de convivencia, a consolação reciproca, o apoio mutuo, fazião communs e menos sentidos os desgostos que nos acommettião, adoçavão os amargores da situação, amenisavão os espinhos do presente. (Nota A)

Fizemos as nossas despedidas ao Coxim, do alto de um monticulo que domina o ponto de reunião d'este com o Taquary, o qual de longe rola as turvas aguas, até encontrar-se com o alvo contingente de seu tributario. Demos então as costas ao Norte, indo logo depois demandar a margem esquerda do bello Taquarymirim, que ora afasta-se, ora approxima-se muito do caminho. É este cortado de continuo por pequenos corregos, os quaes, ufanos n'aquella época, fenecem ao approximar a estação fria e secca.

Os campos, que nos cercavão, erão cobertos de cerrados; vegetação baixa, arborescente, comtudo mais vistosa que a de Goyaz. Até ás vezes algum vinhatico[8] levanta-se alteroso, bem que retorcido e sem as proporções a que attinge nas matas do Rio de Janeiro, como demonstração da inferioridade de terrenos, cujas causas não hão de ser removidas tão cedo. Dos outros typos ha abundancia: muitas myrtaceas, malpighiaceas, bombaceas, [17] anacardeas, terebinthaceas e dilleniaceas, das quaes a lixeira[9] pareceu-nos commum a todos os cerrados, cassias, papilionaceas, bignoniaceas, algumas melastomaceas; entretanto predominão ahi visivelmente as anonoceas. (Nota B)

Nosso pouso foi n'uma baixada viçosa, coberta por verdejante tapiz de bonita gramma, fronteiro a uma das cabeceiras do Taquarymirim e ao lado de bellos grupos de boritys. Lugar encantador para um espirito tranquillo, cheio de maravilhas para a imaginação de um poeta, fonte de inspirações para um adorador da natureza, não nos provocou elle mais do que o prazer do descanço, fruido depois de cançativa e morosa viagem de duas e meia legoas. Entretanto, quão bellas erão as puras aguas que revolvião-se em cachões de encontro a cabeços de rochas e, espumantes, traçavão mil caprichosas curvas?! Da singeleza magestosa e melancolica do bority nunca se ha de fallar sobejamente. (Nota C)

N'esse mesmo lugar, que denominámos Pouso dos Boritys[10], existião os vestigios de um acampamento paraguayo, formado por occasião do prolongamento da invasão, em Abril de 1865, até o Coxim e a fazenda de Luiz Theodoro[11]. Galhos fincados no chão e apoiados uns nos outros, com a ramagem para cima, formavão ranchos improvisados, [18] em que se havião abrigado os soldados, sob a coberta do ponche estendido por cima. A certa distancia, achava-se um cercado para a cavalhada e, pelos arredores, estavão varios objectos de picaria, ao lado de ossadas dos cavallos, que erão degolados, á medida que afrouxavão. A ida dos paraguayos ao Coxim foi feita com celeridade estupenda; a artilharia passou por lugares medonhos e, em poucos dias, completárão elles uma viagem redonda de 146 legoas, no tempo da maior inclemencia de aguas. Se bem tivessem levado excellente cavalhada, voltárão muitos dos expedicionarios a pé, pois que a peste, commum n'estas localidades, incessantemente derribava os seus melhores animaes de sella.

Um anno depois, no mesmo mez, occupavão o acampamento dos Boritys, as forças brasileiras, em marcha sobre os pontos em poder do inimigo e os seus soldados, aproveitando os ranchinhos paraguayos, procuravão n'elles substitutos ás barracas que lhes faltavão.

D'ahi por diante os vestigios da passagem dos invasores tornão-se cada vez mais frequentes; as inscripções nas arvores são amiudadas, umas em hespanhol, outras em guarany.

No corrego da Porteira, a meia legoa do pouso dos Boritys, uma d'essas palmeiras tem o tronco coberto de disticos, infelizmente quasi todos apagados. N'um d'elles pudemos comtudo decifrar o genero de amabilidades que dirigião-nos os nossos visinhos republicanos. Além da necessaria invectiva de infames esclavos, lia-se—Los brasileros non son hombres delante de Lopez. Mão brasileira exarára já, no meio d'esses insultos, o [19] contraprotesto Morrão os paraguayos, e datára—11 de Junho de 1865.—Singular coincidencia! No dia, talvez na mesma hora em que se escrevião, no meio dos sertões, essas palavras fatidicas, a bravura, o canhão e o patriotismo brasileiros executavão aos olhos do mundo aquella sentença fatal. Riachuelo tinha a sua repercussão instantanea, electrica e o grito que erguia aos ares a valente maruja do Brasil, echoava, para assim dizer, n'aquelles longinquos e desertos páramos.

É bem comprehender a monotonia da viagem que faziamos, para avaliar a impressão moral por nós sentida, ao acordarem-se milhares de pensamentos, com essa approximação que abria as azas á imaginação desde muito adormecida.


«Est Deus in nobis, agitante calescimus illo»


Com muito mais animação, tocámos os animaes e, d'ahi a perto de duas horas, entravamos na sombria coberta do ribeirão da Mata. N'esta zona os bosques são mui viçosos; os matagaes mais juntos, mais espessos; os cerrados em menor numero; demais, a agua dos corregos é limpida e pura até o rio Negro. Esperem os viandantes pela compensação e despeção-se de ante-mão de tudo quanto fôr agua mais ou menos potavel.

Por emquanto goza-se junto áquelle bello ribeirão de todas as vantagens de um excellente pouso: frescor constante, vista sempre amena de pura lympha, bonita mataria e um pouco além excellente pastagem para animaes. Quem viaja pelo interior dos sertões deve penetrar-se [20] da importancia d'essa condição, para que o pouso mereça escolha. Reduzidas, ha muito, pela falta de milho, á simples alimentação herbacea, as nossas cavalgaduras não apresentavão fórmas para poderem figurar em torneios, e, a não ser o receio de descahir de assumpto, fallariamos por extenso nos nossos transes em poupal-as e nas difficuldades em que nos vimos, logo nos primeiros dias de viagem, pela morte de uma d'ellas.

O nosso microcosmo indispensavel á vida, bem que o mais diminuto possivel, não podia soffrer córtes e a carga, que ficava por terra pelo afracamento de um animal, era imparcialmente repartida pelos restantes. Curvavão-se sob o peso de cargas babylonicas, porém avançavão sempre.

Começando já a avistar a cadêa de Maracajú, fomos, do ribeirão da Mata, cortando bonitas pradarias, mais ou menos accidentadas, ornadas, de quando em quando, por esses grupos de bella vegetação, a que chamão capões[12]. Devidos á acção da humidade, são quasi sempre orlados por fileiras de boritys, que misturão agradavelmente os seus leques á folhagem tão diversa das dicotyledoneas.

Os terrenos continuão seccos, argilo-silicosos; de vez em quando algum atoleiro, algumas braças inundadas que fazião já termos por certo a approximação dos tão temidos pantanaes. Entretanto só os deviamos atravessar poucas legoas áquem do rio Negro e além.... sempre.

Com uma legoa de marcha passámos o ribeirão Claro, [21] que bem merece esse nome pela alvura de suas aguas rapidas e encachoeiradas.

O desbastamento das margens concorre para que essa côr não seja alterada pela reflexão do verde escuro das arvores. Um unico bority, direito como um mastro, coroado pelas flabelladas palmas, erguia-se garboso no seu isolamento. A sua posição especial o condemnava naturalmente aos olhos de quem intentasse lançar um pontilhão para o transito; não escapou pois aos machados, quando nossos collegas vierão preparando o caminho para a descida da força sobre Miranda. A utilidade artistica não o pôde salvar.

Mais além encontrámos outra corrente de agua, ainda mais bella que as precedentes: o ribeirão Verde, que corre, com velocidade consideravel, por entre margens altas, cobertas de sombria e espessa mataria. O leito de grandes lages, forradas de limo, e a folhagem basta, dão ás aguas crystallinas a apparencia que serve para aquella denominação.

O lugar é encantador: massas liquidas de um bello verde se deslisão prestesmente, galgando as pedras desiguaes que tapetão o alveo, e precipitão-se, de um degráo, n'uma bacia bastante regular, que recebe a quéda. Grandes bandos de peixinhos dourados e pirapitangas brincão entre as rochas, cortando rapidamente a correnteza, quando envolvidos no turbilhão de aguas.

A disposição de espirito necessaria para dar o devido apreço a essas bellezas, não se achava em nós. A passagem a váo, difficultosa para os nossos animaes de sella, tornou-se quasi impossivel para os cargueiros, que, [22] aos tombos e mergulhando as canastras, transpuzerão, á custa de muitos esforços, o ribeirão. E aprecie-se assim a natureza!

Á noute, felizmente depois de acampados, copiosa chuva, como nos mais dias, veio avivar-nos a lembrança de que estavamos na estação das aguas.

Malditas aguas!



CAPITULO II



A manhã levantou-se serena e bella. Ao longe resplandecião de novo verdor os prados: o ribeirão engrossado, bem que sempre limpido, rolava bramantes cachões de aguas esverdeadas e o frescor agradavel da natureza, depois da trovoada da vespera, tornava o sitio tão magicamente aprazivel, que se ergueu, no fundo de nossas almas, um hymno de gratidão ao Creador. Entretanto, d'ahi a pouco, a reunião dos nossos animaes veio arrancar-nos da contemplação de scena tão louçã e nunca se devem dar poucas graças aos céos clementes, quando se os encontrão ás horas propicias.

Away pois!

Para medirmos com alguma exactidão as distancias, que tinhão de ser ministradas ao commando das forças, viamo-nos obrigados a acompanhar um dos cargueiros que nos dava a maior uniformidade de movimento. A estimativa [24] era a media do tempo gasto em diversas observações, para percorrer uma extensão medida, havendo sido tomado para unidade o minuto, que achámos correspondente a 30 braças ,355.

A nossa qualidade official não nos permittia o pouco mais ou menos: entretanto caminhar assim, é sobre fastidioso, em extremo cançativo. Accresce ainda a urgencia de não distrahir-se um momento, consultar a todo instante o relogio, tomar nota das menores particularidades, verificar qualquer parada e visar, de quarto em quarto de legoa, o rumo magnetico, em que se marcha, para o que nos servia a excellente bussola prismatica do capitão Karter, tão commoda e propria para esses trabalhos.

Depois de 60 minutos de marcha, passámos uma matinha e, d'ahi a 30 minutos, outra, chamada do Major, por pertencer a um official da guarda nacional de Minas d'esse posto, que explorára aquelles terrenos.

Prolonga-se essa matinha até a descida de uma abrupta rampa escorregadia, que finda n'um corrego insignificante, o qual se espraia n'um almargeal. Os pontos encharcados vão-se tornando mais frequentes: ahi tivemos uma amostrasinha de pantanal. Durante mais de 5 minutos seguimos uma vereda aberta no capim alto, toda coberta de agua e com um fundo de hervas entresachadas, que tivemos algum trabalho em vencer.

Com a menor secca acaba esse alagadiço, que se fórma tambem logo ás primeiras chuvas, devido ao represamento, n'uma pequena extensão, de aguas, por dous firmes de terra.

Depois de nova mata e novo charco, o terreno começa [25] a dar mostras de pedregoso, a levantar-se sensivelmente e afinal a subir estreitado entre massas de rochedos até a celebre passagem do Portão de Roma.

Dous massiços erguem-se ahi, cortados a pique, um fronteiro ao outro, deixando intermedia uma estreita trilha, toda embaraçada com grandes lages e matosinhos.

Não sabemos a razão de tal denominação. As difficuldades, os espinhos de sua vereda, a aberta n'um céo anilado, como se nos afigurava, quando subiamos a encosta e viamos duas linhas sombrias destacarem-se na abobada celeste, justificavão muito mais a especificação de Portão do Paraiso. A menos de ligar-se á cidade eterna um sentimento muito especial de religiosidade, que nunca correu naturalmente pelo espirito de quem[13] lhe deu o nome, parece elle completamente deslocado n'estas paragens.

O sitio é sobremaneira agreste e sombrio.

Salvador Rosa, nas fragosidades da Calabria, não encontraria melhor typo para seu modo artistico. Um salteador, de arcabuz ao lado, dominando o caminho, outro estirado sobre uma rocha lisa, á espreita, transportarião a scena para aquellas serranias e nem faltavão, para completo da côr local, os agaves (pita[14]), que surgião por entre as fendas, nem a figueira tenaz, a qual, agarrada ás asperezas da pedra, estirava grossos ramos sobre a senda.

Os paraguayos fizerão rolar as carretas de artilharia por essa passagem difficultosissima, que obrigou, para o [26] transito das forças, a um prévio trabalho, feito pelos engenheiros.

Considerado debaixo do ponto de vista scientifico, o Portão de Roma é uma aberta praticada pelas aguas em rochas metamorphicas. Todos os rochedos dos lados e leito da trilha, são de grés argiloso concreto. A verdade tornou-se-nos bem patente, quando, depois de margearmos um pequeno pantanal, subimos o monticulo fronteiro ao alcantil do Portão. Ao longe divisavamos uma serie de montes encadeados, que trazião na superficie diversas linhas continuadas parallelas, as quaes, segundo parece-nos, mostrão as differentes alturas a que tocárão as aguas de um antigo lago geologico, que outr'ora aquella bacia encerrou.

Nos cumulos que forão cobertos de todo e depois rapidamente deixados pela massa liquida, apresentão-se erosões profundas e córtes a prumo, como os que acabavamos de apreciar.

A mesma disposição de rochedos acha-se no Lageadinho, onde acampámos n'esse dia (16) junto a um fio de agua que se deslisava por sobre um chão de pedras, indo de quéda em quéda, perder-se na varzea proxima.

Procuravamos sempre seguir os pousos que as forças, pelas nossas recommendações, devessem escolher: assim proporcionavamos, de antemão, as marchas e attendiamos ás conveniencias dos acampamentos futuros.

Do ribeirão Verde ao Lageadinho tinhamos caminhado duas legoas e um quarto, e, pela natureza do terreno e impedimentos com que se podião contar, era marcha já penosa. Soubemos comtudo, ao depois, que, por ter seccado [27] aquelle lagrimal, contra as informações que haviamos colhido, prolongára-se ella uma legoa além.

No Lageadinho a abundancia de guabirobas (eugenias) forneceu-nos excellentes fructosinhos. Entre todas faremos especial menção da guavyra[15], cujo fructo assucarado tem sabor mais agradavel e menos adstringente que o araçá de corôa e é sobretudo muito maior em dimensão.

É um arbusto baixo, de folhas largas, tronco pardacento claro.

Diversas especies de guabirobas ahi se vião, umas do tamanho de plantas fruticulosas, outras frutescentes; umas com fructos miudinhos amarellados, outras com bagas maiores, d'aquella côr ou ainda, esverdeadas.

Á tarde, como de costume, cahio copiosa chuva. Amainou promptamente. Depois d'ella, descambou o sol por traz de nuvens rôxas, orladas de fimbrias de ouro e prata, que, por largo tempo, atirárão lindos reflexos sobre as campinas, até se confundirem com os pallidos clarões da lua, a qual illuminou, com baça luz, os negros penhascos, portaes d'aquella entrada colossal, com que defrontavamos.

Deixando o Lageadinho, fomos, com tres e meia legoas, acampar junto ao corrego da Volta, atravessando sempre campos virentes, cortados ora por fios de agua alimentados pelas chuvas, ora por matasinhas e capões que vão apparecendo mais frequentemente, á medida que raleão os cerrados.

[28] Tinhamos dividido a extensão a viajar. Ao meio dia, depois de duas legoas, descançámos junto ao corrego, chamado do Castelhano, por ter ahi sido, segundo nos disserão os soldados, fuzilado um official paraguayo na occasião da excursão ao Coxim.

Repousámos debaixo da folhosa coberta de uma lixeira (dilleniacea[16]), para comermos um pseudo-jantar, em nada conforme ás regras de Berchoux[17].


.... tu, Tityre, lentus in umbrâ, etc.


Tambem os gastronomos nunca imaginárão a possibilidade de figurar em idyllios, sobretudo a modo dos nossos, e tal vida não comporta exigencias culinarias.

N'esses casos, quanto mais simples o manjar, tanto mais aturavel. Assim um pedaço de carne, fisgada n'um espeto de páo, um pouco de sal, fórmão um churrasco appetitoso que se come com grande gosto, quando o acompanhão algumas colheres de farinha.

No Coxim, comiamos pura e simplesmente o churrasco: o habito custára-nos a adquirir, mas o organismo accommodára-se.

Com a tarde, continuámos viagem, percorrendo mais légoa e meia até uma matinha que o já citado corrego da Volta atravessa. Obrigados pela noute, armámos barracas.... «Suadentque cadentia sidera somnos». Infelizmente nuvens de mosquitos se alvoroçárão ao derredor [29] dos ouvidos, perturbando as doces consequencias de um somno reparador, ao passo que imprecações de continuo levantavão-se do grupo dos nossos camaradas, a despeito da fogueira colossal que havião preparado. Assim pois, decidimos nunca mais acampar dentro de matas, abandonando além d'isso aquelle modo de viajar que, sobre não dar o descanço preciso aos animaes, fatiga-os com excesso pelo facto de receberem cargas e serem descarregados quatro vezes seguidamente.

Reunida a nossa recovagem, démos, no dia seguinte, começo á viagem habitual, passando, d'ahi a hora e quarto, o bonito corrego do Perdigão, assim chamado, do nome de um sertanejo que levantára uma choupana junto á sua margem esquerda.

Muitas e bonitas macaúbas[18] dominão o baixo matagal que as cérca, vencendo-as em altura um grupo de boritys, cujos fructos attrahião innumeros bandos de aráras, umas todas azues[19], outras de papo vermelho[20] ou amarello alaranjado[21].

A mais que modesta habitação de Perdigão não escapou á furia incendiadora dos paraguayos, ficando como vestigios os esteios carburetados. Ainda sobrevivião á invasão do mato alguns restos de cultura e poucos pés de quingombôs (hibiscus esculentus), e algodoeiros (gossypium), [30] entre aboboreiras e pés de melancia (cucurbita citrullus) resistião ao abandono.

O que levára aquelle pobre fugitivo da sociedade a procurar tão remotos sertões, pisados a vez primeira pela planta de seu pé, abandonando os povoados, alheio a todo o resto do mundo, vivendo vida de exilado? Fôra a necessidade para, por tal preço, obter a impunidade, ou o espirito melancolico de retiramento? Ainda ahi não se achou em salvo: os invasores paraguayos topárão a trilhada que elle abrira e o expulsárão de seus dominios pacificos e incontestados.

Hoje aquella trilha é caminho muito seguido, dando passagem contínua a viajantes, carros e lotes de animaes, de modo que o anachoreta Perdigão deve procurar novos desertos onde vá a gosto «placatâ omnia mente tueri», na phrase de Lucrecio.

Do corrego do Perdigão, levou-nos a trilha, depois de 41 minutos de marcha, á mata que intitulámos das Jaós[22], pelos incessantes pios que denunciavão ahi a presença d'aquellas aves. É uma gallinacea, do tamanho de um frango, sem cauda, de côr pardacenta clara: anda commummente em terra, dando, como a perdiz, um vôo horisontal e pouco prolongado: a carne é alva e muito delicada.

O seu pio começa por uma nota destacada e alta, a que succedem, com intervallo de dous a tres segundos, tres outras rapidas e mais baixas.

[31] N'essa mata havião os paraguayos deixado uma barcaça (nota D), que vinhão puxando desde o rio Aquidauana, para os casos de passagens de rios: media 45 palmos de comprimento e 4 de boca.

Achando-se em bom estado, com mui pequenas reparações, podia perfeitamente servir para as forças, quando chegassem á margem direita do rio Negro.

N'esse dia fomos, sem chuva, acampar, depois de 2 14 legoas de marcha, perto do corrego Fundo, que obrigou-nos á parada pelo estado atoladiço de suas margens, posto que a quantidade de boritys não tornasse difficil o lançamento de um pontilhão, para nos dar segura passagem.

Entre o capim crescia ahi uma linda orchidea terrestre cuja flôr de um rôxo suave, apresentava a massa pollinica pulverulenta, caracter particular á tribu das neottias de Lindley.

Reconhecemos tambem nos campos uma scrophularinea de flôr esverdeada, e uma bignoniacea, com caule um tanto sarmentoso, a qual expandia lindas flôres, côr solferino (carmesim ligeiramente roxeado) que vimos depois com admiração nos pantanaes, como adiante o diremos.

Nos cerrados repetem-se os typos com frequencia: mangabeiras (hancornia speciosa, Gomez) com suas candidas flôres hypocrateriformes, muitas myrtaceas, lixeiras, grandes e pequenas[23] (dilleniaceas), etc., etc. Entretanto o aspecto de todos elles é muito mais vistoso, continuando a predominar em numero os araticús (anonaceas).

[32] Na margem esquerda do rio Negrinho, a tres legoas do corrego Fundo, as quaes constituírão a marcha do dia 18, acampámos debaixo de magnifica cópa de folhudas arvores, formando um excellente pouso, se não fossemos atormentados pelos muitos mosquitos, muriçócas ou pernilongos.

Obrigava as vistas uma bella figueira, com volumoso tronco, ao lado de uma pitombeira[24], que deu-nos excellentes fructinhos, e a cujos pés florescia uma cofœa ostentando, nas suas flôres azues, um brilho metallico muito especial.

O rio Negrinho, entre margens sempre umbrosas, vai perto confundir suas aguas com as do rio Negro, trasbordando com extrema facilidade, depois de algumas chuvas e inundando as cercanias. Perto d'elle, haviamos atravessado algumas braças de pessimo transito, pois que o caminho vara por um aguaçal com fundo lodoso. A côr sombria do capim, a tarde que descahia depois de um dia toldado de nuvens e chuvoso, os comoros pardacentos de cupins, tornavão aquella natureza tristonha e melancolica em extremo.

O rio Negrinho não dava commodo váo: passámos por cima de uma pinguela natural que a quéda de um grosso madeiro formára, transportando as nossas cargas ás costas.

Depois de legoa e meia, feita em terrenos já bastante encharcados, ás vezes por extensos almargeaes[25], outras por matas, em que existem bastantemente os aucurys[33] (palmeiras de folha estreita) chegámos ao Potreiro, onde um grande rancho de palha abrigou-nos contra a chuva, que começava a cahir e promettia dever de durar.

O Potreiro é um vallesinho, fechado quasi circularmente, por dous ramos da serra de Maracajú, a qual vinhamos avistando, havia mais de dez legoas.

Era ahi que se fazia a reunião do gado, pertencente ao cidadão Alves Ribeiro, com destino ao acampamento do Coxim e cuja obtenção, pela falta de cavalhada, ia se tornando cada vez mais custosa.

O lugar é insalubre, em razão da humidade que ressumbra constantemente do solo: por isso a estada n'esse ponto, prolongada por mais de mez, foi extremamente nociva ás forças, sobretudo quando as aguas, em Maio, contra a expectação, attingirão ao maximo crescimento, nos pantanaes.

No Potreiro organisámos os trabalhos, que deviamos enviar ao commandante das forças: traçámos o caminho topographicamente, acompanhando-o uma ligeira memoria descriptiva, que marcava os pousos e os lugares, onde se tornavão precisos alguns melhoramentos.

O caminho, como já o havemos feito sentir, é uma simples trilha. De natureza argilo-silicosa (época terciaria), póde ser considerado secco, com excepção de alguns pontos, que serião facilmente transpostos. Com exclusão do Portão de Roma, proximidades do Lageadinho, margens de corregos e ribeirões, os declives são sempre bons.

Refazendo-nos de forças e tomando provisão de carne, deixámos o Potreiro no dia 26 de Fevereiro, para dirigirmo-nos á passagem do rio Negro, onde começava a [34] vereda, que dizião ter sido deixada por alguns fugitivos de Miranda.

Ahi nascião tambem as incertezas; dominava a indecisão. Sem guia, iamos correr risco de uma exploração que nos parecia, como realmente o foi, penosissima, cheia de perigos e sobretudo infructifera.



CAPITULO III



A nossa verdadeira missão ia ter principio. Verificar a possibilidade de uma passagem, até o Aquidauana, no tempo das aguas, quando os pantanaes se tornão intransitaveis, seguir, ao longo da serra de Maracajú, uma pretendida senda, que fugitivos havião aberto; observar a natureza dos terrenos e os obstaculos que pudessem impedir a descida das forças nos mezes de Abril e Maio, continuar ainda mais a exploração até o rio Aquidauana, cuja margem esquerda estava occupada pelo inimigo, apromptar os meios de passagem para aquelle rio, era o nosso programma, vasto e brilhante, importando não pequena responsabilidade, mas cuja boa execução principalmente dependia de meios, que não nos tinhão sido ministrados. Oito soldados nos acompanhavão e, d'esses, nenhum tinha conhecimento da tal passagem, aliás com rações, sómente para onze dias, e armados com fuzis de pederneira, nos quaes as balas só entravão partidas!

[36] Um unico machado era propriedade nossa particular.

As chuvas que não cessavão, cahindo de continuo fortes rajadas, havião arruinado, quasi totalmente, a carne preparada no Potreiro, de modo que, de lá, partimos com as provisões meio esgotadas, confiados apenas no muito gado que vaguea pelos campos, por onde deviamos passar. Iamos viajar á tôa, esperançados em que nosso bom fado nos facilitasse caminho e alimento.

Era muito exigir.

Não procuravamos, nem mereciamos a terra de Promissão; nunca nos guiou portanto a nuvem de fogo, nunca nos cahio o manná de Jehovah.

Desde a sahida do Potreiro, comprehendemos as difficuldades que nos esperavão, e forão desde logo se complicando.

As terras, já nimiamente baixas, apresentavão grandes extensões completamente alagadas, a que se seguião matas de aucurys (nota E), onde a humidade continua mantinha o terreno ennatado, sempre lodacento, que nos custou boas horas para vencer.

A trilha ia, além de tudo, tornando-se cada vez mais apagada: as taquaras, nos cerrados, cruzavão-se emmaranhadas, deixando apenas passagem para pedestres; nas varzeas, a agua já era muita e as abertas indecisas.

Viagem fadigosa, em que se descarregavão incessantemente os cargueiros, vencendo depois de um dia completo de marcha, legoa e meia tão sómente!

Quasi ao cahir a noute, acossados logo dos mosquitos, entravamos na mata do rio Negro, quando nos deteve os passos uma corixa (nota F), fonte de novas contrariedades.

[37] Esta corixa dava nado em toda sua extensão, obrigando-nos a fazer pelotas, que devião transportar nossas cargas. Nada mais expedito: um couro bem secco, levantado nas quatro pontas, que se ligão por cordeis ou tiras, recebe os pesos que, são solidamente amarrados, de modo a formarem um systema immovel, em cima do qual assenta-se o passageiro, como melhor puder. Depois de lançada á agua com todo o cuidado, atira-se um nadador á frente da pelota, levando entre os dentes a cordinha que a guia, ao passo que um segundo ajuda a mantel-a na boa direcção, empurrando-a de quando em quando.

A impressão que recebe o viajante bisonho, ao sentir-se em tão singular embarcação, é profunda; parece-lhe que, a lodo momento, o fragil bóte improvisado vai submergindo-se pouco a pouco e que a agua invade por todos os lados.

Entretanto depois passavamos, com perfeita tranquillidade, não as mansas aguas de corixas, mas a forte correnteza de rios caudalosos, em pelotas que levavão para mais de seis arrobas: tal era a confiança que nos inspirava a pericia natatoria dos irmãos Campos Leite, homens preciosos para esse serviço e incansaveis.

O tempo que haviamos gasto na transposição d'essa corixa, fez com que chegassemos, com a noute já fechada, á margem direita do rio Negro, e, muito depois de nós os animaes de carga e camaradas.

A lua veio então esclarecer a nossa posição, que podia, por momentos, tornar-se muito critica.

De nivel com a margem, corria furioso o rio, parecendo dever trasbordar e invadir o terreno, em que contavamos passar a noute; e a rapidez das aguas, a mataria baixa, [38] com vestigios recentes de uma d'essas temiveis cheias, não pouco nos inquietavão.

Entretanto imaginámos expedientes, que, salvando-nos momentaneamente, não nos promettião agradavel perspectiva: soltar os animaes, suspender as canastras e mais objectos nas arvores mais altas, procurando nós mesmos refugio na rama extrema.

Tivemos crueis momentos de anxiedade.

Por isso, com prazer immenso, indescriptivel, ouvimos um dos soldados gritar: o rio está baixando!

Corremos todos a examinal-o.

A descensão das aguas era, na realidade, sensivel aos olhos: em breve, deixárão meio palmo descoberto, minutos depois, dous palmos e, d'ahi a pouco, meia braça. A facilidade, com que se davão essas oscillações, demonstrão a proximidade das cabeceiras: com effeito, a pouca distancia ficava a serra, d'onde procedem as nascentes do rio.

Á hora em que nos recolhemos, elle baixára mais de braça e, no dia seguinte, as margens estavão barrancosas, como o são normalmente.

O rio Negro apresenta ahi 20 a 30 braças de largura: a velocidade é de 3 a 4 palmos por segundo, profundidade de 10 a 12, não fazendo váo em parte alguma. Depois de um curso muito irregular por terrenos empantanados, recebe o Tabôco, e, ora entre margens, ora espraiando-se pelos campos, vai ter ao rio Paraguay.

As suas proximidades são perigosas pelos paúes, que com elle visinhão: as febres intermittentes, paludosas e outras graves enfermidades originão-se ahi dos miasmas deleterios, produzidos pela acção solar sobre os depositos vegetaes [39] que as enchentes atirão nos campos e abandonão, quando dá-se o escoamento das aguas.

Na etiologia da molestia, que grassou na força e a dizimou, depois da sua estada junto ao rio Negro, a—paralysia dos membros inferiores ou paraplegia—, devem ser assignalados o ar humido e vapores corruptos, que, por mais de mez, respirárão aquelles que se achárão debaixo de sua perniciosa influencia.

O chão, sobre que assentava o acampamento geral, era uma verdadeira turbeira: com poucos palmos de profundidade, tiravão os soldados, junto ás barrancas, agua, de poças d'onde sahião páos, que, seccados, servião para alimentar o fogo de suas modestas cosinhas.

Mais tarde fallaremos, com algum desenvolvimento, n'essa enfermidade, que roubou-nos tantos companheiros, n'um curto intervallo de tempo.

Passámos o rio Negro em pelotas, e, ás 10 horas do dia 26 de Fevereiro, achavamo-nos na sua margem esquerda, n'uma estreita trilha que devia-nos guiar, sempre em rumo certo, asseverára-nos na vespera, seriamente, um indio do Potreiro.

O tal aborigene não professava os principios de Epaminondas: entretanto, ainda n'aquelle dia, davamos á sua asserção toda a fé, a estimavamos valiosa,


«N'aquelle engano d'alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito.»


Fomos acampar junto á serra que, a 500 braças do rio, ergue-se empinada; e ahi aproveitámos o sol para seccar [40] as nossas roupas, que tinhão-se ensopado em diversos mergulhos de canastra, nos alagadiços.

Diante de nós abrião-se os campos além, com cerrados ao longe; á nossa direita, havia um matosinho com olhos d'agua, e, á esquerda, levantava-se uma serrania elevada, cujos cabeços mais proximos reflectião ao sol, grandes quebradas vermelho-rubras, confundindo-se os mais afastados, n'uma linha continua, com o azul do céo.

A serra de Maracajú[26] percorre a direcção constante, media de N. N. E. a S. S. O., desde perto do Piquiry até as ramificações na republica do Paraguay e na provincia do Paraná. Interrompida de quando em quando, ás vezes seguida, e com alturas diversas, destaca ramos, que correm, ou parallelamente, ou ainda perpendicularmente, como o vimos no Potreiro.

A sua estructura geologica é de grés argiloso, compacto em certos pontos; tendo soffrido a acção de aguas, manifestada, em muitos lugares, pelas extensas linhas parallelas, como já o haviamos observado na serra da Cabelleira, em Goyaz, e em todos os serrotes do caminho do Coxim.

É evidente que o lago, cuja existencia parece-nos[27] tão claramente patenteada, tomava proporções de mediterraneo, [41] á vista da extensão occupada, e o estudo comparativo das diversas alturas, que se notão n'essas differentes cadêas, deve trazer resultados interessantes, dando certeza scientifica n'esta curiosa questão.

A serra de Maracajú não foi, de certo, resultado de erupção, mas sim de levantamento, devido a algum terremoto, das camadas da região que a cerca, e que apresenta os mesmos typos geologicos.

A vegetação acompanha as dobras e declives da serra até o topo: só os pedaços de desaggregação achão-se desnudados.

O aspecto que esses pontos apresentão, é quasi sempre regular: ora, são córtes a pique, ora, fórmas abauladas; algumas vezes, á semelhança de arcos com irradiações, outras, traços continuados e dispostos parallelamente: a côr é visivelmente de barro, a disposição schistosa.

Existe controversia sobre o nome que deva ter essa cadêa de montanha: para uns é a serra de Amambahy[28], para outros, de Maracajú. Parece-nos que o primeiro nome só póde convir á sua parte meridional, quando dá nascimento ao rio d'aquelle nome, antes de penetrar no territorio da republica e de estender os seus braços para as provincias do Paraná e Rio-Grande do Sul, a cujo systema oreographico vão pertencer.

No primeiro pouso junto á serra, verificámos que o [42] nosso ultimo pedaço de carne estava arruinado: comemos comtudo um saboroso churrasco de queixada, morto na vespera, cujos restos forão devorados pelos nossos camaradas.

Embaidos com esperanças no muito gado, não consideravamos então o perigo de nossa situação e adormecemos com a doce persuasão, que em breve concluiriamos aquella peregrinação.

No dia seguinte (27) puzemo-nos em marcha, encontrando, logo ao sahir, tres a quatro trilhas, que levavão para direcções mui differentes.

Seguindo, ao acaso, por uma d'ellas, fomos esbarrar n'um pantanal: tomando outra, de volta ao ponto de partida, fomos ter a um matagal impenetravel. Comprehendemos então, que erão ellas formadas pelas pisadas do gado, que deviamos só confiar na bussola, e, quanto nos fosse possivel, ir cortando sempre a rumo sul.

Essa marcha, cançativa para nossos animaes e sobretudo para os homens que nos acompanhavão de pé, não pôde prolongar-se por muito tempo, pela grande quantidade de sapé cortante (anatherium bicorne) e cragoatás (bromelia spinosa).

Esbarrámos de novo com uma mata fechada de mimosaceas espinhosas, que foi necessario rodear, depois de perdermos muito tempo.

Logo depois atravessámos uma campina, coberta por gramineas mui rasteiras, na qual gastámos mais de uma hora, pela natureza do chão fôfo, em que se atolavão os animaes. Observámos que, n'aquellas pradarias perfidas, não se nota o rasto de nenhum animal, e que, por instincto, [43] procurão sempre desviar-se d'ellas, percorrendo uma fita mais solida, intermedia entre o campo e os bosques, que bordão a fralda da serra.

Essa zona, além de difficultosa, a unica viavel, offerece desvios mui longos, voltas muito extensas, de modo que, para marcharmos um quarto de legoa, na boa direcção S., faziamos tres quartos, virando quasi sempre para L., mas raras vezes a O.

A viagem, assim em zig-zag, tornava-se muito monotona; pois que, tomando ponto de referencia em alguns dos cabeços da serra, sempre os viamos na mesma posição em que os tinhamos observado.

Desanimados, sem róta certa nem esperança de a encontrarmos, acampámos, quasi ao anoitecer, n'uma varzea, não muito humida, despida de arvores, a que chamão barreiro.

São campos salinos, em que se fórmão poças de agua notavelmente salgada, com sabor muito apreciavel para os animaes, que ahi se reunem, em grande quantidade, não só mammiferos como aves.

Uma graminea pardacenta, muito baixa, que parece vegetar com difficuldade, algumas synanthereas, espalhadas aqui e acolá, e poucos pés de mimosas, constituem o aspecto botanico d'esses barreiros. Ás vezes tambem apparece uma bignoniacea, o para-tudo[29], principalmente para os lados do Apa e norte da republica do Paraguay.

[44] N'esse barreiro vimos innumeras pégádas de gado. Ao longe mugião rezes, acordando em nós a esperança de fazer caçada proveitosa, pois que confiavamos na certeza dos tiros de nossos soldados.


«Desejos sempre vãos, reaes só dôres!»


D'ahi a horas, voltárão os caçadores, cabisbaixos, merencorios: nenhuma pontaria acertára. O gado, bravio em extremo, fugia apenas presentia qualquer vulto e sua obtenção, por arma de fogo, tornava-se tão difficil, quanto a de qualquer animal das selvas. Refreando as redeas á appetencia, que se havia despertado ao som dos tiros, para melhores occasiões, passámos a noite, impacientes pela manhã. Entretanto esse primeiro dia devia de ser o resumo de toda a nossa viagem.

A narrativa de infelicidades sempre uniformes não póde de certo affectar senão uma fórma descriptiva, cuja prolongação hade impreterivelmente tocar, tão de perto, os dominios da monotonia, que a repercussão é infallivel no espirito do leitor.

Consideremos, pois, as miserias por alto, englobadamente e apressemos a narração, que não deixa de ser custosa.

Fiquem os soffrimentos por minutos, por segundos, aos que lhes sentirão os espinhos.

Em todos os dias subsequentes, andámos perdidos; ora, estacados por muitos dias em pousos, á espera de nossos animaes que fugião, 6 e 7 legoas atraz, perseguidos dos mosqui Em todos os dias subsequentes, andámos perdidos; ora, estacados por muitos dias em pousos, á espera de nossos animaes que fugião, 6 e 7 legoas atraz, perseguidos dos mosquitos; ora, caminhando por cerrados inundados, ora abrindo veredas em taquaraes, que afinal nos obrigavão a [45] retroceder, ora emfim, rodeando as campinas, de que fallámos já, cahindo, para distracção, em grandes pantanaes.

A zona que percorriamos era uma baixada, alagada pelas aguas da serra e estreitada por duas lombas; uma junto ao monte, coberta de taquarissima e aucurys e a outra fronteira com cerrados, que não podiamos alcançar em razão dos pantanaes, que encontravamos, apenas tentavamos descer.

Aquella região é a mais ingrata possivel.

Com o gado, que entretanto avistavamos, pastando em grandes manadas, não podiamos mais contar: milhares de decepções tinhão-nos convencido da impossibilidade em obtel-o.

Tudo nos corria em contrario: nenhum fructo, a agua pessima e sempre quente: os nossos animaes afracando, outros fugidos, nós completamente perdidos e arcando, desde muitos dias, não com essa falta de alimentação que haviamos anteriormente sentido no Coxim, mas com a verdadeira fome, descarnada e horrorosa.

Sustentavamo-nos com duas chicaras de chá, uma ao sahir do pouso, outra ao anoitecer, medidas e reguladas, em attenção ao terrivel ámanhã.

Os soldados chupavão miolo[30] de macaubeiros; comião jatobás[31] verdes, cujo sabor desagradavel sobrepuja ao cheiro nauseabundo.

[46] Esses nossos fieis companheiros de viagem e soffrimentos trazião-nos sempre, com admiravel lealdade, a sua insufficiente colheita de fructos.

N'esse estado de depauperamento de forças, a anorexia era completa; custára-nos apenas o primeiro dia de fome, nos outros, sentiamos nauseas, syncopes frequentes e completa turbação de vista.

Entretanto nunca o desanimo pairou sobre nós. Como n'um naufragio, procuravamos, luctando e debatendo-nos, uma sahida para essa crise.

Abandonámos cargas e canastras no mato.

Alliviando os animaes, que nos restavão, caminhavamos sem cessar, apezar do estado de fraqueza que nos acabrunhava, interrogando as menores treitas, consultando a cada momento o horisonte, fazendo continuo fogo sobre rezes, cuja vida illesa ficava garantida pelo nosso caiporismo... e, sobretudo, pela distancia, em que erão atiradas.

Oito dias d'esse martyrio ingente que nos esgotava as forças, havião-se passado, nos quaes só tinhamos vencido onze legoas.

Decidimos, tomando para O., ir cahir na parte conhecida do pantanal, embora estivesse ella completamente coberta pelas aguas. Não podiamos continuar semelhante viagem, debaixo de auspicios tão negros e terriveis; não deviamos, sem grave imprudencia, teimar em achar caminho, por onde só havião passado algumas pessoas, acossadas do inimigo, e occultando os signaes de sua fuga.

Assim, pois, voltando as costas á serra, seguimos por uma trilha firme de gado, em direcção ao poente, caminhando n'este rumo mais de uma legoa.

[47] Encontrámos, com alegria estrondosa, córtes nas arvores, que significavão a passagem recente de um homem. Ainda mais, esbarrámos n'um pouso de fugitivos abandonado, e, o que é melhor, com um mato de palmeiras, que nos derão palmitos e côcos.

A agua excellente de um corrego e aquelles ingredientes formárão uma refeição solemne, com a qual surgio em nós a esperança de podermos ter outras melhores: vestibulo para momentos mais suaves, a que tinhamos feito completo jus.



CAPITULO IV



No dia 4 de Março, pelas onze horas da manhã, alcançámos o caminho do pantanal.

Haviamos, na nossa digressão, escapado aos alagadiços do rio Negro, que davão nado, e restava-nos a parte mais secca, para chegarmos ao Tabôco e, com facilidade, á aldêa da Piranhinha, d'onde deviamos ir ter aos Morros.

Esta parte, mais enxuta, apresentava comtudo uma profundidade em aguas, que nos incommodava sobremaneira. Viajando continuamente com as botas molhadas, chegámos ao pouso da Piuva[32], onde um soldado conseguio emfim..... matar uma rez.

A rapidez, com que foi ella esquartejada, a fogueira, que chammejou logo, atirando ardente calor sobre immensos pedaços de carne espetados, o olhar devorador de todos, [50] a impaciencia que obrigava a comer partes semi-crúas, attestárão a importancia d'esse tiro abençoado.

Julgavamos, eu e o meu companheiro, dever de ter appetite feroz, como o dos soldados: entretanto, nossos estomagos mais delicados, mal podérão aceitar uma minima porção da alimentação necessaria.

Apraziamo-nos, porém, em apreciar o movimento continuo das facas, o trabalho incessante dos queixos que funccionavão, depois de tantos dias de quasi absoluto descanço, a modo das mandibulas dos heróes pantaguelicos de Rabelais.

Durante toda a noite não se cessou de comer.

A fogueira, de continuo, assava churrascos, que desapparecião fantasmagoricamente e despedia, sobre aquelle grupo faminto, reflexos, que fazião reluzir a avidez de seus olhares, a sofreguidão de sua occupação.

A manhã de 5 pareceu-nos mais risonha.

O aspecto das cousas havia-se modificado radicalmente e podiamo-nos considerar salvos do perigo imminente.

Então, por uma das prerogativas felizes do espirito humano—a reluctancia ás reminiscencias desagradaveis—os tempos de desgraça parecia-nos se tinhão passado em época mui remota, talvez nos dominios de tétrico sonho.

Só cuidavamos no presente, que se abria para um futuro de doces compensações.

Accresceu á nossa satisfação um pucaro de delicioso mel de jaty (Nota G), que nos trouxe um camarada.

N'aquelles cerrados havia grande abundancia de colmêas, e, d'ahi por diante, podiamos adoçar alguma bebida.

[51] Até a margem direita do rio Tabôco, o terreno todo constitue, com pequenos intervallos, um pantanal de muitas legoas de extensão, o qual nos não custou, comtudo, muitos dias de viagem, pela firmeza da trilha em que se anda.

No principio das aguas e no seu final, pelo embeber das terras e depois pelo seu deseccamento lento, o transito é mais penoso, quando a natureza do sólo não se opponha á formação de atoleiros e tremedaes[33], como em alguns pontos em que prevalece o elemento arenoso.

Os pantanaes, no districto de Miranda, produzidos, como dissemos atraz, durante a estação chuvosa, pelo trasbordar de todos os rios, ribeirões, corregos e regatos, que cortão aquella zona de terreno muito baixa e plana, estendem-se entre o Aquidauána e o rio Negro, occupando muitas legoas, desde a base da serra do Maracajú até o rio Paraguay, nas quaes, só de ponto em ponto distante, se encontra lugar firme e secco, em alguma collina mais elevada nas planicies.

A invasão das aguas nos campos, sensivel nos principios de Novembro, toca ao maximo nos meiados de Fevereiro e Março, decrescendo em Abril e escoando-se em principios de Maio.

Esta regra, fixa para a zona que percorremos, soffre grande alteração nas proximidades do rio Paraguay, por isso que, quando os rios seus tributarios já inundárão os [52] campos, elle vai lentamente engrossando; trasbordando por seu turno, quando os contingentes tendem a baixar, dando-se o escoamento dos pantanaes de Miranda.

O caracter, que tem o trasbordamento d'aquella massa enorme de aguas, é muito importante.

Os lugares proximos ficão completamente alagados; as mais altas arvores, cobertas, mal deixão vêr a extrema rama, e grandes canôas, senão vapores, navegão livremente, a tres e quatro legoas de distancia do verdadeiro alveo do Paraguay.

As enchentes, ás vezes, forção a que os rios do districto de Miranda sejão refluidos e despejem de novo nos campos a agua que não encontra vasante.

N'essa occasião, a navegação faz-se com extrema facilidade e celeridade; as canôas cortão, como diz-se, a rumo certo, e abrevião de muitos dias a viagem, sobretudo quando ella se faz rio acima, por encontrarem aguas placidas e dormentes, e não a correnteza contraria de um curso veloz.

A zinga habitual, que o barqueiro finca no leito do rio, para fazer caminhar a canôa, é então substituida por compridos páos de forquilha, para aproveitar os ramos das arvores submersas e afastar d'elles a barquinha, na occasião precisa.

Os pantanaes, que atravessámos, offerecem á vista um aspecto de vegetação com caracter particular, o qual reproduz-se uniformemente pelo numero limitado de generos de plantas que resistem, em inundações periodicas, á immersão de suas raizes, durante mezes inteiros, e á seccura completa, durante o resto do anno.

[53] Monocotyledoneas, sobretudo cyperaceas, abundão naturalmente, durante as aguas, e differentes especies de capim, entre o qual nympheaceas e outras plantas palustres se expandem, cobrem grandes espaços, nos quaes só cresce um arbusto, o mureci-penina[34] (byrsonima chrysophylla), unico que apparece nos verdadeiros pantanaes. Nos campos alagados, capões e cerrados, surgem de dentro d'agua.

Com admiração vimos lindas convolvulaceas, cujas flôres azul-celestes (hypomœa) casavão-se agradavelmente com as corollas, côr-solferino (carmim-roxeado), de uma notavel bignoniacea (caule sarmentoso).

Muitos grupos de araçás, chamados vulgarmente de corôa, levantão-se, aqui e alli, no meio do capim. Disserão-nos que esses fructos produzem febres intermittentes; a razão nos não parece clara, entretanto nenhum sertanejo deixa de afiançar, com toda a energia, que o araçá do pantáno[35] dá sempre maleitas.

Observámos que, á medida que as aguas vão subindo, o capim desenvolve-se; razão pela qual, nas proximidades do rio Paraguay, podem-se arrancar pés de algumas braças [54] de comprimento. As abertas n'elle indicão as trilhas e pisadas de gado, as quaes são excellentes guias para lugares enxutos.

O aspecto de um pantanal é profundamente melancolico: o viajante fica possuido de um sentimento contristador, ao atravessar aquellas paragens, em que o perigo póde sorprehendel-o a cada instante.

O chão furta-se ás suas vistas indagadoras. O bater monotono dos pés dos animaes na agua, os sombrios aspectos que o cercão, os comoros de cupins que, com escura côr, surgem, aqui, acolá, de entre moutas de capim pardacento, o silencio de toda essa natureza tristonha e anormal, acabrunhão a alma e a prostrão grandemente.

O horisonte parece acanhado: o céo como que pesa, com curva mais abatida, sobre aquella scena de desolação.

O sertanejo, comtudo, passa calmo e cantando: apenas, de vez em quando, examina, debruçando-se sobre as aguas paradas, se os perfidos enleios das hervas não lhe impedirão a passagem.

Muitas vezes, para um viajor novato, o receio não é fóra de proposito. De repente sobe a altura da agua: já toca o sellim; mais um passo, o cobrirá—é uma corixa—. Apear-se dentro d'agua, formar uma pelota para as suas cargas, atirar-se, prestes a nado, com a corda entre os dentes, é questão de minutos, para o prático, e origem de mil aborrecimentos, para quem não o fôr.

Os viventes, que se encontrão nos pantanaes, achão-se em relação com o seu facies tristonho. É o desadornado socó, que esvoaça pesadamente, indo pousar desairoso sobre as torres de cupim; é o desaprasivel tuyuyú, com o [55] pescoço vermelho e bico longo, que cruza-se nos ares com o desengraçado tabu-yáyá[36]. Alegra, de quando em quando, a vista alguma garça que, com rapidez, corta o azul do céo, estirando o elegante collo e reflectindo, ao sol, o branco esplendido de sua plumagem; rompem, de quando em quando, o silencio, barulhentos bandos de patos (anas) e marrequinhas, que erguem custoso vôo ao minimo ruido.

Nos firmes, as pégádas da temivel onça pintada não são raras, assim como as do tamanduá bandeira (myrmecophaga jubata) que encontra sobeja alimentação nos muitos formigueiros e casas de cupins.

O gado dá-se perfeitamente no pantanal: durante o dia, desce elle todo para os lugares inundados, porém não atoladiços (o que evitão com muito cuidado) recolhendo-se, á prima noite, para os pontos descobertos ou para os barreiros, onde pastão em grandes manadas.

Estas salsas pousadas constituem uma das grandes riquezas da provincia, para a creação de rezes: ahi achão ellas o sal necessario para a alimentação, tornando-se-lhes a carne tão saborosa, que dispensa qualquer preparação, para ser deliciosa ao paladar.

As poças, que se fórmão nas depressões d'aquellas regiões salinas, contém uma agua que os animaes bebem com avidez, voltando, de muitas legoas além, para saciarem ahi a sêde, apezar de qualquer outra que possão encontrar.

Já o dissemos, é um lugar curioso de reunião: nas arvores pousão grandes cohortes de aligeros e melodiosos cantores[37], [56] ao passo que numerosos rastos de porcos[38], veados, antas, tatús, e etc., indicão a continua frequencia d'esses animaes.

Assim como o homem ahi vai esperar motivos para grandes façanhas cynegeticas, a onça, por instinctos mais naturaes, nunca se arreda muito d'esses lugares, tão bem providos para os seus appetites ferozes. Bem junta ao chão, atraz de qualquer moutasinha, prepara ella o bóte que deve dar-lhe a posse do pobre vivente, que se colloca na sua terrivel esphera de actividade. Obrigada a retirada cautelosa, quando se approximão as numerosas varas de queixadas, vai ella mais longe esperar algum, que se atraze e separe-se da columna respeitavel d'aquelles suinos, cujos dentes compridos e aguçados, com razão, lhe inspirão receios.

Nos barreiros o chão é sempre firme e, apezar de inundado por muitos mezes, nunca se torna atoladiço. Tinhamos feito observação que, em todos aquelles campos, onde crescem as synanthereas—perpetuas do campo—, o terreno é sempre estavel: de modo que, de longe, ao avistarmos as campinas, que só differençavão-se, por terem ou não aquellas plantinhas, podiamos com confiança atravessal-as ou procuravamos cuidadosamente rodeal-as.

Poder-se-hia, com menos certeza comtudo, dizer o mesmo, quanto a umas mimosaceas, indicadoras quasi sempre de um local enxuto.

[57] Fugiamos, pelo contrario, cautelosamente das varzeas limpas e vistosas, em que traiçoeira e virente grama occultava atoleiros continuos e perigosos—Latet anguis in herbâ.

Custosa experiencia fez-nos observar essas particularidades, que de muito servirão-nos, no seguimento d'aquella viagem.

Os habitantes do sul de Mato-Grosso procurão, nas épocas de grande carencia de sal e sua consequente e excessiva carestia, tirar, dos terrenos salinos, aquelle necessario condimento, a despeito de haver difficuldade n'essa extracção e os meios empregados serem mui grosseiros.

Nas proximidades de Coimbra existem terrenos, já conhecidos e explorados com vantagem, d'onde extrahe-se o chamado sal da terra, que vende-se completamente impuro.

Em 1855, quando as communicações terrestres, interrompidas pela previsão da proxima navegação do Paraguay, por alguns mezes, deixárão de fornecer o sal para consumo de todos os pontos da provincia, aquelles barreiros[39] tornárão-se fonte de extraordinario ganho para alguns e, por isso, centro de attracção para muitos especuladores.

Entretanto a ganancia achou-se a tempo frustrada, pela entrada de um navio que, cortando aguas acima o Paraguay, foi abastecer de sal o porto de Corumbá e a capital da provincia. Era uma barca de nacionalidade paraguaya; a primeira que aproveitava-se do tratado de navegação entre o Imperio e a Republica.

[58] A essa seguirão-se logo outras, estabelecendo um movimento commercial activo, que deu o ultimo golpe á especulação da utilisação dos barreiros.

A decepção foi merecida, a idéa comtudo não deve perder-se.



CAPITULO V



A crise, em que se achou a provincia de Mato-Grosso, por occasião da invasão de 1865, veio renovar os apuros pela falta de sal, até que de novo recomeçassem as recovagens a transportar este genero das provincias beira-mar. Era a renovação obrigatoria dos meios de communicação antigos, cujo estabelecimento demorado deu lugar ao espirito ganancieiro.

Em Cuyabá vendeu-se o alqueire de sal a 600$000 rs. e em pouco tempo subio a mais de conto!

Entretanto um pouco de industria[40] suppriria ao sal recebido do exterior, ou, pelo menos, attenuaria muito as consequencias de sua diminuição.

[60] A França, por occasião do bloqueio continental, recorreu aos seus sabios e o assucar de beterraba livrou-a do jugo colonial: a sciencia deu as mãos á industria, ajudando a politica espantosa, que podia desfechar golpe mortal no poder inglez.

Em Mato-Grosso, não se tornavão precisos os esforços intellectuaes dos mestres da sciencia. Com pequenos melhoramentos, força de vontade e de trabalho, tirar-se-ião grandes quantidades de sal, cortando os vôos á especulação abusiva e altamente reprovavel. Todos comtudo se sujeitão ás imposições dos monopolistas, que, na razão crescente da carencia, alteavão cada vez mais o preço de seu genero, na carreira vertiginosa de lucros exorbitantes.

Entretanto os barreiros jazem abandonados, entregues aos animaes, que ali obtem, pela lambedura, o que tanto custa aos homens.

A indolencia parece ter assentado sua séde em Mato-Grosso.

Existe nos campos d'aquella provincia, uma população sui generis, meramente entregue á creação de gado, com habitos arraigados, que a inhabilitão para qualquer outro trabalho.

No districto de Miranda, ou se é negociante ou fazendeiro.

A vida do fazendeiro é marcar, em certas épocas do anno, os bezerros, costear o gado, de quando em quando, e negociar com elle.

Sua fazenda é uma área de terreno indeterminada, muitas vezes com 5, 10, 20 e mais legoas de extensão, tendo, em certo ponto, um rancho, coberto quase sempre de palha, [61] raras vezes de telha, que serve de vivenda ao dono d'essas gigantescas propriedades, onde caberião, á larga, dez a doze grão-ducados ou principados allemães.

Ahi passará elle toda sua existencia; 50, 60 annos, sem que lhe corra pela idéa a necessidade de um melhoramento em suas terras, em sua palhoça, a fruição de um canto aprazivel, de um pomar. Raras vaccas mansas rodeão um espaço limpo só pelas patas do gado; porém dezenas de milhares de rezes percorrem as suas campinas desertas e innumeros touros mugem ao longe.

Este aspecto desolador é o mais frequente: entretanto a descripção, que nos fizerão, da fazenda das Pirapitangas[41], pertencente ao Sr. barão de Villa-Maria, indica da parte do seu proprietario, espirito de actividade e gosto pelo trabalho, pouco communs na provincia.

Uma alteração profunda no systema actual de viver não hade comtudo soffrer detença: a passagem para a vida agricola.

A epidemia que grassa entre os cavallos, produzirá a modificação de que fallamos.

Não ha cavallo que resista a essa peste, depois de poucos annos de trabalho, de modo que, em certas épocas, qualquer animal attinge a preços despropositados.

Em alguns annos, a difficuldade em obter cavalhada tem impossibilitado o costêo[42], sem o qual o gado se torna arisco e bravio, como o que avistavamos na base da serra de Maracajú.

[62] Transportada da Bolivia em 1857, começou aquella enfermidade a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres de epidemica. Hoje tornou-se endemica.

A destruição foi quasi completa; mal escapárão alguns, em localidades salubres e aos quaes se poupára o excesso de serviço.

Desde então, annualmente reapparece: ora, atacando com pouca intensidade, ora, levando cavallos aos centos, augmentando com o calor, na estação das aguas, diminuindo com o frio e lavrando, sobretudo, na razão da agglomeração de animaes muares, como aconteceu com os da expedição, durante a estada no Coxim, onde morrêrão quasi todos os burros, não escapando um só cavallo.

A zona, em que actua esse mal, estende-se do sul do districto de Miranda até Cuyabá, exactamente em todos os pontos, onde se dão as inundações periodicas e o alagamento dos campos.

Nos lugares mais altos, em Nioac e junto á serra, é molestia pouco conhecida, e, do outro lado da cadêa, não penetrou ella, ficando limitada nos locaes, em que achou condições favoraveis para o seu desenvolvimento.

O governo da provincia, attendendo á estabilidade d'essa molestia, cujos effeitos ruinosos, ha muito, se fazem sensiveis, mandou contratar um veterinario em França, para vir estuda-la e fornecer meios de combate-la, visto como, sem resultados apreciaveis, continuão as applicações, que experimentão os fazendeiros.

Disserão-nos que se déra a vinda para o Brasil d'esse especialista, o qual, porém, ficára no Rio de Janeiro; não se tratando mais de chama-lo á provincia, em cujo seio [63] dão-se, em escala crescente, os casos de destruição de todos os animaes muares.

Os prodromos da molestia são variadissimos. Ás vezes, manisfestão-se por simples ruidos no ventre: excrementos reseccados e duros, inappetencia completa, magreza repentina. Outras vezes, com falta de todos aquelles symptomas, apparece a impossibilidade ou difficuldade em beber, ficando, comtudo, largo tempo, o animal, com a cabeça mettida n'agua, demonstrando o seu desejo.

Succedem-se então phenomenos, cujo final obrigatorio é a morte.

Ora os animaes ficão tristonhos e, em poucos dias, vão definhando até morrerem; ora tornão-se espantadiços; correm, sem direcção certa, girando até cahirem, ou seguindo diagonalmente; ora completamente cégos; ora surdos.

Em todos os casos, as cadeiras ficão tolhidas, a parte posterior derreada e o animal arrastra as patas trazeiras com difficuldade e cançaço, d'onde provém a especificação de peste-cadeira ou de cadeiras.

Pessoa habilitada procedeu á autopsia de um cavallo, victima d'aquella enfermidade, e encontrou, como era natural, alteração profunda na medula espinhal.

Um curioso de algum merecimento, o Sr. João Lemes do Prado, depois de esgotados muitos remedios, para subtrahir algum de seus cavallos á peste, usou com proveito do crótalo, extrahido da cobra cascavel.

Entretanto, nunca os escapos recobravão o antigo vigor e, apezar de gordos, empregavão extraordinario esforço nas subidas e descidas de rampas.

Parece fóra de duvida, pelos singulares phenomenos na [64] locomoção, inherentes a essa enfermidade[43], que a lesão na espinha dorsal, propaga-se ou repercute-se nos lóbulos cervicaes, como o demonstrão as interessantes experiencias e acertadas indagações de Flourens, na vivi-secção.

Havemos, mais adiante, de verificar curiosas relações entre a peste dos animaes, e a que dizimou parte da columna expedicionaria, confirmando a esclarecida opinião de Backewel, Chadwick, Harrison e Graves, quando tratão da connexão entre as epidemias e epizootias.



CAPITULO VI



Entretanto, a 10 de Março, achavamo-nos na margem direita do rio Tabôco, o qual, contra as previsões de nossos soldados, que trilhavão já caminho conhecido, dava nado de lado a lado, n'uma extensão de mais de 30 braças, quando a sua largura normal não excede de 18 a 20.

Passámos a noite debaixo de um laranjal, que servia de pomar á casa do cidadão Joaquim Alves de Souza, a qual teve de hospedar aos paraguayos, quando elles ião para o Coxim, e fôra testemunha dos attentados que ahi praticárão.

Esses hospedes incommodos forão tratados com urbanidade tão bem fingida, que não duvidárão em deixar o dono da casa em sua fazenda, com promessas de leva-lo com toda familia para a villa de Miranda. Um camarada, havendo, n'essa occasião, tentado fugir, foi pelos soldados [66] fustigado, amarrado a um pé de piuva[44] (peroba) e quasi esfolado pelas pontas do açoute.

Depois d'aquella execução barbara, a que assistio o misero patrão, com custosa indifferença, partírão elles, promettendo voltar breve, concluida a expedição ao norte do districto.

Se elles cumprírão a palavra, Joaquim Alves julgou-se com razões ponderosas para não fazer o mesmo.

Apenas voltárão as costas, fugio com toda sua gente para os matos, tomando depois caminho de Sant'Anna do Paranahyba.

Vingárão-se os paraguayos do logro, feito á ingenuidade de homens brutaes e barbaros, queimando as casas e dependencias, e destruindo tudo quanto encontrárão.

A denominação de Tabôco é de origem guaycurú: significa fundo, apezar de seu pouco volume de aguas habitual.

Alguns indios, porém, d'aquella nação, havendo habitado junto a um peráu, formado n'uma das voltas do rio, derão-lhe em toda a extensão aquella especificação pouco conveniente.

Officialmente e nos mappas da provincia diz-se Dabôco, muito erradamente e sem razão.

Suscitando-se, em Agosto de 1866, a dúvida a respeito do nome exacto, colhemos a certeza não só da boca de pessoas conhecedoras da lingua guaycurú[45], senão dos proprios naturaes d'aquella nação.

[67] Os que dizem Dabôco a todo o trance, não se firmão em principio algum, a menos que apresentem, como autoridade, dous ou tres mappas da provincia, em que apparece aquella palavra escripta por um D.

O rio, no lugar da passagem, tem a margem direita alta, a esquerda baixa e paludosa depois das inundações, frequentes, em razão da proximidade das cabeceiras, se bem de pouca duração. Bellas figueiras e alguns pés de ingá (ingá edulis) tornão esse lado umbroso, ao passo que o outro é completamente descoberto.

Um pouco abaixo, o rio bifurca-se: um ramo segue direcção, no rumo médio O.; o outro diverge para S. O., deixando intermedia uma comprida insua rasa e arenosa.

Os desmoronamentos da barranca direita deixão perceber a natureza completamente arenacea dos terrenos proximos, o que tambem póde explicar o nome de fundo, dado em certa época a um rio que, carregando grandes porções de arêa, modifica com facilidade o leito em que corre.

Fallárão-nos, na realidade, nas diversas phases por que elle tem passado, assignalando-se datas, não mui remotas, em que a sua profundidade variou extraordinariamente.

Ao chegarmos junto ao Tabôco, a noite, ha muito, tinha cahido. Nuvens carregadas de chuva pesavão no horisonte, estendendo um véo tristonho, por entre o qual a lua, a custo, diffundia raios amortecidos e tibios.

As arvores, formando densa mouteira, lançavão sombras vigorosas sobre a superficie turva do rio que rolava, engrossado pelas chuvas passadas, toldadas aguas, em cujo seio, de quando em quando, abria-se, com o espadanar do salto de algum peixe, um vão luminoso.

[68] Com o nosso approximar, um bando de capivaras[46] (hydrochœrus capibara) atirou-se ao rio, afundindo-se com estrondo, e indo surgir na margem opposta, ao passo que barulhentos quero-quero[47], acordando, com estrepitosos gritos, os echos, cruzavão-se nos ares com precipitado vôo.

Ahi achavão-se vestigios da passagem de numerosa comitiva, e, ao aclarar o dia, reconhecêrão os soldados serem pisadas de indios, a despeito de não apreciarmos os signaes que differençassem essas pégádas, das de qualquer outra planta de pé, como com razão o affiançavão elles.

Esses homens são de uma sagacidade espantosa; nunca se enganão e conhecem perfeitamente os rastos de todos os animaes. Ao depois, vimos nos indios demonstração de um tino tão fino, que reconhecem, pela impressão do pé no terreno, a pessoa que a deixára.

O Tabôco dava nado de lado a lado: recorremos aos couros e o passámos com difficuldade, perigando, n'essa occasião, a fragil pelota, em que se mettêra o nosso collega Lago.

N'esse dia (10) deviamos emfim chegar á aldêa dos indios da Piranhinha: aligeirando pois a marcha, tomámos aquella direcção, tendo á frente dous soldados, conhecedores d'esses lugares, que caminhavão com a confiança que lhes faltára junto á serra, isto é, cortando campos, seguindo [69] trilhas imperceptiveis e rompendo por veredas cobertas pelo matagal e capim.

Haviamos deixado a serra de Maracajú e iamos então fraldejando um ramo d'ella, o qual segue para o sul, parallelamente á cadêa, em cujo novo encontro achava-se a aldêa.

Os campos são pouco dobrados; o verdor das arvores, o capim crescido denotavão, que, havia tempo, não lavrava fogo n'elles.

Cerrados, como sempre, se estendem por todos os lados; n'elles apparecem com frequencia as bignoniaceas[48], as quaes tem menos representantes nos das outras provincias: continuão comtudo a predominar os araticús.

Caminhando uma legoa e tres quartos na direcção media S., attingimos ao morrete que faz ponta ao ramo, que, então, diverge para N. S. e vai unir-se á serra, a qual avistavamos de novo, dominando, com pincaros recortados, o aldêamento da Piranhinha.

D'aquella ponta de morro, parte o caminho, que leva ao Aquidauana e ao porto, chamado do Souza, onde existia então um destacamento paraguayo, com uma guarnição de pouco mais de cem homens, a qual vigiava o rio e a estrada do Tabôco, pela qual presumião dever de descer a força brasileira.

Ao dobrarmos aquelle promontorio, avistámos, na distancia de tres a quatro legoas, uma columna de fumaça, [70] que, maculando com rolos alvacentos o puro campo do céo, subia pesadamente, destacando de si ligeiros flócos, em breve dissipados ao sopro da brisa.

Era o fogo do invasor atirado aos campos do Brasil, era o signal da usurpação.

Indicava aquelle ponto negro a posse, depois da perfidia, o dominio após a violencia: posse momentanea que o governo de Lopes havia de pagar bem caro, dominio temporario, que custou milhares de vidas, nas grandes questões á mão armada, que se debatêrão nas planicies da republica do Paraguay.

Caminhando uma legoa e um quarto d'aquelle morro, passámos o lindo regato das Piranhinhas, no meio de luxuriante mata, finda a qual, começámos a trilhar estrada, que mostrava signaes de muita frequencia.

Na realidade n'uma volta além, achava-se a aldêa, cujos ruidos, cada vez mais crescentes, denunciavão vida e animação.

Os baques de machados, confundião-se com o cantar de gallos e o vozear de homens, formando um concerto, que então preferiamos aos mais sublimes acórdes do autor de Ernani, pois significava-nos o final de todos os soffrimentos; alegrava-nos o espirito e o corpo, abrindo largos horisontes ao nosso direito de compensações.

Em breve, diante de nós, corrêra um indio.

Noticia importante circulou pela aldêa.

Ouviamos grande vozeria, algazarra continuada, e, quando surgírão ante nós as primeiras palhoças, uma chusma de gente armada se atirou ao nosso encontro.

O aspecto não era agradavel. Chegárão alguns a apontar [71] para nós: a vista porém dos soldados que lhes erão conhecidos, o nosso passo pouco bellicoso, o nosso acompanhamento, em nada medonho, dissipárão logo qualquer dúvida.

A reacção foi estrepitosa. Explicámos a razão de nossa chegada, e, cercados, quasi em braços, no meio d'aquella boa gente, fomos ter a casa do capitão José Pedro, que nos acolheu, não como chefe de indios, mas como um filho da civilisação.

Não pouca estranheza nos causava a apparencia de nossos novos amigos, pintados de genipapo e urucú. Fallavão, com volubilidade espantosa, lingua que nos parecia então extraordinariamente aspera e estavão armados, uns com lanças, chuços, espadas, quasi todos com espingardas e clavinas.

Depois de fartarem, por mais de uma hora, a curiosidade, que lhes causavamos, a um aceno do capitão deixárão a palhoça, em que nos achavamos, e podémos, afinal, comer socegadamente uma gallinha cosida com arroz, que teria merecimento em qualquer parte do mundo.

A noite passou-se em narrar a José Pedro os acontecimentos que havião precedido a guerra com o Paraguay, os successos do sul e os nossos triumphos, que muito o enthusiasmárão.

Fallou-nos elle, com verdadeiro sentimento respeitoso, do Imperador, de Suas altas attribuições e mostrou-se conhecedor reconhecido da benevolencia, que o monarcha brasileiro nutre pelos indios de Seu Imperio.

Narrou-nos, com côres vivas e expressivas, a invasão, suas phases; elogiou o comportamento de varios individuos de sua tribu, nunca fallou de si, e, mostrando sempre os [72] principios de uma boa educação esboçada, deu-nos prova de intelligencia clara e capaz de desenvolvimento.

O capitão José Pedro de Souza sabia lêr e escrever; mantinha em sua aldêa severa disciplina; organisára uma escola de meninos, na qual figuravão os seus dous filhos e sempre se havia mostrado affeiçoado aos brasileiros, unindo-se com elles nas horas de infelicidade.

Era digno, debaixo de todos os titulos, de obter do governo imperial a confirmação do posto, que lhe fôra concedido pelo virtuoso missionario frei Marianno de Bagnaia, sob cujas vistas foi educado, na aldêa dos Quiniquináos do Bom-Conselho, além do rio Paraguay[49].

Estabelecidos na aldêa do Naxe-daxe ou de Santa Cruz, a 6 legoas da villa de Miranda, tinhão os indios Terenas procurado um refugio, por occasião da invasão dos paraguayos, dedicando-se logo ao plantio, apezar da carencia de sementes e grãos, em que se achárão.

Entretanto, quando chegámos, já havião colhido boa quantidade de arroz, algum milho e mandioca, da qual fazem excellente farinha.

Na manhã do dia seguinte, aquelles generos com mel e rapaduras figurárão nos presentes, que o mulherio, em peso, veio offerecer aos dous hospedes da nação terena.

Retribuimos com moedas de prata de duzentos réis; o que causou alegria manifesta.

Muitas mulheres, na confusão, accusavão não ter sido [73] contempladas e só se retiravão depois de satisfeitas as suas exigencias, voltando com dadivas novas para fazerem jus á nova distribuição de dinheiro.

O capitão livrou-nos de mais sacrificios pecuniarios, levando-nos a passeio. A aldêa preparava-se para uma festa e varios indios padres cantavão debaixo de alpendres de perypery[50], para que o mel colhido, de dias, fermentasse depressa.

Fallaremos, em capitulo separado, de todas essas ceremonias e mais costumes dos indios de Miranda; ainda depois do muito que se tem dito a este respeito, é estudo curioso esmerilhar as praticas especiaes d'essa gente, que tem conservado o seu typo bem caracteristico, apezar do longo contacto com os brancos.



CAPITULO VII




No dia 11 de Março, dizendo adeos áquella boa gente e acompanhados pelo capitão José Pedro e mais alguns dos seus, tomámos a trilha que communicava a aldêa com a localidade em que se achavão os refugiados, a 3 12 legoas. (Nota H)

Para penetrarmos no reconcavo da Piranhinha, haviamos caminhado completamente a E.; desfazendo a volta, isto é, tomando rumo O., chegámos de novo á ponta de morro, de que acima fallámos e dirigimo-nos para a serrania.

Em breve começou a ascensão.

As matas tornavão-se mais frequentes: o declive era já agro.

De repente desciamos; logo após subiamos cançativa rampa.

A trilha, entaliscada entre fileiras de rochedos altos, seguia [76] ora por baixo de taquaraes, ora por entre densos matagaes.

Comprehendia-se que era caminho de refugiados.

A meiga luz da tarde nos esclarecia paisagens lindissimas: erão quebradas de montanhas, que deixavão a vista estender-se por sobre um rico docel de verdura, nos declives além: erão crystallinas aguas, que, serpeando entre grossos matacões, despenhavão-se—borbulhantes cascatas—riscando de branco a pedra negra e sumindo-se por escuras fendas.

As sombras cobrião já as profundezas do valle, que muito ao longe avistavamos; galgavão apressadas as primeiras dobras da montanha e só alguns raios descorados de sol allumiavão a rama extrema das arvores, que corôavão o topo da serra.

Haviamos caminhado já tres legoas e um quarto, e temiamos, que a noite nos sorprehendesse n'essas brenhas.

Com o cahir da tarde, subimos uma rampa tão ingreme, que obrigou-nos a apear de animal e a galgal-a de pé.

Era o ultimo degráo que restava vencer, antes de chegar ao chapadão, que se estende sobre a cadêa.

Na realidade, pouco depois, pisavamos um terreno plano, silicoso, coberto de cerrados.

O crepusculo, cada vez mais fraco, mal deixava distinguir a trilha. Emfim cahia a noite fechada, quando, por entre a folhagem de umas moutas, vimos brilhar luzes......

Era o final de nossa viagem: era o repouso, não para algumas horas, para uma noite; mas sim para dias, semanas......

Era o descanço, a tranquillidade! a vida!

[77] Era o socego depois de tantos trabalhos, a quietação depois de tanto movimento!

Quantos sentimentos em nós se alvoroçárão!

A responsabilidade official estava salva. Haviamos cumprido a parte mais custosa de nossas instrucções, e cumprido, com risco de saude, com sacrificio penoso, com perigo de vida.

Démos tudo por bem empregado.

O recebimento cordial e espontaneo, que nos esperava, constitue um d'esses factos, que o homem de sentimento nunca mais esquece. Homo sum......

O nosso actual amigo, o Sr. João Pacheco de Almeida recebeu-nos e acolheu-nos, em sua palhoça, com a nobreza, com que um principe hospedaria em seu palacio.

A longa convivencia, na qual estivemos, por muitos mezes, com esse digno cavalheiro, é uma lembrança, que sempre em nós desperta a gratidão.





Passámos a noite em excellentes redes: o somno foi reparador.

A curiosidade, de que se achavão possuidos todos os refugiados, em saberem noticias da força que os vinha proteger, do que se passára desde Janeiro de 1865, era modificada pelo desejo de dar-nos o descanço depois de tanta atribulação e assim podémos desfructar repouso longo e tranquillo, que ainda durava, quando o sol já ia alto......

O acampamento de João Pacheco occupava uma área de 20 braças quadradas. Um bello corrego dividia-o em [78] duas partes, ambas sombreadas, mais do que convinha á saude, por magnificas arvores de construcção.

Amontoavão-se, n'esse pequeno espaço, 18 a 20 casinhas que parecia tinhão-se encostado umas ás outras, apertando o circulo, para protegerem-se reciprocamente.

Á medida que o receio dos paraguayos[51] diminuia, as palhoças ião se affastando, a procurarem mais espaço e liberdade.

A meia legoa d'esse nucleo, formára-se outro ao redor do fazendeiro Francisco Dias, cujo nome servia para designar aquelle acampamento. A posição era muito pitoresca: a serra faz ahi um reconcavo, todo cercado por morros alcantilados, que fechão uma planura de pouca extensão, porém muito aprazivel.

As fórmas singulares, que tomão as montanhas, a brisa constante que ahi reina, mantida por duas grandes abertas que correspondem, tornão esse lugar eminentemente ameno e saudavel.

Todas as pessoas, em numero superior a 100, que compunhão aquelle acampamento, vierão comprimentar-nos no dia seguinte ao de nossa chegada, e no rancho de João Pacheco reunio-se a quasi totalidade do que o districto de Miranda continha em autoridades e fazendeiros.

A desgraça extrema não se descreve: esses homens achavão-se todos de pés no chão, cobertos de farrapos, ostentando no rosto o soffrimento prolongado, o martyrio de muitos mezes.

[79] Obrigados ao trabalho para viverem, manejavão, com ardor digno de admiração, o machado e a fouce e luctavão com todas as dificuldades da inexperiencia n'esse serviço pesado, para proverem o sustento de suas familias.

As mulheres, por seu lado, não se esquivavão da mais ardua tarefa. Causava dó vêr debeis moças socando, por esforço de braços, o milho para reduzil-o a farinha ou descascando no pilão o arroz.

Todos com persistencia exemplar e espirito immenso de resignação, curvavão-se ás crueis exigencias da occasião e, cumprindo com a imperiosa lei do trabalho, vivião vida penosa e altamente precaria, depois do esbulho de todos os seus bens e dos dolorosos trances de fuga ante um inimigo feroz e implacavel.



CAPITULO VIII



No dia 24 de Março, partimos em direcção ao rio Aquidauana, cuja margem direita deviamos explorar, como recommendavão-nos as instrucções.

Alguns moradores dos Morros nos acompanhavão n'este reconhecimento, em que havia perigos a correr, por qualquer eventualidade possivel, quando não provavel.

O Sr. João Pacheco, entre todos, primava pela dedicação e energia; costumado a andar de pé longas distancias, servia-nos de excellente guia, caminhando com toda a galhardia diante de nossas cavalgaduras, que com difficuldade seguião-lhe os ligeiros passos.

O rio Aquidauana, em Marco de 1866, formava a linha divisoria material entre o Brasil e a republica do Paraguay e o districto todo de Miranda, a mais linda porção [82] da provincia de Mato Grosso, achava-se occupado debaixo do titulo de districto militar de Mbotety[52].

A margem esquerda era guardada por um forte destacamento e cuidadosamente rondada em toda sua extensão, e, bem que, desde Maio de 1865, o presidente Lopez houvesse prohibido[53] a transposição do rio aos seus soldados, as correrias, no outro lado, tinhão-se dado varias vezes, com grande susto da população dos Morros.

Iamos assim, apezar da falta de meios para isso, effectuar um verdadeiro reconhecimento militar.

Dirigindo-nos pois para o acampamento de Francisco Dias, que distava do nosso meia legoa, como já o havemos dito, reunimos ahi mais alguns companheiros, com os quaes galgámos a encosta oriental da bacia em que está encerrado aquelle acampamento.

A trilha, aberta pelos cascos de animaes, dá difficil transito, subindo as rampas abruptas d'aquellas fragosidades.

De certa altura, dominámos os picos vizinhos: alargou-se-nos o horisonte; as grandes cópas dos madeiros ficárão ao nivel comnosco e nossos olhares se atiravão além e bem ao longe.

[83] No cume, a paizagem tomou amplidão immensa. Erão campos, a perder de vista, verdejantes aqui, azues mais adiante e roxeados nos extremos limites, cortados por grupos raros de bosques, ao passo que continua mataria mostra o curso das aguas do Aquidauana.

Taes aspectos da natureza são profundamente melancolicos: o espirito como que se atira por essas immensidades, que recordão o indefinido do oceano, sem terem comtudo aquella magestade que encanta a alma, lançando-a n'uma prostração incomprehensivel.

Para o habitante do litoral, as vastidões terrestres acordão milhares de recordações saudosas; suave tristeza se apodera de nós e transporta o espirito ás bellas praias do mar.

Outro sentimento contristador dominava-nos então.

Atraz de um morrete longinquo achava-se a villa de Miranda, presa do estrangeiro e fogos, em um ponto e outro pela campina, lembravão a occupação inimiga.

Muitos dos nossos companheiros se embebecêrão então na contemplação sombria que dominára o mouro, quando, do alto da rocha dos Suspiros, elle lançára as derradeiras vistas sobre os formosos campos de Granada e talvez as palavras de Aixa fossem de novo bem cabidas, como exprobração merecida.

Essa scena desappareceu no descambar da serra.

Por todos os lados novamente cercárão-nos matas espessas, e o sol, a furto, desenhava, por entre a folhagem, seus circulos fugaces no caminho.

Os ribeirões succedião uns aos outros, tombando de quéda em quéda e despenhando-se pelos declives abaixo.

[84] Como primeiros exploradores, fomos-lhes applicando nomes que nos parecião mais convenientes, ora procurando um distinctivo que os tornasse facilmente conhecidos; ora consagrando-os á lembrança de nymphas classicas ou americanas; assim passámos o ribeirão da Congonha[54], mais adiante o de Euterpe e, meia legoa além, o de Catharina Pazes, uma lindissima quiniquináo, que habitava nos Morros.

Junto a este ultimo, tomámos ligeira refeição, comendo, debaixo de aprazivel sombra, a matalotagem preparada de vespera e bebendo a pura lympha d'aquelle bello riacho.

Continuando a descer, achámo-nos em breve na planicie, abrindo-se ante nós os campos, que levão a Camapuan[55], illuminados então pelo brilho do sol em seu zenith.

Tencionavamos visitar dous aldeamentos indios, collocados a 7 legoas do ponto de nossa partida: por isso tomavamos direcção E., da qual deviamos divergir para S., quando procurassemos as margens do Aquidauana.

Assim pois caminhando, n'aquelle primeiro rumo, mais tres legoas, fomos pousar junto ao lindo corrego das Palmeiras, na casa do cidadão Valerio de Arruda Botelho que recebeu-nos franca e amavelmente.

Ahi tivemos um agradavel dia de falha, que nos proporcionou a jovialidade de nosso amphitryão.

Foragido de Miranda, Botelho conservára-se, por muitos [85] mezes, occulto com sua familia nas matas de sua propria fazenda do Embauval, perto do rio Miranda, apesar da passagem continua dos paraguayos por suas terras.

Afinal transportára-se com crianças, e cargas para a margem direita do Aquidauana, depois de uma perigosa viagem de dias, entre as rondas inimigas.

O lugar de sua nova habitação era encantador: magestosos boritys, banhando os pés nas aguas rapidas do corrego, se erguião fronteiros a ella, e na fralda de um morro abaulado coberto de vegetação, que se estende para N. E., formando com outras pontas isoladas, um systema perfeitamente distincto. A grande serra corre para S., elevada como sempre e dependurada desde ahi sobre o ribeirão das Pirapitangas, que deviamos atravessar quatro vezes.

Deixando as Palmeiras no dia 26, em companhia de Valerio fomos á aldêa do Oauassú[56] onde alguns indios quiniquináos havião procurado refugio, depois de expulsos de suas palhoças do Euagaxigo, além Aquidauana.

[86] Tomando sensivelmente a E. N. E., fomos do Oauassú ao aldeamento da Boa-Vista, formado pelos indios laianos, distante do outro tres e meia legoas. O caminho de communicação era uma apertada trilha atirada por sobre lindos campos, ora perfeitamente planos, ora dobrados mais ou menos profundamente.

De quando em quando, fraldejavamos um d'aquelles picos destacados ou passavamos por abertas estreitas entre morretes, cujos córtes a prumo obrigavão a attenção.

A aldêa da Boa-Vista estava situada n'um outeiro encostado a varios morros e constava de cincoenta a sessenta ranchos de palha.

Os indios nos acolhêrão do modo o mais sympathico e cordial. Achámos um rancho feito de proposito, em attenção á nossa visita e ahi nos obsequiárão com grandes mostras de respeito.

Os laianos da Boa-Vista moravão, antes da invasão, a uma e meia legoa da villa de Miranda, e d'entre elles se tiravão os melhores camaradas para o trabalho de roças, serviço de canôas e costêo de gado. Como quasi todos os indios, são excellentes cavalleiros e domadores destemidos.

Em honra á nossa chegada, o capitão José Vieira organisou dançados, que durárão até alta noute, formados tão sómente pelo desejo de festejar-nos, posto que faltasse o incentivo obrigatorio para taes divertimentos a—aguardente.

Diante de um pifaro e um tambor, collocárão-se tres rapazes e igual numero de raparigas, os quaes, de mãos dadas, avançavão e recuavão, imitando os gestos e movimentos titubantes dos embriagados.

[87] Conforme a perfeição ou inexactidão na imitação, colhião os dançadores applausos dos circumstantes ou apupadas, o que fazem batendo a mão aberta de encontro á boca.

A toada é sobremaneira monotona; o dançado igualmente; quando não ha o elemento que transforme o fingido em triste realidade: então todos tem n'elle parte com ardor e furia indescriptiveis, até cahirem completamente exhaustos.

Ao som d'aquella musica insipida, adormecemos.

Depois de combinarmos, no dia seguinte, com Vieira, sobre o ponto de reunião em que elle devia se achar com vinte de seus indios[57] junto ao Aquidauana, despedimo-nos d'aquella gente simples, voltando á casa de Valerio, onde de novo falhámos um dia.



CAPITULO IX



Acabada a digressão, dirigimo-nos no dia 29 para a margem direita do rio Aquidauana.

Atravessando o ribeirão das Pirapitangas, fomos seguindo, de novo, a serra na direcção S., até chegarmos junto á margem do rio, depois de 2 12 legoas de marcha. Os aspectos do terreno continuão os mesmos.

As margens são aprumadas, cobertas de vegetação vigorosa, na qual avultão os elegantes taquarussús, que fórmão grupos compactos, entremeados com elevadas macaúbeiras.

O Aquidauana é o mais bello rio caudal, que se encontra em todo o districto de Miranda: as mais lindas paizagens se fórmão em seu correr; as mais animadas scenas se achão em suas vizinhanças.

A abundancia de pesca e caça ahi se encontra por modo prodigioso.

[90] A natureza virgem, os viventes que lhe infundem o movimento, aquellas matarias tão verdejantes, aquellas aguas puras e crystallinas a reflectirem um céo de saphyra, a serra azulando ao longe, levão o extase a uma alma artistica e a atirão n'essa alegria pura e suave, repassada de tristeza, que Horacio tão bem exprimio pelo—flebile nescio quid.

Lembrar-nos-hemos sempre de um ponto de vista, que attrahiria os olhares do ente menos admirador do bello.

O rio, ahi, descendo em rapida corredeira, morre de repente n'uma bacia, que se abre regularmente no reconcavo de barrancos, cortados a pique.

Ahi as aguas dormem: circulos ligeiros mal encrespão a superficie,—ultimos impulsos da correnteza—e, em ondulações concentricas, vão desapparecer de encontro ás margens.

Ora a brisa geme na folhagem delicada dos taquarussús e brinca sobre as aguas; ora é o vento, que, vergando os flexiveis colmos, anima aquella scena com harmonia mais grandiosa. Assim a vimos.

No alto das margens alcantilosas, as arvores estremecião aos embates de forte sopro: as elevadas cannas se enroscavão, se confundião, se debatião frementes, ás vezes, ligando os flexuosos topos ás copas das macaúbas, outras abatendo-os até tocarem o chão.

O sereno lago, perturbado pelas lufadas, reflectia, de quando em quando, o sombrio de nuvens que orlavão o azul celeste das abertas, por entre as quaes o sol estirava raios destacados de scintillante luz.

Centenares de passaros esvoaçavão: uns tocados pelo [91] vento, com as azas meio encolhidas; outros cortando, com vôo mais firme, a ventania e suspendendo-se n'ella. Muitas marrequinhas brincavão n'agua, sobre a qual brancas garças deslisavão-se veloces, ao passo que lontras fazião reluzir ao sol o pello lustroso, mergulhando de continuo e nadando com ligeireza.

Tudo isto gritava, tudo isto piava, unindo mil vozes diversas, produzindo mil sons differentes que, combinados no espaço, davão á natureza aquella animação e vida, só proprias das obras do Creador.

Outra vez vimos essa bacia debaixo de novo aspecto. Tudo era calma; as aguas não se movião; as arvores não se mexião.

O silencio da natureza como que se deixava ouvir; permitta-se-nos essa expressão arrojada.

Um calor abrasador abatia e enervava a vida; luz deslumbrante penetrava tudo.

A mataria, illuminada nos seus recantos mais sombrios, não tinha mysterios; as arêas apparecião no fundo de esverdeadas aguas, e só cardumes de peixes, symbolo do mutismo, nadavão em todos os sentidos.....

O rio Aquidauana nasce de vertentes da grande serra de Maracajú[58]. Recebe, depois de algumas legoas de curso, os rios Cachoeirinha e Cachoeira, tomando desde então importante volume de aguas, engrossado pelos ribeirões Dous Irmãos, do Taquarussú e Uacôgo[59], que entrão pela [92] margem esquerda e de João Dias, corregos do Paxexi e da Paixão, que desaguão pela margem direita.

Do ribeirão de João Dias, onde existe a ultima corredeira, o seu curso é livre de obstaculos, com profundidade quasi constante de 8 a 10 palmos, e largura média de 30 braças.

Navegavel para grandes canôas n'uma extensão de quasi 40 legoas, fenece no rio Miranda pelo lado direito, confundindo as suas aguas claras e puras ás revoltas e barrentas d'aquelle rio.

O seu nome é de origem uaycurú.

Um capitão dos cadiuéos tem a mesma denominação, com o accrescimo de um T.—Taquidauana.

Não nos podérão explicar o que significa.

Nas matas d'esse rio habitão os animaes vulgares da fauna brasileira: onças (felis variarum specierum), antas (tapirus americanus), lobinhos, jaguatiricas, (felis pardalis, Neuwied), raposas, macacos, (simia v. sp.), tamanduás, tatús (Dasypus v. sp.), muitos queixadas (dicotyles labiatus), etc.; lontras (lutra), ariranhas (lutra brasiliensis) e capiváras atravessão, a todo instante, a correnteza; em seus campos proximos pullulão cervos (cervus paludosus, Desm.), veados (cervus rufus, c. campestris), emas (rhea americana), ceryemas (dicholophus cristatus.); nos cerrados, jabotís (testudo tabulata), muitas cobras venenosas (crotalus horridus, bothrops Neuwiedi, b. surucucú, boipébas, urutús, etc.) e reptis de outras sortes.

Em aves ha os jacús (penelope marail), jacu-cácas (penelope jacucáca, Spix.), jacutingas (penelope leucoptera, Neuwied), mutuns (crax v. sp.), jaós (crypturus noctivagus) [93] e aracuans[60], tucanos (rhamphastos v. sp.), araçaris (pteroglossus), muitas pombas, gralhas, periquitos (psittacula v. sp.), papagaios, (psittacus v. sp.), aráras, enfeitão a ramagem das arvores, ao passo que os inhumas[61] (palamedea chavaria), jaburús ou tuyuyús[62], tabuyayás[63] (ciconia m.), socós (ardea), curicácas (ibis melanopsis) e bandos de numerosos patos (anas) e marrequinhas pousão nas ribeiras ou se agrupão nos rochedos e insuas do rio. (Nota I)

Em pescado o Aquidauana é fartissimo.

Abundão os jaús, os sorubys, dourados, em certos mezes pacús, pirapitangas, corimbatás e pacu-pebas, papa-terras (geophagus, Heckel), raias, etc., etc.

O jaú é o maior peixe dos rios de Mato-Grosso: extremamente [94] voraz, não duvida atacar o homem[64]. A resistencia que tal monstro faz, quando agarrado ao anzol, é prodigiosa e não são raros os exemplos de grandes canôas viradas na sua pesca.

O soruby (platystoma), chamado mais commummente na provincia—pintado—, é peixe de pelle, com malhas pardacentas em fundo escuro. A cabeça é chata, com appendiculos como a dos bagres e occupa um terço do comprimento total: a carne é saborosa, bem que um tanto forte.

O mais abundante e ao mesmo tempo um dos mais delicados peixes de Mato-Grosso é o pacú, (prochilodus, Agassiz) tambem chamado caranha, do qual Pison diz: «melioris saporis et nutrimenti habetur, quàm sargus Europeus»: tem côr pardacenta, azulada n'agua, escamas pequenas com reflexos dourados; geralmente 2 a 3 palmos de comprimento. É achatado.

Em certas occasiões, dá tal abundancia de gordura, que alimenta proveitoso commercio de azeite. A quantidade é prodigiosa.

Nas enchentes do Paraguay, os pacús seguem o movimento das aguas em grandes cardumes, que ficão, na retirada d'ellas, presos em poças dos campos e lagôas, onde morrem á mingoa d'agua e por causa da elevada temperatura.

O ar fica então inficionado muitas legoas em derredor.

Contárão-nos que, em certos pontos perto do rio Paraguay, [95] fica o chão forrado, em extensões importantes, com camadas de 2 a 3 palmos d'esses restos.

A gordura do pacú é preconisada para varias molestias: dizem ser de grande efficacia na pica malacia, pelo enjôo que causa ao enfermo.

Um dos peixes, com razão, mais apreciados dos rios da provincia, é a pirapitanga (species characini), chamado em Goyaz jurupensen (?) e pelos indios guanás araráitiissi (peixe de rabo vermelho). As suas dimensões nunca são extraordinarias; attinge no maximo a tres palmos de comprido; mais commummente regula de um 1 a 2 palmos. A carne, com listras vermelhas, é consistente, saborosa, bem que, como a dos outros peixes de rios, seja crivada de perigosas espinhas bifurcadas.

As pirapitangas sobem os ribeirões e corregos até onde encontrão agua sufficiente. Muitas vezes, ficão retidas em poças mais fundas até a época das enchentes. No corrego dos Laianas apanhámos algumas de bom tamanho, apezar da agua ter apenas 12 palmo de profundidade.

No Aquidauana é muito rara a presença dos monstruosos sucurys, assim como a das perigosissimas piranhas (myletes macropomus).

São habitantes predilectos do grande Paraguay.

Da voracidade da piranha se ha fallado sufficientemente: nada resiste aos dentes aguçados de myriades d'aquelles peixes[65], que no ardor da fome, devorão-se uns aos outros, com rapidez prodigiosa.

[96] Os sucurys[66] (boa murina), verdadeiros representantes antediluvianos, chegão a dimensões que os tornão entes deslocados na natureza proporcional de nosso globo. Vimos uma d'essas serpentes, com 30 palmos de comprido e 15 de circumferencia na barriga; era comtudo muito nova, pois que o nosso amigo, o tenente de guarda nacional, João Faustino do Prado nos asseverou attingirem muito além de 6 braças, contando-nos a este respeito um episodio curioso nas historias de sucurys.

N'uma viagem a Cuyabá, passando elle pelos pantanaes do Piquiry, observára de longe um touro, o qual disparava em todos os sentidos, parecendo retido por um extenso cipó, que conheceu era um enorme sucury. De mais perto notou aquella curiosa contenda. A serpente, depois de estirar-se o mais possivel, retrahia-se de vagar, trazendo, de rastros ao chão, o seu adversario exhausto.

Com o approximar de gente, o touro deu um arranco desesperado e partio á disparada, bramando loucamente. O sucury deu de si até ficar da grossura de tres dedos: depois começou a encolher-se, arrastando a presa que, extenuada por tantos esforços, de novo se deixára cahir.

A victoria era certa; o final conhecido.

Um novo elemento perturbou a peripecia natural. O facão do homem, de um golpe, cortou o sucury e deu a liberdade ao touro. Este, erguendo-se de um só pulo, sacudio [97] a cabeça e, arrojando-se pela campina, com o tronco da serpente pendurada ao pescoço, em breve desappareceu d'aquelle theatro, onde devêra achar a morte.

Ás vezes, os sucurys atacão as onças e antas com exito[67]. Entretanto n'uma margem do Paraguay, o capitão Francisco Domingos da Costa Pereira vio uma onça arrebentar um sucury, por quem fôra enlaçada.

Com uma facasinha o homem defende-se perfeitamente d'essas serpentes: basta uma ligeira picada, levantando as escamas para obrigal-as a desapertar os seus fataes enleios.

Já em occasião opportuna fallámos sobre os ferrões que os sucurys tem ao redor do anus, e o que pensamos a tal respeito[68].

As rochas, sobre que rolão as aguas do Aquidauana, são de grés; em muitas partes, o seu leito é completamente silicoso, em outras, argiloso; lamacento, raras vezes. N'estes ultimos pontos reunem-se os corimbatás[69] (schizodon, Agassiz), piáus, traíras (erythrinus), bagres, etc. Os [98] seixos rolados abundão nas margens e entre elles o silex e os silicatos de ferro.

As enchentes do rio nunca sobem a grandes alturas; raramente trasbordão, não só pela elevação dos barrancos, senão pela facilidade com que se escoão as aguas no rio Miranda, o qual corre por campos baixos e faceis de serem inundados.



CAPITULO X



Do primeiro pouso junto ao Aquidauana, seguimos a O. fraldejando sempre a serra, que se eleva, cada vez mais, com pincaros escalvados e talhados até a base.

Os sitios são agrestes e sombrios; as plantas sexatiles se agrupão de lado a lado da trilha que sobe e desce, conforme as dobras extremas da serrania.

De vez em quando, descobrem-se as corredeiras do rio, cujo ruido se ouve de longe; de vez em quando descortinão-se pedaços de campo distante, com lindas arvores, a modo de vergeis.

N'um ponto, a vereda parece ir esbarrar n'um córte a pique de montanha: a paizagem é ahi muito curiosa e eminentemente pitoresca.

Penetra-se então n'uma fenda monstruosa que dá passagem ao viajante, entaliscando-o n'um corredor humido, cujas gotejantes paredes achão-se tapetadas por achamalotadas [100] begonias, argyrostigmas, capillus-veneris, adiantos, etc.

Depois, sahe-se em campo: ahi acaba a serra[70].

As campinas, queimadas pouco tempo antes, reverdecião depois das ultimas chuvas, e se estendião vicejantes, a perder de vista, como tapiz vistoso salpicado de flôresinhas mimosas[71].

Caminhámos 2 12 legoas até o corrego do Paxexi, onde fizemos pouso, aproveitando ranchos abandonados e em ruinas.

A noite cahio serena: a trovoada do dia dissipára-se ao sopro de forte ventania e tão sómente fugaces relampagos rasgavão um massiço de nuvens, amontoadas em um ponto do horisonte. Roncos longinquos, intervallados, mal se ouvião, rompendo o silencio crepuscular, tão solemne n'aquellas paragens.

A lua subio então, espargindo sua meiga luz sobre a natureza e infundindo aquella doce tristura, que acompanha essas noites de calma e tranquillidade.

O dia da Paixão de Christo, em que estavamos, mais nos engolfava n'essa meditação melancolica, que, sem [101] méta, sem direcção certa, se atira no espaço, e durante a qual os olhos da materia se fixão, sem vista, n'um ponto, ao tempo que os olhos da alma vagueão pelos mundos além creados, pelo indefinido e indeterminado.

De repente, atraz de um morro erguêrão-se nuvens rubras, densas na base, flocadas acima e adelgaçadas. «São os paraguayos, disse-nos o velho indio Palhá, que estão vaquejando no Taquarussú, a 5 legoas d'aqui; queimão á noite os campos, para chamar o gado esparramado (espalhado)...»

Sahindo de Paxexí com a madrugada, fomos em direcção ao porto de D. Maria Domingas, o qual deviamos examinar como ponto de passagem para as forças. Estavamos então a uma legoa de distancia d'elle.

Já se havião reunido a nós os indios da Boa-Vista, que vinhão constituir a nossa guarda de protecção. Montados em bois, marchavão uns atraz dos outros, com a lentidão grave d'aquelles ruminantes, a qual não sería alterada, ainda quando apparecessem os inimigos.

Já começavamos então a avistar grandes manadas de gado: as pontas pastavão em compactos grupos, que se apartavão com a nossa chegada, fugindo as vaccas e bezerros, ao passo que os touros paravão, para olhar-nos com desconfiança e sobranceria. Ás vezes, de um ponto afastado, corria ao nosso encontro um d'elles; estacava junto ao caminho e ahi nos esperava com ar de desafio e resolução. Bastava, comtudo, um simples grito, um aceno para desvial-o, senão para afugental-o bem longe[72].

[102] O caminho vai sempre seguindo o rio, o qual ora sahe em campo limpo, ora d'elle se separa por uma mata espessa e sombria.

Passavamos, de quando em quando, por tapéras[73]; erão ranchos vastos cobertos de herva de S. Caetano[74], rodeados de urzes e espinhos; erão moendas, engenhos, queimados em parte, cortados pelos machados do invasor; em toda a parte, signaes de desolação e destruição inutil e barbara. Só a natureza, no brilhantismo de seus verdores, consolava ao derredor as vistas, cançadas de tamanhas provas de vandalismo; ella que, embora desfigurada pela mão do homem, procura de continuo reparar os estragos que tenha soffrido.

O porto de D. Maria Domingas, chamado pelos indios, alinána, é uma larga aberta na mata. Dava passagem aos carros que, das fazendas da margem direita do rio, se dirigião para a villa de Miranda.

Esse lugar fôra testemunha de uma das poucas scenas de resistencia no longo periodo da occupação paraguaya e apresentava gloriosas mostras d'aquelle feito de armas: varias arvores varadas por balas e cinco ossadas humanas.

Em Maio de 186 , dezeseis indios terenas, occupados [103] em fazer ahi rapaduras, tinhão sido atacados por duzentos paraguayos, os quaes, recebidos de dentro da mata por um fogo vivo e certeiro, em poucos minutos forão obrigados á retirada, abandonando não só mortos como feridos, que morrêrão ás mãos de seus encarniçados inimigos.

Cada vez que uma caravana india passa por junto d'esses restos, levanta-se um clamor immenso: uns quebrão os ossos, outros insultão as caveiras, cuspindo n'ellas e calcando-as aos pés; outros riem-se estrepitosamente e dirigem motejos aos manes paraguayos.

Prohibimos demonstrações d'essa barbara expansão ao nosso sequito, que, a custo, conservou-se calado, ao passar duas vezes por diante dos alvejantes craneos, na entrada e sahida da mata: entretanto alguns indios, descendo de seus bois, apanhárão uns ossos que levárão escondidos.

O porto de D. Maria Domingas offerecia as melhores condições para uma passagem de forças, estando a outra margem occupada pelo inimigo. Pouco frequentado, afastado da estrada por onde os paraguayos presumião dever descer a nossa gente, com váo seguro e commodo, com uma boa mataria para protecção na transposição, era além d'isso o ponto onde convergião todos os caminhos do districto e cuja posse cortava as communicações entre os postos do Taquarussú e Souza, então existentes mais proximos do rio e que deviamos primeiro atacar.

Ahi decidimos que se effectuaria a passagem e trabalhámos sempre n'esse sentido, apezar dos estorvos que se levantárão contra essa escolha razoavel e conveniente. Como, entretanto, não se realisárão as nossas previsões e falhárão os nossos planos pela demora das forças brasileiras [104] e retirada dos paraguayos em Agosto, deixaremos de parte essas questões que tinhão interesse immenso no momento e que o terião no futuro, se houvessem surtido effeito as providencias, que n'aquelle sentido tomámos.

As terras, que atravessámos, pertencião a D. Maria Domingas de Faria, senhora estimada pelas suas excellentes qualidades e virtudes. As suas posses importantes estèndião-se em toda a margem direita e esquerda do Aquidauana e n'ellas estavão estabelecidos os seus parentes mais chegados e filhos, entre os quaes temos o prazer de contar um amigo, o sympathico fazendeiro—João Mamede Cordeiro de Faria.

Tangidos violentamente de suas propriedades pela invasão, havião todos esses pacificos habitantes fugido de suas fazendas, indo, depois de mil trabalhos e peripecias, se refugiar a 50 legoas d'ahi, junto ao rio Taquary, a 7 legoas do lugar onde acampou a força no Coxim.

Sahindo do porto de D. Maria Domingas, fomos pousar no laranjal de Francisco Dias, que estava então acoutado nos Morros, e, no dia seguinte, chegámos ao porto do Pires, a uma legoa do entrincheiramento paraguayo.

Ahi esperava-nos a maior contrariedade. Haviamos combinado com vinte e tantos moradores dos Morros, para que nos fossem esperar n'aquelle ponto, bem armados e com munição sufficiente para defesa, no caso de sermos perturbados na ultima legoa, que restava fazer.

Apressáramos a viagem, com o fim de não nos tornar esperados; deixáramos de parte muita curiosidade que examinar; haviamos desprezado o entretenimento de pescas e caçadas em completa perda.

[105] Verificando os nossos recursos, o municiamento e armas, achámo-nos com 18 pessoas mal armadas e municiadas só a um ou dous cartuxos.

Os indios revelavão receio latente: a cada instante ouvião toques de caixa e cornetas, os quaes, entretanto, apezar de nossa boa audição, nunca podémos perceber.

A cada instante nos avisavão que os paraguayos estavão em vigilancia continua e que erão muito valentes. Accrescia ainda que, n'aquelle dia, haviamos desconfiado da passagem de gente para a margem direita, por causa de pontas de gado que parecião vir tangidas dos lados do porto do Souza e que, por diversas vezes, havião passado diante de nós, n'uma corrida tremenda.

Assim pois, perigos nos cercavão sem a protecção conveniente para os casos de aperto: continuar, fôra temeridade improficua; proseguir, passo inconsiderado.

Resolvemos por isso fazer-nos na volta dos Morros, cortando campo em direcção a um dos picos da serra em que ficava a nossa pousada.

Assim, voltámos as costas ao sul, havendo préviamente lançado fogo á campina que, abrasada pelo sol, incontinente despedio ao céo rolos de negrejante fumaça.

Minutos depois apparecia, na margem de lá, outra fumaça, em signal de aceitação de desafio, como usavão os paraguayos.

Desappareceu, porém, debaixo do formidavel aguaceiro que, por mais de meia hora, despejárão as nuvens, protegendo a nossa retirada e impedindo qualquer tentativa de perseguição.

N'esse mesmo dia (2 de Abril) chegámos ao nosso acampamento, [106] onde encontrámos os commodos que tanto consolo nos havião dado depois dos dias penosos de nossa primeira viagem; ficando em nós, d'aquella digressão ás bellas margens do Aquidauana, a immarcessivel recordação de dias alegres e felizes.



CAPITULO XI



Depois de alguns dias de obrigatorio descanso, remettemos ao commando das forças, acampadas então no rio Negro, os desenhos e relatorios de nossa viagem ao Aquidauana, cuidando desde então nos meios de passagem d'aquelle rio, a qual, segundo as communicações que recebiamos, devia se effectuar em meiados de Junho.

Esperámos comtudo desde Abril até principios de Julho. As mil difficuldades que embaraçárão a marcha das forças, a peste, a fome que acommettêrão os nossos infelizes soldados, o fallecimento de officiaes e afinal do commandante o bravo general Galvão, erão as causas d'essa demora desesperadora que, retendo a expedição em mortiferos paúes, ia, mezes depois, produzir a medonha enfermidade,—a paralysia reflexa—, adquirida n'aquelle periodo fatal.

Não assistimos ás scenas desoladoras do rio Negro; não presenciámos os duros trances em que se vio a columna: [108] haviamos, de antecedencia, pago pesado tributo, com quinhão consideravel de soffrimentos.

Á nossa penna, além d'isso, faltão a precisa energia, as côres vivas para descrever tão extremas necessidades, a força e enthusiasmo para traçar a abnegação, o heroismo e resignação que, n'aquelles momentos tormentosos, patenteou o nobre soldado brasileiro.





Durante a estada prolongada, que tivemos nos morros, procurámos estudar a sociedade que existíra no Baixo-Paraguay, analysar a indole dos indios, o elemento mais numeroso n'elle, investigar o gráo de civilisação em que se achão e os resultados da convivencia com os brancos.

Nunca se apresentará occasião tão favoravel para um espirito indagador. As grandes provanças descarnão os homens.

No soffrimento e na desgraça, o caracter bondadoso se requinta; o máu se exaspera e se irrita; as paixões nobres ou baixas apparecem então ao descoberto da mascara que as convenções e conveniencias da sociedade apresentão aos olhos incautos.

Tinhão se dado as scenas angustiosas da invasão.

O organismo social desarranjado, acabára com as formalidades que, a bem da moralidade, se costumão respeitar: a hypocrisia fugíra ao longe; a falsa amizade desapparecêra.

Nos dias lugubres da fugida ante os paraguayos os verdadeiros amigos forão raros: apresentárão-se rasgos de nobreza [109] de caracter em quem tal não era de esperar e amesquinhárão-se aquelles com quem se contava.

Nunca o egoismo desenvolveu-se em tão larga escala.

Alguns atopetárão as suas canôas[75] com os objectos mais inuteis, trazendo de Miranda até garrafas vasias, ao passo que negavão passagem aos seus affeiçoados da vespera, pretextando falta de espaço.

Outros prohibião a matança de seu gado a pobres refugiados, maltratando-os por cartas, que declaravão ser-lhes preferivel o roubo dos paraguayos.

Do conflicto d'esses sentimentos resultárão collisões, cuja lembrança não deve occupar a attenção d'aquelles que aprecião o homem como typo de nobreza, e sujeitão ás suas virtudes moraes, a ordem physica das cousas, brutal e necessaria.

O valor absoluto das idéas do utopista é tão precioso que, ainda com prejuizo da indispensavel necessidade do conhecimento dos homens, devemos desviar os olhos das lições d'aquella perigosa experiencia: bastão os desgostos no correr da vida normal, bastão os desenganos na sociedade polida, no mundo civilisado, em seus eixos, em seu curso natural.



CAPITULO XII

OS INDIOS DO DISTRICTO DE MIRANDA



Em dous importantes grupos se divide a raça india, habitante de Miranda: os guaycurús e os chanés. Os primeiros comprehendem tres tribus: a guaycurú, propriamente dita, que vai desapparecendo pelo contacto immediato com a gente branca, os cadiuéos que, pelo contrario, conservão-se no estado quasi selvatico, em terrenos proximos aos rios Paraguay e Nabilek, ainda não bem explorados, e os beaquiéos que habitão com os cadiuéos[76].

Os chanés subdividem-se em quatro ramificações: os terenas, que constituem os tres quintos da população aborigene, os laianas, os quiniquináos e os guanás ou chooronós, de entre todos, os mais doceis e civilisados.

[112] A lingua é a mesma para todos estes, com algumas alterações que entretanto não lhes impedem a facil comprehensão reciproca. Os costumes e praticas geraes: o seu typo, porém, conservando um facies bem determinado offerece distincções que assignalão caracteristicamente cada uma d'estas tribus.

O terena é agil e activo: o seu parecer exprime mobilidade; a sua intelligencia é astuciosa e com propensão ao mal. Aceita com difficuldade as nossas idéas e conserva arreigados os seus usos especiaes, talvez por espirito mais firme de liberdade. O homem é robusto, corpulento, de boa estatura; o seu semblante apresenta o nariz um tanto achatado na base; as sobrancelhas pouco obliquas, em alguns individuos bastas e desenhadas com regularidade; ás vezes é pugibarba, outras tem buço e barbas bem apparentes. A desconfiança transluz nos seus olhares inquietos, vivos; a dobrez nos seus gestos. Escondem com gosto os sentimentos que os agitão; fallão com volubilidade, usando do seu idioma sempre que podem, e indicando o aborrecimento em se expressarem em portuguez.

As mulheres são de estatura baixa: tem a cara larga, beiços finos, cabellos grossos e compridos. Ás vezes, o seu typo tem um cunho de amenidade que admira, grande regularidade nas feições e expressão de intelligencia. Trazem commummente parte do busto descoberto e uma julata[77] de algodão cingido abaixo dos seios, com uma das pontas passada entre as coxas e segura na cintura. Raras mulheres sabem fallar o portuguez: todas porém o comprehendem bem, apezar de fingirem não [113] entendel-o. São as mais laboriosas e industriosas da raça india, guardada a relação necessaria entre a actividade e indolencia proprias das nações indias.

O laiana é um typo de transição: tem muito melhores instinctos, menos aversão aos brancos, de cuja lingua se servem sem repugnancia, pelo contrario, com gosto e facilidade. O homem é mais delgado que o terena, menos inquieto; a physionomia com tudo é muito menos viva e intelligente. Os seus habitos de trabalho são mais aproveitaveis, porém menos constantes e esforçados.

As mulheres geralmente são feias: tem os olhos commummente apertados, a côr dubia: não é o avermelhado franco do corpo da terena nem o amarello, algum tanto macilento, da quiniquináo. Entretanto, como em quasi todas as indias chanés, o talho do corpo é elegante e esbelto, as mãos e pés pequenos e delicados.

O typo quiniquináo é já mui diverso dos dous precedentes: o homem traz estampadas no rosto a apathia e placidez: as feições, sem animação, são regulares e proximamente bellas. A sua força de trabalho é muito diminuta: elle passa os dias, deitado sobre um couro pellado, sem saudades do passado, nem receios do futuro; cultiva, com grande custo, alguns cereaes que a familia come na proporção da colheita; se abundante, muito; tudo em poucos dias; se nenhuma, passará a côcos e fructas[78] do mato.

[114] A mulher quiniquináo é bella: pela mistura de raças, facil n'essa tribu mais relacionada com os brancos e negros e encostada a elles, a côr ou é de um amarello escuro de canella (caburé) ou de um branco ligeiramente amarellado. N'este caso, as faces são delicadamente rosadas; a tez pura, os labios rubros, as gengivas vermelhas. Quasi todas comprehendem o portuguez: fazem esforços para fallal-o, apezar do vexame que mostrão experimentar.

O guaná, no districto, quasi tem desapparecido nas raças branca, india ou negra, que o cercão. Vimos porém uma india, chamada Antonia, filha de pae quiniquináo e mãe guaná, que, sobre ser um verdadeiro typo de belleza pela venustade do rosto, pelo delicado da epiderme e elegancia do corpo, tinha summa graciosidade e donaire.

Os guaycurús, homens em extremo vigorosos, tem as feições brutaes e grosseiras; estatura maior que meiã, avantajada, ás vezes, por modo estranhavel.

O capitão Lapagates, chefe de uma aldêa de cadiuéos, o qual vimos no Tabôco, era um varão imponente, com rosto expressivo e olhar intelligente; tinha no trato uma amenidade bondadosa que muito caracterisava aquelle heróe do forte—Olympo.

É geral a todos os indios aguçarem os dentes, formando pontas finas; é tambem geral usarem de urucú[79] e genipapo, para pintarem no rosto arabescos, figurando desenhos singulares ou para fingirem barbas e bigodes.

[115] Entre os cadiuéos, comtudo, é isto regalia peculiar ás mulheres e filhas dos capitães: os mais pintão tão sómente ao redor da boca, o que lhes dá aspecto curiosamente feroz.

Esses desenhos são, ás vezes, feitos com muita regularidade, ora simplesmente com alguma tinta corante em vesperas de solemnidades, ora marcados indelevelmente com uma ponta de agulha em brasa.

É tambem commum a todos os indios do districto[80] o habito da mais apurada limpeza: lavão o corpo tres ou quatro vezes por dia; por qualquer tempo que faça, calor ou frio. As mulheres cuidão muito na alvura de seus pannos e procurão sempre andar limpas, exceptas as velhas que dão, com o tempo, de mão a esses cuidados.

Os terenas, como acima dissemos, fórmão a maior parte da população india do districto: as suas aldêas estavão situadas no Naxedaxe, a 6 legoas da villa de Miranda; no Ipêgue, a 7 12; na Cachoeirinha, e n'um lugar a 3 legoas, constituindo um aldeamento chamado Grande, além de outros pequenos centros. Tres a quatro mil individuos moravão n'esses diversos pontos.

Os quiniquináos aldeavão no Euagaxigo, a 7 legoas N. E. [116] de Miranda; os guanás no Eponadigo e no Lauiád[81], em numero de 30 a 40; e os laianas a meia legoa da villa.

Os guaycurús habitavão no Lalima e perto de Nioac e os indomitos e falsos cadiuéos em Amagalobida e Nabilek, para os lados do rio Paraguay.

O aldeamento modelo no Baixo Paraguay era incontestavelmente o do Mato-Grande ou do Bom-Successo, perto de Albuquerque, onde os quiniquináos, debaixo da paternal e intelligente direcção do virtuosissimo missionario Frei Marianno de Bagnaia, apresentavão os fructos valiosos da catechese bem entendida. Ahi os indios obrigados a um trabalho regular, vivião na abundancia, entregavão-se a diversos officios e aprendião as artes liberaes. Havia uma banda de musica, toda composta de indigenas. Uma escola de primeiras letras funccionava com numero crescido de alumnos estudiosos e n'ella se incutião os principios de religião, de que tanto necessitão aquellas infelizes creaturas.

Uma tribu, que desappareceu do districto quasi totalmente, é a dos guaxís, da qual se encontrão só alguns individuos, confundidos com gente de outra nação. Esta extincção é devida ao habito extraordinariamente immoral da morte dos fetos no ventre das mães, as quaes produzem os vómitos, usando de hervas e raizes apropriadas. Os [117] laianas vão tambem pouco a pouco se extinguindo e, apezar do contacto continuo com os mirandenses, iguaes factos se dão entre quiniquináos e terenas.

Entre os indios acima mencionados, apparecem alguns caiuás. Habitantes do norte da republica do Paraguay, nas cabeceiras do rio Aquidaván, são prisioneiros de guerra nas correrias que os cadiuéos costumavão fazer nas terras d'aquella republica. Para esse fim sahião do Nabilek, passavão os campos da Pedra de Cal[82] e, costeando a serra de Dourados, ião ter ás aguas do Iguatemy, contravertente do Aquidaván.

Os caiuás erão vendidos depois e passavão, de mão em mão, na qualidade de captivos, aos quaes chamão captiveiros.

A escravidão é a mais doce possivel. O captiveiro faz parte da familia, come com ella, é tratado como filho da casa; tem até regalias especiaes. A senhora irá buscar agua á fonte e lavar a roupa que pertença ao seu escravo e nunca o obrigará a estes serviços. Entretanto os captivos são vendidos com summa facilidade e por qualquer ninharia, apezar da longa convivencia que os unão ao senhor.

Os indios do districto vivem na maior ignorancia e indifferença em materia de religião. A catechese acha-se muito atrazada e tem sido mal dirigida. Poucos quiniquináos [118] conhecem a significação da Cruz e sómente alguns guanás usão de nossas preces.

O mais existe nas maiores trévas: entretanto elles tem na lingua uma palavra para exprimirem Deos, a quem chamão Nhande-iára[83].

Cada tribu tem porém um certo numero de padres cantores, os quaes servem ao mesmo tempo de medicos e feiticeiros: são destinados desde a infancia ao sacerdocio e ainda crianças aprendem as poucas cantigas que lhes são particulares. Homens e mulheres servem indistinctamente: nenhum signal os distingue: nenhum respeito os rodêa.

O mais absurdo fetichismo pareceu-nos ser a religião dos padres: por qualquer motivo, colheitas, chuva continua, sol ardente, pendoar do milho, etc., cantarão noites inteiras, denunciando presagios e conversando com a ave macauán, que elles fingem chamar de longe, imitando o cantar tristonho.

Este passaro é pois para elles um ente sagrado. Entretanto os outros indios matão o macauán[84] com tão pouca reverencia, que indica o pouco caso que d'elle fazem. Temos por sem duvida que os proprios padres, em occasião opportuna, saboreem a carne d'aquella ave, dando de mão aos principios religiosos e ao encargo de consciencia.

Ás vezes, no meio de suas praticas, o padre faz grosseiros [119] exercicios de prestidigitação: finge engolir pennas compridas, tira-as do nariz, introduz flechas no estomago, etc., etc.; entretanto os seus admiradores são quasi sempre crianças e velhas; os homens passão por diante d'elle, lançando olhares do mais completo indifferentismo, quiçá incredulidade.

O padre, para suas vigilias, veste-se com uma julata, ornada de lentejóulas e presa á cintura por uma especie de talim de contas; pinta o thorax, braços e cara com genipapo e urucú. Estende um couro diante de sua porta e n'elle caminha, lenta e compassadamente, avançando e recuando, a cantar, ora estrondosamente, ora em voz baixa e monotona, com acompanhamento de um chocalho, que elle segura na mão direita. Na esquerda empunha um espanador feito de pennas de ema e bordado com desenhos caprichosos.

Uma familia inteira póde ser de padres: assim pae, mãe e filhos cantão juntamente noites inteiras, cada um no seu couro, com seu espanador, cabaça e mais adornos; as mulheres, como os homens, trazem a parte superior do corpo núa e pintada.

O canto de madrugada soffre uma parada longa: de repente sôa muito ao longe o grito do macauán: responde-lhe o padre; vem-se approximando o passaro com pios cada vez mais proximos, e, afinal, começão as suas revelações ao sacerdote. Essa scena não deixa de impressionar, pois a imitação do cantar do macauán ao longe e successivamente mais e mais perto, é feita com toda a perfeição.

O padre, como medico, é da mais crassa ignorancia; não usa das plantas medicinaes que o rodêão e cujas propriedades [120] medicamentosas parece desconhecer completamente. Elle aparta tão sómente o doente do contacto com os outros, apalpa-o diversas vezes, sopra no lugar enfermo[85] e canta frequentemente, consultando o macauán. É a verdadeira medicina expectante, com formulas charlatanicas proprias da intelligencia do facultativo e do medicando.

Quando o doente fallece, o medico jacta-se de tel-o deixado morrer por gosto[86]; nos casos de cura, recebe presentes e por muitos dias é ainda sustentado pela familia do convalescente[87], a qual tem esta obrigação durante toda a molestia.

Quando morre um individuo, a aldêa toda entra em alvoroto. A casa do morto é invadida, e n'ella levantão-se gemidos e gritos agudissimos, soltos pelo mulherio e crianças[88]. Ora, é um barulho ingente dominado pelo soluçar estrepitoso do parente mais proximo; ora, é um murmurio confuso que dura alguns minutos, recomeçando aquellas lamentações, que se ouvem muito longe.

O corpo fica em casa duas ou tres horas sómente: é logo amarrado em uma rede enfiada n'um varapáo, que [121] vai carregado por dous parentes. O enterro dirige-se para o cemiterio, acompanhado por todas as pessoas das casas por defronte das quaes vai passando; a grita se ergue assim cada vez mais intensa: todos lamentão-se, todos urrão.

No acto de entregar o cadaver á terra, junto á cova matão-se os animaes mais queridos do morto, ao qual enterrão com todos os objectos, que mais affeiçoára. Se, n'esse acto, se apresenta alguem pedindo qualquer animal ou objecto, obtem-o logo sem difficuldade nem paga, ficando desde ahi propriedade d'elle.

Os parentes cedem por esse modo rezes, manadas de egoas, etc., etc., procurando desfazer-se de tudo quanto pertencêra ao defunto.

De volta do cemiterio, o rancho é abandonado: toda a familia muda-se: entretanto, durante muito tempo, conserva-se, na palhada desoccupada, agoa, fogo e cigarros, para que a alma do morto beba, se aqueça e fume.

Eis a idéa que manifestão da immortalidade da alma.

Quando é uma mulher que morre, de volta do enterro, quebrão-se todos os potes, pratos, etc. O rancho tambem é completamente desmanchado.

Os signaes porque os chanés manifestão a sua dôr, são extremamente ruidosos. O seu lamentar é em altos gritos.

Mezes depois do fallecimento de um parente, qualquer recordação[89] provoca scenas de dôr estrepitosa, que é [122] logo acompanhada por todas as velhas da aldêa: assim, o aspecto de um animal que se pareça com um, outr'ora affeiçoado do defunto, o apparecimento da lua, a vista de uma roupagem, são causas de explosão de gritos, que durão muitas horas.

O luto consiste—nas mulheres—em tirar os seus adornos de prata e ouro[90], brincos e collares, e cortar os cabellos na altura das faces:—nos homens—em usar de roupas escuras, sem distinctivos nem enfeites.

A duração do luto varía conforme o gráo de parentesco: o de filho obriga a um anno; de pae e mãe a muito menos tempo.

Perto de nosso rancho de palha, nos Morros, habitava uma pobre india velha que lamentava, noute e dia, da morte de seu filho unico, agarrado pelos paraguayos em fins de 1865 e morto por elles a lançadas. O seu soluçar mostrava a dôr profunda em que jazia, entretanto seus olhos erão seccos e nenhuma lagrima se deslisava pelas rugosas faces. Os indios chorão com muita difficuldade. Ora ella enumerava, n'um cantar monotono, as virtudes de seu filho; ora pedia á lua que recebesse a alma d'elle; ora rogava ao sol que aquecesse o lugar em que fôra alanceado.

Era essa infeliz mulher um typo de dôr materna: estava magra como um esqueleto e vivia n'uma agitação constante.

Quasi sempre aquellas manifestações são indifferentemente patenteadas, quer pelo fallecimento de um homem [123] ou uma mulher, quer pelo de uma criança de peito: em todos os casos, é o mesmo ulular; identicas as ceremonias.

A affeição que as mães demonstrão pelos filhos, que um pae tributa á familia, a amizade que une os irmãos, são edificantes, os extremos tocantes.

Assim os paes servirão com toda a dedicação a seus filhos, que lhes obedecem cegamente. Isto em cada grupo, em cada circulo. Não notámos particular respeito aos velhos, deferencia á velhice, como acontece aos indios da America do norte, de cujos costumes, um tanto poetisados, fez Chateaubriant assumpto de um poema.

D'essa submissão resulta a verdadeira venda que se executa entre o pae de uma mulher nubil e qualquer homem que a queira para companheira ou para mero passatempo: a filha sujeitar-se-ha á imposição paterna, aceitando sem murmurar o esposo, que lhe apresentem ou despresando aquelle, cuja separação aconselharem.

As mulheres amamentão as crianças por tempo indeterminado: vimos rapagotes de seis a sete annos, que vinhão correndo suspender-se aos seios de suas complacentes mães.

Esta pratica faz com que, depois que parem, fiquem as mulheres completamente estragadas: os seus seios, com a prolongada pressão, pendem ao longo do corpo, o qual tambem, pelo habito de carregarem as crianças cavalgando n'um dos quadris, fica arqueado e desengraçado.

O casamento é ceremonia pouco usual: os meios de contrahirem-se nupcias são presentes e dinheiro, fonte d'onde dimana a mais horrorosa immoralidade, visto que a [124] ganancia dos paes simplifica todos os preliminares, que, sem dúvida, erão primitivamente exigidos.

Por dinheiro obtem-se mulher: quer indio, quer branco ou negro, tem necessidade de sujeitar-se ás condições dos paes, os quaes tambem aconselhão ás suas filhas a liberdade a mais completa em materia de fidelidade.

O genio dos indios do districto, em que o ciume é sentimento quasi desconhecido, concorre para desenvolvimento da mais reprovavel devassidão de costumes, augmentada pela indole dos habitantes de Miranda, como adiante mostraremos na parte em que tratarmos das relações entre as duas raças.

No casamento mais regular e muito mais raro, o noivo escolhe a sua esposa, quando ainda ella é criança: trata d'ella, dá-lhe roupa, concorre para a alimentação dos paes dos quaes é considerado filho e recebe tal tratamento.

Aos 10 annos, mal apontão os peitos, ainda não nubil, é a noiva entregue ao seu marido e enrolada com elle n'uma esteira, ao redor da qual os convidados danção, cantando, bebendo aguardente e comendo os presentes que são a parte mais importante do casamento.

Esse habito de entregarem meninas a homens é geral: d'elle tirão os progenitores maior lucro, dimanado da luxuria em seus desmandos brutaes, pois essas infelizes crianças são procuradas e obtem quasi sempre altos preços. É o effeito de idéas desmoralisadoras e nojentas.

Os indios, que são modelos de affeição pelos filhos, que os tratão com amizade extremosa, nenhum mal enxergão n'esses estupros, de que as victimas vem impreterivelmente a soffrer em seu organismo e desenvolvimento.

[125] As mulheres envelhecem com extrema rapidez: aos 14 annos estão na sua maior expansão corporea, aos 20 começão a desmerecer, e aos 30 são velhas (memés), cuja decrepidez não se faz esperada.

Para sobrestar essa marcha infallivel e temida, procurarão ellas sempre provocar os móvitos, para o que usão, por conselhos de suas proprias mães e velhas da aldêa, de hervas[91], e sobretudo choques e apertos no ventre. Assim rara é a india, que tenha tres filhos; quasi sempre um ou dous, concebidos na idade em que a faceirice não é de uso.

Nos Morros, havia uma quiniquináo que, com dezesete annos, abortára já seis vezes.

No ultimo parto o feto, completamente desenvolvido, havia sido, na sahida do utero, estrangulado pela propria avó, a qual, desde muito, declarára que só perdoaria, se a criança fosse do sexo masculino.

Tambem era uma familia de padres, em que todos os componentes pae, mãe, filhos e filhas, cantavão de continuo, nos atordoando os ouvidos e perturbando as doces horas do somno. Além d'isso muito se distinguião no brutal brinquedo chamado tadik.

É esse jogo um exercicio a sôcos, á maneira do box inglez[92]. Para elle enfileirão-se rapazes, mulheres e crianças uns defronte dos outros, procurando, com o punho fechado, [126] offender a cara do adversario, dando pancadas sómente até o queixo. Muitas vezes, furão-se os olhos, quebrão o nariz e com o esforço chegão a desarticular o polegar.

Assistimos ao tadik entre quiniquináos e terenas e, ao prazer do jogo, união-se sentimentos de grande rivalidade. Entretanto os velhos separavão logo os contendores, quando estes mostravão animosidade excessiva. Os dous partidos, havião tomado os nomes de luzia e saquarema, repercussão longinqua das lutas politicas do Brasil! Où-est-ce que la politique s'était nichée?!....

Acabou a festança, bebendo-se garapa fermentada, que substituia a aguardente.





Cada aldêa tem o seu chefe ou capitão, nomeado, ou pelo governo imperial ou pelo respectivo director ou pelo consenso de sua gente. O respeito que elles merecem, é pouco extenso: a subordinação aos chefes é muito limitada; muitas vezes é um mero titulo sem distincção nem regalias.

Quanto mais civilisados, tanto menos consideração os indios tem pelos seus capitães. Os guanás não aceitão mais chefe especial. Os quiniquináos pouco caso fazem do seu velho capitão Flaviano Botelho. Os laianas sujeitão-se mais; emfim os terenas observão tal ou qual deferencia, respeitando mais os seus cabeças de tribu.

Quando viajavamos na margem direita do rio Aquidauana, observavamos as relações que existem entre a civilisação e os filhos das matas.

[127] Em nossos pousos, representavamos (guardadas as proporções e salva a modestia) o centro civilisado: a poucos passos, com a nossa camaradagem, pousavão alguns guanás, mais adiante ficavão os quiniquináos, os quaes, de quando em quando, vinhão misturar-se com a nossa gente; n'um raio duplo, do nosso ponto ao dos quiniquináos, reunião-se os laianas e, afinal, a boa distancia, congregavão-se os terenas.

As relações reciprocas entre esses indios erão de cordialidade algum tanto duvidosa; os terenas são accusados pelos guanás e quiniquináos de máos e inimigos dos brancos e elles accusão aos outros de serem falsos e escravos dos portuguezes[93].





As raças que habitão o districto, partírão evidentemente da margem direita do rio Paraguay, do lugar onde hoje existe a nação enima, de que ellas são naturalmente ramificação. As provas parecem-nos claras e irrecusaveis.

Além da tendencia manifesta que os terenas tem para fugirem para as bandas do Chaco boliviano a reunirem-se com outros da mesma tribu que vivem com os enimas, na lingua existem palavras que demonstrão que a presença dos guanás[94] no districto foi devida a uma grande immigração.

[128] Assim usão frequentemente do termo maiána, que quer dizer semelhante, quando referem, a objectos familiares, outros que lhes erão estranhos, por associação natural de idéas.

Chamão pois ao bority—maiana hérena, á semelhança do carandá; á anta—maiana camú, semelhante ao cavallo, etc., o que presuppõe o conhecimento do carandá e cavallo, anterior ao do bority e anta.

Ora, os boritys existem em grande quantidade em todo o districto, assim como as antas, e, do outro lado do rio Paraguay não se os conhecem, sendo pelo contrario extremamente communs os carandás e cavallos.

A conclusão é facil e vem em soccorro do que procuramos sustentar.

A lingua guaná, de formação muito irregular, provém evidentemente do guarany: ha n'ella palavras identicas, iguaes; exemplo: iuquí, sal; moreví, anta;—segundo os laianas: buricá, (guarany) muricá, (guaná) burro.

A sua derivação do idioma guaycurú é clara; não só alguns vocabulos servem para as duas nações; exemplo catépaga, pacú; achuánaga, dourado; mas muitos são sensivelmente modificações, assim é o aîca (guaycurú) e o acó (guaná) que significão não.

Comtudo a indole totalmente diversa das duas nacionalidades, as suas idéas, os seus habitos fizerão com que essas linguas soffressem alteração profunda, quando falladas. [129] A maneira do guaycurú expressar-se é arrogante, pausada; as aspirações são energicas; as palavras, terminando mais particularmente em a e o fechados, são quasi sempre esdruxulas ou graves. Ha mais abundancia de consoantes e essas com som dobrado e guttural.

O guaná falla rapidamente, com ligeiras aspirações; a sua linguagem é uma especie de sibilar continuo: os i repetem-se com frequencia e as vogaes seguem-se umas ás outras, com quasi tanta profusão quanto, na lingua allemã, as consoantes.

Na phrase do espirituoso escriptor francez Oscar Commettant «nas palavras germanicas as vogaes se afogão n'um oceano de consoantes:—Apparent rari nantes in gurgite vasto».

No guaná é a inversa, com mais moderação comtudo.

As modificações, que cada uma das tribus introduzio, com o tempo, na lingua chané, constituírão quatro dialectos, os quaes entretanto são facilmente comprehendidos pelos indios de toda aquella nação.

A tribu guaná[95] falla arrastando a lingua n'uma toada [130] de chôro; cantão á maneira do pronunciar em certas localidades de S. Paulo, apoiando muito n'uma syllaba para correrem sobre as outras.

Os quiniquináos tem seus idiotismos especiaes: palavras proprias. Os laianas tambem as tem.

Os terenas, segundo pareceu-nos, usão do idioma com mais justeza e perfeição.

Os verbos, n'esse dialecto, são mais regularmente formados, apezar do capricho que presidio em geral á sua conjugação, as analogias mais frequentes, as phrases mais completas.

É por esta razão que os brancos do districto aprendem de preferencia a maneira do fallar dos terenas, e os comprehendem com mais facilidade.

Na lingua guaycurú existe uma particularidade interessante: os homens fallão por certo modo, as mulheres por outro. Entre os guanás esta differença existe, porém não se estende a toda a phraseologia.



VOCABULARIO
DA
LINGUA GUANÁ OU CHANÉ



A


portuguez guaná
Abobora Camé.
Aborreço Bôópi.[96]
Acarus (bicho da sarna) Tchetchá-uahatí (filho da sarna)
Adeos Biónne.
Agua Unné.
Agulha Tôpé.
Ai! (exclamação) Vûi, ou acacái.
Aipim Tchupú.
Aipim (secco) Catchó.
Aldêa Ptiuôcó.
Alegre Elloketí.[97]
Amanhã Ārôti.
Amar Gâchá.
Anta Maiána-camú.[98]
Anus Cicicó.
Aonde vai? Náiênó?
[132]
Aprender Cequechivó.
Aracuan (passaro) Uaragá.
Arára Parauá.[99]
Arroz Nacacú.
Arvore Tagatí.
Avental Juláta.


B


Bala Poití-akêtí.
Banana Bánana.
Barba Inguenôió.
Barriga Djurá.
Bebamos Venóutí.
Beber Venóuó.
Bebo Venóuondí.
Beijo (entre os guanás) Innê.
Beijo (entre os terenas) Inní.
Beijo (entre os quiniquináos) Soquirí.
Bezerro Tchetchá-uacá.
Biuá branco (passaro) Veragajín.
Biuá preto Veragaiê.
Boca Bahó.
Bocado Iapi-tchá.
Boi Uó-ôi.
Bom Unatí.
Bonito Unatí.
Borboleta Uacá-vacáí.
Bority Maiána hérena.
Braço Daké.
Bugio Coxêagá.

[133]

C


Cabaça Tóróró.
Cabeça Duúti.
Cahi Ingôrôcôóné.
Cahidor Icôróóconó.
Cahio Iricôóné.
Cahiste? Icôrôôcôóné?
Calça Bôoró.
Camisa Iembênó.
Campo Mehúm.
Canella Gô-tchó.
Cançado Meomí.
Cão Tamucú.
Capoeira Içomoikéneti.
Cara Nôné.
Carandá (palmeira) Hêrena.
Casa Pêti.
Casar Ongôiêno.
Cascavel Ipôcó.
Cateitú Couécó.
Cavallo Camú.
Cachaça Cumâ-á.
Céo Uanukê.
Cerrado Chopotícoti.
Cervo Uá-iá-jó.
Chão Poké.
Chóro Inhondi.
Chover Ennucó.
Chumbo Aketí.
Chuva Ucó.
Cobra Coit-chôé.
Coitado Quixauó.
Colhér Tchurupé.
Come Niké.
Comer Ningá.
[134]
Comida Nicoconóti.
Comida (entre os quiniquináos) Nicôningá.
Como Cutiá.
Conhecer Indjá.
Conheces? Ietchòá.
Copular Capiú.
Coração Ommindjòn (j espanhol).
Corpo Munhó.
Corrego Notoagá.
Corta (imperativo) Tetucá.
Cortar Tetócoti.
Cortaste? Iatêtucôá.
Côxa Djuró-kunó.
Criança Calliuônó.
Cuia Pocó.
Custar Côicú.
Custar (entre os quiniquináos) Ocôòcorí.


D


Dá-me Pêrétchá.
Dar Boritchá.
Dedo do pé Guiiri-djêvé.
Deita Imêcá.
De mim Nuti.
Dente Onué.
Deos Iandeará.
Deos Echāiuánukê.
Depois Poinú.
Depois d'amanhã Poinú-arôti.
De tarde Kiacátche.
Devéras Quâti.
Dia Cátche.
Diga Iocó-iucuá.
Digo Gôe.
Dinheiro Ararapeti.
Doente Carineti.
[135]
Dormes? Imé-coné?
Dormir Móngoti.
Dou Boritchá-pi.
Dourado (peixe) Achuánaga.
Dous Pïátcho.


E


Egoa Senó-camú.
Ema Kipāé.
Espada[100] Annāiti-piritáo.
Espelho Nochiògueti (sc. olhador)
Espingarda Capuiá-igapêtí.
Espirrar Andiicotí.
Esposa Iêno.
Escravo Hangahá.
Está aqui Anníe.
Estás alegre? Ellóketi-iôcouó?
Está alegre Ellóketi-ôcouó.
Estou alegre Ellóketi-ongôuó.
Estás bom? Iúnati?
Estou bom Unnandí.
Estás cançado? Meomí?
Estou cançado Memondí.
Estás com fome? Epê-cati-cimágati?
Estou com fome Hapê-canú-cimágati.
Está no chão Annêgó poké.
Estrella Hêquêrê.
Eu Ondí.
Excrementos Ciquêé.


[136]

F


Faca Piritáu.
Fallo comtigo Iundzāi-copí.
Farinha Tutupāi.
Farinha (entre os terenas) Ramucú.
Faze Itticá.
Fazer Ittuketí.
Febre Tchikiití.
Feio Cãunati (sc. não bonito).
Filho Tchétchá.
Fogo Iucú.
Fouce Tchápilócoti.
Frio Câssati.
Fumo Tchâhím.


G


Gallinha Tâpihí.
Gallo Oiênó-tapihí.
Garrafa Limetá.
Gato Maracaiá.[101]
Gordo Kínnati.
Gostar Gâchá-á.[102]
Gostas? Queachá?
Gostas de mim? Queachá-nuti.
Gosto Gâchá.
Gosto de ti Gâchá-piti.
Gostoso Uchetí.
[137]
Grande Annáiti.
Guaná (tribu) Uaná ou Tchòuórô-ônô.
Guaycurú Uaicurú ou Mãiápenó.


H


Historia Chêti.
Hoje Cohoihênné (os h aspirados).
Homem Oiênó.
Hontem Tiipó.


I


Idioma (lingua) Nhumdzó.
Irmã (entre os terenas) Haîlê.
Irmão (entre os terenas) Lêlê.
Irmã mais velha Luké.
Irmã do meio Moguêtchá.
Irmã mais moça Atí ou Anndí.
Isto Aará.


J


Jaburú (passaro) Côjó.
Jacú-tinga (passaro) Maiána-uaragá.
Já foi embora Piônne.
Jaty (mel de abelha) Tchulí-tchulí.
Já veio Annègò.
Jaú (peixe) Muiôti.
Joelho Buiú.


[138]

L


Lagarto Iunãi.
Laiána (indio) Láiana.[103]
Lambary (peixe) Chivôupè.
Lavar Angicãuotí.
Lavemo-nos Uachicapú.
Linguagem Iundzó.
Lingua Nahênê.
Lua Co-tchêé.


M


Machado Pôhóti.
Macho Oiênó-muricá.
Maduro Itóuónné.
Mãe Mêmê.[104]
Mãe Hennó.
Mais Poí.
Magro Uporití.
Mamma Iênné.
Mandary (mel) Rôoró.
Máo Cáunati.
Mão Uon-húm.
Marido Immá.
Matar Inzucôti.
Mato Uó-hi.
Mecher Ivirikê.
Meche (imperativo) Ivirikêá.
[139]
Mel Mópó.
Melancia Andiá.
Menos Calliánna.
Mentira Ninicó.
Menstruo Ittiná.
Meu Induguê.
Milho Tuupí.
Miolo de palmeira Namuculi.
Milho fôfo Sóbóró.
Muito (adverbio) Opôicoati.
Muito (adjectivo) Tapuiá.
Muito bom Unati-âtcho.
Muito gostoso Uchêti-âtcho.
Mula Senó-muricá.
Mulher Senó.
Mutum Maiána-uatutú.


N


Nadar Alaongôati.
Não Acó.
Não custa Acó-cõicú.
Não custa (entre os quiniquináos) Acó-ocô-ocorí.
Não quero Acon-gâchá.
Nascer Ipuchicá.
Nariz Guiirí.
Negro Hahóóti.
Ninho Nôcó.
Nós Uutí.
Nosso Utiguê.
Noute Ihotí.[105]
Nuvem Capací.[106]


[140]

O


Olhos Unguê ou uké.
Onça Sêni.
Orelha Inguênó.


P


Padre Côchômònetí.
Pae Tatá.
Palmito Momoôn.
Papagaio Coêrú.
Panella Tchôrôné.
Parente Iningôné.
Passaro Chohopennó.
Passeiar Iapacicá.
Pato Pohahí.
Djèvé.
Pega isto Oiá-aará.
Peito Djahá.
Peixe Chojé.[107]
Pensar Iquichá.
Perdiz Itidichú.
Perna Gônú.
Pescoço Annúm.
Penis Kiú.
Pennas Kipahí.
Pimenta Têité.
Pinto Tchétcha-tapihi.
Piolho Aná.
[141]
Pirapitanga (peixe) Araraitti-issí.[108]
Piriquito Tchulí-tchulí.
Polvora Poití.
Porco Gôré.
Porco do mato Kimão.
Prato Uutá.
Preguiçoso Tchuléketi.
Prompto Oçoné.
Pulga Anatamacú.[109]


Q


Quando Namanó.
Quatí (animal) Còtéchú.
Quebrar Heocoti.
Queixo Nónhí.
Quem sabe? Emó?
Qente Cótotí.
Quero Gâchá.
Queres? Queachá?
Queria Gácha-niní.
Quiniquináo Koinu-kunó.[110]


R


Rapaz Omoheháu.
Rede Toití.
Regrada Ittiná.
Remar Ivirikê.
Rio Uêhó.


[142]

S


Saber Indjá.
Sabes? Iétchoa.
Sangue Iti.
Sapo Tôrumó.
Sarna Uahatí.
Saudades Inanguòró.
Seu Iutí ou iú.
Sentar-se Iavapoquehí.
Seriema (ave) Uatutú.
Siga (imperativo) Tchicá.
Sobrancelha Indjêukê.
Sol Cátche.
Soldado Andâru.
Sombra Epêuôgôpê.
Sonhar Chapuchatí.
Sonhas? Chaputchôné.
Sonho Indja-putchatí.
Sovaco Umbêkêcu.
Sucury Oiênaga.
Suruby (peixe) Apópaga.[111]
Sua Itiguê.


T


Tatú Copohé.
Taquara Hetágati.
Temos Hape-utí.
Temer Bicuátine.
Tens? Iapê?
[143]
Ter Hapê.
Teréna Térena.[112]
Terra Marihípa.
Testa Inucú.
Tolo Ietôré.
Tomar Mambatí. Namacá.
Touro Tôôró.
Trazer Iamané.
Tres Mopoá.
Trovão Unobotí.
Tu Iti.


U


Um Poichácho.
Umbigo Unró.
Unha Djiipó.
Urubú Uarututú.


V


Pehehévo.
Vamos comer Nicotiúti.
Vamo-nos embora Peháoti.[113]
Vamo-nos lavar Uachicapú.
Vás buscar? Viapána?
Veado Tiipé.
Veio (do v. vir) entre os quiniquináos Simêné.
[144]
Vem cá Iôcó.
Vento Onauotí.
Verde Aõitapú.
Via lactea Chamôcôé.
Vim (entre os quiniquináos) Simôné.
Vim (para ficar) Intzioponné.
Vim (para voltar) Indzimonné.
Você Ití.
Vou buscar Veaponotí.
Vou-me embora Bohoponé.
Vulva Iusí.





No incendio e saque de Nioac, a 2 de Junho de 1867, perdemos um diccionario guaná com perto de dous mil vocabulos. Nos papeis que encontrámos esparsos pelo campo e podémos ajuntar, achavão-se algumas folhas com as palavras, ainda não em ordem alphabetica, d'este incompleto vocabulario.




Algumas indicações



Os pronomes possessivos isolados são:


Induguê Meu
Itiguê Teu
Iuti ou iú. Seu
Utiguê Nosso


Entretanto são quasi sempre contrahidos nas palavras, como por exemplo:


[145]
Possessivos da 1ª pessoa Possessivos da 2ª pessoa
Minha cabeça Duutí. Tua cabeça Totihé.
Minha testa Inucú. Tua testa Inicú.
Meu nariz Guiirí. Teu nariz Quiirí.
Minha boca Bahó. Tua boca Pehahó.
Meu dente Onué. Teu dente Iahoé.
Meu queixo Nónhí. Teu queixo Neôió.
Meus olhos Ungê. Teus olhos Iuukê.
Minha orelha Inguênó. Tua orelha Keinó.[114]
Meu corpo Munhó. Teu corpo Muió.
Meu pescoço Anúm. Teu pescoço Ianúm.
Meu braço Daké. Teu braço Tiakí.
Meu peito Djahá. Teu peito Tchiní.
Minha mão Uonhúm. Tua mão Veaú.
Minha barriga Djurá. Tua barriga Iurá.
Minha côxa Djuró-cunó. Tua côxa Chiró-cunó.
Minha canella Gôtchó. Tua canella Guetchá.
Minha casa Imbenó. Tua casa Pinó.
Meu pé Djêvê. Teu pé Hiné.
Meu dedo do pé Quiri-djêvê. Teu dedo do pé Kiriúêvê.
Meu filho Indjétchá. Teu filho Tchi-tchá.
Nossa casa Vuóvogú.


Os possessivos da terceira pessoa são quasi sempre formados com os pronomes .




Os adjectivos numeraes vão só até tres:


Um Poichâcho.[115]
Dous Piátcho.
Tres Mopoá.


Os indios continuão presentemente[116] com as palavras portuguezas, algum tanto adulteradas:


Quatro Uátro.
Cinco Cinquê.
Seis Siês.
Sete Siéte.
[146]
Oito Otcho.
Nove Nôie.
Dez Iéce, etc.





Os pronomes pessoaes são os seguintes:


Ondí eu. Ití tu. Uutí nós. Nôê elles.
Nutí de mim. Ni de ti.


Com os verbos emprega-se a particula pi em lugar de ondi. Esses pronomes vão sempre depois do verbo.




A conjugação dos verbos é irregularissima e difficil senão impossivel. São sempre defectivos.

presente do indicativo do verbo ter (hapé)


Eu tenho Hapê ondí.
Tu tens Iapê.
Elle tem Hapê.
Nós temos Hapé utí.
Elles tem Hapé noé.


Para a formação do imperfeito accrescentão nini.


Inindjoa, nini ondi Eu tinha.
Innitchiécô Tu tinhas, etc.


Outro exemplo:


Eu quero Gâcha pi.
Tu queres Queachá.
Elle quer Gachá.
Nós queremos Gachá uti.
Elles querem Gachá nôê.

imperfeito


Eu queria Gachá nini ondi.
Tu querias Queachá nini.


Nunca pude organisar a conjugação de outros tempos.[117]


[147]

Phrases e exemplos


Sonho comtigo? Chaputchononetí (sc. penso na tua cara).
Tenho saudades de ti Inangoró gopi ni (sc. saudades eu pi, de ti ni).
Dá-me noticias Iticá chetí (sc. faze historia).
Nada sei Acó índja.
Não estás contente? Acó elloketí?
O que tens? Estás incommodado? Cuti iapê? Calliána unatí?
Estou doente dos olhos Carineti ukê (sc. doente olhos)
Desde muitos dias? Tápuiá cátche?
Desde ante hontem Poinú tiipó.
Coitada Quixauó.
Adeos Biónne (Eu vou indo).
Adeos Pehehêvo (Pois vá).





Estás com fome? Epê cati cimagatí?
Sim Aspiração guttural não exprimivel.
Senta-te e come. Toma arroz com carne. Queres farinha? Iavapoquê, niké. Viá nacacú cuanê uacá. Queachá ramucú?
Não, senhor: quero aipim e aboboras. Acó, unãi: gachá tchupú iocó camé.
Traz facas e farinha. Iamané piritáu, cuané ramucú.
O seu jantar está muito bom. Sua mulher sabe cosinhar muito bem: na minha casa nunca comi assim. Unati niké. Cuáti êchotí itucôati nica ienô. Auó ningá onuongú cutiá ionogú.[118]
[148]
Come mais então. Niké, igopó.
Não, obrigado. Agora quero agua e vou-me embora Acó mondóuané. Poiáne unné gachá. Behopótine.
Quando has de vir? Namõ kenaacá.
Outro dia Poinu cátche.
Quem sabe se amanhã? Etchuáne coecú arôti.[119]
É facto Ennómone.





Pois e porém vão sempre depois da primeira palavra, exemplo: pois toma; nemucá toma, copó pois; porém come; niké come copoé porém.

Quando, namanó, vem sempre antes. Quando has de vir? Namanó kinoôké.



NOTAS


A


Já tivemos a occasião de dizel-o officialmente: a estada do Coxim foi um lento martyrio, no qual todos extremárão em resignação e calma. A esse respeito diziamos, depois de examinarmos as fontes de abastecimento que poderião fornecer viveres ao acampamento do Coxim e reconhecermos a impossibilidade em que se achavão de satisfazer tal compromisso:

«N'este estado desesperado a força achou-se a braços com a mais completa mingoa. Reduzida a simples carne, por espaço de mais de mez, muitas vezes faltou-lhe aquella alimentação exclusiva, que deu em resultado o apparecimento de varias molestias. Os generos de primeira necessidade chegárão a preços exorbitantes, aproveitando-se a ganancia e o espirito de lucro abusivo, da desgraça, a que todos se vião reduzidos. Um conjuncto, comtudo, de factos tão tristes fez mais realçar as virtudes que imperão no soldado brasileiro, patenteando o seu caracter eminentemente soffredor e resignado, a subordinação e disciplina, que lhe são naturaes.

[150] «Depois de dias, em que nada se distribuia, nenhuma queixa se erguia, nenhuma exigencia se ouvia: todos se penetravão das difficuldades que presidião a qualquer providencia que tomar, e calmos esperavão pelo que lhes reservava a sorte. Não nos compete a apreciação dos factos que derão em resultado esta ordem de cousas: consignamos simplesmente as phases por que passou a expedição, nas quaes sempre presenciámos o comportamento altamente recommendavel do pessoal que a compunha; galhardo nas marchas e prompto para todos os trabalhos, supportando, emfim, as maiores privações, a que póde ser sujeito o homem na guerra, sobretudo nas condições difficeis, que proporcionão distancias immensas e sertões inhospitos. Depois da mais penosa marcha por centenares de legoas, rodeada de perigos e incommodos, na qual de continuo lutava-se com circumstancias imprevistas, acompanhadas de innumeras afflicções, veio a estada prolongada do Coxim pôr á prova a abnegação e o sentimento intimo do dever, de que tantos exemplos brilhantes tem dado o brasileiro, que enverga os distinctivos da vida de privações e de soffrimentos». Relatorio geral da commissão de engenheiros nas forças em operações ao sul da provincia de Mato-Grosso, 1866 pag. 48 (Annexo ao relatorio do ministerio da guerra, 1867).

Quadro exacto da triste situação que apresentava a expedição de Mato-Grosso, atirada a um canto da provincia, que vinha soccorrer, reduzida á inacção por obstaculos invenciveis de um lado, do outro pelos poucos meios, de que dispunha, para, sómente sobre si, emprehender a offensiva. De nenhum consolo lhe servia o titulo pomposo, com que, a pedido, a havião agraciado. Forças lhe faltavão; operações era uma ironia cruel para um espirito philosophico e o sul da provincia de Mato-Grosso é tão vasto, tão medonhamente erriçado de difficuldades, sobretudo n'aquella época, quanto o erão os sinistros paúes da Germania em que se abysmárão as bizarras legiões de Varo. Assim, pois, não nos illudiamos sobre o presente; e o futuro, como derivação natural, não nos abria horisontes de flôres.


[151]

B


Na viagem, que levámos, nunca podémos fazer senão estudos perfunctorios d'aquillo que acompanha o caminho: da vegetação só vimos a fita que segue o trilho, em mineraes, só o que se achava em seu percorrer. Por isto não nos julgamos habilitados para avançar uma proposição fixa e com força de regra; entretanto, certo cuidado na observação permitte termos por certo um facies especial, que distinga, mais ou menos, os cerrados de S. Paulo, Minas-Geraes, Goyaz e Mato-Grosso, que fomos atravessando. Na primeira d'estas provincias pareceu-nos predominarem as cassiaceas e terebinthaceas; na segunda, ao menos na nesga que atravessámos, myrtaceas, na terceira, especialmente malpighiaceas (murecys) até a villa dos Aboboras, e, d'ahi por diante, de envolta com ellas, uma myrtacea, a cagaiteira. Em Mato-Grosso, para os lados do Piquiry, a quantidade de guabirobas nos cerrados é prodigiosa, e, entre o Coxim e o rio Negro, na zona em que nos achavamos, figurão com especialidade os araticús e rollinias. Em todos os cerrados, todas aquellas familias se achão representadas, porém o que procuramos fazer notar, é o predominio de uma d'ellas ou pelo menos o de um genero.

Debaixo do ponto de vista do desenvolvimento, em iguaes condições apparentes, os mais vistosos são os de Mato-Grosso; os menos, os de S. Paulo: ahi chega o aspecto d'elles a ser senão desolador, ao menos contristador. Talvez lhe achemos a causa na maior frequencia de queimadas de campos, que annualmente são feitas, na approximação das chuvas.

Os terrenos arenosos apresentão os mesmos typos botanicos; entretanto, mais desenvolvidos do que nos argilosos. Os areaes entre Bahùs e Coxim e nas immediações de Sant'Anna do Paranahyba são prova do que avançamos; assim tambem certos pontos da provincia de Goyaz, quasi ao chegar á villa das Dôres do rio Verde (Aboboras).

[152] Nos verdadeiros cerrados até Mato-Grosso, observámos a pouca frequencia das melastomaceas, comtudo tão facil de distinguir. Ao entrar, porém, n'essa provincia, tornão-se ellas muito frequentes, apresentando bellos exemplares, pelo seu desenvolvimento geral.

Em todos os cerrados sempre notámos a bem conhecida canella de ema.

As arvores dos cerrados são quasi todas tortuosas; a casca sempre escamosa, fendida irregularmente, grossa, merecendo por isso muitas d'ellas o nome de jacarés, devida, ao que nos pareceu, á acção annual do fogo que provoca esse desenvolvimento do liber, obstaculo á carbonisação que permitte ao vegetal poder continuar o seu penoso crescimento. As cassias, sobre todas, são notaveis por essa alteração da camada cortical.


C


A folhagem verde-escura da mauritia, abre-se como um leque, sustentado por longos peciolos alveolados no topo de um estipite liso e pardacento claro, no qual se notão os traços parallelos formados pela quéda das voltas semi-amplexicaules das folhas. Ao lado d'aquella formosa monocotyledonea, a macaybeira (acrocomia sclerocarpa) parece acanhada e fica completamente offuscada; das palmeiras, cujas folhas são todas revestidas por foliolos, a unica que rivalisa em elegancia e altaneria é o auassú que os guaycurús chamão chatellôd.

Do bority extrahe-se um succo saccharino, usado, depois da fermentação, como bebida e do qual se póde tirar excellente assucar, como o fez um official das forças. Os fructos dão em compridos cachos; são ovoides, com casca rija, amarello-avermelhada, escura e brilho metallico, todos cobertos por escamas rhomboidaes, que encobrem uma polpa pouco saborosa, ainda quando preparada com assucar. A amendoa acha-se n'uma loja monospermica. Em épocas de fome, de muito servírão aos soldados que procuravão não só os côcos, em concurrencia com as aráras, [153] como em razão do miôlo que chupavão com grande gosto. Os boritys são sempre indicio de agua, nascendo só em lugares humidos.

No caminho para Uberaba apparecem, pela primeira vez, no pouso dos Boritys (a 84 legoas do littoral), nas proximidades do rio Grande, divisa entre as provincias de S. Paulo e Minas. D'esse ponto em diante, acompanhão a trilha, que seguírão as forças, atravessando Minas, Goyaz e Mato-Grosso. Até o rio Negro, a abundancia de boritys é extrema; d'ahi por diante, vão-se tornando menos frequentes e, para os lados de Nioac e sul do districto de Miranda, vêem-se raramente.


D


Comprehendendo, de ante-mão, as difficuldades com que lutarião os nossos collegas na promptificação de canôas, sem as ferramentas precisas nem trabalhadores habilitados, fizemos lembrada a conveniencia em transportar aquella barca para junto áquelle rio. As nossas previsões realizárão-se completamente e os obstaculos que embaraçárão os engenheiros, no desempenho da commissão a este respeito, justificárão a importancia que haviamos dado áquella conducção.


E


O aucury, do genero attalea, affeiçôa, como os boritys, os lugares humidos, apparecendo só n'aquelles que são commummente encharcados. O seu aspecto é baixo; o estipite fino, ás vezes engrossando extraordinariamente junto ao coroamento das folhas, as [154] quaes tem longos foliolos delgados. Os fructos (cujos côcos tem 3 bagas monospermias) com uma bonita côr amarello-alaranjada, e revestidos por uma casca filamentosa (que não tem máo sabor, sobretudo assada), dão em cachos, que ás vezes pendem junto ao chão, servindo de pasto aos porcos do mato, que os procurão com avidez.

Por isso, quando atravessavamos os aucurisaes do rio Negro, onde a abundancia d'esses côcos era extrema, grandes varas de queixadas (dicotyles labiatus) fugião diante de nós, sendo facil a um dos soldados derribar alguns d'elles.


F


Qualquer depressão de terreno, qualquer encontro de declives transforma-se n'essa zona em profundas sanjas, que quasi sempre vírão em escoantes para os rios. Eis a corixa ou o corixo.

A retenção da agua, por muitos mezes, desenvolve então uma vegetação palustre no meio de moutas de capim, reunindo-se n'ellas frequentemente as terriveis piranhas (myletes macropomus), que tornão essas passagens perigosas, pelos lados do Piquiry.


G


A qualidade de mel que dá o jaty é boa, perfumada e clara; entretanto a quantidade é commummente muito diminuta.

A colmêa é no tronco das arvores, quasi sempre junto ao chão. Pelo contrario, sempre na parte superior, na dichotomia ou bifurcação de ramos, faz o seu cortiço a abelha mandory ou mondori: [155] mondé, colher, ira, mel, o qual é superior ao do jaty, rivalisando com o do cacheta em sabor e limpidez. A abelha mandory é especie grande, preta, rajada de amarello.

Seguem-se em qualidade: o achupé (grande e preta), o sanharão, o borá (grande e amarella), o uruçú, o lambe-olhos, etc.

D'essas abelhas, fomos, no seguimento da viagem, encontrando individuos. Além d'isso frequentes arvores, cortadas nos lados do caminho, mostravão-nos a copiosa colheita que fazem os indios, os quaes, justamente n'aquella época, recolhião o mel para fermental-o, o que dá lugar ás festas religiosas, em que estavão empenhados, quando chegámos á aldêa da Piranhinha.


H


Levavamos então um chapéo que compráramos na aldêa: era de palha de carandá (copernicia cerifera), e muito bem trançado. Esta palmeira, bastante frequente no norte da provincia, é mais rara no districto. Pela primeira vez a tinhamos visto quasi ao chegarmos ao Tabôco, occupando um vasto barreiro com lindos specimens, cujo aspecto era-nos totalmente novo. Mais alto que a carnaúba, com quem tem muitos pontos de relação (se não fôr ella propria), com estipite, porém, mais fino e ligeiramente flexuoso, tem as folhas supportadas por longos peciolos erectos, que fórmão um coroamento em leques, como o do bority, mas cujos foliolos são rigidos e terminados por pontas espinhosas.

A reunião de muitas d'essas palmeiras, cujo tronco é aproveitado para construcção de casas e curraes, cuja palha é muito utilisada para chapéos e cujos fructos, pequenos e em cachos compridos, dão algum azeite, chama-se um carandal.

Ahi fórmão ellas moutas compostas de palmeiras rasteiras, no meio das quaes surge alguma mais desenvolvida, levando agarrados cipós e parasitas, que vivem nos sulcos das folhas cahidas.

Algumas nopaleas, sobretudo a opuntia, com o aspecto tão original, e uma ou outra dicotyledonea, cuja folhagem agrada tanto [156] pela disparidade, constituem, ao redor dos elegantes carandás, grupos, como que arranjados pela mão artistica de algum horticultor intelligente.

O carandá, que vimos pela primeira vez perto da Piranhinha, apparece, com abundancia, entre Nioac e a colonia de Miranda. Talvez, no districto de Miranda, possão ser, por meio de linhas longitudinaes, assignaladas tres zonas de palmeiras predominantes: a dos boritys, do Coxim á villa de Miranda; dos carandás, da villa á colonia de Miranda, e das macaúbas; da colonia ao Apa.


I


Nas proximidades do Aquidauana e na localidade de refugio no cimo da serra de Maracajú, distante d'aquelle rio cinco legoas, vimos em aves, além das mencionadas: na familia dos accipitres, muitos urubús (percnopterus jota), alguns dos quaes completamente brancos (urubutingas) gaviões e innumeros caracarás (polyborus chimango) que esvoaçavão, com estridentes pios, por cima das queimadas, para agarrarem as cobras e reptis, acoçados do fogo. Na familia dos trepadores, avistámos: a arara azul (ara ararauna) com as costas e cauda azul, peito amarello-alaranjado, a vermelha (ara aracanga), a rôxa (ara hyacinthinus), á qual convinha mais o epitheto de ararauna (arara preta), côr que, de longe, parece ter; tucanos de papo branco (rhamphastos toco) especie grande e rara, de bico preto (rhamphastos ariel), de papo amarello (ramphastos discolorus), que são derribados, mal lhes toque um bago de chumbo o bico: nas arvores, o desconfiado alma de gato (coccyzus cayanus) se esgueirava ligeiro por entre os galhos e o lindo jacamacira (galbula viridis) n'elles pousava gravemente, emquanto os pica-páos (picus melachloris, robustus, etc.) em zig-zag se atrepavão, agarrados aos troncos. Entre os passaros figuravão os sabiás (turdus flavipes, una, e rufiventer, larangeira), o bemtevi (tyrannus sulphuratus), o serra-serra (carduelis nitens), o canario da terra (carduelis brasilienses), o avinhado (pitylus nasutus), [157] os caraúnas ou virabostas (icterus violaceus) os mais animados e barulhentos cantores do sertão, os encontros (xanthornus tristis) e muitos outros notaveis pela plumagem e canto que não conheciamos e viamos pela primeira vez.

Nos campos ha poucas perdizes e codornizes: na planura de cima da serra não as vimos: em compensação, a volateria é sobremaneira importante em outras qualidades, como já mostrámos.

Entre os reptis, além dos ophidios já apontados, avulta o lagarto: os bactracios são os conhecidos geralmente.

Entre os insectos todas as subdivisões são mais ou menos bem representadas: entre os nevropteros apparece com abundancia o térmes (cupim), nos hymenopteros, muitas especies de maribondos, de formigas e abelhas: poucos lepidopteros: nos dipteros muitos mosquitos, muriçocas, mucuins ou polvoras, moscas, etc., em alguns pontos do rio, em outros são rarissimos.

Entre as arachnides, não pode ser esquecido o acaride-arachnide, carrapato (ixodes) um dos grandes incommodos de quem viaja pelas matas. No Aquidauana eramos flagellados pelo rodeleiro ou estrella (especie grande), ruivo (especie menor) e piolho de gallinha (especie mui pequena).

N'um dos affluentes do Aquidauana encontrámos curiosos molluscos, com a conformação do mechilhão (mytilus) e com o interior da costa calcarea brilhante, a modo de madreperola. «O Pacheco e o Valerio, diz uma de minhas notas de viagem, affianção que, em certo ponto do rio Paraguay, ha muitos d'esses restos, sendo até uma bahia denominada das Conchas». Achámos tambem d'essas conchas no ribeirão do Euagaxigo, a 3 12 legoas da villa de Miranda.



APPENDICE



APPENDICE


Memoria descriptiva do reconhecimento do caminho entre os rios Taquary e Aquidauana, feito pelos engenheiros capitão bacharel Antonio Florencio Pereira do Lago e 2º tenente bacharel Alfredo d'Escragnolle Taunay, ajudantes da commissão de engenheiros junto ás forças em operações no sul da província de Mato-Grosso.

I

Exploração entre os rios Taquary e Negro


No dia 13 de Fevereiro passámos, defronte do acampamento goyano, o rio Taquary e margeando-o á esquerda, fomos, pela necessidade de descanço em consequencia do grande nado a que tinhão sido obrigados os animaes, pousar junto ao ribeirão da Fortaleza, com 20 minutos em tempo de distancia percorrida. A sua margem esquerda é escarpada e necessita ser rampada para a descida de carros; a direita é baixa e arenosa como o alveo d'este tributario do Taquary, que, depois de grandes chuvas, nega passagem a váo. Conta de largura 50 palmos, de profundidade 3, 1 12 por segundo de velocidade e a elle segue-se [162] uma mata onde existem varias rampas que podem ser facilmente vencidas. Deixando pelo lado esquerdo o Taquary e seguindo parallelamente ao seu confluente, o Coxim, que, pouco depois, desapparece, começámos a acompanhar o Taquary-mirim, o qual ora afasta-se, ora approxima-se muito perto do caminho, transpondo-se com 32 minutos de marcha um pequeno corrego, cujas ribanças necessitão ser modificadas, e d'ahi a 43 milhas, outro nas mesmas condições. Com mais 41 minutos passámos um ribeirinho cujos barrancos devem ser cortados para facilitar a passagem, e pouco depois chegámos á cachoeira do Taquary-mirim (pouso dos Boritys), junto á qual existem vestigios de um acampamento dos paraguayos e onde pernoitámos.

A distancia percorrida foi sempre em terreno secco, de base argilo-arenosa, entre cerrados em que predominão anonaceas (araticús do campo) e varias especies de byrsonima: o caminho é uma simples trilha, muito visivel porém e sempre seguido.


Tempo gasto 4 horas e 32 minutos.
[120]Distancia percorrida 8,265 braças, ou 2 34 legoas proximamente.


Deixando o pouso dos Boritys que offerecerá um acampamento regular para as forças em marcha, com 36 milhas [163] de marcha fomos ter ao corrego da Porteira, a 77 minutos do qual passámos outro, chegando ao ribeirão da Mata depois de caminharmos mais 95 minutos. A 50 braças antes d'esta corrente, existe um terreno baixo que ha de tornar-se alagadiço com a continuação de chuvas, podendo ser praticada, n'este caso, uma extensa estiva pelo muito mato, que cobre as margens do ribeirão.

O leito d'este é arenoso; a largura média de 50 palmos, 2 de profundidade, chegando a negar váo no tempo de grandes enchentes. Ahi podérão acampar as forças depois de ter sido facilitada a passagem, rampando-se a margem esquerda.


Tempo gasto 4 horas e 0 minutos.
Distancia percorrida 7,285 braças, ou 2 82 legoas proximamente.


A 16 minutos do ribeirão da Mata, existe uma casa abandonada, proxima a um capão, denominado Tapera, assim como o corrego, que, pouco adiante, dirige-se para E. entre margens pouco firmes, permittindo porém a proximidade do mato fazer-se de prompto uma estiva para a passagem de cargueiros e carros. D'ahi a 8 minutos passámos um pequeno pantano de 30 braças, que póde dar boa passagem, se as chuvas não augmentarem e o tempo tornar-se secco; devendo ser este espaço estivado no caso contrario. Continuando, atravessámos o ribeirão Claro, cujas margens altas e nemorosas precisão ser melhoradas, com leito pedregoso, largura de 35 palmos e profundidade de 1 12. Depois de chuvas continuadas impede o transito. Depois de 110 minutos chegámos ao ribeirão Verde que tem margens [164] abruptas, cobertas de mato, leito de grandes lages, váo pessimo para a passagem de animaes carregados. Tem de largura 65 palmos, 3 12 de profundidade, augmentada porém, durante as aguas, a ponto de vedar o transito.

A força póde acampar em sua margem direita depois de rampados os barrancos que encanão este ribeirão.


Tempo gasto 3 horas e 0 minutos.
Distancia percorrida 5,463 braças, ou 1 13 legoas proximamente.


Sahindo do ribeirão Verde, passámos com 63 minutos de marcha um bosque e d'ahi a 30 minutos a mata ou capoeira do Major com abrupta descida que vai ter a um pantano, em que gastámos 5 minutos, seguindo-se nova mata e outro almargeal cortado tambem por mato. O terreno começa a subir: torna-se pedregoso e entra-se no Portão de Roma: pessima e difficultosa passagem embaraçada com grandes lages e rochas que se achão na trilha que serve para a viação. As carretas dos paraguayos passárão por este desfiladeiro: entretanto será necessario um trabalho preliminar ou um desvio para conseguir-se facil transito. Continuando a caminhar, margeámos um lugar pantanoso logo abaixo do serrote e com mais 44 minutos fomos pousar no Lageadinho, onde um pequeno lagrimal dá agua em toda esta estação.


Tempo gasto 3 horas e 49 minutos.
Distancia percorrida 6,951 braças, ou 2 14 legoas proximamente.


[165] Deixando o Lageadinho, passámos um lagrimal depois de 65 minutos de marcha e com mais 65 o corrego do Castelhano, entrando d'ahi a 15 minutos n'uma mata, atravessada por um filete d'agua, seguindo-se outras, cortadas, de distancia em distancia, por campos dobrados até o corrego da Volta, onde poderá formar-se o acampamento das forças.


Tempo gasto 5 horas e 19 minutos.
Distancia percorrida 9,683 braças, ou 3 32 legoas proximamente.


Do corrego da Volta, com 41 minutos de marcha passámos n'um matagal, e com mais 32 minutos o ribeirão do Perdigão, cujas margens hão de necessitar de concertos para a facil transposição.

D'este ribeirão, com 44 minutos, entrámos na mata dos Jaós, de 3 minutos de extensão, onde os paraguayos deixárão uma canôa, que poderá servir para a passagem do rio Negro, caso seja concertada e transportada para aquelle ponto. Com 65 minutos chegámos ao corrego da Cachoeirinha, e, d'ahi ao corrego Fundo, gastámos mais de 40 minutos. Poderá acampar a força, depois de feita uma estiva nas margens pouco firmes d'este corrego.


Tempo gasto 3 horas e 46 minutos.
Distancia percorrida 6,860 braças, ou 2 14 legoas proximamente.


Com 119 minutos de marcha fomos do corrego Fundo a um pequeno olho d'agua, d'ahi a 77 minutos a um lagrimal e com mais 81 minutos ao rio Negrinho, passando [166] antes por um terreno baixo e alagado. O rio dá váo commodo no tempo secco: n'esta estação, porém, a profundidade é de 7 palmos, sendo a sua largura de 63. Uma arvore cahida, de uma margem á outra, servio-nos para a passagem das cargas, e com pouco trabalho ter-se-ha uma boa pinguela. O váo acha-se a 30 braças mais ou menos acima do lugar em que está a arvore, subindo pela margem esquerda. O acampamento na margem direita, depois de passar a mata, é melhor, ainda que mais distante da agua.


Tempo gasto 4 horas e 37 minutos.
Distancia percorrida 8,408 braças, ou 2 34 legoas proximamente.


Deixando a margem esquerda do rio Negrinho, depois de passarmos pela sua mata (onde existem depressões, chamadas corixas, que ficão cheias d'agua e dão nado durante as enchentes), fomos ter, com legoa e meia de viagem ao Potreiro, pequeno rancho na fazenda dos cidadãos Antonio Alves Ribeiro, e Tiberio, onde não encontrámos além do gado, que não póde ser reunido por falta de cavalhada, recurso de qualidade alguma para a força, nem pessoal para trabalhar na construcção de canôas para a passagem do rio Negro. D'este ponto até o rio, o caminho apaga-se quasi completamente; é apenas uma trilha mal aberta por alguns fugitivos de Miranda, a qual atravessa grandes pantanaes, duas corixas cheias, charcos e mata muito cerrada. Se os meios para passar o rio estiverem promptos, deverá a força ir acampar na margem do rio; no caso contrario, demorar-se-ha junto ao Potreiro.


[167]
Tempo gasto 4 horas e 48 minutos.
Distancia percorrida 8,742 braças, ou 3 legoas proximamente.


A passagem para a infantaria é sempre commoda e facil até o Potreiro; para os carros, porém, e bagagem será necessario rampar as margens das correntes que atravessão o caminho e fazer estivados em differentes pontos. Nas matas, e nos cerrados, ha páos e taquaras que embaráção o transito; pelo que deverá ir, sempre dianteiro á força, um certo numero de homens armados de machados e fouces, para removerem estes obstaculos. Do Potreiro, porém, ao rio Negro, até para homens a pé, o caminho é de difficil viabilidade, e necessita ser aberto e melhorado para o transito.

Com excepção do Portão de Roma, proximidades do Lageadinho e margem dos corregos e ribeirões, os declives do caminho são sempre bons: o leito é uma estreita trilha, argilo-silicoso, quasi sempre secco até pouco adiante do Potreiro.

Achamo-nos hoje na margem do rio Negro, sem termos encontrado guia para o caminho que segue a fralda da serra de Maracajú até a aldêa da Piranhinha, o qual os soldados desconhecem, e vamos encetar viagem á tôa e sem indicações certas.

Margem esquerda do rio Negro, 25 de Fevereiro de 1866.

[168]

POUSOS PARA A FORÇA


Ao pouso dos Boritys 2 34 legoas
Ao ribeirão da Mata 2 12 »
Ao ribeirão Verde 1 34 »
Ao Lageadinho 2 14 »
Ao corrego da Volta 3 12 »
Ao corrego Fundo 2 14 »
Ao rio Negrinho 2 34 »
Ao rio Negro 3 »

Somma 20 34 »
Do rio Taquary ao rio Negro
20 34 »


A planta topographica indicará outros pousos, caso não convenhão estes, e dá os accidentes de terreno e direcções magneticas.


II

Exploração entre o rio Negro e os Morros


No dia 25 de Fevereiro, passando o rio Negro n'uma pelota, transportámo-nos para a sua margem esquerda, baixa, paludosa e coberta da mesma vegetação que já tinhamos achado do outro lado. Por espaço de um quarto de legoa lutámos n'ella com os obstaculos provenientes das enchentes do rio, sendo obrigados a novas passagens, em [169] pelota, de corixas cheias e pyrisaes (lugares inundados) e á marcha em terreno sempre humido e atoladiço. Abre-se depois o campo com cerrados ao longe, e achámo-nos na base da serra de Maracajú, que era o nosso unico meio de direcção na procura da trilha, que dizião ter sido aberta pelos fugitivos de Miranda, na invasão d'este districto no anno passado. Com effeito avistavamos uma longa e continuada serrania que tinhamos de deixar á esquerda, fraldejando a sua aba e fugindo ás aguas que cobrião a estrada seguida no tempo secco até o rio Aquidauana.

A questão era examinar a qualidade de terreno, em que tinhamos de marchar e saber das vantagens da abertura de um caminho para a força nos seus primeiros movimentos para o Baixo-Paraguay.

Seguindo pois o rumo S., desde as primeiras horas de marcha, reconhecemos as difficuldades que tinhamos de vencer na procura d'aquella supposta trilha e dos vestigios da passagem, bem que recente, de um homem a cavallo, apagadas de todo ou pelas chuvas ou pelas pégádas do gado que vaguêa pelos campos, indo a final esbarrar em uma mata tão cerrada que roubou-nos boa porção do dia, não nos permittindo caminhar mais de legoa e meia. No pouso verificámos que a carne secca, que haviamos preparado no Potreiro para a nossa viagem, calculada em oito dias, pelas passagens nas corixas e pela muita chuva dos dias anteriores, achava-se de todo deteriorada. A impossibilidade de termos recursos d'aquelle lugar, pois que a ultima porção de gado recolhido, fôra levado da fazenda do Retiro para o Coxim e a esperança de podermos matar alguma das rezes que encontravamos, não nos permittírão duvida sobre [170] o que deviamos resolver. Dous dias depois caminhando sempre, ora em terreno pantanoso e atoladiço, até a fralda da serra, ora em cerrados de difficultosa passagem, achavamo-nos com todos os recursos de boca completamente esgotados e com a certeza desesperadora da quasi impossibilidade em matarmos á bala rezes, completamente selvagens e ariscas.

Os nossos males crescêrão com a fuga de todos os animaes, o que nos reteve nas mais crueis necessidades, junto ao corrego da Afflicção, durante dous dias nos quaes sustentámo-nos de fructos silvestres, que os soldados podérão colher. Conseguindo no terceiro dia alguns dos animaes, proseguimos viagem deixando quatro d'elles perdidos e canastras escondidas na mata proxima, alimentando-nos desde então por oito dias de miôlo de palmeiras e de alguns fructos do mato, soffrendo sempre chuvas torrenciaes e contrariedades. Em todo este tempo fizemos apenas 11 legoas, apezar de andarmos dias inteiros, ora rodeando charcos perigosos, ora abrindo picadas em cerrados de intrincadissima taquára. Em parte alguma viamos uma trilha seguida: quando nos suppunhamos perdidos, deparavamos algum rancho abandonado, uma arvore cortada, um signal que indicava acharmo-nos no rumo seguido pelos fugitivos, os quaes, sem duvida, tiverão interesse em occultar os seus vestigios, acoçados dos paraguayos, que demandavão o mesmo caminho, como o vimos pelos signaes de acampamento de forças. Tomando afinal o rumo O. fomos trilhar a parte, transitavel hoje, do caminho do pantanal, onde podémos dar fim aos nossos soffrimentos, conseguindo carnear uma rez. [171] No dia 10 passámos o rio Tabôco que achámos de nado e, visitando no dia seguinte o aldeamento dos indios na Piranhinha, chegámos no dia 11 ao arranchamento do cidadão João Pacheco de Almeida, onde tivemos recebimento hospitaleiro e sympathico e onde nos achamos agasalhados.

CAMINHO QUE A FORÇA DEVE SEGUIR


Não existe trilha alguma junto á fralda da serra de Maracajú. O pantanal que vai até a base d'esta serrania é em terreno fôfo e de perigoso transito, sobretudo para grande numero de cargueiros e carros: nos cerrados, o sapé alto, capins e taquaras maltratão os infantes e canção sobremodo os animaes. Só nos principios de Maio poderão, segundo informações de pessoas praticas, achar-se estes lugares seccos; época em que o caminho, chamado do pantanal, conhecido por muitos e trilhado, dá excellente passagem por occasião da retirada das aguas. A vantagem de ser a trilha do pantanal sempre firme, não póde deixar duvida sobre o caminho a seguir, escolhido que seja um guia, conhecedor d'estes lugares que dê indicações dos lugares em que se encontrão boas aguadas. O capataz da fazenda do Tabôco, o cidadão Antonio Maria Tonhá, é muito proprio para este serviço.

CONTINGENTE PARA A FORÇA


Guarda nacional.—Os guardas nacionaes, que existem [172] debaixo das ordens do tenente coronel Albuquerque, não podem perfazer o numero de 100: melhores informações sobre seu armamento, fardamento e municiamento, teremos depois de recebermos resposta ao nosso officio de 17 do corrente ou conversarmos com o tenente coronel commandante; o que tudo havemos de communicar com a brevidade possivel.


Indios.—No aldeamento dos indios terenas, da Piranhinha, encontrámos a melhor disposição na gente do capitão José Pedro: apresentárão-se-nos 60 moços bons atiradores e proprios para servirem de excellente tropa em sorprezas e emboscadas.

No aldeamento de Francisco Dias ha 40 homens robustos, em estado de pegarem em armas: achão-se armados, e só lhes falta cartuxame.

Da gente quiniquináo, acampada em diversos pontos, póde-se contar com 30 homens.

São ao todo 130 indios que estão no caso de servir de contingente á força. Falta-nos comtudo visitar, a oito ou dez legoas d'aqui, dous aldeamentos, um quiniquináo e outro laiana, que devem augmentar o numero de homens e dar alguns alqueires de arroz e milho. Áquem de Miranda ha tambem outros pontos em que existem indios foragidos.

A indole dos indios é guerreira: votão odio encarniçado aos paraguayos e estão com estes em continua guerra de emboscada, em que a crueldade e ferocidade de ambos os lados tem trazido A indole dos indios é guerreira: votão odio encarniçado aos paraguayos e estão com estes em continua guerra de emboscada, em que a crueldade e ferocidade de ambos os lados tem trazido temor e receio reciprocos; entretanto a inconstancia de genio e a impossibilidade em confiar na disposição de espirito e firmeza para arrostarem no campo e de [173] frente o inimigo, os torna apenas proprios para atiradores em matas e guerrilheiros.

RECURSOS COM QUE DEVE CONTAR A FORÇA


Gado.—Desde o rio Negro até a Piranhinha vimos immensa quantidade de rezes, vagando pelos campos em grandes manadas. Entretanto a necessidade, para o fornecimento, de bons cavallos para rodear-se o gado, obrigará á espera da terminação da peste que grassa entre os animaes até fins de Abril, e que tem destruido toda a cavalhada desde o Coxim até estes lugares.

Um contractador, de posse comtudo de bons animaes, poderá com facilidade, em todos os pousos da força, reunir a quantidade precisa de rezes nas fazendas de Joaquim Alves, Fialho, capitão Pires (prisioneiro dos paraguayos), José Alves de Arruda e outros.

Os cidadãos que pelas informações colhidas, poderão se encarregar do fornecimento são: Joaquim Alves e Canuto Virgolino de Faria (no Coxim); mas deverão de antemão comprar cavallos para se acharem em circumstancias de cumprir com os seus compromissos.

Calcula-se em 13,000 cabeças o gado que existe nas fazendas apontadas acima, e só póde haver difficuldade na obtenção de rezes com a falta de cavallos, para o que devem ser tomadas providencias acertadas.


Cereaes.—As plantações dos refugiados de Miranda, além das limitadas proporções em que forão effectuadas para [174] proverem unicamente á subsistencia particular, não derão colheita satisfactoria. O milho veio muito falhado; o arroz abaixo da expectação: são comtudo os dous generos que mais avultão. Ha grande difficuldade em reduzir-se o milho existente á farinha, ou á cangica, pela falta de um monjólo; promettem alguns alqueires á custa de braços.

Não ha nenhum feijão recolhido: apenas algumas quartas plantadas, que comtudo pouco podem dar pela falta de chuva e má época em que forão lançadas em terra.


Sal.—Ha grande carencia de sal: apenas existem 2 ou 3 alqueires que estão sendo vendidos.

Os dados que seguem forão todos colhidos com a maior minuciosidade, e são o resumo de quantidades parciaes, como se vê do mappa annexo:

Milho 50 alqueires
Cangica 57 »
Farinha 10 »
Arroz com casca 110 »
Arroz socado 155 »


Somma 382 »

FORÇA INIMIGA


Interrogando diversas pessoas e indios, que têm, desde Janeiro até fins de Fevereiro, visitado os lugares ainda occupados por forças, colhemos as seguintes informações: [175]


Na fazenda do Souza 50 a 150 homens
No Espenidio 200 »
Na Forquilha 100 »
Em Nioac 360 »


Ao todo 810 »


No porto do Souza existe um entrincheiramento a menos de meia legoa do rio, e entre estes dous pontos uma guarda rendida diariamente, que serve para vigiar o Aquidauana. N'este entrincheiramento houve ultimamente augmento de força, pois que ouvem-se agora rufos de tambores e toques de corneta, o que não acontecia até fins de Janeiro: ha uma peça de artilharia para defendel-o e uma palissada de grossos madeiros de aroeira. Iremos com as precauções precisas visitar estes pontos, communicando logo o que tivermos observado.

A Forquilha e o Espenidio achão-se no caminho de Nioac á villa de Miranda. Este ultimo ponto está presentemente abandonado, todas as casas forão queimadas e não ha mais guarnição. É informação de André José dos Santos, que nos ultimos dias de Janeiro, com 6 companheiros foi reconhecer o inimigo, voltando no dia 4 de Fevereiro.

A Nioac chegou, a 3 de Fevereiro, Agostinho Joaquim Coelho, assistindo, de uma mata proxima, ao exercicio de um batalhão de infantaria pesada, formado em 6 pelotões de 30 filas pouco mais ou menos. A gente que se acha na fazenda do Souza é aguerrida e regular, o resto dizem constar de soldados ainda bisonhos. A cavalhada, de que elles dispõem, é boa, como vimos por alguns cavallos roubados pelos indios.

[176] Usa a infantaria de espingardas á Minié de 1,000 passos, e a cavallaria de lanças que manejão com muita destreza, de clavinas e espadas. Nas cartuxeiras trazem os soldados 80 cartuxos: os indios afianção que são máos atiradores, fazendo comtudo justiça completa á coragem e valor nunca desmentidos do inimigo.

Os paraguayos desde Maio do anno passado não fizerão mais correrias na margem direita do Aquidauana; provêem-se de gado, abundantissimo no outro lado, e considerão o rio divisa do territorio brasileiro.

Existe uma estrada, chamada do Canastrão, pela qual, de Dourados, onde ha força, e da fronteira podem vir soccorros para coadjuvarem os contingentes espalhados no districto de Miranda.

Esperão-se aqui cartas de um fazendeiro de Nioac, preso dos paraguayos, que foi visitado pelo indio laiana Joaquim da Silva em Fevereiro, o qual dá noticia de mais destacamentos na Ariranha e no Esbarrancado, a 8 legoas além de Nioac.

Suppõe-se que os destacamentos no Souza e Espenidio têem ordem para concentrar-se, com o apparecimento de nossas forças, em Nioac, afim de, attrahindo-as até este ponto, poder ser cortada a nossa retaguarda pelo caminho do Canastrão, que vem do Paraguay a Miranda.

RESUMO


O movimento da força brasileira póde effectuar-se nos primeiros dias de Maio, tomando o caminho do rio Negro, e [177] depois o do pantanal, que deve de estar completamente secco, reunida que seja boa cavalhada para o fornecimento de gado durante a marcha. Com poucos generos póde contar dos Morros e dos indios. Nas operações, além do Aquidauna, deve esperar encontrar mais de 1,000 inimigos, entrincheirados o mais das vezes, e dispostos á resistencia.

RIOS QUE PASSÁMOS


O rio Negro, no lugar de nossa passagem, tem 18 braças: entretanto como a força deverá vir pelo caminho do pantanal, indicado no nosso trabalho pelo traço colorido que vai ligarse ao caminho do roteiro do primeiro reconhecimento, além do Potreiro, é necessario visitar o rio mais baixo e conhecer a sua largura.

O rio Tabôco tem 30 braças de largura.


Meios de passagem.—Para o rio Negro devem-se promptificar barcas, pois que as margens baixas e atoladiças não facilitão a construcção de uma ponte. O rio[121] tem lugares de bom váo, como o afiança o pratico Tonhá, que conhece-os perfeitamente. O rio Tabôco é vadeavel.

Para o Aquidauana precisão ser trazidas ao porto do Jatobá, ou ao de D. Maria Domingas, as canôas do tenente coronel Albuquerque da sua fazenda do rio Negro e a prancha do cidadão Cardoso Guaporé, o qual já foi examinar [178] o estado em que ella se acha, por estar escondida, ha mais de anno, n'uma volta do rio.

DISTANCIA QUE PERCORREMOS


Do rio Negro á entrada do Pantanal 13 legoas
D'ahi á Piuva. 1 14 »
Da Piuva aos Dous Corregos. 1 12 »
Dos Dous Corregos ao Tabôco. 3 12 »
Do Tabôco á ponta do morro d'onde o caminho segue para o Aquidauana. 1 34 »
D'aquella ponta á Piranhinha. 1 14 »
» » a João Pacheco. 3 14 »
De João Pacheco a Francisco Dias. 12 »

Somma 26 »


A volta pelo caminho do Pantanal não póde exceder de 4 legoas.

Morros, 20 de Março de 1866.



[179]

III

Exploração á margem direita do rio Aquidauana



A necessidade de visitarmos dous aldeamentos de indios e reconhecermos a margem direita do rio Aquidauana e seus diversos portos que derão passagem aos paraguayos, na invasão do anno passado, fez-nos emprehender nova viagem, effectuando a nossa partida para aquelles pontos, no dia 24 do mez proximo passado. Seguindo ás vezes a base da serra que viemos fraldejando, desde o rio Negro, outras cortando-a em diversas e profundas depressões, visitámos a 7 14 legoas de nosso ponto de partida o acampamento dos laianas, onde apenas encontrámos 20 homens em estado de pegar em armas, e viveres em quantidade insufficiente, até para sustento proprio.

No aldeamento do Oauassú, a 3 legoas do outro, ha igual carencia de mantimentos e só 9 indios para augmentarem o contingente, que dá a tribu dos quiniquináos. Tomando d'ahi rumo S., procurámos o Aquidauana, indo acampar junto á sua margem direita que, desde então, seguimos até a tapera do Pires, d'onde fizemo-nos na volta dos Morros.

Achão-se junto á borda do rio, que margeámos, differentes casas abandonadas por occasião da entrada dos paraguayos, as quaes tem cada qual a sua passagem para o outro lado e porto no rio.

Assim são os portos do Canuto, até onde chegou uma partida inimiga vinda do Taquarussú, de João Dias, [180] Maria Domingas, Francisco Dias, etc., que vão apontados no reconhecimento topographico. Examinando cada um d'elles com cuidado, para indicarmos a passagem mais conveniente para a força, pareceu-nos o porto de D. Maria Domingas o que satisfaz a todas as condições precisas. É o unico que dá váo em toda a extensão (30 braças) com profundidade de 4 a 8 palmos, facilitando assim não só a passagem da infantaria, como tambem o serviço das barcas, que será feito com muito mais presteza, tocadas e puxadas á mão.

Além d'isto a força, occupando a margem esquerda, corta a communicação entre o entrincheiramento do porto do Souza e o do Espenidio e impede qualquer movimento de concentração que os inimigos procurem fazer. Do largo da Piranhinha deverão as forças dirigir-se para o porto de D. Maria Domingas, tendo á frente um bom pratico d'estas localidades, caso não seja tomada outra determinação.

D'este porto ao do Souza, pela margem esquerda contão-se 4 legoas de trilha completamente secca e, a não querer cortar campo, é d'elle que partem caminhos para Miranda, Forquilha, Nioac, etc.


Do porto de D. Maria Domingas ao Eponadig 4 legoas
Do Eponadig á Forquilha 7 »
Da Forquilha a Nioac 10 »

Do porto a Nioac 21 »


Alguns d'estes pontos e mais o Espenidio e o Souza, [181] occupados pelos paraguayos, fórmão uma linha que fecha em circulo a villa de Miranda; razão por que foi ella abandonada e queimada, reforçando-se os pontos estabelecidos em derredor. Assim pois a retirada de Miranda não tem significação de evacuação de forças, parecendo, pelo contrario, dever indicar a tenção de melhor defender o territorio, em que se achão e que fechárão por um cordão de destacamentos desde o Apa até o Souza.

A este ultimo ponto não podémos chegar, pois que um desencontro na remessa de cartuxos, que tinhamos requisitado do Illm. Sr. tenente coronel Albuquerque, obrigou-nos a não effectuar este reconhecimento arriscado e que só póde ser feito á mão armada, pela vigilancia que, sobre a outra margem, exercem os paraguayos. Mandámos comtudo uma partida de indios[122] reconhecer, de dentro da mata, a estacada e, apezar de seus habitos e habilidade na espionagem, não podérão passar além do piquete que, como já participámos, existe entre o rio e o entrincheiramento. Este piquete compõe-se de 10 a 12 praças, que se achavão montadas em burros (o que indica a falta de cavallos) para cercarem as rezes que conservão, encostadas á margem do rio, para o consumo. Na frente ha uma bandeira vermelha, junto a um mangrulho, d'onde uma sentinella devassa grande extensão de terreno.

(Os paraguayos chamão mangrulho a uma guarita elevada sobre 2 ou 4 esteios de 40 a 60 palmos, d'onde a vista se estende muito ao longe).

[182] Descendo o rio pela margem direita, chega-se com 4 legoas de marcha ao porto do Jatobá, que dizem ser vadeavel, depois de um pequeno nado e que dista do Souza, pela margem esquerda, 2 12 legoas.

Em geral todas as trilhas achão-se apagadas pelo muito capim e falta de transito: devem ser preparadas quando a força tiver de dirigir-se ao porto escolhido para a sua passagem.


Distancia que percorremos 23 legoas.

CONTINGENTE PARA A FORÇA OPERADORA


Guarda nacional.—Segundo as informações, que nos prestou o Illm. Sr. tenente coronel Albuquerque, commandante do batalhão n. 7 da guarda nacional, existem 85 praças mal armadas e sem fardamento e poucos officiaes, tendo-se retirado a maior parte d'elles para diversos pontos longinquos d'esta provincia. Achão-se os guardas espalhados n'uma larga zona e são elles os que preparão a maior quantidade de mantimentos, o que deve ser attendido por occasião de sua reunião que desfalcará, pela falta de braços, o numero de alqueires de mantimentos com que poderia a força contar.

Estão tambem qualificados guardas nacionaes indios quiniquináos e terenas que melhores serviços prestarião englobados nas suas respectivas tribus, como por exemplo o indio José Pedro, capitão dos terenas, que deve ser conservado á frente de sua gente pelo respeito que tem sabido infundir e obediencia que lhe prestão os seus companheiros.

[183] A guarda nacional acampou, de 3 a 22 de Setembro do anno passado, junto ao capão dos Boritys, tendo-se ahi reunido 66 praças desarmadas, que forão licenciadas para cuidarem em roçados e plantações. Existe algum cartuxame para seu municiamento: entretanto ha muitos cartuxos deteriorados e inserviveis.


Indios.—Informações frescas colhidas do Sr. João da Costa Lima, que chegou das aldêas além Aquidauana, dão-nos os meios de apresentar o total de indios que, além dos guaycurús, cujo capitão Nadô consta vir-se apresentar com toda a sua tribu, poderá coadjuvar a força.


Terenas 216
Quiniquináos 39
Laianas 20

275 homens.


Estes indios mostrão a melhor disposição, offerecendo-se com espontaneidade e servindo com toda a dedicação, como verificámos nos nossos ultimos reconhecimentos. Achão-se muito atemorisados com a chegada da força, pois que repetidas ameaças dos fazendeiros, refugiados aqui e em outros lugares, por causa das rezes que elles são obrigados a matar para a sua alimentação, tem incutido o temor de que as forças virão escravisal-os e tratal-os com todo o rigor da guerra. Procurámos tranquillisar esta pobre gente que, nos calamitosos mezes de invasão, portárão-se com moderação não natural na esphera e condição em que vivem.

Os cadiuéos, inimigos figadaes dos paraguayos, não merecem [184] confiança alguma e têem, em varias occasiões, causado tantos damnos aos brasileiros como aos inimigos.

RECURSOS


Insistindo ainda sobre a importantissima questão de fornecimento e acquisição de gado, que se tem tornado muito difficultoso, depois da peste dos cavallos, levámos ao conhecimento do commando das forças a falta absoluta de cavalhada desde o Coxim até os Morros, onde os fugitivos de Miranda se achão desprovidos de carne para sustento proprio, pela destruição completa de todos os animaes, desde Dezembro do anno passado. O tenente coronel Albuquerque indica os cidadãos, de que fallámos na nossa ultima participação, prestando-se-lhes os meios para munirem-se de cavallos.

Ao numero de alqueires, dado no mappa dos mantimentos, que se podem obter dos habitantes dos Morros, devem ser addicionados mais 45 de arroz, e de cangica 22. Ponderamos comtudo de novo que o chamamento dos guardas nacionaes ao serviço das armas, deve diminuir a quantidade de viveres indicada n'aquelle mappa, por não se achar a colheita concluida, e pertencerem quasi todos os seus possuidores á guarda nacional. A requisição que, segundo as nossas instrucções, fizemos de homens para a construcção de canôas no rio Negro, impossibilita varios cidadãos de promptificarem os mantimentos que tinhão promettido.

Indagando de diversos pontos d'esta provincia ou de outra que poderião mandar viveres para as forças no districto de Miranda, apontárão-nos a villa de Santa Anna do Paranahyba, [185] que dista de Camapuam 60 legoas, ficando este ultimo lugar, hoje completamente abandonado, a 50 legoas da villa de Miranda; por agua fallárão-nos na communicação muito frequente antes da invasão, entre Porto Feliz, em S. Paulo, e o acampamento de Nioac, descendo canôas carregadas os rios Tieté e Paraná, e subindo o Ivinheima e Brilhante até Sete Voltas, d'onde, com cinco dias, chegavão carros a Nioac. Esta viagem, que fazião em 4 mezes, ida e volta, póde fornecer abundante provimento ás forças no caso de sua demora no Baixo-Paraguay: indicamol-a por ser esta hypothese possivel e dever cuidar-se quanto antes na reunião de viveres que, de mais á mais, hão de tornar-se escassos em territorio devastado e sem recursos.

MEIOS DE PASSAGEM DO RIO NEGRO E AQUIDAUANA


Guiando-nos pelas nossas participações anteriores, que aconselhão a marcha das forças do Coxim nos primeiros dias de Maio, requisitámos a 6 do corrente 12 guardas nacionaes e indios para irem construir barcos para a passagem da expedição.

Com difficuldade, apezar das ordens do tenente coronel commandante, estão-se reunindo as praças pedidas, faltando completamente toda a especie de ferramenta. Estes homens, como melhores trabalhadores, são os que preparão a maior quantidade de mantimentos para a força, não se achando ainda terminada a colheita de milho e arroz, e sobretudo não tem meio algum de conduzir viveres que cheguem para alimentação, durante o mez necessario de parada n'um local totalmente falto de recursos como é o rio Negro. [186] Apezar de tudo vamos tratar de apressar a remessa d'estes guardas, requisitando mais 12, á vista das instrucções que nos mandão preparar meios de passagem nos differentes rios, para o trabalho que temos de fazer nas canôas que servirão no Aquidauana.

Para este ultimo rio deverão subir as canôas do tenente coronel Albuquerque, do seu acampamento no rio Negro, ficando nós aqui para mandarmos preparar, com uma serra e um machado, taboas e barrotes que formarão as barcas na occasião da approximação da força, pois que qualquer trabalho precipitado póde ser inutilisado pelo inimigo, o qual parece ultimamente vigiar mais cuidadosamente as margens do rio.

Força maior nos impede de acompanhar os homens que vão ao rio Negro: levarão para dirigil-os um official carpinteiro habilitado na factura das canôas. Para guia das forças até o Aquidauana recommendamos denovo o pratico Antonio Maria Tonhá, homem utilissimo por conhecer perfeitamente os caminhos e campos por onde se possão abreviar as marchas e saber dos lugares onde existão boas aguadas.

Para Miranda e Nioac há n'esta localidade muitas pessoas proprias para servirem de guia.

DISTANCIAS ALÉM DO AQUIDAUANA


Do porto do Souza a Miranda 10 legoas
De Miranda ao Eponadig 9 »
Do Eponadig á Forquilha 7 »
Da Forquilha a Nioac 10 »

Do porto do Souza a Nioac 36 »

[187]

FORÇA INIMIGA


Duas extensas cartas, cuja integra remettemos, que recebêrão os moradores d'este lugar do cidadão João Barbosa Bronzique, prisioneiro dos paraguayos em sua fazenda, desde o anno passado, derão-nos informações do estado a que se achão reduzidos os inimigos e da força espalhada em diversos pontos: tem elles nas colonias de Dourados e Miranda 100; no Brilhante 100; Sete Voltas 10; Vaccaria 100; Agua fria 30; Nioac 500; Taquarussú 200; Porto do Souza 200. Ao todo 1,240 homens, a que se devem acrescentar os 50 de Miranda que vierão para o Espenidio e Souza e outros que existem junto do Apa e morro do Canastrão, onde possuem boa cavalhada. Desde o Porto do Souza até o de Maria Domingas, os paraguayos têem ultimamente lançado fogo a todos os campos e desbastado as margens, parecendo ter assim conhecimento dos proximos movimentos de nossa força.

Morros, 16 de Abril de 1866.



Notas:


[1] Tacoára hy, (tupi).

[2] Não é o marmeleiro de que trata Saint-Hilaire, sob o nome de Maprounea brasiliensis (euphorbiacea).

[3] Temos o desenho d'ella no album de viagem. Folhas oppostas; corolla monopetala com um labéolo; antheras didynamas; ovario sobre disco hypoginio. Flôr com 2 12 pollegadas de comprido; Stygma bipartido.

[4] Folhagem muito delicada; folhas tomentosas e ovario livre; sementes ovoides.

[5] Em fórma de colher (cochlear).

[6] Calophyllum brasiliense, (Saint-Hilaire). Oanandim, lantim ou olandy; excellente páo para canôas.

[7] As folhas d'esta planta são muito desenvolvidas. No corrego da Pontinha (a 8 legoas de Camapuan) vimos algumas com um palmo de largura e palmo e meio de comprido, lustrosas e completamente glabras.

[8] Acacia maleolens de Freire Allemão.

[9] É conhecido nos sertões do norte por cajueiro bravo ou melhor çaimbahiba (çaimbé aspera, yba arvore). Curatella çaimbahiba. (Saint-Hilaire).

[10] Bority ou mority.—Do tupi, mooro, nutrir, ty, succo. (Mauritia vinifera. Mart. flexuosa. Lin.)

[11] A 6 legoas do rio Piquiry; picá, pomba; (r) hy, agua (L. T.)

[12] Esta palavra derivada do tupi (caa-poam, ilha) é com razão geralmente empregada em todo o Brasil.

[13] O sertanejo Perdigão.

[14] Fourcroya gigantea.

[15] Gua, baga; yrob, acre (lingua tupi). Psidium Vell.—Eugenia Mart.

[16] Familia entre as rosaceas e magnoliaceas.

[17] Autor do poema La Gastronomie, publicado em 1800.

[18] Amaca, rede; yva, arvore (lingua tupi).

[19] Ara Ararauna (especie particular aos sertões de Goyaz e Mato Grosso).

[20] Ara Aracanga.

[21] Ara Hyacinthinus (Descourtils).

[22] Crypturus noctivagus. Começa a piar apenas descamba a tarde. Martius chama-a tinamus nocturna. Em algumas partes do imperio é conhecida por sabelé.

[23] Os banhos das folhas d'esta plantinha são efficassissimos nas orchites. (Davilla elliptica, Saint-Hilaire).

[24] Sapindus (Saint-Hilaire).

[25] Lugares empantanados, pascigos do gado.

[26] Em lingua tupi quer dizer páu de cajú (mara-cajú). Segundo alguns cascavel ao pé (maracá jub) da serra. (Glossario).

[27] Toda audacia é permittida em hypotheses. Impressionárão-nos, de passagem, sem estudo, aquellas linhas que correm parallelas por muitas legoas. Serão na realidade indicação do que acima tocámos, ou simplesmente effeitos de infiltrações vagarosas em estratificações, erosões, etc.?

[28] Amambahy ou Ambaibahy—Hy, agua.—Ambaiba ou embauba (urticacea do genero Cecropia). Castelnau dá á porção de serra, que conhecemos, o nome muito apropriado de serra da Chapada: entretanto nunca o ouvimos nas localidades, onde os moradores usavão só da denominação de Maracajú.

[29] Na provincia de Minas chama-se paratudo a uma amaranthacea,—gomphrena officinalis. A causa do paratudo (bignoniacea) tem grandes propriedades febrifugas e sudorificas.

[30] Os indios Guanás o chamão namuculí.

[31] Esta arvore, hymenæa, abundantissima no rio Negro, ia-se tornando cada vez mais rara. Os seus fructos, quando maduros, são supportaveis e muito nutrientes: os nossos soldados, no acampamento do rio Negro, sustentavão-se quasi exclusivamente d'elles.

[32] Contracção de ipé, uva (arvore).

[33] O que, no interior do paiz, se chamão tijucaes, palavra brasileira tirada da lingua tupi, tyjuca (lama). Usa-se tambem muito do verbo entijucar por enlamear.

[34] Mureci penina ou pintado. Em Mato Grosso assim chamão o mureci do pantano. Será com certeza—chrysophylla—a especie? Em todo caso, o genero é byrsonima, bem caracterisado. Com ser malpighiacea, vêm-se os pares de glandulas bem apparentes; ás vezes desenvolvidas em extremo, em cada sepala. Do fructo do mureci, diz com justeza Pison:—Fructus maturi gratissimi quidem acore pulatum vellicant, sed stuporem tandem dentibus inferunt simulque astringendo intensè refrigerant. (De facultatis simplicium Lib. IV).

[35] Em Mato-Grosso quasi todos pronuncião esta palavra grave.

[36] Ciconia Maguari (G. Temm).

[37] Vimos nas mimosaceas dos barreiros myriades de vira-bostas, (Icterus violaceus, Desc.); encontros (Xanthornus tristis, Desc.) e anús (Crotophaga, Marcgravio).

[38] Cateitus (dicotyles torquatus) e porcos do mato (dicotyles labiatus).

[39] Na bahia Negra, abaixo do porto de Coimbra. A proporção de sal para a terra era, n'um alqueire de mistura, tres quartas partes.

[40] As salinas da margem direita do rio Paraguay são muito mais ricas em sal, do que as da margem esquerda. Antes da invasão, havia prohibição de tirar-se sal da bahia Negra, por estar o barreiro em territorio contestado entre o Brasil e a republica do Paraguay.

[41] Na margem esquerda do rio Paraguay, defronte de Corumbá.

[42] É palavra geralmente usada nas fazendas de gado.

[43] Devida a uma intoxicação paludosa.

[44] Aspidosperma.

[45] Os nossos amigos os Srs. tenente João Faustino do Prado e João Mamede Cordeiro de Faria.

[46] Caapi-iára, dono do capim (Gloss.). Com mais razão, diz Gonçalves Dias capi-uara, derivando uára de goára (habitante que mora, em determinada parte, por vontade propria). Das capivaras, diz Marcgrav com exageração notavel:—Noctu ingentem clamorem excitant et horribile fere, ut Asini solent.

[47] Vanellus cayennensis (Vieill.).

[48] Em Agosto, deviamos de apreciar a magestosa florescencia d'aquellas bignoniaceas; ipés, Tecoma speciosa Vall., para-tudos e carobinhas (jacarandá procera) ostentavão então massiços amarellos e azues da maior belleza.

[49] Obteve em fins de 1867 esta distincção e em Janeiro do anno seguinte falleceu na cidade de S. Paulo, onde se achava, depois de uma viagem ao Rio de Janeiro, com alguns de sua tribu.

[50] Pery, junco (tupi).

[51] Desde Maio de 1865 não fazião senão raras incursões, na margem direita do rio Aquidauana.

[52] Denominação indigena do rio Miranda ou Embotety e Embotetiú, das palavras, enimbo laço, tui periquito—laço para piriquito. Tambem tem nome de Aranhahy, Guaxihy e alguns escriptores portuguezes lhe dão o de Mondego, ainda que pareça este só convir, depois da confluencia com o Aquidauana.

[53] Uma carta de João Barbosa Bronzique, prisioneiro dos paraguayos, em sua fazenda do Bonito, deu noticia d'essa prohibição devida, ao que elle suppunha, aos ataques repetidos dos indios, que se occultavão nas matas do lado direito do rio.

[54] Ilex congonha, familia das Illicineas (Aquifoliaceas de de Candolle). Das congonhas fazem os habitantes uma agradabilissima infusão.

[55] Cama mama, apuam redonda (tupi).

[56] Os oauassús, chamados pelos guaycurus chatellôd, são as magestosas palmeiras de que já temos fallado: os grupos que ellas fórmão, são imponentes. Os troncos lisos, ligeiramente engorgitados na base, as cópas erectas e compridas folhas, com um prateado fugaz, as distinguem de muito longe. Os côcos de bom tamanho dão amendoas com o valor approximado ás da Bahia e constituem durante certas épocas a alimentação quasi exclusiva dos indios. Pelo systema phyllotaxico, preconisado pelo professor Agassiz, a fracção 13 representa a disposição das folhas, occupando os intervallos, as espadices da inflorescencia. Assemelhão-se os oauassús ás magnificas oreodoxas, tão em moda no Rio de Janeiro: Martius deu-lhes o nome de attalea spectabilis. Em lingua tupi significão folha grande: oau ou oba folha, assú grande.

[57] O laiana pertence á numerosa familia chané: a sua linguagem é a mesma que a dos quiniquináos, terenas e guanás com algumas alterações: os seus costumes identicos. O seu typo é caracteristico; a physionomia muito menos expressiva que a do terena e menos delicada que a dos quiniquináos; elles têm o nariz afilado, ás vezes pontudo, os olhos algum tanto divergentes, os labios finos e apertados.

As suas plantações consistião em arroz, milho, feijão; porém as chuvas falhadas impedião que ellas tivessem aspecto satisfactorio; por esta razão, não podérão os seus possuidores prometter cousa alguma para as forças.

[58] O corrego da Pontinha, perto de Camapuam, é uma das cabeceiras mais afastadas.

[59] Uacôgo, corrego dos Couros (guaycurú).

[60] As aracuans, Penelope aracuan (Spix.), são aves de plumagem escura, pernas curtas, bico preto e forte. É caça procurada pela alvura e sabor da carne. Este passaro offerece uma particularidade singular. Quando um grita, é logo acompanhado por todos os companheiros, de modo que, por qualquer ruido, levanta-se grande alarido em ambas as margens, o qual vai-se propagando e crescendo. É muito applicavel o—Vires acquirit eundo.

[61] Esta ave conhecida tambem por inhuma-póca canta com regularidade, de modo que, dizem, póde marcar as horas e tambem annunciar mudanças de tempo. Tem como a palamedea cornuta excrescencia na cabeça. Marcgravio diz do canto: Terribilem clamorem edit—vihu vihu—vociferando.

[62] O tuyuyú (micteria americana) é a maior das aves ribeirinhas: todo branco com uma colleira vermelha, tem um bico longo e tubulado. Nutre-se de peixe e anda no lodo das bordas de rios. A sua altura, fóra o pescoço, é de 1, m. 2.

[63] O tabuyayá (ciconia maguari) é maior que a garça; tem azas pretas malhadas de branco: o bico e pernas compridos. Em guarany chama-se baguary (Martius).

[64] Na no Na nossa passagem do Aquidauana, um soldado foi arrebatado por um jaù.

[65] Pison diz com razão da carne: «Edulis non solum caro ejus albissima, sed quod friabilis et sicca optimi saporis».

[66] Familia dos Aproterodontes—Gen. boa—Esp. murina (Principe de Neuwied e Sellow): boa scytale (Lin.) Estas serpentes apparecem raras vezes nos affluentes do rio Paraguay, ao passo que abundão nos do rio Paraná. O grito d'ellas, ê, dizem, estridente. Nunca ouvimos esse ronco de que tanto se falla no sertão.

[67] Entre as absurdas historias, tocantes a essas serpentes, sobresahe a referida por Charlevoix, na sua historia do Paraguay, o qual diz que os sucurys se atirão sobre as mulheres com outro fim, que não o de devoral-as e cita o testemunho do padre Montoya que confessára, em certa occasião, uma india in extremis: «laquelle étant occupée à laver du linge sur le bord d'une rivière, avait été attaquée par un de ces animaux, qui lui avait fait, dit elle, violence: le Missionaire la trouva étendue par terre au même endroit, etc.»

[68] Relatorio geral da commissão de engenheiros (pag. 22 e 31).

[69] Spix chama-o pacú-argenteus, não sabemos se com razão; o pacú pouca semelhança tem com o corimbatá.

[70] Contra ella tambem bate o rio Aquidauana, formando uma curva apertadissima. Além, no outro lado, eleva-se o Morro Azul, seguindo de novo a serra até Nioac e para os lados do Apa; baixa, porém, e com disposição de morretes.

[71] Citaremos uma lindissima apocynea (nerium?), varias salvia, a ardísia (Ardisacea), a curiosa aristolochea galeata, que se enrosca nos mais flexiveis encostos; a fragrante saudade do campo (scabiosa-dipsacea), hyptis (labiadas), malpighiaceas rasteiras com cambiantes samaridios, a vistosa gomphrena officinalis (o para-tudo de Minas) malvaiscos, etc.

[72] Erão os restos da abundantissima colheita paraguaya; esses campos, poucos mezes antes, havião contido muitos milhares de rezes. O districto de Miranda possuia 150,000 cabeças de gado: d'essas, segundo o testemunho de vista de João Barbosa Bronzique, o infeliz prisioneiro de que já temos fallado, 60,000 passárão para a republica do Paraguay em varias pontas e ainda no tempo em que viajavamos pelo Aquidauana continuavão amiudadas as remessas. A carne do gado d'essas vargens è saborosissima.

[73] Palavra tupi, usada geralmente: significa casa abandonada.

[74] Momordica operculata (Velloso), charantia.

[75] Quasi todos os habitantes de Miranda fugírão embarcados, descendo o rio Miranda, entrando no Aquidauana e subindo por este até perto do porto do Souza. Ahi se refugiárão nas fragosidades da serra de Maracajú (Morros); alguns tomárão caminho de Sant' Anna do Paranahyba. A villa ficou deserta a 4 de Janeiro de 1865: a 12 entrárão os paraguayos que n'ella estiverão até fins de Fevereiro d'aquelle anno.

[76] Das outras tribus que refere Castelnau, não ouvimos fallar. Talvez estejão extinctas ou confundidas com estas.

[77] Tanga, avental.

[78] Muito aprecião o tarumá (Vitex montevidensis) que em Dezembro de 1866 constituia a principal alimentação da gente quiniquináo dos Morros.

[79] Bixa orellana.—Genipa americana.

[80] Léry faz esta justiça ás indias em geral, quando diz: «qu'á toutes les fontaines et rivières claires, qu'elles rencontrent, s'accroupissans sur le bord ou se mettans dedans, elles jettent, avec les deux mains de l'eau sur leur teste et se lavent et plongent ainsi tout leur corps comme cannes, tel jour sera plus de douze fois» (Histoire de l'Amérique, pag. 128).

[81] Quasi todos os nomes de lugares e rios do districto de Miranda são de origem guaycurú.—Euagaxigo, significa bando de capivaras; Eponadigo, bando de trairas; Lauiád, campo bello; Nioac, clavicula quebrada.

[82] Esses lindissimos lugares forão explorados a vez primeira pelo intrepido sertanejo José Francisco Lopes, o qual encontrou, n'uma de suas viagens, uma numerosa partida de cadiuéos, que o acompanhou até terras do Paraguay.

[83] Palavra guarany que significa Nosso-Senhor. Os terenas usão d'esse vocabulo. Os outros guanás dizem Echāi-uanuké (que está no céo).

[84] Herpethoteres. Azara chama Macaguá: alguns acauan ou oacaoam.

[85] O mesmo fazião os medicos entre os guaranys (Padre Loçano).

[86] Não sabemos se deve merecer fé o que diz Castelnau sobre assassinatos dos padres.

[87] O mesmo dava-se entre os padres dos guaranys (Padre Montoya).

[88] Léry diz dos tupinambás:—«Ils lamentent de telle façon, que si nous nous trouvions en quelque village où il eust un mort, ou il ne fallait pas faire éstat d'y coucher, ou ne se pas attendre de dormir la nuit. Mais c'éstait merveille d'ouyr les femmes, lesquelles braïllent si fort et si haut que vous diriez, que ce sont hurlemens de chiens et de loups» (Histoire de l'Amérique, pag. 392).

[89] Léry refere: «Si elles se ressouviennent de leurs feus parents, ce sera, faisant les regrets accoutumez, á hurler de telle façon, qu'elles se font ouyr d'une demi-lieue (H. de l'Amérique, pag. 400).

[90] A que chamão na provincia lavrados.

[91] Principalmente o timbó (paullinia pinnata) que tem violentas propriedades toxicas.

[92] Batem-se a punho secco, ainda mais geitosamente que os albiões (M. Ayres de Casal C. B. pag. 234).

[93] Todo o homem branco, pardo ou preto, é portuguez; os indios nunca usão da denominação de brasileiros: os paraguayos são ainda para elles castelhanos.

[94] Temos por vezes usado d'essa denominação de uma das tribus da nação chané, como que abrangendo a todas as outras, porque no districto de Miranda conhecem-se todos os indios chanés por guanás. Entretanto perguntando eu, certo dia, a um terena se elle era guaná: Acó chooronó, chané cuané téreno enómone; guaná não, chané ou terena na verdade (litt.).

[95] Esta tribu habitou primitivamente quasi toda junta á serra chamada do Chané, no lado direito do rio Paraguay, acima da do Albuquerque, dando a cordilheirasinha o nome da nação a que pertence? Ou lá esteve toda a nação? Nas minhas notas encontro ainda uma confirmação de que a denominação de chané, é valiosissima. Disse-me um quiniquináo: Humnāi quechatí cequexivó nhumzó chané? O senhor quer aprender a minha lingua chané? e acrescentou: Encre nhumzó acó ocohocorí iaquexovói chané. Pois minha lingua não custa aprender o chané (litteralmente). Ao illustrado viajante Henrique de Beaurepaire Rohan não escapou esta particularidade importante.

[96] O ultimo accento é o tonico: os outros modificão o som das vogaes.

[97] Os dois l soão claramente.

[98] Os laianas dizem moreví, como em guarany.

[99] Na lingua tupi paraguá, papagaio; d'onde paraguá hy, rio dos papagaios.

[100] Castelnau no seu inexactissimo vocabulario guaná exprime esta palavra por annāiti que significa grande, ignorando a sua qualidade de adjectivo, o qual vai modificar piritáo, faca. Não merece confiança a traducção dos outros vocabulos.

[101] Os indios chamavão-me ungê-maracaiá, olho de gato. Os guaranys dizem mbaracaiá; na lingua tupi maracayá ou maracajá.

[102] Talvez se devesse escrever ingâchá-á: em todo o caso não se pronuncia claramente o in, fazendo só soar o g, arrastando-o.

[103] A palavra é esdruxula: não sabemos porque se a pronuncia grave.

[104] Mámá em lingua caiuá, muito approximada ao guarany, senão o proprio.

[105] Os h são todos aspirados com energia.

[106] Noné capací, cara de nuvem, era a antonomasia de um de nossos soldados, por causa da guedelha desgrenhada.

[107] Este j sôa, como em hespanhol, gutturalmente.

[108] Significa peixe de rabo de sangue (vermelho).

[109] Quer dizer piolho de cão.

[110] Vê-se claramente que quiniquináo é alteração da palavra india.

[111] Os nomes de peixes são, como este e muitos outros, guaycurús.

[112] Esdruxulo, quando em portuguez é grave.

[113] Os quiniquináos dizem pahapáti.

[114] Observa-se a irregularidade de formação. São novas palavras.

[115] Esta palavra é de mui difficil pronuncia. Nunca a podêmos escrever conforme a ouvimos.

[116] Além de tres dizem tápuia muito, ou opôicoati. Para marcarem épocas, serve-lhes a florescencia do para-tudo. Um indio disse-nos: «Já o para-tudo deu flôres duas vezes e os castelhanos ainda estão em Miranda».

[117] Os imperativos, que elles empregão muito, terminão quasi todos em ca, exemplo: iticá faze, tetucá corta, nicá come, angicá lava; dos verbos ittuketi fazer, tetocoti cortar, ningá comer, angicóati lavar.

[118] Litteralmente unati bom, niké comida. Cuati deveras, echoti sabe, itucoati fazer, nica comida, ienó sua mulher.

[119] Tambem diz-se emó? quem sabe?

[120] Tomámos para estimativa da distancia vencida a média, em diversas observações, do tempo gasto por um animal carregado em percorrer uma certa extensão medida; sendo a unidade o minuto que achámos correspondente a 30 braças, 355.

[121] O rio pareceu-nos profundo e suppomos nunca poder dar váo bom á artilharia e cargueiros.

[122] Commandada pelo capitão José Pedro de Souza, o qual sempre se prestou a coadjuvar-nos efficazmente em todos os nossos trabalhos.





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 15 ininvejavel ... invejavel
#pág. 20 nás difficuldades ... nas difficuldades
#pág. 23/24 estimativativa ... estimativa
#pág. 81 Pararaguay ... Paraguay
#pág. 113 abuntante ... abundante
#pág. 128 fequentemente ... frequentemente
#pág. 130 syllada ... syllaba
#nota 52 escriptores. portuguezes ... escriptores portuguezes

Quando há indicações de data em que o ano não se encontra completo, optámos por apresentá-lo como no original.

Mantiveram-se versões da palavra Aquidauana, tais como Aquidauna.






End of Project Gutenberg's Scenas de viagem, by Alfredo d'Escragnolle Taunay

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SCENAS DE VIAGEM ***

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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

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spread public support and donations to carry out its mission of
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particular state visit http://pglaf.org

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