The Project Gutenberg eBook of Introdução á archeologia da peninsula Iberica

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Title: Introdução á archeologia da peninsula Iberica

Author: Augusto Filipe Simões

Release date: May 31, 2023 [eBook #70886]

Language: Portuguese

Original publication: Portugal: Livr. Ferreira, 1878

Credits: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK INTRODUÇÃO Á ARCHEOLOGIA DA PENINSULA IBERICA ***

INTRODUCÇÃO
Á
ARCHEOLOGIA
DA
PENINSULA IBERICA


Typ. Castro Irmão—Rua da Cruz de Pau, 31


INTRODUCÇÃO
Á
ARCHEOLOGIA
DA
PENINSULA IBERICA

PELO DOUTOR
Augusto Filippe Simões
LENTE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA


PARTE PRIMEIRA
ANTIGUIDADES PREHISTORICAS
COM OITENTA GRAVURAS


LISBOA
LIVRARIA FERREIRA
132 Rua Aurea 134
1878

[Pg i]


As sciencias historicas e sociaes transformam-se actualmente sob o poderoso influxo dos factos, principios e methodos das sciencias da natureza. A archeologia é a principal das vias por onde se opéra esta grande transformação. Relacionada por uma parte com a geologia, a paleontologia e a anthropologia, e por outra parte com a historia, tem aproximado, attrahido, ligado estas sciencias que a differença das idades e dos methodos respectivos por tantos annos conservára afastadas e independentes umas das outras.

A tradição e a auctoridade d’aquelles que o precederam guiam e esclarecem o historiador. Ao naturalista falta-lhe a tradição; tem apenas os vestigios dos factos para os explicar e relacionar; mas, por isso mesmo, afaz-se a observar, analysar, comparar e induzir com toda a força que dá o exercicio ás faculdades intellectuaes, e com a independencia a que o espirito humano se habitua, desprendido inteiramente de opiniões antecipadas e de systemas preconcebidos. O historiador principia pelo mais antigo dos factos que a tradição refere, e deduz depois chronologicamente todos os outros até chegar á actualidade. O geologo segue o caminho inverso; começa pelos factos contemporaneos e, induzindo do conhecido para o desconhecido, interpretando pelo presente o passado, remonta-se, de vestigio em vestigio, até á origem da terra. Ninguem lhe contou, ninguem deixou escripta a historia do planeta que habitamos. É elle quem a cria, quem a inventa, observando[Pg ii] e interpretando os vestigios materiaes dos factos que lhe revelam na sua evolução incessante as phases principaes da vida do globo. Os documentos que a natureza offerece ao naturalista não exprimem senão a verdade rigorosa e exacta. Os documentos que o historiador aprecia, traçados por mãos humanas, muitas vezes a desfiguram e falseam. Mente o homem, a natureza não.

As condições do archeologo que estuda as epocas prehistoricas são identicas ás do naturalista, e como naturalista ha de proceder se quizer chegar ao conhecimento da verdade. Em primeiro logar falta-lhe inteiramente a tradição verbal ou escripta; tem de cingir-se á significação exacta e rigorosa dos vestigios que observa. Em segundo logar a qualidade d’estes vestigios, o modo como se encontram nas camadas superficiaes da crusta da terra, os restos fosseis que lhes andam associados, fazem da archeologia prehistorica uma como parte da paleontologia humana. Aqui pois desapparece de todo a differença entre o archeologo e o naturalista.

Na archeologia dos tempos historicos, com quanto se considerem já os factos á luz da historia, subsiste todavia, como elemento essencial da interpretação d’elles, a analyse dos monumentos, a apreciação dos productos da arte, correspondentes em cada seculo aos fosseis ou aos outros vestigios em que o geologo, á força de observar e comparar, chega a constituir e a lêr a historia da terra. O historiador não póde pois deixar de ser archeologo; tem de aproveitar-se das luzes que a archeologia lhe presta; e não raras vezes acontece indicarem-lhe os monumentos a verdade alterada pela tradição. Não ha muitos annos, por exemplo, que a historia nos representava os wisigodos como gente que não chegara a cultivar as artes. As descobertas de alguns capiteis em Toledo e do thesouro de Guarrazar corrigiram a falsidade historica, mostrando-nos até que ponto elles se elevaram na esculptura da pedra e dos metaes, e tambem na architectura, porque de certo não fabricariam esplendidas coroas votivas de ouro e de pedras preciosas, nem esculpiriam delicados capiteis para templos de pedra e barro ou de madeira, como diziam terem sido em Hespanha os dos successores dos romanos na dominação da Peninsula.

Quem considerar portanto a archeologia a esta luz, como poderoso elemento de critica para o historiador, e como a principal das vias por onde os methodos e noções das sciencias da natureza passam para as sciencias historicas e sociaes, necessariamente concluirá ser o seu estudo uma necessidade impreterivel para qualquer povo que não queira ficar estacionario ou retardado áquem d’aquelles que o facho da sciencia allumia na vanguarda[Pg iii] da civilisação. Sobe de ponto a necessidade em Portugal, de quem o poeta diria ainda hoje, como ha tres seculos:

E não sei por que influxo do destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os animos levanta de contino
A ter para trabalhos ledo o rosto.

A superioridade relativa da Hespanha em comprehender e apreciar os estudos archeologicos claramente se nos patentêa em publicações de tal interesse e magnitude, quaes são os Monumentos arquitetonicos e o Museo español de antigüedades; e em monographias como aquellas que das suas respectivas provincias escreveram os srs. Villa-amil, Gongora, Sivelo, etc. Todas estas obras e alguns jornaes scientificos e litterarios contêem grande copia de subsidios para o estudo da archeologia hespanhola. Mas até hoje ninguem a tratára ainda comparativa e syntheticamente. Para isto sería mister considerar tambem as antiguidades portuguezas, e Portugal não poderia offerecer a qualquer escriptor hespanhol senão alguma rara memoria ou um ou outro artigo nos jornaes litterarios. Entre nós até certo ponto facilita-se a empreza, porque, se, por uma parte, a Hespanha nos subministra em tantas publicações, noticias e estampas dos seus monumentos, por outra parte, temos os nossos tão proximo de nós, que as distancias serão o menor dos obstaculos para quem pretender estudal-os ou descrevel-os.

Terá chegado a occasião opportuna de aproveitar taes elementos e de contribuir para o commum progresso de Hespanha e de Portugal com um dos maiores serviços litterarios que actualmente se lhes poderiam prestar? Crêmos que sim, e por isso intentámos escrever a Introducção á Archeologia da Peninsula, cuja parte primeira, comprehendendo as antiguidades prehistoricas sahe por agora á luz do dia.

Este assumpto pouca ou nenhuma attenção tem merecido aos governos hespanhoes e portuguezes, e cá e lá o publico mal lhe comprehende ainda a maxima importancia. Todavia ha quarenta annos que Nilsson publicou a primeira edição do seu livro ácerca dos habitantes primitivos da Scandinavia. E desde essa epoca, na Suecia, Allemanha, Inglaterra, França, Belgica, Suissa, em todos os paizes cultos, o estudo das antiguidades prehistoricas tem constituido um verdadeiro movimento scientifico, de certo o mais notavel e o mais caracteristico do nosso tempo. Provam a existencia e a intensidade d’esse movimento a exploração das cavernas e de outras estações prehistoricas, a fundação de museus, a celebração de congressos, e finalmente a publicação de livros e jornaes, destinados para registrar as descobertas que todos os[Pg iv] dias estão fazendo, ou para divulgar a nova sciencia entre aquelles a quem interessa conhecer as origens e o desenvolvimento de civilisação humana.

A archeologia prehistorica tem ainda outra grande importancia. Estudando os mais antigos dos vestigios do homem na face da terra, contribue a par com algumas das sciencias naturaes para a solução do grande problema da origem das especies. Convém advertir que os conhecimentos modernamente adquiridos n’este ponto interessante refazem a biologia nas suas doutrinas fundamentaes e abrem novo e largo caminho á philosophia. A paleontologia humana demonstra já a existencia do homem nos mais antigos dos tempos quaternarios. Acompanha-a n’essa demonstração a archeologia prehistorica, e vae mais longe ainda rebuscar nas camadas pliocenas e miocenas dos terrenos terciarios, onde aquella sciencia nada até hoje descobriu, as provas da habitação da terra pelo homem em epocas em que as condições geographicas, zoologicas e botanicas mal deixam acreditar na possibilidade de similhante facto.

O desejo de conhecer as origens dos povos e os primordios da nossa especie na face da terra é natural a todo o espirito illustrado, e distingue até as raças mais cultas d’aquellas que permanecem no estado selvagem ou n’um grau inferior de civilisação. Ora quem quizer satisfazer este desejo, soccorrendo-se unicamente aos dados scientificos, ha de pedil-os tanto á historia natural como á archeologia prehistorica. O que ellas já hoje nos dizem, apesar de insufficiente para a completa solução do problema, é todavia muito em comparação da total ignorancia em que a este respeito estavam os naturalistas ainda ha poucos annos.

O problema da origem das especies liga-se naturalmente com a doutrina da evolução que a archeologia prehistorica demonstra com evidencia na parte que respeita á industria humana. O fundamento d’esta doutrina vem a ser que a natureza não produz as cousas logo de principio completas ou acabadas, porém no estado rudimentar, do qual se elevam por graus successivos, por modificações infinitamente pequenas, até á sua fórma precisa e determinada; e que, chegadas a este ponto, começam a padecer alterações inversas, até se dissolverem pela total desaggregação das suas partes constituintes. Chamam-se lei de progressão ou integração aquella que regula as primeiras, e lei de regressão ou dissolução aquella que regula as segundas de taes alterações.

A cellula, o elemento fundamental, irreductivel dos seres vivos, nasce, cresce, atrophia-se e morre. O homem, cada animal, cada vegetal como a cellula; a humanidade como o homem ou a especie como o individuo; e, se[Pg v] chegar a demonstrar-se a hypothese de Laplace, a terra como os organismos, o systema planetario como a terra. A humanidade inteira e cada uma de suas partes, cada raça, cada povo, estão pois sujeitas a estas leis universaes. O progresso é portanto uma condição necessaria e fatal, e a civilisação ha de considerar-se não um effeito da arte, mas uma phase tão natural da vida da humanidade, como o crescimento dos orgãos nos animaes ou o desabrochar da flor nos vegetaes.

O descobrimento dos primeiros e disformes instrumentos que o homem fabricou e de que fez uso na terra serve para demonstrar a lei da integração ou o progresso na industria e na civilisação humana. A serie progressiva manifesta-se claramente no machado, por exemplo: ao de pedra lascada succedeu o de pedra polida; a este o de cobre; ao de cobre o de bronze; a este finalmente o de ferro. A integração patentêa-se da mesma sorte nos outros productos da industria, e continúa depois nos tempos historicos pelas varias manifestações do espirito humano, nas artes, nos costumes, na politica, etc. Os estacionamentos e até as regressões locaes, temporarias, não invalidam a regra geral, cuja verificação se ha de fazer comparando entre si, não os periodos pouco distantes, porém as eras principaes, sem attender aos longos seculos de elaboração que as separam.

Mais do que em geral se pensa, interessa ao individuo e á sociedade esse estudo comparativo. Quem de boa fé e despreoccupadamente o emprehender concluirá por certo que as faculdades humanas são por extremo perfectiveis; que nos tempos primitivos o homem, arriscado sempre a servir de pasto ás feras que o cercavam e com as quaes tinha de luctar, armado apenas de paus e pedras, para se defender da sua voracidade, ou para lhes disputar a posse das cavernas ou a colheita dos fructos da terra, que o homem, só pelos seus proprios esforços, pelo trabalho que desenvolve os orgãos, pelo exercicio que aperfeiçôa as faculdades, se elevaria d’aquellas miseraveis condições aos commodos e gozos do estado civilisado. Assim adquirirá uma fé viva na perfectibilidade, em que o progresso tende a diminuir a somma dos males e a augmentar a dos bens, e, guiado por esta convicção consoladora e salutar, trabalhará para se aperfeiçoar a si proprio e aos seus similhantes. Facil se lhe tornará tambem prevêr os resultados da applicação de taes principios á educação physica e moral. A criança está para o adulto, como o selvagem para o homem civilisado. A mesma lei, que transforma o primeiro no segundo, permitte desenvolver as faculdades infantís, e aproximal-as, em vez de, como tantas vezes acontece, as desviar do typo da perfeição. Finalmente, um povo, inspirado pela fé em que o seu futuro dependeria[Pg vi] dos seus proprios costumes, dos meios que pozesse para se aperfeiçoar physica e moralmente, esse povo, convencido pelo estudo do passado de quanto póde a natureza humana, e illustrado pela sciencia, elevar-se-hia a uma civilisação superior a todas que têem existido, e chegaria a dominar, ou melhor que dominar, a civilisar os outros povos da terra.

Nas origens e primeiros desenvolvimentos das civilisações antigas a fé viva na intervenção miraculosa de potencias sobrenaturaes era o estimulo forte que incitava os povos aos grandes commettimentos, que cega e inconscientemente os conduzia aos grandes bens ou aos grandes males. Nas civilisações modernas uma fé similhante nas forças naturaes, no alto poder e na grande perfectibilidade das faculdades com que Deus dotou o homem, substituirá de certo aquelle incentivo, mas sem expôr aos mesmos perigos, porque, em vez de impedir lhe, facilitar-lhe-ha o conhecimento da verdade. Temos infelizmente por impossivel cumprir-se inteiramente aquella prophecia do poeta:

Un jour tout sera bien, voilá notre espérance,
Tout est bien aujourd’hui, voilá l’illusion.

Mas, assim como a curva se aproxima cada vez mais da asymptota, sem chegar a tocal-a, assim tambem o homem, sem poder chegar á perfeição absoluta, aproximar-se-ha, se quizer, cada vez mais a este sublime ideal.


[Pg 1]

INTRODUCÇÃO
Á ARCHEOLOGIA DA PENINSULA


CAPITULO I
ESTUDOS PREHISTORICOS

Os erros geocentrico e anthropocentrico e o progresso das sciencias.—Machados de pedra.—Opiniões dos antigos e do vulgo ácerca da sua origem.—Mercati entrevê a verdade.—Demonstrações de Jussieu e de Mahudel.—Opiniões de auctores hespanhoes e portuguezes.—Primeira definição das idades prehistoricas.—O homem fossil.—Schmerling.—Boucher de Perthes.—Os sabios francezes e inglezes.—Inversão das opiniões em França e Inglaterra.—Conferencia internacional.—Resultados definitivos.—Estudos prehistoricos em Hespanha e Portugal.

Obcecados pela ignorancia e desvanecidos pelo orgulho, os homens acreditaram por muito tempo dois erros capitaes, oppostos e contrarios ao progresso da sciencia e ao desenvolvimento da humanidade. Consistia um, que chamam geocentrico, em suppor a terra, plana e immovel, o centro do Universo; o outro, anthropocentrico[1], em julgar tambem o homem centro e fim unico e ultimo de toda a creação. E tanto esses erros se tinham arraigado, durante a longa infancia do genero humano, que, só porque proclamaram o movimento da terra, no seculo XVI Copernico passava por doido, e, no seculo XVII Galileu, por não ser posto a tormento ou lançado ás chammas, tinha de abjurar, perante a Inquisição de Roma, as crenças scientificas.

Todos sabem que, depois da epoca memoravel do renascimento, a demonstração do primeiro erro foi uma das causas que mais contribuiram para elevar a humanidade acima dos apertados horisontes em que a idade media[Pg 2] a confrangera. O segundo, porém, continuou a dominar o animo dos naturalistas a ponto que, na primeira metade do seculo XIX, Cuvier e a maior parte não acabaram comsigo a acreditar em que existisse nas entranhas da terra algum vestigio fossil do homem entre os dos outros mammaes, contemporaneos dos ultimos phenomenos que alteraram a face do globo. Cediam assim ao geral influxo do erro anthropocentrico, segundo o qual, a especie humana, a ultima na ordem das creações successivas, sómente poderia apparecer depois que os varios agentes da natureza houvessem longamente preparado a configuração actual dos continentes, que tinham de servir-lhe de berço e de vivenda.

Do erro anthropocentrico derivava-se tambem naturalmente a crença na civilisação primordial e na consecutiva decadencia da humanidade; e portanto, cousa impossivel parecia o descobrirem-se objectos da industria humana que provassem exactamente o contrario, isto é, que o homem progredira e se aperfeiçoára gradualmente, passando do estado selvagem a civilisações cada vez menos imperfeitas.

Os machados de pedra, que em grande numero apparecem sepultados na terra em todas as partes do mundo, foram por muito tempo considerados, não como productos da industria humana, mas como effeitos miraculosos da cholera dos deuses ou resultas incomprehensiveis das forças naturaes. O vulgo chama-lhes ainda hoje pedras de raio, como em Grecia e Roma lhes chamavam ceraunias[2]. E, tambem como os povos modernos, os gregos e romanos lhes attribuiam virtudes mysteriosas e curativas. Na Grecia, particularmente, era opinião commum que Jupiter as arrojára do céo, e sobre certos montes convisinhos do mar Caspio e no da Chymera, no Epiro, mais do que em qualquer outra parte. Em razão do que, lhes rendiam culto e as collocavam em logares reservados. Não falta quem supponha que os sacerdotes de Cybele se serviam com facas ou machados de pedra para espontaneamente se mutilar em honra de Atys. Entre os hebreus era uso fazer a circumcisão com instrumentos de pedra[3], venerados talvez como sagrada recordação da remota antiguidade.

Parece que as betylas que os antigos traziam comsigo e consultavam como oraculos, fabricadas pelo céo, não seriam senão as ceraunias achadas na terra. Algumas vezes estas mesmas pedras substituiam a imagem de Jupiter; pois na fórma de machado adoravam os Carios aquelle que denominavam Labradæus. Sotaco e Plinio dizem que as ceraunias eram á maneira de machados (similes securibus). A maior parte dos auctores não fazem distincção entre as betylas e as ceraunias. Outros porém entendem que as primeiras seriam propriamente os machados e as segundas as pontas de frechas.

[Pg 3]

Um poeta da decadencia, Marbodeo, descreveu nos seguintes versos a origem, usos e virtudes das ceraunias ou pedras de raio:

Ventorum rabie cùm turbidus æstuat aër
Cùm tonat horrendum, cum fulminat igneus æther,
Nubibus illisis, cœlo cadit iste lapillus,
Cujus apud græcos exstat de fulmine nomen.
Illis quippe locis quos constat fulmine tactos
Iste lapis tantùm reperire posse putatur.
Unde cerauneos est græco nomine dictus,
Nam, quod nos fulmen, Græci dixere ceraunum,
Qui castè gerunt hunc à fulmine non ferientur
Sed neque navigio per flumina vel mare vectus,
Turbine mergetur, nec fulmine percutietur.
Ad causas etiam, vincendaque prœlia prodest.
Et dulces somnos et dulcia somnia præstat.
Huic dantur binæ species, totidem que colores
Cristallo similem Germania mittere fertur,
Cœruleo tantum infectum, rutiloque colore
Mittit et Hispanus similem fulgore Pyropi.

Os escriptores da idade media repetiram as fabulas antigamente acreditadas das ceraunias. Comtudo já Lucrecio dissera em bellissimos versos como os homens primeiro se tinham servido das pedras e paus por armas, e sómente mais tarde as haviam feito de bronze, e por fim de ferro:

Arma antiqua manus, ungues, dentesque fuerunt,
Et lapides, et item silvarum fragmina rami,
Et flammæ atque ignes, postquam sunt cognita primum.
Posterius ferri vis ærisque reperta;
Et prior æris erat quam ferri cognitus usus.

Mas esta asserção, bem como outras do grande poeta, sómente no seculo XIX poderia ser demonstrada e comprehendida.

Mercati, medico e antiquario illustre do seculo XVI, foi quem primeiro tentou demonstrar que as ceraunias seriam antes as armas lapideas que os primeiros homens usaram, do que productos mysteriosos do raio. Entretanto, era tão commum esta ultima opinião, que o auctor, apezar da força dos argumentos que produziu, não se declarou terminantemente a favor da outra, á qual apenas se mostrou inclinado. N’um dos seus livros, que é uma descripção das riquissimas collecções do museu Vaticano, para onde Sixto V o escolhera para director, n’esse livro publicado e annotado em 1715 por outro medico insigne, João Maria Lancisi, descreve Mercati e figura em estampas illustrativas os machados de pedra e as facas ou lascas ou as pontas de frechas, e affirma terem sido feitas de pederneira. Alguns outros escriptores do seculo XVI, como Aldrovando e Conrado Gesner, fallaram das armas de pedra e das excavações onde appareciam, todavia ninguem o fez tão expressa e positivamente como Mercati. Na Peninsula em 1534, Beuter,[Pg 4] historiador de Valencia, deu noticia de muitas armas de pedra, apparecidas em Cariñena de Aragão, e de alguns craneos atravessados por ellas e na mesma excavação descobertos[4].

Nos seculos XVII e XVIII o exame das pedras denominadas ceraunias e a sua comparação com as armas de que ainda hoje se servem certos povos selvagens, mostrou a alguns desabusados observadores a origem e fins communs de umas e de outras. É sobre tudo notavel a memoria apresentada em 1723 por Jussieu á Academia das sciencias de Pariz, com a demonstração rigorosa de que as ceraunias ou pedras de raio não eram mais que as armas ou instrumentos fabricados e usados pelos primitivos habitantes da Europa, antes que a civilisação lhes ensinasse a extrahir e obrar os metaes. Dez annos depois, Mahudel sustenta a mesma opinião n’uma memoria que offerece á Academia de inscripções e bellas letras. Mas estes votos particulares não mudam o sentir do vulgo a respeito das ceraunias ou pedras de raio.

Em Hespanha o padre Torrubia dizia-as pedras figuradas pela natureza[5]. Em Portugal o padre João Baptista de Castro explicava assim a sua formação: «A pedra de corisco é distincta do raio; não obstante cahir juntamente com elle da nuvem; porque entre as exhalações sêccas, de que o raio se fórma, sobem tambem algumas particulas de materia terrestre e viscosa, as quaes pelo vigor do fogo se accendem e se tornam em massa empedernida, combatida ao depois pelo vigor do frio. Toma ella varias fórmas segundo a diversidade da nuvem em que se fórma, porque ou é de figura de pyramide, ou de ovo, ou de cunha, ou tambem redonda»[6].

O capitão Luiz Marinho de Azevedo no seu livro da fundação, antiguidades e grandezas de Lisboa, cita Plinio, Mario Nigro e Solino que disseram abundantes de ceraunias os campos de Lisboa ou da Lusitania, e trata de indagar se estas pedras seriam ou não d’aquellas que se formam da gomma de certa arvore da ilha de Cadiz, de que falla Estrabão. D. Antonio de Souza Macedo[7], tratando da invenção das armas diz: «Aonde não havia ferros, páos e pedras foram armas (e ainda entre nações de Africa e America o são) páos tostados ao fogo». Bluteau no Vocabulario, definindo a pedra de corisco, cita um auctor que diz que quem trouxer comsigo uma não poderá ser ferido de raios nem afogar-se. Conclue porém com a seguinte observação. «Eu tenho uma, mas nem com ella me quizera eu expôr a raios ou naufragios».

O padre Theodoro d’Almeida[8] chama contos de velhas ás explicações[Pg 5] que davam da formação das pedras de raio, e mostra que não podem ser geradas nas nuvens. Foi mais adiante n’este ponto em Hespanha, pelo mesmo tempo, Marin y Mendoza, que mui claramente affirma a existencia das idades ante-historicas. Referindo-se aos homens primitivos diz: «Conocidos los estragos que causaba la voracidade del fuego, aprendieron que era poderoso no sólo para exterminar, sino tambien para penetrar y convertir las materias, por cuyo medio hallaron el cobre y hierro. Juzgase que se inventó de estos dos metales, primero el cobre, por ser más facil de labrar y hallar-se en mayor abundancia, y asi cultivaban con cobre la tierra, y se encuentran formadas armas de él para pelear, entre los más antiguos guerreros; pero con el tiempo, llegando á experimentar la fineza del hierro, lo preferieron para la labranza y fabrica de espadas... Es de creer que antes de inventar-se el hierro ó que lo supiesen aplicar para los instrumentos de guerra, se ensayasen poniendo en los extremos de los maderos y lanzas, huesos ó pedernales, y lo mismo harian con los cuchillos para cortar, del modo que lo usaban los americanos»[9].

D. fr. Manuel do Cenaculo, n’um livro inedito, descrevendo as espadas de cobre ou de bronze que appareceram na diocese de Beja, em excavações que mandou fazer, admitte egualmente a existencia da idade de bronze, anterior á invenção do ferro, e cita a obra mencionada de Marin y Mendoza[10]. Antecedentemente, em 1733, Martinho de Mendonça de Pina escrevera uma dissertação ácerca das Antas de Portugal, que anda impressa entre as Memorias da Academia Real de Historia[11]. Mas Eccard e Goguet, no meiado do seculo passado, foram aquelles que primeiro definiram com mais clareza as tres idades ante-historicas da pedra, do bronze e do ferro, o primeiro inquirindo as origens dos germanos, o segundo historiando os progressos sociaes dos povos antigos[12]. Havia porém um grande obstaculo a que esta idéa se vulgarisasse e fosse geralmente acreditada. As ceraunias appareciam em varias camadas da crusta da terra. Ora, se ellas tivessem servido de armas aos homens primitivos, porque não se descobririam tambem e conjuntamente nos mesmos terrenos ossos humanos no estado fossil? Á paleontologia competiria por tanto decidir a questão, mostrando se o homem teria ou não coexistido com a formação dos terrenos, onde aquellas pedras singulares tinham ficado sepultadas. Mas o atrazo e, portanto, a incompetencia da paleontologia eram taes que já n’este seculo Cuvier, elevando-a á categoria de sciencia, sustentava que nenhuma das descobertas, antecedentemente feitas, auctorisava a crêr na existencia do homem fossil. A reducção[Pg 6] do homo diluvii testis de Scheuchzer ao genero das salamandras, reducção feita pelo celebre naturalista, depois de ter examinado o pretendido fossil humano, ainda mais o firmou nas idéas em que estava ácerca do recente apparecimento da nossa especie na superficie da terra[13]. É verdade que em 1774, Esper encontrára na caverna de Gaileurenth, na Baviera, ossadas humanas de mistura com esqueletos, evidentemente fosseis, de grandes alimarias antidiluvianas, e differentes de todas as especies actuaes. E alguns annos depois, em 1797, J. Frére achára em Hoxne, no condado de Suffolk, varios machados de pedra, juntos com ossadas de animaes igualmente desapparecidos. Mas esses factos, apezar de expressivos e concludentes, não bastaram para destruir a crença geral do vulgo e dos sabios ácerca da origem recente de genero humano.

Achados similhantes, feitos já n’este seculo por Crahay no læss de Caberg, junto de Maestricht, na Hollanda; por Ami Boué em Lahr, na margem direita do Rheno, defronte de Strasburg; pelo conde Breuner em alluviões da Austria; e finalmente por Tournal e Christol em cavernas da França meridional, todos antes de 1830, não influiram mais que os outros no animo preoccupado dos naturalistas.

Em 1823, Buchland, celebre geologo inglez, deu á luz uma obra intitulada Reliquiæ diluvianæ, com a descripção da caverna de Kinklake e com a exposição de todos os factos então conhecidos favoraveis á hypothese da coexistencia do homem e dos animaes antidiluvianos. Mas o desejo que o dominava de concordar as descobertas da sciencia com a chronologia da biblia o impediu de se render á evidencia d’esses factos.

Seis annos depois, em setembro de 1829, tiveram principio os estudos e investigações de Schmerling, que explorou mais de quarenta cavernas nas collinas de calcareo carbonifero da provincia de Liége. Nas muitas excavações que ordenou e dirigiu achou instrumentos de pedra e de osso juntamente com restos fosseis do mammouth, do rhinoceros tichorinus, da hyena e do urso das cavernas. N’algumas lhe appareceram tambem ossadas humanas, e nas de Engis o celebre craneo conhecido por este nome, e que o proprio Schmerling disse assimilhar-se mais aos craneos dos ethiopes que aos dos europeus. Este incansavel explorador demonstrou, pelas condições em que appareciam os ossos dos homens e dos animaes fosseis, serem todos contemporaneos, e terem ficado sepultados da mesma maneira entre os materiaes que as aguas introduziam nas cavernas, passando pelas fendas estreitas das suas paredes[14]. Lyell accusa os professores da universidade de Liége, collegas de Schmerling, de terem deixado passar um quarto de seculo, sem se importarem de attestar a verdade das descobertas que viam fazer; e accusa-se tambem a si proprio de ter passado em 1833 em Liége, sem visitar[Pg 7] as cavernas exploradas, estando já então publicado o primeiro tomo da obra em que o illustre professor expunha o resultado das suas laboriosas investigações, e tendo visto com os seus proprios olhos a collecção dos objectos que este descobrira.

Em 1835, Joly, professor do lyceu de Montpellier, achou numa caverna da provincia de Lozére o craneo de um urso com signaes manifestos de ter sido ferido por uma frecha. Em pequena distancia achou tambem um fragmento de louça com vestigios dos dedos humanos que o tinham moldado. Proclamou o explorador a importancia da sua descoberta, que foi acolhida, como as outras que a precederam, com a mesma commum indifferença.

Por essa epoca entrou Boucher de Perthes n’aquella grande e memoravel lucta da qual, mais tarde, haveria de sair vencedor da incredulidade e indifferença dos sabios e das academias. Estudando com attenção as camadas diluvianas da Normandia e da Picardia, communicou, durante alguns annos, em diversas memorias á Sociedade de emulação de Abbeville os seus importantes descobrimentos. Datam de 1842 as primeiras communicações de Boucher de Perthes á Academia das sciencias de Pariz, e de 1846 a primeira impressão do livro com que pretendeu divulgar as suas idéas respectivas á antiguidade do genero humano[15].

As explorações em que Boucher de Perthes andou associado a innumeros operarios, a quem soube communicar o interesse e até o enthusiasmo que o animava, fizeram-se, pelo espaço de muitos annos, em varios terrenos diluviaes, entre outros nos de Saint-Acheul, Saint-Roch-les-Amiens, Hôpital, Moulin-Quignon e Menchecourt-les-Abbeville. Depois de ter colligido muitos productos da industria humana e muitos fosseis antidiluvianos que provavam a antiguidade do terreno, é que escreveu e em 1846 imprimiu o seu livro da Industria primitiva, que apresentou á Academia das sciencias de Pariz, em agosto de 1846. A Academia nomeou uma commissão que, apezar de todas as instancias de Boucher de Perthes, não chegou a ir a Abbeville, nem a fazer qualquer exame para confirmar ou destruir as suas asserções. Elle porém não descançou em quanto não resolveu alguns sabios auctorisados a irem observar os terrenos explorados e sanccionar os descobrimentos que n’elles se tinham feito. Estes visitantes, posto que, pela maior parte, predispostos contra a opinião defendida por Boucher de Perthes, sahiam de Abbeville convertidos. Tal era a evidencia dos factos que alli verificavam.

Em 1859 alguns geologos inglezes, os srs. Falconer, Prestwich, Evans, Godwin, Austen, Flower e Mylne, começaram a visitar uma e muitas vezes[Pg 8] Abbeville, e a acreditar em Inglaterra as descobertas de Boucher de Perthes. O proprio Lyell fez tambem a peregrinação, e, de impugnador que era, tornou-se estrenuo defensor da opinião d’aquelles que julgam o apparecimento do homem, na terra, anterior á epoca geologica actual. No anno de 1860 a Sociedade de anthropologia de Pariz examinou alguns dos objectos descobertos em Abbeville; e o resultado de uma discussão em que tomaram parte os srs. Castelnau, Baillarger, Broca, Bertillon, Trelot, Verneuil, Lagneau, G. Saint-Hilaire e Pouchet, foi favoravel a Boucher de Perthes. Conseguiu este em 1863 fazer acceitar pelo Estado a offerta do seu museu, constituido principalmente com os objectos encontrados em Abbeville. A acceitação da offerta, antecedentemente rejeitada, era já uma prova de que a França começava em fim a fazer justiça aos trabalhos e á dedicação do infatigavel explorador.

N’esse mesmo anno descobriu-se pela primeira vez em Abbeville um osso humano fossil, o que anteriormente não tinha sido possivel. Na pedreira de Moulin-Quignon appareceu a celebre maxilla conhecida por esse nome. Examinou-a o sr. Quatrefages, e apresentou na Academia das sciencias um parecer em que a reputava authentica e, portanto, um fossil humano. Mas, coisa notavel! ao passo que os naturalistas francezes se convertiam e principiavam a pôr a realidade dos factos acima da auctoridade de Cuvier, os geologos inglezes, tomados de subita desconfiança, suscitada talvez pela força da opinião publica que em Inglaterra se proclamava adversa ás novas idéas, reconsideravam, pelo menos alguns, e, depois de terem proclamado a veracidade das descobertas de Boucher de Perthes, entraram em 1863 a impugnar não sómente os factos anteriores, mas tambem a authenticidade da maxilla recentemente descoberta. O proprio Falconer, outr’ora ardente pregoeiro das novidades de Abbeville, escreveu ao Times, em seu nome e no de muitos dos seus compatriotas que o tinham acompanhado áquella cidade, confessando que todos se tinham enganado, que todos tinham sido illudidos por uma fraude que então sómente reconheciam. Agora, pois, mudadas as scenas, eram Quatrefages e outros sabios francezes que sustentavam contra os inglezes serem realidades e não falsificações os celebres descobrimentos de Boucher de Perthes. De tal discordancia resultou uma conferencia entre os srs. Delafosse, Daubrée, Hébert, Gaudry, Buteux, abbade Bourgeois e A. Edwards por parte da França; e Falconer, Prestwich, Carpenter e Busk, todos membros da Sociedade real de Londres, por parte da Inglaterra. Foram eleitos presidente o sr. H. Milne-Edwards e secretario o sr. Delesse.

Em maio de 1863 os conferentes reuniram-se por tres vezes no Museu de historia natural. N’estas tres sessões, pelo exame das pederneiras e da maxilla, julgaram os inglezes achar novos indicios contra a authenticidade de taes objectos. E, como parecesse impossivel chegarem a algum accordo, resolveram apresentar-se de repente em Abbeville, para fazer uma inquirição scientifica nos logares explorados, e resolver assim cabalmente, e[Pg 9] de uma vez para sempre, as duvidas occorridas em Inglaterra ácêrca dos descobrimentos de Boucher de Perthes.

Tomada esta resolução no dia 11 de tarde, logo no dia seguinte os sabios francezes e inglezes se apresentaram, sem que ninguem os esperasse, em Abbeville. O sr. Milne-Edwards redigiu e enviou á Academia das sciencias de Pariz um relatorio d’este processo interessante. Descreveu minuciosamente o exame feito pelos conferentes em Abbeville, e apontou as provas que a todos deixaram convencidos da authenticidade da maxilla e dos instrumentos de silex. Convém saber que, serrada a maxilla, n’uma das sessões do Museu, tinha apparecido no canal da arteria dentaria uma areia acinzentada que pareceu aos inglezes um signal de falsificação, porque não viam nas estampas, que representavam os terrenos de Moulin-Quignon, areia da mesma côr. Verificou-se porém n’aquelles terrenos a existencia de uma camada de areia cinzenta que não tinha sido indicada nos mappas, e assim o signal que era antes negativo, desde logo se tornou positivo. Por outra parte, as suspeitas respectivas aos machados de pedra inteiramente se desvaneceram, quando outros similhantes se descobriram em excavações, feitas á vista dos naturalistas inglezes e francezes.

Os resultados d’esta conferencia memoravel, desde as sessões no Museu até ao accordão final dos naturalistas, nem que de antemão fossem combinados, teriam mais decisiva influencia no animo d’aquelles que receiavam ainda admitir, como verdadeiros, os modernos descobrimentos. Na França e n’outros paizes da Europa, n’algumas partes da America, Asia e Africa, trabalhadores incançaveis se dedicam animados de zêlo ardente á exploração dos terrenos sedimentares, das cavernas, das turfeiras, dos dolmens, dos tumulos, das palafittas ou cidades lacustres e finalmente dos kiokkenmoddings ou rebotalhos das cozinhas dos homens primitivos. Publicam-se livros, memorias e jornaes destinados a divulgar os achados dos exploradores. Patentêam-se as Academias aos novos estudos. Fundam-se museus para se depositarem os objectos encontrados. Celebram-se congressos para os archeologos de todas as nações communicarem entre si as suas descobertas e resolverem as duvidas que, sómente pelo conselho de muitos, podem ser resolvidas.

A Peninsula não tem permanecido de todo estranha a este grande movimento scientifico. Desde 1860 que o sr. Carlos Ribeiro busca os vestigios da industria primitiva nos terrenos de Portugal e principalmente nos sedimentares do valle do Tejo. Os srs. Pereira da Costa e Delgado exploraram varias estações humanas prehistoricas do valle do Tejo, e publicaram em 1865 e 1867 os descobrimentos que fizeram de restos humanos fosseis e de instrumentos de osso ou de pederneira antidiluvianos. O sr. Pereira da Costa estudou tambem as antas ou dolmens de Portugal, dos quaes escreveu uma interessante memoria, impressa em 1868.

Em Hespanha D. Cassiano de Prado, engenheiro de minas, já fallecido, foi quem primeiramente se occupou dos estudos prehistoricos. Na sua Descripção physica e geologica da provincia de Madrid, impressa em 1864,[Pg 10] se vê que desde 1851 se empenhava em colligir instrumentos de silex, sem todavia saber ao certo o que fossem. Em 1862, indo a Madrid os srs. Verneuil e Lartet (filho), exploraram na companhia de D. Cassiano a celebre estação de San Isidro, pouco distante d’aquella cidade. Desde então dedicou-se com ardor a estes estudos e emprehendeu varias explorações, nas quaes colligiu fosseis humanos e de animaes e muitos instrumentos da industria primitiva. Depois, muitos geologos e amadores têem contribuido em Hespanha para augmentar o peculio dos conhecimentos prehistoricos. Exploraram os srs. Vilanova em 1866 a cova de Monduber e a Cueva Negra na provincia de Valencia; Lartet em 1866 as cavernas de Castella a Velha; Vilamil y Castro em 1868 e 1869 alguns tumulos da Galiza; Gongora as cavernas e outras antiguidades prehistoricas da Andaluzia; Garay as minas abandonadas de Rio Tinto; Jagor a caverna de Balzola; Rada y Delgado as de Cangas de Onis e Colunga. Os srs. Vilanova y Piera e F. M. Tubino fazem explorações, assistem a congressos europeus, e publicam artigos importantes sobre o assumpto. Na Academia de historia lêem dissertações os srs. Benavides, Amador de los Rios, Saavedra e Fernandez Guerra. O sr. D. José Amador de los Rios conseguiu que no Museu archeologico nacional, fundado em 1869 em Madrid, se designasse uma secção para os objectos prehistoricos. Começados, pois, ao mesmo tempo os estudos prehistoricos em Hespanha e Portugal, os nossos visinhos, apezar das dissenções intestinas, têem-se adiantado a ponto de rivalisar hoje com os povos mais civilisados. Entre nós o movimento principiado pela commissão geologica não se propagou no paiz, e, alli mesmo, cremos ter sido destruido por audazes reformadores que não respeitaram nem as instituições mais importantes e mais sagradas da instrucção popular. Apenas o sr. Carlos Ribeiro communicou á Academia real das sciencias uma memoria com a descripção dos silex e quartzites lascados que se conservam nas collecções da secção geologica da direcção geral dos trabalhos geodesicos, em 1872, e publicou em 1873 o relatorio do congresso de Bruxellas, onde dignamente nos representára no anno anterior.

Exploradores não os ha; collectores são raros. Sabemos dos srs. Judice no Algarve, Gabriel Pereira em Evora, Martins Sarmento em Guimarães, e de ninguem mais. São desfavoraveis as condições de Portugal, n’este ponto, relativamente aos outros povos cultos. Do abatimento em que estamos só poderia erguer-nos a iniciativa dos governos alliada á dedicação de todos aquelles a quem não são indifferentes o progresso da sciencia e o passado e o futuro da humanidade[16].

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Geocentrico, de , Terra, e kentron, centro. Anthropocentrico, de anthrôpos, homem, e kentron, centro.

[2] Ceraunia, de keraunos, raio.

[3] Tulit ilico Sephora acutissimam petram, et circumcidit præputium filii sui... Exod. IV, 25. Eo tempore ait Dominus ad Josue. Fac tibi cultros lapideos et circumcide secundò filios Israel. Josué, V, 2.

[4] Historia y progresos de la arqueologia prehistorica, por Don Francisco Maria Tubino.—Museo español de antigüedades, tomo I, pag. 1 a 21.

[5] Ibidem.

[6] Na Recreação proveitosa que deu á luz com o pseudonymo de Custodio Jesam, Barata, anagramma de João Baptista de Castro.

[7] Eva e Ave, p. 1.ª, cap. XXI.

[8] Recreação Philosophica, tomo VI, pag. 466.

[9] Historia de la milicia española, tomo I, pag. 33.

[10] Vida de S. Sizenando e Historia de Beja, sua patria. Ms. da bibliotheca publica de Evora.

[11] Collecção dos documentos e Memorias da Academia Real de Historia Portugueza. Tomo XIV; conferencia de 30 de julho de 1733.

[12] Historia y progreso de la arqueologia prehistorica, por Don Francisco Maria Tubino. Museo español de antigüedades, tomo I, pag. 1 a 21.

[13] Discours sur les revolutions du globe.

[14] Recherches sur les ossements fossiles découverts dans les cavernes de la province de Liége. Liége 1833 e 1834.

[15] De l’Industrie primitive, ou des Arts à leur origine. Pariz 1846. A segunda edição sahiu logo no anno seguinte com este titulo: Antiquités celtiques et diluviennes. Mémoire sur l’Industrie primitive et les Arts à leur origine. Pariz 1847. Imprimiram-se posteriormente os tomos II e III.

[16] Depois de escripto este capitulo, correu a noticia das grandes explorações, emprehendidas pelo sr. Martins Sarmento nas ruinas da Citania, perto de Guimarães. São muito notaveis os vestigios encontrados, correspondentes a varias civilisações. No fim do volume em nota especial tractaremos do assumpto.


[Pg 11]

CAPITULO II
ANTIGUIDADE DO HOMEM

Constituição da crusta da terra.—Rochas sedimentares.—Serie geologica.—Rochas plutonicas.—Rochas metamorphicas.—Classificação dos terrenos estratificados.—Duração relativa d’estas formações.—Computo e provas da antiguidade do homem, deduzidas 1.º da vegetação florestal da Dinamarca; 2.º dos sedimentos fluviaes; 3.º do desgaste das terras pelas aguas affluentes aos rios.—Antiguidade do homem na Peninsula.—Clima glaciario.—Fauna correlativa.—Effeitos da fusão dos gelos.—Hypothese de Adhémar ácerca da epoca glaciaria.—Epocas glaciaria e preglaciaria.—Diluvios periodicos.—Comparação de ambos os hemispherios.—Proporção das aguas e das terras.—Factos comprobativos.—Outras causas astronomicas.—Causas geographicas.—Gulf Stream.—Sahara.

A observação da superficie da terra, os estudos, as viagens, as explorações patentearam a configuração dos continentes, a extensão e profundidade dos mares, a fórma, direcção e altura das cordilheiras, o curso dos rios, os limites das planicies e todas as mais particularidades da geographia physica. Mas, para conhecer a fabrica da crusta, a natureza das suas rochas constituintes, a disposição relativa das suas camadas, não basta já a vista exterior, importa necessariamente perscrutar a estructura intima, bem como se hão de dissecar as carnes do corpo, a fim de descobrir os segredos da organisação humana. Os logares mais adequados para se examinar a crusta da terra serão, portanto, aquelles onde a natureza ou a arte pozeram descobertas de alto abaixo e no sentido da espessura as varias camadas integrantes: logares taes como as ribas desnudadas pelas aguas; as escarpas das estradas, os poços profundos das minas; e finalmente as encostas nuas e aprumadas, quaes são as do monte da Pyramide nas terras do Novo Mexico dos Estados Unidos.

Das rochas que assim se patentêam, umas são estratificadas, sobrepostas á maneira das folhas de um livro; contam-se debaixo até cima; seguem-se por grande espaço sem jamais se confundirem. Outras são irregulares; não se estendem em camadas; não se prolongam em direcções definidas; não constituem series inalteraveis; nem têem nenhuma especie de estratificação. Outras em fim, por seus caracteres mixtos, parece participarem da natureza tanto das primeiras como das segundas.

[Pg 12]

Uma das circumstancias mais notaveis e importantes das rochas estratificadas é conterem fosseis ou restos de seres organisados, fóra das condições actuaes e normaes da sua existencia. E, como a organisação dos animaes e a dos vegetaes padeceram mudanças grandes e profundas nas varias epocas, servem muito bem estes caracteres dos fosseis para determinar quaes dos terrenos têem as mesmas idades e quaes idades differentes.

A serie das camadas sedimentares não se encontra completa n’uma só região. Mas os terrenos que faltam n’umas partes apparecem n’outras; e assim, por meio de observações em diversos logares da crusta da terra, se tem formado a collecção inteira. Seja qual for o numero dos terrenos que faltem em qualquer região, aquelles que subsistem conservam sempre as suas posições relativas. Se representarmos a serie pelas letras A, B, C, D, E, F, G,....., contando debaixo para cima, poderão faltar B ou D ou F, porém jamais A apparecerá por cima de B, ou E por cima de G. Em menos palavras, ha sómente interpolações, e não transposições na serie geologica.

As rochas estratificadas formam-se no fundo da agua com os materiaes por ella carreados, bem como hoje se formam outras similhantes rochas no fundo dos mares ou dos lagos, ou nos alveos dos rios. Chamam-se por isso sedimentares. Umas vezes são parallelas entre si e com o horisonte; outras vezes parallelas entre si e discordantes com o horisonte em angulos variaveis. Outras vezes finalmente, além de discordarem com o horisonte, discordam tambem entre si. Nas montanhas é onde apparecem maiores discordancias, chegando ás vezes as camadas a aproximar-se da vertical.

Estes grandes desvios das rochas sedimentares provam a existencia de causas que as levantaram, fenderam e tiraram da sua situação primitiva, parallela ao horisonte. Quaes foram essas causas dil-o-ha o exame das outras rochas que se encontram na crusta da terra.

Com effeito as rochas não estratificadas, que servem de base ás sedimentares ou se elevam por meio d’ellas, são crystallinas, como vitreas, e em tudo analogas áquellas que ainda hoje se formam nos vulcões. Geradas pois pela acção do fogo, consistem em massas que, do estado de fusão ignea, passaram ao estado solido por via do arrefecimento.

D’estas ultimas rochas de origem ignea ou plutonica, umas precederam as sedimentares, outras formaram-se depois, alevantando as camadas estratificadas, irrompendo por meio d’ellas, alterando-lhes a estructura e destruindo-lhes os vestigios dos seres organisados. Foi uma verdadeira metamorphose; e, por isso, se denominaram metamorphicas aquellas que a padeceram.

Mas o estudo mais interessante e mais fecundo de consequencias para a historia dos seres organisados é o das camadas sedimentares. A variedade das faunas e floras, correspondentes a cada grupo de terrenos, a serie regular e ascendente de organismos cada vez mais complexos provam com evidencia a diversidade das condições, em que elles se desenvolveram, e a[Pg 13] successão de periodos, que, por caracteres peremptorios, se distinguem uns dos outros.

Geralmente os geologos fazem dos terrenos respectivos a esses varios periodos tres grandes grupos fundamentaes, convém a saber: terrenos inferiores ou primarios ou paleozoicos; terrenos medios ou secundarios ou mesozoicos; e finalmente terrenos superiores ou terciarios ou neozoicos[17]. Cada grupo tem portanto tres nomes diversos. O primeiro refere-se á posição em que está relativamente aos outros; o segundo ao tempo em que se formou; o terceiro á idade das especies que contém no estado fossil.

D’estes tres grupos separam-se naturalmente os mais antigos dos terrenos primarios, nos quaes ou faltam os fosseis ou são rarissimos e correspondem aos mais simples dos organismos. A esses terrenos chamam primordiaes. Por outra parte, em cima ou depois dos ultimos terrenos superiores ou neozoicos ou terciarios, depositaram-se ainda outros que denominaram quaternarios, em cuja epoca se continuou a formar e a desenvolver a fauna da actualidade, que teve os seus principios nos ultimos tempos da epoca anterior.

Acharemos assim a historia da terra dividida em cinco idades correspondentes aos principaes grupos dos terrenos, como se verá mais claramente da tabella seguinte:

SEDIMENTOS OU CAMADAS CONSTITUINTES DA CRUSTA DA TERRA

IdadesTerrenos
QuaternariaXIVAlluvio
XIIIDiluvio
Terciaria XIIPlioceno
XIMioceno
XEoceno
Secundaria IXCretaceo
VIIIJurassico
VIITriassico
Primaria VIPermico
VCarbonifero
IVDevonico[Pg 14]
Primordial IIISilurico
IICambrico
ILaurentiaco[18]

Os caracteres das rochas estratificadas, e mais em particular os fosseis, não nos demonstram a idade absoluta de cada terreno ou de cada grupo de terrenos, porem sómente a idade relativa de uns comparados com os outros. A espessura das camadas dá idéa da duração das formações respectivas, sem comtudo indicar o numero de seculos.

A possança total dos sedimentos constituintes de crusta da terra tem-se computado pouco mais ou menos em 43 kilometros; competindo 23 kilometros aos terrenos da idade primordial; 14 aos da idade primaria; 5 aos da idade secundaria; 1 aos da idade terciaria e finalmente 150 ou 200 metros aos da idade quaternaria.

Representando por 100 unidades a duração total da vida no globo terraqueo, desde o apparecimento dos primeiros seres organicos até ao tempo presente, acharemos expressa em unidades e partes da unidade a duração particular de cada idade pela fórma seguinte[19]:

Idade primordial 53,6
    ”    primaria 32,1
    ”    secundaria 11,5
    ”    terciaria 2,3
    ”    quaternaria 0,5
  Somma total 100,0

Assim é que a duração da primeira idade, d’aquella em que não havia ainda nenhuns organismos terrestres, porém sómente os que habitavam as aguas, equivale, por si só, a mais de metade da duração total. A duração da idade quaternaria ou d’aquella em que o homem tem vivido na terra apenas[Pg 15] chega a ser 5 decimas de cada unidade da duração total das cinco idades. Mas, se, como alguns opinam, elle existisse já no periodo mioceno da idade terciaria, então o tempo da sua duração sería representado por 1 a 2 unidades das 100 que se fizeram corresponder ao espaço total das cinco idades. Adiante veremos que as provas mais certas da existencia do homem na terra não remontam além dos tempos quaternarios.

No fim da idade terciaria appareceram os mammaes agigantados: elephantes, rhinocerontes, ursos, hippopotamos de especies particulares que povoaram a Europa, e se extinguiram nos primeiros tempos da idade quaternaria. Os restos fosseis d’esses animaes, descobertos juntamente com productos da primitiva industria, provam que em epocas remotissimas em que o clima, a fauna, a flora, a configuração dos continentes, a distribuição relativa das terras e das aguas eram mui differentes das actuaes, já o homem existia na superficie do globo.

Nem se diga que sería possivel ficarem esses objectos sepultados em terrenos muito mais antigos do que elles, bem como hoje em qualquer jazigo de fosseis podem accidentalmente enterrar-se vestigios da industria moderna. As condições em que se fizeram aquellas descobertas demonstraram serem da mesma idade os objectos afeiçoados pela mão do homem e os restos fosseis das alimarias perdidas.

Certas cavernas, por exemplo, contêem depositos formados por materiaes, que, por occasião de grandes e remotas inundações, a agua arrastou de fóra para dentro. Entre esses materiaes que nas mesmas epocas se agglomeravam nos terrenos proximos, d’onde mais tarde eram transportados para o interior das cavernas, apparecem conjuntamente ossos humanos, rudes instrumentos de pedra e ossos dos animaes extinctos[20]. Em fim, se ainda alguma duvida restasse, inteiramente se desvaneceria em vista ou das fracturas e entalhos, tantas vezes observados nos ossos d’aquelles animaes, e praticados intencionalmente pela mão do homem; ou dos esboços de certas especies perdidas traçados em instrumentos da industria humana, como se têem encontrado em varias estações prehistoricas, ou finalmente das armas de pedra cravadas nos proprios craneos.

Muitos dos geologos modernos consideram a apparição da especie humana sobre a terra como caracter distinctivo da idade quaternaria, e acreditam que, abaixo das camadas inferiores dos terrenos d’essa idade, não se descobriu ainda vestigio nenhum authentico da existencia do homem. Alguns, porém, como os srs. Desnoyers, Abbade Bourgeois, Delaunay, Hamy e Carlos Ribeiro julgam possuir provas em contrario, achadas nos terrenos miocenos e pliocenos da idade terciaria[21]. Mas, ainda que os vestigios do homem não ultrapassem os limites das epocas quaternarias, nem por isso, ainda assim, deixaria de ser remotissima a sua antiguidade. Factos interessantes[Pg 16] e calculos de grande curiosidade, colligidos por Lubbock, o demonstram com evidencia[22].

As faias dão hoje em dia a feição proeminente á vegetação florestal da Dinamarca. Prova-se porém que nem sempre assim foi, que nos logares baixos e pantanosos de certas florestas, na turfa que os enche, ficaram conservados primeiramente, na maior profundidade, os abetos que por agora não vegetam espontaneos n’aquelle paiz: depois mais acima os carvalhos e as betulas brancas hoje raras: em fim a camada superior consiste principalmente em individuos da betula verrucosa, representante do periodo actual que muito bem se podera dizer das faias. Ora o professor Steenstrup achou instrumentos de pedra por entre os troncos dos abetos, representantes da primeira e mais antiga das vegetações florestaes, que vestiram a Dinamarca nos tempos quaternarios. E, como, por outra parte, se encontram nos kjokkenmödings, ou rebotalhos das cozinhas dos homens prehistoricos, os esqueletos do gallo do matto ou tetraz grande das serras que se alimenta dos rebentões tenros dos pinheiros, concluiremos com certeza que os primeiros habitantes da Dinamarca foram contemporaneos das antigas e perdidas florestas abietinas, e pertenceram portanto a uma epoca muito differente da actual pelas condições physicas e botanicas d’aquelle paiz. Além d’isto, pretendem alguns que aos tres periodos florestaes caracterisados o primeiro pelos abetos, o segundo pelos carvalhos e betulas brancas, e o terceiro pelas faias, correspondessem as tres idades principaes da humanidade assignaladas pelo uso da pedra, do bronze e do ferro. Seja, porém, como for, é indubitavel que esta successão de vegetações florestaes differentes, não poderia effeituar-se senão em longuissimo espaço de tempo, e que portanto o homem não poderia presencial-as, sem ter apparecido em eras muito remotas na superficie da terra.

O sr. Morlot, na Suissa, intentou determinar mais circumstanciadamente a duração de cada uma idade. No logar onde a torrente da Tinière se lança no lago de Genova, junto de Villeneuve, tem-se formado um cone de cascalho e alluviões. Este cone foi aberto na extensão de 325 metros, e na profundidade de 10ᵐ,4 para se construir uma via ferrea. O exame dos objectos encontrados nas camadas, pelo corte descobertas, mostrou corresponderem á epoca romana as da profundidade de 1ᵐ,14; á epoca do bronze as da profundidade de 2ᵐ,97, e finalmente á epoca da pedra polida as da profundidade de 5ᵐ,69. Como as camadas se tinham depositado com grande regularidade, calculou o observador que, sendo de 1600 annos a idade das romanas, a das correspondentes á epoca do bronze sería de 3000 a 4000 annos, e a das respectivas á epoca da pedra polida de 5000 a 7000 annos.

O sr. Gilliéron fez um calculo similhante para determinar a idade das habitações lacustres da ponte de Thièle, e achou a antiguidade de 6000 a 7000 annos para a epoca da pedra polida.

No Egypto o sr. Horner, calculando a elevação media secular do terreno[Pg 17] em volta dos monumentos, por effeito das inundações do Nilo; depois, abrindo poços a profundidades maiores, achou vestigios da industria humana que teriam, segundo esses calculos, 13000 e mais annos.

O sr. Forel mostrou as causas de erros, inherentes a estes calculos e a difficuldade de as evitar todas. Tentou porém, por meio de um processo differente, determinar a antiguidade do periodo geologico actual, que chegou a computar em 100000 annos. As observações fêl-as no lago Léman; e para os seus calculos recorreu á regra de falsa posição que permitte achar os limites maximo e minimo, acima e abaixo dos quaes fica excluida a possibilidade de errar. Eis aqui o processo de Forel, preferido por Quatrefages a todos os outros, com quanto lhe pareça haver até certo ponto exageração no resultado obtido: «A agua do Rhodano, sobre tudo por occasião das cheias, causadas pela fusão da neve, entra no lago turva, e sahe d’elle extremamente limpida. O lodo, assim depositado, vae enchendo o lago, e entulha já uma parte da grande cavidade que occuparam os gelos da epoca quaternaria. O sr. Forel determinou primeiramente o volume annual do deposito do lodo. Indagou depois, tomando por fundamento as sondagens effeituadas por de La Béche, o volume do lago actual. Chegou por este modo a avaliar o tempo necessario para que o lodo do Rhodano chegue a entulhar o lago. Depois, admittindo que a parte já entulhada do Léman primitivo teria uma profundidade media e egual á do Léman actual, comparou as superficies alluviaes já formadas com a superficie do proprio lago. Achou a proporção de 1 para 3. Estas planicies foram por tanto depositadas durante um espaço de tempo egual á terça parte d’aquelle que sería necessario para entulhar o lago actual. Ora, como ellas começaram a formar-se immediatamente depois do desapparecimento das geleiras, segue-se que o seu principio corresponderá ao da epoca geologica moderna»[23].

O dr. Dickeson, de Natchez, achou um sacro humano com alguns ossos do mastodonte de Ohio no valle do Mississipi. O dr. Usher reputou o primeiro e os segundos todos contemporaneos. O sr. Bennet-Dowler computou em 158400 annos o tempo necessario para a formação dos depositos alluviaes do Mississipi. Este mesmo calculo daria a idade de 57000 annos aos mais recentes dos craneos fosseis da America. Julgam porém os naturalistas da Europa que estes e outros similhantes factos, referidos do Novo-Mundo, carecem de confirmação para ter força probativa.

O Mississipi tem sido objecto de muitos estudos a fim de determinar a idade dos depositos formados pelas suas aguas, estudos duplicadamente interessantes, porque os seus resultados são tambem applicaveis a formações analogas da Europa. Riddle, Carpenter, Forskey, Humphreys e Abbot chegaram a avaliar com a possivel aproximação, por meio de innumeras experiencias e observações, as quantidades dos materiaes carreados pelas aguas em cada anno, a espessura e as outras dimensões do delta, e finalmente a[Pg 18] parte d’aquelles mesmos materiaes não incorporados no delta, por serem expellidos para o Oceano. Entrando em calculo com essas observações, computou Lyell em 100000 annos a antiguidade do delta do Mississipi, e, por analogia, suppoz não seriam menos antigos os depositos alluviaes do valle do Somme, em França, onde apparecem instrumentos de silex e os restos fosseis do mammouth e da hyena.

Conduz tambem a este mesmo resultado um processo muito differente. Das observações feitas no Mississipi e de outras similhantes no Ganges, Rhodano, Danubio e outros rios concluiu Geikie poder representar pela media de ¹⁄₆₀₀₀ de pé a camada que perdem em cada anno as terras lavadas pelas aguas affluentes aos rios. Esse é o termo medio, porque nas planicies, por correrem lentas e escoadas as aguas, a perda é menor, ¹⁄₁₀₈₀₀ de pé; e nas vertentes lateraes dos valles, pela sua inclinação que accelera a corrente do liquido, a perda é maior, ¹⁄₁₂₀₀ de pé. Ora o sr. Lubbock applicando esses calculos á excavação do valle do Somme que tem a profundidade de 200 pés, concluiu que a sua idade e, portanto, a dos mais antigos dos depositos, onde se encontram instrumentos de silex, sería de 100000 a 240000 annos[24]. Faltam dados geologicos e archeologicos para calcular a antiguidade do homem na Peninsula. Todavia é singularmente notavel que os vestigios da industria primitiva, encontrados na estação de San Isidro, perto de Madrid, similhantes aos do valle do Somme, e, por isso, attribuiveis á mesma epoca prehistorica, estejam tambem n’uma altura similhante acima do leito actual do Manzanares. Sendo admissivel, como o é no valle do Somme, que as aguas do rio tenham excavado o terreno desde aquella estação até ao leito actual, o calculo daria aos vestigios ali encontrados uma idade comprehendida entre 80000 e 167000 annos. Mas, da possibilidade ou probabilidade de tal excavação, sómente poderão informar os geologos hespanhoes, conhecedores da disposição e dos caracteres das margens do Manzanares no sitio de San Isidro.

Na idade quaternaria houve uma ou mais epocas em que se tornou glacial o clima da Europa. As geleiras extenderam-se até á latitude temperada da Sicilia, deixando por varias regiões as rochas erraticas, provas evidentes da sua existencia. Com esses vestigios apparecem tambem os restos fosseis[Pg 19] do rangifer, do boi almiscarado, do urso e de outros quadrupedes que na Europa não habitam já senão as regiões arcticas ou os nevados cumes dos Alpes e dos Pyreneus. O sr. A. Milne Edward mostrou que muitas especies de aves, proprias dos climas frios, e communs durante a epoca glacial, emigraram juntamente com aquelles mammaes para as regiões mais frias, quando a temperatura se elevou e as geleiras se fundiram no centro e no Meio-dia da Europa. Em fim nos mares Britannicos e até no Mediterraneo têem apparecido conchas de especies que se não encontram actualmente senão nos mares glaciaes. Assim, tantos e tão probativos são os vestigios do clima glacial nas regiões temperadas da Europa, que ninguem contesta hoje esse facto notavel.

Por outra parte, os depositos quaternarios immediatamente collocados por cima das camadas terciarias, soltos, sem consistencia, compostos quasi exclusivamente de lehm (mistura de areia e argila), de laess (mistura de areia e calcareo), de areias, cascalhos e calhaus, parece terem sido formados por violentas e prolongadas submersões de terras, que antecedentemente estariam sêccas e superiores ao nivel das aguas. Concordam os geologos em dar o nome expressivo de Diluvium a essas formações cuja origem naturalmente lhes trazia á lembrança a grande catastrophe commemorada até aos nossos dias nas tradições de alguns povos.

Se admittirmos pois que a temperatura da Europa baixou a ponto de se cobrirem de neve os montes e as planicies, formando-se geleiras, similhantes áquellas que ainda hoje subsistem na Suissa; se admittirmos mais que uma subsequente elevação de temperatura fundisse as massas enormes de gelo, inundando e submergindo as terras do continente europeu, explicaremos assim não sómente a fauna da epoca glacial, mas tambem a formação dos vastos e profundos depositos do diluvio.

Adhémar imaginou uma hypothese ingenhosissima para ligar e explicar todos os factos referidos da epoca glaciaria pela mesma causa geral[25]. O phenomeno astronomico da precessão dos equinoxios consiste na lenta deslocação do eixo da terra de oeste para leste. Depende da direcção d’esta linha a desegual duração das estações nos dois hemispherios, tendo presentemente a primavera e o estio das regiões boreaes, sommados, mais sete dias que o outono e o inverno. No hemispherio austral acontece o contrario. É a somma do outono e do inverno que excede em sete dias a da primavera com o estio. E, como durante aquellas estações a terra perde mais calor do que n’estas ultimas, segue-se evidentemente que a perda annual do calor será maior no hemispherio do sul que no hemispherio do norte, e portanto que a temperatura do primeiro será inferior á do segundo. O que, em verdade, se observa e se prova pela maior extensão dos gelos, que no sul impedem a navegação em latitudes correspondentes áquellas, em que se faz livre e desembaraçada no hemispherio do norte.

[Pg 20]

Mas como a posição do eixo vae mudando sempre lentamente, chegará um dia em que a differença entre as durações das estações nos dois hemispherios desapparecerá, tornando-se todas eguaes tanto ao norte como ao sul do equador. N’essa epoca a temperatura será muito menos differente nas latitudes dos dois hemispherios, sería até egual, se não fossem as causas locaes, como os ventos, as correntes, a altitude, a proximidade da agua, etc. Depois começará outra vez a apparecer a differença entre as durações das estações, não aquella que já foi designada, porém a inversa, isto é, a primavera e o verão tornar-se-hão maiores no hemispherio austral e menores no hemispherio boreal, exactamente o contrario de hoje. O cyclo completo d’estes movimentos abrange 21000 annos. Ha de pois decorrer esse espaço de tempo a fim de que a differença das estações torne a ser mathematicamente tal qual agora se observa.

Depois d’esta brevissima exposição do fundamento principal da hypothese, comprehender-se-ha facilmente que a temperatura maxima de um hemispherio deverá corresponder ao maior excesso da duração da primavera e do estio sobre a das outras duas estações; e a temperatura minima ao maior excesso da duração do outono e do inverno sobre a da primavera e do estio. Portanto o espaço de tempo decorrido entre o momento da temperatura maxima e o da temperatura minima será egual á metade de 21000 ou 10500 annos. A ultima vez que esta maxima correspondeu ao hemispherio boreal foi em 1248, o que está dizendo que até esse anno a temperatura foi sempre augmentando; começou então a diminuir e continúa e continuará até ao anno de 11748, em que chegará ao seu minimo grau. Mas a epoca anterior correspondente deve ter sido 21000 annos antes de 11748 ou 9252 annos antes de Jesus Christo. Tal sería pois, na opinião de Adhémar, a epoca glaciaria, a epoca do rangifer, bisonte, urso, em fim a epoca dos homens que se serviam das armas e instrumentos de pedra lascada e de osso.

Suppõe-se porém que antecedentemente houvera já uma outra epoca glaciaria, caracterisada pela apparição do rhinoceronte e dos ursos das cavernas. Na Suissa conhecem-se provas da existencia de dois periodos de frio separados por um intervallo, durante o qual o clima se conservou temperado. Ora, segundo a lei de precessão dos equinoxios, essa epoca sería 21000 annos antes ou 30252 annos antes de Christo. E a epoca denominada preglaciaria, quando um clima temperado favoreceu o desenvolvimento do hippopotamo e do elephante antigo e dos primeiros dos homens, conhecidos por vestigios incontestaveis, sería 10500 annos antes ou em 40752 antes de Christo.

A hypothese de Adhémar não explicaria unicamente a alternação dos climas durante a idade quaternaria. Sendo deseguaes as calotes de gelo dos dois hemispherios, pois a do sul aproxima-se do equador muito mais que a do norte, o centro de gravidade da terra deverá deslocar-se para a parte das massas maiores. N’esta deslocação successiva, o centro da terra passará de 10500 em 10500 annos pelo plano do equador, mudando-se de um para outro hemispherio, alterando portanto as condições de equilibrio, e fazendo[Pg 21] com que as aguas de uma corram para a outra parte, e formem um diluvio. O hemispherio austral está hoje mais coberto de agua, porque o centro de gravidade se deslocou para esta parte, em razão de ser maior a calote dos gelos austraes que a dos boreaes. Quando os gelos começarem a ser mais da parte do norte, o centro da gravidade mudar-se-ha para este hemispherio, as aguas deixarão descobertos novos continentes austraes e alagarão os boreaes, cobrindo-os de novos depositos similhantes aos do diluvio.

A maior quantidade de gelos do hemispherio austral e o avizinharem-se estes mais do equador que no hemispherio boreal provam a inferioridade da temperatura do primeiro relativamente ao segundo. Nas viagens antarcticas os navegantes experimentam, mais cedo e em maior grau que nas viagens arcticas, as dificuldades da navegação, resultantes de frio e dos gelos. Eis o motivo porque elles se têem aproximado mais do polo do norte, e porque são hoje muito mais conhecidas as regiões hyperboreas que as do outro hemispherio em latitudes correspondentes.

Basta lançar a vista a um mappa-mundi ou a uma esphera para vêr a extensão das terras no hemispherio boreal proporcionalmente muito maior. Mas esta desproporção tornar-se-ha mais expressiva e concludente, em favor da hypothese que attribue á mudança do centro da terra para o hemispherio austral a deslocação da agua para esse mesmo hemispherio, se a avaliarmos com exactidão por meio da tabella seguinte, que representa numericamente a diminuição successiva e gradual das terras do norte para o sul, medindo em cada parallelo a razão em que está a parte occupada pela terra com aquella que as aguas cobrem. Representando cada parallelo pela unidade, teremos uma fracção para representar a extensão da terra e outra para exprimir a extensão da agua.

LatitudeAguaTerra
60° ao norte0,363 0,647
50°    ”    0,407 0,593
40°    ”    0,527 0,473
30°    ”    0,536 0,464
20°    ”    0,677 0,323
10°    ”    0,710 0,290
 0°     ”    0,771 0,229
10° ao sul 0,786 0,214
20°    ”    0,777 0,223
30°    ”    0,791 0,209
40°    ”    0,951 0,049
50°    ”    0,972 0,028
60°    ”    1,000 0,000

Este augmento tão regular, tão graduado da agua do norte para o sul, dispõe naturalmente o espirito em favor da hypothese de Adhémar, limitando-se[Pg 22] a comparação ás regiões que em ambos os hemispherios não ultrapassam a latitude de 60°. Mas alguns graus mais além no hemispherio austral as descobertas da terra Victoria, da terra Enderby, do vulcão Erebus contrariam em parte a pretendida lei, e parece darem antes razão a Lyell, que, exactamente ao contrario de Adhémar, attribuiu o grande frio das altas latitudes meridionaes á vasta extensão e á grande altura do continente que suppoz existir nas regiões antarcticas. Convém saber que, sendo maior a irradiação do calor na terra do que na agua, a existencia de um alto e vasto continente no circulo polar do sul, teria por effeito natural a diminuição da temperatura nos mares proximos. E assim as differenças observadas explicar-se-hiam até certo ponto por essa causa. Mas em quanto se não demonstrar positivamente o que não passa apenas de mera supposição, não será por certo com uma hypothese que se queira destruir a possibilidade de outra.

Quanto á supposição de que a altura e extensão dos gelos teem alternadamente influido, e assim continuarão no futuro, ora n’uma ora n’outra metade do globo, ora cobrindo ora descobrindo as terras com as aguas dos mares, fazendo um diluvio de 21000 em 21000 annos, cousa é tão possivel como indemonstravel no estado actual de sciencia. Que o gelo accumulado para a parte de um dos polos desloque para ahi o centro de gravidade da terra, ninguem o contestará. Chegou até o sr. Croll a calcular que a diminuição de 470 pés na espessura dos gelos antarcticos elevaria no polo do norte a agua do mar á altura de 26 pés e 5 pollegadas, e á altura de 25 pés na latitude de Glasgow que é de 55° e 55′. Se porém a diminuição fosse maior, se fosse, por exemplo de 1 milha, a elevação tornar-se-hia de 280 pés. Assim poderá adoptar a hypothese quem vir nos phenomenos da idade quaternaria e sobre tudo nas dunas e fosseis marinhos em logares actualmente muito superiores ao nivel do mar, e nas grandes florestas submergidas, factos menos explicaveis por outras causas geologicas.

Se, como Adhémar assevera, a temperatura do nosso hemispherio diminue desde o anno de 1248, alguns effeitos se hão de por certo observar de tal diminuição. O auctor cita os seguintes: 1.º A grande cupola de gelo do hemispherio austral tem diminuido depois das viagens do capitão Cook.—2.º As geleiras da Groelandia e da Suissa tem avançado para o Meio-dia.—3.º Têem baixado tambem do norte para o sul os limites da cultura da vinha.

Lyell impugnou ainda este argumento, dizendo que a differença entre o frio do inverno de 1248 e o frio do inverno actual deveria ser insignificante e, por isso, incapaz de produzir os effeitos allegados. Pareceu-lhe que essa differença não passará de 0,3 de grau centigrado. Porém se durante seis seculos a temperatura tivesse baixado apenas 0,3 de grau, a differença entre as temperaturas medias do inverno de 1248 e do mais frio dos invernos anteriores, que, segundo a hypothese, teria sido 10500 annos antes, andaria apenas por uns 5 graus centigrados, o que de certo parecerá pouco. Entretanto a uma differença tripla ou de 15 graus entre aquelles dois invernos,[Pg 23] separados por um espaço de 10500 annos, corresponderia ainda uma differença inferior a 1 grau entre as temperaturas do inverno de 1248 e dos invernos actuaes. Outro sabio inglez tambem de grande auctoridade, J. Herschel, foi egualmente de opinião que a mudança de posição da terra causada pela precessão dos equinoxios não basta para explicar as alterações do clima que Adhémar lhe attribue.

Alguns, convencidos da insufficiencia da hypothese, pretenderam completal-a, entrando em linha de conta com outra causa astronomica. Sabe-se que a orbita da terra ora se aproxima ora se afasta do circulo, por meio de variações muito longas, que sómente se fazem sensiveis de milhares em milhares de annos. Quando a orbita se aproximar do circulo o effeito da precessão dos equinoxios deverá diminuir; pelo contrario quando se afastar do circulo, alongando-se, então aquelle effeito redobrará de intensidade. Ora os srs. Croll e Stone calcularam a excentricidade da orbita de 50000 em 50000 annos, no espaço de 1000000 de annos decorridos anteriormente ao de 1800. O sr. J. Carrick Moore calculou os effeitos d’estas excentricidades maiores no clima de Londres e achou que, sendo actualmente a temperatura media do mais frio dos mezes do inverno 20° de Farenheit, ha 100000 annos sería de 5°; de 1°,9 ha 210000 annos; de 0°,6 ha 750000 annos; e finalmente de 3° ha 950000 annos. Lyell inclinou-se á opinião de Croll, e suppoz que este frio maximo de ha 750000 annos sería o da epoca glacial. Lubbock discorda n’este ponto, e julga que o frio de 1°,9 de ha 210000 annos será o que melhor corresponda áquella epoca. Em qualquer das hypotheses os periodos de Adhémar ficarão parecendo bem pequenos em comparação de tão dilatados tempos.

Não falta ainda quem tenha pretendido explicar os phenomenos da epoca glaciaria sómente por alterações geographicas. O Gulf Stream eleva hoje alguns graus a temperatura da grande parte da Europa. Se em qualquer tempo essa enorme corrente seguisse outra direcção, a sua falta manifestar-se-hia logo por uma baixa notavel da temperatura, egual talvez a 10 graus de Farenheit. Admitta-se mais que, por essa mesma falta, se estabelecesse uma corrente em sentido contrario, isto é, dirigida do norte ao sul, o que faria ainda baixar a temperatura 3 ou 4 graus de Farenheit. O resultado bastaria para explicar a epoca glaciaria. Ora, na opinião do sr. Hopkins, a suppressão do Gulf Stream sería a consequencia natural de uma depressão de 2000 pés que transformaria o valle do Mississipi n’um grande braço de mar por onde a corrente passaria do golfo do Mexico para o Oceano arctico, em vez de se dirigir para as costas occidentaes da Europa. N’esta hypothese a excavação do valle do Somme e o apparecimento do homem na Europa seriam anteriores ao delta do Mississipi, cuja formação foi calculada em 100000 annos. Mas o Gulf Stream poderia ser antes desviado pela depressão do isthmo de Panamá, idéa que até certo ponto se torna provavel, pela similhança das faunas marinhas que habitam de um e de outro lado do isthmo.

[Pg 24]

Finalmente, se, como por tantas razões parece incontestavel, o deserto do Sahara foi n’outras eras uma parte do Oceano Atlantico, a existencia d’essa grande massa de agua no Meio-dia da Europa, modificaria por extremo o clima d’este continente. Os vapores, destacados da superficie da agua, ou se congelariam nas montanhas por onde passassem, cobrindo-as de neve, ou impediriam os raios do sol de aquecer a face da terra, contribuindo assim, por um ou por outro modo ou por ambos juntamente, para abaixar a temperatura.

Taes são as principaes hypotheses imaginadas para explicar a epoca glaciaria. Com quanto se não possa demonstrar a evidencia de nenhuma d’ellas, é todavia certo que, ainda assim, provam até certo ponto a antiguidade da especie humana, pela impossibilidade de se realisarem esses grandes factos astronomicos ou geologicos, a que se referem, senão em epocas muito remotas e em periodos muito dilatados.

NOTAS DE RODAPÉ:

[17] Paleozoico, de palaios antigo e zoon, animal. Meozoico, de mesos, meio, e zoon, animal. Neozoico, de neos, novo e zoon, animal.

[18] Laurentiaco, do nome do rio ou do golfo de S. Lourenço, na America septemtrional.

Cambrico, de Cambria, nome latino do paiz de Galles, na Inglaterra.

Silurico de Siluros, habitantes antigos da parte meridional do paiz de Galles.

Devonico, do nome do condado de Devon na Inglaterra.

Carbonifero, de carbo, carvão, e fero conter.

Permico, de Perm na Russia.

Triassico, de trias tres. Por ser composto de tres camadas principaes.

Jurassico, de Jura, cordilheira notavel da França e da Suissa.

Cretaceo, de creta, cré.

Eoceno, de eos, aurora, e kainos novo.

Mioceno, de meion, menos, e kainos novo.

Plioceno, de pleion, mais, e kainos novo.

[19] A tabella dos terrenos e o computo das suas possanças e dos espaços de tempo que levaram a formar-se foram extrahidos da Histoire de la creation des êtres organisés, d’après les lois naturelles par Ernest Haeckel.—Pariz 1874.

[20] Veja-se adiante o capitulo das cavernas.

[21] Mais de espaço tractaremos esta questão no capitulo seguinte.

[22] Lubbock, L’homme préhistorique, Pariz 1876.

[23] De Quatrefages, L’espéce hummaine. Pariz 1877, pag. 101 e 102.

[24] Zaborowski dá o computo seguinte das idades prehistoricas. De l’ancienneté de l’homme, tom. II, pag. 229. A epoca do mioceno inferior ao plioceno superior corresponde á duração do homem terciario, cuja existencia, posto que provavel, não está ainda evidentemente demonstrada.

Epoca do ferro1500 a 2000 annos
    ”     do bronze 3000 a 4000     ”    
    ”    da pedra polida 6000 a 12000     ”    
Periodo post-glaciario 100000     ”    
      ”      glaciario224000     ”    
Duração da epoca do mioceno inferior ao plioceno superior 680000     ”    

[25] Adhémar—Revolutions de la mer.


[Pg 25]

CAPITULO III
ANTIQUIORA MONUMENTA

Classificação dos tempos prehistoricos.—Subdivisões da idade da pedra.—Silex e quartzites lascadas da Beira e da Extremadura, attribuidas ao homem terciario.—Julgamento d’estas provas no congresso de Bruxellas.—Provas indirectas do homem terciario, colligidas n’outros paizes.—Sua incerteza.—É maior ainda a das provas directas.—Primeiros vestigios do homem quaternario na Peninsula.—Estação de San Isidro.—Falta de vestigios da epoca mesolithica.—Bruteza do homem paleolithico.—Progresso na epoca neolithica.—Condições favoraveis d’esse periodo ao desenvolvimento da humanidade.—Primeiras exigencias do sentimento esthetico.—Origem das artes.

Os tempos prehistoricos dividiram-os primeiramente os archeologos em duas grandes idades: a idade da pedra e a idade dos metaes; e subdividiram a primeira, a idade da pedra, em duas epocas: 1.ª Epoca da pedra lascada; 2.ª Epoca da pedra polida. Ainda hoje todos estão accordes na divisão geral das idades, e alguns conservam a sub-divisão da primeira d’ellas nas duas epocas que o apparecimento da arte de polir a pedra separa uma da outra.

No congresso de Bruxellas de 1872 os srs. Dupont e Mortillet admittiram, por mais natural, a sub-divisão da idade da pedra em tres epocas principaes que o primeiro caracterisou pelas faunas respectivas, e o segundo pelos vestigios da industria humana. Já anteriormente em Hespanha o sr. D. João Vilanova propozera uma classificação similhante, dividindo a idade da pedra em quatro epocas, das quaes chamou á primeira archeolithica ou dos vestigios encontrados nos terrenos terciarios; á segunda paleolithica ou dos instrumentos de pedra lascada dos terrenos quaternarios; á terceira mesolithica ou das facas ou do rangifer; á quarta finalmente neolithica ou da pedra polida[26].

Pondo de parte a primeira, por incerta e duvidosa, as outras tres epocas[Pg 26] do sr. Vilanova concordam exactamente com as dos srs. Dupont e Mortillet. Com as denominações propostas pelo sr. Dupont e com os caracteres indicados pelo sr. Mortillet, será a seguinte a

CLASSIFICAÇÃO DA IDADE DA PEDRA

EpocasCaracteres zoologicosCaracteres industriaes
PaleolithicaMammouth e outros animaes desapparecidosInstrumentos de pedra lascada
MesolithicaRangifer e outros animaes emigradosInstrumentos de pedra lascada e de osso
NeolithicaAnimaes domesticos ainda hoje companheiros do homemInstrumentos de pedra polida

Esta classificação, ainda que pareça conforme aos factos até hoje observados na França, Belgica e alguns outros paizes, não póde ter applicação em todas as regiões da Europa. A successão dos tres grupos zoologicos é um facto geral, pois que, em correspondencia a cada grupo, se observam geraes vestigios de mudanças profundas nos climas e nas outras circumstancias da geographia physica. Nem seriam possiveis as variações da fauna sem outras variações correlativas nos meios que os animaes habitassem. Mas os caracteres industriaes não estão da mesma sorte e unicamente sujeitos á influencia invariavel e fatal das leis physicas. A maior ou menor disposição das raças humanas para a perfectibilidade, as emigrações dos povos, os commettimentos guerreiros, as emprezas maritimas e outras circumstancias accidentaes poriam muitas vezes em discordancia os caracteres deduzidos da fauna com os dos instrumentos da industria. Assim como, em quanto alguns dos povos menos civilisados percorrem já a epoca do ferro, e outros estacionam ainda na idade da pedra, assim tambem não podia em toda a parte a cada grupo zoologico ou a cada especie de clima corresponder a mesma phase industrial. Suppondo que o synchronismo declarado na classificação existiria em partes da França e da Belgica, é claro que não poderia ser geral em toda a Europa.

Na Peninsula não têem apparecido instrumentos de pedra lascada e de osso em tal quantidade que obriguem a subdividir a idade da pedra em mais de duas epocas. Além de que, para caracterisar a epoca mesolithica tambem nos faltam os animaes proprios, porque nem o rangifer nem a hyena spelœa, nem algumas outras das especies contemporaneas habitaram para áquem dos Pyreneus. Parece haver, em Hespanha e Portugal, entre os silex lascados de San Isidro e os objectos de pedra polida, uma grande lacuna ou interpolação,[Pg 27] que as explorações até hoje emprehendidas não poderam ainda preencher. Por isso, a classificação do sr. Vilanova foi notavelmente alterada pelo sr. F. M. Tubino que dividiu a idade da pedra sómente em duas epocas, a paleolithica e a neolithica, e subdividiu esta ultima em dois periodos o mesolithico e o do cobre[27]. Pela nossa parte, prescindiremos d’esta subdivisão, porque o periodo mesolithico, sendo caracterisado pela pedra lascada, não póde pertencer á epoca da pedra polida, e o do cobre, por motivo analogo, sómente na idade dos metaes se ha de comprehender. Conservaremos pois a divisão primitiva da idade da pedra nas duas epocas da pedra lascada e da pedra polida, como ainda hoje fazem Lubbock e outros archeologos, attribuindo á primeira o rangifer e os animaes emigrados.

Da epoca paleolithica ou da pedra lascada e da epoca neolithica ou da pedra polida têem apparecido na Peninsula não sómente vestigios da industria[Pg 28] humana, mas tambem restos dos animaes caracteristicos. Porém da epoca anterior, correspondente aos terrenos terciarios, que o sr. Vilanova chama archeolithica não se tem encontrado nada até hoje em Hespanha. Em Portugal o sr. Carlos Ribeiro colligiu em camadas terciarias e quaternarias das provincias da Extremadura e da Beira, e particularmente das bacias do Tejo e Sado, silex e quartzites lascadas nas quaes lhe pareceu evidente a acção intencional do homem. E na Memoria que em 1871 apresentou á Academia das sciencias de Lisboa fez estampar cento e trinta de taes objectos[29].

Examinada esta collecção em 1872 no congresso de Bruxellas, pareceu em principio ao sr. abbade Bourgeois, apaixonado defensor do homem terciario, não ter vestigios da industria humana nenhum dos objectos colligidos. Mudou porém depois de opinião, confessando com o sr. Franks, director do Museu britannico, haver em alguns provas evidentes do trabalho do homem[30]. Por outra parte, o mesmo sr. Franks, examinando trinta e duas pedras, que o sr. abbade Bourgeois apresentára ao congresso, como vestigios da industria humana, encontradas em terras terciarias de Thenay, n’uma só de taes pedras viu signaes positivos da acção intencional do homem. Nomeou-se para examinar as de Portugal uma commissão, entre cujos vogaes não chegou a haver maioria que declarasse attribuiveis á industria humana a maior parte d’aquelles objectos[31].

Bastarão estes factos, occorridos no congresso de Bruxellas, para mostrar a incerteza das provas, actualmente conhecidas da existencia do homem terciario. Na commissão geologica de Portugal ha centenares de pedras, colligidas pelos srs. Carlos Ribeiro e Delgado. Talvez que uma escolha racional apurasse entre ellas algumas em que parecesse menos duvidoso o trabalho humano, nas quaes, comparadas ás congeneres da idade quaternaria, melhor se reconheceria a origem natural ou artificial. Foi isto mesmo que no Museu de Saint-Germain fez o sr. Mortillet, escolhendo algumas das pedras que o abbade Bourgeois para ali enviara, como instrumentos fabricados pelo homem terciario, e expondo-as juntamente com outras do valle do Somme ou de outras estações quaternarias, para os observadores poderem comparar e tirar da comparação as illações que lhes parecesse.

Algumas das pedras da commissão geologica taes como as que as figuras 1, 2 e 3 representam não têem similhança com as formas typicas de Saint-Acheul, Hoxne, San Isidro, etc. Outras que vimos na collecção talvez, sem grande esforço, se reduzam no typo dos denominados raspadores[32].

[Pg 29]

Das provas até hoje adduzidas em favor da existencia do homem terciario umas, indirectas, consistem nos vestigios da sua actividade; outras, directas, seriam as suas proprias ossadas no estado fossil.

A fauna de Saint-Prest, em pequena distancia de Chartrou, estudada desde 1848 por varios naturalistas, é quasi identica á de outras camadas terciarias de varias regiões da Europa. Encontram-se os seus representantes fosseis n’um valle, cortado em angulo consideravel por outro valle quaternario, por cuja idade mais recente se prova tambem a antiguidade relativa do primeiro. Além de outras especies perdidas, ali têem apparecido o elephas meridionalis, o rhinoceros leptorhinus e o megaceros Carnutorum.

Fig. 1

Fig. 2

Fig. 3

PEDRAS LASCADAS ATTRIBUIDAS AO HOMEM TERCIARIO DE PORTUGAL.

Em abril de 1873, Desnoyers foi examinar estes restos fosseis, e pareceu-lhe ver em muitos ossos estrias ou entalhos, que teriam sido feitos pela mão do homem, armada com instrumento cortante. Não contente d’este exame, buscou as collecções anteriormente constituidas com ossadas de Saint-Prest e em todas achou vestigios similhantes. Além dos ossos riscados ou entalhados, encontrou alguns de ruminantes, partidos pela mesma forma por que ainda hoje os partem alguns selvagens para lhes extrahir as medullas. D’onde entendeu poder com toda a probabilidade concluir que «o homem viveria em França... contemporaneamente ao elephas meridionalis e outras especies pliocenas, caracteristicas do Valle d’Arno na Toscana, e que teria de luctar com as grandes alimarias, anteriores ao elephas primigenius e aos outros mammaes, cujos restos apparecem misturados com os vestigios ou indicios do homem nos terrenos de transporte ou quaternarios dos grandes valles e das cavernas»[33].

[Pg 30]

A pretenção do descobridor discordava a tal ponto das idéas geralmente seguidas, ácerca da coincidencia da origem da especie humana dentro nos limites de idade quaternaria, que de toda a parte se levantaram logo contraditores a inventar explicações dos factos observados por causas differentes d’aquellas a que se attribuiam. Quaes disseram que os entalhos dos ossos de Saint-Prest teriam sido feitos pelos instrumentos dos operarios que os extrahiram da terra, ou dos preparadores que os alimparam; quaes recorreram á acção das geleiras; quaes ao attrito das raizes sobre os ossos; quaes ao dessecamento consecutivo á putrefacção dos ossos que os cobriria de fendas longitudinaes e transversaes; quaes á acção de transporte da agua que rolaria com os ossos pedras que os riscassem; quaes, finalmente, aos dentes de certos animaes carnivoros ou roedores pertencentes á fauna terciaria.

Movido da importancia da questão, Lyell chegou a instituir um verdadeiro inquerito para resolver até que ponto seriam admissiveis as causas invocadas pelos contradictores de Desnoyers. Pareceu-lhe que, entre todas, duas sómente poderiam ter tido o effeito que se lhes suppunha; e eram a acção da agua corrente e os dentes dos carnivoros ou roedores. Se os ossos não fossem extremamente duros, as pedras e calhaus com elles arrastados seriam capazes de os riscar. «Podemos suppor, dizia Lyell, relativamente a certo exemplar do Museu Britannico, que estando quasi todo o osso enterrado no lodo, as partes que todavia o não estivessem ficariam expostas á acção da corrente, que arrastaria areia e cascalho contra ellas, e com bastante força para formar riscas ou entalhos, no tempo em que talvez o osso estivesse mais molle do que hoje. Uma pequena mudança na posição do osso ou na direcção da corrente da agua poderia produzir uma segunda serie de estrias parallelas, entrecruzadas com as primeiras». Porém sómente em certos ossos se poderiam explicar as estrias por esta hypothese[34].

Por outra parte, o mesmo Lyell mandou lançar uma porção de ossos aos porcos-espinhos do Jardim Zoologico de Londres, que os deixaram riscados e entalhados á maneira dos de Saint-Prest. D’onde concluiu que estes ultimos poderiam ter andado nos dentes do grande roedor de Chartres do genero Trogontherium, ou de algum outro da fauna terciaria.

A fauna do valle d’Arno, na Italia, assimilha-se extremamente á de Saint-Prest: nos ossos das mesmas especies de mammaes apparecem da mesma sorte estrias ou entalhos. Examinou tambem Lyell estes vestigios, e não se julgou habilitado para expender qualquer opinião decisiva. Todavia, reconhecendo a insufficiencia das provas allegadas em favor do homem terciario, appellou para o futuro, cujos acontecimentos lhe pareceu haverem de dissipar todas as duvidas.

O sr. Lubbock, depois de examinar os ossos de Saint-Prest, expendeu a respeito d’elles a opinião seguinte: «Os vestigios das incisões concordam exactamente com os termos em que foram descriptos; alguns pelo menos[Pg 31] parece terem origem humana. Entretanto no estado actual dos nossos conhecimentos não ousaria affirmar que não tivessem sido feitos por differente modo»[35].

O sr. abbade Delaunay encontrou em Pouancé costellas e um humero de haliterium, especie miocene, profundamente entalhados, segundo parecia, com um instrumento cortante que só pelo homem poderia ser manejado. E já no anno de 1876 o sr. Quatrefages deu conta á Academia das sciencias de Pariz do descobrimento, que o sr. Capellini ha pouco tempo fizera de ossadas de cetaceos com incisões e entalhos, feitos com instrumento cortante. Os ossos assignalados appareceram em argillas pliocenas do Monte Aperto, juncto de Sienne. O descobridor e outros naturalistas italianos estavam convencidos de que não haveria senão a mão do homem, capaz de entalhar os ossos por aquella fórma[36].

Outras provas tambem indirectas são os silex e quartzites lascadas taes como as colligidas em França pelo sr. abbade Bourgeois, e em Portugal pelo sr. Carlos Ribeiro. Todavia de uns não se demonstra que os terrenos onde appareceram fossem terciarios e não quaternarios; de outros não parece incontestavel o terem sido lascados pela mão do homem. Citam-se observações dos srs. Desor, Escher, Fraas, Livingston e Wetzstein que em varias regiões da Africa viram silex lascados naturalmente pela acção do calor do sol, testimunhando alguns este curioso phenomeno[37].

Infelizmente as provas directas da existencia do homem terciario são ainda mais contestaveis que as provas indirectas. O sr. Issel apresentou ao congresso anthropologico de Pariz, em 1867, ossos humanos com signaes de remota antiguidade, achados em camadas pliocenas na cidade de Savone na Toscana. Correu tambem ha alguns annos, apregoada pelo sr. Whitney, director do Geological Survey, a descoberta de um craneo humano na California em depositos pliocenos, por baixo de cinco ou seis camadas de cinzas vulcanicas, endurecidas. O sr. Quatrefages duvída d’este facto não sómente porque pediu informações e não lh’as deram, mas tambem porque não sahiu a publico nenhuma estampa ou noticia descriptiva do tal craneo. Para a maior parte dos naturalistas a doutrina corrente é que até hoje não se conhecem nenhuns restos humanos fosseis incontestavelmente attribuiveis á idade terciaria.

Das razões, ponderadas no capitulo anterior, se deprehende que, já na idade quaternaria, a humanidade passára milhares e milhares de annos sem outros instrumentos mais que os rudes machados de silex, com o mesmo silex fabricados. Mas, como a duração da idade terciaria fosse quasi cinco vezes maior que a da idade quaternaria[38], a existencia de vestigios da industria[Pg 32] humana em camadas miocenas importaria um estacionamento muito mais longo, importaria o decurso de uma eternidade, durante a qual os homens não possuiriam outra arte fabril, senão a de lascar pedras, que mal se differençariam d’aquellas manifestamente resultantes de choques operados por forças physicas. Advirta-se que os depositos miocenos, a cuja epoca se attribuem os mais antigos dos silex e quartzites lascadas, os depositos pliocenos e os diluviaes que se lhes seguiram têem a enorme possança de muitos centenares de metros, e que, em quanto se effeituaram tão longas formações, o homem viveria reduzido á condição dos irracionaes, sem obedecer á lei do progresso, fóra da qual se conservaria até ao fim dos tempos geologicos. A fauna, a flora, as circumstancias hydrographicas e orographicas da superficie do globo na idade terciaria eram obstaculos taes que mal póde o espirito comprehender como, apesar d’elles, se conservaria e desenvolveria a especie humana. Existiam, é verdade, os quadrumanos; mas o macaco, pela sua organisação, avantajava-se ao homem; facilimo lhe sería saltar de ramo em ramo pelas intrincadas florestas miocenas ou pliocenas, para fugir das alimarias que o perseguissem ou para buscar os alimentos indispensaveis á vida. Para fazer compativeis as condições da terra terciaria com a organisação humana, não falta quem tenha supposto que o homem mioceno sería de uma especie differente! Mas contra factos não prevalecem razões, por mais ponderosas que pareçam, e, portanto, bom serviço prestam á sciencia aquelles que se empenham, como o sr. Carlos Ribeiro, em colligir documentos interessantes a esta questão, que talvez dentro em poucos annos vejamos cabalmente resolvida.

Em Hespanha, em terrenos quaternarios, acharam-se já instrumentos de pedra lascada, alguns dos quaes se guardam no Museu archeologico nacional. A estação mais importante, pela maior variedade dos vestigios encontrados, e pelos estudos que n’ella se têem feito, é a de San Isidro del Campo, em pequena distancia de Madrid. Este terreno situado na margem direita do Manzanares, quarenta metros acima das suas aguas, tem vinte metros de espessura e cobre camadas de marga miocenas. Com os vestigios da industria humana primitiva têem apparecido ossos de animaes: de um elephante, talvez o Elephas meridionalis; do Cervus elephas; do Equus fossilis, varietas pliscidens etc.[39] Um machado de silex encontrado em San Isidro provaria que a antiguidade d’essa estação não sería menos remota que a da estação de Saint-Acheul em França, se tivesse havido synchronismo na successão das phases da industria humana em todos os paizes.

Em toda a Peninsula não têem até hoje apparecido outros vestigios certos da industria humana durante a epoca da pedra lascada, excepto os de San Isidro. São já numerosas as estações d’esta epoca da França e de outros paizes e mais numerosos ainda os objectos colligidos nos museus e estampados[Pg 33] nos livros. A falta de explorações geologicas e archeologicas será causa, em parte, de tamanha raridade dos vestigios da pedra lascada em Hespanha e Portugal. Entretanto, apesar d’essa falta, mais alguns deveriam ter apparecido, se esta parte da Europa fosse tão habitada, como a França, em tempos tão remotos.

Fig. 4

MACHADO DE PEDRA LASCADA DE SAN ISIDRO

Mas, o que é mais notavel, da epoca seguinte, da epoca do rangifer não se conhece um só vestigio indubitavel de industria humana. De sorte que, se por acaso não se tivesse descoberto a estação de San Isidro, poderia hoje racionalmente affirmar-se que o homem não teria habitado a Peninsula antes da epoca neolithica. Por outra parte nem do rangifer nem d’alguns outros dos animaes contemporaneos têem apparecido restos, havendo-se, pelo contrario, encontrado alguns dos mammiferos mais antigos que viviam em Hespanha e Portugal ao mesmo tempo em que o homem habitava as margens do Manzanares. Explicar-se-ha a falta do homem contemporaneo do rangifer pelas mesmas causas que deveram obstar a que este e outros animaes da mesma epoca passassem para áquem dos Pyreneus? Eis um curioso problema que sómente o conhecimento mais perfeito da geologia peninsular poderá resolver.

É força confessar que o homem da epoca paleolithica vivia quasi tão brutamente como as ferozes alimarias que o cercavam, e sem ao menos dispor dos poderosos elementos de ataque e defeza que as faziam invenciveis[Pg 34] e temidas. Percutir uma pedra com outra e fazer saltar lascas da primeira até ficar mais ou menos acuminada ou ponteaguda, transformar os paus, os ossos, os chifres em instrumentos não menos imperfeitos, tirar chispas de fogo da rapida fricção de ramos resequidos, eis quasi tudo a que se reduzia a sua limitadissima industria.

Sem fallar na invenção do fogo, que, só por si, prometteria todo o futuro desenvolvimento da humanidade, avantajavam-se-lhe, por certo, na regularidade e importancia das obras, na delicadeza e perfeição dos processos o castor, a abelha, a formiga. Eram-lhe superiores pelos fortes musculos, pelas garras, prezas ou outras armas naturaes, o hippopotamo, o elephante, o urso, o rangifer ou a hyena. As alterações physicas da superficie do globo livraram a especie humana de alguns d’esses poderosos inimigos. Mas os sobreviventes bastariam talvez para extinguil-a, se o homem, inferior nos recursos da natureza physica, se não tornasse superior a todos, pelo successivo desenvolvimento das faculdades intellectuaes.

Progride rapido esse desenvolvimento na epoca neolithica ou da pedra polida. Cessa a anterior agitação que punha em temerosa desordem as partes solida e liquida da crusta da terra; temperam-se os rigores do clima, e as neves perpetuas recuam para os mais altos dos cerros das cordilheiras; algumas das alimarias que disputavam ao homem a posse das cavernas e dos fructos da terra, emigram para as regiões hyperboreas ou alpinas, em busca de temperaturas mais conformes a organisações affeitas á frialdade dos gelos, que não aos ardores dos raios solares. No meio de condições physicas, similhantes ás da actualidade, o homem sahe por fim da bruteza em que longamente vivera, eleva-se acima dos irracionaes que o cercam, alguns converte á domesticidade, e a aurora esplendida da civilisação illumina pela primeira vez os horisontes das sociedades nascentes.

Outr’ora as armas e os pouquissimos instrumentos da industria humana eram feitos de rochas, que pela sua estructura, mais facilmente lascavam, para tomar, por effeito da percussão, as fórmas acuminadas ou ponte-agudas. O silex, a quartzite, a obsidiana mereciam a preferencia para servirem de materias primas á industria incipiente. Agora essas pedras são muitas vezes substituidas pela diorite, serpentina, porphydo, jade e outras, suceptiveis de tomarem fórmas e côres mais varias e mais bellas, embora á força de trabalho e paciencia d’aquelles que as fabricavam. N’esta nova epoca não basta já como d’antes, que os instrumentos possam ferir ou cortar, importa egualmente que sejam bellos e commodos. As fórmas que dão ás rochas com os percutores, o polimento que lhes põem e as côres que lhes avivam com os alizadores ou com os raspadores satisfazem ás primeiras exigencias do sentimento esthetico, mal despontando ainda no coração humano.

Pelo espaço de milhares de annos a intelligencia do homem não teve á sua disposição mais que uns toscos pedaços de silex aguçados ou acuminados para furar ou cortar. Na epoca mesolithica, e particularmente na epoca neolithica ou da pedra polida, dilatam-se os horisontes industriaes. Fabricam-se[Pg 35] martellos, serras, arpões, collares e outras armas ou ornamentos. Aproveitam-se as pontas do veado e de outros animaes para varios utensilios. N’alguns apparecem os primeiros ensaios artisticos em gravuras ou esculpturas toscas e disformes, porém representando já claramente o homem ou os animaes amigos e inimigos que o cercavam. Fabricam-se tambem moinhos de duas pedras para moêr os cereaes, e vasos de barro para guardar as sementes e as farinhas, ou para outros usos. Em fim, a disposição para a mais nobre das artes, para a architectura, revela-se no dolmen, no tumulo, no menhir, no cromleck, monumentos megalithicos da epoca da pedra polida, que foram para esse tempo o mesmo que as basilicas, os mausoleus ou os obeliscos para os tempos historicos.

Examinar d’essas varias memorias aquellas que restam na Peninsula, inquirir a significação que por ventura tenham, relativamente á prehistoria da humanidade, tal será o objecto dos capitulos seguintes.

[Pg 36]

NOTAS DE RODAPÉ:

[26] D. Juan Vilanova y Piera. Estudios sobre lo prehistorico español. Museo español de antigüedades, tomo 1, pag. 129.

As palavras archeolithica, paleolithica, mesolithica e neolithica foram compostas com as palavras gregas arche principio, palaios antigo, mesos meio, neos novo, e lithos pedra.

[27] Classificação das epocas prehistoricas, proposta pelo sr. Tubino, para o reino de Portugal e para as provincias hespanholas da Andaluzia e Extremadura. Veja Los monumentos megaliticos de Andalucia, Extremadura y Portugal. Museu español de antigüedades, tomo VII, 1876.

Edad PaleoliticaHasta ahora desconocida, si prescindimos de los silex tallados recogidos por el sr. Ribeiro en las cuevas del Tajo y del Sado, cuya atribuicion és hipotética[28].
Edad NeoliticaPrimero periodo: El mesolitico.
aCavernas del Monte Calpe
Caverna de Alhama de Granada
Cavernas de Cesareda
bMonumentos megaliticos
cQuioquenmodingo del Cabezo de Arruda
Segundo periodo: El del cobre.
aMinas de Cerro-Muriano
Minas del Odiel y de Riotinto
Minas del Alemtejo
Edad del bronce Sin acreditar. Los mas raros ejemplares procedentes de la zona que estudiamos, no tienen la fianza del yacimiento. Pudieron ser elaborados en otras regiones y llevados á aquella en epocas historicas.
Edad del hierroCarece tambien de estaciones especiales en su seccion prehistorica.

[28] Não menciona a estação paleolithica de San Isidro, por ficar fóra da região considerada. Os silex do sr. Carlos Ribeiro não foram achados nas cavernas, porém nas bacias do Tejo e Sado.

[29] Descripção de alguns silex e quartzites lascados, encontrados nas camadas dos terrenos terciario e quaternario das bacias do Tejo e Sado. Lisboa 1871.

[30] Relatorio ácerca da sexta reunião do congresso de anthropologia e de archeologia prehistoricas, verificado na cidade de Bruxellas em agosto de 1872, elaborado por Carlos Ribeiro. Lisboa 1873.

[31] Ibidem.

[32] Vejam-se um terciario de Thenay (Bourgeois) e outro quaternario do valle do Somme, estampados a par, a fim de se compararem, em Hamy.—Précis de Paleontologie Humaine. Pariz 1870, pag. 49.

[33] Note sur des indices matériels de la coexistence de l’homme avec l’Elephas meridionalis dans un terrain des environs de Chartres, plus ancien que les terrains de transport quaternaires des vallées de la Somme et de la Seine. Comptes Rendues de l’Academie des Sciences, 8 juin 1863.

[34] Hamy, Précis de paléontologie humaine. Pariz 1870, pag. 95 e 96.

[35] L’homme préhistorique. Pariz 1876, pag. 381.

[36] Comptes Rendus, 31 janvier 1876, pag. 348.

[37] Matériaux pour servir à l’histoire positive et philosophique de l’homme.

[38] Cap. II, pag. 14.

[39] D. Juan Vilanova.—Lo prehistorico en España. Anales de la sociedad española de Historia Natural, tomo I, pag. 194.


[Pg 37]

CAPITULO IV
PRIMICIAS DA ARTE

A estação de Argecilla e outras da Peninsula comparadas aos kiokkenmoddings.—Antiguidade d’estas estações prehistoricas.—Pontas de frecha e de lança, encontradas em Hespanha e Portugal.—Estações notaveis de Castella a Velha.—Facas de silex e seu fabrico.—Officinas em Portugal.—Machados.—Picaretas.—Instrumentos de osso.—Puncções.—Fragmentos lavrados.—Placas de shisto.—Outras insignias ou emblemas.—Contas de collares.—Ceramica.—Objectos achados na caverna de Albuñol.—Diadema de ouro.—Vestidos, gorros e bolsas de esparto.—Ornatos feitos de conchas e de dentes.—Bracelete de concha da cueva de la mujer.

Á epoca mesolithica ou do rangifer, da qual—já o dissemos—não ha vestigios certos na Peninsula, attribue o sr. Vilanova os nucleos de silex, facas, frechas e percutores, achados em Hespanha na estação de Argecilla. Descobriu-a o sr. D. Nicanor de la Peña «no sitio chamado Palomar, no terço superior da vertente bastante empinada das collinas terciarias lacustres, que na provincia de Guadalajara caracterisam toda a região conhecida pelo nome de Alcarria. Constitue este deposito um banco de um metro e meio de espessura, sessenta a setenta de comprido, e dez a doze de largo, composto de terra pardacenta, em certos logares muito escura, como se tivera padecido alguma incineração, coroando tudo os extractos calcareos com helix, paludinas e outros fosseis terrestres e lacustres, argillas e margas, que horisontalmente ou com pequena inclinação apparecem na encosta».

A proximidade de uma caverna assaz profunda persuadiu ao sr. Vilanova que o deposito de Argecilla sería analogo aos dos kiokkenmoddings da Dinamarca. Mas, como explorasse o interior da caverna e não achasse vestigios nenhuns de ter servido de habitação ao homem, ficou entendendo que o deposito exterior teria antes sido uma officina da primeira e segunda epoca da idade da pedra. Entretanto, depois de descrever os nucleos, lascas, facas, pontas de frecha e percutores de silex, que o induziram a considerar o deposito de Argecilla, como uma antiga officina, o sr. Vilanova cita varias pedras ali encontradas que parece terem servido de lar para o fogo, similhantes ás dos kiokkenmoddings da Dinamarca. Comtudo, os machados polidos,[Pg 38] os alizadores, os fragmentos de louça e os ossos dos animaes domesticos que o sr. Vilanova achou em Argecilla, e que reputou, parece que sem fundamento, de epoca posterior áquella a que referiu os outros objectos, denunciam claramente a idade do deposito, posterior á dos kiokkenmoddings, apesar de todas as analogias mencionadas[40].

Deu-se este nome, que significa rebutalhos de cozinha, áquellas estações prehistoricas do litoral dinamarquez, constituidas de conchas de ostras e outros mariscos, de ossos partidos de mammaes, de restos de aves e de peixes e finalmente de silex pela maior parte lascados, porém alguns polidos.

É maior a similhança entre a estação de Argecilla e aquella que o sr. Pereira da Costa explorou em Portugal no Cabeço da Arruda.

GENEROS DE ANIMAES, ACHADOS NO CABEÇO DA ARRUDAGENEROS DE ANIMAES, ACHADOS EM ARGECILLA
BosBos
EquusEquus
SusSus
CervusCervus
FelixCanis

O sr. Pereira da Costa comparou tambem a estação do Cabeço da Arruda aos kiokkenmoddings, fundando-se para isso na existencia de madeira e ossos carbonisados, de seixos estalados pela acção do fogo, e finalmente na côr avermelhada do lodo, por effeito da cozedura. Isto pelo que respeita aos vestigios do fogo, mas por outra parte notou mais a accumulação de restos de conchas de animaes comestiveis, e tambem o descobrimento de um similhante deposito, feito de conchas quebradas, fragmentos de carvão, ossos quebrados de mammiferos, pedaços de pederneira e seixos, mas sem restos humanos, no porto da Amoreira, a um kilometro de distancia do Cabeço da Arruda; e de outro na Fonte do Padre Pedro, a tres kilometros de distancia, e formado de conchas partidas, ossos e dentes de mammaes e fragmentos de louça grosseira[41].

Se o leitor quizer apreciar mais uma analogia entre a estação da Argecilla e os kiokkenmoddings, compare a faca de silex, ali achada, com aquellas que se têem encontrado n’estas estações da Dinamarca. Compare a fig. 5, 6 e 7 com aquellas que o sr. Lubbock dá de uma faca do kiokkenmodding de Fannerup no Jutland. Parecer-lhe-hão duas copias do mesmo objecto[42].

[Pg 39]

Fig. 5

Fig. 6

Fig. 7

FACA DE SILEX DA ESTAÇÃO DE ARGECILLA.

Estabelecidas assim as relações da estação de Argecilla e de outras, tanto de Hespanha como de Portugal, com os kiokkenmoddings da Dinamarca, torna-se-nos extremamente importante determinar a idade d’estes ultimos a fim de conhecer a idade d’aquellas. Na opinião do sr. Worsaæ os kiokkenmoddings pertenceriam á epoca da pedra lascada. Demonstral-o-hiam: 1.º a raridade dos instrumentos de pedra polida; 2.º a falta de animaes domesticos, pois o cão é o unico de que têem apparecido restos fosseis. O sr. Steenstrup sustenta, pelo contrario, a contemporaneidade dos kiokkenmoddings e dos tumulos, cuja construcção ninguem refere além da epoca da pedra polida. Se nos primeiros faltam restos do boi e do cavallo domesticos, nos segundos são muito raros, e não custa nada admittir que esses mesmos fossem posteriormente ali introduzidos.

As longas facas de silex, similhantes á de Argecilla, servem exactamente[Pg 40] ao professor Steenstrup a fim de provar que os habitantes dos kiokkenmoddings não estavam tão atrazados, como dizem, na arte de fabricar instrumentos de pedra. É verdade que estes são mais grosseiros, mas os depositos em que se encontram serão os rebutalhos da cozinha de pescadores. Os tumulos pelo contrario seriam as sepulturas dos chefes. De sorte que uns e outros monumentos representam não epocas differentes, mas graus diversos de civilisação de duas classes do mesmo povo. O sr. Lubbock pondera as razões apresentadas por cada um dos opinantes, e conclue que os kiokkenmoddings plausivelmente se attribuirão ao primeiro periodo da epoca neolithica, quando não tinha ainda chegado ao seu completo desenvolvimento a arte de polir o silex[43].

Em fim em varias estações, attribuidas sem contestação á epoca da pedra polida, como a caverna de Pont-á-Lesse, na Belgica, têem apparecido com outros objectos caracteristicos da mesma epoca facas similhantes ás dos kiokkenmoddings e da estação de Argecilla[44]. Todavia convem advertir que os animaes domesticos das estações da Peninsula denotam não terem estas tamanha antiguidade como as da Dinamarca onde se não têem encontrado. Os depositos de conchas partidas encontram-se tambem na Escocia, na foz do rio Somme, em Cornwall e no Devonshire. Mas os fragmentos de louça, achados n’estas ultimas estações, provam tambem não serem tão antigas como os kiokkenmoddings, ou terem tido por habitantes gente mais civilisada.

Fig. 8

Fig. 9

MACHADINHA DE PEDRA DA ESTAÇÃO DE ARGECILLA.

Se taes considerações não bastassem para referir com certeza a estação de Argecilla á epoca da pedra polida, outros objectos ali encontrados completariam a demonstração. A machadinha de pedra furada na base (fig. 8 e 9) não se póde classificar senão entre os objectos d’aquella epoca. E brevemente veremos outras similhantes, achadas em Portugal em dolmens ou em[Pg 41] outras estações da pedra polida. O orificio poderia servir para ligar a machadinha a uma haste com uma corda ou corrêa, ou para suspendel-a ao peito, como amuleto ou como insignia. N’este ultimo caso faria parte de algum collar.

Pertence tambem evidentemente á epoca neolithica a ponta de frecha, (fig. 10). É notavel a sua fórma elegante e apurado lavor. A base prolonga-se á maneira de pé, excavada de um e de outro lado a fim de se ligar á haste com corda ou corrêa que se fixasse n’estes entalhos. Outras similhantes se têem encontrado nas cidades lacustres da Suissa e n’algumas estações de Portugal com fragmentos de louça e outros objectos caracteristicos da epoca neolithica.

Fig. 10

Fig. 11

Fig. 12

Fig. 13

PONTAS DE FRECHA DE SILEX DE ARGECILLA E DA FONTE DA RUPTURA.

Taes são aquellas que em grande numero se conservam no museu da Escola Polytechnica, descobertas na Fonte da Ruptura e na Pena em Setubal, na Casa da Moura e na anta de Bellas (fig. 11, 12 e 13).

Wilde classifica as pontas de frecha em cinco grupos, segundo as suas fórmas caracteristicas: 1.º triangulares, muitas das quaes têem um entalho de cada lado da base para fixar a corda ou corrêa com que as ligavam á haste; 2.º bidentadas, cujos bordos se prolongam para além da base formando uma curva concava á maneira de ferradura; 3.º tridentadas, com tres saliencias na base figurando um M gothico (d’estas ultimas appareceu uma em Argecilla); 4.º com uma saliencia na base para se introduzir na haste; 5.º com a fórma de folha, as quaes, sendo muito alongadas, se chamam dardos. As fig. 11 e 13 são do 1.º grupo; a fig. 10 do 4.º; e finalmente do 5.º a fig. 12.

As pontas de lança, maiores, e, geralmente mais bem acabadas, têem[Pg 42] tambem a fórma triangular. Na Commissão geologica ha uma, apparecida n’um dolmen das circumvisinhanças de Niza, que é das maiores conhecidas. Infelizmente falta-lhe a ponta. Se estivesse completa teria de comprimento 0ᵐ,20. Outra menor foi encontrada na Sepultura de Martim Affonso, perto de Muge.

Fig. 14

Fig. 15

PONTAS DE LANÇA DE SILEX DE NIZA E MUGE.

Fig. 16

Fig. 17

FACA DE SILEX DA COVA DA ESTRIA.

Em Hespanha, na provincia de Castella a Velha, ha uns depositos muito notaveis que, mais bem estudados do que até hoje o têem sido, esclarecerão talvez com importantes factos a epoca das estações de Argecilla e do Cabeço da Arruda. Esses depositos, constituidos principalmente por ossos, e em tamanha quantidade que têem sido exportados para França a fim de se lhes darem applicações industriaes, encontram-se n’uma região de trinta a quarenta leguas quadradas nos confins das provincias de Leão, Valhadolid e Palencia. Com os ossos, affirma o sr. Vilanova, apparecem machados toscos e polidos, ceramica grossa e fina, vidro irisado por decomposição, objectos de ouro e outros metaes, esculpturas de osso, etc. Dos restos organicos menciona os paus, mandibulas e ossos largos dos cervos; cabeças d’estes mesmos animaes inteiras ou sem maxilla inferior; alguma aberta intencionalmente na[Pg 43] base pelo homem a fim de lhe extrahir a massa encephalica, portanto em condições analogas ás d’aquellas que se tem descoberto nas palafittas ou cidades lacustres da Suissa. Alguns dos paus de veado são lavrados ou polidos ou desgastados, bem como os das mencionadas estações prehistoricas. Em fim o sr. Vilanova cita ainda além dos objectos indicados, dentes de javali com riscas, entalhos (contadores?) e varios ornatos; cabos de pau de veado, cilindros da mesma materia com desenhos e furados n’uma das extremidades talvez para servirem de ornato ou de amuleto; algum chifre do grande cervo, no qual se teria aproveitado a natural disposição de uma das pontas para o empregar como instrumento de lavoura, e mil outros objectos de osso

[Pg 44]

«Os ossos sem lavor apparecem pela maior parte quebrados, alguns intencionalmente, outros com signaes de longo transporte. Em geral, estes restos organicos encontram-se em jazigos de côr cinzenta, misturados os naturaes com os lavrados, e em profundidade que não passa de dois ou tres metros»[45].

Com uns objectos evidentemente prehistoricos acham-se tambem outros de metal, vidro ou barro da epoca romana. As estações de Castella a Velha são portanto importantissimas, e é muito para lamentar que até hoje não tenham sido estudadas pelos archeologos hespanhoes. Ha grande analogia entre os depositos de Castella a Velha e as terramaras da Italia. Teriam sido, como estas, habitações lacustres, comparaveis ás palafittas da Suissa?

As facas de silex, mais communs em Portugal, são lascas estreitas e compridas, algum tanto recurvadas no sentido do comprimento. Têem a face concava muito lisa, a convexa formada por tres superficies inclinadas entre si em angulos muito obtusos. N’esta face vêem-se pois quatro arestas longitudinaes, duas formadas pela união d’aquellas tres superficies entre si, e outras duas, que são os bordos, pela união de cada uma das superficies externas com a face concava. Os bordos são acuminados e cortantes. N’uma das extremidades vê-se o bolbo de percussão, ou a parte onde percutiram o nucleo ou matriz de silex para fazer saltar a lasca inteira. Adiante do bolbo de percussão notam-se algumas depressões que poderiam servir para fincar os dedos e segurar a faca. Estes instrumentos poderiam ser applicados para fins differentes, taes como destacar a carne dos ossos dos animaes, cortar as pelles, etc. Todavia algumas ha tão delicadas e tão frageis que parece teriam sido antes usadas como symbolos, opinião cuja probabilidade, relativamente a outros objectos, adiante mostraremos.

No museu da Escola Polytechnica de Lisboa guardam-se muitas facas d’este mesmo typo, apparecidas em differentes logares com outros objectos de pedra polida[46].

Lubbock explica mui clara e satisfatoriamente o modo de fabricar as facas e outros objectos de silex. Quem percutir com um martello arredondado a superficie plana de um silex produzirá uma fractura conoide, cujo tamanho dependerá em grande parte da forma do martello. A superficie da fractura formará um cone com o vertice correspondente ao ponto percutido.[Pg 45] Supponhamos agora que não se percute a superficie plana, porém o angulo de um silex prismatico, a fractura será em principio semi-conoide, mas tornar-se-ha depois achatada, e poderá continuar-se com essa fórma na extensão de mais de 0ᵐ,20. Obter-se-ha assim uma lasca de silex, similhante á folha de uma faca, mas com uma secção triangular. D’esta sorte, arrancados os quatros angulos primitivos da massa prismatica de base quadrangular, poderão ainda destacar-se do mesmo modo os oito angulos restantes e assim por diante.

Fig. 18

Fig. 19

PERCUTOR ACHADO NO ALEMTEJO.

Para que do silex, por meio da fractura, se obtenham taes resultados, importa que elle seja fresco, isto é, recentemente extrahido da terra. Por isso os homens prehistoricos exploraram esta rocha em grande escala, furando poços e abrindo galerias, alguns e algumas de grandes dimensões. Os instrumentos de que se serviam eram uma especie de picaretas feitas de ponta de veado. Em Portugal algumas se têem encontrado de pedra.

No museu da Escola Polytechnica de Lisboa guardam-se muitas lascas de silex, colhidas em varios sitios onde esta rocha foi explorada e fabricada. Vieram da Matta de Otta, da Charneca de Sacavem, do Arieiro de Telheiras,[Pg 46] do Alto de Foz da Ponte, etc. Ignoram-se porém as circumstancias especiaes d’esses logares, que muito conviria saber para determinar a epoca e as circumstancias especiaes das varias officinas.

Têem apparecido n’algumas estações prehistoricas os instrumentos empregados para polir ou para lascar o silex. São tambem de silex. Os polidores têem cavidades de varias formas, onde pelo attrito se alisava a superficie das armas de pedra. Os percutores eram afeiçoados de sorte que se podessem apertar na chave da mão. Tinham tambem cavidades de fórma concava para o artifice fincar n’ellas os dedos, e percutir assim com mais força (fig. 18 e 19).

Fig. 20

MACHADO DE FELDSPATH POLIDO, DA PROVINCIA DO ALEMTEJO.

Das armas de pedra aquellas que mais numerosas apparecem tanto em Portugal como em Hespanha e em toda a parte, são os machados. Não foram encontrados, é verdade, nas explorações do Cabeço da Arruda e das grutas de Cesareda; mas, em compensação, acham-se em todas as provincias, onde, desde tempos immemoriaes os camponezes lhes chamam pedras de raio, e os guardam com grande veneração pelas virtudes que lhes attribuem.

Acham-se com frequencia nos dolmens. Na Memoria que ácerca d’estes monumentos escreveu o sr. Pereira da Costa vem desenhados oito com varias[Pg 47] fórmas e dimensões[47]. São os typos mais communs em Portugal. Variam tambem muito as pedras de que os machados são feitos. Predominam o silex, o schisto, a amphibole, a diorite e o calcareo. Em Cantanhede appareceram alguns de jade, rocha não existente em Portugal, nem no resto da Europa, segundo dizem. No Alemtejo encontram-se os machados de pedra em muito maior numero que nas outras provincias[48].

Fig. 21

Fig. 22.

Fig. 23

INSTRUMENTOS DE PEDRA DA CAVERNA DE ALBUÑOL E DE MAFRA.

No museu da Universidade de Coimbra conservam-se muitos machados de pedra provavelmente de selvagens modernos. Ignora-se d’onde procederam e a epoca em que foram depositados n’aquelle estabelecimento. Além d’estes, ha um notavel, pela perfeição com que foi fabricado: appareceu na Cegonheira, perto de Bordalo, nas circumvisinhanças e a oeste de Coimbra.

[Pg 48]

São do mesmo typo os machados de diorite e de jade, descobertos em Argecilla e os que appareceram na caverna de Albuñol, Andaluzia[49]. Aqui porém encontraram-se dois, um inteiro e outro partido, mui differentes dos typos communs em Hespanha e Portugal. É possivel até que não sejam machados, mas outros instrumentos de pedra, conforme a opinião do sr. Gongora, que assim os denomina.

Alguns instrumentos se têem colligido em Portugal com a fórma curva, quasi de crescente (fig. 23). Na Commissão geologica conservam-se quatro d’estes instrumentos curvos de calcareo branco e molle, achados um em Mont’Abrão, e os outros tres nas immediações de Mafra, e tambem um fragmento egualmente de calcareo que parece de outro similhante objecto, fragmento encontrado na Casa da Moura, uma das grutas de Cesareda. Outro muito curvo, porém de diorite e de maiores dimensões, apparecido em Thomar, pertence hoje ás collecções do museu da Escola Polytechnica. É notavel esta fórma. Seriam picaretas?[50] Parece que os de Mafra, por serem de calcareo sem dureza, e portanto improprios para se empregarem como armas ou como instrumentos, teriam antes servido de insignias. Muitas facas de silex são tambem tão delgadas que talvez não tivessem outro fim. As que appareceram no concelho de Ancião partiram-se logo na occasião em que foram encontradas, por effeito dos choques que soffreram. O apparecerem algumas com objectos de bronze persuade até certo ponto a opinião, segundo a qual alguns d’estes objectos prehistoricos passariam de uma a outra idade, não com os usos que em principio tiveram, porém como emblemas, como symbolos sagrados, por trazerem á lembrança uma grande antiguidade ou os primordios da especie humana.

Não ha motivos para suppôr alguns dos objectos de osso, encontrados em Portugal nas estações prehistoricas, anteriores á epoca neolithica. Na casa da Moura, uma das cavernas da Cesareda, appareceram varios puncções, uma grande faca partida e um cabo de osso. A faca tem n’uma das faces uma excavação á maneira de meia cana, que é parte do canal medullar. O cabo não passa de um fragmento de um osso grande, cuja fórma natural aproveitaram sem o afeiçoarem. A superficie está desgastada pelo attrito da mão. Parece ter servido para encabar algum machado ou outro instrumento de pedra, da mesma sorte que empregavam para este mesmo fim as pontas de veado. E na Casa da Moura se encontrou tambem um cabo d’esta ultima especie (fig. 24). Similhantes ao outro de osso appareceram dois na Fonte da Ruptura em Setubal e um na Azambuja, perto da Penha de França. Todos se conservam no museu da Escola Polytechnica.

[Pg 49]

Na Fonte da Ruptura appareceram ossos transformados em puncções, algum ou alguns dos quaes, pelo grande comprimento, parecem de ave ribeirinha.

Fig. 24.

CABO DE OSSO DA CASA DA MOURA.

Estes instrumentos, designados pelo nome commum de puncções, (fig. 25 e 26) poderiam servir de pontas de frechas ou de dardos e para outros fins differentes. Apparecem com frequencia nas estações prehistoricas e todos os archeologos os conhecem. Pelo contrario deveria ter um fim certo e determinado um instrumento tambem de osso, apparecido na Fonte da Ruptura, em Setubal, e que não consta haver-se encontrado n’outras partes. É um osso macisso de fórma cylindrica, adelgaçado em metade do[Pg 50] seu comprimento para se introduzir n’outro osso vasado, cuja capacidade interior corresponde áquella parte menos grossa do cylindro macisso.

O sr. Pereira da Costa julga que este instrumento serviria para abrir furos em pelles. Collocadas as pelles sobre o orificio superior do cylindro vasado, facilmente se atravessariam pela parte mais delgada do cylindro macisso. Sería este ou outro o uso de tão singular objecto? Ninguem o saberá dizer hoje com certeza. Acharam-se na Fonte da Ruptura dois d’estes furadores. Chame-se-lhes assim interinamente.

Fig. 25

Fig. 26

PUNCÇÕES DE OSSO DE ALMERIA E DA FONTE DA RUPTURA.

[Pg 51]

Na caverna de Albuñol na Andaluzia appareceram puncções de osso e uma folha de faca ou canivete, furado na base, tambem de osso. No Cabeço da Arruda em Portugal encontrára o sr. Pereira da Costa uma faca similhante de osso, porém muito comida do tempo ou do uso que tivera[51].

Fig. 27

Fig. 28

FURADOR (?) DA FONTE DA RUPTURA.

Fig. 29

FACA DE OSSO DE ALBUÑOL.

Na anta de Bellas appareceu um fragmento de cylindro de osso, vasado por dentro, e por fóra muito lavrado. Sería parte de um copo, ou de um ornato de algum objecto de fórma cylindrica?

Fig. 30

FRAGMENTO DE OSSO SEMI-CYLINDRICO DA ANTA DE BELLAS.

Outro fragmento similhante tambem de osso lavrado achou-se na Furninha do Cão (Peniche?). Ambos se conservam no museu da Escola Polytechnica. Têem apparecido em Portugal muitas placas de schisto negro, com[Pg 52] lavores similhantes aos do fragmento anterior n’uma das faces. São furadas umas em um, outras em dois pontos, n’uma das extremidades.

No museu da Escola Polytechnica, além d’aquella que appareceu em Monte Real (fig. 31), conservam-se mais duas de Vianna do Alemtejo, quatro de uma anta de Pavia, e finalmente outra da anta de Bellas; na Commissão geologica o fragmento de outra placa da Cova da Estria (fig. 32). Na collecção de archeología do Instituto de Coimbra outra apparecida em Ancião. Em fim na bibliotheca publica de Evora mais duas, n’uma das quaes se vê o mesmo lavor da fig. 31, e n’outra apenas umas listas em zig-zag, similhantes ás do fragmento de osso da anta de Bellas.

As placas de schisto riscadas parece terem sido usadas pelos constructores das antas, por se encontrarem algumas d’ellas nas antas de Bellas e de Pavia. Em Bellas, Ancião, Monte Real e Cova da Estria encontraram-se juntamente facas de silex do typo das fig. 16 e 17, o que tambem demonstra terem sido usadas tanto umas como outras na mesma epoca e pelo mesmo povo.

Fig. 31

PLACA DE SCHISTO DE MONTE-REAL, LEIRIA.

Fig. 32

FRAGMENTO DE UMA PLACA DE SCHISTO DA COVA DA ESTRIA.

Estes objectos são desconhecidos dos archeologos. Não têem sido desenhados, nem outros nenhuns similhantes, nos livros de archeologia prehistorica; excepto na grande obra Reliquiæ Aquitanicæ, onde a pag. 186 vem um instrumento comparavel ás placas de schisto. É de basalto e tem a fórma de um machado. N’uma das extremidades vê-se um orificio e no bordo correspondente oito entalhos que formam uma especie de serrilha. Appareceu na Pensylvania. Os auctores das Reliquiæ entendem que sería uma especie[Pg 53] de machado que se ligaria a um cabo, passando o cordão ou corrêa pelo orificio e fixando-se nos entalhos[52].

A placa de schisto (fig. 31) tem, além do orificio, um entalho no bordo, e algumas têem mais de um orificio e de um entalho. Por analogia concluiremos que as placas de schisto poderiam tambem ser uns como machados que se ligassem por meio dos orificios e dos entalhos a cabos de madeira. Mas a delicadeza d’estes objectos, e não estarem gastos do attrito, faz crivel que serviriam apenas de amuletos ou insignias ou emblemas ou objectos de culto na epoca dos dolmens, bem como as facas de silex contemporaneas (fig. 16 e 17).

Fig. 33

BACULO DE SCHISTO DA SEPULTURA DE MARTIM AFFONSO.

Em fim convem notar que a machadinha de Argecilla (fig. 8 e 9), é analoga ás placas de schisto e serviria talvez para o mesmo fim, bem como outra de calcareo com a fórma de coração, achada na Cova da Estria (fig. 34).

No museu da Escola Polytechnica ha uma especie de baculo (fig. 33), tambem de schisto negro e com ornatos parecidos aos das placas (fig. 31). Appareceu na Sepultura de Martim Affonso juntamente com facas de silex,[Pg 54] como as da fig. 16 e 17, e com a ponta de lança (fig. 15.) Sería talvez insignia de grau superior, pois não se sabe de outra similhante[53].

Convém notar que na parte inferior ha um pequeno espaço liso, por onde talvez se introduzisse n’algum cabo ou haste de pau. É extremamente comparavel esta insignia áquellas que denominaram bastões de commando, feitas de pau de rangifer, e muito communs nas estações prehistoricas de outros paizes. Dir-se-hia que, não habitando o rangifer na Peninsula, os homens se veriam aqui obrigados a substituir aquella materia pelo schisto. Mas a coexistencia das placas, baculos de schisto e dolmens está demonstrando ter sido o uso d’estes objectos muito posterior á epoca do rangifer. Quanto aos ornatos triangulares, foram muito communs na epoca da pedra polida. A ornamentação com linhas curvas representa já um progresso da arte, posterior ao emprego exclusivo da linha recta. Mas advirta-se que a superficie dos triangulos, coberta de traços que se cruzam, formando pequenos quadrados, não é nada commum na epoca neolithica, e póde até considerar-se caracteristica dos objectos de schisto achados em Portugal. Na Scandinavia, como se vê da obra de Nilsson, têem apparecido enxadas de ponta de veado, com figuras de animaes (cervos?) esboçadas, e junto d’estas figuras os triangulos cobertos de traços cruzados como os das nossas placas e baculos. Os dolmens da Scandinavia são tambem aquelles que mais se assimilham aos de Portugal. Adiante veremos as conclusões que se hão de tirar d’estes factos importantes.

Fig. 34

MACHADINHA DE CALCAREO DA COVA DA ESTRIA.

Que as placas de schisto não serviriam de certo para os fins a que se[Pg 55] applicaram os machados de pedra claramente se prova com o achado de um objecto similhante, mas de calcareo que a fig. 34 representa em tamanho natural. Tem a fórma de um coração, com quanto os orificios e os entalhos da base mostrem com certeza que deveria ligar-se a um cabo ou haste de pau para representar o antigo e talvez já obsoleto machado de pedra. A molleza do calcareo, provando que este objecto não poderia servir para qualquer trabalho em que tivesse de se empregar um machado, confirma a hypothese de que estas e outras reliquias prehistoricas não seriam mais que emblemas ou insignias para as ceremonias do culto ou para quaesquer outras, e que se enterrariam com aquelles a quem tivessem pertencido. Assim temos já as facas de silex, as picaretas com fórma de crescente, as machadinhas de schisto e de calcareo, a que é applicavel a nossa hypothese, e que, sem ella, não teriam razão de ser, nem outra explicação possivel.

Fig. 35

FRAGMENTO DE CALCAREO DA COVA DA ESTRIA.

Achou-se tambem na Cova da Estria um fragmento cylindroide do mesmo calcareo esbranquiçado e sem dureza com duas riscas transversaes n’uma das extremidades e tres riscas obliquas do lado da outra extremidade (fig. 35). Impossivel parece apresentar no estado actual da prehistoria uma opinião certa ácerca do fim para que tal objecto serviria na epoca dos dolmens. Sería um contador ou uma insignia de graduação determinada?

Do mesmo calcareo é uma conta de collar, achada na anta de Bellas, (fig. 36), e tambem duas bolas encontradas na Cova de Estria. Acharam-se mais na anta de Bellas duas contas de schisto (fig. 37). Outras similhantes a estas ultimas e da mesma materia appareceram na Casa da Moura.

[Pg 56]

No dolmen de Vauréal, em França, descobriu-se um esqueleto de mulher e junto d’elle as contas de um collar, umas feitas de osso, outras de schisto e um amuleto com a fórma de machadinha que parecem ter pertencido ao mesmo collar[54]. Se não fôra a grande similhança das placas de schisto do typo da fig. 31 como o instrumento de basalto da Pensylvania, poderiam antes considerar-se como amuletos ou insignias de collares, bem como a peça cordiforme de calcareo (fig. 34); porém a existencia dos entalhos tanto em uns como em outros, faz mais provavel a opinião expendida.

Fig. 36

CONTA DE CALCAREO DE BELLAS.

Fig. 37

CONTAS DE SCHISTO DE BELLAS.

N’algumas das estações prehistoricas de Hespanha e de Portugal têem apparecido juntamente com os objectos descriptos ou outros similhantes, vasos de barro ou fragmentos de louça. Os mais imperfeitos são os vasos hemisphericos da Casa da Moura, sem lavores nenhuns, com a superficie aspera, feitos á mão, antes da invenção do torno, ou por quem não tivesse este instrumento. Estão cheios de uma substancia amorpha que parece haver-se solidificado dentro dos vasos. Seriam alimentos depositados juntamente com os cadaveres? Acreditariam já os antigos habitantes da Casa da Moura o dogma da resurreição?

No alto do Mont’Abrão, na Pena de Setubal e na Fonte da Ruptura da mesma cidade appareceram fragmentos que denotam muito maior adiantamento das artes da ceramica, não sómente pela qualidade do barro, mas tambem pela regularidade dos ornatos. Alguns são cobertos de um verniz vermelho (fig. 38, 39 e 40).

Outros similhantes fragmentos se conservam tambem nas collecções da Commissão geologica e do museu da Escola Polytechnica, encontrados em Santa Eulalia, perto de Monte-Mór-o-Velho, em Barcarena, etc.

A fig. 41 representa um fragmento da ceramica prehistorica da Andaluzia, achado na caverna de Albuñol, e que parece contemporaneo d’aquelles que ultimamente dissemos terem sido encontrados em varias estações prehistoricas de Portugal.

Ha grande similhança entre taes fragmentos e os que se encontraram no tumulo de West-Kennet no Wilt-shire. A fig. 39 é quasi uma copia do desenho de um d’aquelles fragmentos estampados, descriptos e publicados por Lubbock. Por onde se confirma que a estação da Pena de Setubal e outras[Pg 57] estações correlativas de Portugal e Hespanha foram com effeito occupadas na epoca neolithica ou premetallica.

Fig. 38

Fig. 39

Fig. 40

FRAGMENTOS DE LOUÇA DE MONT’ABRÃO, PENA E FONTE DA RUPTURA.

Fig. 41

FRAGMENTO DE CERAMICA DE ALBUÑOL.

Outros achados feitos na caverna de Albuñol da provincia da Andaluzia dão-nos mais alguma idéa dos costumes e do estado social dos homens que habitavam a Peninsula n’esses tempos remotos. A caverna, conhecida pelo nome de Cueva de los murcielagos, tinha sido explorada em 1831 com o[Pg 58] fim de extrahir d’ella o guano formado pelos excrementos dos animaes que lhe deram o nome. Não se revolveu o solo n’esta primeira exploração; portanto ficaram intactos os objectos que ali estavam sepultados. Em 1857 constituiu-se uma companhia para explorar os mineraes de chumbo que suppunham haver na caverna. Logo no principio das excavações appareceram á entrada tres esqueletos, um dos quaes cingido com diadema singelo de ouro puro (fig. 42).

Continuando a excavação pelo interior da caverna, acharam os mineiros doze cadaveres, postos em semi-circulo á roda de um esqueleto de mulher muito bem conservado, vestido com uma tunica de pelle, apertada com corrêas, e adornado com um collar feito de anneis de esparto, de um dos quaes pendia um dente de javali lavrado na ponta, e dos outros conchas furadas.

Fig. 42

DIADEMA DE OURO DA CAVERNA DE ALBUÑOL.

O esqueleto a que pertencia o diadema de ouro tinha uma veste curta de tecido fino de esparto, (fig. 43). Os vestidos dos outros eram tambem de esparto, porém de tecido mais grosseiro, (fig. 44). Alguns tinham gorros de tecido similhante (fig. 45), e calçado tambem de esparto, á maneira de alpercatas. Cada um dos tres esqueletos tinha uma bolsa de esparto, cujo tamanho variava entre seis e quinze pollegadas (fig. 46).

Em fim, na parte mais remota do interior da caverna acharam os mineiros outros cincoenta esqueletos tambem vestidos e calçados de esparto. Juntamente com as ossadas havia facas e machados de pedra, lanças e frechas com pontas de silex pegadas a toscos paus com um cimento fortissimo; vasos de barro, e colhéres de madeira trabalhadas á pedra e ao fogo. O sr. D. Manuel de Gongora, annos depois, encontrou ainda o diadema de ouro e outros objectos, que algumas pessoas curiosas guardavam, e poude mandal-os desenhar e gravar para lhes dar publicidade na sua interessante Memoria[55].

[Pg 59]

Serão porém authenthicos os objectos que dizem achados em Albuñol? E, sendo-o, não se deverá antes attribuil-os a uma epoca muito menos antiga, de sorte que podessem chegar aos nossos dias tão bem conservados? Que o sr. Gongora viu os objectos é indubitavel. Responde pela sua veracidade a Academia Real de Historia que deu o parecer favoravel á impressão da Memoria. Que abusassem da boa fé do explorador e da sua paixão pela archeologia não é crivel; uma falsificação denunciar-se-hia logo por qualquer incompatibilidade entre os objectos encontrados. Ora todos elles revelam claramente a epoca neolithica. Entre tantos objectos achados não houve um só de bronze ou de ferro. Appareceu, é verdade, o diadema de ouro, mas ha toda a razão para suppôr que este metal sería fabricado anteriormente ao cobre, por se apresentar no estado nativo e não exigir portanto a invenção de processos especiaes de extracção. Demais andam conformes os auctores antigos em descrever as areias dos rios da Peninsula como abundantes de palhetas de ouro.

Fig. 43

Fig. 45

Fig. 44

TECIDOS DE ESPARTO DA CAVERNA DE ALBUÑOL.

[Pg 60]

Os tecidos de esparto não ha impossibilidade nenhuma em attribuil-os á epoca neolithica, pois têem apparecido em estações lacustres da idade da pedra, sobre tudo em Wangen e em Robenhausen, fragmentos similhantes áquelles que se descobriram em Albuñol[56].

Mas como se conservariam os esqueletos, alguns com as carnes mumificadas, os tecidos e as pelles, por tantos seculos? A falta do ar e da humidade no subsolo da caverna, poderiam ter obstado á putrefacção. Por outra parte concorreria igualmente para o mesmo effeito o salitre que o sr. Gongora diz ter encontrado dentro da Cueva de los murcielagos.

Fig. 46

BOLSA DE ESPARTO DA CAVERNA DE ALBUÑOL.

O uso das conchas e das prezas de javali, como ornatos, era muito commum aos habitantes das cavernas e dos dolmens. No entulho superior da Casa da Moura encontraram-se valvas de Pectunculus com as faces muito desgastadas, e furadas no umbão. Outras valvas d’aquella mesma especie ou de Pecten maximus não tinham signal nenhum de terem sido furadas, como as outras, mas estavam similhantemente desgastadas[57].

O sr. Vilanova dá noticia de conchas dos generos Pecten, Pectunculus, Helix, Melanopsis, Cyclostoma, Cardium, Bulimus, Conus e outras achadas nas cavernas de Parpalló na falda occidental de Monduber; de Avellanera, na falda septemtrional de Matamon, provincia de Valencia; da Roca em pequena distancia da cidade de Orihuela; attribuindo os vestigios das duas primeiras cavernas á epoca paleolithica e os da terceira á epoca mesolithica.[Pg 61] Mas é possivel que os vestigios d’estas cavernas, bem como os de Argecilla, não tenham a antiguidade que se lhes attribuiu[58].

Na Cueva de la mujer, nas circumvisinhanças da Alhama de Granada, achou o sr. Mac Pherson um bracelete muito notavel, feito de uma concha (fig. 47)[59]. Pelos fragmentos de louça encontrados n’esta caverna se prova serem os seus habitantes contemporaneos d’aquelles que ficaram sepultados em Albuñol, e dos outros que frequentavam a Pena e a Fonte da Ruptura em Setubal. Entretanto, não consta que se tenha até hoje achado na Peninsula outro bracelete similhante. Em França n’uma pedreira da estrada de Dijon a Auxonne appareceu em 1849 uma sepultura, e d’entro n’ella, juntamente com os ossos, um bracelete como o da Cueva de la mujer e dois anneis feitos tambem de conchas bivalvas e desgastadas no meio, ficando uma parte muito mais grossa que sería para formar saliencia pela parte de fóra do dedo. Acharam-se mais no mesmo logar outras conchas furadas que parece teriam sido de um collar.

Fig. 47

BRACELETE DE CONCHA DA CUEVA DE LA MUJER.

Ainda hoje os Neo-Caledonios usam braceletes de conchas, e rosarios feitos com as ultimas spiras de conchas pequenas que furam com paciencia e destreza, dignas de admiração. Nas costas da Africa certos negros fazem collares de conchinhas brancas da especie denominada Volvaria monilis[60].

[Pg 63]

NOTAS DE RODAPÉ:

[40] D. Juan Vilanova, Lo préhistorico en España. Anales de la sociedad española de Historia Natural, tomo I, cuarderno 2.º pag. 201 a 204.

[41] F. A. Pereira da Costa, Da existencia do homem em epocas remotas no valle do Tejo. Lisboa, 1865.

[42] Lubbock, L’homme prehistorique. Pariz 1876, pag. 77 e 624.

[43] Lubbock, Op. cit. pag. 221 a 227.

[44] Dupont, L’homme pendant les ages de la pierre. Pariz 1872, pag. 221.

[45] Vilanova, Lo prehistorico en España.

[46] Muitas das pontas de frecha do museu da Escola Polytechnica provieram da Fonte da Ruptura e da Pena de Setubal, da Casa da Moura (Cesareda), da anta de Bellas, dos montes de Verride, de Barcarena, da Sepultura de Martim Affonso, de Monte-real (Leiria), das circumvisinhanças de Extremoz. As lascas de silex, procedentes do fabrico das facas, foram encontradas na Matta de Otta, na Charneca de Sacavem, nos Arieiros de Telheiras (perto do Campo Grande), no alto da Foz da Ponte (entre a Trafaria e o Cabo), nas Quintinhas de Sant’Anna (junto de Cezimbra?), ao norte de Mindeis (acima de Collares), entre Penedo e Bicas, em S. Francisco de Peniche.

[47] F. A. Pereira da Costa. Dolmins ou antas de Portugal. Lisboa 1868.

[48] Na collecção de archeologia do Instituto de Coimbra conservam-se muitos exemplares, pela maior parte do Alemtejo; ali estão tambem os de Cantanhede.

[49] Vilanova, Lo prehistorico en España. Gongora, Antigüedades prehistoricas da Andalucia.

[50] Ha poucos dias achou-se um d’estes instrumentos, similhante ao de Thomar, pela fórma e tamanho, em S. Miguel de Machede, districto de Evora, no Alemtejo. Apesar de mutilado na ponta, mede 0,ᵐ27 de comprido.

[51] Gongora, op. cit., Pereira da Costa, op. cit.

[52] Reliquiæ Aquitanicæ, pag. 186.

[53] Depois de escripto este capitulo, acharam-se outros dois baculos em Portugal. Um muito similhante á fig. 31; outro com os ornatos em relevo. Pertencem á Commissão geologica.

[54] Saint-Aymour. Études sur quelques monuments mégalithiques de la vallée de l’Oise. Pariz 1875.

[55] D. Manuel de Gongora, Antigüedades prehistoricas de Andalucia. Madrid 1868.

[56] Lubbock, L’homme prehistorique. Pariz 1876, pag 178.

[57] J. F. N. Delgado, Noticia ácerca das grutas de Cesareda. Lisboa 1867.

[58] Lo prehistorico en España.

[59] La Cueva de la mujer. Descripcion de una caverna conteniendo restos prehistoricos, descobierta en las immediaciones de Alhama e Granada. Por G. M. Pherson, parte 2.ª, pag. 6, est. VIII, fig. 3.

[60] Magasin Pittoresque, 1868, pag. 44 a 46, onde se podem vêr as estampas dos objectos achados em Dijon.


[Pg 62]

CAPITULO V
AS CAVERNAS

Os troglodytas.—As cavernas imitadas nas mais antigas das construcções.—Seu estudo recente.—Bocas das cavernas.—Vãos interiores.—Como se formariam?—Analogias das cavernas com os veios metallicos.—Causas capazes de formar as cavernas.—Depositos.—Cavernas ossiferas.—Procedencia das ossadas.—Ossos humanos e vestigios da industria primitiva.—Caverna de Cavillon.—Cavernas da Sierra Cebollera, Gibraltar, Parpalló, Alhama de Granada e Albuñol.—Cavernas da Cesareda.—Se a anthropophagia sería um costume geral dos homens prehistoricos?—Razões em contrario.

Pelos vestigios encontrados dentro nas cavernas, se prova terem sido habitadas umas pelos homens e outras pelas feras. Algumas serviriam tambem alternativamente aos homens e aos animaes, conforme a sorte dos combates, em que todos se disputavam a posse, senão dos unicos, ao menos dos melhores dos abrigos que a natureza lhes offerecia contra as intemperies das estações e contra os ataques dos inimigos. Houve, portanto, troglodytas ou gentes que habitavam as concavidades da terra e viviam á maneira dos irracionaes. Nem é muito que assim fosse nos primordios da humanidade, quando ainda hoje alguns povos selvagens, refractarios á lei do progresso, habitam similhantemente cavernas e tocas de barro, feitas á similhança d’ellas.

Imitar a caverna parece ter sido a grande aspiração dos primeiros dos constructores e dos architectos. Os dolmens, os tumulos, e até os templos subterraneos do Egypto e da India recordam as lobregas moradas dos homens primitivos, bem como os templos da Grecia fazem lembrar a cabana scythica, habitação de uma epoca e de uma raça que esquecera os antigos costumes dos avoengos prehistoricos.

Depois que, inventada a architectura, as cavernas deixaram de ser habitadas, tornaram-se naturalmente objectos de terror, admiração ou curiosidade. Assim em tempo de Æliano, os lugubres gemidos e vozes lamentosas do bárathro de Plutão inspiravam aos indios de Aria o temor de uma divindade cruel e malfazeja. Por toda a parte, as trevas, os animaes, os sons e ruidos estranhos que enchem os vãos interiores das cavernas punham medo[Pg 64] áquelles que não ousavam mais que observar-lhes a furto as bocas mysteriosas, ou perscrutar-lhes com olhos timidos as reconditas profundezas. Só algum pastor mais destemido, ou viajante mais curioso, chegavam a aventurar-se pelos secretos reconcavos com o intento de medil-os, de examinal-os, de admirar o reflexo das luzes nas gottas de agua pendentes das abobadas naturaes, ou na superficie dos riachos ou cascatas; ou com o fim de contemplar a perspectiva interessante e pittoresca das stalactites e stalagmites a simularem penduroes, laçarias, arcadas, balaustradas, columnatas e outras maravilhas de uma arte phantastica e caprichosa. Mas o estudo geologico das cavernas data de ha poucos annos, e de ha menos ainda o exame das ossadas e dos vestigios da industria primitiva que ellas contêem.

As bocas da maior parte das cavernas abrem-se nas vertentes dos valles ou nos bordos das bacias naturaes. São quasi sempre as unicas partes exteriormente visiveis; e, se n’alguns casos não têem nada notavel, n’outros chegam a parecer portas de templos, com as suas voltas ou archivoltas estribadas em rochas fendidas e esburacadas á maneira de columnatas carcomidas pelos seculos. Outras consistem apenas em estreitas fendas tapadas em parte por incrustações e entulho. Outras dirigem-se vertical ou quasi verticalmente, como poços ou chaminés, da superficie para o interior. Outras em fim estão obstruidas com paredes ou com montões de pedras que difficultam a passagem. Muitas abriram-se natural ou artificialmente em epocas modernas e posteriores ás da formação das cavernas a que pertencem. Algumas e mais em particular as d’aquellas que elle tem habitado, foram alteradas pela mão do homem.

Interiormente ha grande variedade nas cavernas. Umas consistem apenas em cavidades unicas de fórmas regulares ou irregulares. Outras constam de muitas cavidades ou salas que entre si communicam por meio de longas e estreitas galerias. Ás vezes os tectos d’estes vãos interiores são concavos, muito altos e similhantes ás abobadas dos zimborios. Outras vezes abatem-se insensivelmente, chegam a tocar o chão e deixam estreitas passagens, por onde mal pode penetrar um homem. Não é raro em fim estarem as camaras interiores em niveis differentes, e communicarem entre si por meio de galerias muito inclinadas ou quasi verticaes.

Encontram-se nos terrenos calcareos as mais vastas das cavernas. Explica-se este facto pela estructura das rochas calcareas, pela facilidade com que se desaggregam, e finalmente pelo modo porque se fendem ou abrem ou affastam as suas longas bancadas.

Não houve ainda quem formulasse uma theoria racional e sufficientemente explanada da formação das cavernas. Sabe-se apenas que trabalharam em vão aquelles que pretenderam explicar por uma só causa esses factos complexos, intimamente relacionados com outros grandes factos geologicos. Primeiro que tudo convirá considerar as causas que elevaram as montanhas e que, só por si, poderiam ter produzido algumas cavernas, e deixar as camadas da crusta em condições favoraveis á producção de muitas outras.[Pg 65] Alguns geologos acreditaram a hypothese da existencia de immensas cavidades no interior do globo, das quaes as cavernas apenas seriam pequenos appendices superficiaes. Todos sabem que, para explicar as fontes, importa necessariamente admittir a existencia de grandes depositos subterraneos, onde se ajuntam as aguas das chuvas, para depois correrem na superficie da terra, filtradas pelas camadas superficiaes. Se taes depositos são vãos interiores, as mesmas causas que os formaram, formariam tambem as cavernas; se pelo contrario estão cheios de rochas porosas, não custa nada admittir que as cavernas fossem ainda da mesma sorte produzidas, tendo sido posteriormente esvasiadas das materias porosas que por ventura contivessem.

Os veios metallicos encheram, em varias epocas da vida do globo, fendas ou rupturas preexistentes da sua crusta. As massas de minerio ficaram portanto com a fórma desses espaços que preencheram. Ora a observação tem mostrado grandes analogias entre a fórma e disposição das cavernas e as dos veios metallicos. Em primeiro logar, na mesma região constituem estes veios systemas determinados, correspondentes a epocas diversas, e seguindo os veios de cada um a mesma direcção, de modo que os differentes systemas se distinguem entre si pelas direcções respectivas que ás vezes se cruzam umas com as outras. Assim tambem n’uma região, abundante de cavernas naturaes, não será difficil classifical-as em grupos varios, conforme as suas respectivas direcções, cada um dos quaes deverá corresponder a uma epoca determinada. A disposição das salas das cavernas multiloculares e dos corredores que as ligam observa-se em ponto pequeno nos systemas dos veios, cujas dilatações em varios niveis se ligam entre si por meio de prolongamentos de muito menor diametro. Em ponto grande encontrar-se-ha essa mesma disposição nas cordilheiras calcareas, nos valles e bacias situadas em diversas alturas e nas gargantas ou passos estreitos, por meio dos quaes se communicam entre si. Taes são os factos, até hoje pouco estudados, que persuadem a possibilidade de subordinar á mesma causa a elevação dos montes e collinas e a formação dos seus vãos interiores ou das cavernas.

Além d’esta causa, algumas outras poderiam ou completar o seu effeito acabando de formar as cavernas e alterando-lhes as formas, ou produzil-as só por si sem qualquer trabalho ou disposição anterior. Taes são: 1.º. Os terremotos, cujas oscillações produziriam talvez, nos pontos em que ellas se entrecruzassem, os vãos ou dilatações maiores: 2.º As rupturas e depressões causadas pela retracção e deslocação dos estratos calcareos, ou pelo desmoronamento d’aquelles que tivessem ficado em vão: 3.º Os gazes e vapores acidos que poderiam dilatar os espaços interiores ou corroer as materias que os enchessem: 4.º A agua que arrastaria umas das substancias interiores e dissolveria outras, esvaseando assim os logares occupados por essas substancias.

Interessa por extremo á paleontologia, tanto do homem como dos animaes, o estudo dos depositos contidos nas cavernas. Muitos foram formados pela agua que circula nas rochas permeaveis e nos vãos interiores da crusta da[Pg 66] terra, uns por precipitação de substancias dissolvidas, outros por separação mechanica de materias suspensas n’aquelle liquido. A agua que se infiltra pelas paredes das cavernas calcareas, dissolve uma porção de carbonato de cal. O acido carbonico resultante da decomposição dos restos organicos ou procedente da atmosphera favorece esta dissolução transformando o protocarbonato mui pouco soluvel em bicarbonato soluvel. A dissolução d’este sal, chegando ao ar livre, perde um equivalente de acido carbonico, e o bicarbonato transforma-se em protocarbonato que se precipita. Assim se formam as stalactites e as stalagmites no tecto e no chão das cavernas, quando a agua carbonatada gotteja das suas paredes. Quando porém corre em quantidades maiores e arrasta comsigo areias, restos de plantas e outros materiaes, fórma então aquellas massas leves e porosas que chamam tufo, em que o protocarbonato de cal se incrusta sobre as partes solidas arrastadas. Acha-se o tufo em grandes porções nas cavernas de Condeixa, tres leguas ao SO de Coimbra.

Mas os depositos mechanicos são os mais interessantes pela maior variedade de restos que contêem. Todos sabem que as aguas correntes arrastam em suspensão materias solidas, e muitas especificamente mais pesadas. Se qualquer causa diminuir ou destruir o movimento da agua, as partes solidas depositar-se-hão, em geral, pela ordem das suas densidades relativas. Isto posto, vê-se como os vãos das cavernas deveriam favorecer similhantes depositos, retardando a velocidade das correntes interiores ou das exteriores que dentro n’elles penetrassem. Na maior parte dos depositos, assim formados, predomina a argilla arenosa de côr avermelhada ou amarellada, sem grande consistencia, umas vezes mais ou menos estratificada, outras vezes sem nenhuns signaes de estratificação. Conforme o mechanismo do deposito e a natureza das partes depositadas, assim as camadas são ou extremamente molles ou tão endurecidas pelo calcareo que as impregna, que se não cortam sem dificuldade. Ás vezes nas camadas depositadas acham-se incorporados seixos, calhaus rolados, fragmentos de stalactites e pedras angulosas pela maior parte provenientes das paredes das cavernas. Alguns porém foram arrastados de fóra e de pequenas distancias pela agua corrente. Consideram os geologos os depositos interiores das cavernas como a continuação dos depositos exteriores superficiaes. Têem todos a mesma natureza e textura e até muitas vezes a mesma côr avermelhada.

Muitas cavernas tornam-se notaveis pela quantidade de ossos que encerram. Por isso lhes chamam commumente cavernas ossiferas ou cavernas de ossadas. Estes ossarios têem ás vezes grande espessura. Na caverna de Banwel, no condado de Sommersetshire, em Inglaterra, a sala maior de quinze metros de altura, estava cheia até ao tecto com um deposito de ossos. A regra geral é apparecer a camada molle dos ossos por baixo da camada dura calcarea ou stalagmitica. Algumas vezes acham-se invertidas, e outras vezes alternam camadas de uma com as de outra especie. Para explicar esta alternação importa considerar não sómente as causas já indicadas da formação[Pg 67] dos depositos calcareos, mas tambem aquellas que operaram os depositos dos ossos. Primeiro que tudo convirá notar uma circumstancia importante, um facto capital, que em toda a explicação se ha de ter em vista. E vem a ser a grande variedade de animaes, cujos ossos se encontram juntos nas mesmas cavernas.

«As cavernas de Muggendorf e de Gailenreuth, diz Burgmeister, formadas na dolomia do terreno jurassico bavaro, são particularmente celebres. Da ultima têem extrahido ossadas pelo menos de mil individuos, dos quaes oitocentos pertencentes á especie do grande urso (Ursus spelœus), sessenta a uma outra especie do mesmo genero (Ursus arctoideus) e dez ainda a uma outra especie (Ursus priscus). As cento e cincoenta restantes são de lobos, hyenas, leões e texugos. As cavernas de Sundwig em Iserlohn continham restos de especies similhantes, sendo mais numerosos os do Ursus spelœus. A caverna de Kirkdale, na região oriental do condado d’York, contém pelo contrario, sobre tudo, ossos de hyenas com outros ossos roidos de cavallos, bois, veados, trazidos pelas hyenas. Ahi foi que Buckland fez as suas bellas investigações sobre o genero da vida primitiva d’estes animaes, e notou as camadas de excrementos juntos das paredes polidas pelas hyenas. Achou-se em Argou, departamento dos Pyreneus, uma caverna com animaes herbivoros, a qual de resto se ha de considerar como uma raridade. Occupa um schisto liasico, e continha principalmente ossos de cavallos, bois, veados e rhinocerontes»[61].

Os ossos das cavernas podem ter sido de animaes mortos ou dentro ou fóra d’ellas. Se ainda hoje são habitadas pelos morcegos, corujas e outras aves nocturnas e por grande variedade de animaes carniceiros, que muito que em epocas remotas egualmente o fossem, e que esses animaes de tantas classes e de tantas especies lá ficassem sepultados? Morreriam uns de morte natural deixando os seus restos incorporados no solo das cavernas. Outros seriam arrastados, como presas, pelos carnivoros para dentro d’ellas. Em fim, por occasião das inundações, era natural que animaes de especies differentes, e até inimigos, se recolhessem ás cavernas, pois quando é grande o perigo e commum, todos os instinctos cedem ao da propria conservação. Em tal caso, elevando-se o nivel da agua e tapando a boca da caverna e enchendo o seu interior, todos os animaes ali accumulados morreriam por asphyxia.

Todavia em muitas cavernas encontram-se os ossos maiores dos grandes mammaes, como os dos membros anteriores e posteriores, com os angulos arredondados e com as arestas comidas do attrito, e os ossos pequenos reduzidos a fragmentos disformes e boleados. Alterações taes provam que os ossos foram arrastados pela agua juntamente com os calhaus e por estes friccionados. Por outra parte, a natureza das rochas accumuladas com os ossos, differentes d’aquellas que constituem as paredes das cavernas, demonstra haverem-se formado as camadas ossiferas á custa dos terrenos exteriores.[Pg 68] Finalmente não apparecerem esqueletos inteiros em taes depositos é ainda outro motivo para crer que, na maior parte das cavernas, os ossos procedentes de animaes, mortos fóra e não dentro d’ellas, seriam arrastados, por occasião das inundações, pela agua com os materiaes constituintes dos terrenos onde jaziam sepultados.

Por entre as ossadas de muitas cavernas têem apparecido ossos humanos e vestigios da industria primitiva, e, como algumas d’aquellas pertenciam a especies extinctas ou emigradas, ao mammouth, ao rangifer, ao urso, allega-se geralmente este facto entre as provas da antiguidade remota da especie humana. Porém na opinião de alguns tal prova é insufficiente, porque, dizem, se os vestigios do homem foram sepultados dentro das cavernas, muito bem o poderiam ser depois de lá existirem ossadas de animaes que tivessem vivido muitos milhares de annos antes. Se pelo contrario taes vestigios foram arrastados de fóra com as ossadas antidiluvianas, é claro que poderiam egualmente uns e outros ter idades mui differentes, e até fazer parte de terrenos mui diversos.

Estas objecções levaram os exploradores a pôr todo o cuidado nas explorações, de modo que os resultados obtidos não ficassem sujeitos a contradictas. Assim as relações de posição dos instrumentos de silex com os ossos dos depositos, o encontrarem-se no mesmo plano ou em planos inferiores, os entalhos feitos nos ossos, o modo por que foram quebrados para se lhes extrahir a medulla e finalmente os desenhos do mammouth ou do rangifer em objectos de osso, de chifre ou nas proprias presas dos animaes, como se encontraram em cavernas da Dordonha, tudo foi minuciosamente estudado e tudo mostrou haverem sido contemporaneos o homem e os grandes mammaes desapparecidos.

Uma das cavernas que mais concorreram para esclarecer a questão foi a de Cavillon, explorada pelo sr. Rivière entre aquellas que se descobriram na occasião de se construir o caminho de ferro de Genova a Menton e a Nice. No dia 26 de março de 1872 achou o explorador os ossos do pé de um esqueleto humano. O esqueleto estava de tal sorte adherente aos materiaes que o envolviam, que só, depois de oito dias de trabalho, se poude destacar d’elles. Estendido no decubito lateral esquerdo e com a maxilla inferior appoiada nas phalangetas da mão esquerda, jazia na attitude de um homem a quem morte subita e sem agonia surprehendesse durante o somno. Em roda do esqueleto acharam-se instrumentos de silex lascados, taes como pontas de frecha, pontas de lança e raspadeiras; um pedaço de puncção de osso, conchas de varios generos e dentes furados que tinham servido de ornatos; dentes do urso grande (ursus spelœus), do gato grande (felis spelœus), do rhinoceros tichorhinus e da hyena spelæa, especies caracteristicas da epoca do mammouth.

Apesar da sua remota antiguidade e do seu prognathismo, o craneo de Menton, pelo angulo facial, pela proeminencia de vertex, pelo grande volume da parte posterior, etc., assimilha-se aos craneos da mais perfeita das raças[Pg 69] actuaes. Comtudo para contrapôr a este facto que tenderia a provar a invariabilidade do typo humano durante largos periodos de tempo, ha os craneos de Neanderthal, de Forbes’Quarry, de Brux, de Eguisheim e as maxillas encontradas na caverna de La Naulette e n’outros logares. Estes vestigios, de epocas mais remotas, demonstram a diversidade anatomica dos homens a quem pertenceram, em relação ao typo humano da actualidade.

Nos paizes, onde mais se cultivam os estudos prehistoricos, têem-se explorado as cavernas para colher os numerosos e importantes vestigios que ellas contêem do homem primitivo. Na Peninsula muitas estão já exploradas, mais em Hespanha que em Portugal, mas ha ainda muitissimas para explorar. Falta sobre tudo comparar os resultados obtidos e aquelles que por ventura se possam obter, para lançar alguma luz por entre as trevas espessas que involvem ainda hoje os tempos anteriores á historia.

Em 1865 Luiz Lartet explorou as cavernas do terreno jurassico da Sierra Cebollera, no termo de Torrecilla de Cameros, Nieva de Cameros e Ortigosa, nas mais notaveis das quaes, na superior e na inferior da Peña de Miel e na Lobrega, encontrou machados, facas, raspadores, ceramica e alguns utensilios de osso, pertencentes á epoca neolithica ou da pedra polida. As cavernas exploradas attribuia-as Lartet a tres diversas idades: 1.ª do rhinoceronte, mas de uma especie differente do R. tichorhinus que parece não ter atravessado nem os Alpes nem os Pyreneus. 2.ª Do boi primitivo, e unicamente d’elle, porque na Peninsula não apparecem vestigios do rangifer nem da maior parte dos mammiferos que nas cavernas da França lhe andam associados. 3.ª Das especies domesticas. Das cavernas da primeira idade suppoz o explorador que não seriam habitadas pelo homem na epoca do rhinoceronte. Nas da segunda idade achou instrumentos de osso e de pedra lascada, similhantes áquelles que em França caracterisam a epoca mesolithica, e nas da terceira idade depararam-se-lhe mais numerosos os silex polidos, os instrumentos de osso mais perfeitos, a ceramica, etc.[62]

O Capitão Brome explorou muitas cavernas do monte Calpe na bahia de Gibraltar. Pela situação geographica d’estas cavernas, os fosseis e os productos da industria humana aqui encontrados têem grande importancia para o estudo das origens ethnicas e das emigrações dos povos primitivos. Conheceu-o o governo inglez, e incumbiu os srs. Busk e Falconer de estudarem tão curiosos vestigios prehistoricos. N’uma d’aquellas cavernas, que chamam Genista, acharam estes naturalistas restos fosseis da hyena crocuta, especie africana ainda existente, do leopardo, lynce, gato do Cabo, cervo de Barbaria e de uma especie de ibex. Porém, como os instrumentos encontrados pertencem á epoca neolithica, é possivel que o homem habitasse as cavernas de Gibraltar posteriormente áquelles animaes. O celebre craneo da Pedreira de Forbes, similhante ao de Néanderthal, é que póde ser anterior[Pg 70] á epoca da pedra polida e, portanto, contemporaneo de uma fauna differente da actual[63].

O sr. Vilanova explorou na provincia de Valencia as cavernas de Parpalló, na falda occidental de Monduber, no termo da cidade de Gandia; de Cova Negra entre as aguas de Bellus e a cidade de Jativa na margem esquerda do rio Albaida; de San Nicolás, no termo da Olleria; de Avellanera, no termo de Catadau, na falda septemtrional de Matamon; e finalmente das Maravillas, no termo de Gandia. Encontrou o explorador grande variedade de ossos, dentes, conchas, paus de veado, facas e pontas de frecha de silex, ceramica, etc. Estas cavernas attribuiu-as o sr. Vilanova á epoca paleolithica. Basta porém a presença da ceramica e dos animaes domesticos para se conhecer que seriam habitadas na epoca neolithica. O sr. Tubino tambem affirma que, sómente pelos fragmentos de silex, se não podem classificar as cavernas de Valencia na epoca paleolithica[64].

O sr. Mac-Pherson explorou a Cueva de la Mujer, situada n’um cerro chamado Mesa del Baño, junto do estabelecimento thermal de Alhama de Granada, a cincoenta metros sobre o rio Marchan. Em duas memorias, illustradas com muitas estampas, deu o explorador curiosa noticia dos vestigios descobertos em duas explorações successivas, uma no deposito superior, outra no deposito inferior d’esta caverna. Os vestigios foram fragmentos de ceramica, alguns tintos de encarnado com almagre; facas e lascas de silex; ossos furados para servirem de amuletos ou adornos, furadores ou puncções de osso; fragmentos de conchas; craneos humanos, ossos e dentes de varios animaes, alguns abertos no sentido longitudinal, talvez para lhes extrahirem a medulla; carvão e cinza; um bracelete feito de uma concha (fig. 47), etc.[65]

Nota-se grande similhança entre estes vestigios, os das cavernas de Gibraltar e de Albuñol na Andaluzia, e os das estações prehistoricas da epoca da pedra polida em Portugal, taes como a Fonte da Ruptura e a Pena de Setubal, a Cova da Estria, etc. No museu da Escola Polytechnica ou na Commissão geologica, talvez em ambas as partes, se conservam tambem fragmentos de louça tintos com almagre. Da exploração da caverna de Albuñol pelo sr. Gongora já demos noticia n’um dos capitulos anteriores[66].

Em Portugal têem-se emprehendido menos explorações que em Hespanha. Comtudo as do sr. Delgado nas cavernas de Cesareda, pelo cuidado com que foram feitas, pela minuciosidade e exactidão das noticias que publicou, serão em todo o tempo dos mais importantes subsidios para o estudo d’esta parte da prehistoria peninsular.

[Pg 71]

A Cesareda é um planalto de calcareo, situado ao norte da linha divisoria d’aguas do Tejo, a seis kilometros da costa do mar, e além do sopé septemtrional da serra de Monte-Junto. A Casa da Moura, a Lapa furada e a Cova da Moura foram as tres cavernas exploradas na Cesareda, e descriptas em 1867 pelo sr. Delgado. A primeira é de todas tres a mais importante, não sómente pelas suas dimensões, mas tambem pelo numero e variedade de restos humanos e de animaes que se descobriram. Consta interiormente a caverna de duas salas irregulares com abobadas em alturas differentes; a da sala de fóra mas baixa e inclinada, a da outra sala, muito alta e similhante a um zimborio. Dá entrada para a caverna um poço vertical rectangular, com uns quatro metros de profundidade, e tres na sua maior largura.

Verificou-se haver na sala de fóra dois depositos de idades differentes sobrepostos. No superior abundavam os ossos humanos e os utensilios e instrumentos de pedra polida, de osso, de ponta de veado e de barro. Pelo contrario no deposito inferior appareceram apenas alguns silex lascados, o fragmento de um puncção de osso e um craneo humano mesocephalo. Entre os objectos achados no entulho superior da sala exterior da Casa da Moura é muito para notar-se o fragmento de um osso longo, provavelmente um humero humano, cheio de terra amassada com vertebras pequenas e ossiculos que pareceram de morcego. Na sala interior appareceu tambem outro fragmento de osso humano longo, similhantemente cheio de terra amassada com ossos de morcego[67].

O sr. Delgado admitte, como cousa provavel, que os habitantes da Casa da Moura fossem anthropophagos. A sua opinião tem por fundamento os factos seguintes: 1.º Serem muito mais numerosos os ossos longos que os chatos ou curtos. 2.º Acharem-se alguns partidos no sentido longitudinal. 3.º Faltarem á maior parte as extremidades articulares. 4.º Terem pertencido a maior parte das maxillas a individuos novos, e algumas a crianças de tenra idade. 5.º Parecerem alguns excavados por dentro. 6.º Não ter apparecido senão um craneo inteiro, porém muitos partidos em fragmentos pequenos[68].

Esta questão da anthropophagia dos habitantes das cavernas, durante os tempos prehistoricos, tem sido muito debatida. É obvia a sua importancia. A existencia de tal costume importaria necessariamente a idéa de degradação e inferioridade moral. Spring é quem mais tem querido persuadir que os homens prehistoricos, teriam sido anthropophagos, estribando-se n’alguns[Pg 72] dos factos observados na Casa da Moura, já antecedentemente conhecidos de outras cavernas.

Na opinião de alguns auctores as provas adduzidas para qualificar de anthropophagos os habitantes das cavernas são insufficientes. Os ossos podem partir-se sómente pela acção do peso da terra que os cobre. A fractura operada em taes circumstancias é transversal. Porém sob a influencia da atmosphera, segundo affirma Dupont, é possivel tomarem os fragmentos a fórma de lascas alongadas, similhantes áquellas que resultariam da fractura intencionalmente feita pela mão do homem. Os esquimaus contemporaneos partem ainda hoje os ossos compridos com os calhaus rolados. Por muitas vezes os percutem nas extremidades para fazer saltar fóra as epiphyses. Depois fendem o corpo do osso com o mesmo calhau. Em certas cavernas têem apparecido ossos partidos por esta fórma, nos quaes se observam os vestigios das percussões que padeceram. Porém nos ossos humanos ainda se não apontaram taes vestigios. É possivel que estes ossos, apparecidos em tantas cavernas e mencionados como provas de anthropophagia, não sejam senão restos de corpos ali enterrados. Acharem-se tão divididos em fragmentos é um facto que se explica ou pelo peso da terra e pela acção do ar, ou por terem entrado as féras dentro das cavernas para revolver a terra e partir os ossos. As cavernas que o homem hoje explora o têem sido já antecedentemente pelas raposas e texugos. A raposa, dizem, chega a exhumar as ossadas, por mais antigas que sejam, para as roer no tempo da neve ou em quanto nutre os filhos; isto é quando a fome a obriga a supprir a falta de alimentos com substancias em que a materia organica deve ter quasi inteiramente desapparecido. Esta causa sería pois sufficiente para explicar a falta das extremidades articulares nos ossos longos, e o desgastamento do canal medullar, observados pelo sr. Delgado[69].

Razões ponderosas obstam a que se considere a anthropophagia costume geral dos habitantes das cavernas. Excepto em condições excepcionaes, como sob o imperio da fome ou de instinctos depravados ou corrompidos, nenhum animal se alimenta com as carnes de qualquer cadaver de um individuo da sua mesma especie. Esta repugnancia deriva provavelmente da lei geral da conservação especifica, segundo a qual, os individuos da mesma especie não podem destruir-se uns aos outros. Os selvagens anthropophagos são excepções. D’alguns se sabe entre os quaes se tem conservado este costume, somente pela razão de não terem carne de animaes para se alimentarem. Em certas ilhas do Pacifico cessou a anthropophagia logo que os navios europeus as forneceram de gados que antecedentemente não tinham[70].

Dos sentimentos de horror, de medo, de nojo que entre as mais antigas das nações civilisadas inspiravam os cadaveres, a ponto de se julgar impuro[Pg 73] o individuo que tivesse tocado algum, concluiremos a incompatibilidade da anthropophagia com as condições sociaes de qualquer povo, entrado na via do progresso e capaz de se elevar pelo desenvolvimento das faculdades intellectuaes e moraes, a um grau superior de civilisação e cultura.

Alguns dos craneos inteiros ou mutilados, descobertos em Hespanha na Cueva de la Mujer da Alhama de Granada, e em Portugal no Cabeço da Arruda e nas cavernas de Cesareda pareceu ao sr. Quatrefages reproduzirem alguns dos mais proeminentes dos caracteres do celebre craneo de Forbes’Quarry em Gibraltar, e poderem attribuir-se ao cruzamento de individuos d’aquella mesma raça com os de outra raça differente. Taes foram as razões que induziram o sr. Tubino a referir ao mesmo periodo da epoca neolithica as estações prehistoricas de Alhama, de Cesareda e do Cabeço da Arruda[71].

[Pg 74]

NOTAS DE RODAPÉ:

[61] Burgmeister, Histoire de la création. Pariz 1870, pag. 591 e 592.

[62] Vilanova, Prehistorico español—Epoca neolithica—Museo español de antigüedades, tomo 1.

[63] Tubino, Los monumentos megaliticos de Andalucia, Extremadura y Portugal, Museo español de antigüedades, tomo VII, 1876.

[64] Vilanova, Mem. cit. do Museo español de antigüedades e dos Anales de la sociedade de historia natural.

[65] G. Mac-Pherson, La Cueva de la Mujer. 1.ª e 2.ª parte.

[66] Vej. cap. IV, pag. 57.

[67] Delgado, Noticia ácerca das grutas de Cesareda. Lisboa 1867.

Animaes das cavernas de Cesareda:

Erinaceus
Canis lupus
Felis
Arvicola
Lepus
Cervus
Vespertilio
Canis vulpes
Myoxus
Mus
Equus
Ovis.

[68] Ibidem.

[69] Dupont, L’homme pendant les âges de la pierre. Pariz 1872.

[70] M.ᵐᵉ Clemence Royer, Les rites funéraires aux époques préhistoriques. Pariz 1876.

[71] Crania ethnica. Tubino, Loc. cit. Vid. o cap. III d’este livro a pag. 27.


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CAPITULO VI
OS MEGALITHOS

Os megalithos.—Especies varias.—Menhires.—Fins para que serviriam.—Alguns symbolisavam a Divindade.—Alinhamentos e cromlechs.—Pedras balouçantes.—Algumas serviriam de altares.—Dolmens.—Differenças entre os de Portugal, Andaluzia e Galiza.—Distribuição geographica d’estes monumentos na Peninsula.—Tumulos.—Differem essencialmente dos dolmens.—Serviram de sepulturas.—Lei da distribuição geographica dos tumulos.—Cueva de Mengal.—Cueva de la Pastora.—Lei da antinomia dos monumentos megalithicos e cyclopeos.—Tumulos da provincia de Alava.—Castros da Galiza e de Traz-os-Montes.—Cava de Viriato em Vizeu.

As antas ou dolmens, bem como outros monumentos, rudemente fabricados de grandes pedras, eram ainda ha pouco tempo attribuidos aos celtas. Chamavam-lhes altares ou monumentos druidicos, por julgarem que teriam servido para as ceremonias do culto, usadas por aquelles povos, cujos sacerdotes n’algumas partes se denominavam druidas. Tal era a opinião dos archeologos do seculo passado e da primeira metade d’este seculo, seguida pelo nosso Martinho de Mendonça de Pina, da Academia da Historia, na dissertação que escreveu do assumpto[72].

Porém modernamente demonstrou-se por uma parte haver taes monumentos em paizes aonde os celtas não chegaram, e por outra parte que, pertencendo estes já aos tempos historicos, aquelles, pelo contrario, estavam envolvidos nas trevas da prehistoria, não se sabendo ao certo quem, quando e para que os construira. A fim portanto de prevenir qualquer opinião anticipada e por ventura erronea, convencionaram os archeologos dar-lhes o nome de Megalithos ou Monumentos megalithicos, o que significa apenas serem feitos de grandes pedras, verdade a todos manifesta[73].

[Pg 76]

Dos megalithos ha varias especies, taes como o menhir, o cromlech, o dolmen, o tumulo a galeria e a pedra balouçante[74].

O menhir é o monolitho alongado, vertical, pousado no chão ou enterrado em pequena ou grande profundidade. O da communa de Plouharzel, um dos mais altos da Bretanha, tem doze metros. Mais de vinte e dois metros de altura tinha outro que parecia presidir aos numerosos megalithos da peninsula de Locmariaker. Jaz actualmente por terra, partido em quatro. De todos os conhecidos, os das regiões centraes da Asia são os unicos comparaveis aos da Bretanha na altura.

Em Hespanha, na provincia de Galiza, no municipio de Esgos, ao norte da egreja parochial, eleva-se á altura de onze metros um menhir formado de quatro pedras sobrepostas. Na mesma provincia ha outras pedras alongadas, verticaes, porém de menor altura, que o sr. Sivelo classifica tambem entre os menhires. Tal é o do municipio de Lobios, na Serra de Gerez, o qual tem seis metros de altura[75].

O sr. D. Manoel de Assas julga serem menhires certas pedras que lhe consta existirem na provincia de Navarra. Na Andaluzia, entre Baena e Bujalance, provincia de Jaen, ha o celebrado Menhir de las Virgenes, do qual os camponezes cantam:

Jilica jilando
puso aqui este tango
y Menga Mengal
lo volvió á quitar[76].

Em Portugal consta haver duas alas de pedra e um menhir proximo, no caminho de Cepães a Fafe, no districto de Braga[77]. Em Castello de Paiva ha outro muito notavel. Compõe-se de seis marcos ou pilares, de tres pedras cada um, sobrepostas, tendo as ultimas pedras de cima a sua extremidade oblonga. Os pilares eram sete, mas o setimo jaz cahido por terra[78]. Este monumento, bem como o primeiro que mencionámos da Galiza, parece não ter sido levantado em epocas muito remotas.

Quem, e com que fim erigiria os menhires em tantos logares da superficie da terra habitada? A nenhuma d’estas perguntas responde a archeologia. «Ao menhir, diz Rougemont, podiam aquelles que o erigiam fazer significar tudo o que bem lhes approuvesse. Ora, na maior parte dos casos, é mui difficil, para não dizer impossivel, descobrir os motivos determinantes da erecção de taes monumentos. Quando porém se podér rastejar a verdade será sómente[Pg 77] pelos testimunhos da historia, pelo exame attento da fórma dos menhires, ás vezes assaz complicada; pelo modo por que estiverem situados nos valles, ou nas montanhas, ou nos tumulos; pelas relações em que estiverem com outros monumentos circumvisinhos; e finalmente pelos rudimentos de esculpturas ou de inscripções, que por ventura contenham, traçados por mão inexperta»[79]. Resta accrescentar o exame dos objectos que estiverem sepultados junto ou por baixo de taes monumentos, e que pareçam contemporaneos. Assim é que as ossadas humanas e restos de carvão, achados ao pé de alguns menhires em França e na Grã-Bretanha, fazem suspeitar d’essas pedras que seriam monumentos funerarios; outros, como os de Tredion (Morbihan) e de Loudun (Vienne, Poitou), parece terem antes servido de idolos por terminarem á maneira de cabeça, posto que disforme.

Levantar uma pedra para commemorar um facto importante, é costume que a historia nos prova existir em differentes povos, e que póde até nascer espontaneamente, em qualquer estado social, em gentes que não tenham communicado entre si. O menhir é a fórma primitiva da columna monumental com inscripção e baixo relevo. Ora se estes monumentos apparecem no seu estado perfeito em povos mui differentes e incommunicaveis, que muito que na sua fórma primordial nascessem espontaneamente n’um estado social inferior? Da mesma sorte as pedras brutescas antecederam os cippos com ornatos e inscripções; e dos rudes vasos d’argilla, feitos á mão e seccados ao sol, por varios povos primitivos, derivaram por differentes modos, obras notaveis da ceramica na China, no Egypto ou na Etruria.

Ha porém certas particularidades dos usos e costumes que parece antes haverem sido transmittidas de um a outros povos, do que apparecidas espontaneamente em diversos logares habitados da superficie da terra. Tal é, por exemplo, commemorar o numero de inimigos mortos por um guerreiro, collocando outras tantas pedras de roda do seu tumulo, como faziam iberos e tartaros orientaes. É possivel que o principio d’este costume esteja na origem commum da civilisação dos dois povos, posto que de raças differentes, ou então n’um povo asiatico que por suas emigrações influisse egualmente nos turcos orientaes e nos iberos transmittindo tanto a uns como a outros as suas ceremonias funerarias.

Muitos dos menhires, erguidos com um fim diverso e mais elevado, qual era o de symbolisarem a Divindade, tornaram-se objectos de adoração. Prova-nos a historia que os phenicios, os arabes, os egypcios, os assyrios, os gregos primitivos e outros povos representavam por meio dos obeliscos ou pilares de pedra os principaes dos seus deuses; entre alguns, como foram os scandinavos, a mesma palavra significava idolo e pedra[80]. Ainda, depois de convertidos á religião christã, certos povos continuaram a adorar os seus antigos menhires, vendo-se obrigados os ministros do culto a mandar esculpir[Pg 78] cruzes n’esses monumentos para fazer cessar, transformando-a em adoração religiosa, uma idolatria que o habito perpetuava de geração em geração. Presentemente continuam os camponezes a ungir com azeite e a ornar de flores os pilares dos famosos alinhamentos de Carnac, bem como as pedras balouçantes. Os recem-casados vão ainda hoje no districto de Brest esfregar o estomago pelo menhir de Kerloaz, que tem onze metros de alto, para impetrar de algum deus obsoleto o dom da fecundidade[81].

Têem alguns confundido os menhires com as petras fictas. Estas, como se prova com documentos antigos, serviam apenas para demarcar as terras. A palavra Fito, só por si, significava Marco levantado[82].

Os menhires dispostos n’uma linha unica ou em muitas linhas parallelas fórmam os alinhamentos. É dos mais notaveis e conhecidos o de Carnac na Bretanha, feito de onze series de pedras não afeiçoadas, mui differentes em tamanho e altura, a maior das quaes se eleva vinte e dois pés acima do terreno circumjacente. As outras em proporção d’esta são muito menores. As avenidas, hoje mutiladas, parece terem tido outr’ora muitas milhas de comprido.

Quando os menhires fórmam um circulo ou uma oval ou outra curva, a esse grupo megalithico chama-se cromlech. Entre os alinhamentos e os cromlechs não ha differença essencial. A alguns, como ao de Carnac, se dará um ou outro d’aquelles nomes, conforme o sentido em que se considerarem as pedras. Do centro para a circumferencia cada serie é uma linha recta. Em roda do centro, formando curvas concentricas, as series são circulares. Assim no primeiro caso chamar-se-ha ao grupo um alinhamento, e no segundo caso um cromlech. Com effeito ao grupo megalithico de Carnac dão uns o primeiro, outros o segundo d’estes dois nomes.

O loghan ou pedra balouçante é o menos commum e o mais enigmatico dos megalithos. Como o seu nome o está dizendo, consiste n’uma pedra enorme, posta em taes condições de equilibrio, que, por effeito de qualquer impulso, se move e oscilla. Ou tem por base outra ou outras pedras, ou o proprio solo onde se appoia. É muito notavel a Piedra grande de Boariza na provincia de Santander em Hespanha (fig. 48).

[Pg 79]

A uns cem passos ao noroeste da Piedra grande está a Piedra chica, outra pedra balouçante, mas de menores dimensões. O sr. D. Manuel de Assas dá noticia de outra a oeste da villa de Luque, provincia de Cordova, e de mais duas nas ilhas de Bayona de Galiza[83].

Fig. 48

PEDRA BALOUÇANTE DE BOARIZA, NA PROVINCIA DE SANTANDER.

Na provincia de Santander ha outra pedra balouçante que inexactamente tem passado por dolmen.

Fig. 49

PEDRA BALOUÇANTE DE ABRA NA PROVINCIA DE SANTANDER.

Eis aqui a descripção que de tão notavel megalitho nos dá o sr. Amador de los Rios:

«Sobre este campo se ergue uma grande rocha granitica perpendicularmente cortada na altura de cinco a vinte pés, em toda a circumferencia, e[Pg 80] rodeada de outras menores, desordenadamente amontoadas em estranhas situações, bem como as muitas que cobrem o terreno. Não assim a grande, que é quasi plana na face superior, formando já de per si um dolmen natural de uns trinta pés de diametro. Na extremidade meridional d’esta especie de mesa e dirigindo-se á parte de nordeste, se ergueu a segunda pedra com a fórma de um grande cubo ou silhar posto de esquina sobre quatro ou cinco pedras applicadas a um e outro lado, porém de modo que a superior, n’ellas suspensa, não toca immediatamente nenhum dos pontos da grande mesa inferior. Isto demonstra ali palpavelmente a mão do homem; e tanto que, estando uma das pedras que sustêem a superior na posição diagonal, para adaptar-se ao lado da mesma, acha-se pela sua parte appoiada por outra pedrinha que não tem mais de oito pollegadas de comprido e tres de grossura; isto não obstante não se póde arrancar do seu logar, por mais que por ella se puxe, e ninguem até o ousaria tentar com medo de se desaprumar o todo. A pedra superior tem vinte e dois pés de largura, dez de altura e vinte e cinco de circumferencia, cingida perpendicularmente pelo meio. Basta indicar taes dimensões para se conhecer que o seu peso deverá ser de milhares de arrobas.

«Pela mesa inferior póde-se andar commodamente, rodeando a de cima, excepto pela extremidade meridional em que estão ambas na mesma linha perpendicular. Junto a esta extremidade e da parte de sueste, as pedras pequenas que sustêem a superior, encaixadas á maneira de cunhas, servem de degraus para subir á mesma pedra, que, segundo já indicámos, fórma um espinhaço bastante agudo, posto não haver impossibilidade de qualquer se suster nos dois lados. Desde o meio do espinhaço corre por elle da parte de nordeste com alguma inclinação para o lado de sueste, uma fenda ou rego, chegando quasi até á ponta do pedregulho: e como por esta parte está bastante adelgaçado pela extremidade inferior, segue-se que uma ou mais pessoas poderiam collocar-se por debaixo d’elle, para receber o baptismo de sangue, se com effeito era esse e não outro o fim do sulco»[84].

Similhante á de Abra ha em França uma pedra balouçante, de fórma oblonga e equilibrada pelas suas duas extremidades ao mesmo tempo sobre dois pilares que servem de eixos. A pedra balouçante do cemiterio de Perros Guyrech, que pesa um milhão de libras, e mede quarenta pés de comprimento e vinte de largura, tem na sua superficie uma bacia com desaguadoiro, e parece ser o altar, onde se faziam os sacrificios pelos mortos, cujos tumulos a cercavam[85].

Estes factos bastarão para auctorisar a analogia entre a pedra balouçante de Abra e a de Perros Guyrech, e tambem para mostrar que as pedras que, por suas estranhas posições, prenderam a attenção do sr. Amador de los Rios, serão da mesma sorte os cippos funerarios de um cemiterio prehistorico.

[Pg 81]

Segundo uma informação do sr. Pereira Caldas, proximamente de certo sitio do monte da Polvoreira, sobranceiro á estrada de Guimarães a Vizella, onde se encontram duas galerias formadas de pedras verticaes, que o povo chama Furnas, está uma pedra oscillante a que se liga uma tradição popular de mouras encantadas[86].

Fig. 50

Fig. 51

DOLMEN DA LAIRINHA, NO ALEMTEJO.

Não passa de mera hypothese quanto se tem dito para definir as applicações das pedras balouçantes. Symbolos da divindade, emblemas do mundo suspenso no espaço, emblemas do livre arbitrio, meios de conhecer a culpabilidade dos accusados, tudo isto se julgou poderem ter sido estes singulares megalithos. Se é licito suppôr dos de Perros Guyrech e de Abra que seriam altares, onde se fizessem sacrificios pelos mortos enterrados á roda,[Pg 82] nos outros faltam inteiramente os indicios que n’aquelles dois se têem encontrado.

O dolmen, formado por uma grande pedra achatada, posta horisontal ou obliquamente sobre outras pedras verticaes ou quasi verticaes, é o mais commum dos megalithos em Portugal. O sr. Pereira da Costa, depois de ter descripto trinta e nove na sua Memoria, impressa em 1868, chegou a colligir desenhos talvez de mais de cem que mandou lithographar para uma segunda Memoria, a qual infelizmente não chegou a entrar no prelo. Onde se encontram em maior numero é na provincia do Alemtejo, tambem a mais abundante de machados e outros instrumentos de pedra polida e de bronze.

Fig. 52

Fig. 53

DOLMEN DE VALLE DE MOURA.

O typo da anta da Lairinha é o da maior parte das de Portugal, com quanto se não reconheça facilmente n’algumas já meio derruidas. Entre aquellas que estão mais bem conservadas citaremos a do Outeiro das Vinhas,[Pg 83] perto do Dejebe, sete kilometros a oriente de Evora, no Alemtejo; a do Crato na mesma provincia; e finalmente a de Ancora na provincia do Minho[87]. As modificações deste typo fundamental são pequenas. Tal é por exemplo na anta de Valle de Moura a grande espessura da mesa que lhe dá a apparencia de um cogumello.

Quem tiver a curiosidade de comparar os mais communs dos dolmens de Portugal com os da Andaluzia, achará que estes ultimos constam de pedras menos irregulares, maiores e mais aprumadas. Além d’isto os primeiros são, pela maior parte, circulares ou ovaes, os segundos quadrangulares e lageados com grandes pedras. É por tanto provavel que os dolmens da Andaluzia, menos imperfeitos que os de Portugal, sejam tambem menos antigos. Isto mesmo se prova pelos objectos de cobre que se encontram n’uns e faltam nos outros.

Na Galiza ha dolmens com as pedras inclinadas de fóra para dentro, como o da Lairinha, e trilithos, cujos esteios verticaes constam de duas pedras sotopostas, á maneira do menhir de Rocas[88]. Esta particularidade denota uma epoca menos antiga, em que se empregariam já cinzeis de metal. Os trilithos da Galiza têem sua similhança com os dolmens de Constantina em Argelia, nos quaes se encontram sepultados objectos de bronze e de ferro[89].

Nos dolmens da Andaluzia entrava-se por estreitas passagens, feitas de grandes pedras. Em alguns de Portugal subsistem ainda pedras, restos de similhantes passagens ou galerias de entrada. Eram á parte do oriente nos dolmens da Tisnada e do Pinheiro, a treze e dezeseis kilometros, pouco mais ou menos da cidade de Evora. Ambos foram erigidos sobre monticulos artificiaes. Não resta porém um só indicio de que fossem primitivamente cobertos de terra[90].

A Hespanha, proporcionalmente, não é tão rica de dolmens, como Portugal. Todavia sabe-se de muitos, sobre tudo na Andaluzia e na Extremadura, onde lhes chamam garitas. Já mencionámos os da Galiza; e é provavel que egualmente se encontrem nas terras litoraes do norte, onde existem outros megalithos. Nas provincias orientaes não são conhecidos. Lamentamos que se não tenham descripto e estampado os dolmens das provincias hespanholas, das quaes sómente se conhecem pelo livro de Gongora, uma parte dos da Andaluzia. Em Portugal, graças aos trabalhos de Mendonça de Pina e de Pereira da Costa, podemos fazer alguma idêa do numero, estructura e distribuição geographica d’estes monumentos.

O sr. Gongora mencionou treze dolmens, entre os quaes se contam os[Pg 84] de Hoyon e de Ascensias, n’uma região comprehendida entre Illora e Alcalá la Real, na distancia de mais de tres kilometros[91]. É muito notavel pelo grande comprimento, inclinação e fórma brutesca, a mesa do dolmen de Ascensias. O dolmen que chamam Piedra de los sacrificios, no termo municipal da Ronda, na provincia da Andaluzia, tem tambem a mesa inclinada, porém não tanto, como o de Ascensias[92].

N’alguns dos dolmens, cujas mesas são obliquas, é possivel que a obliquidade resultasse de se terem desviado ou abatido as pedras de um dos lados. N’outros porém parece que de proposito se teria inclinado a mesa; e não falta quem interprete esta particularidade de construcção, dizendo que ou sería em signal de reverencia á Divindade, ou para indicar a direcção da alma para o ceu, que assim apontariam ao alto a pedra superior. Mas será licito applicar á construcção dos monumentos prehistoricos uma regra observada na edificação das cathedraes da edade media?

Fig. 54

DOLMEN DEL HOYON.

A lei geral da distribuição dos dolmens pela Europa, convem a saber o abundarem nas regiões litoraes e faltarem nas terras interiores, applica-se tambem aos da Peninsula. Com effeito encontram-se numerosos na Galiza e em Portugal, e aqui no Alemtejo mais que em qualquer outra parte; continuam depois pelo Algarve e pela Andaluzia; e com quanto não tenham sido mencionados nas provincias litoraes do golfo de Biscaia, é provavel que lá existam[Pg 85] por se conhecerem por esses sitios outros monumentos megalithicos. Na região menos distante dos Pyreneus ha nas provincias vascongadas os tumulos com dolmens interiores de Alava e de Eguilaz, e suppõe-se existirem outros nas proximidades de Salvaterra, em Arizala e Ocáriz. De Santander já conhecemos as pedras balouçantes de Abra e de Boariza.

Os dolmens cingem, como extensa faxa, a Peninsula pelo norte, occidente e meio-dia. Faltam, porém, nas provincias orientaes, apesar de banhadas pelas aguas do Mediterraneo. Pelo menos até hoje não se têem mencionado nas provincias de Murcia, Valencia e Catalunha. Pelo contrario n’estas regiões encontram-se vestigios da architectura denominada cyclopea, que escassêam muito, se não faltam inteiramente, onde os dolmens predominam. Adiante, por mais de uma vez nos occuparemos d’este ponto interessante da antinomia dos dolmens e das construcções cyclopeas, e portanto da incompatibilidade das civilisações correspondentes.

Fig. 55

DOLMEN DE ASCENSIAS.

Todos os monumentos de que temos tractado erguem-se livres e descobertos na superficie da terra. Ha dolmens cobertos de terra formando collinas ou monticulos artificiaes. Os archeologos chamam-lhes tumulos (tumuli). Em Portugal têem o nome vulgar de mamunhas; de mamôas, madorras ou modorras na Galiza[93].

[Pg 86]

De Caumont e outros suppozeram que todos os dolmens seriam em principio cobertos de terra, ou verdadeiros tumulos, e que, pelo decurso do tempo, cahiria a terra a uma e outra parte, deixando descarnado o esqueleto megalithico. Esta hypothese teria a vantagem de reduzir a uma só especie tanto os dolmens como os tumulos, cuja similhança está não somente na construcção, mas tambem nos objectos que dentro de todos se têem encontrado. Foi, porém, abandonada, por estar em discordancia com os factos observados. Com effeito em muitos dos dolmens descobertos têem apparecido numerosos objectos de mais ou menos valor. Ora, quem lhes tivesse tirado a terra que os cobria de certo não deixaria dentro d’elles taes objectos. Em muitos logares acham-se promiscuamente os dolmens e os tumulos: tambem não é crivel que desenterrassem uns e deixassem outros debaixo da terra. Finalmente alguns dolmens, como os da Tisnada e do Pinheiro, perto de Evora, foram construidos sobre monticulos artificiaes, o que ninguem de certo faria, se houvesse de cobril-os de terra.

Fig. 56

VISTA INTERIOR DO TUMULO DE ANTEQUERA.

Já vimos que a maior parte dos archeologos acreditam que os dolmens serviriam de sepulturas. Com relação aos tumulos, é mais geral ainda esta crença, fundada no descobrimento que se tem feito de ossos humanos em grande numero d’estes megalithos. Os auctores hespanhoes que em varias epocas têem escripto das mamôas concordam em consideral-as como sepulturas[94]. O nome de modorra, somno, por que são conhecidas, derivaria provavelmente d’essa mesma opinião.

Nem todas as mamunhas são verdadeiros tumulos na accepção archeologica[Pg 87] d’esta palavra. Falta em muitas o dolmen interior. Não são mais que montões de terra ou de pedras. Estas mesmas têem sido geralmente consideradas como sepulturas; e escriptores ha que affirmam terem-se encontrado urnas cinerarias dentro n’ellas[95].

Na Galiza são frequentissimas as mamunhas e raros os dolmens. Da Andaluzia, pelo contrario, conhecem-se muitos dolmens e não se mencionam mamunhas. Similhantemente em Portugal são innumeros os dolmens no Alemtejo, onde não apparecem as mamunhas, que se encontram nas provincias do norte. Tambem da mesma sorte nas regiões meridionaes da Europa abundam os dolmens, e nas septemtrionaes os tumulos. É possivel que as condições do clima tenham influido na distribuição de uns e de outros monumentos; que o frio obrigasse a revestir os dolmens com uma espessa camada de terra nos paizes septemtrionaes; e o calor favorecesse a sua conservação ao ar livre nas regiões meridionaes.

Fig. 57

VISTA EXTERIOR DO TUMULO DE ANTEQUERA.

Na Europa os paizes mais abundantes de tumulos são a Suecia, a Dinamarca, Bretanha, Suissa, Inglaterra, Escocia e Irlanda. Na Peninsula ha tambem alguns, dos quaes o mais notavel é o de Antequera na provincia de Malaga (fig. 56).

Chamam-lhe Cueva de Mengal. Ha grande analogia entre esta palavra mengal e a palavra gal-gal com que os bretões designam os monumentos congeneres da Bretanha. Em linguagem celtica, dizem, a palavra men significa pedra, e gal significa tambem pedra. Outros suppoem que mengal se ha de antes derivar de men-lac’h, equivalente a pedras sagradas[96].

Do tumulo de Antequera dá o sr. D. Manuel de Assas a seguinte descripção, seguindo a Memoria de D. Rafael Mitjana y Ardison, á qual se reporta:

[Pg 88]

Fig. 58

VISTA LATERAL DO TUMULO DE ANTEQUERA.

Fig. 59

PLANTA DO TUMULO DE ANTEQUERA.

«O monumento de Antequera é um monticulo artificial de terra carreada, da qual já as aguas levaram grande parte, e contém um dolmen complicado, com uma só entrada, que a fig. 57 representa, e corresponde á parte do oriente. Tem interiormente o comprimento de oitenta e seis e meio pés hespanhoes, e vinte e dois de largura na parte onde é mais largo. A sua elevação actual é de dez a dez e meio pés. Consta de trinta e uma pedras, lavradas (labradas) pela face interior e em bruto pela parte opposta, as quaes fórmam as paredes de tres pés de espessura. O fundo ou topo do dolmen é uma só pedra da mesma grossura. Estão enterradas tres ou quatro pés, servindo-lhes a terra de cimento. Cobrem todo o espaço cinco pedras colossaes, apoiadas sobre aquellas que fórmam as paredes lateraes, e tambem em tres grandes pilares, de uma só peça cada um, e lavrados nas quatro faces, erguidos na linha media do vão interior, e dando cada um assento a duas das pedras do tecto. Estes pilares estão enterrados mais de tres pés, e a sua altura total até ao tecto será de quatorze ou quinze pés, com tres de grossura e quatro de largura. Ha mais duas grandes pedras que formam a entrada, e estão descobertas, ignorando-se se sempre assim terão estado. Vêem-se por fim separados a um lado da entrada tres grandes pedaços de pedra que seriam talvez parte d’aquella que falta no dolmen. Os pedregulhos que fazem de paredes[Pg 89] estão lavrados a picão grosseiramente pela face, em bruto por detraz, recortados pelos cantos e mettidos na terra de tres a quatro pés.

«As cinco pedras de mesa têem as seguintes dimensões, contando da entrada:

PedrasLarguraComprimentoGrossura
1.ª 16 18 4
2.ª 14¹⁄₂ 21 4
3.ª 12¹⁄₂ 26 4
4.ª 16 27 4¹⁄₂
5.ª 23 27 4¹⁄₂

«Todos estes numeros se referem ao pé hespanhol. A 3.ª pedra está fendida, como se vê na planta. As tres primeiras pedras do tecto estão actualmente descobertas. A qualidade da pedra é de calcareo terciario, porém de grãos mui pequenos, como areia grossa. É mui tenaz e avaliando o pé cubico em quatro arrobas castelhanas, imaginem os leitores como poderiam os homens, sem os apparelhos hoje conhecidos, mover, manejar e collocar tamanhas moles. A pedreira d’onde extrahiram as pedras é o sitio e cerro do Calvario, distante do tumulo mais de mil varas.

«Na collocação das pedras lateraes observa-se que, por detraz das junturas, entre pedra a pedra, está posta com arte uma porção de pedras pequenas formando parede, a fim de que não entre por essas junturas terra ou agua. Os tres pilares, postos para ajudar a suster as pedras do tecto, estão relaxados, por terem cahido parte dos seus calços, e poderiam tirar-se sem perigo nenhum de ruina para o monumento, porque não se apoia nada sobre elles. Fez-se uma excavação no centro da cova por baixo da grande pedra, onde se esperava encontrar ossadas, urnas ou outros objectos, na profundidade de vinte a vinte seis pés, porém nada se descobriu. O mesmo aconteceu n’uma galeria que se fez no fundo e que dá para outro montão de terra existente detraz da cova»[97].

Ha outro monumento congenere na mesma provincia da Andaluzia, a algumas leguas de Antequera, para a parte de oeste, além de Sevilha, a alguma distancia da margem direita do Guadalquivir. Chamam-lhe Cueva de la Pastora. Visitou-a, poucos annos depois de ser por acaso descoberta, D. F. M. Tubino que a descreveu pela fórma seguinte:

«A cova da Pastora é uma galeria artificial com vinte e sete metros de comprimento na parte que até hoje se tem descoberto. A sua largura é de um metro, mal medido, e a maxima altura não passa de dois. Não se desce ao interior sem algum trabalho, pois a entrada está na profundidade de um metro, ao qual se ha de accrescentar a altura da galeria. Esta dirige-se de oriente a occidente, e n’esta ultima direcção deverá ter a entrada. Caminhando pelo[Pg 90] subterraneo para oriente, pois da parte opposta se conserva obstruido, chega-se a uma primeira porta ou marco situado a onze metros da abertura. Consta a galeria de dois muros de sustentamento, feitos de pedregulhos sobrepostos, sem especie nenhuma de cimento ou argamassa que os una. O pavimento está coberto de terra, porém cavando até tres ou quatro pollegadas de fundo apparece a pedra, de que realmente é formado. Sobre os muros assentam pedras enormes de natureza granitica ou arenosa, sem vestigios de lavor artificial, com angulos irregulares nas junturas, por onde a habilidade suppriu a arte, pois se fez com que as depressões de uma pedra correspondessem ás saliencias de outra.

«Passada a primeira porta, formada por tres lages de trinta a trinta e dois centimetros de espessura, duas collocadas vertical e a terceira horisontalmente, sobresahindo tanto aos planos normaes da galeria que simulam bastidores ou umbraes, segue-se um espaço de dezeseis metros, que termina n’uma segunda porta, similhante á primeira. Transposta esta passagem, entra-se n’uma camara semi-circular, cujo pavimento fica inferior ao da galeria, e cujas dimensões verticaes tambem são maiores. O diametro d’esta especie de rotunda é de dois metros e sessenta centimetros; a altura não andará longe de tres metros. Observam-se nos muros duas zonas; a inferior de fabrica similhante á da galeria; a superior tem grandes pedras collocadas no sentido ou do seu eixo horisontal, ou do seu eixo vertical, as quaes vão avançando para o centro do circulo até formar um rebordo ou moldura (repisa) contínua, sobre a qual descança outra grande pedra que por si só cobre toda a circumferencia. O pavimento está da mesma sorte coberto por outra pedra assaz espessa»[98].

Perto da entrada artificial da galeria acharam-se, debaixo de uma pedra grande, trinta frechas de bronze. Este facto e as condições architectonicas do monumento que o afastam por extremo dos rudes e grosseiros dolmens, faz crer que teria sido construido já na epoca do bronze. Á mesma epoca deverá pertencer o tumulo de Antequera, no qual o lavrado das faces interiores das pedras que o fórma está egualmente indicando uma epoca menos antiga que a dos dolmens.

O sr. Tubino acha grande similhança entre as plantas, as fórmas e outras particularidades da cova da Pastora e do monumento sepulchral de Mane Nelud de Locmariaker. E por isso julgou que tanto a galeria de Castilleja de Guzman como o megalitho de Antequera seriam monumentos sepulchraes. N’aquelle não se tem até hoje encontrado objectos nenhuns além das mencionadas frechas de bronze[99].

Serão galerias da mesma especie que a de Castilleja as Furnas do Monte da Polvoreira? A pedra balouçante proxima indicará talvez que estes monumentos pertencerão aos menos antigos dos megalithos da Peninsula. O[Pg 91] mesmo diremos das alas de pedra (galerias?) com o menhir proximo no caminho de Cepães a Fafe. Todos estes monumentos jazem no districto de Braga, e distarão alguns cinco kilometros uns dos outros[100]. Porém não foram ainda estudados.

Na galeria de Castileja observam-se alguns caracteres notaveis que parece denotarem a fusão da architectura cyclopea com a dolmenica n’uma região da Peninsula, onde viriam a encontrar-se as duas civilisações que ellas representavam. A galeria não é feita unicamente de pedras disformes, umas postas verticalmente, outras horisontalmente sobre as primeiras, como em todos os monumentos congeneres da Europa. Antes de chegar á camara semi-circular passa-se por duas portas, cujos umbraes sobresahem ás paredes interiores da galeria. Nas paredes da camara vêem-se os dois apparelhos dolmenico e cyclopeo, e, o que até hoje não nos consta que tenha sido observado em monumentos d’esta especie, começaram a formar uma abobada sobre os muros, a qual acabaram de fechar com uma grande lage. Aqui sobre tudo se nos patentêa a fusão dos dois estylos, n’esta abobada cyclopea fechada á maneira dos dolmens.

Os vestigios da architectura cyclopea até hoje notados em Hespanha vem a ser a parte inferior das antigas muralhas de Tarragona, o Castillo de Ibros no districto judicial de Baeza, os Corralejos na Andaluzia. Os talayots e mapalias ou magalias das ilhas Baleares acabam de mostrar o desenvolvimento da architectura cyclopea nas regiões orientaes da Hespanha, isto é, onde não apparecem dolmens. Finalmente na Andaluzia, onde as duas architecturas chegam a encontrar-se, misturam-se, como em tempos posteriores, por algumas partes das mesmas regiões se fundem, apesar de antinomicos, os estylos arabe e christão, formando o denominado estylo mudejar.

O tumulo de Eguilaz na provincia vascongada de Alava tem muito menores dimensões que o de Antequera (fig. 60, 61 e 62). Contam-se dentro treze pés em comprido e dez em largura. A pedra que cobre o tumulo é uma só peça com dezenove pés de comprido e quinze de largo. A entrada para o tumulo da parte do oriente principia a vinte pés, pouco mais ou menos, por um caminho coberto, de quatro pés de largura e quatro de altura.

Quando se descobriu este recinto estava cheio de ossadas por entre as quaes se encontraram algumas armas, taes como lanças, umas de pedra outras de cobre. Havia tambem corações pequenos com orificios na parte mais larga, todos de pedra durissima, e alguns dentados á roda á maneira de serra. Os esqueletos jaziam deitados com a cabeça para o oriente e os pés ao poente. Tal era tambem a orientação do tumulo[101].

O tumulo de Eguilaz foi descoberto em 1832. Na mesma provincia appareceu outro sobre o rio Zadorra, a uma legua de Victoria, quando reconstruiam[Pg 92] o moinho de Escalmendi. Dizem haver outros similhantes monumentos em pequena distancia de Salvatierra, em Arizala e Ocáriz. Ha tambem na provincia de Alava, debaixo da ermida de S. Miguel de Arrechinaga, tres pedras grandes encostadas umas ás outras, formando uma como pyramide. D. José Amador de los Rios e outros consideram estas tres pedras como um megalitho, talvez a parte de um dolmen, outros porém julgam que taes pedras appareceram assim naturalmente, e seriam aproveitadas para servir de base á ermida[102].

Ha uns monumentos que, posto que em rigor não mereçam o nome de megalithos, estão comtudo tão naturalmente com elles relacionados, que ficaria incompleto este capitulo, se não dissessemos a seu respeito algumas palavras. São os castros que na Galiza tambem chamam croas, contracção de corôas, pela sua fórma circular. O sr. D. José Villa-Amil y Castro descreveu sessenta e tres castros d’aquellas provincias. Em Portugal, particularmente nas provincias septemtrionaes, tambem se encontram alguns, mas até hoje não têem sido estudados.

Fig. 60

Fig. 61

Fig. 62

TUMULO DE EGUILAZ NA CHAPADA DE ALAVA[103].

Aquelle escriptor define os castros nos termos seguintes: «O elemento caracteristico de um castro é a fortificação de um terreno, de fórma elliptica, e na extensão, termo medio, de uma fanga ou vinte e cinco areas. Essa fortificação consiste n’um fosso e n’um parapeito, ou em varias d’estas obras[Pg 93] defensivas, aproveitando-se em certos casos as condições vantajosas do terreno (procuradas talvez de proposito), taes como a elevação e o escarpamento das vertentes; a maior separação possivel dos montes convisinhos, sem ter com elles outra ligação mais que um pequeno isthmo ou lingueta; e a proximidade de riachos para o abastecerem de agua e para difficultarem o accesso ao logar fortificado».

O auctor suppõe que os castros não eram unicamente fortificações, mas tambem povoações, o que prova pelos vestigios de casas n’alguns encontrados, e por varias referencias de documentos antigos. Finalmente das armas e instrumentos de pedra, de bronze e de ferro, dos fragmentos de lança deduziu que os castros da Galiza teriam a sua origem em tempos prehistoricos, mas que continuariam a servir de habitações e de fortificações durante a dominação romana, pelo espaço de mais ou menos seculos na idade media, e alguns em fim ainda no alvorecer da idade moderna. Prova tambem com documentos a conservação e habitação dos castros em tempos tão pouco remotos[104].

Viterbo não reporta além dos romanos a origem dos castros. Na opinião do auctor do Elucidario, castrum sería um pequeno arraial para uma legião ou brigada. Alguns, accrescenta, se povoaram, e ficaram conservando a povoação, para ser defensavel, e servir mesmo de atalaya, cidadella e guarda ás campinas e logares chãos e abertos ás correrias dos inimigos.

J. da C. Neves e Carvalho observou pessoalmente os castros de Traz-os-Montes e definiu-os dizendo serem elevações circulares formadas de terra, e pela maior parte circumdadas de grossas lages, se o terreno as fornece, e n’outros de um pequeno vallado ou parapeito de terra, em toda a circumferencia. Estimou-os eguaes em tudo aos da Galiza, e adoptou a opinião expendida pelo auctor de uma historia d’esta provincia, que entendeu teriam servido de templos aos celtas[105]. Esta hypothese vogou por algum tempo em Hespanha. Mas as observações citadas de Villa-Amil y Castro deram em terra com este e outros velhos preconceitos.

Será talvez um monumento do mesmo genero a denominada Cava de Viriato em Vizeu, com quanto não conserve já hoje a fórma caracteristica dos castros. Em 1461 tinha portas que se abriam e fechavam e dentro havia uma capella com a dedicação de S. Jorge. Em 1728 foi medida por ordem regia a Cava de Viriato e achou-se que os muros ou aterros tinham tres Lanças de altura e quarenta palmos de largura no cimo. O circuito dos muros era de tres mil e sessenta e cinco passos, e conservavam ainda quatro grandes vãos, d’onde tinham tirado a cantaria. Já ha muito que a parte oriental do circuito está arrazada, e aforado o terreno respectivo[106]. A parte[Pg 94] restante, depois d’esta destruição e das cerceaduras dos possuidores das glebas contiguas, é ainda muito extensa, e está hoje coberta de arvores que asseguram a sua conservação. Na face que olha á cidade vê-se, em parte d’ella, um muro de pedra ensossa, que parece ter sido feito para sustentar d’esse lado o aterro.

[Pg 95]

NOTAS DE RODAPÉ:

[72] Collecção dos documentos e memorias da Academia Real de Historia Portugueza, tomo XIV, conferencia de 30 de julho de 1733.

[73] Megalitho, do prefixo mega, grande, e de lithos, pedra. Esta palavra tem o inconveniente de ser tambem applicavel aos monumentos cyclopeos ou a quaesquer outros, feitos de pedras grandes.

[74] Menhir de men, pedra, e de hir, longo. Cromlech, kroumlech de kroumm, curva, e de lech, pedra sagrada. Dolmen de tolmen, mesa de pedra.

[75] D. Ramon Barros Sivelo, Antigüedades de Galicia. Coruña 1875, pag. 73 e 74.

[76] Semanario Pinturesco Español 1857. Nociones fisionómico-historicas de la arquitectura en España, pag. 130.

[77] Pereira da Costa, Dolmins ou antas de Portugal. Lisboa 1868, pag. 91.

[78] Os dolmens. Lisboa 1876, pag. 10.

[79] L’âge de bronze. Pariz 1866.

[80] Idem, pag. 53 e 54.

[81] L’âge de bronze. Pariz 1866.

[82] Esta significação acha-se em Viterbo verb. Fito.—Alguns documentos da collecção Portugaliæ monumenta historica dão o verdadeiro sentido da expressão Petra ficta. Nos Dipl. et Chart. pag. 11, doc. 17... et inde per petras fictas que ab antico pro termino fuerunt constitutas.

«Estes marcos são designados de mui differentes modos nos documentos. Eis alguns:... per monte usque ad memorales in terminos de figaretum... petras fictas ubi dicet terminum... et de illa petra balestaria... petras fictiles... duas contesta qui dividet inter villa cova et laureda per areas antiquas et per petras sicilatas... petra fitada... petra ederata...

«Alguns marcos tinham signaes ou characteres... petra scripta ubi dicet terminum... Invenimus ibidem in petra caracterem Sancti Vicentii, et exinde in alia petra invenimus cruce... quousque ad barca qui sedet sculta in petra... quousque in terra tumeda qui fuit manum facta. Nota do sr. Gabriel Pereira no Instituto, tomo XXI, pag. 286.

[83] Semanario Pinturesco Español, tom. cit.

[84] Semanario Pinturesco Español, tom. cit.

[85] Rougemont, L’âge de bronze, pag. 56.

[86] Pereira da Costa, Dolmins ou antas de Portugal, pag. 91. Resta provar se as galerias e pedra citadas serão obras da arte ou da natureza.

[87] Os desenhos das antas do Crato e de Ancora vem na Memoria de Pereira da Costa e no Boletim da Real Associação dos Archeologos portuguezes, num. 11.

[88] Sivelo, Antigüedades de Galicia.

[89] Magasin Pittoresque 1864, pag. 80.

[90] Gabriel Pereira, Antas dos arredores de Evora.

[91] Antigüedades prehistoricas de Andalucia.

[92] Do dolmen da Ronda, deu ha poucos dias uma bella gravura o periodico de Madrid La Academia.

[93] Em documentos antigos de Hespanha e de Portugal encontram-se os termos mamóla, mamonela, mamula, colles, manufacti, etc. Os primeiros nomes derivaram naturalmente da fórma dos tumulos, comparavel á do peito mulheril. É expressivo o nome de Mamaltar que dão a certa mamunha, situada alguns kilometros ao norte das minas do Braçal, na Beira. Vej. Pereira da Costa, Antas de Portugal, pag. 89. N’alguns documentos, segundo diz Viterbo, tambem chamavam arcas ás mamunhas ou mamôas.

[94] Villa-Amil y Castro, Los castros y mamôas de Galicia, Museo español de antigüedades, tomo VII.

[95] Villa-Amil y Castro, Los castros y mamôas de Galicia, Museo español de antigüedades, tomo VII.

[96] F. M. Tubino, Los monumentos megaliticos de Andalucia, Extremadura y Portugal, Museo español de antigüedades, tomo VII.

[97] Semanario Pinturesco español, 1857. Antigüedades prehistoricas de Andalucia, pag. 90.

[98] F. M. Tubino, op. cit.

[99] Idem.

[100] Pereira da Costa, Os dolmins ou antas de Portugal, pag. 91.

[101] Semanario pinturesco español, 1857.

[102] Ilustracion española y americana.

[103] 60 Alçado pela parte B do dolmen.—61 Secção do dolmen e parte do tumulo dado pelos pontos A a B da planta.—62 Planta do dolmen.

[104] Villa-Amil y Castro, Los castros y mamoas de Galicia, Museu español de antigüedades, tomo VII.

[105] Archivo Pittoresco, tomo V, pag. 84.

[106] Antonio de Oliveira Berardo, Noticias historicas de Vizeu. No Liberal. Vizeu 1857.


CAPITULO VII
PROBLEMAS

Difficuldade de interpretar os vestigios das construcções prehistoricas.—Hypotheses de Bonstetten e de Bertrand ácerca dos dolmens.—Factos em contrario.—Leis da distribuição geographica dos dolmens.—Os dolmens e as construcções pelasgicas.—Têem a mesma antiguidade.—Objectos achados nos dolmens de Hespanha e de Portugal.—Insignias de schisto.—Sua ornamentação similhante á de objectos prehistoricos da Scandinavia.—Para que seriam os dolmens.—Porque não ha vestigios de cinzel na maior parte dos da epoca do bronze.—Antiguidade da epoca do bronze e do periodo da pedra polida em que principiaram a erigir os dolmens.—Foram introduzidos por um povo navegador.—A navegação já era praticada no Atlantico durante a epoca da pedra polida.—A civilisação dos dolmens e a civilisação pelasgica.—Signaes esculpidos em dolmens e em rochas.—Duas epocas da civilisação dos dolmens.

É complexo o problema dos dolmens. Em que tempo e por quem e para que fim seriam erigidos? Taes são as tres perguntas ou questões fundamentaes, a que não responde por ora a archeologia senão com simples conjecturas. Para melhor se comprehenderem as difficuldades com que luctam os archeologos n’este ponto, imagine-se um futuro remotissimo, um tempo em que chegassem a desapparecer todos os vestigios da civilisação europêa, excepto os templos pagãos da Grecia e da Italia e os templos christãos de todas as partes do mundo, tambem já em grande parte mutilados. A hypothese, com ser inverosimil, não deixará por isso de servir ao nosso intento. Algum futuro sabio, depois de meditar profundamente em tantos e tão admiraveis vestigios, diria:

«Houve um povo notavel pelo costume de construir grandes edificios de pedra. Parece ter vindo do norte e progredido depois pela Europa central e meridional, erigindo por toda a parte edificios magestosos, provas evidentes da sua alta civilisação. Este povo, solicitado por grandes forças expansivas, não podia caber no continente europeu. As mesmas construcções grandiosas provam ter povoado extensas regiões da America septemtrional e da America meridional. Encontram-se tambem similhantes vestigios nas[Pg 96] costas orientaes e occidentaes da Africa, no Meio-dia da Asia, etc. N’alguns dos grandes edificios da Europa têem desenterrado ossadas humanas; serviam portanto de cemiterios, e não de templos, como alguns pretendem. Em muitos acham-se as paredes exterior e interiormente ornadas com estatuas, que de certo representariam os mortos, cujas ossadas continham. N’outros, porém, ainda não foi possivel descobrir nem ossos nem estatuas. Todos os esforços têem sahido baldados. Provavelmente viajantes curiosos ou collectores de antigualhas os exploraram nos tempos passados para, em beneficio dos museus, os despojar d’essas reliquias de uma civilisação remota. Sabe-se, pelos craneos encontrados nas sepulturas, que o povo constructor pertencia á raça caucasica. Parecerá talvez inadmissivel que um povo n’uma epoca de pequena duração, como sería a dos grandes edificios de pedra, se dilataria assim por todo o mundo; mas por mais extraordinario que o facto seja, deveremos curvar-nos á evidencia dos descobrimentos archeologicos. Na epoca dos grandes edificios de pedra, a Europa, Asia, Africa, America e Oceania eram povoadas pelo mesmo povo de raça caucasica!»

Comtudo, entre os sabios do futuro algum haveria que, por se jactar de mais severo na critica, impugnasse uma d’estas conclusões, aceitando as outras. Esse tal argumentaria contra a direcção do caminho seguido pelo povo constructor, observando que, se os vestigios mais imperfeitos appareciam na Asia, era porque os architectos teriam por ahi começado, aperfeiçoando-se depois ao passo que se iriam dilatando pela Europa. Segundo esta ultima opinião, as obras mais antigas da architectura seriam portanto os templos das possessões asiaticas e africanas; depois seguir-se-hiam os templos de estylo romão e byzantino da Europa; depois os grandes templos ogivaes; depois os do renascimento; e por fim o Parthenon, o templo da Concordia e os outros restos grandiosos da architectura grega ou romana.

Hoje, á falta de noticias positivas para a historia dos dolmens, não faltarão archeologos que raciocinem da mesma sorte, e cheguem a conclusões similhantes. Taes opiniões não convirá recebel-as senão com as duvidas que inspiram as hypotheses infundadas. Infelizmente poucas deixarão de o ser em assumpto de tamanha obscuridade.

Vista á primeira face a distribuição geographica dos dolmens, occorreu naturalmente a idêa de que um povo emigrante, constructor d’esses monumentos, percorreria do sul para o norte ou vice versa as regiões onde se encontram. Na opinião do sr. Bonstetten, a Criméa sería o centro d’onde teria partido o povo dos dolmens, seguindo duas vias differentes; uma para a Italia e Corsega, outra para o norte, pela Silesia, até ás margens do Baltico. D’aqui uma causa desconhecida obrigaria os constructores dos dolmens a emigrarem para o poente dirigindo-se para a Normandia occidental e para a Bretanha, d’onde passariam á Inglaterra, pelas ilhas Jersey e Guernesey, e á Irlanda, pela ilha de Anglesey.

A parte restante do povo, que teria ficado no continente, só mais tarde se atreveria a invadir a Gallia, marchando para o sul. Chegado ao Gironda,[Pg 97] abandonaria rapidamente as costas do mar, fugiria das areias incultas da Gascunha, e, tomando uma direcção contraria ao curso do Dordonha, atravessaria a França obliquamente e chegaria ao golpho de Lyão. Não lhe serviriam de barreira os Pyreneus; atravessal-os-hia, e, seguindo a vertente meridional d’estas montanhas, occuparia Portugal, desceria mais ao sul e atravessaria obliquamente a Hespanha pelas provincias de Cordova, Granada e Malaga; passaria o mar, espalhar-se-hia pelo litoral da Africa septemtrional, e pararia finalmente na antiga Cyrenaica, nas fronteiras do Egypto.

O sr. Bonstetten, fazendo partir o povo dos dolmens da Criméa, não julga ser esta a sua patria, porém alguma região da Asia, d’onde, pelos desfiladeiros do Caucaso, passaria á Europa, preludiando assim as posteriores emigrações de celtas, godos, hunos e vandalos[107].

O sr. Bertrand suppõe tambem ter vindo da Asia o povo dos dolmens, que sería de uma raça rebelde a toda a transformação e a toda a absorpção pelas raças superiores. Repellida das regiões centraes d’aquelle continente para o norte, seguiria as margens do Baltico demorar-se-hia na Dinamarca; d’aqui de novo repellida, subiria até ás Orcadas; depois, descendo pelo canal que separa a Irlanda da Inglaterra, chegaria, de estação em estação, primeiro á Gallia, depois a Portugal e finalmente á Africa, onde os restos de tal gente se extinguiriam, destruidos pela força de outra raça mais civilisada[108].

Contra a opinião de Bertrand protestam os objectos de pedra, barro ou metal, encontrados nos dolmens, por onde se prova que as gentes constructoras d’estes monumentos não eram refractarias á civilisação. E, admittido este facto, a sua consequencia necessaria, será que taes gentes, obedecendo á lei do progresso, deixariam provas de mais avançada civilisação nos paizes que ultimamente occupassem. Ora os archeologos concordam em que não sómente a architectura megalithica é mais perfeita no norte do que no sul, mas, tambem mais bem acabados e de mais preço os objectos achados nos dolmens septemtrionaes; e que portanto, se houvesse de se attribuirem os dolmens a um povo emigrante, este povo deveria ter seguido do sul para o norte e não do norte para o sul, como Bonstetten e Bertrand suppozeram[109]. Por outra parte, quem se der ao trabalho de marcar n’um mappa as regiões dos dolmens, reconhecerá que algumas de taes regiões ficam inteiramente separadas por grandes distancias, como as da Criméa e as da Palestina.

Em regiões tambem muito afastadas, como a Bretanha e o Jutland apparecem[Pg 98] n’uns dolmens sómente objectos de pedra polida, n’outros encontram-se instrumentos de pedra e de bronze. Parece portanto que os povos constructores dos dolmens passariam synchronicamente, e em logares muito distantes, de uma a outra phase industrial pelas influencias civilisadoras de povos mais avançados. Têem notado tambem nos dolmens das diversas localidades certas differenças especificas que se oppõem a que se reputem construidos por um só povo. Em fim, a mais concludente de todas as provas da diversidade dos povos que erigiram os dolmens está na variedade de restos humanos achados em taes monumentos. Na opinião do sr. Quatrefages não póde haver duvidas a este respeito. Nos dolmens da Dinamarca, por exemplo, apparecem dois typos humanos misturados, nos de Lozère outros dois, e d’estes quatros typos não ha dois que se assimilhem[110].

Alguns dos mais auctorisados archeologos modernos, taes como Desor, Worsaœ, Vogt, Quatrefages, Broca e Mortillet, rejeitam absolutamente a idêa da existencia de um só povo constructor dos dolmens. Preferem antes acreditar que varios povos e varias raças, que se não sabem especificar ou denominar, erigiriam os megalithos pelas regiões onde se encontram, estribando esta asserção n’alguns dos factos anteriormente citados contra as hypotheses de Bonstetten e de Bertrand. Julgam mais que o costume de construir os dolmens se propagaria do sul para o norte, em direcção contraria áquella que faziam seguir ao povo emigrante.

Não tem sido notada na distribuição geographica dos dolmens uma circumstancia que se nos afigura importantissima; e vem a ser o encontrarem-se quasi sempre nas regiões proximas do mar. Começando pelo sul deparam-se-nos primeiramente os da costa septemtrional da Africa, na Argelia e na Cyrenaica, juncto das fronteiras do Egypto, todos no litoral do Mediterraneo. Depois os de Sinai e da Arabia nas costas do Mar Vermelho, os da Palestina, proximos do Mediterraneo. Em frente da costa septemtrional da Africa, para áquem do Estreito, os de Hespanha e Portugal, occupando por uma parte a Andaluzia, no litoral do Mediterraneo; por outra parte o litoral portuguez e a Galiza, banhados pelo Atlantico; e finalmente as costas meridionaes do golpho de Biscaia. Na França a região dos dolmens está tambem em similhantes condições maritimas. Defrontam com o Mediterraneo, como os da Andaluzia, apparecem do outro lado do golpho da Biscaia nas margens do Gironda; vêem-se em fim e em maior numero na Bretanha e na Normandia, nas costas da Mancha. Observa-se a mesma lei nos da Inglaterra e da Irlanda. Os da Europa septemtrional occupam regiões banhadas pelo mar do Norte ou pelo mar Baltico, ou pouco distantes das suas aguas. Com razão pois advertiu Bertrand abundarem os dolmens pelas regiões occidentaes e faltarem nas regiões orientaes da Europa. Mas este facto não é senão a consequencia[Pg 99] da posição relativa d’aquellas regiões, das quaes as do occidente ficam á parte do mar e as do oriente mais ou menos distantes[111].

Outra lei da distribuição geographica dos dolmens vem a ser a incompatibilidade d’estes monumentos com os cyclopeos. «As construcções cyclopeas e os dolmens, diz Rougemont, excluem-se reciprocamente ao sul de Caucaso, dos Alpes e dos Pyreneus. A Perêa e o Caucaso, as duas patrias dos dolmens não têem muros feitos de pedras irregulares. A Aramêa, aonde referimos o berço da architectura cyclopea, não tem dolmens»[112].

Na peninsula Iberica já vimos como esta lei se verifica, pois que nas regiões orientaes, nas provincias de Murcia, Valencia e Catalunha não consta haver dolmens. Vimos tambem como n’uma região, onde os dois systemas se encontraram parece ter-se operado entre elles uma singular fusão, se não é pura casualidade o que se observa na Cueva de la Pastora em Castilleja de Guzman, a oeste de Sevilha, na Andaluzia[113].

Da lei da correspondencia dos dolmens ás terras litoraes ou pouco distantes dos mares, deduz-se que a origem do costume de erigil-os se ha de buscar n’algum ou n’alguns povos já em certo grau de civilisação, os quaes percorrendo os mares da Europa, transmittiriam esse mesmo e outros costumes aos povos com quem estivessem em contacto, e que passariam assim da phase, caracterisada pela habitação das cavernas, áquella que se distingue pela construcção dos dolmens. Similhantemente, nos seculos XV e XVI, os portuguezes e os hespanhoes alçaram cruzes e erigiram templos pelos vastos litoraes e pelas ilhas da Africa, Asia, America e Oceania, convertendo os indigenas ao christianismo, e transmittindo-lhes aquelle mesmo costume, caracteristico da civilisação que representavam. Devemos porém acreditar que este ou outro movimento civilisador dos tempos prehistoricos acharia de certo menos resistencia, por ser menor a differença entre o estado dos povos civilisandos e o dos povos civilisadores.

Da lei da incompatibilidade dos dolmens com as construcções cyclopeas deduz-se que estes dois generos de monumentos representam duas civilisações prehistoricas tambem incompativeis; e que, portanto, seriam contemporaneos os povos constructores dos primeiros e aquelles que erigiram as segundas. Ora, como abundam os monumentos cyclopeos nas Baleares[114] na[Pg 100] Sardenha e na peninsula Italica, e como as costas orientaes da peninsula Iberica defrontam com aquellas ilhas e peninsula, concluiremos que até a essa parte da Hespanha se extenderia a influencia da civilisação pelasgica, e que esta mesma civilisação repugnaria o costume de construir os dolmens e os demais que a este andariam associados.

Na Peninsula a cintura megalithica extende-se desde o golpho da Biscaia, no logar onde as vagas do Atlantico se debatem contra as vertentes escarpadas dos Pyreneus, até ao golpho de Almeria, onde as ultimas ramificações da Serra Nevada se escondem nas aguas menos agitadas do Mediterraneo. Toda a costa oriental desde o cabo de Gata até ao cabo de Créus, comprehendendo quasi seis graus de latitude, não tem dolmens, ou pelo menos não se tem até hoje dito que os haja nas provincias de Murcia, Valencia e Catalunha. Por onde se vê que as construcções pelasgicas sómente correspondem ás regiões banhadas pelo Mediterraneo, e os dolmens ao litoral do Atlantico e ao do Mediterraneo mais proximo do Estreito de Gibraltar, que serve para communicar os dois mares.

Com a civilisação portanto com que se hão de relacionar os dolmens da Scandinavia, das ilhas Britannicas, das costas septemtrionaes e occidentaes da França, com essa mesma civilisação se devem relacionar tambem os dolmens das regiões septemtrionaes, occidentaes e meridionaes da peninsula Iberica. Ignorando-se o povo que introduziu o costume de construir os dolmens, e a epoca de tal introducção, posta a lei da antinomia dos monumentos megalithicos e dos pelasgicos, seguir-se-ha, como consequencia necessaria, o terem sido todos contemporaneos. Vejamos até aonde poderemos chegar, tentando resolver com estes dados o problema da antiguidade dos dolmens. Os objectos encontrados dentro nos dolmens, armas, instrumentos, ornatos, em muitos são sómente de pedra polida, n’outros de pedra polida e de cobre ou de bronze, n’outros sómente de cobre ou de bronze, n’outros em fim, de alguma das especies mencionadas e de ferro[115]. N’alguns, têem apparecido objectos de ouro, posto que o fabrico d’este metal devesse preceder o do ferro e até o do cobre, como se provou na caverna de Albuñol da Andaluzia. Encontram-se tambem commumente vasos de barro inteiros ou partidos, toscos e sem ornatos, ou adornados com riscos ou impressões digitaes ou unciaes. A disposição dos riscos é irregular nos mais imperfeitos, regular ou symetrica nos menos imperfeitos. Estes achados provam, em geral, que os dolmens foram construidos na epoca da pedra polida e na epoca do bronze; e alguns mais raros na epoca do ferro.

Na Peninsula não têem explorado methodicamente os dolmens e os tumulos. Apenas consta de certos objectos n’alguns encontrados. O sr. D. Manuel de[Pg 101] Gongora, por exemplo, achou em varios dolmens da provincia de Jaen ossos dispersos, armas de cobre, anneis do mesmo metal, fragmentos de louça e armas de silex. Este observador, entre outras leis, applicaveis aos dolmens que observou, estabeleceu as seguintes:

1.ª Entra-se n’estes monumentos por estreitas passagens feitas de grandes pedras, excepto nos de Dilar e nos de Gitanos.

2.ª Excepto os das Majadas del conejo, todos são quadrangulares.

3.ª Interiormente os dolmens estão lageados com grandes pedras.

4.ª Excepto um sómente, em que apparece uma peça de bronze, em nenhum se encontram armas ou objectos que não sejam de pedra ou de cobre.

5.ª Os cadaveres apparecem collocados em leitos horisontaes e com pequenas pedras em redor dos craneos[116].

Aos dolmens de Portugal não são applicaveis as leis 2.ª e 3.ª. As outras sómente depois de novos estudos se poderão verificar. O sr. Pereira da Costa encontrou machados de pedra nas antas de Alcogulo e n’outras[117]. N’uma de Niza appareceu a grande cabeça da lança de silex fig. 14. Na anta de Bellas encontraram-se facas e pontas de frechas de silex, contas de collares de schisto e de calcareo, o fragmento de osso esculpido com ornatos triangulares fig. 30, e uma machadinha de schisto similhantemente ornada, e do mesmo genero d’aquella que appareceu em Monte-Real, e a fig. 31 representa. N’uma anta de Pavia appareceram quatro machadinhas similhantes de schisto com os mesmos ornatos triangulares.

Na sepultura de Martim Affonso, perto de Muge, encontraram-se objectos do mesmo genero, e a notavel insignia de schisto que suppomos ser um baculo, fig. 33. D’este logar, importantissimo para o estudo da prehistoria em Portugal, nos deu o sr. Pereira da Costa as seguintes informações: «A sepultura de Martim Affonso não é, como á primeira vista parece, de sujeito assim chamado, mas um sitio que é conhecido por este nome, na propriedade do duque de Cadaval (residente em Paris). Esta sepultura era de tres lages compridas e duas estreitas nas extremidades, e tinha um capeamento de lages pequenas. Dentro continha ossos de um esqueleto, dos quaes só se aproveitaram alguns fragmentos de ossos longos, e o mais que V. viu no Museu. Esta propriedade do duque é nas margens da ribeira de Muge, e perto do Cabeço da Arruda, que tambem pertence ao mesmo duque».

Depois de fallar do baculo, em que não considera a fórma d’esta insignia, porém a do phallus, accrescenta: «Com esta peça, além dos ossos, havia nove facas de silex, uma cabeça de lança de silex, e varios vasos pequenos de barro».

Nos dolmens de Portugal não têem até hoje apparecido objectos de cobre ou de bronze; mas as explorações feitas são mui poucas ainda para se[Pg 102] deduzir d’ellas uma lei geral. É possivel que os dolmens, onde se encontraram as insignias de schisto pertençam já á época do bronze, apesar de se não ter achado n’elles esta liga metallica. A sepultura de Martim Affonso, onde appareceu o baculo, prova-nos que o povo que usava taes insignias sabia construir sarcophagos para os cadaveres, o que denota certo grau de civilisação. Em quanto porém se não explorarem mais antas e mais methodicamente do que até hoje, não será possivel passar além d’esta conclusão, cuja importancia, ainda assim, não é pequena. As insignias de schisto são caracteristicas, e, só de per si, denunciarão o povo ou um dos povos constructores dos dolmens, logo que se encontrem n’outras partes. Infelizmente não consta que até hoje se tenham descoberto fóra de Portugal. Na Scandinavia têem apparecido umas enxadas de pau de veado com esboços mais rudes que os do Périgord, e que representam quadrupedes, corsas talvez. Ao lado d’estes esboços vêem-se traços rectilineos formando os desenhos triangulares das nossas placas de schisto. Se a esta circumstancia accrescentarmos que os dolmens mais similhantes ao maior numero e tambem aos mais imperfeitos de Portugal são os da Dinamarca, persuadir-nos-hemos de que ha toda a probabilidade de que gentes da mesma raça povoariam ou civilisariam nos tempos prehistoricos certas regiões da peninsula Iberica e da peninsula Scandinava.[118]

Se os dolmens são contemporaneos das nuraghas, as excavações feitas n’estes monumentos devem dar resultados comparaveis áquelles que temos mencionado. Apesar das poucas explorações até hoje emprehendidas, sabe-se que nos talayots das Baleares[119] e nas nuraghas da Sardenha se tem encontrado objectos de cobre e de bronze. N’algumas d’esta ultima ilha têem apparecido facas de silex. Portanto a maior parte de taes construcções remontam á epoca do cobre ou do bronze; e algumas á epoca da pedra polida. Isto mesmo se confirma pelo apparelho. Umas, de pedras brutas, são anteriores provavelmente á invenção do cinzel; outras, de pedras afeiçoadas, manifestam já a acção de instrumentos de metal. Affirma o abbade Spano que algumas nuraghas são feitas na parte inferior de pedras brutas, e na parte superior de pedras apparelhadas, parecendo aquella da epoca da pedra polida, e esta da idade dos metaes. O apparelho irregular corresponde a uma camara inferior; o regular a uma camara superior que posteriormente sería accrescentada á primeira. Demais são frequentes estes casos de accrescentamentos e reparações das nuraghas primitivas em varias epocas[120]. Dos poucos estudos até hoje emprehendidos nos dolmens de Hespanha e de Portugal deduziremos os seguintes corollarios:

[Pg 103]

1.º Os dolmens da Peninsula, como outros da Europa, como as nuraghas da Sardenha, foram construidos na epoca da pedra polida e na epoca do bronze ou do cobre.

2.º Geralmente fallando, os dolmens de Portugal são mais imperfeitos que os da Andaluzia.

3.º É provavel que a antiga raça que na Scandinavia construia os dolmens e fabricava enchadas de ponta de veado fosse a mesma que na Iberia occidental construisse ou introduzisse o costume de construir os dolmens, e se servisse de insignias de schisto com ornatos triangulares.

Para que serviriam os dolmens ou com que fim os erigiriam? A opinião mais commum é que os dolmens serviriam para guardar as cinzas dos mortos. Assim se explica até mui naturalmente a origem de taes monumentos, considerando-os ou como um meio de supprir a falta das cavernas sepulchraes, ou como um aperfeiçoamento ou desenvolvimento do montão de pedras que primitivamente lançariam sobre o cadaver. Tambem não ha impossibilidade em crêr que o dolmen, erigido primeiro sobre o cadaver, no proprio logar da morte, fosse depois construido onde parecesse mais conveniente, e o cadaver transportado do sitio, em que jazera, para a sua nova morada.

Consideraram os dolmens, como sepulturas, por conterem muitos d’elles esqueletos inteiros ou ossos humanos dispersos. Na opinião de Rougemont, além d’esta especie que chama dolmen-tumulo, haveria o dolmen-pia ou tumulo-altar cuja mesa com regos e concavidades serviria para receber o sangue das victimas; o dolmen-altar e o dolmen-templo[121]. Será difficil senão de todo impossivel reduzir sempre qualquer dolmen a alguma d’estas especies. O auctor da classificação entende que, para que um dolmen não seja considerado como sepultura, bastará que dentro n’elle não appareçam ossos humanos, ou, se apparecerem, que estejam desligados e dispersos. Mas a falta de ossos humanos debaixo do dolmen, ou acharem-se estes dispersos, como se fossem de victimas, não é motivo sufficiente para o reduzir a qualquer das duas ultimas especies, porque em todos os tempos a terra interior dos dolmens tem sido revolvida por animaes, e por homens a quem incita o desejo de encontrar thesouros escondidos. Nas antas de Portugal não consta que se tenham descoberto ossos. É provavel que, exploradas em maior numero e mais methodicamente, n’algumas se encontrem, como tem acontecido em Hespanha.

Lubbock, depois de examinar attentamente estatisticas de centenares de explorações de dolmens e tumulos, conclue não positiva, mas provavelmente que, na Europa occidental, a posição do cadaver assentado corresponde á epoca da pedra polida, a cremação á de bronze, e finalmente a posição horisontal, á de ferro[122]. Já vimos que na Andaluzia os cadaveres encontrados[Pg 104] dentro nos dolmens estavam na posição horisontal, devendo ter sido submettidos á cremação, se fosse verdadeira a regra que se pretendeu estabelecer em Inglaterra.

Porque seriam a maior parte dos dolmens da epoca do bronze, feitos de pedras por afeiçoar e sem vestigios do emprego do cinzel? Não parecerá improvavel que o homem, possuidor já dos instrumentos de metal, prescindisse d’elles nas mais importantes das construcções, destinadas a proteger, a recommendar talvez á veneração da posteridade os restos mortaes dos seus maiores? Nota-se geralmente nas cousas de culto, ou relacionadas com o culto, uma decidida propensão da parte do homem para perpetuar os costumes antigos, ainda quando o progresso da civilisação, a mudança completa das condições sociaes os torne desnecessarios ou obsoletos. É commum encontrar nas sepulturas da epoca do bronze armas de pedra, e objectos de bronze nas da epoca do ferro. Os hebreus e os romanos, já em tempos historicos, serviam-se ainda das facas de silex em certas ceremonias. Mas ainda no genero das construcções megalithicas se demonstra esta mesma lei. Moisés descendo do monte Sinai, e transmittindo aos hebreus os preceitos attribuidos á Divindade, recommenda-lhes que, se levantarem algum altar, não seja de pedras lavradas, porque ficaria polluido aquelle que o cinzel tocasse[123]. Ora, assim como os hebreus, na idade dos metaes, não os empregavam n’aquelle tempo para edificar os seus altares, assim tambem quaesquer povos prehistoricos poderiam conservar por certo espaço de tempo o costume de não tocar as pedras dos dolmens com instrumentos de metal, continuando a construil-os, como as gerações da idade da pedra,—more majorum.

O altar de Moisés, sem degraus, feito de pedras por afeiçoar, não tocadas pelo cinzel, faz lembrar naturalmente o dolmen da epoca do bronze, sem vestigios de instrumentos metallicos. Mas a epoca da pedra polida e a epoca do bronze exprimem-nos apenas, como as epocas geologicas, phases successivas da evolução industrial. De modo nenhum nos dizem, por exemplo, ha quantos seculos se passaram esses factos prehistoricos. Depois, não tendo sido synchronicas as epocas prehistoricas entre os varios povos, pouco importa que n’uma ou n’outra região se tenha conseguido reduzil-as ás epocas historicas, ou antes tornal-as a todas comparaveis. Vejamos porém se, relativamente á Peninsula, haverá algum meio de chegar a determinar a antiguidade dos dolmens, ou ha que tempo terão passado a epoca da pedra polida e a do bronze. O problema não se póde resolver inteiramente; e, na parte em que admitte solução, é só por meio das construcções cyclopeas, de que já nos soccorremos com vantagem para a determinação das epocas prehistoricas, em que os dolmens foram erigidos.

Os povos pelasgicos, habitantes da Sardenha, e da Etruria associados aos libycos, invadiram, treze ou quatorze seculos antes de Christo, o Egypto, e não duvidaram acceitar batalha ao exercito do pharaó. Patentêa-se[Pg 105] claramente que, sem terem chegado a certo grau de civilisação, não se abalançariam a tal empreza. Mas, tendo sido derrotados, deixaram entre os despojos, armas e outros objectos que melhor nos deixam avaliar esse grau de civilisação. Serviam-se de utensilios de bronze, prata e ouro[124]; e como por outra parte a destruição de Troia foi mil e duzentos annos antes de Christo, e entre os objectos encontrados por Schliemann não apparece tambem o ferro, concluiremos que os povos mediterraneos estavam por aquelle tempo na epoca do cobre ou do bronze. Ora, se as nuhragas foram construidas na epoca da pedra polida e na do cobre ou do bronze, os mais antigos dos dolmens, seriam erigidos na Peninsula antes d’aquella batalha, isto é anteriormente ao seculo XIII ou XIV. Convém notar que o facto referido de Moisés succedeu no seculo XVI antes de Christo. Eis aqui pois até que ponto actualmente se póde resolver o problema da antiguidade dos dolmens peninsulares; seriam anteriores os mais antigos á batalha dos povos mediterraneos com os egypcios no tempo de Ramsés II.

Estaría porém a navegação tão adiantada na epoca da pedra polida que um povo, precursor dos phenicios, podesse dilatar-se do sul ao norte pelas costas occidentaes da Europa? Dois factos responderão a essa pergunta. Ha alguns annos desenterrou-se da vasa de um paúl irlandez um barco prehistorico, feito de um tronco de carvalho, excavado a fogo e pedra. No fundo tinha uma lamina de cortiça, indicio certo de que o barco teria ido da Iberia ou do meio-dia da França para a Irlanda, se não fosse de mais longe[125]. Entre as conchas fosseis achadas na Laugerie Basse ha algumas que sómente da ilha de Wight poderiam ter vindo. Ora, na epoca do rangifer já não havia communicação por terra entre a França e a Inglaterra[126]. Consequentemente n’esses tempos remotos, anteriores á epoca dos dolmens, já se praticava a navegação no Atlantico.

Demais, para explicar a colonisação ou civilisação das regiões litoraes da Europa por um certo povo mais civilisado, não ha necessidade nenhuma de admittir que este ultimo effeituasse longas derrotas. Custa a crêr que um povo, sabendo apenas fazer barcos de troncos de arvores, abertos a fogo e pedra, chegasse, por exemplo, desde o estreito de Gibraltar até á Irlanda ou á Scandinavia. Porém se lhe suppozermos nas costas occidentaes da Europa ou nas ilhas mais proximas as estações intermedias necessarias, a difficuldade ficará consideravelmente attenuada.

Mais de espaço veremos adiante como, em tempos anteriores á historia, duas civilisações penetraram na Peninsula, uma pelo Mediterraneo, caracterisada pelas construcções pelasgicas, outra pelo Atlantico, representada pelos[Pg 106] dolmens. É provavel que os homens, que na epoca da pedra polida construiram os mais antigos d’estes ultimos monumentos, fossem da mesma raça d’aquelles que, na mesma epoca, na Scandinavia, construiram dolmens similhantes. Que milhares de annos terão deccorrido depois d’estes acontecimentos, ninguem o saberá dizer. O mais que se póde affirmar é que, doze ou treze seculos antes de Christo, já os povos mediterraneos estariam na epoca do bronze, e portanto muito para áquem da epoca da pedra polida, em que seriam construidos os mais antigos dos dolmens.

Ha poucos annos que os archeologos tem dirigido a attenção para os signaes esculpidos em certos dolmens. Por isso não se deduziram ainda da interpretação d’esses signaes as consequencias importantissimas que promettem. Tractaremos de todos em geral, porque até hoje tambem não foram ainda comparados de modo que se possam classificar. Aos signaes dos dolmens ajuntam-se naturalmente os das rochas e os de certas armas de bronze. Todos analogos, parecem vestigios que da mesma epoca, ou de epocas prehistoricas pouco distantes, ficariam por varias regiões tanto do Velho como do Novo Mundo.

«Na Inglaterra septemtrional e na Escocia, diz Lubbock, estes signaes consistem ordinariamente em depressões concavas ou espiraes, ou em circulos completos ou incompletos, concentricos, de cujo centro commum parte um traço que corta a todas as circumferencias e se prolonga ainda para fóra d’ellas. Estes signaes acham-se perto das oppidas e fortificações antigas, da mesma sorte que nos menhires e nas pedras dos dolmens e dos cromlechs...»

«Acharam-se esculpturas similhantes na Irlanda. Além d’isso n’este paiz, nos grandes tumulos, proximos de Boyne, vêem-se os vestigios de uma ornamentação mais completa. Por exemplo, a grande pedra á entrada de New-Grange está coberta de espiraes duplas, e as pedras da camara central estão tambem ornadas de circulos, espiraes e outros desenhos. Um dos mais notaveis é aquelle que parece representar uma folha de feto, á similhança de outros da Bretanha e do supposto templo de Hagar Kem, na ilha de Malta...»

«Todas estas esculpturas antigas da Gran-Bretanha, menos a folha de feto, são apenas simples figuras geometricas. Acham-se as mesmas figuras em Bretanha; aqui porém são muitas vezes acompanhadas da representação de machados de pedra com ou sem cabo»[127].

Na provincia das Asturias, em Cangas de Onis, subjacente a uma ermida, ha um dolmen, cuja primeira pedra lateral direita, na face interior, contém gravados signaes que fazem lembrar as pinturas da pelle de certos selvagens[128]. Esta mesma analogia se notara já com relação ás esculpturas de outros dolmens, taes como aquelle do districto de Finisterre na França, descripto recentemente pelo sr. Chatellier[129].

[Pg 107]

Os mais notaveis e os menos antigos d’estes monumentos são as esculpturas das rochas de Kivik. Representam, na opinião de Nilsson, um combate, depois do qual os vencedores offerecem sacrificios a Baal, cuja pyramide se ergue entre dois grandes machados de bronze[130]. Por esta circumstancia se determina com exactidão a epoca em que foram abertas as esculpturas de Kivik.

N’outras esculpturas de rochas da Norwega predominam as representações de barcos, similhantes áquelles que adornam os cabos de navalhas de bronze achadas na Dinamarca[131]. Nos mesmos monumentos da Norwega vêem-se grupos de pontos á maneira de constellações; o que torna estas esculpturas comparaveis ás da rocha de Carnés de Vimianzo na Galiza[132]. A analogia d’estes ultimos signaes com as constellações é ainda maior, porque os pequenos circulos que representam as estrellas estão involvidos em figuras lineares, formadas por circulos concentricos ou por outras curvas. Alguns d’aquelles circulos concentricos fazem lembrar rodas de carros. Na mesma provincia se conhecem outros signaes similhantes na rocha de Ginzo em Limia[133]. E n’um tumulo, descoberto em 1874 a dois kilometros da aldêa de Melon, termo judicial de Rivadabia, encontraram-se pedras interiores cobertas de signaes gravados e coloridos com tinta roxa e negra[134].

Poderia duvidar-se do facto, e suppõr-se que os observadores teriam sido illudidos por algum oxydo de ferro que tingisse de roxo e negro as pedras do tumulo. Mas o sr. Gongora, sem saber d’este, cita outros casos similhantes. Na Andaluzia observou muitos signaes pintados com tinta rubra bituminosa em certos nichos abertos artificialmente na rocha, na serra de Quintana, a uma legua da villa de Fuencaliente. Na distancia de um quarto de legua d’este sitio, n’um logar chamado Batanera, encontrou o mesmo observador outros signaes similhantes pintados com tinta vermelha na face de um penhasco artificialmente cortado. Apesar da rudeza dos traços, reconhece-se n’alguns d’esses signaes a representação do sol, da lua, da figura humana, de arvores, de béstas, do coração e finalmente de barcos[135]. Por estes ultimos e pela fórma linear dos traços, os hieroglyphos da Andaluzia relacionam-se naturalmente com os das rochas da Norwega, já citados, e portanto com as esculpturas de alguns instrumentos de bronze da Dinamarca, tambem já mencionados.

Mas, cousa notavel! explorações recentes têem patenteado no Novo Mexico outros vestigios analogos, que fazem presuppôr a existencia de uma antiga civilisação, procedente da Asia Menor, e que nas epocas prehistoricas[Pg 108] se dilataria por muitas das regiões litoraes da Europa e da America: «De taes inscripções, ornamentações e mais esculpturas apparecem tambem muitos specimens por varias partes da America. E é muito para notar o que a este respeito se lê no Boletim official dos Estados-Unidos:—of geological and geographic survey of territories (março 1876), onde, se encontram curiosas noticias das explorações feitas no Novo-Mexico, especialmente pelas proximidades do Colorado; e os desenhos de antigas ruinas de cliff-houses, que fazem lembrar as habitações kushitas das montanhas da Georgia. Tambem ali se podem vêr os debuxos de hieroglyphos, ou inscripções gravadas em varias pedras e em nichos (como se encontram pela Asia-menor), d’essas habitações das rochas; que se assimilham a outras inscripções achadas n’algumas cavernas da Andaluzia»[136].

Estes factos, sendo como dizem, estabelecem relações de similhança, talvez de communidade de origem, entre os povos da Asia Menor e aquelles que, na epoca do cobre ou do bronze, povoaram algumas partes da America septemtrional, e das peninsulas Iberica e Scandinava. Concernentemente aos iberos, tinha-se já notado certas analogias da linguagem entre os vasconços, os alghonquinos e os georgiamos que faziam presuppôr a mesma origem commum. As menos antigas de taes esculpturas, que vem a ser as de Kivik, poderão attribuir-se aos phenicios. Mas estes monumentos são muito superiores a todos os outros pela perfeição do desenho. Pertencem incontestavelmente a uma civilisação tambem muito superior. Os outros parece corresponderem antes a uma civilisação mais rude, de uma epoca anterior, talvez da epoca do cobre e dos dolmens menos imperfeitos da peninsula Iberica.

Os factos ultimamente referidos levam-nos a conjecturar que, nas epocas prehistoricas, duas civilisações differentes se succederam nas mesmas regiões da Peninsula, ambas antinomicas com a civilisação pelasgica, ambas trazidas por navegadores do Atlantico: a da pedra polida que se dilatou pelas costas occidentaes da Europa, deixando até na Scandinavia vestigios similhantes áquelles que se observam na peninsula Iberica. A segunda sería a dos menhires e das pedras balouçantes e talvez do bronze.

Á primeira d’estas civilisações attribuiremos os dolmens mais rudes de Portugal, as insignias de schisto os fragmentos de osso similhantemente lavrados; á segunda os dolmens mais perfeitos como são os da Andaluzia e de Cangas de Onis; as pedras esculpidas da Galiza e da Andaluzia; os menhires e os trilithos da Galiza; o tumulo de Antequera; a galeria de Castilleja de Gusman, e por ventura outras que dizem existir em pequenas distancias de Guimarães; os menhires e as pedras balouçantes d’estas mesmas ou de outras regiões; e finalmente objectos prehistoricos de bronze, achados nas regiões occidentaes da peninsula Iberica.

[Pg 109]

Os monumentos menos rudes e menos antigos da segunda civilisação, os menhires e os trilithos, feitos de pedras faceadas e sotopostas, como os da Galiza, pela fórma, pela disposição e afeiçoado dos materiaes, devem ser contemporaneos do celebre monumento de Stone-Henge na planicie de Salisbury na Inglaterra. Este monumento attribue-o Lubbock ao ultimo periodo da epoca do bronze, por se terem encontrado nos tumulos circumstantes restos de cadaveres submettidos á cremação. Ora, como esta pratica era commum na epoca do bronze, a ella reporta o auctor o monumento, e ao ultimo periodo da mesma epoca, por ser feito de pedras grosseiramente afeiçoadas[137]. Este ou outro lavor da pedra não importa de modo necessario o emprego do cinzel de ferro. Os mexicanos ignoravam o fabrico e usos d’este metal; todavia das mais duras das pedras faziam instrumentos de toda a casta, esculpiam até bustos de basalto[138]. Os egypcios exploraram tambem algumas pedreiras de granito com instrumentos de bronze.

[Pg 110]

NOTAS DE RODAPÉ:

[107] Bonstetten, Sur les dolmens.

[108] Bertrand, Les monuments primitifs de la Gaule.

[109] Este argumento da maior perfeição dos megalithos e das armas e instrumentos prehistoricos das regiões septemtrionaes não tem força probativa. Porquanto, prolongando-se por mais tempo n’estas regiões que nas meridionaes as epocas prehistoricas, não é para estranhar que os processos industriaes chegassem a mais alto grau de perfeição.

[110] Mortillet, Na sessão de 22 de agosto de 1874 da Secção de Anthropologia, Revue des cours scientifiques 2.ᵉ série, 4.ᵉ année, pag. 99 et 200.

[111] Á expressão Lei dos litoraes deve dar-se a mais lata das accepções. O litoral d’um continente abrange um espaço de terra muito mais largo que o litoral de um paiz ou de uma provincia. O litoral de Portugal, por exemplo, não passa para além das provincias do Minho, Douro, Extremadura e Algarve. Mas o litoral da Europa abrangerá tambem as provincias de Traz-os-Montes, Beira Alta, Beira Baixa e Alemtejo; isto é, todo o reino de Portugal vem a ser uma parte do litoral da Europa. N’este ultimo sentido se ha de tomar a palavra litoral relativamente á distribuição geographica dos dolmens.

[112] L’âge du bronze, pag. 73.

[113] Cap. VI.

[114] Nas Baleares encontram-se tambem megalithos, porém de epocas menos antigas. Alguns menhires fazem parte de tumulos com abobadas, por onde parece provar-se a fusão dos dois systemas. Estas indicações, que se nos deparam no Semanario Pintoresco Español de 1857, pag. 173, são deficientes, e muito aproveitaria a historia da Peninsula com o estudo dos monumentos das ilhas mediterraneas.

[115] Lubbock, L’homme prehistorique. Pariz 1876 cap. V.

[116] Antigüedades prehistoricas de Andalucia, pag. 106.

[117] Dolmins ou antas de Portugal. Lisboa 1868.

[118] Vid. os desenhos das enxadas e os dolmens da Scandinavia em Nilsson, Les habitants primitifs de la Scandinave. Pariz 1868.

[119] La Academia 1877, n.º 12, pag. 184. Em o n.º 14. pag. 209 vem reproduzido em gravura um talayot de Trepucó da ilha de Minorca.

[120] G. Spano, Scoperte archeologiche fattesi in Sardegna in tutto l’anno 1874. Cagliaria, 1874.

[121] Op. cit. pag. 66.

[122] Op. cit. cap. V.

[123] Exodo, XX, 25.

[124] Inscripção de Karnak interpretada pelo visconde de Rougè e citada por Tubino, Los monumentos megalithicos de Andalucia, Extremadura y Portugal, Museo español de antigüedades, tomo VII.

[125] Lyell, L’ancienneté de l’homme.

[126] Quatrefages, L’espéce humaine, pag. 242.

[127] Op. cit. cap. V.

[128] Tubino, Los monumentos megalithicos.

[129] Os dolmens, Lisboa 1876, pag. 31.

[130] J. Vilanova y F. M. Tubino, Viaje cientifico á Dinamarca y Suecia. Madrid 1871, pag. 65.

[131] Lubbock, Op. cit.

[132] Sivelo, Antigüedades de Galicia, Fig. 18.

[133] Idem, pag. 9.

[134] Idem, pag. 74.

[135] Antigüedades prehistoricas de Andalucia.

[136] Os dolmens, Lisboa 1876, pag. 36. Convém accrescentar outra analogia importante. As inscripções de certos logares do Novo Mexico são coloridas como as da Andaluzia.

[137] Op. cit. cap. V.

[138] Rougemont, L’âge du bronze, pag. 26.


[Pg 111]

CAPITULO VIII
IDADE DOS METAES

Porque não admittem a maior parte dos archeologos uma epoca de cobre?—Hypotheses para explicar a raridade dos objectos de cobre.—Abundancia d’estes objectos na Peninsula.—Haveria na peninsula Iberica uma epoca de cobre?—Coincidiriam essa epoca e a da pedra polida?—Substituiria a do bronze?—Objectos de cobre e de bronze, achados em Portugal.—Machados, ponta de frecha, faca, e serrote, espadas.—Punhaes de bronze e de ferro da Galiza.—Brevidade dos punhos.—Lendas dos pygmeus—Idolos e cabras de bronze.—Os primeiros dos exploradores do cobre na Peninsula foram anteriores aos phenicios.—Provas da fundição do bronze na Hespanha, ilhas Baleares e da Sardenha.—Classificação dos jazigos de bronze.—Fundições e thesouros.—Casta asiatica de fundidores nos tempos antigos e modernos.—Os ciganos.

Está commumente adoptada, já o dissemos, a divisão dos tempos prehistoricos em duas idades: a da pedra e a dos metaes; e a subdivisão d’esta ultima em duas epocas: a do bronze e a do ferro. Quem souber porém que o bronze é uma liga de cobre e estanho, que o segundo d’estes metaes é menos commum que o primeiro e de mais difficil extracção, e finalmente que, sem se conhecerem ambos, não se inventaria a sua liga, de certo perguntará porque se não faz preceder a epoca do bronze pela epoca do cobre? A razão é simples. Em quasi todas as nações da Europa apparecem tão numerosos os objectos de bronze e tão raros os de cobre, que se têem refusado os archeologos a admittir uma epoca só caracterisada por este metal. Das construcções lacustres de Neuchatel na Suissa têem extrahido numerosos objectos de bronze e nenhum de cobre[139]. Julgava-se que a Hungria e a Irlanda constituiriam excepções á regra geral. Mas a estatistica dos objectos prehistoricos de bronze e de cobre do museu de Dublin não auctorisou a admittir para o ultimo d’aquelles paizes uma epoca do cobre. Entre mil duzentas oitenta e tres armas apenas se contaram trinta machados de[Pg 112] cobre e uma folha de espada que diziam ser tambem do mesmo metal[140]. Relativamente á Hungria logo veremos qual é a verdade.

Para explicar a falta de um periodo naturalmente necessario na evolução de industria metallurgica, ha quem supponha que a arte de fazer o bronze não sería inventada na Europa, mas aqui introduzida por algum dos povos emigrados do Oriente. D’este modo os europeus não teriam fabricado o cobre, porque, iniciados na arte de fundir o bronze, tornar-se-lhes-hia inopportuno o fabrico do cobre por ser muito menos duro no estado simples que unido ao estanho. A fim de provar a possibilidade d’este facto não faltam outros analogos. Affirma-se, por exemplo, que certos povos septemtrionaes da raça dos finnicos, em suas origens, não conheciam nem o cobre nem o bronze, porém sómente o ouro e o ferro. Nos tempos historicos não faltarão exemplos de selvagens, a quem os europeus fizeram passar de repente da epoca da pedra polida á do ferro, sem terem percorrido a phase intermedia da epoca do bronze.

Outra hypothese para explicar a raridade dos objectos de cobre, em relação aos de bronze, na maior parte dos povos da Europa, é que nos tempos prehistoricos se não prepararia o bronze pela reunião immediata de cobre e do estanho; mas pela extracção de um minerio que contivesse ambos os metaes, ou pela mistura do minerio de estanho com o de cobre. A uniformidade da composição do bronze, e até as proporções determinadas em que se encontram o cobre e o estanho em cada genero de instrumentos, conforme deveriam ser mais ou menos duros para bem satisfazer ao fim a que se destinavam, demonstram o nenhum fundamento de tal hypothese.

Outros dizem que a industria do fabrico do bronze sería uma sequencia natural e necessaria de factos anteriores, e que povos differentes e incommunicaveis se elevariam, progressivamente e sem extranho auxilio, do fabrico da pedra lascada ao da pedra polida, d’este ao do cobre, e finalmente ao do bronze, bem como do fabrico do bronze passariam da mesma sorte por uma evolução necessaria ao fabrico do ferro. Causas intrinsecas ou extrinsecas reduziriam em certos povos a pequeno espaço de tempo a duração da epoca do cobre, que por tanto deixaria de si poucos ou nenhuns vestigios. Esta hypothese com quanto seduza a imaginação pela simplicidade, e por se basear na lei do progressivo aperfeiçoamento da industria humana, parece todavia não ser conforme aos factos. Ninguem duvida da similhança e até da identidade dos objectos de bronze, encontrados nas mais distantes e nas mais varias das regiões da Europa[141]. Ora tal similhança ou identidade seriam impossiveis, se cada povo tivesse inventado por si mesmo o cobre, o estanho e a liga d’estes dois metaes.

Além d’isto, será certo, ou ao menos provavel, que os povos da Europa chegassem por si sós e sem extranho auxilio á invenção dos metaes? Se[Pg 113] n’alguns paizes se admitte a invenção indigena do cobre ou do ferro, na maior parte não se tem verificado este facto. Affirma Lenormant que os pretos da Africa central e meridional não conheceram nunca o bronze, e até, pela maior parte, não fabricam o cobre. Em compensação, têem dado ao fabrico do ferro certo desenvolvimento, e por meio de processos proprios que não receberam de extranhos. Chegaram pois espontaneamente a descobrir o ferro, e passaram do uso exclusivo da pedra ao d’este metal, sem a phase intermedia do cobre ou do bronze. Os esquimaus, não sahidos ainda da idade da pedra, ignoram os processos de fundir os metaes, mas fabricam certos utensilios de ferro, percutindo com pedras o meteorico, e sem o fazer passar pela fusão[142]. Se aquelles mesmos processos de fundir o ferro não foram ensinados aos africanos por algum povo asiatico, o que parece mais provavel, o facto é excepcional. Na maior parte dos casos verifica-se a iniciação. Citaremos apenas o exemplo dos mexicanos, que os hespanhoes foram encontrar n’um subido grau de civilisação, porém dentro dos limites da epoca do bronze. Durante milhares de annos não souberam inventar meios de buscar, extrahir e fabricar o ferro.

A primeira hypothese, ou a da iniciação dos europeus pelos orientaes, particularisou Nilsson, attribuindo aos phenicios a introducção do bronze na Europa. Antes de examinar esta hypothese, applicada á Europa em geral, e mais em particular á Peninsula, importa-nos saber que objectos aqui se têem encontrado, para assentar sobre fundamentos menos duvidosos essa discussão importante.

Primeiro que tudo convém saber que os srs. Vilanova e Tubino insistem n’uma circumstancia que têem por indubitavel—na escassez dos objectos de bronze em Hespanha, compensada pela grande abundancia dos de cobre. Por isso propõe o sr. Tubino a subdivisão da epoca neolithica em dois periodos: o mesolithico e o do cobre[143]. Para bem esclarecer este ponto importante, importa examinar se: 1.º Haveria na peninsula Iberica uma epoca do cobre? 2.º Coincidiriam essa epoca e a da pedra polida? 3.º Substituiria a epoca do bronze? a existencia da epoca do cobre. Quando se descobriu a America, os povos

Prova-se por analogia a possibilidade de qualquer d’estes factos. Ainda hoje selvagens d’Africa fabricam cobre e ferro e ignoram o processo de fazer bronze. Outros da America septemtrional apenas sabem fabricar armas de pedra e de cobre. Na opinião de Rougemont, os proprios egypcios tiveram a sua epoca do cobre, correspondente ás dynastias IV, V e VI, quatro mil e quinhentos annos antes de Christo, á qual epoca se seguiu a do bronze nas dynastias immediatas[144]. Mas pode-se ainda restringir a analogia e dar-lhe maior força. Em certas regiões abundantes de minas cupricas verifica-se[Pg 114] das regiões septemtrionaes estavam n’essa phase da civilisação. Nas circumvisinhanças do lago Superior se conservam hoje os vestigios da exploração de enormes quantidades de minerio de cobre. O sr. Whittesley calcula que esses vestigios occuparão na parte meridional do lago uma extensão de cem a cento e cincoenta milhas; e que as arvores que cobrem alguns terão mais de tres seculos de existencia[145]. Na Asia, da região media do Jenessei até ao Amur para a parte de leste, e para a parte de oeste até ao Oural, ha grande numero de tumulos, de minas abandonadas e de fornos em ruinas. Pelas madeiras petrificadas se conhece a sua grande antiguidade. Está tambem provado que os tchoudes exploraram estas minas de cobre antes de conhecerem o estanho, e que antes da epoca do bronze tiveram portanto a sua epoca do cobre. As mesmas duas epocas se conhecem facilmente na Hungria e na Transylvania, onde existem ruinas antigas inteiramente eguaes ás dos tchoudes do Oural e da Siberia[146]. Ora, a peninsula Iberica, pela abundancia do cobre, pela antiguidade das minas d’este metal, está em condições analogas ou ás da Hungria e da Transylvania, ou ás da vasta região habitada pelos tchoudes. Não custa portanto admittir que o grande numero de objectos de cobre achados na Peninsula provam a existencia de uma epoca do cobre, da qual os povos ibericos mais tarde se elevariam á do bronze, quando o commercio lhes fornecesse o estanho necessario para ligar com o cobre.

Dando como demonstrada a epoca do cobre, passaremos agora a examinar a segunda questão: se coincidiria com a epoca da pedra polida? Em primeiro logar notaremos a incompatibilidade da coincidencia. Se um povo qualquer fabríca e usa instrumentos de metal, como se ha de considerar esse povo na idade da pedra? Não comprehendemos pois que se possa admittir na epoca da pedra polida um periodo do cobre, se não fôr para significar que os peninsulares estariam já n’esse periodo, em quanto os outros povos da Europa estariam no anterior. Mas quem ignora a impossibilidade do synchronismo das varias phases industriaes em toda a Europa? As expressões epoca da pedra lascada, epoca da pedra polida, epoca do bronze, epoca do ferro não significam de modo nenhum condições communs a todos os povos, porém tão sómente a um povo ou a alguns povos. Quando portanto fallarmos da epoca da pedra polida ou da epoca do cobre da Peninsula, não podemos referir-nos senão a esta parte da Europa.

Talvez para a mencionada tentativa da penetração da idade da pedra pela idade dos metaes influisse a circumstancia de se terem encontrado martellos de pedra em minas prehistoricas de cobre, como são as do Milagro nas Asturias, de Cerro Muriano em Cordova e de Ruy Gomes no Alemtejo. Mas o uso dos instrumentos de cada epoca não termina com ella, prolonga-se de ordinario pelas immediatas. Apparecem com frequencia em tumulos da epoca[Pg 115] do bronze armas de pedra, e nos da epoca do ferro armas de pedra e de bronze. N’este caso particular das minas de cobre o facto observado na Peninsula não é unico. N’aquelles que já mencionámos do lago Superior apparecem tambem martellos de pedra[147]. No Egypto usavam de certos utensilios de pedra, alguns por extremo grosseiros, juntamente com os de metal, nos mais florescentes dos periodos da civilisação, e até em tempos que não vão ainda longe. Com instrumentos de pedra exploravam os egypcios as minas de cobre da peninsula de Sinai; com os mesmos instrumentos trabalhavam nas pedreiros de granito de Syène, etc.[148]. Certos povos da raça negra fabricam enxadas superiores áquellas que a Inglaterra quer enviar-lhes de Sheffield, servindo-se de uma forja rudimental, constando apenas de uma bigorna de grés, um martello de silex e um folle, feito com um vaso de barro tapado com uma pelle movel[149].

Resta-nos agora examinar o ultimo ponto: se a epoca do cobre substituiria na Peninsula a epoca do bronze? O proprio sr. Tubino, que é quem mais propende para esta idêa, enumerando os objectos metallicos, encontrados em Andaluzia, Extremadura e Portugal, falla dos de cobre e dos de bronze de tal modo que ninguem saberá dizer ao certo quaes serão em maior numero[150]. Nem outra cousa se conclue da enumeração que pela sua parte faz o sr. Vilanova[151]. O sr. D. José Villa-amil y Castro menciona espadas, punhaes e pontas de frechas descobertos na Galiza, todos de bronze e nenhum de cobre[152].

De Portugal ninguem tambem dirá que os objectos de cobre até hoje encontrados sejam muitos mais que os de bronze. No Alemtejo apparecem, é verdade, em maior numero os instrumentos de cobre; mas acham-se tambem n’esta provincia muitos de bronze com as fórmas dos typos correspondentes de outras partes. Dos de cobre asseveram os fundidores de Evora haverem observado no tempo em que os fundiam, (porque não eram ainda procurados pelos collectores) que lançavam um cheiro forte e suffocante, quando os sujeitavam no cadinho á acção do fogo. Este facto prova a impureza do cobre de que taes objectos eram fabricados, e explica-se talvez pela imperfeição dos processos empregados para a extracção, que deixariam uma porção de enxofre combinada com o metal. Repetimos porém, que os objectos de bronze não são tão raros que acreditem a hypothese da existencia de uma epoca de cobre tão notavel e tão prolongada que deixasse no[Pg 116] escuro a do bronze, como pretendem alguns dos auctores hespanhoes. As collecções de objectos prehistoricos do Museu da Escola Polytechnica de Lisboa e da Bibliotheca de Evora contêem objectos de bronze em maior numero que os de cobre. A collecção do sr. Gabriel Pereira, pelo contrario, tem mais objectos de cobre; mas esta collecção consta principalmente de machados muito singelos, que são os mais communs e, pela maior parte de cobre. Para se avaliar a superabundancia d’estes instrumentos, relativamente aos outros da mesma epoca, bastará dizer que a mencionada collecção consta de dezesete objectos, dos quaes quinze são dos machados ou cunhas de cobre mais communs, e dois de bronze: convém a saber um machado com azelhas (fig. 64) e a espada (fig. 71). Note-se tambem que sómente no Alemtejo, e nas regiões meridionaes d’esta provincia consta apparecer tamanho numero de machados de cobre. Haverá alguma relação entre este facto e a mina prehistorica de Ruy Gomes na mesma provincia?

Fig. 63

Fig. 64.

MACHADOS DE COBRE E DE BRONZE DO ALEMTEJO.

Para se servirem d’estes instrumentos, rachavam na parte superior os cabos de pau, e mettiam os machados nas fendas, ligando-os fortemente com cordas ou corrêas. Dos machados mais singelos com fórma de cunhas têem-se encontrado tambem na Hespanha, bem como dos outros com cavidades para os cabos e com azas ou sem ellas. Porém, segundo affirma o sr. Villa-amil, em contrario do que no Alemtejo acontece, os machados lisos, á maneira[Pg 117] de cunhas, seriam em Hespanha menos communs que os outros. O escriptor citado achou em castros da Galiza pontas de lança (cuspis) tanto de bronze como de ferro[153].

A fig. 64 representa um machado de bronze, encontrado no Alemtejo. Mas, como já dissemos, este typo, parecido ao scalprum fabrile, é raro em comparação do typo que a fig. 63 representa o mais commum de todos.

Fig. 65

PONTA DE FRECHA DE COBRE DA CASA DA MOURA.

Entre os numerosos objectos, encontrados nas cavernas de Cesareda, não appareceu nenhum de metal, excepto uma ponta de frecha de cobre[154]. Este achado bastará para referir aquella estação prehistorica á idade dos metaes? As explorações até hoje feitas em Hespanha e Portugal auctorisam-nos a reportar á epoca da pedra polida os habitantes das cavernas. Todavia o achar-se a frecha de cobre a quatro metros de profundidade, quasi sobre o manto stalagmitico, parece excluir a possibilidade de ter ali ficado em epoca posterior á habitação da caverna. Por outra parte, os objectos, achados no mesmo logar, e particularmente a massa de calcareo claviforme lavrada n’uma das faces, e a placa de schisto com ornatos triangulares estão indicando[Pg 118] com a possivel certeza a epoca d’aquella estação prehistorica. Deve ter sido frequentada no tempo dos dolmens de Bellas e de Pavia e da Sepultura de Martim Affonso, de Muge. Ora, esta epoca marca a transição da idade de pedra para a dos metaes.

Fig. 66

Fig. 67

FACA E SERROTE DA FONTE DA RUPTURA.

Seria porventura contemporanea a estação prehistorica da Fonte da Ruptura de Setubal, onde appareceram uma faca e um serrote que se conservam no Museu da Escola Polytechnica. Porém estão de tal sorte incrustados que é impossivel dizer se serão de cobre ou de bronze. Advirta-se porém[Pg 119] que em certas estações ficaram sotopostos os vestigios de varias epocas, por terem sido habitadas successivamente por muitas gerações e talvez até por differentes raças. E quando no acto da exploração se não registram cuidadosamente todos os indicios, todas as relações de posição dos objectos entre si e com os materiaes integrantes do deposito, torna-se depois impossivel descobrir a verdade. A Memoria do sr. Delgado offerece-nos todos esses esclarecimentos ácerca das cavernas de Cesareda, mas relativamente á Fonte da Ruptura ignoram-se as circumstancias da exploração e da localidade.

Na Bibliotheca de Evora guardam-se seis ou sete espadas de cobre, achadas em varios sitios da diocese de Beja por D. fr. Manuel do Cenaculo. Fundidores de Evora affirmam terem fundido outras similhantes, o que prova não serem raras nas terras transtaganas. Julgou-as o descobridor feitas de bronze, porém com os objectos de cobre é que ellas têem mais analogia nas suas propriedades physicas (fig. 68, 69 e 70).

Estas espadas não têem gumes; serviam portanto para ferir de ponta. Outra circumstancia notavel é serem inteiriças, isto é, cada uma d’ellas formada de uma só peça, e sem articulação dos punhos e copos com a folha, quando as armas d’este genero, já durante a epoca de bronze, eram geralmente articuladas. Esta mesma circumstancia se observa n’outras espadas ou punhaes de cobre ou de bronze, achados no Alemtejo, os quaes são tambem inteiriços ou formados de uma só folha metallica, afeiçoada á força de trabalho com instrumentos cortantes e contundentes (fig. 71). Porém outros objectos da mesma epoca foram fundidos. Têem-se encontrado na Irlanda e na Sardenha alguns dos moldes que serviram para este fim.

O sr. D. José Villa-amil y Castro descreve um punhal de bronze, achado na Galiza, de mui differente feitio, e muito mais complicado[155]. A folha não é lisa, mas coberta de riscas muito finas, unidas e parallelas entre si e aos bordos, cuja direcção recta ou curva approximadamente seguem. O punho tem a fórma d’aquelles que chamam de antennas. Mas o que ha mais notavel n’esta arma de bronze é ter o punho furado para entrar n’elle a espiga da folha. Não ha vestigios de ter sido repregada ou fixada por virola ou por outro meio. Pelo contrario a espiga entra no punho e sahe muito á larga, e conserva signaes do attrito que soffreria n’estes movimentos. O sr. Villa-amil suppõe que esta arma curiosa serviria aos sacerdotes nos sacrificios, e que o mesmo individuo poderia ferir differentes victimas com o mesmo punho, substituindo a folha para cada victima. Mas o mais que se póde concluir é que n’este e n’outros similhantes punhaes se substituiria uma folha por outra, quando a primeira estivesse gasta, o que em pouco tempo aconteceria, em razão da pouca dureza do bronze (fig. 72).

Fig. 69[Pg 120]

Fig. 70

Fig. 68

Fig. 71

ESPADAS DE COBRE E DE BRONZE DO ALENTEJO.

Fig. 72[Pg 121]

PUNHAL DE BRONZE DA GALIZA.

Algumas armas de bronze com os caracteres das armas prehistoricas têem apparecido em sepulturas juntamente com objectos romanos. Houve pois uma penetração de certos costumes da epoca do bronze pelas epocas[Pg 122] subsequentes. O fragmento de um punhal de ferro (Fig. 73), achado na Galiza, e muito similhante á parte correspondente do punhal de bronze, encontrado na mesma provincia e representado na fig. 72, prova a coincidencia do uso de armas e instrumentos de ambos os metaes n’aquella provincia. Prova ainda que os mais perfeitos dos objectos de bronze não terão grande antiguidade.

Fig. 73

FRAGMENTO DE UM PUNHAL DE FERRO, ACHADO NA GALIZA.

As armas de cobre e bronze, espadas e punhaes, achadas na Peninsula, bem como aquellas que têem apparecido n’outras partes da Europa, parece haverem sido usadas por uma raça de estatura baixa e de mãos extremamente pequenas. Em quanto os punhos das actuaes têem sete ou oito centimetros, os das armas de cobre ou de bronze medem apenas quatro ou cinco centimetros. Na Asia ainda hoje ha povos que se distinguem por terem mãos tão pequenas que os punhos das suas armas são como os das nossas armas prehistoricas. As lendas dos anões e dos gnomos, vulgares em tantos paizes, recordam ainda hoje os homens de pequena estatura da epoca do cobre ou do bronze. Segundo essas lendas, os anões habitavam as[Pg 123] cavernas, d’onde sahiam sómente pela calada da noite. Os camponezes das circumvisinhanças vinham depositar pães junto das bocas das cavernas em troca dos instrumentos de metal que os anões fabricavam. Outros povos attribuem á propria Divindade os caracteres dos anões fundidores de metaes; e representam o Demiurgos, o auctor dos mundos, como um homunculo disforme e grotesco. Outros finalmente conservam as tradições de pygmeus que gigantes teriam vencido. Em tudo isto consideram os archeologos outras tantas provas da existencia de uma raça de estatura pequena, que outra mais forte haveria vencido e substituido em varias regiões da Europa.

Conservam-se tambem na bibliotheca de Evora um idolo grosseiro e tres outros idolos similhantes, porém menores, todos de bronze. Ignora-se a procedencia d’estas curiosas antigualhas.

Fig. 74

Fig. 75

IDOLO DE BRONZE DA BIBLIOTHECA DE EVORA.

No Museu da Escola Polytechnica ha um similhante idolo masculino de bronze, pertencente ao sr. Judice do Algarve, e talvez n’esta provincia descoberto.

Apparecem tambem no Alemtejo bodes ou cabras de bronze tão imperfeitos como os idolos e provavelmente da mesma epoca. Os fragmentos adherentes aos pés indicam que estas grosseiras imagens estariam fixas a outros objectos. Conservam-se dois bodes de bronze na bibliotheca de Evora.[Pg 124] Outro similhante, foi achado ha alguns annos no Redondo, districto de Evora[156]. Os idolos de dois sexos e as cabras de bronze serão talvez os vestigios de alguma antiga religião introduzida na Peninsula em epoca desconhecida. Os egypcios, os phenicios e outros povos da antiguidade rendiam culto aos elementos masculino e feminino, symbolisados em Isis e Osiris, em Baal e Astarté. A cabra era tambem objecto de adoração no Egypto. Aqui o sol e a lua representavam o principio masculino e o feminino. Já vimos que em certas inscripções da Andaluzia se vêem figurados estes dois astros[157]. O costume, antigo e commum na Peninsula e em tantas partes da Europa, de celebrar com fogueiras e dansas a noite de S. João ou o solsticio do verão, parece tambem a alguns um vestigio da religião phenicia. Mas é provavel que d’uma civilisação mais remota herdassem os phenicios e outros povos este e outros costumes religiosos.

Fig. 76

Fig. 77

Fig. 78

IDOLOS DE BRONZE DA BIBLIOTHECA DE EVORA.

Fig. 79

Fig. 80

CABRAS DE BRONZE DA BIBLIOTHECA DE EVORA.

Os primeiros dos exploradores das minas de cobre na Peninsula, os primeiros dos que fabricaram os velhos machados de cobre devem ser anteriores aos phenicios e ao tempo em que estes colonisaram alguns dos logares septemtrionaes[Pg 125] da Africa e meridionaes da Hespanha no seculo XII. As condições de um povo que explorava o cobre com martellos de pedra, e se servia de machados grosseiros d’aquelle metal não concordam de modo nenhum com o que sabemos ácerca da civilisação adiantada dos phenicios e dos povos mediterraneos no tempo da fundação das primeiras das colonias tyrias. A nossa epoca do cobre foi portanto anterior aos phenicios e aos etruscos, conclusão a que chegára Desor na Suissa, relativamente á epoca do bronze, pela falta de objectos de ferro nas palafittas d’aquella epoca.[Pg 126] Mas se na Suissa não é possivel determinar, presumir ao menos que, povo ali introduziria o commercio do bronze, na Iberia a exploração e fabríco do cobre parece naturalmente relacionarem-se com algum dos povos da Asia, e de uma região onde as minas de cobre eram tambem exploradas.

Se os bronzes das palafittas da Suissa e das terramaras da Italia se hão de julgar anteriores á epoca do ferro e portanto mais antigos que os etruscos e phenicios, a que remotissimas eras se não reportarão os machados de cobre da Peninsula? Mais adiante examinaremos as razões que fazem provavel a opinião de que as primeiras explorações das minas de cobre na America, na Hungria na Transylvania e na Iberia fossem contemporaneas e talvez resultantes de uma antiga civilisação turania irradiante da Asia para as outras partes do mundo[158].

Á epoca do cobre succedeu a do bronze, quando um povo navegador e commerciante introduziu na Peninsula ou os instrumentos de bronze ou o estanho para se fabricarem. É possivel que esta introducção fosse por algum povo anterior aos phenicios e etruscos. Se a hypothese de Nilsson acha contradictores na sua applicação á Scandinavia, com mais força de razão se poderá impugnar relativamente á peninsula Iberica. É porém certo que o uso do bronze se prolongou durante a colonisação phenicia, dilatando-se até pela epoca romana. Ninguem ignora a importancia que teve Cadix no commercio do estanho que os phenicios iam buscar a Cornwals. Ora, sendo a Peninsula abundante de cobre, não deixaria portanto de haver fabricas de bronze n’aquellas e n’outras colonias phenicias. Strabão falla de espadas de bronze, feitas em Cadix[159]. Na Sardenha têem apparecido até hoje oito matrizes de fundir armas de bronze[160]. O punhal de bronze e o punho de outro de ferro do mesmo typo, achados na Galiza, provam que um mesmo povo, na mesma epoca, ou em epocas proximas, fabricaria armas de bronze e de ferro. Em taes condições estavam os phenicios, pelo menos durante os ultimos tempos da sua existencia nacional.

As Baleares, como a Sardenha, como a Etruria, foram de certo focos, d’onde irradiaram para longes terras, pelo commercio, os objectos de bronze. Strabão diz serem os habitantes das Baleares optimos fundidores, e exercitarem esta arte desde o tempo da occupação d’aquellas ilhas pelos phenicios[161].

[Pg 127]

O sr. Chantre, n’uma obra recentemente publicada, colligiu innumeros factos que o levaram a classificar em dois grupos principaes os jazigos do bronze: 1.º As fundições; 2.º Os thesouros. A estas duas classes já bem determinadas convem accrescentar certas estações ou centros habitados, ainda mal definidos, e muitas sepulturas em raso campo, cuja presença nenhum signal apparente indica. «Uma fundição consiste ordinariamente n’uma simples cavidade aberta na terra, encerrando o material mais ou menos completo de um fundidor de bronze: barras de metal, escorralhas, restos, escorias, objectos usados inteiros ou partidos, moldes, pinças, ás vezes objectos novos sahidos do molde e por acabar. Taes fundições têem apparecido em muitos logares da Europa, mas particularmente em França, Saboia e Allemanha»[162].

Os thesouros constam unicamente de objectos novos sem terem servido, ás vezes ligados uns aos outros, e tão eguaes que de certo sahiriam do mesmo molde. Encontram-se em pequenas cavidades, feitas de proposito para os esconder. Os mais importantes appareceram nos Alpes.

Da uniformidade das fundições, encontradas na Europa, e de occuparem sempre logares solitarios, distantes das povoações, conclue o sr. Chantre que os fundidores pertenceriam a uma mesma casta nomada, que percorreria a Europa, e talvez outros continentes, exercendo a sua arte. Esta idêa parece-lhe confirmada pelas circumstancias respectivas aos thesouros, que seriam depositados em escondrijos por aquelles que os traziam, até a um regresso que muitas vezes circumstancias fortuitas e imprevistas impediriam.

Além d’estes factos, ha outros que parece egualmente provarem a existencia de origens unicas do bronze. A composição d’esta liga é a mesma por toda a parte. Os objectos encontrados, seja qual fôr o logar onde o tenham sido, denotam tres periodos differentes da epoca do bronze; 1.º aquelle em que apparece como raridade no meio de gentes occupadas a polir a pedra: 2.º aquelle em que o metal chega a substituir definitivamente a pedra para certos usos, em que lhe é manifestamente superior: 3.º aquelle em fim em que o ferro vem fazer concorrencia ao bronze e chega a supplantal-o. Allega-se tambem a falta da exploração do cobre na Europa. E de tudo isto conclue o sr. Burnouf, reproduzindo segundo cremos, a opinião do sr. Chantre, que a origem do bronze sería estranha á Europa, e n’uma região indeterminada da Asia. Admitte porém que, pelas differenças locaes, se ha de distribuir a Europa em tres grupos: o do Oural; o do Danubio e o do Mediterraneo[163]. Não reflectiu o auctor que ao primeiro d’aquelles grupos correspondem antigas minas de cobre exploradas pelos tchoudes; ao segundo as minas da Hungria e Transylvania; ao terceiro finalmente as da peninsula Iberica. Cornwalls, e porventura alguma outra região ignorada forneceriam o estanho aos fundidores do bronze.

[Pg 128]

Não será hoje facil, unicamente pelos vestigios encontrados, resolver os problemas que nos offerece a metallurgia da epoca do bronze. Entretanto ha certos factos conhecidos que, approximados e comparados uns aos outros, deixam entrever a possibilidade de uma solução. Herodoto falla de uma casta ou corporação de fundidores ambulantes, provenientes da Asia[164]. Durante a idade media ainda a mesma raça frequentava as villas e aldeias da Europa, odiada e perseguida por todos. Com o desenvolvimento da industria cada vez se tornaram menos frequentes as apparições d’estas tribus errantes. Comtudo ainda ha poucos annos uma percorreu a Hespanha e Portugal, acampando fóra das povoações e demorando-se em cada estação emquanto lhe davam trabalho. Esta gente é da casta dos ciganos, e pelo mesmo nome ou pelos correspondentes designada nos differentes paizes.

Segundo Herodoto, os sigynnos seriam os mais antigos dos habitantes da Peninsula e, na oppinião de alguns auctores, seriam tambem os ciganos da antiguidade. Com effeito syginnos, tzigeuners, ziguener, em Allemanha, tchingenés, na Turquia, parecem variantes do mesmo nome. Mas, se já entre os antigos iberos havia ciganos, sel-o-hiam tambem os sicanos ou sequanos, iberos que na Sicilia precederam os siculos? No ultimo capitulo d’este livro diremos algumas palavras mais ácerca d’esta questão obscurissima da ethnologia peninsular.

NOTAS DE RODAPÉ:

[139] Pelo menos Desor não os menciona, estampando e descrevendo minuciosamente os instrumentos de bronze. Vej. Les palaffittes ou constructions lacustres du lac de Neuchatel.—Pariz 1865.

[140] Lubbock, L’homme préhistorique, pag. 53.

[141] Idem, pag. 54.

[142] Lenormant, Les premières civilisations, tom. I, pag. 87 e 88.

[143] Vej. a pag. 27 d’este livro a classificação proposta.

[144] L’âge du bronze, pag. 179.

[145] Lubbock, op. cit. pag. 233.

[146] Rougemont, op. cit. pag. 32 e 33.

[147] Lubbock, op. cit. pag. 233.

[148] Lenormant, op. cit. pag. 106.

[149] Idem, pag. 86.

[150] Los monumentos megaliticos de Andalucia, Extremadura y Portugal y los aborigenes ibericos, Museu español de antigüedades, tomo VII.

[151] Lo preshistorico en España, Anales de la sociedad española de historia natural, tomo I, cuaderno 2.º pag. 210.

[152] Armas, utensilios y adornos de bronce recogidos eu Galicia. Museu español de antigüedades, tomo IV, pag. 64.

[153] Armas, utensilios y adornos de bronce recogidos en Galicia. Museo español de antigüedades, tomo IV, pag. 64.

[154] J. F. N. Delgado, Noticia das grutas de Cesareda.

[155] Op. cit.

[156] A cabra, encontrada no Redondo e pertencente hoje ao sr. Dr. Sanches da Gama, appareceu juntamente com moedas romanas e vasos de barro debaixo de uma pedra, perto da villa de Redondo, districto de Evora. O possuidor da cabrinha conserva tambem algumas das moedas que diz serem do imperador Filippe. O individuo que fez o achado insiste em que todos estes objectos estavam juntos debaixo da mesma pedra. Difficil parecerá attribuir á epoca romana a cabrinha do Redondo, cujo lavor todavia é menos imperfeito que o das que se conservam na Bibliotheca de Evora e as fig. 79 e 80 representam. O sitio do achado foi junto de certo ribeiro, distante um kilometro de Montoito.

[157] Antigüedades prehistoricas de Andalucia.

[158] Diz Lenormant que, no tempo em que os aryos e os semitas eram ainda pastores, florescia na Asia anterior uma civilisação exclusivamente turania e kuschita. A de Susiana sería anterior á de Babylonia, pois que os chaldeus a denominavam por excellencia o paiz antigo. As gentes turanias que a povoavam, já vinte e tres seculos antes de Christo, emprehendiam remotas conquistas. Les premiéres civilisations, tom. I, pag. 108.

[159] Rougemont, L’âge de bronze, pag. 121.

[160] Revue d’anthropologie, 1875, pag. 508.

[161] Strabão Geograph. lib. III. «... funditores tamen sunt optimi, aiuntque eam artem eos magnopere exercuisse, ex quo tempore Phœnices eas insulas occuparunt. Hi primi hominum feruntur gestasse tunicas laté pretextas.»

[162] Emile Burnouf, L’âge du bronze, Revue des deux mondes, 15 juin 1877, pag. 752 a 782.

[163] Ibidem.

[164] E. Burnouf, loc. cit.


[Pg 129]

CAPITULO IX
ORIGENS ETHNICAS

Os finnicos e os vasconços.—Os seus idiomas agglutinatívos.—Origem turania dos finnicos.—Será commum aos vasconços?—Provas deduzidas da philologia e da anthropologia.—Hypothese de Retzius e sua classificação das raças humanas.—Refuta-se esta hypothese.—Opiniões dos philologos ácerca da linguagem vasconça.—Os mais antigos dos craneos da Peninsula e da Europa.—Craneos fosseis de Néanderthal e de Gibraltar.—Outros do Cabeço da Arruda, Cesareda e Cueva de la Mujer.—Maxillas.—Raça de Cro-Magnon.—Sua dístribuição geographica.—Povoaria a peninsula Iberica?—Será representada ainda hoje pelos beréberes?—Factos comprobativos.—Necessidade de novas observações.—Os beréberes e os antigos egypcios.—Povos mediterraneos.—Sua civilisação ha tres mil annos.—Extender-se-hia á Peninsula?—Conclusões.

Nos extremos da Europa, entre os pantanos da Finlandia, no meio das brenhas e fraguras dos Pyreneus, remanecem, com os nomes de finnicos e vasconços, os ultimos representantes de duas raças estranhas. Parece que outros povos mais civilisados, a quem teriam de ceder o passo e de abandonar os logares amenos e apraziveis, onde em principio habitariam, os foram de tempos a tempos repellindo e internando para as suas vivendas actuaes. O insolito da linguagem, dos costumes, das propensões, em summa do typo ethnico, em todas as epochas tem feito com que lhes attribuam maior antiguidade que aos outros povos da Europa. A linguagem, sobre tudo, torna-se por extremo notavel, pelo seu caracter agglutinativo, entre idiomas, que, por serem flexivos, correspondem a um grau superior de cultura e desenvolvimento intellectual.

Convém saber que os philologos modernos admittem tres phases distinctas na evolução da linguagem: o monosyllabismo, a agglutinação e a flexão. Ainda hoje alguns povos se conservam na primeira d’estas phases; outros persistem na segunda; outros, em fim, mais perfectiveis, mais dispostos a modificar-se, obedecendo á lei do progresso, elevaram-se á terceira. Ora, assim como o chinez de Cantão ou de Fo-Kien (porque n’outras provincias da China a linguagem offerece o curioso phenomeno da transição da primeira para a segunda phase) assim como o chinez de Cantão ou de Fo-Kien[Pg 130] parece incapaz de passar do monosyllabismo á agglutinação, e muito mais á flexão, assim tambem o finnico e o vasconço têem conservado até hoje, no meio e em contacto de povos que fallam idiomas flexivos, a sua antiga linguagem agglutinativa.

Com razão pois se tem considerado estes dois povos como subsidios importantes para a solução do problema das origens ethnicas da Europa. Porquanto, determinada a raça ou determinadas as raças d’onde procederam os finnicos e os vasconços, conhecer-se-hiam desde logo os predecessores dos mais antigos dos povos que a historia menciona. Aos vasconços, isolados como estão, e distantes de outros povos com idiomas agglutinativos, não se lhes póde rastejar a stirpe, mas quem seguir attentamente os passos e vestigios dos povos finnicos para as partes orientaes, lá irá encontrar a mesma raça na Asia; pela Siberia occidental, dilatando-se até ao rio Jenessei e até aos montes Altai. E pois se vê confinar ahi, da parte do nascente, com mongoes propriamente ditos, e, da parte do sul, com turcos e tartaros, não é muito que se tenham os finnicos como um ramo do grande tronco mongolico, e se designem tanto a estes, como aos outros povos com que se emparentam, pelo nome generico de turanios, da região que parece ter-lhes sido berço, para os distinguir dos aryos ou iranios, povos oriundos não do Turan, mas do Iran.

Procederiam, porém, os vasconços egualmente do Turan, e pertencerão por conseguinte á raça mongolica? O caracter agglutinativo da linguagem, só por si, não basta para demonstrar identidade de origem ou de raça. Homens brancos, amarellos e negros fallam idiomas agglutinativos em varias partes do mundo. Mas Luciano Bonaparte e Charancey julgaram achar outras analogias particulares entre o finnico e o vasconço, e entenderam que seriam ambos da grande familia das linguas turanias do norte da Asia[165]. No campo da anthropologia cuidou Retzius ser commum a finnicos e vasconços a mesma fórma do craneo. Assim a identidade ethnica d’estes povos parecia provada por duas das sciencias que mais competentemente o poderiam fazer.

Deixaremos aos philologos a analyse e discussão da prova philologica, por exigir conhecimentos geraes de linguistica e especiaes dos idiomas agglutinativos. Mas, para bem se avaliar a prova anthropologica, importa-nos dizer algumas palavras ácerca da hypothese de Retzius.

A côr da pelle, da iris e do cabello, por uma parte, e por outra parte a distribuição geographica, têem servido de elementos fundamentaes á maior parte d’aquelles que tractaram de classificar as raças humanas. Todavia nem Blumenbach, nem Cuvier, nem Morton, nem Agassiz, nem qualquer dos auctores de classificações principalmente fundadas nos caracteres referidos, deixaram de prestar a devida attenção aos da fórma e capacidade do craneo. Tal é com effeito a importancia d’estes caracteres, que, relativamente aos de outros orgãos, muito bem poderemos consideral-os como subordinadores.

Retzius foi quem primeiro classificou as raças humanas sómente pelas[Pg 131] mais apparentes das differenças anatomicas observadas nos craneos. A classificação do celebre medico sueco, ha poucos annos fallecido, é tão simples como engenhosa. Todos os craneos humanos são ou dolichocephalos (alongados), ou brachycephalos (arredondados). Admittida esta divisão geral, as raças humanas, segundo o auctor, dividir-se-hiam tambem em raças dolichocephalas e raças brachycephalas. Cada uma d’estas classes se subdividiria em raças orthognathas (com maxillas verticaes) e em raças prognathas (com maxillas inclinadas de trás para diante e de cima para baixo)[166].

No tempo de Retzius os mais antigos dos craneos que na Scandinavia se conheciam eram brachycephalos; e, como os dos finnicos o fossem tambem, e se julgasse o mesmo dos vasconços, suppoz aquelle anthropologo que a Europa, antes de ser habitada pelos povos actuaes da raça iranía, o teria sido por outros da raça turania, dos quaes o maior numero sería destruido pelos primeiros, e o resto afugentado para as vertentes dos Pyreneus e para as regiões pantanosas da Finlandia.

Outro povo, não menos antigo, na opinião de alguns procedente da Peninsula, e, portanto, aparentado com os vasconços, seriam os liguros. No tempo de Herodoto e de Hecateu de Mileto habitavam uma parte da Italia. Antecedentemente haviam fundado Genova, e em epoca ainda mais remota, mil e trezentos ou mil e quatrocentos annos antes de Jesus Christo, passavam á Sicilia com o nome de siculos; e expulsavam d’ahi os sicanos, bem como, alguns seculos antes, os haviam já expulsado das margens do rio Sicano da Iberia[167]. Os liguros tinham mediana estatura, olhos e cabellos negros e a cabeça redonda. Como por estes caracteres parecesse não pertencerem ás raças iranias, associaram-os tambem aos vasconços e finnicos, reportando-os á raça mongolica e constituindo com todos a população primitiva da Europa. Os liguros seriam dos povos autochtonos totalmente destruidos, chegando a perder-se a sua linguagem, que ninguem hoje sabe qual fosse, mas que, segundo a hypothese, deveria pertencer ao grupo das agglutinativas, e assimilhar-se, portanto, ás dos finnicos e dos vasconços[168].

Todas as apparencias pareciam pois em favor da hypothese. Povos de raça mongolica, taes como os finnicos, liguros e vasconços, habitariam em epocas remotissimas a Europa. Viriam depois os aryos que destruiriam os liguros e porventura outros povos, cuja memoria se perdesse, e deslocariam os finnicos e os vasconços para a Finlandia e para as vertentes meridional e septemtrional dos Pyreneus.

[Pg 132]

A hypothese de Retzius importava necessariamente: 1.º A brachycephalia dos mais antigos dos craneos humanos fosseis da Europa; 2.º A brachycephalia das raças mongolicas ou turanias; 3.º A brachycephalia dos finnicos, liguros e vasconços; 4.º finalmente, a dolichocephalia das raças aryas, e portanto da maior parte dos actuaes europeos. Contra a opinião de Retzius está hoje demonstrado: 1.º Que os mais antigos dos craneos humanos fosseis encontrados na Europa são dolichocephalos; 2.º Que a brachycephalia não é caracter exclusivo da raça mongolica ou de qualquer outra, mas que em cada raça ha uns craneos brachycephalos e outros dolichocephalos, predominando porém uns mais outros menos conforme os grupos ethnicos; 3.º Que os finnicos são brachycephalos, mas os vasconços hespanhoes dolichocephalos; 4.º Que entre os aryos ha tambem craneos redondos ou brachycephalos. Além d’isto a diversidade dos typos ethnicos dos finnicos e dos vasconços não consiste unicamente na fórma do craneo. Os primeiros têm grande estatura, cabello muito louro e olhos azues: os segundos são morenos com olhos e cabellos de côres escuras.

Destruida a prova anthropologica, resta-nos a prova philologica. Já dissemos que reservariamos aos philologos a analyse e discussão d’este ponto. Entretanto, limitando-nos aos argumentos de auctoridade, poderemos ainda mostrar que a prova não tem o valor que alguns lhe attribuiram. Com effeito, sendo extremamente communs na Asia, Africa e America os idiomas agglutinativos, tanto se póde relacionar o euskara (lingua dos vasconços) com o finnico da Europa, como com qualquer das innumeras linguas da mesma classe d’aquelles tres continentes. E na verdade todas essas hypotheses têm seus propugnadores. O atraso da philologia comparada e a imperfeição dos methodos de demonstração fazem possivel a defesa de todas as opiniões.

Modernamente porém vae prevalecendo a tendencia para reunir no mesmo grupo o euskara e certas linguas da America. A analogia, segundo Pruner-Bey, está na indole geral da linguagem euskara, na construcção da grammatica, e finalmente no systema de numeração. Whitney, sem affirmar decisivamente a analogia do vasconço com os idiomas americanos, entende que no Velho-Mundo não ha nenhum que lhe seja tão similhante[169]. Hovelacque, posto que censure aquelles que não hesitam em suppôr intimo parentesco entre o chippeway e o lénâpé ou outras linguas da America e o euskara, confessa comtudo haver certas analogias de conjugação entre os verbos das primeiras e os da segunda. Nota mais uma particularidade commum aos idiomas dos vascongados e de alguns povos americanos e vem a ser a composição por syncope. O vasconço faz, por exemplo, de ortz, nuvem, e de azantz, ruido, ortzanz, trovão ou, litteralmente, ruido da nuvem[170]. Em fim Max-Müller reune o vasconço, o georgiano e as linguas agglutinativas da America no mesmo grupo que chama das linguas holophrasticas, terceiro das[Pg 133] agglutinativas, e colloca a lingua dos finnicos separadamente no segundo grupo das linguas turanias[171].

Mais adiante veremos que não sómente a philologia, mas tambem a archeologia propende a estabelecer interessantes relações entre os habitantes prehistoricos da Iberia e os de certas regiões da America. Por agora, inutilisado o fio que Retzius propozera, para servir de guia no labyrintho das origens ethnicas da Europa em geral e mais em particular da Peninsula, buscaremos outro que nos offerecem os ultimos descobrimentos da paleontologia humana.

Dentro dos limites d’esta sciencia, que não passa ainda para além da idade quaternaria, os vestigios dos primeiros habitantes da Peninsula correspondem ás estações prehistoricas de San Isidro, perto de Madrid, e da pedreira de Forbes em Gibraltar. Consistem os primeiros em instrumentos de silex, os quaes, pelas fórmas e lascado, se assimilham de tal sorte áquelles que se tem descoberto em Saint-Acheul, que mui naturalmente se reportam á mesma epocha, isto é, aos primeiros tempos da idade quaternaria, o que tambem se prova com a grande espessura do deposito que é de vinte e um metros bem medidos. O craneo achado em Gibraltar tem os caracteres anatomicos da mais antiga das raças até hoje conhecidas. Importa-nos pois saber qual foi esse typo humano, e quaes os elementos por onde os naturalistas fixaram os seus caracteres fundamentaes.

No anno de 1857 o dr. Fuhlrott impressionou vivamente o mundo com uma descoberta inesperada. Foi nem mais nem menos que o celebre craneo de Néanderthal, na caverna d’este nome, perto de Hochdal, entre Düsseldorf e Elberfeld, na Prussia. A extraordinaria proeminencia das arcadas supraciliares que formam grosso rebordo na parte anterior, o grande desenvolvimento dos seios frontaes, o angulo facial, calculado aproximadamente no fragmento restante, entre 56° e 66°, o occiput alongado, as suturas escamosas, a espessura dos ossos, a estreiteza e pouca altura da fronte e outras estranhas particularidades tão differente o fazem do typo normal, que, visto por qualquer das faces, não parece o que em verdade é—um craneo de homem.

Alguns naturalistas que o estudaram, como Schaaffausen, Huxley, Vogt, Lyell disseram francamente assimilhar-se ao do macaco o craneo humano de Néanderthal muito mais que qualquer outro das raças contemporaneas. Outros, porém, Busk e Barnard Davis, por exemplo, negaram tal similhança, declarando aquelle craneo mui pouco differente do typo actual. Á Sociedade anthropologica de Pariz apresentou Gratiolet o craneo de um idiota contemporaneo para mostrar que era com este e não com o do gorilla a similhança do craneo de Néanderthal. Em opposição aos naturalistas primeiramente citados, e tambem a Gratiolet, appareceu Pruner-Bey a sustentar que o volume do cerebro, outr’ora contido no craneo descoberto por Fuhlrott,[Pg 134] ultrapassaria o volume medio do cerebro do homem moderno, e a attribuir, em conclusão, o mesmo craneo a algum dos celtas, frequentadores das cavernas do valle do Rheno[172].

Os adversarios de Darwin e da hypothese transformista empenhavam-se pois em attenuar o valor de uma prova, que se lhes afigurava concludente para mostrar como a especie humana poderia proceder de alguma outra especie inferior. Todavia Quatrefages, apezar de adversario tambem d’esta idêa, não pretendeu aperfeiçoar a fórma nem reduzir a antiguidade do craneo de Néanderthal. Incapaz de contradizer ou alterar a verdade manifesta para acreditar as opiniões proprias e mascabar as alheias, escreveu:

«Os achados muito recentes de Faudel no lœhm de Eguisheim (Baixo-Rheno), de Cocchi nas argilas post-pliocenas do Olmo, perto de Arezzo (Italia), de Eugenio Bertrand nas alluviões quaternarias das baixuras de Clichy (Sena), de Fitz, em fim, nas areias diluvianas de Brux (Bohemia), ao mesmo tempo que demonstraram serem os caracteres anatomicos do homem de Néanderthal characteres ethnicos, posto que exaggerados, confirmaram tambem as primeiras idêas apresentadas ácerca da sua antiguidade relativa. Com effeito quasi todas estas peças osseas, ajuntando-lhes as maxillas de la Naulette, de Arcy, de Clichy, de Goyet, parece agora poderem referir-se á mais antiga das idades quaternarias, áquella em que abundantemente predominavam os grandes mammaes desapparecidos da face da terra. O estudo anatomico d’estes fragmentos parece attestar haverem pertencido a uma só e mesma raça dolichoplatycephala e prognatha...»[173].

Os mais antigos dos restos fosseis da especie humana, até hoje descobertos, remontam pois aos primeiros tempos da idade quaternaria, quando o mammouth, as especies priscas do rhinoceronte, o megaceronte hibernico e outras alimarias desapparecidas habitavam ainda a Europa, e disputavam aos nossos infelizes antepassados a posse das cavernas, a presa dos animaes ou a colheita dos fructos da terra. Na maior parte d’esses restos humanos se observam, se bem que menos proeminentes, os caracteres do craneo de Néanderthal. Á raça a que todos se attribuem deu-se o nome generico de raça de Canstadt, por ter apparecido no campo dos mammouths, perto d’essa cidade, no Wurtemberg, o primeiro dos craneos em que se verificaram taes caracteres.

Pondo de parte a estação de San Isidro, onde até hoje não tem apparecido nenhum craneo, resta-nos a pedreira de Forbes em Gibraltar, cujo craneo Quatrefages comprehendeu entre os da velha e primitiva raça de Canstadt. Com quanto faltassem no jazigo fosseis caracteristicos para se determinar a epoca do homem a quem pertenceu este craneo, é todavia certo que, pelas suas fórmas, se assimilha por extremo áquelles entre os quaes foi classificado. Eis aqui os mais notaveis dos seus caracteres: paredes grossas,[Pg 135] capacidade pequena, occipital alongado para traz, escama temporal com a fórma de curva abatida, arcadas supraciliares muito proeminentes, apophyse orbitaria externa extremamente desenvolvida, fronte muito obliquada para traz e separada, por uma depressão, das enormes arcadas. As orbitas são tambem muito grandes e muito distantes uma da outra. A sua largura, e ainda mais a sua altura, são as maiores que Broca até hoje tem encontrado em craneos de homem. Visto de face, os rebordos externos das orbitas sobresahem tanto, que, bem como no de Néanderthal, encobrem inteiramente a região temporal. Os ossos malares, deprimidos no angulo superior, descem quasi verticalmente, de modo que, apezar da extensão do diametro bimalar, mal se conhecem as maçãs do rosto. São muito largos os buracos das fossas nasaes. Os ramos ascendentes dos maxillares superiores têem a fórma quasi convexa por cima e aos lados d’estes buracos. A arcada dentaria, robusta, alonga-se muito no sentido antero-posterior, formando uma volta de ferradura, que se aperta notavelmente na parte de traz. Huxley, Broca, Alix insistiram n’este caracter que lhes pareceu particular da raça de Forbes’-Quarry. Em fim, a face é prognatha; e o angulo facial de Camper, difficil de medir por causa do desenvolvimento dos seios frontaes, parece de 75 graus, e de 70 graus o angulo facial alveolar. A tamanho prognathismo da maxilla superior corresponderia provavelmente certo gráu de projecção da parte media da arcada dentaria inferior, d’onde resultaria a inserção obliqua dos incisivos, notada por Spring[174].

Os auctores da Crania ethnica vêem o mesmo typo de Canstadt, posto que extremamente modificado, n’outros craneos fosseis descobertos em Hespanha e Portugal. Na raça que habitava o Cabeço da Arruda, e que deixou n’este logar tão abundantes vestigios que se calcula teriam pertencido a uns quarenta e cinco individuos, observa-se o contraste dos caracteres do typo de Canstadt com os de outro typo menos antigo. Assim, á proeminencia das arcadas supraciliares, á larga depressão que as separa, ao desenvolvimento dos seios e á pequena elevação das bossas frontaes correspondem nos mesmos craneos a altura da região frontal, a brachycephalia e a maior capacidade interior, de certo proporcionada a cerebros mais volumosos que os da antiga raça de Forbes e Néanderthal. Os caracteres da face, porém, relacionam outra vez a raça do Cabeço da Arruda com outras mais imperfeitas. Os caracteres dos maxillares demonstram notavel prognathismo e grande largura dos buracos nasaes. Nos maxillares inferiores observam-se tambem signaes de prognathismo; além d’isto alguns dos caracteres da celebre maxilla de Moulin-Quignon, e por fim a saliencia triangular do mento[175].

Dissemos n’um dos capitulos anteriores as razões por que se ha de attribuir a raça do Cabeço da Arruda á epoca da pedra polida e provavelmente[Pg 136] ao tempo dos kiokkenmoddings. Á mesma epoca da pedra polida se reportam os vestigios encontrados nas cavernas de Cesareda. Aqui, posto que os caracteres ethnicos de alguns individuos diffiram muito d’aquelles que ultimamente analysámos, outros ha todavia que se lhes assimilham. Parece ter havido n’esta estação prehistorica a sotoposição de varios depositos correspondentes a varias epocas. Não é muito pois, que juntamente com os vestigios da epoca do Cabeço da Arruda appareçam outros differentes, mais ou menos antigos e até de raças diversas.

Nos dentes das maxillas da Casa da Moura, uma das cavernas de Cesareda, nota-se tamanho desgaste, que a face de trituração de todos elles deveria formar uma superficie concava. O prognathismo é maior n’estes maxillares que nos do Cabeço da Arruda. Tanto nas maxillas superiores como nas inferiores se notam, se bem que pouco distinctas, as suturas inter-maxillares, o que, junctamente com o excessivo alongamento de traz para diante, demonstra o grau inferior d’aquella raça na escala dos seres humanos. Os auctores da Crania ethnica, depois de descreverem os principaes caracteres dos ossos maxillares de Cesareda, convem em que, pela sua fórma, são muito analogos aos do homem fossil de la Naulette ou d’Arcy, pertencente á primeira raça que denominaram de Canstadt.

N’um dos craneos de Cesareda a fronte é pequena, achatada de ambos os lados e muito inclinada de diante para traz. As dimensões d’este coronal coincidem com as do osso correspondente do craneo de Forbes ou de Néanderthal. Os caracteres dos parietaes são tambem os mesmos n’estes e n’aquelle; mas, apezar da depressão da sutura sagital, commum a todos, no craneo de Cesareda ha mais alguma elevação na parte media. Este e outros craneos de Cesareda são dolichocephalos ou sub-dolichocephalos, caracter que só por si importa differença grande entre os seus habitantes e os do Cabeço da Arruda[176].

O frontal da Cueva de la Mujer, caverna proxima da Alhama de Granada, offerece, posto que menos salientes, os caracteres da parte analoga do craneo da pedreira de Forbes. O craneo a que pertencia aquelle frontal deveria ser extremamente dolichocephalo, e conter um cerebro pouco desenvolvido na parte correspondente ás faculdades intellectuaes. Com este osso encontraram-se outros do esqueleto, e entre elles um femur, a cujas altas proeminencias se apegariam musculos de grande força. Tambem, pela sua grande curvatura, differe da fórma que tem actualmente nas raças europeas, e até d’aquella que outr’ora teve nas raças antigas da mesma região[177].

Todos os observadores tem sido conformes em considerar analogas as maxillas fosseis da Peninsula e a de Moulin-Quignon. Áquellas que já mencionámos convirá accrescentar outra que appareceu em Gibraltar juntamente com instrumentos de pedra polida e de bronze, e que Falconer e Pruner-Bey[Pg 137] acharam tambem similhante á celebre maxilla descoberta em Abbeville em 1863[178].

Auctorisará este facto a suppôr que os habitantes primitivos da Peninsula, excepto os de Forbes’-Quarry e porventura outros contemporaneos de que se não descobrissem ainda vestigios, pertenceriam á mesma raça ou antes á mesma familia de Moulin-Quignon? Não. Porque esta era brachycephala; ora a brachycephalia não se tem verificado senão nos craneos do Cabeço da Arruda. Os outros, entre elles o da Genista de Gibraltar, são dolichocephalos. Além d’aquelles que já mencionámos, ha os da Andaluzia, que Gongora affirma serem dolichocephalos, por ter examinado muitos, achados em varios sitios d’esta provincia[179]. Logo, se os craneos fosseis da Peninsula são pela maior parte dolichocephalos e não se podem classificar entre os do typo de Canstadt, ao que obstam não sómente os caracteres anatomicos, mas tambem o terem apparecido juntos com ossos de animaes domesticos, haveremos de referil-os á segunda raça dolichocephala de Quatrefages e Hamy, isto é ao typo de Cro-Magnon.

É cedo ainda para bem definir e classificar as raças prehistoricas, e muito mais para delinear com exacto rigor a sua distribuição geographica. Não resta duvida nenhuma de que o homem foi contemporaneo dos grandes mammaes desapparecidos; parece incontestavel que tambem o seriam alguns d’aquelles restos fosseis, dos quaes se fez resaltar o typo da primeira raça; mas do craneo de Canstadt que lhes deu o nome, ha quem affirme não ter essa antiguidade. Virchow cita um escripto de Hælder que torna o caso duvidoso[180]. Por outra parte, os diversos typos humanos, até hoje determinados, não se succederam uns aos outros em epocas egualmente successivas. Os typos mais antigos continuaram a apparecer por entre os menos antigos, e, por virtude da lei atavismo, ainda hoje se reproduzem alguns dos seus caracteres em certos individuos contemporaneos.

Da raça de Cro-Magnon conhecem-se melhor os caracteres anatomicos, por terem apparecido restos mais completos e mais numerosos; mas a sua distribuição geographica, fóra da França, não está perfeitamente demarcada. Quatrefages e Hamy affirmam haver-se encontrado o typo de Cro-Magnon em Hamoir, na Belgica; em Léry, no Eure; em Grenelle; em Lozére; nas landes de Bordeaux; em Sordes, na Gascunha; nas Vascongadas, nos craneos dos vasconços primitivos; em Zaraus; nos tumulos megalithicos da Africa, explorados pelo general Faidherbe; no paiz dos Kabylas de Djurjura, na Roknia; e finalmente nos craneos dos guanchos das Canarias[181]. Accrescentemos a estas regiões, pelos motivos ponderados, Portugal e Andaluzia, e as Asturias por se ter descoberto um craneo do mesmo typo na mina de cobre[Pg 138] del Milagro. É obvia a importancia fundamental d’este roteiro para a ethnologia da Peninsula. Faça-se corresponder o centro da raça de Cro-Magnon ao sudoéste da França, e mais em particular ao valle de Vezére, a um territorio aproximadamente circumscripto pelos limites da antiga Aquitania, e admitta-se a existencia de vestigios d’esta raça nas regiões habitadas pelos vasconços, nas terras litoraes de Hespanha e Portugal, e finalmente, além do Estreito, na Africa do norte. Ficará assim resolvido, em parte, o problema das origens autochtonicas da peninsula Iberica. Quem ignora que os povos da Aquitania passavam por iberos, que estes occuparam uma grande parte da Peninsula, a que deram o proprio nome, se não o receberam d’ella ou de um dos seus rios; que os vasconços são considerados ainda hoje commumente como os ultimos restos d’essa gente notavel, que, mais pela prehistoria do que pela propria historia, se conhece; e finalmente que a proximidade geographica, as analogias ethnicas, as da fauna e da flora estão indicando a antiga existencia de povos irmãos nas costas meridionaes da Peninsula e nas septemtrionaes da Africa? A raça de Cro-Magnon, já de per si resultante do cruzamento de uma raça mais com outras menos imperfeitas, sería pois o fundo geral, onde, pelo decurso dos tempos, viriam misturar-se e dissolver-se os elementos ethnicos de outros povos, emigrantes de varios logares da superficie da terra, e mui differentes entre si pelos caracteres physicos e moraes.

Será porém a presupposta distribuição geographica da raça de Cro-Magnon, na parte respectiva á Peninsula, um facto real e positivo ou apenas uma hypothese que algumas circumstancias fortuitas fazem parecer provavel? Em que argumentos se estriba tal opinião?

Já vimos que os logares, onde os auctores da Crania ethnica suppõem ter existido a raça de Cro-Magnon, concordam exactamente com a hypothese, quando se applica fóra da Peninsula, e ainda aqui na parte correspondente ás Vascongadas. E, se não referiram ao typo de Cro-Magnon outros craneos fosseis achados em Hespanha e Portugal, os da Alhama e de Cesareda, disseram todavia bastante para se conhecer que tambem não os poderiam classificar entre os de Néanderthal, d’Engis ou de Forbes. Pela nossa parte entendemos que, á falta de mais minuciosa investigação, aquelles craneos pelas suas fórmas menos imperfeitas, por serem dolichocephalos e finalmente por terem apparecido juntos com ossos de animaes domesticos, só á raça de Cro-Magnon se hão de reportar. Os caracteres notaveis do femur de Alhama parece confirmarem esta mesma conjunctura; e tambem a analogia dos vestigios da industria humana achados n’esta caverna com aquelles que se encontraram em França, n’outra caverna de Dijon[182]. Assim pois admittiremos, como extremamente provavel, que a raça de Cro-Magnon habitaria nos tempos[Pg 139] prehistoricos uma parte da França, a peninsula Iberica e a Africa septemtrional. E para que a nossa opinião não corra desacompanhada de toda a auctoridade que lhe faça boa sombra, lembraremos em fim que anthropologos taes como Busk, Broca e Falconer, referiram ao typo de Cro-Magnon o craneo da Genista em Gibraltar, e o da mina de cobre del Milagro nas Asturias.

Mas, por outra parte, sabe-se que nos mais antigos dos tempos de que ha memoria, a raça berébere povoava já uma zona extensissima da Africa septemtrional desde as praias do Mediterraneo até ao oceano Atlantico, a Libya, a Numidia, a Mauritania e outros paizes, que os egypcios, os gregos e romanos variamente denominaram. Ora, se os kabylas representam ainda hoje e os guanchos representavam ha poucos seculos a raça de Cro-Magnon, se os primeiros são beréberes e os segundos o foram tambem, natural parecerá perguntar se os beréberes actuaes não representarão hoje em dia aquella velha raça de Cro-Magnon? Se, nos tempos prehistoricos não occupariam, portanto, uma parte da França, a peninsula Iberica e a Africa septemtrional, onde, por fim, mais livres de cruzamentos ou da acção expulsora de outros povos, se perpetuariam até hoje?

Broca e Hamy em França inclinam-se para esta hypothese que ultimamente foi tratada em Hespanha com grande desenvolvimento por D. Francisco Tubino[183]. Topinard não a demonstra, para o que será ainda cedo, mas affirma que fortes presumpções a tornam muito provavel[184].

Broca examinou innumeros craneos vasconços e julgou-os analogos aos dos beréberes[185]. Pruner-Bey tambem reconheceu nos maxillares, encontrados nas cavernas da Cesareda e no Cabeço da Arruda os caracteres do typo do berébere do continente africano[186]. Cita-se, além d’isto, em favor da hypothese a grande similhança da fauna e da flora, em geral, e mais em particular dos typos humanos, nos visinhos litoraes europeu e africano, das serras da Ronda e da cordilheira do Riff, por exemplo. Cita-se mais a união possivel em epocas remotas entre a Africa e a Europa em sitios correspondentes ao Estreito. Finalmente, admittindo este facto geologico, suppõe Quatrefages a raça de Cro-Magnon oriunda da Africa d’onde emigraria para a Europa com a hyena, o leão, o hippopotamo e outros animaes africanos[187].

Em França, onde, se têem descoberto e estudado muitos craneos e outros[Pg 140] ossos humanos fosseis, conhecem-se já os caracteres anatomicos da raça de Cro-Magnon e a sua distribuição geographica. Sabe-se, por exemplo, com certeza que era ao sudoeste a parte por ella mais povoada. Na Peninsula faltam-nos os estudos necessarios para affirmar com certeza qualquer opinião. Em vista das razões ponderadas, é provavel que á raça de Canstadt, representada pelo craneo de Forbes, e talvez pelos instrumentos de silex de San Isidro, se seguisse a de Cro-Magnon, á qual se reportam os outros craneos da Genista de Gibraltar, e os de Alhama, da mina del Milagro e de Cesareda. Mas, depois do muito que n’estes ultimos annos tem progredido a paleontologia humana, e particularmente depois da publicação da Crania ethnica, obra abundante de subsidios para os estudos comparativos, importa rever todos esses vestigios peninsulares, medil-os com exactidão, classifical-os e comparal-os entre si e com os typos conhecidos. Importa mais buscar outros vestigios, porque os de quatro ou cinco estações em toda a extensão da Peninsula não bastam para sanccionar qualquer conclusão positiva. Convirá finalmente passar além do Estreito, e determinar as relações de similhança ou de differença, que por ventura existam entre a paleontologia humana da Europa meridional e a das regiões septemtrionaes do continente africano.

A archeologia e a historia revelam-nos outros factos, que, posto que não cheguem a demonstrar cabalmente o predominio da raça berébere na Peninsula, dão todavia a esta hypothese mais alguns graus de probabilidade. Ha mais de tres mil annos os egypcios estavam em relações com os libycos, a quem chamavam lebu, d’onde se derivaria talvez a fórma grega libues. Os tumulos reaes das dynastias XVIII, XIX e XX, em Biban-el-Moluk, estão adornados de notaveis pinturas, entre as quaes se vêem representadas quatro raças que deveriam ser partes constituintes do vasto imperio dos pharaós. Em primeiro logar os rot ou egypcios, pintados de vermelho e parecidos com os paizanos actuaes das margens do Nilo; em segundo logar os namu de côr amarella e de nariz aquilino, correspondentes aos povos asiaticos que viviam ao oriente do Egypto; depois os nashu ou negros prognatas de cabello crespo; e finalmente os tamahou brancos, de olhos azues e cabellos louros[188].

Não falta quem supponha significar tamahou em egypcio homem do norte; e serem, portanto, os homens brancos e louros, em quem imperavam os pharaós, procedentes da Europa septemtrional. Mas o general Faidherbe impugna tal etymologia, e assevera que a lingua berébere ainda hoje se chama tamahoug no Sahara, onde mais pura se tem conservado[189].

[Pg 141]

Por outra parte, consta de uma grande inscripção de setenta e sete columnas, conservada em Karnak e interpretada pelo visconde de Rougé, que os tamahu capitaneados por Mormuiu, foram derrotados pelos pharaós Ramsés e Merenptah. Em fim, na Argelia appareceram monumentos de Tutmés III, em cujo tempo, consequentemente, se dilataria o imperio egypcio até áquella região extrema da Africa septemtrional[190].

Para combinar, harmonisar e explicar todos esses factos é mister referir os tamahu á Africa do norte, e por tanto suppôr que seriam beréberes, os quaes ora fariam parte do vasto imperio egypcio, ora tentariam libertar-se do jugo pouco toleravel de um povo distante e de raça differente. É verdade que o typo do berébere de hoje não parece muito conforme ao do tamahu de ha tres mil e tantos annos. A maior parte dos beréberes tem olhos, pelle e cabello escuros. Mas este typo contemporaneo póde não ser já o mesmo do tempo dos pharaós, por se ter alterado, por effeito de influencias estranhas, que não deixariam de transformal-o no espaço de tantos seculos. Muitos dos habitantes das montanhas de Marrocos e da Argelia, e os touaregs do Sahara, logares aonde era mais difficil chegar a influencia dos cruzamentos, são de alta estatura, claros, de olhos azues e cabello louro. Assim o attesta o general Faidherbe, que estudou as regiões da Africa septemtrional, e o confirma F. M. Tubino, accrescentando haver tambem observado com frequencia o mesmo typo nas serranias da Ronda áquem do Estreito. Encontrar-se-hão, porém, por todos os logares, aonde menos poderiam chegar influencias estranhas, beréberes brancos e de olhos azues, com quem se pareçam ainda hoje os retratos pintados ha trinta e mais seculos nos tumulos reaes de Biban-el-Moluk?

Mas a influencia da civilisação egypcia dilatava-se ainda para áquem dos limites do continente africano, e chegava muito perto da Peninsula, senão a algumas das proprias gentes que a povoavam. Quinze seculos antes da era christã já os sardos possuiam marinha militar, e duzentos annos antes, no seculo XVII, já o Egypto nomeava funccionarios especiaes para tractarem, em nome dos pharaós, as questões internacionaes com os povos pelasgicos do Mediterraneo, taes como os tuscos, dardanios e gregos[191]. A inscripção de Karnak menciona entre os homens do mar, alliados com os libycos, os sárdainá ou sardos, os turs’a ou etruscos e os mas’uas ou amazirghas[192]. É provavel que a todos tivesse applicação o nome generico de tamahou. Os rebu ou lebu (libycos) e os ma’suas que habitavam tambem a Africa septemtrional, apparecem adornados com o mesmo singular toucado; e vem a ser uma larga trança enroscada que passa por deante da orelha e cahe sobre a espadua, recurvando-se á maneira do chifre inferior de alguns carneiros.[Pg 142] O mais notavel é que um dos pharaós, Ramsés II, se adorna com toucado similhante. Por este facto, e porque se vê gravado nos braços e pernas dos tamahou o symbolo conhecido da deusa Neith, se provam as relações intimas que em epocas remotas ligavam estes povos aos habitantes do Egypto.

Os povos confederados, segundo a citada inscripção, invadiram o Egypto e chegaram até Memphis. Foram porém derrotados pelo pharaó ou pelos seus generaes. O principe Mormuiu perdeu o arco, a aljava e as sandalias juntamente com as suas joias de ouro e prata e utensilios de bronze. Os povos do mar deixaram tambem objectos de ouro e prata, espadas, facas, couraças e cnemides. Pela importancia e qualidade dos despojos se avaliará o subido grau de civilisação a que tinham chegado, ha mais de tres mil annos, todas estas gentes convisinhas do Mediterraneo[193].

Os povos da Peninsula, pelo menos os das regiões meridionaes e orientaes, acompanharam de certo os seus visinhos das ilhas do Mediterraneo e do norte da Africa nos estadios da civilisação que successivamente percorreram. Por aquellas mesmas regiões se encontram vestigios das construcções cyclopeas dos povos pelasgicos. Nas ilhas Baleares abundam os talayots analogos ás nuraghas da Sardenha. A par com estas construcções de fórma pyramidal vêem-se outras á maneira de barcos com as quilhas voltadas para cima, e que não são senão as mapalia ou magalia, que os getulos ou numidas do tempo de Sallustio construiam no seu paiz: «ædificia oblonga incurvis lateribus tecta quasi navium carinœ sunt»[194]. Os sardos e os iberos usavam a longa tunica negra e roçagante á moda dos médas, que, por este costume, se differençavam dos outros povos nomadas, celtas, scythas e germanos, cujos vestidos se lhes cingiam aos corpos e apenas lhes cobriam as pernas. Finalmente o cetra ou escudo pequeno redondo era usado pelos libycos, iberos e bretões[195].

De quanto deixamos ponderado parece-nos concluir-se com grande probabilidade: 1.º Que na epoca da pedra polida a Peninsula sería habitada pela raça de Cro-Magnon, pelo mesmo tempo existente na parte meridional da França e na septemtrional da Africa; 2.º Que esta raça é ainda hoje representada pelos beréberes; 3.º Que ha tres mil e mais annos os povos libycos e pelasgicos estavam já tão civilisados que podiam invadir o Egypto e medir-se com os exercitos dos pharaós; 4.º Que os habitantes da peninsula Iberica, pelo menos os de certas regiões, deveriam estar tambem similhantemente civilisados, e ter portanto ultrapassado a idade da pedra.

NOTAS DE RODAPÉ:

[165] Dictionaire universel du XIX siècle par P. Larousse, verb. Basque.

[166] Ethnologische Schriften.

Dolichocephalo, de dolichos, longo, e kephalê, cabeça. Brachycephalo, de brachus, curto, e kephalê, cabeça. Orthognata, de ortho, direito, e gnathos, maxilla. Prognatha, de pro, para diante, e de gnathos, maxilla.

[167] Thucydides, VI, 2.

[168] Virchow. Les peuples primitifs de l’Europe. La revue scientifique de la France et de l’étranger, 2.ᵉ série, 4.ᵉ année, n.º 1, juillet 1874, pag. 12. Vej. tambem Steur, Ethnographie des peuples de l’Europe, verb. Ligures.

[169] La vie du langage. Pariz, 1875, pag. 213.

[170] La linguistique. Pariz, 1876, pag. 87 a 106.

[171] Dictionnaire universel du XIX siècle, verb. Langage.

[172] Bulletins de la Société d’Anthropologie de Paris, tom. IV, pag. 314 a 323.

[173] Crania ethnica, pag. 7.

[174] Crania ethnica, pag. 21 e 22.

[175] Pereira da Costa, Noticia sobre os esqueletos descobertos no Cabeço da Arruda, Lisboa, 1865.

[176] Delgado, Noticia ácerca das grutas de Cesareda. Lisboa 1869.

[177] Mac-Pherson, La Cueva de la Mujer, 1.ª e 2.ª parte, Cadiz, 1870-1871.

[178] Bulletins de la Société d’Anthropologie de Paris, tom. V, pag. 62.

[179] Antigüedades prehistoricas de Andalucia.

[180] Les peuples primitifs de l’Europe. La revue scientifique de la France et de l’étranger, 2.ᵉ série, 4.ᵉ année, n.º 1, juillet, 1874, pag. 12.

[181] Crania ethnica. L’espèce humaine. Pariz, 1877, pag. 248.

[182] Vej. cap. IV, pag. 61. O femur de Alhama parece ser um femur de pilastra como os dos esqueletos dos guanchos e dos outros da raça de Cro-Magnon. As tibias achatadas ou platycnemicas, os peroneos clausteados e os cubitos arqueados caracterisam tambem a raça do Cro-Magnon.

[183] F. M. Tubino, Los monumentos megaliticos de Andalucia, Extremadura y Portugal, Museo español de antigüedades, tom. VII, pag. 353. Esta Memoria sahiu depois na Revista de Anthropologia de Madrid com o titulo; Los aborigenes ibericos ó los beréberes en la Peninsula.

[184] L’anthropologie. Pariz, 1876, pag. 486.

[185] Bulletins de la Société d’Anthropologie de Paris, tom. IV, pag. 38 a 62.

[186] Congrès internacional d’Anthropologie et d’Archeologie prehistoriques, 2.ᵉ session, 1867.

[187] L’espèce humaine. Pariz, 1877, pag. 240. Depois dos tempos geologicos, mas ainda nos prehistoricos, a passagem dos beréberes da Africa para a Europa não era impossivel pelas aguas do Estreito, pelo Mediterraneo ou pelo Atlantico. Entre as conchas fosseis, achadas em França na estação de Laugerie-Basse, algumas ha que não poderiam ter sido trazidas senão da ilha Wight. Ora durante a epoca do rangifer não havia communicação por terra entre a França e a Inglaterra. Idem, pag. 242.

[188] Topinard, L’anthropol., 451.

[189] Anatole Roujou, Recherches sur les races humaines de la France. Pariz, 1874, pag. 86.

[190] Tubino, Mem. cit.

[191] Steur, Ethnographie des peuples de l’Europe avant Jesus-Christ. Bruxelles, 1873, tom. III, pag. 193.

[192] Tubino, Mem. cit.

[193] Tubino, Mem. cit.

[194] Sallust. Bell. Jugurth. in princip. Ácerca dos talayots e das navêtas ou casas com a fórma de barcos ás avessas, da ilha de Menorca, veja-se o artigo do sr. Fernandez Duro, no jornal La Academia, n.º 12, que deu motivo a uma carta do auctor, publicada no mesmo jornal, tom. II, n.º 10.

[195] Steur, op. cit., tom. II, pag. 118. Rougemont, L’âge de bronze, pag. 286.


[Pg 143]

CAPITULO X
ORIGENS ETHNICAS
(CONTINUAÇÃO)

Se os vasconços descenderão dos beréberes.—Insufficencia das provas allegadas.—Hypotheses da unidade e da pluralidade iberica.—Razões favoraveis a esta ultima.—A philologia e a historia.—A Iberia do Caucaso comparada com a peninsula Iberica.—Os iberos e os povos com quem estavam relacionados.—Difficuldade de determinar os antigos povos peninsulares.—Asserções vagas dos auctores.—Necessidade de resolver o problema por methodos novos.—Até que ponto as invasões historicas esclarecem as prehistoricas.—O Mediterraneo e o Atlantico, vias principaes por onde vieram as civilisações á Peninsula.—Relacionam-se estas vias com as duas correntes das emigrações asiaticas.—A distribuição geographica dos dolmens peninsulares caracterisa uma das civilisações, vindas pelo Atlantico.—Os monumentos pelasgicos caracterisam outra, vinda pelo Mediterraneo.—Antinomia d’estas duas civilisações.—Outras antinomias entre o occidente e o oriente já nos tempos historicos.—As mais antigas das minas de cobre.—Analogias entre os povos antigos da Iberia e os da America.—A civilisação da epoca do cobre.—Os ciganos e os antigos fundidores do cobre e do bronze.

Broca e outros dos modernos propendem, já o dissemos, para classificar os vasconços entre os representantes actuaes da raça de Cro-Magnon, que, nos tempos prehistoricos povoara o sudoeste da França, a peninsula Iberica e o norte da Africa. N’esta hypothese os vasconços seriam pois os ultimos restos dos antigos beréberes, que em epocas remotas passariam da Africa á Europa. A dolichocephalia dos craneos dos antigos e modernos habitantes das provincias vascongadas é o unico facto até hoje conhecido e allegado em favor de tal idêa. Ora a insufficiencia d’esta prova demonstra-se claramente, porque, se os vasconços, por serem dolichocephalos, descendessem dos antigos beréberes ou da raça de Cro-Magnon, seguir-se-hia que todos e quaesquer craneos dolichocephalos pertenceriam á mesma raça: o que seria absurdo. Por outra parte sabe-se hoje que os vasconços francezes são brachycephalos. Por consequencia tão licito parecerá suppôr que os vasconços, primitivamente dolichocephalos, se tornariam, em parte, brachycephalos por effeito dos cruzamentos, como affirmar a inversa, isto é, que os vasconços primitivos teriam sido brachycephalos, e que, por influencia[Pg 144] de raças estranhas, se tornariam depois, na região mais sujeita a essas influencias, dolichocephalos[196]. A esta consideração accresce outra não menos ponderosa, e vem a ser que a similhança da lingua vasconça é com idiomas asiaticos e americanos e não com os da Africa septemtrional.

A opinião mais geralmente seguida é ser o euskara a lingua ou antes um dos idiomas dos antigos iberos, que se conservaria entre os vasconços pela resistencia maior que estes povos offereceram á dominação romana, e por serem aquelles em quem menos sensivel se tornou a sua influencia modificadora[197].

Tomando por fundamento as provaveis analogias entre os modernos vasconços e os antigos iberos, pretendeu Guilherme de Humboldt reduzir ao euskara de hoje as designações locativas das regiões da Peninsula que suppunha haverem sido habitadas por estes povos. Este systema, segundo o qual os antigos iberos constituiriam um povo unico e com uma só lingua, teve numerosos sectarios durante muitos annos. O iberismo oppunha-se ao celticismo, pois affirmava que na Peninsula, depois da invasão dos celtas, prevalecera a lingua e o caracter iberico.

Mas recentemente Charnock, Van-Eys e outros têem provado o muito que Humboldt se afastara da verdade nas suas interpretações[198]. Em vista dos interessantes resultados da critica moderna, a hypothese da unidade cede o passo á hypothese da pluralidade dos povos ibericos. Os resultados obtidos pelos philologos estão concordes com as indicações da historia. Com effeito, escriptores de todas as epocas descrevem-nos os iberos, os habitantes das varias regiões da Iberia, com costumes, nomes, idiomas e alphabetos differentes[199]. As tradições restantes representam-os divididos em tribus, sem[Pg 145] grandes relações entre si, ao que obstava a diversidade de sangue e de linguagem. Quando os celtas invadiram a Peninsula, a maior parte d’essas tribus não chegaram a confederar-se contra o inimigo commum. Algumas até se alliaram com elle contra os povos visinhos; outras permaneceram solitarias e impassiveis no meio da conflagração geral.

Apezar do influxo de sangue estranho, já de celtas, já de phenicios, já de carthaginezes nos povos peninsulares, os romanos encontram tamanhas difficuldades para subjugar a Iberia, como para unifical-a sob o imperio das mesmas leis. Ora vencedores, ora vencidos, luctam por espaço de dois seculos, e, sómente Julio Cesar consegue em fim fazer aceitar as leis romanas e o mesmo governo aos povos subjugados.

Durante quatro seculos mantem-se a união da Peninsula pela força das armas, e mais ainda pelo commum interesse dos seus habitantes em conservar a civilisação que Roma lhes impozera e ao mundo antigo. Mas, depois da destruição do imperio, rotos os laços que estreitavam os povos, renovam-se as sub-divisões da Hespanha em pequenos estados, differentes uns dos outros pelas religiões, leis e costumes. Mais tarde, estabelecida a unidade religiosa, o elemento monarchico chega a ligar por vezes n’um só todo as varias partes desaggregadas. Mas a esta força oppõem-se sempre mais ou menos, por uma ou por outra fórma, as resistencias derivadas das differenças originaes. Ainda hoje a Hespanha se esforça para conservar unidas as suas provincias, e para obrigal-as a se regularem pelos mesmos codigos, e a se organisarem pelos mesmos principios administrativos. Difficil empreza! Hoje, como em epocas passadas, resistem poderosamente a esse grande esforço os sangues diversos que gyram nas veias dos peninsulares. A pluralidade das origens dos velhos iberos ainda agora se patentêa nos ultimos dos seus descendentes!

Demonstrada, em opposição á unidade, a pluralidade iberica, segue-se naturalmente investigar que povos seriam esses collectivamente designados[Pg 146] pelo nome de iberos. E primeiro que tudo vejamos até onde se póde determinar a origem da palavra Iberia.

Junto do Caucaso, na lingua de terra que separa o mar Negro do mar Caspio, no logar actualmente occupado pela Georgia, houve um paiz homonymo com a Peninsula. Chamavam-lhe os latinos Iberia e iberes ou iberi aos seus habitantes. Muitos rios a regavam, em cujos areaes, bem como nos dos rios de Hespanha, diziam antigos auctores abundarem palhetas de ouro. A um d’elles, o rio Arak, chamavam Arago, nome commum ao affluente do Ebro na Hespanha. Em correspondencia a este ultimo, citava Strabão o rio Ibero. Finalmente ambas as Iberias, ricas de metaes, foram exploradas em eras remotas.

Acham interpretadores da Biblia que a Iberia do Caucaso, e não a nossa, como erradamente escreveram auctores portuguezes e hespanhoes, teria sido povoada por Tubal e Mesec, filhos de Japhet e netos de Noé. Nos dois irmãos personificava Ezechiel os scythas que em tempo de Cyaxara reinavam na Asia Anterior, e tinham por berço a Scythia iberica, e concorriam com vasos de bronze aos mercados de Tyro. Alguns dos antigos, desde Homero, qualificam de grandes exploradores e fabricantes de metaes os povos da Iberia Caucasica ou das regiões proximas, abundantes de minas de prata, cobre, ferro, etc. Os chalybes, habitantes do paiz de Thermodoon, inventaram o processo de temperar o aço, designado entre os gregos usualmente pelo nome dos inventores[200].

Taes analogias suscitam naturalmente a idêa de que um povo, emigrado da Iberia do Caucaso, estabelecendo-se nas regiões do nordeste da Hespanha, ahi continuaria a explorar os metaes, applicando a certos rios, e porventura a outros logares, os nomes dos rios e logares que tinha deixado, e designando todo o paiz que viera occupar, ou antes explorar, com o de Iberia, por se chamar assim o seu proprio paiz natal. A preponderancia d’este povo faria depois com que se extendesse a toda a Peninsula e ainda mais além o nome da parte onde elle dominava.

Na antiguidade havia já quem seguisse esta opinião. Outros eram porém pela contraria, sustentando que os iberos da Europa teriam colonisado e denominado a Iberia da Asia. Outros, finalmente, julgavam que entre os iberos da Asia e os da Europa não havia similhança nenhuma nem na linguagem nem nos costumes, e só o nome seria commum. Appiano, contemporaneo de Trajano e de Marco Aurelio, menciona todas estas tres opiniões[201]. A primeira é a mais geralmente seguida; porém não falta quem prefira a ultima, estribando-se nos caracteres iranios dos iberos asiaticos, e na falta de taes caracteres entre os iberos occidentaes, que pertenceriam a uma raça estranha ao grande tronco indo-europeu[202]. A verdade é que, na actualidade, a anthropologia[Pg 147] não sabe ainda com certeza classificar estes povos. Ha razões para crer que seriam formados pela mistura da raça turania e da irania. Em fim os argumentos philologicos até hoje apresentados não têem mais força que todas as analogias que mencionámos, como provas da procedencia caucasica dos iberos europeus, e particularmente quando se pretende substituir aquella origem pela incertissima Atlantida de Platão[203].

A Iberia e os iberos apparecem-nos na transição da prehistoria para a historia sem que se lhes possa rastrear as origens. Os mais antigos dos geographos gregos chamavam Iberia ás regiões para áquem do Rhodano. Assim o declara Strabão[204]. Com effeito, Eschylo, escriptor do seculo V antes de Jesus Christo, e Avieno, que escreveu a Ora maritima no seculo IV da nossa era, porém com documentos pouco posteriores á fundação de Marselha pelos annos de seiscentos antes de Christo, indicam o Rhodano como limite da Iberia.

Mas, por outra parte, não faltam egualmente razões para crer que os antigos chamavam em particular iberos aos habitantes do litoral mediterraneo desde o Segura até aos Pyreneus[205]. Parece portanto que o nome de iberos, pertencendo primitivamente a estes povos, se extenderia depois a outros que no resto da Peninsula, e ainda para além dos Pyreneus, se alliariam com elles, e mais por interesses commerciaes ou outros, do que por similhanças ethnicas.

No tempo da guerra de Troia, onze ou doze seculos antes de Christo, os siculos invadiam a Sicilia e expulsavam os sicanos. Ora a origem iberica dos sicanos é attestada por Thucydides, Philisto de Syracusa, Ephoro, Dyonisio de Halicarnaso e outros[206]. Os primeiros d’estes auctores concordam em que os sicanos habitavam nas margens de um rio chamado Sicano, que, segundo a opinião geral, sería o Jucar, que desemboca no Mediterraneo ao sul de Valencia. Avieno e Hecateu fallam de certa cidade chamada Sicana, que no seculo VI antes de Jesus Christo existiria nas margens de um rio[207].

Alguns dos nomes dos povos antigos parece derivarem dos rios, cujas margens elles habitavam. Assim é que os tartessos tomariam o nome do rio Tartesso, hoje Guadalquivir; os sordos, sordones ou sardones do rio Sordo da Gallia Meridional, perto dos Pyreneus: os sicanos do rio Sicano, e finalmente os iberos do rio Ibero, hoje Ebro, que percorre as provincias hespanholas de Aragão e da Catalunha.

Induzidos pelas similhanças onomasticas, pretendem alguns que os sardos seriam tambem iberos. Dos sordones ou sordos das costas do Mediterraneo,[Pg 148] ao norte dos Pyreneus, procederiam os sardos. Estes, com o nome de Shardana apparecem já mencionados nos monumentos egypcios do seculo XIV antes de Jesus Christo, ao que nos referimos no capitulo antecedente. Na Corsega menciona Seneca os iberos que fallavam e trajavam á moda dos cantabros da Hespanha[208]. Como hespanhol que era por nascimento, Seneca não deveria enganar-se em tal observação. Comtudo, na opinião de outros, os sardos antes pertenceriam á familia dos liguros.

Aqui temos outros povos, antigos como os iberos, com elles relacionados e cujas origens são egualmente obscuras. Muito antes da guerra de Troia, alguns dois mil annos talvez antes do nascimento de Christo, os liguros, segundo Thucydides, expulsavam os sicanos das margens do rio Sicano da Iberia e os obrigavam a refugiar-se na Sicilia[209]. Avieno refere as fontes do Tartesso ou Betis ou Guadalquivir á lagôa ligustica[210]. Ora, as fontes d’este rio correspondem ás abas das serras que pelo oriente limitam a provincia de Jaen, ao norte das quaes, na provincia antiga de Murcia, passa o rio Jucar, em direcção ao Mediterraneo, onde desagúa ao sul de Valencia. Concordam portanto os dois textos, seis seculos anteriores a Jesus Christo, na região da Peninsula que os liguros habitavam. Accrescente-se ainda que Estevam de Byzancio, compilador do seculo VI da era christã, soccorrendo-se provavelmente de documentos muito anteriores, põe não longe do mesmo rio Tartesso a cidade de Ligustina, cujos habitantes diz serem liguros[211], e ter-se-ha a convicção de que estes povos occuparam uma parte determinada da Peninsula.

O imperio dos liguros dilatou-se pela Gallia e pela Italia, particularmente pelas regiões litoraes mediterraneas até ao rio Arno. No periplo que chamam de Scylax, anterior a Aristoteles, distinguem-se os liguros propriamente ditos, que habitavam a leste do Rhodano, dos liguros e iberos misturados, que habitavam para a parte do occidente, entre o Rhodano e Ampurias, cidade da provincia hespanhola da Catalunha[212].

Tacito no primeiro seculo da era christã classificava os siluros da Grã-Bretanha entre os povos ibericos, por terem a côr morena e os cabellos crespos dos iberos. Suppunha-os oriundos da Hespanha. A Ora maritima confirma até certo ponto o parecer de Tacito, mencionando na Hespanha o monte Siluro[213]. A côr morena, o cabello farto e crespo eram geralmente considerados como caracteres ethnicos dos iberos. N’um epigramma que o ciume inspirara a Catullo, apostropha este poeta a um celtibero nos termos seguintes: «... Ó filho cabelludo da Celtiberia, Ignacio, que não tens outro[Pg 149] merito senão o de possuires uma barba espessa e uns dentes que fazes alvos á força de fricções de urina. ...»[214].

Se attendermos a que os liguros são geralmente havidos como iranios, e á presupposta origem caucasica dos iberos, acharemos grande difficuldade em separar completamente do tronco iranio ou indo-europeu os iberos. Por outra parte não se póde tambem negar a existencia dos caracteres ethnicos referidos e de outros, que differençam os iberos dos povos decididamente iranios, em meio dos quaes viviam. Mais adiante se verá que taes factos se explicarão plausivelmente, admittindo que os iberos resultariam da fusão das raças mongolica e caucasica, para o que estavam adequadamente situadas as regiões que separam o mar Caspio do Mar Negro, berço provavel dos iberos occidentaes.

Mas estes povos ninguem hoje poderá sustentar que fossem os primitivos da peninsula Iberica, habitada já na idade da pedra, como se prova pela paleontologia humana e pela archeologia prehistorica. Os homens de San Isidro e da Cesareda não seriam por certo iberos, e já na idade dos metaes é possivel que tambem o não fossem os primeiros dos exploradores do cobre, como adiante veremos. Quaes seriam pois os predecessores dos iberos? É muito para notar-se que, na epoca da pedra polida, no tempo em que as cavernas serviam de habitações ou de sepulturas, a analogia dos objectos encontrados n’uma caverna da Alhama de Granada, na Andaluzia, e n’outra caverna de Dijon, em França, auctorise a suppôr que povos da mesma raça ou representantes da mesma civilisação habitariam estas duas partes remotas, mas comprehendidas na região que mais tarde foi conhecida pelo nome de Iberia, tomada esta palavra na mais lata das accepções. Catão o antigo, pretende que os medas, persas e armenios fossem os primitivos dos habitantes da Peninsula. Na opinião de Herodoto seriam os syginnos. Mas a verdade é que todo o exame e discussão dos textos dos auctores não chegarão a dar-nos outras indicações mais que as que deixámos expostas com relação aos iberos.

As memorias escriptas, só por si, não bastam pois para a determinação dos povos que em epocas remotas, anteriormente aos iberos, habitaram a Peninsula. A solução do problema ficará reservada á critica moderna, que, pela interpretação racional dos factos, achará a luz que nos falta em tantas trevas. Á philologia sobre tudo compete subministrar-nos os principaes dos elementos para a historia verdadeira e positiva das origens ethnicas. Mas o atrazo d’esta sciencia, na parte respectiva á Peninsula, priva-nos por ora dos seus poderosos recursos. Egual importancia tem n’este ponto a archeologia. São poucos tambem os subsidios que ella nos presta, mas ainda assim os unicos de que podemos lançar mão n’este estudo interessante.

Primeira e previamente, para fazer idêa do numero, importancia e procedencia das invasões prehistoricas, importa-nos considerar aquellas que se[Pg 150] effeituaram já nos tempos historicos[215]. Ora, estas ultimas foram de povos que se distribuem naturalmente por tres classes: 1.ª Africanos (phenicios, carthaginezes e mouros); 2.ª Asiaticos (iberos, celtas, arabes e alguns dos barbaros da idade media); 3.ª Europeus (gregos, romanos, outros dos barbaros da idade media e normandos). Effeituaram-se tantas invasões no espaço de trinta seculos, pouco mais o menos. Por tres vias differentes entravam os invasores na Peninsula. Pelo Mediterraneo, a mais frequentada de todas, viriam os iberos, os phenicios, os carthaginezes, os gregos, e algumas vezes os romanos e os normandos. Pelo Atlantico, celtas, normandos e outros dos povos septemtrionaes. Pelo Atlantico e pelo Mediterraneo, por uma e por outra parte do Estreito de Gibraltar, arabes e mouros. Em fim pelos Pyreneus entrariam por algumas vezes os celtas, romanos e barbaros.

Pelas invasões historicas impossivel será especificar as prehistoricas. Mas o que das primeiras se conclue relativamente ás segundas é que deverão ter sido frequentes e effeituadas, pela maior parte, pelas duas vias maritimas: pelo Mediterraneo e pelo Atlantico. Ora estas duas vias relacionam-se naturalmente com as duas correntes principaes das emigrações dos povos, que directa ou indirectamente vieram da Asia para a Europa. As regiões da Asia, d’onde em geral se suppõem terem partido as antigas emigrações, formam um vasto espaço circumscripto por duas grandes cordilheiras, a do Altal ao norte e a do Himalaya ao sul. Pondo de parte, por divergentes em relação á Europa, as irradiações para o nordeste e para o sueste da Asia, restam aquellas que se effeituaram para as partes de oeste ou para a Asia Menor, Egypto e Africa septemtrional; e para as partes de noroeste ou litoraes do Baltico e do mar do Norte. Ora d’estas duas vias a primeira foi por certo a das mais antigas das emigrações. Tudo as favorecia por este lado. Eram muito menos os obstaculos naturaes, as distancias tambem menores, e finalmente muito mais doce o clima e a terra mais fertil, além de outras condições, todas conformes ao desenvolvimento da civilisação. Por isso os paizes, onde primeiramente se manifestou, e até com grande antecipação relativamente á Europa, foi na Assyria, Babylonia e Egypto.

As emigrações dos africanos ou beréberes e dos asiaticos, vindos pelo Mediterraneo, devem pois ter precedido quaesquer outras. A dos beréberes póde até reportar-se a epocas anteriores á descoberta da navegação, ao tempo em que a Europa estaria ainda unida á Africa, pela Sicilia ou pelo estreito de Gibraltar. D’esta sorte se explicaria a distribuição geographica da antiga raça de Cro-Magnon e de especies de animaes africanos desde o meio da França até ao deserto do Sahara[216].

[Pg 151]

Os povos emigrados da Asia pela parte de noroeste occupariam primeiramente as costas do Baltico ou do mar do Norte. Depois dilatar-se-hiam pelas costas occidentaes da Europa, pelas ilhas Britannicas, pela França, e afinal pela peninsula Iberica. A via dos Pyreneus sería menos frequentada, porque ás difficuldades, resultantes dos obstaculos naturaes, accresceriam as resistencias offerecidas por povos da mesma raça, que habitassem áquem e álem da cordilheira. A arte, auxiliada pela natureza, deveria formar por aquella parte uma barreira fortissima a quaesquer invasores, que, vindos de longe, intentassem penetrar na Peninsula. Mas da parte do mar não havia taes difficuldades. Na epoca da pedra polida praticava-se já a navegação entre o norte da Africa ou o meio-dia da Europa e as regiões septemtrionaes d’este continente[217]. A distribuição geographica dos dolmens, que pela maior parte occupam os litoraes e as margens dos rios, prova-nos que a civilisação que elles representam se propagaria essencialmente pela navegação. Na Peninsula formam uma longa faxa semi-circular, uma cintura megalithica, estendida desde a parte mais interna do golfo de Biscaia até ao cabo de Gata, occupando as provincias de Alava, Santander, Galiza, o reino de Portugal e a Andaluzia. A largura d’esta faxa extensa, n’umas partes será pouco maior, n’outras, pouco menor que a largura maxima do reino de Portugal, tomada, como é costume, entre Campo-Maior e o cabo da Roca.

Bastará, portanto, a consideração da cintura megalithica da Peninsula para provar que a civilisação dolmenica deve ter vindo pelo mar. Mas a cintura não é completa. Interrompe-se desde o cabo de Gata ate ao cabo de Creus, isto é nas regiões orientaes, nas provincias de Murcia, Valencia e Catalunha. Qual sería pois o obstaculo á propagação dos dolmens por tamanha extensão de terra, que, por ser banhada pelo mar, estava em condições tão favoraveis como o restante litoral para receber a nova civilisação? Foi uma civilisação anterior, que trouxeram pelo Mediterraneo povos emigrados pelo oeste da Asia, em quanto a outra, a dos dolmens, deve ter correspondido áquelles que emigraram pelo noroeste e vieram á Peninsula pelo Atlantico.

D’esta sorte a civilisação dos dolmens caminharia do norte para o sul, hypothese, contra a qual tem objectado a maior perfeição e variedade dos objectos encontrados nos dolmens do norte em relação aos extrahidos dos dolmens do sul. Mas este facto, apesar de verdadeiro, não constitue prova evidente. Por quanto, havendo a idade da pedra, e em geral os tempos prehistoricos, durado por mais tempo nos paizes septemtrionaes que nos meridionaes, é claro que o costume de construir os dolmens deveria tambem conservar-se até mais tarde. Por isso, tendo mais tempo de progredir, a industria humana deixaria vestigios mais perfeitos, correspondentes a uma epoca posterior da sua evolução.

[Pg 152]

Não faltam para contrapor aos dolmens outros vestigios materiaes das antigas civilisações, vindas pelo Mediterraneo. São os monumentos cyclopeos, cuja origem se encontra na Asia Menor, na Bithynia, segundo a opinião de Mimaut[218]. Depois continuam pela Arcadia, Epiro, Grecia, Italia, Sicilia, Sardenha e ilhas Baleares. Na Peninsula, diz Rougemont, seguem-se por Tarragona, Sagunto e mais para o interior até Toledo[219]. Mas o que melhor nos convence da incompatibilidade das duas civilisações vem a ser a lei da antinomia dos seus vestigios respectivos. Na Asia, da mesma sorte que na Europa, onde ha dolmens faltam as construcções cyclopeas, onde restam vestigios das segundas faltam os primeiros.

A esta, como a toda e qualquer regra geral, se descobrirão de certo algumas excepções. Nas ilhas Baleares, por exemplo, vêem-se as mapalias ou navetas e os talayots, monumentos cyclopeos, e a par com elles os dolmens e os menhires. Na Andaluzia acham-se tambem dolmens e muralhas cyclopeas, como as do Castello de Ibros em Jaen. Mas estes dolmens, bem como os das Baleares, parecem menos antigos que os de Portugal. Na Cueva de la pastora ha uma galeria subterranea, cuja camara circular é coberta á roda com pedras, dispostas á maneira d’aquellas que formam a abobada de escalão (encorbellée), e por cima e no centro acaba de cobril-a uma lage dolmenica[220]. Ora, se esta singular construcção é, com effeito, uma abobada incompleta, mostraria a fusão dos dois estylos, porque a abobada, inteiramente estranha á architectura dolmenica, encontra-se muitas vezes pelos monumentos cyclopeos. Na mesma região se operou em tempos muito posteriores uma similhante fusão entre o estylo christão ogival e o estylo mahometano egualmente incompativeis.

Da lei da antinomia dos dolmens com as construcções cyclopeas claramente se deprehende o terem sido contemporaneos, porque duas civilisações sómente poderiam repellir-se na mesma epoca e não em epocas differentes. Prova-se porém, até certo ponto, mais directamente esse facto, porque em excavações, feitas em nuraghas da Sardenha e em talayots das Baleares têem apparecido armas de silex e de bronze[221]. Assim, ao tempo em que os introductores[Pg 153] do estylo dolmenico abicavam ás praias occidentaes da Peninsula, povos de outra raça, e ligados a outro centro de civilisação, incompativel com o costume ou com o rito dos dolmens, habitavam as regiões orientaes, banhadas pelo Mediterraneo.

A antinomia do occidente com o oriente, ou das civilisações vindas pelo Atlantico á Peninsula, com aquellas que entraram pelo Mediterraneo, ou finalmente dos povos das regiões septemtrionaes da Europa com os do oeste da Asia e do norte da Africa, manifesta-se-nos, pela primeira vez, na epoca da pedra polida, entre os constructores dos dolmens e os constructores dos talayots ou dos muros cyclopeos. Depois, na aurora dos tempos historicos, entre os celtas e os iberos. Mais tarde, outra vez, entre os barbaros, procedentes das regiões septemtrionaes da Europa e os arabes e mouros, vindos da Asia e da Africa. Hoje, finalmente, como ha oito seculos, a resistencia invencivel á união de Portugal e Castella é ainda um effeito d’esta grande e prolongada antinomia do occidente com o oriente. A Galiza é uma excepção, porque, ficando ao occidente, se uniu á Hespanha e não a Portugal. Mas todos sabem que outr’ora o portuguez e o gallego fallaram a mesma lingua, e que ainda hoje, pelo caracter, pelos costumes, pelas propensões populares, Portugal e a Galiza se assimilham mais entre si do que com quaesquer outros povos da peninsula Iberica.

Outros vestigios de uma civilisação primitiva, talvez mais ou menos relacionada com os monumentos cyclopeos, estão nas antigas minas de cobre del Milagro, nas Asturias; de Cerro-Muriano, em Cordova; de Odiel e Riotinto, na Huelva; e finalmente de Ruy Gomes, no Alemtejo[222]. Os machados de pedra com que trabalhavam n’estas explorações denotam uma industria prehistorica, anterior ao uso de ferro e até provavelmente ao do bronze. Ha certa variedade nas fórmas dos taes martellos. Uns assimilham-se áquelles que se tem encontrado em varias estações prehistoricas da Europa; em cavernas da França e lagos da Suissa: outros, como os de Cerro-Muriano, parece terem antes mais analogia com instrumentos congeneres, achados em minas de cobre do Lago Superior, na America do Norte[223]. Aqui apparecem tambem vestigios notaveis de construcções cyclopeas nas margens dos rios Colorado, Mancos, San Juan e La Plata do Novo-Mexico. Tornam-se sobre tudo notaveis as grandes e altas torres redondas, feitas de duas ou tres muralhas concentricas, as habitações excavadas nas rochas, as[Pg 154] quaes dizem similhantes a outras da Asia Menor, e finalmente as inscripções entre cujos hieroglyphos se distingue a figura do homem e de varios animaes. Algumas d’estas inscripções foram gravadas na pedra, outras pintadas com argillas vermelha e branca[224]. Ora todas ellas, pelo genero do desenho, e algumas por serem coloridas e pelas substancias colorantes empregadas, se assimilham extremamente a outras da Andaluzia, encontradas tambem em nichos ou casas abertas nas rochas[225]. Por outra parte os philologos aproximam os idiomas dos vasconços aos dos georgianos e aos de certos povos da America, a ponto de os reunirem todos no mesmo grupo[226].

Estes factos estão indicando a existencia de uma antiga civilisação, irradiante da Asia para a Europa e para a America, e caracterisada pela exploração e fabríco do cobre. Os seus vestigios acham-se em regiões extensas da Asia, na Russia scythica, no Caucaso, na Hungria e Transylvania, na Iberia e na America. Tão mal se conhece ainda a archeologia prehistorica d’estes povos, representantes da epoca do cobre, que a maior parte dos archeologos tem chegado a negar a sua existencia, admittindo sómente a da epoca do bronze. Entretanto os estudos, apenas começados, das antiguidades tchoudes na Asia e na Europa, os poucos conhecimentos adquiridos ácerca das minas de cobre prehistoricas fazem já evidente a irradiação de uma antiga civilisação do mesmo centro commum para varias partes do mundo.

A qual das raças humanas se ha de referir este grande movimento prehistorico da exploração e fabríco do cobre? Os tchoudes, a quem se attribuem as minas do noroeste da Asia, da Russia scythica e da Hungria e Transylvania, são de raça turania. Os mais antigos dos povos da America assimilham-se tambem mais aos turanios que aos iranios. Em fim os proprios vasconços parece não serem inteiramente extranhos á raça mongolica. Aristoteles refere que os iberos (de Hespanha), povo bellicoso, erguiam á roda de cada tumulo tantos obeliscos, quantos inimigos o defuncto matára em vida[227]. Os annaes chinezes de Tchéon (567 a 579 depois de Jesus Christo) repetem verbum ad verbum as palavras de Aristoteles, mas a proposito de um povo tartaro. Dizem dos thoukiones ou turcos orientaes, restos dos hiongnon (hunos), que por aquelle mesmo tempo figuraram entre os invasores da Europa meridional, vindos do norte, «que elles põem uma pedra sobre a sepultura, e levantam á roda tantas pedras, quantos homens o defuncto matára em vida».

Á classificação dos vasconços ou dos antigos iberos entre os povos da raça mongolica oppõem-se, bem o sabemos, razões ponderosas, taes como[Pg 155] a presupposta origem dos segundos e os caracteres ethnicos dos primeiros. Porém nenhuma d’estas razões constitue uma difficuldade insoluvel. O caracter ethnico dos vasconços não póde ter-se conservado puro durante milhares de annos no meio de povos de raças differentes. É por tanto admissivel que os mais antigos dos exploradores do cobre fallassem algum idioma agglutinativo, hoje perdido, no tempo em que foram construidas as nuraghas e os talayots, e anteriormente á entrada dos iberos na Peninsula. Ainda assim não ha impossibilidade em attribuir a estes ultimos as mais antigas das minas, suppondo que n’elles predominariam os caracteres ethnicos da raça caucasica, posto que, pela linguagem e pela civilisação que representavam, se relacionassem antes com a raça mongolica. As regiões que separam o mar Caspio do mar Negro eram exactamente aquellas, onde vinham encontrar-se as raças caucasica e mongolica, para da Asia emigrar para outras partes do mundo. Tudo são trevas em tão remota antiguidade. Ainda hoje uns sustentam que o euskara fôra a linguagem dos iberos; outros affirmam que as inscripções ibericas, achadas em varias regiões da Peninsula, são inconciliaveis com a lingua dos vasconços. A philologia está portanto tão atrazada, que não resolveu ainda este ponto fundamental. A anthropologia diz-nos apenas haverem-se encontrado dois craneos, um dolichocephalo e outro brachycephalo, cada um em sua mina. A archeologia não sabe classificar os vestigios dos povos primitivos da Peninsula, e nem ao menos, até hoje, demonstrára cabalmente a differença capital entre os dolmens e os monumentos cyclopeos, e as conclusões importantissimas que resaltam da sua antinomia e distribuição geographica.

Quanto ao centro e extensão de uma antiga civilisação mongolica, anterior á historia, recentes descobrimentos confirmam a asserção de Justino, o historiador. Segundo esta asserção, que exprime antigas tradições asiaticas, a Asia Anterior sería inteiramente senhoreada durante quinze seculos pelos scythas, povo mais antigo que os proprios egypcios. Ora os estudos assyriologicos demonstram este mesmo desenvolvimento dos povos turanios na Asia Anterior ainda antes dos aryos e dos semitas[228].

A incerteza do caracter ethnico, verificada nos iberos e n’outros dos povos antigos da Peninsula e da Europa, é tambem commum ainda hoje a uma raça muito notavel, cujas tribus, essencialmente nomadas, vaguêam pela face da terra praticando a arte de fundir ou forjar os metaes. Chamam-lhes tzigeuners ou ziguener na Allemanha, tzigani na Hungria, zingaros na Italia, bohemios na França, gitanos em Hespanha, e finalmente ciganos em Portugal. No Alemtejo encontram-se muitos individuos d’esta raça. Habitam em Evora as ruas de certo bairro, e conservam os seus costumes proprios, entre os quaes se notam sobre tudo as ceremonias e festejos dos casamentos. Vaguêam, como nomadas, pelos campos e de povoação em povoação. Vivem da rapina e de comprar, vender ou trocar cavalgaduras, distinguindo-se[Pg 156] nas feiras pela astucia com que enganam os compradores. Ha poucos annos vagueava em Portugal uma tribu de ciganos, que tinha por industria o concerto ou estanhadura de vasos e utensilios de cobre ou de bronze. Estacionavam pelos arrabaldes das cidades, onde abarracavam, como tropas em campanha, demorando-se com as suas forjas, em quanto os moradores da povoação lhes davam trabalho. Durante a idade media estas visitas dos ciganos fundidores ou caldeireiros eram mais frequentes, e então, como hoje, praticavam sempre da mesma fórma que Herodoto já notara. Mas é ainda mais extraordinario que as fundições até hoje descobertas e pertencentes á epoca do bronze auctorisem a suppôr que já n’esses tempos remotos a arte de fundir o bronze sería praticada por estrangeiros que estabeleciam as suas officinas em raso campo, fóra das povoações. Isto mesmo parece deduzir-se dos thesouros achados pelas montanhas, onde teriam sido escondidos pelos fundidores vagabundos, que por qualquer causa não teriam podido voltar em busca d’esses ricos depositos.

Na opinião de alguns os ciganos constituem um povo moderno das margens do Indus ou Sind, cujas primeiras emigrações datariam do tempo de Tamerlan, que pol-os perseguir os obrigaria a expatriarem-se. Outros porém attribuem-lhes muito maior antiguidade, e suppõem que os actuaes ciganos descendem dos syginnos, que Herodoto diz terem sido os primeiros habitantes da Hespanha, e que teriam vindo do Danubio: Strabão é de parecer que os syginnos procederiam antes do Caucaso. Tambem não falta quem tenha achado relações de parentesco entre os syginnos e os sicanos, primeiros habitantes da Sicilia. Haverá apenas uma similhança casual entre os nomes de syginnos, tzigeuners, tziganos, sicanos e ciganos, ou serão com effeito fórmas differentes do nome de uma antiga raça, que, vinda da Asia, diffundiria pela Europa a industria do fabríco do bronze nos tempos prehistoricos?

Ainda outra circumstancia notavel. Diz Herodoto que os syginnos trajavam largas vestes á maneira dos medas, d’onde conclue que os primeiros seriam effectivamente d’estes ultimos povos, que em epocas remotas viriam á Hespanha[229]. Strabão affirma que os habitantes das Baleares eram optimos fundidores e os primeiros dos homens que, segundo se dizia, usaram largas tunicas tunicas late pretextas[230].

NOTAS DE RODAPÉ:

[196] A dolichocephalia dos vasconços hespanhoes e a brachycephalia dos vasconços francezes constam das tabellas publicadas por Topinard e por Quatrefages nos livros L’anthropologie e L’espèce humaine.

[197] Esta opinião tem sido em todos os tempos e pela maior parte dos auctores geralmente seguida. Entretanto o atrazo da philologia e da archeologia peninsulares não permitte ainda formular qualquer demonstração rigorosa. O que por ora se sabe dos costumes e linguagens dos povos que habitavam a Peninsula é tão incerto, que não ha que estranhar vermos na actualidade uns, como Luchaire, sustentarem que o euskara sería a lingua dos antigos iberos que povoavam a Peninsula e a Aquitania, e outros, como Sayce, affirmarem que as inscripções celtibericas não se parecem nada com aquelle mesmo idioma dos vasconços. Vej. La Academia, tom. I, pag. 370 e 238.

[198] Tubino, Los Aborigenes ibericos.

[199] Strabão affirma que os iberos usavam não sómente de muitos dialectos, mas tambem de alphabetos diversos.

Anteriormente aos povos da Peninsula dominados pelos romanos, seis ou cinco seculos antes de Jesus Christo, os tartessos habitavam ao meio-dia, desde o Guadalquivir até ao Segura, ao norte de Carthagena. Os cunétos, visinhos dos tartessos, habitavam ao occidente as margens do Guadiana, e dilatavam-se pelo litoral até ao cabo de S. Vicente.

Ao norte dos cunétos habitavam os kempsos, dilatando-se até aos Pyreneus, pelos arredores da provincia de Guipuscoa.

A leste os gletos entre os Pyreneus e o Ebro. Perto dos gletos, no interior das terras, os vascões sobre o Ebro, e os ceretos ao pé dos Pyreneus.

No litoral do Mediterraneo, ao sul dos Pyreneus, os indiketòs.

No interior das terras, entre os tartessos ao meio-dia, os gletos ao norte, e os kempsos a oeste, habitavam os etmanei da Ora maritima, talvez os mesmos que os edetarios de Strabão, os quaes mais tarde viriam ás praias do Mediterraneo.

No VI seculo antes de Christo os liguros occupavam os dois extremos da cordilheira dos Pyreneus, a leste perto de Ampurias, a oeste as cercanias de Bayona. Dilatar-se-hiam até ás fontes do Betis ou Guadalquivir, onde era a lagôa ligustica. D’Arbois de Jubainville, Les premiers habitants de l’Europe. Pariz, 1877.

Mais tarde, entre outros, acham-se mencionados pelos auctores os povos seguintes, dos quaes alguns nomes manifestamente correspondem aos anteriores: arevacos, astures, ausetanos, autrigones, bargusios, bastitanios, berones, caristios, carpetanos, celtiberos, cerratanos, coniscos, contestanos, cosetanos, cimeos, ilergetes, icarcitanos, indigetes, lacetanos, laletanos, lusones, murgobos, obcades, pelendones, pesicos, tartesios, turdetanos, turdulos, vacceos, vardulos e vettones. Lafuente, Hist. gen. de España, tom. I, Apend.

[200] Rougemont, L’âge du bronze, pag. 168 e seg.

[201] Mithridates, 101, cit. por D’Arbois de Jubainville.

[202] D’Arbois de Jubainville, Les premiers habitants de l’Europe. Pariz, 1877, pag. 304 a 307.

[203] Tal é o systema recentemente proposto e defendido por D’Arbois de Jubainville no livro citado.

[204] Strabão, lib. III, cap. 4.º, § 19.º

[205] N’este systema os iberos differençar-se-hiam dos tartessos, cunetos e kempsos, e comprehenderiam os glétos, os ceretos, os vascões e os indiketos.

[206] Citados por Masdeu, Historia critic. de España, tom. II, pag. 303 e 304.

[207] D’Arbois de Jubainville op. cit.

[208] Seneca, Consolatio ad Helviam.

[209] Thucydides, I, VI, cap. 2.º

[210] Avieno, Ora maritima.

[211] Edição Westermann, pag. 184, cit. por D’Arbois de Jubainville, pag. 242.

[212] D’Arbois de Jubainville, op. cit., pag. 241.

[213] Tacito, Agricola, cap. II. Avieno, Ora maritima, vers. 433.

[214] Ad Contubernales. Carm. XXXVII.

[215] Seguimos o mesmo methodo, que tão vantajosamente Lyell applicou á geologia. Apesar da diversidade de condições em que operam as forças physicas e o homem, ainda n’este caso se prova a analogia das invasões historicas. Identidade não ha, como entre as causas geologicas actuaes e as antigas. Mas essa mesma analogia nos basta para as conclusões a que pretendemos chegar.

[216] Quatrefages, L’espèce humaine.

[217] Com factos, citados por Lyell e Quatrefages, se demonstra a existencia da navegação atlantica na epoca da pedra polida. Já os mencionámos a pag. 105 d’este livro.

[218] Mimaut, Histoire de Sardaigne, citado no Bulletin de la Société d’anthropologie de Paris, tom. 5.º, pag. 22.

[219] Rougemont, L’âge du bronze, pag. 73.

[220] Tubino, Los aborigenes ibericos.

[221] Revue d’anthropologie, 1875, pag. 507. La Academia, 1877, pag. 184 e 185. As explorações feitas nas nuraghas e talayots não têem sido taes que próvem evidentemente a coincidencia da construcção d’estes monumentos, ou dos mais antigos, dentro dos limites da idade da pedra. As armas de silex até hoje encontradas não bastam, porque muitas vezes acontece apparecerem taes vestigios misturados com os do cobre ou do bronze, como ainda ha pouco tempo, nas explorações de Schliemann no sitio de Troia. É possivel tambem que, ao tempo em que os povos orientaes da Peninsula, mais avançados na estrada da civilisação estivessem já na epoca do cobre ou do bronze, os occidentaes vivessem ainda na idade da pedra. E assim se explicaria o achado de uma frecha de cobre nas grutas da Cesareda, unico documento de uma civilisação, posterior á de todos os outros vestigios encontrados.

Mas, para se dar como provada esta discordancia, isto é, que os povos do oriente estariam já na epoca do cobre ou do bronze, quando os do occidente não teriam ainda ultrapassado os limites da epoca neolithica, sería mister emprehender mais numerosas e methodicas explorações, tanto das construcções dolmenicas ao occidente como das cyclopeas ao oriente.

[222] Tubino, Estudios prehistoricos. Madrid, 1868, pag. 98 a 106. Pereira da Costa. Noticia de alguns martellos de pedra e outros objectos que foram descobertos em trabalhos antigos da mina de cobre de Ruy Gomes no Alemtejo. No Jornal de sciencias mathematicas, physicas e naturaes. Lisboa, 1868, n.º V.

[223] Tubino, op. cit.

[224] W. H. Holmes, A notice of the ancient ruins of southwestern Colorado, examined during the summer of 1875. United states geological and geographical survey of territories. Washington, March, 21, 1876.

[225] Gongora, Antigüedades prehistoricas da Andalucia.

[226] Vej. a classificação das linguas por Max-Müller no Diction. univers. du XIX siècle, verb. Langage.

[227] Fragm. histor. graecor., tom. 2.º, pag. 180.

[228] Lenormant, Les premières civilisations, tom. 1.º, pag. 107.

[229] Herodot. Histor. lib. V.

[230] Strab. Geograph. lib. III.


[Pg 157]

NOTAS

1.ª
MACHADOS DE PEDRA

«A arma verdadeiramente significativa, que jámais se empregou depois do fim da edade da pedra, ou quando muito depois do periodo de transição da pedra para os metaes, é o machado polido. Marca um periodo, pelo menos no occidente, porque na Chaldêa tem-se encontrado muitas vezes nos tumulos do antigo Imperio e nos entulhos dos edificios d’Abou-Schahrein. Por isso ao machado de pedra mais tarde se ligaram tantas superstições; a sua origem humana estava inteiramente esquecida.

«A alta antiguidade, á qual se reportavam os instrumentos de pedra, foi causa de que entre muitos povos lhes dessem caracter religioso, e se conservasse o uso d’elles por muitas vezes no culto. Entre os egypcios era com um instrumento de pedra que o paraschisto abria o ventre da mumia, antes de submettel-a ás operações do embalsamento. Entre os judeus a circumcisão praticava-se com uma faca de silex. Na Asia-Menor os gallos ou sacerdotes de Cybêle retalhavam as proprias carnes com uma pedra cortante ou com um caco de louça. Na Chaldêa a intenção religiosa e ritual que fazia depositar facas e pontas de pedra nos tumulos do antigo Imperio prova-se pelos modelos d’estes instrumentos de pedra ou de barro cozido, moldados pelos originaes, que algumas vezes os substituem. Entre os romanos um machado de pedra (scena pontificalis) servia para o culto de Jupiter Latialis, e tambem para os ritos dos Feciaes. Na China, onde se conhecem os metaes ha tantos seculos, as armas de pedra, e sobre tudo as facas de silex, têem sido religiosamente conservadas. Ainda hoje em dia entre os pallikares da Albania, eu proprio o observei, com um calhau cortante e não com faca de metal destacam as carnes da omoplata do carneiro, em cujas fibras acreditam ler os segredos do futuro.

«A par com a conservação ritual do uso de certos instrumentos de pedra nas ceremonias religiosas importa mencionar, terminando, as superstições que se associaram ás pontas de frechas de pedra e aos machados polidos que se encontravam no solo, depois de se ter perdido a sua origem. Na maior parte dos povos do mundo antigo, nos seculos pouco anteriores á era christã, recolhiam-os como objectos preciosos, e attribuiam-lhes mil propriedades maravilhosas e magicas, por accreditarem que do ceu cahiam com o raio. Conforme o testimunho de Plinio, distinguiam-se as ceraunias, que, segundo a sua propria descripção vem a ser as pontas de frechas, e os betuli, que são os machados. Ha collares de ouro etruscos dos quaes pendem, á maneira de amuletos, pontas de frechas de silex. Ao caracter talismanico que suppozeram n’esta classe de objectos se hão de attribuir as inscripções gnosticas e cabalisticas do seculo III ou IV da nossa era, gravadas n’um pequeno machado polido descoberto no Peloponeso, e actualmente no Museu Britannico. Seríam feitas de certo na epoca em que o machado serviria de amuleto protectivo a quem o trouxesse comsigo. As crenças supersticiosas ácerca das suppostas pedras de raio permaneceram vigorosas ainda entre os sabios, até ao seculo XVI; e sómente no seculo XVIII chegaram a desarraigar-se inteiramente na Europa illustrada. Em muitos paizes, como na Italia, Alsacia e Grecia, subsistem ainda entre os habitantes dos campos.»

Lenormant, Les premières civilisations, tom. I, pag. 169 a 172.

[Pg 158]

2.ª
A CITANIA DE BRITEIROS

No monte de S. Romão de Briteiros, entre Braga e Guimarães, em pequena distancia das Taipas, jazem umas ruinas, mencionadas desde o seculo XVI pelos nossos antiquarios, e recentemente exploradas pelo sr. Francisco Martins Sarmento. Discutiram largamente, sem chegar a conclusões decisivas, Brito, Estaço e Argote que povoação teria sido esta em tempo dos romanos. Mas o atrazo da archeologia não lhes deixou entrevêr que tal questão não sería de certo a mais importante d’aquellas que o exame das ruinas poderia suscitar. Os problemas de maior interesse apparecem agora á vista dos restos que o sr. Martins Sarmento, com zelo e dedicação de que até hoje não houvera ainda exemplo em toda a Peninsula, desentranhou da espessa camada de terra que os occultava.

A existencia da povoação na epoca romana demonstra-se com certeza pelas moedas e inscripções ali encontradas. Mas, a par com esses vestigios, têem apparecido outros, representantes de uma civilisação anterior que na Peninsula, á falta de estudos e de explorações, não se destaca ainda claramente das trevas prehistoricas. A promiscuidade dos caracteres romanos com os de outros alphabetos ou com lavores esculpidos de outro estylo, tudo conjuntamente nas mesmas pedras, provando mais com egual evidencia que todos esses vestigios são contemporaneos, não se pode explicar senão pela insufficiencia da civilisação romana para destruir e substituir por outros os velhos costumes transmittidos de geração a geração entre os habitantes d’esta parte da Peninsula.

Depois das grandes explorações ultimamente emprehendidas, vêem-se os restos das quatro muralhas que defendiam a povoação pela parte do sul e poente; percorrem-se as ruas e praças, algumas d’ellas lageadas com losangos de granito perfeitamente apparelhados; entra-se nas casas, em cujas paredes, conservadas de pé até certa altura, muito bem se observam todas as particularidades da construcção.

A mais forte das primeiras impressões é a que produz no espirito a vista das muralhas e das casas. Quem estiver habituado a observar a regularidade do apparelho romano, a superficie liza dos grandes silhares, a nitidez das linhas de união, a firmeza resultante do endurecimento da argamassa pelos soes de muitos seculos, necessariamente estranhará a falta de todo o apparelho nas muralhas e o limitar-se unicamente á face externa nas paredes das casas mais bem construidas, e da mesma sorte o não terem sido ligadas as pedras com argamassa. Esta circumstancia e tambem o revestimento interior das paredes das casas com pedras pequenas, faz lembrar as construcções denominadas cyclopeas, que se encontram na Italia, Malta, Grecia, etc.

Porém o não se descobrirem vestigios correlativos da epoca remota de taes construcções induz a crêr que a falta da cal sería a causa de se conservar no monte de S. Romão o costume de construir com pedra insossa, como ainda hoje acontece nas povoações ruraes circumvisinhas. Não se explica da mesma sorte por circumstancias locaes uma singular particularidade observada n’algumas casas, e vem a ser o formarem as pedras maiores das paredes, series espiraes, que principiam junto do solo e se prolongam com regularidade geometrica até á parte superior.

Esta disposição das pedras de certas paredes e as espiraes que se vêem gravadas n’algumas das rochas do monte e n’algumas das pedras desenterradas relacionam estes vestigios com outros prehistoricos da epoca do bronze, e mais em particular os signaes das rochas com outros similhantes que se conhecem na Irlanda. A gruta artificial, que denominam Penedo da Moura, e alguns consideravam como um dolmen, com sulcos artificialmente gravados na face inferior da pedra que lhe serve de tecto, liga-se ainda naturalmente com esses vestigios. Alguns dos fragmentos de louça parece terem uma ornamentação prehistorica.[Pg 159] Finalmente a esculptura das pedras assimilha-se mais aos desenhos prehistoricos do que aos dos estylos conhecidos, e menos ainda ao romano que aos outros. Mas, como estes ultimos ornatos existem em pedras com inscripções romanas, em vez de reportal-os á epoca da pedra polida ou do bronze, deveremos antes suppôr que todos esses costumes se conservaram ainda n’aquella parte da Peninsula durante a dominação romana, pela repugnancia que os dominados offereceriam a acceitar a civilisação dos dominadores.

Já no tempo de João de Barros chamavam ruinas da Citania ás do monte de S. Romão de Briteiros. Esforçaram-se alguns, porém inutilmente, para fazer esta palavra equivalente da Cinnania ou Cinninia, mencionada por Valerio Maximo. Parece que Citania sería antes um appellativo, pois dizem haver na provincia de Entre Douro e Minho, outras ruinas de povoações antigas assim tambem denominadas. Da mesma sorte a palavra Cythiau, tendo talvez a mesma etymologia, se applica no paiz de Galles ás velhas ruinas gaelicas, segundo escreve Amadeu Thierry na sua Historia dos Gaulezes.

Esta analogia, só por si, poderia e deveria passar desapercebida, se outras não fizessem maior força. Os signaes com a fórma de espiral, gravados nas rochas e em pedras apparelhadas, encontram-se na Citania, bem como na Irlanda e n’outras partes da Grã Bretanha. Em fim os povos que habitavam o territorio bracarense no tempo das invasões dos romanos (gallaici bracari) eram de origem celtica e por tanto ethnicamente relacionados com os povos d’aquelle paiz procedentes do mesmo tronco. No capitulo X d’este livro demonstrámos que as regiões occidentaes da Peninsula, assim como as partes da Europa, banhadas pelo Atlantico, estariam naturalmente sujeitas ás emigrações dos povos que viessem da Asia pelo noroeste, em quanto as regiões orientaes da Hespanha, litoraes do mediterraneo, receberiam pelo contrario gentes diversas, vindas do oeste da Asia ou da Africa septemtrional.

Os caracteres dos vestigios encontrados na Citania, que evidentemente não são romanos, serão portanto celticos. A fórma das casas e o deverem ter sido cobertas de colmo, por se não encontrarem vestigios de telhados, concorda com os termos em que os auctores antigos descrevem as casas dos gaulezes. Além das moedas romanas achou-se outra celtica, infelizmente perdida. O estylo da ornamentação da Pedra formosa e de outro fragmento é caracteristico. No desenho dos ornatos predominam os circulos concentricos, as espiraes e as cordas torcidas. Na Galiza achou-se um vaso de bronze cuja ornamentação essencialmente differente do estylo dos romanos ou de quaesquer outros dos povos que depois dominaram a Peninsula, tem os mesmos elementos mencionados, e, por isso, toda a similhança com o da Citania. As casas descobertas nos castros da mesma provincia são tambem analogas ás da Citania. Finalmente nas ruinas de algumas d’aquellas que se têem desenterrado nos castros verificou-se o serem formadas por paredes duplas, separadas por um pequeno intervallo. Em Sabrôso, proximo da Citania, achou o sr. Martins Sarmento ha poucos dias vestigios similhantes de casas com paredes duplas.

Começa hoje a ser estudada a civilisação gallaica. Os castros da Galiza, explorados pelo sr. Villa-amil, deram já alguns subsidios. Mas os mais importantes, pela qualidade, numero e variedade, são incontestavelmente as ruinas da Citania de Briteiros.

3.ª
ÁCERCA DA PALAVRA ANTA

Em Portugal chamam antas aos dolmens. Para a etymologia da palavra anta convirá notar que, segundo affirma Mendonça e Pina, os godos chamaram antas aos seus heroes. Os povos de Saxe attribuem a construcção dos dolmens, aos gigantes; ora entre esses povos, bem como no antigo anglo-saxonio, enta significa gigante. É tambem para notar-se a[Pg 160] similhança da palavra anta com o nome de Anteu. Na lingua portugueza e n’outras linguas anta significa o contraforte do edificio, a parte saliente que se eleva desde o alicerce até ao cimo, ou até parte da altura. A este elemento architectonico chamamos nós egualmente gigante, de sorte que n’este sentido anta e gigante são synonimos. Finalmente, não falta quem derive a palavra anta do celtico hana e hanouth que significam, assentar-se acampar, armar a tenda; e tenda, acampamento, morada. Na Argelia dão o nome de hanouth ou hanouïta a cavernas que a mão do homem abriu em epocas tão remotas que não constam das tradições. Vej. L. de Maule—Pl. Nouveaux documents archéologigues. Pariz, 1874.

4.ª
DISTRIBUIÇÃO GEOGRAPHICA DOS DOLMENS NA EUROPA

«Ao oeste de São Petersburgo, na parte septemtrional da Russia occidental, na Curlandia, começam a apparecer os dolmens, mencionados pelos viajantes e pelos antiquarios com os nomes de tumulos de pagãos ou de camas de gigantes. Todavia são ali raros. Mas o numero d’elles augmenta cada vez mais para a parte do poente, ao longo do Baltico. Ao oeste do Vistula são já muito frequentes. Contam-se aos centos nas provincias de Dantzig e de Stettin, na Pomerania, ao longo do Oder, desde a foz até Francfort sobre o Oder, e mais em particular em roda da pequena cidade de Dressen. Keferstein, auctor de um livro respectivo ao assumpto, encontra-os depois no Elba, na foz primeiramente ao longo do mar, depois até Magdeburg, rio acima. Não descem além d’aqui para o sul. Abundam no Mecklenburg, em Schwerin e Strelitz. No Hanover subsistem ainda de pé uns duzentos, apesar de terem sido muitos destruidos em tempos de que se não perdeu ainda a memoria. Contém tambem muitos o ducado de Oldenburg e principalmente a parte contigua ao Weser.

«Diminuem para a parte de oeste. Ha, é verdade, cincoenta e quatro na provincia de Over-Yssel na Hollanda, mas a Belgica, onde a pedra é tão rara, contém apenas um. Para se não perderem os vestigios dos dolmens ha de voltar-se ao norte, pela Dinamarca. N’esta direcção encontram-se em tal numero que não tem conto.

«Os dolmens, diz M. Worsaæ, competentissimo no assumpto, abundam no Schleswig e no Holstein, nas costas occidentaes e septemtrionaes de Seeland, em todo o Jutland maritimo, porém particularmente no Limfjord, no dominio de Thisted. São raros nas costas occidentaes da Dinamarca inferior, e ainda mais no interior das terras. Estes dolmens, accrescenta M. Worsaæ, são absolutamente similhantes aos da Pomerania, Brandeburg, Mecklenburg e Hanover.

«Na Scandinavia estes monumentos sómente se encontram no velho paiz dinamarquez da Scania, no Halland, no Gothland occidental e no paiz de Bahus, isto é, exactamente ao longo das costas occidentaes da Suecia até Gotheburg. Não apparecem nem ao leste, nem ao norte. Tambem não os ha na Norwega.

«Para seguil-os, será mister que nos embarquemos agora, inclinando ao noroeste. Nas Orcadas e nas Hébridas já se nos deparam alguns, mas para chegar ao meio de grupos importantes convirá aportar ás ilhas d’Iona, d’Arran e de Bute, na costa occidental da Escocia, e sobre tudo avançar algum tanto mais pelo canal de S. Jorge e desembarcar em Anglesey. Aqui, bem como na peninsula visinha denominada de Caernarvon, parece haverem-se assenhoreado do terreno.

«Eis-nos porém chegados ao paiz de Galles. Aqui poderei sem duvida appellar para as recordações de muitos de entre vós. Sabeis que thesouros d’este genero se encontram nos arredores de Pembroke e de Caermarthen; conheceis tambem a riqueza do Cornwall, onde os dolmens, diz M. Akerman, são mais numerosos que em qualquer outra parte da Europa.

[Pg 161]

Nas dunas do Dorsetshire, nas margens do Avon e na parte septemtrional do Berkshire deparam-se-nos ainda alguns.

Faltam pelo contrario nas costas orientaes da Grã-Bretanha, porque os monumentos do Yorkshire não nos parecem senão menhires.

Sabeis, tão bem como eu, dos bellos dolmens das ilhas da Mancha, Jersey e Guernesey. D’elles deu a Archæologia Britannica magnificas estampas.

Em Jersey estamos quasi a tocar a França. Eis aqui a estatistica dos dolmens francezes nos districtos em que se encontram:

Lot, 500.—Finistère, 500.—Morbihan, 250.—Ardèche, 155.—Dordogne, 100.—Vienne, 70.—Côtes-du-Nord, 56.—Maine-et-Loire, 53.—Eure-et-Loire, 28.—Carente, 26.—Creuse, 26.—Charente-Inférieure, 24.—Lozère, 19.—Vendée, 17.—Loire-Inférieure, 16.—Sarthe, 15.—Deux-Sèvres, 15.—Orne, 14.—Indre, 13.—Manche, 13.—Pyrénées Orientales, 12.—Haute-Vienne, 12.—Puy-de-Dôme, 10.—Oise, 9.—Nièvre, 8.—Tarn-et-Garonne, 7.—Ariège, 6.—Cher, 6.—Loir-et-Cher, 6.—Aisne, 5.—Ille-et-Villaine, 5.—Gironde, 5.—Hérault, 4.—Pas-de-Calais, 4.—Tarn, 4.—Loiret, 3.—Basses-Pyrénées, 3.—Calvados, 2.—Eure, 2.—Isére, 2.—Loire, 2.—Marne, 2.—Seine-et-Oise, 2.—Seine-et-Marne, 2.—Somme, 2.—Var, 2.—Aude, 1.—Côte-d’Or, 1.—Corrèze, 1.—Landes, 1.—Mayenne, 1.—Nord, 1.—Rhin (Bas), 1.—Yonne, 1.

Bertrand, Sur les origines Indo-européennes—Bulletins de la Société d’Anthropologie de Paris. Tom. 5.º

5.ª
MEGALITHOS EM PORTUGAL

Fallando da distribuição geographica dos dolmens em Portugal e Hespanha, e fazendo applicação, á Peninsula, da lei dos litoraes, verificada n’outras partes da Europa, na Asia e Africa, dissemos que se encontram numerosos na Galiza, no Alemtejo e outras provincias e continuam depois pelo Algarve e pela Andaluzia. Com relação ao Algarve advertiremos que actualmente se não conhecem megalithos nenhuns n’esta provincia. Teve-os porém na antiguidade, como se deprehende de Strabão, que no livro III, menciona no Sacrum Promontorium (hoje Cabo de S. Vicente) lapides multis in locis ternos aut quaternos impositos. Na opinião de Rougemont (L’âge du bronze, pag. 287, nota), estes grupos de tres ou quatro pedras cada um não seriam dolmens, porém cromlechs ou pilares-idolos.

Na serra de Cintra ha um megalitho notavel, commumente denominado Dolmen de André Nunes. Foi estampado no Archivo Pittoresco, tomo XI, a paginas 377. Todavia esta gravura representa o monumento de modo que por ella sómente o não podemos classificar. Por informações minuciosas que nos deu o sr. Fuschini, digno engenheiro districtal de Lisboa, que o observou pessoalmente, não se ha de considerar como dolmen, mas sim como um tumulo ou galeria. O sr. Fuschini affirma ter visto as paredes lateraes, parallelas, formadas de grandes lages postas a prumo e cobertas com outras grandes lages horisontaes.

No Alemtejo não se conhecem tumulos, mas em compensação, esta é de todas as provincias de Portugal a mais abundante de dolmens. Em 1733 o academico Fr. Affonso da Madre de Deus Guerreiro, communicava á Academia Real de Historia haver em Evora e n’outros logares circumvisinhos sessenta e sete antas, quatro das quaes davam o nome de Antas ás herdades onde se conservavam.

O sr. Gabriel Pereira, em carta de 8 de novembro d’este anno de 1877, informa-nos de que fôra encontrar na herdade da Candieira, a meio caminho do Redondo para o convento de S. Paulo da Serra d’Ossa, um dolmen furado, de qual promette dar a estampa e descripção no Universo Illustrado. Se é com effeito o que o observador suppõe, torna-se muito[Pg 162] notavel, porque não consta de outro nenhum dolmen furado em toda a Peninsula. Diz mais o sr. Gabriel Pereira na carta citada: «Indo do mosteiro para Machede, pela estrada que passa pela herdade das Vidigueiras, e em terras que julgo pertencerem á herdade das Thesouras, encontrei outra (anta) que se desvia tambem da maneira geral; não é um dolmen só, são tres agrupados, juntos, sem galerias; e entre os muitos pedregulhos derrubados jaz uma grande pedra quasi prismatica, de secção pentagonal, de faces rudemente talhadas, que erguida parece deveria occupar um ponto medio entre os tres dolmens. D’estes só um conserva a mesa. Por ultimo na herdade das Vidigueiras visitei um dolmen, cuja existencia me constava ha muito. É notavel por ter galeria ainda bem determinada.»

6.ª
ESPADAS DE COBRE DO ALEMTEJO

«Outras antiguidades tenho descoberto n’este territorio que mostram viverem aqui gentes da mais remota idade, quando as ideias das artes eram mui apoucadas. São estoques, ou espadas de quatro palmos de comprido e um dedo de largo, sem gume, e achadas em varios sitios d’esta diocese. Foram do tempo em que os nossos feriam sómente de ponta e não de córte. Os virotes são curtos, e são com orelhas, que separam da folha o maçote ou punho onde a mão segura a arma, e vai cópia na lamina (fig. 8). Sobre isto póde lêr-se D. Joachim Marin, Historia de la Milicia Española, tom. I, pag. 33. A materia é bronze ou de ferro. Não obstante haverem jazido debaixo da terra pelo espaço de seculos estão muito limpos, e bem conservados. Noto que os punhos em algumas são curtos para poder jogar com a espada mão pueril, outras são affeiçoadas para maiores pessoas: seriam as dos punhaes com que escreve Grapaldo, De partibus Aedium, pag. 248, dizer Vitruvio non cœsim sed punctim ferire docendos esse Tyrones. Dos Celtiberos escreve Diodoro Siculo que enterravam o ferro para se consumir pela humidade a parte d’elle fraca, e ficasse no vivo a de constante duração. Laminas autem ferri sub terra obsconditas tandiu jacere sinunt dum ferri parte debiliore ferrugine ambusta validior supersit. L. V, pag. 356. Ed. de Wesslingio; porém as de bronze não careciam de tanta cautella.»

D. Fr. Manuel do Cenaculo, Vida de S. Sizenando e historia de Beja, sua patria. Cod. CXXIX/I-9 da Bibliotheca de Evora.

7.ª
ADAPTAÇÃO MODERNA DOS MACHADOS DE PEDRA A VARIAS INDUSTRIAS

Ha machados de pedra disformados n’uma das extremidades, que, em vez da fórma primitiva, apresenta a de uma excavação ou angulo reintrante, e as superficies muito polidas, como por effeito do desgaste. O padre Theodoro d’Almeida, no tomo 1, da Recreação philosophica, a pag. 16, explica-nos o facto, dizendo que os Tiradores do fio de ouro, usavam das pedras de raio para fazer, á força do attrito, adherir as folhas de ouro á superficie de uma barra de prata, que depois estiravam á fieira, conservando sempre a côr do ouro. Isto produz o auctor para mostrar a grande divisibilidade da materia.

Na collecção do Instituto ha um ou mais machados de pedra muito desgastados n’uma das superficies, e parece terem servido de amoladores.

[Pg 163]

8.ª
O TOUCADO DE RAMSES II NA SARDENHA

A paginas 141 e 142 d’este livro, dissemos como em monumentos antigos do Egypto se vêem os libycos e amazirghas, habitantes da Africa septemtrional, adornados com uma trança enroscada que passa por diante da orelha e cahe sobre a espadua, recurvando-se á maneira do chifre inferior de alguns carneiros. Dissemos tambem que um dos pharaós, Ramses II, se adorna com toucado similhante. No Universo Pittoresco, na parte respectiva á Sardenha, vem a estampa de um idolo de bronze com uma trança da mesma sorte recurvada. O auctor do livro, que foi o presidente Gregory, diz que o cavalleiro Ferrero la Marmora apresentara aquelle idolo.

[Pg 164]


[Pg 165]

TABELLA DAS GRAVURAS

1, 2 e 3—Silex das collecções da Commissão geologica de Portugal, que o sr. Carlos Ribeiro suppõe terem sido lascados pelo homem terciario. Tamanho natural 29
4—Machado de silex lascado da estação de San Isidro. (Anales de la sociedad española de Historia Natural. Tom. I, cuaderno 3.º) 33
5, 6 e 7—Faca de silex da estação de Argecilla (Op. cit.) 39
8 e 9—Machadinha de pedra de Argecilla (Op. cit.) 40
10—Ponta de frecha de silex de Argecilla (Op. cit.) 41
11, 12 e 13—Pontas de frecha de silex da Fonte da Ruptura em Setubal. Tamanho natural. (Mus. da Escol. Polyt.) 41
14—Cabeça de lança de silex, achada n’um dolmen pouco distante de Niza. Metade do tamanho natural. (Commissão geologica) 42
15—Cabeça de lança da Sepultura de Martim Affonso, perto de Muge. Metade do tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 42
16 e 17—Faca de silex da Cova da Estria. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 43
18 e 19—Percutor de silex, descoberto no Alemtejo. Tamanho natural. (Collecção do sr. Gabriel Pereira, de Evora) 45
20—Machado de feldspath branco, polido, encontrado no Alemtejo. Metade do tamanho natural. (Collecção de archeologia do Instituto de Coimbra) 46
21 e 22—Instrumentos de pedra da caverna de Albuñol. Metade do tamanho natural. (Gongora. Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 8 e 9) 47
23—Instrumento (picareta?) de calcareo branco, molle, achado em Mafra. Um terço do tamanho natural. (Commissão geologica) 47
24—Cabo de osso da Casa da Moura. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 49
25—Puncção de osso de Almeria. Tamanho natural. (Gongora. Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 61) 50
26—Puncção de osso da Fonte da Ruptura em Setubal. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 50
27 e 28—Furador de pelles (?) objectos de osso achados na Fonte da Ruptura em Setubal. (Mus. da Esc. Polyt.) 51
29—Faca de osso de Albuñol. Tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 14) 51
30—Fragmento semicylindrico de osso, achado na anta de Bellas. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 51
31—Machadinha (?) de schisto de Monte-Real, proximo de Leiria. Metade do tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 52
32—Fragmento de uma machadinha (?) de schisto, achado na Cova da Estria. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 52
33—Baculo (?) de schisto da Sepultura de Martin Affonso, perto de Muge. Um terço do tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 53
34—Machadinha de calcareo branco, achada na Cova da Estria. Tamanho natural. (Commissão geologica) 54
35—Fragmento cylindroide de calcareo branco da Cova da Estria. Metade do tamanho natural. (Commissão geologica) 55
36—Conta de calcareo da anta de Bellas. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 56[Pg 166]
37—Contas de schisto da anta de Bellas. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt) 56
38—Fragmento de louça de Mont’Abrão, propriedade do sr. marquez de Bellas. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 57
39—Fragmento de louça da Pena em Setubal. (Mus. da Esc. Polyt) 57
40—Fragmento de louça da Fonte da Ruptura em Setubal. Metade do tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 57
41—Fragmento de louça de Albuñol. Metade do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia, Fig. 51) 57
42—Diadema de ouro da caverna de Albuñol. Um quinto do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia, Fig. 1) 58
43—Fragmento de tecido de esparto de Albuñol. Um dezeseis avos do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia, Fig 2) 59
44—Fragmento de tecido de esparto de Albuñol. Um vinte avos do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 7) 59
45—Fragmento de tecido de esparto de Albuñol. Um nono do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 1) 59
46—Bolsa de esparto de Albuñol. Metade do tamanho natural. (Gongora, Antig. prehist. de Andalucia. Fig. 20) 60
47—Concha vasada para servir de bracelete da Cueva de la Mujer. Metade do tamanho natural. (Mac-Pherson, 2.ª parte. Est. VIII, fig. 3) 61
48—Pedra balouçante de Boariza, na provincia de Santander. (Sem. Pint. Esp. de 1857, pag. 133) 79
49—Pedra balouçante de Abra, na provincia de Santander. (Sem. Pint. Esp. de 1857, pag. 249) 79
50 e 51—Dolmen da Lairinha a 3:500 metros ao norte de Arrayollos, districto de Evora, provincia do Alemtejo. (Estampa lithographica do sr. Pereira da Costa) 81
52 e 53—Dolmen de Valle de Moura. (Estampa lithographica do sr. Pereira da Costa) 82
54—Dolmen del Hoyon. (Antig. prehist. de Andalucia, pag. 83) 84
55—Dolmen de Ascensias. (Antig. prehist. de Andalucia, pag. 101) 85
56, 57, 58 e 59—Vista interior, vista exterior, vista lateral e planta do tumulo de Antequera. (Sem. Pint. Esp. de 1857) 86 88
60, 61 e 62—Alçado, secção e planta do dolmen interior do tumulo de Eguilaz na provincia de Alava. (Sem. Pint. Esp. de 1857, pag. 157) 92
63—Machado de cobre do Alemtejo. Metade do tamanho natural. (Collecção de archeologia do Instituto de Coimbra) 116
64—Machado de bronze do Alemtejo. Um terço do tamanho natural. (Collecção do sr. Gabriel Pereira) 116
65—Ponta de frecha de cobre da Casa da Moura, uma das cavernas de Cesareda. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 117
66—Facas de cobre ou de bronze da Fonte da Ruptura de Setubal. Tamanho natural. (Mus. da Esc. Polyt.) 118
67—Serrote de cobre ou de bronze da Fonte da Ruptura. (Mus. da Esc. Polyt.) 118
68—Espada de cobre do Alemtejo. Um quarto do tamanho natural. (Bibliotheca de Evora) 120
69 e 70—Punhos de espadas de cobre do Alemtejo. Tamanho natural. (Bibliotheca de Evora) 120
71—Espada de bronze do Alemtejo. Dois nonos do tamanho natural. (Collecção do sr. Gabriel Pereira) 120
72—Punhal de bronze da Galiza. Tamanho natural. (Mus. Esp. de antig. tom. IV) 121
73—Punho de um punhal de ferro da Galiza. Tamanho natural. (Mus. Esp. de antig. tom. iv) 122
74 e 75—Idolo de bronze. Tamanho natural. (Bibliotheca de Evora) 123
76, 77 e 78—Idolos de bronze. Tamanho natural. (Bibliotheca de Evora) 124
79 e 80—Cabras de bronze. Tamanho natural. (Bibliotheca de Evora) 125

[Pg 167]


INDICE

PAG.
PROLOGO 1
CAPITULO I
ESTUDOS PREHISTORICOS
Os erros geocentrico e anthropocentrico e o progresso das sciencias.—Machados de pedra.—Opiniões dos antigos e do vulgo ácerca da sua origem.—Mercati entrevê a verdade.—Demonstrações de Jussieu e de Mahudel.—Opiniões de auctores hespanhoes e portuguezes.—Primeira definição das idades prehistoricas.—O homem fossil.—Schmerling.—Boucher de Perthes.—Os sabios francezes e inglezes.—Inversão das opiniões em França e Inglaterra.—Conferencia internacional.—Resultados definitivos.—Estudos prehistoricos em Hespanha e Portugal. 1
CAPITULO II
ANTIGUIDADE DO HOMEM
Constituição da crusta da terra.—Rochas sedimentares.—Serie geologica.—Rochas plutonicas.—Rochas metamorphicas.—Classificação dos terrenos estratificados.—Duração relativa d’estas formações.—Computo e provas da antiguidade do homem, deduzidas: 1.º da vegetação florestal da Dinamarca; 2.º dos sedimentos fluviaes; 3.º do desgaste das terras pelas aguas affluentes aos rios.—Antiguidade do homem na Peninsula.—Clima glaciario.—Fauna correlativa.—Effeitos da fusão dos gelos.—Hypothese de Adhémar ácerca da epoca glaciaria.—Epocas glaciaria e preglaciaria.—Diluvios periodicos.—Comparação de ambos os hemispherios.—Proporção das aguas e das terras.—Factos comprobativos.—Outras causas astronomicas.—Causas geographicas.—Gulf Stream.—Sahara. 11
CAPITULO III
ANTIQUIORA MONUMENTA
Classificação dos tempos prehistoricos.—Subdivisões da idade da pedra.—Silex e quartzites lascadas da Beira e da Extremadura, attribuidas ao homem terciario.—Julgamento d’estas provas no congresso de Bruxellas.—Provas indirectas do homem terciario, colligidas n’outros paizes.—Sua incerteza.—É maior ainda a das provas directas.—Primeiros vestigios do homem quaternario na Peninsula.—Estação de San Isidro.—Falta de vestigios da epoca mesolithica.—Bruteza do homem paleolithico.—Progresso na epoca neolithica.—Condições favoraveis d’esse periodo ao desenvolvimento da humanidade.—Primeiras exigencias do sentimento esthetico.—Origem das artes. 25[Pg 168]
CAPITULO IV
PRIMICIAS DA ARTE
A estação de Argecilla e outras da Peninsula comparadas aos kiokkenmoddings.—Antiguidade d’estas estações prehistoricas.—Pontas de frecha e de lança, encontradas em Hespanha e Portugal.—Estações notaveis de Castella a Velha.—Facas de silex e seu fabríco.—Officinas em Portugal.—Machados.—Picaretas.—Instrumentos de osso.—Puncções.—Fragmentos lavrados.—Placas de schisto.—Outras insignias ou emblemas.—Contas de collares.—Ceramica.—Objectos achados na caverna de Albuñol.—Diadema de ouro.—Vestidos, gorros e bolsas de esparto.—Ornatos feitos de conchas e de dentes.—Bracelete de concha da CUEVA DE LA MUJER. 37
CAPITULO V
AS CAVERNAS
Os troglodytas.—As cavernas imitadas nas mais antigas das construcções.—Seu estudo recente.—Bocas das cavernas.—Vãos interiores.—Como se formariam?—Analogias das cavernas com os veios metallicos.—Causas capazes de formar as cavernas.—Depositos.—Cavernas ossiferas.—Procedencia das ossadas.—Ossos humanos e vestigios da industria primitiva.—Caverna de Cavillon.—Cavernas da Sierra Cebollera, Gibraltar, Parpalló, Alhama de Granada e Albuñol.—Cavernas da Cesareda.—Se a anthropophagia sería um costume geral dos homens prehistoricos?—Razões em contrario. 63
CAPITULO VI
OS MEGALITHOS
Os megalithos.—Menhires.—Fins para que serviriam.—Alguns symbolisavam a Divindade.—Alinhamentos e cromlechs.—Pedras balouçantes.—Algumas serviriam de altares.—Dolmens.—Differenças entre os de Portugal, Andaluzia e Galiza.—Distribuição geographica d’estes monumentos na Peninsula.—Tumulos.—Differem essencialmente dos dolmens.—Serviram de sepulturas.—Lei da distribuição geographica dos tumulos.—Cueva de Mengal.—Cueva de la Pastora.—Lei da antinomia dos monumentos megalithicos e cyclopeos.—Tumulos da província de Alava.—Castros da Galiza e de Traz-os-Montes.—Cava de Viriato em Vizeu. 75
CAPITULO VII
PROBLEMAS
Dificuldade de interpretar os vestigios das construcções prehistoricas.—Hypotheses de Bonstetten e de Bertrand ácerca dos dolmens.—Factos em contrario.—Leis da distribuição geographica dos dolmens.—Os dolmens e as construcções pelasgicas.—Têem a mesma antiguidade.—Objectos achados nos dolmens de Hespanha e de Portugal.—Insignias de schisto.—Sua ornamentação similhante á de objectos prehistoricos da Scandinavia.—Para que seriam os dolmens?—Porque não ha vestigios de cinzel na maior parte dos da epoca do bronze?—Antiguidade da epoca do bronze e do periodo da pedra polida em que principiaram a erigir os dolmens.—Foram introduzidos por um povo navegador.—A navegação já era praticada no Atlantico durante a epoca da pedra polida.—A civilisação dos dolmens e a civilisação pelasgica.—Signaes esculpidos em dolmens e em rochas.—Duas epocas da civilisação dos dolmens. 95[Pg 169]
CAPITULO VIII
IDADE DOS METAES
Porque não admittem a maior parte dos archeologos uma epoca do cobre?—Hypotheses para explicar a raridade dos objectos de cobre.—Abundancia d’estes objectos na Peninsula.—Haveria na peninsula Iberica uma epoca do cobre?—Coincidiriam essa epoca e a da pedra polida?—Substituiria a do bronze? Objectos de cobre e de bronze, achados em Portugal.—Machados, ponta de frecha, faca e serrote, espadas.—Punhaes de bronze e de ferro da Galiza.—Brevidade dos punhos.—Lendas dos pygmeus.—Idolos e cabras de bronze.—Os primeiros dos exploradores do cobre na Peninsula foram anteriores aos phenicios.—Provas da fundição do bronze na Hespanha, ilhas Baleares e da Sardenha.—Classificação dos jazigos de bronze.—Fundições e thesouros.—Casta asiatica de fundidores nos tempos antigos e modernos.—Os ciganos. 111
CAPITULO IX
ORIGENS ETHNICAS
Os finnicos e os vasconços.—Os seus idiomas agglutinativos.—Origem turania dos finnicos.—Será commum aos vasconços?—Provas deduzidas da philologia e da anthropologia.—Hypothese de Retzius e sua classificação das raças humanas.—Refuta-se esta hypothese.—Opiniões dos philologos ácerca da linguagem vasconça.—Os mais antigos dos craneos da Peninsula e da Europa.—Craneos fosseis de Néanderthal e de Gibraltar.—Outros do Cabeço da Arruda, Cesareda e Cueva de la Mujer.—Maxillas.—Raça de Cro-Magnon.—Sua distribuição geographica.—Povoaria a peninsula Iberica?—Será representada ainda hoje pelos beréberes?—Factos comprobativos.—Necessidade de novas observações.—Os beréberes e os antigos egypcios.—Povos mediterraneos.—Sua civilisação ha tres mil annos.—Extender-se-hia á Peninsula?—Conclusões. 129
CAPITULO X
ORIGENS ETHNICAS (Continuação)
Se os vasconços descenderão dos beréberes.—Insufficiencia das provas allegadas.—Hypotheses da unidade e da pluralidade iberica.—Razões favoraveis a esta ultima.—A philologia e a historia.—A Iberia do Caucaso comparada com a peninsula Iberica.—Os iberos e os povos com quem estavam relacionados.—Difficuldade de determinar os antigos povos peninsulares.—Asserções vagas dos auctores.—Necessidade de resolver o problema por methodos novos.—Até que ponto as invasões historicas esclarecem as prehistoricas.—O Mediterraneo e o Atlantico, vias principaes por onde vieram as civilisações á Peninsula.—Relacionam-se estas vias com as duas correntes das emigrações asiaticas.—A distribuição geographica dos dolmens peninsulares caracterisa uma das civilisações, vindas pelo Atlantico.—Os monumentos pelasgicos caracterisam outra, vinda pelo Mediterraneo.—Antinomia d’estas duas civilisações.—Outras antinomias entre o occidente e o oriente já nos tempos historicos.—As mais antigas das minas de cobre.—Analogias entre os povos antigos da Iberia e os da America.—A civilisação da epoca do cobre.—Os ciganos e os antigos fundidores do cobre e do bronze. 143
NOTAS. 157

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INDICE DOS AUCTORES


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INDICE DAS MATERIAS


OUTRAS OBRAS DO AUCTOR

Cartas da Beira-mar.—Descripções interessantes e pittorescas dos phenomenos e dos seres marinhos. Coimbra, 1867 700
A invenção dos aerostatos reivindicada.—Exame critico das noticias e documentos concernentes ás tentativas aeronauticas de Bartholomeu Lourenço de Gusmão. Evora, 1868 400
Relatorio ácerca da renovação do museu Cenaculo. Evora 1869.
Reforma da instrucção secundaria. Lisboa, 1869.
Reliquias da architetura romano-byzantina em Portugal e particularmente na cidade de Coimbra (com 4 estampas). Lisboa, 1870 1$000
Relatorio da administração da misericordia de Evora pela commissão dissolvida em 19 de janeiro de 1872. Evora, 1872.
A contractilidade e a excitabilidade motriz. Coimbra, 1872.
Breve exposição dos principaes subsidios com que tem contribuido para a theoria do calor animal a chimica, a physica e a physiologia. Coimbra, 1873 500
Educação physica—Segunda edição muito augmentada. Coimbra, 1874. 800
Da architectura religiosa em Coimbra durante a edade media—Conferencia feita em 21 de fevereiro de 1874 no Instituto de Coimbra. Coimbra, 1875 150

ALGUMAS OBRAS Á VENDA NA MESMA LIVRARIA

P. LACROIX—Mœurs, usages et costumes au moyen âge et Renaissance—1 vol.—Les arts au moyen âge et Renaissanse—1 vol.—Sciences et Lettres au moyen âge etc.—1 vol.—Vie militaire et Religieuse au moyen âge etc.—1 vol. edição de grande luxo artistico com muitas gravuras no texto e estampas a ouro e cores, encadernação de Chagrin, dourado nas pastas e por folhas.—Os 4 vol. 30$000.—Cada um dos vol. vende-se separadamente a 8$000
GREGOIRE—Dictionnaire encyclopédique d’histoire, de Biographie, de mythologie et de Geographie. Nouvelle edition 1877—um grande vol. de 2:156 paginas encadernado 4$800
C. LYELL—Principes de Géologie ou illustrations de cette science empruntées aux changements modernes de la terre et de ses habitants—2 vol. avec cartes et figures 5$000
C. LYELL—Abrégé des Élements de Géologie—illustrée de 644 gravures 2$000
OS DOLMENS—Estudos archeologicos por S. L. $120
MESNIER—O Japão estudos e impressões de viagem, 1874—Macau—1 vol. in 8.º grande 1$200
VISCONDE DE SANTAREM—Recherches historiques, critiques et Bibliographiques sur Americ Vespuce et ses voyages—1 vol. $800
R. GUEDES—Curso de Physica Elementar—nova edição posta em dia com os progressos da sciencia—3 vol. com numerosas figuras intercaladas no texto 2$400
J. HENRIQUES—Novo guia Luso-Brazileiro do viajante na Europa, contendo as indicações indispensaveis para conhecer dos hoteis, caminhos de ferro, monumentos, museus, curiosidades naturaes, vias maritimas, moedas e tudo mais que pode interessar ao viajante nas suas excursões em Portugal, Hespanha, França, Inglaterra, Belgica, Italia, Suissa, Allemanha, Austria, Hollanda, Suecia e Noruega, Russia, etc. Um bom volume de perto de 600 paginas, nitidamente impresso, bem encadernado, acompanhado de um mappa dos caminhos de ferro da Europa, gravado expressamente para este livro e com as ultimas alterações d’este anno 3$000
F. LENCASTRE—Indice remissivo da Legislação de Portugal de 1833 a 1868—1 vol. in 4.º a 2 columnas, typo compacto 1$600
ANNAES DAS SCIENCIAS, DAS ARTES E DAS LETRAS, por uma sociedade de portuguezes residentes em Paris, 16 vol. encadernados em 8.º Paris, 1818-1822 6$000
Esta obra foi collaborada por muitos nomes illustres da emigração.
A. J. DA CUNHA—Elementos de Algebra, redigidos conforme o programma dos Lyceus—2ª edição 1$500
HISTOIRE DE LA GUERRE D’ORIENT, (1877)—illustré de cartes, de plans, de portraits, vues, épisodes de batailles, etc. par Amédée Le Faure (vol. 1.º) Paris, 1878, brux. 2$000
N0VA DIVISÃO JUDICIAL—coordenada alphabeticamente com relação aos Districtos Judiciaes. Districtos administrativos. Comarcas, Julgados e Freguezias. Seguida d’uma secção, contendo as comarcas pela ordem alphabetica, sua ultima classificação, numero de julgados, numero de freguezias, numero de fogos, epocas das audiencias geraes, e datas dos decretos da sua organisação, por M. F. da Portella. Um vol. em folio $600
LEIS DE MANU’, PRIMEIRO LEGISLADOR DA INDIA, comprehendendo o officio dos juizes, deveres da classe commercial e servil; leis civis e criminaes, traduzido pelo dr. G. de Carvalho—Nova Goa—8.º grande bruxado $300