The Project Gutenberg eBook of Infanta: tragédia This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Infanta: tragédia Author: Manuel de Figueiredo Release date: September 13, 2022 [eBook #68985] Language: Portuguese Original publication: Portugal: Ed. Lusitania, 1921 Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK INFANTA: TRAGÉDIA *** INFANTA DO AUTOR ORAÇÃO DA RAÇA 1918 INFANTA 1921 _a seguir_: O REI LUZIADA EDIÇÕES LUSITANIA _Rua Arco do Limoeiro, 17, 1.ᵒ-Lisboa_ _Todos os direitos reservados_ INFANTA TRAGEDIA POR MANUEL DE FIGUEIREDO _Diz a Lenda que certo Poeta se apaixonou por uma filha do Rei D. Manuel I, o Venturoso. Chamava-se a Princeza, Beatriz e o Poeta, Bernardim._ _A Infanta foi Duqueza de Saboia, e, exilada no seu Ducado humilde e pobre, deu provas de grande engenho e sabedoria, mas a sua vida, dizem as Chrónicas e a Lenda foi triste e saudosa_... * * * * * _Este livro não é, nem mesmo em sua origem, a historia do amor do Poeta e da Princeza, ou uma evocação da côrte manuelina._ _Só depois de abstractamente ter «vivído» o sonho das Descobertas e das Conquistas, e de ter encontrado, para mim, o seu significado, procurei as personagens, fixei os seus valores, defini as suas atitudes e os seus gestos._ _Tem portanto este livro um sentido mais alto e mais profundo. É a Tragédia d'um momento que passou e a crença, a fé, a certeza, n'um momento que ha-de vir. É o triumpho eterno da Raça perante o Mundo, os Homens, e o Destino._ * * * * * _Não fiz nem quiz fazer theatro. As personagens têem um sentido mais symbolico do que humano._ _A minha Alma viveu o momento passado e visionou o momento futuro:--o Triumpho espiritual da Raça!_ DRAMATIS PERSONAE INFANTA POETA NAUTA ASTROLOGO PINTOR UM BANDARRA O PHYSICO D'EL-REI AIAS, NOBRES, PAGENS, GENTE DO POVO, MARITIMOS, MULHERES, SOLDADOS E VELHOS. [Illustration] Salla ampla, forrada d'Arrazes, abrindo para uma larga arcaria praticável. Por entre as columnatas e os rendilhados da balaústrada, avista-se o rio espraiado e colorido. Hora de sol-poente. Na distancia, terras em bruma. PINTOR--_na arcaria_ O Céu está um boqueirão de fogo. E no movimento constante do vai-vem das aguas, os reflexos de luz estão bailando como se fôra um bailado de pedrarias a arder. Sinto que os meus olhos enlouquecem de tanta luz, de tanta côr... POETA--_que se aproximou_ Olha antes, álêm, os galeões que hão-de levar a Princeza! Sem vellas, lembram ossadas... Envolvem-nos as sombras, e as sombras são caricias de abandono e esquecimento, adormecendo meus olhos magoados... PINTOR--_surprêso_ Para que continuar sonhando?... POETA--_n'uma exaltação quási desvairada_ Sonhar é bem differente! É crear um mundo nosso, onde uma só alma exista, e n'essa alma, a alegria e a dôr do Universo. É modelar o nosso sonho numa imagem, e nessa imagem viver milhares de vidas!... Vivê-las encantado n'um momento, soffrê-las perdidamente até á loucura, resurgi-las depois em novas formas, para de novo as soffrer e exaltar!... O sonho que é attingido, que se deixa tocar, desfaz-se, aniquila-se, em esquecimento, em abandono. Para viverem, meus sonhos em cada hora se transformam. A imagem é sempre a mesma, é sempre Ella; n'Ella os encarno e lhes dou vida... PINTOR E é assim que pouco a pouco vai morrendo o amor desvairado d'outr'ora?... POETA--_sereno, quasi indifferente_ Adormecendo, dizei antes, que morrer é apenas um gesto; o vôo necessário para uma vida maior. Morre-se na vida infinitamente. Morre-se sempre para viver... até ser attingida a luz final, suprema, em que vida e sonho se confundem... Na imagem, na sua imagem mystica, dulcissima, o meu amor é sempre o mesmo; na alma, maior, sempre maior... PINTOR Mas para que soffrer, agora que vai partir, tão doidamente? POETA--_muito calmo_ Para a remir em minha dôr! Exalta-la no meu coração--altar do seu sacrificio! Para a santificar na minha alma! _n'uma mudança brusca_ Conheces bem as terras para onde vai. Por lá andaste, peregrino annos e annos e d'ellas tens dito maravilhas... PINTOR Minhas palavras, de tão pouco que dizem, são quási mentirosas... POETA Eu nunca sahí d'esta cidade de maravilha e de encanto, mas n'ella tenho sentido, vivido, o mundo inteiro! _em exaltação_ Que importa o mundo?! As maravilhas estranhas de que fallais que importam? A vida estonteante, allucinada, que me cerca, tem para mim, agora, a indifferença da morte e é de agonia a alegria em que vivo! Ando a enterrar a toda a hora as minhas dôres. Sou um eterno coveiro, e cavo fundo, fundo, mas os sonhos--ai de mim!--tambem teem alma! Como hei-de enterrar minhas saudades!? _com dolorosa serenidade_ Vai partir... Longe, alguem a espera!... E vai tê-la em seus braços, possui-la!... Amar, é a dor mais forte e mais profunda, a dor que humanisa a creatura e a torna mulher. Ella será mulher tambem... Mas a sua alma--eu sei, eu sinto--estará longe, estará distante, indecisa, como receosa de acordar para a vida, receosa de adormecer na morte! _n'um esforço de recordar, materialisando_ Nunca os seus olhos serenos, suavissimos, de princeza e de menina, me olharam. Se os encontro, fogem, receosos... Não sei o que elles buscam olhando os longes?! Ficam vagos, anciosos, illuminados, distantes... Olhar immenso, olhar profundo, visionario, de sonho, d'amor e de triumpho! Nunca os seus olhos me olharam assim! Parecem sorver a luz! Embebem-se de luz como o céu ao acordar; são sombras de soes os olhos d'ella! Prendem-se na distancia, e assim presos, de encantados, por largo tempo nada vêem! E como ella fica então queda e hieratica! _dolorosamente_ Para a sonhar de novo, em nova forma, anniquilo a minha carne, despedaço-a! Nunca mais a verei olhando os longes, assim immaterial, assim divina... Vai partir... Um principe a espera... Para que veio até mim quem tão alto nasceu?! PINTOR--_suavemente_ E para que tão alto erguer os olhos? Há, na Terra, imagens que são sombras; lindas para ver, não para sonhar!... _Fóra, vozes, entrecortadas, gritam_ O POVO A armada!--A armada que volta!--A frota toda!--A nau S. Bento!--Santa Maria da Barca!--O galeão maior!--Deus os levou, Deus os trouxe na sua guarda!--Deus é Pae!--Deus é bom!--Pela Virgem Mãe!--Pelas Cinco Chagas!--Milagre!--Milagre!--A armada!--A frota toda!--A armada!--Vinde ver!--Milagre!--Milagre!--Deus os salvou!--Deus os trouxe na sua mão... _Continuam vozes_ PINTOR Não ouves?... _indo á arcaria_ Na frota que entra a todo o pano, de tão vermelhas que veem, as vellas lembram enormes labaredas!... POETA--_longe, distante, com dôr que tenta visionar para soffrer, continuando intimos pensamentos_ Há-de tocá-la!... Há-de beijá-la... Far-se-há carne tambem a sua alma!... _ao pintor, que de novo se aproximou_ Aquellas vozes?! PINTOR De longe que estavas nem me ouviste... A frota grande que volta e entra a barra:--o povo, de joelhos, rezando na praia. Escuta... vem gente... POETA--_depois de curta hesitação, indo á arcaria, dominado_ Encantamento da morte! _Pagens afastam o largo reposteiro de brocado. Entram, lentamente, a Infanta, suas aias e alguns nobres. O Poeta e o Pintor, de joelhos, beijam as mãos á Princeza--esguia, branca, serena, triumphal._ INFANTA É «Frol de la mar» que vem entrando? PINTOR Se os meus olhos não mentem, julgo ser... UM NOBRE--_na arcaria_ O galeão maior... Santhiago... Santa Maria da Barca... A nau São Bento... Toda a frota. UMA AIA A Senhora ouviu os nossos rogos pelos que andavam perdidos por sôbre as aguas do mar... OUTRA AIA Levou-os e trouxe-os em sua guarda... INFANTA--_que lentamente se aproximara da arcaria, depois de um longo silencio, com deslumbramento e mysticismo_. É mais, muito mais do que uma armada entrando de novo a barra! Ha almas n'aquellas vellas:--sinto-as, vivem, palpitam em mim! _exaltando-se_ São como mãos do Destino aquellas naus! Ellas andam buscando, a toda a hora, o mundo maior que Deus creou! Andam buscando, perdidas entre as ondas, os reinos da luz e do mystério, os reinos das pedrarias e do oiro! Errantes, sem rumo, á aventura, foram quebrando o feitiço ás ilhas perdidas do mar! As ilhas, castellos encantados, que, por nossa voz, despertam a cantar! São como nossas mãos aquellas naus! Dia a dia, andam realizando o nosso sonho! Abrindo nossos olhos deslumbrados ante horizontes novos e estranhos! Por ellas, transfigurado, o mundo acorda, desperta, da noite negra! Por ellas o mar e a terra são maiores! Por ellas o céu tem mais estrellas! São como mãos do Destino aquellas naus! São como nossas mãos! São como mãos de Deus! _nos olhares deslumbrados da côrte passam, por momentos, as palavras da Infanta._ _Ao Poeta_ Que faz alêm, na praia, o povo?! POETA Chora saudades... INFANTA Chorar?! E de joelhos?!... POETA Rezam... INFANTA--_quási com violencia_ Mas para que rezar, chorando?! Eu rezo erguendo um cantico em minha alma deslumbrada. Se fossem esquifes as caravellas e as naus, como rezar? Como rezar pelos mortos? Só o sol é triumphante e glorioso! E é n'aquella luz de poente, n'aquelle céu em fogo, triumphal, supremo, que eu rezo a minha oração. Em vez de cantarem a morte gloriosa, rezam pedindo a vida humilde que renuncia ao sonho creador... Ajoelham-se... Cegam os olhos, baixam-nos para a terra, quando os deviam abrir á luz e erguê-los para o Céu! UMA AIA Perdoai, mas o povo, Senhora, é simples demais para comprehender... INFANTA Mas não para sentir! As arvores não veem o sol, mas sentem-no e adoram-no, e para elle estendem sempre seus ramos, e para elle vão crescendo sempre, para mais o sentir e adorar! A intelligencia vê, o sentimento adivinha! E o mundo, por nós, é maior, mais bello, em cada dia! Communga em nós a toda a hora, e por nós se redime e engrandece! _olhando vagamente em seu redor_ Olho os montes d'alem, aquellas terras, o rio e a casaria e tudo que me cerca, tudo, tudo, tem para mim o encantamento de um mysterio no maravilhoso de uma revelação. Tudo ri e canta e vibra e se espiritualiza em reflexos! Só o povo chora e reza! Sente dôr o povo? São de dôr as suas orações? Em vez de entoar canticos reza ladainhas? _á côrte_ E vós?! Acaso não sentis como eu tambem? Olhando as náus, só vêdes náus?! _sahindo fóra, á arcaria_ Olhai agora. Vêde, como ellas vêem! A Cruz n'aquellas vellas ganhou azas. Está mais perto do Céu, é mais divina! _com violencia_ Não sentis em verdade como eu? Não olhais para aquellas naus como milagres de Deus?! Não comprehendeis que é um mundo de phantasmas, tenebroso, horrendo, sombrio, que desappareceu, illuminado por nova luz, por nossa luz? Que o novo mundo que nasce em novos povos, em novas terras, em novos ideais, é nossa creação?! _em exaltação crescente, com violencia maior, n'uma alucinação_ Onde estão os mares de sangue? Os mares de fogo? Os deuses infernais, os gigantes disformes, horrorosos, os negros boqueirões dos abysmos profundos?! Ilhas de morte! terras de fogo! brumas eternas! onde estais?!... onde estais?!... UMA AIA--_baixo, a outra aia_ Como desvaira... POETA--_a meia voz, ao pintor_ E sempre longe... cada vez mais longe de nós!... INFANTA--_mais calma, continuando_ É um mundo de sangue e de morte, creado pelos homens, que desapparece. É um mundo novo de vidas novas que nasce, e em que se ergue bem alta, na tragedia suprema de luctar e vencer, a luz de Deus! Os deuses infernais onde estão elles?! São como nossas mãos, são como mãos de Deus, aquellas naus!... POETA Mas ha cadaveres, Senhora, boiando no mar... INFANTA Que importa triumphar ou morrer, quando, na morte e na victoria, se reza o mesmo cantico, vivendo o mesmo sonho?! Se, para alem da morte, a alma continua, e da vida ficou, em rasto triumphal, uma Via-Lactea de Herois, perpetuando... _ao pintor_ Fixai bem a armada... PINTOR Meus olhos, em seu deslumbramento, estão cegos, Senhora! _Movimento entre o povo, sussurro, vozes..._ UMA VOZ--_atona, sombria_ Dia e noite, ha uma estrada de luar por sobre as águas... São os mortos que vão a enterrar... São os mortos, amantes das vagas... Cortejo de naufragos, por cyrios de luar alumiados... Olhae, olhae agora... É a estrada da Morte que a armada vem seguindo... INFANTA--_com horror_ O agoiro... UMA AIA Vinde, Senhora, não lhe deis ouvidos. UM NOBRE Que os pagens o mandem afastar... INFANTA--_em grande exaltação_ Que o afastem. Que se cale. Que ninguem o ouça. Mente!... Mente!... _caindo em si, n'uma mudança brusca, novamente serena_ Calai-vos. Eu quero ouvir, quero entendê-lo. Como disse elle? Cortejo de naufragos... A VOZ--_novamente_ Mas qual rumo seguir? Olhai! não vedes?! É a Morte que vem por timoneira... _A luz, pouco a pouco, torna-se crepuscular. O rio escurece. As terras, na distancia, desapparecem na bruma._ VOZES DO POVO--_desencontradas_ Cala-te!--Cala-te!--Mau agoiro!--Pelas Cinco Chagas!...--Pela Virgem Mãe!...--Misericordia!--Misericordia!... INFANTA O povo nem o olha; tem-lhe medo! De rastos, de joelhos, a gritar misericordia! Que estranho e desvairado está o povo! O «BANDARRA»--_afastando-se_ Mas para que rezais?... para que chorais?! Olhai o sol, olhai a luz! É tudo oiro... é tudo oiro!... O despertar não tarda, mas ainda não veio... Por que chorais? É tudo oiro... Toca a cantar... toca a bailar, que ainda é folia... Olhai!... porque rezaes?! Bailai!... Bailai!... VOZES DO POVO--_a distancia, entrecortadas_ Por Santhiago!--Pela Virgem Mãe!...--Misericordia!--Christo, ouvi-nos!--Christo, valei-nos!--Christo, ajudai-nos!--Ave agoirenta!... INFANTA Que tem o povo? Que loucura a d'elle! Que estranha voz! Quem o entendeu? _olhando em roda_ Ninguem?! E mestre Lopo onde está? Ide chamá-lo... _ao Poeta e ao Pintor_ Ficai... _a um fidalgo_ Trazei-mo aqui. A VOZ DO «BANDARRA»--_ainda mais distante_ Porque rezais? É tudo oiro... é tudo oiro... Toca a cantar... Ide bailar... Toca a cantar que ainda é folia!... _Curto silencio. A tarde continua escurecendo._ INFANTA--_recordando, como n'um sonho_ Quando eu, criança ainda, ia com El-Rei meu Pae ver chegar as naus, o povo não rezava, não chorava... Cantava e ria o povo; e era ainda cantando que resava! Agora chora!... Porque estranha loucura chora o povo agora?! Que vê, que sente, elle?! A terra tem o mesmo encanto e a mesma alegria o céu! É o mesmo scenario de magia. E o povo chora... e o povo reza... Parece não vêr o que o cerca; fica como cego a ouvir o agoureiro. Chamam-lhe a Ave-agoirenta; receiam-no, temem-no, acreditam n'elle! Mas que verdade, teem, acaso, as suas fallas?! A sua voz, fria e distante, lembra morte, é certo. É uma voz d'alem tumulo, d'alem vida--prophetica! Ainda a julgo estar ouvindo!... UMA AIA Desviai de vós, Senhora, tão negro imaginar. Para que recordar palavras doidas? Para que estar, Senhora, a dar-lhe ouvidos?! INFANTA--_impressionada_ Palavras doidas sim, palavras doidas!... Se não fôra o tom da sua voz! Como ella é fria, fria, e lembra a Morte! UM VELHO PHYSICO--_rudemente_ A Morte não vê, não falla, não ouve. É cega, é surda, é muda a Morte! Para que estar, Senhora, imaginando que ella pode fallar na voz de um doido? Eu, que sou physico d'El-Rei, e já um velho, a quem a morte de manso vem tomando, por vezes, estudando as caveiras interrogo-me! Olho-as bem... Vejo n'ellas o meu dia de amanhã, e não as olho com horror; pelo contrario, vejo-as com amor, com simpathia... e até, recordando as minhas dôres, acaricio-as! As orbitas não teem olhos; as boccas não teem lingua; os ouvidos são buracos apenas. Não podem ouvir, nem ver, nem fallar! Porque, Senhora!? Porque a Morte é paz, socego, anulamento; é nada... Os mortos dormem e não querem que os acordem. Que se importam elles dos vivos, se repousam!?... Deixai a voz do doido... INFANTA--_serenamente_ Porque só olhaes e interrogaes caveiras não podeis comprehender os mysterios que nos cercam. Só mestre Lopo, que lê nos astros, poderá dizer toda a verdade. _Docemente, na distancia, os sinos tocam as Trindades._ Ave-Marias! Rezemos... _pondo as mãos, em prece, mysticamente_ E um anjo do Senhor, cheio de luz, desceu dos Céus á Terra e disse: «Ave-Maria cheia de graça, o Senhor é comtigo...» _Silencio. A corte ajoelha e reza por momentos; os pagens, acendem luzes._ INFANTA--_finda a oração, indo á arcaria_ Como é grande a calma religiosa d'esta hora! Como anoiteceu depressa! A terra dorme já em sombra e bruma. Só o rio e o céu teem ainda luz! PINTOR Tudo adormece em silencio, tudo dorme... Só eu fico ancioso esperando a madrugada! Tenho ancia de luz como as flores e as aves! As sombras são negras, entristecem-me; fico como cego. Só no sol, só nas côres, sinto a vida e tenho alegria e ancia de viver. POETA A luz só a adoro, só a sinto, no adormecer suave d'esta hora, em que a natureza inteira está tambem de mãos postas a rezar! Luz que queima, que enlouquece, e tudo revela, tudo acorda, eu a maldigo! Luz que é fogo em minha alma, e maravilha em meus olhos, eu a odeio. Mas esta, em que a saudade se deixou cruxificar, e tem mãos de mysterio e acaricia, e vem de manso afagar meus olhos, embalando meu sonho pela noite fora, e em negrumes abafa minha dôr, dando-me paz, serenidade, calma, esta, Senhora minha, eu a adoro, eu a bendigo. INFANTA Mas porque odiar assim a luz, assim a vida? POETA--_com intensão_ Porque acorda... Porque tece feitiços de loucura... Porque illumina, revela, transfigura. Porque cria sonhos. Imagens que são reaes e que se afastam, que vemos e não podemos alcançar... Odeio a luz, Senhora, porque ella illumina o meu soffrer, e entra em meu coração e abre-o de par em par ao soffrimento! Porque estendo os braços, anciosos, loucos, e meus braços se perdem no ar!... Vejo o meu sonho e não o alcanço... Tenho-o junto a mim e está distante... E soffro mais ainda! Antes a noite! Vejo-o, sinto-o, palpita e vive em mim, como se meu coração ganhasse azas e em meu peito ficassem a bater, como a quererem livrarem-no da Morte, antes da Morte vir e lhe tocar! INFANTA Mas se sonhais... O sonho é pensamento, não se vê, nem se alcança, só pode ser imaginar... POETA--_muito calmo_ Senhora, perdoai... Tendes razão, por certo. Mas foram meus olhos, de encantados, que peccaram, foram meus olhos que sonharam primeiro. Elles viram, sentiram, deslumbraram-se. Que culpa teem elles?! Depois... minha alma enlouquecida, encheu-se de sombras e de dôr! E a Dôr é a grande alma do Universo, que entrando em nós toma-nos todo, torna-nos meninos em seus braços, e fica a embalar-nos para a Morte, a cantar e a chorar!... Senhora, por muito alto que estais, perdoae ter-vos fallado de mim... _Um longo silencio._ VOZES DO POVO--_mais dolorosas, mais espaçadas, mais distantes_ Pela Virgem Mãe...--Por Santhiago...--Miserere nobis...--Misericordia!... INFANTA--_com forçada naturalidade, como querendo, fallando, affastar seus pensamentos_ E sempre o povo!... Escutai... ainda se ouve... Só o sinto rezar, só o ouço chorar!... Assim só se reza pelos mortos... Mestre Lopo entende o povo?! POETA Mestre Lopo nunca vê o povo. Foge da multidão com horror, quasi com medo. Sosinho, em silencio, olha as estrellas toda a noite. E levado por ellas, em seus roteiros, é um caminheiro do céu, a desvendar segredos de Deus! INFANTA Oh! quem me dera ver como elle vê! Desvendar o mysterio... mas eu olho o céu e nada vejo. O PHYSICO Comprehender estrellas, em verdade vos digo, Senhora, que não entendo. Parece-me phantasia ou loucura de astrologo. POETA Olhá-las e escutá-las!... Quantas vezes meus olhos, pela noite, as teem ouvido... UMA AIA Que dizem ellas? POETA--_indiferente_ Trovas... Talvez as minhas... _O vozear do povo toma-se mais intenso._ INFANTA O povo... o povo, que desvairado está! Que loucura a d'elle! Não o entendo, nunca o vi assim! UM NOBRE Chora e reza, mas acreditae, Senhora, que não sabe porque o faz. Chora e reza como poderia cantar e bailar... INFANTA O povo é adivinho,--todos dizem... Sente apenas. O povo chora; soffre. Reza; tem medo. A alma do povo é de presagios. _A mestre Lopo, que entra_ Bemvindo sejaes Mestre Lopo. ASTROLOGO--_ajoelhando e beijando-lhe a mão_ Em que vos posso servir, Senhora Infanta? INFANTA Dizendo-me o que dizem as estrellas... ASTROLOGO--_hesitando_ O que dizem?! Em verdade vos digo, Senhora, que não sei. INFANTA Porque não dizer a verdade?! Porque fingir não saber?! _vincando as palavras, com intenção_ Não ha presagios negros pelo céu?... ASTROLOGO--_mais hesitante ainda_ Presagios!... Muito ao longe, talvez... De distantes que estão ainda os não poude comprehender. INFANTA Mas porque chora o povo? Porque reza chorando? Porque, de joelhos, pede misericordia? Porque em grita desvairada, louco, transfigurado, parece ver naufragios?! É a armada que entra triumphal e dir-se-hia estar vendo entrar esquifes... E o agoireiro! Mestre Lopo, dizei-me, se sabeis, que sentido querem ter as suas fallas? ASTROLOGO Não sei, não sei!... O povo sente, Senhora, e eu só sei comprehender os mystérios do céu. O povo sente a morte já?! Ainda está longe, muito longe, mas foi isso que o agoireiro quiz dizer. A armada vai fundear, e o povo bailará ao redor dos que chegaram... O povo é bailador. Ainda é folia. Bailará á luz dos archotes, dos brandões, logo, no terreiro. E o agoireiro julgará ver, não archotes, mas cyrios... INFANTA--_serenamente_ Quereis dizer... É a Morte que vem?! ASTROLOGO De manso, a rastejar... E vem tão linda! Cobrem-na brocados, pedrarias... Nem parece ella! Mas não me deis ouvidos, que isto diz o povo e não estrellas... _A Princesa pouco a pouco transfigurou-se; parece nem vêr, nem ouvir._ _Approxima-se de novo da arcaria. O povo está silencioso. A côrte segue-a. Hierática e serena, fita longamente as naus, negras e vagas, levemente tocadas pela luz quási extinta do crepusculo._ INFANTA--_violentamente_ Dominar! vencer!--razão suprema, humana, do destino dos homens sobre a terra. Transfiguração do triumpho em soffrimento, exaltação da morte pela morte, da alma pela vida! Vencer o mar, desvendar os mysterios, por ancia de luctar e renuncia de viver a vida passageira, vencendo da morte o esquecimento! Ha uma Via-Lactea de guerreiros mortos a envolver o mundo, um enterro de naufragos a povoar o mar! Por nós o mar tornou-se Humano! Por nós o mundo é já Divino!?... _Silencio profundo de assombro e de terror, como se mãos mysteriosas, invisiveis, a todos prendessem. Immobilidade completa: nem um gesto; olhares que a medo se interrogam._ _A vida arrasta-se sem fim; momentos são horas._ _Sem ruído, entra um pagem; queda-se surpreso por instantes, olha em roda, e, lentamente, de manso, acerca-se da aia; fallam baixo, muito baixo._ A AIA--_hesitante, approximando-se da Infanta, a custo, como receando_ El-Rei, meu Senhor e vosso Pae, espera-vos para seroar... _A Infanta não a ouve; continúa extática. O silencio é agora maior e mais pesado._ A AIA--_mais hesitante, mais baixo_ Senhora, perdoae... mas El-Rei, meu Senhor e vosso Pae, espera-vos para seroar... _Numa immobilidade de estatua, a Princeza continúa olhando as naus._ _Silenciosas, inconscientes e hesitantes, como somnambulas, dominadas, as aias afastam-se, abrindo alas. A Infanta desperta. Olha, cansada, os que a rodeiam. Interroga-os com um olhar: comprehende, tem um gesto vago de recusa, fixa mais uma vez o rio e os longes, e, deixando-se ir como arrastada, sahe, seguida da côrte. Os pagens levam os candelabros. A luz do crepusculo é extinta. Só negrumes. Nas columnatas bruxoleam vagos clarões._ A VOZ DO BANDARRA--_fóra_ Bailai, bailai, que ainda é folia!!... Acendei cyrios... Trazei mais cyrios... Acendei mais... _O povo, com os que desembarcaram das naus, canta e dança, no terreiro, á luz d'archotes._ [Illustration] Uma das sallas da camara da Infanta, abrindo sobre o rio por duas grandes janellas abertas de par em par. Forram-na brocados de seda branca e oiro palido; veludos doirados cobrem os coxins. Na parede da esquerda, ao centro, sobre um estrado, uma cadeira de espaldar alto, coberta de pano de oiro, tendo por fundo uma tapeçaria armoriada e, a encimá-la, um docel de lhama. Mesa rendilhada de marfim e embutidos d'oiro, ao centro, sobre uma alcatifa oriental. Á direita e á esquerda portas cobertas por damascos brancos, brazonados. * * * * * É uma salla de luar em que o outomno deixou cair as folhas... _Aias trabalham afanosas, em silencio, dobrando grandes peças de brocado d'oiro, de lhama prateada, de sedas damascadas. Outras, sentadas nos degraus do estrado, escolhem joias, que passam de mão em mão, e que a aia Leonor--pequenina como feita para o dedal--entrega á princeza.--Escurece._ _Uma das aias canta em surdina_: «_Estava a bella Infanta_» «_No seu jardim assentada_» «_Com o pente d'oiro fino_» «_Seus cabellos penteava._» «_Deitou os olhos ao mar_» «_Viu vir uma nobre armada;_» «_Capitão que n'ella vinha_» «_Muito bem que a governava._» INFANTA--_com abandono, deixando cair lentamente pedras soltas, uma a uma, na mão da aia_ São como gottas de sangue estes rubis... Pedaços de céu estas saphiras... Lágrimas de estrella os diamantes... UMA AIA--_acercando-se da janella aberta_ Já vai anoitecendo... É sempre o rio o mais lindo vitral a esta hora. INFANTA O entardecer é feito de vitrais... A AIA Até o casario, em reflexos, parece feito de crystal. OUTRA AIA E o luar já vem de manso. Para os lados d'alem, por traz d'aquellas serras, ha uma luz azulada, um vago clarão... OUTRA AIA Arrefece. _á Infanta_ Que a aragem fresca e leve, que vem do mar a esta hora, vos não faça mal, Senhora! INFANTA Socegai... Lisboa, ao luar, é uma cidade d'almas, acaricia. _bruscamente_ O mar, Leonor, quando fez mal? _reparando num collar de esmeraldas que a aia segura, pegando n'elle, e passando-as uma a uma pelos dedos, como contas de um rosario, depois de um momento de silencio, como se fallasse para si, sonhando alto_ Ha vagas mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas... Eu gosto das esmeraldas porque me lembram o mar. O mar é verde, sempre verde; eu nunca vi o mar azul,--azul é o céu e o rio. Olhar o mar não é ir vê-lo de longe, é ir até elle, até bem junto d'elle, é vê-lo e senti-lo em cada vaga que vem bater na penedia e desfeita se espraia pela areia... É vê-lo soffrer! É vê-lo luctar! Ondas que veem, que se espraiam, que vão, que voltam, que luctam sempre, e não repousam e não descançam em eterno soffrer!... _Silencio. Voltando-se para a aia Leonor_ Tu tambem vês, Leonor, como os mais, o mar azul? Tu tambem crês que o mar, o verdadeiro mar, é aquelle que se estende sereno até ao horizonte distante, azul, muito azul? A AIA Eu vejo o mar azul... INFANTA Tu olhas o céu no mar, diz antes, mas diz tambem que nunca viste o mar. A AIA Eu nunca soube ver como vós, Senhora! INFANTA Por que tens medo de ir até á praia e de estar junto d'elle, como eu, quando as vagas veem umas sobre outras, enormes como vellas ao vento, bramindo, rugindo... São mãos potentosas, gigantes, que se desfazem em espuma. Nunca olhaste de frente as vagas?! Nunca as viste, Leonor, em transparencia?! Pois são verdes, mais verdes e mais lindas ainda que estas esmeraldas! A AIA Eu nunca soube ver o mar... _depois de um silencio, procurando n'um anel de opala os reflexos, e mostrando-a á princeza_ Como é mysteriosa e tentadora! Se as pedrarias tivessem vida ... se ellas morressem ... eu diria que tinham escolhido as opalas para sarcophagos das suas cores... OUTRA AIA Trazem desgraça as opalas. São como maus olhados... Teem fogo ... queimam... INFANTA São lindas! São phosphorescentes como o mar em noites negras!... Mas escurece... Os pagens que tragam os candelabros. O nauta, dentro em pouco, estará comnosco... UMA AIA Já ha luar. O rio e o ceu estão de lhama... INFANTA Pouzem as minhas joias; não as guardem... A AIA E o diadema? INFANTA--_atenta_ Tambem... pousai tudo... deixai ficar... _levantando-se e acercando-se dos vitrais, após curto silencio_ Tantas luzes, alem, subindo a encosta! Quasi se apagam... scintillam mais, agora... Vão em filha... par a par... _chamando a aia_ Repara, Leonor. O que será? A AIA--_hesitante_ Talvez o Santo Viatico... talvez procissão... Mas o rio está tão lindo! Olhai antes o rio... INFANTA--_já não a ouvindo, attenta, em expressão de dôr_ Mas ouve-se cantar. Não ouves? Cantam ou rezam? A AIA-_insistindo_ Olhai antes o rio... aquellas naus... INFANTA--_sem a ouvir_ Porque será, Leonor, que os cantos de hoje são tristes, sempre tristes?! Porque foge o povo do sol e só canta e baila pela noite, como hontem?! Parece ter medo da luz e só gostar de se esconder nas sombras... Os seus bailados, á luz dos archotes, lembram rondas de mortos, de phantasmas... E se mestre Lopo tivesse razão? _agarrando-se á aia, com horror_ Não respondes? Tambem tu acreditas, Leonor?! _em grande exaltação_ Acaso as caravellas mentem?! Acaso os mundos novos não existem, e são alucinações e são chimeras?! _depois de um silencio_ E as novas estrellas!? Que dizem ellas? Quem as ouve? Quem as procura entender? Leonor, tu não respondes!... Tambem tu julgas?! Tambem tu acreditas?!... A AIA--_meigamente_ Mas socegai... Bem sabeis... eu não sei. INFANTA--_repentinamente calma, noutro tom_ Olha a sombra d'aquellas naus, alem. São sombras d'azas, voam sempre! Mestre Lopo engana-se, as estrellas enganam-no. _Ouve-se de novo o canto, mais distintamente:--é como um côro_ Aquellas luzes, aquelle canto, fazem-me mal. Fechem os vitrais por agora... A AIA--_baixo, a outra aia, emquanto a Infanta volta para a cadeira de espaldar_ Não percebeu... Rezemos baixo... É um homem da armada, um mareante, que vai a enterrar... A OUTRA AIA--_com desalento_ Mais um!... Mais um!... E já são tantos! _Batidos pelo luar os vitrais illuminam-se._ INFANTA Como são lindos assim, estes vitrais! A AIA--_depois de um momento, como a findar as orações_ Lembram até, pela suavidade do colorido, as illuminuras do vosso livro d'horas... INFANTA O luar que as illumina é um luar de reflexos, um luar d'aguas. Abrem sobre o rio... As janellas d'este paço estão mais altas que as de nenhum outro; quando d'ellas me acerco eu vejo o mundo!... e sinto-o e ouço-o palpitar em seus anceios--coração do Homem e de Deus! _n'um recordar enternecido, saudosissimo_ Deitam sobre o rio as janellas d'este paço... E foi d'ellas, de junto d'esses vitrais, que eu ainda tamanina, de olhos muito abertos, deslumbrados, vi chegar as naus e caravellas que foram um dia em busca do imperio, por mares distantes... ignorados... mysteriosos... _em recolhimento de intimos pensamentos, passando pelos dedos as perolas do collar_ É um rosario de saudades o meu collar... São contas de saudade as minhas perolas... * * * * * _Os olhos da princeza, fixos, pasmados, revêem o passado. As aias trocam olhares, fallam a medo... Um silencio de vida adormecida._ _De repente, distinctamente, gritos da multidão, ululante, desvairada, fanatica, sanguinaria._ A MULTIDÃO Á morte!--Á morte!...--Herejes malditos!--Filhos de Satanaz!...--Perros tinhosos!--Bruxos de perdição!--Malditos!--Malditos!--Por Jesus Christo!--Pelos nossos filhos!--Á morte!--Á morte!... UMA AIA--_abrindo uma das janellas, espreitando receosa, e fechando-a em seguida_ O povo anda perseguindo mais uma vez os Christãos-Novos... INFANTA--_com soffrimento e como despertando d'um grande sonho_ Os Christãos-Novos! Julgara ter ouvido gritos de combate em terras de além-mar... _Muito de manso entram os pagens com os candelabros; fallam baixo as aias. Um grande silencio religioso_. UMA AIA--_á Infanta_ O nauta aguarda, Senhora, as vossas ordens... INFANTA Entregaste-lhe as minhas prendas? E ao pintor? E ao poeta? _a um signal afirmativo da aia_ Que venham em bôa hora! _As aias, sem ruido, todas de branco, veem cercar a Infanta, sentando-se uma a uma nos degraus do estrado. Sobre a mesa, dispersas, brilham as pedrarias. Á luz dos candelabros os diamantes do diadema scintillam em fogo vivo. A cruz, a esphera, e as quinas dos vitrais, em coloridos suavissimos, são brazões de luar, brazonando o Infinito_. _Entram o Nauta, o Astrologo, o Pintor, o Poeta e alguns nobres_. O NAUTA--_ajoelhando, tirando a espada da bainha e pousando-a no degrau do estrado_ É vossa a minha espada... INFANTA Que São Jorge proteja a tua espada... PINTOR--_beijando a mão á princesa_ As minhas graças, Senhora, pelas mercês e honras que de vós recebi. INFANTA Uma lembrança... POETA--_ajoelhando_ Bendita sejais, Senhora, eternamente, entre as mulheres... INFANTA Uma lembrança... ASTROLOGO As minhas bençãos vão para vós, Senhora! INFANTA Que Deus as confirme... Queria que viesseis para ouvir tambem, e ouvindo, dizer ás estrellas, a grande, a eterna prophecia. _fitando-o_ Não acreditais?! _Ao nauta_ Travara-se o combate... Contai... _Silencio. Todos cercam o estrado; só o nauta fica frente á Infanta_. O NAUTA--_alheado_ Como dizer-vos?... Era como se o mar, desobediente a Deus, entrasse pela terra dentro em furia insana... Cada homem, Senhora, era uma onda potentosa, gigante e indomavel. INFANTA--_enlevada_ Somos como o mar! O mar humanizou-se em nós... Temos a voz do mar em nossas almas, temos a força das ondas em nossos braços!... _silencio_ Ias dizendo... NAUTA Que tão grande era a força dos guerreiros que dir-se-hia que a força do mar estava n'elles! Os que ficaram na armada não fallavam, e eu mesmo, por mim, não sei se viviam. Eu não sabia onde estava, se no céu, se na terra, ao ver tanta façanha! Não sentia o corpo, e ainda agora penso se não foi sonho ou visão tudo o que vi! Em nosso redor só havia gritos:--gritos de triumpho, gritos de dôr, gritos de morte! Por São Jorge os nossos abriam clareiras na multidão alucinada. Por Christo tocavam as trombetas, abafando o canto plangente, o choro louco, das mulheres, das crianças e dos velhos. As lanças e as espadas reluziam ao sol como rubis, mas o sangue não abafava o grito agudo e frio do bater dos ferros, do chocar das laminas! Gritos, só gritos, Senhora, em meu redor! De repente, entre as gentes no combate, avistei o grande Capitão, cercado, perdido, abandonado, entre as lanças dos cavalleiros arabes... Quantas lanças? Não sei! Mas eram muitas, todas cruzadas! Era como um silveiral de lanças em seu redor... Lanças que caíram uma a uma, como se fôra tojo a ser rossado! INFANTA Deixai a batalha... Em nossos braços os montantes sempre foram foices de rossar lanças... Já de volta ao galeão, o Guerreiro dizia-vos?... O NAUTA Que o imperio ainda estava por formar... Que ia mais alem do que julgavamos. E disse então d'esta guiza, ainda me lembro, ainda me parece tê-lo em minha frente, estar a ouvi-lo: --Tenho que obedecer á voz do meu Destino. Escutar o sonho que me chama para novos soffrimentos, maiores feitos. Em mãos de infieis estão ainda os Logares Santos. Milhares de homens lá foram para arranca-los ás profanações e nunca Deus quiz que seus desejos fossem realizados. Só um povo de gigantes e de eleitos pode remir as Terras Santas. E nunca um povo lá foi, só foram homens, crentes peregrinos, sonhadores guerreiros, de terras diferentes e estranhas! Eis o Imperio que eu quero formar. Imperio eterno de redempção eterna! Os mundos novos não bastam. Este Imperio é grande para os homens, não para Deus! Fechar os mares em nossas mãos foi empreza facil. A empreza maior é a de maior sacrificio. Esquecerei até ao fim a dôr e o soffrimento dos homens, porque morrer é não realizar o sonho idealizado... Não vamos para a conquista de mais terras;--vamos buscar a eternidade! ASTROLOGO Vã gloria a dos homens!... Louco engano de cuidarem eterna a fama de um momento. INFANTA A alma dos povos vive sempre, passa de geração em geração. ASTROLOGO E a memoria dos homens passa breve... INFANTA Os crentes não esquecem. _ao nauta_ Ias dizendo... NAUTA--_sereno, mas vincando as palavras quasi violentamente_ Que era maior ainda, em sonho, em força e em audacia do que o sonho dos cruzados, o sonho do guerreiro! Ligar todo o Imperio, e sobre elle estender, em benção de eterna protecção, a sombra suavissima da Cruz, bem alta alevantada nas terras remidas dos Santos Logares!... O Imperio de Christo sobre a Terra! INFANTA--_ás aias, numa exaltação de deslumbramento e mysticismo_ Abri os vitrais para que o mundo ouça tambem... ASTROLOGO Ou para que chegue a este paço, o canto fatal dos Reis-cegos... O NAUTA--_violentamente_ Cantaram, é certo... É lenda velha que elles annunciam a morte dos eleitos. _exaltando-se_ A lenda cumprir-se-ha talvez, mas que importa?! O Imperio já está formado, já existe. É nosso o mar oriental e ocidental, de lés a lés, de cabo a cabo, e por essa costa fóra, ao brazeiro do sol, mil padrões de gloria, marcam os roteiros onde chegaram naus, caravellas, mareantes! Os mortos mandam eternamente na terra. As almas dos herois e dos santos não morrem; vivem em alma junto dos homens e de Deus! O sonho da vida continúa na morte e cada brazão das quinas é feito de almas:--o sonho d'um santo ou de um heroi!... POETA O brazão fatal das Cinco Chagas... ASTROLOGO Calvario eterno, de soffrimento eterno, em que a alma deste povo, dia a dia, anda a ser crucificada... INFANTA--_bruscamente_ Deixai os presagios... _ao nauta_ Contai a vizão... _Pelas janellas abertas entra o luar em grandes manchas azuladas_. NAUTA--_serenamente, seguro de si, numa certeza religiosa_ Como Eleito do Destino, já na conquista da cidade, por graça de Deus, lhe fôra dado vêr Santhiago a seu lado, combatendo os moiros, de armadura branca e de vermelha cruz no manto branco. Havia uma Via-Lactea de conchas luminosas a marcar o roteiro do santo; e n'essas estrellas, o Guerreiro vira naus e caravellas! Esta foi a visão primeira, ante-manhã; depois rubro do sol, aureolado de sol, faiscante de sol, entrara na cidade... _após curto silencio_ Agora o milagre não foi só para o Guerreiro; nós vimos tambem, eu vi tambem. No céu, para o horizonte, para os lados onde fica a Terra Santa, uma cruz immensa de sangue gottejante, abriu os braços... Enchia o céu... como se o céu fosse a vella maior de uma nau! Tangeu o côro das trombetas, ressoou pelo ar o estrondo das bombardas... E nós vimos, e eu vi, até ser sol-poente, a Cruz a gotejar no ceu azul e immenso a marcar-nos o caminho que o Guerreiro horas antes traçara. Foi então, Senhora, que eu, nós todos que o cercavamos, nos sentimos como elle, eleitos cavalleiros, mysticos cruzados, ungidos pelo Destino!... _á côrte_ É esta a nossa fé:--se ousais nega-la, mentis aos homens e mentis a Deus! _Silencio profundo e longo. A Infanta tem o olhar distante e vago preso ao céu. As aias, baixo, murmuram orações. O nauta, olhar de illuminado, é como cego... O silencio parece não ter fim. O luar, é branco, muito branco._ POETA--_baixo, acercando-se do astrologo_ A cruz a gottejar!... Repara na noite: o luar cahe como agua das fontes e é mais branco e mais frio do que um marmore... ASTROLOGO Cadaveres rosados e quentes onde os vistes, amigo? INFANTA--_como despertando, n'uma exaltação_ Não acreditais? Negais tambem?! Negais tudo, até os milagres!? Não acreditais tambem n'elles?!... Negais?!... ASTROLOGO--_sereno_ Eu creio e porque creio, Senhora, entendo bem... Ha mortos no mar, mortos na terra!... Vã cubiça e vã gloria, levou-nos á loucura... NAUTA Cavar leiras de terra, como quem cava sepulturas, é destino dos homens, mas nunca o foi dum povo. ASTROLOGO--_continuando, como se não tivesse ouvido o nauta_ A antiga fé está perdida. Os herois, deslumbrando-se com os seus feitos, imaginam-se santos!... _com vehemencia_ Porque vencem os homens julgam vencer o proprio Deus! Dantes morriam em santidade nos conventos, longe do mundo, e chorando e rezando remiam o homem! Mas era d'antes... Agora... NAUTA--_desabridamente_ Morrem a lutar, a batalhar... ASTROLOGO--_sereno_ A matar... a escravisar... INFANTA Imaginais então? ASTROLOGO Que é de sangue como a cruz gottejante, este imperio, o nosso imperio, Senhora! NAUTA--_num grito_ Por minha fé o juro... Mentis!... _Silencio de espanto, prolongado e doloroso. Olhares que receiam encontrar-se; gestos que receiam acordar o silencio; estatuas..._ INFANTA--_suavemente, n'uma exaltação mystica, n'uma oração_ Sangue bemdicto, porque vive eternamente e revive a cada hora, em novas estrellas, novos mundos, novos povos! _em exaltação maior, levantando-se_ Sangue bemdicto porque floresce. É sangue de sacrificio; almas dadas a Deus para remir outras almas, corpos dados ao mar para buscar outras vidas!... _Com a cabeça deitada para traz, os braços erguidos, as mãos em concha, tocando-se ao de leve, como ofertando rithualmente um calix_: Sangue que eu adoro e que eu bemdigo... ASTROLOGO--_n'uma immobilidade de estatua, com firmesa_ Sangue de morte e vã gloria que uma sombra negra envolve, perde e esquece... NAUTA--_como louco_ Mentira!... Traição!... Mentira!... INFANTA--_estatica, hirta, desce os degraus do estrado. Olha em roda como petrificada; fitando o Astrologo, friamente, quasi serena_ E para alem dessa sombra, se Ella existe?... ASTROLOGO É tudo sombra; nada sei, nada vejo, para além... INFANTA Nada mais dizem as estrellas?! ASTROLOGO--_frio, vincando as palavras_ Nada mais. INFANTA--_com infinito orgulho_ Pouco dizem... e o nosso Imperio transfigurou o mundo! ASTROLOGO As maldições do Destino não perdoam... INFANTA--_quasi violentamente_ O Destino, por nós, já foi vencido. ASTROLOGO--_sereno, fitando-a_ Os homens enganam-se... _A côrte entreolha-se, vazia. A Infanta acerca-se do diadema. Pega n'elle quasi a medo. Os seus dedos esguios mal lhe tocam. Beija-o. Sempre hirta e estática, junto da janella aberta, frente á noite, ergue-o em sacrificio, em elevação, ergue-o bem alto! O luar escorre-lhe pelos braços. As pedrarias scintillam intensamente. Em sagração, como se fosse poisá-lo em pedra d'ara, colloca-o nos seus cabellos negros. Assim coroada, não vê, não ouve. O sonho encarnou-se no seu coração em soffrimento amargurado. Em face da certeza do Astrologo, ella busca uma certeza maior que a domine._ INFANTA--_n'uma vibração profunda, intensissima--a sua alma frente a frente ao destino de milhares d'almas, abrangendo n'uma vizão a vida toda, o passado e o futuro, echo perdido duma voz prophetica_: E as estrellas mentem!... _Queda-se estática; o luar embranquece-a como um marmore. Ha claridades deslumbrantes e extranhas nos seus olhos muito abertos, sempre fixos._ * * * * * _Estremece como labareda batida pelo vento: desmaia. Os olhos sempre abertos, sempre fixos._ _As aias amparam-na, aflictas, emquanto a côrte sae desordenada, buscando o physico. Os pagens approximam luzes; cerram os vitrais._ * * * * * _Na Infanta os reflexos são aureolas; divinisam-na..._ [Illustration] Um alto de collina, arido, de hervas maninhas e rasteiras, tendo ao centro um cruzeiro tosco de granito escuro. Manhã de sol fulgurante e quente. Da direita alta vem um carreiro estreito, que cortando a scena de lado a lado, segue até ao rio, que se estende da esquerda ao fundo, espraiado e muito azul, em grande perspectiva, até ao mar. Ha uma nevoa azulada envolvendo os montes distantes da margem oposta, suavisando-lhes os contornos dos cabeços. Entre as naus e caravellas, mais junto da praia, um galeão; nos mastros, sem vellas, estandartes reaes e mil bandeiras... Junto ao cruzeiro, gente do povo, em grupo, conversando. UMA MULHER--_que chega_ Ainda estão na igreja. El-Rei, a côrte toda, commungou. Mas a Senhora Infanta, bastava vê-la, de joelhos, de mãos postas a rezar, era mesmo uma santinha! OUTRA MULHER Pois se ella é tão linda! OUTRA MULHER E sempre tão triste que até faz dó! UM MARITIMO--_como procurando dar ternura á sua voz forte e enternecendo-se pouco a pouco_ Pois haviam de a vêr como eu a vi, um dia, junto ao mar. Então ella estava alegre e o mar estava mau. O mar é como os homens, tem tambem as suas zangas, os seus ralhos. As ondas cresciam sempre, tão grandes como torres e vinham avançando pela praia dentro, cada vez mais, cada vez mais... E a Senhora Infanta a olhá-las de frente e tão esquecida, que uma vaga mais forte a molhou toda! E ella sem se mexer, sempre quêda a olhá-las, assim a modos como uma santa no altar! A Senhora Infanta não tem medo do mar. Se a deixassem era capaz de ir como nós á aventura... Quem a viu como eu a vi nesse dia, e não soubesse quem ella era, havia de cuidar que tinha nascido no mar--que tinha sido embalada, não por aias, mas por ondas! OUTRO MARITIMO--_com enthusiasmo e ternura_ E sempre foi assim! Ainda tamanina, quando chegavam as naus--as que tinham ido sem rumo e traziam novas terras a esta terra--já a Senhora Infanta ao lado de El-Rei as ficava a olhar, de olhos muito abertos, cheios de riso. E queria saber tudo--como fôra, o que viramos, como eram as nossas terras, onde ficavam... o que nos acontecera...--e a ouvir-nos contar nossa aventura, os seus olhos enchiam-se ainda mais de riso. UMA MULHER Pois agora vai triste. Eu vi-a passar para a igreja. Não olhava, não sorria... Os olhos muito abertos, olhando sempre em frente, muito brilhantes... até me fez chorar... Nunca vi olhos assim! E toda de branco! Parecia enfeitiçada!... UM VELHO Deixai lá... Ella tambem gosta desta loucura em que vivemos. Nunca se importou a Senhora Infanta dos que morrem no mar, dos que lá ficam nessas terras distantes a combater! Morrem: deixá-lo! A Senhora Infanta é como as mais; não se importa!... VOZES Calai-vos! Calai-vos!--Ave de mau agoiro!--Nós tambem temos filhos! Nós tambem temos mortos!... O VELHO Mas não chorais como eu... VOZES Calai-vos... Calai-vos!... OUTRO VELHO--_com violencia_ É assim, é assim mesmo. Quem se importa já da terra!? Quem a lavra e a amanha com amor? É esta Babilonia que nos perde! Aqui é a torre de Babel. Só se vê estrangeiros, só se ouvem linguas estranhas que ninguem entende e que--Deus louvado!--nem parecem de gente! D'antes a nossa terra era só nossa, tinha as portas fechadas por castellos. Agora é de todos... Perros malditos! UM MARITIMO Porque fosteis então batalhar em terra alheia?... OS DOIS VELHOS Para servir a Deus e a El-Rei; e El-Rei ia comnosco, e tambem batalhava!... UMA MULHER Ouvi. Tocam os sinos... El-Rei, a côrte toda, vai saír... vão, até embarcar, em procissão. _O grupo vai augmentando; junta-se mais povo._ OUTRA MULHER A Senhora Infanta vai como morta! Chamais doido a quem diz verdades. Não acreditais, mas é assim. Não sou Ave-agoirenta, não; mas isto é um enterro. OUTRA MULHER É o castigo de Deus! Andamos levados pelo Demo, sempre a tentar ao Senhor... VOZES Calai-vos!... Calai-vos!... UMA MULHER--_da frente do grupo_ Já sahiram da igreja... lá sae El-Rei... a Rainha, os Principes... OUTRA VOZ E a Senhora Infanta vem á frente, reparai... vêde se não é como eu dizia. Vai a enterrar, vai como morta... O Senhor Bispo vem tambem... Atraz a cleresia, toda a côrte... OUTRA MULHER É uma procissão... é um enterro... UM VELHO Sabeis as prophecias? VOZES Contai... dizei... contai... O VELHO--_hesitante_ No céu, para os que sabem lêr nos astros, ha presagios maus! Quem não tem visto estes dias a lua ao nascer tinta de sangue?! É sangue de infieis, sangue de moirama ou sangue nosso? Ninguem sabe... ninguem!... E diz-se que hade vir um Principe de tentação para nos perder. Um Principe loiro como o sol, que nos ha-de tentar! E com elle nós iremos todos, a cantar, buscar a morte! Os infieis serão na mão do Senhor o seu instrumento de castigo! O Senhor castigará nossa soberba com aquelles que abatemos!... VOZES Piedade, Senhor!...--Tende compaixão de nós!...--Misericordia!...--Piedade!... O VELHO E o castigo do Senhor será terrivel e a sua colera não terá limites porque judeus, feitos Christãos, andam a blasphemar o Santo Nome de Deus! VOZES Malditos sejam!...--Santo é o Nome de Deus!--Que as penas do inferno sejam poucas para elles...--Que sejam malditos!--Mil vezes malditos! O VELHO--_continuando_ E as aguas secarão nas levadas e nas fontes... E o sol queimará os milharais e as searas; e as vides ficarão secas e mirradas... Os gados não terão pastos, os homens não terão pão, e a peste os levará... VOZES--_desvairadas, amarguradas, agonisantes_ Calai-vos!...--Maldição!...--Piedade!...--Maldição!...--Antes a morte...--Vêr morrer os nossos filhos...--Piedade!--Piedade!--Maldição! O VELHO--_continuando a custo_ E será então que um rei virá--rei estranho, gente inimiga, homens d'armas--conquistar este reino de cadaveres... Será então que um rei virá matar um Rei que não morre... a quem a Morte não matou... VOZES--_de soffrimento, de desespero, de confiança e de odio_ Maldição!...--Piedade!--Piedade!--Que Deus seja comnosco...--Que os herejes sejam mortos!...--Que sejam malditos!--Que sejam queimados...--Que Christo reine em nossos corações!--Que a Sua lei seja cumprida!...--Deus é comnosco!...--Deus é Pae!...--Deus é bom... UM MARITIMO MOÇO--_com vehemencia_ Quem sabe o que é do dia d'amanhã... Esses horrores que dizeis quem os prophetisou? Quem pode dizer o destino dos homens e pode conhecer a vontade de Deus? Só quem não andou embarcado e não viu os Mundos Novos que são nossos, essas terras estranhas por nós descobertas, só quem não sahiu deste torrão de terra abençoado para servir a Deus e a El-Rei n'esse imperio imenso que fica para alem, _apontando_ para as bandas donde nasce o sol; só quem não luctou com o mar e o venceu, pode acreditar nas negras prophecias!... VOZES Dizes bem...--É assim mesmo.--Dizes bem... O MARITIMO Deixai, que o mundo é nosso, porque nós o descobrimos e lhe demos vida por nossas vidas! O mundo é nosso filho, tem o nosso sangue! _As mulheres rezam baixo._ VOZES Dizes bem...--É assim... é assim... UMA MULHER Ouvi como o povo canta em redor da Princeza... E Ella nem os ouve, nem os vê. O MARITIMO Os olhos dos marinheiros andam sempre errantes... No mar os olhos não se prendem, que o mar é todo igual. Só á noite as estrellas do ceu prendem os olhos! A Senhora Infanta é como nós; tem olhos de marinheiro, olhos errantes! _Silencio. Uma nuvem ligeira escureceu o sol, assombreando a terra._ A VOZ DO «BANDARRA»--_não muito longe_ Cautella, Senhor Rei!... Cuidado!... O mar nunca perdôa, os mortos nunca esquecem! Olhai que ides tambem a naufragar... Nós todos somos naufragos, cadaveres para o mar!... VOZES--_entre o povo aqui e alem_ Senhor Deus misericordia! Pae do Céu misericordia!--Por nossos filhos... Por El-Rei...--Miserere nobis!--Misericordia! Misericordia! UMA MULHER El-Rei parou... todo o cortejo... seguem... continuam... OUTRA MULHER Que a Virgem Nossa Senhora proteja a Senhora Infanta!... _As mulheres ajoelham; os homens descobrem-se e alto, em côro:--Avé Maria, cheia de graça..._ _Mestre Lopo, o astrologo, o poeta e o pintor apparecem pela direita, a caminho da praia. Ao verem o povo de joelhos, param e descobrem-se. Rezam tambem. Acabada a oração põem-se de novo a caminho; o poeta fica..._ PINTOR--_voltando-se_ Ficais aqui? POETA--_docemente_ Para que ir comvosco?! Eu ando agora a viver o sonho d'Ella!... Em tudo que me cerca eu vejo-a sempre, mais pura, mais santa, mais perfeita! D'aqui eu vejo o mar e o mar é a sua alma, a nossa alma, o sonho maior que transfigurou o mundo e sobre o mundo ficará eternamente! O sonho creador e redemptor!... ASTROLOGO Já não acreditais nas prophecias? POETA O sonho é a unica certeza em face dos homens e do Destino... ASTROLOGO E nas estrellas?... POETA Mentem tambem. Mentiram sempre... Ella o disse, Ella o revelou ás nossas almas!... _O pintor e o astrologo afastam-se apressados. O poeta, lentamente, aproxima-se do cruzeiro._ VOZES Afastem-se!...--Abram alas!...--Já ahi vem El-Rei...--Afastem-se...--Abram alas... _Os grupos afastam-se em silencio, abrindo alas. Pela esquerda, rodeada das suas aias, toda de branco, hierática, serena, suavissima, sem um gesto, sem um sorriso, e d'um olhar divino, triumphal--olhar cheio de visões gloriosas, de claridades infinitas, de sonhos revelados, e de certezas eternas--apparece a Infanta..._ _Os homens descobrem-se, as mulheres atiram flores ao caminho, juncam o caminho de flores, e quêdos; silenciosos, ficam a olhá-la, espantados, como se estivessem em face d'um milagre, d'uma apparição divina!_ VOZES DOS MARITIMOS Viva a Senhora Infanta!--Viva a nossa Princeza!--Que Deus guarde a nossa Santinha!--Que Nossa Senhora a proteja! Que os anjos a levem em sua guarda!--Como vai linda!...--Como Ella vai!...--Que a estrella do norte seja seu guia... Que as ondas a embalem...--Viva a nossa Princeza!--Viva a Senhora Infanta!... _As vellas vão pouco a pouco subindo nos mastros e, como azas enormes, enchem o céu._ _Junto ao cruzeiro, alheio, indifferente, distante, o Poeta continua olhando os longes..._ ACABOU DE SE IMPRIMIR ESTE LIVRO NAS OFICINAS GRAFICAS DA RUA FORMOSA, NUMERO 50, DA CIDADE DE LISBOA, NOBRE E LEAL, AOS QUATORZE DIAS DO MEZ DE NOVEMBRO DO ANO DA GRAÇA DE MCMXXI Notas Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK INFANTA: TRAGÉDIA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. 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