The Project Gutenberg eBook of Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa

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Title: Pelos suburbios e visinhanças de Lisboa

Author: Gabriel Pereira

Release date: May 19, 2022 [eBook #68121]

Language: Portuguese

Original publication: Portugal: A. M. Teixeira & Ca, 1910

Credits: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PELOS SUBURBIOS E VISINHANÇAS DE LISBOA ***

GABRIEL PEREIRA

PELOS SUBURBIOS
E
VISINHANÇAS DE LISBOA

Editora

LISBOA

LIVRARIA CLASSICA EDITORA

DE A. M. TEIXEIRA & C.ᵗᵃ

20, PRAÇA DOS RESTAURADORES, 20


1910

Porto—Imp. Portugueza—Rua Formosa, 112


[Pg 7]

S. Domingos de Bemfica


(1905)

Na falda norte da serra de Monsanto está o logar de S. Domingos de Bemfica; um antigo mosteiro em parte abandonado, rodeado de quintas fidalgas com seus palacios, jardins, cascatas e alamedas de secular arvoredo; e uma pinha de pequeninos predios antigos a entestar com o maninho da serra.

O nome de Monsanto feriu-me a attenção e procurei se por aquelles sitios haveria vestigios de templo ou edificio de remota antiguidade, tão raros no aro da capital. No meu segundo passeio deparei um grande marmore lavrado, provavelmente parte superior de uma ara romana, encostado á parede da quinta do sr. marquez de Fronteira.

Ha duvidas todavia sobre a proveniencia da pedra; julga-se não ter sido encontrada alli, sim na Ribeira velha, no antigo palacio Fronteira, por occasião de certas obras; e removida para Bemfica ha uns 40 annos.

[Pg 8]

O achado incitou-me a continuar na indagação, e num pittoresco retiro agora mal tratado da cerca monastica fui encontrar uma estatua que parece de arte romana; é na fonte do satyro, que fr. Luis de Sousa descreve na chronica do seu convento.

O celebre dominicano já conheceu a estatua e a fonte na disposição actual; lá estão ainda as cinco ardosias, duas quadradas e tres ellipticas, com o lettreiro latino, que elle tambem menciona.

Póde affirmar-se que o logar está qual estava então, apenas descurado. Ora os estragos que a estatua apresenta não teem explicação facil na posição actual. O satyro nada tem da rudeza gothica, nem das imitações classicas da renascença. O rosto apesar de muito gasto ainda tem singular expressão de alegria; segurava nas mãos uma taça ou urna que depois mutilaram para collocar uma torneira. Na cabeça e nas coxas grandes madeixas ondeadas; os musculos bem estudados nos hombros e braços. Parece uma estatua romana.

Junto da fonte estão avulsas algumas pedras lavradas, dois fechos de abobada com a esphera de D. Manuel e a cruz de Christo, parte de um friso e dois pelouros medianos.

É um encanto aquelle sitio de S. Domingos; o terreiro com seu antigo arvoredo dispõe bem o visitante da egreja, uma pobre egreja que é um ninho de recordações portuguezas.

Entrando, á esquerda, o sarcophago de «Vasco Martins da Albergaria, cavalleiro fidalgo da casa[Pg 9] do sr. infante D. Henrique e seu camareiro mór, filho de Affonso Lopes da Albergaria, o qual passou da vida deste mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Ceuta aos... dias do mez de dezembro da era de Jesus Christo, de 1436 annos».

É um pequeno sarcophago de tampa alta; o letreiro na facha anterior da tampa e da arca. No meio o brazão com a cruz de Aviz sanguinha, aberta e floreteada, com oito escudetes azues das quinas reaes. Aos lados do escudo uma fita em relevo onde se lê a divisa porêm vede bem.

Á direita o tumulo de João das Regras, encimado pela estatua onde evidentemente o esculptor quiz reproduzir o aspecto do famoso jurisconsulto. Tem barrete e habito de lettrado; a gola larga segura por tres botões. Na mão direita sobre o peito segura um livro. Os cabellos um tanto ondeados cahindo sobre a fronte. Á esquerda da figura a espada com o cinturão enrolado. A espada está tratada com minucia, o punho lavrado em linhas, o extremo com sua flor; é uma espada direita, larga, curta. O cinto é lavrado tambem de flores, tendo bem definidas a fivella e a ponteira.

Aquella estatua é um documento precioso de indumentaria.

O tumulo tem inscripção, escudos; assenta sobre quatro leões de marmore. Não é este o unico varão illustre cujo nome se encontra no mosteiro; fr. Vicente (1401), outro amigo do mestre de[Pg 10] Aviz, e Diogo Gonçalves Belliago (1410) teem alli as suas inscripções sepulcraes, assim como fr. Arnáo (1502).

Na capella de S. Gonçalo de Amarante ha algumas estatuas em marmore de Carrara, de valor artistico.

O sacrario é de madeira entalhada, de grande elegancia, principalmente no corpo superior.

Bons azulejos vestem as paredes, assignados por Antonio de Oliveira Bernardes.

No cruzeiro jazem muitas pessoas distinctas, principalmente da casa Fronteira e Alorna; o ultimo que alli foi repousar o célebre D. Carlos de Mascarenhas, fallecido em maio de 1861.

Na escura passagem do cruzeiro para a sacristia uma campa singelissima com um nome que illumina os espiritos, fr. Luis de Sousa.

E no claustro proximo, muito tranquillo e fresco, convidando a serena meditação, a capella e o jazigo de D. João de Castro.

É um grupo incomparavel de recordações portuguezas.


Isto escrevi eu na Revista Archeologica de Borges de Figueiredo (vol. 3.ᵒ, de 1889, pag. 99). Querido amigo! Infeliz espirito, tão maltratado na lucta da vida!

Era archeologo, latinista e epigraphista de alto merecimento. Corpo enfermiço, franzino, tez pallida, mortiço o olhar, fraca a vista; bella intelligencia[Pg 11] cultivada, com solida erudição e fina critica. Os seus ultimos tempos foram de doença e desgosto. Por tres vezes, se bem me recordo, visitámos juntos o sitio de S. Domingos de Bemfica; elle levava sempre a filha, nos seus passeios; uma menina delicada, debil no aspecto, cheia de meiguice. Eram inseparaveis, ella queria estar sempre junto, bem junto do pae. O meu pobre amigo falleceu na manhan de 15 d’outubro de 1890; tinha feito na vespera 37 annos. Foi professor na Escola Rodrigues Sampaio, por algum tempo ensinou num collegio particular; durante annos foi laborioso bibliothecario da Sociedade de Geographia. Escreveu livros muito apreciaveis; Coimbra antiga e moderna, O Mosteiro de Odivellas, a Geographia dos Lusiadas; em todos os seus trabalhos se revéla bem o espirito de investigação, e a sã critica historica. Parecia impossivel aquella actividade em tão fraco organismo. Na Revista Archeologica deixou entre varios trabalhos bons, um de alta importancia sobre as inscripções em verso leonino em Portugal. A filha morreu um mez depois do pae; não soffreu aquella ausencia, finou-se a pobre creança debil, asphyxiada de morte pela saudade amarga.


Quantas mudanças na egreja de S. Domingos de Bemfica fez depois o bem intencionado architecto Nepomuceno! A urna do Albergaria foi para o ante-côro sombrio, para cima de duas misulas ou[Pg 12] cachorros, á maneira de deposito de agua para não visto lavabo. O tumulo de João das Regras foi para o meio do côro, onde está bem para ser visto. A estatua jacente do insigne doutor soffreu concerto, a mão direita aperta um livro sobre o peito; a esquerda tinha desapparecido. Segundo a chronica cahia sobre o coração, como se elle estivesse orando. Nepomuceno mandou fazer a mão que faltava, erguida, segurando um papel enrolado. E parece agora que o inclito doutor está indeciso entre o livro e o rolo de papel.


Ha pouco tempo, já depois da obra a que se procedeu, visitei a egreja tomando notas mais minuciosas.


No cruzeiro da egreja ha inscripções sepulcraes de interesse historico. Na parede entre o arco da capella mór e a porta da sacristia estão dois letreiros; o superior menciona Fr. Vicente, da ordem dos prégadores, fundador, fallecido em 1401; foi prégador de D. João 1.ᵒ e autor de muitos livros.

Sob este está==Fr. Diogo Gonçalves Belliagua, frade da mesma ordem, primeiro povoador do mosteiro, isto é, o primeiro que residiu aqui, fallecido em 31 de agosto de 1410.

Estes letreiros são relativamente modernos; na Chronica se podem ver as inscripções primitivas.

Á direita da capella mór, na parede, está a==Sepultura[Pg 13] de fr. Arnáo, da mesma ordem, fallecido em 2 de maio de 1502.

Proxima a lapide de==D. Carlos de Mascarenhas, segundo filho dos 6.ᵒˢ marquezes de Fronteira. N. em 1 d’abril de 1803. F. em 3 de maio de 1861.

A seguir==D. Maria Constança da Camara, marqueza de Fronteira e de Alorna. N. em 14 de julho de 1801. F. em 11 de setembro de 1860.

No chão está a campa da==Marqueza de Fronteira D. Helena Josefa de Lencastre. F. em 14 de março de 1763.

Perto==O sargento maior Manuel Carrião de Castanheda, cavalleiro da ordem de Christo, f. em 22 de dezembro de 1676, e sua mulher D. Sebastiana Dias Fialha.

==S. de Diogo Antunes. 1662.

==S. de Maria Coelha.

==D. G.ᵒ Velozo d’Araujo, cavalleiro fidalgo da Casa delrei N. S. e de sua molher Joanna de Bulhão, f. a 3 de março de 1603.

==S.ᵃ de João Velho Lobo... Travassos... Algumas destas campas estão incompletas, ou gastas.

Na capella do Senhor Jesus, esquerda do cruzeiro, está uma pedra com brazão; diz-nos que o instituidor foi Antonio de Freitas da Silva, fidalgo, etc., com sua mulher D. Jeronima Paes d’Azevedo, em 1677.

No corpo da egreja, segunda capella á esquerda==Capella de Enrique Mendes de la Penha, fidalgo[Pg 14] de solar conhecido, e a comprou sua filha D. Lionor Enriques, viuva de Luis Pereira de Carvalho, em 1663.==Tem brazão.

Olhando para a capella mór, a porta á nossa esquerda abre para uma passagem que serve o côro e a sacristia, o ante-côro. Ahi, no chão, proximo dos degraos que levam ao côro, está uma campa singela.

Aqui jaz
frei Luiz de Souza.
nasceu em 1553
morreu em 1632

a seguir, na mesma campa:

Mandou collocar
esta lapida
o padre Joaquim
Pinto de
Campos
natural de
Pernambuco
(Brazil)
aos 4 de junho de
1878.

Na mesma sombria casa de passagem, ou ante-côro, na parede, sobre duas misulas, vê-se uma urna brazonada. Estava antes da ultima obra, á[Pg 15] esquerda da porta d’entrada; agora alta como está, e na casa quasi sem luz, é difficil lêr o letreiro.

Desdobrando as abreviaturas, diz: Aqui jaz Vasco Martins da Albregaria cavalleiro fidalgo da casa do sr. infante dom Anrique e seu camareiro moor filho de A.ᵒ Lopes da Albregaria o qual passou da vida deste mundo das feridas que houve na tomada e no descerco de Cepta aos... dias do mez de dezembro da era de J. C. de 1436 annos.

Além do escudo dos Albergarias, conforme o que vem no Thesouro da Nobreza, tem escudos com sua divisa que me parece ler Porém vêde bem.

A meio do côro está o tumulo de João das Regras; o letreiro occupa o friso da caixa.

==Aqi: jaz: joan: daregas: cavaleiro: doutor: em: leis: privado: delrei: dom: joan: fundador: deste: moesteiro: finou: III: dias: de: maio: era: M: IIIIᶜ: XL: II: ans:==É um lettreiro, em gothico, bem lavrado; as palavras todas divididas por dois pontos.


Na parede exterior da casa que ora serve á irmandade da S.ᵃ do Rosario está cravada uma pedra com a inscripção:

Esta sanchristia man
darão fazer os irmãos
de Nossa Sra do Rozario
a sua custa p.ᵃ a fabrica
da sua irm.ᵈᵉ em maio de 1680.

[Pg 16]

Na sacristia uma grande campa sem lettras, com o brazão da casa de Bellas, isto é, quatro flores de liz nos angulos de uma cruz.

O Thesouro da Nobreza descreve assim o brazão dos Correias de Bellas==em campo vermelho uma cruz de oiro firmada no escudo entre quatro flores de liz do mesmo metal.

No côro ha duas grandes campas sem brazões nem letreiros; diz a Chronica que está alli o carneiro ou deposito funéreo dos Botelhos.

No cruzeiro, á direita, ao canto, ha uma porta encimada por um brazão; abre para a capellinha onde está a imagem do Senhor Jesus dos Passos. Mas o pequeno e rico edificio é dedicado a S. Gonçalo de Amarante. Uma inscripção latina declara que em 1685 o bispo fr. Manuel Pereira mandou fazer a capella. É de muito e apurado trabalho, em lindos marmores. Estatuetas de finissimo Carrara povoam os nichos. Preside S. Gonçalo de Amarante tendo aos lados a S.ᵃ do Rosario, S. José, S.ᵃ Appollonia, S. Thereza, S. João de Deus, S. Felippe, S. Domingos e S. Thomaz d’Aquino.

As columnas salomonicas aos lados de S. Gonçalo são de pedra fina da Arrabida de um trabalho apuradissimo.

Parecem-me de origem italiana estas lindas estatuetas em marmore de Carrara, delicadamente esculpidas, com a maneira usada na época.

[Pg 17]

O satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica

A estatua do satyro conserva-se na situação em que fr. Luis de Sousa a conheceu.

Entrando no claustro d’aquelle extraordinario convento de S. Domingos de Bemfica, toma-se a porta, ao canto, que diz para a fonte e horta. Desce-se uma breve escada, entra-se n’um pequeno recinto, com assentos de pedra; ao fundo a fonte rasteira; lá está o satyro e uns pedaços de marmore com um verso latino. O muro que separa a horta do recinto da fonte é mais recente.

Felizmente eu tirei o desenho do satyro ha tempos; modernamente houve obras no edificio, e um alvanéo mais gracioso divertiu-se a lançar cal sobre a pobre estatua.

Eu estou convencido que este satyro é romano. Fr. Luis de Sousa já o conheceu assim, n’aquella posição; ora em tal posição a estatua não podia estragar-se da maneira que se vê; a superficie está desigual; ha pontos em que se conserva o primitivo estado, na parte superior do peito, nas madeixas das coxas; em outros sitios a superficie está gasta, frusta, ou por longo attrito ou por inhumação prolongada. As mãos foram arruinadas por causa da adaptação de torneiras, obra provavel dos frades; porque primitivamente a agua não sahia de taça ou urna que o satyro tivesse nas mãos; sahia do outro sitio; a estatua é pagan e bem pagan.

[Pg 18]

Apesar de frusta ainda a physionomia é notavel, e é bem propria a phrase de fr. Luis de Sousa, simplicidade montanheza; ha estatuas de Pan com aquella attitude e expressão.

Trabalho da renascença não me parece, nem estaria assim estragado em tempo do celebre chronista; gothico, romanico, impossivel; nunca trabalharam assim em taes tempos. Porque a estatua tem expressão, ha observação anatomica nos musculos, nos hombros, as claviculas bem marcadas, as madeixas elegantes.

É por isso que me convenço que a estatua é romana.

Ha mais antiguidades romanas alli pelos sitios, e o nome Monsanto chama logo a attenção.

Naturalmente os dominicanos encontraram, por acaso, a estatua e aproveitaram-n’a para a sua fonte; e assim a salvaram.

Que interessante e mimosa a descripção que fr. Luis de Sousa escreveu da fonte do satyro! Vem na Historia de S. Domingos (2.ᵃ parte, livro 2.ᵒ, cap. 1.ᵒ—Do principio e fundação do real convento de Bemfica). Diz assim:


==Passado o claustro, quem busca a horta do convento, dá poucos passos em uma praça empedrada, que ficando na parte mais alta, e como a meia ladeira da cerca, descobre grande parte do vale.

Aqui sahem os religiosos a gosar o fresco da[Pg 19] tarde em o verão, e o soalheiro de inverno, depois que deixam o refeitorio. Porque além da vista desabafada, e larga para fóra, tem na mesma praça de uma parte uma graciosa fonte, e da outra um espaçoso tanque, que cada cousa per si alegra e deleita os olhos.

A fonte se faz em um arco, que formado de brutescos varios e vistosos, arremeda uma gruta natural. Dentro parece assentado um grande e bem proporcionado satyro, imitando com propriedade os que finge a poesia. Em toda sua figura mostra em rosto risonho e alegre uma simplicidade montanheza, com que está convidando a beber de uma concha natural, que tem apertada com o braço e mão esquerda, da qual sae um formoso torno de agua: e juntamente com a direita acode como arrependido a cobril-a; e faz geito de a querer retirar, dando com uma e negando com outra.

A agua é quanto póde ser excellente, e de uma qualidade propria das que nascem nas serras, fria e desnevada na maior força do sol do estio; temperada no inverno, como um banho.

Acompanham a gruta de um e outro lado em igual distancia dois grossos e altos pilastrões, que sendo feitos de boa cantaria para estribo de uma abobada a que se arrimam, foi a natureza cobril-os de uma hera muito espessa e viçosa, que subindo por elles até a mór altura, assim esconde e senhoreia a pedraria, que faz parecer foram fundados, mais para honra da fonte, que segurança do edificio:[Pg 20] assim ajuda a natureza a arte, e o accidental ao bem cuidado.

E porque entre gente que professa letras é bem que nem nos satyros se ache rudeza, faz lembrança este nosso a quem folga de o ver, com um verso latino entalhado em pedaços de marmore negro, que correm a vida e os annos sem parar, nem tornar atraz, ao modo d’aquelle licor, que lhe sae das mãos. Advertencia de sabio não de rustico: que agoas e annos se se não aproveitam com bons empregos, perdidos são, e pouco de estimar. Cae a agoa, por não pejar a praça, em um pequeno tanque, deixando-o cheio some-se n’elle, e vae por baixo da terra, fazer outra fonte na boca de um leão.

É de ver aquelle rosto fero coberto de guedelhas crespas, e medonhas, que ameaçam sangue e morte, feito ministro de mansas agoas. Verdadeiro poder e symbolo da religião que amansa leões e faz Satyros doutos==.

Publiquei este artigo no Boletim da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portuguezes (T. VII. 1894. pag. 7), acompanhado de gravura. Então era facil visitar a fonte do satyro: agora está vedada ao publico, não sei porquê. Naquella parte do edificio installou-se uma succursal do collegio de Campolide, com aulas de theologia, ao que ouvi dizer. Não deixavam entrar no claustro. Ha tempos saíram dalli os padres; mas o edificio continúa fechado; não se sabe onde[Pg 21] pára a chave. Não se póde visitar a fonte tão finamente descripta por fr. Luis de Sousa, nem a capella dos Castros, cuja entrada é tambem pelo claustro.

É de fr. Luis de Sousa a descripção da

Capella dos Castros

==He a obra da Capella dorica, a proporção dupla, com quarenta palmos de largo, mais de setenta de comprimento. He de huma só nave de pedraria brunida, o lageamento de pedras de cores, tambem brunidas: funda-se a mais architetura della em hum proporcionado pedestal, que em torno a circunda interiormente. Tem seis arcos com pilares interpostos sobre bases: capiteis, e simalhas tambem em torno, com seis luzes obradas com respeito á architectura. A porta principal tem no claustro do Convento, e sobre ella pende hum escudo relevado das armas do Fundador. O tecto, despois de coroado com a simalha, he tambem de pedraria, apainelada com artezães, e molduras: os dous primeiros arcos de seis, que a compoem, ficam nos Presbiterios; no da parte do Evangelho está huma porta, que dá serventia pera a Tribuna, e aposentos do Fundador: no outro da parte da Epistola, outra pera o serviço da Sachristia, os outros quatro occupão quatro sumptuosas sepulturas, de pedras de cores lustradas,[Pg 22] que sobre as costas sustentão elefantes de pedras negras.

No primeiro arco, que fica junto ao do Presbiterio da parte do Evangelho, está a sepultura de Dom João de Castro, com o seguinte Epitaphio.


D. Ioannes de Castro XX. Pro Religione in vtraque Mauritania stipendijs factis, nauata strenue opera Thunetano bello fœlicibus armis penetrato; debellatis inter Euphratem, et Indum nationibus: Gendrosico Reye, Persis, Turcis vno prœlio fusis; seruato Dio, imo Reipublicæ reddito, dormit in magnum diem, non sibi, sed Deo triumphator: publicis lachrimis compositus, publico sumptu prœ paupertate funeratus: obijt Octauo Id. Iunij. Anno 1548. Aetatis 48.


Estão em o seguinte arco, junto a este os ossos de D. Leonor Coutinho, sua mulher.

Da parte da Epistola, em o arco que responde ao da sepultura de Dom João de Castro, está a de Dom Alvaro seu filho, com o Epitaphio seguinte.


D. Aluarus de Castro. Magni Ioannis primogenitus, cui pené ab infantia discriminum factus pugnaram prœcursor, triumphorum Consors, œmulus fortitudinis, hœres virtutum, non opum: Regum prostrator, et restitutor in Sinai veatice eques fœliciter inauguratus: a Rege Sebastiano Summis Regni auctus honoribus; bis Romæ,[Pg 23] semel Castellæ, Galliæ, Sabaudiæ, legatione perfunctus, obijt 4. Kalend. Septemb. Anno. 1575. Aetatis suæ 50.


Logo no outro arco junto a este está Dona Anna de Atayde, mulher do mesmo D. Alvaro.

No vão desta Capella se fez um Carneiro com seis arcos de pedraria, em hum dos quais ha Altar pera se dizer Missa, e os mais tem repartimentos pera os ossos, e corpos dos defunctos.

Sóbe-se do pavimento d’esta Capella por seis degráos entre dous presbiterios, nos quais estão as sepulturas do Fundador, e sua Irmam: a primeira da parte do Evangelho com o Epitaphio que se segue.


D. Franciscus á Castro, Episcopus olim Aegitanensis, hujusce Sanctuarij, ac interioris Cœnobij fundator, hunc sibi, dum viueret, tumulum posuit, in quo et requiescet post mortem.


A segunda, com este, da parte da Epistola.


D. Violante de Castro Cometissa relicta vidua Domini Alfonsi de Noronha, Comitis Odomirensis hic quiescit, obijt XIV, Kalendis Iulij, anno Domini DC. XXXXVI. Sorori optimæ, seu verius matri, Frater amantissimus dedit, posuit.


Sobre estes degráos está o Altar de jaspes[Pg 24] brunidos, apartado do retabolo, em forma que fica emparando a entrada do Choro, que detraz do mesmo Altar tem os Irmãos da casa de Noviços; e a que se entra por entre dous pedestaes de jaspes brunidos de treze palmos de alto, nove de largura, onze de grossura. No fronstispicio delles se veem duas tarjas embutidas de jaspes brancos, cercadas de suas faxas de outros pretos, na que fica da parte do Evangelho está escripta a instituição da Capella na forma seguinte.


Ad maiorem ineffabilis Eucharistiæ venerationem, peculiarem Deiparæ Virginis de Rosario honorem; indiuiduam Patriarchæ Dominici, Martyrum Nazarij, Celsi, Victoris, ac Innocentij confessoris memoriam, ædem hanc in penetralibus Sacratiorem Erexit, Condidit, Dicauit D. Franciscus á Castro Episcopus olim Aegitanensis, Regis, ad status consilia adsidens, rerum fidei moderator supremus. Anno Domini M.DC.XLVIII.


Na outra tarja, que fica da parte da Epistola, se contém as obrigações dos suffragios, que por si deixou o Fundador, diz assim:


Instituit ad altare triplex iuge sacrificium annuas pro defunctis vigilias, iuniorum cœnobitarum adsciuit excubias, habitacula coœdificauit: sibi religiose ante Dominum sepultura prouisa; maioribus suis posuit monumenta, magis pie,[Pg 25] quam magnifice, quorum posteris subtus aram Condictorium fecit, legauit in hæc opera pietatis sexcentos annuos aureos.


Sobre estes pedestais se levantão de cada parte tres columnas de folhagem até o meio, que proseguem em estriado, as dos cantos mais recolhidas, as outras duas mais sahidas pera fóra, e corpulentas, entre ellas se abrem nichos de alto abaixo, que recolhem varias reliquias de Sanctos engastadas em custodias de preço. Estas seis colunas, que todas são de lavores, vão receber a simalha do Altar, sobre a qual se presenta á vista um quadro da Cea do Senhor, de singular pintura acompanhado de duas colunas de macenaria galantemente lavradas, que vão receber hum remate do mesmo quadro, unido já com a abobada da Capella. Aos lados destas colunas ficão dous quartões ornados com duas pyramides exteriores.

Por entre as tres colunas de huma, e outra parte, que estão sobre os pedestais, se fecha hum arco quasi da mesma altura das colunas, que fica fazendo lugar ao Sacrario (em que sempre está o Sanctissimo Sacramento alumiado com duas alampadas de prata). Do pavimento que fica debaixo deste arco se levantão oito colunas em estylo oitavado, que recebem huma charola alterosa com seu zimborio, que se remata com hum Pelicano polla banda de fóra. Debaixo desta charola se levanta hum throno em forma quadrada com quatro colunas[Pg 26] pequenas, que fazem os cantos, com que se forma a primeira peça, na qual se abrem dous nichos, hum pera a parte do Choro, outro pera a Capella; o do Choro tem uma Imagem de nosso Padre S. Domingos, o que fica pera a Capella occupa outra de nossa Senhora de singular estimação por antiguidade, e feitio; he um meio corpo de alabastro, com o braço esquerdo abraça o minino que se sustenta em pé sobre uma almofada, e na mão direita tem hum livro, tudo da mesma pedra. Dá a estas imagens inestimavel valor a antiguidade, que em outras nações, com mais primor, e felicidade, que na nossa, avalia semelhantes obras; porque segundo a certeza que disto ha, e o Bispo tinha, estiverão estas imagens occultas, e sepultadas no muro da Cidade de Tunes, desde o tempo, que os mouros a tomarão aos Christãos, até que o Emperador Carlos Quinto lha ganhou, que então se descobriram, não sem mysteriosa circumstancia, porque batendo a artilharia o muro, e arruinando parte d’elle, cahiram as imagens sem padecer lesão alguma. O Infante Dom Luiz, que n’esta empresa se achou com o soccorro de Portugal, grandiosamente abreviado naquelle celebre galeão de 366 peças, e ajudou a ganhar a victoria, por despojo d’ella escolheo só estas imagens, que despois deu a Dom João de Castro, Avô do Bispo fundador.==

[Pg 27]

(Historia de S. Domingos particular do reino e conquistas de Portugal, por fr. Luis de Cacegas, reformada por fr. Luis de Sousa, filho do convento de Bemfica. Ampliada por fr. Antonio da Encarnação. Lisboa, 1866; 2.ᵃ parte do 3.ᵒ vol., pag. 198).

Quantas recordações nobilissimas nesta capella! Agora a elegante construcção está ameaçando ruina. Parece-me todavia facil acudir-lhe. A frontaria desligou-se um pouco do corpo do edificio, entra agua de chuva pela fenda produzida pelo desvio. Alguns annos de desleixo e a ruina será enorme, o concerto dispendioso. Dizem-me que esta capella está na posse de um particular, ha tempos ausente de Portugal. E não sei se ainda ha culto ahi; essa parte do edificio está habitada por uma congregação feminina, estrangeira; nada dizem, respondem sempre que não sabem da chave.

Fr. Vicente de Lisboa

D. João 1.ᵒ cedeu a Casa real de Bemfica a fr. Vicente de Lisboa para estabelecimento do instituto dominicano, em 1399.

Este fr. Vicente era provincial da sua ordem em Castella e Portugal, inquisidor geral de Hespanha, confessor e prégador de D. João 1.ᵒ Foi com certeza um vulto importante. Barbosa Machado, na Bibliotheca Lusitana falla delle, firmando-se no epitaphio que primitivamente marcava o logar de repouso das suas reliquias.

[Pg 28]

Ahi se lia per illum (fr. Vicente) in hac civitate (Lisboa) et in diversis hujus regni partibus, destructa fuerunt opera diaboli et haereses erroresque, atque idolatriae. Edidit etiam varios libros excellentis doctrinae.

Barbosa Machado diz que não conseguiu vêr nenhum de taes livros. Mas sabe pelo epitaphio que elle combateu as crendices populares, as superstições viciosas, as praticas pagans observadas ainda no seu tempo pela gente rude. É tarefa antiga esta de combater tradições, bruxarias, costumeiras, que hoje fazem as delicias dos folqueloristas. Ainda não vi tambem livro que se possa attribuir a fr. Vicente de Lisboa; mas não se perde a esperança. É bem possivel que nalguma antiga collecção de sermões se contenham os do prégador de D. João 1.ᵒ Na livraria do infante D. Fernando havia um volume assim designado==Item, hum livro de pregações de frey Vicente per lingoagem. (T. Braga, Historia da Universidade de Coimbra, 1.ᵒ pag. 229).

Muitas obras que se julgavam perdidas teem surgido nos ultimos annos. Os tratados de alveitaria e citraria (este incompleto) de mestre Giraldo existem na Bibliotheca Nacional, assim como uma copia antiga do Livro de Montaria de D. João 1.ᵒ O tratado da phisionomia, Opus de physiognomia, de mestre Rolando, está na Bibliotheca da Ajuda. Nos Documentos historicos da cidade de Evora dei noticia e grandes extractos dos tratados medicos,[Pg 29] da idade media, existentes na livraria d’aquella cidade.

O sr. Leite de Vasconcellos, o nosso grande investigador, foi descobrir em Vienna, uma versão portugueza das fabulas de Esopo, que já publicou na Revista Lusitana.

Por isto não perco a esperança de ver ainda um dia alguma obra de fr. Vicente de Lisboa.

Fr. Bartholomeu dos Martyres

Uma parte do convento que olha para norte está bastante arruinada; eram ahi os dormitorios do noviciado; as janellas das humildes cellas deitam para a cerca; a vista dilata-se por aquelles campos e collinas verdejantes de Bemfica, jardins, frescos hortejos, copados arvoredos. Uma d’essas pequeninas janellas é a do quarto que por muitos annos foi habitado por um homem dos raros, dos mais raros, que tem havido em Portugal, fr. Bartholomeu dos Martyres.

Foi aqui professor muitos annos.

Primeiramente esteve, ensinando já, no convento da Batalha.

Passou ao convento de Evora porque o infante D. Luiz, desejando fazer grande lettrado seu filho o sr. D. Antonio, depois prior do Crato, infeliz rei e exilado, instou e conseguiu que fr. Bartholomeu fosse ler theologia nos dominicanos de[Pg 30] Evora; ahi conheceu fr. Luiz de Granada, outro raro. Permaneceu em Evora alguns annos; obrigaram-no então a vir ser prior de S. Domingos de Bemfica, que era o grande noviciado de Portugal. Vivia muito pobremente, sem a minima ostentação; amigo do Convento e mais amigo da cella; dormindo pouco, comendo pouco. Enthusiasta professor estava sempre prompto a ensinar; lia aos noviços disciplinas superiores, mas se via necessidade fazia cursos d’artes elementares, aos rapazes; fazia praticas numa capella da egreja. Era um eloquente, como fr. Luiz de Granada; e ás vezes arrastado pelo calor da palavra, enthusiasmava-se, e enthusiasmava o auditorio; uma vez terminou a pratica chorando elle e todos os ouvintes.

Gostava de passear na cerca, e estava muitas vezes á janella da sua pobre cella; os noviços ouviam-no cantarolar a meia voz, tomando o ar, encostado ao peitoril da janella que dá para o campo.

As visitas contrariavam-no um pouco, o cardeal D. Henrique, o infante D. Luiz frequentavam o convento; um dia instaram com elle para que acceitasse a mitra de Braga. Do tranquillo cantinho de S. Domingos de Bemfica para o paço archi-episcopal de Braga!

Largar o convento, as aulas, a cêrca, a sua cella tão boa para o estudo! Não queria, não queria! Foi a rainha D. Catharina que o mandou; elle então obedeceu. Foi sempre um altruista, espirito[Pg 31] cheio de abnegação. Preparou-se para a partida, teve de deixar por algum tempo Bemfica; mas antes de partir definitivamente para Braga foi passar um dia a S. Domingos, ao querido sitio de Bemfica, foi despedir-se da egreja, das aulas, da sua tranquilla cella, das arcadas silenciosas do claustro, da fonte da horta, das arvores, das flores.

E foi para Braga, para aquellas extranhas missões das montanhas minhotas, e para as solemnes discussões do concilio de Trento.

Era por indole um professor, gostava de ensinar. Tanto que se viu livre da mitra primacial elle ahi vae para o seu retiro de Vianna do Lima, ensinar rapazes; nos seus passeios pelos campos o bom velhinho, ás vezes, assentado a repousar, doutrinava os humildes pastores. Que esta raça portugueza em tempos antigos produziu mestres em sciencias e lettras que illuminaram universidades em Hespanha, Italia e França. Merece ainda attenção este homem no ponto de vista da hygiene em geral; pelo seu regime de vida, habitos e predilecções. Usava fazer grandes passeios a pé, era sóbrio, de bom humor. Lendo hygienistas modernos, Gautier (Armand—L’alimentation et les regimes chez l’homme sain et chez les malades) por exemplo, encontram-se conselhos para a vida dos intellectuaes, que lembram logo o methodo de vida de fr. Bartholomeu dos Martyres.

[Pg 32]

D. Isabel Maria

A infanta D. Isabel Maria residiu bastantes annos na sua casa de S. Domingos de Bemfica. Velhinha, adoentada nos ultimos tempos, cheia de recordações, por alli passeava morosamente sob as magnolias e os cedros. A quinta está contigua á cerca do convento.

O palacio parece que foi construido em tempo de um certo Devisme negociante e capitalista, grande amigo do marquez de Pombal, que tambem se importava de politica, tendo altas relações no estrangeiro, ahi pelo meio do seculo XVIII. As estatuas de marmore que ornam o jardim são d’essa época, mas o desenho, a disposição foi alterada. No palacio houve mudanças e ainda nos ultimos annos foi ampliado; está installado alli o bem afamado collegio de Jesus, Maria, José; grande numero das senhoras da fina sociedade actual passou por esse estabelecimento de educação.

Depois de Devisme pertenceu a bella propriedade á casa dos marquezes de Abrantes, illustre familia. Por morte do ultimo marquez, em 1847, foi comprada pela infanta D. Isabel Maria filha de D. João VI, e de D. Carlota Joaquina. Nasceu a infanta em 4 de julho de 1801, e falleceu a 22 de abril de 1876, pelas 3 horas da tarde.

Interessante figura; vida que em grande parte decorreu entre agitações politicas e palacianas; presidente da junta de regencia, em 6 de março[Pg 33] de 1826, ficando de parte a rainha D. Carlota, por occasião da enfermidade de D. João VI, e por morte d’este, regente em nome de D. Pedro IV, até ao celebre dia 22 de fevereiro de 1828, em que depoz o governo nas mãos de D. Miguel. Foram um horror esses tempos de paixões violentas, de conspirações politicas, que não paravam no vestibulo do paço, e até de lá partiam, pois conspiradora foi sempre a mal aventurada D. Carlota Joaquina.

Devia ser curioso este sitio de S. Domingos de Bemfica nessa longa crise politica dos primeiros decennios do século passado, porque os Fronteiras, os Mascarenhas, entraram na tentativa de 1805, e continuaram até á ultima no liberalismo; os da casa d’Abrantes e os dominicanos inclinavam-se ao absolutismo.

Mas a infanta que no Paço viu as discordias insensatas entre pae e mãe, e na politica encontrou o tumulto entre exaltadas individualidades, entre partidos raivosos, conseguiu equilibrar-se desempenhando com superioridade o melindroso cargo de regente.

Crescendo a idade retirou-se, cada vez mais; por fim metteu-se no seu ninho de S. Domingos, nas sombras abrigadas e aromaticas das suas magnolias.

[Pg 34]

Palacio e jardim Fronteira

Entre as mais notaveis vivendas destes sitios de Bemfica sobresae o palacio Fronteira com os seus lindos jardins e fresco hortejo, singulares obras d’arte e historicas recordações.

Dizem que o primeiro marquez de Fronteira, D. João Mascarenhas, mandou fazer na sua propriedade um pavilhão de caça para receber a visita del-rei D. Pedro II, e esse foi o núcleo do palacio: isto pelos annos de 1670 a 1681. Antes certamente havia outras construcções porque a elegante capella é de 1584. O terremoto de 1755 arruinou o palacio de Lisboa; foi a familia Fronteira residir para Bemfica, e então ampliaram o tal pavilhão formando-se o palacio actual. O grande jardim, a monumental galeria e cascata, devem ser do fim do século XVII, com grande influencia do estylo italiano.

Os azulejos da magnifica sala do pavilhão referem-se á batalha do Ameixial. É pena não se conhecer bem a formação d’esta vivenda porque se póde affirmar notavelmente conservada, exemplo rarissimo em Portugal.

O jardim é um enlevo, no genero antigo, com as suas estatuas, fontes artisticas, grande peça d’agua, grutas, escadarias, varandas de balaustrada, elegantes pavilhões.

Muito regular, taboleiros geometricos e symetricos, com ruas e travessas, e pequenas praças,[Pg 35] sendo maior a central onde se ergue artistica fonte de taça alta, ostentando em pinaculo os escudos dos Mascarenhas.

A poente a fachada do palacio, a sul a galeria dos reis; norte e nascente moldura ou parede de arvoredos, com vista para o campo; compridos assentos azulejados.

Ha estatuas no jardim, na parede do tanque, dentro do tanque, na varanda da galeria, em nichos, nos vertices dos pavilhões!

Entre matizes de flores e aromas riem faunos, dançam nymphas, os deuses teem sorrisos benevolentes.

Brilha ao sol o paganismo.

Na gruta maior que abre para o tanque está o Parnaso, um monte com o Pégaso alado e galopante, e em roda, a variadas alturas, Apollo e as Musas, estatuetas em fino marmore.

Na parede da galeria quadros de azulejo com figuras de cavalleiros, doze na frente, dois nos lados, os cavallos a galope, parecendo que vão entrar em renhido torneio.

Á esquerda, olhando para a galeria, ha muitos retratos, em azulejo, dos Mascarenhas, condes de Obidos, Torre, Santa Cruz, marquezes de Fronteira; á direita, fronteando os retratos, estão representados os brazões.

Na galeria em nichos forrados de azulejos hespanhoes, de reflexo metallico, uns acobreados, alguns de tom azul, bustos dos reis de Portugal,[Pg 36] entrando o conde D. Henrique, e o infante D. Fernando o santo. Os ultimos bustos d’esta galeria, os de Affonso VI e Pedro II, são os de melhor trabalho. Uma porta communica para o jardim alto ou moderno; segue a segunda galeria dos reis, D. João V, D. José, D. Maria I e D. João VI. Sobre a porta entre as galerias um busto do imperador Tiberio, talvez copia de busto authentico.

Estatuas mythologicas, faunos prasenteiros, gentis nymphas dançantes, ornam plinthos no jardim, e as balaustradas. Azulejos estranhos, hespanhoes e hollandezes, fazem rodapés, representando scenas familiares, caçadas, episodios agricolas.

Embrechados finos de buzios e conchas, fragmentos de louças orientaes, vidros pretos, cristaes de rocha, bocados de escorias, em complicados desenhos, forram paredes das cascatas. N’uma grande parede do jardim molduras e ornatos em faiança, folhagens, flores e fructos no genero chamado dos Della Robia.

Neptuno e o seu cortejo, em grande quadro de azulejo; outro em relevo de alvenaria infelizmente em grande estrago, cumprimentam um rio, o Tejo, provavelmente.

Num quadro de azulejo o ratão do artista representou Jupiter, e pintou ao lado o nome assim: Ghvptre.

No jardim moderno, entre fetos magnificos e grande collecção de camelias, ha uma fonte central,[Pg 37] de taça, com a estatua de Venus. O pé da taça é um grupo de golphinhos lavrado num lindo bocado de marmore com laivos avermelhados.

Dizem que a esta Venus se refére Tolentino na satyra intitulada A funcção.

Musa basta de rimar
...................
...................
... sincera velha
Pondo contra a luz a mão
E crendo que nesta rua
Está São Sebastião
De Venus á estatua nua
Faz mesura e oração.

É bem interessante a historia dos jardins; conhecem-se exemplos do Egypto, da Assyria; celebres entre os romanos os de Plinio e de Sallustio, ornamentados de terraços, fontes, estatuas.

Cultivavam rosas, lyrios, violetas, malvas, algumas arvores e arbustos cortados e aparados em feitios caprichosos, como o louro e o buxo; estimavam muito o esguio cypreste, e a vinha como planta decorativa.

E neste ponto tinham muita razão porque a parreira faz lindo ornato, com mudança de tons, gracilidade de curvas, além do encanto do cacho, quer se applique a edificios ou se enrosque em arvores.

[Pg 38]

Mas os jardins conservaram-se regulares e symetricos durante seculos.

O jardim irregular, de imprevistos, o jardim-paisagem é mais moderno.

Ha muitos livros sobre jardins e construcções architectonicas especiaes, fontes, repuxos e grandes jogos d’agua, cascatas, terraços, caramanchões e pavilhões. Merece ver-se o livro de Alicia Amherst, intitulado: A history of gardening (London, 1896), e L’art des jardins por Jorge Riat, que faz parte da Bibliothèque d’Enseignement des Beaux-Arts; qualquer d’estes livros indica sufficiente bibliographia.

Em Portugal ha bonitos jardins modernos e ainda alguns antigos conservando os seus engenhosos desenhos; a invasão moderna de plantas exoticas prejudica bastante o jardim antigo, araucarias e chamerops não harmonisam bem nas combinações geometricas e symetricas, não podem substituir as cevadilhas, as balaustras, de pequeno porte, de brilhante folhagem e vistosa florescencia. Uma alta araucaria pyramidal destoa nos bordados jardins de Caxias e Queluz. Arvores variadas, exoticas ou naturaes, empregavam-se em fazer parede ou moldura de jardins, em alamedas de horta ou laranjal.

No Diccionario dos Architectos, vasto trabalho do sr. Sousa Viterbo, por vezes apparecem architectos encarregados de obras em jardins, o que não admira porque todos os jardins antigos tinham[Pg 39] obras d’arte importantes, terraços, escadarias, balaustradas, cascatas enormes e complicadas, com jogos d’agua, pavilhões, etc. (Dicc. dos Architectos, vol. 1.ᵒ, pag. 62 e 395; 2.ᵒ, pag. 350 e 379).

Póde dizer-se que o jardim antigo é principalmente architectonico, e que o moderno é filho da pintura.

Na Bibliotheca Nacional de Lisboa, a respeito de jardins ha livros antigos notaveis, especiaes; e tambem em obras que não tratam de cultura ou architectura dos jardins por incidente se topam vistas e desenhos interessantes.

Um certo in-folio grande, impresso em Roma, adornado com boas gravuras, e o titulo Villa Pamphilia ejusque palatium cum suis prospectibus, statuae, fontes, vivaria, theatro, areolae, plantarum viarumque ordines apresenta-nos grande numero de estatuas proprias para jardim e minuciosos desenhos dos terreiros ajardinados, que parecem imitar salvas de prata repoussée; sem uma arvore saliente; arbustos talhados, não muito altos, ornam os extremos. Era o jardim italiano, classico.

Numa obra de numismatica I Cesari in metallo raccolti nel Museu Farnese, por Pietro Piovene (Parma, 1727), ha lindas gravuras com muitos aspectos e detalhes dos jardins da Villa Madama, e do Palazzo di Caprarola (no tomo 1.ᵒ), mostrando bem a magnificencia, a nobreza d’essas bellas vivendas italianas.

Um allemão, Hirschfeld, escreveu uma vasta[Pg 40] obra, de que ha versão franceza, em 4 volumes, Theorie de l’art des jardins (Leipzig, 1779-1783).

É trabalho notavel: trata dos jardins em varios pontos de vista, da sua historia e da historia das plantas, do aproveitamento das arvores segundo o seu effeito ou aspecto, das combinações, dos planos differentes. No 4.ᵒ volume vi a noticia de Guilherme Kent o criador da arte dos jardins em Inglaterra; era pintor e architecto. Descreve os trabalhos de Le Notre, grande jardineiro francez. N’isto de jardins ha escólas, muito bem definidas. Foi economica, principalmente, a razão porque a escóla de Kent venceu a de Le Notre; o jardim á antiga era de grande custeio; para se conservar bem era preciso trabalhar constantemente. Só admittia flores finas, raras; na Hollanda o enthusiasmo pela tulipa, a tulipomania, attingiu excessos. Kent introduzindo arvores e arbustos fez grande economia. Ha o jardim agradavel, o risonho, o majestoso, o romanesco; o jardim fidalgo, o burguez, o campestre, o publico, o academico, o monastico, finalmente o funebre.

O tal allemão chega mesmo a projectar jardim para de manhã, do meio dia, e da tarde; jardins para effeitos crepusculares. A cultura e a disposição do jardim variam com os climas, e com a abundancia das aguas.

É impossivel imitar nos paizes frios os jardins de Hespanha ou de Italia; querer implantar nos paizes do sul os arrelvados inglezes é arrojado.[Pg 41] A relva nada custa em Inglaterra, e em Portugal a murta, o lirio, o cravo e a rosa não precisam cuidados.

A leitura do Hirschfeld, me parece, é ainda hoje util a quem deseje tratar de jardins publicos ou particulares.

Porque ha uma esthetica de jardins, e tambem merece attenção a questão economica. Em Portugal, por exemplo, não se usa da laranjeira ou da vinha em jardins; e estão os jardins cheios de palmeiras monotonas. Vê-se gastar muito dinheiro para ter bocadinhos de arrelvado, que o sol de verão cresta numa hora.

Vêmos formar talhões com uma só essencia, o que parece esthetica de hortelão, quando as alamedas ou avenidas são muito mais pittorescas e vistosas variando a qualidade das arvores.

O jardim publico de Evora tem effeitos bonitos; foi planeado e plantado pelo scenographo Cinatti, que calculou os aspectos que arbustos e arvores dariam quando desenvolvidos. Infelizmente depois não seguiram, completamente, as indicações do artista; todavia ainda é manifesto o fino criterio que presidiu á disposição do arvoredo.

Il reale giardino di Boboli nella sua pianta e nelle sue statue com o Alticchiero (Padua, 1787) é livro pouco vulgar.

Muitas estampas finamente gravadas mostram os planos, os aspectos, e principalmente as estatuas.

O jardim Boboli, em Florença, tinha amphitheatro,[Pg 42] casino, palacetes, jardim botanico, o pequeno jardim de Madama, o dos ananazes, o da ilha, o da fortaleza, e a grande pesqueira de Neptuno. No jardim de Oeiras havia tambem pesqueira; até ahi pescou á canna a rainha D. Maria I, na famosa visita que lá fez, no tempo do segundo marquez de Pombal.

Neste jardim Fronteira as tropas miguelistas em 1833 entraram sanhosas, todavia parece que o estrago não foi consideravel. Diz-se tambem que se tratou aqui da formação da Arcadia Lusitana, que os tres poetas Antonio Diniz da Cruz e Silva, Theotonio Gomes de Carvalho, e Manoel Nicolau Esteves Negrão por estes caramachões de rosas e jasmins discutiram as bases da famosa academia litteraria. O snr. Theophilo Braga (pag. 180 de A Arcadia Lusitana) conta que os tres poetas se reuniam em Bemfica; mas ha tradição de que era na quinta dos Fronteiras que elles frequentavam, e de que mesmo um d’elles perto morava.

José Maria da Costa e Silva, no seu poema O Passeio, diz que em Portugal se chamavam jardins de D. João de Castro, aos irregulares, por ter sido o famoso heroe o primeiro que os plantou na Europa:

Vêde Castro, o terror dos reis do Oriente
.....................................
E o primeiro mostrar d’Europa ás gentes
Dos chinezes jardins a variedade.

[Pg 43]

Em outra parte escreve:

Dos chinezes jardins chistoso typo!

A marqueza d’Alorna

Um nome de grande dama portuguesa se liga á residencia Fronteira; aqui viveu por algum tempo Alcipe, nome arcadico de D. Leonor de Almeida Portugal Lorena e Lencastre, condessa de Oyenhausen e marqueza de Alorna (n. 1750—m. 1839).

Mas por poucos annos. Ella esteve, menina e moça, reclusa no mosteiro de Chellas, viveu em Vienna, em Paris, em Londres, por esse mundo fóra, sempre superior dama portuguesa, de altaneira mente; depois em Portugal ora na sua quinta de Almeirim, ora na de Almada; por muitos annos na hospitaleira e fidalga casa a Santa Izabel.

Pousou em Bemfica, é verdade, em annos de aspera lucta pelo nome de sua casa; e, verdade é tambem, lá vi, na galeria envidraçada que olha para o jardim, memorias, retratos, lembranças familiares, d’essa extraordinaria senhora.

Que existencia tão rodeada de surprezas tragicas, cheia de duradouras inquietações, a d’esta nobilissima dama portuguesa, que soube responder á sorte rude com santas idéas, corajosos trabalhos, e composições de serena poesia. Parece que n’esses[Pg 44] poucos annos que passou na vivenda de Bemfica foi que ella conheceu um moço de aspecto um tanto agreste, de firme vontade, espirito altivo, intelligencia clara, que se chamou Alexandre Herculano; muitos annos volvidos, a marqueza teve vida longa, viu ella com ineffavel prazer, o moço estudioso e attento desenvolvido no collossal escriptor.

É adoravel o que Herculano escreveu a respeito da marqueza, poucos annos depois da morte d’ella.

Vou apresentar alguns extractos d’esse notavel artigo publicado no Panorama, de 1844.

==Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações d’aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da memoria paterna, no coração do bom filho, ha um affecto não menos puro, e não menos indestructivel, para o homem cujo espirito allumiado pela cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d’esses tantos que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois morrerem sem deixarem vestigio. Este affecto é uma especie de amor filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia, que nos regeneraram pelo baptismo das lettras; que nos disseram: «caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração, caminho[Pg 45] tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sósinhos não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los apoz si. Tirae á paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario aquelles que foram nossos mestres, que nos attrahiram com a persuasão e com o proprio exemplo para o bom e para o bello, que nos abriram as portas da vida interior, que nos iniciaram nos contentamentos supremos que ella encerra, para esses não é preciso que a lei de agradecimento e de amor esteja escripta por Deus; a rasão e a consciencia estamparam-na no coração: cada gôso intellectual do poeta, do erudito, do sabio lha recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.


Áquella mulher extraordinaria a quem só faltou outra patria que não fosse esta pobre e esquecida[Pg 46] terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra as vans pertenções de superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devi incitamentos e protecção litteraria, quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada das lettras.

Apraz-me confessa-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d’engenho, a menor tentativa d’arte ou de sciencia achavam n’ella tal favor, que ainda os mais apoucados e timidos se alentavam; e d’isso eu proprio sou bem claro argumento. A critica da senhora marqueza d’Alorna não affectava já mais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura das proprias cans por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua critica era modesta, e tinha não sei o que de natural e affectuoso que se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava escaça quando merecidos.

Uma virtude, rara nos homens de lettras, mais rara talvez entre as mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era ao mesmo tempo facil e amena.

E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos a litteratura grega e[Pg 47] romana, em que igualava os melhores, mas a moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos portugueses porventura a igualou?


Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa carreira ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter de independencia e generosidade; verá que em quanto na terra natal primeiro a tyrannia, e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam, ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes, e de illustres personagens da republica das lettras. Ahi verá como nascida no seculo do materialismo, vivendo largos annos no fóco das idéas anti-religiosas, acostumada a ouvir todos as dias repetir essas idéas por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal, não poderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio das injustiças e violencias de todo o genero. ==(Panorama, pag. 403 e 404 do vol. de 1844, artigo assignado por A. Herculano).

[Pg 48]

A capella do palacio

Em 11 de fevereiro de 1903 se rezaram missas de corpo presente pela alma do marquez de Fronteira na pequena capella do palacio.

É um templosinho elegante com seu portico de columnas em estylo da renascença classica. Sobre a porta tem o letreiro:

Dicatum charitati coeli
januae M.D.LXXX.IIII

É certo que o estylo diz perfeitamente com a data 1584. É possivel que tenha havido transformação grande de outra capella anterior, porque é tradição que S. Francisco Xavier antes de partir para a India, alli celebrou a sua ultima missa em Portugal, e o santo apostolo das Indias deixou Lisboa em 1541.

Sepultura de João d’Aregas—O escudo d’armas

==É a sepultura uma grande caixa de marmore assentada sobre quatro leões, lavrada em torno de escudos de armas, quarteados em aspa, e nos campos alto e baixo em cada um sua cruz floreada da feição das da Ordem de Aviz; e nos campos de cada lado uma serpe com azas ameaçando para fóra; na lagea que a cobre está o defunto entalhado[Pg 49] de relevo, vestido em roupas largas e barrete posto, insignias de letrado; mas acompanhado tambem das de cavalleiro, que são seu estoque á ilharga; as mãos juntas sobre o peito como quem faz oração.==(Historia de S. Domingos, pag. 176).

Como se disse já, a mão direita da estatua segura um livro, e segurava, sobre o peito; a esquerda que inclinava sobre o coração e se partira e extraviára, está agora substituida por outra nova, erguida, segurando um rolo de papel.

No Thesouro da Nobreza descreve-se assim o brazão:

==Escudo franxado nos campos alto e baixo em vermelho uma cruz aberta e floreteada, nos quarteis dos lados em campo d’oiro uma serpente vermelha batalhante. Timbre as duas serpentes do escudo.==

Sobre esta familia de Aregas, ou das Regras, encontro uma longa memoria de José Freire de Montarroyo Mascarenhas, no 5.° vol. dos Titulos genealogicos (B. N. L. Sec. Mss. Cod. 1034, pag. 289 e segg.)

Nomes de artistas

Percorrendo a «Collecção de memorias relativas ás vidas dos pintores, e escultores, architectos e gravadores portuguezes... por Cyrillo Volkmar Machado (Lisboa, 1823)» encontro o seguinte:

[Pg 50]

André Gonçalves, o pintor da Vida de José do Egypto na sacristia da Madre de Deus, fez os quadros no côro de S. Domingos de Bemfica. Este artista falleceu em 15 de junho de 1762—. Os quadros no espaldar do côro representam a vida de N. Senhora; acham-se regularmente conservados. Entre os quadros ha figuras de anjos, em variadas posições, do mesmo pincel. Não são notaveis; parecem feitos sobre estampas vulgares; monotonos no colorido; todavia o effeito do conjuncto é agradavel.

José da Costa Negreiros (m. 1759) pintou a casa do Capitulo—. A casa que serve á Irmandade da S.ᵃ do Rosario tem pinturas que podem ser deste artista.

Ignacio de Oliveira Bernardes (n. 1695—m. 1781), esteve em Roma; foi pintor, architecto, decorador; foi este o architecto da casa e quinta de Gerardo Devisme (actualmente o collegio).—Pertencia a uma familia de artistas que trabalhou immenso em varios generos. Por muitas partes se encontram ainda producções destes homens. Os azulejos da egreja, como já disse, estão assignados por Antonio de Oliveira Bernardes.

Jeronimo Correia, esculptor em madeira, fez em Bemfica os ornatos das capellas.—Se foi este que executou o sacrario, elegante obra d’arte, era sem duvida um optimo artista.

—As duas grandes imagens da capella mór, S. Domingos e S. Pedro Martyr, são obra do[Pg 51] melhor esculptor que viveu em Hespanha, por 1651.—Acho esta noticia assim indeterminada em varias partes; creio que se referem ao esculptor português Manuel Pereira (m. 1667).

Francisco d’Assis Rodrigues no seu diccionario diz que Manuel Pereira, o primeiro esculptor português, foi o autor das imagens de Christo, S. Jacintho, e S. Pedro, em S. Domingos de Bemfica.


D. frei Fernando de Tavora (m. 1577), religioso de S. Domingos, discipulo de fr. Bartholomeu dos Martyres, estimava muito a arte da pintura, e nella excedeu os melhores pintores do seu tempo; alguns dos seus paineis se conservam ainda em S. Domingos de Bemfica (Santarem edificada, de Piedade e Vasconcellos, 2.ᵃ parte, pag. 464).


Na egreja vejo os bellos azulejos; o lindo trabalho, majestoso e bem equilibrado, do altar mór, o cadeirado e as pinturas do côro, alguns quadros nas capellas, e as imagens. Entre estas sobresaem as figuras do Crucificado, a da S.ᵃ do Rosario, as grandes estatuas de S. Domingos e S. Pedro Martyr. É possivel que sejam de Manuel Pereira (V. o meu artigo na Arte Portugueza, Lisboa, 1895, pag. 57). Careço de elementos de comparação; não encontro assignatura, monogramma ou documento. Em todo o caso o boato algo vale; e não tem duvida que as esculpturas são boas.

[Pg 52]

No domingo de Paschoa, 3 de abril de 1904, celebrou-se missa no altar mór, a primeira depois das morosas obras de concerto e reparo que durante annos impediram os exercicios do culto.


[Pg 53]

O lindo sitio de Carnide


(1898)

[Pg 55]

Março de 1898.

Por tristissimo incidente na minha vida tendo de passar uma temporada em Carnide, onde a amabilidade de uma familia excellente nos quiz espairecer da fatalidade brutal que nos feriu, eu, seguindo a velha tendencia do meu animo, comecei de indagar historias, e dar passeios pelas azinhagas solitarias; os largos passeios pelos campos que são a melhor fórma de isolamento doloroso.

Muito naturalmente, para esclarecimento, consultei alguns livros; o primeiro que abri causou-me admiração; foi o Diccionario Popular publicado sob a direcção de Pinheiro Chagas.

—É sitio procurado no verão por alguns habitantes da cidade, que ali vão convidados pela sua amenidade. Gosa o logar egualmente de reputação de bons ares e abundancia de aguas, bem como alegre posição. Manda a verdade que se diga que o logar é detestavel, formado por algumas duzias[Pg 56] de casas insalubres, dispostas em arruamentos sujissimos, para os quaes se fazem todos os despejos, e não tem passeios, nem jardins, nem quintas, nem arvoredos, nem bons pontos de vista. As aguas são extremamente escassas e os ares, por muito bons que podessem ser, resentem-se das más qualidades do sitio. Ainda assim o logar grangeou fama immerecida, e varias familias de Lisboa o procuram para terem dois mezes de campo! São gostos!—

Ora a verdade é que o sitio de Carnide me impressionou agradavelmente com as suas largas vistas, brilhantes, matizadas de verdes, as suas graciosas quintas, as suas azinhagas quietas entre vallados de madresilvas, caniços, heras, roseiras, pilriteiros e congossas nas juvenis florescencias do começo de primavera.

E abri outro livro.

Foi a Corografia Portugueza do bom padre Antonio Carvalho da Costa (Lisboa, 1712), que no seu tomo 3.ᵒ trata de Carnide, mui brevemente.

Menciona a egreja parochial de S. Lourenço. Diz que o seu cura era apresentado pelos priores do convento de Nossa Senhora da Luz e que o logar tem oitenta visinhos com nobreza, duas ermidas, e muitas quintas com uma fresca alameda: e relaciona os conventos.

A alameda fresca é sem duvida a do largo da Luz.

Recorri logo ao Pinho Leal, no seu Portugal[Pg 57] antigo e moderno, enorme trabalho com algum joio, é verdade, mas onde o corajoso colleccionador archivou muita noticia de valia.

—Carnide, freguezia no districto de Lisboa, concelho de Belem (hoje é freguezia de Lisboa), a seis kilometros a NNO. de Lisboa.

Tem 260 fogos.

Em 1757 tinha 250 fogos.

É freguezia muito antiga, pois já existia em 1394.

A maior parte é situada em fertil e saudavel campina, com lindas vistas. Orago, S. Lourenço.

O cura era da apresentação do prior da Luz, da Ordem de Christo, depois passou a ser vigario collado perpetuo, com 80$000 réis de renda.

A egreja de Nossa Senhora da Luz foi fundada por 1540, pela infanta D. Maria, filha d’el-rei D. Manuel e de sua terceira mulher D. Leonor. A fundadora está sepultada na capella-mór.

O terremoto de 1755 damnificou muito esta egreja; existe apenas (agora em bom estado, depois da obra recente que ali se fez) a capella-mór e o cruzeiro.

Continúo a seguir o Pinho Leal.

Convento de freiras carmelitas descalças de Santa Thereza: é antigo, foi reedificado pela infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, por 1680.

Frades carmelitas descalços, de S. João da Cruz, fundado pela princeza Michaela Margarida, filha[Pg 58] de Rodolpho II, imperador de Allemanha, por 1642, que n’elle está sepultada (nem o imperador se chamava Rodolpho; e a pobre princeza está sepultada no convento de Santa Thereza, como logo contaremos). A infanta D. Maria, filha de D. João IV, viveu aqui (no convento de Santa Thereza) de 1649 até 1693. Foi mestra da infanta D. Luiza, filha bastarda de el-rei D. Pedro II.

Esta D. Luiza foi reconhecida por D. João V, que a casou com D. Luiz Alvares Pereira de Mello, duque de Cadaval; por morte d’este casou com D. Jayme, seu cunhado, que ficou sendo duque de Cadaval, porque o primogenito morreu sem geração.

A infanta D. Maria, filha natural de D. João IV, veiu para aqui de tenra idade. Reedificou a egreja e o mosteiro, ampliando muito o edificio. Viveu recolhida sem professar. O reconhecimento como filha do rei foi feito solemnemente na presença da familia real e da côrte, no mosteiro. Esta senhora era muito estimada; as rainhas D. Luiza de Gusmão, mulher de D. João IV, D. Maria Francisca Isabel de Saboya e D. Maria Sophia de Neubourg a visitavam muito. O irmão, D. Pedro II, encarregou-a da educação da filha, D. Luiza, que depois foi duqueza de Cadaval.


A procissão dos Passos de Carnide faz-se na 5.ᵃ dominga de quaresma (este anno, 1898, foi em 27 de março).

[Pg 59]

A conhecida feira da Luz, com arraial e festa, é nos dias 7 e 8 de setembro.

O cirio do Cabo visitou Carnide pela primeira vez em 1437.

Carnide está na 7.ᵃ ordem do giro. Em 1795 houve festa ruidosa porque tomaram parte no cirio o principe D. João (depois D. João VI) e sua mulher D. Carlota Joaquina.

A Senhora do Cabo tem capella propria na egreja da Luz, na capella-mór, á esquerda; ainda ahi existe um formoso frontal, com o brazão da infanta D. Maria.

Vamos ouvir o Padre Luiz Cardoso, no seu Diccionario Chorographico, que infelizmente ficou incompleto. Este escreve em 1751:

—Na egreja de S. Lourenço ha cinco altares, o maior, o de N. S.ᵃ do Rosario, o de Christo crucificado, o de S. Miguel, e o de Jesus Maria José. Havia então tres irmandades: a do Senhor, a de N. S.ᵃ do Rosario, e a das Almas.

Tem (tinha) a freguezia mais as ermidas do Espirito Santo, a de S. Sebastião e a de N. S.ᵃ da Assumpção na quinta de José Falcão de Gamboa, hoje o casal do Falcão.

A fonte de N. S.ᵃ da Luz, antigamente da Machada, divide-se em duas, a fonte de dentro e a de fóra.

A de dentro está sob o altar-mór, a agua no sabor é grossa e salobra mas mui sádia, e principalmente contra a pedra tem especial virtude, e[Pg 60] não consta que filho algum da terra padecesse semelhante achaque ou outra qualquer pessoa que d’ella usasse.—


O Santuario Mariano de fr. Agostinho de Santa Maria é repositorio de muitas informações, porque este extraordinario devoto de Nossa Senhora a proposito das imagens que descreve, dá noticias das egrejas e localidades onde se veneram.

No tomo I, pag. 98, escreve da imagem de Nossa Senhora da Luz em Carnide: e conta de como antes de 1463 foi captivo em Africa Pedro Martins, natural de Carnide; este homem teve sonhos milagrosos, fez promessas, e conseguindo livrar-se do captiveiro mourisco voltou á sua patria, onde já existia a fonte do Machado, e edificou a ermida. A fundação foi solemne, porque a ella assistiu D. Affonso V. É provavel que este Pedro Martins fosse algum antigo companheiro d’armas d’el-rei D. Affonso V, que a historia denominou o Africano, por causa das suas arrojadas emprezas e valentes brigas no Algarve d’além-mar. Pedro Martins collocou na ermida, em agradecimento, os grilhões do captiveiro.

A infanta D. Maria, filha de D. Manuel, fez a nova egreja em 1575.

A pag. 411 do mesmo tomo o padre Cardoso refere-se á imagem de Nossa Senhora da Conceição, do côro do convento da Conceição no sitio de[Pg 61] Carnide (depois em Arroyos), sem dar noticia importante.

Fr. José de Jesus Maria, na Chronica de Carmelitas descalços da Provincia de Portugal, tomo III, pag. 147, acha o logar de Carnide situado em campo alegre e de ares puros, e cercado de muitas e curiosas quintas que servem igualmente para o lucro e ao recreio.

Compõe-se o logar de 264 visinhos (elle escreve em 1753).

Falla do convento da Conceição que na sua quinta fundou Nuno Barreto Fuzeiro.

Do convento de Santa Thereza, nobilissimo seminario de infantas e senhoras... onde tantas vezes chegou a pobreza, a ponto de ás vezes não terem de comer.

Mas as freiras tinham grande repugnancia em pedir; esperavam até á ultima; nada havendo, nem a esperança, tocavam uma sineta, a sineta da fome, pedindo soccorro. O mesmo succedia com as freiras do Calvario em Evora; tinham tambem o toque da fome. Quando nada havia, nem se esperava, iam para o côro, entoavam as suas rezas ao som do triste signal. Por vezes, no convento de Carnide, houve coincidencias que pareceram milagres. Uma vez ia a pobre soror, meio desfallecida, começar o signal da fome, quando bateram estrondosamente á portaria. Era um presente de atum assado que mandava a duqueza de Aveiro.

Outra vez appareceram uns navegantes, salvos[Pg 62] de grande tormenta no mar, com uma esmola de 20$000 réis.

Em 1646 se dispôz a madre priora Michaela Margarida de Sant’Anna a lançar a primeira pedra do convento novo. Foi o duque de Aveiro quem lançou a pedra e d’isto se lavrou a inscripção==O duque de Aveiro, D. Raymundo de Lancastre botou a primeira pedra deste convento a 2 de junho de 1646.==

Nova obra começou em 15 de outubro de 1662, commemorada em outra lapide (hoje no cunhal da frontaria da egreja):==Maria Joannis Lusitaniae Regis Filia hoc opus struxit anno Domini 1662.==

A dedicação do templo de Santa Thereza foi em 15 de outubro de 1668.

A capella-mór é de Santa Thereza.

A do Evangelho é de S. João da Cruz.

A da Epistola é da Senhora da Conceição.

Defronte da grade do côro de baixo está a capella do Senhor dos Passos, com procissão na 5.ᵃ dominga de quaresma.

No côro alto ha muitas reliquias (é um grande relicario entalhado e dourado, que se vê da capella-mór).

A infanta D. Maria, filha de D. João IV, mandou fazer os retabulos.

[Pg 63]


Podemos affirmar, pois, que a egreja de Carnide era já parochial no seculo XIV. Que no seculo XVI era logar de certa importancia, pois a insigne infanta D. Maria, filha de D. Manuel, aqui veiu fundar egreja e hospital. Depois os differentes conventos e obras particulares; as grandes quintas com magnificas moradias, etc.

Em 1712 tinha 80 visinhos com nobreza, o que é extraordinario; verdade é que não sabemos bem onde chegaria então a freguezia de Carnide; que no termo de Carnide se encontram bastantes casas, que podemos chamar pequenas, com seus brazões em porticos e cunhaes, é verdade.

Em 1753 tinha 264 fogos.

Em 1757    »    250    »   

Em 1875    »    260    »   

Provavelmente a freguezia cedeu alguns fogos para a formação de outra qualquer, ou então houve largo estacionamento.

Actualmente (abril 1898) Carnide pertence ao 3.ᵒ bairro de Lisboa.

Fogos, 337.

Habitantes, 1:737.

Sendo: varões, 1:018; femeas, 719.

Solteiros, 710 varões e 404 femeas.

Casados, 277 varões e 255 femeas.

Viuvos, 31 varões e 57 femeas.

[Pg 64]

Analphabetos, 432 varões e 353 femeas.

Sabem ler, 6 varões e 18 femeas.

Sabem ler e escrever, 580 varões e 345 femeas.

É preciso lembrar que na freguezia de Carnide está o collegio militar, o que produz as grandes divergencias nos numeros dos solteiros, dos instruidos, etc.


O sitio é agradavel, de amoravel paizagem, brilhante mesmo nos dias bons; como o terreno é variavel na sua constituição, basaltos, calcareos, argilas, as culturas diversas, e de tons que vão do claro do rebento novo da vinha ao verde intenso do trigo, produzem um matiz onde o olhar repousa sem achar monotonia. Pelas quintas ha arvoredos sombrios, ou compridas latadas e hortejos cuidados, vinhas, searas, geiras de fava ou batata. Trabalha-se, cultiva-se com intensidade, e não sobram os braços porque os salarios dos trabalhadores ruraes são maiores que em outras partes.

A par da quinta antiga com seu palacio e capella ha o chalet moderno, com as suas varias traducções, vivenda, tugurio e não sei que mais. Bom exemplo de casa antiga é o casal do Falcão, com a sua varanda alta, e as suas dependencias; casa mais moderna, do começo do seculo XVIII, talvez, é a da quinta de Santa Martha, ou dos Azulejos, assim chamada por ter forradas de azulejos as paredes que deitam para o jardim, e as escadas, que são exteriores, a varanda, a nora, a[Pg 65] parede do tanque, e as paredes dos alegretes altos, tudo em assumptos variados, em grandes quadros, em medalhões, com damas nobres, e archeiros, e deuses mythologicos, e quadrinhos que fazem lembrar o Nicolau Tolentino.

Ao lado da propriedade grande e custosa ha a pequena que o saloio rega com o suor do seu rosto, e com a agua que tira do poço ou do regato com a cegonha ou picota, a grande alavanca que já figura nas esculpturas do Egypto a levantar a agua do Nilo sagrado.

De Carnide-Luz ha estradas para o Campo Grande, Telheiras, Paço do Lumiar, Sete Rios, Bemfica, Odivellas ou da Beja, mais ou menos assombradas, sempre agradaveis, por vezes com grandes vistas. A estrada militar corta grande parte da freguezia, offerecendo sempre largo horizonte.

Eu tenho caminhado por estes sitios e acho adoraveis certas estradinhas discretas, humildes carreteiras bordadas de vallados agora floridos, de madresilvas e congossas, assombradas por oliveiras, olaias, cerejeiras; de vez em quando uma palmeira rompe entre as larangeiras, um cypreste ergue a sua pyramide verde escura.


Proximo da quinta dos Azulejos está o convento de Santa Thereza de Jesus. Eu ouço repetidas vezes a sineta com um som fraco, lamentoso, chamando á missa ou marcando as horas coraes.

[Pg 66]

Os sinos de S. Lourenço são vibrantes, mui sonoros; aos domingos tocam musicas festivas que ficam bem na grande e virente paizagem, annunciando o dia de repouso a essa gente que tanto trabalha. Gosto de os ouvir nas Ave-Marias da manhã quando o sol nascente rutila na grande vidraça da egreja do cemiterio dos Arneiros.

A egreja de Santa Thereza é bonita, de linhas sobrias, com uma só nave.

O convento divide-se agora por duas communidades diversas. Uma parte pertence ás freiras portuguezas, senhoras mui virtuosas, e com excellente tradição por estes sitios. Outra parte ás freiras francezas, irmãs de S. José de Cluny. Estas são mais numerosas e teem pupilas e postulantes. Tem escola, e enviam pessoal para as missões africanas. As portuguezas resam no côro de baixo, as francezas no côro de cima.

Todo o tecto da egreja, nave, cruzeiro, capella-mór e côro alto é de pintura antiga, de 1662 provavelmente, com as suas flores e fructos, mascaras e garças, molduras quebradas e grinaldas, grandes espiraes de folhagens, e figuras inteiras de virtudes. É muito lindo.

Grandes paineis de azulejos com passos da vida de Santa Thereza forram a egreja até certa altura; télas pintadas a oleo, em grandes molduras de talha dourada, illuminam a parte mais alta das paredes.

Entre estas reparo na grande téla que representa[Pg 67] o passamento de Santa Thereza notavel na composição, no desenho e no colorido. É boa obra d’arte e documento notavel na indumentaria e mobiliario. O quadro da capella-mór é muito lindo tambem: composição importante, com muitas figuras, e bem colorido.

A obra de talha da capella-mór, relativamente moderna, é muito elegante com o seu bello portico de columnas encimado pelas grandes figuras da Fé e da Esperança.

Os altares lateraes são revestidos de azulejos polycromos, com as armas de Portugal entre ramarias e animaes, e moldura fingindo embrechado de marmore amarello sobre fundo negro. Estes azulejos devem ser tambem do seculo XVII.

O pulpito e sua escada de páu brazil em torcidos e tremidos, com applicações de metal amarello, é notavel, e merece attenção tambem a especial pintura que cerca a janella, que está sobre a porta lateral da egreja, da parte de dentro.

A infanta D. Maria, filha de D. João IV, está no côro de baixo; sob a grade d’este côro repousa uma princeza germanica.

Reproduzo a inscripção desdobrando os breves:==Aqui debaixo d’esta grade jaz a veneravel madre Michaella Margarida de Sancta Anna filha do imperador Mathias, fundadora que foi d’este convento: resplandeceu em virtudes, faleceu em 28 de setembro de 1663 de idade de 82 annos havendo entrado na religião de 4 para 5 annos.==Esta inscripção[Pg 68] está gravada em tres linhas, com bastantes lettras inclusas.

Ha n’esta egreja uma devoção especial a «Santa Agape V. M. cujos despojos mortaes foram achados em Roma no cemiterio de Prescilla, sito na estrada Salaria Nova, e pelo santo padre Gregorio XVI concedidos á egreja de Santa Thereza de Carnide a 25 de abril de 1843... sendo expostos á veneração dos fieis em 14 d’outubro de 1846.»

No exterior, templo e convento são de extrema singeleza. Sobre a porta principal a estatueta de Santa Thereza, e sobre a portaria a de S. José.

No cunhal da esquerda da frontaria, lá está a inscripção:

M.ᴬ F.ᴬ IOANNIS IIII LVSI
TANIAE REGIS HOC OP
VS STRVXIT, ANNO
DNI. M.DCLXII.

Este convento conheceu dias de tormenta; quantas angustias passaram atraz d’essas grades; nas grandes crises do tempo pombalino, dos francezes, das guerras civis, muitas damas, algumas das mais nobres familias de Portugal, aqui vieram asylar-se.

Aqui esteve a duqueza de Ficalho a quem um capellão esperto dava noticias dos filhos, todos no exercito do imperador, no meio de motejos e allusões que contava em voz alta ás pessoas que estavam[Pg 69] no locutorio, em quanto a duqueza escutava em ancias na casa proxima.


N’este convento de Santa Thereza de Carnide viveu uma religiosa celebrada no seu tempo pelas suas virtudes, lettras, prendas, e bom humor. Era insigne no cravo, escreveu prosas e versos, e desenhava muito bem. A sua biographia encontra-se n’um volume com o titulo==Vida e obras da serva de Deus e madre soror Marianna Josepha Joaquina de Jesus, religiosa carmelita descalça do convento de Santa Thereza do logar de Carnide.==(Lisboa, 1783). É obra publicada sem nome de auctor, mas sabe-se que o foi D. José Maria de Mello, filho de Francisco de Mello, monteiro-mór do reino, oratoriano, bispo do Algarve, etc. Era sobrinho da insigne religiosa; e esta era filha do conde de Tarouca, o conhecido diplomata João Gomes da Silva.

As obras da madre Marianna são escriptos piedosos, em prosa e verso, em boa e fluente linguagem. As prosas são exercicios espirituaes, instrucções para as noviças, actos das virtudes, etc. E as poesias que se leem sem enfado porque tem certa animação são todas conventuaes, celebrando, festividades; sonetos, decimas, nas festas da prelada; sortes de exercicio de virtudes para se tirarem no dia da exaltação da cruz; sortes da paixão para se tirarem no domingo de Ramos. Ha um romance.==A uma noviça attribulada.==[Pg 70] E varios desafios poeticos no tempo do advento, exaltação e quaresma.


A egreja parochial de S. Lourenço de Carnide está agora bem reparada; é antiga como mostra a sua orientação e disposição. Todavia pouco resta, á vista, dos seus primeiros tempos. Na frontaria á direita ha uma pedra que é precioso monumento. Diz assim:==Era de 1380, 14 de maio o bispo Dom João mandou edificar esta egreja por Pero Sanches chantre de Lisboa á honra de S. Lourenço e deu-a a João Dor, seu capellão 24 dias do dito mez e passou o dito bispo 24 de julho da dita era ao qual Deus perdôe. Amen. Isto declara o que diz a pedra antiga correspondente.==

A qual pedra não se vê hoje.

Á esquerda da frontaria está em pedra lavrada, um brazão raro; tem na parte superior uma barra com vincos obliquos, sob isto uma estrella, uma perna com meia e sapato, que pousa sobre uma nuvem.

Na igreja ha um quadro bom, o lavapedes, mal restaurado infelizmente; algumas campas, duas pias de agua benta que são dois capiteis do seculo xiv escavados, e na sacristia um arcaz de boa madeira, bom trabalho, com metaes bem lavrados.

O terreno em redor da igreja era antigamente o cemiterio e ainda ahi está uma urna com inscripção que será bom registar:==Josephus Joannes[Pg 71] de Pinna de Soveral e Barbuda speciosus forma oritur ut moriatur 23 die decembris anno 1710 et plenus gratia per merita domini nostri Jesus Christi moritur ut vivat 1.ᵒ die mayi anno 1742,==o lettreiro está na face da urna em moldura, tendo na facha superior==Deo laus honor et gloria, amen,==e na inferior==Spes et voluntas in Deo.==

Visinha da igreja de S. Lourenço está uma fonte com bello aspecto mas sem agua. Tem seu terreiro bem empedrado defendido por frades de pedra, tanque, e um corpo central encimado por uma estatua, uma figura de mulher que me intriga um tanto. Esta figura está mutilada, sem braços, e pegaram-lhe ao lado uma pedra com seu lettreiro:==Encanamento de ferro pela vereação de 1858.==Mais em baixo o dizer:==Camara Municipal de Belem, 1857.==Apesar dos lettreiros e dos canos de ferro a fonte está enxuta.

No passeio de cima chamado antigamente do Espirito Santo, agora o alto do poço, está uma fonte, isto é, um poço com bomba, e uma urna de pedra bem tosca com a indicação:==C. M. B. 1859.==Dizem os de Carnide que a agua da fonte de baixo era excellente. Parece que n’este caso como em tantos outros a companhia apanhou as aguas boas, misturou-as com as ruins, e fornece a mistura aos consumidores, que em certas localidades ficaram prejudicados.

Agora a respeito da estatua; é uma figura de[Pg 72] mulher, com tunica de pregas miudas, e amplo manto cingido. Parece-me uma estatua romana, pelo trabalho, disposição, rosto e cabello. Provavelmente foi aproveitada alli como o satyro da fonte de S. Domingos de Bemfica.

Carnide tem illuminação a gaz, agua da Companhia, estação telegrapho-postal, posto de bombeiros, posto de policia civil, a sua philarmonica com aprendizes de cornetim, a pharmacia com seu gamão, um theatro particular, um club e duas escolas municipaes primarias officiaes de ensino gratuito, uma para meninas e outra para meninos que me parecem regularmente frequentadas.

As irmãs de S. José tem escola de meninas.

O que anima muito o sitio é o collegio militar, que está muito bem installado no sólido edificio que ainda conserva na sua frente o brazão da fundadora, a inclita infanta D. Maria, filha de el-rei D. Manuel.

Na procissão dos Passos faziam a guarda de honra os alumnos do Collegio Militar com as suas carabinas no braço, marchando muito garbosamente, entre o povo e as familias d’elles que os acompanhavam, cobrindo-os com os seus melhores olhares. Sentia-se um certo perfume de familia, patria, dever, brio, mocidade, um ramilhete de cousas boas, ao vêr passar, musica na frente, aquelles bellos rapazes, entre a multidão sympathica.

[Pg 73]

A igreja de Nossa Senhora da Luz é bem conhecida; eu mesmo já escrevi algures da formosa téla onde se vê retratada a infanta D. Maria (ha outro retrato no quadro da capella do collegio militar), do extraordinario altar-mór com os seus finos baixos relevos, da capella-mór que é um monumento da arte nacional, excepcionalmente bem conservado. No exterior está a fonte, a velha estatua da Virgem e uma longa inscripção repartida em duas lapides de marmore avermelhado, que diz o seguinte:

==No anno de 1463 reinando em Portugal D. Affonso V os visinhos de Carnide com devoção das revelações que Pedro Martins, natural deste logar, teve em seu captiveiro, donde sahiu milagrosamente, lhe ajudaram a fazer uma capella a nossa Senhora da Luz sobre esta fonte. O lugar como determinado pela divina providencia para este effeito se via dantes claro e resplandecente com visão e lumes do Céo, como depois se viu resplandecer com grandes e innumeraveis milagres na terra. E seguindo em tudo a ordem e revelação que a Virgem purissima inspirou a Pedro Martins, lhe puzeram o nome que tem da Luz, em cuja memoria e louvor a infanta D. Maria filha delrei D. Manuel o primeiro deste nome, rei de Portugal, e da Christianissima rainha D. Leonor infanta de Castella, mandou reedificar e levantar o templo de novo nesta ordenança e grandeza, no anno de 1575.==

[Pg 74]


Domingo de Ramos, 3 abril 1898.

Pela manhã cedo dei um pequeno passeio até á Casa da Pontinha, proxima da estrada militar. É casa antiga, com algumas alterações modernas; na parede que deita para a estrada, a pouca altura, está um marmore com lettreiro:

Louvado seja
o santissimo
sacramento.

Se quereis
saber quem
he o serafi
co Frc.ᵒ está
junto a IHS
Cristo que
16 assim o te 37
mos por
fee

Superior á lapide está um quadro de azulejo; a Senhora da Conceição, em azul sobre o branco, de bom desenho, em moldura de azulejos policromos.

Proximo da Casa da Pontinha, na estrada que vem para Carnide, está uma casa quadrada, na ponta da horta do casal do Falcão, n’um angulo[Pg 75] de muro, que conserva um friso ornamentado, uma grega singela em relevo de cal, um esgrafitto, datado «1622».

Depois ouvi a sineta das freiras, que sôa como uma voz debil, triste, e entrei na linda igreja. O capellão lia no seu missal a grande narrativa do triumpho em Jerusalem, que foi terminar na paixão, na cruz do Calvario, verdadeiro symbolo da vida humana, que a dias de puras alegrias e risonhas esperanças faz succeder horas de desespero e uma eternidade de angustias.

O capellão lançou a sua benção sobre os ramos, folhas de palmeira sem ornato algum, e deu-os pela grade do côro de baixo ás religiosas portuguezas. Entraram processionalmente as irmãs de S. José de Cluny, com as suas tunicas azues e mantos pretos; toucas brancas moldurando os rostos; atravessaram o cruzeiro e ajoelharam no degrau da capella-mór. Ahi receberam as palmas, os ramos do grande triumpho. Não havia musicas, nem canto; um grande silencio apenas. E retiraram na mesma ordem, e no mesmo silencio para a sua clausura.

Quantas estarão de marcha para as missões africanas!


Quinta-feira santa, 7 d’abril 1898.

Hoje o passeio foi longo, quiz verificar o que havia a respeito de certas antiguidades na ribeira de Carenque.

[Pg 76]

Ha tempos, nem me recordo porque circumstancia, folheei um opusculo intitulado==Representações dirigidas a S. M. a Rainha e ao corpo legislativo pela Camara Municipal de Lisboa sobre o abastecimento d’aguas na Capital==(Lisboa, 1853). Ora estas representações são acompanhadas de pequenas memorias de J. M. O. Pimentel e do engenheiro Pézerat, duas summidades do seu tempo. A de Pézerat começa a pag. 53:==Memoria sobre as conservas d’agua da Quintam até ao Salto Grande.==

Tratava-se de estabelecer tanques nos valles superiores (da ribeira de Carenque), ou conserva para a repreza de todas as aguas de sobejo fornecidas no inverno pelos differentes nascentes d’este systema de aqueducto (o das Aguas Livres). E diz Pézerat:==Descobri o valle da Quintam, com condições muito favoraveis porquanto já tinha servido em tempos remotos de conserva ou bacia para uma immensa repreza, cuja existencia está provada pelos restos do antigo paredão ou marachão com 11 metros de largura, e 9 de altura, e que os habitantes attribuiam á epocha do dominio romano, e como tal o denominam, porém mui facilmente reconheci pertencer á epocha mourisca.==

Na planta que vem com a memoria marcam-se o casal da Fonte Santa, o resto do marachão, as linhas do aqueducto de D. João V, as mães d’agua, velha e nova, a escavação de um aqueducto abandonado,[Pg 77] o valle de Fornos, o casal da Quintam e as ruinas do Castello velho.

Eu desejava ver estas antigualhas.

Parti de Carnide á Porcalhota, ao sitio da Amadora, passei por um grande arco sob a linha ferrea, e entrei na estrada de Carenque, que vae seguindo a corrente. Um valle muito comprido, accidentado, com dois logares, Carenque de baixo, Carenque de cima, alguns grupos de casebres, azenhas, pequenas hortas, e dominando tudo a formidavel obra do aqueducto das Aguas Livres, sempre bem feita, de silharia sempre bem faciada, formidavel monumento.

A principio ia desanimando, ninguem me sabia dizer das velharias mouriscas ou romanas, nem da Quintam, e cheguei assim ao casal do Ernesto.

Ahi depois de expôr a minha questão a um grupo que nada sabia, surgiu-me um sujeito côxo conhecedor do caso, da obra dos mouros (não me fallou de romanos) e da Quintam. Este côxo providencial chama-se João Silvestre, e foi pastor na sua mocidade. Pastores sabem muito, andam pelos montes e charnecas, por atalhos e a corta-matto; são sempre bons informadores.

Com o Silvestre passei as terras do casal do Ernesto; em breve estava na ponte entre as mães d’agua; a chamada nova (D. João V) é uma linda construcção oitavada, de elegantes fórmas singelas, classicas, parece uma obra grega. Pouco acima avistava-se outra obra inconfundivel, o marachão,[Pg 78] enorme, firme, apezar das cheias, dos seculos e dos homens.

Porque já para a obra do aqueducto de D. João V tiveram de o romper a poente, e mais recentemente a nascente para a passagem de uma estrada; todavia o que existe é pouco menos do que viu Pézerat.

Nas dimensões que elle apresenta, na da largura do paredão, houve engano me parece. Contando com os encostos ou gigantes, na base, chega-se a 11 metros, mas a parede em si tem 7 metros, o que é bem respeitavel. É feito de camadas de pedregulho e argamassa, revestido de pedras grandes irregulares e mal faciadas, em fiadas; por isto me parece obra dos arabes; os romanos em obra de tal importancia empregavam os seus bellos apparelhos. O paredão tem 9 metros de altura na face do sul. Completo teria 40 a 50 metros de comprimento, e 5 ou 6 de altura sobre o terreno a montante; ora a montante segue-se uma varzea consideravel que fechada formaria uma grande albufeira. Mais acima, a 2 kilometros, fica a Quintam, um casal muito velho; ao lado restos da muralha com ameias, e um grande portal.

É de notar que junto de Odivellas, sahindo da povoação a entrar no atalho que vem ao moinho da Luz, na estrada militar, está um muro ameiado, com seu portico em ogiva, resto tambem de uma construcção fortificada. Castellos não seriam, mas habitações fortificadas talvez.

[Pg 79]

E disse-me o Silvestre,—mas por aqui ainda ha melhor, se tem tempo e vontade eu lhe vou mostrar a eira dos mouros.—Trepámos por atalho até uma chapada, proxima e inferior á crista do cerro que é formado de calcareo secundario muito fragmentado. E achei-me em face de um problema.

É uma chapada ligeiramente inclinada de poente para nascente. N’este declive traçaram um octogono regular, menos a face do nascente que está de nivel com o terreno natural. Este octogono está cercado por um muro duplo, isto é, por dois muros parallelos que entre si conservam um intervallo de meio metro; estes muros conservam a mesma altura em cinco lados do octogono, decrescem nos dois a nascente até chegar ao nivel do solo. Os muros teem 0,5 de espessura; nos cinco lados a poente, norte e sul, quasi um metro de altura na face interior, porque na exterior, a poente estão com o terreno, que é mais alto ahi. São de alvenaria bem solida. No espaço assim limitado arranjaram um centro plano e das paredes para esse centro ha declives regulares, artificiaes. Todo este espaço interior está, não calçado de pedra, mas forrado de uma forte camada de alvenaria, que assenta, como se vê n’um ponto que está escavado (por algum caçador, ou mais provavelmente por algum sonhador de thesouros; porque, notou o antigo pastor, dizem que ha muita somma de dinheiro e outras cousas enterradas por estes sitios), em grande camada de pedregulhos.

[Pg 80]

—Dizem que era aqui que os mouros se vinham divertir,—informou o Silvestre. Um theatro, uma palestra, uma praça de touros? quasi que parece; mas para que a dupla parede com a sua sanja ou caneiro? E os declives, e a solidissima alvenaria que forra o fundo? Para um fim industrial, ou assento de grande arribana, tambem não vejo; se fosse questão de aguas, tanques de lavagem, então não fariam aquella obra na altura, porque o rio corre muito abaixo. O espaço é consideravel; tem proximamente 35 metros de diametro maximo, e os lados, muito regulares, tem 15 metros cada um na face interna. Ha outras eiras de mouros, disse Silvestre, mas sem o duplo muro, n’uns outeiros mais distantes.


10 de abril de 1898.

Hoje pela manhã fui vêr uma obra d’arte na quinta da Marqueza. A meio do jardim quadrado agora exhuberante de bellas rosas, de macissos de flôres, está um tanque de fino marmore, grande, formado de enormes blocos lavrados, com seus chanfros e curvas, decorado de quatro mascaras collossaes; sobre a borda do tanque quatro golphinhos decorativos de cauda erguida, infelizmente quebradas as extremidades, que lançam jorros d’agua para o tanque. No centro um grande grupo, um tritão vigoroso, uma formosa sereia e um genio marinho, em posições movimentadas, dando um todo agradavel de qualquer lado que se[Pg 81] observe. É uma peça de esculptura notavel em marmore de Italia.

Depois segui para o casal do Falcão, que não tinha ainda examinado internamente. É um grande predio apalaçado, com suas dependencias; palacio e centro de exploração agricola. Da casa de residencia está metade em pé, outra que olhava ao norte, e que tinha como a do nascente a sua alta varanda coberta, com finas pilastras, foi derrubada ha muito tempo. Tem dois pavimentos; no terreo estão cosinhas e arrecadações; no superior, o andar nobre, salas e alcovas. As salas eram ladrilhadas, com altos rodapés de azulejo, e tectos de madeira em caixilhos ou almofadas.

Tem capella. Sobre a porta da pequena mas elegante egrejinha está o lettreiro:==Dedicada a Nosa Snra da Asumsão ano de 1705 (?).==

Parece-me 1705, mas os dois ultimos algarismos estão muito gastos. O altar-mór tem seu retabulo em marmores lavrados, com seus nichos, em trabalho que tem movimento. Nas paredes ha azulejos bem conservados, e em frente da pequena tribuna um lettreiro diz que alli está enterrado João Coelho que instituiu a quinta em morgado em 1647. Esta casa com suas dependencias, lagares, arribanas, abegoarias, é um bello exemplar de construcção portugueza no seculo XVII.

Entre almoço e jantar fui vêr o casal e o moinho do Castello, para lá de Alfornellos ou talvez melhor, Alfornel.

[Pg 82]

Estes nomes de Fornos, Fornellos e Alfornellos indicam a existencia de antigos fornos, os d’estes sitios provavelmente só destinados a coser calcareo e grossa ceramica; não encontrei ainda escorias de metaes.

O moinho do Castello desappareceu, está lá como testemunha a grande pedra do frechal. A altura é formada por calcareo jurassico, cujas cristas parallelas afloram sobre o solo. Não vi grandes movimentos de terra ou pedra que indiquem trincheiras bem definidas. Nem fragmentos de ceramica, escorias, ou outra qualquer cousa que indique trabalho humano. É possivel todavia que alli tenha havido alguma fortificação prehistorica; á vista e não muito distante está outro monte a que um pastor tambem chamou do Castello.

A proposito de movimentos de pedra e terra direi que nos arredores de Lisboa o archeologo precisa estar sempre lembrado de que dois formidaveis trabalhos se proseguem ha muitos seculos por estes sitios; a exploração das pedreiras, e a pesquiza e captagem das aguas.

O trabalho das pedreiras em varias epochas, depois dos terremotos da capital, foi collossal. A formação de aqueductos para Lisboa, especialmente o prodigioso trabalho da rede do Aqueducto das Aguas Livres que acompanha e alimenta o cano geral deu origem tambem a grande deslocação de material.

Seguindo do casal do Castello para Falagueiras[Pg 83] segui eu um ramo do aqueducto, e um caneiro para regularisar a sahida das aguas do valle, tudo bem feito, com solidas fiadas de silhares, suas caixas d’agua, algumas das quaes me pareceram muito anteriores ás suas visinhas do tempo de D. João V. Exactamente, antes de chegar á queda da ribeira onde está uma grande caixa d’agua, vi muitos movimentos de terra, comoros artificiaes, que n’outra região tomaria por mamunhas ou mamoas tumulares.


O rev. padre Pereira, actual prior de S. Lourenço de Carnide, tem colligido muitas noticias para a historia d’este logar.

Para o estudo da topographia de Carnide e seus arredores serve muito bem a carta n.ᵒ 7, publicada pelo Corpo d’Estado Maior.

A historia da egreja de Nossa Senhora da Luz, e do edificio onde actualmente se acha installado o Collegio Militar, encontra-se na Vida da infanta D. Maria, filha de D. Manuel, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa, 1675); em O Occidente, vol. de 1890, pag. 219; e no Archivo Pittoresco, vol. de 1863, pag. 299.

O casal do Falcão mereceu estudo especial ao sr. Julio de Castilho, 2.ᵒ visconde de Castilho, gentil espirito que esmalta de poesia a mais variada erudição. O sr. visconde publicou no Instituto[Pg 84] de Coimbra, vols. de 1889-90, uma serie de artigos historiando os dramaticos amores do pintor Francisco Vieira de Mattos, o Vieira Lusitano, com a firme e leal senhora, D. Ignez Helena de Lima e Mello, que apoz dolorosos episodios foi esposa do grande artista.

Esses amores puros, honestos, bem portuguezes, que douram de deliciosa poesia os restos, agora tristes, da fidalga vivenda, de ha muito chamada o casal do Falcão, foram contados pelo proprio Vieira n’um livro: «O insigne pintor e leal esposo Vieira Lusitano, historia verdadeira que elle escreve em cantos lyricos (Lisboa, 1780)»; livro interessante porque além do poema amoroso, apresenta grande numero de quadros de costumes, scenas palacianas, festas populares, e noticias artisticas.


[Pg 85]

Noticias de Carnide


(1900)

[Pg 87]

Domingo, 12 de junho de 1898.—No fim da tarde trovoada forte, e chuva grossa; d’estes chuveiros que no campo fazem bulha batendo nas folhagens do arvoredo; um rufar grave que se ouve a centos de metros. Em Carnide não cahiu granizo; nas Laranjeiras bastante, mais forte na Palhavã; no Matadouro a saraiva foi tão valente que partiu vidraças; e em Sacavem e Cabo Ruivo ficaram algumas propriedades arrazadas.

Não ha memoria por estes sitios de tempestade tão violenta.

Vespera de Santo Antonio.—Á noite fizeram-se sortes; quatro papelinhos, nome de senhora, nome de homem, sitio, e o que estavam fazendo. Permittem-se cousas... que fazem rir. Queimam-se alcachofras, ha a historia da moeda de cinco réis, os foguinhos de vistas, valverdes e bichas de rabiar. Uns rapazotes da visinhança estiveram n’um pateo, durante duas horas talvez,[Pg 88] atirando bombas. A philarmonica tocou o seu reportorio no coreto armado no Alto do Poço. Junto do coreto raparigas e alguns rapazes dançavam e cantavam. Cantigas triviaes geraes; não ouvi nenhum cantar especial de Santo Antonio, nem na letra nem na musica. O mesmo succedeu pelo S. João; não encontrei nada particular nas celebrações populares. Brinca-se, riem, dançam, conversam sem mostrar feição local. Creio que ouvi mesmo a valsa dos Quadros dissolventes. Nada que recorde as cantigas do Alemtejo nem as da Beira, as fogueiras do valle do Mondego, que teem cunho especial, typos admiraveis, musicas que tão bem enquadram umas nas vastas campinas alemtejanas, outras na paisagem mimosa, nos frescos valles da Beira. É digno de reparo que estas cantigas populares de uma região não se vulgarisem fóra d’ella.

Teem suas espheras. Ao mesmo tempo ha cantigas de origem não popular que se generalisam rapidamente. A fogueira de Coimbra, arranjada no Burro do sr. Alcaide, a Noite serena lindo luar, tambem de Coimbra, que não são de origem popular, espalharam-se por todo o paiz. A valsa dos Quadros dissolventes foi uma explosão; os garotos assobiavam-n’a nos bairros de Lisboa, ouvia-se em pianos nas mansardas da baixa, aos operarios de Sacavem, e a vendedores torrejanos, isto dentro de um mez.

Duram mezes, ás vezes annos, certas cantigas; esvaem-se pouco a pouco, ou desapparecem de[Pg 89] chofre como a Rosa tyranna. São modas que passam, como as reformas administrativas e as leis eleitoraes. Assim passou a epidemia do chocalhinho, o caso da salva brava, o pão de Kuhne. Não se recordam do Estás lá ou és de gêsso, do Lindos olhos tem o môcho, do Debaixo do sophá, do Vae-te embora Antonio?

As musicas de Offenbach foram muito populares, mas para estas concorreram certamente os theatros de feiras. No Alemtejo cantigas de mondadeiras, de vindimeiras, e as de S. João, que se cantam tambem pelo Santo Antonio e pelo S. Pedro, pertencem a fundo antigo popular. Só ha tempos ouvi em Carnide uma trova que me fez lembrar o Alemtejo, a cantilena muito comprida, melancholica, de um homem que lavrava com a sua junta de bois; conversámos, perguntei-lhe de onde era; de Villa Franca. É que o Ribatejo já tem muito de alemtejano.


Dia de Santo Antonio, de 1898.—Fez-se a eira no casal do Falcão; ante a grande frontaria do nascente, limpou-se da erva o amplo terreiro. Com a chuva da trovoada da tarde de hontem, e da noite, o terreno estava encharcado; depois de limpo entrou um rebanho de ovelhas para calcar, com o seu moroso voltear.

Foi no dia de Santo Antonio, 13 de junho de 1898, que obtive licença para vêr algumas salas do convento. Acompanhou-nos o reverendo capellão[Pg 90] padre Louro, protector carinhoso das velhinhas recolhidas, tão modestas e tão religiosas.

A superiora chama-se D. Maria Guilhermina de S. José. As suas companheiras são Maria de Jesus, Maria Philomena, Maria Augusta, Josephina, Olympia, Maria do Carmo e Isabel. Vivem em perfeita communidade estas santas senhoras, na virtude, na oração e nos humildes trabalhos, como se Santa Thereza em pessoa ali estivesse fazendo cumprir a sua regra.

No claustro a arcada muito clara e limpa, a cantaria lavada e as paredes caiadas, tudo muito nitido, e cheio de reflexos de sol. No meio da quadra o jardim, ainda o jardim antigo, o tanque central, e os alegretes altos azulejados. E ainda as lindas flôres antigas, as rosas e os cravos, o novelleiro, a baunilha, o jasmineiro, a alfazema e a manjerona, a malva de cheiro, e a lucialima de fina folhagem.

A capella do Senhor dos Perdões está bem conservada na sua elegante architectura. Na quadra, junto do jardim, ha duas capellas; o lado de dentro das portas d’estas capellas é pintado a oleo, com folhagens em volutas e espiraes, bom exemplar de pintura decorativa do seculo XVII.

N’um altar do claustro vi azulejos iguaes aos dos altares do cruzeiro da egreja, e da capella do Senhor dos Passos; bellos exemplares do seculo XVII.

No tanque da cêrca está um quadro em azulejo representando a Samaritana.

[Pg 91]

As senhoras recolhidas comem no seu refeitorio, uma casa grande mui limpa, as paredes ornadas de pequenos quadros de devoção.

Sobre a toalha branca sem uma nodoa os pratos e canecas de faiança ordinaria, com sua marca; provavelmente louça especial feita para o mosteiro em tempos antigos.

Creio que os conventos de Lisboa tinham todos louça especial com marcas proprias, insignia ou divisa, ou inicial; e ainda mesmo algumas confrarias possuiram tambem as suas louças com monogrammas ou emblemas particulares.


O presépe.—A casa da recreação é uma sala grande muito illuminada por janellas rasgadas em duas paredes, com lindas vistas para os accidentados arredores de Carnide.

N’outra parede fica a porta de entrada e uma capella onde estão muitas imagens; na quarta parede fica o presépe.

As portas do presépe merecem attenção; teem o lado interior com ornamentos dourados sobre fundo preto, imitando charão antigo, pintura feita por uma freira, segundo a tradicção conventual.

As figuras do presépe são de barro cosido, colorido e tambem dourado, finas esculpturas em grupos e scenas bem combinadas. N’estes grandes presépes conservou-se a tradicção dos primeiros mestres flamengos que n’um só quadro accumulavam muitas scenas, a paixão toda, por exemplo,[Pg 92] como succede n’essa maravilhosa pintura de um mestre desconhecido do começo do seculo XV, joia de alto preço, que se conserva no côro de cima da egreja da Madre de Deus (Xabregas). A scena principal é a do presépe, o Menino Jesus sobre as palhinhas entre a Virgem e S. José. Proximo o grupo vistoso, opulento, dos reis Magos. Ali a noticia, a grande nova aos pastores, além a fuga para o Egypto. Entre estes grandes grupos, outras scenas, as da vida popular tão interessante n’estes presépes antigos que sabiam combinar engenhosamente a vida humana com o sublime ensinamento religioso; de modo que hoje estes presépes além de todos os valores antigos da significação religiosa, e de merecimento artistico, teem para nós a importancia de documentos da vida popular; quantas vezes mesmo se encontram aqui notas, figurinos, por exemplo, que em nenhuma outra parte se topam.

N’este de Carnide entre os grupos ao divino das scenas da infancia do Menino ha alguns episodios profanos extraordinariamente executados: um grupo de populares sapateia a um lado com toda a bizarria; n’uma especie de gruta, a fugir da luz, dois homens jogam absorvidos; perto passa um cégo tocando sanfona; e camponezes alegres, com ovos, gallinhas, perdizes, coelhos...

Superior a tudo isto, em posição muito bem calculada para a perspectiva, um grande grupo de anjos cantando e tocando orgão, violas, e violão,[Pg 93] e superior ainda a este grupo brilhante um anjo gentilissimo com a fita onde se lê gloria in excelsis, entre frescos e risonhos rostos alados de cherubins. N’essas figuras de impeccavel esculptura ha mais porém, ha em algumas grande expressão e movimento; o espanto dos pastores, a magestade bondosa dos reis, o enlevo musical do cégo, a furia nervosa dos jogadores, o enthusiasmo dos populares no seu fandango rijo, são d’um encanto irresistivel, qualquer d’esses grupos é de per si uma obra d’arte. Como isto chegou até nós, Santo Deus, atravessando estes tempos de progresso, de luzes, de leilões! bemditas as santas senhoras, tão singelas e honestas, que teem sabido conservar essa preciosidade. Cuidado com os amadores! com os poderosos, espirituosos e curiosos; é preciso conservar esse lindo presépe.

Na mesma casa da recreação ha outro presépe, pequenino, interessante, com o Menino dormente. E na capella ha uma adoravel imagem do Menino, em pé, de especial devoção antiga no convento, que tem o nome de o menino da compaixão. E é bem singular que a escultura do rosto dá a impressão de doce condolencia. Mas vejam como está bem afinada esta casa de recreação para as senhoras religiosas; a linda sala cheia de luz, os retratos das sublimidades da Ordem, dos modelos de virtudes e abnegação, o artistico presépe, vibrante de suggestões, a imagem consoladora do Menino, e pelas janellas largos trechos claros de paizagem[Pg 94] variada, a paizagem campestre clemente e serena.


No convento de Santa Thereza de Carnide vi alguns retratos valiosos, não pela arte mas como documentos historicos, especialmente aquelles que teem em seus letreiros dados biographicos dos retratados.

Por exemplo, o retrato de==D. Fr. Luiz de Santa Thereza, carmelita descalço, lente de theologia, bispo de Pernambuco em 1738, falleceu a 17 de novembro de 1757, jaz na capella mor do convento de S. João da Cruz de Carnide.==

Pela extinção dos conventos de frades recolheram algumas pinturas e imagens nos das freiras e assim se salvaram naquelle cataclismo.

Outros: Retrato da infanta D. Maria filha de D. João IV.

Retrato da Madre Micaella Margarida de Santa Anna.

Retrato de... bispo de Penafiel confessor da princeza.

Retrato de D. Fr. João da Cruz, carmelita, lente de filosofia e theologia, prior do collegio de Braga, e Santa Cruz do Bussaco, bispo do Rio de Janeiro em 1739 transferido para o bispado de Miranda em 1750. Falleceu a 20 de outubro de 1756.

La hermana Leonor Rodrigues (d’Evora).

[Pg 95]

S. Cassiano.—No côro de baixo ha um pequeno quadro com retrato a oleo, pintura antiga, que me tornou attento; representa um santo bispo com uma cartilha na mão; é S. Cassiano, que era mestre de meninos e todo dedicado á educação da infancia, que morreu martyrisado pelos discipulos. Exemplo raro sem duvida! No meu tempo, e desde quando viria o systema! era o mestre que martyrisava os rapazes com palmatoadas, varadas e sopapos, castigos deprimentes das pobres alminhas das creanças; e ás vezes os paes assomavam á porta da escola, e animavam de lá: «não m’o poupe, sr. mestre, não m’o poupe; ensine-me bem o rapazelho!»

Que differença tem havido nos ultimos tempos, em materia de educação, nos pontos de vista, nos processos, e meios intelligentes; mas é preciso educar as almas, para que sejam boas, fortes, livres e religiosas na grande accepção do termo.


Pinturas.—Os quadros da capella-mór das freiras de Carnide são de Ignacio d’Oliveira Bernardes, segundo affirma C. Volkmar Machado, na sua Collecção de Memorias (pag. 94). Oliveira Bernardes (1695-1781), era tambem architecto, e n’esta qualidade trabalhou no palacio de Queluz, e na casa e quinta de Gerardo Devisme (a S. Domingos de Bemfica, onde actualmente está o collegio de meninas).

A grande tela magistral do Transito de Santa[Pg 96] Thereza, é do pincel de José da Costa Negreiros, que foi discipulo do celebre André Gonçalves. Negreiros falleceu em 1759, com 45 annos. Esta familia Negreiros produziu varios artistas.

Percorrendo agora a Collecção de Memorias de Cyrillo Volkmar Machado, tomei algumas notas a respeito de quadros pintados que se podem ver em egrejas dos arredores de Lisboa.

Jeronymo de Barros Ferreira nasceu em 1750, em Guimarães, morreu em Lisboa em 1803; pintou o tecto da capella de Santa Brigida na egreja parochial de S. João Baptista do Lumiar.

Vanegas, castelhano, imitador do Parmezão; o painel do retabulo na capella-mór de N. S.ᵃ da Luz é d’este pintor (V. Machado, pag. 60).

Diogo Teixeira, pintor do tempo de D. Sebastião. Na Luz, ao pé dos quadros de Vanegas estão pinturas d’este Teixeira (pag. 68).

André Gonçalves (pag. 88). Este pintor que trabalhou immenso, falleceu em 1736; são d’elle alguns quadros da capella de Queluz, os quadros da vida de S. João Baptista, no Lumiar, e os do côro de S. Domingos de Bemfica. Lendo estas Memorias de Volkmar Machado, fica-se com impressão dolorosa; como se trabalhou em Portugal no seculo passado e ainda no primeiro quartel d’este seculo! em pintura, architectura, esculptura, ourivesaria, em tecidos, em fundições. A enorme e violentissima crise das invasões francezas, não parou essa torrente de trabalho artistico; era o[Pg 97] rei que encommendava estatuas e quadros, era Mafra e Ajuda que foram formidaveis escolas, e as casas fidalgas que mandavam fazer retratos, capellas, decorações dos seus palacios e jardins, eram os frades a querer azulejos e telas, e entalhados, e embrexados, eram os prelados, os cabidos, e até a humilde irmandade que ao menos queria ter o seu compromisso ou estatuto em bonita encadernação de velludo ou marroquim, com seus ornatos a ouro, e cantos e fecharia de prata.

Era uma corrente, uma orientação bem diversa da actual.


15 de junho, manhã, cedinho.—Da janella do meu quarto vejo no casal os homens de trabalho juntando mólhos em fascaes. Junto da terra do Lopes estão carregando fêno; muito está emmólhado na terra, não se póde emmédar porque está humido da chuva. Já se ceifa trigo; na terra do Castello anda um grande grupo de trabalhadores; para o lado de Falagueiras tambem. O trigo do Alto da Tonta está prompto a ceifar, está lindo, de um louro claro; á passagem do vento faz brandas ondas douradas. O da terra do Lopes tem um verde intenso. Agora distinguem-se bem os trigos de inverno e os da primavera, uns muito louros, outros em verde carregado.


Domingo, 19 de junho.—Festa das ervas para remedios em Alfornel, hoje em decadencia completa;[Pg 98] vae mudando tudo. Antigamente era muito concorrida, vinha muita gente de Lisboa, que se espalhava pela serra procurando plantas medicinaes. Agora é rara a pessoa que conheça bem as ervas e saiba aproveital-as: e os ervanarios teem dado em droga.

—Nas boticas ha tanto remedio...

—Eu lhe digo, o boticario, eu ainda aqui conheci botica e boticario, comprava ervas para remedios, agora o pharmaceutico nem nada. Está tudo mudado!

O que não mudou foi a vegetação da serra, onde se encontra uma variedade singular de plantas.

Segundo o celebre Sande Elago, as plantas medicinaes dividem-se em classes correspondentes aos sete planetas: saturninas, joviaes, marciaes, solares, venereas, mercuriaes e lunares.

A versão portugueza de Elago (Compendio de Alveitaria tirado de varios auctores, composto na lingua hespanhola por Fernando de Sande Elago. Lisboa, Impressão Regia, 1832, in-4.ᵒ) merece attenção por, entre outras cousas, trazer uma grande relação de plantas com os seus nomes em vulgar.

Tambem na obra classica de Felix do Avellar Brotero, a Flora Lusitanica (Parte 2.ᵃ—Lisboa, 1804), a pag. 522, vem um indice de nomes vulgares das plantas.

[Pg 99]

Montalegre, 19 e 20 de junho.—Concurso de machinas agricolas na quinta de Montalegre, bella propriedade do snr. Carlos Anjos. Foi muito concorrido, appareceram muitas charruas de varios systemas que trabalharam puxadas a juntas de bois. A machina e o adubo serão a salvação da agricultura; é preciso aperfeiçoar e augmentar o trabalho, é necessario reforçar a terra, tornal-a propria para produzir bem. A meu vêr a machina e o adubo teem ainda outra vantagem, põem o machinista, o chimico, o agronomo em contacto com o agricultor; levam a sciencia ao campo; afinam mais facilmente com a experiencia, que o veterinario, que difficilmente se tem aproximado do lavrador.

Na obra Exposição da alfaia agricola na Real Tapada da Ajuda, em 1898 (Lisboa, Imp. Nacional. Publ. comm. do 4.ᵒ centenario do descobrimento do caminho maritimo da India) ha uma parte referente ao concurso de charruas na quinta de Montalegre, á Luz, com photographias de charruas, grades, semeadores, ceifeiras, enfardadoras, escolhedor, tararas, etc.


29 de junho, S. Pedro.—Fui a Lisboa no carro de Carnide. Este carro nos ultimos tempos tem seguido varios caminhos de Carnide á rua da Assumpção, por causa dos trabalhos das Avenidas, e do ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Hoje é o ultimo dia do caminho pelo campo de Sant’Anna;[Pg 100] Carnide, largo da Luz, estradas da Luz e Larangeiras, Sete Rios, Palhavã, S. Sebastião da Pedreira, Matadouro, Instituto Agricola, Cruz do Taboado, Campo de Sant’Anna, R. Arantes Pedroso, R. da Inveja, Principe Real, Mouraria, Praça da Figueira, Rocio e Travessa da Assumpção. Agora passa o itinerario á Estephania, porque as obras da Avenida que vai ao Matadouro estão muito adiantadas e cortam o caminho. Ha tempo que estão a desmanchar uma parte do aqueducto que vai de S. Sebastião da Pedreira ao Matadouro. Que bella construcção antiga, de magnificos silhares bem faciados, e de alvenaria firme, solidissima, com enormes pedregulhos; aproveitam agora este material nas novas construcções da Avenida, mas teem de trabalhar devéras para o arrancar.

Estas variantes do caminho seguido pelo carro de Carnide menciono eu para marcar o desenvolvimento dos novos bairros da capital.


Fogueiras de S. Marçal.—29 de junho: dia de S. Pedro. Á noite muitas fogueiras pelos campos. Estas são dedicadas a celebrar S. Marçal, advogado contra os fogos.


3 de julho, domingo.—Pelas 9 horas da noite, eclipse parcial da lua que durou, muito nitido, até depois das 10 horas.

[Pg 101]

Domingo, 17 de julho.—Festa a Nossa Senhora do Monte do Carmo, no convento de Santa Thereza, com os padres inglezinhos; foi ás 10 horas da manhã. Cantou a missa o rev.ᵒ P. Louro, capellão das freiras, e professor do Collegio Militar.

O côro dos inglezinhos era acompanhado a orgão. Executaram muito bem o seu solemne cantochão.


Na chan da quinta ha um recanto isolado, silencioso; junto do alto muro velho da cêrca das freiras está um poço d’onde se tira agua por uma picota; dois robustos cyprestes, figueiras de negros troncos tortuosos espalham fechadas sombras; além do recanto a terra do trigo, a vinha, as oliveiras; parece uma paizagem grega; o olhar de Homero não a estranharia.

Estive hoje a ler ali um trecho de Ruy de Pina (o silencio do logar e a sombra do arvoredo ainda m’o tornaram mais frisante) que me falla de Carnide.

Trata-se do amargo desastre de Tanger, de como ficou preso dos mouros o infante santo, pobre D. Fernando, filho de D. João I.

—E o infante D. Pedro, como sentiu o coração d’el-rei em algum mais socego, lhe pediu licença para trigosamente, e o melhor que pudesse, de Lisboa socorrer a seus irmãos, e a el-rei aprouve, e se veio logo apóz elle á aldêa de Carnide junto com Santa Maria da Luz, porque a cidade estava[Pg 102] perigosa de pestilencia. Mas porque ordenou que o socorro fosse com muita gente e grande poder, em se aviando para isso as cousas necessarias, chegaram em tanto a Lisboa dos que vinham de Tanger, muitos navios que certificaram o caso como finalmente passara, de que el-rei foi logo avisado, e certamente foi mui aspero de ouvir, que o infante seu irmão ficava em poder de mouros; mas por saber que a mais da sua gente era em salvo, deu por isso muitas graças a Deus, e como rei virtuoso, humano e agradecido, deteve-se naquella aldêa, para vêr e agasalhar os que vinham do cerco, dos quaes muitos, ao tempo que iam fazer-lhe reverencia, em disformes semelhanças e tristes vestidos, que para isso de industria vestiam, e com palavras á desaventura conformes, se lhe mostravam, e delles fingiam ser muito mais damnificados do que na verdade o foram, com fundamento de carregarem mais na obrigação para o feito de seus requerimentos, que alguns logo faziam e outros esperavam fazer, de que el-rei recebia publica dôr e tristeza.

Mas a estes foi mui contrario o nobre e valente cavalleiro Alvaro Vaz d’Almada, capitão-mór do Mar que como quer que no cêrco de Tanger de sua fazenda perdesse muita, e da honra por merecimentos d’armas não ganhasse pouca como chegou a Lisboa, antes de ir fallar a el-rei, logo de finos pannos e alegres côres se vestiu, a si e a todos os seus, e com sua barba feita e o rosto cheio de alegria,[Pg 103] chegou a Carnide, onde o rei andava passeiando fóra das casas, e com elle o infante D. Pedro, e depois de lhe beijar as mãos e lhe dizer palavras de grande conforto, el-rei o recebeu mui graciosamente, e louvou muito sua ida naquella maneira, que não sómente lhe apontou cousas e razões, para não dever por aquelle caso ter nojo nem tristeza, mas ainda que por elle devia ser mui alegre e contente, estimando em nada o captiveiro do Infante seu irmão, que era um homem só e mortal, em que havia muitos remedios, em respeito da grande fama que naquelle feito em seu nome se ganhára aconselhando-lhe mais o repique e alvoroço dos sinos, para honra e prazer dos vivos, que o dobrar d’elles, que ouvia, por tristeza e pelas almas dos mortos; pelo que el-rei começou a mostrar que aquelle era o primeiro descanço que seu coração recebia...

(Cap. 36 da Chronica de D. Duarte, de Ruy de Pina.—Ineditos da Acad. Tomo 1.ᵒ, pag. 172 e 173).

Onde seria o paço de D. Duarte?... não sei. Na rua do Machado ha ainda cunhaes de grossa silharia velha, restos seguros de mui antiga construcção. Por aquelles quintaes ainda se encontram vestigios antigos, não são sufficientes porém para se affirmar a existencia ali de solar ou castello. O velho paço de Carnide desappareceu. Ficou a narrativa de Ruy de Pina. Resalta ahi a figura[Pg 104] de Alvaro Vaz d’Almada, n’uma luz e n’um ensinamento incomparavel. Coragem, para encarar perigos e reparar desastres; um homem não se prostra perante a dôr, soffre; o coração abafa de soluços, mas lucta-se sempre, engole-se a amargura, soffre-se a ferida, suga-se a esponja de fel, mas o espirito não se perturba, o animo esforça-se por não perder a sua energia.

Deixar ao lado os esmorecidos, ao longe, bem longe, os vis especuladores, e trabalhemos, sem fraquejar, ainda que as lagrimas salgadas nos queimem as faces, e a angustia nos aperte o coração; o espirito justo vence; Deus manda que se trabalhe, e que não nos deixemos vencer pela tristeza.

Antigamente no dia 17 de julho havia mercado de trigo em Mafra; era importante, servia para se saber do trigo existente, se havia mingua ou fartura, ver as qualidades, e tratar de preços. Reunia-se muita gente, importantes quadrilhas de carros de bois, dos lavradores, e muitas récuas de machos dos padeiros de Lisboa.

Agua de Santo Alberto.—Domingo, 7 de agosto de 1898. Logo que cheguei, bebi agua de Santo Alberto, que mandaram as freirinhas, em sua bilhinha de barro vermelho, com um ramo de murta florida preso na aza. É boa contra as febres. Na rua, raparigas apregoavam fogaças.

Esta agua de Santo Alberto tem fama muito[Pg 105] antiga.—Em 7 de agosto, na capella dos Terceiros do Carmo se benze a agua com uma reliquia de Santo Alberto (Summario de varia historia, de Ribeiro Guimarães. IV. pag. 240).

Fr. Estevão de Santo Angelo, fez um romance heroico dedicado á virtude d’esta agua, no seu Jardim Carmelitano. Agora ha muitas aguas virtuosas, mas os reclamos não chegam a epopeias.

Carnide, 15 de agosto de 1898.—Ás 6 horas da manhã, estouros de morteiros, estalos altos de foguetes, e rompeu sonorosa musicata. É a festa do anniversario da Sociedade Philarmonica 15 d’agosto de 1880. Os bellos rapazes preparados por ensaios repetidos apresentaram-se em publico com o seu melhor reportorio.

15 d’agosto, o dia de Nossa Senhora, tão celebrado na minha terra, e em todas as que teem vida agricola. É o dia em que os lavradores de cereaes, sabem com certeza o que passou pela eira, e se vencem fóros e rendas de trigo, centeio e cevada.

Houve missa nas freiras ás 8¹⁄₂ da manhã. Estava em exposição o Senhor Formozo, muito fallado na chronica convental. É o Ecce homo, mãos atadas, o manto d’irrisão lançado para as costas; a imagem do Divino Justo, quando foi insultado pela gente ignara, pela sociedade culta e inculta de Jerusalem. Porque então, como hoje o cultismo[Pg 106] não implica espirito de Justiça; não vemos nós nações das mais cultas, que se dizem christãs, arvorando a força sobre o direito?

Pobre Senhor Formozo! Se me não engano era uma regular pintura hespanhola, maneira energica, aspecto tragico, por isso talvez impressionava tanto as pobres antigas freiras. Era o rosto austero, o corpo já com livores de cadaver e gottejando sangue; a expressão do grande soffrimento sobrepujada todavia pelo incondicional perdão. Assustava as nervosas santas mulheres, e chamaram um grande pintor então afamado, para emendar a tela; vê-se bem que foi muito alterado no rosto; o pintor sabia do mundo, e fez um Christo precioso, de boquinha affectada, de expressão inoffensiva, incapaz de qualquer suggestão incommoda a espiritos assustadiços.

28 de agosto de 1898. Bolinhos de Santa Quiteria.—Hoje trouxeram-me bolinhos de Santa Quiteria, muito bons para evitar a hydrophobia em pessoas, cães e vaccas.

São uns pequenos cubos de massa de trigo, passada no forno.

Depois vieram homens vestidos de opas pedir esmola para a Irmandade de Santa Quiteria, do Senhor Roubado, perto de Odivellas.

1899. Dia de Anno Bom.—Assistiram á missa alguns alumnos do Collegio Militar, que não foram[Pg 107] a ferias. Teem as familias muito longe... no ultramar. Depois da missa o capellão rev. Padre Louro, apresentou a imagem do Menino Jesus, em pé; as pessoas presentes foram beijar a imagem. Durante a missa o orgão executou musica solemne, e na apresentação do Menino tocou um motete alegre, com imitações de musica pastoril, de sanfona e gaita de folles. Pairava em todos um sorriso bom; só eu pensava n’um menino, n’um adoravel menino... luz que se apagou.


Estive hoje a lêr um livro que me deu noticias da egreja da Luz, d’este logar de Carnide: Historia do insigne apparecimento de Nossa Senhora da Luz e suas obras maravilhosas: Composta pelo Padre Fr. Roque do Soveral, religioso da Ordem de Christo. Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1610.

É um volume in. 4.ᵒ de 213 pag.

O rosto do volume, gravado por Antonio Pinto, é muito interessante. A meio está o medalhão com a imagem de Nossa Senhora com o Menino no collo; e aos lados estão gravados feixes de muletas, navios pendurados, pelouros, e umas cousas que representam talvez mortalhas ou samarras de que se falla nos muitos milagres da veneravel imagem.

Tem muitas noticias este volume a respeito de pessoas e casos em diversas epochas, significantes para o estudo social e local.

Por exemplo, a pag. 52 v. a proposito da antiga[Pg 108] romagem á Senhora da Luz, diz que este sitio de Carnide era dantes mui deserto, e depois de começarem as romagens os caminhos se tornaram mais seguros:—sendo dantes, segundo o que sabemos por tradição antiga tão espessos bosques, que para o logar de Carnide não havia mais caminho que um atalho, que se tomava no caminho de Bemfica para o tal logar, e nos mesmos bosques se recolhiam salteadores, da maneira que em Portugal na charneca de Monteargil, etc.: e cita varios bosques notaveis na Europa por serem asylo de ladrões: assim, antigamente eram tão temidas as brenhas e mattos de Carnide, que ninguem caminhava para elle sem muita junta de receios.

Feita a egreja e estabelecidas as romagens o sitio e os caminhos se tornaram mui frequentados; encontrava-se gente de todas as qualidades e nações, o hespanhol, o bretão, e o flamengo; os de pé, de cavallo e de coche, cantando e dançando, tocando violas e adufes:==disse por isso mui bem o outro, que os que vinham de Nossa Senhora da Luz, parecia virem de colher as lampas de S. João, que ou seja com canas verdes nas mãos, ou com capellas nas cabeças, sempre tornam para suas casas, como se vieram das hortas de colher cheirosas ervas.

Tanto assim que havia cinco mulheres==que só vivem e se sustentam de venderem candeias de offerecer, achando-se para isto de continuo em a[Pg 109] egreja da Senhora. E diz depois (pag. 54 v.) das mais celebres romagens do seu tempo, em Portugal, a começar pela Senhora do Monte. O cap. II, (pag. 76 v.) é intitulado:==Particularidades da fonte de Nossa Senhora de Luz==, e tem muitas paginas consagradas á virtude dessa agua. E até o certificado de um medico (pag. 77 v.); mas eu não me posso demorar, e peço ao leitor curioso que veja o livro. Eu tenho que resumir. A pag. 190 conta==de algumas náos que a Senhora da Luz livrou da tormenta em que se viram perdidas, e logo abre o cap. XII:==Como Nossa Senhora da Luz é avogada dos mariantes.

É inutil dizer que todas essas paginas teem interessante lição e importancia historica.==Escreve ácerca da náo Luz, em 1497, e a este respeito se cita o templo de Nossa Senhora da Luz, em Goa, fundado sem duvida em lembrança da Luz, de Lisboa. E affirma que era costume os mariantes dessa longa viagem da India virem antes de embarcar em romagem á Luz de Carnide, depois de lá chegados á Luz de Goa. Que esta romagem da Luz está ligada ás primeiras navegações não offerece duvida. Conta (cap. XIII) o caso horrivel da náo Chagas (1560); e em memoria deste milagre,==hoje 7 de junho de 1570 vieram a esta casa da Luz com procissão todos os marinheiros da mesma náo.==E vem a historia da urca Fortuna, e da caravella de Pero Marques, a da náo hespanhola S.ᵗᵃ Ana, a da náo Betancor, e a do Salvador; e a[Pg 110] de uma escotilha em que se salvou Pero Gonçalves, estando tres dias sobre ella no alto mar!

Na egreja havia quadros de milagres, imagens de cera, muletas de aleijados, grilhões de captivos, mortalhas de salvos na agonia, velas de naufragos escapos ao vendaval, pedaços de amarras de náos, pares de algemas, pelouros de artilheria grossa, (pag. 104 v.) e náos, pequeninas náos; «do côro ficam pendendo sobre a egreja quatro náos, que em fórma pequena contrafazem bem toda a fabrica das que navegam; e ha pouco tempo (note-se isto) que estavam oito que se tiraram assim por pôrem outras que vinham de novo, e não tinham lugar, como por se darem a algumas pessoas que as pediram».

E antes mais cousas havia:==na ermida antiga de todas estas cousas havia mór numero, de que tiraram algumas menos gastadas do tempo, para as mudarem aonde agora dizemos estão (pag. 204 v.)==As samarras, segundo a tradição, eram de uns homens que, na volta da India, naufragaram na costa da Cafraria, e andaram muito tempo perdidos pelo matto, fugindo das féras e dos pretos, até que, invocada a Senhora da Luz, lhes appareceram uns cafres misericordiosos que lhes deram suas proprias vestimentas.

Havia tambem cobras, isto é, pelles de cobras, uma de 4 varas de comprimento, provenientes do Brazil; mortas por milagres quando intentavam matar as pobres victimas nos seus anneis roliços,[Pg 111] e com seus venenos fulminantes. Era uma collecção suggestiva essa, hoje sumida de todo perante esta moderna correcção idiota que tudo invade e vae dominando, matando arte e poesia e fé.

Carnide. Domingo, 15 de janeiro de 1899.—Começou hoje a funcionar o ascensor Rocio-S. Sebastião da Pedreira. Fui a Carnide no carro da rua da Asumpção. Carro cheio; pessoas que iam ao collegio militar visitar os filhos. Nestes domingos de visita ha sempre no carro conversas interessantes; dos filhos que vão bem, d’outros que perderam o anno; e corre-se uma larga escala de affectos, de caracteres, e de saudades. Viuvas que vão vêr os seus filhos, amigos que vão vêr os filhos dos que estão no ultramar para lhes dar noticias, tutores que visitam pobres orphãos. Todos levam uma lembrança, um embrulho atadinho, para os rapazes. Com as senhoras vão ás vezes meninas, mui palreiras, enthusiasmadas com a visita aos pequenos militares. Que estes carros de Carnide favorecem o cavaco, com os seus pulos e solavancos; vae uma pessoa muito correcta, zás solavanco, e vem uma senhora nervosa cair-nos nos joelhos; um cavalheiro solemne e mui serio, pula o carro, e elle apanha na cara com um chapeu de plumas, ou um papeluço de bolos. Quer a gente mover-se, não póde, está presa, as taboinhas dos assentos do carro apertam abas de casacos e dobras de vestidos; não faltam os preguinhos atrevidos que rasgam[Pg 112] tecidos e ás vezes a pelle; ha sempre episodios; depois logo ao entrar na estrada das Larangeiras, o ar é mais fino, e fresco, com perfumes campesinos; a estrada da Luz tem vista de campos, de varzeas e arvoredo. Alegram-se os olhos de vêr a paizagem e os pulmões gozam ar mais puro.

Mas hoje, 15 de janeiro, o aspecto é outro, o vento é desabrido, de rajadas, ha nevoeiro denso, humido, que mal deixa vêr as arvores proximas, num esbatido leve. Na Luz alguns carros, e varios grupos; ha corridas pedestres e de bicycletas, e prepara-se uma partida de foot-ball.

Fomos até ao casal do Falcão, e ainda mais adiante a Alfornel vêr o faval nascente. Os trigos nasceram bem mas estão amuados.

A paisagem é extraordinaria hoje, porque a nevoa tem intermitencias; é um nevoeiro muito humido, irregular, de densidade diversa, e como a camada de nevoa que está passando não tem grande espessura, de vez em quando rompe-se e apparece logo o ceu velho, e um jorro de sol.

Como isto agora tem o aspecto triste, no nevoeiro frio e humido, rasgado pelo vento convulso que vae passando; o casal tão velho, ruina tragica, as figueiras, as vinhas sem folhas, como tiritando no frio de janeiro.

Jantar de familia, casa cheia; como a sopinha quente sabe bem neste frio de janeiro, em dia de[Pg 113] nevoa cerrada; depois algumas especialidades, os nabos guisados, a carne de porco assada, com a loura agua pé; o pudim delicioso; as raivinhas e os esquecidos do Bom Successo. Ao café, com o competente cognac caseiro, entraram os srs. Duartes, de Mafra, que trouxeram elementos novos á cavaqueira. Contaram que el-rei mandára deitar javardos na tapada de Mafra; já entraram oito de Castello Branco, e um que nasceu no parque das Necessidades. Na Tapada, a comida é pouca; em tempos antigos houve porcos bravos ali, mas acabaram com elles porque nada lhes escapava.

De subito entrou uma mascarada animada, os meninos e meninas T., uma série muito gentil, vibrantes de riso; houve piano, valsas, improvisou-se um concerto: a sr.ᵃ D. G. cantou superiormente alguns trechos.

—Já 9 e um quarto! toca a ir para o carro.

Eu fiquei; da janella do meu gabinete a vista era admiravel; estava o ceu muito estrellado, havia algum luar, o ar muito frio e sereno; a nevoa abaixára, e estava agora quieta e branca sobre as varzeas, os campos do valle; muito salientes, a massa negra do casal do Falcão, e a collina triste coroada de cyprestes do cemiterio dos Arneiros; um grande silencio frio; como uma palpebra semicerrada de agonisante, a esvaír-se de luz e de vida, a lua em minguante, muito obliqua, branqueando a toalha de nevoa quieta sobre as terras mais baixas, as varzeas humidas.

[Pg 114]

Carnide, domingo 28 de janeiro de 1899.—Vi hoje lindas flôres do logar de Telheiras; com a inverneira que tem corrido, frios, geadas, tempestades, notei as flôres; é que o logar de Telheiras é mais ameno e abrigado, a este de Carnide mais alto e exposto ás grandes correntes do ar. O antigo oratorio, convento e egreja de Nossa Senhora da Porta do Ceu, em Telheiras, está hoje abandonado. É n’esta egreja que está a sepultura do principe de Candia, o pobre rei do Ceylão, fundador do edificio, que veiu morrer tão longe das suas florestas de canella.

O oratorio de Nossa Senhora da Porta do Ceu, de Telheiras, foi fundado pelo principe D. João de Candia. Este infeliz principe nasceu em Ceylão, por 1578, e teve de abandonar o seu throno de marfim e perolas, entre luctas politicas e religiosas; era criança ainda. Levaram-o para a ilha de Manar, depois a Gôa, e ao collegio dos Reis Magos de Bardez; veiu parar a S. Francisco de Lisboa, mais tarde a S. Francisco da Ponte, em Coimbra, e gastou o resto da vida a requerer e representar entre Lisboa e Madrid, porque então dominavam os Filippes. O que isto seria, Santo Deus! n’aquelles tempos, quando hoje basta uma burocracia para abafar e esterilisar todas as vontades, o que seria no tempo da dominação hespanhola com tantos officios e dezembargos em Lisboa e Madrid.

A historia d’este homem é interessante; pobre[Pg 115] soberano de Candia, Cota, Ceytavaca e Cettecorlas, que veiu descançar aqui em Telheiras, cingindo o cordão franciscano.

Dizem que hoje não é assim; os soberanos desthronados vão direitinhos ás folias de Paris, e as alfayas e tapeçarias apparecem no Druot, escapando aos ministros de que falla o chronista Soledade.

Infeliz principe singalez, chamaram-lhe D. João d’Austria, e principe de Candia, e foi um martyr toda a vida; teimaram em ensinar-lhe latim e theologia, andou em bolandas pelos conventos intrigado e explorado, e nem mesmo cumpriram a sua ultima vontade. Morreu em 1 de abril de 1642, a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente... «pelas mãos dos ministros, como ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras muitas alfayas preciosas, que elle tinha consignado á egreja d’este seu convento, as quaes levaram d’elle com violencia os ditos ministros, e sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e consumiram entre si.»

Isto escreve fr. Fernando da Soledade, na sua Chronica serafica, 5.ᵒ vol. n.ᵒ 893, pag. 611.

Elle diz ainda mais coisas que eu não estou para transcrever; foi uma patifaria, como tantas outras que se teem feito modernamente.


Paço do Lumiar, 2 de fevereiro de 1899.—Dia de Nossa Senhora da Purificação, as Candeias, como se diz vulgarmente.

[Pg 116]

Fui vêr a festa religiosa e a feira, na egreja parochial de S. João Baptista do Lumiar, e no bello adro que a cérca.

A festa é a Santa Brigida.

Na egreja esteve exposta a reliquia da Santa, uma parte do craneo, em uma urna de prata dourada, muito bem trabalhada, elegantissima: uma das urnas mais gentis que tenho visto em estylo D. João V.

Dizem que veiu esta urna do mosteiro de Odivellas.

Na feira havia gado suino alemtejano, vaccas leiteiras com bezerros, vidros, louças, queijadas e bolos.

Ha uma especialidade n’estas feiras saloias; as leitoas assadas, abertas a meio e espalmadas, seccas e rijas, de uma côr apetitosa, expostas á venda em canastras ou caixotes com ramos de louro.

O saloio com a canastra de leitoas emparelhava bem com a collareja, assentadinha, chapeu de chuva aberto, com a cesta de queijadas de Cintra.

Dois ou tres homens vendiam bordões, chibatas, varas e varapaus armados.

Na feira de S. João, em Evora, apparecem tambem saloios, uns vendendo varapaus, e outros a que chamam saloios da Nazareth com taboleiros de pederneiras para isca. Agora com as guerras á isca feitas pelos phosphoros, não sei se vão desapparecer de todo estes representantes ultimos da edade do silex lascado.

[Pg 117]

Passeavam lavradores invocando ou agradecendo a protecção da Santa, em volta da egreja, com juntas de bois, algumas muito enfeitadas de fitas de côres vivas, com entrançados e bordados.

Dentro da egreja, á direita da entrada, dois homens recebiam esmolas, em trigo na sua arca especial, ou em dinheiro, e vendiam registos, milagres de cêra, bois e peitos, e muito pavio de cêra amarella ás braçadas. O pavio amarello é bom para livrar o gado de doenças, olhados e desastres; enrola-se dando volta aos dois chifres do boi, e ahi se deixa ficar até se estragar.

Sobre o altar de Santa Brigida foram collocar alguns boisinhos de cêra.

Depois da festa houve communhão na capella da Santa, tocando o orgão, e em seguida o padre deu a reliquia a beijar; e foi muito beijada, por mais de cem pessoas, com muita devoção.

Esta Santa Brigida, protectora do gado bovino, da-me que pensar. Brigitta, Brigida, Brigides, Birgida, Birgita, Britta, etc., virgem, natural da Escocia, abbadessa de Kildare na Irlanda, morreu em 523, no 1.ᵒ de fevereiro, segundo affirmam.

As lendas d’esta Santa ligam-se com a famosa de S. Brandão (Brendanus, Bredan) abbade de Chainfort, na Irlanda, que morreu em 578 (16 de maio ou 5 de junho).

A reliquia, a cabeça da Santa, segundo diz a[Pg 118] inscripção no exterior da capella, foi trazida por tres cavalleiros hibernios, ou irlandezes.

O que eu vi na urna pareceu-me effectivamente um fragmento de craneo, o occipital, talvez; não se vê bem por causa dos ornatos.

Que esta devoção por Santa Brigida vem pelo menos do seculo XIII, com certeza, e continúa ainda intensa; ha pouco ainda uma devota offereceu uma cabeça de prata.

Este sitio do Lumiar e Paço do Lumiar merece um estudo especial; foi aqui o paço do famoso infante Affonso Sanches; ha estreitas relações entre esta egreja e o sitio e mosteiro de Odivellas, antigos santuarios que estão no principal caminho de Lisboa para o interior, o caminho de Alvallade, onde se encontraram os exercitos na sanhosa guerra civil de D. Diniz.

A inscripção dos cavalleiros hibernios está no exterior da capella de Santa Brigida, da egreja de S. João Baptista do Lumiar, lado norte. É copia da antiga que de ha muito se sumiu. É a seguinte:

Aqvi nestas tres sepvltvras iazẽ enterados os tres caval.ʳᵒ ibernios q. trouxerã a cabeça da bẽ avẽtvrada S. Brizida virgẽ natvral da Ibernia cuia reliqvia está nesta capella p.ᵃ memoria do qval hos oficiais da mesa da bẽaventvrada S. mão darão fazer este ẽ ian.ʳᵒ de 1283.

[Pg 119]


Quinta feira da Ascensão, 11 de maio de 1899.—A chuva miudinha de hontem não regou bem as terras, mas abateu a poeira das estradas, e lavou as folhagens que estão viçosissimas, com o brilho setinoso, exuberante de primavera.

Chegando á rua do Norte admirei-me de vêr a calçada coalhada de folhas de rosa. Houve uma grande festa na egreja das Freirinhas, e tive pena de não ter assistido. Foi a primeira communhão a alguns alumnos do Collegio Militar; pela primeira vez, ao que me disseram, se lembraram de fazer este acto com certa solemnidade. Nem tudo póde lembrar. N’um estabelecimento de educação, internato militar, ha tanto que fazer, tamanhas responsabilidades! O ensino dos compendios, a alimentação, a disciplina, as formaturas, os toques de cornetas, não deixam tempo para pensar n’estas questões da alma. Este anno, emfim, houve ensejo de celebrar solemnemente a entrada dos jovens militares n’este primeiro gráo de consciencia responsavel com hymnos religiosos, musicas e bençãos, e mãos finas de senhoras lhes atapetaram o caminho com folhas de rosa.

Estes já tiveram na vida um dia florido, esperem outros ainda melhores, os que se seguem aos trabalhos vencidos, ás bellas acções de honra e abnegação.

Celebraram a linda festividade na egreja das freiras, ornamentada pelo dr. Sant’Anna; de todos os pontos vieram taboleiros de flôres.

[Pg 120]

Este anno os campos estão menos verdes do que no anno passado, os trigaes são menos fortes, menos densos; principalmente nos terrenos altos as seáras não encobrem o chão; terreja muito; mas as oliveiras e as vinhas apresentam-se cheias de promessas.

Quando eu ia por entre as latadas da quinta, opulentas de folhagem, na paisagem quieta de searas e olivedos, lá do sul, de além do sevéro macisso de Monsanto, veiu o estrondo das salvas de grossa artilheria. Estão no Tejo duas formidaveis esquadras, ingleza e allemã, grandes navios de aço, maravilhas de construcção naval, collossos de força, suprema expressão da energia dos arsenaes. Como o ruido d’esses poderosos canhões desafina na paisagem de primavera florida! sobre esses campos e logarejos respirando a serena vida da natureza.

É o dia da espiga, como o povo chama aqui, nos arredores de Lisboa, á quinta-feira da Ascensão; até os carros de trabalho vão enfeitados com ramos de oliveira, espigas de trigo, rubras papoulas, brancos malmequeres; tambem enfeitam de espigas e flôres as cabeçadas dos animaes; e passam ranchos animados, palreiros e galhofantes, as raparigas com grandes ramos nas mãos, os rapazes com raminhos atados nos varapaus.

É a festa agricola que vae por esses seculos atravez raças e religiões, provavelmente até ao dia em que o espirito do homem pela primeira vez[Pg 121] admirou e agradeceu com ternura a planta florida, a suprema graça e o divino aroma da corolla, promessa do saboroso fructo.

Na minha terra além das maias do primeiro dia do mez e da festa da Ascensão, o povo da cidade e dos campos celebra tambem o dia 3 de maio, o da invenção da Santa Cruz, e ornamenta de flôres as cruzes dos logares publicos, as das vias sacras, as que marcam nos campos, nas estradas, os logares onde cairam os assassinados; a cruz de azulejo do sitio do fusilamento dos frades patriotas na catastrophe de 1808, no tempo dos francezes, a cruz na base do aqueducto junto do antigo fosso da muralha, onde se realisou o ultimo fusilamento militar.

Estes campos de Carnide são menos tragicos; hoje porém as salvas das esquadras, algumas vezes repetidas, que parece fazem estremecer o robusto massiço de Monsanto, dão uma preoccupação morbida ao espirito; para que tal apparato de força, para que a reunião das duas mais poderosas esquadras de Inglaterra e Allemanha, será apenas para mostrar ao mundo a sua boa harmonia, no grande porto do paiz pequeno e neutral? O que é com certeza é a pomposa, a estrondosa manifestação de força, convicção deprimente, expressão ultima da civilisação n’este findar de seculo de tão maravilhosas descobertas, que termina affirmando o direito do mais forte, em que tanto se luctou pelas liberdades, acabando no militarismo[Pg 122] ruinoso, e tanto pela melhoria social, pela equação de direitos, em quanto se erguem implacaveis, cada vez mais ameaçadores, os monopolios da finança, industria e commercio.

Passam os ranchos alegres, de vez em quando roda na estrada um trem com mulheres e creanças, flôres e gargalhadas, na linda tarde de primavera. Outro rancho ahi vem agora, lento e sereno pelo trigal verde; é um grupo de religiosas de S. José de Cluny, que veiu ao campo florido respirar no ar tepido e aromatico.

Vestem os seus habitos severos, trazem nas mãos ramos de flôres do campo; andam vagarosas como cançadas ou enfraquecidas; são novas, sorriem, sorrisos de doentes em rostos palidos: interessante grupo! são convalescentes sem duvida; vieram dos hospitaes e escolas do ultramar dominadas pelas febres, procurar restabelecer a saude n’este lindo sitio de Carnide.

O que Mousinho de Albuquerque no seu livro Moçambique escreve a respeito d’estas religiosas é encantador. Elle falla dos extraordinarios serviços por ellas prestados nos hospitaes de Lourenço Marques, de Inhambane, e Moçambique, nas escolas, por uma fórma acima de todo o elogio; e em Gaza, e no Chibuto.==O carinho e dedicação com que tratavam os doentes e feridos, procurando não só proporcionar-lhes todas as commodidades que as circumstancias permittiam, mas não se esquecendo um só momento de lhes confortar o animo,[Pg 123] de lhes levantar o moral, sómente póde avalial-o quem o testemunhou.==Ou eu não sei o que é caridade, ou o que as Irmãs de S. José de Cluny estão fazendo na provincia de Moçambique é a sua manifestação mais elevada e commovedora==.

Em Carnide sabe-se que esses serviços ultramarinos são uma verdadeira batalha. Das que lá morrem não consta, as lévas de doentes que voltam essas todos as vêem. Algumas voltam anemicas, ás vezes tuberculosas; chegam, descansam, melhoram, e lá partem outra vez para os hospitaes e escolas.


Domingo, 14 de maio de 1899.—Scena inesperada; um touro da manada do conselheiro Alvares Pereira, n’uma corrida em Algés, partiu uma perna, e foi recolhido n’um pateo do casal do Falcão. É bicho de estimação, de muito genio e boa estampa. Foi amarrado sobre um carro e tratado com todos os cuidados, algodão borico, arnica, talas, ligaduras, nada faltou.

O aspecto do touro no carro era extraordinario; os olhos negros e vermelhos com uma expressão de furia mais que de dôr; suava em grossas bagas; mordeu-se nos beiços até levantar a pelle. Alli, atadinho no carro, sim, que a gente podia vêr um touro de pertinho. De repente deu um puchão, e assoprou; isso é que foi panico, não sei se cahiu alguem, ouvi dizer que sim. O resto do caso foi visto de cima do muro. E lá foi o carro[Pg 124] pela estrada fóra, á noitinha, caminho da leziria, com o seu cortejo de campinos nas suas ligeiras facas.


Nomes dos animaes.—Á sombra da parreira vestida de bellos cachos; entre os alegretes azulejados, azul em fundo branco, em pequenos quadros de galanteria, episodios comicos, italianices e chinezices, á moda do seculo XVIII; proximo da nóra onde barulha a agua ao som emolliente e rhytmico do engenho, cavaqueia-se em cousas diversas; appareceu o sr. F. V. que tem lavoura e gados no Alemtejo; e logo se fallou de searas, pastagens, touros, casos de pastores...

—E sabe os nomes dos bois?

—Ora, essa! dos bois, dos cavallos, dos touros...

E eu fui tomando nota dos nomes dos animaes.

Nomes de touros.—Artilheiro—Azeitono—Barqueiro—Batoque—Bugino—Caçador—Caixeiro—Caldeiro—Camarinho—Capirote—Caraça—Carvoeiro—Corvacho—Espingardo—Estandarte—Estorninho—Estrello—Foguete—Forcado—Gaiato—Gaveto—Lanceiro—Luviano—Murtinho—Rabalvo—Rasteiro—Teimoso—Verdugo.

Nomes de cabrestos.—Calçado—Caminhante—Caminheiro—Ligeiro—Pardal.

Nomes de bois de trabalho.—Alfayate—Bigode—Bonito—Castanho—Esperto—Formoso—Galante—Galhardo—Joeiro—Lagarto—Mourisco—Trigueiro.

[Pg 125]

Dois bois de trabalho, de egual marca, fazem uma junta; aqui por estes sitios os bois da junta teem nomes certos; se um é castanho o outro é mourisco; o formoso com o galante; o galhardo com o ramalhete, e o damasco com diamante.

Nomes de vaccas.—Andorinha—Bonecra—Bonita—Borracha—Branca—Briosa—Carriça—Catita—Caterina—Coimbra—Corvina—Doirada—Estrella—Gadanha—Janota—Padeira—Pomba—Rita.

Nomes de cavallos.—Carocho—Catrapim—Palmeiro—Pardal—Pirata—Tareco.

Nomes de cabras.—Alvadia—Carocha—Cartaxa—Condeça—Marmella—Rasteira.

Nomes de cães e cadellas.—Tejo—Nilo—Maltez—Leão—Navio—Norte—Beirollas—Ladina—Esperta—Belleza—Brincatudo—Digoélla (diga-o ella).

Agora em Carnide ha nomes de cães e gatos, de origem culta, Macbeth, Castor; a par da Tartaruga a Giroflée; ao lado do Rabicho e do Janota os gatos Zixacha, Gungunhana, e o Godide, de nomes gloriosos.

Noticias várias.—O padre Anastacio resou a missa de corpo presente por alma do principe de La Rochejacquelin (Luiz), morto na furiosa carga de cavallaria nas terras do marquez de Louriçal, á Palhavan (agora dos condes da Azambuja). A missa foi celebrada na egreja de Carnide. O padre Anastacio morreu em idade muito avançada em 1896.

[Pg 126]

Carnide tem o seu papel importante nas crises da primeira metade do seculo XIX. Na Luz esteve um deposito de cavallaria organisado no tempo de Junot; aqui esteve o brilhante official que foi depois o glorioso marquez de Sá da Bandeira.


No palacio da quinta do Street, agora residencia da sr.ᵃ condessa de Carnide (o conde de Carnide era Street Arriaga e Cunha) esteve o quartel general de Bourmont, commandante em chefe das forças miguelistas que atacaram Lisboa.


Esta quinta dos condes de Carnide foi em tempo muito nomeada pelas experiencias agricolas, adubações, drenagens, empregos de machinismos, que o primeiro conde, homem instruido e grande enthusiasta da agricultura, aqui realisou. Os ultimos proprietarios não teem seguido a tradição.


A celebre cascata da quinta dos condes de Mossamedes, complicada fabrica de embrechados e nichos, foi destruida ultimamente.


Tambem a infanta D. Maria habitou em Carnide; assim o declara fr. Miguel Pacheco, na Vida de la serenissima infanta Dona Maria (Lisboa, 1675):==Vivió la senora infanta algun tiempo cerca del convento de la Luz, distante una legua de Lisboa, en un lugar que llaman Carnide (pag. 109-121)==.

[Pg 127]

A feira da Luz ainda hoje tem nome, mas em tempos antigos foi muito afamada; a gente de Lisboa abandonava a capital, empenhava tudo para ir á feira, havia brigas para obter seges, ou mesmo burrinhos. Tomavam ponche, ou limonadas, e compravam fitas, anneis, figas e corações. Isto li eu na Nova e pequena peça critica e moral; os Carrinhos da feira da Luz: composta por Joseph Daniel Rodrigues da Costa (Lisboa, 1784).


Na casa proxima á sacristia da egreja de N. Senhora da Luz, no pavimento, está uma campa com letreiro:

S.ᵃ DE DOM FREI PEDRO
SANCHES, RELIGIOSO D’ESTA
ORDEM E BISPO D’ANGOLA
FALECEO A 30 DE
NOVEMBRO DE 1671

Quando se fez o cemiterio de Bemfica, chamado dos Arneiros, transportaram para lá algumas campas do antigo cemiterio de Carnide, que era em volta da egreja de S. Lourenço. Lá está a campa da marqueza Ravara com seu letreiro:

AQUI JAZ D. AN
NA MARIA GUI
DO MARQUEZA
RAVARA FALE
CEO AOS 24 DE
JANEIRO DE
1752

[Pg 128]

Nas Memorias de Garrett diz-se que a quinta do Pinheiro fica em Carnide. A quinta do Pinheiro que foi de Duarte Sá está entre Palhavã e Larangeiras. Ahi se representou pela primeira vez o drama Frei Luiz de Sousa, a obra immortal de Garrett. Hoje installaram um hospicio n’essa bella vivenda.


O palacete e quinta do Sarmento onde residiu o visconde de Juromenha ficam proximos da parochial de S. Lourenço de Carnide na estrada que vae do Alto do Poço para Bemfica, a azinhaga do Poço do Chão.

O visconde de Juromenha falleceu muito velhinho. Foi n’esta casa do Sarmento que elle escreveu a sua obra classica, monumental, sobre os Luziadas. Esta propriedade pertence hoje por herança á sua antiga governanta.


Um folheto que julgo raro é a «Memoria sobre a união perpétua da paroquial igreja de Carnide ao priorado do convento de Nossa Senhora da Luz». É um opusculo de 7 pag. in-4.ᵒ, que me parece escripto por 1810.


O pinto preto.—Veiu uma mulher, da estrada do Paço do Lumiar, a comprar um pintaínho preto.

—Para que é o pinto preto?

—É para um doente que tem uma fraqueza, e[Pg 129] não ha nada que lh’a tire. Dizem agora que só com o pinto preto... E a mulher instou que lh’o vendessem, ou emprestassem, depois traria outro.

—Não se vende, nem se empresta. Vá a outra porta. Vá á botica comprar remedios.

—Mas então, é para caldos?

—Não senhor! isto é uma crendice d’esta pobre gente. Abrem-no com uma faca pelo meio e applicam-no palpitante sobre o peito ou estomago se é fraqueza; se fôr por alguma dôr, sobre a região onde lhes dóe. É uma das taes tolices que não sáe dos cascos d’esta gente. Para estas cousas não sou capaz de vender o pobre animal.

Em livros de medicina mui velhos apparece o singular curativo; e recordo-me de ter lido que um medico de Lisboa, no seculo XVI, receitava ainda a ave aberta viva para a peste bubonica.


Jogo do pião.—Vi um grupo de rapazes jogando o pião. Nas cabeças dos piões os rapazes tinham mettido tachas de ferro de haste curta e cabeça larga de modo que os piões ficam com a cabeça protegida contra o ferrão do inimigo, é invenção nova para mim. E a isto chamam os rapazes pôr sêllo no pião, e é obrigatoria a sellagem; se apanham algum sem a cabeça couraçada, dizem logo:

[Pg 130]

Pião que não tem sêllo
Vae a casa do camêllo,

e atiram com elle para o telhado mais proximo.


Carnide, 1 de janeiro de 1900.—Caso novo, missa do gallo á entrada do anno. Disseram-me que por ordem do Santo Padre se transferiu a missa do Natal, por esta e a vez seguinte, para celebração do novo seculo, visto que surgiram duvidas (a meu vêr singulares) ácerca de qual é o primeiro anno do seculo XX, se é 1900 ou 1901.

Não consta que se começasse a datar do anno zero, do seculo zero; mas assim vae o mundo. Começou pois o anno santo pela missa do gallo.

Antes da missa do gallo passiei no Alto do Poço, a noite estava muito serena e agradavel, e casualmente assisti a uma scena dramatica, a chegada de um expedicionario africanista, inesperada pela familia, que móra num predio daquelle sitio. O pobre soldado, minado pela febre, embarcára mui doente em Lourenço Marques; não poude avisar a familia, chegára a Lisboa já melhor, foi á inspecção ao hospital da Estrella, e logo lhe deram licença para passar alguns mezes em casa, ares patrios; e elle assim que apanhou a guia foi direitinho a Carnide. Como elle ia nervoso, febril, vêr os seus queridos nunca esquecidos, exalçados pela ausencia larga em regiões e climas remotos.

Na familia, durante a ausencia do moço soldado,[Pg 131] houve mortes de pessoas queridas, que não lhe participaram para o não contristar, pobre rapaz.

Chega o soldado em sobresalto febril e logo reparou nos vestidos de luto; veiu gente conhecida da visinhança e romperam em parabens e lamentos, numa confusão de lagrimas.

No theatrinho de Carnide representou-se nessa noite, espectaculo feito por alguns curiosos da localidade, e terminado o ultimo acto um grupo animado, cantarolando, veiu da quinta do Sarmento, passando pela casa do pobre expedicionario. Eram conhecidos e amigos d’elle.

Missa do gallo! annunciava a sineta do convento, n’uma vibração fina cortando a noite.

Na egreja, cheia de devotos em muito silencio, como n’um mysterio, ergueu-se a voz do capellão.

Houve exposição do Santissimo, e communhão, na grade ás religiosas portuguezas, e na capella do Senhor dos Passos ás irmans de Missão. E exposição do Menino, com o seu alegre motete executado no orgão velhinho, por uma velhinha no seu habito de Santa Thereza.

Que singular espiritualidade acho neste cantar das velhinhas religiosas, tremulo, enfraquecido, esmorecendo como a toada de um sino que se esvae no ar. E contraste ainda nestas duas instituições aqui a par, a antiga, a que se apaga, a da vida contemplativa, ascetica, a da clausura austera,[Pg 132] orante áparte da humanidade, e a nova da actividade christan, luctadora dos hospitaes, trabalhadora das escolas, militante em regiões longinquas, arrostando os paizes das febres e dos selvagens.

Missa do gallo em noite de anno novo, foi caso inedito para mim. O meu pobre espirito estava abalado pelos contrastes que presenceára, e ao mesmo tempo lembrava-me da antiga missa do galo, na minha freguezia de Santo Antão, seguida da canja no meu lar, tudo n’uma aureola de familia e de pureza santa!


D. Sebastião enamorado.—No jornal A Arte, de 1879 (pag. 158), se transcreve um antigo manuscripto que trata da—«Origem da desgraçada jornada de Africa que executou el-rei D. Sebastião para ruina total d’este reino».

É singular escripto e parece ter um fundo verdadeiro.

O sr. A. Pimentel tambem se lhe refere no seu bello livro Atravez do Passado (pag. 119).

Alguem, talvez com o fim de deprimir a familia do duque de Aveiro, no tempo pombalino, lhe juntou ou alterou umas linhas que no meu espirito não originam duvidas sobre os factos do seculo XVI ali relatados. O que ha escripto sobre D. Sebastião tem origens muito alheias á intenção historica simples; assim como o pobre infeliz rei viveu rodeado de intrigas palacianas, assim a sua[Pg 133] memoria serviu ainda para enredadas phantasias, e manias politicas.

Que em roda do rapaz houve lucta de influencias a proposito do casamento d’Estado, provam-no muitos papeis velhos; que um amor natural perturbasse o coração do joven rei não custa a crer; que um duque, proximo do throno, favorecesse a inclinação do rei para sua filha, é bem possivel; que D. Catharina, e os politicos, vissem com inquieto olhar esses amores, é provavel tambem. Ora é esta a essencia do papel a que me refiro, e que vou mencionar aqui por se fallar n’elle de uma quinta de Carnide.


—O duque de Aveiro, D. Jorge de Lencastre, teve uma filha unica chamada D. Juliana, a quem creou no Paço a rainha D. Catharina, sendo Regente d’este reino. Era dama formosa, bem feita, e muito esperta; ao menos, quando não tivesse estas qualidades, agradou-se d’ella El-Rei D. Sebastião, sendo mancebo, e veiu a declarar-se mais depois do anno de 1568 em que tomou o governo. Similhantes inclinações, que não podem ser occultas muito tempo, principalmente entre pessoas taes, chegaram á noticia da Rainha, e do duque de Aveiro; porém com differentes sentimentos, porque a Rainha receiava a consequencia d’estes amores, de que era objecto uma bisneta de el-rei D. João o 2.ᵒ, e o genio apaixonado de seu neto, que teria então 20 annos, e D. Juliana, 16, com[Pg 134] pouca differença; e o duque com uma vaidade disfarçada, e fingindo-se ignorante, do que todos sabiam, aspirava a altas ideias, lembrando-se de que era neto de um rei, da sua grande representação e casa, e tudo isto o persuadia de que algum dia sua filha a contariam no catalogo das Rainhas de Portugal—.

Fallaram os politicos, os cortezãos, os invejosos, a Rainha fallou ao Cardeal infante D. Henrique e começaram a querer fazer casamento a D. Juliana, dando ao duque de Aveiro mais honras e mercês. E foi subindo a intriga, e D. Sebastião o bello rapaz sempre contrariado, a querer mal a D. Henrique seu tio, e a faltar ao respeito a D. Catharina sua avó.

Faltava-lhe a mãe; talvez a origem da desgraça esteja n’isto.

O rei desconfiava de todos, a camarilha enjoava-o; evitava-a quanto podia, ia caçar; andar pelos montes onde o ar é sempre puro. Os seus amigos e companheiros eram D. Alvaro de Castro, Christovão de Tavora e o duque de Aveiro.

A uma caçada em Cintra foi muita gente da côrte; o duque levou sua filha; a Rainha D. Catharina encarregou uma dama de observar os passos de D. Sebastião. E esta dama foi descobrir no alto da serra, apartados dos caçadores, o rei, e o duque de Aveiro com sua filha D. Juliana!

Outros ajuntamentos houve a seguir, affirmando-se que el-rei promovia essas festas agitadas e[Pg 135] com muita gente para se encontrar com D. Juliana.

—Ultimamente houve um ajuntamento que muito dissaboreou a Rainha, e o Cardeal infante, e foi uma mascarada de noute, em uma quinta no districto de Carnide, na qual se acharam grandes senhores e o duque de Aveiro com sua filha vestida á turqueza, e muitas outras damas lusidamente ataviadas; e do que ali se passou teve a Rainha circumstanciadas informações; mas não se disse com certeza quem as dera, supposto que se presumiu ser o prior do Crato, D. Antonio, filho do infante D. Luiz—.

A Rainha D. Catharina, o tio Cardeal censuraram el-rei; e elle começou a fallar de ir á Africa.

Nem em Cintra, nem em Carnide o deixavam á vontade.

Só Africa, para casos d’estes.

A primeira ida á Africa foi effectivamente uma surpreza para a côrte. D. Sebastião foi caçar nos arredores de Ceuta e Tanger e parece que encontrou lá uma filha do Xarife que se parecia com D. Juliana.

De cá choviam os avisos da Rainha-avó, do tio Cardeal, dos bispos; custou a vir.

Parece que D. Juliana, a ladina turqueza de Carnide, foi offuscada pela filha do Xarife; encanto de moura!

Na segunda jornada o duque de Aveiro, apesar de ter perdidas as esperanças no casamento da filha,[Pg 136] acompanhou D. Sebastião; e morreu com o seu rei e amigo.

No seu testamento, feito antes de partir, recommendava que D. Juliana casasse com D. Jorge de Lencastre; este morreu tambem na batalha.

D. Juliana, nova, herdeira riquissima, teve varias propostas de casamento com os maiores de Hespanha, que não acceitou; esperaria o rei? só dez annos depois de Alcacer casou com D. Alvaro de Lencastre, que foi o 3.ᵒ duque de Aveiro.

Agora, onde a quinta do districto de Carnide? Gostaria de saber, gostaria, mas é certo que não encontro vestigios a que possa attribuir grande antiguidade, nem mesmo tradição local. As grandes casas de Carnide e seu termo são do seculo XVII e do XVIII; e estas na maioria ainda modificadas e transformadas modernamente.


A familia Carnide.—Em antigo codice genealogico encontro este appellido, de origem local. Um homem natural de Carnide adquiriu bens, fez serviços e alcançou a nobreza. Diz o codice: «é Carnide logar de 80 visinhos, com boas e rendosas fazendas, e entre os visinhos alguns que se tratam nobremente, e viveram em tempos antigos com abundancia e nobreza.»

O primeiro mencionado é Pedro Gonçalves de Carnide, do tempo de Affonso V. Seu filho Pedro de Carnide morou em Cintra.

Balthazar de Carnide foi moço da camara de[Pg 137] D. Manuel. A familia Carnide apparece em seguida alliada a Gamboas e Ayalas.

Jeronymo de Carnide, moço da camara, esteve em Roma com o embaixador D. Alvaro de Castro: foi provedor de saude no periodo terrivel das pestes e contagios; basta dizer que foi guarda-mór de saude do Reino em tempo de D. Sebastião. Era natural de Cintra; viveu 120 annos (1503-1623), alcançando os reinados de D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, D. Henrique e os Filippes I e II. Um seu filho, Balthazar de Carnide, viveu 100 annos.

Os Carnides mencionados nas genealogias são quasi todos de Cintra; é certo que ainda hoje apparece este appellido em familias de Cintra e de Torres Vedras.


Propriedade territorial na idade média.—Ha documentos relativos a propriedade territorial em Carnide, nos fins do seculo XII, e primeiro quartel do XIII. É bem raro encontrar uma série tão variada de taes documentos. Não nos é todavia possivel marcar com precisão, com exactidão, o local da propriedade, ou quinta de que se trata.

Porque as propriedades variam muito, dividem-se, aggregam-se; as extremas fluctuam; os nomes alteram-se.

Os documentos de Urraca Machado, dóna de Chellas, isto é, freira do mosteiro de Chellas, foram publicados pelo erudito sr. Pedro de Azevedo,[Pg 138] no Archivo Historico Portuguez, vol. III, pag. 5 e seg.

Quem era esta senhora? era dona Orraca Martins, filha de Martim Machado, professa do Mosteiro de Chellas, que andava fóra da Ordem, quer dizer, ausente por muito tempo do seu convento. Tinha bens e parentes proximos em Carnide, e o seu compromisso com a Ordem. Ora constou que ella vendia e desbaratava esses bens, em damno do mosteiro, este protestou, e por isto a série de documentos muito especiaes e valiosos. O protesto é de 1299, tempo de D. Diniz; foi lavrado no concelho da cidade de Lisboa, perante o alcaide e alvazis.

No terceiro documento, de 1308, falla-se da quinta de Carnide, em que a freira tinha uma parte. No quarto documento, de 1309, se diz que as rendas de Carnide foram arrematadas a Salomão Negro, judeu. A familia judaica Negro apparece em documentos do seculo XIII ao XV.

David Negro era o famoso thesoureiro de Leonor Telles, quando proprietario em Camarate e na Outra Banda. A outra parte da quinta pertencia a Martim Martins Machado, irmão da freira. O documento é interessante; trata do arrendamento, almoeda, e negocios, em que houve malfeitoria; o instrumento ou contracto que o judeu apresentou não afinava com a nota tabellioa, havia mentira e burla. Este instrumento, declara o tabellião, foi escripto em papel porque não havia porgamyo decoyro.[Pg 139] Acontecia isto por vezes; em cousas officiaes usava-se o pergaminho; quando este faltava, lançavam mão do papel. E certo é que papel e tinta chegaram até nós; bom papel e boa tinta; não sei quantos annos durarão certos papeis e tintas usados actualmente.

O documento n.ᵒ 7 é uma carta regia, ou sentença de D. Diniz, passada em 1311, sobre a partição dos bens da freira e de João Machado, tambem seu irmão. A monja de Chellas tinha terras em Carnide, nos sitios da Panasqueira e na Feiteira.

Panasqueira é na parte norte da moderna quinta de Montalegre, formada pelo fallecido Carlos Anjos, entre as estradas de Telheiras, Luz e da Fonte.

Não é facil marcar os sitios das propriedades; diz-se sob a fonte, na varzea, na corredoura, designando as fazendas pelos nomes dos donos, pessoas bem conhecidas em 1311. Mas já havia no sitio vinha velha, moinho e almoinha ou horta, courellas e ferrageaes, adega com material vinario, tinas, toneis e cubas, já se falla das covas de Carnide. Trata-se me parece de covas de guardar pão ou cereaes, silos; em 1908, modificando-se a calçada no Alto do Poço, appareceram duas grandes covas, abertas no solo, de dois metros de fundo por um e meio de diametro, quasi totalmente entulhadas. As paredes estavam nitidas, bem conservadas. As pessoas da localidade ignoravam[Pg 140] o destino d’aquellas grandes cavidades, o que succede, me parece, por todo o paiz. E todavia no seculo XVI ainda se utilisavam os silos ou matamorras, e no centro de Espanha ainda hoje estão em uso. Em Lisboa, na grande obra municipal de ha poucos annos, ao Arco do Marquez do Alegrete, tambem appareceram silos, ao longo da muralha fernandina.

O documento n.ᵒ 10 é de 1312; refere-se a certa divida de João Machado a Isaac, filho de Judas Negro, outro judeu da familia Negro; e a uma courella do Cano, pertencente a Urraca Machado. O n.ᵒ 12, de 1313, falla-nos da courella da Coelheira, da qual traz as confrontações pelo sol levante, aguião, poente e avrego. Aguião quer dizer aquilão ou norte, e avrego vem de africo, ou vento de Africa, isto é, sul. N’este documento figura Domingas Eanes, prioreza de Chellas, e Ousenda Domingues, sub-prioreza. Já menciona a aldeia de Carnide com seu rocío.

Em 1321, com licença do mosteiro de Chellas, a freira Urraca Machado entregava por aforamento os seus bens de Carnide a um Rodrigo Eanes, por duzentos maravedis de Portugal, pagos ás metades do anno por Paschoa e Santa Iria, mais doze almudes de vinho. Não é bem um aforamento, é um arrendamento a longo prazo, em vidas, pois só termina depois da morte do rendeiro, de sua mulher e filho. O contracto tem penas severas e condições bem determinadas, como[Pg 141] a de o rendeiro fazer á sua propria custa almoinha ou hortejo, e plantação de vinha, concertos de casas, adegas e lagares, e de sua louça.

Em 1325 já a dóna Urraca era fallecida; mas havia freiras de Chellas na sua casa de Carnide; por causa de certa questão de posse foram ahi notarios que viram duas freiras em uma camara sob a torre. N’esse tempo era Clara Gonçalves prioreza de Chellas; é notavel que n’este mesmo documento se lhe chama abbadessa. N’esta época a questão chegou á maior intensidade, houve violencia, e Martim Machado foi excommungado.

Em 1390 foi a quinta de Carnide emprazada em tres vidas a Martim Annes; confrontava com as herdades de fuão e fuão, e do mosteiro de Santa Clara de Lisboa...

Era uma quintam de herdades de vinhas e de pão que o dito mosteiro ha na aldeia de Carnide, termo da dita cidade (Lisboa).

A par dos elementos relativos á quintam, apparecem outros em razão das confrontações, das testemunhas, etc.

Assim n’um documento de 1313 se falla de uns quartos de courellas de vinhas que o mosteiro havia em Carnide no herdamento do Louro; de uma testemunha se diz: fuão morador ao Louro, no casal da Ordim.

Em 1352: quinta no logo que chamam Alperiate... casal e herdades de pão sitas em Queylus... uma vinha que chamam a Coelheira, a par[Pg 142] de Carnide. Alperiate, ou Alpriate, é o nome de uma localidade perto da Povoa de Santa Iria.

Em 1356: courella do Pereiro, alem de Carnide que parte com vinha de Santaloy.

Deve ser Santo Eloy, no caminho da Pontinha para A da Beja.

Em 1366: vinha no Cano, logo, ou logar, de Carnide.

Em 1397: em Carnide... em logo que chamam a Soeira.

Em 1438: fulano morador na Payãa. Agora diz-se Payam.

De 1443 temos um documento interessante: trata de uns Tintaes de vinha, um acerca do outeiro... confrontando com caminho da Granja, outro com azinhaga que foi da fonte do Machado; são nomes que ainda vivem.

Em 1466... vinha do morgado de Mem de Brito.

Em 1481... vinha que parte com a ermida de Santa Maria da Luz, em Carnide.

Um documento de 1484 menciona as courellas que pagavam o quarto á quinta de Carnide, duas entestavam com a Luz e caminho que vae para o Lomear. Outra com estrada que vae de Carnide para Lisboa. Menciona-se um fulano morador na Ribeira de Agoa Livre; é um sitio da ribeira ou do valle de Carenque. Uma courella no cabo do Rego, outra na estrada de Lisboa e na do Lumiar.

A pag. 32 da publicação do sr. P. d’Azevedo[Pg 143] (Archivo Historico Portuguez, vol. III), vem o titulo dos canos: F. morador na de Dona Maria (é a aldeia que fica a norte de A da Beja) tinha uma courella de vinho e azeite que entesta no ribeiro do Bom Nome (a quinta do Bom Nome é agora a do Sarmento), e com o Resyo do logar. O rocio de Carnide era a poente da egreja de S. Lourenço, a parochial, que é do seculo XIII.

F. morador nas Fontellas, na ribeira de Loures tinha uma courella que entesta com o rio do Bom Nome e com o resyo de Carnide. F. tinha metade de um quarto de courella. Vê-se que a propriedade estava muito dividida.

A albergaria de Carnide trazia tambem um meio quarto de courella. Passou depois a pequena fazenda para o hospital de Carnide.

Outra courella entesta no rio do Bom Nome e com o adro de S. Lourenço; deve ser a fazenda onde está agora uma vaccaria.

F. do Calhariz possue uma terra que vem á estrada na do Correia... caminho de Bemfica. F. tem uns quinhões na almoinha do Machado defronte da porta travessa de Nossa Senhora da Luz. Correia é o nome da quinta do sr. conselheiro Pequito. Um quinhão do lagar do Espongeiro... parte do aguião ao longo da estrada na do Correia, e do vendaval (sul) entesta com o caminho de Bemfica e da travessia (poente)...

No Esparageiro; será variante de Espongeiro? Esparageiro virá de espargo?

[Pg 144]

Agora apparece-nos um nome estranho, quinhões dos Feytaes layrasos, e tambem Feytaes castelhanos. Nada conheço agora que se lhe avisinhe. Todos estes nomes estão no titulo dos Canos: este era pois o nome de uma região, entre a estrada do Poço do Chão e a estrada que vae de S. Lourenço para a Porcalhota, agora, recentemente, Amadora, passando pela actual quinta da Correia. É possivel que este nome de Canos tenha a sua origem em antigos pequenos aqueductos.

Finalmente apparece-nos um documento com autos de medição de certas propriedades; é de 1554. A vinha da Coelheira que parte com caminho da Granja, tinha de largura 28 varas e de comprido 246 varas, era um tira de terra: outra vinha tinha de largura 51 varas e de comprido 280 varas, era uma fazenda com pouco mais de hectare e meio.

Esta collecção de documentos é importante para o estudo da marcha do processo civil; especialmente o grupo que pertence ao primeiro quartel do seculo XIV. Brigam no comprido pleito particulares, freiras, o convento; chegam á excommunhão. Ha instrumentos de protesto, de testemunho, de intimação, procuração, cartas regias, sentenças, recibos e obrigações, aforamento, arrendamento a longo praso, e suas condições, carta de excommunhão, posse, emprazamentos em tres vidas; todos estes variados instrumentos entram no seculo XIV, a maior parte no seu primeiro quartel (1299 a 1325).

[Pg 145]

As conclusões a que chegamos são: no termo de Carnide a propriedade estava muito dividida; havia proprietarios de meia courella, de quarto, de meio quarto de courella.

A cultura era variada, vinhas, olivaes, terras de seara ou de pão; almoinhas ou hortas. Falla-se numa vinha velha.

Não vejo nos nomes de proprietarios ou rendeiros nomes mouriscos; muitos teem dito que os saloios são de origem mourisca, nestes documentos não apparecem nomes desse elemento; apparecem individuos da familia Negro, judaica, proprietarios ou gente de negocio. Nestes documentos falla-se em muitos predios porque tratando da quinta de Carnide, cabeça dos predios rusticos de Urraca Martins Machado, e das suas dependencias ou terras annexas, ao mesmo tempo se mencionam varias com que confrontam. Não vejo mencionar cercas, tapadas, muros. Como noutras partes accumularam propriedades, arredondaram e muraram. Aqui a construcção dos conventos com suas cercas importantes alterou immenso a topographia dos predios.

Os conventos da Luz, de Santa Thereza, dos Carmelitas, o Hospicio das freiras de Christo, alastraram no fim do seculo XVI e no XVII os seus vastos edificios e amplas cercas de altos muros.

Todavia as estradas indicadas existem ainda hoje, a azinhaga da Fonte, o caminho de S. Lourenço para Bemfica, que é a estrada do Poço do[Pg 146] Chão, que passa pela Granja, a estrada de A do Correia, estradas da Luz para o Lumiar, e da Luz para Lisboa. Em frente da porta travessa da egreja da Luz lá está ainda uma almoinha com suas latadas e canteiros; a quinta do Bom Nome, é agora chamada do Sarmento. A do Correia é a quinta da Correia, os logares ou aldeias de A da Beja, Dona Maria, Calhariz, Payam, Santo Eloy existem. O valle de Odivellas tão interessante conserva-se dividido em pequenas propriedades, de intensa cultura onde o saloio moureja.

Fóra d’esse valle a pequena propriedade quasi desappareceu; a tendencia é para accumular. Depois dos conventos, ou contemporaneamente, formaram as quintas depois chamadas do Oliveira, da Condessa, do Mossamedes, do casal do Falcão. Modernamente formou-se a grande quinta de Montalegre que fundiu cinco propriedades grandes; o collegio militar tambem alargou as suas terras. Só entre o logar de Carnide e o Paço do Lumiar se encontram os grandes vallados antigos, as propriedades sem muros.


[Pg 147]

A villa da Ericeira


(1903-1905)


[Pg 149]

Os caminhos mais seguidos para ir á Ericeira são os que partem de Mafra e de Cintra; este o mais frequentado.

A estação do caminho de ferro de Cintra está pittorescamente aconchegada na base do alteroso monte granitico, rochedos pardos entre manchas de vegetação verde escura, coroado pelas torres e quadrellas mouriscas terminadas na fina grega de ameias. Da estação partem os carros para a villa, para Collares e Ericeira.

Começa logo a descida, passa-se uma ponte; termina de subito a invasão das construcções modernas, e definem-se as modestas casas saloias da moda velha.


Lourel, a primeira aldeia; era já povoado o sitio em tempo da dominação romana; antes de gódos e de mouros, vejam lá!

Mais cinco minutos de carro e apparece, espreitando entre agrestes collinas, a torre de Ribafria;[Pg 150] uma residencia nobre medieval, conservando a sua linha primitiva, a torre com seu brazão, palacete, grande lago e alta cerca, naquelle fundo valle aproveitado provavelmente pela abundancia de agua nativa.

São bem raras estas residencias ruraes em Portugal, todavia restam algumas que contam a sua formação pela juxtaposição dos seus cunhaes.

A residencia de Bellas, por exemplo, que é muito interessante, onde eu julgo vêr restos ainda da alta idade media.

As arvores que bordam a estrada estão inclinadas uniformemente para suéste marcando bem a corrente dos ventos dominantes.


Villa Verde, um grupo de casas com seus quintaes, muros de pedra solta, figueiras e parreiras.

A vista alarga-se pelos vastos campos, accidentados; ao longe collinas arredondadas com manchas escuras de pinhal. A serra de Cintra mostra agora a sua crista atormentada, as massas escuras de arvoredo, destoante de tudo o que a cérca; e avista-se Mafra, a enorme joia, principalmente vistosa se o sol da tarde illumina a soberba frontaria, que olha para occidente.


Terrugem, povoado alegre, amplo terreiro, egreja antiga com sua alpendrada, e seu gentil campanario do seculo XVIII; pouco adiante uma velhissima ermidinha, com portal em ogiva.

[Pg 151]

Estamos em pleno paiz saloio, onde apenas algumas pequenas explorações de pedreiras juntam fracos elementos á vida agricola. Ha poucas habitações dispersas, e nenhum povoado importante. Esta freguezia de S. João Degolado da Terrugem compõe-se de mais de vinte povos ou logares, que teem na média 10 fogos. Os mais povoados são Terrugem, Villa Verde, Alcolomba, Lameiras, Almurquim, Fajão, Cabrella, Carnessada, Goudigana, Armez. Grupos de 4, 6, 8 casaes são os logares de Toja, Da do Bispo, Alpolentim, Urmeiro, Fervença, Moleirinhos, Sequeiro, Murganhal, Alparrel, Funchal, Silva. Um ribeiro, o Fervença, corta as terras da freguezia.

Entre as designações locativas algumas merecem reparo pois mostram influencias de antigas linguagens.

E por todo o paiz saloio a população se encontra assim em pequenos grupos, sendo muito menor a parte que vive em casaes ou quintas isoladas.


Odrinhas; pára a carrinha de bancos para descanço dos animaes, e breve allivio dos passageiros.

Se o saltitante vehiculo vier completo, e entre os passageiros houver gorduchos, é caso grave; porque a diligencia foi feita para trinca-espinhas. A paragem é uma consolação, para alargar um pouco os musculos.

A um kilometro da pobre locanda, estação central![Pg 152] onde pára a carrinha, fica o meu adorado S. Miguel de Odrinhas, a velha egreja, com as suas veneraveis antiguidades, o primitivo alpendre, o cemiterio medieval, e as suas lendas bem interessantes.

Mais dez minutos e passamos perto de um cómoro cheio de enormes pedregulhos, ovoides uns, globulares outros; ali os muros das pequenas propriedades parecem feitos de pelouros, de grandes balas de pedra. É Alvarinhos, uma formação granitica, bem frisante entre os terrenos da grande chapada.

Segue-se um plaino pouco accidentado; casas saloias de construcção quasi cubica, escada exterior para o sobrado, e telhado de quatro aguas; grandes lages formam as divisorias; uma casa tem a sua porta abrigada por um alpendre formado por tres lages, duas a prumo e uma coberteira; cruzes de cal branca em muitas paredes, ás vezes muitas cruzes numa só parede; algumas casas mais modernas e janotas com os cunhaes pintados a azul e vermelho.

Estamos em terras da freguezia de S. João das Lampas, mais importante que a Terrugem: tem 32 povos ou logares; mas a media de fogos por logar é egual á da Terrugem.

Os povos mais importantes são: S. João das Lampas, Bolelos, Montearroio, Odrinhas, Alvarinhos, Amoreiras, Almagreira, Areias, Alfaqueques, Mouxeira, Arreganha, Seixal, Assafôra, Cortezia,[Pg 153] Cantrivana, Arneiro, Togeira, Magute, Bolembre, Fontenellas, Gouvêa, Perningem, Codiceira.

Os ribeiros de Magute, Samarra e Barril, que vão á foz de S. Julião, cortam parte da freguezia em valles fundos, formando nos convalles pequenas veigas ferteis.

A oriente, Mafra, o soberbo zimborio, as altas torres dos sinos, os formidaveis torreões dos extremos; e a sul a serra de Cintra, decorativa por excellencia, mais azul quanto mais longe, com tons de amethysta, frequentemente variada com ligeiras neblinas.

Pouco mais e descobre-se a veiga da ribeira de Chileiros, os sulcos fortes dos seus pequenos afluentes, entre collinas de declives rapidos.

Para o poente a grande face tranquilla do Atlantico.

Uma e outra vinhasita entre muros de pedra solta; retalhos de tojaes cortados; vaccas leiteiras guardadas por creanças; grupos de pinheiros mansos de verde lustroso, poucas arvores de fructo; sobre os telhados filas de aboboras; em fins de setembro os campos estão animados, trabalha-se nas eiras na debulha do milho, e na estrada passam os carros com as uvas para as adegas.

Fica ao longe a casaria branca, baixa, de S. João das Lampas, alveja a Assafôra, e outros pequenos povos; passa um fresco pinhal, e começa a descida que leva á Carvoeira, uma aldeia na encosta; em[Pg 154] baixo o valle agora mais amplo da ribeira de Chileiros, forrado de vinhedos novos.

Ha uma ponte nova, bem lançada; e a carrinha sobe vagarosamente a longa ladeira; vê-se a Foz, a barra de areia branca, a agua do rio mui socegada entre as escarpas altas e escuras; ouve-se o rumor da arrebentação, das grandes ondas de claro verde transparente, de franjas alvissimas que o vento pulverisa, desenrolando-se espumantes sobre a barra de areia branca, ou saltando, espadanando nas escuras rochas das ribas.

O vasto oceano impõe-se agora, de fim vago se ha neblina; se o tempo é claro sempre a mesma linha de horizonte, nitida, limite implacavel e monotono.

Termina a ladeira, salvam-se umas curvas de macadam, e apparece-nos a distancia a branca villa da Ericeira, como um bando de gaivotas pousado na riba da beira-mar.

As arribas são escarpas de 30, 40 metros de altura, pittorescas em muitos pontos pelo estranho colorido, pela fórma de fragmentação; parecem ruinas de edificios gigantes.

Escuros penedos á beira-mar quebram as vagas que se empinam em cristaes, se desfazem em brancas espumas ferventes, numa lucta rithmica. Das arribas a encosta faz uma plataforma, e logo sobe rapidamente o terreno para oriente, o lado de Mafra.

Nesse largo socalco assenta a villa da Ericeira,[Pg 155] a branca villa toda caiada, porque os habitantes até branqueam os telhados de muitas casas, e as ermidas das arribas, S. Julião, S. Antonio e S. Sebastião parecem talhadas em sal marinho.

Nenhuma vegetação agora rompe a nitidez do verde mar, do escuro das furnas, da cal branca faiscando ao sol; só umas delgadas, flexiveis araucarias conseguem erguer-se sobre a linha da casaria; outras arvores ao passar a crista dos muros desfolham-se e quebram-se pela ventania maritima; nos pequenos quintaes abrigados ha roseiras finas, jasmins viçosos e latadas de dourado moscatel.

Tambem tenho ido á Ericeira, passando por Mafra. Na estação do caminho de ferro apparece um carro de bancos, especie de americano de montanha, que nos leva á povoação, vencendo uma comprida ladeira. Proximo á estação, sobre uma collina, avista-se uma aldeia de aspecto interessante; as casas cubicas, com suas barracas ou quinchosos aos lados, coroam o monte, semelhando uma fortificação de torres e quadrellas. A estrada vae subindo pela meia encosta de um grande massiço; os largos declives dos montes povoados de culturas, vinhedos; nos sovacos mais humidos grupos de vaccas leiteiras.

Para cortar caminho, indo de trem, atravessa-se um canto de tapada, uma rua de platanos, e logo o assombro do monumento.

Ha ali primores de extraordinario merecimento.[Pg 156] Que magestade imponente nas linhas geraes, que afinação, que equilibrio entre os corpos que compõem o grande conjuncto, que acabada execução! e na egreja que relevos de delicado lavor! e que bello horisonte!

N’este paiz accidentado quasi todos os monumentos teem moldura de grandiosa paizagem; não succede o mesmo em França, Inglaterra, Allemanha onde a vista pára em arvoredos proximos ou encontra planuras monotonas. Mafra tem moldura larga e rica, basta a decorativa Cintra, joia azul, o mar, e aquella vastidão de terras accidentadas, com seus povos e casaes, quintas, vinhedos e manchas avelludadas de pinhal.

Os sinos, um dos primeiros carrilhões do mundo, enchem de vibração religiosa aquelles campos; ouvem-se muito ao longe; uma vez passando em Odrinhas ouvi uma toada longa, mui grave, que me impressionou; era a sonoridade dos sinos de Mafra que chega a muitos kilometros de distancia. Outra vez ouvi no carrilhão a valsa do Fausto! que typo de sineiro, quando hoje ha musicas escriptas expressamente para estes grandes instrumentos de musica!

Mafra tem outra notabilidade, a velha egreja de Santo André, antiga freguezia. Cautella com os amadores, pois a vi muito abandonada.

Tem altares de azulejos mosarabes, e frontaes de couro lavrado, colorido e dourado; e duas arcas tumulares medievaes, de interesse historico e artistico.[Pg 157] O exterior da capella mór e a torre sineira são da primitiva, e em volta está o velho cemiterio, tão pouco respeitado!

Com pequeno esforço se poderia conservar melhor essa interessante egreja de Santo André!

Muito curioso o pequeno mercado, os figos moscateis, as lindas uvas, as bellas maçãs, os aromaticos melões, as saloias com os seus cabazes de ovos. Mas que ovos saborosos! nos almoços que nas minhas passagens por Mafra consumi no Moreira ou no Duarte ou no Ricardo, eu repeti os ovos fritos na manteiga saloia.

A carrinha da Ericeira pára á porta do correio, que fica ao lado da escadaria monumental da egreja.

E partimos para o lado do mar.

Pela estrada carros com rama de pinho, rapazes com vaccas leiteiras, e grupos de crianças pedindo cincoreizinhos em cantilena nasalada.

Sobreira, logarejo com caixa de correio, e uma loja centro commercial, onde se vende tudo á gente do sitio, e vinho á gente que passa; o cocheiro aceita sempre o seu copito. Fabrica-se por aqui ceramica popular, louça de barro, vidrada ou não, com sua ornamentação especial. E não só na Sobreira, mas em outros povos proximos ha oleiros, até á Lapa da serra, pequeno logar já visinho da Ericeira.

Agora atravessamos trechos de pinhal; paisagem formidavel; na luz forte o grande mar, a[Pg 158] serra de Cintra, amethista lavrada, os vastos campos accidentados, palhetados de logares e casaes brancos, as verdes manchas de pinhal, e Mafra, o imponente edificio avermelhado, saliente entre a pequena casaria branqueada da villa.

E quanto mais nos avisinhamos da Ericeira mais viçosos são os pinhaes; tudo pinhal novo, porque as velhas arvores foram derrubadas nos ultimos annos. O mar quanto mais proximo mais scintillante.

E nada da Ericeira; para esse lado, a quem vem de Mafra nem uma casa, nem uma torre de egreja mostra a villa; porque ella está no grande socalco da ribamar; quasi ao terminar a ladeira surge a casaria branca alastrada, projectando-se sobre o oceano.

Ora vamos ouvir o padre Antonio Carvalho da Costa, bom author que eu sempre recommendo, na sua mui excellente «Corografia portugueza, e descripçam topografica do famoso reyno de Portugal», impressa em 1712: escreve o prestimoso clerigo e mathematico lisbonense, a pag. 42 do tomo terceiro:

Da Villa da Eyriceyra

Uma legua ao noroeste de Mafra (será escusado lembrar que havia então leguas pequenas, e leguas da Póvoa), tres ao sudoeste da villa de Torres Vedras,[Pg 159] e sete ao Sul de Peniche, tem seu assento a villa da Eyriceyra, a quem banham pela parte do occidente as salgadas e ceruleas aguas do cubiçoso Oceano, que a faz abundante de bom pescado e excellente marisco, especialmente eyriços, donde a villa tomou o nome, o que approvam suas armas, que são um eyriço em campo branco.

Elrei D. Diniz lhe deu foral (o primeiro foral é mais antigo), que confirmou depois elrei D. Manuel, fazendo doação della ao infante D. Luiz seu filho, de quem a herdou o sr. D. Antonio, seu filho illegitimo, ao qual (sendo expulsado da successão do reino por el Rei D. Fillippe o de Castella, e vencido na ponte de Alcantara pelo duque de Alba, que com poderoso exercito entrou neste reino) lhe confiscaram todas suas rendas, e entre ellas a villa da Eyriceyra, a qual deu em satisfação de divida a Luiz Alvares de Azevedo de juro, e herdade para elle, e seus descendentes, com que ficou excluida da Corôa, como bens patrimoniaes; e pertencendo ella a uma sua filha, religiosa de S. Bernardo no mosteiro de Odivellas, a vendeu a abbadessa por 8:000 cruzados a D. Diogo de Menezes com todas suas rendas e direitos reaes, e a quinta parte do morgado da villa de Mafra, e a vintena do peixe, que se paga aos senhores da dita villa, que é em todas as partes em que fóra della pescam seus naturaes, mui exercitados neste officio.

Tem 250 visinhos com uma egreja parochial[Pg 160] da invocação de S. Pedro, curado, que apresenta o conego da Sé de Lisboa, o qual tambem apresenta a vigairaria de Mafra: tem mais Casa da Misericordia, e estas ermidas, o Espirito Santo, Nossa senhora da Boa Viagem, S. Sebastião, e S. Martha, e ha nesta villa tres fontes perennes.

Assistem ao seu governo civil um ouvidor posto pelos condes (que nesta terra tem os oitavos do pão e vinho), dois vereadores, um procurador do conselho, um escrivão da Camara annual, que o é tambem da almotaçaria, outro escrivão dos orfãos, que o é tambem dos direitos reaes e do judicial e notas. Tem uma companhia da Ordenança, e um forte com cinco peças de artilharia, que sustentam os moradores, e os condes consultam o governador. É hoje senhor e conde desta villa D. Francisco Xavier de Menezes, cuja illustre varonia é a seguinte:==e segue uma noticia da genealogia d’essa bella familia dos condes da Ericeira, D. Diogo de Menezes, 1.ᵒ, D. Fernando de Menezes, 2.ᵒ, D. Luiz de Menezes, 3.ᵒ, D. Francisco Xavier de Menezes, 4.ᵒ, série brilhante na fidalguia portugueza.

Foi este ultimo que animou Carvalho da Costa a escrever a sua chorographia que tantos serviços presta ainda agora.

A respeito da villa de Mafra conta-nos Carvalho da Costa: o seu termo é abundante de pão, gado, e caça: tem uma egreja parochial dedicada a S. Izidoro, curado, que apresentam os moradores[Pg 161] (note-se isto, eram os moradores que apresentavam o cura), os quaes passam de cento e sessenta divididos por estes lugares, Azambujal, Quintal Gonçalvinhos, Grocinhos, Lombo da Villa, Almada, Ribeira, Murteira, Pinheiro, Murgeira, Cachossa, Roxeira, Amoreira, Póvoa, Valle de Carreira, Caeiros, Fonte Santa, Relva, Sobreiro, Fonte Boa dos Nabos, Figueiredo, Picanceira, Penagache, Lagôa, Montegudel, Ribamar de cima e de baixo, com muitos casaes. Tem mais este termo o forte de Milreu, e o de Santa Susana com duas peças d’artilharia.

A corographia de Carvalho da Costa imprimiu-se em 1712; estava-se longe da importancia posterior de Mafra, realçada pelo seu colossal monumento.

O que me chama a attenção na descripção de Mafra, feita por tal authoridade em 1712 (isto é em 1709, porque 1712 é a data da impressão) é que nesse tempo, em que se conservavam ainda vigorosas as antigas instituições, no termo da villa de Mafra a freguezia mais importante era a de Santo Isidoro; e que o seu parocho curado era apresentado pelos moradores. Isto mostra que esta freguezia ou parochia era uma entidade muito sobre si: e abrangia um territorio vasto e importante, como o é ainda agora.

Em 1844 temos outra noticia a respeito da Ericeira no famoso Panorama (Serie 2.ᵃ Vol. 3.ᵒ pag. 335).

[Pg 162]

É um artigo de Henriques Nogueira. Acompanha-o uma gravura ingenua mas curiosa; mostra os rochedos, a alta escarpa, a ladeira que vem ao pequenino porto, as paredes do forte, agora em parte desmoronado, e ao longe a ermida de S. Sebastião.

==Em documentos antigos é conhecida por Oyriceira e Eyriceyra, e d’aqui vem serem as armas do concelho um ouriço.

==Os mais antigos assentos da separação da parochia de Mafra são de 1406. D. João V prestou grande auxilio á reedificação de S. Pedro.

==O estabelecimento mais importante que esta villa possue é a casa da Misericordia a qual foi fundada onde havia uma ermida do Espirito Santo, por Francisco Lopes Franco, em 1678. Este doou-lhe um padrão de juro de 480$000 réis, e os pescadores obrigam-se a pagar-lhe annualmente todo o ganho d’uma rede de pesca, cujo onus solveram pela quantia de 6$400 réis que ainda hoje pagam cada um dos dez barcos de pesca. O rendimento actual (1844) em juros e fóros é de 1:679$700 réis. Despende com encargos pios e despezas do culto 725$300 réis e com o hospital 479$300 réis. O excedente da receita é empregado em esmolas e vestuario aos pobres. Os habitantes empregam-se pela maior parte nas pescarias ao longo do nosso littoral, na costa de Marrocos, e tambem já fizeram tres expedições ao Banco de Terra Nova n’estes ultimos annos (como isto passou!). O numero[Pg 163] de embarcações de todos os lotes, incluindo as do commercio de cabotagem é de 98, empregando 670 individuos. A população orça por 2:769 almas com 750 fogos; no principio d’este seculo tinha apenas 600.==(lembro ainda que isto se escrevia em 1844).

==O forte está sobranceiro á calçada que dá para a praia, e hoje acha-se desguarnecido. Segundo se deprehende de uma inscripção sobre a porta foi edificado por D. Pedro 2.ᵒ

==No chafariz chamado a Fonte do Cabo existe uma pedra embutida na parede com um emblema e legenda em caracteres gothicos em relevo, que parece significar: «Feita na era de mil e quatrocentos e cincoenta e sete annos.»

==Ainda existem restos do palacio do senhorio d’esta villa, o conde da Ericeira: pela parte superior de algumas janellas veem-se pedras com um leão esculpido. Estas paredes a que o povo chama o Paço, são dignas de veneração por terem servido de residencia, e quem sabe se de academia, ao nosso douto escriptor D. Francisco de Menezes.

==A meia legua ao nascente d’esta villa está aberta uma mina de barro branco no sitio chamado a Avesseira, que já tem sido explorada por conta das fabricas de louça das Janellas Verdes e Vista Alegre (Actualmente os finissimos barros dos arredores da Ericeira, que eu saiba, são explorados muito rudimentarmente pelos louceiros da Sobreira, Lapa da Serra, etc., que fabricam a louça chamada de Mafra).

[Pg 164]

==Tambem por este mesmo sitio é situado o chamado Pinhal dos frades, por ter pertencido ao convento de Mafra.

==É uma importante propriedade nacional assim pelo numero como pela bondade e prestimo das arvores, que excedem em diametro e altura as de todos os outros pinhaes circumvisinhos.==Agora o Pinhal dos frades não tem um só pinheiro fradesco; tudo foi reduzido a lenha; é todo novo o pinhal; e que bom seria alarga-lo porque daria aos arredores da Ericeira um encanto a mais, principalmente agora que tanto se louva o ar do pinhal. Esses novos pinhaes que eu percorri seguindo a estrada de Mafra, e no lindo caminho para a quinta dos Chãos e Santo Isidóro, são viçosos, e recebem em primeira mão a viração pura do mar; dá prazer respirar no ar do pinhal!

Achei muito curiosa esta noticia da Ericeira, em 1844! Ora vejam como isto muda; o forte está em grande parte destruido, a escarpa tem falhado em muitas partes, desappareceram as navegações longinquas, diminuiu a pescaria em muito, e o pinhal dos frades perdeu as arvores venerandas.

O rei da Ericeira

Vou transcrever do Portugal cuidadoso e lastimado do padre José Pereira Bayão (paginas 732-734), a narrativa do caso estranho do rei da Ericeira; um dos varios episodios da nevrose, naturalissima,[Pg 165] que assaltou o povo portuguez nos primeiros annos da dominação hespanhola. Este, a meu ver, é dos que melhor representa o estado ancioso e tumultuario das almas; ha n’elle o mysticismo, o vago anceio, o estonteamento no começo, inconsciente, ingenuo; depois a exploração d’esses sentimentos pelo espirito patriotico, e pela influencia do meio, que leva a incidentes comicos, á desordem, á loucura sinistra, ao crime; logo, naturalmente, á intervenção da politica dominante, á força, até ao final do morticinio em massa, e do supplicio tremendo.

==Succedeu isto no anno de 1584, no mez de julho, e podendo servir de exemplo (refere-se ao caso do rei de Penamacor) para emenda de outros taes atrevimentos, foi ao contrario; pois logo no anno seguinte se viu outro ainda mais estravagante pelos mesmos termos, fingindo-se ser el-rei D. Sebastião, um moço chamado Matheus Alvares, natural da ilha Terceira, filho de um pedreiro, o qual saindo-se do noviciado dos frades arrabidos do mosteiro de S. Miguel junto á villa de Obidos, se fez tambem hermitão em uma ermida de S. Julião, junto á villa da Ericeira. Aqui fazia uma vida ao parecer mui penitente, e se introduziu a ser rei antes que ninguem o imaginasse; disciplinava-se fortemente onde pudesse ser ouvido, e dizia com triste lamentação: Portugal, Portugal, que é feito de ti, que eu te puz no estado em que estás, oh! triste de ti Sebastião, que toda a[Pg 166] penitencia é pouca em respeito de tuas culpas. Começaram alguns a crer, que elle era el-rei; e entre elles um lavrador rico chamado Pedro Affonso; juntaram-se até oitocentos homens, de que se fez general, accrescentando ao seu nome o apellido de Menezes; poz o fingido Rei Casa Real, e fortificou-se, casando-se com uma filha do dito Pedro Affonso, moça bem parecida, coroando-a como Rainha, com uma corôa de prata de uma imagem de Nossa Senhora, fazendo marquez de Torres Vedras a seu pae, e conde de Monsanto, Senhor de Cascaes, e alcaide mór de Lisboa.

E assim fazia outras mercês, passando provisões e alvarás com solemnidade de sellos reaes, occultando-se sempre, e mostrando-se a mui poucos por grande favor, aos quaes contava algumas particularidades da batalha, para os ter mais seguros n’esta presumpção, e mandando recado a D. Diogo de Sousa, general da armada, que lhe fosse fallar; tanto que soube, que elle perguntára ao mensageiro pelo signal, que lhe déra, receando-se que se descobrisse o engano, ou por outra alguma razão, que não consta, lhe tornou a mandar dizer, que não fosse; e comtudo indo lá, lhe não quiz fallar, dizendo, que o fazia assim porque não ia só.

Escreveu depois ao cardeal Alberto, que lhe desoccupasse o seu paço, e se fosse embora para Castella: porque já era tempo de que abrissem os olhos tantos enganados.

[Pg 167]

Foi preso o embaixador; e soltando-o logo cobrou mais forças a opinião de ser elle el-rei, por onde, o que assim se fingia se foi ensoberbecendo, e fazendo alguns graves castigos em todos aquelles, que o não queriam reconhecer, e lhe negavam a obediencia, sendo executor o marquez, seu sogro, que era homem cruelissimo, e deshumano; e agora muito mais com a vangloria dos titulos que lhe foram dados, e considerar-se sogro de el-rei.

Vendo o Cardeal Governador que se devia atalhar tão grande desordem antes que passasse a mais, deu ordem ao corregedor de Torres Vedras para que os fosse prender, e querendo-o executar foi morto arrebatadamente com os seus officiaes por aquella gente, que os seguia: e sendo isto reprehendido por Gaspar Pereira, ouvidor d’aquella comarca, o mataram tambem; e a um filho, e a um sobrinho; saqueando-lhe a casa como em guerra justa; passando já n’este tempo de mil a gente asoldada que o seguia: vindo todos a comprar polvora e bala á cidade, diziam publicamente, que era para acompanhar a el-rei D. Sebastião.

Pelo que, e porque não crescesse mais o damno, e insolencia, foi necessario acudir com mais forte remedio. Deu-se ordem ao corregedor da côrte, e se mandáram ajuntar todos os ministros da justiça com os seus officiaes, e com quatrocentos soldados castelhanos bem armados, foram fazer a diligencia; e chegando perto do couto do novo rei, ficaram os soldados embuscados em um valle, indo a[Pg 168] justiça adiante, e sendo descoberta pela guarda, arremeteram a elles como lobos.

Fugiu a justiça com muita pressa até os irem metter na embuscada, donde saindo com furia lhe deram uma carga de tiros com que mataram e feriram a muitos dos fautores do rei, fazendo fugir aos outros pelos montes e valles; foi preso o rei, e alguns do seu conselho, e trazido a Lisboa fez confissão, de que não era el-rei, nem pretendia sel-o, e que só intentava dar sobre Lisboa com as armas dos seus seguidores, na madrugada do dia de S. João, e vencida ella, como esperava, pertendia dizer ao reino que já o havia posto em liberdade para que fizessem rei. Foi enforcado em 14 de junho do dito anno, cortando-lhe primeiro a mão direita no Pelourinho, onde ficou pendurada, por passar provisões e alvarás falsos, fingindo-se el-rei D. Sebastião; a cabeça esteve um mez pregada na forca, e os quartos foram postos pelas portas da cidade; e no dia seguinte enforcaram e esquartejaram os outros, que foram presos com elle, um que fazia o officio de védor, que seria de quarenta annos, e outro que era pagem privado, que seria de edade de vinte annos.

Na Ericeira foram enforcados vinte homens que eram deste bando, muitos foram lançados a galés; e Pedro Affonso, marquez e conde general, e secretario do triste rei, fugiu no dia da prisão dos mais; mas pouco depois foi preso, fazendo-lhe em Lisboa o mesmo, que tinha feito ao seu soberano,[Pg 169] e os pobres moradores d’aquelle contorno despovoaram a terra com medo, por terem seguido a voz do rei enganoso. Foram tambem presos e castigados muitos, que enganados o favoreciam de Lisboa, e lhe mandavam dinheiro, e peças de valor, como foram Antonio Simões, escrivão dos armazens, e Gregorio de Barros, ourives d’el-rei, pagando miseravelmente o zelo, com que cuidavam servir ao seu rei.

Parece que foi o intento de mandar chamar D. Diogo de Sousa, saber delle se era certo, como se dizia, que el-rei veiu na armada, porque sendo assim, e sabendo delle onde estava, e se estava prompto para entrar a governar, ajustariam ambos a fórma de occupar Lisboa e desoccupal-a dos castelhanos com aquella sua gente, e entregal-a ao dito rei, com o que ficava restituido ao seu reino, e aquelles servidores seriam bem gratificados por elle e agradecidos de todo o reino. Isto se colhe da sua confissão, e outra cousa se não deve imaginar, pelos descaminhos ou impossibilidades, a que se expunha por todas as vias; o que qualquer mediano entendimento conheceria mui bem.==

Antiguidades romanas e medievaes

Na Ericeira e seus arredores não vi antiguidades romanas; nem um signal, nenhuma pedra empregada em muro velho que denunciasse lavor de alta antiguidade; o trabalho agricola tem sido[Pg 170] grande, o mar sabe Deus quantas escarpas tem demolido, elle que todos os dias está destruindo e abatendo os rochedos da costa. Mas n’um aro de raio de seis a dez kilometros surgem vestigios notaveis. As inscripções lapidares romanas são conhecidas; a região a norte de Cintra e Collares é rica de taes letreiros. Antiguidades pre-romanas são sabidas tambem. Não podemos esquecer o collar da Penha Verde, a grande joia prehistorica (que hoje está ennobrecendo, ao que me dizem, um muzeu inglez), o famoso dolmen de André Nunes ou Adrenunes, monumentos que provam a existencia por estes sitios de antiquissima civilisação pre-romana. Estacio da Veiga estudou as antiguidades d’estes sitios; no Corpus estão transcriptas em grande numero as inscripções romanas. Na Cintra pinturesca (pag. 192), se diz: «encontram-se com frequencia urnas e lapides sepulcraes em varios sitios especialmente em S. Miguel de Odrinhas, Morelino, Montelavar, etc.»

D’essas veneraveis pedras sepulcraes muitas desappareceram, ainda porém existem algumas importantes. Para as ver dei uns passeios a Odrinhas e á quinta dos Chãos.

Odrinhas fica a meio caminho entre Cintra e Ericeira. Ha ahi uma venda onde costumam parar os carros para descanço; abre-se em frente d’essa venda um caminho de aldeia que leva á egreja, S. Miguel de Odrinhas, a menos de um kilometro. É filial da parochia de S. João das Lampas. A[Pg 171] porta principal diz a poente, uma alpendrada segue na frente e no lado sul; atrás da capella mór um espaço que serviu largos annos de cemiterio; muitas pedras de cabeceira nos seus logares, tendo nos circulos superiores esculpidas cruzes de varias fórmas, sinos saimões, e estrellas de seis pontas. Encostado á egreja um ediculo do seculo XIV. Junto da pequena porta lateral uma casa, talvez de antigo ermitão, a que chamam a casa dos ratos, que serve para metter medo a rapazes máos; sob o alpendre a grande mesa de pedra para as offertas. Ao norte da egreja, uma construcção circular, isolada, em ruina, mostrando ainda a nascença da abobada, feita de pedra miuda, vestigios de porta, e um vão na parede, que parece, seria destinado a ter um armario.

—É casa de mouros, disse alguem.

—Era onde guardavam os ossos tirados das covas do cemiterio, o ossuario, disse outro.

—Dizem que está ahi um thesouro escondido, disse uma mulher.

Parece-me que a causa principal da ruina é esta crença, com a esperança de achar o metal precioso têm nocturnos exploradores arruinado o singular edificio. E eu achei no montão de pedregulhos, e fiz destacar, em marmore lavrado, nada menos que a pedra superior de uma ara romana com seus ornatos, volutas e folhagens, de bom estylo, com a grande cavidade destinada ao fogo. No terreno proximo, nos velhos muros de pedra[Pg 172] solta, vi tijolos pequenos, fragmentos de grossas telhas, e ainda mais cabeceiras de sepulturas com suas cruzes e saimões. É unico o que ali está, n’aquelle modesto recinto onde se conservam vestigios antigos, de epocas entre si muito afastadas.

Sob o alpendre, solta, a grande pedra com lettreiro romano onde se mencionam individuos da tribu Galeria, e entre elles o de Elio Séneca. Dentro da egreja, á direita da porta principal, a enorme lapide, fixa, de Plocio Capito. Dizem que era de homem santo, e raspam-na para com o pó curar enfermidades. Pelo visto temos aqui um exemplo nitido de cultos continuados no mesmo local desde a antiguidade romana até agora. Mas ha lendas, velhas tradições aqui. Disse-me um homem que esta egreja era tão importante em tempos antigos que a gente de Santo Isidóro, Paço d’Ilhas e Quinta dos Chãos vinha enterrar os seus mortos n’este cemiterio, fazendo a longa caminhada de quatro leguas. E logo outro companheiro, um tanto a medo, me perguntou se eu julgava possivel que uma mulher fosse capaz de trazer ás costas aquella grande pedra, a do Séneca, desde Santo Isidóro, com o cadaver do filho. É lenda mui velha que eu vim encontrar agora nesta ultima terra da Europa.

Santo Isidóro é egreja parochial que fica a uma legua além da Ericeira; fica-lhe a pouca distancia a quinta dos Chãos, que desperta a curiosidade pelo seu isolamento, a sua represa d’aguas,[Pg 173] os pequenos aqueductos, pateo, jardim, casa de residencia e officinas, um bello exemplo de habitação rural, modificada pelo tempo e variedade de usos, mas no todo lembrando uma antiga villa rustica. Ahi, n’uma varanda sobre um arco, servindo de meza, vi a bella lapide sepulcral dos Terencianos; e no jardim ha uma pia que me pareceu uma urna ou sarcophago romano, coberto em parte de cal. Segundo uma tradição a ribeira de Paço d’Ilhas que corre no profundo valle proximo era antigamente navegavel, e um velho paredão arruinado seria o resto do caes.

A costa

Da ponta da Lamparoeira corre a costa de norte a sul, por mais de 8 milhas, quasi toda de rocha escarpada até á foz da ribeira do Porto. A 1,5 milhas a N. da dita foz fica a Ericeira. A sul da villa uma pequena enseada com boa praia, a norte outra praia; ambas separadas pela grande massa de rochedos do portinho onde entram os barcos de pesca. Este porto é desabrigado dos ventos NNE a SSO por O.

Ha duas luzes de enfiamento, branca e vermelha, a 37,ᵐ7 de altitude.

O monumento de Mafra com suas elevadas torres e zimborio, a 270 metros sobre o nivel do mar, serve de reconhecimento e marca para este porto, avistando-se a 30,5 milhas.

[Pg 174]

Da foz da ribeira do Porto a costa a S 25° O, até ao cabo da Roca, a 10,3 milhas, quasi toda escarpada e elevada, apenas rota na praia das Maçãs na foz da ribeira de Collares, e na praia Grande a S d’esta. No Focinho da Roca o rochedo levanta-se a mais de 125 metros; sobre essa escarpa está o pharol da Roca, a 137 metros acima do nivel do mar. A meia milha ao mar do cabo está a pedra d’Arca: ha outros recifes que tornam perigosa a approximação.

A serra de Cintra eleva-se sobranceira ao Cabo, correndo para o interior na direcção de ENE. A sua maior altitude é no seu estremo E no castello da Pena, que tem 529 metros de cota.

O convento da Peninha, no extremo SO, está a 488 metros, e deve avistar-se a 42 milhas. A serra de Cintra é ponto excellente para reconhecimento da costa. Os pescadores da Ericeira dão nomes ás saliencias principaes da serra, e pelo enfiamento e aspecto marcam approximadamente a sua posição no mar.

A pesca na Ericeira chegou a grande decadencia, parece querer levantar-se agora. Antigamente, ha 50 annos, não só a pescaria tinha ali grande importancia, mas a Ericeira era um viveiro de homens do mar; chegou a ser celebre pelos seus maritimos pedidos para os melhores navios da nossa marinha mercante. Eu conheço a Ericeira ha quatro annos apenas, em rapidas visitas na[Pg 175] época dos banhos. Ha quatro annos havia uma armação, em frente do porto, e os botes de pesca, as focinheiras, pouco iam ao mar. Não havia pescada, muitos dias só havia sardinha e carapau apanhado na armação. Agora ha duas armações, e todos os dias vão barcos ao alto, que por vezes trazem muito peixe. A exploração da lagosta tambem augmentou.

Os pescadores das armações são quasi todos estranhos á Ericeira; e tem vida áparte dos naturaes da villa. É no norte, quer dizer no bairro do norte da villa, em casas abarracadas, caiadas, algumas com o chão forrado de plantas aromaticas, que habitam os pescadores. Casas pobres, aceiadas, com estampas de navios e santinhos nas paredes. A grande embarcação de pesca, antiga, era a rasca, que eu vi pintada em quadros de milagres, na egreja de Santa Martha.

Era um barco seguro e veleiro, de borda alta, pôpa redonda e prôa arrufada; convez corrido de vante á ré, cinginda em volta do costado por um espesso cinto com forte pregaria, apparelhando com quatro vélas latinas triangulares, traquete, véla grande, véla de prôa, e catita; com tripulação numerosa para a manobra.

O mastro de traquete pendia para vante, o de ré era vertical, da prôa lançava um páo para amurar a véla de prôa, á ré encostado á amurada um pequeno mastro para a verga da catita, que caçava no laes de um páo deitado pela popa servindo de[Pg 176] retranca: singrava veloz, chegando-se muito ao vento, e aguentando-se bem nas borrascas.

A focinheira é typo unicamente usado na Ericeira, para a pesca costeira, e que vae tambem ao largo. Tem um mastro á prôa que apparelha com um latino; a prôa e a pôpa da pequena embarcação teem fórma especial, e no fundo chato e arqueado tem umas reguas ou reforços longitudinaes. É differente da chata de Cascaes ainda que se lhe avisinha.

Tenho visto na Ericeira sardinha, fataça, carapau, faneca, goraz, pargo, capatão, pescada, peixe espada, peixe gallo, cação, moreia, arraia, polvo e lagosta.

Uma vez entrou na armação um cardume de grandes pargos e capatões; e eu vi na pequena praia a fila de oitenta grandes peixes vermelhos de que os menores tinham 7 ou 8 kilos.

Este anno foi fisgado de uma focinheira um grande peixe agulha que pesou nove arrobas.

Havia muitos annos que não apparecia um peixe agulha na Ericeira, e é trivial em Setubal.

Quem visitar reparando os mercados de peixe na Ericeira, Cascaes, Setubal nota singulares differenças; nesse bocado de oceano que se avista do Cabo da Roca, ha regiões definidas, onde apparecem ou não determinadas especies de peixe.

O generoso mar dá ainda outro producto que elle traz do seu seio e vem depôr, arrumar, na areia da praia; chamam-lhe sargaço e moliço ou[Pg 177] golfo; são as algas, os corriões, bodelha, verdelho e sebas, que o agricultor utilisa para adubo.

Em todas as praias aqui d’esta costa, Baleal, Peniche de cima e de baixo, Portinho da areia, Consolação, Seixal, Atalaya, Ribamar, Porto novo, Santa Cruz e Assenta andam os sargaceiros apanhando os vegetaes arrojados á areia, escolhem um pouco, carregam, formam medas, que entram em fermentação e se transformam em excellente adubo.

Em outros pontos do paiz a rapeira é uma furia louca que prejudica a creação do peixe, mas aqui não se dá esse caso, os sargaceiros não chegam para arrecadar a massa enorme de algas que o mar lhes offerece.


Banheiros.—Praia do sul: Antonio Garamanha, Braulio da Silva, Francisco Piloto, Francisco Jorge Alturas e Servando da Silva.

Praia do norte: Agostinho Alves Camacho, José Alves Camacho, José Coco e José d’Almeida Rato.

As praias são muito frequentadas nos mezes de agosto, setembro e outubro. Ha duas series de banhistas: a mais tardia é a que vem depois da vindima.

[Pg 178]

Bons typos estes banheiros, nadadores de primeira ordem, valentes sem precipitação.

Na praia do norte o mar bate um pouco mais; na do sul a força da vaga é em parte quebrada por uma restinga que surge a pouca distancia, 80 a 100 metros da praia de areia.

Na praia do norte em manhã de vaga um tanto rija vi espectaculo raro; os banhistas não tomaram banho, e os banheiros resolveram ir brincar nas vagas; brincadeira um tanto forte.

Eram tritões mythologicos, peixes não, porque estes não caem em taes experiencias; por vezes sumiam-se no concavo da vaga proxima a desabar, logo appareciam, o corpo meio fóra da agua, na cabelleira cristallina, logo destacavam na branca espumarada fervente.

É arriscado, ha movimentos enrolantes na vaga d’arrebentação, e ai do que se deixar enrolar pela onda.


No termo da Ericeira, na encosta voltada ao mar, ha grande numero de pequenas propriedades, e muitos muros de pedra solta. Fazem esses muros para arrumar a pedra e tambem para defeza contra a rajada do mar, e não bastam; fazem ainda sebes de urzes, de ramos de pinho, de caniço;[Pg 179] e nesses canteiros vi cepas boas, com bellos cachos.

A phylloxera estragou os vinhedos, mas nos ultimos annos teem replantado; nas chans da ribeira de Chileiros ha vinhas de importancia. Para os lados da Fonte dos Nabos, Santo Isidoro, Paço d’Ilhas vi culturas mimosas. Na Ericeira só as flexiveis hastes das araucarias resistem á furia do vendaval. Ás vezes quando no temporal as grandes vagas estouram nas arribas passam flocos de espuma por cima da povoação.


Nomes de barcos.—S. Joaquim, vulgo o Bailharito, Feliz Raul, Boa Viagem, Flor da Ericeira, Pombinho, etc.


Pombos-bravos.—São raros nesta costa; numa época vi dois casaes que pousavam nas altas rochas, sob a villa. Pouco adiante de S. Sebastião tenho-os visto tambem, poucos. São pardos-escuros, esguios, muito desconfiados; creio que é na costa algarvia, Sagres, S. Vicente, que apparecem mais; na costa da Arrabida são raros.


Pharoes.—Berlenga. Começou em 1840. Alcance 30 milhas.

Cabo Carvoeiro. Data de 1790. Alcance 9 milhas.

Ericeira. Luzes de direcção, anterior branca, posterior vermelha. Começaram em 1864. Avistam-se a 5 milhas.

[Pg 180]

Cabo da Roca. Data de 1772. Alcance 30 milhas.


Soccorros a naufragos.—Dizem que existe um posto montado, com espingarda Delvine para lançamento do cabo de vae-vem.

De barco salva-vidas nunca ouvi fallar, nem de qualquer melhoramento do acanhado portinho entre bravias rochas, muito pittorescas e perigosissimas.

Numa das ribas vi uma caixa verde com letreiro branco, assim:

Secorros

a

naufragus

Deve ser orthographia official. (Este anno, 1905, vi o letreiro já emendado).


O facho do peixe.—Se o barco que vem do alto, ou da armação, traz peixe, arvóra á prôa o facho, que é uma japona ou oleado de marujo; logo que das arribas avistam o reclamo descem homens e mulheres com as gigas e burrinhos para transporte da mercadoria.


Aroeira.—É com o suco da aroeira que tingem as redes. A planta verde é moida num lagar, por galgas movidas a braço. Na Ericeira vi um[Pg 181] lagar, que não trabalhava. É em Ribamar que hoje moem mais. Em Santo Isidoro encontrei eu umas saloias com seus burrinhos carregados de aroeira, que iam para Ribamar.

E vi tambem ramos de aroeira ornamentando carros carregados de tojo; o verde viçoso da aroeira alegrando o tom escuro do tojo secco.


Phosphorescencia.—Na costa da Ericeira o mar apparece algumas vezes phosphorescente; acho isto notavel; porque no littoral portuguez em muitos sitios nunca se dá este phenomeno, na costa do Algarve é rarissimo.

A gente do mar chama-lhe ardencia. Nas noites de 24 e 25 de agosto de 1900 o espectaculo foi admiravel. As grandes ondas luminosas, de brilho e intensidade differentes, produziam effeito phantastico. Durou muitas horas o esplendido aspecto do mar, especialmente na arrebentação.

Em setembro de 1902 tambem houve ardencia, mas fraca e durando apenas umas tres horas. No livro de A. F. Simões: Cartas da beira-mar, descreve-se um caso de ardentia ou ardencia observado por elle na Figueira da Foz no mez de setembro de 1864.


Cartas nauticas.—Conversando uma vez a respeito de antigas cartas nauticas, indicaram-me uma senhora que possuia algumas, de parentes[Pg 182] que tinham navegado em largas viagens. Eu pedi o favor de as vêr.

Um dia, na sua casa de jantar, escolhida por ser mais facil na grande meza desdobrar as cartas maiores, a senhora D. Maria disse á serviçal que fosse lá acima, ao quarto do Oratorio, buscar as pastas e os rolos, forrados de linhagem.

A creada voltou ajoujada porque era pesado o fardo da papelada. Eram as cartas que tinham servido ao avô, ao pae, aos tios e aos irmãos na vida maritima, porque durante gerações, n’aquella familia, fôra tradicional a vida do mar; ora de pilotos, ora de capitães de navio, muitos dos parentes daquella senhora fizeram longas viagens. As cartas usadas, amarelladas, conservavam o cheiro a breu; tinham as rotas marcadas a lapis, em linhas onduladas ou em zig-zagues, com pequenas cruzes e datas, nas mudanças dos rumos ou marcando singraduras; viagens da Ericeira para Larache ou Casa Branca na costa marroquina, á Terra Nova, á Irlanda, ou de Lisboa para o Brazil, Açores, Madeira, por essa costa d’Africa fóra, ou entre o Funchal e Demerára.

Ha coisas d’estas, ás vezes; começa-se por simples curiosidade, entre phrases banaes e logares communs, e de subito surge o drama. Se eu visse aquellas cartas n’uma loja nada sentiria, mas lentamente mostradas pela santa mulher! Eu ia dizendo o que via e lia, e ella ia lembrando. A carta passou a ser um documento vivo. E quanto mais[Pg 183] recordava mais subia a commoção, avivavam-se saudades, as lembranças de anciedades passadas, as longas espéras de noticias. Certa cruz marcava um grande golpe de mar, outra o sitio em que faltou agua de beber, e a comida; esta agora um incendio a bordo.

De uma vez não houve noticias do parente nem do navio por mais de seis mezes.

Eu dobrava ou enrolava lentamente a carta, e passava-se a outra. Agora era a que servira a bordo do palhabote onde o irmão ia por piloto na sua primeira viagem, e surgiam outras recordações.

Desdobrava-se nova carta, era a de um segundo tio, capitão do navio tal, que andou trinta annos no mar, soffrendo vendavaes e calmarias, e terminou em naufragio em longinqua paragem.

E assim estivemos a ver cartas, algumas horas, e a lembrar anciedades passadas; saudades, receios, que é o manjar de quem tem parentes queridos no mar. Depois a serviçal foi levar, com muita cautella, como cousas sagradas, a pasta e os grandes rolos para o quarto de cima, ao pé do Oratorio.


Os primeiros christãos.—As duas inscripções romanas que ainda hoje felizmente se conservam em S. Miguel de Odrinhas teem servido de base a dissertações de auctores considerados sobre o apparecimento[Pg 184] do christianismo n’esta região a norte de Lisboa. Principalmente a do Seneca.

O nosso D. Rodrigo da Cunha na Historia ecclesiastica da egreja de Lisboa, disserta sobre a pregação de S. Pedro de Rates pela beira mar até Cintra, e dá muita attenção ás duas inscripções romanas.

A razão de julgar que taes inscripções commemoram pessoas christans é porque lhes falta o D. M. S. (consagrado aos deuses manes), inicio vulgar dos lettreiros pagãos.

Base ou principal ponto de partida a respeito da existencia de christãos logo no 1.ᵒ seculo, neste extremo da peninsula, é a chronica de Flavio Dextro, que diz: Lucius Seneca Centurio verus christianus Sintriae occumbit. (Ann. Chr. 50).

Numa edição de 1619, vê-se Senticae, emendado para Sintriae na edição de Leão (Lugduni, 1627 pag. 103).

Ora esta chronica de ha muito está mal afamada, mas percorrendo-a quasi me convenço de que merece alguma attenção; parece-me um texto antigo muito alterado e interpolado.

Ambrosio de Morales, continuador de Floriam de Ocampo, na Coronica general de Hespana (Alcalá de Henares, 1575, 2.ᵒ vol. pag. 245 e segg.) consagra um capitulo a esta questão:==El tiempo del Emperador Neron con todo lo de Seneca (Lib IX. C. 9) e reproduz a inscripção grande de Odrinhas. Não acho base alguma para affirmar a existencia[Pg 185] de christãos logo no primeiro seculo no occidente da peninsula; porque é certo que os lettreiros sepulcraes de individuos christãos começam muito mais tarde; lendas, tradições devotas, sim; mas é difficil tambem marcar datas á creação de lendas piedosas.


Bolos.—As confeiteiras fazem cavacas, pão de ló, esquecidos, suspiros, biscoitos e marmelada. Tambem fazem queijadas, inferiores ás de Cintra. A região da queijada é outra, vae de Cintra a Bemfica, conservando o mesmo typo. Tambem ha queijadas no Alemtejo, excellentes, mas de esthetica mui diversa. O dominio do pão de ló é ao longo da costa maritima ao norte do Tejo, e o da cavaca quasi na mesma região, variando de fórma e densidade, de villa para villa; quasi se póde dizer cada terra com sua cavaca.

S. Antonio.—É uma pequena ermida, toda caiada, que está sobre a muralha da arriba do porto.

Está ahi na parede do occidente voltada ao mar uma cruz formada por azulejos, e tambem em azulejos as imagens de Nossa Senhora da Boa Viagem e a de Santo Antonio, e data 1789.

No nicho ardia d’antes uma grande lanterna, guia dos pescadores, e ainda lá está a sineta que toca quando ha nevoeiro na costa.

[Pg 186]

Egreja de S. Pedro.—Foi restaurada em tempo de D. João v. As pinturas do tecto teem o caracter d’essa época. O cruzeiro ante a porta principal está datado de 1782. O prior Manuel Maria Ferreira fez obras na egreja, e o arcaz da sacristia em 1660.

Creio que a obra d’arte mais antiga que existe nesta egreja é a pequena estatua de S. Pedro, em marmore, com o seu livro e grande chave, que está sobre a porta lateral. Proximo a esta porta está o seguinte letreiro:


—Aqui jazem José Pereira da Cruz e sua mulher Eulalia da Costa e a filha d’estes Maria Rosa e seu marido o professor Antonio Luiz Delgado e alguns filhos d’estes, entre elles o padre Octaviano Augusto Pereira Delgado primeiro e principal promotor do acrescentamento e reforma d’esta egreja o qual pede por esmola se compadeçam das almas dos que aqui jazem, 1872.—

Segundo o recenseamento official tem esta freguezia 737 fogos, com 2:519 habitantes.

Santa Casa da Misericordia.—Foi fundada a irmandade d’esta Misericordia em 1678.

O Compromisso actual foi approvado por alvará de 4 de outubro de 1886.

O antigo compromisso era de 7 de julho de 1697.

Capital 34:650$000 em inscripções.

[Pg 187]

Capital 4:500$000 em acções do Banco de Portugal e da companhia das Lezirias.

Na média entram no hospital uns 70 doentes, annualmente.

Ha pouco teve um legado importante, do sr. Fialho, cavalheiro respeitabilissimo da localidade.


S. Julião.—É uma ermida toda branca, com seu alpendre, erguida na escarpa maritima, a uns tres kilometros a sul da Ericeira. Celebra-se ahi uma festa annual, em setembro, com arraial, a que concorre muita gente dos povos mais visinhos. Proximo do pequeno templo ha casas para os romeiros, para um posto da guarda fiscal, e para venda das offertas.

A disposição da ermida e seus annexos leva-nos a tempos mui antigos. A influencia do convento de Mafra tambem ali chegou, e algumas reparações teem o cunho do seculo XVIII.

A porta da ermida tem a data 1768.

Proximo de S. Julião ha uma fonte milagrosa. Tem duas bicas, que deitam aguas de nascentes diversas, de modo que teem sabôres varios. E seus azulejos com as imagens de S. Julião e Santa Basilissa, e a data 1788.

Teem virtude estas aguas para doenças de olhos, e outras, para todas creio eu, mas é preciso beber, ou lavar-se com as duas aguas. São complementares.

[Pg 188]

Por occasião da festa foram muitas pessoas beber das duas aguas, outras lavar os olhos nas duas pias, outras com bilhas; mas a virtude principal das duas aguas combinadas é contra as sezões.

No arraial de S. Julião vendiam-se poucos comestiveis: bolos de S. Julião, fartes, queijadas, melões e peras, pevides, favas torradas.

Os fartes ou bolos de S. Julião são feitos de massa de trigo com assucar, me pareceu, e alguma canella. São bolos locaes que segundo me affirmaram só se fabricam por occasião da festa.

Vi ahi algumas portas com fechadura especial composta de uma haste grossa, com sua travinca, e que se abre por meio de um páosinho de feitio vario.

Na Ericeira tambem encontrei essa fechadura que eu não conhecia. Um popular explicou-me:==isto é fecho com cavilhas e chaveta.

As pedras de mysterio em S. Julião.—São umas lapides bem trabalhadas com os nomes de S. Julião, S. Basilisa, e Ave Stella matutina, e outras phrases piedosas, dispostas caprichosamente.

Assim Juliam, Basilissa e matutina, em caracteres capitaes muitas vezes repetidos enchem quadrados tendo no centro as iniciaes J. B. e M. e achando-se a palavra lendo para qualquer lado, até aos vertices da figura.

Proximo da ermida ha um logar, o fojo, grande fenda natural da escarpa, onde se deu um milagre; ahi numa lapide lavraram um monogramma[Pg 189] que deve significar Mater Christi. E no angulo do alpendre, superiormente, um cubo de marmore com meridiana muito curiosa.

Algum frade engenhoso fez aquelles quebra-cabeças, para maravilha dos romeiros. A esta ermida se liga a historia do rei da Ericeira.


A bruxa da Arruda.—A celebre bruxa costuma visitar a Ericeira por fins de setembro. É muito respeitada; dizem que é rica, a pobres não leva nada; apresenta-se com muitos oiros. Tem uma filha que já entende de molestias. Em geral leva 300 réis pela consulta. Receita quasi sempre esfregas de aguardente e papas de pão de milho ralado. Mas isto varia em quantidade, tempo, calôr, e no sitio do corpo. Ouvi tambem chamar-lhe a mulher do Casal das Neves, no termo da Arruda dos Vinhos.

Nem precisa ver o doente, levam-lhe roupa do uso do enfermo, uma camisa ou camisola, e ella pelo cheiro conhece a molestia e logo receita. Costuma pousar numa casa do norte da villa, e a sua chegada consta logo entre a pobre gente que a venéra e teme.

==Já teve questões com padres e medicos, já foi aos tribunaes, me disse alguem, e ficou sempre victoriosa!==


O brazão da Ericeira.—Tenho visto representado no brazão da Ericeira um ouriço cacheiro, e[Pg 190] outras vezes um ouriço do mar, inteiro, com sua armadura de espinhos, visto de lado, o que me parece mais logico. Na Fonte do Cabo sobre a inscripção está uma pedra esculpida que deve ser a representação mais antiga das armas da villa, e, se me não engano, quizeram ali representar a boca do ouriço maritimo, donde divergem séries de linhas formando cruz, e um lavor ponteado que allude aos espinhos, admittindo o engano ou convenção das quatro fachas divergentes que deveriam ser cinco se o canteiro fosse mais cauteloso.


O primeiro foral da Ericeira.—Do primeiro foral da Ericeira guarda-se o autographo na Torre do Tombo; está publicado na integra no Port. Mon. Hist. na parte respectiva a foraes, pag. 620. E por esta razão não o transcrevo aqui. É da era 1267 que corresponde ao anno 1229. Foi concedido por D. Fernando mestre da ordem d’Aviz: Ego frater F. magister Avis una cum omni meo conventu do atque concedo populatoribus de Eyrizeira... Note-se que a pronuncia local de hoje é Eiriceira embora toda a gente escreva Ericeira.

Como todos os foraes das povoações da costa maritima este se refere a barcos, a maritimos e pescadores, á pescaria, e aos impostos especiaes do pescado: por exemplo aos pescadores do alto mar, e á baleacion, ou pesca da baleia, então commum a todo o mar português. Faz menção especial de[Pg 191] congros, toninhas e golfinhos; e dos apparelhos de pesca, bigeiro, udra et rete de costana; do pescado fresco, recente e secco. No porto entravam mercadorias: de tota merchandia que per mare ad portum venerit et voluerint vendere dent quarentena. Havia revendedores de peixe: de coloneiro qui comparar piscatum pro a revender det I denarium.

O mesmo imposto para o bofon, ou bufarinheiro.

Á vista do foral a condição dos pescadores não tem variado do seculo XIII para cá. Os mesmos perigos, egual miseria, e a mesma incuria, a mesma falta de protecção.


Sentindo a brisa fortemente salgada, alargando o olhar pela magestosa amplidão do oceano, vem o desejo de saber alguma cousa do que se passa ahi, no meio aquatico, onde pullula a vida. O dr. Augusto Filippe Simões fez um livro bem interessante de vulgarisação scientifica com algumas observações pessoaes, as Cartas da beira-mar (Coimbra, 1867).

Simões era um sabio e um litterato erudito, escrevendo com muita consciencia. Em linguagem facil, corrente mas cuidada, descreve-nos o oceano,[Pg 192] os seus problemas, a salsugem, os movimentos, as marés; e a vida que se agita n’essas aguas, a zoologia e a botanica marinhas.

Um livro que recommendo para a temporada da Ericeira é o Estado actual das pescas em Portugal, pelo distincto official da armada, sr. A. A. Baldaque da Silva (Lisboa, 1892). Tem estampas coloridas representando peixes, crustaceos, molluscos, muitas gravuras de barcos e apparelhos de pesca; não olvidando a focinhada ou focinheira ericeirense, e a antiga rasca que passou á historia; descreve tambem a costa maritima, tão variada em aspectos e circumstancias.

Recentemente vi um livro bem interessante, de sciencia moderna; é L’Océan. Ses lois et ses problèmes, por J. Thoulet (Paris, Hachette, 1904).

Thoulet é um oceanographo que estuda o mar e sabe expôr com clareza as muitas questões da sciencia do mar, a oceanographia, tão moderna e já tão vasta. A chimica do mar, a formação de sedimentos de origens varias, a temperatura e a pressão nos abysmos, a formação da vaga e a razão das marés, as correntes, a vida nas grandes profundidades quietas e sem luz, apparecem-nos tratadas em largos capitulos de leitura que prende a attenção, sem fatigar o espirito.

No 4.ᵒ volume das Maravilhas da natureza, segundo o plano de Brehm, obra celebre, revista e ampliada na parte relativa a Portugal pelo sr. dr. Balthasar Osorio, sabio lente da Escola Polytechnica[Pg 193] de Lisboa, trata-se de peixes, em leitura facil e agradavel.

Como tambem desperta a attenção o aspecto raro das arribas, das suas curvaturas, fendas, aberturas, cavernas, onde apparecem rochas brancas, vermelhas, negras, esverdeadas, cinzentas, umas cheias de fosseis, outras sem vestigio de vida animal ou vegetal, eu lembro a leitura no vol. 2.ᵒ de La face de la terre por Ed. Suess (trad. de E. de Margerie. Paris, 1900), do capitulo intitulado: Os contornos do Oceano Atlantico.

Pelourinho

O concelho da Ericeira foi extincto em 1855, e reunido a Mafra. Tinha o seu pelourinho.

Certas pessoas praticas entenderam que não havendo concelho não era preciso o monumento municipal, e que os degráos de pedra eram bem bons; e aproveitaram os degráos lá para o que bem quizeram, e a columna partida, o capitel e o ornato superior foram enterrados. Isto foi por 1863. Agora (outubro de 1905), o dr. Eduardo Burnay, enthusiasta da branca villa, indagou o sitio onde ficaria o resto do pelourinho, mandou excavar, achou as pedras, e vae mandar reerguer a decorativa columna.

Pela photographia que me mostrou creio que o symbolo municipal da Ericeira pertence ao genero[Pg 194] do de Collares, ainda completo e aprumado, e do de Cintra ha muito desfeito, mas de que ha desenho cuidadoso. Sobre este caso do pelourinho de Cintra publicou recentemente o sr. Mena Junior uma Noticia historica, interessante, com estampas notaveis, e uma planta do Paço da villa, no Boletim da Real Associação dos Archeologos Portugueses.

A columna do pelourinho da Ericeira tinha annel, a meio, como se vê no de Collares, e na estampa do de Cintra; o capitel e ornato superior são do mesmo desenho. Taes pelourinhos são do começo do seculo XVI, reinado de D. Manuel, e correspondem á grande reforma foraleira d’este monarcha.


A respeito da villa da Ericeira varios escriptos teem apparecido publicados, artigos de jornaes, ou revistas, ou capitulos de recordações.

O sr. Eduardo da Rocha Dias no tomo 1.ᵒ e Addenda do seu valioso trabalho Noticias archeologicas, ao tratar da Ericeira, apresenta a bibliographia da interessante villa.


Grande serviço tem prestado á villa da Ericeira o sr. dr. Eduardo Burnay alcançando os meios[Pg 195] precisos para a construcção da muralha de supporte na arriba do porto. Se esta obra tardasse haveria desmoronamento prejudicial á villa, á concha do porto, e á praia apertada onde labutam os pescadores. Actualmente ha tres armações de sardinha, empregando uns duzentos homens, e todo o trabalho se faz na breve praia onde ás vezes as companhas se embaraçam. Não está ainda terminada a obra, pouco falta ao que parece; o que está feito é já muito util.

Muito melhorado tem sido ultimamente o caminho para a praia do sul, e, ao que ouvimos affirmar, vae tratar-se da rampa da praia do norte, que é muito linda tambem. Seria bom melhorar o caminho para Ribamar, que não offerece difficuldades, facilitando assim um bello passeio, util para os povos do sitio, e estabelecendo communicação facil e agradavel com a região dos pinhaes. A primeira parte da estrada de Mafra é de forte declive, uma ladeira de tres kilometros, incommoda para passeio. Assim como seria para desejar o arranjo do caminho para a Lapa da Serra, sitio pittoresco, accidentado, com arvoredo viçoso.

Na Lapa da Serra tem-se desenvolvido nos ultimos annos a industria ceramica: fabrica-se louça vidrada com seus lavôres especiaes, ás vezes de phantastica ornamentação.

Pinhaes, mais pinheiros, é que eu gostaria de vêr na moldura agreste da interessante villa.

[Pg 196]


O sr. Adolpho Loureiro, inspector geral de obras publicas, publicou recentemente o volume segundo da sua excellente e muito util obra: Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes.

A pag. 303 começa a parte relativa ao porto da Ericeira, representado minuciosamente na estampa sexta do respectivo atlas.

Segundo se vê do consciente trabalho do sr. Loureiro é para desejar:==a construcção de obras de drenagem dos terrenos, consolidação das ribas, conclusão das rampas tornando-as aptas para varar os barcos de pesca, e desobstrucção do porto, removendo-se as pedras soltas que se acham na area d’elle a menos de 1ᵐ,5 a 2ᵐ abaixo da baixa-mar, e, finalmente, estudar-se a possibilidade da construcção de um pequeno molhe para abrigo das embarcações de pesca, no caso de poder aproveitar-se qualquer restinga ou pedras que possam servir-lhe de apoio==.

Parece facil a construcção de um pequeno molhe acostavel, que seria de grande vantagem para aquelles pobres pescadores.


[Pg 197]

De Bemfica á quinta do Correio-Mór


(1905)

[Pg 199]

Sabe bem de vez em quando uma excursão fóra das estradas mui trilhadas, longe de caminhos de ferro e de electricos. Pelo meio dia cheguei a Bemfica, á cocheira do largo da Cruz da Era. Cocheira pacata, bom serviço e preço modico; arranjou-se um carrinho; e seguimos pela estrada do Poço do Chão, muito socegada, entre muros de quintas, sebes de caniços, e filas de oliveiras. Passa a quinta da Granja, a da Condessa de Carnide, a do Sarmento ou Bom Nome; deixa-se á esquerda a estrada da Correia; agora o antigo chafariz e o moderno lavadouro, ambos sem agua. Á nossa esquerda fica a egreja parochial de S. Lourenço de Carnide, muito caiada, veneravel pela sua idade; estamos no Alto do Poço, de linda vista campestre. Estes sitios de Carnide e Luz são dos melhores dos arrabaldes da capital, mas infelizmente os senhores da governança não lhes teem dado attenção. Muitas vezes nem agua teem os pacificos e modestos moradores. A hygiene, a limpeza publica[Pg 200] é quasi nulla. Facilidade de communicações não existe. Emfim carencia completa de melhoramentos municipaes. Bons ares e contentem-se. Eis agora a egreja da Luz, isto é, a monumental capella-mór e cruzeiro, porque o corpo da egreja arruinou-se pelo terremoto de 1755.

Mas o que resta pela sua architectura e decoração, principalmente pelas pinturas, é uma joia, essa fundação da inclita infanta D. Maria. Á nossa direita o grande edificio do Collegio Militar. Estamos no amplo largo da Luz, com suas alamedas que mereciam mais attenção e cuidado; a nascente o grande palacio e quinta de Oliveira, vistosa construcção, e entramos na estrada do Paço do Lumiar. Ha um lanço entre muros e vallados, logo a estrada alarga: boas vivendas antigas e modernas.

Um modesto terreiro; a meio a egreja ou antes ermida de S. Sebastião com o seu portal manuelino. Na visinhança boas casas á antiga, a da quinta do Paço por exemplo. Segue a muito nomeada quinta do sr. duque de Palmella, principesca vivenda com seus jardins em socalcos, fontes e lagos, arvoredos antigos, raros exemplares botanicos, e grande residencia. Fica-nos á direita a egreja parochial de S. João Baptista do Lumiar, de fundação muito remota. Passa a rua do Prior, a calçada de Carriche e estamos no campo. Estrada larga, aqui em bom estado, ali em máo, já uma cova, agora um pedregulho, como todas as estradas[Pg 201] do paiz, onde todos querem estradas e ninguem trata de as conservar. Que eu tenho grande esperança nos automoveis; os excursionistas de automovel tanto hão de soffrer e gastar que levantarão celeuma provocando reparações indispensaveis.

Em alguns pontos a estrada está bem arborisada. Estamos na Povoa de Santo Adrião: reparei em certo nicho e poço que vi á direita, e numa pedra lavrada; logo fiz tenção de parar á volta para exame mais demorado. Dilata-se a varzea de Friellas, bom torrão fecundo. O saloio é bom agricultor, eximio no hortejo. Aqui, além de trigo e milho, ha grande cultura de batata e ainda mais da hygienica cebola. Pelos telhados amarellecem enfileiradas as corpulentas aboboras machadas. Avisto algumas casas boas, antigas, agora em ruina.

Evidentemente por estes sitios em tempos idos residiram pessoas abastadas; agora quem tem meios vae para a cidade para gosar e não trabalhar, nem vigiar. Estamos em Loures, eis a egreja matriz, grande templo, de fundação mui velha e reconstrucção moderna; contiguo o antigo cemiterio num abandono vergonhoso, servindo para estendal de roupas. Mais um pouco de estrada e topa-se á esquerda uma avenida bem tratada, recatada, com suas filas de oliveiras; entramos na quinta do Correio-Mór. Ainda uns minutos e chega-se a um portico monumental, elegante e bem construido, encimado pelo brasão dos Mattas, e entramos[Pg 202] em bello páteo, frente e alas do palacio formando os tres lados.

O palacio está em fundo valle apertado entre altos montes vestidos de arvoredos e vinhas até meia encosta; a região inferior povoada de laranjaes, agora um pouco doentes, e de hortejo viçoso. Provavelmente edificaram o palacio naquelle covão por causa das aguas; e de facto ha agua corrente em muitos pontos da grande residencia. Um vestibulo amplissimo; começa a escadaria larga, suave, magistralmente construida; no primeiro patamar uma fonte artistica, grande taça de um só bloco de marmore, estatuas, e um lindo medalhão com busto, talvez do Matta fundador do palacio. Está bem conservado o edificio; repararam ainda ha poucos annos os telhados; não chove agora nas salas; mas antes houve abandono e perderam-se ou estragaram-se alguns trabalhos preciosos.

No Correio-Mór a construcção é boa a valer, a architectura é elegante; mas ha ainda a notar nos grandes salões, nas salas e gabinetes, a variedade e o gosto da ornamentação.

Empregaram-se ali artistas de primeira ordem no seu tempo. Houve todavia alguns concertos e enxertos de máo gosto e inferior qualidade. As salas da musica, da dança, a dos apostolos, a capella, o grande salão de jantar, teem azulejos, estuques, pinturas, e obras de talha de merecimento. A cosinha é monumental, com as suas chaminés,[Pg 203] pias de lavagem, grandes mesas de marmore, e azulejos decorativos muito especiaes. O conjuncto é uma raridade. No jardim tambem ha obras de arte, e o enorme tanque da horta, com sua guarnição de azulejos, merece ser visto.

Este palacio tem um historia. Luiz Gomes da Matta, homem de fartos haveres, foi nobilitado por Filippe ii que lhe deu brazão:==em campo de ouro tres mattas verdes em roquette sobre penhascos verdes; timbre uma das mattas.==

Este Matta comprou tambem o fôro de fidalgo e o officio de correio-mór, e arvorou a quinta da Matta em solar. Chamaram-lhe depois a quinta da Matta do Correio-Mór. Hoje toda a gente d’aquelles sitios lhe chama o Correio-Mór. A quinta e palacio pertenceram á Casa Penafiel até ha poucos annos, e actualmente ao sr. Canha, negociante de Lisboa. Merece a pena um passeio a essa antiga residencia.

Azulejos

O alto rodapé da sala de jantar é de azulejos, azul em fundo branco, em grandes e pequenas composições conforme os espaços; é trabalho, e grande, feito propositalmente para ali, para aquelles vãos de parede, bem composto e executado. Uma serie de quadros representa, parallelamente, as phases da vida humana e a historia de um navio. Aqui se vê a criança de mama, ao colo da[Pg 204] mãe, e o berço, as graciosas pequenas roupas; logo as scenas da primeira infancia, as ingenuas brincadeiras. Neste quadro rapazotes bem postos aprendem os exercicios da caça, noutro representa-se-nos uma aula, os meninos attentos á lição do mestre. Vae seguindo a construcção do navio, ali o fabrico do cavername, depois o assentar do forro, o trabalho do calafate; logo o erguer dos mastros. E toca a viajar sobre as aguas do mar, para a India ou para o Brazil; lá está o navio com o velame ao vento, prestes a sahir do porto.

Temos agora um casamento, e no quadro seguinte uma profissão em casa religiosa. Era o caminho necessario em familias antigas, de bens vinculados; o excesso de filhos trasbordava para as armas, ou para o claustro; meninas sem dote raras casavam, iam para freiras, e em certos conventos passava-se muito bem a vida. Em varios quadros scenas da vida caseira; o concerto musical; a dança animada; os prazeres campestres de boa sociedade.

Um naufragio agora, o navio torturado, pannos rotos, mastros partidos no vendaval furioso. Muitas outras scenas, bem desenhadas e compostas, com sufficiente minucia em trajos e utensilios, mesmo em attitudes, se nos deparam na interessante serie de azulejos.

Noutra sala os azulejos, em rodapé, representam as quatro estações. Na sala chamada dos Apostolos ha caçadas de montaria, do veado, do[Pg 205] javali, do leão. Esta sala tem um esplendido tecto de madeira, em variados caixotões, formando grandes molduras com obra de entalhado, pintado e dourado, frisos de flores, e os lisos pintados a oleo representando scenas mythologicas.

Na capella os azulejos representam scenas de devoção; eremitas e frades oram e meditam; num d’esses quadros surge um anão risonho. No jardim vi tambem uma estatua de anão, bem executada.

Na cosinha, tambem ha azulejos a notar na cosinha, aparecem as peças culinarias, coelhos, perdizes, presuntos, chouriços, hortaliças. A cosinha do Correio-Mór é magnifico exemplar completo, com as suas grandes chaminés, grandes mesas de marmore, e agua corrente em abundancia.

Em rodapés de ante-salas, em alegretes de jardins, encontram-se frequentemente as scenas da comedia italiana, as serenatas, os jogos, casos de amores e ciumes, brigas de espadachins, cortezias de tafues, as varias combinações de Pulcinello, Arlechino e Scaramuccia, de Fracasso e Tagliacantoni, com Lucrecia, Colombina e a Signora Lavinia; não faltam os capitães Ceremonia e Cocodrillo, nem os casos comicos de medicos e barbeiros.

Domina sempre n’esta alegre ornamentação o typo italiano, o que não se estranha attendendo aos muitos artistas de Italia que vieram a Portugal no seculo XVIII, e á tendencia dos artistas portugueses a irem a Roma procurar a perfeição artistica.[Pg 206] Mas ha excepções; uma bem saliente na quinta dos marquezes de Fronteira em S. Domingos de Bemfica; ha ahi azulejos hespanhoes e hollandezes de merecimento e excellente conservação.

O Matta, Correio-Mór

Foi Luiz Gomes da Matta o instituidor do vinculo ou morgado da quinta da Matta, não me parece todavia que elle fizesse o grande palacio. Seu filho e successor Antonio Gomes da Matta fez grande testamento que por quaesquer questões foi impresso:==Testamento que fez Antonio Gomes da Matta, correyo mór que foi deste Reyno de Portugal. Lisboa, off. Craesbeeckiana, 1652, in-4.ᵒ, 136 pag.==

A pag. 62 do testamento, mencionando varias propriedades, diz simplesmente==quinta da Matta com suas terras e azenha e mais pertenças propriedade que Luiz Gomes da Matta, meu pae, deixou vinculada.==

E nada mais; não falla do palacio, das obras d’arte, etc.; quando é minucioso relativamente a outras cousas menores.

É testamento interessante; o testador era homem piedoso, devoto, muito rico.

Possuia grandes predios em Lisboa, quintas na Luz, em Loures, em Almada, grandes herdades no Alemtejo, no termo de Elvas. Grande capitalista, emprestava dinheiro sobre penhores.

[Pg 207]

A sua casa de morada em Lisboa estava posta com fausto; menciona os pannos de raz, e brocateis que forravam as paredes das salas; tinha joias de grande valor, e enorme quantidade de pratas.

Fazia festas religiosas; dava cera, azeite, dinheiro para muitas imagens; no testamento contempla dezenas de corporações religiosas, de parentes, de creados, e de empregados do correio, amigos e compadres. Mas não falla de grande residencia na Matta. Por esta razão, e pelo edificio que vejo agora, creio que o palacio actual foi erguido em tempo de D. João V, soffrendo algumas modificações em época mais recente.

Mas temos em Volkmar Machado um dado importante; ao tratar do conhecido pintor José da Costa Negreiros, conta que foi discipulo do famoso André Gonçalves==cujo estylo seguia com mais sisudeza mas com menos agrado==, e que fez alguns tectos em Loures, na quinta do Correio-Mór.

Negreiros morreu em 1759.

É possivel que as pinturas da sala dos Apostolos sejam, em parte, de Negreiros; outras serão de seus discipulos Bruno José do Valle, ou Simão Baptista; mas as decorações de outras salas, e especialmente os grandes trabalhos a estuque, devem ser da segunda metade, adiantada, do seculo XVIII, pois que a furia da decoração a estuque foi posterior ao terremoto de 1755.

[Pg 208]

O officio de Correio-Mór

Parece que antes de 1520 não havia em Portugal serviço de correio organisado regularmente.

Mandavam-se proprios, e dispunham-se postas quando assim era preciso. Nos caminhos de maior transito, em intervallos de 3 a 4 leguas, as estalagens tinham cavallos para muda, que alugavam.

Em 1520 el-rei D. Manuel criou o officio de correio-mór; foi Luiz Homem, ao que dizem, o primeiro a exercer o cargo.

Em tempo de D. João III appareceu a primeira lei ou regimento postal.

O segundo correio-mór chamava-se Luiz Affonso; seu genro Francisco Coelho, foi o terceiro.

O cargo conservou-se na familia até 1606 em que falleceu Manuel Gouvêa, o quarto no cargo.

Então Filippe II mandou vender o officio; que foi comprado por 70:000 cruzados, por Luiz Gomes da Matta, em 19 de julho de 1606.

O correio-mór tinha a seu serviço estafetes, mestres e creados de posta, e varios assistentes. O serviço do correio foi sempre augmentando, sem alteração fundamental do regime até 1852, embora este ramo pertencesse ao Estado desde 1797. Neste anno, em alvará de 16 de março, D. Rodrigo de Sousa Coutinho foi encarregado de tratar com o Correio-Mór a cedencia do officio.

Manuel José da Maternidade Matta de Sousa[Pg 209] Coutinho, o ultimo correio-mór, recebeu em indemnisação pela cedencia do officio o titulo de conde em tres vidas, a renda annual de 40:000 cruzados, pensões vitalicias a diversas pessoas, cuja somma andava por 400:000 cruzados, e um ou dois postos no exercito.

Foi este o primeiro conde de Penafiel.

O segundo conde e primeiro marquez de Penafiel foi Antonio José da Serra Gomes pelo seu casamento, em 1861, com a segunda condessa desse titulo.

Pelas quantias indicadas se vê o augmento de importancia do correio entre 1606 e 1797, ainda que nessa época pequeno progresso tivera a viação publica.

Estuques

O uso do estuque é muito antigo; ha exemplos no velho Egypto, na remota Assyria; os romanos o empregaram vulgarmente; em Pompeia ha tectos, frisos, cornijas de gesso. Bysantinos e arabes usaram do estuque, principalmente os arabes de Hespanha; os estuques pintados da Alhambra são admirados no engenho da decoração geometrica, no effeito da combinação de tons. Durante largo tempo esqueceu o estuque, para reviver no meiado do seculo XVI. Mas então renasceu e logo se desenvolveu em processo e applicação; fizeram-se frescos[Pg 210] sobre estuque de gesso, modificaram-se as pastas, formaram-se grandes composições em alto relevo.

Em Portugal ha noticia de estuques no seculo XVII, de pouca importancia.

Poucos annos antes do grande terremoto de 1755 appareceu em Lisboa um artista italiano de grandes aptidões, João Grossi, que iniciou grandes trabalhos neste genero. Outro estucador, primeiramente simples ajudante de Grossi, Gommassa, se tornou notavel.

O marquez de Pombal empregou-os nas suas propriedades. O terremoto tornou necessarios trabalhos rapidos e os estucadores prosperaram; e vieram mais estucadores italianos, Chantoforo, Agostinho de Quadri, que introduziram novos processos. Nas Janellas Verdes, no palacio pombalino da rua Formosa, na egreja dos Paulistas, etc., ha trabalhos d’estes italianos.

O marquez de Pombal chegou mesmo a fundar uma escola de estucadores, de que foi mestre o Grossi (1766).

Trabalhou-se immenso em estuque, bem e mal, com arte ou sem ella; João Paulo da Silva trabalhou no palacio na quinta das Laranjeiras (por 1798), assim como Felix Salla, outro italiano discipulo do celebre milanez Albertoli, que fez reviver a grande ornamentação dos gregos e do imperador Augusto.

É certo que por este tempo estucadores portuguezes[Pg 211] foram trabalhar a Hespanha, tanto se tinha aqui progredido neste ramo.

Por 1805 entrou em Lisboa um estucador suisso de grande habilidade, Vicente Tacquet que trabalhou com Francisco Espaventa e outros.

Vieram os desastres da guerra, e alguns dos melhores artistas refugiaram-se no norte do paiz, no Porto, e em Vianna do Castello, Caminha, Affife que nos tempos modernos, nos ultimos 40 annos, tem produzido bons artistas estucadores.

De Rodrigues Pitta são os tectos do palacio do marquez de Vianna (1846) ao Rato, hoje propriedade do sr. Marquez da Praia.

Em 1855 e 1856 ornamentou o salão de baile do palacio da Junqueira (actual palacio Burnay) e dois salões do palacio Costa Lobo, no campo de Sant’Anna.

Deixou trabalhos de grande folego nos palacios de José Maria Eugenio d’Almeida, a S. Sebastião da Pedreira, Gandarinha que tem magnificas escaiolas na galeria, e no do Marquez de Penafiel.

A esplendida sala do conselho de Ministros, no Ministerio do Reino, tem o tecto muito trabalhado, não de grande effeito.

Cinatti introduziu em Lisboa um artista, seu parente, Joanni, notavel imitador de marmores, e bom artista em estuque lucido.

Nos ultimos vinte annos a mania pelo estuque, especialmente pelas imitações de marmores, tem sido, a meu vêr, exaggerada.

[Pg 212]

E, o que é grave, na maioria esses trabalhos são mal dirigidos e executados. Tem sido um desastre.

Ha estuques carregados de relevos que em tres ou quatro annos estão fendidos e estragados.

Imitações de marmores, quasi tão caras como os modelos, estaladas em poucos mezes. Mas a mania pelos estuques não é só na capital; ao norte do paiz ainda foi, e é, mais intensa.

No Porto ha estuques antigos, dos melhores, no palacio dos Carrancas, e modernos na Bolsa.

No Minho citam-se como notaveis os do palacio da Brejoeira, obra dos Alves, de Fafe, por 1850.

Em Evora temos os mais recentes no theatro Garcia de Resende, fino trabalho do Meira.

Será rara a egreja da Provincia, onde tenha havido reparos nos ultimos annos, que não possua amostras de estuque moderno, de facil execução e de mau effeito passado o lustro dos primeiros mezes.

Nas salas do Correio-Mór ha tectos estucados a baixo relevo muito distinctos e paredes ornamentadas a esgrafito de algum effeito.

Volkmar Machado deixou-nos algumas noticias sobre estucadores, que Liberato Telles utilisou no seu trabalho publicado no Boletim da Associação dos Conductores de Obras Publicas. Vol. IV. 1900.

[Pg 213]

Egreja de S. Lourenço de Carnide

O logar de Carnide, que faz parte agora da capital, é muito antigo; existia já povoado e cultivado no meiado do seculo XIII.

O mosteiro de S. Vicente possuia aqui uma vinha e uma herdade, como se lê nas inquirições do reinado de D. Affonso III. Por esse documento, importante para a historia de Lisboa e seus termos, se vê que em tão remota época já nestes logares de Carnide, Charneca, Queluz, Falagueira, Odivellas, Palma e Telheiras havia culturas, vinhas e povoados que contribuiam para o rei, para as ordens militares, e para os grandes mosteiros.

Em 1342, o bispo de Lisboa, D. João, mandou edificar a egreja á honra de S. Lourenço, por Pedro Sanches, chantre da sua sé, e a deu a seu capellão João Dor. Era já egreja parochial no seculo XIV.

Em meio de amplo terreiro, murado, orlado de oliveiras, com larga vista de campos e collinas ergue-se a egreja com o seu campanario, em linhas de singela construcção. A orientação e disposição da egreja é antiga, todavia pouco se vê do seu estado primitivo.

Está bem reparada, de ha poucos annos.

É um templo alegre, com as suas obras de talha dourada, as paredes forradas com azulejos, de azul sobre branco, em grandes quadros, allusivos á vida de S. Lourenço.

[Pg 214]

Tem cinco altares, o maior, o da Senhora do Rosario, do Crucificado, de S. Miguel, e o de Jesus-Maria-José.

No altar-mór ha um quadro bom, o lavapedes, mal restaurado, infelizmente; algumas campas com lettreiros no chão da capella-mór; duas pias d’agua benta que são dois capiteis do seculo XIV, escavados; na sacristia um arcaz de boa madeira, com metaes bem cinzelados.

O terreiro ao redor da egreja era d’antes o cemiterio; campas e ossadas foram removidas para o cemiterio dos Arneiros (Bemfica). Ficou apenas uma grande pedra, com inscripção latina, que era o tumulo de José João de Pinna de Soveral e Barbuda, fallecido em 1710.

Para o novo cemiterio de Bemfica foi removida a campa de D. Anna Maria Guido, marqueza de Ravara, fallecida em 1752.

No alto de um cunhal, do lado do sul, está uma pedra com lettreiro em caracteres gothicos (seculo XV, talvez) que diz:—Esta sepultura he de Luis d’Abreu e de todos seus herdeiros.

Na capella-mór ha bastantes campas.

—Esta sepultura é de Joam da Costa de Mendonça e de quem nela se quizer enterrar.

—Sepultura de Francisco Jorze e de sua molher e de seus herdeiros... de 1569.

—Sepultura de George Pires e de sua molher e herdeiros. 1616.

—Sepultura de Jozeph da Costa e de sua mulher[Pg 215] Catharina da Costa a coal faleceo a 28 doutubro de 1712 e pera todos os seus herdeiros.

—Sepultura de Guilherme Street Arriaga Brum da Silveira e Cunha e familia. 28 de outubro de 1826. P. N. A. M.

—Esta sepultura mandou fazer João Correa pera se enterrar nella e seus herdeiros.

—Sepultura de Antonio de Almeida e seus herdeiros faleceu a 14 de mayo de 1601 anos.

—Sepultura de Luiz Ramalho Pre... e de sua mulher Francisca de Almada Tiba e de seus herdeiros faleceu a X d. de junho de 1637.

—Sepultura de Bastião criado de S. M. e de seu herdeiro. Faleceo a 5 doutubro de 1796.

—Sepultura do P.ᵉ H.ᵐᵒ Machado cura que foi nesta igreja muitos annos e de seu herdeiro.

—Sepultura perpetua de Simão Moreira e sua molher Domingas Francisca e de seus herdeiros a qual lhe mandou pôr seu filho o P.ᵒ Luiz Moreira. 1678.

—Sepultura de Lianor Jorze molher que foi de Luiz Glz d’Oliveira provedor dos contos do reino faleceo a 21 doutubro de 1567, e de seus herdeiros.

Transcrevi estes lettreiros porque são ineditos.

Na frontaria da egreja está uma inscripção referente á fundação; e uma pedra com escudo d’armas que não sei explicar; não me parece portuguez, nem hespanhol esse curioso brazão em que se vê uma perna com bota, por baixo de uma estrella.

[Pg 216]

É bem interessante a modesta egreja, agora parochia da capital.

Luz

Da egreja de Nossa Senhora da Luz resta-nos o cruzeiro, e a capella-mór; o corpo da egreja abateu por occasião do terremoto de 1755. É da fundação da infanta D. Maria, senhora opulenta e de alta cultura d’espirito. Nesta egreja ha obras d’arte notaveis em esculptura de madeira e pedra, em architectura, e em pintura. A capella-mór tem 12 x 8 metros; o cruzeiro 21 x 10.

A capella-mór é ampla, alta, coberta de abobada revestida, assim como as paredes, de marmores diversos formando quadrellas; é o conhecido estylo classico dominante no findar do seculo XVI. Nichos com estatuas animam as grandes paredes. Na parede que olha ao sul estão rasgadas janellas que dão bastante claridade.

O altar-mór está elevado, sobre o pavimento da capella; quatro degraus se sobem para lá chegar.

Além do altar-mór abre-se um grande arco que abriga o sacrario, soberba obra d’arte muito elegante, em madeira entalhada e dourada; atraz fica o vasto côro, agora sacristia, no mesmo nivel da egreja. Proximo do grande altar, no chão, ha uma abertura circular que diz para a fonte de agua milagrosa.

[Pg 217]

A meio da capella-mór o singelo tumulo da fundadora.

Na capella-mór ha duas capellas lateraes; outras duas no cruzeiro.

Empregaram na construcção marmores branco e vermelho, servindo-se da pedra d’Arrabida na ornamentação; nos frisos e molduras sobresahem quadrados, losangos, ellipses feitos n’essa pedra, bem trabalhada e polida. A pedra vermelha fórma o fundo, a branca a parte saliente e ornamental.

Nos grandes nichos da capella-mór estão dezesete estatuas em marmore: Nossa Senhora com o Menino de Jesus, S. Thomé, S. André, S. João, S. Lucas, S. Matheus, S. Marcos, S. Simão, S. Mathias; estas á direita, olhando para o altar-mór; á esquerda, S. Filippe, S. Thiago Maior, S. Pedro, S. Judas Thadeu, S. Thiago Menor e S. Bartholomeu. As estatuas da Virgem e dos Evangelistas são maiores.

Estas estatuas são em marmore branco d’Estremoz, lindo marmore; o trabalho é muito pegado, os artistas não se atreveram a desligar, a destacar braços ou mãos.

No exterior do edificio, lado sul, ha outra estatua de Nossa Senhora com o Menino e, ainda uma terceira na frontaria do Collegio Militar; todas da mesma época e do mesmo estylo acanhado. São todavia de bom trabalho, e representam excellentemente o estado da estatuaria em Portugal naquelle tempo.

[Pg 218]

No altar-mór admiramos alguns baixos relevos em fino jaspe, em seis pequenas pilastras; são figuras symbolicas da Fé, Justiça, Fortaleza, etc.

Sobre a figura da Fortaleza ha um medalhão com Hercules, o leão e o centauro finamente executado.

Uma das figuras é a Astronomia, outra a Medicina. Nas pilastras que formam as esquinas do altar, as faces lateraes mostram fructas e flores, escudos e peças d’armadura. Estes bellos baixos relevos são de pura renascença, d’um estylo muito anterior ao frio classicismo da capella-mór.

Alguns dos symbolos destoam da ideia christã, parecem deslocados na ornamentação d’um altar-mór. É possivel que sejam peças destinadas a outra obra d’arte, que foram aqui aproveitadas. Nas duas capellas lateraes do cruzeiro de Santa Maria de Belem (Jeronymos) ha uns lindos baixos relevos nos altares, pouco vistos, que passam mesmo despercebidos porque teem luz escassa, que, me parece, se relacionam com estes da Luz na qualidade da pedra, e no estylo do trabalho. E no portico do poente, nos Jeronymos, superiormente, ha duas pilastras que dizem com estas da Luz[1].

[1] Devemos lembrar que Jeronymo de Ruão, architecto da Luz, tambem o foi da capella-mór dos Jeronymos

Na alta parede da frente da capella-mór ha oito quadros em disposição symetrica; o maior[Pg 219] occupa o centro, é Nossa Senhora da Luz com o Menino, que apparecem ao pobre Pedro Martins; o milagre que deu origem á fundação da ermida primitiva.

Este quadro está assignado: Franciscus Venegas, Regius pictor faciebat.

Sobre este quadro está outro painel de moldura circular, que representa a Coroação da Virgem; está tambem assignado: F. Venegas. f. Como estes dois quadros estão bastante altos as assignaturas não se descobrem á primeira vista, mas é facil a leitura com um binoculo regular.

Á esquerda da Coroação está a Adoração dos Reis, á direita a Apresentação no Templo, em molduras ellipticas; não lhes descubro assignatura. Aos lados do grande quadro do milagre de Pedro Martins, está a Visitação á esquerda, e á direita a Adoração dos pastores; não lhes vejo assignatura; por baixo á esquerda Nossa Senhora e S. Joaquim, á direita a Annunciação, este assignado: F. Venegas f.

Os paineis não assignados podem ser do mesmo artista Venegas; são pinturas em madeira, bem desenhadas e pintadas, em boa conservação. Á primeira vista estas pinturas destoam, divergem entre si; a meu vêr porque o pintor, que era excellente executante, não tratou de inventar, contentando-se em copiar, ou quasi, os bons quadros que conhecia.

Assim este quadro recorda Raphael, outro o[Pg 220] Sarto, aquelle o Parmesão; na Coroação da Virgem, singelo grupo em fundo dourado, parece vêr-se a reproducção de quadro muito antigo de um primitivo; na grande composição central lembra logo a Transfiguração de Raphael; na Annunciação, que tem grande vigor de colorido, e luz intensa de grande effeito, recorda o Mazuoli. Isto é, este Venegas, excellente pintor, está completamente dominado pela escola italiana.

Na capella da esquerda está o quadro da Circumcisão. O fundo é formado por apparatoso edificio do renascimento. A figura da Virgem é admiravel; á esquerda, a Caridade, mulher com duas creanças, de bom effeito; á direita, no fundo escuro, a Humildade. No primeiro plano vê-se um tapete persa e um cãosinho felpudo, de luxo, pintado com muito cuidado.

Na capella á direita a Sacra Familia, Anjos coroando: fundos claros, edificio do renascimento em ruina. Detalhes minuciosos.

O trabalho d’esculptura em madeira dourada que reveste a grande parede da capella-mór faz bom effeito; é desegual, talvez em parte material aproveitado para encher o vão. Mas o sacrario é uma peça de grande elegancia; renascença classica de cuidadosa execução.

Na capella esquerda do cruzeiro está um quadro notabilissimo. S. Bento dá a regra aos seus monges. No primeiro plano á esquerda el-rei D. Manuel, á direita a infanta D. Maria. Um fidalgo[Pg 221] e diversos monges formam grupo atraz da figura do rei, uma dama e muitas freiras estão depois da infanta. Todas as figuras estendem o braço direito, a palma da mão para cima como signal de acceitação da regra. O pintor para evitar monotonia variou muito as posições dos dedos; foi um verdadeiro esforço, um trabalho habilidoso e paciente o desenho de tantas mãos; a mão fina e lisa das damas novas, a nodosa e enrugada das velhas, a robusta e a gorducha dos fortes monges. D. Manuel tem o collar de Christo. A infanta veste com fausto; vestido de tissu lavrado, apertado na frente com laços de fitas com agulhetas; joias com pedras preciosas, gorgeira de fina renda, gola muito alta, collar com fita pendente de ouro e pedras. O lindo rosto juvenil da dama de côrte, vestida mais modestamente, pintado n’um tom menos brilhante, succede muito bem á magestosa grande dama, e prepara para o aspecto ascetico do grupo de freiras. Tanto estas como os frades teem phisionomias estudadas; são retratos. Por isto este painel tem o duplo valor de obra d’arte, e de documento historico, dando-nos ainda preciosos elementos de indumentaria. Ha outros retratos da infanta; e o busto de prata que se conserva em Santa Engracia (antiga egreja dos Barbadinhos) harmonisa com este em aspecto e vestuario.

As grades da capella-mór e das outras capellas são em pau santo com torcidos.

No cruzeiro á direita fica outro altar. É a capella[Pg 222] do Senhor dos Afflictos; é a imagem de Jesus Crucificado, esculptura em madeira de boa execução, corpo robusto com anatomia estudada. Sob a imagem, n’um friso, ha duas taboas pintadas que merecem attenção. Em uma Santo Antonio e S. João Baptista; na outra as santas Agueda e Luzia, com os seus emblemas. São pinturas talvez do começo do seculo XVI alli applicadas.

No cruzeiro, á direita, uma porta singela dá para uma pequenina capella, agora sem culto; construcção do começo do seculo XVII. Tem rodapé de azulejos, altar e chão de boa pedra. Está aqui um tumulo com escudo de armas sem lettreiro; outro com brazão e a seguinte legenda:

—Aqui está sepultado o religiosiss.ᵒ varão da ordem de Chr.ᵒ D. F. Martinho de Ulhoa bispo que foi de S. Thomé, Congo e Angola juntamente que mandou fazer esta capella em a qual se lhe diz missa quotidiana falleceo a 8 d’agosto de 1606.—

Guarda-se na sacristia (antigo côro) um grande retabulo que servia de tapar o vão do arco da capella-mór. Representa o milagre de Nossa Senhora a Pedro Martins. É fraca pintura. Está assignado e datado: Anno de 1714. Henrique Ferreira fez.

Sobre o altar da sacristia está a imagem de Nossa Senhora dos Remedios.

É esculpida em madeira, e por nesta ter dado o caruncho a vestiram de seda para occultar as[Pg 223] lesões. Merece toda a attenção. É pintada e dourada; luxuoso vestido rodado de mangas perdidas, fita de joias em relevo com imitação de pedras finas. No vestido o artista imitou rico tissu floreado.

O vestuario d’esta imagem recorda o do retrato da infanta. Deve ser esculptura do fim do seculo XVI.

Da mesma época deve ser um grande frontal com o brazão da infanta bordado no centro e aos lados; tem fachas de velludo vermelho com bordado alto a ouro e prata, sendo os vãos ou entrefachas de seda branca.


Junto do altar-mór a abertura do poço ou fonte da agua milagrosa, um simples bocal raso com tampa de madeira.

A fonte é bem curiosa. A entrada deita para um quintal contiguo. Descemos a escada e na parede vemos alguns azulejos antigos, mouriscos, de fino esmalte e relevos. Um portico em estylo manuelino dá para o espaço onde nasce a agua; uma abobada forrada de azulejos brancos com estrellas azues; outros revestem os rodapés e paredes, em pequenos quadros formados de quatro azulejos, de diversos typos, alguns raros. O portico tem columnas torcidas e no intercolumnio uma facha com romans.

[Pg 224]

Os pintores da Luz

Filippe I (II de Hespanha) n’uma carta de 14 de março de 1583 chama a Francisco Venegas, meu pintor.

(Sousa Viterbo, Noticia de alguns pintores, Lisboa, 1903, pag. 153).

D. Sebastião, em alvará de 6 de maio de 1577, diz: Diogo Teixeira hum dos melhores pintores de imaginarya dolio que ha nestes reynos.

(Ibidem, pag. 142).

Na collecção de desenhos expostos no Museu das Janellas Verdes, os n.ᵒˢ 307 e 308 parecem-me representar as duas figuras que estão em baixo relevo no altar-mór da Luz.

O desenho n.ᵒ 346 (Museu das Janellas Verdes) é de Venegas; uma rubrica indica que é o projecto de um quadro para S. Vicente de Fóra, e que se executou uma réplica, menor, para S. Domingos de Setubal.

A collecção de desenhos do Museu das Janellas Verdes é muito importante, e vista com attenção dá elementos unicos para a historia da arte em Portugal. Ha mais collecções de desenhos em Portugal em estabelecimentos publicos, e na posse de particulares, que insta tornar conhecidas.

[Pg 225]

Creio que o n.ᵒ 268 é o esquisso do quadro da capella lateral, a Circumcisão; architectura á romana; o sacerdote no faldistorio, etc., nem falta o cãosinho felpudo.


Jeronymo de Ruão foi architecto da infanta D. Maria; entre outras obras fez a capella da Luz e a capella-mór dos Jeronymos.

Nos dois capitulos O lindo sitio de Carnide e Noticias de Carnide dei outras noticias e publiquei lettreiros d’esta egreja da Luz, que julgo escusado repetir agora.

Para a historia da inclita infanta D. Maria é fundamental a—Vida de la serenissima infanta dona Maria, por fr. Miguel Pacheco (Lisboa, 1675).—Modernamente appareceu á luz um trabalho a respeito da infanta e de suas damas pela Sr.ᵃ D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Escusado dizer, é bem conhecida a alta intelligencia e a intensa investigação da auctora, que é escripto fóra da bitola vulgar. Nelle se dá noticia dos differentes retratos da infanta D. Maria.

Transcrevo a curta biographia que vem nos Elogios de varões e donas por ser menos conhecida agora, pois esta obra tornou-se pouco vulgar.

[Pg 226]

Biographia da infanta D. Maria

A Infanta D. Maria tão illustre pelo dote da formosura, como pelo engenho, erudição, graça, e todo o genero de heroicas virtudes, que a constituiram uma das mais recommendaveis princezas do seu seculo, foi filha d’El-Rei D. Manoel, e da Rainha D. Leonor de Austria sua 3.ᵃ mulher. Seu nascimento foi na cidade de Lisboa, em sabbado 8 de junho de 1521 nos paços da Ribeira; e a 17 do mesmo mez foi baptizada pelo Arcebispo de Lisboa, D. Martinho Vaz da Costa, escolhendo El-Rei seu pai para padrinho em nome de Carlos III, Duque de Saboia, o Barão de S. Germano, Senhor de Balaison, enviado então por Embaixador a este Reino para solicitar o cazamento da Infanta D. Brites com o dito Duque; e madrinhas a mesma Infanta D. Brites e D. Isabel suas meias irmãs. Com a morte d’El-Rei seu pai no mesmo anno de 1521, e por se auzentar para Castella a Rainha sua mãi deixando-a ainda no berço, foi entregue para ser educada em idade competente á direcção da Rainha D. Catharina sua tia, tanto que chegou a este Reino, de cuja escola saiu eminente. Como era dotada de estranha viveza, memoria, e grande juizo aprendeu com facilidade as linguas especialmente a Grega, e a Latina que soube com perfeição, e escreveu com tanta propriedade como se lhe fôra natural e materna. Teve por mestres a insigne Dama Toledana Luiza Segéa exquizitamente[Pg 227] douta em muitas linguas, e raro prodigio de sciencia, que mereceu ser celebrada dos maiores letrados d’aquella idade; e a Fr. João Soares de Urró da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, depois Bispo de Coimbra, que tambem o foi dos Principes D. Filippe, e D. João seus sobrinhos.

Ao contar dezaseis annos El-Rei D. João III seu irmão lhe deu caza propria, e separada do paço Real, composta das principaes pessoas do Reino: a qual com riquissimo dote, que seu pai lhe deixou, foi de tão grande renda e estado, que para ser igual á das maiores Rainhas da Europa não lhe faltou mais, que haver o nome de uma d’ellas. Foi Senhora de Vizeu, e de Torres Vedras de juro, e teve por El-Rei D. João III seu irmão muitas mercês, e privilegios, e consta por alguns Documentos que se guardam no Real Archivo, como são: uma carta em data de 26 de janeiro de 1545, em que se lhe concedem de padrão de juro e herdade cinco contos de réis, em virtude do contracto feito com o mesmo Rei D. João III que se acha inserto; e duas cartas expedidas á mesma Senhora Infante de privilegios, e jurisdição de suas terras, e sobre as fintas, e provimentos dos officios d’ellas em data de 2 de novembro do mesmo anno: o primeiro no Livro da Chancellaria do dito Rei a fol. 25, e os segundos no Livro 43 fol. 9, vers. e 14 verso. Creou n’este paço particular uma verdadeira Universidade de mulheres[Pg 228] illustres em todo o genero de Sciencias e Artes, de que foi especial protectora; pois não só se encontrava quem se désse á lição dos Livros, e tocasse déstramente differentes instrumentos, mas quem com o pincel, e com a agulha procurasse nos primores da Pintura, e lavôr virtuosa emulação e seguisse os outros louvaveis exercicios: aos quaes ajuntava com tal reverencia, e edificação a pratica dos actos de piedade em todo o genero de virtudes, pela direcção de Fr. Francisco Foreiro, lustre da Ordem Dominicana, que parecia menos Paço Real, que Mosteiro reformado, que podia ser a Religiosas espelho, e doutrina de bem viver. Pela fama de tão Reaes qualidades foi pretendida para Espoza dos maiores Principes da Europa, como foram: o Delfim de França, filho de Francisco I; o Duque de Orleans, irmão do mesmo Delfim, a quem o Imperador Carlos V promettera a investidura do Ducado de Milão, ou do Condado de Flandres; e não se effeituando nenhum d’estes cazamentos, por morrerem ante tempo ambos estes Principes, El-Rei D. Fernando de Ungria, Rei dos Romanos, e depois Imperador enviou Embaixador a Portugal pedindo-a por mulher de Maximiliano seu filho; e ultimamente Filippe II de Hespanha, logo que enviuvou da Rainha D. Maria de Inglaterra. Permaneceu todavia até á morte no estado de Donzella, que havia consagrado a Deos com generoza rezolução, preferindo mais o amor da quietação de seu espirito, que a cobiça de reinar.[Pg 229] No anno de 1558, sendo ja fallecido El-Rei D. João III, por comprazer aos dezejos da Rainha D. Leonor sua mãi que procurava anciozamente vê-la, se foi por Elvas a Badajoz com luzido acompanhamento; e demorando-se ahi com ella por espaço de vinte dias, e com a Rainha D. Maria de Ungria e Bohemia sua tia, que a receberam com muitas festas de prazer, se tornou para o Reino. Determinada a não sair de Portugal, e a não admittir propostas de despozorios continuou em religiozos exercicios praticando obras de muito louvor, como foram: a edificação do Convento magnifico de N. Senhora da Luz da Ordem de Christo, que dotou riquissimamente, com a grande obra do Hospital que lhe ficava fronteiro; o Mosteiro de Santa Helena do Calvario em Evora; o Convento de N. Senhora dos Anjos (mais conhecido hoje pelo convento do Barro), de Capuchos Arrabidos, junto da Villa de Torres Vedras, na qual teve ella seu palacio; e o Mosteiro de S. Bento na Villa de Santarem; e deixou em seu Testamento, com que se edificasse Mosteiro para as Commendadeiras de S. Bento de Aviz, que se fez em Lisboa com a invocação, como ella ordenára, de N. Senhora da Encarnação. Fundou mais a Igreja Parochial de Santa Engracia de Lisboa, alem de outras muitas obras de piedade em outras Igrejas, como no Convento da Graça da Ordem de Santo Agostinho, em que assistia muitas vezes com sua prezença e esmollas, quando vivia no Palacio[Pg 230] do Castello, a Imagem da Senhora, cujo corpo mandou cobrir de prata primorosamente lavrada, e lhe mandou fazer Capella; e no Real Mosteiro de S. Bento, que então se fabricava, mandou fazer a Imagem grande deste Santo, que se vê no altar mór, e adornar sua Capella, e a de outros altares; e por via do Embaixador de Portugal na Côrte de Roma obteve uma Reliquia do mesmo Santo, que he uma parte da que estava no Mosteiro de S. Paulo daquella Cidade, para enobrecer este Mosteiro, e o de Santarem. Foi a Senhora D. Maria, como universal herdeira da Rainha D. Leonor sua mãi, Senhora Soberana de juro do Senescallado de Agenois em Gascunha, e dos opulentos Dominios de Verdum, e Rieux na Provincia de Languedoc; e alem de muitas baixellas de ouro, prata, joias de grande valor, de cem mil escudos que lhe pagavam os Reis de França, e Castella. Sua morte foi no anno de 1577 a 10 de outubro em idade de 56 annos, nos seus paços da Cidade de Lisboa extramuros junto do Mosteiro de Santos, deixando de si unico exemplo a todas as altas Princezas de virtude e honestidade. Tinha disposto de sua ultima vontade, como se podia esperar de sua muita sciencia, e Christandade, por Testamento de 17 de Julho do mesmo anno de 1577, e Condicillo de 31 de Agosto que fez approvar a 8 de Setembro, o que mais convinha a sua consciencia, determinando muitas obras de piedade por todo o Reino com grandes soccorros para[Pg 231] pobres, viuvas, donzellas, orfãos, enfermos, e cativos com tamanha profusão que não houve quazi genero de pessoa, que não experimentasse a caridade, e mizericordia desta Princeza, sem faltar em nada á familia de seus criados, e a todos a quem por qualquer via era devedora de serviços passados, que a todos satisfez larguissimamente: e emquanto a seu enterro foi a primeira clauzula, que se acabasse sua vida, primeiro que estivesse concluida a Capella de N. Senhora da Luz no Convento dos Padres de Christo, que ella havia destinado, e mandára edificar para seu jazigo, a depozitassem, emquanto se acabava, no Mosteiro da Madre de Deos de Lisboa. Seu corpo foi depozitado no Capitulo do dito Mosteiro da Madre de Deos, junto da Rainha D. Leonor, mulher do Senhor Rei D. João II, e celebraram-se-lhe exequias com grande pompa, como convinha á grandeza de sua pessoa, com assistencia d’El-Rei D. Sebastião oito mezes antes de partir para Africa, do Cardial D. Henrique, e de todos os grandes do Reino. Sendo passados quazi vinte annos, por determinação de Filippe I foi trasladada para a sobredita Capella de N. Senhora da Luz a 30 de Junho de 1597. Jaz em o pavimento da Capella mór, em sepultura pouco levantada no meio della, e sem nenhuma letra, ou diviza, symbolizando-se por este signal de humildade a muita que esta Princeza guardou em seu coração por toda a vida. No meio do Cruzeiro ao lado do Evangelho se lê em pouca[Pg 232] altura na parede uma Inscripção, gravada de letras pretas romanas em uma pedra de marmore branco de tres palmos de alto, e cinco de largo, a qual diz assim:


—A Capella moor deste Mosteiro de N. Senhora da Luz e este Cruzeiro são da sepultura da Serenissima Infanta Dona Maria que Deos tem filha d’El-Rei Dom Manoel, e da Rainha Dona Lianor sua mulher na qual Capella e Cruzeiro se não dará sepultura a pessoa alguma de qualquer calidade que seja nem em tempo algum se fara nhum Deposito nem nhum litereiro por assi estar asentado por Sua Magestade e por contrato solene e celebrado que se fez co o Padre Prior e Padres desta Casa confirmado pelo Padre Dom Prior e mais Padres do seu Convento de Tomar cujo trelado esta na Torre do Tombo e nesta Caza de Nossa Senhora. Faleceo a dez Doutubro de 1577.—

Esta biographia vem na obra—Retratos e elogios dos varões e donas, que illustraram a nação portugueza. (Lisboa, 1817).

S. Sebastião do Paço do Lumiar

A ermida de S. Sebastião está isolada em alegre terreiro, moldurado de bons predios, alguns antigos, no logar do Paço do Lumiar.

Este logar é continuação do Lumiar propriamente dito, para o lado da Luz e Bemfica.

[Pg 233]

Partindo do amplo largo da Luz segue-se uma estrada entre boas quintas á Horta Nova; já proximo do Paço ha boas construcções modernas á beira do caminho.

A ermida é muito simples; chama principalmente a attenção a porta em estilo manuelino, elegante e bem conservada.

O exterior da pequenina egreja mostra que a primitiva obra do começo do seculo XVI, soffreu grandes concertos depois. Na cruz de azulejos que está no lado norte lê-se Anno 1628; a mesma data se mostra no azulejo que fórra o interior; houve pois grande obra alli n’esse tempo. As volutas d’alvenaria e os pinaculos lateraes do frontispicio levam-nos a crer que mais tarde, no meado do seculo XVIII, talvez depois do terremoto de 1755, houve novo e importante concerto.

Temos aqui azulejos datados d’uma época interessante, do periodo philippino, 1628. São de desenho geometrico na maioria, emquadrando porém bons trabalhos em figura.

O corpo do templo é dividido da capella por um arco e na face d’este arco estão as imagens em azulejo de S. Francisco, S. Pedro, S. Antonio e S. Paulo; sobre a porta lateral está um famoso S. Christovão empunhando respeitavel bordão, com o Menino sobre o hombro. O artista empregava varias tintas, amarello, roxo, além dos tons vulgares. Nas paredes da capella ha pequenos quadros tambem em azulejo, azul sobre branco, representando[Pg 234] phases da vida de S. Sebastião, muito mais modernos que os do corpo do templo.

É nos azulejos do arco divisorio, infra, que está em grandes algarismos a data 1628, quasi encoberta pelos estrados de madeira.

No alizar d’este arco, ha flores pintadas com mimo; assim como no pequeno côro se vêem caixotões com pinturas.

O ladrilho é antigo e bom; com azulejos brancos entre os tijolos vermelhos. As portas são de excellente madeira, em almofadas de boa execução.

O tecto da ermida soffreu alguma ruina, talvez pelo terremoto, mas conserva ainda boas pinturas antigas, entre estuques mais modernos.

Tem alguns lettreiros em sepulturas, uns bem legiveis, outros gastos pela passagem dos devotos, o que mostra que em tempos foi esta ermida frequentada; agora poucas vezes ha alli missas.

Transcreverei algumas inscripções.

—Aqui jaz sepultado o padre Joaquim Jorge faleceo a 9 de novembro de 1783.

—S.ᵃ do P.ᵉ Antonio Pinheiro capelão que foi d’esta hirmida o qual faleceu na era de 1705.

—S.ᵃ do capitão Estevão Soares de Alvergaria cavaleiro da ordem de Christo faleceu a 11 de dezembro de 1644 e de sua molher Anna de Masedo da Maia e de sua mãi Madalena da Maia....

Tem seu escudo gravado; a cruz fioreteada, com orla de escudos, elmo e paquifes.

[Pg 235]

Outra campa é do—P.ᵉ Antonio Mamede bemfeitor desta irmida, que morreu em 1 de abril de 1791.

Em outra muito gasta pareceu-me vêr o nome Rodrigo Diniz Moreira.

Sobre a torre dos sinos ergue-se no eirado um campanario onde está o sino das horas; porque tem seu relogio a pequena ermida, com mostrador voltado para norte.

Ha na frontaria quatro argolas de ferro que serviam para segurar um grande toldo na occasião das festas.

Quando fiz o esboceto do frontispicio estive a conversar com um velhote que antigamente tratava do relogio, e armava o toldo, que era quasi sempre uma vela de navio emprestada pelo arsenal de marinha.

Embora humilde e acanhado tem o pequeno templo uma certa importancia por ser anterior ao grande terremoto de 1755, e por nos conservar além do gracioso portal manuelino, pinturas e azulejos do seculo XVII, em bom estado de conservação.

Lumiar. Quinta do Sr. Duque de Palmella

Esta egreja de S. João Baptista do Lumiar é freguezia muito antiga.

A disposição do templo mostra a sua remota fundação, grandiosa, em tres naves; mas as reconstrucções[Pg 236] e concertos deram-lhe um aspecto moderno.

Consta que foi esta egreja fundada em 1267. Eram padroeiras as freiras de Odivellas, por doação de D. Thereza Martins, viuva de D. Affonso Sanches, filho bastardo d’el-rei D. Diniz.

Não pára aqui a historia. D. Affonso III possuia aqui uma casa de campo com sua quinta; esta propriedade pertenceu depois a D. Diniz.

Em terreno da quinta foi edificada a egreja. A posse passou ao bastardo de D. Diniz, o infante D. Affonso Sanches, e então se chamou á casa de campo o Paço de Affonso Sanches.

Este entrou nas luctas d’aquella época atormentada, os bens foram-lhe confiscados, e D. Affonso IV, o irmão, chamou-lhe o Paço do Lumiar. Mais tarde a propriedade deixou de pertencer á corôa, mas conservou sempre o nome de Paço do Lumiar; por alli se ergueram casas, fez-se povoação, e ao fim d’ella uma ermida dedicada a S. Sebastião.

O marquez de Angeja, D. Francisco de Noronha, em fins do seculo XVIII edificou o actual palacio, hoje pertencente á Casa Palmella.

O duque de Palmella, D. Pedro, homem de espirito cultissimo e fino gosto, gostava immenso da sua quinta, augmentou-a com a que pertencera á casa dos marquezes de Olhão, depois ao conde da Povoa, e algumas de menor importancia, e assim formou a grandiosa quinta actual, com o[Pg 237] seu palacio, e grande pavilhão, jardins, estufas, avenidas de grandes arvoredos, obras de arte de merecimento.

Sendo de forte declive o terreno da quinta tiveram de fazer grandes socalcos, sustentados por fortissimas muralhas o que dá effeitos raros, perspectivas inesperadas a edificios e arvoredos. Ha ahi bellos exemplares vegetaes, a Araucaria excelsa é a primeira plantada em Portugal, o dragoeiro, ainda que um pouco mutilado é bello exemplar, a Araucaria brasileira compara-se á celebre do jardim botanico de Coimbra; cedros, platanos, e ulmeiros seculares alastram fechadas sombras. Nesta quinta se deram luzidas festas no tempo do 1.ᵒ duque, e aqui se guarda, bem ordenada e conservada, a grande e preciosa livraria Palmella.

Mas dos tempos de Affonso Sanches, de Diniz? Nada, nem vestigio; nem uma pedra toscamente lavrada, ou singelo lettreiro, nada recorda esses tempos antigos.

Terremotos

Esta formosa cidade de Lisboa tem sido victima dos terremotos; impossivel calcular o trabalho perdido, a extensão e a intensidade de tanta ruina.

Em certos pontos da cidade a camada de entulhos, caliças, fragmentos de tijolos, é de 3 a 4 metros; pela abertura de cabôcos, e installação de[Pg 238] canalisações, e muito se tem escavado nos ultimos annos por todos os arruamentos, descobrem-se na baixa, no Rocio, por exemplo, trechos de canos antigos abandonados e sobrepostos, ainda a profundidade maior.

De tremores muito antigos, e dos da alta idade média ha tradições.

O de 24 d’agosto de 1356 destruiu parte da Sé, e causou enorme devastação na cidade.

Em janeiro de 1531 houve terremotos a seguir, sendo maior e mais destruidor o de 26 d’esse mez.

O de 28 de janeiro de 1551 derribou muitos predios.

Em 27 de julho de 1597 uma parte do monte de Santa Catharina escorregou para o rio, ficando aquelle alteroso monte dividido em dois, Chagas e Santa Catharina; tres arruamentos desappareceram por completo.

Em 1755 a cidade estava maior, mais povoada; o terremoto de 1 de novembro fez muitas victimas, grande parte da cidade ficou arrasada, e o incendio causou incalculavel prejuizo.

Mencionam-se terremotos em 1598, 1699, 1724, fortes mas sem causar grande damno; os abalos de 1761, 1796, 1807; o de 11 de novembro de 1858 muito sensivel, em Setubal foi destruidor, matando gente e derribando casas.

O sr. Paulo Choffat tem trabalhos publicados sobre os ultimos abalos de terra sentidos na capital.

É certo que Lisboa está n’uma zona perigosa;[Pg 239] devemos reparar n’isto. Nada de concentrar tudo em Lisboa, guardem-se algumas cousas em sitios mais garantidos.

E todavia ha aqui consideraveis construcções que atravessaram no seu logar e prumo essas medonhas convulsões; por exemplo uma parte consideravel das muralhas do Castello, Santa Luzia e a sua muralha, as capellas orientaes do Carmo, os arcos do Borratem, a casa dos Bicos, a frontaria da Conceição Velha; bastantes edificios anteriores ao abalo de 1755 estão de pé; alguns palacios aguentaram as suas linhas, e o labyrintho das viellas de Alfama conserva a planta medieval.

Mas basta olhar as paredes mais antigas do Carmo e da Sé para perceber pedras de anteriores construcções, fragmentos de lettreiros e lavores, empregados na enxilharia ordinaria. Na vetusta parede norte da Sé ha pedras mettidas no muro que mostram lavor bysantino. No Carmo bocados de campas com lettreiros em gothico, em diversos pontos do edificio, estão empregados como pedra vulgar de construcção. É raro encontrar nos arrabaldes de Lisboa pedras de antigo lavor, da idade média, do ogival, mesmo da primeira renascença no seu logar; Odivellas é uma excepção, assim como o casal da Quintan com o seu muro de ameias. É preciso ir a Cintra, a Torres Vedras, a Santarem para vêr algo antigo de certa importancia.

[Pg 240]

Na ultima folha de pergaminho do codice n.ᵒ 61 da collecção alcobacense da Bibliotheca Nacional de Lisboa um monge deixou noticia do grande abalo de 24 de agosto da era de Cesar 1394 (1356); fez grandes estragos prostrando castellos e torres em muitos pontos do paiz; em Alcobaça a egreja soffreu muito, no mosteiro houve ruinas, e cahiram muralhas do castello. Foi ao pôr do sol.

Outro monge na mesma pagina escreveu a memoria do terremoto de janeiro de 1531; por mais de 15 dias sentiram tremer a terra; mas no dia 26, antes do nascer do sol, foi o grande tremor; conta que em Lisboa houve grande estrago; no mosteiro houve muita ruina, não escapando a parte superior do claustro.


O abalo de terra de 1755 foi violentissimo, mas escriptores e artistas ainda lhe augmentam as culpas. Este terremoto e a invasão dos francezes são motivos fundamentaes para explicar o desapparecimento de muita cousa, uma rica mina para encobrir o desleixo, a estupidez, a mania de estragar que é muito da raça portugueza.

No tomo 3.ᵒ da==Collecçam Universal de todas as obras que tem sahido ao publico sobre os effeitos que cauzou o terramoto nos reinos de Portugal e Castella no primeiro de novembro de 1755 (Bibl. Nac. de Lisboa, Gabinete de livros reservados), ha alguns opusculos de polemica sobre[Pg 241] a grandeza da tremenda catastrophe: ==Carta em que hum amigo dá noticia a outro do lamentavel successo de Lisboa==Está assignada por José de Oliveira Trovão e Sousa (1755).

==Resposta á carta de José de Oliveira Trovam e Sousa em que se dá noticia do lamentavel sucesso de Lisboa. É de 1756; assignada por Antonio dos Remedios.

==Verdade vindicada ou resposta a huma carta escrita de Coimbra. Por José Acursio de Tavares (Lisboa, 1756). De taes escriptos conclue-se que o terremoto destruiu bem a terça parte de Lisboa e que o incendio que se lhe seguiu foi terrivelmente devastador; mas fóra da area de grande intensidade do abalo, e além do espaço que o fogo alcançou, muitos predios, bastantes palacios, grandes arruamentos ficaram salvos; agora é bem raro encontrar uma frontaria, uma janella, uma grade de varanda anterior ao terremoto. No final do seculo XVIII e no seculo XIX a transformação foi completa; basta a vulgarisação da vidraça e o desapparecimento da rotula para modificar o aspecto da cidade. Em povoações onde o terremoto não foi tão destruidor, apenas se sentiu, a transformação foi analoga. É que na verdade o portuguez é bem fraco conservador. Aqui pelos arrabaldes de Lisboa direi mesmo que é destruidor. Por isto eu dou toda a attenção ao que me parece antigo, me demoro com o anterior ao seculo XVIII, e quasi pasmo quando me surge um fragmento do seculo XVI.

[Pg 242]

Folheando qualquer Illustração estrangeira se vê o carinho, o amor com que em paizes muito mais atormentados que o nosso se guardam antigos edificios, casas particulares de aspecto artistico, objectos de uso vulgar consagrados pela idade, qualquer cousa que seja documento do antigo viver. Os terremotos são damninhos, mas a indifferença, o desleixo, a ignorancia são grandes causas de destruição.


Este caminho entre varzeas ferteis, arvoredos mansos, collinas de grandes curvas com terras de semeadura e verdes pinhaes, por onde vamos encontrando gente do campo, scenas da vida popular, é a via tragica na historia de Portugal, brados de victoria e rumores de desespero, marchas de tropas em dias de lucta, por aqui passaram entre estas paisagens que só lembram agora frescas aguarellas; patuleias e cartistas; miguelistas e pedristas, columnas de Junot e de Wellington; castelhanos que vieram cercar Lisboa, portuguezes voltando de Aljubarrota; e provavelmente cavalleiros de Affonso Henriques, e dos mouros, dos godos e dos romanos; porque é esta a estrada que leva a Lisboa, a antiga e nobre cidade, o grande porto maritimo.

Na ida para o Correio-Mór, perto da Povoa de Santo Adrião, reparei em certa pedra lavrada de aspecto raro; na volta parei e fui vê-la; é

[Pg 243]

Uma ara romana.

Ha um poço coberto, encravado no muro, a poucos metros da estrada; sobre um pequeno arco um nicho com a imagem de S. Pedro; perto um poial, alto, e no chão uma pedra lavrada, com funda cavidade. É um parallelepipedo de oito decimetros de comprido, por tres de altura, proximamente, de pedra vidraço; um cordão de forte relevo divide os lados em duas fachas; na superior um lavor geometrico, curvas em grega torneando saliencias circulares; na facha inferior quatro rosas entre curvas symetricas. Creio que é uma ara romana. Salvou-se junto da fonte d’agua com virtude, guardada pela tradição. Por aquelles sitios teem apparecido antiguidades romanas, ainda que são muito menos numerosas as inscripções que nos arredores de Cintra. Como esta pedra lavrada atravessou intacta tantos seculos, n’este paiz de estragados!


—Versos novos?!

—Umas liras! diga já, frei Simão!

Estavam no jardim, na meia laranja da cascata, á sombra do platano alteroso. Linda manhã de junho. Era o dia anniversario da senhora morgada;[Pg 244] visitas de Lisboa animavam o palacio. A missa tinha sido ás 7, e o almoço terminára ás 9. Alguns dos senhores partiram para a tapada, outros para o picadeiro vêr os dois cavallos novos que o conde trouxera de Sevilha.

O apparecimento de frei Simão, frade jeronymo, que viera de Belem em ruidosa e balouçante caleça, foi saudado com alvoroço; o frade tinha sempre a contar anecdotas facetas, algumas muito repetidas mas que elle contava com certa graça, e noticias da gente palaciana, sempre saboreadas com delicia.

Frei Simão avançou devagar, até perto da morgada, muito serio, fez uma cortezia reverendissima, e recitou o soneto de parabens pelo feliz anniversario; era composição nova; vinha escripto em primorosa lettra num papel, com sua inicial floreada, enrolado e atado com fita de seda branca.

Depois deixando o tom ceremonioso, pondo-se muito risonho, annunciou os versos novos, umas sonóras, não umas liras...

—Diga, diga.

—É a segunda vez que as leio...

—E nós a julgarmos que tinhamos a primicia...

—A primeira vez só uma pessoa, alta pessoa, as ouviu. Por isto posso dizer a primicia.

—Quem seria a alta pessoa?

—Eu digo, senhora morgada; foi el-rei que Deus Guarde.

[Pg 245]

—Bravo! foi ao Paço? teve audiencia?

—Foi na rua, antes na estrada. El-rei viu-me passando pela estrada de Pedrouços; mandou parar o coche. E bradou-me:

—Então, oh! Santa Catharina, fizeste a resenha?

—Sim, meu senhor, e está em verso; ia levá-la a Vossa Real Magestade.

—Não precisas ir mais longe; dize lá.

Acheguei-me á porta do coche e li os versos. Eu já me sentia acanhado porque a lira é comprida, e o coche ali parado na estrada. Mas el-rei D. João V gosta de versos jocosos; não imaginam como elle ria.

—E como soube elle que Vossa Reverencia fizera a lira?

—Ora, foi assim. Em Belem, no nosso mosteiro, pela festa de S. Jeronymo, costuma haver lauto jantar, com convidados; ao jantar da casa, jantar de festa, juntam-se muitos presentes; enche-se o grande refeitorio; o d’este anno foi estrondoso. El-rei soube e encontrando-me ha dias em palacio, disse-me para lhe fazer a noticia dos pratos; e eu puz a lista em verso; fiz a lira!

—Diga, diga.

—Eu começo; frei Simão de Santa Catharina collocou-se em frente das damas; limpou lentamente a fronte, a bocca e o nariz com o lenço cheiroso a agua de rosas.

[Pg 246]

Monarcha Soberano
Pois Vossa Magestade assim me ordena
O jantar deshumano
Irá cantando a Musa pouco amena
E em ser só se verá que foi diverso
No refeitorio em prosa e aqui em verso.

A lira vae descrevendo o grande refeitorio, o adorno das janellas com estatuas, festões, grinaldas de flores naturaes, os aparadores carregados de pratas, o chão atapetado de flores.

Estava o refeitorio num brinco.

Em cada logar da vasta meza havia os appetites, as pequenas iguarias, com seus adornos.

Cobria o cuvilhete
um papel retalhado, com acerto
que inda que pequenete
como grande queria estar coberto.
Na marmelada vinha, guaposito
guarnecido de flores um palito.
Em cada assento havia
garfo, faca, colher e guardanapo
dois pães, com bizarria
melancia excellente, melão guapo
figos, uvas, limões, pecegos, peras
sem graça, o cesto enchiam, mui devéras.
A ilharga da salceira
um bom tassenho de presunto havia
tão magro e tão lazeira
que a mim me pareceu ser porcaria
tambem tinha azeitonas e alguem disse
que foram d’Elvas.

[Pg 247]

Estes eram os appetites que adornavam os logares dos commensaes. Agora os pratos.

Foi o primeiro prato uma tijella
cheia em demazia
de caldo de gallinha com canella
que da gallinha trouxe a propriedade
porque o caldo tinha ovo na verdade.
Foi o segundo prato
uma bem feita sopa á portuguesa
que dava de barato
O filis e o primor que ha na franceza.


Por algum grão delito
foram muitos perús esquartejados
uns vêm com sambenito
outros vinham sómente afogueados.


Outro prato de assado
que era lombo de vacca mui tenrinho.
Comia afadigado
outro leigo mui gordo meu visinho
rollos e pombos ensopados.

Seguiram-se as frigideiras com linguas e miolos. Os coristas que serviam á meza eram muitos e andavam lestos. Appareceram as empanadas inglezas; tinham:

Ade, perdiz, gallinha, frangalhada
E disto vinha a olha enchouriçada.
Apoz isto algumas doze tortas.

[Pg 248]


Cinco ou seis pratos de ovos
De pão de ló por dentro recheados
Outros mal entrouxados
Outros ovos tambem com corôa regia
De almojavanas conto
A duas mui grandes por cabeça
Em assucar em ponto.

Depois d’isto empada de vitella e arroz doce.

Sinceramente disse aqui a verdade
Falta o perdão de Vossa Magestade.

Vem agora a nota no amarellado papel que estou seguindo:

Indo levar o papel a Pedrouços se encontrou el-rei que mandou parar o coche e parado ouviu ler todo o papel com muito agrado.

Mas frei Simão de Santa Catharina esqueceu-se de uma cousa, e o padre geral quando viu o papel reparou logo, e zangou-se; obrigou o frade a fabricar mais versos e a levar o supplemento a el-rei.

O caso é que na salceira
me esqueceu de meio a meio,
com o presunto e azeitonas
pôr um pedaço de queijo.


Pois vá, faça outros, e ponha
(me disse o Geral severo)
que não quero que diga el-rei
[Pg 249]que não dei queijo framengo.

Saiba Vossa Magestade
que tambem queijo tivemos
noviços e sacerdotes
coristas e frades leigos.

A lira de frei Simão Antonio de Santa Catharina foi muito gabada e applaudida.

—É uma delicia!

—Um verdadeiro appetite, faz vontade de comer.

—Diga outra vez, e muitas damas insistiam no pedido. Mas a condessa observou:

—Tenham caridade, isso é incommodo para Sua Reverencia. Ainda se não lembraram de mandar vir um refresco.

Veiu logo um creado com bandeja de prata com bolos e marmellada de Odivellas; outro creado com licor de tangerina e canella, e um copo de limonada. Voltaram os senhores, fez-se grande roda, e entre risos e ós admirativos repetiu-se a leitura dos versos.

—Percebe-se logo que frei Simão é um academico.

—E de varias academias.

—Da Anonyma sei eu, por ser lá meu confrade.

—E da Portugueza.

—E da Escholastica.

—É verdade, frei Simão, deve saber, ora se sabe, houve eleição renhida em Odivellas; muita[Pg 250] gente, e da mais alta se interessou na eleição da nova abbadessa.

O frade contou o que sabia dos bilhetes, dos pedidos, das ordens, das promessas ás freiras eleitoras; foi uma bulha que durou mezes.

—E não fez versos ao caso?

—Isso merecia liras e sonóras.

—É verdade que fiz, não nego e a prova é esta; aqui está a sonóra; e do largo bolso tirou um papel.

—Leia! leia!

—Vou começar.

Os enredos, as bulhas, as trapaças
Os enganos, os medos, os temores
Os ardis, as astucias, as negaças
Os agrados, os risos, os amores;
As trombas, os focinhos, as caraças
As furias, os raivassos, e os rancores
Que houve em certa eleição com forte espanto
Darão materia a nunca ouvido canto.

E segue a sonóra n’este tom, narrando os episodios da eleição da abbadessa, no então revoltoso convento de Odivellas, ninho de endiabradas freiras. Este frei Simão tem muitas peças poeticas algumas muito aproveitaveis para o conhecimento de minucias e particularidades da época.


Dias depois de um passeio a Loures e á quinta do Correio-Mór, appareceu-me um cavalheiro[Pg 251] d’aquelles sitios, com quem eu cavaqueara, e apresentou-me uma porção de papeis velhos, manuscriptos, que me disse ter encontrado havia annos n’um gavetão da copa monumental do palacio. Percorri os papeis; pouco achei de curioso ou interessante. Entre elles vinham poesias do seculo XVIII, alguns sonetos de anniversarios, dirigidos a pessoas da familia Matta; e uma descripção de lauto banquete no mosteiro dos Jeronymos de Belem, que me pareceu bom documento da época, e singular peça poetica. Por isto a transcrevo em parte. Nos papeis não encontrei nome do auctor. Depois achei n’um cancioneiro a mesma poesia attribuida a frei Simão Antonio de Santa Catharina, e até com a mesma nota pittoresca de ter sido lida a el-rei D. João V, na estrada de Pedrouços.

[Pg 253]


[Pg 255]

Torres Vedras


Notas d’arte e archeologia

(1906)

Paineis antigos em Torres Vedras

Em rapida visita que fiz, ha pouco, a Torres Vedras, chamaram-me a attenção os quadros em madeira, antiga pintura, que vi em differentes egrejas.

Torres Vedras foi villa das rainhas, alli viveram familias nobres, houve paços reaes e casas religiosas importantes.

Já no seculo XIII as egrejas de Santa Maria do Castello, de S. Pedro, de S. Miguel e de S. Thiago existiam, como se vê das inquirições de Affonso III. Isto mostra que a villa era importante já na edade média, e explica um tanto a existencia de um numero relativamente consideravel de pinturas antigas. Só mencionarei as que me despertaram mais a attenção.

Ha alli pinturas de varios pinceis e épocas,[Pg 256] umas anteriores á renascença, algumas do inicio d’essa época, outras do meiado do seculo XVI.

Na egreja de Nossa Senhora do Amial vi quatro quadros grandes, representando S. Paulo, S. Pedro, S. Lourenço e S. Sebastião.

Na sacristia de S. Pedro estão tres quadros em madeira; um d’elles, a Annunciação, muito lindo e em bom estado.

Na egreja, sobre o arco do cruzeiro, está um painel grande, representando S. Pedro, retocado modernamente.

Na egreja da Graça, na segunda capella á direita, seis quadros pequenos, um tanto sujos mas não arruinados; muito interessantes.

Ha um pouco de renascença nas construcções, voltas redondas nas arcadas, apenas.

Figuras principaes sem ornatos, mas as secundarias vestidas á época, grandes e plebeus, damas da côrte, mulheres humildes, com os seus trajos proprios, muito minuciosa e galantemente indicados.

Representam: o Presepe, Adoração dos Reis, Annunciação, a Virgem e Santa Isabel, S. José e Nossa Senhora, o Transito de Nossa Senhora.

Os rostos, muito finamente tocados, parecem retratos, nos vestuarios não ha phantasias, o pintor reproduziu o que tinha á vista; mesmo o agrupamento, a composição dos quadros, agrada. Tem um lindo tom; limpando um pouco, com o lenço humedecido, um cantinho de uma d’estas[Pg 257] pinturas appareceu logo o tom de esmalte que, infelizmente, tantos outros perderam.

Esses seis quadrinhos são bem notaveis.

Na capella-mór da egreja do Varatojo vi quatro grandes paineis, bem conservados: Annunciação, Jesus resuscitado, Adoração dos Reis e Adoração dos pastores. Devem ser parte de uma série. Não lhes vejo relação com as séries do Museu de Bellas-Artes.

Na ante-sacristia, o Presepe, quadro pequeno; na sacristia, um Milagre de Santo Antonio e a Descida do Espirito Santo, paineis de grandes dimensões e em bom estado.

Em Santa Maria do Castello ha pinturas antigas em madeira, no corpo da egreja e na sacristia; estes ultimos são quadros menores, representando os episodios classicos da paixão; soffreram retoques pouco felizes; o que nelles mais padeceu foi o colorido.

O desenho das figuras; o aspecto, merece nota; tem um tom archaico; lembraram-me muito umas pinturas que existem no Museu das Janellas Verdes, em que os bigodes apparecem meio-rapados e as barbas com um córte especial.

Todos estes paineis, que vi em Torres Vedras, me parecem de origem portugueza, com ligeiras, attenuadas reminiscencias de influencia flamenga, e com pequena parte, ou nenhuma, do renascimento; por isto os achei importantes para a historia da pintura portugueza.

[Pg 258]

O Tumulo dos Perestrellos

A egreja parochial de S. Pedro de Torres Vedras tem a sua porta principal voltada a poente, como todos os templos antigos, medievos, da interessante villa. Essa porta é muito ornamentada em estylo manuelino; sobre o arco assenta um escudo bipartido com armas do rei e da rainha. Em dois arcos do cruzeiro ha tambem ornamentação no mesmo gosto, mais singela. A egreja tem tres naves, a central é coberta de madeira apainelada, com as molduras pintadas e douradas. As naves lateraes conservam ainda trechos de antigas abobadas com artezões. Parte das paredes está vestida de azulejos brancos e verdes, em uso nos seculos XVI e XVII. Ha em varios pontos da egreja e capellas outros typos de azulejo de épocas mais modernas.

Alguns quadros pintados em madeira, antiga escola portugueza, outros em tela, na egreja, na sacristia e na annexa casa dos clerigos pobres; algumas esculpturas religiosas, especialmente a estatueta de S. Pedro d’Alcantara, merecem attenção.

No cruzeiro, á direita, está um elegante ediculo com uma urna sepulcral.

É no mesmo estylo da porta principal. O ediculo é em pedra da localidade, que é rija, resiste bem ao tempo, e toma, no passar dos seculos, uma[Pg 259] côr amarella torrada, agradavel á vista. A urna é em jaspe, em fino trabalho.

Sobre bases facetadas erguem-se columnas que sustentam arcos concentricos; ha uma facha muito lavrada, de folhas e flores, com um pequeno busto em baixo relevo, imitando medalha, que parece um retrato; mostra a cabeça coberta com um capacete um tanto raro. Busto egual se vê na porta da egreja.

No ediculo as columnas e arco exterior representam troncos arboreos cingidos por fitas.

A urna pousa sobre leões de inferior trabalho. Na face anterior tem o lettreiro e aos lados o brazão, repetido, dos Perestrellos.

N’esta urna estão os ossos de João Lopes Perestrello e de sua mulher Filippa Lourenço. Este homem foi fidalgo da côrte de D. João II. Foi para a India, capitão de uma nau, na armada de Vasco da Grama, em 1502. É um dos vultos d’essa notavel familia que tantos homens produziu que bem serviram o paiz em Ormuz, em Malaca. Um filho d’elle, Raphael Perestrello, andou na descoberta da costa da China, e esteve nas Moluccas. Outro filho jaz na mesma egreja de S. Pedro; sob uma campa enorme, de mais de dois metros de comprimento, com um lettreiro em gothico:—Aqui acerqua de seus quyrydos pais he mai Antonyo Perestrelo seu filho escolheo casa para sempre.—

É bom typo de familia d’aquella época; as[Pg 260] grandes aventuras, as viagens ultramarinas; uns ficaram nos mares ou nas guerras, outros voltaram ricos, fizeram morgados, e arranjaram na egreja da sua terra uma capella para eterno descanço.

Capiteis romanicos

Na egreja de Santa Maria do Castello, em Torres Vedras, vi dois capiteis romanicos na porta principal, que olha para o poente. O templo tem soffrido reconstrucções, todavia as linhas principaes são as primitivas. Os portaes, de volta redonda, estão nos seus logares de origem. Aquella silva que orna a parte superior dos capiteis, formando um friso, repete-se aos lados da porta que diz para sul. Os capiteis são de calcareo muito rijo, trabalho ingenuo, relevo fundo; pouco teem soffrido do tempo. São decorativos e symbolicos; o esculptor quiz representar motivos do Cantico dos canticos; é o lyrio dos valles, a pomba do rochedo, a maçã entre a folhagem agreste; as comparações amaveis feitas á Sulamite, que a egreja christã adoptou. Obra d’arte, da alta edade média, é isto o que resta n’esse templo, alvejante entre oliveiras, aninhado entre as muralhas vetustas, cubélos e quadrelas negras do castello.

Faz-se alli festa religiosa em 15 d’agosto, porque parece que foi n’este dia que D. Affonso Henriques tomou a villa aos mouros, em 1148. Ainda[Pg 261] no começo do seculo XIX, na noite do dia 14, vespera da festa, faziam grandes fogueiras no adro e por entre as ameias.

Perdeu-se a usança pittoresca, ante esta onda de semsaboria que vae estragando tudo.

Os priores d’esta egreja eram capellães d’el-rei; varias rainhas foram padroeiras e lhe fizeram donativos.

D. Beatriz, mãe de D. Diniz, residiu em seu paço, que ficava proximo. É difficil hoje achar vestigios de paços reaes, ou de quaesquer edificios muito antigos em Torres Vedras. Ahi residiram por largas temporadas reis e rainhas, por duas vezes se reuniram côrtes, no seculo XV, e quasi nada d’essa época se encontra na villa. Tem soffrido muito com os terremotos; a parte baixa está visivelmente muito soterrada; isto explica em parte o desapparecimento de antiguidades na historica e interessante villa.

Ermida e forte de S. Vicente

A ermida de S. Vicente fica a norte de Torres Vedras; cousa de tres kilometros do centro da villa ao alto da collina. Chega-se á varzea arborisada do Amial, passa-se o rio Sizandro, a ermida de Nossa Senhora do Amial, e do adro d’esta ermida parte uma vereda que vae trepando pela vertente, e dando volta, de modo que offerece vistas variadas[Pg 262] da villa, que tem bonito aspecto, do seu vetusto castello, conjuncto de paredões, muralhas e cubellos ennegrecidos pelo tempo, e da multidão de collinas, quasi todas vestidas de vinhedos viçosos, salpicadas de casaes. O cume de S. Vicente está bastante superior ao castello, e ás collinas proximas, dominando largo terreno. Depois do corpo de S. Vicente entrar na sé de Lisboa houve milagres varios, e um dos devotos favorecidos foi um homem de Torres Vedras que lhe edificou uma ermidinha em agradecimento. É certo que no começo do seculo XIII já alli estava uma ermida; tão certo como não estar lá, á vista, um unico lavor ou lettreiro, nem do seculo XVII. Mas ha documentos; e bocados de pergaminho bem guardados duram mais que alvenarias expostas a pilhagens e bombardeamentos.

Na ermida venerava-se uma imagem de S. Vicente, agora na pequena egreja do Amial, e ha tradição de grandes festas que o povo torreense ahi celebrava. Arruinou-se, reconstruiu-se, e voltou o abandono; agora dormem alli pastores e cabras; se lá estão ainda algumas cantarias é pela difficuldade do transporte.

Termina a vereda n’uma passagem empedrada sobre um fosso, vê-se ainda bem o relevo da trincheira entre arbustos e silvados, depois a ermida toda em ruina e esburacada; a capella redonda tem uma pequena cupula de ar mourisco; junto da ermida havia casebres, casa do ermitão e albergue[Pg 263] de romeiros; telhados cahidos, montões de entulho; silvados e carrasqueiros bravios; depois da ermida um planalto talvez de 60 metros de diametro, ahi dois moinhos de vento antigos, em ruina; em volta quatro grandes espaldares erguidos, de 2 metros de altura, por 10 de comprimento; na borda do planalto as baterias, os reductos; as canhoneiras ainda com o pavimento lageado, os perfis em alvenaria solida; reconstitue-se ainda perfeitamente a celebre fortificação.

Todos teem ouvido fallar das famosas linhas de Torres Vedras que defenderam Lisboa contra a invasão franceza do commando de Massena. A primeira linha fortificada dividia-se em tres districtos: 1.ᵒ Torres Vedras, 2.ᵒ Sobral de Monte Agraço, 3.ᵒ Alhandra.

Dois pontos estavam especialmente fortes, eram os fortes grandes, S. Vicente, e o da Serra do Arneiro.

O de S. Vicente tinha 39 canhoneiras, e estava artilhado com 23 peças de calibre 6, 9 e 12, e mais 3 obuzes. Podia abrigar 4:000 homens. Além dos reductos vejo uns vallados afastados para norte que me parecem pequenas trincheiras para abrigo de atiradores. O ponto era, e é ainda, importantissimo porque descobre os caminhos em grande extensão.

Outros fortes menores se agrupavam a este, formando um conjuncto respeitavel; nas grandes collinas de Olheiros, Outeiro da Forca, Sarges (outros[Pg 264] dizem Ságes) e Ordasqueira havia reductos; formavam um campo fortificado.

Em dezembro de 1846 encontraram-se em Torres Vedras, tropas do Bomfim com as de Saldanha, houve combate sanguinolento, com episodios terriveis, no dia 22; Saldanha tomou o forte de S. Vicente: Bomfim encurralou-se no castello, e começou a atirar para lá com a sua peça e o seu obuz; e esburacou a ermida. Na varzea do Amial houve encontro de cavallaria, e a de Saldanha, muito superior em numero, acutilou ahi, mesmo no adro da ermida, a da Junta do Porto.

Ahi n’esse adro do Amial, estão enterrados setenta e tantos cadaveres dos fallecidos em combate, na lucta brava da cavallaria, e no ataque de S. Vicente.

Depois da batalha, a ermida ficou em ruina, a villa soffreu immenso, e ninguem pensou mais em concertar o templosinho.

Trouxeram a imagem de S. Vicente, que escapou á batalha e ao bombardeamento para a ermida do Amial. E lá está, muito tristinha e abandonada, n’aquelle interessante templosinho, ao pé de outra imagem historica, a da Senhora de Rocamador. Merecia a pena dar alguma attenção ao Amial, e tornar mais facil a vereda para S. Vicente; é um dos melhores passeios nos arredores de Torres Vedras, a vista é linda, e é um d’estes sitios raros onde se allia a bellezas naturaes o encanto de recordações da historia patria.

[Pg 265]

Imagens de Santos

Pouca attenção se tem prestado entre nós ás imagens religiosas; refiro-me a dois pontos de vista, artistico e archeologico. No Museu das Bellas-Artes e no Carmo poucos exemplares ha. É preciso examinar as egrejas, para descobrir um ou outro trabalho interessante.

É enorme a quantidade de imagens de santos ainda existentes, atravez diversas causas de destruição; tem havido modas tambem na estatuaria religiosa; as imagens do renascimento fizeram pôr de parte as mais antigas que pareciam rudes; as luxuosas estatuetas á hespanhola, de roupagens agitadas todas bordadas a ouro, foram vencidas pelas á italiana, mais artisticas e expressivas.

Imagens gothicas de gesto solemne, hirtas, de vago olhar, esculpidas em pedra, vieram até nossos dias; em quasi todas as sés ha imagens de Nossa Senhora, do seculo XII. A da Sé de Evora com o seu collar e fita pendente que parece formada de moedas romanas, as cercaduras bordadas do vestuario, os sapatos de bico, tem ares de uma rainha medieval.

No claustro da mesma sé ha estatuas de santos, e o apostolado no portico, dos seculos XIII a XV.

Do renascimento, com anatomia estudada, posição ao natural, temos um exemplar esplendido[Pg 266] no celebre S. Jeronymo, que está no cruzeiro de Santa Maria de Belem.

Seguem-se as estatuetas em madeira com lavores a ouro sobre fundo preto, ou vermelho, o estofado, genero que foi muito empregado em Portugal.

Dos italianos, largas roupagens, cabeças de expressão, attitudes artisticas, póses estudadas, ha modelos mui significativos na antiga egreja dos Barbadinhos onde actualmente está a parochial de Santa Engracia. No seculo xviii a estatuaria religiosa segue a corrente da época; no seculo xix, a meio, começa a esculptura franceza a dominar com as suas fórmas gentis; vem a imagem fina, bem gravada, suavemente colorida; vem a elegante estatua da Salette, depois Lourdes, a fina dama, de cabeça pequena, fórma esguia, expressão de sonho. Nos templos agora por toda a parte domina a estatueta de gesso, e a oleographia franceza; o lindo santo risonho e muito penteado, a gentil santinha branca, a pretenciosa oleographia na sua moldura de baguette dourada. O Senhor dos Passos, de tez livida, negros cabellos, olhar severo, passaria de moda, se não estivesse firme em antiga tradição.

Na iconographia religiosa ha, atravez as idades, séries determinadas, e assim se póde vêr como os artistas de varias épocas executaram as figuras de Jesus Menino, ou imaginaram os rostos de anjos e seraphins.

[Pg 267]

Quando ha pouco se agitou a questão do santo sudario de Turim viu-se bem onde póde chegar o interesse d’estes estudos; n’este caso á origem da pintura, e dos seus processos.

Certas imagens, por exemplo, Senhor dos Passos, Senhor Morto, são, na grande maioria, da mesma época; outras são de todas as épocas, a Virgem, o Crucificado, Jesus Menino. Póde reunir-se uma série de imagens da Virgem do seculo XII para cá. E assim do rosto e cabeça do divino Nazareno. É interessante vêr como os artistas, atravez os tempos, trataram de interpretar o aspecto do sublime mestre.

Ha pouco, n’uma estação de banhos dos Cucus, tive occasião de passeiar por Torres Vedras, e andei pelas egrejas a vêr esculpturas e pinturas, inscripções, velharias.

A imagem da Senhora do Sobreiro, no Varatojo, é antiga; segundo a tradição é do seculo XII; póde ser, e todavia não me parece tão antiga como a da Sé de Evora, ou a de Santa Maria da Oliveira, em Guimarães (a primitiva imagem).

Na egreja de S. Pedro vi a imagem de S. Pedro d’Alcantara; rosto, garganta e mãos bem esculpidas, expressão de fervor na oração, arrebatamento; roupagem larga, em grandes pregas; no todo uma estatua elegante, que prende a attenção; talvez de artista italiano.

Na egreja da Graça reparei mais nas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho, que estão em[Pg 268] nichos no grande retabulo de obra de talha, do seculo XVII, interessante exemplo de transição do estylo classico para o rococó usado na época de D. João V.

N’essas estatuas de Santa Monica e Santo Agostinho o estofado, ouro sobre branco e vermelho, é accentuado por fino relevo, que dá ás vestes aspecto opulento; a esculptura é muito correcta.

A estatua de S. Gonçalo de Lagos, na sua capella, é elegante: o santeiro fez-lhe a cabeça um tanto pequena, e a cintura delicada; a roupagem está bem lançada.

Na Misericordia dei mais attenção ao Senhor Morto, porque me parece o mais antigo que conheço; não se repare na encarnação; é uma estatua rigida, hirta, feita com certa rudeza mas com attenção. Parece-me anterior ao seculo XVI.

Em Santa Maria do Castello vi esculpturas boas: um Jesus Menino bem notavel e antigo.

E mais antigas ainda me parecem algumas imagens que vi na ermida da Senhora do Amial, a Senhora do Ó, o S. Vicente, e especialmente a Senhora de Rocamador talvez do seculo XIII.

Será bom reparar n’estas obras d’arte, mórmente agora por causa da invasão franceza de estatuetas e oleographias baratas.

[Pg 269]

Uma cadeira do seculo XV

A pouca distancia, uns tres kilometros, a poente de Torres Vedras fica o convento do Varatojo; é um bonito passeio a pé, atravessando a varzea, e subindo lentamente a vereda, descobrindo successivamente aquella região de serras e cabeços, em grande parte vestida de vinhedos, agora n’este mez d’agosto, mui viçosos.

Em trem, o caminho é mais longo, por causa de grande rodeio, seguindo pelo campo do Amial, onde ha uma ermida muito antiga e interessante, cortando depois os campos do Paul, e subindo a encosta por estrada um tanto ingrata; a estrada nova cheia de covas e poeira, a antiga coalhada de calhaus.

No convento vi a porta ogival da egreja, tendo aos lados as armas de Portugal, e o rodizio emblema adoptado por Affonso v; o claustro, bem conservado; os portaes da casa chamada dos retratos que são do tempo de D. Manuel; a torre dos sinos de ventanas ogivaes, assim como o portal de um pateo interior; vi pinturas em madeira, um frontal de seda bordada de origem italiana, me pareceu, e, n’uma pequena dependencia da sacristia, entre variados objectos, uma cadeira extraordinaria!

É tradição antiga ter esta cadeira servido a D. Affonso V, quando visitava aquella casa. Como[Pg 270] me disseram que ninguem a desenhara eu tirei um rapido esboço. Póde ser de Affonso V, e até anterior; é em carvalho, e está menos mal conservada; algum caruncho, mas mostra-se ainda nitido o relevo decorativo; lembra logo o estylo da Batalha. É uma cadeira do seculo XV, uma joia do mobiliario portuguez. No Havard [2] vem o desenho de um exemplar quasi egual; cadeira de armario ou cofre, de braços, espaldar direito, ornamentação ogival, exactamente como no esplendido movel do Varatojo. Lá se tem conservado a veneravel reliquia e está lá muito bem, ligada pela tradição historica, mas seria bom fazer uma reproducção para o Museu das Bellas-Artes, onde abundam os exemplares de mobiliario portuguez, formando séries importantes; mas falta aquella cadeira—avó, unica, segundo creio, em Portugal.

[2] Dictionnaire de l’ameublement et de la décoration.

Brazões da Villa

Vi em Torres tres brazões antigos:

O da Fonte Nova tem a data 1529.

O que está na escada da Camara Municipal tem a data 1518.

O do chafariz dos Canos é muito mais velho,[Pg 271] singelo e hieratico, sem ousadias decorativas; creio que é do seculo XIV.

O da Fonte Nova apresenta duas torres ligadas por um panno de muralha com sua porta: torres de tres andares, com ameias, frestas para jogar virotes e béstas, terminando em cobertura pyramidal, com sua bandeira quadrada e uma estrella sobre a bandeira; entre as torres um escudo real, sem corôa nem castellos, só as cinco quinas com os seus besantes. Infra a data 1529 entre duas siglas, talvez F e R.

O que está na Camara mostra duas torres de cobertura conica, ligadas pela muralha sem porta; tem barbacan, ameias, sobre as torres bandeiras farpadas, sobre estas, estrellas.

Sob a barbacan um festão florido, infra um lettreiro:

Esta casa e quintal
he do concelho
1518

Entre as torres o escudo das quinas.

O do chafariz dos Canos tem tres torres eguaes, separadas entre si, uma a meio do escudo mais acima, duas aos lados d’esta, mais abaixo. Cada torre sua janella de volta redonda, e quatro ameias; a ameia formada por um dado ou cubo, sobre este uma pyramide de base quadrada excedendo muito a face do cubo.

[Pg 272]

Na fonte está outro escudo com o brazão real, as quinas collocadas á antiga, as lateraes com as pontas para dentro.

Este escudo da fonte dos Canos parece-me ser o brazão antigo da villa, o primeiro, o das turres veteres. Depois conjugaram este com o escudo real, tirando a torre média e mais alta para dar logar ás quinas, ao que parece no tempo de D. Manuel, o reformador do velho foral, pois que o brazão que está na escada da Camara tem a data 1518.

Archivos

Camara, Misericordia, Egreja de Santa Maria

Quando estive na interessante villa de Torres Vedras lembrei-me de visitar archivos, que é onde se encontram reunidos mais documentos authenticos da vida local.

Para alguma cousa ha de servir isto de ler lettras antigas, a paleographia; porque vêr archivos e cartorios sem os entender é inutil.

Manuel Agostinho Madeira Torres na—Descripção historica e economica da villa e termo de Torres Vedras—, falla de antigos documentos, e na 2.ᵃ edição da sua obra os editores deixaram muitas notas em que se referem a velhos pergaminhos e papeis dos cartorios da villa.

A vida antiga, as phases sociaes, as instituições,[Pg 273] a evolução historica, tudo apparece nos archivos a quem tiver paciencia de manusear com attenção codices e avulsos arrumados, quantas vezes esquecidos, desprezados, tristes, poeirentos, nos seus armarios.

Agora que tanto se falla de sociologia esses archivos teem ainda maior importancia; antes os estudiosos procuravam especialmente os grandes acontecimentos e as vidas dos grandes vultos, attende-se presentemente tambem á evolução das instituições, ao viver dos povos, ás manifestações moraes das classes menos brilhantes. Divaguei, pois, algumas horas pelos archivos de Torres Vedras, e vou escrever, condensando muito, do que vi.

Comecei pelo archivo da Camara Municipal, que está installado em armarios, n’uma casa ampla com muita luz.

Vi lá uma peça de primeira ordem, o Foral da villa, dado por D. Manuel.

O primeiro foral foi concedido por D. Affonso iii em 1250, e conserva-se na Torre do Tombo.

Do foral de D. Manuel está o original em Torres, e bem conservado, lindamente escripto em pergaminho.

Percorri tambem alguns livros de actas da camara, bella série que começa em tempo d’el-rei D. Sebastião. Estes codices são importantes, porque não se contentaram em lavrar actas, mas incluiram o registo de documentos de maior significação. Ora o municipio e comarca de Torres foram[Pg 274] de grande importancia em tempos volvidos, com a especialidade proveniente da preponderancia da Casa das Rainhas. Assim encontrei alli noticias de Santarem, Alemquer, etc., que não esperava achar; assim, por exemplo, foi o corregedor de Torres que em 1640 teve o encargo de regular a segurança e a administração em Cascaes, Alemquer, etc., terminado o dominio hespanhol.

Do tempo dos Filippes estão registados muitos documentos sem duvida valiosos.

Como se vê, o archivo municipal de Torres contém dados de valor para a historia do municipio e para a politica geral do paiz.

E mais, é claro, os que importam á vida municipal, os economico-administrativos, os que se referem a obras publicas, viação, preços de generos, etc.

Visitei tambem o archivo da Santa Casa da Misericordia.

Se entro sempre com respeito n’um archivo municipal, que é onde está o documento do homem, rico ou pobre, nobre ou plebeu, entro com veneração e amor n’um cartorio de Casa de Misericordia: alli está a vida do pobre, do enfermo, do engeitado, do encarcerado; alli está a meu vêr a instituição mais gloriosa que tem o povo portuguez. A beneficencia moderna nas suas multiplas manifestações não attinge a perfeição d’esse maravilhoso instituto que corresponde perfeitamente ás necessidades sociaes.

[Pg 275]

O livro mais antigo que vi data de 1608. Vi livros de tombos, accordos, receita e despeza, compromissos, e de enterros. Ha um Tombo grande, que é um formidavel infolio, do tempo de D. João V. Tem medições de propriedades urbanas e ruraes que o tornam precioso. N’este volume está a descripção minuciosa da egreja e Casa da Misericordia, feita em 1730. No termo de Torres havia hospitaes e albergarias na idade média, no Amial, Carvoeira, Turcifal, S. Gião, Ribaldeira, Azueira, S. Mamede e Dois Portos.

É extraordinario o que se fez em Portugal no ramo de beneficencia publica, nos primeiros seculos da monarchia. Creio que foi no seculo XVI, principalmente, que se realisou a concentração nas Misericordias de todas essas pequenas instituições, albergarias, gafarias, etc. De todas vi noticias no archivo da Misericordia.

Finalmente fui vêr, na amavel companhia do Prior, o archivo de Santa Maria do Castello. Esta notavel egreja, antiga capella real, conserva ainda o seu archivo! é caso raro em Portugal. Porque os archivos parochiaes, quasi todos, foram concentrados pelos prelados, e jazem ignorados nos Seminarios, alguns sem a minima organisação. Este lá está nas suas arcas velhinhas, conservado e limpinho, amado pelo digno parocho. Vi lá pergaminhos do seculo XIV, do bom rei D. Diniz, de 1307 um d’elles, e muitos dos seculos XV e XVI. É bem singular um archivo parochial com os seus velhos[Pg 276] livros, amarellecidos pelo tempo, dos que nascem, dos que se casam, dos que morrem; dos que passaram n’este mundo de esperanças, de alegrias, de soffrimentos.

No Varatojo

Na sala do capitulo vi dois lettreiros:

Aqui descansão
as cinzas do Ven.ˡ
P. F. Antonio das
Chagas. Miss. Apost.
e instituidor deste
Semin.ᵒ faleceu a
20 de outubro de 1682.


Fr. Joaq.ᵐ do Espirito Santo
restaurador deste
Seminario
Fal. em Santarem
3 d’agosto 1878

Na quadra, perto da porta que deita para a matta:

Aqui jáz Felipa do
Reguo molher de Nuno
de Sampaio... 1530

[Pg 277]

Reparei na egreja nas seguintes pinturas:

Na capella-mór:

Annunciação
Adoração dos reis
Adoração dos pastores
Noli me tangere.

Na sacristia:

Milagre de Santo Antonio. O burro ajoelhado ante a sagrada particula
Pentecostes.

Na ante-sacristia:

presepe, pequeno quadro em madeira, de trabalho fino, um tanto estragado.

A quadra, arcada e varanda coberta, o travejamento assente sobre columnellos, está bem conservada.

Para esta quadra ou pequeno claustro diz uma casa a que chamam dos retratos, que me parece ter sido uma aula ou casa do capitulo.

O portal desta casa é em manuelino, de trabalho apurado e em boa pedra; é uma peça nitida. Nesta casa está uma pintura em madeira, o Calvario.

A moldura do quadro é de pedra lavrada, tambem em manuelino; pareceu-me uma antiga porta ou janela aproveitada para alli.

[Pg 278]

Estes trabalhos teem intima relação com os portaes de S. Pedro, de S. Thiago, ediculo dos Perestrellos, etc. Vê-se que em Torres Vedras houve na primeira metade do seculo XVI artistas trabalhando com methodo e gosto.


A porta principal da egreja do Varatojo é ogival, singela, aos lados tem brazões com as armas de Portugal e o rodisio de D. Affonso V.

As ventanas da torre são ogivaes.

E vi n’uma córte contigua um portal antigo tambem de ogiva.

Por isto se vê bem que este antigo edificio soffreu reconstrucções.

A quadra deve ser da primitiva, apezar de não apresentar ogivas; o travejamento é singular; no todo singelo ha uma pureza, uma sobriedade que nos incute ideias de paz e recolhimento; como na matta, de vetusto arvoredo, frescas fontes murmurejantes, e clementes horizontes.

Bello sitio para dulcificar maguas e socegar corações attribulados. Por aqui passeou a sua grande dôr e cruel desesperança um rei, D. João II, depois do desastre de Santarem.

Uma inscripção moderna

Na egreja de S. Pedro, proximo ao pulpito, repousa Luiz da Silva Mousinho d’Albuquerque, sob campa rasa, com o lettreiro:

[Pg 279]

AQVI IAZ
LVIZ DA SIL
VA MOVSI
NHO DE AL
BVQUERQ
QVE FALES
CEO NESTA
VILLA DE TOR
RES VEDRAS
AOS XXVII DE
DEZEMBRO
DE MDCCCXLVI


REQ. I. PAC.


É singular como em Torres e em pleno seculo XIX se lavrou tal inscripção; mesmo o caracter da lettra é archaico; parece que o entendido que fez o modelo para o lavor do canteiro poz esmero em imitar o antigo, e muito antigo.

Porque n’esta mesma egreja se encontram lettreiros dois seculos mais velhos sem tantos archaismos.

[Pg 280]

Sinos

Vi os de S. Pedro.

Um tem na fimbria Sanctus Deus e o nome Miguel Delmaco.

Outro: apprehende arma et scutum.

Miguel Delmaco, 1673.


Sineta: tem a data 1802.

Quinta das Lapas

A quinta está na branda encosta da serra da Achada. Esta serra e as outras d’estes sitios são grandes collinas mais ou menos declivosas, de 100 a 150 metros d’altura sobre os valles que as separam. Ás vezes as faldas das collinas alastram-se, desdobram-se em suaves encostas; em pontos alargam-se os valles em varzeas ferteis. O monte coroado pelas ruinas dramaticas do castello de Torres Vedras está rodeado de varzeas amplas. Nos banhos dos Cucos a chan, onde estão os hoteis, o casino, o jardim, o edificio das thermas, está cercada de montes de forte declive, semelhando uma cratéra, quasi completa, rota apenas por breve[Pg 281] chanfro por onde passa o rio e a estrada que leva a Torres, e uma fraca depressão, mais a sul, que vae ter ao caminho de ferro, na visinhança dos pequenos tuneis. O terreno de quasi todas estas chans é de alluvião moderna, feita pelo Sizandro. O solo em que assenta a parte baixa da villa está hoje metro e meio mais alto que no seculo XVI, o que se manifesta em antigas construcções muito soterradas.

As varzes são ferteis e bem cultivadas; nas vertentes agriculta-se tambem, as vinhas ostentam-se viçosas; pinhaes forram grandes trechos das collinas, apresentando arvores bem desenvolvidas.

E bom seria que mais semeassem ou plantassem; um pinhal é util e agradavel, dá sombra e aroma hygienico; serve a lenha, a rama, a pinha; a moderna medicina com muita razão recommenda o ar do pinhal, e, tem-se visto nos ultimos annos, o córte de pinhaes para combustivel, para construcção, para supportes de galerias mineiras, dá bom dinheiro.

Até parece que dá saude o aspecto de um pinheirinho verde, de fresco avelludado, de perfume resinoso. Por isto pinheiro cortado, pinheiro semeado, e quantos mais pinhaes melhor, por esses montes onde o sol, o solo e a aragem se encarregam de o alimentar; se elle cresce que é um encanto até nos areaes da beira-mar onde a rajada do oceano chega a ser um açoute; porque o bom[Pg 282] pinho formoso e hygienico não exige cuidados de cultura.

Por entre pinhaes mesclados de algumas vinhas e outras culturas segue a estrada de Torres para as Lapas; a principio do caminho rompe o bucolismo da paisagem a massa alvacenta da villa, e o seu outeiro escuro encimado pelas velhas muralhas do castello, os altos muros negros da sua alcaçova ou palacio, em tragica derrocada. Faz impressão aquella ruina; suggere tempos idos, historias mui velhas.


Torres mais antiga, já condado,
Por turdulos se crê ser erigida,
Por dote das rainhas, é morgado,
E de muitas já foi favorecida,
O Beato Gonçalo lá enterrado
Por milagres a faz ser mais luzida,
Assim como João a decorou
Nas côrtes que já nella celebrou.

Como diz o bom e patriota Silveira no Côro das Musas.

Passa uma curva da estrada, e deixa-se de avistar casaria nova e muralhas velhas; segue o caminho na verde paisagem campesina.

A estrada é boa, pouco frequentada, com aspectos variados, dominando o verde pinhal. De subito uma casaria branca de aldeia, uma egreja, e[Pg 283] na encosta o palacio, bem ao sol, com as suas dependencias, os seus jardins, pomares, vinhas e matta de arvoredo alto.

Vê-se uma capella de boa construcção e logo uma entrada monumental, de ampla arcada; entra-se no terreiro; a um e outro lado edificações que são dependencias do palacio, na frente a fidalga residencia com larga escadaria e desafogada varanda. Todavia dá logo a impressão de edificio incompleto.

Á monumental entrada, á elegante escada não corresponde o edificio nobre que parece acanhado e por acabar. Houve alteração no plano, com certeza. A fachada que deita para o jardim é mais harmonica; a mansarda, os frisos azulejados dão-lhe graça.

O palacio, dizem, foi erguido pelo primeiro marquez de Alegrete, Manuel Telles da Silva, conde de Villar Maior. Foi feito marquez por D. Pedro II em 1687 (v. Diario de Noticias, de 17 de junho de 1902). Provavelmente foi começado, houve demorada construcção, soffreu alterações; a mansarda será do meio do seculo XVIII; é possivel que a escadaria seja da época de D. João V. Para admirar seria que nesses tempos um Telles da Silva, em poucos annos, observando um só plano, conseguisse erguer um palacio, chamados, como eram, os principaes da illustre familia, para altos cargos no reino, no ultramar e no estrangeiro.

[Pg 284]

Existe na matta uma capella, incompleta, dedicada a Santo André Avelino pelo conde de Tarouca, Fernando Telles da Silva, em 1778. E ha, noutro ponto da matta, uma ermida rustica, com seu alpendre, um pouco mais antiga.

No jardim alegretes e assentos são azulejados, representando scenas de caçadas.

As salas teem tectos de madeira e rodapé alto de azulejos, como as do palacio do Correio-Mór, perto de Loures, e as do casal do Falcão, perto de Carnide, agora felizmente restaurado, segundo ouvi dizer, sob a direcção do conhecido e estimado architecto sr. Raul Lino.

Nos jardins vi magnificas hortenses e na matta ulmeiros, pinheiros mansos, seculares medronheiros, sobreiros veneraveis. O meu amavel guia disse-me os nomes de algumas arvores, conservados na tradição familiar; o mais antigo é o sobreiro dos quatro irmãos, assim chamado porque a pouca distancia do solo o tronco se divide em quatro pernadas reaes, cada uma d’ellas como uma grande arvore.

Ha uma fonte de agua ferrea na matta, e outra numa alameda de ulmeiros, com um grupo em marmore, veado filado por um rafeiro; no outro extremo d’essa alameda deliciosa fica o jogo da bola.

Essas salas de grande pé direito, de chão ladrilhado, de lambris de azulejo, e tectos de madeira, conservando o ar antigo, não estão vasias[Pg 285] ou despidas. Estas, felizmente, teem muito que vêr e respeitar.

Vi moveis antigos, cadeiras d’espaldar com os brazões de familia, grandes leitos de pau preto, com torcidos e lavores.

Os donos da casa fizeram abrir armarios e eu vi desfilar pratas antigas marcadas; ceramicas e crystaes, porcellanas de Sèvres, de Saxe, da India e Japão, de verdade e alto valor. Vi um copo de crystal lapidado com uma vista de Santarem, pintada no crystal, bem interessante: e um dragão de prata, perfumador enorme, trabalho pouco visto, que me disseram ser feito em Moçambique.

Nas paredes retratos de pessoas de familia, e que familia! esta dos Telles da Silva! É vêr ahi nas genealogias as séries de paginas com descendencias e arvores de costado mais frondosas que o sobreiro dos quatro irmãos. Até o venerando D. Manuel Caetano de Sousa escreveu uma obra em dois volumes (Bibliotheca Nacional de Lisboa. Manuscriptos, fundo antigo, C-3-16 e 17. N.ᵒˢ 1048-49), a respeito d’esta familia com o seguinte titulo bem curioso.—Corôa genealogica, historica e panegirica da Excellentissima Casa de Tarouca formada do purissimo ouro dos Silvas, illustrada com a esplendidissima pedraria dos Menezes, adornada com as augustissimas flores da Magestade, fechada com elevados semi diademas da Heroicidade, terminada na altissima esphera da Soberania, consagrada com a sempre venerada cruz[Pg 286] da Santidade, dedicada ao ex.ᵐᵒ sr. D. Estevão de Menezes filho primogenito dos ex.ᵐᵒˢ srs. condes de Tarouca João Gomes da Silva e D. Joanna Rosa de Menezes—.

Pertence effectivamente a esta familia o celebre Beato Amadeu que tão grande fama conquistou na Italia.

Que singular encanto o de ouvir a dona da casa explicando alguns retratos de familia! Que consolação, neste paiz de gente estragada, encontrar um ninho conservado! Que rara impressão no conjuncto, milagroso entre nós, de tantas recordações e tradições, vivas, na mente, na linha, nas feições, na voz da herdeira lidima!

A um marquez de Penalva dizia o Tolentino:

Hontem soube o que podia
Estilo suave e brando
E quanto podeis fallando
Eu o vi na Academia
Nas almas fogo acendia
Vossa discreta oração,
Sobre a minha pretenção
Vos peço que assim oreis,
E que ao principe falleis
Como fallaes á nação.

Pois ainda está representado na familia o estylo suave e a discreta oração, louvados pelo poeta.

[Pg 287]

Poetas houve tambem nesta familia; poetas e eruditos, homens de guerra e de diplomacia; na Bibliotheca Lusitana estão inscriptos os notaveis nas lettras e sciencias. Por estas salas, jardins e bosques passearam academicos, não faltam sitios para tranquilla meditação. E no bello terreiro desafogado com certeza se trabalhou na nobre arte da cavallaria; talvez se corressem touros e jogassem cannas; houve tambem na familia cavalleiros notaveis, mestres reconhecidos na equitação, tratadistas na especialidade.

Porque se chama quinta das Lapas? Ha por aqui algumas lapas, grutas, cavernas? Parece que houve lapas a que se attribuiam lendas de mouros. Perto de casa ha uma vinha, um grupo de pinheiros mansos, uma elevação de terreno de poucos metros de altura; ahi umas cavidades consideraveis. Parece que em tempos alguem fez excavações; acharam cacos, louças partidas. Tudo se extraviou.

Seria uma mamunha? Um d’aquelles tumulos prehistoricos, em que as sepulturas eram cobertas por um monticulo artificial? Não sei, o que hoje se vê pouco significa.

Numa construcção ou pavilhão de fresco perto do jardim fui encontrar no embrechado que reveste as paredes interiores alguns exemplares de contas vitreas coloridas de fabrico egual ao das contas de Chellas, da capella (desapparecida) das Albertas, e da cascata da Quinta do Meio. Aqui[Pg 288] tambem estas singulares contas são acompanhadas de cylindros, discos, etc., de vidro escuro. Continúa para mim a ser um problema a proveniencia de taes objectos.

O caminho dos Cucos

Pela avenida ampla, arborisada, chega-se á estação do caminho de ferro, que nos fica á direita; está á vista o castello ennegrecido e escalavrado, no seu morro severo destacando entre as collinas; o caminho passa sob a via ferrea; passa a ponte do Rei, sobre o Sizandro; vamos entre vinhas e arvoredos; agora a arcada do aqueducto; á direita uma ermida antiga com umas construcções, ao lado um portão com seus enfeites; era a albergaria de S. Gião, ou Julião. Lá se conservam inscripções que nos dizem que os sapateiros da villa no anno de 1359 (era 1397), construiram o modesto albergue, cuja instituição se incorporou na Misericordia em 1586. Os confrades de S. Gião ahi ouviam missa aos domingos. Um respeitador de antiguidades renovou a inscripção em 1849.

Pouco adiante, á esquerda da estrada, indo para os Cucos, existe uma quinta de construcção vistosa, a quinta das Fontainhas, com seu terraço e jardim, onde se lê um lettreiro, na parede occidental da casa, que diz:

[Pg 289]

Sua Alteza Real
O sern.ᵐᵒ principe o sr. D. João
e a seren.ᵐᵃ princ.ᵃ
a sr. D. Carlota Joaquin
e o sr. infante D. Pedro Carlos
jantaram n’esta quinta
no dia 16 d’outubro
de 1797.

Este infante D. Pedro Carlos tinha então dez annos. D. Marianna Victoria, filha de D. Maria I, casou com D. Gabriel, infante de Hespanha. Deste casamento nasceu o infante de Hespanha D. Pedro Carlos de Bragança e Bourbon, que foi almirante em Portugal. Nasceu em Aranjuez em 18 de julho de 1787, e falleceu no Rio de Janeiro a 26 de maio de 1813. Este infante casou, no Rio, em 1810, com D. Maria Thereza, princeza da Beira.

Os banhos dos Cucos são conhecidos de ha muito; a virtude singular d’esta agua já em épocas remotas attrahia enfermos.

Ainda existem as casinholas onde se abrigavam os miseros banhistas.

Hoje as installações hydrotherapicas das thermas dos Cucos são boas, feitas com largueza, direi mesmo com generosidade. O edificio das thermas, a casa dos machinismos, o amplo casino, os dois grandes chalets, e outras construcções, rodeiam um grande rocio ajardinado e arborisado. A grande obra começou em novembro de 1890; em julho[Pg 290] de 1892 já as thermas funccionavam, provisoriamente; em 15 de maio de 1893 realisou-se a inauguração. Todavia não está cumprido o programma inicial, faltam chalets, e recreios para os banhistas, ou para as pessoas de familia que acompanham os enfermos. O principal está feito, e isto deve-se á coragem do opulento proprietario sr. José Gonçalves Dias Neiva. Á coragem e á generosidade, porque me affirmaram que embora a frequencia seja grande já, todavia nem 2% rende o capital alli empregado.

Como o estabelecimento thermal fica a dois kilometros de Torres Vedras, muitos banhistas ficam nos hoteis da villa, que são regulares, e em algumas casas particulares.

A villa lucra com isto dezenas de contos annualmente, todavia nem o municipio nem os habitantes se esforçam por tornar a villa aprazivel aos seus hospedes; nem commodidade, nem distracções; nada que realce a natural belleza d’aquelles sitios. Bem lindos são os arredores da villa, convidando a pequenos passeios campestres, mas raras as estradas que prestem, as de macadam cheias de poeira, as primitivas de barrancos e pedregulhos. Uma das questões locaes é o abastecimento de aguas potaveis; esta porém não importa muito aos banhistas, que quasi todos consomem a agua dos Cucos. Eu não bebo d’outra; faz bem e é agradavel, com o seu ligeiro sabôr salgado. Liga-se optimamente com o vinho. É uma excellente[Pg 291] agua de mesa que os sãos, não só os enfermos, tomam com agrado. Melhoram o appetite e facilitam a digestão.

Esta agua, que tem o maravilhoso lithio, é muito pura segundo a analyse microbiologica, feita em 1904, pelo illustre chimico Carlos Lepiérre.

Os pobresinhos teem tratamento gratuito nos Cucos; a poucos utilisa esse beneficio porque nos Cucos não encontram albergue ou hospital. Para isto me parece deveria olhar a Camara Municipal e a Misericordia de Torres Vedras; proximo dos Cucos um albergue gratuito para pobres seria um grande bem. E ainda outro de preço muito moderado, uma hospedaria simples, a simplicidade não exclue o asseio e hygiene, de alimentação singela e mobilia barata, onde os menos remediados encontrem agasalho.

Parece facil, isto. Naquelle chanfro do terreno que liga a grande varzea dos Cucos ao sitio dos pequenos tunneis do Caminho de ferro seria facil construir modestos albergues, pequenas moradas de construcção economica.

É generoso o coração do sr. Neiva, consideraveis os seus bens de fortuna, e effectivo o seu altruismo, mas em emprezas destas é bom interessar differentes entidades, para que se uma esmorecer, outras continuem a obra, a util obra começada.

Encontrou o sr. Neiva um ajudante dedicado no dr. Justino Xavier da Silva Freire, director[Pg 292] medico das thermas. É um clinico sensato, naturalmente lhano, muito accessivel, attencioso aos muitos enfermos. Que longas narrativas das massadoras enfermidades elle escuta com delicada paciencia, conseguindo extrahir das confusas exposições a historia da doença, o fio do caso, os antecedentes do enfermo. Os seus relatorios annuaes das thermas são muito instructivos e tão nitidamente escriptos que qualquer cliente os comprehende, aproveitando com a leitura.

As aguas dos Cucos são chloretadas, sodicas, bicarbonatadas, sulfatadas, lithinicas, etc. Encontram os chimicos nellas o brometo de sodio, o chloreto de sodio, os bicarbonatos de calcio, de estroncio, e de manganez, o chloreto de magnesio. Pois esta complexidade toda produz uma agua limpida, muito potavel, agradavel ao paladar. Mas o que lhe dá virtude primacial é o chloreto de lithia que em 1:000 grammas entra por 0,0212.

É isto que torna esta agua preciosa para gottosos e rheumaticos. Faz bem aos intestinos, e combate a obesidade.

Casa dos Clerigos pobres

Junto á egreja de S. Pedro está a casa da irmandade dos Clerigos pobres.

Tem nas paredes quadros em azulejo que estranhei um pouco pela composição artistica. São[Pg 293] copias de gravuras; o ingenuo pintor até copiou as assignaturas da chapa

Author Claud. Coell. delin.
Fran. Houat. sculp.

que significa Claudio Coelho desenhou e Francisco Houat gravou. No tecto d’esta casa estão pintados em tela os quatro evangelistas. Acham-se mencionados nas Memorias de Volkmar Machado (pag. 318); são de Bernardo Antonio de Oliveira Goes. O pae d’este, Manuel Antonio de Goes, era pintor de figura e pintou muitos azulejos. Vi outras telas que me pareceram do mesmo pincel na egreja da Graça.

O Asylo da Conquinha

Fica este asylo a breve distancia de Torres, uns vinte minutos de agradavel passeio a pé. Segue-se a estrada da Varzea, entra-se no amplo valle, vestido de culturas, arvoredos fructiferos, bellos vinhedos; ao lado da estrada fica um edificio moderno de aspecto alegre e confortavel, convidativo, é o asylo de S. José; como o sitio se chama a Conquinha, é vulgarmente conhecido por este nome. Santa instituição! Foi este asylo fundado e dotado pela benemerita D. Maria da Conceição Barreto Bastos, fallecida em 21 de maio de[Pg 294] 1901. Velhinhos impossibilitados de trabalhar encontram aqui agasalho e sustento, abrigo tranquillo nos seus ultimos annos de vida.

A casa é cercada por ampla quinta bem cultivada com seus jardins floridos, e bellas arvores de fructa. Tudo muito asseiado e confortavel; mais me agradou ainda o ar satisfeito dos asylados, felizes naquelle ninho de caridade. A fundadora instituiu tambem uma escola, na villa, para meninas, com ensino gratuito; a sua memoria deve ser abençoada; o seu nome gravado no marmore dos benemeritos, e no coração de todos os que veneram estes bons exemplos do incondicional altruismo christão. Quando alli estive, visita casual, era gerente ou director do asylo, o sr. conego prior Antonio Francisco da Silva, cujo nome ouvi cercado pelos asylados da Conquinha com palavras de respeito e gratidão.

Ruços, além!

Preparava-se a jornada de Ceuta.

Havia cabeças enthusiastas, e cabeças duvidosas; timidos e prudentes ao lado dos muito ousados. El-rei D. João I estava em Cintra com os infantes; mandou convocar os do Conselho para Torres Vedras; eram o conde de Barcellos, o condestavel D. Nuno, os mestres das ordens de Christo, de Santiago e d’Aviz, o prior do Hospital,[Pg 295] Gonçalo Vaz Coutinho, Martim Affonso de Mello, João Gomes da Silva, muitos outros senhores e fidalgos.

Nesses dias Torres Vedras acolheu muitos cavalleiros de espora dourada, os grandes senhores territoriaes e militares do paiz.==El Rey partio de Cintra, e foy folgando por aquella comarca de Lisboa caminho de Torres Vedras (isto conta o Azurara, na Chronica de D. João I, parte 3.ᵃ, cap. 24) e antes disto chegando El-Rei a Carnide, o infante Dom Enrique que muito desejava por seu corpo fazer alguma cousa aventejada, chegou a seu padre e disse: Senhor, primeiro que por estes feitos mais vades adiante, porque com a graça de Deos vem já por tal via, que viram a boa fim, eu vos peço por mercê que me outorgueis duas cousas. A primeira que eu seja hum dos primeiros, que filhe terra quando a Deos prazendo chegarmos davante da cidade de Ceita; e a segunda que quando a vossa escada real fôr posta sobre os muros da cidade, que eu seja aquelle que vá primeiro por ella, que outro algum.

Isto disse em Carnide o infante D. Henrique a el-rei D. João; estranho requerimento para a morte na vanguarda extrema, bem natural ao forte coração do rapaz. Chegou el-rei a Torres Vedras, e logo teve uma falla com o condestavel.

Este approvou o plano e prometteu ao rei a sua influencia favoravel...

Tratou-se logo do corregimento da casa para o[Pg 296] conselho a qual era hua sala dianteira, que está em aquelles paços de Torres Vedras, onde está a capella.

Numa quinta-feira o rei e seus filhos ouviram missa do Espirito Santo, naturalmente na egreja de Santa Maria, que era capella real.

Celebrou-se o conselho; foi elrei que publicou o fim da reunião; depois fallou o condestavel approvando a jornada, e o infante D. Duarte no mesmo sentido. Mas havia gente duvidosa, novos que temiam o risco, e criticavam o arrojado plano. Então surgiu um dito que fez época.

João Gomes da Silva, que era homem forte e ardido, cujas palavras sempre traziam jogo e sabor, levanta-se no meio dos indecisos e exclama dirigindo-se a elrei==Quanto eu, Senhor, não sei al que diga senão, ruços, alem, apontando para o sul, na direcção do Algarve d’alem mar, e isto dizia porque elrei e os mais dos que alli estavam tinham já as cabeças cheias de cans. Elrei e os mais riram-se, e assim folgando fizeram fim de suas falas==. Terminaram o conselho a rir-se, os valentes e audazes; iam para Ceuta, para a conquista africana, o inicio glorioso dos descobrimentos, para esse triumpho e sacrificio incomparavel da nacionalidade portugueza. Pois esse grito ruços, alem, ouviu-se nos paços reaes de Torres Vedras. (Azurara, parte 3.ᵃ da Chronica de D. João I, cap. 26).

[Pg 297]

Passeio a Santa Cruz de Ribamar

No dia 27 de setembro de 1905, depois do banho e do almoço, em commodo trem, fui a Santa Cruz.

A estrada vae ao campo do Amial, pelo sopé do monte de S. Vicente, que nos fica á direita; depois pela esquerda a falda do Varatojo. A estrada segue na grande varzea, comprida e ampla, importante, onde o Sizandro abre o seu leito.

Vinhas magnificas, cepas fortissimas carregadas de esplendida uva. A estrada incómmoda pela muita poeira. Fiz uma paragem na quinta dos Chãos, á direita do caminho. Pouco dista da estrada, bem accessivel ao trem. A velha ermida serve de armazem; só me chamou a attenção uma pedra com lettreiro, do seculo XV, solta, na pequena sacristia; não tirei apontamento porque imaginei que a tinha visto publicada nas Memorias de Torres Vedras. Verifiquei depois que não está! seria bom, e creio que facil, recolher a pedra na Camara Municipal, onde se guardam já algumas pedras significativas na historia de Torres Vedras. Alguns homens cavavam; eu vi a descoberto um grosso paredão de alvenaria em argamassa mui antigo.

No terreno d’esta propriedade teem apparecido por vezes vestigios romanos; provavelmente existiu alli alguma villa rustica.

[Pg 298]

Seguindo o passeio. Passamos por boas propriedades, e alguns grupos de casaes.

Os campos estão animados, as estradas concorridas; é uma festa agora; a grande festa das vindimas. Tudo sorri com os bellos racimos do divino Baccho, doce e aromatico.

Calcula-se em 80:000 pipas a producção do vinho no termo de Torres Vedras; mas este anno ha crise de fartura, os preços estão muito baixos; queima-se por isto muito vinho para fazer aguardente, que se vende de 80 a 85 mil réis a pipa de 534ˡ,24, posta em Villa Nova de Gaya.

Todos estes terrenos são de alluvião moderna, mas passadas tres quartas partes do caminho começa a apparecer a areia maritima. Cultiva-se milho, feijão frade, grão de bico.

Passamos junto de alguns moinhos em grande businada, as cordas cheias de louça, dezenas de vasos de barro; os moleiros d’estes sitios são grandes amadores d’esta musica.

Passamos por alguns pinhaes, e chegamos a Santa Cruz, logar formado por algumas casas antigas, e bastantes modernas.

É a praia balnear de Torres Vedras. Pessoas abastadas da villa e de logares proximos aqui mandaram construir vivendas, nas arribas de ar lavado pela brisa do Atlantico. A praia é bonita; uma fita de areia branca, de brando declive, abrigada pelas escarpas não muito altas, de aspecto severo, formadas pelas rochas de colorido variado.[Pg 299] Um grande rochedo alteroso destaca na praia. Foi accessivel em tempo, porque ainda se observa a certa altura um lanço de escada talhado na rocha; mas as vagas esboroam a base. Talvez servisse de atalaia para descobrir corsarios mouriscos, ou marcha do peixe, da baleia, por exemplo, frequente por este mar em tempos idos. Pelos piratas mouros ou corsarios argelinos foi a costa visitada, parece que com certa frequencia, ao que dizem velhas chronicas. Do alto da arriba o mar apresenta o aspecto de amplo golpho; a norte prolonga-se, entrando muito pelo oceano, a peninsula de Peniche, e em frente avistam-se nitidamente os rochedos das Berlengas e Farilhões. Notei aqui um facto talvez interessante; avista-se um largo trecho da costa, escarpas de 40, 30 e 20 metros de altura; em certo ponto a escarpa é mais baixa, chega talvez a quinze metros; por ahi sobem as areias que vão alastrar-se terra dentro; vê-se a duna encostada á rocha nos outros pontos que não vence; pára ante o obstaculo; alli vence, entra pelo chanfro.

E poderá ainda marcar-se a historia da invasão porque na chronica do Purificação ao tratar de Ribamar e do convento de Pena Firme se mostra que ainda no seculo XVII o terreno não estava vestido pelo manto de areia em tamanha extensão.

Logo de entrada encontrei, bem agradavel surpreza, o sr. Rodrigues da Silva, cavalheiro que[Pg 300] eu já conhecia de Torres Vedras; é sabedor da historia da villa e termo, amador de antiguidades, e muito amavel companheiro; com elle fui vêr o monumento funerario mandado fazer por Valerio e Julia, que se conserva no logar marcado nas Memorias da Villa de Torres Vedras (pag. 20 da 2.ᵃ ed.), e no Corpus. A distancia de poucos metros vê-se uma sepultura, algumas lages cravadas no solo, marcando perfeitamente o vão sufficiente para um corpo humano. Parece que em tempos se viam alli vestigios de outras sepulturas; a que existe agora está á beira da escarpa; mais alguns annos e o embate das vagas a fará desapparecer.

Na ermida de Santa Cruz, ou de Santa Helena, vi uma imagem d’esta santa que me pareceu anterior, pela rudeza e ingenuidade da esculptura, ao seculo XVI.

Na missa e no mercado

No domingo, 14 d’agosto de 1904, assisti á missa na egreja de S. Pedro. Muita gente, com bastante respeito. Á sahida fiz de janota parado á porta da egreja para vêr o desfilar dos devotos. Primeiro os homens dos campos, das vinhas, com seus varapaus; mulheres do campo de chale, lenços mal postos na cabeça, á larga. Seguiram as mulheres da villa; caras agradaveis poucas, expressões duras não estupidas nem alvares; na[Pg 301] grande maioria cabellos castanho-escuro; cabellos pretos mais raros; algumas cabelleiras ruivas, e algumas pelles sardentas.

Cabellos corredios, na maioria, poucos em madeixas.

Alguns olhos azues, pelles avermelhadas.

Homens de construcção regular, as mulheres de thorax estreito, pouco seio, mal geitosas.

Durante a missa os homens não largam os varapaus; quando ajoelham vê-se grande numero, porque se encostam, e não deitam no chão o inseparavel.

Usam o simples marmelleiro ou zambujeiro, raros os paus ferrados.

As mulheres usam poucos ornatos, e pouco ouro.

No terreiro proximo da egreja faz-se o mercado. Vendiam melões, melancias, uvas lindas, brunhos varios, maçãs grandes, variedade de peras, aboboras, tomates, pouca hortaliça.

No mercado de peixe, atraz da egreja, sardinha e sarda, fresca e salgada, cação, gorazes; o peixe vem de Nazareth e de Peniche.

Mulheres do campo aviavam os seus cabazes; levavam pão, meio cento de sardinhas, meia duzia de sardas.

A um cantinho do mercado estavam algumas mulheres com polvo, mexilhão, caranguejos grandes. Não faltava a mulher dos tremoços e da pevide de abobora. Dois homens vendiam planta de[Pg 302] couve. Vi ainda vendedores de enxadas, e de calçado forte, sapatos de dura.

Os homens na maioria usam botas altas.

Todo o povo d’estes sitios é calçado, só por excepção vi gente descalça. Isto de pé descalço é uma inferioridade, que talvez acabasse com um pequeno impulso.

Dizem-me que a gente hespanhola está toda calçada já, tem conseguido o sapato e a alpargata de preço baixo. Talvez que as commissões parochiaes de beneficencia podessem resolver o problema. Eu acho o pé descalço uma cousa deprimente, que entristece.

Na pequena praça do Municipio (em 1904) faz-se o mercado da batata; mal se transitava tanta era a saccaria; vende-se a batata arrobada; pareceu-me de boa qualidade. Em 1905 este mercado fazia-se no largo de S. Thiago.

Pelas lojas nas ruas proximas grande freguezia, de gente dos arredores que ao domingo vem mercar á villa.

Ha movimento commercial em Torres, lojas com muitos contos de réis em existencia. A villa é pequena mas os arredores são muito povoados.

Vi industria de ferragens e mobilia especial, com algum geito.

Pelo aspecto geral é gente que trabalha, sobria, um tanto rude.

É escusado dizer que o fomento official é nullo, depois da pobre escola primaria nada mais;[Pg 303] algumas creanças vão de Torres ao Varatojo! para aprender alguma cousa; uma caminhada de uma hora.

Aqui em Torres seriam uteis uma aula de desenho, outra de agricultura, e uma terceira de arithmetica e geometria com ensino especial de contabilidade; porque esta villa é centro de uma região agricola importante, tem commercio grande e pequeno, e industrias que se devem desenvolver.

A feira franca

(21 DE AGOSTO DE 1904)

Na grande varzea em parte arborisada faz-se esta feira muito concorrida pela gente d’aquelles sitios; a região de Torres Vedras é bastante povoada; aldeias e logarejos, boas quintas, casaes, matizam os campos accidentados, as collinas entremeadas de valles e varzeas ferteis.

Este rocio onde se faz a feira tem ao lado a casaria da villa, ao norte o monte onde se ergue o castello, entre olivedo e paredões negros alveja a egreja de Santa Maria, muito caiada; mais longe e mais alto o monte de S. Vicente; a poente do rocio a serra do Varatojo, vestida de vinhedos. Na parte arborisada enfileiram-se barracas e tendas, no rocio nú é a feira de gados e a corredoura.

As barracas de ourivesaria agrupam-se com as[Pg 304] dos utensilios de arame, cobre, ferro estanhado, latoaria. As dos vidros estão perto do grande estendal de louças branca e vermelha.

A louça ordinaria, popular, provém das differentes olarias do termo de Mafra, a branca vem de Alcobaça.

A notar um especialista de buzinas de moinhos de vento, aquellas vasilhas de barro, que assobiam e zumbem quando o vento apressa o movimento das quatro velas triangulares.

Vende-se calçado grosso, bastante correaria, não faltando as sogas ornadas, bordadas a pita colorida.

Pequenas quinquilherias, modestas roletas variadas formam uma rua, leiloeiros de varias qualidades chamam a gritos a attenção do povinho, perto das barracas de tiro ao alvo.

Num espaço grande estão as madeiras; o que mais dá na vista é o material vinario; é natural, estamos numa grande região vinhateira.

Cubas, toneis, balseiros, barris, celhas, tinas em abundancia; de castanho, as mais; algumas de pinho da terra, genero barato. Carros para bois, e tambem de pequenas dimensões e de construcção mais leve para burricos. Ha especialistas em arcos, e negociantes de varedo, assim como de crivos e peneiras.

Menos importante a feira do gado; bastantes porcas com leitões, poucas juntas de bois, pouco e inferior o gado cavallar e asinino.

[Pg 305]

Pareceu-me em geral mal tratado o gado, tanto na feira como no que observei fóra.

É mais a pancada que a alimentação regular.

Já se vê não faltavam as barracas de comer e beber, com os seus fritos alourados, e constante freguezia.

Comia-se bem, bebia-se melhor; homens e mulheres espatifavam acerejadas gallinhas, consumiam patos com arroz cheirando que era uma delicia, e sorviam as talhadas dos sumarentos e aromaticos melões, atirando as cascas aos porcos e leitões grunhindo pela gulodice.

A impressão geral é de atrazo, de educação nulla ou rudimentar; de trabalho mau com inferior alfaia, todavia gosto de vêr o povo rural nestas feiras; é naturalmente são; um tanto brutal nos costumes, se ninguem trata d’elle! mas de bom fundo.

Estamos longe d’aquelles camponios insolentes, turbulentos, cupidos, eivados d’alcoolismo, devastados por seitas ferozes, que preoccupam em Allemanha, na Italia, na França a gente que pensa e vê alguma cousa.


INDICE


S. Domingos de Bemfica,8
O lindo sitio de Carnide,55
Noticias de Carnide,87
A villa da Ericeira,149
De Bemfica á quinta do Correio-Mór,199
Torres Vedras,255