The Project Gutenberg eBook of Os Trabalhadores do Mar This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Os Trabalhadores do Mar Author: Victor Hugo Translator: Machado de Assis Release date: September 13, 2018 [eBook #57895] Language: Portuguese Credits: Produced by Laura Natal Rodriguez and Marc D'Hooghe at Free Literature (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana Guita y José Mindlin) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRABALHADORES DO MAR *** Produced by Laura Natal Rodriguez and Marc D'Hooghe at Free Literature (Images generously made available by the Biblioteca Brasiliana Guita y José Mindlin) TRABALHADORES DO MAR POR VICTOR HUGO traduzido por Machado de Assis RIO DE JANEIRO TYP.--PERSEVERANÇA--RUA DO HOSPICIO N. 91. 1866. PRIMEIRA PARTE O Sr. Clubin. Dedico este livro ao rochedo de hospitalidade e de liberdade, a este canto da velha terra normanda onde vive o nobre e pequeno povo do mar, á ilha de Guernesey, severa e branda, meu actual asylo, meu provavel tumulo. _V. H._ A religião, a sociedade, a natureza: taes são as tres lutas do homem. Estas tres lutas são ao mesmo tempo as suas tres necessidades; precisa crer, dahi o templo; precisa crear, dahi a cidade; precisa viver, dahi a charrua e o navio. Mas ha tres guerras nestas tres soluções. Sahe de todas a mysteriosa difficuldade da vida. O homem tem de lutar com o obstaculo sob a forma superstição, sob a fórma preconceito e sob a fórma elemento. Triplice ananke pesa sobre nós, o ananke dos dogmas, o ananke das leis, o ananke das cousas. Na _Notre Dame de Paris_, o autor denunciou o primeiro; nos _Miseraveis_, mostrou o segundo; neste livro indica o terceiro. A estas tres fatalidades que envolvem o homem junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano. Hauteville-House, março de 1866. LIVRO PRIMEIRO Elementos de uma má reputação I PALAVRA ESCRIPTA EM UMA PAGINA BRANCA O christmas (Natal) de 182* foi notavel em Guernesey. Cahio neve naquelle dia. Nas ilhas da Mancha, inverno em que ha neve, é memoravel: a neve é um acontecimento. Naquella manhã de christmas a estrada que orla o mar de Saint-Pierre Port au Valle assemelhava-se a um lençol branco: nevára desde a meia noite até o romper do dia. Pelas nove horas, pouco depois de nascer o sol, como não era ainda occasião dos anglicanos irem á igreja de Saint-Sampson e os wesleyanos á capella Eldad, o caminho estava quasi deserto. Na parte da estrada comprehendida entre a primeira volta e a segunda havia apenas tres viandantes, um menino, um homem e uma mulher. Estes tres viandantes, caminhando separados, uns dos outros, não tinham visivelmente relação alguma entre si. O menino, de cerca de oito annos parára e olhava para a neve com curiosidade. O homem, seguindo atras da mulher, uns cem passos, dirigia-se como ella, para o lado de Saint-Sampson. Era elle moço ainda e parecia ser operario ou marinheiro. Vestia as roupas ordinarias, isto é, uma grossa camisa de panno escuro e uma calça de pernas alcatroadas, o que parecia indicar que, apezar da festa, não iria á igreja. Os grossos sapatos de couro crú e solas taixadas de ferro deixavam sobre a neve uma marca, que mais se assemelhava a uma fechadura de prisão que ao pé de um homem. A viandante, essa evidentemente trajava roupa de ir á igreja; envolvia-se em uma comprida manta acolchoada de estofo de seda preta, debaixo da qual apertava-lhe faceiramente o corpo um vestido de fazenda da Irlanda com listas brancas e côr de rosa, e, se não fossem as meias vermelhas, tomal-a-hiam por uma parisiense. Caminhava com desembaraço e viveza; e pelo andar, que mostrava não lhe ter ainda pesado a vida, conhecia-se que era moça. Tinha aquella graça fugitiva que indica a mais delicada transição, a adolescencia, a mistura dos dous crepusculos, o principio de uma mulher e o fim de uma menina. O homem não reparava nella. De subito, perto de uma mouta de azinheiras, que fórma o angulo de uma horta rustica, no lugar denominado Basses Maisons, voltou-se a moça, e esse movimento chamou a attenção do homem. Parou, pareceu reparar nelle um instante, abaixou-se, e o homem julgou vêl-a escrever com o dedo alguma cousa na neve. Levantou-se e poz-se de novo a caminho com passo mais apressado, voltou-se ainda, mas desta vez rindo, e desappareceu pela esquerda, seguindo o carreiro guarnecido de sebes, que leva ao castello de Lierre. O homem, quando ella se voltou pela segunda vez, reconheceu Deruchette, linda mocinha do lugar. Mas não sentio necessidade alguma de appressar o passo. Alguns instantes depois estava junto á mouta de azinheiras no angulo da horta. Já não pensava na passageira, e é provavel que se nessa occasião pulasse um golfinho no mar ou um cardeal nos arbustos, passaria com o olhar fixo no cardeal ou no golfinho. Casualmente tinha os olhos baixos, e assim os levou machinalmente ao lugar em que parára a menina. Dous pésinhos ahi estavam impressos e ao lado delles a palavra escripta por ella: _Gilliatt._ Era este o nome delle. Chamava-se Gilliatt. Ficou por muito tempo immovel, contemplando o nome, os pésinhos, a neve; e depois continuou pensativo o seu caminho. II O TUTÚ DA RUA Gilliatt residia na parochia de Saint-Sampson, onde não era estimado e havia razões para isso. Em primeiro lugar, morava em uma _casa mal assombrada._ Acontece algumas vezes em Jersey e Guernesey, no campo e até na cidade, que, ao passar por um lugar deserto ou por uma rua muito habitada, vê-se uma casa, cuja entrada está obstruida. O azevinho cresce á porta, as janellas do rez do chão estão fechadas por feios emplastros de taboas pregadas; as dos andares superiores estão fechadas e abertas ao mesmo tempo: ha ferrôlhos, mas não ha vidros. No pateo, se o ha, alastra-se a herva e cahem os muros; se ha jardim, nascem a ortiga, o espinheiro, a cicuta; raros insectos esvoaçam. Racham-se as chaminés, o tecto se abate; o que se vê dos quartos está arruinado, a madeira podre, a pedra carcomida; cahe o papel das paredes. Pode-se estudar ahi os antigos gostos do papel pintado, os gryphos do imperio, as sanefas em fórma de crescente do Directorio, os balaustres e cippos de Luiz XVI. A espessura das téas de aranha, cheias de moscas, indicam a profunda tranquillidade em que vivem aquelles insectos. Algumas vezes vê-se um pucaro quebrado sobre uma taboa. É uma _casa mal assombrada._ O diabo apparece lá durante a noite. A casa, como o homem, pode tornar-se cadaver; basta que uma superstição a mate. Então é terrivel. Essas casas mortas não são raras nas ilhas da Mancha. As populações campesinas e maritimas não vivem tranquillas a respeito do diabo. As da Mancha, archipelago inglez e littoral francez, tem a respeito delle noções muito precisas. O diabo possue delegados por todo mundo. É certo que Belphegor é embaixador do inferno em França, Hutgin na Italia, Belial na Turquia, Thamuz na Hespanha, Martinet na Suissa e Mammon na Inglaterra. Satanaz é um imperador, como outro qualquer. Satanaz Cesar. A casa delle é muito bem servida: Dagon é o saquetario; Succor Benoth, chefe dos eunuchos; Asmodeu, banqueiro dos jogos; Kobal, director do theatro; Verdelet, grão-mestre de ceremonias e Nybbas bobo. Wiérus, homem de sciencia, bom estrygologo e demonographo distincto, chama Nybbas--_o grande parodista._ Os pescadores normandos da Mancha precisam aprecatar-se quando andam no mar, por causa das artes do diabo. Por muito tempo acreditou-se que S. Maclou habitava o grande rochedo quadrado Ortach, situado ao largo entre Aurigny e Casquets, e muitos velhos marinheiros de outros tempos affirmavam tel-o visto não poucas vezes sentado e lendo um livro. Por isso os maritimos, quando passavam, ajoelhavam-se muitas vezes diante do rochedo Ortach, até que um dia dissipou-se a fabula e esclareceu-se a verdade. Descobrio-se e sabe-se hoje que quem habita aquelle rochedo não é um santo, mas sim um diabo, chamado Jochmus, que por muitos seculos teve a malicia de fazer-se passar por S. Maclou. Demais, a propria igreja cahe em taes enganos. Os diabos Raguhel, Oribel e Tobiel foram santos, até que em 745 o papa Zacarias, tendo-lhes tomado o faro, deitou-os fóra. Para fazer taes expulsões, que são muito uteis, é necessario ser muito conhecedor de diabos. Conta a gente velha da terra, mas estes casos pertencem ao seculo passado, que a população catholica do archipelago normando estivera outr'ora, bem a seu pezar, mais em communicação com o diabo do que a população huguenote. Ignoramos a razão, mas a verdade é que a minoria catholica andou outr'ora muito incommodada por elle. Affeiçoára-se aos catholicos e procurava frequental-os, o que leva a crer que o diabo é antes catholico que protestante. Uma de suas mais insupportaveis liberdades era visitar á noite os leitos conjugaes catholicos, quando os maridos dormiam de todo, e as mulheres, a meio. Disto resultavam equivocos. Patouillet pensava que Voltaire nascera assim. Não é inverosimil. É caso perfeitamente conhecido e descripto nos formularios de exorcismo sob o titulo de _erroribus nocturnis et de semine diabolorum._ O diabo fez violencias destas especialmente em Saint-Hélier, em fins do seculo passado: é provavel que para punição dos crimes da revolução. As consequencias dos excessos revolucionarios são incalculaveis. Fosse como fosse, essa apparição possivel do demonio durante a noite, quando reina a escuridão e todos dormem, inquietava muitas mulheres orthodoxas. Dar nascimento a um Voltaire não é cousa agradavel. Uma dellas, assustada, foi consultar o confessor sobre a maneira de desfazer-se em tempo o quiproquo. O confessor respondeu: para saber se está com o diabo ou com seu marido, apalpe-lhe a cabeça e se encontrar pontas, pode estar certa....--de que? perguntou a mulher. A casa em que morava Gilliatt tinha sido mal assombrada e já não era; portanto, tornava-se mais suspeita; é sabido que, quando um feiticeiro vem habitar uma casa visitada pelo diabo, este, julgando-a bem guardada, tem a delicadeza de não voltar, salvo o caso de ser chamado, como medico. Chamava-se a casa _0 tutú da rua._ Era situada na ponta de uma lingua de terra ou antes de rochedo, que formava uma pequena angra de bastante profundidade na enseada de Houmet Paradis. A casa estava sósinha nessa ponta, quasi fora da ilha, tendo apenas a terra sufficiente para um pequeno jardim ás vezes inundado por occasião das aguas vivas. Entre o porto de Saint-Sampson e a enseada de Houmet Paradis ha uma grande coluna, sobre a qual levanta-se um amontoado de torres e de hera chamado o castello do Valle ou do Archanjo, de sorte que de Saint-Sampson não se via o _tutú da rua._ Não são raros os feiticeiros em Guernesey. Exercem a profissão em certas parochias, apezar de vivermos no seculo dezenove. Praticam acções verdadeiramente criminosas. Fazem ferver ouro. Colhem hervas á meia noite. Olham de travez para o gado. Consultam-n'os; elles mandam buscar em garrafas _a agua dos doentes_, e dizem em voz baixa: _a agua parece bem triste._ Affirmou um feiticeiro em Março de 1857, que na _agua_ de um doente havia sete diabos. São temidos e temiveis. Ha pouco tempo um delles enfeitiçou um padeiro e mais o _forno._ Outro tem a perversidade de fechar e lacrar uma porção de sobrecartas, _sem haver nada dentro._ Outro chega ao ponto de ter em casa, em cima de uma taboa, tres garrafas com um B em cada uma. Estes factos monstruosos são conhecidos. Alguns feiticeiros são complacentes, e por dous ou tres guinéos incumbem-se de soffrer as nossas molestias. Rolam e gritam em cima da cama. Enquanto elles se estorcem diz o doente: «E esta! já estou bom!» Outros curam todas as molestias amarrando um lenço ao redor do corpo do doente. É um remedio tão simples que admira não se ter ainda ninguem lembrado delle. No seculo passado o tribunal real de Guernesey collocava-os sobre uma porção de achas de lenha e queimava-os vivos. Presentemente condemna-os a oito semanas de prisão, quatro a pão e agua e quatro no segredo, alternando. _Amant alterna catenœ._ A ultima queima de feiticeiros em Guernesey foi em 1747, sendo theatro do espectaculo a praça de Bordage, que de 1565 a 1700 vio queimarem-se onze feiticeiros. Em geral esses culpados confessavam seus crimes: eram para isso ajudados pela tortura. A praça de Bordage prestou serviços á sociedade e á religião. Queimaram-se ahi os hereticos. No tempo de Maria Tudor, entre outros huguenotes, queimou-se uma mãe e duas filhas: a mãe chamava-se Perrotine Massy. Uma das filhas estava gravida e teve o successo sobre o brazeiro. A chronica diz: _Arrebentou-lhe o ventre._ Sahio desse ventre um menino vivo; o recem-nascido rolou na fogueira, um tal House apanhou-o. O bailio, Helier Grosselin, bom catholico, mandou atirar a criança ao fogo. III PARA TUA MULHER, QUANDO TE CASARES Voltemos a Gilliatt. Contava-se na terra que uma mulher, tendo comsigo um menino, viera em fins da revolução habitar Guernesey. Era ingleza, ou talvez franceza. O nome della, qualquer que fosse, a pronuncia guernesiana e a orthographia dos camponezes transformaram em Gilliatt. Vivia sosinha com o menino, que, diziam uns, era seu sobrinho, outros, filho, outros neto e, outros, cousa nenhuma. Possuia um dinheirinho, de que vivia pobremente. Comprara um pedaço de terra na Sergentée e outro em Roque-Crespel, perto de Rocquaine. A casa _tutú da rua_, estava nesse tempo mal assombrada. Havia mais de trinta annos que ninguem morava nella. Cahia aos pedaços. O jardim sempre innundado pelo mar, já nada produzia. Além dos ruidos nocturnos e das luzes, a casa era particularmente atterradora por isto: se á noite se deixava sobre a lareira um novello de lã, agulhas e um prato cheio de sopa, no dia seguinte de manhã encontrava-se a sopa comida, o prato vasio e um par de luvas feito. Poz-se á venda aquelle pardieiro com o diabo, que estava dentro, por algumas libras esterlinas. Aquella mulher comprou-o, evidentemente tentada pelo diabo. Ou pela barateza. Fez mais do que compra-lo, foi morar lá com o filho, e desde então a casa socegou. _Esta casa achou o que queria_, dizia a gente da terra. Cessaram as apparições. Já se não ouvia gritos ao romper do dia. Já não havia outra luz além do sebo acendido á noite pela boa mulher. Vela de feiticeira vale a tocha do diabo. Esta explicação satisfez o publico. A mulher utilisava o quarto de geira de terra que possuia. Tinha uma boa vacca de cujo leite fazia manteiga. Colhia frutas e batatas Golden Drops. Vendia como qualquer outra pessoa, hervas, cebolas e favas. Não costumava ir ao mercado vender a sua colheita, mandava-a por Guilbert Falliot. O registro de Falliot mostra que elle vendeu para ella uma vez doze alqueires de _batatas_ chamadas _de tres mezes, das mais temporãs._ Fizeram-se na casa apenas os reparos necessarios para se poder habitar nella. Só chovia nos quartos quando fazia muito máo tempo. Compunha-se de dous pavimentos, um rez do chão, e um celleiro. No terreo havia tres salas; dormia-se em duas, comia-se na terceira. Subia-se ao celleiro por uma escada. A mulher cozinhava e ensinava a lêr ao filho. Nunca ia á igreja, e isto, depois de muito considerado, sendo para que a declarassem franceza. Não ir a _parte alguma_, é cousa grave. Em summa, era gente que nada inculcáva. É provavel que fosse franceza. Os vulcões arrojam pedras, as revoluções homens. Espalham-se familias a grandes distancias, deslocam-se os destinos, separam-se os grupos disperos ás migalhas; cahe gente das nuvens, uns na Allemanha, outros na Inglaterra, outros na America. Pasmam os naturaes dos paizes. Donde vem estes desconhecidos? Foi aquelle vesuvio, que fumega além, que os expellio de si. Dam-se nomes a esses aerolithos, a esses individuos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte; chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam, toleram-nos: alegram-se quando elles vão embora. Algumas vezes são entes absolutamente inoffensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos, que os proscreveram, não tendo rancores nem colera, projectis contra a vontade, espantadissimos de o serem. Enraizam-se como podem. Não faziam mal a ninguem e não comprehendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre mouta de hervas atirada aos ares pela explosão de uma mina. A revolução franceza, mais do que nenhuma explosão, fez desses jactos longinquos. A mulher, que em Guernesey era conhecida pela Gilliatt, foi talvez aquella mouta de herva. Envelheceu a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam delles mas elles bastavam-se a si proprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. Foi esta uma das formulas que lhes applicou a benevolencia da visinhança. O menino tornou-se adolescente, o adolescente homem, e então, devendo cahirem sempre as velhas crostas da vida, a mãe veio a fallecer. Constava a herança das terras da Sergentée e da Roque-Crespel, da casa mal assombrada, e mais, diz o inventario official, de cem guinéos de ouro, dentro de um pé de meia. A casa estava mobiliada com duas arcas de carvalho, duas camas, seis cadeiras, uma mesa e os utensilios necessarios. Havia em cima de uma taboa uns poucos de livros, e a um canto uma canastra, que nada tinha de mysteriosa, e que devia ser aberta na occasião do inventario. A canastra era de couro ruivo, cheio de arabescos de pregos de cobre e estrellas de estanho, e continha um enxoval de mulher, novo e completo, de excellente linho de Dunkerque, camisa e saia, cortes de vestidos de seda e em cima de tudo um papel escripto pela finada:--_Para tua mulher quando te casares._ A morte da mãe acabrunhou o filho. Era rustico, tornou-se feroz. Completou-se-lhe o deserto. Era isolamento, tornou-se vacuo. Quando ha duas creaturas, a vida é possivel. Havendo uma só, parece que nem se póde arrasta-la. Renuncia-se a ella. É a primeira fórma do desespero. Mais tarde comprehende-se que o dever é uma serie de acceites. Contempla-se a morte, contempla-se a vida, consente-se na ultima. Mas é um consentimento que sangra. Gilliatt era moço, a ferida cicatrizou. Naquela idade as carnes do coração tornam a unir-se. A tristeza, dissipando-se-lhe a pouco e pouco, misturou-se á natureza em redor delle, tornou-se uma especie de encanto, attrahio-o para perto das cousas e longe dos homens, e amalgamou cada vez mais aquella alma e a solidão. IV IMPOPULARIDADE Já o dissemos. Gilliatt não era estimado na parochia. Antipathia natural. Sobravam motivos. O primeiro acabamos de explica-lo, era a casa em que morava. Depois, a origem delle. Quem era aquella mulher? E este menino? A gente não gosta de enigmas a respeito de estrangeiros. Depois, trajava uma roupa de operario, tendo aliás com que viver, embora não fosse rico. Depois, o jardim, que elle conseguia cultivar e donde colhia batatas apezar dos ventos do equinoxio. Depois, os alfarrabios que elle lia. Outras razões ainda. Porque motivo vivia solitario? A casa mal assombrada era uma especie de lazareto; conservavam Gilliatt em quarentena; deste modo era muito simples que o seu isolamento causasse espanto, e o responsabilisassem pela solidão, em que o deixavam. Nunca ia á igreja. Sahia muitas vezes á noite. Fallava aos feiticeiros. Uma vez viram-n'o sentado sobre a relva com ar espantado. Frequentava o dolmen do Ancresse e as pedras fatidicas que existem espalhadas pelo campo. Havia quasi certeza de terem-n'o visto comprimentar polidamente a _Rocha que canta._ Comprava todos os passaros, que lhe levavam, e soltava-os. Era civil para com as pessoas das ruas de Saint-Sampson, mas preferia dar uma volta para não passar por lá. Pescava muitas vezes e sempre: apanhava peixe. Trabalhava no jardim aos domingos. Tinha um _bug-pipe_ (especie de samphona) que comprara a uns soldados escossezes, ao passarem por Guernesey, e tocava nella sobre os rochedos, á beira do mar, ao cahir da noite. Gesticulava como um semeador. Que virá a ser uma terra com um homem destes? Quanto aos livros, que haviam pertencido á mulher finada, esses eram assustadores. Quando o reverendo Jaquemin Herodes, cura de Saint-Sampson, entrou na casa para encommendar a mulher, leu no lombo desses livros os titulos seguintes: _Diccionario de Rosier, Candido_, por Voltaire; _Aviso ao povo acerca da sua saude_, por Tissot. Dissera um fidalgo francez, emigrado, retirado em Saint-Sampson que _aquelle Tissot devia ser o que carregou a cabeça da princeza à Lamballe._ O reverendo notou n'um dos livros este titulo verdadeiramente extravagante e ameaçador: _De Ruibarbaro._ Cumpre observar que, sendo a obra escripta em latim, como indica o titulo, era duvidoso que Gilliatt, que não sabia latim, lesse aquella obra. Mas são exactamente os livros que a gente não lê, os que mais condemnam. A inquisição de Hespanha julgou esse caso, e pô-lo fora de duvida. Demais, o livro era o tratado do doutor Tilingius _sobre o ruibarbo_, publicado na Allemanha em 1679. Não havia certeza de que Gilliatt não fizesse bruxarias, philtros e sortilegios. Tinha frascos em casa. Porque motivo ia elle passear, e ás vezes até á meia-noite, nos penhacos da costa? era evidentemente para conversar com a gente maligna que anda á noite nas praias, no meio das exhalações. Ajudou elle uma vez a feiticeira de Torteval a desatolar a carroça. Era uma velha, por nome Moutonne Gahy. Tendo-se feito um recenceamento na ilha, perguntou-se-lhe a profissão, e elle respondeu: _pescador quando ha peixe._ Vejam lá se a gente da ilha podia gostar de taes respostas. Pobreza e riqueza são relativas. Gilliatt tinha terras e uma casa, e comparado aos que não possuem cousa nenhuma, não era pobre. Um dia, para experimenta-lo, e talvez para inculcar-se, por que ha mulheres que estariam promptas a desposar o diabo rico, disse uma rapariga a Gilliatt: _Quando se casa?_ A resposta delle foi: _Casar-me-hei quando se casar a Rocha que canta._ A Rocha que canta era uma grande pedra collocada a pique n'uma horta rustica perto do Senhor Lemezurier de Fry. Esta pedra inspira desconfiança. Não se sabe o que ella faz ali. Ouve-se cantar um gallo invisivel, cousa extremamente desagradavel. Verificou-se que a pedra foi posta ali por uns fantasmas. De noite, quando troveja, se apparecem homens a voar entre as nuvens avermelhadas, são os taes fantasmas. Ha uma mulher que mora no Grande Mielles e que os conhece. Uma noite, em que havia fantasmas n'uma encruzilhada, essa mulher vendo um carroceiro que não sabia por onde seguir, gritou-lhe: _Pergunte-lhes o caminho; é gente benefica, e bem educada, com quem se póde conversar._ Aquella mulher é com certeza feiticeira. O judicioso e sabio rei Jaques I mandava ferver ainda vivas as mulheres dessa especie, provava o caldo, e pelo gosto, dizia: É _feiticeira_; ou: _não é feiticeira._ É para lamentar que os reis hoje não tenham daquelles talentos, que faziam comprehender a utilidade da instituição. Gilliatt, não sem motivos serios, tinha fama de feiticeiro. Num temporal, á meia-noite, estando Gilliatt sozinho no mar, dentro de uma lancha do lado da Soumeilleuse, ouviram-n'o perguntar: --Ha lugar para passar? Respondeu-lhe uma voz de cima dos penhascos: --Pois não! animo! A quem fallaria elle senão a alguem que lhe respondia? Parece-nos que isto é uma prova. Outra noite de temporal, tão negro que nada se via, pertinho da Catiau-Roque, que é uma dupla fileira de rochedos onde os feiticeiros e as cabras vão dansar á sexta-feira, houve quem reconhecesse a voz de Gilliatt no meio deste terrivel dialogo: --Como está Vésin Brovard? (Era um pedreiro que tinha cahido de um telhado). --Vai sarando. --Devéras! pois cahio de um lugar tão alto como aquelle estaca. Admira não ficar despedaçado. --Bom tempo foi a semana passada para a colheita das praias. --Melhor do que hoje. --De certo! não haverá muito peixe no mercado. --O vento é rijo. --Não se podem deitar as redes. --Como vai a Catharina? --Está embruxada. A Catharina era evidentemente alguma feiticeira. Gilliatt, ao que parecia, trabalhava de noite. Ao menos, ninguem duvidava disso. Viam-n'o algumas vezes, espalhar pelo chão a agua de um pucaro. Ora a agua espalhada pelo chão traça a forma dos diabos. Existem na estrada de Saint-Sampson, tres pedras dispostas em forma de escada. Na plataforma houve em outro tempo uma cruz, e se não foi cruz, era forca. Aquellas pedras são malignas. Muita gente experta, e digna de credito, affirmava ter visto, perto dessas pedras, Gilliatt conversando com um sapo. Ora, não ha sapos em Guernesey; Guernesey tem todas as cobras, e Jersey todos os sapos. Aquelle sapo veio naturalmente de Jersey, a nado, para fallar a Gilliatt. A conversa era amigavel. Todos estes factos estavam averiguados; e a prova disso é que as tres pedras lá estão. Quem duvidar póde ir vel-as, e mesmo á alguma distancia, ha uma casa em cuja esquina lê-se isto: _mercador de gado morto e vivo, cordas velhas, ferros, ossos e fumo de mascar; é prompto na paga e na attenção._ Só de má fé se póde contestar a existencia daquellas pedras e daquella casa. Tudo isso fazia mal a Gilliatt. Só os ignorantes não sabem que o maior perigo dos mares da Mancha é o que se chama _rei dos Auxcriniers._ Não ha personagem maritimo mais temivel. Quem o vê naufraga logo entre uma e outra Saint Michel. É pequeno e surdo, por ser anão e rei. Sabe o nome de quantos morreram no mar, e em que lugar estão. Conhece a fundo o cemiterio Oceano. Cabeça larga em baixo, e estreita em cima, corpo cheio, barriga viscosa e disforme, nodosidades no craneo, pernas curtas, braços compridos, barbatanas em vez de pés, garras em vez de mãos, cara larga e verde, tal é aquelle rei. As garras são achatadas, as barbatanas tem unhas. Imaginem um peixe, com cara de homem, e fórma de espectro. Para vencel-o, é preciso exorcismal-o ou pescal-o. Fóra disso, é sinistro. Vel-o é perigoso. Descobre-se acima das ondas e do marulho, atravez da espessura do nevoeiro, umas feições de gente; testa curta, nariz esborrachado, orelhas chatas, boca immensa e sem dentes, beiços esverdeados, sobrancelhas angulosas, olhos vivos e grandes. O rei torna-se vermelho quando o relampago é livido, descorado quando o relampago é vermelho. Tem barba gotejante e rigida, cortada em quadro, que lhe cahe sobre uma membrana em fórma de mantéo de peregrino; o mantéo é adornado de quatorze conchas, sete na frente, sete nas costas. As conchas são extraordinarias para os que conhecem conchas. O rei só é visivel no mar violento. É o dansarino lugubre da tempestade. Vê-se a fórma delle esboçada no nevoeiro e na chuva. O umbigo é hediondo. Uma casca de escamas guarda-lhe os quadris á semelhança de collete. O rei levanta-se de pé, sobre as vagas que irrompem á pressão dos ventos e vão rolar-se como os cavacos que sahem do rabote do marcineiro. Conserva-se todo fora da espuma, e quando avista ao longe navios em perigo, entra a bailar, descorado na sombra, com a face illuminada por um vago sorriso, feio e demente no aspecto. Máo encontro esse. Na epocha em que Gilliatt era uma das preoccupações de Saint-Sampson, as ultimas pessoas que tinham visto o rei da Mancha, declaravam que já não havia no mantéo mais de treze conchas. Treze; era mais perigoso ainda. Mas onde foi parar a outra concha? Deu-a a alguem? A quem seria? Ninguem podia dizel-o, todos se limitavam ás conjecturas. O que é certo é que o Sr. Lupin Matier, do lugar de Godaines, homem de posição, proprietario taxado em quatorze bairros, estava prompto a jurar que vira uma vez, nas mãos de Gilliatt, uma concha muito exquisita. Não raras vezes se ouviam os camponios conversarem entre si: --Visinho, não é verdade que este boi é magnifico? --Inchado, visinho. --Homem, é verdade. --Tem mais sebo do que carne. --Devéras! --Estaes certo de que Gilliatt não lhe pôz os olhos em cima? Gilliatt parava nos campos, ao pé dos lavradores, e nos jardins ao pé dos jardineiros, e dizia-lhes palavras mysteriosas: --Quando florecer a scabiosa, semea o centeio. --O freixo enfolha, acaba-se a neve. --Solsticio de verão, cardo em flôr. --Se não chover em Junho, o trigo ha de espigar. Tomem cuidado com as plantas nocivas. --A cerejeira está dando fructos, desconfia da lua cheia. --Se o tempo, no sexto dia da lua, conservar-se como no quarto dia ou como no quinto, ha de ser o mesmo em toda a lua, nove vezes em doze no primeiro caso, e onze vezes em doze no segundo. --Vigia o teu visinho com quem andas em processo. Cautella com as espertezas. Porco que bebe leite quente, estoira. Vacca que leva alho nos dentes, não come. --O peixe está gerando, guarda-te das febres. --As rãs apparecem, semea os melões. --A anemona enflora, semea a cevada. --A tilia enflora, ceifa os campos. --O choupo enflora, fecha as estufas. E, cousa terrivel, quem seguisse os seus conselhos acha-los-hia muito bons. Uma noite de Junho, em que elle tocava _o bug pipe_, sobre os cabedellos da praia, do lado da Damie de Fontenelle, não se pode pescar uma só cavalla. Outra noite, vasando a maré, aconteceu tombar na praia, em frente da casa mal assombrada, uma carreta cheia de sargaço. Gilliatt receiou naturalmente ser chamado á justiça, pois atirou-se a levantar a carreta, pondo-lhe outra vez toda a carga que se espalhara no chão. Uma menina da visinhança tinha muitos piolhos; Gilliatt foi a Saint-Pierre Port, trouxe de lá um unguento e esfregou a cabeça da pequena; tirou-lhe os piolhos, o que prova que foi elle quem lh'os deitou. Sabe toda a gente que ha feitiço para fazer criar piolhos na cabeça dos outros. Dizia-se que Gilliatt olhava para os poços, o que é perigoso quando é máo olhado; e o caso é que um dia, nos Arculons, a agua de um poço tornou-se doentia. A dona do poço disse a Gilliatt: _veja esta agua._ E apresentou-lhe um copo cheio. Gilliatt confessou. _A agua está grossa_, disse elle; _é exacto._ A boa mulher que desconfiava disse-lhe. _Pois cure-a._ Gilliatt perguntou-lhe se ella tinha algum curral, se o curral tinha esgoto, e se o rego do esgoto passava perto do poço. A boa mulher disse que sim. Gilliatt entrou no curral, desviou o rego do esgoto, e a agua do poço ficou boa. Ora, pensava a gente da terra, nenhum poço fica insalubre, nem é curado depois, sem motivo; a doença do poço não é natural; é difficil não acreditar que Gilliatt tenha enguiçado a agua. De uma vez, tendo ido a Jersey, foi alojar-se em S. Clemente, em uma rua cujo nome quer dizer _almas do outro mundo._ Nas aldeâs, colhem-se os indicios, comparam-se: o total faz a reputação de um homem. Aconteceu um dia que Gilliatt foi sorprehendido a deitar sangue pelo nariz. Cousa grave. Um patrão de lancha, grande viajante, que fez quasi a volta do mundo, afirmou que havia uma terra, onde todos os feiticeiros deitam sangue pelo nariz. Quando um homem deita sangue pelo nariz, já toda a gente sabe como se haver com elle. Todavia algumas pessoas de juizo observaram que aquillo que caracterisa os feiticeiros em uma terra, pode não caracterisa-los em outra. Nos arredores de Saint-Michel, vio-se Gilliatt parado em uma horta dos Huriaux, ao pé da estrada real de Videclins. Gilliatt assobiou, e pouco depois veio um corvo, e depois uma pega. O facto foi attestado por um homem notavel que pertenceu depois a uma commissão encarregada de fazer um novo livro de medidas. No Hamel, ha mulheres velhas que diziam estar certas de ter ouvido, ao romper da manhã, umas andorinhas chamando por Gilliatt. A isto deve accrescentar-se que Gilliatt não era bom. Um dia um pobre homem battia um asno, que tinha empacado. Deu-lhe algumas tamancadas na barriga, o animal cahio. Gilliatt correu para levanta-lo; estava morto. Gilliatt esbofeteou o pobre homem. N'outra occasião, vendo um rapaz descer de uma arvore com um ninho de passarinhos ainda implumes, Gilliatt tirou o ninho ao rapaz, e levou a crueldade ao ponto de restitui-lo ao seu lugar na arvore. Uns viandantes censuraram-no por isso; Gilliatt não fez mais do que apontar para o pai e a mãe dos passarinhos que guinchavam por cima da arvore e voltavam para o ninho. Tinha queda pelos passaros. É um signal este que faz conhecer geralmente os bruxos. Os rapazes gostam de tirar os ninhos de cotovias e goelandos no penedio das costas. Trazem comsigo grande porção de ovos azues, amarellos, e verdes, para armar com elles a frente das lareiras. Como os penedos estão a pique, acontece-lhes ás vezes escorregarem, cahirem e morrerem. Nada mais lindo que uma varanda adornada com ovos de passaros do mar. Gilliatt já não sabia que inventar para fazer mal aos rapazes. Trepava, com risco de vida, ao cimo das rochas marinhas, e pendurava ahi molhos de feno, com chapéos velhos em cima, e tudo quanto pudesse servir de espantalho, para arredar os passaros, e por consequencia as crianças. Por tudo isto Gilliatt ia sendo a pouco e pouco odiado por todos. Não precisava tanto para se-lo. V OUTROS PONTOS AMBIGUOS DE GILLIATT Não estava fixa a opinião acerca de Gilliatt. Geralmente era tido por _marcou._ Outros acreditavam mesmo que fosse filho do diabo. Quando uma mulher, tem do mesmo homem, sete filhos machos consecutivos, o setimo é _marcou._ Mas para isso, é necessario, que nenhuma filha venha interromper a serie dos rapazes. O _marcou_,--tem uma flôr de liz impressa em uma parte do corpo, donde resulta que aproveita tanto aos escrophulosos como aos reis de França. Em França ha _marcous_ em toda a parte, especialmente na provincia de Orleans. Cada aldêa do Gatinais tem o seu _marcou._ Para curar os doentes basta que o _marcou_ sopre nas chagas ou lhes faça tocar a flôr de liz. O remedio é efficaz, principalmente quando applicado na noite de sexta-feira maior. Ha uma dezena de annos, o _marcou_ d'Ormes, no Gatinais, appellidado o _Formoso Marcou_, e consultado por toda a Beauce, era um tanoeiro, chamado Foulon, que tinha cavallo e carruagem. Para pôr cobro aos seus milagres foi preciso intervir a policia. Tinha elle a flôr de liz embaixo do peito esquerdo. Outros _marcous_ têm-n'a em lugar diverso. Ha _marcous_ em Jersey, em Aurigny, e em Guernesey. Parece que isto procede dos direitos que tem a França sobre o ducado da Normandia. A não ser assim, porque haveria ali a flôr de liz? Como ha tambem nas ilhas da Mancha muitos escrophulosos, os _marcous_ são necessarios. Em um dia estando Gilliatt a banhar-se no mar, diante de algumas pessoas, julgaram estas ter-lhe visto no corpo a flôr de liz. Interrogado a esse respeito, por unica resposta pôz-se a rir. Gilliatt ria ás vezes como os outros homens. Mas desde esse dia nunca mais o viram tomar banho. Começou então a banhar-se em lugares solitarios e perigosos. Provavelmente á noite, e em noites de luar; o que, hão de convir, é cousa um tanto suspeita. Os que se obstinavam em crê-lo filho do diabo (_cambiou_), enganavam-se evidentemente. Deviam saber que só os ha na Allemanha. Mas o Valle e Saint-Sampson eram ha cincoenta annos paizes ignorantes. Acreditar em Guernesey que alguem é filho do diabo, por força que ha nisso exageração. Por isso mesmo que Gilliatt inquietava o populacho era muito consultado. Os camponios aterrorisados iam conversar com elle acerca dos seus achaques. Aquelle terror equivalia a meia confiança, e no campo, quanto mais suspeito é o medico mais efficaz é o remedio que elle dá. Gilliatt tinha medicamentos propriamente seus, herdados da finada velha. Dava-os a quem lh'os pedia, e não recebia dinheiro. Curava os panaricios com applicações de hervas; o liquido de um dos seus frascos cortava a febre; o chimico de Saint-Sampson, que chamariamos pharmaceutico em França, pensava que era uma decocção de quina. Os menos benevolos convinham em que Gilliatt era excellente diabo para os doentes, quando se tratava de seus remedios ordinarios; mas, como _marcou_ não queriam ouvir nada; se algum escrophuloso pedia-lhe para tocar a flôr de liz, a resposta de Gilliatt era fechar-lhe a porta na cara; recusava fazer milagres, cousa ridicula em um feiticeiro. Não sejas feiticeiro, mas se o és, faze o teu officio. Havia uma ou duas excepções nesta antipathia universal. O Sr. Landoys, do Clos-Landés, era escrivão da parochia de Sain-Pierre Port, encarregado das escripturas, e guarda dos registros dos nascimentos, casamentos e obitos. Jactava-se o escrivão de descender do thesoureiro da Bretanha, Pedro Landoys, enforcado em 1485. Estando uma vez a banhar-se, o Sr. Landoys affastou-se da praia, e quasi se affogou; Gilliatt atirou-se á agua, affogou-se quasi, mas salvou Landoys. Desde esse dia Landoys não fallou mal de Gilliatt. Aos que se admiravam disso, respondia elle: _Como hei de aborrecer um homem que não me fez mal, e até me prestou um serviço?_ O escrivão chegou mesmo a ser amigo de Gilliatt. Não era homem de preconceitos. Não acreditava em feiticeiros. Mofava dos que acreditavam em almas do outro mundo. Tinha uma canôa, pescava nas horas de descanço para divertir-se, e nunca vio cousa alguma extraordinaria, a não ser, em certa noite de luar, um vulto branco de mulher, que pulava na agua, e ainda assim não estava muito certo. Moutonne Gahy, feiticeira de Torteval, dera-lhe um saquinho para atar debaixo da gravata, afim de afugentar os espiritos; Landoys zombava do sacco, e não sabia o que havia dentro; mas sempre andava com elle, e sentia-se assim mais seguro. Algumas pessoas audazes, acompanhando o Sr. Landoys, arriscaram-se a reconhecer em Gilliatt certas circumstancias attenuantes, algumas apparencias de qualidades, a sobriedade, a abstinencia do _gin_ e do tabaco, e chegavam ás vezes a fazer delle este bello elogio. _Não bebe, não fuma, nem masca._ Mas a sobriedade é uma qualidade, quando o individuo possue outras. Gilliatt inspirava a aversão publica. Fosse o que fosse, como _marcou_, Gilliatt podia prestar serviços. Em uma sexta-feira maior, á meia noite, dia e hora usados para esses curativos, todos os escrophulosos da ilha, por inspiração, ou combinação, foram em massa á casa mal assombrada, e com as mãos postas, pediram a Gilliatt que os curasse. Gilliatt recusou. Reconheceu-se nisto a sua perversidade. VI A _PANÇA_ Tal era Gilliatt. As raparigas achavam-n'o feio. Gilliatt não era feio. Era talvez bonito. Tinha um perfil semelhante ao do barbaro antigo. Quieto, parecia um Dacio da columna trajana. As orelhas eram pequenas, delicadas, lisas, de uma admiravel forma acustica. Tinha entre os olhos a soberba ruga vertical do homem audacioso e perseverante. Cahiam-lhe os dous cantos da boca; a testa era de uma curva nobre e serena; o olhar sahia-lhe firme de dentro da palpebra franca, posto que elle tivesse aquelle piscar d'olhos que os pescadores adquirem com a reverberação das vagas. O riso era pueril e delicioso. Não havia marfim mais alvo que os seus dentes. Entretanto, Gilliatt, tisnado pelo sol, era quasi negro. Não se affronta impunemente o oceano, a tempestade e a noite; aos trinta annos, mostrava quarenta e cinco. Tinha a sombria mascara do vento e do mar. Puzeram-lhe a alcunha de Finorio. Diz uma fabula da India: Um dia Brahma perguntou á Força: quem é mais forte que tu? A Força respondeu: É a Astucia. Diz um proverbio chinez: Quanto não poderia o leão, se fosse macaco? Gilliatt não era nem leão nem macaco; mas as cousas que elle fazia apoiavam o proverbio chinez e a fabula indiana. De estatura commum e força ordinaria, Gilliatt, tão inventiva e poderosa era a sua destreza, conseguia levantar fardos de gigante e realizar prodigios de athleta. Era um pouco gymnasta; servia-se tanto da mão direita como da esquerda. Não caçava, pescava. Poupava os passaros, não os peixes. Ai dos que são mudos! Era nadador excellente. A solidão faz homens de talento ou idiotas. Gilliatt tinha os dous aspectos. Ás vezes mostrava o _ar espantado_, de que fallámos, e dissera-se um bruto. Outras vezes mostrava uma certa profundidade no olhar. A antiga Chaldea teve homens assim: a certas horas, a opacidade do pastor tornava-se transparente e deixava vêr o mago. Em summa, era apenas um pobre homem sabendo ler e escrever. É provavel que estivesse no limite que separa o sonhador do pensador. O pensador impõe, o sonhador obedece. A solidão domina os animos simplices, complica-os, enche-os de horror sagrado. A sombra em que entrava o espirito de Gilliatt compunha-se, em partes quasi iguaes, de dous elementos, obscuros ambos, mas differentes; dentro delle, a ignorancia,--enfermidade; fóra delle, o mysterio,--immensidade. Á força de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no archipelago, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação que apparecesse, de arriscar-se dia e noite nos canaes mais difficeis, tornou-se, sem tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admiravel homem do mar. Nasceu piloto. O verdadeiro piloto é o marinheiro que navega mais no fundo que na superficie. A vaga é um problema exterior, continuamente complicado pela configuração sub-marina dos lugares em que sulca o navio. Parecia, ao ver Gilliatt vogar nos baixios e atravez dos arrecifes do archipelago normando, que elle tinha debaixo da aboboda do craneo um mappa do fundo do mar. Sabia tudo e affrontava tudo. Conhecia as balisas melhor do que os corvos marinhos que lá se vão empoleirar. As differenças imperceptiveis que distinguem as quatro balisas do Creux, do Alligande, de Tremies e da Sardrette eram perfeitamente claras para elle, ainda no meio do nevoeiro. Não hesitava sobre a estaca de cabeça oval, de Anfré, nem o chuço tridente, de Rousse, nem a bola branca, de Corbette, nem a bola preta, de Longue-Pierre, e não havia temer que confundisse a cruz de Gubeau com a espada fincada no chão, de Platte, nem a balisa-martello, de Barbées com a balisa cauda de andorinha, de Moulinet. Mostrou singularmente a sua rara sciencia de maritimo num dia em que houve em Guernesey uma dessas justas que se chamam regatas. A questão era esta: ir só em uma embarcação de quatro velas; leval-a de Saint-Sampson á ilha de Herm, distante uma legua, e trazel-a de novo de Herm a Saint-Sampson. Manobrar sosinho um barco de quatro velas, não ha pescador que o não faça, e a differença não é grande; mas eis o que aggravava o caso; primeiramente, a embarcação era uma dessas chalupas de outro tempo, com grande bojo, á moda de Rotterdam, que os marinheiros do seculo passado appellidavam _panças hollandezas._ Acha-se ainda algumas vezes no mar essa velha construcção da Hollanda, bojuda e chata, tendo a bombordo e a estibordo duas azas que se vão abatendo alternadamente, conforme o vento, e suprem a quilha. A segunda difficuldade, era a volta de Herm, volta complicada por um pesado lastro de pedras. O premio da justa era a chalupa. De antemão estava dada ao vencedor. A _pança_ servira de barco-piloto; o piloto que navegara nella durante vinte annos era o mais robusto marinheiro da Mancha; quando morreu não houve ninguem que quizesse governar o barco e decidiram fazer delle um premio de regata. A _pança_, embora não tivesse coberta, tinha qualidades boas e podia tentar um manobrista. Era mastreada na frente, o que augmentava a força de tracção do velame. Outra vantagem, o mastro não impedia a carga. Era uma concha solida; pesada, mas vasta, e supportando bem o mar. Houve empenho em disputal-a; a luta era rude, mas o premio era magnifico. Apresentaram-se sete ou oito pescadores, os mais vigorosos da ilha. Tentaram um por um; nenhum delles pôde ir a Herm. O ultimo que luctou era conhecido por ter passado a remos, com tempo máo, o terrivel redomoinho, que ha entre Serk e Brecq-Hou. Escorrendo em suor, trouxe elle a _pança_ e disse: É impossivel. Foi então que Gilliatt entrou no barco; empunhou primeiramente o remo, e depois a grande escota, e fez-se ao largo. Depois, sem atar a escota, o que seria imprudencia, e sem largal-a, o que lhe dava o dominio da vela grande, deixando a escota rolar á feição do vento sem descahir, segurou com a mão esquerda a cana do leme. Dentro de tres quartos de hora estava em Herm. Tres horas depois, posto que soprasse então um forte vento do sul, atravessando a barra, a _pança_, governada por Gilliatt, entrava em Saint-Sampson, com o carregamento de pedras. Gilliatt trouxe, por luxo e bravata, além do carregamento, um pequeno canhão de bronze de Herm, com que a gente da ilha salvava todos os annos, a 5 de Novembro, em regosijo pela morte de Guy Fawkes. Guy Fawkes, digamo-lo de passagem, morreu ha duzentos e sessenta annos; foi uma grande satisfação. Gilliatt, assim carregado e estafado, embora trouxesse o canhão na barca, e o vento sul na vela, voltou a Saint-Sampson. Vendo isto, mess Lethierry exclamou: ora aqui está um marinheiro atrevido! E estendeu a mão a Gilliatt. Tornaremos a fallar de mess Lethierry. A _pança_ foi entregue a Gilliatt. Esta aventura não lhe destruio a alcunha de Finorio. Algumas pessoas declararam que a cousa não era para admirar, visto que Gilliatt escondera no barco um galho de nespereira sylvestre. Mas ninguem pôde provar isso. Desde esse dia, Gilliatt não teve outra embarcação. Naquella pesada chalupa é que elle ia á pesca. Amarrava-a no excellente ancoradourosinho que tinha só para seu uso, debaixo do muro da casa mal assombrada. Ao cahir da noite, atirava a rede ás costas, atravessava o jardim, galgava o parapeito de pedras seccas, rolava de rochedo em rochedo, e saltava na barca. Dahi fazia-se ao mar. Pescava muito peixe, mas affirmava-se que o galho de nespereira estava sempre atado á chalupa. Ninguem o vio nunca, mas toda a gente acreditava. Não vendia, dava o peixe que lhe sobrava. Os pobres acceitavam o peixe, sem deixarem de lhe querer mal por causa do ramo embruchado. Não se deve trapacear com o mar. Era pescador, mas não era só isso. Tinha aprendido por instincto ou por distrahir-se, tres ou quatro officios. Era marceneiro, ferreiro, fabricante de carros, calafate e até um pouco mecanico. Ninguem concertava uma roda como elle. Fabricava de um modo especial, todos os seus instrumentos de pesca. Tinha em um canto da casa uma pequena forja e uma bigorna, e, não tendo a chalupa mais que uma ancora, fez-lhe outra, elle só. Excellente ancora era essa; a argola tinha a força requerida, e Gilliatt, sem que ninguem lh'o ensinasse, achou a dimensão exacta que devia ter o cepo da ancora para que ella não voltasse. Substituio com toda a paciencia, os pregos das bordas por cavilhas, tornando assim impossivel a ferrugem. Deste modo augmentou muito as boas qualidades da _pança._ Aproveitava-se della para ir de quando em quando passar um ou dous mezes em alguma ilhota solitaria como Chousey ou Casquets. Dizia-se então: Olhem, Gilliatt está fóra. Ninguem se incommodava por isso. VII CASA EMBRUXADA, MORADOR VISIONARIO Gilliatt era o homem do sonho. Vinham dahi as suas audacias e as suas hesitações. Tinha idéas propriamente suas. Havia talvez nelle a ligação do allucinado e do illuminado. A allucinação entra na cabeça de um camponio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei como Henrique IV. O Desconhecido faz sorprezas ao espirito do homem. Rasga-se bruscamente a sombra, deixa ver o invisivel; depois fecha-se. Taes visões são ás vezes transfiguradoras; de um conductor de camellos faz Mahomet, de uma cabreira faz Joanna d'Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvario sublime. É o fumo da sarça ardente. Resulta dahi um mysterioso extremecer de idéas: o doutor dilata-se até o vidente, o poeta até o propheta; resulta Horeb, Cédron, Ombos, a embriaguez do louro mastigado da Castalia, as revelações do mez Busion; resulta Peleia em Dodona, Phemonoë em Delphos, Trophonius em Lebadéa, Ezequid no Kebar, Jeronymo na Thebaida. Na maior parte dos casos o estado visionario abate o homem, e o embrutece. O embrutecimento sagrado existe. O fakir carrega a sua visão, como o habitante alpino a sua papeira. Luthero fallando aos diabos no celeiro de Wurtemberg, Pascal tapando o inferno com o biombo do seu gabinete, o abi negro dialogando com o deos branco, chamado Bossum, é o mesmo phenomeno, diversamente produzido, segundo a força e a dimensão de cada cérebro. Luthero o Pascal são e ficam sendo grandes; o abi negro é imbecil. Gilliatt não era tanto, nem tão pouco. Era um pensativo. Nada mais. Contemplava a natureza de um modo singular. Tinha visto algumas vezes na agua do mar, completamente limpida, animaes inexperados, de grandes dimensões, de formas diversas, os quaes fóra d'agua assemelhavam-se a crystal molle, e tornados á agua, confundiam-se com ella, pela identidade de transparencia e de côr; disto concluia elle que, se a agua era habitada por transparencias vivas, bem podia ser que o ar fosse habitado por transparencias igualmente vivas. Os passaros não são os habitantes, são os amphibios do ar. Gilliatt não acreditava no ar deserto. Dizia elle: se o mar está cheio de creaturas, porque motivo a atmosphera será vasia creaturas côr do ar podem escapar aos nossos olhos por causa da luz; quem nos prova que essas creaturas não existem? A analogia indica que o ar deve ter os seus peixes, como o mar; os peixes do ar serão talvez diáphanos, beneficio da providencia creadora, tanto a nosso favor, como a favor delles; deixando passar a luz atravez da sua forma, e não fazendo sombra, ficam ignorados de nós, e nada poderemos saber. Gilliatt imaginava, que, se se podesse esvaziar a atmosphera, pescando-se no ar como num tanque, achar-se-hia uma porção de creaturas sorprehendentes. E, accrescentava elle, na sua scisma, muitas cousas se explicariam. A scisma, que é o pensamento no estado nebuloso, confina com o somno, e preoccupa-se a respeito delle, como de sua propria fronteira. O ar habitado por transparencias vivas, seria o começo do Desconhecido; além, abre-se a vasta porta do possivel. Outros seres e outros factos. Nada sobrenatural; mas a continuação occulta da natureza infinita. Gilliatt, no ocio laborioso que compunha a sua existencia, era um observador extranho e phantastico. Chegava a observar o somno. O somno está em contacto com o possivel, que tambem chamamos o inverosimil. O mundo nocturno é um mundo. A noite é um universo. O organismo material humano, sobre o qual pesa uma columna atmospherica de quinze leguas de altura, chega á noite fatigado, cahe de fraqueza, deita-se, repousa; fecham-se os olhos da carne; então, naquella cabeça adormecida, menos inerte do que se crê, abrem-se outros olhos, apparece o Desconhecido. As cousas sombrias do mundo ignorado tornam-se vizinhas do homem, ou porque haja verdadeira communicação, ou porque as distancias do abysmo tenham crescimento visionario; parece que as creaturas invisiveis do espaço vem contemplar-nos curiosas a respeito da creatura da terra; uma creação fantasma sobe ou desce para nós, no meio de um crepusculo; ante a nossa contemplação spectral, uma vida que não é a nossa, aggrega-se e dissolve-se, composta de nós mesmos e de um elemento estranho; e aquelle que dorme, nem completo vidente, nem completo inconsciente, entrevê as animalidades extranhas, as vegetações extraordinarias, as cores lividas, terriveis ou risonhas, as larvas, as mascaras, os rostos, as hydras, as confusões, os luares sem lua, as obscuras decomposições do prodigio, o crescer e o decrescer no meio da espessura turvada, a fluctuação de fórmas nas trevas, todo esse mysterio que chamamos sonho, e que não é mais do que a approximação de uma realidade invisivel. O sonho é o aquarium da noite. Assim sonhava Gilliatt. VIII A CADEIRA GILD-HOLM-'UR Quem procurasse hoje a casa de Gilliatt, não a encontraria, nem o jardim, nem a enseada onde elle guardava a chalupa. A casa mal assombrada já não existe. A peninsula onde essa casa estava edificada cahio ao picarete dos demolidores, e foi conduzida, ás carradas, para os navios dos alborcadores de rochedos e commerciantes de granito. A peninsula fez-se caes, igreja e palacios na capital. Toda aquella crista de rochedos partio ha muito para Londres. Aquelles prolongamentos de rochas no mar, com aberturas e recortes, são verdadeiras cadêas de pequenas montanhas; vendo-as, recebe-se a mesma impressão que teria um gigante contemplando as cordilheiras. O idioma local chama-os bancos. Ha-os de diversas figuras. Uns assemelham-se a uma espinha dorsal; cada rochedo é uma vertebra; outros a uma espinha de peixe; outros a um crocodillo bebendo agua. Na extremidade da peninsula da casa mal assombrada havia uma grande rocha, que os pescadores do Hommet chamavam _Corne de la Bête._ Essa rocha, especie de pyramide, assemelhava-se, posto que menos elevada, ao Pinaculo de Jersey. Nas marés cheias, o mar separava-a da peninsula, e a _Corne de la Bête_ ficava isolada. Nas vazantes ia-se até lá por um isthmo de rochas praticaveis. A curiosidade do rochedo era, do lado do mar, uma especie de cadeira natural cavada pelas aguas e polida pela chuva. Era perfida a tal cadeira. A gente ia insensivelmente arrastada até ali pela belleza da vista; parava _por amor da perspectiva_, como se diz em Guernesey; o encanto dos grandes horisontes retinha, lá o observador curioso. A cadeira offerecia-se logo aos olhos delle; era uma especie de nicho na fachada a pique do rochedo; trepar áquelle nicho era cousa facil; o mar que o talhara tinha feito em baixo uma especie de escada de pedras chatas, commodamente disposta; o abysmo tem destas attenções, desconfia sempre da sua cortezia; a cadeira tentava, a gente subia e assentava-se; sentia-se a gosto; tinha por assento o granito gasto e arredondado pela escuma, e por braços duas anfractuosidades que pareciam feitas de proposito; por encosto toda a alta muralha vertical do rochedo que a gente admirava sem pensar na impossibilidade de escalal-a; era simples esquecer-se sentado naquella poltrona; descobria-se todo o mar, viam-se ao longe os navios entrar e sahir, podia-se acompanhar com os olhos uma vela até mergulhar-se além dos Casquets, sobre a rotundidade do oceano; pasmava-se, olhava-se, gosava-se; sentia-se o afago da briza e do mar; ha em Cayenna um vespertilio, que adormece a gente na sombra com um suave e tenebroso agitar de azas; o vento é esse morcego invisivel; quando não devasta, faz adormecer. Contemplava-se o mar; ouvia-se o vento, até que vinha o letargo do extase. Quando os olhos se enchem de um excesso de belleza e de luz, fechal-os é voluptuosidade. Acordava-se de subito. Era tarde. A maré crescera a pouco e pouco. A agua cingia o rochedo. Estava-se perdido. Tremendo bloqueio é o mar que sobe! A maré cresce insensivelmente ao principio, depois com violencia. Chegando ás rochas, encolerisa-se, escuma. Nem sempre se póde nadar junto aos cachopos. Excellentes nadadores morreram affogados naquelle lugar. Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. É o que acontece, ás vezes, olhando para uma mulher. Os antiquissimos habitantes de Guernesey chamavam outr'ora aquelle nicho talhado na rocha pela vaga _a cadeira Gild-Holm-'Ur_, ou _Kidormur._ Palavra celtica, dizem, não entendida pelos que sabem celtico, e entendida pelos que sabem francez _Quem-dorme-morre._ (_Qui dort-meurt._) Tal é a traducção rustica. Póde-se escolher entre esta traducção, _Quem-dorme-morre_, e a traducção dada em 1819, creio eu, no _Armoricano_, por Mr. Athenas. Segundo este conhecedor da lingua celtica, _Gild-Holm-'Ur_ quer dizer-_Alta-dos-bandos-de-passaros._ Ha em Aurigny outra cadeira deste genero que se chama Cadeira do Frade, tambem aranjada pelo mar, e com uma saliensia de pedra ajustada tão a proposito que se póde dizer que o mar teve a complacencia de pôr um tamborete debaixo dos nossos pés. Nas marés cheias, não se podia ver a cadeira Gild-Holm-'Ur. A agua cobria-a inteiramente. A cadeira-Gild-Holm-'Ur era visinha da casa mal assombrada. Gilliatt ia lá sentar-se muitas vezes, Meditava? Não. Já o dissemos, Gilliatt sonhava. Não se deixava sorprehender pela maré. LIVRO SEGUNDO Mess Lethierry I VIDA AGITADA E CONSCIENCIA TRANQUILLA Mess Lethierry, o homem notavel de Saint-Sampson, era um marinheiro terrivel. Tinha navegado muito. Foi grumete, gageiro, timoneiro, contra-mestre, mestre de equipagem, piloto, arraes. Agora era armador. Ninguem conhecia o mar como elle. Era intrepido para salvar gente. Quando havia temporal mess Lethierry ia passear á praia, com os olhos no horisonte. Que é aquillo lá ao longe? é alguem que está em perigo. É um barco de Weymouth, ou de Aurigny, ou de Courseulle, é o hiate de um lord, é um inglez, um francez, um pobre, um rico, é o diabo, fosse quem fosse, elle saltava dentro da lancha, chamava dous ou tres homens valentes, dispensava-os quando não tinha, equipava elle só, desatava a amarra, travava do remo, fazia-se ao largo, subia e descia nas cavas das ondas, mergulhava no furacão, ia ao perigo. Viam-n'o assim de longe, no meio das lufadas do vento, de pé sobre a embarcação, gotejante de chuva, confundido com os relampagos, face de leão e juba de espuma. Passava assim ás vezes um dia inteiro no perigo, e nas vagas, á saraiva e ao vento, costeando os navios que sossobravam, salvando homens, salvando cargas, disputando com a tempestade. Voltava á noite para casa, e tecia um par de meias. Passou esta vida cincoenta annos, desde os dez até os sessenta, emquanto foi moço. Aos sessenta annos, vio que já não podia levantar com um braço a bigorna da forja de Varclin; pesava aquella bigorna trezentas libras; foi atacado repentinamente, do rheumatismo. Teve de deixar o mar. Passou da idade heroica á idade patriarchal. Já não era mais que um bonachão. Mess Lethierry alcançou a um tempo o rheumatismo e a abastança. Estes dous productos do trabalho acompanham-se voluntariamente. Quem chega a ser rico, fica inutilisado. É a corôa da vida. Diz-se então: vamos gozar agora. Nas ilhas como Guernesey, a população é composta de homens que passaram a vida a andar á roda do campo, e de homens que passaram a vida a viajar á roda do mundo. São duas especies de lavradores, uns da terra, outros do mar. Mess Lethierry era dos ultimos. Conhecia, porém, a terra. Tinha trabalhado muito. Viajara no continente. Foi algum tempo carpinteiro de navio em Rochefort, depois em Cette. Fallámos nas viagens á roda do mundo; Mess Lethierry viajou a França toda como carpinteiro. Trabalhou nos apparelhos para esgoto das salinas de Franche-Comté. Aquelle honrado homem teve uma vida de aventureiro. Em França aprendeu a ler, a pensar, a querer. Fez tudo, e de quanto fez extrahio a probidade. O fundo da sua natureza era o marinheiro. A agua lhe pertencia. Os peixes estão em minha casa, dizia elle. Em summa toda a sua existencia, com excepção de dous ou tres annos, foi consagrada ao oceano; _atirada á agua_, dizia elle. Navegara nos grandes mares, no Atlantico e no Pacifico; mas preferia a Mancha. _Aquelle é que é rude_, exclamava elle com amor. Nasceu alli, alli queria morrer. Depois de ter feito duas ou tres vezes a volta do mundo, e sabendo o que devia escolher, voltou a Guernesey, e não se mecheu dalli. As suas viagens, então, eram Granville e Saint-Malo. Mess Lethierry era guernesiano, isto é, normando, inglez, francez. Tinha essa patria quadrupla, immersa e como que afogada na sua grande patria, o oceano. Durante a sua vida, e em toda a parte, conservou os costumes de pescador normando. Isso, porém, não tolhia que elle abrisse de quando em quando um alfarrabio, gostasse de ler um livro, de saber os nomes dos philosophos e poetas, e taramellar em vasconço um poucochinho de cada lingua. II UMA PREFERENCIA DE MESS LETHIERRY Gilliatt era um selvagem. Mess Lethierry era outro. Este, porém, era um selvagem elegante. Era exigente a respeito de mãos de mulheres. Ainda moço, quasi menino, estando entre marinheiro e grumete, ouvio dizer ao _bailio_ de Suffren: _Bonita rapariga, mas que grandes mãos vermelhas que ella tem!_ Um dito de almirante impõe, em qualquer assumpto que seja. Acima de um oraculo está uma senha. A exclamação do _bailio_ de Suffren fez com que Mess Lethierry se tornasse delicado e exigente acerca de mãos alvas. A delle era uma larga spatula, escura na côr; na agilidade era uma clava, nas caricias uma torquez; quebrava um seixo com um socco. Não era casado. Não quiz ou não encontrou mulher. Naturalmente o marinheiro queria mãos de duqueza. Não se encontram mãos dessas nas pescadoras de Port-Bail. Conta-se entretanto que, em Rochefort (Charente) achou elle um dia uma _grisette_ que realisava o seu ideal. Linda moça e lindas mãos. Detrahia e arranhava. Affrontal-a era perigoso. As suas unhas, extremamente asseiadas, tornavam-se garras destemidas, quando era necessario. Tão bellas unhas encantaram Mess Lethierry; mas depois, receando que viesse a perder a autoridade sobre a amante, resolveu não levar aquelle namorico á presença do senhor _maire._ De outra feita, em Aurigny, gostou de uma rapariga. Já cuidava dos esponsaes, quando um residente do lugar lhe disse: _Dou-lhe os meus parabens. Leva uma boa esterqueira._ Lethierry pedio explicações deste elogio. Em Aurigny ha uma moda. Apanha-se esterco de vacca e deita-se ás paredes. Depois de secco, cahe o esterco e serve para aquecer a gente. Ninguem casa com uma rapariga, senão quando é boa esterqueira. Esta habilidade afugentou Mess Lethierry. De mais, em assumpto de amor ou de namoro, tinha elle uma boa philosophia rustica, uma sciencia de marinheiro apanhado sempre, encadeado nunca. Lethierry gabava-se de ter-se deixado vencer sempre pela _vasquinha_, no tempo da sua mocidade. O que hoje se chama crinolina, chamava-se então vasquinha. Significa mais e menos que uma mulher. Os rudes marinheiros do archipelago normando são intelligentes. Quasi todos sabem ler. Vê-se ao domingo rapazitos de oito annos, assentados em um grande rolo de cabos, com um livro na mão. Os marinheiros normandos foram sempre sardonicos, e sabem dizer cousas chistosas. Foi um delles, o atrevido piloto Queripel quem atirou a Montgomery refugiado em Jersey depois da funesta lançada contra Henrique II, esta apostrophe: _cabeça douda ferio a cabeça vasia._ Outro marinheiro, por nome Touzeau, arraes em Saint-Brelade, fez o trocadilho philosophico attribuido ao bispo Camus: _Après la mort les papes deviennent papillons et les sires deviennent cirons._ (Depois da morte tornam-se os papas borboletas, e os reis ouçãos). III A VELHA LINGUA DO MAR Os marinheiros das Channel-Islands são puros gaulezes. Estas ilhas que se vão fazendo inglezas, conservaram-se muito tempo autocthones. O camponez de Serk falla a lingua de Luiz XIV. Ha quarenta annos, achava-se ainda na boca dos marinheiros de Jersey e de Aurigny o idioma maritimo classico. Fazia crer que estavamos em plena marinha do seculo XVII. Um archeologo especialista poderia ir estudar alli a antiga linguagem de manobra e de batalha esbravejada por Jean Bart naquelle porta-voz que aterrava o almirante Hidde. O vocabulario maritimo dos nossos paes, quasi inteiramente renovado hoje, era ainda usado em Guernesey, em 1820. O navio que supporta o vento era _bon boulinier_ (bom de bolina); dizia-se do navio que se affeiçoa ao vento, por si mesmo, apezar das velas de prôa e do leme, _vaisseau ardent_ (navio que se aguça): entrar em movimento era _prendre aire_ (tomar o vento); pôr-se á capa era _capeyer_ (capear); apanhar o vento por cima, era _faire chapelle_ (tocar em vento); aguentar bem sobre a amarra, era _faire teste_; estar em confusão a bordo, era _être en pantenne_; ter o vento nas vellas era _porter-plain_, (levar em cheio). Hoje nada disto se diz. Diz-se hoje: _louvoyer_ (bolinar), dizia-se: _leauvoyer_, diz-se: _naviger_ (navegar), dizia-se _nager_, diz-se: _virer vent devant_ (virar por d'avante), dizia-se: _vidonner vent devant_, diz-se: _aller de l'avant_ (seguir avante), dizia-se: _tailler de l'avant_, diz-se: _tirer d'accord_ (allar á uma), dizia-se: _haller d'accord_, diz-se: _déraper_, (arrancar o ferro), dizia-se: _déplanter_, diz-se: _embraquer_ (tezar), dizia-se: _abraquer_, diz-se: _taquets_ (cunhos), dizia-se: _billons_, diz-se: _burins_ (passadores), dizia-se; _tappes_, diz-se: _balancines_ (amantilhos), dizia-se: _valancines_, diz-se: _tribord_ (estibordo), dizia-se: _stribordo_, diz-se: _les hommes de quart à bâbord_ (homens de quarto a bombordo), dizia-se: les _basbourdis._ Tourville escrevia a Hoequincourt: _Nous avons singlé_ (singrámos). Em vez de _la rafale_ (a lufada), _le raffal_; em vez de _bossoir_ (tureos), _boussoir_: em vez de _drosse_ (bossa) _drousse_; em vez de _loffer_ (arribar), _faire une olofée_; em vez de _elonger_ (alongar) _alonger_; em vez de _forte brise_ (vento fresco), _survent_; em vez de _sout_ (paiol) _fosse_; em vez de _jouail_ (cepo d'ancora) _jas_; tal era, no começo deste seculo, a lingua de bordo nas ilhas da Mancha. Ouvindo fallar um marinheiro de Jersey, Ango ficaria abalado. Emquanto no resto do mundo as velas _faseyaient_ (pannejavam), _barbeyaient_ nas ilhas de Mancha. _Saute-de-vent_ (cambar o vento) era _folle-vente._ Só alli se empregavam os dous modos gothicos de amarração, a _valturre_ e a portugueza. Só alli se davam ordens destas: _Tour-et-choque!--Bosse et Bitte!_--Já um marinheiro de Granville dizia _le clan_ (o gorne), e ainda o marinheiro de Saint-Aubin ou de Saint-Sampson dizia _le canal de pouliot._ O que era _bout-d'alonge_ (postura) em Saint-Malo, era em Saint-Helier _oreille d'âne._ Mess Lethierry, como o duque de Vivonne, chamava o tozado do convez _la tonture._ Foi com este idioma estravagante que Duquesne bateu Ruyter, que Duguay Trouin bateu Wasnaer, e Tourville em 1681 atravessou em pleno dia a primeira galera que bombardeou Argel. Hoje é lingua morta. A giria do mar é outra. Duperré não poderia entender Suffren. Não menos se transformou a lingua dos signaes; e ha grande distancia entre as flamulas encarnada, branca, azul e amarella de Labourdonnaye e os dezoito pavilhões de hoje, que, arvorados dous a dous, tres a tres, e quatro a quatro, dão para as necessidades da combinação distante, setenta mil combinações, suprem tudo, e por assim dizer, preveem o imprevisto. IV VULNERABILIDADE POR AMOR Mess Lethierry tinha o coração nas mãos; mãos largas e coração grande. O defeito delle era a admiravel qualidade da confiança. Tinha uma maneira especial de contrahir uma obrigação; era solemne: _Dou a minha palavra de honra a Deos._ Dito isto, cumpria a promessa. Acreditava em Deos, e nada mais. Ia poucas vezes á igreja, e isso mesmo por cortezia. No mar, era supersticioso. Nunca houve, porém, tempestade que o fizesse recuar; é que elle era pouco accessivel á contradicção. Não a tolerava, nem num homem, nem no occeano. Queria ser obedecido; tanto peor para o mar se resistia; tinha de luctar com elle. Mess Lethierry não cedia nunca. Vaga que se impinasse, visinho que contendesse, nada lhe detinha a mão. O que dizia estava dito, o que planeava estava feito. Não se curvava, nem diante de uma objecção, nem diante de uma tempestade. _Não_, para elle, era palavra que não existia, nem na bocca de um homem, nem no ribombo de uma nuvem. Passava adiante. Não consentia que se lhe recusasse nada. Dahi vinha a sua pertinacia na vida e a sua intrepidez no occeano. Era elle proprio quem temperava a sua sopa de peixe; sabia que porção de sal, pimenta e hervas era preciso, e gostava tanto de fazel-a como de comel-a. Creatura que um riso transfigura, e um casaco embrutece, assemelhando-se, com os cabellos soltos, a Jean Bart, e, com chapéo redondo, a Jocrisse, acanhado na cidade, estranho e temivel no mar, espadua de carregador, sem imprecações, quasi sem colera, voz doce e meiga que o porta-voz transforma em trovão, camponio que lêo a Encyclopedia, guernesiano que vio a revolução, ignorante, instruido, ermo de carolice, dado ás visões, mais fé na Dama Branca que na Santa Virgem, logica de ventoinha, vontade de Christovão Colombo, um tanto de touro e um tanto de criança, nariz quasi rombo, faces grossas, boca com todos os dentes, rosto enrugado, cara que parece ter sido feita pelo mar, beijada pelos ventos durante quarenta annos, ar de tempestade na fronte, carnação de rocha em pleno mar; põe agora um olhar bom neste rosto agreste, e terás mess Lethierry. Mess Lethierry tinha dous amores: Durande e Deruchette. LIVRO TERCEIRO Durande e Deruchette. I GARRULICE E EFFLUVIOS O corpo humano é talvez uma simples apparencia, escondendo a nossa realidade, e condensando-se sobre a nossa luz ou sobre a nossa sombra. A realidade é a alma. A bem dizer, o rosto é uma mascara. O verdadeiro homem é o que está debaixo do homem. Mais de uma sorpreza haveria se se podesse vel-o agachado e escondido debaixo da illusão que se chama carne. O erro commum é ver no ente exterior um ente real. Tal creaturinha, por exemplo, se podessemos vel-a como realmente é, em vez de moça, mostrar-se-hia passaro. Passaro com fórma de moça, que ha ahi de mais delicado? Imagina que a tens em casa. Suppõe que é Deruchette. Deliciosa creatura! Dá vontade de dizer: Bom dia, mademoiselle arveloa. Não se lhe veem as azas, mas ouve-se-lhe o gorgeio. Canta ás vezes. Na tagarellice, está abaixo do homem; no canto, está acima delle. Tem mysterios aquelle canto; uma virgem é o involucro de um anjo. Feita a mulher, desapparece o anjo; volta, porém, depois, trazendo uma alma de criança á mãe. Esperando a vida, aquella que hade ser mãe algum dia, conserva-se muito tempo criança, a menina persiste na moça; é uma calhandra. Pensa-se ao vel-a: que boa que ella é em não bater as azes para ir-se embora! A meiga e familiar creatura acommoda-se em casa, de ramo em ramo, isto é, de quarto em quarto, entra, sahe, acerca-se, afasta-se, alisa as pennas ou pentea os cabellos, faz toda a especie de rumores delicados, murmura um não sei que de inneffavel aos teus ouvidos. Quando ella interroga, responde-se-lhe; interrogada, gorgeia. Tagarella-se com ella. A tagarellice serve para descançar de fallar. Ha uma porção celeste nessa menina. É um pensamento azul misturado ao teu pensamento negro. Alegras-te por vel-a tão esquiva, tão ligeira, tão fugitiva; agradeces-lhe a bondade de não ser invisivel, ella, que poderia, creio eu, ser impalpavel. Neste mundo o lindo, é o necessario. Ha mui poucas funcções tão importantes como esta de ser encantadora. Que desespero na floresta se não houvesse o colibri! Exhalar alegrias, irradiar venturas, possuir no meio das cousas sombrias unia transudação de luz, ser o doirado do destino, a harmonia, a gentilesa, a graça, é favorecer-te. A belleza basta ser bella para fazer bem. Ha creatura que tem comsigo a magia de fascinar tudo quanto a rodea; ás vezes nem ella mesma o sabe, e é quando o prestigio é mais poderoso; a sua presença illumina, o seu contacto aquece; se ella passa, ficas contente; se pára, és feliz; contemplal-a é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não seja estar presente, e é quanto basta para edenisar o lar domestico; de todos os poros sahe-lhe um paraiso; é um extase que ella distribue aos outros, sem mais trabalho que o de respirar ao pé delles. Ter um sorriso que,--ninguem sabe a razão,--diminue o peso da cadêa enorme arrastada em commum por todos os viventes, que queres que te diga? é divino. Deruchette tinha esse sorriso. Mais ainda, era o proprio sorriso. Ha alguma cousa mais parecida que o nosso rosto, é a nossa physionomia; e outra mais parecida que a nossa physionomia, é o nosso sorriso. Deruchette risonha, era Deruchette. É particularmente seductor o sangue de Jersey e de Guernesey. As mulheres, as raparigas sobretudo, teem uma belleza florida e candida. É a combinação da alvura saxonia com a frescura normanda. Faces rosadas e olhos azues. Falta-lhes brilho nos olhos. A educação ingleza amortece-os. Serão irresistiveis aquelles olhos limpidos no dia em que tiverem a profundesa do olhar parisiense. A parisiense ainda não se fez ingleza, felizmente. Deruchette não era parisiense, mas tambem não era guernesiana. Nascera em Saint-Pierre Port, mas mess Lethierry foi quem a educou. Educou-a para ser mimosa, a menina o era. Deruchette tinha o olhar indolente, e aggressivo sem que o soubesse. Não conhecia talvez o sentido da palavra amor, e fazia com que a gente se apaixonasse por ella. Mas era sem má intenção. Deruchette nem pensava em casamento. O velho fidalgo emigrado que fôra residir em Saint-Sampson, dizia: _Esta rapariga seduz a matar._ Deruchette tinha as mais lindas mãosinhas deste mundo, e pés iguaes ás mãos, _quatro pésinhos de mosca_, dizia mess Lethierry. Tinha em si a bondade e a doçura: o tio Lethierry era toda a sua familia e riqueza: o trabalho della, era deixar-se viver; tinha por talento algumas canções, por sciencia a belleza, por espirito a innocencia, por coração a ignorancia; tinha a graciosa indolencia creoula, mesclada de travessura e de vivesa, a jovialidade traquinas da infancia com um pendor á melancolia, vestuarios um pouco insulares, elegantes, mas incorrectos, chapéos de flôres todo o anno, fronte ingenua, pescoço flexivel e tentador, cabellos castanhos, pelle branca com alguns toques arruivados no verão, bocca grande e sã, e nessa bocca o adoravel e perigoso explendor do sorriso. Eis o que era Deruchette. Algumas vezes, á noite, após o pôr o sol, no momento em que a noite se mistura com o mar, á hora em que o crepusculo dá uma especie de terror as vagas, via-se entrar na barra de Saint-Sampson, ao tumulto sinistro das ondas uma certa massa informe, uma cousa monstruosa que silvava e cuspia, que roncava como uma besta e fumegava como um volcão, uma especie de hydra babando espuma e arrastando um nevoeiro, atirando-se sobre a cidade com um horrivel movimento de barbatanas e uma goela donde as chammas irrompiam. Era Durande. II A ETERNA HISTORIA DA UTOPIA Era uma prodigiosa novidade o apparecimento de um navio a vapor nas aguas da Mancha em 182... Toda a costa normanda esteve por muito tempo assombrada. Hoje dez ou doze vapores cruzam-se em sentido inverso no horisonte do mar, sem attrahir os olhos de ninguem! Quando muito, algum observador especialista distingue pela côr da fumaça, se o carvão que consome o navio é de Galles ou de Newcastle. Passam; é quanto basta. Se partem:--_Boa viagem!_ se chegam:--_Welcome!_ Não era tão grande a calma a respeito de taes invenções no primeiro quarto do nosso seculo, e estas machinas fumegantes eram particularmente suspeitas entre os insulares da Mancha. Neste archipelago puritano, onde a rainha de Inglaterra foi censurada por violar a Biblia[1] narcotisando-se para dar á luz, o navio a vapor teve como primeiro comprimento, o ser baptisado com este nome: _Devil Boat--Navio-Diabo._ A esses bons pescadores de então, outr'ora catholicos, agora calvinistas, e sempre beatos, pareceu-lhes aquillo o inferno fluctuante. Um pregador da terra tratou da questão:--_Temos nós o direito de fazer trabalhar juntos o fogo e a agua que Deos separou?_[2] Aquelle animal de ferro e fogo não era a imagem de Leviathan? não era isso refazer o homem, a seu modo, o primitivo cahos? Não é a primeira vez que acontece qualificar a ascensão do progresso de retrogradação ao cahos. _Idéa louca, erro grosseiro, absurdo_: tal foi o veredicto da academia das sciencias consultada por Napoleão no começo deste seculo, acerca do vapor. Os pescadores de Saint-Sampson teem desculpa de se acharem, em materia scientifica, ao nivel dos geometras de Paris; e em materia religiosa, uma pequena ilha como Guernesey não tem obrigação de ser mais illustrada que um grande continente como a America. Em 1807 quando o primeiro navio de Fulton, patrocinado por Livingston, provido da machina de Wat mandada da Inglaterra, e tripulado, além da equipagem, por dous francezes sómente, André Michaux e outro, fez a sua primeira viagem de New-York a Albany, deu-se o caso de acontecer isso no dia 17 de Agosto. Esta coincidencia deu origem a que o methodismo tomasse a palavra, e em todas as capellas os pregadores amaldiçoaram a machina, declarando que o numero dezesete era o total das dez antenas e das sete cabeças da besta do Apocalipse. Na America invocava-se contra o vapor a besta do Apocalipse; na Europa a besta do Genesis. Nisto consistia toda a differença. Os sabios havião rejeitado o vapor como impossivel; os padres, a seu turno, rejeitavão-n'o como impio. A sciencia condemnava; a religião anathematisava. Fulton era uma variante de Lucifer. Os habitantes simplorios das costas e dos campos adheriam á reprovação pelo incommodo que lhes causava a novidade. Na presença do vapor, o ponto de vista religioso era este:--a agua e o fogo são um divorcio. Este divorcio é ordenado por Deos. Não se deve desunir o que Deos unio, nem unir o que elle desunio. O ponto de vista do camponez era:--isto mette-me medo. Para commetter, naquella época remota, a empreza de uma navegação a vapor entre Guernesey e S. Malo, nada menos era preciso que um homem como mess Lethierry. Só elle podia concebê-la na qualidade de livre pensador, e realiza-la na qualidade de marinheiro atrevido. O seu _eu_ francez concebeu a idéa; o seu _eu_ inglez executou-a. Em que occasião? Digamo-lo. [1]_Genesis_, cap. 3.°, v. 16: Parirás com dôr. [2]_Genesis_, cap. 1.°, v. 4. III RANTAINE Quarenta annos antes da época em que se passam os factos que narramos, havia em um arrabalde de Paris, entre a _Fosse-aux-Loups_ e a _Tombe-Issoire_, um albergue suspeito. Era uma casinha isolada e baixa. Morava ahi com a mulher e o filho, uma especie de burguez bandido, antigo escrevente de tabellião no Chatelet, e ao depois ladrão descarado. Já havia figurado no tribunal criminal. O appellido da familia era Rantaine. No referido pardieiro, em cima de uma commoda de mogno, viam-se duas chicaras de porcelana pintada: em uma dellas lia-se em letras douradas o seguinte distico--_lembrança de amizade_; na outra--_signal de estima._ A criança vivia ali na lama de parceria com o crime. Como o pae e a mãe pertenciam á burguezia mediana, o menino aprendia a ler: educavam-no. A mãe pallida, quasi esfarrapada, dava machinalmente--educação--a seu filho: ensinava-o a soletrar; e interrompia o trabalho, ora para ajudar o marido em alguma emboscada, ora para entregar-se ao primeiro viandante. Durante esse tempo a _Cruz de Jesus_, aberta no lugar em que a deixavam, ficava sobre a mesa, e ao pé do livro o menino pensativo. O pae e a mãe presos em algum flagrante delicto, desappareceram na noite penal. A criança desappareceu tambem. Lethierry, em suas excursões, encontrou um aventureiro como elle, livrou-o, não se sabe de que aperto, prestou-lhe serviços, affeiçoou-se-lhe, chamou-o a si, levou-o para Guernesey, achou-o intelligente para a navegação costeira, e deu-lhe sociedade. Era o pequeno Rantaine feito homem. Rantaine, como Lethierry, tinha uma cabeça robusta, espaduas largas e possantes, e quadris de Hercules Farnese. Lethierry e elle tinham o mesmo ar e a mesma apparencia; Rantaine era mais alto. Quem os via, pelas costas, passear ao lado um do outro, dizia: lá estão os dous irmãos. De frente, o caso era diverso. Havia tanto de franco em Lethierry, como de reservado em Rantaine. Rantaine era circumspecto. Rantaine era esgrimista, tocava harmonica, espivitava uma vela com uma balla, a vinte passos, dava um soco magnifico, recitava versos da _Henriada_, e adivinhava os sonhos. Sabia de cór os _Tumulos de S. Diniz_, por Treneuil; dizia ter tido amizade com o sultão de Calicut--a quem os portuguezes chamam Camorim. Se se podesse folhear a carteira de lembranças que andava sempre no bolso delle, ter-se-hia encontrado entre outras notas, algumas do genero desta:_--em Lyão, n'uma das frestas da parede do calabouço de S. José, ha uma lima escondida._ Fallava com uma lentidão discreta. Dizia-se filho de um cavalheiro de S. Luiz. A sua roupa era toda misturada e marcada com iniciaes differentes. Ninguem mais susceptivel em cousas de honra. Batia-se e matava. A força servindo de envolucro á astucia, tal era Rantaine. A belleza de um sôco applicado por elle, n'uma feira, sobre uma _Cabeza de moro_, conquistara-lhe outr'ora a sympathia de Lethierry. Suas aventuras eram completamente ignoradas em Guernesey. Variavam muito. Se os destinos teem um traje, o destino de Rantaine vestia á moda de arlequim. Tinha visto o mundo; tinha trabalhado muito. Era um circumnavegador. Teve innumeraveis officios. Foi cozinheiro em Madagascar, creador de passaros em Sumatra, general em Honolulu, jornalista religioso nas ilhas de Gallapagos, poeta em Oomrawuttee e pedreiro livre no Haiti. Neste ultimo emprego, pronunciara no _Grande Goave_ uma oração funebre de que os jornaes locaes conservaram este fragmento: ... «Adeus, pois, bella alma! na abobada azulada dos céos onde agora desferes o vôo, encontrarás sem duvida o bom padre Leandro Crameau do _Pequeno Goave._ Dize-lhe que, graças a dez annnos de esforços gloriosos, terminaste a igreja de _Anse-à-Veau!_ Adeos! genio transcendente, maçon modelo!» A mascara de pedreiro-livre não lhe impedia, como se vê, trazer o nariz catholico. A primeira conciliava-o com os homens do progresso; o segundo com os homens da ordem. Apregoava-se branco de raça pura, odiava os negros: apezar disso teria admirado a Soluque. Em Bordeaux, em 1815, foi elle _verdet._ Naquella época a fumaça do seu realismo sahia-lhe pela cabeça fora, na forma de um immenso penacho branco. Passava a vida a fazer eclipses, apparecendo, desapparecendo e tornando a apparecer. Era um velhaco a gyrar como uma rodinha de fogo. Sabio o turco: em vez de _guilhotinado_ dizia: _neboissé._ Fora escravo em Tripoli, na casa de um thaleb e ahi aprendera o turco á força de bengaladas; tinha por obrigação ir á noite á porta das mesquitas ler em alta voz diante dos fieis o Alkorão, escripto em pranchas de madeira ou em omoplatas de camello. Provavelmente era renegado. Era capaz de tudo e mais alguma cousa. Ria a gargalhadas e enrugava as sobrancelhas, a um tempo. Dizia: _Em politica, só estimo as pessoas inaccessiveis ás influencias._ Dizia: _Sou pelos costumes._ Dizia: _É preciso repor a piramide na base._ Era mais alegre e cordial que outra cousa. A forma da bocca desmentia-lhe o sentido das palavras. As suas narinas eram antes ventas de animal. Tinha no canto dos olhos uma encrusilhada de rugas onde toda a sorte de pensamentos obscuros davam entrevista. Ahi é que se podia decifrar o segredo da physionomia delle. Assemelhavam-se as taes rugas a uma garra de abutre. O craneo era chato em cima e largo nas temporas. A orelha disforme e embrenhada de cabellos parecia dizer: não falles ao animal que está aqui neste antro. Rantaine desappareceu um dia de Guernesey. O socio de Lethierry _raspou-se_ deixando vasia a caixa da sociedade. Havia dinheiro delle na caixa, é certo; mas havia tambem cincoenta mil francos de Lethierry. Lethierry, ganhara uns cem mil francos em quarenta annos de industria e de probidade, no seu officio de navegador costeiro e carpinteiro de navio; Rantaine levou-lhe metade. Lethierry, meio arruinado, não cedeu, e tratou immediatamente de levantar-se. Aos homens de boa tempera arruina-se a fortuna, não a coragem. Começava-se então a fallar do vapor. Lethierry teve a idéa de tentar a machina de Fulton, tão contestada, e ligar por meio de um vapor o archipelago normando á França. Jogou tudo nessa idéa. Applicou-lhe os restos da fortuna. Seis mezes depois da fuga de Rantaine a gente de Saint-Sampson vio estupefacta sahir daquelle porto um navio deitando fumo, e produzindo o effeito de um incendio no mar: foi o primeiro vapor que sulcou as aguas da Mancha. Aquelle navio, alcunhado _Galeola de Lethierry_, pelo desdem e odios de todos, foi annunciado para fazer a carreira de Guernesey a Saint-Malo. IV CONTINUAÇÃO DA HISTORIA DA UTOPIA Comprehende-se que a cousa fosse muito mal recebida. Todos os proprietarios de navios de carreira entre a ilha guernesiana e a costa francesa clamaram immediatamente. Denunciaram aquelle attentado feito ás Santas Escripturas e ao monopolio. Alguns templos fulminaram. Um reverendo, por nome Elihu, chamou ao vapor uma _libertinagem._ O barco á vela foi declarado orthodoxo. Vio-se distinctamente que eram pontas do diabo as pontas dos bois que o vapor trazia e desembarcava. Durou o protesto um bom par de dias. Mas a pouco e pouco foram vendo que os taes bois chegavam menos estafados, e vendiam-se melhor, por ser a carne mais tenra; que tambem para os homens eram menores os riscos do mar; que a passagem, menos dispendiosa, era segura e mais curta; que eram fixas as horas da sahida e da chegada; que o peixe, viajando mais depressa, chegava mais fresco, e que se podia levar aos mercados francezes as sobras das grandes pescas, tão frequentes em Guernesey; que a manteiga das admiraveis vaccas de Guernesey fazia mais rapidamente o trajecto no Devil-Boat que nas chalupas á vela, e não perdia na qualidade, de maneira que affluiam as encommendas de Dinan, de Saint-Brieuc e de Rennes; finalmente que, graças ao que se chamava _Galeota de Lethierry_, havia segurança de viagem, regularidade de communicação, trafego facil e prompto, augmento de circulação, multiplicação de mercados, extensão de commercio; em summa que era preciso approveitar o Devil-Boat que violava a Biblia e enriquecia a ilha. Alguns espiritos fortes arriscaram-se a approvar o vapor com certa precaução. O Sr. Landoys, o escrevente, votou ao navio a sua estima. Era imparcialidade, porque elle não gostava de Lethierry: primeiro, porque, Lethierry era _mess_, e Landoys era apenas _senhor_; depois, porque, embora escrevente em Saint-Pierre Port, Landoys era parochiano de Saint-Sampson; ora, na parochia, só havia dous homens sem preconceitos, Lethierry e Landoys; o menos que podia acontecer era que um detestasse o outro. A bordo do mesmo navio, distanceam-se duas creaturas. Comtudo o Sr. Landoys teve o cavalherismo de approvar o vapor. Outras pessoas o imitaram. Insensivelmente o facto foi subindo; os factos são como as marés; e com o tempo, com o successo continuado e crescente, com a evidencia do serviço prestado, o augmento da commodidade publica, lá veio um dia em que, á excepção de alguns homens de juizo, toda a gente admirou a Galeota de Lethierry. Hoje seria menos admirada. Aquelle vapor de ha quarenta annos faria sorrir os nossos actuaes constructores. Era uma maravilha disforme, um prodigio rachitico. Entre os nossos grandes paquetes transatlanticos de hoje e o navio de rodas e fogo que Dionysio Papin fez manobrar na Fulde em 1707, não ha menor distancia que entre a náo _Montebello_, de 200 pés de comprimento, 50 de largura, com uma verga de 115 pés, arqueando 2,000 toneladas, levando 1,100 homens, 120 peças, 10,000 balas e 160 volumes de metralha, deitando 3,300 litros de ferro por banda e desenrolando ao vento em viagem, 5,600 metros de lona, e o drouwn dinamarquez do 2.° seculo, que se achou cheio de pedras, arcos, e clavas, nos atoleiros de Wester-Satrup, e depositado na municipalidade de Flensburgo. Cem annos justos, 1707--1807, separam o primeiro barco de Papin do primeiro navio de Fulton. A Galeota de Lethierry era de certo um progresso sobre aquelles dous esboços, mas era esboço tambem. Nem por isso deixava de ser uma obra prima. Todo embryão de sciencia tem este duplo aspecto; monstro, como fecto; maravilha, como germen. V O NAVIO-DIABO A Galeota de Lethierry não era mastreada no ponto velico, e não era isso defeito, porque é uma das leis da construcção naval; demais, sendo o fogo o propulsor do navio, o velame era simplesmente accessorio; um navio de rodas é quasi insensivel ao velame que se lhe põe. A Galeota era demasiado curta e arredondada; grande bochecha e largos quadris; Lethierry não teve a ousadia de faze-la mais ligeira. A Galeota tinha alguns dos inconvenientes e das qualidades da _pança_: arfava pouco, mas rangia muito. A caixa das rodas era muito alta. A viga da coberta era maior de que comportava o comprimento. A machina, que era massuda, atravancava o navio, e para torna-lo capaz de um grande carregamento, foi preciso levantar muito a amurada, o que deu á Galeota, mais ou menos, o defeito das náos de 74, que, só arrasando-as, podem navegar e combater. Sendo curta, devia gyrar depressa, visto que o tempo empregado em uma evolução está na razão do comprimento do navio; mas o peso tirava-lhe a vantagem que lhe provinha de ser curta. O pontal era muito largo, o que lhe atrazava a marcha, porque a resistencia da agua é proporcional á maior secção immergida e á velocidade do navio. A proa era vertical, o que não seria defeito hoje, mas naquelle tempo era uso inclina-la uns quarenta e cinco gráos. Todas as curvas do casco estavam bem emparelhadas, mas não eram sufficientemente longas para a obliquidade e parallelismo com o lume da agua, que deve ser rechassada lateralmente. No máo tempo, callava muita agua, ora na proa, ora na popa, o que mostrava ter vicio de construcção no centro de gravidade. Não estando o carregamento no lugar proprio, por causa do peso da machina, acontecia que o centro de gravidade passava ás vezes para traz do mastro grande, e então era preciso contar só com o vapor, e desconfiar da vela grande, porque o effeito da vela grande nesses casos fazia antes arribar que sustentar o vento. O recurso era, ao approximar-se do vento, soltar a grande escota; deste modo o vento fixava-se na proa, pela amurada, e a vela grande fazia o effeito de uma vela de popa. A manobra era difficil. O leme era o leme antigo, não de roda como hoje, mas de cana, voltando sobre os eixos firmados no cadaste, e movido por uma trave horisontal que passava por cima da cava da culatra. Tinha duas falúas suspensas. O navio era de quatro ancoras, a ancora grande, a segunda ancora, que é a que trabalha, _working-anchor_, e duas ancoras de amarra. Essas quatro ancoras, atadas por correntes, eram manobradas, segundo as occasiões, pelo grande cabrestante da popa e o pequeno cabrestante da proa. Tendo apenas duas ancoras de amarra, uma a estibordo, outra a bombordo, o navio não podia ancorar em cruz, o que o desarmava quando sopravam certos ventos. Mas neste caso podia usar da segunda ancora. As boias eram normaes, e construidas da maneira a supportar um cabo de ancora, ficando sempre á flôr da agua. A chalupa tinha as dimensões uteis. A novidade do navio é que era, em parte, apparelhado com correntes; o que não lhe diminuia a mobilidade nem a tenção das manobras. A mastreação, posto que secundaria, não era incorrecta; era facil o manejo dos ovens. As peças de madeira eram solidas, mas grosseiras, pois que o vapor não exige madeiras tão delicadas como exigem as velas. Tinha aquelle navio uma velocidade de duas leguas por hora. Quando pannejava affeiçoava-se bem ao vento. A Galeota de Lethierry supportava bem o mar, mas não tinha boa quilha para dividir o liquido, nem se podia dizer que fosse airosa. Via-se que em occasião de perigo, cachopo ou tromba, não poderia ser bem manobrada. Tinha o ranger de uma cousa informe. Fazia na agua o ruido que fazem as solas novas. Era navio de commercio e não de guerra, e por isso mais exclusivamente disposto para a arrumação das cargas. Admittia poucos passageiros. O transporte do gado tornava difficil e especial a arrumação das cargas. Punham-se os bois no porão, o que complicava muito. Hoje os bois ficão no convés. As caixas das rodas do Devil-Boat Lethierry eram pintadas de branco, o casco até o lume d'agua de vermelho, e o resto de preto, segundo o uso, assaz feio, deste seculo. Vasio calava sete pés; carregado, quatorze. Quanto á machina era poderosa. Tinha a força de um cavallo por tres toneladas, o que é quasi a força de um rebocador. As rodas estavam bem collocadas, um pouco adiante do centro de gravidade do navio. A machina tinha a pressão maxima de duas athmospheras. Gastava muito carvão. O ponto de apoio era instavel, mas remediava-se como ainda hoje se faz, por meio de um duplo apparelho alternado de duas manivelas fixas nas extremidades da arvore de rotação, e disposta de maneira que uma estivesse no ponto forte quando a outra estava no ponto inerte: Toda a machina repousava em uma só placa fundida; de modo que mesmo em caso de grande avaria, nenhum lanço do mar lhe tirava o equilibrio, e o casco disforme não podia deslocar a machina. Para torna-la ainda mais solida, puzeram a redouça principal perto do cylindro, o que transportava do meio á extremidade o centro da oscilação do pendulo. Inventaram-se depois os cylindros oscilantes que suprimem a redouça antiga; mas naquelle tempo parecia que o systema usado era a ultima palavra da mecanica. A caldeira era dividida, e tinha a bomba competente. As rodas eram grandes, o que diminuia a perda de força, e o cano alto, o que augmentava a extracção da fornalha; mas o tamanho das rodas dava azo ás vagas, e a altura do cano dava azo ao vento. Raios de páo, fateixas de ferro, cubos de metal; eis o que eram as rodas bem construidas, e (o que admira) podendo ser desmontadas. Haviam sempre tres rodisios mergulhados; a velocidade, do centro da roda não passava de um sexto da velocidade do navio, era esse o defeito. Além disso, a trave da manivela era muito comprida, e o vapor era distribuido no cylindro com demasiado atrito. Naquelle tempo a machina parecia e era admiravel. Foi ella feita em França, nas forjas de Bercy. Mess Lethierry delineou-a; o machinista que a construio, morreu; de modo que aquella machina era unica e impossivel de ser substituida. Existia o desenhista, mas faltava o constructor. Custou a machina quarenta mil francos. Lethierry construio a Galeota ua grande estiva coberta que fica ao lado da primeira torre entre Saint-Pierre Port e Saint-Sampson. Empregou nessa construcção tudo o que sabia em carpintaria do mar, e mostrou os seus talentos na construcção do costado, cujas costuras eram estreitas e iguaes, untadas de _sarangousti_, betume da India, melhor que alcatrão. O forro estava bem pregado. Para remediar a rotundidade do casco, ajustou elle um botaló ao gurupés, o que lhe permittia accrescentar á cevadeira uma cevadeira falsa. No dia do lançamento ao mar, disse Lethierry: estou na agua! E realmente a Galeota foi bem succedida. Por acaso ou de proposito, a Galeota cahio ao mar no dia 14 de Julho. Nesse dia Lethierry, de pé sobre o convés, entre as duas caixas das rodas, olhou fixamente para o mar e exclamou: Agora tu! os parisienses tomaram a Bastilha; agora tomamos-te nós! A Galeota de Lethierry fazia uma vez por semana a viagem de Guernesey a Saint-Malo. Partia na quinta-feira e voltava na sexta á tarde, vespera do mercado que era no sabbado. Era uma massa de madeira mais volumosa que as maiores chalupas costeiras do archipelago, e, sendo a sua capacidade na razão das dimensões, uma só das suas viagens valia por quatro viagens de um cuter ordinario. Tirava por isso grandes lucros. A reputação de um navio depende da sua arrumação de cargas, e Lethierry era admiravel neste mister. Quando ficou impossibilitado de trabalhar no mar, ensinou um marinheiro para substitui-lo. No fim de dous annos, o vapor dava liquidas umas setecentas e cinco libras sterlinas por anno. A libra sterlina de Guernesey vale vinte e quatro francos, a de Inglaterra vinte e cinco, e a de Jersey vinte e seis. Estas phantasmagorias são menos phantasmagoricas do que parecem; os bancos é que lucram com ellas. VI LETHIERRY ENTRA NA GLORIA Prosperava a Galeota. Mess Lethierry via chegar o dia em que elle seria _gentleman._ Em Guernesey não se pode ser gentleman da noite para o dia. Ha uma escala entre o homem e o gentleman; o primeiro degráo é o nome simplesmente, Pedro, supponhamos; depois, visinho Pedro; terceiro degráo, pai Pedro; quarto degráo, senhor (_sieur_) Pedro; quinto degráo, mess Pedro; ultimo degráo, gentleman (_monsieur_) Pedro. Esta escada, que sahe da terra, interna-se pelo céo acima. Entra nella toda a hierarchia ingleza. Eis os degráos mais luminosos: acima de senhor (_gentleman_) ha esq., (escudeiro), acima de esq., o cavalheiro (_sir_ vitalicio) depois o baronet (_sir_ hereditario), depois o lord, _laird_ na Escocia, depois o barão, depois o visconde, depois o conde, (_earl_ na Inglaterra, _jarl_ na Noruega), depois o marquez, depois o duque, depois o par de Inglaterra, depois o principe de sangue real, depois o rei. Esta escada sobe do povo á burguesia, da burguesia ao baronato, do baronato ao pariato, do pariato a realesa. Graças aos seus triumphos, ao vapor, ao Navio-Diabo, mess Lethierry já era alguem. Para construir a Galeota teve de pedir dinheiro emprestado; endividou-se em Bremen, e em Saint-Malo, mas ia amortisando a divida todos os annos. Lethierry comprou fiado, na entrada do porto de Saint-Sampson, uma linda casa de pedra e cal, novasinha, entre o mar e o jardim; no angulo estava este nome: _Bravées._ A casa, cuja frente fazia parte da muralha do porto, era notavel por duas fileiras de janellas, ao norte, do lado de um cercado cheio de flôres, ao sul, do lado do mar; de modo que era uma casa com duas fachadas, dando uma para as tempestades, outra para as rosas. As fachadas pareciam feitas para os dous moradores: mess Lethierry e miss Deruchette. Era popular a casa de Lethierry, porque elle proprio acabou sendo popular. A popularidade nascia em parte da bondade, da educação e da coragem delle, parte dos homens que elle salvara de perigos imminentes, em grande parte do bom exito da Galeota, e tambem por ter dado ao porto de Saint-Sampson, o privilegio das partidas e chegadas do vapor. Vendo que decididamente o Devil-Boat era um bom negocio, Saint-Pierre, capital, reclamou o vapor para si, mas Lethierry conservou-o para Saint-Sampson. Era a sua cidade natal. Daqui é que eu fui lançado ao mar, dizia elle. Tinha por isso grande popularidade local. A qualidade de proprietario e contribuinte fazia delle o que em Guernesey se chama um _unhabitant._ Deram-lhe um cargo. O pobre marinheiro galgou cinco degráos, dos seis que tem a ordem social guernesiana; era mess; estava quasi _gentleman_, e quem sabe mesmo se não passaria dahi? Quem sabe se algum dia não se havia de ler no almanack de Guernesey, no capitulo _Gentry and Nobility_ esta inscripção inaudita e soberba: _Lethierry, esq._ Mess Lethierry, porém, desdenhava ou antes ignorava o que era a vaidade das cousas. Sentia-se util, era a satisfação delle; ser popular commovia-o menos que ser necessario. Já o dissemos, tinha dous amores, e por consequencia, duas ambições: Durande e Deruchette. Fosse como fosse, Lethierry arriscou-se na loteria do mar, e tirou a sorte grande. A sorte grande, era Durande navegando. VII O MESMO PADRINHO E A MESMA PADROEIRA Depois de crear o vapor, Lethierry baptisou-o, deu-lhe o nome de _Durande._ Não lhe daremos daqui em diante se não este nome. Seja-nos licito igualmente, qualquer que seja o uso typographico, escrever _Durande_ sem ser em gripho, conformando-nos nisto ao pensamento de mess Lethierry para quem Durande era quasi uma pessoa. Durande e Deruchette é o mesmo nome. Deruchette é o diminutivo. É muito usado esse diminutivo no oeste da França. No campo, os santos têm muitas vezes o seu nome com todos os diminutivos e augmentativos. Parece que ha muitas pessoas e é só uma. Esta identidade de padroeiros e padroeiras com differentes nomes, não é rara, Lise, Lisette, Lisa, Elisa, Isabel, Lisbeth, Betsy, tudo isto é Elisabeth. É provavel que Mahout, Machut, Malo e Magloire sejam o mesmo santo. Mas não fazemos cabedal disso. Santa Durande é uma santa de Angoumois e da Charente. Será correcta? Isso é lá com os bolandistas. Correcta ou não, esta santa tem muitas igrejas. Estando em Rochefort, e sendo ainda rapaz, Lethierry tomou conhecimento com aquella santa, provavelmente na pessoa de alguma formosa Charenteza, talvez a rapariga das unhas bonitas. Restou-lhe recordação bastante para dar aquelle nome ás duas cousas que elle amava; Durande á Galeota, Deruchette á menina. Lethierry era pae de uma e tio da outra. Deruchette era filha de um irmão que elle teve. Morreram-lhe os paes. Lethierry adoptou a criança, e substituio o pae e a mãe. Deruchette não era sómente sobrinha, era tambem afilhada de Lethierry. Foi elle quem a levou á pia, dando-lhe por padroeira Santa Durande, e por nome Deruchette. Deruchette, já o dissemos, nasceu em Saint-Pierre Port. Estava inscripta no registro da parochia. Emquanto a sobrinha foi criança e o tio pobre, ninguem se importou com o nome _Deruchette_; mas quando a mocinha chegou a miss e o marinheiro a gentleman, _Deruchette_ começou a desagradar a todos. Perguntavam a mess Lethierry: --Porque lhe dá esse nome? --É um nome assim, respondia elle. Tentaram mudar-lhe o nome. Lethierry não quiz. Uma senhora da alta sociedade de Saint-Sampson, mulher de um ferreiro abastado, e que já não trabalhava, disse um dia a mess Lethierry: --Daqui em diante chamarei _Nancy_ á sua filha. --Porque não lhe chamará Lons-le-Saulnier? disse elle. A bella senhora não desistio, e no dia seguinte disse-lhe: --Decididamente não queremos que ella se chame Deruchette. Achei um lindo nome: _Marianne._ --Lindo nome realmente, disse mess Lethierry, mas composto de dous animaes bem ruins, um _mari_ (marido) e um _ane_ (asno). Lethierry manteve o nome de Deruchette. Enganar-se-hia aquelle que concluisse pelas ultimas palavras de Lethierry que elle não queria casar a sobrinha. Queria casa-la, de certo, mas ao seu modo. Queria um marido da sua tempera, muito trabalhador, de maneira que Deruchette não fizesse nada. Gostava das mãos tostadas do homem e das mãos alvas da mulher. Para que Deruchette não estragasse as lindas mãos que tinha, dava-lhe occupações elegantes, mestre de musica, piano, bibliotheca e bem assim alguma linha e agulhas em uma cestinha de costura. Deruchette lia mais do que cosia, cantava e tocava mais do que lia. Mess Lethierry queria isso mesmo. Não lhe pedia nada mais que o encanto a fascinação. Educou-a mais para ser flôr do que para ser mulher. Quem tiver estudado os marinheiros ha de comprehender isto. As rudezas amam as delicadezas. Para que a sobrinha realizasse o ideal do tio, era preciso que fosse opulenta. Era isso o que mess Lethierry comprehendia perfeitamente. A machina do mar trabalhava com esse fim. Durande devia dotar Deruchette. VIII A MELODIA BONNY DUNDEE Deruchette occupava o mais lindo quarto da casa, com duas janellas, mobilia de mogno, cama de cortinas riscadas de verde e branco, tendo vista para o jardim e para a coluna onde está o castello do Valle. Do outro lado desta collina é que estava o tutú da rua. Deruchette tinha no quarto a musica e o piano. Acompanhava-se ao piano cantando a canção da sua preferencia, a melancolica melodia escosseza _Bonny Dundee_; a noite encerra-se toda naquella aria, a aurora encerrava-se toda naquella voz; isto produzia insolito contraste. Dizia-se: miss Deruchette está ao piano; e os que passavam ao sopé da collina paravam algumas vezes diante do muro do jardim para ouvir aquelle canto tão fresco e aquella canção tão triste. Deruchette era a alegria perpassando a casa toda, e fazendo alli uma eterna primavera. Era formosa, porém, mais linda que formosa, e mais gentil que linda. Fazia lembrar aos velhos pilotos amigos de mess Lethierry aquella princeza de uma canção de soldados e marujos, tão bella--_que passava por tal no regimento._ --Deruchette tem um cabo de cabellos, dizia mess Lethierry. Era lindissima desde a infancia. Receiou-se por muito tempo que o nariz fosse disforme, mas a pequena, provavelmente disposta a ficar bonita, manteve-se de modo que não adquirio deffeito algum até tornar-se moça; o nariz nem ficou comprido nem curto; e chegando á juventude, Deruchette conservou-se encantadora. Dava o nome de pai ao tio. Mess Lethierry concedia-lhe algumas funcções de jardineira e mesmo de dona de casa. A moça regava os canteiros de malvaisco, de verbasco, de phlox e herva benta; cultivava oxalida rosada; utilisava o clima da ilha de Guernesey, tão hospitaleira ás flores. Tinha, como toda a gente, aloes plantado no chão, e, o que é mais difficil, fazia pegar a potentilha de Nepaul. Tinha uma horta habilmente arranjada; plantava espinafres, rabanetes e ervilhas; sabia semear a couve flôr da Hollanda e a couve de Bruxellas; transplantava-as em Julho; nabos para Agosto, chicoria para Setembro, pastinaca para o outomno, e rapuncio para o inverno. Mess Lethierry consentia em tudo isso, comtanto que não trabalhasse muito com a pá e o ancinho, e sobretudo que não fosse ella propria quem estrumasse a terra. Deu-lhe duas criadas, uma chamada Graça, e a outra Doce, nomes usados em Guernesey. Graça e Doce faziam o serviço da casa e do jardim, e tinham o direito de andar com as mãos vermelhas. O quarto de mess Lethierry era retirado, dava para o porto e era contiguo á sala grande do rez do chão, onde havia a porta de entrada e aonde iam ter as diversas escadas da casa. A mobilia do quarto compunha-se de uma maca de marujo, um chronometro, uma mesa, uma cadeira e um cachimbo. O tecto, construido com vigas, era caiado, bem como as paredes á direita da porta estava pregado o archipelago da Mancha, bella carta maritima onde se lia a seguinte inscripção: _W. Faden,_ 5, _Churing Cross. Geographer to His Majesty_; e á esquerda estava pendurado um desses grandes lenços de algodão que trazem figurados os signaes de todas as marinhas do globo, tendo nos quatro cantos os estandartes da França, da Russia, de Hespanha e dos Estados-Unidos da America, e no centro a Union-Jack da Inglaterra. Doce e Graça eram duas creaturas ordinarias, devendo tomar-se esta palavra á boa parte. Doce não era má, e Graça não era feia. Não lhes ficavam mal tão perigosos nomes. Doce, que era solteira, tinha um amante. Nas ilhas da Mancha usa-se tanto a palavra como a cousa. As duas criadas faziam o serviço com uma especie de lentidão propria á domesticidade normanda no archipelago. Graça, faceira e bonita, contemplava constantemente o horisonte com uma inquietação de gato. Era porque, tendo tambem o seu amante, tinha de mais a mais, dizia-se, marido marinheiro, cuja volta receiava. Mas nós não temos nada com isto. A differença entre Graça e Doce é que, n'uma casa menos austera e menos innocente, Doce ficaria criada de servir e Graça subiria á posição de criada grave. Os talentos possiveis de Graça eram nullos para uma moça candida como Deruchette. Demais, os amores de Doce e Graça eram latentes. Nada chegava aos ouvidos de mess Lethierry, nada salpicava sobre Deruchette. A sala baixa do rez do chão, com chaminé é rodeada de bancos e mesas, servira no seculo passado para as reuniões de um conventiculo de refugiados francezes protestantes. A parede de pedra núa não tinha ornamento algum a não ser um quadro de madeira preta com um cartaz de pergaminho ornado das proesas de Benigno Bossuet, bispo de Meaux. Alguns pobres diocesanos daquelle genio, perseguidos por elle na occasião da revocação do edito de Nantes, e abrigados em Guernesey, penduraram aquelle quadro na parede como um testemunho. Quem podia decifrar a letra tosca e a tinta amarellada, lia naquelle cartaz os seguintes factos pouco conhecidos;--«A 29 de Outubro de 1685, demolição dos templos de Morcef e de Nanteuil, requerida ao rei pelo Sr. bispo de Meaux.»--«A 2 de Abril de 1686, prisão de Cochard pai e filho por motivo de religião, a requerimento do Sr. bispo de Meaux. Foram soltos por terem abjurado.»--«A 28 de Outubro de 1699 o Sr. bispo de Meaux envia ao Sr. de Pontchartrain uma memoria expondo a necessidade de transportar as Sras. de Chalandes e de Neuville, donzellas da religião reformada, para a casa das Novas-Catholicas de Paris.»--«A 7 de Julho de 1703 executou-se a ordem pedida ao rei pelo Sr. bispo de Meaux de encerrar no hospital um tal Beaudoin e sua mulher, _mãos catholicos_, de Fublaines.» No fundo da sala, ao pé da porta do quarto de mess Lethierry, havia uma pequena divisão de taboas, que tinha sido tribuna huguenote, e era então graças a uma grade arranjada, o _office_ do vapor, isto é, o escriptorio da Durande occupado por mess Lethierry em pessoa. Na velha estante de carvalho um registro com as paginas cotadas, Deve e Hade Haver--substituia a Biblia. IX O HOMEM QUE ADVINHOU QUEM ERA RANTAINE Mess Lethierry governou a Durande emquanto pode navegar, e nunca teve outro piloto nem outro capitão; mas lá chegou um dia em que elle foi obrigado a deixar o mar. Escolheu para substitui-lo o Sr. Clubin, de Torteval, homem silencioso. O Sr. Clubin tinha em toda a costa fama de severa probidade. Era o _alter ego_ e o vigario de mess Lethierry. O Sr. Clubin, embora desse mais ares de tabelião que de marinheiro, era um maritimo capaz e raro. Tinha todos os talentos que exige o perigo perpetuamente transformado. Era arrumador habil, gageiro meticuloso, contramestre desvelado e perito, timoneiro robusto, piloto instruido, e atrevido capitão. Era prudente e algumas vezes levava a prudencia ao ponto de ouzar, o que é uma grande qualidade na vida maritima. Tinha o receio do provavel temperado pelo instincto do possivel. Era um desses marinheiros que affrontam o perigo em uma proporção conhecida delles, sabendo triumphar em todas as aventuras. Toda a certeza que o mar póde deixar a um homem, elle a tinha. Era além disso nadador de fama; pertencia a essa raça de homens exercitados na gymnastica da vaga, que se conservam n'agua o tempo que se quer, e que partindo do Havre-des-Pas, dobram a Collete, fazem a volta da Ermitage e a do castello Elisabeth e voltam ao cabo de duas horas ao ponto de partida. Era de Torteval e dizia-se que fizera muitas vezes a nado, o temivel trajecto desde Manois até á ponta de Plaintmont. Uma das cousas, que mais recommendaram o Sr. Clubin a mess Lethierry, foi que, conhecendo ou penetrando Rantaine, assignalou a mess Lethierry a improbidade daquelle homem, e disse-lhe:--_Rantaine ha de roubal-o._ Verificou-se a profecia. Mais de uma vez, em negocios pouco importantes, é verdade, mess Lethierry experimentou a escrupulosa honestidade do Sr. Clubin e descançava nelle. Mess Lethierry dizia: Consciencia quer confiança. X NARRATIVAS DE VIAGENS DE LONGO CURSO Mess Lethierry, que se não accomodava de outro modo, vestia sempre a sua roupa de bordo, preferindo mesmo a japona de marinheiro, á japona de piloto. Deruchette torcia o nariz por isso. Nada é tão bello como uma caretazinha da formosura em colera. Deruchette ralhava e ria--_Bom paisinho_, dizia ella, _está cheirando a alcatrão._ E dava uma palmadinha na larga espadua do marinheiro. Aquelle velho heróe do mar trouxe das suas viagens, narrativas maravilhosas. Vio em Madagascar plumas de passaro das quaes bastavam tres para cobrir uma asa. Vio na India hastes de azedinhas, de nove pés de altura. Vio na Nova Hollanda bandos de perús e de patos dirigidos e guardados por um cão de pastor, que naquella terra é um passaro, e chama-se galinha silvestre. Vio cemiterios de elephantes. Vio em Africa uma especie de homens-tigres de sete pés de altura. Conhecia os costumes de todos os macacos, desde o macaco bravo até o macaco barbado. No Chile vio uma bugia commover os caçadores apresentando-lhes o filho. Vio na California um tronco de arvore ouco, no interior do qual um homem a cavallo podia andar cento e cincoenta passos. Vio em Marrocos os mozabitas e os biskris baterem-se com matraks e barras de ferro, os biskris por terem sido tratados de _kelb_, que quer dizer cães, e os mozabitas por terem sido tratados de _khamsi_, que quer dizer gente da quinta seita. Vio na China cortar em pedacinhos o pirata Chanh-thong-quan-harh-Quoi, por ter assassinado o Ap de uma aldêa. Ern Thudanmot, vio um leão arrebatar uma mulher velha do meio do mercado da cidade. Assistio á chegada da grande cobra mandada de Cantão a Saigon, para celebrar na pagode de Cho-len, a festa de Quan-nam, deosa dos navegantes. Contemplou na terra dos Moi, o grande Quan-Su. No Rio de Janeiro, vio as senhoras brasileiras collocarem nos cabellos pequenas bollas de gaze contendo cada uma dellas um vagalume, o que lhes fazia uma coifa de estrellas. Destruio no Uruguay os formigueiros, e no Paraguay um certo bichinho, que occupa com as patas um diametro de um terço de vara, e ataca o homem, por meio dos proprios pellos, que lhe atira em cima, e que se cravam na carne produzindo pustulas. No rio Arinos, affluente do Tocantins, nas mattas virgens do norte da Diamantina, verificou a existencia do terrivel povo-morcego, os morcilagos, homens que nascem com os cabellos brancos e os olhos vermelhos, habitam os bosques sombrios, dormem de dia, accordam de noite, e pescam e caçam nas trevas, vendo melhor de que quando ha lua. Perto de Beirouth, no acampamento de uma expedição de que fazia parte, foi roubado de uma tenda um pluviometro; então um feiticeiro vestido de duas ou tres fachas de couro, assemelhando-se a um homem vestido com os proprios suspensorios, agitou tão furiosamente uma campainha na ponta de um chifre que appareceu logo uma hyena trazendo o pluviometro. A hyena é que o tinha roubado. Estas historias verdadeiras, assemelhavam-se tanto a historias da carochinha que divertiam Deruchette. A boneca de Durande era o élo entre o vapor e a moça. Chama-se boneca nas ilhas normandas a figura talhada na prôa, estatua de madeira mais ou menos esculpida. Dahi vem que para dizer _navegar_, a gente das ilhas usa desta locução; estar entre popa e boneca (_poupe et poupée._) A boneca de Durande tinha as predilecções de mess Lethierry. Elle encommendára ao carpinteiro que a fizesse parecida com Deruchette. Parecia-se como obra feita a machado. Era uma acha de lenha esforçando-se por ser moça bonita. Mas a cousa, embora disforme, illudia mess Lethierry. Contemplava-a como um crente. Estava de boa fé diante daquella figura. Reconhecia nella a imagem de Deruchette. É mais ou menos assim que o dogma se parece com a verdade, e o idolo com Deos. Mess Lethierry tinha duas grandes alegrias por semana; uma na terça-feira e outra na sexta. Primeira alegria, ver partir Durande; segunda alegria, vê-la chegar. Encostava-se á janella, contemplava a sua obra, era feliz. Ha alguma cousa assim no Genesis. _Et vidit quod esset tonum._ Na sexta-feira, a presença de mess Lethierry na janella era um signal. Quem o via chegar á janella da casa de _Bravées_, acender o cachimbo, dizia logo: Ah! o vapor está a chegar. Uma fumaça annunciava a outra. A Durande, entrando no porto, atava a amarra debaixo das janellas de mess Lethierry, n'uma grande argola de ferro. Nessas noites Lethierry, gozava um admiravel somno na sua maca, sentindo de um lado Deruchette adormecida, do outro Durande amarrada. O ancoradouro de Durande era perto do porto. Diante da casa de Lethierry havia um pequeno cáes. O cáes, a casa, o jardim, as marinhas orladas de sebes, a maior parte das casas vizinhas, nada existe hoje. A exploração do granito de Guernesey fez vender os terrenos todos. Aquelle lugar está hoje occupado por estancias de quebradores de pedra. XI LANCE DE OLHOS AOS MARIDOS EVENTUAES Deruchette ia crescendo e não se casava. Mess Lethierry fel-a uma moça de mãosinhas alvas, mas tornou-a exigente. Educações daquellas voltam-se sempre contra os pais. Elle proprio era mais exigente ainda que a filha. Imaginava um marido para Deruchette que fosse tambem marido de Durande. Queria de um lance prover as duas filhas. Queria que o companheiro de uma fosse piloto da outra. Que é um marido? É o capitão de uma viagem. Porque motivo não dar um só capitão ao navio e á filha? O casal obedece ás marés. Quem sabe guiar uma barca sabe guiar uma mulher. Ambas são sujeitas á lua e ao vento. O Sr. Clubin, tendo apenas quinze annos menos que mess Lethierry, não podia ser para Durande senão um capitão provisorio; era preciso um piloto moço, um capitão definitivo, um verdadeiro successor do inventor, do creador. O piloto de Durande seria o genro de mess Lethierry. Porque motivo não fundir os dous genros em um só? Lethierry affagava esta idéa. Via apparecer-lhe em sonhos um noivo. Um gageiro possante e tostado, athleta do mar, eis o seu ideal. Não era esse o ideal de Deruchette, o sonho da moça era mais côr de rosa. Fôsse como fôsse, o tio e a sobrinha pareciam estar de accordo em não terem pressa. Qnando viram Deruchette tornar-se herdeira provavel, apresentaram-se pedidos aos centos. Estas sollicitudes nem sempre são de boas qualidade. Mess Lethierry sentia isso, e dizia entre dentes: moça de ouro, noivo de cobre. E despedia os pretendentes. Esperava. Ella tambem. Cousa singular, Lethierry não fazia cabedal da aristocracia. Por esse lado era um inglez inverosimil. Difficilmente se acreditará que elle chegou a recusar um Ganduel, de Jersey, e um Bugnet-Necolin, de Serk. Houve mesmo quem ousasse affirmar, mas nós não acreditamos, que elle recusou uma proposta da aristocracia de Aurigny, indeferindo o pedido de um membro da familia Edou, que evidentemente descende de Edou-ard o Confessor. XII EXCEPÇÃO NO CARACTER DE LETHIERRY Mess Lethierry tinha um defeito, e grande. Odiava, não uma pessoa, mas uma cousa, o padre. Lendo um lia, em Voltaire,--costumava ler e lia Voltaire,--estas palavras «_os padres são gatos,_» mess Lethierry poz o livro de parte, e ouviram-n'o murmurar baixinho: _sinto-me cão._ Cumpre não esquecer que os padres lutheranos, calvinistas, e catholicos, atacaram-n'o vivamente, e pereguiram-n'o docemente, por causa da construcção do Devil-Boat local. Ser revolucionario em navegação, tentar introduzir um progresso no archipelago normando, impor à pobre ilha de Guernesey os esboços e uma invenção nova, era, conforme dissemos, uma temeridade condemnavel. Lethierry não escapou a uma certa condemnação. Não se esqueçam que fallamos do clero antigo differente do clero actual, que, em quasi todas as igrejas locaes, tem uma tendencia liberal para o progresso. Pearam-n'o de todos os modos; oppuzeram-lhe toda a somma de obstaculos que póde haver nas predicas e nos sermões. Odiado pelos homens da igreja, Lethierry aborrecia-os tambem. O odio dos outros era a circumstancia attenuante do odio delle. Mas a sua aversão pelos padres era idiosyncratica. Para odial-os não precisava de ser odiado. Como elle proprio dizia, era o cão daquelles gatos. Era contra elles pela idéa, e, o que é mais irreductivel, pelo instincto. Sentia as garras latentes dos padres, e mostrava-lhes os dentes. A torto e a direito, confessemol-o, o nem sempre a proposito. É erro não distinguir. Não são bons os odios absolutos. Nem mesmo o vigario saboyano mereceria as sympathias de Lethierry. Não é certo que para elle houvesse um bom padre. Á força de philosophar ia perdendo a circumspecção. Existe a intolerancia dos tolerantes, como existe o furor dos moderados. Mas Lethierry era tão boa alma que não podia ser odiento. Antes repellia que atacava. Fugia dos homens da igreja. Tinham-lhe feito mal, Lethierry limitava-se a não querer-lhes bem. A differença entre o odio dos outros e o delle, é que o dos outros era animosidade, e o delle antipathia. Guernesey, apezar de ilha pequena, tem lugar para duas religiões. Existem nella a religião catholica e a religião protestante. Devemos accrescentar que ahi não entram as duas religiões na mesma igreja. Cada culto tem a sua capella ou o seu templo. Na Allemanha, em Heidelberg, por exemplo, a cousa arranja-se menos escrupulosamente; divide-se uma igreja; metade para S. Pedro, metade para Calvino; entre as duas ha um tabique para prevenir os murros e pescoções; partes iguaes; os catholicos têm tres altares; os huguenotes tem tres altares; como as horas do officio são sempre as mesmas, o sino commum chama na mesma occasião para os dous serviços. Convoca a um tempo os fieis para Deos e para o diabo. Simplificação. O fleugma allemão accommoda-se com estas propinquidades. Mas em Guernesey, cada religião tem casa propria. Ha parochia orthodoxa e parochia heretica. Póde-se escolher. Nem uma nem outra, foi a escolha de mess Lethierry. Aquelle marinheiro, aquelle operario, aquelle philosopho, aquelle _parvenu_ do trabalho, simples na apparencia, não n'o era em substancia. Tinha lá as suas contradições e pertinacias. Era inabalavel a respeito do padre. Daria quináos a Montlosier. Costumava a dizer chufas muito descabidas. Tinha expressões proprias delle, extravagantes, mas sem eixar de ter um sentido. Ir a confessar-se era para elle: _pentear a consciencia._ Os poucos estudos que tinha, pouquissimos, feitos aqui e alli, entre duas borrascas, complicavam-se com erros de orthographia. Tinha tambem erros de pronuncia, nem sempre ingenuos. Quando se fez a paz entre a França de Luiz XVIII e a Inglaterra de Wellington, mess Lethierry disse: _Bourmont foi o traitre d'union_ (traidor por traço) _entre os dous campos._ Lethierry escreveu uma vez a palavra papado (_papauté_) do seguinte modo: _pape ôté_ (papa arrancado). Não acreditamos que elle fizesse isto de proposito. Este antipapismo não o conciliava com os anglicanos. Os presbyteros protestantes não o estimavam mais que os curas catholicos. Ante os mais graves dogmas, ostentava-se quasi sem reserva a irreligião de Lethierry. Deu-se o acaso de ser levado a ouvir um sermão acerca do inferno pregado pelo reverendo Jaquemin Herodes, sermão magnifico, empachado de textos sagrados, que provavam as penas eternas, os supplicios, os tormentos, as condemnações, os castigos inexoraveis, os fogaréos sem fim, as maldições inextinguiveis, as coleras do Omnipotente, os furores celestes, as vinganças divinas, cousas incontestaveis. Lethierry ouvio o sermão e ao sahir com um dos fieis, disse-lhe baixinho: Ora, quer ver? eu cá tenho uma idéa ratona. Supponho que Deos é bom. Adquirio este germen de atheismo quando residio em França. Posto que fosse guernesiano, e de raça pura, chamavam-n'o na ilha--o _francez_, por causa do seu espirito _improper._ Nem elle o occultava; estava impregnado de ideas subversivas. A sanha de fazer o vapor, o Devil-Boat, provava bem isto. Lethierry costumava dizer: _eu mamei o leite_ 89. Máo leite. E que despropositos fazia! É difficil viver intacto nos lugares pequenos. Em França, _guardar as apparencias_, na Inglaterra, _ser respeitavel_, é quanto basta para passar a vida tranquilla. Ser respeitavel, é cousa que implica uma immensidade de observancias, desde o domingo bem santificado até á gravata bem atada. «Não te faças apontar com o dedo» eis uma lei terrivel. Ser apontado é o diminutivo do anathema. As pequenas cidades, charcos de mexeriqueiros, são eximias nesta malignidade isoladora, que é a maldição vista ao invez do oculo. Os mais intrepidos arreceiam-se disto. Affronta-se a metralha, affronta-se o furacão, recua-se diante da malignidade. Mess Lethierry era mais tenaz que logico. Mas debaixo dessa pressão dobrava-se-lhe a tenacidade. Deitava _agua no vinho_, locução prenhe de concessões latentes e ás vezes inconfessaveis. Affastava-se dos homens do clero, mas não lhes fechava resolutamente a porta. Nas occasiões officiaes e nas épocas das visitas pastoraes, recebia attenciosamente tanto o presbytero lutherano como o capellão papista. Acontecia-lhe, de quando em quando acompanhar á parochia, anglicana a menina Deruchette, que aliás, só ia lá nas quatro grandes festas do anno. Em resumo, esses compromissos, que lhe custavam muito, irritavam-n'o, e longe de inclinal-o para os homens da igreja, augmentavam o seu pendor interno. Aquella creatura sem azedume era acrimoniosa apenas nesse ponto. Não havia meio de emendal-a. De facto, e sem remissão, era esse o temperamento de Lethierry. Aborrecia todos os cleros. Tinha a irreverencia revolucionaria. Distinguia pouco entre duas fórmas de culto. Nem mesmo fazia justiça a este grande progresso: Não acreditar na presença real. A sua myopia nestas cousas chegava ao ponto de não ver a differença entre um ministro e um sacerdote. Confundia um reverendo doutor com um reverendo padre. _Wesley não vale mais que Loyola_, dizia elle. Quando via passar uni pastor protestante de braço com a mulher, desviava os olhos. _Padre casado!_ dizia elle, com o accento absurdo que essas duas palavras tinham em França naquella época. Contava que na sua viagem á Inglaterra tinha visto a _bispa de Londres._ A sua revolta contra essas uniões, iam até á colera.--Vestido não casa com vestido! exclamava elle. O sacerdote fazia-lhe effeito de um sexo. Não teria duvida em dizer: «Nem homem nem mulher; padre.» Applicava com máo gosto, tanto ao clero anglicano como ao papista os mesmos epithetos desdenhosos; enrolava as duas sotainas na mesma phraseologia; e não se dava ao trabalho de variar, a proposito de padres, quaesquer que fossem, catholicos ou lutheranos, as methonymias soldadescas usadas naquelle tempo. --Casa-te com quem quizeres, dizia elle a Deruchette comtanto que não seja com algum padreco. XIII O DELEIXO FAZ PARTE DA GRAÇA Dita uma cousa, mess Lethierry não a esquecia mais; dita uma cousa, miss Deruchette esquecia-a logo. Esta era a differença entre o tio e a sobrinha. Deruchette, educada como os leitores viram, acostumou-se a pouca responsabilidade. Ha mais de um perigo latente n'uma educação tomada muito ao sério. Querer tornar felizes os filhos, antes do tempo, talvez uma imprudencia. Deruchette acreditava, que, estando ella contente, tudo o mais ia muito bem. Via o tio alegre quando ella estava alegre. As suas idéas eram pouco mais ou menos as mesmas de mess Lethierry. Satisfazia os sentimentos religiosos indo á parochia quatro vezes por anno. Já a encontramos vestida para a festa do Natal. Da vida humana não sabia cousa alguma. Tinha disposições para amar um dia loucamente. Emquanto não chegava esse dia era menina folgazã. Deruchette cantava ao acaso, tagarelava ao acaso, vivia sem esforço, soltava uma palavra e passava, fazia um gesto e fugia, era encantadora. Ajunte-se a isto a liberdadade ingleza. Na Inglaterra as crianças andam sós, as meninas são senhoras de si, a adolescencia vai á redéa solta. Taes são os costumes. Mas tarde, as moças livres fazem-se mulheres escravas. Tomem a boa parte estas duas expressões: livres no crescimento, escravas no dever. Deruchette acordava todos os dias com a inconsciencia das suas acções da vespera. Bem embaraçado ficaria que lhe perguntasse o que ella havia feito na semana anterior. Isto, porém, não impedia que ella tivesse em certas horas turvas, uma indisposição mysteriosa, e sentisse uma tal ou qual passagem do sombrio da vida no seu desabrochamento e na sua jovialidade. Ha nuvens dessas nos céos como aquelle. Mas passavam depressa. Deruchette voltava a si com uma gargalhada, sem saber nem porque estivera triste, nem porque estava serena. Brincava com tudo. De travessa que era, bulia com quem passava. Caçoava com os rapazes. Não escaparia o proprio diabo se o encontrasse em caminho. Era gentil, e ao mesmo tempo tão innocente que abusava de si propria. Dava um sorriso como um gatinho dá um bofete. Tanto peior para quem ficasse arranhado. Nem pensava mais nisso. O dia de hontem não existia para ella; vivia na plenitude do dia de hoje. Eis o que é a excessiva felicidade. Naquella moça a lembrança dissipava-se como neve que se funde. LIVRO QUARTO O bug-pipe. I PRIMEIROS RUBORES DE AURORA OU DE INCENDIO Gilliatt não trocara nunca uma palavra com Deruchette. Conheci-a por te-la visto de longe, como se conhece a estrella da manhã. Na época em que Deruchette encontrou Gilliatt, no caminho de Saint-Pierre Port au Valle e fez-lhe a sorpreza de traçar na neve o nome delle, tinha 16 annos. Exactamente na vespera mess Lethierry disse-lhe as seguintes palavras: --Deixa-te de seres travessa; estás moça feita. O nome _Gilliatt_, escripto por aquella menina, cahio em uma profundidade desconhecida. Que eram as mulheres para Gilliatt? nem mesmo elle poderia dize-lo. Quando encontrava alguma, causava-lhe medo e cobrava-lhe medo. Só na ultima extremidade fallava ás mulheres. Nunca foi amante de nenhuma camponeza. Quando se achava só em um caminho e ansiava alguma mulher ao longe, Gilliatt galgava um cercado, ou mettia-se em uma mouta e ia-se embora. Até das velhas fugia. Só tinha visto uma parisiense. Parisiense de arribação, estranho acontecimento em Guernesey naquelles tempos idos. E Gilliatt ouvira a parisiense contar nestes termos os seus infortunios: «Estou muito massada, cahiram-me uns choviscos no chapéo, esta côr é muito sujeita a ficar manchada.» Tendo encontrado tempos depois entre as folhas de um livro uma antiga gravura de modas representando uma dama da calçada de Antin em grande toilette, pregou-a na parede como lembrança desta apparição. Nas noites de estio escondia-se atraz das rochas de Houmet-Paradis para ver as camponezas banharem-se no mar. Um dia, atravez de uma cerca, vio a feiticeira de Torteval atar a liga que lhe tinha cabido. Provavelmente, Gilliatt era virgem. Naquella manhã de Natal em que Deruchette escrevera rindo o nome delle, Gilliatt voltou para casa não sabendo já porque motivo tinha sabido. Não dormio de noite. Pensou em mil cousas;--que faria bem se cultivasse rabanetes no jardim;--que não tinha visto passar o navio de Serk e talvez lhe houvesse acontecido alguma cousa;--que tinha visto erva pinheiro em flôr, cousa rara naquella estação. Gilliatt nunca soubera com certeza que parentesco havia entre elle e a velha que morrera em casa; disse comsigo que devia ser sua mãe e pensou nella com redobrada ternura. Lembrou-se do enxoval de mulher que estava na mala de couro. Pensou que o Rev. Jaquemin Herodes seria provavelmente nomeado decano de Saint-Pierre Port, e que a parochia de Saint-Sampson ficaria vaga. Pensou que o dia seguinte ao de Natal, seria vigesimo setimo dia da lua, e que por consequencia a maré enchente seria ás 3 horas e 21 minutos, a média ás 7 horas e 15 minutos, a vasante ás 9 horas e 36 minutos. Recordou, até nas menores particularidades, o vestuario de highlander que lhe vendera o _bug-pipe_ (especie de sanfona), bonet enfeitado com um cardo a claymore, a casaca de ábas curtas e quadradas, o saiote, o scilt or philaberg, adornado com uma bolsa e uma boceta de chifre, o alfinete feito de uma pedra escosseza, os dous cintos, as sashwises, o belts, a espada, o swond, o sabre, o dirk e o skene dhu, faca preta de cabo preto ornada de dous cairgorums, e os joelhos nús do soldado, as meias, as polainas riscadas e os sapatos de borlas. Tudo aquillo tornou-se espectro, perseguio-o, deu-lhe febre até que elle adormeceu. Gilliatt acordou quando o sol já ia alto, e o seu primeiro pensamento foi Deruchette. Adormeceu no dia seguinte e sonhou toda a noite com o soldado escossez. Sonhou tambem com o velho cura Jaquemin Herodes. Quando acordou pensou outra vez em Deruchette e teve contra ella uma violenta colera; lamentou não ser criança para ir atirar pedras nas vidraças da moça. Depois lembrou-se de que, se fosse criança, teria ainda sua mãe e entrou a chorar. Projectou ir passar uns tres mezes em Chausey ou em Minquirs, mas não partio. Não tornou a pôr os pés na estrada de Saint-Pierre Port au Valle. Imaginava que o seu nome ficara gravado na terra, e que todos os viandantes deviam olhar para elle. II GILLIATT VAI ENTRANDO PASSO A PASSO NO DESCONHECIDO Gilliatt ia todos os dias ver a casa de Lethierry. Não o fazia de proposito, mas encaminhava-se para esse lado. Acontecia então passar sempre pelo caminho que costeava o muro do jardim de Deruchette. Estando um dia naquetle caminho, ouvio a uma nulher do mercado, que fallava a outra, e vinha da casa de Lethierry: _Miss Lethierry gosta muito de sea kales._ Gilliatt fez no jardim da casa mal assombrada uma fossa de sea kales. O Sea kale é uma couve que tem o sabor do espargo. O muro do jardim da casa de Deruchette era baixinho; podia-se pular facilmente. Esta idéa pareceu terrivel a Gilliatt. Mas quem passava não podia deixar de ouvir as vozes das pessoas que fallavam nos quartos ou no jardim. Gilliatt não escutava, mas ouvia. De uma vez ouvio disputar as duas criadas, Graça e Doce. Como o rumor vinha daquella casa, soou-lhe como se fosse musica. De outra vez, distinguiu uma voz que não era como as outras, e que lhe pareceu ser a voz de Deruchette. Deitou a correr. As palavras que ouvio á moça ficaram para sempre gravadas no seu pensamento. Repetia-as a cada instante. Essas palavras eram: _Faz favor de me dar a vassoura?_ Gilliatt foi ousando a pouco e pouco. Já se atrevia a ficar parado. Aconteceu uma vez que Deruchette, que não podia ser vista de fora, embora estivesse a janella aberta, estava ao piano e cantava. Cantava a canção _Bonny Dundee._ Gilliattt empallideceu, mas levou a firmeza até ouvir a canção toda. Chegou a primavera. Gilliatt teve uma visão: abrio-se o céo. Gilliatt vio Deruchette regando uns pés de alface. Dahi a pouco já elle fazia mais do que parar. Observava os habitos da moça, notava as horas em que ella aparecia, e esperava. Tinha cuidado de não ser visto por ella. A pouco e pouco, ao tempo em que as moutas se enchem de borboletas e de rosas, immovel e mudo horas inteiras, sem ser visto por ninguem, retendo a respiração, Gilliatt acostumou-se a ver Deruchette andar pelo jardim. É facil acostumar-se ao veneno. Do lugar em que se escondia, Gilliatt ouvia Deruchette conversar com mess Lethierry, debaixo de um espesso caramanchão feito de caniço, dentro do qual havia um banco. As palavras chegavam-lhe distinctamente aos ouvidos. Quanto já não tinha andado! Chegou até a espiar e prestar ouvido. Ah! o coração humano é um velho espião! Havia outro banco visivel e proximo, no fim de uma alameda. Deruchette assentava-se alli algumas vezes. Pelas flôres que elle via Deruchette colher e cheirar, adivinhou as preferencias da moça a respeito de perfumes. A moça preferia antes de tudo a campanula, depois o cravo, depois a madresilva, depois o jasmim. A rosa estava em quarto lugar. Quanto aos lyrios, olhava para elles, mas não os cheirava. Á vista da escolha dos perfumes, Gilliatt compunha-a no seu pensamento. Cada cheiro significava para elle uma perfeição. Só a idéa de fallar a Deruchette fazia-lhe arripiar os cabellos. Uma boa velha que mascateava, e por esse motivo ia algumas vezes á rua que costeava o muro do jardim de Deruchette, veio a notar confusamente a assiduidade de Gilliatt junto daquelle muro e a sua devoção por aquelle lugar deserto. Ligaria ella a presença daquelle homem á possibilidade de uma mulher que estivesse atraz do muro? Descobriria esse vago fio invisivel? Restava-lhe acaso na sua decrepitude mendicante, um pouco de mocidade para lembrar-se de alguma cousa dos bellos tempos, e saberia ella já no inverno e na noite, que cousa é o alvor da madrugada? Ignoramol-o, mas parece que, passando uma vez perto de Gilliatt, que estava de sentinella, dirigio para o lado delle toda a quantidade de sorriso de que ainda era capaz, e murmurou entre as gengivas: _aquece, aquece!_ Gilliatt ouvio a palavra que lhe fez impressão, e murmurou com um ponto de interrogação interior; Aquece? Que quer dizer a velha? Repetio machinalmente a palavra durante todo o dia, mas não chegou a comprehendel-a. Estando um dia á janella da casa mal assombrada, cinco ou seis raparigas de Ancresse foram banhar-se, por pagode na angra de Houmet Paradis. Brincavam ingenuamente na agua, a cem passos delle. Gilliatt fechou violentamente a janella. Reparou então que uma mulher núa causava-lhe horror. III A CANÇÃO BONNY DUNDEE ACHA UM ECHO NA COLLINA Atraz do muro do jardim, em um angulo do muro coberto de azevinho e hera, empachado de ortigas, com um pé de malva sylvestre arborescente e um grande verbasco do mato que brotava do granito, passou Gilliatt quasi todo o verão. Ficava alli inexprimivelmente pensativo. As lagartixas que se iam acostumando a Gilliatt, aqueciam-se ao sol nas mesmas pedras. O verão foi luminoso e suave. Gilliatt tinha sobre a cabeça as nuvens que perpassavam no céo. Assentava-se na relva. Tudo estava cheio de um rumurejar de passaros. Punha a cabeça nas mãos e perguntava a si próprio: «Mas porque escreveu ella o meu nome na neve?» O vento do mar soprava ao longe grandes lufadas. De quando em quando, nas pedreiras longinquas de Vaudue, troava bruscamente a trombeta dos pedreiros, advertindo os passantes de que ia rebentar uma mina. Não se via o porto de Saint-Sampson; mas via-se a ponta dos mastros por cima das arvores. As gaivotas voavam esparsas. Gilliatt ouvira dizer a sua mãe que as mulheres podem amar os homens, e que isso acontecia algumas vezes. Lembrava-se, e respondia a si mesmo; «É isso. Comprehendo. Deruchette ama-me.» Sentia-se profundamente triste. Dizia elle: «Mas tambem ella pensa em mim; faz bem.» Pensava em que Deruchette era rica, e elle pobre. Pensava que o vapor era uma invenção execravel. Não podia lembrar nunca em que dia do mez estava. Contemplava vagamente os grandes zangãos negros, de lombo amarello e azas curtas, que penetram zumbindo nos buracos das paredes. Deruchette recolhia-se uma noite ao quarto. Approximou-se da janella para fechal-a. A noite estava escura. De repente, Deruchette applicou o ouvido. Havia uma musica no meio daquella noite profundo. Alguem que provavelmente estava na vertente da collina, ou ao pé das torres do castello do Valle, ou talvez mais longe, executava uma canção n'um instrumento. Deruchette raconheceu a sua melodia favorita _Bonny Dundee_ tocada em bug-pipe. Não comprehendeu nada. Desde então, ouvio ella muitas vezes a mesma cousa, á mesma hora, especialmente nas noites escuras. Deruchette não gostava muito daquillo. IV Pour l'oncle et le tuteur, bons hommes taciturnes, Les sérénades sont des tapages nocturnes. (_Verso de uma comedia inedita._) Passaram quatro annos. Deruchette approximava-se dos vinte e um annos e conservava-se solteira. Já alguem escreveu algures:--Uma idéa fixa é uma veruma. Vai-se enterrando de anno para anno. Para extirpal-a no primeiro anno é preciso arrancar os cabellos; no segundo rasga-se a pelle; no terceiro anno quebra o osso; no quarto sahem os miolos. Gilliatt estava no quatro anno. Não tinha trocado uma só palavra com Deruchette. Pensava nella; era tudo. Aconteceu-lhe uma vez, estando por acaso em Saint-Sampson, ver Deruchette conversando com mess Lethierry diante da porta da casa que dava para a calçada do porto. Gilliatt arriscou-se a approximar-se della. Cuidava estar certo de que sorrira quando elle passou. Não era cousa impossivel. Deruchette continuava a ouvir de tempos em tempos o bug-pipe. Tambem mess Lethierry ouvia o bug-pipe, e notou a persistencia desta musica perto da janella de Deruchette. Musica terna, circumstancia aggravante. Não lhe agradavam namorados nocturnos. Queria casar Deruchette com dia claro, quando ella e elle quizessem, e simplesmente, sem romance e sem musica. Exasperado, procurou descobrir o amador e pareceu-lhe entrever Gilliatt. Metteu as unhas na barba em signal de colera, e disse: por que motivo vem aquelle animal samphonear-me á porta? Ama Deruchette, é claro. Perdes o tempo. Quem quizer Deruchette deve vir fallar-me, e sem musica. Previsto desde muito, veio a realisar-se um acontecimento importante. Annunciou-se que o reverendo Jacquemin Herodes fôra nomeado delegado do bispo de Winchester, décano da ilha e cura de Saint-Pierre Port, e que partiria de Saint-Sampson logo depois de installar o seu successor. Estava a chegar o novo cura. Era elle gentleman de origem normanda, e chamava-se Joe Ebenezer Caudray. A respeito delle havia circumstancias que a benevolencia e a malevolencia commentavam em sentido inverso. Diziam qua era moço e pobre, mas a mocidade era temperada por muita doutrina, e a pobreza por muita esperança. Na lingua especial creada para a herança e a riqueza, a morte chama-se esperança. Era sobrinho e herdeiro do velho e opulento decano de Saint-Asaph. Morto este, ficava o outro rico. O Sr. Ebenezer de Caudray era bem aparentado; tinha quasi direito á qualidade de _honorable._ Quanto á sua doutrina, era julgada diversamente. Era anglicano, mas, segundo a expressão do bispo Tilleston, era _muito libertino_, isto é, muito severo. Repudiava o pharisaismo; ligava-se antes ao presbyterio que ao episcopado. Sonhava com a igreja primitiva, onde Adão tinha o direito de escolher Eva, e Frumentanus, bispo de Hieropolis, raptava uma moça para ser mulher delle, dizendo aos paes: _Ella quer e eu quero, já não sois nem pae nem mãe, eu sou o anjo de Hieropolis, e esta é minha esposa. O pae é Deos._ A dar credito aos boatos, o Sr. Ebenezer Caudray subordinava o texto: _Honrai pae e mãe_, ao texto, segundo elle superior: _A mulher é a carne do homem. A mulher deixará pae e mãe para acompanhar o marido._ Mas a final de contas, esta tendencia para circumscrever a autoridade paternal e favorecer religiosamente todos os modos de formar o vinculo conjugal, é propria a todo o protestantismo, particularmente na Inglaterra, e singularmente na America. V JUSTA VICTORIA É SEMPRE MALQUISTA Eis o balanço de mess Lethierry no tempo em que occorria isto. Durande comprio o que promettera. Mess Lethierry pagou as dividas, reparou os prejuizos, satisfez as letras de Bremen, fez face aos vencimentos de Saint-Malo. Exonerou a casa em que morava das hypothecas, comprou todas as rendas locaes inscriptas sobre a casa. Era possuidor de um grande capital productivo, a Durande. O rendimento liquido do navio era então de mil libras esterlinas e ia crescendo. A bem dizer, Durande era toda a fortuna delle. Era tambem a fortuna da terra. O transporte dos bois era dos que davam mais lucro; assim, para melhorar a arrumação a bordo, e facilitar a entrada e sahida do gado, supprimiram-se as malas e as faluas. Foi talvez imprudencia. A Durande veio a ter apenas a chalupa. É verdade que a chalupa era excellente. --Já havia dez annos que Rantaine tinha roubado mess Lethierry. A prosperidade da Durande tinha um lado fraco, é que não inspirava confiança; acreditava-se que era puro acaso. A situação de mess Lethierry era aceita como excepção. Dizia-se que elle fizera uma loucura feliz. Quiz alguem fazer o mesmo em Cowes, na ilha de Wight, e teve máo exito na tentativa. A tentativa arruinou os accionistas. Dizia Lethierry: É que a machina foi mal construida. Mas os outros abanavam a testa. As novidades tem contra si o odio de todos; o menor erro compromette-as. Consultado ácerca de um negocio de vapores, disse o banqueiro Jauge, de Paris, um dos oraculos commerciaes do archipelago normando: _É uma conversão o que me propondes. Conversão de dinheiro em fumo._ Entretanto os navios de vela achavam sempre quantas commanditas fossem precisas. Os capitães teimavam em estar do lado da lona contra a caldeira. Em Guernesey a Durande era um facto, mas o vapor não era um principio. Tal era a pertinacia da negação diante do progresso. Dizia-se de Lethierry: _Fez cousa boa, mas não ha de metter-se em outra._ Longe de animar, o exemplo delle causava medo. Ninguem ousaria arriscar segunda Durande. VI FORTUNA DOS NAUFRAGOS ENCONTRANDO A CHALUPA Cedo annuncia-se o equinoxio na Mancha. É um mar estreito, tolhe o vento e irrita-o. Desde Fevereiro começam ali os ventos do Oeste saccudindo as aguas em todos os sentidos. A navegação torna-se inquieta; a gente da costa contempla o mastro de signal; a todos preocupam os navios que podem estar em perigo. O mar apparece como uma emboscada; invisivel clarim trôa para uma estranha guerra. Longas e furiosas lufadas abalam o horizonte; é terrivel o vento. A sombra silva e sopra. Na profundeza das nuvens o rosto negro da tempestade entumece as bochechas. O vento é um perigo; o nevoeiro outro. Os nevoeiros causam sempre medo aos navegadores. Ha nevoeiros que trazem suspensos prismas microscopicos de gelo, aos quaes Mariotti attribue as auréolas, os parhelios e os paraselenes. Os nevoeiros tempestuosos são compositos; vapores diversos de peso especifico desigual combinam-se com o vapor da agua e superpõem-se em uma ordem que devide a bruma em zonas e faz do nevoeiro uma verdadeira formação. Em baixo fica o iodo, acima do iodo o enxofre, acima do enxofre o bromo, acima do bromo o phosphoro. Isto, em certa proporção, deduzindo a tensão electrica e magnetica, explica muitos phenomenos, o santelmo de Colombo e de Magalhães, as estrellas volantes de que falla Seneca, as duas chammas, Castor e Pollux, de que falla Plutarcho, a legião romana que a Cesar pareceu ver arderem os dardos, a lança do castello do Duino no Frioul, que a sentinella acendia tocando com o ferro da sua lança, e talvez mesmo as fulgurações que os antigos chamavam relampagos terrestres de Saturno. No equador, immensa bruma permanente parece cingir o globo, é o _Cloud-ring_, annel de nuvens. O Cloud-ring resfria o tropico, do mesmo modo que o Gulf-Stream aquece o polo. Debaixo do Cloud-ring o nevoeiro é fatal. São essas as latitudes dos cavallos, _Horse latitude_; os navegadores dos ultimos seculos quando passavam ali atiravam os cavallos ao mar, em occasião de temporal para alijar o navio, em tempo de calma para economisar a agua. Dizia Colombo: _Nube abaxo es muerte._ «Nuvem baixa, morte certa.» Os Etruscos, que são para a metereologia o que os Chaldeos são para a astronomia, tinham dous pontificados--o pontificado do trovão e o pontificado da nuvem: uns observavam o relampago, outros o nevoeiro. O collegio dos augures de Tarquinas era consultado pelos Tyrios, Phenicios e Pelasgios, e de todos os navegadores primitivos da antiga Marinterne. O modo de geração das tempestades era entrevisto; ligava-se intimamente ao modo de geração dos nevoeiros, e a bem dizer, é o mesmo phenomeno. Existem no mesmo oceano tres regiões de brumas, uma equatorial, duas polares; os marinheiros dão-lhe um só nome--_le pot au noir._ Em todas as paragens, e sobretudo na Mancha, os nevoeiros de equinoxio são mui perigosos. Fazem anoitecer de subito. Um dos perigos do nevoeiro, mesmo quando não é muito cerrado, é impedir que se reconheça a mudança de fundo pela mudança da côr da agua resulta daqui ficarem dissimulados os cachopos e parceis. O navegador approxima-se de um escolho sem ser advertido. Muitas vezes os nevoeiros não deixam ao navio em marcha outro recurso que não seja pôr-se á capa ou ancorar. Ha tantos naufragios causados pelo nevoeiro como pelo vento. Entretanto após uma violentissima borrasca que succedeu a um dia de nevoeiro, a chalupa _Cashmere_ chegou perfeitamente da Inglaterra. Entrou em Saint-Pierre Port aos primeiros raios dos dia no momento em que o castello Cornet salvava o sol com um tiro. Illuminava-se o horisonte. A chalupa _Cashmere_ era esperada como devendo trazer o novo cura de Saint-Sampson. Pouco depois de chegar a chalupa espalhou-se o boato de que encontrara á noite no mar outra chalupa com uma equipagem naufragada. VII BOA FORTUNA DE APPARECER A TEMPO Naquella noite Gilliatt, quando o vento amainou, sahio a pescar, sem affastar-se muito da costa. Na volta, estando a maré a encher, pelas duas horas da tarde, e fazendo um sol esplendido, quando Gilliatt passou por diante da Corne de la Bette para entrar na angra, em que ficava a _pança_, pareceu-lhe ver na projecção da cadeira Gild-Holm'Ur uma sombra que não era a do rochedo. Deixou a _pança_ chegar até alli, e reconheceu que um homem estava assentado na cadeira Gild-Holm'Ur. O mar já estava alto, a rocha estava cercada pela agua, não era possivel ao homem voltar para terra. Gilliatt gesticulou para o homem, o homem ficou immovel. Gilliatt approximou-se. O homem estava adormecido. Tinha elle vestuario preto. Parece padre, pensou Gilliatt. Approximou-se ainda mais e vio um rosto de adolescente. Não conheceu quem era. A rocha felizmente era a pique; havia muito fundo; Gilliatt costeou a muralha. A maré levantava a barca quanto bastava para que Gilliatt pondo-se de pé, sobre a _pança_, pudesse tocar os pés do homem. Gilliatt levantou-se sobre a borda e ergueu os braços. Se cahisse naquelle momento, é duvidoso que tornasse a apparecer. A vaga batia entre a _pança_ e o rochedo era inevitavel ser esmagado. Gilliatt puchou o pé do homem adormecido. --Olá! que faz ahi? O homem acordou. --Estou olhando, disse elle. Depois acordando de todo, continuou: --Cheguei ha pouco á terra, vim passeiar aqui; passei a noite no mar, achei a vista bonita, estava cançado, adormeci. --Dez minutos mais, afogar-se-hia, disse Gilliatt. --Ah! --Salte para a barca. Gilliatt susteve a barca com o pé, pôz uma das mãos no rochedo, e estendeu a outra ao homem que pulou lestamente na barca. Era um bonito rapaz. Gilliatt tomou o leme; em dous minutos, a _pança_ chegou á angra da casa mal assombrada. O moço tinha chapéo redondo e gravata branca. Trazia abotoada até o pescoço a comprida sobrecasaca preta. Tinha cabellos louros, rosto feminino, olhar puro, ar grave. Entretanto a _pança_ tocou em terra. Gilliatt passou o cabo na argola da amarra, depois voltou-se, e vio a mão do moço que lhe apresentou um soberano de ouro. Gilliatt repellio docemente a mão. Houve um silencio. O moço fallou: --Salvou-me a vida, disse elle. --Talvez, respondeu Gilliatt. A _pança_ estava amarrada. Sahiram da barca. O moço continuou: Devo-lhe a vida, senhor. --Que importa isso? Esta resposta de Gilliatt foi acompanhada de novo silencio. --É desta parochia o senhor? perguntou o mancebo. --Não, respondeu Gilliatt. --De que parochia é então? Gilliatt levantou a mão direita, mostrou o céo e disse: --Daquella. O moço comprimentou e foi caminho. Depois de alguns passos voltou, metteu a mão no bolso, tirou um livro, e voltou-se para Gilliatt. --Consinta que lhe offereça isto. Gilliatt tomou o livro Era uma Biblia. Instantes depois, Gilliatt encostado ao parapeito, olhava para o moço que voltava o angulo do caminho que ia ter a Saint-Sampson. A pouco e pouco abateu a cabeça, esqueceu o mancebo, não soube mais se existia a cadeira Gild-Holm'Ur, e tudo desappareceu na immersão sem fundo o scismar. Gilliatt tinha um abysmo, Deruchette. Tirou-o daquelle abysmo uma voz que lhe gritou: --Olá, Gilliatt! Reconheceu a voz e ergueu os olhos. --Que ha, Sr. Landoys? Era com effeito o Sr. Landoys que passava na estrada a cem passos da casa, no seu phaeton, com um pequeno cavallo. Parou afim de chamar Gilliatt á falla, mas parecia atarefado e apressado: --Ha novidade, Gilliatt. --Onde? --Na casa de mess Lethierry. --O que ha? --Estou longe para lhe contar o caso. Gilliatt estremeceu. --Casa-se miss Deruchette? --Não. Mas ... --Que quer dizer? --Vá lá a casa delle, que ha de saber. E o Sr. Landoys chicoteou o cavallo. LIVRO QUINTO O revolver. I A PALESTRA NA POUSADA JOÃO O Sr. Clubin era o homem que espera a occasião. Era baixo e amarello, com a força de um touro. O mar não podia com elle. Tinha uma carne que parecia cera. Era da côr de uma tocha e tinha nos olhos uma luz discreta. A sua memoria tinha um quê de imperturbavel e especial. Vêr um homem uma vez era conserval-o como se fosse uma nota em um registro. O olhar laconico apunhalava. A palpebra tirava a prova de um rosto, e conservava-o; não importava que o rosto envelhecesse depois, o Sr. Clubin não deixava de reconhecel-o. Era impossivel fugir áquella memoria tenaz. O Sr. Clubin era breve, sóbrio, e frio; não fazia gesto algum. Tinha uns ares de candura que prendiam logo. Muitas pessoas acreditavam-n'o simplorio; trazia no rosto uma certa, ruga que indicava uma espantosa estupidez. Não havia melhor marinheiro do que elle. Não havia reputação de religiosidade e integridade maior que a sua. Quem o suspeitasse é que era suspeito. Travara amizade com o Sr. Rebuchet, cambista em S. Malo, rua de S. Vicente, ao lado do armeiro, e o Sr. Rebuchet costumava dizer que confiaria a sua fabrica a Clubin. O Sr. Clubin era viuvo. A mulher foi tão honesta como elle. Morreu com a fama de uma virtude invencivel. Se o bailio lhe fizesse uma declaração ella iria conta-lo ao rei, e se Nosso Senhor se apaixonasse por ella iria contal-o ao padre vigario. O casal Clubin realizou em Torteval o ideal do epitheto inglez _respectable._ A Sra. Clubin era o cysne; o Sr. Clubin era o arminho. Morreria se lhe puzessem uma nodoa. Nunca achou um alfinete que não fosse logo á cata do proprietario. Era capaz de pôr em almoeda uma caixa de phosphoros se acaso a tivesse achado na rua. Entrou uma vez em uma taberna em Saint-Servan e disse ao taberneiro: almocei aqui ha tres annos e você enganou-se na conta; e dizendo isto restituio ao taberneiro 75 centimos. Era uma grande probidade, mordendo attentamente os beiços. Parecia estar sempre á espera. De quem? Provavelmente dos velhacos. Todas as terças-feiras levava a Durande de Guernesey a S. Malo. Chegava a S. Malo na terça-feira á noite, demorava-se dous dias para fazer o carregamento, e voltava a Guernesey na sexta-feira de manhã. Havia então em S. Malo uma pequena hospedaria, situada no porto, que se chamava a pousada João. A construcção dos cáes actuaes fez demolir a pousada. Naquella época vinha o mar até a porta S. Vicente e a porta de Dinan; S. Malo e S. Servan communicavam-se nas marés baixas por meio de carrinhos que rolavam e circulavam entre os navios em secco, evitando as boias, as ancoras e os maçames, e arriscando-se às vezes a rasgar a coberta de couro em alguma verga baixa. No intervallo de duas marés, os cocheiros fustigavam os cavallos, naquella mesma arêa, onde, seis horas depois, vinha o vento chicotear as vagas. Na mesma praia andavam outr'ora os vinte e quatro cães, porteiros de S. Malo, que devoraram um official de marinha em 1770. Tamanho zelo fez suprimir os cães. Já não se ouve agora latidos nocturnos entre o pequeno e o grande Tallard. O Sr. Clubin ia á pousada João. Era alli o escriptorio francez da Durande. Os guardas da alfandega e os guardas da costa ião comer e beber na pousada João. Faziam rancho á parte. Os guardas da alfandega de Binic encontravam-se, vantajosamente para o serviço, com os guardas da alfandega de S. Malo. Também lá iam os mestres de navio, mas comiam em outra mesa. O Sr. Clubin assentava-se ora n'uma, ora n'outra, mas preferia a dos guardas á dos mestres. Era bem recebido em ambas. As mesas eram bem servidas. Haviam as mais apuradas bebidas estrangeiras para os maritimos expatriados. Um marinheiro gamenho de Bilbáo acharia alli um copo de _helada._ Bebia-se _stuol_ como em Greenwich, e _gueuse_, como em Anvers. Capitães de longo curso e armadores tomavam ás vezes lugar na mesa dos mestres de navio. Trocavam-se ahi noticias: --Como vai o assucar? --Pequenos lotes. Vende-se bem o assucar bruto; tres mil saccas de Bombay e quinhentas barricas de Sagua. --Ha de ver que o partido da direita ainda derruba o ministerio Villele. --E o anil? --Venderam-se apenas uns sete surrões de Guatemala. --A _Nanine Julie_ ancorou. Lindo navio de Bretanha. --As duas cidades do Rio da Prata estão outra vez desavindas. --Quando Montevidéo engorda, Buenos-Ayres emmagrece. --Foi preciso deitar ao mar a carga do _Regina Coeli_ condemnado em Calháo. --O cacáo vai andando; os saccos Caracas são cotados a 234, e os saccos Trindade a 73. --Parece que na revista do Campo de Marte ouvio-se gritar: abaixo os ministros. --Os couros salgados saladeros vendem-se, os dos bois a 60 frs. e o das vaccas a 48. --Já passaram o Balkan? O que faz Diebitsch? --Em S. Francisco ha falta de anisette. O azeite Plagniol está calmo. O queijo de Gruyére está a 32 frs. o quintal. --Com que então Leão XII morreu? --Etc., etc., etc. Todas estas cousas eram ditas e commentadas no meio de grande barulho. Á mesa dos guardas da alfandega e dos guardas da costa fallava-se menos. A policia das costas e dos portos quer menos sonoridade e menos clareza no dialogo. A mesa dos mestres de navio era presidida por um velho capitão de longo curso, o Sr. Gertrais-Gaboureau. Não era um homem, era um barometro. Os habitos do mar deram-lhe uma espantosa infallibilidade de prognostico. Elle decretava o tempo que devia haver no dia seguinte; ascultava o vento; tomava o pulso á maré. Dizia á nuvem; mostra-me a tua lingua. A lingua era o relampago. Era o doutor da vaga, da brisa e da lufada. O oceano era o seu doente; fez uma viagem á roda do mundo como quem faz uma clinica, examinando todos os climas na sua boa e má saude; sabia a fundo a pathologia das estações. Enunciava factos como este:--o barometro desceu uma vez em 1796 a tres linhas abaixo da tempestade. Era marinheiro por amor. Odiava a Inglaterra tanto quanto estimava o mar. Estudou cuidadosamente a marinha ingleza para conhecer os seus lados fracos. Explicava em que ponto o _Sovereign_ de 1637 differia do _Royal William_ de 1670 e de _Victory_ de 1755. Comparava os castellos de pôpa. Lamentava as torres no tombadilho e os cestos de gavea afunilados do _Great Harry_ de 1514, provavelmente no ponto de vista da bala franceza que se aninhava perfeitamente naquellas superficies. Para elle as nações só existião por suas instituições maritimas; fazia synonymias extravagantes. Chamava a Inglaterra _Trinity House_, a Escossia _Northern Commissioners_, e a Irlanda _Ballast Board._ Abundava de informações; era alphabeto e almanack. Sabia de cór a portagem dos pharoes, principalmente inglezes; um _penny_ por tonelada ao passar diante deste, um _farthing_ ao passar diante daquelle. Dizia: o pharol de _Smalt Rock_, que consumia apenas duzentos galões de azeite, consome agora quinhentos. Achando-se muito doente um dia, a bordo, a tripulação que já o tinha por defunto, estava á roda de sua maca, quando elle interrompeu os soluços da agonia para dar ao mestre carpinteiro uma ordem relativa a um concerto do navio. Era raro que o assumpto de conversa fosse sempre o mesmo na mesa dos capitães e na mesa dos guardas. Apresentou-se, porém, o seguinte caso nos primeiros dias do mez de Fevereiro, em que se passam os factos que estamos contando. A gallera _Tamaulipas_, capitão Zuela, vinda do Chile, e prestes a voltar, chamava a attenção das duas mesas. Na mesa dos mestres fallou-se do carregamento, e na mesa dos guardas fallou-se dos ares suspeitos do navio. O capitão Zuela, de Copiapó, era chileno, um pouco columbiano; tinha feito com independencia as guerras da independencia, acompanhando, ora Bulivar, ora Morillo, conforme os lucros a haver. Tinha-se enriquecido obsequiando a toda a gente. Não havia homem mais bourbonico, mais bonapartista, mais absolutista, mais liberal, mais atheu e mais catholico. Elle pertencia a este grande partido que se póde chamar o partido Lucrativo. De tempos a tempos fazia apparições commerciaes em França; e, a acreditar-se nos boatos, dava passagem a bordo aos fugitivos, bancarroteiros ou proscriptos politicos, fossem quem fossem, com tanto que pagassem. O meio de embarcal-os era simples. O fugitivo esperava n'um ponto deserto da costa, e no momento de apparelhar, Zuela destacava um escaler que ia buscal-o. Foi deste modo que na sua precedente viagem fez evadir um homem implicado no processo Berthon, e desta vez contava levar pessoas compromettidas na questão da Bidassoa. A policia, já avisada, estava com o olho n'elle. Era um tempo de fugas aquelle. A restauração era uma reacção; ora as revoluções trazem emigrações, e as restaurações arrastam proscripções. Durante os sete ou oito primeiros annos, depois da entrada dos Bourbons, espalhou-se o terror em tudo, nas finanças, na industria, no commercio, que sentiam tremer a terra e viam multiplicar-se as falencias. Havia um _salve-se quem puder_ na politica. Lavalette fugira; Lefebvre Desnouettes fugira; Delon fugira. Os tribunaes de excepção trabalhavam; depois veio Trestaillon. Fugia-se á ponte de Saumur, á explanada de Reole, ao muro do observatorio de Paris, á torre de Taurias d'Avignon, tudo isso que se conserva de pé na historia, vestigios da reacção, aonde se distingue ainda a sua mão sanguinolenta. Em Londres, o processo Thisthewood, ramificado em França, em Paris o processo Trogoff, ramificado na Belgica, na Suissa e na Italia, multiplicaram os motivos da inquietação e desapparecimento, e augmentaram essa profunda derrota subterranea, que deixava vasios os mais altos lugares da ordem social de então. Pôr-se em segurança, era a preoccupação universal. O espirito dos tribunaes prebostaes sobrevivera á instituição. As condemnações eram feitas por complacencia. Fugiam para o Texas, para o Perú, para o Mexico. Os homens da Loire, salteadores então, paladinos hoje, tinham fundado o campo de Asylo. Dizia uma canção de Beranger: _Sauvages, nous sommes français;_ _Prenez pitié de notre gloire._ Expatriar-se era o recurso; porém, nada menos simples que fugir; este monosyllabo encerra abysmos. Tudo é obstaculo para quem se esquiva. Fugir é disfarçar-se. Pessoas importantes, e até illustres, viram-se reduzidas aos expedientes dos malfeitores. E ainda assim sahiam-se mal. Eram inverosimeis. Os seus habitos de franqueza tornava-lhes difficil resvalar pelas malhas da evasão. Um gatuno fugitivo mostrava-se mais correcto aos olhos da policia do que um general. Imaginem a innocencia constrangida a disfarçar-se, a virtude contrafazendo a voz, a gloria mascarando o rosto. Algum individuo que passasse com ar suspeito, era uma reputação á cata de um passaporte falso. O ar embaraçado de um fugitivo, não provava que elle deixasse de ser um heróe. Traços fugazes e caracteristicos dos tempos, que a historia regular esquece, mas que o verdadeiro pintor de um seculo deve rememorar. Atraz dos homens honestos, fugiam os tratantes, menos vigiados, menos suspeitos. Um tratante obrigado a eclipsar-se aproveitava-se da confusão, fazia parte dos proscriptos, e muitas vezes, graças a uma arte apurada, parecia naquelle crepusculo mais honesto que o honesto. Que ha ahi mais acanhado que a probidade diante da justiça? Nada entende, nada finge. Um falsario escapa-se mais facilmente que um convencional. Cousa estranha! especialmente em relação aos tratantes, quasi se póde dizer, que a evasão fazia subir o individuo. A quantidade de civilisação que um velhaco levava de Paris ou de Londres valia-lhe por dote nos paizes primitivos ou barbaros, recommendava-o e fazia delle um iniciador. Era facil que um aventureiro, escapando ao codigo, chegasse depois ao sacerdocio. Havia phantasmagoria na desapparição, e mais de uma evasão tinha os resultados de um sonho. Uma fuga deste genero levava ao desconhecido e ao chimerico. Tal bancarroteiro sahia de Europa e apparecia mais tarde grão-visir em Mogol ou rei na Tasmania. Ajudar as evasões era uma industria, e, visto a frequencia do facto, uma industria lucrativa. Esta especulação completava certos generos de commercio. Quem queria fugir para Inglaterra dirigia-se aos contrabandistas quem queria fugir para a America dirigia-se aos trapaceiros de longo curso, taes como Zuela. II CLUBIN DESCOBRE ALGUEM Zuela ia comer algumas vezes á pousada João. O Sr. Clubin conhecia-o de vista. E o Sr. Clubin não era soberbo; não se desprezava conhecer de vista um tratante. Ás vezes chegava mesmo a conhecel-os de facto, dando-lhes a mão em plena rua. Fallava inglez com o smogler e engrolava hespanhol com o contrabandista. A este respeito tinha elle as seguintes maximas: --Póde-se adquirir o bem, pelo conhecimento do mal.--O monteiro conversa proveitosamente com o ladrão de caça.--O piloto deve sondar o pirata; o pirata é um escolho.--Trato de provar um velhaco como o medico prova o veneno. Não tinha replica. Todos davam razão ao capitão Clubin. Era approvado por não ter escrupulos tolos. Quem ousaria dizer mal delle? Tudo quanto fazia era _para bem do serviço._ Nelle tudo era simples. Nada podia compromettel-o. O crystal querendo manchar-se não pode. Esta confiança era a justa recompensa de uma longa honestidade e é essa a excellencia das reputações firmes. Fizesse o que fizesse o Sr. Clubin, todos lhe viam malicia no sentido da virtude; tinha adquirido a impecabilidade; e de mais a mais dizia-se que era muito esperto; deste ou daquelle encontro que com outra pessoa seria suspeito, a sua probidade sahia sempre com um relevo de habilidade. A fama de habilidade combinava-se harmoniosamente com a fama de ingenuidade, sem contradicção alguma. Ingenuo habil é cousa que existe. É uma das variedades do homem honesto e das mais apreciadas. O Sr. Clubin era desses homens que, encontrados em conversa intima com um larapio, ou um bandido, são recebidos, comprehendidos, e mais respeitados, e têm ainda por si o piscar de olhos satisfeito da estima publica. O _Tamaulipas_ tinha completado o carregamento. Estava proximo a partir e ia aparelhar. Em uma terça-feira á tarde, ainda com sol, chegou a Durande a Saint-Malo. O Sr. Clubin de pé no passadiço e dirigindo a manobra da entrada, descobriu perto de Petit Bey, na praia, entre dous rochedos, em um lugar muito solitario, dous homens conversando. Deitou-lhes o oculo e reconheceu um dos homens. Era o capitão Zuela. Parece que reconheceu tambem o outro. O outro era alto, um pouco grizalho. Trazia o chapéo largo e o vestuario grave dos Amigos. Era provavelmente um quaker. Baixava os olhos com modestia. Chegando á pousada João, o Sr. Clubin soube que o _Tamaulipas_ ia aparelhar dentro de 10 dias. Soube-se depois que elle tomara outras informações. Á noite, entrou em casa do armeiro da rua de S. Vicente, e disse-lhe: --Sabe o que é um revolver? --Sei, respondeu elle, é americano. --É uma pistolla que renova sempre a conversação. --Na verdade, ella tem pergunta e resposta. --E replica. --É justo, Sr. Clubin. O cano é gyrante. --E cinco ou seis balas. O armeiro levantou o cantinho do beiço e fez ouvir aquelle estalo de lingua, que, acompanhado de um movimento de cabeça, exprime a admiração. --A arma é boa, Sr. Clubin. Creia que ha de vir a ser universal. --Eu queria um revolver de seis tiros. --Não tenho desses. --Pois que, o Sr. não é armeiro? --Mas ainda não tenho disso. Bem vê que é cousa nova. Em França só se fazem pistolas. --Diabo! --É cousa que ainda não está no commercio. --Diabo! --Tenho pistolas excellentes. --Quero um revolver. --Convenho que é melhor. Mas, espere Sr. Clubin. --O que é? --Creio que ha um em Saint-Malo. --Revolver? --Sim. --Para vender? --Sim. --Onde? --Creio que sei. Hei de informar-me. --Quando me dá a resposta? --O revolver é bom. --Quando devo voltar? --Se eu lhe arranjo um revolver, é porque é bom. --Quando me dá a resposta? --Na sua primeira viagem. --Não diga que é para mim. III CLUBIN LEVA UNS OBJECTOS E NÃO OS TRAZ O Sr. Clubin fez o carregamento da Durande, embarcou o gado e alguns passageiros, e, como de costume, sahio de Saint Malo para Guernesey na sexta-feira de manhã. Nesse mesmo dia quando o navio já estava ao largo o que permitte ao capitão ausentar-se do tombadilho alguns momentos, Clubin entrou no seu camarote, fechou-se, pegou em um saco de viagem que tinha, metteu alguma roupa no compartimento elastico, biscoutos, latas de conserva, algumas libras de cacáo, um chronometro e um oculo no compartimento solido, e passou pelas argolas uma maroma preparada para içal-o se fosse preciso. Depois desceu ao porão, entrou no deposito dos cabos e viram-n'o subir com uma dessas cordas armadas de um gancho que servem aos calafates no mar e aos ladrões em terra. Essas cordas facilitam a escalada. Chegando a Guernesey, Clubin foi a Torteval. Passou ahi trinta e seis horas. Levou o saco e a corda, mas não voltou com elles. Diga-mol-o uma vez por todas, o Guernesey de que se trata neste livro é o antigo Guernesey que já não existe e seria impossivel achal-o hoje, a não ser no campo. É ahi que elle existe vivo, mas nas cidades morreu. A observação que fazemos a respeito de Guernesey deve ser feita a respeito de Jersey. St. Helier vale Dieppe; St. Pierre Port vale Lorient. Graças ao progresso, graças ao admiravel espirito de iniciativa daquelle valente povo insular, tranformou-se tudo em quarenta annos no archipelago da Mancha. Onde havia sombra ha luz. Dito isto, continuemos. Naquelles tempos que, pelo affastado, já são historicos, o contrabando activava-se no mar da Mancha. Abundavam os navios trapaceiros, principalmente na costa de oeste de Guernesey. As pessoas demasiado informadas e que sabem em todas as minucias o que se passava ha quasi meio seculo, chegam a citar os nomes de muitos desses navios quasi todos asturianos. O que é fora de duvida é que não se passava semana, sem que apparecesse um ou dous, ora na bahia dos Santos, ora em Plainmont. Parecia um serviço regular. Havia uma cava de mar em Serk que se chamava e ainda se chama a _loja_, porque era nessa gruta que a gente da terra ia comprar aos contrabandistas as suas mercadorias de importação. Para as necessidades desse commercio fallava-se na Mancha uma especie de lingua contrabandista, esquecida hoje, e que estava para o hespanhol como o levantino para o italiano. Em muitos pontos do littoral inglez e francez o contrabando estava em boa harmonia com o negocio licito. Entrava na casa de mais de um financeiro de alta classe, ás escondidas, é verdade; e dilatava-se subterraneamente na circulação commercial e por todas vias de industria. Negociante em publico, contrabandista ás escondidas, eis a historia de muitas fortunas. Seguin dizia isto de Bourguin. Bourguin dizia isto de Seguin. Não garantimos o dito de ambos. Talvez se calumniassem um ao outro. Fosse como fosse, o contrabando perseguido pela lei estava sem contestação muito aparentado no commercio. Carteava-se com a gema da sociedade. A caverna onde Maudrin acotovelava outr'ora o conde de Charolais, era honesta exteriormente e tinha uma fachada irreprehensivel para o lado da sociedade. Daqui resultaram muitas connivencias necessariamente mascaradas. Taes mysterios exigiam sombra impenetravel. Um contrabandista sabia de muitas cousas e devia guardar segredo; a sua lei era uma fé inviolavel e rigida. A primeira qualidade de um trapaceiro era a lealdade. Sem discrição não ha contrabando. Havia o segredo da fraude como ha o Segredo da confissão. Esse segredo era imperturbavelmente guardado. O contrabandista jurava não dizer nada e mantinha a sua palavra. Ninguem inspirava mais confiança do que um contrabandista. O juiz alcaide de Oyarzun apanhou um dia um contrabandista e poz-lhe a questão para obrigal-o a declarar quem era o seu caixa de fundos. O contrabandista não confessou quem era o caixa de fundos. O caixa de fundos era o juiz alcaide. Dos dous cumplices, juiz e contrabandista, o primeiro devia para cumprir a lei aos olhos de todos ordenar a tortura, á qual o segundo resistia para cumprir o juramento. Os dous mais famosos contrabandistas que andavam em Plainmont naquella época, eram Blasco e Blasquito. Eram tocayos. Parentesco hespanhol e catholico que consiste em ter o mesmo patrão no paraiso, cousa não menos digna de consideração que ter o mesmo pae na terra. Quem estava pouco mais ou menos ao facto do furtivo itinerario do contrabando e queria fallar a esses homens, era isso a cousa mais facil e mais difficil. Bastava não ter preconceitos nocturnos, ir a Plainmont, e affrontar o mysterioso ponto de interrogação que alli se levanta. IV PLAINMONT Plainmont, perto de Torteval, é um dos tres angulos de Guernesey. Ha, na extremidade do cabo, uma corôa de relva que domina o mar. O cume é deserto. Tanto mais deserto quanto ha alli uma casa. Aquella casa augmenta o horror da solidão. Dizem que é mal assombrada. Assombrada ou não, o aspecto é medonho. É feita de granito, tem um só andar, e está no meio da relva. Não tem aspecto de ruina. É perfeitamente habitavel. As paredes são grossas e o tecto solido. Não falta uma só pedra ás paredes, nem uma só telha ao telhado. Tem uma chaminé de tijolo. A casa está de costas para o mar. A fachada do lado do mar é apenas uma parede. Examinando bem essa parede vê-se uma janella murada. Ha tres trapeiras, uma a leste, duas a oeste, muradas todas. A frente da casa tem uma só porta e janellas. A porta é murada e as duas janellas de baixo tambem. No primeiro andar, e é isso que espanta logo ao principio, ha duas janellas abertas; mas as janellas tapadas são menos assustadoras que as janellas abertas. Por estarem abertas, apparecem negras em pleno dia. Não tem vidros nem caixilhos. Abrem para as trevas do interior. Dissera-se umas orbitas vasias de olhos arrancados. Nada ha naquella casa. Vê-se pelas janellas abertas o descalabro de dentro. Nem retabulos, nem entalhos de madeira, pedra núa. Parece um sepulchro com janellas para deixar que os espectros olhem para fóra. As chuvas alluem os alicerces do lado do mar. Algumas ortigas agitadas pelo vento beijam a barra das paredes. No horisonte, nenhuma habitação humana. Aquella casa é uma cousa vasia e silenciosa. Mas quem pára e põe o ouvido á parede ouve confusamente um bater de azas assustadas. Por cima da porta tapada, na pedra que faz a architrava, estão gravadas estas letras; ELM--PBILG, e esta data 1780. De noite o luar lugubre penetra na casa. Todo o mar está em roda da casa. A situação é magnifica, e por consequencia, sinistra. A belleza do lugar torna-se um enigma. Por que motivo aquella casa não é habitada por nenhuma familia humana? O lugar é bonito, a casa é boa. Donde procede esse abandono? Ás perguntas da razão ajuntam-se as perguntas da superstição. O campo é cultivavel, por que motivo está inculto? Não ha dono. A porta murada. Que tem pois este lugar? porque foge o homem? que se faz aqui? Se não ha nada, porque é que não ha ninguem? Quando todos dormem ha alguem acordado? A lufada tenebrosa, o vento, as aves de rapina, os animaes escondidos, os entes ignorados, apparecem ao pensamento e misturam-se aquella casa. A que passageiros serve ella de hospedaria? a gente imagina trevas de graniso e de chuva mettendo-se pela janella dentro. Ha na parte interior uns vagos signaes de chuva que gotejou: Os quartos fechados e abertos são visitados pelo furacão. Commetter-se-hia algum crime alli? Parece que aquella casa, á noite, entregue ás trevas, deve chamar por soccorro. Será muda? Sahem vozes de dentro? Que faz ella na solidão? O mysterio das horas negras existe alli facilmente. A casa assusta ao meio dia: que será ella á meia noite? Contemplando-a, contempla-se um segredo. Pergunta-se,--porque a superstição tem a sua logica e o possivel a sua inclinação,--o que será aquella casa entre o crepusculo da noite e o crepusculo da manhã. A immensa dispersão da vida extra-humana tem acaso naquelle cume deserto um vinculo em que ella pára, e que a obriga a fazer-se visivel e a descer? O esparso vai redomoinhar alli? o impalpavel vai alli condensar-se? Enigmas. Sahe daquellas pedras o horror sagrado. A treva que está nesses quartos defesos é mais do que treva; é o desconhecido. Depois do sol posto voltam barcos de pescadores para terra, calam-se os passaros, o cabreiro que está atraz do rochedo vai-se com as suas cabras, as fendas das pedras darão passagem aos reptis mais animados, as estrellas começarão a olhar, soprará o vento, far-se-ha plena escuridão, as duas janellas estarão alli escancaradas. Abrem-se para o sonho; e é por apparições, larvas, phantasmas mal distinctos, sombras cobrindo luzes, mystenosos tumultos de almas e espectros, que a crença popular, estupida e profunda, traduz as sombrias intimidades daquella casa com a noite. A casa é mal assombrada, esta palavra explica tudo. Os espiritos credulos dão a sua explicação; mas os espiritos positivos dão outra. Nada mais simples do que essa casa, dizem elles. É um antigo posto de observação, do tempo das guerras da revolução e do imperio, e dos contrabandos. Foi construida para isso. Acabada a guerra, foi abandonado o posto. Não se demolio a casa por que pode tornar-se util. Taparam-se as portas e as janellas do rez do chão contra os stercorarios humanos, e para que ninguem podesse entrar; taparam-se as janellas do lado do mar, por causa do vento do sul e do vento de oeste. Eis tudo. Os ignorantes e os credulos insistem. Em primeiro lugar a casa não foi construida no tempo das guerras da revolução. Traz a data de 1780, anterior á revolução. Depois, não foi construida para ser posto; tem as letras ELM-PBILG que são o duplo monogramma de duas familias, e que indicam, segundo o uso, que a casa foi construida para algum joven casal. Portanto foi habitada. Porque não o é agora? Se se tapou a porta e as janellas para que ninguem entrasse, porque motivo deixaram-se abertas duas janellas? Deviam tapar tudo ou nada. Porque não ha vidros nem caixilhos, nem postigos? Porque fecha-las de um lado, sem fecha-las de outro? A chuva não entra pelo sul, mas entra pelo norte. Os credulos não têm razão, e certo; mas os positivos também não a tem. O problema persiste. O que é certo é que a casa, dizem ter sido mais util que nociva aos contrabandistas. Quando o medo cresce os factos perdem a verdadeira proporção. Não ha duvida que muitos phenomenos nocturnos, entre aquelles de que a pouco e pouco se compoz o _assombramento_ da casa, poderia explicar-se por presenças fugitivas e obscuras, curtas estações de homens logo embarcados, já pelas precauções, já pela ousadia de certos commerciantes suspeitos, escondendo-se para fazer mal, e deixando-se entrever para causar medo. Naquella época já remota, muitas audacias eram possiveis. A policia, sobretudo, nos lugares pequenos, não era o que é hoje. Ajunte-se a isto que se a casa era commoda aos contrabandistas, as suas entrevistas alli deviam ser francas, exactamente porque a casa era mal vista. O ser mal vista impedia que fosse denunciada. Ninguem pede á policia soccorro contra os espectros. Os supersticiosos persignam-se, mas não fazem processos. Vêem ou acreditam vêr, fogem e calam. Existe uma convivencia tacita involuntaria, mas real, entre os que fazem medo e os que tem medo. Os assustados sentem que fizeram mal em se assustarem, imaginam ter sorprehendido um segredo, receiam aggravar a posição mysteriosa para elles, e enfadar as apparições. Isto fal-os discretos. E ainda fóra deste calculo, o instincto dos credulos é o silencio; o medo é mudo; os atterrorisados fallam pouco; parece que o horror diz: _silencio!_ Devem recordar-se que isto remonta á época em que os camponezes guernesianos acreditavam que o mysterio do presepio era repetido todos os annos pelos bois e pelos asnos; época em que ninguem, na noite de Natal, ousaria penetrar em uma estrebaria com receio de encontrar os animaes ajoelhados. Se se deve acreditar nas legendas locaes e narrativas dos camponezes a superstição chegou a suspender nas paredes da casa de Plainmont, em pregos de que ainda existem vestigios, ratos sem pés, morcegos sem azas, arcabouços de animaes mortos, sapos esmagados entre as paginas de uma Biblia, febras de tremoços amarellos, estranhos ex-voto pendurados por viandantes imprudentes que acreditavam ver alguma cousa, e por meio desses presente contavam obter perdão e conjurar o máo humor das stryges, das larvas e dos duendes. Houve sempre quem acreditasse em congressos de feitiçaria, e alguns desses credulos altamente collocados. Cesar consultava Sagana, e Napoleão mademoiselle Lenormand. Ha consciencias tão inquietas que chegam a procurar indulgencias de diabo. _Faça-o Deos, mas não o desfaça Satanaz_, era uma das orações de Carlos V. Ha espiritos mais timoratos ainda. Esses chegam a persuadir-se de que o mal pode ter razão contra elles. Ser irreprehensivel para com o demonio é uma das suas preoccupações. Dahi vem as praticas religiosas voltadas para a immensa malicia obscura. É uma carolice como qual quer outra. Os crimes contra o demonio existe ein certas imaginações doentias; violar a lei do inimigo é uma cousa que faz soffrer os estranhos casuitas da ignorancia; ha escrupulos para com as regiões das trevas. Crer na efficacia da devoção aos mysterios do Brocken e de Armuyr, imaginar que se pecca contra o inferno recorrendo a penitencias chimericas por infracções chimericas, confessar a verdade ao espirito da mentira, fazer o _mea culpa_ diante do pai da Culpa, confessar-se em sentido inverso, tudo isto existe ou existio. Os processos de magia provam-no em cada uma de suas paginas. Vai até esse ponto o sonho humano. Quando o homem começa a assustar-se não pára mais. Sonha culpas imaginarias, sonha purificações imaginarias, e faz limpar a sua consciencia com a vassoura das feiticeiras. Fosse como fosse, se aquella casa teve aventuras, é cousa que lá ficou; pondo de parte alguns acasos e algumas excepções, ninguem subio a ver o que era; a casa ficou só; ninguem gosta de arriscar-se aos encontros infernaes. Graças ao terror que a cerca e affasta dalli todo aquelle que pudesse observar e testemunhar, facil foi em todos os tempos entrar de noite naquella casa por meio de uma escada de corda ou simplesmente por meio da primeira tranqueira que se achasse nas hortas visinhas. Levava-se um rancho de viveres, o que dava lugar a esperar alli com toda a segurança a eventualidade de um embarque furtivo. Conta a tradição que ha 40 annos um fugitivo, dizem uns que da politica, outros que do commercio, lá esteve algum tempo escondido, e dalli embarcou n'um barco de pesca para Inglaterra. De Inglaterra é facil passar á America. A mesma tradição affirma que as provisões depositadas naquelle albergue lá se conservam sem que ninguem as toque, visto como Lucifer e os contrabandistas têm interesse em que a pessoa que lá as põem, vá buscal-as. Do lugar em que existe aquella casa, vê-se ao sudueste, a uma milha da costa, o escolho de Hanois. É celebre aquelle escolho. Fez todas as más acções que um rochedo pode fazer. Era um dos mais temiveis assassinos do mar. Esperava perfidamente os navios á noite. Entulhou os cemiterios de Torteval e de Rocquaine. Em 1862 pôz-se alli um pharol. Hoje o escolho de Hanois allumia a navegação que elle proprio extraviava outr'ora; a emboscada traz agora um archote na mão. Procura-se hoje como protector e guia o rochedo do qual fugia-se outr'ora como de um malfeitor. O escolho tranquilisa aquelles vastos espaços nocturnos onde outr'ora inspirava o medo. Assemelha-se a um salteador feito soldado de policia. Ha tres Hanois: o grande Hanois, o pequeno Hanois e a Mauve. No pequeno Hanois é que existe hoje o Light Red. O escolho faz parte de um grupo de picos, uns submarinhos, outros acima d'agua. Domina-os. Como se fôra uma fortaleza, tem baterias avançadas; do lado do mar alto, um cordão de treze rochas; ao norte dous cachopos, Hautes-Fourquies e Aiguillons, e um banco d'arêa; Heronée; ao sul tres rochedos, Cat-Rock, Percée e Roque-Herpin; depois a South Boue e a Boue Mouet, e além disso em frente de Plainmont, á flor d'agua o Tas de Pois d'Aval. Atravessar a nado o estreito de Hanois a Plainmont é cousa incommoda, mas não impossivel. O leitor lembra-se que era essa uma das proezas do Sr. Clubin. O nadador que conhece os baixios tem duas estações em que pode descançar, a Roque redonda, e mais longe obliquando um pouco á esquerda, a Roque vermelha. V OS FURTA-NINHOS Pouco mais ou menos naquelle dia de sabbado em que o Sr. Clubin esteve em Torteval, deu-se um facto singular, pouco assoalhado em principio e que só transpirou muito depois. Como dissemos, ha muitas cousas que ficam desconhecidas, mesmo por causa do medo que inspira ás suas proprias testemunhas. Na noite de sabbado ao domingo, (precisamos o dia e cremol-o exacto) tres meninos escalaram o rochedo de Plainmont. Voltavam á villa. Vinham do mar. Eram o que na lingua local chamam _deniquoi-oiseaux_; lêa-se _deniche-oiseaux_ (furta-ninhos). Onde quer que haja penhascos na praia e fendas de rochedos acima do mar ha furta-ninhos em abundancia. Já fallamos delles. O leitor lembra-se que Gilliatt preoccupava-se com isto, por causa dos passaros e por causa das crianças. Os furta-ninhos, são especies de _gaiatos_ do occeano, pouco timidos. A noite era escura. Espessas superposições de nuvens escondiam o zenith. Tres horas da manhã soavam no sino de Torteval que é redondo e pontudo, semelhante a um chapéo de magico. Porque voltavam tão tarde aquelles pequenos? Nada mais simples. Tinham ido á caça dos ninhos de cotovias no Tas de Pois d'Aval. Como a estação tinha sido amena, começaram cedo os amores dos passaros. Os pequenos, espreitando os machos e as femeas á roda dos ninhos, e distrahidos pela tenacidade da empreza tinham esquecido as horas. Foram cercados pela maré. Não poderam voltar a tempo para a canoa e tiveram de esperar que o mar se retirasse, assentados em uma das pontas do Tas de Pois. Tal foi o motivo da volta nocturna. Estas voltas são esperadas sempre pela febril inquietação das mães que, uma vez tranquillas, manifestam a alegria por meio da colera, e lacrimosas dissipam o terror a cachações. Por isso os pequenos apressavam-se, mas iam assustados. Apressavam-se, mas de boa vontade se demorariam, era um certo desejo de não chegar nunca. Tinham em perspectiva um beijo complicado de sopapo. Só um dos meninos nada receiava; era um orphão. Era francez e ia bem contente de não ter naquelle dia nem pae nem mãe. Não tendo ninguem que se interessasse por elle, escapava á bordoada. Os outros dous eram guernezianos e da parochia de Torteval. Escaladas as rochas, os tres furta-ninhos, chegaram á planura onde estava a casa mal assombrada. Começaram por ter medo, dever de todo o viandante, sobretudo crianças, aquella hora e naquelle lugar. Quizeram fugir e quizeram parar afim de contemplar a casa. Pararam. Contemplaram a casa. Era negra e formidavel. Era, naquelle deserto, um montão escuro, uma escrescencia symetrica e hedionda, uma alta massa quadrada de angulos rectilinios, uma cousa semelhante a um enorme altar de trevas. O primeiro pensamento dos meninos tinha sido fugir; o segundo foi approximar-se. Nunca tinham visto aquella casa áquella hora. A curiosidade de ter medo existe. Havia entre elles um francez, donde resultou que os pequenos approximaram-se da casa. É sabido que os francezes não acreditam em cousa alguma. Demais, quando são muitos todos se tranquillisam; o medo dividido por tres dá animação. E depois, eram curiosos; eram crianças, sommada a idade dos tres não dava trinta annos; era a idade de prescrutar, de escavar, esquadrinhar as cousas occultas; deve-se acaso parar no meio? Mette-se a cabeça neste buraco, porque não mette-la no outro? a caça arrasta; andar em uma descoberta é o mesmo que metter-se em um moinho. Ter olhado para o ninho dos passaros dá vontade de olhar um pouco para o ninho dos espectros. Investigar o inferno, porque não? De caça em caça, chega-se ao demonio. Depois dos pardáes os diabretes. Ha vontade de saber o que é esse medo inspirado pelos paes. Andar na pista dos contos de carocha é o que ha mais resvaladiço. Saber tanto como as contadeiras de historias é cousa que tenta. Todo este amalgama de idéas no estado de confusão e instincto, na cabeça dos rapazes, deu em resultado a temeridade delles. Caminharam para a casa. Demais, o pequeno que lhes servia de apoio nesta bravura, era digno disso. Era um rapaz resoluto, aprendiz de calafate, uma dessas crianças que já são homens, dormindo no estaleiro em cama de palha, ganhando a vida, tendo uma voz grossa, trepando ás arvores e ás paredes sem escrupulos a respeito das fructas que encontrava, tendo trabalhado em concertos de navios de guerra, filho do acaso e do bamburrio, orphão alegre, nascido em França, sem se saber em que ponto, duas razões para ser atrevido, dando sem reparar aos pobres, muito máo, muito bom, louro rastejando a ruivo, tendo já fallado aos parisienses. Agora ganhava um scheling por dia calafetando os barcos dos pescadores. Dando-lhe a veneta punha-se em férias e ia tirar os ninhos dos passaros. Tal era o francez. A solidão do lugar tinha um não sei quê de funebre. Sentia-se a inviolabilidade ameaçadora. Era medonho. Aquella planura silenciosa e nua escondia no precipicio a sua curva declive. Embaixo callava-se o mar. Não havia vento. As ervas não se mechiam. Os furta-ninhos avançavam de vagar com o francez á frente, contemplando a casa. Um delles contando depois o facto ou o pouco que lhe restava na memoria, acerescentava: a casa não dizia nada. Approximavam-se retendo a respiração, como quem se approxima de um animal feroz. Tinham subido o comoro que fica atraz da casa, e que vai ter a um pequeno isthmo de rochedos pouco praticavel; estavam perto da casa; mas viam apenas a fachada do sul, que é toda murada; não tinham ousado voltar á esquerda, o que os teria exposto a ver a outra fachada em queha apenas duas janellas, o que é terrivel. Entretanto atreveram-se, por que o aprendiz de callafate disse-lhes baixinho: viremos de bombordo; daquelle lado é que é bonito; é preciso ver ás duas janellas negras. Viraram de bombordo e chegaram ao outro lado da casa. As duas janellas estavam illuminadas. Os meninos fugiram. Qando estavam longe, voltou-se o francez. --Olhem, disse elle, já não ha luz. Com effeito, não havia luz nas janellas. A casa desenhava-se na lividez diffusa do céo. O medo não se foi, mas a curiosidade voltou. Os furta-ninhos approximaram-se. De repente appareceram as luzes outra vez. Os dous rapazes de Torteval tornaram a pôr sebo ás canellas. O pequeno Satanaz francez, não avançou, mas não reccuou. Ficou immovel, em frente da casa, olhando para ella. Extinguio-se a luz, depois brilhou de novo. Nada mais horrivel. O reflexo fazia um vago rastilho de fogo na relva humida pelo orvalho. Em certo momento, o clarão desenhou na parede interior da casa grandes perfis negros que se mechiam e sombras de cabeças enormes. Demais, a casa não tinha tecto nem tabiques, e tendo apenas as quatro paredes e o telhado, uma janella não pode ser illuminada sem que a outra o seja. Vendo que o aprendiz de calafate ficava, os outros dous voltaram tremulos, curiosos. O aprendiz de calafate, disse-lhes baixinho:--Ha almas do outro mundo na casa. Vi o nariz de uma dellas.--Os dous pequenos agruparam-se atraz do francez, e levantando-se sobre a ponta dos pés, por cima do hombro, abrigados por elle, fazendo delle um escudo, oppondo-o á casa, tranquillisados por tel-o entre si e a visão, olharam tambem. A casa a seu turno parecia olhar para elles. Tinha naquella vasta obscuridade muda, duas orbitas vermelhas. Eram as janellas. A luz eclipsava-se, reapparecia, eclipsava-se ainda, como essas luzes costumam fazer. Estas intermittencias sinistras representavam provavelmente as alternativas do inferno. Abre-se, fecha-se. O respiradouro do sepulchro tem effeitos de lanterna surda. De repente uma escuridão opaca com forma humana levantou-se em uma das janellas, como se viesse de fora, depois mergulhou no interior da casa. Parece que alguem chegava. Entrar pela janella era o habito dos visitantes. O clarão appareceu um momento mais vivo, depois apagou-se e não reappareceu mais. A casa tornou-se escura. Então ouviram-se rumores. Esses rumores pareciam vozes. É sempre assim. Quando se vê, não se ouve; quando não se vê, ouve-se. O mar tem á noite uma taciturnidade particular. O silencio da sombra é ahi mais profundo que em qualquer outra parte. Quando não ha nem vento nem marulho, naquella agitada extensão de aguas, onde de ordinario não se ouvem as aguias voar, ouvir-se-hia voar uma mosca. Aquella paz sepulchral dava um relevo lugubre aos rumores que sahiam da casa. --Vejamos, disse o francez. --E deu um passo para a casa. Os outros dous tinham tal medo que decidiram-se a acompanhal-o. Não ousavam fugir sós. Acabavam de passar um grande montão de lenha que, sem que o saibamos, os animava naquella solidão, quando de uma mouta voou uma coruja. As corujas tem uns vôos tortos, de assustadora obliquidade. Aquella passou de travez pelos rapazes, fixando nelles os olhos claros no meio da treva. Houve um certo estremecimento no grupo atraz do francez. O francez clamou contra a coruja. --Tarde vens, coruja. Já não é tempo. Quero ver. E avançou. O ranger dos seus sapatos grossos e ferrados não lhes impedia ouvir os rumores da casa que se elevavam e baixavam, com a accentuação calma e a continuidade de um dialogo. Momentos depois accrescentou o francez: --Demais, só os tolos podem crer em almas do outro mundo. A insolencia no perigo reune os retardados e impelle-os para a frente. Os dous rapazes de Torteval puzeram-se a caminho atraz do aprendiz de calafate. A casa mal assombrada fazia-lhes o effeito de crescer desmesuradamente. Nesta illusão de optica do medo, havia realidade. A casa crescia realmente por que elles approximavam-se della. Entretanto, as vozes que estavam na casa tornavam-se mais distinctas. Os rapazes ouviam. O ouvido tem os seus augmentos. Não era murmurio, era mais que um cochichar, menos que um alarido. De quando em quando destacava-se uma ou duas palavras claramente articuladas. Essas palavras, impossiveis de comprehender, soavam estranhamente. Os rapazes paravam, ouviam e depois continuavam a andar. --É a conversa das almas do outro mundo, mas eu não creio em almas do outro mundo, disse o aprendiz de calafate. Os pequenos de Torteval tinham vontade de esconder-se atraz da lenha; mas já estavam longe, e o amigo francez continuava a andar para a casa. Temiam ir com elle, e não ousavam deixal-o. Acompanhavam-n'o, a passo e passo e perplexos. O aprendiz de calafate voltou-se para elles e disse-lhes: --Bem sabem que não é verdade. Não existe nenhuma. A casa tornava-se cada vez mais alta. Approximavam-se. Approximando-se, reconheciam que havia na casa uma luz abafada. Era um clarão vago, um desses effeitos de lanterna surda, indicados ha pouco, e que abundam na illuminação das feitiçarias. Quando se acharam ao pé da casa pararam de todo. Um dos rapazes de Torteval arriscou esta observação: --Não são almas do outro mundo, são fantasmas. --Que é aquillo que pende alli á janella? perguntou o outro. --Parece uma corda. --É uma serpente. --É corda de enforcado, disse o francez com autoridade. Serve-lhes. Mas eu não creio. E mais em tres pulos que em tres passos, o francez estava ao pé da parede da casa. Havia febre naquelle atrevimento. Os outros, tremulos, imitaram-n'o, e foram collocar-se ao pé delle, encostando-se um á direita, outro á esquerda. Os rapazes applicaram o ouvido á parede. Continuava-se a fallar dentro de casa. Eis o que diziam os phantasmas: [1] --Assim pois, está entendido? --Entendido. --Dito? --Dito. --Aqui esperará nm homem e partirá depois para a America com Blasquito? --Pagando. --Pagando. --Blasquito tomará o homem na barca. --Sem indagar de que terra elle é? --Não temos nada com isso. --Sem lhe perguntar o nome? --Não se pede o nome, pede-se a bolsa. --Bem. O homem esperará nesta casa. --Tendo que comer. --Terá. --Onde? --Neste sacco que trago. --Muito bem. --Posso deixar o sacco aqui? --Os contrabandistas não são ladrões. --E os senhores quando vão? --Amanhã de manhã. Se o seu homem está prompto poderá vir comnosco. --Não está prompto. --É lá com elle. --Quantos dias esperará aqui? --Dous, tres, quatro, dias. Mais ou menos. --É certo que Blasquito virá? --Certo. --Aqui? a Plainmont. --A Plainmont: --Em que semana? --Na proxima. --Em que dia? --Sexta, sabbado ou domingo. --Não pode faltar? --É meu tocayo. --Virá com qualquer tempo? --Qualquer. Não tem medo. Eu sou Blasco, elle é Blasquito. --Assim não deixará de ir a Guernesey? --Eu venho n'um mez, elle virá n'outro. --Entendo. --A contar de sabbado proximo, de hoje a oito dias, não se passará cinco dias sem que venha Blasquito. --Mas se o mar estiver muito máo? --Máo tempo? --Sim. --Não virá tão depressa, mas virá. --Donde virá? --De Bilbao. --Para onde irá? --Para Portland. --Bem. --Ou para Tor Bay. --Melhor. --O seu homem póde ficar tranquillo. --Blasquito não será traidor? --Os covardes são traidores. Somos valentes. O mar é a igreja do inverno. A traição é a igreja do inferno. --Ninguem nos ouve? --É impossivel ouvir-nos ou ver-nos. O medo faz isto deserto. --Sei. --Quem se atreveria a escutar? --É verdade. --Mesmo que escutassem não poderiam entender. Fallamos uma lingua que ninguem conhece. Desde que você a sabe, é dos nossos. --Eu vim para arranjarmos os negocios. --Bom. --E agora vou-me embora. --Pois sim. --Diga-me cá, homem. Se o passageiro quizer que Blasquito vá a outro lugar que não Portland ou Tor Bay? --Traga onças. --Blasquito fará o que o homem quizer? --Blasquito fará o que as onças quizerem. --É preciso muito tempo para ir a Tor Bay? --Depende do vento. --Oito horas? --Mais ou menos. --Blasquito obedecerá ao passageiro? --Se o mar obedecer ao Blasquito. --Ha de ser bem pago. --Ouro é ouro. Vento é vento. --É justo. --O homem faz o que pode com o ouro. Deos com o vento faz o que quer. --O homem que quer ir com Blasquito aqui virá sexta-feira. --Bem. --A que horas chega Blasquito. --Á noite. Chega-se á noite, sahe-se á noite. Temos uma mulher que se chama agua salgada, e uma irmã que se chama noite. A mulher pode enganar, a irmã nunca. --Está dito tudo. Adeos, homens. --Boas tardes. Um gole de aguardente? --Obrigado. --É melhor que xarope. --Tenho a sua palavra. --O meu nome é Pundonor. --Deos seja comvosco. --Se é fidalgo, eu sou cavalheiro. Era claro que só diabos podiam fallar assim. Os rapazes não ouviram mais, e desta vez fugiram deveras, até o francez, que convencido então, corria mais depressa que os outros. Na seguinte terça-feira, o Sr. Clubin estava de volta a Saint-Malo trazendo a Durande. O _Tamaulipas_ continuava ancorado. O Sr. Clubin, entre duas baforadas de fumo, perguntou ao dono da pousada João: --Então, quando sahe o _Tamaulipas?_ --Depois de amanhã, quinta-feira, respondeu o estalajadeiro. Nessa noite, Clubin ceou á mesa dos guardas das costas, e, contra o costume, sahio logo depois de cear. Resultou desta sahida que não pôde estar presente no escriptorio da Durande, e faltou ao carregamento. Foi isto reparado por ser elle um homem tão exacto. Parece que elle conversou alguns instantes com o seu amigo cambista. Voltou duas horas depois que Noguette tocou a recolher. O sino brasileiro sôa ás dez horas. Era, pois, meia-noite. [1] No original vem este dialogo em hespanhol. VI A JACRESSARDE Ha quarenta annos Saint-Malo possuia uma viela chamada viela Coutanchez. Essa viela já não existe: foi comprehendida nos melhoramentos da cidade. Era uma dupla fileira de casas de páo inclinadas umas para as outras, e deixando no centro lugar sufficiente para correr um rego que se chamava rua. Andava-se alli com as pernas abertas dos dous lados da agua lamacenta, abalroando com a cabeça e o cotovello as casas da direita e da esquerda. As velhas choupanas da idade média normanda tem perfis quasi humanos. De albergue a feiticeiro a distancia não é grande. Os andares entrantes, as paredes inclinadas, os alpendres circumflexos, e o embrenhado de ferros velhos, simulam labios, queixos, nariz e sobrancelhas. A trapeira é o olho, zarolho. A face é a parede, rugosa e herpetica. Tocam-se as paredes como se conspirassem uma acção iniqua. Todos estes nomes da antiga civilisação, quebra-cabeças e quebra-ventas, prendem-se aquella architectura. Uma das casas da viela Coutanchez, a maior, a mais famosa ou a mais afamada, chamava-se a Jacressarde. A Jacressarde era a habitação daquelles que não têm habitação. Em todas as cidades, e especialmente nos portos de mar, ha, abaixo da população, um residuo. Vagabundos, aventureiros, vivendo de expedientes, chimicos de especie larapio, pondo sempre a vida no alambique, todas as formas do andrajo e todas as maneiras de vesti-lo, os jubilados da improbidade, as existencias em bancarrota, as consciencias que já fizeram balanço, os que abortaram no assalto e no arrombamento de portas, (porque os ladrões trabalham por baixo e por cima) os operarios e as operarias do mal, os velhaquetes e as velhaquinhas, os escrupulos rasgados e os cotovellos rotos, os tratantes chegados á indigencia, os malevolos mal recompensados, os vencidos do duelo social, os famintos que foram devorados, os _ganha-pouco_ do crime, os miseraveis na dupla e lamentavel accepção da palavra, tal é o pessoal. Alli é bestial a intelligencia humana. É o montão de immundicies das almas. Ajunta-se tudo aquillo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura policial. Em Saint-Malo esse canto era a Jacressarde. O que se encontra nessas espeluncas não são os grandes criminosos, os bandidos, os grandes productos da ignorancia e da indigencia. Se o assassino é representado alli, é por algum bebado brutal; alli o roubo não vai além da ratonice. É antes o escarro que o vomito da sociedade. O vagabundo sim, o salteador não. Todavia não ha que fiar. Aquelle ultimo degráo dos bohemios póde ter extremidades malvadas. Um dia, lançando a rêde no Epi-Scié, que era em Paris, o que a Jacressarde é em Saint-Malo, a policia apanhou Lacenaire. Tudo entra naquelles albergues. A queda é um nivelamento. Ás vezes a honestidade esfarrapada escoa-se por alli. A virtude e a probidade tem aventuras. Não se deve, á primeira vista, estimar os Louvres nem condemnar as galés. O respeito publico e a reprovação universal devem ser descascados. Quantas sorprezas não se dão! Um anjo no lupanar, uma perola no monturo,--não é impossivel este sombrio e deslumbrante achado. A Jacressarde era mais páteo que casa, e mais poço que páteo. Não tinha andares para a rua. A fachada era uma alta parede com uma porta baixa. Levantava-se o ferrolho, empurrava-se a porta, entrava-se em um páteo. No meio desse páteo havia um buraco redondo, cercado de uma orla de pedra, ao nivel do chão. Era um poço. O páteo era pequeno, e o poço era grande. Em roda do bocal do poço o chão era mal calçado. O páteo, quadrado, tinha construcções por tres lados. Do lado da rua, nada; mas diante da porta, á direita e á esquerda, haviam aposentos. Quem, á noite, entrasse alli, um pouco arriscadamente, ouviria como que um rumor de respirações juntas, e se houvesse bastante luar ou estrellas, para dar forma aos lineamentos obscuros, eis o que veria: O páteo. O poço. Em roda do páteo, em frente á porta, uma palhoça figurando uma especie de ferradura quadrada, galeria carunchosa, toda aberta, com tecto de vigas, sustentada por pilares de pedra desigualmente espaçados; no centro, o poço; á roda do poço, em uma liteira de palha, e fazendo como que um rosario circular, viam-se solas de sapato, umas direitas, outras acalcanbadas, dedos apparecendo pelos buracos dos sapatos, e muitos tornozelos nús, pés de homem, pés de mulher, pés de criança. Todos esses pés dormiam. Depois desses pés, penetrando o olhar na penumbra da palhoça, distinguiam-se corpos, fórmas, cabeças adormecidas, prolongamentos inertes, farrapos de ambos os sexos, uma promiscuidade no monturo, um sinistro jazigo humano. Era um quarto de dormir para todos. Pagava-se dous soldos por semana. Os pés tocavam no poço. Nas noites de tempestade, chovia sobre os pés; nas noites de inverno, cabia neve sobre os corpos. Quem eram aquellas creaturas? Os desconhecidos. Iam alli de noite e sabiam de manhã. A ordem social anda misturada com aquellas larvas. Alguns esgueiravam-se alli de noite e não pagavam. A maior parte entrava em jejum. Todos os vicios, todas as abjecções, todas as supposições, todas as miserias, o mesmo somno de prostração no mesmo leito do lodo. Os sonhos de todas essas almas faziam boa visinhança. Funebre entrevista em que se remechiam e se amalgamavam no mesmo miasma, os cançassos, os desfallecimentos, as borracheiras, incubadas as marchas e contra-marchas de um dia sem um pedaço de pão e sem um bom pensamento, as noites lividas e somnolentas, remorsos, cobiças, cabellos immundos, rostos com o olhar da morte, beijos, talvez, das bocas da treva. A podridão humana fermentava naquella tina. Eram atiradas áquelle alvergue pela fatalidade, pela viagem, pelo navio chegado na vespera, por uma sahida de prisão, pelo acaso, pela noite. O destino vasava alli, todos os dias, a sua alcofa. Entrava quem queria, dormia quem podia, falhava quem ousava. Era proprio para cochichar. Todos se apressavam em misturar-se. Tratavam de esquecer-se no somno, visto que não podiam perder-se na sombra. Tiravam á morte aquillo que podiam. Fechavam os olhos naquella agonia confusa que todas as noites começava. Donde sahiam? Da sociedade, porque eram a miseria; da vaga, porque eram a espuma. Nem todos tinham palha. Mais de uma nudez estava alli no chão; deitavam-se estafados; erguiam-se anquilosados. O poço sem parapeito e sem tampa, sempre aberto, tinha trinta pés de profundidade. Cahia alli a chuva, escorriam as immundicies, filtravam todos os escoamentos do pateo. A caçamba para tirar agua ficava a um lado. Quem tinha sede, bebia. Quem estava aborrecido, afogava-se. Do somno do monturo passava-se ao somno do poço. Em 1819 tirou-se dalli um menino de 14 annos. Para não correr risco naquella casa era preciso ser _da laia._ Os estranhos eram mal vistos. Conheciam-se acaso entre si, aquellas creaturas? Não; farejavam-se. A dona da casa era uma mulher moça, assaz bonita, trazendo um barrete ornado de fitas, lavada ás vezes com agua do poço, e tendo uma perna de páo. Desde madrugada esvasiava-se o pateo; iam-se embora os freguezes. Havia no pateo um gallo e algumas gallinhas, que esgaravatavam no esterco durante o dia. O pateo era atravessado por um barrote horisontal, collocado sobre postes, figura de força, que não estava alli em terra estranha. Via-se ás vezes estendido no barrote, no dia seguinte ás noites chuvosas, um vestido de seda molhado e enlameado, pertencente á mulher da perna de páo. Acima da palhoça, e, circulando o pateo, havia um andar superior e acima do andar um celeiro. Subia-se até lá por uma escada de madeira podre que furava o tecto; escada vacillante por onde subia com estrepito a mulher côxa. Os locatarios de arribação, por semana ou por noite, moravam no pateo; os locatarios residentes moravam na casa. Janellas, nem um caixilho; portas, nem uma hombreira; lareiras, nem um fogão; era a casa. Passava-se de um quarto a outro indifferentemente por um buraco quadrado e comprido que fôra porta, ou por uma fresta triangular que ficava entre duas pilastras do tabique. A caliça cahida cobria o assoalho. Não se sabia como aquella casa estava em pé. O vento não a abalava. Mal se podia subir pela escada gasta, e escorregadia. Tudo estava aberto. O inverno entrava na casa como agua em esponja. A abundancia das aranhas tranquillisava os moradores contra o desmoronamento immediato. Mobilia, nenhuma. Dous ou tres enxergões nos cantos, rotos no centro, deixando ver mais cinza que palha, aqui e alli uma bilha e um alguidar, servindo para diversos usos. Cheiro insipido e hediondo. As janellas davam sobre o pateo. De cima o pateo assemelhava-se a um carro de lama. As cousas, aem contar os homens, que alli apodreciam e enferrujavam-se, eram indescriptiveis. Os destroços fraternisavam: cahiam paredes, cabiam creaturas. Os trapos semeavam entulhos. Além da população fluctuante alojada no pateo, a Jacressarde tinha tres inquilinos, um carvoeiro, um trapeiro e um fabricante de ouro. O carvoeiro e o trapeiro, occupavam dous enxergões no primeiro andar; o fabricante de ouro, chimico, morava nas aguas furtadas, que tambem se chamava sotão. Não se sabia em que lugar dormia a mulher. O fabricante de ouro era um tanto poeta. Habitava debaixo das telhas n'um quarto em que havia uma trapeira estreita e uma grande chaminé de pedra, golphão onde ia rugir o vento. A trapeira não tinha caixilhos; o fabricante de ouro pregou em cima um pedaço de ferro em folha, proveniente de um rasgão de navio. A folha deixava passar pouca luz e muito frio. O carvoeiro pagava a casa com um sacco de carvão de quando em quando; o trapeiro pagava com um cestario de grãos para as gallinhas, cada semana; o fabricante de ouro não pagava nada. Entretanto ia queimando a casa. Já tinha arrancado a pouca madeira, e a cada instante tirava da parede, ou do tecto uma ripa para aquecer a caldeira do ouro. No tabique acima do grabato do trapeiro, viam-se em duas columnas algarismos feitos com greda, escriptos pelo trapeiro todas as semanas, uma columna de tres e uma columna de cinco, conforme o cestario de grão custasse tres liards ou cinco centimos. A caldeira do chimico era uma velha bomba quebrada, promovida por elle ao cargo de caldeira, e que lhe servia para combinar os ingredientes. A transmutação absorvia-a. Algumas vezes fallava nisso aos maltrapilhos do pateo, que deitavam a rir. Dizia elle: _aquella gente está cheia de preconceitos._ Estava resolvido a não morrer sem atirar a pedra phylosophal ás vidraças da sciencia. O forno com que trabalhava comia muita lenha. Já o patamar da escada tinha desapparecido. Ia-se toda a casa paulatinamente. Dizia-lhe a hoteleira: _Neste andar só me fica o casco._ O chimico abrandava-lhe a colera fazendo-lhe versos. Tal era a Jacressarde. O criado da casa era um menino, talvez anão, contando doze annos ou sessenta de idade, cheio de borbulhas, e trazendo sempre uma vassoura na mão. Os frequentadores entravam pela porta do páteo; o publico entrava pela porta da loja. O que era a loja? A alta parede que dava para a rua tinha á direita da entrada do páteo uma abertura feita em esquadria, que era a um tempo porta e janella, tendo postigo e caixilhos; o postigo era o unico da casa que tinha eixos e fechaduras, o caixilho era o unico que tinha vidros. Por traz da janella que abria sobre a rua havia um pequeno quarto que tomava uma parte do telheiro de dormir. Lia-se na porta da rua este distico feito com carvão: _Aqui encontram-se as curiosidades._ A palavra já corria mundo. Sobre tres taboas que fingiam prateleiras collocadas por traz de vidraças, viam-se alguns potes de porcellana falsa, sem aza, um chapéo de sol chinez feito de pergaminho delgado, ornado de figuras, furado em diversos pontos, impossivel de abrir e fechar, cadinhos de ferro, louça informe, chapéos de homem e mulher estragados, tres ou quatro conchas, alguns embrulhos de botões de osso e de cobre já velhos, uma boceta com o retrato de Maria Antoinette, e um volume trancado da algebra de Boisbertrand. Tal era a loja. Aquelle sortimento era a curiosidade. A loja communicava por uma porta do fundo com o páteo onde estava o poço. Tinha uma mesa e um escabello. A mulher do perna de páo era a moça do balcão. VII COMPRADORES NOCTURNOS E VENDEDOR TENEBROSO Clubin não foi á pousada João, nem na noite de terça-feira, nem na noite de quarta-feira. Nesta noite, ao escurecer, dous homens entraram pela viella Coutanchez; pararam diante da Jacressarde. Um delles bateu na vidraça. Abrio-se a porta da loja. Entraram ambos. A mulher da perna de páo deu-lhes o sorriso reservado aos burguezes. Havia uma vela sobre uma mesa. Os dous homens eram effectivamente burguezes. O homem que tinha batido na vidraça disse: --Boa noite, mulher. Venho por aquillo. A mulher da perna de páo sorrio segunda vez e sahio pela porta que dava para o páteo. Minutos depois abrio-se de novo a porta, e appareceu um homem pela fresta, trazendo bonet e blusa, debaixo da qual havia um objecto volumoso. Tinha uns fios de palha nas dobras da blusa e pelos olhos via-se que acabava de acordar. O homem avançou. Olharam-se todos. O homem da blusa tinha um ar turvado e esperto. --O senhor é o armeiro? disse elle. O homem que tinha batido respondeu. --Sim. O senhor é o Parisiense? --Chamado Peaurouge. Sim. --Deixe vêr. --Aqui está. O homem tirou debaixo da blusa um instrumento; muito raro na Europa naquella época, um revolver. O revolver era novo e brilhante. Os dous burguezes examinaram-no. O que pareceu conhecer a casa e a quem o homem da blusa chamou armeiro, fez mover o mecanismo. Entregou depois a arma ao outro burguez, que parecia não ser morador na cidade, e que se conservava com as costas voltadas para a luz. O armeiro perguntou: --Quanto custa? O homem da blusa respondeu. --Venho da America. Ha pessoas que trazem macacos, papagaios, animaes, como se os francezes fossem selvagens. Eu trouxe isto. É uma invenção util. --Quanto custa? perguntou de novo o armeiro. --É uma pistola que faz molinete. --Quanto custa? --Paf. Primeiro tiro. Paf. Segundo tiro. Paf... é uma saraivada! Isto faz obra. --Quanto custa? --Tem seis canos. --Mas quanto custa? --Seis canos são seis luizes. --Quer cinco luizes? --Impossivel. Um luiz por cada bala. É o preço. --Quer fazer negocio, seja razoavel. --Já disse o preço. Examine-me esta obra, Sr. arcabuzeiro. --Já examinei. --O molinete anda de roda como o Sr. Talleyrand. Podiam pôr este molinete no diccionario das ventoinhas. É uma joia. --Já vi. --Os canos são de fabrica hespanhola. --Já reparei. --São lavrados. A cousa arranja-se assim. Deita-se na forja uma alcofa de ferros velhos, cravos, ferraduras quebradas... --E velhas laminas de fouces. --Ia dizel-o, Sr. armeiro. Depois deita-se em cima uma boa porção de fogo, e sahe disto tudo um magnifico instrumento de ferro. --Sim, mas póde ter gretas e buraquinhos; póde sahir esconço. --Sim. Mas tudo se arranja. --O senhor é do officio? --Tenho todos os officios. --Os canos são brancos. --É belleza, Sr. armeiro. Faz-se isto com borra de antimonio. --Diziamos nós que isto custa cinco luizes... --Tomo a liberdade de observar que eu tive a honra de dizer seis luizes. O armeiro abaixou a voz. --Ouça, Parisiense. Aproveite a occasião. Desfaça-se disto. Isto para vocês não vale nada. Chama a attenção. --Na verdade, disse Parisiense, é um tanto vistoso. É melhor para um burguez. --Quer cinco luizes? --Não, seis. Um por cada buraco. --Pois bem, seis napoleões. --Quero seis luizes. --Não é bonapartista. Prefere um luiz a um napoleão? Parisiense sorrio. --Napoleão é melhor, disse elle, mas luiz vale mais. --Seis napoleões. --Seis luizes. É para mim uma differença de oitenta francos. --Então não fazemos nada. --Pois sim. Guardo o revolver. --Guarde. --Abater o preço! pois não! não se dirá que eu me desfiz sem mais nem menos de uma invenção destas! --Então, boa noite. --É um progresso sobre a pistola, que os indios chesapoakes chamam Nortay-u-Hoh. --Cinco luizes á vista, é ouro. --Nortay-u-Hoh, quer dizer espingarda pequena. Muitas pessoas ignoram isto. --Quer cinco luizes e mais um escudo? --Eu já disse que custa seis. O homem que estava de costas para a luz e que ainda não tinha fallado, fazia mover o mecanismo. Approximou-se do armeiro e disse-lhe ao ouvido: --A arma é boa? --Excellente. --Eu dou os seis luizes. Cinco minutos depois emquanto Parisiense apertava em um buraco feito na manga da blusa, os seis luizes de ouro que acabava de receber, o armeiro e o comprador, levando no bolso da calça o revolver sahiram da viella Coutanchez. VIII CARAMBOLA DA BOLA VERMELHA E DA BOLA PRETA No dia seguinte, que era quinta-feira, a pouca distancia de Saint Malo, perto da ponta do Decolé, n'um lugar em que as rochas das praias são altas, e o mar profundo, passou-se uma cousa tragica. Nada mais frequente na architectura do mar, que uma lingua de rochedos em fórma de lança, que se prende á terra por um isthmo estreito, prolonga-se na agua e acaba-se ahi bruscamente em forma de rochedo a pique. Para chegar ao alto desse rochedo, indo da praia, segue-se um plano inclinado cuja subida é ás vezes assaz difficil. No alto de um rochedo desse genero, achava-se em pé, pelas quatro horas da tarde, um homem embrulhado em uma larga capa de uniforme, e provavelmente armado, o que era facil de reconhecer por certas dobras rectas e angulosas do manto. O sitio em que estava esse homem era uma plataforma assaz vasta semeada de cubos á semelhança de seixos immensos, deixando entre si estreita passagem. Esta plataforma onde brotava uma hervasinha estreita e curta, terminava do lado do mar por um espaço livre, que ia dar a um despenhadeiro, de uns sessenta pés de altura, acima do mar, e parecia talhado com um prumo. Entretanto, o angulo da esquerda ia-se arruinando e offerecia uma dessas escadas naturaes proprias aos granitos marinhos, cujos degraos pouco commodos exigem ás vezes pernas de gigante ou pulos de downs. Descia perpendicularmente ao mar e mergulhava nas aguas. Era um quebra-costas. Podia-se, comtudo, a rigor, ir por alli embarcar na muralha da lingua de rochas. Soprava uma brisa. O homem, apertado na capa, firme nas pernas, com o cotovello direito na mão esquerda, piscava um olho e applicava ao outro um oculo. Parecia absorto em uma attenção séria. Approximou-se da borda do rochedo, e alli estava immovel com o olhar imperturbavelmente fito no horisonte. A maré estava cheia. A vaga batia por baixo delle no sopé do rochedo. O que o homem observava era um navio ao largo que fazia manobras singulares. Esse navio, que apenas uma hora antes sahira de Saint-Malo, tinha parado por traz dos Banquetiers. Era uma galera. Não tinha deitado ancora, talvez porque o fundo não lh'o permittisse, e porque o navio teria prendido a ancora de baixo do gurupés. Limitou-se a pôr-se á capa. O homem, que era guarda-costa, como o uniforme indicava, espiava todas as manobras do navio e parecia tomar nota mentalmente. O navio tinha atravessado: era o que indicava a vela ré alada a barlavento, e as de prôa largas por mão; tinha braceado o panno de ré o mais que lhe foi possivel, de forma que neutralisava a força dos de prôa. Deste modo, cahindo a sotavento, não perdia mais de milha e meia por hora. O dia ainda estava claro, sobretudo em pleno mar e no alto das rochas. Mas ao pé das costas começava a escurecer. O guarda-costa, entregue ao seu trabalho, e espionando conscienciosamente ao largo, não tinha pensado em examinar o rochedo ao lado e em baixo. Dava as costas para a escada pouco praticavel que punha em communicação a plataforma com o mar. Não reparou que alguma cousa andava alli em movimento. Havia nessa escada, por traz da anfractuosidade, alguma pessoa, um homem escondido alli, segundo parecia, antes da chegada do guarda-costa. De tempos a tempos, na sombra, apparecia uma cabeça por baixo da rocha, olhava para cima e espiava o espião. Essa cabeça coberta por um largo chapéo americano, era a cabeça do quaker, que, uns dez dias antes, fallara nas pedras do Petit Bey, ao capitão Zuela. De repente pareceu redobrar a attenção do guarda-costa. Limpou rapidamente com a manga o vidro do oculo e firmou-o com energia sobre o navio. Destacara-se um ponto negro. O ponto negro, semelhante a uma formiga no mar, era uma barcaça. A barcaça parecia querer ganhar a terra. Era tripolada por alguns marinheiros que remavam vigorosamente. Já obliquava a pouco e pouco e dirigia-se para a ponta do Decollé. A espreita do guarda-costa chegou ao seu maior gráo de fixidez. Elle não perdia nenhum dos movimentos da barcaça. Approvimou-se mais ainda da borda do rochedo. Neste momento um homem de alta estatura, o quaker, surgio por traz do guarda-costa, no alto da escada. O espião não via o quaker. Parou este alguns instantes, com os braços cahidos, e os punhos crispados, e, com o olhar do caçador que aponta, olhou para as costas do espião. Quatro passos apenas o separavam do guarda-costa; adiantou um pé, depois parou; deu outro passo e parou outra vez; o unico movimento que fazia era andar, o resto do corpo era estatua; o pé firmava-se na relva sem rumor; deu terceiro passo, e parou; estava quasi tocando o guarda-costa, sempre immovel, com o oculo fixo. O homem ajuntou as duas mãos fechadas na altura das suas claviculas, depois, bruscamente, abateram-se os antebraços, e os dous punhos, como que soltos por uma mola, bateram nos hombros do guarda-costa. O choque foi sinistro. O guarda-costa nem teve tempo de soltar um ai. Cahio de cabeça no mar. Viram-se-lhe os pés durante o tempo de um relampago. Foi uma pedra n'agua. A agua cerrou-se depois, descrevendo dous ou tres grandes circulos. Ficou apenas o oculo escapo ás mãos do guarda-costa e cahido no chão. O quaker inclinou-se á borda das rochas, vio acalmar-se a agua, esperou alguns minutos, depois endireitou-se, cantando entre os dentes: _Monsieur de la police est mort_ _En perdant la vie._ Inclinou-se outra vez. Nada reappareceu. Sómente no lugar onde o guarda-costa tinha cahido, formou-se na superficie da agua uma especie de espessura negra, que se alargava no movimento da vaga. Era provavel que o guarda-costa tivesse quebrado o craneo em alguma rocha sub-marinha. O sangue subira e fazia aquella mancha na espuma. O quaker, contemplando aquella mancha, continuou: _Un quart d'heure avant sa mort,_ _Il était encore...._ Não acabou. Ouvio atraz de si unia voz doce que lhe dizia: --Ora viva, Rantaine. Acaba o senhor de matar um homem. Elle voltou-se, e vio a quinze passos, no intervallo de dous rochedos, um homem baixo que tinha um revolver na mão. Respondeu: --Como vê. Bom dia. Sr. Clubin. O homem baixo estremeceu. --Reconheceu-me? --Não me reconheceu o senhor? disse Rantaine. Entretanto ouvio-se um rumor de remos no mar. Era a barcaça observada pelo guarda-costa que se approximava. O Sr. Clubin disse a meia voz como se fallasse comsigo: --A cousa foi rapida. --Em que precisa de mim? perguntou Rantaine. --Pouca cousa. Ha quasi dez annos que nos não vemos. O senhor ha de ter feito bons negocios. Como está de saude? --Bem, disse Rantaine. E o senhor? --Perfeitamente, respondeu Clubin. Rantaine deu um passo para o Sr. Clubin. Um pequeno som chegou aos seus ouvidos. Era o Sr. Clubin que armava o revolver. --Rantaine, estamos a 15 passos. É uma boa distancia. Fique onde está. --Ah! mas o que quer o Sr. de mim? --Venho conversar. Rantaine não se mecheu. O Sr. Clubin coutinuou: --O senhor matou agora mesmo um guarda-costa, Rantaine levantou a aba do chapéo e respondeu: --Já me fez a honra de dizel-o. --Em termos menos precisos. Disse ha pouco: um homem; agora digo: um guarda-costa, O quarda-costa tinha o n. 619. Era um pai de familia. Deixa mulher e cinco filhos. --Deve ser assim, disso Rantaine. Houve um imperceptivel tempo de silencio. --São homens escolhidos estos guarda-costas, disse Clubin, quasi todos antigos maritimos. Notei que em geral deixam mulher e cinco filhos. Clubin continuou: --Advinhe quanto me custou este revolver. --É um lindo instrumento, respondeu Rantaine. --Quanto vale? --Vale muito. --Custou-me cento e quarenta e quatro francos. --Comprou naturalmente na loja de armas da rua Contanchez. Clubin continuou: --O guarda-costa nem gritou. A queda corta a voz. --Sr. Clubin, hade ventar esta noite. --Eu sou o unico que sei do segredo. --Continúa a morar na pousada João? --Sim. Vive-se bem alli. --Já lá comi muito boa couve fermentada. --Rantaine, o senhor deve ser excessivamente forte. Tem cada espadua! Não seria eu quem lhe levaria um piparote. Era tão rachitico quando vim ao mundo, que nem se sabia se me poderiam criar. --Felizmente, criou-se. --Sim, e continúo a morar na pousada João. --Sabe porque motivo eu o reconheci, Sr. Clubin? Porque o senhor me tinha reconhecido. Disse comigo: Só Clubin póde reconhecer-me. E adiantou um passo. --Fique onde estava, Rantaine. Rantaine recuou e disse aparte: --A gente torna-se criança diante destes instrumentos. O Sr. Clubin continuou. --Situação. Temos aqui á direita, do lado de Saint-Enogat, a trezentos passos, outro guarda-costa, numero 618, que está vivo, e á esquerda, do lado de Saint-Lunaire, um posto de alfandega. Sete homens armados que podem estar aqui dentro em cinco minutos. O rochedo ficará cercado. O desfiladeiro ficará guardado. Impossivel fugir. Ha um cadaver ao pé da rocha. Rantaine deitou um olhar obliquo ao revolver. --Como diz, Rantaine. É um lindo instrumento. Talvez esteja carregado com polvora secca. Mas que importa? Basta um tiro para fazer correr a força armada. Tenho seis tiros. O choque alternativo dos remos tornava-se mais distincto. A barcaça não estava longe. O homem alto olhava estranhamente para o homem baixo. O Sr. Clubin fallava com um ar cada vez mais tranquillo e doce. --Rantaine, os homens da barcaça que vai chegar, sabendo o que fez ha pouco, ajudar-me-hiam a prende-lo. O senhor paga 10,000 francos de passagem ao capitão Zuela. Entre parenthesis, a passagem ficaria mais barata se tratasse com os contrabandistas de Plainmont, mas estes só o levariam para Inglaterra, e demais o senhor não póde arriscar-se a ir a Guernesey onde ha quem tenha a honra de conhecel-o. Volto á situação. Se eu disparar prendem-n'o. Nesse caso pagará a Zuela 10,000 francos de fuga. Já lhe deu 5,000 mil francos; Zuela guardará esses 5,000 trancos e vai-se embora. É isto. Rantaine acho-o bem rebuçado. Esse chapéo, esse casaco, e essas polahias disfarçam-n'o. Esqueceram-lhe os oculos. Fez bem em deixar erescer as suisas. Rantaine sorrio como quem range os dentes. Clubin continuou: --Rantaine, o senhor tem uma calça americana com duas algibeiras. N'uma dellas tem o seu relogio. Guarde-o. --Obrigado, Sr. Clubin. --Na outra ha uma caixinha de ferro batido, que abre e fecha por molas. É uma velha boceta de marinheiro. Tire-a do bolso, e atire-a para cá. --Mas isto é um roubo! --Póde chamar a guarda. E Clubin fixou os olhos em Rantaine. --Olhe, mess Clubin.... disse Rantaine dando um passo e estendendo a mão aberta. _Mess_ era uma lisonja. --Fique onde está, Rantaine. --Mess Clubin, arranjemos as cousas. Offereço-lhe metade. Clubin executou um crusar de braços, mostrando a bocca do revolver. --Rantaine, quem pensa que eu sou? Sou um homem honrado. E acrescentou depois de uma pausa. --Quero tudo. Rantaine disse entre dentes: --É temivel este. Entretanto acenderam-se os olhos de Clubin. A voz tornou-se cortante como o aço. Disse elle: --Creio que se engana. O seu nome é que é Roubo, o meu é Restituição. Ouça, Rantaine. Ha dez annos, sahio o senhor de Guernesey á noite tomando da caixa de uma sociedade cincoenta mil francos que lhe pertenciam, e esquecendo de lá deixar cincoenta mil francos que pertenciam a outro. Esses cincoenta mil francos roubados ao seu socio, o excellente e digno mess Lettierry, fazem hoje com os juros accumulados de dez annos oitenta mil seiscentos e sessenta e seis francos e sessenta e seis centimos. O senhor entrou hontem na casa de um cambista. Reluchet, chama-se elle, rua de S. Vicente. Deu-lhe setenta e seis mil francos em bilhetes de banco francezes, e em troca deu-lhe elle tres bank-notes de Inglaterra de mil libras esterlinas cada uma, e mais uns trocos. O senhor poz essas bank-notes na boceta de ferro, e a boceta de ferro na algibeira direita. As tres mil libras esterlinas fazem setenta e cinco mil francos. Em nome de mess Lethierry, contento-me com isso. Parto amanhã para Guernesey, e vou levar-lh'os. Rantaine, a galera que alli está á capa é o _Tamaulipas._ O senhor embarcou alli esta noite as malas misturadas com os saccos e canastras da equipagem. Quer sabir de França. Tem suas razões para isso. Vai a Arequipa. A barcaça vem buscal-o. Está á espera della. Ella ahi vem. Já a estamos ouvindo. Depende de mim deixal-o partir ou obrigal-o a ficar. Basta de palavras. Atire cá a boceta de ferro. Rantaine abrio o bolso, tirou uma caixinha de ferro e atirou-a a Clubin. A caixinha foi rolar aos pés de Clubin. Clubin inclinou-se sem abaixar a cabeça, e apanhou a boceta, tendo dirigidos contra Rantaine os dous olhos e os seis canos do revolver. Depois disse: --Meu amigo, volte as costas. Rantaine voltou as costas. O Sr. Clubin poz o revolver debaixo do braço, e apertou a mola da caixinha. A caixinha abrio-se. Havia dentro quatro bank-notes, tres de mil libras, e uma de dez libras. Clubin dobrou as tres notas de mil libras, pol-as outra vez na caixinha, fechou-a, e metteo-a no bolso. Depois apanhou no chão uma pedra. Embrulhou a pedra no bilhete de dez libras e disse: --Volte para cá. Rantaine voltou-se. O Sr. Clubin continuou; --Disse-lhe que me contentava com as tres mil libras. Aqui vão as dez libras. E atirou a Rantaine o bilhete e mais o lastro de pedra. Rantaine com um pontapé deitou o bilhete e a pedra ao mar. --Como queira, disse Clubin. Vamos lá, o senhor hade estar rico. Estou tranquillo. O rumor dos remos que se tinha approximado durante o dialogo, cessou. Indicava isto que a barcaça estava ao pé das rochas. --Está embaixo o seu carro. Pode ir, Rantaine. Rantaine dirigio-se para a escada e desceu. Clubin foi com precaução até a borda do rochedo, e adiantando a cabeça, vio descer Rantaine. A barcaça tinha parado ao pé do ultimo degráo do rochedo, no mesmo lugar em que tinha cahido o guarda-costa. Vendo descer Rantaine, Clubin murmurou: --Bom numero seiscentos e desenove! Pensava que estava só. Rantaine pensava que eram apenas dous. Só eu sabia que eramos tres. Clubin vio no chão o oculo do guarda-costa; apanhou-o. Começou o ruido dos remos. Rantaine acabou de pular na barcaça, e esta tomava o largo. Quando Rantaine achou-se na barca, indo-se já afastando dos rochedos, levantou-se bruscamente, a face tornou-se-lhe monstruosa; mostrou o punho e gritou: --Ah! o proprio diabo é um canalha! Instantes depois, Clubin do alto das rochas, e fixando o oculo na barcaça, ouvio distinctamente estas palavras, articuladas por uma voz grossa, meio do rumor do mar: --O Sr. Clubin é um homem honrado, mas consinta que eu escreva a Lethierry para participar-lhe o facto, e aqui vai nesta barcaça um marinheiro de Guernesey que é da equipagem do _Tamaulipas_, que se chama Ahier Tortevin, o que ha de voltar a Saint-Malo, na proxima viagem de Zuela, e que será testemunha de que eu lhe entreguei para mess Lethierry a somma de tres mil libras esterlinas. Era a voz de Rantaine. Clubin era o homem das cousas bem feitas. Immovel como estivera o guarda-costa, e no mesmo lugar, com o oculo no olho, não perdeu de vista a barcaça. Vio diminuir-se os remos, desapparecer, reapparecer, approximar-se a barcaça do navio; e pôde reconhecer a alta corpulencia de Rantaine no tombadilho do _Tamaulipas._ Quando a barcaça foi içada, o _Tamaulipas_ entrou a preparar-se. A brisa soprava de terra, o navio abrio as velas todas, o oculo de Clubin continuava fixo no lineamento cada vez mais simplificado, e, meia hora depois o _Tamaulipas_ era apenas um ponto negro que ia a diminuir-se, a diminuir-se, a diminuir-se no céo amarello do crepusculo. IX INFORMAÇÃO UTIL ÁS PESSOAS QUE ESPERAM, OU RECEIAM CARTAS DE ALEM-MAR Nessa noite, o Sr. Clubin recolheu-se tarde. Uma das causas da sua demora, é que antes de recolher-se, foi elle até á porta Dinan onde haviam tavernas. Tinha comprado em uma dessas tavernas onde não era conhecido, uma garrafa de aguardente que pôz em uma larga algibeira da japona como se quizesse escondel-a; depois, devendo a Durande sahir no dia seguinte de manhã, foi a bordo para ver se tudo estava em ordem. Quando o Sr. Clubin entrou ua pousada João, já não havia na sala baixa senão o velho capitão de longo curso, Gertrais-Gaboureau, bebendo e fumando cachimbo. O capitão Gertrais-Gaboureau cumprimentou o Sr. Clubin entre um gole e uma baforada. --Good bye, capitão Clubin. --Boa noite, capitão Gertrais. --Com que então, lá se foi o _Tamaulipas._ --Ah! disse Clubin, não reparei. O capitão Gertrais-Gaboureau cuspio e disse: --Raspou-se o Zuela. --Quando? --Esta noite. --Onde vai? --Vai ao diabo. --Sim; mas onde? --A Arequipa. --Não sabia, disse Clubin. Accrescentou: --Vou dormir. Accendeu a vela, caminhou para a porta e voltou. --Já foi a Arequipa, capitão Gertrais? --Sim. Ha annos. --Onde se costuma a arribar? --Em diversos portos. Mas o _Tamaulipas_ não arribará em parte alguma. O Sr. Gertrais-Gaboureau deitou na borda de um prato a cinza do cachimbo, e continuou: --Conhece o _Cheval-de-Troie_ e o _Trentemousin_ que foram a Cardiff. Não opinei a favor da partida por causa do tempo. Voltaram em bello estado. _Cheval-de-Troie_ levava therebentina e abrio agua, e fazendo trabalhar as bombas, perdeu no meio da agua todo o carregamento. Quanto ao _Trentemousin_, ficou bem estragado; quebrou-se-lhe o cepo da ancora, o botalós, ovens; não soffreu o mastro de mesena, mas teve um forte abalo. Cahio o ferro do gurupés que aliás só ficou machucado, mas completamente nú. Veja o que resulta de não ouvir conselhos. Clubin tinha posto a vela na mesa, e pôz-se a pregar de novo uma porção de alfinetes que tinha na japona. Disse: --Não dizia, capitão, que o _Tamaulipas_ não arriba em porto algum? --Não. Vai direito ao Chile. --Neste caso não pode mandar noticia alguma em caminho. --Perdão, capitão Clubin. Primeiramente póde entregar despachos a todos os navios que encontrar em caminho para a Europa. --É justo. --Depois, tem a caixa de cartas do mar. --A que chama o Sr. caixa de cartas do mar? --Não sabe, capitão Clubin? --Não. --É quando se passa pelo estreito de Magalhães. --Que ha então? --Neva em toda a parte, temporal sempre, ruins ventos, mar de tresentos diabos. --Depois? --Quando se dobra o cabo Monmouth. --Bem. Depois? --Depois dobra-se o cabo Valentin. --E depois? --Depois dobra-so o cabo Izidoro. --E depois? --Dobra-se a ponta Anna. --Bem. Mas o que é que chama caixa das cartas do mar? --Chegamos á caixa. Montanhas á direita, montanhas á esquerda. De todos os lados aves marinhas. Terrivel sitio! Ah! com um milhão de diabos! que chusma, e que matinada! A borrasca alli não precisa de auxilio. Toca a vigiar a cinta da popa! toca a diminuir as velas! Da vela grande passava ao juanete! Lufada sobre lufada! Quatro, cinco, seis dias de capa. Quantas vezes de um vellame novinho em folha não nos fica senão o fio. Que dansa! furacões capazes de fazer saltar uma galera como se fosse uma pulga. Já vi n'um brigue inglez, o _True Blue_, um grumette occupado com o páo da giba ser levado por um milheiro de ventos, com páo e tudo. Anda-se no ar como borboletas! Vi o contra-mestre da _Revenue_, ser arrancado do navio e morrer. A cinta do meu navio quebrou-se, e todas as peças de madeira do convez ficaram despedaçadas. A gente sahe dalli com as velas comidas, até fragatas de cincoenta fazem agua como se fossem cestos. E a endiabrada costa! É o que ha de mais damnado. Rochedos retalhados como por criancice. Approxima-se a gente do Porto Fome. Ahi é peor que peor. São as laminas mais agudas que tenho visto. Paragens do inferno. De repente vê-se estas duas palavras escriptas com tinta vermelha: _Post-Office._ --Que quer dizer, capitão Gertrais? --Quero dizer, capitão Clubin, que logo depois de dobrar o cabo Anna vê-se em uma pedra de cem pés de altura um grande páo. É um poste com uma barrica no alto. Essa barrica é a caixa das cartas. Os inglezes escreveram em cima: _Post-Office._ Porque se metteram elles nisto? Aquillo é o correio do oceano; não pertence a esse honrado gentleman, o rei de Inglaterra. A caixa das cartas é commum. Pertence a todas as bandeiras. _Post-Office_, ha nada mais chinez! parece uma chicara de chá que o diabo offerece em pleno oceano. Eis como se faz o serviço. Todos os navios que passam expedem ao poste um escaler com os seus despachos. O navio que vem do Atlantico envia cartas para Europa, e o navio que vem do Pacifico manda cartas para a America. O official que commanda o escaler põe na barrica o maço de cartas e tira o maço que lá encontra. Toma-se conta dessas á espera que o proximo navio tome conta das cartas que se deixam. Como se navega em sentido contrario, o continente d'onde o senhor vem é aquelle para onde eu vou. Levo as suas cartas, o senhor leva as minhas. A barrica está presa ao poste por uma corrente de ferro. E chove! E neva! Mar dos diabos! O _Tamoulipas_ ficará ahi. A barrica tem uma tampa, mas sem fechadura nem cadeado. Bem vê que se póde escrever aos amigos. As cartas chegam ao seu destino. --É esquisito, murmurou Clubin pensativo. O capitão Gertrais-Gaboureau voltou-se para a bebida. --Supponhamos que o bregeiro do Zuela me escreva, mette as suas garatujas na barrica de Magalhães, e dentro de quatro mezes tenho as cartas do patife. Diga-me lá, capitão Clubin, sahe amanhã? Clubin absorto em uma especie de somnambulismo, não ouvio. O capitão Gertrais repetio a pergunta. Clubin despertou. --Sem duvida, capitão Gertrais. É o dia marcado. Devo sahir amanhã de manhã. --Pois olhe, eu não sahia. Capitão Clubin, os cães tem o pello molhado. As aves marinhas andam ha duas noites á roda do pharol. Máo signal. Tenho um storm-glass que faz das suas. Estamos no segundo, quarto da lua; é o maximum da humidade. Vi ha pouco pimpinellas que fechavam as folhas e um campo de trevo cujas hastes estavam retezadas. Os vermes sabem do chão, as moscas mordem, as abelhas não se affastam dos cortiços, os pardaes consultam-se. Ouve-se o som dos sinos de longe. Eu ouvi hoje o sino de Saint-Lunaire dar ave-marias. E ao pôr do sol havia muitas nuvens no horisonte. Amanhã hade haver grande nevoeiro. Não lhe digo que parta. Receio mais o nevoeiro que o furacão. Grande sonso é o nevoeiro. FIM DO 1° TOMO. TRABALHADORES DO MAR POR VICTOR HUGO traduzido por Machado de Assis 2° TOMO RIO DE JANEIRO TYP.--PERSEVERANÇA--RUA DO HOSPICIO N. 91. 1866. PRIMEIRA PARTE O Sr. Clubin. NOTA O Diario do Rio de Janeiro obteve do editor Lacroix (de Pariz e Bruxellas), por meio de um contracto celebrado entre esse editor e o correspondente do _Diario do Rio_, em Pariz, o direito de publicar a tradução portugueza deste romance, nas suas collumnas, começando mesmo antes que o 1° volume apparecesse em Pariz. O romance começou a ter a publicidade no _Diario do Rio_ no dia 16 de Março de 1866. LIVRO SEXTO O timoneiro ebrio e o capitão sobrio I OS ROCHEDOS DOUVRES Cerca de cinco leguas, em pleno mar, ao sul de Guernesey, em face da ponta de Plainmont, entre as ilhas da Mancha e Saint-Malo, ha um grupo de cabeços chamados rochedos Douvres. Funesto lugar esse. Esta denominação, Douvre, _Dover_, pertence a muitos cachopos e rochedos. Ha especialmente perto das costas do Norte uma rocha Douvre na qual se construe agora mesmo um pharol, escolho perigoso, mas que não deve ser confundido com este. O ponto de França mais proximo do rochedo Douvres é o cabo Brehant. O rochedo Douvres é um pouco mais longe da costa da França que a primeira ilha do archipelago normando. A distancia deste escolho a Jersey mede-se pouco mais ou menos pela grande diagonal de Jersey. Se a ilha de Jersey se voltasse sobre a Corbière tomo sobre um eixo, a ponta de Santa Catharina iria quasi bater nos Douvres. É uma distancia de quasi quatro leguas. Nesses mares da civilisação os rochedos mais selvagens são raramente desertos. Encontram-se contrabandistas em Hagot, guardas da alfandega em Binic, cultivadores de ostras em Cancale, caçadores de coelhos em Cesambre, ilha de Cesar, apanhadores de caraguejos em Brecqhou, pescadores de rêde em Minquiers e Ecrehou. Nos rochedos Douvres, ninguem. As aves marinhas estão alli em sua casa. Não ha peor encontro. Os Casquets, onde dizem que se perdeu a _Blanche Nef_, o banco Calvados, as pontas da ilha de Wight, a Ronesse que faz a costa de Beaulieu tão perigosa, os baixios de Preel que torna tão angustiosa a entrada de Merquel e que obriga a deitar a umas vinte braças a balisa vermelha, as proximidades perfidas de Étables e de Plouha, as duas druidas de granito do Sul ds Guernesey, o velho Anderlo e o pequeno Anderlo, a Corbière, os Hanois, a ilha de Ras, recommendada ao medo por este proverbio:--_Quando passares o Ras, se não morreres, tremerás_;--as Mortes-Femmes, a passagem do Boue e de Frouquie, a Deroute entre Guernesey e Jersey, a Hardent entre os Minquiers e Chausey, o Mauvais-Cheval entre o Boulay-Bay e Berneville, são mal afamados. Vale mais affrontar todos os cachopos do que o Douvres uma só vez. Em todo o perigoso mar da Mancha que é o mar Egeo do occidente, o rochedo Douvres só tem um rochedo igual no terror que inspira, é o escolho Pater Noster, entre Guernesey e Serk. E ainda no Pater Noster póde-se fazer um signal: quem está ali em perigo póde ser soccorrido. Vê-se ao Norte a ponta Dicard ou de Icaro, ao Sul, o Gros-Nez. Do rochedo Douvres não se vê nada. O vento, a agua, a nuvem, o illimitado, o inhabitado. Só se passa ali perdido. Os granitos são de uma estatura brutal e hedionda. Avultam as rochas escarpadas. Severa inhospitalidade do abysmo. É mar alto. A agua é profunda. Um escolho absolutamente isolado, como o rochedo Douvres, attrahe e abriga os animaes que precisam affastar-se dos homens. É uma especie de vasta madrepora submarinha. É um labyrintho afogado. Ha alli, em profundezas que difficilmente alcançam os mergulhadores, antros, cavas, cavernas, cruzamentos de ruas tenebrosas. Pollulam as especies monstruosas. Devoram-se umas ás outras. Os carangueijos comem os peixes, e são devorados tambem. Formas medonhas, feitas para não serem vistas por olhos humanos, andam vivas naquella obscuridade. Vagos lineamentos de guellas, antennas, tentaculos, barbatanas, bocas abertas, escamas, garras, unhas, fluctuam, tremem, engrossam, decompõe-se, e desfazem-se na transparencia sinistra. Tremendos nadadores andam alli na labutação. É uma colmêa de hydras. Alli o horrivel é ideal. Imagina, se podes, um formigueiro de holothurias. Vêr o interior do mar, é vêr a imaginação do Ignoto. É vêl-a do lado terrivel. O golphão é analogo á noite. Tambem ahi ha somno, somno apparente ao menos, da consciencia da creação. Commettem-se alli em plena segurança os crimes da irresponsabilidade. Os esboços da vida, phantasmas quasi, completos demonios, vagam alli, em medonha paz, nas sombrias occupações da sombra. Ha quarenta annos, duas rochas de forma extraordinaria assignalavam de longe o escolho Douvres aos viandantes do oceano. Eram duas pontas verticaes e recurvadas, tocando-se quasi no cume. Parecia vêr-se irrompendo do mar dous dentes de um elephante engulido. Mas eram dentes do tamanho de torres que só poderiam pertencer a elephantes do tamanho de uma montanha. Essas duas torres naturaes da obscura cidade dos monstros não deixavam entre si mais que uma passagem estreita onde a vaga se atirava. Essa passagem, tortuosa e de alguns covados de comprimento, parecia ura pedaço de rua entre duas paredes. A essas duas rochas gemeas chamava-se as duas Douvres. Havia a grande Douvre e a pequena Douvre, uma tinha sessenta pés de altura, a outra quarenta. O vai-vem das ondas fez na base dessas torres um aspecto de serra, e o violento furacão do equinocio de 26 de Outubro de 1859, derrubou uma dellas. A que ficou, a pequena, está mutilada e gasta. Um dos mais estranhos rochedos do grupo Douvres chama-se o Homem. Esse ainda existe. No seculo passado alguns pescadores, perdidos naquelles cachopos, acharam um cadaver. Ao pé do cadaver havia uma porção de conchas vazias. Tinha naufragado alli um homem, refugiou-se naquelles rochedos, alimentou-se algum tempo de conchas, até que morreu. Veio dahi chamar-se Homem ao rochedo. São singulares as solidões da agua. É o tumulto e o silencio. O que ahi se faz já nada tem com o genero humano. É a utilidade desconhecida. Tal é o isolamento do rochedo Douvres. Em derredor, a perder de vista, o immenso tormento das vagas. II COCNAC INESPERADO Na sexta-feira de manhã, um dia depois da partida do _Tamaulipas_, a Durande partio para Guernesey. Deixou Saint-Malo ás 9 horas. Claro estava o tempo, não havia nevoeiro; parece que o velho capitão Gertrais-Gaboureau tinha delirado. As preocupações do Sr. Clubin fez com que embarcasse pouco carregamento. Apenas metteu a bordo alguns fardos de Paris para as lojas de Saint-Pierre Port, tres caixas para o hospital de Guernesey, uma de sabão amarello, outra de velas e a terceira de couro de sola e cordavão fino. Levava tambem, da precedente viagem, uma caixa de assucar Arushed e tres caixas de chá conjou, que a alfandega franceza não quiz receber. O Sr. Clubin embarcou pouco gado; alguns bois apenas. Os bois foram postos no porão e bem mal arranjados. Haviam a bordo seis passageiros: um guernesiano, dous maloenses vendedores de animaes, um _tourista_, como já se dizia nesse tempo, um parisiense meio burguez, provavelmente tourista do commercio, e um americano distribuidor de Biblias. A Durande, sem contar Clubin, tinha sete homens de tripolação; um timoneiro, um carvoeiro, um marinheiro carpinteiro, um cozinheiro, manobrista quando era preciso, dous trabalhadores da machina e um grumete. Um dos penultimos era tambem mecanico. Era um valente e intelligente negro hollandez, evadido das fabricas de assucar de Surinam; chama-se Imbrancam. O negro Imbrancam comprehendia e servia admiravelmente a machina. Nos primeiros tempos, contribuio elle não pouco, quando apparecia na fornalha, para dar um ar diabolico á Durande. O timoneiro, jerseyano de nascimento, originario da costa, chamava-se Tangrouille. Tangrouille era de alta nobreza. É verdade isto. As ilhas da Mancha são, como a Inglaterra, paizes hierarchicos. Ainda existem castas nessas ilhas. As castas tem as suas idéas, que são os seus dentes. Essas idéas são as mesmas em toda a parte, na India, como na Allemanha. A nobreza conquista-se pela espada e perde-se pelo trabalho. Conserva-se pela ociosidade. Não fazer cousa alguma, é viver fidalgamente; quem não trabalha é reverenciado. Officio faz decahir. Na França de outr'ora só se exceptuavam os operarios de vidro. Sendo gloria para os fidalgos esvasiar garrafas, fazel-as não era deshonra alguma. Nas ilhas da Mancha, assim como na Grã-Bretanha, quem quizer ser nobre deve conservar-se opulento. Um workman não pode ser gentleman. Inda que o tenha sido, já não o é mais. Tal marujo descende do cavalheiros e é apenas marujo. Ha trinta annos, em Aurigny, um Gorges authentico que, ao que parece tinha direitos á senhoria de Gorges confiscada por Philippe Augusto, apanhava sargaço com os pés nús. Ha em Serk um Carteret que é carreiro. Existe em Jersey um mercador de pannos, e em Guernesey um sapateiro, que tem o nome de Gruchy, que se declaram Grouchy e primos do marechal de Waterloo. Os antigos registros do bispado de Contances, mencionam uma senhoria de Tangroville, parenta evidente de Tancarville no Baixo-Sena, que é Montmorency. No decimo quinto seculo Johan de Heroudeville, bésteiro e afim do Sr. de Tangroville, levava sempre comsigo justilhos e arnezes. Em Maio de 1371, em Tontorson, o Sr. Tangroville fez o seu dever como cavalheiro. Nas ilhas normandas quem cabe em pobreza é logo eliminado da fidalguia. Basta uma mudança de nome. De _Tangroville_ faz Taugouille, e tudo se arranja. Foi o que aconteceu ao timoueiro da Durande. Ha em Saint-Pierre Port, no Bordage, um mercador de ferros velhos chamado Ingrouille, que é provavelmente Ingroville. No reinado de Luiz o Gordo, os Ingroville possuiam tres parochias em Valognes. Fez um padre Trigan a _Historia ecclesiastica da Normandia._ Este chronisla Trigan era cura de Digoville. O Sr. de Digoville, se cahisse no populacho, chamar-se-ha _Digouille._ Tangrouille, Tancarville provavel e Montmorency possivel, tinha esta antiga qualidade de fidalgo, defeito grave n'um timoneiro; embriagava-se. O Sr. Clubin teimava em conserval-o. Respondia por elle a mess Lethierry. O timoneiro Tangrouille não sahia nunca do navio e dormia a bordo. Na vespera da partida, quando o Sr. Clubin foi, já a horas mortas, visitar o navio, Tangrouille estava na sua maca e dormia. Acordou de noite. Era-lhe isso costume antigo. Quando o bebado não é senhor de si tem um esconderijo. Tangrouille tinha o seu, a que chamava dispensa. A dispensa secreta de Tangrouille era no porão onde se guardava a agua. Pol-a ahi para tornal-a inverosimil. Estava certo de que só elle conhecia aquelle esconderijo. O capitão Clubin era severo, porque era sobrio. O pouco rhum e gin que o timoneiro podia subtrahir á vigilancia do capitão, punha de reserva naquelle mysterioso cantinho, no fundo de uma celha de sonda, e quasi todas as noites tinha entrevista amorosa com aquella dispensa. Era rigorosa, a vigilancia, pobre devia ser a orgia, e de ordinario os excessos nocturnos de Tangrouille limitavam-se a dous ou tres goles furtivamente bebidos. Muitas vezes a dispensa estava vasia. Nessa noite Tangrouille achou lá uma garrafa de aguardente inesperada. Alegrou-se muito, e espantou-se ainda mais. De que céos lhe cahio aquella garrafa? Não pôde lembrar-se nem quando nem como levou-a para o navio. Bebeu-a immediatamente. Em parte fêl-o por prudencia: tinha medo que a aguardente fosse descoberta e confiscada. Atirou a garrafa ao mar. No dia seguinte quando tomou a cana do leme Tangrouille tinha certa oscillação. Todavia governou o barco quasi como nos outros dias. Quanto a Clubin, sabe-se que voltou a dormir na pousada João. Clubin trazia sempre debaixo da camisa um cinto de couro, de viagem, onde guardava uns vinte guinéos, e que só tirava á noite. No interior do cinto estava escripto o nome delle, escripto por elle mesmo no couro bruto com tinta lithographica, que é indelevel. Ao levantar, antes de partir, poz no cinto a caixinha de ferro contendo os setenta e cinco mil francos em notas do banco, depois atou o cinto, como costumava, á roda do corpo. III PALESTRA INTERROMPIDA Foi alegre a partida. Os passageiros, apenas arranjadas as malas por baixo e em cima dos bancos, passaram, ao navio, essa revista que nunca falta, e que parece obrigatoria, tal é o costume. Dous passageiros, o tourista e o parisiense, nunca tinham visto vapores, e desde os primeiros movimentos da roda, contemplaram a espuma, depois o fumo. Examinaram peça por peça, e quasi fio por fio, na coberta e entreponte, todos os apparelhos maritimos, argolas, ganchos, fateixas, cylindros, que á força de precisão e justeza são uma especie de colossal ourivesaria; ourivesaria de ferro dourada com ferrugem pela tempestade. Circularam o pequeno canhão de rebate atado na coberta, «com uma corrente de cão de sentinella,» observou o tourista, e «coberto com blusa de linho alcatroado para impedir as constipações» accrescentou o parisiense. Affastando-se de terra, trocaram-se as observações do costume acerca da perspectiva de Saint-Malo; um passageiro emittio o axioma de que as perspectivas do mar illudem, e que, a uma legua da costa, nada se parece mais com Ostende como Dunkerque. Completou-se o que havia a dizer de Dunkerque, observando-se que os seus navios de vigia, pintados de vermelho, chamam-se,--um _Ruyttngue_ e o outro _Mardyck._ Saint-Malo foi diminuindo até que desvaneceu-se de todo. O aspecto do mar era o vasto calmo. O rasto do navio fazia no oceano uma rua franjada de espuma que se prolongava quasi sem torsão a perder de vista. Guernesey está no centro de uma linha recta tirada de Saint-Malo em França, e Exeter em Inglaterra. A linha recta no mar nem sempre é a linha logica. Entretanto os vapores tem, até certo ponto, o poder de seguir a linha recta que não podem seguir os navios de vela. O mar e o vento formam um composto de forças. O navio é um composto de machinas. As forças são machinas infinitas, as machinas são forças limitadas. Entre os dous organismos, um inexgotavel, outro intelligente, trava-se o combate que se chama navegação. Uma vontade no mecanismo faz contrapeso ao infinito. Tambem o infinito encerra um mecanismo. Os elementos sabem o que fazem e para onde vão. Não ha força cega. Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerario. Emquanto se não descobre a lei, prosegue a luta, e nessa luta a navegação a vapor é uma especie de victoria perpetua que o genio humano vai ganhando a todas as horas do dia em todos os pontos do mar. A navegação a vapor é admiravel porque disciplina o navio. Diminue a obdiencia ao vento e augmenta a obdiencia ao homem. Nunca a Durande trabalhou no mar como naquelle dia. Andava maravilhosamente. Pelas 11 horas, soprando uma fresca brisa de nor-nordeste, achou-se a Durande do lado de Minquiers, trabalhando com pouco vapor, navegando a oeste e conchegada ao vento. Claro e bello estava o céo. Todavia iam voltando para terra todos os pescadores. A pouco e pouco, como se todos pensassem em ancorar nos portos, ia-se o mar limpando de navios. Não se podia dizer que a Durande estivesse no caminho do costume. A tripulação não se preoccupava com isso, era absoluta a confiança no capitão; entretanto, talvez por culpa do timoneiro, havia algum desvio. A Durande parecia antes ir para Jersey que para Guernesey. Pouco depois das onze horas, o capitão rectificou a direcção e aproou para o lado de Guernesey. Perdeu-se algum tempo. Nos dias curtos o tempo perdido tem inconvenientes. Fazia um bello sol de Fevereiro. Tangrouille, no estado em que estava, já não tinha nem pés nem braços firmes. Resultava dahi que o bravo timoneiro desviava-se da costa e atrazava a marcha. O vento ia amainando. O passageiro guernesiano, que tinha um oculo na mão, firmava-o de tempos a tempos para um froco de espuma coada pelo vento no extremo horisonte de oeste, assemelhando-se a um pouco de algodão, empoeirado em roda. O capitão Clubin tinha o aspecto puritano do costume. Parecia redobrar de attenção. Tudo estava calmo e quasi risonho a bordo da Durande; os passageiros conversavam. Fechando os olhos, no meio de uma viagem, pode-se avaliar do estado do mar pelo tremolo da conversa. A plena liberdade de espirito dos passageiros corresponde á perfeita tranquillidade da agua. É impossivel, por exemplo, que houvesse uma conversa, como esta que se segue, em mar que não fosse calmo. --Veja aquella bonita mosca verde e encarnada. --Perdeu-se no mar e descança no navio. --As moscas não se cançam muito. --Pudera! são tão leves. Carrega-as o proprio vento. --Já se pezou uma onça de moscas, e contadas depois vio-se que eram seis mil duzentas e sessenta e oito. O guernesiano do oculo tinha-se chegado aos maloenses mercadores de gado, e a conversa delles era pouco mais ou menos esta: --O boi de Aubrac tom o tronco redondo e bojudo, as pernas curtas, o pello amarello. É demorado no trabalho por causa da pequenez das pernas. --Neste ponto, o Salers vale mais que o Aubrac. --Vi dous magnificos bois em minha vida. O primeiro tinha as pernas curtas, o joelho espesso, alcatra grossa, as nadegas largas, bom comprimento da nuca á garupa, boa altura no garrote, manejo facil, pelle boa de arrancar-se. O segundo apresentava todos os signaes da um engordamento judicioso, tronco reforçado, pescoço robusto, pernas leves, pelle branca e vermelha, alcatra cahida. --Isso é raça da costa. --Sim, mas com certa semelhança com o touro angus ou o touro suffolk. --Acredite se quer, no meio-dia ha concurso de bestas. --De bestas? --De bestas. Como tenho a honra de lhe dizer. E as feias é que são bonitas. --Então são como as jumentas. As feias é que são boas. --Justamente. A jumenta deve ter barriga grossa e pernas grossas. --A melhor jumenta deste mundo é uma barrica sobre quatro estacas. --A belleza dos animaes não é como a belleza dos homens. --É sobretudo das mulheres. --Justo. --Eu cá quero que a mulher seja bonita. --Prefiro-a bem trajada. --Sim, limpa, asseiada, esticadinha. --Ares de mocidade. Uma rapariga deve parecer que sahe do joalheiro. --Volto aos bois. Vi vender os taes bois no mercado de Thouars. --Conheço o mercado. Os Boniau de la Rochelle, e os Babu, os mercadores de trigo de Marans, não sei se ouvio fallar delles, devem ter ido a esse mercado. O tourista e o parisiense conversavam com o americano das Biblias; a conversação ahi era como nos outros grupos. Dizia o tourista: --Eis a tonellagem fluctuante do mundo civilisado; França, sete centas e dezeseis mil tonelladas; Allemanha, um milhão; Estados-Unidos, cinco milhões; Inglaterra, cinco milhões e quinhentos mil. Acrescente-se o contingente das pequenas bandeiras. Total; doze milhões nove centos e quatro mil tonelladas distribuidas por cento e quarenta e cinco mil navios na agua do globo. O americano interrompeu. --Os Estados-Unidos é que tem cinco milhões e quinhentos mil. --Convenho, disse o tourista. O senhor é americano? --Sim, senhor. Houve um silencio; o americano missionario perguntou a si mesmo se era occasião de offerecer uma Biblia. --Será verdade, continuou o tourista, que os senhores lá na America gostam tanto das alcunhas, a ponto de as pôr em todos os seus homens celebres? Será verdade que chamaram ao famoso banqueiro do Missouri, Thomaz Benton, _a velha barra de ouro?_ --Do mesmo modo que chamamos ao Zacharias Taylor, _o velho Zach?_ --E o general Harrison, _o velho Tip?_ e o general Jackson _o velho Hickory?_ --Sim, porque Jackson é duro como pão hickory, e Harrison bateu os Pelles Vermelhas em Tippecauve. --É um costume bysantino esse. --É costume nosso. Chamamos Van Buren o _feiticeirinho_, Seward, que mandou fazer bilhetes miudos do banco, _o bilhete miudo_, e Douglas, o senador democrata do Illinois, que tem quatro pés de altura e uma grande eloquencia, o _gigantinho._ Percorra do Texas ao Maine, não encontrará ninguem que diga este nome: Cass; todos dizem: _o grande Michigantier_; nem este nome: Clay; dizem todos: o _rapaz do moinho acutilado._ Clay é filho de um moleiro. --Eu prefiro, Clay ou Cass, observou o parisiense, é mais curto. --Pois estaria fóra do uso. Nós chamamos Corwin, que é secretario do thesouro _o rapaz da carreta._ Daniel Webster é o _negro Dan._ Quanto a Winfield Scott, como a sua primeira idéa, depois de bater os inglezes em Chippeway, foi assentar-se á mesa, chamamo-lo _Da-cá-um-prato-de-sopa-depressa._ Tinha-se agigantado o froco de neve. Occupava no horisonte um segmento de cerca de 15 gráos. Dissera-se uma nuvem arrastada á flôr d'agua por falta de vento. Não havia um sopro de brisa se quer. Embora fosse apenas meio dia, o sol ia empallidecendo. Allumiava, mas já não aquecia. --Creio, disse o tourista, que o tempo vai mudar. --Talvez haja chuva, disse o parisiense. --Ou nevoeiro, disse o americano. --Na Italia, continuou o tourista, o lugar em que cahe menos chuva é Molfetta, e onde cahe mais é em Tolmezzo. Ao meio-dia, segundo o uso do archipelago, tocou a sineta para jantar. Jantou quem quiz. Alguns passageiros levavam comida comsigo e comeram no convez. Clubin não jantou. Ao jantar, a palestra continuou. O guernesiano, tendo o faro das Biblias, approximou-se do americano. O americano disse-lhe: --Conhece este mar? --Sem duvida, sou filho delle. --E tambem eu, disse um dos maloenses. O guernesiano adherio com um comprimento, e continuou: --Agora estamos ao largo, mas não me agradava nada ter nevoeiro emquanto estavamos ao pé dos Minquiers. O americano disse ao maloense. --Os insulares são mais homens do mar que a gente da costa. --É exacto, nós os filhos da costa, temos apenas metade do mar. --Que cousa é essa dos Minquiers? continuou o americano. O maloense respondeu: --São umas pedras ruins. --Ha tambem os Grelets, disse o guernesiano. --Ora! disse o maloense. --E os Chouas, accrescentou o guernesiano. O maloense deu uma gargalhada. --Dessa fórma, disse elle, temos tambem os Sauvages. --E os Maine, observou o guernesiano. --E o Canard, disse o maloense. --O senhor tem resposta para tudo, disse o guernisiano com rapidez. --Maloense, malicioso. Dando esta resposta, o maloense piscou o olho. O tourista interpoz uma pergunta. --Dar-se-ha caso que vamos atravessar toda essa pedraria de que os senhores fallam? --Qual! Deixamol-a a sudoeste. Já ficou atraz de nós. E o guernesiano continuou: --Entre grandes e pequenos, os Grelets têm cincoenta e sete pontas de rocha. --E os Minquiers quarenta e oito, disse o maloense. Aqui o dialogo concentrou-se entre o maloense e o guernesiano. --Parece-me, Sr. de Saint-Malo, que ha tres rochedos que o Sr. deixou de contar. --Contei tudo. --A Derée da Maitre-Ile? --Sim. --E Maisons tambem? --Que são sete rochas no meio dos Minquiers. Sim. --Já vejo que conhece os cachopos. --Quem não os conhece não é de Saint-Malo. --Causa gosto ouvir o raciocinio dos francezes. O maloense comprimentou, e disse: --Sauvages são tres rochedos. --E Maines são dous. --Canard é um. --Basta dizer Canard; já se sabe que é um. --Não, por que a Suarde são quatro rochedos. --Que é a Suarde? perguntou o guernesiano. --Chamamos Suarde ao que o senhor chama Chouas. --Não é bom passar entre Chouas e Canard. --Só os passaros podem passar ahi. --E os peixes. --Nem sempre. Quando ha máo tempo, os peixes esbarram-se nas rochas. --Ha arêa em Minquiers. --Á roda de Maisons. --Veem-se oito rochedos de Jersey. --Da praia de Asette, é justo. Náo são oito, são sete. --Nas vasantes póde-se passear entre os Minquiers. --Sem duvida, ha espaço. --E Dirouilles? --Dirouilles não tem nada com Minquiers. --Quero dizer que é perigoso. --É do lado de Granville. --Vê-se que, como nós, os senhores de Saint-Malo gostam de navegar nestes mares. --Sim, disse o maloense, com a differença de que nós dizemos: estamos acostumados, e os senhores dizem: gostamos. --São bons marinheiros os senhores. --Eu sou mercador de gado. --Quem é que foi tambem de Saint-Malo? --Surcouf. --Não, outro. --Duguay-Trouin. Aqui o viajante parisiense interrompeu. --Duguay-Trouin? foi apanhado pelos inglezes. Era tão amavel quão valente. Agradou a uma joven ingleza. Foi ella quem lhe quebrou os ferros. Neste momento uma voz tremenda gritou: --Estás bebado! IV MOSTRAM-SE TODAS AS QUALIDADES DO CAPITÃO CLUBIN Voltaram-se todos. Era o capitão Clubin que interpellava o timoneiro. O Sr. Clubin não tratava ninguem por tú. Para que elle atirasse a Tangrouille semelhante apostrophe, era preciso que estivesse colerico ou quizesse mostrar-se assim. Uma expressão de colera, vindo a proposito, demitte a responsabilidade, e algumas vezes deita-a para as costas de outrem. O capitão, de pé no lugar do commando, entre as caixas, das rodas, olhava fixamente para o timoneiro. Repetio entre dentes: Beberrão! O honesto Tangrouille abaixou a cabeça. Desenvolvia-se o nevoeiro. Já occupava metade do horisonte. Avançava em todos os sentidos ao mesmo tempo; o nevoeiro parece-se com a gota de óleo. A bruma alargava-se insensivelmente. O vento soprava-a sem pressa e sem rumor. A pouco e pouco ia elle apoderando-se do oceano. Vinha de nordeste e o navio estava com ella pela prôa. Era um vasto penedio movediço e vago. Cortava-se no mar como se fosse uma muralha. Havia um ponto preciso em que a agua immensa entrava por baixo do nevoeiro e desapparecia. Este ponto de entrada no nevoeiro estava ainda a meia legua de distancia. Se o vento mudasse, podia-se evitar a immersão na bruma; mas era preciso que mudasse logo. A meia legua de intervallo enchia-se e diminuia a olhos vistos; a Durande caminhava, o nevoeiro tambem. O nevoeiro ia para o navio, o navio para o nevoeiro. Clubin mandou augmentar o vapor e obliquar a leste. Deste modo costeou-se algum tempo o nevoeiro, mas elle avançava sempre. Todavia o navio continuava a andar em pleno sol. Perdia-se o tempo naquellas manobras que difficilmente podiam dar bom resultado. Anoitece cedo em Fevereiro. O guernesiano comtemplava a bruma. Disse aos maloenses: --É atrevido este nevoeiro. --Desaceio do mar, observou um dos maloenses. O outro accrescentou: --Isto atraza a viagem. O guernesiano aproximou-se de Clubin. --Capitão Clubin, receio que sejamos envolvidos pelo nevoeiro. Clubin respondeu: --Eu queria ficar em Saint-Malo, mas aconselharam-me que partisse. --Quem? --Veteranos do mar. --Fez bem em partir, continuou o guernesiano. Quem sabe senão haverá tempestade amanhã? Nesta estação espera-se o peior. Alguns minutos depois a Durande entrava no nevoeiro. Foi singular esse momento. Toda a gente que estava na pôpa ficou de repente sem ver a gente que ia na prôa. Tenue tabique cinzento cortou o navio ao meio. Depois todo o navio mergulhou na bruma. O sol parecia uma lua. Subito todos começaram a tiritar. Os passageiros vestiram as capas, e os marinheiros as japonas. O mar, quasi sem uma dobra, tinha a fria ameaça da tranquillidade. Parece que ha conluio neste excesso da calma. Tudo estava pallido e enfiado. O negro cano e a fumaça negra lutavam contra a lividez que cercava o navio. A derivação a leste já não tinha razão de ser. O capitão aproou de novo sobre Guernesey e augmentou o vapor. O passageiro guernesiano, andando á roda da machina, ouvio o negro Imbrancam que fallava a um dos companheiros. O passageiro prestou ouvidos. Dizia o negro: --Quando havia sol iamos devagar; agora que ha nevoeiro, vamos depressa. O guernesiano foi ter com o Sr. Clubin. --Capitão Clubin, não ha cuidado; mas não acha que vamos depressa demais? --Que quer senhor? É preciso ganhar o tempo perdido por culpa daquelle bebado. --É verdade, capitão Clubin. E Clubin accrescentou. --Quero chegar quanto antes. Já basta o nevoeiro; com a noite ficariamos aceiados. O guernesiano foi ter com os maloenses e disse-lhes: --Temos um excellente capitão. De quando em quando ondas grandes de bruma, que pareciam cardadas, passavam e escondiam o sol. Depois o sol reapparecia mais pallido, e como que enfermo. O pouco céo que se via assemelhava-se ás fachas de ar sujas e manchadas de uma velha decoração de theatro. A Durande passou junto de um cuter que tinha ancorado por prudencia. Era o _Shealtiel_, de Guernesey. O patrão do cuter notou a rapidez com que ia a Durande. Pareceu-lhe que não estava no caminho exacto; affigurou-se-lhe que obliquava a oeste. Vendo aquelle navio, andando a todo o vapor no meio do novoeiro, o homem pasmou. Pelas duas horas a bruma era tão espessa, que o capitão foi obrigado a deixar o lugar do costume, e a aproximar-se do timoneiro. O sol desmaiára; tudo era nevoeiro. Havia na Durande uma especie de escuridão branca. Navegava-se na pallidez diffusa. Já se não via nem o céo nem o mar. Não ventava. A ancoreta da therebentina suspensa em uma argola ao pé da caixa das rodas já não tinha oscillação. Os passageiros tornaram-se silenciosos. Comtudo o parisiense cantarolava entre dentes a canção de Béranger _Un jour le bon Dieu s'éveillant._ Um dos maloenses dirigio-lhe a palavra. --O senhor vem de Paris? --Sim senhor. _II mit la tête à la fenêtre._ --Que se faz por lá? --_Leur planète a péri peut-être._ Lá em Paris tudo anda mal. --Então é tanto lá em terra como aqui no mar. --Realmente, este nevoeiro é o diabo. --E póde causar desgraças. O parisiense exclamou: --Mas, porque desgraças! a proposito de que? de que servem desgraças? É o caso do incendio do Odeon! Ficou uma porção de familias reduzidas á miseria! É justo isto? Olhe cá, eu não sei qual é a sua religião, mas digo-lhe que não estou contente. --Nem eu, disse o maloense. --Tudo o que se passa neste mundo, continuou o parisiense, parece um desconcerto. Creio que Deos não entra nisto. O maloense coçou o alto da cabeça, como quem procura comprehender. O parisiense continuou. --Deos está ausente. Devia-se lavrar um decreto para obriga-lo a residir aqui. Anda lá na sua casa de campo e não se importa comnosco. E tudo vai torto e mal encaminhado. É evidente, meu bom senhor, que Deos já não está no governo, está em ferias, e é o vigario, algum anjo seminarista, algum bocio com azas de pardal, quem dirige os negocios. O capitão Clubin, que se aproximara, pôz a mão no hombro do parisiense. --Silencio, disse elle. Cuidado nas palavras. Estamos no mar. Ninguem mais fallou. No fim de cinco minutos, o guernesiano, que tudo ouvira, murmurou aos ouvintes. --É um capitão religioso. Não chovia e todos estavam molhados. Só se reparava no caminho que o navio descrevia por uma especie de máo-estar. Parecia que se entrava na tristeza. O nevoeiro emmudece o oceano, adormenta a vaga e supita o vento. Naquelle silencio, o rumor da Durande tinha um não sei que de inquieto e lamentoso. Já se não encontravem navios. Só ao longe, quer do lado de Guernesey, quer do lado de Saint-Malo, alguns navios estavam no mar, fóra do nevoeiro; para esses a Durande, submergida na bruma, não era visivel, e a sua longa fumaça, presa a cousa nenhuma, parecia-lhes um cometa negro no céo branco. De repente Clubin exclamou: --Com seiscentos! estás dirigindo mal. Olha que me avarias o barco! Mereces bem que te ponha a ferros. Vai-te, bebado! E tomou a canna do leme. O timoneiro humilhado refugiou-se na cordoalha da prôa. Disse o guernesiano: --Estamos salvos. A marcha continuou rapida. Pelas tres horas, a orla inferior do nevoeiro começou a levantar-se e vio-se o mar. --Máo! disse o guernesiano. Só o sol ou o vento deve levantar a bruma. Quando é o sol é bom signal; quando é o vento, não é tão bom signal. Era tarde já para ser o sol. Ás tres horas, em Fevereiro, o sol está fraco. Não era cousa desejavel a volta do vento naquella situação critica. Muitas vezes annuncia o furacão. Verdade seja, que, se havia brisa, mal se sentia. Clubin, com o olhar na bitacula, governando o leme, mastigava algumas palavras que chegavam aos passageiros; era isto mais ou menos: --Não ha tempo a perder. Aquelle bebado demorou a viagem. O seu rosto, porém, não tinha expressão alguma. O mar estava menos adormecido. Já se enxergavam algumas vagas. Luzes geladas fluctuavam na agua. Essas placas de clarão nas ondas preocupam os marinheiros. Indicam que o vento faz buracos por cima do nevoeiro. A bruma levantava-se e tornava a cahir mais densa. As vezes a opacidade era completa. O navio estava numa verdadeira montanha de nevoeiro. De quando em quando aquelle circulo tremendo abria-se como uma tenaz, deixava ver o horisonte, e fechava-se depois. O guernesiano, armado de um oculo, estava como uma vedeta, na frente do navio. Clareou, depois escureceu outra vez. O guernesiano voltou-se assustado: --Capitão Clubin! --Que é? --Vamos direito aos cachopos de Hanois. --É engano, disse Clubin friamente. O guernesiano insistio: --Estou certo. --Impossivel. --Vi uma pedra no horisonte. --Onde? --Alli? --É ao largo. Impossivel. E Clubin continuou a pôr o navio no ponto indicado pelo passageiro. O guernesiano travou do oculo. Minutos depois correu para o capitão. --Capitão! --Que é? --Vire de bordo. --Por que? --Vi uma rocha muito alta e muito perto. É o grande Hanois. --Ha de ser algum nevoeiro mais escuro. --É o grande Hanois. Vire de bordo, em nome do céo! Clubin deu uma volta á canna do leme. V CLUBIN LEVA A ADMIRAÇÃO AO CUMULO Ouvio-se um estalo. O rasgamento do flanco de um navio, em um cachopo, em mar alto, é um dos sons mais lugubres que se póde imaginar. A Durande parou. Com o choque muitos passageiros cahiram e rolaram no tombadilho. O guernesiano levantou as mãos para o céo. --Nos Hanois! eu bem dizia! Longo grito soou no navio. --Estamos perdidos. A voz de Clubin, secca e breve, dominou o grito. --Ninguem está perdido! E silencio! O corpo negro de Imbrancam, nú até a cintura, sahio do espaço da machina. O negro disse com calma: --Capitão, a agua está entrando. A machina vai apagar-se. Terrivel foi o momento. O choque assemelhava-se a um suicidio. Se fosse de proposito não seria mais terrivel. A Durande atirou-se como se atacasse o rochedo. Uma pontada rocha penetrou no navio como um prego. Mais de uma toesa quadrada de vergas rebentou, rompeu-se a roda de prôa, fracassou a quilha, partio-se o gurupés, o casco aberto bebia agua aos borbotões. Era uma chaga por onde entrava o naufragio. A reacção foi tão violenta que quebrou na pôpa a caixa do leme que ficou solto e oscillante. O cachopo arrancara o fundo, e á roda do navio, não se via nada, além do nevoeiro espesso e compacto e agora quasi negro. Chegava a noite. A Durande mergulhava pela prôa. Era o cavallo que tem nas entranhas a ponta do touro. Estava morta. Sentia-se no mar a hora da maré. Tangrouille estava desperto da embriaguez; ninguem fica bebado em um naufragio; desceu abaixo, subio e disse: --Capitão, a agua enche o porão. Dentro de dez minutos está nos embornaes. Os passageiros corriam no tombadilho fóra de si, torcendo os braços, inclinando-se na amurada, olhando para a machina, fazendo todos os movimentos inuteis do terror. O tourista desmaiou. Clubin fez um signal com a mão, calaram-se todos. Interrogou Imbrancam: --Quanto tempo pode a machina trabalhar ainda? --Cinco ou seis minutos. Depois interrogou o passageiro guernesiano: --Eu estava ao leme. O senhor observou o rochedo. Em qual dos Hanois estamos nós? --Na Mauve. Reconheci ainda agora, com um pouco de claridade. --Sendo a Mauve, continuou Clubin, temos o grande Hanois a bombordo e o pequeno Hanois a estibordo. Estamos a uma milha de terra. A equipagem e os passageiros escutavam, tremulos de anciedade e de attenção, com os olhos fixos no capitão. Allijar o navio era inutil, e demais, impossivel. Para pôr a carga ao mar, era preciso abrir as portinholas e augmentar as probabilidades de entrar agua. Atirar a ancora era inutil; estavam pregados. Demais podia ficar presa. Não estava avariada a machina, e continuando á disposição do navio emquanto o fogo não estava apagado, isto é, por alguns minutos, podia-se á força de rodas e de vapor, recuar e arrancar o navio do escolho. Nesse caso iria ao fundo immediatamente. O rochedo até certo ponto tapava o rombo e tolhia a passagem da agua. Servia de obstaculo. Desobstruida a abertura, seria impossivel impedir a entrada da agua. Quem retira o punhal de uma ferida no coração, mata logo o ferido. Sahir do cachopo era ir ao fundo. Os bois, atacados pela agua, começavam a mugir. Clubin ordenou. --A chalupa ao mar. Imbrancam e Tangrouille precipitaram-se e desataram as amarras. O resto da tripulação olhava petrificado. --Todos á obra, gritou Clubin. Desta vez obdeceram todos. Clubiu, impassivel, continuou a dar ordens, naquella velha lingua do mar, que os marinheiros de hoje não comprehenderiam. A chalupa estava no mar. No mesmo instante, as rodas da Durande pararam, cessou o fumo, a fornalha estava cheia de agua. Os passageiros, resvalando ao longo da escada ou pendurando-se nas enxarcias, deixavam-se antes cahir que descer na chalupa. Imbrancam apanhou o tourista desmaiado, levou-o para a chalupa, depois subio ao navio. Os marinheiros atiravam-se apoz os passageiros. O grumete rolou; elles pisavam o rapaz. --Ninguem antes do moço, disse elle. Afastou com os braços negros os marinheiros, apanhou o grumete, e estendeu-o ao passageiro guernesiano, que, de pé na chalupa, recebeu o rapaz. O grumete salvo, Imbrancam deu caminho e disse: --Passem. Entretanto, o Sr. Clubin, foi ao seu camarote e fez um embrulho dos papeis de bordo e dos instrumentos. Tirou a bussola da bitacula. Entregou os papeis e os instrumentos a Imbrancam e a bussola a Tangrouille, e disse-lhes: --Desçam á chalupa. Elles desceram. A tripulação tinha-os precedido. A chalupa estava cheia. Estava quasi rasa. --Agora, disse Clubin, vão embora. --E o senhor, capitão? --Fico. As pessoas que naufragam tem pouco tempo de deliberar e ainda menos de internecer-se. Entretanto os que estavam na chalupa, e relativamente com segurança, tiveram uma commoção que não era por elles. Todas as vozes insistiram ao mesmo tempo. --Venha comnosco, capitão. --Fico. O guernesiano, que conhecia o mar, replicou: --Ouça, capitão. O senhor naufragou nos Hanois. A nado ha apenas uma milha até Plainmont. Mas na chalupa só se póde abordar na Roquaine, e são duas milhas. Ha cachopos e nevoeiro. Esta chalupa não chega á Roquaine antes de duas horas. Não tarda a anoitecer. Enchendo á maré refresca o vento. Está proxima a borrasca. É nosso desejo vir buscal-o depois, mas se romper o temporal, não será possivel. Se fica está perdido. Venha. O parisiense interveio: --A chalupa está cheia, e cheia de mais, é verdade, e um homem de mais seria ainda peior. Mas nós somos treze, é máo numero para a barça, e é melhor sobrecarregal-a de um homem que de um algarismo. Trangouille accrescentou: --A culpa é minha, não é sua. Não é justo que o senhor fique. --Fico, disse Clubin. O navio será despedaçado pela tempestade hoje de noite. Não o deixarei. Quando o navio se perde, morre o capitão. Dir-se-ha de mim que eu cumpri o meu dever. Perdôo-te, Tangrouille. E crusando os braços gritou: --Attenção ás ordens. Larguem a banda da amarra. Partam! Abalou-se a chalupa. Imbrancam tomou o leme. Todas as mãos que não remavam voltaram-se para o capitão. Todas as bocas gritaram: Hourrah para o capitão Clubin! --Eis um homem admiravel, disse o americano. --É o mais honrado homem do mar, respondeu o guernesiano. Trangouille chorava. --Eu devia ter ficado com elle. A chalupa internou-se por entre o nevoeiro, e desappareceu. Não se vio mais nada. O rumor dos remos diminuio e perdeu-se. Clubin estava só. VI ALLUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO Quando aquelle homem achou-se naquelle rochedo, debaixo daquella nuvem, no meio daquella agua, longe do contacto humano, deixado por morto, sósinho entre o mar que subia e a noite que descia, teve profundo jubilo. Alcançara o que queria. Realisara-se-lhe o sonho. Estava paga a letra de longo praso que elle saccou sobre o destino. Para elle, ficar abandonado, era ficar livre. Estava no Hanois, a uma milha de terra; tinha setenta e cinco mil francos. Nunca se realisou mais acertado naufragio. Nada falhou; é verdade que tudo estava previsto. Desde a juventude Clubin teve uma idéa; fazer da honestidade uma parada no jogo da _roulette_ da vida, passar por homem probo, e partir dahi, esperando que a sorte corresse; não apalpar, segurar; fazer um lance, mas só um, agarrar tudo, e deixar atraz os papalvos. Assentava que devia alcançar de uma vez aquillo que os larapios tolos deixam de agarrar vinte vezes, e, emquanto estes vão ter á forca, elle iria á fortuna. O encontro de Rantaine foi o raio de luz. Construio immediatamente o plano: obrigar Rantaine á restituição; quanto ás suas revelações possiveis, annulal-as desapparecendo; passar por morto, que é a melhor desapparição do mundo; para isso fazer naufragar a Durande. O naufragio era necessario. Além de tudo, ir-se embora deixando boa fama, era fazer da sua existencia uma obra prima. Quem podesse ver Clubin naquelle naufragio acreditaria ver um demonio feliz. Viveu toda a sua vida naquelle minuto. Toda a sua pessoa exprimia esta palavra; Emfim! Tremenda serenidade empallideceu aquella fronte obscura. Os olhos embaciados, no fundo dos quaes parecia haver um tabique, tornou-se profundo e terrivel. O abrasamento interno daquella alma reverberou-se nelles. O foro intimo, como a natureza externa, tem a sua tensão elastica. Uma idéa é um meteóro; no momento do triumpho, entreabrem-se as meditações acumuladas que o preparam, e jorra uma faisca; ter em si uma garra do mal, e sentir nella uma presa, ventura é esta que tem a sua irradiação; máo pensamento que triumpha illumina o rosto daquelle que o concebeu; certas combinações triumphantes, certos desejos realisados, certas felicidades ferozes, fazem apparecer e desapparecer nos olhos dos homens, lugubres e luminosas dilatações. É a tempestade jubilosa, é a aurora ameaçadora. Tudo isso sahe da consciencia, que se faz sombria e ennevoada. Foi esse fulgor que illuminou aquelles olhos. Relampago que não se parecia com cousa alguma do que se póde ver no céo e na terra. O velhaco comprimido que havia em Clubin fez explosão. Clubin fitou a immensa obscuridade, e não pôde reter uma gargalhada baixa e sinistra. Estava livre! estava rico! Achara a incognita. Resolvera o problema. Clubin tinha tempo de cuidar de si. A maré enchia e por conseguinte sustentava a Durande, e afinal devia pol-a a nado. Mas o navio adheria solidamente ao rochedo; não havia perigo de sossobrar. Além disso, era preciso deixar á chalupa o tempo de affastar-se, perder-se talvez; Clubin contava com isso. De pé sobre a Durande naufragada, cruzou os braços, saboreando aquelle abandono nas trevas. A hypocrisia pesou áquelle homem durante trinta annos. Era o mal, e consorciou-se com a probidade. Odiava a virtude com um odio de mal casado. Teve sempre uma premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquella armadura rigida, a apparencia. Era monstro internamente; vivia em uma pelle de homem de bem, com um coração de bandido. Era o pirata ameno. Era prisioneiro da honestidade; estava fechado naquelle caixão de mumia, a innocencia; tinha nas costas azas de anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe de mais a estima publica. Passar por homem honrado é duro! Manter constante equilibrio, pensar mal e fallar bem, que labutação! Clubin era o phantasma da rectidão, sendo o espectro do crime. Este contra-senso foi o destino delle. Era-lhe preciso mostrar ares apresentaveis, escumar por baixo do nivel, sorrir em vez de ranger. A virtude para elle, era cousa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquella mão que lhe tapava a boca. E querendo mordel-a, foi obrigado a beijal-a. Ter mentido, é ter soffrido. O hypocrita é um paciente na dupla accepção de palavra; calcula um triumpho e soffre um supplicio. A premeditação indefinida de uma acção ruim acompanhada por dóses de austeridade, a infamia interior temperada de excellente reputação, enganar continuadamente, não ser jámais quem é, fazer illusão, é uma fadiga. Compôr a candura com todos os elementos negros que trabalham no cerebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compôr o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma belleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cocegas com o punhal, pôr assucar no veneno, velar na franqueza do gesto e na musica da voz, não ter o proprio olhar, nada mais difficil, nada mais doloroso. O odioso da hypocrisia começa obscuramente no hypocrita. Causa nauseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astucia disfarça a malvadeza repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e ha momentos de enjôo em que o hypocrita vomita quasi o seu pensamento. Engulir essa saliva é cousa horrivel. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hypocrita se estima. Ha um _eu_ desmedido ao impostor. O verme resvala como o dragão e como elle retesa-se e levanta-se. O traidor não é mais que um despota tolhido que não póde fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hypocrita é um titão-anão. Clubin imaginava de boa fé que tinha sido opprimido. Porque razão não nascèra rico? O que elle queria era que os paes lhe houvessem deixado cem mil libras de renda. Por que não as tinha? Não era culpa delle. Porque motivo, não lhe dando todos os gosos da vida, forçaram-n'o a trabalhar, isto é, a enganar, a trahir, a destruir? Porque motivo condemnaram-n'o assim a essa tortura de adular, de rastejar, de comprazer, de fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto um rosto que não ere delle? Dissimular é uma violencia imposta. Odeia-se diante de quem se mente. Soára emfim a hora. Clubin vingava-se. De quem? De todos e de tudo. Lethierry não lhe fez senão bem: queixa de mais; vingava-se de Lethierry. Vingava-se de todos aquelles ante quem foi obrigado a constranger-se. Desforrava-se. Quem quer que pensasse bem delle, era seu inimigo, porque elle foi captivo desse homem. Clubin achava-se livre. Realisára-se a fuga. Estava fóra dos homens. O que se tinha por morte, era vida; elle ia começar agora. O verdadeiro Clubin despojava-se do falso Clubin. De um lance dissolveu tudo. Empurrou com o pé, Rantaine ao espaço, Lethierry á ruina, a justiça humana ás trevas, a opinião ao erro, a humanidade inteira para longe de si. Tinha eliminado o mundo. Quanto a Deos, Clubin curava pouco dessa palavra de quatro letras. Passou como religioso. Que importa? Ha cavernas no hypocrita ou antes, o hypocrita é uma caverna. Quando Clubin ficou só, abrio-se-lhe o antro. Teve um instante de delicias; arejou a alma. Respirou largamente o seu crime. O fundo do mal tornou-se visivel naquelle rosto. Clubin abrio-se. Nesse momento, o olhar de Rantaine ao pé daquelles olhos pareceria um olhar de recem-nado. Arrancar a mascara, que livramento! A consciencia de Clubin alegrou-se por ver-se hediondamente nua, e por tomar livremente um banho ignobil no mal. O constrangimento de um longo respeito humano acaba por inspirar um gosto violento á impudencia. Chega-se a uma certa lascivia na perversidade. Existe nessas tremendas profundezas moraes tão pouco sondadas, uma não sei que ostentação atroz e agradavel que é a obscenidade do crime. A insipidez da falsa reputação dá appetite de vergonha. Desdenha-se os homens a ponto tal que se deseja o despreso delles. Ser estimado, aborrece. Admira-se a franquesa da degradação. Olha-se cobiçosamente a torpeza que se mostra tão a seu gosto na ignominia. Os olhos obrigados a baixar-se, tem muitas vezes destes olhares obliquos. Nada se approxima tanto de Messalina como Maria Alacope. Vede Capiere e a religiosa de Louviers. Clubin vivera debaixo do véo. O descaramento foi sempre a sua ambição. Invejava a mulher publica e a fronte de bronze do opprobrio aceito; sentia-se mais mulher publica do que ella e tinha desgosto em passar por virgem. Foi o Tantalo do cynismo. Emfim naquella solidão, podia ser franco; era-o. Que volupia não é sentir-se sinceramente abominavel! Todos os extasis possiveis no inferno, teve-os Clubin naquelle momento; foram-lhe pagos todos os atrasados da dissimulação; a hypocrisia é um adiantamento; Satanaz embolsou-o, Clubin embriagou-se de desfaçamento, pois que os homens tinham desapparecido e apenas ficara o céo. Disse comsigo: Sou um picaro! e ficou satisfeito. Jamais houve cousa igual em uma consciencia humana. Erupção de um hypocrita, não ha rompimento de cratera igual a esse. Achava-se feliz por não haver ali ninguem, e não desgostaria que alguem o visse. Teria prazer em ser medonho á vista de uma testemunha. Teria prazer em dizer ao espirito humano: és idiota! A ausencia de homens assegurava-lhe o triunpho, mas diminuia-o. Só elle era o espectador da sua gloria. Ha certo encanto em estar de golilha. Toda a gente vê que és infame. Obrigar a multidão a examinar-te é reconhecer a tua força. Um galé, sobre um estrado, com uma coleira de ferro ao pescoço, é o despota de todos os olhares que elle obriga a voltarem-se para si. Aquelle cadafalso é ao mesmo tempo pedestal. Que mais bello triumpho do que esse de ficar no centro de convergencia para a attenção geral? Obrigar o olhar publico é uma das formas da supremacia. Os que tem o mal por ideal acham no opprobrio uma auréola. Domina-se dahi. Olha-se de cima de alguma cousa. Mostra-se com soberania. Um poste, á vista de todo o universo, tem alguma analogia com um throno. Estar exposto, é ser contemplado. Um máo reinado tem evidentemente jubilos do pelourinho. Nero incendiando Roma, Luiz XIV tomando traiçoeiramente o Palatinado, o regente Jorge matando lentamente Napoleão, Nicoláu assassinando a Polonia em face da civilisação, deviam sentir um pouco daquella volupia sonhada por Clubin. A immensidade do despreso parece grandesa ao despresado. Ser desmascarado é uma derrota, mas desmascarar-se é uma victoria. É a ebridade, é a impudencia insolente e satisfeita, é uma nudez transportada que insulta tudo diante de si. Suprema felicidade. Estas ideas em um hypocrita parecem contradição, e não são. Toda a infamia é consequente. O mel é fel. Escobar confina no marquez de Sade. Prova: Leotade. O hypocrita, sendo o perverso completo, tem em si os dous polos da perversidade. De um lado é padre, do outro cortezão. O seu sexo de demonio é duplo. O hypocrita é o horrivel hermaphrodita do mal. Fecunda-se a si proprio; gera-se, transforma-se. Queres vel-o formoso? olha-o; queres vel-o horrivel? vira-o. Clubin tinha em si toda esta sombra de idéas confusas. Pouco as percebia, mas gozava-as muito. Uma porção de faiscas do inferno attravessando a noite, era a successão dos pensamentos naquella alma. Clubin conservou-se pensativo algum tempo; olhava para a sua honestidade com o ar com que a serpente contempla a pelle que despio. Toda a gente acreditou naquella honestidade, elle proprio acreditou um bocadinho nella. Deu segunda gargalhada. Iam pensar que elle estava morto, e estava vivo. Pensavam que estava perdido, e estava salvo. Que boa caçoada á tolice universal! E nessa tolice universal contava-se Rantaine. Clubin pensava em Rantaine com um desdem sem limites. Desdem da fuinha para com o tigre. Tinha conseguido o que falhára a Rantaine. Rantaine retirara-se enfiado, e Clubin triumphante. Tomou o lugar de Rantaine no leito da sua má acção, e foi elle quem teve a boa fortuna. Quanto ao fucturo, Clubin não tinha plano. Possuia os bilhetes do banco na boceta de ferro atada á cintura; bastava-lhe esta certeza. Mudaria de nome. Ha paizes onde sessenta mil francos valem seiscentos mil. Não seria má solução ir para um desses lugares viver honestamente com o dinheiro apanhado ao ladrão Rantaine. Especular, entrar em um grande negocio, engrossar o capital, tornar-se seriamente millionario, também não era máo. Por exemplo, em Costa Rica, como era o começo do grande commercio do café, podia ganhar toneis de ouro. Veria isso. Demais, pouco importava. Clubin tinha tempo de pensar nessas cousas. O mais difficil estava feito. Despojar Rantaine, desaparecer com a Durande era o mais importante. Estava feito. O resto era simples. Não havia obstaculo possivel. Nada de temer. Não podia acontecer nada. Nadaria para a costa, abordaria a Plainmont, de noite, galgaria as rochas da praia, iria á casa mal assombrada, entraria facilmente por meio da corda de nós escondida de antemão no buraco do rochedo; acharia na casa a mala contendo roupa e viveres, dentro de oito dias lá estavam os contrabandistas de Hespanha, Blasquito provavelmente; por alguns guineos, far-se-hia transportar, não a Tor Bay, como disse a Blasco para illudir, mas a Pasages ou a Bilbáo. Dahi iria a Vera-Cruz ou a Nova-Orleans. Já era tempo de atirar-se ao mar, a chalupa estava longe, uma hora a nado era cousa nenhuma para Clubin, só uma milha o separava de terra, pois que estava no Hanois. Neste ponto dos seus calculos, rasgou-se uma fresta do nevoeiro. O formidavel rochedo Douvres surgio aos seus olhos. VII INTERVEM O INESPERADO Clubin olhou espantado. Era o medonho escolho isolado. Não era possivel a illusão a respeito daquella configuração disforme. As duas Douvres gemeas campeavam horriveis deixando ver entre si, como uma armadilha, a garganta de que fallámos. Dissera-se um quebra-costas do oceano. Estavam perto delle as rochas Douvres; o nevoeiro, como cumplice, escondera-as. Clubin errara o caminho por causa do nevoeiro. Apezar de toda a attenção, aconteceu-lhe o mesmo que a dous grandes navegadores, a Gonzalez que descobrio o Cabo Branco, e a Fernandez que descobrio o Cabo Verde. A bruma desencaminhou-o. Pareceu-lhe excellente para a execução do projecto, mas tinha os seus perigos. Clubin desviou-se para o oeste e enganou-se. O passageiro guernesiano, acreditando ver o Hanois, determinou o movimento do leme final; Clubin cuidou que se atirava ao Hanois. A Durande arrombada por um dos bancos do escolho, estava separada das duas Douvres apenas por algumas centenas de braças. A duzentas braças mais longe via-se um massiço cubo de granito. Descobria-se nas faces escarpadas desta rocha algumas estrias e relevos apropriados para galgal-a. Os cantos rectilinios dessas rudes muralhas de angulo recto faziam presentir no cume uma planura. Era o Homem. A rocha Homem era mais alta ainda que as Douvres. A sua plataforma dominava as pontas inacessiveis das duas rochas. Essa plataforma, abatendo-se pelas bordas, tinha uma cimalha e mostrava uma certa regularidade architectural. Não se podia imaginar nada mais triste e funesto. As vagas iam dobrar as suas tranquillas toalhas, nas faces quadradas daquelle enorme rochedo negro, especie de pedestal para os espectros immensos do mar e da noite. Tudo aquillo estava mudo e morto. Havia apenas um sopro no ar e uma ruga nas ondas. Debaixo daquella superficie muda da agua advinhava-se a vasta vida afogada das profundezas. Clubin vira muitas vezes de longe o escolho Douvres. Convenceu-se bem que era ali as Douvres. Não podia duvidar. Subita e terrivel mudança. As Douvres em vez dos Hanois. Em vez de uma milha, cinco leguas do mar! o impossivel. A rocha Douvres, para o naufrago solitario, é a presença, visivel e palpavel dos ultimos momentos. É impossivel chegar á terra. Clubin estremeceu. Tinha se mettido no goela da sombra. Não havia outro refugio além do rochedo Homem. Era provavel que a tempestade sobreviesse de noite, e que a chalupa de Durande sobrecarregada sossobrasse. Nenhum aviso do naufragio chegaria a terra. Não se saberia mesmo que Clubin ficara no rochedo Douvres. Não havia outra perspectiva senão a morte por frio e fome. Os seus setenta e cinco mil francos nem mesmo lhe davam um bocado de pão. Tudo quanto elle construira deu em resultado aquella cilada; foi elle proprio o architecto laborioso de sua emboscada. Nenhum recurso. Nenhuma solução possivel. O triumpho fazia-se precipicio. Em vez da liberdade, a captura. Em vez de um futuro prospero e longo, a agonia. De um relance esboroou-se-lhe o edificio. O paraizo sonhado por aquelle demonio retomou a sua verdadeira figura; o sepulchro. Entretanto soprava o vento. O nevoeiro, saccudido, furado, repuxado, desfazia-se no horisonte em grandes lanhos informes. Reappareceu o mar. Os bois cada vez mais invadidos pela agua, continuavam a berrar no porão. Approximava-se a noite; provavelmente a tempestade. A Durande a pouco e pouco levantada pelo mar, oscilava da direita para a esquerda, degois da esquerda para a direita, e começava a girar sobre o escolho como sobre um eixo. Podia-se pressentir o momento em que uma vaga arrancaria o navio, e o levaria agua abaixo. Havia menos obscuridade do que no momento do naufragio. Apezar da hora ser já avançada, estava mais claro. O nevoeiro levou comsigo uma parte da escuridão. O oeste limpou-se de nuvens. O crepusculo é um vasto céo branco. Essa vasta claridade allumiava o mar. A Durande naufragara em plano inclinado de pôpa a prôa. Clubin trepou á prôa que estava quasi fóra da agua. Fitou no horisonte os olhos. É proprio da hypocrisia ater-se á esperança. O hypocrita é o homem que espera. A hypocrisia é uma esperança horrivel: o fundo dessa mentira é feito desta virtude, tornada vicio. Cousa estranha de dizer, ha confiança na hypocrisia. O hypocrita confia-se a certa indifferença do desconhecido, que consente no mal. Clubin olhava para a extensão. A situação era desesperada: aquella alma sinistra não desesperou. Dizia comsigo que depois daquelle longo nevoeiro os navios conservados na bruma, á capa ou ancorados; iam continuar viagem, e algum passaria no horisonte. E com effeito appareceu uma véla. Vinha de leste e ia para oeste. Appoximando-se desenhava-se o navio; tinha apenas um mastro, e estava armado em goleta. O gurupés era quasi horisontal. Antes de meia hora devia passar por perto do escolho Douvres. Clubiu disse comsigo: estou salvo. Em momentos semelhantes, pensa-se primeiro na vida. O cuter era quasi estrangeiro. Quem sabe se não era um dos contrabandistas que iam a Plainmont? Quem sabe se não era Blasquito? Nesse caso, não sómente salvava a vida como a fortuna; e o encontro do rochedo Douvres, appressando a conclusão, supprimindo a espera na casa mal assombrada, dando desfecho á aventura em pleno mar, seria um incidente feliz. Toda a certeza do bom exito entrou freneticamente naquelle espirito sombrio. Extranha cousa é ver com que facilidade os tratantes acreditam que devem ser bem succedidos. Cumpria fazer apenas uma cousa. A Durande, mettida nos rochedos, misturava a sua configuração á delles; confundia-se com os seus recortes, sobre os quaes parecia apenas um lineamento, ficava indistincta e perdida, e não bastava, com o pouco dia que havia, para attrahir a attenção da embarcação que ia passar. Mas uma figura humana desenhando-se na alvura crepuscular, de pé na planura do rochedo Homem, e fazendo signaes de perigo, seria vista, sem duvida alguma. Mandariam um escaler para recolher o naufrago. O rochedo Homem ficava a duzentas braças. Era simples attingil-o a nado, facil trepar por elle. Não havia tempo a perder. Estando a prôa da Durande sobre a rocha, era do alto da pôpa e do ponto em que estava, que Clubin devia atirar-se ao mar. Começou por deitar um sonda, e reconheceu que havia ao pé da pôpa muito fundo. As conchas microscopicas de foraminiferos e de polydistineas que a sonda trouxe comsigo estavam intactas, o que indicava que havia alli profundas cavas de rocha, onde a agua, qualquer que fosse a agitação da superficie, era sempre tranquilla. Despio-se, deixando as roupas no tombadilho. Acharia roupa no cuter. Conservou apenas o cinto de couro. Depois de despir-se, levou a mão ao cinto, apertou-o bem, apalpou a caixinha de ferro, estudou rapidamente com o olhar a direcção que devia seguir no meio dos parceis e das vagas para alcançar o rochedo Homem; depois, precipitou-se de cabeça para baixo. Como cahio de alto mergulhou muito. Chegou ao fundo do mar, tocou-o. Costeou alguns instantes as rochas submarinhas, depois fez um movimento para subir á superficie. Nesse momento sentio-se aggarrado pelo pé. LIVRO SETIMO Imprudencia de interrogar um livro I A PEROLA NO FUNDO DO PRECIPICIO Minutos depois do curto colloquio com o Sr. Landoys, Gilliatt estava em Saint-Sampson. Gilliatt ia inquieto até á anciedade. Que teria acontecido? Saint-Sampson tinha um rumor de colmêa assustada. Toda a gente estava ás portas. As mulheres exclamavam. Muitas pessoas contavam alguma cousa, fazendo gestos; as outras agrupavam-se á roda dessas. Ouviam-se estas palavras: que desgraça! Alguns sorriam. Gilliatt não interrogou ninguem. Não era proprio delle fazer perguntas. Demais, ia demasiado commovido para fallar a indifferentes. Desconfiava das narrações, preferia saber logo tudo; foi á casa de Lethierry. A sua anciedade era tal que nem mesmo teve medo de entrar naquella casa. Demais, a porta da sala baixa estava escancarada. Na soleira havia um formigueiro de homens e mulheres. Todos entravam; elle entrou. Entrando, achou encostado á porta o Sr. Landoys que lhe disse a meia voz: --Então, já sabe do successo? --Não. --Eu não quiz dizer-lh'o ha pouco do meio da rua. Pareceria correio de desgraças. --Que foi então? --Perdeu-se a Durande. Havia muita gente na sala. Os grupos fallavam baixo, como no quarto de um doente. Os assistentes, que eram os visinhos, os viandantes, os curiosos, estavam amontoados ao pé da porta, com uma especie de receio, e deixavam vasio o fundo da sala onde estava, ao lado de Deruchette lacrimosa e assentada, mess Lethierry de pé. Lethierry estava encostado ao tabique do fundo. O bonet de marujo cahia-lhe nas sombrancelhas; uma mecha de cabellos grisalhos prendia-se-lhe na face. Não dizia nada. Os braços não tinham movimento, a boca parecia não ter alento. Parecia uma cousa encostada á parede. Ao vê-lo, sentia-se um homem dentro de quem se extinguira a vida. Deixando de existir a Durande, Lethierry já não tinha razão de ser. Tinha uma alma no mar, e essa alma acabava de perecer. Que faria elle agora? Levantar-se de manhã, deitar-se de noite. Já não podia esperar a Durande, nem vê-la partir, nem voltar. O que é um resto de existencia sem objecto? Beber, comer, e depois? Aquelle homem tinha corôado os seus trabalhos com uma obra prima, e as dedicações com um progresso. Abolira-se-lhe o progresso, morrera-lhe a obra prima. Para que viver ainda alguns annos vasios? Não tinha mais nada que fazer. Naquella idade não é possivel recomeçar; de mais a mais estava arruinado. Pobre velho! Deruchette, assentada ao pé delle, e chorando, tinha entre as suas duas mãos a mão de mess Lethierry. As della estavam postas, a de Lethierry apertada. Via-se nisso a differença daquelles dous abatimentos. As mãos postas ainda tem esperança: a apertada, nenhuma. Mess Lethierry abandonava-lhe o braço sem resistencia. Estava passivo. Tinha em si apenas aquella porção de vida que póde haver depois do raio. Ha certas descidas ao fundo do abysmo que retiram um homem do meio dos vivos. As pessoas que andam em roda são confusas e indistinctas; acotovelam-n'o e não lhe chegam. De parte a parte ficam inacessiveis. A ventura e o desespero não são os mesmos centros respiraveis; o desesperado assiste á vida dos outros, mas de muito longe; ignora quasi a sua presença; perde o sentimento da propria existencia; que importa ser de carne e osso, o desesperado já se não sente real; já não é elle proprio, é apenas um sonho. Mess Lethierry tinha o olhar dessa situação. Cochichavam os grupos. Cada qual dizia o que sabia. Eis as noticias: A Durande perdera-se na vespera nos rochedos Douvres, com o nevoeiro, uma hora antes do pôr do sol. Á excepção do capitão, que não quiz deixar o navio, toda a gente salvou-se na chalupa. Uma borrasca, vinda do sudueste, depois do nevoeiro, quasi fez naufragar a chalupa, e carregou-a para o mar largo além de Guernesey. De noite tiveram os naufragos a boa fortuna de encontrar o _Cashmere_, que os recolheu elevou a Saint-Pierre Port. O culpado de tudo foi o timoneiro Tangrouille, que já estava preso. Clubin mostrou-se magnanimo. Os pilotos que abundavam nos grupos, pronunciavam estas palavras _escolho Douvres_, de um modo particular.--Má hospedaria aquella! dizia um delles. Via-se na mesa uma bussola e um masso de registros e notas; eram sem duvida a bussola de Durande e os papeis de bordo entregues por Clubin a Imbrancam e a Tangrouille no momento de partir a chalupa; magnifica abnegação desse homem, salvando até os papeis no momento em que ia morrer; minuciasinha cheia de grandeza, esquecimento sublime de si proprio. Todos eram unanimes em admirar Clubin, e igualmente unanimes em julga-lo salvo. O cuter _Shealtiel_ chegára poucas horas depois do _Cashmere_, e esse cuter trazia as ultimas informações. Esteve vinte o quatro horas nas mesmas aguas da Durande. Parou e bordejou durante o nevoeiro e a tempestade. O patrão do _Shealtiel_ estava tambem na sala do Lethierry. No momento em que Gilliatt entrou, acabava elle de fazer a sua narração a mess Lethierry. Era um verdadeiro relatorio. De manhã, tendo cessado a borrasca o acalmado o vento, o patrão do _Shealtiel_ ouvio mugido de bois em pleno mar. Este rumor proprio das campinas, ouvido alli nas vagas, surprendeu o patrão. Descobrio a Durande nos rochedos Douvres. A calma era sufficiente para que elle podesse acercar-se dos rochedos. Chamou o navio á falla. Só lhe respondeu o mugido dos bois que se afogavam no porão. O patrão do _Shealtiel_ estava certo de que não havia ninguem á bordo da Durande. O casco estava completamente preso; e por mais violenta que fosse a borrasca; devia ter passado a noite á bordo. Não era homem de desanimar facilmente. Não estava á bordo, logo estava salvo. Muitos sloops e lugars de Granville e Saint-Malo, desprendendo-se do nevoeiro, era fóra de duvida que deviam ter costeado as Douvres. Evidentemente algum delles recolheu o capitão Clubin. Devem lembrar-se que a chalupa da Durande estava cheia ao deixar o navio, ia correr perigos, mais um homem poderia fazel-a sossobrar, e foi isso sobretudo o que resolveu Clubin a ficar na Durande: mas, cumprido esse dever, se apparecesse um navio salvador, Clubin, não teria difficuldade de aproveitar-se delle. Deve-se ser heróe, não se deve ser pascacio. Um suicidio seria tanto mais absurdo quanto que Clubin portára-se com dignidade. O culpado era Tangrouille, não Clubin. Tudo isto era consequente; o patrão do _Shealtiel_ tinha razão, e toda a gente esperava vêr Clubin de um momento para outro. Premeditava-se recebel-o em triumpho. Da narração do mestre resultavam duas certezas: Clubin salvo e a Durande perdida. Quanto a Durande estava decidido que a catastrophe era irremediavel. O patrão do _Shealtiel_ assistira á ultima phase do naufragio. O grandissimo rochedo em que naufragara a Durande, resistira ao choque da tempestade, como se quizesse guardar comsigo o navio; mas de manhã, no momento em que o _Shealtiel_, verificando que não havia ninguem para salvar affastava-se da Durande, houve um desses movimentos de mar que são como os ultimos arrancos da colera das tempestades. Essa onda levantou furiosamente a Durande, arrancou-a do cachopo, e com a rapidez e a rectidão de uma flexa disparada, atirou-a entre as duas rochas Douvres. Ouvio-se um estalo «diabolico» dizia o patrão. A Durande, levada pela vaga a uma certa altura, metteu-se entre as rochas. Estava outra vez pregada, mas desta vez mais solidamente que no escolho submarino. Ficou ahi deploravelmente suspensa, exposta a todo o vento e a todo mar. A Durande, no dizer da equipagem do _Shealtiel_ já estava quasi toda despedaçada. Teria sossobrado, com certeza, de noite, se o cachopo não a sustivesse. O patrão do _Shealtiel_ com o seu oculo estudou o casco. Descreveu o desastre com precisão maritima; o lado de estibordo estava roto; os mastros truncados, o velame sem tralhas, as correntes dos ovens quasi todas cortadas, as sangadilhas cortadas o mais rente possivel desde o meio do mastro até acima; o lugar dos viveres arrombado, os cavaletes da chalupa destruidos, a arvore do leme rôta, os cabos despregados, os pavezes arrasados, as abitas levadas pelo vento, a antena do mesmo modo, o cadaste quebrado. Era a devastação frenetica da tempestade. Quanto ao guindaste do carregamento, preso ao mastro de prôa, já não existia, não havia noticia delle, completamente limpo, levaram-n'o os diabos, com todas as roldanas, polés e correntes. A Durande estava deslocada; a agua começava agora a sargal-a. Dentro de alguns dias nada mais restaria della. E comtudo a machina, cousa notavel, e que provava a sua perfeição, soffreu pouco com a tempestade. O patrão do _Shealtiel_ affirmava que a manivella não teve avaria grave. Os mastros do navio cederam, mas o cano da machina resistio. Os baluartes de ferro do lugar do com mando estavam apenas torcidos; as caixas das rodas soffreram, mas as rodas pareciam não ter um só raio de menos. A machina estava intacta. Era a convicção do patrão do _Shealtiel._ O machinista Imbrancam, que estava entre os grupos, partilhava esta convicção. Aquelle negro, mais intelligente que muitos brancos, era o admirador da machina. Levantava os braços abrindo os dez dedos das suas mãos negras, e dizia a Lethierry mudo: meu amo, a machina está viva. O salvamento de Clubin parecia cousa segura; o casco da Durande estava sacrificado; a conversação dos grupos recahio sobre a machina. Interessavam-se por ella, como se fosse uma pessoa. Todos admiravam o bom procedimento da machina.--Solida comadre aquella, dizia um marinheiro francez.--É magnifica! exclamava um pescador guernesiano.--Deve ter sido muito astuciosa, accrescentava o patrão, para escapar apenas com alguns arranhões. A pouco e pouco tornou-se a machina a preoccupação unica. Animou as opiniões pró e contra. Tinha amigos e inimigos. Mais de um, que tinha algum velho cuter de vela, e esperava apanhar a freguezia da Durande, alegrou-se por vêr o escolho Douvres fazer justiça á nova invenção. O cochicho tornou-se algazarra. Discutia-se com barulho. Era com tudo um rumor discreto, que de quando em quando se calava sob a pressão do silencio sepulcral de Lethierry. Do colloquio havido em todos os pontos resultava isto: A machina era o essencial. Refazer o navio era possivel, não a machina. Era unica. Para fabricar outra faltava o dinheiro e o fabricante. Lembram-se que o constructor tinha morrido. Custou quarenta mil francos. Ninguem arriscaria agora aquelle capital naquella eventualidade; tanto mais quando acabava de provar-se que os vapores naufragam como navios de vela; o accidente actual da Durande mettia á pique o seu passado succedimento. E era doloroso pensar que naquelle momento a machina ainda estava em bom estado, e que, antes de cinco ou seis dias, ficaria despedaçada como o navio. Emquanto existia a machina, podia dizer-se que não havia naufragio. Só a perda da machina era irremediavel. Salvar a machina era reparar o desastre. Salvar a machina, é facil dizel-o. Mas quem ousaria? era acaso possivel? Fazer e executar, são cousas differentes, e a prova é que é facil _formular uma aspiração_ e difficil executal-a. Ora, se houve jámais um sonho impraticavel e insensato era este; salvar a machina encalhada nas Douvres. Mandar trabalhar naquellas rochas um navio e uma equipagem seria absurdo; não se devia pensar nisso. Era a estação dos temporaes: ao primeiro que houvesse, rasgavam-se as correntes das amarras nos pontos submarinhos e o navio despedaçava-se. Era mandar um naufragio em soccorro do primeiro. Na especie de buraco da planura superior onde se abrigára o naufrago legendario morto de fome, mal havia lugar para um homem. Era preciso pois que, para salvar essa machina, fosse um homem aos rochedos Douvres, e que fosse sozinho, só naquelle mar, só naquelle deserto, só a cinco leguas da costa, naquelle medo, só durante semanas inteiras, só diante do previsto e do imprevisto, sem vitualhas nas angustias da privação, sem soccorro nos incidentes da desgraça, sem outro vestigio humano que o do antigo naufrago morto alli, sem outro companheiro além daquelle finado. E como salvaria elle a machina? Era preciso que fosse, não sómente marujo, senão tambem ferreiro. E quantas difficuldades! O homem que o tentasse seria mais que um heróe. Seria um louco. Porquanto, em certos commettimentos desproporcionados, onde parece necessario o sobrehumano, a bravura tem acima de si a demencia. E com effeito, sacrificar-se por um pouco de ferro não era estravagante? Não, ninguem iria aos rochedos Douvres. Devia-se renunciar á machina do mesmo modo que ao navio. O salvador que era preciso não apparecia. Onde encontrar esse homem? Isto, dito de outro modo, era o fundo das conversas murmuradas daquella multidão. O patrão do _Shealtiel_ que era um antigo piloto, resumio o pensamento de todos, exclamando em alta voz: --Não! está acabado. Não existe um homem capaz de ir buscar a machina! --Se eu não vou, disse Imbrancam, é que é impossivel ir. O patrão do _Shealtiel_ sacudio a mão esquerda com aquelle arrebatamento que exprime a convicção do impossivel, e repetio: --Se existisse... Deruchette voltou a cabeça. --Casava-me com elle. Houve um silencio. Um homem pallido sahio do meio dos grupos e disse: --A senhora casava-se com elle, miss Deruchette? Era Gilliatt. Entretanto todos levantaram os olhos. Mess Lethierry endireitou-se. Tinha nos olhos uma luz estranha. Tirou o boné e lançou-o ao chão, depois olhou solemnemente para a frente sem vêr pessoa alguma e disse: --Deruchette casava-se com esse homem. Dou a minha palavra de honra a Deos. II GRANDE ESPANTO NA COSTA OESTE A noite desse dia, das 10 horas em diante, devia ser noite de luar. Todavia, qualquer que fosse a boa apparencia da noite, do vento e do mar, nenhum pescador estava disposto a sahir nem de Hongue la Perre, nem do Bordeaux, nem de Houmet Benet, nem de Platon, nem de Port Grat, nem da bahia Vason, nem de Perrelle Bay, nem de Pezeris, nem de Tielles, nem da bahia dos Santos, nem de Petit Bô, nem de nenhum outro porto ou angra de Guernesey. E isto por uma razão simples; o gallo tinha cantado ao meio dia. Quando o gallo canta a uma hora extraordinaria não ha peixe. Nesse dia, pois, ao cahir da tarde, um pescador que voltava a Omptolle teve uma sorpreza. Na altura de Houmet Paradis, além de Brayges e Gunes, tendo á esquerda a balisa de Plattes Fougères, que representa um funil virado, e á direita a balisa de Saint-Sampson, que representa uma figura de homem, o pescador acreditou ver uma terceira balisa. Que balisa era essa? quando foi posta alli? que banco indicava ella? A balisa respondeu logo a estas interrogações; mexeu-se; era um mastro. Não diminui o o espanto do pescador. Balisa era para admirar; mastro ainda mais. Não havia pesca possivel. Quando todos voltavam, porque sahia aquelle? Quem era? porque? Dez minutos depois, o mastro caminhando lentamente, chegou a pouca distancia do pescador de Omptolle. Este não pôde reconhecer o barco. Ouvio remar. O ruido era de dous remos. Provavelmente era um homem só. O vento era norte; o homem navegava evidentemente para ir tomar o vento além da ponta Fontenelle. Ahi era natural que abrisse a vela. Contava pois dobrar o Ancresse e o monte Crevel. Que queria dizer aquillo? O mastro passou; o pescador foi para terra. Nessa mesma noite, na costa oeste de Guernesey, observadores de occasião, disseminados e isolados fizeram alguns reparos a horas diversas e em diversos pontos. O pescador de Omptolle acabava de amarrar o barco, quando um conductor de sargaço, a meia milha distante, chicoteando os animaes na estrada deserta de Clotures, perto do Cromleche, nos arredores dos martellos 6 e 7, vio no mar, um tanto longe, em lugar pouco frequentado, porque é preciso conhece-lo bem, do lado da Roque-Nord e da Sablonneuse, um barco içando uma vela. Deu pouca attenção, pois que era homem de carro e não de barco. Meia hora depois, um estucador que voltava da cidade e contornava a lagôa de Pelée, achou-se repentinamente quasi em face de um barco que penetrara audaciosamente entre as rochas do Quenon, da Roune de Mer, e da Gripe de Roune. A noite era negra, mas o mar estava claro; effeito que se produz muitas vezes, e podia-se distinguir ao largo os navegantes. Só havia no mar aquelle barco. Mais abaixo e mais tarde, um pescador de lagostas, dispondo as suas tendas no areal que separa o Port Soif do Port Enfer, não comprehendeu o que faria um barco que passava entre a Boue Cornelle e a Moncrette. Era preciso ser bom piloto e ter pressa de chegar a algum lugar para arriscar-se a passar alli. Sendo oito horas no Catel, o taverneiro de Cobo Bay observou, com algum espanto, uma vela além da Boue do Jardin e das Grunettes, mui perto da Susanna, e dos Grunes do Oeste. Não longe de Cobo Bay, na ponta solitaria do Houmet da bahia Vason, estavam dous namorados a despedir-se e a reter-se um ao outro; foram distrahidos do ultimo beijo por um vasto barco que passou por perto delles e dirigia-se para as Menellettes. O Sr. Le Peyre des Norgiots, morador em Catellon Pipet, estava examinando, ás 9 horas da noite, um buraco feito por larapios na cerca da sua horta, e ao mesmo tempo que averiguava os estragos, não pode deixar de observar um barco dobrando temerariamente o Croce-Point áquella hora. No dia seguinte ao de uma tempestade, com o resto de agitarão que sempre fica no mar, aquelle itinerario era pouco seguro, a menos que se não saiba de cór todos os passos. Ás nove horas e meia, no Equerrier, um pescador levando a rede, parou algum tempo para ver entre Colombellee Soufleresse alguma cousa que devia ser um barco, e que se expunha muito ao tempo. Ha ventos perigosos nesse lugar. A rocha Soufleresse é assim chamada porque sopra constantemente os barcos que passam. Ao levantar da lua, estando a maré cheia, e havendo pleno mar no estreito de Li-Hou, o guarda solitario da ilha de Li-Hou, assustou-se ao ver passar entre a lua e elle uma longa forma negra. Esta forma ia resvalando lentamente por cima das especies de paredes que formam os bancos da rocha. O guarda de Li-Hou pensou ver a Dama Negra. A Dama Branca habita o Tau de Pez d'Amont, a Dama Cinzenta habita o Tau de Pez d'Aval, a Dama Vermelha habita a Lilleuse ao norte do Banc-Marquis, e a Dama Negra habita o Grand-Etacré ao este de Li-Houmet. Ao clarão da lua todas essas damas sahem e encontram-se ás vezes. Rigorosamente essa forma negra podia ser uma vela. As longas fileiras de rochas sobre as quaes parecia que a vela andava podiam com effeito esconder o casco de um barco vogando a traz de si, deixando ver apenas a vela. Mas o guarda perguntou á si proprio que barco ousaria arriscar-se aquellas horas entre Li-Hou e a Pecheresse, e as Angullieres e Lerée Point. E com que fim? Pareceu-lhe mais provavel que fosse a Dama Negra. Estando a lua já acima da torre de Saint-Pierre du Bois, o sargento de Rocquaine levantou metade da escada da ponte levadiça, e distinguio na foz da bahia, mais perto que a Sambule, um barco á vela que parecia descer do norte a sul. Existe na costa sul de Guernesey, atraz do Plainmont, no fundo de uma bahia, toda precipicios e muralhas, cortada a pique na onda, um porto singular que um francez residente na ilha desde 1844, talvez o mesmo que escreve agora estas linhas, baptisou com o nome de _porto do quarto andar_, nome geralmente adoptado hoje. Esse porto que então se chamava a Moie, é uma planura de rocha meio natural, meio talhada, de quarenta pés de altura acima d'agua, e communicando com as vagas por duas grandes pranchas parallelas em plano inclinado. Os barcos, içados á força de braços por correntes e roldanas, sahem ao mar e descem ao longo dessas pranchas que são dous trilhos. Para os homens ha uma escada. Esse porto era então muito frequentado pelos contrabandistas. Sendo pouco praticavel, era lhes commodo. Pelas onze horas, alguns trapaceiros, talvez os mesmos com quem Clubin contava, estavam com os seus fardos na Moie. Quem trapaceia, espia; elles espiavam. Admiraram-se de ver uma vela desembocando repentinamente além das linhas negras do Cabo Plainmont. O luar estava claro. Os contrabandistas espreitavam a vela, receiando que fosse algum guarda-costa collocar-se de emboscada atraz do grande Hanois, mas a vela passou os Hanois, deixou atraz de si a noroeste a Boue Blondi, e mergulhou-se ao largo nas brumas lividas do horisonte. Onde diabo vai aquella barca? disseram os contrabandistas? Na mesma noite, pouco depois de pôr o sol, ouvio-se alguem bater na porta da casa mal assombrada em que morava Gilliatt. Era um rapaz vestido de escuro, com meias amarellas, o que indicava ser sacristão. A casa estava fechada, porta e postigos. Uma velha pescadora de fructas do mar, passeando pelo banco, com uma lanterna na mão, chamou o rapaz, e trocaram-se estas palavras entre elles: --Que quer você? --O homem d'aqui. --Não está em casa. --Onde está? --Não sei. --Virá amanhã? --Não sei. --Foi-se embora d'aqui? --Não sei. --É que o novo cura da parochia, o reverendo Ebenezer Caudray, queria fazer-lhe uma visita. --Não sei. --O reverendo mandou-me saber se o homem estava em casa amanhã de manhã. --Não sei. III NÃO TENTEIS A BIBLIA Nas vinte e quatro horas que se seguiram, mess Lethierry não dormio, nem comeu, nem bebeu, beijou a testa de Deruchette, informou-se de Clubin do qual ainda não havia noticias, assignou um papel declarando que não pretendia dar queixa, e fez soltar Tangrouille. Ficou todo o dia seguinte, meio encostado a mesa do escriptorio da Durande, nem assentado nem de pé, respondendo com brandura a quem lhe fallava. Demais, estando satisfeita a curiosidade, ficou solitaria a casa de Lethierry. Ha muito desejo de observar na solicitude de lamentar. Fechara-se a porta; deixava-se Lethierry com Deruchette. O relampago que passára nos olhos de Lethierry estava extincto; voltara-lhe o olhar lugubre do começo da catastrophe. Deruchette assustada, foi calladinha, a conselho de Graça e Doce, collocar ao lado delle, na mesa, um par de meias que Lethierry tecia quando a triste noticia chegou. Lethierry sorrio amargamente e disse: --Então pensam que não tenho juizo? Depois de um quarto de hora de silencio, accrescentou: --Estas manias são boas quando a gente é feliz. Deruchette tirou o par de meias, e aproveitou a occasião para tirar tambem a bussola e os papeis de bordo, que mess Lethierry contemplava demasiadamente. De tarde, um pouco antes da hora do chá, a porta abrio-se, e entraram dous homens, vestidos de preto, um velho, e outro moço. O moço já foi visto no curso desta narração. Tinham ambos um ar grave, mas de gravidade differente; o velho tinha aquillo que se póde chamar gravidade de profissão; o mancebo tinha a gravidade da natureza. A primeira vem do habito, a segunda nasce do pensamento. Eram, como indicava o traje, dous padres, pertencendo ambos á religião estabelecida. O que se notava desde logo no mancebo, era que a gravidade, profunda no olhar, e resultando do espirito, não nascia absolutamente da pessoa. A gravidade admitte a paixão, exalta-a purificando-a, mas aquelle mancebo era, antes de tudo, lindo. Sendo padre devia ter ao menos vinte e cinco annos; parecia ter desoito. Apresentava uma harmonia e um contraste, isto é, tinha uma alma que parecia feita para a paixão o um corpo que parecia feito para o amor. Era loiro, rosado, fresco, delicado e flexivel, apezar do vestuario severo, com faces de donzella e mãos delicadas; embora reprimido, tinha o gesto vivo e natural. Tudo nelle era encanto, elegancia, e quasi volupia. A belleza do seu olhar corrigia esse excesso de graça. O sorriso sincero, que deixava ver uns dentes de criança, era pensativo e religioso. Era a gentileza de um pagem e a dignidade de um bispo. Debaixo dos espessos cabellos louros, tão dourados que pareciam garridos, tinha elle um craneo elevado, candido e bem feito. Uma leve ruga de inflexão dupla, entre as duas sobrancelhas, despertava confusamente a idéa da ave do pensamento pairando, com as azas abertas, no meio daquella fronte. Sentia-se ao vel-o, uma dessas creaturas benevolas, innocentes e puras, que progridem em sentido inverso da humanidade vulgar, a quem a illusão torna sabios e a experiencia enthusiastas. A mocidade transparente deixava vêr a maturidade interior. Comparado ao padre dos cabellos grisalhos que o acompanhava, á primeira vista, parecia filho, reparando-se bem, parecia pai. Era este o Dr. Jaquemin Herodes. O Dr. Jaquemin Herodes pertencia á alta igreja, que é pouco mais ou menos um papismo sem papa. O anglicanismo nessa época era agitado pelas tendencias que depois se affirmaram e condensaram no puleysmo. O Dr. Jaquemin Herodes era desse matiz anglicano, que é quasi uma variação romana. Era alto, correcto, delgado e superior. O raio visual interior mal se distinguia de fóra. O seu espinto era cingir-se á letra. Demais a mais era altivo. Enchia com a sua pessoa o lugar que occupava. Parecia menos um reverendo que um monsenhor. A casaca era talhada a moda de sotaina. Em Roma é que elle estaria bem. Nascera para ser prelado da camara. Parecia ter sido creado expressamente para ser ornamento do papa, e ir atraz da cadeira gestatoria, com toda a côrte pontificia, _in abitto paonazzo._ O accidente de ter nascido inglez, e uma educação theologica mais voltada para o Antigo Testamento que para o Novo, fizera com que lhe falhasse esse destino. Todos os seus explendores resumimiu-se nisto: ser cura de Saint-Pierre Port, decano da ilha de Guernesey e subrogado do bispo de Winchester. Não ha duvida que era gloria tudo isso. Essa gloria não impedia que o Sr. Jaquemin Herodes fosse um bom homem. Como theologo, dispunha da estima dos conhecedores, e fazia quasi autoridade em Arches, que é a Sorbonna da Inglaterra. Tinha um ar douto, um piscar d'olhos apto e exagerado, narinas cabelludas, dentes visiveis, o labio inferior fino e o labio superior expesso, muitos diplomas, uma gorda prebenda, amigos barões, a confiança do bispo, e continuamente trazia uma biblia na algibeira. Mess Lethierry estava tão completamente absorto que tudo quanto pôde produzir nelle a entrada dos dous padres, foi um imperceptivel enrugar de sobrancelhas. O Sr. Jaquemin Herodes approximou-se, cumprimentou, recordou em poucas palavras sobriamente altivas, a sua recente promoção, e disse que vinha, segundo o uso, apresentar aos notaveis, e a mess Lethierry especialmente, o seu successor na parochia, o novo cura de Saint-Sampson, o reverendo Joe Ebenezer Caudray, que dahi em diante seria o pastor de mess Lethierry. Deruchette levantou-se. O padre moço, que era o reverendo Ebenezer, inclinou-se. Mess Lethierry olhou para o Sr. Ebenezer Caudray, e mastigou entre dentes estas palavras: mão marinheiro. Graça apresentou cadeiras. Os dous reverendos assentaram-se perto da mesa. O Dr. Herodes começou um speech. Tinha sabido de um acontecimento. Naufragara o Durande. Vinha, como pastor, trazer consolação e conselho. O naufragio era uma desgraça, mas era tambem uma felicidade. Sondemo-nos; não nos inchava a prosperidade? As aguas da felicidade são perigosas. Não se deve tomar as desgraças á má parte. Os caminhos do Senhor são desconhecidos. Mess Lethierry estava arruinado. Pois ser oppulento, é estar em perigo. Apparecem amigos falsos. A pobresa affasta-os. Fica-se isolado. _Solus eris._ A Durande dizem que dava mil libras esterlinas por anno. Era demais para um philosopho. Fujamos ás tentações, desdenhemos o ouro. Aceitemos com reconhecimento à ruina e o abandono. O isolamento dá fructos. Ganha-se nelle as graças do Senhor. Foi na solidão que Aia achou as aguas quentes, conduzindo os asnos de Sebeão, seu pai. Não nos revoltemos contra os impenetraveis decretos da providencia. O santo homem Job, depois da sua miseria, cresceu em riquezas. Quem sabe se a perda de Durande não teria compensações, mesmo temporaes? Tambem elle, Herodes, empregára capitaes em uma magnifica operação que se realizava em Sheffleld; se mess Lethierry, com os fundos que lhe restavam, quizesse entrar nessse negocio, podia refazer a fortuna; era um grande fornecimento de armas ao czar para reprimir a Polonia. Ganharia trezentos por cento. A palavra czar pareceu despertar Lethierry, que interrompeu o Dr. Herodes: --Não quero nada com o czar. O reverendo Herodes respondeu: --Mess Lethierry, os principes são acceitos por Deos. Deos escreveu: Dai a Cesar o que é de Cesar. O czar é Cesar. Lethierry, meio absorto na scisma, murmurou: --Quem é Cesar? Não conheço. O reverendo Herodes continuou a exhortação. Não insistio por Sheffield. Não aceitar Cesar era ser republicano. O reverendo comprehendia que um homem fosse republicano. Nesse caso, comprehendia que mess Lethierry se voltasse para uma republica. Mess Lethierry podia estabelecer a fortuna nos Estados-Unidos, melhor do que em Inglaterra. Se quizesse desculpar o que lhe restava, bastava-lhe tomar acções na grande companhia de exploração das plantações do Texas, que empregava mais de vinte mil negros. --Não quero nada com a escravidão, disse Lethierry. --A escravidão, replicou o reverendo Herodes, é de instituição sagrada. Está escripto: «Se o senhor bater o escravo, nada lhe será feito, porque bate o seu dinheiro.» Graça e Doce, na soleira da porta, ou viam com uma especie de extase as palavras do reverendo doutor. O reverendo continuou. Era, em summa, como dissemos um bom homem; e quaesquer que podessem ser os seus dissentimentos de casta ou de pessoa com mess Lethierry, vinha-lhe sinceramente dar o auxilio espiritual, e mesmo temporal, de que dispunha. Se mess Lethierry estava arruinado ao ponto de não poder cooperar, com fructo, numa especulação qualquer, russa ou americana, porque não entrava no governo e nas funcções assalariadas? São nobres empregos esses, e o reverendo estava prompto a introduzir mess Lethierry. Vagára em Jersey o lugar de deputado-visconde. Mess Lethierry era amado e estimado, e o reverendo Herodes, decano de Guernesey, podia obter para mess Lethierry o emprego de deputado-visconde de Jersey. O deputado visconde é um funccionario consideravel; assiste, como representante de Sua Magestade aos actos juridicos, aos debates da plebe, e ás execuções de sentenças. Lethierry fixou os olhos no Dr. Herodes. --Não gosto de enforcamentos, disse elle. O Dr. Herodes, que até então pronunciára todas as palavras com a mesma inflexão, teve um assento de severidade e uma inflexão nova: --Mess Lethierry, a pena de morte é ordenada por Deus. Deus entregou a espada ao homem. Está escripto: olho por olho, dente por dente. O reverendo Ebenezer approximou imperceptivelmente a sua cadeira da cadeira do reverendo Jaquemin, e disse-lhe de modo que não fosse ouvido senão por elle: --O que este homem diz é-lhe dictado. --Por quem? perguntou no mesmo tom o reverendo Herodes. --Pela consciencia. O reverendo Herodes metteu a mão no bolso, tirou um grosso volume em 18° encadernado com fechos, pô-lo na mesa e disse em voz alta: --A consciencia é isto. O livro era a Biblia. Depois foi-se abrandando o Dr. Jaquemin. O seu desejo era ser util a mess Lethierry, que considerava ser um homem forte. Como pastor, tinha elle direito e dever de aconselhar; todavia mess Lethierry tinha a liberdade de acceitar ou recusar o conselho. Mess Lethierry, cahindo outra vez na absorpção e no abatimento, já não ouvia. Deruchette, assentada ao pé delle, e pensativa tambem, não levantava os olhos, e dava áquella pratica pouco animada a porção de acanhamento que resulta de uma presença silenciosa. Uma testemunha que não diz palavra é uma especie de peso indefinivel. Mas o Dr. Herodes não parecia sentil-o. Como Lethierry não respondia, o Dr. Herodes deu largas á palavra. O conselho vem do homem, a inspiração vem de Deus. Ha inspiração no conselho do padre. É bom aceitar os conselhos, e perigoso regeita-los. Sochoth foi agarrado por onze diabos por ter desdenhado das exhortações de Nathaniel. Tiburiano foi atacado de lepra por ter posto fóra de casa o apostolo André. Barjesus, apezar de magico, ficou cégo por ter zombado das palavras de S. Paulo. Elxai, e suas irmãs Martha a Marthena estão no inferno a esta hora por terem desprezado as advertencias de Valencianus que lhes provava claro como o dia, que o Jesus Christo delles, de trinta e oito leguas de comprimento, era um demonio. Rolibana, que tambem se chama Judith, obedecia aos conselhos. Ruben e Theniel, ouviam os conselhos do céo; basta os nomes delles para indica-los; Ruben significa _filho da visão_, e Theniel significa _face de Deus._ Mess Lethierry deu um socco na mesa. --Mas a culpa é minha! --Que quer dizer? perguntou Jaquemin Herodes. --Digo que a culpa é minha. --Culpa de que? --Por ter mandado vir a Durande á sexta-feira. O Sr. Jaquemin Herodes murmurou ao ouvido do Sr. Ebenezer Caudray: --Este homem é supersticioso. Continuou depois, e em tom de mestre: --Mess Lethierry, é pueril acreditar na sexta-feira. Não se deve acreditar em fabulas. A sexta-feira é um dia, como qualquer outro. Ás vezes é data feliz. Melendez fundou a cidade de Santo Agostinho em sexta-feira; foi n'uma sexta-feira que Henrique VII deu a sua commissão a John Cabot; os perigrinos de Mayflower chegaram a Province-Town em sexta-feira. Washington nasceu na sexta-feira, 22 de Fevereiro de 1732; Christovão Colombo descobrio a America na sexta-feira 12 de Outubro de 1492. Dizendo isto levantou-se. Ebenezer, que tinha ido com elle, levantou-se tambem. Graça e Doce advinhando que os reverendos iam despedir-se, abriram as portas. Mess Lethierry não via nem ouvia nada. O Sr. Jaquemin Herodes disse em aparte ao Sr. Ebenerez Caudray: --Nem nos comprimenta. Não é tristeza, é embrutecimento. Devemos crer que elle está doudo. Entretanto pegou na _Biblia_, e collocou-a entre as mãos abertas, como quem segura um passaro com receio que fuja. Esta attitude creou entre os personagens presentes uma certa espera. Graça e Doce esticaram a cabeça. A voz de Herodes fez quanto pede para ser magestosa. --Mess Lethierry, não nos separemos sem ler uma pagina do livro santo. As situações da vida são esclarecidas pelos livros; os profanos tem as sortes virgilianas, os crentes tem as advertencias biblicas. O primeiro livro, apanhado ao acaso, aberto ao acaso, dá um conselho; a Biblia, aberta ao acaso, faz uma revelação. É sobretudo boa para os afflictos. O que a Santa Escriptura respira indubitavelmente é um lenitivo ás dôres. Diante dos afflictos, deve-se consultar o santo livro sem escolher o lugar, e ler com candura o passo encontrado. O que o homem não escolhe, escolhe-o Deus. Deus sabe o que precisamos. O seu dedo invisivel aponta o passo inesperado que nós lemos. Qualquer que seja a pagina, rebenta-lhe luz. Não busquemos outra. É a palavra do céo. O nosso destino é revelado mysteriosamente no texto evocado com confiança e respeito. Ouçamos e obedeçamos. Mess Lethierry, o senhor tem uma afflicção, este é o livro da consolação; está enfermo, este é o livro da saude. O reverendo Jaquemin Herodes abrio a mola do fecho, metteu o dedo ao acaso entre duas paginas, poz a mão no livro aberto, e concentrou-se; depois abaixando os olhos com autoridade leu em alta voz. Eis o que elle leu: «Isaac passeava no caminho que vai ter ao poço chamado Poço daquelle que vive e vê. «Rebecca, vendo Isaac, disse: Quem é este homem que vem andando para mim. «Então Isaac fel-a entrar na sua tenda, e tomou-a por mulher, e grande foi o amor que lhe teve». Ebenezer e Deruchette olharam um para o outro. FIM DA PRIMEIRA PARTE. SEGUNDA PARTE O engenhoso Gilliatt LIVRO PRIMEIRO O escolho I INCOMMODA CHEGADA, DIFFICIL SAHIDA Já os leitores terão adivinhado que o barco, visto em muitos pontos da costa de Guernesey, na noite anterior, em horas diversas, era a _pança._ Gilliatt escolheu ao longo da costa o canal que se abre entre os rochedos; era a rota perigosa, mas era o caminho directo. Tomar o mais curto foi o cuidado delle. Os naufragos não esperara. O mar é cousa urgente, uma hora de demora podia ser irreparavel. Queria chegar depressa para soccorrer a machina. Sahindo de Guernesey, uma das preoccupações de Gilliatt era não despertar a attenção. Sahio como quem fugia. Tinha ares de pessoa que se esconde. Evitou a costa d'Este como se achasse inutil passar á vista de Saint-Sampson e Saint-Pierre Port; resvalou silenciosamente ao longo da costa opposta que é relativamente inhabitada. Nos bancos teve de remar: mas Gilliatt manejava o remo segundo a lei hydraulica: tomar a agua sem choque e impeli-la devagar; desse modo pôde nadar, na obscuridade com a maior força e o menor rumor possiveis. Parecia que ia commetter uma acção feia. A verdade é que, atirando-se de olhos fechados a um commettimento que parecia impossivel, e arriscando a vida com todas as probabilidades contra elle, receiava a concurrencia. Como o dia começava a despontar, os olhos ignotos que estão talvez abertos no espaço, puderam ver no meio do mar, num ponto em que ha mais solidão e ameaça, duas cousas entre as quaes ia diminuindo o intervallo, sendo que uma approximava-se da outra. Uma, quasi imperceptivel no largo movimento das vagas, era um barco de vela; nessa barca havia um homem; era a _pança_ levando Gilliatt. A outra immovel, collossal, negra, tinha, sobranceira ás vagas, uma sorprehendente figura. Dous altos pilares amparavam acima d'agua, no vacuo, uma especie de travessão horisontal que era como que uma ponte entre as duas cumiadas. O travessão, tão informe de longe que seria impossivel advinhar o que era, fazia corpo com os dous pilares. Parecia uma porta. Porque, haveria uma porta naquella abertura de todos os lados do mar? Dissera-se um dolmen titanico plantado alli, em pleno oceano, por uma phantasia magistral, e construido por mãos que leem o habito de apropriar ao abysmo as suas construcções. Aquella medonha forma levantava-se na claridade do céo. A luz da manhã ia crescendo a leste; a alvura do horisonte augmentava a negridão do mar. Do lado opposto, declinava a lua. Os dous pilares eram as Douvres. A especie de massa apertada entre elles como uma architrave era a Durande. Apertando assim a sua victima, e deixando-a ver, o escolho era horrivel. A atitude daquelles rochedos era uma especie de repto. Parecia esperar. Nada mais altivo e arrogante como tudo aquillo; o navio vencido, o abysmo victorioso. Os dous rochedos, ainda gotejantes da tempestade da vespera, pareciam dous combatentes em suor. Tinha acalmado o vento, o mar dobrava-se placidamente; advinhava-se que havia á flôr d'agua alguns bancos onde os penachos de escuma cahiam com graça; de longe vinha um murmurio semelhante ao zumbido das abelhas. Tudo era um nivel, menos as duas Douvres, levantadas e tezas como duas collunas negras. Os flancos escarpados tinham reflexos de armaduras. Pareciam prestes a encetar de novo a luta. Comprehendia-se que ellas nasciam de montanhas submarinas. Havia em tudo aquillo uma especie de omnipotencia tragica. De ordinario, o mar occulta os seus lances. Conserva-se voluntariamente obscuro. A incommensuravel sombra guarda tudo para elle. É raro que o mysterio renuncie ao segredo. Ha um quê de monstro na catastrophe, mas em quantidade ignota. 0 mar é patente e secreto; esconde-se, não quer divulgar as suas acções. Produz um naufragio, e abafa-o; engolir é o seu pudor. A vaga é hypocrita; mata, rouba, sonega, ignora e sorri. Ruge, depois abranda-se. Nada semelhante nas Douvres. Os dous rochedos, levantando acima das ondas o cadaver da Durande, tinham um ar de triumpho. Dissera-se dous braços sahindo do golphão, e mostrando ás tempestades, o cadaver daquelle navio. Era uma cousa igual ao assassino que se vangloria do crime. A isto acrescentava-se o horror sagrado da hora. A madrugada tem uma grandeza mysteriosa que se compõe de um resto de sonho e de um começo de pensamento. Nesse momento turvado, como que fluctua ainda um pouco de espectro. A especie de immenso H maiusculo formado pela duas Douvres com a Durande no centro, apparecia no horisonte no meio de uma certa magestade crepuscular. Gilliatt vestia a roupa do mar, camisa de lã, meias de lã, sapatos taixeados, japona de lã, calça de panno grosso mal tecido, com bolsos, e na cabeça um daquelles barretes de lã vermelha usados então na marinha, e que se chamavam no seculo passado _galeriennes._ Reconheceu o escolho e avançou. A Durande estava ao contrario de um navio deitado a pique; era um navio pendurado no ar. Não havia mais estranho commettimento que o de salvar a machina daquelle navio. Era dia claro quando Gilliatt chegou ás aguas do escolho. Como dissemos, havia pouco mar. A agua tinha apenas a quantidade de agitação que lhe dava a estreiteza entre os rochedos. Ha sempre marulho nos espaços d'agua como aquelle, quer sejam grandes, quer pequenos. O interior de um estreito espuma sempre. Gilliatt não abordou ao Douvres sem precaução. Deitou a sonda muitas vezes. Gilliatt tinha de fazer um pequeno desembarque de matalotagem. Affeito ás ausencias, tinha sempre prompta em casa a matalotagem. Era um sacco de biscouto, um sacco de farinha de centeio, uma cesta de stok-fisch e de carne fumada, um grande pichel de agua doce, uma caixa norueguense com ramagens pintadas, contendo algumas camisas de lã, grevas alcatroadas, e uma pelle de carneiro que elle punha de noite em cima da japona. Tinha posto tudo isso, ás carreiras, na _pança_, e mais um bocado de pão fresco. Com a pressa, não levou outra ferramenta mais que o martello da forja, o machado e a picareta, uma serra, e uma corda de nós armada de fateixa. Com uma escada desta ordem, e a maneira de servir della, as subidas escabrosas tornam-se praticaveis nos mais rudes declives. Póde-se ver na ilha de Serk a vantagem que os pescadores do Havre Gosselin tiram de semelhante corda. As rêdes e as linhas e todo o arsenal de pescaria estavam na barca. Pôl-os dentro por costume, e machinalmente, porquanto, tendo de tentar até o ultimo esforço, talvez se demorasse algum tempo no archipelago de cachopos, e o apparelho da pescaria é inutil em taes sitios. No momento em que Gilliatt abordou o escolho, o mar baixava, circumstancia favoravel. As vagas decrescentes descobriam ao pé da pequena Douvre, algumas pedras chatas ou pouco inclinadas, á semelhança de harpéos carregando um pavimento. Essas superficies, umas estreitas, outras largas, encadeando e elevando-se, com espaços desiguaes, ao longo do monolitho vertical, prolongava-se em cornija até debaixo da Durande, que abarcava o espaço entre os dous rochedos. Estava apertada ali como n'um tomilho. Eram commodas aquellas plataformas para desembarcar e observar. Podia-se desembarcar ali, provisoriamente, o carregamento da _pança._ Mas era preciso apressar-se, porque ellas estariam fóra d'agua pouco tempo. Quando a maré enchesse ficariam outra vez cobertas. Foi para essas rochas, umas chatas, outras declives, que Gilliatt impellio e fez parar a _pança._ Uma espessura de sargaço, humida e escorregadia cobria essas rochas, e a obliquidade de algumas dellas mais escorregadias as tornava. Gilliatt descalçou-se, saltou sobre o limo, e amarrou a _pança_ em uma ponta de rochedo. Depois approximou-se o mais devagar que pôde sobre a estreita cornija de granito, chegou debaixo da Durande levantou os olhos e contemplou-a. A Durande estava preza, suspensa, e como que ajustada entre os dous penedos, vinte pés acima das vagas. Era preciso que fosse atirada ali por uma furiosa violencia do mar. Tão impetuoso empurrão não faz pasmar a gente do mar. Para citar apenas um exemplo, a 25 de Janeiro de 1840, no golpho de Itora, uma tempestade, já espirante, fez saltar um brigue, de um só pulo, por cima do casco naufragado da corveta _La Marne_, e incrustou-o com o gurupés á frente, entre dous penedios. Demais, nas Douvres apenas havia um resto da Durande. O navio arrancado ás vagas foi de algum modo desenraisado da agua pelo furacão. O turbilhão do vento tinha-o torcido, o turbilhão do mar tinha-o preso, e o navio, seguro em sentido inverso pelas duas mãos da tempestade, quebrou-se como se fôra uma ripa. O pedaço da popa, com a machina e as rodas, arrebatado das aguas e impellido por toda a furia do cyclone para a garganta das Douvres, lá ficou. O vento foi acertado; para metter aquelle casco entre os dous rochedos o furacão transformou-se em massa. A proa, levada e rolada pelo vento, deslocou-se nos bancos de pedra. O porão, que estava arrombado, esvasiara no mar os bois, mortos. Um grande pedaço da amurada da proa, ainda estava preso ao casco, mas pendurada nas caixas das rodas por algumas lascas, faceis de quebrar com um machado. Via-se aqui e ali, nas anfractuosidades longinquas do escolho, barrotes, taboas, pedaços de vela, pedaços de correntes, todos os destroços, tranquillos nos rochedos. Gilliatt comtemplava com attenção a Durande. A quilha era o tecto que lhe ficava sobre a cabeça. O horisonte, onde a agua illuminada apenas se mechia, estava sereno. O sol sahia explendidamente daquella vasta massa azul. De tempos a tempos uma gota de agua destacava-se do navio e cahia no mar. II AS PERFEIÇÕES DO DESASTRE As Douvres eram differentes de fórma como de altura. Na pequena Douvre, recurvada e aguda, via-se ramificar-se, da base ao cimo, longas veias de uma rocha côr de tijolo, relativamente tenra, que fechava com as suas laminas o interior do granito. Nessas laminas avermelhadas havia, de espaço a espaço, fendas próprias para subir. Uma dessas fendas, um pouco acima do navio, foi tão bem trabalhada pelos arremeços do mar, que tornou-se uma especie de nicho, onde podia guardar-se uma estatua. O granito da pequena Douvre era arredondado na superficie e macio como pedra de toque, o que não lhe tirava a dureza que tinha. A pequena Douvre terminava om ponta como um chifre. A grande Douvre, polida, unida, lisa, perpendicular, e feita como por desenho, era de um só jacto e parecia feita de marfim preto. Nem um buraquinho, nem um relevo. Trepar por ella era impossivel: não podia servir nem á fuga de um criminoso, nem ao ninho de um passaro. No cume havia como no rochedo Homem, uma plata-fórma; era porém inaccessivel. Podia-se trepar pela pequena Douvre, mas não ficar lá, podia-se ficar na grande Douvre, mas não se podia subir. Gilliatt, depois de lançar os olhos por tudo aquillo voltou á _pança_, descarregou-a na mais larga das cornijas á flôr d'agua, fez de todo o carregamento, aliás pequeno, uma especie de pacote, atou-o n'um panno alcatroado, depois içou-o por meio de um cabo até um ponto da rocha onde o mar não podia chegar; feito isto, abraçou-se á pequena Douvre, e com pés e mãos, de fenda em fenda, trepou por ella até a Durande que estava no ar. Chegando a altura das caixas das rodas saltou dentro. O interior do navio era lugubre. A Durande apresentava todos os vestigios de um arrombamento medonho. Era a violação tremenda da tempestade. A tempestade comporta-se como um pirata. Nada assemelha-se mais a um attentado que um naufragio. Nuvens, trovão, chuva, vagas, tufões, rochedos, horrivel multidão de cumplices é esta. No meio daquelles destroços, pensava-se em alguma cousa semelhante ao tripudio furioso dos espiritos do mar. Tudo eram vestigios de raiva. As torções estranhas de certos ferros, indicavam a acção impectuosa dos ventos. O convéz assemelhava-se á célula de um louco; tudo estava despedaçado. Nenhum animal estrangula uma pedra como o mar. A agua regorgita das garras. O vento morde, o mar devora, a vaga é um queixo. É um sacar e um esmigalhar ao mesmo tempo. O oceano tem um golpe igual á pata do leão. O descalabro da Durande apresentava esta particularidade: era minucioso. Era uma especie de terrivel descascamento. Muitas cousas pareciam feitas de proposito. Que maldade! podia dizer-se. As fracturas das amuradas eram feitas com arte. Este genero de destruição é proprio do cyclone. Retalhar e adelgaçar tal é o capricho desse desvastador enorme. O cyclone usa das averiguações do carrasco. Os seus desastres parecem supplicios. Dissera-se que algum rancor o anima; é requintado como um selvagem. Disseca examinando. Tortura o naufragio, vinga-se, diverte-se; é mesquinhamente cruel. Raros são os cyclones em nossos climas, e tanto mais terriveis quanto que são inesperados. Um rochedo encontrado póde fazer andar á roda a tempestade. É provavel que a borrasca tivesse feito espiral sobre as Douvres, voltando-se subitamente em tromba ao choque do escolho, o que esplicava o salto do navio a tamanha altura naquellas rochas. Quando o cyclone sopra, um navio peza tanto como a pedra de uma funda. A Durande tinha a chaga que fica ao homem cortado pelo meio; era um tronco aberto deixando ver um molho de destroços semelhante a entranhas. O cordoame fluctuava e estremecia; as correntes balançavam e tiritavam; as fibras e os nervos do navio estavam nús e pendiam no ar. O que não estava quebrado estava desarticulado; a pregadura do casco assemelhava-se a uma almofada eriçada de pregos; em tudo havia a fórma de ruina; uma barra de pé de cabra não era menos que um simples pedaço de ferro; uma sonda era apenas um pedaço de chumbo; uma drissa era apenas uma ponta de canhamo; uma tralha era apenas um fio de debrum; por toda a parte a inutilidade lamentavel da destruição; nada havia que não estivesse despregado, desenganchado, rachado, roido, recurvado, aniquilado; nenhuma adhesão naquelle feio montão de destroços; em tudo o deslocamento e a ruptura, esse aspecto de inconsistente e liquido que caracteriza todas as confusões, desde as refregas dos homens que se chamam batalhas, até ás refregas dos elementos que se chamara cahos. Tudo esboroava, tudo cahia, e uma torrente de taboas, de lonas, de ferro, de cabos e de vigas tinha parado na grande fratura da quilha, donde o menor choque podia precipitar tudo ao mar. O que restava daquella poderosa carena tão triumphante outr'ora, toda aquella parte suspensa entre as duas Douvres e talvez prestes a cahir, tudo estava roto e dilacerado, deixando ver pelos buracos o interior sombrio do navio. Debaixo cuspia a espuma sobre aquella cousa miseravel. III SÃ, MAS NÃO SALVA Gilliatt não esperava achar sómente metade do navio. Nas indicações, aliás tão precisas, do capitão do _Shealtiel_, nada fazia presentir aquella divisão do casco pelo meio. Foi talvez na occasião em que o navio partio-se, debaixo da immensa espessura da espuma, que houve aquelle _estallo diabolico_ ouvido pelo capitão do _Shealtiel._ O capitão affastava-se sem duvida no momento do ultimo sopro do vento, e não vio que era uma tromba que impellia o navio. Mais tarde, approximando-se para observar o desastre, vio apenas a parte anterior do casco, ficando-lhe escondido pelo rochedo o lado fracturado donde se rompera metade do navio. Excepto isto, o patrão do _Shealtiel_ disse tudo exacto. O casco estava perdido, a machina estava intacta. São frequentes estes acasos nos naufragios como nos incendios. Não se pode comprehender a logica do desastre. Os mastros quebrados tinham cahido; o cano nem mesmo envergou; a grande placa de ferro que amparava o mecanismo manteve-o intacto e completo. O revestimento de taboas das rodas estava destruido como as laminas de uma persiana; mas atravez das fendas viam-se as rodas em bom estado. Apenas faltavam alguns raios. Além da machina, tinha resistido o grande cabrestante da popa. Tinha ainda a corrente, e graças ao seu robusto encaixe em um quadro de tabuões, ainda podia prestar serviços, uma vez que se não rompesse a prancha. O pedaço do casco mettido entre as Douvres estava firme, já o dissemos, e parecia solido. A conservação da machina tinha um que de irrisorio e acrescentava a ironia á catastrophe. A sombria malicia do desconhecido mostra-se ás vezes nessas especies de zombarias amargas. A machina estava salva, o que não impedia que estivesse perdida. O oceano guardava-a para demolil-a aos poucos. Divertimento de gato. A machina ia agonisar e desfazer-se peça por peça. Ia diminuir dia a dia, e por assim dizer, derreter-se. Ia servir de brinco ás selvajarias de espuma. Que fazer? Que aquelle pesado montão de mecanismos e encaixes, massiço e delicado a um tempo, condemnado á immobilidade por seu peso, entregue na solidão ás forças demolidoras, posto pelo cachopo a discrição do vento e do mar, podesse, sob a pressão daquelle lugar, implacavel, escapar á destruição lenta, era até loucura imaginal-o. A Durande estava prisioneira das Douvres. Como tiral-a dali? Como libertal-a? A evasão de um homem é difficil; mas que problema não é este: a evasão de uma machina! IV PREVIO EXAME LOCAL Gilliatt estava cercado de urgencias. O mais urgente era achar ancoradouro para a _pança_, e depois abrigo para si. A Durande, estava mais carregada a bombordo que a estibordo, e por isso a roda da direita ficava mais elevada que a da esquerda. Gilliatt subiu á caixa das rodas da direita. Dahi dominava a parte baixa dos bancos, e embora a rede de rochas alinhadas em angulos por traz das Douvres, fizesse muitos cotovellos, Gilliatt pôde estudar o plano geometrico do escolho. Começou por ahi. As Douvres, como indicámos, eram duas altas pilastras marcando a entrada estreita de uma viela de penedos perpendiculares na frente. Não é raro achar nas formações submarinhas primitivas, esses corredores singulares feitos como que a machado. Aquelle, que era tortuoso, nunca estava a secco, mesmo nas marés baixas. Uma corrente agitada atravessava-o sempre. A impetuosidade do rodomoinho era boa ou má, segundo o rumo do vento reinante; ora quebrava a onda, e fazia-a cahir; ora exasperava-a. Este ultimo caso era o mais frequente; o obstaculo encolerisa a vaga eleva-a aos excessos; a espuma é a exageração da vaga. O vento da tempestade, naquelles estrangulamentos entre duas rochas, soffre a mesma compressão e adquire a mesma malignidade. É a tempestade no estado de estranguria. O sopro immenso fica immenso, mas faz-se agudo. É ao mesmo tempo massa e dardo. Fura e esmaga. Imaginai o furacão fazendo-se vento coado. As duas cadeias de rochedos, deixando entre si, essa especie de rua do mar, terminava em degráos mais baixos que as Douvres, gradualmente decrescentes, e mergulhavam juntas no mar a uma certa distancia. Havia ahi outra foz menos elevada que a das Douvres, porém mais estreita ainda e que era a entrada, a Este, daquella garganta. Advinhava-se que o duplo prolongamento das duas arestas de rocha continuava a rua debaixo da agua até o rochedo Homem collocado como uma cidadella quadrada na outra extremidade do escolho. Nas marés baixas, e era nessa occasião que Gilliatt observava, as duas fileiras de bancos mostravam os seus dorsos, alguns a secco, todos visiveis, e coordenando-se sem interrupção. O Homem limitava e resguardava no levante a massa inteira do escolho, que era limitado, ao poente, pelas duas Douvres. Todo o escolho, visto a vôo de passaro, apresentava um rosario recurvado de rochedos, tendo em uma ponta as Douvres e na outra o Homem. O escolho Douvres, visto em seu conjuncto, era apenas a immersão de duas gigantescas laminas de granito tocando-se quasi e cahindo verticalmente, como uma crista de montes que estão no fundo do oceano. Ha fora do abysmo essas exfoliações immensas. A lufada e a onda tinham recortado essa cristã como uma serra. Via-se apenas o cimo, era o escolho. O que a onda escondia devia ser enorme. A viela onde a tempestade tinha atirado a Durande, era o centro dessas duas laminas collossaes. Essa viela, em zig-zag como o relampago, tinha quasi em todos os pontos a mesma largura. O oceano fel-a assim. O eterno tumulto produz suas regularidades estranhas. Sobe d'agua uma geometria. De um cabo a outro da garganta, as duas muralhas da rocha faziam-se face paralellamente a uma distancia que a Durande media quasi com exactidão entre as duas Douvres; o esvasamento da pequena Douvre, recurvada e voltada, dera lugar ás caixas das rodas. Em qualquer outro lugar as caixas ficariam quebradas. A dupla fachada interna do escolho era hedionda. Quando na exploração do deserto de agua chamado Oceano, chega-se ás cousas ignotas do mar, torna-se tudo surprehendente e disforme. Aquillo que Gilliatt, do alto do casco, podia vêr na garganta fazia horror. Ha muitas vezes nas gargantas graniticas do oceano uma estranha imagem permanente do naufragio. A garganta das rochas Douvres tinha a sua, que era assustadora. Os oxydos da rocha davam-lhes aqui e alli umas vermelhidões imitando placas de sangue coalhado. Era uma especie de transudação sangrenta de um matadouro. Havia um ar de açougue naquelles parceis. A rude pedra marinha, diversamente colorida, aqui pela decomposição dos amalgamas metalicos misturados á rocha, alli pelo bolor, ostentava vermelhidões hediondas, esverdeamentos suspeitos, despertando uma idéa de morte e de exterminio. Acreditava-se vêr uma parede ainda não enxuta do quarto de um assassinato. Dissera-se que eram aquelles os vestigios de um despedaçamento de homens; a rocha ingreme tinha um cunho de agonias accumuladas. Em certos lugares a carnagem parecia escorrer ainda, a muralha estava molhada e parecia impossivel apoiar o dedo sem tiral-o sangrento. Por toda a parte apparecia uma ferrugem de morticinio. Ao pé do duplo declivio paralello, esparso á flôr d'agua ou debaixo da vaga, ou a secco nas excavações, monstruosos seixos redondos, uns escarlates, outros negros ou roxos, tinham semelhanças de visceras; acreditava-se vêr pulmões frescos ou figados putridos. Dissera-se que alli se tinham esvasiado ventres de gigantes. Longos fios vermelhos, que se poderiam tomar por distillações funebres, riscavam o granito de alto a baixo. Esses aspectos são frequentes nas cavernas do mar. V UMA PALAVRA A RESPEITO DAS COLLABORAÇÕES SECRETAS DOS ELEMENTOS A fórma de um escolho não é cousa indifferente para os que, nos riscos das viagens, podem ser condemnados á habitação temporaria de um escolho no oceano. Ha o escolho pyramide, um cimo fóra da agua; ha o escolho circulo, cousa semelhante a uma roda de pedras grandes; ha o escolho corredor. O escolho corredor é o peior de todos. Não somente por causa da angustia das ondas entre as rochas e do tumulto das aguas apertadas, mas tambem por causa das propriedades meteorologicas que parecem desprender-se do paralellismo das duas rochas em pleno mar. As duas paredes rectas são um verdadeiro aparelho de Volta. Orienta-se o escolho corredor, e isso é importante. Resulta dahi uma primeira acção sobre o ar e a agua. O escolho corredor actua na agua e no vento mecanicamente, pela forma, galvanicamente, pela attração diversa dos seus planos verticaes, massas sobrepostas e contrariadas umas pelas outras. Esta especie de escolhos atrahe todas as forças furiosas esparsas no furação, e tem sobre a borrasca uma singular força de concentração. Donde resulta que nas paragens desses cachopos, ha uma certa accentuação da tempestade. Cumpre saber que o vento é composito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é sómente dynamica, é chimica; não é sómente chimica, é magnetica. Tem alguma cousa que é inexplicavel. O vento é tão eletrico como aereo. Certos ventos coincidem com auroras boreaes. O vento do banco das Arguilles, rola vagas de cem pés de altura, espanto de Dumontd'Urville. _A corveta_, disse elle, _não sabia a quem havia de attender._ Debaixo das lufadas austraes, verdadeiros tumores doentios sopram no oceano, e o mar torna-se tão horrivel que os selvagens fogem para não vêl-o. As lufadas boreaes são outras; misturam-se de pontas de gelo, e esses furações irrespiraveis impellem para a neve os trenós dos esquimós. Outros ventos queimam. É o simoun da Africa, é o typhon da China e o samiel da India. Simoun, Typhon, Samiel; parece que são demonios estes nomes. Fundem o cimo das montanhas; uma tempestade vitrificou o vulcão de Tulucea. Este vento quente, turbilhão côr de tinta atirando-se sobre as nuvens encarnadas fez dizer aos Vedas: _Eis ahi o Deos negro que vem roubar as vaccas encarnadas._ Sente-se em tudo isto a pressão do mysterio eletrico. O vento é cheio desse mysterio. Do mesmo modo o mar. Tambem elle é complicado; debaixo das suas vagas de aguas, que se veem, ha outras vagas de forças, que se não veem. Compõe-se de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisivel e a mais profunda. Tentai conhecer esse cahos, tão enorme que vai ter ao nada. É o recepiente universal, reservatorio para as fecundações, cadinho para as transformações. Amassa, depois dispersa; accumula, depois semêa; devora, depois produz. Recebe todos os esgotos da terra, e aferrolha-os. É solido no banco, liquido na agua, fluido no eflluvio. Como materia é massa, e como força é abstracção. Iguala e consorcia os phenomenos. Simplifica-se no infinito pela combinação. É a força da mescla e da turvação que chega á transparencia. A diversidade soluvel prende-se na sua unidade. Tem tantos elementos diversos que é identico. Uma das suas gottas é todo elle. Como é cheio de tempestades, torna-se equilibrio. Platão via dansar espheras; cousa estranha, mas real na collossal evolução terrestre á roda do sol, o oceano, com o seu fluxo e refluxo, é o pendulo do globo. No phenomeno do mar, todos os phenomenos estão presentes. O mar é aspirado pelo turbilhão como um siphon; uma tempestade é um corpo de bomba; o raio vem da agua como do ar; nos navios sentem-se abalos surdos, depois um cheiro de enxofre sahe do poço das correntes. O oceano ferve. _O diabo poz o mar na sua caldeira_, dizia Ruyter. Em certas tempestades que caractensam os movimentos das estações e as entradas em equilibrio das forças genesiacas, os navios battidos de escuma parecem evaporar uma luz, e flammas de phosphoro corrêm pelo cordoame, tão misturadas aos cabos que os marinheiros estendem a mão e procuram apanhar esses passaros de fogo. Depois do terremoto de Lisboa, um halito de fornulha impellio para a cidade uma vaga de sessenta pés de altura. A oscillação liga-se ao estremecimento terrestre. Essas energias incommensuraveis tornam possiveis todos os cataclysmas. No fim de 1864, a cem leguas das costas de Malabar, sossobrou uma ilha, como se fôsse um navio. Os pescadores que tinhão sahido de manhã voltaram á noite e não acharam nada; apenas puderam ver as suas aldêas de baixo de agua; e desta vez foram os barcos que assistiram ao naufragio das casas. Na Europa onde parece que a naturesa sente-se constrangida em respeito à civilisação, taes acontecimentos são raros até á impossibilidade presumivel. Todavia, Jersey e Guernesey fizeram parte da Gallia; e, no momento em que escrevemos, um vento equinocio acaba de demolir na fronteira da Inglaterra e de Escossia o penedio da praia chamado Primeiro dos Quatro, _First of the Fourth._ Em parte alguma essas forças panicas apparecem mais formidavelmente amalgamadas do que no sorprehendente estreito boreal chamado Lyse-Fiord. O Lyse-Fiord é o mais temivel dos escolhos-boreaes do oceano. Ahi a demonstração é completa. É o mar da Noruega, a visinhança do tremendo golpho Stavanger, o quinquagesimo nono gráo de latittude. A agua é pesada e negra com uma febre de tempestatade intermittente. Nessa agua, no meio da solidão, ha uma grande rua sombria. Não é rua para pessoa alguma. Ninguem passa alli; nenhum navio se arrisca nesse lugar. Um corredor de dez leguas de comprido, entre duas muralhas de tres mil pés de altura: eis a entrada. Esse estreito tem cotovellos e angulos como todas as ruas do mar, que nunca são rectas pois que são feitas pela torção da vaga. No Lyse-Fiord, a vaga é quasi sempre tranquilla; o céo é sereno; lugar terrivel. Onde está o vento? Não está em cima. Onde está o trovão? Não está no céo. O vento está debaixo do mar; o trovão está debaixo da rocha. De tempos a tempos ha um estremecimento debaixo da agua. Em certas horas, sem que haja uma nuvem sequer no ar, no meio da altura do penedio vertical, a mil ou mil e quinhentos pés acima das vagas, mais do lado do sul, que do norte, o rochedo rebôa subitamente, rompe dahi um relampago, que fende o ar, e recolhe-se logo, como esses brinquedos que se alongam e contrahem nas mãos das crianças; tem contracções e ampliações esse relampago, fere a rocha opposta, entra outra vez, torna apparecer, recomeça, multiplica as suas cabeças e as as linguas, erriça-se, fere onde póde, recomeça ainda, até que se apaga sinistramente. Fogem os bandos de passaros. Nada é tão mysterioso como essa artilharia sahindo do invisivel. Um rochedo attaca outro. Fulminam entre si os cachopos. É uma guerra que nada tem com os homens. Odio de dous penedos no golphão. No Lyse-Fiord o vento torna-se effluvio, a rocha desempenha as funcções de nuvem, e o trovão tem arrojos de volcão. É uma pilha aquelle estranho estreito; tem por elementos as suas duas fllas de rochas. VI CAVALLARIÇA PARA O CAVALLO Gilliatt era sabedor de cachopos e não tomava as Douvres ao serio. Antes de tudo, já o dissemos, tratou elle de pôr a _pança_ em segurança. A dupla fileira de arrecifes que se prolongava sinuosamente por traz das Douvres, fazia grupo com os outros rochedos, e advinhava-se cavas e saccos sahindo da viela, e prendendo-se á garganta principal como ramos a um tronco. A parte inferior dos escolhos estava tapetado de sargaço e a parte superior de _lichen._ O nivel uniforme do sargaço em todas as rochas marcava a linha da flutuação da maré cheia. As pontas que a agua não attingia tinha o prateado e o dourado que dá aos granitos marinhos o lichen branco e o lichen amarello. Cobria a rocha em certos pontos uma lepra de conchas corroidas. Em outros pontos, nos angulos reentrantes, onde se accumulára uma arêa fina, ondeada na superficie antes pelo vento que pela vaga, havia tufas de cardo azul. Nos redentes pouco batidos pela espuma, reconhecia-se as pequenas covas furadas pelos ursos do mar. Este urso-concha, que anda, bola viva, rolando-se nas pontas, e cuja couraça compõe-se de mais de dez mil peças artisticamente ajustadas e soldadas, o urso marinho, cuja boca se chama, ninguem sabe porque, _lanterna de Aristoteles_, cava o granito com os cinco dentes que tem e aloja-se nos buracos. Nessas alveolas é que os pescadores de fructas do mar dão com elle. Cortam-n'o em quatro partes e comem-n'o crú como ostra. Alguns metem o pão naquella carne mólle. Dahi o nome de _ovo do mar._ As cumiadas dos bancos descobertas pela maré que vasava iam ter mesmo debaixo do rochedo Homem a uma especie de angra murada quasi por todos os lados. Havia alli evidentemente um ancouradouro possivel. Gilliatt observou a angra a forma de uma ferradura, e abria-se de um ao vento Este, que é o menos máo daquellas paragens. O vento alli estava preso e quasi adormecido. Era segura aquella bahiazinha. Nem Gilliatt tinha muito onde escolher. Se Gilliatt quizesse aproveitar a maré vasante devia apressar-se. O tempo continuava a ser magnifico. Estava de humor aquelle insolente mar. Gilliatt tornou a descer, calçou os sapatos, desatou a amarra, entrou na barea, e navegou para fóra. Costeava com o remo a parte externa do cachopo. Chegando perto do Homem examinou a entrada da angra. Um certo ondeado na mobilidade da agua, ruga imperceptivel a qualquer que não fosse marinheiro, desenhava aquelle passo. Gilliatt estudou alguns instantes a curva, lineamento quasi indistincto na vaga, depois tomou ao largo, afim de virar a gosto, e entrar bem, e vivamente, de um só movimento de remo, entrou na angra. Sondou. Era excellente o ancouradouro. A _pança_ estaria protegida alli quasi contra todas as eventualidades da estação. Os mais temiveis arrecifes teem desses recantos tranquillos. Os portos que se acham nos escolhos assemelhara-se á hospitalidade do beduino; são honestos e seguros. Gilliatt arranjou a _pança_ o mais perto do Homem que lhe foi possivel, em ponto que não podesse perder-se, e poz ao mar as duas ancoras. Feito isto, cruzou os braços e reflectio. A _pança_ estava abrigada; era um problema resolvido; mas apresentava-se o segundo. Onde abrigar-se Gilliatt? Offereciam-se dous pontos; o primeiro era a propria _pança_, com o seu camarote mais ou menos habitavel; o segundo era o cimo do rochedo Homem, facil de escalar. De qualquer destes dous angulos podia-se ir a pé nas vasantes, saltando-se de rocha em rocha, até ás Douvres, onde estava a Durande. Mas a vasante dura apenas um momento, e no resto do tempo ficava elle separado, ou do asylo, ou da Durande, por umas duzentas braças. Nadar no mar de um escolho é difficil; com qualquer agiatação é impossivel. Era preciso desistir da _pança_ e do Homem. Nenhuma estação possivel nos rochedos visinhos. Os cimos inferiores dasapparecem duas vezes por dia debaixo da enchente da maré. Os cimos superiores eram constantemente cuspidos pelos saltos da espuma. Inhospita lavagem. Restava o casco da Durande. Podia-se viver alli? Gilliatt teve essa esperança. VII QUARTO PARA O VIAJANTE Meia hora depois, Gilliatt, de volta á Durande, subia e descia no interior, do tombadilho ao porão, aprofundando o exame summario de sua pequena visita. Com auxilio do cabrestante, tinha elle içado á Durande o pacote que fez do carregamento da _pança._ O cabrestante comportára-se bem. Não faltava onde metter o carregamento, Gilliatt tinha, no meio daquelles destroços, muito onde escolher. Achou entre as ruinas um escopro cahido sem duvida da celha do carpinteiro e com o qual augmentou elle a ferramenta. Além disso, como tudo serve onde não ha abundancia, tinha comsigo a faca. Gilliatt trabalhou todo o dia no casco, limpando, consolidando, simplificando. Á tardinha se conheceu isto: Todo o casco tiritava ao vento, tremia a cada passo de Gilliatt. Só era estavel e firme a parte do casco metida entre os rochedos, que continha a machina, e ficava poderosamente presa ao granito. Instalar-se na Durande era imprudente. Era sobre posse; e, longe de dar pezo ao navio, cumpria tornal-o mais leve. Carregar sobre o casco era o contrario do que cumpria fazer. Aquella ruina queria melhores tratos. Era uma especie de doente que expira. Havia bastante vento para maltratal-a. Já era máo ter de trabalhar nella. A porção de trabalho que o casco devia supportar naturalmente talvez o fatigasse mais do que comportavam as suas forças. Além disso, se sobreviesse algum accidente nocturno durante o somno de Gilliatt, estar no navio era sossobrar com elle. Nenhum auxilio possivel: tudo ficava perdido. Para soccorrer o navio, era precizo estar fora delle. Fóra delle e junto delle, tal era o problema. Complicava-se a difficuldade. Onde achar um abrigo em taes condições? Gilliatt pensou. Só restavam as duas Douvres. Pareciam pouco habitaveis. Via-se debaixo, no _plateau_ superior da grande Douvre uma especie de excrescencia. As rochas em pé, com a parte superior chata, como a grande Douvre e o Homem, são penedos decapitados, abundam nas montanhas e no oceano. Certos rochedos, principalmente os que se encontram em mar largo, teem entranhas como se foram arvores golpeadas. Parecem ter recebido um golpe de machado. Com effeito, essas rochas andam sujeitas ao vae-vem do furacão, que é o lenhador do mar. Existem outras causas de cataclysma mais profundas ainda. Dahi vem que ha tantas feridas em todos esses velhos granitos. Alguns desses collossos teem a cabeça cortada. Ás vezes a cabeça, sem que se possa explicar, não cahe e fica mutilada, no cume do rochedo. Não é rara essa singularidade. A Roque-au-Diable, em Guernesey, e a Fable, no valle de Anweiler, apresentam nas mais sorprehendentes condicções esse estranho enigma geologico. Provavelmente tinha acontecido á grande Douvre alguma cousa semelhante. Se a tumescencia que havia no _plateau_ não era natural, era necessariamente algum fragmento que ficaria da decapitação. Talvez houvesse alguma exacavação nesse pedaço de rocha. Buraco para metter-se um homem; era o que Gilliatt queria. Mas como chegar até lá? como trepar por aquella columna vertical, densa e polida como um seixo, meio coberta de uns filamentos viscosos, tendo o aspecto escorregadio de uma superficie ensaboada? Gilliatt tirou da caixa da ferramenta a corda de nós, prendeu-a á cintura, e poz-se a escalar a pequena Douvre. Á proporção que ia subindo, tornava-se mais difficil a ascenção. Esquecera-se de tirar os sapatos, o que augmentava a difficuldade. Não sem custo chegou á ponta. Chegando á ponta poz-se de pé sobre ella. Havia apenas lugar para os pés. Fazer disso um lugar para descançar e dormir era difficil. Um stylicte contentara-se, Gilliatt mais exigente queria cousa melhor. A pequena Douvre curvava-se para grande, e de longe parecia comprimental-a, e o intervallo das duas Douvres, que era de uns vinte pés em baixo, era apenas de oito ou dez pés em cima. Da ponta, onde trepara, Gilliatt vio mais distintamente a entumescencia que cobria a plataforma da grande Douvre. Essa plataforma elevava-se umas tres toezas acima da cabeça delle. Separava-o della um precipicio. O declive da pequena Douvre desapparecia debaixo delle. Gilliatt desprendeu da cintura a corda de nós, tomou rapidamente com o olhar as dimenções, e atirou a ponta da corda sobre a plataforma. O gancho arranhou a rocha e resvalou. A corda de nós que tinha o gancho na extremidade, cahio aos pés de Gilliatt ao longo da pequena Douvre. Gilliatt recomeçou, lançando, a corda mais longe e visando a protuberancia granitica onde via buracos. O lanço foi tão destro e tão firme que o gancho segurou. Gilliatt puxou. Desprendeu-se a corda, e veio bater na columna abaixo de Gilliatt. Gilliatt lançou a corda pela terceira vez. Desta vez não cahio. Gilliatt puxou a corda. Acorda resistio. O gancho estava seguro. Ficara seguro em alguma anfractuosidade da plataforma que Gilliatt não podia ver. Tratava-se de confiar a vida aquella desconhecida prisão do gancho. Gilliatt não hesitou. Urgia tudo. Era preciso ir quanto antes. Além de que, descer ao tombadilho da Durande para procurar qualquer outro meio, era cousa impossivel. O resvalamento era provavel e a queda quasi certa. Sobe-se, não se desce. Tinha Gilliatt, como todos os bons marinheiros, movimento de previsão. Nunca perdia força. Vinham dahi os prodigios de vigor que elle executava com musculos ordinarios; tinha as forças communs, mas uma grande coragem. Ao lado da força, que é physica, tinha a energia, que é moral. Devia praticar alli um acto tremendo. Galgar, suspenso áquelle fio, o intervallo das duas Douvres; tal era a questão. São frequentes nos actos de dedicação ou de dever esses pontos de interrogação que parecem postos pela morte. Farás isto? diz a sombra. Gilliatt executou uma segunda tracção de ensaio sobre o gancho; o gancho resistio. Gilliatt embrulhou a mão esquerda no lenço, apertou a corda com a mão direita coberta pela mão esquerda, depois tendo um pé adiante, e empurrando com o outro pé a rocha afim de que o vigor do impulso impedisse a rotação da corda, precipitou-se do do alto da pequena Douvre sobre a columna da grande. Duro foi o choque. Apezar da precaução tomada por Gilliatt, a corda volteou, e foi o hombro delle que bateu no rochedo. Por sua vez os punhos bateram na rocha. Desatara-se o lenço. As mãos ficaram arranhadas; admirou que não ficassem esmagadas. Gilliatt conservou-se algum tempo aturdido e suspenso. Mas ainda assim bastante senhor de si para não largar a corda. Decorreu algum tempo em oscilação e sobresaltos antes que pudesse agarrar a corda com os pés mas conseguio afinal. Voltando a si e conservando a corda entre as mãos, Gilliatt olhou para baixo. Não se assustava a respeito do comprimento da corda, que mais de uma vez lhe servira a maiores alturas. A corda com effeito arrastava na Durande. Gilliatt, certo de poder descer, começou a trepar. Em poucos momentos chegou ao cume. Ninguem, a não serem os passaros, tinha posto alli o pé. A plataforma estava coberta de esterco de passaros. Era um trapezio irregular, lasca daquelle collosal granito chamado grande Douvre. No meio havia uma cava como uma bacia. Trabalho das chuvas. Gilliatt conjecturara com exatidão. Via-se no angulo meridional do trapesio uma superposição de rochedos, de troços provaveis do descalabro do cimo. Esses rochedos, especie de monte de pedras desmedidas, deixavam lugar a um animal feroz que alli tivesse trepado para passar. Equilibravam-se no meio da confusão; tinha os intersticios de um montão de grabatos. Não havia grota nem antro, mas buracos como uma esponja. Um desses podia admittir Gilliatt. O fundo desse buraco era de relva e musgo. Gilliatt estaria alli como se fosse em casa. A alcova na entrada tinha dous pés de altura. Estreitava-se para o fundo. Ha tumulos de pedra que tem essa fórma. O monte de rochedos estava encostado ao sudoeste, de modo que a casinhola de Gilliatt ficava garantida das aguas, mas aberta ao vento do norte. Gilliatt achou que isso era bom. Os dous problemas estavam resolvidos, a _pança_ tinha um porto, elle tinha casa. A excellencia da casa era ficar perto da Durande. O gancho da corda tinha cahido entre dous pedaços de rocha e ficou solidamente preso. Gilliatt immobilisou-o pondo em cima uma grossa pedra. Depois entrou immediatamente em livre pratica com a Durande. Já estava em casa. A grande Douvre era a casa, e Durande era a officina. Ir e vir, subir e descer, nada mais simples. Atirou-se vivamente pela corda abaixo até o tombadilho. O dia foi bom, a cousa começava bem, Gilliatt estava satisfeito, reparou que tinha fome. Desatou o cesto de provisões, abrio a faca, cortou um pedaço de carne fumada, trincou o pão de rala, bebeu um gole do pichel de agua doce, e ceou admiravelmente. Trabalhar bem e comer bem, são duas alegrias. O estomago cheio assemelha-se a uma consciencia satisfeita. Acabada a ceia, ainda havia sol. Gilliatt aproveitou a claridade para começar a alliviar o navio, que era urgente. Tinha passado uma parte do dia a separar os destroços. Poz de lado, no compartimento solido, onde estava a machina, tudo o que podia servir, madeira, ferro, cordoame, velame. O que era inutil deitou ao mar. O carregamento da _pança_, içado pelo cabrestante até o tombadilho, era, embora summario, um estorvo. Gilliatt vio a especie de nicho cavado na pequena Douvre, a uma altura que elle podia tocar com a mão. Vê-se muitas vezes nos rochedos esses armarios naturaes, não fechados, é verdade. Pensou que era possivel confiar o deposito aquelle nicho. Poz no fundo as duas caixas, a da ferramenta e a do vestuario, os dous saccos, o centeio e o biscouto, e na frente, demasiado chegado a borda, por não haver mais lugar, o cesto das provisões. Teve cuidado de retirar da caixa das roupas a pelle dc carneiro, a japona e as grevas alcatroadas. Para impedir que o vento desse na corda de nós prendeu a ponta em uma porca da Durande. A porca era muito curva, e prendia a corda tão bem como se fôsse uma mão fechada. Restava a parte superior da corda. Prender a extremidade de baixo era facil, mas no cimo da columna, no lugar onde a corda encontrava a borda da plataforma, era de esperar que fôsse a pouco e pouco gasta pelo angulo do rochedo. Gilliatt investigou o montão de destroços que reservara, apanhou alguns pedaços de lona, e alguns fios de carreta achados entre os cabos, e meteu tudo nas algibeiras. Qualquer marujo advinhava logo que elle ia forrar com a lona e os fios o pedaço da corda na altura do angulo do rochedo, de modo a preveni-lo de qualquer avaria. Feita a provisão dos trapos, poz as grevas nas pernas, vestio a japona, prendeu ao pescoço a pelle de carneiro, e assim vestido, com essa panoplia completa, agarrou a corda, rubustamente presa ao flanco da grande Douvre, e subio por aquella sombria torre do mar. Gilliatt, apezar de ter as mãos arranhadas, chegou rapidamente á plataforma. Os ultimos clarões do poente iam-se apagando. Fazia noite no mar. O alto da Douvre conservava alguma claridade. Gilliatt aproveitou o resto da claridade para forrar a corda. Applicou-lhe no cotovello que ella fazia no rochedo, uma ligadura de muitos pedaços de vela, fortemente atada em cada pedaço. Era pouco mais ou menos o forro que costumam a pôr nos joelhos aa actrizes para as agonias e supplicas do 5° acto. Terminado o forro, Gilliatt levantou-se. Desde alguns instantes, emquanto esteve forrando a corda, ouvia elle confusamente no ar um extrecimento singular. Assemelhava-se, no silencio da noite, ao rumor que fizesse o bater das azas de um morcego. Gilliatt levantou os olhos. Um grande circulo negro volteava-lhe por cima da cabeça no céo profundo e alvo do crepusculo. Costuma-se a vêr, nos velhos quadros, circulos iguaes sobre a cabeça dos santos. A differença é que são de ouro em fundo sombrio; este era tenebroso em fundo claro. Nada mais extranho. Dissera-se a aureola nocturna da grande Douvre. O circulo abaixava-se e levantava-se; estreitava-se e alargava-se. Eram gaivotas, goelanos, corvos, cotovias, uma nuvem de passaros do mar, espantados. É provavel que a grande Douvre fosse a hospedaria delles, e que elles fossem buscar ahi o repouso. Gilliatt tinha-lhe tomado um quarto. Assustou-os o inesperado inquilino. Nunca tinham visto esse homem alli. Durou algum tempo aquelle voar assustado. Os passaros pareciam esperar que Gilliatt se fosse embora. Gilliatt, vagamente pensativo, acompanhava-os com os olhos. O turbilhão volante acabou por tomar uma resolução, o circulo desfez-se em espiral, e a nuvem de passaros foi cahir do outro lado do escolho, no rochedo Homem. Ahi pareceram consultar e deliberar. Gilliatt estendendo-se no seu buraco de granito, e pondo debaixo da cabeça uma pedra, como travesseiro, ouvio por muito tempo a conversa dos passaros, que guinchavam cada um por sua vez. Depois calaram-se, e tudo dormio, os passaros em uma rocha e Gilliatt em outra. VIII IMPORTUNAQUE VOLUCRES Gilliatt dormio bem. Mas sentio frio, e por isso acordou varias vezes. Tinha naturalmente os pés collocados no fundo do buraco, e a cabeça á borda. Não teve o cuidado de tirar daquelle leito uma porção de seixos agudos que não lhe davam melhor somno. De quando em quando entreabria os olhos. Ouvia em certos instantes detonações profundas. Era o mar que enchia e entrava nas cavas do escolho com um ruido de canhão. Tudo alli em roda apresentava o extraordinario da visão; Gilliatt tinha a chimera á roda de si. O meio espanto da noite contribuia para que elle se visse mergulhado no impossivel. Gilliatt dizia comsigo: Estou sonhando. Depois tornava a dormir, e sonhando então, achava-se na casa delle, na de Lethierry, em Saint-Sampson; ouvia cantar Deruchette; estava no real. Emquanto dormia acreditava estar acordado e viver; quando acordava, pensava dormir. Com effeito, era um sonho aquillo. Lá pelo meio da noite, ouvio-se um vasto rumor no céo. Gilliatt teve confusamente consciencia disso atravez do somno. Era provavel que fosse o vento. De uma vez que elle acordou, com um estremecimento de frio, abrio as palpebras mais do que ate então. Havia largas nuvens no zenith; a lua fugia e uma grande estrella ia atraz della. Gilliatt tinha o espirito cheio da diffusão dos sonhos, e esse crescimento do sonho complicava as medonhas paisagens da noite. De madrugada estava gelado e dormia profundamente. A aurora tirou-o daquelle somno talvez perigoso. A alcova de Gilliatt estava em frente ao sol nascente. Gilliatt bocejou, espreguiçou-se, e levantou-se do buraco. Dormiria tão bem que não comprehendeu nada. A pouco e pouco foi-lhe voltando o sentimento da realidade, e elle exclamou: Almocemos! O tempo estava calmo, o céo estava frio e sereno, não havia nuvens, a vassoura da noite limpára o horisonte, o sol levanta-se bem. Era um segundo dia bonito que começava. Gilliatt sentio-se alegre. Tirou a japona, envolveu-a na pelle de carneiro, atou tudo, e metteu o embrulho no fundo do buraco ao abrigo de alguma chuva eventual. Depois fez a cama, isto é, poz fóra os seixos agudos. Feita a cama, deixou-se rolar ao longo da corda sobre o tombadilho da Durande, e correu para o nicho onde puzera o cesto de provisões. Não achou o cesto; como estava muito á beira, o vento da noite atirou-o ao mar. Isto annunciava uma intenção de luta. Era preciso que houvesse no vento uma certa vontade e malicia para ir buscar o cesto. Era um começo de hostilidades. Gilliatt comprehendeu isso. É difficil, quando se vive em familiaridade com o mar não vêr no vento e nas rochas creaturas e personagens. Só restava a Gilliatt, além do biscouto e da farinha de centeio, o recurso das conchas com que se alimentou o naufrago morto de fome no rochedo Homem. A pesca era impossivel. O peixe, inimigo dos choques, evita os escolhos; as redes perdem o seu tempo nos recifes; as pontas da rocha só servem para rasgar as redes. Gilliatt almoçou alguns mariscos que arrancou da pedra com difficuldade escapando-se-lhe de quebrar a faca; feito este guapo _lunch_ ouvio um estranho tumulto no mar. Olhou. Era o bando de goelanos e gaivotas que cahia sobre uma das rochas baixas, batendo as azas, empurrando-se, gritando. Formigavam no mesmo ponto. Aquella horda de bicos e unhas saqueava alguma cousa. Essa cousa era o cesto de Gilliatt. O cesto lançado sobre um banco pelo vento, rasgou-se. Os passaros correram logo. Levaram no bico toda a especie de pedaços de comida. Gilliatt reconheceu de longe a sua carne fumada e o seu stockfisch. Era a vez de entrarem tambem em luta os passaros. Faziam represalias. Gilliatt tomara-lhes a casa; elles tomavam-lhe a comida. IX O ESCOLHO E A MANEIRA DE SE SERVIR DELLE Passou-se uma semana. Embora fosse a estação das chuvas, não chovia, o que alegrava Gilliatt. Mas o que elle emprehendia estava acima da força humana, em apparencia ao menos. O successo era de tal modo inverosimil que a tentativa parecia louca. As operações encaradas de perto mostram os seus impecilhos e perigos. Basta começar para ver como é difficil concluir. Todo começo resiste. O primeiro passo que se dá é um revelador inexoravel. A difficuldade que se toca fere como um espinho. Gilliatt teve logo de contar com o obstaculo. Para salvar a machina da Durande, para tentar com alguma probabilidade um tal salvamento naquelle lugar e naquella estação, parecia que seria necessario uma grande porção de homens. Gilliatt era só; precisava ter uma ferramenta completa de carpinteiro e machinista, e Gilliatt apenas tinha uma serra, um machado, uma faca e um martello; precisava ter uma boa officina e um bom telheiro, Gilliatt não tinha nada disso; precisava ter provisões e viveres, Gilliatt não tinha pão. Alguem que, durante essa primeira semana, visse Gilliatt trabalhando no escolho, não saberia o que pretendia elle. Parecia não pensar nem na Durande nem nas Douvres. Estava occupado com o que havia nos bancos; parecia absorto no salvamento dos pequenos destroços do naufragio. Aproveitava as marés baixas, para limpar os recifes de tudo o que o naufragio lhes tinha dado. Andou de rocha em rocha apanhando o que o mar ahi depuzera, pedaços de velame, pedaços do corda, pedaços de ferro, taboas rasgadas, vergas destruidas, aqui um barrete, alli uma corrente, além uma roldana. Ao mesmo tempo estudava todas as anfractuosidades do escolho. Nenhum delles era habitavel, com grande decepção de Gilliatt que sentia frio de noite no buraco arranjado na grande Douvre, e desejaria achar melhor pousada. Duas dessas anfractuosidades eram assaz espaçosas posto que o chão de rocha natural fosse quasi geralmente obliquo e desigual, podia-se andar alli de pé. A chuva e o vento entravam alli a gosto, as altas marés não lhes chegavam. Eram visinhas da pequena Douvre, e faceis de trepar á qualquer hora. Gilliatt decidio que uma seria um deposito e a outra uma forja. Com todos os cabos que pôde recolher, fez pacotes dos restos do naufragio, ligando os destroços em molhos e as lonas em embrulhos. Apertou tudo cuidadosamente. Á proporção que a maré enchente batia nesses pacotes, Gilliat arrastava-os atravez dos recifes até o deposito. Achou na cava de uma rocha um cabo de guindar, por meio do qual podia levantar mesmo os grossos pedaços de madeira. Do mesmo modo arrancou ao mar os numerosos pedaços de corrente esparsos nos escolhos. Gilliatt era tenaz e admiravel nesse trabalho. Fazia quanto queria. Nada resiste a um encarniçamento de formiga. No fim da semana, Gilliatt tinha nesse deposito de granito todo o arsenal de objectos destruidos pela tempestade. Havia o lugar dos cabos e o das escotas; as bolinas não estavam misturadas com as adrissas; as bigotas estavam arranjadas conforme a quantidade de buracos que tinham; as roldanas estavam classificadas separadamente; as cavilhas do papafigos, as machadinhas, os cabos, e mil outros objectos, occupavam, urna vez que não estivessem completamente desfigurados pela avaria, compartimentos differentes; tudo quanto era de carpintaria estava á parte; de cada vez que era possivel, as taboas dos fragmentos do casco eram ajustadas umas ás outras; não havia confusão de rises com viradores, nem pateraces, com enxarcias, nem amuradas com precintas; um dos recantos era reservado á tabuiga da Durande, que apoiava os ovens do cesto de gavea e as gabundonas. Cada destroço tinha o seu lugar. Todo o naufragio estava alli classificado e com o rotulo competente. Era uma cousa semelhante ao cahos armazenado. Uma vela de estaes, presa por pedras, cobria, aliás rota, o que a chuva podia estragar. Por mais quebrada que estivesse a prôa da Durande, Gilliatt conseguio salvar os dous cêpos da ancora, com as tres rodas de polé. Achou o gurupés, e teve muito trabalho em desvencilhal-o das cordas; estavam seguras, e foram postas em tempo secco. Gilliatt, porém, tirou-as, porque o maçame podia ser-lhe util. Recolheu igualmente a pequena ancora que ficara pendurada em uma cava do banco onde o mar encalhara. Achou no que fôra camarote de Tangrouille um pedaço de giz e guardou-o cuidadosamente. Podia ter necessidade de fazer algumas marcas. Uma celha de couro para incendio e algumas tinas em bom estado completavam a ferramenta de trabalho. O resto do carvão que havia na Durande foi levado para o armazem. Em oito dias o salvamento dos destroços estava acabado; o escolho estava limpo, e a Durande alliviada. No casco só restava a machina. O pedaço da amurada que ainda adheria ao resto não fatigava o casco. Pendia sem peso, pois que era sustentado embaixo por uma saliencia de pedra; demais era largo e vasto, e pesado, e não podia ficar no armazem. Parecia uma jangada aquelle pedaço de madeira. Gilliatt deixou-o onde estava. Gilliatt profundamente pensativo neste labor, procurou em vão a _boneca_ da Durande. Era uma dessas cousas que a onda tinha levado para sempre, Gillatt para achal-a daria os seus dous braços, se não precisasse tanto delles. Na entrada do armazem, e fóra, viam-se dous montes de rebutalho, um de ferro, para fundir, outro de páo, para queimar. Gilliatt trabalhava desde madrugada. Fóra do tempo do somno, não descançava nunca. Os corvos marinhos, voando aqui e alli, contemplavam-n'o a trabalhar. X A FORJA Feito o deposito, Gilliatt fez a forja. A segunda anfractuosidade escolhida por Gilliatt offerecia ura refugio, especie de garganta, assaz profunda. Gilliatt teve ao principio a idéa de dormir ahi, mas o vento, renovando-se constantemente, era tão continuo e teimoso nesse corredor que elle teve de renunciar á morada. O vento deu-lhe idéa de fazer forja. Se a caverna não podia ser quarto, podia ser officina. Utilisar o obstaculo é um grande passo para o triumpho. O vento era o inimigo do Gilliatt, Gilliatt resolveu fazer delle o seu lacaio. O que se diz de certos homens:--proprios para tudo, bons para nada,--póde-se dizer das cavas de rochedo. Não dão o que offerecem. Tal cava de rochedo é uma banheira, mas deixa escapar a agua; outra é um leito de musgo, porém molhado; outra é uma cadeira, mas de pedra. A forja que Gilliatt queria estabelecer estava esboçada pela natureza; mas domar esse esboço, até torna-lo appropriado, e transformar a caverna em laboratorio, nada mais áspero e difficil. Com tres ou quatro rochas largas, abertas como funil, e abrindo para uma fenda estreita, o acaso fizera alli um vasto foles informe, muito melhor que os antigos foles de quatorze pés de comprimento, que davam por cada vez, noventa e oito mil polegadas de ar. Aquillo era outra cousa. As proporções de operação não se calculam. O excesso de força era incommodo; era difficil regularisar aquelle sopro. A caverna tinha dous inconvenientes; o ar e a agua atravessavam de um lado para o outro. Não era a onda, era um pequeno esgoto perpetuo, mais semelhante a uma distillação que a uma torrente. A espuma, continuamente lançada pela ressaca sobre o escolho, algumas vezes a mais de cem pés no ar, acabara por encher de agua do mar uma bacia natural situada nas altas rochas que dominavam a excavação. A abundancia de agua nesse reservatorio fazia, um pouco atraz, no declive, uma pequena quéda d'agua, de cerca de uma polegada, cahindo de quatro a cinco toezas. Ajuntava-se a isso um contingente de chuva. De tempos a tempos, uma nuvem de passagem derramava algumas gotas naquelle reservatorio inexgotavel, e sempre transbordando. A agua era salobra, não potavel, mas limpida, embora salgada. A quéda escorria graciosamente nas extremidades dos filamentos verdes como nas pontas de uma cabelleira. Gilliatt pensou em servir-se dessa agua para disciplinar o vento. Por meio de um funil de dous ou tres tubos de taboas, arranjados á pressa, sendo um de torneira, e de uma larga tina disposta como reservatorio inferior, sem contrapeso, Gilliatt que era, como dissemos, um pouco ferreiro e um pouco mecanico, conseguio compor, para substituir o folle da forja, que não tinha, um apparelho menos perfeito do que aquelle que se chama hoje _cagniardelle_, porém menos rudimentario do que o que se chamava outrora nos Pyreneos uma trompa. Tinha farinha de centeio, fez cola, tinha corda branca, fez estopa. Com essa estopa e essa cola, e alguns pedacinhos de pão, tapou elle todas as fendas do rochedo, deixando apenas um bico, feito com um pedaço de espoleta que achou na Durande e que servira á pedra de signal. O bico ficava horisontalmente dirigido contra uma larga pedra onde Gilliatt poz a lareira da forja. Gilliatt fez uma rolha para tapar o bico quando fosse preciso. Depois disto, Gilliatt ajuntou carvão e lenha na lareira, arranjou a pedra de ferir fogo no proprio rochedo, fez cahir a faisca em um punhado de estopa, com a estopa acesa acendeu a lenha e o carvão. Experimentou o folle. Era admiravel. Gilliatt sentio essa altivez de cyclope, senhor do ar, da agua e do fogo. Senhor do ar, deu ao vento uma especie de pulmão, creou no granito um apparelho respiratorio, e fez um folle; senhor da agua, da pequena cascata fez um tubo; senhor do fogo, tirou a flamma daquelle rochedo inundado. Estando a escavação quasi toda aberta, o fumo sahia livremente, enegrecendo o rochedo. Aquelle rochedo que parecia feito para a espuma, conheceu a ferrugem. Gilliatt tomou por bigorna um seixo multicor offerecendo a forma e as dimensões que se quizesse. Era uma perigosa base para bater, e podia acontecer que rebentasse. Uma das extremidades do seixo, arredondada, e acabando em ponta, podia a rigor figurar de bigorna conoide, mas faltava a bigorna pyramidal. Era a antiga bigorna de pedra dos Troglodytas. A superficie polida pela agua, tinha a rigidez do aço. Gilliatt lastimava não ter trazido a sua bigorna. Como ignorava que a Durande estivesse partida pelo meio, esperava achar toda a ferramenta de carpintaria, ordinariamente collocada no porão da prôa. Ora, era exactamente a prôa que faltava. As duas escavações, conquistadas no escolho por Gilliatt, eram visinhas uma da outra. O deposito e a forja communicavam-se. Todas as noites, acabado o trabalho, Gilliatt ceava um pedaço de biscouto molhado em agua, um ursosinho d'agua, ou algumas castanhas do mar, caça unica daquelle rochedo, e tiritando como a corda, trepava para ir dormir na grande Douvre. A especie de abstracção em que Gilliatt vivia, augmentava-se pela materialidade das suas occupações. A realidade era em alta doze. O trabalho corporal com os seus pormenores innumeraveis não diminuia a estupefacção que sentia de achar-se alli, e de fazer o que estava fazendo. Ordinariamente o cançasso material é um fio que puxa para terra; mas a propria singularidade do trabalho emprehendido por Gilliatt, mantinha-o em um trabalho de região ideal e crepuscular. Parecia-lhe ás vezes estar dando martelladas nas nuvens. Outras vezes parecia-lhe que as suas ferramentas eram armas. Tinha o singular sentimento de um ataque latente que elle repellia ou prevenia. Tecer maçame, desfiar uma vela, escorar duas pranchas, era fabricar machinas de guerra. Os mil cuidados minuciosos deste salvamento acabavam por assemelhar-se a precauções contra as aggressões intelligentes, mui pouco dissimuladas e muito transparentes. Gilliatt não sabia as palavras que exprimem as idéas, mas percebia as idéas. Sentia-se cada vez menos operario e cada vez mais pelejador. Entrou alli como um domador. Comprehendia isso quasi. Estranha ampliação para o seu espirito. Além disso, tinha á roda de si, a perder de vista, o immenso sonho do trabalho perdido. Nada mais perturbador do que vêr manobrar a diffusão das forças no insondavel e no illimitado. Procuram-se os fins. O espaço sempre em movimento, a agua infatigavel, as nuvens que parecem affadigadas, o vasto esforço obscuro, toda essa convulsão é um problema. Que faz este perpetuo tremor? que construem estes ventos? que levantam estes abalos? Em que se occupam os choques, os soluços, os gritos? que faz todo esse tumulto? O flux e reflux dessas questões é eterno como a maré. Gilliatt sabia o que fazia; mas a agitação da extenção era um enigma que o aturdia confusamente. Sem querer, mecanicamente, imperiosamente, por pressão e penetração, sem outro resultado mais que uma fascinação inconsciente, e quasi feroz, Gilliatt pensativo ajuntava ao seu trabalho, o prodigioso trabalho inutil do mar. Na verdade, como não impressionar-se e sondar alli á vista, o mysterio da tremenda vaga laboriosa? Como não meditar, na proporção, da meditação que se tem, a oscilação da onda, a impetuosidade da espuma, a usura imperceptivel do rochedo, o esfalfamento insensato dos quatro ventos? Que terror para o pensamento não é o recomeçar perpetuo, o oceano poço, as nuvens Danaydes, todo esse trabalho para cousa nenhuma! Para cousa nenhuma, não; só o Ignoto o sabe! XI DESCOBERTA Um escolho proximo da costa é algumas vezes visitado pelos homens; um escolho em mar largo, nunca. Que se iria buscar ahi? não é uma ilha. Não se pode contar com vitualhas, nem arvores com fruta, nem pastos, nem animaes, nem fontes de agua potavel. É uma nueza n'uma solidão. É uma rocha, com declives fóra d'agua, e pontas debaixo d'agua. Nada se encontra ahi a não ser o naufragio. Essa especie de escolhos que a velha lingua marinha chama os Isolados, são, como dissemos, lugares estranhos. Só ha o mar. O mar faz alli o que lhe parece. Nenhuma apparição terrestre o perturba. O homem assusta o mar; o mar desconfia delle; esconde-lhe o que é e o que faz. No escolho, está seguro; lá não vai o homem. Não será perturbado o monologo da onda. A agua trabalha no escolho, repara-lhe as avarias, aguça-lhe as pontas, eriça-o, concerta-o. Emprehende a abertura do rochedo, desconjunta a pedra mole, desnuda a pedra dura, tira a carne, deixa o osso, remeche, fura, esboraca, canalisa, põe os intestinos em communicação, enche o escolho de cellulas, imita a esponja em grande, cava o interior, esculpe o exterior. Nessa montanha, que lhe pertence, o mar faz para si antros, sanctuarios, palacios; tem uma vegetação hedionda e esplendida; compõe-se de hervas fluctuantes que mordem e monstros que se enraizam; mette na sombra da agua essa horrivel magnificencia. No escolho isolado, ninguem o espreita, nem o incommoda; o mar desenvolve ahi a gosto o seu lado mysteriosa inaccessivel ao homem. Depõe ahi as secreções vivas e horriveis. Acha-se alli todo o ignorado do mar. Os promontorios, os cabos, os cachopos, os arrecifes, são verdadeiras construcções. A formação geologica é pouca cousa, comparada á formação oceanica. Os escolhos, casas da vaga, pyramides da espuma, pertencem á arte mysteriosa que o autor deste livro chamou algures a Arte da Natureza, e tem uma especie de estylo enorme. Alli o fortuito parece intencional. Essas construcções são multiformes. Tem o embaraçado do polypo, a sublimidade da cathedral, a extravagancia do pagode, a amplidão da montanha, a delicadeza da joia, o horror do sepulchro. Tem velaolas como uma colmêa, latibulo como um páteo de bichos, tuneis como um combro de toupeiras, carceres como uma bastilha, emboscadas como um campo. Tem portas, mas tapadas columnas, mas truncadas, torres, mas inclinadas, pontes, mas despedaçadas. Os seus compartimentos são inextrincaveis; isto é só para os passaros; aquillo é só para os peixes. Não se passa. A figura architectural transforma-se, desconcerta-se, affirma e nega a estatica, quebra-se, detem-se, começa em archivolta, acaba em architrave; seixo sobre seixo. Encelado é o pedreiro. Uma dynamica extraordinaria ostenta alli os seus problemas resolvidos. Terriveis abobadas pendentes ameaçam cahir, mas não cahem. Ninguem sabe como se seguram estes edificios vertiginosos. Declives, lacunas, suspensões insensatas; desconhece-se a lei desse babelismo. O Ignoto, immenso architecto, nada calcula e tudo consegue; os rochedos, construidos confusamente, compõem um monumento monstro; nenhuma logica, um vasto equilibrio. É mais do que a solidez, é a eternidade. É a desordem ao mesmo tempo. O tumulto da vaga parece ter passado no granito. Um escolho é a tempestade petrificada. Nada mais impressivel para o espirito do que essa medonha architectura, sempre esboroante, sempre de pé. Tudo alli se ajuda e se contraria. É um combate de linhas donde resulta um edificio. Reconhece-se a collaboração dessas duas querellas, o oceano e o furacão. Architectura que tem terriveis obras primas. O escolho Douvres era uma dellas. Esse foi construido e aperfeiçoado pelo mar com um amor formidavel. Lambia-o a agua rabugenta. Era hediondo, perfido, obscuro; cheio de cavas. Tinha um systema de veias que eram fendas submarinas, ramificando-se em profundezas insondaveis. Muitos orificios desse rasgão inextrincavel ficavam a secco nas vasantes. Podia-se entrar então, com risco. Gilliatt, pela necessidade do trabalho, teve de explorar todas essas grotas. Nenhuma dellas deixava de ser temivel. Em todas as cavas, reproduzia-se, com as dimensões exageradas do oceano, aquelle aspecto de matadouro e açougue extranhamente imitado do centro das Douvres. Quem não vio as excavações desse genero, na parede do eterno granito, esses horriveis _frescos_ da natureza, não póde fazer uma idéa do que é. Eram dissimuladas essas grotas ferozes, era inconveniente demorar-se nellas. A maré enchente invadia-as até o tecto. Abundavam os mariscos e os fructos do mar. Estavam cheias de seixos rolados e amontoados no fundo. Muitos pesavam mais de uma tonelada. Eram de todas as proporções e de todas as côres, a maior parte pareciam ensanguentados, alguns cobertos de filamentos pelludos e viscosos, pareciam grossas toupeiras verdes focinhando no rochedo. Muitas dessas cavas terminavam como um forno. Outras, arterias de uma circulação mysteriosa, prolongavam-se no rochedo em fendas tortuosas e negras. Eram as ruas do golphão. Essas fendas estreitavam-se constantemente de modo a não deixar passar um homem. Um brandão aceso deixava ver obscuridades gotejantes. Gilliatt aventurou-se uma vez numa dessas fendas. A hora da maré prestava-se a isso. Era bello dia de calma e de sol. Não havia que temer nenhum accidente do mar que pudesse complicar o perigo. Duas necessidades como dissemos, levavam Gilliatt a essas explorações: procurar os destroços uteis, e achar lagostas para comer. Já lhe faltavam conchas nas Douvres. A fenda era estreita e a passagem quasi impossivel. Gilliatt via claridade do outro lado. Fez esforço, espremeu-se como pôde, e entrou até onde lhe foi possivel. Achou-se, sem pensar, no interior do rochedo da ponta do qual Clubin atirára-se da Durande. Gilliatt estava debaixo dessa ponta. O rochedo, abrupto exteriormente, e inaccessivel, era vasio no interior. Tinha galerias, poços e quartos como o tumulo de um rei do Egypto. Aquelle dedalo era dos mais complicados, trabalho da agua, infatigavel solapa do mar. As divisões daquelle subterraneo submarinho, communicavam provavelmente com a agua immensa do exterior por mais de uma sahida, umas abertas ao nivel da agua, outras profundos funis invisiveis. Perto dalli, Gilliatt nem o sabia, foi que Clubin atirou-se ao mar. Gilliatt, naquella fisga de crocodillos, onde na verdade não havia medo de achal-os, serpenteava, arrastava-se, esbarrava, curvava-se, levantava-se, perdia o pé, encontrava o chão, avançava penosamente. A pouco e pouco alargou-se o bocal, appareceu uma meia luz, e de repente Gilliatt entrou em uma caverna extraordinaria. XII O INTERIOR DE UM EDIFICIO DEBAIXO DO MAR A luz vinha a proposito. Um passo mais, e Gilliatt estaria em uma agua talvez sem fundo. As aguas das cavas tem um tal resfriamento e uma paralysia tão subita, que lá ficam muitas vezes os mais fortes nadadores. Demais, não havia meio de subir e agarrar ás rochas entre as quaes ficaria preso. Gilliatt parou. Á grota, donde elle sahira, ia ter a mesma saliencia estreita e viscosa, especie de vulcão na muralha a pique. Gilliatt encostou-se á muralha e olhou. Estava n'uma grande cava. Tinha acima de si alguma cousa semelhante ao interior de um craneo dissecado. E parecia dissecado de fresco. As nervuras gotejantes das strias do rochedo imitavam na abobada as fibras dentadas de uma bola. Por tecto, a pedra; por assoalho, o mar; as ondas apertadas entre as quatro paredes da grota, pareciam vastos ladrilhos fluctuantes. A grota estava fechada por todos os lados. Nenhuma trapeira, nenhum respiradouro, nenhuma fenda na parede. À luz vinha debaixo atravez da agua. Era um resplendor tenebroso. Gilliatt cujas pupillas se dilataram durante o trajecto obscuro do corredor, distinguia tudo naquelle crepusculo. Conhecia, por lá ter ido mais de uma vez, as cavas de Plenmont em Jersey, o Croux-Maillé em Guernesey, as Boutiques em Jerk, assim chamadas por causa dos contrabandistas que alli depunham as suas mercadorias; nenhum desses maravilhosos antros era comparavel ao quarto subterraneo e submarinho onde penetrára. Gilliatt via diante delle, debaixo da vaga, uma especie de arcada afogada. Essa arcada, ogiva natural, trabalhada pela onda, era brilhante entre as suas duas columnas profundas e negras. Era por aquelle portico submergido que entrava na caverna claridade do alto mar. Luz estranha que vinha por um buraco na agua. Essa claridade esvasava-se debaixo da agua como um largo leque e repercutia no rochedo. Os raios rectilineos, cortados em longas fitas negras, sobre a opacidade do fundo, clareando ou escurecendo de uma anfractuosidade a outra, immilavam interposicões de laminas de vidro. Havia luz, mas luz desconhecida. Já não era a nossa luz. Podia-se crer que se estava em outro planeta. A luz era um enigma; dissera-se o verde clarão da pupilla de uma sphynge. A cava figura o interior de uma caverna enorme; a esplendida abobada era o craneo, e a arcada era a bocca; não havia buracos dos olhos. A boca engulindo e vomitando o flux e o reflux, aberta em pleno meio dia exterior, bebia a luz e vomitava o amargor. Certos entes, intelligentes e máos, assemelham-se a isto. O raio do sol, atravessando aquelle portico obstruido de uma espessura vidrenta da agua do mar, tornava-se verde como um raio de Aldebaran. A agua, cheia dessa luz molhada, parecia esmeralda em fusão. Um reflexo de agua-marinha de incrivel delicadeza tingia brandamente toda a caverna. A abobada com os seus lobulos quasi cerebraes e as suas ramificações semelhantes a nervos, tinha um fraco reflexo de chrysopraso. O chamalote da onda, reverberado no tecto, decompunha-se e recompunha-se constantemente, alargando e estreitando as suas rodas de ouro com um movimento de dansa mysteriosa. Sahia dalli uma impressão espectral; o espirito podia perguntar que preza ou que espera era aquella que fazia tão alegremente aquelle magnifico filete de fogo vivo. Nos relevos da abobada e nas asperidades da rocha pendiam longas e finas vegetações banhando provavelmente as raizes atravez do granito em alguma toalha de agua superior, e desbagando, nas pontas, uma gota d'agua, uma perola. Essas perolas cahiarn no golphão com um pequeno rumor. Todo esse conjuuto era inexprimivel. Não se podia imaginar nada mais lindo nem mais lngubre. Era alli o palacio da Morte, alegre. XIII O QUE SE VÊ E O QUE SE ENTREVÊ Sombra que deslumbra, tal era aquelle sitio sorprehendente. A palpitação do mar fazia-se sentir naquella cava. A oscillação externa inchava e depremia a toalha de agua interior com a regularidade de uma respiração. Cuidava-se vêr uma alma mysteriosa naquelle grande diaphragma verde elevando-se e abaixando-se em silencio. A agua era magicamente limpida, e Gilliatt distinguia, em profundezas diversas, estações immersas, superficie de rochas de um verde carregado a mais e mais. Certas cavas obscuras eram provavelmente insondaveis. Dos dous lados do portico sub-marinho, esboços de cimbrios abatidos, cheios de trevas, indicavam pequenas cavas lateraes, pontos inferiores da caverna central, accessiveis talvez na época das marés extremamente baixas. Essas anfractuosidades tinham tectos em plano inclinado, em angulos mais ou menos abertos. Pequenas plagas, descobertas pelas excavações do mar, mergulhavam-se e perdiam-se debaixo dessas obliquidades. Longas hervas expessas, de mais de uma toeza, ondulavam debaixo d'agua como um balancear de cabellos ao vento. Entreviam-se florestas de sargaço. Fóra d'agua, e dentro d'agua, toda a muralha da cava, de alto abaixo, desde a abobada até ao desapparecimento no invisivel, era tapetada dessas prodigiosas florescencias do oceano, tão raramente viaveis ao olho humano, que os velhos navegadores hespanhóes, chamaram _praderias del mar._ Expesso musgo, com todos os matizes da azeitona, escondia e ampliava as exostosis de granito. De todos os declives rompiam os delgados lóros lavrados do sargaço com que os pescadores fazem barometros. O halito obscuro da caverna agitava essas correas luzentes. Debaixo dessas vegetações escondiam-se e mostravam-se ao mesmo tempo, as mais raras joias do escrinio do oceano, os marfins, as mitras, os elmos, as purpuras, os buzios, os strultiolarios, as conchas univalvulas. As campanas de lapas, semelhantes a barracas microscopicas, adheriam ao rochedo e grupavam-se em aldèas, em cujas ruas rolavam as multivalvulas, esses escarabeos da vaga. Não podendo os seixos de marisco entrar facilmente nessa grota, ahi se refugiavam as conchas. As conchas são grandes fidalgos que, bordados e paramentados, evitam o rude e incivil contacto do populacho das pedras. A fulgida reunião das conchas fazia debaixo d'agua, em certos lugares, ineffaveis irradiações atravez das quaes entrevia-se um grupo de azues e vermelhos, e todos os reflexos da agua. Na parede da caverna, um pouco ácima da linha de flutuação da maré, uma planta magnifica e singular, prendia-se como um debrum á tapeçaria do sargaço, continuava-o e terminava-o. Essa planta, fibrosa, vasta, inextrincavelmente dobrada, e quasi negra, offerecia ao olhar largas toalhas embaraçadas e obscuras, ornadas em toda a extensão de numerosas florinhas côr de lapiz lazuli. Na agua parecia que essas flôres accendiam-se, e cuidava-se vêr brazas azues. Fóra da agua eram flôres, dentro da agua eram saphyras, de modo que a onda, subindo e innundando o esvazamenlo da grota, revestia essas plantas e cobria o rochedo de carbunculos. A cada enchimento da vaga tumida como um pulmão, essas flôres banhadas, resplandeciam, a cada abaixamento apagavam-se; melancolica semelhança com o destino. Era a aspiração, que é a vida; era a expiração que é a morte. Uma das maravilhas daquella caverna era a rocha. Essa tocha, ora muralha, ora cymbrio, ora pilastra, era em alguns lugares bruta e nua, em outros trabalhada pelos mais delicados lavores naturaes. Um não sei quê, aliás de espirito, misturava-se á estupidez massiça da pedra. Que artista não é o abysmo! Tal pedaço de parede, cortado em quadro e cheio de altos e baixos, representando attitudes, figurava um vago baixo-relevo; ante essa esculptura, em que havia um tanto de nuvem, podia-se sonhar com Prometteo esboçando para Miguel Angelo. Parecia que com alguns toques de cinzel o genio poderia acabar o que o gigante começara. Em outros lugares a rocha era embutida como um broquel sarraceno ou traçada como uma florentina. Tinham almofadas que pareciam bronze de Corintho, arabescos como uma porta de mesquita; como uma pedra runica tinha signaes de unha obscuros e improvaveis. Plantas com ramos torcidos em forma do verruma, cruzando-se no dourado do musgo, cobriam-na filagranas. Era um antro e uma alhambra. Era o encontro da selvageria e da ourivesaria na augusta e disforme architectura do acaso. O magnifico bolor do mar avelludava os angulos do granito. As pedras estavam adornadas de lianas grandi-flôres, tão destras que não cahiam, e pareciam intelligentes tão bem adornavam ellas. Parietarias com estranhos ramalhetes mostravam os seus tuffos a proposito e com gosto. Havia alli a casquilhice possivel numa caverna. A sorprehendente luz edenica que vinha debaixo d'agua, a um tempo penumbra marinha e radiação paradisiaca, esfumava todos os lineamentos em uma especie de diffusão visionaria. Cada vaga era um prisma. O contorno das cousas debaixo desses ondeamentos iriados tinha o chrosmatismo das lentes d'optica demasiado convexas; spetros solares fluctuavam debaixo da agua. Acreditar-se-hia ver torcer-se nessa diaphaneidade auroreal pedaços de arco-iris afogados. Em outros lugares havia nagua um certo luar. Todos os esplendores pareciam amalgamados alli para fazer um quê de cego e de nocturno. Nada mais impossivel e enigmatico do que aquelle fasto naquella cava. O que dominava alli era o encanto. A vegetação phantastica e a stratificação informe acordavam-se e compunham uma harmonia. Era de bello effeito aquelle consorcio de cousas medonhas. Penduravam-se as ramificações parecendo apenas tocar de leve. Era profundo o affago da rocha selvagem e da flôr ruiva. Pilares massiços tinham por capiteis e por ligaduras, frageis e tremulas grinaldas; parecia ver-se dedos de fada fazendo cocegas nas patas de um hypopotamo, e o rochedo sustentava a planta e a planta abraçava o rochedo com uma graça monstruosa. Resultava dessa difformidade mysteriosamente ajustada uma belleza soberana. As obras da natureza, não menos supremas que as obras do genio, contém o absoluto e impoem-se. O inesperado dellas faz-se obedecer imperiosamente pelo espirito; sente-se uma premeditação que fica fora do homem, e ellas não são mais sorprehendentes do que quando fazem subitamente sahir o delicado do terrivel. Aquella grota estava por assim dizer, e se tal expressão é admissivel, sederalisada. Sentia-se alli o imprevisto do espanto. O que enchia aquella crypta, era luz do apocalypse. Não havia certeza de que aquillo existisse. Tinha-se diante dos olhos uma realidade cheia de impossivel. Olhava-se isto, tocava-se, presenciava-se; mas era difficil crer. Era luz aquillo que jorrava daquella janella debaixo d'agua? Era agua aquillo que tremia naquella bacia obscura? Aquelles cimbrios e porticos não eram nuvem celeste imitando uma caverna? Que pedra era aquella que se pisava? Aquelle apoio não ia desconjuntar-se e tornar-se fumo? Que joalheria de conchas era aquella que se entrevia? Que distancia havia dalli á vida, á terra, aos homens? Que encanto era aquelle misturado áquellas trevas? Commoção inaudita, quasi sagrada, á qual misturava-se a doce inquietação das hervas no fundo d'agua. Na extremidade da cava, que era oblonga, debaixo de uma archivolta cyclopica singularmente correcta, em um buraco quasi indistinto, especie de antro no antro, especie de tabernaculo no sanctuario, atraz de uma toalha de luz verde, interposta como um véo de templo, descobria-se fora d'agua uma pedra de angulos cortados em quadro com uma parecença de altar. A agua circumdava essa pedra. Parecia que uma deusa tinha descido d'alli. Era impossivel deixar de pensar, debaixo d'aquella crypta, em cima daquelle altar, em alguma nueza celeste eternamente pensativa, que a entrada de um homem tinha feito fugir. Era difficil conceber aquella celula augusta sem uma visão dentro della; a apparição, evocada pelo devaneio, recompunha-se por si; um rorejar de casta luz sobre espaduas apenas entrevistas, uma fronte banhada de alvores, um oval de rosto olympico, uns mysteriosos seios arredondados, uns braços pudicos, uma coma esparra em uma aurora, uns quadris ineffaveis modelados em luz pallida, no meio da sagrada bruma, umas fórmas de nympha, um olhar de virgem, uma Venus sahindo do mar, uma Eva sahindo do cahos; tal era o sonho que forçosamente assaltava a imaginação. Era inverosimil que não estivesse antes um phantasma naquelle lugar. Uma mulher nua, com um astro em si, devia provavelmente ter occupado aquelle altar. Sobre aquelle pedestal, d'onde emanava um estasis inexprimivel, imaginava-se uma alvura, viva e de pé. O espirito creava, no meio da adoração muda daquella caverna, uma Amphitrite, uma Tethys, alguma Diana que podesse amar, estatua do ideal formada de um raio e contemplando a sombra com meiguice. Foi ella quem, ao esquivar-se, deixou na caverna aquella claridade, especie de perfume--luz sahido daquelle corpo-estrella. A fascinação daquelle fantasma já não estava alli; já se não via a figura, feita para ser vista sómente pelo invisivel, mas sentia-se; recebia-se aquelle estremecimento que é uma volupia. A deosa estava ausente, mas a divindade estava presente. A bellesa do antro parecia feita para aquella presença. Era por causa dessa deidade, dessa fada dos nacares, dessa rainha das brisas, dessa graça nascida das vagas, era por causa delia, ao menos suppunha-se isto, que o subterraneo estava religiosamente murado, afim de que nada perturbasse nunca, em derredor daquelle divino fantasma, a obscuridade que é um respeito, o silencio que é uma magestade. Gilliatt, que era uma especie de vidente da naturesa, scismava, confusamente commovido. De subito, alguns palmos abaixo delle, na transparencia encantadora daquella agua, que eram pedras preciosas dissolvidas, Gilliatt vio alguma cousa inexprimivel. Uma especie de longo andrajo movia-se na oscillação das vagas. Esse andrajo não fluctuava, vogava; tinha a fórma de um sceptro de truão com pontas; essas pontas tinham reflexos; parecia que uma poeira impossivel de molhar-se cobria aquelle todo. Era mais que horrivel, era nojento. Tinha um quê de chimerico; era um ente, a menos que não fosse uma apparencia. Parecia dirigir-se para o obscuro da cava e mergulhava-se alli. As espessuras da agua tornaram-se sombrias sobre aquella cousa que resvalou e desappareceu, sinistra. LIVRO SEGUNDO O trabalho I OS RECURSOS DAQUELLE QUE NÃO TEM RECURSOS A cava não soltava facilmente quem lá ia. A entrada era pouco commoda, a sahida foi ainda peior. Gilliatt entretanto safou-se, mas não voltou lá. Nada encontrou do que procurava, e não tinha tempo para ser curioso. Poz immediatamente a forja em actividade. Faltava ferramenta, Gilliatt fabricou-a. Tinha por combustivel os destroços, a agua por motor, o vento por folles, uma pedra por bigorna, por arte o instincto, por força a vontade. Gilliatt entrou ardentemente nesse trabalho sombrio. O tempo mostrava-se complacente. Continuava bello, e o menos equinoxial possivel. Chegára o mez de Março, mas tranquillamente. Os dias tornavam-se compridos. O azul do céo, a vasta doçura dos movimentos da extensão, a serenidade do meio dia, pareciam excluir qualquer intensão má. Alegrava-se o mar debaixo do sol. Um affago previo tempera as traições. A agoa marinha não é avara desses affagos. Com aquella mulher é preciso desconfiar do sorriso. Havia pouco vento; a hydraulica soprava bem. O excesso do vento tolheria em vez de ajudar. Gilliatt tinha uma serra; fabricou uma lima; com a serra attacou a madeira, com a lima, o metal; depois ajuntou as duas mãos do ferreiro, uma tenaz e uma pinça: a tenaz agarra, a pinça maneja; uma trabalha como a mão, a outra como o dedo. A ferramenta é um organismo. A pouco e pouco Gilliatt arranjava auxiliares, e construia as suas armaduras. Com um pedaço de ferro em folha fez uma anteparo na forja. Um dos seus primeiros cuidados foi a separação e a reparação das roldanas. Concertou as caixas e as rodas das polés. Cortou a exfoliação de todos os barrotes quebrados e aplainou as extremidades; como dissemos, tinha para as necessidades da carpintaria, grande cópia de peças de madeira armazenadas, e apparelhadas, segundo as formas, as dimensões e as essencias, o carvalho de um lado, o pinheiro do outro, as peças curvas, como as porcas, separadas das peças direitas, como as que ligam as escotilhas. Era uma reserva de pontos de apoio e alavancas, de que podia precisar em um momento dado. Quem quer construir um guindaste deve munir-se de traves e polés mas não basta isso, é preciso corda. Gilliatt restaurou os cabos e as cordas. Estendeu as vellas rasgadas, e conseguio extrahir excellente fio com que compoz uma sarja, e cirzio o cordoame. Mas essas costuras eram sujeitas a apodrecer, era preciso empregar as cordas e os cabos, Gilliatt apenas pôde fazer o massame sem ter alcatrão. Concertou as cordas, concertou as correntes. Pôde, graças á ponta lateral da bigorna, fazer aneis grosseiros, mas solidos; com esses aneis, prendeu uns aos outros os pedaços de corrente quebrados, e fez correntes compridas. Forjar só, e sem auxilio, é mais do que incommodo. Comtudo Gilliatt conseguio fazêl-o. É certo que só teve de trabalhar na forja, peças de pequeno volume; podia meneal-as com uma mão, e martellar com a outra. Cortou em pedaços as barras de ferro redondas do lugar do commando; forjou nas duas extremidades de cada pedaço, de um lado uma ponta, do outro uma larga cabeça chata, e desse modo fez grandes prégos de palmo e meio. Esses prégos, muito usados em trabalhos maritimos, são uteis para fixar os páos nas pedras. Porque motivo Gilliatt tomava todo este trabalho? Vêr-se-ha. Teve de refazer muitas vezes o fio da machadinha e os dentes da serra. Para a serra fabricou uma lima triangular. Servia-se tambem do cabrestante da Durande. Quebrou-se a fateixa da corrente. Gilliat fez outra. Com ajuda da pinça e da tenaz, e servindo-se da faca como de um virador emprehendeu desmontar as duas rodas do navio; conseguio. É preciso não esquecer que isso era exequivel; essa era a particularidade da construcção das rodas. As caixas que as tinham coberto, serviram-lhes de capas; com as taboas das caixas, Gilliatt arranjou dous caixotes onde metteu peça por peça, as duas rodas cuidadosamente numeradas. O pedaço de giz servio-lhe para essa numeração. Arranjou os dous caixotes na parte mais solida do convez da Durande. Terminados estes preliminares, Gilliatt achou-se diante da difficuldade suprema. Surgio a questão da machina. Desmontar as rodas foi possivel; desmontar a machina, não. Primeiramente, Gilliatt conhecia mal aquelle mecanismo. Trabalhando ao acaso, podia produzir algum desconcerto irreparavel. Depois, mesmo para tentar desmontal-a peça por peça, se tivesse esta imprudencia, eram-lhe precisas outras ferramentas do que as que elle podia fazer n'uma caverna por officina, com o vento por folles, e uma pedra por bigorna. Tentando desmontar a machina arriscava-se a despedaçal-a. Aqui podia-se crêr que estava diante do impraticavel. Affigurou-se-lhe que estava ao pé deste muro: o impossivel. Que fazer? II DE QUE MODO SHAKESPEARE PODE ENCONTRAR-SE COM ESCHYLO Gilliatt tinha uma idéa. Desde aquelle carpinteiro de Salbris que, no VI seculo, na infancia da sciencia, muito antes que Amoutons tivesse achado a primeira fricção, Labire a segunda, e Coulomb a terceira, sem conselho, sem guia, sem mais auxiliar que um menino, filho delle, com uma ferramenta informe, resolveu em massa, arreando o grande relogio da igreja de Charité-Sur-Loire, cinco ou seis problemas de statica e de dynamica, todos juntos, como as rodas de carros embaraçados; desde esse trabalhador extravagante que achou meio de, sem quebrar um fio de latão e sem desfazer um encaixe, arrear de uma só vez, por uma simplificação prodigiosa, do segundo andar da torre ao primeiro, aquella massiça gaiola de horas, toda de ferro e cobre, grande como uma guarita, com o seu movimento, cylindros, tambores, ganchos, mostrador, pendula horisontal, ancoras de escapamento, meada de corda, pesos de pedra dos quaes um pesava quinhentas libras, tympano, carrilhão; desde esse homem que fez esse milagre, e cujo nome já se não sabe, jámais houve nada igual á empreza que Gilliatt commettia. A operação de Gilliatt era talvez peior, isto é, mais bella ainda que a outra. O peso, a delicadeza, o conjuncto das difficuldades, não eram menores na machina da Durande que no relogio de Charité-Sur-Loire. O carpinteiro gothico tinha um auxiliar, o filho; Gilliatt era só. Havia uma população, vinda de Menug-Sur-Loire, de Nevers, e mesmo de Orleans, a qual podia, em caso de necessidade, ajudar o carpinteiro de Salbris, e animal-o com os seus rumores benevolos; Gilliatt só tinha á roda de si o rumor do vento e a multidão das ondas. Nada se compara á timidez da ignorancia, a não ser a sua temeridade. Quando a ignorancia começa a ousar é que tem uma bussola comsigo. Essa bussola é a intuição da verdade, mais clara ás vezes num espirito simples que n'um espirito complicado. Ignorar convida a tentar. A ignorancia é um devaneio, e o devaneio curioso é uma força. Saber, desconcerta ás vezes, e desaconselha muitas. Se Vasco da Gama soubesse recuára ante o Cabo das Tormentas. Se Christovão Colombo fosse bom cosmographo não teria descoberto a America. O segundo que subio ao Monte Branco foi um sabio, Saussure; o primeiro foi um pastor, Balmat. Taes casos, digamol-o de passagem, são a excepção, e tudo isto não tira nada á sciencia, que fica sendo a regra. O ignorante póde achar, só o sabio inventa. A _pança_ continuava a estar ancorada na angra do Homem, onde o mar a deixava tranquilla. Gilliatt, como se sabe, arranjou tudo de modo a ficar em livre pratica com a barca. Foi alli e mediu-a em diversos pontos. Depois voltou á Durande e mediu o grande diametro da machina. O grande diametro, sem as rodas, bem entendido, era mais curto dous pés que o espaço da pança. Portanto, a machina podia entrar na barca. Mas como metel-a ahi? III A OBRA PRIMA DE GILLIATT AJUDA A OBRA PRIMA DE LETHIERRY Alguns dias depois, o pescador que fosse assaz tonto para ir perlustrar aquellas paragens, em semelhante estação, teria pago a sua ousadia com a visão de uma cousa singular entre as Douvres. Veria isto o pescador: quatro roubustas pranchas com espaços iguaes entre si, indo de uma Douvre á outra, e como que forçadas entre os rochedos, o que é a melhor solidez deste mundo. Do lado da pequena Douvre as suas extremidades pousavam e fincavam-se nas fendas da rocha; do lado da grande Douvre, essas extremidades deviam ter sido violentamente espetadas na columna com um martello por um robusto trabalhador trepado na propria prancha. Essas pranchas eram um pouco mais longas que o intervallo das Douvres; dahi, a segurança e o plano inclinado em que estavam, formando uma ladeira. Tocavam a grande Douvre em angulo agudo e a pequena em angulo obtuso. Era suave o declive, mas desigual, o que se tornava defeito. A essas quatro pranchas prendiam-se quatro polés guarnecidas todas de corda e boça, e tendo esta singularidade e ousadia, que a polé de rodas estava em uma extremidade da prancha e a polé simples na extremidade opposta. Este desvio de arte, tamanho que era perigoso, era provavelmente exigido pela necessidade da operação. As polés compostas eram fortes e as siraplices eram solidas. A essas prendiam-se cabos que de longe pareciam fios, e por baixo desse aparelho aereo de guindastes e taboas, o massiço casco da Durande parecia suspenso a esses fios. Ainda não estava suspensa. Perpendicularmente por baixo das pranchas, oito aberturas foram praticadas no casco, quatro a bombordo e quatro a estibordo da machina, e mais oito debaixo dessas, na carena. Os cabos desciam verticalmente, entravam no convez, depois sahiam pela carena, pelas aberturas de estibordo, passavam por baixo da quilha e da machina, entravam outra vez no navio pelas aberturas de bombordo e subindo, atravessando, o convez, voltavam a prender-se nos quatros guindastes das pranchas, onde um guincho prendia-os e fazia um rolo de um cabo unico podendo ser dirigido por um só braço. Um gancho e um carretel por cujo centro passava e dividia-se o cabo unico completavam o apparelho, e em caso de necessidade, continham-no. Esta combinação obrigava as quatro polés a trabalharem juntas, e, verdadeiro freio de forças pendentes, leme de dynamica na mão do piloto da operação, mantinha a manobra em equilibrio. O ajustamento engenhoso do guincho tinha alguma das qualidades simplificadoras do guindaste Werton de hoje, e do antigo polypastono de Vitruvio. Gilliatt descobrio isso, sem conhecer Vitruvio, que já não existe, nem Werton, que não existia ainda. O comprimento dos cabos variava segundo o desigual declive das pranchas, e corrigia um pouco a desigualdade. As cordas eram perigosas, o maçame branco podia quebrar; era melhor empregar correntes, finas as correntes não poderiam passar com facilidade nas polés. Tudo isso, cheio de defeitos, mas feito por um só homem, era sorprehendente. De mais, abreviemos a explicação. Comprehender-se-ha que ommittimos muitos pormenores que tornariam a cousa clara para as pessoas do officio, e obscura para as outras. O cimo do cano da machina passava por entre as duas pranchas do meio. Gilliatt, sem dar por isso, plagiario inconsciente do desconhecido, refez, a tres seculos de distancia, o mechanismo do carpinteiro de Salbris, mechanismo rudimentario e incorrecto, assustador para quem ousasse manobral-o. Digamos aqui que os defeitos mais grosseiros não impedem que um mechanismo funccione. O obelisco da praça de S. Pedro de Roma foi levantado contra todas as regras da statica. O coche do czar Pedro era construido de tal modo que parecia tombar a cada passo; entretanto andava. Quantas difformidades na machina de Marly. Tudo alli era mal feito. Nem por isso deixou de dar de beber a Luiz XIV. Fosse como fosse, Gilliatt tinha confiança. Contava até com o successo ao ponto de fixar na borda da _pança_, no dia em que lá foi, dous pares de argolas de ferro, diante um do outro, nos dous lados da barca, nos mesmos espaços que as quatro argolas da Durande ás quaes se prendiam as quatro correntes do cano. Gilliatt tinha evidentemente um plano muito completo e definitivo. Tendo contra si todas as probabilidades, queria pôr todas as precauções do seu lado. Fazia cousas que pareciam inuteis, signal de uma premeditação attenta. A sua maneira de proceder desviava um observador, e mesmo um conhecedor. Uma pessoa que o visse, por exemplo, com exforços inauditos e em risco de quebrar o pescoço, pregar com um martello oito ou dez grandes pregos que elle forjou, no esvasamento das duas Douvres, na entrada da garganta do escolho, comprehenderia difficilmente o motivo desses pregos, e perguntaria provavelmente porque razão fazia todo aquelle trabalho. Se visse Gilliatt medir o pedaço da amurada da prôa que ficára pendurada, depois prender uma forte corda na borda superior desta peça, cortar com um machado as madeiras deslocadas que a retinham, arrastal-as fora da garganta, com auxilio da maré que descia, e emfim prender laboriosamente com a corda essa pesada massa de taboas e vigas, mais larga que a entrada da garganta, aos prégos mettidos na base da pequena Douvre, o observador comprehenderia menos ainda, e diria que, se Gilliatt quizesse para facilidade da manobra, desempedir o intervallo das Douvres, bastava deixar cahir aquelle pedaço de taboas na maré que o levaria á flor d'agua. Gilliatt provavelmente tinha lá as suas razões. Gilliatt, para fixar os prégos na base das Douvres, tirava partido de todas as fendas do granito, alargava-as quando era preciso, e mettia ao principio tocos de páos, nos quaes introduzia depois os prégos. Emboçou a mesma preparação nas duas rochas que se levantavam n'outra extremidade do escolho, do lado de leste; guarneceu de cavilhas de páo todos os buracos, como se as quizesse ter promptas para receber ganchos; mas isso pareceu ser uma simples reserva, porque Gilliatt não metteu prégos nessas fendas. Comprehende-se que, por prudencia na sua penuria, elle não podia gastar materiaes senão á proporção que tivesse necessidade, e no momento em que a necessidade se manifestasse. Era mais uma complicação no meio de tantas difficuldades. Acabado um primeiro trabalho, surgia um segundo, Gilliatt passava sem hesitar de um a outro e dava resolutamente esse pulo de gigante. IV SUBRE O homem que fazia estas cousas tornára-se medonho. Gilliatt, naquelle trabalho multiplo, gastava todas as suas forças; difficilmente as refazia. Privações de uma parte, cançasso de outra, Gilliatt tinha emmagrecido. Cresceram-lhe as barbas e cabellos. Excepto uma camisa, todas as mais estavam em frangalhos. Tinha os pés nús, por que o vento levára-lhe um sapato, e o mar o outro. Pedaços da bigorna rudimentaria, e mui perigosa, de que se servia, tinham-lhe feito nas mãos e nos braços pequenas chagas, salpicos de trabalho. Essas chagas, mais esfoladuras que feridas, eram superficiaes, mas irritadas pelo ar vivo e pela agua salgada. Tinha fome, tinha sede, tinha frio. O pichel de agua doce estava vasio. A farinha de centeio fôra já comida ou empregada no trabalho. Restava-lhe um pouco de biscouto. Não tendo agua para molhal-o, Gilliatt quebrava-o com os dentes. Dia a dia iam-lhe escasseando as forças. Aquelle temivel rochedo esgotava-lhe a vida. Beber, era uma questão; comer, era uma questão; dormir, era uma questão. Gilliatt comia quando apanhava algum marisco ou outro bichinho do mar; bebia quando via um passaro descer a alguma ponta da rocha. Trepava então e achava n'uma cava um pouco de agua doce. Bebia depois do passaro, ás vezes ao mesmo tempo; porque as gaivotas já estavam acostumadas a elle, e não fugiam quando elle se approximava. Gilliatt, mesmo na maior fome não lhes fazia mal. Sabemos que elle tinha a superstição dos passaros. Os passaros, como os cabellos de Gilliatt estivessem eriçados e horriveis, e a barba longa, já lhe não cobravam medo; a mudança do aspecto tranquillisava-os; já não viam naquillo um homem, acreditavam-n'o bicho. Os passaros e Gilliatt eram agora bons amigos. Todos aquelles pobres ajudavam-se uns aos outros. Emquanto Gilliatt teve centeio, deu-lhes algumas migalhas dos bolos que fazia; agora os passaros indicavam-lhe em que lugar havia agua. Comia as conchas cruas; as conchas, em certa proporção, são refrigerantes. Quanto aos caranguejos cosia-os; não tendo vasilha propria, cosia-os entre duas pedras abrasadas ao fogo, como os selvagens das ilhas Feroe. Declarou-se entretanto um pouco de equinoxio; veio a chuva; mas chuva hostil. Nem ondas, nem aguaceiros, mas longos choviscos, finos, gelados, que, atravessavam-lhe a roupa até á pelle, e a pelle até os ossos. Era chuva que dava pouco de beber e molhava muito. Avara de auxilio, prodiga de miseria, tal era aquella chuva, indigna do céo. Gilliatt apanhou-a toda, durante uma semana, de noite e de dia. Era uma má acção lá de cima. De noite, no seu buraco do rochedo, só dormia por cançasso. Os grandes mosquitos do mar iam morde-lo. Acordava coberto de pustulas. Tinha febre, que o sustentava; a febre é um amparo, que mata. Mastigava, por instincto, o musgo ou chupava as folhas de cochlearia selvagem, magras producções das fendas seccas do rochedo. Mas occupava-se bem pouco com o soffrimento. Não tinha tempo de distrahir-se do trabalho para cuidar de si. A machina da Durande estava de saude. Era o que bastava. A cada momento, para as necessidades do trabalho, Gilliatt atirava-se ao mar, depois tomava pé. Entrava na agua e sahia, como se passa de um quarto a outro. As roupas já lhe não seccavam. Estavam embebidas da agua da chuva que não parava, e da agua do mar que não secca nunca. Gilliatt vivia molhado. Viver molhado é um habito que se adquire. Os pobres grupos irlandezes, velhos, mães, raparigas quasi nuas, crianças, que passara o inverno debaixo de aguaceiros e neve, apertados uns contra os outros nos angulos das casas nas ruas de Londres, vivem e morrem molhados. Estar molhado e ter sede; Gilliatt supportava essa tortura extranha. De quando em quando mordia a manga da japona. O fogo que elle accendia não o aquecia; o fogo no meio de um grande espaço arejado é um meio soccorro; secca-se de um lado, humedece-se de outro. Gilliatt suava e tiritava. Tudo lhe resistia em roda delle numa especie de silencio terrivel. Elle sentia o inimigo. As cousas tem um sombrio _Non possumus._ A inercia dellas é uma lugubre advertencia. Immensa má, vontade cercava Gilliatt. Estava cheio de queimaduras e tinha arrepios de frio. Queimava-o o fogo, gelava-o a agua, a sêde causava-lhe febre, o vento rasgava-lhe a roupa, a fome minava-lhe o estomago. Elle supportava a oppressão era um conjuncto fatigante. O obstaculo, tranquillo, vasto, tendo a irresponsabilidade apparente da fatalidade, mas cheio de uma unanimidade feroz, convergia de todas as partes sobre Gilliatt. Gilliatt sentia-o apoiado inexoravelmente sobre elle. Nenhum meio de escapar-lhe. Era quasi uma entidade. Gilliatt tinha consciencia de um desprezo sombrio e de um odio que fazia esforço por diminui-lo. Dependia delle fugir, mas, pois que ficava, tinha de lutar com a hostilidade impenetravel. Não podendo po-lo fóra d'alli, punham-n'o debaixo dos pés. Quem? O Ignoto. Apertavam-n'o, comprimiam-n'o, tiravam-lhe lugar e alento. Estava abatido pelo invisivel. Cada dia, a mysteriosa verruma entrava um pedaço. A situação de Gilliatt naquelle medonho lugar assemelhava-se a um duelo equivoco com um traidor. Cercava-o a coalição das forças obscuras. Elle sentia uma resolução de alguem para expulsal-o dalli. É assim que a geleira expelle a massa erratica. Quasi sem parecer que o tocava, essa coalição latente punha-o em farrapos, cheio de sangue, falho de recursos, e por assim dizer, fóra de combate antes do combate. Nem por isso deixava elle de trabalhar, e sem cessar, mas á proporção que a obra se fazia, ia-se desfazendo o operario, Dissera-se que aquella feroz natureza, receiando a alma, resolvera-se a extenuar o homem. Gilliatt affrontava, e esperava. O abysmo começava por cançalo. Que faria depois o abysmo? A dupla Douvres, dragão de granito e emboscado em pleno mar, admitira Gilliatt. Deixou-o entrar e trabalhar. A admissão assemelhava-se á hospitalidade de um sorvedouro aberto. O deserto, a extenção, o espaço onde ha para o homem tantos recursos, a inclemencia muda dos phenomenos seguindo o seu curso, a grande lei geral implacavel e passiva, o flux e o reflux, o escolho, pleiada negra onde cada ponto é uma estrella de turbilhões, centro de uma irradiação e correntes, a conspiração da indifferença das cousas contra a tenacidade de um ente, o inferno, as nuvens, o mar sitiante, cercavam Gilliatt, apertavam-n'o lentamente, fechavam-se sobre elle, e o separavam dos vivos, como um carcere que fosse subindo á roda de um homem. Tudo contra elle, nada a favor delle; estava isolado, abandonado, minado, esquecido. Gilliatt tinha esgotado as provisões, as ferramentas já estavam usadas, a sede e a fome de dia, o frio de noite, feridas e andrajos, vestidos rotos cobrindo suppurações, buracos nas roupas e na carne, mãos dilaceradas; pés sangrentos, membros magros, rosto livido, uma flamma nos olhos. Flamma soberba essa, era a vontade visivel. O olho do homem é feito de modo que se lhe vê por elle a virtude. A nossa pupilla diz que quantidade de homens ha dentro de nós. Affirmamo-nos pela luz que fica debaixo da sobrancelha. As pequenas consciencias piscam o olho, as grandes lançam raios. Se não ha nada que brilhe debaixo da palpebra, é que nada ha que pense no cerebro, é que nada ha que ame no coração. Quem ama quer, e aquelle que quer relampeja e scintilla. A resolução enche os olhos de fogo; admiravel fogo que se compõe da combustão dos pensamentos timidos. Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quasi todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra:--Perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpetua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céo o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é Colombo, no segundo caso, é Jesus. Insensata é a cruz; vem dahi a sua gloria. Não deixar discutir a consciencia, nem desarmar a vontade, é assim que se obtem o soffrimento e o triumpho. Na ordem dos factos moraes o cahir não exclue o pairar. Da queda sabe a ascenção. Os mediocres deixam-se perder pelo obstaculo especioso; não assim os fortes. Parecer é o _talvez_ dos fortes, conquistar é a certeza delles. Pódes dar a Estevão todas as boas razões para que elle não se faça apedrejar. O desdem das objecções razoaveis crêa a sublime victoria vencida que se chama o martyrio. Todos os esforços de Gilliatt pareciam agarrados ao impossivel, o exito era mesquinho ou lento, e cumpria gastar muito para obter pouco; isso é que o fazia magnanimo, isso é que o fazia pathetico. Que para fazer um andaime de quatro pranchas acima de um navio naufragado, para cortar nesse navio a parte que se podia salvar, para ajustar a esse resto dos restos quatro guindastes com os seus cabos, fossem precisos tantos preparativos, tantos trabalhos, tantas apalpadellas, tantas noites mal dormidas, tantos dias afadigados, essa era a miseria do trabalho solitario. Fatalidade na causa, necessidade no effeito. Gilliatt fez mais do que aceitar essa miseria; quil-a. Temendo um concurrente, porque um concurrente poderia ser um rival, não procurou auxiliar. A esmagadora empreza, o risco, o perigo, o trabalho multiplicado por si mesmo, o engolimento possivel do salvador no salvamento, a fome, a febre, a nudez, o abandono, tudo isso tomou elle para si só. Teve este egoismo. Gilliatt estava debaixo de uma especie de machina pneumatica. A vitalidade ia-se retirando delle a pouco e pouco. E elle mal o sentia. A perda das forças não esgota a vontade. Crer é apenas a segunda potencia; a primeira é querer; as montanhas proverbiaes que a fé transporta nada valem ao lado do que a vontade produz. O que Gilliatt perdia em vigor, rehavia em tenacidade. A diminuição do homem physico debaixo da acção repellente daquella natureza selvagem produzia o engrandecimento do homem moral. Gilliatt não sentia a fadiga, ou para melhor dizer, não consentia nella. O consentimento da alma recusado ao desfalecimento do corpo é uma força immensa. Gilliatt via os progressos do trabalho, e não via nada mais. Era miseravel sem sabel-o. O seu alvo, que elle tocava quasi, allucinava-o, soffria todos os soffrimentos sem ter outra idéa que não fosse esta: Avante! A sua obra subia-lhe á cabeça. Vontade embriagada. O homem póde embriagar-se com a propria alma. Essa embriaguez chama-se heroismo. Gilliatt era uma especie de Job do Oceano. Mas um Job que lutava, um Job que combatia e affrontava os flagellos, um Job que conquistava, e se taes palavras não são demasiado grandes para um pobre marinheiro pescador de carangueijos A de lagostas, um Job Prometheu. V SUB UMBRA Ás vezes, alta noite, Gilliatt abria os olhos e olhava para a sombra. Sentia-se extremamente commovido. Olhar aberto sobre trevas. Situação lugubre: anciedade. Existe a pressão da sombra. Inexprimivel tecto de tenebras; alta obscuridade sem mergulhador possivel; luz mesclada á obscuridade, mas uma luz vencida e sombria; claridade reduzida a pó; é semente? é cinza? milhões de fachos, claridade nulla; vasta ignição que não diz o seu segredo, uma diffusão de fogo em poeira que parece um bando de faiscas paradas, a desordem do turbilhão e a immobilidade do sepulchro, o problema offerecendo uma abertura de precipicio, o enigma desvendando e escondendo a sua face, o infinito mascarado com a escuridão, eis a noite. Pesa no homem esta superposição. Esse amalgama de todos os mysterios a um tempo, do mysterio cosmico e do mysterio fatal, abate a cabeça humana. A pressão da sombra actúa em sentido inverso nas differentes especies de almas. O homem diante da noite reconhece-se incompleto. Vê a obscuridade e sente a enfermidade. O céo negro é o homem cégo. Entretanto com a noite, o homem abate-se, ajoelha-se, prostorna-se, roja-se, arrasta-se para um buraco, ou procura azas. Quasi sempre quer fugir a essa presença informe do desconhecido. Pergunta o que é; treme, curva-se, ignora; ás vezes quer ir lá. Aonde? Lá. Lá? O que é? Que ha lá? Essa curiosidade é evidentemente a das cousas defezas, porque para aquelle lado todas as pontes á roda do homem estão cortadas. Mas o desejo attrahe, porque é golphão. Onde não vae o pé, vae o olhar, onde o olhar pára, póde continuar o espirito. Não ha homem qne não tente, por mais fraco e insufficiente que seja. O homem, segundo a sua natureza, investiga ou espera diante da noite. Para uns é um rechaçamento, para outros é uma dilatação. O espectaculo é sombrio. Mescla-se a elle o indefinivel. Vai a noite serena? É um fundo de sombra. Vai tempestuosa? É um fundo de fumaça. O illimitado recusa-se e offerece-se ao mesmo tempo, fechado à experiencia, aberto á conjectura. Infinitas picadas de luz tornam mais negra a obscuridade sem fundo. Carbunculos, scintillações, astros. Presenças verificadas no Ignorado; tremendos reptos para ir tocar esses clarões. São estacas da creação no absoluto; são marcos de distancia lá onde já não ha distancia; é uma especie de numeração impossivel, e todavia real, do canal das profundezas. Um ponto microscopico que fulge, depois outro, mais outro, mais outro; é o imperceptivel, é o enorme. Essa luz é um fóco, esse fóco é uma estrella, essa estrella é um sol, esse sol é um universo, esse universo é nada. Todo o numero é zero diante do infinito. Esses universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai entre ser nada, e não ser. O inaccessivel ligado ao inexplicavel, eis o céo. Dessa contemplação solta-se um phenomeno sublime: o crescimento da alma pelo assombro. O medo sagrado é proprio do homem; a besta ignora esse medo. A intelligencia acha nesse terror augusto o seu eclipse e a sua prova. A sombra é una: vem dahi o seu horror, É ao mesmo tempo complexa: vem dahi o terror. A sua unidade pesa no nosso espirito e sacca-lhe a vontade de resistir. A complexidade faz com que se olhe para todos os lados; parece que se devem receiar assaltos subitos. O homem rende-se, e defende-se, Fica em presença de Tudo, dahi vem a submissão, e de Muitos, dahi vem a desconfiança. A unidade da sombra contém um multiplo. Multiplo mysterioso, visivel na materia, sensivel no pensamento. Faz silencio, razão de mais para espreitar. A noite,--já o disse algures quem escreve estas linhas,--é o estado proprio, normal da creação especial de que fazemos parte. O dia, breve na duração como no espaço, é apenas uma proximidade de estrella. O prodigio nocturno universal não se realiza sem attritos, e os attritos de uma tal machina são as contusões da vida. Os attritos da machina, é o que chamamos o Mal. Sentimos nessa obscuridade o mal, desmentido latente da ordem divina, blasphemia implicita do facto rebelde ao ideal. O mal accrescenta uma teratologia de mil cabeças ao vasto conjunto cosmico. O mal está presente em tudo para protestar. É furacão, e atormenta a marcha de um navio, é cahos e entrava o desabrochar de um mundo. O Bem tem a unidade, o Mal tem a ubiquidade. O mal desconcerta a vida, que é uma logica. Faz devorar a mosca pelo passaro, e o planeta pelo cometa. O mal é um borrão na natureza. A obscuridade nocturna peja-se de uma vertigem. Quem a aprofunda, submerge-se e debate-se. Não ha fadiga comparavel a esse exame de trevas. É o estudo de um apagamento. Não ha lugar definitivo para pousar o espirito. Pontos de partida sem ponto de chegada. O cruzamento das soluções contradictorias, todos os ramos da duvida a um tempo, a ramificação dos phenomenos esfoliando-se sem limite sob uma impulsão indefinida, mistura de todas as leis, uma promiscuidade insondavel que faz com que a mineralisação vegete, com que a vegetação viva, com que o pensamento pese, com que o amor irradie, e a gravitação ame; a immensa fronte de ataque de todas as questões desenvolvendo-se na obscuridade sem limites; o entrevisto esboçando o ignorado; a simultaneidade cosmica em plena apparição, não para o olhar, mas para a intelligencia, no espaço indistincto; o invisivel tornado visão. É a Sombra. O homem está embaixo. Não conhece os pormenores, mas supporta, em qualidade proporcionada ao seu espirito, o peso monstruoso do conjunto. Esta obsessão impelia os pastores chaldeus á astronomia. Sahem dos poros da creação revelações involuntarias; faz-se por si mesma uma transudação de sciencia e invade o ignorante. Debaixo dessa impregnação mysteriosa torna-se o solitario, muitas vezes sem ter consciencia, um philosopho natural. A obscuridade é indivisivel. É habitada. Habitada sem deslocação pelo absoluto; habitada tambem com deslocação. Move-se alli dentro alguma cousa, o que é para assustar. Uma formação sagrada desenvolve alli as suas phazes. Premeditações, potencias, destinos intencionaes, laboram ahi em commum uma obra desmedida. Vida terrivel e horrivel é o que existe alli dentro. Ha vastas evoluções de astros, a familia stellaria, a familia platenaria, o pollen Zodiacal, o Quid divinum das correntes, dos effluvios, das polarisações e das alterações; ha o amplexo e o antagonismo, um magnifico flux e reflux da antithese universal, o imponderavel em liberdade no meio dos centros; ha a seiva nos globos, a luz fora dos globos, o atomo errante, o germen esparso, curvas de fecundação, encontros de ajuntamento e de combate, profusões inauditas, distancias que parecem sonhos, circulações vertiginosas, mergulhos de mundos no incalculavel, prodigios perseguindo-se nas trevas, um machinismo definitivo, sopro de espheras em fuga, rodas que se sente andarem; existe e esconde-se; é inexpugnavel, fora de alcance. Fica-se convencido até á oppressão. Tem-se em si uma evidencia negra. Nada se póde agarrar. Esmaga-nos o impalpavel. Por toda a parte o incomprehensivel: em parte alguma o intelligivel. E a tudo isto accrescentai a terrivel questão: esta Immanencia é um Ser? Está-se debaixo da sombra. Olha-se. Escuta-se. Entretanto a terra sombria caminha e rola, as flôres tem consciencia desse movimento enorme; a silena abre-se ás onze horas da noite e a emerocala ás cinco horas da manhã. Impressivel regularidade. Em outros profundidades a gotta d'agua faz-se mundo, o infusorio pulula, a fecundidade gigante sahe do animaculo, o imperceptivel ostenta a sua grandeza, o sentido inverso da immensidade manifesta-se; uma diatoméa produz em uma hora um milhar e trezentos milhões de diatoméas. Que proposição de todos os enigmas ao mesmo tempo! Está ahi o irreductivel. Constrange-se-nos á fé. Crer por força, eis o resultado. Mas para estar tranquillo não basta ter fé. A fé tem uma estranha necessidade de forma. Dahi vem as religiões. Nada é tão oppressivo como uma crença sem delineamento. Qualquer que seja o pensamento e a vontade, qualquer que seja a resistencia interior, olhar a sombra, não é olhar, é contemplar. Que fazer desses phenomenos? Como mover-se debaixo de sua convergencia? É impossivel decompôr esta pressão. Que devaneio se deve ajuntar a todos esses confinantes mysteriosos? Quantas revelações abstrusas, simultaneas, obscurecendo-se em sua propria multidão, especie de balbuciar do verbo! A sombra é um silencio: mas esse silencio diz tudo. Surge magestosamente um resultado: Deos. Deos é a noção incomprehensivel. Essa noção está no homem. Os syllogismos, as querellas, as negações, os systemas, as religiões, passam por cima sem diminuil-a. A sombra inteira affirma aquella noção. Mas turva-se tudo o mais. Immanencia formidavel. A inexprimivel harmonia das forças manifesta-se pelo equilibrio dessa obscuridade. O universo pende; nada tomba. O deslocamento incessante e desmedido opera-se sem accidente e sem fractura. O homem participa deste movimento de translação e á quantidade de oscilação que supporta, chama elle destino. Onde começa o destino? Onde acaba a natureza? Que differença ha entre um acontecimento e uma estação, entre um pezar e uma chuva, entre uma virtude e uma estrella? Uma hora não é uma onda? Continúa o movimento da roda, sem responder ao homem, em sua revolução impassivel. O céo estrellado é uma visão de rodas, de pendulas e de contra pesos. É a contemplação suprema, forrada da suprema meditação. É toda a realidade e mais a abstracção. Nada além dahi. O homem sente-se preso. Fica á discrição da sombra. Não ha evasão possivel. Vê-se elle naquelle composto de rodas, é parte integrante de um Todo ignorado, sente o desconhecido que está fora delle. Isto é o annuncio sublime da morte. Que angustia e ao mesmo tempo que fascinação! Adherir ao infinito, e por essa adherencia attribuir-se uma immortalidade necessaria, quem sabe? uma eternidade possivel, sentir na prodigiosa vaga desse silencio universal a obstinação insubmersivel do eu! contemplar os astros, e dizer: Sou uma alma como vós! contemplar a obscuridade e dizer: sou um abysmo com tú. Essas enormidades são a noite. Tudo isso augmentado, pela solidão, pesava em Gilliatt. Comprehendia-o elle? Não. Sentia-o? Sim. Gilliatt era um grande espirito turvado e um grande coração selvagem. VI GILLIATT COLLOCA A PANÇA EM POSIÇÃO O salvamento da machina, meditado por Gilliatt, era, como dissemos, uma verdadeira evasão, e são conhecidas as paciencias da evasão. Tambem se conhecem as suas industrias. A industria chega ao milagre; a paciencia attinge á agonia. Tal prisioneiro, Thomas, por exemplo, no monte S. Miguel, achou meio de esconder metade de uma parede dentro da palha em que dormia. Outro, em Tulle, em 1820, cortou o chumbo na plataforma de passeio da prisão, não se sabe com que faca, fundio-o não se sabe com que fogo, vasou-o numa fôrma feita de migalhas de pão; com esse chumbo e essa fôrma fez uma chave e com essa chave abrio uma fechadura que elle apenas conhecia por ter-lhe visto o buraco. Gilliatt tinha estas habilidades inauditas. Era capaz de subir e descer o penedio Boisrosé. Era o Trenck de um destroço e o Latude de uma machina. O mar, que era o carcereiro, vigiava-o. Demais, por ingrata e má que fosse a chuva, Gilliatt aproveitou-a. Refez com ella a sua provisão de agua doce; mas a sede era inextinguivel e Gilliatt esvasiava o pichel quasi tão rapidamente como o enchia. Um dia, o ultimo de Abril creio, ou o 1.° de Maio, tudo estava prompto. O assoalho da machina estava como que mettido entre os oito cabos das polés, quatro de um lado, quatro de outro. As dezeseis aberturas, por onde passavam esses cabos, estavam ligadas ao tombadilho e á carena. A madeira foi cortada com o machado, o ferro com a lima, o forro com a faca e, o resto com a serra. A parte da quilha onde estava a machina, foi cortada em quadro e estava prompta para resvalar com a machina sustentando-a. Todo esse grupo assustador só estava preso por uma corrente, a qual dependia só de um golpe de lima. Tão perto do remate, a pressa era prudencia. A maré estava baixa, o momento era bom. Gilliatt, tinha conseguido desmontar a arvore das rodas, cujas extremidades podiam fazer obstaculo e impedir, aquelle levantar de ancora. Tinha conseguido amarrar vertical mente a pesada peça na propria machina. Era tempo de acabar. Gilliatt, como dissemos, não estava cançado porque não queria, mas as suas ferramentas estavam. A forja tornava-se impossivel a pouco e pouco. A pedra que servia de bigorna tinha-se quebrado. O folles começava a trabalhar mal. Como a pequena queda hydraulica era de agua marinha, formaram-se depositos salinos nas junturas do apparelho e impediam-lhe o jogo. Gilliatt foi á angra do Homem, passou revista á _pança_ assegurou-se de que tudo estava bom, particularmente as quatro argolas pregadas a bombordo e a estibordo, levantou a ancora e remando voltou com a _pança_ ás duas Douvres. O intervallo das Douvres podia admittir a _pança._ Havia bastante fundo e bastante largura. Gilliatt reconheceu, desde o primeiro dia, que podia-se levar a _pança_ até debaixo da Durande. A manobra era comtudo excessiva, exigia uma precisão de joalheiro e esta inserção do barco no escolho era tanto mais delicada quanto que, para o que Gilliatt queria fazer, era necessario entrar pela pôpa com o leme na prôa. Era necessario que o mastro e os apparelhos da _pança_ ficassem áquem do casco do vapor, do lado da entrada. Este aggravo na manobra, tornou a operação difficil ao proprio Gilliatt. Já não era, como na angra do Homem, uma questão de movimento de leme; era preciso ao mesmo tempo entrar, puchar, remar e sondar. Gilliatt empregou nisso nada menos de um quarto de hora, mas conseguio. Em quinze ou vinte minutos a _pança_ ficou collocada debaixo da Durande. Ficou quasi atravessada. Gilliatt por meio de duas ancoras, segurou a _pança._ A maior ficou collocada de modo a trabalhar com o vento mais forte, que era o vento de oeste, depois por meio de uma alavanca e de um cabrestante, Gilliatt passou para a _pança_ as duas caixas contendo as rodas desmontadas cujos cabos de guindar estavam promptos. As duas caixas fizeram lastro. Desembaraçado das duas caixas, Gilliatt prendeu ao gancho da corrente do cabrestante o cabo regulador destinado a conter os guindastes. Para a obra de Gilliatt os defeitos da _pança_ tornavam-se qualidades; não tinha coberta, o carregamento achava mais fundo e podia pousar no porão. Era mastreada na prôa, muito na prôa talvez, o carregamento achava mais facilidade e o mastro ficava fóra da machina, de modo que nada impedia a sahida; era uma especie de concha, e nada mais estavel e solido no mar como uma concha. De repente Gilliatt vio que a maré enchia. Tratou de ver donde soprava o vento. VII SURGE UM PERIGO Havia pouca brisa, mais vinha do oeste. É um máo costume de vento no equinoxio. A maré enchente, conforme o vento que sopra, comporta-se diversamente no escolho Douvres. Conforme o vento, a onda entra naquelle corredor ou por leste ou por oeste. Se o mar entra por leste a agua é boa e molle, se entra por oeste é furiosa. A razão disto é que o vento de leste, vindo de terra tem pouco alento, emquanto que o vento de oeste, que atravessa o Atlantico, traz comsigo todo o sopro da immensidade. Mesmo quando a brisa é fraca assusta quando vem do oeste. Róla largas ondas da extençáo illimitada e cospe grossas vagas no estreito. A agua que se engolpha é sempre terrivel. A agua é como a multidão; uma multidão é um liquido; quando a quantidade que póde entrar é menor que a quantidade que deseja entrar, a multidão machuca-se e a agua convulsiona-se. Emquanto sopra o vento do poente, ainda a mais fraca brisa, ha nas Douvres este assalto, duas vezes por dia. A maré levanta-se, a rocha resiste, a abertura é pequena, a onda entrando á força salta e ruge, e um marulho enraivecido bate as duas fachadas internas da viéla. De modo que as Douvres ao menor vento do oeste, offerecem este espectaculo singular: no mar, calma, no escolho, tempestade. Esse tumulto local e circumscripto, não é uma tormenta; é apenas uma revolta de vagas, mas terrivel. Quanto aos ventos do norte e do sul, esses fazem pouca ressaca na garganta do escolho. A entrada por leste, é preciso lembra-lo, confina com o rochedo Homem; a abertura temivel do oeste fica na extremidade opposta exactamente entre as duas Douvres. Nessa abertura de oeste é que se achava Gilliatt com a Durande naufragada e a _pança_ ancorada. Parecia inevitavel uma catastrophe, esta catastrophe imminente, tinha, embora pouco, o vento de que precisava. Dentro de poucas horas o inchamento do mar que subia, ia naturalmente entrar em grande luta no estreito das Douvres. As primeiras vagas já começavam a rugir. Inchamento esse, refluxo impetuoso de todo o Atlantico que teria atraz de si a totalidade do mar. Nenhuma borrasca, nenhuma cólera; mas uma simples onda soberana, contendo em si uma força de impulsão que, partindo da America para chegar á Europa, tinha duas mil leguas de jacto. Essa onda, barra gigantesca do oceano, encontraria o hiate do escolho, e, apertada nas duas Douvres, torres de entrada, pilares do estreito, inchada pela maré, inchada pelo obstaculo, repellida pelo rochedo, castigada pelo vento, faria violencia ao escolho, penetraria, com todos os torções do obstaculo encontrado, e todos os frenesis da vaga entravada, entre as duas muralhas, encontraria a _pança_ e a Durande, e as estrangularia. Era preciso um broquel contra essa eventualidade. Gilliatt tinha-o. Cumpria impedir que a maré entrasse toda, impedir que esbarrasse embora enchesse, tapar-lhe a passagem sem recusar-lhe a entrada, resistir-lhe e ceder-lhe, previnir a compressão da onda na boca do rochedo, que era o perigo, substituir a irrupção pela introducção, conter a raiva e a brutalidade da vaga, obrigar aquella furia a ser tranquilla. Era preciso substituir ao obstaculo que irrita, o obstaculo que applaca. Gilliatt, com a destreza que tinha, mais forte que a força, executando uma manobra de camello na montanha ou de macaco na floresta, utilisando com saltos oscilantes e vertiginosos a menor saliencia de pedra, pulando na agua, nadando nos rodomoinhos, trepando ao rochedo, com uma corda nos dentes, um martello na mão, desatou o cabo que prendia á pequena Douvre o pedaço da amurada de prôa da Durande, fez com as pontas da maroma uma especie de gonzos prendendo aquelle pedaço de madeira aos grandes pregos mettidos no granito, fez voltar naquelles gonzos aquella armadura de taboas semelhante ao alçapão de um dique, expôl-o em flanco, como se faz com um leme, á onda que impellia, e applicou essa extremidade á grande Douvre, emquanto os gonzos de cordas retinham na pequena Douvre a outra extremidade; operou na grande Douvre, por meio de prégos, postos do antemão, a mesma fixação que na pequena, amarrou solidamente essa vasta placa de madeira ao duplo pilar da abertura, travou nessa barra uma corrente como um talabarte n'uma couraça, e em menos de uma hora, levantou-se o obstaculo contra a maré, e a viella do escolho ficou fechada como por uma porta. Este robusto tapamento, pesada massa de pranchas, que deitado seria uma jangada, e de pé era uma parede, foi, com auxilio da vaga, trabalhado por Gilliatt com uma agilidade de saltimbanco. Podia-se dizer quasi que a cousa foi feita antes que o mar se apercebesse disso. Era um desses casos em que Jean Bart dizia o famoso dito que elle dirigia á vaga do mar, cada vez que esquivava um naufragio: _Apanhei-te, inglez!_ Sabe-se que Jean Bart quando queria insultar o oceano chamava-o _inglez._ Tapado o estreito, Gilliatt cuidou da _pança._ Dividio o cabo nas duas ancoras para que ella podesse subir com a maré. Operação analoga a que os antigos maritimos chamavam: _mouiller avec des embossures._ Em tudo isto Gilliatt não foi sorprehendido, o caso estava previsto; um homem do officio reconhecel-o-hia vendo as duas roldanas de guindar mettidas por traz da pança, nas quaes passavam dous pequenos cabos cujas pontas estavam presas ás argolas das duas ancoras. Entretanto crescia a maré; já subira metade; é nesse momento que os choques das ondas, mesmo placidos, podem ser rudes. O que Gilliatt combinára realisou-se. A onda rolava violentamente para a porta, encontrava-a, inchava epassava por cima. Fóra era o marulho. Dentro a infiltração. Gilliatt imaginou alguma cousa semelhante ás forcas caudinas do mar. A maré estava vencida. VIII MAIS PERIPECIA QUE DESENLACE Chegára o tremendo instante. Tratava-se agora de pôr a machina na _pança._ Gilliatt ficou pensativo alguns momentos, tendo o cotovello do braço esquerdo na mão direita, e a fronte na mão esquerda. Depois subio á Durande cuja metade, que era a machina, devia sahir e cujo casco devia ficar. Cortou os quatro cabos que prendiam a estibordo e a bombordo as quatro correntes do cano. Como era corda bastou-lhe a faca. As quatro correntes, livres, ficaram pendentes ao longo do cano. Do navio subio elle ao apparelho que construira, bateu com o pé em todas as pranchas, examinou as roldanas, vio as polés, apalpou os cabos, verificou as emendas, assegurou-se de que o massame não estava profundamente molhado, certificou-se de que nada faltava, nem estava bambo, depois, pulando do alto das peças sobre o tombadilho, tomou posição, ao pé do cabrestante, na parte da Durande que devia ficar nas Douvres. Era esse o seu posto de trabalho. Grave, sentindo sómente a commoção util, lançou um ultimo olhar ao apparelho, depois tomou uma lima e pôz-se a cortar a corrente que sustentava tudo. Ouvia-se o ranger da lima no meio do murmurio do mar. A corrente do cabrestante presa ao cabo regulador, ficava ao alcance da mão de Gilliatt. De repente houve um estalo. A argola que a lima cortava, já limada por metade, tinha-se quebrado; todo o apparelho estava solto. Gilliatt teve apenas tempo de agarrar o grande cabo. A corrente quebrada bateu no rochedo, os oito cabos retezaram-se, toda a massa cerrada e cortada desprendeu-se do navio, abrio-se o ventre da Durande, o assoalho de ferro da machina, pesando sobre os cabos, appareceu debaixo da quilha. Se Gilliatt não tivesse chegado a tempo ao cabo regulador, havia uma queda. Mas a sua mão terrivel estava lá; foi apenas uma descida. Quando o irmão de Jean Bart, Pieter Bart, aquelle bebado possante e sagaz, aquelle pobre pescador de Dunkerque que tratava o grande almirante por tu, salvou a galera _Langeron_ perdida na bahia de Ambleteuse, quando para tirar aquella pesada massa fluctuante dos cachopos da bahia furiosa amarrou a vella grande com juncos marinhos, quando elle quiz que os juncos, quebrando-se por si, abrissem a vella ao vento, fiou-se na rotura dos juncos, como Gilliatt na fractura da corrente, e foi a mesma estranha audacia coroada pela mesma victoria surprehendente. A corda motora segura por Gilliatt operou admiravelmente. Devem lembrar-se que essa corda tinha por fim diminuir as forças convertidas em uma só e reduzidas a um movimento de conjuncto. Aquella corda tinha alguma relação com uma bolina; sómente em vez de onentar uma vela, equilibrava um machinismo. Gilliatt de pé, e com a mão no cabrestante, tinha por assim dizer a mão no pulso do aparelho. Aqui a invenção de Gilliatt, manifestou-se toda. Produzio-se uma notavel coincidencia de forças. Emquanto a machina da Durande, separada em massa, descia para a _pança_, a _pança_ subia para a machina. O navio naufragado e o barco salvador, ajudando-se em sentido inverso, iam encontrando-se. Poupavam-se deste modo metade do trabalho. A maré enchendo sem rumor entre as duas Douvres, levantava a embarcação e aproximava-a da Durande. A maré estava mais que vencida, estava domesticada. O oceano fazia parte do machinismo. A vaga subindo, levantava a _pança_ sem choque, brandamente, quasi com precaução e como se ella fosse de porcellana. Gilliatt, combinava e proporcionava os dous trabalhos, o da agua e o do apparelho, e, immovel no cabrestante, especie de estatua temivel obedecida por todos os movimentos ao mesmo tempo, regulava a lentidão da descida pela lentidão da subida. Nenhum abalo na agua, nenhum balanço nas pranchas. Era uma estranha collaboração de todas as forças naturaes dominadas. De um lado a gravitação levava a machina; do outro a maré trazia o barco. A attracção dos astros, que é o flux, e a attracção do globo, que é a gravidade, pareciam harmonisar-se para servir a Gilliatt. A sua subordinação, não tinha hesitação nem parada, e, debaixo da pressão de uma alma, aquellas duas potencias passivas, tornavam-se activos auxiliares. A obra caminhava de minuto a minuto; o intervallo entre a _pança_ e a Duraude diminuia insensivelmente. Fazia-se a aproximação em silencio e com uma especie de terror pelo homem que estava alli. O elemento recebia uma ordem e executava-a. Quasi no momento em que a maré cessou de subir, os cabos cessaram de correr subitamente, mas sem commoção; as roldanas pararam. A machina, como se fosse collocada á mão assentou-se no fundo da _pança._ Estava direita, de pé, immovel, solida. A placa que a sustentava apoiava-se com os seus quatro angulos e aprumo no porão. Estava prompto. Gilliatt olhou attonito. A pobre creatura não tinha tido muitas alegrias em sua vida. Sentio o alquebramento de uma immensa felicidade. Dobravam-se-lhe os membros; e diante do seu triumpho, elle que não se perturbara até então, começou a tremer. Contemplou a _pança_ debaixo do navio e a machina dentro da _pança._ Parecia não acreditar. Dissera-se que elle não contava com aquillo. Sahira-lhe um prodigio das mãos, e elle contemplava-o com espanto. Mas esse espanto durou pouco. Gilliatt teve o movimento de um homem que desperta, travou da serra, cortou os oito cabos, depois, separado agora da _pança_ apenas uns dez pés, deu um salto, cahio dentro, pegou em um rolo de fio, fez quatro cabos, passou-os nas argolas preparadas de antemão, e prendeu por ambos os lados da _pança_, as quatro correntes do cano que uma hora antes ainda estavam presas na amurada da Durande. Amarrado o cano, Gilliatt desembaraçou a parte superior da machina. Um pedaço do tombadilho da Durande ainda alli estava preso. Gilliatt, despregou-o e limpou a _pança_ daquella porção de taboas e vergas que atirou sobre os rochedos. Util allivio. Demais, como é de prever a _pança_ sustentou com firmeza a carga da machina. Mergulhou muito pouca cousa. A machina da Durande, embora massiça, era menos pesada que o montão de pedras e o canhão trazidos outrora de Herm pela _pança._ Tudo estava acabado. Só restava ir-se embora. IX INTERROMPE-SE O EXITO Nem tudo estava acabado. Abrir a entrada das Douvres, fechada pelo pedaço da amurada da Durande, e levar immediatamente a _pança_ para fóra do escolho, nada mais claro do que isto. No mar todos os minutos são urgentes. Pouco vento, apenas uma ruga ao longe; a bella tarde promettia uma bella noite. O mar era de rosas, mas o reflux começava; excellente momento para partir. Gilliatt teria a vasanto para sahir das Douvres, e a enchente para entrar era Guernesey. Podia estar em Saint-Sampson de madrugada. Mas apresentou-se um obstaculo inesperado, Houve uma lacuna na providencia de Gilliatt. A machina estava livre, o cano estava preso. A maré approximando a _pança_ da Durande, tinha diminuido os perigos da descida; mas essa diminuição de intervallo deixou a parte superior do cano mettida na especie de quadro que apresentava o bojo aberto da Durande. O cano estava preso como entre quatro paredes. O serviço prestado pelo mar complicava-se com esta dissimulação. Parece que o mar, obrigado a obedecer, teve uma segunda tenção. É verdade que aquillo que a enchente fizera, ia desfazel-o a vasante. O cano, tendo mais de tres toezas de altura, tinha uns oito pés mettidos na Durande; o nivel d'agua abi baixaria doze pés; o cano descendo com a _pança_, teria quatro pés de espaço acima de si, e poderia sahir. Mas quanto tempo era preciso para isto? Seis horas. D'ahi a seis horas seria meia-noite. Que meio tentaria Gilliatt para sahir áquella hora, que canal tomaria atravez daquelles cachopos, já tão inextrincaveis de dia, e como arriscar-se no meio da noite em semelhante emboscada de bancos de pedras? Era força esperar até o dia seguinte. Aquellas seis horas perdidas faziam perder ao menos doze horas. Era mesmo necessario não adiantar trabalho abrindo a entrada ao cachopo. O tapamento era preciso até a maré proxima. Gilliatt devia repousar. Cruzar os braços, era a unica cousa que elle não tinha feito desde que estava no escolho Douvres. Irritou-o, indignou-o quasi, como se fosse culpa delle, aquelle descanso. Disse comsigo: Que pensaria de mim Deruchette se me visse aqui sem fazer nada? Comtudo não lhe era inutil refazer as forças. Estando a _pança_ á sua disposição, Gilliatt resolveu passar a noite á bordo. Foi buscar a pelle de carneiro no alto da grande Douvre, desceu, comeu algumas conchas e duas ou tres castanhas do mar, bebeu por ter muita sede os ultimos goles da agua doce do pichel quasi vasio, embrulhou-se na pelle cuja lã deu-lhe prazer ao corpo, deitou-se como um cão de guarda ao pé da machina, abaixou o chapéo sobre os olhos e adormeceu. Dormio profundamente. Tem-se daquelles somnos depois das obras acabadas. X AS ADVERTENCIAS DO MAR No meio da noite, bruscamente, e como por mola, Gilliatt acordou. Abrio os olhos. As Douvres, acima da cabeça delle, estavam illuminadas como pela reverberação de uma grande brasa branca. Havia em toda a fachada negra do escolho um reflexo de fogo. D'onde vinha o fogo? Da agua. O mar estava extraordinario. Parecia que a agua incendiava-se. Aonde os olhos alcançavam, no escolho e fora do escolho, flammejava o oceano. Não era uma flamma vermelha; não se parecia com a grande flamma viva das crateras e das fornalhas. Nenhuma crepitação, nenhum ardor, nenhum avermelhado, nenhum ruido. Rastilhos azulados imitavam n'agua as dobras de uma mortalha. Um grande clarão livido, estremecia n'agua. Não era incendio; era o espectro delle. Era uma cousa semelhante ao abrazamento livido do interior de um sepulchro por uma chamma ideal. Imaginai trevas accesas. A noite, a vasta noite turva e diffusa, parecia ser um combustivel daquelle fogo gelado. Era uma claridade feita de cegueira. A sombra entrava como elemento naquella luz phantasma. Os marinheiros da Mancha, conhecem todas essas indescriptiveis phosphorescencias, que advertem o navegante. Em parte alguma são mais surprehendentes, do que no Grande V, perto de Isigny. Diante desta luz as cousas perdem a realidade. Uma penetração phantastica toma-as como que transparentes. Os rochedos são apenas lineamentos. Os cabos das ancoras parecem barras de ferro ardentes. As redes dos pescadores parecem um crivo de fogo debaixo d'agua. Metade do remo é de ebano, a outra metade debaixo d'agua é de prata. Os pingos d'agua que cahem dos remos fazem estrellas no mar. Todos os barcos arrastam um cometa. Os marinheiros molhados e luminosos parecem homens que ardem. Mergulha-se a mão no mar e sahe calçada de chamma: é uma chamma morta, não se sente. O braço parece um tição aceso. Vê-se as formas que estão no mar rolarem debaixo das vagas alumiadas. A espuma scintilla. Os peixes são linguas de fogo, e uns pedaços de relampago serpenteam n'aquella pallida profundidade. Gilliatt acordou porque o clarão atravessou-lhe as palpebras fechadas. Acordou a tempo. A maré tinha descido; começava a encher de novo. O cano da machina, solto durante o somno de Gilliatt, ficou outra vez preso no casco do navio. Subia lentamente. Mais palmo e meio e o cano estaria dentro da Durande. Para isso ainda havia meia hora. Gilliatt se quizesse aproveitar a occasião tinha essa meia hora diante de si. Levantou-se sobresaltado. Por mais urgente que fosse a situação, elle não pôde deixar de ficar alguns instantes de pé, contemplando a phosphorescencia e meditando. Gilliatt conhecia o mar a fundo. Embora tivesse sido muito maltratado por elle, o mar era já de muito tempo companheiro de Gilliatt. Aquelle ente mysterioso que se chama oceano, não podia ter nenhuma idéa que Gilliatt não a adevinhasse. Gilliatt, á força de observação, de scisma e de solidão, tornára-se um vidente do tempo, aquillo que se chama em inglez um _wheater wise._ Gilliatt correu ás amarras e guindou-as; depois já não estando retido pelas ancoras, travou do croque da _pança_, e apoiando-se nas rochas affastou-a para fóra algumas braças distante da Durande perto do tapamento de taboas. Havia _rang_, como dizem os maritimos de Guernesey. Em menos de dez minutos a _pança_ estava fóra do casco. Já não havia receio de que o cano podesse ficar preso. Entretanto Gilliatt, não se mostrava disposto a partir. Contemplou ainda a phosphorescencia e levantou as ancoras; mas não era para navegar, era para ancorar de novo a _pança_, e muito solidamente; é verdade que o barco ficou junto da porta. Até então só tinha usado das duas ancoras da _pança_, e não tinha ainda empregado a pequena ancora da Durande, achada como se sabe nos cachopos. Essa collocou-a elle, prompta para as urgencias, num canto da _pança_ entre maromas e polés, e juntamente o cabo guarnecido de boças. Gilliatt deitou ao mar essa terceira ancora tendo cuidado de prender o cabo a outro cabo pequeno, cuja ponta passava na argola da ancora ficando a outra ponta no ferro de guindar. Deste modo amarrou a _pança_ com tres ancoras o que era mui forte. Indicava isto uma viva preoccupação e um redobrar de cautelas. Qualquer marinheiro reconheceria nessa operação, alguma cousa semelhante a um deitar ferros obrigado, quando ha a receiar uma corrente que possa fazer garrar o navio. A phosphorescencia sobre a qual Gilliatt tinha os olhos fixos, ameaçava-o talvez, mas ao mesmo tempo servia-o. Se não fosse ella, Gilliatt era prisioneiro do somno e victima da morte. Ella não só o dispertou, senão que o alumiava tambem. Havia no escolho uma luz opaca. Mas esse clarão, por mais assustador que parecesse a Gilliatt, foi-lhe util porque tornou-lhe o perigo visivel e a manobra possivel. Agora quando Gilliatt quizesse abrir vella, a _pança_, carregando a machina, estava livre. Sómente, Gilliatt parecia pensar cada vez menos em partir. Ancorada a pança, foi elle buscar a mais forte corrente que tinha no deposito e prendeu-a nos pregos mettidos nas duas Douvres, fortificou com ella o baluarte de vergas e barrotes já protegido pela lado de fora pela outra corrente. Longe de abrir caminho, Gilliatt tapava-o. A phosphorescencia ainda illuminava, mais ia diminuindo. É verdade que o dia começava a romper. De repente Gilliatt prestou ouvidos. XI PARA UM BOM ENTENDEDOR, MEIA PALAVRA BASTA Pareceu-lhe ouvir, immensamente longe, um quê fraco e indistincto. As profundezas, em certas horas, tem um certo rugido. Gilliatt attentou pela segunda vez. O rumor longiquo recomeçou. Gilliatt sacudio a cabeia como quem sabia o que era. Momentos depois, estava elle na outra extremidade da viella do escolho, na entrada de leste, livre até alli, e com grandes martelladas, metteu grossos prégos no granito dos portaes daquella abertura visinha do rochedo Homem. Os buracos desses rochedos estavam preparados e guarnecidos de cavilhas de madeira, quasi tudo carvalho. O escolho desse lado estava escalavrado, tinha muitas fendas, e Gilliatt pôde metter ahi mais pregos ainda que no esvasamento das Douvres. N'um momento dado, e como se lhe soprassem de cima, a phosphorescencia apagou-se; o crepusculo, cada vez mais luminoso, substituia-a. Mettidos os pregos, Gilliatt arrastou umas pranchas, depois cordas, depois correntes, e sem desviar os olhos do trabalho, sem se distrahir um momento, começou a construir na abertura do Homem, com taboas fixadas horisontalmente e presas por cabos, um desses tapamentos de claraboia, que a sciencia já adoptou, e qualifica de quebra-mar. Os que viram, por exemplo, na Rocquaine em Guernesey, ou no Boury-d'eau em França, o effeito que fazem algumas estacas pregadas no rochedo, comprehendem a força desses trabalhos simplices. O quebra-mar é a combinação daquillo que em França se chama _epi_, e daquillo que na Inglaterra se chama _dick._ O quebra-mar são os cavallos de frisa das fortificações contra as tempestades. Não se póde lutar contra o mar senão aproveitando a divisibilidade dessa força. Entretanto levantara-se o sol, perfeitamente puro. O dia estava claro, o mar calmo. Gilliatt apressava o trabalho. Tambem elle estava calmo, mas na sua pressa havia anciedade. Passava, em grandes pulos de rocha em rocha, do tapamento ao deposito e do deposito ao tapamento. Voltava puxando apressadamente, ora um gancho, ora um cabo. Manifestou-se então a necessidade daquelle deposito de destroços. Era evidente que Gilliatt estava diante de uma eventualidade prevista. Uma forte barra de ferro servia-lhe de alavanca para mover os barrotes. O trabalho executava-se tão depressa que mais parecia um crescimento que uma construcção. Quem não vio trabalhar um postageiro militar não póde fazer idéa daquella rapidez. A abertura de leste era ainda mais estreita que a de oeste. Tinha apenas cinco ou seis pés de largura. A estreiteza ajudava Gilliatt. Sendo estreito o espaço que tinha de fortificar e fechar, a armadura seria mais solida e podia ser mais simples. Bastavam pois vigas horisontaes; as peças verticaes eram inuteis. Postos os primeiros travessões do quebra-mar, Gilliatt trepou em cima e escutou. O rugido tornava-se expressivo. Gilliatt continuou a construcção. Accrescentou-lhe dous cepos da Durande ligados ás pontas das vigas com adrissas passadas nas tres rodas das polés. Ligou tudo com correntes. Essa construcção era nada menos que uma especie de grade collossal; as pranchas eram as tenazes e as correntes eram os vimes. Parecia entrançado como parecia construido. Gilliatt multiplicou os laços e pôz mais prégos onde era preciso. Tendo muito ferro redondo na Durande, pôde fazer uma grande provisão desses pregos. Ao mesmo tempo que trabalhava ia mastigando biscouto. Tinha sede, mas não podia beber, por já não ter agua doce. Esgotára o pichel na noite anterior. Accrescentou ainda quatro ou cinco taboas, depois trepou em cima de tudo. Escutou. Cessou o rumor ao longe e calava-se tudo. O mar estava manso e soberbo; merecia todos os madrigaes que lhe dirigem os burguezes quando estão contentes com elle,--_um espelho,--um mar de rosas,--um tanque,--um mar de leite._--O azul profundo do céo correspondia ao verde profundo do oceano. Aquella saphira e aquella esmeralda podiam admirar-se ambas. Não tinham de que exprobrar-se. Nenhuma nuvem em cima, nenhuma espuma em baixo. No meio desse esplendor subia magnificamente o sol de Abril. Era impossivel ver mais bello dia. No extremo horisonte uma fila negra de aves de arribação atravessava o céo. Iam depressa. Dirigiam-se para a terra. Parecia uma fuga. Gilliatt continuou a levantar o quebra-mar. Levantou-o o mais que pôde, tão alto como lhe permittio a curvatura dos rochedos. Ao meio-dia o sol pareceu-lhe mais quente do que devia estar. Meio-dia é a hora critica do dia. Gilliatt, de pé na robusta clara-boia que acabava de construir, entrou a contemplar a extensão. O mar estava mais que tranquillo, estava estagnado. Não se via uma vela. O céo estava limpido; somente o azul tornara-se mais branco. Era um branco singular. No horisonte, a oeste, havia uma manchasinha de apparencia ruim. Essa mancha estava immovel, mas crescia. Junto dos cachopos o mar palpitava brandamente. Gilliatt fizera bem em construir o quebra-mar. Approximava-se uma tempestade. O abysmo resolvera dar batalha. FIM DO 2° VOLUME. TRABALHADORES DO MAR POR VICTOR HUGO traduzido por Machado de Assis 3° TOMO RIO DE JANEIRO TYP.--PERSEVERANÇA--RUA DO HOSPICIO N. 91. 1866. SEGUNDA PARTE O engenhoso Gilliatt LIVRO TERCEIRO A luta I O EXTREMO TOCA O EXTREMO E O CONTRARIO ANNUNCIA O CONTRARIO Nada tão ameaçador como o equinoxio que retarda. Ha no mar um phenomeno medonho que se póde chamar a chegada dos ventos do largo. Em todas as estações, especialmente na época das syzygias, no momento em que menos se espera, o mar apresenta uma subita e estranha tranquillidade. Applaca-se aquelle prodigioso movimento continuo; cahe em madorna e languidez; parece que vai descançar: crer-se-hia que está fatigado. Todos os trapos marinhos, desde as flamulas de pesca, até ás insignias de guerra, pendem ao longo dos mastros. Os pavilhões almirantes, reaes, imperiaes, dormem todos. De repente esses pannos começam a mexer-se discretamente. É a hora, se ha nuvens, de espreitar a formação dos cirrus; se o sol se põe, é a hora de examinar a côr da tarde; se é de noite e ha luar, é a hora de estudar as aureolas planetarias. Nessa hora, o capitão ou chefe de esquadra que tem a fortuna de possuir um desses vidros de tempestade cujo inventor não se conhece, observa o vidro com o microscopio e toma as suas precauções contra o vento do sul, se a mistura tem aspecto de assucar fundido; e contra o vento do norte, se a mistura se esfolha em crystallisações semelhantes aos tuffos de hervas ou aos bosques de pinheiro. Nessa hora, depois de ter consultado o gnomon mysterioso gravado pelos romanos, ou pelos demonios, n'uma dessas estreitas pedras enigmaticas que na Bretanha se chama menhir, e na Irlanda cruach, o pobre pescador irlandez ou bretão retira a sua barça do mar. Persiste entretanto a serenidade do céo e do oceano. A manhã rompe radiosa e a aurora sorri, o que enchia de religioso horror os antigos poetas e os antigos adevinhos, assustados de que se podesse crer na deslealdade do sol. _Solem quis dicere falsum audeat._ A sombria visão do possivel latente é interceptada ao homem pela opacidade fatal das cousas. O mais temivel e o mais perfido aspecto é a mascara do abysmo. Diz-se: _anguis in herba_; devia dizer-se: _borrasca na calma._ Assim se passam horas, e ás vezes dias. Os pilotos assestam os seus oculos. O rosto dos velhos marinheiros tem um ar de severidade que se prende á colera secreta da expectação. De subito ouve-se um grande murmurio confuso. Ha uma especie de dialogo mysterioso no ar. Não se vê cousa alguma. A extensão fica impassivel. Entretanto o rumor cresce, engrossa, eleva-se. Accentua-se o dialogo. Ha alguem por traz do horisonte. Pessoa terrivel essa, é o vento. O vento, isto é, a populaça de titães que chamamos Tufões. Immensa plebe da sombra. A India chamava-os Morouts, a Judéa Keroubins, a Grecia Aquilões. São os invisiveis passaros ferozes do infinito. Esses Boreas precipitam-se. II OS VENTOS DO LARGO Donde vem elles? Do incomensuravel. Os seus grandes vôos exigem o diametro do golphão. As suas azas desmedidas precisam das solidões indefinidas. O Atlantico, o Pacifico, essas vastas aberturas azues, eis o que lhes convém. Fazem-n'as sombrias. Voam em bandos. O commandante Page vio de uma vez no mar alto, sete trombas a um tempo. Ahi são medonhas. Premeditam os desastres. Tem por trabalho delles o entumecimento ephemero e eterno dos vagalhões. Ignora-se o que elles podem, desconhece-se o que elles querem. São as sphynges do abysmo; e Vasco da Gama é o seu Œdipo. Faces de nuvens apparecem nessa obscuridade da extensão sempre em movimento. Quem descobre os seus lineamentos lividos nessa dispersão que é o horisonte do mar sente-se em presença da força irreductivel. Dissera-se que a intelligencia humana os assusta, e eriçam-se contra ella. A intelligencia é invencivel, mas o elemento é indomavel. Que fazer contra a ubiquidade que se não sujeita? O vento faz-se massa e torna-se vento outra vez. Os ventos combatem esmagando e defendem-se esvaindo-se. Quem depara com elles só póde lançar mão de expedientes. Elles frustam-nos pelo assalto diverso e repercutido. Tanto atacam como fogem. São os impalpaveis tenazes. Como vence-los? A prôa do navio Argo, esculpida em um carvalho de Dodona, ao mesmo tempo prôa e piloto, costumava fallar-lhes. Elles maltratavam aquella prôa deosa. Christovão Colombo, vendo-os vir de encontro á _Pinta_ subio ao tombadilho e dirigio-lhes os primeiros versiculos do Evangelho de S. João. Surcouf insultava-os. _Ahi vem a pandilha_, dizia elle. Napier descarregava-lhes tiros em cima. Elles tem a dictadura do chaos. Tem o chaos. Que fazem delle? Fazem uma cousa implacavel. A cova dos ventos é mais monstruosa que a cova dos leões. Quantos cadaveres debaixo dessas dobras sem fundo! Os ventos empurram sem piedade a grande massa obscura e amarga. A gente os ouve sempre, mas elles não ouvem a ninguem. Commettem cousas que parecem crimes. Não se sabe sobre quem atiram elles os punhados brancos de espuma. Que ferocidade impia no naufragio! Que affronta á Providencia! Ás vezes parecem que cospem em Deos. São os tyrannos dos lugares desconhecidos. _Luoghi spaventosi_, murmuravam os marinheiros de Veneza. Os espaços tremulos supportam os seus ataques. É inesprimivel o que se passa nesses grandes abandonos. Mistura-se á sombra um elemento equestre. O ar faz um rumor de floresta. Não se vê nada, mas ouve-se um ruido de cavallos. É meio dia, de subito anoitece; passa um _tornado_; é meia noite, de repente esclarece, accende-se o effluvio polar. Alternam em sentido inverso os turbilhões, especie de dansa hedionda, tripudeo dos flagellos sobre o elemento. Quebra-se pelo meio uma pesada nuvem, e os pedaços vão precipitar-se no mar. Outras nuvens purpureadas, illuminam e roncam, depois escurecem lugubremente; a nuvem esvasiada de raio, é carvão apagado. Saccos de chuva rompem-se em bruma. Fornalha em que chove, onda que vomita luz. As alvuras do mar debaixo do aguaceiro illuminam sorprehendentes quadros; desfiguram-se espessuras onde se reproduzem as semelhanças. Monstruoso umbigo vai rompendo as nuvens. Volteam os vapores, saracoteam as vagas; rolam embriagadas as nayades; a perder de vista, o mar massiço e mole move-se sempre sem jamais deslocar-se; tudo é livido; desesperados gritos sobem desse palor. No fundo da obscuridade inaccessivel tremem grandes germens de sombra. De quando em quando ha paroxismo. O rumor torna-se tumulto, do mesmo modo que a vaga se torna marulho. O horisonte, superposição confusa de vagas, oscillação sem fim, murmura continuamente; alli arrebentam extranhamente uns arremeços de fracaço; parece-se ouvir as hydras espirrando; sopram palitos frios, seguem-se halitos quentes. A trepidação do mar annuncia um medo que tudo espera. Inquietação. Angustia. Terror profundo das aguas. Subitamente, o furacão, como uma besta, desce a beber no oceano; sorvo inaudito, a agua sóbe para a boca invisivel, fórma-se uma ventosa, incha o tumor; é a tromba, o Prester dos antigos, stalactite em cima, stalagmite em baixo, duplo cone inverso girante, uma ponta equilibrada em cima de outra, beijo de duas montanhas, uma montanha de espuma que se levanta, uma montanha de nuvem que desce; coito medonho da vaga e da sombra. A tromba, como a columna da Biblia, é tenebrosa de dia e luminosa de noite. Diante da tromba cala-se o trovão. Parece que tem medo. Ha uma escala na vasta turvação das solidões; temivel _crescendo_; a brisa, a lufada, a borrasca, o temporal, a tormenta, a tempestade, a tromba; as sete cordas da lyra do vento, as sete notas do abysmo. O céo é uma largura, o mar é um arredondado; passa um vento, já não ha nada disso, tudo é furia e confusão. Taes são aquelles severos sitios. Os ventos correm, voam, abatem-se expiram, revivem, pairam, assoviam, rugem, riem: freneticos, lascivos, desvairados, tomam conta da vaga irascivel. Tem harmonia esses berradores. Tornam sonoro todo o céo. Sopram nas nuvens como n'um metal; embocam o espaço, e cantam no infinito, com todas as vozes amalgamadas dos clarins, buzinas e trombetas, uma especie de tangeres prometheanos. Quem os ouve, ouve Pan. O que mais assusta é vêl-os assim. Tem uma colossal alegria composta de sombra. Fazem nas solidões a batida dos navios. Sem tregoas, noite dia, em todas as estações, no tropico como no polo, tocando a trombeta delirante, vão elles, por meio do travamento da nuvem e da vaga, fazendo a grande caça negra dos naufragios. São os donos das matilhas. Divertem-se. Fazem ladrar as ondas, que são os seus cães, contra as rochas. Combinam e desunem as nuvens. Amassam como se tivessem milhões de mãos, a flexibilidade da agua immensa. A agua é flexivel porque é incompressivel. Resvala debaixo do esforço. Apertada por um lado, escapa por outro. É assim que a agua se faz onda. A vaga é a sua liberdade. III EXPLICAÇÃO DO RUMOR OUVIDO POR GILLIATT A grande approximação dos ventos para a terra faz-se nos equinoxios. Nessas épocas o grande balanço do tropico e do polo, e a collossal maré atmospherica derrama o seu flux em um hemispherio, e o reflux em outro. Ha constellações que significam esses phenomenos. Libra e Aquario. É a hora das tempestades. O mar espera silencioso. Ás vezes o céo tem feio aspecto. Fica baço, e como que coberto por um grande panno obscuro; os marinheiros contemplam anciosos o ar opprimido de sombra. Mas o que elles mais temem é o ar alegre. Céo risonho no equinoxio é a tempestade com pés de lã. Com céos desses, a Torre das Carpideiras de Amsterdão enchia-se de mulheres que examinavam o horizonte. Quando se demora a tempestade invernal ou outonal é que está ajuntando uma massa ainda maior. Enthesoura para destruir. Desconfia da acumulação de juros. Ango dizia: _O mar é bom pagador._ Quando a demora é demasiado longa, o mar trahe a sua impaciencia pela calma. Sómente a tenção magnetica se manifesta naquillo que se póde chamar a inflamação da agua. Rompem clarões da vaga. Ar electrico, agua phosphorica. Os marinheiros sentem-se estafados. É uma hora especialmente perigosa para os encouraçados; o casco de ferro póde produzir falsas indicações da bussola e perdel-os. Assim pereceu o paquete transatlantico _Yowa._ Para os que estão familiarisados com o mar, o seu aspecto nesses momentos é extranho; dissera-se que o mar deseja e receia o cyclone. Certos hymeneus, aliás impostos pela natureza, são acolhidos assim. A leôa desejosa foge diante do leão. Tambem a agua tem o seu calor, e dahi lhe vem o estremecimento. Vae realisar-se o immenso consorcio. Este consorcio, como as nupcias dos antigos imperadores, celebra-se com exterminações. É uma festa temperada de desastres. Attenção, ahi vem o facto equinoxial. Conspira a tempestade. A velha mythologia entrevia essas personalidades indistinctas misturadas á grande natureza diffusa. Eolo harmonisa-se com Boreas. O accordo do elemento com o elemento é necessario. Distribuem entre si a tarefa. Ha impulsões para a vaga, para a nuvem, para o effluvio; a noite é um auxiliar; deve ser empregada. Ha bussolas para desviar, pharóes para apagar, estrellas para esconder. É preciso que o mar coopere. Todas as tempestades são precedidas de um murmurio. Por traz do horisonte ha o cochicho prévio dos furacões. É o que se ouve, na obscuridade, ao longe, por cima do silencio assustado do mar. Gilliatt ouvio esse chochichar tremendo. A phosphorescencia foi a primeira advertencia; o rumor foi a segunda. Se existe o demonio Legião, esse demonio é o Vento, com certeza. O vento é multiplo, mas o mar é um. Dahi esta consequencia: toda tempestade é mixta. A unidade de ar o exige. Abismo implica tempestade. O oceano inteiro está n'uma borrasca. A totalidade das suas forças entra em linha e toma parte nella. Uma vaga é o golphão de baixo; um tufão é o golphão de cima. Lutar com uma tempestade é lutar com o mar inteiro e o céo inteiro. Messier, o homem da marinha, o astronomo pensativo da choça de Clerny, dizia: _O vento de toda a parte está em todas as partes._ Elle não acreditava nos ventos presos, mesmo nos mares fechados. Para elle não haviam ventos mediterraneos. Dizia que os conhecia na passagem. Affirmava que em tal dia, a tal hora, o Fohn do lago de Constança, o antigo Favonio de Lucrecio, atravessara no horisonte de Paris; em outro dia era o Bora do Adriatico; em outro era o Noto giratorio que se pretende estar encerrado nas Cyclades. Especificava os effluvios. Não pensava que o vento que gira entre Malta e Tunis, e o vento que gira entre a Corsega e as Baleares, estivessem na impossibilidade de se libertarem. Não admittia os ventos, como ursos, fechados em jaula. Dizia: «Todas as chuvas vem do tropico, e todos os raios do polo.» O vento, com effeito, satura-se de electricidade na intercessão dos coluros, que marca as extremidades do eixo, e da agua no equador; traz-nos da linha o liquido e dos polos o fluido. Ubiquidade é o vento. Não quer isto dizer que não existam as zonas dos ventos. Nada mais demonstrado que as correntes continuas, e dia virá em que a navegação aérea, servida pelos navios do ar (_air-navires_) que chamamos, por mania de grego, aeroscaphos, utilisará as linhas principaes. A canalisação do ar pelo vento é incontestavel; ha rios de vento, ribeiros de vento, riachos de vento; sómente ao invez das ramificações da agua, são os riachos que sahem dos ribeiros, e os ribeiros que sahem dos rios, em vez de serem affluentes: em vez de concentração, dispersão. Essa disposição é que faz a solidariedade dos ventos e a unidade da atmosphera. Uma molecula deslocada desloca outra molecula. Os ventos agitam todos juntos. A estas profundas causas do amalgama, acrescentai o relevo do globo, rasgando a atmosphera com todas as suas montanhas, fazendo nós e torções nas carreiras do vento e determinando em todos os sentidos as contra-correntes. Irradiação illimitada. O phenomeno do vento é a oscilação de dous oceanos um sobre outro; o oceano do ar, sobreposto ao oceano de agua, apoia-se nessa fuga e vacilla nessa vacillação. O indivisivel não usa compartimentos. Não ha tabique entre uma onda e outra. As ilhas da Mancha sentem o empurrão do Cabo de Boa Esperança. A navegação universal faz frente a um monstro unico. Todo o mar é uma só hydra. As vagas cobrem o mar de uma especie de escama. Oceano é Ceto. Nessa unidade abate-se o inumeravel. IV TURBA, TURMA Para a bussola ha trinta e dous ventos, isto é, trinta e duas direcções; mas essas direcções podem subdividir-se indefinidamente. O vento classificado por direcções, é o incalculavel; classificado por especies, é o infinito. Homero recuaria ante esse recenceamento. A corrente polar roça na corrente tropical. Eis o frio e o calor combinados, o equilibrio começa pelo choque, sahe a onda dos ventos, inchada, esparsa e toda dilacerada em jorros medonhos. A dispersão dos tufões sacode nos quatro cantos do horisonte o prodigioso esgadelhado do ar. Ahi estão todos os rumos; o vento de Gulf-Stream que despeja tanta nevoa na Terra Nova: o vento do Perú, região de céo mudo onde jamais se ouviram trovoadas; o vento da Nova Escocia onde vôa o grande Auk, _Alca impennis_, de bico riscado; os turbilhões de Ferro dos mares da China; o vento de Moçambique que maltrata os juncos; o vento electrico do Japão denunciado pelo gong; o vento da Africa que habita entre a montanha da Mesa e a montanha do Diabo, e que se desencadea dahi; o vento do equador que passa por cima dos ventos regulares, e traça uma parabola cujo cimo fica a oeste; o vento plutonico que sahe das crateras e que é o temivel sopro das chammas; o extranho vento proprio do volcão Awa que faz sempre surgir do norte uma nuvem azeitonada; a monção de Java, contra a qual estão construidas aquellas casamatas chamadas _casas do furacão_; a brisa ramificada que os inglezes chamam _busk_, bebida; os grãos arqueados do estreito de Malaca observados por Horsfurgh; o possante vento de sudoeste, chamado Pampero no Chile, e Rebojo em Buenos-Ayres, que carrega o condor em pleno mar e o salva da cova onde o esperava, debaixo de uma pelle de boi arrancada de fresco, o selvagem deitado de costas e retesando o arco com os pés; o vento chimico que, segundo Lemery, faz nas nuvens pedras de trovoada; o hermatan do Caffres; o sopra-neves polar, que se prende aos eternos gelos e os arrasta; o vento do golpho de Bengala que vai até Nijni-Novogorod devastar o triangulo das barracas de pão onde se faz a feira da Asia; o vento das cordilheiras, agitador das grandes vagas e das grandes florestas; o vento dos archipelagos da Australia onde os caçadores de mel arrancam as colmêas silvestres escondidas nos galhos do eucalyptus gigante; o sirocco; o mistral; o hurricana; o vento de secca; os ventos de innundação; os diluvianos; os torridos; os que lançam nas ruas de Genova a poeira das planicies do Brazil; os que obedecem á rotação diurna; os que a contrariam e fazem dizer a Herrera: _Malo viento torna contra el sol_; os que vão aos pares, para destruir, desfazendo um o que o outro faz; e aquelles ventos antigos que assaltaram Colombo na costa de Veraguas; e os que durante quarenta dias, desde 21 de Outubro a 28 de Novembro de 1520, puzeram em questão Magalhães abordando o Pacifico, e os que desfizeram a Armada, e sopraram sobre Philippe II. Outros ventos mais, e como achar-lhes o fim? Os ventos carregadores de sapos e gafanhotos que sopram nuvens e bichos por cima do oceano; os que operam o que se chama _salto de vento_ e que tem por tarefa acabar com os naufragos; os que, com um sopro unico, deslocam a carga do navio e o obrigam a continuar viagem todo inclinado; os ventos que construem os circumcumuli; os ventos que construem os circumstrati; os pesados ventos cegos, tumidos de chuva; os ventos do graniso; os ventos da febre; os ventos cuja approximação faz ferver os salsos e os solfatarios de Calabria; os ventos que fazem brilhar o pello das pantheras de Africa andando nos espinheiros do cabo de Ferro; os que vem sacudindo fóra da sua nuvem, como uma lingoa trigonocephala, o temivel relampago de forquilha; os que trazem neves negras. Tal é o exercito. O escolho Douvres, no momento em que Gilliatt construia o quebra-mar, ouvia-lhes o galopo longinquo. Já o dissemos, o Vento compõe-se de todos os ventos. Acercava-se toda aquella horda. De um lado, essa legião. Do outro, Gilliatt. V GILLIATT PÓDE ESCOLHER As mysteriosas forças escolheram bem o momento. O acaso, se é que existe, é habil. Emquanto a _pança_ esteve guardada na angra do Homem, emquanto a machina esteve mettida no casco da Durande, Gilliatt foi inexpugnavel. A _pança_ estava em segurança, a machina estava abrigada; as Douvres, que sustentavam a machina, condemnavam-n'a a uma destruição lenta, mas protegiam-n'a contra uma surpreza. Em todos os casos, ficava a Gilliatt um recurso. A machina destruida não destruia a Gilliatt. Tinha a _pança_ para salvar-se. Mas esperar que a _pança_ estivesse fóra do ancoradouro, onde era inaccessivel, deixal-a pôr entre as Douvres, esperar que ella lá estivesse presa tambem pelo escolho, consentir que Gilliatt operasse o salvamento e o transporte da machina, não impedir esse maravilhoso trabalho, consentir nesse triumpho, esse era o laço. Via-se agora, como uma especie de lineamento sinistro, a sombria astucia do abysmo. Agora, a machina, a _pança_, Gilliatt, estavam todos reunidos na viela dos rochedos. Eram apenas um. A _pança_ esmigalhada no escolho, a machina mettida a pique, Gilliat, affogado, era negocio de um esforço unico num só ponto. Tudo podia ser desfeito de uma vez, ao mesmo tempo, e sem dispersão; tudo podia ser destruido de um lance. Não ha situação mais critica do que a de Gilliatt. A sphynge possivel, que os sonhadores suspeitam estar no fundo da sombra, parecia propor-lhe este dilemma. Fica ou parte. Partir era insensato, ficar era medonho. VI O COMBATE Gilliatt trepou á grande Douvre. Dahi via todo o mar. Era sorprehendente o oeste. Sahia delle uma muralha. Muralha de nuvem, tapando a extenção, subia lentamente do horisonte para o zenith. Essa muralha rectilinea, vertical, sem um rombo no alto, sem um rasgão na orla, parecia feita a esquadro, e esticada a corda. Era nuvem semelhante a granito. O declive dessa nuvem, completamente perpendicular na estremidade sul, dobrava-se um pouco para o norte, como dobra uma folha, e offerecia o vago aspecto de um plano inclinado. Alargava e crescia sem que a cymalha deixasse um instante de ser paralella á linha do horisonte, quasi indistincta na obscuridade que se ia fazendo. Essa muralha do ar subia de uma só peça e silenciosamente. Nenhuma ondulação, nenhuma dobra, nenhuma saliencia. Era lugubre aquella immobilidade em movimento. O sol, livido por traz de uma certa transparencia morbida, alumiava aquelle lineamento de apocalipse. A nuvem invadia já quasi metade do espaço. Dissera-se o medonho talude do abysmo. Era uma como que levantar de montanha de sombra entre a terra e o céo. Era em pleno dia a ascenção da noite. Havia no ar um calor de fogão. Uma lixivia de estufa sahia daquelle amontoado mysterioso. O céo, que de azul tornára-se branco, de branco tornou-se cinzento. Dissera-se uma grande ardosia. Embaixo o mar escuro e de chumbo, era outra ardosia enorme. Nem um sopro, nem um rumor. Ao longe o mar deserto. Nenhuma vela. Os passaros tinham-se escondido. Sentia-se a traição do infinito. O crescimento de toda aquella sombra amplificava-se insensivelmente. A montanha movediça de vapores que se dirigia para as Douvres, era uma dessas nuvens que se podem chamar nuvens de combate. Nuvens vesgas. Atravez daquelles amontoados escuros, extranho estrabismo fita o homem. Temivel era a approximação. Gilliatt examinou firmemente a nuvem e murmurou entre dentes: «Tenho sede, vás dar-me agua.» Ficou alguns momentos immovel com os olhos fitos na nuvem. Parecia medir a tempestade. Tinha o barrete no bolso, tirou-o e pol-o na cabeça. Tirou do buraco, onde por tanto tempo dormira, o fato de reserva, e vestio tudo, grevas e capotão, como um cavalleiro veste a armadura para entrar em combate. Sabem que perdera os sapatos, mas os pés descalços tinham-se endurecido nos rochedos. Preparado o vestuario de guerra, contemplou elle o quebra-mar, empunhou vivamente a corda de nós, desceu da platafórma das Douvres, tomou pé nas rochas debaixo, e correu ao deposito. Instantes depois trabalhava. A vasta nuvem muda pôde ouvir-lhe os sons do martello. Que fazia Gilliatt? Com o resto dos prégos, cordas e vigas, construia na abertura de leste uma segunda porta de dez a doze pés por traz da primeira. Profundo era o silencio. Os talos de herva nas fendas do escolho nem mesmo tremiam. Subitamente o sol desappareceu. Gilliatt levantou a cabeça. A nuvem ascendente acabava de attingir o sol. Foi como que uma extinção da luz substituida por uma reverberação mesclada e pallida. A muralha de nuvem mudara de aspecto. Já não tinha unidade. Encrespara-se horisontalmenle tocando o zenith, pendendo em todo o resto do céo. Tinha agora divisões. A formação da tempestade desenhava-se como em uma secção dividida. Distinguia-se as camadas da chuva e os jazigos do granito. Não havia relampago, mas um horrivel clarão espesso; porque a idéa do horror póde ligar-se á idéa da luz. Ouvia-se o vago respirar da tempestade. Aquelle silencio palpitava obscuramente. Gilliatt, tambem silencioso, via agruparem-se por cima delle todos aquelles montões de bruma e compôr-se a difformidade das nuvens. No horisonte pesava e estendia-se uma facha de nevoeiro côr de cinza, e no zenith uma facha côr de chumbo; lividos farrapos pendiam das nuvens de cima sobre os nevoeiros debaixo. O fundo, que era a parede de nuvens, estava baço, leitoso, terreo, livido, indescriptivel. Uma delgada e alvacenta nuvem transversal, vinda não se sabe donde, cortava obliquamente, de norte a sul, a alta muralha sombria. Uma das extremidades dessa nuvem arrastava no mar. No ponto em que tocava na compressão das nuvens, via-se na obscuridade, um abafamento de vapor vermelho. Por baixo da longa nuvem pallida, pequenas nuvens, mui baixas e pretas, voavam em sentido inverso umas das outras como se não soubessem para onde iriam. A possante nuvem do fundo crescia de todas as partes a um tempo, augmentava o eclipse, e continuava a sua interposição lugubre. A leste, por traz de Gilliatt, havia apenas um portal de céo claro que ia ser fechado. Sem a menor impressão de vento, passou uma extranha diffusão de penugem cinzenta, esparsa em migalhas, como se algum passaro gigantesco acabasse de ser depennado por traz daquelle muro de tenebras. Formou-se um tecto de negrume compacto que, no extremo horisonte tocava no mar e misturava-se na noite. Sentia-se alguma cousa que se avançava. Era vasta e pesada e medonha. A obscuridade lornava-se mais espessa. De subito roncou immenso trovão. Gilliatt sentio o abalo. Ha sonho no trovão. Essa realidade brutal na região visionaria tem alguma cousa de terrifico. Acredita-se ouvir a queda de um movel no aposento dos gigantes. Nenhum flammejar electrico acompanhara o som. Foi um trovão negro. Voltou o silencio. Houve uma especie de intervallo como quando se toma posição. Depois um após outro, e lentamente, romperam-se informes relampagos. Eram todos mudos. Nenhum rugido. Cada relampago illuminava. A muralha de nuvens era agora um antro. Havia nella abobadas, e arcarias. Viam-se traços. Esboçavam-se monstruosas cabeças; distendiam-se pescoços; entreviam-se e desappareciam elephantes carregados de torres. Uma columna de bruma, recta, redonda, com uma fumaça branca em cima, simulava o cimo de um vapor collossal, engolido, bufando debaixo da vaga fumegante. Ondulavam toalhas de nuvem. Acreditava-se vêr dobras de bandeiras. No centro, debaixo de vermelhas espessuras, mergulhava-se, immovel, um caroço de nevoeiro denso, inerte, impenetravel ás faiscas electricas, especie de feto hediondo no ventre da tempestade. Gilliatt sentio subitamente que um vento lhe agitou os cabellos. Tres ou quatro largas aranhas de chuva despedaçaram-se em roda delle na rocha. Depois houve um segundo trovão. Começou o vento. A espera da sombra chegara ao cumulo; o primeiro trovão agitara o mar, o segundo rachou a muralha de nuvens de alto abaixo, abrio-se uma fenda, toda a batega suspensa jorrou por esse lado, o buraco tornou-se uma boca aberta cheia de chuva, e o vomito da tempestade começou. Tremendo foi o instante. Aguaceiro, furacão, relampagos, raios, vagas até ás nuvens, espuma, detonações, torções freneticas, gritos, roncos, assovios, tudo a um tempo. Desencadear de monstros. O vento fulminava. A chuva não cahia, desabava. Para um pobre homem, mettido, como Gilliatt, com um barco carregado, no intervallo de dous rochedos, em pleno mar, não ha crise mais ameaçadora. O perigo da maré, de que Gilliatt triumphára, nada era ao pé do perigo da tempestade. Eis a situação: Gilliatt, em volta de quem tudo era precipicio, descobrio, no ultimo momento, e diante do risco supremo, uma estrategia engenhosa, Fez ponto de apoio no proprio inimigo; associou-se ao escolho; o rochedo Douvres, outrora seu adversario, era agora o seu padrinho naquelle immenso duelo. Gilliatt tinha-o debaixo de si. Fez daquelle sepulchro uma fortaleza. Assestou-se naquelle pardieiro formidavel do mar. Estava bloqueado, mas entrincheirado. Estava, por assim dizer, aggregado ao escolho, face a face com o furacão. Pôr barricadas ao estreito, essa rua das vagas. Era a unica cousa que podia fazer. Parece que o oceano, que é um despota pode ser tambem vencido pelas barricadas. A _pança_ podia ser considerada segura por tres lados. Estreitamente apertada, entre as duas fachadas internas do escolho, triplicemente ancorada, estava abrigada ao norte pela pequena Douvre, ao sul pela grande, penedos selvagens, mais affeitos a produzir naufragios que a impedil-os. A oeste era protegida pelo tapamento de barrotes atados e pregados aos rochedos, tapamento já provado que vencera o rude flux do alto mar, verdadeira porta de cidadella tendo por hombreiras as proprias columnas do escolho, as duas Douvres. Nada havia que receiar por esse lado. O perigo estava a leste. A leste havia apenas o quebra-mar. Um quebra-mar é um aparelho de pulverisação. Precisa ao menos duas lumieiras. Gilliatt teve apenas tempo de fazer uma. Construia a segunda mesmo com a tempestade. Felizmente o vento chegava de nordeste. O mar tem descahidas. Aquelle vento, que era o galerno antigo, tinha pouco effeito nas Douvres. Assaltava o escolho de travez, e não impeilia a onda nem sobre uma e nem sobre outra das aberturas da garganta, de modo que em vez de entrar em uma rua, esbarrava-se n'uma muralha. A tempestade atacava mal. Mas os attaques do vento são curvos, e devia esperar-se alguma viravolta subita. Se essa viravolta se fizesse a leste antes que a segunda claraboia do quebra-mar estivesse construida, o perigo seria grande. A invasão da viela de rochedos pela tempestade realizava-se e tudo estava perdido. Crescia a vertigem da tempestade. A tempestade é golpe sobre golpe. Essa é a sua força, esse é o seu defeito. Á força de ser uma raiva, dá lugar á intelligencia, e o homem defende-se; mas debaixo de que destruição! Nada mais monstruoso que isso. Nenhuma dilação, nenhuma interrupção, nenhuma trégoa, nenhum descanço para tomar alento. Ha uma não sei que de covardia nessa prodigalidade do inexgotavel. Toda a immensidade tumultuosa atirava-se sobre o escolho Douvres. Ouviam-se vozes sem numero. Quem gritava assim? Estava alli o antigo terror panico. De quando em quando, parecia que era alguem que fallava, como se fizesse um commando. Depois clamores, clarins, estranhas tremuras, e aquelle grande e magestoso urro que os marinheiros dizem ser a _chamada do oceano._ As espiraes indefinidas e fugazes do vento assoviavam torcendo a onda; as vagas, tornadas discos debaixo daquelles torneamentos, eram atiradas contra os parceis como chapas gigantescas por athletas invisiveis. A enorme escuma eriçava todas as rochas. Torrentes em cima, saliva em baixo. Depois redobravam os mugidos. Nenhum rumor humano ou bestial poderia dar idéa dos fracassos misturados áquellas deslocações do mar. A nuvem canhoneava, a saraiva metralhava, o marulho escalava. Certos pontos pareciam immoveis, em outros o vento fazia vinte toesas por segundo. O mar ao longe estava todo branco; dez léguas de agua de sabão enchiam o horisonte. Abriam-se portas de fogo. Algumas nuvens pareciam queimadas por outras, e sobre montões de nuvens vermelhas semelhantes ás brasas, assemelhavam-se essas ao fumo. Configurações flutuantes esbarravam-se e amalgamavam-se, desfazendo-se umas por outras. Escorria uma agua incommensuravel, ouviam-se fogos de pelotão no firmamento. Havia no meio do tecto de sombra uma especie de vasta alcofa virada, donde cahiam em confusão, a tromba, a chuva, as nuvens, as côres rubras, os relampagos, a noite, a luz, os raios, tão formidaveis são essas inclinações do golphão! Gilliatt parecia não attender a nada. Tinha a cabeça inclinada no trabalho. A segunda claraboia começava a levantar-se. A cada trovão respondia elle com uma martellada. Ouvia-se essa cadencia naquelle cahos. Estava com a cabeça descoberta. Uma lufada levou-lhe o chapéo. Tinha uma sêde ardente. Provavelmente estava com febre. Lagoinhas de chuva tinham-se formado á roda delle nas covas do rochedo. De quando em quando tirava agua com a palma da mão e bebia. Depois, sem examinar em que ia a tempestade, continuava a obra. Tudo podia depender de um instante. Sabia o que o esperava se não terminasse a tempo o quebra-mar. Porque motivo perder um minuto para ver approvimar-se a face da morte? A desordem em torno delle era como uma caldeira fervendo. Havia fracasso e motim. Ás vezes o raio parecia descer uma escada. As percursões electricas voltavam constantemente aos mesmos pontos do rochedo. Haviam pedras de chuva da grossura de uma mão fechada. Gilliatt era obrigado a sacudir as dobras da japona. Até as algibeiras tinham pedras. O temporal estava já no oeste, e batia o tapamento das duas Douvres; mas Gilliatt tinha confiança nesse tapamento, e com rasão. Esse tapamento, feito do grande pedaço da prôa da Durande, recebia sem dureza o choque da onda; a elasticidade é uma resistencia; os calculos de Stevenson estabelecem que, contra a vaga, por si propria elastica, uma reunião de pãos, com a dimensão desejada, ligada e amarrada de certo modo, faz melhor obstaculo que um breack-water de madeira. O tapamento das Douvres preenchia essas condições; era além disso tão engenhosamente atado que a onda, batendo em cima, fazia como um martello que mette o prego apoiava-o ao rochedo e consolidava-o; para demolil-o, era preciso derrubar as Douvres. A lufada apenas conseguio atirar á _pança_, por cima do obstaculo, alguns jorros de espuma. Por esse lado, graças ao tapamento a tempestade tornava-se cuspo. Gilliatt voltava as costas a esse esforço. Sentia tranquillamente atraz de si essa raiva inutil. Os frocos de espuma, sahindo de todos os lados, assemelhavam-se a lã. A agua vasta e irritada afogava os rochedos, trepava por elles, entrava dentro, penetrava na rede de fendas internas, e sahia das massas graniticas por fendas estreitas, especies de bocas inexgotaveis que faziam naquelle diluvio pequenas fontes placidas. Filetes de agua cahiam graciosamente daquelles buracos no mar. A claraboia de reforço do tapamento de leste estava quasi concluida. Mais umas voltas de cordas e correntes, e approximava-se o momento de tambem lutar esse tapamento. De subito, fez-se um grande clarão, a chuva e as nuvens separaram-se, era o vento que mudava, uma especie de janella grande crepuscular abrio-se no zenith, e apagaram-se os relampagos; pareceu que estava acabado. Era o começo. O vento mudou de sudoeste para nordeste. A tempestade ia recomeçar com uma nova matilha de furacões. Vinha do norte, violento assalto. Os marinheiros chamam a isso _o vento de esboroar._ O vento do sul tem mais agua, o vento do norte tem mais raios. Vindo do nordeste, a aggressão ia dirigir-se ao ponto fraco. Desta vez Gilliatt parou o trabalho, e olhou. Collocou-se de pé sobre uma saliencia de rochedo inclinado por traz da segunda claraboia quasi terminada. Se a primeira chapa do quebra-mar fosse afundada, desabaria a segunda, ainda não consolidada, e debaixo dessa demolição, esmagaria Gilliatt, Gilliatt no lugar que escolhera, seria achatado antes de ver a _pança_ e a machina e toda a sua obra abysmar-se no golphão. Tal era a eventualidade. Gilliatt, acceitou-a, e, terrivel, elle a queria. Nesse naufragio de todas as suas esperanças, morrer primeiro, convinha-lhe a elle; morrer primeiro, porque a machina fazia-lhe o effeito de uma pessoa. Levantou com a mão esquerda os cabellos collados aos olhos pela chuva, apertou o martello, inclinou-se para traz, ameaçante, e esperou. Não esperou muito. Um ribombo deu o signal, fechou-se a abertura pallida do zenith, precipitou-se uma rajada de chuva, tudo tomou-se escuro, e não houve outro facho mais que o relampago. Começava o sombrio ataque. Possante vagalhão, visivel entre os relampagos, levantou-se a leste além do rochedo Homem. Parecia um grande rolo de vidro. Era verde e sem escuma nem ondas. Inchava aproximando-se; era um largo cylindro de trevas rolando no oceano. A trovoada roncava surdamente. Esse vagalhão chegou ao rochedo Homem, partio-se em dous e continuou. Os dous pedaços juntos tornaram a ligar-se, e fizeram uma grande montanha de agua, e de parallela que estava ao quebra-mar, tornou-se perpendicular. Era uma vaga com a fórma de uma viga. Atirou-se ao quebra-mar aquelle ariete. Rugia o choque. Tudo desappareceu em espuma. Não se póde imaginar o que são essas avalanchas de neve que o mar ajunta, e debaixo das quaes engole rochedos de mais de cem pés de altura, taes, por exemplo, como o grande Anderlo, em Guernesey, e o Pinaculo, em Jersey. Em Santa Maria de Madagascar, saltam por cima da ponta de Pintingue. Durante alguns instantes, o rolo de mar tapou tudo. Só ficou visivel um montão furioso, uma escuma immersa, a alvura de um sudario fluctuando no vento do sepulchro, uma mistura de ruido e de tempestade debaixo da qual trabalhava o exterminio. Dissipou-se a escuma. Gilliatt estava de pé. O tapamento resistira. Nenhuma corrente arrebentou, nenhum prégo sahio. O tapamento mostrou á prova as duas qualidades do quebra-mar; foi flexivel como um caniço e solido como uma parede. O vagalhão dissolveu-se em chuva. A espuma escorrendo ao longo dos zig-zags do estreito foi morrer debaixo da _pança._ O homem que fizera aquelle açamo ao oceano não repousou. A tempestade divagou felizmente durante algum tempo. O encarniçamento das vagas voltou-se para as partes muradas do escolho. Foi uma tregoa. Gilliatt aproveitou-a para completar a claraboia de traz. O dia expirou nesse trabalho. A tormenta continuava as suas violencias no flanco do escolho com uma solemnidade lugubre. A urna de agua e a uma de fogo que existem nas nuvens, esvasiava-se sem esgotar nunca. As ondulações altas e baixas do vento, pareciam movimentos de um dragão. Quando a noite chegou já havia noite; não se pôde reparar nella. Mas não era obscuridade completa. As tempestades illuminadas e cégas pelo relampago, têm intermittencias de visivel e invisivel. Tudo está claro, depois tudo fica escuro. Assiste-se á sahida das visões, e á entrada das trevas. Uma zona de phosphoro, côr da aurora boreal, fluctuava como um farrapo de flamma spectral por traz das espessuras de nuvens. Resultava uma vasta pallidez. As chapas de chuva eram luminosas. E esses clarões ajudavam Gilliatt e o dirigiam. Elle voltou-se para o relampago e disse: segura-me a vela! Com o auxilio dessa claridade póde elle levantar a claraboia de traz, ainda mais acima da da frente. O quebra-mar estava quasi completo. Quando Gilliatt amarrava ao ponto culminante um cabo de reforço, o vento soprou-lhe na cara em cheio. Isto fez-lhe levantar a cabeça. O vento voltára bruscamente para nordeste. O assalto da abertura de leste recomeçava. Gilliatt olhou para o mar. O quebra-mar ia ser atacado outra vez. Vinha um novo vagalhão. Esse foi rudemente vibrado; depois veio outro, mais outro, mais outro, cinco ou seis em tumulto, quasi juntos; finalmente um ultimo e tremendo. Este que era um como que total de forças, tinha a figura de uma cousa viva. Não era difficil imaginar naquella intumescencia e naquella transparencia, inauditos aspectos com escamas. Achatou-se e partio-se no quebra-mar. A sua forma quasi animada dilacerou-se num esguicho. Naquelle montão de rochedos e taboas, foi uma especie de esmagamento de hydra. A onda morrendo devastava. Profundo tremor agitou o escolho. Misturava-se a isso um grunhir de animal. A espuma assemelhava-se á saliva de um leviathan. A espuma que cahia deixava vêr uma devastação. O vagalhão fez obra. Dessa vez o quebra-mar soffreu um pouco. Uma longa e pesada viga, arrancada da claraboia da frente, foi lançada por cima do tapamento de traz, sobre a rocha inclinada escolhida por Gilliatt para o lugar do combate. Felizmente desta vez não estava elle ahi. Ficaria morto. Houve na queda da viga uma singularidade, que, impedindo qualquer movimento da prancha, salvou Gilliatt de qualquer sobresalto perigoso. Foi ainda util por outro modo como se vai vêr. Entre a saliencia da rocha e o declive interno da garganta, havia um intervallo, um grande hiato semelhante ao encaixe de um machado ou á alveola de um canto. Uma das extremidades da prancha atirada ao ar pela vaga, cahio no meio dessa abertura. A abertura alargou-se. Gilliatt teve uma idéa. Pesar na outra extremidade. A prancha, presa por uma ponta na fenda do rochedo que alargara, sahia d'ahi como um braço estendido. Essa especie de braço alargava-se paralellamente á facha interna da garganta, e a extremidade livre da prancha afastava-se desse ponto de apoio cerca de dezoito ou vinte pollegadas. Boa distancia para fazer o exforço. Gilliatt estreitou com os pés, os joelhos e os braços o rochedo e metteu hombros á enorme viga. A viga era comprida, o que augmentava a força do peso. A rocha já estava abalada. Comtudo Gilliatt teve de tentar a cousa quatro vezes. Cahia-lhe dos cabellos mais suor do que chuva. O quarto exforço foi frenetico. Houve um estalo na rocha, a abertura abriu-se como uma boca, e a pesada massa cahio no estreito intervallo com um ruido terrivel, replica aos trovões. Cahio direita, se esta expressão é possivel, isto é sem quebrar-se. Imaginae um menhir precipitado todo inteiro. A viga acompanhou o rochedo, e Gilliatt cedendo ao mesmo tempo, escapou de cahir tambem. O fundo estava muito atravancado, e tinha pouca agua. O monolitho, n'uma agitação de espuma, que foi respingar em Gilliatt, deitou-se entre as duas grandes rochas paralellas da garganta e fez uma parede transversal, especie de linha de união dos dous rochedos. Tocavam as duas pontas; era um pouco mais longo, e o cume, que era de rocha macia, ficou esmigalhado. Resultou dessa queda uma especie de beco sem sahida que ainda hoje pode ser visto. A agua por detraz dessa barra de pedra, é quasi sempre tranquilla. Era um baluarte aquelle ainda mais invencivel que a amurada da Durande ajustada entre as duas Douvres. Esse tapamento interveio a proposito. Os vagalhões tinham continuado. A vaga teima sempre contra o obstaculo. A primeira claraboia começava a desarticular-se. Uma malha de quebra-mar desfeita é uma grande avaria. É inevitavel o alargamento do buraco, e nenhum meio póde remediar logo. A vaga carregaria o trabalhador. Uma descarga electrica, que illuminou o escolho, descobrio a Gilliatt o estrago que se fazia no quebra-mar, as vigas soltas, as cordas e correntes começando a fluctuar ao vento, um rasgão no centro do aparelho. A segunda claraboia estava intacta. O penedo, tão poderosamente lançado por Gilliatt no intervallo das rochas, por traz do quebra-mar, era a mais solida barreira, mas tinha um defeito; era demaziado baixo. As vagas não podiam rompel-o, mas podiam galgal-o. Era impossivel faze-lo crescer. Só massas da rocha podiam ser utilmente sobrepostas áquelle tapamento de pedra; mas como arrancar essas massas, como arrastal-as, como levantal-as, como collocal-as, como fixal-as? Pregam-se taboas, não se pregam rochedos. Gilliatt não era Encelado. A pouca elevação daquelle pequeno isthmo de granito preocupava Gilliatt. Breve fez-se sentir o defeito. Os ventos já não deixavam o quebra-mar; já se não encarniçavam, parecia que se applicavam. Ouvia-se naquella construcção abalada uma especie de escouceamento regular. De repente um pedaço de peça de viga, destacado da dislocação, pulou por cima da segunda claraboia, voou por cima da rocha transversal, e foi cahir na garganta do rochedo, onde a agua a levou pelas sinuosidades da viella. É provavel que fosse esbarrar na _pança._ Felizmente, no interior do escolho, a agua fechada por todos os lados, mal se resentia da agitação exterior. Havia pouco marulho, e o choque não devia ser forte. Gilliatt nem teve tempo de occupar-se com essa avaria, se avaria houve; todos os perigos se erguiam a um tempo, a tempestade concentrava-se no ponto vulneravel, a imminencia estava diante delle. Profunda foi, por alguns instantes, a escuridão, interrompeu-se o relampago, connivencia sinistra; a nuvem e a vaga eram a mesma cousa! houve um golpe surdo. Depois um fracasso. Gilliatt adiantou a cabeça. A claraboia que tapava a frente estava deslocada. Viam-se as pontas de vigas saltar na vaga. O mar servia-se do primeiro quebra-mar para atacar o segundo. Gilliatt sentio o que sentiria um general vendo voltar a vanguarda. A segunda tapagem resistio ao choque. A armadura de traz estava fortemente ligada. Mas a claraboia despedaçada era pesada, estava á disposição das vagas que a atiravam e tomavam, as ligaduras que lhe restavam impediam-n'a de partir-se em pedaços, e mantinham-lhe todo o volume, e as qualidades que Gilliatt lhe dera como apparelho de defeza faziam agora d'aquillo uma excellente ferramenta de destruição. De broquel tornara-se massa. Além disso as fracturas herissavam-n'a, sahiam-lhe pontas em toda ella, cobriam-n'a de dentes esporas. Nenhuma arma contundente mais temivel e propria para ser manejada pela tempestade do que aquella. Era o projectil, e o mar a catapulta. Succediam-se os golpes com uma especie de regularidade tragica. Gilliatt, pensativo por traz daquella porta tapada por elle, ouvia esse bater da morte querendo entrar. Elle refletio amargamente que, se não fosse o cano da Durande tão fatalmente retido no casco estaria áquella hora, e desde manhã, em Guernesey, e no porto, com a _pança_ abrigada e a machina salva. Realisou-se o tremendo perigo. Fez-se a effração. Foi como uma agonia de moribundo. Todo o madeiramento do quebra-mar, as duas armaduras confundidas e despedaçadas juntas, foi n'uma tromba d'agua rolar no tapamento de pedra como um cahos n'uma montanha, e parou. Foi um travamento informe de pãos embrenhados, penetravel ás vagas, mas pulverisando-as ainda. Aquelle baluarte vencido agonisava heroicamente. O mar quebrou-o, elle quebrava o mar. Derrubado ainda ficava um pouco efficaz. A rocha que senda de tapagem, obstaculo sem recurso possivel, retinha-o pelo pé. A garganta naquelle ponto, era muito estreita; a tempestade victoriosa tinha empurrado, misturado e empilhado todo o quebra-mar naquelle lugar angustioso; a violencia da impulsão, misturando a massa, e mettendo as fracturas umas nas outras, fez daquella demolição uma cousa solida. Estava destruido e inabalavel. Só algumas peças de páo ficaram destacadas. Dispersou-as a vaga. Uma passou no ar, perto de Gilliatt. Elle sentio o ar agitado pela taboa na fronte. Mas algumas vagas, essas grossas vagas que nos temporaes voltam sempre, com uma periodicidade imperturbavel, saltavam por cima das ruinas do quebra-mar. Cahiam na garganta, e a despeito dos cotovellos que a viella tinha, chegavam a levantar a agua. A onda do estreito começava a agitar-se de um modo feio. Accentuava-se o beijo obscuro das vagas nas rochas. Como impedir agora que essa agitação se propagasse até á _pança?_ Não precisava muito tempo para que toda a agua interior ficasse tempestuosa, e com algumas ondas, a _pança_ seria estripada, e a machina a pique. Gilliatt scismava tremulo. Mas não se desconcertou. Para aquella alma havia derrota possivel. O furacão engolphava-se agora entre as duas muralhas do estreito. De subito resoou e prolongou-se a alguma distancia por traz de Gilliatt um estalo mais assustador, que tudo quanto Gilliatt até então ouvira. Era do lado da _pança._ Passava-se alli alguma cousa funesta. Gilliatt correu. Do lado de leste, onde se achava, não podia elle vêr a _pança_ por causa dos zig-zags da viella. Na ultima volta parou e esperou o relampago. Rompeu o relampago e mostrou-lhe a situação. Á vaga da abertura de leste correspondeu um tufão na abertura de oeste. Esboçava-se um desastre. Á _pança_ não tinha avaria visivel; ancorada como estava, dava pouco flanco, mas o casco da Durande estava em risco de cahir. Aquella ruina, em semelhante tempestade, apresentava uma victima. Estava toda fora d'agua, no ar, offerecida ao temporal. O buraco que Gilliatt praticára para extrahir a machina enfraquecêra o casco. O barrote da quilha estava cortado. O esqueleto tinha columna vertebral despedaçada. Soprára em cima o furacão. Não precisou mais. A amurada dobrou-se como um livro que se abre. Fez-se o desmembramento. Foi estalo que, no meio da tempestade, chegára aos ouvidos de Gilliatt. O que elle vio ao chegar parecia quasi irremediavel. A incisão operada por elle tornára-se uma chaga. Dessa abertura fez o vento uma fratura. O córte transversal separava em duas a Durande. A parte posterior, a que ficava em frente de Gilhatt, vizinha da _pança_, ficára solida nos rochedos. A parte anterior, que fazia face a Gilliatt, estava pendurada. Uma fractura é um gonzo. Aquella massa oscillava sobre as suas fendas, e o vento balançava-a com um tremendo rumor. Felizmente a _pança_ já não estava em baixo. Mas o balanço abalava a outra metade do casco, ainda presa e immovel entre as duas Douvres. Do abalo á queda, a distancia era pequena. Com a teima do vento, a parte deslocada podia subitamente arrastar a outra que tocava quasi na _pança_, e tudo, _pança_ e machina, ficaria engulido. Gilliatt, tinha isso diante dos olhos. Era a catastrophe. Como desvial-a? Gilliatt, era daquelles que tiram recurso do proprio perigo. Reflectio um momento. Depois, foi ao deposito e tirou o machado. O martello trabalhára muito; era chegada a vez do machado. Gilliatt subio á Durande. Firmou-se na parte do navio, que ainda estava segura, e, inclinado sobre o precipicio do intervallo das Douvres, pôz-se a cortar as taboas quebradas, e tudo quanto ainda prendia o pedaço de casco pendente. Consummar a separação dos dous pedaços do casco, libertar a metade solida, deitar ao mar aquillo que o vento destruira, dar o quinhão á tempestade, tal era a operação. Era mais perigosa que difficil. A metade pendente do casco, empuchada pelo vento e pelo peso, adheria apenas por alguns pontos. O conjuncto do casco assemelhava-se a um dyptico, partido em dous pedaços, e batendo ambos um no outro. Cinco ou seis peças apenas, vergadas e arrebatadas, mas não completamente soltas, ainda sustentavam o casco. As fracturas guinchavam e alargavam-se a cada sopro do vento, e o machado apenas ajudava. Esta circumstancia, que tornava facil o trabalho, tornava-o arriscado tambem. Tudo podia esboroar ao mesmo tempo debaixo Gilliatt. A tempestade attingio ao paroxysmo. Até então fôra terrivel, agora fez-se horrivel. A convulsão do mar reproduzio-se no céo. A nuvem até então fôra soberana, parecia executar a sua vontade, dava o impulso, derramava ás vagas a loucura, conservando sempre uma lucidez sinistra. Em baixo havia demencia, em cima colera. O céo era o sopro, o oceano era apenas a espuma. Dahi vem a autoridade do vento. O furacão é genio. Entretanto a embriaguez de seu proprio horror tinha-o perturbado. Agora era o turbilhão. Era a cegueira produzindo a noite. Ha nos temporaes um momento insensato; é para o céo uma especie de sangue que sobe á cabeça. O abysmo já não sabe o que faz. Fulmina ás apalpadellas. Nada mais horrendo. É a hora hedionda. Chegara ao cumulo o tremor do escolho. A tempestade tem um plano mysterioso; mas nesse instante perde-o. É a má hora da tempestade. Nesse instante, o _vento_, dizia Thomas Fuller, _é um doido furioso._ É nesse instante, que as tempestades fazem essa despeza continua de electricidade que Piddington chama a _cascata de relampagos._ É nesse instante, que apparece nas nuvens mais negras, não se sabe porque e como que para espiar o terror universal aquelle circulo azul que os velhos marinheiros hespanhóes chamavam o olho da tempestade, _el ojo de la tempestad._ Esse olho lugubre fitava Gilliatt. Gilliatt de seu lado contemplava a nuvem. Levantou a cabeça. Dava uma machadada e levantava-se altivo. Estava, ou parecia estar demasiado perdido, para que não tivesse orgulho. Desesperava? Não. Ante o supremo accesso de raiva do oceano, Gilliatt era tão prudente quanto audaz. Em cima do casco, só pisava o ponto solido. Arriscava-se e preservava-se. Tambem elle chegára ao paroxismo. Decuplou-se-lhe o vigor. Estava desvairado de intrepidez. Os golpes de machado soavam como desafios. Parecia ter ganho o que tinha perdido a tempesdade. Conflicto pathetico. De um lado o inesgotavel, do outro o infatigavel. Estavam a ver qual dos dous venceria. As nuvens terriveis modelavam na immensidade mascaras de gorgonas, produzia-se toda a intimidação possivel, a chuva surgia das vagas, a espuma tombava das nuvens, curvavam-se os fantasmas dos ventos, faces de meteóro avermelhavam-se e eclypsavam-se, e a obscuridade, apoz tantos desmaios, era monstruosa; havia um só derramamento, vindo por todos os lados ao mesmo tempo; tudo era ebulição; a sombra em massa transbordava; cumulus carregados de graniso, esfarelados, côr de cinza, pareciam andar num frenezim giratorio, havia no ar um rumor de grãos seccos, sacudidos n'uma peneira, as eletricidades inversas observadas por Volta faziam de nuvem em nuvem os fulminantes disparos, os prolongamentos do raio eram terrificos, os relampagos aproximava-se em torno de Gilliatt. O abysmo parecia espantado. Gilliatt andava na Durande fazendo tremer o tombadilho debaixo dos pés, batendo, cortando, rachando, machado em punho, livido diante dos relampagos, esguedelhado, descalço, rôto, com a face coberta dos escarros do mar, grande naquella sentina de trovões. Contra o delirio das forças, só a destreza póde luctar. A destreza era o triumpho de Gilliatt. Elle queria uma queda de todo o destroço deslocado. Por isso enfraqueceu as fracturas sem rompel-as completamente, deixando algumas fibras que sustentavam o resto. Subitamente parou com o machado no ar, a operação estava acabada. Todo o pedaço destacou-se. Essa metade do casco rolou entre as duas Douvres abaixo de Gilliatt, que ficou em pé n'outra metade inclinado e olhando; mergulhou-se perpendicularmente, arrombou os rochedos e parou na garganta antes de chegar ao fundo. Ficou uma parte fora d'agua, tanto quanto era sufficiente para dominar a onda mais de doze pés; foi mais uma barricada entre as duas Douvres; bem como a rocha atirada no estreito, deixava apenas filtrar um pouco de espuma nas suas extremidades, e foi essa a quinta barricada improvisada por Gilliatt, contra a tempestade, naquella rua do mar. O furacão, cégo, trabalhava a ultima. Foi uma felicidade que o angustiado das paredes internas impedisse de ir ao fundo aquella tapagem. Dava-lhe mais altura; demais a agua podia passar por baixo do obstaculo, o que affectava a força das ondas. Aquillo que passa por baixo não salta por cima. É esse em parte o segredo de quebra-mar fluctuante. De ora ávante, houvesse o que houvesse, já não havia que receiar nem quanto á _pança_, nem quanto á machina. A agua já não podia agitar-se a roda dellas. Entre a tapagem das Douvres que as cobria a oeste, e o navio, tapamento que as protegia a leste, nenhuma onda, nenhum vento poderia attingil-as. Gilliatt tirára da catastrophe a salvação. Ajudára-o a tempestade. Feito isto apanhou um punhado de agua da chuva, bebeu e disse á nuvem: Cantaro! É uma alegria ironica para a intelligencia combatente attestar a vasta estupidez das forças furiosas concluindo por prestar serviços, e Gilliatt sentio essa immemorial necessidade de insultar o inimigo, que remonta aos heróes de Homero. Gilliatt desceu á _pança_ e aproveitou os relampagos para examinal-a. Era tempo que a pobre barquinha fosse soccorrida; tinha sido muito sacudida e começava a arquear. Gilliatt, com aquelle olhar summario, não vio nenhuma avaria. Comtudo, era certo que ella devia ter recebido violentos choques. Acalmada a agua, endireitou o casco; as ancoras portaram-se bem; quanto á machina, as quatro correntes mantiveram-n'a admiravelmente. Quando Gilliatt acabava a revista, uma cousa branca passou por elle e margulhou na sombra. Era uma gaivota. Não ha melhor apparição nas tempestades. Quando os passaros chegam, é que a tempestade vae-se embora. Outro signal excellente, o trovão redobrava. As supremas violencias da tempestade desorganisam-n'a. Todos os marinheiros o sabem, a ultima prova é rude, mas curta. O excesso do raio annuncia-lhe o fim. A chuva parou repentinamente. Depois houve apenas um ruido nas nuvens. O temporal cessou como uma prancha que cahe no chão. Quebrou-se por assim dizer. Desfez-se a immensa machina das nuvens. Uma fenda de céo claro disjungio as trevas. Gilliatt ficou espantado; era dia claro. A tempestade durára quasi vinte horas. O vento que a trouxera levou-a. Um desabamento de escuridão depressa encheu o horisonte. As brumas rotas e fugitivas amontoaram-se em tumulto, houve de uma ponta á outra da linha do horisonte um movimento de retirada, ouvio-se um longo rumor decrescente, cahiram algumas gotas ultimas de chuva, e toda aquella sombra cheia de trovões foi-se como uma turba de carros terriveis. Bruscamente fez-se azul o céo. Gilliatt reparou que estava cançado. O somno abate-se sobre a fadiga como uma ave de rapina. Gilliatt deixou-se cahir na barca sem escolher lugar e dormio. Ficou assim algumas horas inerte e estendido, pouco distincto das pranchas e barrotes entre os quaes adormecera. LIVRO QUARTO O forro do obstaculo I QUEM TEM FOME ACHA MAIS QUEM TENHA Quando Gilliatt acordou teve fome. Acalmava-se o mar. Havia porém alguma agitação ao largo, que impedia a partida immediata. Demais o dia já estava adiantado. Com o carregamento da _pança_, para chegar a Guernesey antes de meia noite, era preciso sahir de manhã. Embora a fome urgisse, Gilliatt começou por despir-se, unico meio de aquecer-se. As roupas estavam molhadas da chuva, mas a agua da chuva lavára a agua do mar, o que fez com que agora podessem sêccar as roupas. Gilliatt apenas ficou com as calças, que arregaçou até os joelhos. Estendeu, com pesos em cima, nas saliencias do rochedo, todo o resto da roupa. Depois pensou em comer. Gilliatt recorreu á faca que teve o cuidado de afiar e tel-a em bom estado, e arrancou do granito alguns mariscos. Comeu-os crús. Mas depois de tantos trabalhos, fraca era a pitança. Já não tinha biscouto. Quanto á agua, não lhe faltava. Estava mais que saciado, estava innundado. Aproveitou a vasante para perlustrar os rochedos á cata de lagostas. Já havia muita rocha descoberta; podia apanhar boa caça. Sómente não reflectia elle que já não podia cozer peixe algum. Se tivesse de ir ao deposito veria tudo derrubado pela chuva. O pão e o carvão estavam encharcados, e da provisão de estopa, que lhe servia de isca, não tinha um fio que não estivesse molhado. Não havia meio de saccar fogo. De resto, o folles estava desorganisado; a tempestade saqueou-lhe o laboratorio. Com o resto da ferramenta, Gilliatt, a rigor, podia ainda trabalhar de carpinteiro, não de forja. Mas Gilliatt, naquelle momento não pensava na officina. Empuxado pelo estomago, sem mais reflexão, entrou a procurar comida. Errava, não na garganta do escolho, mas fóra, nas dobras dos cachopos. Foi desse lado que a Durande, dez semanas antes, esbarrára nas pedras. Para a caça que Gilliatt fazia, o exterior da viella valia mais que o interior. Os carangueijos, nas aguas baixas, tem costume de tomar ar. Aquecem-se ao sol. Amam o sol aquelles entes disformes. É uma cousa estranha a sahida delles em plena luz. Quasi indigna-se a gente com elles. Quando os vemos, com o seu aspecto obliquo, subir pesadamente, um por um, os andares inferiores dos rochedos como degráos de uma escada, acreditamos por força que o oceano tambem tem os seus piolhos. Desses piolhos vivia Gilliatt ha dous mezes. Comtudo nesse dia os carangueijos e as lagostas andavam escondidos. A tempestade empurrára aquelles solitarios para os seus esconderijos, e ainda não se animavam a sahir. Gilliatt tinha na mão a faca aberta, e arrancava de quando em quando uma concha debaixo do sargaço. Comia andando. Não devia estar longe do lugar onde se perdera o Sr. Clubin. Quando Gilliatt já se resignara aos ouriços e castanhas do mar, fez-se um movimento a seus pés. Um grande carangueijo, assustado com a presença delle tinha pulado na agua. O carangueijo não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse. Gilliatt começou a correr atraz do carangueijo no esvasamento da rocha. O carangueijo fugia. De repente não vio mais nada. O carangueijo mettera-se por algum buracco debaixo do rochedo. Gilliatt atracou-se aos relevos da pedra e esticou o pescoço para ver se via alguma cousa. Havia com effeito uma anfractuosidade. O carangueijo devia ter-se refugiado ahi. Era mais que uma fenda, era um portico. O mar entrava por baixo desse portico, mas não era profundo. Via-se o fundo coberto de pedrinhas. Essas pedrinhas eram esverdeadas e revestidas de filamentos, o que indicava que nunca estavam a secco. Assemelhavam-se a cabeças de criança com cabellos verdes. Gilliatt pôz a faca nos dentes, desceu do alto da rocha e saltou na agua. Teve agua quasi até os hombros. Metteu-se pelo portico. Achou-se num corredor gasto, com um esboço de abobada ogiva por cima. As paredes eram polidas e lizas. Já não via o carangueijo. Tomára pé. Caminhava e dimimuia-se a luz. Começou a não vêr cousa alguma. Depois de quinze passos, cessou a abobada. Estava fóra do corredor. Havia mais espaço, e por consequencia mais luz; as pupillas tinham-se-lhe dilatado; via bem. Teve uma surpresa. Acabava de entrar naquella cava estranha visitada por elle um mez antes. Sómente, desta vez entrou pelo mar. Aquella arcaria que elle vira afogada, era a mesma por onde agora passou. Em certas marés baixas era praticavel. Os olhos iam-se acostumando ao lugar. Via cada vez melhor. Estava estupefacto. Tornava achar aquelle extraordinario palacio da sombra, aquella abobada, aquelles pilares, aquelles rubros, aquella vegetação de pedras, e no fundo aquella crypta, quasi santuario, e aquella pedra, quasi altar. Não se lhe despertavam muito os pormenores, mas tinha no espirito a idéa do todo, e reconheceu. Via diante delle, em certa altura, na rocha, o buraco por onde penetrou a primeira vez, e que, do ponto onde estava agora, parecia inaccessivel. Tornava a ver perto da arcaria ogiva as grotas baixas e obscuras, especie de cavas na cava, que já observára de longe. A que ficava mais perto delle estava a secco e era facil de se lhe chegar. Mais perto ainda que essa descobrio elle, ao alcance da mão, uma fenda horisontal no granito. Provavelmente estava alli o caranguejo. Metteu a mão o mais que pôde, e procurou ás apalpadellas naquelle buraco de trevas. De repente sentio que lhe agarravam no braço. O que elle experimentou nesse momento foi o horror indescriptivel. Uma cousa que era delgada, aspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra á roda de seu braço nú, e subia-lhe para o peito. Era a pressão de uma corrêa, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma especie de espiral tinha-lhe invadido o punho e o cotovello e tocava-lhe o hombro. A ponta mettia-se-lhe no sovaco. Gilliatt atirou-se para traz, e mal pôde fazel-o. Estava como que pregado. Com a mão esquerda que ficava livre pegou na faca que tinha entre os dentes, e com essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para saccar o braço. Só conseguio inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era flexivel como o couro, solida como o aço, fria como a noite. Outra corrêa, estreita e pontuda, sahio do buraco da rocha. Era uma especie de lingua sahindo de uma goela. Lambeu medonhamente o corpo nú de Gilliatt, e de repente, esticando-se, desmedida e fina, applicou-se-lhe na pelle e enrolou-se no corpo. Ao mesmo tempo um soffrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava os musculos de Gilliatt. Sentia que lhe abriam a pelle em muitos pontos, de um modo horrivel. Parecia-lhe que innumeros labios, pregados á carne, procuravam beber-lhe o sangue. Terceira corrêa sahio fóra do rochedo, apalpou Gilliatt, e chicoteou-lhe os lados como uma corda. Afinal fixou-se como as outras. A angustia, no paroxysmo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante luz para que elle podesse ver as fórmas repellentes applicadas ao corpo delle. Quarta ligadura, esta rapida como uma flecha, saltou-lhe em roda do ventre e enrolou-se-lhe. Era impossivel cortar nem arrancar aquellas corrêas viscosas que adheriam estreitamente ao corpo de Gilliatt e por muitissimos pontos. Cada um desses pontos era um fogo de terrivel e estranha dôr. Era o que sentiria quem fosse engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas. Quinta ligadura rompeu do tronco. Sobrepôz-se aos outros e foi enroscar-se no diaphragma de Gilliatt. A compressão ajuntava-se á anxiedade. Gilliatt mal podia respirar. Aquellas ligaduras, pontudas na extremidade, iam alargando como laminas de espada para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e arrastavam-se para Gilliatt. Elle sentia deslocar-se essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas. Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata sahio de dentro da rocha. Era o centro; as cinco ligaduras prendiam-se a elle, como raios a um eixo; ditistinguiam-se do lado opposto daquelle disco immundo o começo de outros tres tentaculos, presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade haviam dous olhos. Olhavam elles para Gilliatt. Gilliatt reconheceu que era uma pieuvre. II O MONSTRO Para acreditar na pieuvre é preciso tel-a visto. Comparadas á pieuvre, as velhas hydras fazem sorrir. Em certos momentos parece que o elemento fugitivo que fluctua em nossos sonhos, encontra na realidade imans aos quaes esses lineamentos se prendem, e dessas obscuras ficções do sonho surgem creaturas. O ignoto dispõe do prodigio e serve-se delle para compôr o monstro. Orpheu, Homero e Hesiodo só poderam fazer a chimera; Deos fez a pieuvre. Quando Deos quer excede no execravel. A razão desta vontade é o medo do pensador religioso. Admittidos todos os ideaes, se o terror é um fim, a pieuvre é uma obra prima. A baleia é enorme, a pieuvre é pequena; o hypopotamo tem uma couraça, a pieuvre é núa: a jararaca tem um silvo, a pieuvre é muda; o rhinoceronte tem um chifre, a pieuvre não tem chifre; o scorpião tem um dardo, a pieuvre não tem dardo; o macaco tem uma cauda, a pieuvre não tem cauda; o tubarão tem barbatanas cortantes, a pieuvre não tem barbatanas; o vespertilio-vampiro tem azas com unhas, a pieuvre não tem azas; o porco espinho tem espinhos, a pieuvre não tem espinhos; o espadarte tem um gladio, a pieuvre não tem gladio; o torpedo tem um raio, pieuvre não tem raio; o sapo tem um virus, a pieuvre não tem virus; a vibora tem um veneno, a pieuvre não tem veneno; o leão tem garras, a pieuvre não tem garras; o gypoéte tem um bico, a pieuvre não tem bico; o crocodilo tem uma guela, a pieuvre não tem dentes. A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem cauda, nem barbatanas, nem azas, nem espinhos, nem espada, nem descarga electrica, nem virus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é de todos os animaes o mais formidavelmente armado. O que é então a pieuvre? É a ventosa. Nos escolhos em pleno mar, onde a agua mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconhecidas aonde abundam as vegetações, os crustaceos e as conchas, debaixo dos profundos porticos do occeano, o nadador que se arrisca, arrastado pela belleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro não sejas curioso, foge. Entra-se fascinado, sahe-se apavorado. Eis o que é esse encontro sempre possivel nas rochas do mar alto. Uma fórma cinzenta oscilla n'agua, da grossura de uma braça e de meia vara de comprido; é um trapo; essa fórma assemelha-se a um guarda-chuva sem capa; a pouco e pouco o trapo caminha para o homem. De repente abre-se, oito raios sahem bruscamente da roda de uma face que tem dous olhos; esses raios vivem; flammejam ondeando; é uma especie de roda desenrolada, tem quatro ou cinco pés de diametro. Desentolamento medonho. Atira-se ao infeliz. A hydra harpôa o homem. Este animal applica-se á sua presa, cobre-a, envolve-a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é terrea; nada póde imitar esse inexplicavel matiz de poeira; dissera-se um animal feito de cinza, e morando n'agua. É arachnida pela fórma, e cameleão pelo colorido. Irritada, torna-se roxa. Cousa horrivel, é flacida. Os seus nós garroteara; o seu contacto paralysa. Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a molestia feita monstruosidade. Não se póde arrancal-a; agarra-se estreitamente á sua presa; como? Pelo vacuo. As oito antenas largas na origem, vão estreitando-se e terminam como agulhas: debaixo de cada uma dellas alongam-se parallelamente duas filas de pustulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fila tem vinte e cinco. Ha cincoenta pustulas em cada antenna, e todo o animal tem quatrocentas. Essas pustulas são ventosas. As ventosas são cartilagens cilyndricas e lividas. Na grande especie vão diminuindo de diametro--desde uma moeda de cinco francos até á grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos sahem e entram no animal. Podem metter-se no corpo de um homem mais de uma pollegada. Este apparelho de sucção tem a delicadeza de um teclado. Levanta-se, esconde-se. Obedece á menor intensão do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam á contractibilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. Este dragão é uma sensitiva. Este monstro é aquelle que os marinheiros chamam polvo, que a sciencia chama cephalopode, e a que a legenda chama kraken. Os marinheiros inglezes chamam-no _devil-fish_, o peixe diabo. Chamam-no tambem _blood-sucker_, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam-na pieuvre. É muito rara em Guernesey, muito pequena em Jersey, muito grande e frequente em Serk. Uma estampa da edição de Buffon por Sonnini representa um cephalopode estreitanto uma fragata. Dionizio Monfort pensa que na verdade o polvo das altas latitudes póde metter um navio a pique. Bory Saint-Vincent nega-o, mas attesta que nas nossas regiões o polvo attaca o homem. Quem for a Serk verá perto de Brecq-Hou o buraco do rochedo onde uma pieuvre ha annos agarrou, reteve e affogou um pescador de lagostas. Peron e Lamarck, enganam-se quando duvidam que o polvo não tendo barbatanas possa nadar. Aquelle que escreve estas linhas, vio com seus proprios olhos em Serk, na cova das Lojas, uma pieuvre perseguir a nado um homem que tomava banho. Foi morta e medida; tinha quatro pés inglezes de largura e pôde-se contar quatrocentos chupadores. O bicho agonisante atirava-os para longe de si convulsamente. Segundo Dionizio Montfort, um desses observadores, cuja alta intuição faz descer ou subir até o magismo, o polvo tem quasi as paixões de homem; o polvo odeia. E no absoluto ser hediondo é odiar. O disforme debate-se debaixo de uma necessidade de eliminação que o torna hostil. A pieuvre nadando conserva-se por assim dizer na bainha. Nada com as antennas fechadas. Imaginem uma manga cozida com um punho dentro. Esso punho, que é a cabeça, impelle o liquido e avança com um vago movimento ondulatorio; os dous olhos, embora grandes, são pouco distinctos por serem da côr da agua. A pieuvre quando espreita caça esquiva-se; diminue-se, condensa-se; reduz-se á mais simples expressão. Confunde-se com a penumbra. Parece uma dobra de vaga. Assemelha-se a tudo, excepto a cousa viva. A pieuvre é o hypocrita. Não se rapara nella; repentinamente abre-se. Que ha ahi de mais medonho que isso; uma viscosidade com uma vontade! O viscoso amaçado de odio. É no mais bello azul d'agua limpida, que surge essa hedionda estrella voraz do mar. O que é terrivel, é que não se sente de longe. Quando a gente a vê, já está agarrada. Comtudo á noite, e particularmente na estação do desejo, a pieuvre é phosphorica; aquelle pavor tem os seus amores. Aguarda o hymeneu. Faz-se bella, illumina-se, e do alto de algum rochedo, póde-se vel-a nas profundas trevas aberta n'uma irradiação, sol espectro. A pieuvre anda; tambem nada. É um tanto peixe e um tanto reptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utilisa as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta. Não tem osso, nem sangue e nem carne. É flacida. Não tem nada dentro. É uma pelle. Póde-se virar-lhe os tentaculos de dentro para fóra, como dedos de uma luva. Tem um só orificio no centro dos oito raios. É fria toda ella. Repelente bicho, é um do mediterraneo. É um contacto hediondo, essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se pucha sem tirar, especie de creatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos; mas nada iguala a subita apparição da pieuvre, Medusa servida por oito serpentes. Não ha aperto igual ao do cephalopode. É uma machina pneumatica que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes; uma scarificação indisivel. Uma mordedura é temivel; é menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra, é o animal que entra na carne; a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os musculos, torcem-se as fibras, rebenta a pelle, debaixo de um peso immundo, jorra o sangue, mistura-se horrivelmente á limpha do mollusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames; a hydra iucorpora-se ao homem; o homem amalgama-se á hydra. Ficam sendo um só. Pesa aquelle sonho. O tigre póde apenas devorar; o polvo (horror!) aspira. Pucha o homem a si e em si, e, atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvasiado naquelle terrivel sacco, que é um monstro. Além do terrivel, que é ser comido vivo, ha o inexprimivel, que é ser bebido vivo. Essas estranhas animações são ao principio regeitadas pela sciencia, segundo o habito de sua excessiva prudencia; depois estuda-os, descreve-os, classifica-os, inscreve-os, põe-lhes rotulos, procura exemplares; expõe-nos em museos; elles entram na nomenclatura; ella os qualifica molluscos, invertebrados, raiados; verifica-lhes as fronteiras; um pouco além os calmares, um pouco aquem os depiarios; para estas hydras da agua salgada acham um analogo na agua doce, o argyronete; divide-as em grande, media e pequena especie; admitte mais facilmente a pequena especie que a grande, o que é, em todas as regiões, a tendencia da sciencia, a qual é mais microscopica que telescopica; olha a sua construcção e chama-os cephalopodes; contam-se as suas antennas e chama-os octopedes. Feito isto, deixa-os assim. Onde a sciencia os larga, a philosophia os retoma. A philosophia estuda por sua vez esses entes. Ella vae menos longe e mais longe que a sciencia. Não os disseca, medita-os. Onde o scalpello trabalhou, immerge a hypothese. Procura a causa final. Profundo tormento de pensador. Essas creaturas o inquietam quasi sobre o creador. São as sorprezas hediondas. São os perturbadores do contemplativo. Elle as verifica desvairado. São as formas intencionaes do mal. Que fazer diante dessas blasphemias da creação contra si propria? A quem deve elle queixar-se? O possivel é uma matriz formidavel. O mysterio concreta-se em monstros. Lanhos de sombra sahem deste penedo,--a imminencia,--rasgam-se, destacam-se, rolam, fluctuam, condensam-se, enchem-se do negrume ambiente, recebem as polarisações desconhecidas, tomam vida, compõem uma forma com a obscuridade e uma alma com o miasma, e vão-se, larvas, atravez da vitalidade. É alguma cousa semelhante ás trevas feitas animaes. Porque? para que? Volta a questão eterna. Esses animaes são fantasmas e monstros, a um tempo. São provados e improvaveis. Ser, é o facto, não ser, é o direito. São os amphibios da morte. A sua inverosimilhança complica a sua existencia. Tocam a fronteira humana e povoam o limite chimerico. Negaes o vampiro, apparece a pieuvre. É uma certeza que desconcerta a nossa segurança. O optimismo, que é a verdade, perde-se quasi diante delles. São a extremidade visivel dos circulos negros. Marcam a transição da nossa realidade a outra. Parecem pertencer a esse começo de entes terriveis que o sonhador entrevê confusamente na noite. Esses prolongamentos de monstros, no invisivel, no principio, no possivel depois, foram suspeitados, vistos talvez, pelo extasis severo, e pelo olhar fixo dos magos e dos philosophos. Dahi a conjectura de um inferno. O demonio é o tigre do invisivel. A besta feroz das almas foi denunciada ao genero humano por dous visionarios, um que se chama João, outro que se chama Dante. Se com offeito os circulos da sombra continuam indefinidamente, se depois de um annel ha outro, se isto vai em progressão illimitada, se existe a cadêa, de que estamos resolvidos a duvidar, é certo que a pieuvre numa extremidade prova Satanaz na outra. É certo que o mal n'um limite prova a maldade no outro. Todo o animal feroz, como toda intelligencia perversa, é sphynge. Sphynge terrivel, propondo o enigma terrivel. O enigma do mal. Essa perfeição do mal é que faz inclinar ás vezes os grandes espiritos para a crença do Deos duplo, para o tremendo bifronte dos manicheos. Uma rede chineza, roubada na ultima guerra, no palacio do imperio da China, representa o tubarão comendo o crocodilo, o qual come a serpente, a qual come a aguia, a qual come a andorinha, a qual come a lagarta. Toda a natureza devora ou é devorada. As prezas mastigam-se umas ás outras. Entretanto os sabios que tambem são philosophos, e por consequencia benevolos para a creação acham ou acreditam achar a explicação disto. O fim destas cousas apparece, entre outros, a Bonnet de Genebra, aquelle mysterioso espirito exacto, que foi opposto a Buffon, como mais tarde Geoffroy Saint-Hilaire o foi a Cuvier. A explicação dizem ser esta: a morte exige a inhumação. Esses vorazes são coveiros. Todas as creaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnivoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrifica. Somos sepulchros. No nosso mundo crepuscular, esta fatalidade da ordem produz monstros. Perguntais: Porque? É por isto. Será isto a explicação? Será esta a resposta? Mas então porque não será outra a ordem? Reapparece a questão. Vivamos, seja. Mas façamos com que a morte nos seja progresso. Aspiremos aos mundos menos tenebrosos. Sigamos a consciencia que nos leva para lá. Porquanto, não o esqueçamos nunca, o preferivel só é achado pelo melhor. III OUTRA FORMA DE COMBATE NO ABYSMO Tal era o animal a quem, desde alguns instantes, Gilliatt pertencia. Aquelle monstro era o habitante daquella grota. Era o medonho genio do lugar. Especie de sombrio demonio da agua. Todas essas magnificencias tinham por centro o horror. Um mez antes, no dia em que pela primeira vez Gilliatt penetrou na caverna, a fórma escura, entrevista por este nas dobras da agua secreta, era aquella pieuvre. Estava ella em sua casa. Quando Gilliatt entrando pela segunda vez na caverna, em busca do carangueijo, vio o buraco onde pensou que o carangueijo se tivesse refugiado, a pieuvre estava no seu buraco á espreita. Póde-se imaginar esta espera? Nenhum passaro ousaria chocar, nenhum ovo ousaria abrir, nenhuma flôr ousaria desabrochar, nenhum seio ousaria aleitar, nenhum coração ousaria amar, nenhum espirito ousaria voar, se se pensasse nas sinistras emboscadas do abysmo. Gilliatt mettêra o braço no buraco; a pieuvre agarrou-o. Gilliatt estava preso. Era a mosca daquella aranha. Gilliatt tinha agua até á cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e resvaladiços, com o braço direito atado pelas corrêas da pieuvre, e o tronco do corpo desapparecendo quasi debaixo das dobras e crusamentos daquella atadura horrivel. Dos oito braços da pieuvre, tres adheriam á rocha, cinco adheriam a Gilliatt. Deste modo agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeava Gilliatt ao rochedo. Gilliatt tinha em si duzentos e cincoenta chupadores. Complicação de angustia e de enjôo. Estava apertado dentro de uma grande mão, cujos dedos elasticos e do comprimento de um metro, são inteiramente cheios de pustulas vivas que lhe foçavam na carne. Já o dissemos, não se pode arrancar a pieuvre. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ella aperta-se mais. O seu esforço cresce na razão do esforço do homem. Quanto maior é a sacudidella, maior é a constricção. Gilliatt só tinha um recurso, a faca. Tinha a mão esquerda livre; é sabido que elle usava della poderosamente. Podia dizer-se que tinha duas mãos direitas. Nessa mão, tinha elle a faca aberta. Não se cortam as antennas da pieuvre; é um couro impossivel de cortar, resvala debaixo da lamina; demais a superposição é tal que um córte nessas corrêas iria até á carne. O polvo é formidavel, ha comtudo uma maneira de vencê-lo. Os pescadores de Serk o sabem; quem os vio executar no mar certos movimentos bruscos, tambem o sabe. Os ouriços do mar tambem conhecem esse modo; têm uma maneira de morder a siba que lhe córta a cabeça. Dahi vem que se encontram muitas sibas e pieuvres sem cabeça no mar alto. O polvo, na verdade, só é vulneravel na cabeça. Gilliatt não o ignorava. Nunca tinha visto uma pieuvre daquelle tamanho. Logo da primeira vez, achava-se agarrado pela grande especie. Qualquer outro ter-se-hia perturbado. Ha um momento para vencer a pieuvre, como o touro; é o instante em que o touro curva o pescoço, é o instante em que a pieuvre estica a cabeça; instante rapido. Quem o deixa escapar está perdido. Tudo o que acabamos de dizer passou-se em alguns minutos. Gilliatt sentia crescer a sucção das duzentas e cincoenta ventosas. A pieuvre é traidora. Procura apavorar a presa. Agarra, e espera o mais que póde. Gilliatt tinha a faca na mão. As sucções augmentavam. Elle olhava para a pieuvre, a pieuvre olhava para elle. De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antenna e atirando-a sobre Gilliatt procurou agarra-lhe o braço esquerdo. Ao mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca applicar-se-hia sobre o peito de Gilliatt. Gilliatt sangrado no corpo e preso pelos braços, estava morto. Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava. Evitou a antenna, e no momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho. Houve duas convulsões em sentido inverso, a da pieuvre e a de Gilliatt. Foi luta de dous relampagos. Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata e com um movimento giratorio semelhante á torção de uma chicotada, fazendo um circulo á roda dos dous olhos arrancou a cabeça como quem arranca um dente. Estava acabado. O bicho cahio. Parecia uma roupa que se desprende. Destruida a bomba aspirante, desfez-se o vacuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquelle andrajo foi ao fundo d'agua. Gilliatt, offegante da luta, pôde vêr a seus pés em cima das pedras do fundo dous montes gelatinosos e informes, a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo. Gilliatt, com tudo, receiando algum ataque convulsivo da agonia collocou-se fóra do alcance dos tentaculos. Mas o animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca. IV NADA SE ESCONDE, NADA SE PERDE Era tempo de matar a pieuvre. Gilliatt estava quasi sem folego; tinha o braço direito e o corpo rôxos; esboçavam-se nelles mais de duzentos tumores; alguns vertiam sangue. O remedio para essas lesões é a agua salgada; Gilliatt mergulhou n'agua. Ao mesmo tempo esfregava-se com a palma da mão e os tumores desappareciam. Recuando e mergulhando n'agua, achou-se elle proximo da especie de cava que ficava ao pé do buraco onde a pieuvre o agarrou. A cava prolongava-se obliquamente, e a secco, debaixo das grandes paredes da caverna. Os seixos que alli se tinham ajuntado levantavam o fundo acima das marés ordinarias. Essa anfractuosidade, era um largo cimbrio abatido, um homem podia entrar curvando-se. A claridade verde da caverna penetrava ahi e illuminava-a fracamente. Aconteceu que, esfregando a pelle entumecida, Gilliatt levantou machinalmente os olhos. Olhou para dentro da cava. Estremeceu. Pareceu-lhe vêr no fundo desse buraco, na sombra, uma especie de cara rindo. Gilliatt ignorava a palavra allucinação, mas conhecia a cousa. Os mysteriosos encontros com o inverosimil que chamamos allucinações, existem na natureza. Illusões ou realidades, as visões apparecem. Quem está presente, vê-as passar. Gilliatt, como dissemos, era um pensativo. Tinha a grandeza de ser ás vezes allucinado como um propheta. Não se é impunemente sonhador dos lugares solitarios. Acreditou em uma dessa miragens das quaes, homem nocturno como era, mais de uma vez teve medo. A anfractuosidade figurava exactamente um forno de cal. Era um nicho baixo, em fórma de asa de cesto, cujas curvaturas abruptas iam extreitando-se até á extremidade da crypta onde os seixos e a abobada se juntavam e fechavam. Gilliatt entrou, e inclinando a cabeça, dirigio-se para o que estava no fundo. Era com effeito alguma cousa que ria. Era uma caveira. Só havia a cabeça, havia o esqueleto. Um esqueleto humano estava deitado na cava. O olhar de um homem audaz, em taes occasiões, quer saber das cousas a fundo. Gilliatt olhou em roda de si. Estava cercado de uma porção de carangueijos. Não se mexiam elles. Era o aspecto de um formigueiro morto. Todos os carangueijos estavam mortos. Estavam vasios. Os grupos, semeados, faziam no chão de seixos que enchiam a cava, constellações disformes. Gilliatt, com o olhar fito em outra parte, caminhára por cima sem reparar. Na extremidade da crypta onde chegára Gilliatt, havia maior espessura. Era um montão immovel de antennas, de patas, e de mandibulas. Pinças abertas conservavam-se direitas, e já se não fechavam. As caixas de ossos não se mechiam debaixo da sua crosta de espinhos; algumas viradas mostravam o interior livido. Este amontoado parecia uma multidão de sitiantes e tinha o entravamento de um espinheiro. Debaixo desse montão estava o esqueleto. Via-se debaixo dessa porção de tentaculos e escamas, o craneo com as estrias, as vertebras, os femures, os tibias, os longos dedos nodosos, com unhas. As costellas estavam cheias de caranguejos. Tinha palpitado alli algum coração. Os buracos dos olhos estavam atopetados de bolor marinho. Algumas conchas tinham deixado a sua baba nas fossas nasaes. Não havia nesse recanto da caverna nem sargaços, nem hervas, nem sopro de ar. Nenhum movimento. Os dentes riam. O lado assustador do riso, é a imitação que faz delle uma caveira. Aquelle maravilhoso palacio do abysmo, bordado e incrustado de todas as pedrarias do mar, revellava por fim o seu segredo. Era um covil, a pieuvre morava ahi; e era uma tumba, ahi jazia um homem. A immobilidade espectral do esquelleto, e dos molluscos oscilavam vagamente, por causa da reverberação das aguas subterraneas que tremia naquella petrificação. Os carangueijos, mistura medonha, pareciam ter acabado a sua refeição. Aquellas cascas pareciam comer aquelle esqueleto. Nada mais estranho do que aquella bicharia morta, sobre aquelle homem finado Sombrias continuações da morte. Gilliatt tinha diante de si, o armario da pieuvre. Visão lugubre, donde surgia o horror profundo das cousas. Os carangueijos tinham comido o homem, a pieuvre tinha comido os carangueijos. Não havia nenhum resto de roupa ao pé do cadaver. O homem devia ter sido agarrado nú. Gilliatt attento e examinando, começou a tirar os carangueijos de cima do homem. Quem era esse homem? O cadaver estava admiravelmente dissecado. Dissera-se uma preparação de anatomia; toda a carne estava eliminada; já não restava nenhum musculo. Se Gilliatt fosse do officio reconheceria isso. Os periostios estavam brancos, polidos e como que lustrados. Sem alguns filamentos verdes que apareciam aqui e alli, seria marfim puro. As divisões cartilaginosas, estavam delicadamente affiladas. A tumba faz essas joalherias sinistras. O cadaver estava como que enterrado debaixo de carangueijos mortos. Gilliatt desenterrava-o. De repente inclinou-se vivamente. Acabava de vêr á roda da columna vertebral, uma especie de atilho. Era um cinto de couro, que evidentemente fôra atado ao ventre do homem antes de morrer. O couro estava cheio de mofo. A fivella estava enferrujada. Gilliatt puchou o cinto; as vertebras resistiram, e Gilliatt teve de quebral-as, para tirar o cinto. O cinto estava intacto. Começava a formar-se nelle uma crosta de conchas. Gilliatt apalpou o cinto, e sentio um objecto duro de fórma quadrada no interior. Não era possivel abrir a fivella. Gilliatt cortou o couro com a faca. O cinto continha uma caixinha de ferro, e algumas moedas de ouro. Gilliatt contou vinte guinéos. A caixinha era uma velha boceta de marinheiro, abrindo-se por mola. Estava muito enferrujada. A mola completamente oxidada já não funccionava. A faca veio em auxilio de Gilliatt. Com a ponta da lamina, fez elle pular a tampa da boceta. A boceta abrio-se. Só havia papel dentro della. Um macinho de folhas finas, dobradas em quatro, estava no fundo da boceta. Estavam humidos, mas não alterados. A boceta hermeticamente fechada preservou-as. Gilliatt abrio-as. Eram tres notas do banco de mil libras esterlinas cada uma, formando uma somma de setenta e cinco mil francos. Gilliatt dobrou-as, pol-as na caixinha, aproveitou o pouco lugar que restava para deitar dentro os vinte guinéos, e fechou a caixinha o melhor que pôde. Depois examinou o cinto. O couro, outr'ora envernisado pela parte de fora, não o era no interior. Ahi estavam traçadas algumas letras com tinta gordurosa. Gilliatt decifrou as letras e leu: _Sr. Clubin._ V HA LUGAR PARA ALOJAR-SE A MORTE NO INTERVALLO QUE SEPARA SEIS POLLEGADAS DE DOUS PÉS Gilliatt metteu outra vez a caixinha no cinto, e poz o cinto na algibeira da calça. Deixou o esqueleto aos carangueijos com a pieuvre morta ao pé. Emquanto Gilliat esteve com a pieuvre e o esqueleto, a maré enchente tinha tapado o bocal da entrada. Gilliatt só pôde sahir mergulhando por baixo do arco. Foi-lhe facil; conhecia a sahida, e era mestre nessas gymnasticas do mar. Advinha-se o drama que se passára alli dez semanas antes. Um monstro agarrára o outro. A pieuvre agarrára Clubin. Foi isso, na sombra inexoravel, o que se poderia chamar o encontro das hypocrisias. Houve no fundo do abysmo, um embate dessas duas existencias feitas de emboscada e de trevas, e uma, que era a besta, executou a outra, que era a alma. Sinistras justiças. O carangueijo alimenta-se da carne morta, a pieuvre alimenta-se de carangueijos. A pieuvre apanha um animal que nada, uma lontra, um cão, um homem se póde, bebe-lhe o sangue, e deixa no fundo d'agua o corpo morto. Os carangueijos são os escaravelhos necrophoros do mar. Attrahe-os a carne putrida; elles approximam-se, comem o cadaver; a pieuvre os come depois. As cousas mortas desapparecem no carangueijo, o carangueijo desapparece na pieuvre. Já indicamos esta lei. Clubin foi o engodo da pieuvre. A pieuvre reteve-o e affogou-o; os carangueijos o devoraram. Alguma vaga o levou para aquella cava, no fundo da anfractuosidade onde Gilliatt o achou. Gilliatt voltou, procurando nos rochedos outra cousa que não fosse carangueijos. Parecer-lhe-hia comer carne humana. Demais, elle tratava de cear o melhor possivel antes de partir. Já nada o retinha no rochedo. As grandes tempestades são sempre seguidas de uma calma que dura muitos dias ás vezes. Nenhum perigo havia ainda quanto ao mar. Gilliatt estava resolvido a partir no dia seguinte de manhã. Era conveniente conservar durante a noite, por causa da maré, o tapamento ajustado entre as Douvres; mas Gilliatt contava desfazer de madrugada essa tapagem, empurrar a _pança_ para fora, e abrir vela para Saint-Sampson. A brisa de calma que soprava, e que era sudoeste, era exactamente o vento que lhe era preciso. Entrava o primeiro quarto de lua de Maio; os dias eram longos. Quando Gilliatt, terminada a pesquiza dos rochedos e mais ou menos satisfeito do estomago, voltou para a garganta das Douvres, onde estava a _pança_, já o sol cahira no poente, e o crepusculo redobrava com aquelle meio luar que se póde chamar o luar do crescente; a maré, que tinha enchido completamente, começava a vasar. O cano da machina de pé acima da _pança_ estava coberto pela espuma da tempestade de uma camada de sal que a lua embranquecia. Isto lembrou a Gilliatt que a tempestade deitára dentro da _pança_ muita agua de chuva e do mar, e que, se quizesse partir no dia seguinte, era preciso esvasiar a barca. Tinha verificado, ao deixar a _pança_ para ir procurar carangueijos que havia cerca de seis pollegadas de agua no porão. A pá de esgoto bastaria para deitar essa agua fóra. Chegando á _pança_, Gilliatt teve um movimento de terror. Havia na _pança_ perto de dous pés de agua. Incidente terrivel, a _pança_ fazia agua. Enchera-se pouco a pouco durante a ausencia de Gilliatt. Carregada como estava, vinte polegadas de agua era sobre posse. Mais um pouco e a _pança_ iria a pique. Se Gilliatt chegasse uma hora mais tarde, só acharia fóra d'agua o casco e o mastro. Não podia perder um minuto em deliberação. Era preciso procurar o buraco, tapa-lo, depois esvasiar a barca, ou ao menos allivia-la. As bombas da Durande tinham-se perdido no naufragio; Gilliat estava reduzido á pá de esgoto. Procurar o buraco, antes de tudo. Era o mais urgente. Gilliatt poz mãos á obra, sem mesmo dar-se tempo de vestir, e todo tremulo. Já não sentia fome, nem frio. A _pança_ continuava a encher. Felizmente não havia vento. O menor abalo da onda metteria a _pança_ a pique. A lua desapparecera. Gilliatt, ás apalpadelas, curvado, mergulhado mais de metade na agua, levou muito tempo na pesquisa. Afinal encontrou a avaria. Durante a tempestade, no momento critico em que a _pança_ se arqueára, robusta barca tinha batido violentamente contra o rochedo. Um dos relevos da pequena Douvre fizera-lhe uma fractura no casco, a estibordo. Este buraco estava infelizmente, podia-se quasi dizer perfidamente, situado perto do ponto do encontro das duas porcas, o que, junto ao aturdimento da tempestade, impedira Gilliatt, na revista obscura e rapida que fizera, com o temporal, de descobrir o estrago. A fractura assustava, porque era larga, e tranquillisava porque, embora immersa neste momento pela enchente interna da agua, ficava acima do lume d'agua. No momento em que rompeu o buraco, a vaga era loucamente sacudida no estreito, e já não havia nivel de fluctuação, a onda penetrára pela effracção na _pança_; a _pança_ com mais essa carga mergulhou algumas polegadas, e, mesmo depois do apaziguamento das vagas, o peso do liquido filtrado, fazendo levantar a linha de fluctuação, manteve o buraco debaixo d'agua. Dahi vinha a imminencia do perigo. A cheia augmentára de seis pollegadas a vinte. Mas conseguindo tapar o buraco, podia-se esvasiar a _pança_; esvasiada a _pança_, voltaria á fluctuação normal, a fractura sahiria d'agua, e a secco, a reparação seria facil, ou ao menos possivel. Gilliatt, como dissemos, tinha ainda a ferramenta de carpinteria em bom estado. Mas quantas incertezas antes de chegar a isso! Quantos perigos! Quantas más probabilidades! Gilliatt ouvia a agua correr inexoravelmente. Um empuchão e tudo iria a pique. Que desgraça! Talvez já não fosse tempo. Gilliatt accusou-se amargamente. Deveria ter visto a avaria. As seis polegadas d'agua no porão deviam têl-o advertido. Foi estupidez attribuir as seis pollegadas d'agua á chuva e á espuma. Exprobrou-se o ter dormido e o ter comido; exprobrou-se a fadiga, e quasi também a tempestade e a noite. Tudo era culpa delle. Essas cousas duras, que elle dizia a si proprio, iam de envolta com o vai-vem do trabalho e não o impediam de observar. Achar o buraco ora o primeiro passo; tapal-o era o segundo. Não se podia mais agora. Não se faz carpintaria debaixo d'agua. Havia uma circumstancia favoravel, era que o buraco do casco foi aberto no espaço comprehendido entre as duas correntes que prendiam a estibordo o cano da machina. A estopa podia prender-se a essas correntes. Entretanto a agua subia. Já passava de dous pés. Gilliatt tinha agua acima dos joelhos. VI _DE PROFUNDIS AD ALTUM_ Gilliatt tinha á sua disposição, na reserva do apparelho da _pança_, um grande panno alcatroado com as competentes cordas longas nas quatro pontas. Pegou nesse panno, amarrou dous cantos pelos cabos ás duas argolas das correntes do cano do lado do buraco, e atirou o panno por cima da borda. O panno cahio como uma toalha entre a pequena Douvre e a barca, e mergulhou. A agua querendo entrar na pança applicou o panno ao casco sobre o buraco. Quanto mais a agua batia, mas adheria o panno. Foi collocado pela vaga sobre a fractura. A chaga da barca estava pençada. A lona alcatroada interpunha-se entre o interior do porão e as vagas de fóra. Jã não entrava nem gotta d'agua se quer. O buraco estava tapado, mas não estopado. Era uma espera. Gilliatt começou a esvasiar a _pança._ Era tempo de allivia-la. O trabalho aqueceu-o um pouco, mas extrema era a fadiga. Gilliatt confessava que não iria ao fim, e não chegaria a estancar o porão. Gilliatt comera muito pouco, e tinha a humilhação de sentir-se extenuado. Media o progresso dos trabalhos pela baixa do nivel da agua nos seus joelhos. A descida era lenta. Além disso a entrada da agua estava apenas interrompida. O mal estava palliado, mas não reparado. O panno, empurrado na fractura pela vaga, começava a fazer um tumor pelo lado de dentro. Parecia que havia uma mão fechada debaixo do panno, procurando romper o buraco. A lona, solida e alcatroada, resistia; mas o inchamento e a tensão iam augmentando; não era certo que o panno não cedesse, e de um momento para outro o tumor poderia romper. Recomeçaria então a irrupção da agua. Em tal caso, as equipagens em perigo o sabem, não ha outro recurso mais que um batoque. Apanham-se trapos de toda a especie, o que se acha á mão, tudo quanto a lingua especial chama _forro_, e mete-se o mais que se póde na fenda do tumor da lona. Desse _forro_ Gilliatt não tinha nenhum. Todos os pannos e estopas armazenados foram empregados no trabalho ou dispersos pelo vento. Podia achar alguns restos no rochedo, quando muito. A _pança_ já estava bastante alliviada, e elle podia ausentar-se um quarto de hora; mas como procurar sem luz? Completa era a escuridão. Já não havia lua; apenas o sombrio céo estrellado. Gilliatt não tinha fios seccos para fazer uma mecha, nem sebo para fazer uma vela, nem fogo para accendêl-a, nem lanterna para abrigal-a. Tudo estava confuso e indistincto na barca e no escolho. Ouvia a agua romurejar á roda do casco ferido, e nem se quer podia vêr o buraco; foi com as mãos que Gilliatt pôde averiguar a tensão crescente do panno. Era impossivel fazer naquella obscuridade uma pesquiza util de pedaços de lona e maçame esparsos nos cachopos. Como colher esses andrajos, sem luz? Gilliatt contemplava tristemente a noite. Todas as estrellas e nem uma vela. A massa liquida diminuira na barca, a pressão externa augmentára. Crescia o inchamento do panno. Entumescia-se cada vez mais. Era um abcesso prestes a abrir. A situação, um momento melhorada, tornava-se ameaçadora. Era imperiosamente necessario um batoque. Gilliatt apenas tinha as suas roupas. Tinha-as posto a seccar nas saliencias do rochedo da pequena Douvre. Foi buscal-as, e depositou-as na borda da _pança._ Pegou no capote alcatroado e ajoelhando-se na agua, metteu-o no buraco, empurrando o tumor do panno para fóra, e portanto esvasiando-o. Depois metteu a pelle de carneiro, depois a camisa de lã, depois a japona. Tudo. Tinha apenas uma roupa, tirou-a, e com a calça engrossou e apertou o batoque. Estava prompto e não parecia insufficiente. O batoque sahia pelo buraco tendo o panno por envolucro. A agua, querendo entrar, apertava o obstaculo, alargava-o utilmente na fractura, e consolidava-o. Era uma especie de compressa exterior. No interior, tendo sido empurrado apenas o centro da lona, ficava á roda do buraco e do batoque um rolete circular do pau no tanto inais adherente quanto que as desigualdades da fractura o retinham. A via d'agua estava tapada. Mas nada mais precario do que aquillo. Os relevos agudos da fractura que fixavam o panno, podiam fura-lo e por esses buracos entraria a agua. Gilliatt na obscuridade, não descobria isso. Era pouco provavel que o batoque durasse até de manhã. A anxiedade de Gilliatt mudou de forma, mas elle sentia a crescer ao mesmo tempo que sentia quebrarem-se-lhe as forças. Continuou a esvasiar o porão, mas os seus braços, no extremo esforço, apenas podiam levantar a pá d'agua. Estava nú e tremia. Gilliatt sentia a approximação sinistrada extremidade. Talvez houvesse uma vela ao largo, um pescador que por acaso passase nas aguas de Douvres podia ajudal-o. Era chegado o momento em que se tornava necessario um collaborador. Um homem e uma lanterna, e tudo estaria salvo. Sendo dous, esvasiava-se facilmente a barca; uma vez estancada, sem aquella sobrecarga liquida, voltaria ao nivel de fluctuação, o buraco sahiria d'agua, o reparo seria exequivel, podia-se immediatamente substituir o batoque por uma peça de madeira, e o aparelho provisorio por um concerto difinitivo. Senão, era preciso esperar até de manhã, esperar a noite toda! Funesta demora que podia ser a perdição. Gilliatt tinha a febre da urgencia. Se por acaso algum pharol de navio estava a vista, Gilliatt poderia fazer signaes, do alto da grande Douvre. O tempo estava calmo, não havia vento, não havia mar, um homem agitando-se no fundo estrellado do céo tinha a possibilidade de ser visto. Um capitão de navio, e mesmo um patrão de lancha, não anda de noite nas aguas das Douvres sem pôr o oculo no escolho; é a precaução. Gilliatt esperava que o vissem. Escalou o casco da Durande, empunhou a corda e subio á grande Douvre. Nenhuma vella no horisonte. Nenhum pharol. A agua estava deserta a perder de vista. Nenhuma assistencia possivel e nenhuma resistencia possivel. Gilliatt, cousa que até então não sentira, sentio-se desarmado. A fatalidade obscura assenhoreára-se delle. Elle, com a barca, com a machina da Durande, com o trabalho, com o bom exito, com a coragem, tudo isso pertencia ao golphão. Já não tinha recurso de luta; tornava-se passivo. Como impedir a maré e a noite? O batoque era o unico ponto de apoio. Gilliatt exhaurira-se em compol-o e completal-o; fortifical-o é que já não podia; o batoque devia ficar assim e fatalmenle tinha acabado todo o esforço. O mar tinha á sua discrição aquelle apparelho prematuro applicado ao buraco. Como resistiria aquelle obstaculo inerte? Chegára-lhe a vez de combater, depois de Gilliatt. Entrava o trapo, retirava-se o espirito. O entumecimento de uma onda bastava para abrir a fractura. Maior ou menor pressão, a questão era essa. O desfecho ia nascer por uma luta machinal entre duas quantidades mechanicas. Gilliatt não podia agora, nem ajudar o auxiliar, nem impedir o inimigo. Era apenas o espectador da sua vida ou da sua morte. Aquelle Gilliatt que tinha sido uma providencia foi substituido no supremo instante por uma resistencia inconsciente. Nenhuma das provas e dos pavores que Gilliatt atravessára era igual a esta. Chegando ao escolho Douvres, vio-se cercado, como que agarrado pela solidão. A solidão fazia mais que cercal-o, envolvia-o. A um tempo mais de mil ameaças o desafiavam. O vento estava alli, prestes a soprar; alli estava ornar; prestes a rugir. Era impossivel amordaçar a guela ao vento, era impossivel desarmar a bocca do mar. E comtudo tinha elle combatido; homem, lutara corpo a corpo com o oceano, engalfinhára-se com a tempestade. Tinha affrontado outras anciedades e necessidades. Pelejou contra outros perigos. Foi-lhe preciso trabalhar sem ferramenta, carregar fardos sem auxilio, resolver problemas sem sciencia, comer e beber sem provisões, dormir sem leito e sem tecto. Naquelle rochedo, eculeo tragico, pozeram-lhe a questão as diversas fatalidades iniquas da natureza, mãe quando quer, algoz quando lhe apraz. Venceu o isolamento, venceu a fome, venceu a sêde, venceu o frio, venceu a febre, venceu o trabalho, venceu o somno. Encontrou no caminho os obstaculos coalisados. Depois da nudez, o elemento; depois da maré, a tempestade; depois da tempestade, a pieuvre; depois do monstro, o espectro. Lugubre ironia final. Naquelle escolho d'onde Gilliatt contava sahir triumphante, Clubin morto olhára rindo para elle. Tinha razão o riso do espectro. Gilliatt via-se perdido. Via-se tão morto como Clubin. O inverno, a fome, a fadiga, o desapparelhar do casco, o transporte da machina, o equinoxio, o vento, o trovão, a pieuvre, tudo isso nada era ao pé do arrombamento da _pança._ Podia-se ter, e Gilliatt os teve, contra o frio, o fogo; contra a fome, as conchas; contra a sêde, a chuva; contra as difficuldades, a industria e a energia; contra a maré e a tempestade, o quebra-mar; contra a pieuvre, a faca. Contra o arrombamento, nada. O furacão deixava-lhe aquelle adeus sinistro. Ultima repetição, perfida estocada, ataque sorrateiro do vencido ao vencedor. A tempestade fugitiva lançava-lhe aquella flecha. A derrota olhava para traz e feria. Era o _coup de jarnac_ do abysmo. Combate-se a tempestade; mas como combater um esgoto? Se o batoque cedesse nada podia impedir que a _pança_ fosse a pique. Era a ligadura da arteria que se rompe. E apenas fosse ao fundo d'agua, com a machina dentro, não havia meio de arranca-la. O magnanimo exforço de dous mezes titanicos acabava por um anniquilamento. Recomeçar era impossivel. Gilliatt já não tinha nem forja, nem materiaes. Talvez tivesse elle de ver, ao romper do dia, mergulhar-se lentamente e irremediavelmente toda a sua obra no golphão. Cousa assustadora é sentir debaixo de si a força sombria. O golphão attrahia-o. Engulida a barca, restava-lhe morrer de fome e de frio como o naufrago do rochedo Homem. Durante dous longos mezes, as consciencias e as providencias que existem no invisivel, tinham assistido a isto: de um lado a extensão, as vagas, os ventos, os relampagos, os meteoros, do outro lado um homem; de um lado o mar, do outro uma alma; de um lado o infinito, do outro um atomo. E houve batalha. E abortava talvez aquelle prodigio. Assim chegou á impotencia o inaudito heroismo, acabava-se pelo desespero aquelle formidavel combate, aquella luta do Nada contra Tudo, aquella Illiada de um. Gilliatt desvairado contemplava o espaço. Nem mesmo tinha roupa, estava nú diante da immensidade. Então, no acabrunhamento de toda aquella enormidade desconhecida, não sabendo já o que queriam delle, confrontando-se com a sombra, em presença daquella obscuridade irreductivel, no rumor das aguas, das ondas, dos marulhos, das espumas, das lufadas, debaixo das nuvens, debaixo dos ventos, debaixo da vasta força esparsa, debaixo daquelle mysterioso firmamento das azas, dos astros e das tumbas, debaixo da intenção possivel das cousas desmesuradas, tendo á roda de si e era baixo de si o oceano, e acima as constellações, debaixo do insondavel, Gilliatt abateu-se, desistio, deitou-se ao comprido sobre a rocha, voltado para as estrellas, vencido, e pondo as mãos diante da profundeza terrivel, bradou ao infinito: piedade! Abatido pela immensidade, Gilliatt implorou. Estava só naquella noite, em cima daquelle rochedo, no meio daquelle mar, cahido de cansaço, semelhante a um fulminado, nú como o gladiador no circo, tendo em vez do circo o abysmo, em vez das feras as trevas, era vez dos olhos do povo o olhar do ignoto, em vez das vestaes as estrellas, em vez de Cezar, Deos. Pareceu-lhe que se dissolvia no frio, no cansaço, na impotencia, na oração, na sombra e fecharam-se-lhe os olhos. VII HA UM OUVIDO NO IGNOTO Correram algumas horas. O sol levantava-se deslumbrante. O seu primeiro raio illuminou na plataforma da grande Douvre, uma forma immovel. Era Gilliatt. Continuava estendido em cima do rochedo. Já não estremecia aquella nudez gelada e endurecida. Estavam lividas as palpebras fechadas. Era difficil dizer que não era um cadaver. O sol parecia contempla-lo. Se aquelle homem nú não estava morto, devia estar tão perto disso que bastaria o menor vento frio para acaba-lo. Começou a soprar o vento, tepido e vivificante; era o halito vernal de Maio. Entretanto o sol subia no profundo céo azul; o seu raio menos horisontal ia-se purpureando. A luz fez-se calor. Cingio Gilliatt. Gilliatt não se mexia. Se respirava, era uma respiração quasi extincta que mal poderia embaciar um espelho. O sol continuava a sua ascenção cada vez menos obliqua sobre Gilliatt. O vento que era tepido ao principio, tornou-se callido. Aquelle corpo rigido e nú continuava sem movimento; entretanto a pelle parecia menos livida. O sol, acercando-se do zenith, cahia a prumo sobre a plataforma da Douvre. Vertia do alto do céo uma prodigalidade de luz; juntava-se a ella a vasta reverberação do mar tranquillo, o rochedo começava a ficar tepido e aquecia o homem. O peito de Gilliatt levantou-se com um suspiro. Vivia. O sol continuava as suas caricias, quasi ardentes. O vento, que já era o vento do meio dia, e o vento de verão, approximava-se de Gilliatt como uma boca, soprando mollemente. Gilliatt fez um movimento. Era inexprimivel a tranquillidade do mar, tinha um murmurio de ama ao pé do filho. As vagas pareciam embalar o escolho. As aves marinhas que conheciam Gilliatt, voavam inquietas por sobre elle. Já não era o medo selvagem do principio. Era um quê de terno e fraternal. Soltavam pequenos guinchos. Pareciam chamal-o. Uma gaivota que o amava sem duvida, teve a familiaridade de descer para junto delle. Começou a fallar-lhe. Elle não parecia ouvil-a. Ella saltou-lhe sobre o hombro e começou a brincar docemente com o bico nos seus labios. Gilliatt abrio os olhos. Os passaros, alegres e ariscos, voaram. Gilliatt levantou-se e espreguiçou-se como o leão acordando, correu á bordo da plataforma e olhou para o intervallo das Douvres. A _pança_ estava intacta. O batoque resistira; provavelmente o mar maltratara-o pouco. Tudo estava salvo. Gilliatt já não estava cansado. Refizeram-se-lhe as forças. O desmaio foi um somno. Esvasiou a _pança_, poz a avaria fora da fluctuação, vestio-se, bebeu, comeu, tornou-se alegre. O buraco examinado de dia demandava mais trabalho de que Gilliatt pensou. Era uma grande avaria. Gilliatt gastou o dia inteiro em reparal-o. No dia seguinte, de madrugada, depois de desfazer a tapagem e abrir a sahida do estreito, vestido com os andrajos que tinham vencido a avaria, tendo comsigo o cinto de Clubin e os setenta e cinco mil francos, em pé na _pança_ concertada, ao lado da machina salva, com um vento de feição e mar admiravel, Gilliatt sahia do escolho Douvres. Aproou sobre Guernesey. No momento em que se a affastava do escolho, alguem que lá estivesse tel-o-hia ouvido entoar a meia voz a canção Bonny Dundee. FIM DA SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE Deruchette LIVRO PRIMEIRO Noite e lua I O SINO DO PORTO O Saint-Sampson de hoje é quasi uma cidade; o Saint-Sampson de ha quarenta annos era quasi uma aldêa. Chegando á primavera, e acabadas as vigilias de inverno, deitavam-se todos cedo. Saint-Sampson era uma antiga parochia de tocar a recolher, tendo conservado o habito de apagar cedo as luzes. Os habitantes deitavam-se e levantavam-se com o dia. As velhas aldêas normandas são voluntariamente gallinheiros. Digamos além disso que Saint-Sampson, á excepção de algumas ricas familias burguezas, é uma população de pedreiros e carpinteiros. O porto é um lugar de concertar navios. Durante o dia extrahem-se pedras du trabalham-se pranchas; aqui a picareta, além o martello. Perpetuo meneio de páu e granito. Á tarde tudo cahe de cançasso e dorme como chumbo. Os rudes trabalhos fazem os duros somnos. Uma noite dos principios de Maio, depois de ter por alguns instantes contemplado o crescente da lua nas arvores e ouvido o passo de Deruchette passeiando sozinha, ao fresco da noite, no jardim de Bravées, mess Lethierry entrou para seu quarto situado sobre o porto e deitou-se. Doce e Graça estavam na cama. Excepto Deruchette, tudo dormia na casa. Portas e postigos estavam fechados. Ninguem andava nas ruas. Raras luzes semelhantes ao piscar de olhos que vão fechar-se, brilhavam aqui e alli nas janellas dos sotãos, annuncio do deitar dos criados. Já nove horas tinham batido na velha torre romana, coberta de hera, que partilha com a igreja de Saint-Brelade de Jersey, a singularidade de ter por data quatro uns: 1111; o que significa _mil cento e onze._ A popularidade de mess Lethierry em Saint-Sampson vinha do bom exito da Durande. Acabado este, fez-se o vacuo. Parece que o enguiço pega, e que as pessoas infelizes tem a peste comsigo, tão rapida é a quarentena em que as mettem. Os lindos filhos-familias evitavam Deruchette. O isolamento em roda da casa de Lethierry era tal que nem mesmo se soube ahi o pequeno grande acontecimento local que nesse dia agitou Saint-Sampson. O cura da parochia, o reverendo Joe Ebeneser Caudray estava rico. O tio delle, o magnifico decano de Saint-Asaph, morrera em Londres. A noticia foi trazida pelo sloop de posta _Cashmere_ chegado de Inglaterra nessa manhã, e cujo mastro via-se no porto de Saint-Sampson. O _Cashmere_ devia voltar para Southampton no dia seguinte ao meio dia, e dizia-se que devia levar o reverendo cura, chamado á Inglaterra sem demora para a abertura official do testamento, sem contar as outras urgencias de uma grande herança para recolher. Durante o dia Saint-Sampson dialogou coufusamente. O _Cashmere_, o reverendo Ebeneser, o tio morto, a riqueza, a partida, as promoções possiveis no futuro, foram o fundo do borborinho. Só uma casa, que nada sabia, ficara silenciosa, a de Lettierry. Mess Lethierry atirou-se á maca vestido. Depois da catastrophe da Durande, atirar-se á maca, era o recurso delle. Deitar-se no grabato é o recurso do prisioneiro, e mess Lethierry era prisioneiro da tristeza. Deitava-se; era uma tregoa, um descanço, uma suspensão de idéas. Dormia? Não. Vellava? Não. Propriamente fallando, havia dous mezes e meio,--já dous mezes e meio,--mess Lethierry estava em somnambulismo. Não era ainda senhor de si. Andava nesse estado mixto e diffuso que costumam ter os que soffreram grandes abatimentos. As suas reflexões não eram pensamentos, o seu somno não era repouso. De dia não era um homem acordado, de noite não era um homem adormecido. Estava em pé, estava deitado, eis tudo. Quando estava na maca, esquecia-se um pouco; a isso chamava elle dormir; as chimeras flutuavam nelle e por sobre elle, a nuvem nocturna, cheia de faces confusas, atravessava-lhe o cerebro; o imperador Napoleão dictava-lhe as suas memorias, haviam muitas Deruchettes, extranhos passaros pousavam nas arvores, as ruas de Lons-le-Saulnier toruavam-se serpentes. O pesadelo era o descanço do desespero. Passava as noites a sonhar e os dias a scismar. Ás vezes ficava uma tarde inteira, immovel á janella do quarto que dava para o porto, com a cabeça baixa, os cotovellos sobro o peitoril de pedra, as orelhas nas mãos, as costas voltadas para o mundo inteiro, o olhar fito na velha argola de ferro pregada no muro da casa a alguns pés da janella, onde outrora amarrava a Durande. Contemplava a ferrugem que invadia a argola. Mess Lethierry estava reduzido á funcção machinal de viver. Os homens mais valentes, privados da sua idéa realisavel, attingem a isto. É esse o effeito das existencias esvasiadas. A vida é a viagem, a idéa é o itinerario. Sem itinerario, pára-se. Perdido a alvo, morre a força. A sorte é um obscuro poder descricionario. Póde bater com as suas vergastas o nosso ser moral. O desespero é quasi a destituição da alma. Só os grandes espiritos resistem. E ainda assim... Mess Lethierry meditava contiuamente, se a absorpção pode chamar-se meditação, no fundo de uma especie de precipicio turvo. Escapavam-lhe palavras desoladas como estas: só me resta pedir ao céo o meu bilhete de sahida. Notemos uma contradição nesta natureza, complexa como o mar, de que mess Lethierry era, por assim dizer, o producto; mess Lethierry não resava. Ser impotente é uma força. Diante das nossas duas grandes cegueiras, o destino e a natureza, é na sua impotencia que o homem acha o ponto de apoio, a oração. O homem soccorre-se do proprio medo; pede auxilio ao pavor; a anciedade aconselha o ajoelhar. A oração, enorme força propria da alma, é da mesma especie que o mysterio. A oração dirige-se á magnanimidade das trevas; a oração contempla o mysterio com os olhos da sombra, e diante da fixidez poderosa desse olhar supplice, sente-se um desarmamento possivel no ignoto. Essa possibilidade entrevista é já uma consolação. Mas Lethierry não orava. No tempo em que era feliz, Deos existia para elle, póde dizer-se que em carne e osso; Lethierry fallava-lhe, dava-lhe a sua palavra, dava-lhe quasi, de quando em quando, um aperto de mão. Mas no infortunio de Lethierry, phenomeno aliás frequente, Deos eclypsava-se. Isto acontece a quem imagina um Deos bonachão. Não havia para Lethierry, no estado a que chegára, mais que uma visão pura, o sorriso de Deruchette. Fora desse sorriso, tudo era negro. Desde algum tempo, sem duvida por causa da perda da Durande, cujo choque ella sentia, tornou-se raro o delicioso riso de Deruchette. Parecia preoccupado. Extinguia-se-lhe a gentileza de passaro e de criança. Já ninguem a via, ao tiro de peça da manhã, fazer uma cortezia e dizer ao sol: «_bum!... jour!_... queira entrar.» Tinha ás vezes um ar sério, cousa triste naquella doce creatura. Entretanto fazia esforço para rir a mess Lethierry, e para distrahil-o, mas a sua alegria apagava-se dia a dia, e cobria-se de poeira, como a aza de uma borboleta que um alfinete atravessou. Accrescentemos que, seja porque a tristeza do tio a fizesse triste, e ha dôres de reflexo, seja por outras razões, ella parecia agora inclinar-se muito para a religião. No tempo do antigo cura, Jaquemin Herodes, ella ia apenas quatro vezes á igreja. Agora era muito assidua. Não faltava a officio algum, nem aos domingos, nem ás quintas-feiras. As almas piedosas da parochia viam com satisfação esta emenda. Porquanto, é uma grande ventura para uma moça, que corre tantos perigos entre os homens, voltar-se para Deos. Ao menos isto faz com que os paes fiquem tranquillos a respeito de namoricos. De noite, sempre que o tempo permittia, passeava no jardim, uma ou duas horas. Andava quasi tão pensativa com mess Lethierry, e sempre só. Deruchette deitava-se por ultimo. Mas isto não impedia que Graça e Doce não a perdessem de vista, por esse instincto de espionar que anda ligado á domesticidade; espionar desenfada de servir. Quanto a mess Lethierry, no estado obscurecido em que se achava o seu espirito, não percebia essas pequenas alterações nos habitos de Deruchette. Demais, elle não nascera aio. Nem mesmo notava a pontualidade de Deruchette aos officios da parochia. Tenaz no seu preconceito contra as cousas e os homens do clero, teria visto sem prazer essas frequencias á igreja. Não é que a sua situação moral não estivesse em caminho de modificar-se. O pesar é nuvem e muda de forma. As almas robustas, como dissemos, são ás vezes, em certas desgraças, distituidas quasi, mas não de todo. Os caracteres viris, taes como Lethierry, reagem n'um tempo dado. O desespero tem grãos ascendentes. Do acabrunhamento sobe-se ao abatimento, do abatimento á afflição, da afllição á melancolia. A melancolia é um crepusculo. Ahi o soffrimento funde-se em sombria alegria. A melancolia é a ventura de ser triste. Essas attenuações elegiacas não eram feitas para Lethierry; nem a natureza do seu temperamento, nem o genero da sua desgraça, comportavam essas variações. Sómente, no momento em que o encontramos, a scisma do seu primeiro desespero tendia a dissipar-se; sem estar menos triste, Lethierry estava menos inerte; continuava a estar sombrio, mas já não estava amortecido; voltava-lhe uma certa percepção dos factos e dos acontecimentos; e começava a sentir alguma cousa desse phenomeno que se poderia chamar a entrada na realidade. Assim que, de dia, na sala baixa, não escutava as palavras, mas ouvia-as. Graça veio uma manhã triumphante dizer a Deruchette que mess Lethierry rasgára o envolucro do seu jornal. Esta meia aceitação da realidade é em si um bom symptoma. É a convalescença. As grandes desgraças aturdem. Sahe-se do aturdimento por aquelle modo. Mas essa melhora parece ao principio um aggravo. O estado do sonho anterior embotava a dôr; antes via-se turvo, sentia-se pouco; agora a vista é clara, não se escapa a cousa alguma, sangra-se por tudo. Aviva-se a chaga. A dôr accentua-se com todos os pormenores que se vêem. Revê-se tudo na memoria. Achar tudo, é lamentar tudo. Ha nesta volta á realidade todas as provas amargas. Fica-se melhor e peior. É o que Lethierry sentia. Soffria mais distinctamente. O que trouxera mess Lethierry ao sentimento da realidade, foi um abalo. Digamos qual foi elle. Uma tarde, a 15 ou 20 de Abril, ouvio-se na porta da sala baixa as duas pancadas que annunciavam o correio. Doce abrio a porta. Era uma carta. Vinha do mar a carta. Era dirigida a mess Lethieny. Trazia o sello de Lisboa. Doce levou a carta a mess Lethierry que estava fechado no quarto. Elle pegou na carta, pôl-a machinalmente na mesa, e nem olhou. A carta ficou alli uma boa semana sem ser aberta. Aconteceu, porém, que uma manhã Doce disse a mess Lethierry: --Devo tirar a poeira de que está cheia a carta? Lethierry pareceu accordar. --Sim, disse elle. E abrio a carta. Leu isto: «No mar, 10 de Março. «Mess Lethierry, de Saint-Sampson. «Receberá o senhor com prazer noticias minhas. «Estou no _Tamaulipas_, em viagem para não voltar. Ha na equipagem um marujo, Ahier-Tostevin, de Guernesey, que ha de voltar ahi, e que lhe ha de contar alguma cousa. Aproveito o encontro do navio _Hernan Cortez_, com destino a Lisboa, para mandar-lhe esta carta. «Espante-se. Sou um homem honesto. «Tão honesto como o Sr. Clubin. «Devo crer que já sabe o que aconteceu; comtudo não será máo que lhe lembre o caso. «Eil-o: «Restitui-lhe os seus capitaes. «Tomei-lhe emprestados, um pouco incorrectamente, cincoenta mil francos. Antes de deixar Saint-Malo, entreguei, para o senhor, ao seu homem de confiança, o Sr. Clubin, tres notas do banco de mil libras cada uma, o que faz setenta e cinco mil francos. Creio que ha de achar esse reembolso sufficiente. «O Sr. Clubin tratou dos seus interesses, e recebeu o seu dinheiro com energia. Parece-me um homem zeloso; é por isso que o advirto. «O seu homem de confiança, «Rantaine.» «_Post-scriptum._--O Sr. Clubin tinha um revolver, e foi por isso que não tive recibo.» Tocai um torpedo, tocai uma garrafa de Leyde carregada, e sentireis o mesmo que sentio mess Lethierry lendo esta carta. Debaixo daquella sobrecarta, naquella folha de papel dobrada em quatro, a que, no primeiro momento, dera pouca attenção, havia uma commoção. Lethierry reconheceu a letra, reconheceu a assignatura. Quanto ao facto, nada comprehendeu ao principio. A commoção foi tal que lhe poz, por assim dizer, o espirito em pé. O phenomeno dos setenta e cinco mil francos que Rantaine confiára a Clubin, era um enigma, e era por isso o lado util do abalo, visto que obrigava Lethierry a reflectir. Fazer uma conjectura, é para o pensamento uma occupação sã. Accorda, o raciocinio, convoca-se a logica. Desde algum tempo, a opinião publica de Guernesey occupava-se em julgar Clubin, o honrado homem que por tantos annos foi unanimemente admittido na circulação da estima. Interrogavam-se uns aos outros, duvidava-se, apostava-se pró e contra. Appareceram singulares esclarecimentos. Clubin começava a apparecer em toda a luz, isto é, tornava-se negro. Houve em Saint-Malo uma devassa judiciaria para saber onde parava o guarda-costa 619. A perspicacia legal enganara-se, o que lhe acontece muitas vezes. Partia da supposição de que o guarda-costa fôra attrahido por Zuella e embarcado no _Tamaulipas_ para o Chile. Esta hypothese engenhosa trouxe comsigo muitas aberrações. A myopia da justiça não chegou a vêr Rantaine. Mas no decurso da pesquiza os magistrados descobriram outros rastos; complicara-se o negocio que já era obscuro. Clubin entrava no enigma. Havia uma coincidencia, alguma relação talvez, entre a partida do _Tamaulipas_ e a perda da Durande. Na taverna da porta Dinan, onde Clubin acreditava não ser conhecido, foi conhecido; o taverneiro fallou; Clubin tinha comprado uma garrafa de aguardente. Para quem? O armeiro da rua Saint-Vicent tambem fallou; Clubin comprára um revolver. Contra quem? O dono da hospedaria João tambem fallou; Clubin costumava a ter ausencias inexplicaveis. O capitão Gestrais Gaboreau tambem fallou; Clubin quiz partir, apezar de avisado e sabendo que devia haver nevoeiro. A tripolação da Durande tambem fallou. O carregamento era falho e mal arranjado, negligencia facil de comprehender, se o capitão quer perder o navio. Tambem fallou o passageiro guernesiano; Clubin cuidou ter naufragado nos Hanois. Tambem fallou a gente do Torteval; Clubin foi alli alguns dias antes do naufragio e dirigio-se para Plainmont, vizinho dos Hanois. Levava uma mala, e não voltou com ella. Igualmente fallaram os furta-ninhos; a historia delles parecia prender-se ao desapparecimento de Clubin, comtanto que em vez de almas de outro mundo, fossem contrabandistas. Finalmente a propria casa mal assombrada de Plaimont fallou; algumas pessoas, resolvidas a se esclarecerem, tinham-na escalado, e o que acharam dentro? Exactamente a mala de Clubin. Os magistrados de Torteval apprehenderam a mala e abriram-na. Continha provisões de bocca, um oculo, um chronometro, roupas de homem, e roupa branca marcada com as iniciaes de Clubin. Tudo isso, nas conversas de Saint-Malo e Guernesey, ia-se accumulando, e já roçava pela fraude. Comparavara-se symptomas confusos; averiguava-se o desdem singular pelos conselhos, a affronta do nevoeiro, a negligencia na arrumação das cargas, a garrafa d'aguardente, o timoneiro ébrio, a substituição do capitão ao timoneiro, o movimento do leme, ao menos desastrado. O heroismo em ficar no navio tornava-se velhacaria. Demais, Clubin enganou-se no escolho. Addmittida a intenção de fraude, comprehendeu-se a escolha dos Hanois, a facilidade de nadar para a costa, e a residencia na casa mal assombrada até chegar a occasião de fugir. A mala acabava a demonstração. Qual o élo que prendia esta aventura á do guarda-costa, ainda não se tinha descoberto. Adivinhava-se uma correlação; nada mais. Entrevia-se, quanto a esse homem, o guarda-costa 619, um drama tragico. Clubin talvez não representasse nelle, mas descobriam-no nos bastidores. Nem tudo se explicava pela fraude. Havia um revolver sem emprego. O revolver entrou talvez no caso do guarda. O faro do povo é fino e acertado. O instincto publico é habil nestas restaurações da verdade feitas de pedaços soltos. Sómente, nesses factos, de que resultava uma fraude verosimil, haviam sérias incertezas. Tudo concordava; mas não havia base. Não se perde um navio pelo gosto de perdel-o. Não se correm os riscos do nevoeiro, do escolho, do nadar, do refugio, e da fuga, sem um interesse. Qual seria o interesse de Clubin? Via-se o acto, não se via o motivo. Dahi vinha a duvida a muitos espiritos. Onde não ha motivo, parece que não ha acto. A lacuna era grave. Ora a carta de Rantaine vinha preencher a lacuna. A carta dava o motivo de Clubin. Queria roubar setenta e cinco mil francos. Rantaine era o _Deus ex machina._ Descia das nuvens com uma vela na mão. A carta era o esclarecimento final. Explicava tudo essa carta, e demais a mais annunciava uma testemunha, Ahier-Tostevin. Cousa decisiva, sabia-se agora o emprego do revolver. Rantaine estava incontestavelmente informado de tudo. A sua carta fazia tocar tudo com o dedo. Nenhuma attenuante possivel na malvadeza de Clubin. Premeditára o naufragio, e a prova era a mala levada para a casa Plainmont. E suppondoo innocente, admittindo o naufragio fortuito, não devia elle, no ultimo momento, decidido ao sacrificio, entregar os setenta e cinco mil francos aos homens que se salvaram na chalupa? Era evidente. Mas que era feito de Clubin? Foi provavelmente victima do seu erro. Pereceu sem duvida no escolho Douvres. O andaime de conjecturas, todas conformes, na realidade, occupou durante muitos dias o espirito de mess Lethierry. A carta de Rantaine teve a utilidade de obrigal-o a pensar. Teve um primeiro abalo de sorpreza, depois fez esforço de reflectir. Fez outro esforço mais difficil ainda para informar-se. Acceitou e procurou mesmo as conversas. No fim de oito dias tornou-se pratico até certo ponto; o espirito fortaleceu-se e quasi ficou curado. Sahio do estado turvo. A carta de Rantaine, admittindo que mess Lethierry tivesse algum dia a esperança do reembolso, fez desapparecer a ultima probabilidade. Á catastrophe da Durande ajuntava-se o naufragio dos setenta e cinco mil francos. A carta empossava-o do dinheiro tanto quanto lhe bastava para sentir a perda. Mostrava-lhe o fundo da ruina. Dahi veio um soffrimento novo, e agudissimo, que já indicámos. Começou, cousa que ha dous mezes não fazia, a preoccupar-se com a casa, do que havia, e que reformas devia fazer. Tédio eriçado de mil pontas, quasi peior que o desespero. Odiosa cousa é supportar a desgraça por miudo, disputar passo a passo ao facto realisado o terreno que elle vem tomar. Acceita-se a massa do infortunio, a poeira não. O conjuncto acabrunha, o pormenor tortura. Ha pouco a catastrophe fulminava, agora mortifica. Essa é a humilhação aggravante do infortunio. É uma segunda annullação que vem ajuntar-se á primeira, e feia. Desce-se um degráo no nada. Depois do sudario, o andrajo. Nada mais triste do que pensar em decahir. Parece simples estar arruinado. Golpe violento; brutalidade da sorte; é a catastrophe uma vez por todas. Seja. Aceita-se. Tudo está acabado. Fica-se arruinado. Está dito, morreu. Qual! vive-se. É o que no dia seguinte começa-se a sentir. Porque? Por alfinetadas. Passa um homem sem tirar o chapéo, chovem as contas das lojas, ri-se um inimigo. Ri-se talvez do ultimo trocadilho de Arnal, mas é o mesmo, o trocadilho pareceu-lhe mais engraçado, exactamente por que estás pobre. Lês a tua decadencia até nos olhares indifferentes; as pessoas que jantavam em tua casa, acham demasiado os tres pratos da tua mesa; os teus defeitos saltam aos olhos de todos; as ingratidões, não tendo que esperar mais nada, tiram a mascara; todos os imbecis predisseram o que te acontece; os máos dilaceram-te, os peiores lamentam-te. E mais cem pormenores mesquinhos. A nausea succede ás lagrimas. Bebeis vinho, beberás cidra. Duas criadas! Uma seria de mais. Devia-se despedir esta, sobrecarregar aquella. Ha flôres de mais no jardim; planta antes batatas. Davas flôres aos amigos, vende-as agora no mercado. Quanto aos pobres, já não deves pensar nelles; também não és pobre? As _toilettes_, questão pungente. Diminuir uma fita a uma mulher, que supplicio! Recusar o enfeite, a quem te dá a belleza! Ter ares do avarento! Talvez que ella te diga:--Pois que! tiraste as flôres do meu jardim, e agora as tiras do meu chapéo!--Ai triste! condemnal-a aos vestidos velhos! A mesa de familia é silenciosa. Parece-te que te querem mal. Os rostos amados parecem preoccupados. Eis o que é a decadencia. Cumpre-te morrer todos os dias. Cahir, não é nada, é a fornalha. Decahir, é o fogo lento. A quéda é Waterloo; a decadencia é Santa Helena. A sorte, encarnada em Wellington, tem ainda alguma dignidade; mas quando se faz Hudson Lowe, que vilania! O destino torna-se um bigorrilhas. Vê-se o homem de Campo-Formio querelando por um par de meias de seda. Agorentou-se a Inglaterra, agorentando Napoleão. Essas duas phases, Waterloo e Santa Helena, reduzidas ás proporções burguezas, todos as atravessam. Na noite de que fallámos e que era uma das primeiras noites de Maio, Lethierry deixando Deruchette passear ao luar, no jardim, deitou-se mais triste que nunca. Rolavam-lhe no espirito todas essas minucias mesquinhas e desagradaveis, complicações de fortunas ardidas, todas essas preoccupações de terceira ordem, que começam por ser insipidas e acabam lugubres. Triste accumulação de miserias. Mess Lethierry sentia a sua queda irremediavel. Que devia fazer agora? Que seria delle? Que sacrificios devia impôr a Deruchette. Quem devia despedir, Doce ou Graça? Venderia a casa? Seria obrigado a abandonar a ilha? Não ser cousa alguma onde se foi tudo, é uma decadencia insuportavel. E pensar que estava acabado! Recordar as viagens de França ao archipelago, a partida ás terças-feiras, a chegada ás sextas, a chusma no cáes, aquelles grandes carregamentos, aquella industria, aquella prosperidade, aquella navegação directa e altiva, aquella machina sugeita á vontade do homem, aquella caldeira omnipotente aquelle fumo, aquella realidade! O vapor é a bussola completa; a bussola indica o caminho, o vapor segue por elle. Uma propõe, a outra executa. Onde estava agora a sua Durande, aquella magnifica e soberana Durande, aquella senhora do mar, aquella rainha que o fazia rei? Ter sido o homem idéa, o homem triumpho, o homem revolução! e renunciar! abdicar! Não existir! fazer rir aos outros! ser um sacco onde já houve alguma cousa! Ser o passado quem foi o futuro! merecer a compaixão altiva dos idiotas! ver triumphar a rotina, a obstinação, o rammerrão, o egoismo, a ignorancia! ver começar outra vez as viagens dos cutters gothicos sacudidos pela vaga! ver a antigualha rejuvenecer! perder a vida! perder a luz e soffrer o eclypse! Ah! como era bello vêr sobre as vagas aquelle cano orgulhoso, aquelle prodigioso cylindro, aquelle pilar de um capitel de fumo, aquella columna maior que a de Vendome, porque havendo nesta apenas um homem, ostentava-se naquella o progresso! O oceano está por baixo; era a certeza em pleno mar. Vio-se aquillo, naquella pequena ilha, naquelle pequeno porto, naquelle pequeno Saint-Sampson? Sim, vio-se! Pois que! vio-se e não se verá mais! Toda este obsessão da saudade mortificava Lethierry. Ha soluços no pensamento. Talvez nunca sentisse mais amargamente a sua perda. Depois de taes excessos agudos costuma vir um entorpecimento. Debaixo desse peso de tristeza Lethierry adormeceu. Ficou cerca de duas horas com as palpebras fechadas, dormindo pouco, sonhando muito, febril. Esses torpores cobrem um obscuro e fatigante trabalho do cerebro. Pela meia noite, um pouco antes, ou um pouco depois, Lethierry sacudio o adormecimento. Acordou, abrio os olhos, a janella estava em frente á maca, vio uma cousa extraordinaria. Havia uma forma diante da janella. Forma inaudita. O cano de um vapor. Mess Lethierry levantou-se de um salto. A maca oscilou, como se fosse abalada pela tempestade. Lethierry olhou. Havia na janella uma visão. O porto illuminado pela lua reflectia-se nos vidros, e no meio do luar, e, proxima á casa, surgia uma soberba forma recta, redonda e negra. Era um tubo de machina. Lethierry precipitou-se para fora da maca, correu á janella, levantou a vidraça, inclinou-se e reconheceu. O cano da Durande estava diante delle. Estava no lugar do costume. As quatro correntes prendiam o cano á borda de um barco dentro do qual distinguia-se uma massa de fórma complicada. Lethierry recuou, voltou as costas á janella e cahio assentado na maca. Voltou-se outra vez e vio a mesma visão. Um momento depois, apenas o espaço de um relampago, estava elle no cáes com uma lanterna na mão. Á velha argola onde se prendia a Durande estava amarrada uma barca trazendo um pouco á ré um vulto massiço donde sahia o cano que ficava em frente á janella. A prôa da barca prolongava-se além do canto da parede da casa e encostada ao cáes. Não havia ninguem na barca. A barca tinha uma forma especial, conhecida por todos em Guernesey; era a _pança._ Lethierry pulou deutro. Correu á massa que ficava alem do mastro. Era a machina. Era ella, inteira completa, intacta, sentada sobre o fundo de metal; a caldeira estava com todas as peças; a arvore das rodas estava arranjada e amarrada perto da caldeira; a bomba estava no seu lugar; nada faltava. Lethierry examinou a machina. A lanterna e a lua ajudaram-lhe o exame. Passou em revista todo o machinismo. Vio as duas caixas que estavam ao pé. Olhou para a arvore das rodas. Foi ao camarote; estava vasio. Voltou á machina e apalpou-a. Metteu a cabeça na caldeira. Ajoelhou-se para ver dentro. Collocou na caldeira a lanterna que illuminava todo o mechanismo e produzia o effeito de uma machina acesa. Depois deu uma gargalhada, e levantando-se, com o olhar fixo na machina e os braços estendidos para o cano, gritou: soccorro! O sino do porto ficava perto. Lethierry correu a elle, segurou a corda, e começou a sacudir o sino impetuosamente. II AINDA O SINO DO PORTO Gilliatt, com effeito, depois de uma travessia sem incidente, mas um pouco demorada por causa do peso do carregamento, chegou a Saint-Sampson de noite, mais perto das 10 horas que das 9. Gilliatt calculára a hora. A maré começava a encher. Havia luz e agua; podia-se entrar no porto. O porto estava adormecido. Haviam alguns navios ancorados, cascos sem veigas, cestos de gavea recolhidos, e sem faróes. Descobria-se no fundo alguns navios em concerto postos no estaleiro. Grandes cascos desmastreados, levantando acima das amuradas furadas as pontas curvas de seus membros desnudos, semelhantes a escaravelhos mortos deitados de costas e com as pernas para o ar. Gilliatt apenas entrou no porto examinou o caes. Não havia luz em parte alguma, nem na casa de Lethierry, nem nas outras. Não havia ninguem na rua, excepto talvez um homem que acabava de entrar ou sahir do presbyterio. E ainda assim poderia ser que não fosse uma pessoa, porque a noite esfuma tudo quanto desenha e o luar faz tudo indeciso. A distancia ajudava a obscuridade. O presbyterio de então, era situado do outro lado do porto, no lugar onde outr'ora havia uma estiva coberta. Gilliatt encostou-se silenciosamente ao muro e amarrou a _pança_ na argola da Durande, debaixo da janella de mess Lethierry. Depois saltou para terra. Gilliatt, deixando atraz de si a _pança_, rodeou a casa, atravessou uma viela, depois outra, nem mesmo, olhou para o entroncamento do caminho que ia ter á casa delle, e no fim de alguns minutos parou no recanto da parede onde havia um pé de malva sylvestre com flôres côr de rosa em Junho, azevinho, hera e ortigas. Era dahi que, escondido no espinheiro, assentado numa pedra, tantas vezes, nos dias de verão e durante longas horas e mezes inteiros, tinha elle contemplado por cima do muro, tão baixinho que tentava um pulo, o jardim de Bravées, e atravez das arvores, duas janellas de um quarto da casa. Achou a pedra, o espinheiro, o muro baixo, o angulo obscuro, e como um animal que volta ao buraco, antes escorregando que andando, Gilliatt agachou-se. Depois de assentado não fez movimento algum. Olhou. Tornou a vêr o jardim, as alamedas, as grutas, os canteiros, a casa, as duas janellas do quarto. A lua mostrava-lho aquelle sonho. Era-lhe horrivel ter de respirar. Gilliatt forcejava por conter a respiração. Parecia-lhe ver um paraiso fantasma. Tinha medo que lhe voasse tudo aquillo. Era quasi impossivel que aquellas cousas estivessem diante delle; e se estavam, era sem duvida prestes a esvair-se como acontece com as cousas divinas. Bastava um sopro para desapparecer tudo. Gilliatt tremia por isso. Perto delle, e em frente, no jardim, á beira de uma alameda, havia um banco de páo pintado de verde. Os leitores lembram-se desse banco. Gilliatt contemplava as duas janellas. Pensava em alguem que estivesse dormindo naquelle quarto. Quizera não estar onde estava. Preferia morrer a retirar-se. Pensava numa respiração levantando um seio. Ella, aquella miragem, aquella alvura dentro de uma nuvem, aquella obsessão de seu espirito, estava alli! Gilliatt pensava no inaccessivel que dormia, e tão perto, e ao alcance do seu extase; pensava na mulher impossivel adormecida e visitada tambem pelas chimeras; na creatura desejada, remota, esvaecente, fechando os olhos com a fronte na mão; no mysterio do somno da creatura idéal; nos sonhos que póde ter um sonho. Não ousava pensar além e pensava; arriscava-se nas faltas de respeito do devaneio; perturbava-o a quantidade de forma feminina que póde haver no anjo. A hora nocturna faz com que os olhos timidos lancem furtivos olhares; censurava-se por ir tão longe, receiava profanar com a reflexão; a seu pezar, constrangido, tremulo, Gilliatt olhava para o invisivel. Sentia a commoção e quasi o soffrimento, de imaginar uma saia numa cadeira, um manto atirado ao tapete, um cinto desenlaçado, um lenço de pescoço. Imaginava um collete, um atacador arrastando no chão, meias, ligas. Tinha a alma nas estrellas. As estrellas são feitas tanto para o coração humano de um pobre, como para o coração de um millionario. Em certo grão de paixão todos os homens são sujeitos ás fascinações profundas. Se a natureza é aspera e primitiva, razão de mais. A condição selvagem augmenta o sonho. A fascinação é uma plenitude que transborda como todas. Ver as janellas era quasi de mais para Gilliatt. De repente vio elle a propria moça. Dentre os ramos de uma mouta, já espessa pela primavera, sahio com ineffavel lentidão, phantastica e celeste, uma figura, um vestido, um rosto divino, quasi um clarão no meio do luar. Gilliatt sentio-se desfallecer. Era Deruchette. Deruchette approximou-se. Parou. Deu alguns passos para afastar-se, parou ainda, depois voltou e assentou-se no banco de páo. A lua batia nas arvores, algumas nuvens erravam por entre as estrellas pallidas, o mar fallava ás cousas da sombra, a meia voz, a cidade dormia, do horisonte subia uma neblina, a melancolia era profunda. Deruchette inclinava a fronte com aquelle olhar pensativo que contempla attentamente o vácuo; estava sentada de perfil, com a cabeça quasi descoberta, tendo um barretinho desatado que lhe deixava ver na nuca delicada a origem dos cabellos, enrolava machinalmente nos dedos uma fita do barrete, a penumbra modulava as suas mãos de estatua, o vestido era de uma dessas côres que de noite se fazem brancas, as arvores moviam-se como se fossem susceptiveis ao encanto que resumbrava della, via-se a pontinha de um de seus pés, havia nos seus cilios fechados aquella vaga contracção que annuncia uma lagrima represa ou um pensamento repellido, os seus braços tinham a indecisão fascinante de não achar onde encostar-se, misturava-se-lhe á postura alguma cousa fluctuante, era antes um clarão que uma luz, antes uma graça que uma deusa, as dobras da barra da saia eram delicadas, o seu admiravel rosto meditava virginalmente. Estava tão perto, que era terrivel. Gilliatt ouvia-a respirar. Havia ao longe um rouxinol que cantava. A passagem do vento nos ramos punha em movimento o inefavel silencio nocturno. Deruchette, gentil e sagrada, apparecia naquelle crepusculo como o resultado daquelles raios e daquelles perfumes; o encanto immenso e esparso ia ter mysteriosamente a ella, nella condensava-se era a sua irradiação. Parecia a alma flôr de toda aquella sombra. Toda aquella sombra, fluctuante em Deruchette, pesava sobre Gilliatt. Estava desvairado. O que elle sentia não cabe dize-lo em palavras; a commoção é sempre nova e as palavras já servirão muito; dahi vem a impossibilidade de exprimir a commoção. Existe o abatimento do encanto. Ver Deruchette, vêl-a ella propria, ver-lhe o vestido, ver-lhe o barrete, ver-lhe a fita que ella enrolava nos dedos, póde-se acaso imaginar semelhante cousa? Estar perto della, era acaso possivel? Ouvi-la respirar; respirava pois! então os astros respiram. Gilliatt estremecia. Era o mais miseravel e o mais inebriado dos homens. Não sabia que fazer. O delirio de ve-la esmagava-o. Pois que! Era ella quem alli estava, era elle quem estava alli! As suas idéas, deslumbradas e fixas, paravam naquella creatura como se fora um rubi. Contemplava aquella nuca e aquelles cabellos. Gilliatt nem mesmo pensava que tudo aquillo lhe pertencia, que em pouco tempo, talvez amanhã, elle teria o direito de tirar-lhe aquella coifa e deslaçar aquella fita. Sonhar até esse ponto era um excesso de audacia que elle não poderia conceber um momento. Tocar com o pensamento e quasi tocar com a mão. O amor era para Gilliatt como mel para o urso, o sonho eximio e delicado. Pensava confusarnente. Não sabia o que tinha. O rouxinol cantava. Elle sentia-se expirar. Levantar-se, galgar o muro, approximar-se, dizer sou eu, fallar a Deruchette, foi idéa que não teve. Se ativesse, fugiria. Se alguma cousa semelhante a um pensamento chegou a despontar no seu espirito, era que Deruchette estava alli, que elle não tinha necessidade de mais cousa alguma, e que a eternidade começava. Um rumor arrancou a ambos, ella do devaneio, elle do extasis. Andava alguem no jardim. Não se via quem era por causa das arvores. Era um passo de homem. Deruchette levantou os olhos. Os passos aproximaram-se e cessaram. Quem quer que era parou. Devia estar perto. O caminho onde estava o banco, perdia-se entre duas moutas. Era ahi que estava essa pessoa, nesse intervallo, a poucos passos do banco. O acaso tinha disposto a espessura dos ramos, de tal modo, que Deruchette via, a pessoa, sem que Gilliatt a visse. O luar projectava no chão, fóra das moutas, e ate ao banco, uma sombra. Gilliatt vio essa sombra. Olhou para Deruchette. Ella estava pallida. A boca entre aberta esboçava um grito de surpreza. Levantou-se um pouco do banco, tornou a sentar-se; havia na sua attitude, uma mistura de fuga e de fascinação. O seu pasmo era um encanto cheio de receio. Tinha nos labios quasi a irradiação do sorriso, e um reflexo de lagrimas nos olhos. Estava como que transfigurada por aquella presença. Não parecia que a creatura alli chegada fosse da terra. Havia no olhar de Deruchette a reverberação de um anjo. A pessoa, que era apenas um sombra para Gilliatt, fallou em fim. Sahio das moutas uma voz, mais doce que uma voz de mulher, e voz de homem comtudo. Gilliatt ouvio estas palavras: Vejo-a todos os domingos e quintas-feiras; disseram-me que outr'ora a senhora não ia lá tantas vezes. Fizeram este reparo, peço-lhe perdão. Nunca lhe fallei, era o meu dever; fallo-lhe hoje, é meu dever. Antes de tudo devo dirigir-me á senhora. O _Cashmere_ parte amanhã; foi por isso que eu vim. A senhora passeia todas as noites neste jardim. Eu fazia mal em conhecer tanto os seus habitos se não tivesse o pensamento que tenho. A senhora é pobre. Eu sou rico desde esta manhã. Quer-me por seu marido? Deruchette ajuntou as duas mãos como uma supplicante, e olhou para aquelle que fallava, muda, olhar lixo, tremula da cabeça aos pés. A voz continuou: --Amo-a, Deos não fez o coração do homem para que se cale. Se elle promette a eternidade, é porque quer o consorcio. Ha para mim na terra uma mulher, é a senhora. Penso na senhora como n'uma oração. A minha fé está em Deos, na senhora a minha esperança. As azas que tenho é a senhora quem as traz. A senhora é a minha vida, e já o meu céo. --Senhor, disse Deruchette, não ha na casa ninguem para responder-lhe. A voz soou de novo: --Tive este lindo sonho. Deos não prohibe os sonhos. A senhora faz-me o effeito de uma gloria. Amo-a apaixonadamente. A santa innocencia é a senhora. Sei que esta é a hora em que todos estão dormindo, mas eu não tinha outra occasião á minha escolha. Lembra-se daquelle passo da Biblia que nos leram? Genesis, capitulo vinte e cinco. Muitas vezes pensei nelle. Reli-o muitas vezes. O reverendo Herodes dizia-me:--É-lhe preciso uma mulher rica. Eu respondi:--Não, preciso de uma mulher pobre. Fallo-lhe de longe, e recuarei mesmo se a senhora não quizer que a minha sombra toque em seus pés. É a senhora a soberana; virá a mim se quizer. Assim o espero. A senhora é a forma viva da benção. --Senhor, balbuciou Deruchette, eu não sabia que reparavam em mim aos domingos e quintas-feiras. A voz continuou: --Nada se pode contra as cousas angelicas. Toda a lei é amor. O casamento é Chanaam. A senhora é a belleza promettida. Ave, cheia de graça! Deruchette respondeu: Eu pensava que não fazia mal indo como as outras pessoas á igreja. --A voz continuou: --Deos pôz as suas intenções nas flôres, na aurora, na primavera, e elle quer que se ame. A senhora é bella nesta sacra obscuridade da noite. Este jardim foi cultivado pela senhora, e no perfume ha alguma cousa de seu halito. Os encontros das almas não dependem dellas. Não é culpa nossa. A senhora ia á igreja, nada de mais; eu estava lá, nada de mais. Nada fiz senão sentir que a amava. Algumas vezes os meus olhos levantaram-se para a senhora. Fiz mal, mas como não? Foi contemplando-a que eu fiquei assim. Não podia impedil-o. Ha vontades mysteriosas acima de nós. O primeiro templo é o coração. Ter a sua alma em minha casa, tal é o paraiso terrestre a que eu aspiro. Aceita? Emquanto fui pobre nada disse. Eu sei a sua idade. Tem vinte annos, eu tenho vinte e seis. Parto amanhã, se me recusa não voltarei. Quer ser minha noiva? Os meus olhos já lhe fizeram esta pergunta mais de uma vez e a meu pesar. Amo-a, responda-me. Fallarei a seu tio quando elle puder receber-me, mas em primeiro lugar á senhora. É a Rebecca que se pede Rebecca. Só se me não ama. Deruchette inclinou a fronte e murmurou. --Oh! eu o adoro! Isto foi dito em voz tão baixa que só Gilliatt ouvio. Ella abaixou a fronte, como se o rosto na sombra puzesse na sombra o pensamento. Houve uma pausa. As folhas das arvores não se mechiam. Era esse momento severo e aprazixel em que o somno das cousas a junta-se ao somno das creaturas e em que a noite parece escutar as palpitações da natureza. Neste recolhimento eleva-se, como uma harmonia que completa um silencio, o ruido immenso do mar. A voz continuou: --Senhora. Deruchette estremeceu. A voz continuou: --Estou esperando. --O que espera? --A sua resposta. Deos a ouviu--disse Deruchette. Então a voz tornou-se sonora e ao mesmo tempo mais doce que nunca. Estas palavras sahiram da moita como de uma sarça ardente. --Tu és minha noiva. Levante-te e vem. Que o teto azul, onde estão os astros, assista a esta aceitação da minha alma pela tua alma, e que o nosso primeiro beijo se misture ao firmamento! Deruchette levantou-se e ficou um instante immovel e com o olhar fixo diante de si, fitando, sem duvida, outro olhar. Depois, a passos lentos, com a cabeça erguida, os braços pendentes e os dedos das mãos abertos, como quando se caminha para um amparao desconhecido, ela dirigio-se para a moita e desappareceu. Um instante depois, em vez de uma sombra na areia, havia, duas, confundiam-se ambas, e Gilliatt via a seus pés o abraço daquellas duas sombras. O tempo corre de nós como de uma ampulheta, e nós não temos o sentimento dessa fuga, sobretudo em certos instantes supremos. De um lado aquelle par, que ignorava a testemunha e não a via, do outro aquella testemunha que não via os dous, mas que sabia que elles alli estavam, quantos minutos ficaram assim nessa mysteriosa suspensão? Seria impossivel dizel-o. De subido echoou um ruido longinquo e uma voz gritou: Soccorro! E o sino do porto começou a soar. É provavel que a felicidade ebria e celeste não ouvisse o tumulto. O sino continuou a soar. Quem procurasse Gilliatt no angulo do muro já o não encontraria. LIVRO SEGUNDO Reconhecimento em pleno despotismo I ALEGRIA CERCADA DE ANGUSTIAS Mess Lethierry agitava o sino com soffreguidão. De subito parou. Vio um homem voltar a esquina do cáes. Era Gilliatt. Mess Lethierry correu a elle, ou para melhor dizer atirou-se a elle, tomou-lhe a mão entre as suas, e olhou-o fitamente em silencio; um desses silencios da explosão, não sabendo por onde irromper. Depois com violencia, saccudindo, e puxando, e apertando-o nos braços, fez entrar Gilliatt na sala baixa de Bravées, empurrou a porta com o tacão, e ficou entre-aberta, assentou-se ou cahio, em uma cadeira ao lado de uma grande mesa illuminada pela lua, cujo reflexo eubranquecia vagamente o rosto do Gilliatt, e com uma voz onde haviam gargalhadas e soluços misturados, gritou: --Ah! meu filho! homem do bug-pipe! Gilliatt! eu bem sabia que eras tu! A _pança!_ que diabo! conta-me isso! Pois foste! Ha cem annos queimavam-te. É feitiçaria. Não falta nada. Já examinei, reconheci, apalpei. Adevinho que as rodas estão nas duas caixas. Então chegaste! Fui procurar-te na _pança._ Toquei o sino. Procurava-te. Eu dizia comigo: onde está elle? Quero devoral-o. É preciso convir que se passam cousas extraordinarias. Aquelle animal volta do escolho Douvres. Traz-me a vida. Com os diabos! tu és um anjo. Sim, sim, sim, é a minha machina. Ninguem acredita. Hão de vêl-a e dizer: Não falta nem uma serpentina. O tubo d'agua não se deslocou. É incrivel que não houvesse avaria. Falta só pôr um pouco de azeite. Mas como foi? E a Durande vai agora navegar! A arvore das rodas está desmontada como se fosse feito por um ourives. Dá-me a tua palavra de honra que eu não estou doudo. Levantou-se, respirou e proseguio: --Jura-me. Que revolução! Dou beliscões em mim mesmo, vejo que não sonho. Tu és meu filho, és meu rapaz, és Deos. Ah! meu filho. Ir buscar a minha pobre machina! No mar alto! Naquella emboscada do escolho! Tenho visto muita cousa espantosa em minha vida. Nunca vi cousa assim. Vi os parisienses que são uns satanazes. Boas! não faziam isto. É peior que a Bastilha. Vi os gaúchos lavrar nas pampas, tendo por charrua um galho de arvore, do comprimento de um covado, e por grade um feixe de espinhos puxado por corda de couro; colhem com isto grãos de trigo do tamanho de avelãs. Não valem dous caracoes ao pé de ti. Fizeste um milagre, um verdadeiro milagre. Ah! tratante! Salta-me ao pescoço. Como vai rosnar a gente de Saint-Sampson! Vou tratar já e já de fazer o navio. E, admiravel não ter quebrado a vara da redouça. Meus senhores, elle foi ás Douvres. As Douvres! um penedo que não tem rival. Já sabes, está provado que a cousa foi feita de proposito. Clubin perdeu a Durande para furtar-me o dinheiro que devia trazer-me. Embriagou Tangrouille. É longo, depois te contarei a pirataria delle. Eu era um bruto, tinha confiança em Clubin. Mas o malvado não pôde naturalmente sahir de lá. Ha um Deos, canalha! Olha, Gilliatt, quanto antes, ferro na forja, vamos reconstruir a Durande. Dar-lhe-hemos vinte pés mais. Agora fazem-se os navios mais compridos. Hei de comprar madeira em Dantzick e Bremen. Agora que tenho a machina hão de emprestar-me dinheiro. A confiança voltará. Mess Lcthierry deteve-se, levantou os olhos com aquelle olhar que vê o céo atravéz do tecto, e disse entre os dentes: Ha um meio. Depois poz o dedo medio da mão direita entre as sobrancelhas, com a unha apoiada no alto do nariz, o que indica a passagem de um projecto no cerebro, e continuou: --É o mesmo, para começar em grande escala, algum dinheiro basta. Ah! se eu tivesse as minhas tres notas de banco que o tratante de Rautaine me restituio e que o tratante de Clubin me roubou! Gilliatt, em silencio, procurou na algibeira alguma cousa, que collocou diante de si. Era o cinto de Clubin. Abrio e pôz na mesa o cinto, no interior do qual a lua deixava ler a palavra: _Clubin_; tirou da abertura uma caixinha, e da caixinha tres pedaços de papel que desenrolou e estendeu a mess Lethierry. Mess Lethierry examinou os tres pedaços de papel. Havia bastante claridade para que o algarismo 1,000 e a palavra _thousand_ fossem perfeitamente visiveis. Mess Lethierry pegou nos tres bilhetes, pol-os na mesa um ao lado do outro, olhou para elles, olhou para Gilliatt, ficou um momento calado, depois foi como que uma erupção depois de uma explosão. --Tambem isto! Tu és prodigioso. As minhas notas do banco! todas tres! mil cada umal os meus sessenta mil francos! Então foste ao inferno? É o cinto de Clubin. Por Deos: leio-lhe o nojento nome. Gilliatt traz a machina, e mais o dinheiro! Isto deve ser contado nos diarios publicos. Vou comprar madeira de primeira qualidade. Adevinho, achaste o esqueleto. Clubin apodreceu lá em algum canto. Compraremos pinho em Dantzick e carvalho em Bremen, faremos um bom casco, carvalho por dentro, pinho por fora. Em outro tempo fabricavam-se navios menos perfeitos e elles duravam mais; é que a madeira era mais secca porque não se construia tanto. Faremos talvez a quilha de olmo. O olmo é bom para estar sempre na agua: andando ora molhado, ora secco, apodrece: o olmo alimenta-se de agua. Que bella Durande vamos fazer! Não me hão de impôr. Já não preciso credito. Tenho dinheiro. Já se vio cousa assim como Gilliatt? Eu estava prostrado, abatido, morto. Chega elle e pôe-me de pé. E eu que não pensava nelle! Já nem me lembrava. Agora lembra-me tudo. Pobre rapaz! Ah! bem, sabes, tu casas com Deruchette. Gilliatt encostou-se á parede como se vacillasse e baixinho, mas distintamente, disse. --Não. Mess Lethierry teve um sobresalto. --Como, não? Gilliatt respondeu. --Não a amo. Mess Lethierry foi á janella, abrio-a e fechou-a, pegou nas tres notas do banco, dobrou-as, pôz a caixa cm cima, coçou a cabeça, pegou no cinto de Clubin, atirou-o violentamente contra a parede, e disse: --Ha alguma cousa! Metteu as mãos nos bolsos, e continuou: --Não amas Deruchette! Era então por minha causa que tocavas bug-pipe? Gilliatt, sempre encostado á parede empallidecia como um homem que está prestes a não respirar. Á proporção que se tornava pallido, Lethierry tornava-se vermelho. --Vejam este parvo! Não ama Deruchette! Pois trata de ama-la, porque ella não ha de casar se não contigo. Que historias são essas? Cuidas que te acredito? Estás doente? pois bem, manda chamar um medico, mas não digas estravagancias, é impossivel que tivesses tempo de brigar com ella e ficares arrufado. É verdade que os namorados são uns tolos! Vamos, tens alguma razão? Se tens, falla; ninguem é tolo sem ter razão. Demais, eu tenho algodão nos ouvidos, talvez ouvisse mal, repete o que disseste. Gilliatt replicou: --Disse que não. --Disseste que não. E teima o bruto! Tens alguma cousa, é claro! Disseste que não! É uma estupidez que passa os limites do mundo conhecido. Por muito menos dão-se banhos medicinaes a uma creatura. Ah! tu não amas Deruchette! Então foi por amor do velhote que fizeste tudo isto! Foi pelos bonitos olhos do papá que foste ás Douvres, que tiveste frio, que tives calor, que tiveste fome e sede, que comeste bichos do rochedo, que tiveste por quarto de dormir o nevoeiro, a chuva e o vento, e que me trouxeste a machina como se traz a uma mulher bonita o canario que fugio? E a tempestade de ha tres dias! Se tu imaginas que eu não faço idéa do que passaste! Estiveste em boas! Foi então com o pensamento em mim que cortaste, rachaste, viraste, arrastaste, limaste, serraste, inventaste, e fizeste tantos milagres, tu só, mais que todos os santos do paraiso? Ah! idiota! Pois olha que me aborreceste com a tua sanphona! Na Bretanha chama-se _biniou._ Sempre a mesma toada, animal! Ah! tu não amas Deruchette! Não sei o que tens. Lembra-me agora, eu estava neste canto, Deruchette disse: Casava-me. E hade casar comtigo. Ah! não a amas! Feitas as reflexões, eu não comprehendo nada. Ou tu estaes doudo ou eu! E não diz palavra! Não é licito fazer o que fizeste e dizer no fim: não amo Deruchette. Não se faz um obzequio á gente para obrigal-a a ficar com raiva. Pois bem, se não te casas com ella, Deruchette não se casa com pessoa alguma, fica para tia. Em primeiro lugar, preciso de ti. Serás piloto da Durande. Se cuidas que vou deixar-te ir assim! Ta, ta, ta, nada, meu amigo, já te não largo. És meu. Nem te quero ouvir. Onde ha um marinheiro como tu? És o meu homem. Mas falla, com os diabos! O sino tinha accordado a gente da casa e da visinhança. Doce e Graça tinham-se levantado e acabavam de entrar na sala baixa, espantadas, sem dizer palavra. Graça trazia uma vela. Um grupo de vizinhos, burguezes, marinheiros e aldeãos, sabidos á pressa, estava fora no cáes, contemplando com pasmo e susto o cano da Durande na _pança._ Alguns, ouvindo a voz de Lethierry na sala baixa, começavam a entrar silenciosamente pela porta entre-aberta. Entre duas caras de comadres, passava a cabeça do Sr. Landoys que por acaso costumava sempre estar presente nos lugares onde sentiria se não estivesse. As grandes alegrias querem sempre um publico. Agrada-lhes o ponto de apoio um pouco esparso que offerece uma multidão; partem dahi. Mess Lethierry descobrio repentinamente que tinha gente a roda de si. Aceitou logo o auditorio. --Ah! vocês estão ahi? Que felicidade. Já sabem a noticia. Este homem lá foi e de lá trouxe aquillo. Bom dia, Sr. Landoys. Ainda ha pouco quando accordei vi o cano. Estava debaixo da minha janella. Não falta nem um prego. Fizeram-se gravuras de Napoleão; eu prefiro isto á batalha de Austerlitz. Sabem vocês da cousa. A Durande chegou emquanto dormiam. Emquanto se mettiam nos lençóes e apagavam as velas, ha pessoas que são heróes. Uns são covardes, vadios, aquecem os seus rheumatismos; felizmente isso não impede que hajam espiritos fogosos. Esses vão onde é preciso ir, fazem o que é preciso fazer. O homem da casa mal assombrada chegou do rochedo Douvres. Pescou a Durande do fundo do mar, pescou o dinheiro da algibeira de Clubin, abysmo mais profundo que o outro. Mas como fizeste isto? Tinhas todos os diabos contra ti, o vento e a maré, a maré e o vento. É verdade que tu és feiticeiro. Os que dizem isso já não são tão pascacios. Voltou a Durande! em vão se enfurecem as tempestades, este estrangula-as. Meus amigos, annuncio-lhes que já não ha naufragios. Já examinei a machina. Está como nova, está completa! Movem-se os cylindros tão facilmente como dantes. Parecia novinha em folha. Sabem que a agua que sahe é levada para fora do navio por um tubo colocado em outro tubo por onde passa agua que entra, para utilisar o calor; pois bem, os dous tubos estão salvos. A machina toda! as rodas tambem! Ah! has de casar com ella! --Com quem? com a machina? perguntou o Sr. Landoys. --Não, a pequena. Sim, a machina. Ambas. Ha de ser duas vezes meu genro. Good bye, capitão Gilliatt. Vamos ter Durande! Vamos fazer negocio, vai haver circulação e commercio, e transporte de bois e carneiros! Não troco Saint-Sampson por Londres. E aqui está o autor. Digo-lhes que é uma aventura. Ha de ler-se isto sabbado na gazeta de Mauger. O engenhoso Gilliatt é um finorio. Que dinheiro é este em ouro? Mess Lethierry acabava de ver, pela fresta da tampa, que havia ouro na caixinha posta sobre as notas de banco. Pegou nella, abrio-a, esvasiou-a na palma da mão, e pôz o punhado de guinéos sobre a mesa. --Para os pobres. Sr. Landoys, dê estes pounds da minha parte ao condestavel de Saint-Sampson. Sabe da carta de Rantaine? Mostrei-lh'a outro dia; pois bem; aqui estão as notas do banco. Com isto posso comprar carvalho e pinho, e fazer a carpintaria. Veja. Lembra-se do tempo que houve ha tres dias? Que ataque de vento e de chuva! O céo disparava tiros de canhão. Gilliatt recebeu tudo isso nas Douvres, sem que lhe obstasse o desaferrar o navio como eu tiro o meu relogio da parede. Graças a Gilliatt, já sou alguem. A galeota do pai Lethierry vai continuar o serviço, senhores e senhoras. Uma casca do noz com duas rodas, e um tubo de cachimbo, foi sempre a minha mania. Disse sempre comigo: Hei de fazer uma machina destas! Data de longe; foi uma idéa que tive em Pariz, no café que faz a esquina da rua Christina e da rua Delphina, lendo um jornal que fallava do invento. Sabem que Gilliatt era capaz de metter a machina de Marly na algibeira e passear com ella? Este homem é de ferro batido, é aço de tempera, é diamante, um marujo de polpa, um ferreiro, um rapazola extraordinario, mais espantoso que o principe Hohenlohe. A isto chamo eu um homem de engenho. Nós não valemos nada. Os lobos do mar somos nós; o leão de mar é elle. Hurrah, Gilliatt! Não sei o que elle fez, mas certamente fez o diabo, e como é que não lhe hei dar Deruchette! Desde alguns instantes Deruchette entrara na sala. Não dissera palavra, não fizera rumor. Entrou como uma sombra. Assentára-se, quasi desapercebida, em uma cadeira por traz de mess Lethierry de pé, loquaz, tempestuoso, alegre, abundante de gestos, e fallando em voz alta. Um pouco atraz della, veio outra apparição muda. Um homem vestido de preto, de gravata branca, com o chapéo na mão, parára na abertura da porta. Havia agora muitas velas no grupo lentamente engrossado. As luzes batiam de lado no homem vestido de preto; o seu perfil, de alvura joven e deliciosa, desenhava-se no fundo obscuro com urna pureza do medalha; apoiava o cotovello n'uma almofada da porta, e tinha a fronte na mão esquerda, attitude que lhe era graciosa, sem ser meditada, e que fazia valer a grandeza da fronte na pequenez da mão. Havia uma ruga de angustia no centro de seus labios contrahidos. Examinava e ouvia com attenção profunda. Os assistentes, tendo reconhecido o reverendo Ebeneser Caudray, cura da parochia, tinham-se affastado para deixal-o passar, mas elle ficou na soleira. Havia hesitação na sua postura e decisão no seu olhar. O olhar de quando em quando encontrava o de Deruchette. Quanto a Gilliatt, ou por acaso ou de proposito, estava na sombra, e mal se podia vêl-o. Mess Lethierry não vio ao principio o Sr. Ebeneser, mas vio Deruchette. Foi a ella, e beijou-a com toda a soffreguidão que póde ter um beijo na fronte. Ao mesmo tempo estendia o braço para o canto escuro onde estava Gilliatt. --Deruchette, disse elle, estás outra vez rica, e o teu marido é aquelle. Deruchette levantou a cabeça desvairada e olhou para a sombra. Mess Lethierry continuou: --Ha de se fazer o casamento quanto antes, amanhã se fôr possivel, hão de haver dispensas, mas as formalidades são simples, o decano faz o que quer, casa-se a gente antes de gritar: guarda de baixo! não é como em França, onde se precisam banhos, publicações, dilações, um chuveiro de formalidades, e tu serás mulher de um homem valente, e não ha que dizer, é um marinheiro, sempre o pensei desde o dia em que o vi voltar de Herm com a peça de artilheria. Agora volta das Douvres, com a sua fortuna, e a minha, e a fortuna da terra; é um homem que hade dar que fallar; tu disseste: caso-me com elle; pois has de casar; e hão de ter filhos, e eu serei avô, e terás fortuna de ser a lady de um rapagão sério, que trabalha, que é util, que é sorprehendente, que vale por cem, que salva as invenções dos outros, que é uma providencia, e ao menos não casarás, como todas as raparigas ricas deste lugar, com um soldado ou um padre, isto é o homem que mata e o homem que mente. Mas que fazes ahi mettido no canto, Gilliatt? Ninguem te vê. Dôce! graça! todos! luzes! Illuminem o meu genro a giorno. Caso-os, meus filhos, e eis teu marido, e eis o meu genro, o Gilliatt da casa mal assombrada, o grande marinheiro, e eu não terei outro genro, e não terás outro marido, torno a dar a minha palavra de honra a Deos. Ah! Ah! é Vossa Reverendissima, senhor cura, ha de casar-me estes pequenos. O olhar de mess Lethierry acabava de cahir no reverendo Ebeneser. Doce e graça tinham obedecido. Duas velas postas na mesa illuminavam Gilliatt da cabeça aos pés. --Como está bonito! gritou Lethierry. Gilliatt estava hediondo. Estava tal qual sahira, naquella manhã, do escolho Douvres, em frangalhos, os cotovellos rotos, a barba longa, os cabellos eriçados, os olhos queimados e vermelhos, a face esfolada, as mãos sangrentas; tinha os pés descalços. Algumas das pustulas da pieuvre estavam visiveis nos braços cabeludos. Lethierry contemplava-o. --É o meu verdadeiro genro. Como se bateu com o mar! está em frangalhos! Que hombros! que pés! Como és bello! Graça correu a Deruchette, amparou-lhe a cabeça. Deruchette tinha desmaiado. II A MALA DE COURO Desde madrugada Saint-Sampson estava de pé e Saint-Pierre Port começava a chegar. A ressurreição de Durande fazia na ilha um rumor comparavel ao que fez no meio dia da França a Salette. Havia multidão no caes para contemplar o cano que sabia da _pança._ Tinham vontade de ver e tocar na machina, mas Lethierry, depois de repetir, e á luz do dia, a inspecção triumphante da mecanica, tinha posto na _pança_ dous marinheiros encarregados de impedir que ninguem se approximasse. O cano, porém, bastava á contemplação. A multidão pasmava. Só se fallava de Gilliatt. Commentava-se e acceitava-se a alcunha de engenhoso, a admiração acabava sempre por esta phrase: «Nem sempre é agradavel ter na ilha gente capaz de fazer cousas destas.» De fóra via-se mess Lethierry assentado á mesa diante da janella e escrevendo, com um olho no papel, e outro na machina. Estava de tal modo absorto que apenas uma vez interrompeu-se para gritar: Doce! e para pedir noticias de Deruchette. Doce respondeu: «A menina levantou-se e sahio.» Mess Lethierry disse: «Faz bem em tomar ar. Esteve incommodada de noite por causa do calor. Havia muita gente na sala. E depois a sorpreza, a alegria e as janellas fechadas. Vai ter um marido soberbo!» E tornou a escrever. Já tinha escripto e fechado duas cartas dirigidas aos mais notaveis constructores de Bremen. Acabava de fechar a terceira. O rumor de uma roda no caes fez-lhe levantar a cabeça. Inclinou-se á janella, e vio desembocar do atalho que ia ter á casa de Gilliatt um rapaz empurrando um carrinho de mão. O rapaz dirigia-se para o lado de Saint-Pierre Port. Havia no carrinho uma mala de couro amarella com pregos de cobre e estanho. Mess Lethierry fallou ao rapaz. --Onde vás? O rapaz parou, e respondeu: --Ao _Cashmere._ --Para que? --Levar esta mala. --Pois bem, levarás tambem estas tres cartas. Mess Lethierry abrio a gaveta da mesa, e pegou num pedaço de barbante, enlaçou as tres cartas que acabava de escrever, e atirou o embrulho ao rapaz que o recebeu no ar entre as duas mãos. --Dirás ao capitão do _Cashmere_ que sou eu quem escrevo, e que elle tenha cuidado com ellas. É para a Allemanha. Bremen via London. --Nào fallarei ao capitão, mess Lethierry. --Porque? --O _Cashmere_ não está no cáes. --Ah! --Está na barra. --É justo, por causa do mar. --Só posso fallar ao patrão do escaler. --Recommenda-lhe as minhas cartas. --Sim, mess Lethierry. --A que horas parte o _Cashmere?_ --Ao meio-dia. --Ao meio-dia hoje, é a enchente da maré. Tem contra si a maré. --Mas tem vento de feição. --Rapaz, disse mess Lethierry pondo o dedo index no cano da machina, vês isto? isto zomba do vento e da maré. O rapaz pôz as cartas na algibeira, pegou outra vez no carrinho, e continuou a viagem para a cidade. Mess Lethierry chamou:--Doce! Graça! Graça entreabrio a porta. --Que ha, mess? --Entra e espera. Mess Lethierry pegou n'uma folha de papel e começou a escrever; se Graça, de pé atraz delle, fosse curiosa e esticasse o pescoço, poderia ler por cima do hombro, isto: «Escrevo a Bremen para ver madeira. Tenho de fallar durante o dia aos carpinteiros para a avaliação. Vai ter á casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possivel, e já, será melhor. Estou tratando de Durande, trata tu de Deruchette.» Datou e assignou Lethierry. Não se deu ao trabalho de fechar a carta, dobrou-a simplesmente em quatro e deu-a a Graça. --Leva isto a Gilliatt. LIVRO TERCEIRO A Partida do _Cashmere_ I O ANGRAZINHA PROXIMA DA IGREJA Saint-Sampson não póde estar apinhado de gente sem que Saint-Pierre Port fique deserto. Uma cousa curiosa n'um ponto dado é uma bomba aspirante. As noticias correm depressa nas terras pequenas; ir ver o cano da Durande debaixo da janella de mess Lethierry foi desde o romper do dia a grande occupação de Guernesey. Qualquer outro acontecimento desapparecia diante desse. Eclypse da morte do decano de Saint-Asaph; já ninguem curava do reverendo Ebeneser Caudray, nem da sua repentina riqueza, nem da sua partida no _Cashmere._ A machina da Durande trazida das Douvres estava na ordem do dia. Ninguem acreditava. O naufragio parecera extraordinario, mas o salvamento parecia impossivel. Todos queriam ver com os seus proprios olhos. Todas as occupações ficaram suspensas. Longas fileiras de burguezes em familia, desde o _vesin_ até o mess, homens, mulheres, gentlemen, mais com filhos e filhos com bonecas, dirigiam-se por todas as estradas para _ver a cousa_, em Bravées, e davam-se as costas a Saint-Pierre Port. Muitas lojas de Saint-Pierre Port estavam fechadas; no _Commercial Arcade_, estagnação absoluta de venda e de negocio; toda a attenção estava voltada para a Durande; nenhum mercador estreou, excepto um ourives que se maravilhava de ter vendido um anel de ouro para casamento--«a uma especie de homem que parecia muito appressado e que lhe perguntou onde morava o Sr. decano.» As lojas que ficaram abertas eram os lugares de conversa onde se commentava ruidosamente o milagroso salvamento da machina. Ninguem passeava na Hyvresse, que se chama hoje, não se sabe por que, Cambridge-Park; ninguem em High-Street, que se chamava então a Rua Grande, nem era Smith Street, que se chamava a Rua das Forjas; ninguem em Hauteville; a propria Esplanada estava deserta. Dissera-se um domingo. Uma alteza real, que alli fosse de visita, e passasse em revista a milicia de Ancrese não despovoaria melhor a cidade. Todo aquelle abalo a proposito de uma cousa á tôa como Gilliatt fazia erguer os hombros aos homens graves e ás pessoas correctas. A igreja de Saint-Pierre Port, triplice carreta sobreposta com trancepto e flecha, fica situada á beira da praia no fundo do porto quasi sobre o desembarque. Dá a saudação aos que chegam e o adeus aos que sabem. Aquella igreja é a maiuscula de uma longa linha que faz a fachada da cidade sobre o oceano. É ao mesmo tempo a parochia de Saint-Pierre Port o chefe de toda a ilha. Tem por parocho o subrogado do bispo, clergyman com plenos poderes. O ancoradouro de Saint-Pierre Port, hoje largo e magnifico porto, era naquella época, e ainda ha dez annos, menos consideravel que o ancoradouro de Saint-Sampson. Eram duas grossas paredes cyclopicas curvas partindo da praia a estibordo e bombordo e ligando-se quasi na extremidade, onde havia um pharolsinho branco. Debaixo daquelle pharol uma garganta, que ainda tinha as duas argolas da corrente que a fechava na idade média, dava passagem aos navios. Imaginem uma unha de lagosta aberta, era o ancoradouro de Saint-Pierre Port. Aquella tenaz tomava ao mar um pouco de agua que obrigava a ficar tranquilla. Mas com vento d'Este, havia marulho na entrada, o porto ficava agitado, e era acertado não penetrar lá. Foi o que fez nesse dia o _Cashmere_, que ficou fóra. Os navios, quando soprava o Este, faziam isso que, no fim das contas, economisava as despezas do porto. Nesses casos, os bateleiros da cidade, tribu valente de marinheiros que o novo porto destituira, iam tomar em seus barcos os viajantes, ou no cáes, ou nas estações da praia, e os transportavam, a elles e ás bagagens, muitas vezes com marés agitadas e sempre sem accidente, aos navios que deviam sahir. O vento d'Este é um vento de flanco muito bom para ir á Inglaterra; o mar é agitado sem que o navio estremeça. Quando o navio ficava no porto, todos embarcavam no porto; quando estava fóra, podia-se escolher uma das costas visinhas do ancoradouro do navio. Achava-se em todas as angras bateleiros á vontade. A Angrazinha era dessas. Aquelle cáes ficava proximo á cidade, mas tão solitario, que parecia longe. Devia a solidão ás duas grandes penedias do forte de S. Jorge que dominavam aquelle sitio discreto. Chegava-se á Angrazinha por caminhos diversos. O mais directo ia pela praia; tinha a vantagem de ir dar á cidade e á igreja em cinco minutos, e o inconveniente de ser coberto pela maré duas vezes por dia. Outros caminhos, mais ou menos abruptos, mergulhavam nas anfractuosidades dos rochedos. A Angrazinha, mesmo em pleno dia, ficava numa penumbra. Grandes pedras amontoadas pendiam de todos os lados. Haviam espessuras de espinhos, fazendo uma especie de noite suave naquella desordem de rochas e vagas; nada mais aprazivel do que aquella angra em tempo calmo, nada mais tumultuoso nas grossas aguas. Haviam pontas de galhos perpetuamente molhados pela escuma. Na primavera ficava cheia de flôres, ninhos, perfumes, aves borboletas e abelhas. Graças aos trabalhos recentes, essa selvageria já não existe; foi substituida por bellas linhas rectas; ha obras de pedreiro, cáes, jardins; tudo foi derrubado; o gosto destruio as extravaganeias da montanha e a incorrecção dos rochedos. II O DESESPERO DIANTE DO DESESPERO Era pouco menos de dez horas da manhã: o quarto de hora antes, como se diz em Guernesey. O povo, segundo todas as apparencias, ia engrossando em Saint-Sampson. A população febricitante de curiosidade, ia toda para o norte da ilha, de maneira que a Angrazinha, que fica ao sul, estava mais deserta que nunca. Comtudo, via-se ahi um bote e um remador. No bote havia um sacco de viagem. O bateleiro parecia esperar. Via-se ao largo o _Cashmere_ ancorado, que devendo partir lá para o meio dia, não fazia nenhum movimento de apparelho. O viandante que, do qualquer dos caminhos-escadas tivesse prestado o ouvido, ouviria um murmurio de palavras na Angrazinha, e inclinando-se por cima, veria, a alguma distancia do bote, n'um recanto de pedra e galhos onde não podia penetrar o olhar do bateleiro, duas pessoas, um homem e uma mulher, Ebeneser e Deruchette. Esses asylos obscuros das praias, que tentam as banhistas, não são tão solitarios como se pensa. Ás vezes espreita-se e ouve-se de fóra. Os que se refugiam podem ser facilmente acompanhados atravez das espessuras das vegetações, e graças á multiplicidade e entravamento dos atalhos. Os granitos e arvores que escondem o refugiado, podem esconder tambem uma testemunha. Deruchette e Ebeneser estavam de pé diante um do outro, com o olhar no olhar; tinham as mãos presas. Ebeneser estava calado. Uma lagrima engrossada e presa entre os seus cilios hesitava em cahir, e não cahia. A desolação e a paixão estavam impressas na fronte religiosa de Ebeneser. Havia tambem uma resignação pungente, hostil á fé, embora derivasse della. Naquelle rosto, simplesmente angelico até então, havia um começo de expressão fatal. Aquelle que até então só meditara sobre o dogma, entrava a meditar sobre a sorte, meditação nociva ao padre. Nessa meditação decompõe-se a fé. Nada perturba tanto o espirito como curvar-se ao peso do ignoto. O homem é o paciente dos acontecimentos. A vida é um perpetuo successo, imposto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catastrophes e as felicidades, entram e sahern como personagens inesperadas. Tem a sua fé, a sua orbita, a sua gravitação fóra do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciencia tem uma logica, a sorte tem outra; nenhuma coincidencia. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropello. A consciencia é a linha recta, a vida é o turbilhão. O turbilhão atira á cabeça do homem cachos negros e céos azues. A sorte não tem a arte das transições. Ás vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervallo de uma peripecia á outra e o laço de hontem a hoje. Ebenezer era um crente mesclado de raciocinio e um padre mesclado de paixão. As religiões celibatarias sabem o que fazem. Nada desfaz tanto o padre como amar uma mulher. Todas as especies de nuvens ensombravam Ebeneser. Contemplava demasiado Deruchette. Aquellas duas creaturas idolatravam-se. Havia na palpebra de Ebeneser a muda adoração do desespero. Deruchette dizia: --Não hade partir. Não tenho força para vêl-o ir-se embora. Eu acreditava poder despedir-me, e não posso. Ninguem é obrigado a poder. Porque foi hontem ao jardim? Não devia ir, se queria ir-se embora. Nunca lhe fallei. Amava-o, mas não o sabia. Somente, quando o Sr. Herodes leu a historia de Rebecca, e que os seus olhos encontraram os meus, senti as faces em fogo, e disse comigo: Oh! como Rebecca devia ter corado! Hontem se me dissessem que eu amaria o cura, ria-me. É o que ha de terrivel neste amor. Foi uma especie do traição. Não me acautelei. Ia á igreja, via-o, acreditei que todos eram como eu. Não lhe faço censura alguma, nada fez para que eu o ame, não se deu a nenhum trabalho, olhava-me, não é culpa sua se olha para as outras pessoas, e o resultado é que eu o adoro. Eu nem reparava. Quando as suas mãos pegavam n'um livro, era uma luz; quando os outros pegavam nelle, era apenas um livro. Ás vezes levantava os olhos para mim. Fallava dos archanjos, e era o archanjo. O que dizia, pensava-o eu logo. Antes de vêl-o não sei se acreditava em Deos. Depois que o vi, tornei-me uma mulher que faz as suas orações. Eu dizia a Doce: veste-me depressa, não quero faltar ao officio. E corria á igreja. Estar apaixonada por um homem, é isto. Eu não o sabia. Dizia comigo: Como estou devota! Depois de vêl-o é que soube que eu não ia á igreja por causa de Deos. Ia vêl-o é verdade. É formoso, falla bem, quando levanta os braços para o céo parece que tem o meu coração entre as suas duas mãos brancas. Eu estava louca. Ignorava-o. Quer que lhe diga a sua culpa? foi entrar hontem no jardim e fallar-me. Se nada me dissesse, eu nada saberia. Partiria, eu ficava triste, mas agora morrerei. Agora que eu sei que o amor não é possivel que se vá embora. Em que pensa? Parece que não me ouve. Ebeneser respondeu: --A senhora ouvio o que se disse hontem. --Ai, sim! --Que posso fazer? Calaram-se um momento. Ebeneser continuou: --Só uma cousa devo fazer agora. Partir. --E eu, morrer. Oh! eu quizera qne não houvesse mar, e só houvesse o céo! Parece-me que isto arranjaria tudo, e a nossa partida seria a mesma. Não devia fallar-me. Porque me fallou? Que será agora de mim? Digo-lhe que hei de morrer. Ha de ter ganho muito quando eu estiver no cemiterio. Oh! tenho o coração despedaçado. Desventurada que sou! E meu tio não é máo, comtudo. Era a primeira vez na sua vida que Deruchette dizia fallando de mess Lethierry, _meu tio._ Até então sempre dizia _meu pai._ Ebeneser recuou um pouco e fez um signal ao bateleiro. Ouvio-se o ruido de um croque nas pedras e o passo de um homem no bote. --Não! não! gritou Deruchette. Ebeneser approximou-se della. --É preciso, Deruchette. --Não, nunca! Por uma machina! Será possivel? Vio hontem aquelle homem horrivel? Não deve abandonar-ine. Tem intelligencia, ha de achar um meio. Não é possivel que me dissesse para vir aqui hoje, com a idéa de partir. Não lhe fiz nada. Não tem motivos de queixa de mim. É naquelle navio que quer ir? Não quero. Não me deixe. Não se abre o céo para tornal-o a fechar. Digo-lhe que ha de ficar. Demais ainda não bateu a hora. Oh! eu te amo! E unindo-se a elle, cruzou-lhe os dez dedos por traz do pescoço, como para fazer com os seus braços enlaçados em Ebeneser e com as suas mãos juntas uma oração a Deos. Elle deslaçou aquella cadêa delicada, que resistio emquanto pôde. Deruchette cahio assentada n'uma ponta de rocha coberta de hera, levantando com um gesto machinal a manga do vestido até o cotovello, mostrando o seu delicioso braço nú, com uma luz afogada e pallida nos olhos fixos. O bote approximava-se. Ebeneser segurou-lhe a cabeça nas mãos; aquella virgem tinha o ar de uma viuva e aquelle mancebo tinha o ar de um avô. Tocou-lhe os cabellos com uma especie de precaução religiosa; fitou os olhos nella durante alguns instantes, depositou-lhe na fronte um desses beijos debaixo dos quaes parece que deveria abrir uma estrella, e com uma voz que tremia na suprema angustia e onde se sentia a dilaceração da alma, disse-lhe esta palavra, a palavra das profundezas: Adeos! Deruchette rompeu em soluços. Neste momento ouviram uma voz lenta e grave que dizia: --Porque motivo não se casam? Ebeneser voltou a cabeça. Deruchette levantou os olhos. Gilliatt estava diante delles. Acabava de entrar por um atalho lateral. Gilliatt já não era o mesmo homem da vespera. Tinha penteado os cabellos, fez a barba, calçou os sapatos, vestio camisa branca de marinheiro com grandes collarinhos cabidos, vestio a roupa de marinheiro mais nova. Via-se um annel de ouro no dedo minimo. Parecia profundamente calmo. Estava livido. Bronze que soffre, tal era aquelle rosto. Os dous olharam para elle estupefactos. Embora não se podesse reconhecel-o, Deruchette reconheceu-o. Quanto ás palavras que elle acabava de pronunciar, estavam tão longe do que elles pensavam nesse momento, que resvalaram-lhe no espirito. Gilliatt continuou: --Que necessidade é essa de se dizerem adeos? Casem-se. Embarquem depois. --Deruchette estremeceu da cabeça aos pés. Gilliatt continuou: --Miss Deruchette tem vinte e um annos. É senhora de sua vontade. Seu tio é apenas seu tio. Amam-se... Deruchette interrompeu docemente. --Como é que o senhor está aqui? --Casem-se, continuou Gilliatt. Deruchette começava a perceber o que lhe dizia aquelle homem. Murmurou: --O meu pobre tio... --Recusaria se o casamento estivesse por fazer, disse Gilliatt, e consentirá quando o casamento estiver concluido. Demais vão embarcar ambos. Quando voltarem, elle os perdoará. Gilliatt accrescentou com um tom amargo: --E depois, elle já não pensa senão em construir o vapor. Isso o distrahirá durante a sua ausencia. Tem Durande para consolal-o. --Eu não quizera, balbuciou Deruchette n'um espanto misturado de alegria, não quizera deixar pesares indo-me embora... --Não durarão muito tempo os pesares, disse Gilliatt. Ebeneser e Deruchette tiveram uma especie de deslumbramento. Tranquillisaram-se. Na sua decrescente perturbação, iam entendendo as palavras de Gilliatt. Ainda havia alguma nuvem, mas a obrigação delles dous não era resistir ao conselho. Quem salva domina sempre. Fracas são as objecções quando se trata de voltar ao Eden. Havia na attitude de Deruchette, imperceptivelmente apoiada em Ebeneser, alguma cousa que fazia causa commum com o que dizia Gilliatt. Quanto ao enigma da presença daquelle homem e das suas palavras que, no espirito de Deruchette em particular, produziam muitas especies de assombro, eram questões á parte. Aquelle homem dizia-lhes: Casem-se. Era claro. Se houvesse uma responsabilidade era elle quem a tomava sobre si. Deruchette sentia confusamente que, por diversas razões, elle tinha o direito de faze-lo. O que elle dizia de mess Lethierry era verdade, Ebeneser pensativo murmurou: --Um tio não é um pai. Ebeneser sentia a corrupção de uma peripecia subita e feliz. Os escrupulos provaveis do padre fundiam-se e dissolviam-se naquelle pobre coração apaixonado. A voz de Gilliatt tomou-se breve e dura; sentia-se nella umas pulsações de febre: --Immediatamente. O _Cashmere_ parte daqui a duas horas. Tem tempo, mas não de sobra; venham ambos. Ebeneser examinava-o attentamente. De subito exclamou: --Conheço-o. Foi o senhor quem me salvou a vida. Gilliatt respondeu: --Não creio. --Lá adiante, na ponta dos Bancos. --Não conheço esse lugar. --No mesmo dia em que cheguei. --Não percamos tempo, disse Gilliatt. --E não me engano, o senhor é o homem de hontem á noite. --Talvez. --Como se chama? Gilliatt alçou a voz: --Ó do bote, espere-nos. Já voltamos. Miss, a senhora perguntou-me porque motivo estava eu aqui, é simples, eu acompanhei-os. A senhora tem vinte e um annos. Nesta terra quem chega a maioridade e depende de si casa-se em um quarto de hora. Tomemos o caminho da praia. Está praticavel, a maré ha de encher lá para o meio dia. Mas vamos já. Venham comigo. Deruchette e Ebeneser pareciam consultar-se com o olhar. Estavam de pé, juntinhos, sem mecher-se; pareciam ébrios. Ha dessas tentações extranhas á beira desse abysmo que se chama felicidade. Comprehendiam sem comprehender. --Elle chama-se Gilliatt, disse Deruchette baixinho a Ebeneser. Gilliatt continuou com uma especie de autoridade: --Que esperam? Já lhes disse que me acompanhassem. --Aonde? perguntou Ebeneser. --Alli. E Gilliatt mostrou com o dedo a torre da igreja. Os dous acompanharam-n'o. Gilliatt ia adiante. O seu passo era firme. Os dous vacillavam. Á proporção que se approxiraavam da torre, via-se despontar naquelle puros e bellos rostos de Ebeneser e Deruchette alguma cousa que seria dentro de pouco tempo o sorriso. A proximidade da igreja illuminava-os. Nos olhos fundos de Gilliatt haviam trevas. Dissera-se um espectro levando duas almas ao paraiso. Ebeneser e Deruchette não comprehendiam muito o que se estava passando. A intervenção daquelle homem era o ramo a que se agarra o affogado. Elles acompanhavam Gilliatt com a docilidade que o desespero tem para com a primeira pessoa que lhe apparece. Quem se sente morrer não é difficil em aceitar os incidentes. Deruchette, mais ignorante, era mais confiante. Ebeneser pensava. Deruchette era maior. As formalidades do casamento inglez são simplissimas, sobretudo nos paizes autochthones onde os parochos tem quasi um poder discricionario; mas o decano celebraria o casamento sem saber se o tio consentia? Havia uma questão nisto. Comtudo, podia-se tentar. Em todo o caso era uma delonga. Mas quem era aquelle homem? e se era elle quem na vespera, foi declarado genro de mess Lethierry, como explicar o que estava fazendo? Elle, que era o obstaculo, tornava-se a providencia. Ebeneser prestava-se a tudo, mas dava ao que se estava passando o consentimento tacito e rapido do homem que se sente salvo. O caminho era desigual, ás vezes molhado e difficil. Ebeneser absorto não prestava attenção aos charcos de agua e ás pedras. De quando em quando, Gilliatt, voltava-se e dizia a Ebeneser: Cuidado com essas pedras, dê-lhe a mão. III PREVIDENCIA DA ABNEGAÇÃO Soavam dez horas e meia quando elles entravam na igreja. Por causa da hora, e tambem por causa da solidão da cidade naquelle dia, a igreja estava vasia. No fundo, porém, perto da mesa que, nas igrejas reformadas, substitue o altar, haviam tres pessoas; eram o decano, o seu evangelista, e mais o lançador dos registros. O decano, que era o reverendo Jaquemin Herodes, estava assentado; o evangelista e o lançador estavam de pé. O Livro, aberto, estava sobre a mesa. Ao lado havia outro livro, era o registro da parochia, igualmente aberto, e no qual um olhar attento poderia notar uma pagina escripta de fresco. Uma penna e um tinteiro ficavam ao lado do registro. Vendo entrar o reverendo Ebeneser Caudray, o reverendo Jaquemin Herodes levantou-se. --Esperava-o, disse elle. Tudo está prompto. O decano, com effeito, estava com o habito de officiante. Ebeneser olhou para Gilliatt. O reverendo Herodes continuou: --Estou ás suas ordens, meu collega. E fez-lhe uma cortezia. A cortezia não foi nem para a esquerda nem para a direita. Era evidente, pela direcção do raio visual do decano, que, para elle, só Ebeneser existia. Ebeneser era clergyman e gentleman. O decano não comprehendia no seu comprimento nem Deruchette que estava ao lado, nem Gilliatt que estava atraz. Havia no seu olhar um parenthesis em que só Ebeneser era admittido. A manutenção destas distincções faz parte da boa ordem e consolida as sociedades. O decano continuou com uma amenidade graciosamente altiva: --Meu collega, faço-lhe o meu duplo comprimento. Morreu-lhe o tio, e o senhor casa-se; fica rico por um lado e feliz por outro. Demais, agora, graças a este vapor que vai ser restabelecido, miss Lethierry tambem é rica, o que eu approvo. Miss Lethierry nasceu nesta parochia, verifiquei a data do nascimento no livro dos assentos. Miss Lethierry é maior e dispõe de si. Depois, seu tio, que é toda a sua familia, consente. Querem casar-se já por causa da viagem, comprehendo, mas sendo este casamento o do cura da parochia, eu quizera mais alguma solemnidade. Abrevio para fazer-lhes o gosto. O essencial póde fazer-se no summario. O acto já está escripto no livro do registro que está aqui, e falta só pôr os nomes. Nos termos da lei e do costume, o casamento pode ser celebrado logo depois da inscripção. A declaração necessaria para a licença já foi feita. Tomo a responsabilidade de uma pequena irregularidade, porque o pedido de licença devia ser previamente registrado sete dias antes; mas eu reconheço a necessidade e a urgencia da partida, Seja. Vou casal-os. O meu evangelista, será a testemunha do esposo; quanto á da esposa... O decano voltou-se para Gilliatt. Gilliatt fez um signal de cabeça. --Basta, disse o decano. Ebeneser ficara immovel. Deruchette era o extasis petrificado. O decano continuou: --Ha porém um obstaculo. Deruchette fez um movimento. O decano continuou: --O enviado de mess Lethierry, que aqui está presente, e pedio a licença e assignou a declaração no registro,--e com o polegar da mão esquerda o decano indicou Gilliatt, o que o isentava de articular nenhum nome,--o enviado de mess Lethierry disse-me esta manhã que mess Lethierry, por muito occupado, não podia vir, e desejava que o casamento se fizesse incontinenti. Esse desejo, verbalmente expresso, não é sufficiente. Não posso, por causa das dispensas e da irregularidade que tomo sobre mim, ir além disto sem imformar-me de mess Lethierry, a menos que não me mostrem a assignatura delle. Qualquer que seja a minha boa vontade, não posso contentar-me com uma palavra que me repetem. Preciso de um escripto. --Não sirva isso de empecilho, disse Gilliatt. E apresentou ao decano um papel. O decano pegou no papel, percorreu com um olhar, pareceu passar algumas linhas, sem duvida, inuteis, e leu alto: --«...Vai ter á casa do decano para arranjar as dispensas. Desejo que o casamento se faça o mais cedo possivel, e já, será melhor.» Poz o papel em cima da mesa e continuou: --Assignado Lethierry. A cousa seria mais respeitosa se fosse dirigida a mim. Mas como se trata de um collega, não exijo mais. Ebeneser olhou de novo para Gilliatt. Ha almas que se entendem. Ebeneser sentia naquillo uma fraude; e não teve força, não teve mesmo idéa, de denuncial-a. Ou fosse obediencia a um heroismo latente que elle antevia, ou fosse que se lhe aturdisse a consciencia pela ventura subita, Ebeneser não teve palavras. O decano tomou a penna e encheu, com auxilio do lançador dos assentos, os claros da pagina escripta no livro, depois levantou-se, e com o gesto, convidou Ebeneser e Deruchette, a aproximar-se da mesa. Começou a ceremonia. Ebeneser e Deruchette estavam ao pé um do outro diante do ministro. Quem tiver sonhado que se está casando saberá o que elles sentiam. Gilliatt estava a alguma distancia na obscuridade dos pillares. Deruchette ao levantar-se da cama, desesperada, pensando no tumulo e no sudario, vestira-se de branco. Esta idéa de morte veio a proposito para as nupcias. O vestido branco fez della uma noiva. Tambem os tumulos são esponsaes. Deruchette irradiava. Nunca foi o que era naquelle instante. Deruchette tinha o defeito de ser demasiado linda e não bastante formosa. A sua belleza peccava, se é peccar, por excesso de graça. Deruchette em repouso, isto é, fóra da paixão e da dôr, já o dissemos, era sobretudo gentil. A transfiguração da moça encantadora é a virgem ideal. Deruchette, engrandecida pelo amor e pelo soffrimento, tinha tido esse progresso, deixem passar a palavra. Tinha a mesma candura, com mais dignidade, a mesma frescura com mais perfume. Era uma especie de bonina que se torna lyrio. Tinha no rosto signaes de lagrimas estanques. Havia ainda talvez uma lagrima no canto do sorriso. As lagrimas estanques, vagamente visiveis, são um sombrio e doce ornato da felicidade. O decano, de pé perto da mesa, poz um dedo na Biblia aberta e perguntou em voz alta: --Ha opposição? Ninguem respondeu. --Amen, disse o decano. Ebeneser e Deruchette deram um passo para o Rev. Jaquemin Herodes. O decano disse: --Joë Ebeneser Caudray, queres esta mulher por tua esposa? Ebeneser respondeu: --Quero. O decano contiunou: --Durande Deruchette Lethierry, queres este homem por teu marido? Deruchette na agonia da alma demasiado feliz, como a da lampada demasiado cheia de oleo, murmurou em vez de pronunciar: --Quero. Então, segundo o bello rito do casamento anglicano, o decano olhou em roda de si, e fez na sombra da igreja esta solemne pergunta: --Quem dá esta mulher a este homem? --Eu, disse Gilliatt. Houve um momento de silencio. Ebeneser e Deruchette sentiram uma vaga oppressão atravez da sua felicidade. O decano poz a mão direita de Deruchette na mão direita de Ebeneser, e Ebeneser disse a Deruchette: --Deruchette, tomo-me por minha mulher, quer sejas melhor ou peior, mais rica ou mais pobre, doente ou com saude, para amar-te ate á morte, e dou-te a minha fé. O decano pôz a mão direita de Ebeneser na mão direita de Deruchette, e Deruchette disse a Ebeneser: --Ebeneser, tomo-te por meu marido, quer sejas melhor ou peior, mais rico ou mais pobre, doente ou com saude, para amar-te e obedecer-te até á morte, e dou-te a minha fé. O decano continuou: --Onde está o annel? Isto era o imprevisto. Ebeneser não tinha annel. Gilliatt tirou o annel de ouro que tinha no dedo minimo e apresentou ao decano. Era provavelmente o annel de casamento comprado de manhã ao ourives de Commercial--Arcade. O decano pôz o annel no livro, depois entregou-o a Ebeneser. Ebeneser pegou na mãosinha esquerda, tremula, de Deruchette, metteu o annel no quarto dedo, e disse: --Desposo-te com este annel. --Em nome do Padre, do Filho e do Espirito-Santo, disse o decano. --Assim seja, disse o evangelista. O decano alçou a voz: --Estaes casados. --Assim seja, disse o evangelista. O decano continuou: --Oremos. Ebeneser e Deruchette voltaram-se para a mesa e ajoelharam-se. Gilliatt que estava de pé inclinou a cabeça. Elles ajoelhavam-se diante de Deos, Gilliatt curvava-se ao destino. IV «PARA TUA MULHER QUANDO TE CASARES» Sahindo da igreja viram o _Cashmere_ que começava a apparelhar. --Chegam a tempo, disse Gilliatt. Seguiram pelo caminho da Angrazinha. Os dous iam adiante, Gilliatt agora caminhava atraz. Eram dous somnambulos. Mudára apenas o atordoamento. Não sabiam nem onde estavam nem o que faziam; apressavam-se machinalmente, não se lembravam da existencia de cousa alguma, sentiam-se um outro, não podiam ligar duas idéas. Não póde pensar quem está em extasis, como não póde nadar quem está n'uma torrente. Pareciam ir penetrando n'um paraiso. Não se fallavam, conversavam com a alma. Deruchette apertava contra si o braço de Ebeneser. O passo de Gilliatt atraz delles fazia-lhes ver que elle estava presente. Iam profundamente commovidos, mas sem dizer palavra; o excesso da commoção transforma-se em estupefacção. A delles era deliciosa, mas acabrunhava. Estavam casados. Adiavam o resto, esperavam voltar, o que Gilliatt fez era bem feito, eis tudo. O fundo desses dous corações agradecia-lhe ardente e vagamente. Deruchette dizia comsigo que havia alguma cousa para deslindar, mais tarde. Entretanto, aceitavam o facto. Sentiam-se á discrição daquelle homem decisivo e subito, que, por autoridade, fazia a felicidade delles dous. Fazer-lhes perguntas, conversar com elle, era impossivel. Eram de sobejo as impressões que se lhes precipitavam em cima ao mesmo tempo. Estavam engolphados; era perdoavel. Os factos são ás vezes uma saraiva. Crivam a creatura. Ensurdecem. A precipitação dos incidentes, cahindo em existencias habitualmente calmas, tornam logo inintelligiveis os acontecimentos aos que os soffrem ou delles se aproveitam. Não se póde conhecer a sua propria ventura. Fica-se esmagado sem adivinhar, venturoso sem comprehender. Deruchette, em particular, desde algumas horas recebera todas as commoções; primeiramente a fascinação, Ebeneser no jardim; depois o pesadelo, aquelle monstro declarado seu marido; depois a desolação, o anjo abrindo as azas e prestes a partir; agora era a alegria, uma alegria inaudita, com um fundo indecifravel; o monstro dava-lhe o anjo; o casamento sahia da agonia; o Gilliatt, catastrophe de hontem, salvação de hoje. Deruchette não comprehendia nada. Era evidente que desde manhã Gilliatt não teve outra occupação se não a de casal-os; fez tudo; respondeu por mess Lethierry, fallou ao decano, pedio licença, assignou a declaração necessaria; eis-ahi como se realisou o casamento. Mas Deruchette não comprehendia nada; de mais, mesmo quando ella comprehendesse o como, não comprehenderia o porque. Fechar os olhos, agradecer mentalmente, esquecer a terra e a vida, deixasse levar para o céo por aquelle bom demonio, eis o que lhe cumprir fazer. Esclarecer seria longo, agradecer não seria bastante. Deruchette calava-se naquelle doce embrutecimento da ventura. Restava-lhe ainda algum pensamento, sufficiente para guial-a. Debaixo d'agua ha pedaços de esponja que ficam brancos. Elles tinham a somma de lucidez necessaria para distinguir o mar da terra e o _Cashmere_ de qualquer outro navio. Dentro de poucos minutos estavam elles na Angrazinha. Ebeneser foi o primeiro a entrar no bote. No momento em que Deruchette ia acompanhal-o, sentio a sua manga docemente puxada. Era Gilliatt que tinha posto um dedo numa dobra do vestido. --Senhora, disse elle, não esperava partir. Eu cuido que naturalmente ha de precisar de vestidos e roupa. Achará a bordo do Cashmere um caixotinho com objectos de mulher. Foi minha mãe quem m'o deu. Era destinado á mulher com quem eu casasse. Consinta que lh'o offereça. Deruchette accordou a meio do sonho em que estava. Voltou-se para Gilliatt. Gilliatt, em voz baixa e que mal se ouvia, continuou: --Agora, não é para demoral-a, mas, olhe, eu creio que devo explicar-lhe uma cousa. No dia em que houve aquella desgraça, a senhora estava assentada na sala baixa, e disse umas palavras. Não se lembra disso, é natural. Ninguem é obrigado a lembrar-se das palavras que diz. Mess Lethierry soffria muito. A verdade é que era um bello navio e prestimoso. O desastre aconteceu; a terra estava alvoroçada e compungida, são cousas que naturalmente se esquecem. Só havia aquelle navio perdido na costa. Não se pode pensar sempre em um accidente. Sómente o que eu queria dizer é que, como se dizia que ninguem era capaz de lá ir, eu fui. Diziam elles que era impossivel; não era impossivel aquillo. Agradeço-lhe o prestar-me attenção por alguns instantes. Comprehende a senhora que se eu lá fui ao escolho, não foi para offendel-a. Demais, a cousa data de longe. Eu sei que está com pressa. Se houvesse tempo, fallariamos, recordariamos, mas isso de nada serve. A cousa data de um dia em que cahio neve. E depois eu passei uma vez, e cuido tel-a visto sorrir. É assim que tudo se explica. Quanto ao que se passou hontem, eu não tive tempo de ir á casa, acabava do trabalho, estava todo rasgado, metti-lhe medo, a senhora desmaiou, fiz mal, não se entra assim na casa dos outros, peço-lhe que me perdôe. É isto mais ou menos o que eu queria dizer-lhe. Vai partir. Tem um bello tempo. Acha justo que eu lhe fallo, não? é o ultimo minuto. --Penso na caixinha, respondeu Deruchette. Por que não hade guardal-a para sua mulher, quando se casar? --Senhora, disse Gilliatt, provavelmente eu não me casarei nunca. --Pois é pena, porque é uma boa alma. Obrigada. E Deruchette sorrio. Gilliatt retribuio-lhe com outro sorriso. Depois ajudou Deruchette a entrar no escaler. Menos de um quarto de hora depois, o escaler onde iam Ebeneser e Deruchette atracava ao _Cashmere._ V A GRANDE TUMBA Gilliatt seguio pela praia, parou rapidamente em Saint-Pierre Port, depois caminhou para Saint-Sampson ao longo do mar, fugindo aos encontros, evitando as estradas cheias de caminhantes, por culpa delle. Desde muito tempo, como se sabe, Gilliatt tinha um modo de atravessar a terra em todos os sentidos sem ser visto por ninguem. Conhecia os atalhos, fez para si itinerarios isolados e em zig-zags: tinha o habito feroz do ente que não se julga estimado; andava de longe. Ainda criança, vendo pouco agasalho no rosto dos homens, tomou o costume, que depois tornou-se-lhe instincto, de andar sempre affastado. Passou a Esplanada, depois a Saleria. De tempos a tempos, voltava-se e olhava para o _Cashmere_ na barra, que lhe ficava por traz; e o _Cashmere_ abria as velas. Havia pouco vento, Gilliatt ia mais depressa que o _Cashmere._ Gilliatt caminhava nas rochas extremas da praia, com a cabeça baixa. A maré começava a subir. Em certo momento parou, e voltando as costas para o mar, contemplou durante alguns minutos, além dos rochedos que escondiam a estrada do Valle, uma moita de carvalhos. Eram os carvalhos do lugar chamado Baisses Maisons. Foi alli, debaixo daquellas arvores, que outrora o dedo de Deruchette escreveu o nome de Gilliatt na neve. Havia muito tempo que essa neve estava desfeita. Proseguio no caminho. O dia estava mais bello que nenhum outro naquelle anno. A manhã tinha um quê de nupcial. Era um desses dias vernaes em que Maio ostenta-se todo inteiro; a creação parecia não ter outro fim que dar uma festa e fazer a propria felicidade. Sob todos aquelles rumores, da floresta como da aldêa, da vaga como da athmosphera, sentiam-se uns sons de arrulho. As primeiras borboletas pousavam nas primeiras rosas. Tudo era novo na natureza, as hervas, os musgos, as folhas, os perfumes, os raios. Parecia que o sol nunca tinha sorvido. Os seixos estavam lavados de fresco. A profunda canção das arvores era cantada por aves nascidas na vespera. Era provavel que a casquinha do ovo quebrada pelo biquinho dessas aves, ainda estivesse no ninho. Ensaios de azas romurejavam nas folhas tremulas. Cantavam o primeiro canto, davam o primeiro vôo. Era uma doce conversa de todos a um tempo, poupas, melharucos, pintasilgos, barbiruivos, pardaes. Os lilases, os lyrios, os daphnes, as glycinas, compunham nas moitas uma deliciosa variedade de côres. Uma linda lentilha aquatica que ha em Guernesey cobria as lagôas de uma toalha de esmeralda. Banhavam-se as arveloas nas lagôas, onde costumam fazer tão graciosos ninhos. Via-se o céo atravez de todas as falhas da vegetação. Algumas nuvens lascivas perseguiam-se no ar ondeando como nymphas. Como que se sentia a passagem de beijos mandados por bocas invisiveis. Nenhum velho muro deixava de ter, como um noivo, o seu ramalhete de gyrofleas. Os abrunheiros sylvestres e os codeços estavam em flôr; viam-se aquelles montinhos brancos luzindo e aquelles montinhos amarellos fulgurando atravez do cruzamento dos ramos. A primavera atirava toda a sua prata e ouro no immenso cesto rasgado dos bosques. Os pimpolhos novos eram verdes de fresco. Ouvia-se no ar um grito de saudação. Estio hospitaleiro abria a porta aos passaros longinquos. Era a hora da chegada das andorinhas. Os thyrsos dos juncos orlavam os caminhos cavados, esperando os thyrsos dos pilriteiros. O bello e o lindo faziam boa visinhança: o soberbo completava-se pelo gracioso; o grande não tolhia o pequeno; não se perdia nenhuma nota do concerto; as magnificencias microscopicas estavam em plano proprio naquella vasta belleza universal; distinguia-se tudo como n'uma agua limpida. Por toda a parte uma divina plenitude e um entumecimento mysterioso faziam advinhar o exforço panico e sagrado da seiva em acção. O que brilhava, brilhava mais; o que amava, amava melhor. Havia um hymno na flôr e uma irradiação no ruido. Escutava-se a grande harmonia diffusa. O que começava a despontar procurava o que começava a surdir. Uma turvação, que surgia debaixo, e vertia tambem de cima, agitava vagamente os corações, corruptiveis á influencia espessa e subterranea dos germens. A flôr promettia obscuramente o fructo, todas as virgens scismavam, a reproducção dos seres, premeditada pela immensa alma da sombra, esboçava-se na irradiação das cousas. Era o universal noivado. A vida, que é a esposa, abraçava o infinito, que é o esposo. O dia estava claro, formoso, e ardente; atravez das sebes, nas cercas, viam-se rir as crianças Algumas jogavam a palheta. As macieiras, os pecegueiros, as cerejeiras, as pereiras, cobriam os vergeis com os seus grossos tuffos pallidos ou vermelhos. Na relva, as primaveras, as pervincas, as mil-folhas, as margaridas, os amaryles, os jacinthos, as violetas e as veronicas. As borragens azues, os iris amarellos, pululavam, com as bollas estrellinhas côr de rosa que florecem sempre aos bandos e que por esse motivo chamam-se as companheiras. Animaculos dourados corriam por entre as pedras. O sayão florescente purpureava os tectos das cabanas. As operarias das colmeas andavam por fóra. A abelha trabalhava. A extensão estava cheia do murmurio dos mares e do zumbido das moscas. A natureza, permeavel na primavera, estava humida de voluptuosidade. Quando Gilliatt chegou a Saint-Sampson, ainda a maré não enchera e elle pôde atravessar a praia a pé secco, desapercebido por traz dos cascos de navios no estaleiro. Um cordão de pedras chatas, postas de espaço a espaço, auxiliava a passagem. Gilliatt não foi observado. O povo estava do outro lado do porto, perto da sahida, junto á casa de Lethierry. Ahi andava o nome delle, de boca em boca. Fallava-se tanto delle que o não chegavam a ver. Gilliatt passou escondido de algum modo pelo proprio rumor que causava. Vio de longe a pança no lugar onde a amarrára, com o cano da machina entre as quatro correntes, com um movimento de carpinteiros trabalhando, lineamentos confusos de pessoas que iam e vinham de um para outro lado, e ouvio a voz tonante e alegre de mess Lethierry dando ordens. Metteu-se pelas ruelas dentro. Não havia ninguem por traz de Bravées, toda a curiosidade convergia para a frente. Gilliatt tomou o atalho que costeava o muro baixinho do jardim. Parou no angulo onde estava a malva sylvestre; tornou a ver a pedra onde costumava sentar-se; tornou a ver o banco de Deruchette. Olhava para o chão da alameda onde vio abraçarem-se as duas sombras, que tinham desaparecido. Foi caminho. Galgou a collina do castello do Valle, deceu-a, e dirigiu-se para a casa mal assombrada, onde morava. O Houmet-Paradis estava solitario. A casa estava tal qual elle a deixara de manhã depois de vestir-se para ir a Saint-Pierre Port. Havia uma janella aberta. Via-se por ella o bug-pipe pendurado em um prego da parede. Via-se na mesa a pequena Biblia dada em agradecimento a Gilliatt por um desconhecido, que era Ebeneser. A chave estava na porta. Gilliatt approximou-se, poz a mão na chave, fechou a porta com duas voltas, poz a chave no bolso, e affastou-se. Affastou-se, não para o lado de terra, mas para o lado do mar. Atravessou diagonalmente o jardim, pelo lado mais curto, pisando os canteiros, mas tendo cuidado de poupar os seakales que plantara por serem do gosto de Deruchette. Galgou o parapeito e desceu aos arrecifes. Continuou a andar, indo sempre para a frente, pela longa e estreita linha de cachopos que ligava a casa delle áquelle grande obelisco de granito de pé, no meio do mar, que se chamava _Corne de la Bête._ Era alli que ficava a cadeira Gild-Holm'Ur. Passava de um recife a outro como um gigante caminha nos cabeços. Andar em uma crosta de recifes assemelha-se a andar na borda de um telhado. Uma pescadora de rede que andava com os pés descalços, nos charcos que ficavam proximos, e voltava para a praia, gritou-lhe:--Cuidado. A maré está enchendo. Gilliatt continuou a andar. Chegando ao grande rochedo da ponta, que formava um pinaculo no mar, parou. Acabava a terra. Era a extremidade do pequeno promontorio. Olhou. Ao largo pescavam alguns barcos, com ancoras fóra. Via-se de quando em quando naquelles barcos um gotejar de prata: eram as redes que sahiam d'agua. O _Cashmere_ ainda não estava na altura de Saint-Sampson; desenrolára a mesena. Estava entre Herm e Jethou. Gilliatt torneou o rochedo. Chegou á beira da cadeira Gild-Holm'Ur, ao pé dessa especie de escada tosca, que, menos de tres mezes antes, Ebeneser descera ajudado por elle. Gilliatt subio. A maior parte dos degráos já estavam debaixo da agua. Apenas dous ou tres estavam a secco. Gilliatt escalou-os. Os degráos iam ter á cadeira Gild-Holm'Ur. Chegou á cadeira, contemplou-a por um momento, apoiou a mão nos olhos e fêl-a passar de uma a outra sobrancelha, gesto com que parece que se apaga o passado, depois assentou-se na cava da rocha, com o grande declive por traz de si, e o oceano aos pés. O _Cashmere_ nesse momento passava pela grande torre arredondada e immersa, defendida por um sargento e um canhão, e que marca na bahia a metade do caminho entre Herm e Saint-Pierre Port. Nas fendas do rochedo tremiam algumas flôres, por sobre a cabeça de Gilliatt. A agua estava toda azul. O vento era d'Este, havia pouca ressaca á roda de Serk, da qual em Guernesey só se vê a costa Occidental. Via-se ao longe a França como uma bruma e a longa facha amarella de arêas de Casteret. De quando em quando passava uma borboleta branca. As borboletas gostam de passeiar sobre o mar. Fraca era a brisa. Todo aquelle azul, em baixo e em cima, estava immovel. Nenhuma tremura agitava aquellas serpentes de um azul mais claro ou mais carregado, que marcava na superficie do mar as torções latentes dos baixios. O _Cashmere_, pouco impellido pelo vento, içou os cutellos para apanhar alguma brisa. Cobrio-se todo de pannos. Mas o vento era de travez, o effeito dos cutellos obrigava-o a costear de perto Guernesey. Já tinha passado a balisa de Saint-Sampson. Attingia a collina do castello do Valle. Estava quasi proximo ao promontorio da casa de Gilliatt. Gilliatt via-o approximar-se. O ar e o mar estavam como que adormecidos. A maré enchia, não por meio de ondas, mas por entumecimento. O nivel d'agua ia-se levantando sem palpitação. O vento do largo mar, extincto, assemelhava-se a um halito de infante. Ouvia-se na direcção da porta de Saint-Sampson pequenos golpes surdos, que eram martelladas. Provavelmente eram os carpinteiros que levantavam guindastes e pranchas para tirar a machina da _pança._ Esse rumor mal chegava a Gilliatt, por causa da massa de granito a que elle estava encostado. O _Cashmere_ approximava-se com uma lentidão de phantasma. Gilliatt esperava. De subito uma agitação d'agua e uma sensação de frio obrigaram-n'o a olhar para baixo. A agua tocava-lhe os pés. Gilliatt abaixou os olhos e levantou-os. O _Cashmere_ estava perto. O rochedo onde as chuvas tinham cavado a cadeira Gild'-Holm'Ur, era tão vertical, e havia tanta agua naquelle sitio, que os navios podiam, em tempo de calma, passar alli a distancia de algumas braças. O _Cashmere_ chegou. Surgio, alçou-se. Parecia crescer sobre a agua. Foi como que um crescimento de sombra. Todo o apparelho destacou-se como massa negra, no céo azul, e no magnifico balanço do mar. As longas velas, por um instante sobrepostas ao sol, tornavam-se quasi côr de rosa e tiveram uma transparencia inefavel. As ondas tinham um murmurio indistincto. Nenhum rumor perturbava o resvalar magestoso daquella massa. De terra via-se o que se passava á bordo como se lá estivesse. O _Cashmere_ roçou quasi pela rocha. O timoneiro estava no leme, um grumette trepava aos ovens, alguns passageiros, encostados á amurada, contemplavam a serenidade do tempo, o capitão fumava. Mas não era nada disso o que Gilliatt contemplava. Havia no tombadilho um lugar cheio de sol. Era para alli que elle olhava. Alli estavam Ebeneser e Deruchette. Estavam assentados debaixo daquella luz, elle juntinho della. Contrahiam-se graciosamente ao lado um do outro, como dous passaros que se aquecem a um raio do meio dia, n'um desses bancos cobertos de umi assento alcatroado que os navios bem preparados offerecem aos viajantes, e nos quaes costuma ler-se, quando o navio é inglez: _For ladies only._ A cabeça de Deruchette cahia sobre o hombro de Ebeneser, o braço de Ebeneser estava por traz da cintura de Deruchette, tinham as mãos aggarradas uma á outra e os dedos entrelaçados nos dedos. As differenças de um anjo a outro mostravam-se claramente naquelles dous delicados rostos feitos de innocencia. Um era mais virginal, o outro mais sideral. Era expressivo aquelle casto abraço, que encerrava o hymenêo e o pudor. Aquelle banco era já uma alcova e quasi um ninho. Ao mesmo tempo, era uma gloria; a doce gloria do amor fugindo n'uma nuvem. O silencio era celeste. O olhar de Ebeneser agradecia e contemplava; moviam-se os labios de Deruchette; e nesse silencio delicioso, como o vento vinha do lado opposto, no instante rapido em que o sloop resvalou a algumas toezas da cadeira Gild'-Holm'Ur, Gilliatt ouvia a voz terna e delicada de Deruchette que dizia: --Olha! Parece que ha um homem no rochedo. A apparição passou. O _Cashmere_ deixou a ponta do promontorio atraz de si, e mergulhou-se no franzido profundo das vagas. Em menos de um quarto de hora, mastros e velas assemelhavam-se a uma especie de obelisco branco diminuindo no horisonte. Gilliatt tinha agua até os joelhos. Via o sloop affastar-se. A brisa refrescava ao longe. Gilliatt pôde ver o _Cashmere_ içar os cutellos baixos para aproveitar o augmento do vento. O _Cashmere_ já estava fora das aguas de Guernesey. Gilliat não tirava os olhos do navio. A agua chegava-lhe á cintura. A maré levantava-se. O tempo corria. As cotovias e os corvos marinhos esvoaçavam inquietos em roda delle. Dissera-se que procuravam advertil-o. Talvez houvesse naquelles bandos alguma gaivota ainda das Douvres que o reconhecia. Decorreu uma hora. O vento do largo não soprava no porto, mas a diminuição do _Cashmere_ era rapida. O sloop, segundo as apparencias, ia a toda a força. Já estava quasi na altura de Casquets. Não havia espuma á roda do rochedo Gild-Holm'Ur, nenhuma vaga batia no granito. A agua inchava vagarosamente. Já estava quasi na altura dos hombros de Gilliatt. Decorreu outra hora. O _Cashmere_ estava já alem das aguas de Aurigny. O rochedo Ortach escondeu-o por um momento. Occultou-se atraz desse rochedo, e sahiu depois, como de um eclipse. O sloop fugia para o norte. Já entrava no mar alto. Era apenas um ponto, tendo por causa do sol, a scintillação de uma luz. Os passaros soltavam pios a Gilliatt. Já não se via mais que a cabeça delle. O mar subia com uma brandura sinistra. Gilliatt, immovel, olhava para o _Cashmere_ que se desvanecia. A maré estava quasi cheia. Cahia a tarde. Por traz de Gilliatt, no porto, alguns barcos de pesca voltavam para terra. Os olhos de Gilliatt, presos ao longe no sloop, estavam fixos. Aquelles olhos lixos não se pareciam com cousa alguma que se possa ver na terra. Havia o inexprimivel naquella palpebra tragica e calma. O olhar continha toda a somma de tranquillidade que deixa o sonho abortado; era a aceitação lugubre de outro complemento. Uma fuga de estrella deve ser aconpanhada por olhares semelhantes. De quando em quando a obcuridade celeste apparecia naquella palpebra cujo raio visual estava fixo num ponto do espaço. Ao mesmo tempo em que a agua infinita subia a roda do rochedo Gild-Holm'Ur, ia subindo a immensa tranquillidade da sombra nos olhos profundos de Gilliatt. O _Cashmere_, tornando-se imperceptivel, era já uma mancha misturada á bruma. Para distingui-lo era preciso saber onde elle estava. A pouco e pouco, aquella mancha, que já não era uma forma, foi empallidecendo. Depois diminuio. Depois dissipou-se. No momento em que o navio dissipava-se no horisonte, a cabeça desapparecia debaixo d'agua. Tudo acabou; só restava o mar. FIM *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS TRABALHADORES DO MAR *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. 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