The Project Gutenberg eBook of Esau e Jacob

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Title: Esau e Jacob

Author: Machado de Assis

Release date: March 14, 2018 [eBook #56737]

Language: Portuguese

Credits: Produced by Laura Natal Rodrigues & Marc D'Hooghe at Free Literature

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK ESAU E JACOB ***

ESAÚ E JACOB

POR

MACHADO DE ASSIS

(da Academia Brasileira)

LIVRARIA GARNIER
109, RUA DO OUVIDOR, 109
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
RIO DE JANEIRO
PARIS

Indice


ADVERTÊNCIA

Quando o conselheiro Ayres falleceu, acharam-se lhe na secretaria sete cadernos manuscriptos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos primeiros seis tinha o seu numero de ordem, por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escriptos a tinta encarnada. O setimo trazia este titulo: Ultimo.

A razão desta designação especial não se comprehendeu então nem depois. Sim, era o ultimo dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais grosso, mas não fazia parte do Memorial, diario de lembranças que o conselheiro escrevia desde muitos annos e era a materia dos seis. Não trazia a mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava nelles. Era uma narrativa; e, posto figure aqui o proprio Ayres, com o seu nome e titulo de conselho, e, por allusão, algumas aventuras, nem assim deixava de ser a narrativa extranha á materia dos seis cadernos. Ultimo porquê?

A hypothese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros, não é natural, salvo se queria obrigar a leitura dos seis, em que tratava de si, antes que lhe conhecessem esta outra historia, escripta com um pensamento interior e unico, atravez das paginas diversas. Nesse caso, era a vaidade do homem que falava, mas a vaidade não fazia parte dos seus defeitos. Quando fizesse, valia a pena satisfazel-a? Elle não representou papel eminente neste mundo; percorreu a carreira diplomatica, e aposentou-se. Nos lazeres do officio, escreveu o Memorial, que, aparado das paginas mortas ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barça de Petropolis.

Tal foi a razão de se publicar sómente a narrativa. Quanto ao titulo, fôram lembrados varios, em que o assumpto se pudesse resumir, Ab ovo, por exemplo, apesar do latim; venceu, porém, a ideia de lhe dar estes dous nomes que o proprio Ayres citou uma vez:

ESAÚ E JACOB

Dico, che quando l'anima mal nata...

DANTE.


CAPITULO PRIMEIRO

Cousas futuras!

Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castello. Começaram de subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente ha no Rio de Janeiro que nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira. Um velho inglez, que aliás andára terras e terras, confiava-me ha muitos annos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu club, e era o que lhe bastava da metropole e do mundo.

Natividade e Perpetua conheciam outras partes, além de Botafogo, mas o morro do Castello, por mais que ouvissem falar delle e da cabocla que lá reinava em 1811, era-lhes tão extranho e remoto como o club. O ingreme, o desegual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés ás duas pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitencia, devagarinho, cara no chão, veu para baixo. A manhã trazia certo movimento; mulheres, homens, creanças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados, algum empregado, algum logista, algum padre, todos olhavam espantados para ellas, que aliás vestiam com grande simplicidade; mas lia um donaire que se não perde, e não era vulgar naquellas alturas. A mesma lentidão do andar, comparada á rapidez das outras pessoas, fazia desconfiar que era a primeira vez que alli iam. Uma creoula perguntou a um sargento: «Você quer vêr que ellas vão á cabocla?» E ambos pararam a distancia, tomados daquelle invencivel desejo de conhecer a vida alheia, que é muita vez toda a necessidade humana.

Com effeito, as duas senhoras buscavam disfarçadamente o numero da casa da cabocla, até que deram com elle. A casa era como as outras, trepada no morro. Subia-se por uma escadinha, estreita, sombria, adequada á aventura. Quizeram entrar depressa, mas esbarraram com dous sujeitos que vinham saindo, e coseram-se ao portal. Um delles perguntou-lhes familiarmente se iam consultar a adivinha.

—Perdem o seu tempo, concluiu furioso, e hão de ouvir muito disparate...

—É mentira delle, emendou o outro rindo; a cabocla sabe muito bem onde tem o nariz.

Hesitaram um pouco; mas, logo depois advertiram que as palavras do primeiro eram signal certo da videncia e da franqueza da adivinha; nem todos teriam a mesma sorte alegre. A dos meninos de Natividade podia ser miseravel, e então... Em quanto cogitavam passou fóra um carteiro, que as fez subir mais depressa, para escapar a outros olhos. Tinham fé, mas tinham tambem vexame da opinião, como um devoto que se benzesse ás escondidas.

Velho caboclo, pae da adivinha, conduziu as senhoras á sala. Esta era simples, as paredes nuas, nada que lembrasse mysterio ou incutisse pavor, nenhum petrecho symbolico, nenhum bicho empalhado, esqueleto ou desenho de aleijões. Quando muito um registo da Conceição collado á parede podia lembrar um mysterio, apesar de encardido e roido, mas não mettia medo. Sobre uma cadeira, uma viola.

—Minha filha já vem, disse o velho. As senhoras como se chamam?

Natividade deu o nome de baptismo sómente, Maria, como um veu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão,—porque a consulta era só de uma,—com o numero 1,012. Não ha que pasmar do algarismo; a freguezia era numerosa, e vinha de muitos mezes. Tambem não ha que dizer do costume, que é velho e velhissimo. Relê Eschylo, meu amigo, relê as Eumenides, lá verás a Pythia, chamando os que iam á consulta: «Se ha aqui Hellenos, venham, approximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte...» A sorte outr'ora, a numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste á prioridade, e ninguem perca a sua vez de audiencia. Natividade guardou o bilhete, e ambas fôram á janella.

A falar verdade, temiam o seu tanto, Perpetua menos que Natividade. A aventura parecia audaz, e algum perigo possivel. Não ponho aqui os seus gestos; imaginae que eram inquietos e desconcertados. Nenhuma dizia nada. Natividade confessou depois que tinha um nó na garganta. Felizmente, a cabocla não se demorou muito; ao cabo de trez ou quatro minutos, o pae a trouxe pela mão, erguendo a cortina do fundo.

—Entra, Barbara.

Barbara entrou, emquanto o pae pegou da viola e passou ao patamar de pedra, á porta da esquerda. Era uma creaturinha leve e breve, saia bordada, chinelinha no pé. Não se lhe podia negar um corpo airoso. Os cabellos, apanhados no alto da cabeça por um pedaço de fita enxovalhada, faziam-lhe um solideu natural, cuja borla era supprida por um raminho de arruda. Já vae nisto um pouco de sacerdotiza. O mysterio estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não fossem tambem lucidos e agudos, e neste ultimo estado eram egualmente compridos; tão compridos e tão agudos que entravam pela gente abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fóra, promptos para nova entrada e outro revolvimento. Não te minto dizendo que as duas sentiram tal ou qual fascinação. Barbara interrogou-as; Natividade disse ao que vinha e entregou-lhe os retratos dos filhos e os cabellos cortados, por lhe haverem dito que bastava.

—Basta, confirmou Barbara. Os meninos são seu filhos?

—São.

—Cara de um é cara de outro.

—São gemeos; nasceram ha pouco mais de um anno.

—As senhoras podem sentar-se.

Natividade disse baixinho á outra que «a cabocla era sympathica», não tão baixo que esta não pudesse ouvir tambem; e dahi pôde ser que ella, receiosa da predicção, quizesse aquillo mesmo para obter um bom destino aos filhos. A cabocla foi sentar-se á mesa redonda que estava no centro da sala, virada para as duas. Poz os cabellos e os retratos defronte de si. Olhou alternadamente para elles e para a mãe, fez algumas perguntas a esta, e ficou a mirar os retratos e os cabellos, bôca aberta, sobrancelhas cerradas. Custa-me dizer que accendeu um cigarro, mas digo, porque é verdade, e o fumo concorda com o officio. Fóra, o pae roçava os dedos na viola, murmurando uma cantiga do sertão do norte:

Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho...

Emquanto o fumo do cigarro ia subindo, a cara da adivinha mudava de expressão, radiante ou sombria, ora interrogativa, ora explicativa. Barbara inclinava-se aos retratos, apertava uma madeixa de cabellos em cada mão, e fitava-as, e cheirava-as, e escutava-as, sem a affectação que por ventura aches nesta linha. Taes gestos não se poderiam contar naturalmente. Natividade não tirava os olhos della, como se quizesse lel-a por dentro. E não foi sem grande espanto que lhe ouviu perguntar se os meninos tinham brigado antes de nascer.

—Brigado?

—Brigado, sim, senhora.

—Antes de nascer?

—Sim, senhora, pergunto se não teriam brigado no ventre de sua mãe; não se lembra?

Natividade, que não tivera a gestação socegada, respondeu que effectivamente sentira movimentos extraordinarios, repetidos, e dôres, e insomnias... Mas então que era? Brigariam porquê? A cabocla não respondeu. Ergueu-se pouco depois, e andou á volta da mesa, lenta, como somnambula, os olhos abertos e fixos; depois entrou a dividil-os novamente entre a mãe e os retratos. Agitava-se agora mais, respirando grosso. Toda ella, cara e braços, hombros e pernas, toda era pouca para arrancar a palavra ao Destino. Emfim, parou, sentou-se exhausta, até que se ergueu de salto e foi ter com as duas, tão radiante, os olhos tão vivos e callidos, que a mãe ficou pendente delles, e não se poude ter que lhe não pegasse das mãos e lhe perguntasse anciosa:

—Então? Diga, posso ouvir tudo.

Barbara, cheia de alma e riso, deu um respiro de gosto. A primeira palavra parece que lhe chegou á bôca, mas recolheu-se ao coração, virgem dos labios della e de alheios ouvidos. Natividade instou pela resposta, que lhe dissesse tudo, sem falta...

—Cousas futuras! murmurou finalmente a cabocla.

—Mas, cousas feias?

—Oh! não! não! Cousas bonitas, cousas futuras!

—Mas isso não basta; diga-me o resto. Esta senhora é minha irmã e de segredo, mas se é preciso sair, ella sae; eu fico, diga-me a mim só... Serão felizes?

—Sim.

—Serão grandes?

—Serão grandes, oh! grandes! Deus ha de dar-lhes muitos beneficios. Elles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fóra tambem se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto á qualidade da gloria, cousas futuras!

Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do sertão:

Trepa-me neste coqueiro.
Bota-me os cocos abaixo.

E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:

Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho,
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
Quebra coco, sinhá,
Lá no cocá,
Se te dá na cabeça,
Hade rachá;
Muito heide me ri,
Muito heide gostá,
Lelê, coco, nayá.


CAPITULO II

Melhor de descer que de subir

Todos os oraculos tem o falar dobrado, mas entendem-se. Natividade acabou entendendo a cabocla, apesar de lhe não ouvir mais nada; bastou saber que as cousas futuras seriam bonitas, e os filhos grandes e gloriosos para ficar alegre e tirar da bolsa uma nota de cincoenta mil reis. Era cinco vezes o preço do costume, e valia tanto ou mais que as ricas dadivas de Créso á Pythia. Arrecadou os retratos e os cabellos, e as duas sairam, em quanto a cabocla ia para os fundos, á espera de outros. Já havia alguns freguezes á porta, com os numeros de ordem, e ellas desceram rapidamente, escondendo a cara.

Perpetua compartia as alegrias da irmã, as pedras tambem, o muro do lado do mar, as camisas penduradas ás janellas, as cascas de banana no chão. Os mesmos sapatos de um irmão das almas, que ia a dobrar a esquina da rua da Misericordia para a de S. José, pareciam rir de alegria, quando realmente gemiam de cançasso. Natividade estava tão fóra de si que, ao ouvir-lhe pedir: «Para a missa das almas!» tirou da bolsa uma nota de dous mil reis, nova era folha, e deitou-a á bacia. A irmã chamou-lhe a attenção para o engano, mas não era engano, era para as almas do purgatorio.

E seguiram lepidas para o coupé, que as esperava no espaço que fica entre a egreja de S. José e a camara dos deputados. Não tinham querido que o carro as levasse até ao principio da ladeira, para que o cocheiro e o lacaio não desconfiassem da consulta. Toda a gente falava então da cabocla do Castello, era o assumpto da cidade; attribuiam-lhe um poder infinito, uma serie de milagres, sortes, achados, casamentos. Se as descobrissem, estavam perdidas, embora muita gente boa lá fosse. Ao vel-as dando a esmola ao irmão das almas, o lacaio trepou á almofada e o cocheiro tocou os cavallos, a carruagem veiu buscal-as, e guiou para Botafogo.


CAPITULO III

A esmola da felicidade

—Deus lhe accrescente, minha senhora devota! exclamou o irmão das almas ao ver a nota cair em cima de dous nickeis de tostão e alguns vintens antigos. Deus lhe dê todas as felicidades do céu e da terra, e as almas do purgatorio peçam a Maria Santissima que recommende a senhora dona a seu bemdito filho!

Quando a sorte ri, toda a natureza ri tambem, e o coração ri como tudo o mais. Tal foi a explicação que, por outras palavras menos especulativas, deu o irmão das almas aos dous mil reis. A suspeita de ser a nota falsa não chegou a tomar pé no cerebro deste: foi allucinação rapida. Comprehendeu que as damas eram felizes, e, tendo o uso de pensar alto, disse piscando o olho, emquanto ellas entravam no carro:

—Aquellas duas viram passarinho verde, com certeza.

Sem rodeios, suppoz que as duas senhoras vinham de alguma aventura amorosa, e deduziu isto de trez factos, que sou obrigado a enfileirar aqui para não deixar este homem sob a suspeita de calumniador gratuito. O primeiro foi a alegria dellas, o segundo o valor da esmola, o terceiro o carro que as esperava a um canto, como se ellas quizessem esconder do cocheiro o ponto dos namorados. Não concluas tu que elle tivesse sido cocheiro algum dia, e andasse a conduzir moças antes de servir ás almas. Tambem não creias que fosse outr'ora rico e adultero, aberto de mãos, quando vinha de dizer adeus ás suas amigas. Ni cet excès d'honneur, ni cette indignité. Era um pobre diabo sem mais officio que a devoção. Demais, não teria tido tempo; contava apenas vinte e sete annos.

Comprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que almas nunca viram sair das mãos delle. Foi subindo a rua de S. José. Já não tinna animo de pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao cerebro, e agora mais frequente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa... «Para a missa das almas!» gemeu á porta de uma quitanda, e deram-lhe um vintem,—um vintem sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhedous vintens,—o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.

E a nota sempre limpa, uns dous mil reis que pareciam vinte. Não, não era falsa. No corredor pegou della, mirou-a bem; era verdadeira. De repente, ouviu abrir a cancella em cima, e uns passos rapidos. Elle, mais rapido, amarrotou a nota e metteu-a na algibeira das calças; ficaram só os vintens azinhavrados e tristes, o obolo da viuva. Saiu, foi á primeira officina, á primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:

—Para a missa das almas!

Na egreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz debil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dous mil reis... Os dous mil reis, dizia outra voz menos debil, eram naturalmente delle, que, em primeiro logar, tambem tinha alma, e, em segundo logar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vae á egreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não sairam assim articuladas e claras, nem as debeis, nem as menos debeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciencia. Traduzi-as em lingua falada, afim de ser entendido das pessoas que me lêem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atraz de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: «não tirou a nota a ninguem... a dona é que a poz na bacia por sua mão... tambem elle era alma...» À porta da sacristia que dava para a rua, ao deixar cair o reposteiro azul escuro debruado de amarello, não ouviu mais nada. Viu um mendigo que lhe estendia o chapeo roto e sebento; metteu vagarosamente a mão no bolso do collete, tambem roto, e aventou uma moedinha de cobre que deitou ao chapeo do mendigo, rapido, ás escondidas, como quer o Evangelho. Eram dous vintens; ficavam-lhe mil novecentos e noventa e oito reis. E o mendigo, como elle saisse depressa, mandou-lhe atraz estas palavras de agradecimento, parecidas com as suas:

—Deus lhe accrescente, meu senhor, e lhe dê...


CAPITULO IV

A missa do coupé

Natividade ia pensando na cabocla do Castello, na predicção da grandeza e na noticia da briga. Tornava a lembrar-se que, de facto, a gestação não fôra socegada; mas só lhe ficava a sorte da gloria e da grandeza. A briga lá ia, se a houve; o futuro, sim, esse é que era o principal ou tudo. Não deu pela praia de Santa Luzia. No largo da Lapa interrogou a irmã sobre o que pensava da adivinha. Perpetua respondeu que bem, que acreditava, e ambas concordaram que ella parecia falar dos proprios filhos, tal era o enthusiasmo. Perpetua ainda a reprehendeu pelos cincoenta mil reis dados em paga; bastavam vinte.

—Não faz mal. Cousas futuras!

—Que cousas serão?

—Não sei; futuras.

Mergulharam,outra vez no silencio. Ao entrar no Cattete, Natividade recordou a manhã em que alli passou, naquelle mesmo coupé, e confiou ao marido o estado de gravidez. Voltavam de uma missa de defunto, na egreja de S. Domingos...

«Na egreja de S. Domingos diz-se hoje uma missa por alma de João de Mello, fallecido em Maricá.» Tal foi o annuncio que ainda agora pódes ler em algumas folhas de 1869. Não me ficou o dia, o mez foi agosto. O annuncio está certo, foi aquillo mesmo, sem mais nada, nem o nome da pessoa ou pessoas que mandaram dizer a missa, nem hora, nem convite. Não se disse sequer que o defunto era escrivão, officio que só perdeu com a morte. Emfim, parece que até lhe tiraram um nome; elle era, se estou bem informado, João de Mello e Barros.

Não se sabendo quem mandava dizer a missa, ninguem lá foi. A egreja escolhida deu ainda menos relevo ao acto; não era vistosa, nem buscada, mas velhota, sem galas nem gente, mettida ao canto de um pequeno largo, adequada á missa recondita e anonyma.

Às oito horas parou um coupé á porta; o lacaio desceu, abriu a portinhola, desbarretou-se e perfilou-se. Saiu um senhor e deu a mão a uma senhora, a senhora saiu e tomou o braço ao senhor, atravessaram o pedacinho de largo e entraram na egreja. Na sacristia era tudo espanto. A alma que a taes sitios attrahira um carro de luxo, cavallos de raça, e duas pessoas tão finas não seria como as outras almas alli suffragadas. A missa foi ouvida sem pesames nem lagrimas. Quando acabou, o senhor foi á sacristia dar as esportulas. O sacristão, agasalhando na algibeira a nota de dez mil reis que recebeu, achou que ella provava a sublimidade do defunto; mas que defunto era esse? O mesmo pensaria a caixa das almas, se pensasse, quando a luva da senhora deixou cair dentro uma pratinha de cinco tostões. Já então havia na egreja meia duzia de creanças maltrapilhas, e, fóra, alguma gente ás portas e no largo, esperando. O senhor, chegando á porta, relanceou os olhos, ainda que vagamente, e viu que era objecto de curiosidade. A senhora trazia os seus no chão. E os dous entraram no carro, com o mesmo gesto, o lacaio bateu a portinhola e partiram.

A gente local não falou de outra cousa naquelle e nos dias seguintes. Sacristão e visinhos relembravam o coupé, com orgulho. Era a missa do coupé. As outras missas vieram vindo, todas a pé, algumas de sapato roto, não raras descalças, capinhas velhas, morins estragados, missas de chita, ao domingo, missas de tamancos. Tudo voltou ao costume, mas a missa do coupé viveu na memoria por muitos mezes. Afinal não se falou mais nella; esqueceu como um baile.

Pois o coupé era este mesmo. A missa foi mandada dizer por aquelle senhor, cujo nome é Santos, e o defunto era seu parente, ainda que pobre. Tambem elle foi pobre; tambem elle nasceu em Maricá. Vindo para o Rio de Janeiro, por occasião da febre das acções (1855), dizem que revellou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito, e fel-o perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que ia então nos vinte annos e não tinha dinheiro, mas era bella e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. Annos depois tinham elles uma casa nobre, carruagem, cavallos e relações novas e distinctas. Dos dous parentes pobres de Natividade morreu o pae em 1866; restava-lhe uma irmã. Santos tinha alguns em Maricá, a quem nunca mandou dinheiro, fosse mesquinhez, fosse habilidade. Mesquinhez não creio; elle gastava largo e dava muitas esmolas. Habilidade seria; tirava-lhes o gosto de vir cá pedir-lhe mais.

Não lhe valeu isto com João de Mello, que um dia appareceu aqui, a pedir-lhe emprego. Queria ser, como elle, director de banco. Santos arranjou-lhe depressa um logar de escrivão do civel em Maricá, e despachou-o com os melhores conselhos deste mundo.

João de Mello retirou-se com a escrevania, e dizem que uma grande paixão tambem. Natividade era a mais bella mulher daquelle tempo. No fim, com os seus cabellos quasi sexagenarios, fazia crêr na tradicção. João de Mello ficou allucinado quando a viu; ella conheceu isso, e portou-se bem. Não lhe fechou o rosto, é verdade, e era mais bella assim que zangada; tambem não lhe fechou os olhos, que eram negros e callidos. Só lhe fechou o coração, um coração que devia amar como nenhum outro, foi a conclusão de João de Mello uma noite em que a viu ir decotada a um baile. Teve impeto de pegar della, descer, voar, perderem-se...

Em vez disso, uma escrevania e Maricá; era um abysmo. Caiu nelle; trez dias depois saiu do Rio de Janeiro para não voltar. A principio escreveu muitas cartas ao parente, com a esperança de que ella as lesse tambem, e comprehendesse que algumas palavras eram para si. Mas Santos não lhe deu resposta, e o tempo e a ausencia acabaram por fazer de João de Mello um excellente escrivão. Morreu de uma pneumonia.

Que o motivo da pratinha de Natividade deitada á caixa das almas fosse pagar a adoração do defunto não digo que sim, nem que não; faltam-me pormenores. Mas póde ser que sim, porque esta senhora era não menos grata que honesta. Quanto ás larguezas do marido, não esqueças que o parente era defunto, e o defunto um parente menos.


CAPITULO V

Ha contradicções explicaveis

Não me peças a causa de tanto encolhimento no annuncio e na missa, e tanta publicidade na carruagem, lacaio e libré. Ha contradicções explicaveis. Um bom autor, que inventasse a sua historia, ou prezasse a logica apparente dos acontecimentos, levaria o casal Santos a pé ou em caleça de praça ou de aluguel; mas eu, amigo, eu sei como as cousas se passaram, e refiro-as taes quaes. Quando muito, explico-as, com a condição de que tal costume não pegue. Explicações comem tempo e papel, demoram a acção e acabam por enfadar. O melhor é ler com attenção.

Quanto á contradicção de que se trata aqui, é de ver que naquelle recanto de um larguinho modesto, nenhum conhecido daria com elles, ao passo que elles gozariam o assombro local; tal foi a reflexão de Santos, se se póde dar semelhante nome a um movimento interior que leva a gente a fazer antes uma cousa que outra. Resta a missa; a missa em si mesma bastava que fosse sabida no céu e em Maricá. Propriamente vestiram-se para o céu. O luxo do casal temperava a pobreza da oração; era uma especie de homenagem ao finado. Se a alma de João de Mello os visse de cima, alegrar-se-hia do apuro em que elles fôram rezar por um pobre escrivão. Não sou eu que o digo; Santos é que o pensou.


CAPITULO VI

Maternidade

A principio, vieram calados. Quando muito, Natividade queixou-se da egreja, que lhe sujára o vestido.

—Venho cheia de pulgas, continuou ella: porque não fômos a S. Francisco de Paula ou á Gloria, que estão mais perto, e são limpas?

Santos trocou as mãos á conversa, e falou das ruas mal calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas.

Natividade não replicou, mergulhou no silencio, como naquelle outro capitulo, vinte mezes depois, quando tornava do Castello com a irmã. Os olhos não tinham a nota de deslumbramento que trariam então; iam parados e sombrios, como de manhã e na vespera. Santos, que já reparára nisso, perguntou-lhe o que é que tinha; ella não sei se lhe respondeu de palavra; se alguma disse, foi tão breve e surda que inteiramente se perdeu. Talvez não passasse de um simples gesto de olhos, um suspiro, ou cousa assim. Fosse o que fosse, quando o coupé chegou ao meio do Cattete, os dous levavam as mãos presas, e a expressão do rosto era de abençoados. Não davam sequer pela gente das ruas; não davam talvez por si mesmos.

Leitor, não é muito que percebas a causa daquella expressão e desses dedos abotoados. Já lá ficou dita atraz, quando era melhor deixar que a adivinhasses; mas provavelmente não a adivinharias, não que tenhas o entendimento curto ou escuro, mas porque o homem varia do homem, e tu talvez ficasses com egual expressão, simplesmente por saber que ias dançar sabbado. Santos não dançava; preferia o voltarete, como distracção. A causa era virtuosa, como sabes; Natividade estava gravida, acabava de o dizer ao marido.

Aos trinta annos não era cedo nem tarde; era imprevisto. Santos sentiu mais que ella o prazer da vida nova. Eis ahi vinha a realidade do sonho de dez annos, uma creatura tirada da coxa de Abrahão, como diziam aquelles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta generosamente o seu dinheiro ás companhias e ás nações. Levam juro por elle; mas os hebraismos são dados de graça. Aquelle é desses. Santos, que só conhecia a parte do emprestimo, sentia inconscientemente a do hebraismo, e deleitava-se com elle. A emoção atava-lhe a lingua; os olhos que estendia á esposa e a cobriam eram de patriarcha; o sorriso parecia chover luz sobre a pessoa amada, abençoada e formosa entre as formosas.

Natividade não foi logo, logo, assim; a pouco e pouco é que veiu sendo vencida e tinha já a expressão da esperança e da maternidade. Nos primeiros dias, os symptomas desconcertaram a nossa amiga. É duro dizel-o, mas é verdade. Lá se iam bailes e festas, lá ia a liberdade e a folga. Natividade andava já na alta roda do tempo; acabou de entrar por ella, com tal arte que parecia haver alli nascido. Carteava-se com grandes damas, era familiar de muitas, tuteava algumas. Nem tinha só esta casa de Botafogo, mas tambem outra em Petropolis; nem só carro, mas tambem camarote no Theatro-Lyrico, não contando os bailes do Cassino Fluminense, os das amigas e os seus; todo o repertorio, em summa, da vida elegante. Era nomeada nas gazetas, pertencia áquella duzia de nomes planetarios que figuram no meio da plebe de estrellas. O marido era capitalista e director de um banco.

No meio disso, a que vinha agora uma creança deformal-a por mezes, obrigal-a a recolher-se, pedir-lhe as noites, adoecer dos dentes e o resto? Tal foi a primeira sensação da mãe, e o primeiro impeto foi esmagar o germen. Criou raiva ao marido. A segunda sensação foi melhor. A maternidade, chegando ao meio dia, era como uma aurora nova e fresca. Natividade viu a figura do filho ou filha brincando na relva da chacara ou no regaço da aia, com trez annos de edade, e este quadro daria aos trinta e quatro annos que teria então um aspecto de vinte e poucos...

Foi o que a reconciliou com o marido. Não exagero; tambem não quero mal a esta senhora. Algumas teriam medo, a maior parte amor. A conclusão é que, por uma ou por outra porta, amor ou vaidade, o que o embryão quer é entrar na vida. Cesar ou João Fernandes, tudo é viver, assegurar a dynastia e sair do mundo o mais tarde que puder.

O casal ia calado. Ao desembocar na praia de Botafogo, a enseada trouxe o gosto de costume. A casa descobria-se a distancia, magnifica; Santos deleitou-se de a ver, mirou-se nella, cresceu com ella, subiu por ella. A estatueta de Narciso no meio do jardim, sorriu á entrada delles, a areia fez-se relva, duas andorinhas cruzaram por cima do repuxo, figurando no ar a alegria de ambos. A mesma ceremonia á descida. Santos ainda parou alguns instantes para ver o coupé dar a volta, sair e tornar á cocheira; depois seguiu a mulher que entrava no saguão.


CAPITULO VII

Gestação

Em cima, esperava por elles Perpetua, aquella irmã de Natividade, que a acompanhou ao Castello, e lá ficou no carro, onde as deixei para narrar os antecedentes dos meninos.

—Então? Houve muita gente?

—Não, ninguem; pulgas.

Perpetua tambem não entendera a escolha da egreja. Quanto á concurrencia, sempre lhe pareceu que seria pouca ou nenhuma; mas o cunhado vinha entrando, e ella calou o resto. Era pessoa circumspecta, que não se perdia por um dito ou gesto descuidado. Entretanto, foi-lhe impossivel calar o espanto, quando viu o cunhado entrar e dar á mulher um abraço longo e terno, abrochado por um beijo.

—Que é isso? exclamou espantada.

Sem reparar no vexame da mulher, Santos deu um abraço á cunhada, e ia a dar-lhe um beijo tambem, se ella não recuasse a tempo e com força.

—Mas que é isso? Você tirou a sorte grande de Hespanha?

—Não, cousa melhor, gente nova.

Santos conservára alguns gestos e modos de dizer dos primeiros annos, taes que o leitor não chamará propriamente familiares; tambem não é preciso chamar-lhes nada. Perpetua, affeita a elles, acabou sorrindo e dando-lhe parabens. Já então Natividade os deixára para se ir despir. Santos, meio arrependido da expansão, fez-se serio e conversou da missa e da egreja. Concordou que esta era decrepita e mettida a um canto, mas allegou razões espirituaes. Que a oração era sempre oração, onde quer que a alma falasse a Deus. Que a missa, a rigor, não precisava estrictamente de altar; o rito e o padre bastavam ao sacrificio. Talvez essas razões não fossem propriamente delle, mas ouvidas a alguem, decoradas sem esforço e repetidas com convicção. A cunhada opinou de cabeça que sim. Depois falaram do parente morto e concordaram piamente que era um asno;—não disseram este nome, mas a totalidade das apreciações vinha a dar nelle, accrescentado de honesto e honestissimo.

—Era uma perola, concluiu Santos.

Foi a ultima palavra da necrologia; paz aos mortos. Dalli em deante, vingou a soberania da creança que alvorecia. Não alteraram os habitos, nos primeiros tempos, e as visitas e os bailes continuaram como d'antes, até que pouco a pouco, Natividade se fechou totalmente em casa. As amigas iam vel-a. Os amigos iam visital-os ou jogar cartas com o marido.

Natividade queria um filho, Santos uma filha, e cada um pleiteava a sua escolha com tão boas razões, que acabavam trocando de parecer. Então ella ficava com a filha, e vestia-lhe as melhores rendas e cambraias, emquanto elle enfiava uma beca no joven advogado, dava-lhe um logar no parlamento, outro no ministerio. tambem lhe ensinava a enriquecer depressa; e ajudal-o-hia começando por uma caderneta na Caixa Economica, desde o dia em que nascesse até os vinte e um annos. Alguma vez, ás noites, se estavam sós, Santos pegava de um lapis e desenhava a figura do filho, com bigodes,—ou então riscava uma menina vaporosa.

—Deixa, Agostinho, disse-lhe a mulher uma noite; você sempre ha de ser creança.

E pouco depois, deu por si a desenhar de palavra a figura do filho ou filha, e ambos escolhiam a côr dos olhos, os cabellos, a tez, a estatura. Vês que tambem ella era creança. A maternidade tem dessas incoherencias, a felicidade tambem, e porfim a esperança, que é a meninice do mundo.

A perfeição seria nascer um casal. Assim os desejos do pae e da mãe ficariam satisfeitos. Santos pensou em fazer sobre isso uma consulta spirita. Começava a ser iniciado nessa religião, e tinha a fé noviça e firme. Mas a mulher oppoz-se; a consultar alguem, antes a cabocla do Castello, a adivinha celebre do tempo, que descobria as cousas perdidas e predizia as futuras. Entretanto, recusava tambem, por desnecessario. A que vinha consultar sobre uma duvida, que dalli a mezes estaria esclarecida? Santos achou, em relação á cabocla, que seria imitar as crendices da gente réles; mas a cunhada acudiu que não, e citou um caso recente de pessoa distincta, um juiz municipal, cuja nomeação foi annunciada pela cabocla.

—Talvez o ministro da justiça goste da cabocla, explicou Santos.

As duas riram da graça, e assim se fechou uma vez o capitulo da adivinha, pura se abrir muis tarde. Por agora é deixar que o feto se desenvolva, a creança se agite e se atire, como impaciente de nascer. Em verdade, a mãe padeceu muito durante a gestação, e principalmente nas ultimas semanas. Cuidava trazer um general que iniciava a campanha da vida, a não ser um casal que aprendia a desamar de vespera.


CAPITULO VIII

Nem casal, nem general

Nem casal, nem general. No dia sete de abril de 1870 veiu á luz um par de varões tão eguaes, que antes pareciam a sombra um do outro, se não era simplesmente a impressão do olho, que via dobrado.

Tudo esperavam, menos os dous gemeos, e nem por ser o espanto grande, foi menor o amor. Entende-se isto sem ser preciso insistir, assim como se entende que a mãe désse aos dous filhos aquelle pão inteiro e dividido do poeta; eu accrescento que o pae fazia a mesma cousa. Viveu os primeiros tempos a contemplar os meninos, a comparal-os, a medil-os, a pesal-os. Tinham o mesmo peso e cresciam por egual medida. A mudança ia-se fazendo por um só teor. O rosto comprido, cabellos castanhos, dedos finos e taes que, cruzados os da mão direita de um com os da esquerda de outro, não se podia saber que eram de duas pessoas. Viriam a ter genio differente, mas por ora eram os mesmos extranhões. Começaram a sorrir no mesmo dia. O mesmo dia os viu baptizar.

Antes do parto, tinham combinado em dar o nome do pae ou da mãe, segundo fosse o sexo da creança. Sendo um par de rapazes, e não havendo a fórma masculina do nome materno, não quiz o pae que figurasse só o delle, e metteram-se a catar outros. A mãe propunha francezes ou inglezes, conforme os romances que lia. Algumas novellas russas em moda suggeriram nomes slavos. O pae acceitava uns e outros, mas consultava a terceiros, e não acertava com opinião definitiva. Geralmente, os consultados trariam outro nome, que não era acceito em casa. Tambem veiu a antiga onomastica luzitana, mas sem melhor fortuna. Um dia, estando Perpetua á missa, rezou o Credo, advertiu nas palavras: «....os santos apostolos S. Pedro e S. Paulo», e mal pôde acabar a oração. Tinha descoberto os nomes; eram simples e gemeos. Os paes concordaram com ella e a pendencia acabou.

A alegria de Perpetua foi quasi tamanha como a do pae e da mãe, se não maior. Maior não foi, nem tão profunda, mas foi grande, ainda que rapida. O achado dos nomes valia quasi que pela feitura das creanças. Viuva, sem filhos, não se julgava incapaz de os ter, e era alguma cousa nomeal-os. Contava mais cinco ou seis annos que a irmã. Casara com um tenente de artilharia que morreu capitão na guerra do Paraguay. Era mais baixa que alta, e era gorda, ao contrario de Natividade que, sem ser magra, não tinha as mesmas carnes, e era alta e recta. Ambas vendiam saúde.

—Pedro e Paulo, disse Perpetua á irmã e ao cunhado, quando rezei estes dous nomes senti uma cousa no coração...

—Você será madrinha de um, disse a irmã.

Os pequenos, que se distinguiam por uma fita de côr, passaram a receber medalhas de ouro, uma com a imagem de S. Pedro, outra com a de S. Paulo. A confusão não cedeu logo, mas tarde, lento e pouco, ficando tal semelhança que os advertidos se enganavam muita vez ou sempre. A mãe é que não precisou de grandes signaes externos para saber quem eram aquelles dous pedaços de si mesma. As amas, apesar de os distinguirem entre si, não deixavam de querer mal uma á outra, pelo motivo da semelhança dos «seus filhos de criação». Cada uma affirmava que o seu era mais bonito. Natividade concordava com ambas.

Pedro seria medico, Paulo advogado; tal foi a primeira escolha das profissões. Mas logo depois trocaram de carreira. Tambem pensaram em dar um delles á engenharia. A marinha sorria á mãe, pela distincção particular da escola. Tinha só o inconveniente da primeira viagem remota; mas Natividade pensou em metter empenhos com o ministro. Santos falava em fazer um delles banqueiro, ou ambos. Assim passavam as horas vadias. Intimos da casa entravam nos calculos. Houve quem os fizesse ministros, dezembargadores, bispos, cardeaes...

—Não peço tanto, dizia o pae.

Natividade não dizia nada ao pé de extranhos, apenas sorria, como se tratasse de folguedo de São João, um lançar de dados e ler no livro de sortes a quadra correspondente ao numero. Não importa; lá dentro de si cobiçava algum brilhante destino aos filhos. Cria deveras, esperava, rezava ás noites, pedia ao céu que os fizesse grandes homens.

Uma das amas, parece que a de Pedro, sabendo daquellas ancias e conversas, perguntou a Natividade por que é que não ia consultar a cabocla do Castello. Affirmou que ella adivinhava tudo, o que era e o que viria a ser; conhecia o numero da sorte grande, não dizia qual era nem comprava bilhete para não roubar os escolhidos de Nosso Senhor. Parece que era mandada de Deus.

A outra ama confirmou as noticias e accrescentou novas. Conhecia pessoas que tinham perdido e achado joias e escravos. A policia mesma, quando não acabava de apanhar um criminoso, ia ao Castello falar á cabocla e descia sabendo; por isso é que não a botava para fóra, como os invejosos andavam a pedir. Muita gente não embarcava sem subir primeiro ao morro. A cabocla explicava sonhos e pensamentos, curava de quebranto...

Ao jantar, Natividade repetiu ao marido a lembrança das amas. Santos encolheu os hombros. Depois examinou rindo a sabedoria da cabocla; principalmente a sorte grande era incrivel que, conhecendo o numero, não comprasse bilhete. Natividade achou que era o mais difficil de explicar, mas podia ser invenção do povo. On ne prête qu'aux riches, accrescentou rindo. O marido, que estivera na vespera com um dezembargador, repetiu as palavras delle que «emquanto a policia não puzesse côbro ao escandalo...» O dezembargador não concluira. Santos concluiu com um gesto vago.

—Mas você é spirita, ponderou a mulher.

—Perdão, não confundamos, replicou elle com gravidade.

Sim, podia consentir n'uma consulta spirita; já pensara nella. Algum espirito podia dizer-lhe a verdade em vez de uma adivinha de farça... Natividade defendeu a cabocla. Pessoas da sociedade falavam della a serio. Não queria confessar ainda que tinha fé, mas tinha. Recusando ir outr'ora, foi naturalmente a insufficiencia do motivo que lhe deu a força negativa. Que importava saber o sexo do filho? Conhecer o destino dos dous era mais imperioso e util. Velhas ideias que lhe incutiram em creança vinham agora emergindo do cerebro e descendo ao coração. Imaginava ir com os pequenos ao morro do Castello, a titulo de passeio... Para que? Para confirmal-a na esperança de que seriam grandes homens. Não lhe passara pela cabeça a predicção contraria. Talvez a leitora, no mesmo caso, ficasse aguardando o destino; mas a leitora, além de não crêr (nem todos crêem) póde ser que não conte mais de vinte a vinte e dous annos de edade, e terá a paciencia de esperar. Natividade, de si para si, confessava os trinta e um, e temia não ver a grandeza dos filhos. Podia ser que a visse, pois tambem se morre velha, e alguma vez de velhice, mas acaso teria o mesmo gosto?

Ao serão, a materia da palestra foi a cabocla do Castello, por iniciativa de Santos, que repetia as opiniões da vespera e do jantar. Das visitas algumas contavam o que ouviam della. Natividade não dormiu aquella noite sem obter do marido que a deixasse ir com a irmã á cabocla. Não se perdia nada; bastava levar os retratos dos meninos e um pouco dos cabellos. As amas não saberiam nada da aventura.

No dia aprazado metteram-se as duas no carro, entre sete e oito horas com pretexto de passeio, e lá se fôram para a rua da Misericordia. Sabes já que alli se apearam, entre a egreja de S. José e a Camara dos deputados, e subiram aquella até á rua do Carmo, onde esta pega com a ladeira do Castello. Indo a subir, hesitaram, mas a mãe era mãe, e já agora faltava pouco para ouvir o destino. Viste que subiram, que desceram, deram os dous mil reis ás almas, entraram no carro e voltaram para Botafogo.


CAPITULO IX

Vista de palacio

No Cattete, o coupé e uma victoria cruzaram-se e pararam a um tempo. Um homem saltou da victoria e caminhou para o coupé. Era o marido de Natividade, que ia agora para o escriptorio, um pouco mais tarde que de costume, por haver esperado a volta da mulher. Ia pensando nella e nos negocios da praça, nos meninos e na lei Rio Branco, então discutida na Camara dos deputados; o banco era credor da lavoura. Tambem pensava na cabocla do Castello e no que teria dito á mulher...

Ao passar pelo palacio Nova-Friburgo, levantou os olhos para elle com o desejo do costume, uma cobiça de possuil-o, sem prever os altos destinos que o palacio viria a ter na Republica; mas quem então previa nada? Quem prevê cousa nenhuma? Para Santos a questão era só possuil-o, dar alli grandes festas unicas, celebradas nas gazetas, narradas na cidade entre amigos e inimigos, cheios de admiração, de rancor ou de inveja. Não pensava nas saudades que as matronas futura contariam ás suas netas, menos ainda nos livros de chronicas, escriptos e impressos neste outro seculo. Santos não tinha a imaginação da posteridade. Via o presente e suas maravilhas.

Já lhe não bastava o que era. A casa de Botafogo, posto que bella, não era um palacio, e depois, não estava tão exposta como aqui no Cattete, passagem obrigada de toda a gente, que olharia para as grandes janellas, as grandes portas, as grandes aguias no alto, de azas abertas. Quem viesse pelo lado do mar, veria as costas do palacio, os jardins e os lagos... Oh! goso infinito! Santos imaginava os bronzes, marmores, luzes, flores, danças, carruagens, musicas, ceias... Tudo isso foi pensado depressa, porque a victoria, embora não corresse (os cavallos tinham ordem de moderar a andadura), todavia, não atrazava as rodas para que os sonhos de Santos acabassem. Assim foi que, antes de chegar á praça da Gloria, a victoria avistou o coupé da familia, e as duas carragens pararam, a curta distancia uma da outra, como ficou dito.


CAPITULO X

O juramento

Tambem ficou dito que o marido saiu da victoria e caminhou para o coupé, onde a mulher e a cunhada, adivinhando que elle vinha ter com ellas, sorriam de ante-mão.

—Não lhe digas nada, aconselhou Perpetua.

A cabeça de Santos appareceu logo, com as suissas curtas, o cabello rente, o bigode rapado. Era homem sympathico. Quieto, não ficava mal. A agitação com que chegou, parou e falou tirou-lhe a gravidade com que ia no carro, as mãos postas sobre o castão de ouro da bengala, e a bengala entre os joelhos.

—Então? então? perguntou.

—Logo digo.

—Mas que foi?

—Logo.

—Bem ou mal? Dize só se bem.

—Bem. Cousas futuras.

—É pessoa séria?

—Séria, sim; até logo, repetiu Natividade estendendo-lhe os dedos.

Mas o marido não podia despegar-se do coupé; queria saber alli mesmo tudo, as perguntas e as respostas, a gente que lá estava á espera, e se era o mesmo destino para os dous, ou se cada um tinha o seu. Nada disso foi escripto como aqui vae, devagar, para que a ruim letra do autor não faça mal á sua prosa. Não, senhor; as palavras de Santos sairam de atropello, umas sobre outras, embrulhadas, sem principio ou sem fim. A bella esposa tinha já as orelhas tão affeitas ao falar do marido, mórmente em lances de emoção ou curiosidade, que entendia tudo, e ia dizendo que não. A cabeça e o dedo sublinhavam a negativa. Santos não teve remedio e despediu-se.

Em caminho, advertiu que, não crendo na cabocla, era ocioso instar pela predicção. Era mais; era dar razão á mulher. Prometteu não indagar nada quando voltasse. Não prometteu esquecer, e dahi a teima com que pensou muitas vezes no oraculo. De resto, ellas lhe diriam tudo sem que elle perguntasse nada, e esta certeza trouxe a paz do dia.

Não concluas daqui que os freguezes do banco padecessem alguma desattenção aos seus negocios. Tudo correu bem, como se elle não tivesse mulher nem filhos ou não houvesse Castello nem cabocla. Não era só a mão que fazia o seu officio, assignando; a bôca ia falando, mandando, chamando e rindo, se era preciso. Não obstante, a ancia existia e as figuras passavam e repassavam deante delle; no intervallo de duas letras, Santos resolvia uma cousa ou outra, se não eram ambas a um tempo. Entrando no carro, á tarde, agarrou-se inteiramente ao oraculo. Trazia as mãos sobre o castão, a bengala entre os joelhos, como de manhã, mas vinha pensando os destino dos filhos.

Quando chegou a casa, viu Natividade a contemplar os meninos, ambos nos berços, as amas ao pé, um pouco admiradas da insistencia com que ella os procurava desde manhã. Não era só fital-os, ou perder os olhos no espaço e no tempo; era beijal-os tambem e apertal-os ao coração. Esqueceu-me dizer que, de manhã, Perpetua mudou primeiro de roupa que a irmã e foi achal-a deante dos berços, vestida como viera do Castello.

—Logo vi que você estava com os grandes homens, disse ella.

—Estou, mas não sei em que é que elles serão grandes.

—Seja em que fôr, vamos almoçar.

Ao almoço e durante o dia, falaram muita vez da cabocla e da predicção. Agora, ao ver entrar o marido, Natividade leu-lhe a dissimulação nos olhos. Quiz calar e esperar, mas estava tão anciosa de lhe dizer tudo, e era tão boa, que resolveu o contrario. Unicamente não teve o tempo de cumpril-o; antes mesmo de começar, já elle acabava de perguntar o que era. Natividade referiu a subida, a consulta, a resposta e o resto; descreveu a cabocla e o pae.

—Mas então grandes destinos?

—Cousas futuras, repetiu ella.

—Seguramente futuras. Só a pergunta da briga é que não entendo. Brigar porquê? E brigar como? E teriam deveras brigado?

Natividade recordou os seus padecimentos do tempo da gestação, confessando que não falou mais delles para o não affligir; naturalmente é o que a outra adivinhou que fosse briga.

—Mas briga porquê?

—Isso não sei, nem creio que fosse nada mau.

—Vou consultar...

—Consultar a quem?

—Uma pessoa.

—Já sei, o seu amigo Placido.

—Se fosse só amigo não consultava, mas elle é o meu chefe e mestre, tem uma vista clara e comprida, dada pelo céu... Consulto só por hypothese, não digo os nossos nomes...

—Não! não! não!

—Só por hypothese.

—Não, Agostinho, não fale disto. Não interrogue ninguem a meu respeito, ouviu? Ande, prometta que não falará disto a ninguem, spiritas nem amigos. O melhor é calar. Basta saber que terão sorte feliz. Grandes homens, cousas futuras... Jure, Agostinho.

—Mas você não foi em pessoa á cabocla?

—Não me conhece, nem de nome; viu-me uma vez, não me tornará a ver. Ande, jure!

—Você é exquisita. Vá lá, prometto. Que tem que falasse, assim, por acaso?

—Não quero. Jure!

—Pois isto é cousa de juramento?

—Sem isso, não confio, disse ella sorrindo.

—Juro.

—Jure por Deus Nosso Senhor!

—Juro por Deus Nosso Senhor.


CAPITULO XI

Um caso unico!

Santos cria na santidade do juramento; por isso, resistiu, mas emfim cedeu e jurou. Entretanto, o pensamento não lhe saiu mais da briga uterina dos filhos. Quiz esquecel-a. Jogou essa noite, como de costume; na seguinte, foi ao theatro; na outra a uma visita; e tornou ao voltarete do costume, e a briga sempre com elle. Era um mysterio. Talvez fosse um caso unico... Unico! Um caso unico! A singularidade do caso fel-o aggarrar-se mais á ideia, ou a ideia a elle; não posso explicar melhor este phenomeno intimo, passado lá onde não entra olho de homem, nem bastam reflexões ou conjecturas. Nem por isso durou muito tempo. No primeiro domingo, Santos pegou em si, e foi á casa do doutor Placido, rua do Senador Vergueiro, uma casa baixa, de trez janellas, com muito terreno para o lado do mar. Creio que já não existe: datava do tempo em que a rua era o Caminho Velho, para differençar do Caminho Novo.

Perdoa estas minucias. A acção podia ir sem ellas, mas eu quero que saibas que casa era, e que rua, e mais digo que alli havia uma especie de club, templo ou o que quer que era spirita. Placido fazia de sacerdote e presidente a um tempo. Era um velho de grandes barbas, olho azul e brilhante, enfiado em larga camisola de seda. Põe-lhe uma vara na mão, e fica um magico, mas, em verdade, as barbas e a camisola não as trazia por lhe darem tal aspecto. Ao contrario de Santos, que teria trocado dez vezes a cara, se não fôra a opposição da mulher, Placido usava as barbas inteiras desde moço e a camisola ha dez annos.

—Venha, venha, disse elle, ande ajudar-me a converter o nosso amigo Ayres; ha meia hora que procuro incutir-lhe as verdades eternas, mas elle resiste.

—Não, não, não resisto, acudiu um homem de cerca de quarenta annos, estendendo a mão ao recem-chegado.


CAPITULO XII

Esse Ayres

Esse Ayres que ahi apparece conserva ainda agora algumas das virtudes d'aquelle tempo, e quasi nenhum vicio. Não attribuas tal estado a qualquer proposito. Nem creias que vae nisto um pouco de homenagem á modestia da pessoa. Não, senhor, é verdade pura e natural effeito. Apesar dos quarenta annos, ou quarenta e dous, e talvez por isso mesmo, era um bello typo de homem. Diplomata de carreira, chegára dias antes do Pacifico, com uma licença de seis mezes.

Não me demoro em descrevel-o. Imagina só que trazia o callo do officio, o sorriso approvador, a fala branda e cautelosa, o ar da occasião, a expressão adequada, tudo tão bem distribuido que era um gosto ouvil-o e vel-o. Talvez a pelle da cara rapada estivesse prestes a mostrar os primeiros signaes do tempo. Ainda assim o bigode, que era moço na côr e no apuro com que acabava em ponta fina e rija, daria um ar de frescura ao rosto, quando o meio seculo chegasse. O mesmo faria o cabello, vagamente grisalho, apartado ao centro. No alto da cabeça havia um inicio de calva. Na botoeira uma flor eterna.

Tempo houve,—foi por occasião da anterior licença, sendo elle apenas secretario de legação,—tempo houve em que tambem elle gostou de Nativividade. Não foi propriamente paixão; não era homem disso. Gostou della, como de outras joias e raridades, mas tão depressa viu que não era acceito, trocou de conversação. Não era frouxidão ou frieza. Gostava assaz de mulheres e ainda mais se eram bonitas. A questão para elle é que nem as queria á força, nem curava de as persuadir. Não era general para escala á vista, nem para assedios demorados; contentava-se de simples passeios militares,—longos ou breves, conforme o tempo fosse claro ou turvo. Em summa, extremamente cordato.

Coincidencia interessante; foi por esse tempo que Santos pensou em casal-o com a cunhada, recentemente viuva. Esta parece que queria. Natividade oppoz se, nunca se soube porquê. Não eram ciumes; invejas não creio que fossem. O simples desejo de o não ver entrar na familia pela porta lateral é apenas uma figura, que vale qualquer das primeiras hypotheses negadas. O desgosto de cedel-o a outra, ou tel-os felizes ao pé de si, não podia ser, posto que o coração seja o abysmo dos abysmos. Supponhamos que era com o fim de o punir por havel-a amado.

Póde ser; em todo caso, o maior obstaculo viria delle mesmo. Posto que viuvo, Ayres não foi propriamente casado. Não amava o casamento. Casou por necessidade do officio; cuidou que era melhor ser diplomata casado que solteiro, e pediu a primeira moça que lhe pareceu adequada ao seu destino. Enganou-se: a differença de temperamento e de espirito era tal que elle, ainda vivendo com a mulher, era como se vivesse só. Não se affligiu com a perda; tinha o feitio do solteirão.

Era cordato, repito, embora esta palavra não exprima exactamente o que quero dizer. Tinha o coração disposto a acceitar tudo, não por inclinação á harmonia, senão por tedio á controversia. Para conhecer esta aversão, bastava tel-o visto entrar, antes, em visita ao casal Santos. Pessoas de fóra e da familia conversavam da cabocla do Castello.

—Chega a proposito, conselheiro, disse Perpetua. Que pensa o senhor da cabocla do Castello?

Ayres não pensava nada, mas percebeu que os outros pensavam alguma cousa, e fez um gesto de dous sexos. Como insistissem, não escolheu nenhuma das duas opiniões, achou outra, media, que contentou a ambos os lados, cousa rara em opiniões medias. Sabes que o destino dellas é serem desdenhadas. Mas este Ayres,—José da Costa Marcondes Ayres,—tinha que nas controversias uma opinião dubia ou media póde trazer a opportunidade de uma pilula, e compunha as suas de tal geito, que o enfermo, se não sarava, não morria, e é o mais que fazem pilulas. Não lhe queiras mal por isso; a droga amarga engole-se com assucar. Ayres opinou com pausa, delicadeza, circumloquios, limpando o monoculo ao lenço de seda, pingando as palavras graves e obscuras, fitando os olhos no ar, como quem busca uma lembrança, e achava a lembrança, e arredondava com ella o parecer. Um dos ouvintes acceitou-o logo, outro divergiu um pouco e acabou de accordo, assim terceiro, e quarto, e a sala toda.

Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava tambem guardar por escripto as descobertas, observações, reflexões, criticas e anecdotas, tendo para isso uma serie de cadernos, a que dava o nome de Memorial. Naquella noite escreveu estas linhas:

«Noite em casa da familia Santos, sem voltarete. Falou-se na cabocla do Castello. Desconfio que Natividade ou a irmã quer consultal-a; não será de certo a meu respeito.

«Natividade e um padre Guedes que lá estava, gordo e maduro, eram as unicas pessoas interessantes da noite. O resto insipido, mas insipido por necessidade, não podendo ser outra cousa mais que insipido. Quando o padre e Natividade me deixavam entregue a insipidez dos outros, eu tentava fugir-lhe pela memoria, recordando sensações, revivendo quadros, viagens, pessoas. Foi assim que pensei na Capponi, a quem vi hoje pelas costas, na rua da Quitanda. Conheci-a aqui no finado Hotel de D. Pedro, lá vão annos. Era dançarina; eu mesmo já a tinha visto dançar em Veneza. Pobre Capponi! Andando, o pé esquerdo saia-lhe do sapato e mostrava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade.

«Afinal tornei á eterna insipidez dos outros. Não acabo de crêr como é que esta senhora, aliás tão fina, pôde organisar noites como a de hoje. Não é que os outros não buscassem ser interessantes, e, se intenções valessem, nenhum livro os valeria; mas não o eram, por mais que tentassem. Emfim, lá vão; esperemos outras noites que tragam melhores sujeitos sem esforço algum. O que o berço dá só a cova o tira, diz um velho adagio nosso. Eu posso, truncando um verso ao meu Dante, escrever de taes insipidos:

Dico, che quando l'anima mal nata...


CAPITULO XIII

A epigraphe

Ora, alli está justamente a epigraphe do livro, se eu lhe quizesse pôr alguma, e não me occorresse outra. Não é sómente um meio de completar as pessoas da narração com as ideias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para que o leitor do livro penetre o que fôr menos claro ou totalmente escuro.

Por outro lado, ha proveito em irem as pessoas da minha historia collaborando nella, ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, especie de troca de serviços, entre o enxadrista e os seus trebelhos.

Se acceitas a comparação, distinguirás o rei e a dama, o bispo e o cavallo, sem que o cavallo possa fazer de torre, nem a torre de pião. Ha ainda a differença da côr, branca e preta, mas esta não tira o poder da marcha de cada peça, e afinal umas e outras podem ganhar a partida, e assim vae o mundo. Talvez conviesse pôr aqui, de quando em quando, como nas publicações do jogo, um diagramma das posições bellas ou difficeis. Não havendo taboleiro, é um grande auxilio este processo para acompanhar os lances, mas tambem póde ser que tenhas visão bastante para reproduzir na memoria as situações diversas. Creio que sim. Fóra com diagrammas! Tudo irá como se realmente visses jogar a partida entre pessoa e pessoa, ou mais claramente, entre Deus e o Diabo.


CAPITULO XIV

A licção do discipulo

—Fique, fique, conselheiro, disse Santos apertando a mão ao diplomata. Aprenda as verdades eternas.

—Verdades eternas pedem horas eternas, ponderou este, consultando o relogio.

Um tal Ayres não era facil de convencer. Placido falou-lhe de leis scientificas para excluir qualquer macula de seita, e Santos foi com elle. Toda a terminologia spirita saiu fóra, e mais os casos, phenomenos, mysterios, testemunhos, attestados verbaes e escriptos... Santos acudiu com um exemplo: dous espiritos podiam tornar juntos a este mundo; e, se brigassem antes de nascer?

—Antes de nascer, creanças não brigam, replicou Ayres, temperando o sentido affirmativo com a intonação dubitativa.

—Então nega que dous espiritos...? Essa cá me fica, conselheiro! Pois que impede que dous espiritos?...

Ayres viu o abysmo da controversia, e forrou- se á vertigem por uma concessão, dizendo:

—Esaú e Jacob brigaram no seio materno, isso é verdade. Conhece-se a causa do conflicto. Quanto a outros, dado que briguem tambem, tudo está em saber a causa do conflicto, e não a sabendo, porque a Providencia a esconde da noticia humana... Se fosse uma causa espiritual, por exemplo...

—Por exemplo?

—Por exemplo, se as duas creanças quizerem ajoelhar-se ao mesmo tempo para adorar o Creador. Ahi está um caso de conflicto, mas de conflicto espiritual, cujos processos escapam á sagacidade humana. Tambem poderia ser um motivo temporal. Supponhamos a necessidade de se acotovellarem para ficar melhor accommodados; é uma hypothese que a sciencia acceitaria; isto é, não sei... Ha ainda o caso de quererem ambos a primogenitura.

—Para que? perguntou Placido.

—Com quanto este privilegio esteja hoje limitado ás familias regias, á camara dos Iords e não sei se mais, tem todavia um valor symbolico. O simples gosto de nascer primeiro, sem outra vantagem social ou politica, póde dar-se por instincto, principalmente se as creanças se destinarem a galgar os altos deste mundo.

Santos afiou o ouvido neste ponto, lembrando-se das «cousas futuras». Ayres disse ainda algumas palavras bonitas, e accrescentou outras feias, admittindo que a briga podia ser prenuncio de graves conflictos na terra; mas logo temperou esse conceito com este outro:

—Não importa; não esqueçamos o que dizia um antigo, que «a guerra é a mãe de todas as cousas». Nia minha opinião, Empedocles, referindo-se á guerra, não o fez só no sentido technico. O amor, que é a primeira das artes da paz, póde-se dizer que é um duello, não de morte, mas de vida,—concluiu Ayres sorrindo leve, como falava baixo, e despediu-se.


CAPITULO XV

Teste David cum Sibylla

—E então? disse Santos. Não é que o conselheiro, em vez de aprender, ensina-nos? Eu acho que elle deu algumas razões boas.

—Quando menos, plausiveis, completou mestre Placido.

—Foi pena que se despedisse, continuou Santos, mas felizmente o meu caso é com o senhor. Venho consultal-o, e as suas luzes são as verdadeiras do mundo.

Placido agradeceu sorrindo. Não era novo o elogio, ao contrario; mas elle estava tão acostumado a ouvil-o que o sorriso era já agora um sestro. Não podia deixar de pagar com essa moeda aos seus discipulos.

—Trata-se...

—Trata-se disto. Aquella hypothese que eu formulei é um facto real; succedeu com os meus filhos...

—Como?

—É o que me parece, e vim justamente para que me explique. Nunca lhe falei por temer que achasse absurdo, mas tenho pensado, e suspeito que tal briga se deu, e que é um caso extraordinario.

Santos expoz então a consulta, gravemente, com um gesto particular que tinha de arregalar os olhos para arregalar a novidade. Não esqueceu nem escondeu nada; contou a propria ida da mulher ao Castello, com desdem, é verdade, mas ponto por ponto. Placido ouvia attento, perguntando, voltando atraz, e acabou por meditar alguns minutos. Emfim, declarou que o phenomeno, caso se houvesse dado, era raro, se não unico, mas possivel. Já o facto de se chamarem Pedro e Paulo indicava alguma rivalidade, porque esses dous apostolos brigaram tambem.

—Perdão, mas o baptismo...

—Foi posterior, sei, mas os nomes podem ter sido predestinados, tanto mais que a escolha dos nomes veiu, como o senhor me disse, por inspiração á tia dos meninos.

—Justamente.

—D. Perpetua é muito devota.

—Muito.

—Creio que os proprios espiritos de S. Pedro e S. Paulo houvessem escolhido aquella senhora para inspirar os nomes que estão no Credo; advirta que ella reza muitas vezes o Credo, mas foi naquella occasião que se lembrou delles.

—Exacto, exacto!

O doutor foi á estante e tirou uma Biblia, encadernada em couro, com grandes fechos de metal. Abriu a Epistola de S. Paulo aos Galatas, e leu a passagem do capitulo II, versículo 11, em que o apostolo conta que, indo a Antiochia, onde estava S. Pedro, «resistiu-lhe na cara».

Santos leu e teve uma ideia. As ideias querem-se festejadas, quando são bellas, e examinadas, quando novas; a delle era a um tempo nova e bella. Deslumbrado, ergueu a mão e deu uma palmada na folha, bradando:

—Sem contar que este numero onze do versiculo, composto de dous algarismos eguaes, 1 e 1, é um numero gemeo, não lhe parece?

—Justamente. E mais: o capitulo é o segundo, isto é, dous, que é o proprio numero dos irmãos gemeos.

Mysterio engendra mysterio. Havia mais de um elo intimo, substancial, escondido, que ligava tudo. Briga, Pedro e Paulo, irmãos gemeos, numeros gemeos, tudo eram aguas de mysterio que elles agora rasgavam, nadando e bracejando com força. Santos foi mais ao fundo; não seriam os dous meninos os proprios espiritos de S. Pedro e de S. Paulo, que renasciam agora, e elle, pae dos dous apostolos?... A fé transfigura; Santos tinha um ar quasi divino, trepou em si mesmo, e os olhos ordinariamente sem expressão, pareciam entornar a chamma da vida. Pae de apostolos! e que apostolos! Placido esteve quasi, quasi a crêr tambem, achava-se dentro de um mar torvo, soturno, onde as vozes do infinito se perdiam, mas logo lhe acudia que os espiritos de S. Pedro e S. Paulo tinham chegado á perfeição; não tornariam cá. Não importa; seriam outros, grandes e nobres. Os seus destinos podiam ser brilhantes; tinha razão a cabocla, sem saber o que dizia.

—Deixe ás senhoras as suas crenças da meninice, concluiu; se ellas tem fé na tal mulher do Castello, e acham que é um vehiculo de verdade, não as desminta por ora. Diga-lhes que eu estou de accordo com o seu oraculo. Teste David cum Sibylla.

—Digo, digo! escreva a phrase.

Placido foi á secretaria, escreveu o verso, e deu-lhe o papel, mas já então Santos advertira que mostral-o á mulher era confessar a consulta spirita, e naturalmente o perjurio. Referiu ao amigo os escrupulos de Natividade e pediu que calassem tudo.

—Estando com ella, não lhe diga o que se passou entre nós.

Saiu logo depois, arrependido da indiscrição, mas deslumbrado da revelação. Ia cheio de numeros da Escriptura, de Pedro e Paulo, de Esaú e Jacob. O ar da rua não espanou a poeira do mysterio; ao contrario, o céu azul, a praia socegada, os montes verdes como que o cercavam e cobriam de um veu mais transparente e infinito. A rixa dos meninos, facto raro ou unico, era uma distincção divina. Contrariamente á esposa, que cuidava sómente da grandeza futura dos filhos, Santos pensava no conflicto passado.

Entrou em casa, correu aos pequenos, e acarinhou-os com tão estranha expressão, que a mãe desconfiou alguma cousa, e quiz saber o que era.

—Não é nada, respondeu elle rindo.

—É alguma cousa, anda, acaba.

—Que ha de ser?

—Seja o que fôr, Agostinho, acaba.

Santos pediu-lhe que se não zangasse, e contou tudo, a sorte, a rixa, a Escriptura, os apostolos, o symbolo, tudo tão espalhadamente, que ella mal pôde entender, mas entendeu ao final, e replicou com os dentes cerrados:

—Ah! você! você!

—Perdoa, amiguinha; estava tão ancioso de saber a verdade... E nota que eu creio na cabocla, e o doutor tambem; elle até me escreveu isto em latim, concluiu tirando e lendo o papelinho: Teste David cum Sibylla.


CAPITULO XVI

Paternalismo

D'ahi a pouco, Santos pegou na mão da mulher, que a deixou ir á toa, sem apertar a delle; ambos fitavam os meninos, tendo esquecido a zanga para só ficarem paes.

Já não era spiritismo, nem outra religião nova; era a mais velha de todas, fundada por Adão e Eva, á qual chama, se queres, paternalismo. Rezavam sem palavras, persignavam-se sem dedos, uma especie de ceremonia quieta e muda, que abrangia o passado e o futuro. Qual delles era o padre, qual o sacristão, não sei, nem é preciso. A missa é que era a mesma, e o evangelho começava como o de S. João (emendado): «No principio era o amor, e o amor se fez carne». Mas venhamos aos nossos gemeos.


CAPITULO XVII

Tudo o que restrinjo

Os gemeos, não tendo que fazer, iam mamando. Nesse officio portavam-se sem rivalidade, a não ser quando as amas estavam ás boas, e elles mamavam ao pé um do outro; cada qual então parecia querer mostrar que mamava mais e melhor, passeando os dedos pelo seio amigo, e chupando com alma. Ellas, á sua parte tinham gloria dos peitos e os comparavam entre si; os pequenos, fartos, soltavam afinal os bicos e riam para ellas.

Se não fosse a necessidade de pôr os meninos em pé, crescidos e homens, espraiava este capitulo. Realmente, o espectaculo, posto que commum, era bello. Os peraltas nutriam-se ao contrario dos paes, sem as artes do cozinheiro, nem a vista das comidas e bebidas, todas postas em crystaes e porcelanas para emendar ou colorir a dura necessidade de comer. A elles nem se lhes via a comida; a boca ligada ao peito não deixava apparecer o leite. A natureza mostrava-se satisfeita pelo riso ou pelo somno. Quando era o somno, cada uma levava o seu menino ao berço, e ia cuidar de outra cousa. Este cotejo dar-me-ia trez ou quatro paginas solidas.

Uma pagina bastava para os chocalhos que embellezavam os pequenos, como se fosse a propria musica do céu. Elles sorriam, estendiam as mãos, alguma vez zangavam-se com as negaças, mas tanto que lh'os davam, calavam-se, e se não podiam tocar não se zangavam por isso. A proposito de chocalhos, diria que esses instrumentos não deixam memoria de si; alguem que os veja em mãos de creanças, se parecer que lhe lembram os seus, cae logo no engano, e adverte que a recordação ha de ser mais recente, alguma arenga do anno passado, se não foi a vacca de leite da vespera.

A operação de desmamar podia fazer-se em meia linha, mas as lástimas das amas, as despedidas, as bichas de ouro que a mãe deu a cada uma dellas, como um presente final, tudo isso exigia uma boa pagina ou mais. Poucas linhas bastariam para as amas seccas, porquanto não diria se eram altas nem baixas, feias ou bonitas. Eram mansas, zelosas do officio, amigas dos pequenos, e logo uma da outra. Cavallinhos de pau, bandeirolas, theatros de bonecos, barretinas e tambores, toda a quinquilharia da infancia occuparia muito mais que o logar de seus nomes.

Tudo isso restrinjo só para não enfadar a leitora curiosa de ver os meus meninos homens e acabados. Vamos vel-os, querida. Com pouco, estão crescidos e fortes. Depois, entrego-os a si mesmos; elles que abram a ferro ou lingua, ou simples cotovellos, o caminho da vida e do mundo.


CAPITULO XVIII

De como vieram crescendo

Eil -os que vem crescendo. A semelhança, sem os confundir já, continuava a ser grande. Os mesmos olhos claros e attentos, a mesma bôca cheia de graça, as mãos finas, e uma côr viva nas faces que as fazia crêr pintadas de sangue. Eram sadios; exceptuada a crise dos dentes, não tiveram molestia alguma, porque eu não conto uma ou outra indigestão de doces, que os paes lhes davam, ou elles tiravam ás escondidas. Eram ambos gulosos, Pedro mais que Paulo, e Paulo mais que ninguem.

Aos sete annos eram duas obras-primas, ou antes uma só em dous volumes, como quizeres. Em verdade, não havia por toda aquella praia, nem por Flamengos ou Glorias, Cajus e outras redondezas, não havia uma, quanto mais duas creanças tão graciosas. Nota que eram tambem robustos. Pedro com um murro derrubava Paulo; em compensação, Paulo com um ponta-pé deitava Pedro ao chão. Corriam muito na chacara por aposta. Alguma vez quizeram trepar ás arvores, mas a mãe não consentia; não era bonito. Contentavam-se de espiar cá de baixo a fructa.

Paulo era mais aggressivo, Pedro mais dissimulado, e, como ambos acabavam por comer a fructa das arvores, era um moleque que a ia buscar acima, fosse a cascudo de um ou com promessa de outro. A promessa não se cumpria nunca; o cascudo, por ser antecipado, cumpria-se sempre, e ás vezes com repetição depois do serviço. Não digo com isto que um e outro dos gemeos não soubessem aggredir e dissimular; a differença é que cada um sabia melhor o seu gosto, cousa tão obvia que custa escrever.

Obedeciam aos paes sem grande esforço, posto fossem teimosos. Nem mentiam mais que outros meninos da cidade. Ao cabo, a mentira é alguma vez meia virtude. Assim é que, quando elles disseram não ter visto furtar um relogio da mãe, presente do pae, quando eram noivos, mentiram conscientemente, porque a criada que o tirou foi apanhada por elles em plena acção de furto. Mas era tão amiga delles! e com taes lagrimas lhes pediu que não dissessem a ninguem, que os gemeos negaram absolutamente ter visto nada. Contavam sete annos. Aos nove, quando já a moça ia longe, é que descobriram, não sei a que proposito, o caso escondido. A mãe quiz saber porque é que elles calaram outrora; não souberam explicar-se, mas é claro que o silencio de 1878 foi obra da affeição e da piedade, e dahi a meia-virtude, porque é alguma cousa pagar amor com amor. Quanto á revelação de 1880 só se póde explicar pela distancia do tempo. Já não estava presente a boa Miquelina; talvez ja estivesse morta. Demais, veiu tão naturalmente a referencia...

—Mas, porque é que vocês até agora não me disseram? teimava a mãe.

Não sabendo mais que razão déssem, um delles, creio que Pedro, resolveu accusar o irmão:

—Foi elle, mamãe!

—Eu? redarguiu Paulo. Foi elle, mamãe, elle é que não disse nada.

—Foi você!

—Foi você! não minta!

—Mentiroso é elle!

Cresceram um para o outro. Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhes os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que elles não acharam melhor occasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram tambem um passeio, á tarde, no carrinho do pae.

Na volta estavam amigos ou reconciliados. Contaram á mãe o passeio, a gente da rua, as outras creanças que olhavam para elles com inveja, uma que mettia o dedo na bôca, outro no nariz, e as moças que estavam ás janellas, algumas que os acharam bonitos. Neste ultimo ponto divergiam, porque cada um delles tomava para si só as admirações; mas a mãe interveiu:

—Foi para ambos. Vocês são tão parecidos, que não podia ser senão para ambos. E sabem porque é que as moças elogiaram vocês? Foi por ver que iam amigos, chegadinhos um ao outro. Meninos bonitos não brigam, ainda menos sendo irmãos. Quero vel-os quietos e amigos, brincando juntos sem rusga nem nada. Estão entendendo?

Pedro respondeu que sim; Paulo esperou que a mãe repetisse a pergunta, e deu egual resposta. Emfim, porque esta mandasse, abraçaram-se, mas foi um abraçar sem gosto, sem força, quasi sem braços; encostaram-se um ao outro, estenderam as mãos ás costas do irmão, e deixaram-n'as cair.

De noite, na alcova, cada um delles concluiu para si que devia os obsequios daquella tarde, o doce, os beijos e o carro, á briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. Sem palavras, como um romance ao piano, resolveram ir á cara um do outro, na primeira occasião. Isto que devia ser um laço armado á ternura da mãe, trouxe ao coração de ambos uma sensação particular, que não era só consolo e desforra do socco recebido naquelle dia, mas tambem satisfação de um desejo intimo, profundo, necessario. Sem odio, disseram ainda algumas palavras de cama a cama, riram de uma ou outra lembrança da rua, ate que o somno entrou com os seus pés de lã e bico calado, e tomou conta da alcova inteira.


CAPITULO XIX

Apenas duas.—Quarenta annos. Terceira causa

Um dos meus proposrtos neste livro é não lhe pôr lagrimas. Entretanto, não posso calar as duas que rebentaram certa vez dos olhos de Natividade, depois de uma rixa dos pequenos. Apenas duas, e fôram morrer-lhe aos cantos da bôca. Tão depressa as verteu como as engoliu, renovando ás avessas e por palavras mudas o fecho daquellas historias de creanças: «entrou por uma porta, saiu pela outra, manda el-rei nosso senhor que nos conte outra.» E a segunda creança contava segunda historia, a terceira terceira, a quarta quarta, até que vinha o fastio ou o somno. Pessoas que datam do tempo em que se contavam taes historias affirmam que creanças não punham naquella formula nenhuma monarchica, fosse absoluta, fosse constitucional; era um modo de ligar o seu Decameron dellas, herdado do velho reino portuguez, quando os reis mandavam o que queriam, e a nação dizia que era muito bem.

Engolidas as duas lagrimas, Natividade riu da propria fraqueza. Não se chamou tola, porque esses desabafos raramente se usam, ainda em particular; mas no secreto do coração, lá muito ao fundo, onde não penetra olho de homem, creio que sentiu alguma cousa parecida com isso. Não tendo prova clara, limito-me a defender a nossa dona.

Em verdade, qualquer outra viveria a tremer pela sorte dos filhos, uma vez que houvera a rixa anterior e interior. Agora as lutas eram mais frequentes, as mãos cada vez mais aptas, e tudo fazia receiar que elles acabassem estripando-se um ao outro... Mas aqui surgia a ideia da grandeza e da prosperidade,—cousas futuras!—e esta esperança era como um lenço que enxugasse os olhos da bella senhora. As Sibyllas não terão dito só do mal, nem os Prophetas, mas ainda do bem, e principalmente delle.

Com esse lenço verde enxugou ella os olhos, e teria outros lenços, se aquelle ficasse roto ou enxovalhado; um, por exemplo, não verde como a esperança, mas azul, como a alma della. Ainda lhes não disse que a alma de Natividade era azul. Ahi fica. Um azul celeste, claro e transparente, que alguma vez se embruscava, raro tempestuava, e nunca a noite escurecia.

Não, leitor, não me esqueceu a edade da nossa amiga; lembra-me como se fosse hoje. Chegou assim aos quarenta annos. Não importa; o céu é mais velho e não trocou de côr. Uma vez que lhe não attribuas ao azul da alma nenhuma significação romantica, estás na conta. Quando muito, no dia em que perfez aquella edade, a nossa dona sentiu um calefrio. Que passára? Nada, um dia mais que na vespera, algumas horas apenas. Toda uma questão de numero, menos que numero, o nome do numero, esta palavra quarenta, eis o mal unico. Dahi a melancolia com que ella disse ao marido, agradecendo o mimo do anniversario: «Estou velha, Agostinho!» Santos quiz esganal-a brincando.

Pois faria mal se a esganasse. Natividade ainda tinha as fôrmas do tempo anterior á concepção, a mesma flexibilidade, a mesma graça miuda e viva. Conservava o donaire dos trinta. A costureira punha em relevo todos os pensamentos restantes da figura, e ainda lhe emprestava alguns do seu bolsinho. A cintura teimava em não querer engrossar, e os quadris e o collo eram do mesmo estofador antigo.

Ha dessas regiões em que o verão se confunde com o outono, como se dá na nossa terra, onde as duas estações só differem pela temperatura. Nella nem pela temperatura. Maio tinha o calor de janeiro. Ella, aos quarenta annos, era a mesma senhora verde, com a mesmissima alma azul.

Esta côr vinha-lhe do pae e do avô, mas o pae morreu cedo, antes do avô, que chegara aos oitenta e quatro. Nessa edade cria sinceramente que todas as delicias deste mundo, desde o café de manhã até os somnos socegados haviam sido inventados sómente para elle. O melhor cozinheiro da terra nascera na China, para o unico fim de deixar familia, patria, lingua, religião, tudo, e vir assar-lhe as costelletas e fazer-lhe o chá. As estrellas davam ás suas noites una aspecto esplendido, o luar tambem, e a chuva, se chovia, era para que elle descançasse do sol. Lá está agora no cemiterio de S. Francisco Xavier; se alguem pudesse ouvir a voz dos mortos, dentro das sepulturas, ouviria a delle, bradando que é tempo de fechar a porta ao cemiterio e não deixar entrar ninguem, uma vez que elle já lá descança para todo sempre. Morreu azul; se chegasse aos cem annos, nao teria outra côr.

Ora, se a natureza queria poupar esta senhora, a riqueza dava a mão á natureza, e de uma e de outra saía a mais bella côr que alma de gente póde ter. Tudo concorria assim para lhe seccarem os olhos depressa, como vimos atraz. Se ella bebeu aquellas duas lagrimas solitarias, pudera ter bebido outras pela edade adeante, e isto é ainda uma prova daquelle matiz espiritual; mostrará assim que as tem poucas, e engole-as para poupal-as.

Mas ha ainda uma terceira causa que dava a esta senhora o sentimento da côr azul, causa tão particular que merecia ir em capitulo seu, mas não vae, por economia. Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O cabo das Tormentas converteu-se em cabo da Boa Esperança, e ella venceu a primeira e a segunda mocidade, sem que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem. Não negaria que alguma lufada mais rija pudera levar-lhe a vela do traquete, como no caso de João de Mello, ou ainda peor, no de Ayres, mas fôram bocejos de Adamastor. Concertou a vela depressa e o gigante ficou atraz cercado de Thetis, emquanto ella seguiu o caminho da India. Agora lembrava-se da viagem prospera. Honrava-se dos ventos inuteis e perdidos. A memoria trazia-lhe o sabor do perigo passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e amados da fortuna.


CAPITULO XX

A joia

Os quarenta e um annos não lhe trouxeram arrepio. Já estava acostumada á casa dos quarenta. Sentiu sim, um grande espanto; acordou e não viu o presente do costume, a «sorpreza» do marido ao pé da cama. Não a achou no toucador; abriu gavetas, espiou, nada. Creu que o marido esquecera a data e ficou triste; era a primeira vez! Desceu olhando; nada. No gabinete estava o marido, calado, mettido comsigo, a ler jornaes, mal lhe estendeu a mão. Os rapazes, apesar de ser domingo, estudavam a um canto; vieram dar-lhe o beijo do costume e tornaram aos livros. A mãe ainda relanceou os olhos pelo gabinete, a ver se achava algum mimo, um painel, um vestido, foi tudo vão. Embaixo de uma das folhas do dia que estava na cadeira fronteira á do marido podia ser que... Nada. Então sentou-se, e, abrindo a folha, ia dizendo comsigo: «Será possivel que não se lembre do dia de hoje? Será possivel?» Os olhos entraram a ler á toa, saltando as noticias, tornando atraz...

Defronte o marido espreitava a mulher, sem absolutamente importar-lhe o que parecia ler. Assim se passaram alguns minutos. De repente, Santos viu uma expressão nova no rosto de Natividade; os olhos della pareciam crescer, a bôca entre-abriu-se, a cabeça ergueu-se, a delle tambem, ambos deixaram a cadeira, deram dous passos e cairam nos braços um do outro, como dous namorados desesperados de amor. Um, dous, trez, muitos beijos. Pedro e Paulo, espantados, estavam ao canto, de pé. O pae, quando pôde falar, disse-lhes:

—Venham beijar a mão da senhora baroneza de Santos.

Não entenderam logo. Natividade não sabia que fizesse; dava a mão aos filhos, ao marido, e tornava ao jornal para ler e reler que no despacho imperial da vespera o Sr. Agostinho José dos Santos fôra agraciado com o titulo de Barão de Santos. Comprehendeu tudo. O presente do dia era aquelle; o ourives desta vez foi o imperador.

—Vão, vão, agora podem ir brincar, disse o pae aos filhos.

E os rapazes sairam a espalhar a noticia pela casa. Os criados ficaram felizes com a mudança dos amos. Os proprios escravos pareciam receber uma parcella de liberdade e condecoravam-se com ella: «Nhã Baroneza!» exclamavam saltando. E João puxava Maria, batendo castanholas com os dedos: «Gente, quem é esta creoula? Sou escrava de Nhã Baroneza!»

Mas o imperador não foi o unico ourives. Santos tirou do bolso uma caixinha, com um broche em que a corôa nova rutilava de brilhantes. Natividade agradeceu-lhe a joia e consentiu em pol-a, para que o marido a visse. Santos sentia-se autor da joia, inventor da fórma e das pedras; mas deixou logo que ella a tirasse e guardasse, e pegou das gazetas, para lhe mostrar que em todas vinha a noticia, algumas com adjectivo, conceituado aqui, alli distincto, etc.

Quando Perpetua entrou no gabinete, achou-os andando de um lado para outro, com os braços passados pela cintura, conversando, calando, mirando os pés. Tambem ella deu e recebeu abraços.

Toda a casa estava alegre. Na chacara as arvores pareciam mais verdes que nunca, os botões do jardim explicavam as folhas, e o sol cobria a terra de uma claridade infinita. O céu, para collaborar com o resto, ficou azul o dia inteiro. Logo cedo entraram a vir cartões e cartas de parabens. Mais tarde visitas. Homens do foro, homens do commercio, homens de sociedade, muitas senhoras, algumas titulares tambem, vieram ou mandaram. Devedores de Santos acudiram depressa, outros preferiram continuar o esquecimento. Nomes houve que elles só puderam reconhecer á força de grande pesquiza e muito almanaque.


CAPITULO XXI

Um ponto escuro

Sei que ha um ponto escuro no capitulo que passou; escrevo este para esclarecel-o.

Quando a esposa inquiriu dos antecendentes e circumstancias do despacho, Santos deu as explicações pedidas. Nem todas seriam estrictamente exactas; o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminue ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. Demais, a materia era tão propicia ao alvoroço que facilmente traria confusão á memoria. Ha, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para supprir os perdidos, e nem por isso a historia morre.

Resta saber (é o ponto escuro) como é que Santos pôde calar por longos dias um negocio tão importante para elle e para a esposa. Em verdade, esteve mais de uma vez a dizer por palavra ou por gesto, se achasse algum, aquelle segredo de poucos; mas, sempre havia uma força maior que lhe tapava a bôca. Ao que parece, foi a expectação de uma alegria nova e inesperada que lhe deu a alma de pacientar.

Naquella scena do gabinete tudo foi composto de antemão, o silencio, a indifferença, os filhos que elle poz alli, estudando ao domingo, só para o effeito daquella phrase: «Venham beijar a mão da senhora baroneza de Santos!»


CAPITULO XXII

Agora um salto

Que os dous gemeos participassem da lua de mel nobiliaria dos paes não é cousa que se precise escrever. O amor que lhes tinham bastava a explical-o, mas accresce que, havendo o titulo produzido em outros meninos dous sentimentos oppostos, um de estima, outro de inveja, Pedro e Paulo concluiram ter recebido com elle um merito especial. Quando, mais tarde, Paulo adoptou a opinião republicana nunca envolveu aquella distincção da familia na condemnação das instituições. Os estados de alma que daqui nasceram davam materia a um capitulo especial, se eu não preferisse agora um salto, e ir a 1886. O salto é grande, mas o tempo é um tecido invisivel em que se póde bordar tudo, uma flor, um passaro, uma dama, um castello, um tumulo. Tambem se póde bordar nada. Nada em cima de invisivel é a mais subtil obra deste mundo, e acaso do outro.


CAPITULO XXIII

Quando tiverem barbas

Naquelle anno, uma noite de agosto, como estivessem algumas pessoas na casa de Botafogo, succedeu que uma dellas, não sei se homem ou mulher, perguntou aos dous irmãos que edade tinham.

Paulo respondeu:

—Nasci no anniversario do dia em que Pedro I caiu do throno.

E Pedro:

—Nasci no anniversario do dia em que Sua Majestade subiu ao throno.

As respostas foram simultaneas, não successivas, tanto que a pessoa pediu-lhes que falasse cada um por sua vez. A mãe explicou:

—Nasceram no dia 7 de Abril de 1870.

Pedro repetiu vagarosamente:

—Nasci no dia em que Sua Majestade subiu ao throno.

E Paulo, em seguida:

—Nasci no dia em que Pedro I caiu do throno.

Natividade reprehendeu a Paulo a sua resposta subversiva. Paulo explicou-se, Pedro contestou a explicação e deu outra, e a sala viraria club, se a mãe não os accommodasse por esta maneira:

—Isto hão de ser grupos de collegio; vocês não estão em edade de falar em politica. Quando tiverem barbas.

As barbas não queriam vir, por mais que elles chamassem o buço com os dedos, mas as opiniões politicas e outras vinham e cresciam. Não eram propriamente opiniões, não tinham raizes grandes nem pequenas. Eram (mal comparando) gravatas de côr particular, que elles atavam ao pescoço, á espera que a côr cançasse e viesse outra. Naturalmente cada um tinha a sua. Tambem se póde crêr que a de cada um era, mais ou menos, adequada á pessoa. Como recebiam as mesmas approvações e distincções nos exames, faltava-lhes materia a invejas; e, se a ambição os dividisse algum dia, não era por ora aguia nem condor, ou sequer filhote; quando muito, um ovo. No collegio de Pedro II todos lhes queriam bem.

As barbas é que não queriam vir. Que é que se lhes ha de fazer quando as barbas não querem vir? Esperar que venham por seu pé, que appareçam, que cresçam, que embranqueçam, como é seu costume dellas, salvo as que não embranquecem nunca, ou só em parte e temporariamente. Tudo isto é sabido e banal, mas dá ensejo a dizer de duas barbas do ultimo genero, celebres naquelle tempo, e ora totalmente esquecidas. Não tendo outro logar em que fale dellas, aproveito este capitulo, e o leitor que volte a pagina, se prefere ir atraz da historia. Eu ficarei durante algumas linhas, recordando as duas barbas mortas, sem as entender agora, como não as entendemos então, as mais inexplicaveis barbas do mundo.

A primeira daquellas barbas era de um amigo de Pedro, um capucho, um italiano, frei ***. Podia escrever-lhe o nome,—ninguem mais o conheceria,—mas prefiro esse signal trino, numero de mysterio, expresso por estrellas, que são os olhos do céu. Trata-se de um frade. Pedro não lhe conheceu a barba preta, mas já grisalha, longa e basta, adornando uma cabeça mascula e formosa. A bôca era risonha, os olhos rutilos. Ria por ella e por elles, tão docemente que mettia a gente no coração. Tinha o peito largo, as espaduas fortes. O pé nú, atado á sandalia, mostrava aguentar um corpo de Hercules. Tudo isso meigo e espiritual, como uma pagina evangelica. A fé era viva, a affeição segura, a paciencia infinita.

Frei *** despediu-se um dia de Pedro. Ia ao interior, Minas, Rio Janeiro, S. Paulo,—creio que ao Paraná tambem,—viagem espiritual, como a de outros confrades, e lá ficou por um semestre ou mais. Quando voltou trouxe-nos a todos grande alegria e maior espanto. A barba estava negra, não sei se tanto ou mais que d'antes, mas negrissima e brilhantissima. Não explicou a mudança, nem ninguem lhe perguntou por ella; podia ser milagre ou capricho da natureza; tambem podia ser correcção de homem, posto que o ultimo caso fosse mais difficil de crêr que o primeiro. Durou nove mezes esta côr; feita outra viagem por trinta dias, a barba appareceu de prata ou de neve, como vos parecer mais branca.

Quanto á segunda de taes barbas, foi ainda mais espantosa. Não era de frade, mas de maltrapilho, um sujeito que vivia de dividas, e na mocidade corrigira um velho rifão da nossa lingua por esta maneira: «Paga o que deves, vê o que te não fica.»

Chegou aos cincoenta annos sem dinheiro, sem emprego, sem amigos. A roupa teria a mesma edade, os sapatos não menor que ella. A barba é que não chegou aos cincoenta; elle pintava-a de negro e mal, provavelmente por não ser a tinta de primeira qualidade e não possuir espelho. Andava só, descia ou subia muita vez a mesma rua. Um dia dobrou a esquina da Vida e caiu na praça da Morte, com as barbas enxovalhadas, por não haver quem lh'as pintasse na Santa Casa.

Or, benè, para falar como o meu capucho, porque é que este e o maltrapilho voltaram do grisalho ao negro? A leitora que adivinhe, se póde: dou-lhe vinte capitulos para alcançal-o. Talvez eu, por essas alturas, lobrigue alguma explicação, mas por ora não sei nem aventuro nada. Vá que malignos attribuam a frei *** alguma paixão profana; ainda assim não se comprehende que elle se descobrisse por aquelle modo. Quanto ao maltrapilho, a que damas queria elle agradar, a ponto de trocar alguma vez o pão pela tinta? Que um e outro cedessem ao desejo de prender a mocidade fugitiva, póde ser. O frade, lido na Escriptura, sabendo que Israel chorou pelas cebolas do Egypto, teria tambem chorado, e as suas lagrimas cairam negras. Póde ser, repito. Este desejo de capturar o tempo é uma necessidade da alma e dos queixos; mas ao tempo dá Deus habeas-corpus.


CAPITULO XXIV

Robespierre e Luiz XVI

Tanto cresceram as opiniões de Pedro e Paulo que, um dia, chegaram a incorporar-se em alguma cousa. Iam descendo pela rua da Carioca. Havia alli uma loja de vidraceiro, com espelhos de vario tamanho, e, mais que espelhos, tambem tinha retratos velhos e gravuras baratas, com e sem caixilho. Pararam alguns instantes, olhando á toa. Logo depois, Pedro viu pendurado um retrato de Luiz XVI, entrou e comprou-o por oitocentos reis; era uma simples gravura atada ao mostrador por um barbante. Paulo quiz ter egual fortuna, adequada ás suas opiniões, e descobriu um Robespierre. Como o logista pedisse por este mil e duzentos, Pedro exaltou-se um pouco.

—Então o senhor vende mais barato um rei, e um rei martyr?

—Ha de perdoar, mas é que esta outra gravura custou-me mais caro, redarguiu o velho logista. Nós vendemos conforme o preço da compra. Veja; está mais nova.

—Lá isso, não, acudiu Paulo. São do mesmo tempo; mas é que este vale mais que aquelle.

—Ouvi dizer que tambem era rei...

—Qual, rei! responderam os dous.

—Ou quiz sel-o, não sei bem... Que eu de historias, apenas conheço a dos mouros que aprendi na minha terra com a avó, alguns bocados em verso. E elle ainda ha mouras lindas; por exemplo, esta; apesar do nome, creio que era moura, ou ainda é, se vive... Mal lhe saiba ao marido!

Foi a um canto e trouxe um retrato de Madame de Stael, com o famoso turbante na cabeça. Ó effeito da belleza! Os rapazes esqueceram por um instante as opiniões politicas e ficaram a olhar longamente a figura de Corinna. O logista, apesar dos seus setenta annos, tinha os olhos babados. Cuidou de sublinhar as formas, a cabeça, a bôca um tanto grossa, mas expressiva, e dizia que não era caro. Como nenhum quizesse compral-a, talvez por ser só uma, disse-lhes que ainda tinha outro, mas esse era «uma pouca vergonha,» phrase que os deuses lhe perdoariam, quando soubessem que elle não quiz mais que abrir o appetite aos freguezes. E foi a um armario, tirou de lá, e trouxe uma Diana, núa como vivia cá em baixo, outr'ora, nos mattos. Nem por isso a vendeu. Teve de contentar-se com os retratos politicos.

Quiz ainda ver se colhia algum dinheiro, vendendo-lhes um retrato de Pedro I, encaixilhado, que pendia da parede; mas, Pedro recusou por não ter dinheiro disponivel, e Paulo disse que não daria um vintem pela «cara de traidores». Antes não dissesse nada! O logista, tão depressa lhe ouviu a resposta como despiu as fôrmas obsequiosas, vestiu outras indignadas, e bradou que sim, senhor, que o moço tinha razão.

—Tem muita razão. Foi um traidor, mau filho. mau irmão, mau tudo. Fez todo o mal que pôde a este mundo; e no inferno, onde está, se a religião não mente, deve ainda fazer mal ao Diabo. Este moço falou ha pouco em rei martyr,—continuou mostrando-lhes um retrato de D. Miguel de Bragança, meio perfil, sobrecasaca, mão ao peito,—este é que foi um verdadeiro martyr daquelle, que lhe roubou o throno, que não era seu, para dal-o a quem não pertencia; e foi morrer á mingua o meu pobre rei e senhor, dizem que na Allemanha, ou não sei onde. Ah! malhados! Ah! filhos do Diabo! Os senhores não podem imaginar o que era aquella canalha de liberaes. Liberaes! Liberaes do alheio!

—É tudo a mesma farinha, reflexionou Paulo.

—Eu não sei se elles eram de farinha, sei que levaram muita pancada. Venceram, mas apanharam deveras. Meu pobre rei!

Pedro quiz responder ao remoque do irmão, e propoz comprar o retrato de Pedro I. Quando o logista tornou a si, começou a negociar a venda, mas não poderam entender-se no preço; Pedro dava os mesmos oitocentos reis do outro, o logista pedia dous mil reis. Notava-lhe que estava encaixilhado, e Luiz XVI não; além disso, era mais novo. E vinha á porta, a buscar melhor luz, chamava-lhe a attenção para o rosto, os olhos principalmente, que bella expressão que tinham! E o manto imperial...

—Que lhe custa dar dous mil reis?

—Dou-lhe dez tostões; serve?

—Não serve. Mais que isso me custou elle.

—Pois então...

—Veja sempre. Pois isto não vale até trez mil reis? 0 papel não está encardido; a gravura é fina.

—Dez tostões, já disse.

—Não, senhor. Olhe, por dez tostões leve este de D. Miguel; o papel está bem conservado, e, com pouco dinheiro, manda lhe pôr um caixilho. Vá; dez tostões.

—Se eu já estou arrependido... Dez tostões pelo imperador.

—Ah! isso não! Custou-me mil e setecentos, ha trez semanas; ganho uns trezentos reis, quasi nada. Ganho menos com o senhor D. Miguel, mas tambem concordo que é menos procurado. Este de D. Pedro I, se passar amanhã, talvez já o não ache. Vá, sim?

—Eu passo depois.

Paulo já ia andando e mirando Robespierre; Pedro alcançou-o.

—Olhe, leve por sete tostões o senhor D. Miguel!

Pedro abanou a cabeça.

—Seis tostões serve?

Pedro, ao lado do irmão, desenrolára a sua gravura. O velho logista quiz ainda bradar: «Cinco tostões!» mas iam já longe, e ficava mal negociar assim.


CAPITULO XXV

D. Miguel

—Assim como assim, ficou pensando o velho, não ha de ser enrolado e guardado que o hei de vender; vou mandal-o encaixilhar; põem-se-lhe aqui umas taboinhas velhas...

D. Miguel voltou para elle os olhos turvos de tristeza e reproche; assim lhe pareceu ao vidraceiro, mas podia ter sido illusão. Em todo caso, pareceu tambem que os olhos tornavam ao seu logar, fitando á direita, ao longe... Para onde? Para onde ha justiça eterna, cuidou naturalmente o dono. Como estivesse a contemplal-o, á porta, parou um homem, entrou, e olhou com interesse para o retrato. O logista reparou na expressão; podia ser algum miguelista, mas tambem podia ser um colleccionador...

—Quanto pede o senhor por isto?

—Isto? Ha de perdoar; quer saber quanto peço pelo meu rico senhor D. Miguel? Não peço muito, está um tanto encardido, mas ainda se lhe aprecia bem a figura. Que soberba que ella é! Não é caro; dou-lhe pelo custo; se estivesse encaixilhado, valeria uns quatro mil reis. Leve-o por trez.

O freguez tirou tranquillamente o dinheiro do bolso, emquanto o velho enrolava o retrato, e, trocados um por outro, despediram-se cortezes e satisfeitos; o logista, depois de ir até a porta, tornou á cadeira do costume. Talvez pensasse no mal a que escapára, se vendesse o retrato por dez tostões. Em todo caso, ficou a olhar para fóra, para longe, para onde ha justiça eterna... Trez mil reis!


CAPITULO XXVI

A luta dos retratos

Quasi que não é preciso dizer o destino dos retratos do rei e do convencional. Cada um dos pequenos pregou o seu á cabeceira da cama. Pouco durou esta situação, porque ambos faziam pirraças ás pobres gravuras, que não tinham culpa de nada. Eram orelhas de burro, nomes feios, desenhos de animaes, até que um dia Paulo rasgou a de Pedro, e Pedro a de Paulo. Naturalmente, vingaram-se a murro; a mãe ouviu rumor e subiu apressada. Conteve os filhos, mas já os achou arranhados e recolheu-se triste. Nunca mais acabaria aquella maldição de rivalidade? Fez esta pergunta calada, atirada á cama, a cara mettida no travesseiro, que desta vez ficou secco, mas a alma chorou.

Natividade confiava na educação, mas a educação, por mais que ella a apurasse, apenas quebrava as arestas ao caracter dos pequenos, o essencial ficava; as paixões embryonarias trabalhavam por viver, crescer, romper, taes quaes ella sentira os dous no proprio seio, durante a gestação... E recordava a crise de então, acabando por maldizer da cabocla do Castello. Realmente, a cabocla devia ter calado; o mal calado não se muda, mas não se sabe. Agora, póde ser que isto de não calar confirme a opinião de que a cabocla era mandada por Deus para dizer a verdade aos homens. E afinal o que é que ella disse a Natividade? Não fez mais que uma pergunta mysteriosa; a predicção é que foi luminosa e clara... E outra vez as palavras do Castello resoaram aos ouvidos da mãe, e a imaginação fez o resto. Cousas futuras! Eil-os grandes e sublimes. Algumas brigas em pequenos, que importa? Natividade sorriu, ergueu-se, foi á porta, deu com o filho Pedro, que vinha explicar-se.

—Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que elle solta pela bôca fóra, mamãe morria de medo. Custa-me muito não ir á cara delle; ainda lhe não tirei um olho...

—Meu filho, não fales assim, é teu irmão.

—Pois que não se metta commigo, não me aborreça. Que blasphemias que elle dizia! Como eu rezava por alma de Luiz XVI, elle, para machucar-me bem, rezava a Robespierre; compoz uma ladainha chamando santo ao outro e cantarolava baixinho para que papae nem mamãe ouvissem. Eu sempre lhe dei alguns cascudos...

—Ahi está!

—Mas é que elle é que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de burro em Robespierre... Então, eu havia de apanhar calado?

—Nem calado, nem falando.

—Então, como? Apanhar sempre, não é?

—Não, senhor; não quero pancadas; o melhor é que esqueçam tudo e se queiram bem. Você não vê como seus paes se querem? As brigas acabaram de todo. Não quero ouvir rusgas nem queixas. Afinal que tem vocês com um sujeito mau que morreu ha tantos annos?

—É o que eu digo, mas elle não se emenda.

—Ha de emendar-se; os estudos fazem esquecer creancices. Você tambem quando fôr medico tem muito que brigar com as molestias e a morte; é melhor que andar dando pancada em seu irmão... Que é lá isso? Não quero arremeços, Pedro! Socegue, ouça-me.

—Mamãe é sempre contra mim.

—Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos. E demais gemeos. Anda cá, Pedro. Não penses que eu desapprovo as tuas opiniões politicas. Até gósto; são as minhas, são as nossas. Paulo ha de tel-as tambem. Na edade delle acceita-se quanta tolice ha, mas o tempo corrige. Olha, Pedro, a minha esperança é que vocês sejam grandes homens, mas com a condição de serem tambem grandes amigos.

—Eu estou prompto a ser grande homem, assentiu Pedro com ingenuidade, quasi com resignação.

—E grande amigo tambem.

—Se elle fôr, serei.

—Grandes homens! exclamou Natividade, dando-lhe dous abraços, um para elle, outro para o irmão quando viesse.

Mas Paulo veiu logo, e recebeu o abraço inteiro e de verdade. Vinha tambem queixar-se, e sempre resmungou alguma cousa, mas a mãe não quiz ouvil-o, e falou outra vez a linguagem das grandezas. Paulo consentiu tambem em ser grande.

—Você será medico, disse Natividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as peiores demandas.

—Eu, disseram ambos a um tempo.

—Patetas! Cada um terá a sua carreira especial, a sua sciencia differente. Já estão curados do nariz? Já; não ha mais sangue. Agora o primeiro que ferir seu irmão será degradado.

Foi um recurso habil separal-os; um ficava no Rio, estudando medicina, outro ia para S. Paulo, estudar direito. O tempo faria o resto, não contando que cada um casava e iria com a mulher para o seu lado. Era a paz perpetua; mais tarde viria a perpetua amizade.


CAPITULO XXVII

De uma reflexão intempestiva

Eis aqui entra uma reflexão da leitora: «Mas se duas velhas gravuras os levam a murro e sangue, contentar-se-hão elles com a sua esposa? Não quererão a mesma e unica mulher?»

O que a senhora deseja, amiga minha, é chegar já ao capitulo do amor ou dos amores, que é o seu interesse particular nos livros. Dahi a habilidade da pergunta, como se dissesse: «Olhe que o senhor ainda nos não mostrou a dama ou damas que têm de ser amadas ou pleiteadas por estes dous jovens inimigos. Já estou cançada de saber que os rapazes não se dão ou se dão mal; é a segunda ou terceira vez que assisto ás blandicias da mãe ou aos seus ralhos amigos. Vamos depressa ao amor, ás duas, se não é uma só a pessoa...»

Francamente, eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escripto com methodo. A insistencia da leitora em falar de uma só mulher chega a ser impertinente. Supponha que elles devéras gostem de uma só pessoa; não parecerá que eu conto o que a leitora me lembrou, quando a verdade é que eu apenas escrevo o que succedeu e póde ser confirmado por dezenas de testemunhas? Não, senhora minha, não puz a penna na mão, á espreita do que me viessem suggerindo. Se quer compôr o livro, aqui tem a penna, aqui tem papel, aqui tem um admirador; mas, se quer ler sómente, deixe-se estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje entre dous capitulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras.


CAPITULO XXVIII

O resto é certo

Sim, houve uma pessoa, mais moça que elles, um a dous annos, que os agrilhoou, á força de costume ou de natureza, se não foi de ambas as cousas. Antes d'essa, póde ser que houvesse outras e mais velhas que elles, mas de taes não rezam as notas que servem a este livro. Se brigaram por ellas, não ficou memoria disso, mas é possivel, dado que tivessem tido as mesmas preferencias; no caso contrario tambem, como succedia aos cavalleiros que defendiam a sua dama.

Conjecturas tudo. Era natural que, assim bonitos, eguaes, elegantes, dados á vida e ao passeio, á conversação e á dança, finalmente herdeiros, era natural que mais de uma menina gostasse delles. As que os viam passar a cavallo, praia fóra ou rua acima, ficavam namoradas daquella ordem perfeita de aspecto e de movimento. Os proprios cavallos eram eguaesinhos, quasi gemeos, e batiam as patas com o mesmo rythmo, a mesma força e a mesma graça. Não creias que o gesto da cauda e das crinas fosse simultaneo nos dous animaes; não é verdade e póde fazer duvidar do resto. Pois o resto é certo.


CAPITULO XXIX

A pessoa mais moça

A pessoa mais moça não entra já neste capitulo por uma razão valiosa, que é a conveniencia de apresentar primeiro os paes. Não é que se não possa vel-a bem sem elles; póde-se, os trez são diversos, acaso contrarios, e, por mais especial que a acheis, não é preciso que os paes estejam presentes. Nem sempre os filhos reproduzem os paes. Camões affirmou que de certo pae só se podia esperar tal filho, e a sciencia confirma esta regra poetica. Pela minha parte creio na sciencia como na poesia, mas ha excepções, amigo. Succede, ás vezes, que a natureza faz outra cousa, e nem por isso as plantas deixam de crescer e as estrellas de luzir. O que se deve crêr sem erro é que Deus é Deus; e, se alguma rapariga arabe me estiver lendo, ponha-lhe Allah. Todas as linguas vão dar ao céu.


CAPITULO XXX

A gente Baptista

A gente Baptista conheceu a gente Santos em não sei que fazenda da provincia do Rio. Não foi Maricá, embora alli tivesse nascido o pae dos gemeos; seria em qualquer outro municipio. Fosse qual fosse, alli é que se conheceram as duas familias, e como morassem proximas em Botafogo, a assiduidade e a sympathia vieram ajudando o caso fortuito.

Baptista, o pae da donzella, era homem de quarenta e tantos annos, advogado do civel, ex-presidente de provincia e membro do partido conservador. A ida á fazenda tivera por objecto exactamente uma conferencia politica para fins eleitoraes, mas tão esteril que elle tornou de lá sem, ao menos, um ramo de esperança. Apesar de ter amigos no governo, não alcançára nada, nem deputação, nem presidencia. Interrompêra a carreira desde que foi exonerado daquelle cargo «a pedido», disse o decreto, mas as queixas do exonerado fariam crêr outra cousa. De facto, perdera as eleições, e attribuia a esse desastre politico a demissão do cargo.

—Não sei o que é que elle queria que eu fizesse mais, dizia Baptista falando do ministro. Cerquei egrejas; nenhum amigo pediu policia que eu não mandasse; processei talvez umas vinte pessoas, outras foram para a cadeia sem processo. Havia de enforcar gente? Ainda assim houve duas mortes no Ribeirão das Moças.

O final era excessivo, porque as mortes não fôram obra delle; quando muito, elle mandou abafar o inquerito, si se póde chamar inquerito a uma simples conversação sobre a ferocidade dos dous defuntos. Em summa, as eleições fôram incruentas.

Baptista dizia que por causa das eleições perdera a presidencia, mas corria outra versão, um negocio de aguas, concessão feita a um hespanhol, a pedido do irmão da esposa do presidente. O pedido era verdadeiro, a imputação de socio é que era falsa. Não importa; tanto bastou para que a folha da opposição dissesse que houve naquillo um bom «arranjo de familia», accrescentando que, como era de aguas, devia ser negocio limpo. A folha da administração retorquiu que, se aguas havia, não eram bastantes para lavar o sujo do carvão deixado pela ultima presidencia liberal, um fornecimento de palacio. Não era exacto; a folha da opposição reviveu o processo antigo e mostrou que a defeza fôra cabal. Podia parar aqui, mas continuou que, «como agora estavamos em Hespanha», o presidente emendou o poeta hespanhol, autor daquelle epitaphio:

Cuñados y juntos:
Es cierto que estan difuntos;

e emendou-o por não ser obrigado a matar ninguem, antes deu vida a si e aos seus, dizendo pela nossa lingua:

Cunhados e cunhadissimos;
É certo que são vivissimos!

Baptista acudiu depressa ao mal, declarando sem effeito a concessão, mas isso mesmo serviu á opposição para novos arremeços: «Temos a confissão do reu!» foi o titulo do primeiro artigo que rendeu á folha da opposição o acto do presidente. Os correspondentes tinham já escripto para o Rio de Janeiro falando da concessão, e o governo acabou por demittir o seu delegado. Em verdade, só os politicos cuidaram do negocio. D. Claudia apenas alludia á campanha da imprensa, que foi violentissima.

—Não valia a pena sair daqui, disse Natividade.

—Lá isso não, baroneza!

E D. Claudia affirmou que valia. Soffre-se, mas paciencia. Era tão bom chegar á provincia! Tudo annunciado, as visitas a bordo, o desembarque, a posse, os comprimentos... Ver a magistratura, o funcionalismo, a officialidade, muita calva, muito cabello branco, a flor da terra, emfim, com as suas cortezias longas e demoradas, todas em angulo ou em curva, e os louvores impressos. As mesmas descomposturas da opposição eram agradaveis. Ouvir chamar tyranno ao marido, que ella sabia ter um coração de pomba, ia bem á alma della. A sêde de sangue que se lhe attribuia, elle que nem bebia vinho, o guante de ferro de um homem que era uma luva de pellica, a immoralidade, a desfaçatez, a falta de brio, todos os nomes injustos, mas fortes, que ella gostava de ler, como verdades eternas, onde iam elles agora? A folha da opposição era a primeira que D. Claudia lia em palacio. Sentia-se vergastada tambem e tinha nisso uma grande volupia, como si fosse na propria pelle; almoçava melhor. Onde iam os lategos daquelle tempo? Agora mal podia ler o nome delle impresso no fim de algumas razões do foro, ou então na lista das pessoas que iam visitar o imperador.

—Nem sempre, explicou D. Claudia; Baptista é muito acanhado; vae de longe em longe a S. Christovão, para não parecer que se faz lembrado, como se isto fosse crime; ao contrario, não ir nunca é que póde parecer arrufo. Note que o imperador nunca deixou de recebel-o com muita benevolencia, e a mim tambem. Nunca esqueceu o meu nome. Já deixei de lá ir dous annos, e quando appareci, perguntou-me logo: «Como vae, D. Claudia?»

Afóra essas saudades do poder, D. Claudia era uma creatura feliz. A viveza das palavras e das maneiras, os olhos que pareciam não ver nada á força de não pararem nunca, e o sorriso benevolo, e a admiração constante, tudo nella era ajustado a curar as melancolias alheias. Quando beijava ou mirava as amigas era como se as quizesse comer vivas, comer de amor, não de odio, mettel-as em si, muito em si, no mais fundo de si.

Baptista não tinha as mesmas expansões. Era alto e o ar socegado dava um bom aspecto de governo. Só lhe faltava acção, mas a mullher podia inspirar-lh'a; nunca deixou de consultal-a nas crises da presidencia. Agora mesmo, se lhe désse ouvidos, já teria ido pedir alguma cousa ao governo, mas neste ponto era firme, de uma firmeza que nascia da fraqueza: «Hão de chamar-me, deixa estar,» dizia elle a D. Claudia, quando apparecia alguma vaga de governo provincial. Certo é que elle sentia a necessidade de tornar á vida activa. Nelle a politica era menos uma opinião que uma sarna; precisava coçar-se a miudo e com força.


CAPITULO XXXI

Flora

Tal era aquelle casal de politicos. Um filho, se elles tivessem um filho varão, podia ser a fusão das suas qualidades oppostas, e talvez um homem de Estado. Mas o céu negou-lhes essa consolação dynastica.

Tinham uma filha unica, que era tudo o contrario d'elles. Nem a paixão de D. Claudia, nem o aspecto governamental de Baptista distinguia a alma ou a figura da joven Flora. Quem a conhecesse por esses dias, poderia comparal-a a um vaso quebradiço ou á flor de uma só manhã, e teria materia para uma doce elegia. Já então possuia os olhos grandes e claros, menos sabedores, mas dotados de um mover particular, que não era o espalhado da mãe, nem o apagado do pae, antes mavioso e pensativo, tão cheio de graça que faria amavel a cara de um avarento. Põe-lhe o nariz aquilino, rasga-lhe a bôca meio risonha, formando tudo um rosto comprido, alisa-lhe os cabellos ruivos, e ahi tens a moça Flora.

Nasceu em agosto de 1871. A mãe, que datava por ministerios, nunca negou a edade da filha:

—Flora nasceu no ministerio Rio-Branco, e foi sempre tão facil de aprender, que já no ministerio Sinimbú sabia ler escrever correntemente.

Era retrahida e modesta, avêssa a festas publicas, e difficilmente consentiu em aprender a dançar. Gostava de musica, e mais do piano que do canto. Ao piano, entregue a si mesma, era capaz de não comer um dia inteiro. Ha ahi o seu tanto de exagerado, mas a hyperbole é deste mundo, e as orelhas da gente andam já tão entupidas que só á força de muita rhetorica se póde metter por ellas um sopro de verdade.

Até aqui nada ha que extraordinariamente distinga esta moça das outras, suas contemporaneas, desde que a modestia vae com a graça, e em certa edade é tão natural o devaneio como a travessura. Flora, aos quinze annos, dava-lhe para se metter comsigo. Ayres, que a conheceu por esse tempo, em casa de Natividade, acreditava que a moça viria a ser uma inexplicavel.

—Como diz? inquiriu a mãe.

—Verdadeiramente, não digo nada, emendou Ayres; mas, se me permitte dizer alguma cousa, direi que esta moça resume as raras prendas de sua mãe.

—Mas eu não sou inexplicavel, replicou D. Claudia sorrindo.

—Ao contrario, minha senhora. Tudo está, porem, na definição que dermos a esta palavra. Talvez não haja nenhuma certa. Supponhamos uma creatura para quem não exista perfeição na terra, e julgue que a mais bella alma não passa de um ponto de vista; se tudo muda com o o ponto de vista, a perfeição...

—A perfeição é copas, insinuou Santos.

Era um convite ao voltarete. Ayres não teve animo de acceitar, tão inquieta lhe pareceu Flora, com os olhos nelle, interrogativos, curiosos de saber porque é que ella era ou viria a ser inexplicavel. Além disso, preferia a conversação das mulheres. É delle esta phrase do Memorial: «Na mulher, o sexo corrige a banalidade; no homem, aggrava.»

Não foi preciso acceitar nem recusar o convite de Santos; chegaram dous habituados do jogo, e com elles Baptista, que estava na saleta proxima, Santos foi ao recreio de todas as noites. Um daquelles era o velho Placido, doutor em spiritismo; o segundo era um corretor da praça, chamado Lopes, que amava as cartas pelas cartas, e sentia menos perder dinheiro que partidas. Lá se fôram ao voltarete, emquanto Ayres ficava no salão, a ouvir a um canto as damas, sem que os olhos de Flora se despegassem d'elle.


CAPITULO XXXII

O aposentado

Já então este ex-ministro estava aposentado. Regressou ao Rio de Janeiro, depois de um ultimo olhar ás cousas vistas, para aqui viver o resto dos seus dias. Podia fazel-o em qualquer cidade, era homem de todos os climas, mas tinha particular amor á sua terra, e por ventura estava cançado de outras. Não attribuia a esta tantas calamidades. A febre amarella, por exemplo, á força de a desmentir lá fóra, perdeu-lhe a fé, e cá dentro, quando via publicados alguns casos, estava já corrompido por aquelle credo que attribue todas as molestias a uma variedade de nomes. Talvez porque era homem sadio.

Não mudára inteiramente; era o mesmo ou quasi. Encalveceu mais, é certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de sessenta annos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. O passo é firme, o gesto grave, com aquelle toque de galanteria, que nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna.

Tambem a cidade não lhe pareceu que houvesse mudado muito. Achou algum movimento mais, alguma opera menos, cabeças brancas, pessoas defuntas; mas a velha cidade era a mesma. A propria casa delle no Cattete estava bem conservada. Ayres despediu o inquilino, tão polidamente como se recebesse o ministro dos negocios estrangeiros, e metteu-se nella a si e a um criado, por mais que a irmã teimasse em leval-o para Andarahy.

—Não, mana Rita, deixe-me ficar no meu canto.

—Mas eu sou a sua ultima parenta, disse ella.

—De sangue e de coração, isso é, concordou elle; póde accrescentar que a melhor de todas e a mais pia. Onde estão aquelles cabellos...? Não precisa baixar os olhos. Você os cortou para metter no caixão de seu finado marido. Os que ahi estão embranqueceram; mas os que lá ficaram eram pretos, e mais de uma viuva os teria guardado todos para as segundas nupcias.

Rita gostou de ouvir aquella referencia. Outr'ora, não; pouco depois de viuva, tinha vexame de um acto tão sincero; achava-se quasi ridicula. Que valia cortar os cabellos por haver perdido o melhor dos maridos? Mas, andando o tempo, entrou a ver que fizera bem, a approvar que lh'o dissessem, e, na intimidade, a lembral-o. Agora serviu a allusão para replicar:

—Pois se eu sou isso, porque é que você prefere viver com extranhos?

—Que extranhos? Não vou viver com ninguem. Viverei com o Cattete, o largo do Machado, a praia de Botafogo e a do Flamengo, não falo das pessoas que lá moram, mas das ruas, das casas, dos chafarizes e das lojas. Ha lá cousas exquisitas, mas sei eu se venho achar em Andarahy uma casa de pernas para o ar, por exemplo? Contentemo-nos do que sabemos. Lá os meus pés andam por si. Ha alli cousas petrificadas e pessoas immortaes, como aquelle Custodio da confeitaria, lembra-se?

—Lembra-me, a Confeitaria do Imperio.

—Ha quarenta annos que a estabeleceu; era ainda no tempo em que os carros pagavam imposto de passagem. Pois o diabo está velho, mas não acaba; ainda me ha de enterrar. Parece rapaz; apparece-me lá todas as semanas.

—Você tambem parece rapaz.

—Não brinque, mana; eu estou acabado. Sou um velho gamenho, pôde ser; mas não é por agradar a moças, é porque me ficou este geito... E a proposito, porque não vae você morar commigo?

—Ah! é para saber que tambem eu gosto de estar commigo. Irei lá de vez em quando, mas já não saio d'aqui, se não para o cemiterio.

Ajustaram visitar um ao outro; Ayres viria jantar ás quinta-feiras. D. Rita ainda lhe falou dos casos de molestia d'elle, ao que Ayres replicou que não adoecia nunca, mas se adoecesse viria para Andarahy; o coração della era o melhor dos hospitaes. Talvez que em todas essas recusas houvesse tambem a necessidade de fugir á contradicção, porque a irmã sabia inventar occasiões de dissidencia. Naquelle mesmo dia (era ao almoço) elle achou o café delicioso, mas a irmã disse que era ruim, obrigando-o a um grande esforço para tornar atraz e achal-o detestavel.

A principio, Ayres cumpriu a solidão, separou-se da sociedade, metteu-se em casa, não apparecia a ninguem ou a raros e de longe em longe. Em verdade estava cançado de homens e de mulheres, de festas e de vigilias. Fez um programma. Como era dado a letras classicas, achou no padre Bernardes esta traducção daquelle psalmo: «Alonguei-me fugindo e morei na soedade.» Foi a sua divisa. Santos, se lh'a dessem, fal-a-hia esculpir, á entrada do salão, para regalo dos seus numerosos amigos. Ayres deixou-a estar em si. Alguma vez gostava de a recitar calado, parte pelo sentido, parte pela linguagem velha: «Alonguei-me fugindo e morei na soedade.»

Assim foi a principio, Às quinta-feiras ia jantar com a irmã. Às noites passeava pelas praias, ou pelas ruas do bairro. O mais do tempo era gasto em ler e reler, compôr o Memorial ou rever o composto, para relembrar as cousas passadas. Estas eram muitas e de feição diversa, desde a alegria até a melancolia, enterramentos e recepções diplomaticas, uma braçada de folhas seccas, que lhe pareciam verdes agora. Alguma vez as pessoas eram designadas por um X ou ***, e elle não acertava logo quem fossem, mas era um recreio procural-as, achal-as e completal-as.

Mandou fazer um armario envidraçado, onde metteu as reliquias da vida, retratos velhos, mimos de governos e de particulares, um leque, uma luva, uma fita e outras memorias femininas, medalhas e medalhões, camafeus, pedaços de ruinas gregas e romanas, uma infinidade de cousas que não nomeio, para não encher papel. As cartas não estavam lá, viviam dentro de uma mala, catalogadas por letras, por cidades, por linguas, por sexos. Quinze ou vinte davam para outros tantos capitulos e seriam lidas com interesse e curiosidade. Um bilhete, por exemplo, um bilhete encardido e sem data, moço como os bilhetes velhos, assignado por iniciaes, um M e um P, que elle traduzia com saudades. Não vale a pena dizer o nome.


CAPITULO XXXIII

A solidão tambem cança

Mas tudo cança, até a solidão. Ayres entrou a sentir uma ponta de aborrecimento; bocejava, cochilava, tinha sede de gente viva, extranha, qualquer que fosse, alegre ou triste. Mettia-se por bairros excentricos, trepava aos morros, ia ás egrejas velhas, ás ruas novas, á Copacabana e á Tijuca. O mar alli, aqui o matto e a vista acordavam nelle uma infinidade de ecos, que pareciam as proprias vozes antigas. Tudo isso escrevia, ás noites, para se fortalecer no proposito da vida solitaria. Mas não ha proposito contra a necessidade.

A gente extranha tinha a vantagem de lhe tirar a solidão, sem lhe dar a conversação. As visitas de rigor que elle fazia eram poucas, breves e apenas faladas. E tudo isso fôram os primeiros passos. A pouco e pouco sentiu o sabor dos costumes velhos, a nostalgia das salas, a saudade do riso, e não tardou que o aposentado da diplomacia fosse reintegrado no emprego da recreação. A solidão, tanto no texto biblico, como na traducção do padre, era archaica. Ayres trocou-lhe uma palavra e o sentido; «Alonguei-me fugindo, e morei entre a gente.»

Assim se foi o programma da vida nova. Não é que elle já a não entendesse nem amasse, ou que a não praticasse ainda alguma vez, a espaços, como se faz uso de um remedio que obriga a ficar na cama ou na alcova; mas, sarava depressa e tornava ao ar livre. Queria ver a outra gente, ouvil-a, cheiral-a, gostal-a, apalpal-a, applicar todos os sentidos a um mundo que podia matar o tempo, o immortal tempo.


CAPITULO XXXIV

Inexplicavel

Assim o deixámos, ha apenas dous capitulos, a um canto da sala da gente Santos, em conversação com as senhoras. Has de lembrar-te que Flora não despegava os olhos delle, anciosa de saber porque é que a achava inexplicavel. A palavra rasgava-lhe o cerebro, ferindo sem penetrar. Inexplicavel que era? Que se não explica, sabia; mas que se não explica porquê?

Quiz perguntal-o ao conselheiro, mas não achou occasião, e elle saiu cedo. A primeira vez, porém, que Ayres foi a S. Clemente, Flora pediu-lhe familiarmente o obsequio de uma definição mais desenvolvida. Ayres sorriu e pegou na mão da mocinha, que estava de pé. Foi só o tempo de inventar esta resposta:

—Inexplicavel é o nome que podemos dar aos artistas que pintam sem acabar de pintar. Botam tinta, mais tinta, outra tinta, muita tinta, pouca tinta, nova tinta, e nunca lhes parece que a arvore é arvore, nem a choupana choupana. Se se trata então de gente, adeus. Por mais que os olhos da figura falem, sempre esses pintores cuidam que elles não dizem nada. E retocam com tanta paciencia, que alguns morrem entre dous olhos, outros matam-se de desespero.

Flora achou a explicação obscura; e tu, amiga minha leitora, se acaso és mais velha e mais fina que ella, póde ser que a não aches mais clara. Elle é que não accrescentou nada, para não ficar incluido entre os artistas daquella especie. Bateu paternalmente na palma da mão de Flora, e perguntou pelos estudos. Os estudos iam bem; como é que não iriam bem os estudos? E sentando-se ao pé delle, a mocinha confessou que tinha ideia justamente de aprender desenho e pintura, mas se havia de pôr tinta de mais ou de menos, e acabar não pintando nada, melhor seria ficar só na musica. A musica ia bem com ella, o francez tambem, e o inglez.

—Pois só a musica, o inglez e o francez, concordou Ayres.

—Mas o senhor promette que não me achará inexplicavel? pergunta ella com doçura.

Antes que elle respondesse, entrarám na sala os dous gemeos. Flora esqueceu um assumpto por outro, e o velho pelos rapazes. Ayres não se demorou mais que o tempo de a ver rir com elles, e sentir em si alguma cousa parecida com remorsos. Remorsos de envelhecer, creio.


CAPITULO XXXV

Em volta da moça

Já então os dous gemeos cursavam, um a Faculdade de Direito, em S. Paulo; outro a Escola de Medicina, no Rio. Não tardaria muito que saissem formados e promptos, um para defender o direito e o torto da gente, outro para ajudal-a a viver e a morrer. Todos os contrastes estão no homem.

Não era tanta a politica que os fizesse esquecer Flora, nem tanta Flora que os fizesse esquecer a politica. Tambem não eram taes as duas que prejudicassem estudos e recreios. Estavam na edade em que tudo se combina sem quebra de essencia de cada cousa. Lá que viessem a amar a pequena com egual força é o que se podia admittir desde já, sem ser preciso que ella os attrahisse de vontade. Ao contrario, Flora ria com ambos, sem rejeitar nem acceitar especialmente nenhum; póde ser até que nem percebesse nada. Paulo vivia mais tempo ausente. Quando tornava pelas férias, como que a achava mais cheia de graça. Era então que Pedro multiplicava as suas finezas para se não deixar vencer do irmão, que vinha prodigo dellas. E Flora recebia-as todas com o mesmo rosto amigo.

Note-se—e este ponto deve ser tirado á luz, —note-se que os dous gemeos continuavam a ser parecidos e eram cada vez mais esbeltos. Talvez perdessem estando juntos, porque a semelhança diminuia em cada um delles a feição pessoal. Demais, Flora simulava ás vezes confundil-os, para rir com ambos. E dizia a Pedro:

—Dr. Paulo!

E dizia a Paulo:

—Dr. Pedro!

Em vão elles mudávam da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Flora mudava os nomes tambem, e os trez acabávam rindo. A familiaridade desculpava a acção e crescia com ella. Paulo gostava mais de conversa que de piano; Flora conversava. Pedro ia mais com o piano que com a conversa; Flora tocava. Ou então fazia ambas as cousas, e tocava falando, soltava a rédea aos dedos e á lingua.

Taes artes, postas ao serviço de taes graças, eram realmente de accender os gemeos, e foi o que succedeu pouco a pouco. A mãe della cuido que percebeu alguma cousa; mas a principio não lhe deu grande cuidado. Tambem ella foi menina e moça, tambem se dividiu a si sem se dar nada a ninguem. Póde ser até que, a seu parecer, fosse um exercicio necessario aos olhos do espirito e da cara. A questão é que estes se não corrompessem, nem se deixassem ir atraz de cantigas, como diz o povo, que assim exprime os feitiços de Orpheu. Ao contrario, Flora é que fazia de Orpheu, ella é que era a cantiga. Opportunamente, escolheria a um delles, pensava a mãe.

A intimidade tinha intervallos grandes, além das ausencias obrigadas de Paulo. Apesar de não sair, Pedro não a buscava sempre, nem ella ia muita vez á casa da praia. Não se viam dias e dias. Que pensassem um no outro, é possivel; mas não possuo o menor documento disto. A verdade é que Pedro tinha os seus companheiros de escola, os namoros de rua e de aventura, os partidos de theatro, os passeios á Tijuca e outros arrabaldes. Ao demais, os dous gemeos estavam ainda no ponto de falar della nas cartas, louval-a, descrevel-a, dizer mil cousas doces, sem ciume.


CAPITULO XXXVI

A discordia não é tão feia como se pinta

A discordia não é tão feia como se pinta, meu amigo. Nem feia, nem esteril. Conta só os livros que tem produzido, desde Homero até cá, sem excluir... Sem excluir qual? Ia dizer que este, mas a Modestia acena-me de longe que pare aqui. Paro aqui; e viva a Modestia, que mal supporta a letra capital que lhe ponho, a letra e os vivas, mas ha de ir com ella e com elles. Viva a Modestia, e excluamos este livro; fiquem só os grandes livros epicos e tragicos, a que a Discordia deu vida, e digam-me se tamanhos effeitos não provam a grandeza da causa. Não, a discordia não é tão feia como se pinta.

Teimo nisto para que as almas sensiveis não comecem de tremer pela moça ou pelos rapazes. Não ha mister tremer, tanto mais que a discordia dos dous começou por um simples accordo, naquella noite. Costeavam a praia, calados, pensando só, até que ambos, como se falassem para si, soltaram esta phrase unica:

—Está ficando bem bonita.

E voltando-se um para outro:

—Quem?

Ambos sorriram; acharam pico ao simultaneo da reflexão e da pergunta. Sei que este phenomeno é tal qual o do capitulo XXV, quando elles disseram da edade, mas não me culpem a mim; eram gemeos, podiam ter o falar gemeo. O principal é que não se amofináram; não era ainda amor o que sentiam. Cada um expoz a sua opinião ácerca das graças da pequena, o gesto, a voz, os olhos e as mãos, tudo com tão boa sombra, que excluia a ideia de rivalidade. Quando muito, divergiam na escolha da melhor prenda, que para Pedro eram os olhos, e para Paulo a figura; mas como acabavam achando um total harmonico, era visto que não brigavam por isso. Nenhum delles attribuia ao outro a cousa vaga ou o qur quer que era que principiavam a sentir, e mais pareciam esthetas que enamorados. Aliás, a mesma politica os deixou em paz essa noite: não brigaram por ella. Não é que não sentissem alguma cousa opposta, á vista da praia e do céu, que estavam deliciosos. Lua cheia, agua quieta, vozes confusas e esparsas, algum tilbury a passo ou a trote, segundo ia vasio ou com gente. Tal ou qual brisa fresca.

A imaginação os levou então ao futuro, a um futuro brilhante, como elle é em tal edade. Botafogo teria um papel historico, uma enseada imperial para Pedro, uma Veneza republicana para Paulo, sem doge, nem conselho dos dez, ou então um doge com outro titulo, um simples presidente, que se casaria em nome do povo com este pequenino Adriatico. Talvez o doge fosse elle mesmo. Esta possibilidade, apesar dos annos verdes, enfunou a alma do moço. Paulo viu-se á testa de uma republica, em que o antigo e o moderno, o futuro e o passado se mesclassem, uma Roma nova, uma Convenção Nacional, a Republica Franceza e os Estados-Unidos da America.

Pedro, á sua parte, construia a meio caminho como um palacio para a representação nacional, outro para o imperador, e via-se a si mesmo ministro e presidente do conselho. Falava, dominava o tumulto e as opiniões, arrancava um voto á Camara dos deputados ou então expedia um decreto de dissolução. É uma minucia, mas merece inseril-a aqui: Pedro, sonhando com o governo, pensava especialmente nos decretos de dissolução. Via-se em casa, com o acto assignado, referendado, copiado, mandado aos jornaes e ás Camaras, lido pelos secretarios, archivado na secretaria, e os deputados saindo cabisbaixos, alguns resmungando, outros irados. Só elle estava tranquillo, no gabinete, recebendo os amigos que iam comprimental-o e pedir os recados para a provincia.

Taes eram as grandes pinceladas da imaginação dos dous. As estrellas recebiam no céu todos os pensamentos dos rapazes, a lua seguia quieta e a vaga da praia estirava-se com a preguiça do costume. Voltaram a si ao pé de casa. Tal ou qual impulso quiz leval-os a discutir ácerca do tempo e da noite, da temperatura e da enseada. Algum murmurio vago póde ser que lhes fizesse mover os beiços e começar a quebrar o silencio, mas o silencio era tão augusto que concordáram em respeital-o. E logo acháram de si para si, que a lua era esplendida, a enseada bella e a temperatura divina.


CAPITULO XXXVII

Desaccordo no accordo

Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravissima os fez concordar tambem, ainda que por diversa razão. A data explica o facto: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os.

A differença unica entre elles dizia respeito á significação da reforma, que para Pedro era um acto de justiça, e para Paulo era o inicio da revolução. Elle mesmo o disse, concluindo um discurso em S. Paulo, no dia 20 de maio: «A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco.»

Natividade ficou attonita quando leu isto; pegou da penna e escreveu uma carta longa e maternal. Paulo respondeu com trinta mil expressões de ternura, declarando no fim que tudo lhe poderia sacrificar, inclusive a vida e até a honra; as opiniões é que não. «Não, mamãe; as opiniões é que não.»

—As opiniões é que não, repetiu Natividade acabando de ler a carta.

Natividade não acabava de entender os sentimentos do filho, ella que sacrificára as opiniões aos principios, como no caso de Ayres, e continuou a viver sem macula. Como então não sacrificar...? Não achava explicação. Relia a phrase da carta e a do discurso; tinha medo de o ver perder a carreira politica, se era a politica que o faria grande homem. «Emancipado o preto, resta emancipar o branco», era uma ameaça ao imperador e ao imperio.

Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a phrase do discurso não era propriamente do filho; não era de ninguem. alguem a proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, era energica, era expressiva, ficou sendo patrimonio commum.

Ha phrases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, á semelhança das ideias. As proprias ideias nem sempre conservam o nome do pae; muitas apparecem orphãs, nascidas de nada e de ninguem. Cada um pega dellas, verte-as como póde, e vae leval-as á feira, onde todos as têm por suas.


CAPITULO XXXVIII

Chegada a proposito

Quando, ás duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se metteu no bonde, para ir a não sei que compras na rua do Ouvidor, levava a phrase comsigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes da rua, nada; a phrase ia diante e dentro della, com o seu aspecto e tom de ameaça. No Cattete, alguem entrou de salto, sem fazer parar o vehiculo. Adivinha que era o conselheiro; adivinha tambem que, posto o pé no estribo, e vendo logo adiante a nossa amiga, caminhou para lá rapido e acceitou a ponta do banco que ella lhe offereceu. Depois dos primeiros comprimentos:

—Pareceu-me vel-a olhar assustada, disse Ayres.

—Naturalmente, não imaginei que fosse capaz deste acto de gymnastica.

—Questão de costume. As pernas saltam por si mesmas. Um dia, deixam-me cair, as rodam passam por cima...

—Fosse como fosse, chegou a proposito.

—Chego sempre a proposito. Já lhe ouvi isso, uma vez, ha muitos annos, ou foi a sua irmã... Ora, espere, não me esqueceu o motivo; creio que falavam da cabocla do Castello. Não se lembra de uma tal ou qual cabocla que morava no Castello, e adivinhava a sorte da gente? Eu estava aqui de licença, e ouvi dizer cousas do arco da velha. Como sempre tive fé em Sybillas, acreditei na cabocla. Que fim levou ella?

Natividade olhou para elle, como receiando se teria adivinhado então a consulta que ella fez á cabocla. Pareceu-lhe que não, sorriu e chamou-lhe incredulo. Ayres negou que fosse incredulo; ao contrario, sendo tolerante, professava virtualmente todas as crenças deste mundo. E concluiu:

—Mas, emfim, porque é que chego a proposito?

Ou o passado, ou a pessoa, com as suas maneiras discretas e espirito repousado, ou tudo isso junto, dava a este homem, relativamente a esta senhora, uma confiança que ella não achava agora em ninguem, ou acharia em poucos. Falou-lhe de uma confidencia, um papel que não mostraria ao marido.

—Quero um conselho, conselheiro; e demais, para que incommodar a meu marido? Quando muito, contarei o negocio a mana Perpetua. Acho melhor não dizer nada a Agostinho.

Ayres concordou que não valia a pena aborrecel-o se era caso disso, e esperou. Natividade, sem falar da cabocla, contou primeiro a rivalidade dos filhos, já manifesta em politica, e tratando especialmente de Paulo, repetiu-lhe a phrase da carta e perguntou o que compria fazer mais util. Ayres entendeu que que eram ardores da mocidade. Que não teimasse; teimando, elle mudaria de palavras, mas não de sentimentos.

—Então crê que Paulo será sempre isto?

—Sempre, não digo; tambem não digo o contrario. Baroneza, a senhora exige respostas definitivas, mas diga-me o que é que ha definitivo neste mundo, a não ser o voltarete de seu marido? Esse mesmo falha. Ha quantos dias não sei o que é uma licença? É verdade que não tenho apparecido. E depois, o prazer da conversação paga bem o das cartas. Aposto que os homens casados que lá vão são de outro parecer?

—Talvez.

—Só os solteirões podem avaliar as ideias das mulheres. Um viuvo sem filhos, como eu, vale por um solteirão; minto, aos sessenta annos, como eu, vale por dous ou trez. Quanto ao joven Paulo, não pense mais no discurso. tambem eu discursei em rapaz.

—Já cuidei em casal-os.

—Casar é bom, assentiu Ayres.

—Não digo casar já, mas daqui a dous ou trez annos. Talvez faça antes uma viagem com elles. Que lhe parece? Vamos lá, não me responda repetindo o que eu digo. Quero o seu pensamento verdadeiro. Acha que uma viagem?...

—Acho que uma viagem...

—Acabe.

—As viagens fazem bem, mormente na edade delles. Formam-se para o anno, não é? Pois então! Antes de começar qualquer carreira, casados ou não, é util ver outras terras... Mas que necessidade tem a senhora de ir com elles?

—As mães...

—Mas eu tambem (desculpe interrompel-a) mas eu tambem sou seu filho. Não acha que o costume, o bom rosto, a graça, a affeição e todas as prendas grisalhas que a adornam compõem uma especie maternidade? Eu confesso-lhe que ficaria orphão.

—Pois venha comnosco.

—Ah! baroneza, para mim ja não ha mundo que valha um bilhete de passagem. Vi tudo por varias linguas. Agora o mundo começa aqui no caes da Gloria ou na rua do Ouvidor e acaba no cemiterio de S. João Baptista. Ouço que ha uns mares tenebrosos para os lados da Ponta do Cajú, mas eu sou um velho incredulo, como a senhora dizia ha pouco, e não acceito essas noticias sem prova cabal e visual, e para ir averigual-as, faltam-me pernas.

—Sempre gracioso! Não as vi treparem agora? Sua irmã disse-me outro dia que o senhor anda como aos trinta annos.

—Rita exagera. Mas, voltando á viagem, a senhora ainda não comprou os bilhetes?

—Não.

—Não os encommendou sequer?

—Tambem não.

—Então, pensemos em outra cousa. Cada dia traz a sua occupação, quanto mais as semanas e os mezes. Pensemos em outra cousa, e deixe lá o Paulo pedir a republica.

Natividade achou comsigo que elle tinha razão; depois, pensou em outra cousa, e esta foi a ideia do principio. Não disse logo o que era; preferiu conversar alguns minutos. Não era difficil com este sujeito. Uma das suas qualidades era falar com mulheres, sem descair na banalidade nem subir ás nuvens; tinha um modo particular, que não sei se estava na ideia, se no gesto, se na palavra. Não é que falasse mal de ninguem, e aliás seria uma distracção. Quero crêr que não dissesse mal por indifferença ou cautella; provisoriamente, ponhamos caridade.

—Mas, a senhora ainda me não disse o que queria de mim, além do conselho. Ou não quer mais nada?

—Custa-me pedir-lhe.

—Peça sempre.

—Sabe que os meus dous gemeos não combinam em nada, ou só em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia. Agostinho não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não me sinto com forças, e então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de sociedade, habil, fino, cautelloso, intelligente, instruido...

—Eu, em summa?

—Adivinhou.

—Não adivinhei; é o meu retrato em pessoa. Mas então que lhe parece que possa fazer?

—Póde corrigil-os por boas maneiras, fazel-os unidos, ainda quando discordem, e que discordem pouco ou nada. Não imagina; parece até proposito. Não discordam da côr da lua, por exemplo, mas aos onze annos, Pedro descobriu que as sombras da lua eram nuvens, e Paulo que eram falhas da nossa vista, e atracaram-se; eu é que os separei. Imagine em politica...

—Imagine em amores, diga logo; mas não é propriamente para este caso...

—Oh! não!

—Para os outros é egualmente inutil, mas eu nasci para servir, ainda inutilmente. Baroneza, o seu pedido equivale a nomear-me aio ou preceptor... Não faça gestos; não me dou por diminuido. Comtanto que me pague os ordenados... E não se assuste; peço pouco, pague-me em palavras; as suas palavras são de ouro. Já lhe disse que toda a minha acção é inutil.

—Porque?

—É inutil.

—Uma pessoa de autoridade, como o senhor, póde muito, comtanto que os ame, por que elles são bons, creia. Conhece-os bem?

—Pouco.

—Conheça-os mais e verá.

Ayres concordou rindo. Para Natividade valia por uma tentativa nova. Confiava na acção do conselheiro, e para dizer tudo... Não sei se diga... Digo. Natividade contava com a antiga inclinação do velho diplomata. As cans não lhe tirariam o desejo de a servir. Não sei quem me lê nesta occasião. Se é homem, talvez não entenda logo, mas se é mulher creio que entenderá. Se ninguem entender, paciencia; baste saber que elle prometteu o que ella quiz, e tambem prometteu calar-se; foi a condição que a outra lhe poz. Tudo isso polido, sincero e incredulo.


CAPITULO XXXIX

Um gatuno

Chegaram ao largo da Carioca, apearam-se e despediram-se; ella entrou pela rua Gonçalves Dias, elle enfiou pela da Carioca. No meio desta, Ayres encontrou um magote de gente parada, logo depois andando em direcção ao largo. Ayres quiz arrepiar caminho, não de medo, mas de horror. Tinha horror á multidão. Viu que a gente era pouca, cincoenta ou sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a prisão de um homem. Entrou n'um corredor, á espera que o magote passasse. Duas praças de policia traziam o preso pelo braço. De quando em quando, este resistia, e então era preciso arrastal-o ou forçal-o por outro methodo. Tratava-se, ao que parece, do furto de uma carteira.

—Não furtei nada! bradava o preso detendo o passo. É falso! Larguem-me! sou um cidadão livre! Protesto! protesto!

—Siga para a estação!

—Não sigo!

—Não siga! bradava a gente anonyma. Não siga! não siga!

Uma das praças quiz convencer a multidão que era verdade, que o sujeito furtara uma carteira, e o desassocego pareceu minorar um pouco; mas, indo a praça a andar com a outra e o preso,—cada uma pegando-lhe um dos braços, a multidão recomeçou a bradar contra a violencia. O preso sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora aggressivo, convidava a defeza. Foi então que a outra praça desembainhou a espada para fazer um claro. A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca do ninho ou do alimento, voou de atropello, pula aqui, pula alli, pula acolá, para todos os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo os peitos tomaram vingança das pernas, e um clamor ingente, largo, desaffrontado, encheu a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez compacta e caminhou para a estação policial. Ayres seguiu caminho.

A vozeria morreu pouco a pouco, e Ayres entrou na Secretaria do Imperio. Não achou o ministro, parece, ou a conferencia foi curta. Certo é que, saindo á praça, encontrou partes do magote que tornavam commentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno, fiando que era mais doce, e tanto bradavam ha pouco contra a acção das praças, como riam agora das lastimas do preso.

—Ora o sujeito!

Mas então?... perguntarás tu. Ayres não perguntou nada. Ao cabo, havia um fundo de justiça naquella manifestação dupla e contradictoria; foi o que elle pensou. Depois, imaginou que a grita da multidão protestante era filha de um velho instincto de resistencia á autoridade. Advertiu que o homem, uma vez creado, desobedeceu logo ao Creador, que aliás lhe dera um paraiso para viver; mas não ha paraiso que valha o gosto da opposição. Que o homem se acostume ás leis, vá; que incline o collo á força e ao bel-prazer, vá tambem; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Ayres.

Não lhe attribuam todas essas ideias. Pensava assim, como se falasse alto, á mesa ou na sala de alguem. Era um processo de critica mansa e delicada, tão convencida em apparencia, que algum ouvinte, á cata de ideias, acabava por lhe apanhar uma ou duas...

Ia a descer pela rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra, maior e mais remota.


CAPITULO XL

Recuerdos

Essa outra vozeria maior e mais remota não caberia aqui, se não fosse a necessidade de explicar o gesto repentino com que Ayres parou na calçada. Parou, tornou a si e continuou a andar com os olhos no chão e a alma em Caracas. Foi em Caracas, onde elle servira na qualidade de addido de legação. Estava em casa, de palestra com uma actriz da moda, pessoa chistosa e garrida. De repente, ouviram um clamor grande, vozes tumultuosas, vibrantes, crescentes...

—Que rumor é este, Carmen? perguntou elle entre duas caricias.

—Não se assuste, amigo meu; é o governo que cae.

—Mas eu ouço acclamações...

—Então é o governo que sobe. Não se assuste. Amanhã é tempo de ir comprimental-o.

Ayres deixou-se ir rio abaixo daquella memoria velha, que lhe surdia agora do alarido de cincoenta ou sessenta pessoas. Essa especie de lembranças tinha mais effeito nelle que outras. Recompoz a hora, o logar e a pessoa da sevilhana. Carmen era de Sevilla. O ex-rapaz ainda agora recordava a cantiga popular que lhe ouvia, á despedida, depois de rectificar as ligas, compôr as saias, e cravar o pente no cabello,—no momento em que ia deitar a mantilha, meneando o corpo com graça:

Tienen las sevillanas,
En la mantilla,
Um letrero que dice:
Viva Sevilla!

Não posso dar a toada, mas Ayres ainda a trazia de cór, e vinha a repetil-a comsigo, vagarosamente, como ia andando. Outrosim, meditava na ausencia de vocação diplomatica. A ascenção de um governo,—de um regimen que fosse,—com as suas ideias novas, os seus homens frescos, leis e acclamações, valia menos para elle que o riso da joven comediante. Onde iria ella? A sombra da moça varreu tudo o mais, a rua, a gente, o gatuno, para ficar só deante do velho Ayres, dando aos quadris e cantarolando a trova andaluza:

Tienen las sevillanas
En la mantilla...


CAPITULO XLI

Caso do burro

Se Ayres obedecesse ao seu gosto, e eu a elle, nem elle continuaria a andar, nem eu começaria este capitulo; ficariamos no outro, sem nunca mais acabal-o. Mas não ha na memoria que dure, se outro negocio mais forte puxa pela attenção, e um simples burro fez desapparecer Carmen e a sua trova.

Foi o caso que uma carroça estava parada, ao pé da travessa de S. Francisco, sem deixar passar um carro, e o carroceiro dava muita pancada no burro da carroça. Vulgar embora, este espectaculo fez parar o nosso Ayres, não menos condoido do asno que do homem. A força despendida por este era grande, porque o asno ruminava se devia ou não sair do logar; mas, não obstante esta superioridade, apanhava que era o diabo. Já havia algumas pessoas paradas, mirando. Cinco ou seis minutos durou esta situação; finalmente o burro preferiu a marcha á pancada, tirou a carroça do logar e foi andando.

Nos olhos redondos do animal viu Ayres uma expressão profunda de ironia e paciencia. Pareceu-lhe o gesto largo de espjrito invencivel. Depois leu nelles este monologo: «Anda, patrão, atalha a carroça de carga para ganhar o capim de que me alimentas. Vive de pé no chão para comprar as minhas ferraduras. Nem por isso me impedirás que te chame um nome feio, mas eu não te chamo nada; ficas sendo sempre o meu querido patrão. Emquanto te esfalfas em ganhar a vida, eu vou pensando que o teu dominio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar...

—Vê-se, quasi que se lhe ouve a reflexão, notou Ayres comsigo.

Depois ria de si para si, e foi andando. Inventára tanta cousa no serviço diplomatico, que talvez inventasse o monologo do burro. Assim foi; não lhe leu nada nos olhos, a não ser a ironia e a paciencia, mas não se pôde ter que lhes não désse uma forma de palavra, com as suas regras de syntaxe. A propria ironia estaria acaso na retina delle. O olho do homem serve de photographia ao invisivel, como o ouvido serve de eco ao silencio. Tudo é que o dono tenha um lampejo de imaginação para ajudar a memoria a esquecer Caracas e Carmen, os seus beijos e experiencia politica.


CAPITULO XLII

Uma hypothese

Visões e reminiscencias iam assim comendo o tempo e o espaço ao conselheiro, a ponto de lhe fazerem esquecer o pedido de Natividade; mas não o esqueceu de todo, e as palavras trocadas ha pouco surdiam-lhe das pedras da rua. Considerou que não perdia muito em estudar os rapazes. Chegou a apanhar uma hypothese, especie de andorinha, que avoaça entre arvores, abaixo e acima, pousa aqui, pousa alli, arranca de novo um surto e toda se despeja em movimentos. Tal foi a hypothese vaga e colorida, a saber, que se os gemeos tivessem nascido delle talvez não divergissem tanto nem nada, graças ao equilibrio do seu espirito. A alma do velho entrou a ramalhar não sei que desejos retrospectivos, e a rever essa hypothese, outra Caracas, outra Carmen, elle pae, estes meninos seus, toda a andorinha que se dispersava n'um farfalhar calado de gestos.


CAPITULO XLIII

O discurso

Natividade é que não teve distracções de especie alguma. Toda ella estava nos filhos, e agora especialmente na carta e no discurso. Começou por não dar resposta ás effusões politicas de Paulo; foi um dos conselhos do conselheiro. Quando o filho tornou pelas ferias tinha esquecido a carta que escrevêra. O discurso é que elle não esqueceu, mas quem é que esquece os discursos que faz? Se são bons, a memoria os grava em bronze; se ruins, deixam tal ou qual amargor que dura muito. O melhor dos remedios, no segundo caso, é suppol-os excellentes, e, se a razão não acceita esta imaginação, consultar pessoas que a acceitem, e crêr nellas. A opinião é um velho oleo incorruptivel.

Paulo tinha talento. O discurso daquelle dia podia peccar aqui ou alli por alguma emphasis, e uma ou outra ideia vulgar e exhausta. Tinha talento Paulo. Em summa, o discurso era bom. Santos achou-o excellente, leu-o aos amigos e resolveu transcrevel-o nos jornaes. Natividade não se oppoz, mas entendia que algumas palavras deviam ser cortadas.

—Cortadas, porque? perguntou Santos, e ficou esperando a resposta.

—Pois você não vê, Agostinho; estas palavras tem sentido republicano, explicou ella relendo a phrase que a affligira.

Santos ouviu-as ler, leu-as para si, e não deixou de lhe achar razão. Entretanto, não havia de as supprimir.

—Pois não se transcreve o discurso.

—Ah! isso não! O discurso é magnifico, e não ha de morrer em S. Paulo; é preciso que a Côrte o leia, e as provincias tambem, e até não se me daria fazel-o traduzir em francez. Em francez, póde ser que fique ainda melhor.

—Mas, Agostinho, isto póde fazer mal á carreira do rapaz; o imperador póde ser que não goste...

Pedro, que assistia desde alguns instantes ao debate, interveiu docemente para dizer que os receios da mãe não tinham base; era bom por a phrase toda, e, a rigor, não difteria muito do que os liberaes diziam em 1848.

—Um monarchista liberal póde muito bem assignar esse trecho, concluiu elle depois de reler as palavras do irmão.

—Justamente! assentiu o pae.

Natividade, que em tudo via a inimizade dos gemeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometter Paulo. Olhou para elle a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do enthusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, accentuando as bellezas, repetindo as phrases mais novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na bôca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a reimpressão do discurso foi resolvida. Tambem se tirou uma edição em folheto, e o pae mandou encadernar ricamente sete exemplares, que levou aos ministros, e um ainda mais rico para a Regente.

—Você diga-lhe, aconselhou Natividade, que o nosso Paulo é liberal ardente...

—Liberal de 1848, completou Santos lembrando as palavras de Pedro.

Santos cumpriu tudo á risca. A entrega se fez naturalmente, e, no palacio Isabel, a definição do «liberal de 1848» saiu mais viva que as outras palavras, ou para diminuir o cheiro revolucionario da phrase condemnada pela mulher, ou porque trazia valor historico. Quando elle voltou a casa, a primeira cousa que lhe disse foi que a Regente perguntara por ella, mas apesar de lisongeada com a lembrança, Natividade quiz saber da impressão que lhe fizera o discurso, se já o lêra.

—Parece que foi boa. Disse-me que já havia lido o discurso. Nem por isso deixei de lhe dizer que os sentimentos de Paulo eram bons; que, se lhes notavamos certo ardor, comprehendiamos sempre que elles eram os de um liberal de 1848...

—Papae disse isso? perguntou Pedro.

—Porque não, se é verdade? Paulo é o que se póde chamar um liberal de 1848, repetiu Santos querendo convencer o filho.


CAPITULO XLIV

O salmão

Pelas férias é que Paulo soube da interpretação que o pae dera á Regente daquelle trecho do discurso. Protestou contra ella, em casa; quiz fazel-o tambem em publico, mas Natividade interveiu a tempo. Ayres pôz agua na fervura, dizendo ao futuro bacharel:

—Não vale a pena, moço; o que importa é que cada um tenha a suas ideias e se bata por ellas, até que ellas vençam. Agora que outros as interpretem mal é cousa que não deve affligir o autor.

—Affligir, sim, senhor; pôde parecer que é assim mesmo... Vou escrever um artigo a proposito de qualquer cousa, e não deixarei duvidas...

—Para que? inquiriu Ayres.

—Não quero que supponham...

—Mas quem duvida dos seus sentimentos?

—Podem duvidar.

—Ora, qual! Em todo caso, vá primeiro almoçar commigo um dia destes... Olhe, vá domingo, e seu irmão Pedro tambem. Seremos trez á meza, um almoço de rapazes. Beberemos certo vinho que me deu o ministro da Allemanha...

No domingo fôram os dous ao Cattete, menos pelo almoço que pelo amphytrião. Ayres era amado dos dous; gostavam de ouvil-o, de interrogal-o, pediam-lhe anecdotas politicas de outro tempo, descripção de festas, noticias de sociedade.

—Vivam os meus dous jovens, disse o conselheiro, vivam os meus dous jovens que não esqueceram o amigo velho. Papae como está? E mamãe?

—Estão bons, disse Pedro.

Paulo accrescentou que ambos lhe mandavam lembranças.

—E tia Perpetua?

—Tambem está boa, disse Paulo.

—Sempre com a homoepathia e as suas historias do Paraguay, accrescentou Pedro.

Pedro estava alegre, Paulo preoccupado. Depois das primeiras saudações e noticias, Ayres notou essa differença, e achou que era bom para tirar a monotonia da semelhança; mas, emfim, não queria caras fechadas, e indagou do estudante de direito o que é que elle tinha.

—Nada.

—Não póde ser; acho-lhe um ar meio sorumbatico. Pois eu acordei disposto a rir, e desejo que ambos riam commigo.

Paulo rosnou uma palavra que nenhum delles entendeu e saccou do bolso um maço de folhas de de papel. Era um artigo...

—Um artigo?

—Um artigo em que tiro todas as duvidas a meu respeito, e peço ao senhor que me ouça, é pequeno. Escrevi-o a noite passada.

Ayres propoz ouvil-o depois do almoço, mas o rapaz pediu que fosse logo, e Pedro concordou com esto alvitre, allegando que, sobre o almoço, podia perturbar a digestão, como ruim droga que devia ser, naturalmente. Ayres metteu o caso á bulha e acceitou ouvir o artigo.

—É pequeno, sete tiras.

—Letra miuda?

—Não, senhor; assim, assim.

Paulo leu o artigo. Tinha por epigraphe isto de Amós: «Ouvi esta palavra, vaccas gordas que estaes no monte de Samaria...» As vaccas gordas eram o pessoal do regimen, explicou Paulo. Não atacava o imperador, por attenção á mãe, mas com o principio e o pessoal era violento e aspero. Ayres sentiu-lhe aquillo que, em tempo, se chamou «a bossa da combatividade». Quando Paulo acabou, Pedro disse em ar de mofa:

—Conheço tudo isso, são ideias paulistas.

—As tuas são ideias coloniaes, replicou Paulo.

Deste introito podiam nascer peores palavras, mas felizmente um criado chegou á porta annunciando que o almoço estava na mesa. Ayres ergueu-se e disse que á mesa daria a sua opinião.

—Primeiro o almoço, tanto mais que temos um salmão, cousa especial. Vamos a elle.

Ayres queria cumprir deveras o officio que acceitara de Natividade. Quem sabe se a ideia de pae espiritual dos gemeos, pae de desejo somente, pae que não foi, que teria sido, não lhe dava uma affeição particular e um dever mais alto que o de simples amigo? Nem é fóra de proposito que elle buscasse sómente materia nova para as paginas nuas de seu Memorial.

Ao almoço, ainda se falou do artigo, Paulo com amor, Pedro com desdem, Ayres sem uma nem outra cousa. O almoço ia fazendo o seu officio. Ayres estudava os dous rapazes e suas opiniões. Talvez estas não passassem de uma erupção de pelle da edade. E sorria, fazia-os comer e beber, chegou a falar de moças, mas aqui os rapazes, vexados e respeitosos, não acompanharam o ex-ministro. A politica veiu morrendo. Na verdade, Paulo ainda se declarou capaz de derribar a monarchia com dez homens, e Pedro de extirpar o germen republicano com um decreto. Mas o ex-ministro, sem mais decreto que uma caçarola, nem mais homens que o seu cozinheiro, envolveu os dous regimens no mesmo salmão delicioso.


CAPITULO XLV

Musa, canta...

No fim do almoço, Ayres deu-lhes uma citação de Homero, aliás duas, uma para cada um, dizendo-lhes que o velho poeta os cantara separadamente, Paulo no começo da Illiada:

—«Musa, canta a colera de Achilles, filho de Peleu, colera funesta aos gregos, que precipitou á estancia de Plutão tantas almas válidas de heroes, entregues os corpos ás aves e aos cães...»

Pedro estava no começo da Odyssea:

—«Musa, canta aquelle heroe astuto, que errou por tantos tempos, depois de destruida a santa Illion...»

Era um modo de definir o caracter de ambos, e nenhum delles levou a mal a applicação. Ao contrario, a citação poetica valia por um diploma particular. O facto é que ambos sorriram de fé, de acceitação, de agradecimento, sem que achassem uma palavra ou syllaba com que desmentissem o adequado dos versos. Que elle, o conselheiro, depois de os citar em prosa nossa, repetiu-os no proprio texto grego e os dous gemeos sentiram-se ainda mais épicos, tão certo é que traducções não valem originaes. O que elles fizeram foi dar um sentido deprimente ao que era applicavel ao irmão:

—Tem razão, Sr. conselheiro,—disse Paulo,—Pedro é um velhaco...

—E você é um furioso...

—Em grego, meninos, em grego e em verso, que é melhor que a nossa lingua e a prosa do nosso tempo.


CAPITULO XLVI

Entre um acto e outro

Aquelles almoços repetiram-se, os mezes passaram, vieram férias, acabaram-se férias, e Ayres penetrava bem os gemeos. Escrevia-os no Memorial, onde se lê que a consulta ao velho Placido dizia respeito aos dous, e mais a ida á cabocla do Castello e a briga antes de nascer, casos velhos e obscuros que elle relembrou, ligou e decifrou.

Emquanto os mezes passam, faze de conta que estás no theatro, entre um acto e outro, conversando. Lá dentro preparam a scena, e os artistas mudam de roupa. Não vás lá; deixa que a dama, no camarim, ria com os seus amigos o que chorou cá fóra com os espectadores. Quanto ao jardim que se está fazendo, não te exponhas a vel-o pelas costas; é pura lona velha sem pintura, porque só a parte do espectador é que tem verdes e flores. Deixa-te estar cá fóra no camarote desta senhora. Examina-lhe os olhos; tem ainda as lagrimas que lhe arrancou a a dama da peça. Fala-lhe da peça e dos artistas. Que é obscura. Que não sabem os papeis. Ou então que que é tudo sublime. Depois percorre os camarotes com o binoculo, distribue justiça, chama bellas ás bellas e feias ás feias, e não te esqueças de contar anecdotas que desfeiem as bellas, e virtudes que componham as feias. As virtudes devem ser grandes e as anecdotas engraçadas. Tambem as ha banaes, mas a mesma banalidade na bôca de um bom narrador faz-se rara e preciosa. E verás como as lagrimas séccam inteiramente, e a realidade substitue a ficção. Falo por imagem; sabes que tudo aqui é verdade pura e sem choro.


CAPITULO XLVII

S. Matheus, IV, 1-10

Se ha muito riso quando um partido sobe, tambem ha muita lagrima do outro que desce, e do riso e da lagrima se faz o primeiro dia da situação, como no Genesis. Venhamos ao evangelista que serve de titulo ao capitulo. Os liberaes fôram chamados ao poder, que os conservadores tiveram de deixar. Não é mister dizer que o abatimento de Baptista foi enorme.

—Justamente agora que eu tinha esperanças, disse elle á mulher.

—De quê?

—Ora de quê! de uma presidencia. Não disse nada, porque podiam falhar, mas é quasi certo que não. Tive duas conferencias, não com ministros, mas com pessoa influente que sabia, e era negocio de esperar um mez ou dous...

—Presidencia boa?

—Boa.

—Se você tivesse trabalhado bem...

—Se tivesse trabalhado bem, podia estar já de posse, mas vinhamos agora a toque de caixa.

—Isso é verdade, concordou D. Claudia olhando para o futuro.

Baptista passeava, as mãos nas costas, os olhos no chão, suspirando, sem prever o tempo em que os conservadores tornariam ao poder. Os liberaes estavam fortes e resolutos. As mesmas ideias pairavam na cabeça de D. Claudia. Este casal só não era egual na vontade; as ideias eram muitas vezes taes que, se apparecessem cá fóra, ninguem diria quaes eram as delle, nem quaes as della, pareciam vir de um cerebro unico. Naquelle momento nenhum achava esperança immediata ou remota. Uma só ideia vaga... E foi aqui que a vontade de D. Claudia fincou os pés no chão e cresceu. Não falo só por imagem; D. Claudia levantou-se da cadeira, rapida, e disparou esta pergunta ao marido:

—Mas, Baptista, você o que é que espera mais dos conservadores?

Baptista parou com um ar digno e respondeu com simplicidade:

—Espero que subam.

—Que subam? Espera oito ou dez annos, o fim do seculo, não é? E nessa occasião você sabe se será aproveitado? Quem se lembrará de você?

—Posso fundar um jornal.

—Deixe-se de jornaes. E se morrer?

—Morro no meu posto de honra.

D. Claudia olhou fixa para elle. Os seus olhos miudos enterravam-se pelos delle abaixo, como duas verrumas pacientes. Subito, levantando as mãos abertas:

—Baptista, você nunca foi conservador!

O marido empallideceu e recuou, como se ouvira a propria ingratidão de um partido. Nunca fôra conservador? Mas que era elle então, que podia ser neste mundo? Que é que lhe dava a estima dos seus chefes? Não lhe faltava mais nada... D. Claudia não attendeu a explicações; repetiu-lhe as palavras, e accrescentou.

—Você estava com elles, Como a gente está n'um baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.

Baptista sorriu leve e rapido; amava as imagens graciosas e aquella pareceu-lhe graciosissima, tanto que concordou logo; mas a sua estrella inspirou-lhe uma refutação prompta.

—Sim, mas a gente não dança com ideias, dança com pernas.

—Dance com que fôr, a verdade é que todas as suas ideias iam para os liberaes; lembre-se que os dissidentes na provincia accusavam a você de apoiar os liberaes...

—Era falso; o governo é que me recommendava moderação. Posso mostrar cartas.

—Qual moderação! Você é liberal.

—Eu liberal?

—Um liberalão, nunca foi outra cousa.

—Pense no que diz, Claudia. Se alguem a ouvir é capaz de crêr, e dahi a espalhar...

—Que tem que espalhe? Espalha a verdade, espalha a justiça, porque os seus verdadeiros amigos não o hão de deixar na rua, agora que tudo se organisa. Você tem amigos pessoaes no ministerio; porque é que os não procura?

Baptista recuou com horror. Isto de subir as escadas do poder e dizer-lhe que estava ás ordens não era concebivel sequer. D. Claudia admittiu que não, mas um amigo faria tudo, um amigo intimo do governo que dissesse ao Ouro-Preto: «Visconde, você porque é que não convida o Baptista? Foi sempre liberal nas ideias. Dê-lhe uma presidencia, pequena que seja, e...»

Baptista fez um gesto de hombros, outro de mão que se calasse. A mulher não se calou; foi dizendo as mesmas cousas, agora mais graves pela insistencia e pelo tom. Na alma do marido a catastrophe era já tremenda. Pensando bem, não recusaria passar o Rubicon; só lhe faltava a força necessaria. Quizera querer. Quizera não ver nada, nem passado, nem presente, nem futuro, não saber de homens nem de cousas, e obedecer aos dados da sorte, mas não podia.

E façamos justiça ao homem. Quando elle pensava só na fidelidade aos amigos sentia-se melhor; a mesma fé existia, o mesmo costume, a mesma esperança. O mal vinha de olhar para o lado de lá; e era D. Claudia que lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidencia, o ministerio... Elle torcia os olhos e ficava.

A sós comsigo, Baptista pensou muita vez na situação pessoal e politica. Apalpava-se moralmente. Claudia podia ter razão. Que é que havia nelle propriamente conservador, a não ser esse instincto de toda creatura, que a ajuda a levar este mundo? Viu-se conservador em politica, porque o pae o era, o tio, os amigos da casa, o vigario da parochia, e elle começou na escola a execrar os liberaes. E depois não era propriamente conservador, mas saquarema, como os liberaes eram luzias. Baptista agarrava-se agora a estas designações obsoletas e deprimentes que mudavam o estylo aos partidos; donde vinha que hoje não havia entre elles o grande abysmo de 1842 e 1848. E lembrava-se do visconde de Albuquerque ou de outro senador que dizia em discurso não haver nada mais parecido com um conservador que um liberal, e vice-versa. E evocava exemplos, o partido progressista, Olinda, Nabuco, Zacharias, que fôram elles senão conservadores que comprehenderam os tempos novos e tiraram ás ideias liberaes aquelle sangue das revoluções, para lhes pôr uma côr viva, sim, mas serena. Nem o mundo era dos emperrados... Neste ponto passou-lhe um frio pela espinha. Justamente nessa occasião appareceu Flora. O pae abraçou-a com amor, e perguntou-lhe se queria ir para alguma provincia, sendo elle presidente.

—Mas os conservadores não cairam?

—Cairam, sim, mas suppõe que...

—Ah! não, papae!

—Não, porquê?

—Não desejo sair do Rio de Janeiro.

Talvez o Rio de Janeiro para ella fosse Botafogo, e propriamente a casa de Natividade. O pae não apurou as causas da recusa; suppol-as politicas, e achou novas forças para resistir ás tentações de D. Claudia: «Vae-te, Satanaz; porque escripto está: Ao Senhor teu Deus adorarás, e a elle servirás.» E seguiu-se como na Escriptura: «Então o deixou o Diabo; e eis que chegaram os anjos e o serviram.» Os anjos fôram só um, que valia por muitos; e o pae lhe disse beijando-a carinhosamente:

—Muito bem, muito bem, minha filha.

—Não é, papae?

Não, não foi a filha que tolheu a deserção do pae. Ao contrario. Baptista, se tivesse de ceder, cederia á mulher ou ao Diabo, synonimos neste capitulo. Não cedeu de fraqueza. Não tinha a força precisa de trahir os amigos, por mais que estes parecessem havel-o abandonado. Ha dessas virtudes feitas de acanho e timidez, e nem por isso menos lucrativas, moralmente falando. Não valem só stoicos e martyres. Virtudes meninas tambem são virtudes. É certo, porém, que a linguagem delle, em relação aos liberaes, não era já de odio ou impaciencia; chegava á tolerancia, roçava pela justiça. Concordava que a alternação dos partidos era um principio de necessidade publica. O que fazia era animar os amigos. Tornariam cedo ao poder. Mas D. Claudia opinava o contrario; para ella, os liberaes iriam ao fim do seculo. Quando muito, admittiu que na primeira entrada não déssem logar a um converso da ultima hora; era preciso esperar um anno ou dous, uma vaga na camara, uma commissão, a vice-presidencia do Rio...


CAPITULO XLVIII

Terpsichore

Nenhuma dessas cousas preoccupava Natividade. Mais depressa cuidaria do baile da ilha Fiscal, que se realisou em novembro para honrar os officiaes chilenos. Não é que ainda dançasse, mas sabia-lhe bem ver dançar os outros, e tinha agora a opinião de que a dança é um prazer dos olhos. Esta opinião é um dos effeitos daquelle mau costume de envelhecer. Não pegues tal costume, leitora. Ha outros tambem ruins, nenhum peor, este é o pessimo. Deixa lá dizerem philosophos que a velhice é um estado util pela experiencia e outras vantagens. Não envelheças, amiga minha, por mais que os annos te convidem a deixar a primavera; quando muito, acceita o estio. O estio é bom, callido, as noites são breves, é certo, mas as madrugadas não trazem neblina, e o céu apparece logo azul. Assim dançarás sempre.

Bem sei que ha gente para quem a dança é antes um prazer dos olhos. Nem as bailadeiras são outra cousa mais que mulheres de officio. Tambem eu, se é licito citar alguem a si mesmo, tambem eu acho que a dança é antes prazer dos olhos que dos pés, e a razão não é só dos annos longos e grisalhos, mas tambem outra que não digo, por não valer a pena. Ao cabo, não estou contando a minha vida, nem as minhas opiniões, nem nada que não seja das pessoas que entram no livro. Estas é que preciso pôr aqui integralmente com as suas virtudes e imperfeições, se as têm. Entende-se isto, sem ser preciso notal-o, mas não se perde nada em repetil-o.

Por exemplo, D. Claudia. tambem ella pensava no baile da ilha Fiscal, sem a menor ideia de dançar, nem a razão esthetica da outra. Para ella, o baile da ilha era um facto politico, era o baile do ministerio, uma festa liberal, que podia abrir ao marido as portas de alguma presidencia. Via-se já com a familia imperial. Ouvia a princeza:

—Como vae, D. Claudia?

—Perfeitamente bem, Serenissima senhora.

E Baptista conversaria com o imperador, a um canto, deante dos olhos invejosos que tentariam ouvir o dialogo, á força de os fitarem de longe. O marido é que... Não sei que diga do marido relativamente ao baile da ilha. Contava lá ir, mas não se acharia a gosto; póde ser que traduzissem esse acto por meia conversão. Não é que só fossem liberaes ao baile, tambem iriam conservadores, e aqui cabia bem o aphorismo de D. Claudia que não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha.

Santos é que não precisava de ideias para dançar. Não dançaria sequer. Em moço dançou muito, quadrilhas, polkas, valsas, a valsa arrastada e a valsa pulada, como diziam então, sem que eu possa definir melhor a differença; presumo que na primeira os pés não saiam de chão, e na segunda não caiam do ar. Tudo isso até os vinte e cinco annos. Então os negocios pegaram delle e o metteram naquella outra contradança, em que nem sempre se volta ao mesmo logar ou nunca se sáe delle. Santos saiu e já sabemos onde está. UItimamente teve a fantasia de ser deputado. Natividade abanou a cabeça, por mais que elle explicasse que não queria ser orador nem ministro, mas tão sómente fazer da camara um degrau para o senado, onde possuia amigos, pessoas de merecimento, e que era eterno.

—Eterno? interrompeu ella com um sorriso fino e descorado.

—Vitalicio, quero dizer.

Natividade teimou que não, que a posição delle era commercial e bancaria. Accrescentou que politica era uma cousa e industria outra. Santos replicou, citando o barão de Mauá, que as fundiu ambas. Então a mulher declarou por um modo secco e duro que aos sessenta annos ninguem começa a ser deputado.

—Mas é de passagem; os senadores são edosos.

—Não, Agostinho, concluiu a baroneza com um gesto definitivo.

Não conto Ayres, que provavelmente dançaria, a despeito dos annos; tambem não falo de D. Perpetua, que nem iria lá. Pedro iria, e é natural que dançasse, e muito, não obstante o afinco e paixão dos seus estudos. Vivia enfeitiçado pela medicina. No quarto de dormir, além do busto de Hyppocrates, tinha os retratos de algumas summidades medicas da Europa, muito esqueleto gravado, muita molestia pintada, peitos cortados verticalmente para se lhe verem os vasos, cerebros descobertos, um cancro de lingua, alguns aleijões, cousas todas que a mãe, por seu gosto mandaria deitar fóra, mas era a sciencia do filho, e bastava. Contentava-se de não olhar para os quadros.

Quanto a Flora, ainda verde para os meneios de Terpsichore, era acanhada ou arrepiada, como dizia a mãe. E isto era o menos; o mais era que com pouco se enfadaria, e, se não pudesse vir logo para casa, ficaria adoentada o resto do tempo. Note-se que, estando na ilha, teria o mar em volta, e o mar era um dos seus encantos; mas, se lhe lembrasse o mar, e se consolasse com a esperança de o mirar, advertiria tambem que a noite escura tolheria a consolação. Que multidão de dependencias na vida, leitor! Umas cousas nascem de outras, enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se perder a si.

Mas donde viria o tedio a Flora, se viesse? Com Pedro no baile, não; este era, como sabes, um dos dous que lhe queriam bem. Salvo se ella queria principalmente ao que estava em S. Paulo. Conclusão duvidosa, pois não é certo que preferisse um a outro. Se já a vimos falar a ambos com a mesma sympathia, o que fazia agora a Pedro na ausencia de Paulo, e faria a Paulo na ausencia de Pedro, não me faltará leitora que presuma um terceiro... Um terceiro explicaria tudo, um terceiro que não fosse ao baile, algum estudante pobre, sem outro amigo nem mais casaca que o coração verde e quente. Pois nem esse, leitora curiosa, nem terceiro, nem quarto, nem quinto, ninguem mais. Uma exquisitona, como lhe chamava a mãe.

Não importa; a exquisitona foi ao baile da ilha Fiscal com a mãe e o pae. Assim tambem Natividade, o marido e Pedro, assim Ayres, assim a demais gente convidada para a grande festa. Foi uma bella ideia do governo, leitor. Dentro e fóra, do mar e de terra, era como ura sonho veneziano; toda aquella sociedade viveu algumas horas sumptuosas, novas para uns, saudosas para outros, e de futuro para todos,—ou, quando menos, para a nossa amiga Natividade—e para o conservador Baptista.

Aquella considerava o destino dos filhos,—cousas futuras! Pedro bem podia inaugurar, como ministro, o século XX e o terceiro reinado. Natividade imaginava outro e maior baile naquella mesma ilha. Compunha a ornamentação, via as pessoas e as danças, toda uma festa magna que entraria na historia. Tambem ella alli estaria, sentada a um canto, sem se lhe dar do peso dos annos, uma vez que visse a grandeza e a prosperidade dos filhos. Era assim que enfiara os olhos pelo tempo adiante, descontando no presente a felicidade futura, caso viesse a morrer antes das prophecias, Tinha a mesma sensação que ora lhe dava aquella cesta de luzes no meio da escuridão tranquilla do mar.

A imaginação de Baptista era menos longa que a de Natividade. Quero dizer que ia antes do principio do seculo, Deus sabe se antes do fim do anno. Ao som da musica, á vista das galas, ouvia umas feiticeiras cariocas, que se pareciam com as escossezas; pelo menos, as palavras eram analogas ás que saudaram Macbeth:—«Salve, Baptista, ex-presidente de provincia!»—«Salve, Baptista, proximo presidente de provincia!»— «Salve, Baptista, tu serás ministro um dia!» A linguagem dessas prophecias era liberal, sem sombra de solecismo. Verdade é que elle se arrependia de as escutar, e forcejava por traduzil-as no velho idioma conservador, mas já lhe iam faltando diccionarios. A primeira palavra ainda trazia o sotaque antigo: «Salve, Baptista, ex-presidente de provincia!» mas a segunda e a ultima eram ambas daquella outra lingua liberal, que sempre lhe pareceu lingua de preto. Emfim, a mulher, como lady Macbeth, dizia nos olhos o que esta dizia pela bôca, isto é, que já sentia em si aquellas futurações. O mesmo lhe repetiu na manhã seguinte, em casa. Baptista, com um sorriso disfarçado, descria das feiticeiras, mas a memoria guardava as palavras da ilha: «Salve, Baptista, proximo presidente!» Ao que elle respondia com um suspiro: Não, não, filhas do Diabo...

Ao contrario do que ficou dito atraz, Flora não se aborreceu na ilha. Conjecturei mal, emendo-me a tempo. Podia aborrecer-se pelas razões que lá ficara, e ainda outras que poupei ao leitor apressado; mas, em verdade, passou bem a noite. A novidade da festa, a visinhança do mar, os navios perdidos na sombra, a cidade defronte com os seus lampiões de gaz, embaixo e em cima, na praia e nos outeiros, eis ahi aspectos novos que a encantaram durante aquellas horas rapidas.

Não lhe faltavam pares, nem conversação, nem alegria alheia e propria. Toda ella compartia da felicidade dos outros. Via, ouvia, corria, esquecia-se do resto para se metter comsigo. Tambem invejava a princeza imperial, que viria a ser imperatriz um dia, com o absoluto poder de despedir ministros e damas, visitas e requerentes, e ficar só, no mais recondito do paço, fartando-se de contemplação ou de musica. Era assim que Flora definia o officio de governar. Taes ideias passavam e tornavam. De uma vez alguem lhe disse, como para lhe dar força: «Toda alma livre é imperatriz!»

Não foi outra voz, semelhante á das feiticeiras do pae nem ás que falavam interiormente a Natividade, acerca dos filhos. Não; seria pôr aqui muitas vozes de mysterio, cousa que, além do fastio da repetição, mentiria á realidade dos factos. A voz que falou a Flora saiu da bôca do velho Ayres, que se fôra sentar ao pé d'ella e lhe perguntara:

—Em que é que está pensando?

—Em nada, respondeu Flora.

Ora, o conselheiro tinha visto no rosto da moça a expressão de alguma cousa e insistia por ella. Flora disse como pôde a inveja que lhe mettia a vista da princeza, não para brilhar um dia, mas para fugir ao brilho e ao mando, sempre que quizesse ficar subdita de si mesma. Foi então que elle lhe murmurou, como acima:

—Toda alma livre é imperatriz.

A phrase era boa, sonora, parecia conter a maior somma de verdade que ha na terra e nos planetas. Valia por uma pagina de Plutarcho. Se algum politico a ouvisse poderia guardal-a para os seus dias de opposição ao governo, quando viesse o terceiro reinado. Foi o que elle mesmo escreveu no Memorial. Com esta nota: «A meiga creatura agradeceu-me estas cinco palavras».


CAPITULO XLIX

Taboleta velha

Toda a gente voltou da ilha com o baile na cabeça muita sonhou com elle, alguma dormiu mal ou nada. Ayres foi dos que acordaram tarde; eram onze horas. Ao meio dia almoçou; depois escreveu no Memorial as impressões da vespera, notou varias espaduas, fez reparos politicos e acabou com as palavras que lá ficam no cabo do outro capitulo. Fumou, leu, até que resolveu ir á rua do Ouvidor. Como chegasse á vidraça de uma das janellas da frente, viu á porta da confeitaria uma figura inesperada, o velho Custodio, cheio de melancolia. Era tão novo o espectaculo que alli se deixou estar por alguns instantes; foi então que o confeiteiro, levantando os olhos, deu com elle entre as cortinas, e emquanto Ayres voltava para dentro, Custodio atravessou a rua e entrou-lhe em casa.

—Que suba, disse o conselheiro ao criado.

Custodio foi recebido com a benevolencia de outros dias e um pouco mais de interesse. Ayres queria saber o que é que o entristecia.

—Vim para contal-o a V.-Ex.; é a taboleta.

—Que taboleta?

—Queira V.-Ex. ver por seus olhos, disse o confeiteiro, pedindo-lhe o favor de ir á janella.

—Não vejo nada.

—Justamente, é isso mesmo. Tanto me aconselharam que fizesse reformar a taboleta que afinal consenti, e fil-a tirar por dous empregados. A visinhança veiu para a rua assistir ao trabalho e parecia rir de mim. Já tinha falado a um pintor da rua da Assembléa; não ajustei o preço porque elle queria ver primeiro a obra. Hontem, á tarde, lá foi um caixeiro, e sabe V.-Ex. o que me mandou dizer o pintor? Que a taboa está velha, e precisa outra; a madeira não aguenta tinta. Lá fui ás carreiras. Não pude convencel-o de pintar na mesma madeira; mostrou-me que estava rachada e comida de bichos. Pois cá debaixo não se via. Teimei que pintasse assim mesmo; respondeu-me que era artista e não faria obra que se estragasse logo.

—Pois reforme tudo. Pintura nova em madeira velha não vale nada. Agora verá que dura pelo resto da nossa vida.

—A outra tambem durava; bastava só avivar as letras.

Era tarde, a ordem fora expedida, a madeira devia estar comprada, serrada e pregada, pintado o fundo para então se desenhar e pintar o titulo. Custodio não disse que o artista lhe perguntára pela côr das letras, se vermelha, se amarella, se verde em cima de branco ou vice-versa, e que elle, cautelosamente, indagára do preço de cada côr para escolher as mais baratas. Não interessa saber quaes fôram.

Quaesquer que fossem as côres, eram tintas novas, táboas novas, uma reforma que elle, mais por economia que por affeição, não quizera fazer; mas a affeição valia muito. Agora que ia trocar de taboleta sentia perder algo do corpo,—cousa que outros do mesmo ou diverso ramo de negocio não comprehenderiam, tal gosto acham em renovar as caras e fazer crescer com ellas a nomeada. São naturezas. Ayres ia pensando em escrever uma Philosophia das Taboletas, na qual poria taes e outras observações, mas nunca deu começo a obra.

—V.-Ex. hade-me perdoar o incommodo que lhe trouxe, vindo contar-lhe isto, mas V.-Ex. é sempre tão bom commigo, fala-me com tanta amizade, que eu me atrevi... Perdoa-me, sim?

—Sim, homem de Deus.

—Comquanto V.-Ex. approve a reforma da taboleta, sentirá commigo a separação da outra, a minha amiga velha, que nunca me deixou, que eu, nas noites de luminarias, por S. Sebastião e outras, fazia apparecer aos olhos da gente. V.-Ex., quando se aposentou, veiu achal-a no mesmo logar em que a deixou por occasião de ser nomeado. E tive alma para me separar della!

—Está bom, lá vae; agora é receber a nova, e verá como daqui a pouco são amigos.

Custodio saiu recuando, como era seu costume, e desceu tropego as escadas. Deante da confeitaria deteve-se um instante, para ver o logar onde estivera a taboleta velha. Deveras, tinha saudades.


CAPITULO L

O tinteiro de Evaristo

—...Este caso prova que tudo se póde amar muito bem, ainda um pedaço de madeira velha. Creiam que não era só a despeza que elle naturalmente sentia, eram tambem saudades. Ninguem se despega assim de um objecto tão intimo, que faz parte integral da casa e da pelle, porque a taboleta não foi sequer arriada um dia. Custodio não teve occasião de ver se estava estragada. Vivia alli como as portadas e a parede.

Era ao jantar, em Botafogo. Só quatro pessoas, as duas irmãs, Santos e Ayres. Pedro fôra jantar a S. Clemente, com a familia Baptista.

D. Perpetua approvou os sentimentos do confeiteiro. Citou, a proposito, o tinteiro de Evaristo. A irmã sorriu para o marido, e este para a mulher, como se dissessem: «lá vem elle!» Era um tinteiro que servira ao famoso jornalista do primeiro reinado e da Regencia, obra simples, feita de barro, egual aos tinteiros que a gente chã comprava nas lojas de papel daquelle e deste tempo. O sogro de D. Perpetua, que lh'o dera em lembrança, tivera um da mesma edade, massa e feição.

—Veiu assim de mão em mão parar ás minhas. Não chega aos tinteiros do mano Agostinho nem de Natividade, que são luxuosos, mas tem grande valor para mim.

—Sem duvida, concordou Ayres, valor historico e politico.

—Meu sogro dizia que delle sairam os grandes artigos da Aurora. A falar verdade, eu nunca li taes artigos, mas meu sogro era homem de verdade. Conhecia a vida de Evaristo, por ouvil-a a outros, e fazia-lhe louvores que não acabavam mais...

Natividade buscou desviar a conversação para o baile da vespera. Tinham já falado delle, mas não achou outro derivativo. Entretanto, o tinteiro ainda ficou algum tempo. Não era só uma das lembranças de D. Perpetua, reliquia de familia, era tambem uma de suas ideias. Prometteu mostral-o ao conselheiro. Elle prometteu vel-o com muito gosto. Confessou que tinha veneração aos objectos de uso dos grandes homens. Emfim, o jantar acabou, e elles passaram ao salão. Ayres, falando da enseada:

—Aqui está uma obra, que é mais velha que o tinteiro do Evaristo e a taboleta do Custodio, e, não obstante, parece mais moça, não é verdade, D. Perpetua? A noite é clara e quente; podia ser escura e fria, e o effeito seria o mesmo. A enseada não differe de si. Talvez os homens venham algum dia atulhal-a de terra e pedras para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corrida de cavallos. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morreremos antes.

—Nao fale em morte, conselheiro.

—A morte é uma hypothese, redarguiu Ayres, talvez uma lenda. ninguem morre de uma boa digestão, e os seus charutos são deliciosos.

—Estes são novos. Perecem-lhe bons?

—Deliciosos.

Santos estimou ouvir este louvor; achava-lhe uma intenção directa á sua pessoa, aos seus meritos, ao seu nome, á posição que tinha na sociedade, á casa, á chacara, ao Banco, aos colletes. É talvez muito; seria um modo emphatico de explicar a força da ligação delle aos charutos. Valiam pela taboleta e pelo tinteiro, com a differença que estes significavam só affeicção e veneração, e aquelles, valendo pelo sabor e pelo preço, tinham a superioridade do milagre, pela reproducção de todos os dias.

Taes eram as suspeitas que vagavam no cerebro de Ayres, emquanto elle olhava mansamente para o amphytrião. Ayres não podia negar a si mesmo a aversão que este lhe inspirava. Não lhe queria mal, de certo; podia até querer-lhe bem, se houvesse um muro entre ambos. Era a pessoa, eram as sensações, os dizeres, os gestos, o riso, a alma toda que lhe fazia mal.


CAPITULO LI

Aqui presente

Perto das nove horas, ou logo depois, chegou Pedro com o casal Baptista e Flora.

—Vimos trazer o seu menino, disse Baptista a Natividade.

—Obrigado, doutor, acudiu Santos, mas elle je não está em edade de se perder por essas ruas, e, se se perder, acha-se logo, accrescentou sorrindo.

Natividade não gostou da graça, tratando-se do filho e ao pé della. Era talvez excesso de pudor. Ha muito excesso nesse sentido, e o acertado é perdoal-o. Ha tambem excessos contrarios, condescendencias faceis, pessoas que entram com prazer na troca de allusões picantes. tambem se devem perdoar. Em summa, o perdão chega ao céu. Perdoai-vos uns aos outros, é a lei do Evangelho.

Elle, o rapaz, é que não ouviu nada; interrompera a conversa que trazia com Flora, e trocadas algumas palavras, os dous fôram reatar o fio a um canto. Ayres reparou na attitude de ambos; ninguem mais lhes prestava attenção. Ao cabo, a conversa era em voz surda; não os poderiam ouvir. Ella escutava, elle falava; depois era o contrario, ella é que falava, elle é que ouvia, tão absortos que pareciam não attender a ninguem, mas attendiam. Possuiam o sexto sentido dos conspiradores e dos namorados. Que conversassem de amores, é possivel; mas que conspiravam, é certo. Quanto á materia da conspiração, podereis sabel-a depois, brevemente, daqui a um capitulo. O proprio Ayres não descobriu nada, por mais que quizesse fartar os olhos naquelle dialogo de mysterios. Persuadiu-se que não era grave, porque elles sorriam com frequencia; mas podia ser intimo, escondido, pessoal, e acaso extranho. Suppõe um fio de anecdotas ou uma historia comprida, cousa alheia; ainda assim podia ser delles sómente, porque ha estados da alma em que a materia da narração é nada, o gosto de a fazer e de a ouvir é que é tudo. Tambem podia ser isto.

Vêde, porém, como a natureza encaminha as cousas minimas ou maximas, mormente se a fortuna a ajuda. A conversação tão doce, ao que parecia, começou por um enfado. A causa foi uma carta de Paulo, escripta ao irmão, e que este se lembrou de mostrar a Flora, dizendo-lhe que tambem a mostrára á mãe, e a mãe se zangára muito.

—Com o senhor?

—Com Paulo.

—Mas que dizia a carta?

Pedro leu-lhe o ponto principal, que era quasi toda a carta; falava da questão militar. Já havia a «questão militar», um conflicto de generaes e ministros, e a linguagem de Paulo era contra os ministros.

—Mas porque é que o senhor foi mostrar essa carta a sua mãe?

—Mamãe quiz saber o que é que elle me dizia.

—E sua mãe zangou-se, ahi está; vae talvez reprehendel-o.

—Tanto melhor; Paulo precisa ser emendado; mas, diga-me, porque é que a senhora defende sempre a meu irmão?

—Para ter o direito de defender tambem ao senhor.

—Então elle já lhe tem falado mal de mim?

Flora quiz dizer que sim, depois que não, afinal calou. Desconversou, perguntando porque elles se davam mal. Pedro negou que se dessem mal. Ao contrario, viviam bem. Não teriam as mesmas opiniões, e tambem podia ser que tivessem o mesmo gosto... Daqui a dizer que ambos a amavam era uma virgula; Pedro pingou o ponto final. Esse astuto era tambem timido. Mais tarde, comprehendeu que, calando, andou melhor, e deu a si mesmo o applauso da escolha; mas era falso, não escolhera nada. Não digo isto para fazel-o desmerecer; sim, porque o medo acerta muitas vezes, e é mister deixar aqui esta reflexão.

Veiu a zanga. Flora não replicou mais nada, e, por seu gosto, não teria jantado, a tal ponto sentia piedade do outro. Felizmente, o outro era este mesmo, aqui presente, com os olhos presentes, as mãos presentes, as palavras presentes. Não tardou que a zanga fugisse deante da graça, da brandura e da adoração. Bem-aventurados os que ficam, porque elles serão compensados.


CAPITULO LII

Um segredo

Eis agora a materia da conspiração. Na rua, ao virem de S. Clemente, foi que Pedro, gastado o melhor do tempo com a carta e o jantar, pôde revelar á moça um segredo:

—Titia disse lá em casa que D. Claudia lhe contára em segredo (não diga nada) que seu pae vae ser nomeado presidente de provincia.

—Não sei nada disso, mas não creio, porque papae é conservador.

—D. Claudia disse a titia que elle é liberal, quasi radical. Parece que a presidencia é certa; ella pediu segredo, e titia, quando nos contou, tambem pediu segredo. Eu tambem lhe peço que não diga nada, mas é verdade.

—Verdade como? Papae não vae com liberaes; o senhor não sabe como papae é conservador. Se elle defende os liberaes é porque é tolerante.

—Se a provincia fosse a do Rio de Janeiro, eu gostaria, porque não era preciso ir morar na Praia Grande, e se elle fosse, a viagem é só de meia hora, eu podia ir lá todos os dias.

—Era capaz?

—Apostemos.

Flora, depois de um instante:

—Para que, se não ha presidencia?

—Supponha que ha.

—É preciso suppôr muito,—que ha presidencia e que a provincia é a do Rio. Não, não ha nada.

—Então supponha só metade,—que ha presidencia e que é Matto-Grosso.

Flora teve um calefrio. Sem admittir a nomeação, tremeu ao nome da provincia. Pedro lembrou ainda o Amazonas, Pará, Piauhy... Era o infinito, mormente se o pae fizesse boa administração, porque não voltaria tão cedo. Já agora a moça resistia menos, achava possivel e abominavel, mas dizia isto para si, dentro do coração. De repente, Pedro, quasi estacando o passo:

—Se elle fôr, eu peço ao governo o logar de secretario e vou tambem.

A luz intermittente das lojas reflectindo no resto da moça, á medida que elles iam passando por ellas, ajudava a dos lampiões da rua, e mostrava a emoção daquella promessa. Sentia-se que o coração de Flora devia estar batendo muito. Em breve, porém, começou ella a pensar em outra cousa. Natividade não consentiria nunca; depois, um estudante... Não podia ser. Pensou em algum escandalo. Que elle fugisse, embarcasse, fosse atraz della...

Tudo isto era visto ou pensado em silencio. Flora não se admirava de pensar tanto e tão atrevidamente; era como o peso do corpo, que não sentia: andava, pensava, como transpirava. Não calculou sequer o tempo que ia gastando em imaginar e desfazer ideias. Que isto lhe désse mais prazer que desprazer, é certo. Ao pé della, Pedro ia naturalmente cuidando, com os olhos nos pés, e os pés nas nuvens. Não sabia que dissesse no meio de tão longo silencio. Entretanto, a solução parecia-lhe unica. Já não pensava na presidencia do Rio. Queria-se com ella, no ponto mais remoto do imperio, sem o irmão. A esperança de se desterrarem assim de Paulo verdejou na alma de Pedro. Sim, Paulo não iria tambem; a mãe não se deixaria ficar desamparada. Que perdesse um filho, vá; mas ambos...

A quem quer que este final do monologo pareça egoista, peço-lhe pelas almas dos seus parentes amigos, que estão no céu, peço-lhe que considere bem as causas. Considere o estado da alma do rapaz, a contiguidade da moça, as raizes e as flores da paixão, a propria edade de Pedro, o mal da terra, o bem da mesma terra. Considere mais a vontade do céu, que vela por todas as creaturas que se querem, salvo se uma só é que quer a outra, porque então o céu é um abysmo de iniquidades, e não lhe importe esta imagem. Considere tudo, amigo; deixe-me ir contando só e contando mal o que se passou naquelle curto transito entre as duas casas. Quando lá chegaram, falavam de bôca.

Em cima, como viste, continuaram a falar, até que o assumpto da presidencia voltou. Flora notou então a cautelosa insistencia com que Ayres olhava para elles, como se buscasse adivinhar a materia da conversação. Sentia que não estivesse alli tambem, ouvindo e falando, finalmente promettendo fazer alguma cousa por ella. Ayres podia, sim,—era seu amigo e todos o tinham em grande conta,—podia intervir e destruir o projecto da presidencia.

Sem querer nem saber, diria isto mesmo com os olhos ao velho diplomata. Retirava-os, mas elles iam de si mesmos repetir o monologo, e acaso perguntar alguma cousa que Ayres não percebia e devia ser interessante. Póde ser que reflectissem a angustia ou o que quer que era que lhe doia dentro. Póde ser; a verdade é que Ayres começou a ficar curioso, e tão depressa Pedro deixou o logar para acudir ao chamado da mãe, deixou elle Natividade para ir falar á moça.

Flora, já de pé, mal teve tempo de trocar duas palavras, dessas que se não podem interromper sem dôr ou prurido, ao menos. Ayres perguntava-lhe se nunca lhe dissera que sabia adivinhar.

—Não, senhor.

—Pois sei; adivinhei agora mesmo que me quer dizer um segredo.

Flora ficou espantada. Não querendo negar nem confessar, respondeu-lhe que só adivinhára metade.

—A outra é...?

—A outra é pedir-lhe um obsequio de amizade.

—Peça.

—Não, agora não, já nos vamos embora; mamãe e papae estão fazendo as despedidas. Só se fôr na rua. Quer vir comnosco a S. Clemente?

—Com o maior prazer.


CAPITULO LIII

De confidencias

Entenda-se que não. Não era com prazer maior nem menor. Era imposição de sociedade, desde que Flora o pedira, não sei se discretamente. Que a isto ligasse tal ou qual desejo de saber algum segredo, não serei eu que o negue, nem tu, nem elle mesmo. Ao cabo de alguns instantes, Ayres ia sentindo como esta pequena lhe acordava umas vozes mortas, falhadas ou não nascidas, vozes de pae. Os gemeos não lhe deram um dia a mesma sensação, senão porque eram filhos de Natividade. Aqui não era a mãe, era a mesma Flora, o seu gesto, a sua fala, e por ventura a sua fatalidade.

—Mas quer-me parecer que desta vez ella está presa; escolheu emfim, pensou Ayres.

Flora falou-lhe da presidencia, mas não lhe pediu segredo, como as outras pessoas; confessou-lhe que não queria ir daqui, fosse para onde fosse, e acabou dizendo que tudo estava nas mãos delle. Só elle podia despersuadir o pae de acceitar a presidencia. Ayres achou tão absurdo este pedido que esteve quasi a rir, mas susteve-se bem. A palavra de Flora era grave e triste. Ayres respondeu, com brandura, que não podia nada.

—Póde muito, todos attendem aos seus conselhos.

—Mas eu não dou conselhos a ninguem, acudiu Ayres. Conselheiro é um titulo que o imperador me conferiu, poi achar que o merecia, mas não obriga a dar conselhos; a elle mesmo só lh'os darei, se m'os pedir. Imagine agora se eu vou á casa de um homem ou mando chamal-o á minha para lhe dizer que não seja presidente de provincia. Que razão lhe daria?

Não tinha razões a moça; tinha necessidade. Appellou para os talentos do ex-ministro, que acharia uma razão boa. Nem se precisavam razões, bastava o falar delle, a arte que Deus lhe dera de agradar a toda a gente, de a arrastar, de influir, de obter o que quizesse. Ayres viu que ella exagerava para o attrair, e não lhe pareceu mal. Não obstante, contestou taes meritos e virtudes. Deus não lhe dera arte nenhuma, disse elle, mas a moça ia sempre affirmando, em tal maneira que Ayres suspendeu a contestação, e fez uma promessa.

—Vou pensar; amanhã ou depois, se achar algum recurso, tentarei o negocio.

Era um palliativo. Era tambem um modo de fazer cessar a conversação, estando a casa proxima. Não contava com o pae de Flora, que á fina força lhe quiz mostrar, áquella hora, uma novidade, aliás uma velharia, um documento de valor diplomatico. «Venha, suba, cinco minutos apenas, conselheiro.»

Ayres suspirou em segredo, e curvou a cabeça ao Destino. Não se luta contra elle, dirás tu; o melhor é deixar que pegue pelos cabellos e nos arraste até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos. Baptista nem lhe deu tempo de reflectir; era todo desculpas.

—Cinco minutos e está livre de mim, mas verá que lhe pago o sacrificio.

O gabinete era pequeno; poucos livros e bons, os moveis graves, um retrato de Baptista com a farda de presidente, um almanaque sobre a mesa, um mappa na parede, algumas lembranças do governo da provincia. Emquanto Ayres circulava os olhos, Baptista foi buscar o documento. Abriu uma gaveta, tirou uma pasta, abriu a pasta, tirou o documento, que não estava só, mas com outros. Conhecia-se logo por ser um papel velho, amarello, em partes roido. Era uma carta do conde de Oeyras, escripta ao ministro de Portugal na Hollanda.

—É o dia das antiquidades, pensou Ayres; a taboleta, o tinteiro, este autographo...

—A carta é importante, mas longa, disse Baptista, não podemos lel-a agora. Quer leval-a?

Não lhe deu tempo de responder; pegou de uma sobrecarta grande e metteu dentro o manuscripto, com esta nota por fóra: «Ao meu excellentissimo amigo conselheiro Ayres.» Emquanto elle fazia isto, Ayres passava os olhos pela lombada de alguns livros. Entre elles havia dous Relatorios da presidencia de Baptista, ricamente encadernados.

—Não me attribua esse luxo, acudiu o ex-presidente; foi um mimo da secretaria do Governo que nunca fez isto ninguem. Era um pessoal muito distincto.

E foi á estante e tirou um dos relatorios para ser melhor visto. Aberto, mostrou a impressão e as vinhetas; lido, podia mostrar o estylo por um lado, e, por outro, a prosperidade das finanças. Baptista limitou-se aos algarismos totaes: despeza, mil duzentos e noventa e quatro contos, setecentos e noventa mil reis; receita, mil, quinhentos quarenta e quatro contos duzentos e nove mil reis; saldo, duzentos e quarenta e nove contos, quatrocentos e dezenove mil reis. Verbalmente, explicou o saldo, que alcançou pela modificação de alguns serviços, e por um pequeno augmento de impostos. Reduziu a divida provincial, que achou em trezentos e oitenta e quatro contos, e deixou em trezentos e cincoenta contos. Fez obras novas e concertos importantes; iniciou uma ponte...

—A encadernação corresponde á materia, disse Ayres para concluir a visita.

Baptista fechou o livro, e redarguiu que já agora não iria sem lhe resolver uma consulta.

—Tudo ás avessas, concluiu; eu de manhã resolvo consultas, agora á noite sou eu que as faço.

Tal foi o introito, mas do introito ao Credo ha sempre um passo estirado, e o principal da missa para elle estava no Credo. Não achando o texto do missal, explicou-lhe um sinete, uma penna de ouro, um exemplar do Codigo Criminal. O Codigo, posto que velho, valia por trinta novos, não que tivesse melhor rosto, se não que trazia annotações manuscriptas de um grande jurista, Fulano. Tendo passado longa parte da vida no exterior, o conselheiro mal conhecera o autor das notas, mas desde que ouviu chamar-lhe grande, assumiu a expressão adequada. Pegou do codigo com cuidado, leu algumas das notas com veneração.

Durante esse tempo, Baptista ia criando folego. Compoz uma phrase para iniciar a consulta, e só esperava que Ayres fechasse o livro para soltal-a; mas o outro ia demorando o exame do Codigo. Podia ser uma pontinha de malignidade, mas não era. Os olhos de Ayres tinham uma faculdade particular, menos particular do que parece, porque outros a possuirão calados. Vinha a ser que elles não saíam da pagina, mas em verdade já lhe prestava menos attenção; o tempo, a gente, a vida, cousas passadas, surdiam a espial-o por detraz do livro com que tinham vivido, e Ayres ia tornando a ver um Rio de Janeiro que não era este, ou apenas o fazia lembrado. Nem cuides que eram só reos e juizes, era o passeio, a rua, a festa, velhos patuscos e mortos, rapazes frescos e agora enferrujados como elle. Baptista tossiu. Ayres voltou a si e leu alguma das notas que o outro devia trazer de cór, mas eram tão profundas! Emfim, mirou a encadernação, achou o livro bem conservado, fechou-o e restituiu-o á bibliotheca.

Baptista não perdeu um instante, correu inmediato ao assumpto, com medo de o ver pegar em outro livro.

—Confesso-lhe que tenho o temperamento conservador.

—Tambem eu guardo presentes antigos.

—Não é isso: refiro-me ao temperamento politico. Verdadeiramente ha opiniões e temperamentos. Um homem póde muito bem ter o temperamento opposto ás suas ideias. As minhas ideias, se as cotejarmos com os programmas politicos do mundo, são antes liberaes e algumas liberrimas O suffragio universal por exemplo, é para mim a pedra augular de um bom regimen representativo. Ao contrario, os liberaes pediram e fizeram o voto censitario. Hoje estou mais adiantado que elles; acceito o que está, por ora. mas antes do fim do seculo é preciso rever alguns artigos da Constituição, dous ou trez.

Ayres escondia o espanto... Convidado assim áquella hora... Uma profissão de fé politica... Baptista insistia na distincção do temperamento e das ideias. Alguns amigos velhos, que conheciam esta dualidade moral e mental, é que teimavam em querer que elle acceitasse uma presidencia; elle não queria. Francamente, que lhe parecia ao conselheiro?

—Francamente, acho que não tem razão.

—Que não tenho razão em quê?

—Em recusar.

—Propriamente, não recusei nada; ha um grande trabalho neste sentido, e o meu desejo, —accrescentou com mais clareza,—é que os bons amigos sagazes me digam se tal cousa é acertada; não me parece que seja...

—Eu penso que é.

—De maneira que, se o caso fosse com o senhor...

—Commigo não podia ser. Sabe que eu já não sou deste mundo, e politicamente nunca figurei em nada. A diplomacia tem este effeito que separa o funccionario dos partidos e o deixa tão alheio a elles, que fica impossivel de opinar com verdade, ou, quando menos, com certeza.

—Mas não me disse que acha...

—Acho.

—... Que posso acceitar uma presidencia, se me offerecerem?

—Póde; uma presidencia acceita-se.

—Pois então saiba tudo; é a unica pessoa de sociedade com quem me abro assim francamente. A presidencia foi-me offerecida.

—Acceite, acceite.

—Está acceita.

—Já?

—O decreto assigna-se sabbado.

—Então acceite tambem os meus parabens.

—Propriamente, a lembrança não foi do ministerio; ao contrario, o ministerio não se resolveu antes de saber se effectivamente fiz uma eleição contra os liberaes, ha annos; mas logo que soube que por não os perseguir é que fui demittido, acceitou a indicação de chefes politicos, e recebi pouco depois este bilhete.

O bilhete estava no bolso, dentro da carteira. Qualquer outro, alvoroçado com a nomeação proxima, levaria tempo a achar o bilhete no meio dos papeis; mas Baptista possuia o tacto dos textos. Tirou a carteira, abriu-a descançado e com os dedos saccou o bilhete do ministro convidando-o a uma conversação. Na conversação ficou tudo assentado.


CAPITULO LIV

Emfim, só!

Emfim, só! Quando Ayres se achou na rua, só, livre, solto, entregue a si mesmo, sem grilhões nem considerações, respirou largo. Fez um monologo, que d'ahi a pouco interrompeu por se lembrar de Flora. Tudo o que ella não quizera ia acontecer; lá ia o pae a uma presidencia, e ella com elle, e a recente inclinação ao joven Pedro vinha parar a meio caminho. Entretanto, não se arrependia do que dissera e ainda menos do que não dissera. Os dados estavam lançados. Agora era cuidar de outra cousa.


CAPITULO LV

«A mulher é a desolação do homem»

Ao despedir-se, fez Ayres uma reflexão, que ponho aqui, para o caso de que algum leitor a tenha feito tambem. A reflexão foi obra de espanto, e o espanto nasceu de ver como um homem tão difficil em ceder ás instigações da esposa (Vae-te, Satanaz, etc.; capitulo XLVII) deitou tão facilmente o habito ás ortigas. Não achou explicação, nem a acharia, se não soubesse o que lhe disseram mais tarde, que os primeiros passos da conversão do homem fôram dados pela mulher. «A mulher é a desolação do homem», dizia não sei que philosopho socialista, creio que Proudhon. Foi ella, a viuva da presidencia, que por meios varios e secretos, tramou passar a segundas nupcias. Quando elle soube do namoro, já os banhos estavam corridos; não havia mais que consentir e casar tambem.

Ainda assim, custou-lhe muito. O clamor dos seus aturdia-lhe de antemão os ouvidos, a alma ia cega, tonta, mas a esposa servia-lhe de guia e amparo, e, com poucas horas, Baptista viu claro e ficou firme.

—Estamos á porta do terceiro reinado, ponderou D. Claudia, e certamente o partido liberal não deixa tão cedo o poder. Os seus homens são válidos, a inclinação dos tempos é para o liberalismo, e você mesmo...

—Sim, eu... suspirou Baptista.

D. Claudia não suspirou, cantou victoria; a reticencia do marido era a primeira figura de acquiescencia. Não lhe disse isto assim, nu e cru; tambem não revelou alegria descomposta; falou sempre a linguagem da razão fria e da vontade certa. Baptista, sentindo-se apoiado, caminhou para o abysmo e deu o salto nas trevas. Não o fez sem graça, nem com ella. Posto que a vontade que trazia fosse de emprestimo, não lhe faltava desejo a que a vontade da esposa deu vida e alma. Dahi a autoria de que se investiu e acabou confessando.

Tal foi a conclusão de Ayres, segundo se lê no Memorial. Tal será a do leitor, se gosta de concluir. Note que aqui lhe poupei o trabalho de Ayres; não o obriguei a achar por si o que, de outras vezes, é obrigado a fazer. O leitor attento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estomagos no cerebro, e por elles faz passar e repassar os actos e os factos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida.


CAPITULO LVI

O golpe

O dia seguinte trouxe á menina Flora a grande novidade. Sabbado seria assignado o decreto; a presidencia era no norte. D. Claudia não lhe viu a pallidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do futuro, até que Flora, querendo sentar-se, quasi caiu. A mãe acudiu-lhe:

—Que é? Que tens?

—Nada, mamãe não é nada.

A mãe fel-a sentar-se.

—Foi uma tonteira, passou.

D. Claudia deu-lhe a cheirar um pouco de vinagre, esfregou-lhe os pulsos; Flora sorriu.

—Este sabbado? perguntou.

—O decreto? Sim, este sabbado. Mas não digas por ora a ninguem; são segredos de gabinete. É cousa certa; emfim, alguem nos fez justiça; provavelmente o imperador. Amanhã irás commigo a algumas encommendas. Faze uma lista do que precisas.

Flora precisava não ir e só pensava nisso. Uma vez que o decreto estava prestes a ser assignado, não havia já desaconselhar a nomeação; restava-lhe a ella ficar. Mas como? Todos os sonhos são proprios ao somno de uma creança. Não era facil, mas não seria impossivel. Flora cria tudo; não tirava o pensamento de Ayres, e já agora de Natividade tambem. Os dous podiam fazel-o, ou antes os trez, se contardes tambem o barão, e se vier a cunhada deste, quatro. Juntai aos quatro as cinco estrellas do Cruzeiro, as nove musas, anjos e archanjos, virgens e martyres... Juntai-os todos, e todos poderiam fazer esta simples acção de impedir que Flora fosse para a provincia. Taes eram as esperanças vagas, rapidas, que corriam a substituir as tristezas do rosto da moça, emquanto a mãe, attribuindo o effeito ao vinagre, ajustava a rolha de vidro ao frasco, e restituía o frasco ao toucador.

—Faze uma lista do que precisas, repetiu á filha.

—Não, mamãe, eu não preciso nada.

—Precisas, sim, eu sei o que precisas.


CAPITULO LVII

Das encommendas

Não escreveria este capitulo, se elle fosse propriamente das encommendas, mas não é. Tudo são instrumentos nas mãos da Vida. As duas sairam de casa, urna lepida, a outra melancolica, e lá fôram a escolher uma quantidade de objectos de viagem e de uso pessoal. D. Claudia pensava nos vestidos da primeira recepção e de visitas; tambem ideou o do desembarque. Tinha ordem do marido para comprar algumas gravatas. Os chapeos, entretanto, fôram o principal artigo da lista. Ao parecer de D. Claudia, o chapeo da mulher é que dava a nota verdadeira do gosto, das maneiras e da cultura de uma sociedade. Não valia a pena acceitar uma presidencia para levar chapeos sem graça, dizia ella sem convicção, porque intimamente pensava que a presidencia dá graça a tudo.

Estavam justamente na loja de chapeos, rua do Ouvidor, sentadas, os olhos fóra e longe, quando a verdadeira materia deste capitulo appareceu. Era o gemeo Paulo, que chegara pelo trem nocturno, e sabendo que ellas andavam a compras, viera procural-as.

—O senhor! exclamaram.

—Cheguei esta manhã.

Flora tinha-se levantado, com o alvoroço que lhe deu a vista inesperada de Paulo. Elle correu a ellas, apertou-lhes as mãos, indagou da saúde, e reconheceu que pareciam vender saúde e alegria. A impressão era exacta; Flora tinha agora uma agitação, que contrastava cora o abatimento daquella triste manhã, e um riso que a fazia alegre.

—Tive sempre noticias das senhoras, que mamãe me dava, e Pedro tambem, ás vezes. Da senhora, continuou elle falando a D. Claudia, recebi duas cartas. Como vae o doutor?

—Bem.

—Ora, em fim, cá estou!

E Paulo dividia os olhos com as duas, mas a melhor parte ia natural mente para a filha. Pouco depois era todo e pouco para esta. D. Claudia voltára á escolha dos chapeos, e Flora, que até então opinava de cabeça, perdeu este ultimo gesto. Paulo sentou-se na cadeira que um empregado lhe trouxe, e ficou a olhar para a moça; falavam de cousas minimas, alheias ou proprias, tudo o que bastasse para os reter disfarçadamente na contemplação um do outro. Paulo viera o mesmo que fôra, o mesmo que Pedro, sempre com alguma nota particular, que ella não podia achar claramente, menos ainda definir. Era um mysterio; Pedro teria o seu.

D. Claudia interrompia-os, de vez em quando, a proposito da escolha; mas, tudo acaba, até a escolha de chapeos. Foram d'alli aos vestidos. Paulo, não sabendo da presidencia, estimou esta casualidade para as acompanhar de loja em loja. Contava anecdotas de S. Paulo, sem grande interesse para Flora; as noticias que ella lhe dava acerca das amigas, eram mais ou menos dispensaveis. Tudo valia pelos dous interlocutores. A rua ajudava aquella absorpção reciproca; as pessoas que iam ou vinham, damas ou cavalheiros, parassem ou não, serviam de ponto de partida a alguma digressão. As digressões entraram a dar as mãos ao silencio, e os dous seguiam com os olhos espraiados e a cabeça alta, elle mais que ella, porque uma pontinha de melancolia começava a espancar do rosto da moça a alegria da hora recente.

Na rua Gonçalves Dias, indo para o largo da Carioca, Paulo viu dous ou trez politicos de S. Paulo, republicanos, parece que fazendeiros. Havendo-os deixado lá, admirou-se de os ver aqui, sem advertir que a ultima vez que os vira ia já a alguma distancia.

—Conhecem? perguntou ás duas.

Não, não os conheciam. Paulo disse-lhes os nomes. A mãe talvez fizesse alguma pergunta politica, mas deu por falta de um objecto, advertiu que o não comprára, e propoz voltarem atraz. Tudo era acceito por ambos, com docilidade, apesar do veu de tristeza, que se ia cerrando mais no rosto da moça. Aquellas encommendas tinham já um ar de bilhetes de passagem, não tardava o paquete, iam correr ás malas, aos arranjos, ás despedidas, ao camarote de bordo, ao enjôo de mar, e áquelle outro de mar e terra, que a mataria, com certeza, cuidava Flora. Dahi o silencio crescente, que Paulo mal podia vencer, de quando em quando; e comtudo ella estava bem com elle, gostava de lhe ouvir dizer cousas soltas, algumas novas, outras velhas, recordações anteriores á partida daqui para S. Paulo.

Assim se deixaram ir, guiados por D. Claudia, quasi esquecida delles. No meio daquella conversação truncada, mais entretida por elle que por ella, Paulo sentia impetos de lhe perguntar, ao ouvido, na rua, se pensára nelle, ou, ao menos, sonhára com elle algumas noites. Ouvindo que não, daria espansão á colera, dizendo-lhe os ultimos improperios; se ella corresse, correria tambem, até pegal-a pelas fitas do chapeo ou pela manga do vestido, e, em vez de a esganar, dançaria com ella uma valsa de Strauss ou uma polka de ***. Logo depois, ria destes delirios, porque, a despeito da melancolia da moça, os olhos que ella erguia para elle eram de quem sonhou e pensou muito na pessoa, e agora cuida de descobrir se é a mesma do sonho e do pensamento. Assim lhe parecia ao estudante de direito; pelo que, quando elle desviava o rosto, era para repetir a experiencia e tornar a ver-lhe os olhos aguçados do mesmo espirito critico e de livre exame. Quanto ao tempo que os trez gastaram nessa agitação de compras e escolhas, visões e comparações, não ha memoria delle, nem necessidade. Tempo é propriamente officio de relogio, e nenhum delles consultou o relogio que trazia.


CAPITULO LVIII

Matar saudades

Ora bem, acabas de ver como Flora recebeu o irmão de Pedro; tal qual recebia o irmão de Paulo. Ambos eram apostolos. Paulo achava-a agora mais bonita que alguns mezes antes, e disse-lh'o n'essa mesma tarde em S. Clemente, com esta palavra familiar e cordial:

—A senhora enfeitou muito.

Flora julgava a mesma cousa, relativamente ao estudante de direito; calou a impressão. Ou a tristeza que trazia, ou qualquer outra sensação particular, fel-a acanhada, a principio. Não tardou, porém, que achasse outra vez o gemeo no gemeo, e que elle e ella matassem saudades.

Como é que se matam saudades não é cousa que se explique de um modo claro. Elle não ha ferro nem fogo, corda nem veneno, e todavia as saudades expiram, para a resurreição, alguma vez antes do terceiro dia. Ha quem creia que, ainda mortas, são doces, mais que doces. Esse ponto, no nosso caso, não póde ser ventilado, nem eu quero desenvolvel-o, como aliás cumpria.

As saudades morreram, não todas, nem logo, logo, mas em parte e tão vagarosamente que Paulo acceitou o convite de lá jantar. Era o dia da chegada; Natividade quizera tel-o comsigo á mesa, ao pé de Pedro, para cimentar a pacificação começada pela distancia. Paulo nem se deu ao trabalho de lá mandar; deixou-se estar com a bella creatura, entre o pae e a mãe que pensavam em outra cousa, proxima no tempo e remota no espaço. Sabendo o que era, Flora passava do prazer ao tedio, e Paulo não entendia essa alternação de sentimentos. De quando em quando, vendo a mãe agitada e preoccupada, mas com outra expressão, Paulo interrogava a filha. Em vez de dar uma explicação qualquer, Flora passou uma vez a mão pelos olhos e ficou alguns instantes sem os descobrir. A acção do estudante de direito, devia ser arredar-lhe a mão, encaral-a de perto, mais perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que a eloquencia do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não saiu cá fóra. Nem ella lhe consentiu mais tempo que o da pergunta:

—Que é que tem?

—Nada, respondeu Flora.

—Tem alguma cousa, insistiu elle querendo pegar-lhe na mão.

Não acabou o gesto, não o começou sequer; abriu e fechou os dedos apenas, emquanto sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades.


CAPITULO LIX

Noite de 14

Tudo se explicou à noite, em casa da familia Santos. O ex-presidente de provincia confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa affirmou a eminencia do ato. Dahi a publicidade da noticia, que pouco antes D. Claudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.

Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação proxima. A dôr os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem affirmava, ao contrario, que um odio commum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma coisa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.

Demais, a dôr não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para os dous gemeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum delles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é util, muita vez indispensavel, alguma vez delicioso. Os dous quizeram falar á amiguinha, em particular, para sondal-a ácerca daquella separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de cousas familiares e ordinarias. O gesto de Flora não traduzia o estado da alma; este podia ser lepido, melancolico, ou indifferente, não vinha cá fóra. Em verdade, ella falava pouco. Os olhos tambem não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ella fitando Paulo, e gemeu com a preferencia, mas tambem elle era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue á sua recepção, que era a ultima do anno, não acompanhou de perto as agitações moraes daquelle trio. Quando deu por ellas, chegou a sentil-as tambem.

Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota intima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais intima, trez ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anecdotas. Não conversavam de politica, e aliás não faltaria materia. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Tambem falavam de musicas e theatros, das festas proximas de Petropolis, da gente que ia naquelle anno, e da que só iria em Janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com Ayres, confiara-lhe o seu receio ácerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.

—É uma felicidade que o Baptista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ella.

—Certamente, mas...

—Mas quê?

—Certamente a levará, mas a senhora póde não conhecer bem aquella menina.

—Penso que é boa.

—Tambem eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse ha tempos, uma inexplicavel. Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão; depois lhe direi. Note que gósto muito della; acho-lhe um sabor particular naquelle contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fóra do mundo, tão etherea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recondita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu elle, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explical-as.

—Explique-as agora, emquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.

Effectivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Ayres quiz falar, mas reteve a lingua, e desculpou-se. A explicação era longa e dificil, e não era urgente, disse elle.

—Eu mesmo não sei se me entendo, baroneza, nem se penso a verdade; póde ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petropolis. Quando espera subir?

—Lá para o fim do anno.

—Então ainda nos veremos algumas vezes.

—Sim, e, se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Elles o têm em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espirito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa terra...

—Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse Ayres sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo?

—O mais rijo e o mais fino.

Os ultimos habituados da casa vieram dar boa noite á dona. Dez minutos depois, Ayres despedia-se do casal Santos.

A noite era clara e tranquilla. Ayres recompoz uma parte do serão para escrevel-a no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quaes Flora era a principal figura: «Que o Diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que elle, não acerto de a entender nunca. Hontem parecia querer a um, hoje quiz ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outr'ora desses sentimentos alternos e simultaneos; eu mesmo fui uma e outra cousa, e sempre me entendi a mim. Mas aquella menina e moça... A condição dos gemeos explicará esta inclinação dupla; póde ser tambem que alguma qualidade falte a um que sóbre a outro, e vice-versa, e ella, pelo gosto de ambas, não acaba de escolher de vez. É phantastico, sei; menos phantastico é se elles, destinados á inimizade, acharem nesta mesma creatura um campo estreito de odio, mas isto os explicaria a elles, não a ella... Seja o que fôr, a nossa organisação politica é util; a presidencia de provincia, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a agua estará bebida e a cevada comida. Um decreto ajudará a natureza.»

Isto feito, Ayres metteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horacio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma pagina do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; ás cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Era novembro, sabes que é dia.


CAPITULO LX

Manhã de 15

Quando lhe acontecia o que ficou contado, era costume de Ayres sair cedo, a espairecer. Nem sempre acertava. Desta vez foi ao Passeio Publico. Chegou ás sete horas e meia, entrou, subiu ao terraço e olhou para o mar. O mar estava crespo. Ayres começou a passear ao longo do terraço, ouvindo as ondas, e chegando-se á borda, de quando em quando, para vel-as bater e recuar. Gostava dellas assim; achava-lhes uma especie de alma forte, que as movia para metter medo á terra. A agua, enroscando-se em si mesma, dava-lhe uma sensação, mais que de vida, de pessoa tambem, a que não faltavam nervos nem musculos, nem a voz que bradava as suas coleras.

Emfim, cançou e desceu, foi-se ao lago, ao arvoredo e passeou á toa, revivendo homens e cousas, até que se sentou em um banco. Notou que a pouca gente que havia alli não estava sentada, como de costume, olhando á toa, lendo gazetas ou cochilando a vigilia de uma noite sem cama. Estava de pé, falando entre si, e a outra que entrava ia pegando na conversação sem conhecer os interlocutores; assim lhe pareceu, ao menos. Ouviu umas palavras soltas, Deodoro, batalhões, campo, ministerio, etc. Algumas, ditas em tom alto, vinham acaso para elle, a ver se lhe espertavam a curiosidade, e se obtinham mais uma orelha ás noticias. Não juro que assim fosse, porque o dia vae longe, e as pessoas não eram conhecidas. O proprio Ayres, se tal cousa suspeitou, não a disse a ninguem; tambem não afiou o ouvido para alcançar o resto. Ao contrario, lembrando-lhe algo particular, escreveu a lapis uma nota na carteira. Tanto bastou para que os curiosos se dispersassem, não sem algum epitheto de louvor, uns ao governo, outros ao exercito: podia ser amigo de um ou de outro.

Quando Ayres saiu do Passeio Publico, suspeitava alguma cousa, e seguiu até o largo da Carioca. Poucas palavras e sumidas, gente parada, caras espantadas, vultos que arrepiavam caminho, mas nenhuma noticia clara nem completa. Na rua do Ouvidor, soube que os militares tinham feito uma revolução, ouviu descripções da marcha e das pessoas, e noticias desencontradas. Voltou ao largo, onde trez tilburys o disputaram; elle entrou no que lhe ficou mais á mão, e mandou tocar para o Cattete. Não perguntou nada ao cocheiro; este é que lhe disse tudo e o resto. Falou de uma revolução, de dous ministros mortos, um fugido, os demais presos. O imperador, capturado em Petropolis, vinha descendo a serra.

Ayres olhava para o cocheiro, cuja palavra saía deliciosa de novidade. Não lhe era desconhecida esta creatura. Já a vira, sem o tilbury, na rua ou na sala, á missa ou a bordo, nem sempre homem, alguma vez mulher, vestida de seda ou do chita. Quiz saber mais, mostrou-se interessado e curioso, e acabou perguntando se realmente houvera o que dizia. O cocheiro contou que ouvira tudo a um homem que trouxera da rua dos Invalidos e levára ao largo da Gloria, por signal que estava assombrado, não podia falar, pedia-lhe que corresse, que lhe pagaria o dobro; e pagou.

—Talvez fosse algum implicado no barulho, suggeriu Ayres.

—Tambem póde ser, porque elle levava o chapéo derrubado, e a principio pensei que tinha sangue nos dedos, mas reparei e vi que era barro; com certeza, vinha de descer algum muro. Mas, pensando bem, creio que era sangue; barro não tem aquella côr. A verdade é que elle pagou o dobro da viagem, e com razão, porque a cidade não está segura, e a gente corre grande risco levando pessoas de um lado para outro...

Chegavam justamente á porta de Ayres; este mandou parar o vehiculo, pagou pela tabella e desceu. Subindo a escada, ia naturalmente pensando nos acontecimentos possiveis. No alto achou o criado que sabia tudo, e lhe perguntou se era certo...

—O que é que não é certo, José? É mais que certo.

—Que matáram trez ministros?

—Não; ha só um ferido.

—Eu ouvi que mais gente tambem, falaram em dez mortos...

—A morte é um phenomeno egual á vida; talvez os mortos vivam. Em todo caso, não lhes rezes por alma, porque não és bom catholico, José.


CAPITULO LXI

Lendo Xenophonte

Como é que, tendo ouvido falar da morte de dous e trez ministros, Ayres affirmou apenas o ferimento de um, ao rectificar a noticia do criado? Só se póde explicar de dous modos,—ou por um nobre sentimento de piedade, ou pela opinião de que toda a noticia publica cresce de dous terços, ao menos. Qualquer que fosse a causa, a versão do ferimento era a unica verdadeira. Pouco depois passava pela rua do Cattete a padiola que levava um ministro, ferido. Sabendo que os outros estavam vivos e sãos e o imperador era esperado de Petropolis, não acreditou na mudança de regimen que ouvira ao cocheiro de tilbury e ao criado José. Reduziu tudo a um movimento que ia acabar com a simples mudança de pessoal.

—Temos gabinete novo, disse comsigo.

Almoçou tranquillo, lendo Xenophonte: «Considerava eu um dia quantas republicas tem sido derribadas por cidadãos que desejam outra especie de governo, e quantas monarchias e olygarchias são destruidas pela sublevação dos povos; e de quantos sobem ao poder, uns são depressa derribados, outros, se duram, são admirados por habeis e felizes...» Sabes a conclusão do autor, em prol da these de que o homem é difficil de governar; mas logo depois a pessoa de Cyro destróe aquella conclusão, mostrando um só homem que regeu milhões de outros, os quaes não só o temiam, mas ainda lutavam por lhe fazer as vontades. Tudo isto em grego, e com tal pausa que elle chegou ao fim do almoço, sem chegar ao fim do primeiro capitulo.


CAPITULO LXII

«Pare no D.»

—Mas, S. Ex. está almoçando, dizia o criado no patamar da escada a alguem que pedia para falar ao conselheiro.

Era falso, Ayres acabava justamente de almoçar; mas o criado sabia que o amo gostava de saborear o charuto depois do almoço, sem interrupção. Agora estava no canapé e ouviu o dialogo do patamar. A pessoa insistia em dizer uma palavrinha.

—Não póde ser.

—Bem, eu espero; logo que S. Ex. acabe...

—O melhor é voltar depois; não mora alli defronte? Pois volte daqui a uma hora ou duas...

A pessoa era o Custodio e foi para casa, mas o velho diplomata, sabendo quem era, não esperou que acabasse o charuto; mandou-lhe dizer que viesse. Custodio saiu, correu, subiu e entrou assombrado.

—Que é isso, Sr. Custodio? disse-lhe Ayres. O senhor anda a fazer revoluções?

—Eu, senhor? Ah! senhor! Se V. Ex. soubesse...

—Se soubesse o quê?

Custodio explicou-se. Vá, resumamos a explicação.

Na vespera, tendo de ir abaixo, Custodio foi á rua da Assembléa, onde se pintava a taboleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas,—a palavra Confeitaria e a letra d. A letra o e a palavra imperio estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta e da côr, reconciliou-se com a fórma, e apenas perdoou a despeza. Recommendou pressa. Queria inaugurar a taboleta no domingo.

Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as noticias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que affirmavam a revolução e vagamente a republica. A principio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a taboleta. Quando se lembrou della, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu ás pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: «Pare no D.» Com effeito, não era preciso pintar o resto, que seria perdido, nem perder o principio, que podia valer. Sempre haveria palavra que occupasse o logar das letras restantes. «Pare no D.»

Quando o portador voltou trouxe a noticia de que a taboleta estava prompta.

—Você viu-a prompta?

—Vi, patrão.

—Tinha escripto o nome antigo?

—Tinha, sim, senhor: «Confeitaria do imperio.»

Custodio enfiou um casaco de alpaca e voou á rua da Assembléa. Lá estava a taboleta, por signal que coberta com um pedaço de chita; alguns rapazes que a tinham visto, ao passar na rua, quizeram rasgal-a; o pintor, depois de a defender com boas palavras, achou mais efficaz cobril-a. Levantada a cortina, Custodio leu: «Confeitaria do imperio.» Era o nome antigo, o proprio, o celebre, mas era a destruição agora; não podia conservar um dia a taboleta, ainda que fosse em becco escuro, quanto mais na rua do Cattete...

—O senhor vae despintar tudo isto, disse elle.

—Não entendo. Quer dizer que o senhor paga primeiro a despeza. Depois, pinto outra cousa.

—Mas que perde o senhor em substituir a ultima palavra por outra? A primeira póde ficar, e mesmo o d... Não leu o meu bilhete?

—Chegou tarde.

—E porque pintou, depois de tão graves acontecimentos?

—O senhor tinha pressa, e eu accordei ás cinco e meia para servil-o. Quando me deram as noticias, a taboleta estava prompta. Não me disse que queria pendural-a domingo? Tive de pôr muito seccante na tinta, e, além da tinta, gastei tempo e trabalho.

Custodio quiz repudiar a obra, mas o pintor ameaçou de pôr o numero da confeitaria e o nome do dono na taboleta, e expol-a assim, para que os revolucionarios lhe fossem quebrar as vidraças do Cattete. Não teve remedio se não capitular. Que esperasse; ia pensar na substituição; em todo caso, pedia algum abate no preço. Alcançou a promessa do abate e voltou a casa. Em caminho, pensou no que perdia mudando de titulo,—uma casa tão conhecida, desde annos e annos! Diabos levassem a revolução! Que nome lhe poria agora? Nisso lembrou-lhe o visinho Ayres e correu a ouvil-o.


CAPITULO LXIII

Taboleta nova

Referido o que lá fica atraz, Custodio confessou tudo o que perdia no titulo e na despeza, o mal que lhe trazia a conservação do nome da casa, a impossibilidade de achar outro, um abysmo, em summa. Não sabia que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espirito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E afinal que tinha elle com politica? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguezado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem publica...

—Mas o que é que ha? perguntou Ayres.

—A republica está proclamada.

—Já ha governo?

—Penso que já; mas diga-me V. Ex. ouviu alguem accusar-me jamais de attacar o governo? Ninguem. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu soccorro, Excellentissimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A taboleta está prompta, o nome todo pintado.—«Confeitaria do Imperio», a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de titulo, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Ex. crê que, se ficar «Imperio,» venham quebrar-me as as vidraças?

—Isso não sei.

—Realmente, não ha motivo: é o nome da casa, nome de trinta annos. ninguem a conhece de outro modo...

—Mas póde pôr «Confeitaria da Republica...»

—Lembrou-me isso, em caminho, mas tambem me lembrou que, se daqui a um ou dous mezes, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje, e perco outra vez o dinheiro.

—Tem razão... Sente-se.

—Estou bem.

—Sente-se e fume um charuto.

Custudio recusou o charuto, não fumava. Acceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamariam a attenção, se não fosse o atordoamento do espirito. Continuou a implorar o soccorro do visinho. S. Ex., com a grande intelligencia que Deus lhe dera, podia salval-o. Ayres propoz-lhe um meio termo, um titulo que iria com ambas as hypotheses,—«Confeitaria do governo».

—Tanto serve para um regimen como para outro.

—Não digo que não, e, a não ser a despeza perdida... Ha, porém, uma razão contra. V. Ex. sabe que nenhum governo deixa de ter opposição. As opposições, quando descerem á rua, podem implicar commigo, imaginar que as desafio, e quebrarem-me a taboleta; entretanto, o que eu procuro é o respeito de todos.

Ayres comprehendeu bem que o terror ia com a avareza. Certo, o visinho não queria barulhos á porta, nem malquerenças gratuitas, nem odios de quem quer que fosse; mas, não o affligia menos a despeza que teria de fazer de quando em quando, se não achasse titulo definitivo, popular e imparcial. Perdendo o que tinha, já perdia a celebridade, além de perder a pintura e pagar mais dinheiro. Ninguem lhe compraria uma taboleta condemnada. Já era muito ter o nome e o titulo no Almanack de Laemmert, onde podia lel-o algum abelhudo e ir com outros, punil-o do que estava impresso desde o principio do anno...

—Isso não, interrompeu Ayres; o senhor não ha de recolher a edição de um almanaque.

E depois de alguns instantes:

—Olhe, dou-lhe uma ideia, que póde ser aproveitada, e, se não a achar boa, tenho outra á mão, e será a ultima. Mas eu creio que qualquer dellas serve. Deixe a taboleta pintada como está, e á direita, na ponta, por baixo do titulo, mande escrever estas palayras que explicam o titulo: «Fundada em 1860.» Não foi em 1860 que abriu a casa?

—Foi, respondeu Custodio.

—Pois...

Custodio reflectia. Não se lhe podia ler sim nem não; attonito, a bôca entre-aberta, não olhava para o diplomata, nem para o chão, nem para as paredes ou moveis, mas para o ar. Como Ayres insistisse, elle acordou e confessou que a ideia era boa. Realmente, mantinha o titulo e tirava-lhe o sedicioso, que crescia com o fresco da pintura. Entretanto, a outra ideia podia ser egual ou melhor, e quizera comparar as duas.

—A outra ideia não tem a vantagem de pôr a data á fundação da casa, tem só a de definir o titulo, que fica sendo o mesmo, de uma maneira alheia ao regimen. Deixe-lhe estar a palavra imperio e accrescente-lhe em baixo, ao centro, estas duas, que não precisam ser graúdas: das leis. Olhe, assim, concluiu Ayres sentando-se á secretaria, e escrevendo em uma tira de papel o que dizia.

Custodio leu, releu e achou que a ideia era util; sim, não lhe parecia má. Só lhe viu um defeito; sendo as letras de baixo menores, podiam não ser lidas tão depressa e claramente, com as de cima, e estas é que se metteriam pelos olhos ao que passasse. Dahi a que algum politico ou sequer inimigo pessoal não entendesse logo e... A primeira ideia, bem considerada, tinha o mesmo mal, e ainda este outro: pareceria que o confeiteiro, marcando a data da fundação, fazia timbre em ser antigo. Quem sabe se não era peor que nada?

—Tudo é peor que nada.

—Procuremos.

Ayres achou outro titulo, o nome da rua, «Confeitaria do Cattete», sem advertir que, havendo outra confeitaria na mesma rua, era attribuir exclusivamente á do Custodio a designação local. Quando o visinho lhe fez tal ponderação, Ayres achou-a justa, e gostou de ver a delicadeza de sentimentos do homem; mas logo depois descubriu que o que fez falar o Custodio foi a ideia de que esse titulo ficava commum ás duas casas. Muita gente não atinaria com o titulo escripto, e compraria na primeira que lhe ficassse á mão, de maneira que só elle faria as despezas da pintura, e ainda por cima perdia a freguezia. Ao perceber isto, Ayres não admirou menos a sagacidade de um homem que em meio de tantas tribulações, contava os maus fructos de um equivoco. Disse-lhe então que o melhor seria pagar a despeza feita e não pôr nada, a não ser que preferisse o seu proprio nome: «Confeitaria do Custodio.» Muita gente certamente lhe não conhecia a casa por outra designação. Um nome, o proprio nome do dono, não tinha significação politica ou figuração historica, odio nem amor, nada que chamasse a attenção dos dous regimens, e conseguintemente que puzesse em perigo os seus pasteis de Santa Clara, menos ainda a vida do proprietario e dos empregados. Porque é que não adoptava esse alvitre? Gastava alguma cousa com a troca de uma palavra por outra, Custodio em vez de Imperio, mas as revoluções trazem sempre despezas.

—Sim, vou pensar, Excellentissimo. Talvez convenha esperar um ou dous dias, a ver em que param as modas, disse Custodio agradecendo.

Curvou-se, recuou e saiu. Ayres foi á janella para vel-o atravessar a rua. Imaginou que elle levaria da casa do ministro aposentado um lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da taboleta. Nem tudo são despezas na vida, e a gloria das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custodio atravessou a rua, sem parar nem olhar para traz, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero.


CAPITULO LXIV

Paz!

Que, em meio de tão graves successos, Ayres tivesse bastante pausa e claridade para imaginar tal descoberta no visinho, só se póde explicar pela incredulidade com que recebera as noticias. A propria afflicção de Custodio não lhe dera fé. Vira nascer e morrer muito boato falso. Uma de suas maximas é que o homem vive para espalhar a primeira invenção de rua, e que tudo se fará crêr a cem pessoas juntas ou separadas. Só ás duas horas da tarde, quando Santos lhe entrou em casa, acreditou na queda do imperio.

—É verdade, conselheiro, vi descer as tropas pela rua do Ouvidor, ouvi as acclamações á republica. As lojas estão fechadas, os bancos tambem, e o peor é se se não abrem mais, se vamos cair na desordem publica; é uma calamidade.

Ayres quiz aquietar-lhe o coração. Nada se mudaria; o regimen, sim, era possivel, mas tambem se muda de roupa sem trocar de pelle. Commercio é preciso. Os bancos são indispensaveis. No sabbado, ou quando muito na segunda feira, tudo voltaria ao que era na vespera, menos a constituição.

—Não sei, tenho medo, conselheiro.

—Não tenha medo. A baroneza já sabe o que ha?

—Quando eu sai de casa, não sabia, mas agora é provavel.

—Pois vá tranquillisal-a; naturalmente está afflicta.

Santos receiava os fuzilamentos; por exemplo, se fuzilassem o imperador, e com elle as pessoas de sociedade? Recordou que o Terror... Ayres tirou-lhe o Terror da cabeça. As occasiões fazem as revoluções, disse elle, sem intenção de rimar, mas gostou que rimasse, para dar fórma fixa á ideia. Depois lembrou a indole branda do povo. O povo mudaria de governo, sem tocar nas pessoas. Haveria lances de generosidade. Para provar o que dizia referiu um caso que lhe contara um velho amigo, o marechal Beaurepaire Rohan. Era no tempo da Regencia. O imperador fôra ao theatro de S. Pedro de Alcantara. No fim do espectaculo, o amigo, então moço, ouviu grande rumor do lado da egreja de S. Francisco, e correu a saber o que era. Falou a um homem, que bradava indignado, e soube delle que o cocheiro do imperador não tirara o chapeo no momento em que este chegára á porta para entrar no coche; o homem accrescentou: «Eu sou ré...» Naquelle tempo os republicanos por brevidade eram assim chamados. «Eu sou , mas não consinto que faltem ao respeito a este menino!»

Nenhuma feição de Santos mostrou apreciar ou entender aquelle rasgo anonymo. Ao contrario, todo elle parecia entregue ao presente, ao momento, ao commercio fechado, aos bancos sem operações, ao receio de uma suspensão total de negocios, durante prazo indeterminado. Cruzava e descruzava as pernas. Afinal ergueu-se e suspirou.

—Então, parece-lhe...?

—Que descance.

Santos acceitou o conselho, mas vae muito do acceitar ao cumprir, e a apparencia era mui diversa do coração. O coração batia-lhe. A cabeça via esboroar-se tudo. Quiz despedir-se, mas fez duas ou trez investidas antes de pousar o pé fora do gabinete e caminhar para a escada. Instava pela certeza. Com quanto tivesse visto e ouvido a republica, podia ser... Em todo caso, a paz é que era necessaria, e haveria paz? Ayres inclinava-se a crêr que sim, e novamente o convidou a descançar.

—Até logo, concluiu.

—Porque não vae lá jantar comnosco?

—Tenho de jantar com um amigo, no Hotel dos Estrangeiros. Depois, talvez, ou amanhã. Vá, vá tranquillisar a baroneza, e os rapazes. Os rapazes estarão em paz? Esses brigam, com certeza; vá pol-os em ordem.

—O senhor podia ajudar-me nisso. Vá lá de noite.

—Póde ser; se puder, vou. Amanhã com certeza.

Santos saiu; tinha o carro á espera, entrou e seguiu para Botafogo. Não levava a paz comsigo, não a poderia dar á mulher, nem á cunhada, nem aos filhos. Quizera chegar a casa, por medo da rua, mas quizera tambem ficar na rua, por não saber que palavras nem que conselhos daria aos seus.

O espaço do carro era pequeno e bastante para um homem; mas, emfim, não viviria alli a tarde inteira. Ao demais, a rua estava quieta. Via gente á porta das lojas. No largo do Machado viu outra que ria, alguma calada, havia espanto, mas não havia propriamente susto.


CAPITULO LXV

Entre os filhos

Quando Santos chegou a casa, Natividade estava inquieta, sem noticia exacta e definitiva dos acontecimentos. Não sabia da republica. Não sabia do marido nem dos filhos. Aquelle saira antes dos primeiros rumores, estes iam fazer a mesma cousa, logo que os boatos chegaram. O primeiro gesto da mãe foi para impedir que os filhos saissem, mas não pôde, era tarde. Não os podendo reter, pegou-se com a Virgem Maria, afim de que os poupasse, e esperou. A irmã fez o mesmo. Era perto de meio dia; foi então que os minutos entraram a parecer seculos.

A ancia da mãe era naturalmente maior que a da tia. Natividade via andar o tempo com ferros aos pés. Não havia alvoroço que atasse um par de azas áquellas horas longas do relogio da casa, nem aos do cinto, o della e o da irmã; todos elles coxeavam de ambos os ponteiros. Emfim, ouviu na areia do jardim as rodas de um carro; era Santos.

Natividade acudiu ao patamar da escada. Santos subiu, e as mãos de ambos estenderam-se e agarraram-se. Longa vida conjunta acaba por fazer da ternura uma coisa grave e espiritual. Entretanto, parece que o gesto do marido não foi original, mas secundario, filho ou imitativo do da mulher. Póde ser que a corda da sensibilidade fosse menos vibrante na lira dele que na della, posto que muitos anos atraz, aquele outro gesto no coupé, quando voltavam da missa de S. Domingos, lembras-te?... Sobre isto escrevi agora algumas linhas, que não ficariam mal, se as acabasse, mas recuo a tempo, e risco-as. Não vale a pena ir à cata das palavras riscadas. Menos vale supri-las.

Que nos bastam as quatro mãos apertadas. Natividade perguntou pelos filhos. Santos opinou que não tivesse medo. Não havia nada; tudo parecia estar como no dia anterior, as ruas socegadas, as caras mudas. Não correria sangue, o commercio ia continuar. Toda a animação de Ayres tinha agora brotado nele, com a mesma verdura e o mesmo estylo.

Os filhos chegaram tarde, cada um por sua vez, e Pedro mais cedo que Paulo. A melancolia de um ia com a alma da casa, a alegria de outro destoava desta, mas tais eram uma e outra que, apesar da expansão da segunda, não houve repressão nem briga. Ao jantar, falaram pouco. Paulo referia os sucessos amorosamente. Conversara com alguns co-religionarios e soube do que se passára á noite e de manhã, a marcha e a reunião dos batalhões no campo, as palavras de Ouro Preto ao marechal Floriano, a resposta deste, a aclamação da Republica. A familia ouvia e perguntava, não discutia, e esta moderação contrastava com a gloria de Paulo. O silencio de Pedro principalmente era como um desafio. Não sabia Paulo que a propria mãe é que o pedira ao irmão com muitos beijos, motivo que em tal momento, ia com o aperto do coração do rapaz.

O coração de Paulo, ao contrario, era livre, deixava circular o sangue, como a felicidade. Os sentimentos republicanos, em que os principios se incrustavam viviam alli tão fortes e quentes, que mal deixavam ver o abatimento de Pedro e o acanhamento da outra gente sua. Ao fim do jantar, bebeu á Republica, mas calado, sem ostentação, apenas olhando paaa o tecto, e levantando o copo um tantinho mais que de costume. Ninguem replicou por outro gesto ou palavra.

Certamente, o moço Pedro quiz dizer alguma phrase de piedade relativamente ao regimen imperial e ás pessoas de Bragança, mas a mãe quasi que não tirava os olhos delle, como impondo ou pedindo silencio. De mais, elle não cria nada mudado; a despeito de decretos e proclamações, Pedro imaginava que tudo podia ficar como d'antes, alterado apenas o pessoal do governo. Custa pouco, dizia elle baixinho á mãe, ao deixarem a mesa; é só o imperador falar ao Deodoro.

Paulo saiu, logo depois do jantar, promettendo vir cedo. A mãe, receiosa de o ver mettido em barulhos, não queria que elle saisse; mas outro receio fel-a consentir, e este era que os dous irmãos brigassem finalmente. Assim um medo vence a outro, e a gente acaba por dar o que negou. Não é menos certo que ella raciocinou alguns minutos antes de resolver, do mesmo modo que eu escrevi uma pagina antes da que vou escrever agora; mas ambos nós, Natividade e eu, acabamos por deixar que os actos se praticassem, sem opposição della, nem commentario meu.


CAPITULO LXVI

O basto e a espadilha

Vieram amigos da casa, trazendo noticias e boatos. Variavam pouco e geralmente não havia opinião segura acerca do resultado. Ninguem sabia se a victoria do movimento era um bem, se um mal, apenas sabiam que era um facto. Dalli a ingenuidade com que alguem propoz o voltarete do costume, e a boa vontade de outros em acceital-o. Santos, embora declarase que não jogava, mandou pôr as cartas e os tentos, mas os outros opinaram que sempre faltava um parceiro, e sem elle, não havia graça. Quiz resistir; não era bonito que no proprio dia em que o regimen caira ou ia cair, entregasse o espirito a recreações de sociedade... Não pensou isto em voz alta nem baixa, mas comsigo, e talvez o leu no rosto da mulher. Acharia um pretexto para resistir, se buscasse algum, mas amigos e cartas não deixavam buscar nada. Santos acabou acceitando. Provalmente era essa mesma a inclinação intima. Muitas ha que precisam ser attrahidas cá fora, como um favor ou concessão da pessoa. Emfim, o basto e a espadilha fizeram naquella noite o seu officio, como as mariposas e as ratos, os ventos e as ondas, o lume das estrellas e o somno dos cidadãos.


CAPITULO LXVII

A noite inteira

Saindo de casa, Paulo foi á de um amigo, e os dous entraram a buscar outros da mesma edade e egual intimidade. Fôram aos jornaes, ao quartel do Campo, e passaram algum tempo deante da casa de Deodoro. Gostavam de ver os soldados, a pé ou a cavallo, pediam licença, falavam-lhes, offereciam cigarros. Era a unica concessão destes; nenhum lhes contou o que se passara, nem todos saberiam nada.

Não importa, iam cheios de si. Paulo era o mais enthusiasta e convicto. Aos outros valia só a mocidade, que é utn programma, mas o filho de Santos tinha frescas todas as ideias do novo regimen, e possuia ainda outras que não via acceitar; bater-se-ia por ellas. Trazia até a desejo de achar alguem na rua, que soltasse um grito, já agora sedicioso, para íhe quebrar a cabeça com a bengala. Note-se que esquecera ou perdera a bengala. Não deu por falta della; se désse, bastavam-lhe os braços e as mãos.

Propoz cantarem a Marselheza; os outros não quizeram ir tão longe, não por medo, senão de cançados. Paulo, que resistia mais que elles á fadiga, lembrou-lhes esperar a aurora.

—Vamos esperal-a do alto de um morro, ou da praia do Flamengo; teremos tempo de dormir amanhã.

—Eu não posso, disse um.

Os outros repetiram a recusa, e assentaram de ir para suas casas. Era perto de duas horas. Paulo acompanhou-os a todos, e só depois de ver o ultimo recolhido foi sósinho para Botafogo.

Quando entrou, deu com a mãe que esperava por elle, inquieta e arrependida de o haver deixado sair. Paulo não achou desculpa e censurou a mãe por não dormir, á espera delle. Natividade confessou que não teria somno, antes de o saber em casa são e salvo. Falavam baixo e pouco; tendo-se beijado antes, beijaram-se depois e despediram-se.

—Olha, disse Natividade, se achares Pedro acordado não lhe contes nem lhe perguntes nada; dorme, e amanhã saberemos tudo e o mais que se passar esta noite.

Paulo entrou no quarto pé ante pé. Era ainda aquelle vasto quarto em que os dous gemeos brigaram por causa de duas velhas gravuras, Robespierre e Luiz XVI. Agora, havia mais que os retratos, uma revolução de poucas horas e um governo fresco. Obedecendo ao conselho da mãe, Paulo não quiz saber se Pedro dormia, posto desconfiasse que não. Effectivamente, não. Pedro viu as cautellas de Paulo, e cumpriu tambem os conselhos da mãe; fingiu que não via nada. Até ahi os conselhos; mas um pouco de gloria fez com que Paulo cantarolasse entre os dentes, baixinho, para si, a primeira estrophe da Marselheza que os amigos tinham recusado fóra:

Allons, enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrivé!

Pedro percebeu antes pela toada que pela letra, e concluiu que a intenção do outro era affligil-o. Não era, mas podia ser. Vacillou entre a réplica e o silencio, até que uma ideia fantastica lhe atravessou o cerebro, cantarolar, tambem baixinho, a segunda parte da estrophe: «Entendez-vous dans vos campagnes...», que allude ás tropas estrangeiras, mas desviada do natural sentido historico, para restringil-a ás tropas nacionaes. Era um desforço vago, a ideia passou depressa. Pedro contentou-se de simular a indifferença suprema do somno. Paulo não acabou a estrophe; despiu-se agitado, sem tirar o pensamento da victoria dos seus sonhos politicos. Não se metteu logo na cama; foi primeiro á do irmão, a ver se dormia. Pedro respirava tão naturalmente, como se não perdera nada. Teve impeto de acordal-o, bradar-lhe que perdera tudo, se alguma cousa era a instituição derribada. Recuou a tempo e foi metter-se entre os lençóes.

Nenhum dormia. Emquanto o somno não chegava, iam pensando nos acontecimentos do dia, ambos espantados de como fôram faceis e rapidos. Depois cogitavam no dia seguinte e nos effeitos ulteriores. Não admira que não chegassem á mesma conclusão.

—Como diabo é que elles fizeram isto, sem que ninguem désse pela cousa? reflectia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, de certo, mas uma barricada não faria mal. Seja como fôr, venceu-se a campanha. O que é preciso é não deixar esfriar o ferro, batel-o sempre, e renoval-o. Deodoro é uma bella figura. Dizem que a entrada do marechal no quartel, e a saida, puxando os batalhões, fôram esplendidas. Talvez faceis de mais; é que o regimen estava pôdre e caiu por si...

Emquanto a cabeça de Paulo ia formulando essas ideias, a de Pedro ia pensando o contrario; chamava ao movimento um crime.

—Um crime e um disparate, além de ingratidão; o imperador devia ter pegado os principaes cabeças e mandal-os executar. Infelizmente, as tropas iam com elles. Mas nem tudo acabou. Isto é fogo de palha; daqui a pouco está apagado, e o que antes era torna a ser. Eu acharei duzentos rapazes bons e promptos, e desfaremos esta caranquejola. A apparencia é que dá um ar de solidez, mas isto é nada. Hão de ver que o imperador não sae daqui, e, ainda que não queira, ha de governar; ou governará a filha, e, na falta della, o neto. Tambem elle ficou menino e governou. Amanhã é tempo; por ora tudo são flores. Ha ainda um punhado de homens...

A reticencia final dos discursos de ambos quer dizer que as ideias se iam tornando esgarçadas, nevoentas e repetidas, até que se perderam e elles dormiram. Durante o somno, cessou a rovolução e a contra-revolução, não houve monarchia nem republica, D. Pedro II nem marechal Deodoro, nada que cheirasse a politica. Um e outro sonharam com a bella enseada de Botafogo, um céu claro, uma tarde clara e uma só pessoa: Flora.


CAPITULO LXVIII

De manhã

Flora abriu os olhos de ambos, e esvaiu-se tão depressa que elles mal puderam ver a harpa do vestido e ouvir uma palavrinha meiga e remota. Olharam um para o outro, sem rancor apparente. O receio de um e a esperança de outro deram tregoas. Correram aos jornaes. Paulo, meio tonto, temia alguma traição sobre a madrugada. Pedro tinha uma ideia vaga de restauração, e contava ler nas folhas um decreto imperial da amnistia. Nem traição nem decreto, A esperança e o receio fugiram deste mundo.


CAPITULO LXIX

Ao piano

Emquanto elles sonhavam com Flora, esta não sonhou com a republica. Teve uma daquellas noites em que a imaginação dorme tambem, sem olhos nem ouvjdos, ou, quando muito, a retina não deixa ver claro, e as orelhas confundem o som de um rio com o latir de um cão remoto. Não posso dar melhor definição, nem ella é precisa; cada um de nós terá tido dessas noites mudas e apagadas.

Não sonhou sequer com musica; e, aliás tocára antes algumas das suas paginas queridas. Não as tocou somente por gostar dellas, senão por fugir á consternação dos paes, que era grande. Nenhum d'estes podia crêr que as instituições tivessem caido, outras nascido, tudo mudado. D. Claudia ainda appellava para o dia seguinte e perguntava ao marido se vira bem, e o que é que vira; elle mordia os beições, batia na perna, erguia-se, dava alguns passos, e tornava a narrar os acontecimentos, as noticias colladas ás portas dos jornaes, a prisão dos ministros, a situação, tudo extincto, extincto, extincto...

Flora não era avessa á piedade, nem á esperança, como sabeis; mas não ia com a agitação dos paes, e metteu-se com o seu piano e as suas musicas. Escolheu não sei que sonata. Tanto bastou para lhe tirar o presente. A musica tinha para ella a vantagem de não ser presente, passado ou futuro; era uma cousa fóra do tempo e do espaço, uma idealidade pura. Quando parava, succedia-lhe ouvir alguma phrase solta do pae ou da mãe: «...Mas como foi que...?»—«Tudo ás escondidas...»—«Ha sangue?» Às vezes um delles fazia algum gesto, e ella não via o gesto. O pae, com a alma tropega, falava muito e incoherente. A mãe trazia outro vigor. Já lhe succedia calar por instantes, como se pensasse, ao contrario do marido que, em se calando, coçava a cabeça, apertava as mãos ou suspirava, quando não ameaçava o tecto com o punho.

Lá, lá, dó, ré, sol, ré, ré, lá, ia dizendo o piano da filha, por essas ou por outras notas, mas eram notas que vibravam para fugir aos homens e suas dissensões.

Tambem se póde achar na sonata de Flora uma especie de accordo com a hora presente. Não havia governo definitivo. A alma da moça ia com esse primeiro albor do dia, ou com esse derradeiro crepusculo da tarde,—como queiras,—em que nada é tão claro ou tão escuro que convide a deixar a cama ou accender velas. Quando muito, ia haver um governo provisorio. Flora não entendia de fórmas nem de nomes. A sonata trazia a sensação da falta absoluta de governo, a anarchia da innocencia primitiva naquelle recanto do Paraiso que o homem perdeu por desobediente, e um dia ganhará, quando a perfeição trouxer a ordem eterna e unica. Não haverá então progresso nem regresso, mas estabilidade. O seio de Abrahão agazalhará todas as cousas e pessoas, e a vida será um céu aberto. Era o que as teclas lhe diziam sem palavras, ré, ré, lá, sol, lá, lá, dó...


CAPITULO LXX

De uma conclusão errada

Os successos vieram vindo, á medida que as flores iam nascendo. Destas houve que serviram ao ultimo baile do anno. Outras morreram na vespera. Poetas de um e outro regimen tiraram imagem do facto para cantarem a alegria e a melancolia do mundo. A differença é que a segunda abafava os seus suspiros, em quanto a primeira levava longe os seus tripudios. O metal das trompas dava outro som que o das harpas. As flores é que continuavam a nascer e morrer, egual e regularmente.

D. Claudia colheu as rosas do ultimo baile do anno, primeiro da Republica, e adornou a filha com ellas. Flora obedeceu e acceitou-as. Pae de familia antes de tudo, Baptista acompanhou a esposa e a filha ao baile. Tambem lá foi Paulo, pela moça e pelo regimen. Se, em conversa com o ex-presidente de provincia, disse todo o bem que pensava do Governo Provisorio, não lhe ouviu palavras de accordo nem de contestação. Não entrou mais fundo na confissão do homem, porque a moça o attraia, e elle gostava mais della que do pae.

Flora viu uma semelhança entre o baile da ilha Fiscal e este, apesar de particular e modesto. Este era dado por pessoa que vinha dos tempos da propaganda e um dos ministros lá esteve, ainda que só meia hora. Dahi a ausencia de Pedro, apesar de convidado. Flora sentiu a falta de Pedro, como sentira a de Paulo na ilha; tal era a semelhança das duas festas. Ambas traziam a ausencia de um gemeo.

—Porque é que seu irmão não veiu? perguntou ella.

Paulo enfiou; depois de alguns instantes:

—Pedro é teimoso, disse. Teimou em recusar o convite. Crê naturalmente que a monarchia levou a arte de dançar. Não faça caso; é um lunatico.

—Não diga isso.

—Acha tambem que a dança se foi com o imperio?

—Não, a prova é que estamos dançando. Não; digo que lhe não chame nomes feios.

—Parece-lhe então que Pedro é um rapaz de juizo?

—Certamente, como o senhor.

—Mas...

Paulo ia a perguntar-lhe qual d'elles, tendo ella de jurar por um ou por outro, lhe mereceria o juramento; mas recuou a tempo. Então ella falou do calor, e elle achou que sim, que estava quente. Acharia que estava frio, se ella se queixasse de frio. Flora, se só cedesse á vista, era tambem capaz de acceitar todas as opiniões de Paulo, para ir com elle. Em verdade, Paulo tinha agora um ar brilhante e petulante, olhava por cima, firme em que os seus escriptos de um anno é que haviam feito a Republica, posto que incompleta, sem certas ideias que expozera e defendera, e teriam de vir um dia, breve. Tal ia dizendo á moça, e ella escutava com prazer, sem opinião; era só o gosto de o escutar. Quando a lembrança de Pedro surgia na cabeça da moça, a tristeza empanava a alegria, mas a alegria vencia depressa a outra, e assim acabou o baile. Então as duas, tristeza e alegria, agazalharam-se no coração de Flora, como as suas gemeas que eram.

O baile acabou. O capitulo é que não acaba sem que deixe um pouco de espaço a quem quizer pensar naquella creatura. Pae nem mãe podiam entendel-a, os rapazes tambem não, e provavelmente Santos e Natividade menos que ninguem. Tu, mestra de amores ou alumna delles, tu que escutas a diversos, conclues que ella era... Custa pôr o nome do officio. Se não fosse a obrigação de contar a historia com as proprias palavras, preferia calal-o, mas tu sabes qual é elle, e aqui fica. Conclues que Flora era namoradeira, e conclues mal.

Leitora, é melhor negar já isto que esperar pelo tempo. Flora não conhecia as doçuras do namoro, e menos ainda se podia dizer namoradeira de officio. A namoradeira de officio é a planta das esperanças, e alguma vez das realidades, se a vocação o impõe e a occasião o permitte. Tambem é preciso ter em lembrança aquillo de um publicista, filho de Minas e do outro seculo, que acabou senador, e escrevia contra os ministros adversarios: «Pitangueira não dá manga.» Não, Flora não dava para namorados.

A prova disto é que no Estado em que viveu alguns mezes de 1801, com o pae e a mãe, para o fim que direi adiante, ninguem alcançou o menor dos seus olhares amigos ou sequer complacentes. Mais de um rapaz consumiu o tempo em se fazer visto e attrahido della. Mais de uma gravata, mais de uma bengala, mais de uma luneta levaram-lhe as côres, os gestos e os vidros, sem obter outra cousa que a attenção cortez e acaso uma palavra sem valor.

Flora só se lembrava dos gemeos. Se nenhum delles a esqueceu, ella não os perdeu de memoria, Ao contrario, escrevia por todos os correios a Natividade para se fazer lembrada de ambos. As cartas falavam pouco da terra ou da gente, e não diziam mal nem bem. Usavam muito a palavra saudades, que cada um dos dous gemeos lia para si. Tambem elles a escreviam nas cartas que mandavam a D. Claudia e a Baptista, com a mesma intenção duplicada e e mysteriosa, que ella entendia muito bem.

Taes eram de longe, ella e elles. A rixa velha, que os desunia na vida, continuava a desunil-os no amor. Podiam amar cada um a sua moça, casar com ella e ter os seus filhos, mas preferiam amar a mesma, e não ver o mundo por outros olhos, nem ouvir melhor verbo, nem diversa musica, antes, durante e depois da commissão do Baptista.


CAPITULO LXXI

A commissão

Lá me escapou a palavra. Sim, foi uma commissão dada ao pae, e da qual não sei nada, nem ella. Negocio reservado. Flora chamava-lhe commissão do inferno. O pae, sem ir tão fundo, concordava mentalmente com ella; verbalmente, desmentia a definição.

—Não digas isso, Flora; é commissão de confiança para fins nobremente politicos.

Creio que sim, mas dahi a saber o objecto especial e real, ia largo espaço. Tambem não se sabe como foi parar ás mãos de Baptista aquelle recado do governo. Sabe-se que elle não desprezou a escolha, quando um amigo intimo correu a chamal-o ao palacio do generalissimo. Viu que era reconhecer nelle muita finura e capacidade de trabalho. Não é menos certo, porém, que a commissão entrava a aborrecel-o, posto que na correspondencia official dissesse exactamente o contrario. Se taes papeis mostrassem sempre o coração da gente, Baptista, cujas instrucções eram, aliás, de concordia, parecia querer levar a concordia a ferro e fogo; mas o estylo não é o homem. O coração de Baptista fechava-se, quando elle escrevia, e deixava ir a mão adiante, com a chave do coração apertada... «Já é tempo, suspirava o musculo, já é tempo de um logar de governador.»

Quanto a D. Claudia, nao queria ver acabada a commissão, que restituia ao esposo a acção politica; faltava-lhe sómente uma cousa, opposição. Nenhum jornal dizia mal delle. Aquelle prazer de ler todas as manhãs as descomposturas dos adversarios, lel-as e relel-as com os seus nomes feios, como lategos de muitas pontas, que lhe rascavam as carnes e a excitavam ao mesmo tempo, esse prazer não lhe dava a commissão reservada. Ao contrario, havia uma especie de aposta em achar o commissario justo, equitativo e conciliador, digno de admiração, typo civico, caracter sem macula. Tudo isto ella conheceu outr'ora, mas para lhe achar sabor foi sempre preciso que viesse entremeado de ralhos e calumnias. Sem elles, era agua ensossa. Tambem não tinha aquella parte de ceremonias a que obrigava o summo cargo, mas não lhe faltavam attenções, e era alguma cousa.


CAPITULO LXXII

O regresso

Quando o marechal Deodoro dissolveu o congresso nacional, em 3 de novembro, Baptista recordou o tempo dos manifestos liberaes, e quiz fazer um. Chegou a principial-o, em segredo, empregando as belIas phrases que trazia de cór, citações latinas, duas ou trez apostrophes. D. Claudia reteve-o á beira do abysmo, com razões claras e robustas. Antes de tudo, o golpe de Estado podia ser um beneficio. Serve-se muita vez a liberdade parecendo suffocal-a. Depois, era o mesmo homem que a havia proclamado que convidava agora a nação a dizer o que queria, e a emendar a constituição, salvo nas partes essenciaes. A palavra do generalissimo, como a sua espada, bastava a defender e consummar a obra principiada. D. Claudia não tinha estylo proprio, mas sabia communicar o calor do discurso ao coração de um homem de boa vontade. Baptista, depois de a escutar e pensar, bateu-lhe no hombro imperativamente.

—Tens razão, filha.

Não rasgou o papel escripto; queria guardal-o como simples lembrança, e a prova é que ia escrever uma carta ao presidente. D. Claudia tambem lhe tirou esta ideia da cabeça. Não havia necessidade de lhe mandar o seu suffragio; bastava conservar-se na commissão.

—O governo não está satisfeito com você?

—Está.

—Vendo que você se conserva, conclue que approva tudo, e basta.

—Sim, Claudia, concordou elle após alguns instantes. Ao contrario, qualquer cousa que escrevesse contra a assembléa sediciosa que o presidente acaba de dissolver, pareceria falta de piedade. Paz aos mortos! Tens razão, filha.

Conservou-se calado, operando, fiel ás instrucções recebidas. Vinte dias depois, o marechal Deodoro passava o governo ás mãos do marechal Floriano, o congresso era restabelecido e todos os decretos do dia 3 annullados.

Ao saber de taes factos, Baptista pensou morrer. Ficou sem fala por alguns instantes, e D. Claudia não achou a menor parcella de animo que lhe désse. Nenhum contára com a marcha rapida dos acontecimentos, uns sobre outros, com tal atropello que parecia um bando de gente que fugia. Vinte dias apenas; vinte dias de força e socego, esperanças e grande futuro. Um dia mais e tudo ruiu como casa velha.

Agora é que Baptista comprehendeu o erro de haver dado ouvidos á esposa. Se tem acabado e publicado o manifesto no dia 4 ou 5, estaria com um documento de resistencia na mão para reivindicar um posto de honra qualquer,—ou só estima que fosse. Releu o manifesto; chegou a pensar em imprimil-o, embora incompleto. Tinha conceitos bons, como este; «O dia da oppressão é a vespera da liberdade.» Citava a bella Roland caminhando para a guilhotina; «Ó liberdade, quantos crimes em teu nome!» D. Claudia fez-lhe ver que era tarde, e elle concordou.

—Sim, é tarde. Naquelle dia é que não era tarde, vinha á hora propria, para o effeito certo.

Baptista amarrotou o papel distrahidaraente; depois alisou-o e guardou-o. Em seguida, fez um exame de consciencia, profundo e sincero. Não devia ter cedido; a resistencia era o melhor; se tem resistido ás palavras da mulher, a situação seria outra. Apalpou-se, achou que sim, que podia muito bem haver-lhe trancado os ouvidos e passado adiante. Insistiu muito neste ponto. Se pudesse, faria voltar atraz o tempo, e mostraria como é que a alma escolhe de si mesma o melhor dos partidos. Não era preciso saber nada do que anteriormente succedeu; a consciencia dizia-lhe que, era situação identica á do dia 3, faria outra cousa... Oh! com certeza! faria cousa muito diversa, e mudaria o seu destino.

Um officio ou telegrarama veiu arrancar Baptista á commissão politica e reservada, A volta para o Rio de Janeiro foi breve e triste, sem os epithetos que o haviam regalado por alguns mezes, nem acompanhamento de amigos. Só uma pessoa vinha alegre, a filha, que rezara todas as noites pela terminação daquelle exilio.

—Parece que estás contente com o desastre de teu pae, disse-lhe a mãe já a bordo.

—Não, mamãe; alegro-me de ver que acabou esta canceira. Papae póde muito bem fazer politica no Rio de Janeiro, onde é muito apreciado, A senhora verá. Eu, se fosse papae, apenas desembarcasse, ia logo ao marechal explicar tudo, mostrar as instrucções e dizer o que tinha feito; dizia mais que a dispensa veiu muito a proposito, afim de não parecer que ficara amofinado. Depois pedia-lhe para trabalhar lá mesmo...

D. Claudia, a despeito do amargor dos tempos, gostou de ver que a filha pensava e dava conselhos em politica. Não advertiu, como fez o leitor, que a alma do discurso da moça era não sair da capital, fazer aqui mesmo o seu congresso, que em breve seria uma só assembléa legislativa, como no Rio Grande do Sul; mas a qual das cantaras, Pedro ou Paulo, caberia esse unico poder politico? Eis o que ella mesma não sabia.

Ambos se lhe apresentaram a bordo, logo que o paquete entrou no porto do Rio de Janeiro. Não fôram em duas lanchas, fôram na mesmo, e saltaram com tal presteza para a escada, que escaparam de cair ao mar. Talvez fosse o melhor desfecho do livro. Ainda assim não acaba mal o capitulo, porque a razão da presteza com que elles saltaram para a escada foi a ambição de ser o primeiro que comprimentasse a moça; aposta de amor, que ainda uma vez os egualou na alma della. Emfim chegaram, e não consta qual effectivamente a cumprimentou primeiro; póde ser que ambos.


CAPITULO LXXIII

Um El-Dorado

No caes Pharoux esperavam por elles trez carruagens,—dous coupés e um landau, com trez bellas parelhas de cavallos. A gente Baptista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gemeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com egual libré. E todas trez se puzeram a andar, estas atraz daquella, os animaes batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquella recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma belleza e o mesmo luxo.

A capital offerecia ainda aos recem-chegados um espectaculo magnifico. Vivia-se dos restos daquelle deslumbramento e agitação, epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das emprezas e companhias de toda especie. Quem não viu aquillo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de reis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de reis. Todos os papeis, aliás acções, saíam frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fabricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, emprestimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organisadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas publicas, os titulos succediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a principio nada era frouxo. Cada acção trazia a vida intensa e liberal, alguma vez immortal, que se multiplicava daquella outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as acções a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.

Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caia do céu. Candido e Cacambo... Ai, pobre Cacambo nosso! Sabes que é o nome daquelle indio que Basilio da Gama cantou no Uruguay. Voltaire pegou delle para o metter no seu livro, e a ironia do philosopho venceu a doçura do poeta. Pobre José Basilio! tinhas contra ti o assumpto estreito e a lingua escusa. O grande homem não te arrebatou Lindoya, felizmente, mas Cacambo é delle, mais delle que teu, patricio da minha alma.

Candido e Cacambo, ia eu dizendo, ao entrarem no El-Dorado, conta Voltaire que viram creanças brincando na rua com rodelas de ouro, esmeralda e rubi; apanharam algumas, e na primeira hospedaria em que comeram quizeram pagar o jantar com duas dellas. Sabes que o dono da casa riu ás bandeiras despregadas, já por quererem pagar-lhe com pedras do calçamento, já porque alli ninguem pagava o que comia; era o governo que pagava tudo. Foi essa hilaridade do hospedeiro, com a liberalidade attribuida ao Estado, que fez crêr eguaes phenomenos entre nós, mas é tudo mentira.

O que parece ser verdade é que as nossas carruagens brotavam do chão. Ás tardes, quando uma centena dellas se ia enfileirar no largo de S. Francisco de Paula, á espera das pessoas, era um gosto subir a rua do Ouvidor, parar e contemplal-as. As parelhas arrancavam os olhos á gente; todas pareciam descer das rhapsodias de Homero, posto fossem corceis de paz. As carruagens tambem. Juno certamente as apparelhára com suas correias de ouro, freios de ouro, redeas de ouro, tudo de ouro incorruptivel. Mas nem ella nem Minerva entravam nos vehiculos de ouro para os fins da guerra contra Illion. Tudo alli respirava a paz. Cocheiros e lacaios, barbeados e graves, esperando tezos e compostos, davam uma bella ideia do officio. Nenhum aguardava o patrão, deitado no interior dos carros, com as pernas de fóra. A impressão que davam era de uma disciplina rigida e elegante, aprendida em alta escola e conservada pela dignidade do individuo.

«Casos ha,—escrevia o nosso Ayres—em que a impassibilidade do cocheiro na boléa contrasta com a agitação do dono no interior da carruagem, fazendo crêr que é o patrão que, por desfastio, trepou á boléa e leva o cocheiro a passear.»


CAPITULO LXXIV

A allusão do texto

Antes de continuar, é preciso dizer que o nosso Ayres não se referia vagamente ou de modo generico a algumas pessoas, mas a uma só pessoa particular. Chamava-se então Nobrega; outr'ora não se chamava nada, era aquelle simples andador das almas que encontrou Natividade e Perpetua na rua de S. José, esquina da da Misericordia. Não esqueceste que a recente mãe deitou uma nota de dous mil reis á bacia do andador. A nota era nova e bella; passou da bacia á algibeira, no fundo de um corredor, não sem algum combate.

Poucos mezes depois, Nobrega abandonou as almas a si mesmas, e foi a outros purgatorios, para os quaes achou outras opas, outras bacias e finalmente outras notas, esmolas de piedade feliz. Quero dizer que foi a outras carreiras. Com pouco deixou a cidade, e não se sabe se tambem o paiz. Quando tornou, trazia alguns pares de contos de reis, que a fortuna dobrou, redobrou e tresdobrou. Emfim, alvoreceu a famosa quadra do «encilhamento». Esta foi a grande opa, a grande bacia, a grande esmola, o grande purgatorio. Quem já sabia do andador das almas? A antiga roda perdera-se na obscuridade e na morte. Elle era outro; as feições não eram as mesmas, senão as que o tempo lhe veiu compondo e melhorando.

Se a grande bacia, ou qualqer das outras recebeu notas que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas é possivel. Foi por esse tempo que Ayres o viu de carro, quasi a sair pela portinhola fóra, comprimentando muito, espiando tudo. Como o cocheiro e o lacaio (creio que eram escossezes) salvassem a dignidade pessoal da casa, Ayres fez a observação do fim do outro capitulo, sem nenhuma intenção geral.

Posto não achasse já nenhum conhecido antigo, Nobrega tinha medo de tornar ao bairro, onde andára a pedir para as primeiras almas. Um dia, porém, taes fôram as saudades delle que pensou em affrontar o perigo e lá foi. Tinha cocegas de mirar as ruas e as pessoas, recordava as casas e as lojas, um barbeiro, os sobrados de grade de pau, onde appareciam taes e taes moças... Quando ia a ceder, teve outra vez medo e enfiou por outra parte. Só passava de carro; depois quiz ver tudo a pé, devagar, parando, se fosse possivel, e revivendo o extincto.

Lá se foi a pé; desceu pela rua de S. José, dobrou a da Misericordia, foi parar á praia de Santa Luzia, tornou pela rua de D. Manuel, enfiou de becco em becco. A principio olhava de esguelha, rapido, os olhos no chão. Aqui via a loja de barbeiro, e o barbeiro era outro. Dos sobrados de grade de pau debruçaram-se ainda moças, velhas e meninas e nenhuma era a mesma. Nobrega foi-se animando e. encarando. Talvez esta velha fosse moça, ha vinte annos; a moça talvez mamasse, e dá agora de mamar a outra creança. Nobrega acabou parando e andando de vagar.

Voltou mais vezes. Só as casas, que eram as mesmas, pareciam reconhecel-o, e algumas quasi que lhe falavam. Não é poesia. O ex-andador sentia necessidade de ser conhecido das pedras, ouvir-se admirar dellas, contar-lhes a vida, obrigal-as a comparar o modesto de outr'ora com o garrido de hoje, e escutar-lhes as palavras mudas: «Vejam, manas, é elle mesmo.» Passava por,ellas, fitava-as, interrogava-as, quasi ria, quasi as tocava para sacudil-as com força: «Falem, diabos, falem!»

Não confiaria de homem aquelle passado, mas ás paredes mudas, ás grades velhas, ás portas gretadas, aos lampiões antigos, se os havia ainda, tudo o que fosse discreto, a tudo quizera dar olhos, ouvidos e bôca, uma bôca que só elle escutasse, e que proclamasse a prosperidade daquelle velho andador.

Uma vez, viu a matriz de S. José aberta e entrou. A egreja era a mesma; aqui estão os altares, aqui está a solidão, aqui está o silencio. Persignou-se, mas não orou; olhava só a um lado e outro, andando na direcção do altar-mór. Tinha receio de ver apparecer o sacristão, podia ser o mesmo, e conhecel-o. Ouviu passos, recuou depressa e saiu.

Ao subir pela rua de S. José, encostou-se á parede, para deixar passar uma carroça. A carroça subiu a calçada, elle refugiou-se n'um corredor. O corredor podia ser qualquer; aquelle era o proprio em que elle fez a operação da nota de dous mil reis de Natividade. Olhou bem, era o mesmo. Ao fundo estavam os trez ou quatro degráos da primeira escada que dobrava á esquerda e pegava com a grande. Sorriu do acaso, reviu por um instante aquella manhã, viu no ar a nota de dous mil reis. Outras lhe teriam vindo ás mãos por maneiras assim faceis, mas nunca lhe esqueceu aquella graciosa folha gravada com tantos symbolos, numeros, datas e promessas, entregue por uma senhora desconhecida, sabe Deus se a propria Santa Rita de Cassia. Era a sua particular devoção. Sem duvida, trocou a nota e gastou-a, mas as partes dispersas não fôram senão levar a outras notas um convite para a algibeira do dono, e todas acudiram a mancheias, obedientes e caladas, para que não as ouvissem crescer.

Por mais que elle olhasse pela vida dentro, não achava egual obsequio do céu, ou sequer do inferno. Mais tarde, se alguma joia lhe levou os olhos, não lhe levou as mãos. Tinha aprendido a respeitar o alheio, ou ganhára com que o comprar. A nota de dous mil reis... Um dia, ousando mais, chamou-lhe presente de Nosso Senhor.

Não, leitor, não me apanhas em contradicção. Eu bem sei que a principio o andador das almas attribuiu a nota ao prazer que a dama traria de alguma aventura. Ainda me lembram as palavras delle: «Aquellas duas viram passarinho verde!» Mas se agora attribuia a nota á protecção da santa, não mentia então nem agora. Era difficil atinar com a verdade. A unica verdade certa eram os dous mil reis. Nem se póde dizer que era a mesma em ambos os tempos. Então, a nota de dous mil reis equivalia, pelo menos, a vinte (lembra-te dos sapatos velhos do homem); agora não subia de uma gorgeta de cocheiro.

Tambem não ha contradicção em pôr a santa agora e a namorada outr'ora. Era mais natural o contrario, quando era maior a intimidade delle com egreja. Mas, leitor dos meus peccados, amava-se muito em 1871, como já se amava em 1861, 1851 e 1841, não menos que em 1881, 1891 e 1901. O seculo dirá o resto. E depois, é preciso não esquecer que a opinião do andador das almas ácerca de Natividade foi anterior ao gesto do corredor, quando elle agazalhou a nota na algibeira. É duvidoso que, depois do gesto, a opinião fosse a mesma.


CAPITULO LXXV

Proverbio errado

Pessoa a quem li confidencialmente o capitulo passado, escreve-me dizendo que a causa de tudo foi a cabocla do Castello. Sem as suas predicções grandiosas, a esmola de Natividade seria minima ou nenhuma, e o gesto do corredor não se daria por falta de nota. «A occasião faz o ladrão», conclue o meu correspondente.

Não conclue mal. Ha todavia alguma injustiça ou esquecimento porque as razões do gesto do corredor fôram todas pias. Além disso, o proverbio póde estar errado. Uma das affirmações de Ayres, que tambem gostava de estudar adagios, é que esse não estava certo.

—Não é a occasião que faz o ladrão, dizia elle a alguem; o proverbio está errado. A fórma exacta deve ser esta: «A occasião faz o furto; o ladrão nasce feito.»


CAPITULO LXXVI

Talvez fosse a mesma!

Nobrega saiu emfim do corredor, mas foi obrigado a deter-se, porque uma mulher lhe estendia a mão:

—Meu senhor, uma esmolinha por amor de Deus!

Nobrega metteu a mão no bolso do collete e pegou um nickel, entre dous que lá havia, um de tostão, outro de dous. Pegou o primeiro, mas indo a darlh'o, mudou de ideia; não deu o nickel; disse á velha que esperasse, e entrou mais fundo no corredor. De costas para a rua, introduziu a mão na algibeira das calças e saccou um maço de dinheiro; procurou e achou uma nota de dous mil reis, não nova, antes velha, tão velha como a mendiga que a recebeu espantada, mas tu sabes que o dinheiro não perde com a velhice.

—Tome lá, murmurou elle.

Quando a mendiga voltou do espanto, Nobrega acabava de restituir o maço á algibeira e ia a querer sair. O que a mendiga então disse veiu entremeado de lagrimas:

—Meu senhor! Obrigada, meu senhor! Deus lhe pague! A Virgem Santissima...

E beijava a nota, e queria beijar a mão que lhe dera a esmola, mas elle a escondeu, como no Evangelho, murmurando que não, que se fosse embora. Em verdade, a palavra da mendiga tinha um som quasi mystico, uma especie de melodia do céu, um côro de anjos, e fazia bem fitar-lhe os olhos encarquilhados, a mão tremula, segurando a nota. Nobrega não esperou que ella se fosse, saiu, desceu a rua, com as bençãos da mulher atraz de si; dobrou a esquina, a passo rapido, e ahi foi pensando não se sabe em quê.

Atravessou a praça, passou a cathedral e a egreja do Carmo, e chegou ao Carceller, onde entregou as botas a um italiano para que lh'as engraxasse. Mentalmente, olhava para cima ou para baixo, para a direita ou para esquerda,—em todo caso para longe,—e acabou murmurando esta phrase, que tanto podia referir-se á nota. como á mendiga, mas provavelmente era á nota:

—Talvez fosse a mesma!

Nenhum obsequio, por infimo que seja, esquece ao beneficiado. Ha excepções. tambem ha casos em que a memoria dos obsequios afflige, persegue e morde, como os mosquitos; mas não é regra. A regra é guardal-os na memoria, como as joias nos seus escrinios; comparação justa, porque o obsequio é muita vez alguma joia, que o obsequiado esqueceu de restituir.


CAPITULO LXXVII

Hospedagem

A família Baptista foi aposentada em casa de Santos. Natividade não pôde ir a bordo, e o marido estava occupado em «lançar uma companhia»; mandaram recado pelos filhos que a casa de Botafogo tinha já os quartos preparados. Desde que o carro se poz a andar, Baptista confessou que ia ficar constrangido por alguns dias.

—N'uma casa de pensão era melhor, até que nos despejassem a de S. Clemente.

—Que queria você? Não havia remedio senão acceitar, ponderou a mulher.

Flora não disse nada, mas sentia o contrario do pae e da mãe. Pensar não pensou; ia tão atordoada com a vista dos rapazes que as ideias não se enfileiraram naquella forma logica do pensamento. A propria sensação não era nitida. Era uma mistura de oppressivo e delicioso, de turvo e claro, uma felicidade truncada, uma afflicção consoladora, e o mais que puderes achar no capitulo das contradicções. Eu nada mais lhe ponho. Nem ella saberia dizer o que sentia. Teve allucinações extraordinarias.

Agora o que é mister dizer é que a ideia da hospedagem cabe toda aos dous jovens doutores. Que elles eram já doutores, posto não houvessem ainda encetado a carreira de advogado nem de medico. Viviam do amor da mãe e da bolsa do pae, inexgotaveis ambos. O pae abanou as orelhas á lembrança, mas os gemeos insistiram pelo obsequio, a tal ponto que a mãe, contente de os ver de accordo, saiu do silencio e concordou com elles. A ideia de ter a pequena ao pé de si, por alguns dias, e discernir qual era o melhor acceito, e o que devéras a amava, póde ser que tambem influisse na adopção do voto, mas não affirmo nada a tal respeito. Tambem não asseguro que tivesse grande gosto em agazalhar a mãe e o pae de Flora. Não obstante, o encontro foi cordial de parte a parte. Foi um abraçar, um beijar, um perguntar, um trocar de mimos que não acabava mais. Todos estavam mais gordos, outra côr, outro ar. Flora era um encanto para Natividade e Perpetua; nenhuma destas sabia aonde iria parar aquella moça tão senhoril, tão esbelta, tão...

—Não digam o resto, interrompeu a moça sorrindo; eu tenho a mesma opinião.

Santos recebeu-os, á tarde, com a mesma cordialidade,—talvez menos apparente, mas tudo se desculpa a quem anda com grandes negocios.

—Uma ideia sublime, disse elle ao pae de Flora; a que lancei hoje foi das melhores, e as acções valem já ouro. Trata-se de lã de carneiro, e começa pela criação deste mammifero nos campos do Paraná. Em cinco annos poderemos vestir a America e a Europa. Viu o programma nos jornaes?

—Não, não leio jornaes daquir desde que embarquei.

—Pois verá!

No dia seguinte, antes de almoçar, mostrou ao hospede o programma e os estatutos. As acções eram maços e maços, e Santos ia dizendo o valor de cada um. Baptista sommava mal, em regra; daquella vez, peor. Mas os algarismos cresciam á vista, trepavam uns nos outros, enchiam o espaço, desde o chão até ás janellas, e precipitavam-se por ellas abaixo, com um rumor de ouro que ensurdecia. Baptista saiu d'alli fascinado, e foi repetir tudo á mulher.


CAPITULO LXXVIII

Visita ao marechal

D. Claudia, quando elle acabou, perguntou-lhe com simplicidade:

—Você vae hoje ao marechal?

Baptista, caindo em si:

—Naturalmente.

Tinham ajustado que elle iria ter com o presidente da Republica explicar-lhe a commissão que exercera, toda reservada, e, sem embargo, imparcial. Diria o espirito de concordia com que andou e a estima que adquiriu. Em seguida, falaria da conveniencia de um governo que, pela fortaleza e pela liberdade, excedesse o do generalissimo; e uma phrase final bem estudada.

—Isso na occasião, disse Baptista.

—Não, é melhor leval-a feita. Eu lembrei-me desta: «Creia V. Ex. que Deus está com os fortes e os bons.»

—Sim, não é má.

—Você póde accrescentar um gesto que indique céu.

—Isso é que não. Você sabe que eu não dou para gestos, não sou actor. Eu, sem mexer um pé, inspiro respeito.

D. Claudia dispensou o gesto; não era essencial. Quiz que elle escrevesse a phrase, mas já estava de cór. Baptista tinha boa memoria.

Naquelle mesmo dia, Baptista foi ao marechal Floriano. Não disse nada ás pessoas da casa; contaria tudo na volta. D. Claudia tambem calou, era por pouco tempo; ficou esperando anciosa. Esperou duas mortaes horas, chegou a imaginar que lhe tivessem encarcerado o esposo, por intrigas. Não era devota, mas o medo inspira devoção, e ella rezou comsigo. Emfim, chegou Baptista. Ella correu a recebel-o, alvoroçada, pegou-lhe na mão e recolheram-se ao quarto. Perpetua (vêde o que são testemunhos pessoaes na historia!) exclamou enternecida:

—Parecem dous pombinhos!

Baptista contou que a recepção foi melhor do que esperava, comquanto o marechal não lhe dissesse nada, mas escutou-o com interesse. A phrase? A phrase saiu bem, apenas com uma emenda. Não estando certo se elle preferia bons a fortes, ou se fortes a bons...

—Deviam ser as duas palavras, interrompeu a mulher.

—Sim, mas lembrou-me empregar uma terceira: «Creia V. Ex. que Deus está com os dignos!»

Com effeito, a ultima palavra podia abranger as duas, e trazia esta vantagem de dar á phrase um arranjo pessoal delle.

—Mas o marechal que disse?

—Não disse nada; ouviu-me com attenção obsequiosa e chegou a sorrir,—um sorriso leve, um sorriso de accordo...

—Ou seria... Quem sabe... Você não andou bem, de certo. Commigo elle diria alguma cousa. Você expoz tudo, conforme tinhamos combinado?

—Tudo.

—Expoz as razões da commissão, o desempenho, a nossa moderação...?

—Tudo, Claudia.

—E o aperto de mão do marechal?

—Não estendeu a mão, a principio; fez um gesto de cabeça; eu é que estendi a minha, dizendo: Sempre ás ordens de V. Ex.

—E elle?

—Elle apertou-me a mão.

—Apertou bem?

—Você sabe, não podia ser um apertão de amigo, mas deve ter sido cordial.

—E nenhuma palavra? Um passe bem, ao menos?

—Não, nem era preciso. Cortejei-o e saí.

D. Claudia deixou-se estar pensando. A recepção não lhe pareceu que fosse má, mas podia ser melhor. Com ella, seria muito melhor.


CAPITULO LXXIX

Fusão, diffusão, confusão...

Atraz falei das allucinações de Flora. Realmente, eram extraordinarias.

Em caminho, depois do desembarque, não obstante virem os gemeos separados e sós, cada um no seu coupé, scismou que os ouvia falar; primeira parte da allucinação. Segunda parte: as duas vozes confundiam-se, de tão eguaes que eram, e acabaram sendo uma só. Afinal, a imaginação fez dos dous moços uma pessoa unica.

Este phenomeno não creio que possa ser commum. Ao contrario, não faltará quem absolutamente me não creia, e supponha invenção pura o que é verdade purissima. Ora, é de saber que, durante a commissão do pae, Flora ouviu mais de uma vez as duas vozes que se fundiam na mesma voz e mesma creatura. E agora, na casa de Botafogo, repetia-se o phenomeno. Quando ouvia os dous, sem os ver, a imaginação acabava a fusão do ouvido pela da vista, e um só homem lhe dizia palavras extraordinarias.

Tudo isto não é menos extraordinario, concordo. Se eu consultasse o meu gosto, nem os dous rapazes fariam um só mancebo, nem a moça seria uma só donzella. Corrigiria a natureza desdobrando Flora. Não podendo ser assim, consinto na unificação de Pedro e Paulo. Porquanto, esse effeito de visão repetia-se ao pé delles, tal qual na ausencia, quando ella se deixava esquecer do logar, e soltava a redea a si mesma. Ao piano, á palestra, ao passeio na chacara, á mesa de jantar, tinha dessas visões repentinas e breves, e das quaes ella mesma sorria, a principio.

Se alguem quizer explicar este phenomeno pela lei da hereditariedade, suppondo que elle era a forma affectiva da variação politica da mãe de Flora, não achará apoio em mim, e creio que em ninguem. São cousas diversas. Conheceis os motivos de D. Claudia; a filha teria outros que ella propria não sabia. O unico ponto de semelhança é que, tanto na mãe como na filha, o phenomeno era agora mais frequente, mas em relação á primeira vinha do atropello dos acontecimentos exteriores. Nenhuma revolução se faz como a simples passagem de uma sala a outra; as mesmas revoluções chamadas de palacio trazem alguma agitação que fica por certo prazo, até que a agua volte ao nivel. D. Claudia cedia á inquietação dos tempos.

A filha obedeceria a outra causa qualquer, que se não podia descobrir logo, nem sequer entender. Era um espectaculo mysterioso, vago, obscuro, em que ás figuras visiveis se faziam impalpaveis, o dobrado ficava unico, o unico desdobrado, uma fusão, uma confusão, uma diffusão...


CAPITULO LXXX

Transfusão, emfim

Uma transfusão, tudo o que puder definir melhor, pela repetição e graduação das fórmas e dos estados, aquelle particular phenomeno, pódes empregal-o no outro e neste capitulo.

Dito o phenomeno, é preciso dizer tambem que Flora, a principio, achava-lhe graça. Minto; nos primeiros tempos, como estava longe, não lhe achou nada; depois, sentiu uma especie de susto ou vertigem, mas logo que se acostumou a passar de dous a um e de um a dous, pareceu-lhe graciosa a alternação, e chegava a evocal-a com o proposito de divertir a vista. Afinal nem isto era preciso, a alternação fazia-se de si mesma. Umas vezes era mais lenta que outras, alguma instantanea. Não eram tão frequentes que confinassem com o delirio. Emfim, ella se foi acostumando e deleitando.

Uma ou outra vez, na cama, antes de dormir, repetia-se o phenomeno, depois de muita resistencia da parte della, que não queria perder o somno. Mas o somno vinha, e o sonho completava a vigilia. Flora passeava então pelo braço do mesmo garção amado, Paulo se não Pedro, e ambos iam admirar estrellas e montanhas, ou então o mar, que suspirava ou tempestuava, e as flores e as ruinas. Não era raro ficarem os dous a sós, deante de uma nesga de céu, claro de luar, ou todo repregado de estrellas como um panno azul escuro. Era á janella, suppõe; vinha de fóra a cantiga dos ventos mansos, um espelho grande, pendente da parede, reproduzia as figuras della e delle, confirmando a imaginação della. Como era sonho, a imaginação trazia espectaculos desconhecidos, taes e tantos que mal se podia crêr bastasse o espaço de uma noite. E bastava. E sobrava. Succedia que Flora acordava de repente, perdia o quadro e o vulto, e persuadia-se que era tudo illusão, e raro então dormia. Se era cedo, erguia-se, andava, cançava-se, até adormecer novamente e sonhar outra cousa.

Outras vezes, a visão ficava sem o sonho, e diante della uma só figura esbelta, com a mesma voz namorada, o mesmo gesto supplice. Uma noite, indo a deitar-lhe os braços sobre os hombros com o fim inconsciente de cruzar os dedos atraz do pescoço, a realidade, posto que ausente, clamou pelos seus fóros, e o unico moço se desdobrou na duas pessoas semelhantes.

A differença deu ás duas visões de acordada um tal cunho de fantasmagoria que Flora teve medo e pensou no Diabo.


CAPITULO LXXXI

Ai, duas almas...

Anda, Flora, ajuda-me, citando alguma cousa, verso ou prosa, que exprima a tua situação. Cita Goethe, amiga minha, cita um verso do Fausto, adequado:

Ai, duas almas no meu seio moram!

A mãe dos gemeos, a bella Natividade podia havel-o citado tambem, antes delles nascerem, quando ella os sentia lutando dentro em si mesma:

Ai, duas almas no meu seio moram!

Nisto as duas se parecem,—uma os concebeu, outra os recolheu. Agora, como é que se dá ou se dará a escolha de Flora, nem o proprio Mephistopheles nol-o explicaria de modo claro e certo. O verso basta:

Ai, duas almas no meu seio moram!

Talvez aquelle velho Placido, que lá deixamos nas primeiras paginas, chegasse a deslindar estas outras. Doutor em materias escuras e complicadas, sabia muito bem o valor dos numeros, a significação dos gestos não só visiveis como invisiveis, a estatistica da eternidade, a divisibilidade do infinito. Era já morto deste alguns annos. Has de lembrar-te que elle, consultado pelo pae de Pedro e Paulo, acerca da hostilidade original dos gemeos, explicou-a promptamente. Morreu no seu officio; expunha a trez discipulos novos a correspondencia das letras vogaes com os sentidos do homem, quando caiu de bruços e expirou.

Já então os adversarios de Placido,—que os tinha na propria seita,—affirmavam haver elle aberrado da doutrina, e, por natural effeito, enlouquecido. Santos nunca se deixou ir com esses divergentes da casa commum, que acabaram formando outra egrejinha em outro bairro, onde pregavam que a correspondencia exacta não era entre as vogaes e os sentidos, mas entre os sentidos e as vogaes. Esta outra formula, parecendo mais clara, fez com que muitos discipulos da primeira hora acompanhassem os da ultima, e proclamem agora, como conclusão final, que o homem é um alphabeto de sensações.

Venceram estes, ficando mui poucos fieis á doutrina do velho Placido. Evocado algum tempo depois de morto, confessou elle ainda uma vez a sua formula, como a unica das unicas, e excommungou a quantos prégassem o contrario. Aliás, os dissidentes já o haviam excommungado tambem, declarando abominavel a sua memoria, com aquelle odio rijo, que fortalece alguma vez o homem contra a frouxidão da piedade.

Talvez o velho Placido deslindasse o problema em cinco minutos. Mas para isso era preciso evocal-o, e o discipulo Santos cuidava agora de umas liquidações ultimas e lucrativas. Não só de fé vive o homem, mas tambem de pão e seus compostos e similares.


CAPITULO LXXXII

Em S. Clemente

Ao cabo de poucas semanas, a familia Baptista saiu da casa Santos, e tornou á rua de S. Clemente. A despedida foi terna, as saudades começaram antes da separação, mas a affeição, o costume, a estima,—a necessidade, em summa, de se verem a miudo compensaram a melancolia, e a gente Baptista levou promessa de que a gente Santos iria vel-a dahi a poucos dias.

Os gemeos cumpriram cedo a promessa. Um delles, parece que Paulo, foi lá nessa mesma noite com recado da mãe para saber se tinham chegado bem. Disseram-lhe que sim, accrescentando Baptista, para abreviar a visita, que estavam bastante cançados. Os olhos de Flora desmentiram esta affirmação; mas dentro em pouco achavam-se não menos tristes que alegres. A alegria vinha da promptidão de Paulo, a tristeza da ausencia de Pedro. Quizera-os ambos naturalmente; mas, como é que as duas sensações se mostravam a um tempo, eis o que não entenderás bem nem mal. Certamente, os olhos iam diversas vezes para a porta, e uma vez pareceu á moça ouvir rumor na escada; tudo illusão. Mas estes gestos, que Paulo não viu, tão contente estava de se haver adiantado ao irmão, não eram taes que a fizessem esquecer o irmão presente.

Paulo saiu tarde, não só para o fim de aproveitar a ausencia de Pedro, mas ainda porque Flora o fazia demorar, com o intuito de ver se o outro chegava. Assim que, a mesma dualidade de sensação enchia os olhos da moça, até á hora da despedida, em que a parte triste foi maior que a alegre, pois que eram duas ausencias, em vez de uma. Conclue o que quizeres, minha dona; ella recolheu-se para dormir, e reconheceu que, se se não dorme com uma tristeza na alma, muito menos com duas.


CAPITULO LXXXIII

A grande noite

Ha muito remedio contra a insomnia. O mais vulgar é contar de um até mil, dous mil, trez mil ou mais, se a insomnia não ceder logo. É remedio que ainda não fez dormir ninguem, ao que parece, mas não importa. Até agora, todas as applicações efficazes contra a tisica vão de par com a noção de que a tisica é incuravel. Convem que os homens affirmem o que não sabem, e, por officio, o contrario do que sabem; assim se fórma esta outra incuravel, a Esperança.

Flora, incuravel tambem, se não preferes a definição de inexplicavel, que lhe deu Ayres, a graciosa Flora teve naquella noite a sua insomnia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez de se deitar quietinha e dormir com os anjos, achou melhor velar com um ou dous delles, e gastar uma parte da noite, á janella ou sentada, a recordar e a pensar, a cotejar e a completar, mettida no roupão de linho, com os cabellos atados para dormir.

A principio pensou no que lá estivera, e evocou todas as suas graças, realçadas pela virtude particular de a ter ido ver á noite, sem embargo de se terem visto de manhã. Sentia-se grata. Toda a conversação foi alli repetida na solidão da alcova, com as intonações diversas, o vario assumpto, e as interrupções frequentes, ora dos outros, ora della mesma. Ella, em verdade, só interrompia, para pensar no ausente,—e portanto não fazia mais que converter o dialogo em monologo, o qual por sua vez acabava em silencio e contemplação.

Agora, pensando em Paulo, queria saber porque é que o não escolhia para noivo. Tinha uma qualidade a mais, a nota aventurosa do caracter, e esta feição não lhe desprazia. Inexplicavel ou não, deixava-se levar pelos impotos do rapaz, que queria trocar o mundo e o tempo por outros mais puros e felizes. Aquella cabeça, apenas masculina, era destinada a mudar a marcha do sol, que andava errado. A lua tambem. A lua pedia um contacto mais frequente com os homens, menos quartos, não descendo o minguante do metade. Visivel todas as noites, sem que isso acarretasse a decadencia das estrellas, continuaria modestamente o officio do sol, e faria sonhar os olhos insomnes ou só cançados de dormir. Tudo isso cumpriria a alma de Paulo, faminta de perfeição. Era um bom marido, em summa. Flora cerrou as palpebras, para vel-o melhor, o achou-o a seus pés, com as mãos della entre as suas, risonho e extatico.

—Paulo! meu querido Paulo!

Inclinou-se, para vel-o de mais perto, e não perdeu o tempo nem a intenção. Visto assim, era mais bello que simplesmente couversando das cousas vulgares e passageiras. Enfiou os olhos nos olhos, e achou-se dentro da alma do rapaz. O que lá viu não soube dizel-o bem; foi tudo tão novo e radiante que a pobre retina de moça não podia fitar nada com segurança nem continuidade. As ideias faiscavam como saindo de um fogareiro á força de abano, as sensações batiam-se em duelo, as reminiscencias subiam frescas, algumas saudades, e ambições principalmente, umas ambições de azas largas, que faziam vento só com agital-as. Sobre toda essa mescla e confusão chovia ternura, muita ternura...

Flora recolheu os olhos, Paulo estava na mesma postura; mas do lado da porta, mettido na penumbra, a figura de Pedro apparecia, não menos bella, mas um tanto triste. Flora sentiu-se tocada daquella tristeza. Parece que, se amasse exclusivamente o primeiro, o segundo podia chorar lagrimas de sangue, sem lhe merecer a menor sympathia. Que o amor, conforme as nymphas antigas e modernas, não tem piedade. Quando ha piedade para outro, dizem ellas, é que o amor ainda não nasceu de verdade, ou já morreu de todo, e assim o coração não lhe importa vestir essa primeira camisa do affecto. Perdoa a figura; não é nobre, nem clara, mas a situação não me dá tempo de ir á cata de outra.

Pedro approximou-se, a passo lento, ajoelhou-se tambem e tomou-lhe as mãos que Paulo apertava entre as suas. Paulo ergueu-se e sumiu-se pela outra porta. O quarto tinha duas. A cama ficava entre ellas. Talvez Paulo fosse bramindo de colera; ella é que não ouviu nada, tão docemente vivo era o gesto de Pedro, já agora sem melancolia, e os olhos tão extaticos como os do irmão. Não eram taes que saissem, como os deste, ás aventuras. Tinham a quietação de quem não queria mais sol nem lua que esses que andam ahi, que se contenta de ambos, e, se os acha divinos, não cuida de os trocar por novos. Era a ordem, se queres, a estabilidade, o accordo entre si e as cousas, não menos sympathicos ao coração da moça, ou por trazerem a ideia de perpetua ventura, ou por darem a sensação de uma alma capaz de resistir.

Nem por isso os olhos de Flora deixaram de penetrar os de Pedro, até chegar á alma do rapaz. O motivo secreto desta outra entrada podia ser o escrupulo de cotejar as duas para julgal-as, se não era sómente o desejo de não parecer menos curiosa de uma que de outra. Ambas as razões são boas, mas talvez nenhuma fosse verdadeira. O gosto de fitar os olhos de Pedro era tão natural que não exigia intenção particular nenhuma, e bastava fital-os para escorregar e cair dentro da alma namorada. Era gemea da outra; não lhe viu mais nem menos que nesta.

Unicamente,—e aqui toco o ponto escabroso do capitulo,—achou cá alguma cousa indefinivel que não sentira lá; em compensação sentiu lá outra que não se lhe deparou cá. Indefinivel, não esqueças. E escabroso porque nada ha peor que falar de sensações sem nome. Crêde-me, amigo meu, e tu, não menos amiga minha, crêde-me que eu preferia contar as rendas do roupão da moça, os cabellos apanhados atraz, os fios do tapete, as taboas do tecto e porfim os estalinhos da lamparina que vae morrendo... Seria enfadonho, mas entendia-se.

Sim, a lamparina ia morrendo, mas ainda podia dar luz ao regresso de Paulo. Quando Flora o viu entrar e ajoelhar-se outra vez, ao pé do irmão, e ambos dividirem entre si as mãos della, mansos e cordatos, ficou longa mente attonita. Obra de um credo, como diziam os nossos antigos, quando havia mais religião que relogios. Voltando a si, puxou as mãos, estendeu-as depois sobre a cabeça delles, como se lhes apalpasse a differença, o quid, o algo, o indefinivel. A lamparina ia morrendo... Pedro e Paulo falavam-lhe por exclamações, por exhortações, por supplicas, a que ella respondia mal e tortamente, não que os não entendesse, mas por não os aggravar, ou acaso por não saber a qual delles diria melhor. A ultima hypothese tem ar de ser a mais provavel. Em todo caso, é o prologo do que succedeu, quando a lamparina chegou aos ultimos arrancos.

Tudo se mistura, á meia claridade; tal seria a causa da fusão dos vultos, que de dous que eram, ficaram sendo um só. Flora, não tendo visto sair nenhum dos gemeos, mal podia crêr que formassem agora uma só pessoa, mas acabou crêndo, mormente depois que esta unica pessoa solitaria parecia completal-a interiormente, melhor que nenhuma das outras em separado. Era muito fazer e desfazer, mudar e transmudar. Pensou enganar-se, mas não; era uma só pessoa, feita das duas e de si mesma, que sentia bater nella o coração. Estava tão cançada de emoções que tentou erguer-se e ir fóra, mas não pôde; as pernas pareciam de chumbo e colladas ao solo. Assim esteve, até que a lamparina, ao canto, morreu de todo. Flora teve um sobresalto na poltrona, e ergueu-se:

—Que é isto?

A lamparina apagou-se. Foi accendel-a. Viu então que estava sem um nem outro, sem dous nem um só fundido de ambos. Toda a fantasmagoria se desfizera. A lamparina (agora nova) alumiava o seu quarto de dormir, e á imaginação creára tudo. Foi o que ella suppoz, e o leitor sabe. Flora comprehendeu que era tarde, e um gallo confirmou essa opinião, cantando; outros gallos fizeram a mesma cousa.

—Ora, meus Deus! exclamou a filha de Baptista.

Metteu-se na cama, e, se não dormiu logo, tambem não se demorou muito; não tardou a estar com os anjos. Sonhou com o canto dos gallos, uma carroça, um lago, uma scena de viagem do mar, um discurso e um artigo. O artigo era de verdade. A mãe veiu acordal-a, ás dez horas da manhã, chamando-lhe dorminhoca, e alli mesmo, na cama, lhe leu uma folha da manhã que recommendava o marido ao governo. Flora ouviu satisfeita; acabara a grande noite.


CAPITULO LXXXIV

O velho segredo

Natividade dormiu tranquilla, em Botafogo, mas acordou pensando nos filhos e na moça de S. Clemente. Viera reparando nos trez. Parecera-lhe antes que Flora não acceitava um nem outro, logo depois que os acceitava a ambos, e mais tarde um e outro alternadamente. Concluiu que ainda não sentiria nada particular e decisivo; naturalmente iria com os tempos, a ver qual destes a merecia deveras. Elles é que pareciam sentir egual inclinação e egual ciume. Dahi alguma possivel catastrophe. A separação não supprimiria tudo; mas, além de que, separadas as familias, nem tudo seria presente a seus olhos, as visitas podiam ser menos frequentes e até raras. Tinha assim o que quizera.

Ao demais, ia chegando o tempo de ir para Petropolis; propriamente, chegára. Natividade cuidava de subir com os filhos. Sempre haveria lá no alto damas elegantes, diversões, alegria. Podia ser até que elles achassem noivas, e bastava uma para um. O que ficasse sem ella teria a liberdade de desposar Flora. Calculos de mãe; vieram outros que os modificaram, e outros que os restauraram. Quem fôr mãe que lhe atire a primeira pedra.

Nenhuma outra mãe atirou a primeira pedra á nossa amiga. Quero crêr que a razão disto não foi senão a propria discrição de Natividade. Suspeitas e calculos iam ficando no coração della. Calou tudo e esperou.

Ao cabo, Flora cada vez gostava mais de Natividade. Queria-lhe como se ella fosse sua mãe, duplamente mãe, uma vez que não escolhera ainda nenhum dos filhos. A causa podia ser que as duas indoles se ajustassem melhor que entre Flora e D. Claudia. A principio, sentiu não sei que inveja amiga, antes desejo, quando via que as fórmas da outra, embora arruinadas pelo tempo, ainda conservavam alguma linha da esculptura antiga. Pouco a pouco, foi descobrindo em si mesma o introito de uma belleza, que devia ser longa e fina, e de uma vida, que podia ser grande...

Flora conhecia a predicção da cabocla do Castello, relativamente aos dous gemeos. A predicção não era já segredo para ninguem. Santos falara della em tempo, apenas occultando a subida de Natividade ao Castello; emendou a verdade, dizendo que a cabocla é que viera a Botafogo. O resto foi revelado em confiança, como ao finado Placido, e ainda depois de alguma luta. Trez ou quatro vezes investiu e recuou. Um dia, a lingua deu sete voltas na bôca, e o segredo saiu medroso e sussurrado, mas perdeu o medo pelo gosto de mostrar que os rapazes seriam grandes. Emfim, o segredo foi esquecendo. Mas Perpetua, por isto ou aquillo, contou-o agora á moça Baptista, que a ouviu incredula. Que podia saber a cabocla do futuro?

—Sabia, e a prova é que adivinhou outras cousas, que não posso contar e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via longe. E tinha uns olhos de espetar o coração.

—Não acredito, D. Perpetua. Pois agora o futuro da gente... E grandes como?

—Isso não disse por mais que Natividade lhe perguntasse; disse só que seriam grandes e subiriam muito. Talvez venham a ser ministros de Estado.

Perpetua parecia haver comprado os olhos á cabocla. Enfiava-os pela amiga abaixo, até o coração, que aliás não batia com força nem apressado, mas tão regular como de costume. Entretanto, não sendo impossivel que os dous rapazes chegassem aos altos deste mundo, Flora deixou de objectar e acceitou a predicção, sem outra palavra mais que um gesto, —sabes, creio,—um gesto de boca, fazendo descair os cantos della, levantando os hombros levemente, e espalmando as mãos, como se dissesse: Emfim, póde ser.

Perpetua accresceptou que, mudado o regimen, era natural que Paulo chegasse primeiro á grandeza, —e aqui espetou bem os olhos. Era um modo de de apanhar os sentimentos de Flora, acenando-lhe com a elevação de Paulo, pois bem podia ser que viesse a amar antes o destino que a pessoa. Não achou nada. Flora continuou a não se deixar ler. Não lhe attribuas isto a calculo, não era calculo. Seriamente, não pensava em nada acima de si.


CAPITULO LXXXV

Trez constituições

—Você crê deveras que venhamos a ser grandes homens? perguntára Pedro a Paulo, antes da queda do imperio.

—Não sei; você pode vir a ser, quando menos, primeiro ministro.

Depois de 15 de novembro, Paulo retorquiu a pergunta, e Pedro respondeu como o irmão, emendando o resto:

—Não sei; você póde vir a ser presidente da republica.

Já lá iam dous annos. Agora pensavam mais em Flora que na subida. A boa moral pede que ponhamos a cousa publica acima das pessoaes, mas os moços nisto se parecem com velhos e varões de outra edade, que muita vez pensam mais em si que em todos. Ha excepções, nobres algumas, outras nobilissimas. A historia guarda muitas dellas, e os poetas, epicos e tragicos, estão cheios de casos e modelos de abnegação.

Praticamente, seria exigir muito de Pedro e Paulo que cuidassem mais da constituição de 24 de fevereiro que da moça Baptista. Pensavam em ambas, é verdade, e a primeira já dera logar a alguma troca de palavras acerbas. A constituição, se fosse gente viva, e estivesse ao pé delles, ouviria os ditos mais contrarios deste mundo, porque Pedro ia ao ponto de a achar um poço de iniquidades, e Paulo a propria Minerva nascida da cabeça de Jove. Falo por metaphora para não descair do estylo. Em verdade, elles empregavam palavras menos nobres e mais emphaticas, e acabavam trocando as primeiras entre si. Na rua, onde o encontro de manifestações politicas era commum, e as noticias á porta dos jornaes frequente, tudo era occasião de debate.

Quando, porém, a imagem de Flora apparecia entre elles por imaginação, o debate esmorecia, mas as injurias continuavam e até cresciam, sem confissão do novo motivo, que era ainda maior que o primeiro. Effectivamente, elles iam chegando ao ponto em que dariam as duas constituições, a republicana e a imperial, pelo amor exclusivo da moça, se tanto fosse exigido. Cada um faria com ella a sua constituição, melhor que outra qualquer deste mundo.


CAPITULO LXXXVI

Antes que me esqueça

Uma cousa é preciso dizer antes que me esqueça. Sabes que os dous gemeos eram bellos e continuavam parecidos; por esse lado não suppunham ter motivo de inveja entre si. Ao contrario, um e outro achavam em si qualquer cousa que accentuava, senão melhorava, as graças communs. Não era verdade, mas não é a verdade que vence, é a convicção. Convence-te de uma ideia, e morrerás por ella, escreveu Ayres por esse tempo no Memorial, e accrescentou: «nem é outra a grandeza dos sacrificios, mas se a verdade acerta com a convicção, então nasce o sublime, e atraz delle o util...» Não acabou ou não explicou esta phrase.


CAPITULO LXXXVII

Entre Ayres e Flora

Aquella citação do velho Ayres faz-me lembrar um ponto em que elle e a moça Flora divergiam ainda mais que na edade. Já contei que ella, antes da commissão do pae, defendia Pedro e Paulo, conforme estes diziam mal um do outro, Naturalmente fazia agora a mesma cousa, mas a mudança do regimen trouxe occasião de defender tambem monarchistas e republicanos, segundo ouvia as opiniões de Paulo ou de Pedro. Espirito de conciliação ou de justiça, applacava a ira ou o desdem do interlocutor: «Não diga isso... São patriotas tambem... Convem desculpar algum excesso...» Eram só phrases, sem impeto de paixão nem estimulo de principios; e o interlocutor concluia sempre:

—A senhora é boa.

Ora, o costume de Ayres era o opposto dessa contradicção benigna. Has-de lembrar-te que elle usava sempre concordar com o interlocutor, não por desdem da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto á gente, e não queria ver a cara dos outros assim, nem dar á sua um aspecto abominavel. Se lucrasse alguma cousa, vá; mas, não lucrando nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. Dahi a arranjo de gestos e phrases affirmativas que deixavam os partidos quietos, e mais quieto a si mesmo.

Um dia, como ella estivesse com Flora, falou daquelle costume della, dizendo-lhe que parecia estudado. Flora negou que o fosse; era inclinação natural defender os ausentes, que não podiam responder por nada; demais, applacava assim um dos gemeos com quem falasse, e depois o outro.

—Tambem concordo.

—E porque ha de o senhor concordar sempre? perguntou ella sorrindo.

—Posso concordar com a senhora, porque é uma delicia ir com as suas opiniões, e seria mau gosto rebatel-as, mas, em verdade, não ha calculo. Com os mais, se concordo, é porque elles só dizem o que eu penso.

—Ja o tenho achado em contradicção.

—Póde ser. A vida e o mundo não são outra cousa. A senhora não saberá isto bem, porque é moça e ingenua, mas creia que a vantagem é toda sua. A ingenuidade é o melhor livro e a mocidade a melhor escola. Vá desculpando esta minha pedanteria; alguma vez é um mal necessario.

—Não se accuse, conselheiro. O senhor sabe que eu não creio nada contra a sua palavra, nem contra a sua pessoa; a propria contradicção que lhe acho é agradavel.

—Tambem concordo.

—Concorda com tudo.

—Olha aqui, Flora; dá licença, conselheiro?

Esqueceu-me dizer que esta conversação era á porta de uma loja de fazendas e modas, rua do Ouvidor. Ayres ia na direcção do largo de S. Francisco de Paula e viu a mãe e a filha dentro, sentadas, a escolher um tecido. Entrou, comprimentou-as, e veiu á porta com a filha. O chamado de D. Claudia interrompeu a conversação por alguns instantes. Ayres ficou a olhar para a rua, onde subiam e desciam mulheres de todas as classes, homens de todos os officios, sem contar as pessoas paradas de ambos os lados e no centro. Não havia borborinho grande, nem socego puro, um meio termo.

Talvez algumas pessoas fossem conhecidas de Ayres e o comprimentassem; mas este tinha a alma tão mettida em si mesma que, se falou a uma ou duas, foi o mais. De quando em quando, voltava a cabeça para dentro, onde Flora e a mãe faziam a sua consulta. Ouvia as palavras trocadas ainda agora. Sentia-se curioso de saber se finalmente a moça escolhia a um dos gemeos, e qual destes. Vá tudo; tinha já pezar que não fosse algum, posto não lhe importasse saber se Pedro ou Paulo. Quizera vel-a feliz, se a felicidade era o casamento, e feliz o marido, sem embargo da exclusão; o excluido seria consolado. Agora, se era por amor delles, se della, é o que propriamente se não póde dizer com verdade. Quando muito, para levantar a ponta do veu, seria preciso entrar na alma delle, ainda mais fundo que elle mesmo. Lá se descobriria acaso, entre as ruinas de meio celibato, uma flôr descorada e tardia de paternidade, ou, mais propriamente, de saudade della...

Flora trouxe novamente a rosa fresca e rubra da primeira hora. Não falaram mais de contradicção, mas da rua, da gente e do dia. Nenhuma palavra ácerca de Pedro ou Paulo.


CAPITULO LXXXVIII

Não, não, não

Elles, onde quer que estivessem naquelle momento, podiam falar ou não. A verdade é que, se nenhum consentia em deixar a moça, tambem nenhum contava obtel-a, por mais que a achassem inclinada. Tinham já combinado que o rejeitado acceitaria a sorte, e deixaria o campo ao vencedor. Não chegando a victoria, não sabiam como resolver a batalha. Esperar, seria o mais facil, se a paixão não crescesse, mas a paixão crescia.

Talvez não fosse exactamente paixão, se dermos a esta palavra o sentido de violencia; mas, se lhe reconhecermos uma forte inclinação de amor, um amor adolescente ou pouco mais, era o caso. Pedro e Paulo cederiam a mão da pequena, se houvessem de consultar só a razão, e mais de uma vez estiveram a pique de o fazer; raro lampejo, que para logo desapparecia. A ausencia era já insoffrivel, a presença necessaria. Se não fôra o que aconteceu e se contará por essas paginas adiante, haveria materia para não acabar mais o livro; era só dizer que sim e que não, e o que estes pensaram e sentiram, e o que ella sentia e pensou, até que o editor dissesse: basta! Seria um livro de moral e de verdade, mas a historia começada ficaria sem fim. Não, não, não... Força é continual-a e acabal-a. Comecemos por dizer o que os dous gemeos ajustaram entre si, poucos dias depois daquelle sonho ou delirio da moça Flora, á noite, no quarto.


CAPITULO LXXXIX

O dragão

Vejamos o que é que estes ajustaram. Vinham de estar com Ayres no theatro, uma noite, matando o tempo. Conheceis este dragão; toda a gente lhe tem dado os mais fundos golpes que póde, elle esperneia, expira e renasce. Assim se fez naquella noite. Não sei que theatro foi, nem que peça, nem que genero; fosse o que fosse, a questão era matar o tempo, e os trez o deixaram estirado no chão.

Fôram dallí a um restaurant. Ayres disse-lhes que, antigamente, em rapaz, acabava a noite com amigos da mesma edade. Era o tempo de Offenbach e dá opereta. Contou anecdotas, disse as peças, descreveu as damas e os partidos, quasi deu por si repetindo um trecho, musica e palavras. Pedro e Paulo ouviam com attenção, mas não sentiam nada do que espertava os écos da alma do diplomata. Ao contrario, tinham vontade de rir. Que lhes importava a noticia da um velho café da rua Uruguayana, trocado depois em theatro, agora em nada, uma gente que viveu e brilhou, passou e acabou antes que elles viessem ao mundo? O mundo começou vinte annos antes daquella noite, e não acabaria mais, como um viveiro de moços eternos que era.

Ayres sorriu, porquanto elle tambem assim cuidou, aos vinte e dous annos de edade, e ainda se lembrava do sorriso do pae, já velho, quando lhe disse algo parecido com isso. Mais tarde, tendo adquerido do tempo a noção idealista que ora possuia, comprehendeu que tal dragão era juntamente vivo e defunto, e tanto valia matal-o como nutril-o. Não obstante, as recordações eram doces, e muitas dellas viviam ainda frescas, como se viessem da vespera.

A differença da edade era grande, não podia entrar em pormenores com elles. Ficou só em lembranças, e cuidou de outra cousa. Pedro e Paulo, entretanto, receiosos de que elle os adivinhasse e comprehendesse o desprezo que lhes inspiravam as saudades de tempos remotos e extranhos, pediram-lhe informações, e elle deu as que podia, sem intimidade.

Ao cabo, a conversação valeu mais que este resumo, e a separação não custou pouco. Paulo ainda lhe pediu Offenbach, Pedro uma descripção das paradas de 7 de setembro e 2 de dezembro; mas o diplomata achou meio de saltar ao presente e particularmente a Flora, que louvou como uma bella creatura. Os olhos de ambos concordaram que era bellissima. Tambem louvou as qualidades moraes, a finura do espirito, taes dotes que Pedro e Paulo reconheceram tambem, e dahi a conversação, e porfim o ajuste a que me referi no começo deste capitulo e pede outro.


CAPITULO XC

O ajuste

—Quanto a mim, um de vocês gosta della, senão ambos, disse Ayres.

Pedro mordeu os beiços, Paulo consultou o relogio; iam já na rua. Ayres concluiu o que sabia, que sim, que ambos, e não trepidou em dizel-o, accrescentando que a moça não era como a Republica, que um podia defender e outro atacar; cumpria ganhal-a ou perdel-a de vez. Que fariam elles, dada a escolha? Ou já estava feita a escolha, e o preterido teimava em a torcer para si?

Nenhum, falou logo, posto que ambos sentissem necessidade de explicar alguma cousa. Tinham que a escolha não era clara ou decisiva. Outrosim, que lhes cabia o direito de esperar a preferencia, e fariam o diabo para alcançal-a. Taes e outras ideias vagavam silenciosamente nelles, sem sair cá fóra. A razão percebe-se, e devia ser mais de uma,—primeiro, a materia da conversação,—depois, a gravidade do interlocutor. Por mais que Ayres abrisse as portas á franqueza dos rapazes, estes eram rapazes e elle velho. Mas o assumpto em si era tão seductor, o coração, apesar de tudo, tão indiscreto, que não houve remedio se não falar, mas falar negando.

—Não me neguem, interrompeu Ayres; a gente madura sabe as manhas da gente nova, e adivinha com facilidade o que ella faz. Nem é preciso adivinhar; basta ver e ouvir. Vocês gostam della.

Elles sorriam, mas já agora com tal amargor e acanhamento que mostravam o desgosto da rivalidade, aliás sabida delles. Tal rivalidade era tambem sabida de outros, devia sel-o de Flora, e a situação lhes parecia agora mais complicada e fechada que d'antes.

Tinham chegado ao largo da Carioca, era uma hora da noite. Uma victoria da Santos esperava alli os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as occasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares. Teimava em emendara natureza. Levava-os muita vez a passeio, ao theatro, a visitas. Naquella noite, como soubesse que iam ao theatro, mandou aprestar a victoria que os conduziu para a cidade, e ficou á espera delles.

—Entre, conselheiro, disse Pedro, o carro dá para, trez: eu vou no banquinho da frente.

Entraram e partiram.

—Bem, continuou Ayres, é certo que vocês gostam della, e egualmente certo que ella ainda não escolheu entre os dous. Provavelmente, não sabe que faça. Um terceiro resolveria a crise porque vocês se consolariam depressa; tambem eu me consolei em rapaz. Não havendo terceiro, e não se podendo prolongar a situação, porque é que vocês não combinam alguma cousa?

—Combinar quê? perguntou Pedro sorrindo.

—Qualquer cousa. Combinem um modo de cortar este nó gordio. Cada um que siga a sua vocação. Você Pedro, tentará primeiro desatal-o; se elle não puder, Paulo, você pegue da espada de Alexandre, e dê-lhe o golpe. Fica tudo feito e acabado. Então o destino, que os espera, com duas bellas creaturas, virá trazel-as pela mão a um e a outro, e tudo se compõe na terra como no céu.

Ayres disse mais cousas antes de se apear á porta da casa. Apeado, ainda lhes perguntou:

—Estamos de accordo?

Os dous responderam de cabeça affirmativamente, e, ficando sós, não disseram nada. Que fossem pensando, é natural, e porventura o tempo lhes pareceu curto entre o Cattete e Botafogo. Chegaram á casa, subiram a escada do jardim, falaram da temperatura, que Pedro achava deliciosa e Paulo abominavel, mas não disseram assim para não irritar um ao outro. A esperança do ajuste é que os levava á moderação relativa e passageira. Vivam os fructos pendentes do dia seguinte!

Cá estava o quarto á espera delles, um brinco de arranjo e graça, de commodidade e repouso. Era a mãe que dava os últimos retoques todos os dias; ella cuidava das flôres que seriam postas nos vasinhos de porcellana, e ella mesma as ia tirar á noite e pôr fóra das janellas para que elles não as respirassem dormindo. Cá estavam as velas ao pé das duas camas, mettidas nos seus castiçaes de prata, um com o nome de Pedro, outro com o de Paulo, gravados. Tapetinhos de suas mãos, laços dados por ella nos cortinados, finalmente o retrato della e o do marido pendurados á parede, entre as duas camas, naquelle mesmo logar em que estiveram os de Luiz XVI e Robespierre, comprados na rua da Carioca.

Ao pé de cada um dos castiçaes acharam um biIhetinho de Natividade. Aqui está o que ella dizia: «Algum de vocês quer ir commigo á missa, amanhã? Faz annos que seu avô morreu, e Perpetua está adoentada.» Natividade esquecera de lhes falar antes, e, aliás, andava bem sem elles, mormente de carruagem; mas gostava de os ter comsigo.

Pedro e Paulo riram do convite e da fórma, e um delles propoz que, para agradar á mãe, fossem ambos á missa. A acceitação da proposta veiu prompta; já não era harmonia, era uma especie de dialogo na mesma pessoa. O céu parecia escrever o tratado de paz que ambos teriam de assignar; ou, se preferes, a natureza corrigia as indoles, e os dous rixosos começavam a ajustar o ser e o parecer. Tambem não juro isto, digo o que se póde crêr só pelo aspecto das cousas.

—Vamos á missa, repetiram.

Seguiu-se um grande silencio. Cada um ruminava o ajuste e o modo de o propor. Emfim, de cama a cama, disseram o que lhes parecia melhor, propuzeram, discutiram, emendaram e concluiram sem escriptura de tabellião, apenas por acceitação de palavra. Poucas clausulas. Confessando que não podiam assegurar a escolha de Flora, concordaram em esperar por ella durante um prazo curto; trez mezes. Dada a escolha, o rejeitado obrigava-se a não tentar mais nada. Como tivessem a certeza final da escolha, o accordo era facil; cada um não faria mais que excluir o outro. Não obstante, se ao fim do prazo, nenhuma escolha houvesse, cumpria adoptar uma clausula ultima. A primeira que acudiu foi deixarem ambos o campo, mas não os seduziu. Lembrou-lhes recorrer á sorte, e aquelle que fosse designado por ella, deixaria o campo ao rival. Assim passou uma hora de conversação, após a qual, cuidaram de dormir.


CAPITULO XCI

Nem só a verdade se deve ás mães

Às nove horas da manhã seguinte, Natividade estava prompta para ir á missa que mandava dizer na matriz da Gloria; nenhum dos filhos se lhe apresentou.

—Parece que dormem.

E duas, trez, quatro, cinco vezes, foi até á porta do quarto a ver se ouvia rumor, como resposta ao bilhete que deixara. Nada. Concluiu que teriam entrado tarde. Só não atinou que dormissem sobre o ajuste, nem que ajuste era. Uma vez que o fizessem em cama fôfa, tudo ia bem. Emfim, acabou de calçar as luvas, desceu, entrou no carro e foi para a egreja.

A missa era anniversaria, como dizia o bilhete. Uso velho; o pae tinha a sua missa, a mãe outra, os irmãos e parentes outras. Não lhe esqueciam datas obituarias, como não lhe esqueciam natalicias, quaesquer que fossem, amigas ou parentas; trazia-as todas de cór. Doce memoria! Ha pessoas a quem não ajudas, e chegam a brigar comsigo e com outros por abandono teu. Felizes os que tu proteges; esses sabem o que é 24 de março, 10 de agosto, 2 de abril, 7 e 31 de outubro, 10 de novembro, o anno todo, suas tristezas e alegrias particulares.

Voltando á casa, viu Natividade os dous filhos no jardim, á espera della. Elles correram a abrir-lhe a portinhola do carro, e depois de a apearem e lhe beijarem a mão, explicaram a falta. Tinham resolvido ir ambos, mas o somno...

—O somno e a preguiça, concluiu a mãe rindo.

—Foi só o somno, disse Pedro.

—Accordamos agora mesmo, acabou Paulo.

Disputaram dar-lhe o braço; Natividade os satisfez dando um braço a cada um. Em casa, ao mudar de roupa, Natividade reflectiu que, se Flora lhes tivesse feito algum pedido, elles accordariam cedo, por mais tarde que se deitassem; a memoria serviria de despertador. Passou-lhe uma sombra rapida, mas depressa se reconciliou com a differença. Assim que, não foi por ciume, mas para os trazer a outras seducções e separal-os da guerra ante a bella Flora, que a mãe teimou em levar os filhos para Petropolis. Subiriam na primeira semana de janeiro. A estação seria excellente; annunciou festas, citou nomes, notou-lhes que Petropolis era a cidade da paz. O governo póde mudar cá embaixo e nas provincias...

—Que provincias, mamãe? atalhou Paulo.

Natividade sorriu e emendou.

—Nos Estados. Vae desculpando os descuidos de tua mãe. Bem sei que são Estados; não são como as provindas antigas, não esperam que o presidente lhes vá aqui da Côrte...

—Que Côrte, baroneza?

Agora os dous riram, mãe e filho. Passado o riso, Natividade continuou:

— Petropolis é a cidade da paz; é, como dizia outro dia o conselheiro Ayres, é a cidade neutra, é a cidade das nações. Se a capital do Estado fosse alli, não haveria deposição de governo. Petropolis,—vejam vocês que o nome, apesar da origem, ficou e ficará,—é de todos. A estação dizem que vae ser encantadora...

—Eu não sei se posso ir já, disse Paulo.

—Nem eu, acudiu Pedro.

Ainda uma vez estavam de accordo, mas aqui o accordo trazia provavelmente o divorcio, reflectiu a mãe, e o prazer que lhe deram aquellas duas palavras morreu depressa. Perguntou-lhes que razão tinham para ficar e até quando. Se estivessem estabelecidos com o seu consultorio medico e a sua banca de advogado, era bem; mas, se nenhum delles começara ainda a carreira, que fariam cá embaixo, quando ella e o marido...

—Justamente; eu tenho que fazer uns estudos de clinica na Santa Casa, respondeu Pedro.

Paulo explicou-se. Não ia praticar a advocacia, mas precisava de consultar certos documentos do século XVII na Bibliotheca Nacional; ia escrever uma historia das terras possuidas.

Nada era verdade, mas nem só a verdade se deve dizer ás mães. Natividade ponderou que elles podiam fazer tudo entre as duas barças de Petropolis; desciam, almoçavam, trabalhavam, e ás quatro horas subiriam, como a demais gente. Em cima achariam visitas, musica, bailes, mil cousas bellas, sem contar as manhãs, a temperatura e os domingos. Elles defenderam o estudo, como sendo melhor por muitas horas seguidas.

Natividade não teimou. Mais depressa ficaria esperando que os filhos acabassem os documentos da Bibliotheca e a clinica da Santa Casa. Esta ideia fel-a attentar para a necessidade de ver estabelecidos o joven medico e o joven advogado. Trabalhariam com outros profissionaes de reputação e iriam adiante e acima. Talvez a carreira scientifica lhes désse a grandeza annunciada pela cabocla do Castello, e não a politica ou outra. Em tudo se podia resplandecer e subir. Aqui fez a critica de si mesma, quando imaginou que Baptista abriria a carreira politica de algum delles, sem advertir que o pae de Flora mal continuaria a propria carreira, aliás obscura. Mas a ideia do mando tornava a óccupar a cabeça da mãe, e cheios della os olhos fitavam ora Pedro, ora Paulo.

Chegaram a accordo. Elles subiriam aos sabbados e desceriam ás segundas; o mesmo por occasião de dias santos e festas de gala. Natividade contava com o costume e as attracções.

Na barca e em Petropolis era objecto de conversação a differença entre os filhos, que só iam lá uma vez por semana, e o pae, que trazia tantos negocios ás costas, e subia todas as tardes. Que fariam elles cá em baixo, quando alguns olhos podiam attrail-os e agarral-os lá em cima? Natividade defendia os gemeos, dizendo que um ia á Santa Casa e outro á Bibliotheca Nacional, e estudavam muito, ás noites. A explicação era acceitavel, mas, além de fazer perder um assumpto aos bonitos dentes do verão, podia ser invenção dos rapazes; naturalmente, iriam ás moças.

A verdade é que elles faziam rumor em Petropolis, durante as poucas horas que lá passavam. Além do mais, tinham a semelhança e a graça. As mães diziam bonitas cousas á mãe delles, e indagavam da razão verdadeira que os prendia á capital, não assim como eu digo, nu e cru, mas com arte fina e insidiosa, arte perdida, porque a mãe insistia na Bibliotheca e na Santa Casa. Deste geito, a mentira, já servida em primeira mão, era servida em segunda, e nem por isso melhor acceita.


CAPITULO XCII

Segredo acordado

Emfim, que segredo ha que se não descubra? Sagacidade, boa vontade, curiosidade, chama-lhe o que quizeres, ha uma força que deita cá para fóra tudo o que as pessoas cuidam de esconder. Os proprios segredos cançam de calar,—calar ou dormir; fiquemos com este outro verbo, que serve melhor á imagem. Cançam, e ajudam a seu modo aquillo que imputamos á indiscrição alheia.

Quando elles abrem os olhos, faz-lhes mal a escuridão. Um raio de sol basta. Então pedem aos deuses (porque os segredos são pagãos) um quasi nada de crepusculo, aurora ou tarde, posto que a aurora prometta dia, emquanto a tarde cae outra vez na noite, mas tarde que seja, tudo é respirar claridade. Que os segredos, amiga minha, tambem são gente; nascem, vivem e morrem. Agora o que succede, quando um olhar de sol penetra na solidão delles, é que difficilmente sae mais, e geralmente cresce, rasga, alaga, e os traz pela orelha cá para fóra. Vexados da grande luz, elles a principio andam de ouvido em ouvido, cochichados, alguma vez escriptos em bilhetes, ainda que tão vagamente e sem nomes, que mal se adivinhará quaes sejam. É o periodo da infancia, que passa depressa; a mocidade pula por cima da adolescencia, e elles apparecem fortes e derramados, sabidos como gazetas. Emfim, se a velhice chega, e elles não se vexam dos cabellos brancos, tomam conta do mundo, e acaso conseguem, não digo esquecer, mas aborrecer; entram na familia do proprio sol, que quando nasce é para todos, segundo dizia uma taboleta da minha infancia.

Taboletas da minha infancia, ai, taboletas! Quizera acabar por ellas este capitulo, mas o assumpto não teria nobreza nem interesse, e ainda uma vez interromperiamos a nossa historia. Fiquemos no segredo divulgado; é quanto basta. Uma veranista elegante não dissimulou o seu espanto ao saber que os dous irmãos combinavam n'um ponto que faria romper os maiores amigos deste mundo. Um secretario de legação insinuou que podia ser brincadeira dos dous.

—Ou dos trez, accrescentou outra veranista.

Iam de passeio á Quitandinha, a cavallo. Ayres acompanhava-os, e não dizia nada. Quando lhe perguntaram se Flora era bonita, respondeu que sim, e falou da temperatura. A primeira veranista perguntou-lhe se era capaz de supportar aquella situação. Ayres respirou, como quem vem de longe, e declarou que aos pés de um padre seria obrigado a mentir, taes eram os seus peccados; mas alli, na estrada, ao ar livre, entre senhoras, confessou que matara mais de um rival. Que se lembrasse trazia sete mortes ás costas, com varias armas. As senhoras riam; elle falava soturno. Só uma vez escapou de morrer primeiro, e inventou uma anecdota napolitana. Fez a apologia do punhal. Um que tivera, ha muitos annos, o melhor aço do mundo, foi obrigado a dal-o de presente a um bandido, seu amigo, quando lhe provou que completára na vespera o seu vigesimo nono assassinato.

—Aqui está para o trigesimo, disse-lhe entregando a arma.

Poucos dias depois soube que o bandido, com aquelle punhal, matara o marido de uma senhora, e depois a senhora, a quem amava sem ventura.

—Deixei-o com trinta e um crimes de primeira ordem.

As damas continuavam a rir; elle conseguiu assim desviar a conversação de Flora e seus namorados.


CAPITULO XCIII

Não ata nem desata

Emquanto indagavam della em Petropolis, a situação moral de Flora era a mesma,—o mesmo conflicto de affinidades, o mesmo equilibrio de preferencias. Cessado o conflicto, roto o equilibrio, a solução viria de prompto, e, por mais que doesse a um dos namorados, venceria o outro, a menos que interviesse o punhal da anecdota de Ayres.

Assim passaram algumas semanas desde a subida de Natividade. Quando Ayres vinha ao Rio de Janeiro, não deixava de ir vel-a a S. Clemente, onde a achava qual era d'antes, salvo um pouco de silencio em que a viu mettida uma vez. No dia seguinte recebeu uma carta de Flora, pedindo-lhe desculpa da desattenção, se a houve, e mandando-lhe saudades. «Mamãe pede que a recommende tambem ao senhor e á familia da baroneza.» Esta recommendação exprimia o consentimento obtido da mãe para que lhe escrevesse a carta. Quando elle tornou ao Rio, correu a S. Clemente e Flora pagou-lhe com alegria grande o silencio daquella outra manhã. Todavia, não era espontanea nem constante; tinha seus cochilos de melancolia. Ayres voltou ainda algumas vezes na mesma semana. Flora apparecia-lhe com a alegria costumada, e, para o fim, a mesma alteração dos ultimos dias.

Talvez a causa daquellas syncopes da conversação fosse a viagem que o espirito da moça fazia á casa da gente Santos. Uma das vezes, o espirito voltou para dizer estas palavras ao coração: «Quem és tu, que não atas nem desatas? Melhor é que os deixes de vez. Não será difficil a acção, porque a lembrança de um acabará por destruir a de outro, e ambas se irão perder com o vento, que arrasta as folhas velhas e novas, além das particulas de cousas, tão leves e pequenas, que escapam ao olho humano. Anda, esquece-os; se os não pódes esquecer, faze por não os ver mais; o tempo e a distancia farão o resto.»

Tudo estava acabado. Era só escrever no coração as palavras do espirito, para que lhe servissem de lembrança. Flora escreveu-as, com a mão tremula e a vista turva; logo que acabou, viu que as palavras não combinavam, as letras confundiam-se, depois iam morrendo, não todas, mas salteadamente, até que o musculo as lançou de si. No valor e no impeto podia comparar o coração ao gemeo Paulo; o espirito, pela arte e subtileza, seria o gemeo Pedro. Foi o que ella achou no fim de algum tempo, e com isso explicou o inexplicavel.

Apesar de tudo, não acabava de entender a situação, e resolveu acabar com ella ou comsigo. Todo esse dia foi inquieto e complicado. Flora pensou em ir ao theatro para que os gemeos não a achassem á noite. Iria cedo, antes da hora da visita. A mãe mandou comprar o camarote, e o pae approvou a diversão, quando veiu jantar, mas a filha acabou com dôr de cabeça, e o camarote ficou perdido.

—Vou mandal-o aos jovens Santos, insinuou Baptista.

D. Claudia oppôz-see guardou o camarote. A razão era de mãe; posto lhe tardasse a escolha e o casamento, ella queria vel-os alli comsigo, falando, rindo, debatendo que fosse, com os olhos pendentes da filha. Baptista não entendeu logo nem depois; mas para não desagradar á esposa, deixou de obsequiar os rapazes. Uma occasião tão boa! Não era muito para elles que possuiam com que despender, e despendiam; o obsequio estava na lembrança, e tambem na cartinha que lhes escreveria, mandando o camarote. Chegou a redigil-a de cabeça, apesar de já inutil. A mulher, ao vel-o calado e serio, cuidou que fosse zanga e quiz fazer as pazes; o marido arredou-a brandamente com a mão. Redigia a cartinha, punha no texto um gracejo sizudo, dobrava o papel e lançava-lhe este sobrescripto gemeo: «Aos jovens apostolos Pedro e Paulo.» O trabalho intellectual tornou mais dura a opposiçâo de D. Claudia. Uma cartinha tão bonita!


CAPITULO XCIV

Gestos oppostos

Como póde um só tecto cobrir tão diversos pensamentos? Assim é tambem este céu claro ou brusco,—outro tecto vastissimo que os cobre com o mesmo zelo da gallinha aos seus pintos... Nem esqueça o proprio craneo do homem, que os cobre igualmente, não só diversos, senão oppostos.

Flora, no quarto, não cuidava então de bilhetes nem camarotes; tambem não acudia á dôr de cabeça, que não tinha. Se falou nella foi por ser uma razão proxima e acceitavel, breve ou longa, conforme a necessidade da occasião. Não supponhas que está rezando, embora tenha alli um oratorio e um crucifixo. Não viria pedir a Jesus que lhe livrasse a alma daquella inclinação desencontrada. Posta á beira da cama, os olhos no chão, pensava naturalmente em alguma cousa grave, se não era nada, que tambem agarra os olhos e o pensamento de uma pessoa. Mordeu os beiços sem raiva; metteu a cabeça entre as mãos, como se quizesse concertar os cabellos, mas os cabellos estavam e ficavam como dantes.

Quando se levantou era totalmente noite, e accendeu uma vela. Não queria gaz. Queria uma claridade branda que désse pouca vida ao quarto e aos seus moveis, que deixasse algumas partes na meia escuridade. O espelho, se fosse a elle, não lhe repetiria a belleza de todos os dias, com a vela posta em cima de uma papeleira antiga, a distancia. Mostrar-lhe-hia a nota de pallidez e de melancolia, é verdade, mas a nossa amiguinha não se sabia pallida, nem se sentia melancolica. Tinha na tristeza desvairada daquella occasião uma pontinha de abatimento.

Como tudo isso se combinava, não sei, nem ella mesma. Ao contrario, Flora parecia, ás vezes, tomada de um espanto, outras de uma inquietação vaga, e, se buscava o repouso de uma cadeira de balanço, era para o deixar logo. Ouviu bater oito horas. Dahi a pouco, entrariam provavelmente Pedro e Paulo. Teve lembrança de ir dizer á mãe que a não mandasse chamar; estava de cama. Esta ideia não durou o que me custa escrevel-a, e aliás já lá vae na outra linha. Recuou a tempo.

—É um desproposito, disse comsigo; basta não apparecer. Mamãe dirá que estou adoentada, tanto que perdemos o theatro, e, se vier aqui, digo-lhe que não posso apparecer...

As ultimas palavras sairam-lhe de viva voz, para maior firmeza da resolução. Projectou reclinar-se já na cama; depois achou melhor fazel-o quando ouvisse o passo da mãe no corredor. Todas essas alternativas podiam vir de si mesmas; entretanto, não é impossivel que fosse tambem um modo de sacudir quaesquer lembranças aborreciveis. A moça temia ir atraz dellas.


CAPITULO XCV

O terceiro

Temendo ir atraz dellas, que havia de fazer Flora? Abriu uma das janellas do quarto, que dava para a rua, encostou-se á grade e enfiou os olhos para baixo e para cima. Viu a noite sem estrellas, pouca gente que passava, calada ou conversando, algumas salas abertas, com luzes, uma com piano. Não viu certa figura de homem na calçada opposta, parada, olhando para a casa de Baptista. Nem a viu, nem lhe importaria saber quem fosse. A figura é que tão depressa a viu como estremeceu e não despegou mais os olhos della, nem os pés do chão.

Lembras-te daquella veranista de Petropolis que attribuiu um terceiro namorado á nossa amiguinha? «Um dos trez», disse ella. Pois aqui está o terceiro namorado, e póde ser que ainda appareça outro. Este mundo é dos namorados. Tudo se póde dispensar nelle; dia virá em que se dispensem até os governos, a anarchia se organisará de si mesma, como nos primeiros dias do paraiso. Quanto á comida, virá de Boston ou de Nova-York um processo para que a gente se nutra com a simples respiração do ar. Os namorados é que serão perpetuos.

Aquelle era official de secretaria. Geralmente os empregados de secretaria casam cedo. Gouvêa era solteiro, andava ás moças. Um domingo, á missa, reparou na filha do ex-presidente, e saiu da egreja tão apaixonado que não quiz outra promoção. Tinha gostado de muitas, acompanhou algumas, esta foi a primeira que o feriu devéras. Pensava nella dia e noite. A rua de S. Clemente era o caminho que o levava e trazia da Repartição. Se a via, olhava muito para ella, detinha-se a distancia, á porta de uma casa, ou então fingia acompanhar com os olhos um carro que passava, e tirava-os do carro para a moça.

Quando amanuense, fizéra versos; nomeado official, perdeu o costume, mas um dos effeitos da paixão foi restituir-lh'o. Comsigo, em casa da mãe, gastava papel e tinta a metrificar as esperanças. Os versos escorriam da penna, a rima com elles, e as estrophes vinham seguindo direitas e alinhadas, como companhias de batalhão; o titulo seria o coronel, a epigraphe a musica, uma vez que regulava a marcha dos pensamentos. Bastaria essa força á conquista? Gouvêa imprimiu alguns em jornaes, com esta dedicatoria: A alguem. Nem assim a praça se rendia.

Uma vez deu-lhe na cabeça mandar uma declaração de amor. Paixão concebe despropositos. Escreveu duas cartas, sem o mesmo estylo, antes contrario. A primeira era de poeta; dava-lhe tu, como nos versos, adjectivava muito, chamava-lhe deusa por afiusão ao nome de Flora, e citava Musset e Casimiro de Abreu. A segunda carta foi um desforço do official sobre o amanuense. Saiu-lhe ao estylo das informações e dos officios, grave, respeitoso, com Excellencias. Comparando as duas cartas, não acabou de escolher nenhuma. Não foi só o texto diverso e contrario, foi principalmente a falta de autorisação que o levou a rasgar as cartas. Flora não o conhecia; quando menos, fugia de o conhecer. Os olhos della, se encontravam os delle, retiravam-se logo indifferentes. Uma só vez cuidou que traziam a intenção de perdoar. Que esse breve raio de luz lhe desabotoasse as flores da esperança (começo a falar como a primeira carta) era possivel e até certo; tão certo que lhe fez perder o ponto na Repartição. Felizmente, era optimo empregado; o director ampliou o quarto de hora de tolerancia, e attendeu á dôr de cabeça, causa de triste insomnia.

—Dormi sobre a madrugada, acabou o official.

—Assigne.

Senão quando, morre-lhe o padrinho ao Gouvêa, e em testamento deixou ao afilhado trez contos de reis. Qualquer acharia nisso um beneficio, Gouvêa achou dous: o legado e a occasião de travar relações com o pae de Flora. Correu a pedir-lhe que acceitasse a procuração de legatario, ajustando logo os honorarios e as despezas. Com pouco, foi procural-o á casa, e para que o advogado désse a noticia do constituinte á familia, empregou muitos ditos subtis e graciosos, contou anecdotas do padrinho, expoz conceitos philosophicos e um programma de marido. Descreveu tambem a situação administrativa, a promoção eminente, os louvores recebidos, commissões e gratificações, tudo o que o distinguia de outros companheiros. De resto, ninguem na Repartição lhe queria mal. Aquelles mesmos que se creram prejudicados, acabavam confessando que era justa a preferencia dada ao Gouvêa. Não seria tudo exacto; elle o cria assim, ao menos, e, se não cria tudo, não desmentiu nada. Perdeu tempo e trabalho. Flora não soube da conversação.

Nem soube da conversação, nem deu agora pelo vulto, como lá disse. tambem disse que a noite era escura. Accrescento que começou a pingar fino e a ventar fresco. Gouvêa trazia guarda-chuva e ia a abril-o, mas recuou. O que se passou na alma delle foi uma luta egual á dos dous textos da carta. O official queria abrigar-se da chuva, o amanuense queria apanhal-a, isto é, o poeta renascia contra as intemperies, sem medo ao mal, prestes a morrer por sua dama, como nos tempos da cavallaria. Guarda-chuva era ridiculo; poupar-se á constipação desmentia a adoração. Tal foi a luta e o desfecho; venceu o amanuense, emquanto a chuva ia pingando grosso, e outra gente passava abrigada e depressa. Flora entrou e fechou a janella. O amanuense esperou ainda algum tempo, até que o official abriu o guarda-chuva e fez como os outros. Em casa achou a triste consolação da mãe.


CAPITULO XCVI

Retraimento

Aquella noite acabou sem incidente. Os gemeos viéram, Flora não appareceu, e no dia seguinte duas cartinhas perguntavam a D. Claudia como passára a filha. A mãe respondeu que bem. Nem por isso Flora os recebeu com a alegria do costume. Tinha alguma cousa que a fazia falar pouco. Pediram-lhe musica, tocou; foi bom, porque era um meio de se metter comsigo. Não respondeu aos apertos de mão, como elles suppunham que fazia até ha pouco. Assim foi essa noite, assim fôram as outras. Ora um, ora outro chegava primeiro, imaginando que a presença do rival é que tolhia a moça; mas a precedencia não valia nada.


CAPITULO XCVII

Um Christo particular

Tudo isso lhe custava tanto, que ella acabou pedindo ao seu Christo um logar de governador para o pae,—ou qualquer commissão fóra daqui. Jesus-Christo não distribue os governos deste mundo. O povo é que os entrega a quem merece, por meio de cedulas fechadas, mettidas dentro de uma urna de madeira, contadas, abertas, lidas, sommadas e multiplicadas. A commissão podia vir, isso sim; a questão era saber se Jesus-Christo acudirá a todos os que lhe pedem a mesma cousa. Os commissarios seriam infinitamente mais que as commissões. Esta objecção foi logo expellida do espirito de Flora, porque ella pedia ao seu Christo, um de marfim velho, deixa da avó, um Christo que nunca lhe negou nada, e a quem as outras pessoas não vinham importunar com supplicas. A propria mãe tinha o seu particular, confidente de ambições, consolo de desenganos; não recorria ao da filha. Tal era a fé ingenua da moça.

Certarmente, já lhe havia pedido que a livrasse daquella complicação de sentimentos, que não acabavam de ceder um ao outro, daquella hesitação cançativa, daquelle empuxar para ambos os lados. Não foi ouvida. A causa seria talvez por não haver dado ao pedido a fórma clara que aqui lhe ponho, com escandalo do leitor. Effectivamente, não era facil pedir assim por palavras seguidas, faladas ou só pensadas; Flora não formulou a supplica. Poz os olhos na imagem e esqueceu-se de si, para que a imagem lêsse dentro della o seu desejo. Era demais; requerer o favor do céu e obrigal-o a adivinhar o que era... Assim cuidou Flora, e resolveu emendar a mão. Não chegou lá; não ousou dizer a Jesus o que não dizia a si mesma. Pensava nos dous, sem confessar a nenhum. Sentia a contradicção, sem ousar encaral-a por muito tempo.


CAPITULO XCVIII

O medico Ayres

Um dia pareceu á mãe que a filha andava nervosa. Interrogou-a e apenas descobriu que Flora padecia de vertigens e esquecimentos. Foi justamente um dia em que Ayres lá appareceu de visita, com recados de Natividade. A mãe falou-lhe primeiro e confiou-lhe os seus sustos. Pediu-lhe que a interrogasse tambem. Ayres fez de medico, e, quando a moça appareceu e a mãe os deixou na sala, cuidou de a interrogar cautelosamente.

Vão proposito, porque ella mesma iniciou a conversação, queixando-se de dôr de cabeça. Ayres observou que dôr de cabeça era molestia de moça bonita, e, tendo confessado que este dito era banal, descobriu-lhe o motivo. Não queria perder a occasião de lhe dizer o que toda a gente sabia e dizia, não só aqui, como em Petropolis.

—Porque não vae a Petropolis? concluiu.

—Espero fazer outra viagem mais longa, muito longa...

—Para o outro mundo, aposto?

—Acertou.

—Já tem bilhete de passagem?

—Comprarei no dia do embarque.

—Talvez não ache. Ha grande concurrencia para aquellas paragens; melhor é comprar antes, e, se quer, eu me encarrego disso; comprarei outro para mim, e iremos juntos. A travessia, quando não ha conhecidos, deve ser fastidiosa; ás vezes, os proprios conhecidos aborrecem, como succede neste mundo. As saudades da vida é que são agradaveis. A gente de bordo é vulgar, mas o commandante impõe confiança. Não abre a bôca, dá as suas ordens por gestos, e não consta que haja naufragado.

—O senhor está caçoando commigo; eu creio até que estou com febre.

—Deixe ver.

Flora estendeu-lhe o pulso; elle, com ar profundo:

—Está; febre de quarenta e sete grãos, a mão está ardendo, mas isto mesmo prova que não é nada, porque aquellas viagens fazem-se com as mãos frias. Ha de ser constipação, fale a sua mãe.

—Mamãe não cura.

—Póde curar, ha remedios caseiros; em todo caso, peça-lhe, e ella póde mandar chamar um medico.

—Medico dá tizanas, e eu não gósto de tizanas.

—Nem eu, mas tolero-as. Porque não experimenta a homoeopathia, que não tem gosto, como a allopathia?

—Qual é a que lhe parece melhor?

—A melhor? Só Deus é grande.

Flora sorriu, de um sorriso pallido, e o conselheiro percebeu algo que não era tristeza de passagem ou de creança. Novamente lhe falou de Petropolis, mas não insistiu. Petropolis era a aggravação do momento actual.

—Petropolis tem o mal das chuvas, continuou. Eu, se fosse a senhora, saía desta casa e desta rua; vá para outro bairro, casa amiga, com sua mãe ou sem ella...

—Para onde? perguntou Flora anciosa.

E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e queria que elle mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto mais longe, melhor. Foi o que elle leu nos olhos parados. É ler muito, mas os bons diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz um rosto calado, e até o contrario. Ayres fôra diplomata excellente, apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous verbos parentes.


CAPITULO XCIX

A titulo de ares novos...

—Vou arranjar-lhe uma casa boa, disse elle, á despedida.

Desde que estava em Petropolis, Ayres não ia jantar a Andarahy, com a irmã, ás quintas-feiras, segundo ajustára e consta do cap. XXXII. Agora foi lá, e cinco dias depois Flora transferia-se para a casa della, a titulo de ares novos. D. Rita não consentiu que D. Claudia lhe levasse a filha, ella mesma a foi buscar a S. Clemente, e Ayres acompanhou as trez.

A mocidade de Flora na casa de D. Rita foi como uma rosa nascida ao pé de paredão velho. O paredão remoçou. A simples flôr, ainda que pallida, alegrou o barro gretado e as pedras despidas. D. Rita vivia encantada; Flora pagava o agazalho da dona da casa com tanta ingenuidade e graça, que esta acabou por lhe dizer que a roubaria á mãe e ao pae, e foi ainda occasião de riso para as duas.

«Você me deu um lindo presente com esta moça, escrevia D. Rita ao irmão; foi uma alma nova, e veiu em boa occasião, porque a minha anda já caduca. É muito docilzinha, conversa, toca e desenha que faz gosto, tem aqui tirado riscos de varias cousas, e eu saio com ella para lhe mostrar vistas apreciaveis. Às vezes, apresenta uma cara triste, olha vagamente, e suspira; mas eu pergunto-lhe se são saudades de S. Clemente, ella sorri e faz ura gesto de indifferença. Não lhe falo dos nervos, para não a affligir, mas creio que vae melhor...»

Flora tambem escreveu as conselheiro Ayres, e as duas cartas chegaram á mesma hora a Petropolis. A de Flora era um agradecimento grande e cordial, mal entremeado de alguma palavra saudosa; confirmava assim a carta da outra, posto não a houvesse lido. Ayres comparou-as, lendo duas vezes a da moça para ver se ella escondia mais do que transparencia do papel. Em summa, confiava no remedio.

—Não os vendo, esquece-os, pensou elle; e se na visinhança houver alguem que pense em gostar della, é possivel que acabe casando.

Respondeu a ambas, na mesma noite, dizendo-lhes que na quinta-feira iria almoçar com ellas. A D. Claudia escreveu mandando-lhe a carta da irmã, e foi passar a noite em casa de Natividade, a quem deu a ler as cinco cartas. Natividade approvou tudo. Notava só que os filhos não lhe escreviam, e deviam estar desesperados.

—A Santa Casa cura, e a Bibliotheca Nacional tambem, retorquiu Ayres.

Na quinta feira, Ayres desceu e foi almoçar a Andarahy. Achou-as como as tinha lido nas cartas. Interrogou-as separadamente para ouvir por bôca as confissões do papel; eram as mesmas. D. Rita parecia ainda mais encantada. Talvez a causa recente fosse a confidencia que fez a moça, na vespera. Como falassem de cabellos, D. Rita referiu o que tambem consta do cap. XXXII, isto é, que cortára os seus para os metter no caixão do marido, quando o levaram a enterrar. Flora não a deixou acabar; pegou-lhe das mãos e apertou-as muito.

—Nenhuma outra viuva faria isto, disse ella.

Aqui foi D. Rita que lhe pegou nas mãos, pôl-as sobre os seus hombros, e concluiu o gesto por um abraço. Todas as pessoas louvaram-lhe a abnegação do acto; esta era a primeira que a achou unica. E dahi outro abraço longo, mais longo...


CAPITULO C

Duas cabeças

Tão longo foi o abraço que tomou o resto ao capitulo. Este começa sem elle nem outro. O mesmo aperto de mão de Ayres e Flora, se foi demorado, tambem acabou. O almoço fez gastar algum tempo mais que de costume, porque Ayres, além de conversador emerito, não se fartava de ouvir as duas, principalmente a moça. Achava-lhe um toque de languidez, abatimento ou cousa proxima, que não encontro no meu vocabulario.

Flora mostrou-lhe os desenhos que fizera, paisagens, figuras, um pedaço da estrada da Tijuca, um chafariz antigo, um Principio de casa. Era umas dessas casas, que alguem começou muitos annos antes, e ninguem acabou, ficando só duas ou trez paredes, ruina sem historia. Havia ainda outros desenhos, uma revoada de passaros, um vaso á janella. Ayres ia folheando, cheio de curiosidade e paciencia; a intenção da obra suppria a perfeição, e a fidelidade devia ser approximada. Emfim, a moça atou os cordões á pasta. Ayres, parecendo-lhe que ficara um desenho ultimo r escondido, pediu que lh'o mostrasse.

—É um esboço, não vale a pena.

—Tudo vale a pena; quero acompanhar as tentativas da artista; deixe ver.

—Não vale a pena...

Ayres insistiu; ella não pôde recusar mais tempo, abriu a pasta, e tirou um pedaço de papel grosso em que estavam desenhadas duas cabeças juntas e eguaes. Não teriam a perfeição desejada por ella; não obstante, dispensavam os nomes. Ayres considerou a obra, durante alguns minutos, e duas ou trez vezes levantou os olhos para a autora. Flora já os esperava, interrogativa; queria ouvir o louvor ou a critica, mas não ouviu nada. Ayres acabou de observar as duas cabeças, e pousou o desenho entre os papeis.

—Não lhe dizia que era um esboço? perguntou Flora, a ver se lhe arrancava uma palavra.

Mas o ex-ministro preferiu não dizer nada. Em vez de achar quasi extincta a influencia dos gemeos, vinha dar com ella feita consolação da ausencia, tão viva que bastava a memoria, sem presença dos modelos. As duas cabeças estavam ligadas por um vinculo escondido. Flora, vendo continuar o silencio de Ayres, comprehendeu acaso parte do que lhe passava no espirito. Com um gesto prompto, pegou do desenho e deu-lh'o. Não lhe disse nada, menos ainda escreveu qualquer palavra. Qualquer que fosse, seria indiscreta. De mais, era o unico desenho a que ella não pôz assignatura. Deu-lh'o como se fôra um penhor de arrependimento. Em seguida, atou novamente as fitas da pasta, emquanto Ayres, rasgava calado o desenho e mettia os pedaços no bolso. Flora ficou por um instante parada, bôca entre-aberta, mas logo lhe apertou a mão, agradecida. Não pôde evitar que lhe caissem duas pequeninas lagrimas,—como outras tantas fitas que lhe atavam para sempre a pasta do passado.

A imagem não é boa, nem verdadeira; foi a que acudiu ao conselheiro, andando, ao voltar de Andarahy. Chegou a escrevel-a no Memorial, depois riscou-a, e escreveu uma reflexão menos definitiva: «Talvez seja uma lagrima para cada gemeo.»

—Póde acabar com o tempo, pensou elle indo para a barca de Petropolis. Não importa; é um caso embrulhado.


CAPITULO CI

O caso embrulhado

Tambem os gemeos achavam o caso embrulhado. Quando iam a S. Clemente, tinham noticias da moça, sem que lhes déssem certeza do regresso. O tempo andava; não tardaria que consultassem a sorte, como dous antigos.

A rigor, não contavam as semanas de interrupção, uma vez que a escolha se não dava, e elles podiam trazer da consulta o contrario da inclinação definitiva da moça. Reflexão justa, posto que interessada. Cada um delles não queria mais que prolongar a batalha, esperando vencel-a. Entretanto, não confiavam um do outro este pensamento gemeo, como elles. Ambos se iam sentindo exclusivos, a affeição tinha agora o seu pudor e necessidade de calar. Já não falavam de Flora.

Nem só de Flora. Crescendo a opposição, recorriam ao silencio. Evitavam-se; se podiam, não comiam juntos; se comiam juntos, diziam pouco ou nada. Às vezes, falavam para tirar aos criados qualquer suspeita, mas não advertiam que falavam mal e forçadamente, e que os criados iam commentar as palavras e a expressão delles na copa. A satisfação com que estes communicavam os seus achados e conclusões é das poucas que adoçam o serviço domestico, geralmente rude. Não chegavam, porém, ao ponto de concluir tudo o que os ia tornando cada vez mais avessos, a ponto de odio que crescia com a ausencia da mãe. Era mais que Flora, como sabeis; eram as proprias pessoas inconciliaveis. Um dia houve na copa e na cozinha grande novidade, Pedro, a pretexto de sentir mais calor que Paulo, mudou de quarto e foi dormir mal em outro não menos quente que o primeiro.


CAPITULO CII

Visão pede meia sombra

Entretanto, a bella moça não os tirava da mesma alcova sua, por mais que buscasse devéras fugir-lhes. A memoria os trazia pela mão, elles entravam e ficavam. Iam depois embora, ou de si mesmos, ou empurrados por ella. Quando tornavam, era de sorpresa. Um dia, Flora aproveitou a presença para fazer um desenho egual ao que dera ao conselheiro, mais perfeito agora, muito mais acabado.

Tambem cançava. Então saía do quarto e ia para o piano. Elles iam com ella, sentavam-se aos lados ou ficavam defronte, em pé, e ouviam com attenção religiosa, ora um nocturno, ora uma tarantella. Flora tocava ao sabor de ambos, sem deliberação; os dedos é que obedeciam á mecanica da alma. Para os não ver, inclinava a cabeça sobre o teclado; mas o campo da visão os guardava, se não era a respiração que se fazia sentir defronte ou dos lados. Tal era a subtileza dos seus sentidos.

Se fechava o piano e descia ao jardim, succedia muita vez que os ia achar alli, passeando, e a comprimentavam com tão boa sombra, que ella esquecia por instantes a impaciencia. Depois, sem que os mandasse, iam embora. Nos primeiros tempos. Flora tinha medo que a houvessem abandonado de todo, e chamava-os dentro de si. Ambos tornavam logo, tão doceis, que ella acabou de se convencer que a fuga não era fuga. nem elles sentiam desprezo, e não os evocou mais. No jardim era mais rapido o desapparecimento, talvez pela extrema claridade do logar. Visão pede meia sombra.


CAPITULO CIII

O quarto

Sei, sei, trez vezes sei que ha muitas visões dessas nas paginas que lá ficam. Ulysses confessa a Alcinoos que lhe é enfadonho contar as mesmas cousas. Tambem a mim. Sou, porém, obrigado a ellas, porque sem ellas a nossa Flora seria menos Flora, seria outra pessoa que não conheci. Conheci esta, com as suas obsessões ou como quer que lhes chames.

Nem por isso, nem ainda porque houvesse colhido algum abatimento e nervos, deixava Flora de enfeitar muito, de se fazer mais linda, e ter mais de um namorado incognito, que suspirava por ella. Não faltava quem a admirasse de passagem, e fosse vel-a, quando menos, no banco verde, á porta do jardim, ao pé da irmã de Ayres. Póde ser que conhecesse algum, Gouvêa, por exemplo; em verdade, era como se os não visse.

Um delles valia mais que todos pela carruagem,—tirada por uma bella parelha de cavallos,—capitalista do bairro. A casa delle era um palacete, os moveis feitos na Europa, estylo imperio, apparelhos de Sèvres e de prata, tapetes de Smyrna, e uma vasta camara com dous leitos, um de solteiro, outro de casados. O segundo esperava a esposa.

—A esposa ha de ser esta, pensou elle um dia, ao ver Flora.

Era maduro; trazia o rosto batido dos ventos da vida, a despeito das muitas aguas de toucador; ao corpo faltava aprumo, e as maneiras não tinham graça nem naturalidade. Era o Nobrega, aquelle da nota de dous mil reis, nota fecunda, que deitou de si muitas outras, mais de dous mil contos de reis. Para as notas recentes, a avó perdia-se na noite dos tempos. Agora os tempos eram claros, a manhã doce e pura.

Quando viu a moça, e fez a reflexão que lá fica, extranhou-se a si proprio. Vira outras damas, e mais de uma com escriptos nos olhos, dizendo-lhe o vasio do coração. Esta era a primeira que veramente lhe prendeu a vontade e lhe deteve o pensamento. Tornou a vêl-a; a gente visinha notou porv'entura a frequencia recente do capitalista. Emfim, Nobrega acabou por se fazer entrado na casa de D. Rita, com desgosto dos seus habituados, que assim se viam esquecidos do amphytrião. Nobrega, entretanto, dera ordens bastantes para que fossem todos servidos e agazalhados, como se elle estivesse presente.

A ausencia não lhe faria perder as loas dos amigos. Ao contrario, os servos podiam dar testemunho do que todos elles pensavam do «grande homem.» Tal era o nome que lhe applicara o secretario particular, e pegou. Nobrega sabia pouca orthographia, nenhuma syntaxe, licções uteis, de certo, mas que não valiam a moral, e a moral, diziam todos, acompanhando o secretario, era o seu principal e maior merito. O fiel escriba accrescentava, que sendo preciso despir a camisa e dal-a a um mendigo, Nobrega o faria, ainda que a camisa fosse bordada.

Agora mesmo, este amor era, ao cabo, um movimento de caridade. Em pouco tempo, aquelle gosto de relance passou a grande paixão, tão grande que elle não a pôde conter, e resolveu confessal-a. Hesitou se o faria á propria moça ou á dona da casa. Não tinha animo para uma nem outra. Uma carta suppria tudo, mas a carta pedia lingua, calor e respeito. Se, ao menos, o gesto de Flora lhe dissesse alguma cousa, ainda que pouca, vá; a carta seria então uma resposta. Mas não lhe dizia nada o gesto da moça. Era só cortez e gracioso; não ia além dessas duas expressões.

D. Rita percebeu a inclinação de Nobrega e achou que era a melhor solução da vida para a hospede. Todas as incertezas, angustias e melancolias vinham acabar nos braços de um ricasso, estimado, respeitado, dentro de um palacete com uma carruagem ás ordens... Ella mesma punha em relevo este premio grande da loteria de Hespanha.

Emfim, o secretario de Nobrega redigiu com a melhor linguagem que possuia uma carta em que o capitalista pedia a D. Rita o favor de consultar a moça amada.

—Não escreva palavrinhas doces, recommendou elle ao secretario. Gósto dessa moça com um sentimento de protecção, antes que outra cousa. Não é carta de namorado. Estylo grave...

—Uma carta secca, concluiu o secretario.

—Totalmente secca, não, emendou Nobrega, uma carta lisongeira, sem esquecer que não sou creança.

Assim se cumpriu. Ia a cumprir-se demais; Nobrega achou que o estylo podia ser um tanto ameno; não fazia mal pôr duas ou trez palavras apropriadas ao objecto, belleza, coração, sentimento... Assim se cumpriu fmalmente, e a carta foi levada ao seu destino. D. Rita ficou contentissima. Justamente o que ella queria. Tinha o plano feito de concluir, por acto seu, uma historia melancolica, a que daria, por derradeira pagina, conclusão deslumbrante. Não pensou em dizel-o primeiro ao irmão, pela razão de querer que elle recebesse a noticia completa, tudo feito e acabado. Releu a carta; dispoz-se a ir logo, mas ha pessoas para quem o adagio que diz que «o melhor da festa é esperar por ella», resume todo o prazer da vida. D. Rita tinha essa opinião. Todavia, entendeu que taes cartas não são das que se guardam largo tempo, nem aliás das que se communicam sem cautella. Esperou vinte e quatro horas. Na manhã seguinte, depois de almoçadas, leu a carta á moça. O natural é que Flora ficasse espantada. Ficou, mas não tardou que risse, de um riso franco e sonoro, como ainda não rira em Andarahy. D. Rita ficou espantadissima. Suppunha que, não a pessoa, mas as vantagens e circumstancias pleiteassem a favor do candidato. Esquecia os seus cabellos entregues á sepultura do marido. Deu conselhos á moça, poz em relevo a posição do pretendente, o presente e o futuro, a situação esplendida que lhe dava este casamento, e por fim as qualidades moraes de Nobrega. A moça escutou calada, e acabou rindo outra vez.

—A senhora sabe se serei feliz? perguntou.

—Creio que sim; agora, o futuro é que confirmará ou não.

—Esperemos que o futuro chegue, comquanto me pareça muito demorado. Não nego as qualidades daquelle homem, parece bom, e trata-me bem, mas eu não quero casar, D. Rita.

—Realmente, a edade... Mas nem, ao menos, quer pensar alguns dias?

—Está pensado.

D. Rita ainda esperou um dia. A resposta negativa, dado que Flora viesse a mudar de opinião, podia ser uma desgraça para esta. Uso os proprios termos della, comsigo, grande desgraça, posição esplendida, sentimento profundo. D. Rita ia aos extremos, deante daquelle rico-homem dos ultimos annos do seculo.


CAPITULO CIV

A resposta

Não querendo dar a resposta nua e crua, D. Rita consultou a moça, que lhe respondeu simplesmente:

—Diga que não pretendo casar.

Quando Nobrega recebeu as poucas linhas que D. Rita lhe mandou, ficou assombrado. Não contava com recusa. Ao contrario, era tão certa a acceitação que elle tinha já um programma do noivado. Imaginava a moça, os olhos timidos, a bôca cerrada, o veu que lhe cobriria a linda carinha, a delicadeza delle, as palavras que lhe diria entrando em casa. Tinha já composto uma invocação á Mãe Santíssima, para que os fizesse felizes. «Dou-lhe carro, dizia comsigo, joias, muitas joias, as melhores joias do mundo... » Nobrega não fazia ideia exacta do mundo; era uma expressão. «Hei de dar-lhe tudo, sapatinhos de seda, meias de seda, que eu mesmo lhe calçarei...» Estremecia de cór, ao calçar-lhe as meias. Beijava-lhe os pés e os joelhos.

Tinha imaginado que ella, ao ler a carta, devia ficar tão pasmada e agradecida, que nos primeiros instantes não pudera responder a D. Rita; mas logo depois as palavras sairiam do coração ás golfadas. «Sim, senhora, queria, acceitava; não pensara em outra cousa.» Escreveria logo ao pae e á mãe para lhes pedir licença; elles viriam correndo, incredulos, mas, vendo a carta, ouvindo a filha e D. Rita, não duvidariam da verdade, e dariam o consentimento. Talvez o pae lh'o fosse dar em pessoa. E nada, nada, nada, absolutamente nada, uma simples recusa, uma recusa atrevida, porque em fim quem era ella, apesar da belleza? Uma creatura sem vintem, modestamente vestida, sem brincos, nunca lhe vira brincos ás orelhas, duas perolasinhas que fossem. E porque é que lhe furaram as orelhas, se não tinham brincos que lhe dar? Considerou que ás mais pobres meninas do mundo furam as orelhas para os brincos que lhes possam cair do céu. E vem esta, e recusa os mais ricos brincos que o céu ia chover sobre ella...

Ao jantar, os amigos da casa notaram que elle estava preoccupado. De noite, elle e o secretario sairam a pé. Nobrega buscou em si o gesto mais frio e indifferente que pôde, quasi alegre, e annunciou ao secretario que Flora não queria casar. Não se descreve a admiração do secretario, em seguida a consternação, finalmente a indignação. Nobrega respondia magnanimo:

—Não foi por mal; foi talvez por se julgar abaixo, muito abaixo da fortuna. Creia que é boa moça. Póde ser tambem, quem sabe? Por ter sido um mau conselho do coração. Aquella moça é doente.

—Doente?

—Não affirmo; digo que póde ser.

O secretario affirmou.

—Só a doença, disse elle, explicará a ingratidão, por que o acto é de pura ingratidão.

Aqui tornou a nota da indignação, nota sincera, como as outras. Nobrega gostou de ouvil-a; era um compadecimento. No fim, cumpriu a ideia que trazia ao sair de casa; augmentou-lhe o ordenado. Podia ser a paga da sympathia; o beneficiado foi mais longe, achou que era o preço do silencio, e ninguem soube de nada.


CAPITULO CV

A realidade

A molestia, dada por explicação á recusa do casamento, passou á realidade dahi a dias. Flora adoeceu levemente; D. Rita, para não alarmar os paes, cuidou de a tratar com remedios caseiros; depois, mandou chamar um medico, o seu medico, e a cara que este fez não foi boa, antes má. D. Rita, que costumava ler a gravidade das suas molestias no rosto delle, e sempre as achava gravissimas, cuidou de avisar os paes da moça. Os paes viéram logo. Natividade tambem desceu de Petropolis, não de vez; em cima, tinham medo de algum movimento cá embaixo. Veiu a visitar a moça, e, a pedido desta, ficou alguns dias.—Só a senhora me póde curar, disse Flora; não creio nos remedios que me dão. As suas palavras é que são boas, e os seus carinhos... Mamãe tambem, e D. Rita, mas não sei, ha uma differença, uma cousa... Veja: parece-me que até já rio.

—Já, já; ria mais.

Flora sorriu, ainda que daquelle sorriso descorado que apparece na bôca do enfermo, quando a molestia consente, ou elle fórça a seriedade propria da dôr. Natividade dizia-lhe palavras de animação; fel-a prometter que iria convalecer em Petropolis. A enfermidade começou a ceder. D. Claudia acceitou a offerta de D. Rita, e lá ficou aposentada. Natividade ia á noite para Botafogo e voltava de manhã. Ayres descia de Petropolis um dia sim, um dia não.

Tambem os gemeos lá iam saber da enferma. Agora mais que d'antes, sentiam a fortaleza do vinculo que os prendia á moça. Pedro, já medico, ainda que sem pratica, punha mais autoridade nas perguntas, concluia melhor dos symptomas, mas as esperanças e os receios eram de ambos. Algumas vezes, falavam mais alto que de costume e de conveniencia. A razão, por egoista que fosse, era perdoavel. Suppõe que os cartões de visita falassem; alguns, mais soffregos, proclamariam os seus nomes, para que soubessem logo da presença, da cortezia e da anciedade. Tal cuidado da parte dos dous era inutil, porque ella sabia delles e recebia as lembranças que lhe deixavam.

Flora ia assim passando os dias. Queria Natividade sempre ao pé de si, pela razão que já deu, e por outra que não disse, nem porventura soube, mas podemos suspeital-a e imprimir. Estava alli o ventre abençoado que gerára os dous gemeos. De instincto, achava nella algo particular. Quanto ao influxo que exercia nella, por essa ou qualquer outra causa, não a sabia Natividade; contentava-se em ver que, ainda agora, e em tal crise, Flora não perdera a amizade que lhe tinha. Passavam as horas juntas, falando, se não fazia mal falar, ou então uma com as mãos da outra entre as suas. Quando Flora adormecia, Natividade ficava a contemplal-a, com o rosto pallido, os olhos fundos, as mãos quentes, mas sem perder a graça dos dias da saúde. As outras entravam no quarto, pé ante pé, esticavam os pescoços para vel-a dormir, falavam por gestos ou tão baixo que só o coração as adivinharia.

Quando pareceu melhorar, Flora pediu um pouco mais de luz e de céu. Uma das duas janellas foi então escancarada, e a enferma encheu-se de vida e riso. Não é que a Febre se fosse de todo. Essa bruxa livida estava ao canto do quarto, com os olhos espetados nella; mas, ou de cançada, ou por obrigação imposta, cochilava a miudo, e longamente. Então a enferma sentia só o calor do Mal, que o medico graduava em trinta e nove ou trinta e nove e meio, depois de consultar o thermometro. A Febre, ao ver esse gesto, ria sem escandalo, ria para si.


CAPITULO CVI

Ambos quaes?

Ficámos no ponto cm que uma das janellas do quarto augmentou a dóse do luz e de céu que Flora pediu, sem embargo da febre, aliás pouca. O mais que se passou valia a pena de um livro. Não foi logo, logo, gastou longas horas e alguns dias. Houve tempo bastante para que entre a vida e Flora se fizesse a reconciliação ou a despedida. Uma e outra podiam ser extensas; tambem podiam ser curtas. Conheci um homem que adoeceu velho, se não de velho, e despendeu no rompimento final um tempo quasi infinito. Já pedia a morte, mas quando via o rosto descarnado da derradeira amiga espiar da porta entre-aberta, voltava o seu para outro lado e engrolava uma cantiga da infancia, para enganal-a e viver.

Flora não recorria a taes cantigas, aliás tão proximas. Quando via o céu e um pedaço de sol no muro, deleitava-se naturalmente, e uma vez quiz desenhar, mas não lh'o consentiram. Se a morte a espiava da porta, tinha um calefrio, é verdade, e fechava os olhos. Ao abril-os fitava a triste figura, sem lhe fugir nem chamar por ella.

—Você amanhã está prompta, e de hoje a oito dias, ou antes, vamos para Petropolis, disse Natividade disfarçando as lagrimas, mas a voz fazia o officio dos olhos.

—Petropolis? suspirou a doente.

—Lá terá muito que desenhar.

Eram sete horas da manhã. Na vespera, quando os gemeos sairam de lá, já tarde, os receios da morte cresciam; mas não bastam receios, é preciso que a realidade venha atraz delles; dahi as esperanças. Tambem não bastam esperanças, a realidade é sempre urgente. A madrugada trouxe algum socego; ás sete horas, depois daquellas palavras de Natividade, Flora pôde dormir.

Quando Pedro e Paulo voltaram a Andarahy, a enferma estava acordada, e o medico, sem dar grandes esperanças, mandou fazer applicações, que declarou energicas. Todos tinham signaes de lagrimas. De noite, Ayres appareceu trazendo noticias de agitação na cidade.

—Que é?

—Não sei; uns falam de manifestações ao marechal Deodoro, outros de conspiração contra o marechal Floriano. Ha alguma cousa.

Natividade pediu aos filhos que se não mettessem em barulhos; ambos prometteram e cumpriram. Ao ver o aspecto de algumas ruas, grupos, patrulhas, armas, duas metralhadoras, Itamaraty illuminado, tiveram a curiosidade de saber o que houve e havia; vaga suggestão, que não durou dous minutos. Correram a metter-se em casa, e a dormir mal a noite. Na manhã seguinte os criados levaram os jornaes com as noticias da vespera.

—Veiu algum recado de Andarahy? perguntou um.

—Não, senhor.

Ainda quizeram ler, por alto, alguma cousa. Não puderam; estavam anciosos de sair de casa e saber noticias da noite. Posto levassem os jornaes comsigo, não leram claramente nem seguidamente. Viram nomes de pessoas prezas, um decreto, movimento de gente e de tropas, tão confuso tudo, que deram por si na casa de D. Rita, antes de entender o que houvera. Flora ainda vivia.

—Mamãe, a senhora está mais triste hoje que estes dias.

—Não fales tanto, minha filha, acudiu D. Claudia. Triste estou sempre que adoeces. Fica boa e verás.

—Fica, fica boa, interveiu Natividade. Eu em moça, tive uma doença egual que me prostrou por duas semanas, até que me levantei, quando já ninguem esperava.

—Então já não esperam que me levante?

Natividade quiz rir da conclusão tão prompta, com o fim de a animar. A doente fechou os olhos, abriu-os dahi a pouco, e pediu que vissem se estava com febre. Viram; tinha, tinha muita.

—Abram-me a janella toda.

—Não sei se fará bem, ponderou D. Rita.

—Mal não faz, disse Natividade.

E foi abrir, não toda, mas metade da janella. Flora, posto que já mui caida, fez esforço e voltou-se para o lado da luz. Nessa posição ficou sem dar de si; os olhos, a principio vagos, entraram a parar, até que ficaram fixos. A gente entrava no quarto devagar, e abafando os passos, trazendo recados e levando-os; fóra, espreitavam o medico.

—Demora-se; já devia cá estar, dizia Baptista.

Pedro era medico, propoz-se a ir ver a enferma; Paulo, não podendo entrar tambem, ponderou que seria desagradavel ao medico assistente; além disso, faltava-lhe pratica. Um e outro queriam assistir ao passamento de Flora, se tinha de vir. A mãe, que os ouviu, saiu á sala, e, sabendo o que era, respondeu negativamente. Não podiam entrar; era melhor que fossem chamar o medico.

—Quem é? perguntou Flora, ao vel-a tornar ao quarto.

—São os meus filhos que queriam entrar ambos.

—Ambos quaes? perguntou Flora.

Esta palavra fez crêr que era o delirio que começava, se não é que acabava, porque, em verdade, Flora não proferiu mais nada. Natividade ia pelo delirio. Ayres, quando lhe repetiram o dialogo, rejeitou o delirio.

A morte não tardou. Veiu mais depressa do que se receiava agora. Todas e o pae acudiram a rodear o leito, onde os signaes da agonia se precipitavam. Flora acabou como uma dessas tardes rapidas, não tanto que não façam ir doendo as saudades do dia; acabou tão serenamente que a expressão do rosto, quando lhe fecharam os olhos, era menos de defunta que de esculptura. As janellas, escancaradas, deixavam entrar o sol e o céu.


CAPITULO CVII

Estado de sitio

Não ha novidade nos enterros. Aquelle teve a circumstancia de percorrer as ruas em estado de sitio. Bem pensado, a morte não é outra cousa mais que uma cessação da liberdade de viver, cessação perpetua, ao passo que o decreto daquelle dia valeu só por 72 horas. Ao cabo de 72 horas, todas as liberdades seriam restauradas, menos a de reviver. Quem morreu, morreu. Era o caso de Flora; mas que crime teria commettido aquella moça, além do de viver, e porventura o de amar, não se sabe a quem, mas amar? Perdoai estas perguntas obscuras, que se não ajustam, antes se contrariam. A razão é que não recordo este obito sem pena, e ainda trago o enterro á vista...


CAPITULO CVIII

Velhas ceremonias

Aqui vae a sair o caixão. Todos tiram o chapeu, logo que elle assoma á porta. Gente que passa, pára. Das janellas debruça-se a visinhança, em algumas atopeta-se, por serem as familias maiores que o espaço; ás portas, os criados. Todos os olhos examinam as pessoas que pegam nas alças do caixão, Baptista, Santos, Ayres, Pedro, Paulo, Nobrega.

Este, posto já não frequentasse a casa, mandara saber da enferma, e foi convidado a carregar o gracioso corpo. No carro, em que levava o secretario, e era puxado pela mais bella parelha do prestito, quasi unica, lembrava Nobrega ao secretario.

—Não lhe dizia eu que ella era doente? Era muito doente.

—Muito.

Não vou ao ponto de affirmar que teve prazer com a morte de Flora, só por havel-o feito acertar na noticia da doença, estando ella perfeitamente sã. Mas que ninguem fosse seu marido, foi uma especie de consolação. Houve mais; suppondo que ella o tivesse acceitado e casassem, pensava agora no esplendido enterro que lhe faria. Desenhava na imaginação o carro, o mais rico de todos, os cavallos e as suas plumas negras, o caixão, uma infinidade de cousas que, á força de compôr, cuidava feitas. Depois o tumulo; marmore, letras de ouro... O secretario para o arrancar á tristeza, falava dos objectos da rua.

—V. Ex. lembra-se do chafariz que havia aqui ha annos?

—Não, resmungava Nobrega.

Ainda uma vez, não ha novidade nos enterros. Dahi o provavel tedio dos coveiros, abrindo e fechando covas todos os dias. Não cantam, como os de Hamlet, que temperam as tristezas do officio com as trovas do mesmo officio. Trazem o caixão da cal e a colher para os convidados, e para si as pás com que deitam a terra para dentro da cova. O pae e alguns amigos ficaram ao pé da cova de Flora, a ver cair a terra, a principio com aquelle baque soturno, depois com aquelle vagar cançativo, por mais que os pobres homens se apressem. Enifim, caiu toda a terra, e elles puzeram em cima as grinaldas dos paes e dos amigos: «À nossa querida filha»;—«À nossa santa amiguinha Flora a saudosa amiga Natividade»;—À Flora, um amigo velho», etc. Tudo feito, vieram saindo; o pae, entre Ayres e Santos, que lhe davam o braço, cambaleava. Ao portão, foram tomando os carros e partindo. Não deram pela falta de Pedro e Paulo que ficaram ao pé da cova.


CAPITULO CIX

Ao pé da cova

Nenhum delles contou o tempo gasto naquelle logar. Sabem só que foi de silencio, de contemplação e de saudade. Não digo, para os não vexar agora, mas é possivel que chorassem tambem. Tinham um lenço na mão, enxugavam os olhos; depois com os braços caidos, as mãos prendendo o chapeo, olhavam apparentemente para as flôres que cobriam a sepultura, mas na realidade para a creatura que lá estava embaixo.

Emfim, cuidaram de arrancar-se dalli, e despedir-se da defunta, não se sabe com que palavras, nem se eram as mesmas; o sentido seria egual. Como estivessem defronte um do outro, acudiu-lhes a ideia de um aperto de mão por cima da cova. Era uma promessa, um juramento. Juntaram-se e vieram descendo, calados. Antes de chegar ao portão, reduziram á palavra o gesto das mãos feito sobre a cova. Que juravam a conciliação perpetua.

—Ella nos separou, disse Pedro; agora, que desappareceu, que nos una.

Paulo confirmou de cabeça.

—Talvez morresse para isso mesmo, accrescentou.

Depois, abraçaram-se. Gesto nem palavra traziam emphasis ou affectação; eram simples e sinceros. A sombra de Flora de certo os viu, ouviu e inscreveu aquella promessa de reconciliação nas taboas da eternidade. Ambos, por um impulso commum, voltaram os olhos para ver ainda uma vez a cova de Flora, mas a cova ficava longe e encoberta por grandes sepulchros, cruzes, collumnas, um mundo inteiro de gente passada, quasi esquecida. O cemiterio tinha um ar meio alegre, com todas aquellas grinaldas de flôres, baixo-relevos, bustos, e a côr branca dos marmores e da cal. Comparado á cova recente, parecia um renascimento de vida, que ficou deslembrada a um canto da cidade.

Custou-lhes sair do cemiterio. Não suppunham estar tão presos á defunta. Cada um d'elles ouvia a mesma voz, com egual doçura e palavras especiaes. Tinham chegado ao portão e o carro veiu buscal-os. A cara do cocheiro era radiosa.

Não se explica esta expressão do cocheiro, se não porque, inquieto da demora, não cuidando que os dous freguezes ficassem tanto tempo ao pé da cova, entrara a receiar que tivessem aceitado o convite de algum amigo e voltado para casa. Tinha já resolvido esperar poucos minutos mais, e ir embora; mas a gorjeta? A gorjeta foi dobrada, como a dôr e o amor; digamos, gemea.


CAPITULO CX

Que vôa

Assim como o carro veiu voando do cemiterio, assim voará este capitulo, destinado a dizer primeira que a mãe dos gemeos conseguiu leval-os para Petropolis. Já não allegaram a clinica da Santa Caza nem os documentos da Bibliotheca Nacional. Clinica e documentos repousam agora na cova n... Não ponho o numero, para que algum curioso, se achar este livro na dita Bibliotheca, se dê ao trabalho de investigar e completar o texto. Basta o nome da defunta, que lá ficou dito e redito.

Vôe este capitulo, como o trem de Mauá, serra acima, até á cidade do repouso, do luxo e da galanteria. Vá Natividade com os filhos, e Ayres com os trez. Em cima, á noite, voltando este á casa do barão, pôde ver os effeitos da paz jurada, a conciliação final. Não sabia nada do pacto dos dous moços. Pae nem mãe sabiam cousa nenhuma. Foi um segredo guardado no silencio e no desejo sincero de commemorar uma creatura que os ligára, morrendo.

Natividade vivia agora enamorada dos filhos. Levava-os a toda parte, ou guardava-os para si, afim de os gostar mais deliciosamente, de os approvar por actos, de auxiliar a obra correctiva do tempo. Noticias e boatos do Rio de Janeiro eram objecto de conversação nas casas a que estes iam, sem os convidar a sair da abstenção voluntaria. As recreações pouco a pouco os tomaram, algum passeio de carro ou a cavallo, e outras diversões os traziam unidos.

Assim chegaram ao tempo em que a familia Santos desceu, ainda que a contra-gosto de Natividade. Ella temia que, mais perto do governo, a discordia politica acabasse com a recente harmonia dos filhos, mas não podia lá ficar. A outra gente vinha descendo. Santos queria os seus velhos habitos, e deu algumas razões boas, que Natividade ouviu depois ao proprio Ayres. Podia ser um encontro de ideias, mas se estas eram boas, deviam ser acceitas.

Natividade confiava ao tempo a perfeição da obra; Cria no tempo. Eu, em menino, sempre o vi pintado como um velho de barbas brancas e foice na mão, que me mettia medo. Quanto a ti, amigo meu, ou amiga minha, segundo fôr o sexo da pessoa que me lê, se não fôrem duas, e os sexos ambos,—um casal de noivos, por exemplo,—curiosos de saber como é que Pedro e Paulo puderam estar no mesmo Credo... Não falemos desse mysterio.... Contenta-te de saber que elles tinham em mente cumprir o juramento daquelle logar e occasião. O tempo trouxe o fim da estação, como nos outros annos, e Petropolis deixou Petropolis.


CAPITULO CXI

Um resumo de esperanças

«Quando um não quer, dous não brigam» tal é o velho proverbio que ouvi em rapaz, a melhor edade para ouvir proverbios. Na edade madura elles devem já fazer parte da bagagem da vida, fructos da experiencia antiga e commum. Eu cria neste; mas não foi elle que me deu a resolução de não brigar nunca. Foi por achal-o em mim que lhe dei credito. Ainda que não existisse, era a mesma cousa. Quanto ao modo de não querer, não respondo, não sei. Ninguem me constrangia. Todos os temperamentos iam commigo; poucas divergencias tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapeo. Um delles pediu-me perdão no testamento.

No caso dos gemeos eram ambos que não queriam; parecia-lhes ouvir uma voz de fóra ou de alto que lhes pedia constantemente a paz. Força maior, portanto, e troca de formula: «Se nenhum quer, nenhum briga.»

Naturalmente os actos do governo eram approvados e desapprovados, mas a certeza de que podia accender-Ihes novamente os odios fazia com que as opiniões de Pedro e de Paulo ficassem entre os seus amigos pessoaes. Não pensavam nada á vista um do outro. Divergencias de theatro ou de rua, eram sopitadas logo, por mais que lhes doesse o silencio. Não doeria tanto a Pedro, como a Paulo, mas sempre era padecer alguma cousa. Mudando de pensamento, esqueciam de todo, e o riso da mãe era a paga de ambos.

A carreira differente ia separal-os depressa, comquanto a residencia commum os trouxesse unidos. Tudo se podia combinar; os interesses do officio serviriam a este effeito, as relações pessoaes tambem, e afinal o uso, que vale por muito. Vou aqui resumindo, como posso, as esperanças de Natividade. Outras havia a que chamarei conjugaes; os rapazes porém, não pareciain inclinados a ellas, e a mãe, quem lhe apalpasse o coração sentiria já um anticipado ciume das noras.


CAPITULO CXII

O primeiro mez

Na vespera do dia em que se completou o primeiro mez da morte de Flora, Pedro teve uma ideia, que não communicou ao irmão. Não perderia nada em fazel-o, porque Paulo teve a mesma ideia, e tambem a calou. Della nasce este capitulo.

A pretexto de ir visitar um doente, Pedro saiu de casa, antes das sete horas. Paulo saiu pouco depois, sem pretexto algum. Pia leitora, adivinhas que ambos fôram ao cemiterio; não adivinhas, nem é facil adivinhar que cada um delles levava uma grinalda. Não digo que fossem das mesmas flores, não só para respeitar a verdade, senão tambem para afastar qualquer ideia intencional de symetria na acção e no acaso. Uma era de myosotis, outra creio que de perpetuas. Qual fosse a de um, qual a do outro, não se sabe nem interessa á narração. Nenhuma tinha letreiro.

Quando Paulo chegou ao cemiterio, e viu de longe o irmão, teve a sensação de pessoa roubada. Cuidava ser unico e era ultimo. A presumpção, porém, de que Pedro não levára nada, uma folha sequer, consolou-o da antecipação da visita. Esperou alguns instantes; advertindo que podia ser visto, desviou-se do caminho, metteu-se por entre sepulturas, até ir collocar-se atraz daquella. Ahi esperou cerca de um quarto de hora. Pedro não se queria arrancar dalli; parecia falar e escutar. Emfim, despediu-se e desceu.

Paulo, vagorosamente, caminhou para a sepultura. Indo a depositar a grinalda, viu alli outra posta de fresco, e entendendo que era do irmão, teve impeto de ir atraz delle e pedir-lhe contas da lembrança e da visita. Não lhe leves a mal o impeto; passou immediatamente. O que elle fez foi collocar a coroa que levava no lado correspondente aos pés da defunta, para não a irmanar com a outra, que estava do lado da cabeça.

Não viu, não adivinhou sequer que Pedro naturalmente pararia um instante, para voltar a cara e mandar um derradeiro olhar á moça enterrada. Assim foi, mas quando Pedro deu com o irmão, no mesmo logar que elle, os olhos no chão, teve tambem o seu impulso de ir buscal-o e trazel-o daquella cova sagrada. Preferiu esconder-se e esperar. Os gestos de piedade, quaesquer que fossem, elle os deu primeiro á querida commum. Foi o primeiro em evocar a sombra de Flora, falar-lhe, ouvil-a, gemer com ella a separação eterna. Viera adiante do outro; lembrara-se della mais cedo.

Assim consolado, podia seguir caminho; Paulo, se saisse atraz delle, e o visse, entenderia que fizera a sua visita em segundo logar, e receberia um golpe grande. Deu alguns passos na direcção do portão, estacou, recuou e novamente se escondeu. Queria ver os gestos delle, ver se rezava, se se benzia, para desmentil-o quando lhe ouvisse mofar das ceremonias ecclesiasticas. Logo sentiu que era um erro; não iria confessar a ninguem que o vira rezando ao pé da cova de Flora. Ao contrario, era capaz de o desmentir, —ou, quando menos, fazer um gesto de incredulidade...

Emquanto estas imaginações lhe passavam pela cabeça, desfazendo-se umas ás outras, discursando sem palavras, acceitando, repellindo, esperando, os olhos não se retiravam do irmão, nem este da sepultura. Paulo não fazia gesto, não mexia os labios, tinha os braços cruzados, o chapeo na mão. Não obstante, podia estar rezando. Tambem podia falar calado, para a sombra ou para a memoria da defunta. A verdade é que não saiu do logar. Então Pedro viu que a conversação, evocação, adoração, o que quer que fosse que atava Paulo á sepultura, vinha sendo muito mais demorado que as suas orações. Não marcára o seu tempo, mas evidentemente o de Paulo era já maior. Descontando a impaciencia, que sempre faz crescer os minutos, ainda assim parecia certo que Paulo gastava mais saudades que elle. Deste modo, ganhava na extensão da visita o que perdera na chegada ao cemiterio. Pedro, á sua vez, achou-se roubado.

Quiz sair; mas, uma força, que elle não sabia explicar, não lhe consentia levantar os pés, nem tirar os olhos do gemeo. A custo, pôde emfim trazer a estes e fazel-os andar de volta pelas outras campas, onde leu alguns epitaphios. Um de 1865 não se podia ler bem se era tributo de amor filial ou conjugal, maternal ou paternal, por estar já apagado o adjectivo. Tributo era, tinha a formula adoptada pelos marmoristas, para poupar estylo aos freguezes. Notando que o adjectivo estava comido do tempo, Pedro disse comsigo que o seu amor é que era um substantivo perpetuo, não precisando mais nada para se definir.

Pensou outras cousas com que foi disfarçando a humilhação. Fizera tudo ás carreiras. Se se demorasse mais, era o outro que estaria agora á espreita. O tempo andava, o sol batia no rosto do irmão, e este não arredava pé. Emfim, deu mostras de deixar a cova, mas foi para rodeal-a, e deter-se em todos os quatro lados, como se buscasse o melhor logar de ver ou evocar a pessoa guardada no fundo.

Tudo feito, Paulo arredou-se, desceu e saiu, levando as maldições de Pedro. Este teve uma ideia que desprezou logo, e tu farias o mesmo, amigo leitor; foi tornar á sepultura e emendar ao tempo gasto anteriormente outro pedaço maior. Desprezada a ideia, vagou alguns minutos, até que saiu, sem achar sombra de Paulo.


CAPITULO CXIII

Uma Beatriz para dous

Flora, se visse os gestos de ambos, é provavel que descesse do céu, e buscasse maneira de os ouvir perpetuamente, uma Beatriz para dous. Mas não viu ou não lhe pareceu bem descer. Talvez não achasse necessidade de tornar cá, para servir de madrinha a um duello que deixara em meio.

Quanto a este, se ia continuar, não era pela mesma injuria. Não esqueças que foi ao pé daquella mesma campa que os dous fizeram as pazes eternas, e, posto não lh'as desfizesse a campa, é certo que accendeu um pouco da ira antiga. Dir-me-has, e com apparencia de razão, que, se enterrada ainda os separava, mais os separaria se alli descesse em espirito. Puro engano, amigo. No começo, ao menos, elles jurariam o que ella mandasse.


CAPITULO CXIV

Consultorio e banca

Mezes depois, Pedro abria consultorio medico, aonde iam pessoas doentes, Paulo banca de advogado, que procuravam os carecidos de justiça. Um promettia saude, outro ganho de causa, e acertavam muita vez, porque não lhes faltava talento nem fortuna. Demais, não trabalhavam sós, mas cada qual com um collega de nomeada e pratico.

No meio dos successos do tempo, entre os quaes avultavam a rebellião da esquadra e os combates do sul, a fuzilaria contra a cidade, os discursos inflammados, prisões, musicas e outros rumores, não lhes faltava campo em que divergissem. Nem era preciso politica.. Cresciam agora mais em numero as occasiões e as materias. Ainda quando combinassem de acaso e de apparencia, era para discordar logo e de vez, não deliberamente, mas por não poder ser de outro modo.

Tinham perdido o accordo, feito pela razão, jurado pelo amor, em honra da moça defunta e da mãe viva. Mal se podiam ver, mal ou peor ouvir. Cuidaram de evitar tudo o que o logar e a occasião ajustassem para os separar mais. Desta maneira, a profissão torceu-lhes o caminho e dividiu as relações de ambos. Natividade apenas daria pela má vontade dos filhos, desde que os dous pareciam apostados em lhe querer bem, mas dava por ella, e tentava ligal-os apertadamente e de todo. Santos folgava de se prolongar pela medicina e pela advocacia dos filhos. Só receiava que Paulo, dada a inclinação partidaria, buscasse noiva jacobina. Não ousando dizer-lhe nada a tal respeito, refugiava-se na religião, e não ouvia missa que lhe não mettesse uma oração particular e secreta, para obter a protecção do céu.


CAPITULO CXV

Troca de opiniões

Se não quando, viu Natividade os primeiros signaes de uma troca de inclinação, que mais parecia proposito que effeito natural. Entretanto, era naturalissimo. Paulo entrou a fazer opposição ao governo, ao passo que Pedro moderava o tom e o sentido, e acabava acceitando o regimen republicano, objecto de tantas desavenças.

A acceitação por parte deste não foi rapida nem total; era, porém, bastante para sentir que não havia entre elle e o novo governo um abysmo. Naturalmente o tempo e a reflexão consummaram este effeito no espirito de Pedro, a não admittir que tambem nelle vingasse a ambição de um grande destino, esperança da mãe. Natividade, com effeito, ficou deliciada. Tambem ella mudara, se havia que mudar na simples alma materna para quem todos os regimens valiam pela gloria dos filhos. Pedro, aliás, não se dava todo, restringia alguma cousa ás pessoas e ao systema, mas acceitava o principio, e bastava; o resto viria com a edade, dizia ella.

A opposição de Paulo não era ao principio, mas á execução. Não é esta a republica dos meus sonhos, dizia elle; e dispunha-se a reformal-a em trez tempos, com a fina flor das instituições humanas, não presentes nem passadas, mas futuras. Quando falava dellas, via-se-lhe a convicção nos labios e nos olhos, estes alongados, como alma de propheta. Era outro ensejo de se não entenderem os dous. D. Claudia tinha que era calculo de ambos para se não juntarem nunca;—opinião que Natividade acceitaria, finalmente, se não fôra a de Ayres.

Tambem este notára a mudança, e estava prestes a acceitar a explicação, por aquella razão de commodidade que achava em concordar com as opiniões alheias; não se cançava nem aborrecia. Tanto melhor, se o accordo se fazia com um simples gesto. Desta vez, porém, valeu a pessoa.

—Não, baroneza, disse elle, não creia em propositos.

—Mas que póde ser então?

Ayres gastou algum tempo na escolha das palavras, afim de lhe não sairem pedantescas nem insignificantes; queria dizer o que pensava. Às vezes, falar não custa menos que pensar. Ao fim de trez minutos, segredou a Natividade:

—A razão parece-me ser que o espirito de inquietação reside em Paulo, e o de conservação em Pedro. Um já se contenta do que está, outro acha que é pouco e pouquissimo, e quizera ir ao ponto a que não fôram homens. Em summa, não lhes importam formas de governo, comtanto que a sociedade fique firme ou se atire para diante. Se não concorda commigo, concorde com D. Claudia.

Ayres não tinha aquelle triste peccado dos opiniaticos; não lhe importava ser ou não acceito. Não é a primeira vez que o digo, mas provavelmente é a ultima. Em verdade, a mãe dos gemeos não quiz outra explicação. Nem por isso a discordia morreria entre elles, que apenas trocavam de armas para continuar o mesmo duello. Ouvindo esta conclusão, Ayres fez um gesto affirmativo, e chamou a attenção de Natividade para a côr do céu, que era a mesma, antes e depois da chuva. Suppondo que havia nisto algo symbolico, ella entrou a procural-o, e o mesmo farias tú, leitor, se lá estivesses; mas não havia nada.

—Tenha confiança, baroneza, proseguiu elle pouco depois. Conte com as circumstancias, que tambem são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma especie de deus avulso, ao qual é preciso dar algumas acções de graças; póde ter voto decisivo na assembléa dos acontecimentos. Supponha um despota, uma côrte, uma mensagem. A côrte discute a mensagem, a mensagem canonisa o despota. Cada cortezão toma a si definir uma das virtudes do despota, a mansidão, a piedade, a justiça, a modestia... Chega a vez da grandeza da alma; chega tambem a noticia de que o despota morreu de apoplexia, que um cidadão assumiu o poder e a liberdade foi proclamada do alto do throno. A mensagem é approvada e copiada. Um amanuense basta para trocar as mãos á Historia; tudo é que o nome do novo chefe seja conhecido, e o contrario é impossivel; ninguem trepa ao solio sem isso, nem a senhora sabe o que é memoria de amanuense. Como nas missas funebres, só se troca o nome do encommendado,—Petrus, Paulus...

—Oh! não agoure meus filhos! exclamou Natividade.


CAPITULO CXVI

De regresso

—Então foram eleitos deputados?

—Fôram; tomam assento quinta-feira. Se não fôssem meus filhos, diria que os vem achar mais bellos do que os deixou, ha um anno.

—Diga, diga, baroneza; faça de conta que são meus filhos.

Ayres voltava de Europa, aonde fôra com promessa de ficar seis mezes apenas. Enganou-se; gastou onze. Natividade é que lhe pôz um anno para arredondar a ausencia, que sentira devéras, como D. Rita. O sangue em uma, o costume na outra, custou-lhes a supportar a separação. Elle fôra a pretexto de aguas, e, por mais que lhe recommendassem as do Brasil, não as quiz experimentar. Não estava acostumado ás denominações locaes. Tinha esta impressão que as aguas de Carlsbad ou Vichy, sem estes nomes, não curariam tanto. D. Rita insinuou que elle ia para ver como estavam as moças que deixou, e concluiu:

—Hão de estar tão velhas, como você.

—Quem sabe se mais? O officio dellas é envelhecer, redarguiu o conselheiro.

Quiz rir, mas não pôde ir além da ameaça. Não era a lembrança da propria velhice, nem da caducidade alheia, era a injustiça da sorte que lhe tomou a vista interior. As moças elle sabia muito bem que cediam ao tempo, como as cidades e as instituições, e ainda mais depressa que ellas. Nem todas iriam logo cedo, a cumprir a sentença que attribue ao amor dos deuses a morte prematura das pessoas; mas viu algumas dessas, e agora lhe lembrou a meiga Flora, que lá se fôra com as suas graças finas... Não passou da ameaça de riso.

Quizeram retel-o as duas, Santos tambem, que perdia nelle uma figura certa das suas noites; mas o nosso homem resistiu, embarcou e partiu. Como escrevia sempre á irmã e aos amigos, dava a causa exacta da demora, e não eram amores, salvo se mentia, mas passara a edade de mentir. Affirmou, sim, que recuperara algumas forças, e assim o pareceu quando desembarcou, onze mezes depois, no caes Pharoux. Trazia o mesmo ar de velho elegante, fresco e bem posto.

—Mas então eleitos?

—Eleitos; tomam assento quinta-feira.


CAPITULO CXVII

Posse das cadeiras

Quinta-feira, quando os gemeos tomaram assento na camara, Natividade e Perpetua fôram ver a ceremonia. Pedro ou Paulo arranjou-lhes uma tribuna. A mãe desejou que Ayres fosse tambem. Quando este alli chegou, já as achou sentadas, Natividade a fitar com a luneta o presidente e os deputados. Um destes falava sobre a acta,e ninguem lhe prestava attenção. Ayres sentou-se um pouco mais dentro, e após alguns minutos, disse a Natividade:

—A senhora escreveu-me que eram candidatos de dous partidos contrarios.

Natividade confirmou a noticia; fôram eleitos em opposição um ao outro. Ambos apoiavam a Republica, mas Paulo queria mais do que ella era, e Pedro achava que era bastante e sobeja. Mostravam-se sinceros, ardentes, ambiciosos; eram bem acceitos dos amigos, estudiosos, instruidos...

—Amam-se finalmente?

—Amam-se em mim, respondeu ella depois de formular essa phrase na cabeça.

—Pois basta esse terreno amigo.

—Amigo, mas caduco; amanhã posso faltar-lhes.

—Não falta; a senhora tem muitos e muitos annos de vida. Faça uma viagem á Europa com elles, e verá que regressa ainda mais robusta. Eu sinto-me duplicado, por mais que me custe á modestia, mas a modestia perdoa tudo. E depois, quando os vir encarreirados e grandes homens...

—Porque é que a politica os ha de separar?

—Sim, podiam ser grandes na sciencia, um grande medico, um grande jurisconsulto...

Natividade não quiz confessar que a sciencia não bastava. A gloria scientifica parecia-lhe comparativamente obscura; era calada, de gabinete, entendida de poucos. Politica, não. Quizera só a politica, mas que não brigassem, que se amassem, que subissem de mãos dadas... Assim ia pensando comsigo, emquanto Ayres, abrindo mão da sciencia, acabou declarando que, sem amor, não se faria nada.

—Paixão, disse elle, é meio caminho andado.

—A politica é a paixão delles; paixão e ambição. Talvez já pensem na presidencia da Republica.

—Já?

—Não... isto é, sim; guarde segredo. Interroguei-os separadamente; confessaram-me que este era o seu sonho imperial. Resta saber o que fará um, se o outro subir primeiro.

—Derrubal-o-ha, naturalmente.

—Não graceje, conselheiro.

—Não é gracejo, baroneza. A senhora cuida que a politica os desune; francamente, não. A politica é um incidente, como a moça Flora foi outro...

—Ainda se lembram della.

—Ainda?

—Foram á missa anniversaria, e desconfio que fôram tambem ao cemiterio, não juntos, nem á mesma hora. Se fôram, é que verdadeiramente gostavam della; logo, não foi um incidente.

Sem embargo do que Natividade lhe merecia, Ayres não insistiu na opinião, antes deu mais relevo á della, com o proprio facto da visita ao cemiterio.

—Não sei se fôram, emendou Natividade; desconfio.

—Devem ter ido; elles gostavam realmente da pequena. Tambem ella gostava delles; a differença é que, não alcançando unifical-os, como os via em si, preferiu fechar os olhos. Não lhe importe o mysterio. Ha outros mais escuros.

—Parece que vae entrar a ceremonia, disse Perpetua que olhava para o recinto.

—Chegue-se para a frente, conselheiro.

A ceremonia era a do costume. Natividade cuidou que ia vel-os entrar juntos e affirmarem juntos o compromisso regimental. Viriam assim como os trouxera no ventre e na vida. Contentou-se de os admirar separadamente, Paulo primeiro, Pedro depois, ambos graves, e ouviu-lhes cá de cima repetira formula com voz clara e segura. A ceremonia foi curiosa para as galerias, graças á semelhança dos dous; para a mãe foi commovedora.

—Estão legisladores, disse Ayres no fim.

Natividade tinha os olhos gloriosos. Ergueu-se e pediu ao velho amigo que as acompanhasse á carruagem. No corredor acharam os dous recentes deputados, que vinham ter com a mãe Não consta qual delles a beijou primeiro; não havendo regimento interno nesta outra camara, póde ser que fossem ambos a um tempo, mettendo-lhes ella a cara entre as bocas, uma face para cada um. A verdade é que o fizeram com egual ternura. Depois voltaram ao recinto.


CAPITULO CXVIII

Cousas passadas, cousas futuras

Indo a entrar na carruagem, Natividade deu com a egreja de S. José, ao lado, e um pedaço do morro do Castello, a distancia. Estacou.

—Que é? perguntou Ayres.

—Nada, respondeu ella entrando e estendendo-lhe a mão. Até logo?

—Até logo.

A vista da egreja e do morro despertou nella todas as scenas e palavras que lá ficaram transcriptas nos dous ou trez primeiros capitulos. Não esqueceste que foi ao pé da egreja, entre esta e a camara, que o coupé esperou então por ella e pela irmã.

—Você lembra-se, Perpetua? disse Natividade, quando o carro começou a andar.

—De que?

—Não se lembra que foi alli que ficou o carro, quando fômos á cabocla do Castello?

Perpetua lembrava-se. Natividade advertiu ques devia ser alli perto a ladeira por onde subiram com difficuldade e curiosidade, até á casa da cabocla, no meio da outra gente, que descia ou subia tambem. A casa era á direita, tinha a escada de pedra...

Descança, amigo, não repito as paginas. Ella é que não podia deixar de as evocar, nem impedir que viessem de si mesmas. Tudo reapparecia com a frescura antiga. Não esquecera a figurinha da cabocla, quando o pae a fez entrar na sala: entra, Barbara. A ideia de estar agora madura e longe, restituida ao Estado, que deixou Provincia, rica onde nasceu pobre, não acudiu á nossa amiga. Não, toda ella voltou áquella manhã de 1871. A caboclinha era esta mesma creatura leve e breve, com os cabellos atados no alto da cabeça, olhando, falando, dansando... Cousas passadas.

Quando a carruagem ia a dobrar a praia de Santa Luzia, ladeando a Santa Casa, Natividade teve ideia, mas só ideia, de voltar e ir ter á ladeira do Castello, subir por ella, a ver se achava a adivinha no mesmo logar. Contar-lhe-hia que os dous meninos de mama, que ella predisse seriam grandes, eram já deputados e acabavam de tomar assento na camara. Quando cumpririam elles o seu destino? Viveria o tempo de os ver grandes homens, ainda que muito velha?

A presidencia da Republica não podia ser para dous, mas um teria a vice-presidencia, e se este a achasse pouco, trocariam mais tarde os cargos. Nem faltavam grandezas. Ainda se lembrava das palavras que ouviu á cabocla, quando lhe perguntou pela especie de grandeza que caberia aos filhos. Cousas futuras! respondeu a Pythia do Norte, com tal voz que nunca lhe esqueceu. Agora mesmo parece-lhe que a ouve, mas é illusão. Quando muito, são as rodas do carro que vão rolando e as patas dos cavallos que batem: Cousas futuras! cousas futuras!


CAPITULO CXIX

Que annuncia os seguintes

Todas as historias, se as cortam em fatias, acabam com um capitulo ultimo e outro penultimo, mas nenhum autor os confessa taes; todos preferem dar-lhes um titulo proprio. Eu adopto o methodo opposto; escrevo no alto de cada um dos capitulos seguintes os seus nomes de remate, e, sem dizer a materia particular de nenhum, indico o kilometro em que estamos da linha. Isto suppondo que a historia seja um trem de ferro. A minha não é propriamente isso. Poderia ser uma canoa, se lhe tivesse posto aguas e ventos, mas tu viste que só andamos por terra, a pé ou de carro, e mais cuidosos da gente que do chão. Não é trem nem barco; é uma historia simples, acontecida e por acontecer; o que poderás ver nos dous capitulos que faltam, e são curtos.


CAPITULO CXX

Penultimo

Este é ainda um obito. Ja lá ficou defunta a joven Flora, aqui vae morta a velha Natividade. Chamo-lhe velha, porque li a certidão de baptismo; mas, em verdade, nem os filhos deputados, nem os cabellos brancos davam a esta senhora o aspecto correspondente á edade. A elegancia, que era o seu sexto sentido, enganava os tempos de tal maneira que ella conservava, não digo a frescura, mas a graça antiga.

Não morreu sem ter uma conferencia particular com os dous filhos,—tão particular, que nem o marido assistiu a ella. Tambem não instou por isso. Verdade, verdade, Santos andava a chorar pelos cantos; mal poderia reter as lagrimas, se ouvisse a mulher fazer aos filhos os seus finaes pedidos. Porquanto, os medicos já a haviam desenganado. Se eu não visse nesses officiaes da saúde os escrutadores da vida e da morte, podia torcer a penna, e, contra a predicção scientifica, fazer escapar Natividade. Commetteria uma acção facil e réles, além de mentirosa. Não, senhor, ella morreu sem falta, poucas semanas depois daquella sessão da camara. Morreu de typho.

Tão secreta foi a conferencia della e dos filhos que estes não quizeram contal-a a ninguem, salvo ao conselheiro Ayres, que a adivinhou em parte. Paulo e Pedro confessaram a outra parte, pedindo-lhe silencio.

—Não juraram calar?

—Positivamente, não, disse um.

—Juramos só o que ella nos pediu, explicou o outro.

—Pois então podem contal-o a mim. Eu serei discreto como um tumulo.

Ayres sabia que os tumulos não são discretos. Se não dizem nada, é porque diriam sempre a mesma historia; dahi a fama de discrição. Não é virtude, é falta de novidade.

Ora, o que a mãe fez, quando elles entraram e fecharam a porta do quarto, foi pedir-lhes que ficasse cada um do lado da cama e lhe estendessem a dextra. Juntou-as sem força e fechou-as nas suas mãos ardentes. Depois, com a voz expirante e os olhos accesos apenas de febre, pediu-lhes um favor grande e unico. Elles iam chorando e calando, porventura adivinhando o favor.

—Um favor derradeiro, insistiu ella.

—Diga, mamãe.

—Vocês vão ser amigos. Sua mãe padecerá no outro mundo, se os não vir amigos neste. Peço pouco; a vossa vida custou-me muito, a criação tambem, e a minha esperança era vel-os grandes homens. Deus não quer, paciencia. Eu é que quero saber que não deixo dous ingratos. Anda, Pedro, anda, Paulo, jurem que serão amigos.

Os moços choravam. Se não falavam, é porque a voz não lhes queria sair da garganta. Quando pôde, saiu tremula, mas clara e forte:

—Juro, mamãe!

—Juro, mamãe!

—Amigos para todo sempre?

—Sim.

—Não quero outras saudades. Estas sómente, a amizade verdadeira, e que se não quebre nunca mais.

Natividade ainda conservou as mãos delles presas, sentiu-as tremulas de commoção, e esteve calada alguns instantes.

—Posso morrer tranquilla.

—Não, mamãe não morre, interromperam ambos. Parece que a mãe quiz sorrir a esta palavra de confiança, mas a bôca não respondeu á intenção, antes fez um tregeito que assustou os filhos. Paulo correu a pedir soccorro. Santos entrou desorientado no quarto, a tempo de ouvir á esposa algumas palavras suspiradas e derradeiras. A agonia começou logo, e durou algumas horas. Contadas todas as horas de agonia que tem havido no mundo, quantos seculos farão? Desses terão sido tenebrosos alguns, outros melancolicos, muitos desesperados, raros enfadonhos. Emflm, a morte chega, por muito que se demore, e arranca a pessoa ao pranto ou ao silencio.



ÍNDICE
ICousas futuras!
IIMelhor de descer que de subir
IIIA esmola da felicidade
IVA missa do coupé
VHa contradicções explicaveis
VIMaternidade
VIIGestação
VIIINem casal, nem general
IXVista de palacio
XO juramento
XIUm caso unico!
XIIEsse Ayres
XIIIA epigraphe
XIVA licção do discipulo
XVTeste David cum Sibylla
XVIPaternalismo
XVIITudo o que restrinjo
XVIIIDe como vieram crescendo
XIXApenas duas.—Quarenta annos. Terceira causa
XXA joia
XXIUm ponto escuro
XXIIAgora um salto
XXIIIQuando tiverem barbas
XXIVRobespierre e Luiz XVI
XXVD. Miguel
XXVIA luta dos retratos
XXVIIDe uma reflexão intempestiva
XXVIIIO resto é certo
XXIXA pessoa mais moça
XXXA gente Baptista
XXXIFlora
XXXIIO aposentado
XXXIIIA solidão tambem cança
XXXIVInexplicavel
XXXVEm volta da moça
XXXVIA discordia não é tão feia como se pinta
XXXVIIDesaccordo no accordo
XXXVIIIChegada a proposito
XXXIXUm gatuno
XLRecuerdos
XLICaso do burro
XLIIUma hypothese
XLIIIO discurso
XLIVO salmão
XLVMusa, canta...
XLVIEntre um acto e outro
XLVIIS. Matheus, IV, 1-10
XLVIIITerpsichore
XLIXTaboleta velha
LO tinteiro de Evaristo
LIAqui presente
LIIUm segredo
LIIIDe confidencias
LIVEmfim, só!
LV«A mulher é a desolação do homem»
LVIO golpe
LVIIDas encommendas
LVIIIMatar saudades
LIXNoite de 14
LXManhã de 15
LXILendo Xenophonte
LXII«Pare no D.»
LXIIITaboleta nova
LXIVPaz!
LXVEntre os filhos
LXVIO basto e a espadilha
LXVIIA noite inteira
LXVIIIDe manhã
LXIXAo piano
LXXDe uma conclusão errada
LXXIA commissão
LXXIIO regresso
LXXIIIUm El-Dorado
LXXIVA allusão do texto
LXXVProverbio errado
LXXVITalvez fosse a mesma!
LXXVIIHospedagem
LXXVIIIVisita ao marechal
LXXIXFusão, diffusão, confusão...
LXXXTransfusão, emfim
LXXXIAi, duas almas...
LXXXIIEm S. Clemente
LXXXIIIA grande noite
LXXXIVO velho segredo
LXXXVTrez constituições
LXXXVIAntes que me esqueça
LXXXVIIEntre Ayres e Flora
LXXXVIIINão, não, não
LXXXIXO dragão
XCO ajuste
XCINem só a verdade se deve ás mães
XCIISegredo acordado
XCIIINão ata nem desata
XCIVGestos oppostos
XCVO terceiro
XCVIRetraimento
XCVIIUm Christo particular
XCVIIIO medico Ayres
XCIXA titulo de ares novos...
CDuas cabeças
CIO caso embrulhado
CIIVisão pede meia sombra
CIIIO quarto
CIVA resposta
CVA realidade
CVIAmbos quaes?
CVIIEstado de sitio
CVIIIVelhas cerimonias
CIXAo pé da cova
CXQue vôa
CXIUm resumo de esperanças
CXIIO primeiro mez
CXIIIUma Beatriz para dous
CXIVConsultorio e banca
CXVTroca de opiniões
CXVIDe regresso
CXVIIPosse das cadeiras
CXVIIICousas passadas, cousas futuras
CXIXQue annuncia os seguintes
CXXPenultimo