The Project Gutenberg eBook of Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV

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Title: Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV

Author: Zephyrino Brandão

Release date: May 8, 2010 [eBook #32296]

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PERO DA COVILHAN: EPISODIO ROMANTICO DO SECULO XV ***


 

Notas de transcrição:

O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1897.

Mantivemos a grafia usada na edição impressa, tendo sido corrigidos alguns pequenos erros tipográficos evidentes, que não alteram a leitura do texto, e que por isso não considerámos necessário assinalá-los.

 

 

Pero da Covilhan

 

 

QUARTO CENTENARIO
DO DESCOBRIMENTO DO CAMINHO MARITIMO DA INDIA

 

PERO DA COVILHAN

(EPISODIO ROMANTICO DO SECULO XV)

POR

ZEPHYRINO BRANDÃO

DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA, DA REAL ACADEMIA HESPANHOLA DE MADRID, DO INSTITUTO DE COIMBRA E DA S. G. L.

 

 

 

 

ANTIGA CASA BERTRAND—JOSÉ BASTOS
LIVREIRO-EDITOR
LISBOA—73, Rua Garrett, 75

1897

{IV}

 

 

 

 


Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa

 

 

 

 

{V}

 

CONVERSA PREAMBULAR

Eu não sei bem o que venho aqui fazer.

Não venho, de certo, apresentar Zeferino Brandão, pois eu proprio lhe fui apresentado, noviço em lettras, quando elle já era, na egreja litteraria, officiante de pontifical, bemquisto e bem acolhido dos sacerdotes maximos, com alguns dos quaes privava, de irmão a irmão.

Com effeito,—e sem que saiba dizer de positivo ha quantos annos, não devendo comtudo andar muito longe dos trinta,—foi na primeira casa que João de Deus habitou em Lisboa, na rua dos Douradores, e no proprio quarto do poeta, que Zeferino Brandão e eu nos avistámos a vez primeira.{VI} Era elle alferes ou segundo tenente d'artilheria, eu, cadete de lanceiros.

Vêrmo'-nos, e ficarmos sendo, logo ali, amigos velhos, foi obra de um momento. Eu tinha na minha bagagem uns versitos, que apresentava a medo, e que um dia Manoel de Arriaga leu em voz alta, depois do café, na mesa dos hospedes, com a mesma emphase com que leria versos de Victor Hugo, conquistando-me uma ovação no meio d'aquelle auditorio ingenuo, e deixando-me a mim proprio deslumbrado de taes versos serem meus. Coitados! Por onde andarão elles!

Zeferino Brandão, já a esse tempo tinha poetado muito e, no meu entender de então, hombreava com todos os da sua vida de Coimbra, amigos de tu, que, sempre que se encontravam, tinham tão bons abraços a trocar, tão bellas coisas a relembrar e a dizer. Eram o João de Deus, que estava ali; o Arriaga, que vinha todos os dias; o Anthero, que apparecia de quando em quando; o Simões Dias, o Candido de Figueiredo, o Guimarães Fonseca, o João Penha, a todo o momento falados, porém ausentes.

Por signal, que a esse mesmo tempo Zeferino Brandão se lembrou de fazer annos, e nada menos que vinte e seis. A lembrança foi tida como{VII} disparate de marca maior, e como antecedente de pessimos effeitos. E tanto que João de Deus lhe disparou, logo ali, á queima roupa:

Com que então, cahiu na asneira
De fazer na quinta feira,
Vinte e seis annos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse...
Mas fazel-os, não parece
De quem tem muito miolo!

Averiguou-se, porém, que Zeferino era reincidente no delicto, pois no anno anterior fizera o mesmo, e mostrava-se disposto a repetir no immediato. E por isso João de Deus accrescentava:

Não sei quem foi que me disse,
Que fez a mesma tolice
Aqui o anno passado...
Agora o que vem, apósto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!
 
Não faça tal; porque os annos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho.
Faça outra coisa; que em summa
Não fazer coisa nenhuma,
Tambem lhe não aconselho.

Zeferino Brandão tinha boa vontade de seguir á risca a advertencia do poeta; não poude no emtanto{VIII} satisfazer-lhe o desejo. Effectivamente, fez outras coisas, livros excellentes, por exemplo; mas accumulou, e foi tambem fazendo annos, com a maior moderação, o mais devagar que lhe foi possivel, mas, em summa, fazendo-os e contando-os. Era o que João de Deus lhe tinha dito:

Mas annos, não caia n'essa!
Olhe que a gente começa
Ás vezes por brincadeira,
Mas depois, se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fal-os, queira ou não queira.

Para mim, n'esse bom tempo da vida, Zeferino Brandão vinha já, não direi da noite dos tempos, mas de um passado glorioso. Era do fraternal e alegre convivio d'aquelles que mais influencia exerciam nos nóvos de então, e sabe-se quanto é ciosa e aristocrata a superioridade intellectual, que não desce nunca a nivelar-se com os mediocres, e que só anda hombro a hombro com os seus pares.

Depois, tive occasião de lhe definir melhor as referencias no espaço e no tempo, com respeito ás gerações academicas, que elle frequentou, áquellas de que foi continuador, e ás que o continuaram a elle proprio.{IX}

Mas, em todo o caso, nunca poderei esquecer que, nas lettras, fui seu caloiro.

Portanto, toda e qualquer ideia de apresentação, ou de recommendação seria absurda.

Mas Zeferino Brandão exigiu-me que o acompanhasse n'esta sua quarta excursão pelo mundo aventuroso da publicidade, não por medo d'ella, que o seu animo é seguro, e o seu lucido espirito affeito de ha muito a ponderar quanto valem baldões e glorias litterarias; mas verdadeiramente tão só, pois outra explicação lhe não posso dar, por mero capricho de artista.

Dêmos, por conseguinte, o braço e vamos ambos de companhia, uma vez que esta lhe é agradavel, e que eu encontro n'ella prazer e honra.

Do muito que na mocidade poetou, fez Zeferino Brandão apuramento selecto em um volume, a que deu por titulo Paginas Intimas, do qual depois fez segunda edição, mais aprimorada ainda, e tambem difficil já de encontrar nas livrarias. Não é vulgar que este caso succeda, e não é pequena honra, nem pequena satisfação para um auctor, e sobretudo para um poeta, poder referil-o.

Os taes annos, que a gente se habitúa a fazer, e que depois cada qual faz, queira ou não queira, foram arredando o poeta das tentações da rima,{X} sem comtudo o desviarem da verdadeira poesia, que elle continuou procurando sempre, quer nos panoramas da natureza, observada em longas viagens artisticas, e descripta posteriormente em paginas coloridas e illuminadas, quer na evocação ideal dos tempos volvidos, trazendo á tela do presente, memorias, personagens e feitos do passado.

D'estas duas predilecções da sua mente, a um tempo assimiladora e imaginosa, são documento bastante os dois livros de valor, com que a sua bagagem litteraria se enriquece. Um d'elles, Monumentos e lendas de Santarem, é um verdadeiro padrão de sentimento, erguido ás recordações gloriosas d'essa forte e vetusta cidade medievica; o outro, primeiro de uma collecção de Viagens, que está reclamando, a brados, os seus successores, é uma soberba descripção da Belgica moderna.

Avulsos, e dispersos pelos jornaes, andam capitulos e fragmentos descriptivos de uma excursão pela Italia, cuja leitura fugaz, ao tempo da publicação, nos deixou no espirito uma grata lembrança.

Compraz-se o escriptor, como se vê, e n'isto mesmo affirma intensamente o seu culto pelo bello poetico, em frequentar, tanto na vida de relação com o seu tempo, como na vida sonhadora a que{XI} o attraem os livros de outr'ora, os dominios artisticos, onde a sua phantasia de meridional mais á larga se expande.

Ali, os monumentos de mais de uma raça, livros de pedra abertos á meditação dos videntes, e as lendas populares tenazmente conservadas na memoria dos povos que se sobrepuzeram; aqui, ainda o passado, como centro de attracção maior; depois, primacialmente, as soberanias e magnificencias da arte, legados inestimaveis que as gerações foram transmittindo, e nos quaes vae encontrar as mais altas suggestões artisticas, e os mais profundos ensinamentos criticos, o gosto moderno.

Assumptos dignos de bem equilibrados e cultos engenhos, os quaes, tambem, só por si, dão medida do bom equilibrio e da alta cultura de quem os escolhe e professa.

Não são diversos os predicados do novo livro, que me encontro prefaciando. O auctor impressionou-se com a bella e romantica figura de Pero da Covilhã, a qual apparece na historia, um pouco esbatida, tão sómente pela exuberancia de luz com que se illuminam os quadros dos descobrimentos e conquistas subsequentes, que elle em tamanha parte preparou.

Essa figura, porém, tem contornos bem definidos,{XII} e Pero da Covilhã é, na epopêa dos Gamas e dos Albuquerques, um intelligente, um sagaz, um inolvidavel predecessor.

Envolve-o o escriptor n'uma intriga romantica, apenas a indispensavel para o seu proposito; mas de tal fórma se cinge ás linhas da realidade, que a figura se destaca viva, deante de nós, como realmente foi, e o leitor mal póde discernir onde começa e acaba a ficção, e onde prevalece o rigor historico.

Assim devia ser, e assim o comprehendeu Zeferino Brandão, uma vez que a vida aventurosa do seu personagem dá que farte para todas as exigencias da concepção romantica, sem precisar dos acrescentamentos da imaginação.

O scenario em que elle expande a sua actividade, tão ousada e tão original, mesmo n'um tempo em que as mais famosas heroicidades não eram de extranheza, apparece-nos restabelecido, por tão singular poder de evocação, que nos sentimos viver n'elle, com os olhos cheios de encanto e a alma cheia de interesse, como se nós mesmos pertencessemos á época em que toda a acção do livro, muito mais historia do que romance, amplamente se desenrola.

Vêmos, logo no começo, a Sevilha do seculo decimo{XIII} quinto, e o viver luxuoso das grandes casas de Hespanha, onde em muitas das quaes a cadeira senhorial ousava defrontar-se em orgulhos e pretenções com os thronos dos reis; e no solar magestoso dos Medina-Sidonia, vamos encontrar o pagem galanteador e diserto que, trazido d'ali a terras de Portugal, por cá se deixou ficar a pedido de Affonso V, servindo com o seu coração, que já era de portuguez, a patria de seus paes, assim restituida a elle proprio.

Esse pagem, depois escudeiro e cavalleiro, é acompanhado pelo auctor e pelo leitor, primeiro na sua missão e officio de personagem da côrte e do séquito real, durante o ultimo quartel de vida, tão agitado e tão pouco feliz, do rei, que em Portugal o havia detido e que sempre lhe dispensou o seu favor; depois, em toda a sua peregrinação ao Oriente, na demanda das terras do Preste, até dar fundo na Abyssinia, onde para sempre o detiveram; esmagando-lhe a alma n'um captiveiro perpetuo, que não deixou de ser profundamente tyrannico, embora lh'o houvessem tecido com laços de sympathia, doirado com o lustre das riquezas e das honras, agasalhado no ambiente da familia, e engrinaldado com as rosas do amor.

O idyllio amoroso, que constitue a trama romantica{XIV} fundamental, d'onde veiu por fim a ser gerada esta successão esplendida de quadros historicos, passa-se na intimidade dos corações e das consciencias d'aquelles a quem um vivo affecto prendeu para sempre, mas para os quaes a mais viva aspiração da alma foi um sonho que jámais se realisou. Não se póde conduzir fio mais tenue, com mais delicadeza e mais pericia, atravez do labyrintho de rudes acontecimentos, onde as energias physicas do homem são postas a toda a prova, sem nunca se lhe embotar a agudissima sensibilidade do coração.

Parece-nos até, que a verdadeira e mais bella originalidade d'este livro reside no contraste a que damos relêvo agora. Os que tenham pensado encontrar n'elle uma obra de completa ficção, podem talvez ficar desapontados ante o predominio que ali assumem a exactidão, a abundancia, a veracidade historica. Mas a conducção do fio ideal e subtilissimo, de uma pura e platonica paixão amorosa, accendida nos mysterios de duas almas amantes, e alimentada em todo o decurso da vida com os oleos da religião e da cavallaria, com os incitamentos do dever e da honra, a habil e engenhosissima conducção d'esse fio, repetimos, com a qual o auctor parece nada se preoccupar sem{XV} que todavia um momento a descure, é uma das maiores provas que Zeferino Brandão nos podia dar, de quão delicado é o seu temperamento artistico, de quão profundo é o seu sentimento poetico, de quão esmerado é o seu fino gosto.

E aqui me deixaria longamente a palestrar com os leitores sobre os meritos da obra, que deante dos seus olhos vae deslisar, se não reparasse em qual deve ser já a sua impaciencia, e em como é tempo de os deixar a sós com o dono da casa, do qual sabem já que teem a esperar uma recepção de primôr.

 

     26 de fevereiro de 1897.

FERNANDES COSTA.

 

{XVI}

 

{XVII}

 

ADVERTENCIA

O episodio, que vae ler-se, é, como todos os episodios romanticos, um pequeno espelho. Procurei dispô-lo em termos de reflectir uma luz calma e pura, como o céo transparente e sereno, e não reprezentar a vasa de lodaçaes, d'essas miserias, que são a mais viva chaga social de todos os tempos, o terrivel problema a resolver, o alpha e o omega das civilisações.

Sem sacrificar nem a sombra da verdade historica, não tive de roçar por impudencias, nem de envolver-me em meandros asquerosos, salvo no incidente da successão á corôa de Castella.{XVIII}

Não accuso de immoraes os que revolvem o lôdo.

A quem deixa estagnar a agua, pertence mórmente a responsabilidade na formação dos atoleiros. Mas alguns escriptores teem olhos de lynce para descobrir o mal, e de toupeira para enxergar o bem: uma cegueira lamentavel em ambos os casos.

No reinado de D. João II, em que se passa quasi totalmente o episodio, houve, como em todas as épocas, grandes virtudes e grandes vicios. D'estes não cuidei, porque não podia ir buscar a um meio, onde nunca estiveram, os meus dois protagonistas, que são verdadeiros no sentido eterno da palavra, antes de o serem no sentido historico.

—E como faze-los reprezentar tambem papeis violentos em dramas ou tragedias, que despertassem interesse, reconhecendo eu que a historia, á qual subordinei a sua acção, cortaria implacavelmente as azas da minha phantasia?

Era porventura mais impressivo, ou ao menos mais accommodado ao gosto hodierno, um enredo cheio de peripecias fabulosas. No colorido,{XIX} porém, d'esses quadros phantasticos deveria empregar as tintas modernas, e nem eu sabia pinta-los, nem elles eram authenticos.

Commemóro emfim, conforme sei e pósso, o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo da India.

 

Zephyrino Brandão

{XX}

 

{1}

 

I

 

DESPEDIDA

O leitor já visitou Sevilha? Pois se nunca a enxergou sequér, affirmam por lá os nossos visinhos, que não vio maravilha.

Os attractivos da vida sevilhana seduzem-nos tanto, que nos offerecem crêr no velho proverbio andaluz, e compensam certamente a princeza do Guadalquivir do muito que lhe falta em monumentos para ser admirada, e em melhoramentos materiaes para rivalisar vantajosamente com as cidades modernas.

O leitor e eu vamos percorre-la no terceiro quartel do seculo XV, em um dia calmoso do estio.

Abrasa tanto calor!...

Em breve zombaremos d'elle.

Os arabes, que faziam de seus palacios pequenos paraizos, rodeavam-n'os de jardins e fontes,{2} no intuito de refrescar as regiões ardentes, que povoavam, e até no interior dos proprios edificios possuiam esses mesmos refrigerios. Ora as casas de Sevilha traduzem fielmente os costumes de seus antigos senhores; e, como temos de entrar em uma d'ellas, poupar-nos-hemos a insolações.

Cingem Sevilha fortes muralhas, do alto das quaes se contempla a extensa planicie do vastissimo contorno, povoado de vistosas e alegres alquerias.

Pela porta de Triana sae-se ao importante arrabalde d'este nome, e com elle se communica por uma ponte de madeira fundada sobre grandes barcas, que com grossas cadeias de ferro a sustentam, amarradas no castello. Sob esta corre caudaloso o Guadalquivir, que parece envaidecido da sua justa nomeada, não só por dar ancoradouro seguro ás maiores naves, que sulcam os mares, senão por facilitar assim as relações commerciaes, e animar a florescente industria fabril dos sevilhanos;—o que torna riquissima de população e haveres a formosa metropole andaluza.

Cêrca do rio ergue-se a torre, que, pelo primor da fabrica, se denomina do Ouro.

Á cathedral, cuja edificação começou quasi ao entrar do seculo, em que a estamos vendo, sobre os alicerces da antiga mesquita, chama-se vulgarmente a grande, como á de Toledo a rica, á de Salamanca a forte e á de Leão a bella.{3}

Ao lado d'essa immensa móle altea-se suberba a torre de tijolo côr de rosa, que coroava a mesquita, e é rematada por outra de menores dimensões com variedade de pinturas mui singulares em todo seu circuito. Este minarete, o mais notavel monumento arabe, da sua classe, na peninsula, foi construido pelo celebre alchimista e architecto Géber, a quem se attribuio, sem fundamento, a invenção da algebra.

—Não olvide o leitor, que estamos no decimoquinto seculo, em que não existe ainda o Giraldillo, e por isso a torre não é conhecida pelo nome de Giralda.

Numerosa a casaria da praça; alguns edificios podem comparar-se em tudo com palacios realengos.

As mulheres prezam-se de caminhar com garbo e passo curto; de fallar com graça e vivacidade; de vestir com louçania e riqueza; de dançar e cantar ao som das castanholas e das guitarras com elegancia e desenvoltura; de encobrir com a mantilha um dos seus formosissimos olhos por tal arte, que parece terem cravado na face um diamante negro, a reflectir a luz fulgorosissima do bello sol da Andaluzia.

O sevilhano passa por nós muito ancho da sua pessoa, e da sua Sevilha, que não só possue os titulos de mui leal, mui nobre e mui heroica, senão que é patria de notabilissimos santos; por isso até um poeta exclama patrioticamente:{4}

«Que Dios, Sevilla, en tu preciosas venas
Para el Cielo crió tantos tesoros,
Cuantas el ancho mar esconde arenas,
Cuantas estrellas los celestes coros!»

Sem embargo de tamanha gloria, a cidade de Maria Padilla tem sido tambem algo peccadora...

A nobreza opulenta de rendas de seus vastos dominios ruraes, em que abundam frutos e gados, sustenta luzidas tropas de escudeiros fidalgos, que põe ao seu serviço e ao dos reis, alentando os impulsos das proprias ambições e prosapias.

Nas suas casas tem grandes depositos de armas, e nas suas cavallariças centenares de cavallos. Empara em vida os de sua hoste, e deixa-lhes fartos legados em seus testamentos.

Um d'esses grandes senhores é o duque de Medina Sidonia; ou de Sevilha, como tambem o tratam.

Entremos no seu palacio.

Este grandioso edificio, exteriormente austero e nú, ostenta no interior uma riqueza enorme, um luxo deslumbrante e voluptuoso, que determina a influencia exercida em Hespanha pela civilisação arabe. Póde considerar-se uma vivenda semi-oriental, como todas as do estylo mudejar, a que pertence, para a construcção das quaes as duas artes, christã e mahometana, se dão as mãos com tal engenho, que se harmonisam perfeitamente os dois elementos de manifestações tão diversas.

—Como sabido anda, os arabes que ficaram{5} com os christãos, depois de certos tratados, em virtude dos quaes se lhes permittia conservar suas leis, religião e costumes, chamavam-se mudejares, e nas edificações, em que eram empregados, imitavam o luxo e magnificencia dos povos, que os da sua raça haviam conquistado, especialmente da Persia.

Tornando, porém, ao ponto: na disposição geral do palacio adoptou-se o estylo arabe, estabelecendo-se amplos pateos, e galerias, em volta das quaes demoram as habitações.

A sala principal pertence ao terceiro periodo arabe puro. As paredes d'ella recordam os ricos tecidos orientaes da Persia, assim por seus desenhos primorosos, como pelo brilhantismo do colorido. O pavimento acha-se coberto com uma alcatifa persa de um avelludado suavissimo. No tecto, o elemento decorativo predominante são estalactites e laçarias, tudo realçado com applicação de côres e douraduras.

Os peregrinos ornatos d'esta sala bastam, para confirmar a frondosa imaginação dos artistas mahometanos, e o respeito por elles tributado ás suas tradições gloriosas.

Móvel não se vê, a não ser uma larga cadeira de espaldar, com sobrecéo e estôfo de brocado. No centro da espalda, o brazão dos Medina Sidonia. Uma riquissima almofada de setim bordada a ouro está collocada aos pés d'esta cadeira, em que sómente costuma sentar-se o duque, ou algum extrangeiro{6} de distincção, que o visita, e a quem elle offerece esse lugar de honra.

Em outras salas, paredes forradas de pannos de Arraz e de Flandres, representando episodios da vida de Christo, assumptos mysticos, batalhas, torneios e scenas de caça; ou cobertas de tapetes turcos, imitando persas, guadamecins e azulejos, tendo os sóccos revestidos de mosaicos esmaltados. Os tectos, estucados e pintados, com imitações mais ou menos exactas da flora. Alguns pavimentos, alcatifados.

Nos aposentos dos duques pendem das paredes quadros de Giotto e da sua escola, de João Van-Eyck, Roger van der Weyden, e do patriarcha da pintura sevilhana, Juan Sanchez de Castro, que poucos annos antes fundára a sua escola. As paredes e tectos da ante-camara, armados e toldados de riquissimos lambeis. Os móveis, de páu-santo, primorosamente entalhados e forrados de brocado e ouro.

Na sala da duqueza vê-se um magnifico relicario, d'estes que o clero manda executar sobre desenhos proprios para maravilhar os fieis, tal é a perfeita intelligencia, que elle tem do seu tempo. Em cima de uma credencia com tres compartimentos em fórma de degráus, cobertos de setim e rendas de Flandres, repousam varios objectos de uso senhoril, uns de ouro, outros de prata e crystal de Veneza. Sobre um bufete de abano, coberto com um bancal de velludo, tendo ao meio bordadas{7} as armas da duqueza, acham-se livros de horas luxuosamente encadernados e brochados de prata, uma escrevaninha de ouro, flores em vasos de crystal e castiçaes de ouro. Nos angulos da sala, açucenas em amphoras preciosas proclamam a sua candura triumphal, e roseiras enroladas em columnas de onyx exhalam a sua fragancia suavissima.

As paredes da sala de armas do duque exhibem trophéos de armas arabes, despojo rico das batalhas das Navas e do Salado, como: rodellas, adargas, onde se lêem lemmas bordados a fio de ouro e a matiz, lanças em fórma de meia lua, espadas, gomias, tridentes e alfanges de dois fios.

Amplas colgaduras, tendo bordadas as armas da casa, encobrem completamente as estreitas portas de alerse.

O mobiliario do palacio, em geral, consiste: em cadeiras de espaldar coroado por dentilhões, tendo entalhado o brazão das armas de Niebla, titulo da familia Medina Sidonia, ou simplesmente a corôa ducal; algumas cadeiras ainda, lavradas com atauxias de ouro, marfim, prata ou cobre, e umas e outras com escabellos fixos ou moveis; almofadas de seda, sobrepostas duas a duas, e servindo de assento na sala de recepção da duqueza; faldistorios, tamboretes de espaldar, bancos longos e de espaldas, almofadados de tela de ouro e velludo; bancos de thezoura, bufetes de ebano artisticamente entalhados de prata, candelabros dourados, arcas para assentos, armario, cofre e até mesa de{8} escrever, todas de madeiras preciosas e guarnecidas de prata, ferro ou bronze; relogios de parede em luxuosas caixas, umas de madeira, outras de ferro. Muito d'este mobiliario é coberto de ricas tapeçarias orientaes, que lhe dão um aspecto delicado e alegre com as côres vivas de seus bordados caprichosos. Emfim, mesas de prata, de ouro e de bronze, quadradas, de um pé só, além de outras de madeira, iguaes áquellas no formato, e sobre que se vêem magnificos vasos de flores, cravejados de pedras preciosas, outros vasos de prata lavrada, salvas e floreiras.

Não entremos na ante-camara do duque, onde elle conversa agora com D. Juan de Guzman, que tem sido o seu irmão predilecto.

Conforme o costume, a duqueza saiu logo de manhã para o jardim com as dez donzellas, suas familiares, levando, como cada uma d'estas, na mão um rosario e um livro de missa.

Á sombra do copado arvoredo alli rezam no mais edificante recolhimento. Terminada a oração as donzellas correm alegremente a colher flores, com que na volta ao palacio enfeitam o altar da virgem.

Na capella é esperada a duqueza com o seu sequito gentilissimo pelas moças da camara, e pelo sacerdote, que celebra a missa, ouvida por aquella pequena côrte.

Em seguida serve-se o almoço, depois do qual a duqueza, acompanhada de suas donzellas e de{9} alguns fidalgos, dos mais apontados em garbos de cavallarias, em esmeros de atavios, e em chistes de conversadores, passeia a cavallo no seu suberbo palafrem. Hoje, todavia, recolheu-se aos seus aposentos, e não deu o seu passeio habitual.

Deixemos, pois, entregue ás suas meditações a virtuosa senhora. Naturalmente algum novo acto de caridade projecta, para juntar aos muitos, que tão justamente lhe tem grangeado o santo e doce nome de mãe dos pobres.

E, emquanto o duque falla com o irmão, acompanhe-me o leitor ao pateo principal do palacio.

É um quadrilongo regular, cercado de galerias, superior e inferiormente, decoradas com arabescos do mais fino gosto, sendo seus arcos em fórma de ferradura, graciosamente entalhados e sustentados por dezenas de columnas de ordem composita e de marmore alvissimo. O pateo é ajardinado, tendo no centro uma fonte, cuja agua crystalina cáe dentro de um tanque largo que a circumda; e os canteiros são separados uns dos outros por lousas de marmore branco.

Na galeria superior sente-se rir e folgar. São as donzellas da duqueza. O sol não as incommoda, porque todo o vão do pateo está coberto com um grande toldo. Uma d'ellas, desviando-se das companheiras, vê no jardim, perto do tanque, um pagem, e pergunta-lhe com ineffavel meiguice:

—Estais a despedir-vos das flores, Perico?...

—Quem sabe, se tornarei a vê-las!...—respondeo{10} o pagem com pronunciado acento de tristeza.

—Pois porque não haveis de voltar?...

—Deus o sabe; mas diz-me o coração, que nunca mais verei Sevilha!...

—Tem cousas o vosso coração!... Deixai-o cá, para não vos ir atormentando com presagios pelo caminho...

As outras donzellas, que tiveram curiosidade de saber, com quem a sua companheira conversava, accorreram no momento em que Pero fazia esta pergunta á sua interlocutora:

—Se eu podésse arrancar o coração do peito, de quem poderia confia-lo, na certeza de que ficaria bem guardado?

—De mim!—exclamam todas a um tempo.

—Como elle não póde repartir-se,—ponderou o pagem—entrega-lo-hia a Beatriz.

—Sois mui gentil, Perico!—tornou esta. Graças pela preferencia...

—Não fostes vós, quem me propôz não o levar comigo?...

—Sem duvida!... É, porém, essa a unica razão da vossa escolha?...

—Não m'o pergunteis... Se tivesse aqui um alaúde, cantar-vos-ia agora ao som d'elle:

Con dos cuidados guerreo
que me dan pena y sospiro;
el uno quando no os veo,
el otro quando vos miro.[1]

{11}

—Bellissimo, Perico!...—bradaram as donzellas com viva demonstração de alegria.

—Que gracioso sois!—accrescentou Beatriz e perguntou: mas porque esquecestes a guitarra, que é mais maneira, e vos lembrastes do corpulento alaúde, como lhe chamava o arcipreste de Hita?

—Vejo, que conheceis os versos de Juan Ruiz...—observou o pagem.

—Quem haverá ahi, que os não tenha ouvido recitar aos trovadores e aos jograes?!... A proposito vinha agora recordar aquelles, em que o arcipreste descreve a recepção de D. Amor... Se quereis ter uma igual, quando regressardes, recitai-os, Perico!...

—Careceis dos nossos rogos?...—atalharam as outras donzellas.

Convem notar, que os duques de Medina Sidonia, á similhança dos reis de Castella, mantêem uma côrte poetica. Fazer versos está na moda, por isso são poetas os grandes senhores: almirantes, condestaveis, duques, marquezes, condes e reis. A verdadeira e legitima poesia conservava-se no estado latente, desde o reinado de D. Pedro, o Cruel. Passou depois á côrte, e fez-se cortezã. Com tudo não havia perdido completamente o favor popular o romance brioso e sentido.

Os melhores poetas, que frequentam a casa Medina Sidonia, são versados na lingua arabe, e{12} sabem numerosas lendas d'este povo de poetas. Conhecem a escola provençal, e é-lhes familiar a litteratura. Os romances castelhanos, e as mais bellas composições poeticas de Hespanha, anteriores ao presente seculo XV, todos os cavalleiros d'aquella côrte sevilhana recitam com applauso de damas e donzellas. O marquez de Santilhana, que por lá surge de quando em quando, ao passo que por todos é escutado com affectuoso enthusiasmo, estimula os moços, repetindo-lhes esta maxima: «a sciencia não embóta o ferro da lança, nem afrouxa a espada na mão do cavalleiro.»

N'este meio social tão distincto, é que tem sido educado o pagem, e a familia Medina Sidonia dispensa-lhe os maiores carinhos.

Tirado, pois, a terreiro pelas donzellas, assume um certo ar de gravidade, parecendo ao mesmo tempo, que do seu olhar vivissimo saltam chispas de luz e de graça, e exclama:

—Attenção!... Vae fallar Juan Ruiz!...

Quando, porém, se propunha recitar o engraçado episodio, pôz termo ao animado colloquio o apparecimento do irmão do duque a uma porta da galeria inferior.

O pagem dirigiu-se logo a D. Juan, de quem recebeu uma ordem, e em virtude d'ella saiu apressadamente do pateo. As donzellas retiraram tambem logo da galeria.

Junto das cavallariças um velho mendigo, de compridas barbas brancas, de olhar scintillante e{13} modos altaneiros, em que se traduz o seu orgulho de raça, inflexivel sempre, até sob o jugo do infortunio, tem feito as delicias de eguariços e lacaios, ora tocando sanfona, ora narrando historias de bandidos e de feitiços dos mouros de Granada. A famulagem tinha tempo para tudo. Não se tratava então de apparelhar ginetes, para ir no encalço dos Ponces, inimigos irreconciliaveis dos Guzman, apesar do seu proximo parentesco; unicamente cincoenta cavallos estavam arreados, e promptos a enfrear á primeira voz.

São quasi cinco horas da tarde. D. Juan de Guzman despede-se do irmão, que lhe mostra uma carta de D. Diogo Lopes Pacheco, marquez de Vilhena, recebida momentos antes, e abraçando-o diz-lhe: «D. Affonso que conte com dois mil cavallos».

Passados poucos minutos as donzellas da duqueza sóbem a um torreão do palacio, para vêr sair a garrida cavalgada, em que vae caminho de Portugal D. Juan de Guzman.

Para maior luzimento do numeroso prestito de escudeiros e lacaios, com o qual D. Juan pompeava, o duque não só pôz ao seu serviço o discreto pagem, que o leitor conhece, mas deu-lhe tambem por companheiro um dos mais disértos trovadores da sua côrte.

Ao lado dos azemeis, que conduzem possantes mulas pittorescamente ajaezadas e carregadas de bahús com a bagagem, caminham uns romeiros,{14} encostados ao seu bordão, e com a murça da esclavinha ornada de conchas e vieiras. Por intervenção da duqueza, haviam alcançado licença de jornadear com D. Juan até Portugal, devendo d'aqui passar a Santiago de Compostella, onde se dirigem, e d'este modo evitar os caminhos de Hespanha ora tão infestados de bandidos e salteadores.

As donzellas demoraram-se no torreão até se desfazer, lá ao largo, a ultima nuvem da poeira, que envolvia cavalleiros e peões; mas já não logravam distinguir um só d'elles.

—Quem sabe, se Beatriz desejaria descortinar unicamente o pagem?... Talvez. Nada, porém, communicou ás companheiras, que podésse denunciar esse desejo.

—E Perico?... Levaria porventura gravada no coração a imagem de Beatriz?... Começaria a feri-lo deliciosamente o espinho da saudade?... Ou a lembrança de entrar no seu paiz, que, desde muito creança não tornára a vêr, e em cuja côrte teria ensejo de exhibir as singulares prendas, de que era dotado, apagar-lhe-ia da memoria os venturosos dias de Sevilha?...

Ao leitor cordato afiguram-se decerto inopportunas taes perguntas, feitas com o fundamento unico da scena, que presenceámos no pateo.

Tem razão. Esse galanteio innocente, proprio da mocidade dos participes, dos costumes da época, e até da indole das encantadoras filhas da Andaluzia,{15} não auctoriza a procurar mysterios no que tão natural se apresenta.

—Sabe o leitor o que logo ao começar da jornada está provocando os gabos de experimentados escudeiros?

—É a destreza, com que Pero, o gentil pagem, manda o rinchão fouveiro que monta. A cada galão do corcel sorri-se desdenhosamente, e com seus ditos joviaes e maliciosos é o enlevo da comitiva.

Ditosa mocidade!...

Se voltassemos ao palacio dos duques, encontrariamos talvez Beatriz a exercer o galante ministerio de juiza em alguma côrte de amor.

E cá fóra veriamos o velho mendigo no mesmo lugar ainda, cantando ao som da sanfona:

«Rosa fresca, rosa fresca,
tan garrida y con amor;
quando vos tuve em mis braços,
no vos supe servir, no,
y agora que os serviria
no vos puedo aver no.[2]
............................
............................

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{17}

 

II

 

CONSPIRAÇÃO

Se o leitor tem folheado a historia de Henrique IV, de Castella, póde poupar-se á leitura d'este enfadonho capitulo, no qual vamos condensa-la, para melhor intelligencia do que mais ao deante se dirá.

Esteve Henrique IV casado sete annos com D. Joanna, irmã do rei de Portugal D. Affonso V, sem ter successão; até que, em 1462, a rainha deu á luz uma menina. Foi baptisada esta com muita pompa, e geraes demonstrações de regosijo, pelo arcebispo de Toledo, D. Affonso Carrillo, sendo madrinha a infanta D. Isabel, irmã do rei, e padrinho, por procuração, Luiz XI de França. Pouco depois, reunidas côrtes em Madrid, n'estas foi jurada herdeira do throno a recem-nascida, a que se havia dado o nome de Joanna, e ninguem protestou contra o juramento.{18}

Era a esse tempo mordomo-mór do palacio D. Beltran de la Cueva, que de pagem da lança passou logo a exercer essa alta dignidade, havendo sido igualmente agraciado com o titulo de conde de Ledesma. Mostrava-se este mui solicito no serviço da rainha, mas não fazia mais do que cumprir as ordens do monarcha, de cujo favor e privança gozava com inveja e despeito de muitos, que não queriam reconhecer-lhe meritos para tanto.

Os negocios do Estado eram dirigidos pelo arcebispo de Sevilha;—o verdadeiro soberano, pois que D. Henrique passava seus dias caçando e divertindo-se.

D. João II, rei de Aragão, andava em guerra com seu filho D. Carlos de Viana, a quem não queria entregar o senhorio de Navarra, que pertencia a este, por morte de sua mãe; e com Luiz XI, para retomar o Roussillon, que lhe havia empenhado por avultada somma de dinheiro.

Aos parciaes da justa causa de D. Carlos pertencia Henrique IV, e aos do rei usurpador, o arcebispo de Toledo e alguns grandes de Castella.

O marquez de Vilhena, D. João Pacheco, dizia-se amigo de Henrique IV; e, como era mui artificioso e dado a soltar só meias palavras, foi a Saragoça tratar da paz e boas relações de Aragão com Castella.

No seu regresso a este reino convidou, sem detenças, o arcebispo de Toledo e seus sequazes,{19} para uma reunião secreta, que se realizou em um valle proximo de Alcalá de Henares.

Ahi o marquez rompeu, sem mais preambulos:

—É forçoso guerrear sem treguas Beltran de la Cueva.

—Não se me afigura empresa difficil...—acudio em tom pausado e sisudo o arcebispo de Toledo.

—Convenho;—replicou Vilhena—mas ainda é numerosa a parcialidade do rei, e tem á sua frente o arcebispo de Sevilha...

—E a nós,—atalhou, recachando-se, o prelado toledano—embóra inferiores na quantidade, ninguem sobrelevará na coragem e na perseverança com que luctaremos. Demais... o rei é fraco, e o arcebispo de Sevilha...

—Sim, esse...—condescendeo o marquez, engulindo um pensamento, cuja execução de ninguem confiava.—Lembrai, pois, um plano, e contai com o rei de Aragão.

—Quereis um, que fira mortalmente o rei e o valido?... Ahi váe em poucas palavras: invistamos contra a honra da rainha!

Advirta-se, que o arcebispo de Toledo era um d'aquelles prelados da edade media, nascidos antes para brandir a espada acerada do guerreiro, do que para menear o cajado pacifico do apostolo.

O marquez de Vilhena comprehendeo logo toda a perfidia do seu interlocutor, e, occultando cautelosamente{20} o assombro, que lhe produziram as suas palavras, perguntou sem hesitação:

—Como?...

—Divulgando, que a infanta D. Joanna é filha de Beltran de la Cueva—respondeo serenamente o arcebispo.

—E acredita-lo-hão?... Talvez muitos o ponham em duvida... Como sabeis, o facto de ter o rei estado sem successão, durante sete annos, póde explicar-se com o similhante de seu avô Henrique III, que esteve oito. Álem d'isso a todos é bem prezente ainda a scena de ciume da rainha, que, batendo com um chapim na sua dama D. Guiomar de Castro, expulsou-a ao mesmo tempo do alcaçar de Madrid, sem evitar, que a sua rival esteja vivendo hoje tão entonada, por ser amante do rei, e dispensadora de mercês, aos que preferem ganha-las com humilhações perante tal mulher, a conquista-las ás lançadas aos mouros...

—E d'esses factos o que se conclue?... O primeiro á lembrança de ninguem acóde. O segundo tem uma explicação natural no orgulho offendido. Álem de que o vulgo não deixa de crêr ás cegas em todas as accusações feitas aos potentados, e até as avulta enormemente... Accresce, que para o genero d'esta não ha defensa possivel, e, dado o escandalo, já o monarcha se não attreve a mostrar-se em publico, sem correr o risco de ser apupado...

—N'essas circumstancias deixará a infanta de{21} ser a herdeira presumptiva da corôa...—contestou pausadamente o marquez.

—Sem duvida!—atalhou de prompto o arcebispo, a quem pareceo divisar no marquez de Vilhena certo ar de indecisão.

—Melhor é, pois, desthronar já D. Henrique!...

—Óra até que chegámos ao ponto, por onde deviamos ter começado!—exclamou o arcebispo com mal contido júbilo, e, compondo o aspecto, de seu natural severo, accrescentou: e quem hade impedir-nos de o realizar?...

—Pois bem!... Mas antes de tudo o monarcha assignará as pazes com o rei de Aragão, afim de evitar, que continue a suspeita de qualquer accordo nosso com a côrte aragoneza...

—É habil esse lance!...—ponderou o arcebispo—Comtudo não vos esqueçais do arcebispo de Sevilha...

—Seguramente...

—Vejo, que nos comprehendemos...

—Resta saber, quem nos convirá no throno, cuja dignidade tratamos de restaurar...

—O infante D. Affonso; por isso mesmo que é uma creança tão debil e apoucada, como seu irmão. Agrada-vos?...—concluio o arcebispo, sorrindo ironicamente.

—É uma creança que substitue outra...—observou Vilhena.

—É; mas D. Henrique retirou-nos a sua confiança,{22} e D. Affonso hade obedecer ás nossas inspirações...

Das reticencias d'este dialogo é licito inferir, que os interlocutores não confiavam demasiadamente um no outro. O arcebispo de Toledo era insolente e audacioso. O marquez de Vilhena, mui solérte em intrigas palacianas, fazia consistir a sua força na brandura da sua linguagem, e sabia-lhe melhor ganhar a victoria por meio de traças ardilosas, e palavras melicas. Não pretendia álem d'isso desaggravos tão cruentos, como o arcebispo; mas teve de concordar com elle, e com os outros conjurados, em espalhar pela lama as jóias mais bellas de uma corôa, para a tornar ludibrio do mundo!

O que mais resolveram tão inclitos varões, em seu conluio, i-lo-hão mostrando elles para gloria sua.

Henrique IV, apesar dos reparos, que pôz na concordia com o rei de Aragão, assignou as pazes propostas pelo marquez de Vilhena. Parece, porém, ter-lhe servido de aculeo a sua condescendencia, para manifestar, mais do que nunca a sua intimidade com o conde de Ledesma.

Foi novo aggravo aos conspiradores; por isso correo logo de bocca em bocca o nome de Beltraneja, posto por elles á innocente infanta, e perfida injuria disparada ao pundonor de sua mãe.

Os amigos do monarcha, cobertos de pejo, indignaram-se de ver caidos na baixeza, de propalar{23} em tamanha infamia aquelles, que se diziam grandes de Castella!

Procurou o rei attrahir de novo ao seu partido o marquez de Vilhena, por saber quão perigosa era a sua inimisade, e este aproveitou o ensejo, para lhe propôr a demissão do metropolitano de Sevilha. Não só conveio n'isto o timido monarcha, mas ordenou tambem a prisão do prelado. O marquez avisou do rescripto a sua victima, que passou logo para o bando dos descontentes!

Seguidamente intentavam os conjurados surprehender o rei em Madrid e apoderar-se d'elle. A vigilancia do conde de Ledesma frustrou a tentativa. Acudiram de outra vez a Segovia, quando o monarcha alli foi; compraram a camareira Maria Padilla, que velava junto do dormitorio, e pareceu-lhes ageitado o lance; mas baldou-se ainda o attrevido designio.

De Burgos dirigiram ao desditoso rei uma reprezentação, em que lhe diziam, com inqualificavel despejo, have-lo induzido o conde de Ledesma a fazer jurar por herdeira do throno D. Joanna, chamando-a princeza sem o ser; pois que não era sua filha bem o sabiam elle e o conde!

O rei tremeo ao lêr estas palavras. Afigurou-se-lhe conjurar todos os perigos, concertando o enlace de sua filha com o infante D. Affonso, e accedendo, a que Beltran de la Cueva renunciasse o mestrado de Samtiago, por que tanto suspirava o marquez de Vilhena.{24}

Consentio, pois, em que fosse jurado herdeiro da corôa seu irmão, uma vez que casasse com a princeza D. Joanna; e o conde de Ledesma, por seu turno, entregou nas mãos do rei a sua demissão de mestre de Samtiago, não por se considerar indigno de exercer esse alto cargo, mas para em tudo servir D. Henrique. Em compensação foi elevado a duque de Albuquerque.

Tão alta mercê exasperou mais a protervia dos colligados, que logo ergueram em uma planicie, cerca dos muros da cidade de Avila, um cadafalso, sobre o qual collocaram uma cadeira, em que assentaram um manequim, figurando D. Henrique de sceptro na mão e corôa na cabeça. Leram muitas queixas contra o rei, e em seguida o arcebispo de Toledo tirou a corôa do boneco; o marquez de Vilhena, o sceptro; o conde de Plasencia, a espada; o mestre de Alcantara, o conde de Benavente e o de Paredes, os restantes ornatos da realeza; e todos arrojaram, a pontapés, do cadafalso abaixo o vulto desataviado!

O infante D. Affonso foi posto por elles no mesmo lugar, todos lhe beijaram a mão, e aclamaram rei de Castella e Leão.

Pobre creança, que não tinha a consciencia de ser n'aquelle acto um mero instrumento da villania dos turbulentos vassallos de seu irmão!

Em outros paizes menos familiarisados com as rebelliões, esta teria abalado profundamente a opinião publica; e, se não fôra a inepcia e covardia{25} de Henrique IV, que era o desespero dos bravos, a parte sensata do reino teria feito estalar a sua indignação contra os conjurados.

Esse apparato theatral de Avila produziu um grande escandalo, sem dar um grande golpe, e logo depois mallogrou-o completamente a recepção enthusiastica, feita á princeza D. Joanna em Saragoça.

Começou o marquez de Vilhena por esta razão a nadar entre duas aguas, mostrando-se desejoso de dar conselhos ao rei; e, como o arcebispo de Toledo lhe lançasse em rosto esse procedimento, fingio-se doente, a ponto de receber o sagrado viatico, nomear aquelle prelado seu testamenteiro, e pedir-lhe, que fosse patrono de seus filhos. Deixou assim de arrogar-se, em seu entender, a responsabilidade de certos actos, e preparou novas alicantinas.

O irrequieto arcebispo foi pôr cerco a Simancas; mas do alto das muralhas da velha cidade os sitiados escarneceram-n'o, chamando-lhe D. Opas;—o que significava compara-lo com o typo mais repugnante dos homens conhecidos por traidores.

Outros grandes de Castella, embora pouco satisfeitos com a marcha dos negocios do Estado, acudiram ao serviço do rei, por comprehenderem que se ventilava um processo de honra publica; todavia não pudéram evitar, que Henrique IV caisse na fraqueza de tratar com os sublevados uma suspensão de armas por cinco mezes, dando{26} azo a despedir-se das duas parcialidades gente, que foi infestar as povoações, a ponto de provocar a fundação das Hermandades, para perseguir os malfeitores.

Os povos passavam de um partido ao outro, com uma volubilidade sómente comparavel á dos magnates. Tudo era confusão no meio da cafila de potentados, cobiçosos de dar leis, e pouco amigos de sujeitar-se a ellas.

O arcebispo de Sevilha e o marquez de Vilhena offereceram ao rei os seus serviços, se elle consentisse, em que a infanta D. Isabel, sua irmã, casasse com D. Pedro Giron, irmão do marquez. Com a filha de Vilhena, D. Beatriz Pacheco, estava ajustado o casamento do principe D. Fernando, filho do rei de Aragão, que estimava esse enlace, o qual se não realizou por se oppôr tenazmente o almirante de Castella, avô materno do principe.

A infanta D. Isabel começou a seguir os rebeldes por toda a parte, sem fazer esforço algum de voltar para onde estava seu legitimo rei.

O legado pontificio fulminou sentença de excommunhão contra os nobres e senhores, que não prestassem desde logo obediencia á auctoridade real, deixando de impedir, seu livre e expedito exercicio; mas o arcebispo de Toledo, principal caudilho dos sediciosos, rio-se com elles do interdicto, dizendo, que appellariam para um concilio. E mandaram logo a Paulo II uma embaixada,{27} participando-lhe, que tinham acclamado o infante D. Affonso rei de Castella e de Leão. O papa respondeo, que em vez de attrairem as bençãos do Céo sobre o infante, chamavam sobre elle os castigos eternos e a morte; e que com o seu exemplo a liga provocava todas as classes á desobediencia.

D. Affonso falleceo de repente, na tenra edade de quinze annos, e os conjurados offereceram a coroa á infanta D. Isabel, que a não aceitou, por não poder intitular-se rainha, em quanto seu irmão D. Henrique vivesse... Entretanto, porém, desejava ser jurada herdeira do throno, em competencia com D. Joanna, a quem chamou supposta filha do monarcha.

Annuio D. Henrique a effectuar-se esse juramento, com a condição de sua irmã não casar sem elle o consentir. Sacrificou d'este modo a propria honra e a da rainha, sua mulher, sendo injustamente postergados os interesses da innocente infanta, sua filha.

Do juramento anteriormente feito a D. Joanna, foi absolvido o reino pelo legado pontificio, o qual não attendeo os protestos da rainha contra tudo quanto se accordou em opposição aos direitos de sua filha, porque havia recebido o encargo de apaziguar dois litigantes, e, sendo-lhe impossivel desatar um nó, julgou mais prudente corta-lo.

Agora todo o ardor dos turbulentos se concentrou na escolha de marido para D. Isabel.{28}

O almirante de Castella queria, que a infanta se desposasse com o seu neto D. Fernando, para ter em Aragão um auxiliar poderoso; o marquez de Vilhena oppunha-se, não para obstar á união das duas corôas, senão para olhar pelo engrandecimento da propria casa, pois lhe haviam proposto antes o enlace d'aquelle principe com uma filha sua. De sorte que, ainda mal apagadas umas discordias, surgiam logo outras.

Era esta a politica dos magnates rebeldes. Convinha-lhes ter sempre a corôa sob a sua influencia, por isso eternisavam as parcialidades, buscavam em tudo elementos de perturbação, e a auctoridade real era incessantemente um joguete em suas mãos.

Podésse muito embóra a pusilanimidade de Henrique IV, ou a sua falta de previsão e dignidade no poder, fomentar o germen das sedições; nada d'isso, porém, as justificava: serviram unicamente de deixar na historia de um povo illustre uma pagina indecorosa.

O casamento de Fernando com Isabel foi para o pae d'esse principe uma nova campanha, que tratava de vencer, comprando a pêso de ouro os grandes de Castella.

Entretanto Henrique IV partia com o marquez de Vilhena para Andaluzia, afim de receber umas cidades, que se administravam por seu proprio arbitrio; e depois de ter feito jurar solemnemente a sua irmã, que não casaria, fosse com quem fosse,{29} antes de elle regressar. A infanta, porém, aconselhada pelo arcebispo de Toledo, protestou secreta e intimamente, que faria o que bem lhe parecesse; e logo escreveo ao rei de Aragão, dizendo-lhe, que consentia em unir-se a seu filho, mediante certas condições, que seriam propostas pelos emissarios, de quem ella encarregára a negociação. Mui vexatorias para o decoro do reino e do principe as consideravam os conselheiros do soberano aragonez; com tudo o matrimonio realisou-se. Correo logo que não estava valido, por se ter celebrado sem a dispensa pontificia, tão reclamada pelo proximo parentesco dos conjuges; mas como não havia escrupulos, nem difficuldades para o arcebispo de Toledo, este não hesitou em faltar á verdade, affirmando, que a curia romana lhe enviára muito a tempo o breve indispensavel.

Quando Henrique IV recolheo a Madrid, recebeu dos sublevados uma exposição, na qual lhe participavam o consorcio da infanta, e as condições, em que se effectuára; sem deixarem, para maior ludibrio, de solicitar o perdão do seu rei, por haverem, sem seu beneplacito, preparado e conseguido tão auspiciosa união. Ao mesmo tempo Isabel dirigio a seu irmão uma carta affectuosissima, em que lhe communicava a sua mudança de estado.

Era o cumulo da insubordinação e da impudencia!

O desforço de Henrique IV consistio em reunir{30} um simulacro de côrtes no valle de Lozoya, onde, perante a rainha e sua filha, fez declarar solemnemente, que era irrito e nullo o acto de se haver jurado em Toros de Guisando, a infanta D. Isabel por herdeira do throno, em virtude de concessão feita por elle monarcha, pois lhe fôra esta arrancada á força, e offendia os direitos de sua legitima filha. Assistiram a essa assembleia alguns delegados de Luiz XI, que celebraram por procuração o casamento de D. Joanna com o irmão d'aquelle soberano. As cidades, que se prezavam de leaes, sendo Sevilha uma das primeiras, deram a tudo seu assentimento; mas o noivo da princeza não chegou a cumprir a palavra, que por meio de poderes especiaes havia empenhado.

Por conselho do marquez de Vilhena, Henrique IV voltou-se para D. Affonso V, a quem propôz o casamento com D. Joanna, a qual levaria em dote os reinos de Leão e Castella; porém, o monarcha portuguez, mais receoso dos artificios de Vilhena do que das difficuldades do assumpto, deo largas ao negocio, e Henrique IV entretanto tentou ainda procurar para genro o infante D. Henrique de Aragão, filho de outro, que, cincoenta annos antes, havia sido o primeiro perturbador de Castella.

Começou o anno de 1474.

Henrique IV estava em Segovia, e o alcaide d'esta cidade, Andrés de Cabrera, teve artes de fazer, com que o soberano se avistasse no alcaçar{31} com a infanta D. Isabel. O rei, por sua natural bonhomia, recebeo a irmã, que não solicitou, nem esperou permissão para apresentar-lhe o marido. Era D. Isabel, na phrase de um legado de Sixto IV, sobradamente animosa e discreta, para deixar de conseguir o que desejasse, por isso não tratou de desculpar-se, senão de commover o irmão a ponto de lograr induzi-lo, a que no dia de Reis lhe désse e ao marido uma prova publica de affecto, indo á missa com elles, e voltando com grande comitiva ao alcaçar. Aqui tinha o alcaide farto e delicado almoço. O rei comeo com sua irmã e cunhado, e ao cair da tarde sentio-se tão mal, que foi mister leva-lo em braços para o palacio. Em quanto esteve de cama não cessaram as deligencias, para que declarasse sua irmã por herdeira do throno. Negou-se a isso constantemente. O marquez de Vilhena advogava a causa de D. Joanna, o arcebispo de Toledo a de D. Isabel; e ao passo que esta infanta se mostrava tranquilla e disposta a sustentar a todo o transe suas pretensões á successão, D. Fernando pelo contrario, não parava em parte alguma, como quem sentia na consciencia um pêso, de que não podia alliviar-se.

Depois do almoço de Segovia, Henrique IV nunca mais gozou saude, até que falleceo em 12 de dezembro do anno a que nos estamos referindo. Dois mezes antes tinha morrido o marquez de Vilhena, a quem succedeo seu filho D. Diogo,{32} que assistio com o cardeal Mendoza, o conde de Benavente e o prior de S. Jeronymo, fr. João de Macuelo, aos ultimos momentos do rei em Madrid.

Apenas o prior confessou e ministrou a Sagrada Eucharistia ao monarcha moribundo, perguntou a este o cardeal:

—V. A. deixa testamento?

—Deixo—respondeo Henrique IV.—O meu secretario Juan de Oviedo o apresentará.

—E quem são os vossos testamenteiros?—continuou o cardeal.

—Á excepção do prior de S. Jeronymo, ficam nomeados os presentes e o conde de Plasencia.

—E a quem deixa V. A. por herdeira do throno?—insistio ainda Mendoza.

—A minha filha D. Joanna—replicou o monarcha serena e firmemente.

Seria grave offensa á memoria de Henrique IV suppôr, que na hora tremenda, em que elle se preparava, conforme a sua fé, para dar conta das suas fraquezas ao Omnipotente, saisse de seus labios uma mentira!

Ainda quentes os restos do mallogrado monarcha, D. Isabel fez-se acclamar, em Segovia, rainha de Castella e Leão, mandando celebrar um solemne Te-Deum, como se acabasse de alcançar o maior triumpho. Seguidamente foi áquelle mesmo alcaçar, onde havia entrado mezes antes em companhia de seu esposo e do rei defunto, sentou-se{33} junto d'aquella mesa, em volta da qual os tres almoçaram, e prezenteou o alcaide Andrés de Cabrera com o mesmo copo de ouro, de que se servira D. Henrique.

Parece um sarcasmo!

Em geral os historiadores e chronistas hespanhoes defendem e exalçam a successão de Isabel a Catholica, servindo-se, para combater a legitimidade e o direito da princeza Joanna, dos mesmos pretextos, de que lançaram mão os rebeldes.

Não é d'este modo, que deve comprehender-se a missão da historia.

Póde o historiador alardear a sua erudição e os seus talentos; se o seu criterio, porém, não fôr imparcial e desapaixonado, sacrificará a verdade, que é a alma, a belleza da historia, e a honra suprema, de quem a escreve.

O facto de ter D. Fernando o Catholico, depois de viuvo, pretendido desposar-se com a princeza D. Joanna, por si só bastaria, para lavar a nodoa, com que macularam a reputação da mulher de D. Henrique.

Mas a tumida onda sediciosa não envolveu unicamente os povos de Castella; saltou a fronteira portugueza, e arrastou na resaca o nosso D. Affonso V, que no conceito de Camões,

Fôra por certo invicto cavalleiro,
Se não quizera ir ver a terra Iberica.

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{35}

 

III

 

NOVO ESCUDEIRO

Após o passamento de Henrique IV, todas as esperanças dos partidarios de D. Joanna firmavam-se no heróe de Arzilla; e as de D. Isabel no apoio de Aragão principalmente. Estava préstes a travar-se a lucta, em que devia afinal decidir-se da sorte das duas contendoras, collocadas em circumstancias mui diversas.

Isabel, ainda em vida de seu irmão, soube preparar-se a tempo; Joanna era uma creança inexperiente, filha de uma senhora sem prestigio, e sem a necessaria energia para collocar-se á frente do movimento, que se operava a favor da justa causa da princeza de Castella.

Tambem a morte veiu surprehender a infeliz viuva no inicio das hostilidades, de sorte que sua filha, orphã prematura de páe e mãe, ficou inteiramente á mercê da versatilidade caracteristica de{36} seus parciaes. Estes, mais por acudir á vingança de seus odios particulares, e ao accrescentamento de seus patrimonios, do que por zelo do bem publico, ou amor de justiça, trataram de comprometter D. Affonso V, para lhes saciar a cobiça.

Estava o rei de Portugal em Extremoz, quando lhe chegou ás mãos o testamento, em que seu cunhado Henrique IV declarava ser a princeza D. Joanna sua filha, e a nomeava herdeira dos reinos de Castella e Leão, pedindo outrosim a D. Affonso V, que acceitasse a governança d'elles e casasse com a sobrinha.

Ouviu D. Affonso sobre o assumpto o parecer de seu filho, bem como o dos grandes e principaes do reino, a quem consultou mais talvez pelo respeito ás praxes estabelecidas, do que resolvido a seguir qualquer conselho, que contrariasse o seu reservado intento. A fim de saber não só quantos e quaes eram os magnates castelhanos legitimistas, como de certificar-se da valia d'elles, enviou a Castella Lopo de Albuquerque, seu camareiro-mór, depois conde de Penamacor.

A esse tempo chegava D. Juan de Guzman a Extremoz, onde foi recebido pelo monarcha.

Não podia ser mais a proposito esta visita, e D. Affonso folgou muito com ella, dando ao seu hospede cordialissimo agasalho, como naturalmente pediam a lhaneza e affabilidade do rei, que captivava com o seu trato grandes e pequenos.{37}

Entregou-lhe o recem-vindo uma carta, em que o duque de Medina Sidonia o apresentava a D. Affonso, garantindo a approvação antecipada a quanto entre ambos ficasse assentado.

Terminada a leitura do escripto, começou Guzman por dizer:

—Não ignora voss'alteza, quanto é lastimoso o estado de Castella. O reino sem direcção, nem governo, combatido por todos os principios de dissolução, caminha rapidamente para uma ruina tremenda, e nas mãos de voss'alteza está o poder evita-la.

—São esses os meus desejos;—replicou D. Affonso—mas, como sabeis, a empresa não é facil, por isso careço de inteirar-me da lealdade dos que se propõem pugnar pela justiça e direitos da princeza, minha sobrinha.

—Da parte de meu irmão—tornou Guzman—venho eu prestar homenagem a voss'alteza, a quem elle jura servir em tudo, obrigando-se a auxiliar, tomar e reconhecer por seu legitimo rei e Senhor, se voss'alteza se desposar com a senhora D. Joanna, e fôr sem demora tomar posse do governo de Castella.

—O duque é digno dos meus louvores, e mais ainda pela fórma, como procede, offerecendo-me occasião de conhecer-vos, para muito vos estimar.

—Mercê a voss'alteza, meu Senhor. Em breve poderei talvez provar-vos a gratidão do meu animo, onde tambem o seu esforço mais se manifeste.{38}

—Praz-me ouvir-vos, e ver-vos tão deliberado!

D. Juan de Guzman cortejou D. Affonso, e disse-lhe com aprimorados ademanes de cavalleiro:

—Espéro, que meu irmão me confie o comando de dois mil cavallos, que desde já põe ao serviço de voss'alteza.

—É contingente valioso esse—observou D. Affonso.

A respeito das forças, com que poderemos contar devo em breve ser definitivamente informado pelo marquez de Vilhena.

—Assim o creio. Talvez a demora dos seus esclarecimentos dependesse da resposta de meu irmão.

—Porquê?

—Á hora da minha partida para Portugal recebeu o duque uma carta de D. Diogo, na qual lhe perguntava com quantos cavallos concorria, pois desejava enviar a voss'alteza uma nota das tropas castelhanas, com que poderiamos entrar em campanha, e a Luiz XI a da totalidade do exercito.

—E o marquez communicava tambem ao duque o computo dos já inscriptos?

—Sim, meu Senhor. Anda por dezoito mil cavallos; devendo, porém, este numero elevar-se, quando constar a entrada de voss'alteza em Castella, pois muitos dos cavalleiros, que até agora não adheriram, o farão immediatamente.

D. Affonso V não poude occultar o jubilo, que lhe causou esta nova de ter já por si em Castella{39} tão importantes forças; e com a sua habitual familiaridade affirmou a D. Juan de Guzman:

—Eu tenho muita confiança nos cavalleiros castelhanos. Não os ha mais briosos certamente.

—Mercê por elles, meu Senhor.

—Agora aqui vos deixo para serdes recebido pelo principe, que muito gostará de conversar comvosco.

É fácil de presumir, sobre que versaria principalmente a palestra, sabendo-se do interesse, que mostrava o principe D. João em seu páe acceitar o papel, que Henrique IV lhe distribuira no testamento.

D. Juan de Guzman poucos dias se demorou em Portugal; foi, porém, o tempo sufficiente para D. Affonso e seu filho conhecerem e apreciarem o pagem, que viera na comitiva. D'elle fizeram grandes gabos ao fidalgo sevilhano, o qual, mais talvez por alardear philaucias de familia, do que por enaltecer as qualidades do môço, ou por ambas as razões, referiu em resumo: que da Covilhan costumava ir a Sevilha o páe do pagem commerciar e conquistára grandes creditos. Tendo afinal estabelecido a sua residencia n'aquella cidade, onde era geralmente estimado, accedeu ao pedido, que lhe fez o duque de Medina Sidonia, de deixar-lhe educar o filho, então muito creança ainda, mas dotado já de singular viveza. Como fallecesse o mercador, pouco depois, e já viuvo, ficára o pagem inteiramente confiado ao amparo{40} do duque. Possuia prendas muito estimaveis, poderia em breve ser um excellente cavalleiro, e chamava-se Pero da Covilhan, por causa da sua procedencia.

Esta narrativa ainda mais aguçou a D. Affonso e ao principe o appetite de terem o pagem ao seu serviço; e D. Juan de Guzman já havia reconhecido isso na maneira como lhe fallavam d'elle.

Na vespera do seu regresso a Sevilha, perguntou Guzman a Pero da Covilhan:

—Quereis ser pagem do rei de Portugal?

—Tudo quanto sou—respondeu Pero—devo ao senhor duque, por isso não tenho animo de separar-me d'elle.

—Esperava essa resposta;—volveu Guzman—mas se eu vos pedir, que fiqueis?

—Obedeço, porque de vossa mercê sómente recebo ordens e não pedidos.

—Meu bom Perico!—exclamou affectuosamente Guzman.—Muito me custa deixar-vos cá; mas o senhor D. Affonso, que, dentro em pouco será rei de Castella, mostra desejos de ser vosso amo, e eu tenho-os de o bem servir; por isso entregar-vos-ei a elle, certo de que meu irmão assentirá ao meu proposito.

No dia seguinte saiu D. Juan de Guzman para Sevilha. D. Affonso V dirigiu-se a Evora, levando no seu sequito a Pero da Covilhan, já escudeiro, servido de armas e cavallo, sem embargo de não ter completado ainda vinte annos.{41}

O rei antes da partida despachou o seu Arauto Lisboa com cartas para Luiz XI, a quem communicava a resolução que tomára, de receber por esposa a princesa D. Joanna, e de entrar em Castella com um grande exercito, pois a isso o estava convidando a maior parte da grandeza castelhana. E sob o pretexto de recear, que na jornada sobreviesse ao seu Arauto algum accidente ou enfermidade, que o retardasse, escreveu de novo ao rei de França, insistindo agora principalmente em demonstrar os legitimos e inauferiveis direitos da rainha D. Joanna. Ponderava habilmente, que o não ser d'elles esbulhada, era conveniencia de ambos os monarchas, por quanto, se Fernando se apoderasse de Castella, viria a ser um vizinho formidavel e perigoso, tanto para Portugal, como para França.

Procurava assim conciliar com acertada politica as boas graças de Luiz XI, que mui interessado era, em que no throno de Castella estivesse um principe capaz de manter e conservar as antigas confederações e allianças d'esse reino com a França; mas contra todos em geral e sem excepção.

N'este ponto offerecia-se a difficuldade de ser Portugal alliado da Inglaterra, antiga inimiga da França, e querer Luiz XI, que Portugal ficasse comprehendido no tractado a celebrar com Castella.

De certo modo veiu o nosso monarcha a prestar-se ás vistas politicas de Luiz XI; o que determinou{42} este a promulgar uma carta patente sobre o soccorro, que dava a D. Affonso V, nomeando sire d'Albret commandante de um exercito destinado a invadir Guipuzcoa e Biscaia.

Com quanto o duque de Bragança tivesse já dado lealmente por escripto o seu parecer—que foi archivado a seu pedido, para constar no futuro—ácerca da entrada do exercito portuguez em Castella, D. Affonso, antes d'este se pôr em marcha, conversou ainda particularmente com o duque a respeito do assumpto.

—Insistis na vossa opinião?—perguntou o monarcha ao duque de Bragança.

—Certamente, meu Senhor—respondeu o duque.

—Ora dizei-me: não deverei eu confiar nas declarações categoricas, que por Lopo de Albuquerque me enviaram os grandes de Castella?

—Mais acertado fôra, Senhor, desconfiar d'ellas. Reparai bem, que esses mesmos, que vos chamam agora para sustentar os direitos de vossa sobrinha, são os que atraiçoaram a D. Henrique, seu rei natural, depondo-o do governo do reino.

—Assim é. Mas não acreditais, que elles reconhecendo a justiça que assiste a minha sobrinha, queiram resgatar com uma nobre acção seus anteriores desatinos, sem embargo de esperarem tambem receber de mim grandes mercês?

—O que me parece é, que a obediencia por elles jurada depende unicamente da sua ambição, e{43} vem acompanhada de mais interesse, do que de fidelidade e constancia; por isso, se a sorte das armas começar a ser desfavoravel a voss'alteza, depressa abandonarão a vossa bandeira.

—Sei, que como amigo me fallais; mas a vossa prudencia é agora descabida. Pois os nobres de Castella arriscar-se-iam por ventura a grandes perigos, offerecendo-me espontaneamente seus serviços, se duvidassem do seu e meu triumpho?!

—De tudo são elles capazes, meu Senhor, que os não ha mais voluveis. Mas superiores em poder e em numero são-lhes os mais avisados e prudentes, tendo ao seu lado o povo, que unanimemente acclamou D. Isabel por sua rainha. E uma acclamação, como esta, é vantagem muito grande no começo dos reinados, servindo até de justificar as pretensões mais duvidosas.

—Não ignoro quanto o poder de Castella excede o de Portugal; mas conto não só com os homens do meu reino, que são muito valentes, senão com outros tantos castelhanos, como de mais nações, que de boa vontade engrossarão o meu exercito.

—E a D. Isabel não virão soccorros da Secilia, tanto em dinheiro, como em armas, navios de guerra, cavallos e provisões? Aragão dar-lhos-ha decerto; e até a Italia, pois são senhores d'ella, e primos dos reis da Secilia, o rei de Napoles D. Fernando, e o duque da Calabria, seu filho.

—Sim, estão os meus adversarios bem aparentados;{44} mas não os temo apesar d'isso, e eu tambem não nasci das pedras.[3] Conto igualmente com amigos e parentes; tambem me não falta dinheiro, que é mais fiel que todos os parentes e amigos, e tenho sobretudo a Deus em meu auxilio.

—Não pretendo demover voss'alteza do proposito, em que está; permitti, porem, que vos lembre ainda a reciproca aversão de Castella e Portugal, filha de um odio inveterado entre os dois povos; e o perigo de expôr a felicidade e a paz do vosso reino á inconstancia e capricho dos grandes de Castella. Não olvide tambem voss'alteza, que, durante a vida de seu cunhado, não queria ouvir fallar do casamento de voss'alteza com sua sobrinha, e que, acceitando-o agora, obriga o mundo, sempre prompto a desacreditar as acções dos principes, a murmurar e attribuir esta guerra a algum odio reservado...

—Sem embargo d'isso, estou resolvido a entrar em Castella.

—Acato a deliberação de voss'alteza, e peço-lhe me conceda licença, para ter em alguns lugares d'esse reino póstas prestes a salvar a real pessoa de voss'alteza e a minha, se necessario for.

A vigorosa argumentação do duque de Bragança, para combater o designio de Affonso V, fez suspeitar o principe D. João, de que fôra inspirada por D. Isabel, proxima parenta do duque;{45} suspeita essa, que dominou sempre o animo do principe, e foi mais tarde tão fatal á casa de Bragança.

D. João oppôz-se apaixonadamente áquelle parecer, por estar convencido de que o senhor de Villa Viçosa pretendia atalhar, a que D. Affonso V aproveitasse o ensejo propicio, que se lhe offerecia, de dilatar os dominios da corôa, e unificar os reinos da peninsula. Era vivamente applaudido por alguns fidalgos portuguezes, que observavam o invariavel preceito, de não soffrerem os principes contrariedade a seus gostos. Preferiam por isso ser aduladores, especie de péste endemica das côrtes, para a qual se não descobriu ainda remedio.

O duque de Bragança havia previsto, quanto ia passar-se em Castella; e os successos, como veremos, bem mostraram ser mais difficil illudir a prudencia, do que lisonjear um principe.

Falleceu o duque, antes de se pôr em marcha o nosso exercito, e seu filho primogenito D. Fernando, duque de Guimarães, que lhe succedeu em suas grandezas, tomou parte na expedição com seus irmãos, vassallos e dinheiro, sem que lhe entibiasse o zelo e a generosidade, com que servia o seu legitimo rei, consideração alguma pelo parentesco, que tão estreitamente o ligava aos principes do partido contrario.

Até aqui havia D. Affonso V reinado com muita gloria e auctoridade, sendo alvo da estima e veneração dos principes seus contemporaneos, alguns{46} dos quaes consumiam seus patrimonios e forças em guerras civis e domesticas, em quanto elle as expendia em activar o influxo civilisador da religião catholica, e ampliar a soberania de Portugal, havendo passado tres vezes a Africa, onde seus cavalleiros mais acendraram a fama luzitana, e elle mostrou sempre a alteza de animo, de que era singularmente dotado.

A inclinação e gosto, com que se occupava na conquista da Africa pela Barberia, faziam-n'o olvidar a grandeza dos descobrimentos do Oceano, iniciados pelo infante D. Henrique seu tio. Quem sabe, porém, se elle continuaria a obra do solitario de Sagres, uma vez que não fosse impellido pela generosa idéa de reparar uma affronta, feita a sua irmã, e de soccorrer uma orphã innocente e desamparada?

E seria sómente esse o pensamento, que o levou a Castella?

Se o leitor, em alguma hora de seu desenfadamento, compulsasse os codices da preciosa collecção pombalina, que possue a Bibliotheca Nacional de Lisboa, em um d'elles encontraria a seguinte lembrança muito instructiva:

«Sendo antes destas tres escreturas atras contheudas trautado casamento delRei Dom Affonso o quinto, padre delRei nosso Senhor e sobre elle com a Rainha Dona Isabel, que na era presente reinava, foi com embaixada a Castella o Arcebispo de Lisboa Dom Jorge grandemente, que hoje{47} he Cardeal de titolo de Sam Pedro Marceleni, e está em corte de Roma privado e amado do Papa Innocencio, que foi Cardeal malfetano, e asi outros embaixadores, e vindos outros de Castella ao dito Rei sobre o mesmo caso, esta senhora Rainha Dona Isabel se casou com elRei de Cecilia e Principe d'Araguam, filho delRei Dom João d'Araguam, que primeiro foi Rei de Navarra, o qual casamento fez por mão do Arcebispo de Tolledo dom Affonso Carillo, e do Almirante avoo do dito Rei da parte de sua mãi, e fique em memoria que o fez porque o dito Senhor Rei Dom Affonso a não quiz, querendo ella muito, e depois elle a quisera e ella como as molheres naturalmente sam vingativas o não quiz quando elle quisera, e folgou de lhe dar competidor e de o anojar, como na verdade foi, ca desta mesma causa naceo sua entrada em Castella com o titolo de sua sobrinha, filha delRei Dom Amrique per dar trabalho á Rainha Dona Isabel, e se vingar della, e como as cousas de sua entrada sobcederão fique do Coronista ao carguo.»

Com effeito Henrique IV, annos antes do seu passamento, offerecera, como vimos, a mão de D. Isabel a D. Affonso V; e desejou igualmente, que o principe D. João casasse com a princeza de Castella, D. Joanna. D. Affonso dilatou a sua resolução, e sómente quando muito instado por seu cunhado, pelo principe seu filho, e pelas diligencias do marquez de Vilhena, mandou uma embaixada{48} pedir a infanta. Os embaixadores esperavam pela resposta na aldeia de Cientpozuelos, e afinal foram despedidos, dizendo-se-lhes, que se trataria por meios brandos de reduzir a infanta a obedecer a seu irmão. O arcebispo de Toledo cuidou immediatamente de dissuadir D. Isabel d'este enlace, pondo em relêvo a dilação descortêz de D. Affonso, aconselhou-a, a que preferisse Fernando de Aragão, e entendeu, que, para frustrar as idéas dos adversarios, devia fazer secretamente os preparativos, precipitar os tramites do negocio, e de um modo ou outro verificar o matrimonio, para que, realizado e consumado, não désse lugar ao arrependimento da princeza. E maior préssa se deu ainda, quando soube, que de Roma havia sido enviada a Bulla de Paulo II, com data de 23 de junho de 1469, concedendo a dispensa a D. Affonso e D. Isabel. Fabricou então um breve apostolico, datado de 28 de maio de 1464 e com assignatura falsa de Pio II, pois se oppunha á execução do desposorio com Fernando o impedimento da consanguinidade dos nubentes, e não havia outro meio de velar o sigillo e realizar o negocio com promptidão.

O atribiliario prelado toledano comprazia-se em forjar caballas e commetter torpezas.{49}

 

IV

 

JORNADA INFELIZ

Resolveu D. Affonso V entrar em Castella pela villa de Arronches, onde mandou reunir o exercito. Antes da marcha, e conforme prescrevia o Regimento de Guerra, não só o rei, mas todos os fidalgos, que tinham de acompanha-lo, receberam a Sagrada Eucharistia, indo depois toda a hoste assistir a uma missa solemne, e sendo pelo celebrante benzida a bandeira real mettida na funda.

Terminados estes actos, ao alvorecer de um formoso dia de maio de 1475, D. Affonso V

...................«tocado de ambição
E gloria de mandar amara e bella,
Sai cometter Fernando de Aragão,
Sobre o potente reino de Castella.»[4]

{50}

Lá foram ajuntar-se com elle o duque de Guimarães, o conde de Marialva, Ruy Pereira e outros fidalgos, os quaes, atalhando pela Beira, chegaram a Piedra Buena, onde acampou todo o exercito, composto de cinco mil e seiscentos cavallos, e quatorze mil infantes. Alli mandou D. Affonso V, que tomou então o supremo commando, chamar á sua tenda o condestavel, o marechal, o ouvidor da hoste e o meirinho, bem como todos os fidalgos, cavalleiros e capitães, a quem recommendou obediencia em tudo aos quatro primeiros; verificou o numero da gente que havia, e deu as necessarias providencias no tocante á ordenança, que as tropas deviam conservar durante a marcha.

Na frente saíu o adail-mór com um troço de ginetes, formando a guarda avançada; após elle o marechal, que era o aposentador e assentador do arraial; immediatamente o capitão de ginetes, seguido pelo capitão da vanguarda real, e logo a carriagem; na rectaguarda o rei, e, cobrindo-a, o condestavel, cujo cargo exercia em parte o duque de Guimarães. Formava as alas a fina flor da cavallaria portugueza, e entre a vanguarda e a rectaguarda não mediava mais de um tiro de bésta, a fim de poderem mutuamente soccorrer-se.

Ao condestavel, que era o general da milicia, pertencia marchar na vanguarda. Na presente formatura as attribuições e preeminencias d'essa dignidade estavam repartidas por D. João, marquez{51} de Montemór, filho do duque de Bragança D. Fernando I, e por seu irmão o duque de Guimarães.

A cavallaria compunha-se de cavalleiros e escudeiros de geração nobre; de lanças, que os senhores de terras tinham obrigação de dar, acompanhando cada uma dois arqueiros, um pagem e um escudeiro; e de cavalleiros da ordenança dos povos do reino, sendo apurados conforme a contia, que devia possuir cada morador para ter cavallo e armas. Estes sómente eram reputados tropa regular e effectiva, e entravam na conta ou rezenha das praças, que constituiam os corpos chamados bésteria, denominando-se bésteiros do conto tanto os de cavallo, como os de pé.

Dividia-se a cavallaria em pesada e ligeira ou á gineta. Na primeira, o homem era arnezado, e o cavallo bardado e encapacetado. Na segunda, os cavalleiros pelejavam armados de lança e adarga, usando de estribos curtos no apparelho do cavallo.

A infanteria constava de bésteiros, espingardeiros e piqueiros de pé.

Na bésteria differençavam-se os chamados de polé, por trazerem bésta, que se armava com uma roldana d'aquelle nome; os bésteiros da camara, que eram acontiados e fornecidos pelas camaras do reino; bésteiros de garrucha, mais abastados e considerados, que os de polé, armados com bacinete de camal ou de baveira, e tendo bésta com garrucha e solhas para arremessar virotões; bésteiros{52} de fraldilha, por levarem uma fralda de couro, que lhes servia como de escudo contra as settas do inimigo; e bésteiros do monte ou caçadores.

Notaremos que o numero das armas de arremesso se reduzia cada vez mais, á medida que as de fogo triumphavam da repugnancia, com que foi acolhida, durante muito tempo, a sua invenção, mórmente pela cavallaria, que considerava cobardes similhantes armas, com especialidade as portateis. No reinado de D. João II apparece já o cargo de anadél-mór dos espingardeiros, concedido a Payo de Freitas, cavalleiro da casa real, cabendo mais tarde ao rei D. Manoel a sua vez de extinguir em 1498 os acontiados e bésteiros, tanto de conto, como da camara, todos os cargos de officiaes móres e pequenos da bésteria, deixando unicamente os bésteiros do monte em alguns lugares da Beira Alta, Alemtejo e Algarve, com um anadél-mór, que era Pedr'alves, cavalleiro da sua casa, como consta da carta de 29 de maio de 1499.

A segunda dignidade do exercito de D. Affonso V era a de marechal, a quem pertencia, além de outras obrigações e prerogativas: repartir os alojamentos; executar e fazer cumprir as ordens, que recebia do condestavel; e julgar as causas civeis e crimes das gentes de guerra, levando um ouvidor comsigo para esse fim.

O alféres-mór levava a signa ou bandeira, a qual não estendia ou desenrolava sem especial{53} determinação do rei, quando estivessem á vista do inimigo, e costumava ter um alferes pequeno, que o substituia. As bandeiras dos fidalgos não podiam tirar-se das fundas e estender-se, sem que o fosse a bandeira real; podiam, porém, ir sempre estendidos os balsões ou insignias. No guião do rei via-se a divisa que Affonso V tomára por sua mulher D. Isabel, e consistia em um rodizio de moinho com gottas de agua esparzida ao redor, e na legenda Jámais. Com oito ou dez pendões pequenos era balizado e divisado o lugar escolhido para acampar.

Havia um aposentador-mór, que de ante-mão preparava os quarteis das tropas, quando estas se mobilisavam. O capitão de ginetes era o general de cavallaria; o adail-mór, o capitão dos bésteiros; e o coudel-mór commandava escudeiros e homens de armas, que não pertenciam a capitania alguma, e eram repartidos em tróços de vinte por coudeis.

Desempenhavam o serviço e a guarda do rei vinte cavalleiros ou escudeiros, commandados por um guarda-mór. Eram escolhidos, e andavam armados de cotas, barretas, braçaes, lanças e espadas; e no tempo de paz assistiam no paço junto da real camara. Algumas vezes o soberano encarregava tambem da sua guarda o capitão de ginetes, sendo então de duzentos o numero de cavalleiros, que ficavam em tudo considerados como os da camara real.{54}

Segundo prescrevia o Regimento, os soldados ou gente de guerra deviam trazer em batalha uma divisa, ou sinal d'armas de S. Jorge, larga, e tanto no peito como nas costas, para se distinguirem do inimigo. As trombetas eram os instrumentos empregados nos diversos toques ou chamadas; mas affirma Ruy de Pina, que n'esta marcha a Castella já o nosso exercito usou tambem dos atabales.

O trem de artilheria com suas bombardas e colubrinas era morósamente conduzido. Estava a cargo de um védor-mór, aprompta-lo e pô-lo em marcha.

Para este fim tinha atribuições amplas, estabelecidas em um regimento proprio, de que se lhe passou carta em 20 de abril de 1450. Requisitava ás auctoridades locaes as bestas, bois, carros e barcos, que julgassse indispensaveis á conducção do trem, sendo depois pago o aluguer; bem como os bombardeiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros, de que houvesse necessidade o serviço de artilheria, e aos quaes pagava conforme os seus merecimentos. Annexa ao trem ia uma brigada de gastadores, para abrir caminho.

O principe D. João acompanhou seu páe até Piedra Buena, e d'aqui regressou a Portugal na mesma occasião, em que o exercito marchou para o norte, indo fazer alto em Plasencia.

D'esta cidade mandou D. Affonso V a Luiz XI uma embaixada, composta de D. Alvaro de Ataide e do licenciado João d'Elvas, a fim de negociar o{55} seu reconhecimento como rei de Castella, e, conforme os desejos do rei de França, renovar os antigos tractados, que existiam entre as duas monarchias. Ao mesmo tempo escreveu á cidade de Salamanca uma carta sobre os direitos de sua sobrinha aos reinos de Castella e Leão, e mandou publicar um manifesto, no qual se demonstrava a justiça bem fundada, com que eram combatidas as pretensões de Isabel e Fernando de Aragão.

Celebrou esponsaes com a princeza D. Joanna, que já o esperava acompanhada dos duques de Arévalo, marquez de Vilhena e outros magnates, e foi publica e solemnemente proclamado rei, pelo que logo começou de intitular-se rei de Castella, Leão e Portugal.

Isabel e Fernando accrescentaram igualmente aos seus titulos os de reis de Portugal; de modo que não parecia luctarem uns pela união iberica e outros contra, senão méramente para dar a presidencia d'essa união áquelle que mais afortunado fosse.

D. Affonso V ia passando os dias em ruidosas festas, como se com ellas se formasse o prestigio dos noivos, e nem por sombras suspeitava das diligencias de D. Isabel, em comprar com o ouro e prata das egrejas o favor de muitas povoações, visto serem mui versateis e caros os magnates. Em quanto o seu antagonista se divertia, conquistava ella as sympathias da classe burgueza. Percorria os seus estados. Procurava e enviava soccorros{56} ao exercito, que seu marido commandava, para conter o progresso da invasão. Assegurava a fidelidade vacillante de Leão. Entabolava as intelligencias, que lhe fizeram recobrar a importante cidade da Zamora. Reduzia o numero de inimigos, que tinha na depravada e cupida aristocracia. Lançava finalmente mão do thezouro de Castella, confiado á guarda do célebre Andrés de Contrera, a quem mais tarde brindou com o Marquezado de Moya.

Na marcha pela provincia da Extremadura, por contemplação com o duque de Arévalo, senhor de Plasencia, commetteu D. Affonso V um erro estrategico; pois, segundo Zurita, «foi de grande remedio para a conservação do estado do rei da Secilia, e seria de grande prejuizo, se a entrada se effectuasse pela Andaluzia, direito a Sevilha». Seguindo este caminho, penetrava logo no interior do reino, e fazia-se fórte em Madrid, como lhe aconselhou o marquez de Vilhena, que se mostrou descontente por não ser attendido, e tomou este pretexto para se retirar do serviço do rei. Era de esperar, todavia, que esse magnate assim procedesse mais cedo ou mais tarde, por quanto, havendo-se declarado a maior parte de seus vassallos contra elle, e a favor de Isabel, que os corrompeu a peso de ouro, intimidou-o essa arteira tactica, e determinou-o a propalar, que já estava de accordo com D. Fernando e sua mulher.

Por grande parte da fronteira portugueza succediam-se{57} a miude as incursões de nossos visinhos. Até o primogenito do duque de Medina Sidonia, o duque D. Henrique, môço mais audacioso do que prudente, fez uma entrada em Portugal, como se fosse em terras de mouros.

Este rebentão dos Medina Sidonia era um isabelista sedicioso. Pouco depois da jornada de seu tio a Portugal, rendeu-se ás astucias de D. Isabel, que lhe prometteu intervir pacificamente na eterna contenda com o marquez de Cadiz.

E sabe o leitor, quem levou á rainha da Secilia a noticia d'aquella jornada de D. Juan de Guzman?

—O velho mendigo, que nós vimos em Sevilha a tocar samphona. Era um espião.

Para desaffrontar-nos dos repetidos insultos, que soffriamos, mandou o principe D. João descobrir a campanha por homens praticos no paiz, escoltados de alguma cavallaria; collocar sentinellas occultas nos lugares suspeitos, para avisarem das partidas do inimigo; cortar as estradas das serras com patrulhas, a fim de embaraçarem os castelhanos, que de ordinario se emboscavam por entre os arvoredos e quebradas do terreno; e proveu finalmente de remedio a tantos males, cuidando ao mesmo tempo da conservação e defesa do reino.

Terminados os festejos em Plasencia, onde Lopo de Albuquerque, para premio de seus serviços, foi agraciado com o titulo de conde de Penamacor,{58} saiu emfim D. Affonso V d'aquella cidade com a rainha, a quem o nosso exercito agora principalmente resguardava. Marchou por Arévalo em direcção a Toro, não sem o inimigo estar bem informado ácerca do movimento do exercito; o que certamente não convinha, a quem era chamado e levado para soccorrer.

O nosso monarcha portou-se sempre com mais bondade, do que prudencia, n'esta empresa de Castella. E dizemos simplesmente empresa, porque não podemos denominar campanha, ao que não passou de correrias mais ou menos afortunadas, de uma e outra parte, sem que se ferisse uma batalha campal, digna d'esse nome, e em que ficasse lavrada a sentença do pleito.

Quasi todos os grandes abandonaram D. Affonso V, deixando-o só no perigo, em que o metteram. Quando elle, porém, foi estabelecer os seus quarteis de inverno em Zamora, apresentou-se-lhe n'esta cidade o arcebispo de Toledo, o qual sempre inconsequente e inconstante, sendo convidado por Isabel a auxilia-la com os seus homens de armas, respondeu com a soberba peculiar do seu estado e do seu paiz: que a tinha livrado de fiar, mas havia de manda-la outra vez pegar na roca.

De Zamora escreveu D. Affonso V a seu filho dizendo-lhe que viesse vê-lo, pois muito carecia de conferenciar com elle. Já o principe se tinha posto a caminho, quando o monarcha soube, que os alcaides das duas torres, que defendiam a ponte{59} sobre o Douro, á entrada de Zamora, se tinham vendido ao inimigo, concertando-se em prender ou matar D. João na sua passagem por ella. Immediatamente communicou D. Affonso V a seu filho, então já em Miranda do Douro, o traiçoeiro plano, em virtude do qual não devia avançar. Foi portador do recado o capitão de ginetes da guarda real, Vasco Martins de Sousa Chichorro, que teve de passar o rio a nado, para se furtar á vigilancia do inimigo.

Entretanto resolveu Affonso V tomar a ponte á viva força, mas não o poude conseguir. Fazendo-lhe ver os nossos o perigo, que corria, se permanecesse com a rainha em Zamora, pois deviam inspirar-lhe mais temor, que confiança, os habitantes da cidade, recolheu de novo a Toro, onde tanto elle como a rainha foram affectuosamente recebidos pelo alcaide.

Fernando de Aragão, que não tinha ousado mostrar-se ao seu adversario, em quanto elle esteve em Zamora, correu logo a occupa-la; e, como o seu empenho principal era apoderar-se da rainha D. Joanna, acudiu a Toro, tendo tomado á força uma torre nas cercanias, e feito enforcar trinta dos defensores d'ella, para dominar pelo terror a seus inimigos. De cima dos muros de Toro riram-se d'essa façanha, e cobriram de motejos o auctor, o qual aceso em ira, mandou por um rei de armas desafiar D. Affonso V, que não tornou á requesta. Então Fernando foi sitiar o{60} castello de Zamora, tendo inesperadamente encontrado forte resistencia, onde não havia esperança de soccorro; e D. Affonso V, ao sabe-lo, saiu de Toro em som de guerra, para ir apresentar batalha ao seu competidor. Fez alto em frente da fortaleza, e alli o esperou. Passadas algumas horas, retirava já para Toro, por lhe parecer que Fernando saía a pelejar com elle; mal, porém o viu fóra da cidade, aguardou-o no campo outra vez em vão. Fernando escreveu em seguida varias cartas, em que blasonava de não ter querido D. Affonso espera-lo e até fugira. Tendo o nosso monarcha immediato conhecimento d'essa falsidade por uma carta de Fernando para Isabel, e que foi apprehendida, mandou por um trombeta denunciar em Zamora o escripto, e fazer publicamente o repto na fórma costumada, sem lograr que lhe dessem resposta.

Tinha havido uma comedia de desafios a combate singular entre D. Affonso V e D. Fernando. Para segurança do feito, D. Affonso poria em refens a rainha Joanna, e D. Fernando a rainha Isabel. Fernando não concordou, allegando haver grande desigualdade no penhor.

D. Affonso V respondeu, que, se ficasse livre Isabel com sua filha, que já tinha, a contenda não se acabaria, pois de futuro novamente se levantava; sendo certo que, escusar-se o seu adversario a convir em taes condições, fazendo questão de igualdade das pessoas, era confessar que não queria{61} o combate, como á honra de ambos convinha. Interpôz a sua mediação o cardeal de Castella, D. Pedro de Mendoza; mas não poude conseguir-se o accôrdo sobre as condições da paz.

Nos fins de janeiro do anno seguinte, que era o de 1476, chegou o principe D. João a Toro, trazendo a seu páe dois mil cavallos, oito mil infantes e dinheiro. Não era demasiado soccorro, para quem tanto carecia de engrossar o seu exercito, pois D. Affonso V fôra abandonado pelos magnates, á medida que a sua causa se tornara cada vez mais duvidosa, permanecendo-lhe fiel apenas o arcebispo de Toledo.

Os povos mostravam quasi geralmente grande repugnancia pelo dominio portuguez, como se elle viesse avivar o resentimento das feridas, que no coração do seu orgulhoso exercito abrira o montante do Mestre de Aviz.

A perda de Zamora foi um grandissimo desastre, e a sua reconquista, depois da traição da ponte, sómente poderia realizar-se, tomando as torres e conseguindo o descêrco do castello. Mas de que forças numerosas não seria necessario dispôr, para effectuar duas operações, iguaes ambas na difficuldade!

D. Affonso V optou pela primeira e marchou com o principe a sitiar a ponte.

—Para que?

Tomando essa posição de nenhum modo podia soccorrer o castello, onde tremulava ainda a bandeira{62} portugueza, pois tinha de permeio o rio, invadiavel para a cavallaria. Se tentava provocar o inimigo a uma batalha, devia suppôr, que este o não buscaria senão com uma superioridade conhecida, estando, como estava, bem entrincheirado, e tendo cobertas todas as communicações importantes.

Seguiu emfim D. Affonso a margem meridional do Douro, saindo pela ponte de Toro; e, tendo deixado n'esta cidade o duque de Guimarães e o conde de Villa Real ao serviço da rainha, com a guarnição militar, que pareceu bastante, approximou-se da ponte de Zamora em batalha ordenada, fez alto e assentou o arraial.

Ficar pérto do lugar cercado, era não só condição imposta pelo pequeno alcance das bôcas de fogo, mas preceito do Regimento de guerra, para fazer maior coração aos combatentes e enfraquecer os sitiados. A ponte estava enfiada pela nossa artilheria.

Cruzáram-se os fogos, que romperam logo de sitiantes e sitiados, sendo o damno, que soffriamos superior ao que causavamos. Houve uma pequena trégoa para concertos de paz; inutilmente, porém, visto não se suggerir meio conciliador, de que não desdenhassem as prosapias dos negociadores d'ella. A sêde de sangue causada pela febre guerreira, em que uns e outros ardiam, tornava-se cada vez mais insaciavel. E comtudo nenhum dos exercitos podia invejar ao outro a sua situação. O{63} nosso, além de luctar com as dificuldades inherentes a uma guerra feita em paiz extranho, tinha mais um inimigo a combater: o rigoroso inverno. Ao passo que as chuvas e neves o iam já desimando, começava a falta de viveres a fazer-se sentir. Consumia-se emfim inutilmente.

Decorreram quinze dias. Uma noite chegou ao nosso campo a noticia, de que Fernando de Aragão fizera uma sortida sobre Toro na margem direita do Douro. D. Affonso V levantou apressádamente o cêrco, para atalhar o passo ao inimigo, e foi o primeiro a chegar diante d'aquella cidade, onde mandou recolher o parque e a peonagem. Soube o principe durante a marcha, que Fernando não havia saido de Zamora, mas tinha para o bater, em um lugar chamado Fonte Sabugo, mais de seiscentas lanças, commandadas pelo duque de Villa Formosa, irmão bastardo de Fernando. D. João obliquou á direita, desviando-se assim da direcção, que tomára seu páe, e preparou-se para ir dar de salto n'aquellas lanças.

Havia o nosso exercito acabado de transpôr um monte, e o inimigo, que começava então a subi-lo, mal coroou o alto, descobriu o movimento dos nossos, a ordem com que marchavam, e, para nos deter, mandou picar a nossa rectaguarda com algumas cargas ligeiras de cavallaria.

Avisado o principe, e prevenido D. Affonso V, volveu este á rectaguarda; mas D. João, por lhe parecer mal disposto para a peleja o lugar, onde{64} lhe deram a nova, pois tão apertado era, marchou para a planicie, e ficou esperando, que o inimigo ali descesse mais despejadamente.

D. Affonso V, com quanto fosse um tactico habil, não teve tempo de formar as suas reduzidas tropas, de modo que pela boa distribuição d'ellas fosse, quanto possivel, supprida a falta de numero. Repartiu-as em duas grandes fracções. Tomou o commando de uma d'estas, e confiou ao principe o da outra, em que ficou a flor da cavallaria portugueza.

Os castelhanos avançaram, tambem divididos em dois corpos: o da direita capitaneado por D. Alvaro de Mendoza, vindo na reserva Fernando de Aragão; e o da esquerda pelo duque de Alva, formando na rectaguarda o cardeal Mendoza.

Desceram a encosta; mas ainda hesitantes, apesar da vantagem de terem a rectaguarda coberta pelo monte; de contarem mais umas oitocentas lanças, pois que parte das nossas haviam escoltado a bagagem para Toro; e de dispôrem finalmente de infanteria mais numerosa.

Note-se, que na edade média não se conhecia toda a importancia da arma de infanteria, nem a grande força, que lhe provém da ordem e uniformidade de seus movimentos. Dava-se quasi exclusivo apreço á cavallaria, olvidando-se a maxima dos antigos, prudentemente restaurada pela illustração militar dos nossos tempos, de que a infanteria é o agente principal do combate, ou, como{65} poeticamente dizem alguns, a rainha das batalhas. A própria qualidade dos exercitos, compostos de nobreza valente e déstra, mas pouco subordinada, bem como dos contingentes tumultuarios das cidades, era incompativel com a disciplina e outros requisitos essenciaes da sua organisação. N'este encontro de Toro, comtudo, os castelhanos empregaram com proveito a sua infanteria ao encetar do prelio; mas o seu exercito, embora aguerrido, não soube mostrar-se disciplinado.

Amanhecera triste e sombrio o dia dois de março de 1476. Quando os dois exercitos occupavam as suas posições para travar a lucta, devia o sol têr-se posto, e a claridade crepuscular era embaciada por uma chuva miuda e persistente.

Duas vezes as hostes affonsinas fizeram rosto ao inimigo, como quem o convidava a pelejar, até que, vendo D. Affonso V a perplexibilidade do adversario, mandou dizer ao principe, que ao signal do combate, dado pelas trombetas, fosse o primeiro a romper.

Fez-se o toque. Aos gritos de guerra, por S. Jorge e S. Christovão, invéste D. João com a sua hoste. Oppõe-se-lhe D. Alvaro de Mendoza, clamando com os seus por S. Thiago e S. Lazaro.

Os castelhanos avançaram com denodo sobre a hoste do principe, mas obrigou-os a recuar uma descarga dada pelos espingardeiros do arcebispo d'Evora D. Garcia de Menezes. Aproveitando a hesitação, em que ficou o inimigo, a nossa cavallaria,{66} como se fôra uma forte muralha de lanças, animada de extrema velocidade, carregou impetuosa, irresistivel, sobre as fileiras dos castelhanos, esmagando quantos tentaram quebrar-lhe o rompante. Aos primeiros golpes, esse punhado de bravos, com o principe real á sua frente, paralysou, desorganisou, pôz na mais completa debandada os melhores alfarazes de Castella. Ainda superior á carnificina, que em breve lapso juncou de cadaveres o terreno, foi o effeito moral d'esse choque violentissimo, que percutiu até a reserva do inimigo. E por isso Fernando de Aragão—um moço de vinte e seis annos!—que, para não expor a vida á contingencia de um golpe do seu adversario, se collocára a respeitosa distancia, mal viu approximar-se a hoste victoriosa do principe, fugiu a unhas de cavallo para Zamora, sem tempo de reparar, se com effeito lhe seguiam a pista, e salvando-o a sua boa fortuna de ser apanhado por alguns dos nossos cavalleiros, que correram sobre elle.

Na ala direita D. Affonso V não póde cruzar tambem a sua espada com a do rei da Secilia, porque a não vê na sua frente; mas não lhe soffre o animo tê-la embainhada, e lança-se no combate.

Ribombam as descargas das espingardas, contendo os impetos da cavallaria; rechinam as settas, atravessando os ares; estoiram as lanças arremessadas com furia; retingem-se de sangue as{67} espadas nos crébros golpes; relincham os ginetes, discorrendo pela campanha, alliviados do peso dos cavalleiros, que cairam ou mortos ou agonisantes; resoam, similhando rugidos de feras, as vozes dos combatentes; soltam gritos de dôr cruciantissima os feridos, sem que possa acudir-lhes a caridade, e servindo antes de estimulos para a vingança; é emfim renhida, desesperada, horrivel a refréga. Não cessa do ardor, com que começou de accender-se, e a victoria duvida, se ha de inclinar-se á parte da multidão, ou á do esforço.

Corre o Cardeal Mendoza a reforçar o duque de Alva, e o arcebispo de Toledo em auxilio de D. Affonso V. Oitenta espingardeiros castelhanos a cavallo—o que para a nossa hoste era uma novidade—dão uma descarga, que fez hesitar um momento a cavallaria portugueza; mas, apesar de ter o adversario empregado aquelle ultimo recurso, sem duvida reservado para o momento decisivo, logo recrudesceu mais viva e encarniçada a peleja.

Partem-se as lanças, e as espadas são agora as armas dos combatentes no ultimo choque.

D. Affonso V, sereno, indifferente ao perigo, parecia ter assentado expôr ás contingencias d'este dia a decisão da causa, que se impugnava. Era pois a morte ou a gloria o escopo unico d'aquelle

«Que a suberba do barbaro fronteiro
Tornou em baixa, e humillima miseria.»

Quiz arremessar-se ao meio das fileiras contrarias,{68} mas os cavalleiros portuguezes e castelhanos, que junto d'elle estavam, percebendo-lhe a intenção ao vê-lo preparar o corcel, detiveram-n'o; e, fazendo-lhe vêr a superioridade numerica do inimigo a par do denodo, com que nos pleiteava o campo, apertaram-n'o com o seu conselho mais fortemente, do que as espadas castelhanas, obrigando-o a metter a sua na bainha.

Como entre D. Affonso e Toro muita gente contraria envolvia já parte dos nossos, não sem grande risco saíu o monarcha do campo, e foi acolher-se a Castro Nunho, fortaleza, que lhe era fiel, e não ficava mui distante: acertada resolução esta, pois facilmente d'alli voltaria a Toro, que não era provavel o inimigo sitiasse n'aquella noite; e poderia entretanto planear com Pedro de Mendanha, alcaide de Castro Nunho, a desforra do ultimo conflicto.

Mendanha era poderoso. Pagava soldo a trezentos cavalleiros; recebia das cidades de Burgos, Avila, Salamanca, Segovia, Valladolid e Medina certa quantia, para que lhes não fizesse guerra, e todos os grandes da sua visinhança tinham o cuidado de manter e conservar as mais amigaveis relações com elle. Por isso D. Affonso V, na conjunctura difficil, em que se encontrava, praticou um acto de boa politica, indo ter com um homem de tanto valor, e que lhe era dedicado. É claro, que nem pela cabeça lhe passou a idéa, de que o principe real fosse derrotado, tal era a confiança{69} que depositava no valor de seu filho e no dos companheiros, que lhe deu.

Ambos os reis, cuja lite se debatia, haviam pois abandonado o campo, um porque fugiu, o outro porque o não deixaram empenhar-se na refrega. Ficou victorioso d'elle o principe D. João, que mandou recolher os feridos e os prisioneiros, sendo d'este numero o conde de Alva de Liste, tio de Fernando de Aragão.

Da hoste de D. Affonso V tinham fugido muitos para Toro; mas, porque estava fechada a porta da ponte, e sómente se abriu mais tarde para entrar o principe, vadearam o rio, pagando quasi todos com a vida a sua temeridade, pois que elle ia de monte a monte. Os golpes do ferro inimigo não victimáram tantos, como a corrente impetuosa do Douro. Foram outros, mais prudentes, unir-se ao principe, e entre esses o escudeiro Gonçalo Pires, levando a bandeira real, que por instantes tremulára na mão de um castelhano.

Era o estandarte das quinas, o symbolo glorioso da nossa nacionalidade, que tinha sido confiado ao alferes-pequeno Duarte de Almeida, e lhe arrebataram depois de uma lucta titanica.

Singulares contrastes!

Encontrámos a victoria, onde fomos em menor numero. Padecemos a injuria, onde dois dos nossos praticaram façanhas, que por si só bastariam para immortalisar o valor portuguez. Uma d'ellas deu a Gonçalo Pires o appellido de Bandeira; a{70} outra, o cognome de Decepado a Duarte de Almeida.

«Cercado por toda a parte
Sua espada se partiu.
Por guardar seu estandarte,
D'arma o estandarte serviu:
A dextra mão jaz por terra,
O seu guante a não guardou;
O pendão na sextra aferra,
E a mão perdida vingou:
Outro golpe lhe sepára
A sextra mão que segura
A bandeira, que jurára
Conservar intacta e pura:
Nem assim perde a bandeira,
N'hastea dura os dentes crava,
Quando lança traiçoeira
Seu ginete lhe prostava:
Cahe no chão o cavalleiro
Sem vida, quasi expirando,
E ficou prisioneiro
D'illustre rey Dom Fernando.
Mas a bandeira regada
Pelo sangue portuguez,
Por Goncal'Pires livrada
Breve foi, logo outra vez.»

Assim descreve Ignacio Pizarro os dois gloriosos feitos. O de Duarte de Almeida é sublime de heroismo! Com feridas tão rasgadas, que cada uma era larga porta para sair a vida, e sobrada para entrar a morte, o honrado cavalleiro resiste sempre! Cáe emfim; mas não quer a Providencia, que por aquellas feridas se esgote sangue tão generoso, e sirvam antes de bôcas, para affirmar esforço tão desusado.{71}

A bravura de Gonçalo Pires foi igualmente inexcedivel, pois per força e como homem de bom coraçam a tomou a hun Souto-Mayor Castelhano que a levava (a bandeira), e o prendeo sobre sua menagem,[5] abrindo a golpes de espada caminho por entre os cavalleiros, que já iam correndo na companhia d'aquelle em direcção a Zamora.

Tinha o principe resolvido não levantar o arraial, senão passados tres dias, ou aguardar a manhã para de novo accommetter o inimigo, por isso mandou accender fogueiras, e tocar trombetas e atabales.

O duque de Alva estava indeciso, e todavia era mister tomar uma deliberação.

Entretanto um pequeno grupo de biscainhos, pertencentes á peonagem mercenaria do exercito de Fernando de Aragão, conversava sentado sobre umas pedras, descançando ao mesmo tempo das fadigas do dia.

—Cães de portuguezes!—grunhia um.—Por causa d'elles fizeram de nós morcêgos!...

—Eu estou com uma sêde, que de um trago enxugava agora a maior adéga de Malaga!—tornou no mesmo dialecto um cavalleiro, que se approximava, levando o cavallo á mão.

—Se os mouros consentissem... sempre é bom accrescentar—observou o outro, sem nenhuma{72} curiosidade de saber, quem era o seu interlocutor, pois lhe fallava no seu dialecto.

—Pêrros de Mafoma, que nos não vemos livres d'aquelles malditos!—exclamou o cavalleiro.—Mas, Virgem Santissima! o que estaremos nós aqui a fazer?—perguntou o primeiro, como se uma idéa fixa estivesse a verrumar-lhe o entendimento.

—Á espera naturalmente, que nos mandem recolher a Zamora...

—Já não é sem tempo. Para lá fugiu o rei, logo no principio da escaramuça.

—Fugiu, não direi... Retirou...

—Pois seja assim; mas a rainha é mais homem do que elle. Não saia do campo sem dar meia duzia de cutiladas. Ella sim!... Ahi está o da Beltraneja, que não desmaiou tão depréssa. É verdade, que depois tambem se foi safando. Vi-o eu por aqui fóra a mata cavallo. Na direcção, que levava, ia talvez para Castro Nunho, que tem voz por elle.

—Sim, é o mais certo;—replicou em tom indifferente o cavalleiro.

Um signal de trombetas no campo castelhano pôz termo a este dialogo. Os biscainhos partiram a incorporar-se na sua hoste; o cavalleiro montou a cavallo, e saíu a galópe para os lados de Castro Nunho.

Acabaram as hesitações do duque de Alva. Ao ver, que os nossos se concentravam no acampamento{73} sem apparencia de receosos, valeu-se do silencio e sombras da noite, e retirou com o exercito para Zamora.

D. João permaneceu ainda mais tres horas no campo, tomando-as pelos tres dias destinados a celebrar a victoria, conforme o conselho do arcebispo de Toledo; dividiu depois a sua hoste em duas fracções, uma com a bandeira de D. Affonso V, outra com a sua, ambas desfraldadas; e, sem mostrar préssa na marcha, como quem ia triumphante, recolheu a Toro.

Foi recebido com affectadas manifestações de jubilo, pois maior era o interesse de todos pela vida de D. Affonso V, cuja sorte se ignorava, do que pelo rezultado do encontro dos exercitos belligerantes no campo de Pelayo Gonçalo. E tal ponto attingiu a consternação, abafada pelo receio de melindrar o principe envaescido do seu triumpho, que o duque de Guimarães, com a sua liberdade e franqueza habituaes, rompeu o silencio.

—Não merece—exclamou alto e bom som—o nome de cavalleiro, quem abandona o seu rei, e o não segue na vida ou na morte!

E, dirigindo-se unicamente ao principe, perguntou-lhe:

—O que fizestes d'el-rei, vosso Senhor e páe?

Proferidas estas palavras, que nunca mais esqueceram a D. João, appareceu Pero da Covilhan, e disse ao principe:{74}

—El-rei, vosso Páe, e meu Senhor, manda-vos participar, que vivo e são está, por isso sejais tranquillo.

—E onde está el-rei, nosso senhor?!...—perguntou com alvoroço o principe real.

—Em Castro Nunho.

—Quem nos trouxe tão bom recado?

—El-rei, meu Senhor, a mim proprio o deu.

A nova espalhou-se logo por toda a cidade. Foi celebrada com toques de trombetas e atabales, repiques de sinos, e outras demonstrações de alegria, feitas pela classe popular. E sem demóra igualmente mandou o principe sair para Castro Nunho uma guarda de honra composta de numerosos cavalleiros, a fim de acompanharem D. Affonso V a Toro.

Entretanto carecia Pero da Covilhan de explicar a sua presença junto do rei, pois, desde o cêrco da ponte de Zamora, militava na hoste do principe, havendo-se distinguido pela sua destreza e bravura na gloriosa refrega, em que conquistou novo brilho a intrepida cavallaria portugueza.

Preveniu o principe a explicação, perguntando ao moço escudeiro:

—Como soubéstes, que el-rei, meu páe, estava em Castro Nunho?

—Facilmente, meu senhor—respondeu Pero da Covilhan com a maior naturalidade.—Quando caíu a noite, comecei de inquietar-me, por vêr, que em nosso campo não havia de el-rei novas, nem{75} mandados. Ancioso de buscar sua alteza, era dominado por um triste presentimento. As trévas da noite, e a confusão que reinava no campo contrario, poderiam talvez favorecer quaesquer pesquizas, que eu tentasse. Lembrei-me, de que me auxiliaria a facilidade, com que fallo os dialectos de Hespanha, e fui á ventura.

—Esquecestes, porém, que vos arriscaveis a perder a liberdade ou a vida—atalhou o principe.

—Não me occorreu, com effeito, a idéa d'esse perigo, pois a que imperava unicamente no meu animo era a de servir bem a el-rei e a voss'alteza.—A poucos passos do nosso acampamento apeei-me, e, quando caminhava na direcção da margem do rio, ouvi fallar uns biscainhos. Abeirei-me d'elles. Eram bésteiros do inimigo, que estavam em descanço. Quasi não repararam em mim. Tomaram-me naturalmente por seu convisinho, e, trocando comigo algumas palavras, um d'elles affirmou ter el-rei retirado do campo para os lados de Castro Nunho. Corri logo a verificar isto, e lá entrei hoje ao romper d'alva. O resto sabe já voss'alteza. Agora, meu Senhor, peço-vos perdão de me ter afastado do acampamento sem licença de voss'alteza.

—Perdoado estais, que digno de louvor é o acto por vós praticado; e, se alguma culpa houvesseis, resgatada fôra já pelo valor e brio, com que pelejastes a meu lado.{76}

—Beijo as mãos de voss'alteza por mais esta mercê...

Não olvidaram D. Affonso V e seu filho a lealdade e dedicação de Pero da Covilhan, como veremos.

O principe, depois de conferenciar com seu páe em Toro ácerca da desgraçada guerra, para que tanto contribuira com o seu conselho, regressou a Portugal; e o rei cavalleiro proseguiu na sua aventura, sem pensar que o revéz de Toro fôra o occaso de sua gloria guerreira. Fernando em Cantalapiedra, e Isabel no caminho de Medina, ter-lhe-iam caido nas mãos, se a fortuna, para elles tão prodiga, não fosse para o seu competidor tão adversa.

Desanimou um pouco, emfim, aquelle que nos sertões da Africa nunca temera a morte.

Uma vez unicamente havia desembainhado a sua espada na peninsula, para ser instrumento de uma tragedia ominosa. Era chegado o momento da expiação. Appareceu-lhe talvez a sombra do infante D. Pedro, a jurar vingança eterna do sangue derramado em Alfarrobeira.

Justiça da Providencia!{77}

 

V

 

ADVENTO DA UNIDADE HESPANHOLA

Estava D. Affonso V com desalento igual á falta de confiança, que tinha nos meios, de que dispunha, para accelerar o suspirado exito da sua temeraria empreza, quando chegaram a Toro D. Alvaro de Ataide e o Licenciado João d'Elvas, que vinham communicar-lhe o resultado da sua missão junto de Luiz XI. Era grande o contentamento dos embaixadores, por terem a convicção, de que não fôra illudida por vãs promessas a sua boa fé ao tratarem com o rei da França. Não lhes occorria, que os principes não contráem, nem conservam amisades com sacrificio de seus interesses; e talvez ignorassem, que Luiz XI tinha por maxima: quem não sabe dissimular, não sabe reinar; e que, por elle ser assás astucioso e perfido, lhe chamavam a raposa.

Lograram effectivamente celebrar, aos 8 de setembro{78} de 1475, o tratado de liga offensiva, no qual a França se comprometteu a coadjuvar Portugal na conquista dos reinos de Castella e Leão; e obtiveram a confirmação e renovação dos antigos tratados de paz e amisade entre estes dois ultimos reinos e o da França, por Luiz XI de uma parte, e da outra por D. Affonso V, rei de Castella.

O nosso monarcha, porém, receoso, de que o seu alliado não cumprisse as estipulações dos tratados, por haverem augmentado para os reis da Secilia as probabilidades do triumpho, resolveu passar a França, e negociar pessoalmente com Luiz XI, a quem se offereceria por medianeiro da paz com o duque de Borgonha.

Regressou, pois, a Portugal, com sua sobrinha. O principe, seu filho, pôz o maior cuidado em dissuadi-lo do proposito que trazia; mas a ambição cegava-lhe o entendimento, e a esperança de realizar os seus desejos, de vingar-se da affronta de Toro, não dava lugar ao receio de arriscar mais uma vez a sua reputação.

Querendo passar mais além, do que lhe permittia a fortuna, saíu para França o allucinado rei, depois de ter embarcado no porto de Lisboa, em uma urca, na conserva da qual iam quinze navios com dois mil e duzentos homens.

A esquadra fez-se á vela com destino a Marselha; mas por causa do tempo foi arribar a Collioure, onde D. Affonso, depois de receber os cumprimentos,{79} que Luiz XI lhe enviára por um official de sua casa, com ordem de dispôr tudo para a jornada do regio hospede, despediu os navios. Ao seu serviço ficou unicamente o pessoal indispensavel, de que fazia parte Pero da Covilhan, seu escudeiro predilecto depois do conflicto de Toro.

Do porto de Collioure pôz-se o rei de Portugal a caminho de Perpignan, e teve aqui a mais pomposa recepção official, levando-se a homenagem ao requinte de abrirem todos os carceres e soltarem os presos lá retidos.

De Perpignan expediu a Luiz XI um fidalgo da sua côrte, encarregado de notificar-lhe a sua chegada, e de pedir-lhe a designação do sitio, onde deviam conferenciar. Como a escolha d'este recahisse em Tours, D. Affonso V, seguiu por Narbonne, Montpellier e Nimes. Aqui deixou a estrada ordinaria, a fim de tomar para Lyon por Pont-Saint-Esprit, onde lhe veiu ao encontro o duque de Bourbon, acompanhado de numeroso cortejo, e antecipando-se a uma deputação, que por parte de Luiz XI déra, passados dias, as boas vindas em Roanne ao augusto viajante. Dirigiu-se depois a Bruges. N'esta cidade demorou-se algum tempo, fazendo-lhe companhia novos enviados do rei de França, que o entretiveram a mostrar-lhe fortalezas, apraziveis estancias, e, entre outras cousas, um rico e antigo livro na bibliotheca de uma abbadia de benidictinos. Era o Lancelote do Lago, romance de cavallaria escripto em latim, na leitura{80} do qual os paladinos dos seculos XII e XIII aprendiam com enthusiasmo a imitar algum dos fabulosos cavalleiros da Tavola Redonda. Poderia inflammar tambem o espirito aventureiro de D. Affonso V, a quem o velhaco de Luiz XI por si, ou por intermedio de seus agentes, procurava divertir do proposito, que o levava a França, e por isso lhe prodigalisava todo o genero de distracções.

Chegou o monarcha portuguez a Tours. Á entrada foram-lhe entregues as chaves da cidade pelos regedores d'ella, os quaes incorporados aos dignitarios da côrte franceza, lhe fizeram uma recepção solemne, e o seguiram até os aposentos, que lhe estavam destinados.

Unicamente cinco dias depois saiu Luiz XI do castello de Plessis-lez-Tours, onde residia, e foi encontrar-se com o seu hospede. Sabendo D. Affonso V, que elle o buscava, quiz descer á rua, ou ao menos ir até á escada do palacio recebe-lo, o que lhe foi impedido por dois principes, que Luiz XI havia mandado adeante para regularem o ceremonial da entrevista.

A meio de uma sala avistaram-se os dois soberanos. O rei de França «vinha com um só barrete na cabeça, tendo já d'ella tirado um chapéo e duas grandes carapuças, e trazia solto um saio curto de mau panno, e á cinta uma espada d'armas muito comprida, e umas botas calçadas, e nos pés as esporas do mesmo jaez da espada, e ao pescoço uma{81} béca de chamalóte amarello, forrada de cordeiras brancas muito grosseiras, e suas calças brancas entretalhadas de muitas côres.

«E ambos os reis com barretes nas mãos se abraçaram, inclinados os joelhos muito baixos.

«E tendo o rei de França assim abraçado o monarcha portuguez, com os olhos no Céo disse, que dava muitas graças a Nossa Senhora e a S. Martinho, porque a um tão pobre homem, como elle era, fizeram tanta mercê, que a seu reino e casa o viesse vêr e visitar um tamanho rei, que elle sempre desejava tanto vêr, e ter por irmão e amigo, e que porém elle não crêsse, que era vindo em reino estranho, mas como proprio seu, porque assim se faria n'elle todo seu prazer e serviço, como nos de Portugal.

«E com isto acabado se recolheram á camara, á entrada da qual, sobre quem se cobriria primeiro, houve entre ambos grandes e louvados debates.»[6]

Que farçante este senhor Luiz XI! Fez-se esperado, para afinal apresentar-se humilde até á repugnancia!

Depois de conferenciar com esse frascario, D. Affonso V partiu de Tours para Paris, tendo sido antes enviados a Roma embaixadores de ambos os monarchas, com o fim de solicitarem dispensas para o de Portugal poder casar com sua sobrinha, a princeza D. Joanna.{82}

Pouco se demorou em Paris. Aconselhado por Luiz XI, dirigiu-se, no coração do inverno, á baixa Allemanha, a fim de se avistar com o duque de Borgonha, então empenhado na tomada de Nancy ao duque de Lorena, com quem estava em guerra. Sobre um rio coberto de gêlo abraçaram-se os dois soberanos, e alli mesmo disse D. Affonso a Carlos o Temerario, que o seu proposito era congraça-lo com o duque de Lorena, pois da paz entre ambos resultaria, que Luiz XI, por se vêr desobrigado de mandar vigiar a fronteira franceza, mais facilmente apoiaria a justa causa de D. Joanna, e poderia uma boa parte das tropas borgonhezas concorrer tambem para o bom exito da empreza de Castella.

O filho de Philippe o Bom, ao vêr a ingenuidade com que seu primo lhe apresentava os seus projectos, respondeu-lhe indignado, que Luiz XI era homem sem virtude e sem fé, e o andava illudindo, pois ao passo que o aconselhára a vir a Nancy, nas suas costas mandava tropas numerosas a soccorrer o duque de Lorena. E terminou Carlos de Borgonha por convidar o primo a tomar parte na defesa de Pont-à-Mousson contra o duque de Lorena, a quem esperaria deante de Nancy para lhe dar batalha.

Ante esta pratica, excitando á guerra, quem levava o animo inclinado á concordia, houve D. Affonso V por mais acertado voltar para Paris, e assim fez.{83}

Carlos de Borgonha foi morto em combate. Estava Luiz XI livre do seu inimigo mais implacavel, e, como o abutre, que paira no alto a vigiar a presa, até o momento de se despenhar e lançar-lhe as garras, caíu logo sobre o ducado, e apoderou-se das cidades de Somme e de Borgonha propriamente dita. O sagaz, mas perverso filho de Carlos VII, tinha agora mais facilidade de resolver o problema, que sobre todos o preoccupava: a unificação da França. Lançando mão de todos os meios, mórmente dos diplomaticos, no intuito de annexar a Borgonha ao territorio francez, foi residir em Arras, a fim de seguir de perto os passos de seus agentes.

Entretanto regressavam de Roma a Paris os embaixadores com a resposta de Sixto IV. Na côrte pontificia havia-se aberto uma grande campanha diplomatica, adversa ao casamento de D. Joanna. Ao passo que o rei de Napoles, e outros principes, conspiravam a favor dos reis da Secilia, a curia duvidava das promessas feitas pelo rei de França ao de Portugal; mas, parecendo-lhe, que a morte do duque de Borgonha deixava Luiz XI em melhores circumstancias de honrar a sua palavra, resolveu sagazmente a questão, concedendo a dispensa no caso de Luiz XI se decidir formalmente a prestar auxilio ao rei de Portugal, e fazendo assim o soberano francez supremo juiz da demanda. Attendeu os delegados de Luiz XI, deixando implicitamente insinuado aos reis da Secilia,{84} que tratassem com essa potencia; e não os delegados de Affonso V, por quanto a estes pôz uma condição, cujo cumprimento confiava ás diligencias do seu soberano, que era o mais interessado no negocio. Sempre habil e cautelosa a curia romana.

A Luiz XI mandou logo D. Affonso V dizer, que desejava conferenciar com elle a respeito da resposta mandada pelo papa; e concordou-se por isso no encontro dos dois monarchas em Arras.

Realisou-se a entrevista, ficando Luiz XI de participar ao rei de Portugal a sua resolução definitiva. Esperou este alguns dias em uma abbadia de conegos regrantes, que fôra designada para seu alojamento, e recebeu emfim uma resposta, que o esclareceu ácerca da doblez e politica tortuosa de Luiz XI.

Voltou o desilludido monarcha seus olhos para Portugal, e seus passos para Rouen. Aqui se deteve grande parte do verão na esperança de embarcar-se, até que desceu a Honfleur, onde se apparelhavam os navios para o transportar e á sua comitiva. N'este porto permaneceu ainda quasi todo o mez de setembro. Sempre merencorio e sombrio, entregava-se de preferencia a exercicios religiosos dispendendo tambem parte do tempo em escrever, e com o maior cuidado logo guardava o escripto dentro de um cofre, cuja chave trazia comsigo.

Um dia chamou Pero da Covilhan, e disse-lhe:{85}

—Vou fazer uma longa viagem, e muito me prazia levar-vos commigo; mas tenho por melhor deixar-vos ao serviço do principe, que muito vos quér tambem.

Ao que Pero da Covilhan respondeu:

—Que magua immensa o meu coração sente ao ouvir voss'alteza! É dever meu cumprir as ordens, que me dais; mas, se no vosso real desagrado ainda não cahi, concedei-me a grande mercê de não regressar a Portugal, sem que vá com o meu rei e Senhor.

—Não. E confiar-vos-hei um segredo, que vos explicará a minha recusa, dando-me algum allivio o desabafo.—Quando enviuvei, prometti deixar o mundo, e metter-me em religião, logo que o principe, meu filho, estivesse em edade de reger o reino. Entretanto surprehendeu-me a empreza de Castella, e, presumindo eu, que era servir a Deus e da Sua vontade, defender a justa causa da princeza, minha sobrinha, procedi, como todos sabem. Fiado nas promessas d'el-rei de França... vim a esta nação, onde tenho esperado, que os successos das guerras, movidas por sua alteza, lhe permittissem dar-me afinal o soccorro promettido... Vejo infelizmente, que taes guerras cada vez mais se accendem, e os meus negocios cada vez mais se enredam, por isso entendi, que Deus me avisava de haver chegado o tempo de cumprir o meu voto. E, como creio que os principes, que vivem e morrem na regencia de seus{86} estados, com difficuldade se salvam, unicamente me pésa, não ter tomado a resolução de deixar o mundo e as suas pompas, quando Portugal estava em paz, pois de mim dava melhor exemplo, e excusava as censuras de muitos, que não deixarão de attribuir á falta de valor, e talvez a outras causas pouco honrosas, desistir eu da empreza começada. Sirvam esses mal fundados juizos de desconto a meus peccados. Estou deliberado a resignar a corôa, e a partir para a Terra Santa, onde purificarei as minhas crenças, e passarei o resto de meus dias em uma clausura.

Pero da Covilhan caíu de joelhos aos pés de D. Affonso, e exclamou!

—Que fazeis, Senhor!... Pois tendes animo de deixar na orphandade tantos filhos vossos, que mais não são todos os portuguezes?!... Se não quizerdes proseguir na empreza de Castella, não podereis ainda, uma e muitas vezes, mostrar ao mundo quanto valeis, combatendo novamente os infieis, e alargando os dominios de além-mar?!... E não será isto porventura entregar-vos ao serviço de Deus, com proveito e gloria de voss'alteza e da nossa patria querida?!...

D. Affonso V obrigou o môço escudeiro a levantar-se, e tornou-lhe muito impressionado:

—Cumpro a vontade de Deus!... Ao principe ficam bem entregues os destinos da nação, e de certo elle voltará ás terras da Africa, onde o barbaro mouro experimentou já a rija tempera da sua{87} espada. Vós lá sereis tambem a confirmar a destreza e bravura, com que pelejastes nos plainos de Toro. Crêde, que o vosso novo rei vos terá sempre em grande estima, porque lh'o mereceis, e continuareis a merecer, e nem eu, nem elle, nos esquecemos do perigo, a que vos exposéstes, para ir a buscar-me a Castro Nunho.

Ao pronunciar as ultimas palavras, o monarcha abraçou Pero da Covilhan, que seguidamente lhe beijou a mão, e saíu da sua presença muito commovido.

Com effeito, Pero da Covilhan podia ser util ao desfallecido rei na sua peregrinação e exilio, já porque era mui intelligente, já porque fallava com facilidade o arabe e outras linguas; mas D. Affonso V, despojado de grandezas, não tinha com que galardoar os merecimentos do moço escudeiro, por isso preferiu deixa-lo ao serviço do principe.

Antes do alvorecer do dia seguinte, que era o 24 de setembro de 1477, o rei saíu a cavallo, como costumava, acompanhado por dois moços da camara e dois de estribeira, depois de ter ordenado ao seu capellão, que o fosse esperar a meia legoa de distancia, em um sitio, onde effectivamente se encontraram. D'aqui fez voltar para Honfleur um dos moços de estribeira com a chave do cofre, que continha os seus escriptos, e com ordem de serem lidos, por quem da sua comitiva estivesse presente.{88}

Entretanto já os portuguezes, e M. de Lebrét, que por ordem de Luiz XI acompanhava D. Affonso V para o servir, haviam notado, que elle tardava em regressar do seu passeio.

Pero da Covilhan, que conhecia os designios do rei, presumia unicamente, que elle os tivesse posto em pratica; mas a ninguem revelava esse pensamento. Conservava-se triste, como quem compartilhava da geral inquietação, sem gesto ou palavra, que o trahissem.

Chegou emfim o moço de estribeira. Abriu-se o cofre, e n'elle foram encontradas cartas escriptas por D. Affonso V. Era uma para Luiz XI, na qual pedia desculpa do incommodo, que lhe causara; recommendava-lhe os portuguezes, que deixava em França; e expunha-lhe os fundamentos, que o determinavam ao ingresso na vida monastica. Outra para o principe D. João, dando-lhe conta da sua malfadada viagem, e ordenando-lhe com paternal affecto e justificada instancia, que se fizesse acclamar immediatamente rei. Outra, participando ao reino a sua abdicação, e determinando-lhe obediencia ao principe real, como o proprio e verdadeiro monarcha. E finalmente outra aos da sua comitiva, da qual nomeava chefe, para todos os effeitos, o conde de Faro.

Finda a leitura de todas, foram as destinadas a Portugal remettidas logo ao principe por via do seu camarista Antão de Faria, que tão celebre se tornou mais tarde no seu reinado, e que tinha{89} vindo a França tratar de negocios do Estado com D. Affonso V. Em virtude d'estas cartas, foi D. João acclamado rei de Portugal, no alpendre da egreja de S. Francisco em Santarem, aos 10 de novembro de 1477.

Tendo-se limitado o moço de estribeira a cumprir as ordens, que trouxera, e não sabendo prestar informação alguma ácerca do destino, que levaria o regio fugitivo, atrigáram-se os portuguezes em busca-lo por toda a parte. M. de Lebrét, por seu turno, empregou emissarios com igual fim, depois de communicar a Luiz XI, quanto se passava, e de dirigir graves accusações aos portuguezes, pela negligencia com que serviam, e acompanhavam o seu soberano.

Decorridos poucos dias, foi descoberto o paradoiro do monarcha por um cavalleiro normando, chamado Roberto Le Boeuf. Era em uma pequena aldeia da Normandia. D. Affonso V estava a dormir, e Le Boeuf acordou-o, para melhor o reconhecer. Não dissimulou o rei a sua identidade. O cavalleiro fez logo reunir a gente do lugar, para que vigiassem a regia habitação, e não consentissem a pessoa alguma o sair d'ella. Expediu mensageiros a Luiz XI, aos portuguezes, que estavam em Honfleur, e a M. de Lebrét, participando a todos aquella nova. E, finalmente, não só tratou com acatamento, mas serviu com zelo igual o seu prisioneiro.

O conde de Penamacor, que era o primeiro{90} camarista de D. Affonso V, e tinha declarado não voltar sem seu amo a Portugal, appareceu logo junto do rei. Encontrando-o mui pertinaz, em levar ávante o seu proposito, de se dirigir á Palestina, esperou pelo conde de Faro, e pelos restantes fidalgos da comitiva, para o demoverem. Deixou-se emfim D. Affonso V vencer das instancias dos seus, e de uma carta muito consoladora, que Luiz XI lhe escrevera. Teve, porém, pejo de entrar em Honfleur, e demorando perto do lugar, em que elle estava, a bahia de Hougue, para aqui se dirigiu com o seu sequito, a fim de sair da França, onde se sentia sobre brasas.

Embarcou seguidamente em uma carraca, mandada fretar por elle, e de Honfleur desceram os navios francezes, que Luiz XI fez por aprestar a tempo de a comboiar, confiando o commando da frota a Jorge de Bicipat, cognominado o Grego.

O rei de França continuava a encobrir com vãs honrarias, e ostentações de respeito pelo monarcha portuguez, a perfidia com que politicamente o trahia. E D. Affonso V fazia-se á véla para Portugal, sem levar no coração magnanimo resentimento algum, contra quem o havia constantemente logrado, antes até alimentando a esperança, de que Luiz XI sempre viria a prestar-lhe soccorro para concluir a empreza de Castella! Voltara-lhe esta preoccupação, depois que recebeu a ultima carta do seu amigo e alliado...

D. Affonso V era muito instruido, e tinha grande predilecção pelos que cultivavam as lettras;{91} por isso, durante a viagem, algumas vezes ordenava a Pero da Covilhan, que lhe recitasse romances e outras composições poeticas de Castella; com o que o rei-cavalleiro muito folgava. Para todos tinha sempre o gentil soberano uma palavra amavel; e, no tom de familiaridade que lhe era peculiar, aos portuguezes descrevia com rara exactidão e lucidez, quanto vira de notavel nos lugares, que percorrera, e ao capitão da frota exalçava as qualidades de Luiz XI, pondo ao mesmo tempo em relêvo a hospitalidade da nação franceza.

Sobreveiu um temporal, que deu causa a não poderem alguns navios aguardar a conserva. Perderam-se dos restantes, e abicaram primeiro do que elles á bahia de Cascaes. Não lhes tomaram, porém, grande deanteira, pois mal tinha corrido em Lisboa, onde estava D. João, a nova, de que seu páe chegaria préstes, logo este aportou á mesma bahia.

Certificado D. Affonso V, de que o principe tinha sido acclamado, foi surgir a Oeiras.

No dia seguinte desembarcou, sendo recebido em terra por seu filho, que mesmo alli depôz em suas mãos as redeas do governo e o sceptro, que por obediencia havia empunhado.

A este tempo era já muito reduzido o numero de partidarios de D. Joanna. O arcebispo de Toledo obteve perdão dos reis catholicos, e recuperou a sua graça. O proprio Beltran de La Cueva{92} recebia mercês d'estes principes e servia-os. A cidade de Toro estava em poder de Isabel; e Castro Nunho, depois de apertado cêrco, em que a defensa heroica de Pedro de Mendanha teve profundamente abalado o poder castelhano, rendeu-se afinal aos adversarios de D. Affonso V com permissão d'este, enviada ainda de França ao alcaide lealissimo, e precedendo taes condições, que foi quasi affrontosa a victoria para o exercito sitiante.

Mezes depois celebrou-se o tratado de paz e alliança, de 9 de outubro de 1478, entre os reis de Castella e Luiz XI, ficando annulladas quaesquer confederações, ligas e amisades existentes ou futuras da França com Portugal, assim como de D. Luiz XI com D. Joanna, asserta rainha de Castella.

Apesar de tão categoricos desenganos, D. Affonso V, incitado por alguns magnates de Castella, que publicamente se diziam seus inimigos, mas estavam com elle na melhor intelligencia, persistia na idéa de atear a guerra, e concluir o casamento com sua sobrinha. A especulação dos castelhanos não passava despercebida a Isabel, inspirando-lhe cuidado e receio; por isso não cessavam as hostilidades tanto por parte de Castella como de Portugal, com grande e manifesta ruina das duas nações. A paz era de absoluta necessidade para ambas, e n'isto convieram emfim as partes interessadas.

Para entabolar as negociações, avistaram-se na{93} villa de Alcantara, em Castella, a rainha D. Isabel e sua tia a infanta D. Beatriz, viuva do infante D. Fernando duque de Vizeu, as quaes combinaram, que fossem ajustadas as pazes em Portugal. Com effeito, a 4 de setembro de 1479, celebrou-se em Alcaçovas o tratado de paz perpetua entre D. Affonso V e os reis catholicos. Estipulou-se além de outras clausulas, que o principe D. João, filho dos reis de Castella, casasse aos sete annos por palavras de futuro, e aos quatorze por palavras de prezente, com D. Joanna, a qual receberia de arras vinte mil florins de Aragão, fóra os rendimentos necessarios para manter o seu estado; e, recusando-se o principe a concordar n'este casamento, a princeza não só seria indemnizada, mas ficaria livre para poder dispôr de si.

Era um meio honesto de esbulhar de seus direitos a desditosa filha de Henrique IV, pois tal consorcio nunca se realisaria.

Para segurança d'esta clausula, D. Joanna, tinha de ser posta em terçaria na villa de Moura, em poder da infanta D. Beatriz, e, não querendo, devia entrar em um dos cinco mosteiros portuguezes da ordem de Santa Clara, conservar-se ahi o tempo do noviciado, findo o qual era obrigada a optar pela profissão ou pela terçaria.

No mesmo tratado estatuiu-se, que o infante D. Affonso, filho do principe D. João, logo que fosse em edade de sete annos, se desposasse com a infanta D. Isabel, filha primogenita dos reis catholicos,{94} devendo esses infantes ser tambem postos em terçaria nas mãos da infanta D. Beatriz.

Este enlace era a principal garantia da paz tão desejada pelos reis de ambos os paizes para pôrem termo á desconfiança, com que se tratavam, originada de conveniencias e paixões particulares, mas filiando-a especiosamente na reciproca offensa dos interesses nacionaes.

Agora repare o leitor no que diz Ruy de Pina, chronista coevo d'estes successos, e profundo conhecedor das intrigas e ambições, de que foi victima a innocente princeza D. Joanna:

«Estando (a princeza) em Santarem, e cumprindo-se os seis mezes de sua liberdade, ella não com menos força alheia que tristeza sua propria, e com dolorosas lamentações suas e de todos os seus deixou o titulo de rainha e tomou o de D. Joanna, e despiu seu corpo dos brocados e sedas que trazia e vestiram-na em habitos pardos de Santa Clara, tirando-lhe da cabeça a corôa real de Castella e Portugal de que era intitulada, e cortando-lhe d'ella seus cabellos como a uma pobre donzella, e por maior seu aggravo e magua não lhe deixando os servidores de seu gosto e vontade, nem menos cousa que tivesse imagem d'estado. E o primeiro mosteiro em que assim entrou, foi Santa Clara da dita villa de Santarem. E na execução d'estas cousas porque a necessidade de outras muitas assim o requeria, o só e principal ministro era o principe; porque el-rei D. Affonso seu páe de muito anojado{95} e envergonhado d'ellas, de todas se escusou, e as deixa inteiramente á disposição e ordenança do filho, a cuja vontade el-rei n'aquelle tempo mostrou ser muito inclinado e sujeito. Mas se o principe no cumprimento d'estas cousas excedeu o modo contra a senhora D. Joanna, por ventura mais do que per razão, piedade e temperança se lhe devia, e isto pela gloria e contentamento que tinha do casamento do infante seu filho se não desfazer, que não era sem alguma esperança da successão de Castella, a desventurada fortuna como crú algoz do rigoroso e severo juizo divino, pela culpa do principe, se a tinha, lhe deu logo a pena com o triste e mortal apartamento dos innocentes principe e princeza, depois de novamente casados, sobre que tanto fundamento de honra e segurança fazia. Porque o mesmo lugar de Santarem, que contra a senhora D. Joanna foi o talho d'esta primeira crueza, se tornou a ser o principio d'esta sua vingança; porque o principe D. João depois de ser rei á vista da mesma excellente senhora, viu a subita e desastrosa morte do principe D. Affonso, seu filho, e a quem á primeira pareceu, que, sendo vivo, os reinos de Portugal sem os de Castella não bastariam, elle o viu logo morto, e de uma pouca de terra para sempre sujeito e contente, e a triste e innocente princeza sua mulher antes de bem casada se viu logo ser viuva, privada do verdadeiro titulo que tinha, e trocados os brocados ricos e hollandas delgadas que trazia, com pobre burel e{96} grossa estopa em que foi logo vestida, nem ficaram por cortar seus cabellos dourados com accidental proposito de religião, sendo apartada das pessoas mais de sua conversação e servida por servidores alheios, comendo no chão e em vasos de barro, privada em todo de todo estado, entrando n'estes reinos esposada, coberta d'ouro e de preciosa pedraria, em cima de ricas facas e trotões á vista de todos. Mas vós lagrimas que na lembrança d'esta dôr aqui apontaes soffrei-vos um pouco, cá pera outro mais proprio lugar estais reservadas. Nem a culpa do solemne mas simulado e cauteloso juramento, que el-rei e a rainha de Castella fizeram sobre o casamento d'esta senhora com o principe seu filho, não ficou sem triste pena e mortal perda e sentimento seu, porque Deus em cujo desprezo pareceu que se fez, não padece engano por castigo, do qual vimos que tambem elles viram a não madura morte do principe innocente moço seu filho, vivendo pouco mais tempo d'aquelle, em que com esta senhora prometteram e juraram de casar; porque elle já então era casado com madama Margarida, filha do rei dos romanos, e a tinha já em seu poder, sem de nenhum d'estes principes de que os reis de Castella e de Portugal tanta esperança e fundamento faziam, ficar algum legitimo herdeiro descendente que os succedesse e herdasse, e foram seus herdeiros os transversaes mais chegados».

Depois da profissão da Excellente Senhora—tratamento dado a D. Joanna tanto que vestiu o{97} habito de clarista—D. Affonso V quiz abdicar e recolher para sempre ao mosteiro do Varatojo por elle fundado; mas a morte antecipou-se a frustar-lhe esse ultimo designio. A 28 de agosto de 1481 exhalou o derradeiro alento na mesma sala do paço de Cintra, onde se ouvira o seu primeiro vagido.

A Excellente Senhora sobreviveu-lhe muitos annos, cumprindo resignada a sentença fatal do seu destino, que foi servir sempre de joguete nas mãos de ambiciosos, e de temeroza arma politica a seu primo D. João II.

Em 1482 interessou-se Luiz XI pelo casamento da desditosa princesa com Francisco Phebo, rei de Navarra. Mais tarde Fernando V, apenas enviuvou, rojou-se a seus pés, e solicitou-lhe a mão de esposa, como em outro lugar deixámos referido. Não podendo, porém, ella olvidar, nem um momento, que era a legitima successora da coroa de Castella, recusou com nobre altivez as propostas d'este seu algoz e diffamador de sua mãe, preferindo conservar-se solteira, até que deixou de existir em 1530, com sessenta annos de edade.

Foi sepultada na egreja de Santa Clara, de Lisboa, e tão esquecida a quizeram, que nem um epitaphio lavraram sobre a lousa que a cobriu. E, como o terremoto de 1755 arrasou essa egreja e o convento annexo, lá desappareceram misturadas com os destroços dos dois edificios as cinzas da pobre princeza.

Malfadada condição a sua!{98}

Não logrou D. Affonso V ser o unificador da grande nação hespanhola, e ao filho de D. João II foi tambem vedado herdar as duas corôas da peninsula, para realizar, conforme as aspirações de seu páe, a reconstituição da velha monarchia wisigothica, terminada no primeiro quartel do seculo VIII pela batalha de Guadalete.

Por lei, e pela propria dignidade da monarchia, o throno de Castella era patrimonio da filha de Henrique IV; e, se fossem justos os pretextos, de que se serviram, para lh'o arrebatarem das mãos, a segurança e a estabilidade de todas as dynastias podiam considerar-se problematicas.

O que mórmente achanou o caminho do throno a Isabel, foram as leviandades e torpezas de um rei inepto e devasso; mas nada póde lavar a macula de rebelde, com que ella conspurcou o seu nome para sempre.

Foi uma ruim causa que produziu bom effeito. O consorcio de Fernando de Aragão com Isabel preparou o successo transcendente da unidade hespanhola, realisada mais tarde por Carlos V, e os reis catholicos elevaram a Hespanha ao mais alto grau de prosperidade.

Acabaram-se as turbulencias dos magnates, e restabeleceu-se emfim o poder da realeza.{99}

 

VI

 

PESQUIZAS

Por morte de D. Affonso V todos os creádos da sua casa tomou D. João II para si com muito amor e agasalho, conforme testemunha Garcia de Rezende. Pero da Covilhan pertencia áquelle pessoal, e, como pelos serviços prestados em Castella e França havia conquistado a estima do novo monarcha, para logo ascendeu esta á quasi intimidade de valido.

Convem notar, que D. João II ao seu serviço preferia ter cavalleiros particulares a grandes e senhores; ou fosse por manifesta má vontade contra estes, ou porque, fazendo creaturas suas os que possuissem iguaes qualidades e menos poder, esperava que o servissem com maior fidelidade e menos ambição, por carecerem mais do seu rei, e serem mais faceis de contentar. Sobretudo tinha na melhor conta os seus companheiros de armas{100} em Toro, aos quaes louvava por vezes a dedicação e valor, cujo testemunho lhe deram, e por isso a todos elevou e distinguiu sempre, entrando a maxima parte d'elles em o numero dos quatro mil vassallos d'el-rei, que creou, como lhe requereram as côrtes reunidas em Evora a 12 de setembro de 1481.

Pero da Covilhan vivia, pois, na côrte de D. João II e fazia parte da sua guarda.

Nem antes, nem depois, ainda houve outra côrte mais brilhante em Portugal. O rei, para descançar das fadigas da administração, mostrava grande prazer de achar-se rodeado de cortezãos dotados de boas prendas, e com elles folgava, estimulando-os a exhibi-las na presença das formosuras insignes, que compunham o apparatoso e galante sequito da rainha D. Leonor.

Assistia jubiloso aos saráus do paço, nos quaes até ás vezes, depois de vêr dançar com primor a retorta mourisca pelas damas trajando ao uso arabe, deixava-se adormecer no regaço de alguma d'ellas. Era o primeiro emfim a lembrar os desafios poeticos, as côrtes de amôr, o jogo dos naipes, e tantas outras diversões proprias de uma sociedade elegante, de cujas aventuras amorosas se não fazia mysterio.

Maria Thereza era uma das mais gentis entre as donzellas, que a rainha educava para suas damas, e que podemos denominar os botões de rosa do real jardim de formosura, como depois Gil Vicente{101} chamou ao estrado das damas de D. Leonor.

Bella e muito viva, mais de um dos seus admiradores a requestava em verso. Ella, porém, sempre desdenhosa, sorria d'esses requebros, torturando assim os apaixonados moços. Alguns alcunhavam-n'a de desvanecida, outros de suberba, despeitados todos por se verem repellidos. Não logravam comprehender muitos d'elles, herdeiros de boas casas, que uma menina pobre se mostrasse tão esquiva, tão reservada, quasi fria, n'aquelle meio tão aquecido pelo calor da mocidade; em aquelle bulicio, que a intimidade no trato, e o desprendimento na linguagem tornavam tão jovial e affectuoso, como fielmente no'-lo reprezenta o Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende.

Um dia Pero da Covilhan, ao passar por ella, disse-lhe quasi a medo:

—Amo-vos!...

Maria Thereza córou, e tamanha perturbação sentiu, que não poude articular uma palavra.

Pero da Covilhan desappareceu, e ella, recobrando a serenidade, disse comsigo mesma:

—Deve-me ter talvez achado bem ridicula!... Não só ridicula; mas traduziria o meu enleio por baixeza d'alma, pensando que não agradeci a sua galanteria por elle não ser fidalgo, e eu filha e neta de fidalgos!...

Esta idéa foi um desespero para Maria Thereza, que não encontrava desculpa alguma para o{102} seu silencio. Até pelo seu espirito passou o receio de que Pero da Covilhan a desprezaria, pois estava convicta de que fôra desprimorosa para com elle, e de que uma palavra polida é sempre facil de responder.

Quando pouco depois avistou Pero da Covilhan, não poude fallar-lhe; mas retribuiu com um sorriso da mais ineffavel candura a gentileza, com que elle a cortejou. A divina semente, que germinava occulta em seu coração, cresceu de subito e floriu. Do encontro de duas almas, que se attráem, é que salta a faisca sagrada.

Durante algum tempo, não houve entre ambos correspondencia, que não fosse a dos seus olhares que se cruzavam; mas bastava essa para se comprehenderem. Os olhos são o espelho da alma, e descobrem, sem o sentirmos, todos os segredos, que lá guardamos.

Foi Pero da Covilhan mandado chamar pela rainha. Maria Thereza, mal soube a novidade, esperou-o á entrada dos aposentos de sua ama, e quando elle surgiu, disse-lhe:

—Aguardava-vos, para dissipar qualquer temor que porventura tivesseis... Como não é costume, havia de surprehender-vos a ordem da rainha, minha Senhora?...

—Certamente!... E graças pelo vosso cuidado em me prevenir, pois me tinha occorrido, que sua alteza desconfiasse, que vos cortejo, e não o levasse a bem...—respondeu Pero da Covilhan,{103} ainda mal refeito do sobresalto, que lhe causou a inesperada apparição de Maria Thereza, que para o tranquillizar lhe affirmou:

—Sua alteza nada sabe ainda. Como, porém, não tenho segredos para minha real ama...

—Oh! nada lhe confesseis por emquanto!... interrompeu Pero da Covilhan supplicando.

—Porquê?!...—perguntou Thereza meio admirada.

—Porque não vos mereço ainda...

—Por sermos muito môços; quereis talvez dizer?...

—Thereza!... Amo-vos cada vez mais! E por isso mesmo vos peço que espereis...

—Esperarei.

—Quando eu tiver uma posição digna de vós e do vosso nome illustre, virei offerecer-vo'-la, e esse será o primeiro passo para a minha felicidade... Antes, não!... Sou um simples escudeiro, bem vêdes!...

—Não vos amergeis tanto!... «Só os escudeiros sustentam o reino»: dizia D. João I... O que foi Nun'Alvares, antes de condestavel?... D'onde provêem os melhores titulos de Portugal e Castella?... De escudeiros se fizeram as casas de Benavente, de Vilhena, de Albuquerque, de Medina Sidonia, e tantas outras...

—Assim é; mas...

—Mas vós sois hoje um escudeiro, e ámanhã podereis ser um fidalgo... Não tendes a nobreza{104} por herança e patrimonio? Haveis de merece-la e ganha-la!... É crença minha.

—Na firmeza da vossa linguagem manifestais bem os quilates do vosso peregrino espirito... Edificativa exhortação a vossa!...

—Pois não será verdade o que vos digo?... Aquelles a quem a gloria dos avós envaida, sem procurarem imitar-lhes as virtudes, esquecem-se, de que não é nas raizes, mas nos ramos, que teem as arvores o seu fructo... Ora dizei-me!... Quantos fidalgos deixaram a vida em Toro?... Dos escudeiros sabemos todos, que muitos lá ficaram...

—Morreram no seu posto...

—Com honra, bem o sei. Ou não foram elles portuguezes!... Mas costume foi sempre lançar os escudeiros deante, para serem no perigo o escudo dos nobres... Que vejam estes agora como el-rei trata os escudeiros, que sobreviveram!... A vós não perde sua alteza o ensejo de honrar... Não vo'-lo provou já, enviando-vos a Castella em seu real serviço? E á Barberia, a fazer pazes com o rei de Tremecem?...

—Mercês d'el-rei, meu senhor, que m'as não deve, porque lh'as não mereço... Em Toro foram todos valentes, fidalgos e escudeiros, que ao lado de sua alteza ninguem póde ser fraco!... Praz-me porém, vêr-vos discorrer d'ess'arte!... Nobre alma de portugueza a vossa!... Como eu me sinto orgulhoso de vos amar!...

—E eu de ser por vós amada!...{105}

—Abençoado amor o vosso!... Por elle sinto-me capaz de tudo quanto ha de elevado e grande!... Nem perseverança e fé me faltarão jámais!...

—Nem as minhas orações, Pero... Assim ellas sejam ouvidas!...

—Porque não?... O céo está sempre aberto ás supplicas dos anjos. Vós sois já o da minha guarda, e o do nosso lar sereis um dia!...

—Sim. A Santissima Virgem, que é auxilio dos christãos, permitta que eu saiba corresponder ás vossas esperanças!

—Hade amparar-nos o seu patrocinio, crêde! Eu tambem sou devóto da Mãe de Deus, Thereza!...

—Confiemos n'Ella... Mas... alguem chega! Recado vos trazem da rainha, minha Senhora. Adeus.

Maria Thereza retirou-se; e Pero da Covilhan seguindo-a com os olhos, apenas soltou esta palavra, que ella já não poude ouvir:

—Encantadora!...

E era realmente um encanto a gentilissima Thereza. O seu coração virgineo abriu-se ao primeiro affecto, como o calice da flor aos primeiros raios do sol em alegre manhã de primavera. A sua alma desabrochando, exhalava seu ingenito perfume angelico, e em uma aspiração, que tinha alguma cousa de infinito, invocava não sabia bem o quê, para ella ainda desconhecido. Não ignorava, que{106} geralmente o interesse era o verdadeiro móbil dos casamentos na côrte. Muitos dos servidores das damas, senão todos, podiam ter a alma erma de virtudes, o coração vasio de affeições, que, se os recommendasse o prestigio das suas riquezas, ou a fascinação do seu nome, nenhuma d'ellas repudiava os seus galanteios. Maria Thereza, porém, aspirava á posse de uma alma, como a sua, que lhe offerecesse o thezouro da pureza, de um coração, como o seu, que conservasse o thezouro do affecto; porque sem estes dois thezouros nada lhe bastaria, e o nome, ainda o mais egregio, a fortuna ainda a mais colossal, não poderiam dissimular a sua privação irreparavel.

A rainha D. Leonor, que tinha por ella particular predilecção, como para o deante veremos, era a mais desvelada e carinhosa das mães nos cuidados com a sua educação. Nutrindo-a de solidos pensamentos pela cultura sã e moral do seu espirito, não lhe fazia ao mesmo tempo perder a frescura da imaginação, nem lhe roubava a graça e a poesia, com que Deus a dotára. Dando á imaginação o que justamente lhe pertencia, purificando-a e dirigindo-a, creava-lhe tambem e primeiro que tudo, uma consciencia forte; formava-lhe uma vontade energica e recta, um coração que soubesse querer o bem, uma razão e intelligencia, que lhe deixassem trilhar sempre, com resolução e firmeza, o caminho do dever e da honra.

Que mãe de familia com taes dotes!{107}

Em preciosos codices da bibliotheca real alimentava Maria Thereza a sua paixão pelas lettras, sendo a sua leitura dirigida pela rainha, como quem prescreve o regimen de uma alimentação salutar e sobria. Ao mesmo passo encarecia D. Leonor á sua pupilla a intimidade do lar domestico, dizendo-lhe, que sem ella não pode haver vida de familia, como sem templo não existe religião, que se avigóre.

Maria Thereza sabia assim, que no lar domestico nutrem e conservam sua pureza e sua energia os nossos costumes, e que elle é para todos nós como que uma patria mais estreita e mais estremecida, e tambem o lugar consagrado pelas alegrias e pelos pezáres communs da familia.

Ao pensar, pois, na sua união com Pero da Covilhan, Maria Thereza promettia a si propria, que seria sempre ao lado d'elle corajosa e risonha, velando tudo, tomando o maior quinhão nos dissabores do trabalhador indefesso, applaudindo os seus esforços, aconselhando-o, inspirando-o, confortando-o emfim com o seu olhar e o seu sorriso. E por isso mesmo, embóra Pero da Covilhan soffresse as mais duras inclemencias, as mais longas provações, antes de conquistar uma reputação honrada e merecida, a despeito de criticas amargas e injustas, o amor d'elle ao trabalho e ao lar domestico haviam de faze-lo triumphar de todas as vicissitudes. Maria Thereza contava com esse triumpho e deliciava-se ao imagina-lo.{108}

Que desassocego febril, em que andava o seu coração de dezeseis annos, desde que o surprehenderam no seu pulsar innocente e descuidado os primeiros estremecimentos do amor! Mas este delicado e casto sentimento deixou de ser uma paixão que poderia corrompe-lo, para tornar-se uma virtude, que havia de eleva-lo.

O mais vehemente desejo de Maria Thereza, era, que Pero da Covilhan se nobilitasse, crescesse em honras, conquistasse para o seu nome uma aureola brilhantissima. Em Pero da Covilhan para merecer, e em D. João II para premiar, tinha ella toda a confiança; por isso não a intimidavam as habituaes murmurações e desdens dos cortezãos. Estes em geral, occupados de inveja dos feitos alheios, trabalhavam por empece-los e aniquila-los. Prezando-se unicamente de perfumados, e de porfiar trovando nos serões do paço, nada mais faziam do que folgazar dia e noite, emmaranhados em intrigas de amores interesseiros e faceis.

Um interesse tambem tinha o amor de Maria Thereza; mas unico: a gloria de Pero da Covilhan.

Desinteressado amor!

A candida donzella via no seu bello ideal de ventura o môço escudeiro a burilar no escudo um brazão floreteado, ganho em serviço da religião e da patria, e a si propria aprezentando com justa ufania a sua real ama, e segunda mãe, o cavalleiro ennobrecido, a quem promettera a sua mão. Exultava{109} por isso de contentamento intimo, quando o rei o escolhia para desempenhar qualquer missão que por espinhosa e arriscada o distinguisse mais ainda. É que o seu amor tinha a singularidade maravilhosa de illuminar-lhe o entendimento, conservando-lhe sempre inflammado o coração.

Quando Pero da Covilhan ia a sair, já despedido pela rainha, poude dizer a Maria Thereza:

—De novo passo á Barberia.

—Deus vos guie!—respondeu Thereza, tão meiga, como alegre.—Comvosco vae tambem o meu coração, que é vosso.

Nem uma palavra, nem a mais fugitiva expressão da physionomia de Maria Thereza, podiam revelar a Pero da Covilhan qualquer sombra de tristeza pelo apartamento; e comtudo bem natural é, que fossem como realmente eram, sempre que se separavam, docemente feridos ambos pelo espinho da saudade. As despedidas em vez de os desfallecerem, animavam-os.

D. João II no seu ardente amor de gloria, ao passo que se tornava insaciavel e insoffrivel em transpôr os humbraes da India, não afastava seus olhos d'aquella banda da Africa, tanto ao pé da porta, e da qual tivera por doação real a governança, quando principe ainda. Para ser miudamente informado ácerca do que se passava n'esses lugares, enviou lá Pero da Covilhan, recommendando-lhe em particular, tratasse a miude com Molley-Belfagege, que em 1472 havia mandado a{110} ossada de D. Fernando, o mallogrado infante, que fallecera em Fez. A razão ostensiva da viagem era, porém, a compra de cavallos do melhor sangue para o duque de Beja, a quem o rei ia dar casa. Destinados á mesma adquiriria tambem Pero da Covilhan alguns lambeis, que D. Leonor encommendara com particular interesse, consoante á carinhosa rainha merecia, quanto tocava a D. Manuel seu dilecto irmão, mais tarde rei.

Embarcou Pero da Covilhan para o seu destino.

Depois da necessaria demóra, regressou a Portugal, onde o esperava já outro encargo; este, porém, mais arduo, e de mais vasto alcance para a realisação do plano politico de D. João II.

Estava a côrte em Santarem, quando chegou e deu conta a seus reaes amos dos mandados, que cumprira, conforme as instrucções que levava.

—Bem o fizestes—disse-lhe o rei—; e agora—muito secretamente—espéro de vós grande serviço, que sempre vos tenho achado bom e leal servidor, mui ditoso em vossos feitos... Não vos impede a falta de saude, ou o cansaço da viagem, de sair já de nossos reinos?

—Préstes estou, meu Senhor e rei—respondeu Pero da Covilhan.—Peza-me, porém, não ser a minha sufficiencia igual ao desejo, que tenho de servir voss'alteza...

—Embóra, ireis, que Deus vos guardará.—A descobrir e saber do Preste João, e onde se acham{111} a canella e as outras especiarias, que das terras do Oriente vão a Veneza, hei já mandado um homem da casa de Monte-Rio e um frade de Lisboa. Chegados que foram a Jerusalem, d'aqui fizeram volta, dizendo, que ninguem por aquellas partes podia entender-se sem saber o arabe. De vós me lembrei, que bem o fallais. Maior incumbencia todavia levareis, do que elles, pois tambem do vosso valor e discernimento muito mais confio...

—Mercê a voss'alteza, meu Senhor...

—O que de vós pretendo é, que vos certifiqueis, se do meu senhorio da Guiné podemos communicar por terra com o reino do Preste João, e se tambem por lá, se a costa vae seguindo, levariamos á India a nossa frota.

—Com léda vontade, Senhor, acceito o encarrego, que é mais uma mercê, por que beijo a mão de voss'alteza.

—Ámanhã sereis despachado, e levareis comvosco Affonso de Paiva, que vos dou para auxiliar-vos.

Pero da Covilhan poude pouco depois avistar-se com Maria Thereza, que já sabia da sua vinda, e communicar-lhe com enthusiasmo, que el-rei o mandava partir para longe, proporcionando-lhe azo de prestar á religião e á patria bons serviços. Não lhe revelou o segredo da sua mysteriosa viagem, mas não resistiu a dizer-lhe com o mais vivo arrebatamento de amor:{112}

—Agora, mais do que nunca, espéro ser vosso, Thereza!...

—A Virgem vos ouça!—exclamou Maria Thereza igualmentente enlevada e radiante.—A longes terras ides?... Deus vos acompanhará... e eu ficar-vos-hei esperando... de outro jámais serei!...

E apartaram-se, como dois crentes, cujo animo varonil o fervor da fé revigóra.

Nem um uma lagrima derramaram!

As lagrimas nem sempre são a medida do amor. Este muitas vezes mais se prova, com as que se deixam de chorar.

Se Pero da Covilhan partisse, para nunca mais ver Thereza, seria essa a dor maior dos olhos de ambos, e a que lh'os desfaria em lagrimas. Elle, porém, ia para voltar e trazer o seu nome laureado a Thereza; esta ficava-o esperando, para o festejar jubilosamente. Por isso as lagrimas, que deixavam ambos de chorar, se haviam seccado nas fontes do amor fino, com que mutuamente se queriam.

No dia seguinte, que era o setimo de maio de 1487, D. João II, tendo a seu lado D. Manoel duque de Beja, entregou a Pero da Covilhan, que se apresentou já com Affonso de Paiva, uma carta de marear, feita em casa de Pedro d'Alcaçova, pelo licenciado D. Diogo Ortiz, o Calçadilha, depois bispo, e pelos physicos hebreos, mestre Rodrigo e mestre Moysés, os quaes tomavam com o primeiro{113} parte na junta dos cosmographos. N'essa carta devia Pero da Covilhan, marcar os lugares do senhorio do Preste, bem como todos os mais, por onde passasse.

Para os primeiros gastos da viagem mandou-lhe D. João II dar da arca das despesas da horta de Almeirim quatrocentos cruzados, parte dos quaes Pero da Covilhan depositou na casa bancaria de Bartholomeu Florentino, a fim de receber em Hespanha o que lhe conviesse, levando além d'isso uma carta de credito, dirigida pelo monarcha á opulenta casa Medicis, para que nada lhe faltasse nos paizes, que tivesse de percorrer. Foi emfim portador de cartas em arabico para o Préste, nas quaes D. João II significava a este o grande desejo de o conhecer, e travar com elle relações de amisade, dando-lhe ao mesmo tempo conta de tudo o que pela costa da Guiné havia descoberto para saber, se alguma d'aquellas terras era perto de seu reino e senhorios, a fim de por ellas se poderem communicar e prestar, bem como fazer, com que a Fé Christã fosse exalçada.

E no mesmo dia partiram os dois exploradores em direcção a Barcelona.{114}
{115}

 

VII

 

EM RHODES

Apenas Pero da Covilhan e Affonso de Paiva chegaram a Barcelona, passaram a Napoles pelo Mediterraneo. Alli desembarcaram, e dirigindo-se logo á casa commercial de Cósme de Medicis, pelos filhos d'este lhes foi dado seu caminho, em vista da carta de credito, que levavam, como fica dito.

Na formosa e vasta bahia de Napoles estava a largar para a ilha de Rhodes uma náu, a bordo da qual facil foi receber os nossos viajantes. Proseguiram n'ella, pois.

Já no mar tyrrheno, quando Pero da Covilhan, encostado á amurada da náu, tinha deante dos olhos o quadro pittoresco do golpho, emmoldurado por uma natureza encantadora e grandiosa, nenhum allivio achava nas tentadoras bellezas do magnifico panorama, para a dôr que lhe ia pungindo{116} a alma. Agora que nos mares do levante põe a prôa a náu, que o transporta, e elle, se distancía mais de Portugal, sem saber aonde o destino o levará, mais lhe parece que o seu coração o deixou para ficar com Thereza.

Ao dobrar a costa meridional da Secilia, em aquelle afastar-se cada vez mais da patria em busca de regiões desconhecidas, o ardor, com que desejava chegar ao termo da sua viagem, era muitas vezes amortecido pela impressão viva da saudade, que deliciosa e acerbamente lhe dilacerava o coração.

A náu singrava, assoprando-lhe galerno o vento, que lhe fazia as velas pandas. Quasi ao cabo da sua derrota, entra no mar Carpasio, e, proejando para Rhodes, surge n'este porto.

Está, portanto, Pero da Covilhan ás portas do Oriente.

Habitavam Rhodes os cavalleiros da sacra milicia de S. João Baptista, de Jerusalem. Tinham achado que, pelo sitio e vizinhança, era essa ilha propria para, sem maior difficuldade, pelejar com os sarracenos do Egypto e da Syria, bem como para reprimir e rebater os assaltos e insultos dos turcos, que, com galeras armadas em guerra, infestavam aquelles mares, vexando os christãos, roubando e fazendo captivos muitos d'elles.

Fortificaram-se por isso alli; armaram-se de náus, galeões e galeras, com que limparam de piratas e corsarios os mares do levante; e não só{117} davam passagem segura e pousada franca aos peregrinos, que visitavam a Terra Santa, senão tambem refreavam os impetos e furias dos mouros e turcos, para que não chegassem com as suas victorias até ao coração da Italia. E pode affirmar-se, sem receio, que se deve attribuir ás virtudes, esforço, façanhas e proezas dos cavalleiros de Rhodes, o não terem os infieis mahometanos destruido a maior parte da christandade.

Eram dois os cavalleiros portuguezes então na ilha: frei Gonçalo Pimenta e frei Fernão Gonçalves. O ultimo havia tomado parte na heroica e brilhante defensa, contra o apertado cêrco do exercito ottomano, em 1480, no mestrado de frei Pedro d'Aubusson. Como bem natural era, receberam os dois viajantes fidalga hospedagem de seus compatricios. A breve trecho estabeleceu-se entre todos aquella confiança e lhaneza de trato peculiarissimas do nosso caracter nacional, que não só se conserva intemerato em quaesquer circumstancias de tempo e lugar, mas ainda mais o affirmam os portuguezes uns aos outros, quando se topam em terra alheia.

Como os primeiros cuidados do grão-mestre tivessem sido, logo depois do assédio, restaurar as muralhas e fortificações arruinadas, durante este; reedificar as casas e as egrejas, que foram demolidas, por estarem situadas perto da cidade, e poderem servir de interesse ou de reparo ao inimigo; e restabelecer finalmente o importante commercio{118} dos rhodios, que tão notavel incremento havia já tomado; aos intrepidos viajantes foi grato vêr na Rhodes christanisada uma das mais florescentes cidades da Asia.

Precisou Affonso de Paiva de repoisar um pouco; e, emquanto elle o fazia, foi Pero da Covilhan com frei Fernão visitar as fortificações. Depois de haverem percorrido todas, sentaram-se na torre de S. Nicolau, que demorava sobranceira ao mar na entrada do porto, e era fundada sobre alcantilado fraguedo, que se erguia do seio das ondas.

Como os turcos emprehenderam expugnar esta torre, por lhes parecer que d'ahi podiam bater com maior effeito a cidade, e tambem impedir que lhe não entrassem soccorros, fr. Fernão recordou este episodio do cêrco, e a bravura com que n'elle se portaram os cavalleiros portuguezes. Pero da Covilhan escutava com interesse e assombro a narrativa, e não poude occultar a commoção de jubilo, que sentiu ao ouvir as referencias feitas á galhardia dos nossos.

Frei Fernão comprehendeu que fallava com quem era versado na arte da guerra, por isso fez-lhe minuciosamente o lance do cêrco. E, como então os triumphos gloriosos dos prelios eram antes attribuidos á graça do Omnipotente, do que ao esforço heroico dos guerreiros, não deixou fr. Fernão de memorar um caso milagroso, que contribuiu principalmente para a derrota dos turcos.

—Depois de assalto á cidade fugiram para ella{119} grande numero de turcos. Attestaram estes com juramento, que, tendo o grão-mestre acudido ao combate, e feito arvorar de novo as bandeiras, em que se divisavam pintadas as imagens de Christo, da Virgem e de S. João Baptista, alvejando a cruz em campo de rouxeada côr, n'esse mesmo instante viram os turcos correr pelo ar contra elles uma Cruz resplandecente da côr de ouro, á qual seguia uma Matrona formosissima, adornada de candidos vestidos, com escudo embraçado e lança na mão direita; junto a ella um homem vestido de pannos vis com uma pélle de camêlo sobre os hombros; e logo um luzido esquadrão de soldados, assignalados com cruzes brancas, correndo em tal ordem que parecia virem em soccorro da cidade. Com esta visão—diziam os desertores—ficaram os turcos tão assustados e attonitos, que os que iam em marcha ao assalto, não se atreveram passar adeante; e os que já estavam interessados na lucta, conceberam tanto medo e terror, que voltaram as costas, e para fugirem com menos embaraço se mataram uns aos outros.

—Vencemos!—concluiu frei Fernão—. Mas sem aquelle celeste auxilio não podia prevalecer a nossa defensa contra o grande tropél e poderosas forças dos inimigos. Cumprimos o que deviamos por honra nossa, com grande gloria dos christãos e a mór affronta dos infieis!... E a proposito deixai-me lamentar, que o senhor D. João II, sendo tão catholico, tenha a sua attenção distrahida{120} para Africa, e não nos auxilie em nossa empreza!...

—Estou certo—retorquiu Pero da Covilhan—de que el-rei, meu Senhor, admira os vossos esforços, e desejaria contribuir para o engrandecimento da sagrada milicia; asseguro-vos, porém, que nas actuaes circumstancias do reino, não podia, antes que quizesse, realizar esse desejo. Achais porventura, que sua alteza deve consentir á sua porta, a vexar a christandade, o agareno insolito e maldito?...

—Reduzir o numero dos infieis pela conversão ao catholicismo, é sem duvida obra emérita. Mas nós tambem lá iriamos ajudar el-rei, se tivessemos seguro o nosso dominio na Asia...

—Não se esquece sua alteza do Oriente, crêde... Se a nossa fróta podésse ir á India!... O resultado seria a propagação da fé catholica n'essas regiões remotas, e o augmento da gloria e riqueza de Portugal!...

—Á India?!... Arrojado pensamento esse!... Pois póde el-rei conceber um tal proposito?!... Por que mares chegaria lá?!...

—Por que mares, não sei... O pensamento é meu... Occorreu-me agora... O que vós não ignorais, sem duvida, é que nós, os portuguezes, somos aventureiros por indole. Estanciados no Occidente, parece-nos o mar uma barreira constante, posta a nossos olhos, para nos impedir de caminhar; por isso natural é, que estejamos sempre{121} anciosos de vencer esse obstaculo... Quem sabe se servirá de estimulo, para virmos a ser um dia os primeiros navegadores do mundo?!...

—Confio muito na providencia de Deus e no valor dos portuguezes; mas... Veneza tem o monopolio das riquezas do Oriente; os seus depositos em Alexandria fornecem o mundo inteiro; e além d'isso é a senhora dos mares, sem que ninguem póssa disputar-lhe esse imperio... Se porventura ella sonhasse, que por mar se podia ir á India, já lá tinha surgido a sua grande fróta...

—Mas nós tambem já temos provado, que sabemos luctar com as ondas...

—Assim é...

—Ora dizei-me: não estará Deus a ensinar-nos o caminho da India no movimento diurno do sol?... Eu me explico. Não me custa admittir, que do Oriente partisse um dia grande cáfila de gente á procura do paiz do ouro. Chegaram ao Occidente, e, topando com o mar, que os não deixou ir mais além, uns retrocederam, outros ficaram...

—Que saissem até muitos d'elles, para commerciar unicamente, facil é acredita-lo—interrompeu fr. Fernão.

—Pois bem. A esses primeiros povoadores do nosso sólo acompanharia sempre no seu voluntario exilio a saudade da patria. E este sentimento não se transmettiria de páes a filhos, como um patrimonio de seu coração?...{122}

—Mui ajustado considero o vosso conceito. Até do nosso genio aventureiro razão sobeja me dá.

—Uma esperança trouxe a nossa raça ao Occidente, uma saudade a levará ao Oriente!... Mas pelo mar, para completarmos a nossa revolução, como o Sol!...

—Prouvéra a Deus, que assim fosse!...—exclamou com enthusiasmo fr. Fernão.

—Não me pertence a mim de tal cuidar. A que venho com Affonso de Paiva, é procurar o tão fallado Préste João. Acaso podereis vós dar-me informações, que me alumiem?... Se fôr um rei christão, como dizem, muito ganharia a nossa religião santa, se com elle el-rei contraisse alliança...

—Folgaria de bem vos encaminhar; mas tão escuras correm as noticias d'esse afamado imperador, que chego a persuadir-me, serem todas mal fundadas.

—Na Asia habita, dizem. Em que parte, porém, d'ella?

—Na Asia habitará... O nosso collegio, porém, já conta em Rhodes mais de um seculo, e até hoje—que eu saiba!—não tem constado cá, haver-se descoberto o reino maravilhoso d'esse principe de tanta nomeada.

—Informação de pêso é essa...

—Com effeito existiu na Asia a monarchia do Jonanan, sendo este nome commum a todos os soberanos d'ella, como foi o de Pharaó aos reis do Egypto, o de Dario aos reis persas, o de Cesar{123} aos imperadores romanos, e actualmente é o de Turco aos sultões da casa ottomana. Esse nome de Jonanan, derivado de Jonas Propheta, mudaram os europeus em Joan, e o pronome Preste, o mesmo que Presbytero, pozeram-lh'o em razão da cruz, que sempre deante levava arvorada, como os nossos arcebispos. E esse imperador christão, posto que nestoriano, obedecia ao patriarcha de Babilonia, de maneira que tambem a elle obedeciam os christãos, a quem na India se chamavam da Serra ou de S. Thomé. O seu imperio, porém, ha muito que desappareceu.

—E porque não crêr antes, que em paiz desconhecido, e cercado de mysterios o Préste vive ainda, como em toda a Europa corre?... Emfim, eu a Portugal não volto, sem colher informação segura, para a levar a el-rei, meu Senhor.

—Nem al se deve esperar de vós, como brioso cavalleiro que sois.

O resultado, que Pero da Covilhan logrou d'esta pratica, foi tornar-se-lhe cada vez mais problematica a residencia, senão a existencia, do Préste João das Indias. Não soffreu com isso a menor contrariedade o seu animo imperturbavel; serviu antes de maior estimulo á sua diligencia.

De Rhodes, onde se forneceram de mel, com que se dispozeram a negociar, atravessaram os dois viajantes para Alexandria, disfarçados em mercadores.{124}
{125}

 

VIII

 

BOAS NOVAS

Era portuguez o navio, que conduziu Pero da Covilhan e o seu companheiro ao porto de Alexandria. As ondas do Mediterraneo mal marulhavam em torno do costado da embarcação, imprimindo-lhe uma arfagem indolente, e fazendo parecer, que o mar se transformára em um grande lago azul e tranquillo. Ao cabo de uma feliz derrota o navio deu fundo em frente da velha cidade egypcia, uma das mais bellas e graciosas cidades do mundo antigo, e laço de união da Europa com o Oriente.

Estava no periodo da sua maior decadencia a patria de Euclides. A sua bibliotheca celebre, que fôra a maior do mundo, e quasi todos os seus monumentos, que davam brilhante e seguro testemunho da sua antiguidade gloriosa, haviam sido arrasados pelos arabes, no VII seculo.

De todas essas preciosidades historicas restavam{126} unicamente: a columna de Pompeu, denominada Amud-Assuari pelos musulmanos; dois obeliscos, impropriamente chamados Agulhas de Cleopatra, e as catacumbas.

A sudoeste da cidade, marcando o lugar occupado antes pelo Serapeion, ou templo consagrado a Serapis pelos Ptolomeus e um dos centros do saber, no ponto de união da Necropole com o velho bairro egypcio de Rakotis, levantava-se rodeada de palmeiras a columna de Pompeu, testemunha sobrevivente das épocas classicas. Esta obra de arte genuinamente grega mandou um prefeito romano erigir em honra do governador Diocleciano, genio tutelar da cidade, para lhe demonstrar a sua gratidão pelo trigo, com que soccorrera o povo de Alexandria. Era lavrada em syenito, com o sócco quadrado, em que assentava, e o capitel corinthio, onde se erguia a estatua, já mutilado.

As Agulhas consistiam em dois monolithos de granito avermelhado, em parte revestidas com laminas de prata dourada. Foram anteriormente dois monumentos: um, o Sebasteion, em honra de Tiberio; o outro, á gloria de Thutmosis III, quando o Egypto attingiu as culminancias do esplendor, e, por consequencia, seculos antes da fundação da Alexandria no terreno, em que assentava a velha aldeia de Rakotis.

No segundo obelisco viam-se os hieroglyphos, que celebravam o nome d'aquelle Pharaó.{127}

Primitivamente ambos os monumentos tinham sido consagrados a Râ, o deus do Sol, adorado em todo o Egypto, e em um bello templo de Héliopolis mais especialmente, sob a fórma do boi Mnévis. D'esse templo os removeram para Rakotis.

Na extremidade oriental da ilha de Pharo, que os Ptolomeus ligaram á terra firme por meio de um mólhe de cantaria, denominado Heptastadion, campeava ainda o pharol, que mereceu ser contado em o numero das maravilhas do mundo, e realmente maravilha da esplendida capital do Egypto grego.

Era uma torre quadrada, cuja altura excedia muito a da pyramide de Cheops, e que Ptolomeu Philadelpho consagrou a seus páes, mandando-a revestir de marmore branco por Sostrato de Knido. Este architecto celebre gravou o proprio nome sobre o marmore, cobrindo a inscripção de encaustica brilhante, em que traçou o do soberano. O tempo encarregar-se-ia de desfazer o revestimento, pondo a descoberto o nome do vaidoso e desleal artista.

Como a torre ameaçava ruina, em frente d'ella havia principiado outra igual Melik-al-Nasser-Mohammed, nono sultão mameluco do Egypto, da dynastia dos Baharitas, e que tanto animou a agricultura e as artes; mas a morte surprehendeu-o logo, não lhe permittindo executar a sua obra.

Muito de corrida viram tudo isso os nossos viajantes,{128} e pouco mais, pois que uma fébre maligna os prostou.

Ainda mal restabelecidos, subiram ao Cairo, commerciando sempre, por haver successivos mercados desde Alexandria até áquella cidade, e fazendo a ultima parte da jornada pelo Nilo, que vinha descendo n'esta região por entre alegres povoações mui visinhas umas das outras, e corria a pequena distancia da capital do Egypto, a qual demorava na margem direita.

Alguns dias depois de chegarem a este grande centro de commercio, encontráram-se com mercadores de Féz e Tremecem, que seguiam para Aden. Ajuntáram-se á caravana d'esses mouros, e com elles partiram caminho de Tór. D'esta cidade do Hedjaz, pequena, mas graciosa, assentáda á borda do golpho de Suez, ao longo de uma bella praia, navegaram em um zambuco para Suaquem, riquissima cidade da Nubia, na costa africana do mar Vermelho, e d'ahi para Aden.

Pero da Covilhan approximava-se da India; e, sem embargo de haver saído de Rhodes com pouca esperança de dar lá com o Preste João, anciava cada vez mais conhecer a hydrografia do Oriente, e fazer um estudo consciencioso do commercio das especiarias.

Tomára o nome, as ceremonias e os costumes de mouro, mas Deus sabia, que a sua alma era christã e portugueza de lei. A convivencia com os infieis mais lhe arraigava no coração as suas crenças.{129} O seu melhor companheiro, e confidente unico, era a imagem de Thereza, a guiar-lhe os passos, animando-o ao mesmo tempo a proseguir audacioso e firme. Observando tudo com olhos de quem sabia ver, nem uma exclamação nem um gesto eram capazes de trahi-lo, ou de levantar a suspeita, de que não fosse mercador ismaelita.

Quando aportou á bahia de Aden, esta importante cidade maritima da Arabia produziu-lhe viva impressão, que passou completamente despercebida aos olhos dos tripulantes e mercadores que o cercavam.

Defrontou com uma serra mui alta, aspera e crespa, tendo varias quebradas e picos muito agudos, alguns dos quaes fortificados. Ao vê-la assim recortada, lembrou-lhe a serra da Cintra, por parecer-lhe mui similhante. Parte d'ella mettia pelo mar, formando uma comprida peninsula, que talhava duas formosas e largas enseadas, e na de léste espelhava-se a muralha da cidade.

Com effeito Aden, edificada ao sopé da serra, era defendida, para a banda do mar, por um extenso lanço de muro, dividido em muitos pannos por meio de cubellos redondos, e de um lado entestando em uma penha cortada a pique, do outro em um môrro, junto do qual havia um baluarte rouqueiro, cujos tiros podiam varrer a praia. O môrro tornava-se um ilhéo com o preamar, e até ao seu cume, onde estava um castello, subia do baluarte um muro, que torneava o môrro. Por duas{130} portas, ambas juntas, se entrava na cidade, indo da praia; e, por unica serventia do lado da terra, em um caminho aberto na rocha de uma quebrada, havia tres portas consecutivas, protegida cada uma por sua fortificação.

Plana, de boa casaria coberta por terrados, em razão do ardor vivissimo do clima, Aden, para ter agua, precisava de manda-la buscar ás fontes detraz da serra, em ôdres transportados por camêlos e juntar a da chuva em enormes tanques abertos na rocha.

O seu principal commercio consistia na venda de mantimentos, de que sempre estava abastecida. A ella desciam os mercadores arabes com os productos de seus paizes, e d'ella levavam a varios mercados as exportações da India, para as caravanas de Damasco e de toda a Asia menor as passarem á Europa pelo Mediterraneo. Por tal motivo a maior parte das náus contentava-se com chegar a Aden, e não curava de entrar as portas do mar Vermelho.

Como Pero da Covilhan soubesse n'esta cidade, haver na Ethiopia um grande rei christão, e considerasse, que o Préste se chamava das Indias, convencionou com Paiva, proseguir este no caminho da Ethiopia e elle no da India, aproveitando logo a monção. Ficaram todavia de se ajuntar ambos em determinada época no Cairo, e aqui darem mutuamente conta das novas, que alcançassem.{131}

Affonso de Paiva foi, pois, em uma gelva para Zeila, capital de Adel na costa oriental da Africa, e Pero da Covilhan demandou em uma náu mourisca a cidade de Calicut.

Era Pero da Covilhan o primeiro portuguez conhecido, que atravessava o Oceano Indico.

A náu, que o transportava, tinha, como quasi todas as da India, um só mastro sem gávea, aguentado pelos cabos para a borda, e pelas adriças da véla, que os ajudavam para ré. O leme largo e de taboas delgadas governava com gualdrópes para a borda, alados por um e outro bordo. Ligeiramente construida, de poucas cavernas, e forrada apenas exteriormente, seu taboado cozido a cairo, e de igual modo fixo ao cavername, marcava a differença que ella fazia das pregadiças, nas quaes em vez de quilha havia fundo largo.

A véla, de pendão, era um trapézio de amplas dimensões, ligando o punho da amura a uma antenna, que podendo debruçar-se da borda, permittia á náu navegar em melhor linha de bolina.

Por causa da véla, de difficil manobra, tornava-se necessario arrear para cambar de bordo; e, para diminuir superficie, havia no panno uma especie de rizes, parecendo inteiramente desconhecido o uso de monetas.

Nenhum mareante breava a sua embarcação; tornava-a, porém, muito estanque, betumando as costuras do taboado com quil, e untando-as com azeite de peixe, levado á consistencia de sêbo. Assim{132} vedavam tambem os tanques, em que traziam a agua, os quaes consistiam em grandes cubos de madeira com capacidade para trinta ou quarenta pipas, e com as paredes escoradas interna e externamente.

O batel andava atoado, e sómente o mettiam dentro, quando atravessavam da India para o mar Vermelho.

Nas ancoras de pedra ou de madeira rija, na arca da bomba, e em outras particularidades de construcção, esta náu differia muito das portuguezas. Sem coberta, e com a borda feita de esteiras impremiaveis, levava a carga arrumada em compartimentos separados, e resguardada da chuva por folhas sêccas de palmeira, postas em fórma de telhado de duas aguas.

Desprovida de agasalhados, que permittissem aos tripulantes e passageiros abrigar-se, iam, uns e outros, expostos ao tempo, salvo quando o vento soprava muito rijo ou caia alguma chuva, pois que em taes casos recolhiam-se em uma especie de choupana de óla, encostada ao mastro, ou armada a ré, por cima das esteiras de rotas, com que cobriam a carga.

O typo do fogão, em que cada um cozinhava, reduzia-se a uma caixa de madeira, cheia de areia, sobre a qual collocavam tres pedras, que serviam de trempe. O côco, o peixe sêcco e o arroz constituiam os principaes manjares da quotidiana alimentação.{133}

E com embarcações tão frageis, como a succintamente descripta, se fazia a navegação dos mares indicos, durante sete mezes de cada anno, sendo depois varadas nas praias e cobertas com óla, á espera de nova monção.

Hoje, que tão commoda e rapidamente se viaja, mal se comprehende que, sem um movimento superior a impulsiona-lo, Pero da Covilhan fizesse esta travessia em similhantes condições, e nem um momento sentisse desfallecer-lhe o animo!

Que provas de valor, dedicação e lealdade ia accumulando na sua peregrinação arriscadissima, para offerecer ao rei, que o enviára, e a Thereza, por quem tudo soffria resignado!

A viagem continuava sem o menor incidente. Um dia, porém, no Céo, que permanecia sereno, algumas nuvens similhantes a vapores cobreados, corriam por elle com ligeireza superior á das aves, ao passo que sulcavam o mar cinco ou seis vagas longas e crescidas, parecendo-se com cordilheiras de collinas, separadas umas das outras por largos e profundos valles. O vento soltava dos vertices angulosos de todas essas collinas aquaticas uma especie de coma de espuma, em que refulgiam aqui e além as brilhantes côres do Iris, e levantava igualmente redemoinhos, como que de poeira esbranquiçada. Mas o mais terrivel era, que os tôpos d'esses vagalhões com a violencia do vento enrolavam-se sobre si, formando enormes abobadas, espumando e rugindo como féras gigantes iracundas.{134} A náu, sem governo, vogava de capa, e não era senão joguete do vento e das ondas. Subia essas serranias inclinada sobre um dos bordos, quasi virada, chegava ao cimo, equilibrava-se, e descia depois rapidamente com egual perigo o lado opposto, em quanto se escoava, saindo por debaixo d'ella como de uma comporta, um largo lençól de espuma.

Se fosse muito duradoura esta tempestade medonha, esta borrasca sêcca, mas horrenda, a fragil embarcação sossobraria irremediavelmente.

Salvou-se!

Com a sua bandeira verde içada no tópe do mastro, a náu arribou a Cananor, para fazer aguada e tomar lenha.

A doze legoas para o Sul na mesma costa do Malabar, demorava Calicut; e, por ser a costa mui limpa, a náu, depois de refrescar, seguiu perto de terra o seu rumo com terrenho galerno e perfumado a enfunar-se na véla.

Chegou Pero da Covilhan a Calicut. Cananor pouco abalo havia produzido no seu espirito. Calicut deslumbrou-o. Tinha deante de seus olhos a opulencia e a belleza da primeira cidade do Malabar, e a sua phantasia, que lhe pintára com as côres mais vivas a vegetação luxuriante da India, não o illudira, pois o maravilhoso painel, que estava contemplando, era superior ainda ao que a sua imaginação havia sonhado.

Em um vastissimo jardim á beira mar, com arruamentos{135} arbitrariamente traçados, estava disseminada a casaria da cidade, sobresaindo os mais nobres edificios no meio das alfombras odoriferas dos canteiros, das hortas viçosissimas e dos palmares giganteos. Junto da praia as palhotas dos pescadores mucuás, e em lugares apartados as dos pobres poleás, a gente baixa e vil, eram a sombra do quadro, em que resplandecia a sumptuosidade dos pagódes, a elegancia das habitações nobres, e a magnificencia dos paços do rajah, que rematavam a cidade a grandissima distancia da praia.

A cada passo via Pero da Covilhan nas ruas os vaidosos naires, com suas espadas núas e rodellas uns, outros com lanças, e ainda outros com arcos e frechas; e os poleás a bradar, para que os naires se desviassem, ou a fugir, quando topavam com elles de subito, pelo receio que tinham de serem suas victimas.

Passavam pelos naires, e podiam até toca-los, os brahmanes. Estes traziam a tiracólo o seu distinctivo de religiosos, o qual, dos sete aos quatorze annos, consistia em uma correia de pelle crua com pêllo de uma especie de jumento silvestre; e, dos quatorze por deante, em uma fita de linha dobrada de tres fios, com a largura de dois dedos, como a correia.

Tambem os nobres saíam á rua em andores, que, conforme o seu tamanho, dois ou quatro escravos levavam aos hombros. O nobre ia assentado{136} ou deitado, ordinariamente mascando o seu béthel, e resguardando-o do sol ou da chuva um sombreiro seguro por um escravo, a que os malabares chamavam boi.

Os naires não se limitavam unicamente a prohibir aos poleás, que se approximassem d'elles. Mais ainda. Como o poleá era o escravo e o trabalhador encarregado do amanho das terras, o naire dava-lhe as suas ordens a uma certa distancia, indo immediatamente depois lavar-se, mudar de fato, purificar-se. E mantinha-se tanto esta differença de castas, que um poleá nunca podia remir o peccado original do nascimento. Nascia villão, havia de morrer villão.

Taes costumes dos gentios impressionaram vivamente o coração generoso de Pero da Covilhan.

O commercio do Oriente estava nas mãos dos mouros, cujas embarcações eram por isso os unicos meios de communicação entre os diversos portos.

Pero da Covilhan, que necessitou de lançar-se n'esse trafico, não podia fazer itinerarios á sua vontade, e accommodava-se ás circumstancias tirando d'ellas todo o proveito.

Foi assim que logrou vêr Gôa, a guerreira capital do reino do Sabaio; Ormuz, o emporio commercial do golfo persico; e Sofála, a rica cidade da Africa meridional, aonde affluiam os mercadores, para o resgate do ouro das minas de Monomotapa.{137}

Restava-lhe obter noticias positivas ácerca de Préste João; mas contava, que lh'as désse Affonso de Paiva, o qual, como vimos, fôra á Ethiopia com o cuidado de as trazer. Voltando, pois, ao Cairo, conforme havia aprazado com o seu companheiro, soube alli, que este fallecera.

Tal acontecimento foi a primeira contrariedade séria da sua viagem. Com os vagos conhecimentos, que adquirira, a respeito da existencia do Préste, não se animava a regressar a Portugal. Parecia-lhe, que não saciaria com tão pouco os vehementes desejos de D. João II, n'aquelle ponto.

—De muito pósso eu já dar conta a el-rei; mas não de tudo quanto me incumbira...—pensava Pero da Covilhan.

Chegou a hesitar um momento na resolução, que deveria tomar, e mais conviria ao serviço de seu real amo.

N'esta conjunctura apparecem-lhe inesperadamente dois judeus portuguezes, que o buscavam e que para saberem d'elle na bella cidade de Amron, na opulenta rainha mussulmana do Oriente, no labyrinto immenso d'essa Babel, em tão embaraçosas situações se viram, que tiveram por vezes perdida a esperança de encontra-lo.

Em boa hora vieram. Um d'elles era o rabbi Abraham, natural de Beja; o outro, Joseph, de Lamego; ambos mensageiros de D. João II.

—Á procura de vós andavamos!—exclamou o rabbi, ao dar casualmente com Pero da Covilhan.{138}

Este ao ouvir, pela primeira vez, fallar a sua lingua no Cairo, experimentou um prazer novo, uma sensação gratissima, e respondeu:

—Aqui me tendes, e muito me praz vêr-me tão longe da patria com portuguezes. O que me quereis, e a que vindes?...

Abraham, entregando a Pero da Covilhan as cartas, que para elle trazia, de D. João II, disse-lhe:

—Eu e o meu companheiro Joseph, mensageiros de el-rei somos, como por essas cartas vereis. Lêde-as, pois, e ellas nos acreditarão.

—E como podéstes reconhecer-me, no meio d'esta Babylonia?...—perguntou Pero da Covilhan.

—Guiou-me principalmente a cicatriz, que tendes nas costas da mão esquerda...—respondeu Abraham, apontando para ella.

—Nem este vestigio das minhas travessuras de creança escapou a el-rei meu senhor!...—replicou Pero da Covilhan, sorrindo.

—Além d'isso descreveu-me el-rei com tanta precisão a vossa physionomia, que não era facil enganar-me, apesar de terdes a barba algo crescida.

Nas cartas, que Pero da Covilhan recebeu, ordenava-lhe D. João II, que fosse mostrar a cidade de Ormuz ao rabbi, e que, se não estivesse ainda bem instruido de tudo a que fôra, mandasse pelo judeu Joseph novas do que sabia, não devendo voltar ao reino sem ter visto o Préste João.{139}

Joseph observou, que, tendo visitado já a cidade de Bagdad, ouvira lá fallar muito de Ormuz, e de como vinham ter as especiarias e riquezas da India ás cidades de Alépo e Damasco. Do que vira e lhe informáram, fizera depois a narrativa a el-rei, que muito folgou, e lhe déra protecção, para emprehender esta nova viagem, que concertára com o rabbi.

—De tudo estou inteirado—disse Pero da Covilhan.—A vós, Joseph, vou immediatamente despachar com cartas para el-rei, meu Senhor; e—voltando-se para Abraham—comvosco tornarei a vêr Ormuz.

N'aquellas cartas, de que foi, com effeito, portador o judeu de Lamego, fazia Pero da Covilhan miuda relação da sua visita aos principaes portos, que serviam de escala ao commercio oriental, e onde verificára, que a corrente d'este entrava pelo mar Vermelho, indo concentrar-se em Alexandria, seu principal deposito, de que tinham os feitores de Veneza a pósse, garantida por tratado com o sultão do Egypto.

A respeito do porto de Calicut informava que de lá saíam, não só as especiarias, senão tambem tudo quanto a India exportava de mais rico, attrahido áquella cidade pelos seus mercadores, os mais poderosos e opulentos mouros do Malabar.

Enaltecia a importancia de Ormuz, dizendo, que era a India annel valiosissimo, e Ormuz a pedra preciosa engastada n'elle.{140}

A proposito encarentava as bellissimas perolas de Bahrein, as esmeraldas de Bagdad, as turquezas de Exaquirimane, os carbunculos ou rubis de Pegu, as espinellas de Ceylão e Cananor, e os diamantes da Golconda.

Mostrando com numerosos factos, que tudo no Oriente era grande, assombroso, parecendo que Deus se havia esmerado em alli conservar eternamente um reflexo brilhante da sua Omnipotencia, fechava Pero da Covilhan uma das suas cartas com a seguinte informação: «Navegando-se pela costa da Guiné adeante, chega-se ao termo do continente: persistindo na derrota para o Sul, e logo dobrando a costa no Occeano indico, o melhor rumo é demandar Sofála, ou uma grande ilha, que os mouros chamam da Lua (Madagascar), e fica mais para a banda do Sul». E addicionou: «em Sofála me foi asseverado pelos mercadores mouros, que dos máres da Guiné se póde navegar para a India».

Em outra carta, na qual dava noticia da morte de Affonso Paiva, communicava tambem, que, emquanto andou pela India, sómente em Cananor ouvira fallar no Préste João, affirmando os mouros, «que este rei christão estava tão longe mettido nas suas terras, que não sabia, que cousa era gente do mundo, e que para ellas ia-se pelo mar Vermelho». E, posto que os mouros não déssem a esse rei o nome de Préste, como já no Cairo e em Aden haviam contado a elle Pero da Covilhan muitas{141} cousas do rei abexim, de ser christão, trazer cruz alçada, e possuirem seus estados alguns mosteiros de religiosos, «se veiu a persuadir, que não tinha para que passar adeante, a buscar o que não sabia que houvesse, tendo tão pérto o que lhe diziam que na Ethiopia havia». Cumprindo, pois, as ordens de Sua Alteza, ia mostrar Ormuz ao rabbi Abraham, e na volta procuraria em pessoa o Préste.

Despedido o judeu Joseph, que partiu logo em direcção a Portugal com as cartas e outros documentos, Pero da Covilhan e o rabbi subiram a Aden, e d'este porto sahiram para Ormuz.

Quantas vezes assaltaram Pero da Covilhan ardentissimos desejos de conversar largamente com o seu novo companheiro ácerca da vida intima da côrte portugueza!...

O que poderia, porém, saber d'ella o rabbi?...

Continuava, pois, Pero da Covilhan a ser o confidente de si proprio; e a esperança, que mais lhe sorria agora, de ver seus sonhos de gloria realisados, era o melhor lenitivo da sua saudade.

—Que prazer não sentirá Thereza, quando souber, que mandei dizer a el-rei qual é o caminho da India pelo mar!...—repetiam os echos da sua alma radiante e apaixonada.

E o infatigavel explorador lá foi de novo atravessar as aguas do mar d'Oman.{142}
{143}

 

IX

 

CONSTANCIA

Nunca na côrte portugueza se prestou mais livre, menos recatado culto ao espirito, á elegancia, e á formosura da mulher, do que durante os primeiros nove annos do curto reinado de D. João II. Os serões do paço eram exhibição permanente de requebros, de arrufos, de ironias, de motejos deliciosos.

Depois que Pero da Covilhan saíu de Portugal, Maria Thereza tinha uma repugnancia invencivel em assistir a esses passatempos, e, quando apparecia, era unicamente por obediencia.

Ainda em Santarem, uma noite folgava, como de costume, a mocidade fidalga nas salas do palacio real. Os cortezãos, que, nada tendo em geral a contemplar na sua alma, por a trazerem sempre vasia de affectos e attestada de egoismo, a tudo estão attentos, reparavam, que a Maria{144} Thereza faltava a sua natural animação, aquelle seu ar de interessar-se pelo que a cercava; e não sabiam explicar, como ella nem sequér encobria o seu incomprehensivel e subito recolhimento.

Maria Thereza, com effeito, quasi não era senhora de si, para antepôr ás suas meditações, porventura chimeras muito queridas, o cuidado de transigir um tanto ao menos, com as hypocrisias da côrte, para se não tornar intratavel.

Os seus adoradores, que eram muitos, perguntavam uns aos outros: o que terá Maria Thereza, ainda ha pouco tão leda e desenvolta, critiquizando maliciosamente os assumptos de nossas trovas, ouvindo e applaudindo com riso franco e jovial nossos apodos, e agora tão calma, e lenta em animar-se?!...

—E o mais estranho—observou Pedro de Barcellos—é, que não occulta o seu mau humor, quando algum de nós tenta galantea-la!...

—Até se torna menos sombria, e fica logo quasi alegre, quando se insiste...—accrescentou Jorge da Silveira.

—De experimentados fallais ambos!...—atalhou D. João de Menezes

—Quem não hade gostar de Thereza!...—tornou Pedro de Barcellos.

—Toda a côrte sabe, que ella é a predilecta da rainha, com quem réza diariamente, horas esquecidas!... Váe caminho do claustro a formosa menina!...—exclamou Gonçalo da Fonseca.{145}

Apesar da sua edade, já um pouco avançada, Gonçalo da Fonseca amava a convivencia dos môços, e estes, como elle era de pequena estatura, chamavam-lhe Gonçalinho. Dava-lhe prazer esse tratamento, não só por ser affectuoso, mas porque lhe recordava uma amabilidade de D. João II, tão propria do caracter d'esse soberano, como o leitor vae vêr.

Um dia Pedro da Silva, commendador-mór de Aviz, chamou-lhe Gonçalinho na presença do rei. Este não tomou o diminutivo por signal de confiança, senão por gracejo deprimente, e disse, com um modo muito sêcco, a Pedro da Silva: «se vós vos tomardes com elle, hade parecer-vos Gonçalão».

Este Gonçalo da Fonseca tinha sido embaixador de D. Affonso V junto dos duques de Borgonha, e D. João II mandou-o com Diogo de Azambuja, Duarte Pacheco, e outros, erigir a fortaleza da Mina.

Voltemos, porém, ao ponto.

A conversação continuou, trocando-se ditos maliciosos e crepitantes, ácerca dos mais fallados galanteios da côrte, e prolongou-se, até que, apparecendo Garcia de Rezende, se deu principio ao jogo dos naipes.

Maria Thereza, a quem no meio das reflexões serias, que lhe tomavam a alma, os vãos discursos ceremoniosos, que ouvia em volta de si, pareciam mais desagradaveis ainda, havia chegado a{146} uma janella aberta sobre um jardim. Fôra alli respirar o perfume das flôres, e esse prazer parecia infundir algum alento em seu coração entristecido. Estava fazendo confidentes suas as florinhas, as quaes, por seu turno, como que lhe agradeciam a confiança, embalsamando cada vez com mais delicia o ar que ella respirava. De vez em quando voltava-se para a sala, por estar sempre de alcatea, não a chamasse a camareira-mór, que sobre ella exercia a mais particular e carinhosa vigilancia, muito recommendada pela rainha.

Em um d'aquelles movimentos, Maria Thereza viu Pedro de Barcellos a dirigir-se para a janella. Ficou contrariada, e pelo seu pensamento passou rapidamente a seguinte exclamação:—infeliz lembrança!... E tenho de attender com fingido agrado este importuno!...

Ao mesmo tempo no cérebro de Pedro de Barcellos cruzava-se um tropél de duvidas, de esperanças, e de receios, ao passo que o seu coração se debatia em ancias de tranzido amor.

O apaixonado môço cumprimentou Maria Thereza, mas sem poder dizer-lhe:—como sois bella!... que expressão de pensamento profundo!... que physionomia angelica!...—e tantas outras phrases de admiração e amor, que lhe estavam a saltar dos labios, e os echos da alma lhe repetiam.

Enlevado na contemplação da formosura celeste de Maria Thereza, e não logrando evitar,{147} que fosse trahido pelo olhar ardente, com que a fitava, rompeu o curto silencio, que se seguiu aos reciprocos cumprimentos, com esta interrogação banal:

—Não vos interessa o jogo dos naipes?

—É sem duvida um gracioso invento de Garcia de Rezende; mas não me praz tomar hoje parte n'essa diversão—respondeu Maria Thereza.

—Por melhor que fosse a sorte que vos saisse, seria sempre inferior á que mereceis...

—Lisongeiro!... E porque não ides tambem tirar uma carta?...

—Porque da minha sorte sómente vós podeis decidir...—retorquiu com certa intimativa Pedro de Barcellos.

—Eu!?... Grande poder me confiais!...

—E não o quereis?...

—Para quê?...

—Para me libertardes da sujeição em que me trazeis...

—Pois crêde, que não tinha a consciencia da minha tyrannia...

—É que não quereis comprehender o olhar, com que vos admiro...

—Devaneais, primo!

—Acaso tão pouco vos mereço, que mal pareça ser vosso servidor?—instou Pedro de Barcellos com forçado sorriso.

—Quem, como vós, pode fazer pontaria a grandezas,{148} e leva a palma aos mais vaidosos em prendas de cortezão, seguro deve estar de seus merecimentos... O ar, com que fizestes essa pergunta, manifesta bem que tendes a consciencia d'elles...—redarguiu com reflexiva gravidade Maria Thereza.

—Devem de certo ser brilhantes á luz da vossa phantasia primorosa; prefiro, porém, ás gentilezas do vosso espirito os apreços do vosso coração. Se me não julgais indigno de vós, porque não acceitais o amor que vos offereço?...

—Porque nunca poderia corresponder-lhe.

—Condemnais-me, pois, a um desprezo eterno?...

—Não sejais injusto. Não vos desprézo, estimo-vos.

Convém recordar que, nos frequentissimos galanteios da côrte de D. João II, os versos eram o preludio do amor. Por isso Pedro de Barcellos replicou a Maria Thereza:

—Agradeço a vossa estima, e sobre todas muito a prézo; mas ficai certa, de que sem o vosso amor jámais poderá haver para mim ventura n'este mundo:

«Por mais mal que me façais
nunca mudar me fareis
até que não me acabeis.
 
Minha fé, minha firmeza
Em vosso poder está;
soffrerei minha tristeza,
pois vossa mercê m'a dá.{149}
 
E meu bem nunca fará
mudança, nem a vereis,
até que não me acabeis.»[7]

—Bello villancete, primo!...

—Não me pertence. Exprime, porém, com tanta verdade o que sinto, que me lembrei de recita-lo...

—E não tendes prezente composição alguma vossa?...

—Porque m'o perguntais?... Poderia ella porventura agradar-vos?...

—Não vos disse já, que vos estimo?...

Este colloquio ia tomando uma phase mais amena, e Pedro de Barcellos, depois de grande hesitação, e com um receio immenso de ser desagradavel a Maria Thereza, confessou-lhe francamente, que se demorava em Portugal por causa d'ella. Protestou-lhe, que não tinha, nem teria nunca outro desejo mais ardente, senão o de consagrar-lhe a vida inteira, se esse anjo de graça e de bondade acceitasse a offerta sem reserva, que lhe fazia d'ella; e terminou, perguntando-lhe com a maior formalidade:

—Porque me não concedeis a vossa mão?...

—Porque não pósso, primo; e rogo-vos, que não insistais...—respondeu Maria Thereza com ar tão nobre e de tão expressivo desengano, que impôz o maximo respeito a Pedro de Barcellos.

Este, reconhecendo que seria importuna e pouco{150} delicada qualquer instancia, disse a Maria Thereza:

—Pois bem, prima; vou recitar-vos uma composição minha, de que ninguem mais saberá, senão vós.

E, com o coração amargurado, recitou Pedro de Barcellos o seguinte villancete:

Aqui, onde vou deixar-vos,
esse vosso doce olhar
nunca me verá tornar.
 
Para o mar vou sem ventura,
sendo mais vosso cativo!
Serei morto, sendo vivo,
sem ver vossa formosura,
pois que a minha sorte dura
de vós me quér apartar
para nunca mais tornar.
 
E se bem, que me confórte,
esperar me não é dado,
melhor é ditosa morte,
que viver desesperado.
Acabe assim o cuidado
de sómente em vós cuidar,
e no vosso doce olhar!...

—É realmente mimoso o vosso villancete, e muito pesar tenho, de que não o divulgueis, pois n'elle se revela um dóte mais do vosso aprimorado espirito... Está-me chamando a camareira-mór!... Quando regressais á ilha?... Crede, que fico sendo-vos muito affeiçoada...

Maria Thereza cortou assim o dialogo, que lhe parecia ter sido já demasiado longo.{151}

Ácerca d'ella pouco mais accrescentarei. Distinguia-se na côrte pela extrema bondade de caracter, alliada a uma prudencia tão singular, como precoce. Da sua belleza peregrina basta dizer, que a todos agradava, e isto melhor a explica, do que a mais completa das descripções. A sua orphandade contribuia tambem para ella merecer as geraes sympathias, de que gozava; mas quem verdadeiramente a extremecia era a rainha, a qual muitas vezes pensava com certa tristeza na possibilidade de perder um dia o primeiro lugar, que sempre tinha occupado no coração diamantino da sua filha adoptiva.

D. Leonor ignorava ainda, que Pero da Covilhan lhe havia roubado essa primazia.

Pedro de Barcellos tentou requesta-la. Teve, porém, de conformar-se com a sua recusa formal. A seriedade da mulher digna impõe-se irresistivelmente ao respeito do homem. É uma arma poderosa, com que a mulher se defende contra os perigos sociaes, e, quando sabe servir-se d'ella, triumpha e domina.

Pedro de Barcellos, ou Pedro Pinheiro de Barcellos, tinha o genio aventureiro da sua época. Era dominado por um pensamento constante, que se reflectia do seu amor á gloria. Oriundo da ilha de Barcellos, havia passado á ilha Terceira, poucos annos depois de descoberta, e foi um dos primeiros povoadores d'essa joia do formosissimo archipelago açoriano.{152}

Com o illustre flamengo Jacome de Bruges, primeiro capitão donatario d'essa ilha, tinha ido a povoa-la Gonçalo Annes da Fonseca, cavalleiro muito nóbre da cidade de Lagos, ao qual coubéram na partilha, que se fez, das terras da Terceira, as dilatadas campinas, que se extendem entre Porto Martim e os Paues das Vaccas. Tomou Gonçalo Annes posse da sua data, que era um grande condado, e voltou a Lisboa, d'onde regressou á ilha já casado com D. Mecia Annes de Andrade, filha do doutor João Machado, descendente legitimo da casa dos Ricos-homens de Entre Homem e Cavado, e por consequencia tambem rico-homem.—No principio da monarchia era essa a maior dignidade depois da Real, e aos que a possuiam, não só o rei lhes chamava primos, senão tambem estavam cobertos e assentados na sua presença; e não tomava o soberano deliberação alguma assim nas cousas da paz, como nas da guerra, sem o conselho d'elles.

Do consorcio de Mecia de Andrade com o illustre algarvio Gonçalo Annes da Fonseca houve quatro filhos e cinco filhas, sendo o primogenito o primeiro varão, que nasceu na Terceira.

Adoptaram todos o patronymico Gonçalves de seu páe e o appellido Machado de sua mãe, pois que foi estylo observadissimo até o reinado de D. Manoel, ou, com mais rigor, até o de D. Duarte, tomarem os filhos por sobrenome o nome proprio de seu páe: assim João, filho de Fernando, chamava-se{153} João Fernandes; Fernando, filho de João era Fernando Annes ou Joannes.

Pedro de Barcellos, havendo-se enamorado de Ignez Gonçalves Machado, primeira filha de Gonçalo e Mecia, veiu a Portugal, sob o apparente pretexto de visitar seu páe, então alcaide-mór de Barcellos, e os seus parentes, que eram as principaes familias do Minho; mas em verdade com o proposito firme de apresentar a D. João II um plano, cuja realisação era o seu sonho aureo.

Teve, com effeito, Pedro de Barcellos o melhor acolhimento de D. João II, a quem propôz sondar á propria custa os mares do Occidente, com o intuito de descobrir novas terras.

Na mente aventurosa de Pedro de Barcellos refervia o desejo vehementissimo de saber, d'onde vinham os troncos de arvore, os pedaços de madeira lavrada, as canôas e até os cadaveres de homens de physionomia estranha, arrojados a miude aos mares do archipelago açoriano. E tendo elle abandonado o seu já então pittoresco Minho, para ir tentar fortuna em uma ilha, embóra fertilissima, não era proprio do seu espirito entregar-se ás delicias de Capua, e ser insensivel ás provocações seductoras do mar, que o cercava. Embarcado imaginaria elle muitas vezes, que estava, quando na calada da noite accordasse attonito sobre o seu leito, embalado pelas terriveis e frequentes convulsões do sólo.{154}

Quiz, pois, expôr-se aos perigos de uma navegação longa, e D. João II, animando-o, fez-lhe todas as concessões desejadas.

Entretanto, vendo Maria Thereza na côrte, ficou tão impressionado pela sua formosura, que, durante alguns dias, abafou no coração o sentimento, que já lhe havia sido inspirado por Ignez, e chegou até a olvidar, posto que momentaneamente, que tinha com ella a sua palavra compromettida. A nobre attitude de Maria Thereza fê-lo reflectir, e despertou-lhe no coração os seus brios de homem digno.

Despachado por D. João II, foi ao Minho visitar a sua familia, sendo recebido com particular carinho no solar de Entre Homem e Cavado, e tornou logo para a Terceira.

Pouco depois de ter chegado á ilha casou com Ignez Gonçalves Machado, e tratou de construir e armar um navio. Havendo dois filhos de sua mulher, largou da bahia de Angra em fins de 1491, e sómente concluiu a sua viagem em 1495, depois de ter descoberto a costa do Labrador.

Ora, como Christovam Colombo partiu de Palos tambem para o Occidente, em 3 de agosto de 1492, Pedro de Barcellos aportou naturalmente primeiro do que elle a uma região do Novo Mundo. E assim succedeu, com effeito. O facto, porém, não projecta de modo algum a mais tenue sombra na gloria perduravel do insigne genovez pelo seu descobrimento, que comtudo em nada o torna superior{155} ao nosso Pedr'Alvares Cabral, a quem a patria não fez ainda a devida justiça.

Voltando á Terceira, pouco tempo sobreviveu Pedro de Barcellos aos longos e penosissimos trabalhos da sua arriscada viagem. Para premiar seus serviços tomou o rei D. Manoel por seu vassallo um dos filhos do fallecido navegador, concedendo-lhe excepcionaes privilegios em carta passada em Evora, a 7 de junho de 1509. Por cartas dadas igualmente em Evora, a 20 de novembro de 1533, e por outra em Almeirim, a 22 de fevereiro de 1541, concedeu D. João III brazão de armas a tres descendentes legitimos de Pedro de Barcellos, com todas as honras e privilegios de nobres e fidalgos, por procederem da geração e linhagem dos Machados, por parte de sua mãe e avós.

Repeso talvez de não ter feito o sacrificio de attender a proposta de Colombo, D. João II acceitou com jubilo a de Pedro de Barcellos, no desempenho da qual nada dispendia. Tranquillo por esse lado podia continuar nos preparativos de passar de novo á Africa, e chegar-lhe-iam entretanto novas da India, ou Pero da Covilhan estaria de volta.

Parece, porém, que a justiça divina déra a D. João II, para expiação de suas culpas, o martyrio de lhe mostrar, que era possivel a realização das suas maiores ambições; isto é; atravessar o Oceano Atlantico e levar á India as caravélas portuguezas; comtudo não lhe pertenceria a gloria de resolver esses dois problemas.{156}

Colombo chegára a Portugal muito antes de Pedro de Barcellos; Bartholomeu Dias transpozéra o Equador, dobrára o cabo da Bôa Esperança, e chegando quasi a respirar as auras embalsamadas do Oriente, foi obrigado a recuar, impellido pela mão mysteriosa do destino. É que muito embóra dois navegadores portuguezes houvessem podido sondar mares desconhecidos, era-lhes vedado frustrar os designios insondaveis da Providencia. A condemnação, a que D. João II estava sujeito, havia de reflectir-se nos seus agentes.

Como se explica a presença de D. Manoel no acto da despedida de Pero da Covilhan, em Santarem?

Por que razão havia de D. João II confiar a seu cunhado, que nenhum interesse directo podia ter nos descobrimentos, aquelle alto segredo do Estado?

Mais ainda. Um astrologo hebraico prognosticou a D. Manoel, que seria o successor de D. João II na corôa. Quem poderia dar credito ao visionario, quando na familia real existia um herdeiro necessario, e ainda outros com mais direito do que D. Manoel? E com que reservado intento concedeu D. João II a D. Manoel uma esphera por empreza, cuja alma era: Spera in Deo? Não parece ser um presentimento muito singular?...{157}

 

X

 

TENTANDO AS AZAS...

Recebeu D. João II as cartas, que lhe escrevera Pero da Covilhan. Occultava-se na singella narrativa do explorador um enthusiasmo, que sómente podia ser egualado ao jubilo immenso por ella produzido na alma anciosa do monarcha.

Ao terminar a leitura, exclamou D. João II a meia voz:

—Não ter Bartholomeu Dias, podido avançar!...

Reservando para si as informações ácerca da India, mandou logo espalhar a nova da existencia do Préste. E, como ás novas alegres ordinariamente se dá credito antes de sujeitas a exame, esta correu logo de bôca em bôca, e foi tão bem recebida e festejada, que não só no reino, mas na Europa, acclamaram por Préste João da India o imperador da Ethiopia.

Estava assim satisfeita uma das maiores aspirações{158} d'esse tempo—o apparecimento d'aquelle personagem legendario; e ninguem pensava em ir á India pelo mar, excepto D. João II e Colombo; este, porém, navegando pelo Occidente.

Quem entre todos teve puras e santas alegrias, foi Maria Thereza. A esperança de ver chegar Pero da Covilhan coberto de gloria, sorria-lhe agora mais viva, amaciando-lhe simultaneamente os rigores da saudade.

Approximava-se o casamento do principe D. Affonso com a filha dos reis catholicos. D. João II, extraordinario em tudo, preparava para a celebração d'aquella solemnidade as mais apparatosas festas, servindo-lhe de modelo as de seu tio o duque de Borgonha, em Lille.

A côrte estava então em Evora, porque de Lisboa a trazia afastada a peste.

No paço da velha cidade transtagana, faltava uma casa apropriada para banquetes e consoadas. Não era uma difficuldade. O já mutilado convento de S. Francisco dava para tudo.

Antes de D. Affonso V ir a Castella, pediu aos frades as casas de seus estudos para sair d'ellas ao campo; e, como gostou do sitio, tornou a pedir grande parte do convento e da horta, para no espaço occupado por essa parcella da residencia fradesca, mandar construir os paços reaes.

Continuando esta obra, D. João II ainda obteve mais, e cortou tão largamente, que ficaram os frades postos no maior apêrto.{159}

Esta amplificação dos paços, acanhando o convento, foi necessaria para se fabricar a sala dos banquetes—aquella sala de madeira,

«que ficara por memoria.
Real em tanta maneira,
de perfeição tão inteira,
de tanta mundana gloria».[8]

Um dos franciscanos, exprimindo os sentimentos da communidade, maguada do seu captiveiro e da liberdade alheia em cortar pelo convento, exclamou um dia em tom prophetico: «Quem viver verá, que os mortos, que isto deram a S. Francisco, hão de clamar e pedir justiça a Deus. Agora vão fazer-se festas, que se hão de tornar em pranto!...»

E, como se fôra acho de si mesmo, repetiu o franciscano:—«Quem viver verá!...»

A verdade é, que se não enganou.

Nem fr. João da Povoa, confessor do rei, e Vigario Provincial, poude pôr côbro ás regias extorsões, contra que se levantavam as jeremiadas do espoliado cenóbio eborense. D. João II nunca fôra attreito a sensibilisar-se com lamentações de frades.

A construcção da sala de madeira foi dirigida por Andrea Contucci, a quem o rei tinha confiado reedificar e decorar os paços.{160}

Contucci, mais conhecido pelo nome de Sansovino, o do lugar do seu nascimento, fôra enviado a Portugal por Lourenço de Medicis, a quem D. João II pedira um dos mais notaveis artistas da republica florentina.

Andrea Sansovino era môço ainda, quando veiu a Portugal. Havia já revelado o seu talento; mas unicamente com a sua segunda maneira, iniciada depois de ter chegado a Roma, em 1509, conquistou o lugar, que tão merecida e distinctamente occupa na historia da Arte.

Em architectura fôra discipulo de Cronaca; mas o bom exito de alguns trabalhos seus, como o vestibulo da egreja de San-Spirito em Florença, não o impediu de cultivar de preferencia a esculptura, para a qual tinha a mais pronunciada vocação.

O seu primeiro mestre havia sido Antonio Pollaiolo, o assassino de Domenico Veneziano, que lhe tinha ensinado o processo da pintura a oleo, ainda ignorado na Toscana, ou ao menos assim o presumira Pollaiolo. Vê-se bem, qual foi, pois o móvel do crime.

O scelerado artista era correcto no desenho, e sobretudo esmerava-se na pintura do nú, lisonjeando d'este modo o gosto de Lourenço de Medicis, seu patrono, cuja protecção mais se accentuou depois que Pollaiolo fundiu a bella medalha commemorativa da conspiração dos Pazzi, da qual Lourenço o Magnifico se salvou milagrosamente.

O Mecenas de Pollaiolo favorecia com a sua{161} poderosa influencia o triumpho simultaneo do Paganismo, do Naturalismo, e até do Sensualismo, na maioria dos productos da intelligencia humana; e, sem embargo de have-lo proclamado grande protector das lettras a universidade de Pisa, por elle fundada, o seu consulado fórma um periodo tristemente memoravel para a historia dos costumes, das artes e das proprias lettras.

É provavel, pois, que este aprendizado de Sansovino na officina de Pollaiolo determinasse a escolha de Lourenço de Medicis, para satisfazer o empenho de D. João II.

Na esculptura decorativa dos paços d'Evora, imprimiu Sansovino o cunho do seu privilegiado talento; e, na ornamentação das salas e aposentos da familia real, tocou o requinte do seu peregrino gosto artistico.

D. João II avivou com a magnificencia, e o deslumbramento das festas de Evora, as recordações do periodo medieval.

Não satisfeito por expedir por mar e por terra, agentes seus ao extrangeiro, para comprarem os brocados, as sedas, as tapeçarias, as pedras preciosas, um sem numero emfim de objectos necessarios e de luxo, mandou publicar, que tinham entrada livre de direitos em Portugal até ao termo dos festejos, todas as mercadorias de importação. Os fidalgos da côrte foram vestidos á custa do real thezouro; recebendo além d'isso, os que tomavam parte nas justas, armas e cavallo; e os que{162} entravam nos mômos e entremezes, cem a duzentos cruzados. Egualmente foi dado vestido e dinheiro aos mouros e mouras do reino, bem como ás mais galantes raparigas e foliantes mocetões do Alemtejo, que vieram com suas danças, toques e descantes concorrer todos para o luzimento e alegria das festas.

O proprio rei, franqueando ao povo a entrada na sala de madeira, appareceu-lhe invencionado no phantastico cavalleiro do cysne, o poetico aventureiro das margens do Rheno; e por outro cavalleiro mandou ler, e depois entregar á princeza, sua nora, um bréve, em que propunha a tenção de a querer servir nas festas do seu casamento, e sobre certas conclusões de amores, que defendia, desafiava em honra d'ella, para justar com seus oito mantedores, a todos os que o contrario quizessem combater.

Singular caracter o d'este monarcha!

Á carinhosa rainha D. Leonor não eram, nem podiam ser indifferentes os preparativos para a solemnidade imponentissima do casamento de seu unico filho; comtudo não a distrahiam do pensamento, que enchia de gôzo intimo a sua alma enlevada e contemplativa—a fundação da misericordia de Lisboa.

Tão piedosa e santa idéa fôra-lhe suggerida pelo seu confessor frei Miguel de Contreiras, ornamento da ordem religiosa da SS. Trindade.

De visita ao seu mosteiro de Santarem havia{163} chegado a Evora o douto e humilde trino, e veiu encontrar a sua augusta penitente, lendo o Evangelho de S. Matheus, cuja doutrina era um orvalho celeste, que penetrava no coração da devota rainha, para o purificar e tornar fecundo.

—Embóra vindes, fr. Miguel!...—disse a rainha ao receber o trinitario, que com profunda reverencia lhe beijou a mão.—Sentae-vos que muito desejo ouvir-vos ácerca da vossa Misericordia...

—Da de voss'alteza: quereis dizer...—ponderou Contreiras.

—Pois seja de ambos nós—tornou D. Leonor,—ou melhor: de Deus será esse arbusto, que vamos plantar, e que se fará—assim o espero da protecção divina—arvore frondosa, cuja sombra abrigará muitas miserias...

—Tenho fé, em que succederá, como voss'alteza espera... O terreno, em que váe fazer-se o plantio, é feracissimo, e a cultura não podia o Senhor confia-la de melhores mãos...

—Mãos de peccadora...

—Purificadas nas boas obras...—atalhou Contreiras.

—Se o Redemptor nos ensinou a enchugar as lagrimas, a dar allivio ás miserias, remedio ás necessidades, amparo e consôlo ás fraquezas, porque não hade aproveitar-nos essa lição?... Porque não seguir o exemplo do Divino Mestre?...

—Até, porque Elle nos promette a recompensa, permittindo-nos um santo interesse nas acções{164} boas que praticamos. «Bemaventurados os misericordiosos, porque elles alcançarão misericordia».

—Antes de vós chegardes, estava eu meditando essas e outras palavras do Evangelho de S. Matheus, cuja leitura me aconselhastes...

—E viu decerto voss'alteza, em todo esse quadro tão singelamente traçado pelo apostolo, quanto Jesus Christo aprecia e recommenda a misericordia...

—Vi. Nem careço de outro estimulo, para prestar todo o meu auxilio á santa instituição, que projectamos...

—Bemdito seja o Senhor, que vos inspira!...

—Sem duvida pensástes já na ordenança, que devem seguir os fieis, que em nome da caridade christã vamos congregar...

—Uni-los-ha um compromisso a que dei principio, e submetterei, depois de concluido, á censura e approvação de voss'alteza...

—Trazei-mo, sim. Muito folgarei de lê-lo, que, para o approvar, bastava ser traça vossa...

—Beijo as mãos de voss'alteza, minha Senhora e rainha, que tão grande mercê me fazeis...

A uma das portas da sala, onde D. Leonor conversava com fr. Miguel de Contreiras, appareceu Maria Thereza, a qual ia para retirar-se, mas a rainha, dando por ella, mandou-a entrar e despediu o seu confessor.

Com o donaire e o miudo pisar das andorinhas{165} correu Maria Thereza para sua ama, foi ajoelhar junto d'ella, e disse-lhe no tom mais doce e affectuoso:

—Venho pedir a voss'alteza uma grande mercê...

—Muito grande, muito grande?... Então dize lá!...—volveu carinhosamente a rainha.

—Voss'alteza sabe quanto desejo estudar e comprehender as sciencias, e o cuidado que ponho em instruir-me... Ora, se eu fosse ouvir, durante algum tempo, as lições de meu tio, lente de Canones na Universidade... Mas... agradará porventura a voss'alteza, que me auzente do paço, ainda mesmo para tal fim?...

A rainha ficou surprehendida. Fitou Maria Thereza um momento, e disse-lhe para lhe fazer gosto, e vêr o fructo de tão singular lembrança:

—Tens a minha approvação. Eu mesma te levarei a Lisboa, depois das festas do casamento.

Maria Thereza beijou com o mais vivo reconhecimento as mãos da rainha; mas, não a satisfazendo inteiramente a resposta, insistiu:

—E se eu fosse já?...

—Que trigança é essa?...

—Perdôe-me voss'alteza!... Preferia não assistir ás festas...

—Creança!... Como alcançaste a minha licença, já está a pular-te o pé!... Olha, que não é bom, ser-se impaciente...

—Se eu não agastasse a vossa'alteza!...{166}

—O que me dirás tu, que possa enfadar-me?!...

—Não sei, como confessar a voss'alteza... tudo quanto penso e sinto... e, todavia, não devo occultar, a quem para mim é mais do que mãe, qualquer segredo da minha alma... Eu, minha Senhora...

Maria Thereza não poude concluir. Tapou com as mãos os olhos, e ainda mais os escondeu, inclinando a cabeça no regaço da rainha.

D. Leonor afagou-a, e, tomando logo um fingido ar de soberana, exclamou:

—Eya sus!... Quero saber todos esses segredos!...

Maria Thereza ergueu a cabeça, retirou as mãos dos olhos, e baixando-os, respondeu:

—Amo Pero da Covilhan, minha Senhora!...

—Acceitaste por tanto os galanteios d'esse homem?!...—perguntou a rainha, accentuando com grande admiração as suas palavras.

—Sim, minha Senhora—replicou Maria Thereza um pouco tranquillizada e parecendo-lhe, que tinha tirado de cima do coração um enorme pêso.

—Antes, porém, de o admittires... como teu servidor... não reparáste na differença de nascimentos, nem te occorreu, que nunca permittirei o teu casamento, com quem não possa fazer a tua felicidade?...

—O que trago sempre em lembrança, minha Senhora, é o dever, de não dar um passo, que não{167} seja do real agrado de voss'alteza. O amor, que Pero da Covilhan me inspirou, não apaga do meu coração o que consagro a voss'alteza, como do coração da esposa nunca se apaga—creio—o amor da filha. Até este mais santifica e robustece o outro...

—Assim é; e muito me alegra, que d'esse modo penses. Mas em que fundas tu as tuas esperanças, de Pero da Covilhan se tornar digno do meu prásme?...

—Pero da Covilhan é já cavalleiro da casa d'el-rei, meu Senhor, e, se elle não fôra de bons costumes e manhas, não lhe teria sua alteza feito tantas honras e mercês, como até aqui. Dos seus serviços nas terras do Oriente, por onde anda, houve já tão boas novas, que sua alteza a miude os gaba, e não esconde o contentamento, que lhe causaram. Ora, quando elle voltar, tendo cumprido fielmente os mandados d'el-rei, meu Senhor, não lhe faltará o cuidado, que sua alteza sóe haver com aquelles que bem o servem...

—Sim, el-rei nunca se esquece de seus bons e leaes servidores—affirmou gravemente a rainha; e, como se o seu pensamento estivesse estillando as palavras, que docemente proferia, continuou:—pois bem... mandarei dizer a teu tio, que venha buscar-te... Comprehendo agora a razão, por que desejas fugir ás festas... e faço-te a vontade...

Esta bondosa condescendencia sensibilisou extremamente{168} Maria Thereza, que, não podendo logo articular uma palavra, cobriu de beijos e lagrimas as mãos da rainha. Momentos depois, á luz do seu espirito scintillante, mediu a grandeza do sacrificio, que estava deliberada a fazer, o de se apartar embóra temporariamente d'aquella, a quem tanto amava, e exclamou com a firmeza caracteristica das intenções puras:

—Nunca soffri dôr igual, á que me está causando a idéa, de deixar por algum tempo a companhia de voss'alteza!...

—Pobre creança!...—interrompeu a rainha, dando-lhe um beijo na testa. Mandou-a depois levantar, e concluiu, passando-lhe a mão carinhosamente pela cara:

—Váe! Espéro, que tires muito proveito dos teus estudos. Quando voltáres, não encontrarás preenchido o lugar, que deixas vasio junto de mim...{169}

 

XI

 

PEREGRINAÇÃO

Do golfo persico voltou Pero da Covilhan ao mar Vermelho, e foi desembarcar em Djiddah. Genuino mercador mouro no aspecto, mas sincera e profundamente catholico do coração, d'aquella cidade do Hedjaz dirigiu-se a Mecca, incorporando-se em uma numerosa caravana de peregrinos, e, affectando o recolhimento de um crente da religião de Mafoma, sem mostrar, todavia, como os musulmanos seus companheiros, o semblante macerado e consumido pelo ardor fanatico.

Tentar uma visita a Mecca, sendo-se christão, em todos os tempos se considerou infructuoso, ou ao menos de um exito muito problematico; realisa-la, porém, mórmente no seculo XV, embóra se tivesse envergado o ihram do peregrino, era um acto de assignalada temeridade.

Os raros europeus, que no seculo actual lográram{170} vêr Mecca, dão testemunho do perigo, a que se expõem os christãos, que se afoitam a violar a lei que lhes prohibe, com pena de morte, o seu ingresso no velho santuario arabe.

Mas, para quem teve o seu baptismo de sangue em Toro, e atravessou o Oceano indico, lidando sempre com homens de diversas raças, religiões e costumes, nada havia já, que o intimidasse, fazendo-o renunciar um dever, a cujo cumprimento sacrificava a propria vida.

É peculiar da alma portugueza, arrostar os perigos e retemperar-se na adversidade; e Pero da Covilhan era portuguez de lei. Affeito aos labores improbos da sua viagem de exploração, já nem por elles dava; e, no seu resignado soffrer, punha constantemente o seu valor á prova, e robustecia cada vez mais a confiança, que em si proprio depositava.

Lá se pôz a caminho pelo Hedjaz fóra.

O Hedjaz, uma das provincias menos extensas e mais inferteis da Arabia, tem importancia e celebridade por ser o berço do islamismo, e pela influencia, que recebe de Mecca e Medina, situadas no seu territorio. A sua aridez, quasi geral, augmenta a fadiga, de quem por ella caminha. Cortam a immensa solidão das suas planicies arenosas, que se extendem para a margem do mar Vermelho, pouquissimos valles cultivados e montanhas cobertas de rochedos, que se vão tornando cada vez mais abruptas á medida que os viandantes{171} se internam no paiz. As estradas são regueiras enxutas, que nas épocas das grandes chuvas se transformam em rios caudalosos. Caminha-se por esses uâdis, e na falta d'elles seguem-se as direcções rigorosamente determinadas pela situação de póços e cisternas, sem cuja agua a vida seria impossivel no deserto.

Eram tres os inimigos de que necessitava defender-se a caravana, que percorria estas regiões malfadadas: a falta de agua, os nomadas e o simoun.

Para combater o primeiro, iam os açacaes—sakka—encarregados de conduzir sobre camêlos a agua contida em ôdres, e pelo caminho faziam novas provisões da dos depositos, que encontravam.

Contra os nomadas, ou tribus arabes, que vagueavam no deserto e viviam exclusivamente da rapina, vêr-se-ia a caravana obrigada a pegar em armas. Os nomadas eram sempre temiveis nos seus assaltos mui frequentes, pois que taes bandidos orgulhavam-se tanto de haverem roubado uma caravana, como um general europeu de ter bombardeado e conquistado uma praça de guerra; e, se não erguiam uma estatua ao scheick, por elles muito venerado, e que os conduzia á victoria, é porque na Arabia, a ninguem se fazia essa consagração.

O terceiro inimigo era talvez o mais perigoso e terrivel.{172}

Quando o horisonte se avermelhava ao longe, tornando-se pouco depois todo o Céo plumbeo, a ponto de embaciar o disco do sol, que tomava então um aspecto sanguineo, e seguidamente a atmosphera se cobria de uma areia finissima, arrebatada pelo vento, como a espuma das ondas do mar embravecido, era preciso fugir a toda a pressa!

Rompia de subito a furia do simoun, agitando tudo!

O infindo areal do deserto cavava-se profundamente, açoitado pela mais turbulenta borrasca. Os viandantes, com o peito opprimido, os olhos sangrentos, os labios sêccos e abrazados, mal respiravam. Os camêlos, esses pacientes navios do deserto, desarvoravam, partiam á desfilada, zombando da vigilancia dos cameleiros, e guiando-se unicamente pelo instincto de conservação, paravam emfim, e occultavam a cabeça debaixo das areias movediças.

Se apesar do medonho remoinho causado pelo tufão, a caravana podia abrigar-se nas sinuosidades de algum rochedo, onde esperasse com segurança a calma da tempestade, salvava-se; se não tivesse refugio, e ficasse entregue á mercê da tormenta, homens e animaes perdiam toda a sua energia, toda a esperança de sobreviver os abandonava!

Suffocados pelo calor ardentissimo, e surprehendidos pela syncope, desfalleciam, caíam inanimes{173} n'aquelle oceano de areia, que logo lhes servia de mortalha e tumulo, até que novo temporal viesse descobrir as ossádas d'essas victimas numerosissimas do implacavel e deshumano simoun!

De como Pero da Covilhan effectuou a sua peregrinação simulada, elle proprio fez a narrativa a D. João II em carta, que lhe enviou do Cairo.

Ao cabo de dois dias e meio, que seriam bastantes para vencer a distancia, que separa Djiddah de Mecca, assentaram o seu aduar no sopé de um dos montes, que cercavam a mãe das cidades, a Om-el-Kora dos arabes.

A todos os peregrinos, conforme os paizes, de onde partem, foi designada pelo propheta a estação, em que devem parar, antes da chegada a Mecca, para se prepararem a cumprir os ritos impostos ao bom musulmano.

Foi em Ras-Onardan, que fez alto a caravana, por vir de um porto do mar Vermelho. Era um valle comprehendido no recinto previlegiado, que se extendia á roda de Mecca a algumas leguas de distancia e denominado Beled-el-Haram.

N'esse verdadeiro oasis, alcatifado de verdura, regado pela agua que corre de suas nascentes, e onde a palmeira, vergando ao pêso de seus cachos de tamaras, sobresaía no meio de outras arvores fructiferas, como sendo o caracteristico predominante das paizagens orientaes, os homens da caravana fizeram uma ablução geral, chamada ghort, substituiram os seus trajos de viagem pelo ihram,{174} o calçado pelas chinelas—besmak—, e perfumaram-se. As musulmanas tambem purificadas, cobriram-se com o seu grande véo, branco como o ihram, e denominado yaschmak.

Antes d'essa purificação o peregrino tinha o nome de hadji, depois d'ella era tratado pelo de mohrim; e as suas vestes ficavam santificadas pelo uso durante a romaria, sendo, ao termo d'esta, cuidadosamente guardadas, para servirem de mortalha ao seu possuidor.

A caravana assim preparada pôz-se logo em marcha, recitando pelo caminho—os homens em voz alta e as mulheres em voz baixa—muitas orações, terminando pelo Tebiya ou Lebbeika.

Entraram em Mecca e dirigiram-se processionalmente á mesquita, continuando as preces. Quasi ao pôrem o pé no immenso atrio do templo, e depois de deixarem atraz de si uma espessa floresta de columnas, que sustentavam arcadas numerosas, pronunciaram o tekbir e o tehlil, que consistem em dizer: Allah Akbar—Deus é grande; Lá lla illá lla—não ha outro Deus senão Deus; e ouviram exclamar a um dos pregoeiros—almuadens ou muezzinos, voltado para a kaaba: observai, observai a casa de Deus, a prohibida! E logo irromperam descalços, foram passar por baixo de uma especie de arco triumphal, approximaram-se da pedra-negraHadjar elaswad, para fazer o touaf, isto é, para dar sete giros em volta da kaaba, offerecendo sempre o lado esquerdo a este santuario,{175} que se elevava no meio do atrio, e, conforme a crença arabe, o mais antigo templo consagrado ao verdadeiro Deus.

A mesquita—mesgid, guma'a, lugar de reunião, e tambem Beïttallah, casa de Deus, reduzia-se a um claustro—sakhn-el-gama, ou pateo aberto, formando um parallelogrammo perfeitamente regular, ladeado de porticos levantados sobre quatrocentas e noventa e uma columnas, umas de granito outras de marmore, e para o qual davam accesso dezenove portas, destituidas de bandeiras, dispostas sem ordem, irregulares emfim na sua construcção, pois terminavam umas em ogiva, outras em arco de volta inteira.

As arcadas d'onde pendiam lampadas, que todas as noites se accendiam, eram cobertas exteriormente por pequenas cupulas, a cima das quaes se elevavam sete minaretes, sendo quatro collocados nos quatro angulos do edificio, e tres de um modo irregular no comprimento das galerias formadas pelas arcadas.

A fórma e architectura da notabilissima kaaba não desmentiam, com effeito, a sua alta antiguidade. Era um cubo de uns doze metros de altura, com paredes do granito ordinario de Mecca, e na face voltada para o Norte uma pequena porta, cujo limiar ficava a uns dois metros a cima do sólo. Este templo apenas estava patente ao publico na sexta-feira de cada semana, dia guardado pelo muslim, ou de reunião—iom el guma'a, e tambem{176} quando se celebrava o anniversario natalicio do propheta. Ao scheick dos anciãos, ou xaibins, pertencia abrir a porta. Para isto subia a uma especie de pulpito, que corria sobre quatro roldanas, em que terminavam os seus pés de madeira, e dois ostiarios levantavam a cortina, chamada Albarcá, especie de véo de purpura, que se extendia sobre a porta, e esta era, como a soleira, forrada de laminas de prata.

O povo, ao invadir a kaaba, rompia, de braços abertos e mãos erguidas ao Céo, na seguinte exclamação: «Abre-nos, ó Deus, as portas da tua misericordia e do teu perdão, ó maior dos misericordiosos!»

O interior do santuario era uma grande sala, cujo tecto sustentavam dois pilares, assentes sobre o pavimento lageado de bellos marmores brancos e pretos, dispostos em xadrez; as paredes forradas do mesmo modo, tendo por ornato apenas arabescos com letras de ouro e prata esmaltadas de um tom negro bronzeado. Numerosas lampadas de ouro massiço serviam para a illuminação. O exterior estava coberto por um immenso véo de seda preta, chamado Kesoua, que sómente deixava ver o sócco do edificio, durante os primeiros dias da peregrinação, e para isso suspendiam-n'o em fórma de grinalda por meio de cordões tambem de seda da mesma côr. Ao meio da altura de todo o véo sobresaiam lettras de ouro bordadas sobre uma larga fita igualmente preta, nas quaes{177} se liam inscripções piedosas e textos do Corão.

Esta cobertura era renovada annualmente; e, como fluctuava em compridas dobras, os peregrinos tinham a crença de ser essa agitação devida ás das azas dos anjos, que voavam em torno da kaaba, e que levarão um dia o sagrado véo deante do throno de Allah.

A pedra-negra era o unico ponto da kaaba, permanentemente offerecido á devoção dos fieis. Perto da porta, no angulo voltado para nórdéste, achava-se encravada na parede exterior, e os seus lados embutidos em chapas de prata.

Esta famosa pedra tinha uma tradição veneranda. Muito tempo antes de Mahomet, beijavam e prestavam culto a essa piedosa reliquia todas as tribus arabes. Conforme as suas crenças, fôra trazida do Céo pelos anjos, e collocada junto de Abraham, para servir-lhe de escabello, quando o velho páe dos crentes estava construindo a kaaba. A Pero da Covilhan, porém, pareceu um fragmento de lava, contendo parcellas de uma substancia amarellada; ou ainda um aerolitho, formando um oval irregular de um vermelho carregado, que podia passar por negro.

Ella não tinha já a sua côr primitiva, no dizer dos arabes, pois no momento, em que tão milagrosamente desceu á terra, nenhum jacintho mais brilhante e de mais bella transparencia existia no mundo; mas os beijos de tantos homens maculados{178} de iniquidades de toda a especie a tinham assim metamorphoseado.

No páteo da mesquita, e pérto da kaaba, elevava-se outra construcção quadrada, apparentemente massiça, mas de menores dimensões, do que o santuario. Cobria o manancial de Agar, mostrado por um anjo á pobre e afflicta escrava de Sara, errante no deserto, no momento, em que ella ia a tapar os olhos, para não vêr seu filho Ismael morrer de sêde, e denominado pôço de Zemzem, por designar esta palavra a fonte que bróta com suave murmurio. A sala, em que estava o pôço sagrado, era revestida de marmore branco, e de todos os lados recebia ar e luz por oito janellas. Um estrado de marmore cercava a fonte, d'onde se tirava a agua santa para a purificação.

Junto da pedra-negra começavam e terminavam os giros, durante os quaes os peregrinos iam recitando preces. No fim de cada giro beijavam a pedra, se isto lhe não fosse impedido pela affluencia dos crentes, pois no caso contrario tocavam-lhe com a mão, levando depois esta aos labios. Seguia-se beijar o nobre Alcamamo ou maquam d'Ibrahim, o qual consistia em uma pedra, onde se conservavam as pégadas de Abraham, e, por ultima ceremonia dentro da mesquita, bebiam agua no pôço de Zemzem.

Os peregrinos saíam finalmente pela porta de Safa, subiam á collina d'este nome, voltavam-se para a kaaba e recomeçavam as suas orações. Desciam{179} depois lentamente ao valle Bathu-Onadi, situado entre aquella collina e a de Meroua, para executarem alli a marcha, chamada saï, que fazia parte dos ritos. Pronunciando estas palavras, voltados para a kaaba: «Ó meu Deus, sê misericordioso; perdôa os meus peccados, ó Senhor santo e clemente,» andavam em differentes direcções, para recordar a marcha incerta de Agar e de Ismael, expulsos por Abraham.

Cumpridas estas formalidades, regressavam á cidade, para esperar a festa, com que terminava a peregrinação.

Ahi, como em toda a parte afinal, o muslim cria estar sempre na presença de Deus, ainda que não entrasse na mesquita, e não deixava de rezar as orações quotidianas. Eram cinco: a primeira ao romper d'alva, e chamava-se Sabah Namazy; a segunda, Oilah Namazy, ao meio-dia; a terceira, Akindy Namazy, entre o meio-dia e o pôr do sol; a quarta, Acham Namazy, ao sol posto; e a quinta Yatzu Namazy, ao serrar da noite.

Precedia sempre as orações uma ablução parcial—woudou', que consistia em lavar a cara, as mãos e braços até o cotovêlo, e os pés até o artelho. Antes de começar a reza, o crente extendia no chão o seu tapete quadrado, collocava-se de pé sobre elle, voltava-se para a kaaba, estando em Mecca, ou para esta, em outra parte, conforme a quebla estabelecida por Mahomet; repetia o pedido de perdão—istigfar, elevava depois{180} as mãos abertas, ficando os pollegares á altura e quasi em contacto da parte inferior das orelhas, e recitava a prece preliminar chamada tekbir. Passava ao fatihah, e pronunciava ao menos tres versiculos, ou ayat, d'esta oração, que é a primeira sura do Corão, collocando ambas as mãos sobre o ventre, a direita por cima da esquerda, e cravando os olhos no chão. Declamava o tesbihk, inclinando o corpo e a cabeça, e pondo as mãos nos joelhos. Endireitava-se, retomava a posição do fatihah, e assim se conservava um instante. Succedia-se uma prosternação—soudjoud, durante a qual repetia o tekbir e tres vezes o tesbihk, tendo a face voltada para a terra, os dedos das mãos e pés muito unidos, e a ponta do nariz a tocar no sólo. Erguia-se, ficava um momento assentado sobre os joelhos, as mãos nas côxas, os dedos abertos, e repetia o tekbir. Depois de uma prosternação ultima, saudava para a direita e para a esquerda os dois anjos da guarda, que, durante a oração, estiveram sempre em sua companhia, embora elle os não visse.

A serie d'estes movimentos e genuflexões constituia um rick'ah.

Quando eram muitos a orar, collocavam-se em filas, como soldados em frente do inimigo, porque realmente os musulmanos criam, ser a oração um combate contra o espirito das trevas.

No mez de schewal, que é o decimo do anno da hegira, e o primeiro dos mezes da peregrinação,{181} accendiam-se as lanternas, as lampadas, e as velas da mesquita, bem como os candieiros das torres, illuminando-se igualmente o eirado do edificio, na noite do apparecimento da lua nova. Na manhã seguinte celebrava-se a oração da paschoa, pois que no mez anterior, o ramadhan, era a quaresma, durante a qual nenhum musulmano comia, nem bebia, senão de noite, isto é, desde o pôr do sol até o romper d'alva.

Chegado o primeiro dia do mez de doulkaadah, que era o undecimo, tocavam os tambores e timbales ao amanhecer e ao sol posto, em signal do abençoado ajuntamento dos peregrinos em Mecca, e assim se continuava até ao dia da subida a Arafat. No setimo dia o iman pronunciava do alto do mimbar na mesquita a khotbat-el-hadjï, isto é, uma allocução, em que explicava aos crentes as cerimonias, que sobre aquella montanha iam celebrar-se. No oitavo dia a caravana santa dirigia-se de madrugada ao valle de Miná. Este dia chamava-se de reflexão—Ianm terwia, alludindo á incerteza de Abraham, o qual, tendo recebido em sonhos a ordem de immolar seu filho, ignorava se tal sonho seria uma inspiração divina, se uma suggestão diabolica. Passava-se a noite no valle, e no dia immediato, depois da oração matutina, a caravana subia á montanha de Arafat, onde existia uma capella—turben, a qual santificava o sitio, em que pelo anjo Gabriel fôra ensinada ao páe commum dos homens a primeira invocação. Conforme{182} o ritual, os crentes, depois de uma oração feita na propria kubba, armada no acampamento, iam esperar o pôr do sol, e entretanto o iman erguia os braços ao Céo, para invocar a benção sobre a multidão alli reunida, exclamando por fim milhares de vózes unisonas; Lebeïk Allahouma Lebeïk! Nós estamos ás tuas ordens, ó Deus!

Em seguida a turba immensa, que continuava vestida de branco, ao descer a Djebel Farkh, depois de ter passado em Monzdelifat, parecia uma catarata de espuma!

No segundo dia punha-se em marcha, atravessava Elmeschar-el-haram—o lugar consagrado, dobrava rapidamente, e em confusão enorme, o apertado valle Onadi-monhassar—o valle maldito, e chegava de novo a Miná. Atiravam todos para traz das costas, junto do Djamrat-el-Agabé, sete pedras do tamanho de uma ervilha cada uma, em signal de despreso pelo demonio, e gritando antes do arremesso: Bismillah!—Em nome de Deus!

Os sete seixinhos, que tomavam o nome de Hassiato-Aljemar, eram expressamente apanhados em Monzdelifat.

Depois de todas essas ceremonias podia cada peregrino sacrificar a victima, que trouxesse.

A caravana regressava a Mecca para visitar a kaaba, fazia nova romaria a Miná, e tratava logo de sair da cidade santa, antes de commetter algum peccado; mas não partia, sem voltar pela{183} terceira e ultima vez á kaaba, a fim de celebrar os Thonaf-wida—procissões da despedida; ao pôço de Zemzem onde bebia agua e de onde trazia alguma, como piedosa recordação; e retirava-se finalmente pela porta do adeus—Bab-el-wida.

Mecca extendia-se em um largo valle, ou, melhor, sobre o sólo deseccado de um uâdi, que se inclinava suavemente do norte ao sul, e por onde raro corriam as aguas das chuvas, mas produziam ás vezes grandes inundações, indo depois perder-se nas areias, sem chegarem ao mar.

As montanhas escalvadas e tristes, que lhe ficavam a cavalleiro, lembravam sentinellas sombrias e mal ataviadas, a cuja guarda estavam confiados, por singular contraste, os thezouros da graça, que vão alli procurar os sectarios do islamismo. As suas ruas não eram, como em geral as das outras cidades arabes, estreitas e tortuosas, mas sim largas e traçadas com certa regularidade, ladeando-as casaria alta, construida de granito vulgar dos montes suburbanos, o que lhe imprimia um aspecto monotono.

Era abundante de agua, e a melhor para o consumo geral vinha dos tanques, cisternas e póços de Arafat, por um aqueducto, attribuido á bella sultana Zabaida, predilecta do principe dos crentes, o famoso califa Harun-al-Raschid.

Durante as peregrinações era a patria de Mahomet um centro de commercio muito rico, e de certo o mais variado de todo o Oriente, pois que{184} em seus bazares accumulavam-se as producções de todos os paizes sujeitos á lei do propheta, e faziam-se negocios importantes.

No mercado diario, sempre fornecido de pão, fructas, hortaliças, legumes e carne, encontrou Pero da Covilhan rapazinhos orfãos, e desvalidos, que, mediante uma paga certa de pequenas moedas de cobre, denominadas foluzes, e do valor de quatro a seis ceitis cada uma, conduziam em duas alcôfas de differente tamanho, chamadas Magtalá, as compras feitas pelas pessoas, que quizessem utilisar-se d'esse serviço.

O pão não se assimilhava ao nosso. Com farinha diluida em agua sem fermento, e algumas vezes com pouquissimo, preparavam uns bolos mal cosidos e molles, como pasta, a que chamavam hops.

De alguns valles distantes vinham fructas e hortaliças; mas o que verdadeiramente abastecia o mercado era o porto de Djiddah.

Como a Pero da Covilhan parecesse extraordinaria a venda de pós aromaticos, mórmente nas immediações da mesquita, investigou a causa d'esse facto, e soube, que por costume andavam os meccanos sempre perfumados; mas nos mezes da peregrinação chegavam a fazer tão extraordinario uso dos perfumes, que muitas mulheres se privavam até de parte do seu alimento para compra-los, e, quando ellas vistosamente ornadas íam girar ao redor da kaaba, o aroma expirado por seus vestidos{185} predominava de tal modo sob as arcadas da mesquita, que muito tempo depois de retirarem, permanecia alli o seu vestigio fragrantissimo.

Não menos interessante era o cuidado, com que as musulmanas se pintavam. A muitas d'ellas não satisfazia a côr natural dos seus cabellos, por isso os tingiam, velhas e moças, com o kohl, que do mesmo modo empregavam nas pestanas, bem como nas sobrancelhas, que não só ennegreciam, mas ampleavam e arqueavam graciosamente. Com a mesma tintura, applicada ás palpebras, esbatiam os olhos formosissimos; sem embargo, porém, d'esta affectação, consideravam o kohl um verdadeiro collyrio, e um remedio soberano contra as ophtalmias tão frequentes n'aquelles climas. Faziam signaes pretos na cara e nas mãos com um certo pó, que introduziam na pelle por meio de uma agulha despolida de ferro ou de prata; e ás mãos e pés davam uma côr rubro-alaranjada, servindo-se para isso de uma erva denominada elhene.

As pedras mais ou menos preciosas eram para as mulheres de todas as classes um amuleto, e talvez secundariamente um enfeite. Formavam como que uma pharmacopea talismanica muito curiosa e muito extensa.

Os trajos, posto que não fossem identicos em todas as partes da Africa, do Egypto, da Syria e Arabia, tinham na sua pequena variedade de fórmas uma grande similhança, ficando sempre reduzidos a uma especie de tunica e capa—o que{186} sómente bastaria, á falta de outras provas, para demonstrar quão poderosa é a força das tradições na raça arabe.

As variantes do vestuario repetidas, no mesmo seculo, por outros povos, são o symptoma da mobilidade das suas idéas, e dos caprichos alternativos do seu gosto.

O trajo das mulheres apresentava alguma variedade unicamente nas classes abastadas. Nas outras classes, que são ainda hoje as mais numerosas, compunha-se geralmente de uma larga tunica—farmla, atada na cintura com o samla ou foutah, e um véo—tarbah, que cobria a cabeça e quasi todo o semblante.

Em algumas regiões a tunica era singelissima, sem signal de corpete nem de espartilho, artificios desconhecidos no Oriente, e cuja falta não sacrificava o pórte altivo e magestoso das mulheres das margens do Nilo, por exemplo, as quaes recordavam na sua elegancia, no seu peito saliente e nos hombros desempenados, as deusas da Grecia antiga.

Algumas mulheres deixavam vêr os olhos, e uma parte da testa; outras sómente um dos olhos; e ainda em outras o mysterio era absoluto, por isso pareciam verdadeiras estatuas ambulantes. Em compensação havia formosas musulmanas, que, muito embóra usassem a capa até aos pés, deixavam ás vezes cair artificiosamente o véo, regalando os olhos de quem as via.{187}

Pero da Covilhan reprezentava um papel muito difficil; pois não podia esquecer-se, de que era christão, e, ao mesmo tempo, de que não deviam sequér desconfiar de tal aquelles que o rodeavam.

Quando ao apontar da aurora o muezzino, do alto de um minarete da mesquita, gritava: «vinde á oração, vinde ao templo da salvação; a oração deve ser preferida ao somno!» Pero da Covilhan extendia o seu tapete, sobre o qual ajoelhava voltado para a mesquita, e, fechando os olhos, fitava os da sua alma na Cruz Redemptora, symbolo augusto da sua fé catholica. Mas não havia preceito do Corão, que elle ignorasse e não cumprisse publicamente.

Apromptou-se a caravana para passar a Medina, em cuja mesquita repousam as cinzas de Mahomet. Os mercadores—gellabys, carregaram de provisões os seus camêlos. Os açacaes abasteceram-se de agua, e acondicionaram os seus tanques de pelles de bufalos, sem olvidarem o kyrba, ou gancho indispensavel para tirar pelo caminho a agua dos póços. Para os que por impossibilidade physica não estavam nas circumstancias de vencer o caminho, nem de apagar aluguer de transporte, havia dromedarios de sobejo e não lhes faltava tambem o alimento nem o remedio, pois a todas essas necessidades occorriam as esmólas dos ricos. Sobre o dorso de muitos animaes viam-se grandes caldeirões de cobre, chamados arraçuato, para cozinhar a comida nos aduares, os quaes{188} eram illuminados por lanternas immensas, que serviam igualmente para as marchas, durante a noite. Em varios meharas enfeitados com collares de sêda, e o henné ou apparelho coberto com magnificos brocados, sobresaíam os attatouch, ou palanquins, para commodamente se recostarem as mulheres opulentas.

O alfange, o punhal—khamtscher, a faca,—bitschak, a lança, a alabarda e a maça, eram as armas defensivas da caravana.

A cidade do propheta Medinet-el-Nebi, distava de Mecca onze dias de jornada, atravéz de vastas planicies de areia, rochedos alcantilados e extensos, a par de rarissimos valles que permittiam a custo a cultura. E a toda essa immensa região, ingrata e bravia, em que estavam situadas Mecca e Medina, davam os arabes o pomposo nome de territorio sagrado, houdoud-el-haram.

Muito tempo antes de chegarem os romeiros a Medina, era-lhes annunciada a sua approximação pela alta cupula dourada, em que terminava o monumento funerario do propheta. Apenas entraram a cidade, dirigiram-se á grandiosa mesquita, sustentada por quatrocentas columnas e constantemente illuminada por trezentas lampadas.

O recinto venerado, que encerrava não só os restos de Mahomet, mas tambem os de seus successores immediatos, Abu-Bekr e Omar, denominava-se El-Hdjra. Composto de arcadas abertas, sobre columnas, era vedado até dois terços da altura{189} por uma grade de ferro com intervallos estreitissimos.

O ataúde do propheta estava velado por um tecido de sêda bordado a ouro, sob um docel de brocado, seguro no vão de uma pequena torre adornada de laminas de prata. Esta torre, igualmente coberta com um panno de sêda e ouro, elevava-se sobre columnas de marmore preto finissimo, cingindo-a uma balaustrada de prata, em cima da qual ardiam continuamente perfumes em vasos do mesmo metal. Uma lua de prata, em quarto crescente, artisticamente lavrada e cravejada de pedras preciosas, encimava emfim o sepulchro do fundador do islamismo.

Em uma das faces do El-Hdjra existia um prégo de prata, junto do qual paravam os peregrinos, para fazerem a saudação competente defronte da face do enviado.

Ao pulpito da mesquita andava ligada uma tradição, a que todos os islamitas tributavam grande respeito. Dizia-se, que Mahomet prégava na mesquita junto do tronco de uma palmeira, e que depois fabricára o pulpito. No primeiro dia, em que subiu a este, inclinou-se o tronco para o novo lugar occupado pelo propheta, e com tal affecto, que podia comparar-se ao amor da camêla para o seu filhinho. Então Mahomet abraçou o tronco, exclamando: «se te não abraçasse, suspiraria inconsolavel até ao dia de juizo!»

O pulpito era feito de tamargueira.{190}

Do mesmo modo que Mecca, Medina ia procurar longe os recursos, que lhe faltavam. Valia-lhe o seu porto, que era Yambo, situado mui distante ao sudoeste d'ella, no mar Vermelho.

Ao norte saía-se para um pomar de palmeiras, plantado por Fatima, filha do propheta, e pérto amontoavam-se as escorralhas de lava saídas da cratéra de Ohod, a montanha famosa, que deve, segundo a crença dos musulmanos, ser transportada um dia para o paraizo, como theatro, que foi, da victoria alcançada por Mahomet sobre os seus inimigos. A léste e a oeste elevavam-se tambem alguns picos, um dos quaes era o de Aïra, onde o propheta esteve préstes a morrer de sêde, e que será precipitado no inferno, conforme a crença. Ao sul prolongava-se a planicie a perder de vista. Raros pomares e renques de palmeiras juntos de póços, cujas aguas fossem sufficientes para as regar, moderavam de longe em longe a monotonia d'essa extensão pardacenta, onde as argilas alternavam com as areias e a greda.

Terminada a romaria, Pero da Covilhan retirou para Yambo, d'onde, embarcando em um zambuco, passou a Tor. Estava pérto do Sinai, que percorreu, e, voltando a Tor, d'aqui se dirigiu a Zeila.

Chegou emfim ás portas da Abyssinia.{191}

 

XII

 

NA ABYSSINIA

Ao cabo de tres annos de trabalhosas e arrojadas viagens, entrava finalmente Pero da Covilhan nos encantados dominios do legendario Préste João. Parece, que Deus lhe inspirára acinte aquella digressão, pelas regiões desertas da Arabia, para retemperar-lhe o animo, e tornar-lhe mais attrahente a paizagem deslumbrante do novo paiz que demandava. Ao passo, que foi o primeiro a mostrar, em uma carta maritima, a derrota, que as nossas caravelas deviam seguir para a India, ia agora tambem levantar o véo, que trazia occulta aos olhos da Europa a historia da Abyssinia.

Em mil narrativas exaggeradas e phantasticas, acolhidas pela curiosidade credula, havia sómente um fundo de verdade: a existencia de um povo christão no seio da Africa, defendendo gloriosamente a sua independencia contra o islamismo.{192}

Mas onde e quem se esforçava com tanto denodo?—Ninguem sabia responder; pois até mesmo no Oriente o reino do Préste João era quasi desconhecido, talvez por estar tão remontado ao trato e commercio das gentes.

Póde considerar-se essa vasta região ethiopica um immenso planalto, elevado entre a bacia do Mediterraneo e o Oceano Indico, e limitado ao Norte pela Nubia, a Oeste pelo Sennaar, ao Sul por paizes do sertão africano oriental, a Léste pelo mar Vermelho. E abrange tres zonas distinctas: a inferior, ou o Kolla, em que a temperatura varia de 20 a 40° centigrados, encontrando-se, n'esta região verdadeiramente tropical, a fauna e a flora especiaes da Africa, e produzindo abundantemente o solo sem cultura; a media, ou o Onaïna Déga, com a temperatura de 15 a 30°, sendo a parte mais fertil e mais propria para o amanho da terra; a superior, ou o Déga, cuja temperatura varia de 5 a 15°, e cáe abaixo de zero nas mais altas montanhas.

As serranias, que em differentes direcções córtam este massiço, parece formarem um systema á parte na orographia geral do continente negro. O numero d'ellas, a sua fragura, e o effeito permanente das nuvens condensadas em volta dos lanceolados pincaros de algumas, causam temor a quem as vê, quanto mais a quem as passa. E raramente se faz jornada, em que não haja necessidade impreterivel de as collear e transpôr; por{193} isso talvez alguns exploradores, antes de Pero da Covilhan, se houvessem abeirado d'ellas, e, sem animo de se expôrem a tão invios caminhos, voltassem para traz.

Pero da Covilhan não desfalleceu; admirou taes montanhas, que se lhe afiguravam degraus, ou escadas gigantes, amontoadas por Titans, para escalar o Céo. Maravilharam-n'o esses alcantis de granito e quartzo, com agudas arestas a desafiar as tempestades, e em cujas quebradas os diluvios do tropico tinham cavado corregos profundos. Lá do cume as torrentes, no periodo annual das chuvas, despenham-se com violencia nos valles estreitos, indo engrossar os numerosos cursos de agua, que serpeiam nas campinas, caudalosas e arrogantes.

Então o Tacazé ou Nilo negro, que na bacia hydrographica septentrional recebe grande numero de tributarios, saindo do Tigré, a quem banha, vae, sob o nome de Albára, ao occidente lançar-se no Nilo com dobrado impeto. E na bacia do Sul, em Amhara, que contém na sua parte central o grande lago Tana, onde desaguam muitissimas correntes, o Abaï ou Nilo azul, atravessando uma parte d'esse lago e recebendo depois o Djamma, cujo extenso e tortuoso valle sulca o reino de Chôa, adquire um tal volume, que aos proprios indigenas enche de pavor. Ao norte encontram-se igualmente alguns lagos sobre o vertice das montanhas.{194}

Com os aspectos severos alternam, porém, as perspectivas risonhas.

Nas veigas açoitadas pelo vento, as corôas-de-rei douradas, os trevos purpurinos e as verdes grammineas, formam ondulações matizadas, como se fôra em mar brandamente agitado de flores e verdura. Ao mesmo tempo o sussurro das florestas proximas é um fundo de concerto, que faz sobresair o canto alegre das aves, como a doce verdura é o fundo da côr, sobre que se destaca o brilho das flores e dos fructos.

Como deve ser opulenta a flora d'este paiz tão accidentado e humido, aquecido pelos raios verticaes do sol, e em que a temperatura tanto varía, determinada pelas grandes differenças de nivel!

A propria natureza parece gostar de se oppôr a si propria, pois reune todas as estações no mesmo tempo, todos os climas no mesmo lugar, terrenos contrarios no mesmo solo.

O botanico encontra ahi as plantas mais raras; ao zoologo é facil apanhar insectos tão variados, como a vegetação que os nutre; o geologo vê massas centraes do globo desentranharem-se, e furarem a superficie, para se lhe mostrarem; o meteorologista emfim póde a cada instante observar a formação das nuvens, penetrar no seu interior, ou elevar-se acima d'ellas.

Como em todos os paizes situados na zona torrida, a presença da agua accusa as riquezas de uma vegetação luxuriante e vigorosa.{195}

Ao saír-se da garganta de uma montanha, alegra de repente a vista uma extensa planicie, em que o trigo, o milho e a cevada attingem proporções extraordinarias, bem como o teff, coberto de flôres purpurinas, e cujo grão oblongo dá uma farinha saborosa.

O pão abunda por toda a parte. E, quando nuvens de gafanhotos, vindos do Sudão, devastam as ceáras, o enséte, que é uma especie de bananeira, cujo fructo se não aproveita, offerece no seu caule, uma vez que não esteja completamente desenvolvido, farto e delicado alimento.

Outros flagellos dos campos são as manadas de vaccas bravas, e o numero infinito de bugios ou cynocéphalos. Estes, por serem tão damninhos, obrigam a vigiar as ceáras, para que não as destruam, temendo-se a sua invasão unicamente de sol a sol, pois de noite não sáem a comer.

O agigantado baobah, o sycomoro sempre verde, o tamarindo, a palmeira excelsa, o kuara com as suas bellas flôres coralinas, a mimosa, o cusco, o wansey, cujas flôres alvissimas abrem todas a um tempo, o daro, que escolhe, para os abrigar com a sua sombra benefica, os sitios mais pittorescos, emfim todas estas e outras arvores egualmente frondosas, formam immensas florestas, ou, antes, verdadeiros massiços de folhagem, que, sendo arregaçada pelo vento, apresenta os mais singulares e formosos cambiantes.

No mesmo solo humedecido, e alcatifado de{196} flôres odoriferas, crescem elegantes arbustos, emquanto que as trepadeiras, o cipó flexivel, os pampanos carregados de uvas pretas, se abraçam ao tronco das arvores protectoras, revestindo-os de gala, subindo até se suspenderem de seus ramos, e formarem grinaldas graciosas.

E em todas essas florestas e campinas, innumeros animaes, que teem o seu retiro á sombra dos pavilhões de verdura, e raro são perturbados pelos passos do homem. Fazem d'estas vastas solidões um grande e magnifico quadro, uma scena animada e grandiosa, uns pela belleza da sua pélle, vivacidade de seus movimentos, agilidade de seu andar; outros pela frescura de suas pennas, graça de seu todo, rapidez de seu vôo, melodia de seus trinados; todos emfim pela immensa variedade de suas fórmas. O esmalte das flôres mistura-se com o brilho das folhas, e são apagados ambos pelas côres mais brilhantes ainda da plumagem das aves, mórmente da do sonis-manga, ou cynnirus splendidus, conforme a denominação scientifica moderna.

Nas regiões mais aridas, o cactus, a especie de euphorbio, denominada kolquall, a palmeira anã, o kautuffa coberto de espinhos, dão signal de vida vegetativa em terreno ingratissimo, e são testemunhas das perseguições dos chacaes e das hyenas aos bandos de gazellas, corças, e outros antilopes, como o beni-israil, igualmente elegantes, que logram escapar, por causa da ligeireza dos{197} movimentos e rapidez da carreira, a esses crueis inimigos.

Em algumas das montanhas, os zambujeiros e os cedros altissimos servem de asylo aos leões, aos lynces, ás pantheras, aos leopardos, aos girátacácheus, a todos esses monstros ferozes, de que é como que patria o continente negro.

Á beira das lagoas e das ribeiras, a canna, o bambú, e o papyro alto, garridamente empennachado, banham seu pé nas aguas limpidas, mas suas hastes elegantes e frageis são muitas vezes partidas á passagem do rhinoceronte bicorneo, ou do pesado hippopotamo. Além d'isso os crocodilos infestam os rios, em cujas margens vôam innumeras aves aquaticas.

No meio d'essa exhuberancia de vegetação emfim, até os mais humildes musgos se encontram occultos debaixo das neves eternas. O mangericão, e muitas outras plantas da familia das labiadas, alcatifam e aromatizam deliciosamente os montes. E para corôa d'esta prodigiosa flóra, nas maiores altitudes sobresáem o Kousso-Brayera anthelmintica, e o Gibarra—Rhynchopetalum, que se elevam descommunalmente.

Pero da Covilhan, depois de ter caminhado por estreitos passos e á beira de medonhos precipicios, sobre o dorso de montanhas cortadas a pique entre valles tão profundos, que não chegam os olhos a vêr-lhes o fim, apartou-se da caravana, em que vinha, e dirigiu-se á côrte do Préste João.{198}

Reinava o imperador Escander ou Alexandre. A sua residencia era amovivel, por isso Pero da Covilhan em vez de avistar ao longe edificios, que lhe dessem a idéa de uma povoação, viu numerosas tendas armadas em um grande campo, as quaes constituiam a capital do imperio. E convinha-lhes o nome de cidade, não só pela multidão de gente n'ellas abrigada, senão pela boa ordem, como as tinham dispostas.

Ao approximar-se do arraial, deparou Pero da Covilhan, ainda a certa distancia, com quatro leões amarrados por grossas cadeias de ferro, e separados uns dos outros. Logo atraz d'elles prolongava-se uma larga rua, orlada com symetria por vinte arcos de madeira de cada lado, nos quaes estavam enrolados alternadamente pannos de algodão brancos e rôxos. Grande numero de cavallos á mão, morzellos, pombos, castanhos, russos, russo-rodados, meládos, fouveiros e outros, todos de boa raça, com as garupas contra os arcos, e bem arreados, tendo cellas muito leves, estribos á bastarda e lóros muito compridos, formavam duas fileiras uma em frente da outra, voltadas para o centro da rua. Quatro d'esses cavallos, com arreios riquissimos, eram cobertos com excellentes colchas de brocado. Na rectaguarda de todos viam-se postados cem homens com azorragues. Mais de vinte mil pessoas de differentes classes se agglomeravam de um e outro lado da rua, ao cabo da qual se destacava uma grande{199} tenda rôxa, seguindo-se após ella, em diversos arruamentos milhares de outras, todas brancas.

Este apparato era proprio do dia festivo, em que Pero da Covilhan, surgiu, por mero acaso, na côrte abyssinia. A sua presença produziu a mais desusada sensação no ajuntamento.

Saiu-lhe ao encontro um homem ricamente vestido, e perguntou-lhe ao que vinha. Pero da Covilhan, mostrando-lhe as cartas, que levava de D. João II para o soberano da Abyssinia, respondeu-lhe em puro amharico—já n'esse tempo a lingua da côrte—que fôra encarregado pelo rei de Portugal, seu senhor, de entregar pessoalmente aquellas cartas a sua alteza, o mui alto e poderoso imperador da Ethiopia, e desejava por isso ter a honra de lhe ser apresentado. O seu interlocutor levou esta mensagem ao soberano, e pouco depois conduziu á presença d'elle Pero da Covilhan.

Logo na primeira sala da grande tenda roxa, forrada de finas sedas, sobre um catre coberto com tres colchas da China, de modo a conhecer-se pelas suas barras de cotonia de seda o numero d'ellas, estava sentado o imperador, rodeado da sua côrte.

Á entrada Pero da Covilhan, ao vêr o Préste, abaixou a mão direita até ao chão, e com ella tocou em seguida o alto da cabeça, consoante lhe fôra, a seu pedido, ensinado pelo introductor. Adeantando-se depois, ajoelhou em frente do soberano, a quem deu as cartas de D. João II, as quaes eram escriptas em arabe. O Préste mandou-o{200} levantar, fez-lhe algumas perguntas ácerca da sua viagem, e principalmente a respeito de D. João II; despedindo-o depois com muito agrado, disse-lhe, que fosse descançar, para mais tarde conversarem largamente, como desejava.

Esta recepção amavel poz logo em boas relações Pero da Covilhan com os grandes da côrte, e muito mais depois de constar, qual foi o assumpto das cartas, que trouxera. Egualmente contribuiu, para elle lograr a sympathia publica, o preconisar, desde logo, com enthusiasmo a magnificencia da côrte, e a riqueza do vasto imperio, que teve a fortuna de visitar.

A côrte compunha-se do Bellátimoche goytá, mordomo-mór; do Tecácase Bellátimoche-goytá, pequeno mordomo-mór; dos dois Betendet, os validos do imperador; do Titaurári, que fazia o officio de marechal; e outros dignitarios de menor categoria. Além d'isso frequentava diariamente a tenda imperial o Abima, que quer dizer páe, e era o metropolitano da egreja ethiopica, enviado pelo patriarcha Kopta da Alexandria. A esse bispo, unico da Abyssinia, devia obediencia, mas tinha grande auctoridade, o étch'égé, prelado do numeroso clero regular, e officialmente prior do convento de Debra-Libanos, em Chôa, fundado pelo abima Tekla Haimanot. Logo abaixo, senão quasi a par do abima, havia o Labeata, padre de nomeação imperial. Junto do soberano funccionavam os Azages e Umbares, dezembargadores e{201} ouvidores do imperio, sem escrivães, nem tabelliães, por serem verbalmente averiguadas e julgadas na presença das partes todas as suas demandas, e do mesmo modo proferidas as sentenças. Não havia as papelladas de nossos autos, a que B. Telles chama pégo immenso de trapaças.

O livro da lei, Fitha Negoust, compunha-se de textos mal traduzidos do codigo Justiniano, amalgamados com prescripções religiosas. Antes de serem ouvidas as testemunhas, iam á porta principal da egreja, prestar juramento na presença de dois clerigos, que tinham ahi incenso e brazas. A pessoa que jurava, punha as mãos na porta, e um dos clerigos dizia-lhe: «falla verdade, e se jurares falso, assim como o leão traga a presa no bosque, assim seja tua alma tragada do diabo; e assim como o trigo é quebrado entre as pedras, assim os teus olhos sejam moidos dos diabos; e assim como o fôgo queima a lenha, assim a tua alma seja queimada no fogo do inferno e feita pó; e se verdade disseres, a tua vida seja alongada com honra, e a tua alma góze do paraizo com os bemaventurados». A cada uma d'estas maldições e bençãos respondia o que jurava: amen.

O povo era de pouca verdade, ainda que jurasse, a não ser, que fizesse o juramento pela cabeça do imperador, ou que fosse ameaçado da excommunhão, que sobre tudo temia.

As tendas do imperador, á excepção da rôxa, que sómente armavam nos dias festivos e para as{202} grandes recepções, eram brancas e cercadas por umas cortinas de algodão preto e branco em xadrez, as quaes formavam como que um muro, e em volta giravam muitas sentinellas.

Quando o acampamento mudava de local, iam á distancia de um tiro de bésta, na frente da comitiva imperial, os quatro leões, dois a dois, com gargalheiras de ferro, a cada uma das quaes prendiam symetricamente quatro cadeias do mesmo metal, um pouco compridas. Tiravam-n'as dezeseis homens, quatro por cadeia; sendo oito adeante e oito atraz do leão, de modo que este podia andar unicamente na direcção dos homens que o antecediam.

Em seguida caminhavam os cem homens com azorragues, e, dando em vão com a comprida correia presa ao pequeno cabo do açoite, ouvia-se um forte estalido, que fazia afastar a gente.

Após estes marchavam na cadencia de passo accelerado, setenta porteiros de maça, vestidos uniformemente, com camisa e calção de seda, apertado por um cinto do mesmo tecido, cujas pontas chegavam ao chão; aos hombros uma pelle de leão, e sobre esta um collar de ouro mal lavrado, tendo engastada muita pedraria falsa.

O altar, em que diziam missa ao Préste, e a pedra de ara, eram levados por clerigos nos braços, indo adeante um diacono, tangendo uma campainha.

O Titaurári escolhia o lugar do arraial, assignalando{203} com uma lança cravada no terreno o centro da área, que deviam occupar as tendas imperiaes. Detraz d'aquella, em que dormia o soberano, á distancia de um tiro de bésta, ficava a da cozinha, da qual levavam a comida em tijellas e panellas de barro preto mui fino, postas em bandejas conduzidas por pagens, e tudo debaixo de um pallio.

Pouco afastada das tendas do imperador era a da egreja, e na frente d'aquellas as dos tribunaes, seguindo-se em circuito as do pessoal da côrte. Nas restantes, assentadas e arruadas por sua ordem, alojavam-se mais de duzentas mil pessoas, bem como cavallos e mulas, em numero superior a cem mil; tudo como se fôra uma cidade populosa, onde não faltava, o que para uma povoação em taes condições se tornava mister.

As costas de todas as tendas eram para o oriente, e as portas para o poente.

As pessoas pobres dormiam sobre o seu Neté, que era um coiro de boi, extendido no chão, e que lhes servia tanto de cama como de lençol. Como cobertor empregavam a sua capa, que podia ser de panno branco, ou simplesmente uma pelle de carneiro, leão ou tigre.

Assim como o arabe não larga o turbante, o abexim nunca se separava voluntariamente da capa. Quando se dava até o caso de ser preso por haver commettido algum delicto, o encarregado de o levar á presença do juiz, para evitar que se evadisse, apenas tomava a precaução de atar á{204} sua a capa do captivo; se este fugisse, abandonando a capa, reconhecia-se implicitamente culpado, e, logo que tornasse a ser preso, puniam-n'o sem julgamento prévio.

Muitos dos mais abastados possuiam catres precintados de correias, sobre as quaes extendiam o coiro de boi, e os cobertores eram duas colchas de seda. O travesseiro consistia em uma forquilha de páu, chamada bercutá, onde não recostavam a cabeça, porque esta ficava em vão, mas o pescôço, para não amachucarem os cabellos, que traziam sempre muito enfeitados.

Como os senhores se assentavam ordinariamente sobre alcatifas, e os mais sobre esteiras, as mezas, onde comiam, eram muito baixas, de fórma redonda, e não havia toalhas nem guardanapos. Limpavam-se ás ápas, espécie de pão de varias farinhas, em que entravam a do teraux e a do cousio, e que tambem lhes servia de alimento.

Sobre as ápas collocavam as iguarias, sem outros pratos; mas, vindo estas com môlho, eram servidas, com as indispensaveis papas, em tigellas de barro preto, as quaes cobriam com umas tampas conicas de palha fina, chamadas escambiás.

Assavam a carne sobre as brazas, e, quando comiam crua a de vacca, embebiam-n'a com fel da mesma rez. Chamavam berindó a este amargo manjar, um dos mais delicados da sua mesa.

Tinham para bebida nacional, de que sómente usavam depois das refeições, o hydromel; que{205} constava de cinco ou seis partes de agua, uma de mel, e uma porção de cevada torrada, que fazia ferver a mistura, lançando-se depois n'esta uns pedaços de páu, denominado sardó, que em cinco ou seis dias de infusão modificava a doçura do mel.

Para a meza do imperador, transportava-se o hydromel, por occasião das mudanças de arraial, em cem jarras pretas de seis canadas cada uma, tapadas com barro e selladas, e denominavam-se gombos. Os portadores d'ellas iam escoltados por muitos homens d'armas.

Como abundava por toda a parte o mel e a cêra, d'esta faziam vellas, com que se allumiavam, e preferiam aquelle ao assucar, por isso unicamente se serviam da canna para alimento.

Á excepção de pepinos, melões e rabanos, que se não davam em parte alguma do territorio abyssinio, havia todas as fructas e legumes conhecidos, sendo escassa a producção de hortaliças.

Além de grandes creações de vaccas, ovelhas e cabras, era extraordinaria a quantidade e variedade das aves, sem faltarem as codornizes, as rôlas, os patos bravos, os tordos, as andorinhas, os rouxinóes e as gallinhas do mato. As perdizes, de tres castas: umas, como grandes capões, da mesma côr e feição das nossas, salvo terem os pés e bicos amarellos; outras, corpulentas como gallinhas, com os pés e bicos vermelhos; e as restantes, do tamanho das nossas, differindo d'ellas sómente na côr pardacenta dos bicos e pés.{206}

Appareciam tambem coelhos e lebres.

Tirante o arraial do imperador, nenhuma povoação merecia o nome de cidade, nem de villa. Tudo eram aldeias maiores ou menores, em geral abertas; e unicamente cercadas de uma parede ensôssa, as que ficavam fronteiras dos gallas, os mais temiveis inimigos dos abexins, pois com perpetuas correrias lhes assolavam os campos, e nem semeal-os deixavam.

Algumas das maiores povoações, declaradas inviolaveis, serviam de refugio. Respeitadas por todos os partidos nas guerras civis, tinham o nome de gueddam e seus governadores o de alikas.

A situação das aldeias era, ou nos extremos das planicies, ou nos cumes de algumas montanhas. As casas, commummente redondas e terreas, com as paredes formadas de estacas muito juntas, e cobertas de palha, ou com açoteas em vez de telhado. As dos mais ricos differiam um pouco, por terem as paredes de pedra ligada com argamassa, e o vigamento do tecto ser de aguieiros de cedro tão unidos, que serviam de forro, effectuando-se essa união por meio de cordões de varias côres, que produziam bello effeito. Em terreno fechado com cêrca de pedra ensôssa até á altura de seis ou sete palmos, e d'ahi para cima com sébe muito bem tapada, feita de ramos de arbustos espinhosos, que davam flôres muito delicadas, oito ou mais d'aquellas casas constituiam a vivenda muito aprazivel dos senhores.{207}

Os abyssinios provêem de uma mistura de povos diversos, por isso os orientaes lhes chamam hobesch. Raça esbelta, elegante e vigorosa, de rosto oval, nariz adunco, muitas vezes bem talhado, bôca rarissimamente guarnecida de labios grossos, cabello mal encrespado, a pelle mais ou menos aspera, não molle e assetinada, como a da raça negra; corre-lhes nas veias sangue do egypcio antigo, do bérbere, no sentido mais lato d'esta palavra, do foulah ou peulh—raça vermelha, do arabe e do africano puro. N'esta mistura dominam successivamente, segundo as regiões, os typos secundarios mais proximos, bedjas, somali, galla e o syro-arabe, por isso, além do preto, a côr da pelle varia muito, encontrando-se o moreno em todos os tons, e até o branco; este, porém, exangue e sem graça.

Eram os abexins boa gente de guerra, excellentes cavalleiros, creados e curtidos nos trabalhos, soffredores da fome e da sêde. A vida, dos que se não occupavam nos labores agricolas, era a guerra. N'esta se creavam de pequenos, e n'esta envelheciam. Mui simples o seu uniforme. Um calção leve, e pouco largo, de algodão, seguro por uma faxa do mesmo panno enrolada á cintura. Uma capa de egual tecido mais encorpado, e sobre ella uma pelle de panthéra negra ou de leão. Calçavam alparcatas, e andavam nús de braços e pernas, pois o calção mal cobria estas até ao joelho.

Em geral a plebe não usava calçado, e o seu{208} vestuario reduzia-se a umas bragas de algodão e uma capa, que podia ser uma pelle ou um largo panno tambem de algodão.

Muitos abexins vestiam calções mouriscos, que desciam recramados até ao artelho, onde os apertavam, sendo de damasco ou velludo do joelho para baixo, e d'alli para cima, como ficavam cobertos pela cabaya, faziam-n'os de teada. Os calções dos grandes da côrte ajustavam-se ás pernas, e as cabayas, como as dos baneanes, abertas até á cinta, eram abotoadas com botões miudos. Em um collarinho cozido a umas mangas estreitas e compridas, a ponto de recramarem, tudo feito de bofetás de Cambaya ou de um fustão azulado da mesma proveniencia, consistia a camisa, ou antes o simulacro d'ella. Alguns substituiam aquelles tecidos por tafetá ou setim, e, quando vestiam cabayas turquescas de velludo, ou de brocadilho de Mecca, não se cobriam com capa, que era de panno fino da terra ou de bofetá.

Quando vinha de suas terras um nobre, chamado á côrte pelo Préste, emquanto andava nú da cinta para cima, e sómente com uma pelle sobre os hombros, ainda não estava na graça do Senhor; mas logo que fallasse com o Préste, e saisse da sua tenda vestido, já estava na graça do Senhor.

Todos andavam em cabello, que deixavam crescer, para fazerem penteados caprichosos. As mulheres{209} encaracolavam algum, com o qual emmoldoravam graciosamente o rosto, e usavam solto o restante, que lhe cahia fartamente sobre os hombros.

O armamento da milicia compunha-se de uma rodella de pélle de bufalo; dois zargunchos: um estreito para o arremesso nos primeiros encontros, outro largo, com que esgrimiam na lucta; maças de páu duro e pesado, denominadas bolotás; punhaes, que tambem serviam de arma de arremesso; e lanças curtas para os cavalleiros, os quaes igualmente faziam tiros com zargunchos estreitos, como se foram dardos.

Os mais nobres cingiam espada—de que raras vezes se serviam—com empunhadura dourada ou de prata, e bainha de velludo ou de outra sêda. Alguns traziam tambem adaga.

Os cavalleiros com sáia de malha—que poucos eram—não se curavam de rodella, porque os embaraçava, e usavam de capacete.

Sem ordem alguma de formatura, as batalhas começavam e acabavam no primeiro choque, fugindo uns, e seguindo os outros a victoria.

Para a guerra iam os cavalleiros montados em mulas, muito mansas, grandes e bem feitas, e levavam os cavallos á dextra, porque estes, como não tinham ferraduras, depréssa ficavam despeados. Os homens, descalços mettiam nos estribos sómente o dedo pollegar de cada pé.

Além da gente de armas, era muita mais a que{210} seguia o arraial e a bagagem d'elle. Iam familias inteiras, e eram necessarias muitas mulheres, para fazerem as ápas e o hydromel. Muitos não levavam matalotagem, e, quando se acabava a dos outros, não pediam todos elles mantimentos aos camponezes, por cujas habitações passavam, mas invadiam estas e roubavam-n'as com uma furia verdadeiramente selvagem.

Como não corria moeda no paiz, nem o Préste a mandava cunhar, as compras effectuavam-se por troca de ladrilhos de sal gemma, chamados amalé, cortados a machado em perpetuos e inexhaustos jazigos.

Sem embargo de haver no paiz abundante minerio de ouro, prata, cobre e estanho, os habitantes não sabiam proceder á extracção d'esses metaes, e aproveitavam-se unicamente d'aquelles, que as chuvas descobriam nas regueiras com a corrente das aguas.

A carencia absoluta de salinas, e o desconhecimento completo da metallurgia, explicam talvez, por que aos abexins servia de moeda o sal gemma; e, como a natureza lhes prodigalizava quanto precisavam para trocar pelos productos importados de outros paizes, prescindiam ou não sentiam falta da moeda.

A egreja, outros edificios, e o grande numero de altos obeliscos, em Aquaxumo, denotavam a existencia de uma antiga civilisação mais adeantada.{211}

Junto de um immenso daro elevava-se o templo christão, que era de formosa fabrica de cantaria bem lavrada, com cinco largas naves, todas abobadadas, sete capellas, côro alto, abobadado ao modo dos nossos, e denominava-se egreja de Santa Maria de Syon.

Nos obeliscos, cada um dos quaes de uma só pedra granitica, não se viam hieroglyphos, como em todos os dos egypcios, mas cobriam as suas quatro faces esculturas, que revelavam um cinzel grego.

N'este lugar de Aquaxumo, conforme a tradição dos abexins, fundou-se a christandade da Ethiopia Oriental, e gloriavam-se elles muito de serem os primeiros christãos, que no mundo houve, e de que n'elles se cumprira a prophecia de David.

Sem embargo de tão respeitaveis preeminencias, innumeros eram os erros da sua religião, cheia de superstições grosseiras, e fortemente impregnada de judaismo, com traços de budhismo.

Além de muitos conventos de religiosos, por todo o imperio havia numerosas egrejas, todas com grandes rendas, de que seus ministros viviam.

Em geral, as egrejas, architectonicamente consideradas, estavam de harmonia com as habitações. Situadas em lugares altos, á sombra de copadas arvores, e sómente por excepção em subterraneos, tinham muitas a fórma circular, e as suas portas nos quatro pontos cardinaes. Reconhecia-se{212} facilmente, que não deixaram discipulos os artistas, que trabalharam nos monumentos de Aquaxumo, e ainda outros lugares, sendo attribuidas aos egypcios todas essas obras.

Tinham as egrejas duas cortinas: uma encobria o altar, e d'ella para dentro sómente passavam os sacerdotes; a outra, a meio do templo, limitava o espaço comprehendido entre ambas, reservado para assistirem de lá aos officios divinos o imperador e mais pessoas gradas. Ao povo era defeso entrar na egreja. Ficava á porta fronteira do altar a ouvir missa, e o celebrante não só d'alli lhe ministrava a communhão, que todos os fieis, antes de começar o santo sacrificio, deviam receber, senão tambem lhes lia as epistolas e evangelhos em gheez, que era a lingua lithurgica.

O imperador e os grandes tomavam as ordens de diacono, para poderem ser admittidos no interior dos templos, e haviam de descalçar-se antes do ingresso. Por tal motivo o imperador trazia na mão uma pequena cruz, não como sceptro ou insignia do imperio, senão em signal de ser diacono. De sceptro nunca elle usava, corôa tambem a não punha, nem sahia de cruz alçada, como erradamente se affirmava.

Os frades eram celibatarios, não os clerigos; e até os filhos dos conegos tinham o privilegio de pertencerem á collegiada dos páes.

O matrimonio, porém, não se considerava sacramento, e toda a gente o contrahia com o tacito{213} ou expresso consentimento de se poderem apartar os conjuges, tomando estes logo para isso fiadores, e assim evitavam o espectaculo nada edificante, e as mais das vezes asqueroso, das causas de divorcio.

As cruzes não tinham a imagem de Christo, porque os abexins se julgavam indignos de ver o Redemptor crucificado. Tambem se não mostrava ao povo a hostia consagrada. O vinho para a missa era feito de summo de passas de uvas, deitadas de molho em agua, durante dez ou doze dias, enxugavam-as depois, pisavam-as e expremiam-n'as em um panno. Para a celebração da missa, as vestimentas consistiam em umas como que grandes camisas brancas, na estola furada pelo meio e mettida pela cabeça, e não usavam de manipulo, amicto, nem cordão para se cingirem. Os frades celebravam com o capello na cabeça, e todo o clero a trazia rapada, deixando, porém, crescer as barbas.

Tinham os abexins tanta reverencia pelas egrejas, que nenhum passava a cavallo por deante das portas d'ellas. Apeavam-se, e só tornavam a montar, quando iam já distantes.

A veneração geral tributada á Egreja e cousas d'ella, contribuia, para ser muito poderosa a influencia do clero no governo do Estado, por isso o soberano não podia considerar-se completamente absoluto.

E havia uma hierarchia ecclesiastica bem organisada:{214} arcyprestes—komosats; conegos—debterats; curas—kasis; vigarios—nefk-kasis; diaconos—diakons; e sub-diaconos—nefk-diakons.

Pero da Covilhan, cuja illustração e talento o elevavam muito acima do nivel moral do povo inculto, no meio do qual se via obrigado a viver, tornou-se dentro em pouco o apoio precioso dos principes, que se succediam no throno. Com repetidas instancias pedia ao imperador Alexandre lhe désse seu despacho, e a resposta ás cartas de D. João II; mas o Préste, respondendo sempre, que o mandaria á sua terra com muita honra, ia dilatando o cumprimento da promessa. E, dizendo mais, que não podia por emquanto prescindir da sua companhia, prezenteou Pero da Covilhan com uma vivenda principesca, vastas campinas e florestas, cavallos, mulas e gados, grande numero de vassallos, um senhorio immenso emfim.

A imperial munificencia pôz o nosso explorador na desconfiança, de que o soberano abexim procurava tenta-lo com benesses e regalias de grande senhor, e distrahi-lo do proposito de voltar á patria.

Tomou Pero da Covilhan pósse de seus dominios, mais por mostrar-se obediente ás deliberações imperiaes, do que pelo prazer de goza-los. Como, porém, tinha de viver na côrte, confiou ao cuidado de feitores a importante administração da sua casa.

Quantas vezes embrenhado em um bosque, deixando-se{215} perder na obscuridade d'elle, parava a ouvir os ruidos profundos e melancolicos do espesso arvoredo, dos grandes seres insensiveis que o cercavam!...

Não eram accentuações distinctas; mas um murmurio confuso, como o de um povo, que celebra ao longe uma festa por acclamações, ou o de uma grande cidade tambem distante!...

E, quando á linguagem mysteriosa da floresta se unia o gorgeio magico do rouxinol, que do seu ninho endereçava saudações maviosas e votos reconhecidos ao Eterno, Pero da Covilhan abandonava a sua alma commovida ás gratissimas recordações da patria, e confiava aos inanimados companheiros da sua solidão os segredos ineffaveis do seu amor a Maria Thereza, engrandecido pelos desejos ardentes de a vêr!...

Que momentos de infinda saudade não seriam aquelles!...

A occiosidade repugnava ao espirito de Pero da Covilhan, e, como se via a miude consultado pelo imperador Alexandre sobre os negocios publicos, tratou de estudar a fundo os costumes e a historia do paiz.

Nos archivos dos conventos encontrou uma rica litteratura escripta em gheez, a par de missaes illuminados e coloridos com arte, mas sem desenho quasi e sem perspectiva.

Aquella lingua conservava já algumas fórmas archaicas. Dirivava-se o alfabeto ethiopico do das{216} inscripções himyariticas, ás quaes os missionarios budhistas juntaram certo numero de signaes diacriticos para indicar as vogaes. Era uma influencia estrangeira, igualmente devida á intervenção da escriptura, que outr'ora ia da direita para a esquerda, ou de cima para baixo, como a maior parte das semiticas, e que tomou a direcção da grega, da esquerda para a direita.

O gheez foi substituido pelo tigreano, dialecto derivado mais proximo; e o amharico, mais afastado do arabe, com o seu vocabulario em grande parte tirado do gheez, tornou-se a lingua official, mas tendo a grammatica do agaou, tão aparentado com o egypcio antigo.

Não tardou, que Pero da Covilhan conhecesse melhor os monumentos litterarios dos abexins, do que o proprio clero e naturaes da terra, mas não fazia d'isso alardo, porque não tinha o irrisorio despejo dos pedantes. Todos lhe reconheciam a superioridade, sem elle a impôr; e a sua prudencia, a sua modestia, o seu respeito emfim ao soberano, ás leis e aos costumes do paiz, conquistaram-lhe tamanha estima, tal ascendencia no animo de toda a gente, que nobres e plebeus á porfia procuravam conhecer e servir o novo senhor. O seu procedimento, porém, tão regrado, de tão salutar exemplo para aquelles povos semi-civilisados concorreu, para que o Préste se lhe affeiçoasse ao ponto de dizer-lhe um dia: «Não posso dispensar-vos. Casai, e quando tiverdes filho ou filha,{217} que nos deixeis em penhor, mandar-vos-ei com nossas cartas a Portugal. Quem nos vem buscar, mister nos ha; não é razão, que se retirem, nem nós os deixamos ir. E não vos agasteis, porque tendes em nós um amigo.»

Pero da Covilhan, a quem este discurso tão claro, quanto conciso, feriu profundamente no coração, apenas respondeu com imperturbavel serenidade: «Obedeço ás vossas determinações, pois para isso fui mandado á vossa presença pelo meu rei e senhor; e farei a diligencia por corresponder á vossa amisade.»

Não quiz evadir-se, podendo faze-lo. Mediu bem as consequencias d'esse passo. Preferiu, pois, tomar o partido, a que a necessidade o obrigava, tratou de casar-se, e não pensou mais, d'alli em diante, senão em que havia de acabar os seus dias n'aquelle captiveiro. Mandou dois homens seus, que se encorporassem nas caravanas do Egypto, fossem ao Cairo, e d'aqui trabalhassem por passar a Portugal, a fim de levarem a D. João II umas cartas, que lhes entregou.

Foi o Préste, quem escolheu a noiva de Pero da Covilhan. Muitas o queriam; mas coube a sorte a uma formosa morena de sangue real, chamada Helena. No dia do noivado receberam os conjuges riquissimos prezentes do imperador, mórmente sêdas da India, colchas da China, e arreios de cavallos.

Helena considerava-se a mais ditosa filha da{218} Ethiopia. Sentada ao lado de Pero da Covilhan sobre uma alcatifa preciosissima da Persia, disse-lhe, tomando-o pela cintura, e fitando-o enlevada: «Ha muito, que suspirava por ser vossa!... Como sou feliz!... Agora para sempre ficaremos unidos, como as pedras na parede, e os corações no amor de Christo!... A toutinegra não quer mais ao seu ninho, do que eu já quero á nossa casa!... Os teus braços, amor meu, são como os ramos do daro, que dão doce abrigo; e os teus olhos, os luzeiros do céo, em que vou viver!... Tu és o tronco do ulmeiro, e eu a vara da vide, que o buscava!... Amo-te muito!... muito!...»

Pero da Covilhan estava sonhando, acordado!... Rolaram-lhe sobre a face duas lagrimas, que os labios ardentes de Helena enchugaram!...

Foi a primeira vez, que elle se viu chorar!...

—E porque chorava?!...

Pobre coração humano!...{219}

 

XIII

 

REMATE

O casamento de Maria Thereza com Pero da Covilhan não repugnava a D. Leonor de Lencastre, a qual tinha até o presentimento, de que não viria a realizar-se. Além d'isso Maria Thereza, sempre muito briosa, havia de timbrar em progredir no estudo das sciencias, que cursaria na Universidade, e, comquanto a vehemencia do seu desejo de saber não apagasse a chamma do amor, que lhe incendiava o coração, amortece-la-ia ao menos. Depois a ausencia com arrefecer, e o tempo com gastar, eram no conceito da rainha remedios capazes, de debellar a enfermidade d'esse amor.

Talvez fosse uma illusão similhante pensamento, porque o maior incentivo do amor de Maria Thereza era a gloria de Pero da Covilhan, e esta não tardaria a engrinardar-lhe o nome. Assim o{220} esperava Maria Thereza, e tinha para isso fundamento.

D. Leonor, porém, preferia illudir-se, a deixar de nutrir a esperança tambem de continuar a ver junto de si a meiga companheira das suas devoções, apenas ella completasse os seus estudos. E, como a formosa rainha era dotada de um espirito não só eminentemente religioso e caritativo, mas ao mesmo tempo illustradissimo e pratico, imaginem-se os primores de educação, dada por essa Senhora a Maria Thereza, que logo nos mais tenros annos revelou a sua intelligencia peregrina e uma docilidade encantadora!

Tal era, com effeito, o juizo que D. Leonor formava das singulares qualidades da sua donzella, que, tendo esta apenas dezeseis annos, a fazia já sua confidente, e com ella conversava frequentes vezes ácerca do seu vasto plano de beneficencia e fundação de casas religiosas, o qual havia traçado com o fim de collaborar, no desenvolvimento da prosperidade nacional, e na exaltação da fé catholica.

No meio das variadas e constantes distracções da côrte, a excelsa rainha não olvidava, um só instante, o desempenho da missão civilisadora, que a si propria impozéra. E, conhecendo as aptidões de Maria Thereza, teve sempre em vista eleva-la pela cultura do espirito, e aproveitar-lhe os recursos intellectuaes, para associa-la na execução das obras meritorias, que projectava.{221}

Havia já fundado, ainda em vida de seu marido, um hospital, e junto d'elle uma povoação, que tomou o nome de Caldas da Rainha, para perpetua memoria da sua origem; mas não só mandou provêr aquelle estabelecimento do necessario para a sua sustentação, como obteve do páe de Lucrecia Borgia, o papa Alexandre VI, indulgencia plenaria para os enfermos, que lá fallecessem, muito embóra não houvessem contemplado o hospital em seus testamentos.

Não faltava assim a esmola do remedio para o corpo e para a alma, aos que fossem procurar allivio ás enfermarias da caridosa fundadora.

Maria Thereza partira effectivamente na companhia de seu tio para Lisboa, antes das festas de Evora, e foi frequentar a Universidade,[9] a qual occupava as casas, de que lhe havia feito doação o infante D. Henrique, situadas acima da egreja de S. Thomé, contra o muro velho da cidade.

O novo estudante, com o seu habito talar mais curto do que o dos lentes, conforme prescrevia o Estatuto, a sua formosa cabeça, que ninguem suppunha fosse de mulher, o desembaraço de suas maneiras, e a gentileza do seu pórte, era alvo da sympathia publica no bairro das Escolas Geraes. As raparigas do sitio sabiam já a hora, a que elle passava para as aulas, ou saía a passeio, por isso esperavam-n'o á janella, e, ao vê-lo, iam-se-lhe os{222} olhos no galante moço. Maria Thereza ignorava, que era objecto d'essa curiosidade feminina, a qual começava a despertar ciumes na visinhança; mas o tio, que nunca deixava de acompanhar a sobrinha, percebeu, que a requestavam, e uma ou outra vez sorria-se maliciosamente para as admiradoras d'ella, o bom do velho.

Na convivencia com seus condiscipulos e collegas, os mais vaidosos davam a Maria Thereza, sem querer escarnece-la, a primazia no talento, no saber, e até na graça da palestra.

Nas conclusões, que defendeu, para tomar o grau de bacharel, bem como no acto para licenciado, causou assombro aos mestres.

Aproveitou tanto emfim, que saíu doutissima em theologia e direito canonico.

Quando ella tinha concluido os seus estudos, falleceu o tio. O corpo docente foi logo convida-la, para reger a cadeira,[10] que ficou vaga. Maria Thereza agradecendo o convite, respondeu: «Sem approvação de sua alteza a rainha, minha senhora, não pósso acceitar encargo algum, nem este que tão honroso é, e tenho a certeza de que a não alcançarei, sejam quaes forem as instancias, que junto de sua alteza se façam».

Os lentes não insistiram em presença de tão cathegorica resposta, e Maria Thereza, sem que pessoa alguma tivesse dado pelo disfarce, com que,{223} durante quatro annos lectivos, cursou as aulas da Universidade, saíu de Lisboa, e no dia 29 de setembro de 1495, chegou ás Alcaçovas, onde residia então sua real ama.

D. João II tinha recebido as cartas, que Pero da Covilhan lhe enviára da Abyssinia por creados seus;[11] como, porém, estivesse em preparativos de passar ao Algarve, a fim de procurar allivio aos seus padecimentos nas caldas de Monchique, ficaram para depois da sua saída, as novas, que D. Leonor queria dar a Maria Thereza.

Na entrada do mez de outubro partiu o rei para as caldas, deixando á rainha o escrinio, onde guardava aquellas cartas.

Depois de haver tomado quatro banhos, aggravou-se de tal modo a sua doença, que por conselho dos physicos se mudou para Alvor. Achando-se cada vez peor, desejou ver a rainha e o duque de Beja, fazendo ao mesmo tempo tenção de communicar a este, que em testamento o declarava por só e legitimo herdeiro do throno, e lhe deixava encommendado, como vassallo seu, D. Jorge de Alencastro—que era o filho D. João II e de D. Anna de Mendoça.

Estava a rainha com o duque seu irmão em Alcacer do Sal, por se haver assentado esperar alli o rei na volta do Algarve, e partirem depois para Santarem. D. Leonor iria embarcada até Setubal,{224} d'aqui atravessaria por terra para Alcochete, e seguiria logo pelo Tejo acima até á velha e pittoresca rainha do Riba-Tejo. Este itinerario, differente do que para si traçára o monarcha, pareceu o mais commodo, por estar D. Leonor ainda convalescente da grave doença, que a pozéra ás portas da morte.

Na tarde, porém, de 25 de outubro de 1495, quasi ao sol posto, expirou D. João II, ou morreu o homem, como sentenciosamente disse Isabel, a Catholica. Logo ao outro dia foi dada, tanto á rainha, como ao duque, nova certa do fallecimento.

Succedeu, com effeito, no throno o duque de Beja, então na bella edade de vinte e seis annos. Pela préssa, com que tratou de se casar, pendemos a crêr, que foi essa a sua primeira idéa, ao ver-se senhor da corôa. Tal era a paixão, que lhe havia inspirado a formosa viuva do mallogrado principe D. Affonso—quem sabe se nas festas de Evora!...

No mesmo anno de 1497 contrahiu um enlace, que muito ambicionava, e satisfez uma obrigação, que tinha herdado, enviando á India a frota, que D. João II havia apparelhado, commandada por Vasco da Gama, a quem deu cartas para alguns principes do Oriente, incluindo o Préste João, conforme as informações e documentos, que deixára e houvera d'aquellas partes o Principe Perfeito.

Não foi estranha a rainha D. Leonor ao ultimo d'esses dois actos, sem duvida os de maior transcendencia,{225} que seu irmão praticou no começo do seu reinado.

Era a rainha, ao tempo do passamento de seu marido, depositaria da importante correspondencia de Pero da Covilhan; e, fazendo entrega d'esta ao novo monarcha, rogou-lhe, que não só mandasse saber do nosso explorador, mas apromptasse, conforme as indicações do mesmo, uma embaixada, que o acreditasse junto do Préste, confirmando as cartas, que lhe levou, e com instancia solicitasse a resposta.

Vasco da Gama nada soube da Abyssinia; e não admira, porque nem tempo, nem gente lhe sobrava, para lá mandar alguem. Voltou, pois, a Portugal sem novas nem mandados do Préste. E, como a empresa da India tinha por fim primario apossarmo'-nos do commercio oriental, assegurado o nosso predominio nos mares levantinos, facil seria estabelecer relações com o abexim, e até este as buscaria.

A rainha D. Leonor não se descuidava, porém, de lembrar a D. Manoel a conveniencia de entabolar negociações com o Préste; e Pero da Covilhan, porque já soavam em todo o Oriente as façanhas dos portuguezes, não perdia o ensejo, agora tão opportuno, de inspirar ao imperador abyssinio uma grande idéa de Portugal, de incita-lo a responder á nota do rei, que o tinha enviado junto d'elle, e a dirigir-lhe, por seu turno, uma solemne embaixada.{226}

Afinal Duarte Galvão, que mui singular prudencia, sagacidade e experiencia de negocios manifestara, como embaixador junto de Alexandre VI, do imperador Maximiliano e do rei da França, saíu de Lisboa na mesma qualidade para a Ethiopia em abril de 1515; mas não satisfez o mandamento, por haver fallecido na ilha do Camarão a 9 de julho de 1517.

Ao imperador Escander succedera Andeseon, que reinou unicamente seis mezes, e logo Naod, que teve tambem um curto reinado.

Á morte d'este ultimo principe subiu ao throno uma creança, que tinham baptisado com o nome de Lebna Danguil, mas adoptou depois o de Onag Segued, e por ultimo o de David. Contava apenas onze annos, e por isso, durante a sua menoridade, tomou as redeas do governo a imperatriz Helena.

As circumstancias do imperio eram gravissimas. Estava ameaçado não só pelos islamitas de Zeila, mas pelo formidavel poder que se elevára sobre as ruinas do imperio dos Khalifas. Aos arabes haviam succedido os turcos, que sustentados por suas idéas de fatalismo, invadiram avidos tudo, desde as cumiadas do Caucaso até ás fronteiras da Nubia. Á sua frente o feroz Selim I, tornou-se senhor do Egypto, juntando-o ao imperio ottomano, e com suas frotas cobriu logo o Mar Vermelho. Djiddah, Mokha, Suaquem e Zeila receberam successivamente guarnições de janizaros, que levaram ahi armas novas, ainda desconhecidas n'esses{227} paizes. A mosqueteria e artilheria espalharam ao longe o terror por seus effeitos rapidos.

Foi então, que a regente do imperio abyssinio, atemorizada de tão terrivel vizinhança, se lembrou de solicitar, a favor da causa do seu povo, a protecção de um rei, cujas grandezas Pero da Covilhan tanto exaltava, e de cujas victorias alcançadas em toda a India, nas pelejas contra os mahometanos, já se ouvia o écco na Ethiopia. Mas desconfiada sempre, como todos os da sua raça, tratou de procurar pessoa, que podésse certifica-la tanto dos acontecimentos da India, como das coisas que lhe contava Pero da Covilhan, e ella muito lhe perguntava.

Na côrte do Préste andava um mercador armenio, chamado Matheus, que, por fallar ou entender o portuguez, pareceu á imperatriz Helena mais proprio, do que outro qualquer, e mandou-o a Portugal. Veiu, com effeito, ao nosso reino, mas secretamente, o embaixador Matheus com cartas da imperatriz em nome do Préste, um pedaço de lenho da Vera Cruz, como signal da fé professada na Abyssinia, e tudo foi recebido pelo rei D. Manoel. Entendeu o nosso monarcha, não dever demorar o delegado da imperatriz Helena, e despediu-o com muita honra, ordenando a Diogo Lopes de Siqueira nomeado governador da India, que na esquadra do seu commando conduzisse Matheus á ilha de Massuah.

A esquadra, composta de dez náus, largou do{228} porto de Lisboa no dia 27 de março de 1518, e levou tambem D. Rodrigo de Lima, o qual ia á Ethiopia com uma embaixada do rei D. Manoel para o Préste. Eram treze as pessoas, que constituiam a comitiva do embaixador, e n'aquelle numero contava-se o P. Francisco Alvarez, capellão do rei.

Diogo Lopes cumpriu as ordens do soberano, entregando em Massuah ao Bahar-Nagays, governador das terras maritimas da Ethiopia, Matheus e a embaixada portugueza.

Logo em um dos primeiros dias de marcha para a côrte do Préste falleceu Matheus, no mosteiro da Visão. A embaixada proseguiu, até que chegou ao seu destino, depois de longas e arduas jornadas.

Tiveram os portuguezes a satisfação de encontrar Pero da Covilhan, que exultou ao ver os seus nacionaes, e não poude conter as lagrimas, ao lembrar-se da patria, á qual o não deixavam voltar as obrigações, que tinha tomado.

Durante os seis annos, que D. Rodrigo de Lima esteve na Abyssinia, de muito lhe serviu o voluntario e nobilissimo exilado, que tão heroica e honradamente sacrificou a vida pelo seu paiz.

Nas cartas, que o imperador David escreveu a D. Manoel, por D. Rodrigo de Lima, dizia:

«O Pero da Covilhan achei, quando reinei, que meu páe não encaminhára, até ver coisa, que o mais certificára; o que Deus a mim fez e não a elle, e sabe como fica meu coração até ver vossa, resposta, que muito desejo».{229}

Os desejos do Préste eram, que o rei de Portugal mandasse fortificar Massuah e Suaquem, por medo dos rumes, que, fazendo-se ahi fortes, o desbaratariam e aos portuguezes. Offerecia gente, mantimentos, e o que necessario fôsse emfim, lembrando ao mesmo tempo, que seria bom tomar Zeila, porque d'este porto iriam as mercadorias para Aden, Djiddah e toda a Arabia, até ao Tor e Cairo.

Entretanto continuava de refem Pero da Covilhan...

Chegámos ao fim do primeiro quartel do seculo XVI, sem comtudo irmos mais longe, do que deviamos; é-nos, porém, preciso retroceder.

Da correspondencia de Pero da Covilhan estremou a rainha D. Leonor a seguinte carta, que mandou lêr a Maria Thereza:

 

Maria Thereza

 

Sabeis naturalmente já o bastante para apreciar a minha situação, e comprehender a impossibilidade, em que me vejo, de sair d'ella, como eu desejava, ou—porque não direi?—como nós ambos desejavamos.

Devo crer, que vos não faltarão informações de Sua Alteza a Rainha minha Senhora, e que tambem vós as havereis solicitado a miude. Mas a El-Rei meu Senhor pedi licença de vos escrever, pela primeira e ultima vez, para de longe conversar{230} comvosco, condemnado, como estou a não mais vos vêr, nem ouvir.

A palavra humana é fraca, para exprimir a violencia da dor, que soffro, ao lembrar-me d'essa condemnação eterna! Deus me conceda a resignação precisa, e a minha alma se fortaleça com tão duras provações!...

De como desempenhei o real serviço, desde que sahi de Portugal até hoje, tem El-Rei larga noticia, enviada por mim a Sua Alteza. Restava-me unicamente dar-vos conta dos meus passos, que dirigi esperançado sempre, em merecer o agrado de meu Augusto Amo, e de tornar-me digno de vós.

Em caravanas e recóvas de mouros, e por mouro a seus olhos passando, estudei o commercio e navegação do Oriente, visitando para esse fim os principaes portos; e alcancei certificar-me, de que pelo mar se podia vir de Portugal á India. Do mesmo modo, sabendo em Calicut, que do grão Cairo para aquella cidade, que é a primeira e a mais formosa das terras indianas, traziam os mouros fortes armadas de muitas náus com grande trato de grossas mercadorias, provenientes de Mecca, fui ver com meus proprios olhos o centro d'este mercado.

Voltando de Ormuz, aonde por ordem de El-Rei meu Senhor, acompanhei o rabbi Abraham, desembarquei na cidade de Djiddah, que é o porto de Mecca no mar Vermelho.{231}

Tendo encontrado alli numerosos peregrinos, que se preparavam para ir visitar a cidade santa, como elles fanaticamente chamavam a Mecca, encorporei-me na sua caravana.

Não vos encareço os riscos d'esta minha empresa, para jactar-me d'ella, senão para vos assegurar, que muito devo á misericordia divina, a qual decerto moveram mais as vossas orações do que as minhas.

Com extrema confiança em Deus, e em que vós não cessarieis de velar pelos meus passos, ousei ir da-los, onde a christãos é vedado transitar.

Felizmente não adivinharam os meus companheiros, que lhes profanava os seus lugares santos...

Ser-vos-ia fastidiosa a relação das ceremonias a que assisti, e em que tive de tomar parte—perdôe-me Deus!—na terra natal de Mohammed. Sómente vos direi, que não póde ir mais longe o fanatismo nem a cegueira humana!

É realmente Mecca um centro de commercio muito rico, e sem duvida o mais variado de todo o Oriente, no tempo das romarias, pois que se accumulam nos bazares producções mui valiosas de todos os paizes sujeitos á lei do propheta, e fazem-se negocios importantes.

De Mecca passei a Medina, onde está o tumulo do sancarrão. Atravessei igualmente uma região immensa, adusta e maninha.

Terminada a peregrinação, retirei para Yambo,{232} que é no mar Vermelho o porto, que abastece Medina, e alli embarquei logo em um zambuco, no qual me dirigi a Tor.

Eu tinha necessidade absoluta de purificar-me, de retemperar a minha fé. O Sinai ficava-me perto. Fui vêr essas solidões da Arabia Petrea, por onde vagaram tão longo tempo os filhos de Israel, desde o exodo até entrarem na Chanaan promettida. Subi á montanha sacrosanta, onde Moysés dictou a lei aos hebreus. Puz a mão na pedra, da qual o propheta fez brotar um jôrro de agua com o toque da sua vara mysteriosa. Penetrei na caverna do monte Horeb, onde o propheta Elias se escondeu, para escapar á vingança da rainha Jesabel. Percorri emfim toda essa região pedragosa e triste, que cérca o Sinai; esse antigo paiz biblico, um dos mais celebres da historia. N'ella encontrei ainda as ruinas de Petrea, que fôra outr'ora o grande deposito do commercio da Arabia meridional, bem como o mercado, aonde as caravanas de Yemen levavam o incenso e os aromas, recebendo em troca os productos da Phenicia.

Voltei depois de Tor, e d'aqui atravessando o mar Vermelho, fui desembarcar em Zeila.

Tinha chegado ás portas da Abyssinia.

A residencia do Préste é ordinariamente no reino de Chôa, mui salubre, e situado quasi no meio do vastissimo imperio ethiopico.

Os que vão do Levante demandar a côrte, vêem-se obrigados a trepar uma altissima serra,{233} como se fôra inexpugnavel fortaleza. Por cima d'ella corre um caminho muito ingreme, o qual no espaço de um tiro de bésta de tal modo se aperta, que mal cabem dois homens a cavallo, indo emparelhados. É uma lomba cortada a pique de ambos os lados, á qual conduzem tão escabrosos passos, abertos no recosto da montanha, que, se alguem embicar, ou a cafila, que sobe, topa com a que desce, não indo com o prumo attento nas passadas, fazem-se em pedaços os caminhantes, e perdem-se totalmente as mercadorias, rolando tudo por aquelles horriveis despenhadeiros abaixo! Na entrada de taes precipicios estão de uma parte e da outra umas como portas, onde pagam direitos ao Préste todos os que por lá passam com tamanho risco de suas vidas.

Fui emfim recebido pelo Préste, e, vendo que elle me detinha, roguei-lhe instantemente me despachasse, dando-me a resposta ás cartas d'El-Rei. E sabeis vós, qual foi a decisão irrevogavel do Préste?

—Que tratasse de me casar, e depois de ter um filho, para lh'o deixar por fiador, me mandaria a Portugal!

Impôz-me, como vêdes, o maior dos sacrificios!

A vós, a El-Rei e á nossa querida patria o offereço.

Eu poderia arrostar qualquer perigo, disfarçar-me, e saír d'aqui; mas perder-se-ia tudo quanto{234} tenho feito. Se eu me retirasse, esta gente sempre desconfiada, e em geral de pouca verdade, ficaria tendo-me na conta de um embusteiro; no que não perigava a minha consciencia, mas o credito e os interesses, de quem me mandou cá. Assim tomariam por grande falsidade tudo o que lhes tenho dito, para exalçar o nome de meu Augusto Amo; para convencer o Préste, de quanto lhe será util alliar-se com Sua Alteza; para conseguir finalmente que todo este povo considere, respeite e admire a nação portugueza. E não descançarei, emquanto não resolver o Préste a enviar uma embaixada a El-Rei meu Senhor.

De nenhum modo conviria a El-Rei fazer guerra a um povo, cujo territorio a natureza tão prodigamente fortificou. Essa temeraria empreza traria comsigo muitos encargos, por ser o paiz mui remoto, para se poder conquistar e conservar, e debilitaria tanto as forças de Portugal, que ficaria este sem as necessarias para a sua conservação. Prefere decerto Sua Alteza crear e manter as mais pacificas relações de amisade com o Préste.

Muito contribuirá para isto a vinda da nossa frota ao Oriente; e, como El-Rei já sabe o caminho, não tardará ella em sulca-lo.

Os abexins são muito ciosos de suas coisas. Tenho, pois, de lisonjear-lhes a vaidade, para lograr a sua inteira confiança, porque depois será menos difficil admittirem o meu conselho. Como prouve a Deus, que eu viesse acabar meus dias a{235} este exilio, empregal-os-ei todos no serviço d'El-Rei, e da patria.

Fui constrangido a constituir familia, e todavia—crêde-me, Thereza!—vivo em uma solidão immensa!...

Como, porém, quando a alma nos sáe da carne, deverá levar comsigo todas as suas affeições, ter-vos-hei junto de mim no Paraizo. O céo é o verdadeiro lugar do amor, e n'esta esperança immortal repousa docemente o meu coração. E, emquanto andarmos ambos sobre a terra, as nossas orações e os nossos votos juntar-se-hão no caminho do céo...

Estou longe de vós, mas acompanho-vos sempre, e não me vêdes, por não ser visivel o pensamento... São terriveis combates os accessos de abatimento, que repetidas vezes me tomam!... Mas, para que esta separação nos não custe, experimentemos... vós o serdes menos amavel, eu amar-vos menos...

Não nos é dado realizar o impossivel!

O tempo de lagrimas, de solidão, de aborrecimento, que de vós me sepára, acabará, para nos unirmos e gosarmos juntos da bemaventurança eterna!...

Adeus.

 

Pero da Covilhan.

 

Quando Maria Thereza terminou a leitura d'esta carta, estava como «a candida cecem das matutinas{236} lagrimas rociada»; mas tinha ao pé de si quem lh'as enxugasse, quem lhe respirasse os suspiros, que as entrecortavam.

Conservando a carta apertada n'uma das mãos, voltou-se para a rainha e exclamou:

—Assim o quiz Deus!... Faça-se a sua vontade!... Que duvidosas são as coisas d'esta vida!...

—Tambem as ha certas—interrompeu D. Leonor com muito carinho—e uma d'ellas será a tua resignação, que não pósso pôr em duvida...

—Sim, minha Senhora; nas mãos de Deus me resigno... E, se voss'alteza me permitte, cumprirei tambem as ultimas palavras, que disse a Pero da Covilhan: «de outro jámais serei!»

—Não admiro a tua fidelidade ás promessas, que fazes—tornou a rainha—; mas ás vezes... em momentos irreflectidos... e ha tantos em galanteios!... Emfim é necessario, que penses no teu futuro...

—Tenho pensado, minha senhora. Eu nunca perdi a esperança de tornar a vêr Pero da Covilhan; agora, porém, depois da sua carta, ainda que elle voltasse já não podia ser sua mulher. Serei esposa do Senhor.

—Não póde haver união mais santa—retorquiu com jubilo a rainha—; mas sentir-te-has tu bem forte para a contrahir?...

—Se sinto!... Creia voss'alteza, que não é filho de um desespero o meu proposito; anima-me,{237} pelo contrario, a esperança, de que, servindo melhor a Deus na clausura, mais util poderei ser a Pero da Covilhan, orando por elle, e mais facilmente será perdoada a minha fraqueza de o não esquecer... A dôr é o mais seguro laço, que prende dois corações...

—Minha boa Thereza!... Cada vez considero mais digno da minha estima o teu coração de ouro!...

Maria Thereza cahiu de joelhos aos pés da rainha, e beijou-lhe as mãos, regando-lh'as de lagrimas. D. Leonor deixou resvalar por sobre a formosa cabeça da sua predilecta, as que lhe borbulharam dos olhos...

Eram duas almas diamantinas, que se confundiam em um crysol, formado do mesmo affecto finissimo.

Fôra a rainha D. Leonor encarregada do governo do reino, por carta patente de 24 de março de 1498, durante a ausencia do rei D. Manoel, que passára com sua mulher a Castella, a fim de serem jurados herdeiros d'esta monarchia; e logo, a 15 de agosto do mesmo anno, a piedosa regente instituiu a Misericordia de Lisboa. Não satisfeita com erigir esse monumento, que por si só bastaria para immortalisa-la, é infatigavel no caminho do bem, alumiada pelos esplendores da fé, e profundamente inspirada nos estremecimentos de amor, com que a sublime virtude da caridade commovia a sua alma a trasbordar de candura.{238}

Creou albergarias em Obidos e Torres-Vedras, fundou o convento da Annunciada em Lisboa, e na mesma cidade o hospital de Sant'Anna, sobrando-lhe ainda tempo para dar protecção ás lettras e ás artes, pois á sua munificencia indefessa se deviam monumentos preciosos da nossa typographia, que tentava então os seus primeiros ensaios em Portugal.

Mas de todas as suas instituições religiosas a mais querida e por isso mais velada pela fundadora, foi o mosteiro da Madre de Deus, que D. Leonor mandou edificar em Xabregas, e que tantas preciosidades artisticas possuia.

N'elle professou Maria Thereza, preferindo aos mimos e regalos da côrte as asperezas da vida monastica, em ordem tão apertada, como aquella a que se votou.

Antes da profissão, pediu Maria Thereza á rainha, que fizesse chegar ás mãos de Pero da Covilhan a seguinte carta, da qual foi, com effeito, portador o P. Francisco Alvarez:

 

Pero da Covilhan

 

Sois um benemerito, Deus, que é remunerador, hade recompensar os vossos sacrificios.

Vou ámanhã professar. Vou ser clarista no mosteiro da Madre de Deus, fundado em Xabregas pela nossa Santa Rainha a Senhora D. Leonor. Na minha clausura, onde espéro servir melhor a{239} Deus, do que se ficára no mundo, lembrar-me-hei sempre de vós nas minhas orações, e o Eterno Páe, a quem nada póde esconder-se, attender-me-ha, por ver a intenção pura, com que lh'as dirijo.

Elle vos acompanhe sempre!

     Adeus.

 

Maria Thereza.

 

Perto da sua querida pupilla residia a rainha no seu palacio em Xabregas, onde entregou a sua alma ao Creador; e no claustro do mosteiro, á porta da casa do capitulo, foram cobertos seus venerandissimos restos por uma singela lapide, na qual se lia unicamente;

 

AQUI ESTÁ A RAINHA D. LEONOR.

 

Que mais era preciso, para não esquecer o nome, de quem foi, toda a sua vida, exemplar inestimavel das mais peregrinas virtudes?!

As estatuas, ou os grandes monumentos sepulcraes, se quasi sempre testemunham a vaidade de quem os erige, nunca fazem esquecer os erros do glorificado.

O monumento da rainha D. Leonor está no coração dos povos de Portugal, que tantos beneficios teem recebido e continuam a receber das Misericordias.

As relações do nosso paiz com a Abyssinia estabeleceram-se{240} definitivamente no seculo XVI, e conservaram-se até o seculo seguinte.

Affonso de Albuquerque, sendo governador da India, teve o grande pensamento de unir-se ao Préste, com o fim de divertir a corrente do Nilo, para a banda do mar Vermelho, junto da peninsula de Méroé, entre aquelle rio e o Atharah, abrindo um novo leito, e entulhando aquelle pelo qual descia para o Egypto. D'esse modo esterelizaria os campos egypcios, que eram os principaes graneis do sultão ottomano.

E Christovam da Gama, á frente de um punhado de bravos, partiu de Massuah a 9 de junho de 1541, e correu em soccorro do Préste, ameaçado pelo scheick de Zeila.

D'esse heróico filho de Vasco da Gama diz um historiador nosso: «era o primeiro, que tomava o fato ás costas, e com esta fragueirice e vontade acrescentava a dos outros soldados, para que trabalhassem dobrado sem o sentir.»

Foi desbaratado e morto pelos adversarios do Préste; mas os valentes portuguezes, que escaparam, tiveram pouco depois a gloria de vingar a morte do seu illustre capitão, derrotando completamente o inimigo.

Aureos tempos!...

Maria Thereza revelou a sua vasta illustração, publicando algumas obras em latim,[12] e sendo por{241} isso aurora brilhantissima da renascença das lettras em Portugal.

Todas as tardes ia sentar-se a uma das janellas do mosteiro, e de lá contemplava o Tejo...

Quando voltavam as náus da India, perguntava talvez ao formoso rio, se com ellas teria vindo alguma saudade de Pero da Covilhan!...

E depois da morte de D. Leonor, quando retirava da janella, ia ajoelhar sobre a sepultura da rainha, orava alli, durante algum tempo, no maior recolhimento, e deixava a lapide orvalhada de lagrimas!... {242}
{243}

 

NOTAS

 

A

PAG. 3.—«... de encobrir com a mantilha um dos seus formosissimos olhos». Como referimos no Cap. XI, o tarbah das musulmanas serve-lhes de abáfo e tambem lhes véla o rosto, não deixando algumas vêr senão um dos olhos. É de presumir, que as andaluzas herdassem d'ellas este costume.

 

B

PAG. 26.—«...a ponto de provocar a formação das Hermandades». Estas confrarias politicas, instituição popular da edade media, excluiam por essencia o influxo da auctoridade real e serviam não só para manter a segurança publica, senão que velavam egualmente pela conservação dos fóros e liberdade dos povos e communidades que as formavam. Eram uma força importantissima, que os reis catholicos habilmente aproveitaram depois, fazendo depender do governo do Estado a disciplina e constituição d'ella. Organisando as capitanias e mais tropas da Hermandad, aquelles principes lográram ter um corpo permanente de exercito, prompto a conter em respeito o poder dos magnates. Foi um ensaio de milicia nacional, paga immediatamente pelos povos, e que muito contribuiu, para que a corôa se emancipasse da influição e dependencia da mais incommoda e turbulenta oligarchia.{244}

Muito antes de conflicto do Toro já existia a «santa hermandad», e não foi «organisada contra as tropas portuguezas», que depois d'elle se limitavam a saquear as terras, a praticar actos de bandidos, como erradamente affirma o Sr. Oliveira Martins em O Principe Perfeito.

 

C

PAG. 33.—«Não é d'este modo, que deve comprehender-se a missão da historia». Clemencin, referindo-se aos historiadores e chronistas ácerca do silencio de uns e das diminutas noticias de outros, em assumpto de tanta monta, como a successão á corôa de Castella por morte de Henrique IV, diz: «o fallar tinha inconvenientes, e a relação inteira e veridica do succedido podia offender a pessoas auctorisadas e poderosas».

É evidente o corollario d'esta affirmativa tão imparcial, como sensata.

 

D

PAG. 47.—«... o principe D. João casasse com a princesa de Castella, D. Joanna». Zurita, que tão parcial se mostra na descripção do encontro de Toro, e tão affecto a D. Fernando, o Catholico, diz, que D. João II, sendo principe, muito desejou a entrada de D. Affonso V em Castella; mas «condemnou depois o máu conselho d'elle, em não haver acceitado os primeiros casamentos d'aquelle reino: que era casar el-rei com a Infante D. Isabel, e elle com a princeza D. Joanna». Zurita, Anales de Aragon, tom. IV, liv. XIX, cap. XVIII.

Em fins de 1463 ou principios de 1464, avistando-se em Gibraltar os reis D. Henrique e D. Affonso, trataram de casar D. Isabel com este Diogo de Clemencin, Mem. de la Real Acad. de la Hist., tom. VII.

 

E

PAG. 69.—«... a bandeira real, que por instantes tremulara na mão de um castelhano». O sr. Oliveira Martins em O Principe Perfeito mostra, não dar crédito ao caso do escudeiro Gonçalo Pires haver, com effeito, recobrado o estandarte real, e affirma simplesmente, que Pedro Vaca o tomou. Ignorava de certo, que existe{245} em Torre d'Eita, povoação pouco distante de Viseu, uma familia illustre, a qual representa legitimamente o seu antepassado Gonçalo Pires, por isso usa do brazão e appellido de Bandeira, concedidos a elle, como recompensa do seu brilhante e heroico feito de Toro.

É conseguintemente falso, que na veiga de Bisagra a multidão apinhada visse passar os reis catholicos em procissão, levando como tropheu o estandarte real portuguez a varrer as ruas.

 

F

PAG. 90.—«D. Affonso V era muito instruido, e tinha grande predilecção pelos que cultivavam as lettras». O sr. Oliveira Martins amesquinha com tão rematada injustiça o páe de D. João II, que dotando-o de um genio incoherente e curto no alcance, concede-lhe a primasia em organisar uma bibliotheca no paço, mas... unicamente por seguir a móda; e occulta o facto de ter sido o sympathico heróe de Arzilla o primeiro rei, que tratou, de que se escrevesse em lingua latina a historia portugueza.

Singular criterio!

 

G

PAG. 100.—«...cortezãos dotados de bôas prendas». Talvez o leitor compulsasse já um livro intitulado Viagem por Hespanha e Portugal no seculo XV, de Nicolaus von Popplau, cavalleiro da casa de Frederico III, imperador da Allemanha.

Nas poucas paginas consagradas ao nosso paiz, o auctor, que por cá andou nos ultimos mezes de 1484, capitula de incivis, de ignorantes e de insensatos tanto nobres, como plebeus. Considera os portuguezes, em geral, incapazes de bons costumes e sem bondade. Ás mulheres, dá-lhes os olhos negros e furiosos.

Nas taes paginas, porém, encontra-se a explicação do máu humor, com que foram escriptas. Relaxo, pois, ao meu despreso a estolida aldravice.

 

H

PAG. 154.—«...depois de ter descoberto a costa do Labrador». Quem primeiro tornou publico este facto, foi o illustrado e benemerito michaelense, sr. Ernesto do Canto, no Archivo dos Açores,{246} vol. XII, pag. 529; e confirmou-o, exhibindo um documento no seu opusculo Quem deu o nome á Terra do Labrador.

Mais tarde o mesmo academico publicou outro documento comprovativo, que foi extrahido da Chancellaria de el-rei D. Manoel, e fornecido pelo indefesso investigador, o erudito general sr. Jacintho Ignacio de Brito Rebello.

 

I

PAG. 155.—«... a quem a patria não fez ainda a devida justiça». Em a Noticia Preliminar, que precede o Esmeraldo de situ Orbis, publicação dirigida pelo douto academico sr. Raphael Basto, para a commemoração do quarto centenario do descobrimento da America, mostra o sr. Basto, com trechos de uma carta de Pero Vaz de Caminha e do Roteiro de Duarte Pacheco, ser acertado, não attribuir a mero acaso o descobrimento da terra de Vera Cruz. Como temos, ha muito, esta opinião, folgámos de vêr, que para ella pende o sr. Raphael Basto, a cujas investigações persistentes e conscienciosas muito deve já a historia portugueza.

 

J

PAG. 155.—«... da geração e linhagem dos Machados». É digno de reparo que a familia Barcellos adoptasse o brazão, que lhe pertencia por linha materna, parecendo assim reputar de menos valia as flores de liz, que seus maiores, por linha paterna, ostentavam legitima e vaidosamente gravadas no seu escudo.

A varonia dos Pinheiros é, como a dos Machados, illustrissima, não só pela sua antiguidade, mas pela sua régia ascendencia. Sobre isto são accórdes todos os nossos genealogistas.

Se com os Machados se ligáram os Azevedos, os Cunhas, os Vasconcellos, os Silvas, os Castros, os Val de Reis, os Montebellos de Hespanha; com os Pinheiros aparentaram-se numerosas familias nobres, como os Alvitos, os Galveias, os Alcoforados, os Lacerdas, os Pereiras de Bretiandos; de modo que se diffundiu por quasi todas as mais antigas casas do reino o sangue das duas familias.

A preferencia pelo brazão dos Machados explica-se talvez, por serem estes mais opulentos na ilha, do que os Pinheiros, e todos{247} os parentes d'aquelles procurariam contribuir, para perpetuar o nome, que muito os distinguia aos olhos de seus conterraneos. E tanto os Barcellos iam n'essa esteira, que nem os fez desviar d'ella a honrosissima carta, com que o rei D. Manoel premiou tão liberalmente os serviços do navegador Pedro de Barcellos. Não apreciáram até devidamente o valor particular d'essa mercê.

D. Manoel não quiz estimular apenas os descendentes do agraciado, e aquelles a quem constasse; era natural suppôr, que no animo do rei pesaria a circumstancia, de pertencer o filho de Pedro de Barcellos a uma familia, que tantos serviços prestára á casa de Bragança, e d'isto podia ser informado o monarcha pela rainha D. Leonor, sua irmã.

De certo não ignorava, e por isso não esquecia a viuva de D. João II, que Pedro Esteves, avô de Pedro de Barcellos, se creára no paço de D. Affonso, primeiro duque de Bragança, e d'alli fôra a Salamanca estudar direito civil e canonico na Universidade, onde o graduaram de doutor in utroque. Voltando para Portugal, tornou-se notavel pelo seu grande entendimento, summa prudencia, bom conselho, profundo conhecimento das lettras, e as suas muitas virtudes e qualidades o fizeram conciliar os affectos de todos os principes do seu tempo.

Era cavalleiro da casa de el-rei D. Duarte, e nenhum negocio da de Bragança se tratava, sem que elle fosse ouvido, mostrando-se sempre tão imparcial e recto em seus conselhos, que o infante D. Pedro, quando regente, o chamou para seu lado.

Seu páe, Estevam Annes, o Môço, fôra educado na casa do condestavel D. Nun'Alvares Pereira, seu parente, e acompanhou, desde muito novo, em todas as grandes e famosas emprezas o glorioso vencedor da batalha dos Atoleiros.

Mas, para maior lustre e gloria dos Barcellos, o navegador Pedro Pinheiro de Barcellos, ou Pedro de Barcellos, como officialmente o denomina a carta de D. Manoel, foi bisavô do Beato João Baptista Machado, que, renunciando o morgado e casa de seus páes, entrou na Companhia de Jesus, e foi martyrisado no Japão em 22 de maio de 1617.

O representante legitimo d'esta familia Barcellos, da ilha Terceira, é o antigo fidalgo sr. Francisco de Paula de Barcellos Machado Bettencourt. D'este e de sua mulher e prima, já fallecida, a sr.ª D. Maria Isabel Borges do Canto, era filha D. Francisca Emilia de Barcellos e Canto Bettencourt do Carvalhal Brandão, raro modêlo de virtudes, alliadas a uma intelligencia e a uma illustração sãs, que se lhe serviram de ornamento proprio, tambem{248} contribuiram, para honrar mais ainda a sua estirpe nobilissima.—Foi a mãe, sobre todas carinhosa e desvelada, de meus filhos.

Fica assim patente a razão, por que Pedro de Barcellos apparece na côrte de D. João II, e justifica-se o tratamento de primo, que Maria Thereza lhe deu, não para desdenhar os seus requebros, mas para congelar-lhe os enthusiasmos.

 

[1] Canc. Gen.

[2] Canc. Gen.

[3] Hist.

[4] Camões.

[5] Ruy de Pina.

[6] Ruy de Pina.

[7] Canc. ger.

[8] Misc., Garcia de Rezende.

[9] Historico.

[10] Historico.

[11] Historico.

[12] Historico.

 

 

Notas de transcrição:

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