The Project Gutenberg eBook of Camillo Castello Branco

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Title: Camillo Castello Branco

Author: Antonio da Silva Pinto

Release date: February 22, 2010 [eBook #31346]
Most recently updated: January 6, 2021

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CAMILLO CASTELLO BRANCO ***



 

OS CONTEMPORANEOS


CAMILLO CASTELLO BRANCO

POR

SILVA PINTO


200 Reis


Logotipo do editor

GUILLARD, AILLAUD & C.ia, LIVREIROS-EDITORES
47, Rua de S.t André-des-Arts
PARIS
Filial: 28, Rua Ivens, 1.º
LISBOA


1889

 

 

 

 

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

 

Imagem de Camilo

 

 

OS CONTEMPORANEOS


CAMILLO CASTELLO BRANCO

POR

SILVA PINTO


200 Reis


Logotipo do editor

GUILLARD, AILLAUD & C.ia, LIVREIROS-EDITORES
47, Rua de S.t André-des-Arts
PARIS
Filial: 28, Rua Ivens, 1.º
LISBOA


1889

 

 

CAMILLO CASTELLO BRANCO

Quando se interroga um leitor portuguez sobre a individualidade litteraria de Camillo Castello Branco, o interrogado se é homem affirma a recordação dos risos, se é mulher a reminiscencia das lagrimas; e d'este duplo tributo, da razão e do sentimento, resalta a nitida comprehensão do homem de genio que ha trinta annos, dia a dia, armado da observação e da intuição, tem erguido o mais poderoso e alevantado monumento de que ha registro em lingua portugueza.{9}

 

I

Na dolorosa epopêa do genio discutido e calumniado abre uma excepção, que nos consola, este grande nome de Camillo Castello Branco. Os grandes homens insultados pela mediocridade confiaram sempre do futuro o glorioso desaggravo; Camillo encarregou-se da desforra; e os seus insultadores são homens mortos para a imputação, desde a hora em que o gigante os discutiu,—dado que não vinguem purificar-se no arrependimento e honrosamente confessal-o.

Eu insisto ainda agora na expiação que me rehabilita: se ha quem muito deva em lição, mais que muito salutar, ao mestre de todos nós, sou eu, que lhe aggredi o trabalho colossal, sem resvalar ao insulto ignobil ao homem que mais tarde me foi mestre e ao lar que me recebeu amigo...

Pude assistir, hospede, n'esse lar, á formação do ultimo livro de Camillo. Pede-me a consciencia, porventura illudida, um juizo favoravel á consciencia dos insultadores do livro e do seu auctor;—eu creio que os sentimentos de simples equidade, avocados pela simplicissima vergonha, dariam rebate á confissão do erro no espirito d'esses transviados, se n'esses espiritos pudesse transluzir um clarão tenuissimo{10} d'aquelle viver de sacras amarguras que tem o lenitivo no trabalho, ou que desabafa em palavras de amigavel incitamento quando a provocação dos insensatos o não distrahe para as violencias do correctivo.

Afigure-se ao leitor de boa fé e de claro entendimento que a sorte, raro propicia a entendimentos honrados, o levou em hora de paz ao remanso de S. Miguel de Seide. É hospede na hospitaleira morada. Alta manhã, subiu ao gabinete de trabalho do mestre e achou-o solitario. Sahiu da officina para o lugar do descanço: sobre o leito, presa dos soffrimentos physicos de cada hora, que os soffrimentos moraes vingam suffocar a espaços, o grande homem descança no trabalho. Não ha que hesitar na interrupção: entrai: lá está o sorriso socratico do mestre a receber-vos, carinhoso. Ahi tendes a féra que se propõem acossar uns taes que mal espulgam a insignificancia nas horas ferozes em que o pulguedo da vaidade parva lhes dá rebate ás furias: ahi tendes o homem feroz que esses pregoeiros de especiarias podres apontam como o algoz de suas industrias d'elles. Não hesiteis na expansão do vosso crêr: elle—o verdugo—tem indulgencia e conselho para todas as ignorancias; tem o silencio de favor para as vaidades que o não insultam; o que elle não tem é a resignação criminosa da bondade exaggerada, quando os pygmeus chafurdam no pantano fetidissimo da injuria soez, no intuito de lhe salpicarem a formidavel sombra; o que elle não tem é a indulgencia da{11} exaggerada caridade quando suspeita que o aggressor ingenuo encobre o vulto de villão cobarde que se agacha na sombra, menos escura que a alma do miseravel.

Então, n'esses momentos em que os profanos imaginam, á luz vermelha da represalia do mestre, uma irritação feroz, o grande homem converte o insultador em titere, prende-lhe o cordel; puxa: as cambalhotas succedem-se; o publico ri perdidamente, ou sente fremitos de espanto: o insolente morde a terra, e, quando o auditorio espera a punhalada final vibrada pelo gigante, o gigante applica no esmurraçado nariz do iconoclasta um misericordioso piparote, e ri.

Riso que seria crudelissimo se a bondade da suprema força o não temperasse...

Ás vezes, quando o feroz inverno da aldêa me fornecia, benevolo, o pretexto para conservar-me á beira de Camillo, o mestre concedia-me a leitura do seu trabalho, e eu lia distrahido: é que eu pensava, em quanto lia, nos esforços de uns miseros parturientes que atrôam os ares com os seus gemidos, quando cerradas noites dolorosas de meditação lhes arrancam dez paginas de original, morto ao nascer,—uns reformadores sarrafaçaes que põem a tratos de emendas os compositores martyres, quando não preferem—no furor de producção—pôr a tratos a critica misericordiosa que lhes corrige, em que peze a safanões ingratos, as demasias de desaforados absurdos.{12} Confrontava, e confronto a espontaneidade uberrima e a ardentissima e vigorosa seiva d'aquelle espirito de luz com a escuridade interior dos eunucos que o doestam lá da acolheita das suas tropelias. É assim que o mister do critico se distrahe, a espaços, avocado pelo dever de amargas retaliações.

A Corja, elaborada ao correr da penna pelo mestre, é um novo documento para o processo da mixordia litteraria. Demonstra-se, uma vez ainda, que o esplendor da obra nova é uma illusão d'optica, fascinadora para o gentio zanaga, se os arrebiques não occultam o oiro de lei da concepção genial, ou da observação profunda, de par com os conhecimentos da lingua em que se escreve.

E raro occultam esses thesouros.

O que por ahi vemos, é a saudação aos arrebiques; e, justiça inteira, se á pobre chronica jornalistica não é vedado o ingresso nas sociedades de geographos e de escriptores, a crassissima ignorancia veda-lhe o uso da palavra em assumptos que demandam estudo. Que ha a esperar em affirmações de tal lote por parte d'esses eternos infantes prodigiosos que trocam por bilhetes de theatro a sua triste collaboração nas gazetas e os seus direitos de litterato no Martinho ou na associação risonha?

Eu não posso reproduzir-me no aquilatar da moderna escóla (?), dos modernos artistas, dos modernissimos abortos e das deturpações que o trabalho de boa fé tem obtido dos censores inconscientes e dos{13} facciosos instrumentos involuntarios de uns tetrarchas burlescos da evolução deturpadissima. Mas que primores de sanissima linguagem, para lição crudelissima dos abortos e para nossa lição solicitada, não offerece o novo livro de Camillo! Depois, como a espaços, transparece, no decorrer da epopêa de miserias, o moralista mordacissimo, e como n'essa mordacidade transluz um raio de suprema piedade que sóem experimentar e conceder os espiritos de lei, firmados na base dupla do estudo e da experiencia dolorosa!

Eu pasmo—hoje—quando um espirito culto e de serios precedentes atira a luva, de envolta com a injuria, ao invencivel athleta de mil combates. Comprehendo as aggressões de uns gatunos que pedem a um puxão d'orelhas a celebridade, uns pelitrapos de botiquim aceites na Associação dos escriptores portuguezes (sic): mas, que uma entidade pensante, no usufructo da imputação desça á camaradagem com a suja horda—é o que não se póde comprehender sem derivar, para o triste caso, da allucinação partidaria, tanto monta—do mais triste facciosismo.

Elle, o flagellador da Corja, não é apenas o erudito e paciente investigador da nossa historia, o derradeiro e mais illustre mestre da lingua portugueza, «o gigante que fixou em livros immorredouros toda a comedia portugueza contemporanea» (palavras do snr. A. da Conceição no seu primeiro artigo sobre A Corja); mal vae aos tristes aggressores que o consideram immobilisado nos estudos de ha vinte annos:{14} com a autoridade de quem assim levianamente creu e mais tarde corrigiu os seus erros sobre Camillo e sobre outros, eu poderia asseverar que o grande escriptor acompanha no seu retiro da aldêa todo o movimento litterario e scientifico do periodo contemporaneo,—poderia asseveral-o, se não visse bater em retirada, após tres dias de lucta, a aggressão moderna ao supposto immobilisado... Mas não será um crime egual ao da aggressão esta apparencia de defeza?

De homens como Camillo é uso dizer-se: «Está ainda mui perto de nós para a justiça; o futuro ha de fazer-lh'a». Quer dizer:—Estabeleçamos como norma o insulto aos mestres, durante a vida; mais tarde, depois da sua morte, nos servirão seus nomes para injuriar os vivos! Oh! espiritos sublimados dos homens d'hoje, reformadores do existente, destruidores da torpeza legalisada! se não applicasseis todo o marmore disponivel á construcção das vossas proprias estatuas antecipadas, se não empregasseis o vosso esforço em tentativas de demolição das glorias justificadas, se não desseis guarida aos insignificantes repletos de odio e aos parlapatões repletos de charlatanismo, se abrigasseis o respeito ao genio aureolado pelos cabellos brancos e pelo saber,—não dariamos o espectaculo permanente de contendas deploraveis entre os apregoados voluntarios do bom senso e da justiça.{15}

 

II

O Movimento do Romantismo em Portugal affirma-se n'uma corrente de banalidades que dão em litteratura a nota da suprema inepcia. Mas todos os crimes e todas as faltas, melhor todas as excrescencias d'essa evolução de sentimentos se resgatam e afundam no esquecimento misericordioso, se acertamos em ver a toda a luz, a obra colossal do homem de genio que entre nós consagrou o romantismo e que o mantem, quarenta annos volvidos, nos dominios do romance portuguez, em plena força indestructivel e em plena gloria incontestavel.

Vieram, com grandes esperanças, algumas tentativas de implantação de novas formulas e de processos novos. Não escaceou o talento, menos ainda a observação, com todo o brilhantismo expositor. Mas faltou a paixão—desculpe-se a velha definição do facto eterno e insubstituivel. Foi pela paixão que triumpharam os raros e grandes triumphadores da geração d'hontem. Surgem os excessos de analyse, as subtilezas, as minudencias, a cathedra para os sentimentos, mas a inferioridade do effeito é manifesta. O successo relativo do romance modernissimo está nas bellezas do descriptivo e nos pormenores liberrimos até aos dominios da pornographia. Mas é{16} raro que dos detalhes saia o grande traço emocional, a forte scena dramatica que convulsiona, a grande synthese psychologica que se impõe e que illumina como uma revelação.

 

Um lucido e poderoso espirito que nós perdemos e choramos e cujo nome deixaremos vinculado a este singelo estudo—o poeta Cesario Verde—apresentava-nos um dia diversas definições muito rapidas e muito seguras de varios escriptores portuguezes. Tendo de referir-se a Camillo Castello Branco, apresentou a seguinte definição—«é o mais litterato de todos»—completo: é no terreno do estudo severo a erudição benedictina apoiada no bom-senso profundo; é o sacerdos magnus nos dominios da lingua portugueza; é o humorista Sterne combinado com o humorista Henri Heine, e das amarguras d'este teem muito as suas amarguras. A nota plangente que faz estremecer e sossobrar os espiritos na desolação ou que os redime pelas lagrimas, fere-a o grande escriptor com a sinceridade do momento—que é toda a força da paixão. Em hora de zombaria serena assimila os processos novos e desmascara-lhes a impotencia e a inferioridade; logo, corrigindo a ironia, dá-nos em duas paginas que adiante serão transcriptas a scena mais artisticamente executada da galeria do romance portuguez.

Teremos ensejo de fallar d'elle como polemista. Vejamos no entanto a philosophia do seu riso.{17}

 

III[1]

«Não conto commigo para destramente me desempenhar da empreza litteraria em que se faz mister mais mocidade de coração que lettras bem ajuizadas.

«É materia,—se se pode com tal nome invilecer o que ha ahi mais subtil e espiritual—é materia, isto d'amores, para inspirar sérias considerações a homem dos meus annos.

«E se os amores vêm d'azas quebradas e involtas nas escomilhas do lucto, se em vez de grinaldas de rozas, cingem cypreste; se lhes alvejam a tiracolo caveiras em vez de aljavas, e lá dentro estiletes hervados em vez de flechas d'ouro—emfim amores negros, amores abominaveis,—maior dever me corre de ser sizudo, elegiaco e espantador de paixões.

«Conheço-me. Dei o primeiro passo na senda da sabedoria, segundo Cicero: se ipsum nosce; cavei com utilidade no preceito: Nosce te ipsum; sabia felizmente um pouco de latim para me intender mais depressa.

«A minha raiva ao planeta em que estou é acerba{18} mas fica muito aquem da misanthropia. Em rapaz fiz de Heraclito, quando não conhecia melhor do que hoje este grego que aforou as lagrimas com honras de eschola philosophica. De tal philosopho, coisa que sirva, só temos o boato de que chorava e declamava em publico. Hoje em dia, um homem com esta sensibilidade era levado ao commissario de policia.

«Por mim e pelos meus visinhos tambem eu chorei.

«Eis que, desce a geada de muitos invernos a nevar-me, o frio a filtrar, a temperatura dos liquidos a descer, o sangue a coagular-se, e logo o cristallisar das lagrimas no coração como as concreções vitreas d'uma caverna.

«Principiei a rir ás vezes.

«Rir é contrahir-se o diaphragma e os musculos faciaes, operação materialissima, muscular, carnal, e que nenhum outro animal exercita.

«Claro é que o rir é attributo de ser racional.

«A par e passo que a razão se allumia e fecunda, as contracções musculares amiudam-se. Raciocinar é rir. O acume da sabedoria humana é ver os reversos das tragedias sociaes; lá está por força a comedia. A ignorancia que esteriliza e mirra e incalvece é a que só deixa ver uma face da mortalha.

«Eu não cheguei ainda aos pinaculos da sabedoria.{19}

«Vou subindo.

«Subir é ir um homem desatando os nós que atam a dôr estranha á sua; é ir tirando ás coizas tristes a sua essencia lacrimal, por feição que o sunt lacrimæ rerum de Virgilio não se perceba.

«O rir, porem, do animal philosopho não é a casquinada saloia do bipede implume de Platão que vaga á toa e á tuna, sem casta de philosophia nenhuma.

«Ha ahi um gargalhar que a sciencia denomina spasmo cynico, ou de cão, um exhibir das arcadas dentarias até aos condylos. É o caracter bestial da canalha. É o que os inglezes chamão rir de cavallo—horse laugh.

«Ha tambem o rir chamado sardonico, o rir d'uns que comeram o fabuloso rainunculo da Sardenha. Ora entre nós os que d'esta arte destampam gargalhadas não comeram rainunculos, é gente imbuchada de feijão branco e orelha de cevado. Essa hedionda deformidade caracterisa estupidez quasi sempre malevola; corresponde ao espojar-se, se o rir é meramente bruto e ao escoucear, quando é bruto e mau.

«Não riram assim Democrito, Aristophanes, Esopo, Petronio, Aretino, Gil Vicente, Erasmo, Sterne, Rabelais, Charron, Molière, Voltaire, Tolentino, Byron, Heine.

«D'estes, alguns, senão todos, riram dos homens e dos Deuses.{20}

«E o ultimo nome que cerra a phalange consubstancia todas as calamidades comprehensiveis, desde o jazer do paralytico cego, até á theophobia, o horror de Deus. E, assim mesmo, como elle adivinhou o sorrir de Satan, a despenhar-se das regiões da luz, onde o Summo-Bem permittiu que se gerassem Anjos soberbos! Vejam a superrima vingança d'aquelle Prometheu que recurva os dedos nos fusis da gargalheira, que o amarra oito annos a um leito, e do estridor dos ferros sacudidos, medula o sinistro arpejo das suas gargalhadas sarcasticas! Como Lucifer invejaria o gentilissimo demonio que retransido das agonias da nevrose, todo trevas dentro e fora, creava a paradoxal harmonia do gemido com a risada.

«É preciso ter chorado para immortalisar o riso no livro, na estrophe, na sentença, na palavra; o riso que excava, mina e alue theogonias; o riso que desfaz religiões, cujo berço boiou embalado sobre ondas de sangue;

«O riso que abate a abobada do templo sobre as ossadas dos martyres;

«O riso que revolve as tormentas dos imperios, e abysma thronos, e espuma espadanas de lama, lama com que as gerações erigem os seus marcos millenarios, as suas chronologias gloriosas.

 

«Oh! mas que susto não faria aos proceres que{21} regem a republica e aos sacerdotes que regem almas, o rir do demagogo e do atheu, se a cada chasco d'uns taes ruissem thronos e altares?

«Nada de medo em Portugal.

«Aqui o dardo do sarcasmo alcança apenas o scopo onde a calumnia mira. As gargalhadas, como aqui as bascolejam estas maxilas alvares dos goliardos professos, vingam mariar a honra d'um homem, desluzindo-lhe o passado, innoitando-lhe o futuro, infernando-lhe o sanctuario da familia. Isto é o mais. Receal-as todavia, como attentatorias das instituições civis ou religiosas, seria dar-lhes a honra de ridiculisarem quem as teme.

«Aqui não ha esgrima de facecia que entre dois contendores decida um pleito util. Dois homens que se medem e floreteam a remoques são dois fundibularios que se apedrejam.

«Ninguem se lembrou de inscrever algum dos nossos satyricos na pleiade dos que, rindo, castigaram. O espirito portuguez nunca espantou ninguem. A bruteza carniceira, sim. Assevera-o o douto e pio bispo Amador Arrais: «Espanta-se o mundo e tem inveja á nossa ferocidade.» Isto escreveu-se, de boa fé, no seculo XVII entre a inquisição e a pirataria portugueza no Oriente.

«Quando Rabelais e Montaigne forjavam alavancas para Voltaire—o ridente que transfigurou a Europa—nós queimavamos homens, em cujas frontes lampejassem reflexos de João de Leide ou{22} de Petrus Ramus. Quando, em França, rumorejavam os sorrisos prenuncios do terramoto social, aqui ouvia-se o mugir subterreo das masmorras d'um cruelissimo verdugo, que disputava á inquisição trevas e supplicios para centralisar a ferocia do poder em si, e esteiar o throno nos caibros da forca. Para o riso, que assombrava o dogma, acendia-se a fogueira; para o que assombrava a realeza, arvoravam-se os patibulos de Belem.

«D'ahi procedeu que portuguezes ainda teem n'alma crepusculos d'aquella grande noite. Não sabemos rir com «espirito»; apenas gargalhamos com os queixos.

«Sem embargo, implantou-se entre nós uma coisa creada pontualmente para nós. Chama-se a «chalaça», que já deu uma filha estupida como sua mãe, chamada a «laracha».

«Mãe e filha vivem abarregadas com uns chanceadores lettrados da indole dos «eternos tolos» de Tertulliano.

 

«Aos quaes peço indulgencia, se a merecem as tortuosidades por onde me transviei, degenerando d'aquella derreada prosa com que abri esta coisa alabyrintada.

«Era meu proposito dizer espalmadamente que, ha vinte annos, comecei a ver as duas faces dos lances tristes: uma que intende com as glandulas lacrimaes, outra com o diaphragma. Primeiramente,{23} se não choro, condôo-me; depois, esgaravatando na raiz das dores humanas, encontro ahi ou sedimento de perversidade ou ridicularias miserabilissimas. Então é o rir. E, afim de que os padecentes me desculpem, rio primeiro de mim.

«D'ahi se causou que os meus livros, entre muitos defeitos, realçam em um que tem ferido a benevolencia da critica: e é que não conservo, sem intercadencias desvanecidamente faceciosas, uma situação plangente, e amarguro com o acerbo da ironia a dulcidão das lagrimas.

«É justo o reparo.

«E n'este livro me quer parecer que tal defeito subirá de ponto; porque vou intender em tragedias amorosas, n'esta edade de quarenta e tres annos feitos, velhice em que nenhum escriptor sincero, obediente a Horacio, deu aos seus leitores o exemplo das lagrimas. Si vis me flere, etc.

«D. Francisco Manuel de Mello, em annos sediços, escreveu uma Epanaphora amorosa. Succede, por isso, ao estremado estylista que faz rir a gente quando os seus personagens choram. É o providencial castigo de quem anda, fóra de sasão, á cata de flores, ou intenta com myrradas perpetuas dar fragrancia de tomilhos ao livro que resumbra o acre enjoativo do bolor.

«E d'isto me pesa; que este livro abrangerá um tristissimo caso que me fez invelhecer annos na hora em que o vi. Que profanação, se o riso me{24} antepozer os fantasmas irritados das almas insepultas!

 

«Creio que, ao fechar d'algumas sepulturas, se abrem livros de proveitoso doutrinamento ao de e cima d'ellas.

«Mas quem procura ahi fontes de vida?

«Quem se demora a ver a ladeira por onde resvalou á leiva humida um mancebo com o coração ainda a queimar-lhe a mortalha?

«Por isso as historias dos mortos se escrevem, e este livro se faz.

«É, todavia, inutil.

«A mocidade não lê d'isto para aprender. Atira-se á voragem e morre—á voragem, onde o menos que se perde é o corpo.

«O coração não se afoga debaixo da pedra onde as cinzas d'outros se desfazem. Cada qual quer sentir, em pessoa, o desfibrar-se-lhe o coração fio a fio, o esvasear-se-lhe de piedade, lagrima a lagrima.

«Depois, ao fogo das volupias infernaes, d'essa massa informe faz-se o pragal, a bruteza d'uma coisa que dá um som asperrimo de tôdo petrificado.

«Seja assim. Eu assim fui. Todos os que eu vi morrer assim foram.»{25}

 

IV

Oiçamos agora as vibrações da dôr e da saudade d'este colosso, que seria o descendente directo de Heine, se não possuisse a envergadura d'um independente:

«No principio d'este anno de 1864 sahi de Ruivães, onde por espaço de oito dias me escondi á minha estrella funesta—a vigilantissima desgraça, que eu ia esquecendo. No termo d'este prazo, estranhei o socego das minhas noites, faltou-me a mão do demonio que me arregaçava com dedos de fogo as palpebras quebrantadas do somno, e fui á procura d'elle.

«Deixei o meu amigo na cumiada do outeiro, visinho da casa, com sua esposa e filhos. As ultimas palavras d'elle foram: «quando tiveres o livro escripto, deixa-me gozar a não vulgar satisfacão de me ver personagem e heroe d'um romance, que me promette uma immortalidade...»

—De quinze dias—interrompi eu.

«Não longe da obscura paragem de Affonso de Teive, á margem do córrego chamado Péle, riacho que, pela primeira vez, é revelado ao mundo em letra redonda, assentei eu a minha tenda nomada. A minha tenda são uns vinte volumes, um tinteiro{26} de ferro e um cabo de penna de osso, que me deram n'outro ponto do mundo, onde ha quatro annos assentára tambem a minha tenda,—ponto do mundo que por um singular acaso implicava ao meu sestro vagabundo: era no anno do Senhor de 1860, nos carceres da Relação do Porto, o menos conveniente dos paradeiros para homem de gostos impermanentes em objecto de aposentadoria. Isto, sem embargo, não impedia que esta minha tão querida penna, tão amiga confidente d'aquellas trezentas e oitenta noites—de janeiro todas, que lá a dentro dos congelados firmamentos de pedra reina perpetuo inverno, e giam as abobadas, não sei se lagrimas, se sangue, se agua represada nos poros do granito,—não impedia, vinha eu dizendo, que a minha penna, com o seu incançavel fremir sobre o papel, me aligeirasse as noites, e aos assomos da alvorada me convidasse para a banca do trabalho, que foi o meu altar de graças ao Senhor, e o confessionario onde abri minha alma ao perscrutar do anjo providencial que me dava a uncção dos athletas e dos grandes desgraçados, para mais affrontosos e excruciadores supplicios.

«Os meus vinte volumes e o meu tinteiro de ferro estão hoje sob o tecto gasalhoso d'uma alma que eu n'outras eras encontrei na minha. Não sei ha que seculos isto foi, nem que congerie de abysmos nos separam para sempre. Parei aqui, porque ainda aqui, a tempos, se me figura rediviva a imagem do{27} passado, ainda aquella alma se me hospeda no coração em instantes de sonhos do céo, ainda a pedra tumular das affeições cahidas á voragem infernal do desengano, está pendida sobre a derradeira: que a saudade é ainda um affecto, um excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptivel que o passado nos herda.

«A casa, onde vivo, rodeiam-na pinhaes gementes, que sob qualquer lufada desferem suas harpas. Este incessante soido é a linguagem da noite que me falla: parece-me que é voz d'além-mundo, um como borborinho que referve longe ás portas da eternidade. Se eu não amasse de preferencia o socego do tumulo, amaria o rumor d'estas arvores, o murmurio do córrego onde vou cada tarde vêr a folhinha sêcca derivar na onda limpida; amaria o pobre presbyterio, que ha trezentos annos acolhe em seu seio de pedra bruta as gerações pacificas, ditosas, e incultas d'estes selvagens felizes que tão illuminadamente amaram e serviram o seu Creador. Amaria tudo; mas amo muito mais a morte.

«Aqui, se Deus se amercear de mim, embargando o passo ao anjo exterminador, que continuo me assalteia os aditos do meu eden de quinze dias, aqui escreverei, com quanta fidelidade a memoria me suggerir, a narrativa que Affonso de Teive me fez.

«Seis mezes ha que se fez noite no meu espirito. Por arrebatados impetos de quem quer furtar-se ás garras de um imaginario dragão, tenho fugido para{28} defronte do meu tinteiro de ferro, e avocado as graciosas imagens, filhas do céo, que, nos dias da mocidade fremente de más paixões, me refrigeravam a fronte, e disputavam ao encanto do mal, psalmeando-me o hymno de amor ao trabalho. O perdimento d'esse amor foi a suprema provação, a forja ardentissima em que minha alma foi lançada á voracidade d'um fogo depurante. Mas, no interior, por tudo em que sombreava a negrura do coração, eram tudo trevas, frio, lethargia, esquecimento.

«Não sei de que futuro abril do meu porvir me veiu esta manhã um bafejo aromatico de flôres, umas ondulações de luz, que me pareciam as da minha juventude. Tudo me visitou como em mãos do fugace archanjo do contentamento. Passou o nuncio mysterioso, passou depressa, mas o meu espirito ergueu-se alvoroçado a saudar o sol de Deus, do Deus immenso que na immensidade dos seus mundos ainda guardará para mim um quinhão de alegrias parcas e modestas, as que unicamente podem dar consciencia repousada, prelibações de bemaventurança, e honrada alliança com os homens.

«Penso que estou escrevendo as tuas palavras, ó meu amigo, redimido a lagrimas, a ultrages e a desapego do mundo. O clarão, que hoje alumiou a minha alvorada, seria porventura um reflexo das tuas alegrias. Ha dias me disseste:

«Sabes tu o que é ter um Deus, que nos escuta,{29} que nos reprova, que nos louva, que nos povôa o espaço onde a alma insaciavel do homem encontra um vazio horrendo, uma respiração afflictiva?» Querias tu dizer-me que orasse? A ti o confesso em grandes enchentes de consolação, e ao mundo o confessarei sem o impio rubor dos miseraveis que perderiam sua alma antes que a irreligiosidade os escarnecesse: orei, meu amigo; porque, n'um dos mais apertados trances de tua vida, quando m'o acabavas de contar, interrompi o teu silencio, perguntando:

«—E que fizeste depois?

«E tu respondeste-me:

«—Depois, OREI[2]

{30}}

 

V

Quando o CRIME DO PADRE AMARO e o PRIMO BAZILIO de Eça de Queiroz estalaram como gritos de guerra nos dominios das lettras portuguezas, fez-se á volta do recem-chegado um clamor de admiração, que, para ser justo, só precisava de ser consciente. Quem isto escreve applaudiu e deu a razão do applauso. O romancista felicitou o critico pela comprehensão do trabalho e dos intuitos. Estes processos desusados tiram á critica a feição protectora e fixam a independencia da arte no sentido elevado e puro da palavra independencia[3].

Mas de par com as saudações criticadas surgiram as acclamações insensatas da turba multa e a exploração perfida do successo do romancista.

A perfidia consistia em jogar os livros de Eça de Queiroz como uma catapulta contra a obra de Camillo Castello Branco. Provocado o velho leão, não moribundo por mal dos aggressores, sahiu a terreno—zombando. O Euzebio Macario e a Corja são tiros certeiros contra a matulagem; não prejudicam nem visam a prejudicar os processos novos dos mestres{31} da ultima geração; mas põem a nota de bom senso na conta do que se derimia entre a velhacaria e a ignorancia e restabelecem a situação no seu terreno sob o ponto de vista da boa critica.

Mas fora dos dois livros de ironia buscaremos specimen de soberba execução artistica, alheia aos antigos processos do grande romancista. É do livro A Brazileira de Prazins. A galeria do romance portuguez não apresenta quadro mais vigoroso, nem mais surprehendente colorido tragico, com todas as nuances de uma observação que se evade á fadiga pelos primores incomparaveis dos seus moldes.

 

«O Melro, ás 8 da noite, quando os freguezes desalojaram, fechou a taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse á mulher:—A casa do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...

«—Credo!—exclamou a mulher com as mãos na cabeça.—Nossa Senhora nos acuda!

«—Leva rumor!—e punha o dedo no nariz.

«—Ó Joaquim, ó marido da minha alma, alembrate dos trez annos que penaste na cadeia! Olha para aquelles quatro filhos!...

«—Já te disse que me não cantes—e relançava-lhe o seu formidavel olhar vêsgo, incendido com os lampejos da candeia em que afogueava o cachimbo de páo.{32} Depois, foi tirar d'entre a cama de bancos e a parede uma velha clavina. Sentou-se á lareira e disse á mulher que tivesse mão na candeia. Enroscou o sacatrapo na ponta da vareta de ferro e descarregou a arma, tirando primeiro a buxa de musgo, e depois, voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.

«—Ó José, vê lá o que vaes fazer!—insistia a mulher, limpando os olhos com a estopa da camisa. E elle, assobiando o hymno de Maria da Fonte, despejava a polvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e elle, cantando n'uma surdina rouca:

 

Leva avante, portuguezes,
Leva avante, não temer...

 

«—Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.

«E o Melro n'uma distracção lyrica:

 

Pela sancta liberdade,
Triumphar ou padecer...

 

«Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um fremito aspero impedido pelas escorias nitrosas. Pediu á mulher umas febras d'agodão em rama, enroscou-as n'uma{33} agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do cano.—Está suja—disse elle—dá cá um todo-nada de aguardente.

«—Joaquim, vamo-n'os deitar, pelas almas. Não te desgraces!

«—Traz aguardente e cala-te, já t'o disse, mulher, com dez diabos!—E pôz-se a assobiar a Luisinha. Enroscou algodão embebido em aguardente no sacatrapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até sahirem brancas e seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou novamente e o ar sahia sem estorvo pelo ouvido com um sibilo egual. Parecia satisfeito, e cantarolava, mezza voce:

 

Agora, agora, agora,
Luisinha, agora.

 

«Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia, introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes, acompanhando o movimento com o dedo pollegar, para certificar-se de que o desarmador, a caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente. Levantou o fusil de aço, que fez um som rijo na mola, e friccionou-o com polvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou a aresta da pedreneira, que faiscava.

«—Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem! soluçava a mulher.{34}

«E elle, zangado com as lastimas da mulher, com expansão raivosa, n'um sfogato:

 

E viva a nossa rainha,
      Luisinha,
Que é uma linda capitôa...

 

«—Vai á loja atraz da ceira dos figos e traz o masso dos cartuxos e uma cabacinha de polvora de escorvar que está ao canto.

«A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus de Braga, e ás almas santas bemditas. Elle encarou-a de esconso, e regougou:—Máo!... máo!...

«Carregou a clavina com a polvora de um cartuxo; bateu com a cronha no sobrado, e deu algumas palmadas na recamara, para fazer descer a polvora ao ouvido. Fez duas buxas do papel do cartuxo, bateu-as com a vareta ligeiramente uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.

 

Agora, agora, agora,
Luisinha, agora.

 

«Depois pegou da clavina pela guarda-matta, e poz-se a fazer pontarias vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao ponto.

«A mulher fôra sentar-se no sobrado, á beira da enxerga de tres filhos a chorar; o mais novo esperneava,{35} dava vagidos na cama a procural-a. O Alma-negra fôra dentro beber uns tragos de aguardente, voltou enroupado n'um capote de militar, despojo das batalhas da Maria da Fonte.—Ora agora—disse elle—ouvistes? porta da cosinha e a cancella da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.

«—Vae com Nossa Senhora—disse a mulher—e poz-se de joelhos a uma estampa do Bom Jesus, a rezar muitos Padre-nossos, a fio.

 

«Era uma noite de fevereiro, de nevoa cerrada, um céo de carvão pulverisado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma estrella. Não se agitava um galho de arvore nua movido pelo ar, nem ondulava uma erva. Era a serenidade negra e immota das catacumbas. Ás vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das carvalheiras a fuga rapida das hardas, dos toirões e das raposas que se avisinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio da coruja no campanario distante, punham arrepios de medo na espinha d'aquelle homem que ia matar outro—chamal-o á janella e varal-o á traição com uma bala.—Era o traçado.

«—Que raio de escuro!—dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.{36}

«Em noites assim, o universo seria o immenso vacuo precedente ao Fiat genesiaco, se os viandantes não esbarrassem com as arvores e não escorregassem nos silvêdos das ribanceiras. O noctivago sente na sua individualidade, nos seus callos e no seu nariz, a doce impressão pantheista das arvores e dos calháos. Que este globo está muito bem feito. Os transgressores do descanço que Deus estatuiu nas horas tenebrosas, os scelerados das aldeias que larapeam o presunto do visinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se não temem encontrar as patrulhas civicas das grandes municipalidades, encontram os troncos hostilmente nodosos das arvores que são as patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mephisto a quem venderam a alma pelo preço da consciencia eleitoral, ou mais barata, chegam incolumes ao delicto, passando illesos como o lobo e o javali por entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a esbracejarem retorcidos n'uma agonia patibular.

«O Melro, como o porco montez e o lobo cerval, embrenhára-se por pinhaes e carvalheiras; ás vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas, rugia o rio Péle nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões. Lamellas era da parte d'além. Mas o rio, de monte a{37} monte, rugia intransitavel nas pequenas pontes. Foi á de Landim, uma aldeia engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das familias distinctas que jogavam a bisca em ricos saráos do faubourg Saint-Honoré, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.

«Havia tambem um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco. Tinia dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.

«O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro. Era elle quem reclamava um quartinho que pozera de porta, e o banqueiro recolhêra com as paradas que estavam dentro, quando tirou a contraria de cara.

«—Que não admittia ladroeiras!

«E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito de ladroeiras; que todos os que estavam d'aquella porta para dentro eram cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros; que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem queria roubar que fosse para a Terra Negra.

«A allusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela forca.{38} Travou-se a lucta a sôco e páo; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas mollas; o Tagarro de Monte Cordova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois galhos do baralho com um murro herculeo phenomenal. O taberneiro abriu a porta para escoar o turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como n'um antro de caverna. Um, porém, dos que estavam, não sahiu; encostára-se ao mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e, vergando sobre os joelhos, n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços, quando o taberneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o Zeferino.

 

«Quando, á meia noite, o Alma-negra entrava em casa pela porta do quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom Jesus do Monte. Ao lado d'ella estavam duas filhas a rezar tambem, a tiritar, embrulhadas em uma manta esburacada, aquecendo as mãos com o bafo.

«O Melro mandou deitar as filhas, e foi á loja contar á mulher, livida e tremula, como o Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego nem estopa. Ella poz as mãos com transporte e disse que fôra milagre do Bom Jesus; que estivera trez horas de joelhos diante da sua divina imagem. O marido{39} objectava contra o milagre—que o compadre não lhe dava a casa, visto que não fôra elle quem vindimara o Zeferino; e a mulher—que levasse o demo a casa; que elles tinham vivido até então na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.

«Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:

«—Emfim, você ganha a casa, compadre, porque matava Zéférino, se os outros não matam elle, heim?»{40}

 

VI

É de Lisboa o grande romancista. Nasceu a 16 de março de 1826. Orphão aos dez annos de edade, foi transportado a Villa Real (Trás os Montes) d'onde passou ao Porto. Foi n'esta ultima cidade que elle se affirmou litterariamente, e no Porto ou a breve distancia tem vivido, salvo alguma ausencia limitadissima, a sua vida de combates e de triumphos.

Hoje vive—ha uns vinte annos—na freguezia de S. Miguel de Seide, concelho de Villa Nova de Famalicão.

S. Miguel de Seide vincula-se á historia litteraria portugueza do seculo XIX, por Camillo Castello Branco, como Valle de Lobos por Alexandre Herculano. Ermos sagrados e veneraveis!

 

Não vale a pena mencionar distincções honorificas, desdenhosamente acceitas por Camillo. Citaremos apenas a distincção que elle recusou; registro de um castigo. É de 1862, na Revolução de Setembro de 19 de março d'aquelle anno e refere-se ao Instituto de Coimbra.

 

As obras de Camillo Castello Branco, manuseadas por duas gerações, durante os ultimos quarenta{41} annos decorridos (tem a data de 1847 o Agostinho de Ceuta) não figuram completas em algum catalogo publicado. Colligimos, todavia, os dados ao nosso alcance para a formação de mais completa lista bibliographica da obra do grande escriptor.

Abençoadas lagrimas!, drama em tres actos.

Agostinho de Ceuta, drama em quatro actos.

Agulha em palheiro.

Amor de perdição.

Amor de salvação.

Amores do diabo, por Cazotte. Traducção.

Anathema.

Ao anoitecer da vida, poesias.

Annos de prosa.

Esboço biographico de D. Antonio Alves Martins, bispo de Vizeu.

Aspirações.

O bem e o mal.

No bom Jesus do Monte.

Os brilhantes do brazileiro.

A bruxa de Monte Cordova.

Cancioneiro Alegre.

Carlota Angela.

O carrasco de Victor Hugo José Alves.

Cavar em ruinas.

A caveira da martyr.

O clero e o Sr. Alexandre Herculano.

Coisas espantosas.

Coisas leves e pesadas.{42}

Condemnado, drama em trez actos.

Coração, cabeça e estomago.

A Corja.

Correspondencia epistolar entre Camillo Castello Branco e José Cardoso Vieira de Castro.

Curso de literatura portugueza, por Andrade Ferreira e C. C. Branco.

A cruz, semanario religioso.

O demonio do ouro.

Diccionario Universal de educação e ensino, por Capagne: traducção.

Divindade de Jesus e tradição apostolica, com uma carta dirigida ao auctor pelo visconde de Azevedo.

A doida do Candal.

Doze casamentos felizes.

Duas epocas da vida, poesias. Incluindo o folheto Hossana.

Duas horas de leitura.

A engeitada, romance.

Esboços de apreciações litterarias.

A espada de Alexandre. Córte profundo na questão do homem-mulher e mulher-homem, por um socio prendado de varias philharmonicas.

Lagrimas abençoadas.

O livro de consolação.

O livro negro, continuação dos Mysterios de Lisboa.

Luta de gigantes.{43}

O Marquez de Torres Novas, drama em cinco actos.

Os martyres, por Chateaubriand; traducção.

Memorias do Carcere.

Memorias de Fr. João de S. José de Queiroz, bispo do Grão Pará, com uma introdução e muitas notas illustrativas.

Memorias de Guilherme do Amaral.

O Morgado de Fafe em Lisboa, drama em dois actos.

O Morgado de Fafe amoroso, comedia em trez actos.

Mosaico e silva de curiosidades historicas, litterarias e biographicas.

A mulher fatal.

Mysterios de Fafe.

Mysterios de Lisboa.

A neta do Arcediago.

Noites de insomnia.

Noites de Lamego.

Novellas do Minho.

O Olho de vidro.

Espinhos e flores, drama em tres actos.

O esqueleto.

Estrellas propicias.

Estrellas funestas.

Eusebio Macario.

Fanny, por Ernesto Feydeau, trad.

A filha do Arcediago.

A filha do Dr. Negro.{44}

A filha do regicida.

A freira no subterraneo, traducção.

Gazeta litteraria do Porto.

O genio do Christianismo, de Chateaubriand; traducção.

Historia de Gabriel Malagrida, pelo P. Mony; traducção.

O homem de brios.

Horas de paz, escritos religiosos.

A immortalidade, a morte e a vida, estudo ácerca do destino do homem por B. Puchesse, traduzido e com um prefacio.

O inferno, por Calet, traducção.

Inspirações, poesias.

O judeu.

Justiça, drama em dois actos.

Onde está a felicidade?

Poesia ou dinheiro, drama em dois actos.

Poesias.

Poesias e prosas ineditas de Fernão Rodrigues Lobo Soropita, com uma prefação e notas.

Purgatorio e Paraizo, drama em trez actos.

Quatro horas innocentes.

O que fazem mulheres.

A queda d'um anjo.

O Regicida.

Romance de um homem rico.

Romance de um rapaz pobre, por Octavio Feuillet, traducção.{45}

O santo da montanha.

O sangue.

Scenas contemporaneas.

Scenas da Foz. Solemnia verba. Ultima palavra da Sciencia.

Scenas innocentes da comedia humana.

O senhor do Paço de Ninães.

A sereia.

Theatro comico. A morgadinha de Val de Amores, em um acto. Entre a flauta e a viola, entremez em um acto.

As trez irmans.

O ultimo acto, drama em um acto.

Um homem de brios.

Um livro, poesias.

Vaidades irritadas e irritantes.

Vida de D. Affonso VI.

Vinte horas de liteira.

Vingança.

As virtudes antigas, ou a freira que fazia chagas e o frade que fazia reis.

O visconde de Ouguella.

Voltareis, ó Christo?

Euzebio Macario.

A Corja.

O general Carlos Ribeiro.

O Cancioneiro Alegre.

Os Criticos do Cancioneiro Alegre.

D. Luiz de Portugal.{46}

O vinho do Porto.

Maria da Fonte.

Eccos humoristicos do Minho.

Serões de S. Miguel de Seide.

Brazileira de Prazins.

Bohemia do Espirito.

Vulcões de Lama.

Luiz de Camões—Carta de Guia.

Vida de D. Affonso VI.{47}

 

VII

Fez-se nos ultimos tempos cerrada noite de amarguras no espirito de Camillo Castello Branco. Os desgostos cruciantes que lhe surgiram da loucura de Jorge Camillo, seu filho, aggravaram-se com a enfermidade dolorosissima e pertinaz, que nos ultimos dois annos tem flagellado acerbamente a vida do illustre escriptor, e levado a consternação e a magoa a dentro dos corações amigos.

Nestes ultimos mezes, após doze annos de ausencia, visitou Lisboa. A vinda do grande homem foi o acontecimento do dia. Acorreram a saudal-o os mais distinctos por seu saber, talentos e posição. A ideia de um tributo por parte do municipio de Lisboa ao seu filho mais illustre n'este seculo pareceu avocar por momentos o senado lisbonense das combinações resolutivas e salvadoras da sua politica. Passou breve o lampejo racional; não houve rua que fornecesse o cunhal para a inscripção d'aquelle grande nome. Estavam distribuidos todos os cunhaes, excepto ainda o das Bolas, pelos bolas contemporaneos, não esquecendo o Diario de Noticias, que o leitor pode ver entre as ruas do Norte e da Barroca, muito gratas ás musas nacionaes.{48}

Regressou ao Minho, e lá vive o grande homem, na região que ficará celebre, mercê dos livros em que elle de preferencia a enquadrou com seus matizes e que elle escolheu para abrigo da sua gloria. Lá vive, longe das academias, longe do bulicio dos pequeninos e dos miseraveis, involto na lenda entre flammejante e sombria da sua lucta e do seu martyrio.

Gloria do seu paiz, em quarenta annos de victorias, Camillo Castello Branco deixará na sua obra o monumento mais complexo e valioso da historia da nossa litteratura, da nossa lingua e das chronicas historicas, e ao mesmo passo o grande e immortal modelo da polemica, do humorismo, da elevação tragica, da simplicidade popular, modelo que fará o desespero—ai de nós!—d'aquelles a quem foi offerecido.

 


 

[1] A Mulher Fatal, introducção. Camillo Castello Branco.

[2] Do Amor de salvação.

[3] Veja-se COMBATES e CRITICAS, vol. I, cap. do REALISMO NA ARTE.

 

 


Typ. GUILLARD, AILLAUD & Cª.—1889.