The Project Gutenberg eBook of Os Litteratos em Lisboa: Poemeto

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Title: Os Litteratos em Lisboa: Poemeto

Author: A. Ferreira de Freitas

Illustrator: Jerónimo da S. Mota

Release date: January 4, 2010 [eBook #30858]
Most recently updated: January 6, 2021

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS LITTERATOS EM LISBOA: POEMETO ***


 

OS LITTERATOS EM LISBOA

POEMETO

POR

A. FERREIRA DE FREITAS

ILLUSTRADO

POR

Jeronymo da S. Motta

BACHAREL NAS FACULDADES DE THEOLOGIA E DIREITO.

 

 

 

 

COIMBRA
IMPRENSA LITTERARIA
1865

 

OS LITTERATOS EM LISBOA

POEMETO

POR

A. FERREIRA DE FREITAS

ILLUSTRADO

POR

Jeronymo da S. Motta

BACHAREL NAS FACULDADES DE THEOLOGIA E DIREITO.

 

 

 

 

COIMBRA
IMPRENSA LITTERARIA
1865

 

AOS

 

IDEALISTAS LISBONENSES

 

O.

 

O AUCTOR

 

 

 

 

  Este trabalho, nascido em cavaco[1] d'alguns amigos, foi fruto d'uma noute: sahiu-nos da penna para o prelo; por isso sirva-nos de desculpa a algumas imperfeições, o pouco tempo de que podemos dispor, e juntamente a boa vontade do auctor.

  A ti, meu caro Motta, agradeço-te do coração o favor, com que annuiste á illustração do—Poemeto—accedendo ao meu pedido, assim como ao dos outros amigos, que o mesmo te rogaram.

Ferreira.

 

 

I
Ignoto Deo

IGNOTO-DEO

I
INVOCAÇÃO

Musa, eu quero ir ó gigantesco enleio
Dos litt'ratos, que chamam de mão cheia;
Eu quero o meu candil levar em punho
Á festa, que de si é uma epopeia.

 

Por isso, ó Musa, ó nume encantador!
Ó sombra indefinivel de mulher!
Não me deixes a mente aqui dormir,
Leva-me á festa, quero lá viver.

 

Vem, tu, que a tantos gloria has dado e nome,
De papoulas a minha fronte ornar.
Vem tirar-me das varzeas do Mondego,
E dá-me inspiração, quero cantar.

 

Lá n'esse patrio lar de rouxinoes
Quero meus carmes no arrabil tanger.
Leva-me, musa, leva-me um cantor
Que eu sinto o genio minha mente encher.

 

E ha de, qual balão em dia tenebroso,
Subir até sumir-se pelos ceus;{10}
Encherá a eternidade, o espaço, tudo,
E offuscará esses litt'ratos—pygmeus.

 

É um cego que o caminho lhes aponta!
E os leva pela mão p'r'o seu altar!
Cordeiros innocentes, d'outras eras,
Que vão de sancto a capa alli buscar.

 

Satellites d'um sol, sem vida e só!
Qu'esparge apenas moribunda luz,
Como hão de atravessar constellações
Tão ricas de fulgor, que mui seduz?!

 

Não podem como as aves agoureiras,
Cantar lá d'alta torre em noute escura,
E dar a quem pertence o gonzo immenso,
Que o futuro nos dá de luz tão pura?!

 

Que importa o caminhar da vaga ardente?
Não vae ella nas praias repousar?
Que importa, pois, tambem a luz d'um foco,
Se vae n'outro mais forte a luz findar?

 

É vaga aspiração de gente tosca
Querer lyrios colher n'um matagal!
E desfolhar as rosas tão mimosas!
Pr'a dar-nos um carvão, puro crystal!!..

.....................................

 

Acaso achareis vós tão bello gosto
Aos frutos succolentos d'um pinheiro,{11}
Que não vejaes, por trás d'escura rama,
Caminhar a rapoza ao galinheiro?

 

Não creio n'essas cousas n'este sec'lo,
Em que tudo caminha ao natural,
Embora esses criticos asseverem
Ser entrudo constante em Portugal.

 

As mascaras de cêra duram pouco,
Das outras é mui fraco o seu cartão:
Hão de os bailes portanto ser famosos
N'outras eras d'amor e inspiração.

 

Vamos, musa, porém, a outros destinos,
Mais franca seja, pois, nossa missão;
Subâmos pela escada do bom senso,
Que importa a gargalhada d'um villão[2].

 

Agora, minha musa, á festa vamos
Dos litt'ratos, que chamam de mão cheia;
Eu quero o meu candil levar em punho
Á festa, que de si é uma epopeia.{12} {13}

II
SIT-LUX

SIT-LUX

II
A MUSA—SALOIA

Adeus, minha musa qu'rida,
Vens hoje tão festival;
Trazes as faces tão lindas
Como a rosa no rosal.
Onde vaes tão elegante,
Mimosa como o zagal?—
Venho dar-te este meu braço,
Quero ter uma rival.

 

Se tu és tão donairosa
Nas tuas vestes singelas,
Como podem captivar-me,
Captivar-me as mais donzellas,
Se eu não gosto d'atavios,
Nem bellezas, que tem ellas?
Póde ser; mas lá no ceu
Ha inda tantas estrellas.

 

Eu não quero, minha musa,
'Star sujeito á lei fatal,
Pois é crime tão horrendo!
O pensar bem no ideal:{16}
E depois mestre Castilho
Se nos manda p'r'o hospital?!
É desgraça na verdade!
Pelletan não lhe quer mal.

 

Oh! como vens conceituosa
D'essas phrases no vestir!
Juntas mais á galhardia,
Tanta prenda, esse sorrir...
Quero, pois, amar-te; e muito
Á força do meu sentir.
Mas eu sou tão singelinha,
Tenho no campo o existir!

 

Mais viveza em ti encontro,
Mais pureza em teu amar;
O crepusc'lo da cidade
É vaidoso em seu cerrar;
E os prazer's, que lá s'encontram,
Vão como a brisa do mar.
Quer então amar-me muito,
Quer levar-me ao seu altar?

 

Porque não, mulher festiva?
Has de dar-me o teu abraço,
E inspirar-me n'essas tardes
Em que o sol é já mui baço,
E se perde no horizonte
Como a nuvem n'esse espaço.
Porque não, meu anjo lindo?
Vamos ambos pelo braço.{17}

 

Tu has de ir comigo á festa,
Como a mariposa á flor,
Has de lá n'essa folgança
Fazer de mim trovador.
Tu não sabes quanto é bello
Ser inspirado d'amor?!
Vamos primeiro ao mercado,
E depois serás cantor.

 

Vamos primeiro ao mercado?
Vamos lá, minha cecem.
Tu que levas no cestinho?
Levas ovos ao vintem?
Ou então são alguns patos.
Que vaes ver se quer alguem?
Não senhor; é outra cousa,
Muito melhor, muito além.

 

Diz-me cá: então são uvas,
Ou de Baccho o seu primor?
Eu não divulgo o segredo
Em paga de tanto amor.
Diz-me então se são gallinhas,
Se são rosas sem olor?
Não senhor; são outras cousas:
São livros de trovador.

 

São abortos d'estes tempos,
Que vaes á praça vender?
Cuidas tu ser isso lindo?
Ser officio de mulher?{18}
Pois, musa tão feiticeira
Não deve d'isso fazer.
N'esse caso ahi vão p'ra lama,
Ahi vão p'ra quem quizer.

 

Tens agora mais feitiços
Ao nascer d'esse desdem:
Olha, pois, para os taes livros
Como não quel-os ninguem:
E tu, musa, tão contente
Com valor nem d'um vintem.
Ora, adeus; deixamos isso;
Caminhâmos mais p'ra além.

 

.......................
.......................
.......................

 

Minha musa, 'stamos juntos
Da cigarra e da folgança:
É aqui onde os litteratos
Tem firmada a sua esp'rança:
E tu, musa, dá-me cantos,
Dá-me o escudo, dá-me a lança...
Ora, pois, espera um pouco,
Vamos ver a contradança.{19}

III
Mons parturiens

MONS PARTURIENS

III
O PARTO

Estendeu seu manto a noite;
       O sol escondeu o brilhar;
As trevas são o que reinam;
       A luz perdeu-se pelo ar;

 

As estrellas que o ceu tinha
       Perderam todo o fulgor;
Os echos emmudeceram;
       A terra não diz amor;

 

A corrente perdeu o brilho,
       Voltou á fonte natal;
As flores seccaram todas,
       Seccaram todas no val';

 

O sol escondeu a fronte,
       A lua seguiu-o tambem;
Os astros se sepultaram
       Nas trevas que o mundo tem;

 

As aves já não tem canto,
       Tem medo da solidão;{22}
A terra já não responde,
       Não falla á voz do trovão:

 

É tudo negrura immensa,
       Ou cataclysmo infernal;
Oh! é ave que, perpassando,
       Nos trouxe o genio do mal...

 

...............................

 

Mas, emfim, lá vem cahindo
       Um espectro n'amplidão;
Oh! que formas nunca vistas
       Que elle traz! que negridão!

 

Tudo treme! n'esse instante
       Parece o mundo acabar;
Ou já o ceu que pouco a pouco
       Quer sobre nós repousar.

 

Oh! que gritos! que soluços
       Solta o filho junto á mãe!
Ao ver perto o grande abysmo,
       Que vem buscal-o tambem.

 

O pisco levanta as pernas
       Para sustental-o no ar;
As aves vão timoratas
       Com elle se nivelar.

 

Outros fogem para a fralda
       Do monte que sobe ao ceu;{23}
Outros, emfim, tomam armas...
       Arcabuzes... que sei eu?

 

Tudo busca um doce abrigo...
       Querendo matal-o no ar;
Mas o espectro vem descendo
       E mui suave em seu andar.

 

E quando todos attentos
       Fitavam triste a visão,
Uma rajada de vento
       Arremessou-a pr'o chão.

 

Nas alturas de Lisboa
       Parou ella, azas abriu:
Desprendeu mil gafanhotos!
       Cousa assim nunca se viu!

 

Tinham fórmas mais que humanas
       Pois algumas nunca as vi!
Uns cavallos com taes azas!
       Voando tanto por si...!!!

 

E depois, como voavam!
       P'ra terra tanto a descer!
Estas cousas, tão confusas!
       Nunca as pude comprehender.

 

E tambem já na cidade
       Desgracas aconteciam,{24}
Que gritos da turba tremula!
       Que soluços lá se ouviam!

 

Os pinheiros, cuja fronte
       Tinha ainda algum verdor,
Largaram da terra as pernas,
       Galopavam com fervor.

 

Mas que pobres! na viagem
       Maceraram face linda!
Mas qu'importa se chegaram
       Com elles á festa infinda?

 

Chegaram junto da olaia,
       Onde a cigarra cantava;
Pasmaram todos viventes;
       Era o saráo começava.

 

E a minha musa atrevida
       Fugiu de junto de mim...
.............................
Pois hei de lhe dar pateada
       Se a ouvir fallar por fim.{25}

IV
Lux fuit

LUX FUIT

IV
O SARÁO

Era um dia de festa.
                    Pelos ares
Já nada havia d'esse drama, que
Causára tanto horror: era mui linda,
A côr nova que nascia no horizonte,
Como a aurora, que após a tempestade
Vem, mimosa actriz, lá por sobre as serras
Dar vida ao mundo todo que a anhelava.

 

O espectac'lo que os ar's tinham contido,
Passou de negridão á luz do dia;
E as aves que, nas pernas do tal pisco,
Buscaram a guarida á eternidade,
Já nas franças das arvores s'erguiam,
Soltando seus cantar's, todos festivos.
Já mui perto d'olaia gigantesca,
Onde a cigarra desprende sua chiada,
Ensinando moral, philosophia,
Estava um certo vulto, mui sombrio!
(E d'alampada na mão como Diogenes!)
Soltando algumas phrases pouco ouvidas.
Mesmo assim, como apito em larga praça{28}
Ou de folles qual gaita d'espavento,
Ou mesmo o som alegre d'um pandeiro,
Juntou em volta a si com mil gaifonas
Um sem num'ro de ser's, todos galantes:

 

Chegaram patos. Gallos e gallinhas
Subiram a um poleiro que ali 'stava,
E já d'altiva fronte, qual cegonha
Ensinaram o seu mestre, lá piaram.

 

Mas não termina aqui o ajuntamento,
Porque lá fóra, longe, n'um roçado,
Vem mettido, qual cesto d'azeitonas
Na trouxa d'um gallego mui sebento!
Patusco, que se diz ser um litt'rato.

 

Parou, por fim, á porta sem convite;
Mas o mestre, que a tudo dera entrada,
Levantou-se do banco de cortiça
E foi levar a mão ao seu conviva.
Depoz ali gallego o longo fardo,
E foi ás gargalhadas no caminho
'Sperar um passageiro á barca sua.

 

Soou por fim a hora.
                   Disse o mestre:
«Está aberta a sessão.»
                   —Peço a palavra.—
Disse um.
      —Quero fallar—
                        Disse outro além.{29}
—Os meus versos não ficam no tinteiro
D'além mais outra voz soou tremente.

 

Na balburdia immensa, que nasceu
Dos litt'ratos, que qu'riam fallar juntos,
Tocou mestre d'enfado a campainha.

 

Cada um fallou, por fim, por ordem sua,
Abraços recebendo ao mestre ingente,
Como em honra e louvor da nova fama
Que de vós ha de encher vossa Lisboa.

 

De Magalona contam cousas raras,
De Filinto, sei eu, nada disseram;
Mas de Carlos, o magno, o grandioso,
Como de moura e fadas contos bellos,
Foi, emfim, o que lá muito cantaram.

 

Era a hora em que o saráo já se finava,
E os pegasos olharam para o ceu;
Mas em paga d'amor e de saudade
A todos quer dar—mestre—uma lembrança,
Pintando-lhes nas costas, n'um abraço.
As armas... que já muitos captivaram.{30}
{31}

 

 

 

 

Caro amigo

 

 

  Na tua obra nada mais sou que o pobre official executando as instrucções recebidas. Li, e procurei dar vida a pensamentos mais expressivos do que esses traços lançados sobre a pedra, a teu pedido. É pequena ou nulla a gloria, que me cabe; mas, não tendo a louca pretenção de preparar uma estrada larga para eras novas, não me curvarei para apanhar a luva, lançada ás cegas pelo apos-tolo do progresso futuro. A minha cigarra nunca me aconselhou a rebaixar o que ja applaudi em publico, a achar falta de bom-senso e bom-gosto onde ja encontrei esperançosos talentos![3] é que a minha não canta na copa da olaia; mas na consciencia, que sempre terá repugnancia ao ver, tanto contra-senso e ignorancia do presente, em quem se appellida o guia do bom-senso e do futuro!..

  Já disse que no Poemeto só tenho uma pequena parte material; e não quero mais. Não me ferem aquellas balas de papel, por que não tenho aspirações litterarias (?), e, que as tivera bem fundadas, não me occuparia em tosquear camêlos!.. Não!.. porque, a responder ás suas judiciosas arguições, pedir-lhe-hia emprestada ou a linguagem de regateira, ou do ridiculo, unica digna de seus espirituosos epithetos.

 


 

  Desculpa, amigo, estas involuntarias digressões. Vou dar conta do meu trabalho.{32}

  A primeira estampa é anterior ao Poemeto. Imagino-te na solidão, perseguido por um genio galhofeiro, que mostrando o nome de teus collegas te faz conceber esse gigantesco enleio, para que pedes á ignota musa te guie.

  A segunda é a expressão mais fiel, que pude dar aos dous versos:

—N'esse caso ahi vão para a lama,
Ahi vão p'ra quem quizer.—

  Para a terceira escolhi os versos:

Uns cavallos com taes azas!
      Voando tanto por si...!!!

  Só vesti por minha conta o mestre com a tunica de Apos-tolo, e puz-lhe na mão a lanterna de furta-fogo com que esclarece o futuro, deixando o presente em trevas. Nas costas estive para lhe collocar a lanterna magica, com que faz surgir do pó as sombras dos poetas, que já foram; mas o receio de espantar os cavallos, que o seguem, e ficar o pagode em meio, fez-me desistir. Fique só a intenção!.. Os que pede (ac pectore) calcante contemplam os astros são faceis de reconhecer.

  Na quarta, a que serve de thema o verso:

Abraços recebendo ao mestre ingente,

talvez se note a falta da musa; eu tambem a não achei. Provavelmente a tal saloia metteu-se na cabeça do Sr. Castilho.

  Concluirei pedindo a devida venia, por não pintar bem, a ti, os bonecos, para que além de genio me faltou o tempo; ao Sr. Castilho a sua olaia e cigarra de Anacreonte!..

 

Teu...

J. S. Motta.

[1] Phrase academica.

[2] Descortez. A carapuça é para quem serve: é elastica.

[3] D. Jayme. Carta-Castilho, pag. LXXVI.

 

 

Vende-se por 240 réis

Em Coimbra—nas livrarias Moré, e Mesquita.

Lisboa—nas principaes livrarias.

Porto—na livraria Moré.