The Project Gutenberg eBook of Hamlet: Drama em cinco Actos This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Hamlet: Drama em cinco Actos Author: William Shakespeare Translator: Rei de Portugal Luís I Release date: June 1, 2008 [eBook #25667] Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HAMLET: DRAMA EM CINCO ACTOS *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) HAMLET DRAMA EM CINCO ACTOS WILLIAM SHAKESPEARE HAMLET Drama em cinco actos Traducção Portugueza Segunda Edição LISBOA Imprensa Nacional 1880 INTERLOCUTORES CLAUDIO--Rei de Dinamarca. HAMLET--Filho do defunto Rei e sobrinho do Rei reinante. POLONIO--Camareiro mór. HORACIO--Amigo de Hamlet. LAERTE--Filho de Polonio. VOLTIMANDO } } CORNELIO } } ROSENCRANTZ } Cortezãos dinamarquezes. } GUILDENSTERN } } OSRICO } UM OUTRO CORTEZÃO. UM PADRE. REINALDO--Creado de Polonio. MARCELLO E BERNARDO--Officiaes. FRANCISCO--Soldado. UM EMBAIXADOR. A SOMBRA DO REI HAMLET. FORTIMBRAZ--Principe de Noruega. GERTRUDES--Rainha de Dinamarca, mãe de Hamlet. OPHELIA--Filha de Polonio. Senhores, damas, officiaes, soldados, actores, padres, coveiros, marinheiros, mensageiros, creados, etc. A scena passa-se em Elsenor ACTO PRIMEIRO SCENA I Elsenor, a explanada do castello FRANCISCO de sentinella, BERNARDO vem encontrar-se com elle BERNARDO Quem vem lá? viva quem? FRANCISCO Responde tu primeiro, faze alto, deixa-te reconhecer. BERNARDO Viva o rei. FRANCISCO Bernardo? BERNARDO Eu mesmo. FRANCISCO És pontual. BERNARDO Acaba de dar meia noite; vae descansar, Francisco. FRANCISCO Agradeço-te de me teres vindo render; faz um frio glacial, e começava a sentir-me incommodado. BERNARDO Não houve novidade emquanto estiveste de sentinella? FRANCISCO Nem sequer ouvi correr um rato. BERNARDO Então boas noites; se vires Horacio e Marcello, que tambem estão de guarda, dize-lhes que se aviem. Chegam HORACIO e MARCELLO FRANCISCO Creio ouvil-os, façam alto, quem vem lá? HORACIO Amigos da patria. MARCELLO Subditos do rei de Dinamarca. FRANCISCO Santas noites. MARCELLO Viva, meu valente soldado, quem te rendeu? FRANCISCO Bernardo está agora de sentinella. Boa noite. (Retira-se.) MARCELLO Olá, Bernardo? BERNARDO Não é Horacio que eu vejo? HORACIO Elle mesmo em corpo e alma. BERNARDO Bemvindo sejas, Horacio, e tu tambem, amigo Marcello. MARCELLO Dize-me, já viste a apparição esta noite? BERNARDO Ainda nada vi. MARCELLO Horacio diz que é effeito da minha imaginação, e nega-se a acreditar na visão temerosa, de que já por duas vezes fomos testemunhas; pedi-lhe portanto que viesse comnosco, para que se o phantasma de novo apparecer, elle possa testemunhar a verdade do que afiançâmos e dirigir-lhe a palavra. HORACIO Historias, qual apparecer! BERNARDO Sentemo-nos um instante, e vamos repetir-te a narração do que temos presenceado duas noites consecutivas e a que prestas tão pouco credito. HORACIO Com todo o gosto, e deixemos fallar Bernardo. BERNARDO A noite passada, á hora em que esta estrella que vêem ao poente do polo descreve o seu giro e vem illuminar esta parte do firmamento, em que ora brilha, no momento em que na torre soava uma hora, Marcello e eu... MARCELLO Silencio, eil-o que apparece. Apparece a sombra do REI BERNARDO Assimilha-se ao defunto rei. MARCELLO Tu que estudaste, Horacio, falla-lhe. BERNARDO Não é verdade que se parece com o defunto rei? Observa bem, Horacio. HORACIO A similhança é espantosa; a surpreza e o terror paralysaram-me. BERNARDO Parece esperar que lhe fallem. MARCELLO Falla-lhe, Horacio. HORACIO Quem quer que és, que a esta hora da noite usurpas a fórma magestosa e guerreira, debaixo da qual se mostrava o meu defunto soberano, em nome do céu, falla, ordeno-to eu! MARCELLO Parece descontente. BERNARDO Eil-o que se afasta, caminhando lenta e gravemente. HORACIO Detem-te, falla, falla, intimo-te a que falles. (A sombra afasta-se.) MARCELLO Foi-se sem responder. BERNARDO Então, Horacio, que é essa tremura e pallidez; não haverá alguma cousa mais do que um effeito de imaginação, que dizes agora? HORACIO Pelo Deus do céu, não o acreditava sem o testemunho positivo e irrecusavel dos meus proprios olhos. MARCELLO Não se parece com o rei? HORACIO Como tu te pareces comtigo mesmo, era a armadura que usava quando combateu o ambicioso norueguez; tinha aquelle ar ameaçador, no dia em que no seu proprio carro, atacou, por causa de uma acalorada porfia, o guerreiro polaco, e o prostrou no gêlo para nunca mais se levantar. É assombroso! MARCELLO Assim é que elle já duas vezes passou pelo nosso posto de observação com o seu caminhar grave e marcial. HORACIO Com que designio, ignoro-o, mas em minha opinião é um presagio para o estado de alguma grande catastrophe. MARCELLO Pois bem, sentemo-nos, e aquelle d'entre vós todos que o souber, diga porque fatigam, com guardas vigilantes e rigorosas, os subditos d'este reino; para que esta fundição diaria de canhões de bronze, estas compras de armamentos e munições no estrangeiro; para que se enchem de operarios os nossos arsenaes maritimos; porque este augmento de trabalho, que nem os dias santos são respeitados; para que esta actividade de dia e de noite? O que será? Qual de vós m'o poderá dizer? HORACIO Posso eu, ao menos, referir os boatos. Nosso ultimo rei, cuja imagem ainda ha pouco vimos, foi, segundo dizem, convocado a campo fechado por Fortimbraz de Noruega, que um cioso orgulho tinha levado a esse acto. N'esse combate o nosso valente Hamlet, e era justa a sua reputação, matou a Fortimbraz. Ora em virtude de uma declaração authentica, sanccionada pelas leis da cavallaria, se Fortimbraz succumbisse, todos os seus estados pertenceriam ao vencedor. Por sua parte o nosso rei tinha empenhado da mesma fórma a sua palavra; e no caso de elle ser vencido, uma igual porção de territorio pertenceria a Fortimbraz. Assim, em virtude d'este pacto reciproco, a successão do vencido pertencia de direito a Hamlet. Comtudo o joven Fortimbraz, ardente e sem experiencia, reuniu nas fronteiras de Noruega um exercito de aventureiros, promptos e resolvidos pela soldada aos mais audaciosos commettimentos. O seu projecto, segundo o nosso governo está informado, é nada menos do que retomar á viva força e de mão armada esse territorio que seu pae perdeu com a vida: eis-aqui, na minha fraca opinião, a rasão principal dos preparativos que fazemos, das guardas a que somos obrigados, e d'esta actividade tumultuosa que se nota em todo o paiz. BERNARDO Tambem eu julgo ser esse o motivo; isto explica-nos porque vemos passar diante dos postos de guarda a sombra do rei, com a sua armadura e com o seu porte magestoso, d'esse rei que foi e é o causador d'esta guerra. HORACIO É um argueiro nos olhos da intelligencia para lhes perturbar a vista. Nos tempos mais gloriosos e florescentes de Roma, pouco antes da morte do grande Julio, abriram-se os tumulos, e os mortos, nas suas mortalhas, divagaram pela cidade, soltando gritos ameaçadores; viram-se estrellas deixar após si rastos luminosos, choveu sangue, desastrosos signaes appareceram no céu, e o astro humido, sob cuja influencia está o imperio de Neptuno, eclipsou-se; todos julgavam ser o fim do mundo. Estes mesmos signaes precursores de acontecimentos terriveis, correios de maus destinos, preludios de grandes catastrophes, o céu e a terra os fizeram apparecer nos nossos climas, aos olhos impressionaveis dos nossos compatriotas. A sombra reapparece HORACIO continuando Mas silencio, olhem, eil-o que volta. Vou interpellal-o, embora elle me fulmine. Pára. Illusão. Se tens o dom da palavra, se pódes articular sons, falla; se ha alguma boa acção cujo cumprimento te possa alliviar e contribuir para a minha salvação, responde-me: se és sabedor de alguma desgraça que ameace a tua patria, e que um aviso opportuno possa desviar... Oh falla! ou se em tua vida confiaste ás entranhas da terra riquezas mal adquiridas; e a maior parte das vezes é por isso que vós, os espiritos, divagaes depois da morte, dil-o. (O gallo canta.) Detem-te e falla. Veda-lhe o caminho, Marcello. MARCELLO Devo servir-me da minha partazana? HORACIO Serve-te se não parar. BERNARDO Para cá? HORACIO Por acolá. (A sombra afasta-se.) MARCELLO Partiu!--que presença magestosa!--são desacertadas estas demonstrações violentas! é invulneravel como o ar, e os nossos golpes não são senão o ridiculo esforço de uma colera impotente. BERNARDO Ia fallar quando cantou o gallo. HORACIO Estremeceu como um culpado que uma intimação subita aterra. Ouvi dizer que o gallo, que é o clarim da aurora, acorda o Deus da manhã com a sua voz sonora e penetrante, e que a esse signal todos os espiritos errantes no mar, no fogo, na terra ou no ar se apressam em voltar aos seus respectivos dominios. A prova está no que acabâmos de presencear. MARCELLO O gallo cantou, e elle desappareceu. Algumas pessoas dizem que na vespera do dia em que se celebra a natividade do Salvador do mundo, o arauto da manhã canta toda a noite sem interrupção; pretendem então que nenhum espirito ousa saír da sua mansão, que as noites são salubres, que nenhuma estrella exerce influencia maligna, nenhum maleficio surte effeito, que nenhuma feiticeira exercita os seus feitiços, tanto esse dia é bento, e está sob o imperio de uma graça celeste. HORACIO Assim o ouvi dizer, e acredito-o. Mas eis que no oriente, acolá no fundo, por detrás dos outeiros, surge a manhã, vestida de purpura por entre o orvalho. Demos fim á nossa vigilia, e vamos dar parte ao joven Hamlet do que vimos esta noite; porque, por vida minha, creio que este espirito, mudo para todos, lhe fallará. Approvam esta confidencia, que nos impõe o nosso dever e a nossa affeição? MARCELLO Vamos sem detença; sei onde o acharemos, e onde lhe poderemos fallar sem constrangimento. (Retiram-se.) SCENA II Uma sala apparatosa no castello Entram o REI e a sua comitiva, a RAINHA, HAMLET, POLONIO, LAERTE, VOLTIMANDO, CORNELIO e CORTEZÃOS O REI A morte de Hamlet, nosso amado irmão, ainda é tão recente, que pareceria justo, que nossos corações estivessem immersos na tristeza e saudade, e que uma nuvem de dor cobrisse o solo d'este reino; comtudo, a rasão combateu os impulsos da natureza, tanto que enfreámos a nossa dor, e embora ainda esteja bem viva a recordação, pensâmos tambem em nós. Portanto, com um prazer incompleto, confundindo os sorrisos com as lagrimas, a alegria com o luto; unindo o dobrar dos sinos aos canticos nupciaes, tomámos por esposa aquella que outr'ora era nossa irmã, e fizemol-a compartir comnosco a corôa d'este bellicoso paiz. N'esta conjunctura ouvimos primeiro os vossos illustrados conselhos, livremente enunciados. Somos-lhes gratos. Quanto ao joven Fortimbraz, fazendo seguramente uma fraca idéa do nosso poder, ou imaginando que a morte de nosso chorado irmão lançasse o estado na dissolução e na anarchia, embalando-se em chimerica esperança, ousou mandar-nos mensagem após mensagem, intimando-nos a restituir-lhe o territorio perdido por seu pae, e legalmente adquirido por nosso valoroso irmão; isto por o que lhe respeita. Fallemos agora de nós e do motivo d'esta reunião. O motivo é este. Pelas presentes escrevemos ao rei de Noruega, tio do joven Fortimbraz, que jazendo enfermo n'um leito, mal conhece os projectos de seu sobrinho, pedindo-lhe que ponha o seu veto á empreza, porque é de entre os seus subditos que se fazem as levas de soldados e os alistamentos. Encarregámo-vos, Cornelio e Voltimando, de apresentar as nossas saudações ao idoso monarcha norueguez, e é nossa vontade, que nas negociações vos conformeis adstrictamente ás instrucções que junto com a nossa carta recebereis. Adeus; a celeridade do resultado prove a dedicação dos negociadores. CORNELIO e VOLTIMANDO Senhor, a nossa dedicação e obediencia não tem limites. O REI continuando Nem o duvidâmos. Recebam um cordeal adeus. (Cornelio e Voltimando sáem.) Agora, tu, Laerte, que pretendes? Disseram-nos que nos querias fazer uma supplica? Qual é? Tu não podes fazer ao monarcha dinamarquez um pedido que não seja rasoavel, e não recorres a elle em vão. Que poderias desejar, Laerte, a que não estejamos promptos a annuir, mesmo antes de conhecer a pretensão. A cabeça não é mais sympathica ao coração, a mão não é mais prompta em servir a bôca do que o throno de Dinamarca é dedicado a teu pae. Que desejas pois, Laerte? LAERTE Meu augusto soberano, a vossa licença e o vosso consentimento, para voltar a França. Gostosamente vim a Dinamarca para assistir á vossa coroação, mas, cumprido esse dever, confesso-o, os meus desejos e a minha vontade me chamam a França, e supplico a vossa magestade que me conceda partir. O REI Já alcançaste o consentimento de teu pae? o que diz Polonio? A RAINHA Arrancou-me o meu consentimento, tanto me importunou; acabei por ceder, mau grado meu, aos seus desejos. Supplico-lhe, pois, senhor, que lhe conceda a licença pedida. O REI Podes partir quando te aprouver, Laerte; deixo-te a liberdade de dispores do teu tempo e da tua pessoa. Então, Hamlet, meu primo, meu filho? HAMLET á parte Aindaque mui proximos parentes não somos primos. O REI Porque essas nuvens que pesam sobre a tua fronte? HAMLET Engana-se, senhor, como póde haver nuvens, quando brilha o sol. A RAINHA Querido Hamlet, despe essas roupas de dó, e lança um olhar amigavel para o rei de Dinamarca. Descrava os teus olhos do chão; pareces procurar as pegadas do teu glorioso pae. Sabes bem que é um destino invariavel; tudo quanto vive ha de morrer, e este mundo é uma ponte para a eternidade. HAMLET Sim, senhora, é um destino commum. A RAINHA Se é assim, o que te parece a ti tão extraordinario? HAMLET Senhora, não me parece, é-o na verdade. O parecer para mim nada vale. Minha mãe, não são nem esta capa negra, nem estas vestes obrigadas nos lutos solemnes, nem os suspiros que mal póde soltar um peito opprimido, nem torrentes de lagrimas, nem o semblante macerado, nem todas as manifestações de uma dor pungente, que podem exprimir e revelar o que eu sinto. Todos estes signaes podem parecer dor; é um papel facil de representar, mas não são verdadeira dor, são como o fato para o comediante; mas eu (pondo a mão sobre o coração) sinto aqui, o que não ha palavras que o expressem. O REI Nada ha na verdade, Hamlet, mais commovente e louvavel do que os deveres funebres prestados á memoria de um pae. Mas lembra-te que teu pae já perdêra o seu, e que esse tambem já perdêra o pae. E para o sobrevivente um dever de piedade filial, dar durante um certo praso provas de uma dor respeitosa; mas perseverar n'uma afflicção obstinada, é mostrar uma teima impia; é uma dor cobarde, é a prova de uma vontade rebelde aos decretos da providencia, de um coração sem energia, de uma alma incapaz de resignação, de uma intelligencia pobre e limitada. Porque nos deve impressionar a tal ponto um acontecimento, que sabemos ser uma necessidade, e que se repete tão frequente, quanto as occorrencias mais vulgares; é uma triste indocilidade. Que!! É uma offensa a Deus, uma offensa aos finados, uma absurda offensa á natureza, que não tem em seus fastos mais vulgar acontecimento, que a morte de um pae; a qual, desde o primeiro cadaver até ao homem que hoje se finou, nunca deixou de nos clamar: Assim estava escripto. Supplico-te, portanto, abandona essa afflicção impotente, e vê em nós um segundo pae; porque queremos que todos saibam que tu és o mais proximo ao nosso throno, e que a affeição mais terna que um pae tem a seu filho, tenho-a eu a ti. Quanto á tua intenção de voltar a Wittemberg, para continuares os teus estudos, nada ha mais opposto aos nossos desejos; conjurâmos-te que fiques aqui, sê o prazer de nossos olhos, o primeiro da nossa côrte, nosso sobrinho, nosso filho. A RAINHA Hamlet, far-te-ha tua mãe uma supplica baldada? peço-te fica comnosco, não vás para Wittemberg. HAMLET Farei o que podér, para em tudo vos provar obediencia. O REI Eis emfim uma resposta affectuosa e comedida. Serás na Dinamarca um segundo _Eu_. (Á rainha) Venha, senhora, este acto de deferencia de Hamlet, cumprido tão naturalmente e sem esforço, enche de jubilo o meu coração. Para o celebrar o rei de Dinamarca não libará uma taça, sem que a voz do canhão o transmitta ás nuvens. A cada taça quero que o céu o annuncie, repercutindo o estrondo dos raios da terra. Vamos agora. (Todos sáem excepto Hamlet.) HAMLET só Ah! porque não poderá esta carne tão solida fundir-se e tornar-se orvalho. Ah que se o Eterno não tivesse fulminado como reprobo o suicida... Senhor Deus, meu Deus, como são insipidos, fastidiosos e vãos os gosos do mundo. Que pena! Elle é um jardim inculto que só tem plantas grosseiras e maleficas. Pois será possivel que ousassem tanto? Morto ha dois mezes! que digo? Nem dois mezes ainda. Um rei tão bom, que tanta similhança tinha com este como Hyperion com um Satyro, todo ternura para minha mãe, a ponto de não querer que uma brisa mais fresca açoutasse o seu rosto! Céus e terra! e deverei eu recordar-me? Parecia que a vida de um era a vida do outro! Comtudo, passado apenas um mez--não posso nem quero pensal-o--, fragilidade é synonymo de mulher. Só um mez, sem ainda ter gasto o calçado que usava acompanhando o feretro do marido, banhada em lagrimas como uma Niobe, ella mesma, essa mulher, oh céus! um animal privado do soccorro da rasão teria prolongado o seu luto; essa mulher desposou meu tio, o irmão de meu pae, mas que tem tanto de meu pae como eu de Hercules. No fim de um mez, antes que seccassem as suas hypocritas lagrimas, casou. Oh criminosa precipitação! Voar com tanto afan a um leito incestuoso, é horrivel! E será possivel que o céu o tolere? Despedaça-te coração, já que forçoso é calar. Chegam HORACIO, BERNARDO e MARCELLO HORACIO Deus guarde a Vossa Alteza. HAMLET Quanto folgo de te ver de boa saude. És tu, Horacio, não me engano. HORACIO Eu mesmo, o vosso servo fiel até á morte. HAMLET Queres dizer _amigo_; de hoje em diante dar-te-hei este nome. Mas que fazes tu longe de Wittemberg, Horacio? Marcello. MARCELLO Meu principe! HAMLET Alegro-me de te ver, bons dias. (A Horacio.) Mas, francamente, que motivo te obrigou a voltar de Wittemberg? HORACIO Tudo dissipei. HAMLET Nunca consentiria que um teu inimigo assim fallasse a teu respeito; e não me obrigarás a forçar a minha rasão a crer no que o meu coração se nega a acreditar. Accusares-te d'esta maneira a ti mesmo... tu não és dissipador. Que motivo tão forte te pôde pois trazer a Elsenor, tu m'o contarás mais tarde, entre dois copos de vinho generoso, antes da tua partida. HORACIO Senhor, vim prestar a ultima homenagem a seu augusto pae. HAMLET Peço-te, meu camarada de estudos, que não zombes; creio antes que vieste assistir ao casamento de minha mãe. HORACIO Verdade é que não houve quasi intervallo. HAMLET Por alvitre economico, Horacio. O banquete funerario ainda subministrou as iguarias e as viandas para o festim nupcial. Antes quizera encontrar no céu o meu mais encarniçado inimigo, do que ter visto despontar um tal dia, Horacio. Meu pobre pae, parece-me que o estou vendo! HORACIO Onde, senhor? HAMLET Na minha imaginação, Horacio. HORACIO Recordo-me de o ter visto, era um grande rei. HAMLET Era um homem que, bem considerado, não tinha rival na terra. HORACIO Julgo tel-o visto a noite passada. HAMLET Viste, quem? HORACIO Alteza, vi o rei seu pae. HAMLET O rei meu pae? HORACIO Senhor, acalme esta agitação e espanto, e preste attenção, emquanto eu, fundado no testemunho ocular d'estes senhores, vou relatar esse prodigio. HAMLET Falla, pelo amor de Deus, sou todo ouvidos. HORACIO Durante duas noites consecutivas, no meio das trevas e do silencio, emquanto estes senhores estavam de sentinella, eis o que lhes aconteceu. Uma figura parecida com seu pae, armada da cabeça aos pés, lhes appareceu caminhando lenta e magestosamente. Tres vezes, atemorisados e attonitos, o viram passar á distancia do bastão de commando que empunhava, emquanto elles, fulminados pelo terror, ficaram mudos, nem ousaram fallar. Confiaram-me, debaixo de segredo, tremulos ainda, o que tinham presenceado. Na noite seguinte entrei com elles de sentinella, e confirmando a verdade das suas palavras, á hora por elles indicada, debaixo da fórma por elles descripta, voltou a apparição. Reconheci seu pae; as minhas duas mãos não são mais parecidas. HAMLET Mas em que sitio appareceu? MARCELLO Senhor, na explanada, onde estavamos de sentinella. HAMLET Fallaram-lhe. HORACIO Fallámos, mas não respondeu. Comtudo uma vez pareceu-me que movia a cabeça, como quem quer fallar; mas n'esse momento cantou o gallo matinal; ao som do canto afastou-se o espectro apressadamente, e nós perdemol-o de vista. HAMLET Na verdade é incomprehensivel. HORACIO Senhor, juro-lhe pela minha vida que é verdade, e julgámos nosso dever informar Vossa Alteza. HAMLET Não posso dissimular a minha inquietação! Estão de guarda esta noite? TODOS Sim, Alteza. HAMLET Armado, disseram? TODOS Armado, meu senhor. HAMLET Da cabeça aos pés? TODOS Tal qual. HAMLET Viram-lhe as feições? TODOS Vimos, tinha a viseira levantada. HAMLET Tinha physionomia carregada? TODOS A expressão era antes triste que colerica. HAMLET Pallido ou córado? TODOS Muito pallido. HAMLET O seu olhar fixou-se em algum de vós? TODOS Constantemente. HAMLET Queria lá ter estado. HORACIO O seu espanto teria sido igual ao nosso. HAMLET É mais que provavel. Demorou-se muito? HORACIO O tempo necessario para contar até _um cento_, sem parar. MARCELLO e BERNARDO Muito mais, muito mais. HORACIO Não a vez que o vi. HAMLET A barba era grisalha, não é verdade? HORACIO Era, como em sua vida, de um negro prateado. HAMLET Velarei tambem esta noite, talvez que volte. HORACIO Sem duvida alguma. HAMLET Se se me apresentar debaixo da figura de meu pae, fallar-lhe-hei, embora o inferno me ordenasse o silencio, pelas suas horrendas fauces. Peço-vos, portanto, que se até hoje tendes guardado um segredo tal a respeito da apparição, de hoje em diante sejaes ainda mais cautelosos em conservar o sigillo; e aconteça o que acontecer esta noite, reflexão e silencio: serei grato a esta prova de affeição. Assim, pois, adeus, encontrarme-hei comvosco na explanada entre as onze horas e a meia noite. TODOS Os nossos respeitos, principe. HAMLET Sempre amigos, adeus. (Horacio, Marcello e Bernardo sáem.) (Continuando.) A sombra de meu pae, porque apparece armada? Haverá algum perigo. Suspeito alguma traição. Espero impacientemente a noite. Até então, socega coração. Não ha crimes tão occultos, que o homem não possa descobrir. (Sáe.) SCENA III Um quarto em casa de Polonio Entram LAERTE e OPHELIA LAERTE Já embarcaram os meus creados e roupas. Adeus, minha irmã; quando ventos propicios encherem as vélas ao navio que me leva, espero que com a minha ausencia não esfriará a tua amisade, e que me darás novas tuas. OPHELIA Duvídas porventura, irmão? LAERTE Quanto ao que respeita a Hamlet e á sua frivola amisade, considera-a como uma moda ephemera, um capricho dos sentidos, uma violeta da primavera, precoce mas passageira, suave mas fenecendo ao desabrochar, e cujo perfume dura um minuto apenas. OPHELIA Só um minuto? LAERTE Só, acredita-me, porque o teu desenvolvimento não é só nos musculos e no corpo; á medida que o templo toma proporções mais vastas, tambem se expande o espirito e a alma. É possivel que te ame agora, que nenhuma macula, nenhuma deslealdade offusque a pureza dos seus sentimentos; mas acautela-te, porque na posição que occupa é-lhe vedada a propria vontade, é escravo do seu nascimento. Não póde, como os outros homens, escolher só por affeição, porque á sua escolha estão ligados o bem-estar e a salvação do estado; por isso deve subordinal-a ao voto e á approvação da nação de que é chefe. Se, pois, te fallar de amor, assisadamente usarás, não acreditando senão o que a sua posição lhe permitte offerecer, vistoque a sua vontade deve ser a vontade da nação. Pensa bem, que mancha para a tua reputação, se prestasses ouvidos por demais credulos, ao encanto das suas fallas, se envenenasses tua alma, se abrisses o cofre da castidade ás suas audaciosas instancias. Acautela-te, Ophelia, acautela-te, querida irmã, luta com a tua affeição para vencer as settas e os perigos dos desejos. A virgem prudente já é assás prodiga se patenteia a sua belleza aos raios lunares; a propria virtude não escapa aos golpes da calumnia; o verme roe as filhas predilectas da primavera, antes das flores desabrocharem; e é na aurora da vida, regada pelo puro e limpido orvalho, que ha mais perigo para a flor da castidade. Sê, pois, circumspecta, a melhor protecção é o receio do perigo; a juventude é para si mesma um perigo, se não trava luta com outros maiores. OPHELIA Em meu coração encerrarei, como um preservativo, a tua salutar lição. Mas, querido irmão, não sejas tu, como certos pastores sem virtude, que indicam ás suas ovelhas o caminho escarpado e espinhoso que conduz ao céu, emquanto elles, libertinos, fogosos e sem pudor, trilham o caminho das flores, da licença, e são a antithese das suas palavras. LAERTE De mim não te arreceies: já devia ter partido; eis meu pae. Entra POLONIO Uma dupla benção é um beneficio duplo; abençôo a occasião de me despedir segunda vez de ti. POLONIO Ainda aqui, Laerte? para bordo, para bordo. Não te envergonhas? Teu navio só te espera para velejar. Recebe a minha benção, e grava na tua memoria os seguintes preceitos. Guarda para ti o pensamento, e não dês execução apressadamente aos teus projectos; medita-os maduramente. Sê lhano sem te esqueceres de quem és. Quando tomares um amigo cuja affeição tenhas experimentado, liga-o a ti por vinculos de aço; mas não dês confiança irreflectidamente. Faze por evitar questões; mas se o não podéres conseguir, conduze-te de maneira que fiques sempre superior ao teu adversario. Ouve a todos, mas sê avaro de palavras; escuta o conselho que te derem, forma depois o teu juizo. No teu trajar sê tão sumptuoso, quanto t'o permittam os teus meios, mas nunca affectado; rico, mas não offuscante; o porte dá a conhecer o homem, e n'esse ponto, as pessoas de qualidade em França revelam um gosto primoroso, e o mais fino tacto. Não emprestes, nem peças emprestado: quem empresta perde o dinheiro e o amigo, e o pedir emprestado é o primeiro passo para a ruina. Mas sobre tudo sê verdadeiro para a tua consciencia, e assim como a noite se segue ao dia, seguir-se-ha tambem, que o teu coração jamais abrigará falsidade. Adeus, que a minha benção selle em teu coração os meus conselhos. LAERTE Despedindo-me, humildemente vos beijo a mão, meu pae. POLONIO Não tens tempo que perder, teus creados esperam-te. LAERTE Adeus, Ophelia, recorda-te das minhas palavras. OPHELIA Fechei-as no meu coração; dou-te a chave, guarda-a. LAERTE Adeus. (Sáe.) POLONIO Que te disse elle, Ophelia? OPHELIA Com licença de meu pae, fallou-me a respeito de Hamlet. POLONIO Folgo que o fizesse. Disseram-me que ultimamente Hamlet tem tido comtigo frequentes entrevistas, e que tu não te esquivas ás suas frequentes visitas. Se assim é, e creio na informação que me deram, devo dizer-te que não encaras a tua posição com a lucidez que convem a minha filha, e que a tua honra exige. Dize-me a verdade, o que ha? OPHELIA Protestos de amor. POLONIO De amor! como inexperiente fallas, conservas as illusões todas. Dás tu porventura credito aos seus protestos, como tu lhe chamas? OPHELIA Nem sei, senhor, o que devo pensar. POLONIO Pois bem, eu t'o digo. É necessario que sejas bem creança para crer uma realidade os seus protestos, de cuja sinceridade devéras duvido. Não te deprecies assim; seria uma loucura. OPHELIA O seu respeito foi inseparavel das suas phrases de amor. POLONIO E tu acreditas, pobre louca. OPHELIA Firmou as suas palavras com os juramentos mais sagrados. POLONIO Assim arma o caçador os laços á avesinha innocente e incauta. Sei que, quando o sangue ferve, a nossa bôca nunca se nega a protestos e juramentos. Minha filha, estes lampejos que dão mais luz que calor, e cujo brilho é ephemero, nunca os tomes por verdadeira chamma de amor. A datar de hoje, não malbarates tanto a tua presença virginal; difficulta mais as entrevistas, que não baste pedir para as obter. Quanto ao sr. Hamlet e á confiança que n'elle podes ter, considera que é joven, e que póde tomar liberdades de que depois tenhas que te arrepender. N'uma palavra, Ophelia, descrê dos seus juramentos, porque não são verdadeiros; interpretes de desejos profanos, revestem-se da linguagem da mais santa sinceridade. Uma vez por todas, e franqueza, filha, prohibo-te toda e qualquer conversa com o sr. Hamlet. Pensa bem. Ordeno-t'o. OPHELIA Obedecerei, meu pae. (Sáem.) SCENA IV A explanada do castello de Elsenor Chegam HAMLET, HORACIO e MARCELLO HAMLET Que frio horrivel, gélo. HORACIO O ar está devéras glacial. HAMLET Que horas são? HORACIO Não deve tardar a meia noite. MARCELLO Está dando meia noite. HORACIO Já! não ouvi, em todo o caso approximâmo-nos da hora a que costuma apparecer o phantasma. (Ouvem-se ao longe tangeres de instrumentos, e o troar de artilheria.) Que rumor é este? HAMLET O rei consagra esta noite ao prazer, está bebendo, e a cada copo de vinho do Rheno, os timbales e clarins proclamam o brinde que levantou. HORACIO Isso é costume? HAMLET Sim é, mas apesar de eu ter nascido n'este paiz, e estar acostumado a estes usos, ha emquanto a mim mais gloria em infringil-os, do que em observal-os. Estas orgias abjectas trazem-nos, do oriente ao occidente, o desprezo das outras nações, que nos qualificam de ebrios, e juntam aos nossos nomes os epithetos mais grosseiros. Este defeito embaça as nossas mais brilhantes qualidades, e tira-lhes todo o valor. O mesmo acontece aos individuos. Se ao nascerem, receberam da natureza alguma macula original, de que não são culpados, poisque o nascimento é independente da nossa vontade; se os afflige algum vicio de temperamento contra o qual todos os esforços da rasão são impotentes, algum costume que desagrade nos seus modos destruindo-lhes o encanto; acontece a esses homens, tendo o estigma de um defeito unico, libré da natureza, sêllo da sua estrella, acontece, digo, que todas as suas virtudes, fossem ellas puras como a graça celeste, infinitas quanto comporta á humanidade, ficariam manchadas na opinião, publica por esse defeito unico. Basta uma mollecula de liga para depreciar esse metal. Apparece a sombra HORACIO Senhor, eil-o. HAMLET Anjos do céu, poderes misericordiosos, protegei-nos. Genio bemfazejo, ou demonio infernal, que exhalas os perfumes celestes, ou as emanações do averno; que sejam sinistras ou caridosas as tuas intenções, appareces-me debaixo de uma fórma tão grata que te quero fallar. Interrogo-te, Hamlet, senhor, meu pae, rei de Dinamarca, oh! responde-me, não me deixes, na ignorancia, morrer de emoção; mas dize-me, porque teus bentos ossos encerrados no ataude romperam os sellos; porque te levantaste do tumulo em que te haviamos depositado; porque se ergueu a lapide sepulchral para te lançar a este mundo? Como, cadaver inanimado, vestindo a tua armadura de aço, vagueias tu á duvidosa claridade da lua, imprimindo á noite um caracter de horror, lançando-nos, fracos ludibrios da natureza, nas ancias do terror; e fazendo surgir em nossas almas pensamentos que excedem o nosso alcance? Responde. Porque? Com que fim? Que exiges? HORACIO Faz-vos signal de o seguir, como se quizesse fallar-vos a sós. MARCELLO Veja, principe, o gesto cheio de cortezia e dignidade, com que o convida a seguil-o a logar mais remoto; mas não vá. HORACIO Senhor, pelo amor de Deus. HAMLET Quer-me fallar, pois bem, seguil-o-hei. HORACIO Não faça tal, senhor. HAMLET Porque? que tenho eu a receiar, importa-me tanto a vida, como se fosse um alfinete; quanto á minha alma, nada póde contra ella, porque é immortal, como elle é. Repete o signal, vou seguil-o. HORACIO E se elle vos attrahisse ao Oceano ou ao pincaro escarpado de algum rochedo saliente e sobranceiro ao mar; e se tomasse alguma fórma horrivel, cuja vista vos varresse a rasão tornando-vos demente? Pensae bem, senhor, não receiaes alguma vertigem ao contemplar de alto a immensidade debaixo de vossos pés? HAMLET Continua a fazer-me signal. Caminha, sigo-te. MARCELLO Não ha de ir, senhor. HAMLET Ninguem me detenha. HORACIO Seja rasoavel, principe, não vá. HAMLET Ouço a voz do meu destino; brada alto, e cada um dos meus musculos adquiriu o vigor dos do leão de Nemea. (A sombra faz-lhe signal de a seguir.) Chama-me outra vez, deixem-me, senhores (escapa-se-lhes dos braços.) Por Deus, que não viverá, quem ousar oppôr-se-me. Afastem-se, já disse. (Á sombra.) Caminha, sigo-te. (A sombra e Hamlet afastam-se.) HORACIO Apoderou-se d'elle o delirio. MARCELLO Sigamol-o; desobedecer-lhe é forçoso n'estas circumstancias. HORACIO Não o abandonemos. Qual será o resultado! MARCELLO Algum vicio ha na constituição da Dinamarca. HORACIO O céu proverá o que for melhor. MARCELLO Sigamos o principe. (Sáem todos.) SCENA V Uma parte mais afastada da explanada Chegam HAMLET e a SOMBRA HAMLET Onde pretendes conduzir-me; mais adiante não irei. A SOMBRA Encara-me, Hamlet. HAMLET Que queres? A SOMBRA Approxima-se a hora em que me devo recolher ás chammas sulphureas e ardentes. HAMLET Pobre alma! A SOMBRA Não me lastimes, mas presta attenção ao segredo que te vou revelar. HAMLET Falla, é meu dever escutar-te. A SOMBRA Dever tambem é vingar-me depois de me teres ouvido. HAMLET Que ouço! A SOMBRA Sou a alma de teu pae, condemnada a penar durante um tempo certo, a jejuar n'um carcere de chammas, até que as culpas que mancharam a minha vida estejam completamente expiadas e purificadas pelo fogo. Se não me fosse defezo revelar os segredos do meu carcere, far-te-ía uma narrativa de que cada palavra encheria de terror a tua alma, gelaria o teu sangue, os olhos quaes estrellas brilhantes saíriam das suas orbitas, os anneis do teu cabello desfazer-se-íam em completa desordem, e cada cabello ficaria hirto como as cerdas do javali; mas estes mysterios eternos não são para ouvidos profanos de carne e de sangue. Escuta, escuta, oh escuta-me! se alguma vez amaste teu carinhoso pae... HAMLET Oh céus! A SOMBRA Vinga a sua morte, causada por um assassinio, cobárde, infame e nefando. HAMLET Um assassinio? A SOMBRA Infame! todos os assassinios o são, mas nunca houve nenhum mais infame, inaudito e horrendo do que este. HAMLET Apressa-te em desvelar-m'o, para que prompto, como a meditação, ou como o pensamento de amor, possa saciar a minha vingança. A SOMBRA Grato sou ao teu empenho, Hamlet; era preciso que fosses mais apathico do que a planta grossa e crassa que immovel e inerte apodrece nas margens do Lethes, se não sentisses n'este momento commoção alguma. Agora, ouve-me. Espalhou-se que emquanto dormia no meu jardim, uma serpente me mordêra; é assim que uma fallaz narrativa enganou a Dinamarca sobre a causa da minha morte. Sabe tu pois a verdadeira, nobre mancebo: a serpente cujo dardo matou teu pae, cinge hoje a corôa d'este reino. HAMLET Oh meus propheticos presentimentos, meu tio! A SOMBRA Sim, esse monstro, incestuoso, adultero pela magia das palavras, pelos dotes insidiosos. Oh loquela perversa, oh dotes nefarios, poisque tem tal poder de seducção, e conseguiu inspirar essa vergonhosa paixão a minha mulher, apparentemente tão virtuosa. Oh! Hamlet, que degradação! Descer de mim, cujo amor nobre e digno não tinha desmentido um instante o juramento prestado junto ao altar, a um miseravel, entre cujas qualidades naturaes e as minhas havia um abysmo! Mas assim como a virtude resiste inabalavel ás tentações do vicio, aindaque debaixo da fórma da Divindade lhe apparecesse, assim tambem a impudicicia, embora associada a um anjo celeste de luz, cansa-se da santidade do leito conjugal, para ir habitar o mais desprezivel prostibulo. Mas já sinto a frescura da aurora, forçoso é que eu termine. Emquanto dormia no meu jardim, era esse o meu costume todas as tardes; teu tio, aproveitando a minha inconsciencia, approximou-se de mim, munido de um frasco de meimendro, e lançou-me n'um ouvido o conteúdo. É um veneno tão activo para o sangue humano, que com a subtileza do mercurio corre e se infiltra em todos os canaes, em todas as veias, coalhando e alterando o sangue pela sua acção energica: o mais puro e limpido não lhe resiste, é como uma gotta de qualquer acido n'uma taça de leite. Tal foi o seu effeito, que uma lepra instantanea cobriu meu corpo de uma crosta impura e infecta. Eis como durante o meu somno, tudo me foi arrebatado de uma vez, e pela mão de um irmão, vida, corôa e consorte. A morte surprehendeu-me em estado flagrante de peccado; sem sacramentos, sem me reconciliar, nem com Deus, nem com a minha consciencia; tinha que comparecer perante o Juiz Supremo vergando sob o peso das minhas iniquidades. Horror, horror, cumulo de horror! Se em teu coração vibra a fibra da sensibilidade, não o toleres. Não consintas que o leito do rei de Dinamarca se transforme em mansão da luxuria e do incesto. Mas seja qual for a tua vingança, conserva-te moral e puro, e poupa tua mãe. Entrega o seu castigo ao céu, e aos espinhos do remorso que lhe dilaceram o coração. Adeus, cumpre-me deixar-te; a luz do perilampo, cujo fogo sem calor começa a esmorecer, annuncia a approximação da aurora. Adeus, adeus, adeus. Recorda-te sempre de mim. (A sombra retira-se.) HAMLET Oh! santas legiões do céu, oh! terra, que mais? Invocarei o inferno? Oh! opprobrio; contém-te, ah! contém-te, meu coração, e vós, meus musculos, não percaes o vigor, e redobrae de força e energia para me suster. Recordar-me de ti? Sim, sombra infeliz, emquanto a memoria não abandonar este meu cerebro desordenado. _Recorda-te de mim_; sempre! quero varrer da minha memoria todas as recordações frivolas, todas as maximas colhidas nos livros, todos os vestigios, todas as impressões do passado, tudo quanto a juventude e a observação coordenaram, e em sua vez dar só lugar, sem rivaes, juro-o pelo céu, aos teus preceitos. Oh! mulher perversa, oh infame e damnado monstro! oh memoria, grava bem o seguinte, que nos sorrisos do homem se póde occultar um crime; assim é na Dinamarca (escreve n'uma carteira). Meu tio, espere-me. A minha senha será de hoje em diante. _Adeus, adeus, adeus. Recorda-te de mim._ Jurei-o. HORACIO ao longe Senhor, senhor? MARCELLO ao longe Senhor Hamlet? HORACIO Que o céu o proteja. HAMLET Assim seja. MARCELLO ao longe Olá, olá, senhor! HAMLET Pousa meu falcão, pousa. (Imita o canto do falcão e o chamamento do falcoeiro.) Chegam HORACIO e MARCELLO MARCELLO O que se passou, senhor? HORACIO Que novas, senhor? HAMLET As mais extraordinarias. HORACIO Conte-nol-as, principe. HAMLET É um segredo. HORACIO E não sou eu capaz de o guardar? O principe conhece-me. MARCELLO E eu? HAMLET Que me dirão quando o souberem: que coração humano o teria pensado. Juram-me segredo? HORACIO e MARCELLO Jurâmos. HAMLET Não ha em toda a Dinamarca um scelerado igual. HORACIO Era necessario que um espectro saísse do tumulo para nol'o dizer? HAMLET É verdade, têem rasão. Basta de palavras, um aperto de mão, e cada um volte onde o chamam os negocios e as suas inclinações, porque todos têem inclinações e negocios, sejam quaes forem: eu, pobre pária do mundo, vou orar. HORACIO São palavras incoherentes e sem sentido, alteza. HAMLET Peza-me que te offendesses, peza-me devéras. HORACIO Em que, senhor? HAMLET Por S. Patricio, que te offendi e gravemente. Quanto á apparição de inda agora, é um phantasma honesto, digo-t'o eu. Quanto ao desejo de conhecerem, senhores, o que entre nós se passou, reprimam-n'o. E agora, meus bons amigos, em nome da nossa amisade, da nossa camaradagem de estudos e de armas, façam-me um favor. HORACIO Qual é? Não hesitâmos. HAMLET Nunca digam o que viram esta noite. AMBOS Conte com a nossa palavra, principe. HAMLET Quero um juramento. HORACIO Prometti o segredo. MARCELLO Já jurámos. HAMLET Mas jurem sobre a minha espada. A SOMBRA (debaixo da terra) Jurem. HAMLET Ah! ah! meu camarada, és tu que fallas; estás ahi, meu valente, approxima-te; ouvem a sua voz, prestem o juramento. HORACIO Diga-nos a formula, principe. HAMLET (afastando-se um pouco com elles) Jurem sobre a minha espada, que guardarão sigillo do que viram e ouviram. A SOMBRA (debaixo da terra) Jurem. HAMLET _Hic et ubique._ Vamos para mais longe. (Afastam-se um pouco.) Approximem-se, e estendendo a dextra sobre a minha espada, jurem por este gladio nunca revelar o que viram e ouviram. A SOMBRA (debaixo da terra) Jurem pela sua espada. HAMLET Bravo, velha toupeira, como caminhas depressa subterraneamente, que bello mineiro! Afastemo-nos mais uma vez, meus bons amigos. HORACIO Por vida minha, é prodigioso! HAMLET Acolhâmol-o como se acolhe um estrangeiro. O céu e a terra encerram mais mysterios, que os conhecidos pelos philosophos; mas venham. Notem o que notarem nos meus modos, se eu julgar necessario affectar maneiras extravagantes, jurem-me pela sua salvação que nunca cruzarão os braços, meneando a cabeça, nem lhes escaparão palavras ambiguas, como por exemplo: _Muito bem, muito bem_--_já sabemos_--ou--_se quizessemos fallar_--ou--_ainda ha pessoas que se ousassem_--ou outras expressões equivocas, dando a perceber que estão na confidencia; jurem que nada farão; e possa, quando mais precisarem, não lhes faltar a graça divina. A SOMBRA (debaixo da terra) Jurem. HAMLET Acalma-te, alma penada. Assim, senhores, recommendo-me á vossa affeição, e tudo quanto um homem tão debil como Hamlet possa fazer para lhes provar o seu affecto, fal-o-ha com a ajuda de Deus. Retiremo-nos juntos, e silencio; peço-lh'o eu. Ha no mundo alguma grande perturbação. Maldição. Porque serei eu o eleito para a terminar? Vamos, partâmos juntos. Fim do acto primeiro ACTO SEGUNDO SCENA I Uma sala em casa de Polonio Entram POLONIO e RINALDO POLONIO Rinaldo, entrega a meu filho este dinheiro e estas letras. RINALDO Sim, meu senhor. POLONIO Mas antes de o procurar, obrarás assisadamente tomando informações a seu respeito. RINALDO Era essa a minha intenção. POLONIO Bem, muito bem; toma antes todas as informações pelos dinamarquezes que estão em París, vê as suas relações, e com quem se dão, quaes os seus gastos; depois de te assegurares pelas tuas perguntas que conhecem meu filho, procura colher informações mais exactas, sem comtudo o dar a entender. Dissimula que o conheces perfeitamente, dizendo, por exemplo: Conheço o pae e a familia, mas d'elle não tenho conhecimento algum. Entendes, Rinaldo? RINALDO Perfeitamente, senhor. POLONIO De todo não me é desconhecido, pódes acrescentar. Conheço-o pouco é verdade, comtudo aquelle de quem fallo é um dissipador com todos os seus defeitos; imputa-lhe então todos os vicios que te parecer, excepto aquelles que podem deshonrar um homem, toma conta n'isso; só as loucuras e imprudencias proprias de um joven que se sente livre de todo o constrangimento paterno. RINALDO O jogo, talvez? POLONIO Bem, e as bebidas, a esgrima, as pragas, o genio buliçoso, a convivencia do prostibulo, é até onde te auctoriso que chegues. RINALDO Actos são, na verdade, que não deshonram. POLONIO Sabes bem como te deves haver fazendo estas imputações. Não aggraves os factos accusando-o de devassidão continua e habitual; não pretendo tal; censura-o mas com discrição; exprime-te como se attribuisses as suas faltas aos defeitos inherentes á mocidade, ao abuso da liberdade, ao arrebatamento de um espirito fogoso, á effervescencia de um sangue ardente. RINALDO Mas, senhor? POLONIO Porque será conveniente obrar assim. RINALDO Para lh'o perguntar estava eu. POLONIO É onde eu queria chegar, e na minha opinião é um ardil sem igual. Depois de teres imputado a meu filho esses ligeiros defeitos, que se podem considerar quando muito como imperfeições n'uma bella obra; se o teu interlocutor, aquelle que queres sondar, notou no joven a que te referes algum dos vicios mencionados, está certo que responderá immediatamente: Meu caro senhor, ou _meu amigo_--ou _meu cavalheiro_--segundo o costume do individuo, ou o uso do paiz... RINALDO Prosiga, senhor. POLONIO Então... que estava eu dizendo? pela santa missa--que queria eu dizer? o que era? RINALDO Fallava da resposta... POLONIO Que te darão, é isso, e não deixarão de responder: _Conheço esse mancebo, vi-o ainda hontem, ou outro qualquer dia, em tal epocha, com estes ou com aquelles, surprehendi-o jogando, ou n'uma orgia ou numa rixa_, ou ainda, _vi-o entrar n'uma casa suspeita_; ou outras cousas similhantes: agora vês como com a mentira se colhe a verdade. É assim que nós, as pessoas entendidas, empregâmos a miudo o embuste e a falsidade para descobrir a verdade. Ahi está o caminho que seguirás para saber o comportamento de meu filho. Percebes agora? RINALDO Sim, meu senhor. POLONIO O Senhor seja comtigo, boa viagem. RINALDO Meu amo! POLONIO Observa tu mesmo as suas inclinações. RINALDO Fal-o-hei, senhor. POLONIO Mas não o distráias da sua vida. RINALDO Bem entendo. POLONIO Adeus. (Rinaldo sáe.) Entra OPHELIA POLONIO Que te traz por aqui, Ophelia? OPHELIA Meu pae, meu pae, ainda tremo. POLONIO Porque? Falla por piedade. OPHELIA Querido pae, estava no meu quarto trabalhando em costura, quando de repente deparo com o sr. Hamlet, mas em que estado! as vestes em desordem, o cabello em desalinho, as meias caídas arrastavam pelo chão, pallido e branco como uma mortalha, tremiam-lhe as pernas, o rosto tinha a expressão do desespero, qual profugo do inferno mensageiro de novas horriveis. POLONIO Enlouqueceria por tua causa? OPHELIA Não sei, meu pae, mas receio-o devéras. POLONIO Que te disse elle, Ophelia? OPHELIA Tomou-me os pulsos, apertando-os convulsivamente, depois afastando-se á distancia do seu braço, levando a mão á testa, fitou os olhos no meu rosto, como se me quizesse retratar. Assim se demorou por largo tempo, por fim saccudindo-me levemente o braço, levantando e baixando por tres vezes a cabeça, suspirou tão profundamente, que todo o seu corpo estremeceu, parecia o prenuncio da morte. Feito isto, deixou-me, partiu e desviando a cabeça, como um homem que para achar caminho não precisa o auxilio da vista, transpoz a porta; mas então o seu olhar estava fito em mim. POLONIO Segue-me, filha, vou procurar o rei. É o delirio do amor; a sua violencia mata-o, e impõe á sua vontade actos de desespero, que nenhuma outra paixão humana excitaria. Peza-me sinceramente. Dize-me, ter-lhe-ías tu dirigido ultimamente alguma palavra cruel. OPHELIA Não, meu pae; mas obedecendo ás suas ordens, recusei as suas cartas e evitei a sua presença. POLONIO Eis o que perturbou a sua rasão. Doe-me de o não ter conhecido melhor: receiei que as suas intenções não fossem serias, e que só pretendesse consummar a tua ruina. Arrependo-me do fundo de alma das minhas desconfianças. Parece que o confiar cegamente na previdencia é o apanagio da minha idade, como o contrario é o defeito da mocidade. Vem, dirijâmo-nos ao rei, convem que elle nada ignore; porque o sigillo d'este amor poderia acarretar mais desgraças do que a sua revelação resentimentos. (Sáem ambos.) SCENA II Uma sala no castello de Elsenor Entram o REI, a RAINHA, as suas comitivas, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REI Sejam bemvindos, caros Rosencrantz e Guildenstern. Independentemente do gosto de os ver, a necessidade do seu prestimo me obrigou a chamal-os a esta côrte sem demora. Ouviram seguramente fallar da transformação de Hamlet; digo transformação, porque já não é o mesmo homem, nem moral nem physicamente. Só a morte do pae póde ser a causa do transtorno da sua rasão, não posso conceber outra. Educados com elle desde a infancia, sympathisando entre si pela idade e pelo caracter, peço-lhes que permaneçam algum tempo na côrte, procurem inspirar-lhe o gosto e prazer da sua convivencia, aproveitem todas as occasiões para descobrir se a sua afflicção não tem alguma causa desconhecida, cuja revelação nos permittisse dar-lhe remedio. A RAINHA Bastante tem fallado nos senhores, e estou convencida que ninguem no mundo lhes é mais affeiçoado. A liberalidade do rei compensará largamente os seus serviços e os seus incommodos. Esperâmos dos senhores esta prova de affeição. ROSENCRANTZ Vossas magestades são nossos soberanos, e os reis não pedem, mandam. GUILDENSTERN Estamos promptos a obedecer; disponham de nós, senhores. Depondo aos pés dos reis os nossos serviços e a nossa dedicação, pedimos-lhes só que ordenem. O REI Obrigado, senhores. A RAINHA Obrigada tambem eu; vão ter com meu filho: infelizmente mal o reconhecerão. (Á sua comitiva) Alguns d'estes senhores conduzam estes cavalheiros junto de Hamlet. GUILDENSTERN Praza a Deus, que a nossa presença lhe seja agradavel e os nossos cuidados um lenitivo. A RAINHA Deus queira. (Rosencrantz e Guildenstern sáem seguidos de alguns cortezãos.) Entra POLONIO POLONIO Senhor, regressaram de Noruega os embaixadores, satisfeitos com o resultado da sua missão. O REI És sempre correio de boas novas. POLONIO Senhor! esteja vossa magestade certo que a minha alma põe a par a dedicação ao meu rei e o respeito e amor ao meu Deus. A menos que a minha sagacidade habitual me enganasse, descobri a verdadeira causa da loucura do senhor Hamlet. O REI Estou ancioso por conhecel-a. POLONIO Primeiro os embaixadores, depois eu. O REI Recebe-os, e encarrego-te de os introduzir á nossa presença. (Polonio sáe.) (Á rainha.) Annunciou-me, querida Gertrudes, que conhece a causa da doença de seu filho. A RAINHA Receio bem que a morte de seu pae e o nosso precipitado consorcio sejam as causas unicas. O REI Sabel-o-hemos em breve. Entram POLONIO, VOLTIMANDO e CORNELIO O REI Bemvindos sejam, amigos. Falla tu, Voltimando; que novas trazes de nosso irmão de Noruega? VOLTIMANDO Envia-vos seus cumprimentos e sauda-vos cordealmente. Mal nos ouviu, ordenou ao sobrinho que pozesse fim aos seus preparativos guerreiros. Julgava-os dirigidos contra a Polonia; mas convencido por um detido exame que eram contra vossa magestade, e indignado por Fortimbraz se prevalecer do estado precario, a que a idade e a doença o tinham reduzido, ordenou-lhe que comparecesse na sua presença. Fortimbraz obedeceu á ordem intimada, e depois de severamente reprehendido pelo rei de Noruega, prestou nas mãos de seu tio o juramento de nada emprehender contra vossas magestades. O idoso monarcha, para provar o seu jubilo, concedeu-lhe uma pensão annual de tres mil escudos, e licença para combater os polacos com as tropas alistadas. Ao mesmo tempo pede-vos pelas presentes (entrega as cartas), que concedaes ás suas tropas livre passagem pelo vosso territorio nas condições estipuladas n'este escripto. O REI Este resultado enche-nos de satisfação; quanto ao pedido, lel-o-hemos, e depois de maduramente examinado, responderemos. Agradecemos-lhes os seus valiosos serviços. Descansem agora; juntos ceiaremos logo. (Voltimando e Cornelio sáem.) POLONIO Felizmente está terminado este negocio. Senhor e senhora; discutir o que constitue a auctoridade, e em que consiste a obediencia dos subditos, porque a noite é noite, o dia é dia, e o tempo é tempo, seria perder sem proveito a noite, o dia e o tempo; por isso, visto que a concisão é a alma do espirito, emquanto que a prolixidade é só o corpo ou o involucro exterior, serei breve: Vosso nobre filho está louco, digo louco, porque haveria falta de rasão em querer definir o que constitue verdadeiramente loucura. Passemos adiante... A RAINHA Menos estylo, Polonio. POLONIO Senhora, não faço estylo, juro-o. Seu filho está louco; é triste, mas é verdade. É verdade que é uma lastima, mas é uma lastima que seja verdade; é uma estulta antithese, mas tal qual é acceite-a; não emprego arte. Está louco; resta-nos procurar a causa d'esse effeito, ou antes defeito, porque forçosamente a deve ter. Siga bem o meu raciocinio: Tenho uma filha, tanto a tenho, que me pertence. Minha filha, fiel ao dever e á obediencia que me deve, note bem, entregou-me este escripto. (Mostra um papel.) Reflicta e depois tire a conclusão. (Lê.) _Ao idolo da minha alma, á celeste Ophelia, á belleza personificada..._ É uma desgraçada e estulta expressão. _Conserva preciosamente estas linhas, no teu seio alabastrino..._ A RAINHA É de Hamlet a Ophelia. POLONIO Espere um momento, senhora, cito textualmente. (Lê) Duvida que do céu a abobada azulada Tenha espheras de luz de um magico esplendor, Duvida seja o sol o facho da alvorada, Duvida da verdade em tua alma gravada, Mas não duvides nunca, oh! nunca, d'este amor. _Querida Ophelia, não sou poeta, não sei modular suspiros com arte, mas podes acreditar que te amo, mais que tudo n'este mundo. Adeus, a ti, para sempre minha vida, a ti emquanto esta machina mortal me pertencer._==Hamlet.==Eis-ahi o que, por obediencia, minha filha me entregou. Já antes ella me tinha confiado as tentativas de Hamlet, á proporção que renovava as suas instancias amorosas. O REI Como pôde ella acolher este amor? POLONIO Em que conta me tem, senhor? O REI Na de um homem leal e honrado. POLONIO Farei por merecer sempre esse conceito a vossa magestade; mas que pensaria o rei de mim, se vendo despontar esse amor, e já o tinha adivinhado antes da confissão de minha filha, que pensariam o rei e a rainha, se me calasse, e me tornasse mudo confidente do seu amor; se, testemunha da sua paixão, tivesse imposto silencio ao meu coração, ou se a considerasse com indifferença? má idéa por certo fariam de mim. Não perdi um momento, disse a minha filha: _O senhor Hamlet é um principe collocado fóra da tua esphera; isto não póde ser._--Ordenei-lhe então que evitasse a sua convivencia, e que nunca mais recebesse nem mensagens nem dadivas. Seguiu o meu conselho, e para abreviar a minha narração, o principe, vendo-se assim repellido, caíu primeiro n'uma profunda tristeza, em seguida repugnaram-lhe os alimentos, mais tarde teve insomnias, depois abatimentos e fraqueza intellectual, finalmente, e sempre gradualmente, chegou á demencia e ao delirio. Deplorâmol-o todos. O REI E pensas ser essa a causa? A RAINHA É muito provavel. POLONIO Quizera me dissessem, se aconteceu alguma vez affirmar eu alguma cousa que não fosse certa. O REI Nunca que eu saiba. POLONIO Se não é verdade o que disse (mostrando a cabeça), que esta role a seus pés. Basta-me a mais simples circumstancia para descobrir a verdade, aindaque estivesse occulta nas entranhas da terra. O REI Por que modo nol-o poderás tu provar. POLONIO Vossa magestade não ignora que o sr. Hamlet algumas vezes passeia quatro horas consecutivas n'esta galeria. A RAINHA É certo. POLONIO Quando ali estiver, enviar-lhe-hei minha filha, e nós, occultos por detrás d'esta cortina, seremos testemunhas da entrevista. Se não a ama, se não foi o amor a causa da sua loucura, deixe eu de pertencer aos conselhos de vossa magestade, e faça de mim um quinteiro, um hortelão ou um abegão. O REI Tentemos a experiencia. HAMLET entra lendo A RAINHA A leitura é a unica distracção d'este infeliz. POLONIO Retirem-se ambos por piedade. Vou fallar-lhe. Confiem em mim. (O rei e a rainha sáem) Como se sente o sr. Hamlet? HAMLET Bem, Deus louvado. POLONIO Conhece-me, principe? HAMLET Se conheço, és um vendilhão de peixe. POLONIO Engana-se, senhor. HAMLET N'esse caso, queria que ao menos fosses tão honrado. POLONIO Honrado? HAMLET Sim; pelo caminho em que vae o mundo, custa achar um homem honrado entre dez mil. POLONIO É uma triste verdade. HAMLET Ora o sol gera vermes no animal putrefacto, e embora divindade, acaricia o cadaver. Tens uma filha, não é verdade? POLONIO Sim, meu senhor. HAMLET Não a deixes caminhar ao sol, a concepção é um beneficio do céu, mas como tua filha póde conceber, cuidado... meu caro. POLONIO Que quer dizer, principe? (á parte) minha filha é a sua constante preoccupação, mas não me reconheceu logo, tomou-me por um vendilhão de peixe. O seu cerebro está gravemente atacado; verdade é, que na minha mocidade o amor algumas vezes me reduziu a um estado similhante a este. Dirijâmos-lhe de novo a palavra. Que está lendo, senhor? HAMLET Palavras e mais palavras, só palavras. POLONIO De que se trata, senhor? HAMLET Quem, o que? POLONIO Pergunto o que contém o livro que está lendo. HAMLET Calumnias, nada mais. O satyrico auctor tem a impudencia de dizer que nos velhos a barba é grisalha, a pelle rugosa, e que seus olhos distillam ambar e gomma em fusão; que o espirito está caduco, as pernas não os sustêem; tudo cousas que creio em minha consciencia, mas que se não devem escrever. Quanto ao senhor, poderia ter a minha idade, se podesse andar para trás como os caranguejos. POLONIO (á parte) Aindaque louco póde coordenar as idéas. (Alto.) Quer vir tomar ar, meu senhor? HAMLET Que ar? o do tumulo? POLONIO (á parte) Que agudeza e que verdade na replica. Ás vezes as palavras dos loucos têem mais conceito que as dos sãos. Vou deixal-o, e preparar a sua entrevista com minha filha. Senhor, tomo a liberdade de me retirar. HAMLET Nada podia tomar, que eu désse com mais gosto; excepto a vida, excepto a vida, excepto a vida. POLONIO Adeus, meu senhor. HAMLET (á parte) Que imbecil e fastidioso velho. Entram ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN POLONIO Procuram o sr. Hamlet, eil-o. ROSENCRANTZ (a Hamlet) Deus seja comvosco, senhor. (Polonio sáe) GUILDENSTERN Meu nobre senhor. ROSENCRANTZ Querido principe. HAMLET Meus bons e queridos amigos, como estão, tu Guildenstern e tu tambem Rosencrantz, meus caros, como passam. ROSENCRANTZ Nem bem, nem mal. GUILDENSTERN Não nos peza demasiado a nossa felicidade, e não tocâmos o ponto culminante da fortuna. ROSENCRANTZ Nem temos tambem rasões de queixa. HAMLET No meio está a virtude, é quando chovem as graças. GUILDENSTERN Vivemos familiarmente com ella. HAMLET Estão pois na intimidade da fortuna; não me admira, é uma cortezã. Que novas ha? ROSENCRANTZ Nenhumas, senhor, a não ser que este mundo se tornou virtuoso. HAMLET Em tal caso o seu fim está mui proximo, mas o que dizes é falso. Permittam-me uma pergunta que lhes diz respeito. Digam-me, que mal fizeram á fortuna para ella os enviar para este carcere? GUILDENSTERN Carcere, senhor? HAMLET A Dinamarca tambem é carcere. ROSENCRANTZ Então é-o o mundo todo. HAMLET Sim, uma vasta prisão que em si encerra um grande numero de carceres, dos quaes o peior é de certo a Dinamarca. ROSENCRANTZ Não somos da mesma opinião, principe. HAMLET Para os senhores não será uma prisão a Dinamarca, porque o bem ou o mal não existem senão quando assim o julgâmos. Para mim é. ROSENCRANTZ A ambição faz parecer a Dinamarca uma prisão a vossa alteza, não cabe n'ella a sua alma. HAMLET Acharia vasto reino uma casca de noz, se não fossem os meus terriveis sonhos. ROSENCRANTZ São justamente esses sonhos que constituem a ambição, porque toda a substancia do ambicioso é a sombra de um sonho. HAMLET Assim os mendigos são corpos, e os monarchas e os heroes ambiciosos não são senão a sua sombra. Querem que vamos á côrte? porque sinceramente não me sinto disposto a discutir. AMBOS Estamos ás suas ordens, principe. HAMLET Não o comprehendo eu assim, não o quero confundir com o resto dos meus creados; porque, para lhes dizer a verdade, sou pessimamente servido. Mas, com franqueza, amigos, o que os trouxe a Elsenor. ROSENCRANTZ Unicamente visitar a vossa alteza, nenhum outro motivo. HAMLET Estou tão pobre, tão alheio ao reconhecimento! mas recebam os meus agradecimentos pelo preço que valem. Não os mandaram chamar? Foi por motu proprio que vieram? É a affeição que aqui os trouxe? Vamos, sejam francos, vamos, fallem. ROSENCRANTZ Que quer que digâmos, senhor? HAMLET Tudo quanto lhes aprouver, mas respondam á minha pergunta. Mandaram-os chamar? Leio nos seus olhos uma confissão, que a sua candura não sabe dissimular. Sei que o nosso bom rei e a nossa excellente rainha os mandaram chamar. ROSENCRANTZ Com que fim, senhor? HAMLET Os senhores é que o poderão dizer; mas imploro-lhes, pelos direitos da nossa amisade, pelas sympathias da nossa idade, pelos deveres que nos impõe a nossa verdadeira affeição, emfim por todas as rasões as mais convincentes que podesse allegar o mais habil orador, sejam francos e sinceros commigo; mandaram-os chamar? _Sim_ ou _não_. ROSENCRANTZ (a Guildenstern) Que devemos responder? HAMLET (á parte) Não os perderei de vista. (Alto.) Se devéras me têem affeição, expliquem-se com franqueza. GUILDENSTERN Pois bem, senhor, mandaram-nos chamar. HAMLET E eu dir-lhes-hei porque; d'est'arte a minha confissão precederá as suas investigações, e o segredo promettido ao rei e á rainha, não será nem de leve violado. Ultimamente, nem sei por que, perdi toda a minha alegria, renunciei a toda a especie de exercicio; e sinto na alma uma tal tristeza, que esta maravilhosa machina, a terra, me parece um esteril promontorio, este esplendido docel, o céu, esse magnifico firmamento suspenso sobre nossas cabeças, essa abobada sumptuosa, onde brilha o oiro de innumeras estrellas, tudo me parece um infecto monturo de vapores pestilentes. Que obra prima dos homens! que elevação na sua intelligencia! quanto são infinitas as suas faculdades! como a sua fórma é imponente e admiravel, como os seus actos approximam os homens dos anjos, e a sua rasão os approxima de Deus! são a maravilha do mundo, os reis da creação animada, e comtudo o que vale a meus olhos essa quinta essencia do pó? Aborreço os homens e as mulheres, embora os seus sorrisos incredulos, senhores, digam o contrario. ROSENCRANTZ Não tinhamos em nosso pensamento tal intenção. HAMLET Então porque se riram quando disse que aborrecia os homens? ROSENCRANTZ É que eu pensava que, se os homens lhe são odiosos, triste acolhimento receberiam os actores que encontrámos no caminho e que vem offerecer a vossa alteza os seus serviços. HAMLET Bemvindo será o que representa os reis; tributarei a sua magestade as minhas homenagens; o cavalleiro andante manejará adaga e escudo, debalde não suspirará o namorado, o comico declamará em paz a sua parte; o bobo provocará o riso aos mais hypocondriacos, emfim a namorada estropiará os versos para não deixar de dizer o que cumpre sinta no coração. Que actores são? ROSENCRANTZ São os tragicos da cidade, que lhe agradavam tanto. HAMLET Porque se tornaram actores ambulantes? Com a permanencia na cidade, auferiam de certo maior honra e lucros. ROSENCRANTZ Innovações recentes foram a causa d'isso. HAMLET Ainda gosam da mesma reputação que tinham quando eu habitava a cidade? As suas representações ainda são muito concorridas? ROSENCRANTZ Pouco, senhor. HAMLET Porque será? Terão elles desmerecido no seu modo de representar? ROSENCRANTZ Não, meu senhor; o seu zêlo não arrefece: mas vossa alteza de certo saberá, que appareceu um enxame de creanças, apenas saídas da primeira infancia, que declamam o dialogo o mais simples, no tom o mais elevado, e por isso são calorosamente applaudidas. São moda, e lançaram um tal desfavor sobre os actores ordinarios, como ellas lhe chamam, que muitos homens valentes no campo da batalha, mas que temem as pennas aguçadas, não ousam frequentar o verdadeiro theatro. HAMLET Como? pois são creanças? Quem as protege? quem lhes paga? quererão unicamente seguir a sua profissão emquanto conservarem a sua voz aflautada? E se um dia pela força das circumstancias se tornarem actores ordinarios, não terão direito então de se arrependerem, de terem acceitado os encomios das pennas que bem mau serviço lhes prestaram, quando se voltarem contra elles as armas de que se serviram para mal dos outros. ROSENCRANTZ Não luctaram pouco entre si, e a nação inteira animou a contenda. Houve um momento em que a receita do emprezario dependia de brigarem os actores e auctores. HAMLET Será crivel? ROSENCRANTZ Houve mais de uma cabeça quebrada. HAMLET E foram as creanças que venceram? ROSENCRANTZ Sim, meu senhor. Venceram o proprio Hercules com o seu globo. HAMLET Nada me admira, sendo meu tio rei de Dinamarca. Os que o evitavam em vida de meu pae, pagam agora o seu retrato em miniatura, por vinte, cincoenta e cem ducados. Por vida minha que ha alguma cousa sobrenatural em tudo quanto presenceâmos, e que em verdade a philosophia devia esmerar-se por descobrir. (Ouve-se o som de uma musica de clarins ao longe.) GUILDENSTERN Chegam os actores. HAMLET Senhores, bemvindos sejam em Elsenor. As suas mãos que eu as aperte. O que distingue um bom acolhimento são os cuidados e as attenções polidas; deixem-me recebel-os assim para não parecer que a cortezia para com os actores, com os quaes é minha intenção ter a maior, ultrapassa a que lhes testemunho pessoalmente aos senhores. Bemvindos sejam, mas o tio que tenho por padrasto, e a mãe que tenho por tia estão completamente enganados a meu respeito. GUILDENSTERN Em que se enganam elles? HAMLET Só estou louco quando o vento sopra do nor-noroeste, em soprando do sul, distingo uma garça de um falcão. Entra POLONIO POLONIO Saudo os senhores. HAMLET Escuta, Guildenstern, (a Rosencrantz) e tu tambem: a bom entendedor meia palavra basta; esta creança que vêem ainda usa coeiros. ROSENCRANTZ Talvez que os torne a usar; a velhice é, segundo dizem, uma segunda infancia. HAMLET Aposto que me vem fallar nos actores; vão ver. Tem rasão, senhor, foi effectivamente na manhã de segunda feira. POLONIO Trago uma nova para vossa alteza. HAMLET Tenho tambem uma para o senhor. Quando Roscio era actor em Roma... POLONIO Os actores acabam de chegar. HAMLET Não é verdade. POLONIO Palavra de honra. HAMLET Cada actor virá montado n'um jumento. POLONIO São os melhores actores do mundo para a tragedia, comedia, drama historico e pastoril, pastoral comica e historica, pastoral tragico-comico-historica, com ou sem unidade do logar da acção. Para elles não ha difficuldades, são tristes com Seneca, folgasãos com Plauto. Não têem rivaes quanto ao estylo e á expressão. HAMLET Ó Jephthé, juiz em Israel, que thesouro possuias! POLONIO Que thesouro possuia elle, senhor? HAMLET Mas... Uma filha, uma só, mas essa encantadora Que era da noite sua a celestial aurora. POLONIO (á parte) Ainda minha filha. HAMLET Não tenho eu rasão, velho Jephthé? POLONIO Se me chama Jephthé, é porque tenho uma filha que estremeço. HAMLET Não é consequencia. POLONIO Então qual é a consequencia? HAMLET Eil-o. Mas Deus sabe porque o conto é memoravel! Conhece o seguimento? Um dia aconteceu... o que era mais provavel. Para o final recorde-se da primeira parte d'estas trovas, porque eis quem me obriga a terminar. Entram tres ou quatro ACTORES HAMLET (continuando) Bemvindos todos, bemvindos sejam. Estou encantado de te ver de boa saude, bemvindos sejam, amigos. Ah, meu amigo, que mudança! já com barba! Quererás tu fazer-me sombra em Dinamarca? Ah eis-vos tambem aqui, minha menina! Por nosso senhor, depois que vos vi, subistes apenas um degrau para o céu. Deus queira que a vossa voz, moeda de liga mutavel, não se deprecie de mais com o tempo. Senhores, para mim são todos bemvindos; mas vamos direitos ao assumpto, como os falcoeiros francezes, que largam o falcão á primeira peça de caça que se apresenta, mostrem-me a sua pericia; vamos, um trecho bem pathetico. PRIMEIRO ACTOR Que trecho preferis, senhor? HAMLET Ouvi-te um dia declamar um trecho de uma peça nunca representada em scena, ou quando muito uma unica vez, porque, se bem me lembro, a peça não agradou a todos; era _caviar_ para o geral do publico: mas, segundo a minha opinião e das pessoas que n'este assumpto têem voz mais auctorisada do que a minha, era uma peça excellente, bem conduzida e escripta com tanta decencia como arte. Pelo que me lembro, diziam que os versos não eram bastante picantes para compensar a insipidez da acção, seu estylo na verdade nada tinha de affectado, mas que quanto ao resto a peça, escripta com tanta simplicidade como methodo, era natural, agradavel, e sem pretensão. Havia sobretudo um trecho que me agradou, era, na falla de Eneas a Dido, o ponto em que lhe refere a morte de Priamo. Se ainda te recordas, começa n'esta phrase, espera, deixa-me ver se me lembro. Pyrrho, Pyrrho feroz como o tigre da Hyreania Não é isso--começa por Pyrrho. Este ouriçado Pyrrho havia uma armadura Que, bem como a alma, tinha a côr da noite escura Quando elle era a dormir no cavallo sinistro. Mensageiro do mal, de Belzebut ministro, No corpo traz agora, em rubros caracteres, Mais sinistro brazão; da fronte aos pés o cora O sangue d'anciãos, d'infantes, de mulheres, E por mil bôcas, mata a sêde que o devora No sangue recosido aos raios d'essa chamma Que Troia, em fogo ardendo, em torno a si derrama. Tisnado pelo fogo e pela raiva ardente Após Priamo corre... Continúa tu agora. POLONIO Boa declamação na verdade, com as medidas e intonações proprias. PRIMEIRO ACTOR O velho, já cansado, Mal vibra um frouxo golpe; aquella espada, outr'ora Como o raio veloz, lá onde cae descansa, Indocil á vontade, e á mão rebelde agora, Oh lucta desigual! lucta sem esperança, Pyrrho de raiva acceso, investe em frente e ao lado! E, só do gladio ao sôpro eil-o no chão prostrado O guerreiro senil! Então, Troia abatida Parece haver sentido, os golpes derradeiros: Ao ver prostrado o rei exhaure-se-lhe a vida, Desabam sobre a base em chammas os outeiros, E o som cavo e profundo a Pyrrho fere o ouvido. Eis de repente o gladio, a grande altura erguido, Já prestes a immolar a fronte alva, nevada, Do venerando rei, detem-se lá na altura. E Pyrrho assim parece um tyranno em pintura, Suspenso entre a vontade e a obra começada! Mas como, muita vez, pouco antes da procella Se faz como que ouvir um silencio que gela, Pára a nuvem no céu, o vento não retumba, E a terra a nossos pés é muda como a tumba; Subitamente após se vê no fundo baço Um raio que illumina e rasga o immenso espaço, Assim de Pyrrho a furia, instantes mal contida, Irrompe a completar a obra interrompida. Dos Cyclopes jamais caíram retumbantes Com remorso menor os malhos flammejantes Para forjar de Marte a gravida armadura, Que sobre o nobre velho, ensanguentada, impura, De Pyrrho a espada ardente!... É finda a horrenda lucta! Atrás, fortuna, atrás, atrás, vil prostituta! Vós, deuses immortaes, em synodo sagrado, Roubae-lhe o audaz poder, quebrae todos os raios Ás rodas do seu carro, e lá do céu lançae-os Tão baixo que o demonio os veja sempre ao lado. POLONIO Parece-me demasiado longo. HAMLET Para o encurtar manda-se a um barbeiro ao mesmo tempo que a tua barba. (Ao actor.) Continúa, peço-to eu; se não lhe apresentam um bailado grutesco, ou uma scena immoral adormece logo. Continúa, pois, chegámos a Hecuba. PRIMEIRO ACTOR Mas quem visse, oh, quem visse a rainha embuçada! HAMLET A rainha embuçada. POLONIO Optimo, _embuçada_ é bom. PRIMEIRO ACTOR Correndo, nus os pés; com lagrimas que chora As chammas, apagando; a fronte coroada Por um farrapo vil, a fronte onde ainda agora Brilhava um diadema; apenas mal vestida Por coberta alcançada á pressa na fugida; Quem visse tanto horror, acaso concebêra Que a fortuna só tem entranhas de uma fera; Mas se os deuses do Olympo houvessem escutado, Quando ella vira Pyrrho entregue ao estranho goso De cortar membro a membro, o corpo ao morto esposo, De seu peito fremente, o grito amargurado A não ser que da terra ao céu não suba a magua Sentiriam como ella os olhos rasos d'agua! POLONIO Vejam, empallidece, o pranto inunda-lhe os olhos. Basta, peço-to. HAMLET Está bem, o resto m'o recitarás n'outra occasião; (a Polonio) queira prover que estes actores sejam bem tratados, percebeu? que nada lhes falte, porque são a chronica resumida e viva da epocha. Mais lhe valeria, Polonio, um mau epitaphio depois da sua morte, do que o seu vituperio em vida. POLONIO Tratal-os-hei segundo os seus merecimentos. HAMLET Melhor, meu caro, melhor; se se tratasse cada um segundo os seus merecimentos, de poucos se faria caso. Trate-os como o deve á jerarchia e á sua propria dignidade. Quantos menos titulos tiverem á sua benevolencia, mais se deve esmerar no seu tratamento. Agora póde-se retirar com elles. POLONIO Venham, senhores. HAMLET Sigam-o, meus amigos, ámanhã teremos a representação, (Polonio sáe com os actores, menos um a quem Hamlet faz signal que fique.) HAMLET (continuando) Dize-me, meu caro amigo, poderias representar a morte de Gonzaga? PRIMEIRO ACTOR Com mil vontades, senhor. HAMLET Então ámanhã. Dize-me mais, poderias tu aprender de cór, sendo preciso, doze ou dezeseis linhas que eu desejava intercalar na peça? pódes, não é verdade? PRIMEIRO ACTOR Posso perfeitamente, meu senhor. HAMLET Fica pois ajustado, segue aquelle senhor, e só te peço que não zombes d'elle. (O actor sáe.) HAMLET (a Rosencrantz e Guildenstern) Meus bons amigos, até á noite, estimei vel-os em Elsenor. ROSENCRANTZ Meu senhor. (Sáe com Guildenstern.) HAMLET Finalmente estou só. Que miseravel eu sou! Pois não será monstruoso que este actor, n'uma ficção, na expressão de uma dor simulada, podesse elevar a sua alma, identificando-se com a sua parte, exaltando-se a ponto de empallidecer, de lhe borbulhar o pranto nos olhos, de se lhe pintar o desespero nas feições, entrecortada está a sua voz, e o seu todo faz uma verdade, de que não é senão uma situação fingida! E tudo, por quem? por Hecuba; que é Hecuba para elle, ou elle para Hecuba, para que a sua memoria lhe arranque lagrimas tão sentidas? Que faria elle no meu logar, se tivesse tantos motivos de dor, quantos eu tenho. Inundava de pranto a scena, aterrava os espectadores pela sua expressão terrivel, fulminava o culpado, atemorisava o innocente; attonitas ficavam as almas simples, e a commoção aos sentidos da vista e do ouvido seria geral. E eu, alma tibia, intelligencia confusa, fico n'uma estupida inacção, indifferente á minha propria causa, e nada acho que dizer, nada, mesmo nada a favor de um rei que perdeu a corôa e a vida pelo mais inaudito attentado! Ah como sou cobarde! Infame me deveriam chamar, esbofetear-me, arrancar-me as barbas, lançar-m'as ao rosto com o desprezo; insultar-me deveriam todos, dizer-me que pela gorja menti, e obrigar-me a soffrer calado todos os vilipendios possiveis. Quem quer fazel-o. Por vida minha que era justo; é forçoso que eu seja inoffensivo como uma pomba sem fel, para levantar uma offensa, para não ter feito pasto dos abutres as entranhas d'esse miseravel, sanguinario e impudico scelerado. Monstro de perfidia, juntas ao assassinio o adulterio! Como sou estupido! É bello na verdade ver-me, a mim, o filho de um rei e pae assassinado, a quem céus e terra instigam á vingança, gastar a minha indignação em palavras e vãs imprecações, como a mais vil e desprezivel prostituta. Que vergonha!! Procuremos Uma idéa... (depois de uma pausa prolongada) Eil-a, achei. Ouvi dizer que criminosos, assistindo a representações dramaticas, de tal modo se perturbaram vendo a sua culpa em scena, que espontanea e immediatamente fizeram confissão do seu crime, porque o assassino embora mudo trahe-se e falla. Quero que os actores representem, na presença de meu tio, a morte de meu pae, observarei as suas feições, sondarei as suas impressões; se se perturbar, sei o que me cumpre fazer. O espirito que me appareceu talvez seja um demonio, porque póde revestir-se da fórma de um objecto amado, tem poder sobre as almas melancholicas, e quem sabe se na minha fraqueza e dor acha os meios para me perder, condemnando-me para sempre. Quero ter a certeza completa; o drama em questão será o laço armado á consciencia do rei. (Sáe.) Fim do acto segundo ACTO TERCEIRO SCENA I Uma sala no castello de Elsenor Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REI Então ainda não poderam, nas suas conversas com elle, descobrir a causa da desordem da sua intelligencia; d'aquella perigosa e turbulenta demencia que se apoderou do seu espirito e lhe rouba o descanso? ROSENCRANTZ Confessa sentir esvaír-se-lhe a rasão; mas não conseguimos que elle nos revelasse a causa. GUILDENSTERN Parece pouco disposto a deixar sondar os seus sentimentos. Na sua loucura não o abandona um resto de sagacidade; conserva-se na defensiva todas as vezes que tentâmos encaminhal-o a uma confissão tocante ao seu estado. A RAINHA Recebeu-os bem ao menos? ROSENCRANTZ Com toda a affabilidade de um homem bem educado. GUILDENSTERN Mas evidentemente constrangido. ROSENCRANTZ Perguntando pouco, mas respondendo ás nossas perguntas com a maior naturalidade. A RAINHA E experimentaram algum divertimento para o distrahir? ROSENCRANTZ O acaso fez-nos encontrar no caminho alguns actores; fallámos-lhe n'elles, esta nova pareceu agradar-lhe. Estão aqui no palacio, e creio já terem recebido ordem para representarem esta noite na sua presença. POLONIO É verdade, e pede a vossas magestades que assistam á representação. O REI Com o maior prazer; estimo vêl-o assim disposto. Queiram estimulal-o, senhores, e dirigir a actividade do seu espirito para estes divertimentos. ROSENCRANTZ Assim o faremos. (Sáe com Guildenstern.) O REI Deixa-nos tambem, querida Gertrudes. Mandámos chamar secretamente a Hamlet, para como por acaso o pôr na presença de Ophelia. Seu pae e eu, legitimos espias, collocar-nos-hemos de maneira que, sem sermos vistos, assistamos á entrevista e possamos julgar pelas suas palavras, se é um amor infeliz que assim o faz padecer. A RAINHA Obedeço retirando-me. Quanto a ti, Ophelia, desejo ardentemente que os teus encantos sejam a feliz causa da demencia de Hamlet; porque terei então esperança que as tuas virtudes o restituirão, a contento de ambos, ao primitivo estado. OPHELIA Quanto o desejo, senhora. POLONIO Ophelia, passeia aqui n'esta sala; (ao rei) vamo-nos collocar, senhor; (a Ophelia) lê n'este livro; esta leitura simulada servirá de pretexto á tua solidão. Enganâmo-nos tantas vezes, e quão frequentemente acontece, com uma capa de santidade e attitude reservada conseguirmos fazer um santo do proprio demonio! O REI Oh é bem verdade; que pungente dor esta observação inflige á minha consciencia! O rosto da prostituta não é mais asqueroso debaixo da mascara do seu arrebique, do que o é o meu crime debaixo do falso verniz do meu discurso. Oh peso terrivel! POLONIO Hamlet approxima-se, retiremo-nos, senhor. (O rei e Polonio occultam-se atrás da cortina.) Entra HAMLET _Ser ou não ser_, eis o problema. Uma alma valorosa, deve ella supportar os golpes pungentes da fortuna adversa, ou armar-se contra um diluvio de dores, ou pôr-lhes fim, combatendo-as? _Morrer, dormir, mais nada_, e dizer que por esse somno pomos termo aos soffrimentos do coração e ás mil dores legadas pela natureza á nossa carne mortal; e será esse o resultado que mais devamos ambicionar? _Morrer, dormir, dormir, sonhar talvez_; terrivel perplexidade. Sabemos nós porventura que sonhos teremos, com o somno da morte, depois de expulsarmos de nós uma existencia agitada? E não deverei eu reflectir? É este pensamento que torna tão longa a vida do infeliz! Quem ousaria supportar os flagellos e ultrages do mundo, as injurias do oppressor, as affrontas do orgulhoso, as ancias de um amor desprezado, as lentezas da lei, a insolencia dos imperantes, e o desprezo que o ignorante inflige ao merito paciente, quando basta a ponta de um punhal para alcançar o descanso eterno? Quem se resignaria a supportar gemendo o peso de uma vida importuna, se não fosse o receio de alguma cousa alem da morte, esse ignoto paiz, do qual jámais viajante regressou? Eis o que entibia e perturba a nossa vontade; eis o que nos faz antes supportar as nossas dores presentes do que procurar outros males que não conhecemos. Assim, somos cobardes todos, mas pela consciencia; assim a brilhante côr da resolução se transforma pela reflexão em pallida e livida penumbra, e basta esta consideração para desviar o curso das emprezas mais importantes, e fazer-lhes perder até o nome de acção. Mas silencio, vejo a linda Ophelia. Joven beldade, lembra-te dos meus peccados nas tuas orações. OPHELIA Como tem vossa alteza passado estes dias ultimos? HAMLET Bem, agradeço-te do coração. OPHELIA Senhor, tenho dadivas e lembranças suas que ha muito lhe desejava restituir. Permitta-me que lh'as devolva. HAMLET Eu! de certo que não, nunca te dei nada. OPHELIA O principe sabe perfeitamente que me fez essas dadivas, e as doces palavras que as acompanharam ainda lhes realçaram o valor; agora que perderam todo o seu perfume, tome-as, principe, porque para uma alma nobre, as mais ricas dadivas perdem o seu valor, no momento em que aquelle que nol-as fez só nos mostra indifferença. Receba-as, pois, senhor. HAMLET Ah, ah, és virtuosa. OPHELIA Meu senhor. HAMLET És bella. OPHELIA Que diz vossa alteza? HAMLET Digo que se és virtuosa e bella, deves evitar toda a communicação entre a tua virtude e a tua belleza. OPHELIA Que melhor commercio ha para a belleza que o da virtude? HAMLET A influencia da belleza será mais prompta em metamorphosear a virtude em vil cortezã, do que a força da virtude em transformar a belleza á sua imagem. Antigamente seria paradoxo, hoje é um facto provado. Amei-te n'outro tempo, é verdade. OPHELIA Vossa alteza bem m'o fez acreditar. HAMLET Fizeste mal em acreditar. Porque embora a virtude se inocule na nossa primitiva natureza, sempre nos ficam restos d'ella. Nunca te amei. OPHELIA Maior foi o meu engano. HAMLET Professa, Ophelia, encerra-te n'um claustro. Para que queres continuar uma raça de peccadores; quanto a mim julgo-me ainda assás honesto; e comtudo podia formular contra mim taes accusações, que melhor teria valido, que minha mãe me não tivesse dado á luz. Sou orgulhoso, vingativo e ambicioso; gero no meu cerebro tantas acções más, que o meu pensamento não basta para as distinguir, nem a minha imaginação para lhes dar uma fórma, e falta-me o tempo para as executar. Que vantagem haverá pois que seres como eu se rojem como reptis entre o céu e a terra? Todos somos infames, não te fies em nenhum homem; vae, recolhe-te a um claustro. Onde está teu pae? OPHELIA Em casa, meu senhor. HAMLET Que lhe fechem as portas para impedir que represente de louco fóra de casa. Adeus. OPHELIA Deus misericordioso, tende piedade de Hamlet. HAMLET Se alguma vez te casares, dar-te-hei como dote esta triste verdade. Sê tu fria como o gêlo; se fores pura como a neve a calumnia não te poupará. Entra para um claustro, professa, adeus. Mas se absolutamente precisas um marido, então escolhe um louco, porque os homens assisados sabem em que monstros vós as mulheres os tornaes. Professa, recolhe-te a um convento, mas avia-te. Adeus. OPHELIA Poderes celestes, restitui-lhe a rasão! HAMLET Tambem ouvi fallar da vossa loquacidade. Deus deu-vos um porte e vós o transformaes por vossa culpa. Saltitaes, requebrae-vos; gestos e affabilidade são artificio, zombaes das creaturas de Deus, e fazeis passar por ignorancia o que é simples e pura affectação. Nem quero pensar em vós, mulheres; foi o que me enlouqueceu. Digo que não teremos mais casamentos, todos que estão casados viverão, excepto um, os outros ficarão como estão. Professa, entra para um convento, vae. Adeus. (Hamlet sáe.) OPHELIA (só) Oh que nobre intelligencia está ali desthronada. A perspicacia do homem de côrte, a espada do guerreiro, a palavra do sabio, o futuro d'este reino, o espelho do bom tom, o typo dos modos nobres, o modelo em que todos fictavam os olhos, tudo destruido e destruido sem esperança; e eu, a mais afflicta e infeliz das mulheres, eu que saboreei a inebriante ambrosia dos seus juramentos de amor, estou condemnada a ver essa potente e elevada rasão, similhante ao bronze fendido, não dar senão sons falhos e dissonantes; e tanta belleza e juventude crestadas pelo sôpro da demencia! Oh infeliz, oh desgraçada, que vi o que vi, e vejo o que vejo!!! Sáem de trás da cortina o REI e POLONIO O REI O amor! não é a ella que elle dedica a sua affeição; alem d'isso o seu fallar, aindaque um pouco falto de logica, não tem cunho de loucura. Ha na sua alma alguma dor secreta. Receio algum perigo que nos seja fatal. Para prevenir esse resultado, eis o plano que formei e no qual assentei. Quero que Hamlet parta sem demora para Inglaterra, para reclamar o tributo a que esse paiz se nega e a que é obrigado. Talvez que o mar, a mudança de clima, a vista de objectos novos, lhe restituam a rasão, expulsando do seu coração aquella obstinada preoccupação. Que lhe parece? POLONIO Parece-me acertado. Comtudo persisto na minha idéa, que um amor desprezado é a causa unica da sua dor. (A Ophelia) Não precisas referir-nos o que te disse o sr. Hamlet. Tudo ouvimos. (Ao rei) Senhor, faça o que lhe parecer conveniente, mas se me quer dar ouvidos, diga á rainha, que, depois da representação, o chame a sós e inste para conhecer d'elle a causa da sua mágua; porém cumpre que lhe falle severamente: com o vosso assentimento ouvirei escondido toda a conversação. Se a rainha não podér penetrar aquelle espirito rebelde a toda a confidencia, ordene-lhe então a partida, e desterre-o, senhor, para o logar que a prudencia lhe dictar. O REI Concordo plenamente comtigo; nos grandes é que a demencia deve ser mais vigiada. (Sáem todos.) SCENA II Uma sala no castello de Elsenor Entram HAMLET e differentes actores HAMLET (a um dos actores) Não esqueças de dizer aquelle trecho, tal qual o declamei na tua presença; mais que tudo fogo e energia; mas se o recitares como a maior parte dos actores, mais me valeria ouvir a minha prosa na bôca de um pregoeiro. Não movas descompassadamente os braços, acciona moderadamente; no meio mesmo da torrente, da tempestade, do tufão, da paixão, procura ser comedido. Nada impressiona mais desfavoravelmente, do que ver homens robustos reduzirem a pó uma paixão e escorchar os ouvidos dos assistentes, que, pela maior parte, não merecem senão uma declamação absurdamente arrebatada e uma acção desordenada. Açoutados mereciam esses actores, cujo accionado mais parece renhida batalha, e que mais crueis se fingem que um Herodes de comedia. Peço-te que evites esses defeitos. PRIMEIRO ACTOR Pela minha parte, prometto-lh'o, senhor. HAMLET Não vás tambem caír no excesso contrario, sirva-te de guia a tua intelligencia. Accommoda a acção ás palavras, as palavras á acção, tendo sempre em vista a naturalidade; só é proprio da scena intelligente, que foi e é o espelho em que se deve reflectir a natureza, mostrar a virtude tal qual é, a vaidade sem véu, e cada tempo e cada idade com a sua physionomia propria e com o cunho de verdade. Se se excede, ou se fica áquem do fim proposto, poderá excitar-se a hilaridade do homem ignorante, mas afflige-se o sensato, cujo juizo vale mais que o suffragio de uma sala inteira. Oh! vi representar e ouvi elogiar actores, que, Deus me perdôe, nada tinham de christão na voz, nada de christão, pagão ou mesmo humano no porte, e que se estorciam e bramavam de tal modo, que sempre os julguei obra de algum aprendiz da natureza, que, querendo fabricar homens, errou a vocação, e não tinha produzido senão uma desgraçada imitação da humanidade. PRIMEIRO ACTOR Espero em Deus, que vossa alteza não nos poderá notar taes defeitos; entre nós, senhor, estão banidas de todo as exagerações. HAMLET Mas que o estejam na verdade; que os bobos não digam mais do que ao que são obrigados pela sua parte; alguns ha que introduzem alguma facecia para excitar o riso dos espectadores ignaros no ponto em que mais attenção se reclama da parte do publico. É um desacerto, e o bobo que recorre a esses expedientes, mostra uma pretensão desgraçada. Vão-se agora preparar. (Os actores sáem.) Entram POLONIO, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN HAMLET (a Polonio) Então o rei está decidido á nossa peça? POLONIO Com certeza, e a rainha tambem. Não tardam. HAMLET Diga então aos actores que se aviem. (Polonio sáe.) HAMLET (continuando, a Rosencrantz e Guildenstern.) Querem fazer-me o favor de tambem ir apressar os preparativos. AMBOS Sim, meu senhor. (Sáem.) Entra HORACIO HAMLET Ah, és tu, Horacio? HORACIO Estou sempre ás suas ordens, meu senhor. HAMLET Meu caro Horacio, és a flor dos homens, cujo trato tenho cultivado. HORACIO Meu querido senhor. HAMLET Não julgues que te lisonjeio; que posso eu esperar de ti, cujas unicas rendas são a jovialidade e a honestidade. Quem lisonjeia um pobre? Não, que a lisonja roja-se aos pés da opulencia estupida, e o servilismo curva o joelho, á espera do comprador. Escuta, depois que a minha alma pôde livremente escolher e soube distinguir os homens, marcou-te com o sêllo da predilecção, porque reconheceu em ti um homem que não se abate pelos revezes; um homem que acceita com a mesma indifferença os favores e os rigores da fortuna; felizes os mortaes em quem o juizo e as paixões têem igual imperio, e não são um joguete nas mãos da fortuna. Mostrem-me um homem que não seja escravo das paixões, e terá conquistado, como tu, o meu coração, e abrir-lhe-hei o santuario da affeição mais íntima. Basta sobre o assumpto. Deve-se hoje representar na presença do rei um drama, no qual ha uma scena, que é a historia da morte de meu pae, cujos pormenores já em tempo te contei. Quando se approximar a scena, observa meu tio, com toda a vigilancia que auctorisam as minhas suspeitas; se o segredo do seu crime se não revelar por alguma palavra, então era a apparição obra do demonio, e as minhas imaginações são mais negras que as lavas e cinzas de um vulcão. Tu observa-o attentamente, eu não o perderei de vista; depois, juntando os nossos juizos, concluiremos conforme ao que virmos. HORACIO Muito bem, senhor, tão firme estarei no meu posto de observação, que juro por Deus, que me não escapará um movimento, uma impressão da sua alma. HAMLET Eil-os que chegam para a representação; agora, cumpre-me ser espectador indifferente. (Ouve-se a marcha real e clarins.) Entram o REI, a RAINHA, POLONIO, OPHELIA, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e a CORTE O REI Como passa nosso sobrinho Hamlet? HAMLET Melhor não póde ser; em verdade passei a viver como os camaleões, nutro-me só de ar, e alimento-me de promessas, as iguarias mais finas não me satisfariam melhor. O REI A tua resposta é-me inintelligivel; não é de certo a mim que ella é dirigida. HAMLET Pois nem a mim. (A Polonio.) Não me disse que já tinha representado uma vez, quando cursava a universidade? POLONIO É verdade, senhor, e era reputado um habil actor. HAMLET Que parte representou? POLONIO A de Julio Cesar; assassinaram-me no capitolio; Bruto apunhalava-me. HAMLET Que brutalidade apunhalar, e n'aquelle logar, um tão excellente bezerro. Os actores já estão promptos? ROSENCRANTZ Sim, meu senhor, esperam só as ordens. A RAINHA Vem, meu Hamlet, sentar-te a meu lado. HAMLET Não, minha mãe; (mostrando Ophelia) este metal tem mais força de attracção. POLONIO Que me diz agora, senhor? HAMLET Ser-me-ha permittido estar a vossos pés, senhora? (Senta-se no chão aos pés de Ophelia.) OPHELIA Não, meu senhor. HAMLET Queria dizer, recostar a cabeça sobre vossos joelhos. OPHELIA Sim, meu senhor. HAMLET Pensaveis talvez que tivesse outra idéa? OPHELIA Nada pensava. HAMLET É um pensamento este digno de um coração de donzella. OPHELIA O que, senhor? HAMLET Nada. OPHELIA Vejo-o hoje alegre, senhor. HAMLET Quem, eu? OPHELIA Sim, vossa alteza. HAMLET Sou o seu bobo e nada mais. Cousa alguma ha melhor para o homem do que a alegria. Repare, veja como minha mãe está hoje muito alegre, e ainda não ha duas horas que meu pae morreu. OPHELIA Vossa alteza engana-se por certo; ha mais de duas vezes dois mezes. HAMLET Tanto tempo!! n'esse caso use o demonio o lucto, eu quero vestir-me de arminhos. Oh céus, morto ha dois mezes, e ainda não esquecido, não é então de estranhar que a recordação de um grande homem dure mais de seis mezes; mas, pela Virgem Santa, deve então ter edificado igrejas, aliás arriscava-se a que o esquecessem, como aquelle a quem lavraram este epitaphio: _Aqui jaz esquecido um cavallo de pau._ Soam os clarins, começa a pantomima (Um rei e uma rainha entram em scena, o seu aspecto é de namorados, abraçam-se. A rainha ajoelha aos pés do rei, mostrando pelos seus gestos que lhe protesta o mais vivo amor. O rei levanta-a, e inclina a cabeça sobre o seu hombro; depois deita-se n'um banco coberto de flores. A rainha vendo-o adormecido, sáe. Apparece um personagem que lhe tira a corôa e a leva aos labios, lança veneno n'um ouvido do rei, e sáe em seguida. Volta a rainha, acha o rei morto, e dá mil signaes de desespero. O envenenador seguido por duas ou tres pessoas, chega e parece lamentar-se com a rainha. O cadaver é levado da scena. O envenenador requesta a rainha, dá-lhe presentes. Ella mostra a principio repugnancia, mas acaba por acceitar o amor offerecido. Sáem.) OPHELIA Que significa esta scena, senhor? HAMLET Nada que seja bom, é um laço armado ao crime. OPHELIA Esta pantomima indica sem duvida o entrecho da peça? Entra o PROLOGO HAMLET Vamos sabel-o, os comediantes não podem guardar um segredo, têem por costume fallar sempre. OPHELIA Explicará elle o que significa a pantomima? HAMLET Sem duvida, não só essa, mas todas as que lhe quizer apresentar, qualquer que seja a sua especie, e terá a explicação prompta. OPHELIA O principe é mau, deixe-me seguir a peça. O PROLOGO Pedimos, para nós, toda a vossa indulgencia; Para a nossa tragedia, attenta paciencia. HAMLET Parece antes divisa de annel do que prologo. OPHELIA Tão curto, senhor. HAMLET Como o amor de uma mulher. Entram um REI e uma RAINHA O REI DA PEÇA Trinta vezes de Phebo o carro luminoso De Tellus e Neptuno, o largo giro ha feito, E trinta vezes doze a lua, astro saudoso, De refrangida luz, á terra ha dado o preito, Desde que as nossas mãos, com mutuo amor se deram, E as bençãos d'Hymeneu o sacro nó teceram. A RAINHA DA PEÇA Possamos lua e sol, ver outras tantas vezes, Antes que d'este amor se rompa o doce laço; Mas seguem-se á ventura as maguas, os revezes, E vejo-vos caído, ha pouco, em tal cansaço, Tão triste, meu senhor, tão triste e tão mudado, Que não posso esconder mais tempo o meu cuidado. Mas que não se perturbe o vosso animo forte Porque inquieta eu sou, e ousei pensar na morte. De affecto e de anciedade igual medida temos, Ou nullos um e o outro, ou um e o outro extremos. Se é grande o meu amor, demais senhor o vêdes, Que a par anda o receio, em minha fronte o lêdes. Sempre que o amor é grande, as apprehensões mais breves Transformam-se de prompto em maximos temores; Quando é grande o receio, os affectos mais leves Ascendem de repente aos mais grandes amores. O REI DA PEÇA Bem cedo é força, amor, que d'este mundo eu parta, Bem vês, d'esta alma a luz já quasi que se aparta. Tu viverás sem mim, sob este céu formoso, Querida, idolatrada e sempre honesta e casta. Depois, talvez depois, quem sabe? um novo esposo... Um homem justo e bom... A RAINHA DA PEÇA Oh! basta, senhor, basta! Seria um novo amor perfidia negra e infame. Amaldiçoado seja o dia em que outro eu ame! Embora justo e bom, segundo companheiro Não n'o acceita ninguem, sem ter morto o primeiro. HAMLET Isto é absintho, e que absintho! A RAINHA DA PEÇA Poisque motivo arrasta a viuva ao casamento? Acaso um novo amor? um nobre sentimento? Um sordido interesse: e eu cravára no peito De meu morto senhor a ponta de uma espada, Cada vez que, olvidando a antiga fé jurada, Compartisse outro ser commigo o mesmo leito. O REI DA PEÇA Creio bem, que pensaes o que dizeis, se creio?! Mas quanta, oh! quanta vez, se quebra a acção no meio, Nasce a resolução escrava da memoria, Producto da violencia, é curta a sua historia. A fructa emquanto verde em qualquer ramo atura Mas, sem abalo algum, tomba apenas madura. Fatalmente olvidando o que a nós nos devemos Não pagâmos jámais, a divida esquecemos. O que durante a dor parece a eternidade, Mal extincta a paixão, cessa de ser vontade. O jubilo e o martyrio, ainda os mais completos, Destruindo-se a si, destroem seus decretos. Onde o prazer mais ri, mais chora a dor pungente; Entristece a alegria, alegra-se a tristeza, Á causa mais subtil, ao mais leve accidente, E este um dom fatal da vária natureza. Passâmos pelo mundo, e nada aqui tem dura Que até o proprio amor muda com a ventura; Porque é problema ainda occulto aos pensadores Se dá o amor fortuna, ou se a fortuna amores. Um principe decáe? somem-se os que os adulam; Um mendigo se eleva? os amigos pullulam. Até aqui o amor seguiu sempre a fortuna; Quem não precisa encontra em toda a parte amigos, E quem precisa e pede, é lepra que importuna, Todos transforma e muda em feros inimigos, Mas para concluir, escuta o corollario: A vontade e o destino, andam tanto ao contrario Que o mais leve projecto é sempre letra morta. Assim crês, não terás jamais outro marido; Pois abra-me o sepulchro a sua eterna porta E tudo irá sumir-se em um perpetuo olvido. A RAINHA DA PEÇA Negue-me a terra o pão, e a luz o firmamento! O meu goso maior transforme-se em tormento! Minha esperança e fé tornem-se em negro inferno! Seja a fome em prisão o meu futuro eterno! Não tenha eu, viva ou morta, o mais curto repouso, Se, viuva uma vez, tomar um outro esposo! HAMLET E se lhe acontecer violar o juramento? O REI DA PEÇA Solemne juramento!... Amor, deixa-me agora; Exhausta sinto a fronte, e bom grado entregára Os restos d'este dia á paz consoladora Dos braços de Morpheu. Adeus! Oh! sempre cara. (Adormece.) A RAINHA DA PEÇA Que um somno brando e doce embale a tua mente E a desgraça jamais entre nós dois se assente!... (Sáe a rainha.) HAMLET Senhora, como acha esta peça? A RAINHA A rainha parece-me que faz demasiados protestos. HAMLET Mas dada a palavra, não póde faltar. O REI Conhece a peça? não contém nada reprehensivel? HAMLET Absolutamente nada; tudo quanto contém é só gracejo, até se envenena por gracejo. É a peça mais inoffensiva que póde haver. O REI Que titulo tem? HAMLET O _Laço_, já se sabe, por metaphora. O assumpto da peça é um assassinio commettido em Vienna. O rei chama-se Gonzaga, sua mulher Baptista. Vae ver, um crime horrivel. Mas que importa a vossa magestade e a mim, que temos a consciencia pura e que nada temos a receiar! O peior é para aquelles a quem punge algum espinho, a nós nada nos pesa na consciencia. Entra LUCIANO HAMLET (continuando) É este um chamado Luciano, sobrinho do rei. OPHELIA Vossa alteza faz o serviço do côro. HAMLET Podia até servir de ponto n'uma conversa sua com o seu amante; o caso era eu ver manobrar os dois titeres. OPHELIA Sois na verdade mordaz, principe; sois bem mordaz. HAMLET A sua pena seria que eu deixasse de o ser. OPHELIA De bem para melhor, de mal para peior. HAMLET É a sorte que a espera na escolha de um marido! Começa, assassino. Põe de parte esses horriveis tregeitos, avia-te, começa. Eis o corvo que avança, Chamando em seu grasnar a lugubre vingança. LUCIANO O pensamento negro, o braço bem disposto, A droga preparada, a hora favoravel, Cumplice a occasião, a ver nem um só rosto. Mistura infecta e immunda, extracto abominavel De peçonhenta sarça á meia noite achada, Tres vezes polluida e tres envenenada D'Hecate á maldição, possa a tua virtude Fechar uma existencia, e abrir um ataúde. (Deita veneno n'um ouvido do rei adormecido.) HAMLET Envenena-o no jardim, para se apoderar da corôa. O nome do rei é Gonzaga; é uma historia authentica escripta no mais elegante italiano. Verão como logo o assassino obtem o amor da mulher de Gonzaga. OPHELIA O rei levantou-se. HAMLET Quê!! um pequeno clarão apenas, já o assusta? A RAINHA Que tem, senhor? POLONIO Cesse a peça. O REI Tragam luzes. Saiâmos. POLONIO Luzes, venham luzes, luzes. (Todos sáem, excepto Hamlet e Horacio.) HAMLET Sim! que fuja e que chore o cervo mal ferido, E o que ao golpe escapou, gose um prazer profundo. Quando um chora, outro ri. Oh! sempre assim ha sido, E assim é feito o mundo. Se alguma vez a fortuna me maltratar, não bastaria uma scena de effeito como esta, acrescentando-lhe um chapéu ornado de pennas, e duas rosas de Provença nos laços dos sapatos, para que me admittissem n'uma companhia dramatica. HORACIO Talvez o admittissem, mas com meia paga. HAMLET Ou inteira. Porque sabes, Damon, bem sabes tu que outr'ora Mandava n'este reino, que vês hoje aviltado, Qual Jupiter no Olympo, um grande rei... agora Governa aqui... um chavo. HORACIO Foi pena não rimar. HAMLET Meu querido Horacio, aposto mil libras esterlinas, em como a sombra fallou só a verdade. Reparaste? HORACIO Em tudo reparei, senhor. HAMLET Quando se tratava do envenenamento? HORACIO Tudo observei. HAMLET Ah! ah! ah! quero musica, tanjam as charamelas. Porque, se da comedia o rei não gosta nada, Sei eu dar a rasão... não gosta, está dada. Venha a musica, quero muita musica. (Entram Rosencrantz e Guildenstern.) GUILDENSTERN Senhor, permitta-me que lhe dê uma palavra. HAMLET Mil até, se n'isso fizer gosto. GUILDENSTERN Senhor... o rei... HAMLET Que é?... que me vem dizer d'elle? GUILDENSTERN Retirou-se aos seus aposentos, estranhamente indisposto. HAMLET Pelo vinho? GUILDENSTERN Não, senhor, mas pela colera. HAMLET Mais assisado seria terem chamado um medico. Eu não faria senão exacerbar a sua colera com a minha presença. GUILDENSTERN Queira, senhor, ter mais nexo nos seus discursos, e não se afastar assim tão bruscamente da questão. HAMLET Escutal-o-hei tranquillamente. Falle. GUILDENSTERN A sua rainha e mãe me envia a vossa alteza. HAMLET Bemvindo seja. GUILDENSTERN Senhor, essa polidez é mal cabida n'esta occasião. Se me promette responder rasoavelmente, executarei então as ordens de sua mãe, quando não, retiro-me pedindo desculpa a vossa alteza. HAMLET Não posso. GUILDENSTERN O que, meu senhor? HAMLET Responder rasoavelmente; a minha intelligencia enfermou, no emtanto dar-lhe-hei uma resposta, ou antes como ordena a minha mãe, a melhor que podér. Diga-me agora, que pretende de mim a rainha? ROSENCRANTZ Encarregou-nos de lhe dizer, principe, que o seu comportamento lhe causou espanto e dor. HAMLET Ah! sou pois um filho tão extraordinario que causo espanto e dor a minha mãe! Nada mais lhe disse? Fallem. ROSENCRANTZ Deseja fallar-lhe, alteza, no seu quarto, antes de o principe se deitar. HAMLET Obedecer-lhe-hemos, aindaque fosse dez vezes nossa mãe. Tem mais alguma cousa a dizer? ROSENCRANTZ Houve tempo em que o principe era meu amigo. HAMLET Ainda hoje o sou, juro-o por estes dez dedos. ROSENCRANTZ Senhor, qual é a causa da sua dor profunda? É impor-se um constrangimento inutil, guardar esse segredo para comnosco, que somos tão seus amigos. HAMLET Inquieta-me o meu futuro! ROSENCRANTZ Como póde isso ser, pois o rei já o escolheu para successor ao throno de Dinamarca? HAMLET É verdade; mas guardado está o bocado... o proverbio é antigo. Entram differentes actores cada um com uma charamela HAMLET Ah! chegam as charamelas, dá-me uma. (Tira a charamela a um dos actores.) Quer que o acompanhe? então deixe de me perseguir como o caçador persegue a caça. GUILDENSTERN Se o meu zêlo, senhor, me faz obstinado, é porque a affeição me torna importuno. HAMLET Não o posso comprehender, faz-me favor de tocar n'esta charamela. GUILDENSTERN Senhor, eu não sei! HAMLET Peço-lhe. GUILDENSTERN Creia-me, senhor, não posso. HAMLET Supplico-lhe. GUILDENSTERN Se nunca soube tocar tal instrumento! HAMLET Pois mais difficil é mentir. Com os quatro dedos e o pollegar tapam-se e destapam-se por sua vez os orificios; sopre, e verá que encantadora harmonia produz. Vamos. GUILDENSTERN Mas, senhor, eu não posso nem sequer tirar um som d'este instrumento; falta-me o talento. HAMLET Que especie de imbecil me julga então? Sou a seus olhos um instrumento de que pretende tirar sons, e que parece conhecer tão bem. Pretende sondar até ao fundo da minha alma, para descobrir o meu segredo; queria então fazer vibrar todas as cordas do meu sentimento. D'este pequeno instrumento (Mostrando-lhe a charamela) tiram-se sons e notas as mais melodiosas; e comtudo nas suas mãos não póde fallar. Pela Virgem santa, sou então mais facil de tocar do que uma flauta? O que lhe asseguro é que se me julga um instrumento nas suas mãos, nunca conseguirá fazel-o fallar. Está muito enganado commigo. Entra POLONIO HAMLET (continuando) Guarde-o Deus. POLONIO Senhor, a rainha deseja fallar-lhe immediatamente. HAMLET (approximando-se de uma janella) Vê acolá aquella nuvem que tem quasi a fórma de um camello? POLONIO Não ha duvida, dir-se-ia effectivamente um camello. HAMLET Parece-se mais com uma doninha. POLONIO É verdade! tem o feitio da doninha. HAMLET Ou de uma baleia? POLONIO Realmente, com o que se parece é com uma baleia. HAMLET Agora vou ter com minha mãe, hão de acabar por enlouquecer-me devéras. Vou já. POLONIO Vou communical-o á rainha. (Polonio sáe.) HAMLET Já! É facil dizel-o. Deixem-me sós, meus amigos. (Sáem todos excepto Hamlet.) HAMLET (só) É esta a hora da noite propria dos mysterios da magia, a hora em que os tumulos se abrem, em que o inferno exhala sobre a terra o seu sopro contagioso; agora sinto-me capaz de beber sangue ainda fumegante, e commetter actos que o dia consternado não poderia presencear sem terror! Prudencia! Vamos ao quarto de minha mãe. Oh! meu coração, não dispas o teu vigor; firmeza agora, mas que o coração de Nero nunca entre em meu peito. Sejamos inflexiveis, mas não filho desnaturado; seja a minha lingua um punhal, mas minha mão esteja desarmada; e n'esta occasião sejam a minha bôca e o meu coração obrigados pela rasão a dissimular. Por mais violentas que sejam as minhas palavras, dae-me força, meu Deus, para que sejam sempre comedidas, assim como os meus actos. (Sáe.) SCENA III Um quarto no castello de Elsenor Entram o REI, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REI Ha n'elle alguma cousa que me desagrada, e creio que haveria perigo para nós em não vigiar a sua loucura; façam pois todos os preparativos de viagem. Vou dar as ordens, e quero que parta sem demora para Inglaterra acompanhado pelos senhores. O interesse da nossa corôa me veda o expor-me aos continuos perigos com que a sua demencia me ameaça. GUILDENSTERN Vamo-nos preparar. É um receio santo e salutar o que tem por objecto assegurar a salvação de innumeras existencias, que depende da vida de vossa magestade. ROSENCRANTZ É um dever que toca a cada um na sua esphera individual, o applicar todas as suas forças e toda a energia para defender a propria vida contra qualquer ataque; quanto mais obrigado a fazel-o é aquelle de cuja vida dependem tantas existencias! Quando um rei morre, não morre só, é um turbilhão que attrahe tudo quanto encontra no caminho, ou lhe fica proximo: roda colossal fixada no cume de uma elevada montanha, cujos gigantescos raios estão carregados de innumeros accessorios, e cuja quéda os impelle forçosamente a um desastre commum. Quando o rei padece, padecem todos. O REI Preparem-se, peço-lh'o, para uma partida immediata, porque estamos resolvidos a pôr um termo ás causas de inquietação que demasiado livremente se dão n'este paiz. AMBOS Não nos faremos esperar. (Sáem.) Entra POLONIO POLONIO Senhor, Hamlet entrou agora para o quarto de sua mãe; occultar-me-hei cuidadosamente para ouvir a sua conversa. Asseguro a vossa magestade que a rainha o vae reprehender severamente. É conveniente, como el-rei muito bem disse, que outros ouvidos que não sejam os de mãe, naturalmente propensos á indulgencia, ouçam o que se disserem mutuamente. Adeus, meu senhor; virei aos seus quartos antes que vossa magestade se recolha, e o rei será sabedor de tudo quanto se passou. O REI Obrigado, Polonio. (Polonio sáe.) O REI (só) O meu crime já não tem perdão no céu, está marcado pelo estigma da maldição divina, como o foi o primeiro fratricida. Apesar de todos os meus desejos, não posso orar; pareço um homem que duas occupações reclamam, e que, não sabendo por qual optar, não escolhe nenhuma. Poisque, quando sobre esta mão maldita se formasse uma crosta de sangue mais espessa que a propria mão, não teria o céu bastante misericordia para que a onda da sua graça a purificasse e a tornasse branca como a neve? Para que serve a bondade divina, senão para remir as nossas culpas? De que vale a oração, se não tem a dupla virtude de prevenir a nossa quéda, ou obter o perdão depois d'ella? Dirijâmos as nossas supplicas ao céu, já que não podemos evitar o crime consummado. Mas, infeliz, como hei de orar? Perdoae-me, Senhor, o meu crime nefando. Não posso, poisque possuo os objectos que me induziram ao assassinio, corôa, throno e consorte. Poder-se-ha obter o perdão, quando se conservam os fructos do crime? N'este mundo corrompido, a iniquidade póde a preço de oiro desviar o curso da justiça, e com o producto do crime comprar a impunidade; mas o céu é justo, todo o subterfugio é inutil; ali os nossos actos são justamente avaliados e os nossos crimes conhecidos. Que devo fazer? Nada me resta. Tentemos o arrependimento. Grande é a sua efficacia; mas que póde n'aquelle a quem mesmo o arrepender-se é vedado? Oh! deploravel condição, oh! consciencia negra como a morte, oh! minha alma, não tens perdão, e quanto mais te esforçares por obtel-o, mais aggravas a tua situação. Anjos do céu, vinde em meu auxilio, tentae um esforço supremo. Dobrae-vos, joelhos rebeldes. E tu, meu coração, que as tuas fibras de aço voltem ao estado primitivo das do recem-nascido. Ainda me resta esta ultima esperança. (Retira-se a um lado da scena, ajoelha e ora.) Entra HAMLET HAMLET (vendo o rei) A occasião é propicia, está orando. Coragem, Hamlet. Sim, mas salvar-se-ía a sua alma, e não é essa a minha vingança desejada. Reflictâmos; um scelerado assassina meu pae, e eu, seu filho unico, abro as portas do céu a esse infame! Seria uma recompensa e não um castigo. Assassinou meu pae, entregue ás preoccupações da carne, quando seus peccados mais vivazes estavam, como as flores na primavera; e quem sabe, a não ser o céu, que contas daria ao Creador? as penas eternas, de certo, não o pouparam. Seria uma vingança immolar este scelerado, quando a sua alma deve estar pura, quando está preparado para a sua ultima viagem? Não! Entra na tua bainha, minha espada, e espera para ferir, golpe mais terrivel e justo. Quando estiver ebrio ou adormecido, ou encolerisado, ou immerso nos prazeres de um leito incestuoso, ou absorvido pelo jogo, ou blasphemando, ou praticando algum acto contrario á salvação da sua alma, então fere, que as penas do inferno serão poucas para um tal crime. (Olhando para o rei.) Prolonga ainda os teus dias enfermos: adiar não é desistir. (Sáe.) O REI Sobem as minhas palavras, o pensamento não, e as palavras sem o pensamento não chegam ao céu. (Sáe.) SCENA IV Um quarto no castello Entram a RAINHA e POLONIO POLONIO O sr. Hamlet não tarda. Reprehenda-o asperamente; diga-lhe que os seus atrevimentos excedem os limites da paciencia, e que vossa magestade já teve que se interpor entre elle e a colera do rei. Nada mais digo, senhora, peço só que falle com firmeza. A RAINHA Fallar-lhe-hei com firmeza, esteja descansado. Afaste-se, ouço os seus passos. (Polonio esconde-se.) Entra HAMLET HAMLET Que me quer, minha mãe? A RAINHA Hamlet, offendeste gravemente teu pae. HAMLET Minha mãe offendeu gravemente meu pae! A RAINHA Como insensato fallas. HAMLET A rainha falla como culpada! A RAINHA Que queres tu dizer, Hamlet? HAMLET O que é, senhora? A RAINHA Esqueces quem eu sou? HAMLET Pela cruz do Redemptor, que não. Rainha é, foi esposa do irmão de seu marido, e prouvera a Deus que não o fosse, mas é minha mãe! A RAINHA Mandar-te-hei alguem que melhor do que eu te saiba fallar. HAMLET Vamos, sente-se, minha mãe. Não se moverá, não saírá d'aqui emquanto eu não tiver posto diante dos seus olhos um espelho em que possa ver até ás profundidades da sua alma. A RAINHA Que pretendes de mim? queres tu porventura assassinar-me? Acudam á rainha, acudam! POLONIO (por detrás do reposteiro) O que é! olá, soccorro! HAMLET (desembainhando a espada) Que é isso? Um rato? (Dando-lhe uma estocada.) Aposto um ducado em como o matei! POLONIO (atrás do reposteiro) Mataram-me, eu morro. (Cáe para fóra do reposteiro e morre.) A RAINHA Que fizeste, infeliz? HAMLET Ignoro-o; seria o rei? (Levanta o reposteiro e puxa pelo cadaver de Polonio.) A RAINHA Que acto de crueldade e de sangue! HAMLET De sangue; quasi tão reprehensivel, minha mãe, como assassinar um rei e desposar o irmão! A RAINHA Assassinar um rei? HAMLET Sim, um rei, foi o que eu disse. (A Polonio.) Quanto a ti, pobre diabo, louco, temerario e indiscreto, as nossas contas estão ajustadas, aprendeste á tua custa o perigo que corre quem se intromette nos negocios dos outros. (Á rainha.) Cesse de estorcer-se. Silencio, sente-se, quero torturar o seu coração, e fal-o-hei, se ainda possue alguma sensibilidade, e o habito do crime não a bronzeou a ponto de ser insensivel a toda a especie de emoção. A RAINHA Que fiz eu, Hamlet, para que me falles n'esse tom ameaçador? HAMLET Uma acção que mancha o rubor e a graça do pudor; que transforma a virtude em hypocrisia; que arranca á fronte innocente do amor a sua corôa de rosas, e a substitue por uma chaga asquerosa; que torna os juramentos do hymeneu tão falsos como os do jogador! Oh! uma acção que rouba ao corpo dos contratos a santidade, que é a sua alma, e faz da religião uma rapsodia de palavras. Indigna-se o céu, contrista-se o globo solido e compacto, lê-se-lhe nas faces a consternação como se fosse o ultimo dia do mundo. A RAINHA Qual é pois a acção que denunciam este ameaçador preludio e esta expressão fulminante? HAMLET (mostrando dois retratos em pé que ornam as paredes) Veja bem esses dois retratos, são as imagens de dois irmãos. Veja que graça impressa n'estas feições: o cabello annellado de Apollo; a fronte do proprio Jupiter; o olhar de Marte, onde se lê a commando e a ameaça; o porte de Mercurio, o mensageiro celeste, quando apenas pousa o alado pé sobre o cimo das nuvens; uma tão feliz reunião das fórmas perfeitas, que cada um dos deuses parecia ter contribuido com o seu quinhão, como se quizessem mostrar ao mundo o modelo do verdadeiro homem! Esse era o seu primeiro esposo. Volva agora os olhares para este lado. Eis o que é o seu segundo esposo! que, similhante á espiga mangrada, pelo seu contacto causa a morte a sua irmã a espiga sã. E saberá ver? Como pôde então abandonar as ferteis e salubres collinas, para se immergir n'este immundo paul!! Se ainda tem olhos, senhora, não póde imputar ao amor o seu comportamento; na sua idade já se acalmou a effervescencia do sangue, e a paixão obedece á rasão. E qual seria a creatura racional, que ousasse trocar o seu primeiro marido por este segundo? É sem duvida dotada de sensibilidade, aliás não seria um ser animado; mas na senhora estão paralysados todos os sentimentos, porque não ha demencia que não deixe ao que verga sob o seu peso uma porção bastante de discernimento, para saber escolher entre objectos tão dissimilhantes. Que demonio a perturbou a ponto de lhe vendar os olhos? A vista sem o tacto, o tacto sem o auxilio da vista, o ouvido sem o uso das mãos e dos olhos, o olfato só por si, uma porção mesmo alterada de um verdadeiro sentido, não podiam ter-se enganado tão estultamente. Oh! vergonha! onde está o teu rubor? Inferno rebelde, que assim pódes atear a revolta nos sentidos de uma mulher, ha muito esposa e mãe. Que admira que, para a ardente juventude, a virtude seja como a cera, que se derrete á chamma que alimenta; que não seja vergonha ceder quando nos arrasta a paixão, poisque o proprio crystal se funde e a rasão prostitue aos desejos os seus vergonhosos serviços. A RAINHA Oh! Hamlet, cessa por piedade, obrigas o meu olhar a volver-se todo para a minha alma, e n'ella descubro máculas tão negras e tão profundamente impressas, que nada já as póde lavar. HAMLET Viver no suor impuro de um leito infecto, sobre o esterco da corrupção, revolver-se no lodaçal de um asqueroso amor. A RAINHA Cala-te, Hamlet, as tuas palavras são outras tantas punhaladas. Piedade! querido filho! HAMLET Um assassino, um scelerado, um miseravel, que não vale a centesima parte do seu primeiro marido, um rei de comedia, um ladrão, que empalmou o poder, e que achando a corôa debaixo de mão, a roubou e a metteu no bolso! A RAINHA Hamlet! HAMLET Um palhaço! Entra a SOMBRA HAMLET Protegei-me e abrigae-me sob vossas azas, anjos do céu. (Á sombra) Que pretendes de mim, sombra querida? A RAINHA Infeliz! enlouqueceu. HAMLET (á sombra) Vens tu reprehender a tibieza de teu filho, que, deixando passar o tempo, arrefecer a sua indignação, não se apressou em cumprir os teus terriveis preceitos? Falla! A SOMBRA Recorda-te que o unico fim d'esta minha apparição é atear em ti o fogo da resolução. Mas vê, tua mãe está succumbida, interpõe-te entre ella e os seus remorsos; é nas mais debeis organisações que mais estragos causa a imaginação. Falla-lhe tu, Hamlet. HAMLET Como se sente, minha mãe? A RAINHA Eu é que te devia fazer essa pergunta! Por que está teu olhar fito no espaço? por que conversas com seres immateriaes? Teu olhar indefinido revela a lucta da tua alma; como um soldado acordado em sobresalto; teus cabellos, como se a vida os animasse, levantam-se e ouriçam-se sobre a tua fronte. Oh! meu querido filho, apaga a chamma da tua colera, com as tranquillas e limpidas aguas da paciencia! Mas para onde olhas tu? HAMLET É elle! Elle! Como está pallido! O seu aspecto, e o motivo que aqui o traz, commoveriam as proprias pedras. (Á sombra) Descrava de mim os teus olhos, receio que me feneça a resolução, vendo teu triste e commovente olhar; que se transforme o caracter dos meus actos talvez em lagrimas em vez de sangue. A RAINHA Mas, filho, a quem fallas assim? HAMLET Não vê nada, minha mãe? A RAINHA Nada, senão tudo quanto existe n'esta camara. HAMLET E nada ouviu? A RAINHA Cousa alguma, a não ser as tuas palavras. HAMLET Mas olhe, minha mãe, não vê como elle se afasta, triste e pensativo? É meu pae, vestido como trajava em sua vida. Eil-o, transpõe agora mesmo a porta. Saíu. (A sombra sáe.) A RAINHA É á exaltação da tua imaginação e ao delirio que de ti se apoderou, que são devidas estas creações phantasticas. HAMLET O delirio! Senhora, apalpe o meu pulso, e conhecerá que não está menos tranquillo que o seu. Não fallei influenciado pelo delirio. Interrogue-me; em vez de divagar, repetir-lhe-hei textualmente as minhas palavras; não estou louco; engana-se, minha mãe. Por Deus, não se embale, no pensamento falso, que é o meu delirio e não a sua culpa que me faz fallar! Seria cicatrizar exteriormente a chaga, que a consciencia nunca deixaria de augmentar interiormente. Confesse-se ao céu, arrependa-se do passado, premuna-se para o futuro, e não dê pasto ao verme do remorso, que acabará por totalmente corroer o seu coração e obliterar a sua consciencia. Perdoe á minha virtude, porque n'este mundo sordido e venal a virtude deve implorar o perdão do vicio e pedir o favor de poder fazer o bem. A RAINHA Oh! Hamlet! Dilaceras-me o coração. HAMLET Expulse a parte corrompida, e com a outra metade viva tranquilla e pura. Boa noite; evite meu tio, e se não podér ser virtuosa, ao menos pareça-o. O habito, esse monstro, que destroe e neutralisa em nós toda a sensibilidade, esse demonio do habito, é anjo n'isto, porque consente á virtude e ás boas acções as suas vestes proprias. Não veja hoje o seu esposo, tornar-lhe-ha mais facil a abstenção futura; o habito tudo póde, muda a natureza individual, doma o demonio, e expulsa-o com o seu maravilhoso poder. Boas noites mais uma vez! e quando sentir a necessidade da benção divina, então pedir-lhe-hei a sua. (Mostrando Polonio.) Quanto a este homem, arrependo-me do que fiz; mas obedeci ao céu; assim o quiz tornando-me instrumento das suas vinganças, punindo-o por mim, a mim por elle. Sepultem-no, eu responderei pela morte que lhe dei! Adeus, pois. Cumpre-me ser cruel por humanidade; o primeiro mal está feito, o maior ainda ha de vir. Uma palavra ainda. A RAINHA Que devo fazer? HAMLET Nada do que eu lhe disse! Receba as caricias do avinhado monarcha, preste as suas faces aos seus osculos, ouça-lhes as palavras de amor; então n'um diluvio de ardentes osculos, entre as mais lubricas caricias, confesse-lhe, revele-lhe tudo, diga-lhe que nunca estive louco, que o fingi, faça-lhe essa confidencia. Qual seria a rainha, bella, sensata e honesta, que hesitasse em confiar áquelle animal immundo e repellente, asqueroso reptil, tão importantes segredos? Quem guardaria silencio? Ninguem. Depois, olvidando o bom senso e a discrição, abra a gaiola e deixe voar as avesinhas, e seguindo o exemplo do bugio da legenda, por simples experiencia, introduza-se na gaiola e rompa o pescoço caíndo! A RAINHA Acredita, Hamlet, que se as palavras se compozessem de fôlgo e o fôlgo de vida, eu não teria vida para articular as que tu me disseste. HAMLET Devo partir para Inglaterra; sabe-o sem duvida, minha mãe? A RAINHA Infeliz! Tinha-me esquecido; pois isso está definitivamente determinado? HAMLET Ha cartas selladas, e os meus dois companheiros de estudos, nos quaes me fio tanto como na innocencia dos envenenados dardos das viboras, são os portadores da ordem! São elles que me hão de aplanar o caminho, e se encarregarão de me conduzir ao laço armado pela mais negra traição. Deixemos caminhar os acontecimentos. Causa devéras prazer ver rebentar nas mãos do proprio artifice a bomba que para outrem preparava. Nada ha, senhora, que nos dê mais gosto do que combater a traição, contraminando-a pela sagacidade. A morte de Polonio apressará a minha partida. Levemos o seu cadaver para a camara vizinha. Boas noites, minha mãe. Este conselheiro está agora verdadeiramente a sangue frio, discreto e grave; em vida era dotado de estupida garrulice. Agora basta, acabemos por uma vez. Boas noites. Adeus, minha mãe. (A rainha sáe por um lado, Hamlet pelo outro, arrastando o cadaver de Polonio.) Fim do acto terceiro ACTO QUARTO SCENA I Um quarto no castello de Elsenor Entram o REI, a RAINHA, ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN O REI Esses suspiros, esse difficil arfar do peito, tudo deve ter uma causa. Queremos conhecel-a e pelos senhores. Onde está nosso filho? A RAINHA (a Rosencrantz e Guildenstern) Deixem-nos sós um momento. (Os dois sáem.) (Ao rei) Ah! senhor, que noite esta! O REI Que ha de novo, Gertrudes; em que estado achaste Hamlet? A RAINHA Tão revolta está a sua rasão, como o mar e o vento, quando entre si luctam, disputando a sua força. N'um dos seus arrebatamentos do delirio, ouvindo mexer atrás de uma cortina, exclamou: _Um rato, um rato_, e desembainhando a espada, cravou-a no peito d'aquelle excellente ancião. O REI Oh! triste acontecimento! Igual sorte teria tido se ali me achasse; livre, corremos o maior risco, mesmo tu; todos, emfim. Que rasões daremos para explicar este acto sanguinario? Taxar-nos-hão de imprevidentes, a responsabilidade toda caírá sobre nós; dirão que deviamos ter isolado esse insensato, mas era tão grande a nossa affeição, que não comprehendemos o que a prudencia nos aconselhava. Obrámos como um homem atacado de um mal vergonhoso, que para guardar segredo deixa enraizar-se esse mal e destruir toda a seiva vital. Onde está Hamlet? A RAINHA Pondo em logar seguro o cadaver d'aquelle a quem deu a morte. No meio mesmo da sua demencia, conserva-se pura e intacta a sua intelligencia, como um metal precioso encravado em rocha bruta. Rebenta-lhe o pranto ao lembrar-se da acção que commetteu. O REI Saiâmos, Gertrudes. Quando o sol tocar o cume das montanhas, já Hamlet deverá ter embarcado; logo em seguida partirá para Inglaterra. Quanto a esta odiosa acção precisâmos achar na nossa auctoridade e no nosso engenho alguma desculpa que a releve aos olhos do mundo. Olá, Guildenstern? (Entram outra vez Guildenstern e Rosencrantz.) O REI (continuando) Meus amigos, procurem pessoas que os ajudem e auxiliem. Hamlet, na sua demencia, matou Polonio, cujo cadaver levou para fóra da camara de sua mãe. Tratem de descobrir onde o occultou, encarrego-os d'esta missão. Nada digam que possa irritar Hamlet, e levem o corpo do infeliz Polonio para a capella; peço-lhes só que se aviem. (Sáem Rosencrantz e Guildenstern.) O REI (continuando) Vamos, Gertrudes, convoquemos os nossos mais doutos amigos, demos-lhe a conhecer o nosso designio e a desgraça acontecida. Precavendo-nos d'este modo, talvez a calumnia, que arremessa o seu dardo envenenado de uma extremidade do mundo á outra, e cujos tiros são tão certeiros, como os do mais perfeito canhão, poupe o nosso nome, perdendo-se na immensidade do espaço. Saiâmos d'aqui. Na minha alma não sinto senão perturbação e terror! (Sáem.) SCENA II Outro quarto no castello Entra HAMLET HAMLET Duvido que o encontrem. VOZES DE FÓRA Hamlet? senhor Hamlet? HAMLET De vagar. Que rumor é este? Quem ousa chamar Hamlet? Ah! eil-os que chegam. (Entram Rosencrantz e Guildenstern.) ROSENCRANTZ Senhor? que fez vossa alteza do cadaver? HAMLET Entreguei-o ao pó de que saíu. ROSENCRANTZ Mas em que logar para o podermos levantar e depositar na capella? HAMLET Não pensem em tal. ROSENCRANTZ Que devemos, pois, pensar? HAMLET Que pouco me importo com a sua cabeça, mas muito com a minha. Interrogado de mais a mais por uma esponja! Que resposta lhe póde dar o filho de um rei? ROSENCRANTZ É a mim que chama esponja? HAMLET A quem havia de ser? sim a ti, que bebes os favores, as recompensas e o poder real. Mas, no fim de contas, taes officiaes prestam ao monarcha relevantes serviços, são para elle como o fructo que o bugio conserva na bôca para depois o engulir; quando necessitar do que tem arrecadado, espreme-os como uma esponja, e ficarão completamente enxutos. ROSENCRANTZ Não comprehendo, senhor! HAMLET Estimo muito. As palavras do traficante só tem por domicilio os ouvidos do tonto. ROSENCRANTZ Diga-nos onde está o cadaver, e siga-nos á presença do rei. HAMLET Onde está o rei existe um corpo, mas o rei não está n'esse corpo. O rei é uma creatura. ROSENCRANTZ Uma creatura, senhor? HAMLET Uma creatura que nada vale! Conduzam-me á sua presença. Vamos jogar as escondidas. (Sáem todos.) SCENA III Uma sala no castello Entra o REI com a sua comitiva O REI Mandei chamar Hamlet e procurar o cadaver. Que perigo deixar livre um tal homem; mas não podemos fazer pesar sobre elle todo o rigor das leis. A multidão insensata estima-o, decidindo-se mais pela vista do que pela rasão; n'estas circumstancias o que devemos pensar é o castigo dos culpados, nunca o crime só por si. Para prevenir qualquer descontentamento é forçoso que este precipitado exilio pareça consequencia de madura reflexão. Para males desesperados remedios energicos, ou nenhuns. (Entra Rosencrantz.) Então que aconteceu? ROSENCRANTZ Nada podemos saber da sua bôca relativamente ao cadaver. O REI Onde está Hamlet? ROSENCRANTZ No quarto vizinho, esperando debaixo de segura guarda as ordens de vossa magestade. O REI Que venha á nossa presença. ROSENCRANTZ Olá, Guildenstern. Conduze Hamlet a este aposento. (Entram Hamlet e Guildenstern.) O REI Hamlet, onde está Polonio? HAMLET N'um banquete. O REI N'um banquete?! onde? HAMLET Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes politicos disputa o seu cadaver. O verme é o monarcha dos comedores. Engordâmos todas as creaturas para nos engordarmos, e engordâmo-nos para pasto dos vermes. Um rei gordo e um mendigo magro são duas iguarias differentes, comtudo hão de ser servidas á mesma mesa. Esta é a verdade. O REI Infelizmente assim é! HAMLET É possivel que se pesque, com um verme creado em cadaver real, um peixe, e que se coma depois o peixe que enguliu o verme. O REI Que significam as tuas palavras? HAMLET Nada; apenas as transformações pelas quaes póde passar um rei para penetrar nos intestinos do pobre. O REI Onde está Polonio? HAMLET No céu. Mande ali o seu mensageiro procural-o, e se não o achar, procure-o então o rei no sitio opposto. Em todo o caso se não o acharem até d'aqui a um mez, o olfato o denunciará junto á escada da galeria. O REI (á sua comitiva) Procurem-o já. HAMLET Esperal-os-ha com certeza. (Sáe a comitiva do rei.) O REI Hamlet, no interesse da tua saude, que nos é tão cara, quanto dolorosa a acção que commetteste, é forçoso que partas com a maior brevidade; vae, pois, preparar-te. O navio está prompto e o vento sopra propicio; os teus companheiros esperam-te, e tudo está disposto para a tua viagem a Inglaterra. HAMLET A Inglaterra? O REI Sim, Hamlet. HAMLET Está bem. O REI O mesmo dirias conhecendo todos os meus projectos. HAMLET Descubro um anjo que os vê. Mas partâmos para Inglaterra. Adeus, minha querida mãe. A RAINHA E teu pae que te estremece? HAMLET Não, minha mãe; pae e mãe são marido e mulher, marido e mulher são uma e mesma carne. Assim, pois, adeus, minha mãe. Vamos para Inglaterra. (Sáe.) O REI (a Rosencrantz e Guildenstern) Sigam-o passo a passo, façam-o embarcar promptamente, não ha tempo que perder. Quero que já esta tarde esteja afastado d'estes sitios. Vão! Tudo quanto respeita a este negocio foi já expedido e sellado com as nossas armas. Aviem-se, peço-lh'o. (Sáem.) (Continuando) Rei de Inglaterra, sabes até onde chega o meu poder; as feridas infligidas pelo ferro dinamarquez ainda sangram, e teu respeito nos presta livre homenagem. Se, pois, prezas a minha benevolencia, não receberás friamente as ordens soberanas contidas nas minhas cartas e que exigem a morte de Hamlet. Obedece-me, rei de Inglaterra, porque Hamlet é febre que requeima o meu sangue, e tu é que me deves curar d'ella. Não terei um dia de prazer e descanso emquanto não souber a completa execução das minhas ordens, aconteça o que acontecer. (Sáe.) SCENA IV Uma planicie na Dinamarca Chega FORTIMBRAZ á frente das suas tropas FORTIMBRAZ (a um dos seus officiaes) Capitão, saúde da minha parte o rei de Dinamarca e diga-lhe, que, em conformidade com a sua promessa, Fortimbraz lhe pede livre passagem pelo seu territorio; sabe o ponto em que nos devemos encontrar. Se sua magestade desejar fallar-me, irei prestar-lhe as minhas homenagens. Diga-lh'o da minha parte. O OFFICIAL As suas ordens serão cumpridas, meu senhor! FORTIMBRAZ (ás suas tropas) Avancemos em attitude pacifica. (Fortimbraz e as suas tropas afastam-se. O official fica.) Chegam HAMLET, ROSENCRANTZ, GUILDENSTERN e mais pessoas HAMLET (ao official) Que tropas são essas, meu amigo? O OFFICIAL É o exercito norueguez, senhor! HAMLET Qual é o seu destino? O OFFICIAL Um ponto do território da Polonia. HAMLET Quem o commanda? O OFFICIAL Fortimbraz, sobrinho do rei de Noruega. HAMLET É contra a Polonia toda, ou só contra um ponto determinado da fronteira que marcham? O OFFICIAL Se quer que lhe diga a verdade, marchâmos contra uma parte da Polonia, cuja conquista será para nós gloria, sem proveito algum. Estou certo que a sua renda não vale cinco ducados, e se se vendesse ninguem daria mais. HAMLET Se assim é, os polacos não devem offerecer resistencia? O OFFICIAL Pelo contrario, até já o guarneceram. HAMLET Duas mil almas e vinte mil ducados chegarão apenas para tão futil empreza; é um d'estes abcessos que resultam de uma demasiada e prolongada prosperidade que rebenta internamente, sem que nada indique exteriormente a sua acção mortal. Obrigado, amigo. O OFFICIAL Deus seja comvosco, senhor. (Afasta-se.) ROSENCRANTZ O principe quer que continuemos o nosso caminho? HAMLET Póde ir indo, em breve o alcançarei. (Sáem Rosencrantz e Guildenstern.) (Continuando.) Como sempre tudo me accusa e me excita á tardia vingança. O que é o homem, se o seu primeiro bem, o maior negocio da sua vida, consiste em comer e dormir! É um animo brutal, nada mais. Seguramente, que aquelle que nos dotou com essa vasta comprehensão, capaz de abraçar o passado e o futuro, não nos deu essa intelligencia, esse admiravel raciocinio, para que ficassemos ociosos e sem emprego. Quer seja estulto esquecimento, quer cobarde escrupulo, medito demasiado na acção que tenho que commetter, pensamento composto de uma quarta parte de siso e tres quartas partes de cobardia. Como me espanto a mim mesmo quando repito: _Eis o que devo fazer_, já que me sobram os motivos, tenha eu ao menos vontade, força e energia para o executar. Incitam-me os mais irrecusaveis exemplos; testemunho este numeroso exercito, capitaneado pelo seu joven principe, cujo genio intrepido, soprado por uma ambição divina, affronta, rindo, as eventualidades de um porvir invisivel, expondo uma vida mortal e incerta, a tudo quanto podem ousar a fortuna, a morte e os perigos, e tudo por nada, por uma bagatella. A verdadeira grandeza consiste, não só em commover-se com grandes e poderosas rasões, mas tambem em achar n'uma bagatella rasões de conflicto, cuja verdadeira causa é o pundonor. Que posição pois a minha, eu que tenho um pae assassinado, uma mãe deshonrada; eu que tenho tantos motivos de colera e que tudo deixo adormecer, emquanto que para minha vergonha vejo vinte mil homens, por uma louca esperança de gloria exporem-se á morte, caminharem para o tumulo, como caminhariam para o leito; irem combater para conquistar um quinhão de terra insufficiente para caberem n'elle, e cujo terreno seria uma sepultura acanhada para os mortos. Ah! quanto se revelam sanguinarios os meus pensamentos, ou então nada. (Afasta-se.) SCENA V Uma sala no castello de Elsenor Entram HORACIO e a RAINHA A RAINHA Não lhe quero fallar. HORACIO Pede-o encarecidamente. Verdade é que ella perdeu a rasão; o seu estado é digno de compaixão. A RAINHA O que pretende ella? HORACIO Falla sempre no pae, pretende terem-lhe dito que n'este mundo se commettem bem más acções, suspira, bate no peito, exaspera-se sem motivo. Profere palavras equivocas e sem sentido. Nada diz, comtudo quem ao ouvil-a não teria vontade de a comprehender. Aquelles que a ouvem procuram adivinhar o sentido, e preenchendo as lacunas, tentam completar o sentido das suas fallas. Vendo os movimentos que faz, acompanhando as palavras, todos lhe suppõem um pensamento, um sentido, e provavelmente tem-no, mas de certo bem sinistro. A RAINHA É conveniente fallar-lhe, porque poderia impressionar malevola e perigosamente os espiritos. Que venha. (Horacio sáe.) (Continuando) Ah! minha alma enferma! Será uma condição do crime, que a menor bagatella pareça sempre a precursora de alguma grande calamidade? Tal é a desconfiança em uma consciencia culpada, que se trahe a si mesma com o receio de se trahir. HORACIO entra com OPHELIA OPHELIA Onde está a bella rainha de Dinamarca? A RAINHA Ophelia? OPHELIA Como hei de eu conhecer o bem amado Por entre a multidão? Pelo chapéu de conchas enfeitado E pelo seu bordão. A RAINHA Infeliz Ophelia! Que significam esses versos? OPHELIA Pergunta-mo? Escute então... Levaram-no bem morto ao cemiterio! O que tu foste e és!... Sob a fronte senil myrto funereo, E fria pedra aos pés! Ai de mim! (Chora.) A RAINHA Ophelia, querida Ophelia? OPHELIA Ouça mais, peço-lh'o... Branca de neve a frigida mortalha... Entra o REI A RAINHA Veja, senhor! OPHELIA É como um prado em flor Baixou á campa a fronte e não a orvalha Com lagrimas o amor!! O REI Como está bella, Ophelia? OPHELIA Bem, louvado Deus, dizem que a coruja fôra outr'ora filha de um padeiro. Meu Deus, nós sabemos o que somos, mas nunca o que poderemos vir a ser. Que Deus abençôe a sua mesa. O REI Recorda-se do pae? OPHELIA Não fallemos mais n'isso, mas se me perguntam o que significa, dir-lhes-hei o que é. Respondam. São Valentim! dizes-me a minha sina? A pé já todos são. Queres que eu seja a tua Valentina? Sou virgem, sim ou não? Ergueu-se elle e vestiu-se; mansamente Do quarto a porta abriu; E virgem ella entrou... mas tão sómente Mulher quando saíu. O REI Encantadora Ophelia! OPHELIA Em verdade vou terminar sem juramento. Por Jesus! pela santa caridade! Quem vale á infeliz?! Ai! são todos assim na mocidade, A sorte é quem n'o quiz! Antes da minha quéda prometteste Conduzir-me ao altar: Por Deus o houvera feito... não quizeste. Quem te mandou entrar? O REI Ha quanto tempo é que este infeliz estado se apoderou d'ella? OPHELIA Tudo vae bem! É preciso ter paciencia; não posso reter o pranto, pensando que está debaixo da terra fria e humida. Meu irmão ha de sabel-o, obrigada pelo conselho. Chegue a minha carruagem. Boa noite, minhas senhoras, boa noite, bellas senhoras, Adeus, boas noites! (Sáe correndo.) O REI (a Horacio) Siga-a, não a perca de vista, vigie-a cautelosamente, peço-lh'o eu! (Horacio sáe.) (Continuando) Oh! é aquelle o veneno de uma dor profunda, causada pela morte do pae. Ah! Gertrudes, Gertrudes, quando as dores nos assaltam, nunca é isoladamente, é como se viessem em tropel. Primeiro a morte do pae, depois a partida de Hamlet, que tão violentamente decretou o proprio exilio; o povo alvoroçado e descontente, commenta malevola e insidiosamente a morte de Polonio, e nós obrámos pouco assisadamente ordenando o prompto enterro; a infeliz Ophelia, inconsciente do seu estado, está privada da rasão, sem a qual somos simples estatuas, creaturas brutas. Para cumulo de desgraça esta vale todas as outras, seu irmão voltou secretamente de França, embrenha-se no labyrintho de noticias, e mantem-se occulto. Não deixará por certo de haver bôcas malevolas, que por occasião da morte de seu pae, envenenem seus ouvidos com insinuações perfidas, e a calumnia, na carencia de outro assumpto, não nos poupará com os seus dardos envenenados e mortiferos. Ah! querida Gertrudes; tudo isto, similhante a um instrumento de morte, vibra-me mais golpes que os necessarios para pôr termo á minha vida. (Ouve-se um grande rumor fóra da sala.) A RAINHA Que rumor é esse? O REI Olá, venha alguem. (Entra um official do palacio.) O REI (continuando) Onde estão os meus suissos? Que defendam as portas. Dize-me já o que ha. O OFFICIAL Fuja, senhor; o oceano, rompendo os diques, não invade com mais violencia a campina, do que o joven Laerte, á frente da rebellião, derruba a resistencia dos vossos officiaes. O povo chama-lhe soberano, e como se fosse no começo do mundo, sem tradições, nem passado, nem usos, sobre que tudo se firma, ou as tivesse esquecido, exclama: Elejâmos um rei! Laerte será o nosso rei? Todos se descobrem e agitam os gorros, todas as mãos applaudem, todas as vozes repetem: Laerte será rei. Viva o rei Laerte! A RAINHA Com que prazer esta matilha segue uma pista falsa! Enganam-se! Dinamarquezes ingratos! O REI Entraram á força. (Redobra o rumor. Entra Laerte seguido por muito povo dinamarquez.) LAERTE Onde está esse rei? Senhores, retirem-se para fóra. O POVO Nada! Queremos todos entrar. LAERTE Façam o que lhes peço. O POVO É justo! é justo! (Sáem.) LAERTE Obrigado, senhores; guardem as portas. (Ao rei.) Infame! entrega-me meu pae. O REI Socegue, meu caro Laerte. LAERTE Se uma só gota do meu sangue não fervesse, essa gota proclamar-me-ía bastardo, attestaria a deshonra de meu pae, e imprimiria na casta fronte de minha adorada mãe um estigma indelevel de infamia. O REI O que deu azo, Laerte, a uma rebellião, que assumiu proporções tão colossaes? Está tranquilla, Gertrudes, por nós nada receies; graças ao caracter sagrado que protege os reis, a traição não lança senão um olhar timido e incerto para o resultado que anhelam os seus desejos, e os effeitos estão longe de corresponder á sua esperança. Dize-me, Laerte, o motivo d'esta irritação violenta. Nada receies, Gertrudes. Falla, Laerte. LAERTE Onde está meu pae? O REI Morreu. A RAINHA Mas o rei está innocente. O REI Deixa-me interrogal-o á minha vontade. LAERTE Como morreu elle? Não admitto duvidas, dispenso juramentos; leve o demonio a fé jurada, sepultem-se no abysmo a consciencia e a fidelidade. Affrontarei a condemnação, declaro-o formalmente; renuncio a tudo n'este e no outro mundo, aconteça o que acontecer, comtanto que vingue de um modo bem patente a morte de meu pae. O REI E quem t'o impede? LAERTE A minha vontade só e não a do universo inteiro; quanto aos meios de que disponho, empregal-os-hei de modo que com recursos limitados tire d'elles o maior proveito. O REI Comprehendo, querido Laerte, que queiras saber a verdade toda a respeito da morte de teu estremecido pae. Mas estás tu resolvido a confundir amigos e inimigos, aquelles que perderam e aquelles que ganharam com a sua morte? LAERTE Unicamente os inimigos quero punir. O REI E queres conhecel-os? LAERTE Quanto aos seus amigos, abro-lhes os braços com alvoroço; e similhante ao pelicano que rasga o seio, para com o sangue alimentar os filhos, estou prompto a por elles dar o meu sangue todo. O REI Ainda bem; fallas agora como bom filho e homem honrado. Sou innocente na morte de teu pae, e deploro-a amargamente; demonstral-o-hei á tua rasão com provas tão claras como a luz do dia. O POVO (de fóra) Deixem-a entrar. LAERTE O que é? Que rumor é esse? (Entra Ophelia estranhamente enfeitada com flores na cabeça e palhas entrançadas nos cabellos.) (Continuando.) Meu pobre cerebro! Sequem-se as minhas lagrimas, que, sete vezes corrosivas, queimam meus olhos e afastam d'elles o sentido da vista! Por Deus! A tua demencia será paga com usura, até que o nosso peso faça baixar uma das conchas da balança. Rosa de primavera, filha querida, carinhosa irmã, boa Ophelia! Oh! ceus! pois será possivel que a rasão de uma jovem mulher seja tão fragil como a vida do ancião! A natureza tem no seu amor um perfume subtil e raro, cujas emanações se infiltram no objecto amado. OPHELIA Levaram-no em mesquinha padiola E foram-no enterrar! Mas chove-lhe na tumba, ai! grata esmola De lagrimas um mar. LAERTE Possuisses tu toda a tua rasão, animasses-me tu á vingança, não conseguias crear em mim uma emoção. OPHELIA Forçoso é que eu cante e tu tambem: Abaixo! Abaixo! Lançae-o abaixo! Devias ouvir cantar ás fiadeiras; é a canção do intendente desleal, que raptou a filha de seu amo. LAERTE Estes nadas tudo me dizem. OPHELIA (a Laerte, dando-lhe uma flor) Toma, é rosmaninho a flor da lembrança. Lembra-te de mim, peço-t'o, meu querido; estes são amores perfeitos, é para que sempre viva no teu coração de irmão. LAERTE Ha sentido no seu delirio. Acaba de distinguir acertadamente a lembrança e o pensamento. OPHELIA (ao rei) Aqui tendes, senhor, estas symbolicas flores. (Á rainha) Para vós, senhora, é arruda e tambem para mim; para vós será a herva da ventura, para mim a da dor. Eis um malmequer. Queria dar-vos violetas, mas feneceram todas quando meu pae morreu; dizem que teve o fim do justo. Porque era o bom Robim minha alegria LAERTE A melancolia, a afflicção, a colera, o proprio inferno, tudo é divino proferido por ella. OPHELIA E nunca mais virá?! Morreu! morreu! morreu! ai! que agonia! Não mais! não voltará! Era a barba tão branca como a neve: Partiu! foi para os céus. Perdida, inutil dor! Breve, até breve, Tem dó d'elle, meu Deus!... Assim como de todas as almas christãs, assim o peço a Deus, e elle seja comvosco. (Sáe.) LAERTE Vêem? Meu Deus!... O REI Deixa-me, Laerte, fallar-te no teu infortunio; é um direito que me pertence e que me não pódes negar sem injustiça. Reune em particular os teus amigos mais assisados; elles nos ouçam, e depois julguem entre nós dois. Se culpado me acharem, directa ou indirectamente, entrego-te, em expiação da minha culpa, reino, corôa e vida, e tudo quanto possa dizer meu; no caso contrario, peço-te só paciencia, e de accordo obraremos para te alcançar uma completa satisfação. LAERTE Consinto. As circumstancias da sua morte, o seu funeral obscuro, em que nem trophéus, nem espada, nem brazão figuraram, a ausencia de toda a ceremonia funebre no saímento do seu corpo, são como um aviso do céu, que me clama pela voz celeste: Indaga como foi. O REI Faça-se pois um inquerito, e o cutelo do algoz puna o culpado. Agora peço-te, Laerte, que me sigas. (Sáem ambos.) SCENA VI Um quarto no castello de Elsenor Entram HORACIO e um CREADO HORACIO Quem é que me pretende fallar? O CREADO Marinheiros... e dizem que têem cartas que lhe são dirigidas. HORACIO Que entrem pois; (o creado sáe) (só) não percebo de que canto do mundo se lembraram de me escrever. Só se for Hamlet. Entram os MARINHEIROS PRIMEIRO MARINHEIRO Guarde-o Deus, senhor! HORACIO Igualmente a ti! PRIMEIRO MARINHEIRO Fal-o-ha, se for da sua vontade. (Entrega uma carta) Aqui tem esta carta, é do embaixador que foi mandado a Inglaterra; o senhor, segundo me asseguraram, chama-se Horacio, não é verdade? (Dá-lhe outra carta.) HORACIO (abrindo a carta, lendo) «_Horacio, quando receberes esta carta, proporciona a estes homens o fallarem ao rei; têem cartas para lhe entregar. Mal tinhamos dois dias de viagem, um corsario armado até aos dentes deu-nos caça; vendo nós que elle era mais veleiro, fizemos das fraquezas forças, e encetámos combate. Na abordagem, saltei-lhe na tolda, mas n'aquelle momento afastaram-se os dois navios, e eu achei-me só e prisioneiro. Comportaram-se commigo como corsarios humanos, mas sabiam o que faziam, porque contam pedir avultado resgate. Faze chegar ás mãos do rei a carta que lhe envio, depois vem ter commigo, com a celeridade que porias em evitar a morte. Tenho que confiar aos_ _teus ouvidos palavras que te emudecerão de espanto, e comtudo ainda são fracas para a gravidade do assumpto que devem exprimir. Estes marinheiros te conduzirão ao sitio onde me acho. Rosencrantz e Guildenstern navegam para a Inglaterra. Tenho muito que te contar a esse respeito. Adeus. Aquelle que sabes ser teu do coração==Hamlet._» Venham, vou facilitar-lhes a entrega das cartas, depois conduzam-me o mais prompto que podérem junto d'aquelle que lh'as entregou. (Sáem todos.) SCENA VII Outro quarto no castello Entram o REI e LAERTE O REI Devo estar illibado aos teus olhos, e deves ver em mim um amigo sincero, agora que já deves ter percebido que o assassino de teu pae tambem queria a minha morte. LAERTE Parece-me evidente! Mas diga-me porque, depois de actos tão graves e criminosos por sua natureza, não perseguiu o auctor, como era obrigado a fazel-o, por sua dignidade, pela sua salvação, pela sua prudencia, por tudo emfim? O REI Ah! por duas rasões, que provavelmente acharás sem valia, mas que a meus olhos têem toda a gravidade. A rainha sua mãe idolatra-o, é a existencia d'ella esse filho; eu por minha parte não sei se deva considerar isto como virtude ou como desgraça; mas ella está tão intimamente ligada á minha alma, qual satellite ao seu planeta, que só por ella e para ella vivo. O outro motivo que me impede de formular contra elle uma accusação publica, é a immensa affeição que o povo lhe consagra; affeição que desculpa todas as suas faltas, e similhante a essas fontes que transformam em pedra a madeira, converteria as suas cadeias em aureola de gloria. N'estas circumstancias, pois, as minhas frechas demasiado tenues para romperem tão forte vento, em vez de tocarem no alvo, voltando-se, feririam só o que as despediu. LAERTE Assim perdi meu nobre pae, e vejo minha estremecida irmã na mais desordenada demencia! Mas se é permittido elogiar o que já passou, ella excedia em perfeições as creaturas da sua idade, e não me hei de eu vingar? O REI Essa mágua não te perturbe o somno; não me julgues de um caracter tão pusillanime e estulto, que um perigo, que tanto me impressionou, seja por mim tratado de bagatella. Brevemente saberás ainda mais. Eu estremecia o teu pae; nós somos devéras amigos, agora deves acreditar que... Entra um MENSAGEIRO O REI Que queres? que ha de novo? O MENSAGEIRO Senhor, cartas de Hamlet; esta para vossa magestade, est'outra para a rainha. O REI De Hamlet!! quem as trouxe? O MENSAGEIRO Disseram-me que uns marinheiros, eu não os vi. Estas cartas foram-me entregues por Claudio, que as recebeu do portador. O REI (pegando na carta) Ouvirás, Laerte, o seu conteúdo. (Ao mensageiro) Retira-te (o mensageiro sáe) (abre a carta e lê): «_Alto e poderoso monarcha, depozeram-me em territorio vosso, nú; ámanhã solicitarei o comparecer na vossa presença, e então se me for permittido referir-vos-hei o que deu causa ao meu estranho e inesperado regresso.==Hamlet_». Que significa isto? voltariam todos, será engano, será tudo falso? LAERTE Conhece a sua letra? O REI É a letra de Hamlet. _Nú_, e n'um post-scriptum acrescenta _só_. Poderás tu dizer-me o que tudo isto significa? LAERTE Nada sei responder; mas que venha. Sinto renascer a chamma no meu coração abatido, pensando que lhe poderei dizer cara a cara: Foste tu o assassino de meu pae. O REI Se assim é, Laerte, não póde nem poderia ser de outra maneira; queres tu seguir um meu conselho? LAERTE Sim, comtanto que não me aconselhe a paz. O REI Pois que faças pazes com o teu coração é que eu quero: se é verdade que regressou, o que indica que Hamlet recúa diante da viagem e renuncia a ella, suggerir-lhe-hei uma aventura, cujo plano está maduro no meu espirito, e em que não poderá deixar de succumbir, e sem que a sua morte possa ser attribuida a pessoa alguma intencionalmente; tanto que sua propria mãe limitar-se-ha a lastimar o occorrido, vendo só uma fatalidade. LAERTE Seguirei gostosamente os seus conselhos, e ainda de melhor vontade, se podér combinar de modo que eu seja o agente principal. O REI Vejo que os nossos desejos se combinam completamente. Frequentemente, desde as tuas viagens, têem-me gabado por excederes a todos no exercicio de uma arte. Todas as tuas qualidades reunidas excitaram em Hamlet menos ciumes do que esta só; é comtudo talvez a menos importante. LAERTE E qual é essa qualidade? O REI Um laço de fitas no chapéu da juventude, mas um enfeite necessario; porque não lhe fica menos bem um ornamento um pouco frivolo mesmo, do que convem á idade madura as vestes encorpadas e serias que lhe impõem a saude e a gravidade. Ha dois mezes esteve aqui um cavalleiro normando; tenho visto francezes e combatido com elles, e são devéras habeis, mas a habilidade d'esse homem parecia ter o poder da magia. Parecia arroscado á sella, e guiava o cavallo tão prodigiosamente, que pareciam um só e o mesmo animal intelligente. Excedeu tudo quanto se póde imaginar na arte de cavallaria e volteio, tão perfeita era a execução. LAERTE Um cavalleiro normando, disse? O REI Um normando. LAERTE Então era Lamond; não póde ser outro. O REI Elle mesmo. LAERTE Bem o conheço, é a phenix, a perola da sua patria. O REI Fallou de ti vantajosamente, fez os maiores elogios da tua pericia no manejo das armas, sobretudo da espada, declarando ser impossivel achar outro igual, e jurando que os jogadores de espada francezes perderam agilidade, posição e golpe de vista depois que comtigo se mediram. Estes elogios que elle te dispensava, de tal modo exasperaram o ciume de Hamlet, que anhelava só pelo teu regresso para comtigo combater, e transformaram o ciume em furia. Tirando pois partido d'estas circumstancias... LAERTE Que partido poderemos nós tirar? O REI Laerte, amavas tu realmente teu pae, ou não era a tua dor senão um simulacro, toda exterior e nada interior? LAERTE Porque esta pergunta? O REI Longe de mim o pensar que não amavas teu pae; mas a affeição é um sentimento que se gera em nós, e a experiencia de todos os dias nos faz ver que o tempo destempera a sua vivacidade e o seu ardor. Mesmo na chamma do amor ha ás vezes uma mancha que a amortece, e cousa alguma se conserva permanentemente bella, porque o bom, pelo crescimento degenera em plethora, e parece abafado pela demasiada nutrição. O que pretendemos fazer, devemos fazel-o na occasião propria, porque a vontade tambem muda; tantas são as suas mudanças, quantas as linguas, mãos e outros accessorios que se cruzam no seu caminho, e então a execução não é mais que um dever, cujo cumprimento, similhante aos demasiado frequentes suspiros, nos magôa, alliviando-nos. Mas entremos francamente na questão. Hamlet regressa. Que estás tu disposto a fazer, para te mostrares digno filho de teu pae, não com palavras, mas com obras? LAERTE Assassinal-o-ía mesmo no templo do Senhor. O REI Effectivamente o assassino não recúa perante o santuario, quando pretende saciar a vingança. Mas, querido Laerte, queres seguir o meu conselho? Encerra-te nos teus aposentos. Hamlet, regressando, saberá da tua estada n'estes logares; farei com que exaltem na sua presença os teus talentos, e que encareçam os elogios mais que os francezes o fizeram; por este meio seguir-se-hão um desafio e apostas sobre a pericia dos contendores. Elle que está desprevenido e é generoso e de nada desconfia, não examinará os floretes; de modo que, com alguma habilidade da tua parte, poderás escolher um florete sem botão, e por meio de uma bem dirigida estocada fazer-lhe pagar a morte de teu pae. LAERTE Como o rei disse, Laerte o fará; mesmo envenenarei a ponta do meu florete. Comprei a um empirico uma droga mortal. Por pouco que a ponta de um punhal esteja n'ella banhada, por leve que seja o ferimento, não ha balsamo precioso, embora composto dos mais energicos contravenenos, que possa salvar da morte inevitavel e rapida o ferido. Assim, prepararei a ponta do meu florete, para que mesmo leve arranhadura lhe seja fatal. O REI Tornaremos ao assumpto, e combinaremos o momento e maneira mais facil e favoravel para a sua execução. Se tivesse que falhar este nosso plano, mais valeria nada tentar. Mas é necessario que esta primeira combinação se firme n'uma segunda, que a substitua, no caso da arma se quebrar no primeiro encontro. Um momento... Vejamos. Faremos apostas importantes sobre a respectiva pericia de ambos. Quando, no calor do combate, estiverem afogueados e sedentos, para conseguir o intento não poupes o teu adversario, ataca-o com vigor. Hamlet, sem duvida, pedirá uma bebida; ser-lhe-ha então apresentada uma, de antemão preparada, e uma só gota bastará, se a tua espada te trahir, para conseguirmos o fim desejado. Mas silencio! Que rumor é este? (Entra a rainha.) Que ha de novo, querida Gertrudes? A RAINHA Accumulam-se as desgraças, e repetem-se com assustadora rapidez. Laerte, tua irmã suicidou-se, afogando-se. LAERTE Onde? A RAINHA Na margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro, cuja prateada folhagem se reflecte nas aguas crystallinas. Tua irmã approximou-se d'aquelle sitio, sempre tecendo grinaldas de rainunculos, ortigas, malmequeres, e d'essas flores a que os nossos pastores dão um nome bem grosseiro, mas que as nossas castas donzellas denominam poeticamente _dedo da morte_. Quando procurava ornar com as suas innocentes grinaldas as argenteas frondes do salgueiro, oh! desgraça! descuidosa foi envolvida na corrente, cercada dos ornatos que lhe serviam como de corôa virginal. Algum tempo suspensa pelas vestes sobre a corrente, assimilhava-se á sereia, cantando incoherentes trechos, inconsciente do proprio risco, como se estivesse no seu nativo elemento. Mas tudo tem um fim, e em breve, sossobrando pelo peso das encharcadas vestes, cessou de cantar, e tornou-se cadaver levado pela corrente. LAERTE Oh! desgraçada! afogada!! A RAINHA Sim, Laerte! LAERTE Sequem-se as minhas lagrimas; já tiveste agua em demasia, infeliz Ophelia! Mas porque? Mais força tem a natureza do que a vontade; todos lhe devemos obediencia. Para que uma falsa vergonha? Rolem, pois pelas faces lagrimas santas, e arrebatem na sua corrente a minha ultima fraqueza. Adeus, senhor! As minhas palavras de fogo tornar-se-íam embravecido vulcão, se as lagrimas do coração o não apagassem. (Sáe.) O REI Sigâmol-o, Gertrudes. Quanto me custou a serenar a sua colera! Receio bem que estas novas desgraças lhe despertem em toda a sua plenitude a sanha da vingança. Sigâmol-o, pois. Fim do acto quarto ACTO QUINTO SCENA I Um cemiterio Entram DOIS COVEIROS com enxadas PRIMEIRO COVEIRO Dever-se-ha enterrar em chão sagrado aquelle que voluntariamente procurou a sua salvação no suicidio? SEGUNDO COVEIRO Eu cá digo que sim; avia-te em cavar a cova, o magistrado viu e decidiu que aqui fosse sepultada. PRIMEIRO COVEIRO Isso não póde ser, a menos que não se afogasse involuntariamente. SEGUNDO COVEIRO Já está reconhecido e decidido. PRIMEIRO COVEIRO As probabilidades todas são que pereceu _se offendendo_. Ninguem é capaz persuadir do contrario. Vê tu como eu o provo. Se me afogar voluntariamente existe um acto; ora, um acto subvide-se em tres ramos: a acção, o cumprimento e a execução; ergo, afogou-se voluntariamente. SEGUNDO COVEIRO Assim será, mas escuta-me ao menos. PRIMEIRO COVEIRO Ouve-me ainda; a agua está aqui, o homem está acolá; muito bem, o homem vae encontrar a agua e se afoga; forçosamente morre por seu motu proprio; nota isto bem. Mas se, pelo contrario, é a agua que vem encontrar o homem, e elle se afoga, então já não é elle que procura a morte; ergo, aquelle que não é culpado na sua morte, não poz termo voluntariamente á vida. SEGUNDO COVEIRO Mas será lei? PRIMEIRO COVEIRO É a lei que preside ao inquerito do magistrado. SEGUNDO COVEIRO Queres que te diga o que penso? Se a defunta não fosse senhora de qualidade, de certo não a enterravam em chão sagrado. PRIMEIRO COVEIRO É bem verdade o que dizes; é triste que as pessoas de qualidade tenham, a mais dos outros christãos seus iguaes, o direito de se afogarem e de se enforcarem. Vamos sempre cavando! Não ha nobreza mais antiga que a dos jardineiros, lavradores e coveiros; seguem a profissão de Adão! SEGUNDO COVEIRO Pois Adão era nobre? PRIMEIRO COVEIRO O primeiro que usou armas! SEGUNDO COVEIRO Deixa-te d'isso, não consta que as tivesse! PRIMEIRO COVEIRO Sempre és um pagão! como comprehendes tu então a escriptura sagrada? A escriptura diz que Adão trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar sem pá ou enxada? Essas eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta, se não me responderes com acerto, não és mais que um.... SEGUNDO COVEIRO Asno! continúa. PRIMEIRO COVEIRO Quem é que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios? SEGUNDO COVEIRO O constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes. PRIMEIRO COVEIRO Boa resposta, palavra de honra. Cadafalso é bem achado; mas para quem se fez o cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer que o cadafalso é mais solido que a igreja, logo merecias o cadafalso. Vamos, procura e responde. SEGUNDO COVEIRO Agora eu! Quem é que construiu mais solidamente do que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios? PRIMEIRO COVEIRO Dize tu primeiro, eu cá já sei. SEGUNDO COVEIRO Tambem eu. PRIMEIRO COVEIRO Vejamos. SEGUNDO COVEIRO Nada, não atino. HAMLET e HORACIO apparecem ao fundo PRIMEIRO COVEIRO Basta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na mesma. Quando alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: «É o coveiro; as moradas que construe duram até ao dia de juizo». Agora vae a casa de Vaughan e traze-me um copo de licor.(O segundo coveiro sáe, cantando.) Quando eu era mancebo e quando amava Tudo era para mim rapido goso, Sómente noite e dia andava ancioso Por o tempo matar que me matava. HAMLET Pois este homem não terá consciencia do que está fazendo, cantando assim, quando cava uma sepultura? HORACIO O habito tudo póde. HAMLET E verdade, a mão pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado! PRIMEIRO COVEIRO (cantando) Mas a idade chegou, passo furtivo Nas gastadoras garras me ha tomado, E assim, mau grado meu, me ha condemnado A viver entre a morte, morto-vivo. (Desenterra uma caveira.) HAMLET (apontando para uma caveira) Houve tempo em que esta cabeça tinha uma lingua e cantava; agora este rustico fal-a rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o primeiro homicida. O craneo que este imbecil trata com tão pouco respeito, era talvez de algum profundo politico, que se julgava até capaz de impor a sua opinião ao proprio Deus, não é verdade? HORACIO Tudo póde ser, senhor. HAMLET Ou talvez de algum cortezão cujo prestimo unico fosse repetir: «Deus seja comvosco, como está, meu senhor?» É talvez o craneo do sr. fulano, que gabava o cavallo do sr. cicrano, com a idéa que este lh'o désse, não é verdade, Horacio? HORACIO Sim, meu senhor! HAMLET Deve assim ser! Agora pertence aos vermes; não tem nem pelle, nem sangue, nem carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma estranha revolução, assim a comprehendessemos bem. Joga-se a bola com esses ossos, como se nada tivessem custado a formar. Sinto estalar os meus só pensando-o. PRIMEIRO COVEIRO (cantando) Uma enxada e uma pá logo em seguida, Um lençol que amortalha o corpo todo, Um buraco depois feito no lodo, Eis ao que se reduz a humana vida. (Desenterra outra caveira.) HAMLET Eis um outro craneo; quem sabe se não seria de um jurisconsulto. Agora acabaram as trapaças, as distincções subtis, as causas, as auctoridades legaes e as finuras. Em vida, de certo não consentia sem um processo que este imbecil lhe percutisse o craneo com a enxada. Porque não lhe intenta agora uma acção por vias de facto e sevicias? Quem sabe, talvez fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos, rendas, privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado, tem o privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabeça coberta de pó e terra. Pois que! todas as acquisições tão bem garantidas, não terão outro complemento senão assegurar-lhe um espaço apenas igual á superficie de dois contratos de venda? Todos os seus titulos mal caberiam n'este cofre, e comtudo é hoje a sua unica propriedade. Ah! HORACIO Unica, senhor! HAMLET Horacio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, não é verdade? HORACIO Tambem de bezerro. HAMLET São pois os carneiros e bezerros que fazem fé em taes titulos. Vou interrogar este rustico. A quem pertence essa cova? PRIMEIRO COVEIRO A mim! (Cantando) Um buraco depois feito no lodo, Eis ao que se reduz a humana vida. HAMLET Effectivamente, creio ser tua, pois que estás dentro d'ella. PRIMEIRO COVEIRO O senhor está fóra, logo não é sua; mas apesar d'ella não me ser destinada, é comtudo minha. HAMLET Mentes, é para um morto, e não para um vivo. PRIMEIRO COVEIRO Eis um desmentido prompto e que não admitte replica. HAMLET Para que homem cavas essa cova? PRIMEIRO COVEIRO Senhor, não é para um homem! HAMLET Para que mulher então? PRIMEIRO COVEIRO Nem tão pouco para uma mulher! HAMLET Quem será pois depositado n'esta cova? PRIMEIRO COVEIRO Uma pessoa que foi mulher, hoje é defunta; Deus se compadeça da sua alma. HAMLET Que agudeza no seu positivismo! é preciso fallar-lhe com toda a clareza, para não ser por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres annos que o mundo se torna retrogrado, e o rustico se approxima tanto do cortezão, que quasi se confundem. Ha quanto tempo és coveiro? O COVEIRO Dei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a Fortimbraz. HAMLET Quanto tempo haverá? O COVEIRO Não o sabe? Pois não ha imbecil que lh'o não diga. Foi no mesmo dia em que nasceu o joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para Inglaterra. HAMLET É isso; e porque o mandaram para Inglaterra? O COVEIRO Ora, porque? porque estava louco; talvez lá recupere a rasão, e se não a recuperar, tambem não se perde muito. HAMLET E porque? O COVEIRO Não será visto aqui, e lá todos são tão loucos como elle. HAMLET Como enlouqueceu elle? O COVEIRO De um modo bem estranho, segundo dizem. HAMLET Mas de que modo? O COVEIRO É claro, perdendo a rasão. HAMLET E qual foi o motivo? O COVEIRO Um motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a infancia, ha trinta annos. HAMLET Dize-me, quanto tempo póde um homem estar enterrado, antes de apodrecer? O COVEIRO Se não está já podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito corpo gangrenado, que mal supporta a inhumação), póde conservar-se de oito a nove annos; um surrador conserva-se nove annos. HAMLET Porque mais tempo que os outros? O COVEIRO O exercicio da sua profissão cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica impermeavel por muito tempo, e de certo sabe que a agua é o mais activo destruidor dos cadaveres. Vê esta caveira? Ficou vinte e tres annos debaixo da terra. HAMLET De quem era? O COVEIRO De um typo original; ora, quem lhe parece que seria? HAMLET Como posso eu sabel-o? O COVEIRO Leve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabeça um frasco de vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do rei. HAMLET Este craneo? O COVEIRO Sim, este mesmo. HAMLET (pegando na caveira) Dá-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina inexgotavel de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda! quantas vezes me levou aos hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o coração. Aqui estavam os seus labios, em que tantos osculos depuz. Onde estão agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas canções, esses rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas? Que! pois ninguem já póde rir com as tuas facecias? Descarnadas estão as faces. Vae, entra como agora estás, na alcova de alguma beldade da moda; dize-lhe então que arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia será igual a ti. Fal-a rir, dizendo-lh'o. Dize-me tu, Horacio... HORACIO O que, meu senhor? HAMLET Julgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick? HORACIO De certo! HAMLET E que tivesse tão mau cheiro? Fóra! (Deita fóra o craneo.) HORACIO Sem duvida alguma, senhor. HAMLET A que destinos grosseiros é possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se, proseguindo nas suas successivas transformações, as cinzas de Alexandre não estão hoje empregadas em tapar um barril? HORACIO Seria entrar n'um exame demasiado minucioso. HAMLET Não concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades de obter um resultado. Por exemplo, Alexandre está morto, Alexandre está sepultado, Alexandre tornou-se pó; o pó é terra, da terra tira-se argilla, e quem impede que esta argilla, ultima metamorphose de Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O imperial Cesar, morto, tornou-se pó, e serve talvez para vedar uma fenda e interceptar a passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror sobre o universo, vae calafetar um muro para impedir que o vento passe. Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram processionalmente padres, levando á mão o caixão de Ophelia; segue-se Laerte e o cortejo funebre, mais atrás o rei, a rainha e a côrte) e tambem a rainha! toda a côrte! A quem prestarão os ultimos deveres? De quem será este funeral incompleto? Tudo denuncia um suicidio. Deve porém ser pessoa de categoria! Occultemo-nos e observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco Hamlet e Horacio.) LAERTE Que ceremonias falta cumprir? HAMLET Olha, é Laerte, um nobre mancebo. LAERTE Ha mais alguma cousa que fazer? PRIMEIRO PADRE Fizemos já para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua morte tinha um caracter suspeito, e se ordens superiores não tivessem imposto silencio aos canones da Igreja, teria sido sepultada em chão profano, onde teria ficado até que a acordasse o clarim do juizo final. Em vez de orar por ella, teriamos lançado sobre o seu corpo tições, entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram a sua campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a á sua ultima morada. LAERTE Então nada mais se póde fazer? PRIMEIRO PADRE Mais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um _requiem_, ou se implorassemos para ella o repouso destinado ás almas que voaram ao céu santamente. LAERTE Seja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua carne, pura e sem manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo, padre sem alma, minha irmã gosará no céu a bemaventurança eterna, emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas convulsões do supplicio dos condemnados. HAMLET Que? É pois a bella Ophelia? A RAINHA (lançando flores sobre a campa) Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu Hamlet; contava, encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial; nunca pensei espargir flores sobre a tua sepultura. LAERTE Oh! que uma triplice e dez vezes triplice maldição cáia sobre a cabeça do scelerado que commetteu tão negra acção, e provocou a perda da sua rasão. Esperem que, antes que a terra a cubra, a estreite mais uma vez nos meus braços (salta para dentro da cova). Agora enterrem conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre nós uma montanha que exceda em altura o antigo Pélion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as nuvens. HAMLET (adiantando-se) Quem é que na sua dor se exprime com tanta emphase; cuja voz detem os astros no seu giro, attonitos de o ouvirem? Sou Hamlet, o dinamarquez! (Arremessa-se á cova.) LAERTE (lançando-se a elle) O inferno se apodere da tua alma! HAMLET É um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as mãos, abaixo, aconselho-t'o eu; não sou nem mau, nem arrebatado, mas é perigoso excitar-me, e obrarás assisadamente pensando assim. Abaixo as mãos! O REI Separem-os. A RAINHA Hamlet! Hamlet! TODOS Senhores! HORACIO Contenham-se. HAMLET Por um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle até ao ultimo alento. A RAINHA Meu filho, qual é o motivo? HAMLET Amava Ophelia, e as affeições juntas de quarenta mil irmãos não poderiam igualar a minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella? O REI Deixa-o, Laerte, está louco. A RAINHA Pelo amor de Deus, não faça caso das suas palavras. HAMLET Vamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar, rasgar tuas proprias carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo? Tudo farei. Vieste aqui para te lamentar, para me desafiar, precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella, outro tanto farei; e já que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre nós tanta terra, que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente, e ao pé d'ella o monte Ossa não pareça mais que uma verruga. Pódes encolerisar-te, que não me assustam os teus furores. A RAINHA É um accesso de loucura que durará algum tempo; depois, similhante á meiga pomba acalentando os filhinhos, ficará silencioso e immovel. HAMLET (a Laerte) Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas não importa. Aindaque Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o cão havia de ladrar (afasta-se). O REI Siga-o, peço-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte) Tem paciencia, lembra-te da nossa conversação de hontem, (Á rainha) Querida Gertrudes, faça com que velem sobre Hamlet; (á parte) é preciso dar como monumento a este tumulo uma victima humana. Cedo estarei descansado; até então, paciencia! (Sáem todos.) SCENA II Uma sala no castello Entram HAMLET e HORACIO HAMLET Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as circumstancias? HORACIO Se me lembro, meu senhor! HAMLET Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno, sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolução temeraria, achei na temeridade a minha força; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia é muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são impotentes, e isto deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfeiçoa e completa os projectos que imperfeitamente esboçâmos. HORACIO Não ha cousa mais certa! HAMLET Saí pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem procurei e encontrei pelo tacto, ás escuras, a sua mala; abri-a e revolvi-a toda, em seguida recolhi-me ao meu aposento; então o perigo baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo o sêllo real! Escuta o que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes motivos, a salvação da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia em eu continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da leitura d'essa carta, sem demora alguma, nem mesmo a necessaria para afiar o cutello, eu fosse decapitado. HORACIO Será possivel? HAMLET Aqui tens a carta, lê-a á tua vontade. Mas queres tu saber o que eu então fiz? HORACIO Diga, senhor; que foi? HAMLET Para saír salvo dos laços d'esta infame traição, appellei para a minha intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que pude fazer. Antigamente, assim como os nossos homens d'estado considerava uma vergonha ter boa letra; e se soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasião foi-me maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi? HORACIO Com todo o gosto, senhor. HAMLET Dirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o rei de Dinamarca, se queria que se conservasse virente a palma da amisade, a paz se coroasse de espigas e se estreitassem os laços de uma união duradoura, lhe ordenava que, finda a leitura da sua carta, sem outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar os portadores do despacho. HORACIO Mas com que sêllo fechou esse escripto? HAMLET A Providencia não me desamparou ainda n'essa occasião; tinha na minha bolsa o sêllo de meu pae, reproducção exacta do sêllo do estado. Dobrei pois o meu despacho na fórma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois colloquei-o no logar em que estava o outro: o engano não foi descoberto. No dia seguinte, em vez de combate sabes o que houve. HORACIO Assim, Rosencrantz e Guildenstern, vão receber o seu justo castigo? HAMLET Procuraram-n'o por suas proprias mãos; não me peza na consciencia. Só de si se podem queixar. É sempre uma desgraça para vis subalternos acharem-se envolvidos nas contendas de dois poderosos adversarios. HORACIO E é rei? meu Deus! HAMLET O meu dever está agora claramente indicado. Áquelle que assassinou meu pae, deshonrou minha mãe, que se interpoz entre a escolha da nação e as minhas esperanças, que attentou contra a minha vida traiçoeira e perfidamente, é justiça que o meu braço o puna. E não seria um crime digno da condemnação eterna, deixar continuar esta ulcera no seu trabalho corrosivo? HORACIO Mas dentro em pouco saberá de Inglaterra o desenlace de todo este negocio? HAMLET Em breve o saberá, é verdade, mas o tempo que até então decorrer, pertence-me, e o fio da vida do homem corta-se em menos tempo do que o preciso para contar até dois. O que me peza, meu caro Horacio, é ter desattendido Laerte, porque eu tambem sinto o que elle deve sentir. Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exaltação da sua dor exacerbou-me. HORACIO Silencio, principe; approxima-se alguem. Entra OSRICO OSRICO Alegro-me, principe, que tenha regressado á Dinamarca. HAMLET Obrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto? HORACIO Não, meu senhor. HAMLET És pois um homem moral, é um vicio conhecel-o. É verdade que possue muitas e ferteis propriedades, mas é um estupido animal, que tem mando sobre os outros, seguro de achar a sua mangedoura na mesa real; é um ente desprezivel, mas, como disse, é senhor de vastos dominios. OSRICO Meu bom senhor, se não incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que lhe communicar da parte de sua magestade. HAMLET Escutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se já, que o chapéu foi feito para estar na cabeça. OSRICO Obrigado, senhor, mas faz muita calma. HAMLET Faz muito frio, não acha? O vento está norte. OSRICO Effectivamente, faz bastante frio. HAMLET Não sei se é effeito de uma predisposição particular, mas acho um calor abrasador. OSRICO Não ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu senhor, sua magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta consideravel, de que vossa alteza é o motivo. HAMLET (fazendo-lhe signal de se cobrir) Faz favor. OSRICO Perdão, senhor, mas não me incommoda. Vossa alteza de certo é sabedor que chegou a esta côrte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais raras qualidades, agradavel no trato, um perfeito moço. Para fallar d'elle como merece, póde-se dizer que é o espelho e o almanach do bom tom, porque n'elle estão reunidas todas as qualidades que deve possuir um perfeito cavalheiro. HAMLET Senhor, não encareceu o retrato que d'elle fez; não é sufficiente toda a arithmetica da memoria para redigir o inventario especificado de todas as suas perfeições, e ainda assim o juizo ficaria áquem da verdade. Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta de um cavalheiro distincto e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar outro igual, forçoso é que se olhe no seu espelho: os outros não seriam senão a sua sombra. OSRICO O principe falla d'elle com a convicção da estima. HAMLET De que se trata, pois? Escusâmos embaçar as suas qualidades com o nosso juizo. OSRICO Senhor! HORACIO Não seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? É-o por certo, senhor. HAMLET Com que fim pronunciou o nome d'aquelle cavalheiro? OSRICO De Laerte? HORACIO Acabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder. HAMLET É verdade. OSRICO Sei que não ignora... HAMLET Queria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio para mim seria. Continue agora. OSRICO Vossa alteza não ignora a superioridade de Laerte? HAMLET É o que não affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer um homem a fundo era necessario vestir a sua pelle. OSRICO Quero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputação de não ter rival. HAMLET Quaes são as suas armas de predilecção? OSRICO Florete e adaga. HAMLET São só duas! prosiga. OSRICO O rei apostou seis bellos cavallos da melhor raça, contra seis espadas e seis adagas francezas de Laerte, sem contar os cinturões, talabartes e tudo o mais. Tres dos accessorios sobretudo são dignos da aposta e de um trabalho maravilhoso, no estylo mesmo das armas. HAMLET Que chama accessorios? HORACIO Bem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do principe. OSRICO Os accessorios, senhor, são os enfeites dos cintos e talabartes em que se suspendem as espadas. HAMLET A expressão seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canhão; sirvamo-nos pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos cavallos contra seis espadas e seus pertences, incluindo tres cintos, obra prima da arte franceza; é pois a França contra a Dinamarca. Mas qual é o motivo d'esta aposta? OSRICO O rei apostou que em doze golpes, Laerte não tocaria o principe senão tres vezes. Laerte apostou que seriam nove em doze. A questão será promptamente decidida se vossa alteza se dignar responder. HAMLET E se eu responder negativamente? OSRICO Quer dizer, se o principe convier em combater. HAMLET Senhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta hora, entregar-me a esses exercicios: depois estou ás ordens do rei. Tragam floretes com a annuencia de Laerte; e se o rei persistir no seu empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se podér; no caso contrario restam-me os golpes recebidos e a vergonha. OSRICO Deverei dar ao rei a sua resposta? HAMLET Disse-lhe o meu pensamento: o seu talento saberá completar a resposta. OSRICO Um servo dedicado de vossa alteza. (Sáe.) HAMLET Muito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo, ninguem se encarregava por certo de tal missão. HORACIO Finalmente, estamos sós! HAMLET Estou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do seu seio; similhante a tantas pessoas da sua tempera, que são o encanto dos ignorantes, abraçam as modas do dia, e revestem-se de um falso verniz de polidez, e, graças a essa mascara, são escutados pelos sensatos; mas experimentem-os, são como bolas de sabão, que se desvanecem ao menor sopro. Entra UM SENHOR O SENHOR Senhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua parte, o qual lhe disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei envia-me para saber se é intenção de vossa alteza combater já, ou adiar o combate. HAMLET Tomei já a minha resolução, e concorda com os desejos de sua magestade. Se Laerte está prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando quizer, comtanto que me sinta sempre tão bem disposto como agora o estou. O SENHOR Em breve chegarão o rei e a rainha, e toda a côrte. HAMLET Bemvindos sejam! O SENHOR É pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar principio á contenda. HAMLET É justo o seu conselho. (O senhor sáe.) HORACIO Receio que o principe perca a aposta. HAMLET Não creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente exercitado no jogo das armas: com a vantagem concedida a victoria é certa. Se tu soubesse que dor sinto no coração! Não importa. HORACIO Comtudo, senhor! HAMLET É uma loucura, uma leve apprehensão, que apenas poderia influenciar uma fraca mulher. HORACIO Se sente alguma repugnancia no seu espirito, obedeça-lhe. Vou prevenil-os que não venham, que o principe se sente indisposto. HAMLET De modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem já escripto o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitará, forçoso é obedecer aos seus decretos; que seja hoje ou ámanhã, estou prompto; tenho dito. Poisque o homem não é senhor do seu destino, que importa que seja mais tarde ou mais cedo? Será o que Deus quizer. Entram o REI, a RAINHA, LAERTE, OSRICO, SENHORES e CREADOS trazendo floretes e luvas e uma mesa com frascos e taças HAMLET (a Laerte) Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos cercam, sabem-o, e creio que tambem deve saber, que um terrivel desvairamento se apossou de mim. Se alguma cousa fiz que podesse irritar o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o bem alto: «Loucura!» Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia ser Hamlet. Então não era elle, e não sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? É claro, não era elle; renego todos esses actos. Quem foi então? a loucura. Sendo assim, Hamlet abraça o offendido; o verdadeiro inimigo do desditoso Hamlet é a sua loucura. Senhor, depois d'esta confissão, em que perante todos renego toda a má intenção, poderá ainda a sua generosidade condemnar-me? É como se inconscientemente despedisse por cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irmão. LAERTE Meu coração está satisfeito; era elle que mais me excitava á vingança; mas no campo da honra recuso-me a toda a conciliação, até que arbitros mais idosos e de provada lealdade, me imponham, fundados em precedentes, uma sentença de paz, que ponha o meu nome ao abrigo de toda a suspeita. Até então acceito a amisade que me offerece, e nada farei em seu detrimento. HAMLET Acceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos encetar. Venham os floretes, comecemos. LAERTE Dêem-me um florete! HAMLET Vou ser o seu alvo, Laerte; ao pé da minha inexperiencia vae sobresaír a sua pericia, como um astro brilhante em noite escura. LAERTE Zomba de mim? HAMLET Juro que não! O REI Dá-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta? HAMLET Perfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco. O REI Nada receio; já os conheço ambos, e poisque Hamlet é quem mais avantajado está, a sorte está pelo nosso lado. LAERTE (examinando um florete) Este não, que é muito pesado; outro! HAMLET Este convem-me; os floretes são todos iguaes, não é verdade? OSRICO Sim, meu bom senhor. (Collocam-se.) O REI Ponham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda vez, ou se elle aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma salva geral; beberei á saude de Hamlet, e lançarei na taça uma perola mais preciosa que as que usavam nos seus diademas os quatro reis meus predecessores. Venham as taças. Que os timbales annunciem aos clarins, os clarins aos canhões, os canhões aos céus, os céus á terra que o rei brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem começar, e vós juizes, attenção! HAMLET Em guarda! LAERTE Em guarda, principe! (Começam.) HAMLET Uma! LAERTE Não tocou. HAMLET Os juizes que decidam! OSRICO Tocou, não ha duvida. LAERTE Recomecemos. O REI Esperem, encham as taças. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti. Offereçam-lhe a taça. (Clarins e salvas.) HAMLET Prefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma! que diz agora? LAERTE Fui tocado, confesso-o. O REI Hamlet ganha. A RAINHA Estás fatigado, falta-te o fôlego. Limpa a fronte com o meu lenço. A rainha bebe á tua victoria, Hamlet. HAMLET Minha senhora! O REI Não bebas, Gertrudes. A RAINHA Bebo, senhor, desculpe-me, desejo-o. O REI (á parte) Era a taça envenenada, já não ha remedio. HAMLET Ainda não bebo, mais tarde, senhora. A RAINHA Deixa-me limpar tua fronte, filho! LAERTE (ao rei, á parte) Senhor, agora verá. O REI Já não creio. LAERTE (á parte) E, comtudo, diz-me a consciencia que não. HAMLET Vamos, Laerte, a terceira prova; não me poupe, peço-lh'o; desenvolva toda a sua pericia, não me trate como creança. LAERTE Que diz? em guarda, pois. OSRICO Ainda nada. LAERTE Agora toquei. (No encarniçado da lucta trocam os floretes, e Hamlet é ferido e fere Laerte.) O REI Separem-nos, estão desesperados. HAMLET Não, recomecemos. (A rainha cáe) OSRICO Acudam á rainha; acudam! HORACIO Feridos ambos!! que é isto, senhor? OSRICO Como está Laerte? LAERTE Colhido no meu proprio laço, morro pela minha traição. HAMLET Que tem a rainha? O REI Desmaiou á vista do sangue. A RAINHA Não, não! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida! envenenada... (Morre.) HAMLET Oh! infamia! fechem as portas, traição! quero conhecel-a. LAERTE Eu t'o digo, é esta: Hamlet, morres assassinado, nada te póde salvar; meia hora, quando muito, te resta de vida, na tua mão ainda conservas a arma da traição afiada e envenenada; tambem sou victima da minha perfidia. Escuta, já sinto a morte, tua mãe envenenada... morro, Hamlet! o rei... só o rei culpado... (Desfallecendo.) HAMLET A ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.) OSRICO e SENHOR Traição! traição! O REI Defendam-me, é apenas leve ferimento. HAMLET Bebe os restos d'esta taça, incestuoso assassino, damnado dinamarquez. Procura a perola, achal-a-has seguindo minha mãe. (Vasa á força o resto da taça pela bôca do rei, que cáe e morre.) LAERTE (n'um ultimo alento de vida) É justo o castigo; morre pelo veneno que preparáras. Hamlet, perdoemo-nos mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam nossas almas abraçadas ao céu. (Morre.) HAMLET Absolva-te o céu, como eu te perdôo; sigo-te, Laerte (a Horacio) morro, Horacio. Rainha desgraçada, adeus. A vós todos, que ao ver esta catastrophe empallideceis, mudos espectadores d'este drama, se tivesse tempo ainda, se esta ancia terrivel não m'o vedasse, poderia dizer... agora, resignação. Eu morro, Horacio, tu viverás, justifica-me, explica o meu odio aos que o ignoram. HORACIO Isso nunca! sou mais romano que dinamarquez, e n'esta taça ainda ha liquido. HAMLET Se és homem, dá-m'a; larga-a, por Deus, quero-a. Vive para revelar um tão infame crime. Se alguma vez foste meu amigo, não apresses a tua felicidade celeste e permanece n'este mundo odioso, conta a minha historia. (Ouve-se uma marcha) Que rumor marcial é este? HORACIO É o jovem Fortimbraz, que regressa victorioso da Polonia, e que saúda os embaixadores de Inglaterra com esta salva guerreira. (Ouvem-se tiros.) HAMLET Morro, Horacio, triumpha o veneno poderoso; nem já as noticias de Inglaterra me é dado saber, mas predigo que Fortimbraz ha de reinar; morrendo, voto por elle; conta-lhe mais ou menos os pormenores da causa da minha morte. O resto... é... silencio... (Morre) HORACIO Que nobre alma! Adeus, meu adorado principe, os anjos do céu o embalem com os seus canticos divinos. Mas porque é esta marcha? (Ouve-se uma marcha militar.) Entram FORTIMBRAZ, os EMBAIXADORES a outras pessoas FORTIMBRAZ Que vejo? HORACIO Vae sabel-o. Desgraça ou prodigio, está patente a seus olhos. FORTIMBRAZ Que hecatombe, que horror! Oh! morte, que festim cruento preparavas tu, para precisar de uma só vez tanto sangue real? PRIMEIRO EMBAIXADOR Que horrivel espectaculo! tarde chegâmos de Inglaterra. Já não nos póde ouvir aquelle de cujas ordens annunciavamos o cumprimento, trazendo a nova da execução de Rosencrantz e Guildenstern. Quem nol-o agradecerá agora? HORACIO Elle não, que os seus labios agora gelidos nunca o ordenaram. Mas, poisque vindes de Inglaterra e de Polonia e presenceaes esta crise sangrenta, ordenae que bem alto, á vista de todos, sejam collocados estes corpos, e eu lhes direi a causa d'estes factos, poisque a ignoram. Então soarão aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue, expiações, assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por força maior, e para desfecho traições que feriram os proprios auctores; eis a minha narração, e juro que é verdade. FORTIMBRAZ Ouçâmol-o promptamente, convoquemos os nobres: dolorosamente acceito o meu novo encargo, pois tenho sobre este reino direitos incontestaveis, que é meu dever reivindicar. HORACIO Missão tenho de lhe fallar a esse respeito, da parte d'aquelle que vivo teria tido os suffragios do povo. Seja pois rapida a decisão, antes que os espiritos preplexos sejam dominados por alguma conspiração ou engano que causem novas desgraças. FORTIMBRAZ Sejam por quatro capitães levados os restos mortaes de Hamlet: façam-se-lhe todas as honras militares. Se vivesse teria sido um grande rei. Quando passar, salvem os canhões. Levem os cadaveres, esta vista é só propria dos campos de batalha; aqui causa horror! Executem as minhas ordens, rompam as salvas de canhões e as descargas de fuzilaria, e as marchas funebres. Morreu o que havia de ser rei de Dinamarca. (Desfilam todos com os cadaveres: ouvem-se salvas de artilheria, descargas de fuzilaria e marchas funebres. Cae o panno.) Fim do quinto e ultimo acto *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK HAMLET: DRAMA EM CINCO ACTOS *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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