The Project Gutenberg eBook of Noticia de livreiros e impressores de Lisbôa na 2ª metade do seculo XVI

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Title: Noticia de livreiros e impressores de Lisbôa na 2ª metade do seculo XVI

Author: Gomes de Brito

Release date: February 20, 2008 [eBook #24657]

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK NOTICIA DE LIVREIROS E IMPRESSORES DE LISBÔA NA 2ª METADE DO SECULO XVI ***

Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Fev. 2008)





GOMES DE BRITO


NOTICIA

de

Livreiros e Impressores em Lisbôa

na

2.ª METADE DO SECULO XVI


composta em face de um codice
da camara municipal desta cidade





1911

Imprensa Libanio da Silva
Travessa do Fala-Só, 24
lisboa



Livreiros e Impressores em Lisbôa
na 2.ª metade do Seculo XVI





GOMES DE BRITO


NOTICIA

de

Livreiros e Impressores em Lisbôa

na

2.ª METADE DO SECULO XVI


composta em face de um codice
da camara municipal desta cidade





1911

Imprensa Libanio da Silva
Travessa do Fala-Só, 24
lisboa






Do Boletim da Sociedade de Bibliophilos
Barbosa Machado

Tiragem: 50 exemplares

N.º 44








NOTICIA

de
Livreiros e Impressores em Lisbôa

na

2.ª METADE DO SECULO XVI





Até o tempo em que o Cardeal D. Henrique, depois rei, procedeu á nova circumscripção das parochias de Lisbôa, erijindo mais cinco freguezias a ajuntar ás vinte e cinco já existentes (1564 a 1569), demarcando-lhes o territorio nos recortes feitos a quatro destas, a secular compartilha que resultava deste regimen, estabelecido no intuito de accomodar o serviço religioso ás necessidades dos fieis, e sua mais immediata satisfação, soffrera tres remodelações. Ordenara a ultima, durante a regencia do principe D. João, ausente em França seu pai, o rei D. Affonso V, o celebre cardeal de Alpedrinha.

Por effeito daquelle regimen, grande numero de vias públicas lisbonenses eram, como ainda hoje o são, compartilhadas por diversas freguezias confinantes. O Summario de Christovão Rodrigues de Oliveira, apezar de imperfeito neste ponto, nos mostra, pela repetição das denominações, que não dos disticos, porque tal providencia estava ainda por nascer, quaes e quantas eram as [6] vias públicas compartilhadas, por effeito da remodelação parochial então vigente.

Comprehendia-se entre as deste numero a muito falada «Rua Nova», dividida em dois troços, um mais antigo que o outro; um, o primeiro, fazendo parte do territorio da freguezia da Magdalena, o outro pertencendo á freguezia de «S. Gião» (S. Julião).

Do mesmo modo, esta notavel rua da Lisbôa medieva, que principiando no Pelourinho, ía entroncar na Calcetaria, era conhecida por duas denominações, correspondentes á sua compartilha. Á parte oriental, territorio da parochia da Magdalena, que terminava no Arco dos Barretes, chama Christovão «Rua Nova dos Ferros»; a que desde o predito Arco ía embeber-se na Calcetaria, um pouco adiante do Chafariz dos Cavallos, é designada na relação do Summario, referida á freguezia de S. Gião, pela denominação de «Rua Nova dos Mercadores».


I


É em toda a extensão da Rua Nova, de um e outro lado della, que, mercê de um valioso codice pertencente á Camara Municipal de Lisbôa[1], nós vamos encontrar, de porta aberta, nos annos intermedios dos já preditos (1565 a 1567), não só alguns dos livreiros e editores já conhecidos dos que conversam o passado literario de Portugal, mas outros tambem, ainda até agora não mencionados.

Começando a juzante da formosa linha de agua com a [7] qual a Rua Nova andava, se pode dizer, parallela, o primeiro que se nos depara é Bartholomeu Lopes, que não deixou de si, que saibamos, memoria averiguada, mas que poderá ser, porventura, membro de uma notavel geração de livreiros deste appelido;―os Lopes.[2]

Em 1563, isto é, dois annos, apenas, antes do primeiro dos dois a que o codice de onde extractamos estes apontamentos se refere, havia um Christovão Lopes estabelecido «á Porta da Sé», segundo se vê do titulo seguinte, que abreviamos, mas se pode ler completo em Innocencio, Diccion. Bibliog. II, 166:

«Exposiçam da Regra do glorioso Padre Sancto Augustinho... por frey Diogo de Sam Miguel, &―Vendense (sic) á porta da See, em casa de Christouam Lopes Liureyro a dous tostões em papel.―Foy impresso em Lixboa em casa de Joannes Blavio de Agrippina Colonia―Anno de 1563».

Vista a propinquidade dos annos, poderá acaso Bartholomeu Lopes ter sido irmão, ou filho (?) de Christovão Lopes, e seu successor, passando o estabelecimento da Porta da Sé para a Rua Nova, ou estabelecendo-se elle ahi de novo.

É possivel tambem que este mesmo livreiro seja pae do livreiro-impressor Simão Lopes, que deu em Lisbôa, em 1593, a primeira edição do Itinerario, de Fr. Pantaleão d'Aveiro, as Cartas do Japão, etc., e em 1596 reimprimiu a Chronica de D. João II, de Garcia de Rezende.

A seguir a Bartholomeu Lopes, seu visinho, estabelecido, até, nas mesmas casas, tendo ambos por senhorio um tal Jeronymo Corrêa, tinha a sua lojinha Sagramor [8] Fernandes. Era livreiro de modestas posses, a julgar pela avaliação que os «lançadores», para tal effeito deputados, deram á sua fazenda, na proporção de cuja totalidade deveria, como todos, pagar o respectivo escote. O nome baptismal do homem era novellesco, mas as cavallarias, ao que parece, não eram grandes.

A influencia das novellas de cavallaria faz-se ainda sentir em toda a sua pujança no codice que nos facilita esta noticia, imprimindo-lhe um matiz pictoresco e variado.

O nome novellesco do obscuro livreiro não é unico entre os seus congeneres de ambos os sexos, inscriptos neste curioso recenseamento. A par dos Sagramor ha os Lançarote; de envolta com as Ginevras passam as Briolanjas. A procedencia francesa e a italiana, dando-se as mãos. Lançarote é o «Lancelot» francez; Lancelot du Lac, o heroe cavalheiresco de Gauthier Mapp, o amigo de Henrique II de Inglaterra. Sagramor é o «Sagromoro» milanez, que Jorge Ferreira aportuguesou, fazendo-o heroe do seu Memorial; Sagramor Constantino, designado por el-rei Arthur para seu successor, se a sorte das armas lhe fôsse adversa.

Por aproposito, lembraremos a dúvida que Barbosa Machado fez nascer, ácerca da existencia dos Triumfos de Sagramor, novella que, segundo elle, teria sido impressa em Coimbra, em 1554, por João Alvarez, mas de que parece que nem o douto Abbade de Sever, nem, de certeza, o seu successor, o diligente Innocencio, viram jámais exemplar algum. Será esta hypotética novella o proprio Memorial, assim duplicado pelo auctor da Bibliotheca Lusitana? Eis um curioso thema, digno, nos parece, de attrahir a attenção da nossa Sociedade, e a que o artigo de Innocencio (IV, n.º 2095, pag. 170) prestaria a base.

[9] Em compensação, porém, algumas lojas mais adiante do modesto Sagramor achava-se estabelecido o opulento João de Borgonha. Livreiro-editor de nomeada, fornecedor de artigos do seu ramo para a fazenda de S. A., proprietario nas visinhanças do seu estabelecimento, e em mais de um sitio,[3] os seus teres, como negociante, foram avaliados em «um conto de réis».

Na epoca em que o encontrámos, tinha elle por seu «obreiro», talvez o que hoje chamariamos seu «director-technico», seu administrador ou seu apoderado, a um certo Miguel de Arenas, um castelhano, porventura, como da Borgonha seria, com effeito, o patrão; estranjeiros quasi todos, estes negociantes das letras portuguezas do seculo XVI, que, vindo concorrer com os nacionaes, faziam, ao que parece, mais fortuna que elles.[4]

Certo é que Miguel de Arenas estabeleceu-se posteriormente, com o mesmo ramo de commercio, de sociedade [10] com João de Molina; tambem, e mais vulgarmente conhecido por «João de Hespanha», outro abastado mercador de livros, mas não tanto como o seu confrade borgonhez. O negocio de João de Hespanha foi avaliado em «duzentos mil réis». Como «obreiro» de João de Borgonha, Miguel de Arenas devia fazer bons interesses. Dos seus ordenados―e foi por esta circumstancia que o suppuzemos empregado superior da casa de seu patrão―foram-lhe arbitrados «cinquo mill rs», para na razão delles pagar o respectivo escote.[5]

A João de Borgonha segue-se, nas tendas de Alvaro de Moraes, o livreiro Manoel Carvalho, provavelmente o pae de Sebastião Carvalho, que em 1598 publicou, em 3.ª edição, a Recopilaçam das cousas que conuem guardarse no modo de preseruar a Cidade de Lisboa, instrucções redigidas em 1569 pelos medicos Thomaz Alvarez e Garcia de Salzedo Coronel, e repetidas na primeira das datas a que acima nos referimos, «por mandado da cidade de Lisbôa», &.[6] Sebastião Carvalho conservaria assim na mesma Rua Nova o estabelecimento paterno.

[11] Apresentam-se, logo em seguida a Manoel Carvalho, Diogo Machado, João Lopes e «Graviel» de Araujo, dos quaes não viramos ainda noticia, antes que o codice que lhes revelou a existencia no'los désse a conhecer. Ao ultimo destes segue Diogo Moniz, que por ter apresentado carta de familiar do Santo Officio, foi escuso do escote. Porfim, e quasi no extremo da parte da rua pertencente á freguezia da Magdalena, o «Grafeo», isto é, o livreiro-editor Francisco Grapheo, em cujo estabelecimento se vendia a novella Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, impressa em Colonia, em 1559,[7] e uma das muitas edições da Diana, do nosso Jorge de Montemor, ao qual ainda não chegara a hora de ser incluído nos Indices expurgatorios das duas Inquisições peninsulares.


[12]

II


Continuando na mesma Rua Nova, agora já no territorio da freguezia de «S. Giam»; isto é, para a direita do Arco dos Pregos, ainda ahi encontramos um Francisco Mendes, que estará no caso de Sagramor Fernandes, visto o diminuto do escote, bem como o «framengo» Giraldo de Frisa, que pertence tambem, ou nos enganaremos, ao numero dos da sua classe, de que não chegára noticia até nossos dias.

Emfim, na mesma Rua Nova, e territorio da sobredita freguezia de «S. Giam» (S. Julião), mas da banda das Varandas, encontramos, fronteira ao Arco dos Pregos, a «viuva de Salvador Martel», Leonor Nunes, a qual, estabelecida, com seu filho, nas casas de Fernão d'Alvarez de Almeida, teve pelos lançadores a avaliação de duzentos mil réis.

Salvador Martel foi livreiro conhecido. Deverá ter fallecido no decurso das operações do Lançamento, de cujo livro tiramos estas singelas notas, visto como Tito de Noronha ainda o refere ao anno de 1566.[8]

Algum tanto mais atrás, e tornando ao territorio da freguezia da Magdalena, voltando da rua de D. Gil Eanes, pelo «Pelourinho», para a rua da Ourivesaria da Prata, [13] em cuja entrada tinham suas lojas os «calciteiros», encontramos o livreiro Jeronymo de Aguiar, que tambem não conheciamos, e, ali perto, no Poço da Fotéa, o já mencionado João de Molina, appelidado no codice que vamos percorrendo «Johão de Espanha», livreiro-editor que rivalisava, sem comtudo o hombrear, como já notámos, com o seu opulento confrade João de Borgonha.

Não era, porém, só na famosa Rua Nova, e suas immediações, que se encontravam os mercadores de livros. Na rua direita da Porta do Ferro,[9] numas casas que ahi possuia a camareira-mór, estava estabelecido «Jorge Dagiar» (Aguiar ou Aguilar?) talvez antecessor de Antonio de Aguilar, que nesse sitio teve a sua loja em 1576.

Pelas vizinhanças, na «travessa da porta travessa da Madalena», que se ligava á «rua do fim do pé da Costa», tinham tambem suas lojas Francisco Fernandes e «Bautista da Fonsequa».[10] Lá para a Porta do Mar, entre a Mizericordia e a «Fonte da Pregiça»,[11] nas tendas da Cidade que jaziam nas costas do Terreiro do Trigo, vendia livros um tal Manoel Francisco, lojista de medianos teres, cuja fazenda foi avaliada em 10$000 réis.

[14] Por pouco mais abastado sería tido um Antonio Dias, com estabelecimento na rua da Gibetaria,―15$000 réis de fazenda.―E nos mesmos casos Pero Castanho, lá para perto de Valverde, numa travessa que vinha de Paio de Novaes para aquelle sitio, isto é, por perto do Rocio.


III


Estes são os livreiros que encontrámos arrolados em 1565-1567 no Livro do Lançamento que nos tem guiado.

São vinte, isto é, mais do dobro dos que Tito de Noronha contou em sua já lembrada Memoria, referidos aos mesmos annos.

Não poderemos, todavia, affirmar que o João Lopes (1588), da lista daquelle auctor, seja o mesmo que figura nestas singelas notas. A identidade não se nos afigura improvavel.

Do Christovão Lopes (1563), daquella lista, já dissemos o que temos por presumivel. Quanto ao livreiro Antonio Curvete (1565), mencionado tambem por Tito, não se nos deparou no longo exame feito ao curioso codice, sob este particular ponto de vista. Isto não quere dizer que elle se não ache entre os 15:000 nomes contidos no volumoso recenso. Bem poderá, porém, ter escapado, por isso que nem sempre as profissões dos fintados lhes acompanham [15] os nomes, ou achar-se-ha substituido por outro dos arrolados.

Como quer que seja, um e outro do numero total dos livreiros, apontado por Tito de Noronha e por nós, como estabelecidos em Lisbôa entre 1565 e 1567, está muito longe do que mencionou Christovão, onze annos antes[12]―«54». Este numero, na verdade, inconcebivel por si só, e sem mais explicações, é justificado pelo ignorado auctor da chamada Estatistica de Lisboa, de 1552, que se guarda na Bibliotheca Nacional, de modo assás plausivel, e que, demais, acerta muito satisfatoriamente a nossa conta.

Diz, com effeito, o auctor da Estatistica:

«Tem XX tendas de livreiros, e [na] maior parte delas i i j, i i i j criados e sserã as pas que nellas trabalham huas per outras lx...... 60 pas».

Se em vez de Antonio Curvete, que nos falta, pode estar algum dos diversos desconhecidos, de que damos os nomes, hypothese que não parece improvavel, haveria nesta capital, de 1565 a 1567, o mesmo numero de livreiros que foi contado pelo auctor da Estatistica, em 1552.

Adoptada, com effeito, a conta dos «criados» ou «obreyros de livreiros» que os lojistas teriam a seu serviço, calculada pelo mesmo auctor, ahi teremos o numero de Christovão assaz justificado.

Será a seguinte Noticia dedicada aos Impressores.


[16]

IV


Ao testemunho do curioso codice do Archivo Municipal, que temos seguido, na famosa Lisbôa da segunda metade do XVI.º seculo seis individuos exerciam a «arte impressoria», como a denominou Valentim de Moravia, em sua traducção do livro de Nicolau Veneto.

O primeiro dos seis «imprimidores», segundo se lhes então chamava, e elles a si proprios se designavam, encontrados no alludido codice, é o velho João Blavio de Agripina Colonia[13], cujas impressões, conforme a tabella organisada por Tito de Noronha, em sua tão curiosa quanto instructiva monographia;―A Imprensa Portugueza durante o seculo XVI, remontam a 1554.

[17] É, porém, de notar que nesta tabella, ou lista chronologica dos impressores deste seculo, assigna-se á actividade de João Blavio os onze annos, apenas, que começam em 1554, e terminam em 1564.

Ora, o ról do Livro do Lançamento, onde apparece este impressor, foi recebido pelos sacadores (os encarregados da cobrança da extraordinaria imposição) em 11 de março de 1566, e por elles entregue, com o producto da cobrança, em 17 de agosto, do mesmo anno.

Vê-se pois que a actividade de João Blavio se prolongou algum tanto mais do que o indica a citada lista. O que fica para saber, é que genero de trabalhos produziria este typographo durante o lapso de tempo em que se averigúa agora ter elle ainda conservado a sua typographia, e a data precisa da sua desapparição.[14]

[18] Era pouco importante nesta epoca, segundo parece, a actividade officinal de João Blavio. A moderada avaliação de 3$000 réis, que teve, o está inculcando.

Achava-se o velho impressor estabelecido no «Beco de Gaspar das Naus», freguezia de «Sam Giam», nas casas de um tal Bento Gonçalves. Aquella minguada arteria de Lisbôa tinha sua entrada na Calcetaria, entre a rua dos Fornos, a L. e o beco da Ferraria, a O. Rematando-se, ao N., por uma especie de cotovello, sem sahida, bifurcava-se na ligação com a rua dos Fornos, a que se chamava «beco do Loureiro». O plano Pombalino, assentando sobre esta um tanto emmaranhada topographia, mostra-nos, como pode ver-se na Est. I da obra valedora do sr. Vieira da Silva, As Muralhas da Ribeira de Lisboa, o Beco de Gaspar das Naus atravessado transversalmente, de cima para baixo, na entrada da rua do Crucifixo, tendo a sua abertura no quarteirão que fica entre a esquina P. da rua do Crucifixo e a do N. da rua Nova do Almada, fronteira, por conseguinte, á parede lateral esquerda da actual igreja da Conceição Nova.

O personagem que deu o nome a este beco, e provavelmente residiu nelle, fôra, a julgar pelo que allega o «Negro», [19] na Pratica de oito figuras, do poeta Chiado, sujeito que empunhara no mercado a vara da justiça... policial.

Diz com effeito, «Gama»:

«Não vou por esse caminho!
Fallae ao que vos pergunto,
Dizei, negrinho sandeu:
saibamos que mal vos fiz,
porque não me daes perdiz,
pois que m'a compraes do meu?

Responde o «Negro»:

«Nunca elle mim acha...
Muito caro, nunca bem...
Mim dá-le treze vintem
pr'o dôzo; não querê dá.
A regatêra muito máo!
Mim dize quére vendê?
Elle logo saconde...
medo Gasapar da náo
proqu'elle logo prende
[15]

Gaspar das Naus não é o unico a quem tenha sido applicado o cognome. Houve por esta epoca um outro individuo, chamado Manoel Lopes, tambem cognominado «das Naus». Ainda não sabemos em que se occupasse.


V


Segue-se, na ordem da leitura, Marcos Borges, que nos apparece arrolado como «imprimidor obreyro», residindo em uma de tres vias públicas, enfeixadas pelos lançadores da sobredita imposição num só titulo:―«Rua de quebra [20] q... com travessa de calca (calça) frades e Rua de pino vay»[16].

O rol onde figura Marcos Borges foi entregue aos sacadores em 2 de maio de 1566, sendo por elles restituido ao thesoureiro da imposição em 1 de agosto seguinte.

Ora, «ao primeyro de janeiro de 1566» appareceu a público, impresso por este typographo, o «Paradoxo», de João Cointha, lendo-se no frontispicio da obra, além da sobredita data, mais a seguinte indicação:―«Vede se na empressam detraz de nossa senhora da Palma».[17]

Se, pois, Marcos Borges já no 1.º de janeiro de 1566 estava estabelecido por sua conta, e nos dá testemunho irrecusavel do facto na obra que lhe foi, porventura, estreia, como é que elle nos apparece classificado como «imprimidor obreyro», em maio, deste mesmo anno? Não deviam os individuos que o classificaram conhecer bem a sua posição?

Por outro lado, a indicação um tanto vaga: «detrás de nossa senhora da Palma» poderia até agora fazer suppôr que Marcos Borges estava, com effeito, estabelecido nalgumas [21] casas situadas na parte posterior da capella-mór da ermida daquella invocação, onde, de certeza, havia já neste tempo casas para alugar, como as continuava havendo em 1755, e a ellas se referiram os engenheiros encarregados das medições dos Bairros, ordenadas no começo do anno seguinte pelo ministro do rei D. José.[18]

Desde, porém, que Marcos Borges nos apparece residindo num sitio differente do indicado na obra, de que terá sido o proprio editor, como tal indicação nos auctorisa a crêr, ainda que ambos os locaes fôssem convizinhos, o que parece curial é entender-se que o impressor do «Paradoxo», tendo, com effeito, a sua officina no sitio que a obra indica, residiria no «Pino Vay», viela ingreme, quasi fronteira á parte posterior da ermida, e que laborava a escarpa, no alto da qual passava a «rua detraz de Santa Justa», correspondendo, salvo o actual aspecto, á rua da Magdalena, na parte que vae da Betesga ao largo dos Caldas. Vamos ver adiante que Antonio Gonçalves, confrade, já agora celebre, de Marcos Borges, morava numas casas de certa rua, e tinha nella, e perto, em outras, a sua officina.

Mas, encosta acima, enlaçava-se no «Pino vay» a «travessa de quebra q...», que rasgando-se entre a «rua dos torneiros» e a «Correaria», um tanto mais abaixo da abertura inferior do «Pino vay», ía formar com esta viella, a meio da encosta, o enlace que fica apontado.

[22] São poucos os contribuintes arrolados no grupo das tres vias públicas em questão, e tanto se pode suppôr que Marcos Borges, sempre na hypothese de ter a sua officina «atras de nossa senhora da Palma», morasse no «Pino vay» como na travessa predita, ou na rua de calça frades.

A circumstancia, porém, de não mencionarem os lançadores pessoa alguma a fintar na parte posterior da ermida da Palma, justamente no anno em que este impressor se declarara, na obra que citámos, estabelecido nesse sitio desde o 1.º de janeiro, tenta-nos a ver em tal indicação um alibi, por elle empregado, para remediar um inconveniente a que o decoro devia attender. O que se nos afigura por mais certo, é que os sacadores encontraram, com effeito, Marcos Borges residindo na mesma casa onde teria a sua officina, o que era regra, a bem dizer, geral, não «atrás da ermida de nossa senhora da Palma», mas na travessa de quebra costas, uma das tres do grupo onde o seu nome apparece, entre outros, e da qual se pode admitir, sem grande violencia, que ficasse fronteira, mas do lado opposto da Correaria, á parte posterior daquella ermida.

Quanto á menos exacta qualificação que ao impressor foi attribuida pelos sacadores, pode entender-se egualmente, ou que houve equivoco da parte destes, ou que elles quizeram favorecer o recem-estabelecido «imprimidor», conservando-lhe a qualificação de «obreyro», com o fim de lhe minorar a importancia do escote. Marcos Borges, typographo proprietario de officina, poderia, é verdade, ser avaliado em 3$000 réis, como o fôra o seu confrade João Blavio, e pagaria 21 rs. de escote, mas passando, por favor dos sacadores, por méro «imprimidor obreyro», alcançava o beneficio da «menor contia», que eram 2$500 [23] rs., correspondendo-lhe a contribuição de 17 rs. Era uma differença apreciavel. Valia a pena acceitar o favor. Marcos Borges, encolhendo-se, ganhava 4 réis, isto é, defraudava S. Alteza em obra de 30 réis, de hoje.

Este impressor, ainda em 1567; isto é, no anno seguinte áquelle em que se estabeleceu por sua conta, continuava a dar como séde da sua typographia o mesmo sitio: «detrás de nossa senhora da Palma». Assim se lê, com effeito, no fim da «Chronica do valoroso principe e invencivel capitão Jorge Castrioto», de Francisco de Andrade. Era então já «impressor delrey nosso senhor».

Não continuou, porém, ahi. Do facto ficou testemunho no depoimento de Pero Alberto, flamengo, seu obreiro, que a 5 de novembro de 1571 declarava seu mestre estabelecido no «Arco dos Carangueijos», se não é Arco do Caranguejo, simplesmente.[19]

A indicação é preciosa, porque nos mostra quem foi o successor da viuva de Germão Galharde, da qual adiante nos occuparemos com tal qual individuação.


VI


Ao «imprimidor» Marcos Borges seguem-se, no codice que estamos examinando, os seus dois confrades Manoel João e Francisco Corrêa, encontrados, este na freguezia de Santa Justa, aquelle, na de S. Christovão.

É Manoel João o primeiro, e delle e da sua actividade industrial vamos dar os breves respigos por nós colhidos nas duas interessantes e eruditas monographias de Tito [24] de Noronha―A Imprensa Portugueza, e Ordenações do Reino, ambas referidas ao seculo XVI.[20]

Manoel João exerceu a sua arte entre os annos de 1565 e 1578. Destes quatorze annos, porém, os dois primeiros occupou-os o impressor em Lisbôa, transferindo-se após a Vizeu, onde trabalhou durante os seguintes déz. Em 1576, provavelmente, Manoel João terá voltado a esta capital, publicando nella, datados deste mesmo anno, os Diesisiete coloquios, de Baltazar Collazos. De 1578 em diante, desapparece.

Deverá ter sido limitada, e pouco sortida, a actividade industrial deste impressor, accrescendo que as obras sahidas do seu prélo não se distinguem por perfeitas. Para o facto concorria tambem o cançado tipo de que dispôs, e o papel em que imprimiu. A decadencia da Arte começava a accentuar-se.

Dos dois primeiros annos do estabelecimento de Manoel João em Lisbôa conhece-se, impressa no anno de 1565, a 4.ª ed. das Ordenações do Reino, dada a lume, como as anteriores, por mandado régio[21]. Esta edição foi feita á custa do livreiro Francisco Fernandes, e será o mesmo que referimos no Cap. II ter encontrado estabelecido na [25] «Travessa da porta travessa da Madalena»; isto é, por perto da actual calçada do Correio Velho.

No anno seguinte dava o nosso impressor a lume a segunda edição da Primeira Parte da Chronica dos Menores, como lembrámos em uma das notas do Cap. IV. A esta obra seguiu-se a Oração na trasladação dos ossos de Affonso de Albuquerque, e depois os Artigos das Cizas, edição geralmente desconhecida de nossos bibliographos, e de que Tito de Noronha menciona tres exemplares; o da livraria de Lord Stuart, e os de dois amadores do Porto[22].

Em Vizeu, onde Tito conjectura se estabelecera Manoel João, a convite do bispo D. Jorge de Atayde, deu este impressor, em 1569, o Compendio de Confessores, e no anno seguinte as Regulae Cancellariae, de Pio V.

Tal é a noticia abreviada da actividade officinal de Manoel João. Cumpriria agora ver como se exprimiu Bastião de Lucena, o escrivão da voluntaria imposição, graças á qual nos foi possivel ajuntar as poucas noticias que constituem o assumpto de nossas singelas notas, ao lançar no volumoso codice que estamos compulsando, o nome deste impressor entre os fintados da freguezia de S. Christovão. Antes, porém, importa que o benevolo leitor nos consinta um breve relance á topographia lisbonense, [26] da epoca a que pertence o interessante Livro do Lançamento que temos examinado. Ver-se-ha não ser sem motivo a digressão.


VII


Quem percorrer as tão bem ordenadas listas da viação pública parochial lisbonense, impressas no Summario de Christovão Rodrigues de Oliveira, com as suas tres categorias de becos, ruas e travessas perfeitamente distinctas, e os seus sessenta e dois «Postos que nam sam ruas», onde o auctor, ou os que taes listas organisaram, accommodam os «sitios», os adros das parochias, os arcos, as varandas, os terreiros, ficará de todo illudido, se cuidar que tudo na vida administrativa de Lisbôa se passava com regularidade tão exemplar, em pleno seculo XVI, que todos os habitantes da famosa cidade lhe conheciam as vias públicas, destrinçando-as umas das outras, como hoje o fazemos, por suas exactas denominações e categorias, sem ser preciso designa-las por signaes, ou auxiliar-se de referencias mais ou menos complicadas, para lhes descreverem a marcha itineraria.

A prova de que tal regularidade não passou dos «roles» que os parochos de Lisbôa ministraram ao guarda-roupa do Arcebispo, por ordem deste, e Christovão fez imprimir após as noticias que ía dando das differentes freguezias, está neste codice que temos manuseado, e de que vamos dando noticia a nossos benignos leitores. No breve espaço dos quinze annos que medeiam entre a data que é costume attribuir á curiosa obra do solícito famulo do prelado lisbonense, é o Livro do Lançamento, do Archivo Municipal (1551-1565), um grande numero de vias públicas de todas as tres categorias se haviam aggregado ás quinhentas [27] e vinte e uma, de que o Summario pretende dar a conta, não em somma total, mas em sommas parciaes, referidas a cada qual das tres categorias[23].

Estava no seu auge o facto que a Miscellanea de Garcia de Resende commemora;

«Lisboa vimos crescer
Em povos e em grandeza.
E muito se nobrecer
Em edificios, riqueza».

Lisbôa desenvolvera-se a olhos vistos, e uma nova remodelação do territorio parochial, divisão unica, de tal qual regularidade por então em vigor, e essa mesma mais para o ecclesiastico, do que para o civil, estava imminente. [28] Ora, desde o 1.º de janeiro de 1560 que a freguezia de «Santa Catharina do Monte Sinay» encetava, pelo funccionamento da sua parochia, a série de providencias, que o Cardeal Infante resolvera promover, para instituir mais cinco freguezias na cidade, recortando-as no territorio das vinte e quatro já existentes, segundo lembrámos no começo destas singelas Notas.

Pois bem: cinco annos depois de ter começado a funccionar esta parochia, ainda a grande maioria das vias públicas que lhe sulcavam o territorio carecía de denominações, ou os lançadores, freguezes nella, e que haviam formado os roes da voluntaria derrama, lh'os não conheciam.

A calçada do Congro[24] ahi figura já, na verdade, substituindo se á denominação bem mais pictoresca de que dispusera, de calçada da Boa Vista, no tempo em que, seguindo os roes de Christovão, a vemos mencionada na freguezia de Nossa Senhora do Loreto, cujo territorio, [29] já no começo da segunda metade do seculo XVI, alcançava até o «Valle das Chagas». Nascera igualmente a «Rua do Conde», que em nossos dias mandaram appelidar «Travessa do Caldeira»[25], a «Bica do Bello», de 1551, apparece já em 1565 com a denominação com que ficou, de «Rua da Bica de Duarte Bello», Fernão Rodrigues de Almada dá o seu appelido á rua que ainda agora conserva tal nome, proximo á antiga «Cruz de Pao», desde 1885, «Rua do Marechal Saldanha».

Em compensação, porém, os roes dos sacadores falam-nos de 4 ruas que «vão das Chagas para Santa Catharina», assim como de 2 outras que «vão por detrás de Santa Catharina, uma para a Costa, outra para o Valle», e destas seis não é em nenhuma maneira facil fixar a situação. Por outro lado, se conjecturamos que a «rua dereita [~q] vai p'la calçada do congro abaixo» seja a actual rua do Sol, a «rua da Cruz para Santa Catharina» a actual rua do Marechal Saldanha, a «rua que vai da cruz da esperança para as casas de Christovão de mello» a actual rua dos Mastros, e assim como estas, outras ruas ou travessas, apenas indicadas por informações, nem sempre estas, se se pretendesse fazer um estudo comparativo local, seriam faceis de precisar.

Ora, consoante a taes exemplos, tirados, aliás, do territorio [30] parochial de uma freguezia incipiente, muitos outros se offerecem neste codice, dispersos por diversas freguezias, e até por algumas das mais antigas.

Mas não é só isto. Palpita-nos que certas vias públicas das listas de Christovão passaram a ser indicadas por differentes designações, o que se explicaria pela decadencia da respectiva determinante. Exemplos deste facto ha-os, até bem mais recentes. A calçada de Damião de Aguiar, do seculo XVII, passou a ser denominada «calçada do Lavra» (aliás Lavre), quando os Lopes de Lavre, do Concelho Ultramarino, vieram, pela infallivel lei das renovações, e consequentes substituições, a entrar na posse do palacio e ermida que haviam pertencido áquelle desembargador; construcção que fórma a esquina esquerda da referida calçada, sobre a rua de S. José. Outra calçada, a de Salvador Corrêa de Sá, trocou o nome pelo de S. João Nepomuceno, quando os religiosos protegidos pela rainha D. Maria Anna de Austria fundaram o seu hospicio, daquella invocação, nas abas occidentaes do monte de Santa Catharina.

De outras vias públicas do codice em exame se pode inferir que se haja obliterado a significação do nome que as distinguia, visto como é evidente que Bastião de Lucena, o escrivão desta derrama, lhes desfigurou as denominações, com a mesma inconsciencia com que deformou o nome do velho João Blavio de Agripina Colonia. Uma viela, para exemplo; uma viela que recordava o appelido de certo parente do arcebispo de Genova, Agostinho Salvago, e que viera estabelecer-se em Lisbôa, apparece-nos transformada por Lucena em "Beco da Salvaje», e assim outras mais. Do mesmo modo que ha, em summa, no Livro do Lançamento muitas vias públicas não mencionadas [31] no Summario do guarda-roupa, ha neste livro noticia de grande numero de outras, de que aquelle codice não conservou memoria.

Torna-se, pois, a conciliação entre os roes do Summario, e a nomenclatura da viação daquelle repositorio difficil, e não se consegue que sáia perfeita. A impossibilidade de identificação é manifesta.


VIII


Somos assim chegados ao ponto que nos levou á precedente digressão. Onde, em que rua, travessa ou beco, apparece fintado, na freguezia de S. Christovão, o «imprimidor» Manoel João?

O titulo desta freguezia lê-se no alto da fol. 406, v.o do volumoso codice, redigido nos seguintes textuaes termos:

«T.o da freguezia De san Xpuão―Começa o primeiro rol No chan Dalcamin pera a costa»[26].

[32] Vae seguindo o recenseamento, e a fls. 407 lê-se:

«Duas ruas [~q] começão De san Xpuão pera san Lourenço».

No v.o desta folha, e no alto della, assentou Bastião de Lucena o 8.º lançamento deste titulo. Diz:

«It Manoel Johão Inprimidor em casas Do doutor João de bairos av.do [~e] seis mill rs. paguara rij rs»[27]

Portanto, tudo quanto se colhe de similhante informação, sem nada adiantar ao nosso proposito, é que este sitio soffreu, em epoca não facil de determinar, ainda que não estejâmos longe de fixa-la de 1756 para diante, consideravel alteração. Hoje, rua que comece de S. Christovão para S. Lourenço, apenas conhecemos todos uma; a rua das Farinhas, á qual o auctor do Summario, ou [33] quem para elle escreveu esta parte do livro, chama «Rua das Farinheiras». Poderia, porém, ter-se em consideração que no terreno que fica entre a parochial de S. Christovão e a garganta por onde se penetra na rua das Farinhas, e é denominado «rua de S. Christovão», haveria modo de existir nas eras remotas que nos occupam, qualquer viela que, embebendo-se em outra similhante, déssem ambas as «duas ruas que começam de S. Christovão para S. Lourenço», segundo o abreviado modo de exprimir-se dos lançadores da imposição. É, pelo menos, o que resulta das medições do Tombo do Bairro do Rocio, (1756), a fls. 121, onde se lê: «Largo da Igreja de S. Christovão―Corre o seu comprimento N. S. Tem de comprimento desde a rua do Regedor até á travessa que vai para a rua das Farinhas, 214 p.; de largura pelo N. 35 p., e pelo S. 45».

Ora, a lista das vias públicas, do Summario, que laboravam o territorio parochial de S. Christovão comporta 9 ruas, 3 travessas, 1 adro, 2 terreiros, 1 beco e 1 arco.

De toda esta estatistica de viação, apenas uma rua, a «do Crucifixo», uma travessa, e os dois terreiros se não podem identificar com a actual topographia da parochia[28]. [34] E como naquelle tratado, a disposição das «Ruas», tal qual quem ordenou a lista das vias públicas della as foi escrevendo, nos mostra que se começou do N. para o S. da freguezia, isto é da «Rua das Fontainhas», compartilhada pelas parochias de S. Lourenço e de Santa Justa, para a extrema opposta; para a «Rua do chão dalcamim», segue-se que a «Rua do Crucifixo», por maior que seja o nosso desejo de precisar qual das «duas ruas que vão de S. Christovão para S. Lourenço» era a que habitava, com a sua officina, o tipographo Manoel João, não parece que possa ser a designada, visto como se apresenta na lista parochial após a «Rua do Regedor», isto é, do lado diametralmente opposto á provavel situação daquellas duas ruas.

Assim pois, se a tal «travessa que vai para a rua das Farinhas», do Tombo Pombalino, não era, como, de facto, não parece ter sido, a «rua do Crucifixo», do Summario de Christovão, ainda existente, e conhecida por esta denominação em 1712, como se mostra na Corografia de Carvalho da Costa, e se não era, portanto, nella que Manoel João estava arrolado, tudo que se póde concluir, é que o nosso impressor teve a sua officina no territorio da freguezia de S. Christovão, e numa via pública muito proxima á séde da parochia, mas para o N. do territorio desta.

Em algum dos proximos capitulos veremos que a fórma imperfeita como os lançadores organisaram os roes da derrama dá motivo a iguaes hesitações e perplexidades que nos não deixam satisfeito, quanto ao sitio em que [35] teve a sua operosa officina tipographica o celebre Germão Galharde, e onde vamos ainda encontrar a sua viuva.


IX


Como o seu confrade Manoel João, tambem Francisco Corrêa, seguindo as noticias que deste impressor nos dá Deslandes, em sua Historia da Typographia Portugueza, exerceu a sua arte fóra de Lisbôa.

Provavel «obreiro de imprimidor» de Germão Galharde, acaso foi convidado para ir dirigir em Coimbra a officina do Estudo Real, estabelecida na rua da Sophia, como seu presumivel mestre o fôra igualmente, para ir organisar a imprensa dos Cruzios, daquella cidade.

Em tal situação ali se demorou, com effeito, Francisco Corrêa desde o anno de 1549, em que principia a apparecer, até 1555. Passando por este tempo ao Porto, ali deu á estampa o compendio de arithmetica, de Bento Fernandes[29]. Transferindo-se em seguida a Lisbôa, onde [36] assentou prélos até 1585, anno que parece ter sido o do seu fallecimento, ainda em 1580 imprimiu em Almeirim, de parceria com seu confrade Antonio Ribeiro, segundo informações de Tito de Noronha, in A Imprensa Portugueza, as Allegações de direito por parte da Infanta D. Catharina, sobrinha do Cardeal Infante.

Além destas noticias, publíca tambem Deslandes em sua predita obra o Alv. de 12 de novembro de 1566, concedendo a Francisco Corrêa isenção de direitos, até certa quantia, do papel que despachasse em cada anno, a começar no de 1565. Pelo restante teor deste diploma se prova, outrosim, que Francisco Corrêa foi arrendatario das officinas que, por morte de João Blavio, ficaram em Lisboa e na India, em Gôa, muito mais que provavelmente, sendo-lhe concedidos os 40$000 réis que os herdeiros daquelle impressor haviam alcançado se descontassem nos direitos do papel que despachassem para o expediente das preditas duas officinas.

[37] Taes são em breve resumo, e salvo a supposição de que Francisco Corrêa fôsse compositor na officina de Germão Galharde, que é nossa, as noticias colhidas nas obras de Deslandes e de Tito de Noronha, acima apontadas, ácerca deste notavel tipographo, cujos trabalhos, além de numerosos, se avantajam, a testemunho do segundo daquelles dois auctores, em sua tão curiosa monographia das Ordenações do Reino, em nitidez e satisfactorio aspecto, aos do seu confrade Manoel João.


Ao percorrermos no Livro do Lançamento o «3.º rol da freguezia de Santa Justa», ahi se nos deparou a «Rua de Valverde», e nella, como 16.º contribuinte:

«Francisco corea [~e]presor [~e] casas de margaida de matos avaliado [~e] seis mill rs paguara Rij rs.»

O rol a que nos referimos teve começo na rua que ía do mosteiro de S. Domingos para a Porta de Santo Antão. Comprehendia a rua do Chafariz do Rocio para a Mancebia, a que ía da estrebaria del-rei ao longo do muro para a Porta de Santo Antão, a «rua do beco» do chafariz do Rocio, e finalmente, a rua de Valverde, que laborou, provavelmente, parte da actual Praça dos Restauradores, da banda do S., e vindo imbeber-se, talvez, na rua de Mestre Gonçalo, isto é, no terreno da rua do Principe, e por perto da actual calçada do Duque.

Para o seguinte estudo, a viuva de Germão Galharde, a que acima alludimos, e o glorioso impressor da primeira edição dos Lusiadas, Antonio Gonçalves.


[38]

X


Vamos folheando o volumoso recenseamento, onde colhemos as informações que temos transmitido a nossos benignos leitores, e achamo-nos agora em face do 7.º e ultimo rol da freguezia da Magdalena[30].

Começam os sucintos apontamentos itinerarios dados neste rol aos sacadores encarregados da cobrança das voluntarias fintas, pela:

«Rua Dos torneyros [~q] travessa para as pedras negras pela rua de Ilusuarte Peris[31] ate a rua drt.a da Costa».

[39] Não ocorreu ao escrivão desta derrama, escrevendo para comparochianos, conhecedores como aos seus dedos de todas as enredadas arterias da sua freguezia, que alguns seculos depois, compatricios seus viriam que tivessem interesse em perceber, mais do que as suas garatujas pictorescas, as suas abreviadas, e até menos exactas indicações do territorio parochial a que se referiam!

Se tal, com effeito, se houvera dado, não só Bastião de Lucena não estabeleceria, contra a exacta nomenclatura local, que a rua dos Torneiros atravessava para as Pedras Negras, vertendo assim uma confusão de desnortear na compartilha parochial, mas não sacrificaria á extrema concisão que adoptou a precisa clareza, para sabermos agora a que via pública, entre as comprehendidas na sua abreviada indicação, viria a pertencer o 35.º lançamento, [40] dos 38 lançados sob o correspondente enunciado, e que é o seguinte:

«It A molher de germão galharde [~e]primidor em casas suas avaliada [~e] settenta mill rs paguará i i i j c l v rs»[32].

Com effeito, uma vez que se nos deparára aqui a viuva do celebre impressor francês, que tanto realce deu á typographia lisbonense do XVI.º seculo, e tão util foi ás letras portuguesas destas afastadas eras, bem natural fôra que desejassemos precisar o sitio, a rua, a travessa ou beco onde a digna matrona residisse. O mesmo seria que ficarmos sabendo precisamente onde seu defuncto marido terá tido a sua operosa officina.

A difficuldade, porém, mostra-se insuperavel, ainda quando reponhamos, até, em seu logar a desfigurada topographia local, e se, posteriormente, nenhum outro indicio nos não fizer suspeitar onde possa ter estado estabelecida esta tão interessante imprensa, teremos o desgosto de nos contentarmos, á semelhança do que nos aconteceu, tratando de Manoel João, com as vagas indicações que ficam expressas.

Procurando formar idéa da ordem que presidiu á elaboração dos roes desta freguezia, concluímos que os lançadores adoptaram a orientação topographico-descriptiva do sul para o norte, isto é, das muralhas marginaes da cidade para cima; «Rua Nova dos Ferros», «Porta d'Erva» e «Porta da Ribeira», «Carnaçarias Velhas», «Pelourinho», «Misericordia», «Rua do Principe», «Rua da Ferraria Velha, por detrás da Conceição», «Cristaleiras», «Rua dos [41] Fanqueiros», «Rua dos Corrieiros de obra grossa e delgada», &, &. Todos estes sitios, todas estas vias públicas entram nos seis anteriores roes, com outras que, por abreviar, se não mencionam. Este 7.º rol comprehende, portanto, a zona alta da freguezia, e dentro delle observa-se disposição igual á que se adoptou para os anteriores.

Se bem entendemos, pois, o breve apontamento de Bastião de Lucena, havia na freguezia da Magdalena uma via pública, uma viella, como tantas outras deste tempo, que, partindo de qualquer ponto, por agora indeterminado, atravessava, mas não directamente, para as Pedras Negras. A travessia fazia-se com o auxilio da rua de Ilusuarte Peris. Portanto, o que se queria indicar aos sacadores, é que, principiando as suas visitas pela tal via pública, erradamente classificada e denominada «Rua dos Torneiros», e continuando-as pela rua de Ilusuarte Peris, que se lhe seguia, fôssem indo até alcançar a rua direita da Costa, nesse tempo, como agora e sob a denominação de calçada do Correio Velho, limite léste da predita freguezia. Uma vez chegados áquella rua, os sacadores, conforme se deprehende da continuação da leitura deste 7.º rol, descê-la-íam, entrariam na rua do Arco de Dona Tareja; isto é, retrocederiam para Oeste, e desta rua continuariam o seu itinerario por onde já nos não importa segui-los.

Está tudo muito bem, menos uma circumstancia importante. Não houve em Lisbôa, em tempo algum, nenhuma «rua dos Torneiros», nem na freguezia da Magdalena, nem em nenhuma outra freguezia da cidade. Existiu, sim, a «rua da Tornoaria», mas essa pertencia á freguezia de S. Nicolau. Passava pela parte posterior do edificio parochial deste orago, e era, por conseguinte, o mais septemtrional dos successivos tramos em que se fraccionava a [42] longa, e em parte alcantilada via pública que ligava uma á outra as duas sédes parochiaes.

Para se ir da Magdalena a S. Nicolau, haveria de percorrer-se a Correaria, a Fancaria, a Tornoaria, e ainda quando se quizesse admittir que os lançadores, e Bastião de Lucena com elles, haviam chamado «rua dos Torneiros» á rua da Tornoaria, daqui se vê que tal rua não podia ser compartilhavel entre a freguezia de S. Nicolau e a da Magdalena, como o não eram as suas duas parceiras, a Correaria e a Fancaria.

Temos, pois, de recorrer ao Summario, de Christovão Rodrigues de Oliveira, para destramar a meada.

Em boa hora o fazemos, porque a via pública que o solicito guarda-roupa do arcebispo D. Fernando nos aponta como situada na freguezia da Magdalena, em 1551, é a «travessa dos Torneiros». Ora, é evidentemente tal «travessa» aquella a que se referem os lançadores, porque partindo, cá em baixo, da Tornoaria, em sentido transversal para L., galgava a barreira que separava o valle da Baixa das cumiadas que iam terminar na Alcaçova, e surdindo muito proximamente no local fronteiro á actual Travessa das Pedras Negras, ía soldar-se á Rua de Ilusuarte Peris. Cumpre, no emtanto, advertir que o sitio que no seculo XVI.º deu origem á denominação «Pedras Negras» não era precisamente onde se rasgam, pela planta Pombalina, a rua e a travessa d'esta denominação, e que a rua de Ilusuarte Peris, ou desapparecera nos provaveis aspectos diversos que o sitio apresentou entre os seculos XVI.º e XVIII.º, ou se conservava ainda, acaso, ás vesperas do terremoto de 1755, mas com differente denominação; o que não seria de extranhar, como já observámos. As «Pedras Negras», como era o sitio a que deram o nome, anteriormente [43] ainda ao seculo XVI.º, póde vêr-se a configuração provavel que tiveram em mais escuras eras, na planta que acompanha a obra valedora do sr. Vieira da Silva:―As Muralhas da Ribeira de Lisboa.

A «rua de Ilusuarte Peris» é que na mencionada planta não apparece, e mal se suppõe onde possa ter sido[33]. A travessa dos Torneiros é o «Beco de Nossa Senhora da Conceição», da sobredita planta, muito mais que provavelmente.


XI


Fixados como é, já agora, possivel fazê-lo, a muito perto de trezentos e cincoenta annos de distancia, e com tão escassos elementos topographicos, estes indispensaveis [44] pormenores, digamos agora o que se sabe do activo industrial de quem fôra «molher» a pessoa a quem se referiu o lançamento que é assumpto ao nosso despretencioso estudo.


Germão Galharde, francês de nação, o que elle não deixou de recordar-nos em algumas de suas assignaturas[34], foi, como anda sabido, o mais operoso impressor que teve o XVI.º seculo português. Estabelecido em Lisbôa pelos primeiros annos delle, conhecem-se, executadas no espaço de mais de quarenta annos, e até 1560, data da sua morte, «70 edições» sahidas da sua officina, sem contar as leis avulsas, impressas, em geral, numa folha apenas[35].

[45] Quem poderá dizer quantas mais obras Germão Galharde terá executado, de que o seculo ultimo e o acual não lograram já ter conhecimento?―Interrogação é esta que terá de ficar sem resposta. Sabe-se apenas que da sua officina começaram a apparecer edições datadas de 1519, e que um lapso de revisão, importante, levou alguns bibliophilos a retro-fixar o começo da operosa actividade do celebre impressor no ultimo anno da primeira década do seculo que o viu trabalhar; no de 1509.

Foi o caso que o Missal da igreja de Evora, de que se guarda um bom exemplar na Bibliotheca Nacional, apresenta como data de impressão este predito anno. Notou-se o facto, e houve quem, não lhe occorrendo de quantos lapsos anda tecida a historia da typographia, em geral, tirasse delle irreflectido motivo para declarar Galharde estabelecido desde aquelle supposto anno. O academico Silva Tullio, que tanto no caso estava de desilludir os menos avisados, constituiu-se exactamente o paladino d'elles, sustentando contra Tito de Noronha a hypothetica possibilidade de ter o Missal sahido das officinas de Galharde no anno impugnado.

Rebateu Tito, a nosso ver humilde com raciocinios de pêso, as razões que Tullio bem escusára de ter produzido, visto como, se a verdade historica bem pouco poderia ganhar com semelhante improvavel accrescimo á actividade officinal do impressor francês, assás mal parados ficaram, em troca, os créditos do prestante conservador, insistindo em sustentar a méra presumpção que tudo se conjurava para invalidar[36].

Tito, tendo feito notar o isolamento em que a data de [46] 1509, attribuida áquelle livro, ficava das obras por Galharde impressas em 1520, e quão pouco provavel era que entre um e outro anno obra alguma, naquella typographia impressa, viesse quebrar o largo periodo de onze annos de inactividade officinal, lembrou que o Missal Eborense poderá ter sido impresso em 1529, tendo faltado na subscripção latina o vocabulo «vigesimo»[37]. Esta probabilidade nada tem, com effeito, contra si que a invalide, e um facto, porque assim o digâmos hodierno, a vem demonstrar plausivel:

Convidou o editor Fernandes Lopes a Innocencio Francisco da Silva para dirigir a reimpressão do Elucidario, de Santa Rosa de Viterbo. Em 1865 sahiu, com effeito, a lume esta obra dividida em dois tomos, como a 1.ª edição, imprimindo-se no 1.º uma «Advertencia preliminar» do illustre bibliographo, a qual elle datou do «1.º de junho de 1865». Pois bem;... na capa e no frontispicio de cada um dos dois tomos assignou-se a esta reimpressão, por [47] data, o anno de MCCCLXV! Este lapso, sendo tão patente, salta para logo aos olhos de quem manuzear a obra[38].

Continuemos agora a examinar quanto se nos offereça, do pouco aproveitavel que nos tem sido possivel ajuntar, que se relacione com a vida deste grande trabalhador typographo, que tanto illustrou a sua arte, e tantos testemunhos nos deixou, apesar das muito mais que certas lacunas da lista das suas impressões, da perfeição com que sustentou os créditos da sua officina.


XII


Dos antecedentes do operoso impressor nada se conhece. Que terra de França lhe fôsse a terra natal; quando tenha vindo para Lisbôa, e se para esta cidade veiu, acaso, contratado como «obreiro de imprimidor» de algum de seus tres antecessores, Valentim de Moravia, João Pedro de Cremona ou Hermann de Kempis, que entre nós ficou «Armão de Campos», hypotheses que nos não parecem descabidas, outras tantas interrogações são que teem de ficar sem resposta.

Por igual, destinadas estão ao mesmo resultado as que se referem ao modo como o activo «imprimidor» constituiu familia. Germão Galharde casou aqui, e tarde, ou veiu já casado para Lisbôa, o que não parece? Sua mulher era estrangeira, ou nascera em Portugal? Que o velho typographo [48] deixou um filho, por ventura continuador da sua prole, eis o de que não resta dúvida. E que falleceu deixando-o ainda menor, tambem não é menos certo. O livro que estamos examinando no-lo confirmará.

Suppondo que nascera em 1490, por exemplo, Germão Galharde poderia contar vinte e tres annos, quando, ao que Tito de Noronha conjectura, veiu a fallecer Valentim Fernandes[39]. E se tal data estivesse certa pouco teriam sobrevivido ao Patriarcha da Imprensa em Portugal os seus consocios João Pedro de Cremona e «Armão de Campos, bombardeiro de el-rei», successivamente desapparecidos, em 1514, o primeiro, em 1518 o segundo.

Valentim Fernandes, porém, segundo adiante vai ver-se, ainda n'este último anno trabalhava, e se este, afinal, tem de ser considerado o último da sua vida, bem poderá ter-se dado que Germão Galharde, obreiro―quem sabe?―de qualquer d'estes seus tres antecessores, se habilitasse com o material do celebre impressor da viuva de D. João II, para começar a sua laboração de conta propria, logo no anno seguinte ao do desapparecimento d'este. Em 1519, com effeito, parece ter-se Germão Galharde estreiado com a primeira edição da Arismetyca, de Gaspar Nicolas,[40] levando desde então a vida cheia de laboriosa [49] occupação até os provaveis setenta annos, se exceptuarmos os dois que passou em Coimbra, em Lisboa, e, porventura, na mesma casa.

Aonde era ella situada?

Vêr-se-ha n'este estudo se é possivel responder, por presumpções, a tal pergunta.


XIII


Chamou-se Anna Picaya a mulher do operoso impressor, e se não foi portuguesa, que a não deixa parecer compatriota nossa o appelido, arriscado será attribuir-se-lhe esta ou aquella nacionalidade. Confessemos, emtanto, que se um desengano d'esta ordem pudesse admittir-se por palpite, inclinados temos sempre estado a que Anna Picaya haja sido biscainha.

Casou Germão Galharde moço ainda? Esperou, pelo contrario, a idade da experiencia, para dar-se ao matrimonio? Não temos, como já ficou observado, modo de responder desenganadamente a taes perguntas. Tudo que pudémos conjecturar, é que o filho que deixou menor terá vindo ao mundo, adiantado já seu pae em annos, se muito não erra a conta que lhe démos, ao vir busca-lo a Morte.

[50] Esta circumstancia, comtudo, não se oppõe a que já houvesse outros filhos, e até poderia parecer que os houve, com effeito, se fôsse possivel interpretar um tanto latitudinariamente certas expressões de um documento que não tarda a vir transcripto a este estudo.

No emtanto, e posto que a typographia da Viuva de Germão Galharde se sustentasse ainda durante alguns annos, depois do fallecimento do seu celebre fundador, o seu material veiu a passar a novo proprietario, e nada nos indica terem-se filhos maiores, se os havia, ou ter-se o menor que ficou ao tempo do obito paterno, occupado, homem feito, na arte, que o progenitor tanto illustrou.

Este appelido, a partir d'então, mergulha no esquecimento, pelo menos aqui, em Lisbôa; e apenas a meio do seculo XVII o nosso illustre polygrapho D. Francisco Manoel se lembrára, escrevendo ao seu amigo Azevedo, da lenda dos Galhardos da Serra da Estrella, que aliás nenhuma relação tem com os de que aqui tratamos, para comparação da brevidade com que fizera um seu livrinho. Esta carta, porém, inédita ficára, com a collecção a que pertence, até que um distincto cultor da memoria de tão infeliz quão abalisado epistolographo a trouxe a lume em nossos dias[41].

[51] Assim continúa o esquecimento, sem interrupção, por esses tempos fóra. A meiados porém do XVII.º seculo apparece-nos, de repente, um typographo «Galhardo». Diplomava-se com o titulo de «Impressor do sr. Cardeal Patriarcha»; chamou-se Antonio Rodrigues Galhardo, e teve a sua casa, com capella, horta e mais officinas, no Pateo a que a sua familia dava o nome;―o Pateo dos Galhardos, a Santa Izabel[42]. Muito depois, (1837) filhos seus, ligados sob a firma «Galhardo & Irmãos», imprimem na rua da Procissão, n.º 45, entre outros livros, a «Chronica de El-Rei D. Sebastião, por Fr. Bernardo da Cruz, publicada por A. Herculano e o Dr. A. C. Payva.»

Antonio Rodrigues Galhardo é descendente do «imprimidor» francês Germão Galharde? Quem, já agora, poderá affirma-lo, ou quem estará habilitado para nega-lo?

Emtanto, a coincidencia é para notar, e para notar fica sendo, tambem, que esta familia Galhardo veiu a apparentar-se com Alexandre Herculano, pelo casamento de um [52] amigo de juventude do Grande Escriptor, e depois seu camarada na emigração, o fallecido general da arma de artilharia, que foi, quando coronel, director da Escola do Exercito, Joaquim Antonio Rodrigues Galhardo, com a irmã do Auctor da Historia de Portugal.


XIV


Quando Germão Galharde falleceu, andava-se imprimindo na sua officina a quarta edição do «Reportorio dos Tempos em linguajem portugues».

Este Repertorio, composto pelo saragoçano André de Ly, fôra vertido em linguagem, com addições, por Valentim Fernandes, que dedicou a traducção a Antonio Carneiro, secretario do rei D. Manoel.

Ora acontece―e n'este passo se patenteia quão arriscadas são affirmativas peremptorias em especies tão dubitativas―; acontece, íamos dizendo, que em Documentos para a Historia da Typographia Portugueza, impressos em 1888, affirmou o tão sabedor Deslandes «não ser conhecido exemplar algum da impressão d'este Repertorio feita por Valentim Fernandes, comquanto se deva ter por certo que a houvesse dado á estampa em sua vida.»

―Que veiu a dar-se então?―Veiu a dar-se facto igual ao succedido com o exemplar do Testamento da Infanta D. Maria, impresso em 1610, e que o catalogo da Livraria Fernando Palha, ao descrever o exemplar que aquelle bibliophilo possuía declara «seul exemplaire connu d'une pièce non citée par les bibliographes».

Succede, porém, que em 1907, percorrendo nós um Inventario de Codices adquiridos pela Bibliotheca Nacional, publicado no Boletim das Bibliothecas e Archivos, N.º 1―3.º [53] anno, 1904, depara-se-nos a menção de certo Codice da Coll. Vimieiro, em cujo miôlo viémos a encontrar um exemplar do predito Testamento, da mesma edição de 1610!

Tal achado annulou, por conseguinte, o privilegio de «seul exemplaire connu...», attribuido pelo catalogo sobredito ao exemplar que descreveu!

Ao diligente bio-bibliophilo Deslandes outro tanto acontecera. Não lhe fôra dado conhecer a bibliotheca do curioso architecto José Maria Nepomuceno, e eis que, fallecido este, divulga-se em 1897 o catalogo da famosa livraria de que era possuidor intelligente. Ora, sob o N.º 683, ahi appareceu minuciosamente descripto um exemplar do Reportorio dos tempos, que «posto não traga indicado o logar da impressão, nem o anno, se póde quasi affirmar ter sido composto em Lisbôa, e no anno de 1518, por isso que as taboas (astronomicas) indicam começarem «no presente anno»,―o predito.

E já agora, observaremos que, sendo este Reportorio, como no rosto indica, «trelladado e empremido por Val[~e]tym fernãdes alemam», está n'estes termos implicito o testemunho formal de que o celebre impressor, contra o que julga Tito de Noronha, in Ordenações do Reino, ainda cinco annos após o de 1513 era vivo, e exercia a arte.


Por voltar a Germão Galharde, sabe-se que por A. de 17 de março de 1539, lhe foi outorgado privilegio de déz annos, para imprimir de novo o Reportorio de que se trata. Deslandes, porém, affirma, e d'esta vez ainda não se apresentou facto que o contradiga, não conhecer, nem lhe constar que outrem conhecesse, exemplar algum da impressão d'este livro, tirada durante os déz annos do mencionado privilegio.

[54] Declara, comtudo, em contraposição, ter visto exemplares sahidos da officina de Galharde em 1521 e 1528; edições estas que não andam notadas por nossos bibliographos.

Por fórma que, havendo já tres edições conhecidas do Reportorio dos tempos, bem parece que sêja, por ora, capitulada quarta, como o fizémos, a de que se está tratando. Isto, em obsequio ás que se dizem datadas de 1519, bem como á de 1557, citada por Barbosa, das quaes, até agora, não se achou porque se confirme a existencia.


XV


Foi Anna Picaya que terminou a impressão do Reportorio, objecto do anterior capitulo.

Na Nota[43] infra trasladâmos a competente subscripção.

A seguir a este livro, vem em 1561, editado pelo opulento João de Borgonha, o tão fallado elogio da Sigéa, de Mestre André de Resende; em 1563, nova edição do precioso Reportorio, especie de Diario Ecclesiastico, dos Oratorianos, sem o qual nossos avós do XVIII.º seculo não podiam passar. Finalmente, em 1564, dá ainda a Viuva [55] de Germão Galharde o Exemplo pera bien bivir, de Fernão Peres de Gusmão, obra acabada a 21 de março do predito anno[44].

D'esta data em diante, até 5 de setembro de 1898, nada mais se soube que se relacionasse com a officina typographica da viuva Galharde. Naquelle dia, porém, publica o dr. Sousa Viterbo, como notámos no fêcho do Cap. V. e correspondente nota, destes Estudos, resumido e commentado, o depoimento, por denúncia feita na Inquisição em 5 de novembro de 1571, do flamengo Pero Alberto, obreiro de Marcos Borges.[45] Resulta de tal depoimento o ficarem desde então confirmados dois factos; mais proximo um, mais remoto o outro. Pelo primeiro, corrobora-se a existencia da typographia da viuva Galharde em 1563. Este não é essencial. Que a celebre typographia funccionava ainda 1564 já nós sabiamos, e o leitor comnosco. O que tem valôr é o outro facto; o que revela a transferencia da imprensa de Marcos Borges de «detrás de nossa Senhora da Palma» para o Arco do Carangueijo. A indicação [56] considerámo-la preciosa, porque nos indicava quem fôra o successor da viuva Galharde; isto é, porque vinha concorrer, ainda que de modo indirecto, para nos fortalecer na presumpção de que era no Arco do Carangueijo, com effeito, onde vamos dentro em pouco encontrar Anna Picaya, com seu filho menor, que Germão Galharde fundára a officina por elle mantida durante 41 annos.


Que terá, porém, succedido entre 21 de março de 1564, data do ultimo livro, conhecido, impresso pela «Viuva Galharde», e 1571, anno em que Marcos Borges nos apparece estabelecido, segundo todas as probabilidades, na casa que ella occupara?

Tudo que é possivel responder, resume-se no seguinte:

Qualquer que haja sido o motivo, o velho estabelecimento typographico pouco mais terá produzido, depois de 1564, sob a gerencia da viuva de Germão Galharde, e se mais alguma obra veiu a lume, após a de Fernão Peres de Gusmão, perdeu-se, como quasi de certeza outras se perderam, impressas pelo fundador da casa.[46]

Certo é que a meiados de 1566, e contra o que estabeleceu Tito de Noronha, já Antonio Gonçalves, o nomeado [57] impressor da 1.ª ed. dos Lusiadas, trabalhava por sua conta, muito distante do Arco do Carangueijo, com material que pertencêra á officina de Galharde.

Com effeito, do exame comparativo de algumas das obras impressas em uma e outra das duas officinas resulta absoluta certeza que Antonio Gonçalves utilisou frontispicios e letras iniciaes de phantasia que pertenceram áquelle. Já Tito de Noronha deixára notado o facto, em uma de suas tão copiosas quanto instructivas monographias.

Por nossa parte, temos por bem possivel que o 4.º de dez folhas n. n., onde se acha impresso o Auto das Regateiras, de Antonio Ribeiro, o Chiado, e que não tendo segundo Innocencio narra, logar, data, nem nome de impressor, apresenta, comtudo, na portada letras que parece quererem designar Germão Galharde, haja saído da officina de Antonio Gonçalves, applicando-lhe este alguma gravura de frontispicio que haja feito parte do material daquelle impressor.

Não temos, nesta occasião, o vagar preciso para examinar este folheto, que se acha na Bibliotheca Nacional, e pertenceu á livraria de D. Francisco de Mello Manoel da Camara. Acaso do exame resultaria alguma cousa de mais positivo. Seja, porém, como fôr, uma prova de decidir é a propria composição do frontispicio dos Lusiadas, impressos por Antonio Gonçalves em 1572. As peças que o compõem pertenceram ao material de Germão Galharde. Esta asserção comprova-se, pondo em conspecto o frontispicio da edição princeps dos Lusiadas (a do pelicano com o collo para a esquerda do leitor, bem entendido), e a do Summario, de Christovão Rodrigues de Oliveira, sahido a lume procedente da officina de Galharde, depois de 1551, com toda a certeza, e talvez em 1554.

[58] Já em 1570 Antonio Gonçalves aproveitára este mesmo frontispicio no Reportorio dos tempos, que lhe coube imprimir tambem, edição que a Innocencio parece ter escapado, mas de que ha um exemplar nos Reservados da Bibliotheca Nacional. Este sempre lembrado impressor terá começado por ser «imprimidor-obreiro» do velho typographo francês, sendo bem possivel que se haja conservado na casa, após a morte de seu mestre. Resolvida Anna Picaya a fechar a officina, ou, porventura, fallecida, terá o seu official, disposto a estabelecer-se, uma vez que a casa acabava, comprado os aprestos desta. Tudo parece conciliar-se para acreditar tal supposição.

Mais difficil é o precisar desde quando Marcos Borges terá passado a occupar as casas da viuva, e o motivo que lhe facilitaria o estabelecer-se nellas. Não parece, com effeito, que as duas operações―venda do material a um, e cedencia da casa a outro, se cedencia foi, hajam resúltado da mesma causa;―o desfazer da velha officina. Lembremo-nos que em 1567, isto é, um anno após o estabelecer-se Antonio Gonçalves, como provaremos, ainda Marcos Borges imprimia a Chronica de Jorge Castrioto no mesmo sitio onde começára a sua laboração; «atrás de nossa senhora da Palma». Presumivel será, pois, que Anna Picaya se haja conservado, com seu filho, nas suas casas, após ter acabado com a officina, vindo, porventura, a fallecer depois de 1568, adquirindo―quem sabe?―Marcos Borges a propriedade, e estabelecendo-se nella.

Como quere que sêja, vamos ver agora como se chegou a presumir que a typographia de que temos tratado haja sido no Arco do Caranguejo.


[59]

XVI


Fallecido Germão Galharde, procedeu-se a inventario, sendo Anna Picaya nomeada «titor» de seu filho Antonio. Concorriam mais filhos, já maiores, á herança? Eis o de que não ha certeza. Das quatro obras unicas de que nos restam exemplares, sahidas da officina do extincto, após a morte deste, tres dizem-se impressas «em casa da viuva molher que foi de Germão Galharde.» No titulo e subscripção da quarta, porém, segunda na ordem chronologica da impressão, lê-se:

«Lvdovicae Sigaeae | Tvmvlvs | ¶ L. Andrea Resendio | Auctore | ¶ Apvd haeredes Germani | Galiardi. An. | MDLXI | ¶ Olyssippone | ¶ Venalis apud Iohannem de Borgo | Regium Bibliopolam, in vico nouo[47]

Ora, esta excepção, «haeredes», que aliás não resolve a dúvida, por isso que realisado o casamento de Galharde «á moda do reino», co-herdeira com o filho menor era [60] a viuva, meieira na casa, parece-nos ter sido muito de proposito empregada naquelle impresso por motivo que a occasião tornava perfeitamente plausivel. Corria por esse tempo o inventario seus termos, e habilitavam se á herança do chefe da familia a sua viuva e o filho menor. A expressão haeredes, posta na subscripção do Elogio, de Mestre André de Resende, em 1561, era, portanto, de todo o ponto bem cabida; exprimia a situação de ambos, como inventariantes e como industriaes. Por isso se empregou.

Quando os saccadores, em desempenho do seu cargo, convidaram a viuva impressora a entregar-lhes a importancia do escote que lhe coubera na voluntaria imposição, (entre 15 de fevereiro e 31 de outubro de 1566) pagou ella, sem repugnar, os 455 rs. em que foi fintada. Especie de contribuição extraordinaria de maneio, a que só escapavam os privilegiados;―familiares do Santo Officio, servidores de S. A. e quem quer que tivesse armas e cavallo, e «jogasse lança de dezoito palmos para cima»[48],―era [61] para todos os mais a commum sorte; não havia fugir-lhe.

Mas, fechara-se, emfim, o inventario, julgara-se a partilha, e liquidou-se o que vinha a tocar ao menor; a sua legitima. Importava em «cincoenta e nove mil, quinhentos e vinte e dois réis». Havia mais orphãos em semelhantes circumstancias. A provisão de S. A. beneficiava-os, para os effeitos da voluntaria derrama, com o desconto do «terço» do valor total apurado, para que sobre o remanescente recahisse o talho. Anna Picaya, tutora de seu filho, teria de pagar por elle «duzentos e oitenta réis». Reclamou. Agora, não era a obrigação do estabelecimento; era a legitima do orphão, despiedada,―provaria até―illegalmente desfalcada. O menor Antonio Galharde era filho de um homem que durante mais de quarenta annos tinha prestado assignalados serviços ás letras do país que adoptara por patria. Os seus prélos não tinham gemido só em serviço de quantos praticavam a nobre arte de escrever, senão que tinham tambem trabalhado para a corôa. Antonio Galharde era filho de um «official impressor da casa real»[49]; a isenção de que seu pae, se vivo fôra, gosaria, porque não mandava S. A. que aproveitasse ao filho menor?

Que S. A., pois, «inclinasse por um pouco a magestade.» Á triste viuva, sobrecarregada com os encargos da tutella e ao filho orphão devia-se-lhes contemplação. Ambos receberiam mercê no favoravel despacho com que S. A. se servisse attende-los.

E se isto assim se passou, pode affirmar-se que a «titor» do menor Antonio Galharde venceu! No traslado da [62] certidão do orphanologico que baixara aos encarregados da cobrança, e foi lançado a fl.s 685 e segg., do Livro do Lançamento, riscou-se a designação do escote, escripta na margem esquerda, averbando-se na direita a significativa cota, constante do proprio documento remissor que segue:


«ORFFAÃOS»

«To Dos orfãos que Johão Do sal escrivão Delles Mandou a esta cassa do lançam.to per sua sua certidão»



«It Ant.o filho de Jermão Galharde Imprimidor tem de ligitima cinquoèta e noue mill e quinhètos e vinte e dous rs abatido o terco paguara dozètos e oytenta rs e sua titor[50] Ana Picaya sua may mor ao arquo do cangreijo»

[63] A margem direita do livro está escripto: «abatido p.la provisão de S. A. não vay a Rol»


Parece, pois, poder concluir-se do teor desta certidão que a casa que Germão Galharde possuia, e onde residia e tinha a sua officina typographica, era ao Arco do Carangueijo, isto é, no extremo N. da rua deste nome, para além da actual rua das Pedras Negras, partindo em linha obliqua do começo da travessa do Almada. O chanfro existente no cunhal posterior do predio que faz face ao Largo da Magdalena, do lado de L., e que todos podem notar, é quanto resta do Arco de Dona Thereza, de onde ascendia para o N. a «Rua do Arco do Carangueijo.»

Passaremos agora a tratar de Antonio Gonçalves, e findaremos.


XVII


Affirmámos no cap. XV.º d'estes Estudos que a meiados de 1566 já Antonio Gonçalves, o nomeado impressor da 1.ª ed. dos Lusiadas, trabalhava por sua conta, muito distante do Arco do Caranguejo.

Vamos procurar dizer onde era.

Preliminarmente, porém, preciso se torna lembrar que na segunda metade do seculo XVI, correspondente ao anno supra mencionado, Lisbôa, sob o ponto de vista da sua divisão ecclesiastica, a unica por então estabelecida, achava-se, de um modo geral, dividida em tres grandes zonas; a oriental, a central e a septentrional. Confrangidas em torno dos pendores da primitiva cidade, e descendo para a vertente sul que lhes corresponde, todas as parochias de limitado territorio, successivamente fundadas [64] durante os quatro seculos anteriores. Na extrema esquerda, imminente ao Tejo, a de Santo Estevão, excepcionando-se do acanhado territorio de todas as mais, pela tira enorme que a alongava até Enxobregas[51]. Ao centro, S. Nicolau e Santas Justa e Rufina, soffregas de territorio, dominando tudo, abrangendo tudo, reservando apenas cada uma d'ellas para si as eminencias correspondentes á orientação das respectivas sédes. A primeira, alastrando-se por boa parte do valle central da cidade, e trepando para o «Bairro do Almirante», o Carmo e circumvisinhanças, bracejava, a oeste, para os ferragiaes atinentes ás muralhas, dando a mão ás suas duas convisinhas dos Martyres e do Loreto. A freguezia de Santa Justa, mais extensa ainda do que a de S. Nicolau, dominando, ao septemtrião, o resto da chãa que aquella lhe deixava, investia pelo povoado em fóra até á Areia Gorda, por um lado, até Arroios, pelo outro, galgava o monte de Sant'Anna, laborava as cumiadas que a aproximavam da Alcaçova, mal permittindo, suzerana desdenhosa, como a sua possante companheira, que algumas pequenas parochias circumstantes affirmassem a desvaliosa existencia.

Eis porque se lê no «Livro do Lançamento» que temos manuseado, a fls. 539, v.o, o seguinte titulo:

[65] «Começa o quatorzeno Rol Da freguezia De Santa Justa: Na Rua das Casas de Manoel a.o (Affonso) até ao postiguo De Santo André».

Estamos, pois, junto ao, de nossos dias, chamado Arco de Santo André, que acaba de ser derribado, e que a Divisão Parochial do Patriarcha D. Fernando de Sousa e Silva, de 1780, mandou considerar, por dentro e por fóra, no territorio da freguezia daquella invocação constituindo em 1566 extremas de N. E. da parochia de Santa Justa.

Por escusado temos affirmar que nas listas da viação parochial, estampadas no Summario de Christovão Rodrigues d'Oliveira, organisadas em 1551, ou pouco depois,[52] não se encontra semelhante denominação de rua, se tal modo de indicar uma via pública pode ser classificado «denominação». É, com effeito, evidente que o redactor d'esta especie de matriz, conteúda no «Livro do Lançamento» em exame, sabia bem quem era o individuo a quem [66] chamou «Manoel Affonso», seu contemporaneo ou não. Por nossa parte estamos persuadidos que Bastião de Lucena grandemente se equivocou, atribuindo o baptismal «Manoel» a um individuo que se chamou Estevão, pois que esse é que teve casas na rua de que se trata, tendo ambos o mesmo sobrenome. Manoel Affonso, que foi um dos sacadores deste «Quatorzeno Rol», era proprietario, sim, mas no Beco do Poço do Ceitil. Tinha ahi uma atafana[53] e n'ella residia. Da coincidencia de sobrenomes terá, porventura, nascido o equivoco.

Como quer que seja, o designar semelhante indicação a rua onde deviam começar as operações da cobrança, apresenta-se, tanto para o lançador das fintas como para os sacadores d'ellas, facto natural, correntio. A via pública de que se tracta poderia ter outra qualquer denominação, que para uns e outros esta que lhe foi attribuida bastou.

E bastou tambem para nós.

De facto, se esta cobrança devia começar n'uma rua que ia até o postigo de Santo André, que importa que lançador e sacadores lhe chamassem, ou verdadeira ou equivocadamente, «Rua das casas de Manoel Affonso», se dúvida não pode haver que tal via pública outra não é, senão o troço mais ou menos modificado, no material e no aspecto topographico, da actual Costa do Castello que vae do baluarte de S. Lourenço ao agora já derribado Arco de Santo André?

Aquelle baluarte, entreposto nos lanços do norte da cêrca velha da primitiva Lisboa, foi aproveitado pelos constructores da cêrca de D. Fernando, para lhe apoiarem no paramento o arco do postigo que tomou aquella [67] denominação, tambem conhecido por «Postigo da Rosa», depois da fundação do mosteiro da rua das Farinhas.[54] Qualquer de nossos benevolos leitores pode ver ainda agora os vestigios das nervuras do arco embebidas no vetusto panno do baluarte, assim como, do lado opposto, os restos desfigurados do cubello onde o mesmo arco ia assentar. Tudo isto foi arrasado no ultimo anno do seculo XVIII.

Do postigo de S. Lourenço, a cêrca nova descia a escarpa que vinha confundir-se no labiryntho de vielas que demoravam, como ainda agora, entre o vetusto edificio do chamado Colleginho e a Mouraria. Era-lhes canal de communicação com a «rua de Manoel Affonso» a «Rua do Poço do Ceitil», entalada entre a muralha nova e os muros da cêrca da Casa de «Santo Antão», a que depois se chamou «o Velho» para o distinguir da nova casa dos jesuitas, actual Hospital de S. José. Esta «Rua do Poço do [68] Ceitil», desde muito desapparecida, mas de que a carta topographica da Commissão Geodesica, dada a lume em 1875, ainda nos quere parecer que marca os vestigios, constituiu a cabeceira do «Trezeno rol» da freguezia de Santa Justa.

Conclue-se daqui pois que os arroladores continuavam a adoptar a marcha ascencional, como em nosso anterior estudo vimos, por isso que, explorada a zona de que aquella rua era o começo, passaram a encabeçar o 14.º Rol pela via publica immediata.


XVIII


Além destas razões de congruencia, confirmando ser, com effeito, a «Rua das casas de Manoel Affonso» o troço da atual Costa do Castello que ficou indicado, outros testemunhos positivos existem que nos asseguram a identidade da rua do seculo XVI com a via publica do seculo XX.

Não podemos dispensar-nos de os apresentar, por muito que tal resolução possa parecer extranha ao nosso objecto. Ver-se-ha que o não é.

Por Alv. datado de Evora, a 8 de junho de 1573, foi commettida ao Licenceado Luiz Lourenço a organisação do tombo das propriedades foreiras á Camara desta cidade. De tal diligencia se conservam os respectivos Livros no Archivo Municipal. Examinando o segundo destes Livros, que tem seu começo na «Rua do Arco do Rosio, da banda da praça da palha», na freguezia de Santa Justa, averigua-se que de 1547 a 1565 havia a Cidade effectuado dez aforamentos na «rua que vai da porta de Santo [69] André para o postigo de Sam Lourenço, que por outro nome se chama Villa Quente»[55].

Confrontado este titulo com o que Bastião de Lucena escreveu no Livro que estamos estudando, acha-se que a situação da via pública do Tombo da Cidade é de todo o ponto a mesma que se lê naquelle Livro, salvo a orientação, que diametralmente diverge, visto que o juiz do Tombo partiu do postigo de Santo André para o de S. Lourenço, e Bastião de Lucena fez o contrario, para o que, segundo acabamos de ver, teve uma excellente razão de ordem.

Ora, que tanto uma como outra das duas descripções se accomodam sem obice algum á topographia actual, não resta dúvida, pois que o caminho de nossos dias municipalmente chamado Costa do Castello, começando na sua extrema oriental no fim da rua do Milagre de Santo Antonio, passa, ao inflectir para o N., rente ao panno de muralha do baluarte de S. Lourenço, e continúa até terminar junto do agora derruido Arco de Santo André.

[70] Se o leitor paciente o seguir comnosco, encontrará, á sua direita, antes da rampa que termina a Costa e atinente a um lanço de muralha que sustenta um pequeno quintal, uma porta, tendo o n.º de policia 92 A, dando accésso a extenso escadorio, que torneja, lá no alto, á direita, e segue em varios e apertados lanços até encontrar, á esquerda, a famigerada Porta do Moniz, aquella porta do Castello, origem da lenda que Herculano pulverisou.[56] No Tombo do Licenceado Luiz Lourenço, as escadas alludidas são a «Rua que vai da rua direyta para o Postigo do Moniz». As casas que ladeavam a entrada de tal «Rua» foram levantadas em chãos pertencentes á Cidade.

As da banda do Postigo de S. Lourenço, na frente do muro do quintal acima alludido, e vinham a ser as «derradeiras casinhas quando querem voltar da dita rua pelo caminho que vai ao Postigo do Moniz», possuia-as um casal, Antonio Fernandes e sua mulher Barbara Gonçalves, «parda». As da banda do Postigo de Santo André pertenciam a Estevão Affonso, porteiro. E eis porque desta circumstancia nos veiu a tentação de achar que Bastião de Lucena se equivocou, atribuindo a Manoel Affonso as casas deste Estevão. Se o porteiro foi dos primeiros edificadores que teve este troço da Costa do Castello (1547), é bem provavel que o seu nome servisse de conhecença para a sua rua, então quando era este individuo o segundo de quantos foreiros a Cidade teve n'aquelle sitio, e aquelle o modo de distinguir as vias publicas lisbonenses umas das outras.

Alem dos emphiteutas da Camara acima mencionados, [71] outros havia que figuram em ambos os documentos que temos citado. Assim, a Cidade tinha aforado ao dr. Affonso Figueira, desembargador da Casa do Civel e Ouvidor do crime, em dois annos diversos, 1555 e 1557, tres chãos, sobre os quaes este magistrado levantara casas, e um quarto que elle reservara para seu quintal, e que o era ao tempo do Tombo que vamos seguindo. A loja de uma das casas estava em 1566 ocupada pelo tecelão «João Francisquo», conservando-se senhorio, o magistrado sobredito. Este ahi mesmo residiria, mas a toga excepcionou-o da obrigação do escote, e por isso só naquella qualidade apparece no rol da derrama. Do mesmo modo aforara a Cidade, em 1542 e 1547, dois outros chãos perto dos antecedentes, a uma Guiomar Dias. Esta, precedendo a competente licença, fez venda, em 1561, de uma das casas que n'elles edificara a Ambrosio Luis, feitor da imposição dos vinhos.

Ora, tanto o magistrado Affonso Figueira como o funccionario fiscal apparecem em sua devida altura no Rol de Bastião de Lucena, isto é, são mencionados como proprietarios das respectivas casas, indo do Postigo de Santo André para o baluarte de S. Lourenço, sendo a concordancia perfeita entre os dois documentos, por isso que umas das casas do dr. Affonso Figueira são no Tombo da Cidade, as primeiras, indo do Arco de Santo André, partindo pelo N. E. com as de Ambrosio Luis e com outras de outro aforamento, realisado por aquelle magistrado dois annos depois.[57]

[72] Absolutamente certos, pois, de que dizer «Rua das Casas de Manoel Affonso até o Postigo de Santo André», e «Rua que vai da Porta de Santo André para o Postigo de Sam Lourenço» é referir-se a uma mesma via pública, e que tal referencia corresponde ao troço actual da Costa do Castello, que vai do Baluarte de S. Lourenço até o desembocar da mesma Costa no alto da calçada de Santo André, pedimos ao leitor benigno nos perdoe a longa e porventura enfadonha digressão topographica, na consideração de ser necessaria a nosso empenho:―o precisar, sem especie nenhuma de dúvida, onde foi que teve a sua officina typographica o já agora tão nomeado Antonio Gonçalves, «imprimidor» da notavel edição princeps do poema Os Lusiadas, do Grande Epico Luis de Camões, das duas que trazem a data de 1572, a que apresenta o Pelicano frontispicial com o collo voltado para a esquerda do leitor.


XIX


A 17 de setembro de 1566, Manoel Affonso, atafaneiro, morador ao Poço do Ceitil e Jeronymo Gonçalves, serralheiro, [73] morador na rua dos Cavalleiros, escolhidos para sacadores do «quatorzeno» rol da freguezia de Santa Justa, receberam nos Paços do concelho desta «mui nobre, sempre leal cidade de Lisboa», onde se tratava de dar execução ao Regimento da cobrança do voluntario imposto a que nos temos referido, as competentes copias do predito Rol, e trataram de avial-as.

Deviam começar, como vimos, da extrema superior da «Rua do Poço do Ceitil,» que desembocava, segundo dissemos, proximo do Baluarte de S. Lourenço, pela parte posterior do Postigo da Cerca nova, sendo a primeira do «trezeno» Rol.

Percorrendo toda a rua até o Postigo de Santo André, voltavam os dois sacadores para a calçada desta denominação, internavam-se na Rua da Amendoeira, davam volta á travessa desta rua, que lá vimos ainda hoje, e sahindo pela rua das Tendas, que parece não lográra ainda um qualquer nome, vinham á dos Cavalleiros, findando-lhes a tarefa no «Beco de Thomé Correa»; um beco sem sahida, de nossos dias chamado Beco do Forno, primeiro á esquerda naquella rua, indo da Mouraria, e que tem lá, não sabemos porque bullas, advertencia de ser «logradouro particular»(!).

Acompanhemos os honrados exactores na sua perigrinação pela rua que ía do «Baluarte de Sam Lourenço ao Postigo de Santo André». Despedir-mo-nos-hemos ahi d'elles. O que deste Postigo por diante haveriam de fazer não nos interessa. Depois veremos, por simples curiosidade, qual foi o importe da sua cobrança na area que lhes fôra designada.

Por agora, attentemos um momento na feição da discutida via publica lisbonense, como ella parece ter sido no 2.º semestre do anno de 1566.

[74] Devia apresentar, ao menos por partes, mais largura do que hoje vemos ter, posto que não se avantajasse grandemente, neste particular, ás convisinhas. Muito mais desafogada era ella, por certo, do que é hoje.

Ao longo da sua margem direita, indo para Santo André, e até alcançar-lhe o Postigo, 21 propriedades, se a tal classificação poderiam aspirar as modestas casinhas que se iam encostando á barbacã do Castello, tendo na sua frente uma larga perspectiva panoramica, de surprehendente effeito. Da esquerda, a ondulada ribanceira, por onde, ainda 35 annos antes, se espreguiçava a miseranda Villa Quente, até ir topar com a cêrca do Colleginho. Lá quasi ao começar o forte declive que, tal qual hoje, terminava a rua, o postigo aberto na muralha por onde se começava a subir para o do Moniz. Diante d'elle, atravessada no caminho, a cruz de pao, demarcatoria nos titulos do Tombo municipal. Por ahi perto, talvez, sempre da esquerda, algum pequeno grupo de casinhas, restos da subvertida povoação. Após, os declives sobre os quaes se levantou, no seculo seguinte, o palacete que assenta no espigão da calçada de Santo André.

Isto, quanto á topographia local.

Vejamos agora quanto respeita ás construcções, e, porfim, aos que as habitavam.

As 21 casas da margem direita, que a rua contava pertenciam a outros tantos proprietarios. Destes, 12 habitavam nas proprias casas, ou sós, ou tendo inquilinos. De todos os 21, o senhorio mais importante, era o clerigo Francisco Dias. O seu predio―algumas barraquitas, provavelmente―alojava 9 inquilinos, entre os quaes, 2 cegos. De consideração, na ordem social, Joanne Fernandes, moço da camara da Infanta D. Isabel, tendo na loja [75] por inquilino um «sapateiro remendão». Joanne Fernandes morava nas proprias casas de que era dono, e foram-lhe avaliadas em 30$000 réis. Pegado ao postigo de Santo André, não esqueça o nosso conhecido magistrado Affonso Figueira, e confrontando com elle, o Ambrosio Luiz, que superintendia na imposição dos vinhos. Algures, ali perto, um Joanes, cantor de el-rei, que nem por ser tal, se esquivou ao escote. Fecham a lista três senhoras do appelido Viegas; Filippa, Antonia e Anna.―Tres irmãas?―Que sabemos nós? Os predios das duas primeiras, avaliados em 50$000 réis cada um, obrigaram-nas a 350 réis de contribuição. As casas de Anna Viegas,―coisa parecida, é mais que certo―com as barracas do Padre Dias, foram computadas no dobro; em 100$000 réis, e por isso teve de pagar 700 réis.

O predio devia valer a somma em que foi avaliado. Alem da senhoria, habitavam n'elle mais 6 inquilinos; 3 varões e 3 femeas, como se diz em estatistica de população. Entre as femeas, duas eram viuvas; dos varões, um fallecera ao tempo de chegarem lá os sacadores, outro abalara para parte incerta. O terceiro era typographo;―chamava-se Antonio Gonçalves, e tinha aqui a sua officina. Elle e Maria Luiz, sua mulher, moravam mais abaixo, para o lado de Santo André, no predio do pintor Garcia Fernandes.


XX


Estava, pois, Antonio Gonçalves estabelecido já em setembro de 1566, isto é, dois annos mais cedo, do que o que lhe suppôs Tito de Noronha, na tabella com que enriqueceu a sua tão valiosa monographia A Imprensa Portugueza durante o seculo XVI.

[76] É evidente que o auctor se governou, para a inscripção da data «1568», pela data do primeiro livro que se conhece, sahido dos prélos deste impressor;―as obras poeticas de Cadaval Gravio. (Pag. 82). O facto, porém, corrobora o asserto já por nós enunciado nestas Notas; convem a saber: que hemos de convencer-nos, todos os que perlustramos estas materias, que, assim como a nenhum habitante da Terra será jámais permittido ver a outra face do globo lunar, assim nos está vedado, e aos que depois de nós vierem, o descortinar quantas obras, e quaes assumptos vieram a lume, só no seculo XVI que seja, em Lisboa, que para sempre de nós e dos porvindouros ficarão ignorados.

É provavel que Antonio Gonçalves continuasse a residir na Costa do Castello, e ahi mantivesse egualmente a sua officina, até passar a melhor vida. Nestas afastadas eras, o inquilinato ainda tinha mui fracas as azas. Voejava pouco, e com pouco se contentava. Ahi onde se constituia familia, ahi onde se ganhava a vida, ahi se criavam affectos; ahi se lançavam raizes. Na mesma parochia, onde marido e mulher uma vez se desobrigavam, até o ultimo dia da vida se ficavam desobrigando. N'ella recebiam a agua lustral do baptismo, n'ella se casavam, n'ella continuavam a prole. Depois, no chão sagrado que todos os fieis pisavam, vindo adorar a Deus, tinham todos, quantas vezes de geração em geração!―o proprio e final encerro.

Pela nota com que fechamos, emfim, estes singellos apontamentos, que um acaso nos permittiu redigir, se verá desde quando e até quando se conhecem impressões sahidas da officina de Antonio Gonçalves, e quaes as obras que se sabe terem sido objecto d'ellas.

Não esqueça referir que a officina de Antonio Gonçalves [77] foi avaliada em 5$000 réis, pagando o futuro impressor dos Lusiadas o escote de 35 réis para as necessidades da corôa.

A 26 de abril de 1567 deram os honrados sacadores do «Quatorzeno Rol da Freguezia de Santa Justa» por finda a sua tarefa, entregando, com a nota de 239 addições cobradas, ao Thesoureiro da Cidade, André Luiz, recebedor do dinheiro deste Lançamento, a quantia de 26$476 réis, em que ellas importaram, jurando aos Santos Evangelhos terem procedido como homens de bem.

Eis a Nota das impressões conhecidas, sahidas dos prélos de Antonio Gonçalves, redigida por simples apontamentos, por se não ter prestado a occasião a uma minuciosa e integra descripção bibliographica das que será ainda possivel ver.

1568 Pythographia e Brachyologia―Poemas publicados por Cadaval Gravio, segundo Tito de Noronha, in A Primeira Edição dos Lusiadas, pag. 82.
1569 Constituições Extravagantes do Arcebispado de Lisboa (3.ª ed.)―aos 7 dias do mes de Fevereiro. Mencionadas por Innocencio, Diccion, Tom. II, 105.
» Leis extravagantes collegidas e relatadas por mandado do muito alto e muito poderoso rey D. Sebastiam, nosso senhor, por Duarte Nunes do Liam.―Innoc. II, 210.
1570 Repertorio dos Tempos. Visto por nós na Sala dos Reservados da Bibliotheca Nacional―B―11. Tem o frontispicio dois annos após empregado pelo mesmo impressor in Lusiadas, de Luiz de Camões. Material que pertenceu a Germão Galharde.
1571 De Rebus Emmanuelis, do Bispo D. Jeronymo Osorio. Cit. por Innocencio―Letra J. pag. 272.
1572 Os Lusiadas―por Luiz de Camões. Frontispicio que pertenceu a Germão Galharde―(Pelicano tendo o pescoço voltado para a esquerda do leitor).
[78]
1572 Primeira Parte do Compendio da Chronica da Ordem... do Monte do Carmo, por Fr. Simão Coelho. Deve cotejar-se a noticia de Innocencio com a descripção impressa no Catalogo n.º 7 da Livraria de José dos Santos & Irmão.
1573 Commentario do cêrco de Goa e Chaul, &―Ha um exemplar na Livraria da Torre do Tombo.
1574 Successo do Segundo Cêrco de Diu, de Jeronymo Côrte-Real.―Ha um exemplar entre os Reservados da Bibliotheca Nacional, mas não chegámos a vê-lo, por falta de occasião.
» Regras que ensinam a maneira de escrever a orthographia portuguesa, por Pedro de Magalhães de Gandavo. Informações de Innocencio, pois se não conhece exemplar algum.
1576 1576―Historia da provincia de Sancta Cruz, &, pelo mesmo auctor supra-citado. É util ler a informação de Innocencio, ácerca deste rarissimo livro.

Por muito satisfeito nos daremos, que esta Noticia logre alcançar o agrado de nossos consocios, mais certos leitores que ella poderá ter. Por sua especial bondade nos relevarão elles, de certo, as deficiencias que se nella notarem, antes filhas da mingua de recursos, do que da falta de boa vontade em alcançar o impossivel;―dá-las completas.


Julho, 1913.

Gomes de Brito.



[79]

ADDENDA


«Aos cinquo dias do mes de novembro de mil e qujnhentos setenta e hum annos em Lisboa nos estaos na casa do despacho da Santa Inquisiçam estando hi os senhores jnquisidores perante elles pareceo Pero Alberto, flamengo de naçam, natural de Envres de jdade que dise ser de vimte e dous pera vimte e tres annos e dise que hee jmpremidor e trabalha na jmpresã de Marcos Borjes ao Arco de Cramgejo e pera em todo dizer verdade lhe deu juramento dos Santos Evangelhos e prometeu de a dizer e denunciando dise que elle vinha a este Santo Officio pera desencarregar sua consciencia e dizer o que sabja o qual hee que avera oito annos que elle partio desta cidade pera Arrochella com hum João de Leam, frances lyurejro o qual lhe disseram em Castella que estava nesta cidade e que fora ja preso pollo Santo Officio e jsto de preso lhe diseram aquj em Lisboa e tambem ffoj com elles hum cornelio flamengo de naçam, naturall de Olanda que tambem hee jmprimidor e trabalhava en casa da viuva de Germam Galhardo e asj foj com elles hum frances por nome Pierres d'Alltabel casado nesta cidade com hua criada ou paremta de Njcolao Botardo que viuja na rua noua e vende papel e tambem era jmpresor ajnda que o nam usaua muito os quaes todos quatro hiam determjnados pera jmpremjr huas horas de Nosa Senhora em portugues e o João de Leam fazia o gasto e o Pierres e elle confesante e outro hiam por obrejros e chegando Arrochella por lhe nam quererem dar licença pera as jmprjmjr as não jmprimjram e jmprimjram em lugar das oras ha gramatica de Joannes Espauterio e dizendo elle denunciante ao Cornelio em hum domjnguo se jriam ouvir mjssa e ouvindo jsto João de Leam perguntou ao Cornelio que era o que elle denunciante dezja e o Cornelio lhe respondeo que elle denunciante querja jr ouvjr mjssa ao que respondeo o dito João de Leam dizendo que senam podia ouvir mjssa na Arrochella porem queriam a pregaçam e dizendo jsto antes de jamtar ás oito ou noue horas o dito Joam de Leam os leuou todos tres a hua casa grande onde estaua muita gente e muitos banquuos e começarão a camtar por huns libros que tinham nas mãos e dezião Joam de Leam e Cornelio que aquillo que cantavam eram Salmos mas elle denunciante nam entendeo a linguoa e [80] despois se pos hum homem em hua cadejra alta a ler por hum liuro em frances espaço de hua hora e o que leo elle denunciante nam entendeo e acabado de ler se sajram todos da dita casa e se foram a jamtar e dahj a tres ou quatro dias elle denunciante, dejxou a dita companhia na Arrochella e se foj pera Leam de França, perguntado que gente era aquela que estaua na casa da Arrochella onde elle denunciante foj com ho dito Joam de Leam e Cornelio e Pierres ouvjr cantar os salmos, disse que eram lutheranos, perguntado que doutrjna era a que se lia na dita casa ou se lho diseram, dise que Joam de Leam lhe disera que aquela era doutrjna e lej de Christo e toda aquela gente se chamavam ugunotes, perguntado se era aquella doutrjna que aly se jnsinaua a gente a jgreja catholica Romana disse que aquella doutrjna nam era da jgreja Romana porque nem a casa onde se lia era jgreja se nam hua casa sem santos como cavalaryza, perguntado se allgua pesoa o presuadio ou lhe dise que crese aquella doutrjna que alj ensinavã, dise que nam, perguntado com quem entrara na dita casa e onde estiveram sentados dise que com Joam de Leam e Cornelio e o Pierres e todos quatro se sentaram juntos em hum banquo e estiueram todos asj atee o cabo da predica que se sajram perguntado se sabe que allgua pesoa aprouaua a dita doutrjna que se lia na dita casa disse que soomente Joam de Leam lhe disse que aquella doutrjna era muito boa e lej de Christo e que os papistas chamavam aquella gente ugunotes e o mesmo lhe dise Pierres d'Alltabel perguntado quãntas vezes foram a dita casa onde se lia a dita doutrjna dise que hua soo vez foj la com os que dito tem, perguntado se vira jr allgua pesoa aos ditos ajuntamentos majs vezes, dise que nam, que os companhejros nam sabe se tornaram laa majs vezes porque elle se partio como dito tem pera Leam de França e dispois destar seis ou sete meses em Leam de França se tornou a Espanha onde foj preso pollo Santo Officio de Toledo e saio reconciliado com habito que lhe tiraram loguo no cadafalso e lhe deram em pena que estivesse alj em Toledo hun anno o qual esteue e despois pedio licença pera jr trabalhar a Salamanqua e outras partes e lhe diserã que podia andar por toda Espanha e porem que se nam embarcasse pera outro reyno sem sua licença e que ho principall intento que o trouxe a esta casa ffoj por lhe parecer que se podia saber nella que elle foj, estando na Arrochella aquela casa com ho dito Joam de Leam e os companhejros ouvir a doutrjna dos lutheranos por quãoto hum Alexandre Lopez [81] christão novo e outros que a ese tempo la estavam lhe diseram que elle denunciante fora ouvir a dita doutrjna e que se vem dasemto pera trabalhar aquj em seu officio e que ja isto confesou em Toledo com ho majs hall nam dise e do costume dise estava bem com todos e lhe ffoj mandado ter segredo no caso e elle o prometeo sob carguo do dito juramento e por o promottor fiscal requerer a elles senhores inquisidores que por ser o dito denunciante estrangeiro e se poder absentar pera lugar nam certo lhe reteficasemos em fforma elles senhores mandaram chamar os muito reverendos padres frej Belchior de Sam Mjguel e frej Estevam Caveira, ambos da ordem do bem aventurado Sam Domingos e pregadores perante os quaes despois de tomarem juramento de ter segredo em forma o dito denunciante disse que o dito contheudo em esta sua denunciaçam que eu notario lhe li toda de verbo ad verbum e lida e por elle entendida disse que asj o disera e estava escripto na verdade e afirma e ratefica e de nouo torna a dizer e asjnou com os ditos senhores inquisidores e os ditos padres que estiveram presentes por honestas e religiosas pesoas e eu Joam Velho notario appostolico o sprevi, diz no riscado Symam de Saa Pereira e declarou sendo perguntado que na dita casa onde estava o dito ajuntamento de gente segundo seu parecer, Pierres tinha hum liuro na mam e que todos os ditos seus companhejros a saber Joam de Leam e Pierres e Cornelio cantavam com ha majs gente os ditos Sallmos em frances que elle denunciante nam entendia e asynou com elles Senhores padres e eu Joam Velho notario appostolico o sprevi (aa.) Jorge Gonsallvez RibeiroPedro AlbertoSimão de Saa PereiraFrej Belchior de São MiguelFrej Estevão Caveira».

Livro de Denuncias do Santo Officio (n.º 106).




Notas:


[1] O Livro do Lançamento e Serviço que a Cidade de Lisboa fez a El-Rei Nosso Senhor, de que démos abreviada noticia no jornal Novidades, de 9 de junho de 1897, tendo começado em 15 de abril de 1565, e terminado em 6 de setembro de 1567 as operações da cobrança, de que o alludido Livro é muito curioso registo.

[2] «T.o da fr. Da Madalena―Rua Nova dos feros Danbas as bandas» f.o 44, V.

[3] João de Borgonha era proprietario de umas casas na «rua da Gibetaria», que tinham 5 inquilinos. Tinha outras casas na «rua do Terreiro da Portagem», onde eram seus inquilinos um Pedro de Sousa, ourives de ouro, e um João Fernandes, mercador, recem-chegado do Peru.

Os outros dois inquilinos, dos 4 que o predio tinha, não são de importancia.

Finalmente, este abastado livreiro-editor ainda possuia umas «tendas» nas costas do Terreiro do Trigo.

[4] Ás vezes, tambem não eram de todo bem succedidos em suas um tanto arriscadas especulações; testemunha, Alonso de Leon, que, em 1575, foi denunciado á Inquisição por um tal Raphael Perestrello, porque entre os livros de que era mercador, em Lisbôa, vendia alguns, impressos em Flandres ou em França, «e falavam contra o officio divino e contra a missa».

Arch. Histor. Portug. fasc. n.os 75 e 76, pag. 153.

[5] «It Migel darenas liureiro seu obreiro......... avaliado [~e] cinquo mil rs...» (fol. 45 do cit. codice).

Ácerca deste Miguel de Arenas e de seu parceiro João de Molina, assim como de João de Borgonha, e outros livreiros e impressores de que esta Noticia se occupa, leem-se com fructo os artigos que lhes respeitem in Docum. para a Hist. da Typogr. Portug. &, de Venancio Deslandes, Lisboa, Imp. Nac., 1888.

[6] A Recopilaçam tivera, segundo as primordiaes informações de Barbosa Machado, posteriormente ampliadas por Innocencio, duas edições; uma, de Coimbra, por Antonio de Maris, 1569, outra, de Lisbôa, por Marcos Borges, 158O. Nem de uma, nem de outra apparece, desde muito, exemplar algum.

De uma terceira edição,―aquella a que o texto se refere―apenas existia um exemplar na copiosa livraria do convento de S. Francisco da Cidade. Delle se serviu Alexandre das Neves Portugal, para ajuntar á 2.ª ed. das Advertencias dos meios que os particulares podem usar para preservar-se da peste, &, por aquelle naturalista redigidas, e mandadas publicar pela Academia, em 1797 (?)

Exhausta, com effeito, esta 1.ª ed., voltou a douta corporação a fazer reimprimir 2.ª, em 1801, ajuntando-lhe, porém, agora, mas com rosto e paginação especial, o opusculo dos dois medicos sevilhanos, o qual na 1.ª apenas fôra objecto de simples referencia, impressa no Prologo. O formato das duas edições das Advertencias é de 12.º

Ficou, pois, a Recopilaçam em 4.ª ed., copiada da de 1598, conforme se vê na folha do rosto.

[7] Parece ser esta a 3.ª edição, havendo entre esta e a de Ferrara, 1554, uma de Evora, 1557-58. Nas edições de Ferrara, e de Colonia chama-se á novella: Hystoria de Menina e Moça. Veja-se no pref. de Menina e Moça, ed. do Porto, 1891, a Nota 1 de pag. LXXVIII, do punho do nosso consocio, sr. D. José Pessanha. Innocencio não mencionou a ed. de Ferrara, por onde entende ser 2.ª esta de Colonia.

[8] A Imprensa Portugueza no Seculo XVI, cap. 4.º―Livreiros. No Archivo da Camara desta capital ha uma carta de venda, em que interessa a corporação dos livreiros da Irmandade de Santa Catharina, datada de 11 de maio de 1557, e na qual Salvador Martel assigna como testemunha de certas diligencias. Vid. Elem. para a Hist. do Mun. de Lisboa, Tom. II, 584, nota da pag. anter.

[9] T.o da freguezia da See», fol. 9.

[10] A «rua da Costa», da relação de Christovão, na freguezia da Magdalena. Nesta freguezia dá a mesma relação «Duas travessas que não tem nome». Uma destas poderá ser aquella onde estavam estabelecidos os dois livreiros.

[11] Como se vê por este exemplo e o outro supra, Bastião de Lucena, escrivão deste recenceamento, obrigava a syllaba «gi» a soar como «gui», o que não é peregrino entre a gente menos letrada deste seculo.

A Fonte da Preguiça ficava «além da Porta do Mar», para oeste das casas de Affonso de Albuquerque «que tem as pontas de diamantes», e logo a seguir a outras que pertenciam á Cidade, segundo o que se lê no L.o 1.º do Tombo das propriedades foreiras á Camara, codice do Archivo Municipal.

Sobre a fonte erguiam-se umas casas, onde, na occasião deste arrolamento (1565), morava um tal Francisco d'Arruda, de quem, infelizmente, Bastião de Lucena não mencionou a occupação.

[12] Temos a opinião de que o Summario não sahiu a lume antes de 1554, embora se haja inferido das expressões de seu antes compilador, do que auctor, a data de 1551.

[13] É forçoso confessar que Bastião de Lucena, o escrivão deste recenseamento, teria feito, se de tal se lhe quizesse suppôr o proposito, quanto houvera sido preciso para negar á posteridade a existencia do velho Johanes Blavius, tão mal affirmada nas folhas amarelladas do codice, onde lhe foi desfigurado o nome.

O respectivo lançamento diz, com effeito, e em verdade, o seguinte:

«It cladio colon Inprimidor em cassas de bento giz avdo [~e] tres mill rs paguara xxj rs»

Ora, não só não houve nenhum impressor estabelecido, deste tempo, que se chamasse Claudio, querendo ver a falta de um «u» no nome proprio escrito por Lucena, nem o «imprimidor» arrolado era simples «obreyro»; isto é, official typographo, para nós desconhecido, porque, nesse caso, o escrivão do recenseamento o declararia tal, como o fizera a respeito de Miguel de Arenas, e o fez, referindo-se a Marcos Borges, segundo adiante veremos.

O presumivel, pois, será que Bastião de Lucena haja desfigurado o nome de João Blavio, reunindo em dois inintelligiveis vocabulos o appelido do impressor, e a indicação da sua terra natal.

[14] De certeza, temos que a «Primeira Parte da Chronica dos Menores», de Fr. Marcos de Lisboa, que João Blavio imprimira em 1557, editada por João de Borgonha, foi reimpressa por Manoel João, em 1566. Pareceria curial que o impressor da 1.ª edição, estando ainda vivo, e estabelecido, como o vemos pelo texto, fosse o encarregado da reimpressão, tanto mais que foi o mesmo João Blavio que em 1562 imprimiu, por conta daquelle opulento editor, a Segunda Parte da indicada Chronica.

Pelo numero de obras, de que ha noticia terem existido, sem que chegassem até nós, se póde fazer idéa de quantas se terão perdido, em edições que se não repetiram, e não conheceremos jamais.

Não anda liquido qual fôsse a 1.ª ed. do Palmeirim, em linguagem portuguêsa, sendo certo que, se o conselheiro Macedo teve a que dizia ser 3.ª ed., impressa em 1564, outras duas anteriores houvera já, que assim como esta, se não conhecem.

Tampouco se conhece a 1.ª ed. da Aulegraphia, de Jorge Ferreira de Vasconcellos, deduzindo-se apenas pelo titulo da de 1561 dever ser esta a 2.ª, pelo menos.

Da Comedia Ulysipo, do mesmo Jorge Ferreira, tambem se não conhece a 1.ª ed., muito anterior, por certo, á que seu genro D. Antonio de Noronha emprehendeu em 1619. Quanto aos Triumphos de Sagramor, do mesmo Ferreira, resta saber se as conjecturas de Innocencio, ácerca da existencia desta obra prevalecerão, ou não.

Enfim, uma prova, ainda que indirecta, de que se imprimiram no seculo XVIº. obras, de que nenhuma noticia resta, é que ha, applicados a outras obras conhecidas, frontispicios que decerto não foram feitos para ellas, senão para outras, em que pela primeira vez appareceriam, sem se saber quaes fossem, e quem hajam sido seus autores.

[15] Obras do Poeta Chiado, colligidas, &, por Alberto Pimentel.

[16] «To Da freguesia De San Nicoláo», fol. 176.

«It Marcos Borjes Inprimidor obreyro em cassas da molher do doutor anto medis/Bracal paguara x b j i rs»

[17] Eis o texto completo do rosto desta obra:

«Paradoxo ou sentença philosophica contra a opinião do vulgo: Que a natureza não fez o homem senão a industria. Dirigido ao muy alto & inuictissimo Rey de Portugal dom Sebastião Primeyr (sic) deste nome. Por Jo Cointha Senhor des Boulez Fidalgo frances... Agora nouamente, feyto & impresso nesta cidade de Lixboa em casa de Marcos Borges empressor del Rey nosso senhor. Ao primeyr (sic) de Janeyro de 1566. Vede se na empressão detras de nossa senhora da Palma».

Em 29 quartos de papel, sem numeração. Innocencio descreve o exemplar deste raro opusculo pertencente a Figanière.

[18] «Arcos por traz da Ermida da Palma.» Lado de L. 4 propriedades; lado do S. outras 4. Tombo do Bairro do Rocio, fls. 156 e 156 v.o

Como simples esclarecimento, que facilite o ajuisar da situação desta ermida, diremos que ficava por muito proximo do pequeno largo ainda agora conhecido por largo dos Torneiros, rasgando-se na rua dos Fanqueiros, na extrema L. da rua de S. Nicolau.

[19] «A Imprensa em Portugal no seculo XVI», artigo de Sousa Viterbo in Diario de Noticias, de 5 de setembro de 1898.

[20] O segundo destes valiosos estudos foi dado a lume na Archeologia Artistica, 1.º anno, vol. I, fasc. II, publicada pelo sr. Joaquim de Vasconcellos―Porto, 1873.

[21] Manoel João rubricou os fêchos do 1.º e do 2.º Livros desta compilação, imprimindo «Manoel», empregando, comtudo, o «u» nos tres ultimos. Notemos que Tito de Noronha é tambem um de nossos diversos auctores modernos que seguem o exemplo dos que, nomeadamente no seculo XVII.º, adoptaram o «o» na graphia do nome proprio «Manoel», distinguindo-o assim, e crêmos que bem, do seu igual castelhano.

Francisco Manoel, Bocage, que adoptou para distinctivo academico o anagrama do seu baptismal: Elmano, e já bem proximo a nós o estadista Manoel da Silva Passos, ortographaram com «o» o seu nome proprio. A mesma pratica se observa entre as familias nobres que usam deste nome proprio, por appellido ou sobre-nome.

[22] Uma anterior edição deste Regimento, datada de 1542, sahira dos prélos de Germão Galharde. Innocencio cita-a na letra A (Artigos), e Tito igualmente se lhe refere na monographia Ordenações do Reino, pag. 82.

[23] O pobre do guarda-roupa, improvisado pregoeiro das grandezas de Lisbôa, não attendendo a mais nada, sommou os «roles» das vias públicas das 23 freguezias que os tiveram (porque S. Martinho não teve «role»), e achou o total das 521, das tres categorias, que pormenorisou quasi no final do livro, sem contar as 2 calçadas e alguns «adros» que elle, ou outrem, fez entrar na especial dos «62 Postos», a que no texto se fez referencia.

Não attentou, porém, o diligente chronista lisbonense na compartilha parochial, e sommando, sem mais exame, as 23 relações de vias públicas que os priores e curas da cidade lhe facilitaram, por ordem do Arcebispo, não deu porque 38 destas, obedecendo áquelle sistema, se apresentam 80 vezes repetidas por 2 e 3 freguezias, o que reduziu, por conseguinte, a 479 o numero verdadeiro das vias públicas constantes do Summario.

Deve porém advertir-se que na Lisbôa do tempo deste livro havia já muito antigas vias públicas que, por qualquer circumstancia, nelle não figuram. Daremos para exemplo, por ter adquirido a particular notoriedade que lhe vem de figurar no Monge de Cister, a celebre «rua de D. Mafalda», que os lançadores de 1565 arrolaram, «com suas travessas e hospital» (o dos Palmeiros), na freguezia da «Madanela».

[24] Já deixámos explicado como o vocabulo «congro» traduz, neste caso, um acentuado barbarismo. Ao vulgo, é mais que certo, escapou naturalmente o termo letrado «combro», de que poucos estariam, neste tempo; como ainda agora, no caso de alcançar o significado. A ignorancia dos letreireiros que, ao alvorejar o seculo transcurso, foram encarregados pela Administração Geral dos Correios de appôr os disticos nas vias públicas da nossa capital, foi origem a muitos desconcertos desta ordem. Assim, o Pateo do «Porcili», appelido italiano, foi convertido em Pateo do «Pocildes», o beco dos «Beguinos» ficou-se chamando beco dos «Biguinhos»; outro beco, o da «Calheta», transformou-se em beco da «Galheta», a Praça dos «Remolares» foi muito tempo conhecida por Praça dos «Romulares», &. Infelizmente, não occorreu verificar se a graphia dos artistas saíra triumphante da prova, e por isso, ainda agora se andam remediando estas aberrações ortographicas municipaes.

[25] Este Conde era um Domingos Fernandes, que tinha por alcunha «o conde». Era «porteiro do concelho», e morava na rua a que déra a alcunha, em casas suas.

Pela coincidencia, notaremos que, ha quarenta e tantos annos, estacionava na então denominada Rua de S. Francisco, um moço de fretes, chamado tambem Domingos Fernandes, e que tendo sido criado de Almeida Garrett, era conhecido pela alcunha: o visconde, do titulo daquelle que fôra seu patrão.


[26] Não se nos afigura fóra de proposito esclarecer que o Chão d'Alcamim («Alcamim, hortaliça sêcca», segundo Fr. João de Sousa, in Vestigios da Lingua Arabica), antigo cemiterio mourisco, e posteriormente provavel cemiterio da freguezia de S. Mamede, formava a divisoria territorial das duas freguezias, esta, e a de S. Christovão, uma das suas convisinhas. Ficava sobranceiro ao modesto mas antiquissimo edificio parochial daquella invocação; isto é, occupava o terreno por onde agora discorre a calçada do conde de Penafiel, e ligava-se á Costa do Castello, tal qual esta calçada se liga á juncção da extrema da rua do Milagre de Santo Antonio com o principio da sobredita Costa. A igreja parochial de S. Mamede assentava no sitio da meia laranja, denominada Largo do Correio-Mor.

Ainda em principios da segunda metade do seculo passado, o terreno montuoso onde fôra o Chão d'Alcamim era vulgarmente conhecido pela denominação de Entulhos da rua de S. Mamede. No alto da rampa que se rasga sobre a Costa, e no rez-do-chão do predio que para ella faz esquina, á esquerda de quem sobe, estava estabelecida, na face de leste, sob o n.º 5, a tipographia de Luis Correia da Cunha, onde se imprimia, em 1860, a edição em 16.º dos Lusiadas, de Luis de Camões, adoptada para texto poetico nos Institutos de ensino livre, daquella época. Esta edição foi repetida pelo mesmo tipographo, em 1864, em formato igual, e igual numero de paginas.

[27] Como estamos no terreno resvaladio das supposições e das probabilidades, seja-nos permittido aventurar a supposição de que este dr. João de Barros possa ser o proprio homonymo do auctor das Decadas, com quem alguma vez foi confundido, e que em 1540 deu a lume na cidade do Porto o Espelho de Casados, impresso por Vasco Dias Tanco de Frexenal. Dr. João de Barros ou nasceu no Porto ou em Braga, e vivia ainda em 1553, mas, se como informa Barbosa Machado, elle foi do Desembargo do rei D. João III, e seu escrivão da camara, não sería impossivel que, fixando residencia, por tal facto, era Lisbôa, adquirisse para sua habitação a casa onde Manoel João estabeleceu a sua officina.

[28] É patente que todo aquelle plaino, aquella achada de que ahi perto se perpetúa a secular recordação (largo e rua assim denominados) passou, e por mais de uma vez, por grande transformação, depois do terremoto de 1755. Os antigos paços de S. Christovão, que occupavam na parte posterior muito maior area, do que a do actual palacio que foi dos Vagos, ficaram circumscriptos ao que ahi vemos. O lado esquerdo das ruas do Regedor e de S. Christovão foi refeito. O proprio adro da parochia, onde havia dois cruzeiros, foi modificado. A medieval «travessa do monturo do benete» converteu-se, se não no todo, em parte ao menos, nas Escadinhas de S. Christovão; o «arco de João Corrêa», que se encostava á esquina dos velhos paços, donde a gentil princeza, irmã de Affonso V, sahiu desposada para Allemanha, refeito com o palacio novo, desappareceu posteriormente, deixando por testemunha da sua existencia ali o grande chanfro que modificou o cunhal do palacio, tal qual o lá vemos.

[29] Esta noticia, transcripta como no texto advertimos, do livro opportunissimo de Venancio Deslandes, e se lê a pag. 42, nota 1, conjugada com os largos esclarecimentos da pag. 63 e seg. nota 1, da mesma obra, ácerca do rarissimo Tratado de Bento Fernandes, vem esclarecer o intrincado caso a que Innocencio se refere, ao registar este auctor, no vol. II do seu Diccionario.

Após ter inscripto a obra, sob o n.º 1858, seguindo a indicação de Antonio Ribeiro dos Santos, que em suas Memorias, a pag. 108, déra noticia della, como impressa no Porto, em 1541, por Vasco Dias Tanco de Frexenal, parecendo, todavia, não a ter visto, nota, com effeito, o experiente bibliographo que Barbosa já se referira a esta mesma obra, como impressa em 1555. Innocencio fecha a sua noticia, confessando que tambem nunca vira o Tratado, nem sabia onde existisse.

Agora se concilia, pois, tudo. Bento Fernandes terá, com effeito, dada uma 1.ª edição em 1541, tirada dos prélos de Vasco Dias Tanco, repetindo 2.ª no proprio anno em que parece ter fallecido, a julgar pelo que escreveu o auctor da Descripção Topographica do Porto; isto é, em 1555, utilisando agora os serviços de Francisco Corrêa.

Accrescente se que Noronha, no final das Tabellas da Imprensa Portugueza no Seculo XVI, pag. 29, assigna a Vasco Dias Tanco os annos de 1540 1541, como os da sua permanencia no Porto, onde teria impresso 3 obras. Do mesmo modo, na Introdução do Espelho de Casados, do dr. João de Barros, fol. 7, v.o, regista a presença de Francisco Corrêa naquella cidade em 1555.

Vê-se, pois, que os dois auctores estão perfeitamente concordes, no tocante a cada uma das phases da vida dos dois tipographos, supra alludidas.

[30] «T.o da fr. da Magdalena», f.o 82 v.o

[31] Aliás Lisarte, de que, definitivamente, veíu a formar-se Lisardo, por ex. «Silvya de Lysardo» (1597), passando assim o que parece ter sido nome proprio a appelido, como o seu consimilhante Jusarte, que de ambos os modos foi, de frequencia, empregado.

A Jusarte Pacheco, morto no accomettimento de Calecut, filho do grande Duarte Pacheco, chama Gaspar Corrêa «Lisuarte Pacheco», segundo se lê na Lenda de Affonso de Albuquerque, pag. 19. Na descendencia do genovês «Salvago», naturalisado pelo rei D. Manoel, anda um Jusarte Salvago, a quem D. João III nomeou Almoxarife dos Armazens de Lisboa.

De Jusarte, appellido, se deriva Zuzarte, e assim o nota o sr. Anselmo Braamcamp Freire, descrevendo o Brasão dos Jusartes na Armaria Portuguesa, pag. 284, da folha appensa ao Arch. Hist. Port., vol. VIII, fasc. 87 e 88.

Ao passo, porém, que Jusarte alterna com Lisuarte ou Lisarte, como nomes proprios, vêmos Jusarte empregado n'este mesmo seculo, e muito proximo aos tempos dos Pachecos, na India, como appelido.

Assim, o proprio Gaspar Corrêa, além de outros de menos nomeada, se occupa extensamente na Lenda do 5.º Governador D. Duarte de Meneses, de Martim Affonso de Mello Jusarte, capitão de Ormuz, cujos trabalhos em Malaca e outras partes narra com individuação.

Este appelido, revivescendo no seculo XVII na pessoa do escriptor Fr. Pedro da Cruz Jusarte, vem até nossos dias ligado a uma das familias mais consideradas do Alemtejo; a dos Condes de Avillez, cujos antepassados e descendentes o empregam logo a seguir ao sobrenome―p. ex.: «Jorge d'Avillez Jusarte de Sousa Tavares de Campos».

Quanto ao ramo dos Zuzartes, vemos, ainda no Tombo Pombalino D. Marianna da Silva Zuzarte, proprietaria em 1755 de casas no beco do Bugio. Quando, posteriormente, se formou a rua da Saúdade, derrubada a parte do beco onde taes casas eram, foi-lhes marcado terreno e alinhamento na nova rua, para a reconstrucção, que veiu a receber o numero de policia 8. Em nossos dias, era proprietario d'estas casas um cavalheiro Araujo Zuzarte, antigo administrador de um dos Bairros d'esta Cidade.

[32] Isto é: 455 réis.

[33] Este «Ilusuarte Peris», cujo nome e appelido parecem ter soffrido a truculenta sorte de João Blavio de Agripina Colonia, sob a pena barbara de Bastião de Lucena, era proprietario na rua que tinha o seu nome, sendo elle que, provavelmente, a fundou, á semelhança de outros muitos exemplos mais, quer por aforamentos feitos á corôa dos terrenos onde se edificavam as primeiras casas, quer por qualquer outro modo que attribuísse aos fundadores um tal qual direito de propriedade no denominar das vias públicas.

As casas de Ilusuarte Peris constam dos lançamentos 27 a 29 do grupo comprehendido no titulo expresso no texto, e tinham por inquilinos:

«Margaida Ribeyra, Francisca Anriquez, molher cortezan e Eytor Fernandes, Indio».

O mesmo Ilusuarte Peris tinha tambem outras casas na «rua das Cristaleyras» e ahi eram seus inquilinos uma viuva e um tintureiro. Esta rua apparece já nos roes de Christovão (1554?). A de «Ilusuarte Peris» deve ter-se formado nos annos que separam a obra do guarda-roupa do Arcebispo lisbonense do recenseamento que estamos examinando.

[34] Em qualquer das duas edições da Pratica Darismetyca (1519 e 1530), impressas por Galharde, se declara este «frãcez», passando a primeira por ter sido a sua estreia, como chefe de officina. Por igual lhe declara a nacionalidade a subscripção do Livro 2.º das Ordenações, bem como a do 3.º, e ainda a dos Statutos da Ordem de Santiago, não sendo difficil que se registem mais exemplos.

Tambem no Memorial de Pecados, de Garcia de Resende, impresso em 1521, apparece o appelido d'este impressor composto, em parte, á francesa;―«Gaillarde», e nas Ordenações, «Galhard». Além d'estas, ha outras variantes, taes como, a da Cronica llamada el triunfo, &, onde parece que se lê «Gallarde», e a do Cerimonial da missa, que imprime «Gallardo». Na Cartilha que cont[~e] breuem[~e]te é que o appelido do celebre impressor apparece como veiu a ficar:―«Galhardo».

Na diplomatica de D. João III chama se-lhe: «Germão Galharte».

[35] Affirma-o, como facto por elle proprio verificado, o conspicuo bibliographo Tito de Noronha, in Ordenações do Reino―Seculo XVI, apud Archeologia Artistica, 1.º anno, vol. 1, fasc. II, cap. XI, pag. 76 (1873).

Repetiu a affirmativa in A Primeira Edição dos Lusiadas, Porto, 1880, a pag. 80, nota (68), in fine.

[36] Jornal do Commercio, de 2 de maio do 1871.

[37] Mais outra vez vem a lume o titulo d'este livro quasi quatro vezes secular. É como segue:

«Missale secumdum consuetudinem Elborensis ecclesiae noviter impressum».

Na subscripção final lê-se:

«Impressum Ulixipone expensis magistri Antonii Lermet Elborensis civitatis librarius per Germanus Galhardum. Anno salutis nostre millessimo quingentessimo nono. Pridie Kalendas martii. Deo Gratias».

Assim, pelo plausivel alvitre de Tito de Noronha, entre «quingentessimo» e «nono» devia ter-se composto vigesimo, falta que só quem não sabe quanto é facil de escapar, ainda ao mais attento revisor, o salto da composição de um vocabulo entalado entre outros, e n'uma data, principalmente, não comprehenderá. No texto se exemplifica um curioso similhante caso de nossos dias.

[38] Em sua Bibliographia Historica Portugueza consigna Figanière ter visto em um exemplar da terceira Decada da Asia, de João de Barros, impresso por João de Barreira em 1563, a omissão typographica M. D. LIII.

[39] Isto é, em 1513-«Ordenações do Reino―Seculo XVI», pag. 31.

Adiante veremos que a conjectura não se confirma.

[40] Gaspar Nicolas, natural de Guimarães, foi escrivão da tabola de Coimbra e das cizas da mesma cidade, como consta de varios diplomas de nomeação e quitação, das chancellarias de D. Manoel e D. João III, no Arch. Nac. da Torre do Tombo.

Era, pois, como hoje diriamos, um funccionario de fazenda, e, portanto, no caso de se occupar da materia que foi assumpto ao seu, desde seculos, rarissimo livro.

Tito de Noronha determinou, em 1874, o começo da actividade officinal de Germão Galharde, pelo conhecimento que teve do exemplar e edição citados no texto; exemplar, pertencente, ou que veiu a pertencer ao sr. visconde de Azevedo. Innocencio, porém já em 1859 notava que no catalogo da livraria de Joaquim Pereira da Costa andava descripto um exemplar da Pratica Darismetyca, com a data de 1519. Ao diligente bibliographo, parecia, comtudo, erro semelhante data, e aqui vêmos como se enganou!

Germão Galharde, como está registado no começo da nota 1, de pag. 44, fez 2.ª edic. do Tratado sobredito em 1530.

[41] Eis as expressões do fecundissimo polygrapho:

«Duvido se tem V. m. já noticia de outro livrinho que estou imprimindo, e o fiz mais depressa do que a Calsada dos Galhardos. Chamo-lhe Pantheon, terá quatro até sinco folhas, com 2500 versos.»

Bibliot. Nacion. de Lisbôa―MM s.―Fundo antigo, 155. «Cartas de D. Francisco Manuel de Mello a Antonio Luiz de Azevedo, com introd. e notas, por Edgar Prestage―Imp. Nac. 1911». É a n.º 24, e o passo lê-se a pag. 70.

[42] Este pateo é o primeiro, á esquerda, na rua de Santo Ambrosio, tendo o portão que lhe dá entrada o n.º 17. Depois que os Galhardos o largaram, habitaram ahi as Patinhas, isto é, as filhas de um Don José Patiño que exerceu aqui, em Lisbôa, qualquer cargo official do seu país.―Um appelido estrangeiro convertido em assumpto de galhofa.

Morreram as Patinhas, e succedeu na denominação do pateo um tal José Alexandre, que ahi persistiu até ha pouco.

Hoje, o Pateo é Villa, porque os estrangeirismos, ainda que prestem a riso, são-nos mais bem acceitos, do que o que sempre teve sabor nacional. Já o dizia, ainda que por fórma muito mais conceituosa, no seculo XVII, um dos nossos mais distinctos escriptores.

Emfim, a Villa appellida-se «Domingues», e voltará a andar por ali outra vez o dominio castelhano...

[43] Frontispicio:

«Reportorio dos tempos em linguajem português.

Foy impresso em Lixboa em casa de Germão Galharde, Anno 1560.
»

Fecho:

«Acabou-se o Reportorio dos Tempos em linguagem português. Agora nouamente emendado e impresso cõ muytas cousas acrescentadas de nouo, etc., O qual foy impresso em a muy nobre e s[~e]pre leal cidade de Lixboa, em casa da viuua, molher que foi de Germão Galharde [~q] sancta gloria aja. Anno de 1560.»

[44] Reservados da Bibliotheca Nacional―A―443.

[45] Tendo nosso presado amigo, sr. dr. Antonio Baião, publicado no Archivo Historico Portuguez, vol. VII, pag. 150 e seg., (1909) o extracto desta denuncia, como fazendo parte de suas noticias ácerca da Inquisição em Portugal e Brazil, appensaremos aos presentes Estudos o seu teor, na integra, para que nossos benignos leitores possam ajuisar plenamente do valor deste documento, não só quanto ao caso que nos occupa, senão tambem quanto ao que elle revela, sob o ponto de vista do triste estado dos espiritos em Portugal, na época tão bem retratada no predito documento.

Ao nosso presado amigo muito agradecemos o grande obsequio que lhe ficámos devendo, com a copia deste depoimento, que tão amavel quão solicitamente se serviu communicar-nos.

[46] Entre as gravuras frontispiciaes conhecidas do seculo XVI algumas ha que foram executadas para obras que não chegaram até nós. Lembra-nos, por exemplo, a que se vê na Sala dos Reservados da Bibliotheca Nacional, n.º A―149, que deve ter sido expressamente aberta para obra differente daquella em que ali se nos patenteia, e que todavia, se não conhece.

Porventura se terá presente o que, referindo-nos em uma das Notas do Cap. IV, á Primeira Parte da Chronica dos Menores, de Fr. Marcos de Lisboa, se nos offereceu ponderar, a respeito de obras que se sabe terem sido impressas, mas que de todo desappareceram.

[47] Nosso venerado Patrono, Diogo Barbosa Machado, já déra noticia desta obra, com a competente indicação, ipsis verbis, do respectivo titulo.

A ella se referiu, repetindo-o, ainda que menos pontualmente, o incançavel Innocencio, notando, com assás de razão, as imperfeições infelismente commettidas pelo douto Antonio Ribeiro dos Santos, no tocante a este particular motivo.

Ultimamente, o Sr. Anselmo Braamcamp Freire deu a descripção da obra, e seu titulo, imprimindo este com toda a perfeição, in Archivo Historico Portuguez, vol. VIII, n.os 8 a 11 (92 a 95―1911), fielmente transcriptos uma e outro dos que lhe deu a Sr.ª D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, por copia do exemplar que a S. Ex.ª pertence. É este mesmo titulo que está presente na occasião, e se transcreve de preferencia aos dois citados supra.

[48] Manda, todavia, a Ordenação, no Liv. II, Tit. 61, «que qualquer pessoa que de nós tiver Privilegio, de qualquer sorte que seja, ou que o tenha por respeito da pessoa com quem viver, em qualquer maneira que pelo Privilegio da tal pessoa guardado fôr, tenha lança de vinte palmos, ou dahi para cima, em sua casa».―Isto é, tenha lança de 4,m40, ou superior a esta medida.

Vê-se, portanto, do confronto dos dois textos que a medida-padrão destas armas diminuira, pelo discurso do tempo, muito perto de 0,50.

Na Europa do XIV.º seculo, a medida mais commum das lanças com que se armava a gente collecticia a soldo de qualquer procer, era, segundo Cibrario, in Economia Politica da Meia Edade, de dezoito pés, o que corresponde a 5,m94.

[49] Carta de 14 de fevereiro de 1530, in Deslandes, Doc. para a Hist. da Typ. Portug.

[50] Este vocabulo, e o seguinte em abreviatura, «morador», denunciam uns restos de barbarismos de concordancia, que ainda nesta epoca já adiantada do seculo, e até no seguinte, transparecem aqui, ali, no commum falar e escrever.

Reinava uma como especie de preguiça em acommodar á fórma feminina os vocabulos em or, e um que outro mais.

A materia foi superiormente versada pelo tão infeliz, quão abalisado philologo Francisco Dias Gomes, que em sua «Analyse sobre a elocução e estylo de Sá de Miranda», deu, entre varios exemplos, um, com o primeiro dos dois apontados vocabulos, tirado de Ruy de Pina:―«E a entregou aa Ifante Dona Briatriz como titor que era do duque Dom Diogo seu filho.»

Correlativamente, os determinativos não acompanhavam a fórma feminina que designavam, como n'aquelle caso que nos occorre do informador de Christovão Rodrigues de Oliveira: «Os dignidades que ha na See.»

A Memoria de Francisco Dias lê-se entre as de Litteratura da Academia, tom. IV, pag. 26 e segg.

[51] A freguezia de Santa Engracia só teve Breve de desannexação da de Santo Estevão em 1568. Só depois de 1606 é que o edificio parochial foi patente ao culto. O parocho de Santo Estevão pastoreou durante trinta e um annos ambas as freguezias cummulativamente; isto é, desde 1576, anno em que começou, emfim, a vigorar a desannexação, até 1607, em que havia já na nova parochia cartorio proprio, e independente da parochia mater. Veja-se o que escrevemos no vol. VIII, pag. 5, do Archivo Historico Portuguez―1910―Art. As Tenças Testamentarias da Infanta D. Maria.

[52] Já temos advertido que o livro do guarda-roupa do Arcebispo de Lisboa não pode ser da data que anda em costume attribuir-se-lhe;―1551. O proprio livro contém em alguma de suas paginas, ao referir-se á Misericordia, e ás esmolas que esta Instituição recebia, a confirmação do que affirmamos.

Como, porém, o auctor conta ter sido no anno de 1551 que o Arcebispo lhe commetteu o encargo de fazer o livro, nada se oppõe a que desde este anno elle começasse a colligir os materiaes para elle, dirigindo-se aos parochos, para alcançar os «roles» das vias publicas, feitos―é evidente―á face das desobrigas. E como entre encommenda-los e o conseguir have-los á mão sempre mediaria algum tempo, sendo 25 os parochos collaboradores n'esta obra de louvores ás grandezas e magnificencias lisbonenses, pareceu-nos que pelos termos que empregámos alcançariamos exprimir com exacção o nosso pensamento.

[53] E portanto atafaneiro. É vóz arabica;―«atahana».

[54] O traçado descrito e os pormenores são os que resultam da leitura do passo respectivo no Tom. VIII dos Elementos para a Historia do Municipio de Lisboa, de nosso tão distinto colega, sr. Freire de Oliveira, aliada á do muito elucidativo texto tecnico da valedora monografia A Cêrca Moura de Lisboa, do nosso prestante amigo sr. Vieira da Silva.

Nossa, é só a conjectura de que os edificadores da cêrca de D. Fernando apoiariam o postigo de Santo André á torre que a barbacã ou cinta muralhada que circundava o monte do Castello ali poderia ter, aproveitando os lanços d'esta para ligarem á velha a nova cêrca, partindo, para a continuação da obra, do baluarte de S. Lourenço. Resta uma pergunta:―Tinha toda a muralha que abraçava o monte do Castello, desde a Porta de D. Fradique até á porta da Alcaçova ou de S. Jorge ou vice-versa, antiguidade egual á do baluarte de S. Lourenço? Por outra, é tudo obra mourisca, ou anterior, se tal baluarte o é tambem?

[55] Villa Quente, que um desagregamento do solo pendurado do monte do Castello subvertera em 1531, e passa, a nosso vêr, menos justificadamente, por um tremor de terra mais, a ajuntar á longa lista dos que tem affligido Lisboa, no decorrer dos seculos, era um punhado de humildes casas, semeadas entre o começo da actual calçada de Santo André, e o «caminho que ía ao postigo do Monis», diante de cuja entrada havia uma «cruz de pao». A rampa que o pequeno povoado occupava para o N. da cinta muralhada que circumdava o monte do Castello, e o abrangia como um annel, em toda a sua circumferencia, estendia-se pelo limitado espaço que servia de recosto á cêrca de Santo Antão (Colleginho), vindo confundir-se com os meandros de betesgas e encruzilhadas que o separavam da Mouraria, constituindo o que alguma vez se chamou «o bairro da rua suja».

[56] Historia de Portugal, vol. I, 3.ª ed. MDCCCLXIII; nota XXIII, a pag. 531.

[57] Aforamento de um chão junto da Porta de Santo André, da banda de fóra, no principio da rua que vai da dita Porta para o postigo de Sam Lourenço, feito pela cidade ao dr. Affonso Figueira, onde este magistrado edificara umas casas que partiam da banda do Poente com muro e torre da cidade, &.

Esta torre é a que suppomos existir já na barbacã do Castello, no angulo formado pelo lanço que devia descer da Porta de D. Fradique a entestar com a parte que se continuava na rua que ia ao baluarte de S. Lourenço.

Deveria jazer pela parte posterior do actual Passo, e terá sido aproveitada para guarda do Postigo de Santo André. Dominava assim a aspera calçada que se lhe desenrolava em frente, e vinha ligar-se á muito antiga «Rua dos Cavalleiros.»






Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 11 Bernaldim ... Bernardim
#pág. 16 testemunh ... testemunho
#pág. 22 ondo ... onde
#pág. 22 admtitir ... admitir
#pág. 46 typographfa ... typographia
#pág. 57 quo ... que
#pág. 66 persuadido ... persuadidos
#nota 38 Portugteza ... Portugueza


Os símbolos de igual (da pág. 81) foram substituídos por traços longos ('―').