The Project Gutenberg eBook of O doido e a morte This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: O doido e a morte Author: Teixeira de Pascoais Release date: January 15, 2008 [eBook #24291] Language: Portuguese Original publication: Porto: Edição da Renascença Portuguesa, 1913 Credits: Produced by Vasco Salgado *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O DOIDO E A MORTE *** Produced by Vasco Salgado TEIXEIRA DE PASCOAES +O DOIDO+ +E A MORTE+ Edição da Renascença Portuguesa Pôrto--1913 +O DOIDO+ +E A MORTE+ OBRAS DO AUTOR _Sempre_--1897 _Terra Prohibida_--1899 _Sempre_ (2.^a edição)--1902 _Jesus e Pan_--1903 _Para a Luz_--1904 _Vida Etherea_--1906 _As Sombras_--1907 _Senhora da Noite_--1908 _Marános_--1911 _Regresso ao Paraiso_--1912 _O Espírito Lusitano ou o Saudosismo_--1912 TEIXEIRA DE PASCOAES +O DOIDO E A MORTE+ Edição da _Renascença Portuguesa_ Pôrto--1913 Impresso em Fevereiro de 1913 na Tipografia Costa Carregal, trav. Passos Manuel, 27--Pôrto. A Philéas Lebesgue Era uma fria noite de Natal. Já no zenith a lua derramava A sua palidez misteriosa, Transfigurando as cousas que se mostram Na sombra, com seus gestos de Phantasma E atitudes de estranha Aparição... Nos solitarios longes montanhosos A nevoa e o luar, chimericos, deliam A moribunda face da Paisagem... E esta, por um milagre e encantamento, Se espiritualisava, convertendo-se Em Figuras de sonho, aéreos Corpos... E eram perfis de Fadas espreitando, Asas de Serafins que, no seu vôo, Pareciam levar alguma Virgem... A aragem fria e fina arripiava As arvor's e os nocturnos viandantes, E retocava o brilho das estrelas. Os pinheiros gemiam surdamente; E na face das pedras espelhada, O luar abria n'um sorriso triste. Vultos negros, opácos de penedos Erguiam-se somnanbulos e mudos No crepusculo, e olhavam como Esphinges... O Silencio reinava: era o Senhor Da noite e da paisagem, e o seu Reino Para além das estrelas se estendia... Por um longo caminho esbranquiçado, Entre pinhaes sombrios e confusos, A Morte cavalgava a largo trote. As patas espectraes do seu Cavalo Ouviam-se bater na terra dura E sonora que o gêlo trespassava. E aquele ruido sêco, difundindo-se Na merencoria lividez do ceu, O ensombrava de lagrimas e mêdos... E figurava o ar a feia Morte, Envolta n'uma tunica de sombra, Segurando na mão, só feita de ossos, A Fouce, em cuja lamina lusente Se espelhava o luar... Seus fundos olhos Encovados, volvidos para dentro, Eram poços de treva, onde os morcêgos, As estrellas, as arvores, as nuvens, Iam ver sua imagem reflectida. Os passaros nocturnos, celebrando A Noite nos seus cantos agoireiros, Esvoaçavam de encontro áquelas orbitas Vasias, descarnadas: dois buracos Apagados de luz, sêcos de lagrimas, Sobre um aberto riso empedernido. E a Morte cavalgava a largo trote, Por um ermo caminho esbranquiçado, No arrepio da Noite e do Misterio... O vento fino e frio maguava As arvores, fazendo fluctuar A tunica da Morte que envolvia Seu corpo de esqueleto e as largas ancas Do seu Cavalo, cuja sombra inquieta E nervosa manchava a estrada clara. E atravessava agora um indeciso Planalto, em formas vagas, emergindo Da cerração nocturna dos pinhaes. As arvores fugiram... Simplesmente Um rasteirinho tôjo agreste e bravo Vestia de humildade aquela terra. Nas suas hastes hirtas e espinhosas, Aqui, além, por toda a parte, emfim, Gôtas de orvalho, vivas, acordavam... E em seus liquidos seios de esplendor, Presentia-se a lua encarcerada Mostrando a face animica e divina. N'esta altitude o Vento, embrandecendo, Era uma sombra alada... E a lua, a prumo, Fulgia sobre a Morte que alongava Os olhos pelo túrbido horisonte Mais delido no céu e mais longinquo, D'uma materia feita de chimera... De vez em quando, ouvia-se um confuso, Surdo rolar de rochas que desciam Dos outeiros ás margens dos regatos; Iam matar a sêde secular Que lhes ficou dos tempos em que fôram Raios de estrela florescendo a Lua. E vinham na asa múrmura da aragem Bater de palmas, risos de cristal, Rasgando agudas fendas no Silencio. Eram Bruxas malditas, pobres Ninfas, Amantes do Demonio em vez de Pan; Amam a noite triste e os êrmos sitios... Trocaram seu antigo amor divino Pela ironia escura e demoniaca; E as florestas sagradas e o sol claro Pelos bócos profundos, pela noite, Pelos silvaes espêssos e aguas êrmas Que a sombra torna lividas e mortas, E onde as cousas nocturnas se reflectem Desmaterialisadas, redusidas Ao seu simples e animico esqueleto... E outras Bruxas, em bandos luarentos, Passavam, no ar, dançando em turbilhão Com alados Demonios coruscantes... E o Mêdo, avô remoto de Phantasmas, Sombra ancestral de Deus e da Piedade, Condensava o luar em frias lagrimas, Marmorisava os fluidos Longes vagos... As Figuras da Noite, as Creaturas Do nosso Pensamento, despertavam Mal ouviam trotar a Morte... E a lámina Da sua Fouce ia, em curva, pelo céu De horisonte a horisonte; e a sua túnica Parecia manchar toda a Paisagem... Subito, a Morte soffreou as redeas Do Cavalo-Phantasma em que montava, Estacando no meio do planalto. E a sua sombra morta se tornou Imovel, negra sobre a terra branca E sonora e marmorea do caminho. Surgira, d'improviso, um vulto humano Ante o vulto chimerico e fatidico Da Amazona da Noite que escondêra, Na tunica de outomno e de crepusculo, O rôsto de caveira, onde o luar Batia, como sobre um frio marmore. E antes que ela falásse, aquele Vulto Soltou no ar sombrio, uma risada; E o Echo, estremunhando, repetiu-a, E foi, de vale em vale, desfazer-se, Cinza de som, na cinza da Distancia. E ela, irada, agitando a relusente Fouce cruel, gritou: "Quem és? Quem és? Mas quem se atreve assim a rir da Morte?" "--Eu--este doido espirito que ri... "Gosto, ás vezes, de rir, nas horas mortas... E de sentir o riso humedecido Das lagrimas das cousas que murmuram Escuros, demoniacos segrêdos... Doido que sou, meu riso é de alegria... Vae através da noite, em alvorôço; E logo acorda as Almas, e revela Vultos, Perfis, Figuras perpassando Em turbilhão, nos ares... borborinhos De invisiveis espiritos sem nome... Os ventos que o meu rir desencadeia! "Foi á luz do meu riso lampejante Que teu vulto nocturno conquistou Este rumor e sombra que é Presença..." E a Amazona da Noite: "Pois é certo Que o riso doido grava no silencio Imagens que têm alma e vida propria?" "--É certo que, ao beijar-me a tua sombra, Ela se fez em riso nos meus labios... "És a fonte sinistra do meu riso... "E o meu riso te veste de apparencias..." "--São escuras palavras... não entendo. Eu quero conhecer-te. Quem és tu?" "--Mas eu não sei quem sou. Nunca me vi. O nosso olhar, mal nasce, bate as asas, E não regressa mais ao lar paterno... Leva comsigo a imagem verdadeira Das cousas, viva imagem transcendente, Que a lagrima final, já d'além-mundo, Reflecte em sua esféra de agonia. "Ah, se, ao menos, pudesse ver a imagem, Phantastica de bruma, que projecto Nos teus olhos que as lagrimas abriram Em marmoreas angustias, pétreas dôres? "Teus olhos são esphingicos: devoram! "Não sei quem sou, não sei... Mas que m'importa? "Meu gôsto é rir, de noite, no silencio..." E outra vez, o nocturno Viandante Encheu de riso o espaço e o luar extatico: A debil luz anémica embebendo-se Em sol de primavera e de loucura. "--Não me conheces, não. Se tu soubesses A quem falas, o riso dos teus labios Caíria gelado n'uma lagrima. "Não me conheces, não. Tu nunca viste, De perto, a minha Fouce," acrescentou A Morte, n'uma voz de irrealidade E de halucinação e de chimera Que os Echos, nem de leve, repetiram. "--Enganas-te. Conheço-te. De balde Escondêste nas dobras do teu manto O rôsto cadaverico e as falanges Que seguram as redeas que dirigem Teu Cavalo-Phantasma, irmão do Vento. "Ignoras o relêvo e a nitidez Espelhenta dos ossos ao luar... E conheço-te mesmo pela Fouce Que ceifa a seara humana e as outras searas... É assim, com esse aspecto, que apareces, Em publico, pintada nos paineis." A Morte silenciosa desvendou A descarnada e lúgubre Figura, Emudecida e triste contemplando Aquela vida humana que, a um seu gesto, Subito, baixaria á eterna sombra. E disse logo o Doido com espanto: "Ah, sim, tu ris tambem... mas esse riso É riso aberto em pedra... quem o ouve?... "Um riso todo feito de silencio..." "--Um dia, os teus ouvidos hão de ouvi-lo; E verás a alegria que ele espalha Nas almas, já libertas, a voar..." "--Eu conheço o teu riso; nos meus labios É apenas um sorriso; vem de longe; Perde o vigor ardente no caminho... O sorriso dos labios não é mais Que um palido luar, um arremêdo Do grande riso eterno da caveira. "Mas eu amo outro riso,--o que desperta As almas, os espiritos da Noite: O que trespassa a treva de esplendor, E se ouve no infinito e é luz de estrela." E, de novo, o silencio se interpôz Entre a Morte divina e o Sêr humano. Vinham dos pinheiraes sussurros vagos, Prêsos na asa da aragem... orações Que as cousas êrmas rezam à Saudade: Virgem do Novo Crédo amanhecente, Em seu altar de lagrimas e risos, Erigido no Templo da noss'Alma, E no Templo mais vasto da Natura De arboriformes naves verdejantes. Apparições dos êrmos ao luar, Perfis occultos de Almas já sem corpo, Almas ainda sonhando a Forma viva; As figuras da Noite rodeavam A Morte e o seu Cavalo, egual áqueles Que sentiram, outrora, as mãos de Apolo. Tudo era sonho e vida em tôrno á Morte. E eis que ela exclama então: "Dize o meu nome; Dize o meu nome, vá, se me conheces..." E responde o nocturno Viandante: "Eu sei bem o teu nome. Quantas vezes, Em igneas, vivas letras de oiro, fulge Perante o meu espirito de amor. "E quem te baptisou? Meu coração. De agua lustral banhou-te a negra fronte... E sua voz anciosa, nomeando-te, Roubou assim a morte á propria morte. "Eu sei tirar das cousas o seu intimo Signal harmonioso, a sua forma Transcendente e verbal, que é seu espirito... "A harmoniosa imagem desprendida, Já liberta das Cousas, vem morrer Nos meus ouvidos de alma... e ali renasce... E ei-la Canção. O Verbo é o meu Delirio: Passo a vida a cantar por estes êrmos..." E a Morte, surpreendida, assim lhe disse: "Em ti, fala o delirio, a exaltação Que só meu tenebroso olhar acalma. "A Vida é o anormal, o excesso, a febre; A Vida é uma doença, uma velhice Dos mundos: o seu fim. Odeio a Vida; Ela está fóra já das leis de Deus. "Mas quem sou eu, quem sou, ao pé de ti? --Sou a Razão ao lado da Loucura... Vê que distancia imensa nos sepára..." Sumiu-se a voz da Morte que ficou Pensativa ao luar... Depois, n'um gesto Esqueletico e duro, repousando Nas ancas do Cavalo a mão direita Acariciadôra e descarnada, Novamente falou ao viandante: "Mas, emfim, ha distancias que aproximam. E não te oculto mais a simpatia Que já por ti eu sinto, muito embora Os Destinos e os Fados me proibam Qualquer dôce fraquêsa ou sentimento Que possam, por ventura, humanisar-me. "Tua voz me persegue... e até parece Amolecer, fundir a dura pedra De que meus ossos gélidos são feitos... "Embrandeceu-me de alma a tua voz... "Apegaste-me a vida... o mal que soffres..." A Morte, pronunciando estas palavras, Conservára-se imovel: seu Cavalo Era uma estatua, um marmore de sombra. E o Louco, de cabelo desgrenhado Que o luar, como o tempo, prateava, Vestia com a aurora dos seus olhos A Amazona da Noite. E, n'um delirio Os braços lhe estendeu, e assim lhe disse: "Tu és a Morte; és a Mulher, portanto. Desce do teu Cavalo e vem comigo, Porque o Desejo corre no meu sangue! "Ó Morte, vem comigo! Sobre a terra Vagueia o corpo em flôr do nosso Idilio... Ah, sim, o nosso idilio é anterior Ás nossas proprias almas. Desde a origem Que ele anda pelo mundo e nos procura. "Ó Morte, vem comigo! Eu sou a Vida! Entrega-te aos meus braços! Quero amar Esse corpo de Espectro. Que os meus beijos Pousem, a arder, na tua bocca esparsa Em nevoa e condensada em frio marmore!" N'um movimento rápido e gentil, Apeou-se a Morte; e, subito, entre as urzes, A larga Fouce tragica escondêra. E logo o seu Cavalo, em liberdade, Começou a pastar as invisiveis Ervinhas, transcendentes florescencias Que à luz da lua crescem e germinam, Onde é mais viva a terra e mais sensivel, E a humidade é de lagrima chorada. "Eis aqui tua Dama," murmurou A Morte comovida, oferecendo-lhe, A definhada mão gelada e branca, E cravando nos olhos amorosos Da creatura humana a escuridão Das suas fundas orbitas vasias. Era a Parca fitando Apolo; a Noite Os braços estendendo com luxúria Ao Sol formoso, ardente e juvenil. E, n'um grande delirio voluptuoso, O Doido vagabundo, em suas mãos Tomou, beijando-a, a fria mão da Morte. E, olhae! em vez do gélido contacto D'uma ossada, sentiu tocar-lhe os labios A carne viva, quente, apetecida! Caiu aos pés da Morte a sua tunica: E a repentina luz d'um corpo em flôr, Beijou-lhe os olhos ávidos, acêsos, Onde o Desejo ardia e fumegava. E o Doido balbuciou: "Não és a Morte; És a Mulher, a Vida, a Primavera, Obra de encantamento e de milagre! "Tua sombra é luar de formosura..." Vinham agora nitidas no vento As risadas maleficas das Bruxas E o sussurro das aguas nos açudes. Qual sonho já sonhado, branca nuvem Entremostrava os falecidos seios, E a bocca fria e morta, n'um sorriso... E figurando o ar saudoso e triste, Perfis misteriosos palpitavam Através da penumbra alumiada. E as aves agoireiras, na embriaguês Da sombra que, em seus peitos, se embebia, Voavam cantando sobre os dois Amantes. E agora o Doido e a Morte apaixonados, De mãos dadas, erravam, no planalto, Entre o luar e a noite, o ceu e a terra... E dizia-lhe o Doido: "És a Mulher Disfarçada n'um lúgubre esqueleto, Cavalgando através das noites claras... Amedrontas os homens que te vêm; Mas a mim, que sou Doido, revelaste O teu misterio que, afinal, é a vida. "Deante de mim, tiraste aquela máscara Que ri perpetuamente; caiu-te aos pés A tunica de nevoa e de crepusculo; E os meus olhos então amanheceram Sobre esse belo corpo resurgindo Do seu nocturno tumulo brumoso." E a Morte: "A faúla viva crepitou Na cinza fria e morta que o Delirio Espalha aos quatro ventos da Emoção. "Eu amo os Doidos, sim, porque a Loucura É o desencantamento do meu sêr, Reduz-me ao meu sentido verdadeiro." "--Adoro a Morte só porque é Donzela! Na tua mão direita que, inda ha rouco, Brandia a Fouce tragica de sombra, Floresce um lirio branco; e a luz da lua, Tocando-te na fronte, é virgindade: Beijo... lagrima esparsa... veu de noiva... "Tu és Venus, ó Morte. Os Amorzinhos Em tôrno do teu Vulto, alegres, vôam... Vejo, na terra, o abril sob os teus pés, Embriagam o Azul perfumes misticos... O luar, ao pousar, nas tuas mãos, Dir-se-á que se converte em pombas brancas. "E a nevoa sobe como insenso, e vem Na tua direção: é um sacrificio Á Deusa que tu és... A Naturêsa Arde no fôgo eterno dos teus olhos: As suas labarêdas são folhagens, Faulas, soltas no ar, os passarinhos, E o sonho humano é cinza derramada..." E assim diz a Donzela: "Vês o Amôr Onde outros vêm a Morte... Eis o Milagre! Tu vês na Morte o Amôr... E quantas almas, Embora eu fôsse o Amôr como tu dizes, Veriam sempre em mim a negra Morte!" E diz o Doido: "Eu sou a Creatura Que vive, a sós, cantando pelos montes, E subo aos altos pincaros cantando... Canto os Beijos e os ultimos Suspiros; Canto a Morte tambem, porque ela vive, Deante dos meus olhos, e é Mulher. "E sinto que em meus cantos se reflectem As falecidas cousas que se animam, E vão subindo ao céu na minha voz. "Vive dentro de mim um rouxinol Que espreita a luz do luar pelos meus olhos E canta nos meus labios toda a noite. "Vivo a cantar porque não caibo em mim; Porque me excedo e subo muito acima Da altitude a que fica o meu espirito. "E vae a minha vida no meu canto... E, fóra do meu corpo, se condensa Em Figuras viventes que me falam. "Meu canto diz aos mortos: Resurgi! E eis que eles resuscitam. Diz ás cousas Brutas; amae, chorae! E eis que elas choram. "Sou doido... Só passeio em sitios êrmos, Através dos pinhaes, á luz da lua Que traz, no seu palôr, delidas manchas De phantasticos montes e desertos, Silencios de outro mundo, soledades De paisagens defuntas que o Remoto, Com suas mãos de sombra, amortalhou. "Amo o Silencio, o Luar, a Solidão... Sim, porque sei falar ao meu espirito Que me fala e contempla... e é outro Sêr... "O ruido e o sol o Espirito afugentam. "O creador das almas foi aquele Primeiro corpo erguido contra a luz... "O espirito amoroso é irmão da Sombra... "Eis porque adoro a Morte, sendo humano." E a Donzela responde: "Este desejo Que me incendeia os ossos revestidos Da luz do teu olhar, a qual se fez Rubôr de carne viva, anceio de alma, --Este Desejo a arder que me aproxima De ti, é a tua sombra... nada mais... Pois que sou em mim propria? O teu amor." E o Doido: "E em mim que sou? Esta Aparencia, Vago Luar que vem de longe, errante Figuração de sonho sobre a terra... Só a tua Presença me define E abrasa em claras formas de relêvo. A luz do meu espirito, incidindo Sobre o teu sêr-phantasma, é já visivel: Em ti, é claridade que alumia... E os meus olhos fizeram-se fecundos, E eu vejo o Amor, a Vida... o meu delirio: Esta sombra espectral que se interpõe Entre o meu sêr e as outras creaturas, Transfigurando imagens, formas, vultos, Que se tornam cahoticos, genesicos, Concebendo, na Sombra, um novo Ritmo..." E a nocturna e phantastica Donzela, Encantada, nevoenta de volupia, Sentia-se animada pela estranha Loucura, fogo animico e amoroso Que dos olhos do Doido se exalava Envolto em tôrva luz visionaria. Era a terra queimada pelo incendio Canicular, beijando o orvalho fresco: A propria dôr da noite caida em lagrima... "--Que mudanças soffri! Nem me conheço Desde que te encontrei! Meu esqueleto De viva carne em flôr se revestiu: Assim o musgo cresce n'uma rocha, Diluindo-lhe as nitidas arestas, Sua bruta dureza enternecendo. "Nos buracos horriveis dos meus olhos Duas meninas, rindo, se debruçam: Duas formosas noivas radiosas... E no gélido vacuo do meu peito Fez-se um calor de sol; a Primavera Corre nas minhas veias, já floresce Este barro de sombra que é meu corpo. "Ah, sim, eu desconheço-me! Não sou Quem fui! Não sou a Morte: sou o Amor. Que é da morte que fui? Onde está ela? "Ó Loucura magnifica! Delirio! Ó Vida que as estrelas incendeias E abres, falando, ouvidos nos rochedos! Deus é o Doido suprêmo! Olhae a terra Inda mostrando a sombra desvairada Desse antigo e divino Pesadêlo: Assim a pedra rustica dum lar Mostra a amorosa mão que a trabalhou. "Tua vida não vive em ti sómente; Vive além do teu sêr; talvez alcance Vagos mundos remotos e perdidos... Quem sabe as creaturas que te vêm De infinitas distancias e que choram Se uma lagrima inunda o teu cantar?... "Eu, que era a Morte, a fria Indiferença, Insensibilisando as creaturas Em que pousava a minha mão fatidica; Eu que vivia, enfim, a minha morte Assim como tu vives tua vida, --Ouvindo-te falar, deixei de ser O Esqueleto-Phantasma que apavora Tudo quanto é sensivel e vivente, Para ser a Mulher, o Encanto, a Flôr, Venus, ébria de sol, fitando o Sol... "Sou a tua Loucura feita Virgem; Teu Sonho feito Corpo; a tua Sombra, Até aqui negra e morta sobre a terra, N'este instante, de pé, reanimada, Cheia de luz, falando-te e sorrindo. "Se és um doido cantando pelo mundo, Sou a tua Canção..." E o Doido errante: "És a minha canção... por isso mesmo Tu és _alguem_ que eu sinto ao pé de mim; Vejo, ao luar, a sombra que tu fazes!..." E acrescentou depois, olhando, ao longe, Chimericos esbôços de montanhas, Cêrros d'além do mundo, nevoas mortas, A Saudade alongando-se em Paisagem: "Todas as cousas êrmas que o crepusculo Deixa entrevêr, são cantos que eu cantei; Pousaram, por instantes, na minh'alma... "Olha este ramo de urze rasteirinho, E aquele scintilante orvalho vivo, E aquela rocha de perfil esphingico... Fôram cantos, outrora, nos meus labios, Lagrimas nos meus olhos... E, depois, Não sei porque terrivel maldição, Ei-los cristalisadas, fulminadas Apparencias de inercia e de brutêsa! "Talvêz (quem sabe?) a maldião terrivel Que a resurgida Eurìdice, de novo, Em morta Sombra fria converteu! "A maldição que vae na luz do olhar, E mata, sem piedade, o nosso amôr: A creatura amada que nós vêmos Nascer viva das ondas da Harmonia, Como Venus das ondas océanicas. "Ai d'aqueles que, um dia, contemplaram A creatura amada, face a face! "Ai de ti, ai de ti, divino Orfeu! Lira desencantada e redusida A uma cruz de penumbra e de silencio..." E o Doido continuou, mas brando e triste: "Quando me deito á sombra d'um rochedo Ou á sombra mais leve d'uma nuvem, Eis que ela pousa logo em meus ouvidos Harmoniosa da canção que foi... "Sim: na imagem extatica das Cousas Repercute-se ainda vagamente O cantico gerado em meu espirito... "Vejo Saudade e Eurìdice... Perpassam Na neblina que a vista, enfraquecendo, Ergue nos ensombrados, êrmos longes. "E sempre que a Saudade se aproxima De Eurìdice, alta Sombra de belêsa, Esta quasi resurge; e, no seu rosto, Vago, sanguineo alvôr, sorrindo, aflora. "Ó silencio dos Êrmos! Ó meu canto, Perdido e morto, em mim, revive! Aquece Os troncos esqueléticos das arvores, A noite fria n'um suor de estrelas! Anima a luz do luar... Que a tua voz Lhe afogueie o sorriso arrefecido." E volvendo á Donzela o Doido errante Os olhos, onde a imagem da Loucura Tinha a trança revôlta e a face pálida: "Quizera vêr teu busto á luz do sol; A luz viva que sabe definir, Beijando-as, com amor, as formas finas Da Carne e do Desejo, e lhes insufla A côr primaveril, o sangue, a rosa..." E a Morte lhe dizia como em sonhos: "Não chames pelo sol: é desencanto. O sol apaga as Almas quando nasce; Ele não ama o teu delirio... e odeia-me.. E o luar nos protege: é nosso amigo. Seu mistico sorriso é encantamento E resplendor de espirito que anima Corpos mortos de nevoa... Apparições... "Sou a tua Canção imorredoira, Eternamente alada, fluida e viva! "Sou a tua canção. Que o meu passado Não me torne a empecer e a atormentar. "Vivas seáras sem fim de creaturas Ceifei, cantando, só para entreter Meu doloroso esfôrço e meu suor. Mas escondi a Fouce: que a ferrugem, Que o tempo lhe embrandeça o fino gume, Sequioso de lagrimas e sangue. "Ceifei; mas quero agora semear. E já não murcha as flôres o meu beijo, Nem põe nodoas nos olhos das estrelas. "Meu beijo agora é o beijo nupcial: Gota de orvalho comungando o Sol, A lagrima que tem o Sol no peito. "Meu beijo é o beijo ideal da Renascença, Partindo, como um raio, os frios marmores Dos tumulos de Pan e de Jesus!" E a Morte e o Doido, extaticos, falaram Durante muito tempo: Ele, embebido Em seu profundo e vago pensamento Que de infinito amôr lhe mascarava A cousa contemplada, de maneira Que tudo o que ele via sobre a terra Tinha o perfil da sua comoção, Tinha a propria figura da sua alma. Era o signal divino da Loucura... Ela, a Donzela Morte, embriagada Por um calor de vida florescente, Engrinaldando em rosas e desejos Seus resequidos ossos insensiveis. Falaram muito tempo... E bem se via Que a voz humana os echos estremunha, Que a voz da morte os echos adormece... A Lua anoitecêra... No horisonte Alvorava através de brancas nuvens Frio sorriso de oiro e de tristêsa. Dir-se-ia que a paisagem se firmava Em seus aspectos nitidos, erguendo, No ar, as formas quasi definidas. E, súbito, a Donzela misteriosa, Do seu profundo sonho despertando, Beijou na face o Doido; e assim lhe disse: "É o meu ultimo beijo; não o esqueças. Lembra-te d'ele sempre até chegar A hora da tua morte... o meu instante." "--Que dizes tu? Vaes-me deixar, acaso?" E o Doido estremeceu, sentiu pousar-lhe Na fronte sonhadora, aquela neve Que desgasta a belêsa, o sonho, a graça, Roendo a flôr da carne, anoitecendo A harmoniosa luz das linhas puras, Desencantando as formas, redusindo-as Á sêca, esteril cinza da Verdade. E a Morte, ao afastar-se, respondeu: "Que hei de fazer? Cumprir o meu fadario. Antes de haver, no mundo, o teu delirio, Eu existia já, tu compreendes?" "--Tu és agora, o amôr, a vida, emfim!" "Dizes _agora_, mas eu digo _outrora_. Volto ao que fui, ouviste? Eis o Destino." E o Doido n'um espanto: "D'onde vinhas Quando chegaste ao pé de mim? Responde! E agora aonde vaes tu? Qual o teu rumo?" A Morte, já a cavalo, segurando Na mão, a velha Fouce relusente, Olhae! a propria aurora reflectindo... Reintegrada, de novo, no seu funebre Esqueleto que um manto de crepusculo Em mortuarias dobras envolvia, Na sua voz de Espectro, murmurou: "Vim de fechar os olhos a uma Virgem; Vou apagar os olhos d'uma estrêla." E o Doido viu a Morte e o seu eterno Riso rasgado em marmor de sarcasmo, Ocultar-se na branca e fria nevoa Que, ao receber, no seio, aquele Espectro, Como que cheia de agua, escureceu. E riu tambem na luz da madrugada... E o seu riso, tocando as cousas mortas, Não era luz que acorda, mas penumbra De esquecimento, inercia, indiferença. E o Doido então cantou aos quatro ventos: "Tive nos braços a Morte. Tu bem viste, Noite triste! Tu nos beijaste a ambos, vento norte! Teu beijo nos casou. Pôz-te o luar na fronte a branca flôr, Ó meu amor, Que a luz da aurora me roubou! Tive a Morte nos braços, ó Loucura! Que lindo corpo gentil! Seu Phantasma era um abril, Seus ossos eram feitos de ternura! E ri, de noite; e o meu riso Na sombra do ar chorava... E tudo abria os olhos e falava... A noite é como o _dia do juizo!_ Vi Mortos resurgidos, Mostrando a carne em flôr sobre o esqueleto, Quando o frio crepusculo se espalha, E os môchos piam nos pinhaes tranzidos De terror secreto, E a dôr, suspensa no ar, a terra orvalha... E eu ri de noite. E fiz mais: Bebi o riso na origem, Nesses labios espectraes Da Morte Virgem! Vi o riso verdadeiro, O riso desmascarado; Não esse riso envolto em nevoeiro, Amortalhado... Mas o riso--relampago fendendo A nossa magua, E revolvendo, Ó lagrimas de dôr, teus seios de agua! Vi o riso que alumia O nosso fim... O cirio eterno a arder ao pé da cova, A eterna flôr do edenico jardim: A luz do dia, Sempre nova. E ri na cara da Morte, Ó vento norte, O riso que ela me deu! E de traz d'um rochedo, Ergueu-se o vulto pálido do Mêdo... Que frio gesto e lugubre estatura Ébria de ceu, Somnambula de Altura... E vi o fundo ao Riso. A minha dôr Tocou-lhe o fundo. E vi de perto, então, A sombra inicial da Creação, A luz final do Amor! E eu ri na noite triste! E á luz da aurora, O meu sorriso empalidece e treme, E geme E chora: Assim uma candeia Brilha na sombra, e, triste, bruxuleia Á luz do sol tão forte, Que ás outras pobres luzes traz a morte. E o dia vem nascendo... Que tristêsa! Manhã cinzenta e baça! Como perde a paisagem a belêsa: A penumbra que a veste, e é sonho e graça... Adeus, ó Morte, ó velha irmã Da sombra, do silencio e do luar... Ó frio desencanto da manhã! Já vejo naufragar, Na voragem da aurora, o meu cantar! Ó claridade! Ó sol! Ó sol! Aparições do Ruido! Movimento desmedido! Poeira humana... Actividade! Levou-me a luz do dia o que me trouxe A noite, a solidão, a luz do luar... E a Morte, que em meus braços foi Donzela E corpo de beijar, Pegou da fria Fouce Saltou ligeira, rindo, á dura séla E foi ceifar, ceifar! E emquanto o Doido ao vento assim cantava, Trotava a Morte ao longo do planalto, Na meia luz, na meia realidade... E a sombra da sua Fouce, em negra curva, Ia da aurora ao poente; e a do seu corpo, Parecia manchar toda a Paisagem. Ficára a sós o Doido e a sua vida; E tres noites cantou aquela estranha, Milagrosa aventura que, depois, O Imaginar do Povo consagrou N'esta Lenda, em que a noite e a luz do sol, A vida e a morte, as lagrimas e os beijos, São como a propria Sombra da Saudade. E ele viu, através do seu delirio, Pela primeira vez, sua figura Enigmatica, occulta, transcendente... Viu que existia n'ele um outro sêr: O que domina as trevas e possue Sempiterna Presença Espiritual... Parte da sua vida inominada Que não é propriamente a sua vida, E constitue as vagas e remotas Fronteiras da sua alma que se perde, Em humildade e amor, na luz de Deus. Sim: foi a Morte, foi, que lhe mostrou O que havia de belo e de perfeito Na sua escura e misera existencia, Com esse gesto descarnado e gélido Que os sorrisos apaga e que amortece Todas as vãs palavras e ironias, Derramando nas Cousas esta sombra Infinita e profunda que se chama Seriedade, Religião, Misterio... Novembro de 1912. Biblioteca da RENASCENÇA PORTUGUESA A Águia--Revista mensal. A Vida Portuguesa--Quinzenário. A Evocação da Vida--_Augusto Casimiro_. Regresso ao Paraiso--_Teixeira de Pascoaes_. Esta História é para os Anjos--_Jaime Cortesão_. O Espírito Lusitano ou o Saudosismo--_Teixeira de Pascoaes_. A Sinfonia da Tarde--_Jaime Cortesão_. O Criacionismo--_Leonardo Coimbra_. A Educação dos povos peninsulares--_Ribera y Rovira_. Romarias--_António Correia de Oliveira_. A Primeira Nau--_Augusto Casimiro_. Cintra--_Mário Beirão_. NO PRELO: Daquem e Dalem Morte (Contos)--_Jaime Cortesão_. O Último Lusíada--_Mário Beirão_. Camilo Inédito--(_Notações de Vila Moura_). Só--_António Nobre_ (3.^a edição, com notas). 200 réis End of Project Gutenberg's O Doido e a Morte, by Teixeira de Pascoais *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O DOIDO E A MORTE *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. 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