The Project Gutenberg eBook of Santarenaida: poema eroi-comico

This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: Santarenaida: poema eroi-comico

Author: Francisco de Paula de Figueiredo

Release date: May 4, 2007 [eBook #21283]

Language: Portuguese

Original publication: Coimbra: Na Regia Officina Typografica, 1792

Credits: Produced by Pedro Saborano. Para comentários à transcrição
visite http://pt-scriba.blogspot.com (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK SANTARENAIDA: POEMA EROI-COMICO ***


SANTARENAIDA

POEMA EROI-COMICO

DE

Francisco de Paula de Figueiredo.



Dignum laude virum Musa vetut mori.

Horat. l. 4. O. 7.


COIMBRA.
Na Regia Officina Typografica.
ANNO M.DCC.LXXXXII.
Com licença da Real Meza da Commissaõ Geral sobre o Exame e Censura dos Livros.

ARGUMENTO.

Ouve em Coimbra um Taverneiro celebre, chamado Joze Rodrigues Santareno. Este em uma funsão que costuma fazerse pela Pascoa do Espirito Santo em Santo Antonio dos Olivais, estando muito suado pelo cansaso do caminho, fartouse de agua, com quem andava divorciado, avia largos anos, e dahi a poucos minutos caiu morto. Revestem-se estas circumstancias Poeticamente, e cantase a sua morte.

SANTARENAIDA.

CANTO I.

Pois me pedes, ó Muza, instantemente,

Que emboque a Eroica tuba altisonante,

Que a cego Marte impele os peitos fortes;

Eu que sem forsas teu carater serio

Em versos graves sustentar naõ poso,

Revestido da lépida Talia

C'o a máscara atrevida, para ensaio


Cantarei o Varaõ famijerado,

Que de Baco na guerra com Neptuno

Arvorando do vinho os estandartes,

Depois de ser trovaõ, ser raio acezo,

Que espalhava terror no campo inteiro,

Victima infausta foi por fims de contas

Da vingansa cruel do Rei das aguas.


Axavase em tremendo consistorio

Com toda sua Corte o undozo Jove.

Nas intimas entranhas asoprado

Pela Raiva vorás o consumia

Um fogo abrazador: eraõ com ele

As furias de Acheronte, e os vastos mares

Ao som de sua vós mudos tremiaõ.

Quando depois de longos improperios

Com que a insana paixaõ dezabafára,

De sima do alto solio adamantino

Que sustentaõ seis Doricas colunas

De maculado marmore brilhante

Com bazes de oiro, e capiteis de prata,

Esta fala do peito amargurado

Soltou com grave acento aos seus Magnates.


Sempre eu, Vasalos nobres, de máo grado,

Com justa indignasaõ olhei bramando,

Que ouvese sobre a terra um petulante

Que ouzase de meu povo impunemente

Atacar os direitos mais antigos;

Pois sendo desde muito autorizadas

As nosas dôces aguas para entrarem

As umanas guelas, e os arcanos

Dos buxos penetrar dos omems grandes,

Oje a termos as vêdes reduzidas

De serem so de aprêso aos brutos rudes,

E a despeito de minha autoridade

Condenadas (oh dor!) das esterqueiras,

Das imundas alfujas, das cloacas

Á baixa vergonhoza lavadura.

Conterme já naõ poso; este atrevido

Provar do meu tridente as forsas deve.

Este atrevido he Baco: eu pois pertendo

Punir a sua audacia, guerrealo.

Naõ ade este invazor protervo, e altivo

Zombar ja mais de mim: torsese a verga

Em quanto naõ he tronco: uma faisca

Pasa a incendio vorás, se naõ se apaga.

Mas vós aconselhaime, que eu naõ quero

Que a paixaõ me alucine: o fim he este

Porque oje vos xamei: dos boms conselhos

Quazi sempre saõ filhos os acertos.


Bem como de um enxame susurrante

O inquieto zumbido, se ouve n'aula

O confuzo rumor dos Optimátes.

Escutaõse discursos encontrados,

Diferentes razoins, pensar diverso.

Nisto o Padre Oceano revestido

De Regia Magestade se levanta,

E abrazado em furôr desta arte rompe.


Qual será de vós outros, que arrojado

Se atreva a sustentar nesta asembleia,

Á face do seu Rei, de toda a Corte,

Que a meditada guerra naõ he justa?

Se aqui algum está, se enfatuado

Algum medir comigo as forsas tenta,

A campo saia; os ultimos alentos

C'os golpes da razaõ tirarlhe quero.


Quais mudos troncos Oceano vendo

Pasmados da asembleia os membros todos,

Com mais vivo calor prosegue irado.


Apague as negras axas acendidas

A severa Nemézis: ja naõ devem

Ser punidos os máos: ouzado tale

O iniquo uzurpador o campo alheio:

Perturbemse os direitos... Oh Justisa!

Oh Deuzes imortais!... Eu penso, ó Padre,

Que altercasaõ não sofre o teu projeto.

Deve a guerra fazerse, a guerra he justa.

Porem naõ será máo, reflexiono

Eu agora taõbem, que tu primeiro

Vejas se a boa pás quer antes Baco

Estas coizas compor, largando a pose

Dos direitos que audás nos uzurpára.

Por tanto uma Embaixada mandar deves

Expondolhe as razoins que te estimulão;

E no cazo que a pás ele naõ queira

A guerra se lhe intime em continente.


Asim dise, e aprazendo ao consistorio

Rezolvese Neptuno, e o Tritaõ xama.

Tritaõ que de ser filho se gloria
Do Rei, e da Salacia veneranda:

Mansebo tal, e qual, nem mais nem menos

Como o pinta Camoins no canto seisto.


Vai tu da minha parte ao Rei dos vinhos

Levar esta Embaixada, dis Neptuno;

Que o dezaforo vil sendo notorio

Com que da antiga pose as doces aguas

Esbulhadas tem sido por seus vinhos:

Que sendo esta irrupsaõ sobre dominios

De mim das aguas Rei, que sempre hei sido

Justo mantenedor de meus direitos;

A recta observasaõ do jus das jentes

Com vergonha infrinjida nesta parte,

Exije que taõ barbaras afrontas,

Por melhor se atalharem fims funestos,

Sejaõ severamente castigadas.

Mas que lembrado da clemencia inata

Com que as minhas asoins adornei sempre,

Perdoandolhe o mais, sómente quero,

Que enfreando do vinho a audacia suma,

De oje em diante perturbar naõ venha

Tranquilidades publicas; que a escolha

Em sua maõ está de pás, ou guerra.

Se guerra pois quizer, logo em meu nome

Entaõ a ferro, e sangue lha declara.


Atento o feio Moso esteve á fala,

E cortando lijeiro as altas ondas

Da grande Niza em fim surjiu na praia.

Aqui tres vezes a torcida conxa,

Que os gigantes na guerra amedrentára

Altamente tocou: do som terrivel

Feridas as montanhas se abalárão:

Tremeraõ da Cidade os abitantes;

E dando agudos guinxos, para os colos

Das mãis os filhos pavidos fujiraõ.

O nobre Fundador de susto cheio

C'o a estranheza do cazo, saber manda

O que he. Eis a Palacio conduzido

Por entre a multidão que concorria

Atonita, e turbada o Tritaõ chega.

A Embaixada repete, e carrancudo

Pela resposta taciturno aguarda.

O nobre Fundador da alegre Niza

Turbado um pouco esteve; mas sem medo

Ao Trombeta falou desta maneira.


Ja mais no que o teu Rei oje me argúe

Eu tenho consentido, sem que um uzo,

Um costume geral das Nasoins cultas

Com razaõ m'o abone: eu não pertendo

Defraudar cada um de seus direitos.

O costume fas lei: tenha Neptuno

O mesmo a seu favor, será contente.

Nem cuide ele talvês, que seus caprixos

Me faraõ aterrar: naõ sei ser fraco.

Amease, guerreie: eu inda o mesmo

Sou, o conquistador das Indias vastas.

He verdade que a pás em muito prézo;

Porem se haõ de perderse os meus direitos,

Ou a guerra aceitar, a guerra aceito.


Com esta decizaõ partindo torna

O filho de Neptuno aos Thetios campos.

A seu Pai a repete; o Velho brama,

E jura pela Stigie tenebroza

Com toda sua Corte respeitavel

Fazer perpetua guerra ao Rei soberbo.

Tocar manda a rebate; a Oceano imcumbe

O governo do exercito, tentando

Os vinhos atacar em toda a parte.

Com tudo porque sabe que entre os Luzos

Do inimigo poder o centro existe,

Aqui a mira poim, aqui rezolve

Fazer primeiro arder da guerra o fogo.

CANTO II.

Com um taõ importante rompimento

Revolvendo mil coizas na lembransa

Largos dias andou atrapalhado

Da infelice Semele o imberbe filho.

A pacifica inercia deleixada

Que em descanso puzera este Rei forte

O tinha desprovido. O sangue seco

Nas pasadas batalhas derramado

Se via inda nas lansas nas espadas

Ja da negra ferruje carcomidas.

Tinhaõ teias de aranha os peitos d'aso,

Eraõ ninhos de rato os capasetes.

Mas vendo dos aprestos a manobra

De seus adversarios, ganha o fogo

Que pela longa pás perdido avia.

Prestes pasa depois a fazer gente;

O imperio se revolve, e os vinheos povos

Á vós de seu Senhor ás armas velaõ.

Dobraõ-se sentinelas; os avizos

Voando se despedem; e he precizo

Ter de acordo na asaõ os mais famozos

Insignes Generais em cada Reino.


Daqui, bom Santareno, de teus dias

Comesou a estreitarse a larga teia.

Este o principio foi, estas as cauzas

Da tua nunca asás xorada perda.


Avia em Portugal um Xefe experto

Na sordida Coimbra acastelado:

Diziase Joze, mas poucas vezes,

Que o brado de seu nome mais notorio

Da terra lhe provinha aonde os lasos

De Himineu ternamente o tinhaõ prezo.

Contase que saindo n'outro tempo

Este novo Quixote aventureiro

Pelo mundo a ganhar glorioza fama

No serviso do Rei dos bravos vinhos,

E querendo a uma nova Dulcinea

O governo entregar de seus morgados,

Ja que a Parca cruel lhe avia feito

A vês primeira o tálamo dezerto;

Axára em Santarem uma Matrona

So digna de um Eroi, so digna dele.

Na linhaje do sangue descendia

D'onrados Campioins, d'Erois de pinga.

Inda nos altos porticos pendentes

Conservavaõ-se os ramos de loireiro

Sem ter interrupsaõ por brazoins d'armas,

Era ela bem talhada, o seu costado

Capás era da carga mais enorme.

Eraõ as suas faces dois prezuntos,

Seu garbo majestozo, o paso grave.

Tinha o traje mais simples, mais modesto

Das modestas matronas do seu tempo.

De baeta um jibaõ de longas abas

Lhe cobria a bojuda umanidade.

Dos grosos cotovelos lhe pendiaõ

Alarves punhos de groseira estopa.

Cingialhe em tres voltas ensebado

O carnudo caxaso um cordaõ d'oiro,

D'onde so nos Domingos pendurado

Se via um rocicler lonjevo, e vasto,

Que pela antiguidade que inculcava,

Nas ricas enxurradas do diluvio

Se asenta ser axado
in illo tempore
.


Namorouse o Varaõ, namorouse ela.

Uniraõse c'o vinculo sagrado,

E sendo sua Consorte Santarena

Quis taõbem Santareno apelidarse.


He pois precizo a este mandar ordems,

Baco perante si fás vir Cilenio,

E ufano asim lhe dis com rosto inteiro.


Eu tenho neste mundo um vasto imperio:

Meu nome em toda a parte, ou mais, ou menos

He venerado; mas na Luzitania

Tenho o pezo maior de minhas forsas.

Em Coimbra he o centro; ahi rezide

O Cabo principal de meus exercitos,

O insigne Santareno. Nestes termos

Desta guerra he forsozo darlhe parte.

Tu pois asim lhe dize: Que abalados

Do sopro da Discordia os Povos Áqueos

Nos tem guerra jurado, e alta vingansa:

Que cumpre rezistirlhes: boms soldados

Prezentar em campanha; e dar conserva

Ao uzo introduzido, á grata pose

De ser somente o vinho quem nas mezas

A sede satisfasa; porque he esta

A cauza principal de seus rancores.

Que eu dele a empreza fio; que entre os Luzos

Eu quero que ele só sustente a guerra.

Depois um giro faze, e aos meus Soldados

De toda a Luzitania que em Coimbra

Axarse devaõ logo intíma as ordems.


Dise, e partiu voando o mensajeiro,

Até que as pandas azas encolhendo,

Das letras, e das lamas sobre a Terra

Os talares pouzou bordados d'oiro.


Era dia d'Entrudo, e nas baiúcas

O sujo canjirão vazando as pipas

Aos freguezes enxia os grandes copos.

Avia um confuzisimo barulho:

Ferviaõ da janela as laranjadas:

Surriadas, apupos, algazarras,

Os esguixos, os pós, o rabo-leva

Tudo em dezordem poim. Vendo Cilenio

Extravagancias tais pasmado fica.

Pensa naõ de Coimbra ver os montes,

Sim da fertil Beocia o graõ Citéron

Retumbando medonho em noite d'Orgias.


Entaõ do incomparavel Santareno

Na surtida taverna entre a balburda

Da fumoza vinhasa ardia o fogo.

Mais meia canadinha
de uma parte

Caído o beiso, e os carregados olhos

A custo abrindo, c'uma vos fanhoza

Pedia um dos da corja amotinada.

D'outra parte fazendo uma carranca

Sobre tres azeitonas apostava

Outro que tal que xuparia um frasco.

Qual aos murros andava; qual seis copos

Tendo ja feito em cacos, com nos'ama

Ateimava furiozo em naõ pagarlhos.

Daqui aos encontroins ums vinhaõ vindo

Afétando de serios; esbarravaõ

Comsigo nas esquinas dali outros.


Mas o Filho de Maia cautelozo

Opurtuna monsaõ de entrar espreita.

Em fim axa uma aberta, lestes rompe,

Dá sinal, tem lisensa, á sala sobe,

E d'ambos os Espozos poinse á face,

Declaralhes quem he, de quem mandado,

E da sua Embaixada o fim precizo.


Sem saber o que fasaõ, largo espaso

Ficárão um e outro embasbacados.

Ele indo com as mãos logo á cabesa

Cosávase, e na sordida poltrona

Aflito
stare loco nesciebat
:

Ela está feito, la melhor compunha

O seu recado. Finalmente o tempo

Ja fazia dar oras ás barrigas,

E devia jantarse. A Liberdade

Entaõ dezempesando as linguas rudes

A terreiro os tirou, e mais ouzados

Entrárão a seu modo a perguntarlhe

Alegres sobre Baco muitas coizas,

Muitas sobre Sileno. Dos guizados

Da meza o xeiro ja neste comenos

Consolava os narizes circumstantes.

Pedida a taõ grande ospede lisensa

Subito se arregasa o Santareno,

E rogando o onráse, á cabeseira

Da bem provida meza, instanciozo

Para um pouco comer fes asentalo.


Ja no vidro dos pratos retiniaõ

Resaltadas da carne as trinxadelas.

(Podiaõse na gula encarnisados

Ver os gordos Consortes dando aos buxos

Tasalhos de prezunto tremendisimos!)

Mastigando apresados resmungavaõ,

E do ospede em onra mil saudes

Uma apos outra sem sesar faziaõ.


Mercurio da franqueza naõ pensada

O fausto aparatozo em tal albergue

Naõ podia admirar quanto era justo,

Porque alem das perguntas enfadonhas

A que cortês com présa respondia,

De um pouco reparar deixar naõ pôde

Nos vetustos paineis enfarruscados

Que adornavaõ em roda a estreita sala.


Em um deles se via inda no berso

Entregue a Ino o pequenino Baco

Tendo as Nimfas em torno, e juntamente

As Hiadas, e as Horas. Logo n'outro

Ja crescido plantava o bom bacelo,

Ja o campo baldio agricultava.

Viase mais n'um majestozo quadro

O severo rigor de seus castigos.

Estava de Licurgo o cazo infando;

Mas ja com negra côr, ja roto o pano.

Com tudo ao natural se devizava

Golpeando ele mesmo as pernas suas.

Aqui o filho de Echion Tebano

Pela sua familia enfurecida

Se via cruelmente espedasado.

Ali de Meduline o parricidio,

Mais abaixo Penthêo ás Furias dado.

Sobre tudo a fatal metamorfoze

Se admirava em leaõ fulvi-comado

Nos gigantes cevando ávida sanha.


Mas ja baixando o Sol, surgia a Noite.

Trata Mercurio de partirse prestes;

Dos gordos Santarenos se despede,

Que falando ambos juntos, em confuzo

So deixaõ perseber, que descansado

Seu Rei pode ficar, que em quanto aos brasos

O valor asistir, naõ aõde as Aguas

Como pensaõ, levar a sua avante.

E como ja nos cascos lhes fervia

Em violentos caxoins o ardente sumo

A cabesa fazendolhes pezada

Dar c'o a barba no peito, e sobre os olhos

Carregar importuno o grave sono,

Na mal mexida cama empanturrados

Ambos foraõ jazer como dois odres.


Dormirão toda a noite os boms Alarves

Rezupinos roncando a sono solto.

Eis lá sobre a manhan um se espreguisa,

E fazendo tres cruzes sobre a boca

Enormemente aberta o outro acorda.


Saõ oras, dis o Eroi roufenhamente,

Trazeime eses calsoins, daime ca a vestia.

Fora c'o a noite! ha muitos tempos nunca

Dormi noite pior! Tudo eraõ pulgas,

Tudo sonhos, em fim tudo Diabos,

Até, por mais sentir, a Mosazinha

No quarto me deixou fexado o gato,

Que toda a santa noite andou miando.

Eu naõ persenti nada, dis Madama,

Pois foi tal a quebreira, tal o sono,

Que bem podiaõ arrombar as portas,

E sem que eu dése fé. Bem, pois que queres,

O marido replíca, se tais sonhos

Eu tive, que por mais que quis pôr olho

Logo eles me espertavaõ: eu te conto.

Sonhei que estava eu na nosa quinta

Debaixo da nogueira ao pé da fonte

Sobre a relva dormindo a minha sésta:

Eis senaõ quando d'uma vala surde

Correndo em torcicolos uma cobra,

E me entra pela boca: aqui um pulo

Dei eu, naõ persebeste? Eu naõ, dis ela.

Pois dei um grande pulo, e depois diso

Um pouco despertando, em sonolencia

Fui tornando a cair. E sonhei muitas

Outras grandes desgrasas que me esquesem.

Tornou ela a dizer: iso he verdade

Ás vezes taõbem tenho tantos sonhos,

Que me fazem doer bem a cabêsa.

Porem vaite vestindo, anda deprésa

Se queres almosar, que ja he tempo.


Tais réplicas, e tréplicas pasadas

Em fim a muito custo pos se fora,

E na larga cadeira escarranxado

Asim dezalojando, á Mulher dise.


Ora sabes mui bem, Consorte amada,

O onrado avizo que tivemos ontem.

O noso Imperador axase aflito

C'o a guerra declarada por Neptuno.

Eu sou um de seus xefes; e a minh'alma

Aspira a coizas grandes. Desta sorte

Na dansa estou metido: vou agora

As ordems expedir que saõ precizas,

Fazer gente com forsa: paciencia!

Nós para trabalhar nascemos todos.

Dáme cá qualquer coiza; um lombo bonda

Bastaõ dois pains, duas canadas bastaõ.


Fes-se bem como um Padre, e muito fresco

Saiu a averiguar os seus negocios.

CANTO III.

Neste tempo no imperio de Neptuno

Ja com todo o calor fervia a obra.

Os fortes Generais debaixo d'armas

Ja tinhaõ toda a jente, e á Luzitania

Os vastos esquadroins marxando vinhaõ.

Aqui de remotisimos Paízes,

De diversas Nasoins, diversas linguas

Vinhaõ mandando Capitains diversos,

Aqui vinhaõ Varoins destes pixozos

A quem tudo lhe fede, e que somente,

Por cauza das corrutas baforadas,

C'o vinho em odio eterno andáraõ sempre,

Aqui de mal Francês, e de almorreimas

Um sem numero vinha de axacados:

Naõ faltando dos cálidos a turba

A quem fizera sempre o vinho empôlas.

Era em tres batalhoins formada a Tropa,

Guiava um batalhaõ Periclimeno
1

Arrogante, e temido: outro Achelóo,
2

E o terceiro puxava á retaguarda

O velho Espozo da cerulea Doris.
3

Aqui vinha Protêo dos grandes Focas
4

Regendo a tremendisima caterva.

Talhando as curvas ondas na vanguarda

Iaõ nadando cem Tritoins desformes

Fazendo rebombar os buzios grandes.

E o Padre Oceano comandante

Supremo deste exercito temivel

Girava dando as ordems amontado

N'uma negra baleia monstruoza.


Xegáraõ do aureo Tejo em fim ás marjems,

Mas antes que o exercito alojase,

Desta nova xegada em tom de guerra

Lhe foraõ dois Trombetas a dar parte.


No centro d'uma gruta penhascoza,

Cujas ricas paredes eraõ d'oiro,

E branca madrepérola ondeante,

Sentado sobre a urna, respeitavel

C'o tridente na mão, e c'uma c'roa

De verdes limos na rugoza fronte

A embaixada resebe o Padre Tejo.

Quando asim dos Trombetas um comesa.


Ja, Padre venerando, aos teus ouvidos

Xegaria talvês a novidade

Da guerra que entre nós, e o Rei dos vinhos

Pouco ha se declarou. Naõ me pertense

Os motivos da asaõ esmiunsarte:

Taõ somente a dizerte sou mandado,

Que para dar principio á grande empreza

Para esta Capital do imperio Luzo

Das Tropas Oceano á testa marxa.

Deves pois vir falarlhe; que eu asento

Que tem primeiro aqui seu bico d'obra.


Subia pelo rosto ao velho Tejo

Ao tempo desta fala uma alegria,

Que ja mais asomára ao seu semblante.

Levantase, o Palacio se alvorósa,

E para ir esperar taõ grande xefe

As mais galhardas Nimfas a si xama.


Duzentas niveas, engrasadas Naides

De lindos olhos, que em prazer trasbordaõ,

Solto o negro cabelo gotejante

Presto ali se aprezentaõ caprixozas.

Ao carro sóbe o Tejo, ao carro d'oiro

Que guapos, e das muito-abertas ventas

Brotando soberboins torrentes d'agua,

Seis cavalos marinhos vaõ tirando.

Em malhados golfinhos brincadores

Asentadas as Naiades o cercaõ.

O mar fas-se banzeiro, e longa esteira

Mansamente deixando a turba marxa.


Xegados que os dois Reis á fala foraõ

O Tejo rompe asim: Princepe excelso,

Se um pobre feudatario, bem que indigno,

Qual eu sou, gozar pode a onra eximia

De darte albergaria em seu palacio,

As demoras desprende, e á minha gruta

Dignase vir a descansar um pouco,

Aonde a noso comodo sentados

Da sorte dos Imperios trataremos.


Oceano aseitou condescendente

Do Padre Tejo a simples rogativa,

E acolhendose á gruta majestoza,


Indignado meu Pai, dise Oceano,

Pela iniqua extorsão de seus direitos,

Que dos vinhos o Rei dezaforado

Das jentes com escândalo lhe ha feito,

Intenta guerrealo. Ele em pesoa

Viria á expedisaõ, se de seus anos

O pezo desta glória o naõ priváse.

Por tanto eu me incumbi das suas vezes:

E como de sua Corte na asembleia

Para isto convocada se asentase,

Que o comêso em teu Reino ser devia,

Visto que o General dos inimigos

Em Coimbra rezide; pareseume,

Por levarmos as coizas com mais ordem,

Que nesta Capital sem perder tempo

A primeira faxina se fizese:

Depois, de meu poder com todo o pezo

Em Coimbra caísemos. Aprouve

Ao Tejo este discurso; e entaõ tratáraõ

De mais ponderasaõ quantos negocios

Para aquele respeito mais tendiaõ,

Saõ xamados os Cabos a conselho,

E com acordo unânime se adía

A seguinte manhan para o combate.


He contra um grande Cabo que se devem

Tomar as armas: naõ he Jan Fernandes,

Nem Manel das Atacas o inimigo:

He contra o fasanhozo Talaveiras
5

Tortulho enorme de invejada fama,

Do vinho na milicia experto, e vasto.


Tanto que alvoreseu, logo no campo

As trombetas orrísonas bramáraõ;

Cujo som de mistura c'o alarido,

E roucos atabales largo espaso

Os muros fes tremer, e a gran Cidade

Soberba fundasaõ do Grego errante.

Ja promto o Talaveiras aguardava

De Cilenio o preseito a pôr por obra.

Na frente de seus bebados soldados

Corajozo se avansa: róxa altiva

Que as vagas sem pavor mujindo escuta.

Marxando vaõ as filas a compaso,

E d'uma, e d'outra parte embravecido

O gradivo Mavorte asende os peitos.

As caixas daõ final, travase a guerra;

De poeira uma nuve os ares turba;

Levantase um clamor mais tezamente;

Redobraõse as pancadas, corre o sangue...

Nada ha mais lamentavel que uma guerra!


Foi renhida a peleja: longas oras

Pendeu a decizaõ n'ambas as partes.

Finalmente naõ sei que infausto cazo

Pôs dos vinhos o exercito em dezordem,

Que naõ pôde aguentar sobre seus brasos

Dos aquozos dragoins o carregume.

Perdem todos a côr, as armas largaõ.

(Entradas de leaõ, saídas d'asno!)

Cae aqui, cae ali, ums sobre os outros

Vaõ indo aos trambolhoins. O Talaveiras

Reunilos intenta, mas de balde.

He de balde bradar: diques naõ sofre

Torrente por pavor precipitada.


No campo ficou so inteiro e forte.

O golpe universal caíu sobre ele.

Das setas, e das lansas acravado

Parecia um pinhal o grande escudo.

Nimguem ouzou xegarlhe, que da terra

Naõ fizese vermelha a superfice.


E que mais fês d'Olimpias o esforsado

Filho, o devastador do mundo invicto,

Junto ao tronco, dos seus destituido,

Quando o muro saltou dos Oxidracas?


Mas a Morte d'Erois sempre avarenta

Metida n'uma bala fulminante

As pernas lhe atravesa, e despedasa.

Acurva a grosa máquina tremendo,

E em terra baqueando he maxucada

Do violento tropel dos inimigos.

C'o este lanse
vitoria
o Tejo brada:

Vitoria, respondeu a xusma ovante,

Vitoria pelas aguas, viva, viva.

1 Periclimeno: Neto de Neptuno, de quem recebeu o poder de se metamorfozear.

2 Achelóo: filho de Oceano. Namorouse de Dejanira amante de Hercules. Hercules combateu com ele metamorfozeado em toiro, arrancoulhe um corno, e venseu-o.

3 O Velho, &c. Nerêo, filho de Oceano, e pai das Nereides.

4 Protêo: vej. Virg. Georg. I. 4. v. 429.

5 Um dos Taverneiros de grande conta que Lisboa teve. Na dilatada teia de seus louvores saõ estes meus versos um romendinho.

CANTO IIII.

Foise em folias a seguinte noite.

Mas asim que a lus alma avermelhando

No orizonte as globozas nuvemzinhas

Comesou a doirar o cume aos montes,

A vensedora jente enfurecida

Respirando outra ves carnajem, sangue,

Vai de rota batida, e compasada

Ao som dos belicozos instrumentos

Demandar do Mondego as marjems frescas.


A seu salvo xegando se alojárão.

Fas-se conselho, e por comum acórdaõ

Para a um tempo levar ao Porto, e Aveiro

O terror, e a vitoria Nerêo parte.


Em quanto isto asim pasa, ja Coimbra

Bem como um formigueiro fervelhava

Atonita bradando. Eis muito conxo

Correndo á présa contra seu costume,

Vem um cambaio tutelar das aguas,

O gago Vitorino, e o Santareno
6

Fanfarrão desta sorte dezafia.


Cá-cá fora me'amigo, cu na rua;

Á de ir aqui tu-udo c'o a maleita.

E ve-ve-ve veremos, e veremos

Quem-quem leva a melhor: xê-xegá'gora

Um nunca visto inzercito de jente;

Saõ co-como mosquitos: se tem barbas,

S'hé-s'hé-s'hé-s'hé capás ponhase em campo.


Qual grande Ferrabrás no xaõ deitado

Desprezando do garrulo Oliveiros

O louco dezafio, o Eroi prestante

Do Rino desprezou o stultiloquio.

Naõ se altera; em seu rubido semblante

Naõ poim o Mêdo as cores da fraqueza.

Lijeiro, quanto sofre a corpulencia,

Á trapeira alta sobe onde vijia;

E axando ser serta a guerra em caza,


Maõs perdidas, dis ele, saõ: ja'gora

Ou venser, ou morrer. Xamase ás armas,

E toda a jente sua acode prestes.

Acodem d'Alemtejo, e Estremadura

Bizarros Campioins: da Vidigueira,

Vila de Frades, Borba, de Vilalva,

Setubal, e Palmela. De Lisboa

Axaõ-se os Carcavélicos mansebos

De furibundo senho. Estaõ do Algarve

Mil Soldados d'embarque destemidos,

Mil de sima do Doiro, e das Bairradas;

E saõ mais de dés mil Coimbricenses.


Toda esta Soldadesca, he bem verdade,

Cavaleiros naõ saõ d'aureas esporas:

Saõ rotos, bandalhoins, babozos, porcos;

Mas qualquer deles um Eroi xapado

De inaudito valor, corajem suma,

Capás de se avansar ao mesmo Alcides.

N'uma palavra bebados eternos.


Entrase a rezenhar: cazo estupendo!

Inda a mais d'um milhaõ monta a rezenha.

Formarse vaõ da Feira ao grande largo.
7

A linda variedade em farda, e armas

Os olhos encantava: grande parte

Em cambudos capotes romendados

A trouxe mouxe postos se rebusa:

Parte em mangas, e pernas, sem sombreiro,

Xeia de impavidês caminha aos tombos.

Este trás um pixel, este trás quatro

No alforje a tiracolo: um tres borraxas

De admiravel grandeza, e tudo xeio.

Armados todos vem muito á lijeira:

Nada de arnezes, peito descuberto;

Á excesaõ dos rompentes granadeiros

Que feitos vaõ ali cabides d'armas.

Com grevas, bacinetes, e lorigas

Bem poucos se embarasaõ: a rodela,

A talhante farrusca colubrina,

A adaga, o varapáo, a masa, o xuso,

Comforme cada um melhor se ajeita,

He tudo quanto importa á mais da tropa.

Nas pezadas carretas rexinantes

Temivel ali vai das bocas negras

A ignívoma tormenta: até naõ falta

Quem leve junto a si seu caõ de fila.


Entaõ sobre um jumento de atafona

Ricamente ajaezado, o Santareno

As odreas pernas escarranxa a custo.

Veste de bode um tresdobrado coiro;

Poim um elmo de vides enlasadas

Na caveira d'um tigre tremebundo

Que lhe a grande carranca asombra, e adorna,

E empunhando na dextra uma tarasca

De dilatada folha, vai bizarro

Puxando os batalhoins para o combate.


Tanto que do lugar alcanse ouveraõ,

E os raivozos imigos avistaraõ,

Fas alto o Santareno, expede as ordems,

As fileiras divide, o campo asenta.

Depois entre um salseiro procelozo

De perdigotos que da boca xove,

Da sua jente á testa asim troveja:


Lembrar-vos, generozos Camaradas,

O que ides a fazer, fôra esqueserme

Até de quem vós fois: eu sei que o brio

A cada um de vós outros alentados

Na ponta do naris brilhando salta.

Ou morrer, ou venser: a cauza he nosa.

As Aguas de bazofia em vaõ naõ se enxaõ,

Custelhes caro se venser quizerem.

Corajem, meus amigos, oje a gloria

Q'ate'qui se ganhou naõ vá perder-se.


Nos animos calou vinhi-potentes

De tal sorte a razaõ destas palavras,

Que cada um deles se reputa um raio,

E ja para envestir as trélas roem.


Agora, ó Muzas, naõ falteis ao Vate,

Asopraime no peito o extinto fogo,

Que he precizo cantar melhor que nunca

O combate maior que os evos viraõ.


Deu sinal a trombeta Neptunina

Aspero, forte, atrós, e formidavel:

Nas cabesas as grenhas se arripiaõ,

Bate mais forte o corasaõ nos peitos.

Comesaõ-se a mover as longas alas;

O medonho alarido se levanta;

Daõ fogo os mosqueteiros; da descarga

Sobe rapido aos Ceos enovelado

O denso negro fumo; c'o estampido

Os cavernozos montes retumbando

Enxem tudo de orror. Dos grandes eixos

Parecia que a máquina do mundo

Sacodida, em pedasos se fazia.

C'um asoite na maõ de duro ferro

Os cruentos cavalos instigando

Girava a impia Guerra o campo todo.

Os Soldados que a viaõ se animavaõ.

A Dezesperasaõ á redea solta

Corria furibunda, e sem maneira.

As incendidas balas estridentes,

As mortíferas xusas enristadas,

Gemidos arrancando aos mizeraveis,

Um inferno faziaõ. Alastrado

De sangue viu-se em breve, e corpos mortos

Da orroroza batalha o sitio extenso.
8


Rocio, que em razaõ de vizinhansa

O nome erdado tems de Santa Clara,

Se gloria ganhas oje em ser teatro

De taõ sanguinolenta brava guerra,

O nome mudarás, e dos vindoiros

Virás a ser xamado o campo Marcio.


De forsa neste dia altos prodijios

A gente Bacanal fes mais que nunca.

Qual, semelhante ao gato entre podengos

Que o lombo em arco tendo enxorisado

Fas provar velosmente em pulos destro

Aos audazes fucinhos circumstantes

Das curvas fisgas os lembrados golpes,

Para um, e outro lado dezenvolto

Murros, e pontapés fervendo atira:

Qual d'um talho c'o a espada aos dentes xega:

Qual d'uma vês c'o a xusa quatro enfia.


Mas ja um Foca enorme e gueludo,

De dente anavalhado, unha rompente,

Cujo coiro entezado e verde-negro

Se ria das mais fortes cutiladas,

Um vinheo Capitaõ tragando estava,

Quando o intrepido Andrade irozo acode.
9

Aqui ainda viu do mizeravel

Engolir os restantes calcanhares.

Da vingansa o furor lhe sobe aos olhos,

Avansa ao monstro, e sobre o craneo rijo

Da inimiga cabesa vensedora

Com um buxo roliso (arma cazeira)

Mil golpes fulminando, o quebra, e esmaga.

Tremeu convulso o monstro; e o bruto sprito

Aos ares se soltou envolto em sangue.

Acodem muitos Focas, o Eroi cercaõ.

Os aquozos Soldados trepidantes

De fila cem membrudos cains lhe asulaõ;

E, quais sobre a bigorna os malhos batem,

As dentadas sobre ele a miudo fervem.

Andrade volta a um tempo a todas partes

O braso vingador: destróe, derruba,

Atropela, maxuca, abola, mata.

Mas sendo ja sem conto os inimigos,

Depois de longo espaso de conflito,

Falto de forsas vai beijar a santa.

Aqui (quem crerá tal?) a todo o trance

Com mais de quatro mil inda combate.

Grandemente bufando aflito espuma,

Revolvese, braseja, e o xaõ mordendo

Pasmozos coices enraivado atira.

Forma mil carantonhas formidaveis,

Qual trovaõ rujidor medonho berra.

Das dentadas a orrivel tempestade

Ja quazi o sosobrava; eis dando um pinxo

Em pé se torna a pôr, e a brava xusma.

Em fanicos desfás c'o a masa dura.


Naõ te déraõ da fonte as alimarias,

Valente Palmeirim, tanto trabalho;

Bem que viste o broquel feito em pedasos

C'o as leoninas unhas; bem que o tigre,

Que a mal cortada perna inda arrojava,

Te fes afucinhar c'o a garra ardente.


N'outra banda com obra azafamado

O ferós Damiaõ como um corisco
10

Cae sobre o inimigo: aqui o atacaõ,

Aqui destro acomete, rompe, asola.

Cada pedra que solta he uma granada

Onde vai desfarsada a orrenda morte.

Destrosa seis Delfims mesmo a pé quedo:

Fas rosto a dés varoins dos tais pixozos,

E do primeiro encontro os desbarata.

Xovem nele os pelouros abrazados

Dos áqueos Soldados impelidos,

Como sobre os telhados em Janeiro

A saltante saraiva que Euro impele.


Ante os muros de Pérgamo mais bravo

O filho naõ pugnou da branca Thétis.


Nem eu te calarei, Caetano ilustre,
11

Asombro de valor, peito de Marte.

Tu ali sobre a terra o pé batendo,

Pancraciasta acérrimo, insofrivel

Mais de mil desqueixaste a murro sêco.

Mesmo o Duque Nemé famozo em murros

De deitar-te agua ás maõs capás naõ era.


Mas naõ soprava a pérfida Fortuna

Com ventos de servir á gente aquatil;

E sendo ja sensivel a derrota

Tocar a recolher manda Oceano.

6 Vitorino, ou Rino: Aguadeiro de mal semeadas barbas, de gambias escanxadisimas, de gaguês inexplicavel, e de uma paxôrra inata na condusaõ de seus carretos.

7 Ao grande largo. Tudo vai das ipotezes.

8 O sitio extenso. Repito o cavaco que dei respetivamente ao largo da Feira.

9 Andrade. Uma afetada doudice, ou uma continua bebedeira, um tezaõ arrogante, uma catadura tôrva, e uma eterna bandalhise, saõ os caratéres que fazem sempre formidavel este fasanhozo Sapateiro.

10 Damiaõ. Ha tres especes de embriaguês; de leaõ, de galo, e de porco. A 1.ª pare os disturbios: a 2.ª as galhofas: a 3.ª o deleixamento. A deste Pedreiro he da 1.ª espese; e conseguintemente funestos os seus efeitos.

11 Caetano. He um quidam sexagenario, bebado da 2.ª espese, cujas dezencaixadas xocarrises nos fazem ver, que he um daqueles genios que sempre estaõ de caninha n'agua.

CANTO V.

Tanto que a Mãi das trevas taciturna

Desdobrou sobre a terra o manto negro,

C'o a palma da vitoria ufano e alegre

Dar a seus Cabos um convite lauto

Determina o Eroi pantafasudo.


Quem contar as galhofas desta noite

Ouzado poderá com versos dignos?

Foi entaõ quando o lépido Caetano
12

Cambaleando em meio do congréso

Fes com rizo estalar os circumstantes,

Abrindo francamente de seus doutos

Jocozos anexims o aureo tezoiro.

Foi quando o Doutor Rito, sobre os ombros
13

Tendo ums calsoins de riso por capelo,

Ex cáthedra
asentado, sobre pontos

De guerra longas oras disertando,

Escarrou discrisoins, mijou conselhos.

Sobre os bicos dos pés alevantado

Aqui foi que o tacaõ, gárrulo Xaves
14

Lodozo ganso que a Castalia turba,

Batendo as sujas palmas na asembleia

As Muzas invocou, e esta perlenga,

No modo que lhe he proprio, d'improvizo

Recitou com torrente entuziasmado:


Nobilisimos Xefes respeitaveis,

A quem, naõ sem razaõ, Lieu potente

Fes de sua justisa defensores;

Vós outros tendes oje ao mundo dado

Um raro exemplo de virtude eroica.

Nimguem de pôr na cara uma navalha

He mais digno que vós. Oh se os meus labios

Podesem proferir, se a minha lingua

Podefe articular quanto alma sente!

Vós tendes os xibantes destrosado

Com o mesmo valor com que eu destróso

Carangos nos calfoins, e na camiza.

Sim, vós os filhos sois abensoados

Do invicto Basareu que onrais a Patria.

Naõ dezistais da empreza comesada:

Depois do que pasou, ja'gora o resto

Val tanto como escarro de tabaco.

E tu, graõ Jeneral, que o orbe asombras;

Tu, em cuja cabesa mioluda

Minerva, e o loiro Apolo influxos largaõ,

Es digno de rejer um grande Imperio.

O noso amado Rei entre o seu povo

Naõ póde igual ao teu axar um caco

Aonde os seus dezignios se acomodem,

Suas trasas se entend$õ. Os dezastres

Naõ axaõ no teu buxo o estreito aperto,

Que no de um bigorrilhas: o teu buxo

Sem inda rebentar, tres mil dezastres

Calado e sofredor alojar pode,

Porque he muito mais vasto que uma adega.

As tres velhas Irmans doirados dias

Ainda te conservem: muitos anos

Ainda, ainda sejas no teu mando

Franco dispensador destes obzequios.


Asim clamava o Vate, quando atende

Que estava
vox clamantis in deserto
,

Porque em sono os ouvintes sepultados

Resonando a barraca atormentavaõ.

Por tanto pauza fes; uma canéca

Presto escorropixou; e c'os Anginhos

Paresendolhe estar, fes sucia aos outros.


Mas nas tendas a jente estropeada

Ja cuidava em curarse, e refazerse,

Quando um grande alarido ao lonje se ouve.

Alegraõse os vencidos, novas forsas

Nos animos cobrando, porque pensaõ

Ser xegado o soccorro que esperavaõ.


Asim era: Nerêo galhardo, e ovante

Seguido de invenciveis combatentes

Trazia de refresco o Doiro, e Vouga,

Capitains, que a derrota fomentáraõ

Dos dois vinheos Erois de seus destritos.

Dadas as salvas d'uma, e d'outra parte,

Entaõ ele contou como em Aveiro

Antonio do Ministro, Cabo astuto,
15

Soldado veterano, omem temivel,

Forte se lhe opuzera em campo aberto:

Os manhozos ardis que escogitára,

Os xoques que tivera, e seus encontros,

Do noso Vouga, que prezente estava,

Os inclitos servisos referindo.

Depois pasa a contar quanto no Porto

Lhe dera que fazer uma Matrona
16

Do que a Velha de Diu mais guerreira,

Mais fera que as do antigo Thermodonte,

Que deraõ tanto lustre á Capadocia.

E não menos do Doiro ás nuvems alsa

A parte que na asaõ tivera onroza.

Em fim conclúe, dando a ver os modos

Como d'ambos os dois desbaratados

Os olhos entregára ao sono eterno.


Oceano um pouco entaõ mais branda a pena

Da perdida peleja, aos vensedores

Amostrando um Real comprazimento,

Comesou a tratar quanto era justo

Porse por obra na manhan seguinte.


Asentase em tentar novo combate

Jeral, e decizivo. As transas loiras

No vermelho orizonte ao vento dadas

Mal que a Aurora amostrou madrugadora;

Mal que os frajeis fugazes pasarinhos

Com a lus matutina comesaraõ

Nos verdes salgueirais a espenujarse,

Um xirlando, outro em módulos gorjeios

Enxendo de alegria a selva amena,

Tudo se perturbou. Ergue do abismo

A terrifica fronte angui-comada

Outra ves a maldita a negra Guerra.

Salpicadas de sangue as azas bate,

E os longos arraiais tres vezes cérca.

As buzinas, e os pifanos se tocaõ,

Arrusaõ-se os tambores, treme a terra,

E os marinhos pendoins dezenrolados

Vaõ no imperio dos ventos tremulando.

Aprestaõ-se os Soldados vensedores,

E se vaõ encontrar c'os inimigos,

Ums ainda arrotando a ovos xócos

Vaõ enxendo as boxexas, e asoprando;

Outros se queixaõ que a xixelo velho

Muito a boca lhes sabe: em cuja arenga

Entretidos em fim o imigo arróstaõ.


Está'li Santareno altivo, e guapo

Sopezando na dextra a espada injente;

Qual atacada mina que promete

Ruinas vomitar de imensa mole.

De seus olhos pasmado está pendendo

Seu exercito em pezo, aonde espreita,

Como os ventos em grimpa, da batalha

O escondido suseso. A bateria

Entaõ comesa com fragor medonho

Da parte dos Neptunios combatentes.

Foi uma das descargas mais funestas.

Muitos dos mais valentes bebedores

Do saborozo xá das tortas parras

O derradeiro A Deus aos copos deraõ.

Encarnisa-se a jente, ferve a guerra,

Reina a Desolasaõ, a Morte, as Furias.


Apoucando no campo os inimigos

Avia longo tempo que bradava

Para um nobre duelo decizivo

Pelo Padre Oceano, um Serralheiro.
17

Monstro injente, desforme, aspéto orrivel,

A quem bravo, e colérico nas forsas

A um toiro igualára a Natureza.

Eis que ao lonje do Padre entre as falanjes

O brilhante pavês de tartaruga

Orlado c'uma pel' de crocodilo

Os olhos anelantes lhe deslumbra.

Na grande maõ sopeza firme, ufano

Uma lansa fatal de largo ferro;

E brandindo-a valente, rexinando

Despedida a fes ir rompendo os ares.

O golpe resaltou do rijo escudo,

E a ástea espedasada em terra cae.

O Padre embravecido o imigo busca;

O imigo c'um montante se defende

Briozo pelejando: mas o Padre

Por tempo entaõ poupar, de romania

Cerrou com ele, e o esmagou nos brasos.


Do mesmo vensedor ultimos golpes

Contra sua vontade onradamente

Sofreraõ dezasete Sapateiros,

E algums trinta Alfaiates neste dia.


Unidos os d'Embarque denodados

Aqui Górgones eraõ: nada em campo,

Ante seus forsozisimos revézes,

Que folgo respirase, em pé ficava.

Nada menos fazia o Alemtejano,

O Minhoto, e o Beiraõ. Naquele dia

Com eterno desdoiro se encobriraõ

Os feitos que nos Gregos cadafalsos

Em torneio cruel outr'ora obráraõ

Rozuel, Estrelante, e Belizarte.


Ali Nereo andava incontrastavel,

Ali Periclimeno em forsas grande,

Ali o Padre Tejo, o Doiro, o Vouga

As mais descomedidas tridentadas,

Que o mundo ha visto dar, ao imigo dando.

Destroncava Achelóo mais cabesas,

Cerceava sanhudo mais orelhas,

Do que o fertil Brazil macacos cria.

Mas vendo que sua ira inda sedenta

Mais estragos dezeja, o arrojo toma,

O temerario arrojo de encontrar-se

C'o grande Santareno. Este montado

No asno, ao som de zurros espantozos,

Com guerreiro valor tempesteando

Entre seus inimigos, como um rio

De caudaloza enxente, que insofrivel

Na alagada campina arranca, e arraza

Quanto lhe estorva á turbulenta marxa,

Levava a toda a parte o orror, e a morte.

Acomete Achelóo em manhas ábil,

Fáslhe cara o Eroi; quebraõse as lansas,

E dos brutos c'o a furia abalroados

Pinxaõ das selas pelas ancas fóra.

Postos a pé aqui he que saõ elas:

Arrancaõ das espadas, talhaõ, cortaõ,

Estoqueiaõ, desmalhaõ: nasce fogo

Dos asos petiscado; ora se curvaõ,

Ora em bicos de pés raivozos se erguem.

Os golpes se amiudaõ, giraõ destras

As talhantes catanas: um sobre outro

Vantajem naõ conhese um'ora inteira.

Transforma-se Achelóo d'improvizo

N'um dragaõ feio de farpada lingua:

Espanta-se o Eroi, mas destemido

Sobre as azas um córte lhe aprezenta,

Que o fas baquear em terra. Novamente

Em majestozo toiro convertido

Impetuozo avansa: entaõ por terra

C'o a forsa do boléo o Eroi caindo

Aos cornos se lhe agarra, e novo Alcides

O faria em pedasos desta feita,

Se em mosca transformado, n'um momento

Lhe naõ foje futil, cobarde, e fraco.


Entretanto a carnajem sanguinoza

Voando devastava o campo todo,

E d'ambos os exercitos provavaõ

Os nobres Capitains dezasombrados

De valor naõ comum, naõ vulgar fama.


Mas a gente marinha desangrada

Do ferro Bacanal ja naõ podia

De brutos taõ indomitos a sanha

Nas filas sustentar. Entra a dezordem,

E toca a retirar. Ja de Anfitrite

Aos palacios Reais se encaminhava

O férvido Titán palido, e triste

A darlhe a infausta nova da derrota,

Que em sua gente a seu máo grado vira.

Caindo as sombras vem dos altos montes,

E d'uma, e d'outra banda sepultura

Se entra a dar aos cadáveres que alastraõ

O campo da batalha, e daõ aos olhos

O orrorozo matís que a Guerra estende.

12 Caetano. O mencionado no Canto antesedente.

13 Doutor Rito. Um dos papeloins mais celebres que o ocio nutre. Ainda que nunca lhe lembrou seguir os estudos, andou nos primeiros tempos de batina; foi Doutorado por seus mesmos Pais, e na sua propria caza, servindolhe ums calsoins de riso azul da insignia de capelo. Palra sempre de autoridade; he sorumbatico de natureza, e quazi sempre anda com tericia. A sua caza he de orates.

14 Xaves. Bebado da 2.ª espece: he de um notavel dezembaraso, de uma verbozidade pasmoza, e de uma mania de fazer trovas insofrivel.

15 Antonio do Ministro. Foi em Aveiro um dos Taverneiros principais.

16 Matrona. Uma ejusdem furfuria bem conhecida no Porto pela alcunha de Rainha.

17 Serralheiro. Irmaõ do Gigante Dramuziando, filhos do Entuziasmo, e da Fantazia.

CANTO VI.

Geme o Padre Oceano inconsolavel

No fundo de seu peito, e mais aguda

Comesa a renovarse a dôr antiga.

O malogrado fim de seus dezenhos

He um dardo punjente, que as entranhas

Lhe pica, e despedasa; e quem naõ soube

Dos purpureos Erois ceder ás forsas,

Em fim cede á mortal melancolia.

Tanto póde a paixaõ n'uma alma grande!


Fexase triste no tentorio Regio;

Nimguem ouza falarlhe; solitario

Só quer por companhia o pensamento.


Pasadas oito oras em silencio

Manda entrar os seus Cabos: pensativo

Sobre a meza encostado o cotovelo

Na maõ esquerda descansava o rosto,

Gotejandolhe em lagrimas banhadas

As venerandas cans da longa barba.


Amados filhos (vagarozamente

Tendo erguido o semblante macilento

Asim lhes dis) Amados filhos, nunca

Taõ fera atasalhou meu peito forte

A tirana Paixaõ! Nunca minh'alma

Tanto vi afracar!... Fatal derrota

Foi esta que no livro do Destino

Lavrada estava em caratéres negros

Pela férrea maõ da atrós Desgrasa!

Nosas forsas (as forsas invenciveis

Que tem amedrentado o mundo inteiro!)

Abatidas as vedes, destrosadas

Por barbaros Salvajems, por ums brutos

Que nada por si tem mais que fortuna.

He pois tempo, surjâmos acordados

Deste pelago vil de cobardia

Onde a triste vergonha nos asoita.

Para o imigo venser quem se embarasa

Que aja esforso, e valor, ou que aja dolo?

O que forsas naõ daõ, ardís alcansem.

Todo aquele que vir que melhor póde

Ao exito xegar do que intentamos

Meta maõs ao trabalho, dêse présa

E reduza a pedasos esta canga

Que tanto no caxaso nos carrega.


Levantase do asento entaõ pacato

O Velho guardador dos grandes Focas,

E no meio do cónclave luzido

Dest'arte descarrega a consciencia.


Até'gora eu naõ quis a colherada

Nestas coizas meter; vós tendes feito,

Tendes acontecido, sem quererdes

Pedirme, nem ouvir os meus concelhos,

Porem quando a tortura a tal extremo

As coizas vai levando, oporme devo,

E servir a meu Rei, qual poso, e valho.

Os Deuzes, caro Pai, tem-me ensinado

As coizas do por-vir caliginozo,

Eu antevi estes dezastres feios,

Mas eu sem ser forsado naõ predigo.

Por castigo talvês dos Deuzes fose

Ao voso dezacordo.... Porem basta,

Ja tudo se pasou, agora eu mesmo

Tomar á minha conta a empreza quero.

Socega, amado Pai, o Eroi da pinga

De meus tiros o alvo a ser comesa.


Recobrou novos animos o Padre,

E do filho nos ombros sempre firmes

O pezo descansou da grande guerra.


Proteo, que nos ardís exp'rimentado

Fôra sempre instrumento a mil fasanhas;

E cuja calva frente laureada

De importantes facsoins sempre saíra,

Um pouco sobre o cazo consid'rando,

Este acordo felis contente abrasa.

Vaise ter com a Astucia enganadora.

He esta uma rolisa Mosatona,

Que vestida de peles de rapoza,

E empunhando na dextra um rico cetro

Domina sobre os omems; manda, impera

Os indomitos tigres, quais cordeiros.


Em quanto pois bulindo dezenvolta

Lhe xamejaõ os olhos inquietos

Por ouvir o que quer dizerlhe o Velho,


Eu quero, lhe dis ele, que te empenhes

Agora em socorrerme quanto pódes.

De Baco um General meu inimigo,

Xamado por alcunha o Santareno,

Do esforso ou da fortuna socorrido

Tem triumfado das aguas. Oceano

Ja derrotada a flor de sua jente

Suspira inconsolavel. Mas dos livros

Do tremendo Destino irrevogavel

Eu sei que o Santareno ao ferro ao fogo

Naõ tem de dar a vida nas batalhas;

Pois uma pouca d'agua em ora infausta

Bebida, ha de arrancarlhe ao corpo o sprito.

O buzilis porem consiste agora

Em fazerlha beber sem que ele o saiba,

Por quanto este animal temlhe odio eterno.

Todavia a este laso que lhe tramo

Fugir naõ poderá. N'um arrabalde

Naõ lonje da Cidade, brevemente

Farsehá uma funsaõ que ele naõ perde.

Aqui pela canseira do caminho

Moído xegará, suado, e laso.

Forsozo he pedir vinho, isto naõ falha.

Tu pois, que és marralheira, ásde mui prestes

Em sua mesma Môsa transformarte;

E eu tornado em agua facilmente

Na vazilha entrarei que tu lhe deves

Lampeira ministrar. Ele sedento

Nem se he vinho, ou se he agua reparando

A enfuza vazará no grande buxo.

Deste modo a meu salvo os intestinos

Ávido devorando o darei morto,

E terei concluido a grande empreza.

Vamos pois sem demora vem comigo.


Vamos onde quizeres; insofrida

A Astucia respondeu. E logo promptos

Metidos n'uma nuvem negrejante

Tirada por seis Euros rujidores,

Despejando coriscos sentelhantes

Ao orrorozo som d'um trovaõ grande

Sobre a airoza Coimbra em fim baixáraõ.

Mas como do Deleite o Santareno

Estava no país, ordena Próteo

Que a Astucia dali sacar o fasa,

E á Cidade o conduza aonde a trama

Para o pobre cair armar pertende.


Entre os longos Estados da Mentira

Infame Imperatris da maior parte

Da terráquea mole, junto ás fraldas

D'uma verde colina alcantilada,

Sobre um campo espasozo, plano, ameno

A que regaõ d'um rio as mansas aguas,

A galante Cidade encantadora

Do vaidozo Deleite está plantada,

A pálida Doensa, os Desprazeres,

Os Remorsos crueis, a orrivel Morte

O cume senhoreiaõ do alto monte.

Mas o Engano traidor, c'um tolde espêso

Tudo isto ávido encobre á gran Cidade.

Nela tudo he prazer, tudo he descanso.

O povo abitador ao ocio dado

Só cuida em divertirse: o Baile, o Jogo,

Os Cantos, a Luxuria, os Boms-bocados

Aqui abítaõ ledos: pelas ruas

Amplas Satisfasoins andaõ jirando

Ministros de seu Rei: seu Rei parese,

C'o as fraudolentas côres que a Mentira

Arteira sobre modo o tem pintado,

Um rapás mui lousaõ de afavel jesto.


Aqui de toda a parte os povos correm

De seus serios deveres deslembrados

A pedir a este Rei, quais seus dezejos,

Tais as Satisfasoins, que outorga facil.

Aqui a avía vindo o Santareno,

E a meiga sua Espoza a Santarena,

A pasar algums dias satisfeito

Do fim da grande asaõ com que ultimando

A mais árdua vitoria felismente,

Tinha a um nome de impávida memoria

Por entre o ferro, e o fogo alcanse dado.


Mas a doloza Astucia que naõ sabe

Desvelada perder monsaõ de efeito,

Por Próteo instigada, em continente

As cambiantes azas solta aos ares,

Dá nele d'improvizo, e asim o ataca:

Dos remorsos se val acuzadores;

E por uma maneira extravagante

De seu alto saber somente propria,

C'o as cores da razaõ na triste ideia

Seu vil procedimento lhe debuxa.

Faslhe ver com a mesma consciencia

Como he mais justo que um Eroi constante,

Que as desgrasas tratou de bagatela,

Em as prosperidades naõ se infune.

Que naõ dê que falar ao povo rude,

Que murmurante na Cidade o acuza

Pelo ver aos prazeres taõ sensivel.

Que deve a sua caza retirarse,

Tirar do vencimento util proveito,

Naõ confiarse em si, porque inda as Aguas

Estancado naõ tem as forsas vastas.

Aqui do astuto Anibal traslhe á mente

E do Magno Pompeo exemplos vivos,

Que ja devem fazelo escarmentado.


Em fim estas solicitas lembransas

De tal sorte do Eroi fervelhaõ n'alma,

Que em si caindo parte rezoluto.

CANTO VII.

Entretanto em Coimbra amotinada

Era inda o pasmatorio inexplicavel

Por cauza do trovaõ medonho, e orrivel,

Que desde os fundamentos abalára

As altas cazas, e fizera aos sinos

Por si mesmos tocar nos campanarios.

Soava Saõ Jeronimo inda em partes,

E em outras Santa Barbara bemdita

Com espantozos berros; e a vizinha

Á timida vizinha inda contava

Das viboras de fogo côr de enxofre,

Que tortuozas rápidas caíraõ.


Os dois obézos vultos, que sozinhos

Pelas sombras da noite caminhavaõ

Vinhaõ asustadisimos: em bica

Lhes corria o suor, e sem falarem

Só vinhaõ nas camandolas sebentas

Ave Marias mil, e Padre Nosos

Ums apôs outros engolindo a medo.

A caza em fim xegáraõ, e por terra

Depois de averem dado aos Ceos as grasas

Pelos ter dos perigos defendido,

Entaõ uma Sobrinha por miudo

As coizas lhes contou que se pasavaõ.

Diselhes, que depois que eles se foraõ

Ao seu divertimento, na Cidade

Em nenhuma outra coiza se falava

Senaõ no grande risco a que seu Tio

Tinha ficado exposto; que entre dentes

Naõ sei que se rosnava; pois que o Xefe

Inimigo tentava armar ocultas,

Fraudolentas traisoins; que era precizo

Cautela, e mais cautela: acrescentando

Que teve ums sonhos (de que Deos nos livre)

Mesmo áquele respeito asás funestos.

No que naõ creu o Eroi; porem Madama

C'o a noticia em extremo intimidada,

Asentando que ali avía agoiro,

Fês que viese a caza no outro dia

Uma ábil Franxinota a lerlhe a sina.


Asim foi: uma veio asás jocoza

De cabasa, e bordaõ, trincos nas repas

Formados em torcidos papelotes,

Pálidas maõs, agaloadas unhas,

Altas as saias com franjoins de lama,

Mursa nos ombros de ensebado coiro

Com redondas conxinhas matizada,

E um de languidas ábas xapeo ruso

Com varios em redor Santiaguinhos

No alto da cabesa côr de estriga.


Era esta sagacisima, adestrada,

Mestra no ultimo ponto em Chiromancias.

Olhou, examinou, tomou medidas,

Mas viu mil cruzes na polpuda palma

Do magnanimo Eroi, mil entrelinhas

Cortando inteiras linhas, mil figuras,

Mil indicios em fim de agoiro aziago,


De caza em todos toma pose o susto:

Parese cada cara uma laranja.


Porem o Santareno que prezume

Ser em materias tais dezabuzado,

Que nunca em Bruxas creu, ou Lobizomes,

Deita estas coizas para trás das costas.

Trata de divertirse, e em mais naõ pensa.


Ai de quem da memoria o adagio varre

Quem inimigos tem dormir naõ deve!


Xegada estava entaõ uma romajem

Dia de Pentecoste, onde Coimbra

Em pezo aos Olivais sair costuma.

He esta uma funsaõ das mais luzidas

Daqueles arrabaldes; ali entra

Tudo o bom, e bonito; ali se encontra

Todo o recreio de qualquer espece.

Veemse ali jocozisimas Comedias

No amplo teatro do arraial vistozo.

Veemse as Trajedias de orrorozo aspéto

A sena ensanguentarem. D'uma parte

Esgrimese com ansia a espada preta,

D'outra em jogo de páo soa a lambada.

Aqui n'umas mezinhas enfeitadas

Mosas de arromba, que os tafuis arrastaõ,

Vendem d'envolta c'o as xulises torpes

Sédiso doce de mil castas feito.

Ali nas asadeiras xia a carne:

Esta freje a sardinha, aquela os ovos,

Uma vende agua ardente, outra beijinhos.

A fresca como neve limonada

De resto ali se trata: ali triumfante,

Como em brilhante trono, sobre um carro

De cana, parra, e loiros enramado,

Adoradores mil em torno tendo,

Vêse a
sine-qua-non
excelsa Pinga.


E que peito de páo, que alma de palha

Poderá insensivel n'um tal dia

Ao recreio negar entrada franca?

Um omem de bom senso, e que se préza

Ser da onra, e do respeito alumno serio

Ha neste dia de trancar insano

Em masmorra domestica o seu gosto?


Naõ era, o noso Eroi naõ era filho

De pai que tal fizese. Espoza cara,

Dis ele, he nesesario naõ perdermos

Os uzos, e costumes: he xegada

A minha romaria: resta veres

O que eide merendar; pois tu bem sabes

Que nisto da funsaõ consiste o todo.


Mas a crédula Espoza, a quem agoiros

Sempre grande impresaõ fizeraõ n'alma

Aflita com exceso asim lhe argúe:


Onde queres tu ir? Tu serás doido?

Credo! Apelo eu! Lenho da Crus Santa!

Naõ vês, alma de Deus, como danados

Andaõ teus inimigos de alcateia

A ver se te devoraõ? Tu naõ queres

Inda acabar de crer? Eu bem te avizo.

Se queres merendar, merenda em caza,

Deixa lá ir quem vai á romaria.

Bem viste a Franxinota o que te dise

Quando lendo te esteve a
buena dicha
.


Ai, temos conversado, a Deus Senhora;

Quero ir á romaria, tenho dito

(Replíca ele agastado) vá dar ordem

A um fardel em termos: ca por ora

As Aguas nunca me fizeraõ papo:

Naõ temo de nimguem, só de Deus temo.


Com efeito apromtouse uma merenda,

Que para outro qualquer fôra um banquete.

Era uma perna de vitela tenra

Com Anjelico molho temperada

Segundo os boms preseitos que arte ensina;

(Ele a tinha aprendido com boms Mestres)

De prezunto era um grande pratarrazio,

De porco quatro pés, seis orelheiras,

Uma lebre, um leitaõ, sete coelhos,

Ou láparos talvês; afóra o lombo

Que estivera ate'li de vinho d'alhos

Iaõ sinco ou seis pains de imensa mole;

Coroando por fim a obra toda

Xeia de vinho a pel'd'um bode d'ampla

Desmedida grandeza: odre admiravel,

Qual nunca em seus opíparos banquetes

Teve de Bromio o orelhudo Socio.


Mas vem a cada porco um S. Martinho.

Em fim he tempo, os duros Fados instaõ,

E Lachesis da roca por momentos

Vai tirar ao Eroi o ultimo fio.


Da partida se trata: a carga opíma

Da profuza merenda em dois alforjes

Um burro fas vergar: na maõ c'o as contas,

E c'o a borraxa á cinta, o Santareno

A maguada Espoza prende, e abrasa;

E entre doces coloquios até a noite

Seguro se despede. Mizerando

Que ignora que esta noite ao prazo dada

He por ordem dos Ceos a noite eterna!

Entaõ tres vezes que dirije os pasos

Da porta ao lumiar, tres vezes dentro

Se torna perturbado, inquieto, mudo.

Preságo o corasaõ dentro no peito

Agitado lhe bate: mil lembransas

De montaõ o atacaõ: anda, pára,

Nem sabe a decizaõ que tomar deva.

Mas se o que tem de ser, tem muita forsa,

Com eroico valor tanto imbecilho

Rompendo finalmente a estrada avansa.

CANTO VIII.

Vai a ultimarse a empreza. Numen terno,

Que os influxos nos lúgubres cantares

Da Heliconia montanha aos Vates mandas,

Para oje acompanhar meu canto triste

A minha lira d'évano tempéra,

E nas cordas me ensaia os dedos broncos,

Q'a impreterivel ordem dos susésos;

Ja me fas o sinal de pôr aos olhos

A lastimoza sena em que a Desgrasa

Deixou que á vergonhoza cobardia

Cedese o alto valor d'um peito nobre.

O estro se me afraca, o pulso treme...

Eu quizera esquivarme ao pezo enorme...

Ó Muzas ajudaime. Ja sentado

Sobre a relva do campo verdejante

Onde da romaria a jente estava

Noso Eroi dezabotoava impando

Os graúdos botoins da imensa vestia.

Ja mais em ano algum ele sentira

Em funsaõ semelhante entre folgares

Taõ grande desprazer dentro em si mesmo.


Ui lá! q'inda este burro naõ xegase!

Valhame Deus, forte tardansa he esta,

(Dizia ele lá comsigo mesmo)

Nem moso, nem dinheiro, nem garrafa;

Máo está o negocio... E asim rosnando.

Sentado cada vês mais se aflijia.

Levantase, o capote aos ombros puxa,

E gozando do fresco deleitozo,

Que o zefiro das azas sacodia

C'os olhos do concurso em torno gira.


A precavida Astucia, que d'um alto

Todos seus movimentos atalaia,

Entaõ em Môsa feita, de tal sorte

Que a sua em carne, e oso ser parese,

Sae d'entre o barulho, e contra o Amo

Os concertados pasos endireita.


Ora grasas a Deus! Pois inda'gora

He que tu la de vir oras axaste?

(Lhe dis ele agastado) Morto á sede

Ha mais de duas oras aqui posto

Sem xegar inda o vinho! Irra c'o a festa!

Por onde tems andado? Q'he do burro?


Como quem d'um perigo ilezo escapa,

Que fica longo tempo, em dezabafo

Do aflito corasaõ que á présa bate,

Cansado respirando, e da garganta

A fala desprender livre naõ pode;

Asim depois de um pouco estar ant'ele

Descansando arquejante, e fadigada,

D'est'arte entre ipotéticos enfados

Zangada a Mosa apócrifa responde:


Ah Senhor! que me dis? Sabe os trabalhos

Q'ese burro nos deu? Olhe a empreitada

Melhor naõ pôde ser. Mais de oito vezes

Tem caído c'o a carga: eu e o Fernando

Temo-nos visto Gregos: os alforjes

Vem todos lameados; as casoilas,

E frejideiras todas se quebráraõ:

(Cada palavra destas piamente

Creio que era no Eroi uma facada

Segundo as cores mil que ao rosto dava)

Os molhos se verteraõ; finalmente

Caminhando adiante eu vim mais prestes

Somente por pensar que esta tardansa

Lhe daria cuidado. E naõ pequeno,

(Torna ele) esa está boa! Esta somente

A mim he que susede... Paciencia:

Que lhe avemos fazer? Eide matarme?

Naõ; matese o Diabo. Vai depresa,

Que eu tenho muita sede, e estou suado,

Buscar meia canada n'uma enfuza,

Que eu naõ poso esperar que o odre xegue.

E traze do melhor, anda deprésa.


A Astucia mais naõ quis ouvir; e dentro

Do barulho sumindose contente,

O fatidico Vate que a aguardava

No aprazado lugar buscando encontra,

Mutuos parabems ambos se prestaõ,

E sem que dois minutos se esperdisem

Em agua o ávido Velho se transforma,

E na enfuza se mete. Corre, voa

A fatal Portadora. O Santareno

Tanto que a enfuza enxérga, ja sem tino

As guelas abriu voraginozas,

E, sem fazer no gosto algum reparo,

Alambazado, e sofrego d'um trago

Em vês de vinho foi beber a morte.

Dominante entra Próteo. D'improvizo

As entranhas do Eroi rujindo estalaõ:

Com orrorozas vascas treme o corpo:

Os brasos se lhe estrixaõ; torce a boca;

Revirados os olhos se lhe vidraõ,

Os dedos fexa, estende as pernas, morre.


Ah barbaro traidor! Que gloria, ou fama

Defeito taõ atrós, de asaõ taõ crua

Pertendes alcansar? Sempre em meus versos,

Se versos os meus versos sempre forem,

Notado tems de ser de vil, de infame.


Morreu o Santareno. As longas azas

Batendo logo a xocalheira Fama

O boato espalhou por toda a parte.

Alvorósase o Povo, corre, inquire,

E cercaõlhe o cadaver. Escumava,

Ainda quente o corpo; e a Morte pálida

Ja lhe tinha das faces desbotado

O vivo vermelhaõ. Ceos! que terrores,

Que frios sustos, que orrorozos pasmos

Esta morte naõ cauza á gente toda!

Eis uma tumba a multidaõ rompendo

Lá o condús em si levando fitos

Os tristes olhos da pasmada jente,

A funsão se desfás, tudo se abala;

E o jeral sentimento nos semblantes

Dos calados Romeiros vem pintado.

Tal se tira lisaõ destes exemplos!


A caza a tumba xega: o povo a porta

Rodeia em turbilhoins: toda a familia

Frenética rebenta em pranto amargo.

Da caza que resoa sem maneira

Fere as aureas estrelas o alarido.


Ja mais aparesêra em nosos dias

De dezordems taõ funebre um teatro!


Mas na Espoza infeliz que alma ferida

Ja tinha desde muito, entaõ se acaba

De cravar o punhal sangui-sedento.

A fala se lhe toma, as cores perde,

Suspira, desfalese, em fim desmaia.


So a linda Sobrinha, linda mesmo

Como Deus a criou, largando as redeas

Da violenta paixaõ que sofreava,

Insana fere as boxexudas faces,

Fórma gritos d'espanto, e as maõs fexando

Uma n'outra, indizivel xoradeira

Fas nestes termos pouco mais ou menos.


Ai Tio da minh'alma! Bem dizía

Bem diziamos nós que naõ saíse!

Que negra romaria nos foi esta!

E que áde ser de mim?... Oh Ceos, eu morro.

Ai de mim! Ja (quem tanto me queria)

Naõ me ouve aqui xorar mesmo ao pe dele!

Ja naõ fala, morreu... Forte desgrasa,

Senhor, forte desgrasa! Quem diria

Que n'um pouco de vinho fose a morte?

Mas ah! que a mim do sonho inda me lembra

Que ele os tempos atrás de noite teve!

Oh mal-aventurado, triste dia!

Nunca tu... E asim continuava

Abrindo, e com furor fexando as portas.


Em tanto a si tornando a Espoza Eroica

O amortalhado corpo apenas pôde

Só ver, e abrasar, porque fexada

Quis dar á sua magua o dezafogo

Que a todos nos ensina a Natureza.


Naõ ouve caõ nem gato a quem deixase

De custar quatro lagrimas tal perda.

Todos, bom Santareno, te xoráraõ:

Nas mesmas sentidisimas adegas

Ainda oje se veem lagrimejando

Os bojudos toneis, as gordas cubas.


Mas que ternura em mim!... Ah! vinde, vinde

Minhas lagrimas ternas, que tributo

Melhor naõ pagareis á sua memoria.

Oh mal aja o primeiro, que das guerras

A praga fes cair no pobre mundo:

Nefanda praga dos mortais verdugo,

Donde veio a dezordem, donde os roubos,

Donde a desolasaõ, a mortandade.

Ditoza Pás, dos Ceos abitadora,

Serena filha da Ventura eterna,

Que os mizeros umanos tanto alegras;

Se fora mais privado o teu imperio,

Se a execranda Discordia naõ ouzára

Entrar com maõ armada os teus limites,

Lansar neles o orror, destronizarte;

Ainda o meu Eroi de glorias xeio

Alegrára vivendo os nosos dias.

Mas naõ susede asim: est'alma nobre

Foi do sosego seu dezaposada

No melhor de seus anos: os trabalhos

Mais as consumisoins, que de rezerva

Dispostos a atacalo andavaõ juntos,

Fizeraõ nele o tiro; e o bem-fazejo,

O braso liberal que no regaso

Da esfaimada Pobreza amplos tezoiros

Franquear costumava viu-se a ponto

De pegar da espada. Mas que forsa

Naõ era a de seu braso? Que grandeza

A de seu corasaõ robusto, e forte?

Ah! e que Átropos cega, e sem acordo

Condene ao mesmo golpe o poltraõ baixo,

E o magnanimo Eroi, que a Patria onra!


Amigos deste Amigo, se inda o zelo

Vos aquese as asoins, eia xoremos,

Naõ sejamos ingratos, indolentes:

O luto se conhesa, banhe as faces

Um saudozo pranto. Quem mais facil

Satisfês algum dia, que este Amigo

As nosas precizoins? Quando caía

Das nuvems gêlo aspérrimo que o sangue

Nas veias encalhava, quando a negra

Mortal Melancolia o peito inerme

Cruel nos abafava, elle benigno

Naõ nos dava o remedio, apenas via

Junto á porta asomar nosos garotos?

A quem mais beneficios, mais louvores

Poderemos dever, telhas abaixo?

Ai de mim, que naõ poso, ó grande Amigo,

Xorar a tua perda incomparavel

Com pranto de ti digno! Oh s'eu podera

Gastar agora umor de Carpideira,

Noite, e dia regára o teu sepulcro.

Tu es digno de lagrimas eternas.

Eroi sempre invensivel, que fizeste

Notar teus aleivozos inimigos,

Se venserte quizeraõ, c'o a infame,

C'o a dezonroza marca de cobardes;

Varaõ constante, que arrostaste os lanses,

Qual aguia majestoza arrosta os ventos.


Arrepele os cabelos sibilantes,

Que a fronte negra esquálida lhe arreiaõ;

Raivoza a lingua morda, dê bramidos

Maiores que trovoins a magra Inveja;

Tu cantado serás: teu nome egregio

Na letárgica veia entre cardumes

De populares deslembrados nomes

Naufragio naõ fará: em pás descansa,

Seja-te leve a terra que te cobre,

De teus osos a pás nimguem perturbe.

Deixese ao Tempo revolver a roda:

Tems sempre de ser celebre no mundo,

Sem que a fama de Heitor te fasa sombra,

Sem á dita de Achiles ter inveja.



FIM.



Pascitur in vivis livor: post fata quiescit,
Cum sùus ex merito quemque tuetur honos.


Ovid. Am. l. I. E. 15.