The Project Gutenberg eBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 07

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 07

Author: Alexandre Herculano

Release date: November 9, 2005 [eBook #17036]
Most recently updated: December 12, 2020

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 07 ***

Produced by Carla Martins Ramos, Ricardo Diogo, and Tiago

Tejo and edited by Rita Farinha (Biblioteca Nacional
Digital—http://bnd.bn.pt).

OPUSCULOS

*OPUSCULOS*

POR
A. HERCULANO

SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA

SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS INSCRIPÇÕES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA-YORK, ETC.

*TOMO VII*

*QUESTÕES PUBLICAS*
TOMO IV

1.^a EDIÇÃO

LISBOA

TAVARES CARDOSO & IRMÃO—EDITORES

_5, Largo de Camões, 6

1898

Typ. da Empreza Litteraria e Typographica

Rua de D. Pedro, 184—Porto

ADVERTENCIA

O inedito em forma de projecto de decreto insérto n'este volume com a data de 1851, e de certo modo os estudos que o volume encerra relativos ao concelho de Belem, relacionam-se com factos pouco conhecidos da vida do auctor, e por isso expomos sobre elles os seguintes esclarecimentos para sua melhor intelligencia. Em 1851 combinara A. Herculano collaborar com o ministerio que subiu ao poder em 23 de maio d'esse anno, em um vasto plano de reformas destinadas a melhorar o estado economico, politico e administrativo do nosso paiz. Com esse proposito se prestou a entrar em varias commissões não remuneradas para que foi nomeado, entregando-se desde logo á sua patriotica empresa. Mas este pacto tão esperançoso para o paiz, apenas pôde manter-se por alguns dias, antes da recomposição ministerial de 7 de julho do mesmo anno, cessando de todo quando ella occorreu. Dos trabalhos de que o historiador se encarregara e em que n'aquelle breve espaço de tempo pozera mão, ainda por morte d'elle se conservavam nas suas pastas apontamentos e manuscriptos em diversos estados de desenvolvimento; e foi entre esses vestigios de um formoso sonho patriotico, que achamos aquelle projecto que, pela materia de que tracta, nos pareceu dever ser incluido no presente volume. Com esse projecto pretendia A. Herculano promover em grande escala a cultura dos nossos terrenos maninhos, especialmente a dos que eram vinculados, facultando a alienação do dominio util d'estes ultimos, por meio de emphyteuse, e interessando na acquisição d'elles o povo do campo e na cessão os administradores de vinculos. No preambulo, como o apresentâmos, faltam algumas considerações com que o auctor o precedeu ácerca do alcance economico dos decretos dictatoriaes de D. Pedro IV, pois que do respectivo manuscripto apenas apurámos fragmentos truncados; mas a omissão não o prejudica quer na redacção quer na doutrina, quanto ao seu essencial objectivo, sendo certo que o assumpto de taes considerações está largamente tractado pelo auctor no seu estudo sobre vinculos publicado no vol. IV d'esta collecção. Com o conhecimento d'este estudo facil nos foi deduzir da leitura de um dos referidos fragmentos, que A. Herculano attribuia ao seu projecto a vantagem de poder obstar a que os maninhos que se tornassem allodiaes pela extincção dos vinculos, viessem a accumular-se, malbaratados e incultos, nas mãos de poucos e já abastados proprietarios, á similhança do que succedera com muitos dos bens territoriaes que as leis de D. Pedro libertaram para o dominio do estado. A extinccão dos vinculos viria depois, com maior proveito de todos os interessados incluindo a sociedade. Em outro dos fragmentos se lê que o governo tencionava mandar rever o decreto de 22 de junho de 1846, sobre foraes, para o reconduzir ao genuino pensamento do decreto de 13 de agosto de 1832, sobre a mesma materia, aclarando-se tambem as disposições d'este ultimo. Mas alguns annos depois, como se conclue de uma correspondencia que o auctor mandou para o Archivo Rural e que fecha este volume, já elle achava tarde para se proceder a essa revisão, attenta a multiplicidade de transacções já então effectuadas segundo a lei de 1846.

Quanto aos estudos relativos ao concelho de Belem são do tempo em que A. Herculano presidiu á camara municipal d'aquelle concelho, no biennio de 1854-1856, e constam de duas representações da camara, uma ao governo, outra ás côrtes, e de um projecto de Caixa de Soccorros Agricolas. Foram todos publicados em folhetos e vão reproduzidos no presente volume apenas com leves emendas de revisão que o auctor deixou indicadas. Estes importantes estudos e a presença do auctor na vereação do concelho, tambem se relacionam com os factos politicos a que acima nos referimos. A medida administrativa traduzida pelos decretos de 11 de setembro de 1852, que extinguiram o termo de Lisboa e com elle constituiram os concelhos de Belem e dos Olivaes, estava incluida no plano de reformas do ministerio de 23 de maio de 1851; mas o ministerio seguinte não attendera n'estes diplomas a todas as razões de justiça em que ella devia basear-se, succedendo que os novos concelhos ficaram privados dos recursos a que tinham natural direito e lhes eram imprescindiveis para prover á sua livre administração e manter a sua independencia. Como as opiniões de A. Herculano n'esta materia e a sua intervenção n'aquelle plano de reformas eram conhecidas de muitas pessoas influentes do concelho de Belem, d'ahi nasceu a idea de o investirem no encargo de vereador, para que elle viesse reclamar contra a injustiça e aclarar o pensamento originario da medida decretada. Accresce que em 1854 o ministerio ainda era o mesmo que referendara aquelles decretos, e d'este modo se explica a eleição do historiador e pelo theor das representações da camara se ajuiza de toda a questão. Porém, não foi apenas para satisfazer aquelles justificados designios dos seus constituintes que A. Herculano acceitou o encargo popular para que fôra eleito. Uma aspiração mais elevada, sobrelevando quaesquer intuitos politicos, o guiou n'esse procedimento, aspiração que se revelou em todos os actos da camara da sua presidencia, e accentuadamente se patenteia nos estudos de que falamos: era crear no concelho de Belem uma norma de administração local que, tornando-o florescente, podesse servir de incentivo a outros concelhos: era tentar a propaganda do municipalismo pelo exemplo, já que em 1851 lhe escapara o ensejo para fazer revigorar em todo o paiz, a grande instituição que elle tanto encarecia e que, segundo as suas profundas investigações historicas, foi n'outras éras a base da nossa prosperidade e força politica.

Não é para este logar a narração de como a camara presidída por A. Herculano veio a ser dissolvida pelo governo, não conseguindo o historiador levar a cabo a sua nobre tentativa. Os esclarecimentos que ficam expostos são bastantes para o fim a que se destinam.

1898.

Os editores.

DUAS EPOCHAS E DOUS MONUMENTOS OU A GRANJA REAL DE MAFRA

1843

Houve entre nós um rei nascido com uma indole generosa e magnifica: foi D. João V. Favoreceu a fortuna a grandiosidade do seu animo. Durante o reinado d'este principe as entranhas da America pareciam converter-se em ouro, e a terra brotar diamantes para enriquecerem o thesouro portuguez, e o nosso primeiro rei do seculo XVIII pôde emular Luiz XIV em fasto e magnificencia. Ha, porém, differenças entre os dous monarchas: Luiz XIV, mais guerreador que guerreiro, malbaratou o sangue de seus subditos em conquistas estereis; D. João V, mais pacífico que timido, comprou sempre, sem olhar ao preço, a paz externa dos seus naturaes. Luiz XIV levou a altissimo gráu d'esplendor as letras e as sciencias: D. João V tentou-o; mas ficou muito áquem do principe francez. Devemos todavia lembrar-nos de que Luiz XIV era senhor de uma vasta monarchia, e D. João V rei de uma nação pequena. Uma litteratura extensa e ao mesmo tempo vigorosa só apparece onde ha muitos homens. É como a grande cultura, que só pode fazer-se em opulentas propriedades e dilatados terrenos.

D. João V teve como Luiz XIV o seu Louvre; mas um Louvre em harmonia com o caracter, não tanto religioso como beato e hypocrita, do seu paiz n'aquella epocha. Mafra ficou duvidosa no desenho, entre o mosteiro e o palacio. As duas entidades architectonicas compenetram-se ahi d'um modo inextricavel. A púrpura está lá remendada de burel; o burel alindado com púrpura, e o sceptro do rei enlaça-se com a corda d'esparto, ao passo que a alpargata franciscana ousa pisar os degráus do throno. Os que sabem quão corrompidos foram os costumes em Portugal no princípio do seculo passado, e quão esplendido e ostentoso foi o culto divino; quão brilhante foi a côrte portugueza n'esse tempo, e por quão frouxas mãos andou o leme do estado, não precisam vêr Mafra. Mafra é a imagem de tudo isso.

Um grande edificio, fosse qual fosse o destino que seu fundador lhe quizesse dar, é sempre e de muitos modos um livro de historia. Os que n'elle buscam só um typo por onde aferir o progresso ou decadencia das artes na epocha da sua edificação, lêem apenas um capitulo d'esse livro. Os castellos, os templos, e os palacios, triplice genero de monumentos que encerra em si toda a architectura da Europa moderna, formam uma chronica immensa, em que ha mais historia que nos escriptos dos historiadores. Os architectos não suspeitavam que viria tempo em que os homens soubessem decifrar nas moles de pedras affeiçoadas e accumaladas a vida da sociedade que as ajuntou, e deixavam-se ir ao som das suas inspirações, que eram determinadas pelo viver e crêr e sentir da geração que passava. Elles não sabiam, como os historiadores, que no seu livro de pedra, tambem como nos d'aquelles, se podia mentir á posteridade. Por motivo tal foi a architectura sincera.

Mafra é um monumento rico, mas sem poesia, e por isso sem verdadeira grandeza: é um monumento de uma nação que dormita após um banquete como os de Lucullo: é o toucador de uma Lais ou Phrine assentado dentro do templo do Deus dos christãos, e sob outro aspecto, é a beataria d'uma velha tonta, affectando a linguagem da fé ardente e profunda d'Origines ou de Tertulliano.

Sem contestação, Mafra é uma bagatella maravilhosa, o dixe de um rei liberal, abastado e magnifico; é pouco mais ou menos o que foi Portugal na primeira metade do seculo XVIII.

Collocai pela imaginação Mafra ao pé da Batalha, e podereis entender quanto é clara e precisa a linguagem d'estas chronicas, lidas de poucos, em que as gerações escrevem mysteriosamente a historia do seu viver. A Batalha é grave como o vulto homerico de D. João I, poetica e altiva como os cavalleiros da ala de Mem Rodriguez, religiosa, tranquilla, santa como D. Philippa rodeada dos seus cinco filhos. As mãos que edificaram Santa Maria da Victoria, meneando as armas em Aljubarrota, deviam ser vencedoras. A Batalha representa uma geração energica, moral, crente: Mafra uma geração afeminada, que se finge forte e grande. A Batalha é um poema de pedra: Mafra é uma semsaboria de marmore. Ambas, ecchos perennes que repercutem nos seculos que vão passando a expressão complexa, e todavia clara e exacta, de duas epochas historicas do mesmo povo, sua juventude viçosa e robusta, e sua velhice cachetica.

O caracter de um monumento do tempo presente não póde ser por certo um edificio gigante, um templo, ou um palacio. Onde as crenças religiosas vacillam como a luz que se apaga, o templo seria uma pagina de historia fabulosa: onde a pobreza extrema substitue a riqueza, um tanto estupida e fastosa com mau gosto, o palacio esplendido seria um capitulo anachronico. O monumento deve resumir a sociedade, e em nenhum d'esses generos de memoradum se acharia representado o actual existir.

Que somos nós hoje? Uma nação que tende a regenerar-se: diremos mais: que se regenera. Regenera-se, porque se reprehende a si propria; porque se revolve no lodaçal onde dormia tranquilla; porque, se irrita da sua decadencia, e já não sorri sem vergonha ao insultar d'estranhos; porque principia, emfim, a reconhecer que o trabalho não deshonra, e vai esquecendo as visagens senhorís de fidalga. Deixai passar essas paixões pequenas e más que combatem na arena politica, deixai fluctuar á luz do sol na superficie da sociedade esses corações cancerosos que ahi vêdes; deixai erguerem-se, tombar, despedaçarem-se essas vagas encontradas e confusas das opiniões! Tudo isto acontece quando se agita o oceano; e o mar do povo agita-se debaixo da sua superficie. O sargaço immundo, a escuma fétida e turva hão-de desapparecer. Um dia o oceano popular será grandioso, puro e sereno como sahiu das mãos de Deus. A tempestade é a precursora da bonança. O lago asphaltite, o Mar-Morto, esse é que não tem procellas.

O nosso estrebuxar, muitas vezes colerico, muitas mais mentecapto e ridiculo, próva que a Europa se enganava quando cria que esta nobre terra do ultimo occidente era o cemiterio de uma nação cadaver. Vivemos: e ainda que similhante viver seja o delirio febril de moribundo, esta situação violenta, aos olhos dos que sabem vêr, é uma crise de salvação, posto que dolorosa, e lenta. Confiemos e esperemos: o nome portuguez não foi riscado do livro dos eternos destinos.

Um dos signaes evidentes da restauração social do paiz, e ao mesmo tempo o caracter mais notavel que distingue esta epocha é o seu movimento industrial, industrial na mais extensa significação da palavra. Primeira entre as differentes industrias é a agricultura, e a agricultura tem incontestavelmente sido o nosso principal progresso.

Qual será portanto o monumento que melhor resuma este periodo de regeneração? Será o aspecto do solo, o viço dos campos, a abundancia substituida á escaceza na morada do homem laborioso. Arroteai algumas geiras de terra: em um marco esculpi a data d'essa transformação: cobri a superficie de Portugal d'estes marcos. Eis ahi, não um, porém mil monumentos que significarão o espirito do presente.

Plantai o bosque na serrania escalvada: que elle braceje virente para o céu, e enrede as suas raizes nas rachas da penedia. Agitada pelo vento, a selva com o seu rugir irá contando a cada seculo que nascer as tendencias laboriosas do nosso, que já começam a apparecer. Os cimos das montanhas são as verdadeiras aras de Deus: é lá que oravam as nações virgens. Sanctificai a vossa religião de patriotismo pelo culto universal e primitivo: o bosque murmurando com o espirar da aragem é um hymno ao Ancião dos Dias: que este hymno nos consagre a memoria ao amor e gratidão de nossos filhos!

Ao lado dos paços monasticos de Mafra, monumento de uma era de vans grandezas, vai-se hoje alevantando sem ruido o monumento modesto, mas eloquente e sancto, da idéa progressiva da actualidade. Ao lado d'essas pedras amontoadas, d'esses torreões gigantes, macissos, e pesadamente estupidos, serpeam já os prados virentes por veigas e valles, cobertos ainda ha pouco de abrolhos e urzes. Contrastando com os lanços de muralhas caiádas da ochre, que amarelleja bestialmente, como um cordão de ouropel enfiado em diamantes, por entre a côr severa dos marmores tisnados pelo tempo, vêem-se ao longo verdejar os pinheirinhos, que coroam as alturas ao norte e oriente d'aquelle edificio monstruoso, hybrido, e extravagante como uma composição pseudo-poetica da Phenix-Renascida. As folhas de terra cultivada dilatam-se pelas chapadas e encostas, várias na côr segundo a altura das cearas, ou conforme a qualidade do solo, nos sitios onde ainda as sementeiras não surgem no comêço do germinar. É como um xadrez enorme, cujas casas se houvessem repartido ao acaso n'um taboleiro irregular e immenso.

A vontade real fez apparecer o edificio: outras Vontades Reaes fizeram nascer a granja-modelo. Para a primeira requeria-se ouro e força; para a segunda intelligencia e amor do paiz. O sceptro foi robusto e potente quando amontoou aquella penedia lavrada e esculpida: o sceptro é o symbolo da paz e da beneficencia quando em vez de converter pão em pedras, converte gandra bravia e esteril em um nobre exemplo que mostre ao povo onde está a sua derradeira esperança, o progresso da industria e o amor do trabalho.

Para a maravilhosa inutilidade de D. João V gastaram-se por largos annos os milhões que de continuo nos entregava a America: o lidar accumulado de cincoenta mil homens consumiu-se em desbastar e pulir essas pedras hoje esquecidas, que apenas servem para alimentar por algumas horas a curiosidade dos que passam. É uma verdade cem vezes repetida, que o preço de Mafra teria coberto Portugal das melhores estradas da Europa; mas nem por ser trivial essa verdade deixa de ser dolorosa. E todavia tal preço era o menos! As maldiccões submissas dos que foram arrastados de todos os angulos da monarchia, para esta grande anudúva nacional, e as lagrymas das suas familias, não as pôde suffocar a adulação cortezã; transsudaram até nós nas paginas da historia, e cahindo sobre o ataúde dourado do principe que as fez verter, deixaram a inscripção do seu nome manchada de uma nódoa que o tempo não gastará.

A vasta e risonha granja que viceja ao lado do negro e carrancudo edificio não custou uma só mealha dos dinheiros publicos; não arrancou uma lagryma. Não são maldicções o seu fructo: são bençãos dos que vivem: serão no futuro bençãos da posteridade.

O convento-palacio, nascido sob manto de púrpura, alegre na sua juventude e habituado a pompas de longos annos, ahi está, illustre mendigo, assentado hoje n'um como ermo, onde a vida robusta de seculos que lhe fadára o fundador, se vai convertendo em antecipada decrepidez. Inutilmente com a sua grande voz de bronze elle pede que o abriguem das injurias das estacões. As aguas do céu, filtrando-lhe por entre os membros, lá os vão lentamente desconjuntando, o sol cresta-lhe a fronte e faz prosperar os musgos, que lhe arrugam a rija epiderme: o vento redemoinha atravez das suas janellas mal seguras, e bramindo n'aquellas solidões do seu recinto, atira ao rosto das estatuas, aos acanthos dos capiteis, á face polida das paredes de marmore, o pó que tomou nas azas passando pelas serranias. No meio do estrepitar do mundo ninguem escuta o gemer do gigante de pedra; ninguem se lembra de tirar do peculio do estado a mais pequena somma para elle. E porque? Porque a sua miseria não fala aos corações nem aos entendimentos. Memorias gloriosas? Não as ha lá. Utilidade? Para que serve essa pedreira immensa?

A granja, porém, de Mafra nem teme as aguas do céu, nem os raios creadores do sol: povôa os seus agros outeiros de pinhaes, a cujo abrigo zombará em breve da furia dos ventos. Não vae pedir soccorros á munificencia publica: util já aos pequenos e humildes, sê-lo-ha tambem algum dia a quem a fez nascer, util em proveitos materiaes, e, o que mais vale, em fructos de verdadeira gloria.

Ha quatro annos apenas, que os muros da cêrca ou tapada de Mafra, estirando-se como serpe monstruosa por tres leguas, atravez de valles e outeiros, encerravam um vasto maninho coberto de sarças rasteiras, onde raro se via alevantar uma arvore solitaria, curva e pendida pelo açoutar continuo das ventanias, ou algum pequeno e enfezado pinhal perdido no meio d'aqueles mattos inuteis. Era um symbolo de barbaria ao pé d'um symbolo de opulencia. O edificio e o parque pareciam significar no seu conjuncto—o orgulho tendo por fundamento o nada.

Ha tres annos ordenaram SS. MM. se começassem a desbravar esses terrenos incultos. O actual intendente das cavalheriças reaes, o Snr. A. Severino Alves, foi encarregado de administrar as caudelarias alli estabelecidas, e da direcção daquelle arroteamento. Obra de uma sexta parte da tapada mais proxima do edificio destinou-se immediatamente para a cultura, e os trabalhos principiaram. O estado em que estes se acham, comparado com as despezas, proporcionalmente diminutas, que se tem feito, provam que talvez houvesse quem fosse tão digno de ser encarregado de realisar o pensamento generoso, nobre, e civilisador dos nossos Principes, mas que ninguem por certo o seria mais que o Snr. A. Severino Alves.

O que vamos dizer não é completo; não é a historia particularisada de tudo que examinámos com os proprios olhos; porque não queremos ser prolixos. O nosso intento é vêr se contribuimos para o verdadeiro progresso da terra em que nascemos. Se os grandes ou pequenos proprietarios que abandonam os seus campos e herdades, ou que desprezam os meios de os tornar mais productivos, se mostram surdos ao bradar da imprensa e de todos os homens sisudos, revocando esta malaventurada nação á actividade e ao trabalho, que se envergonhem ao menos com o exemplo que lhes dá o throno. Em quanto os governos e os parlamentos ponderam a conveniencia, a necessidade do estabelecimento das quintas de estudo, em Mafra, sem ruido, sem verbosos relatorios e discursos, se vae estabelecendo e aperfeiçoando uma granja modelo, que esperâmos faça sentir dentro de pouco á agricultura portuguesa o seu benefico influxo. Certos de que SS. MM. se collocarão á frente do movimento agricola do paiz, porque o augmento da agricultura deve trazer a prosperidade aos seus subditos, n'este jornal, que se derrama por todos os angulos de Portugal, daremos noticia das experiencias que se forem fazendo, dos melhoramentos que se forem introduzindo nas propriedades do apanagio da Corôa. A nossa situação especial nos habilita para obter a este respeito exactas informações. A utilidade que d'ahi possa resultar aos agricultores, retribuam-n'a elles em gratidão aos Principes que souberam ser dignos do amor dos portuguezes, e entenderam plenamente o grave e progressivo pensamento d'este seculo.

Escolhida a porção de terreno na tapada de Mafra, que se devia destinar á cultura, dividiu-se aquella parte em oito grandes tractos ou folhas, cujo arroteamento se tem seguido successivamente e sem interrupção até hoje.

O systema adoptado para este fim foi o melhor que era possivel imaginar. Alem da cultura feita á custa da Casa Real, vão-se distribuindo aos habitantes da villa de Mafra os terrenos que elles querem desbravar. O inteiro uso-fructo d'estes terrenos fica pertencendo por tres annos a quem os converte de maninhos que eram em terras araveis, e ainda que o solo da tapada me pareça de inferior qualidade, e se achasse muito deteriorado pelas plantas ruins de que estava coberto, todavia essa cultura tem dado excellentes resultados. A producção da batata, planta tão conveniente para terrenos arroteados de novo, ha sido tal, que no anno passado se alevantaram na tapada 1:800 carradas d'este util solano, cuja introducção na Europa tornou impossiveis as fomes espantosas, que de annos a annos lhe desbastavam a povoação. N'essas encostas e veigas onde, tão pouco tempo ha, os olhos esmoreciam alongando-se pelos sarçaes, vêem-se estendidas as searas, os campos de milho e os batataes, e nos rostos dos habitantes da villa e dos povoádos circumvisinhos, e nos seus trajos e porte, vê-se que se o amor da taberna tem diminuido, os habitos do trabalho, e por isso a abastança tem augmentado.

Mais de vinte egoas, mãis e filhas, e de quarenta poldros, constituem já uma caudelaria que vai adquirindo rapido crescimento. Cincoenta vaccas entre as de casta vulgar, torinas e de uma excellente raça asiatica, ahi são tractadas com esmero talvez não inferior ao que se emprega na começada caudelaria. Os estabulos e curraes, ordenados pelos melhores methodos modernos, e com attenção a importantes considerações hygienicas, seriam um bom modelo para aquelles que pensam reduzir-se o tratamento dos gados unicamente a dar-lhes muito de comer, não importa se bom ou máu.

Ainda que na granja de Mafra os animaes sejam alimentados, por via de regra, á manjadoura, systema hoje aconselhado nos paizes mais adiantados como preferivel por graves motivos, nem por isso deixa de haver n'este estabelecimento agricola muitos prados pastaveis, compostos, alem da azevem, de uma mistura de certo numero d'aquellas plantas de que separadamente se compõem os artificiaes. Estes, porém, merecem com razão os especiaes cuidados do Snr. Severino Alves.

As plantas que constituem estes prados, tanto regados como seccos, são a luzerna, os trevos, branco e encarnado, o onobrychis (sainfoin), a anafa, a cenoura, e a ervilhaca. A cultura d'algumas d'estas forragens ainda se limita a diminutas experiencias, mas a de outras já tem adquirido bastante extensão. Admirámos sobretudo um luzernal, onde o methodo da transplantação produziu magnificos resultados. Cada pé de luzerna lançando em roda os seus muitos rebentões ou filhos, fórma uma especie de mouta robusta, que produz em cada córte muito maior porção de pasto do que produziria uma superficie egual á que occupa, semeada de luzerna que não fosse transplantada.

O incremento que estes prados podem ter n'aquelles, d'antes tão pobres e tristes, hoje tão ricos e risonhos terrenos, é d'extrema importancia. Duas enormes lagôas, uma das quaes é constantemente refrescada e supprida por uma pequena veia d'agua perenne, foram limpas e vedadas construindo-se canos subterraneos por onde se hajam de sangrar convenientemente. Estas lagôas, collocadas em certa altura, podem regar um valle extensissimo, optimo para o augmento de prados.

A silvicultura, essa parte tão interessante e tão bella da sciencia de agricultar, tem em Mafra um terrivel inimigo—o noroeste. Este vento sopra ahi com violencia extraordinaria. Alguma arvore silvestre, que vivia solitaria no meio d'aquelles mattos rasteiros, vergada para sueste na altura das arrancas, estende rachytica os seus ramos açoutados pelas ventanias quasi parallelos com a terra. Estabeleceu-se porém um systema d'abrigos, que deve dentro d'alguns annos tornar não só possivel, mas até facil, a propagação de arvores de floresta e de fructo. Os pinheirinhos bravos (pinus maritima) cobrem já os cabeços escalvados que se alevantam por meio das chapadas, encostas, e valles, e os castanheiros, carvalhos, e azinheiros bordam os caminhos: estes bosques, quando crescidos, annullarão em grande parte a violencia dos ventos, e então será possivel o plantio de outras arvores silvestres e fructiferas, principalmente das oliveiras, de que já se vão preparando extensos e bem ordenados viveiros.

Uma consideração que occorre naturalmente ao imaginar similhante extensão de cultura, é a dos adubos, e a do modo de os fazer progressivamente augmentar. Ácerca d'este ponto capitalissimo, daremos brevemente curiosas e interessantes noticias, em um artigo especial. Então teremos occasião de falar dos differentes methodos de amanhar as terras, que progressivamente se vão introduzindo na granja de Mafra.

Os instrumentos aratorios e mais machinas do serviço agricola são construidos no mesmo estabelecimento em officina para isso principalmente deputada. Ahi se encontra a charrua ingleza, a araveça grande de uma aivéca, a pequena de duas, o semeador, as grades triangulares e de diversos feitios, o trilho de debulhar, o engenho de traçar cevada, carros inglezes, etc., alem dos instrumentos proprios do paiz construidos com perfeição.

Tal é o rapido quadro da transformação que apresenta uma parte d'esses maninhos inuteis da tapada de Mafra. Importante em si, similhante transformação muito mais o tem sido pela influencia que o exemplo produz n'aquelles arredores: o agricultor, que por assim dizer palpa as vantagens que resultam de um systema illustrado de agricultar, vae abandonando as suas grosseiras usanças, que todos os discursos dos livros não alcançariam estirpar. Mafra está sendo um fóco de luz, uma fonte de progresso agricola. Entre os beneficios que tem produzido este é porventura o maior. Aquella vasta granja, se proporciona a muitos abastança, o alimento para o corpo, offerece a muitos mais as revelações da sciencia—o alimento para o espirito.

O edificio ahi está mendigo, abandonado, canceroso já, e inutil, ao lado da granja cheia de viço, rica, generosa, e abençoada d'esperanças. São dous monumentos de dous seculos diversos, ambos obras de Reis. Que a philosophia julgue um e outro, e julgue tambem as vontades e as intelligencias que fizeram surgir um e outro.

BREVES REFLEXÕES SOBRE ALGUNS PONTOS DE ECONOMIA AGRICOLA

1849

Ajuda, 8 de março de 1849

Circumstancias meteorolOgicas extraordinarias ameaçam o nosso bello paiz de uma colheita nulla. Perto de trez mezes de aridez, na epocha do anno em que as chuvas são mais necessarias, têm quasi destruido as esperanças dos agricultores. Um mez mais que dure esta situação, e o mal tornar-se-ha intensissimo e, em grande parte, irremediavel.

Os espiritos fracos contentam-se com blasphemar ou carpir-se. Isto é cobardia. Muitos voltam-se para Deus e imploram a Providencia. Isto é respeitavel. Outros pensam nos alvitres para occorrer á miseria e á fome, que pode vir a pesar sobre a população menos abastada. Isto é generoso e nobre. Mas aquillo em que poucos pensam é em converter esta situação assustadora n'uma lição salutar; em deduzir do mal presente proveito para o futuro.

O nosso povo actual é um pouco similhante a seus avós, os marinheiros do seculo XVI, que affrontavam as procellas dos mares da India e da America. Rudes e feros na bonança, voltavam-se para o céu quando a tempestade ameaçava submergil-os. Era d'aquelles trances que os sacerdotes, seus companheiros de riscos e aventuras, se aproveitavam para os revocar ás sanctas doutrinas da fé, e era ordinariamente então que n'essas almas rudes achavam accesso o arrependimento e as verdades da religião.

Desejariamos que a imprensa fosse tambem um pouco similhante aos bons missionarios do seculo XVI; que nos dias da angustia dissesse algumas verdades duras aos povos, quando mais não fosse, ao menos para interromper a monotonia das que diariamente diz aos reis. A imprensa que vive da publicidade, da publicidade que se estriba na bolsa do povo, praticaria um acto de devoção mais corajosa, falando severamente aos seus naturaes patronos, do que dirigindo-se aos principes, de quem ella depende incomparavelmente menos para existir e prosperar.

Por isso nós a convidariamos para que, sem distincção de partidos, sem lhe importar com a diversidade da sua missão politica ou litteraria, aproveitasse o ensejo de temores que assaltam geralmente os animos, para insinuar n'estes importantes verdades.

A natureza do flagello que nos opprime, as observações que fizemos n'uma pequena excursão para o lado de Cintra, nos suscitaram estas reflexões, a que esperamos associem outras de mais valor as pessoas competentes. Posto que dominados por uma viva affeição á agricultura, a essa rainha das industrias, somos apenas curiosos n'esta materia. Ha, porém, uma certa somma de verdades iniciaes na sciencia que estão ao alcance de todos os que as buscam, seja como estudo, seja como curiosidade.

Portugal tem uma agricultura incompleta. Se exceptuarmos o Minho, podemos dizer que o producto do nosso sólo é exclusivamente representado pelos cereaes, pelo vinho e pelo azeite. Por importantes, comtudo, que sejam os dous ultimos, o principal é, como em todos os paizes, o dos cereaes.

Mas é doutrina incontestavel que para a cultura d'estes poder prosperar é necessaria a copia de estrumes; que para haver copia d'estes é necessario gado; que este não existe, ou tem uma existencia precaria onde não ha pastagens, e estas são sempre miseraveis e insufficientes n'um paiz onde a intensidade, digamos assim, do systema agricola não é proporcional á sua extensão; onde a arte não ajuda energicamente a natureza a supprir a alimentação dos animaes.

Portugal não tem creações de gado: queremos dizer, não tem n'este ramo de industria rural senão o restrictamente necessario para a lavoura, pelo que respeita a gado grosso; e o seu gado lanigero é pouco numeroso, imperfeito, e rareado annualmente pelos resultados de um tractamento quasi selvagem. Porque? Porque ainda não adoptámos a doutrina fundamental de toda a agricultura judiciosa, a creação dos animaes n'uma larga escala, nem buscámos ainda os meios para isso adequados.

As nossas terras mais ferteis produzem de 10 a 15 sementes, e a producção das mediocres é entre 5 e 8. Tendo a cultura adquirido uma grande extensão, com esta producção acanhada o lavrador acha-se collocado entre dous extremos deploraveis. Se o anno é mau, a limitada proporção entre a semente e o producto torna-se ainda mais restricta, e embora suba o preço do genero, o fabrico absorve quasi a colheita: se o anno é propicio, a barateza no mercado vem a inutilisar a abundancia, e o cultivador fica sempre miseravel.

A imperfeição das machinas e dos methodos, o pessimo systema, ou antes a negação de systema nas rotações, e varias outras causas, contribuem para este estado violento; mas a causa principal é a desproporção enorme na distribuição do solo: o homem crê fazer para si a parte do leão, e engana-se. Espoliando os animaes que o ajudam nas suas laboriosas tarefas, os animaes que o vestem ou lhe fertilisam os campos, do quinhão que lhes cabe nos fructos d'estes, torna-se desgraçado a si no meio de uma abundancia mais apparente que real.

Na Inglaterra, o paiz modelo da agricultura, os productos de um terço, pelo menos, da terra cultivada pertencem aos animaes domesticos. Nós talvez não lhes reservamos um centesimo. O erro n'esta parte produz uma infinidade de factos, que principalmente determinam a falta de progresso d'intensidade na agricultura nacional.

Um anno pouco favoravel, como o que vae correndo, descobre logo por diversos modos a nossa situação deploravel.

De que ouvimos principalmente queixar os agricultores, quando os interrogamos sobre os fataes effeitos d'este estio inesperado, que veio pesar sobre nós no coração do inverno? De que esse pouco gado que possuem morrerá á fome. Porque? Porque o lavrador põe quasi exclusivamente as suas esperanças nas hervagens espontaneas; entrega á Providencia o cuidado dos seus bois e das suas ovelhas. Esta confiança nem é prudente, nem religiosa. Deus não deu inutilmente ao homem a faculdade de reflectir, nem os braços para o trabalho. A protecção da Providencia não vae até o ponto de supprir o desprezo da nossa actividade intellectual e material.

Perdemos os poucos gados, que possuimos, quando o inverno é secco; perdemol-os se é excessivamente chuvoso. Pode-se dizer que este facto pinta e resume o estado do nosso progresso agricola.

Que prevenções faz em geral o cultivador para obviar a qualquer d'eslas hypotheses terriveis, tão faceis de verificar-se, principalmente a segunda? Nenhumas. Onde estão os fenos devidamente colhidos e reservados, onde as raizes das plantas chenopodeas e cruciferas, onde os prados artificiaes, regados pelos ribeiros, onde, emfim, todos esses recursos, de que o agricultor dos paizes centraes e do norte lança mão para resistir ás incertezas das estações?

O lavrador cultivou cereaes, muitos cereaes, e repousou, pelo que tocava ao seu gado; nos dons espontaneos do inverno. O inverno negou-os. Resta pedir a Deus que reduza á regularidade as variações atmosphericas, variações incertas só para nós, e dependentes de leis naturaes, que porventura os progressos da meteorologia virão ainda revelar-nos, e que não cremos se hajam de alterar a favor da nossa imprevidencia.

Sabemos o que se costuma responder a isto: «Esses fenos, esses prados, essas raizes fusiformes, que constituem uma alimentação abundante para os animaes, são possiveis nos paizes humidos do norte. O nosso clima adusto torna impossivel a applicação de um systema analogo.»

Seria longo, mas pouco difficil, mostrar sob todos os aspectos o sophistico d'este argumento; mostral-o por factos. Impressionados pelo que, com tristeza, acabamos de ver n'um tracto de terra de cinco leguas, limitar-nos-hemos a algumas considerações especiaes.

E primeiro que tudo, com que direito se invoca, para defender a incuria agricola, falta de humidade no nosso clima, quando deixamos correr annualmente para o mar milhões de pipas d'agua pelos grandes rios e por centenares de regatos, que podiam, muitas vezes com leve trabalho, fertilisar os campos visinhos e alimentar prados, cuja producção excederia quanto a cultura dos paizes do norte offerece, n'este género, mais admiravel?

Depois, que meios se empregam para temperar pela arte os effeitos da nossa situação meridional? Os habitos adversos a esses meios são os que dominam entre a população campestre. É sabido que as arvores, ainda nas noites mais seccas do estio, attrahem á terra uma grande porção de humidade. A que deve o Minho a frescura dos seus valles, os enormes productos do seu solo, que não soffre comparação com as nossas terras fortes da Estremadura? A uma arborisação admiravel. O homem do sul tem odio, litteralmente odio, não só ás selvas, mas até á arvore solitaria, que pode assombrar-lhe algumas pavêas de cereaes, porque os cereaes são o idolo que resume todos os seus affectos, embora a cruel experiencia lhe venha provar, nos annos desfavoraveis á cultura das gramineas, que o seu systema acanhado e exclusivo conduz facilmente á miseria e à perdição.

Este ódio às mattas e arvoredos tem-se tornado n'uma especie de contagio, que vae lavrando e ameaça as provincias septentrionaes. A Beira ha muito que começou a ser despojada dos seus magnificos bosques, que por partes a tornavam rival do Minho. Os effeitos, porém, do destroço insensato dos grandes vegetaes sentem-se principalmente na Estremadura, e sobretudo n'este tracto de terra entre dous mares, onde se acha situada a capital. Os vapores, que as arvores, povoando os cimos dos montes, attrahiriam para os valles, não descem á terra: os ventos do norte, precipitando-se livres dos visos calvos das collinas, fustigam as encostas do sul, remoinham nas planicies, e não consentem sequer que o orvalho console á noite a vegetação devorada pelo sol do meio-dia. Na verdade, a aridez dos campos na estação estival pouco importa ao cultivador exclusivo de cereaes; mas quando causas desconhecidas impedem, durante o inverno, o curso dos ventos chuvosos, quando o verão vem substituir-se ao inverno, não sabemos se como castigo se como advertencia, então elle maldiz essas torrentes de ventania, que produzem mais seccura em vinte e quatro horas do que tres dias de sol ardente. Maldil-as, sem se lembrar ou sem saber, que seus paes e elle proprio contribuiram para a existencia de similhante flagello pela destruição das mattas, ou, quando menos, pelo descuido no plantio d'ellas.

O ciume cego com que a menor leira de terra aravel é disputada aos arvoredos, por causa do predominio exclusivo dos cereaes, explica indirectamente esse furor com que são perseguidas as arvores, até nos sitios mais inferteis; com que se lhes disputa a vida até por entre as penedias das serras. Como a cultura das forragens é insignificante, e enormemente desproporcionada á dos cereaes; como o céu está encarregado, pelo commum dos agricultores, de prover á sustentação dos gados, o baldio é o segundo artigo do credo agricola d'elles. Os pastos communs são a cidadella da inercia e o theatro reservado pela ignorancia ás maravilhas da Providencia. Todas as desvantagens de conservar incultos terrenos que poderiam servir ao homem se adoptassemos um systema mixto, ou se attendessemos ás indicações da sciencia e á natureza do nosso clima, para promovermos a arborisação nos logares accommodados para ella, não são comparaveis ao delicioso espectaculo de ver retouçar meia duzia de ovelhas, vaccas, e bois hecticos, nas gandras bravias, quando, n'um systema de cultura judicioso, conservariamos gordos e anafados dobrado numero de animaes, unicamente com a producção da nossa propriedade particular, sem que deixassemos de colher n'esta a mesma quantidade de trigo, que nos produz o deploravel methodo da cultura exclusiva.

A existencia dos baldios municipaes, dos pastos communs, é um dos mais graves embaraços ao progresso da agricultura entre nós. Favorecendo a natural indolencia do homem do campo, facilitando-lhe recursos que, até certo ponto, supprem os defeitos de um methodo errado e incompleto de afolhamentos, de uma cultura sem proporção nem equilibrio, elles oppõem uma barreira, as mais das vezes invencivel, á introducção de um systema sensato e proficuo. Ignorando os melhoramentos que as rotações judiciosas trazem ao solo, as vantagens da estabulação, os methodos de multiplicar em quantidade e em energia os adubos animaes, desconhecendo a applicação dos correctivos mineraes, o agricultor baseia nos maninhos, não só uma substituição á cultura das forragens, mas tambem um meio de adubar as suas terras, embora os estrumes vegetaes que d'elles tira, pessimamente preparados, dêem á terra uma alimentação miseravel. É-lhe necessario que as urzes povoem as serras nuas de arvoredo, tanto para ahi pascerem os gados durante uma parte do anno, como para supprirem a carencia d'estrumes, resultado d'essa alimentação erradia do gado, em que o cultivador, podemos dizer, lança fóra o mais rico thesouro de principios restauradores, um dos productos mais importantes da creação dos animaes.

Se as grandes verdades na sciencia são, em regra, ferteis de consequencias proveitosas, os grandes erros não são menos ferteis de consequencias fataes. Como as urzes expulsam as arvores dos terrenos incultos, é justamente nas visinhanças de extensos maninhos onde muitas vezes mais se experimenta a falta de lenhas, e que por consequencia os povos mais rapidamente destroem as cepas d'esses mesmos mattos que os supprem de pastagens e d'estrumes. Sendo esse o unico meio de obter combustivel, e não correspondendo o desenvolvimento das raizes lenhosas á rapidez e extensão do consumo, o resultado final é facil de prever. Ha de chegar um dia em que a imprevidencia tenha dado inteiro o seu fructo. Esses cabeços e gandras, rareados pela mão do matteiro, espoliados emfim, dos ultimos fragmentos da sua triste corôa de piornos e tojos, achar-se-hão convertidos em arneiros escalvados, onde a falta absoluta de humus torne impossivel a vida da herva mais rasteirinha. É um facto que, por muitas partes, se tem já verificado, e que successivamente se vae verificando por outras. Então os effeitos dos erros agronomicos, a que a gente do campo tem um affecto tão cégo, pesarão terrivelmente sobre ella, vindo depois o remedio só pelo excesso do mal.

Admittindo por um pouco as suppostas vantagens dos baldios, e no interesse d'esses mesmos pastos communs, a necessidade de dedicar uma porção d'elles á silvicultura torna-se evidente. Em Cintra, por exemplo, cujos antigos bosques desappareceram ha muito, e onde a cepa já começa a escacear, como é facil de conhecer á simples inspecção do terreno correndo os recessos da serra, os habitantes d'aquelles contornos deviam, por muitas razões, mas sobretudo por causa do combustivel, forcejar para que os cimos escalvados das cordilheiras se povoassem de pinhaes ou de soutos e devesas de outras arvores, que esses magros terrenos consentissem. Independentemente das influencias, que a nudez ou o selvoso d'aquelles escarpados rochedos possa ter na cultura dos campos visinhos; ainda sem attender a que Cintra perde de dia para dia, pela devastação dos grandes vegetaes, os encantos que ahi attrahem os felizes do mundo, e que por longos annos teem sido para os povos dos arredores um manancial de prosperidade; ao menos a consideração de que a falta de um dos objectos mais necessarios á vida, igualmente indispensavel para o rico e para o pobre, vae em sensivel progresso, devia conduzil-os a reconhecer que a arborisação da serra é reclamada talvez já pelo interesse da geração actual, e sem duvida pelo das gerações que hão de vir.

E todavia, um successo recente, um successo que fez certo ruido, prova que ou todas estas idéas se desconhecem, ou se pospõem a considerações de um egoismo, que nem sequer tem o merito de ser habil, ou que finalmente o nosso paiz está condemnado a vêr sujeitar ao arrebatamento das paixões politicas as questões mais estranhas, as conveniencias economicas, os meios de progresso material, as indicações da experiencia, trazendo-se para um campo neutro, e que para todos devêra ser sagrado, as luctas deploraveis dos nossos bandos civis. O facto a que alludimos foi lançado nos debates da imprensa, e por isso é hoje do nosso dominio.

S.M. El-Rei pretendeu aforar uma porção das cumiadas da montanha de Cintra contiguas ao parque da Pena. Aquella porção de terreno ingrato e calvo era destinado á sementeira ou plantio de um bosque que cobrisse de verdura e de vida uma pequena parte d'essa ossada de rochedos, que se vão prolongando até a beira do oceano.

Muitos moradores das aldeias circumvisinhas viram, porém, n'este empenho uma calamidade. O maninho era ameaçado nos seus direitos inauferiveis, o dorso dos penhascos offendido na sua pudibunda nudez. Realmente o caso era grave. Agitou-se tudo, protestou-se, requereu-se. A urze e o piorno acharam logo advogados contra o pinheiro orgulhoso, contra o luxo da vegetação. Isto é absurdo e incrivel. Embora. A celebre phrase «creio porque é impossivel» não tem só applicação aos mysterios do céu; tem-n'a ás miserias da terra.

Se os principios mais solidos da economia agricola não são uma solemne mentira, a pretensão d'El-Rei era legitima; as suas intenções liberaes. Não se tractava de constranger os povos a abandonarem subitamente o deploravel systema dos pastos communs: tractava-se de dar um exemplo de previdencia e de progresso: tractava-se de applicar ao solo um capital, que só depois de quinze ou vinte annos poderia produzir um diminuto redito: de certo não havia aqui, pelo menos, uma inspiração de cubiça. Nenhum homem desapaixonado e que ame sinceramente o desenvolvimento da industria agricola, pondo a mão na consciencia, deixará de qualificar a pretensão de justa, e a intenção de progressiva.

E nós limitamo-nos a estas qualificações, porque o lyrismo em materias economicas é um pouco sem sabor; porque nos fazem nausea os extases e as metaphoras de velho estylo, com que se costumam sempre avaliar os actos dos principes. Ainda não decorámos as phrases fundidas com que é d'uso exaltar esses actos, sejam máus, indifferentes ou bons, e que só servem de desvirtuar os ultimos. Somos pessimos cortezãos, e, demais, incorregiveis. Mas tambem não sabemos lisonjear o povo; porque a lisonja perde-o, como perde os principes: temos por isso bastante consciencia de nós mesmos, para reclamar a favor d'El-Rei, que não tem o habito das discussões publicas, que não pode vir a essa arena, a justiça que lhe compete e a que tem tanto direito como o cidadão mais obscuro. Não acreditamos que um homem, porque se chama rei, esteja banido do direito commum; que, pária de nova especie, deva soffrer em silencio que lhe calumniem uma intenção pura, que o condemnem por actos que n'outro qualquer seriam louvados. Quando a imprensa se perturba e cega até o ponto de assim o practicar, entristecemo-nos por ella; porque estamos convencidos da sanctidade da sua missão, e temos os olhos fitos, não nas paixões pequenas do presente, mas sim nas esperanças do futuro.

Consideramos aquelle aforamento em si, no seu resultado, nas idéas que o aconselhavam. Não sabemos se, no modo de o realisar, se faltou a alguma das solemnidades legaes. Não valia a pena. Que valesse, os agentes de S.M. deviam ser dobradamente zelosos em guardal-as. Fizeram mal se as preteriram. Do que porém já foi confessado em um jornal se deduz que não aconteceu assim.

O requerimento a favor da sanctidade do deserto, da integridade do maninho, appareceu estampado. É um monumento: não podia ser outra cousa. Pinta o paiz.

Se os nossos governos de todas as epochas e de todas as opiniões tivessem gastado a centesima parte do dinheiro, que tantas vezes malbaratam, em ensinar a lêr os habitantes do campo, em inculcar-lhes as verdades practicas com que a sciencia tem vivificado outros povos, não appareceria, no anno do Senhor de 1849, um tal requerimento.

Como epigraphe a elle faça-se uma advertencia. O maninho total de Cintra abrange dez milhões de braças quadradas: os pedregaes aforados teem quatrocentas e sessenta de comprido sobre cento e cincoenta de largo. A mutilação é horrivel. Os requerentes declaram que esta área abrange uma grande parte da serra.

Quando Sancho Pança, o aldeão manchego, se persuadiu de que subira às solidões do espaço, e mirara das alturas o nosso planeta, disse que lhe parecera a terra do tamanho de uma avellan, e os homens mais pequenos que carneiros. O bom Sancho era um typo!

Pondera-se a escaceza de lenhas nos arredores da serra. Qual é o remedio? É impedir que n'um angulo d'ella sejam semeados pinhaes ou se façam plantios de outras arvores. O alvitre é infallivel e sobretudo logico.

Na historia, na litteratura, nos documentos, achareis testemunhos frequentes e irrecusaveis de um facto. Cintra foi por seculos a montanha das selvas. Onde estão estas? Cahiram sob o machado da imprevidencia. Os estevaes seguiram-nas. Agora revolve-se o chão para arrancar algumas raizes. Que arrancarão as gerações futuras? Pedras? Christo converteu-as em pão: mas os moradores d'aquelles contornos não teem absoluta certeza de que seus filhos e netos serão capazes de maravilhas analogas: de as converter em combustivel.

E que teem elles com seus filhos e netos? Elles que pertencem a uma epocha profundamente caracterisada pelo egoismo?

No requerimento figuram os operarios indo ao domingo buscar lenha á serra, por não poderem dispensar um dia de semana para esse mister, o que prova evidentemente não ser licito aforar sessenta e tantas mil braças quadradas de terreno n'um baldio de dez milhões d'ellas.

Depois, os mesmos trabalhadores apparecem de mãos cruzadas por falta de trabalho, mandando os filhos arrancar matto para viverem, prova de egual força e de uma concordancia admiravel com a antecedente. Estes jornaleiros, occupados e desoccupados, são pobres e miseraveis que possuem ovelhas, vaccas, eguas, etc., situação na verdade só comparavel à dos operarios de Bethnal-Green, symbolo e resumo da miseria industrial ingleza. Por fim invocam-se as leis; leis modificadas pela jurisprudencia administrativa moderna; leis promulgadas em epochas, nas quaes ou eram desconhecidos os verdadeiros principios de economia agricola, ou estes eram ignorados pelos legisladores; leis que, se o uso não houvesse obliterado uma grande parte das suas disposições, iriam lançar nas garras do fisco muitos d'esses tractos de cultura chamados vulgarmente tomadas, que se encontram hoje onde só existiam, ha um ou meio seculo, extensos maninhos, e em cujo aforamento os homens laboriosos que os desbravaram se viram sempre combatidos pelo ciume do vulgo, que não pode tolerar irem-lhe encurtando os dominios da indolencia, romperem-lhe um só lanço da barreira mais forte, que se oppõe ao verdadeiro progresso agricola.

Isto não se discute. Pelo menos a nós fallecenos o animo para tanto.
Como demonstrar que dous e dous são quatro a quem quer que sejam cinco?

Deploramos o abandono em que se deixa a intelligencia do povo: deploramos que a classe media, que tem a força porque está organisada; que tem a força porque possue a riqueza; que tem a força porque é illustrada, não vote uma parte dos seus recursos a allumiar os rudes, os homens de trabalho, que são seus irmãos, e que teem direito não só ao pão do corpo mas ao do espirito, ou antes que sem este não chegarão nunca a minorar as difficuldades com que luctam para obter aquelle, nem a rodear-se dos confortos que são compativeis com a sua condição. Deploramos, sobre tudo, o talento naturalmente nobre quando sacrifica ás conveniencias transitorias verdades que, em outra situação, proclamaria sem hesitar; deploramol-o n'esses momentos aziágos, em que se esquece de elevar-se acima das antipathias ou sympathias pessoaes. Quando se tem um passado de independencia e de probidade politica, é generoso não vacillar ante a viciosa vergonha de fazer justiça aos que se crêem poderosos, embora essa justiça haja de remontar até um rei.

A questão dos maninhos de Cintra é a questão perpétua dos pastos communs, que tem agitado todos os paizes, e que em toda a parte está resolvida em theoria e em practica, menos na Peninsula. Submettida essa questão ás discussões da imprensa, mal haveria intelligencia que não vergasse na tentativa de defender o baldio; o baldio no que elle tem de mais nocivo e absurdo. Confundiram-se idéas que importa distinguir; estabeleceram-se proposições que julgamos contrarias ao melhoramento da agricultura, inconvenientes ao bem estar futuro do homem de trabalho, aos seus interesses reaes. Persuadidos de que as nossas opiniões na questão geral, que ess'outra particular veio suscitar, podem ser uteis, accrescentaremos n'um subsequente artigo[1] algumas reflexões sobre a distribuição e applicação dos maninhos.

A GRANJA DO CALHARIZ

1851

Este nosso Portugal que em tantas cousas é uma terra de maravilhas, maravilhas na verdade bem tristes ás vezes, offerece uma das não menos curiosas na primeira, na mais grave questão de progresso material que se pode agitar entre qualquer povo, e sobretudo entre nós. Falo da questão das reformas agricolas. É rara a semana em que não se tracta na imprensa litteraria, e ainda na imprensa politica, um ou outro ponto da arte ou sciencia de cultivar, considerada debaixo d'este ou d'aquelle aspecto. Escriptos ha no meio de tantas publicações que estão revelando em seus auctores vastidão de conhecimentos theoricos; poucos onde se exponham e discutam os systemas de agricultar nacionaes, que nem todos, nem em tudo são maus; raros onde se nos mostrem verificadas pela practica propria as doutrinas dos livros estranhos. Entretanto é incontestavel que se escreve muito ácêrca da agricultura, e traduz-se ainda muito mais. Mas quando se forceja tanto por espalhar novas, e, talvez no maior numero de casos, melhores doutrinas entre os agricultores, quando todos falam na creação de granjas experimentaes; quando os proprios lavradores e pessoas affeiçoadas ás cousas do campo já pensam, até, em formar associações, não para agiotar com a agricultura, mas para discutir as reformas rasoaveis, que se pódem tentar, não é admiravel que exista no paiz, a cinco leguas da capital, uma granja modelo dirigida por um cultivador habil theorico e distincto practico, o snr. Gagliardi, sem que os homens competentes annunciem esta boa nova, sem que, visitando uma e muitas vezes aquelle magnifico estabelecimento, dêem conta aos interessados n'estas questões dos factos que ahi observaram, dos resultados das innovações ahi levadas a effeito? Em vez de subministrarem aos cultivadores portuguezes as razões scientificas, (para a maior parte d'elles inintelligiveis) pelas quaes se lhes aconselham como preferiveis taes systemas, taes methodos ou taes especies de cultura, não seria melhor, mais perceptivel para todos pôr ao lado da regra o exemplo, ao lado da theoria o facto, mas o facto positivo, concludente, irrecusavel, porque é d'esta terra, está aqui, onde todos o pódem verificar? Não valeria isto tanto como as mais uteis paginas de Thaer, de Dombasle, ou de Gasparin, bem ou mal traduzidas, bem ou mal soldadas, mas quasi sempre obscuras para uma população rural pouco illustrada na sua generalidade? A mim parece-me que similhante trabalho, emprehendido pelos homens profissionaes, seria um dos melhores, talvez o melhor serviço que poderiam fazer ao adiantamento agricola de Portugal. Quem sae de Lisboa e fala com lavradores, d'aquelles mesmos que são instruidos, sabe que a repugnancia a alterar os systemas de longos annos seguidos no paiz é geral. Esta repugnancia, contra a qual tanto se tem escripto, não é nem um capricho estolido, nem unicamente afferro irreflectido ás usanças do passado. Nasce em boa parte de causas legitimas. O agricultor vive da sua industria: um erro, uma experiencia com mau resultado, uma confiança desacautelada em qualquer theoria erronea, que se lhe inculque n'um livro ou n'um jornal, não tem para elle por consequencia unica uma mortificação de amor proprio: leva-lhe o pão que ha de comer; leva-lhe o pão de seus filhos. A natureza é tão implacavel como as antigas leis do talião e da revindicta: em agricultura, quem comette erros paga-os. Os agronomos que tanto bradam contra os preceitos inveterados, e que até certo ponto e em certos casos teem razão, deviam reflectir n'isto. Depois, crê-se que todos os nossos cultivadores hão sido surdos á voz da imprensa? Não, por certo. Tem-se adoptado, não um, mas cem, mas mil conselhos dados por ella. Foram, porém, bons todos esses conselhos? Tambem não, por certo. É necessario confessar que muitas vezes se tem discursado em materias agronomicas sem consciencia, e que muitas mais o camponez tem sido illudido pelos escriptores, illudidos tambem pelos livros de fóra, feitos para outros climas, para dirigir os amanhos de propriedades rusticas diversamente constituidas, e cujo systema de cultivação é determinado por differentes circumstancias economicas, como procura de productos variados, facilidade de transporte, abundancia de mercados, preço do trabalho, frequencia de capitaes disponiveis, etc. Essas illusões são fataes. O cultivador, que, movido pelas decisivas doutrinas, pelas promessas magnificas, pelas invectivas acerbas do jornal ou do livro que lhe chegou ás mãos, tentou em certa escala, na fé da letra redonda, uma revolução no seu systema de agricultar, e que tira em resultado d'isso uma perda irreparavel, pragueja contra a sciencia por culpa da insciencia, e fecha-lhe para sempre a porta. Depois não teem faltado enthusiastas, que, arrastados pela poesia bucolica, não rara em muitos livros de agricultura, e deslumbrados como o Triptolemo de Walter-Scott pelas dissertações dos Columellas e Varrões modernos, se arrojam impetuosos á conquista de descommunaes riquezas, que se lhes promettem, olhando com soberano desprezo os methodos mais sensatos dos seus visinhos, mudam tudo, revolvem tudo, gritam contra a rotina, e os rotineiros e obtêm no fim de trez ou quatro annos uma gloriosa… mendicidade. Estes exemplos (e prouvera a Deus que, de quinze annos a esta parte, elles fossem apenas cinco ou dez ou vinte) ainda são mais fataes. Aquelle espectaculo aterrador, aquelle fructo amargo do estonteamento e da imprudencia é para os animos atemorisados a condemnacão irrevogavel de toda a sciencia, de todo o progresso. E, á vista dos factos, ao menos considerados superficialmente, como os consideram em geral os habitantes do campo, podemos acaso negar que esses a quem se dá desdenhosamente a alcunha franceza de rotineiros, teem até certo ponto razão?

D'aqui a necessidade absoluta de espectaculos, de exemplos contrarios: d'aqui a necessidade extrema de estribar a doutrina escripta com a penna na doutrina escripta com a charrua, com a enchada e com o alvião. Não seria bom que se usasse de uma reserva prudente em propagar a parte especulativa e sobretudo os requintes da sciencia, cuja utilidade é contestavel ainda em paizes mais adiantados, emquanto essa parte não estiver confirmada entre nós pela apreciação practica em maior ou menor escala? Parece-me que sim.

E todavia, repito, tal apreciação, feita já sobre muitas questões agronomicas na vasta propriedade de Calhariz, é desconhecida do publico. Alguns curiosos, alguns lavradores, alguns agronomos teem visitado aquelle estabelecimento, que talvez já podemos chamar o nosso instituto de Grignon ou de Roville, e que decerto lh'o poderiamos chamar dentro de quatro annos, se a morte não houvera privado este paiz de um animo grandioso e amigo do progresso da patria, o defuncto duque de Palmella. Mas esses curiosos, esses lavradores, esses agronomos teem-se contentado com uma admiração esteril. Se procederam a inqueritos severos sobre os resultados das diversas culturas experimentadas n'aquelle estabelecimento, sobre machinas, adubos, rotações, sobre todas as cousas, em summa, de que dependem os bons ou os maus systemas de agricultar; se mais que tudo, em cada genero de cultura compararam o custo com o valor venal do producto, que é a suprema questão agricola, não o sei eu; mas é certo que até agora nada se publicou a este respeito que eu saiba. E comtudo, o fazel-o seria mais util do que repetir opiniões peregrinas, sem sancção de experiencia, e quem sabe se accommodadas sempre a este solo e a este clima?

Eu não posso fazel-o: sou n'estas materias um curioso. Faltam-me os elementos scientificos para ser agronomo. A direcção dos meus estudos foi outra. Amo, porém, ardentemente o progresso moral e material da terra em que nasci; e vejo que elle deve sobretudo vir do desenvolvimento da agricultura, da solução racional das questões scientificas, economicas, e até juridicas e politicas que pódem ter relação com a primeira das industrias, primeira em todos os paizes, mas que entre nós está immensamente acima de quaesquer outras, e praza a Deus que o esteja sempre. É por isso que escrevo isto, não como desempenho do dever que incumbe a outros, mas como incitamento aos mais habeis. Faço-o tambem para practicar um acto de justiça. Emquanto a imprensa, durante quinze annos, clamou debalde aos governos a favor dos institutos agricolas, sem os quaes está demonstrado até á saciedade que não haverá progresso real na maxima industria portugueza, um simples particular tentava com sacrificio de avultados cabedaes uma empreza que os governos não ousavam tentar, ou que esqueciam, enlevados na edificação de theatros, de jardins, de praças, de monumentos, em manifestações luxuarias, indispensaveis para provarmos ao mundo que nadamos em ouro, e para darmos sabida á superabundancia dos lucros dos nossos quasi unicos contribuintes, os cultivadores, que não saberiam a que applicar o seu immenso superfluo, se o tributo os não alliviasse d'elle para comprarmos esse luxo das creanças barbadas da inclita Lisboa. Faço-o, digo, porque a imprensa devia á memória do fallecido duque de Palmella um testemunho de gratidão pela sua nobre devoção á patria, devoção que só com o decurso do tempo podia ser apreciada devidamente; porque era practicada sem ostentação nem ruido.

Este testemunho, que eu me atrevo a dar em nome do paiz, é insuspeito. Nunca procurei a intimidade do duque, nunca traduzi em convites para a acceitar os signaes de benevolencia, a distincção immerecida com que sempre me tractou, quer em publico quer em particular, quando casualmente nos encontravamos. Confesso mais: pensava mal d'elle em muitas coisas; tinha-lhe esta especie de antipathia inoffensiva que tenho á maior parte dos homens politicos do nosso paiz. Nem na emigração nem na patria fui nunca isso a que se chamava ser palmellista. Começo a sel-o desde que visitei o Calhariz; desde que examinei o que alli se tem feito, e sobretudo desde que vi a correspondencia do duque com o snr. Gagliardi, correspondencia que não era destinada, que não podia sel-o, a vêr a luz publica. O desapego do ouro para ordenar experiencias custosas, de resultado incerto, e a que elle punha uma só condição, a de poderem redundar em proveito do paiz, é evidente n'essas cartas, que corrigiram as minhas ideas ácêrca do homem que as escreveu.

Dou graças a Deus de ter visitado tão tarde a granja do Calhariz. Hoje as minhas palavras vão murmurar sobre um tumulo, em volta de pobres cinzas, que não teem poder para a recompensa e nem sequer voz para o agradecimento. N'este seculo de grandes corrupções falta muitas vezes esforço para fazer justiça, quando se pode suspeitar de venalidade ou lisonja o que não passa de um tributo de admiração legitima.

PROJECTO DE DECRETO

1851

Senhora!

O alvo do presente projecto de decreto é abrir o caminho ao homem de trabalho para o goso puro e legitimo que nasce do sentimento de propriedade, pôr-lhe nas mãos o mais efficaz, o mais seguro instrumento de prosperidade, a terra, habilital-o, emfim, para sem temor do futuro acceitar as doçuras e os encargos de chefe de familia, facilitando-se assim um desenvolvimento vigoroso de população.

Senhora! No meio d'este grande lavor de transformação social em que a Europa se debate, a braços com as ideas tempestuosas que agitam os espiritos e com os males economicos que a devoram, e que, se não legitimam as ideas de reformas absurdas, legitimam pela sanctidade de uma agonia profunda a agitação das classes laboriosas, o povo tem dado mais de uma vez documentos de ferocidade e bruteza repugnantes e terriveis. Em mais de um paiz o proletariado sempre crescente, ruge de contínuo ameaças contra a paz e ordem publicas e contra a patria, porque o pobre não sabe o que é patria, não a ama, ou antes não a tem, visto que não ha um forte laço moral que o ligue a ella por affectos ou por esperanças. É n'estes corações chagados que alguns espiritos ardentes illudidos e fanatisados pela propria imaginação, e ao mesmo tempo muitos especuladores ambiciosos instillam theorias destructoras da sociedade, que tendem a lançar as multidões n'um cháos de desordem, em que a propriedade e a familia sejam completamente annulladas.

Em Portugal, Senhora, o atrazo industrial do paiz, a sua civilisação comparativamente pequena, são garantias contra os graves perigos que rodeam outras sociedades onde a condição das classes pobres é incomparavelmente peior, porque o capital abuza da sua força immensa para as opprimir. Mas cumprirá acaso que para nos premunirmos contra os riscos do futuro fechemos a porta á civilisação? Não romperia quaesquer diques esse oceano de progresso que invade todas as regiões do velho e do novo mundo? O augmento da industria fabril, a concorrencia, mil factos economicos nascidos mais da natureza das cousas, que da vontade dos homens, teem trazido essa collisão fatal entre o que possue e o que não possue, entre o trabalho e o capital, collisão que forma hoje o supremo, o tremendo problema politico e social das nações mais adiantadas. Deixariamos por isso de proteger a nossa industria fabril; combateriamos a concorrencia, esse maximo incentivo da actividade humana; annullariamos as consequencias de certos factos que d'ahi nascem? Deveriamos, ou poderiamos fazel-o? Seria preciso negar a liberdade individual, contrariar os principios politicos e economicos mais incontestaveis e voltar, como pretendem alguns espiritos fracos, aterrados pelas manifestações das classes laboriosas, á theocracia ou ao feudalismo dos seculos de barbaria, para adoptarmos prevenções de similhante natureza.

Que ha, pois, a fazer? Encarar com frieza o futuro, estudar as complicadas causas que trouxeram gradualmente a esta penosa situação uma grande parte da Europa, e evitar o perigo, sem entrar em um combate desigual com a civilisação cuja victoria final é sempre certa. Complexas e variadas em si, essas causas enfraquecem-se por diversas maneiras; previnam-se os seus desastrados effeitos com medidas adequadas; aproveitem-se para isso as custosas experiencias dos outros povos, de modo que nem as consequencias das phases economicas sejam tão fataes, nem venham tão rapidas que criem embaraços insoluveis. As nações mais atrazadas teem, na falta de outras vantagens, a de saber com antecipação as difficuldades prácticas do progresso material e de poderem proceder com prudencia.

Quem observar, Senhora, a marcha de certas ideas de desorganisação, ha-de notar que ellas predominam onde ou a industria fabril tem accumulado em breves limites populações numerosas de obreiros, que possuem apsnas o salario de um trabalho mal retribuido, ou onde a terra pouquissimo dividida ou cultivada transitoriamente por colonos oppressos, não consente ao homem do povo o sentimento da propriedade. Em todos os paizes os districtos mais pacificos e onde as classes inferiores não pensam em dissolver a sociedade são os districtos ruraes, e sobretudo aquelles onde o solo retalhado e possuido com segurança pelos pequenos cultivadores, tem creado para elles uma patria; porque a patria para as comprehensões vulgares e rudes e até certo ponto para outras mais elevadas, é o logar restricto a que as prendem os interesses, o longo habito e os affectos profundos, que só a familia e a propriedade sabem inspirar.

Favoreçamos a industria fabril, porque ella é uma necessidade da epocha e da civilisação; mas forcejemos ainda mais por desenvolver a população agricola, que subministrará a essa industria, no seu excedente, braços robustos, organisações cheias de seiva e de vida. Façamos caminhar de frente as duas industrias; porque cada uma d'ellas é a grande consumidora dos productos da outra; mas procuremos sobretudo dilatar o espirito de familia e o amor da propriedade pela agricultura. O que rodeou com sebes um campo, o que o roteou e semeou pelas proprias mãos e pelas mãos de sua mulher e de seus filhos, será forçosamente um homem de paz, um defensor da ordem publica. As revoluções sociaes podem comprimir-se com o ferro; mas só se ferem de morte quando se removem as suas causas reaes, e se faz sentir practicamente ao povo que as exaggerações dos estouvados ou dos ambiciosos, são falsas ou ridiculas.

Não é necessario, Senhora, dizer que a presente proposta de decreto terá dous resultados principaes: levar a cultura a uma grande porção de terrenos incultos, e fomentar poderosamente a divisão da propriedade. Basta lêl-a para se ver que n'ella predomina esse pensamento. Mas presidiram á sua elaboração tantas outras considerações de conveniencia publica e de progresso material e moral, que os ministros de V. Magestade teem por dever seu explanal-as, para que seja possivel avaliar se elles comprehenderam ou não, n'esta parte, as maternaes intenções e os vivos desejos de V. Magestade, em tudo o que respeita a futura prosperidade do paiz.

Adoptando o principio geral de libertar temporariamente dos tributos directos os tractos de terra inculta que se arroteassem, o governo procurou tornal-o verdadeiramente util e prolifico, modificando-o por condições essenciaes. A divisão do solo pela emphyteuse, e a preferencia de protecção dada a certas culturas, são no entender do governo as provisões mais importantes do decreto sob este ponto de vista. Considerado em relação ao Estado esse principio tem a vantagem de produzir o bem sem gravame do thesouro. Os maninhos que se desbravarem, não offerecem actualmente materia tributavel: reduz-se, portanto, tudo a suppor que esta situação, que aliás só pode acabar rapidamente por meio de exempções valiosas, continua em relação ao imposto directo a subsistir por um periodo maior ou menor, segundo a categoria da cultura a que for destinado este ou aquelle terreno. Em relação, porém, ao imposto indirecto é obvio que o augmento de producção e consumo, effeito necessario da lei, trará desde logo por esse lado um accrescimo progressivo da renda publica.

A emphyteuse, favorecida por este decreto é, não só um grande meio para facilitar a applicação do capital á terra, porque não sendo necessário applical-o á acquisição antecipada, digamos assim, da materia prima, pode operar em maior escala sobre a producção, mas tambem, e principalmente pela sua tendencia natural a tornar-se parcellaria, como effeito da maior protecção que a esta sua modalidade a lei concede, o instrumento mais poderoso que se pode empregar para trazer o proletariado á propriedade, e que portanto produzirá todos os resultados politicos e moraes cujo influxo benefico na paz futura do paiz, não pode ser duvidoso para a alta penetração de V. Magestade.

Á emphyteuse e ao systema parcellario teem opposto, Senhora, varias considerações economicas, os adversarios d'essa instituição, filha da civilisação romana, que resistindo a todos os abalos, a todas as transformações profundas verificadas durante os seculos medios, chegou até nós, abonando por esse facto a sua congruencia com a indole das sociedades humanas. Considerada no seu valor absoluto, e pelas regras da moral e da justiça, nada se vê na separação entre o dominio directo e util, que offenda uma ou outra. Os motivos para a preferir á allodialidade, ou para lhe preferir esta são todos relativos, condicionaes. Olhada a questão em these, como theoria abstracta, algumas razões podem militar a favor da allodialidade, mas, era hypothese, em relação ao nosso estado actual, a emphyteuse é preferivel se quizermos dar impulso á cultura e mais rapido movimento á transmissão da propriedade. N'um paiz onde a representação monetaria escacea, onde o atrazo da sciencia agronomica é incontestavel, onde, emfim, a elevação do salario e a depreciação dos generos teem produzido um desiquilibrio embaraçoso para o cultivador, a consideração acima feita de que o principio da allodialidade, isto é, a compra do fundo, absorve desde logo uma parte do capital, que nos aforamentos se substitue, em rigor, pela promessa de um juro, juro pagavel depois de obtido o producto da applicação do capital, bem demonstra que aquelle principio não soffre comparação com o emphyteutico, e quanto este será efficaz para os fins a que se destina o presente decreto.

Modificada pelo systema parcellario a emphyteuse contrapõe-se ao systema dos latifundios allodiaes. Caracterisados assim, a antinomia entre os dous principios torna-se mais evidente e profunda. Mas é aqui tambem onde a superioridade de um ao outro, se torna mais incontestavel. Os defensores dos vastos allodios ponderam que a grande cultura é só propria dos extensos terrenos, só ella é compativel com os grandes melhoramentos, só ahi se podem introduzir as machinas, que produzindo mais barato facilitam o consumo; e, não podendo negar os inconveníentes sociaes da grande propriedade, accrescentam que sujeitos ao direito commum, esses predios se retalharão pela divisão forçada das successões, resultando d'ahi que dentro de curto praso ha-de apparecer um novo phenomeno economico e agricola; isto é, que a propriedade, dividindo-se quanto ao dominio, se conservará unida quanto ao trabalho, porque de outro modo, separando-se, individualisando-se o trabalho, a grande seria forçosamente substituida pela pequena cultura, e inutilisando-se as machinas, os novos possuidores do solo teriam de annullar um capital avultado sem vantagem conhecida. Assim quanto a elles, a exploração industrial da terra se conservará unida pela associação, ao passo que o dominio se irá retalhando atravez de todas as phases possiveis, n'uma esphera separada.

Estas doutrinas, Senhora, são inexactas em grande parte. Pondo de lado os inconvenientes, as difficuldades prácticas da associação applicada ao trabalho agricola, quando, separado o dominio, o valor do producto relativo a cada fracção do fundo, não é só determinado pela applicação do trabalho, mas tambem pela força productiva do solo, grandemente variavel em vastos tractos de terra; suppondo possivel e até fácil similhante associação, e admittindo sem reserva os seus importantes effeitos, não se vê como o incitamento do interesse individual não possa conduzir os colonos no systema emphyteutico, a associarem-se para substituir pela grande a pequena cultura, adoptando as machinas que barateam os productos e empregando um trabalho commum. Por outra parte é inexacto que a pequena cultura não possa simplificar-se pela introducção de machinas e instrumentos novos ou aperfeiçoados, embora n'um grau inferior ao da grande cultura, e por isso fazer tambem descer até certo ponto o valor das subsistencias e dos outros productos agricolas, accrescendo a essa consideração o facto incontestavel, de que se a introducção dos instrumentos e machinas que simplificam o trabalho agricola, acha mais poderosos incentivos na grande cultura, os methodos aperfeiçoados teem nascido e nascem quotidianamente, da experiencia e das necessidades da pequena cultura. Independentemente porém, d'este argumento, sendo a divisão do solo pela indole da allodialidade sem questão mais tardia do que pela emphyteuse parcellaria, favorecida immediatamente pela lei, porque privaremos a geração presente, o homem de trabalho actual, do beneficio que queremos proporcionar aos vindouros? Emfim, Senhora, os que attribuem tão rapidos e efficazes effeitos aos obitos e ás successões, attenderam a todos os factos que modificam e retardam esses effeitos? Lembraram-se, por exemplo, dos consorcios, dos dotes, das terças e de tantas outras instituições civis, tendentes a entorpecer esse meio, sem duvida poderoso, de retalhar os predios rusticos? Attenderam acaso aos usos immemoriaes de algumas provincias, como o Alemtejo, onde o costume dos chamados quinhões torna a allodialidade inutil para a divisão das grandes herdades, porque se reparte a renda mas fica o solo unido em poder de um só agricultor?

Que o systema da emphyteuse parcellaria seja o meio mais efficaz e talvez unico de chamar as classes humildes á propriedade, parece evidente. A acquisição do dominio pleno de vastos predios suppõe avultados capitaes. A dos pequenos predios suppõe-nos menores; mas ainda os suppõe. Nos emprazamentos de áreas limitadas como aquellas cujo maximo se fixa no presente decreto, e que é o mesmo estabelecido no Alvará de 27 de novembro de 1804, as economias do simples seareiro, do operario rural, bastarão de ordinario para as despezas do arroteamento. Elle conta além d'isso com os proprios braços, com o auxilio de sua mulher e de seus filhos, recursos cuja efficacia o sentimento da propriedade sabe redobrar de um modo maravilhoso. Como consequencia do facto logo que os aforamentos d'esta especie se facilitem e protejam, o trabalhador celibatario, a quem convidam as exempções concedidas por este decreto, e que uma ambição legitima incita a aproveitar-se do beneficio da lei, cuidará em associar a si uma companheira que o auxilie na sua laboriosa empreza. Assim os consorcios serão promovidos e portanto o desenvolvimento da população.

Se, porém, a applicação do capital quasi unico das classes pobres, o trabalho dos proprios braços se torna não só possivel mas tambem facil pela emphyteuse parcellaria, o emprego do grande capital monetario torna-se onde ella predomina assaz difficil. A experiencia quotidiana nos ensina que os pequenos predios ruraes cultivados por conta do seu dono, mas não pelas mãos d'elle são constantemente causa de ruina. A pequena cultura exige grande numero de prevenções, e de economias insignificantes mas severas, uma actividade contínua, um zelo sem limites, um meditar incessante em tornar productiva a minima parcella de terra. Nada d'isto se obtem a troco de salarios, com que o homem do capital monetario tem de contar para alem d'isso obter um lucro, e com que o homem de trabalho não conta porque tirando da cultura o seu salario e o da sua familia, elle considera a somma d'esses salarios como o principal lucro. Assim os capitaes amoedados não podendo fraccionar-se em pequenas e ruinosas emprezas, operarão com dobrada energia na grande cultura que sempre ha-de ser avultada, ao passo que se tornarão mais accessiveis á industria fabril.

A consideração mais grave que se pode oppor á idea que predomina n'esta proposta de decreto, e o Governo não quer, Senhora, dissimulal-a, é que abrindo-se em larga escala o caminho da propriedade ás classes trabalhadoras, os agricultores actuaes, que já laboram na difficuldade do augmento gradual do salario ao lado da diminuição de valor nos productos, verão crescer essa difficuldade pela distracção de um avultado numero de braços que habilitados para trabalhar por conta propria, recusarão fazel-o por conta alheia. Até certo ponto a consideração é verdadeira. Mas por um lado ha algumas que a attenuam, e por outro o governo pode e ha-de empregar os meios para que esse inconveniente seja compensado. Primeiro que tudo como o recurso unico do operario é o trabalho, ha-de verificar-se frequentemente o que já acontece por muitas partes. Nos tractos de terra mais ferteis que se tem arroteado pelo systema parcellario, porque, ainda sem o favor da lei, o interesse individual tem sido bastante para o fazer adoptar em diversos logares, o novo proprietario redobrando d'esforcos reparte as suas lidas entre a cultura propria e a alheia. Essa divisão é grandemente facilitada pelo atrazo da agricultura entre nós, porque sendo esta na maxima parte dedicada aos cereaes, ás vinhas e aos olivedos apresenta uma procura mui desigual de trabalho, de modo que elevando o salario desmesuradamente em certas epochas em outras essa procura affrouxa, chegando o obreiro rural a ponto de não achar muitas vezes emprego. Onde, porém, não for possivel restabelecer o equilibrio por similhante meio, esse embaraço irá gradualmente desapparecendo com o accrescimo da população, sendo entretanto um incentivo poderoso para os grandes cultivadores irem trocando o systema das culturas exclusivas pelo das culturas alternas, que, exigindo n'um tempo dado menor numero de braços, exige um mais constante emprego d'elles. Finalmente tendo a peito o governo acudir quanto antes á primeira necessidade do paiz, a construcção das estradas, para as quaes vae applicar todos os recursos de que pode dispor, a facilidade da viação e por consequencia a barateza do transporte, compensarão amplamente qualquer elevação de salarios, que n'um ou n'outro caso possa resultar da applicação do presente decreto.

Não é necessário nem possivel, Senhora, entrar em largas explicações sobre os motivos que levaram o governo a propor a V. Magestade, a promulgação das disposições contidas nos diversos paragraphos do art. 4.^o. A gradação estabelecida entre as varias culturas corresponde ao estado actual da nossa industria agricola e á necessidade de não dirigir cegamente o impulso que se pretende dar-lhe. O favor, desproporcionado na apparencia, que se liberalisa á plantação dos bosques, não se estriba só na consideração do demorado resultado que se dá no seu cultivo; funda-se tambem na da repugnancia á arborisação que é um dos erros mais communs e que parece necessario combater energicamente. É obvia tambem a causa das excepções ácerca do pinheiro maritimo, unica madeira que superabunda no nosso mercado. O favor comparativamente excessivo que o decreto pretende dar á cultura collectiva ou singular das forragens, das amoreiras e do canhamo, importa a idéa de fortalecer pela sabedoria das leis civis as reformas que hão-de trazer o ensino e educação dos futuros agricultores, por via das sociedades agrícolas, das escholas, e dos predios rusticos experimentaes, que o governo começou já a promover e fundar, e que está resolvido a fazer progredir logo que para isso se lhe proporcionem recursos, contando aliás com o auxilio de todos os homens de boa vontade e sinceros amigos do paiz. Escaceam entre nós os gados, sobretudo nas provincias do sul, porque a cultivação dos cereaes tem progredido em extensão e não em intensidade; porque os systemas biennal e triennal, que ahi predominam e que em certas circumstancias serão desculpaveis, serão até preferiveis, nunca podem ser uma regra geral senão onde a agricultura está na infancia: emfim, a falta de gados e de bons methodos de afolhamento explicam a maior parte dos embaraços da grande cultura em Portugal. Por outro lado se considerarmos os enormes valores que a Italia, o paiz mais analogo ao nosso e ainda agronomicamente inferior a elle, sabe tirar da producção da seda, devemos propagar até onde for possivel o cultivo da amoreira. Tambem a experiencia tem provado que o canhamo do nosso paiz, cultivado judiciosamente e nos terrenos convenientes, excede em bondade não só o da Russia mas o proprio canhamo de Bolonha, reputado o melhor da Italia. Por ultimo os fundamentos da menor protecção dada aos ramos de agricultura largamente espalhados pelo reino, fundamentos que em parte derivam do que fica dito, são obvios para V. Magestade.

Era impossivel, Senhora, propor a promulgação de um decreto tendente a trazer á producção os terrenos incultos e a fomentar a divisão espontanea da propriedade territorial, sem estender a sua acção ao solo vinculado. São sobretudo os vinculos que nos offerecem o triste espectaculo de terras, muitas vezes de primeira qualidade, inuteis e desaproveitadas. Entre as razões moraes, politicas e economicas, que condemnam a instituição dos vinculos, esse facto subministra contra ella um argumento assaz ponderoso. A sua extincção parcial ou completa é questão, na verdade, que os ministros de V. Magestade não poderiam discutir aqui, e que se deve tractar pausada e reflectidamente; porque, resolvida de leve e, sobretudo, decretada de golpe, a abolição dos vinculos ainda parcial, teria, talvez, inconvenientes politicos e até economicos maiores do que geralmente se pensa. Todavia a instituição é em these insustentavel e se considerações de tempo e de circumstancias, podem absolver a sua existencia e aconselhar a sua condicional conservação, essas considerações são absolutamente inapplicaveis aos terrenos incultos, que na maior parte dos casos não representam valor algum, ou só o representam minimo. Exemptar os vinculos de contribuirem para o bem commum n'esta parte seria absurdo.

Egualal-os para os effeitos da lei ás propriedades allodiaes, dar-lhes as mesmas vantagens e impor-lhes as mesmas restricções era justiça. Foi o que se fez n'este projecto de decreto.

É evidente que nos aforamentos dos maninhos vinculados se dá um facto similhante ao que se verifica nos dos maninhos allodiaes. A somma total dos fóros representa um juro e portanto a creação de um capital. O decreto, suppondo para estabelecer as suas ulteriores providencias, que a somma dos fóros representa um juro de cinco por cento, faz d'ahi resultar um capital inferior á realidade, porque é sabido que os emprazamentos difficilmente produzem essa renda. Em todo o caso esta nascerá do favor da lei, favor que se não é um sacrificio effectivo e presente, virá a sel-o de futuro. Um tal favor, tendo por fim exclusivamente desenvolver o progresso de uma agricultura sensata e chamar o proletariado ao amor da paz e da ordem, pela acquisição da propriedade, produziria ao mesmo tempo, sem as convenientes restricções, a consequencia de augmentar o valor dos vinculos ou por outra, daria maior vulto a um genero de propriedade que á luz das indicações economicas apenas pode ser tolerado. Era, portanto, dever do governo obstar a similhante augmento, e o governo obstou-lhe com as providencias consignadas nos artigos 11.^o, 12.^o, 13.^o, 14.^o e 15.^o. Ao passo que firmou o principio de libertar um cumulo de bens igual em valor ao capital accrescido pelos novos aforamentos, deu o maximo alvedrio aos administradores de vinculos para se aproveitarem do beneficio do decreto, pelo modo que reputassem mais conveniente, e até para não se aproveitarem d'elle. Entretanto elle feriu n'um ponto a integridade dos cumulos vinculados. Foi na disposição do artigo 13.^o; mas este sacrificio é tão tenue comparado com o alto objectivo de promover a divisão do solo, que os ministros de V. Magestade poderão antes ser taxados de nimiamente escrupulosos a favor da instituição, do que suspeitos em demasia de seus adversarios.

Alguem poderá objectar, Senhora, que em logar do systema um tanto complicado que os ministros de V. Magestade adoptaram, para operar um grande movimento de propriedade nos bens vinculados, seria mais simples, depois de auctorisar e favorecer a alienação do dominio util dos terrenos incultos pela emphyteuse parcellaria, auctorisar também a alienação do dominio directo d'esses mesmos bens, ou pela remissão ou pela venda. Com a lealdade que professam os ministros de V. Magestade, dirão a proposito d'esta consideração, que parece razoavel, o seu pensamento inteiro. Primeiro que tudo o movimento dos valores, da propriedade considerada de um modo absoluto, seria na verdade o mesmo; mas o movimento do dominio util da propriedade territorial seria equivalente a metade, a um terço, e em certos casos ainda a menos. O fim principal do decreto, o augmentar o numero dos proprietarios, tão favorecido pelos artigos 12.^o e 13.^o, ficaria incomparavelmente mais restricto; o numero dos afiliados pelo sentimento da propriedade e da familia ao partido da paz e da ordem, seria muito menor. Por outro lado esse systema complexo cria um incentivo poderoso e talvez irresistivel, para o rapido aforamento dos baldios vinculados. Não será tanto o homem de trabalho que procure obter um tracto de terra para cultivar, como o administrador de vinculo que busque o homem de trabalho para lh'o offerecer, porque um grande interesse o incita. Gravados por dividas em grande parte ficticias e fructo monstruoso dos desvarios das paixões e de uma agiotagem infrene, uma parte dos possuidores de vinculos e sobretudo dos grandes vinculos, laboram em graves difficuldades economicas, de que os soltará em muitos casos a libertação de uma parte dos bens vinculados. Nem se diga que a muitos d'elles faltará a cordura para aproveitar utilmente o beneficio da lei: a obcecação d'estes não deve reverter em damno dos prudentes e avisados; ao passo que esses taes, ainda quando se não verificasse a libertação de uma parte do vinculo, saberiam sempre completar de um ou de outro modo a propria ruina, ajudados pela agudeza infernal da usura e da agiotagem.

Em todo o caso, Senhora, o governo respeitou com escrupulo o fundo hypothecario e os direitos de terceiro, sem entrar no exame da legitimidade moral da origem d'esses direitos. Depois de um grande movimento de propriedade dentro d'essa instituição immobilisadora, o fundo vinculado fica em rigor sendo o mesmo e portanto a mesma a garantia dos encargos e hypothecas. É esse na opinião dos ministros de V. Magestade, o principal merito, n'esta parte, da presente proposta de decreto.

Por todos os motivos e fundamentos economicos e politicos até aqui ponderados, o governo tem a honra de offerecer á Regia approvação de V. Magestade o seguinte:

DECRETO

Artigo 1.^o São confirmadas, ampliadas, alteradas ou revogadas as disposições dos Alvarás de 23 de julho de 1766, de 27 de novembro de 1804 e de 11 de julho de 1815, da Carta de Lei de 24 de novembro de 1823, e de outra qualquer legislação geral existente, relativas a maninhos ou terrenos incultos de qualquer especie ou denominação que sejam, possuidos allodialmente, e que forem reduzidos a cultura por contractos d'emprazamento, debaixo das condições declaradas nos artigos do presente decreto.

Artigo 2.^o Os emprazamentos a que se refere o artigo antecedente constituirão prazos fateosins perpetuos hereditarios. Fica a respeito d'elles supprimido o direito senhorial do laudemio, bem como o de opção e prelação. O canon será fixado livremente por accordo entre o senhorio e o emphyteuta.

Artigo 3.^o Os terrenos assim reduzidos a cultura ficarão temporariamente exemptos de todos e quasquer impostos directos geraes ou municipaes, tanto em relação à renda liquida do emphyteuta, como ao foro estipulado por este com o senhorio directo.

Artigo 4.^o Os novos predios constituidos em virtude d'este decreto, e cuja superficie não exceder dez mil braças quadradas (proximamente dez geiras) gosarão da exempção concedida no artigo antecedente, debaixo das condições e com as limitações seguintes:

§ 1.^o—A exempção durará 30 annos em relação aos predios que forem applicados, ao menos em duas terças partes da sua superficie, ao plantio de bosques de arvores de córte, que não sejam pinheiros maritimos, salvo sendo o predio situado na orla do mar oceano, até a distancia de uma legua para o interior das terras, dentro da qual a cultura dos pinheiros maritimos é equiparada á de quaesquer outros arvoredos de córte.

§ 2.^o—A mesma exempção durará 16 annos sendo os predios applicados, ao menos em dous terços da sua superficie, á cultura, singular ou collectiva, da amoreira branca, do canhamo e dos prados artificiaes, quer permanentes, quer temporarios, sendo porém necessario, no caso de se applicarem os dous terços sobredictos á cultura dos prados artificiaes, com exclusão da amoreira branca e do canhamo, que se conserve sempre um quarto do dicto predio em prados artificiaes permanentes, para se verificar a exempção concedida.

§ 3.^o—A mesma exempção durará 12 annos se ao menos os dictos dous terços forem applicados ao plantio de oliveiras.

§ 4.^o—Durará 8 annos a sobredicta exempção se ao menos dous terços do predio forem applicados á cultura da vinha.

§ 5.^o—Se ao menos dous terços do predio forem applicados á cultura dos cereaes ou a outras quaesquer culturas não especificadas nos §§ antecedentes, esse predio gosará por seis annos de igual exempção.

Artigo 5.^o O beneficio da exempção não é applicavel em nenhum caso aos prazos instituidos em terrenos incultos de regadio ou pantanosos, que se applicarem no todo ou em parte á cultura de arrozaes.

Artigo 6.^o Se a superficie do prazo exceder a que é fixada no artigo 4.^o, o periodo da exempção será reduzido a metade do tempo, em cada uma das hypotheses dos diversos §§ do mesmo artigo.

§ unico—Exceptua-se a cultura dos arvoredos de córte de que tracta o § 1.^o do artigo 4.^o, á qual é applicavel favor igual, seja qual for a extensão do terreno emprazado.

Artigo 7.^o Se um individuo possuir, quer como emphyteuta originario, quer como cessionario, dous ou mais prazos d'aquelles de que tracta o artigo 4.^o, a exempção ficará reduzida a metade do tempo em relação a cada um d'elles, salva sempre a hypothese do § 1.^o do dicto artigo 4.^o.

Artigo 8.^o O beneficio reduzido, designado no artigo 6.^o, é igualmente concedido ao proprietario que, conservando em si unidos os dominios directo e util, tornar productivos os seus terrenos incultos, dando-lhes a applicação de que tractam o § unico do dicto artigo e o § 1.^o do artigo 4.^o.

Artigo 9.^o O presente decreto fica sendo extensivo a quaesquer maninhos ou terrenos incultos que tenham a natureza vincular. Para os effeitos d'esta disposição os dictos terrenos são considerados como livres e allodiaes, e os administradores actuaes ou futuros dos vinculos havidos como proprietarios d'esses terrenos com dominio pleno, unicamente para poderem celebrar com respeito a elles os contractos emphyteuticos, permittidos nos artigos anteriores, com as condições n'estes expressas.

Artigo 10.^o Os fóros estabelecidos em cada um dos prazos, cuja instituição é facultada no artigo antecedente, ficarão incorporados no vinculo a que pertencia o terreno emprazado, e sujeitos desde logo aos encargos e hypothecas que pesarem sobre o mesmo vinculo.

Artigo 11.^o Tanto que o administrador de um vinculo houver emprazado, pela maneira precedentemente prescripta, a totalidade dos terrenos incultos pertencentes ao mesmo vinculo, ser-lhe-ha licito alienar o dominio pleno de uma porção de predios urbanos, ou de predios rusticos cultivados anteriormente á data deste decreto, e pertencentes ao cumulo vinculado. Esta porção alienavel será igual em valor ao capital que corresponderia á importancia dos fóros, considerados como juro de cinco por cento; isto é, será igual em valor a vinte vezes a somma dos fóros. A livre alienação de taes predios não poderá ser embaraçada pelos encargos ou hypothecas que possam pesar sobre o vinculo, ou por quaesquer outros motivos ou pretextos.

Artigo 12.^o Se o administrador do vinculo preferir alienar unicamente por contractos de emprazamento na fòrma estabelecida no artigo 2.^o, unica admittida para os effeitos d'este decreto, o dominio util dos predios urbanos ou dos rusticos cultivados, alienaveis em virtude do artigo precedente, a porção d'elles será igual em valor ao capital que corresponderia á importancia dos fóros accrescidos, considerados como juro de dous e meio por cento; isto é, será igual em valor a quarenta vezes a importancia dos dictos fóros accrescidos. N'esse caso o canon estabelecido nos respectivos contractos emphyteuticos, não poderá ser inferior a metade da renda dos predios aforados, calculada pelo rendimento medio dos ultimos trez annos. Os fóros resultantes d'esses contractos ficarão incorporados no vinculo.

Artigo 13.^o Se os emprazamentos facultados no artigo anterior forem feitos por superficies iguaes ou inferiores a dez mil braças quadradas, ao menos em metade da porção de bens alienaveis, calculada pela fórma estatuida n'esse artigo, o administrador do vinculo poderá alienar pela dicta fórma, ou segundo a que se faculta no artigo 11.^o, mais outra porção de bens vinculados, igual a um decimo do fundo libertado pelas disposições dos referidos artigos. N'esta hypothese como na outra os fóros ficarão vinculados, e nunca serão inferiores a metade da renda media, calculada sobre o rendimento dos ultimos trez annos.

Artigo 14.^o Se o administrador preferir um systema mixto de venda do dominio pleno, de emprazamentos por vastas superficies, e d'emprazamentos por superficies restringidas a dez mil braças, o computo do fundo alienavel será proporcionado, em harmonia com as disposições dos artigos 11.^o, 12.^o e 13.^o.

Artigo 15.^o Se o administrador do vinculo não usar da faculdade que lhe é concedida nos tres artigos antecedentes, uma porção de bens do vinculo, computada do modo estatuido no artigo 11.^o, ficará por sua morte livre, allodial e exempta de quasquer encargos ou hypothecas que pesem sobre o vinculo, por mais especíaes que sejam, regulando-se a successão d'esses bens pelo direito commum.

Artigo 16.^o As medições a que se procederá previamente para se verificar o disposto nos artigos 4.^o e 9.^o, dependerão da approvação da auctoridade administrativa local, ouvido o delegado ou subdelegado do procurador regio.

Artigo 17.^o As avaliações indispensaveis para se verificar o disposto nos artigos 11.^o, 12.^o, 13.^o, 14.^o e 15.^o, serão feitas judicialmente, ouvidos os successores dos vinculos, e aquelles que tiverem acção sobre os rendimentos dos mesmos vinculos por encargos ou por hypothecas.

Artigo 18.^o Fica revogada toda a legislação em contrario.

O PAIZ E A NAÇÃO

(ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL—«o PAIZ»)

1851

I

Por falta de tempo temos deixado de dizer algumas palavras sobre as observações fulminantes com que A Nação reduziu a pó impalpavel, o nosso artigo sobre as differenças profundas que caracterisavam o cartismo de 1832 a 1834, e o pseudo-cartismo de 1842 a 1850.

O nosso artigo feria o absolutismo se não nas suas tradições mais hediondas e atrozes, ao menos nas mais odiosas para o povo, nas suas instituições espoliadoras e vexatorias; nas suas rapinas legaes com que elle sustentava uma nobreza servil e devassa, uma côrte prostituida, uma alcatéa de magistrados venaes, com que mantinha esses tribunaes de inquisição, de inconfidencia, de policia, onde se passavam mysterios horriveis, com que locupletava essa patriarchal, esses cabidos, essas congregações religiosas, onde reinavam dissoluções sem numero e sem nome, onde os vicios, alimentados por grossas prebendas, não faziam differença dos que reinam nos salões e alcovas da agiotagem, senão em serem mais hypocritas, e estarem velados pelo silencio de ferro que a censura impunha aos animos generosos e independentes que poderiam apontal-os ao paiz. Um gemido ou um murmurio de qualquer d'esses animos mais audazes, bastava para sepultar nas masmorras ou repellir para o exilio, o revolucionario que ousava apontar para as orgias clericaes, para as corrupções cortezãs, para a venalidade dos ministros e tribunaes, para a baixeza de uma fidalguia desmoralisada, tão abjecta ante a tyrannia, como oppressora e orgulhosa para com o povo. Foram víctimas e testemunhas d'esse systema de Baixo-Imperio, d'esse governo de eunuchos immoraes, de salteadores legitimos, o padre Vieira, Francisco de Lucena, José Anastacio da Cunha, o padre Theodoro de Almeida, Phylinto Elysio, e tantos outros homens que a gloria vingou dos velhacos corruptos, que reduziram esta nação livre, forte e respeitada ha quatrocentos annos, a ser, como era já na segunda decada d'este seculo, a fabula e o escarneo das gentes.

Vós dizeis que O Paiz conta com ser o unico documento da historia contemporanea para o futuro. Enganaes-vos. Fizestes de nós um espelho em que se reflectia a vossa imagem. Vós é que imaginaes que a historia da tyrannia está só escripta nos vossos hymnos insensatos á ignorancia, ao obscurantismo, á intendencia da policia, á inquisição e aos conventos-prostibulos de sua magestade fidelissima o muito poderoso, virtuoso e excellente rei, o senhor D. João V, o benevolo soberano, que, ao arrancar-se dos braços de alguma freira de Odivellas, mandava arrastar entre linhas de soldados imbelles as populações das provincias, para virem trabalhar na grande demencia e ridicularia de pedra e cal chamada o convento de Mafra, onde para seu divertimento sua real magestade queria metter uma grande manada de frades comilões e ignorantes.

Nós não pensamos que O Paiz seja o unico documento para a historia do presente. Mas tambem não crêmos que a historia do absolutismo esteja nas Gazetas e Relações de Fr. Francisco Brandão, nem nos Mercurios de Sousa de Macedo, nem nas estupendas orações jaculatorias dos fidalgos tolos que constituiam a maioria da academia de historia, nem nas gazetas de Montarroio e dos seus successores até o divertidissimo Lopes. Estae certos de que o presente ou o futuro ha de estudar essas epochas saudosas por bem diversos monumentos.

Houve um frade, membro illustre da ordem monastica mais respeitavel, da que só talvez era respeitavel, a benedictina, que escreveu a historia secreta e sincera dos reinados de Affonso VI e de Pedro II. Deveis conhecel-a porque sois eruditos. Colligi todas as prostituições, todas as villanias, todas as ladroeiras, todas as anarchias, todas as cobardias, todas as infamias dos ultimos dezoito annos, e comparae-as com as descriptas pelo secretario geral da congregação de S. Bento, e depois com as dos dous livros horriveis da catastrophe e da anti-catastrophe, e dizei-nos quantos annos de desordem moral e material serão ainda precisos, para formalisar uma conta corrente entre a epocha liberal e esse pequeno periodo das eras do absolutismo?

Sois singularmente esquecidos!

Dizei-nos uma coisa. Estes homens chamados liberaes, que nos teem roubado, mal-governado, ludibriado, traído, quem os viu nascer, quem os educou, quem os fez homens publicos? Foi o governo liberal que creou essa alcatéa de velhacos e salteadores? É muito moderno para isso. Longe de nós citar nomes. Mas se os podessemos citar vêl-os-ieis approvados era costumes e sciencia pela vossa velha universidade, despachados pelo vosso desembargo do paço, empregados pelos vossos ministros e pela vossa regencia nos cargos de administração e fazenda; promovidos aos postos militares pela vossa côrte beata; recompensados com distincções honorificas e lucrativas pelos vossos virtuosos e pios governos. Que tem a geração nova, fervorosa nas suas crenças, ardente nas suas esperanças, pundonorosa nos seus sentimentos, com essas fézes que ainda escorrem sobre nós, da sentina do absolutismo?

N'este campo do jornalismo sabeis que differença ha entre nós e vós. É a que provém da indole dos respectivos partidos. Nós combatemos com as armas francas e leaes da sinceridade: vós com as armas, que crémos não tomastes por vossa vontade, mas que eram as unicas que o vosso partido vos podia subministrar, e que o deshonram mais a elle do que a vós; combateis com as armas atraiçoadas da falta de sinceridade e de franqueza. A imprensa independente e liberal accusa os seus homens publicos sem disfarce, aponta francamente os defeitos das suas leis, reforma as suas opiniões erradas, reprova os proprios actos quando, reflectindo melhor, julga que errou; porque o partido dos impios reconhece que é composto de homens sujeitos aos erros e paixões. Vós, partido devoto e temente a Deus, bateis-vos debaixo dos escapularios, dos bentinhos, das camandulas, dos agnus-dei: corações mais fidalgos, sentis que estaes e sempre estivestes acima das fragilidades humanas: o absolutismo e os seus desembargadores, inquisidores, esbirros e carrascos, eram impeccaveis, omniscientes, infalliveis. Se o diabo tivesse sido alguma vez capitão-mór, geral dos bernardos, alguazil, monsenhor, intendente da policia, declaraveis o diabo um sancto benemerito da monarchia.

Nas vossas instituições, nas vossas leis, nas vossas crenças, ou antes nas vossas farças politicas e religiosas, nada ha que deitar fóra, desde as sandices das côrtes de Lamego até ás ourinas de côres com que ha poucos annos querieis inventar uma sancta de carne e osso, para metter pelo chão abaixo os socarrões d'este seculo blasphemo, sancta que os malvados maçons, professores e facultativos do hospital de S. José, tiveram a insolencia de demonstrar que não passava de um mísero instrumento das imposturas do beaterio e dos negociantes e pregoeiros da tyrannia.

Vós negaes-nos o direito de denominar liberrimas as tradições de D. Pedro, porque os decretos com que elle libertou a sua patria dos comilões e mandriões ao divino e ao profano, que devoravam o fructo do suor do povo, que lhe bebiam o sangue por taças de prata, assentados nos antros escuros da hypocrisia, reclinados no collo de mulheres perdidas, foram promulgados na epocha em que elle exercia a dictadura, em que, empenhado n'uma lucta de morte com o despotismo, que se erguia tenebroso e desesperado para a ultima e decisiva batalha, fizera o que sempre practicaram os chefes dos povos, quer nas monarchias, quer nas republicas, em circumstancias analogas; negaes o liberrimo d'essas tradições porque D. Pedro concentrava em si todos os poderes? Essa negativa vinda de outra parte dava materia á discussão: da vossa é uma cousa ridicula. Podeis, estribados nos solidos fundamentos das côrtes de Lamego, negar a legitimidade de D. Pedro; mas suppor que, como rei que fôra, como representante de sua filha, como seu logar-tenente, como seu tutor e protector natural, não podia temporariamente evocar a si uma auctoridade, de que, segundo as vossas doutrinas, tinham tido direito de usar permanentemente os seus predecessores, é uma d'aquellas finuras da logica realista que vós inventastes para divertimento d'esta terra. Dizei-nos: d'onde veiu a legitimidade das leis e actos governativos de D. João VI, como principe regente, quando ainda não era rei de Portugal e sendo viva a legitima soberana, posto que impossibilitada de exercer a suprema magistratura? Onde estão as actas dos tres-estados que lhe conferiram o poder absoluto de legislador? Onde as actas dos tres-estados que deram a um principe, que respeitamos porque é desgraçado e proscripto, o direito de usar na abrilada de poderes magestaticos, estando o soberano vivo? A necessidade? A salvação publica? Então concedei-nos tambem a nós o direito de vermos a necessidade e a salvação publica, na dictadura de D. Pedro.

O liberrimo das tradições do duque de Bragança, não está na origem da sua auctoridade; está no espirito e nas tendencias d'esses decretos com que a posteridade lhe tecerá a sua corôa de gloria. Está em ter desfeito e atirado para a feira da ladra, os instrumentos carunchosos e sebentos, com que os phlebotomistas da monarchia absoluta, sugavam a melhor parte e a mais pura, da substancia dos que trabalham; está em ter rasgado a trapagem de instituições e leis espoliadoras, por cujo restabelecimento os velhos sybaritas do partido realista, aquelles que choram pelas grossas commendas e grossas prebendas, iam ha annos fazer preces ao céu, junto do leito da sua sancta improvisada. O liberrimo dos decretos da dictadura de D. Pedro, consiste em serem esses os látegos com que sacudimos os vendilhões do templo, e enxotámos das vias publicas os salteadores legaes; consiste em serem elles que tornaram impossivel uma restauração absolutista; porque o absolutismo, que só se firmava em abusos, não teria hoje em que se estribar. Os capitães-móres, os dizimos, os frades, as bruxas, as milicias, os quartos, os oitavos, as jugadas, a patriarchal, os lobis-homens, as cortes de Lamego, as alçadas ad hoc, os tractos espertos, a legitimidade dos adulterios desembargatorios, foram-se. Foram-se, pobres comilões das commendas e prebendas, todas as coisas poeticas e sanctas, cuja irreparavel perda deploraes, accesos em sancto amor da monarchia e da religião de nossos antepassados.

Sois imprudentes! Porque falámos na extincção dos tributos foraleiros, como de um dos actos capitaes da dictadura de D. Pedro, como de uma providencia que por si só faria a gloria de um principe, redarguis-nos com a miseria de muitas familias nobres, que ficaram privadas de subsistencia pelo decreto de 13 de agosto.

Quereis um excellente conselho para essas familias nobres? Trabalhem. É exactamente o que fazem os homens do povo quando teem fome: é exactamente o que Deus ordenava que Adão fizesse, se queria comer, e posto que a fidalguia não provenha d'esse primeiro tronco das castas populares, aquelle exemplo biblico não é absolutamente para despresar.

Depois a queixa é mal fundada. A lei de junho de 1846, remediou até onde era possivel o escandalo de que vos queixaes. Essa lei perfilhae-a, que é conforme no seu pensamento ás vossas aspirações. Escandalo! Tão escandalo como seria o de colher a policia um bando de salteadores na sua caverna, tirar-lhes a preza já dividida entre elles, e restituil-a aos passageiros nús, famélicos, espoliados.

A historia d'esses tributos, da sua conservação ao lado dos tributos geraes do paiz, da sua delapidação, apesar dos protestos solemnes dos povos, repetidos por seculos nas assembléas nacionaes, em quanto o absolutismo não esmagou as antigas liberdades d'esta terra, é que é um d'aquelles escandalos que ás vezes as nações apagam com sangue, quando os principes não sabem como D. Pedro, riscal-os com o traço de penna que amaldiçoaes.

Quando quizerdes que vos desenhemos aquella negra historia em largos traços de penna, far-vol-o-hemos, ajuntando-lhe ao lado um quadro das façanhas d'essa nobreza, cuja sorte lamentaes. Estae certos de que a sapiencia realista ha de scismar alguns dias, antes de vos tirar das aperturas da situação em que viestes collocar-vos. Tendes discutido tanto o presente, que é preciso discutir-vos tambem o passado.

Não quereis que falemos da liberdade da terra, porque não falamos dos bens usurpados á egreja. A que bens vos referís? Aos das congregações religiosas? Dizei-nos: 1.^o, se ellas possuiam esses bens em virtude das leis, se por derogações especiaes d'ellas; 2.^o, se o poder temporal podia ou não recusar a conservação das corporações monasticas; 3.^o, se extinctas ellas, os seus bens, possuidos em contradicção com as leis de amortisação, caíam ou não no dominio do estado. Pensae um pouco antes de responder. Vêde não estragueis as doutrinas dos bons tempos que já lá vão.

Perdoae-nos: mas quando alludís aos pescadores, argumentaes com todo o mimo e garbo da dialectica monsenhora, miliciana e dizimeira. Sois de má fé tão exemplar, que merecieis ser feitos abbades de Lobrigos, antes d'essa abbadia de trinta mil cruzados ser chamada á muxila por uma das nobres familias, cobertas hoje de lucto, por verem os rombos que os impios e demagogos fizeram no throno e no altar. Redarguis-nos que apezar das liberdades e excepções que D. Pedro concedeu á pesca, os pescadores andam a mendigar. Pois não era d'isso que nós nos queixavamos? Não era justamente por ter o pseudo-cartismo de 1842 matado a liberdade cartista de 1832, que nós bradavamos aqui d'el-rei? Quereis, porém, saber um facto curioso? Quando os Cabraes, pela lei de 10 de julho de 1843, restabeleceram os vexames de que D. Pedro libertara a pesca, estribaram-se n'uma lei miguelista de 1830. Foi d'esta lei que partiram, foi esta lei que invocaram, ligando o absolutismo de 1842 ao de 1828, o systema espoliador antigo ao systema espoliador recente. Andae, que n'esta parte os Cabraes são vossos primogenitos, e por isso não admireis que os pescadores mendiguem: é o mesmo que succedia antes da odiosa dictadura de D. Pedro, quando estes iam a Queluz, aos duzentos e trezentos, pedir esmola ao snr. D. Miguel.

Não consentís que folguemos da extincção dos dizimos, porque o clero está na miseria e o systema actual de retribuição aos parochos é inconveniente. N'este ultimo ponto estamos de acordo. Mas ahi tendes a differenca entre a nossa lealdade e a má fé realista. Nós não nos envergonhamos de dizer que os liberaes erraram em querer que os parochos fossem directamente subsidiados pelos seus parochianos, e que os resultados moraes e religiosos de um tal systema são máus; não hesitamos em proclamar a reforma, em accusar duramente os governos que não a emprehendem. Vós, pelo contrario, quereis remediar o inconveniente com um mal maior, só porque os dizimos coexistiram com o absolutismo. Que vos importa que nove decimos d'esse tributo absurdo, d'esse tributo iniquo porque feria só uma classe, a classe mais digna de contemplação, d'esse tributo anti-economico que recahia, não sobre o producto liquido, mas sobre o producto bruto, fossem devorados por uma fidalguia safada e corrompida, que só sabia arrastar-se e comer; e por bispos opulentos que com os dizimos fundavam fartos patrimonios para todos os seus parentes, por conegos devassos, por essa comedia ao divino, publica-fórma em miniatura da egreja romana, chamada a patriarchal; por conventos de frades gordos e ignorantes; por beneficíados supplices e in quocumque statu, por todos aquelles, e por tudo aquillo, emfim, que mais abusivo era, que mais fóra estava do espirito do christianismo? Com que fronte ousaes falar da miseria actual dos parochos? Nem ella é como a pintaes, nem é toleravel que alludam a ella os defensores dos governos immoraes que introduziram tão vergonhosos abusos, que consentiam aos padroeiros, aos beneficiados, aos commendadores, aos conegos, que despendessem nos banquetes, no luxo, no jogo, nos lupanares, o fructo dos suores do lavrador, extorquido impiamente em nome de Deus, em quanto os curas de alma só obtinham d'esses poderosos senhores, congruas de fabulosa exiguidade.

Quereis um contracto? Temos meios de verificar quaes são as congruas actuaes das diversas parochias do reino: tambem os temos para saber quaes eram no tempo do absolutismo. Tomemos uma diocese qualquer, para instituirmos a comparação entre uma e outra epocha. Se, na sua maioria, as congruas actuaes forem inferiores ás antigas nas parochias dizimeiras, tendes vós razão de nos accusardes de causadores da miseria do clero curado, pela extincção dos dizimos; se porém se verificar o contrario, haveis de acceitar a qualificação de hypocritas, pois defendeis as instituições do passado não porque eram melhores, mas porque rendiam mais para os agiotas do absolutismo, isto é, para os fidalgos, para os commendadores, para os abbades nedios, para os beneficiados in quocumque. Se nós fomos tão maus para o clero aproveitae a nossa proposta. Olhae que é uma limpa veniaga.

Por ultimo increpaes-nos de que referindo-nos à suppressão do systema vicioso das milicias e ordenanças, d'esse Potosi inexgotavel dos capitães-móres e coroneis de tibiquoque, não nos lembrassemos dos soldados, que verteram o sangue e perderam os membros ha quarenta annos em defesa da patria, e que morreram de fome. Dirigis n'esta parte uma increpação justa, não a nós, que não somos poder, que nunca o fomos, mas aos governos posteriores á restauração de 1833. Todavia, que tem isso com a extincção das ordenanças e milicias? A vossa dialectica realista dá, na verdade, saltos mortaes. A nossa vae mais devagar. Se esses soldados esquecidos perderam o sangue e os membros em defesa da patria, ha quarenta annos, o esquecimento indigno dos seus serviços divide-se por metade: vinte annos com curtos intervallos pertencem ao absolutismo, vinte á restauração. Onde estão, absolutistas, registadas as pensões que lhes déstes: onde é situado o hospital de invalidos que edificastes? O unico que existe devem-no os veteranos portuguezes a uma nobre e sancta princeza, á viuva do principe D. José, á Tia Malhada, que vós sabeis. De edificações vossas não temos noticia, senão da continuação do palacio da Ajuda, uma das primeiras necessidades do paiz, das forcas erectas na praça nova do Porto e no caes do Sodré, de uns paredões em Carnaxide para a egreja da Senhora da Rocha, e das formidaveis fortificações do Tejo, com que tornastes Lisboa inconquistavel.

Talvez vos referis unicamente aos officiaes realistas separados do quadro do exercito em 1834. Isto é mais natural, porque vós, fidalguinhos, não curaes da soldadesca, peonagem indecente, vil relé popular. Nós lamentamos tambem que os serviços d'esses antigos militares se menoscabem por causa de odios politicos, que a victoria devia ter feito esquecer. Como vós, estamos promptos para reprehender e accusar, para deplorar e pedir; para execrar e amaldiçoar estes nossos satrapas pseudo-liberaes, que deixam ir de porta em porta os velhos Belisarios de Portugal. Mas, realistas, escondei sob as vossas capas de S. Ignacio essas mãos tinctas em sangue, derrubae para o rosto o chapéu da companhia, não vos descubram esse olhar implacavel! Entre os militares que pendurastes das forcas; entre aquelles com que atulhastes as cadéas e as masmorras das fortalezas, com que povoastes as praias do desterro e os presidios de Africa, não havia nenhuns d'esses que verteram o sangue em defeza da patria commum? Por que, durante cinco annos, mansos cordeiros do evangelho, rosicléres ambulantes de veronicas e relicarios, não vos veiu ao espirito um unico pensamento de perdão e de piedade? Dizei-nos o que terieis feito de todos esses militares, se a providencia tivesse deixado protrair-se até agora o vosso reinado? Eram para vós inimigos politicos? É exactamente o que foram para nós os vossos officiaes. Maldicto o liberal que ainda conserva rancores para os vencidos: maldicto o governo que não lhes paga a divida da patria. Mas que a justiça divina cáia tambem sobre aquelles que derramaram nos patibulos o sangue dos valentes que já o tinham derramado por esta terra; ou lhes fizeram verter durante cinco annos o suor da agonia sobre as lageas dos calabouços, ou os tornaram errantes por praias estranhas, onde lhes branquearam os cabellos as saudades da sua terra, onde teriam acabado a vida, proscriptos e miseraveis, se o braço da Providencia e o genio do duque de Bragança não os houveram salvado.

Collegas, deixae-vos d'estas questões de que não entendeis nada. Ide lêr a vida do padre Anchieta, que decididamente é o sancto que fez mais milagres n'este mundo, ou se preferis occupar-vos em outra obra pia, ide ajudar os cabralistas a vender a bulla da sancta-cruzada, que elles compraram a prazos, ao vosso virtuoso amigo o cardeal Antonelli. Será uma vergonha que não haja dinheiro para o pagamento, quando elle sacar letras sobre o escriptorio da salvação de Portugal.

II

Na viva discussão entre Proudhon e Bastiat, sobre o credito e a legitimidade dos juros, este ultimo dizia ao seu irritado adversario na carta com que terminou a discussão: «Todos os gremios religiosos se parecem uns com os outros: quando não teem razão, agoniam-se.» É o caso da redacção da Nação comnosco.

O nosso artigo foi provocado. Não tinhamos atacado o jornal realista. Apreciaramos n'um artigo nosso o espirito das reformas de D. Pedro comparando-o com o espirito que caracterisou a reacção de 1842. Era uma questão estranha ao partido realista. Na verdade alludimos então accidentalmente ao absolutismo; mas imaginavamos que a Nação, reservando para o seu partido a nacionalidade, considerava o absolutismo, cujo predominio no paiz, durante certos periodos da nossa historia, é incontestavel, como uma aberração, um abuso da constituição primitiva do paiz, constituição assaz livre, posto que não tão democratica como o indicariam algumas provisões d'essas côrtes, a que a Nação foi buscar duas linhas para lenda da sua bandeira, se táes côrtes houveram existido. Imaginavamos que a Nação comprehendia nos seus affectos esses seculos de nobre recordação, em que este cantinho do mundo se governava com garantias e liberdades singulares para o povo; em que o feudalismo não transpunha as nossas fronteiras, em quanto, a bem dizer, toda a Europa gemia debaixo do seu jugo de ferro. Imaginavamos que a Nação se recordava das nossas admiraveis cartas de municipalidade, dos nossos parlamentos, d'essas duas heranças de liberdade romana e de liberdade germanica, que nossos avós haviam salvado atravez da edade media. Enganava-mo-nos. A Nação regeita tudo isso: a Nação cifra todo o passado nos seculos mais recentes. Da comedia monastica das côrtes de Lamego salta á comedia real das côrtes de 1641. Para ella a velha monarchia não é a dos primeiros Affonsos, de D. Diniz, de Affonso IV, de D. Fernando, de João I ou de Affonso V: é o absolutismo, comparativamente moderno, na sua forma pura, exclusiva. Só depois vimos isto; só depois vimos que os tempos anteriores ao estabelecimento do poder real sem limites, estavam tanto fóra da communhão realista, eram tão hereticos para a sua monarchia orthodoxa, como estes tempos liberaes, que, em nossa profunda ignorancia, suppunhamos estribarem a sua legitimidade historica nas tradições primitivas. Sem o saber tinhamos blasphemado do credo realista: do sancto, do legitimo, do divino absolutismo. Mas a ignorancia do credo de uma egreja alheia, não devia concitar o anathema contra o ignorante. A Nação devia ter advertido com caridade a nossa rudeza, conforme manda o evangelho. Era uma obra de misericordia. Em logar d'isso fustigou-nos duramente. Foi um proceder ferino.

Irritamo-nos tambem. Poderiamos discutir com a Nação sobre as formulas da liberdade. Talvez muitas d'aquellas com que a monarchia cresceu e vigorou fossem, accommodadas á civilisação de hoje, preferiveis ás actuaes: era uma questão de doutrina disputavel. Acceitar como base de controversia a negação completa da liberdade humana, o predominio de um homem sobre a humanidade, a sciencia certa e o poder absoluto individual, como fundamento do direito; eis o que a consciencia, a dignidade do homem, o seu espirito immortal, não consente á intelligencia que dispute com placidez. O absolutismo como theoria politica é a nossos olhos um insulto feito a Deus e ao genero humano. Isto é, para nós, uma verdade de consciencia. Seguimos o impulso da indignação; porque só a indignação póde corresponder a essa theoria a um tempo immoral e feroz. N'um artigo de jornal, escripto a correr, talvez haja uma ou outra phrase mais ou menos inconveniente: retiramol-a. Mas as idéas, nem uma, por mais violenta que os nossos adversarios a supponham; porque a verdade não se retira diante da apotheose da corrupção e da tyrannia.

No meio, porém, da cólera não esquecemos a cortezia de jornalistas. Evitámos tudo que fosse pessoal aos redactores da Nação; lançamos até á conta do seu partido a deslealdade da sua argumentação. E não respeitámos só os redactores; procurámos não ferir individualmente ninguem. Nas increpações a um partido a responsabilidade que se lança sobre elle reparte-se em tantas quotas, que o valor de cada uma é inapreciavel. A Nação dirigiu-se ao individuo, aproximou escriptos cujo tom, cujo caracter era diverso, e que, a haverem sido similhantes, ella se teria prostituido discutindo alguns e elogiando-os em parte. Falou no Raio e no Rabecão, n'esses papeis abjectos, que insultavam os individuos e penetravam na vida particular; n'esses papeis que apparecem em toda a parte em que reina a liberdade de imprensa, a liberdade da idéa e da palavra; n'esses papeis que não provam outra cousa senão uma verdade sediça, senão que se abusa ás vezes das coisas mais legitimas e uteis. Era, porém, ao orgão do absolutismo que tocava fazer allusões d'estas? De que epocha são o Mastigoforo, o Cacete, a Besta-Esfolada, e centenares de publicações analogas? Eram essas publicações hediondas como aquellas que alludis, especulações torpes de alguns miseraveis que exploravam o escandalo para viver? Não. Eram composições de homens que vós elevaveis ao episcopado; eram obra de sacerdotes, que iam consagrar a hostia ao cordeiro, e prégar o evangelho (sabe Deus o que elles prégavam) com os labios escorrendo em fel, com as mãos immundas de tincta que elles sabiam se havia de converter em sangue. E era isso um abuso da liberdade de escrever, que vós tão largamente aproveitaes, embora seja invenção diabolica dos liberdadeiros? Não. A censura, a auctoridade, o poder publico, inexoravel, frio, grave, calculado, lá estava. Esses sacerdotes iam com os seus libellos subir as escadas do desembargo do paço, onde se enfileiravam as solemnes cabelleiras dos bons tempos, ou bater á cella onde curtia os periodos do Larraga, o sabio de então, o frade ou o monge pedante. E o desembargador, ou o frade, ou o monge liam pausadamente o libello, e a injuria torpe, calumniosa, pessoal, sanguinolenta, descia para os prélos legitimada pelo tribunal, sanctificada pelo convento, irreplicavel, fulminante; porque o magistrado e o frade lá tinham nas mãos o açamo para impedir a retaliação, para obstar ao gemido da victima. Liberdadeiros detestaveis, que fizestes libertando a palavra e o pensamento? Para vossa vergonha eterna ahi tendes o Rabecão e o Raio.

Nós chamámos as coisas pelo seu nome: chamámos prostituição á prostituição; mas remontámos os seculos; buscámos nas gerações, extinctas ha muito, os nossos exemplos. Sabeis, e se não sabeis perguntae-o em segredo aos vossos compartidarios, que não precisavamos de remontar muitas decadas, ou andar muitas leguas, para irmos encontrar debaixo dos freixos de um parque, espalhadas no chão, as folhas avulsas do capitulo 26 do livro XI dos Annaes de Tacito. Vós accometteis os vivos, insultaes quem não se póde defender, porque só o faria envilecendo-se, cuspis nas faces de uma mulher, vilipendiaes a sanctidade da fraqueza, quando nós vos davamos o exemplo do respeito pela sanctidade da proscripção e da desgraça. Cavalleiros portuguezes antigos, erguei-vos das vossas camilhas de pedra; vinde contemplar as gentis façanhas dos defensores do passado!

Que a Nação prosiga em vinte columnas com que nos ameaça, refutar as nossas seis columnas cuja extensão a espantaram. Esperamol-a. Depois nós. Veremos se saindo dos accidentes vem aos factos: se acceita a luva que lhe atirámos. Se nos prova a justiça, a conveniencia, a moralidade das prestações foraleiras, dos dizimos, da soltura clerical e monastica, dos gravames sobre a pesca; emfim, de todas essas vergonhas de que D. Pedro nos libertou, pelo que a sua memoria nos é cara.

III

Os sete seculos

Agora nós.

Defensores do absolutismo, vós escrevestes um livro a proposito de um artigo do Paiz, que tinheis provocado, e atulhastes com elle não sabemos quantas columnas do vosso jornal. É que esse artigo vos feriu profundamente. As nossas ignorancias, as nossas falsidades, as nossas faltas de logica e de estylo, as nossas loucuras, o nosso orgulho insensato, todas as miserias do espirito humano, epilogadas em nós, que deveriam despertar a compaixão d'essas almas catholicas e pias, fizeram-vos proromper em rugidos de uma cólera essencialmente heretica, pagã, selvagem. Atirastes-nos com os thuribulos, com as galhetas, com os flabellos, com os tocheiros, com as sacras, com os missaletes. Apinhastes-vos á porta da sacristia a gritar, a vociferar, a quererdes saltar uns por cima dos outros. Os remoques, os vituperios, as maldições, as pragas choveram por dias sobre nós, que de braços cruzados e com as lagrimas nos olhos, contemplavamos compungidos a vossa resignação christã.

Defensores do absolutismo, isso não é bonito! Tanto fogo, tantas descargas cerradas sem ordem nem disciplina, não prestam para nada. Uma carga de bayoneta vale mais que tudo isso. Granadeiros do Mindello, conforme nos chamaes, sabemos como o simples reluzir das bayonetas era efficaz comvosco. Ficastes sempre um pouco milicianos. Gastaes muita polvora; mas atrapalhaes-vos demasiado ao desfechar, e as balas zumbem apenas por cima da cabeça dos inimigos.

Caricatura de Eumenide, a Nação, ahi estava ha uns poucos de annos a descompor, não a podridão de vicios e de corrupções, com que o despotismo de tres seculos envenenou a seiva da sociedade; não a herança de envilecimento que o habito de tremer diante dos frades inquisidores, ou dos cabelleiras da inconfidencia e da intendencia, severos e puros como os accusadores da filha de Helcias, legara aos que vieram antes de nós, e estes á geração que vae acabando; não a abjecção aprendida nas ante-salas da nobreza, do alto clero, dos magistrados venaes, dos cortezãos que mercadejavam nas mercês regias, mas sim a liberdade, a civilisação, o progresso, que são leis de Deus, reveladas nas aspirações de todos os homens, nos caracteres dos seculos, no desenvolvimento invencivel do espirito humano; a liberdade, a civilisação e o progresso, que se conteem no Evangelho de Christo e não no Evangelho dos Phariseus, e que hão-de ir lentamente desbaratando esse caput mortuum de depravações e baixezas, que os despotas passavam de mão em mão para dominarem pela desmoralisação e pelo terror. Eumenide de roca á cinta, a Nação ahi estava aguentando nas costas gibosas, a canastra cheia de parches fetidos com que a hypocrisia da côrte, dos tribunaes, das sacristias, cobria as chagas purulentas do corpo social, flagellado, rasgado, exhaurido de forças pelos vampiros defensores do throno e do altar: ella ahi estava resmoninhando improperios contra a dignidade e os fóros do homem, e apregoando a panacea para todos os males, na immunda trapagem da canastra absolutista. Não lhe diziamos nada: não lh'o diriamos talvez nunca. Tentou-a porém o peccado um dia, para vir lançar á nossa porta o seu ridiculo pregão. Fez-nos asco a mumia ambulante, e com o bico da bota atirámos-lhe a canastra ao ar. Os parches espalharam-se no chão, e quem passava tapou o nariz e os olhos; era um espectaculo hediondo e repugnante. A velha ficou embaçada, absorta na dôr e na colera. Depois tornou a si, arrancou mãos cheias de cabellos desgrenhados: careteou, rugiu, babou-se: e, Messalina desdentada e tonta, fincando os punhos engelhados nos quadris angulosos, epilogou em si a Ribeira-Nova e blasphemou, blasphemou, blasphemou quatro dias.

Grita, Eumenide de farça; grita, que te ouçam todos! Tens razão, pobre velha, a bota impia estragou-te a mercadoria. Apanha essas rodilhas esfarrapadas das commendas e prebendas, e concerta outra vez a canastra. Vitupera esta raça maldicta dos liberdadeiros, que não querem sentir os ossos a estalar no potro, ou vêl-os queimar nas fogueiras da sancta-inquisição; que não querem que os desembargadores durmam impunemente no thalamo nupcial, o somno do adulterio em nome do livro 5.^o; que não querem dar cem mil cruzados a cada successor dos descalços apostolos, para fundarem morgados á parentella, nem grossas prebendas aos monsenhores, conegos e beneficiados in quocumque, para atulharem de legitimações os livros da chancellaria, e fazerem apparecer uma edição annual do Cosinheiro Moderno. Apanha a canastra e os fedorentos emplastros, e continua a apregoar os teus recipes, sacudindo de vez em quando esse latego imaginario com que, na tua tonteira, pensas castigar a civilisação, por ter enterrado a sentina do absolutismo nas ruinas das taipas e páus podres de que era construida.

Vinde cá, defensores do absolutismo, quem vos deu o direito de falardes d'esta nobre terra de Portugal nos tempos em que era livre? Em Portugal o despotismo é que é moderno, e a liberdade antiga. Cerrae de todo os olhos, vós os que amaes curvar-vos ante um senhor dos vossos bens e das vossas cabeças. Não vos deslumbre o brilho dos quatro primeiros seculos da monarchia! As gerações d'essas eras sacrosanctas não vos pertencem; são as dos nossos antepassados: os vossos acham-se nas que viveram de joelhos á porta da inquisição, do palacio-monstro de D. Manuel e do convento absurdo de Mafra.

Defensores do absolutismo! A historia dos tempos das commendas e prebendas por que vós choraes, começa n'uma usurpação e acaba n'outra: a primeira a da liberdade do povo, a segunda a do throno legitimo. Entre estes dous horisontes, cerrados e negros, está contida apenas a longa decadencia, a lenta agonia de uma nação pequena pelo numero, mas grande pelo esforço, grande sobretudo pela sua actividade agricola, commercial e maritima; grande pela politica dos seus principes populares; grande por um energico e tenaz amor dos seus fóros; grande pela sabedoria comparativa das suas instituições e leis, no meio do atrazo politico da Europa; grande, não pelas virtudes das classes privilegiadas, mas sim pelas dos villãos, pelas de nossos avós; grande pela alliança estreita entre a monarchia e a democracia, contra as oligarchias que nascem da indestructivel desegualdade humana e que, segundo os tempos, se chamam patriciado, fidalguia, agiotagem, e cuja manifestação suprema se exprime constantemente por duas palavras unicas: violencia e rapina.

Defensores do absolutismo e da legitimidade! Os actos politicos dos tempos que vos pertencem e que vós defendeis, constituem apenas uma serie de illegitimidades: mais do que isso, uma serie de attentados commettidos contra o povo, pelos principes pervertidos, por uma fidalguia que, tão orgulhosa d'antes, se declarara vencida ao ver rolar algumas cabeças sob o cutello do algoz, e que achára em fim ser mais commodo servir, enganar, e comer, comer muito; pervertidos pelos jurisconsultos que tinham ido beber nas escholas estrangeiras as doutrinas de direito publico dos tyrannos de Roma, como vós nos accusaes de termos ido beber as ideas de liberdade, que estão escriptas no coração do homem, nos livros dos impios d'este e do precedente seculo.

Defensores do absolutismo e do direito divino! Em que dia desceu este do céu sobre a cabeça d'el-rei D. Manuel, para ordenar aos seus escribas que rasgassem centenares de pactos constitucionaes, onde estavam escriptos os fóros e liberdades d'esta terra; centenares de pactos municipaes, onde estavam consignadas as liberdades e garantias das cidades e villas do reino? Em que dia desceu o direito divino a sanctificar a conversão em simples leis fiscaes, dos codigos em que se continham as immunidades e franquias populares, cujo espirito sempre, e cuja lettra muitas vezes provam, que esses codigos eram rigorosos contractos politicos, livremente offerecidos e acceitos? A reforma que os povos pediam á corôa era acaso a morte das suas liberdades, ou era a cessação dos abusos que a nobreza, a magistratura real e o clero tinham introduzido, pouco a pouco, em contravenção com o direito publico municipal, base do direito politico do paiz? Respondei.

Respondei, defensores do absolutismo! Que eram os nossos parlamentos até 1480, senão as assembléas onde o povo protestava sempre, ameaçava não raro, e castigava algumas vezes cerrando as bolças, as quebras do que, na linguagem imperfeita d'aquellas eras, chamava seus privilegios, e que nós hoje chamamos direitos e garantias politicas? Que eram esses parlamentos (concedei-nos o uso d'esta palavra liberdadeira e revolucionaria, de que já usavam nossos avós, os malhados do seculo XV) senão uma aferição solemne entre os actos do governo, o exercicio do poder real, por si ou por seus delegados, e as regras do direito constitucional com que crescera e vigorava o paiz?

Respondei, se o sabeis, e se o não sabeis ide estudal-o em documentos um pouco mais graves e authenticos, do que esse rol de tolices bernardas a que chamaes côrtes de Lamego. Elles estão patentes para vós como para nós. Mentistes quando dissestes que fizeramos monopolio d'esses titulos da legitima e verdadeira gloria d'esta nação, que se constituiu e cresceu á sombra da liberdade, porque só assim as nações se constituem e crescem. Mentistes para encobrir a vossa incapacidade e preguiça. Para os buscar, estudal-os e comprehendel-os, é necessario o sacrificio do tempo, dos prazeres, da saude, dos interesses materiaes; é necessaria a abnegação da existencia exterior, no que ella tem mais grato, para viver, anno após anno, de uma vida interior que nos devora, de uma idéa que nos illumina. É esta idéa que vos foge, que não cabe no vosso espirito, enlevado na visão beatifica e longinqua das commendas e das prebendas, apoquentado pela saudosa imagem d'aquelles pescoços anafados, roliços, torneados em roscas atoucinhadas, dos bons tempos patriarchaes, canonicaes e monachaes. Esses tempos, essas saudades, essa religião da gula, do luxo, dos vicios hypocritas; essa contemplação continua da corrupção absolutista, é que não vos deixa erguer os olhos para os pulverulentos archivos do reino, cujo exame nos lançaes em rosto como se fôra um crime! Não! Vós não podeis vêr os pergaminhos cobertos de pó. Esse pó que repousa sobre elles, vôa para os ares quando se lhes toca: o lodo do charco em que tendes os olhos fitos é que nunca se alevanta da terra, e as vossas palpebras de servos estão atrophiadas; os vossos olhos esqueceram o movimento com que os dos homens livres olham para o que está elevado, para o ar e para o céu.

É por isso que quando a verdade inexoravel vem esmagar os embustes em que estribaes a tyrannia, achaes mais simples negar essa verdade, e accusar de falsificadora a mão que a atira ás faces sem pudor do absolutismo. O homem de bem quando diz a outro homem—falsificaste, inventaste, deturpaste, sumiste os documentos de um, ou de muitos factos,—traz sempre na mão as provas de uma accusação, que importa um crime perante as leis moraes e perante as leis civis. Sem isso a injuria não deshonra o accusado, deshonra o accusador. Discipulos do denunciante do illustre Damião de Goes; discipulos do padre Simão Rodrigues; beatos filhos de Sancto Ignacio, bem se vê que respeitaes as tradições da vossa ordem, e que estudaes a moral pelos livros dos Busembaus, dos Lessios, dos Tamburinis, os quaes vos aconselham, que se quiserdes deitar a perder qualquer pessoa, convém que comeceis por espalhar calumnias para a difamar, porque, acreditando-se mais facilmente o mal que o bem, sereis cridos, com o que o calumniado perderá a força que lhe dá a boa reputação, e sereis vingados. O que é ter no bahú a roupeta, á cabeceira as camandulas, e haver estudado por bons livros! E que demonio podieis vós fazer senão calumniar sanctamente, em quanto não deixamos o nosso monopolio, e não se faculta o uso dos archivos á vossa sede de instrucção, ao vosso amor da verdade, ao vosso extremado afferro pelas instituições primitivas?

Defensores do absolutismo, como assim? Engrifaes-vos para defender contra os salteadores do Mindello a vossa propriedade, as prestações foraleiras, os dizimos, os benesses das capitanias-móres, e metteis ao mesmo tempo no peitilho da roupeta, os sete seculos da monarchia? Isso não vale: isso não é para mãos bentas. Largae quatro seculos que não são vossos: guardae os tres que vos pertencem. Antes d'elles, não cançaremos de vol-o repetir, o povo portuguez era livre, não n'um latinorio piegas de frade bernardo, mas na realidade dos factos, e pelo mechanismo da sociedade politica.

Essa liberdade não se consubstanciava inteira na existencia das grandes assembléas nacionaes. Pelo contrario, as côrtes eram a sua manifestação mais incompleta. Ahi o povo, a villanagem, que vós sabeis, nobres senhores, empregava, ainda ameaçando e reprehendendo, formulas cortezes para com o monarcha, analogas, até em phrases, ás que emprega a villanagem ingleza de hoje para com os seus reis. No que era novo, nas medidas administrativas, ou nas leis civis que a civilisação mostrava uteis ou justas, o povo limitava-se a discutir a sua conveniencia; mas no que feria o pacto fundamental das cidades e villas, ou aquella parte do direito consuetudinario, homologado conjunctamente com a carta municipal, e que representava direitos politicos, oppunha-se tenazmente á innovacão. A monarchia n'esse caso curvava a cabeça e reconhecia a sanctidade dos principios. Nunca um rei de Portugal livre ousou dizer aos seus concelhos: «quebrei as vossas immunidades, os vossos fóros, porque assim aprouve á minha sciencia certa, poder real e absoluto.» Quando as accusacões dos povos apontam a offensa das garantias, a reparação, ou a promessa solemne d'ella não falha, porventura, uma só vez, nas actas das côrtes dos antigos tempos.

Assim a liberdade popular estribava-se não tanto nos parlamentos como nos foraes, e a garantia dos principios contidos n'estes, era a estructura robusta dos corpos municipaes. Os concelhos eram a organisação da democracia contra os poderosos, que só entravam n'esses gremios politicos por concessões raras, condicionaes, difficeis de obter, sobretudo nos tempos primitivos. Essa organisação dava os meios de repellir as violencias dos tyrannetes privilegiados: dava uma terrivel solemnidade aos aggravamentos dos povos. Os cavalleiros villãos, os bésteiros municipaes, a peonagem armada lá tinham o ferro para o desaggravo, se o rei não cumpria o seu dever. A força estava atraz da doutrina; porque a força e só ella mantem solidamente o direito. É um axioma que vós acceitaes largamente. E senão, pedi aos vossos amigos de Roma, da Austria, da Prussia, da Russia e da Turquia, que mandem para casa os seus milhões de soldados, e nós vos daremos em breve, novas da boa-saude do direito divino.

Que fez a monarchia do seculo XVI e dos que se lhe seguiram, dos nossos velhos concelhos? Entregou-os amarrados aos fidalgos, aos padres e aos agentes do poder real. Substituiu gradualmente um exercito permanente á democracia armada, a essa democracia que tão leal fôra aos antigos reis, que os tinha ajudado a conterem nos limites do seu direito os dignos barões, avós de vossas excellencias reverendissimas. D. Manuel, que subiu ao throno, cuspindo nas nodoas de sangue de seus irmãos assassinados, enlevado dos descobrimentos e conquistas feitas pelos corações generosos, pelos homens ousados que os ultimos dias de liberdade legaram aos primeiros de tyrannia, acabou a obra do seu antecessor. Os foraes em vez de se cunharem de novo com os seus primitivos caracteres politicos, ficaram desde a sua reforma lettra morta para as franquias do povo, lettra morta como padrões constitucionaes, e só viva e bem viva para as extorsões do fisco. Algumas formulas externas que restavam nos costumes apagaram-se pouco a pouco; mas o espirito de liberdade morreu e o absolutismo assentou-se tranquillamente sobre o paiz.

Até ao seculo XV, posto que já a indole politica da sociedade começasse a alterar-se, porque os desembargadores caminharam de longe e de vagar para não serem sentidos, os procuradores de côrtes tinham uma significação, um valor politico; atraz d'elles e do seu mandado estava um grupo social, a democracia, formado de muitos grupos, os concelhos. Desde que estes se compozeram de clero, nobreza e povo, desde que as classes se confundiram politicamente, a liberdade popular morreu. Os concelhos não foram mais d'ahi ávante, do que um instrumento de governo e uma divisão territorial e administrativa. Cessou entre nós o direito politico do povo, e reinou despeado o absolutismo. Que são todas essas côrtes posteriores senão um simulacro, ou antes um escarneo dos nossos antigos parlamentos? Esses procuradores do povo, eleitos pelo clero, nobreza e povo, senão uns titeres com que os oppressores se divertiam á custa da democracia? Desde o seculo XVI Portugal teve factos politicos mais ou menos tyrannicos, mais ou menos vergonhosos, mais ou menos abusivos; mas o direito constitucional onde estava elle? Onde estavam os pactos sociaes que Fernão de Pina trocára por outros, reformados exclusivamente com os olhos no céo e nas amplas barrigas dos alcaides-móres, dos donatarios da corôa, dos dignissimos avós de vossas excellencias e reverencias? Estavam esquecidos no fundo dos archivos do reino, onde ainda estão hoje para vossa vergonha eterna, raça de escravos, que succedestes n'esta nobre terra a uma raça gigante de homens livres; estavam onde ainda existem hoje, onde os podeis lêr e polluir com essas mãos servas, mentirosos insignes, porque as portas estão abertas para examinardes a infidelidade com que os citamos, as entrelinhas que n'elles escrevemos, as raspaduras com que os viciamos. Ide, miseraveis, punir-nos!

Respondei, illustres Pegas ad ordinationem, donde veiu aos reis de Portugal o direito de rescindir contractos politicos solemnes? Os monarchas portuguezes da edade media reconheceram estarem limitados os deveres dos povos e os proprios direitos, por essas cartas constitucionaes, que reunidas eram o complexo do direito publico do paiz, e que tinham em si proprias as garantias da realidade: os seus successores proclamaram o principio contrario e derivaram d'ahi a manifestação do poder publico. Como agrupaes vós estas duas idéas que se excluem, que se negam? Como unis a morte á vida? Como ousaes dizer: pertencem-nos sete seculos? A vós? dementes! O primeiro monumento grave da vossa historia, o primeiro resultado practico das vossas adoradas doutrinas é a inquisição. A inquisição não foi filha da perversidade da curia romana, que tem sobejos crimes para que não se lhe attribuam os alheios. A inquisição foi um calculo frio e feroz do absolutismo de D. João III (este é vosso: guardae-o) que estava pobre pela sua falta de juizo e pelas vaidades paternas. Quiz queimar os judeus para os roubar, e pediu lume a Roma, que lh'o recusou largo tempo, porque não ignorava para que elle o pedia. Quando quizerdes as provas d'isso, fallae; já se sabe, entrelinhadas, supprimidas, respançadas, viciadas segundo o velho costume de que nos accusaes com as provas na mão, como bons e verdadeiros jesuitas.

Absolutistas, vós acceitaes a solidariedade do passado: posto que não possaes reclamar senão a do que vos pertence. Falamos por isso comvosco, não para apontar uma ou outra mancha no vosso predominio, como vós modestamente imaginaes, mas para vos dizer o que elle foi na sua essencia. Começastes, insultando o evangelho, por queimar aquelles que não adoravam Deus á vossa guiza, e terminastes, matando ás machadadas prisioneiros inermes, diante dos quaes, armados, tantas vezes tinheis fugido. Na vossa historia o espectro da tyrannia esconde a fronte no fumo da carne humana, assada para o sancto rei D. João III ter dinheiro, e firma os pés nas poças de sangue, sobre os ossos triturados e as carnes esmagadas pelos machados dos bravos que tão valentemente fugiam das nossas bayonetas. Mas o vosso pedestal e a vossa corôa são comparativamente dous dixes infantis. O crime imperdoavel, sem nome, pelo qual a posteridade vos ha de escrever a maldição sobre a campa, é o terdes vivido abraçados durante tres seculos com esse espectro da tyrannia. É o terdes arrastado aos pés dos cortezãos, dos conegos de Gil Vicente, dos Pegas, dos bobos regios, dos frades gordos, luxuriosos e hypocritas, de que nos fala o viso-rei D. João de Castro na sua correspondencia inedita, (viciada por nós, já se sabe), as velhas liberdades do paiz, as liberdades do povo, que querieis espoliar sem que vos resistisse, concedendo-lhe apenas, se estaveis de pachorra para dar gargalhadas, o direito dos gemidos.

Quando o vosso idolo vos fugiu das mãos, quando a espoliação, regio-fidalga, clerical e desembargatoria passou para mãos castelhanas, que vos tractaram como vós tinheis tractado o povo durante oitenta annos, veiu-vos, excellentissimos e reverendissimos senhores, um accesso momentaneo de febre liberdadeira. Incumbistes então um frade ignorante de vos redigir um codigo imaginario, em que todas as instituiçães sociaes da edade media estão desmentidas, e em que até o regicidio é elevado á altura de principio politico. Porque fizestes isto? Porque entre vós e as epochas de liberdade havia um abysmo insondavel; porque o seculo que precedêra se divorciava da antiga monarchia, em que os povos não precisavam do regicidio para defender os seus fóros, de que só foram privados por uma serie de traições cobardes e indignas.

Na verdade depois de sacudido o jugo estranho representastes uma farça parlamentar, e depois outras farças analogas. Sempre gostastes de galhofa, como succede a todos os mandriões, que comem bem e dormem commodamente á custa do suor alheio. Vieram á folia politica os procuradores do povo, eleitos tambem pelo clero e nobreza das cidades e villas: vieram ahi os padres e os fidalgos. Apraziam-vos estes espectaculos em que o povo fazia o papel de urso. Que importa que no preambulo das côrtes de 1641, se escrevesse a doutrina da soberania nacional sobre os proprios reis. Era o horror da tyrannia, que tambem vos fizera experimentar como morde, quem vos arrancava esta concessão theorica, reproduzida por Velasco de Gouvêa, no livro com que a vossa recondita erudição nos assassina? Perguntae-o aos vossos cabelleiras do absolutismo. Essa doutrina foi declarada depois illusiva, ob e subrepticia, atroz e sacrilega, introduzida n'essas côrtes e no livro de Velasco, pelo synedrio monarchomaco dos jesuitas; porque é de advertir que o jesuitismo e o absolutismo andaram sempre ás unhadas, emquanto os Franzonis e os Autonellis não os jungiram com a mesma soga, para trabalharem na vinha do Senhor com a benção cardinalicia.

Entre parenthesis. Os jurisconsultos de ha cem annos pareciam-se convosco, doutores da Nação. É a mesma logica. Regeitavam as idéas jesuiticas sobre o direito dos subditos para deporem os reis, e acceitavam as côrtes de Lamego, o codigo do frade bernardo, onde se proclama o regicidio. O absolutismo tem ao menos uma gloria: é a de verificar em si um milagre: o de ser ao mesmo tempo profundamente atroz e soberanamente ridiculo.

Vamos, sabichões! Que é o que vale? São as doutrinas do synedrio monarchomaco de Velasco e do frade regicida, ou é o direito divino? Podemos esganar de vez em quando o nosso reizito, se reconhecer supremacia estranha; depôl-o, se não nos andar a geito, ou pelo contrario é inviolavel a legitimidade da monarchia?

E dizeis vós que haveis de morrer no vosso posto! Qual posto, nem qual morte, nem qual carapuça? Quem ha-de agora matar meia duzia de patetas, que parecem mandados de proposito pela Providencia para divertimento d'esta terra, no meio das mágoas e afllicções que lhe causa o cabralismo?

Sabeis o que são, alem de farças, as vossas côrtes de 1641, e as outras côrtes do absolutismo? São um monte de inepcias em direito politico. Depois de proclamarem a soberania nacional por ordem dos jesuitas, os absolutistas de 1641 estabeleciam que o testamento de um rei era uma constituição, d'onde derivava a legitimidade de outro rei por direito incontroverso!

Defensores do absolutismo, buscae nas actas parlamentares da edade media, alguma passagem em que os mandatarios dos concelhos de Portugal declarem, como os titeres de 1641, que a demissão dos tributos violentos, impostos tyrannicamente pelos reis de Castella, era uma liberalidade, uma magnificencia, uma mercê d'el-rei. Onde achaes vós lá esta linguagem de Baixo-Imperio? Lá oppunham-se os aggravamentos dos concelhos aos abusos do poder. Era a distancia que vae de uma epoca de liberdade a outra de servidão.

A servidão, a servidão! Eis o grande crime dos tres seculos que vos pertencem. Pensaes vós que nos importam, considerados em si, os adulterios da mulher de Affonso VI, ou que D. João V dormisse em Odivellas, ou cantassem n'aquella bestialidade architectonica de Mafra, cem ou duzentos frades comilões e ignorantes? Importa-nos tudo isso porque vós, que nos accusaes de não havermos feito nada em dezoito annos, não fizestes cóusa nenhuma em tres seculos, senão consumir a substancia publica em devassidões e em bugiarias; senão queimar judeus para os roubar, e perseguir-vos uns aos outros, jesuitas e absolutistas, quando vos faltou o judaismo para cevar os vossos instinctos sanguinarios. O que nos importa é que vós, legitimistas de agua doce, representaes a illegitimidade de tres seculos: a tyrannia convertida em principio politico, por velhacadas desembargatorias que havemos de vos contar um dia, e pela ingratidão fementida da dynastia manuelina para com o povo, que tão leal havia sido á monarchia nas suas luctas com os padres e fidalgos d'esta terra. Importa-nos que, accusando-nos diariamente de destruidores dos thronos, tendes estampada na fronte do vosso jornal a lei regicida do frade bernardo, e que entoando hymnos á lealdade, ao realismo do alto clero e da fidalguia, ousaes metter no peitilho da roupeta os quatro seculos de liberdade, durante os quaes o unico exemplo de um rei atirado do throno para o exilio, e substituido por um principe estrangeiro, (estrangeiro segundo as vossas doutrinas) foi dado pelo alto clero e pela nobreza, em quanto o povo combatia a favor de uma illustre desdita. Importa-nos pagar-vos a divida do partido liberal, que estaes insultando refalsadamente, porque tem tido a desgraça de haverem obtido o poder, pelos meios essencialmente absolutistas da corrupção e da violencia, homens cujas doutrinas prácticas de governo são as vossas, e contra as quaes tendes visto protestar a maioria do partido liberal, com a palavra e com o ferro, do mesmo modo que o fizera contra vós. Importa-nos que penseis parvamente ao vêr-nos regeitar a anarchia ou a demagogia, ter descoberto nas nossas idéas contradicções monstruosas. Importa-nos que enchaes as bochechas com as vossas crenças, escrevendo ao signal das chibatas dos vossos sargentos, adoradores da censura, da abnegação servil das proprias idéas, e tendo opiniões uniformes por que estão stereotypadas nas capellas e sacristias. Importa-nos que, não vos movendo impulsos de convicções espontaneas, quando vêdes na imprensa as provas de que o sacerdocio vem audazmente insultar, n'um convenio insolente, as regalias do imperio civil, (a sustentação das quaes é o unico ponto em que são acordes as doutrinas politicas dos sete seculos da monarchia) vos caleis cobardemente, para não terdes de despir a roupeta de sancto Ignacio, ou de tirar a cabelleira desembargatoria, ao que essa questão forçosamente vos constrangeria, provando assim que os vossos enthusiasmos monarchicos, o vosso patriotismo, são apenas hypocrisias necessarias para vêr se grangeaes de novo as commendas e as prebendas, os quartos e as jugadas, as alcaidarias-móres e as capitanias-móres, os bispados e as conezias, e os beneficios succulentos.

Sic valeas ut farina es.

IV

As prestações foraleiras e a fidalguia

Os servos voluntarios e perpetuos, os que venderam alma e corpo á tyrannia, insultam-nos a nós liberaes, e cospem sobre as cinzas de D. Pedro, porque não quizemos que esta terra de Portugal fosse uma vasta gleba de adscriptos que trabalhassem para suas excellencias reverendissimas. Os bens da corôa, o patrimonio publico, os tributos locaes eram propriedade d'esse grupo de nobres luxuarios, que enlameavam com o rodar dos seus coches, com o galopar dos seus cavallos, o homem laborioso curvado para o sólo desde que o sol rompia até que desapparecia no occaso. Assim nol-o affirmam. Debalde nossos avós, os villãos, protestaram contra a accumulação dos tributos geraes e dos locaes, debalde a monarchia, a propria monarchia absoluta, fazia recordar nas leis e nos actos, que a renda publica não era, não podia ser, patrimonio dos donatarios; os doutores da Nação, esses Pegas que nos atiram a proposito de tudo com a sua sabença juridica, que nos falam nas manuelinas e nas philippinas, nas extravagantes, e nas leis de D. José, declaram que os bens da corôa eram do dominio dos comilões, alcunham-nos de communistas e, quando dizemos a esses illustres senhores que vão trabalhar, respondem-nos em nome d'elles que os espoliámos já do fructo do trabalho dos seus antepassados, e que queremos que trabalhem de novo para de novo os roubarmos, porque o primeiro roubo não satisfez as ambições de todos nós.

O que é mais admiravel n'estas palavras absurdas, a demencia ou a imprudencia?

Mentís, porque todas as leis, todos os actos do poder, desde a lei mental até á lei sobre confirmações do 1769, vos estão dizendo que as terras, os direitos dominicaes, os tributos locaes, as jurisdições, as rendas, tudo emfim, quanto fôra havido da corôa pelos donatarios, era em seu poder um simples uso-fructo, que o rei podia fazer cessar por solemne, perpetua, incondicional, que fosse a concessão.

D'onde vinha, pois, esse direito de propriedade de que falaes, em contradicção não só com o direito publico do tempo da liberdade, mas até com as leis, com as doutrinas e com os actos do absolutismo? D'onde vinha essa propriedade, causidicos dos orgulhosos comilões, e mandriões das armarias e dos reposteiros? Da prescripcão? Mas vós, doutores da Nação, ignoraes que ainda nas vossas côrtes de 1641, se proclamou a doutrina de que contra o paiz não ha prescripção, emquanto elle não tem liberdade para reclamar, e esqueceis que a tolerancia dos povos durante os seculos XVI, XVII e XVIII, ácerca da ladroice com que eram malbaratados os bens da corôa, não significa o seu consenso, mas sim os terrores do absolutismo?

Vós pensaes que os redactores do Paiz são os dos jornaes do conde de Thomar, aos quaes vós ousastes dizer que as côrtes de Lamego haviam sido invocadas a favor de D. Catharina em 1550, antes de as inventar o frade bernardo, e que não souberam punir-vos d'esta falsificação?

Mentís quando dizeis que nós queremos que os fidalgos trabalhem para os espoliar de novo. Falta a primeira espoliação para d'ella inferirdes a segunda. O decreto de 13 de agosto que respondeu definitivamente aos aggravos dos nossos avós, os canalhas do tempo de D. Fernando, de D. João I, de Affonso V; que tornou uma realidade práctica, em harmonia com a sciencia economica e fiscal das eras modernas, as promessas d'aquelles principes e o direito que elles reconheciam nos povos, se teve algum defeito foi o ser nimiamente generoso com os donatarios, com os excellentissimos filhos do sol e netos da lua: foi a homenagem que os ladrões do Mindello prestaram ao trabalho e á morigeração, aos nobres que haviam sabido tractar d'esses bens mal-havidos por seus antepassados, investindo-os no dominio allodial dos predios que desfructavam até ahi por uma posse mal-segura, mas que, como bons economos, como homens de costumes regulares, os cultivavam por si ou por seus rendeiros, e não tinham alienado o dominio util d'elles por titulos permanentes. O decreto de 13 de agosto não perguntou se os que auferiam proveitos das suas disposições, eram liberaes ou absolutistas; libertou o solo e honrou a morigeração e o trabalho. O partido liberal deixou-vos, excellentissimos, aquillo de que segundo as vossas leis tinha direito de privar-vos. Os descamisados, os homens do povo que o absolutismo trazia subjugados pela miseria, e a classe media em cujos bens patrimoniaes e adquiridos licitamente, vós vos cevastes durante cinco annos pelos sequestros, pelas peitas dadas aos vossos esbirros togados, para concederem um pouco de ar nas masmorras, e pelas luvas para trocarem a forca pelos presidios de Africa, podiam ajustar contas comvosco, expulsando-vos d'esses bens mal-havidos para se resarcirem de lhes haverdes roubado tudo, inclusivamente a camisa, recordações gloriosas, em que se estriba o vosso direito de lhes chamardes descamisados.

Os descamisados perguntam-vos pela nossa bocca quanto renderam na almoeda dos sequestros, as camisas repassadas do suor da agonia, quando despistes os martyres da liberdade enforcados no campo de Sanct'Anna, na Praça-Nova, no Cães do Tojo, no Cães do Sodré? Quanto renderam as camisas dos martyres da liberdade fallecidos nos presidios pestiferos da Africa e nas casa-matas de S. Julião e de Cascaes, as dos mortos a páu ao serem conduzidos das enxovias do Porto para as de Lamego, e as dos presos assassinados nas outras cadêas do reino? Quantas orgias fizestes no fundo das sacristias, nas alcovas soturnas dos palacios com esse dinheiro? As dos prisioneiros mortos a machado, essas haviam de estar muito despedaçadas. Pouco deviam valer.

Nós vamos traçar-vos em rapido esboço os titulos da vossa propriedade, que vos convidâmos a desmentir.

A fazenda publica do paiz consistia na sua origem em propriedades, cujos cultivadores pagavam fóros, pensões, quotas por um systema assaz variado e complexo, nos tributos dos concelhos, pagos pelo uso-fructo do sólo, e por um systema analogo, nas multas judiciaes, nas portagens ou direitos de barreira das villas e cidades, e finalmente nos impostos das alfandegas maritimas. Os tributos indirectos, os cobrados nas alfandegas e barreiras recahiam pela sua natureza sobre todas as classes. Dos tributos directos eram isentos os nobres. Nas honras e coutos não entrava o agente fiscal nem o judicial. Para as despezas do estado pagava o homem laborioso; o nobre mandrião não tinha nada com isso.

O serviço militar, o tributo de sangue estava regulado pelo mesmo principio. Organisados os concelhos, os seus habitantes, divididos em cavalleiros, besteiros e peões, segundo a sua fortuna, ou a natureza anterior da sua propriedade, eram arrolados para o serviço da guerra, ou para os trabalhos de fortificação, que se consideravam analogos. Armavam-se, compravam cavallos e sustentavam-se á sua custa, salvo se a guerra ou os trabalhos se protraiam demasiadamente. Os nobres eram isentos da defeza da patria, salvo o caso de uma recompensa. A maxima parte da renda publica n'isso se consumia. Os ricos-homens governadores civis e militares dos districtos, recebiam uma grande parte dos tributos locaes, e distribuiam a percepção das rendas dos bens publicos pelos cavalleiros, a cada um sua aldêa, sua porção de cazaes, etc. A isto chamava-se prestamos. Os alcaides-móres, chefes militares, e até certo ponto civis dos concelhos, haviam pelo seu serviço uma porção de rendas.

Este systema profundamente injusto, segundo as idéas de hoje, não feria então os espiritos. O nobre tinha o direito de não supportar encargos na sua propriedade patrimonial, e de não defender a patria; o villão devia pagar e servir, e ainda com o seu dinheiro comprava o serviço dos illustres suissos d'aquelle tempo.

Rico-homias, prestamos, alcaidarias, tudo era movel: o rei tirava-o, dava-o, trocava-o a seu bel-prazer; porque nada d'isso passava em rigor de um systema de subvenções pessoaes. Entre nós não havia nada que recordasse a fixidade do feudalismo.

Gradualmente estes encargos e concessões foram-se tornando menos moveis; mas a hereditariedade feudal nunca se introduziu: mesmo quando os filhos succediam aos paes, os estylos e as leis recordavam que tudo isso era accidental, temporario, dependente da vontade do poder central, do principe.

Mas tambem gradualmente se introduziu um abuso. Ás rendas publicas procedidas das imposições directas sobre o solo, dadas a qualquer nobre e depois d'elle a seus filhos, foram-se pouco a pouco considerando como mercês graciosas, e d'ahi nasceram os soldos, as quantias dos nobres, isto é, um vencimento em dinheiro para servirem o paiz.

Dizemos quantias dos nobres porque tambem os villãos tinham quantias, mas negativas; isto é, avaliavam-se-lhes os bens para na proporção d'estes terem armas e cavallos, serem bésteiros ou lanceiros, para formarem, digamos assim, a cavalleria, a infanteria pezada e a infanteria ligeira, tudo gratuito.

Introduzido aquelle abuso dos soldos, a economia d'esta organisacão ficou sendo: o povo pagar na proporção dos seus meios, e servir militarmente na mesma proporção: os nobres serem isentos de tributos e de serviço militar, ao passo que, como homens de guerra, comiam uma boa porção da renda publica em soldos, e outra parte como donatarios da corôa.

Nos fins do seculo XIV este iniquo systema de percepção e distríbuição da renda publica, tinha tomado proporções tão espantosas, que a principal materia dos aggravamentos populares, nas diversas assembléas de côrtes do reinado de D. Fernando, é este assumpto. Ahi o rei reconheceu a extensão do mal, e prometteu até onde fosse possivel remedio, que na verdade era difficultoso, attento o poder da nobreza.

Na revolução de D. João I, uma grande parte da nobreza, ou seguiu a parcialidade de Castella, ou se mostrou avessa ao mestre de Aviz. Os fidalgos, porém, não se esqueceram no meio dos transes e miserias porque a nação passava na lucta gigante que emprehendera, de conservar intacta a malversação da fazenda publica. Emquanto as derramas e as sizas vinham pelas necessidades da guerra aggravar a sorte do povo, a fidalguia invocava o passado para que se lhe pagassem as quantias em dinheiro, e as terras se lhe dessem gratuitamente, para ser mercê acabada. D. João I commettêra a atrocidade de resolver com o povo em cortes, que aos fidalgos que serviam na guerra se lhes descontassem as quantias nos redditos das terras de que eram donatarios, já se sabe, comendo elles o resto de mão-beijada, porque esse resto não se dividia em prestamos para pagarem a outros cavalleiros que os seguissem na guerra, segundo a organisação primitiva. Era só o serviço pessoal que por essas terras se exigia dos illustres suissos dos seculos XIV e XV. Os villãos, esses combatiam de graça, lá estavam para sustentar com a bolça e com o corpo, a independencia do paiz.

Esse vil e escandaloso requerimento da nobreza lá está impresso ha muitos annos na ordenação affonsina. Vós, doutores da Nação, conhecereis melhor a philippina, o codigo do rei estrangeiro, mas nós conhecemos melhor a affonsina, o codigo do rei portuguez.

Sabeis vós, como a nobreza se desforrava da falta de despacho á sua petição? O sancto Nunalvares, os mestres das ordens e os outros fidalgos, roubavam os mantimentos nas povoações por onde passavam: os alcaides-móres em vez de pagarem ás guarnições dos castellos, pediam gente dos concelhos para os guardar; e os senhores quando se achavam n'alguma povoação com homens de armas, bastantes para sopear os villãos, deixavam-se ficar ahi, comendo e bebendo sem pagar e forçando mulheres. Lá tendes essas gloriosas paginas da nobreza nas côrtes de 1397.

O desbarato gradual da renda publica pelas mãos dos fidalgos, fez apparecer o systema dos tributos geraes directos: a principio pelos pedidos reaes, que eram em rigor o mesmo que o recente imposto de repartição, que ha poucos annos se quiz introduzir no paiz, com a differença de que os pedidos só se repartiam entre os concelhos. As sizas foram o primeiro tributo geral directo que abrangeu tudo. Sobre estas bases se fundou o systema das contribuições geraes, de que o estado subsequentemente viveu.

Nas côrtes do seculo XV, como nas do anterior, o povo protestou sempre contra a dispersão dos bens da corôa. A monarchia dava-lhe razão, promettia emenda, e alguma cousa chegou a fazer por vezes, mas insufficiente e estragada d'ahi a pouco por influencia dos poderosos. Ha uma observação singular a este respeito. O povo em vez de exigir a organisação dos impostos geraes, e a suppressão dos chamados direitos reaes que constituiam o grosso dos bens da corôa, queria que se despojassem os donatarios, e que o estado vivesse das suas rendas primitivas. Era um erro economico, mas que provava o desinteresse dos villãos, e quanto elles amavam as instituições de liberdade, com que estava ligado por muitos modos, aquelle systema da imposição antiga.

O absolutismo triumphante poz emfim ordem n'estas gritarias populares. O paiz ficou dotado com dous systemas tributarios: o primitivo para os fidalgos e desembargadores comerem, pagando-se-lhes além d'isso o serviço que faziam: para os fidalgos e desembargadores começados por mercé acabada, como diziam os virtuosos avós de suas excellencias e reverencias: o outro systema para se pagar aos que comiam os fructos do antigo, e para o resto das despezas do estado. Como se isto não bastasse metteram-lhes na barriga os dizimos e os outros rendimentos das commendas, prebendas e beneficios.

Realmente, os absolutistas teem razão de chorar pelos bons tempos. Aquillo era uma delicia. Este seculo de ferro só foi feito para os demagogos e para os pedreiros livres.

E crêem os pantalões que em falando em duas ou tres batalhas, em dous ou tres nomes historicos, em Ourique, em Aljubarrota e em Montes-Claros, em Martim de Freitas, no Condestavel e em Affonso d'Albuquerque, na Sancta religião, no amor das nossas cousas antigas, teem feito tudo; teem-nos mettido pelo chão abaixo, esmagados pelo peso de tantas maravilhas.

Pensam que ao lado da historia dos conventos, das cathedraes e dos palacios, não se escreve a da choupana, a do homem de trabalho? Pensam que se esses nobres senhores teem os seus registos esplendidos e luxuarios, o povo não tem tambem as suas humildes memorias de espoliações, de aggravos, de soffrimentos? Enganam-se. Tem-nas, e lê-as. Por isso é impossivel a volta do absolutismo.

E crêdes vós que esta gente insaciavel, chegou a comprehender o patriotismo e a abnegação? Abri as chancellarias de Philippe II, vereis que ella sacrificou sempre ao egoismo e á cubica. Lá achareis os ferretes que o rei castelhano poz em tantas familias illustres por seus avós e pela sua situação. Lá estão os preços porque cada alcaide-mór, cada titular, cada desembargador vendia esta terra ao estrangeiro, em quanto a canalha, a villanagem, combatia e morria nas espadas e lanças dos soldados do duque d'Alva, pensando ter um novo D. João I no prior do Crato, o miseravel que tractava tambem com Philippe II sobre o preço d'esse povo generoso, que cria n'elle, porque era da raça dos seus principes.

Depois de sessenta annos de oppressão, em que o paiz recebera duras lições, crêdes que os donatarios da corôa aprenderam a amar a patria e a morrer por ella. Quereis o reverso dos quarenta conspiradores de 1640, muitos dos quaes vingaram com a revolução aggravos particulares? Não vos falaremos das conspirações fidalgas e episcopaes contra D. João IV. Pedimos-vos só que leiaes um parecer, hoje impresso, do procurador da corôa, Thomé Pinheiro da Veiga, um dos mais venerados e veneraveis caracteres d'aquella epocha. Vianna, no meio da excitação popular que a revolução produzira, teve uma saudade, uma velleidade das suas garantias da edade-media. Lembrou-se dos tempos em que pertencia ao povo em muitos concelhos do typo de Salamanca, que fôra o da sua origem, a instituição electiva do seu chefe militar, do seu alcaide-mór. Pediu-a. Thomé Pinheiro da Veiga foi ouvido sobre a pretenção e votou por ella. N'um impeto de indignação, elle que tinha por dever reprimir e amaldiçoar (como elle se exprime) estas pretenções da democracia, viu-se constrangido a abençoal-as. E porque? Lêde-o. Porque os alcaides-móres comiam as rendas e desamparavam os castellos no fervor da guerra, sem gastarem um vintem na defesa, não havendo quasi nenhum, que cumprisse os seus deveres, no que se pareciam com os outros chefes militares, os capitães-móres, que comiam os soldos e roubavam os soldados. Elle ahi lança em rosto aos avós de vossas excellencias e reverencias, o atroarem o paço com petições de bens da corôa, sem fazerem cousa nenhuma. Será Thomé Pinheiro um dos ladrões do Mindello?

Bem sabeis que tambem fariamos um livro contra vós, se quizessemos descer aos factos singulares que mostram a corrupção espalhada largamente entre a aristocracia dos tempos do absolutismo. Não quizemos senão apresentar-vos em grande, a origem monstruosa d'essa propriedade, de que nós a espoliamos, e mostrar-vos quanto ella em massa era digna de que se conservassem dous systemas tributarios no paiz: um para o estado e outro para ella: ambos, porém, tirados aos contribuintes.

Direis que com esses bens da corôa recompensou o absolutismo os serviços das comquistas? Recompensou é verdade; mas foi os d'aquelles que vinham curvar a fronte gloriosa á corrupção cortezã: as almas altivas e nobres tinham paga diversa. Lembrae-vos de Pacheco, de Albuquerque, de Camões. Depois serviram elles nos tempos modernos para isso mesmo? Quantas alcaidarias-móres, quantos direitos reguengueiros, quantas terras da corôa, distribuistes pelos soldados da guerra peninsular, cuja sorte vindes hoje deplorar com lagrimas hypocritas? Fostes sequer buscar os bens da corôa a essas casas, onde elles se tinham tornado uma especie de patrimonio, para recompensar aquelles que se batiam contra nós os salteadores do Mindello? Repartistes sequer a tunica popular segundo as vossas idéas de justiça politica? Respondei.

Com o decreto de 13 de agosto D. Pedro cumpriu as promessas dos seus antepassados, os reis da edade-media; mas cumpriu-as segundo as condições da civilisação moderna: aboliu o systema tributario local e excepcional que seria hoje absurdo, e que devorado pela nobresa era um duplicado escandalo. As cinzas de tantas gerações de villãos espoliados por seculos, foram, emfim, vingadas pelo braço de um rei. Que quereis? Nós, os vis, por força havemos de abençoar a memoria de D. Pedro.

Dizei, doutores da Nação, é verdade ou é mentira aquillo que se escreveu nas actas das vossas côrtes de 1641, que não ha prescripção contra o reino emquanto elle não tem faculdade, nem liberdade para reclamar os seus direitos? Outra vez: respondei.

Sabeis vós uma coisa? Se o decreto de 13 de agosto podesse conter disposições de uma reparação atroz, não só seria preciso fazer cessar as prestações foraleiras, mas tambem mandar trabalhar nos campos com as cadêas da servidão aos pés, tres ou quatro gerações de donatarios de bens da corôa, por conta das suas victimas. Nem assim, talvez, flcaria compensada a oppressão e o escandalo de alguns seculos.

V

No momento em que escreviamos e mandavamos para a imprensa o ultimo artigo, em resposta ao que a Nação escrevera contra nós, a proposito das leis da dictadura de D. Pedro, mal imaginavamos que o agente publico intervinha na questão, para defender nos tribunaes a memoria do imperador, se, como crêmos, é exacto o que se lê hoje nas columnas d'aquelle jornal. Se o tivessemos sabido a tempo, o nosso artigo teria sido supprimido. Desde o momento em que a auctoridade interveiu no combate, a questão acabou para nós. D. Pedro e a sua vida pertencem hoje á historia: na nossa opinião o defendel-o ou aggredil-o não pertence ao ministerio publico. Crêmos que sem negar os seus deffeitos de homem, teriamos meios de o fazer vêr a uma luz mais favoravel, do que o viu a Nação, e que saberiamos reivindicar para elle a justiça dos homens, que apreciam os actos e os successos não só em si, mas tambem nas suas causas e effeitos. As reivindicações da imprensa são mais efficazes e uteis para os mortos do que as dos tribunaes.

Na redacção do Paiz ha quem fosse soldado de D. Pedro; quem entrasse em mais de vinte combates sob o seu mando supremo. Não lhe consta que elle désse nunca ordem aos seus soldados para que, no recontro com os inimigos, chamassem os officiaes de justiça para os prenderem, ou os escrivães para os auctoarem. A ordem era levar os sessenta na patrona, outros sessenta no burnal, e as bayonetas bem pulidas. Se as ordens tivessem sido o inverso, o ministerio publico não teria hoje o incómmodo de accusar o jornal realista.

De hoje ávante até que se conclua o processo da Nação, o orgão do partido do snr. D. Miguel não nos ha-de encontrar mais no campo da imprensa, ainda mesmo quando nos aggredisse. A perseguição sanctificou e tornou para nós inviolaveis os nossos adversarios politicos.

Os redactors do Paiz são em geral pobres, e os recursos de um jornal nascente são sempre limitados. Se, todavia, os gastos de um processo, ou o seu resultado na hypothese de ser desfavoravel, collocarem a Nação em embaraços pecuniarios, nós rogamos singella e sinceramente aos seus redactores que não se esqueçam de que no escriptorio do Paiz, hão de encontrar alguns dos seus irmãos na imprensa, posto que seus inimigos, e provavelmente inimigos irreconciliaveis, em opiniões politicas[2].

REPRESENTAÇÃO DA CAMARA MUNICIPAL DE BELEM AO GOVERNO

1854

Senhor.

A camara do concelho de Belem, eleita para o biennio de 1854 e 1855, no momento de entrar no exercicio das suas funcções, entendeu que o seu primeiro dever é fazer subir á presença de V.M., uma exposição fiel da situação economica e administrativa do novo municipio, e pedir justiça para os habitantes d'elle, sem o que a camara não se poderá habilitar para estabelecer os seus meios de administração e satisfazer aos encargos que pesam sobre ella. Os vereadores sentem ter de distrahir a attenção de V.M. e a dos seus ministros, dos negocios geraes do Estado para uma questão puramente local; mas constrange-os a assim procederem a obrigação que teem de não trahir a confiança que n'elles depositaram os seus concidadãos.

Os decretos de 11 de setembro de 1852, que constituiram os dous concelhos de Belem e dos Olivaes com o antigo termo de Lisboa, foram uma providencia benefica; mas foram ainda mais do que isso: foram uma providencia justa no seu pensamento. O Governo reconheceu no respectivo relatorio a urgencia e a justiça d'aquella medida reclamada pelos povos. Posto que ahi não se particularisassem os fundamentos d'essa justiça, os ministros que propozeram e referendaram aquelles decretos tinham-nos por certo presentes. Á camara de Belem cumpre, todavia, apontar os principaes para n'elles estribar as conclusões mais importantes d'esta representação.

Talvez em nenhuma questão de direito publico, o legislador deva ser mais cauteloso em não ferir o dogma da igualdade dos cidadãos perante a lei, do que em materia de tributos. Era todavia n'esta relação que os habitantes do denominado termo de Lisboa, pareciam constituir uma classe de ilotas no meio da população portugueza. Aos tributos geraes d'este territorio, que entravam nos cofres do Estado, accresciam outros que constituiam pela sua indole e origem, e pela sua importancia, a melhor porção dos impostos municipaes, sendo necessario ainda contribuir com uma serie de pesadas e variadas contribuições directas e indirectas, que conservavam o primitivo destino, para perfazer a sua quota nos encargos geraes do concelho de Lisboa, a que o mesmo territorio andava annexo. Por este modo os numerosos habitantes de algumas leguas quadradas em volta da capital, ficavam n'essa parte fóra do direito commum.

Na apparencia, esta situação constitucionalmente impossivel, vinha a ser a mesma de Lisboa, onde as contribuições arrecadadas na repartição das Sete Casas, são verdadeiros impostos municipaes que entram no thesouro publico e de que o Governo deduz certa parte para dotação do concelho. Mas em Lisboa esta excepção tinha e tem um fim justo. Tende a estabelecer a igualdade parecendo destruil-a: equilibra por excesso de encargos um excesso de vantagens. Lisboa tem theatros, aqueductos, jardins, monumentos que custaram milhões tirados dos cofres publicos, escholas superiores, academias, museus, bibliothecas, tudo mantido á custa do Estado. Grande parte das contribuições geraes despendem-se no seu seio, e a circumstancia de ser o centro da administração, o foco do luxo e da civilisação do paiz, dá-lhe uma população fluctuante, que vem por mil modos consummir ahi boa parte da renda liquida da propriedade e do trabalho nacional. A applicação de uma porção das rendas do municipio a compensar beneficios tão custosos para o resto do reino como importantes para a cidade, é justa. Repetimol-o, desigualdade apparente é n'este caso a igualdade real.

Estas considerações não eram nem são applicaveis ao territorio circumadjacente de Lisboa, districto pela maior parte rural, cuja industria agricola definhava, como bem advertiu o Governo, debaixo da pressão inevitavel da fiscalisação dos impostos de consumo. Aqui a desigualdade de situação, relativamente aos outros concelhos ruraes, era palpavel e escandalosa, porque não tinha nenhuma das compensações que justificam o gravame extraordinario que pesa sobre a capital. Bastava comparar dous factos que estavam patentes aos olhos de todos, para conhecer a injustiça que se practicava. Ao ponto que em Lisboa os edificios arruinados se reedificavam e se multiplicavam as novas construcções; emquanto ahi o commercio em grosso e de retalho e as industrias fabris cresciam a olhos vistos, na parte urbana mais populosa do termo e que se considerava até como um bairro da cidade, nas freguezias de Belem e Ajuda, viam-se cair ou serem derribadas as casas, fecharem-se lojas, acabarem pequenas industrias, emfim todos os signaes de uma rapida decadencia. A oppressão e o excesso do imposto faziam seu officio; o que faltava eram os elementos de vida que annullam em Lisboa os effeitos da desigualdade das contribuições.

Taes deviam ser os fundamentos principaes da desannexação. A consequencia forçosa d'esta, era equiparar os novos concelhos aos outros concelhos do reino. Foi o que só se fez até certo ponto, deixando-se continuar a subsistir a injustiça na applicação para o thesouro publico, de uma parte dos impostos de sua natureza municipaes, que até então se cobravam pela alfandega das Sete Casas.

Os decretos de 11 de setembro de 1852, tiveram por objecto beneficiar os habitantes do antigo termo. Negal-o seria negar a verdade. O que não lhes fizeram foi justiça inteira. Talvez se possa sustentar a legitimidade do imposto excepcional e gradativo, que a lei estabeleceu nas licenças para a venda de líquidos, até certa distancia da linha de circumvallação de Lisboa. É materia essa que esta camara ainda não examinou devidamente e sobre que, portanto, não se julga habilitada para reclamar, podendo acaso considerar-se tal tributo como uma transformação de parte dos impostos de consumo da capital, que de nenhum modo se poderiam cobrar nas barreiras. Mas alem d'esse, estabeleceram-se outros dous para os quaes a camara não acha razão plausivel. São os de dez reis em canada de vinho, vendido a miudo e de quinze reis em arratel de carne verde. A disposição que os estabeleceu, reduzindo os direitos que o termo pagava ás Sete Casas, importava um beneficio, uma concessão parcial; mas importava tambem um encargo que nada pode justificar.

No relatorio que precede um dos decretos de 11 de setembro relativos a este assumpto, assevera-se que a solução dos impostos especiaes que os novos concelhos continuam a pagar, é justa pelos beneficios e cómmodos que lhes resultam do contacto com a capital.

Quaes são os fundamentos d'esta affirmativa? Occultou-os o Governo. A camara procurou rastrial-os. Examinando a serie de factos em que ella se poderia estribar, não achou senão tres que não sejam insignificantes: 1.^o a segurança publica mantida n'uma pequena porção do seu territorio pela guarda municipal: 2.^o desnecessidade de um estabelecimento especial d'expostos: 3.^o a proximidade do grande mercado de Lisboa para os productos da industria agricola dos dous concelhos. Fóra d'isto a camara não atina com as vantagens que possa trazer aos seus administrados a visinhança da capital.

Pelo que respeita ao serviço de segurança publica, feito n'uma pequena parte do concelho, a camara de Belem, uma vez que se faça inteira justiça, pagará cora a melhor vontade pelo seu cofre, a quota que se arbitrar proporcional ao serviço da guarda municipal de Lisboa n'este concelho.

Relativamente aos expostos o concelho de Belem está igualmente prompto a contribuir para a Sancta Casa da Misericordia de Lisboa, do mesmo modo que contribue a camara da cidade, guardada a relação das respectivas populações, alem de estar certo que a Junta Geral do Districto não deixará de prover n'esse caso, conforme as attribuições que lhe confere o § 7 do art. 216.^o do codigo Administrativo.

Reconhecendo essas vantagens, a camara de Belem dá um documento de boa fé, offerecendo-se voluntariamente a retribuil-as. A mesma boa fé a obriga, porém, a ponderar que o 3.^o fundamento que póde occorrer para a conservação de impostos excepcionaes, ou não existe ou é compensado de sobra por desvantagens reaes.

A população dos novos concelhos de Belem e dos Olivaes é uma população principalmente rural, facto que não deveria ter esquecido na confecção das leis de setembro. Todos sabem que hoje o maior embaraço da agricultura portugueza é a escacez de braços. Tendo-se desenvolvido muito em extensão e pouco em intensidade, o augmento progressivo do seu producto bruto, resultado da maior area cultivada, não está em harmonia com o desenvolvimento da população agricola. Assim, em quanto os productos da primeira industria nacional caminham regularmente para a baixa pela superabundancia, o salario tende de contínuo a elevar-se. No reino em geral a situação do proletario melhorou e muito, porém o cultivador por essas tendencias oppostas de alta e baixa, mas que convergem ambas em seu damno, cada vez se vê em maiores apuros e difficuldades. Este phenomeno commum aggrava-se nas cercanias de Lisboa por diversas circumstancias, que justamente procedem da visinhança de uma populosa capital. A industria fabril desenvolvida em Lisboa desproporcionadamente com o resto do paiz, exceptuando, talvez o Porto, traz uma procura maior de braços, que é causa poderosa do accrescimo do salario rural nos concelhos limitrophes. Depois o excesso de produccão geral mantendo um excesso de concorrencia por toda a parte, exaggera esta no principal mercado do reino, e a depressão dos preços torna-se correlativa d'essa exaggeração; por isso acontece, não só equipararem-se ás vezes, mas até acharem-se mais baratos os generos (captivos de direitos) na capital do que nos districtos remotos onde foram produzidos. Accrescente-se a isto a decadencia no mercado dos trigos durazios, principal producção do antigo termo, e a preferencia dada aos trigos ribeiros improprios d'estes terrenos; accrescente-se tambem a continua destruição dos pomares por uma enfermidade que não tem sido, que não será provavelmente atalhada, e poder-se-ha calcular se os novos concelhos, debaixo destas condições desfavoraveis, independentes da sua proximidade ou não proximidade da capital, mas peioradas pelas circumstancias que nascem d'essa visinhança, devem ser onerados com impostos extraordinarios.

Na situação economica em que se acha a agricultura, de produzir caro e vender barato, a tenuidade do lucro sente-se com dobrada força na visinhança da capital, e essa visinhança para as populações agricolas, longe de ser um bem é um mal. A maxima concorrencia do numerario é em Lisboa, e o numerario como outra qualquer mercadoria deprime-se pela concorrencia; ou por outra, a vida torna-se mais cara por esse motivo não só na cidade mas tambem nas suas immediações. Ao passo porém, que se dá este facto, occorre outro que com elle se combina. A população rural visinha de Lisboa, cuja civilisação material é muito maior que a das provincias, participa mais ou menos d'essa civilisação, porque a influencia d'esta é inevitavel e irresistivel. D'ahi resulta para ella um maior numero de necessidades a satisfazer com o numerario deprimido no seu valor de troca. E este facto vem não só influir directamente no bem estar do proprietario, do agricultor, do seareiro, do pequeno commerciante, dos contribuintes, em summa, mas tambem associar-se ás causas geraes e locaes da elevação do salario, e a recair por outro modo indirectamente sobre elles.

Ha mais. Quando a acção fiscal das Sete Casas abrangia tambem o termo, os cereaes que vinham de fóra encontravam aqui um tributo que rigorosamente constituia um dos chamados direitos protectores para os lavradores d'estes contornos. Era o de 60 reis por arroba no genero, ao passo que os cereaes de lavra propria consumidos no termo não soffriam contribuição alguma de consumo. Separados os novos concelhos, os cereaes estranhos vem concorrer livremente com os de producção local, que aliás tem de ir luctar com elles no mercado de Lisboa, onerados com os mesmos 60 reis por arroba que os outros pagam. Accresce a isto outro inconveniente resultante da proximidade de um grande mercado. Os cereaes do Ribatejo e Alemtejo affluindo á capital, deprimidos como se notou já por uma concorrencia excessiva, achando aberto o mercado contiguo dos novos concelhos, com um favor de quasi 50 reis por alqueire que lhes resulta da suppressão do direito fiscal n'estes pontos, e sem differença de custo no transporte, affluem naturalmente aqui ainda mais do que a Lisboa, e augmentam pelos effeitos de urna concorrencia exaggerada, no mercado interno dos dictos concelhos, os embaraços geraes e particulares em que laboram os agricultores do nosso territorio.

A camara, Senhor, tem de advertir de passagem, para que os seus desejos não sejam calurmniados e as suas idéas mal interpretadas, que não suspira por direitos alguns protectores, por leis d'excepção que favoreçam a agricultura do concelho de Belem com detrimento da alheia. Pelo contrario está persuadida de que a liberdade da industria e do commercio, quanto mais ampla melhor, hade vir a remediar os males que quasi sempre resultam da transição do antigo systema de tropeços fiscaes, para o systema contrario que é o verdadeiramente protector. A camara crê ser fiel interprete da opinião dos seus representados, asseverando que estes preferem a sua independencia municipal, a essa união absurda com a capital, que tinha por base a injustiça e a iniquidade; preferem-na a essa rede de vexames que fazia pesar sobre este territorio a fiscalisação das Sete Casas e que eram uma fonte perenne de immoralidade e de crimes; preferem-na aos tributos desiguaes e sem razão d'existencia com que estavam onerados. O intuito da camara é provar que os que se decretaram são tão injustos como os que foram supprimidos, porque as vantagens da visinhança de Lisboa em que a dictadura se fundou para os estabelecer, não existem ou são annulladas por desvantagens que resultam da mesma circumstancia.

Ha, Senhor, um fado assaz significativo, que se prende a esta questão, e sobre o qual a camara de Belem chama a attencão dos ministros de V.M. O termo fiscal das Sete Casas não abrangia só o territorio dos concelhos novamente creados: estendia-se por freguezias de outros concelhos limitrophes. Acabando com o termo, e creando os novos impostos só nos dous municipios, a dictadura libertou indirectamente de todos os onus extraordinarios aquellas freguezias. Se isso era justo em relação a ellas, como o seria tambem que ficassem ao mesmo tempo oneradas as que compõem os concelhos de Belem e dos Olivaes? Nenhuns motivos podem existir para tão flagrante desigualdade.

Mas supponhamos, Senhor, que as considerações em que se estriba a imposição dos novos tributos, cuja suppressão a camara pede, eram exactas. Não desapparecem essas razões diante de outro facto da propria dictadura, de que ella se esqueceu ao promulgar os decretos de 11 de setembro? O Governo contractou a feitura de um caminho de ferro que partindo da capital vai atravessar alguns territorios mais ferteis do reino. Os effeitos de uma tal via de communicação serão o approximar, tornar contiguos, digamos assim, das portas da capital, um grande numero de ricos concelhos da Extremadura e do Alemtejo. Em relação ao contacto commercial entre esta e muitos dos concelhos do Ribatejo; em relação á facilidade de transportes, e communicações de toda a ordem, esses concelhos ficarão mais perto do centro de Lisboa do que Odivellas, Carnide, Porcalhota, o valle de Oliveiras ou a ribeira de Algés, cujos cultivadores teem de conduzir os productos da sua industria ou de ir buscar os objectos de que carecem, por estradas ordinarias abertas imperitamente em encostas ladeirentas, estradas que não é possivel mudar ou sequer melhorar, sem dispendio de avultados impostos municipaes.

Se dos novos concelhos se devem tirar algumas dezenas de contos de reis porque estão em proximo contacto com Lisboa, ou a igualdade dos cidadãos perante as leis tributarias é uma fabula, ou a esses concelhos corographicamente mais remotos, mas atravessados pelo caminho de ferro, se ha-de exigir uma maioria de impostos, tanto ou mais pesados que os creados pelos decretos de 11 de setembro, para o termo desannexado e constituido municipalmente.

Mas abstrahindo da existencia ou não existencia do caminho de ferro, temos um facto actual e não contingente, que mostra com evidencia o nenhum fundamento de um imposto especial nos dous municipios do antigo termo. É o dos concelhos da margem esquerda do Tejo em frente de Lisboa. Todos sabem que a facilidade de transporte e communicação pelas vias aquaticas apenas é inferior á que proporcionam as estradas ferreas, e que em relação á barateza esse meio de transito é ás vezes superior ao d'estas. Nos seus effeitos economicos a distancia de algumas freguezias dos novos concelhos ao interior da cidade, empregando os meios ordinarios de transporte, pelos caminhos communs, está talvez n'uma razão quadrupla da distancia d'Almada (por exemplo) ao centro da capital. E todavia ninguem se lembra de fazer pagar aos habitantes d'aquelles territorios um imposto especial, pela rapidez e facilidade das suas communicações com Lisboa.

A camara, Senhor, não pede esses impostos, porque não pede absurdos, nem folga com os males e oppressões alheias. Reclama simplesmente para os seus administrados o direito commum, a lei da igualdade garantida na Carta constitucional.

Demonstrada a insubsistencia da razão do relatorio que precede um dos decretos de 11 de setembro, resta outra talvez menos categoricamente expressa no mesmo relatorio, mas que era a mais forte em relação ao thesouro publico. O respectivo ministro presuppunha uma diminuição de renda pelo facto da desannexação do termo. Obstava-lhe isto á suppressão de alguns direitos de consummo em Lisboa, mas influia tambem na conservação de parte d'elles no antigo termo. Vem proval-o a discussão que houve na camara dos Dignos Pares na sessão de 13 de agosto de 1853, exclusivamente relativa aos impostos excepcionaes conservados nos dous novos concelhos. N'essa sessão o mesmo ministro declarou que, attento o estado da Fazenda, a mente do Governo não fôra effectuar uma reducção no quantitativo dos impostos, mas unicamente alliviar os vexames. Posto que esta declaração seja altamente inexacta, (visto que foi diminuido o quantitativo na carne e no vinho, e substituida a base do consummo pela da venda, o que põe a salvo do mesmo imposto, todos os que mandarem vir de fóra do concelho aquelles dous generos directamente para o proprio consummo, e visto que foram inteiramente abolidos outros impostos das Sete Casas, no termo, como os do azeite e do combustivel) todavia a explicação é terminante quanto ás considerações economicas que moveram a dictadura a conservar nos novos concelhos uma parte dos antigos impostos. Além da persuasão de que era justo pagar mais pela contiguidade de Lisboa, as apprehensões do Governo ácerca de um desfalque na renda publica, em frente de um deficit, obrigaram-no pois, a não estender a esta parte do paiz o beneficio do direito commum.

Sem discutir se é licito invocar motivos de tal ordem quando se tracta de um negocio de justiça ou de injustiça, porque se o acto é justo as considerações de conveniencia ou inconveniencia são superfluas, e se é injusto nunca ellas o podem legitimar, a camara de Belem acceita esse fundamento. Se, porém, os factos vierem provar que a desannexação do termo, longe de trazer um desfalque nas rendas cobradas pelas Sete Casas, deu um resultado contrario, isto é, um augmento de receita, é evidente que esse mesmo fundamento cae por terra, e a conservação dos direitos nos novos concelhos fica reduzida á categoria de uma oppressão absolutamente infundada.

E é exactamente, Senhor, o que se verifica. Tomado o rendimento das Sete Casas e Terreiro (repartições unidas pelas reformas de 11 de setembro de 1852) durante os primeiros seis mezes da nova organisação, (setembro, outubro, novembro, dezembro, de 1852, janeiro e fevereiro de 1853) acha-se que o seu valor foi de 532:098$421 réis: examinando porém os rendimentos das duas repartições separadas, nos mezes correspondentes de 1851 a 52, acha-se que o das Sete Casas foi de 416:054$523 réis e o do Terreiro de 70:894$940 réis, o que perfaz um total de 486:949$463 réis. Assim a concentração da acção fiscal até á linha da circumvallação, onde essa acção é possivel e efficaz, produziu o effeito que devia produzir, um augmento de receita em seis mezes de 45:148$958 réis. Na verdade, os novos direitos creados sobre legumes e que subiram n'esse periodo a 5:450$561 réis, reduziriam o excesso a menos de 40 contos: mas deve-se attender tambem a que desappareceu do rendimento das Sete Casas a verba dos direitos de exportação de vinhos, e além d'isso, por effeito da nova lei da sisa, o producto d'esta diminuiu nos seis mezes de 1852 a 53, tomados por termo de comparação, de 3:500$000 réis, podendo-se deduzir da falta de uma verba e da diminuição da outra, que o sobredito accrescimo nos direitos de consummo, excede muito os 45 contos de réis.

Taes são, Senhor, os factos e as razões que a camara municipal de Belem submette á consideração de V.M., ácerca dos impostos extraordinarios que ficaram pesando sobre os novos municipios. A abolição d'elles é moralmente necessaria, e de certo o Governo de V.M. não deixará, á vista das considerações expostas, de tomar, perante o Parlamento, a iniciativa de uma modificação indispensavel da lei, cujo espirito e cuja intenção benefica não é possivel desconhecer.

A camara, Senhor, diz—intenção benefica—e dil-o mui de proposito. Repetindo ainda uma vez que os habitantes d'este concelho tiraram vantagens reaes dos decretos de 11 de setembro, ella sente que lhe cumpra representar dentro em breve a V.M., sobre as interpretações forçadas que se tem dado ás disposições claras e terminantes da lei, para se gravarem os povos, e abusos que se tem practicado e practicam, para conservar em proveito particular os vexames de que, na sessão de 13 de agosto de 1853, o ministro da fazenda asseverava (provavelmente por falta de exactas informações) estarem livres os novos municipios. N'esta parte a camara recorrerá opportunamente a V.M., para que de prompto se occorra a males, cujo remedio depende simplesmente do executivo. Na presente supplica restringe-se a mostrar os inconvenientes que só podem ser removidos pelo legislativo.

A insubsistencia dos motivos que se buscaram para conservar os novos concelhos n'uma situação excepcional produziu, como era de esperar, disposições que na lei contrariavam esses motivos. A consciencia de que realmente os novos concelhos não deviam ser onerados com os encargos especiaes que se lhes impozeram, inspirou a prescripção do artigo 12.^o do decreto de 11 de setembro de 1852, expedido pelo Ministerio do Reino, no qual se estatue que o Governo dará annualmente uma prestação ás camaras dos municipios novamente creados, equivalente á despeza media que anteriormente fazia a camara de Lisboa, com a illuminação e calçadas no territorio desannexado. Se na realidade os impostos então estabelecidos eram uma conpensação das vantagens obtidas pela proximidade da capital, se o Governo queria alem d'isso obstar com elles a um augmento de deficit, a camara de Belem não póde atinar com a razão porque se lhe havia de fazer um dom puramente gratuito, augmentando para isso o deficit em detrimento commum da nação. Nem se diga que essa dadiva é deduzida da prestação concedida ao conselho de Lisboa. Não importam para este caso nem a origem ou legitimidade d'aquella prestação, nem a justiça das deducções que n'ella se fazem. O que importa é que estabelecendo a dotação que se destina a esta camara, a dictadura ou não estava bem firme nos principios que invocava, ou desbaratava uma somma que aliás deveria entrar nos cofres publicos, fazendo donativo d'ella aos habitantes do antigo termo.

Mas esta disposição não é só contradictoria com os fundamentos das provisões tributarias de um dos decretos de 11 de setembro: é tambem inexplicavel em si mesma. Ordena-se ahi que as sommas dadas aos novos concelhos, sejam calculadas pela media da anterior despeza local, de illuminação e calçadas. Porque, porém, essas duas unicas verbas hão-de ser tomadas para base do calculo, e não conjunctamente a assaz avultada da limpeza, a dos vencimentos, etc.?

Se o Governo entende, contra as suas proprias declarações, que recebendo d'estes dous concelhos perto de 60 contos annuaes de contribuição extraordinaria, tem o dever de prover ás suas despezas municipaes, não é por certo com supprimentos calculados arbitrariamente e muito inferiores aos encargos locaes, que reparará a flagrante injustiça d'aquella contribuição.

Se todavia taes provisões devem cair deante das considerações que theoricamente as invalidam, que dirá, Senhor, esta camara ácerca do artigo 6.^o do decreto de 11 de setembro expedido pelo Ministerio do Reino, que priva o concelho das propriedades municipaes, para as attribuir ao de Lisboa? Acaso os logradouros communs dos visinhos e que só pelos visinhos podem materialmente ser utilisados, os mercados, cuja localidade aliás pertence á camara escolher, com approvação da Junta Geral de Districto, os cemiterios emfim, onde repousam as cinzas dos paes, irmãos e filhos dos habitantes do concelho, podem ou devem constituir propriedade alheia? Esta prescripção, van quanto a mercados e logradouros de que os habitantes de Lisboa não podem utilisar-se, offerece, quanto aos cemiterios, uma nova especie de servidão, a servidão que passa alem dos tumulos. As cinzas dos mortos do concelho de Belem pertencerão ao municipio da capital, e poderão ser mudadas ou dispersas ou vendidas com o chão que as cobre, sem que seja licito á propria municipalidade obstar a taes actos? Fortes deviam ser os motivos que a dictadura teve presentes para tomar tão estranha providencia; mas esta camara não os alcança, e por isso mal póde combatel-os.

Demonstrado, como parece ficar, que os decretos de 11 de setembro, justos e beneficos no seu pensamento, pelas provisões especiaes que encerram, annullam na maior parte os bons effeitos d'esse pensamento, segue-se a necessidade da sua reforma. Tendo sido os mesmos decretos acto do Governo constituido em dictadura, e sendo para elle honroso o havel-os publicado, embora imperfeitos no seu desenvolvimento, esta camara entendeu que devia antes dirigir-se a V.M. do que ao Parlamento, para que o Governo podesse usar n'este negocio de uma iniciativa que justamente lhe pertence.

Não só essa consideração, mas tambem o sabido e provado amor de V.M. á equidade e a tudo quanto possa arredar dos povos oppressões e vexames, asseguram feliz exito a uma pretenção tão legitima, e fundada em tão urgentes razões. Se, porém, os ministros de V.M. houvessem de desprezal-a, o que de nenhum modo esta camara espera, então ella se veria na necessidade de appellar directamente para os representantes do paiz, e não cessaria nas suas supplicas até obter desaggravo e inteira justiça.

A camara de Belem está tão convencida de que não existe motivo nenhum razoavel para os seus administrados viverem, em relação aos impostos, fóra do direito commum; conhece tanto a impossibilidade de sobrecarregar com fintas, derramas ou outros quaesquer tributos, um concelho em cuja parte urbana as apparencias externas bastam para indicar decadencia, e que na parte rural lucta com as difficuldades que ficam ponderadas; repugna-lhe tão profundamente annullar pelo estabelecimento de novos encargos, o allivio que resultou para este territorio da sua separação da capital, que está na firmissima resolução de não exigir dos habitantes d'elle um unico ceitil para as despezas do municipio, em quanto não forem libertados do tributo extraordinario lançado pelas leis de setembro sobre dous dos mais importantes objectos de consummo, as carnes verdes e o vinho, tributo cuja importancia n'este concelho excede a 30 contos de réis. Seja qual fôr o resultado dos seus esforços, que serão incessantes ácerca d'este negocio, a resolução que tomou de não legitimar com a sua aquiescencia uma situação constitucionalmente impossivel, ficará inabalavel porque assenta em convicções indestructiveis.

A camara reconhece que o mal não pode ser remediado senão n'um certo prazo, pela indispensavel intervenção do Parlamento. Existe além d'isso um contracto de arrematação dos novos impostos no concelho de Belem, que só termina em junho do corrente anno, e um dos primeiros deveres do Governo é manter illésa a fé publica. O tempo que resta ainda para os habitantes d'este municipio soffrerem a arrematação dos direitos de venda sobre o vinho e carnes verdes, é sufficiente para o Governo fazer votar nas duas casas do Parlamento, as reformas indispensaveis dos decretos dictatoriaes de 11 de setembro. No decurso d'este periodo a camara procurará conciliar os deveres que lhe impõe a voz da consciencia com a escrupulosa obediencia ás leis vigentes, porque sabe que a primeira condição da liberdade é a observancia da lei. Na orbita da sua acção não tolerará abusos da parte dos arrematantes d'aquelles tributos excepcionaes, mas não tolerará tambem que lhes sejam defraudados pelos habitantes do concelho do que legitimamente lhes pertencer.

Applicando ao cofre municipal de Belem uma quota deduzida da dotação do de Lisboa, calculada sobre uma base desarrazoada, mas precisa, as leis de setembro attribuiram ao Governo e á camara da capital a avaliação d'essa quota, excluindo virtualmente a camara de Belem do direito de verificar, á vista dos documentos da mesma avaliação, a exacção d'ella. É mais uma violencia transitoria a que este concelho tem de submetter-se. A camara acceitará essa somma (qualquer que venha a ser) fixada pelo arbitrio do Governo e da camara de Lisboa interessada em que seja a mais modica possivel. Com ella, com o producto das licenças e com outra qualquer pequena fonte de rendimento que possa existir, occorrerá ás despezas de administração, de limpeza, de calçadas e de illuminação, até onde esses rendimentos chegarem, certa de que os seus representados preferirão a falta temporaria de uma parte dos cómmodos e vantagens que deve subministrar-lhe a administração municipal, a que esta camara practique o minimo acto, do qual se possa deduzir que o concelho presta a sancção do seu assentimento a provisões tributarias que são moralmente impossiveis.

Se porventura, Senhor, o Governo de V.M. entendesse dever cerrar os ouvidos ás representações d'esta camara, o que nem remotamente os abaixo assignados suspeitam, tambem ella poderia elevar respeitosamente á presença de V.M., uma supplica para que ordenasse ao seu Governo que, usando das attribuições que lhe confere o artigo 106.^o do Codigo Administrativo, a dissolvesse, sendo certo que os habitantes do concelho de Belem facilmente achariam outros cidadãos que melhor soubessem promover os seus interesses municipaes do que os actuaes vereadores.

Deus Guarde a Vossa Magestade por muitos e dilatados annos como todos havemos mister,—Camara 11 de fevereiro de 1854—O presidente, Alexandre Herculano—João Ferreira Godinho—João José Teixeira—José Street d'Arriaga e Cunha—Visconde da Junqueira.

REPRESENTAÇÃO DA CAMARA MUNICIPAL DE BELEM AO PARLAMENTO

1854

Senhores deputados da nação portugueza.

A camara municipal do concelho de Belem vem perante o Parlamento pedir a reforma dos decretos de 11 de setembro de 1852, que instituiram com o antigo termo de Lisboa os dous concelhos de Belem e Olivaes. Ella recorreu já com esse intuito ao Governo de Sua Magestade, para que o mesmo Governo usasse da sua iniciativa naquella reforma, pelos fundamentos expostos no requerimento que lhe dirigiu, e que se ajunta á presente súpplica. Á vista d'este o Parlamento não só apreciará, sem que seja necessario repetil-as aqui, as razões em que esta camara se estriba, para pedir uma reforma altamente reclamada pelos principios mais incontestaveis do direito publico constitucional e da economia politica, mas tambem avaliará devidamente o proceder do Governo sobre tão grave assumpto.

N'esse requerimento a camara dava ao Ministerio uma prova de deferencia, expondo-lhe os aggravos que dos decretos de setembro resultam para os seus administrados, e confiando á sua iniciativa o remedio dos mesmos aggravos. Via na idéa fundamental dos decretos uma idéa benefica e justa, e esperava que o Governo adoptasse uma desenvolução mais logica de um pensamento que era seu. Quando assim não succedesse esta camara tinha o direito de contar com uma denegação franca e positiva dentro de curto prazo. Só assim poderia recorrer em tempo opportuno á Representação Nacional. Versando a questão principalmente sobre tributos cobrados por arrematação, e devendo esta renovar-se antes de julho do anno corrente, é claro que a resolução favoravel da pretensão da camara de Belem ficaria indefinidamente addiada, logo que, celebrada a nova arrematação, se creasse a necessidade de manter por um, dous ou tres annos a fé de um contracto, que nem o proprio Parlamento poderia invalidar sem prévia indemnisação aos lesados.

Á deferencia d'esta camara o Governo respondeu com o silencio; á confiança d'ella na sua illustração, na sua justiça, na sua lealdade respondeu com uma das propostas apresentadas na Camara dos Senhores Deputados pelo Ministro da Fazenda, na sessão de 11 de abril, proposta relativa ao imposto do real d'agua, inteiramente connexa com a pretensão do municipio de Belem, e cuja approvacão sem restricções importa uma negativa ás suas justissimas súpplicas. Este procedimento, posto que singular, seria na verdade cómmodo para sem ruido se calcarem aos pés a justiça e o direito de milhares de cidadãos, se a esta camara não incumbisse velar por elles, e impedir que o Parlamento haja de ser illudido, tornando-se innocente cumplice de uma obra de iniquidade.

Reportando-se ás ponderações feitas no requerimento dirigido ao Governo, sobre as diversas disposições mais ou menos irreflectidas e injustas dos decretos de 11 de setembro, que esta camara espera sejam abrogadas ou substituidas pelo Parlamento, ella invoca especialmente a attenção dos Senhores Deputados da Nação sobre o imposto excepcional de quinze réis em arratel de carne e de dez réis em canada de vinho, creado nos dous novos concelhos de Belem e Olivaes, e assimilado ao real d'agua, por ser lançado, não sobre o consumo total, mas sobre a venda a retalho, e por ficar incluindo em si, nos ditos concelhos, aquelle antigo tributo geral.

Na representação junta á presente súpplica está ponderada largamente a insignificancia dos fundamentos em que a dictadura de 1852 se estribou, para crear aquelle tributo excepcional. Aqui, esta camara tem considerações de outra ordem que ajuntar ás que offereceu ao Governo, e que por certo não serão inuteis na discussão da materia.

A parte tributaria dos decretos de 11 de setembro pecca desde logo na base. É sabido que os tributos do paiz, em harmonia com as nossas instituições, se dividem em duas categorias: tributos geraes e contribuições municipaes. Directos ou indirectos, a condição de todos os impostos geraes é a universalidade. A Carta consagrou este principio. A lei que o quebrar é de direito nulla. Pela sua indole o imposto indirecto affecta ás vezes mais particularmente uma classe de cidadãos, conforme os objectos sobre que recae; mas esse facto resulta sempre das leis economicas e da diversidade das condições sociaes. O direito publico escripto não póde nunca admittir a hypothese de se tributarem diversamente os habitantes de diversas circumscripções. Os impostos municipaes, destinados a despezas publicas exclusivamente locaes, são os unicos que justamente variam de localidade para localidade, porque o municipio é uma pequena sociedade civil dentro da grande sociedade, e os seus membros teem deveres e direitos, vantagens e encargos proprios e exclusivos da vida publica municipal. Os decretos de setembro, em contravenção d'estas doutrinas, crearam um tributo hybrido nos dous concelhos do antigo termo: fundiram no imposto do real d'agua outro, que é municipal na sua indole, porque exclusivo e de localidade, e que é ao mesmo tempo geral na sua applicação, por ser destinado a entrar nos cofres do Estado. Esta situação, monstruosa e constitucionalmente impossivel, é que o Parlamento, a quem incumbe manter as doutrinas da Carta e a inviolabilidade dos principios, deve primeiro que tudo fazer cessar.

Na verdade a dictadura fundamentou as insolitas provisões dos decretos de 11 de setembro, nas vantagens que os dous concelhos deviam auferir da proximidade da capital. Dado, porém não concedido, o facto, a consequencia d'elle, se a dictadura soubesse respeitar as boas doutrinas, seria exigir uma compensação directa do municipio, na hypothese de que essas vantagens resultavam de um sacrificio especial do Estado, porque, resultando das condições naturaes e corographicas dos dous concelhos, é ignorar os elementos da economia politica, imaginar que taes vantagens escapam aos tributos geraes. Reduzindo os fundamentos allegados pela dictadura ás suas verdadeiras dimensões na representação junta, esta camara declarou que acceitaria de bom grado o encargo de retribuir directamente quaesquer beneficios, em que se dessem os caracteres que exigem uma retribuição especial. Era o mais que legitimamente d'ella se podia exigir, e que ella se apressou a offerecer para tirar todos os pretextos á espoliação.

Independente da inconstitucionalidade do tributo especial, que os decretos de setembro estabeleceram nos dous concelhos do antigo termo, para elles poderem gosar de um direito desconhecido dos publicistas, o direito de proximidade, é de notar o desacordo d'este acto da dictadura com o systema que, como tal, e depois como poder executivo, o actual Ministerio parece haver adoptado. As suas tendencias, pela reducção das pautas, pela adopção do imposto de repartição e por outras providencias analogas, bem ou mal concebidas, são evidentemente para o tributo directo e para a sua divisão equitativa. E todavia, tractando de impôr uma especie de contribuição de guerra nos dous concelhos que creára, em vez de exigir a troca de serviços, fossem elles quaes fossem, a compensação directa dos sacrificios especiaes do Estado em beneficio especial dos mesmos municipios, por uma somma qualquer paga pelos cofres das respectivas camaras, a dictadura quintuplicou ahi o imposto do real d'agua, imposto cuja substituição ha muito houvera procurado qualquer Governo, que, habituando-se a fazer ou a propôr leis depois de examinar os factos, achasse que elle tira das bolsas dos contribuintes talvez o triplo do que entra nos cofres publicos, com offensa flagrante dos principios fundamentaes sobre materia de contribuições, acceitos por todos os economistas desde Adam Smith até hoje.

A dictadura, promulgando os decretos de 11 de setembro, reconheceu nos respectivos relatorios uma verdade sabida por todos, a decadencia da riqueza nos territorios extramuros sujeitos á fiscalisacão das Sete-Casas, decadencia que na realidade, e segundo a opinião do proprio Governo, procedia do peso dos impostos e dos vexames, ainda mais gravosos, que se ligavam á sua arrecadação e fiscalisação. Esse estado, procedido de uma situação tributaria especial, repugnava a todas as conveniencias publicas; repugnava á justiça e á moral. A primeira e mais importante necessidade na reforma das Sete-Casas era, na opinião dos Ministros, destruir esse estado anormal. O Governo entendia com a medida que decretava prover amplamente ás urgentes e justas reclamações dos povos. É evidente que as consequencias logicas d'estas premissas consistiam em acabar com o tributo excepcional e com as oppressões; em acabar no termo, como diziam os Ministros, com os impostos de cidade e vexames a elles inherentes. Vejamos como estas bellas promessas se realisaram.

Depois d'espoliar os novos concelhos de todos os proprios, que lhes pertenciam pelo simples facto de existirem, attribuindo á camara de Lisboa baldios, logradouros, predios urbanos e rusticos, mercados, aqueductos, e até os ossos dos mortos, nos dous concelhos de Belem e Olivaes, do modo que se vê nos decretos de 11 de setembro, e vai largamente exposto no requerimento appenso a esta súpplica, a dictadura veiu á questão do imposto especial. Escondido no meio das phrases pomposas, dos annuncios prosperos do futuro, encontra-se no relatorio dos Ministros o seguinte periodo:—«os concelhos novamente creados, ficando sujeitos ás imposições geraes do reino, apenas são obrigados ao pagamento de alguns tributos a maior, que ainda os deixa em grandissima vantagem em relação ao seu estado anterior.»—Examinemos se os factos condizem com estas affirmativas.

O antigo termo fiscal das Sete-Casas, como é vulgarmente sabido, compunha-se de 37 freguezias, 23 pertencentes ao termo municipal de Lisboa, e 14 aos termos de outros concelhos limitrophes. No anno economico que precedeu immediatamente a reforma das Sete-Casas e a creação dos dous concelhos de Belem e Olivaes, o rendimento d'essa casa fiscal no termo d'ella dependente foi proximamente, segundo os mappas officiaes, de reis 62:000$000. Suppondo as forças economicas das 23 freguezias extramuros do concelho de Lisboa similhantes ás das 14 dos outros concelhos, porque as desigualdades entre as de cada um dos dous grupos são compensadas pelas desigualdades entre as do outro grupo, segue-se que os habitantes dos dous novos concelhos, ou das 23 freguezias, pagavam proximamente 38 ou 40 contos. O novo imposto foi arrematado nos dous concelhos em 51 contos, despresadas as fracções. É portanto evidente que o encargo tributario dos dous concelhos ficou sendo maior do que era d'antes. Á vista disto, o Parlamento poderá apreciar qual é essa grandissïma vantagem em que os deixaram, relativamente ao seu estado anterior, os decretos de 11 de setembro.

Cumpre aqui obviar a um reparo que por parte do Governo, ou dos homens de simples theorias se poderá fazer. Descendo á analyse dos impostos das Sete-Casas achar-se-ha na verdade que d'antes, no territorio dos dous novos concelhos, eram tributados mais generos do que hoje, e que nas proprias carnes verdes o imposto era duplo e no vinho quadruplo. Mas o ponto verdadeiro da questão é o comparar a totalidade do onus a que estes territorios estavam sujeitos, com aquelle a que o estão agora. Quando se diz que era impossivel que o termo prosperasse debaixo da pressão dos tributos, attende-se ao facto real, e não ao facto nominal. A differenca enorme, que achamos entre os suppostos resultados das imposições e fiscalisação das Sete-Casas e os seus resultados verdadeiros, o que prova? Prova o mesmo que se deduz de outro facto altamente significativo, observado na historia do rendimento das Sete-Casas no decurso de 18 ou 20 annos, isto é, que esse rendimento augmenta logo que se encurta o termo fiscal, diminue desde que este se dilata; prova que a medida de reduzir a acção das Sete-Casas ao perimetro da circumvallação da cidade foi profundamente judiciosa, e um acto em que, á justiça feita aos habitantes do antigo termo, separando-os municipalmente da capital, se associou a conveniencia do thesouro; prova finalmente que, a não suppormos uma espantosa malversação nas Sete-Casas, o contrabando, esse castigo supremo e inevitavel de leis ineptas e anti-economicas, remediava até certo ponto a exaggeração do tributo, sendo impotente contra elle uma fiscalisação violenta, assoladora, immoral nas suas consequencias, e incapaz de preencher os fins a que era destinada.

O imposto sobre a carne e o vinho basta pois, na realidade, para compensar actualmente com um gravame novo, ainda maior, o gravame antigo. Mas não ha só isto. Na representação junta, dirigida ao Governo, esta camara absteve-se de discutir o imposto gradativo, estabelecido pelos decretos de 11 de setembro para as vendas de liquidos. Queria examinar primeiramente os effeitos positivos d'esse imposto, que ao simples aspecto parece ter unicamente por objecto tornar mais facil a fiscalisação das barreiras da cidade, e ferir especialmente, de um modo indirecto, o consumo de vinho feito pelas classes inferiores da capital fóra da linha de circumvallação. A verdade, porém, é que elle nem protege a fiscalisação naquella linha, nem recae só sobre o povo da capital que vem (quasi exclusivamente nos dias sanctos) consumir vinho nos arrabaldes. Por grande que seja este consumo, é evidentemente muito inferior ao dos proprios moradores dos novos concelhos, cujo gasto é diario, e que consomem outros liquidos. Assim, calculando proximamente em 7 contos de réis annuaes o producto das licenças gradativas de cem, cincoenta, vinte e dez mil réis, exigidas pelo fisco ás lojas de liquidos dos novos concelhos, póde-se affirmar sem exaggeração que 4 contos de réis recaem sobre os habitantes d'elles e não sobre a população inferior de Lisboa. Esta somma addicionada aos 51 contos por que foi arrematado o imposto da carne e vinho, eleva o gravame actual pelo menos a 55 contos, augmentando-lhe assim o excesso sobre o gravame antigo. Ao mesmo tempo a nova taxa de licença, pelo lado dos seus effeitos economicos e commerciaes, é por muitos modos vexatoria para os novos concelhos; porque o resultado della foi fecharem as portas centenares de pequenas lojas de liquidos, que não poderam resistir a um direito quasi prohibitivo, convertendo-se assim a taxa n'uma especie de direito de patente de um exclusivo, exigida aos donos dos grandes armazens de liquidos. De similhante exclusivo resultou que, além de ficarem na miseria centenares de familias, apesar do imposto gradativo o preço do vinho não subiu, porque o novo encargo para os grandes estabelecimentos ficou superabundantemente compensado pelo triplicado ou quadruplicado da venda. Todavia as consequencias d'este estado de cousas vão mais longe. Diminuindo em virtude de tal facto o numero das licenças municipaes, e consequentemente os redditos das novas camaras provenientes d'essa origem, ellas teem de ir buscar por outro qualquer meio ás algibeiras dos contribuintes, o supprimento de similhante desfalque.

Esta perda e gravame para os habitantes dos dous concelhos reverte, porém, em beneficio do fisco? Como todos os tributos, sobretudo indirectos, imprevidentemente estabelecidos, os 6 ou 7 contos auferidos por esse meio, produzem por outro lado um desfalque, talvez igual. São duzentos a trezentos sellos de licenças, duzentas a trezentas verbas de decima e do imposto de quatro por cento sobre casas, que desappareceram com a cessação d'esses duzentos a trezentos estabelecimentos commerciaes. Entretanto os 6 a 7 contos da taxa gradativa figurarão como um augmento de receita no orçamento geral do Estado, do mesmo modo que tantas outras decepções, que n'elle figuram por motivos analogos.

Esta camara disse que o imposto gradativo não protege a fiscalisação nas barreiras da cidade. Efectivamente n'esta relação elle é de todo impotente ou nullo. Basta para o conhecer saber-se o que no nosso systema fiscal se entende em regra por imposto de consumo, á vista do Codigo Administrativo e leis correlativas. O imposto de consumo unicamente se póde verificar na venda a retalho. Assim, não sómente em virtude dos regulamentos existentes, mas tambem pelas indicações da experiencia, o unico meio de fiscalisação para taes impostos é o methodo dos manifestos combinados com os varejos dados nas lojas de retalho. O systema do imposto das barreiras, como existe em Lisboa, é o que propriamente corresponde aos direitos chamados em França d'octroi et d'entrée. Se as barreiras e registos fiscaes na orla dos dous novos concelhos fossem licitos, e todos os generos importados pagassem sem distincção um direito maior ou menor, essas barreiras, especie de guarda avançada das de Lisboa, defenderiam mais ou menos estas, fazendo elevar sempre os preços dos generos no territorio dos dous concelhos, que assim voltariam legalmente ao estado de oppressão e vexame, de que as leis de setembro tentaram libertal-os. Mas sem isto, nem o imposto de consumo sobre a carne e o vinho, nem a taxa gradativa das licenças conduzem, por essa parte, a resultado algum. O contrabandista não precisa de ser taberneiro, carniceiro ou merceeiro, para exercer o seu odioso mister, e não o sendo póde livremente conduzir o objecto destinado ao contrabando até á proximidade da linha de circumvallação, sem pagar nem o imposto nem a taxa gradativa. Uma vez que não venda a retalho o que conduz, nada tem com elle o fisco ou os seus subrogados.

Que o Parlamento releve a esta camara uma observação. As linhas fiscaes de Lisboa defendem-se como se defenderam ha vinte annos as suas linhas militares. Defendem-se com animos probos; com a lealdade dos agentes fiscaes; com a vigilancia e actividade de quem quer e sabe cumprir o seu dever; com a severidade do castigo e com a justiça das recompensas. O espirito mais rude comprehende que uma alta muralha, dominada por um passeio de ronda, onde de noite e de dia se patrulhe convenientemente, e cujas vinte ou trinta portas sejam continuamente vigiadas por homens zelosos, é inaccessivel ao contrabando. Se, por hypothese, houvesse um Ministro que viesse perante o Parlamento dizer—«tenho nas barreiras da capital empregados fiscaes que trahem o seu dever: tenho chefes a quem incumbe vigial-os e que não os vigiam: tenho regulamentos imperfeitos: tenho considerações de patronato que me impedem de demitir os suspeitos, e de fazer punir os culpados: concedei-me, portanto, que cinja essas barreiras com uma faixa de territorio sujeito a uma lei excepcional, com um vasto pomoerium de maldição, cujos habitantes innocentes, absolutamente innocentes, dos descaminhos que tolero por falta de energia e de vigilancia, ou por considerações pessoaes, sejam obrigados a compensar pelas suas bolsas, os effeitos da corrupção ou da incapacidade dos meus propostos e subordinados»,—o Parlamento rejeitaria com indignação esta proposta demente e atroz, e por certo o individuo que assim escarnecesse da intelligencia e da consciencia dos Representantes do paiz, não tornaria a sentar-se nos bancos do Ministerio.

Não é, por consequencia, possivel que o Governo pense em defender por este lado a manutenção das provisões tributarias dos decretos de 11 de setembro, aliás já condemnadas no tribunal da razão, por contradictorias com a sua idéa fundamental, visto que em vez de reduzirem os impostos que effectivamente pesavam sobre o territorio dos dous concelhos, os aggravam, directa e indirectamente, ainda mais.

Ao augmento de encargos que veiu pesar pelo tributo indirecto sobre este opprimido territorio, em virtude de expressas disposições das leis de setembro, accresce o de outro imposto directo, augmento que resulta das leis geraes de Fazenda. Os quatro por cento sobre a renda das casas cuja base era em Belem, como districto municipal de Lisboa, de 30$000 réis, agora, convertido este territorio em concelho sobre si, teem por base a renda de 12$000 réis, vindo a sobrecarregar as classes pobres com um tributo de que estavam exemptas, e aos proprietarios urbanos que, com difficuldade achavam inquilinos para os seus predios, do que dão testemunho as casas deshabitadas e em ruinas que se encontram a cada passo n'esta povoação, augmentam-se por essa mudança de base tributaria, as difficuldades para auferirem uma renda modica dos seus capitaes immobilisados.

Se, porém, aquelles decretos e as suas consequencias, não tornaram menos oppressivas as contribuições que affligiam o antigo termo, cumpre confessar que ao menos o exemptavam dos vexames a que os sujeitava a fiscalisação das Sete-Casas, com o seu cortejo de violencias, de embaraços commerciaes, de extorsões, de rixas, e até de assassinios, quadro repugnante, que por inutil esta camara não desenhará diante dos olhos dos Senhores Deputados. Mas infelizmente esse beneficio, que está na lei e que devia traduzir-se nos factos, não chegou a realisar-se no concelho de Belem. O que se tem passado a similhante respeito não se acreditaria, se a narrativa dos successos não se estribasse em provas irrecusaveis. Na representação junta, esta camara julgou dever abster-se de mencionar certos factos e de apreciar severamente outros, de modo que parecesse dirigir ao Governo acres censuras. O procedimento d'este para com ella, soltando-a de quaesquer considerações, habilitam-na para dizer a verdade nua, a verdade em toda a sua extensão, perante os Representantes do paiz.

Apenas celebrados pelos fins de 1852 os contractos de arrematação dos novos impostos, nos dous concelhos do antigo termo de Lisboa, e o do real d'agua no resto do antigo termo fiscal das Sete-Casas, os arrematantes estabeleceram immediatamente registos fiscaes no perimetro do territorio que os seus contractos abrangiam. N'estes registos exigiam-se direitos de consumo, e davam-se guias dos generos despachados. Por auctoridade particular collocaram-se homens armados em diversos pontos, e começaram a apprehender-se individuos que, diziam os guardas dos arrematantes, se esquivavam ao pagamento dos impostos. A fiscalisação, emfim, das Sete-Casas, tão odiosa e tão justamente odiada, renascia n'este infeliz territorio com todo o seu sequito de abusos e violencias. Unanimemente, porém, as auctoridades administrativas do concelho dos Olivaes e dos outros concelhos limitrophes ao antigo termo municipal de Lisboa, aonde d'antes chegava o termo fiscal das Sete-Casas, intimaram os arrematantes para retirarem os registos, e fazerem cessar um systema de fiscalisação incompativel com os regulamentos e com a indole do imposto que haviam arrematado. Obedeceram elles ás intimações dos magistrados administrativos, e o abuso cessou. No Concelho de Belem não succedeu assim. A auctoridade tolerou tudo, e os renovados vexames das Sete-Casas continuaram. Como era natural, surgiram as resistencias, e os arrematantes pensaram em manter o abuso recorrendo ao Governo. Requereram ao Ministerio da Fazenda para que lhes assegurasse a conservação d'aquella especie de barreiras fiscaes que haviam estabelecido; mas as suas súpplicas foram indeferidas; nem podiam deixar de o ser. Communicou-se officialmente esta resolução ao respectivo Administrador de concelho, que se recusou a cumpril-a por motivos que esta camara ignora, e apesar das leis, dos regulamentos e da decisão do Ministro, as cousas continuaram no mesmo estado.

Entretanto crescia a reacção popular contra um abuso intoleravel, e tanto mais intoleravel quando se considerava que os outros concelhos limitrophes, e sobretudo o dos Olivaes, creado pelas mesmas leis, com as mesmas condições de existencia, e sendo-lhe applicaveis os mesmos regulamentos fiscaes, estavam perfeitamente exemptos de taes vexames, só reservados ao territorio do concelho de Belem. Os habitantes d'este lembraram-se então de procurar allivio aos seus males recorrendo tambem ao Ministro, que já ordenara se lhes pozesse termo e que não havia sido obedecido. Dirigiram pelo Ministerio da Fazenda um requerimento em que pediam de novo essa justiça, que já espontaneamente se lhes mandara fazer. Mais de um anno tem decorrido desde então, e até hoje, uma súpplica tão simples, tão justa, tão clara, até, para o Ministro, que de antemão e por si proprio a resolvêra, não pôde obter uma resolução favoravel!

A camara de Belem deixa á apreciação do Parlamento similhantes factos. A sua significação e o seu valor podem todavia calcular-se melhor pela comparação com outros que lhes são correlativos. Singulares e estranhos, esta camara não ousa nem quer explical-os. Pertence ao Parlamento remontar ás suas causas.

É de antigos tempos contestavel e contestada a extensão que se deve dar ao imposto do real d'agua. É questionavel se elle deve recair unicamente sobre as carnes verdes ou se tambem abrange as seccas, salgadas ou fumadas. Os tribunaes teem julgado diversamente, e o Governo em diversas epochas e por diversos actos tem procurado fazer admittir a significação mais lata. Estes actos do Governo são perfeitamente indifferentes, porque não é ao Executivo, mas ao Legislativo que pertence a interpretação das leis. De que a do real d'agua é obscura não ha a menor dúvida. Ao passo que o Poder Judicial vacilla a este respeito, o Ministro da Fazenda vem ao Parlamento pedir a sua interpretação, reconhecendo por esse acto a nullidade de todas as portarias, circulares ou officios com que se tem pretendido fixar o sentido d'ella. Posto isto, venhamos aos factos.

Os decretos de 11 de setembro de 1852, conglobaram o real d'agua no novo imposto que estabeleceram nos dous concelhos. Liberto dos impostos das Sete-Casas, este territorio ficava por esse facto submettido ao do real d'agua, a que a dictadura, por aquelles decretos, veiu accrescentar nove réis em canada de vinho e onze réis em arratel de carne. Os §§ 1.^o e 2.^o do artigo 3.^o do decreto expedido pelo Ministerio da Fazenda, dizem que os dous concelhos são obrigados:

«A pagar o imposto de dez réis por cada canada de vinho vendido a miudo, nos mesmos termos em que se paga o real d'agua.»

«A pagar quinze réis por cada arratel de carne verde, comprehendendo-se n'este direito o real d'agua, e os tres réis addicionaes.»

Se a dictadura entendia que o imposto do real d'agua era legalmente extensivo ás carnes seccas, é evidente que quiz restringir a nova imposição ás carnes verdes.: se entendia que não o era, quiz tornar bem sensivel a intelligencia que dava á lei do real d'agua, excluindo positivamente as carnes seccas. Se estas ultimas se comprehendiam n'aquella designação limitativa, quaes eram as que excluia a lei?

Trez mezes depois o Ministerio da Fazenda publicava as condições para a arrematação do real d'agua no antigo termo fiscal das Sete-Casas, comprehendendo o territorio dos dous novos concelhos, desannexado do municipio de Lisboa, e as freguezias dos outros concelhos limitrophes, que haviam pertencido ao termo fiscal das Sete-Casas. A quinta condição dizia assim:

Que ao arrematante ficará pertencendo no territorio que constituia o termo fiscal da extincta alfandega das Sete-Casas, a percepção do imposto do real d'agua, assim em canada de vinho que se vender para consumo nas ditas terras, quer seja nas tabernas, quer fóra d'ellas, como em arratel de carne de gado vacum, suino, lanigero e cabrum, que no estado de verde, secca, ou por qualquer fórma preparada, fôr vendida nos açougues ou fóra d'elles; sendo o sobredito imposto, nas freguezias dos concelhos que faziam parte do referido termo, de um real por canada de vinho, e quatro réis em arratel de carne, conforme foi estabelecido pelo alvará de 23 de janeiro de 1643, lei de 21 de novembro de 1844, e mais legislação a similhante respeito; e nas freguezias que formam actualmente os concelhos de Belem e Olivaes, de dez réis em canada de vinho, e quinze réis em arratel de carne, como se acha determinado nos n.^os 1.^o e 2.^o do artigo 3.^o do decreto de 11 de setembro do presente anno.

N'esta condição o Ministerio da Fazenda revelava a intelligencia que a dictadura déra á lei do imposto do real d'agua, isto é, a extensiva, mandando regular a percepção d'elle pela legislação anterior á dictadura, e ao mesmo tempo mandava que nos dous novos concelhos se observasse na percepção do imposto excepcional dos dez réis em canada de vinho e dos quinze réis em arratel de carne, o disposto nos n.^os 1.^o e 2.^o acima citados do decreto com força de lei de 11 de setembro, expedido pelo mesmo Ministerio, e que o restringia ao vinho e ás carnes verdes. A condição discriminava as duas hypotheses e referia-se nos seus dous membros ás leis que regulavam uma e outra. Rigorosamente a condição estava dentro da estricta legalidade. Seria nulla se d'ella se departisse.

Os arrematantes, depois de celebrado o contracto, não entendendo a condição, ou fingindo não a entender, exigiram direitos das carnes seccas. Resistiram-lhes os interessados. Recorreram elles ao Governo. A 12 de janeiro de 1853 expedia-se pelo Ministerio da Fazenda a seguinte portaria:

«Ministerio da Fazenda.—Direcção Geral das Alfandegas.—Sua Magestade a Rainha, attendendo ao que lhe representaram os arrematantes do imposto do real d'agua, nas carnes, e no vinho dos Concelhos de Belem e Olivaes, sobre a necessidade de se fazer constar aos moradores d'estes Concelhos, que lhes cumpre pagar a elles arrematantes não só aquelle imposto na razão de dez réis em canada de vinho, e quinze réis em arratel de carne verde, e secca, de todas as qualidades d'estes generos que foram encontrados em ser na occasião do varejo a que se procedeu, e das que de novo admittirem para consumo; mas tambem o imposto addicional para amortisação das notas do Banco de Lisboa: Ha por bem determinar que o Delegado do Thesouro, no districto de Lisboa, expeça as ordens convenientes aos escrivães de fazenda dos Concelhos de Belem, e Olivaes, para que elles façam constar por meio de Editaes affixados nos lugares publicos dos mesmos Concelhos, quaes as condições com que o referido imposto foi arrematado, e as penas a que está sujeito todo e qualquer individuo que se recusar ao pagamento d'elle, as quaes são as de que tractam os §§ 4.^o e 7.^o do Alvará de 23 de Janeiro de 1643, e mais leis posteriores a similhante respeito.»

O Parlamento desculpará por certo alguma expressão mais dura que possa escapar aos signatarios da presente súpplica, ao fazerem a repugnante exegese d'este singular diploma. A maior demonstração de benevolencia que poderiam dar ao Ministro que o assignou seria acreditar que o fez sem ler o que assignava. Esta camara quer suppol-o assim. Na essencia a portaria de 12 de janeiro illude a questão. É uma d'essas composições, com pretensão á ambiguidade, indignas de um Ministro da Corôa. Despojada do seu preambulo, das longas e tortuosas phrases que se arrastam como a serpente, o que resta? Uma ordem para se publicarem por Editaes as condições da arrematação, e as penas em que incorre quem devendo pagar o imposto, recusar fazel-o. Mas o que pediam os arrematantes? Pediam, que entre outras cousas, se fizesse constar, não aos logistas, aos vendedores de retalho, mas aos moradores dos dous concelhos, que deviam pagar quinze réis de cada arratel não de carne verde, mas de carne verde, e secca. Era este o ponto importante. Na sua modesta súpplica elles exigiam simplesmente que ao direito de consumo cobrado sobre a venda a retalho, fosse substituido um direito de entrada ou barreiras. Queriam tornar fecundos os seus registos de Belem. Pediam que, limitando o decreto de 11 de setembro o imposto da carne ás carnes verdes, o Governo o estendesse ás carnes seccas. Eram pretensões absurdas que o Ministro devia desattender porque tendiam a ultrapassar uma lei, e lei tributaria. Pediam-lhe que perpetrasse um crime. E em vez de repellir a injuria; em vez de recommendar aos seus subalternos severidade e vigilancia em cohibirem as violencias dos arrematantes e em manterem o direito dos cidadãos, que se defendiam da espoliação, o Ministro, invocando n'esta comedia vergonhosa o nome do Chefe do Estado, ordenava que se lhes recordasse a penalidade fulminada contra os que tentam subtrahir-se ao pagamento dos tributos legitimos. Por uma inversão de todas as idéas administrativas e até do senso commum, a advertencia severa fazia-se aos cidadãos ameaçados, que se defendiam com a lei: a attenção era para as pretensões da cobiça insolente que reclamava para chegar aos seus fins, o apoio illegal do poder!

Que todo o homem honesto diga com a mão na consciencia, se ao ler a portaria de 12 de janeiro não conhece o intuito com que foi redigida; se não sente que se busca produzir um effeito de temor, para que os habitantes dos dous concelhos se hajam de submetter ás exacções dos arrematantes justas ou injustas, sem que todavia se possa em rigor accusar o Ministro de exorbitar? Quem não tivesse presentes os decretos de 11 de setembro; quem não conhecesse bem o mechanismo dos nossos impostos de consumo e os diversos regulamentos sobre a sua percepção e fiscalisação, vendo n'essa portaria que o Governo attendia ás representações dos arrematantes, sobre a necessidade de recommendar aos cidadãos o cumprimento de certos deveres, e que o mesmo Governo depois de enumerar sem distincção esses deveres, reaes e imaginarios, ameaçava os renitentes com o rigor das leis; quem, dizemos, se não persuadiria de que os arrematantes invocavam unicamente direitos legitimos, resultantes de um contracto, que a boa fé do Executivo era obrigada a manter?

O povo, todavia, continuou no concelho de Belem a resistir ao vexame dos registos e guias, e d'estas resistencias chegaram a originar-se symptomas de graves conflictos. Por outra parte os vendedores de carnes seccas, bem aconselhados, deixaram os agentes publicos affixar os seus Editaes, as suas condições, as suas portarias, e recorreram ao Poder Judicial, de quem ainda hoje está pendente a decisão do negocio. D'esse Poder esperam elles justiça, se antes d'isso as Côrtes não approvarem a actual proposta do Ministro da Fazenda; porque sanccionada ella, nada mais resta aos cidadãos do que curvar a cabeça ante a soberania nacional.

Aos factos precedentes veiu, passados mezes, associar-se outro que os completa, e que illustrando o anterior procedimento do Ministerio da Fazenda, acaba de habilitar a Camara dos Senhores Deputados para avaliar aquelle procedimento e talvez remontar ás suas causas. Interpellado na Camara dos Dignos Pares, na sessão de 13 de agosto de 1853, sobre os impostos e vexames dos dous concelhos de Belem e Olivaes, o Ministro da Fazenda contradisse o direito e os factos, e fez revelações deploraveis.—Disse que a intenção do Governo, (queria dizer da dictadura) nos decretos de setembro fôra pôr os povos ao abrigo das vexações, sem o thesouro d'isso tirar partido, e que tambem o Governo (a dictadura) não quizera diminuir o quantitativo dos impostos nos dous concelhos, como o declarava no relatorio de um d'esses decretos. Tudo isto era inexacto. Os vexames não cessaram como se acaba de mostrar. O thesouro tirou partido da reforma, porque em lugar de 38 ou 40 contos que auferia do territorio dos dous concelhos, passou a tirar 55 contos como tambem se mostrou. Diminuiu-se o quantitativo dos impostos, embora os factos viessem depois provar que a diminuição era nominal. Emfim, a dictadura não declarou as intenções que o Ministro lhe attribuia n'essa memoravel sessão, citando aquelle relatorio, porque todas quantas considerações n'elle se fazem relativas a deficit, impossibilidade de reduzir impostos, etc., referem-se aos direitos fiscaes na cidade de Lisboa, e não aos dos dous concelhos, como facilmente verificará quem se der ao trabalho de o ler. E tanto assim, que depois d'essas considerações os Ministros da dictadura accrescentaram, que os concelhos de Belem e Olivaes «ficavam sujeitos ás imposições geraes do Reino, e apenas obrigados ao pagamento de alguns tributos a maior, que ainda os deixava em grandissima vantagem em relação ao seu estado anterior, mas que era justo pagassem pelos beneficios e cómmodos que lhes resultam do contacto com a capital.»

Se isto é deploravel, mais o foi ainda a defesa da portaria de 12 de janeiro. O Ministro que nessa conjunctura confessava que não soubera redigir o decreto de 11 de setembro, relativo ao assumpto, podia tambem declarar francamente que não soubera o que tinha feito expedindo-a. A Camara dos Dignos Pares seria por certo indulgente á vista d'esta confissão ingenua. O joven Ministro achou, porém, mais facil emprehender a apologia d'aquella monstruosidade administrativa. Para isso preferiu confessar que a portaria tinha por alvo fazer considerar como extensivo ás carnes seccas o novo imposto. O real d'agua era-o na opinião do Tribunal do Thesouro, do conselho da direcção dos impostos e d'elle Ministro, que hoje vem pedir ao Parlamento a interpretação d'essas leis sobre o real d'agua, ácerca das quaes nenhuma duvida tinha. Por um genero novo de hermeneutica tirou d'esse facto supposto uma conclusão singular. O decreto de 11 de setembro era lei promulgada por uma dictadura. Esta, assumindo, bem ou mal, o poder legislativo, podia modificar, alterar, revogar todas as leis do Reino, menos o alvará de 1643 e a carta de lei de 1844, relativos ao real d'agua. A esse poder nem se quer era licito dar-lhes uma interpretação menos extensiva do que lhes dava o Ministerio da Fazenda e as repartições ou individuos d'elle dependentes. Aquelle alvará e as leis correlativas eram inviolaveis como o Chefe do Estado, embora se dissesse no decreto de 11 de setembro que os dous novos concelhos pagariam o imposto de quinze réis por arratel de carne verde. Supposta a inviolabilidade do alvará de 1643 e da interpretação ministerial, essa designação não podia significar o que significa. A expressão carnes verdes, dizia o Ministro, é alli similhante á disposição em globo do alvará de 1643 e da lei de 1844.—Na sua opinião verde é o genero, secco a especie. Até hoje os adjectivos indicavam as qualidades do sujeito, e importavam sempre uma limitação porque excluiam as qualidades contrarias, e repugnavam ao absoluto; mas desde agora podem incorporar aquellas e representar este. Se qualificarmos de branco um corpo qualquer, isso não obstará a que seja ao mesmo tempo preto. Branco ficará qualificando o genero; preto ficará qualificando a especie. É pelo menos esta a theoria do illustre Ministro da Fazenda. A grammatica geral e o diccionario da lingua foram abrogados por elle naquella memorada sessão.

Apesar, porém, da nova theoria, o Ministro não evitou a responsabilidade dos seus actos. Quando se publicaram as condições da arrematação do imposto que nos dous concelhos de Belem e dos Olivaes substituiu o real d'agua, essa theoria era desconhecida no mundo visivel. Podia existir na intelligencia do Ministro e na jurisprudencia occulta dos seus tribunaes e conselhos fiscaes, mas de certo não na dos licitantes d'aquella arrematação. O dever, portanto, do Ministro era expôl-a a tempo, e tanto mais que existindo ainda a dictadura seria legal, embora absurda, a interpretação dada por ella ao n.^o 2 do artigo 3.^o do respectivo decreto. Valia a pena fazel-o n'uma questão de tributos. Declarando-se aos licitantes que a expressão carnes verdes significava igualmente carnes seccas, é evidente que o preço da arrematação subiria alguns contos de réis. Adoptal-a por uma portaria quinze ou vinte dias depois da adjudicação, e interpretal-a e confirmal-a perante o Parlamento passados seis mezes, foi defraudar o thesouro, em proveito particular, da somma differencial a que teria subido o preço da arrematação.

Mas se tudo isto apenas merece a compaixão ou o riso dos Senhores Deputados, ha no acto ministerial de 12 de janeiro uma circumstancia que se tornava de notavel gravidade, desde que o Ministro vinha declarar n'uma das casas do Parlamento que a ambiguidade evidente na forma d'esse acto, não existia na indole e na intenção d'elle e que, praticando-o, o Ministro da Fazenda adoptára como verdadeiras e legitimas as indicações dos arrematantes. Dizia-se na portaria que os moradores dos dous concelhos deviam pagar o imposto do vinho e de todas as carnes verdes e seccas existentes, ou que de futuro se consumissem. Esta doutrina alterava forçosamente o systema da fiscalisação. Pelo Codigo Administrativo os impostos sobre o consumo affectam só os generos vendidos a retalho dentro de qualquer circumscripção fiscal. O vinho ou as carnes que os moradores conduzem de fóra d'essa circumscripção, para seu proprio consumo e não para revenderem, são livres. D'aqui a fórma de se verificar a cobrança e fiscalisação do imposto. É a esta fórma de arrecadação a que evidentemente allude o decreto de 11 de setembro. O vendedor a retalho manifesta o genero perante a auctoridade quando o intruduz e paga o imposto: os agentes fiscaes fiscalisam pelos varejos, comparando os resultados d'estes com os manifestos. Considerando como sujeitos ao pagamento do imposto todos os moradores da circumscripção, e onerado sem excepção o genero tributado consumido dentro d'ella, (que é o que succede em Lisboa) a fórma da cobrança e fiscalisação varia necessariamente. Surgem então as barreiras, as linhas de circumvallação e, á falta d'estas, os registos, as guias, os homens armados que vigiam a orla do redil fiscal, que espancam e assassinam os contrabandistas, ou que são por elles espancados e assassinados. Volta-se ao systema das portagens do seculo XIII. A portaria de 12 de janeiro, confundindo o tributo portuguez de consumo pela venda a retalho com o tributo francez de octroi, de barreiras, ou de consumo absoluto, legitimava as guias, os registos, os guardas armados que existiam por excepção no concelho de Belem, ao passo que indeferia a súpplica dos arrematantes para os estabelecerem. A auctoridade local, despresando esse indeferimento e mantendo o vexame, era mais logica do que o Ministerio da Fazenda, e este mais logico deixando sem solução até hoje a representação dos moradores do concelho, do que indeferindo a pretensão dos arrematantes.

De tudo quanto se passou na sessão de 13 de agosto da Camara dos Dignos Pares, a proposito da interpellação do Sr. Conde de Peniche, nada porventura é mais singular do que a audacia com que o Ministro exclamava: «Hoje não ha a guia (nos dous concelhos): transita-se por toda a parte sem o incómmodo d'esses exames geraes a que procediam os guardas das Sete-Casas: não ha registo, etc.» E no mesmo dia, e á mesma hora, talvez, em que elle orava no Parlamento, os guardas dos arrematantes estavam postados a espaços nas estradas do concelho de Belem, e os moradores que conduziam generos para seu consumo eram arrastados aos registos, onde se lhes exigiam os impostos, que pagavam ou deixavam de pagar conforme conheciam melhor ou peior o seu direito, e tinham mais ou menos valor para o sustentar. No dia, e talvez na hora, em que o Ministro falava, davam-se guias selladas e pagas n'esses registos, que não só existiam então, mas tambem existem hoje, embora com um caracter menos vexatorio, porque esta camara saberia defender os seus administrados se actualmente se dessem violencias, recorrendo, não ao Ministerio da Fazenda, mas sim ao chefe da policia para que mantivesse a segurança das vias publicas, e aos tribunaes para que punissem os culpados.

A camara de Belem, depois da exposição de todos estes factos, tão incriveis como verdadeiros, transcreve um periodo da resposta dada pelo Ministro da Fazenda á interpellação do Digno Par Conde de Peniche. São as suas palavras textuaes:

«Se o Governo substituisse os vexames dos arrematantes pelos da Fazenda teria feito talvez peior; porque os impostos arrematados são sempre cobrados com maior rigor fiscal; mas o Governo não tem admittido o registo pelos arrematantes; não está estabelecido o systema de guias como antes estava…»

Confessa, portanto, o Ministro que em relação aos vexames, o systema que chama de Fazenda, e pelo qual esta camara suppõe que elle entende o das Sete-Casas ou de barreiras com registos, guias, etc., a situação dos novos concelhos, dada a hypothese da arrematação dos impostos, seria mais dura de soffrer do que antes, pela maior severidade da fiscalisação feita em proveito particular. Ora o systema que tem regido o Concelho de Belem é o dos registos e guias. Logo a situação dos habitantes d'este concelho tem sido, conforme a opinião dos Ministros, mais vexatoria do que sob o regimen das Sete-Casas.

Fica, portanto, claro, á vista dos factos ponderados n'esta súpplica e na representação annexa dirigida ao Governo, que o concelho de Belem, espoliado dos bens que lhe deviam pertencer, sobrecarregado de onus tributarios, nominalmente menores, mas na realidade maiores do que os da epocha em que formava parte do de Lisboa, soffrendo em relação aos impostos geraes as consequencias da acquisição da sua individualidade municipal, continuando a experimentar por um abuso intoleravel da auctoridade os vexames das anteriores fórmas fiscaes, vilipendiado na sua magistratura municipal pelo desdenhoso silencio com que foi despresada a modesta e respeitosa representação dirigida ao Governo pela camara do mesmo concelho, não podia deixar de vir buscar protecção e justiça no seio do Parlamento. É o que em nome d'elle esta camara faz. Fal-o porque é o seu restricto dever; fal-o porque de outro modo trahiria a confiança dos que a elegeram. Pede a reforma dos decretos de 11 de setembro; pede que as provisões d'esses decretos se affiram pelos principios eternos da moral e da justiça; que o concelho de Belem seja libertado de tributos excepcionaes e que tambem seja privado de quaesquer vantagens excepcionaes, cuja manutenção esteja a cargo da Fazenda Publica ou do municipio de Lisboa, uma vez que não se prefira haver uma compensação recebida do cofre d'esta camara; que se lhe retire consequentemente a subvenção deduzida das prestações dadas pelo Governo á camara de Lisboa; que se lhe restituam as propriedades, terrenos e edificios municipaes contidos no perimetro do concelho, e que fique este sujeito unicamente ao imposto do real d'agua como os outros concelhos do Reino, cobrado e fiscalisado do mesmo modo; pede em summa, em quanto esse admiravel invento dos economistas de D. João IV continuar a devastar o paiz, que aos habitantes d'este territorio seja applicado o direito commum, e concedido igual quinhão nos deveres e encargos que oneram os outros cidadãos, igualdade garantida a todos pela lei politica da monarchia.

Esta camara, precisando de applicar ás despezas ordinarias do municipio uma somma excedente a dezeseis contos de réis, tem de rendimento actual, incluindo a subvenção do Governo estabelecida nas leis de setembro, menos de nove contos de réis. Onerados já com o imposto excepcional, a carne e o vinho, não poderiam ser tributados municipalmente senão n'uma proporção tenuissíma. No meio dos embaraços em que labora a agricultura do concelho, embaraços que se acham expostos na representação dirigida ao Governo, seria absolutamente impossivel sobrecarregar com imposições os cereaes, o principal, o quasi unico alimento das classes mais infelizes, e a unica producção importante d'este territorio. Os impostos indirectos sobre outras subsistencias dariam apenas sommas insignificantes. Resta a contribuição directa. Esta pelas nossas instituições administrativas não póde exceder a dez por cento da decima do concelho, e hoje da respectiva quota de repartição, a qual se eleva proximamente a 16 contos de réis, e cujo decimo, portanto, equivale apenas a 1:600$000 réis. Assim, ainda lançando todas as contribuições possiveis, directas e indirectas, esta camara difficilmente chegaria a igualar a sua receita com as suas inevitaveis despezas. Mas para obstar á decadencia da riqueza na circumscripção municipal de Belem, decadencia evidente a todos os olhos e que o proprio Governo reconheceu, além d'essas despezas ordinarias a municipalidade tem de recorrer á reconstrucção de estradas geraes e caminhos travessos, pela maior parte intransitaveis, para o que se precisam sommas avultadissimas, despendidas com a mais severa economia, porque a linha das estradas e caminhos de todo o municipio equivale á extensão de muitas leguas. Urge tambem a construcção de matadouros, porque a população inteira clama contra os abusos no fornecimento das carnes verdes, abusos que não só lhe affectam as bolsas, mas tambem a saude e a existencia, e para obstar aos quaes o unico meio é o estabelecimento de matadouros publicos, onde o genero se fiscalise, porque um dos resultados do imposto do real d'agua quer simples quer quintuplicado, como nos dous novos concelhos, é impossibilitar a concorrencia e converter o fornecimento das carnes verdes em monopolio dos arrematantes do imposto. Ás despezas porém, do meneio ordinario do regimen municipal, e ás extraordinarias que são inevitaveis para acudir á decadencia do concelho, e ás primeiras exigencias da hygiene publica, ajunta-se a necessidade de occorrer á creação do material indispensavel da administração de um concelho novo, constituido no termo de outro concelho, para o qual passou a maior parte do material empregado no serviço do territorio desannexado. Em similhante situação, a camara actual ignora a que meios hade recorrer para manter a administração do municipio, se continuar a pesar sobre elle o imposto excepcional.

N'estes termos, a camara espera do Parlamento uma resolução favoravel sobre o presente assumpto.

E.R.M.

Ajuda 28 de abril de 1854. O presidente, Alexandre Herculano. Vogaes,
João Ferreira Godinho—José Street d'Arriaga e Cunha—Joaquim Ferreira
Pinto Basto—João José Teixeira Leal—Mathias Antonio Vieira.

PROJECTO DE CAIXA DE SOCCORROS AGRICOLAS

1855

Senhor.

A camara municipal de Belem, resolvida a occorrer a uma das maiores necessidades do concelho, a crear uma instituição do mais subido interesse e cuja utilidade já hoje ninguem se atreve a pôr em duvida, embora as opiniões variem sobre o modo de a realisar, offerece á approvação do Governo de Vossa Magestade, pedindo o uso da iniciativa do mesmo Governo perante o Parlamento a favor d'elle, o projecto de lei junto, relativo á fundação de uma Caixa de Soccorros Agricolas, especie de banco rural, accommodado ás necessidades d'este concelho, ao nosso estado economico e juridico, aos nossos usos agricolas, e até ás idéas e talvez ás preoccupações dos cultivadores, idéas e preoccupacões que, não havendo inconveniente, se devem respeitar, porque é esse o meio de fazer acceitar instituições novas, de cuja importancia só a experiencia de seus salutares effeitos póde persuadir os menos illustrados. Vossa Magestade permittirá que esta camara exponha, com a brevidade que taes materias comportam, os fundamentos que abonam a idéa geral do projecto e as suas varias disposições.

Por toda a Europa se tem reconhecido a necessidade de salvar da usura a industria agricola, de facilitar a esta capitaes, cujo modico juro seja accommodado aos modestos lucros do cultivador. Em Portugal, onde tantas vezes e por tantas maneiras tem reinado uma agiotagem desenfreada, nem a industria fabril, nem o commercio, nem a fazenda publica teem padecido talvez por este lado metade dos males que a agricultura padece. Nas provincias do sul, sobretudo, os campos são devorados por uma praga de usurarios, que conservam o lavrador n'uma barbara servidão, e que defecando-lhe de continuo os recursos, não só lhe obstam a toda e qualquer tentativa de aperfeiçoamento rural, mas tambem o vão gradualmente conduzindo á miseria. Clama-se contra o atrazo dos cultivadores portuguezes, contra a imperfeição dos methodos, e esses clamores são em grande parte pouco assisados. Sem pretendermos que a nossa agricultura seja modelo, é certo que muitos dos defeitos que se lhe notam, não são senão necessidades resultantes do clima, do solo, do estado da viação, das condições dos mercados, do modo de ser da propriedade, e de mil outras circumstancias economicas e juridicas, que os agronomos especulativos desconhecem, ou que não apreciam. Se attendermos á elevação quasi constante dos salarios ruraes desde 1834 para cá, á depreciação progressiva dos generos, e sobretudo á carestia sempre crescente dos capitaes, o accrescimo constante da massa dos nossos productos agricolas, abona a crença de que o systema de agricultar não é tão imperfeito como folgam de pintal-o os admiradores exclusivos das prácticas estrangeiras. Os grandes embaraços para o mais rapido desenvolvimento da agricultura consistem sobretudo na falta de capitaes, nas leis que por differentes modos se oppõem á divisão da terra e á translação do dominio, á falta de vias de transito e de policia rural, a circumstancias, em summa, que nada teem que vêr com esta ou com aquella fórma de instrumentos agricolas, com este ou com aquelle systema de afolhamentos, com a introducção d'esta ou d'aquella cultura nova, ou que, se teem alguma influencia n'essas cousas, é em dar razão ás vezes ao agricultor para não as adoptar, embora sejam boas absolutamente consideradas.

A camara de Belem, tractando de remover o maior dos obstaculos ao desenvolvimento da agricultura n'este concelho, a carestia dos capitaes, deve fazer sentir a maneira como a usura procede na obra infernal de arruinar os cultivadores. O quadro que ella vae traçar é triste, mas verdadeiro, e oxalá não representasse ao mesmo tempo o que se passa na maioria dos outros concelhos, ao menos no sul do reino.

Em geral a usura exercida sobre a agricultura é de duas especies. A 1.^a tem os caracteres genericos d'esta immoralidade: o mutuante, segundo a necessidade do agricultor, empresta sobre as hypothecas ordinarias com os juros mais exorbitantes que póde, suppostas taes ou taes circurmstancias no mutuario: é um agiota insolente, vulgar, ávido como qualquer outro. A 2.^a especie tem caracteres á parte: é a usura hypocrita, muito mais commum no campo do que a primeira. O usurario d'esta especie segue diverso rumo. É homem chão, modesto, exacto no cumprimento dos seus deveres civis, laborioso, valedor: é quasi um bom homem. Ignora as partidas dobradas e repugnam-lhe por via de regra, não só os juros exorbitantes mas até o juro legal. Quando empresta o seu dinheiro ao agricultor é por dó d'elle; é para lhe acudir n'um apuro. O que quer é assegurar o reembolso da somma mutuada. Tendo horror ás demandas, se o lavrador é proprietario não lhe acceita o predio como hypotheca, porque conhece a imperfeição das nossas leis hypothecarias: se o não é, nem por isso quer abandonal-o. N'esta situação que faz? Empresta sem juro; mas exige um contracto que lhe dê a certeza do reembolso. O cultivador ha de pagar-lhe em genero na eira. E como ha de ser o pagamento? Os cereaes regular-se-hão pelo preço mais inferior do genero n'essa conjunctura. É uma precaução. Para os riscos das baixas possiveis que depois sobrevenham de uma venda anterior, de uma divida desconhecida, de uma colheita insignificante, etc., o mutuario promette o abatimento de um, de dous, de tres vintens ou mais em alqueire. É outra precaução. O usurario é compassivo, é benevolo para com a sua victima, mas precisa de ser prudente. O contracto fica secreto ou como secreto; não se escreve porque o mutuante conta com a probidade do mutuario, ou para melhor dizer, com o temor que este terá de achar em novos apuros condições mais onerosas, e esses apuros são quasi inevitaveis desde que o cultivador caíu uma vez nas suas mãos. Taes são as fórmas mais communs da agiotagem rural n'este e n'outros concelhos. As circumstancias especiaes modificam-nas, mas em geral as transacções d'este genero caracterisam-se assim.

O segredo que se guarda ácerca d'estas transacções obscuras e hediondas, a que se póde chamar a crapula da agiotagem, predomina tambem forçosamente no facto geral que resume esses mil factos de usura. A cargo da irregularidade das estações e dos mercados, da falta de vias de transito, do peso dos impostos, etc., ficam todos os males do lavrador. Murmura-se vagamente e em voz baixa; mas nas queixas publicas o usurario passa illéso. Como buscando o verme que destroe a arvore antiga, é preciso que o ouvido do observador seja bem agudo e o silencio á roda d'elle bem profundo, para sentir a usura roendo no amago da industria agricola. Se o Governo ou o Parlamento instituissem um inquerito solemne a este respeito, o mais provavel é que fosse nullo o seu resultado. O agricultor calar-se-hia porque não crê na auctoridade; não espera d'ella remedio. Martyr, olharia para o algoz e vêr-lhe-hia nas mãos os instrumentos dos tractos, ao passo que no poder publico só creria descortinar a indifferença, a fraqueza, a impotencia. Curvar-se-hia por isso e respeitaria o mais forte. Evitaria assim que no seguinte anno a sua imprudencia fosse castigada com mais uma volta na corda do potro; com mais um ou dous vintens de abatimento no preço por que devera vender cada alqueire de trigo.

Para se avaliar bem toda a extensão do mal, é necessario, Senhor, attender a alguns factos. Ordinariamente o lavrador executa com um capital seu os primeiros trabalhos annuaes. Na prosecução d'esses trabalhos é que é vulgar virem a faltar-lhe os recursos, e é então que elle compromette o futuro. As mondas, as sachas, as cavas, as ceifas, as vindimas, acham-no muitas vezes desprovido. Ora entre estes ultimos trabalhos e o recolhimento dos fructos medeiam apenas de cinco a dous mezes e ainda prazos mais curtos. Por outro lado, como é vulgarmente sabido, a epocha em que os productos da agricultura teem menor valor é na occasião da colheita. Ajunte-se a isto a reducção de um tanto no preço de cada alqueire de cereaes ou de cada almude de vinho, e imagine-se qual será a exorbitancia do lucro do mutuante. Supponhamos (e esta supposição não vae por certo longe do que commummente succede) que o preço medio annual dos trigos temporãos, principal producção d'este concelho, corresponde a 500 reis, e que na epocha das eiras o cereal vale a 460 reis. Fazendo o abatimento de 20 reis em alqueire, o lavrador paga com cada um d'estes apenas 440 reis de uma divida que, suppondo-se contrahida por uma media de tres mezes, vem a soffrer um juro de 12 por cento em trimestre, ou 48 por cento ao anno.

Esta camara, Senhor, não foi buscar exemplos aos casos mais escandalosos, que annualmente occorrem. Quando o credito do lavrador está abalado, muitas vezes por causa das mesmas usuras de que foi victima, quando a sua reputação de probidade não é inconcussa, quando os seus habitos de economia são pouco severos, quando as incertezas das estações o empobreceram, as usuras redobram de violencia. Mas, ou maiores ou menores, as difficuldades da sua situação augmentam de anno para anno, e o resultado mais ou menos remoto d'essa situação é a ruina e a miseria. O cancro da usura devorou-lhe interiormente a vida economica lento, lento e sem ruido; e esta lentidão e este silencio são uma das caracteristicas da agiotagem rural que a tornam mais difficil de extirpar. O que enleva, o que arrasta sobretudo o lavrador, é o mysterio d'essas transacções leoninas que não se escrevem, que não se vão contar na praça, porque o usurario é discreto e sabe tirar partido d'essa preoccupação dos agricultores.

Foi attendendo a estes factos e ás circumstancias d'elles, que se concebeu o projecto de uma instituição que, supprindo com vantagem os bancos ruraes como existem nos outros paizes e que parecem, ao menos por emquanto, inapplicaveis ao nosso, trouxesse um alivio seguro á agricultura d'este concelho, mais compromettida e ameaçada de ruina do que se cuida. O pensamento do projecto foi aproveitar a experiencia, digamos assim, da industria da usura para a combater, organisando a Caixa de Soccorros de modo que á facilidade das transacções se ajuntasse a modicidade do juro, e o respeito por certos habitos e preoccupações que o progresso da illustração ha de destruir, mas que desattendidos emquanto são vigorosos, impedem sempre a realisação das melhores cousas.

Affirmou, Senhor, esta camara que a Caixa de Soccorros, instituição simples e exequivel, substituirá com vantagem os bancos ruraes, que esta camara reputa inapplicaveis ao paiz. Efectivamente varias objecções gravissimas se pódem oppôr á tentativa de crear entre nós o chamado credito rural por via de bancos. Que são os bancos territoriaes ou hypothecarios? Uma instituição de garantia, intermedia entre o mutuante e o mutuario, ou mais exactamente entre o capital e a propriedade, e que attrahe aquelle pela segurança, esta pela barateza do dinheiro que a segurança do emprestimo produz. Na expressão da indole de taes bancos se manifesta desde logo o imperfeito da instituição, ainda absolutamente considerada. Não é só, diremos mais, não é tanto a propriedade rural como a industria rural que precisa de ser por toda a parte soccorrida por capitaes baratos. A terra é um capital como o dinheiro, porque não passa de um instrumento de producção: o productor é o que a cultiva. É para este, para quem representa o trabalho que sobretudo taes bancos deveram ser instituidos. Proprietario ou rendeiro, que importa a qual das duas cathegorias pertence o cultivador, o industrial agricola? Um carecerá só de ser mutuario do capital dinheiro; outro carecerá do capital dinheiro e do capital terra. Qual d'elles precisa de maior protecção? Evidentemente o segundo. Os bancos ruraes não satisfazem a esta necessidade. Aproveitam aos primeiros, porém não aos segundos, ao menos directamente. E todavia, não dizemos em Portugal, mas em quasi todos os paizes, o maximo numero dos cultivadores são os rendeiros. Na Polonia, na Allemanha, na Russia, na Dinamarca, na Belgica, as instituições de credito agricola não vão além da propriedade territorial. Nem outra cousa podia ser porque ellas suppõem geralmente a existencia do fundo, os bens de raiz, como hypotheca para o reembolso. D'esse facto deriva outra objecção grave contra os bancos ruraes. Os paizes do norte, onde a instituição nasceu, teem luctado com os mil tropeços, que traz á sua consolidação o regimen hypothecario, e a França debate-se para a crear com as difficuldades d'esse mesmo regimen, mais imperfeito ainda que n'aquelles paizes. Entre nós o systema de hypothecas póde considerar-se na infancia, e elle seria um obstaculo insuperavel ao estabelecimento dos bancos de credito territorial.

Dir-se-ha que as nossas leis hypothecarias serão reformadas como acto preliminar á creação dos bancos? As nações mais adiantadas teem consumido annos e annos em estudos e tentativas para reformar essas leis, que prendem directa ou indirectamente com todo o direito civil, e ainda não o teem completamente alcançado. É permittido por isso duvidar de que tal facto se verifique entre nós, que ainda não temos um Codigo Civil e onde a legislação é um chaos. Faz, na verdade, sorrir a facilidade com que se imagina prover em Portugal, ao complemento e organisação d'esse esboço que ahi temos de um systema hypothecario.

As instituições destinadas a servirem de intermedio entre os capitalistas e os proprietarios, ou dependem de associações poderosas e respeitaveis, ou da garantia publica. Mas quer sejam de um, quer de outro genero, é necessario que o seu credito se repute inabalavel. Sem isso debalde se buscaria obter capitaes baratos para agricultura. Mas quaes serão as associações poderosas e respeitaveis que possam ou queiram organisar entre nós os bancos territoriaes? Por outra parte a historia da fazenda publica e dos grandes estabelecimentos de credito n'este paiz, não abonaria demasiado a confiança dos mutuantes na garantia publica. Todos os diversos bancos ruraes actualmente existentes na Europa presuppõem a emissão de notas, de letras, de inscripções, de titulos de credito, em summa, para funccionarem. Mas quem prudentemente poderia esperar hoje em Portugal a acceitação de taes titulos? Mr. Thiers dizia em 1848 perante a assembléa nacional, n'um paiz onde o credito publico mal se poderia comparar com o nosso: «Basta que um papel se introduza n'um paiz como nota de banco para se me tornar suspeito». Nós os portuguezes não suspeitamos: descremos. E esta descrença matará todas as tentativas; porque o credito nem se improvisa, nem se decreta.

Ás precedentes objecções vem associar-se outra, talvez não menos peremptoria. Os capitaes em Portugal teem um valor subido. São communs os emprestimos, feitos com toda a segurança compativel com o desordenado e incompleto das nossas leis civis, a 7, a 8 e a mais por cento. Ainda suppondo possivel a existencia de bancos ruraes que offerecessem solidas garantias, e que a situação actual da agricultura portugueza admittisse a exigencia de um juro de 5 ou 6 por cento, como attrahir os capitaes para os bancos? Como resolver o capitalista a contentar-se com um juro de 4 ou 5 por cento, visto ser necessario reservar pelo menos 1 por cento para as despezas da gerencia dos bancos, quando elle póde obter para o seu dinheiro um preço mais subido?

Restaria só um meio, a emissão de notas que não representassem valores positivos; restariam as chimeras da mobilisação do solo e da multiplicação dos capitaes, ou por outra a moeda papel, que os utopistas crêem ter descoberto porque inventaram algumas phrases ou palavras novas, para exprimir erros velhos. Esta camara julga inutil combater similhantes preoccupações, porque o Governo de Vossa Magestade e o Parlamento estão acima de taes desvios. Se fosse possivel não o estarem, a opinião publica faria prompta e inexoravel justiça a esses papeis de credito, desacreditados ainda antes de emittidos.

Esta camara, Senhor, não pretende com o que leva dito negar os beneficios produzidos pelos bancos ruraes nos diversos paizes da Europa, nem que o progresso das luzes economicas os venha a tornar mais amplos nos seus effeitos, nem finalmente que possa chegar um dia em que a sua fundação seja não só possivel, mas tambem conveniente ao nosso paiz. Quiz só mostar a convicção profunda que tem de que, por agora, para fazer alguma cousa verdadeiramente util á agricultura, considerada nas suas relações com o capital, cumpre tomar por base outro pensamento, e desenvolvel-o em harmonia com o nosso estado economico e civil, e além d'isso com as idéas, habitos e até preoccupações innocentes dos agricultores.

Na creação da Caixa de Soccorros, que submette á approvação, e para que pede a iniciativa do Governo, esta camara tomou para ponto de partida o tributo municipal, em vez da esperança de obter capitaes alheios para gerir. A razão é simples: não os obteria senão por um preço que o estado da agricultura do concelho não comporta. Considerações mais largas a este proposito talvez aqui tivessem cabida, mas ella contenta-se com o que já ponderou, e que no caso especial é decisivo. Conhecendo pelos exames a que procedeu sobre a materia, que o grande mal consiste nas usuras a que o lavrador tem de sujeitar-se para obter os meios de executar os amanhos annuaes, foi sobretudo este mal que procurou combater. Se a usura espreita as necessidades instantes, que regularmente vêm assaltar o cultivador no grangeio annual, é ahi que deve ser repellida. A Caixa de Soccorros emprestará annualmente e só annualmente. D'este principio resultam a possibilidade e a proficuidade da instituição. Resulta: 1.^o que sendo a hypotheca do emprestimo os fructos em vez do predio, as questões hypothecarias desapparecem com um pequeno favor da lei, e sem offensa grave do direito de terceiro: 2.^o que limitando-se a quantia mutuada ao equivalente da renda liquida do cultivador, reduzida ainda a tres quartos para obviar aos inconvenientes das alterações inevitaveis n'essa renda, a Caixa, obrigada a subministrar apenas sommas comparativamente modicas, poderá multiplicar os emprestimos e, recolhido integralmente o capital todos os annos, salvo nos de escacez completa, estará sempre habilitada com recursos para renovar opportunamente o beneficio: 3.^o que limitando-se a emprestimos annuaes a mesma Caixa, evitará um dos grandes escolhos dos bancos hypothecarios, a absorpcão de capitaes avultados por um periodo indeterminado ou demasiado longo; isto é, evitará a causa mais ordinaria da ruina dos bancos hypothecarios: 4.^o que por esta mesma razão deixará de cair na justificada censura, que mais de uma vez se tem feito aos bancos territoriaes, de favorecerem a paixão excessiva pela propriedade, paixão vulgar no homem do campo, e a que se póde chamar o vicio da terra. Este vicio produz, mais frequentemente do que se cuida, a ruina do cultivador. Ha uma observação feita já por toda a Europa, e que é facil de fazer em Portugal. O lavrador que póde obter um capital por tempo indeterminado ou assás longo, não procura em regra dar maior intensidade ou aperfeiçoamento, á cultura do predio que cultiva: tracta de dilatar o grangeio. Ás difficuldades com que luctava accrescenta maiores, endivida-se cada vez mais; cada vez faz maiores sacrificios até que completamente se arruina. É esta a historia de muitos. O proprietario rural não deve estender a sua propriedade senão com economias realisadas: o rendeiro não deve converter-se em proprietario senão pelos mesmos meios. Tudo o mais é imprudente e arriscado, e tanto mais arriscado quanto é certo que o vicio da terra cria facilmente na imaginação do cultivador esperanças de lucros, que se não verificam. Os bancos ruraes teem no meio de muitas vantagens este inconveniente. A amortisação pelas annuidades, systema facil para o mutuario remir a divida insensivelmente, não remedeia o mal senão causando outro. A annuidade não significa para o cultivador senão um augmento de juro, que excedendo as forças productivas da terra, o arruina tambem. No fim de um certo numero de annos não deverá o capital extincto pelas annuidades, mas deverá outro que tomará emprestado, quando a somma da annuidade com o juro annual exceder o producto liquido da sua industria.

Nas disposições organicas da Caixa de Soccorros Agricolas, esta camara inseriu algumas provisões tendentes a remover uma apprehensão grave. Esta apprehensão, a que já anteriormente se alludiu, funda-se n'um facto de ordem moral: o cultivador portuguez envergonha-se de tomar dinheiro a juro: entende que ha o que quer que seja menos regular n'esse acto tão innocente como legitimo. Prefere tudo á publicidade do que elle chama a sua miseria, e que ás vezes o é. Não raro o usurario explora este sentimento de orgulho, porventura nobre na sua origem. Custa menos ao agricultor pedir áquelle a quem já pediu uma vez, e que não assoalha o facto, porque o defeito da usura não é ser vangloriosa. O usurario contenta-se com reter em servidão perpétua o cultivador que uma vez lhe caiu nas mãos. Aos olhos de muitos essa circumstancia pareceria de bem pouco momento: a esta camara pareceu que, practicamente, era uma das maiores difficuldades a vencer, e por isso insiste n'ella. Um facto, hoje esquecido, prova a sua importancia. Em 1845 o Governo decretando um emprestimo aos lavradores do Ribatejo, convidou a Companhia das Lezirias a fazel-o. Acceitou a Companhia o encargo com condições que presuppunham a publicidade como garantia. Pedia-se um juro modico em relação ás usuras de que ordinariamente é victima áquelle districto agricola. Nenhum mutuario todavia appareceu. Era o emprestimo um acto publico, e até certo ponto ruidoso, no qual cumpria que cada um se confessasse necessitado. Preferiram a usura, e uma circumstancia apparentemente insignificante bastou para inutilisar as intenções bemfazejas do Governo e da Companhia. Importava, portanto obstar a que igual successo se renovasse no caso presente. Imaginou-se o meio de conciliar a segurança da Caixa com as prevenções dos cultivadores, e esta camara crê têl-o achado nas disposições dos artigos 5.^o, 11.^o e 12.^o O registo dos emprestimos, se não dá a certeza de um segredo absoluto, offerece pelo menos tantas garantias de pouca publicidade como a discrição dos usurarios. Para o mutuario honesto ha a segurança de que, paga a divida, não ficarão d'ella vestigios escriptos, e de que emquanto subsistiu, o conhecimento da sua existencia não passou de poucos individuos. Na occasião da venda dos productos agricolas, raras vezes terá de se verificar o disposto no artigo 14.^o Ninguem duvida em geral de entregar ao lavrador uma parte do preço do genero vendido antes de completar a tróca.

Com os simples meios de operar as transacções tanto dos emprestimos como da restituição adoptadas por esta camara, o cultivador evita esses tramites complicados a que ficaria sujeito n'outra qualquer instituição de credito. Os cultivadores, em troco do direito que adquirem a obter um capital barato quando lhes convier, não tomam senão o encargo de mandar buscar á Caixa de Soccorros uma certidão de corrente, se d'ella precisarem antes do dia 30 de agosto, para sem obstaculo negociarem os seus generos, e os compradores de productos agricolas nunca poderão allegar ignorancia, visto ser prohibido aos cultivadores do concelho operarem qualquer transacção sobre fructos, sem mostrarem o estado das suas relações com a Caixa.

A vantagem dos cultivadores, sobretudo dos de cereaes, que são a grandissima maioria dos do concelho, não é só a de obterem capitaes a 1/4 por cento ao mez, ou a 3 por cento ao anno, em logar dos juros exorbitantes de 30, 40 ou 50 por cento; é tambem a de poderem vender em conjunctura mais propicia do que a da colheita, visto que a restituição só tem de estar verificada no fim de janeiro: e se, por causa da facilidade de se harmonisarem os emprestimos com os reembolsos, os primeiros ficam circumscriptos ao periodo de fevereiro a julho, é esta a epocha em que realmente o cultivador precisa d'elles, porque é sabido que todo aquelle que não póde executar os primeiros trabalhos do anno agricola com os proprios recursos, não está habilitado para ser agricultor. Quando porém tal situação se désse, teria o lavrador a liberdade de vender na eira, restituindo o emprestimo á Caixa, fazendo os primeiros trabalhos com o resto, e vindo buscar em fevereiro novo emprestimo.

Explicado o pensamento da camara no essencial, seria offender a intelligencia do Governo e do Parlamento, dar tambem a razão de cada uma das provisões do projecto. Em geral, ha n'elle a manifestação de desconfiança da boa vontade com que será mantida de futuro a nova instituição. Esta desconfiança existe de feito no espirito da actual camara. A fundação da Caixa de Soccorros Agricolas fere interesses poderosos. Esses interesses cuja legitimidade é mais que disputavel, hão-de combatêl-a antes e depois de creada, e o combate será tanto mais perigoso, quanto é certo que a usura tem de caminhar nas trevas, usando de meios indirectos. Eram necessarias prevenções contra o perigo, e a camara crê têl-as tomado. Quando, o que não é de esperar, viesse uma vereação hostil á existencia da instituição, as provisões do projecto são taes, que os vereadores comprometteriam seriamente a propria fortuna, faltando n'esta parte ao seu dever. Além d'isso, o administrador da Caixa, cuja subsistencia dependerá da permanencia da instituição, defendido de uma demissão injusta da parte da camara pelas disposições da lei, será um obstaculo permanente aos abusos que poderiam trazer a ruina da mesma Caixa.

Resta ainda, Senhor, a esta camara dar algumas explicações sobre o meio adoptado para a formação do fundo, e sobre a quantia que se fixou para o constituir.

Das considerações até aqui feitas deriva a creação do fundo por meio de um imposto. O capital assim accumulado, sendo propriedade do concelho, pôde mutuar-se por um juro insignificante sem detrimento de ninguem. Levantando-se um capital por emprestimo e applicando-se o imposto á amortisação d'elle, as operações da Caixa poderiam na verdade satisfazer desde logo a toda a procura de pequenos capitaes; mas é evidente que o imposto oneraria o concelho por mais annos, e o juro exigido dos mutuarios não poderia ser inferior a seis ou sete por cento, para occorrer ao pagamento do juro de 5 por cento (suppondo que se obtivesse dinheiro por preço tal) e ás despezas do estabelecimento. A camara, porém, está convencida de que a cultura do concelho, sobretudo a de cereaes, não soffre similhante juro. Além d'isso, sendo esta uma instituição nova no paiz, tendo contra si as repugnancias e hesitações que sempre se dão em taes casos, a fóra a guerra que lhe hão-de fazer os interessados em manter o estado actual das cousas, a procura de pequenos capitaes deve ser tenue a principio e crescer gradativamente á medida que o fundo augmentar.

A base adoptada para determinar o algarismo do fundo foi a estatistica dos predios rusticos do concelho, a que a camara mandou proceder com a exacção possivel, supposta a sabida carencia de recursos que ha para obter a exacção em taes materias. Existem no concelho 812 predios rusticos, que se distribuem do modo seguinte, por uma escala gradativa da sua renda liquida:

+—————+————+————-+————-+—————+—————+—————+ | |De 1$000|De 10$000|De 50$000|De 100$000|De 200$000|De 300$000| |FREGUEZIAS|a 10$000|a 50$000 |a 100$000|a 200$000 |a 300$000 |a 600$000 | | |reis |reis |reis |reis |reis |reis | |—————+————+————-+————-+—————+—————+—————| |Belem | 3 | 10 | 7 | 2 | — | 2 | | | | | | | | | |Ajuda | 16 | 37 | 14 | 11 | 5 | 3 | | | | | | | | | |S. Pedro | | | | | | | |d' | | | | | | | |Alcantara | — | 2 | 11 | 10 | 3 | — | | | | | | | | | |Bemfica | 30 | 193 | 74 | 48 | 14 | 5 | | | | | | | | | |S. | | | | | | | |Sebastião | | | | | | | |da | | | | | | | |Pedreira | — | 20 | 20 | 24 | 4 | 3 | | | | | | | | | |Carnide | — | 49 | 8 | 10 | 2 | 2 | | | | | | | | | |Odivellas | 18 | 107 | 28 | 13 | 3 | 1 | | |————+————-+————-+—————+—————+—————| |7 | | | | | | | |Freguezias| 67 | 418 | 162 | 118 | 31 | 16 | +—————+————+————-+————-+—————+—————+—————+

Tomadas as medias da escala gradativa, e multiplicando cada media pelo numero de predios de cada-gráu, achamos a media da renda liquida total ser de 57:175$000 reis.

Mas aconselhando a prudencia que se limitem os emprestimos a trez quartos da renda liquida de cada mutuario, seguir-se-hia que o fundo da Caixa deveria ser proximamente de 42 contos de reis. Entretanto, do seguinte mappa, em que os predios rusticos do concelho são classificados segundo a natureza das respectivas culturas, deriva a consequencia de que uma somma menos elevada satisfará plenamente aos fins da instituição. Eis o mappa:

+——————+———-+———+———+———+———+———+———-+———-+ | FREGUEZIAS |Quintas|Casaes|Terras|Hortas|Vinhas|Cercas|Olivaes|Pinhaes| |——————+———-+———+———+———+———+———+———-+———-+ |Belem | 4 | 2 | 14 | 4 | — | 1 | — | — | | | | | | | | | | | |Ajuda | 19 | 19 | 67 | — | — | 1 | — | — | | | | | | | | | | | |S. Pedro | | | | | | | | | |d'Alcantara | 13 | 6 | — | 2 | 1 | — | 1 | — | | | | | | | | | | | |Bemfica | 89 | 61 | 219 | — | 25 | — | 3 | — | | | | | | | | | | | |Carnide | 19 | 1 | 21 | 11 | 27 | 2 | 2 | — | | | | | | | | | | | |Odivellas | 22 | 34 | 123 | 16 | 9 | 1 | 3 | 2 | | | | | | | | | | | |S. Sebastião| | | | | | | | | |da Pedreira | 33 | 7 | 21 | 2 | 7 | — | 3 | — | | |———-+———+———+———+———+———+———-+———-| | | 199 | 130 | 465 | 35 | 69 | 5 | 12 | 2 | +——————+———-+———+———+———+———+———+———-+———-+

As quintas e as hortas no precedente mappa constituem mais da quarta parte dos predios rusticos do concelho. As primeiras pertencentes no maximo numero a proprietarios abastados da capital, e cultivadas por seus donos, sendo além d'isso muitas d'ellas antes objecto de luxo que de industria, não carecerão provavelmente nunca de soccorros da Caixa para o seu cultivo. As segundas pela indole de uma cultura, que não soffre a accumulação de fructos que possam servir de garantia ao emprestimo, estão forçadamente excluidas do beneficio da Caixa. Muitos dos predios, porém, incluidos n'estas duas categorias, figuram entre os de maior renda na lista das propriedades rusticas do concelho. Seria, portanto, necessario que todos os cultivadores, para cuja utilidade, ou antes para cuja redempção do captiveiro da usura esta instituição é destinada, carecessem de emprestimos integralmente equivalentes a trez quartos da respectiva renda liquida, para ser absorvido o fundo creado de 35:000$000 reis.

O imposto destinado para este objecto, posto não seja senão a transformação de outro mais antigo e pesado, que hoje não poderia subsistir, tem encontrado as difficuldades que se costumam encontrar na fiscalisação e cobrança de um imposto novo. Para o realisar era necessario que a moderação acompanhasse a firmeza. Esta camara adoptou o methodo das avenças, methodo popular que facilita as operações da cobrança, tanto para os exactores como para os contribuintes, e que sob certo aspecto equivale ao systema do imposto directo e simples, e está demonstrando a excellencia d'elle, excellencia que infelizmente o povo ainda não comprehende. As avenças feitas não representam por agora a verba do que o imposto deve produzir; mas hão de approximar-se d'ella á medida que fôr possivel ir tornando a fiscalisação mais severa. Se a camara se não illude nas suas previsões, o fundo da Caixa estará preenchido dentro de sete ou oito annos, podendo e devendo cessar o imposto desde que estiverem preenchidos os fins d'elle.

Reservando a quarta parte do tributo especial para as despezas geraes do municipio, a camara attendeu a que sem esta reserva recaíria sobre os outros ramos do serviço municipal a cobrança e fiscalisação d'elle, bem como a despeza com a gerencia da Caixa, emquanto os seus rendimentos não chegarem para isso, e finalmente considerou essa reserva como uma indemnisação pelo encargo estabelecido no ultimo periodo do artigo 23.^o.

A camara de Belem espera que esta sua tentativa, para acudir á mais urgente necessidade de um concelho, em grande parte rural, merecerá a benevola attenção de Vossa Magestade, e que o projecto junto, corrigido pela sabedoria do Governo de Vossa Magestade, será submettido á approvação do Parlamento, que não a recusará por certo a uma instituição, cuja utilidade é inquestionavel.

Deus Guarde a preciosa vida de Vossa Magestade, como todos havemos mister.—Camara, em Vereação, 27 de março de 1855.

O Presidente—Alexandre Herculano.

Joaquim Ferreira Pinto Bastos.

João José Teixeira Leal.

Matheus Antonio Vieira.

José Street d'Arriaga e Cunha.

CAIXA MUNICIPAL DE SOCCORROS AGRICOLAS

Artigo 1.^o É instituido no concelho de Belem um fundo permanente com a denominação de Caixa Municipal de Soccorros Agricolas. O seu destino é subministrar capitaes baratos aos cultivadores para os amanhos ruraes.

Artigo 2.^o O fundo d'esta Caixa formar-se-ha com tres quartos do producto do actual imposto de 20 reis em cada alqueire de farinha fabricada, até completar a somma de 35:000$000 reis.

§ unico. A camara poderá substituir o dito imposto por outro qualquer, uma vez que o seu producto seja pelo menos equivalente ao dos mesmos tres quartos do actual. Se a camara, porém, distrahir estes do fim a que são destinados, ou supprimir o imposto sem o substituir, antes de se completar o fundo, embora com approvação do Conselho de Districto, os vereadores ficarão responsaveis por seus bens ao complemento d'elle.

Artigo 3.^o A administração superior da Caixa incumbe a uma direcção composta do presidente da camara, que será o presidente da direcção, do fiscal, e de um vogal eleito pelos cinco membros restantes da camara d'entre si.

Artigo 4.^o A Caixa emprestará aos cultivadores do concelho, por prazos que nunca excederão a um anno, e a juro de 1/4 por cento ao mez, o capital necessario para o movimento da cultura annual dos respectivos predios, pela totalidade da somma existente em Caixa até ao complemento do fundo creado, e d'ahi ávante pelo total do mesmo fundo, o qual por nenhum pretexto poderá ter outra applicação, que não seja a de emprestimos annuaes aos cultivadores.

Artigo 5.^o Haverá um registo, numerado e rubricado em todas as folhas pelos membros da direcção, de todos os cultivadores do concelho.

Artigo 6.^o Os ditos cultivadores serão designados em duas categorias: 1.^a lavradores; 2.^a fazendeiros.

§ 1.^o Entende-se por lavrador o cultivador de cereaes, e por fazendeiro o vinhateiro, o pomareiro e o que cumulativamente cultiva vinhas e pomares.

§ 2.^o Quando o grangeio do cultivador abranger ambas as categorias, o mesmo cultivador será classificado conforme a importancia relativa d'esse grangeio em cada uma d'ellas.

Artigo 7.^o Abrir-se-ha um titulo a cada um dos cultivadores do concelho, contendo o seu nome, a natureza e condições da cultura, que determinaram a sua categoria, e bem assim a verba do producto liquido ordinario da mesma cultura, á vista da ultima quota do tributo geral directo, em que o cultivador tiver sido tributado. A administração, porém, da Caixa recorrerá ás informações que julgar opportunas para verificar a exacção da verba, que todavia nunca poderá ser superior á que corresponde a quota do tributo directo.

Artigo 8.^o A somma mutuada por cada cultivador, nunca poderá exceder a tres quartos da sua renda liquida averbada no registo.

Artigo 9.^o Serão hypotheca especial do emprestimo os fructos do anno corrente, produzidos no predio ou predios cultivados pelo mutuario, e na falta d'estes os dos annos immediatos até o reembolso da divida.

Artigo 10.^o Os emprestimos far-se-hão durante o decurso dos mezes de fevereiro a julho de cada anno, por uma vez na importancia de tres quartos da renda liquida do mutuario, ou por duas vezes em duas parcellas iguaes, que completem os ditos tres quartos, ou apenas por um terço da renda liquida do mesmo mutuario, tudo a arbitrio d'este.

Artigo 11.^o Haverá um livro de talão, chamado do registo annual dos emprestimos, numerado e rubricado em todas as folhas pelos membros da direcção da Caixa, onde se registarão as ementas dos mesmos emprestimos. Estas ementas, que conterão um numero de ordem, o nome do mutuario e a quantia por que fica devedor, serão escriptas, datadas e sobscriptas pelo administrador da Caixa e assignadas pelos mutuarios ou por outra pessoa a seu rogo, e por uma testemunha quando o mutuario não souber escrever. No talão escrever-se-ha o numero de ordem, a quantia mutuada e data da transacção.

§ 1.^o Cada uma das ementas feitas da maneira determinada no precedente artigo, será lançada n'uma folha separadamente.

§ 2.^o As certidões passadas do livro das ementas pelo administrador da Caixa, e referendadas pelos membros da commissão e pelo administrador do concelho, terão para os effeitos legaes o valor de uma escriptura publica de divida.

§ 3.^o O exame do registo annual dos emprestimos é vedado a todas as pessoas estranhas á administração da Caixa, salvo ao administrador do concelho.

§ 4.^o Na escripturação da Caixa de Soccorros o numero de ordem substituirá sempre o nome do mutuario.

Artigo 12.^o No fim do anno, ou antes se os cultivadores o quizerem, verificar-se-ha o reembolso da Caixa, capital e juro, devendo esse reembolso estar realisado dentro do mez de janeiro immediato. Entregar-se-ha a cada mutuario como quitação a ementa ou ementas, que lhe forem relativas cortadas dos respectivos talões.

Artigo 13.^o A acção e direito da Caixa de Soccorros terá a preferencia a outra qualquer acção e direito particular, sobre os fructos do anno em que foi contraído o emprestimo. Exceptua-se a acção da fazenda publica pelos impostos devidos.

Artigo 14.^o Ninguem poderá levantar por titulo de compra, troca, cessão ou outro qualquer contracto, os fructos do predio rustico cultivados pelos individuos designados nos artigo 5.^o e 6.^o, sem que o cultivador lhe apresente certidão do estado da sua conta com a Caixa de Soccorros.

§ 1.^o Estas certidões serão rubricadas pelos membros da direção da Caixa, e passadas gratuitamente pelo administrador da mesma, e só ao cultivador interessado. Se a certidão declarar este em divida, o comprador dos fructos será obrigado a entrar na Caixa com a importancia, capital e juro, da dita divida, pagando ao cultivador a somma correspondente a essa importancia com o recibo respectivo. Se não cumprir o disposto n'este artigo, ficará responsavel pela divida, capital e juro.

§ 2.^o Se o contracto de compra ou de outra qualquer especie, e o levantamento dos fructos tiver sido feito occultamente, aquelle que houver feito o contracto ou recebido os fructos, ficará não só responsavel pela divida, capital e juro, mas tambem sujeito a uma multa de 20 por cento da mesma divida para o official da camara ou da administração, que descobrir o facto, ou para outro qualquer individuo que venha denuncial-o á direcção da Caixa.

§ 3.^o Se o cultivador tiver vendido os fructos a comprador transeunte e desconhecido, sendo por este levantados os mesmos fructos, ficará o dito cultivador incurso no crime de burla, e sujeito ás penas das leis.

§ 4.^o Aos cultivadores do concelho, que não houverem recebido emprestimos da Caixa, enviar-se-ha a certidão corrente n'esse anno até ao dia 30 de agosto, embora elles não a hajam anteriormente exigido.

Artigo 15.^o Os cultivadores que mudarem de predio serão obrigados a dar aviso á administração da Caixa, e a declarar a importancia do seu novo grangeio e do rendimento liquido d'elle. Os que não o fizerem, ficarão inhabilitados por dous annos para receber emprestimos da Caixa.

Artigo 16.^o Todos os annos, depois de concluido o lançamento dos tributos geraes directos, o administrador do concelho communicará á direcção da Caixa as alterações que houverem occorrido nas respectivas quotas de repartição, em relação aos cultivadores do concelho. Dadas essas alterações, mudar-se-ha no registo a verba, até a qual póde subir o emprestimo ao respectivo cultivador.

Artigo 17.^o Acontecendo que o total das verbas pedidas pelos cultivadores exceda os recursos da Caixa, a preferencia será dada em razão ascendente da menor renda liquida para a maior.

Artigo 18.^o Se qualquer cultivador do concelho fôr eleito vereador não poderá, em quanto exercer esse cargo, ser mutuario de somma alguma havida da Caixa de Soccorros Agricolas.

Artigo 19.^o A nenhum dos mutuarios individualmente poderá a administração da Caixa espaçar o prazo fatal do reembolso no fim do anno. Quando por motivo de escacez das colheitas, ou de outra calamidade publica, se reputar necessaria a concessão de móra, a camara resolverá essa concessão, e fundamentando-a a offerecerá á sancção do Conselho de Districto. Sendo por este approvada, gosarão do beneficio da móra todos os mutuarios que d'ella quizerem aproveitar-se. Se a camara, porém entender que as circumstancias aconselham que se faca a dita concessão, ou só á classe dos cultivadores de cereaes, ou só á dos fazendeiros, conceder-se-ha a essa classe a móra especial com approvação do Conselho de Districto, sob a mesma condição de nunca ser individual.

§ 1.^o A móra entende-se em todo o caso para o capital; o juro será pago no prazo prefixo.

§ 2.^o O pagamento da divida não poderá ser exigido nos annos subsequentes, senão pela decima parte da renda liquida do cultivador, que se calculará com abatimento da mesma decima parte para o effeito de novos emprestimos.

§ 3.^o São hypothecas d'esta divida os bens de raiz do cultivador-proprietario, e os do cultivador-rendeiro, se os tiver. Se este não os tiver, sel-o-hão os seus bens moveis e semoventes, sendo além d'isso obrigado a dar fiador idoneo á divida.

§ 4.^o Estas dividas não vencerão juro, e a acção e direito da Caixa para as cobrar serão os mesmos da fazenda publica.

Artigo 20.^o Para supprir até onde fôr possivel o desfalque do fundo pala móra, dada a hypothese do artigo antecedente, a Caixa tomará um emprestimo dentro das seguintes limitações:

1.^a O total do emprestimo será equivalente ao capital representado por dous terços do rendimento liquido da Caixa, considerados como juro, os quaes effectivamente ficarão applicados ao pagamento do juro do emprestimo.

2.^a O terço restante do rendimento liquido ficará destinado á amortisação, bem como o remanescente annual dos dous terços applicados para o pagamento do juro.

3.^a A camara, sobre proposta da direcção, submetterá o contracto do emprestimo á sancção legal, na forma do artigo 103.^o do Codigo Administrativo.

Artigo 21.^o Os membros da direcção da Caixa serão responsaveis pelos actos da sua gerencia, remettendo annualmente até o mez de março uma conta especificada das transacções operadas no anno anterior, para o Conselho de Districto examinar se a lei foi cumprida, e impôr a responsabilidade á direcção.

Artigo 22.^o Haverá um administrador com o vencimento annual de 300$000 reis, a quem pertencerá o meneio de todos os negocios da Caixa que lhe forem incumbidos pelo respectivo regulamento. Os zeladores da camara servirão por turno de contínuos, e o procurador da mesma camara servirá de agente forense, mediante uma gratificação annual arbitrada pela camara, e approvada pelo Conselho de Districto, a qual nunca excederá a 20$000 reis. Quando trabalhos extraordinarios o exigirem, a direcção requisitará da camara o serviço de um ou mais amanuenses da secretaria da mesma camara.

Artigo 23.^o O administrador da Caixa será nomeado pela camara, que lhe exigirá fiança idonea no valor de 3:000$000 reis; só, porém, poderá ser demittido por uma resolução do Conselho de Districto, sobre proposta da direcção, approvado pela camara, a qual aliás o póde suspender, havendo para isso proposta da direcção.

Artigo 24.^o Os vencimentos acima referidos e mais despezas da Caixa serão pagos pelo seu rendimento e emquanto este para isso não chegar, será completada a somma total da despeza pelo cofre da camara.

Artigo 25.^o O rendimento da Caixa, deduzidas as despezas da sua gerencia, e fóra do caso previsto no artigo 20.^o, será exclusivamente applicado, a arbitrio da camara, aos seguintes objectos: 1.^o á manutenção das escholas primarias municipaes de 1.^o ou de 2.^o grau; 2.^o à compra de sementes, cuja introduccão se repute util, para serem gratuitamente distribuidas aos cultivadores, que quizerem tentar a sua cultura; 3.^o á compra de instrumentos, machinas ou utensilios agricolas, com as mesmas condições e fins; 4.^o á sementeira ou plantio de pinhaes ou mattas nos baldios ou terrenos de inferior qualidade, pertencentes ao concelho, ou adquiridos por elle para tal fim.

§ unico. Estas applicações só se verificarão depois de completo o fundo da Caixa. Até ahi o seu rendimento liquido será n'elle encorporado.

Artigo 26.^o A camara fará os regulamentos opportunos para a boa gerencia da Caixa, os quaes terão vigor depois de approvados pelo Conselho de Districto.

Camara de Belem, 27 de março de 1855.

Alexandre Herculano.

SOBRE A QUESTÃO DOS FORAES

1858

Meu amigo.—Sinto que as primeiras linhas que escrevo para o seu jornal, e que escrevo e escreverei para satisfazer ao desejo que me manifestou, de que o ajudasse na sua util empreza conforme as minhas escassas possibilidades, seja para rectificar idéas ahi contidas e que me parecem pouco exactas. São as de uma correspondencia insérta a paginas 94 do 1.^o volume do Archivo. Pondera-se n'aquella correspondencia a necessidade de uma nova lei de Foraes. Não sei até que ponto essa nova lei é possivel, depois de tantos factos consummados em harmonia com a carta de lei de 22 de junho de 1846. Quando medito nas difficuldades, nas injustiças relativas, nas incertezas que resultariam de novas providencias contrarias ás d'aquella lei, eu, que não recuo facilmente diante das consequencias de commettimentos de tal ordem, quando se tracta de grandes reformas, de grandes actos de justiça social, titubeio perante as hypotheses que prevejo se dariam quando se tratasse de legislar com mais liberal espirito sobre tão grave assumpto, e faço votos para que os legisladores que tentarem tal empreza, achem a solução racional de um problema, que a meus olhos não a tem das mais faceis.

A lei de 1846 é uma lei reaccionaria, profundamente reaccionaria. É a explosão da guerra occulta feita por interesses illegitimos ao grande acto de justiça nacional, chamado o decreto de 13 de agosto de 1832, pensamento talvez o mais grandioso da dictadura do Duque de Bragança, a que só faltaram desenvolvimento e provisões, que facilitassem a sua execução, falta que subministrou pretextos ao espirito de reacção para o falsificar e annullar em grande parte. A lei de 1846 não me inspira só hostilidade; inspira-me indignação. Mas quando uma lei tem actuado durante doze annos sobre o modo de ser de uma grande parte da propriedade territorial do paiz, quando tem regulado milhares de contractos, servido de norma a milhares de sentenças, influido em milhares de successões, determinado para mais ou para menos milhares de fortunas, pretender alteral-a póde não ser uma grande temeridade, mas requer por certo uma alta força de intelligencia, e uma circumspecção pouco vulgar.

Mas o que ha mais grave na correspondencia que o meu amigo publicou é uma outra circumstancia. Adopta-se ahi um erro analogo ao que produziu as peiores disposições da lei de 22 de junho, se abstrahirmos do seu pensamento fundamental, o salvar tudo o que, sem extremo escandalo, fosse possivel salvar das velhas extorsões dominicaes. O pensamento, infelizmente mal desenvolvido, do decreto de 13 de agosto era libertar o paiz do nosso primitivo systema de renda publica, derivada por abusos de seculos para a algibeira de particulares, e substituido em relação ao estado por outro systema de renda, o que trouxera uma situação intoleravel para a maior parte da propriedade territorial, a solução de duas series de impostos uma só das quaes chegava aos cofres do erario. O decreto de 13 de agosto supprimia a serie primitiva, a serie delapidada. Era uma idéa simples, clara, justa em these. O mal veiu da insufficiencia dos meios na sua applicação á hypothese. O decreto de 13 de agosto não tivera, não podia ter em mira offender contractos particulares sobre propriedade patrimonial: o que cumpria em qualquer lei posterior tendente a esclarecel-o e a rectifical-o, era reformar as suas provisões que de qualquer modo dessem azo a ser offendido o direito privado, e por outra parte completar aquellas que não bastassem a extirpar o grande abuso, a immensa extorsão publica a que se pozera o machado. Para isso tornava-se necessario designar quaes caracteres, quaes condições, na falta de provas directas e incontestaveis, serviriam para demonstrar ou para se presumir que tal fôro, tal censo, tal direito dominical procedia de um contracto expresso ou tacito com o estado. Onde e quando as condições e os caracteres fossem demonstrativos, a prova em contrario deveria ser supprimida; onde e quando produzissem só presumpções, admittir-se-hia essa prova em contrario. Tudo o mais reputar-se-hia resultado de contractos particulares, salvo tambem o direito do colono, emphyteuta, ou censuario a provar a origem publica do onus ligado ao predio que possuia. O principio da abolição, dada essa origem publica, não podia ter nem excepção nem limites. A lei devia reconhecer a indemnisação pelo estado na unica hypothese em que ella era justa, a da venda de direitos dominicaes feita pela corôa. A verba total não havia de ser demasiado avultada; e que o fosse era uma divida que se pagava. As gerações são solidarias.

Em vez d'isto, appellou-se para a distincção cerebrina de titulo generico e titulo especial, que vinha tanto para o assumpto, como uma sura do alcorão, ou um artigo das leis de Manú; e á sombra d'esta distincção que não distinguia nada, confundiu-se tudo, e restaurou-se quasi tudo fazendo-se aos colonos originariamente da corôa, o grande favor de poderem remir o onus dando por elle (considerado como juro ou renda) o equivalente em capital. O que os legisladores quizeram bem averiguado foi se a transmissão do uso da terra, reservado o dominio, fôra escripta para servir de titulo a muitos colonos ou a um só, se n'um se em muitos diplomas. Era uma curiosidade archeologica sobre a abundancia ou a raridade do pergaminho na idade media, que poderia subministrar um capitulo interessante a alguma nova edição da Economia Politica del Medio Evo, do meu amigo Luiz Cibrario.

É este erro, esta confusão do direito privado com o publico, mas em sentido opposto ao da lei de 22 de junho, que me parece conter-se na correspondencia de que falo. Rigorosamente, e considerado na sua verdadeira indole, o decreto de 13 de agosto estatuiu sobre uma questão de direito publico. Consideral-o de outro modo é desconhecer os seus fins e o seu alcance. Libertar a terra é exemptal-a de onus injustos, de vexames, de encargos impostos pela força; não é annullar contractos livres particulares ácerca da propriedade patrimonial. Quando se pede uma lei que crie para emphyteutas e sub-emphyteutas, sem excepção, o direito de remir todos os fóros, pede-se que a lei desfaça contractos livremente debatidos, espontaneamente celebrados, e conformes na sua essencia aos principios de justiça absoluta. O canon emphyteutico, o censo, qualquer quota no producto da terra que o senhorio directo de um predio, de accordo com o colono, reserva para si transmittindo o dominio directo, é em rigor a renda de um capital, ou aluguer perpétuo de um instrumento de producção. Póde a lei expropriar o dono d'esse instrumento para utilidade particular, e por um preço taxado de antemão por ella? Se tal se houvesse de admittir porque não se admittiria a regra contraria? Porque não revocaria a si o senhorio directo o capital, o instrumento, pagando as bemfeitorias ao colono? Suppondo justa a primeira prescripção, porque se reputaria injusta a segunda?

Repito: não sei se é possivel recuar no caminho que abriu a lei de 22 de junho. Se o é, se os fóros de Alpiarça pertencem á categoria d'aquelles que o decreto da primeira dictadura queria abolidos, e se a lei reaccionaria e insensata que destruiu, ao menos em parte, aquelle grande acto de justiça nacional, póde ainda ser substituida por outra mais conforme com o espirito d'esse acto, não é a remissão de taes fóros que d'ella deve resultar, quer o senhorio directo pertença hoje ao estado, quer a corporações, quer a individuos; é a suppressão, a abolição completa. Quanto a fóros em bens de origem patrimonial, é impossivel acceitar a doutrina da correspondencia.

Escrevo estas linhas, meu amigo, ao correr da penna e sem os desenvolvimentos que requeria a gravidade do assumpto, porque antevejo os inconvenientes sociaes da propagação de taes doutrinas. Para mim o grande meio de progresso na cultivação do paiz, da melhor distribuição da população, do melhoramento das classes laboriosas, do chamamento do proletario ao goso da propriedade, e por ella aos bons costumes e ao amor da familia e da patria, é a emphyteuse. A meus olhos, a emphyteuse é o unico meio de obstar aos inconvenientes da divisão indefinita do solo, e ao mesmo tempo de combater os males que resultam da existencia dos latifundios, sobretudo dos latifundios amortisados, esterilisados pela instituição vincular. Mas se a opinião que proclama o direito de remissão a bel-prazer do emphyteuta, ameaçar de contínuo o dominio directo, todas as providencias que se hajam de tomar, que se devem tomar, para impellir indirectamente os donos de vastos tractos de terra a retalhal-os por aforamentos, serão baldadas. Os possuidores de latifundios mal cultivados preferirão o atrazamento agricola, os menores redditos actuaes á espoliação futura, e o paiz difficilmente sahirá de uma situação economicamente mais embaraçosa do que muitos crêem, e que nos horisontes do futuro se me representa assaz carregada.

Que o direito emphyteutico seja simplificado; que se dispa de todos os accessorios de que o revestiram os costumes e as idéas de epochas barbaras, é necessario e justo: que se vicie na sua essencia, n'aquillo em que é legitimo, sensato, benefico e civilisador, é absurdo. A lei que tal ordenasse seria ao mesmo tempo espoliadora e inepta.

Julho, 10 de 1858.

A. Herculano.

FIM DO VOLUME VII.

NOTAS

[1] O novo artigo não veio a publico.

Nota dos editores.

[2] Este artigo foi publicado em 22 de agosto e o primeiro em 7 do mesmo mez.

Nota dos editores.

INDICE

Advertencia

Duas epochas e dous monumentos ou a granja real de Mafra

Breves reflexões sobre alguns pontos de economia agricola

A Granja do Calhariz

Projecto de decreto

O Paiz e A Nação

Representação da Camara Municipal de Belem ao governo

Representação da Camara Municipal de Belem ao parlamento

Projecto de Caixa de Soccorros Agricolas

Sobre a questão dos foraes