The Project Gutenberg EBook of Poesias Completas, by Machado de Assis

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Title: Poesias Completas

Author: Machado de Assis

Release Date: March 21, 2020 [EBook #61653]

Language: Portuguese

Character set encoding: UTF-8

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POESIAS COMPLETAS

MACHADO DE ASSIS


MACHADO DE ASSIS

DA ACADEMIA BRAZILEIRA

POESIAS

COMPLETAS

CHRYSALIDAS, PHALENAS

AMERICANAS, OCCIDENTAES

H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR

71-73, RUA DO OUVIDOR, 71-73
RIO DE JANEIRO
6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
PARIS
1901

ADVERTÊNCIA

Podia dizer, sem mentir, que me pediram a reunião de versos que andavam esparsos; mas, a verdade anterior è que era minha intenção dal-os um dia. Ao cuidar disto agora achei que seria melhor ligar o novo livro aos ires publicados, Chrysalidas, Phalonas, Americanas. Chamo ao ultimo Occidentaes.

Não direi de uns e de outros versos senão que os fiz com amor, e dos primeiros que os reli com saudades. Supprimo da primeira série algumas paginas; as restantes bastam para notar a differença de edade e de composição. Supprimo tambem o prefacio de Caetano Filgueiras, que referiu as nossas reuniões diarias, quando já elle era advogado e casado, e nós outros apenas moços e adolescentes; menino chama-me elle. Todos se foram para a morte, ainda na flôr da edade, e, excepto o nome de Casimiro de Abreu, nenhum se salvou.

Não deixo esse prefacio, porque a affeição do meu difunto amigo a tal extremo lhe cegára o juizo que não viria a ponto reproduzir aqui aquella saudação inicial. A recordação só teria valor para mim. Baste aos curiosos o encontro casual das datas, a daquelle, 22 de Julho de 1864, e a deste.

Rio, 22 de Julho do 1900.

MACHADO DE ASSIS.


CHRYSALIDAS

1864

MUSA CONSOLATRIX

Que a mão do tempo e o halito dos homens
Murchem a flôr das illusões da vida,
Musa consoladora,
E no teu seio amigo e socegado
Que o poeta respira o suave somno.

Não ha, não ha comtigo.
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
De intima paz, de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flôr cheirosa,
Que vales tu, desillusão dos homens?
Tu que pódes, ó tempo.
A alma triste do poeta sobrenada
Á enchente das angustias,
E, affrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcyone divina.

Musa consoladora,
Quando da minha fronte de mancebo
A ultima illusão cair, bem como
Folha amarella e secca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me,—e haverá minha alma afflicta,
Em vez de algumas illusões que teve,
A paz, o ultimo bem, ultimo e puro!


VISIO

Eras pallida. E os cabellos,
Aereos, soltos novellos,
Sobre as espaduas as cahiam...
Os olhos meio-cerrados
De volupia e de ternura
Entre lagrimas luziam...
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiam...

Depois, naquelle delirio,
Suave, doce martyrio
De pouquissimos instantes,
Os teus labios sequiosos,
Frios, tremulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes...

Depois... depois a verdade,
A fria realidade,
A solidão, a tristeza;
Daquelle sonho desperto,
Olhei... silencio de morte
Respirava a natureza—
Era a terra, era o deserto,
Fôra-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.

Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira:
Tu e o teu olhar ardente,
Labios tremulos e frios,
O abraço longo e apertado,
O beijo doce e vehemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a phantasia doente.

E agora te vejo. E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquelle sonho encantado!
És outra, calma, discreta,
Com o olhar indifferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não vê se a imagem presente
Foi a visão do passado.

Foi, sim, mas visão apenas;
Daquellas visões amenas
Que á mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
E de celestes matizes;
Mas, apenas dissipadas,
Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raizes.

Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Désse-me Deus que fingida
Tivesse aquella ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora.
Chorára de agradecida!


QUINZE ANNOS

Oh! la fleur de l'Eden, pourquoi l'as-tu fanée,
Insouciant enfant, belle Eve bus blonds cheveux?

ALFRED DE MUSSET

Era uma pobre criança...
—Pobre criança, se o eras!—
Entre as quinze primaveras
De sua vida cançada
Nem uma flôr de esperança
Abria a medo. Eram rosas
Que a douda da esperdiçada
Tão festivas, tão formosas,
Desfolhava pelo chão.
—Pobre criança, se o eras!—
Os carinhos mal gozados
Eram por todos comprados,
Que os affectos de sua alma
Havia-os levado á feira,
Onde vendera sem pena
Até a illusão primeira
Do seu doudo coração!

Pouco antes, a candura,
Co'as brancas azas abertas,
Em um berço de ventura
A criança acalentava
Na santa paz do Senhor;
Para accordal-a era cedo,
E a pobre ainda dormia
Naquelle mudo segredo
Que só abre o seio um dia
Para dar entrada a amor.

Mas, por teu mal, acordaste!
Junto do berço passou-te
A festiva melodia
Da seducção... e acordou-te!
Colhendo as limpidas azas,
O anjo que te velava
Nas mãos tremulas e frias
Fechou o rosto... chorava!

Tu, na sede dos amores,
Colheste todas as flôres
Que nas orlas do caminho
Foste encontrando ao passar;
Por ellas, um só espinho
Não te feriu... vás andando...
Corre, criança, até quando
Fores forçada a parar!

Então, desflorada a alma
De tanta illusão, perdida
Aquella primeira calma
Do teu somno de pureza;
Esfolhadas, uma a uma,
Essas rosas de belleza
Que se esvaem como a escuma
Que a vaga cospe na praia
E que por si se desfaz;

Então, quando nos teus olhos
Uma lagrima buscares,
E seccos, seccos de febre,
Uma só não encontrares
Das que em meio das angustias
São um consolo e uma paz;

Então, quando o frio spectro
Do abandono e da penuria
Vier aos teus soffrimentos
Juntar a ultima injuria:
E que não vires ao lado
Um rosto, um olhar amigo
Daquelles que são agora
Os desvellados comtigo;

Criança, verás o engano
E o erro dos sonhos teus;
E dirás,—então já tarde,—
Que por taes gozos não vale
Deixar os braços de Deus.


STELLA

Já raro e mais escasso
A noite arrasta o manto,
E verte o ultimo pranto
Por todo o vasto espaço.

Tibio clarão já córa
A téla do horizonte,
E já de sobre o monte
Vem debruçar-se a aurora.

Á muda e torva irmã,
Dormida de cansaço,
Lá vem tomar o espaço
A virgem da manhã.

Uma por uma, vão
As pallidas estrellas,
E vão, e vão com ellas
Teus sonhos, coração.

Mas tu, que o devaneio
Inspiras do poeta,
Não vês que a vaga inquieta
Abre-te o humido seio?

Vai. Radioso e ardente,
Em breve o astro do dia,
Rompendo a nevoa fria,
Virá do roxo oriente.

Dos intimos sonhares
Que a noite protegera,
De tanto que eu vertera,
Em lagrimas a pares,

Do amor silencioso,
Mystico, doce, puro,
Dos sonhos de futuro,
Da paz, do ethereo gozo,

De tudo nos desperta
Luz de importuno dia;
Do amor que tanto a enchia
Minha alma está deserta.

A virgem da manhã
Já todo o céu domina....
Espero-te, divina,
Espero-te, amanhã.


EPITAPHIO DO MEXICO

Dobra o joelho:—é um tumulo.
Em baixo amortalhado
Jaz o cadaver tepido
De um povo aniquilado;
A prece melancolica
Reza-lhe em torno á cruz.

Ante o, universo attonito
Abriu-se a extranha liça,
Travou-se a luta fervida
Da força e da justiça;
Contra a justiça, ó seculo,
Venceu a espada e o obuz.

Venceu a força indomita;
Mas a infeliz vencida
A magoa, a dôr, o odio,
Na face envilecida
Cuspiu-lhe. E a eterna macula
Seus louros murchará.

E quando a voz fatidica
Da santa liberdade
Vier em dias prosperos
Clamar á humanidade,
Então revivo o Mexico
Da campa surgirá.


POLONIA

E ao terceiro dia a alma deve voltar ao
corpo, e a nação resuscitará.

MICKIEWIEZ.

Como aurora de um dia desejado,
Clarão suave o horizonte innunda.
E talvez amanhã. A noite amarga
Como que chega ao termo; e o sol dos livres,
Cangado de te ouvir o inutil pranto,
Alfim resurge no dourado Oriente.

Eras livre,—tão livre como as aguas
Do teu formoso, celebrado rio;
A corôa dos tempos
Cingia-te a cabeça veneranda;
E a desvellada mãe, a irmã cuidosa,
A santa liberdade,
Como junto de um berço precioso,
Á porta dos teus lares vigiava.

Eras feliz demais, demais formosa;
A sanhuda cobiça dos tyranos
Veio enlutar teus venturosos dias...
Infeliz! a medrosa liberdade
Em face dos canhões espavorida
Aos reis abandonou teu chão sagrado;
Sobre ti, moribunda,
Viste cahir os duros oppressores:
Tal a gazella que percorre os campos,
Se o caçador a fere,
Cae convulsa de dôr em mortaes ancias,
E vê no extremo arranco
Abater-se sobre ella
Escura nuvem de famintos corvos.
Presa uma vez da ira dos tyranos,
Os membros retalhou-te
Dos senhores a explendida cobiça;
Em proveito dos reis a terra livre
Foi repartida, e os filhos teus—escravos—
Viram descer um véu de luto á patria
E apagar-se na historia a gloria tua.

A gloria, não!—É gloria o captiveiro
Quando a captiva, como tu, não perde
A alliança de Deus, a fé que alenta,
E essa união universal e muda
Que faz communs a dôr, o odio, a esperança.

Um dia, quando o calix da amargura,
Martyr, até ás fezes esgotaste,
Longo tremor correu as fibras tuas;
Em teu ventre de mãe, a liberdade
Parecia-soltar esse vagido
Que faz rever o céu no olhar materno;
Teu coração estremeceu; teus labios
Tremulos de anciedade e de esperança,
Buscaram aspirar a longos tragos
A vida nova nas celestes auras.
Então surgiu Kosciusko;
Pela mão do Senhor vinha tocado;
A fé no coração, a espada em punho,
E na ponta da espada a torva morte,
Chamou aos campos a nação caída.
De novo entre o direito e a força bruta
Empenhou-se o duello atroz e infausto
Que a triste humanidade
Inda verá por seculos futuros.
Foi longa a luta; os filhos dessa terra
Ah! não pouparam nem valor nem sangue!
A mãe via partir sem pranto os filhos,
A irmã o irmão, a esposa o esposo,
E todas abençoavam
A heroica legião que ia á conquista
Do grande livramento.

Coube ás hostes da força
Da pugna o alto premio;
A oppressão jubilosa
Cantou essa victoria de ignominia;
E de novo, ó captiva, o véu de luto
Correu sobre teu rosto!
Deus continha
Em suas mãos o sol da liberdade,
E inda não quiz que nesse dia infausto
Teu macerado corpo allumiasse.

Resignada á dôr e ao infortunio,
A mesma fé, o mesmo amor ardente
Davam-te a antiga força.
Triste viuva, o templo abriu-te as portas;
Foi a hora dos hymnos e das preces;
Cantaste a Deus; tua alma consolada
Nas azas da oração aos céus subia,
Como a refugiar-se e a refazer-se
No seio do infinito.
E quando a força do feroz cossaco
A casa do Senhor ia buscar-te,
Era ainda rezando
Que te arrastavas pelo chão da egreja.

Pobre nação!—é longo o teu martyrio;
A tua dôr pede vingança e termo;
Muito has vertido em lagrimas e sangue;
É propicia esta hora. O sol dos livres
Como que surge no dourado Oriente.
Não ama a liberdade
Quem não chora comtigo as dôres tuas;
E não pede, e não ama, e não deseja
Tua resurreição, finada heroica!


ERRO

Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na phantasia
E não chega ao coração;
Nem foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
Um querer indifferente,
Em tua presença, vivo,
Morto, se estavas ausente,
E se ora me vês esquivo,
Se, como outr'ora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que,—como obra de um dia,
Passou-me essa phantasia.

Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras.
Tuas frivolas chimeras,
Teu vão amor de ti mesma,
Essa pendula gelada
Que chamavas coração,
Eram bem fracos liames
Para que a alma enamorada
Me conseguissem prender;
Foram baldados tentames,
Saiu contra ti o azar,
E embora pouca, perdeste
A gloria de me arrastar
Ao teu carro... Vãs chimeras!
Para eu amar-te devias
Outra ser e não como eras...


ELEGIA

A bondade choremos innoccente
Cortada em flôr que, pela mão da morte,
Nos foi arrebatada d'entre a gente.

CAMÕES.

Se, como outr'ora, nas florestas virgens,
Nos fosse dado—o esquife que te encerra
Erguer a um galho de arvore frondosa,
Certo, não tinhas um melhor jazigo
Do que alli, ao ar livre, entre os perfumes
Da florente estação, imagem viva
De teus cortados dias, e mais perto
Do clarão das estrellas.

Sobre teus pobres e adorados restos,
Piedosa a noite, alli derramaria
Do seus negros cabellos puro orvalho;
Á beira do teu ultimo jazigo
Os alados cantores da floresta
Iriam sempre modular seus cantos;
Nem letra, nem lavor de emblema humano,
Relembraria a mocidade morta;
Bastava só que ao coração materno,
Ao do esposo, ao dos teus, ao dos amigos,
Um aperto, uma dôr, um pranto occulto,
Dissesse:—Dorme aqui, perto dos anjos,
A cinza de quem foi gentil transumpto
De virtudes e graças.

Mal havia transposto da existencia.
Os dourados umbraes; a vida agora
Sorria-lhe toucada dessas flôres
Que o amor, que o talento e a mocidade
Á uma repartiam.

Tudo lhe era presagio alegre e doce;
Uma nuvem sequer não sombreava,
Em sua fronte, o iris da esperança;
Era, emfim, entre os seus a copia viva
Dessa ventura que os mortaes almejam,
E que raro a fortuna, avessa ao homem,
Deixa gozar na terra.

Mas eis que o anjo pallido da morte
A presentiu feliz e bella e pura,
E, abandonando a região do olvido,
Desceu á terra, e sob a aza negra
A fronte lhe escondeu; o fragil corpo
Não pôde resistir; a noite eterna
Veio fechar seus olhos;
Emquanto a alma abrindo
As azas rutilantes pelo espaço,
Foi engolfar-se em luz, perpetuamente,
No seio do infinito;
Tal a assustada pomba, que na arvore
O ninho fabricou,—se a mão do homem
Ou a impulsão do vento um dia abate
O recatado asylo,—abrindo o vôo,
Deixa os inuteis restos
E, atravessando airosa os leves ares,
Vai buscar n'outra parte outra guarida.

Hoje, do que ora inda lembrança resta,
E que lembrança! Os olhos fatigados
Parecem ver passar a sombra della;
O attento ouvido inda lhe escuta os passos;
E as teclas do piano, em que seus dedos
Tanta harmonia despertavam antes,
Como que soltam essas doces notas
Que outr'ora ao seu contacto respondiam.

Ah! pezava-lhe este ar da terra impura,
Faltava-lhe esse alento de outra esphera,
Onde, noiva dos anjos, a esperavam
As palmas da virtude.

Mas, quando assim a flôr da mocidade
Toda se esfolha sobre o chão de morte,
Senhor, em que firmar a segurança
Das venturas da terra? Tudo morre;
Á sentença fatal nada se esquiva,
O que é fructo e o que é flôr. O homem cego
Cuida haver levantado em chão de bronze
Um edificio resistente aos tempos,
Mas lá vem dia, em que, a um leve sopro,
O castello se abate,
Onde, doce illusão, fechado havias
Tudo o que de melhor a alma do homem
Encerra de esperanças.

Dorme, dorme tranquilla
Em teu ultimo asylo; e se eu não pude
Ir espargir tambem algumas flôres
Sobre a lagea da tua sepultura;
Se não pude,—eu que ha pouco te saudava
Em teu erguer, estrella,—os tristes olhos
Banhar nos melancolicos fulgores,
Na triste luz do teu recente occaso,
Deixo-te ao menos nestes pobres versos
Um penhor de saudade, e lá na esphera
Aonde approuve ao Senhor chamar-te cedo,
Possas tu ler nas pallidas estrophes
A tristeza do amigo.


SINHÁ

O teu nome é como o oleo derramado.

Cantico dos Canticos.

Nem o perfume que expira
A flôr, pela tarde amena,
Nem a nota que suspira
Canto de saudade e pena
Nas brandas cordas da lyra;
Nem o murmurio da veia
Que abriu sulco pelo chão
Entre margens de alva arêa,
Onde se mira e recreia
Rosa fechada em botão;

Nem o arrulho enternecido
Das pombas, nem do arvoredo
Esse amoroso arruido
Quando escuta algum segredo
Pela brisa repetido;
Nem esta saudade pura
Do canto do sabiá
Escondido na espessura,
Nada respira doçura
Como o teu nome, Sinhá!


HORAS VIVAS

Noite: abrem-se as flôres...
Que esplendores!
Cynthia sonha amores
Pelo céu.
Tenues os neblinas
Ás campinas
Descem das collinas,
Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquellas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabellos,
Em novellos,
Puros, louros, bellos,
A voar.

—«Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Illusões!

—«Quantas, quantas vidas
Vão perdidas
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Annos apoz annos,
Tão insanos,
Vem os desenganos
Afinal.

—«Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês?—por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos—horas vivas
De dormir—»


VERSOS A CORINNA

Tacendo il nome di questa gentilissima.

DANTE.

I

Tu nasceste de um beijo e de um olhar. O beijo
N'uma hora de amor, de ternura e desejo,
Uniu a terra e o céu. O olhar foi do Senhor,
Olhar de vida, olhar de graça, olhar de amor;
Depois, depois vestindo a fórma peregrina,
Aos meus olhos mortaes, surgiste-me, Corinna!

De um jubilo divino os cantos entoava
A natureza mãe, e tudo palpitava,
A flôr aberta e fresca, a pedra bronca e rude,
De uma vida melhor e nova juventude.

Minh'alma adivinhou a origem do teu ser;
Quiz cantar e sentir; quiz amar e viver;
A luz que de ti vinha, ardente, viva, pura,
Palpitou, reviveu a pobre creatura;
Do amor grande, elevado, abriram-se lhe as fontes;
Fulgiram novos sóes, rasgaram-se horizontes;
Surgiu, abrindo em flôr, uma nova região;
Era o dia marcado á minha redempção.
Era assim quo eu sonhava a mulher. Era assim:
Corpo de fascinar, alma de cherubim;

Era assim: fronte altiva e gesto soberano,
Um porte de rainha a um tempo meigo e ufano,
Em olhos senhoris uma luz tão serena,
E grave como Juno, e bella como Helena!
Era assim, a mulher que extasia e domina,
A mulher que reune a terra e o céu; Corinna!

N'este fundo sentir, nesta fascinação,
Que pede do poeta o amante coração?
Viver como nasceste, ó belleza, ó primor,
De uma fusão do ser, de uma effusão do amor.

Viver,—fundir a existencia
Em um osculo de amor,
Fazer de ambas—uma essencia,
Apagar outras lembranças,
Perder outras illusões,
E ter por sonho melhor
O sonho das esperanças
De que a unica ventura
Não reside em outra vida,
Não vem do outra creatura;
Confundir olhos mos olhos,
Unir um seio a outro seio,
Derramar as mesmas lagrimas
E tremer do mesmo enleio,
Ter o mesmo coração,
Viver um do outro viver...
Tal era a minha ambição.

Donde viria a ventura
Desta vida? Em que jardim
Colheria esta flôr pura?
Em que solitaria fonte
Esta agua iria beber?
Em que encendido horizonte
Podiam meus olhos ver
Tão meiga, tão viva estrella,
Abrir-se e resplandecer?
Só em ti:—em ti que és bella,
Em ti quo a paixão respiras,
Em ti cujo olhar se embebe
Na illusão de que deliras,
Em ti, que um osculo de Hebe
Teve a singular virtude
De encher, de animar teus dias,
De vida e de juventude...

Amemos! diz a flôr á brisa peregrina,
Amemos! diz a brisa, arfando em torno á flôr
Cantemos esta lei e vivamos, Corinna,
De uma fusão do ser, de uma effusão do amor.

II

A minha alma, talvez, não é tão pura,
Como era pura nos primeiros dias;
Eu sei: tive choradas agonias
De que conservo alguma nodoa escura,

Talvez. Apenas á manhã da vida
Abri meus olhos virgens e minha alma,
Nunca mais respirei a paz e a calma,
E me perdi na porfiosa lida.

Não sei que fogo interno me impellia
Á conquista da luz, do amor, do gozo,
Não sei que movimento imperioso
De um desusado ardor minha alma enchia.

Corri de campo em campo e plaga em plaga.
(Tanta ansiedade o coração encerra!)
A ver o lyrio que brotasse a terra,
A ver a escuma que cuspisse—a vaga.

Mas, no areal da praia, no horto agreste,
Tudo aos meus olhos avidos fugia...
Desci ao chão do valle que se abria,
Subi ao cume da montanha alpestre.

Nada! Volvi o olhar ao céu. Perdi-me
Em meus sonhos de moço e de poeta;
E contemplei, nesta ambição inquieta,
Da muda noite a pagina sublime.

Tomei nas mãos a cythara saudosa,
E soltei entre lagrimas um canto...
A terra brava recebeu meu pranto
E o éco repetiu-me a voz chorosa.

Foi em vão. Como um languido suspiro,
A voz se me calou, e do invio monte
Olhei ainda as linhas do horizonte,
Como se olhasse o ultimo retiro.

Nuvem negra e veloz corria solta
O anjo da tempestade annunciando;
Vi ao longe as alcyones cantando
Doidas correndo á flôr da agua revolta.

Desilludido, exausto, ermo, perdido,
Busquei a triste estancia do abandono,
E esperei, aguardando o ultimo somno,
Volver á terra, de que foi nascido.

—«Ó Cybele fecunda, é no remanso
Do teu seio—que vive a creatura,
Chamem-te outros morada triste e escura,
Chamo-te gloria, chamo-te descanso!»

Assim fallei. E murmurando aos ventos
Uma blasphemia atroz—estreito abraço
Homem e terra uniu, e em longo espaço
Aos écos repeti meus vãos lamentos.

Mas, tu passaste... Houve um grito
Dentro de mim. Aos meus olhos
Visão de amor infinito,
Visão de perpetuo gozo
Perpassava e me attrahia,
Como um sonho voluptuoso
De sequiosa fantasia.
Ergui-me logo do chão,
E pousei meus olhos fundos
Em teus olhos soberanos,
Ardentes, vivos, profundos,
Como os olhos da belleza
Que das escumas nasceu...
Eras tu, maga visão
Eras tu o ideal sonhado
Que em toda a parte busquei,
E por quem houvera dado
A vida que fatiguei;
Por quem verti tanto pranto,
Por quem nos longos espinhos
Minhas mãos, meus pés sangrei!

Mas se minh'alma, acaso, é menos pura
Do que era pura nos primeiros dias,
Porque não soube em tantas agonias
Abençoar a minha desventura;

Se a blasphemia os meus labios polluira,
Quando, depois do tempo e do cansaço,
Beijei a terra no mortal abraço
E espedacei desanimado a lyra;

Podes, visão formosa e peregrina,
No amor profundo, na existencia calma,
Desse passado resgatar minha alma
E levantar-me aos olhos teus,—Corinna!

III

Quando voarem minhas esperanças,
Como um bando de pombas fugitivas;
E destas illusões doces e vivas
Só me restarem pallidas lembranças;

E abandonar-me a minha mãe Quimera,
Que me aleitou aos seios abundantes;
E vierem as nuvens flammejantes
Encher o céu da minha primavera;

E raiar para mim um triste dia,
Em que, por completar minha tristeza,
Nem possa ver-te, musa da belleza,
Nem possa ouvir-te, musa da harmonia;

Quando assim seja, por teus olhos juro,
Voto minh'alma á escura soledade,
Sem procurar melhor felicidade,
E sem ambicionar prazer mais puro,

Como o viajor que, de fallaz miragem
Volta desenganado ao lar tranquillo,
E procura, naquelle ultimo asylo,
Nem evocar memorias da viagem;

Envolvido em mim mesmo, olhos cerrados
A tudo mais,—a minha phantasia
As asas colherá com que algum dia
Quis alcançar os cimos elevados.

És tu a maior gloria de minha alma,
Se o meu amor profundo não te alcança,
De que me servirá outra esperança?
Que gloria tirarei de alheia palma?

IV

Tu que és bella e feliz, tu que tens por diadema
A dupla irradiação da belleza e do amor;
E sabes reunir, como o melhor poema,
Um desejo da terra e um toque do Senhor;

Tu que, como a ilusão, entre nevoas deslisas
Aos versos do poeta um desvellado olhar,
Corinna, ouve a canção das amorosas brisas,
Do poeta e da luz, das selvas e do mar.

AS BRISAS

Deu-nos a harpa colia a excelsa melodia
Que a folhagem desperta e torna alegre a flôr,
Mas que vale esta voz, ó musa da harmonia,
Ao pé da tua voz, filha da harpa do amor?

Diz-nos tu como houveste as notas do teu canto?
Que alma de serafim volteia aos labios teus?
Donde houveste o segredo e o poderoso encanto
Que abre a ouvidos mortais a harmonia dos céus?

A LUZ

Eu sou a luz fecunda, alma da natureza;
Sou o vivo alimento á viva creação.
Deus lançou-me no espaço. A minha realeza
Vai até onde vae meu vivido clarão.

Mas se derramo vida a Cybelle fecunda,
Que sou eu ante a luz dos teus olhos? Melhor,
A tua é mais do céu, mais doce, mais profunda,
Se a vida vem de mim, tu dás a vida e o amor.

AS AGUAS

Do nume da belleza o berço celebrado
Foi o mar; Venus bella entre espumas nasceu.
Veio a edade de ferro, e o nume venerado
Do venerado altar baqueou:—pereceu.

Mas a belleza és tu. Como Venus marinha,
Tens a ineffavel graça e o ineffavel ardor.
Se páras, és um nume; andas, uma rainha,
E se quebras um olhar, és tudo isso e és amor!

Chamam-te as aguas, vem! tu irás sobre a vaga
A vaga, a tua mãe, que te abre os seios nús,
Buscar adorações de uma plaga a outra plaga,
E das regiões da nevoa ás regiões da luz!

AS SELVAS

Um silencio de morte entrou no seio ás selvas.
Já não pisa Diana este sagrado chão;
Nem já vem repousar no leito destas relvas
Aguardando saudosa o amor e Endymião.

Da grande caçadora a um solicito aceno
Já não vem, não acode o grupo jovial;
Nem o éco repete a flauta de Sileno,
Apoz o grande ruido a mudez sepulchral.

Mas Diana apparece. A floresta palpita,
Uma seiva melhor circula mais veloz;
É vida que renasce, é vida que se agita;
A luz do teu olhar, ao som da tua voz!

O POETA

Tambem eu, sonhador, que vi correr meus dias
Na solemne mudez da grande solidão,
E soltei, enterrando as minhas utopias,
O ultimo suspiro e a ultima oração;

Tambem eu junto a voz á voz da natureza,
E soltando o meu hymno ardente e triumphal,
Beijarei ajoelhado as plantas da beleza
E banharei minh'alma em tua luz,—Ideal!

Ouviste a natureza? Ás supplicas e ás maguas
Tua alma de mulher deve de palpitar;
Mas que te não seduza o cantico das aguas,
Não procures, Corinna, o caminho do mar!

V

Guarda estes versos que escrevi chorando
Como um alivio á minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um éco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.

Unico em meio das paixões vulgares,
Fui a teus pés queimar minh'alma anciosa,
Como se queima o oleo ante os altares;
Tive a paixão indomita e fogosa,
Unica em meio das paixões vulgares.

Cheio de amor, vazio de esperança,
Dei para ti os meus primeiros passos;
Minha illusão fez-me, talvez, criança;
E eu pretendi dormir aos teus abraços,
Cheio de amor, vazio de esperança.

Refugiado á sombra do mysterio
Pude cantar meu hymno doloroso;
E o mundo ouviu o som doce ou funereo
Sem conhecer o coração ansioso
Refugiado á sombra do mysterio.

Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Vejo que em teus olhares de princeza
Transluz uma alma ardente e compassiva
Capaz de reanimar minha incerteza;
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?

Como um réo indefeso e abandonado,
Fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
E se a perseguição me tem cansado.
Embora, escutarei o teu aresto,
Como um réo indefeso e abandonado.

Embora fujas aos meus olhos tristes,
Minh'alma irá saudosa, enamorada,
Acercar-se de ti lá onde existes;
Ouvirás minha lyra apaixonada,
Embora fujas aos meus olhos tristes.

Talvez um dia meu amor se extinga,
Como fogo de Vesta mal cuidado
Que sem o zelo da Vestal não vinga:
Na ausencia e no silencio condemnado
Talvez um dia meu amor se extinga.

Então não busques reavivar a chamma,
Evoca apenas a lembrança casta
Do fundo amor daquele que não ama;
Esta consolação apenas basta;
Então não busques reavivar a chamma.

Guarda estes versos que escrevi chorando,
Como um alivio á minha soledade,
Como um dever do meu amor; e quando
Houver em ti um éco de saudade,
Beija estes versos que escrevi chorando.

VI

Em vão! Contrario a amor é nulo o esforço humano;
É nulo o vasto espaço, é nada o vasto oceano.
Solta do chão, abrindo as asas luminosas.
Minh'alma se ergue e voa ás regiões venturosas,
Onde ao teu brando olhar, ó formosa Corinna,
Reveste a natureza a purpura divina!

Lá, como quando volta a primavera em flôr,
Tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;
Ao influxo celeste e doce da belleza,
Pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
Mais languida e mais bella a tarde pensativa
Desce do monte ao valle; e a viração lasciva
Vai despertar á noite a melodia extranha
Que falam entre si os olmos da montanha;
A flôr tem mais perfume e a noite mais poesia;
O mar tem novos sons e mais viva ardentia;
A onda enamorada arfa e beija as arêas,
Novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!

O esplendor da belleza é raio creador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.
Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de vida,
Eu, tão longe de ti, sinto a dor mal soffrida
Da saudade que punge e do amor que lacera,
E palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
Respirando, como eu, a saudade e a tristeza;
É deste ermo que eu vou, alma desventurada,
Murmurar junto a ti a estrophe immaculada
Do amor que não perdeu, co'a ultima esperança,
Nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.

Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
Do meu sombrio céu alva estrella bemvinda!
Como divaga a abelha inquieta e sequiosa
Do calice do lyrio ao calice da rosa,
Divaguei de alma em alma em busca deste amor;
Gota de mel divino, era divina a flôr
Que o devia conter. Eras tu.
No delirio
De te amar—olvidei as lutas e o martyrio;
Eras tu. Eu só quiz, n'uma ventura calma,
Sentir e ver o amor atravez de uma alma;
De outras bellezas vans não valeu o explendor,
A belleza eras tu:—tinhas a alma e o amor.

Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
E com meu proprio sangue os filhos meus aleito;
Meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
Por elles reparti minh'alma. Na provança
Ella não fraqueou, antes surgiu mais forte;
É que eu puz neste amor, neste ultimo transporte
Tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
A venia do passado e a ambição do futuro,
O que ha de grande e belo, o que ha de nobre e puro.

Deste profundo amor, doce e amada Corinna,
Accorda-te a lembrança um éco de afflicção?
Minh'alma pena e chora á dôr que a desatina:
Sente tua alma acaso a mesma commoção?

Em vão! Contrario a amor é nada o esforço humano,
É nada o vasto espaço, é nulo o vasto oceano!

Vou, sequioso espirito,
Cobrando novo alento,
N'aza veloz do vento
Correr de mar em mar;
Posso, fugindo ao carcere,
Que á terra me tem prezo,
Em novo ardor aceso,
Voar, voar, voar!

Então, se á hora languida
Da tarde que declina,
Do arbusto da collina
Beijando a folha e a flôr,
A brisa melancolica
Levar-te entre perfumes
Uns timidos queixumes
Echos de magua e dôr;

Então, se o arroio timido
Que passa e que murmura
Á sombra da espessura
Dos verdes salgueiraes.
Mandar-te entre os murmurios
Que solta nos seus giros,
Uns como que suspiros
De amor, uns ternos ais;

Então, se no silencio
Da noite adormecida,
Sentires—mal dormida—
Em sonho ou em visão,
Um beijo em tuas palpebras,
Um nome aos teus ouvidos,
E ao som de uns ais partidos
Pulsar teu coração;

Da magoa que consome
O meu amor venceu;
Não tremas—é teu nome,
Não fujas—que sou eu!


ULTIMA FOLHA

Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao éco dos sagrados ermos
A ultima harmonia.

Dos teus cabellos de ouro, que beijavam
Na amena tarde as virações perdidas,
Deixa cair ao chão as alvas rosas
E as alvas margaridas.

Vês? Não é noite, não, este ar sombrio
Que nos esconde o céu. Inda na poente
Não quebra os raios pallidos e frios
O sol resplandecente.

Vês? Li ao fundo o valle arido e secco
Abra-se, como um leito mortuario;
Espera-te o silencio da planicie,
Como um frio sudario.

Desce. Virá um dia em que mais bella,
Mais alegre, mais cheia de harmonias,
Voltes a procurar a voz cadente
Dos teus primeiros dias.

Então coroarás a ingenua fronte
Das flôres da manhã,—e ao monte agreste,
Como a noiva phantastica dos ermos,
Irás, musa celeste!

Então, nas horas solemnes
Em que o mystico hymeneu
Une em abraço divino
Verde a terra, azul o céu;

Quando, já finda a tormenta
Que a natureza enlutou,
Bafeja a brisa suave
Cedros que o vento abalou;

E o rio, a arvore e o campo,
A arêa, a face do mar,
Parecem, como um concerto,
Palpitar, sorrir, orar;

Então sim, alma de poeta,
Nos teus sonhos cantarás
A gloria da natureza,
A ventura, o amor e a paz!

Ah! mas então será mais alto ainda;
Lá onde a alma do vate
Possa escutar os anjos,
E onde não chegue o vão rumor dos homens;

Lá onde, abrindo as azas ambiciosas,
Possa adejar no espaço luminoso,
Viver de luz mais viva e de ar mais puro,
Fartar-se do infinito!

Musa, desce do alto da montanha
Onde aspiraste o aroma da poesia,
E deixa ao éco dos sagrados ermos
A ultima harmonia!


PHALENAS

(1870)

FLOR DA MOCIDADE[1]

Eu conheço a mais bella flôr;
És tu, rosa da mocidade,
Nascida, aberta para o amor.
Eu conheço a mais bella flôr.
Tem do céu a serena côr,
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bella flôr,
És tu, rosa da mocidade.

Vive ás vezes na solidão,
Coma filha da briza agreste.
Teme acaso indiscreta mão;
Vive ás vezes na solidão.
Poupa a raiva do furacão
Suas folhas de azul celeste.
Vive ás vezes na solidão,
Como filha da briza agreste.

Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno;
Que a flôr morta já nada vai.
Colhe-se antes que venha o mal.
Quando a terra é mais jovial
Todo o bem nos parece eterno.
Colhe-se antes que venha o mal,
Colhe-se antes que chegue o inverno.


QUANDO ELLA FALLA

She speaks
O speake again, bright angel!

SHAKESPEARE

Quando ella falla, parece
Que a voz da briza se cala;
Talvez um anjo emmudece
Quando ella falla.

Meu coração dolorido
As suas mágoas exhala.
E volta ao gozo perdido
Quando ella falla.

Pudeste eu eternamente,
Ao lado d'ella, escutal-a,
Ouvir sua alma innocente
Quando ella falla.

Minh'alma, já semi-morta,
Conseguíra ao céu alçal-a,
Porque o céu abre uma porta
Quando ella falla.


MANHÃ DE INVERNO

Coroada de nevoas, surge a aurora
Por detrás das montanhas do oriente;
Vê-se um resto de somno e de preguiça,
Nos olhos da fantastica indolente.

Nevoas enchem de um lado e de outro os morros
Tristes como sinceras sepulturas,
Essas que têm por simples ornamento
Puras capellas, lagrimas mais puras.

A custo rompe o sol; a custo invade
O espaço todo branco; e a luz brilhante
Fulge através do espesso nevoeiro,
Como através de um véu fulge o diamante.

Vento frio, mas brando, agita as folhas
Das laranjeiras humidas da chuva;
Erma de flôres, curva a planta o collo,
E o chão recebe o pranto da viuva.

Gelo não cobre o dorso das montanhas,
Nem enche as folhas tremulas a neve;
Galhardo moço, o inverno deste clima
Na verde palma a sua historia escreve.

Pouco a pouco, dissipam-se no espaço
Ás nevoas da manhã; já pelos montes
Vão subindo as que encheram todo o valle;
Já se vão descobrindo os horizontes.

Sobe de todo o panno; eis apparece
Da natureza o esplendido scenario;
Tudo alli preparou co' os sabios olhos
A suprema sciencia do emprezario.

Canta a orchestra dos passaros no matto
A symphonia alpestre,—a voz serena
Acorda os écos timidos do valle;
E a divina comedia invade a scena.


LA MARCHESA DE MIRAMAR[2]

A miserrima Dido
Pelos paços reaes vaga ululando.

GARÇÃO.

De quanto sonho um dia povoaste
A mente ambiciosa,
Que te resta? Uma pagina sombria,
A escura noite e um tumulo recente.

Ó abysmo! Ó fortuna! Um dia apenas
Viu erguer, viu cahir teu fragil throno
Meteoro do seculo, passaste,
Ó triste imperio, allumiando as sombras.
A noite foi teu berço e teu sepulcro.
Da tua morte os goivos inda acháram
Frescas as rosas dos teus breves dias;
E no livro da historia uma só folha
A tua vida conta: sangue e lagrimas.

No tranquillo castello,
Ninho d'amor, asylo de esperanças,
A mão de aurea fortuna preparára,
Menina e moça, um tumulo aos teus dias.
Junto do amado esposo,
Outra corôa cingias mais segura,
A corôa do amor, dadiva santa
Das mãos de Deus. No céu de tua vida
Uma nuvem sequer não sombreava
A esplendida manhã; extranhos eram
Ao recatado asylo
Os rumores do seculo.
Estendia-se
Em frente o largo mar, tranquilla face
Como a da consciencia alheia ao crime,
E o céu, cupula azul do equoreo leito.
Alli, quando ao cair da amena tarde,
No thalamo encantado do occidente,
O vento melancolico gemia,
E a onda murmurando,
Nas convulsões do amor beija a areia,
Ias tu junto d'elle, as mãos travadas,
Os olhos confundidos,
Correr as brandas, somnolentas aguas,
Na gondola discreta. Amenas flôres
Com suas mãos teciam
As namoradas Horas; vinha a noite,
Mãe de amores, solicita descendo,
Que em seu regaço a todos envolvia,
O mar, o céu, a terra, o lenho e os noivos.

Mas além, muito além do céu fechado,
O sombrio destino, contemplando
A par do teu amor, a etherea vida,
As santas effusões das noites bellas,
O terrivel scenario preparava
A mais terriveis lances.

Então surge dos thronos
A prophetica voz que annunciava
Ao teu credulo esposo:
«Tu serás rei, Macbeth!» Ao longe, ao longe,
No fundo do oceano, envolto em nevoas,
Salpicado de sangue, ergue-se um throno.
Chamão-no a elle as vozes do destino.
Da tranquilla mansão ao novo imperio
Cobrem flôres a estrada,—estereis flôres
Que mal podem cobrir o horror da morte.
Tu vais, tu vais tambem, victima infausta;
O sopro da ambição fechou teus olhos....
Ah! quão melhor te fôra
No meio d'essas aguas
Que a regia nau cortava, conduzindo
Os destinos de um rei, achar a morte:
A mesma onda os dous envolveria.
Uma só convulsão ás duas almas
O vinculo quebrára, e ambas iriam,
Como raios partidos de uma estrella,
Á eterna luz juntar-se.

Mas o destino, alçando a mão sombria,
Já traçára nas paginas da historia
O terrivel mysterio. A liberdade
Vela n'aquelle dia a ingenua fronte.
Pejam nuvens de fogo o céu profundo.
Orvalha sangue a noite mexicana....
Viuva e moça, agora em vão procuras
No teu placido asylo o extincto esposo.
Interrogas em vão o céu e as aguas.
Apenas surge ensanguentada sombra
Nos teus sonhos de louca, e um grito apenas,
Um soluço profundo reboando
Pela noite do espirito, parece
Os échos acordar da mocidade.
No emtanto, a natureza alegre e viva,
Ostenta o mesmo rosto.
Dissipam-se ambições, imperios morrem,
Passam os homens como pó que o vento
Do chão levanta ou sombras fugitivas,
Transformam-se em ruina o templo e a choça.
Só tu, só tu, eterna natureza,
Immutavel, tranquilla,
Como rochedo em meio do oceano,
Vês baquear os seculos.
Sussurra
Pelas ribas do mar a mesma briza;
O céu é sempre azul, as aguas mansas;
Deita-se ainda a tarde vaporosa
No leito do occidente;
Ornam o campo as mesmas flôres bellas...
Mas em teu coração magoado e triste,
Pobre Carlota! o intenso desespero
Enche de intenso horror o horror da morte.
Viuva da razão, nem já te cabe
A illusão da esperança.
Feliz, feliz, ao menos, se te resta,
Nos macerados olhos,
O derradeiro bem:—algumas lagrimas!


SOMBRAS

Quando, assentada á noite, a tua fronte inclinas,
E cerras descuidada as palpebras divinas,
E deixas no regaço as tuas mãos cair,
E escutas sem fallar, e sonhas sem dormir,
Acaso uma lembrança, um éco do passado,
Em teu seio revive?
Ó tumulo fechado
Da ventura que foi, do tempo que fugiu,
Por que razão, mimosa, a tua mão o abriu?
Com que flôr, com que espinho, a importuna memoria
Do teu passado escreve a mysteriosa historia?
Que espectro ou que visão resurge aos olhos teus?
Vem das trevas do mal ou cae das mãos de Deus?
É saudade ou remorso? é desejo ou martyrio?
Quando em obscuro templo a fraca luz de um cirio
Apenas alumia a nave e o grande altar
E deixa todo o resto em treva,—e o nosso olhar
Cuida ver resurgindo, ao longe, d'entre as portas,
As sombras immortaes das creaturas mortas,
Palpita o coração de assombro e de terror;
O medo augmenta o mal. Mas a cruz do Senhor,
Que a luz do cirio innunda, os nossos olhos chama;
O animo esclarece aquella eterna chamma;
Ajoelha-se contricto, e murmura-se então
A palavra de Deus, a divina oração.

Pejam sombras, bem vês, a escuridão do templo;
Volve os olhos á luz, imita aquelle exemplo;
Corre sobre o passado impenetravel véu;
Olha para o futuro e vem lançar-te ao céu.


ITE, MISSA EST

Fecha o missal do amor e a benção lança
Á pia multidão
Dos teus sonhos de moço e de criança,
A benção do perdão.
Sôa a hora fatal,—reza contricto
As palavras do rito:
Ite missa est.

Foi longo o sacrificio; o teu joelho
De curvar-se cançou;
E acaso sobre as folhas do Evangelho
A tua alma chorou.
Ninguem vio essas lagrimas (ai tantas!)
Cair nas folhas santas.
Ite missa est.

De olhos fitos no céu rezaste o credo,
O credo do teu deus;
Oração que devia, ou tarde ou cedo,
Travar nos labios teus;
Palavra que se esvai qual fumo escasso
E some-se no espaço.
Ite missa est.

Votaste ao céu, nas tuas mãos alçada,
A hostia do perdão,
A victima divina e profanada
Que chamas coração.
Quasi inteiras perdeste a alma e a vida
Na hostia consumida.
Ite missa est.

Pobre servo do altar de um deus esquivo,
É tarde; beija a cruz;
Na lampada em que ardia o fogo activo,
Vê, já se extingue a luz.
Cubra-te agora o rosto macilento
O véu do esquecimento.
Ite missa est.


RUINAS

No hay pájaros en los nidos de antaño.

PROVERBIO HESPANHOL.

Cobrem plantas sem flôr crestados muros;
Range a porta ancian; o chão de pedra
Gemer parece aos pés do inquieto vate.
Ruina é tudo: a casa, a escada, o horto,
Sitios caros da infancia.
Austera moça
Junto ao velho portão o vate aguarda;
Pendem-lhe as tranças soltas
Por sobre as rôxas vestes.
Risos não tem, e em seu magoado gesto
Transluz não sei que dôr occulta aos olhos;
—Dôr que á face não vem,—medrosa e casta,
Intima e funda;—e dos cerrados cilios
Se uma discreta e muda
Lagrima cae, não murcha a flôr do rosto;
Melancolia tacita e serena,
Que os écos não acorda em seus queixumes,
Respira aquelle rosto. A mão lhe estende
O abatido poeta. Eil-os percorrem
Com tardo passo os relembrados sitios,
Ermos depois que a mão da fria morte
Tantas almas colhera. Desmaiavam,
Nos serros do poente,
As rosas do crepusculo.
«Quem és? pergunta o vate; o sol que foge
«No teu languido olhar um raio deixa;
«—Raio quebrado e frio;—o vento agita
«Timido e frouxo as tuas longas tranças.
«Conhecem-te estas pedras; das ruinas
«Alma errante pareces condemnada
«A contemplar teus insepultos ossos.
«Conhecera-te estas arvores. E eu mesmo
«Sinto não sei que vaga e amortecida
«Lembrança de teu rosto.»

Desceu de todo a noite,
Pelo espaço arrastando o manto escuro
Que a loura Vesper nos seus hombros castos,
Como um diamante, prende. Longas horas
Silenciosas corrêram. No outro dia,
Quando as vermelhas rosas do oriente
Ao já proximo sol a estrada ornavam,
Das ruinas sahião lentamente
Duas pallidas sombras...


MUSA DOS OLHOS VERDES

Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;

Tu que junto do berço o infante cinges
C'os fulgidos cabellos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;

Tu que fazes pulsar o seio ás virgens;
Tu que ás mães carinhosas
Enches o brando, tepido regaço
Com delicadas rosas;

Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!

Já cançada de encher languidas flôres
Com as lagrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.

Azas batendo á luz que as trevas rompe,
Piam nocturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silencios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancolica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!


NOIVADO

Vês, querida, o horizonte ardendo em chammas?
Além d'esses outeiros
Vai descambando o sol, e á terra envia
Os raios derradeiros;
A tarde, como noiva que enrubece,
Traz no rosto um véu molle e transparente;
No fundo azul a estrella do poente
Já timida apparece.

Como um bafo suavissimo da noite,
Vem sussurrando o vento
As arvores agita e imprime ás folhas
O beijo somnolento.
A flôr ageita o calix: cedo espera
O orvalho, e emtanto exhala o doce aroma;
Do leito do oriente a noite assoma
Como uma sombra austera.

Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,
Vem, minha flôr querida;
Vem contemplar o céu, pagina santa
Que amor a ler convida;
Da tua solidão rompe as cadeias;
Desce do teu sombrio e mudo asylo;
Encontrarás aqui o amor tranquillo.....
Que esperas? que receias?

Olha o templo de Deus, pomposo e grande;
Lá do horizonte opposto
A lua, como lampada, já surge
A alumiar teu rosto;
Os cirios vão arder no altar sagrado,
Estrellinhas do céu que um anjo acende;
Olha como de balsamos rescende
A c'rôa do noivado.

Irão buscar-te em meio do caminho
As minhas esperanças;
E voltarão comtigo, entrelaçadas
Nas tuas longas tranças;
No emtanto eu preparei teu leito á sombra
Do limoeiro em flôr; colhi contente
Folhas com que alastrei o solo ardente
De verde e molle alfombra.

Pelas ondas do tempo arrebatados,
Até á morte iremos,
Soltos ao longo do baixel da vida
Os esquecidos remos.
Firmes, entre o fragor da tempestade,
Gosaremos o bem que amor encerra;
Passaremos assim do sol da terra
Ao sol da eternidade.


A ELVIRA

(LAMARTINE)

Quando, comtigo a sós, as mãos unidas,
Tu, pensativa e muda; e eu, namorado,
Ás volupias do amor a alma entregando,
Deixo correr as horas fugidias;
Ou quando ás solidões de umbrosa selva
Comigo te arrebato; ou quando escuto
—Tão só eu,—teus ternissimos suspiros;
E de meus labios solto
Eternas juras de constancia eterna;
Ou quando, emfim, tua adorada fronte
Nos meus joelhos tremulos descansa,
E eu suspendo meus olhos em teus olhos,
Como ás folhas da rosa avida abelha;
Ai, quanta vez então dentro em meu peito
Vago terror penetra, como um raio!
Empallideço, tremo;
E no seio da gloria em que me exalto,
Lagrimas verto que a minha alma assombram!
Tu, carinhosa e tremula,
Nos teus braços me cinges,—e assustada,
Interrogando em vão, comigo choras!
«Que dôr secreta o coração te opprime?»
Dizes tu, «Vem, confia os teus pesares....
«Falla! eu abrandarei as penas tuas!
«Falla! eu consolarei tua alma afflicta!»

Vida do meu viver, não me interrogues!
Quando enlaçado em teus niveos braços
A confissão de amor te ouço, e levanto
Languidos olhos para ver teu rosto,
Mais ditoso mortal o céu não cobre!
Se eu tremo, é porque n'essas esquecidas
Afortunadas horas,
Não sei que voz do enleio me desperta,
E me persegue e lembra
Que a ventura co' o tempo se esvaece,
E o nosso amor é facho que se extingue!
De um lance, espavorida,
Minha alma vôa ás sombras do futuro,
E eu penso então: «Ventura que se acaba
Um sonho vale apenas.»


LAGRIMAS DE CÊRA

Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.

Ajoelhou-se defronte
Para fazer a oração;
Curvou a pallida fronte
E pôz os olhos no chão.

Vinha tremula e sentida.
Commettêra um erro. A cruz
É a ancora da vida,
A esperança, a força, a luz.

Que rezou? Não sei. Benzeu-se
Rapidamente. Ajustou
O véu de rendas. Ergueu-se
E á pia se encaminhou.

Da vela benta que ardêra,
Como tranquillo fanal,
Umas lagrimas de cêra
Caíam no castiçal.

Ella porém não vertia
Uma lagrima sequer.
Tinha a fé,—a chamma a arder,—
Chorar é que não podia.


LIVROS E FLORES

Teus olhos são meus livros.
Que livro ha ahi melhor,
Em que melhor se leia
A pagina do amor?
Flôres me são, teus labios.
Onde ha mais bella flôr,
Em que melhor se beba
O balsamo do amor?


PASSAROS

Je veux changer mes pensées en oiseaux.

C. MAROT.

Olha como, cortando os leves ares,
Passam do valle ao monte as andorinhas;
Vão pousar na verdura dos palmares,
Que, á tarde, cobre transparente véu;
Voam tambem como essas avezinhas
Meus sombrios, meus tristes pensamentos;
Zombam da furia dos contrarios ventos,
Fogem da terra, acercam-se do céu.

Porque o céu é tambem aquella estancia
Onde respira a doce creatura,
Filha de nosso amor, sonho da infancia,
Pensamento dos dias juvenis.
Lá, como esquiva flôr, formosa e pura,
Vives tu escondida entre a folhagem,
Ó rainha do ermo, ó fresca imagem
Dos meus sonhos de amor calmo e feliz!

Vão para aquella estancia, enamorados,
Os pensamentos de minh'alma anciosa;
Vão contar-lhe os meus dias mal gozados
E estas noites de lagrimas e dôr;
Na tua fronte pousarão, mimosa,
Como as aves no cimo da palmeira;
Dizendo aos écos a canção primeira
De um livro escripto pela mão do amor.

Dirão tambem como conservo ainda
No fundo de minh'alma essa lembrança
Da tua imagen vaporosa e linda,
Unico alento que me prende aqui.
E dirão mais que estrellas de esperança
Enchem a escuridão das noites minhas.
Como sobem ao monte as andorinhas,
Meus pensamentos voam para ti.


O VERME

Existe uma flôr que encerra
Celeste orvalho e perfume.
Plantou-a em fecunda terra
Mão benefica de um nume.

Um verme asqueroso e feio,
Gerado em lodo mortal,
Busca esta flôr virginal
E vai dormir-lhe no seio.

Morde, sangra, rasga e mina,
Suga-lhe a vida e o alento;
A flôr o calix inclina;
As folhas, leva-as o vento,

Depois, nem resta o perfume
Nos ares da solidão...
Esta flôr é o coração,
Aquelle verme o ciume.


UN VIEUX PAYS[3]

... juntamente choro e rio.

CAMÕES

Il est un vieux pays, plein d'ombre et de lumière,
Où l'on rêve le jour, où l'on pleure le soir;
Un pays de blasphème, autant que de prière,
Né pour le doute et pour l'espoir.

On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge,
Point de mer sans tempête, ou de soleil sans nuit;
Le bonheur y paraît quelquefois dans un songe
Entre les bras du sombre ennui.

L'amour y va souvent, mais c'est tout un délire,
Un désespoir sans fin, une énigme sans mot;
Parfois il rit gaîment, mais de cet affreux rire
Qui n'est peut-être qu'un sanglot.

On va dans ce pays de misère et d'ivresse,
Mais on le voit à peine, on en sort, on a peur;
Je l'habite pourtant, j'y passe ma jeunesse....
Hélas! ce pays, c'est mon cœur.


LUZ ENTRE SOMBRAS

É noite medonha e escura,
Muda como o passamento
Uma só no firmamento
Tremula estrella fulgura.

Falla aos écos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E n'um canto somnolento
Entre as arvores murmura.

Noite que assombra a memoria,
Noite que os medos convida,
Erma, triste, merencoria.

No entanto... minh'alma olvida
Dôr que se transforma em gloria,
Morte que se rompe em vida.


LYRA CHINEZA[4]

I

O POETA A RIR

(Han-Tiê.)

Taça d'agua parece o lago ameno;
Tem os bambús a fórma de cabanas,
Que as arvores em flôr, mais altas, cobrem
Com verdejantes tectos.

As ponteagudas rochas entre flôres,
Dos pagodes o grave aspecto ostentam...
Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,
Cópia servil dos homens.

II

A UMA MULHER

(Tchê-Tsi.)

Cantigas modulei ao som da flauta,
Da minha flauta d'ebano;
N'ellas minh'alma segredava á tua
Fundas, sentidas mágoas.

Cerraste-me os ouvidos. Namorados
Versos compuz de jubilo,
Por celebrar teu nome, as graças tuas,
Levar teu nome aos seculos.

Olhaste, e meneando a airosa frente,
Com tuas mãos purissimas,
Folhas em que escrevi meus pobres versos
Lançaste ás ondas tremulas.

Busquei então por encantar tu'alma
Uma saphira esplendida,
Fui depôl-a a teus pés... tu descerraste
Da tua boca as perolas.

III

O IMPERADOR

(Tchu-Fu)

Olha. O Filho do Céu, em throno de ouro,
E adornado com ricas pedrarias,
Os mandarins escuta:—um sol parece
De estrellas rodeado.

Os mandarins discutem gravemente
Cousas muito mais graves. E elle? Foge-lhe
O pensamento inquieto e distrahido
Pela janella aberta.

Além, no pavilhão de porcellana,
Entre donas gentis está sentada
A imperatriz, qual flôr radiante e pura
Entre viçosas folhas.

Pensa no amado esposo, arde por vêl-o,
Prolonga-se-lhe a ausencia, agita o leque...
Do imperador ao rosto um sopro chega
De rescendente briza.

«Vem della este perfume,» diz, e abrindo
Caminho ao pavilhão da amada esposa,
Deixa na sala olhando-se em silencio
Os mandarins pasmados.

IV

O LEQUE

(Tan-Jo-Lu.)

Na perfumada alcova a esposa estava,
Noiva ainda na vespera. Fazia
Calor intenso; a pobre moça ardia,
Com fino leque as faces refrescava.
Ora, no leque em boa lettra feito
Havia este conceito:

«Quando, immovel o vento e o ar pesado,
«Arder o intenso estio,
«Serei por mão amiga ambicionado;
«Mas volte o tempo frio,
«Ver-me-heis a um canto logo abandonado.»

Lê a esposa este aviso, e o pensamento
Volve ao joven marido.
«Arde-lhe o coração n'este momento
«(Diz ella) e vem buscar enternecido
«Brandas auras de amor. Quando mais tarde
«Tornar-se em cinza fria
«O fogo que hoje lhe arde,
«Talvez me esqueça e me desdenhe um dia.»

V

A FOLHA DO SALGUEIRO

(Tchan-Tiú-Lin.)

Amo aquella formosa e terna moça
Que, á janella encostada, arfa e suspira;
Não porque tem do largo rio á margem
Casa faustosa e bella.

Amo-a, porque deixou das mãos mimosas
Verde folha cair nas mansas aguas.

Amo a briza de léste que sussurra,
Não porque traz nas azas delicadas
O perfume dos verdes pecegueiros
Da oriental montanha.

Amo-a porque impelliu co'as tenues azas
Ao meu batel a abandonada folha.

Se amo a mimosa folha aqui trazida,
Não é porque me lembre á alma e aos olhos
A renascente, a amavel primavera,
Pompa e vigor dos valles.

Amo a folha por ver-lhe um nome escripto,
Escripto, sim, por ella, e esse... é meu nome.

VI

AS FLORES E OS PINHEIROS

(Tin-Tun-Sing.)

Vi os pinheiros no alto da montanha
Ouriçados e velhos;
E ao sopé da montanha, abrindo as flôres
Os calices vermelhos.

Contemplando os pinheiros da montanha,
As flôres tresloucadas
Zombam d'elles enchendo o espaço em torno
De alegres gargalhadas.

Quando o outono voltou, vi na montanha
Os meus pinheiros vivos,
Brancos de neve, e meneiando ao vento
Os galhos pensativos.

Volvi o olhar ao sitio onde escutára
Os risos mofadores;
Procurei-as em vão; tinham morrido
As zombeteiras flôres.

VII

REFLEXOS

(Thu-Fu.)

Vou rio abaixo vogando
No meu batel e ao luar;
Nas claras aguas fitando,
Fitando o olhar.

Das aguas vejo no fundo,
Como por um branco véu,
Intenso, calmo, profundo,
O azul do céu.

Nuvem que no céu fluctua,
Fluctua n'agua tambem;
Se a lua cobre, á outra lua
Cobril-a vem.

Da amante que me extasia,
Assim, na ardente paixão,
As raras graças copia
Meu coração.

VIII

CORAÇÃO TRISTE FALLANDO AO SOL

(Su-Tebon.)

No arvoredo sussurra o vendaval do outono,
Deita as folhas á terra, onde não ha florir
E eu contemplo sem pena esse triste abandono;
Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cahir.

Como a escura montanha, esguia e pavorosa
Faz, quando o sol descamba, o valle ennoitecer,
A montanha da alma, a tristeza amorosa,
Tambem de ignota sombra enche todo o meu ser.

Transforma o frio inverno a agua em pedra dura,
Mas torna a pedra em agua um raio de verão;
Vem, ó sol, vem, assume o throno teu na altura,
Vê se pódes fundir meu triste coração.


UMA ODE DE ANACREONTE

(A MANUEL DE MELLO)

PERSONAGENS

LYSIAS.
CLEON.
MYRTO.
TRES ESCRAVOS.

A scena é em Somos.

Sala de festim em casa de Lysias. A esquerda a mesa do festim; á direita uma mesa tendo em cima uma lampada apagada, e junto da lampada um rolo de papyro.

SCENA I

LYSIAS, CLEON, MYRTO.

(Estão no fim de um banquete, os dous homens deitados á maneira antiga, Myrto sentada entre os dous leitos. Tres escravos.)

LYSIAS.

Melancolica estás, bella Myrto. Bebamos!
Aos prazeres!

CLEON.

Eu bebo á memoria de Samos.
Samos vai terminar os seus dourados dias;
Adeus, terra em que achei consolo ás agonais
Da minha mocidade; adeus, Samos, adeus!

MYRTO.

Querem-lhe os deuses mal?

CLEON.

Não; dous olhos, os teus.

LYSIAS.

Bravo, Cleon!

MYRTO.

Poeta! os meus olhos?

CLEON.

São lumes
Capazes de abrasar até os proprios numes.
Samos é nova Troya, e tu és outra Helena,
Quando Lesbos, a mão do Sappho, a ilha amena,
Não vir a bella Myrto, a alegre cortezã,
Armar-se-ha contra nós.

LYSIAS.

Lesbos é boa irmã.

MYRTO.

Outras bellezas tem, dignas da loura Venus.

CLEON.

Menos digna de tu.

MYRTO.

Mais do que eu.

LYSIAS.

Muito menos.

CLEON.

Tens vergonha de ser formosa e festejada,
Myrto? Venus não que beleza envergonhada.
Pois que dos immortaes houveste esse condão
De inspirar quantos vês, inspira-os, Myrto.

MYRTO.

Não;
São teus olhos, poeta; eu não tenho a belleza
Que arrasta corações.

CLEON.

Divina singeleza!

LYSIAS (á parte).

Vejo através do manto as galas da vaidade.

(Alto.)

Vinho, escravo!

(O escravo deita vinho na taça de Lysias.)

Poeta, um brinde á mocidade.
Trava de lyra e invoca o deus inspirador.

CLEON.

«Feliz em junto de ti, ouve a tua falla, amor!»

MYRTO.

Versos de Sapho!

CLEON.

Sim.

LYSIAS.

Vês? ó modestia pura.
Elle é na poesia o que és na formosura.
Faz versos de primor e esconde-os ao profano:
Tem vergonha. Eu não sei se o vicio é lesbiano...

MYRTO.

Ah! tu és...

CLEON.

Lesbos foi minha patria tambem,
Lesbos, a flôr do Egeo.

MYRTO.

Já não é?

CLEON.

Lesbos tem
Tudo o que me fascina e tudo o que me mata:
As festas do prazer e os olhos de uma ingrata.
Fugi da patria e achei, já curado e tranquillo,
Em Lysias um irmão, em Samos um asylo.
Bem hajas tu que vens encher-me o coração!

LYSIAS.

Insaciavel! Não tens em Lysias um irmão?

MYRTRO.

Volto á patria.

CLEON.

Pois que! tu vais?

MYRTO.

Em poucos dias...

LYSIAS.

Fazes mal; tens aqui os moços e as folias,
O gozo, a adoração; que te falta?

MYRTO.

Os meus ares.

CLEON.

A que vieste então?

MYRTO.

Successos singulares.
Vim por acompanhar Lysicles, mercador
De Naxos; tanto póde a constancia no amor!
Corrêmos todo o Egeo e a costa ionia; fomos
Comprar o vinho a Creta e a Tenodos os pomos.
Ah! como é doce o amor na solidão das aguas!
Tem-se vida melhor; esquecem-se-lhe as mágoas.
Zephyro ouviu por certo os osculos febris,
Os jubilos do affecto, as fallas juvenis;
Ouviu-os, delatou ao deus que o mar governa
A indiscreta ventura, a effusão doce e terna.
Para a furia acalmar da sombria deidade,
Nave e bens varreu tudo a horrivel tempestade.
Foi assim que eu perdi a Lysicles, assim
Que eu semi-morta e fria á tua plaga vim.

CLEON.

Ó coitada!

LYSIAS.

O infortunio os animos apura;
As feridas que faz o mesmo Amor as cura;
Brandem armas iguaes Achilles e Cupido.
Queres ver n'outro amor o teu amor perdido?
Samos o tem de sobra.

CLEON.

Eu, Myrto, eu sei amar;
Não fio o coração da inconstancia do mar.
Não tenho galeões rompendo o seio a Thetys,
Estrada tanta vez ao torvo e obscuro Lethes.
Aqui me tens; sou teu; escreve a minha sorte;
Pódes doar-me a vida ou decretar-me a morte.

MYRTO.

Mas, se eu volto...

CLEON.

Pois bem! aonde quer que te vás
Irei comtigo; a deusa indomita e fallaz
Ser-me-ha hospede amiga; ao pé de ti a escura
Noite parece aurora, e é berço a sepultura.

MYRTO.

Quando falla o dever, a vontade obedece;
Eu devo ir só; tu fica, ama-me um pouco e esquece.

LYSIAS.

Tens razão, bella Myrto; escuta o teu dever.

CLEON.

Ai! é facil amar, difficil esquecer.

LYSIAS (a Myrto).

Queres pôr termo á festa? Um brinde a Venus, filha
Da mar azul, belleza, encanto, maravilha;
Nascida para ser perpetuamente amada.
A Venus!

(Depois do brinde os escravos trazem os vasos com agua perfumada em que os convivas lavaram as mãos; os escravos saem levando os restos do banquete. Levantam-se todos.)

Queres tu, mimosa naufragada,
Ouvir de hermonia serva, em lyra de marfim,
Uma alegre canção? Preferes o jardim?
O portico talvez?

MYRTO.

Lysias, sou indiscreta;
Quizera antes ouvir a voz do teu poeta.

LYSIAS.

Nume não pede, impõe.

CLEON.

O mando é lisongeiro.

LYSIAS.

Pois começa.


SCENA II

OS MESMOS, UM ESCRAVO.

ESCRAVO.

Procura a Myrto um mensageiro.

MYRTO.

Um mensageiro! a mim!

LYSIAS.

Mando-o entrar.

ESCRAVO.

Não quer.

LYSIAS.

Vai, Myrto.

MYRTO (saindo).

Volto já. (Sae o escravo).


SCENA III

LYSIAS, CLEON.

CLEON.

(Olhando para o lugar por onde Myrto saiu.)

Oh! deuses! que mulher!

LYSIAS.

Ah! que perola rara!

CLEON.

Onde a encontraste?

LYSIAS.

Achei-a
Com Parthenis que dava uma esplendida ceia;
Parthenis, ex-bonita, ex-jovem, ex-da moda,
Sabes que vê fugir-lhe a enfastiada roda;
E, para não perder o grupo adorador,
Fez do templo deserto uma escola de amor.
Foi ella quem achou a naufraga perdida,
Exposta ao vento e ao mar, quasi a expirar-lhe a vida.
A belleza pagava o emprego de uma esmola;
Dentro em pouco era Myrto a flôr de toda a escola.

CLEON.

Lembrou-te convidal-a então para um festim?

LYSIAS.

Foi um pouco por ella e um pouco mais por mim.

CLEON.

Tambem amas?

LYSIAS.

Eu? não. Quis ter á minha mesa
Venus e o louro Apollo, a poesia e a belleza.

CLEON.

Oh! a belleza, sim! Viste já tanta graça,
Tão celestes feições?

LYSIAS.

Cuidado! Aquella caça
Zomba dos tiros vãos de ingenuo caçador!

CLEON.

Incredulo!

LYSIAS.

Eu sou mestre em materia de amor.
Se tu, attento e calmo, a narração lhe ouvisses
Conhecêras melhor o engenho d'esta Ulysses.
Aquelle ardente amor a Lysicles, aquelle
Fundo e intenso pesar que á sua patria a impelle,
Armas são com que a astuta os animos seduz.

CLEON.

Oh! não creio.

LYSIAS.

Porque?

CLEON.

Não vês como lhe luz
Tanta expressão sincera em seus olhos divinos?

LYSIAS.

Sim, tem muita expressão... para illudir meninos.

CLEON.

Pois tu não crês?

LYSIAS.

Em que? No naufragio? De certo.
Em Lysicles? Talvez. No amor? é mais incerto.
Na intenção de voltar a Lesbos? isso não!
Sabes o que ela quer? Prender um coração.

CLEON.

Impossivel!

LYSIAS.

Poeta! estás na alegre idade
Em que a sciencia da vida é a credulidade.
Vês tudo azul e em flôr; eu já me não illudo.
Pois amar cortezãs! isso demanda estudo,
Não vai assim, que as tais abelhitas do amor
Correm de bolsa em bolsa e não de flôr em flôr.

CLEON.

Mas não as amas tu?

LYSIAS.

De certo... á minha moda;
Meu grande coração co'os vicios se acommoda;
Sacrificios de amor não sonha nem procura;
Não lhes pede illusões, pede-lhes só ternura.
Não me empenho em achar alma ungida no céu:
Se é crime este sentir, confesso-me, sou réu.
Não peço amor ao vinho; irei pedil-o ás damas?
D'ellas e d'elle exijo apenas estas chammas
Que ardem sem consumir, na pyra dos desejos.
Assim é que eu estimo as amphoras e os beijos.
Lá protestos de amor, eternos e leaes,
Tudo isso é fumo vão. Que queres? Os mortaes
Somos todos assim.

CLEON.

Ai, os mortaes! dize antes
Os philosophos máos, ridiculos pedantes,
Os que não sabem crer, os fartos já de amores,
Esses, sim. Os mortaes!

LYSIAS.

Refreia os teus furores,
Poeta; eu não quizera amargurar-te, e enfim
Não podia suppôr que a amasse tanto assim.
Caspité! Vais depressa!

CLEON.

Ai, Lysias, é verdade,
Amo-a como não amo a vida e a mocidade;
De que modo nasceu esta affeição que encerra
Todo o meu ser, ignoro. Acaso sabe a terra
Por que é mais bella ao sol e ás auras matinaes?
Amores estes são terriveis e fataes.

LYSIAS.

Vês com olhos do céu cousas que são do mundo;
Acreditas achar esse affecto profundo,
N'estas filhas do mal! Se a todo o transe queres
Obter a casta flôr dos celicos prazeres,
Deixa a alegre Corintho e todo o luxo seu;
Outro porto acharás: procura o gyneceo.
Escolhe aquelle amor doce, innocente e puro,
Que inda não tem passado e vive no futuro.
Para mim, já t'o disse, o caso é differente;
Não me importa um nem outro; eu vivo no presente.

CLEON.

Deu-te amiga Fortuna um grande cabedal:
Viver, sem illusões, no bem como no mal;
Não conhecer o amor que morde, que se nutre
Do nosso sangue, o amor funesto, o amor abutre;
Não beber gotta a gotta este brando veneno
Que requeima e destróe; não ver em mar sereno
Subitamente erguer-se a voz dos aquilões.
Afortunado és tu.

LYSIAS.

Lei de compensações!
Sou philosopho mau, ridiculo pedante,
Mas inveja-me a sorte; oh! logica de amante.

CLEON.

É a do coração.

LYSIAS.

Terrível mestre!

CLEON.

Ensina
Dos seres immortaes a transfusão divina!

LYSIAS.

A lição é profunda e escapa ao meu saber;
Outra escola professo, a escola do prazer!

CLEON.

Tu não tens coração.

LYSIAS.

Tenho, mas não me illudo.
É Circe que perdeu o encanto e a juventude.

CLEON.

Velho Satyro!

LYSIAS.

Justo: um semi-deus sylvestre.
N'estas cousas do amor nunca tive outro mestre.
Tu gostas de chorar; eu cá prefiro rir.
Tres artigos da lei: gozar, beber, dormir.

CLEON.

Compras com isso a paz; a mim coube-me o tedio,
A solidão e a dôr.

LYSIAS.

Queres um bom remedio,
Um filtro da Thessalia, um balsamo infallivel?
Esquece emprezas vãs, não tentes o impossivel
Prende o teu coração nos laços de Hymenêo;
Casa-te; encontrarás o amor no gynecêo.
Mas cortezãs! jámais! São Gorgones! Medusas!

CLEON.

Essas que conheceste e tão severo accusas
—Pobres moças!—não são o universal modelo:
De outras sei a quem coube um coração singelo,
Que preferem a tudo a gloria singular
De conhecer somente a sciencia de amar;
Capazes de sentir o ardor da intensa chamma
Que eleva, que resgata a vida que as infama.

LYSIAS.

Se achares tal milagre, eu mesmo irei pedir-t'o.

CLEON.

Basta um passo, achal-o-hei.

LYSIAS.

Bravo! chama-se?

CLEON.

Myrto,
Que póde conquistar até o amor de um deus!

LYSIAS.

Crês n'isso?

CLEON.

Porque não?

LYSIAS.

Tu és um nescio; adeus!


SCENA IV

CLEON.

Vai, sceptico! tu tens o vicio da riqueza:
Farto, não crês na fome... A minha singeleza
Faz-te rir: tu não vês o amor que absorve e mata;
Myrto, vinga-me tu da calumnia insensata;
Amemo-nos. É ella!


SCENA V

CLEON, MYRTO

MYRTO.

Estás triste!

CLEON.

Oh! que não!
Mas deslumbrado, sim, como se uma visão...

MYRTO.

A visão vai partir.

CLEON.

Mas muito tarde...

MYRTO.

Breve.

CLEON.

Quem te chama?

MYRTO.

O destino. E sabes quem me escreve?

CLEON.

Tua mãe.

MYRTO.

Já morreu.

CLEON.

Algum antigo amante?

MYRTO.

Lysicles.

CLEON.

Vive?

MYRTO.

Sim. Depois de andar errante
N'uma taboa, á mercê das ondas, quiz o céu
Que viesse encontral-o um barco do Pyreu.
Pobre Lysicles! teve em tão cruenta lida
A dôr da minha morte e a dôr da propria vida.
Em vão interrogava o mar cioso e mudo.
Perdêra, de uma vez, n'uma só noite, tudo,
A ventura, a esperança, o amor, e perdeu mais:
Naufragárão com ele os poucos cabedaes.
Entrou em Samos pobre, inquieto, semi-morto,
Um barqueiro, que a tempo atravessava o porto,
Disse-lhe que eu vivia, e contou-lhe a aventura
Da malfadada Myrto.

CLEON.

É isso, a sorte escura
Voltou-se contra mim; não consente, não quer
Que eu me farte de amor no amor de uma mulher.
Vejo em cada paixão o fado que me opprime;
O amar é já soffrer a pena do meu crime,
Ixion foi mais audaz amando a deusa augusta;
Transpôz o obscuro lago e soffre a pena justa,
Mas eu não. Antes de ir ás regiões infernaes
São as graças commigo Eumenides fataes!

MYRTO.

Caprichos de poeta! Amor não falta ás damas;
Damas, tem-las aqui; inspira-lhe essas chammas.

CLEON.

Impõe-se leis ao mar? O coração é isto;
Ama o que lhe convem; convem amar a Egistho
Clytemnestra; convem a Cyntia Endymião;
É caprichoso e livre o mar do coração;
De outras sei que eu houvera em meus versos cantado;
Não lhes quero... não posso.

MYRTO.

Ai, triste enamorado!

CLEON.

E tu zombas de mim!

MYRTO.

Eu zombar? Não; lamento
A tua acerba dôr, o teu fatal tormento.
Não conheço eu tambem esse cruel penar?
Só dous remedios tens; esquecer, esperar.
De quanto almeja e quer o amor nem tudo alcança;
Contenta-se ao nascer co' as auras da esperança;
Vive da propria mágoa; a propria dôr o alenta.

CLEON.

Mas, se a vida é tão curta, a agonia é tão lenta!

MYRTO.

Não sabes esperar? Então cumpre esquecer.
Escolhe entre um e outro; é preciso escolher.

CLEON.

O prazer que a fulmina, e a dôr que a fortalece?

MYRTO.

Tens na ausencia e no tempo os velhos pais do olvido,
O bem não alcançado é como o bem perdido,
Pouco a pouco se esvai na mente e coração;
Põe o mar entre nós... dissipa-se a illusão.

CLEON.

Impossivel!

MYRTO.

Então espera; algumas vezes
A fortuna transforma em glorias os reveses.

CLEON.

Myrto, valem bem pouco as glorias já tardias.

MYRTO.

Um só dia de amor compensa estereis dias.

CLEON.

Compensará, mas quando? A mocidade em flôr
Bem cedo morre, e é essa a que convem a amor.
Vejo cair no occaso o sol da minha vida.

MYRTO.

Cabeça de poeta, exaltada e perdida!
Pensas estar no occaso o sol que mal desponta?

CLEON.

A clepsydra do amor não conta as horas, conta
As illusões; velhice é perdêl-as assim;
Breve a noite abrirá seus véus por sobre mim.

MYRTO.

Não has de envelhecer; as illusões comtigo
Flôres são que respeita Eolo brando e amigo.
Guarda-as, talvez um dia, e não tarde, as colhamos.

CLEON.

Se eu a Lesbos não vou.

MYRTO.

Podem colher-se em Samos.

CLEON.

Voltas breve?

MYRTO.

Não sei.

CLEON.

Oh! sim, deves voltar!

MYRTO.

Tenho medo.

CLEON.

De quê?

MYRTO.

Tenho medo... do mar.

CLEON.

Teu sepulcro já foi; o medo é justo; fica.
Lesbos é para ti mais formosa e mais rica.
Mas a patria é o amor; o amor transmuda os ares.
Muda-se o coração? Mudam-se os nossos lares.
Da importuna memoria o teu passado exclue;
Vida nova nos chama, outro céu nos influe.
Fica; eu disfarçarei com rosas este exilio;
A vida é um sonho máu: façamo-la um idylio.
Cantarei a teus pés a nossa mocidade.
A belleza que impõe, o amor que persuade,
Venus que faz arder o fogo da paixão,
Teu olhar, doce luz que vem do coração.
Pericles não amou com tanto ardor a Aspasia,
Nem esse que morreu entre as pompas da Asia,
A Lais siciliana. Aqui as Horas bellas
Tecerão para ti vivissimas capellas.
Nem morrerás; teu nome em meus versos ha de ir,
Vencendo o tempo e a morte, aos seculos porvir.

MYRTO.

Tanto me queres tu!

CLEON.

Imensamente. Anseio
Por sentir, bella Myrto, arfar teu brando seio,
Bater teu coração, tremer teu labio puro,
Todo viver de ti.

MYRTO.

Confia no futuro.

CLEON.

Tão longe!

MYRTO.

Não, bem perto.

CLEON.

Ah! que dizes?

MYRTO

Adeus!

(Passa junto da mesa da direita e vê o rolo de papyro.)

Curiosa que sou!

CLEON.

São versos.

MYRTO.

Versos teus?

(Lysias aparece ao fundo.)

CLEON.

De Anacreonte, o velho, o amavel, o divino.

MYRTO.

A musa é toda ionia, e o verso é peregrino.

(Abre o papyro e lê)

«Fez-se Niobe em pedra e Philomena em passaro.[5]
«Assim
«Folgaria eu tambem me transformasse Jupiter
«A mim.
«Quisera ser o espelho em que o teu rosto magico
«Sorri;
«A tunica feliz que sempre se está proxima
«De ti;
«O banho de crystal que esse teu corpo candido
«Contém;
«O aroma de teu uso e d'onde effluvios magicos
«Provêm;
«Depois esse listão que de teu seio turgido
«Faz dous;
«Depois do teu pescoço o rosicler de perolas;
«Depois...
«Depois ao ver-te assim, unica e tão sem emulas
«Qual és,
«Até quisera ser teu calçado, e pisassem-me
«Teus pés.»

Que magnificos são!

CLEON.

Minha alma assim te falla.

MYRTO

Attendendo ao poeta eu pensava escutal-a.

CLEON.

Eco do meu sentir foi o velho amador;
Tais os desejos são do meu profundo amor.
Sim, eu quizera ser tudo isto—o espelho, o banho,
O calçado, o collar... Desejo acaso extranho,
Louca ambição talvez de poeta exaltado...

MYRTO.

Tanto sentes por mim?


SCENA VI

CLEON, MYRTO, LYSIAS

LYSIAS (entrando.)

Amor, nunca sonhado.
Se a musa d'elle és tu!

CLEON.

Lysias!

MYRTO.

Ouviste?

LYSIAS.

Ouvi.
Versos que Anacreonte houvera feito a ti,
Se vivesses no tempo em que, pulsando a lyra,
Estas odes compôz que a velha Grecia admira.

(A Cleon.)

Quer fallar-te um sujeito, um Clinias, um colega,
Ex-mercador, como eu.

MYRTO.

Ai, que importuno!

LYSIAS.

Allega
Que não póde esperar, que isto não póde ser,
Que um processo... A final não n'o pude entender.
Pode ser que comtigo o homem se accommode.
Prometeste talvez compor-lhe alguma ode?

CLEON.

Não. Adeus, bella Myrto; espera-me um instante.

MYRTO.

Não tardes!

LYSIAS (á parte.)

Indiscreta!

CLEON.

Espera.

LYSIAS (á parte.)

Petulante!


SCENA VII

MYRTO, LISIAS.

MYRTO.

Sou curiosa. Quem é Clinias, ex-mercador?
Amigo d'elle?

LYSIAS.

Mais do que isso; é um credor.

MYRTO.

Ah!

LYSIAS.

Que bello rapaz! que alma fogosa e pura,
Bem digna de aspirar-te um hausto de ventura!
Queira o céu pôr-lhe termo á profunda agonia,
Surja emfim para elle o sol de um novo dia.
Merece-o. Mas vê lá se ha destino peior:
Quer o alado Mercurio obstar o alado Amor.
Com beijos não se paga a pompa do vestido,
O expetaculo e a mesa; e se o gentil Cupido
Gosta de ouvir canções, o outro não vai com ellas;
Vale uma drachma só vinte odezinhas bellas.
Um poema não compra um simples borzeguim.
Versos! são bons de ler, mais nada; eu penso assim.

MYRTO.

Pensas mal! A poesia é sempre um dom celeste;
Quando o genio o possue quem ha que o não requeste?
Hermes, com ser o deus dos graves mercadores,
Tocou lyra tambem.

LYSIAS.

Já sei que estás de amores.

MYRTO.

Que esperança! Bem vês que eu já não posso amar.

LYSIAS.

Perdeste o coração?

MYRTO.

Sim; perdi-o no mar.

LYSIAS.

Pesquemol-o; talvez essa perola fina
Venha ornar-me a existencia agourada e mofina.

MYRTO.

Mofina?

LYSIAS.

Pois então? Enfarão-me estas bellas
Da terra samiana; assaz vivi por elas.
Outras desejo amar, filhas do azul Egeo.
Varia de feições o Amor, como Protheo.

MYRTO.

Seu carater melhor foi sempre o ser constante.

LYSIAS.

Serei menos fiel, não sou menos amante.
Cada belleza em si toda a paixão resume.
Pouco me importa a flôr; importa-me o perfume.

MYRTO.

Mas quem quer o perfume afaga um pouco a flôr;
Nem fere o objecto amado a mão que implora o amor.

LYSIAS.

Offendo-te com isto? Esquece a minha ofensa.

MYRTO.

Já esqueci; passou.

LYSIAS.

Quem falla como pensa
Arrisca-se a perder ou por sobra ou por mingoa.
Eu confesso o meu mal; não sei tentear a lingua.
Pois que me perdoaste, escuta-me. Tu tens
A graça das feições, o summo bem dos bens;
Moça, trazes na fronte o doce beijo de Hebe
Como um philtro de amor que, sem sentir, se bebe,
De teus olhos destilla a eterna juventude;
De teus olhos que um deus, por lhes dar mais virtude,
Fez azues como o céu, profundos como o mar.
Quem taes dotes reune, ó Myrto, deve amar.

MYRTO.

Fallas como um poeta, e zombas da poesia!

LYSIAS.

Eu, poeta? jámais.

MYRTO.

A tua fantasia
Respirou certamente o ar do monte Hymmeto.
Tem a expressão tão doce!

LYSIAS.

É a expressão do affecto.
Sou em cousas de Apollo um simples amador.
A minha grande musa é Venus, mãe do amor.
No mais não apprendi (os fados meus adversos
Vedárão-m'o!) a cantar bons e sentidos versos.
Cleon, esse é que sabe accender tantas almas,
Conquistar de um só lance os corações e as palmas.

MYRTO.

Conquistar, oh! que não!

LYSIAS.

Mas agradar?

MYRTO.

Talvez.

LYSIAS.

Isso mesmo; é já muito. O que o poeta fez
Fal-o-ei jamais? Contudo, inda tental-o quero;
Se não me inspira a musa, alma filha de Homero,
Inspira-me o desejo, a musa que delira,
E o seu canto concerta aos sons da eterna lyra.

MYRTO.

Tambem desejas ser alguma coisa?

LYSIAS.

Não;
Eu caso o meu amor ás regras da razão.
Cleon quizera ser o espelho em que teu rosto
Sorri; eu, bela Myrto, eu tenho melhor gosto.
Ser espelho! ser banho! e tunica! tolice!
Esteril ambição! loucura! criancice!
Por Venus! sei melhor o que a mim me convem.
Homem sisudo e grave outros desejos tem.
Fiz, a este respeito, aprofundado estudo;
Eu não quero ser nada; eu quero dar-te tudo.
Escolhe o mais perfeito espelho de aço fino,
A tunica melhor de pano tarentino,
Vasos de oleo, um colar de perolas,—enfim
Quanto enfeita uma dama aceital-o-has de mim.
Brincos que vão ornar-te a orelha graciosa;
Para os dedos o annel de pedra preciosa;
A tua fronte pede aureo, rico anadema;
Têl-o-has, divina Myrto. É este o meu poema.

MYRTO.

É lindo!

LYSIAS.

Queres tu, outras estrophes mais?
Dar-t'as-hei quais as teve a celebrada Lais.
Casa, rico jardim, servas de toda a parte;
E estatuas e paineis, e quantas obras d'arte
Podem servir de ornato ao templo da belleza,
Tudo haverás de mim. Nem gosto nem riqueza
Tu ha de faltar, mimosa, e só quero um penhor.
Quero... quero-te a ti.

MYRTO.

Pois que! já quer a flôr,
Quem desdenhando a flôr, só lhe pede o perfume?

LYSIAS.

Esqueceste o perdão?

MYRTO.

Ficou-me este azedume.

LYSIAS.

Venus póde apagal-o.

MYRTO.

Eu sei, creio e não creio.

LYSIAS.

Hesitar é ceder: agrada-me o receio.
Em assumpto de amor, vontade que fluctua
Está prestes a entregar-se. Entregas-te?

MYRTO.

Sou tua!


SCENA VIII

LYSIAS, MYRTO, CLEON.

CLEON.

Demorei-me demais?

LYSIAS.

Apenas o bastante
Para que fosse ouvido um coração amante.
A Lesbiana é minha.

CLEON.

És d'elle, Myrto!

MYRTO.

Sim;
Eu ainda hesitava; ele fallou por mim.

CLEON.

Quantos amores tens, filha do mal?

LYSIAS.

Presinto.
Uma lamentação inutil. «A Corintho
Não vai quem quer,» lá diz aquelle velho adagio.
Navegavas sem leme; era certo o naufragio.
Não me viste sulcar as mesmas aguas?

CLEON.

Vi,
Mas contava com ella, e confiava em ti.
Mais duas illusões! Que importa? Inda são poucas;
Desfação-se uma a uma estas chimeras loucas.
Ó arvore bemdita, ó minha juventude,
Vão-te as flôres caindo ao vento aspero e rude!
Não vos maldigo, não; eu não maldigo o mar
Quando a nave sossobra; o erro é confiar.
Adeus, formosa Myrto; adeus, Lysias; não quero
Perturbar vosso amor, eu que já nada espero;
Eu que vou arrancar as profundas raizes
Desta paixão funesta; adeus, sede felizes!

LYSIAS.

Adeus! Saudemos nós a Vénus e a Lyeo.

AMBOS.

Io Pœan! ó Baccho! Himenêo! Himenêo!


PALLIDA ELVIRA

(A FRANCISCO PAZ)

Ulysse, jeté sur les rives d'Ithaque, ne
les reconnait pas et pleure sa patrie.
Ainsi l'homme dans le bonheur possédé
ne reconnait pas son rêve et soupire.

DANIEL STERN.

I

Quando, leitora amiga, no occidente
Surge a tarde esmaiada e pensativa;
E entre a verde folhagem rescendente
Languida geme viração lasciva;
E já das tenues sombras do oriente
Vem apontando a noite, e a casta diva
Subindo lentamente pelo espaço,
Do céu, da terra observa o estreito abraço;

II

N'essa hora de amor e de tristeza,
Se acaso não amaste e acaso esperas
Ver coroar-te a juvenil belleza
Casto sonho das tuas primaveras;
Não sentes escapar tua alma acesa
Para voar ás lucidas espheras?
Não sentes n'essa mágoa e n'esse enleio
Vir morrer-te uma lagrima no seio?

III

Sêntel-o? Então entenderás Elvira,
Que assentada á janella, erguendo o rosto,
O vôo solta á alma que delira
E mergulha no azul de um céu de agosto;
Entenderás então porque suspira,
Victima já de um intimo desgosto,
A meiga virgem, pallida e calada,
Sonhadora, anciosa e namorada.

IV

Mansão de riso e paz, mansão de amores
Era o valle. Espalhava a natureza,
Com dadivosa mão, palmas e flôres
De agreste aroma e virginal belleza;
Bosques sombrios de immortaes verdores,
Asylo proprio á inspiração accesa,
Valle de amor, aberto ás almas ternas
N'este valle de lagrimas eternas.

V

A casa, junto á encosta de um outeiro,
Alva pomba entre folhas parecia:
Quando vinha a manhã, o olhar primeiro
Ia beijar-lhe a verde gelosia:
Mais tarde a fresca sombra de um coqueiro
Do sol quente a janella protegia;
Pouco distante, abrindo o solo adusto,
Um fio d'agua murmurava a custo.

VI

Era uma joia a alcova em que sonhava
Elvira, alma de amor. Tapete fino
De apurado lavor o chão forrava.
De um lado oval espelho crystallino
Pendia. Ao fundo, á sombra, se occultava
Elegante, engraçado, pequenino
Leito em que, repousando a face bella,
De amor sonhava a pallida donzella.

VII

Não me censure o critico exigente
O ser pallida a moça; é meu costume
Obedecer á lei de toda a gente
Que uma obra compõe de algum volume.
Ora, no nosso caso, é lei vigente
Que um descorado rosto o amor resume.
Não tinha Miss Smolen outras côres;
Não n'as possue quem sonha com amores.

VIII

Sobre uma mesa havia um livro aberto;
Lamartine, o cantor aereo e vago,
Que enche de amor um coração deserto;
Tinha-o lido; era a pagina do Lago.
Amava-o; tinha-o sempre alli bem perto,
Era-lhe o anjo bom, o deos, o orago;
Chorava aos cantos da divina lyra....
É que o grande poeta amava Elvira!

IX

Elvira! o mesmo nome! A moça os lia,
Com lagrimas de amor, os versos santos,
Aquella eterna e languida harmonia
Formada com suspiros e com prantos;
Quando escutava a musa da elegia
Cantar de Elvira os magicos encantos,
Entrava-lhe a voar a alma inquieta,
E com o amor sonhava de um poeta.

X

Ai, o amor de um poeta! amor subido!
Indelevel, purissimo, exaltado,
Amor eternamente convencido,
Que vai além de um tumulo fechado,
E que, através dos seculos ouvido,
O nome leva do objecto amado,
Que faz de Laura um culto, e tem por sorte
Negra fouce quebrar nas mãos da morte.

XI

Fosse eu moça e bonita... N'este lance
Se o meu leitor é já homem sisudo,
Fecha tranquillamente o meu romance,
Que não serve a recreio nem a estudo;
Não entendendo a força nem o alcance
De semelhante amor, condemna tudo;
Abre um volume serio, farto e enorme,
Algumas folhas lê, boceja... e dorme.

XII

Nada perdes, leitor, nem perdem nada
As esquecidas musas; pouco importa
Que tu, vulgar materia condemnada,
Aches que um tal amor é lettra morta.
Pódes, cedendo á opinião honrada,
Fechar á minha Elvira a esquiva porta.
Almas de prosa chã, quem vos daria
Conhecer todo o amor que ha na poesia?

XIII

Ora, o tio de Elvira, o velho Antero,
Erudito e philosopho profundo,
Que sabia de cór o velho Homero,
E compunha os annaes do Novo Mundo;
Que escrevêra uma vida de Severo,
Obra de grande tomo e de alto fundo;
Que resumia em si a Grecia e Lacio,
E n'um salão fallava como Horacio;

XIV

Disse uma noite á pallida sobrinha:
«Elvira, sonhas tanto! devaneias!
«Que andas a procurar, querida minha?
«Que ambições, que desejos ou que idéas
«Fazem gemer tua alma innocentinha?
«De que esperança vã, meu anjo, anceias?
«Teu coração de ardente amor suspira;
«Que tens?—Eu nada,» respondia Elvira.

XV

«Alguma cousa tens!» tornava o tio;
«Porque olhas tu as nuvens do poente,
«Vertendo ás vezes lagrimas a fio,
«Magoada expressão d'alma doente?
«Outras vezes, olhando a agua do rio,
«Deixas correr o espirito indolente,
«Como uma flôr que ao vento alli tombára,
«E a onda murmurando arrebatára.»

XVI

«—Latet anguis ïn herba...» Neste instante
Entrou a tempo o chá... perdão, leitores,
Eu bem sei que é preceito dominante
Não misturar comidas com amores;
Mas eu não vi, nem sei se algum amante
Vive de orvalho ou petalas de flôres;
Namorados estomagos consomem;
Comem Romeos, e Julietas comem.

XVII

Entrou a tempo o chá, e foi servil-o,
Sem responder, a moça interrogada,
C'um ar tão soberano e tão tranquillo
Que o velho emmudeceu. Ceia acabada,
Fez o escriptor o costumado chylo,
Mas um chylo de especie pouco usada,
Que consistia em ler um livro velho;
N'essa noite acertou ser o Evangelho.

XVIII

Abríra em S. Matheus, n'aquelle passo
Em que o filho de Deus diz que a açucena
Não labora nem fia, e o tempo escasso
Vive, co' o ar e o sol, sem dôr nem pena;
Leu e estendendo o já tremulo braço
A triste, á melancolica pequena,
Apontou-lhe a passagem da Escriptura
Onde lêra lição tão recta e pura.

XIX

«Vês? diz o velho, escusas de cansar-te;
«Deixa em paz teu espirito, criança:
«Se existe um coração que deva amar-te,
«Ha de vir; vive só d'essa esperança.
«As venturas do amor um deos reparte;
«Queres têl-as? põe n'elle a confiança.
«Não persigas com supplicas a sorte;
«Tudo se espera; até se espera a morte!

XX

«A doutrina da vida é esta: espera,
«Confia, e colherás a anciada palma;
«Oxalá que eu te apague essa chimera
«Lá diz o bom Demophilo que á alma;
«Como traz a andorinha a primavera,
«A palavra do sabio traz a calma,
«O sabio aqui sou eu. Ris-te, pequena?
«Pois melhor; quero ver-te uma açucena!»

XXI

Paliava aquelle velho como falla
Sobre côres um cego de nascença.
Pear a juventude! Condemnal-a
Ao somno da ambição vivaz e intensa!
Co' as leves azas da esperança ornal-a
E não querer que rompa a esphera immensa!
Não consentir que esta manhã de amores
Encha com frescas lagrimas as flôres

XXII

Mal o velho acabava e justamente
Na rija porta ouviu-se uma pancada.
Quem seria? Uma serva diligente,
Travando de uma luz, desceu a escada.
Pouco depois rangia brandamente
A chave, e a porta aberta dava entrada
A um rapaz embuçado que trazia
Uma carta, e ao doutor fallar pedia.

XXIII

Entrou na sala, e lento, e gracioso,
Descobriu-se e atirou a capa a um lado;
Era um rosto poetico e viçoso
Por soberbos cabellos coroado;
Grave sem gesto algum pretencioso,
Elegante sem ares de enfeitado;
Nos labios frescos um sorriso amigo,
Os olhos negros e o perfil antigo.

XXIV

Demais, era poeta. Era-o. Trazia
N'aquelle olhar não sei que luz extranha
Que indicava um alumno da poesia,
Um morador da classica montanha,
Um cidadão da terra da harmonia,
Da terra que eu chamei nossa Allemanha,
N'uns versos que hei de dar um dia a lume,
Ou n'alguma gazeta, ou n'um volume.

XXV

Um poeta! e de noite! e de capote!
Que é isso, amigo autor? Leitor amigo.
Imagina que estás n'um camarote
Vendo passar-se em scena um drama antigo,
Sem lança não conheço D. Quixote,
Sem espada é apocrypho um Rodrigo;
Heróe que ás regras classicas escapa,
Póde não ser heróe, mas traz a capa.

XXVI

Heitor (era o seu nome) ao velho entrega
Uma carta lacrada; vem do norte.
Escreve-lhe um philosopho collega
Já quasi a entrar no thalamo da morte.
Recommenda-lhe o filho, e lembra, e allega,
A provada amizade, o esteio forte,
Com que outr'ora, acudindo-lhe nos transes,
Salvou-lhe o nome de terriveis lances.

XXVII

Dizia a carta: «Crime ou virtude,
«É meu filho poeta; e corre fama
«Que já faz honra á nossa juventude
«Co' a viva inspiração de etherea chamma;
«Diz elle que, se o genio não o illude,
«Camões seria se encontrasse um Gama.
«Deos o fade; eu perdôo-lhe tal sestro;
«Guia-lhe os passos, cuida-lhe do estro.»

XXVIII

Lida a carta, o philosopho erudito
Abraça o moço e diz em tom pausado:
«Um sonhador do azul e do infinito!
«É hospede do céu, hospede amado.
«Um bom poeta é hoje quasi um mytho,
«Se o talento que tem é já provado,
«Conte co' o meu exemplo e o meu conselho;
«Boa lição é sempre a voz de um velho.»

XXIX

E trava-lhe da mão, e brandamente
Leva-o junto d'Elvira. A moça estava
Encostada á janella, e a esquiva mente
Pela extensão dos ares lhe vagava.
Voltou-se distrahida, e de repente
Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,
Sentiu... Inutil fora relatal-o;
Julgue-o quem não puder experimental-o.

XXX

Ó santa e pura luz do olhar primeiro!
Elo de amor que duas almas liga!
Raio de sol que rompe o nevoeiro
E casa a flôr á flôr! Palavra amiga
Que, trocada um momento passageiro,
Lembrar parece uma existencia antiga!
Lingua, filha do céu, doce eloquencia
Dos melhores momentos da existencia!

XXXI

Entra a leitora n'uma sala cheia;
Vai isenta, vai livre de cuidado:
Na cabeça gentil nenhuma idéa,
Nenhum amor no coração fechado.
Livre como a andorinha que volteia
E corre loucamente o ar azulado.
Venham dous olhos, dous, que a alma buscava...
Era senhora? ficará escrava!

XXXII

C'um só olhar escravos elle e ella
Já lhes pulsa mais forte o sangue e a vida;
Rapida corre aquella noite, aquella
Para as castas venturas escolhida;
Assoma já nos labios da donzella
Lampejo de alegria esvaecida.
Foi milagre de amor, prodigio santo.
Quem mais fizera? Quem fizera tanto?

XXXIII

Preparára-se ao moço um aposento.
Oh! reverso da antiga desventura!
Têl-o perto de si! viver do alento
De um poeta, alma languida, alma pura!
Dá-lhe, ó fonte do casto sentimento,
Aguas santas, baptismo de ventura!
Emquanto o velho, amigo de outra fonte,
Vai mergulhar-se em pleno Xenophonte.

XXXIV

Devo agora contar, dia por dia,
O romance dos dous? Inutil fôra;
A historia é sempre a mesma; não varia
A paixão de um rapaz e uma senhora.
Vivem ambos do olhar que se extasia
E conversa co'a alma sonhadora;
Na mesma luz de amor os dous se inflammam;
Ou, como diz Philinto: «Amados, amam.»

XXXV

Todavia a leitora curiosa
Talvez queira saber de um incidente;
A confissão dos dous;—scena espinhosa
Quando a paixão domina a alma que sente.
Em regra, confissão franca e verbosa
Revela um coração independente;
A paz interior tudo confia,
Mas o amor, esse hesita e balbucia.

XXXVI

O amor faz monosyllabos; não gasta
O tempo com analyses compridas;
Nem é proprio de boca amante e casta
Um chuveiro de phrases estendidas;
Um volver d'olhos languido nos basta
Por conhecer as chammas comprimidas;
Coração que discorre e faz estylo,
Tem as chaves por dentro e está tranquillo.

XXXVII

Deu-se o caso uma tarde em que chovia,
Os dous estavão na varanda aberta.
A chuva peneirava, e além cobria
Cinzento véu o occaso; a tarde incerta
Já nos braços a noite a recebia,
Como amorosa mãe que a filha aperta
Por enxugar-lhe os prantos magoados.
Eram ambos immoveis e calados.

XXXVIII

Juntos, ao parapeito da varanda,
Viam cahir da chuva as gottas finas,
Sentindo a viração fria, mas branda,
Que balançava as frouxas casuarinas.
Raras, ao longe, de uma e de, outra banda,
Pelas do céu tristissimas campinas,
Viam correr da tempestade as aves
Negras, serenas, lugubres e graves.

XXXIX

De quando em quando vinha uma rajada
Borrifar e agitar a Elvira as tranças,
Como se fôra a briza perfumada
Que á palmeira sacode as tenues franças.
A fronte gentilissima e engraçada
Sacudia co'a chuva as más lembranças;
E ao passo que chorava a tarde escura
Ria-se n'ella a aurora da ventura.

XL

«Que triste a tarde vai! que véu de morte
«Cobrir parece a terra! (o moço exclama),
«Reproducção fiel da minha sorte,
«Sombra e choro.—Porque? pergunta a dama;
«Diz que teve dos céus uma alma forte...
«—É forte o bronze e não resiste á chamma;
«Leu versos meus em que zombei do fado?
«lllusões de poeta mallogrado!»

XLI

«Somos todos assim. E nossa gloria
«Contra o destino oppôr alma de ferro;
«Desafiar o mal, eis nossa historia,
«E o tremendo duello é sempre um erro.
«Custa-nos caro uma fallaz victoria
«Que nem consola as mágoas do desterro,
«O desterro,—esta vida obscura e rude
«Que a dôr enfeita e as victimas illude.

XLII

«Contra esse mal tremendo que devora
«A seiva toda á nossa mocidade,
«Que remedio haveriamos, senhora,
«Senão versos de affronta e liberdade?
«No emtanto, bastaria acaso um'hora,
«Uma só, mas de amor, mas de piedade,
«Para trocar por seculos de vida
«Estes de dôr acerba e envilecida.»

XLIII

Al não disse, e, fitando olhos ardentes
Na moça, que de enleio enrubecia,
Com discursos mais fortes e eloquentes
Na exposição do caso proseguia;
A pouco e pouco as mãos intelligentes
Traváram-se; e não sei se conviria
Accrescentar que um osculo... Risquemos,
Não é bom mencionar estes extremos.

XLIV

Duas sombrias nuvens afastando,
Tenue raio de sol rompêra os ares,
E, no amoroso grupo desmaiando,
Testemunhou-lhe as nupcias singulares.
A nesga azul do occaso contemplando,
Sentirão ambos irem-lhe os pezares,
Como nocturnas aves agoureiras
Que á lua fogem medrosas e ligeiras.

XLV

Tinha mágoas o moço? A causa d'ellas?
Nenhuma causa; fantasia apenas;
O eterno devanear das almas bellas,
Quando as dominam fervidas camenas;
Uma ambição de conquistar estrellas,
Como se colhem lucidas phalenas;
Um desejo de entrar na eterna lida,
Um querer mais do que nos cede a vida.

XLVI

Com amores sonhava, ideal formado
De celestes e eternos esplendores,
A ternura de um anjo destinado
A encher-lhe a vida de perpetuas flôres.
Tinha-o emfim, qual fôra antes creado
Nos seus dias de mágoas e amargores;
Madrugavão-lhe n'alma a luz e o riso;
Estava á porta emfim do paraiso.

XLVII

N'essa noite, o poeta namorado
Não conseguiu dormir. A alma fugíra
Para ir velar o doce objecto amado,
Por quem, nas ancias da paixão, suspira;
E é provavel que, achando o exemplo dado,
Ao pé de Heitor viesse a alma de Elviva;
De maneira que os dous, de si ausentes,
Lá se achavão mais vivos e presentes.

XLVIII

Ao romper da manhã, co'o sol ardente,
Briza fresca, entre as folhas sussurrando,
O não-dormido vate acorda, e a mente
Lhe foi dos vagos sonhos arrancando.
Heitor contempla o valle resplendente,
A flôr abrindo, o passaro cantando;
E a terra que entre risos acordava,
Ao sol do estio as roupas enxugava.

XLIX

Tudo então lhe sorria. A natureza,
As musas, o futuro, o amor e a vida;
Quanto sonhára aquella mente accesa
Dera-lhe a sorte, emfim, compadecida.
Um paraiso, uma gentil belleza,
E a ternura castissima e vencida
De um coração creado para amores,
Que exhala affectos como aroma as flôres.

L

E ella? Se conheceste em tua vida,
Leitora, o mal do amor, delirio santo,
Dôr que eleva e conforta a alma abatida,
Embriaguez do céu, divino encanto,
Se a tua face ardente e enrubecida
Pallejou com suspiros e com prantos,
Se ardeste emfim, naquella intensa chamma,
Entenderás o amor de ingenua dama.

LI

Repara que eu não fallo desse enleio
De uma noite de baile ou de palestra;
Amor que mal agita a flôr do seio,
E ao chá termina e acaba com a orchestra;
Não me refiro ao simples galanteio
Em que cada menina é velha mestra,
Avesso ao sacrifício, á dor e ao choro;
Fallo do amor, não fallo do namoro.

LII

Eden de amor, ó solidão fechada,
Casto asylo a que o sol dos novos dias
Vai mandar, como a furto, a luz coada
Pelas frestas das verdes gelosias,
Guarda-os ambos; conserva-os recatada.
Almas feitas de amor e de harmonias,
Tecei, tecei as vividas capellas,
Deixai correr sem susto as horas bellas.

LIII

Cá fóra o mundo insipido e profano
Não dá, nem póde dar o enleio puro
Das almas novas, nem o doce engano
Com que se esquecem males do futuro.
Não busqueis penetrar n'este oceano
Em que se agita o temporal escuro.
Por fugir ao naufragio e ao soffrimento,
Tendes uma enseada,—o casamento.

LIV

Resumamos, leitora, a narrativa.
Tanta strophe a cantar ethereas chammas
Pede compensação, musa insensiva,
Que fatigais sem pena o ouvido ás damas.
Demais, é regra certa e positiva
Que muitas vezes as maiores famas
Perde-as uma ambição de tagarella;
Musa, aprende a lição; musa, cautela!

LV

Mezes depois da scena relatada
Nas strophes, a folhas,—o poeta
Ouviu do velho Antero uma estudada
Oração ciceronica e selecta;
A conclusão da arenga preparada
Era mais agradavel que discreta.
Dizia o velho erguendo olhos serenos:
«Pois que se adoram, casem-se, pequenos!»

LVI

Lagrima santa, lagrima de gosto
Vertem olhos de Elvira; e um riso aberto
Veio inundar-lhe de prazer o rosto
Como uma flôr que abrisse no deserto.
Se iam já longe as sombras do desgosto;
Inda até li era o futuro incerto;
Fez-lh'o certo o ancião; e a moça grata
Beija a mão que o futuro lhe resgata.

LVII

Correm-se banhos, tiram-se dispensas,
Vai-se buscar um padre ao povoado;
Prepara-se o enxoval e outras pertenças
Necessarias agora ao novo estado.
Notam-se até algumas differenças
No modo de viver do velho honrado,
Que sacrifica á noiva e aos deuses lares
Um estudo dos classicos jantares.

LVIII

«Onde vás tu?—Á serra!—Vou comtigo.
«—Não, não venhas, meu anjo, é longa a estrada.
«Se cansares?—Sou leve, meu amigo;
«Descerei nos teus hombros carregada.
«—Vou compôr encostado ao cedro antigo
«Canto de nupcias.—Seguirei calada;
«Junto de ti, ter-me-has mais em lembrança;
«Musa serei sem perturbar.—Criança!»

LIX

Brandamente repelle Heitor a Elvira;
A moça fica; o poeta lentamente
Sobe a montanha. A noiva repetíra
O primeiro pedido inutilmente.
Olha-o de longe, e timida suspira.
Vinha a tarde cahindo frouxamente,
Não triste, mas risonha e fresca e bella,
Como a vida da pallida donzella.

LX

Chegando, emfim, á c'rôa da collina,
Víram olhos de Heitor o mar ao largo,
E o sol, que despe a veste purpurina,
Para dormir no eterno leito amargo.
Surge das aguas pallida e divina,
Essa que tem por deleitoso encargo
Velar amantes, proteger amores,
Lua, musa dos candidos palores.

LXI

Respira Heitor; e livre. O casamento?
Foi sonho que passou, fugaz idéa
Que não pôde durar mais que um momento.
Outra ambição a alma lhe incendeia.
Dissipada a illusão, o pensamento
Novo quadro a seus olhos patenteia,
Não lhe basta aos desejos de sua alma
A enseada da vida estreita e calma.

LXII

Aspira ao largo; pulsam-lhe no peito
Uns impetos de vida; outro horizonte,
Tumidas vagas, temporal desfeito,
Quer com elles lutar fronte por fronte.
Deixa o tranquillo amor, casto e perfeito,
Pelos brodios de Venus de Amathonte;
A existencia entre flôres esquecida
Pelos rumores de mais ampla vida.

LXIII

Nas mãos da noite desmaiára a tarde;
Descem ao valle as sombras vergonhosas;
Noite que o céu, por mofa ou por alarde,
Torna propicia ás almas venturosas.
O derradeiro olhar frio e covarde
E umas não sei que strophes lamentosas
Solta o poeta, emquanto a triste Elvira,
Viuva antes de noiva, em vão suspira!

LXIV

Transpõe o mar Heitor, transpõe montanhas;
Tu, curiosidade, o ingrato levas
A ir ver o sol das regiões extranhas.
A ir ver o amor das peregrinas Evas.
Vai, em troco de palmas e façanhas,
Viver na morte, bracejar nas trevas;
Fazendo amor, que é livro aos homens dado,
Copioso almanach namorado.

LXV

Inscreve n'elle a moça de Sevilha,
Longas festas e noites hespanholas,
A indiscreta e diabolica mantilha
Que a fronte cinge a amantes e a carolas.
Quantos encontra corações perfilha,
Faz da bolsa e do amor largas esmolas:
Esquece o antigo amor e a antiga musa
Entre os beijos da lepida andaluza.

LXVI

Canta no seio turgido e macio
Da fogosa, indolente Italiana,
E dorme junto ao laranjal sombrio
Ao som de uma canção napolitana.
Dão-lhe para os serões do ardente estio,
Asti, os vinhos; mulheres, a Toscana.
Roma adora, embriaga-se em Veneza,
E ama a arte nos braços da belleza.

LXVII

Vê Londres, vê Paris, terra das ceias,
Feira do amor a toda a bolsa aberta;
No mesmo laço, as bellas como as feias,
Por capricho ou razão, iguaes aperta;
A edade não pergunta ás taças cheias,
Só pede o vinho que o prazer desperta;
Adora as outoniças, como as novas,
Torna-se heróe de rua e heróe de alcovas.

LXVIII

Versos quando os compõe, celebram antes
O alegre vicio que a virtude austera;
Canta os beijos e as noites delirantes,
O esteril gozo que a volupia gera;
Troca a illusão que o seduzia d'antes
Por maior e tristissima chimera;
Ave do céu, entre os osculos creada,
Espalha as plumas brancas pela estrada.

LXIX

Um dia, emfim, cansado e aborrecido,
Acorda Heitor; e olhando em roda e ao largo,
Vê um deserto, e do prazer perdido
Resta-lhe unicamente o gosto amargo;
Não achou o ideal appetecido
No longo e profundissimo lethargo:
A vida exhausta em feitos e esplendores,
Se alguma tinha, eram já murchas flôres.

LXX

Ora, uma noite, costeando o Rheno,
Ao luar melancolico,—buscava
Aquelle gozo simples, doce, ameno,
Que á vida toda outr'ora lhe bastava;
Voz remota, cortando o ar sereno,
Em derredor os échos acordava;
Voz aldeã que o largo espaço enchia,
E uma canção de Schiller repetia.

LXXI

«A gloria! diz Heitor, a gloria é vida!
Porque busquei nos gozos de outra sorte
Esta felicidade appetecida,
Esta resurreição que annulla a morte?
Ó illusão fantastica e perdida!
Ó mal gasto, ardentissimo transporte!
Musa, restaura as apagadas tintas!
Revivei, revivei, chammas extinctas!»

LXXII

A gloria? Tarde vens, pobre exilado!
A gloria pede as illusões viçosas,
Estro em flôr, coração electrisado,
Mãos que possam colher ethereas rosas;
Mas tu, filho do ocio e do peccado,
Tu que perdeste as forças portentosas
Na agitação que os animos abate,
Queres colher a palma do combate?

LXXIII

Chamas em vão as musas; deslembradas,
Á tua voz os seus ouvidos cerram;
E nas paginas virgens, preparadas,
Pobre poeta, em vão teus olhos erram;
Nega-se a inspiração; nas despregadas
Cordas da velha lyra, os sons que encerram
Inertes dormem; teus cansados dedos
orrem debalde; esquecem-lhe os segredos.

LXXIV

Ah! se a taça do amor e dos prazeres
Já não guarda licor que te embriague;
Se nem musas nem languidas mulheres
Têm coração que o teu desejo apague;
Busca a sciencia, estuda a lei dos seres,
Que a mão divina a tua dôr esmague;
Entra em ti, vê o que és, observa em roda,
Escuta e palpa a natureza toda.

LXXV

Livros compra, um philosopho procura;
Revolve a creação, prescruta a vida;
Vê se espancas a longa noite escura
Em que a esteril razão andou mettida;
Talvez aches a palma da ventura
No campo das sciencias escondida.
Que a tua mente as illusões esqueça:
Se o coração morreu, vive a cabeça!

LXXVI

Ora, por não brigar co'os meus leitores,
Dos quaes, conforme a curta ou longa vista,
Uns pertencem aos grupos novadores,
Da fria communhão materialista;
Outros, seguindo exemplos dos melhores,
Defendem a theoria idealista;
Outros, emfim, fugindo armas extremas,
Vão curando por ambos os systemas.

LXXVII

Direi que o nosso Heitor, após o estudo
Da natureza e suas harmonias,
(Oppondo a consciencia um forte escudo
Contra divagações e fantasias);
Depois de ter aprofundado tudo,
Planta, homem, estrellas, noites, dias,
Achou esta lição inesperada:
Veiu a saber que não sabia nada.

LXXVIII

«Nada! exclama um philosopho amarello
Pelas longas vigilias, afastando
Um livro que ha de ver um dia ao prelo
E em cujas folhas ia trabalhando.
Pois eu, doutor de borla e de capello,
Eu que passo os meus dias estudando,
Hei de ler o que escreve penna ousada,
Que a sciencia da vida acaba em nada?»

LXXIX

Aqui convinha intercalar com geito,
Sem pretenção, nem pompa nem barulho,
Uma arrancada apostrophe do peito
Contra as vãs pretenções do nosso orgulho;
Conviria mostrar em todo o effeito
Essa que é dos espiritos entulho,
Sciencia vã, de magnas leis tão rica,
Que ignora tudo, e tudo ao mundo explica.

LXXX

Mas, urgindo acabar este romance,
Deixo em paz o philosopho, e procuro
Dizer do vate o doloroso trance
Quando se achou mais pecco e mais escuro.
Valêra bem n'aquelle triste lance
Um sorriso do céu placido e puro,
Raio do sol eterno da verdade,
Que a vida aquece e alenta a humanidade.

LXXXI

Que! nem ao menos na sciencia havia
Fonte que a eterna sêde lhe matasse?
Nem no amor, nem no seio da poesia
Podia nunca repousar a face;
Atrás d'esse fantasma correria
Sem que jámais as fórmas lhe palpasse?
Seria acaso a sua ingrata sorte
A ventura encontrar nas mãos da morte?

LXXXII

A morte! Heitor pensára alguns momentos
N'essa sombria porta aberta á vida;
Pallido archanjo dos finaes alentos
De alma que o céu deixou desilludida;
Mão que, fechando os olhos somnolentos,
Põe o termo fatal á humana lida;
Templo de gloria ou região do medo,
Morte, quem te arrancára o teu segredo?

LXXXIII

Vasio, inutil, ermo de esperanças
Heitor buscava a noiva ignota e fria,
Que o envolvesse então nas longas tranças
E o conduzisse á camara sombria,
Quando, em meio de pallidas lembranças,
Surgiu-lhe a idéa de um remoto dia,
Em que cingindo a candida capella
Estava a pertencer-lhe uma donzella.

LXXXIV

Elvira! o casto amor! a esposa amante!
Rosa de uma estação, deixada ao vento!
Riso dos céus! estrella rutilante
Esquecida no azul do firmamento!
Ideal, meteoro de um instante!
Gloria da vida, luz do pensamento!
A gentil, a formosa realidade!
Unica dita e unica verdade!

LXXXV

Ah! porque não ficou calmo e tranquillo
Da ingenua moça nos divinos braços?
Porque fugira ao casto e alegre asylo?
Porque rompêra os mal formados laços?
Quem pudera jámais restituil-o
Aos estreitos, fortissimos abraços
Com que Elvira apertava enternecida
Esse que lhe era o amor, a alma e a vida?

LXXXVI

Será tempo? Quem sabe? Heitor hesita;
Tardio pejo lhe enrubece a face;
Punge o remorso; o coração palpita
Como se vida nova o reanimasse;
Tenue fogo, entre a cinza, arde e se agita...
Ah! se o passado alli resuscitasse
Reviverião illusões viçosas,
E a gasta vida rebentara em rosas!

LXXXVII

Resolve Heitor voltar ao valle amigo,
Onde ficára a noiva abandonada.
Transpõe o lar, affronta-lhe o perigo,
E chega emfim á terra desejada.
Sobe o monte, contempla o cedro antigo,
Sente abrir-se-lhe n'alma a flôr murchada
Das illusões que um dia concebêra;
Rosa extincta da sua primavera!

LXXXVIII

Era a hora em que os serros do oriente
Formar parecem luminosas urnas;
E abre o sol a pupilla resplendente
Que ás folhas sorve as lagrimas nocturnas;
Frouxa briza amorosa e diligente
Vai acordando as sombras taciturnas;
Surge nos braços d'essa aurora estiva
A alegre natureza rediviva.

LXXXIX

Campa era o mar; o valle estreito berço;
De um lado a morte, do outro lado a vida,
Canto do céu, resumo do universo
Ninho para aquecer a ave abatida.
Inda nas sombras todo o valle immerso,
Não acordára á costumada lida;
Repousava no placido abandono
Da paz tranquilla e do tranquillo somno.

XC

Alto já ia o sol, quando descera
Heitor a opposta face da montanha;
Nada do que deixou desparecêra;
O mesmo rio as mesmas hervas banha.
A casa, como então, garrida e austera,
Do sol nascente a viva luz apanha;
Iguaes flôres, nas plantas renascidas...
Tudo alli falla de perpetuas vidas!

XCI

Desce o poeta cauteloso e lento.
Olha de longe; um vulto ao sol erguia
A veneranda fronte, monumento
De grave e celestial melancolia.
Como sulco de um fundo pensamento
Larga ruga na testa abrir se via,
Era a ruina talvez de uma esperança...
Nos braços tinha uma gentil criança.

XCII

Ria a criança; o velho contemplava
Aquella flôr que ás auras matutinas
O perfumoso calix desbrochava
E entrava a abrir as petalas divinas.
Triste sorriso o rosto lhe animava,
Como um raio de lua entre ruinas.
Alegria infantil, tristeza austera,
O inverno torvo, a alegre primavera!

XCIII

Desce o poeta, desce, e preso, e fito
Nos bellos olhos do gentil infante,
Treme, comprime o peito... e após um grito
Corre alegre, exaltado e delirante,
Ah! se jámais as vozes do infinito
Podem sahir de um coração amante,
Teve-as aquelle... Lagrimas sentidas
Lhe inundárão as faces resequidas!

XCIV

«Meu filho!» exclama, e subito parando
Ante o grupo ajoelha o libertino;
Geme, soluça, em lagrimas beijando
As mãos do velho e as tranças do menino.
Ergue-se Antero, e frio e venerando,
Olhos no céu, exclama: «Que destino!
Murchar-lhe, viva, a rosa da ventura;
Morta, insultar-lhe a paz da sepultura!»

XCV

«Morta!—Sim!—Ah! senhor! se arrependido
Posso alcançar perdão, se com meus prantos,
Posso apiedar-lhe o coração ferido
Por tanta mágoa e longos desencantos;
Se este infante, entre lagrimas nascido,
Póde influir-me os seus affectos santos...
É meu filho, não é? perdão lhe imploro!
Veja, senhor! eu soffro, eu creio, eu choro!»

XCVI

Olha-o com frio orgulho o velho honrado;
Depois, fugindo aquella scena estranha,
Entra em casa. O poeta, acabrunhado,
Sobe outra vez a encosta da montanha;
Ao cimo chega, e desce o opposto lado
Que a vaga azul entre soluços banha.
Como fria ironia a tantas mágoas,
Batia o sol de chapa sobre as aguas.

XCVII

Pouco tempo depois ouviu-se um grito,
Som de um corpo nas aguas resvalado;
Á flôr das vagas veio um corpo afflicto...
Depois... o sol tranquillo e o mar calado.
Depois... Aqui termina o manuscripto,
Que ora em lettra de fôrma é publicado.
Nestas estrophes pallidas e mausas,
Para te divertir de outras lembranças.


AMERICANAS

(1875)

POTYRA[6]

Os Tamoyos, entre outras presas que fizeram, levaram esta india, a qual pretendeu o capitão da empreza violar: resistiu valorosamente dizendo em lingua brasilica: «Eu sou christã e casada; não heide fazer traição a Deus e a meu marido; bom podes matar-me e fazer do mim o que quizeres.» Deu-se por a affrontado o barbaro, e em vingança lhe acabou a vida com grande crueldade.

VASC. Chr. da Comp. de Jesus, liv 3°.

I

Moça christã das solidões antigas,
Em que aurea folha reviveu teu nome?
Nem o eco das mattas seculares,
Nem a voz das sonoras cachoeiras,
O transmitiu aos seculos futuros.
Assim da tarde estiva ás auras frouxas
Tenue fumo do colmo no ar se perde;
Nem de outra sorte em moribundos labios
A humana voz expira. O horror e o sangue
Da miseranda scena em que, de envolta
Co'os longos, magoadissimos suspiros,
Christã Lucrecia, abriu tua alma o voo
Para subir ás regiões celestes,
Mal deixada memoria aos homens lembra.
Isso apenas; não mais; teu nome obscuro,
Nem tua campa o brazileiro os sabe.

II

Ja da férvida luta os ais e os gritos
Extinctos eram. Nos baixeis ligeiros
Os tamoyos incolumes embarcam;
Ferem co'os remos as serenas ondas
Até surgirem na remota aldêa.
Atrás ficava, luctuosa e triste,
A nascente cidade brazileira,[7]
Do inopinado assalto espavorida,
Ao céu mandando em côro inuteis vozes.
Vinha já perto rareando a noite,
Alva aurora, que á vida accorda as selvas,
Quando a aldêa surgiu aos olhos torvos
Da expedição nocturna. Á praia saltam
Os vencedores em tropel: transportam
Ás cabanas despojos e vencidos,
E, da vigilia fatigados, buscam
Na curva, leve rede amigo somno,
Excepto o chefe. Oh! esse não dormira
Longas noites, se a troco da victoria
Precisas fossem. Traz comsigo o premio,
O desejado premio. Desmaiada
Conduz nos braços tremulos a moça
Que renegou Tupan, e as rudes crenças[8]
Lavou nas aguas do baptismo santo.
Na rode ornada de amarellas pennas
Brandamente a depõe. Leve tecido
Da captiva gentil as fórmas cobre;
Veste-as de mais a sombra do crepusculo,
Sombra que a tibia luz da alva nascente
De todo não rompeu. Inquieto sangue
Nas veias ferve do indio. Os olhos luzem
De concentrada raiva triumphante.
Amor talvez lhes lança um leve toque
De ternura, ou já soffrego desejo;
Amor, como elle, asperrimo e selvagem,
Que outro não sente o heroe.

III

Heroe lhe chamam
Quantos o hão visto no fervor da guerra
Medo e morte espalhar entre os contrarios
E avantajar-se nos certeiras golpes
Aos mais fortes da tribu. O arco e a flecha
Desde a infancia os meneia ousado o affouto;
Cedo apprendeu nas solitarias brenhas
A pleitear ás feras o caminho.
A força oppõe á força, a astucia á astucia,
Qual se da onça e da serpente houvera
Colhido as armas. Traz ao collo os dentes
Dos contrarios vencidos. Nem dos annos
O numera supera o das victorias;
Tem no espaçoso rosto a flôr da vida,
A juventude, e goza entre os mais bellos
De real primazia. A cinta e a fronte
Azues, vermelhas plumas alardeam,
Ingenuas galas do gentio inculto.

IV

Da captiva gentil cerrados olhos
Não se entreabrem á luz. Morta parece.
Uma só contracção lhe não perturba
A paz serena do mimoso rosto.
Junto della, cruzados sobre o peito
Os braços, Anagê contempla e espera;
Soffrego espera, em quanto ideias negras
Estão a revoar-lhe em torno e a encher-lhe
A mente de projectos tenebrosos.
Tal no cimo do velho Corcovado
Proxima tempestade engloba as nuvens.
Subito ao seio turgido e macio
Anciosas mãos estende; inda palpita
O coração, com desusada força,
Como se a vida toda alli buscasse
Refugio certo e ultimo. Impetuoso
O vestido cristão lhe despedaça,
E á luz já viva da manhã recente
Contempla as nuas fórmas. Era acaso
A syncope chegada ao termo proprio,
Ou, no pejo offendida, ás mãos extranhas
A desmaiada moça despertára.
Potyra accorda, os olhos lança em torno,
Fita, vê, comprehende, e inquieta busca
Fugir do vencedor ás mãos e ao crime...
Misera! opõe-se-lhe o irritado gesto
Do asperrimo guerreiro; um ai lhe sobe
Angustioso e triste aos labios tremulos,
Sobe, murmura e suffocado expira.
Na rede envolve o corpo, e, desviando
Do terrivel tamoyo os lindos olhos,
Entrecortada prece aos céus envia,
E as faces banha de serenas lagrimas.

V

Longo tempo correra. Amplo silencio
Reinou entre ambos. Do tamoyo a fronte
Pouco a pouco despira o torvo aspecto.
Ao trabalhado espirito, revolto
De mil sinistros pensamentos, volve
Benigna calma. Tal de um rio engrossa
O volume extensissimo das aguas
Que vão enchendo de pavor os ecos,
Vencendo no arruido o vento e o raio,
E pouco a pouco atenuando as vozes,
Adelgaçando as ondas, tornam mansas
Ao primitivo leito. Ei-lo se inclina,
Para tomar nos braços a formosa
Por cujo amor incendiara a aldêa
Daquellas gentes pallidas de Europa.
Sente-lhe a moça as mãos, e erguendo o rosto,
O rosto inda de lagrimas molhado,
Do coração estas palavras solta:
«—Lá entre os meus, suave e amiga morte,
Ah! porque me não deste? Houvera ao menos
Quem escutasse de meus labios frios
A prece derradeira; e a santa benção
Levaria minha alma aos pés do Eterno...
Não, não te peço a vida; é tua, extingue-a;
Um só allivio imploro. Não receies
Embeber no meu sangue a ervada setta;
Mata-me, sim; mas leva-me onde eu possa
Ter em sagrado leito o ultimo somno!»
Disse, e fitando no indio avidos olhos,
Esperou. Anagê sacode a fronte,
Como se lhe pesara ideia triste;
Crava os olhos no chão; lentas lhe saem
Estas vozes do peito.
«Oh! nunca os padres
Pisado houvessem estas plagas virgens!
Nunca de um deus estranho as leis ignotas
Viessem perturbar as tribos, como
Perturba o vento as aguas! Rosto a rosto
Os guerreiros pelejam: matam, morrem.
Ante o fulgor das armas inimigas
Não descora o tamoyo. Assaz lhe pulsa
Valor nativo e raro em peito livre.
Armas, deu-lh'as Tupan novas e eternas
Nestas mattas vastissimas. De sangue
Extranhos rios hão de, ao mar correndo,
Tristes novas levar á patria delles,
Primeiro que o tamoyo a frente incline
Aos inimigos peitos. Outra força,
Outra e maior nos move a guerra crua;
São elles, são os padres. Esses mostram
Cheia de riso a boca e o mel nas vozes,
Sereno o rosto e as brancas mãos inermes;
Ordens não trazem de cacique alheio,
Tudo nos levam, tudo. Uma por uma
As filhas de Tupan correm trás elles,
Com ellas os guerreiros, e com todos
A nossa antiga fé. Vem perto o dia
Em que, na imensidão destes desertos,
Ha de ao frio luar das longas noites
O pagé suspirar sozinho e triste
Sem povo nem Tupan!»

VI

Silenciosas
Lagrimas lhe espremeu dos olhos negros
Esta lembrança de futuros males.
«—Escuta!» diz Potyra. O indio estende
Imperioso as mãos e assim prossegue:
«—Tambem com elles foste, e foi comtigo
Da minha vida a flôr! Teu pai mandara,
E com ele mandou Tupan que eu fosse
Teu esposo; vedou-m'o a voz dos padres,
Que me perdeu, levando-te consigo.
Não morri; vivi só para esta affronta;
Vivi para esta insolita tristeza
De maldizer teu nome e as graças tuas,
Chorar-te a vida e desejar-te a morte.
Ai! nos rudes combates em que a tribu
Rega de sangue o chão da virgem terra
Ou tinge a flôr do mar, nunca a meu lado
Teu nobre vulto esteve. A aldêa toda,
Mais que o teu coração, ficou deserta.
Duas vezes, mimosas rebentaram
Do lacrimoso cajueiro as flôres,
Desde o dia funesto em que deixaste
A cabana paterna. O extremo lumo
Expirou de teu pai nos olhos tristes;
Piedosa chamma consumiu seus restos,
E a aldêa toda o lastimou com prantos.
Não de todo se foi da nossa vida;
Parte ficou para sentir teus males.
Antes que o ultimo sol á melindrosa
Flôr do maracujá cerrasse as folhas
Um sonho tive. Merencorio vulto,
Triste como uma fronte de vencido,
Cor da lua os cabellos venerandos,
O vulto de teu pae: «Guerreiro (disse),
«Corre á vizinha habitação dos brancos,
«Vai, arranca Potyra á lei funesta
«Dos pallidos pagés; Tupan t'o ordena;
«Nos braços traze a fugitiva corça;
«Vincula o teu destino ao dela; é tua.»
«—Impossivel! Que vale um vago sonho?
Sou esposa e christã. Impio, respeita
O amor que Deus protege e sanctifica:
Mata-me; a minha vida te pertence:
Ou, se te pesa derramar o sangue
Daquella a quem amaste, e por quem foste
Lançar entre os christãos a dor e o susto,
Faze-me escrava; servirei contente
Emquanto a vida allumiar meus olhos.
Toma, entrego-te o sangue e a liberdade
Ordena ou fere. Tua esposa, nunca!»
Calou-se, e reclinada sobre a rede,
Potyra murmurava ignota prece,
Olhos fitos no proximo arvoredo,
Olhos não ermos de profunda magua.

VII

Ó Christo! em que alma penetrou teu nome
Que lhe não désse o balsamo da vida?
Pelo vento dos seculos levado,
Vidente e cego, o maximo dos seres,
Que fora do homem nesta escassa terra,
Se ao mysterio da vida lhe não désses,
Ó Christo! a eterna chave da esperança
Philosophia stoica, ardua virtude,
Creação de homem, tudo passa e expira.
Tu só, filha de Deus, palavra amiga,
Tu, suavissima voz da eternidade,
Tu perduras, tu vales, tu confortas.
Neste sonho iriado de outros sonhos,
Varios como as feições da natureza,
Nesta confusa agitação da vida,
Que alma transpõe a derradeira edade
Farta de algumas passageiras glorias?
Torvo é o ar do sepulchro; alli não viçam
Essas cansadas rosas da existencia
Que ás vezes tantas lagrimas nos custam,
E tantas mais antes do occaso expiram.
Flôr do Evangelho, nuncia de alvos dias,
Esperança christã, não te ha murchado
O vento arido e secco; és tu viçosa
Quando as da terra languidas inclinam
O seio, e a vida lentamente exhalam.
Esta a consolação ultima e doce
Da esposa indiana foi. Captiva ou morta,
Antevia a celeste recompensa
Que aos humildes reserva a mão do Eterno.
Naquelle rude coração das brenhas
A semente evangelica brotara.

VIII

Das duas condições deu-lhe o guerreiro
A peor,—fel-a escrava; e eil-a apparece
Da sua aldea aos olhos espantados
Qual fôra em dias de melhor ventura.
Despida vem das roupas que lhe ha posto
Sobre as polidas fórmas uso extranho,
Não sabido jamais daquelles povos
Que a natureza ingenua doutrinara.
Vence na gentileza ás mais da tribu,
E tem de sobra um sentimento novo,
Pudor de esposa e de christã,—realce
Que ao indio accende a natural volupia.
Simulada alegria lhe descerra
Os labios; riso á flôr, escasso e dubio,
Que mal lhe encobre as vergonhosas maguas.
Á voz do seu senhor accorre humilde;
Não a assusta o labor; nem dos perigos
Conhece os medos. Nas ruidosas festas,
Quando ferve o canim, e o ar atrôa[9]
Pocema de alegria ou de combate,
Como que se lhe fecha a flôr do rosto.
Ja lhe descae então no seio oppresso
A graciosa fronte; os olhos fecha,
E ao céu voltando o pensamento puro,
Menos por si, que pelos outros pede.
Nem só o ardor da fé lhe abraza o peito;
Lacera-lh'o tambem agra saudade;
Chora a separação do amado esposo,
Que, ou cedo a esquece, ou solitario geme.
Se, alguma vez, fugindo a extranhos olhos,
Não já crueis, mas cubiçosos della,
Entra desatinada o bosque antigo,
E a dor expande em lobregos soluços,
Co'o doce nome accorda ao longe os écos,
Farta de amor e prodiga de vida,
Ouve-as a selva, e não lhe entende as maguas.
Outras vezes pisando a ruiva areia
Das praias, ou galgando a penedia
Cujos pés orla o mar de nivea espuma,
As ondas murmurantes interroga;
Conta ao vento da noite as dores suas;
Mas... fieis ao destino e á lei que as rege,
As preguiçosas ondas vão caminho,
Crespas do vento que sussurra e passa.

IX

Quando, ao sol da manhã, partem ás vezes,
Com seus arcos, os destros caçadores,
E alguns da rija estaca desatando
Os nós de embira ás rapidas igaras,
A pesca vão pelas ribeiras proximas,
Das esposas, das mães que os lares velam,
Grata alegria os corações innunda,
Menos o della, que suspira e geme,
E não aguarda doce esposo ou filho.
Triste os vê na partida e no regresso,
E nessa melancholica postura,
Simelha a acacia langue e esmorecida,
Que já de orvalho ou sol não pede os beijos.
As outras...—Raro em labios de felizes
Alheias maguas travam. Não se pejam
De seus olhos azuis e alegres pennas
Os sahis sobre as arvores pousados,
Se ao perto voa na campina verde
De anuns luctuoso bando; nem os trillos
Das andorinhas interrompe a nota
Que a jurity suspira.—As outras folgam
Pelo arraial dispersas; vão-se á terra
Arrancar as raizes nutritivas,
E fazem os preparos do banquete
A que hão de vir mais tarde os destemidos
Senhores do arco, alegres vencedores
De quanto vive na agua e na floresta.
Da captiva nenhuma inquire as maguas.
Comtudo, algumas vezes, curiosas
Virgens lhe dizem, apiedando o gesto:
—«Pois que á taba voltaste, em que teus olhos
Primeiro viram luz, que magua funda
Lhes distilla tão longo e amargo pranto,
Amargo mais do que esse que não busca
Recatado silencio?»—E ás doces vozes
A christã desterrada assim responde:
—«Potyra é como aquella flôr que chora
Lagrimas de alvo leite, se do galho
Mão cruel a cortou. Oh! não permitta
O céu que ímpia fortuna vos separe
Daquelle que escolherdes. Dor é essa
Maior que um pobre coração de esposa.
Esperanças... Deixei-as nessas aguas
Que me trouxeram, complices do crime,
Á taba de Tupan, não allumiada
Da palavra celeste. Algumas vezes,
Raras, alveja em minha noite escura
Não sei que tibia aurora, e penso: Acaso
O sol que vem me guarda um raio amigo,
Que hade accender nestes cansados olhos
Ventura que já foi. As asas colhe
Guanumby, e o aguçado bico embebe
No tronco, onde repousa adormecido
Até que volte uma estação de flôres.[10]
Ventura imita o guanumby dos campos:
Accordará co'as flôres de outros dias.
Doce illusão que rapido se escoa,
Como o pingo de orvalho mal fechado
N'uma folha que o vento agita e entorna.»
E as virgens dizem, apiedando o gesto:
—«Potyra é como aquella flôr que chora
«Lagrimas de alvo leite, se do galho
«Mão cruel a cortou!»

X

Era chegado
O fatal prazo, o desenlace triste.
Tudo morre,—a tristeza como o gozo;
Rosas de amor ou lyrios de saudade,
Tarde ou cedo os esfolha a mão do tempo.
Costeando as longas praias, ou transpondo
Extensos valles e montanhas, correm
Mensageiros que ás tabas mais vizinhas
Vão convidar á festa as gentes todas.
Era a festa da morte. Indio guerreiro,
Trez luas ha captivo, o instante aguarda
Em que ás mãos de inimigos vencedores,
Cáia expirante, e os vinculos rompendo
Da vida, a alma remonte além dos Andes.
Corre de boca em boca e de eco em eco
A alegre nova. Vem descendo os montes,
Ou abicando ás povoadas praias
Gente da raça illustre. A onda immensa
Pelo arraial se estende pressurosa.
De quantas côres natureza fertil
Tinge as proprias feições, copiam elles
Engraçadas, vistosas louçanias.
Vários na edade são, varios no aspecto,
Todos iguais e irmãos no herdado brio.
Dado o amplexo de amigo, acompanhado
De suspiros e pesames sinceros
Pelas fadigas da viagem longa,
Rompem ruidosas danças. Ao tamoyo
Deu o Ibake os segredos da poesia;
Cantos festivos, moduladas vozes,
Enchem os ares, celebrando a festa
Do sacrificio proximo. Ah! não cubra
Véu de nojo ou tristeza o rosto aos filhos
Destes polidos tempos! Rudes eram
Aquelles homens de asperos costumes,
Que ante o sangue de irmãos folgavam livres,
E nós, soberbos filhos de outra edade,
Que a voz fallamos da razão severa
E na luz nos banhamos do Calvario,
Que somos nós mais que elles? Raça triste
De Cains, raça eterna...

XI

Os cantos cessam.
Calou-se o maracá. As roucas vozes
Dos férvidos guerreiros já reclamam
O brutal sacrificio. Ás mãos das servas
A taça do cauim passara exhausta.
Inquieto aguarda o prisioneiro a morte.
Da nação guayanaz nos rudes campos
Nasceu. Nos campos da saudosa patria
Industriosa mão não sabe ainda
Alevantar as tabas. Cova funda
Da terra, mãe comum, no seio aberta,[11]
Os acolhe e protege. O chão lhes forra
A pele do tapir; continua chamma
Lhes suppre a luz do sol. É uso antigo
Do guayanaz que chega a extrema edade,
Ou de mortal doença accomettido,
Não expirar aos olhos de outros homens;
Vivo o guardam no bojo da igaçaba,
E á fria terra o dão, como se fôra
Pasto melhor (melhor!) aos frios vermes.
Do almo, doce licor que extrai das flôres
Mãe do mel, iramaya, larga cópia
Pelos robustos membros lhe coaram
Seis anciãs da tribu. Rubras pennas
Na vasta fronte e nos nervosos braços
Garridamente o enfeitam. Longa e forte
A mussuranna os rins lhe cinge e aperta.
Entra na praça o funebre cortejo.
Olhar tranquillo, inda que fero, espalha
O indomado captivo. Em pé, defronte,
Grave, silencioso, ao sol mostrando
De feias cores e vistosas plumas
Singular harmonia, aguarda a victima
O executor. Nas mãos lhe pende a enorme
Tagapema enfeitada, arma certeira,
Arma triumphal de morte e de exterminio.
Medem-se rosto a rosto os dois contrarios
C'um sorriso feroz. Confusas vozes
Enchem subito o espaço. Não lhe é dado
Ao vencido guerreiro haver a morte
Silenciosa e triste em que se passa
Da curva rede á fria sepultura.
Meigas aves que vão de um clima a outro
Abrem placidamente as asas leves,
Não tu, guerreiro, que encaraste a morte,
Tu combate! Vencido e vencedores
Derradeiros escarneos se arremessam;
Gritos, injurias, convulsões de raiva,
Vivo clamor accorda os longos ecos
Das penedias proximas. A clava
Do executor girou no ar trez vezes
E de leve caiu na grossa espadua
Do arquejante captivo. Já na boca,
Que o desprezo e o furor n'um riso entreabrem,
Orla de espuma alveja. Avança, corre,
Estaca... Não lhe dá mais amplo espaço
A mussurana, cujas pontas tiram
Dois mancebos robustos. Nas cavernas
Do longo peito lhe murmura o odio,
Surdo, como o rumor da terra inquieta,
Pejada de vulcões. Os labios morde,
E, como derradeira injuria, á face
Do executor lhe cospe espuma e sangue.
Não vibra o arco mais veloz o tiro,
Nem mais segura no aterrado cervo
Feroz succuriuba os nós enrosca,
Do que a pesada, enorme tagapema
A cabeça de um golpe lhe esmigalha.
Cae fulminada a vitima na terra,
E alegre o povo longamente applaude.

XII

Na voz universal perdeu-se um grito
De piedade e terror: tão fundo entrára
Naquella alma roubada á noite escura
Raio de sol christão! Potyra foge,
Pelos bosques atonita se entranha
E pára á margem de um pequeno rio;
Pousa na relva os tremulos joelhos
E nas mimosas mãos esconde o rosto.
Não de lagrimas era aquelle sitio
Ou só de doces lagrimas choradas
De olhos que amor venceu:—macia relva,
Leito de sesta a amores fugitivos.
Da verde, rara abobada de folhas
Tepida e doce a luz coava a frouxo
Do sol, que, além das arvores, tranquillo,
Metade da jornada ia transpondo.
Longe era ainda a hora melancholica
Em que a geremma cerra a miuda folha,
E o lume azul o pyrilampo accende.
De pé, a um velho tronco descoroado
Da copada ramagem, resto apenas,
Vestigio do tufão, a indiana moça
Languidamente encosta o esbelto corpo.
Neste ameno recesso tudo é triste,
Porque é alegre tudo. Não mui longe
Um desfolhado ipê conserva e guarda
Flôres que lhe ficaram de outro estio,
Como esperança de folhagem nova,
Flôres que a desventura lhe ha negado,
A ella, alma esquecida nesta terra,
Que nada espera da estação vindoura.
Olha, e de inveja o coração lhe estalla.
Pelo tronco das arvores se enroscam
Parasitas, esposas do arvoredo,
Mais fieis não, mais venturosas que ella.
Morrer? Descanso fôra ás maguas suas,
Mais que descanço, perduravel gozo,
Que a nossa eterna patria aos infelizes
Deste desterro guarda alvas capellas
De não-murchandas e cheirosas flôres.
Tal lhe falava no intimo do peito
Desespero cruel. Alguns instantes
Pela cansada mente lhe vagaram
De voluntaria, abreviada morte,
Luctuosas ideias. Mal comprehende
Esses desmaios da creatura humana
Quem não sentiu no coração rasgado
Abatimento e enôjo; ou, mais do que isto,
Esse contraste immenso e irreparavel
Do amor interno e a solidão da vida.
Rapido espaço foi. Prompto lhe volve
Doce resignação, christã virtude,
Que desafia e que assoberba os males.
As debeis mãos levanta. Já dos labios
Solta nas azas de oração singella
Lastimas suas... Na folhagem secca
Ouve de cautos pés rumor sumido,
Volve a cabeça...

XIII

Tremulo, calado,
Anagê crava n'ella os olhos turvos
Dos vapores da festa. As mãos inermes
Lhe pendem; mas o peito—ó misera!—esse,
Esse de mal contido amor transborda.
Longo instante passou. Alfim: «Deixaste
A festa nossa (o barbaro murmura);
Mysteriosa vieste. Dos guerreiros
Nenhum te viu; mas eu senti teus passos,
E vim comtigo ao ermo. Ave mesquinha,
Inutil foges; gavião te espreita,[12]
Minha te fez Tupan.» Em pé, sorrindo,
Escutava Potyra a voz severa
De Anagê. Breve espaço abria entre ambos
Alcatifado chão. A fatal hora
Chegara alfim? Não o perscruta a moça;
Tudo acceita das mãos do seu destino,
Tudo, excepto... No proximo arvoredo
Ouve de uma ave o pio melancholico;
Era a voz de seu pae? a voz do esposo?
De ambos talvez. No animo da escrava
Restos havia dessa crença antiga
Antiga e sempre nova: o peito humano
Raro de obscuros elos se liberta.

XIV

—«Nasceste para ser senhora e dona:
Anagê não te veda a liberdade;
Quebra tu mesma os nós do captiveiro.
Faze-te esposa. Vem coroar meus dias;
Vem, tudo esqueço. A fronte do guerreiro,
Adornada por ti, será mais nobre;
Mais forte o braço em que pousar teu rosto.
Sou menos bello que esse esposo ausente?
Rudes feições compensa amor sobejo.
Vem; ver-me-has companheira nos combates,
E, se inimiga frecha entrar meu seio,
Morrerei a teus pés. Tens medo aos padres?
Outro destino escolhe. Cauteloso,
Tece o japú nos elevados ramos
Das elevadas arvores o ninho,
Onde o inimigo lhe não roube a prole.
Ninho ha na serra ao nosso amor propicio;
Viveremos alli. Troveje em baixo
A inubia convidando a guerra os povos;
Leva de arcos transforme estas aldêas
Em campos de combate,—ou já dispersas
As fugitivas tribus vão buscando
Longes sertões para chorar seus males,
Viveremos alli. Talvez, um dia,
Quando eu passar á mysteriosa estancia
Das delicias eternas, me pergunte
Meu velho pai:—«Teu arco de guerreiro
Em que deserta praia o abandonaste?
Salvar-me-ha teu amor do eterno pejo.»

XV

Doce era a voz e triste. Rasos d'agua
Os olhos. Foi desmaio de tristeza
Que o gesto dissipou da esquiva moça.
Volve ao Tamoyo vingativa ideia.
—«Minha (diz elle) ou morres!» Estremece
Potyra, como quando a brisa passa
Ao de leve na folha da palmeira,
E logo fria ao barbaro responde:
—«Jaz esquecido em nossas velhas tabas
O respeito da esposa? Acaso é digna
Do sangue do Tamoyo esta ameaça?
Que desvalia aos olhos teus me coube,
Se a outro me ligaram natureza,
Religião, destino? A liberdade
Nas tuas mãos depuz; com ella a vida.
É tudo, quasi tudo. Honra de esposa,
Oh! essa deves respeital-a! Vai-te!
Ceva teu odio nas sangrentas carnes
Do prostrado captivo. Aqui chorando,
Na solidão d'estes bosques mal fechados,
As maviosas brisas meus suspiros
Entregarei; leval-os-hão nas azas
La onde geme solitario o esposo.
Vai-te!» E as mimosas mãos colhendo ao rosto,
Alçou a Deus o pensamento amante,
Como a centelha viva que a fogueira
Extincta aos ares sobe. Immovel, muda,
Longo tempo ficou. Diante d'ella,
Como ella immovel, o tamoyo estava.
Amor, odio, ciume, orgulho, pena,
Oppostos sentimentos se combatem
No attribulado peito. Generoso
Era, mas não domado amor lhe dava
Inspiração de crimes. Não mais prompto
Cae sobre a triste corça fugitiva
Jaguar de longa fome esporeado,
Do que elle as mãos lançou ao colo e á fronte
Da misera Potyra. Ai! não, não diga
A minha voz o lamentoso instante
Em que ella, ao seu algoz volvendo anciosa
Turvos olhos: «Perdoo-te!» murmura,
Os labios cerra e immaculada expira!

XVI

Estro maior teu nome obscuro cante,
Moça christã das solidões antigas,
E eterno o cinja de virentes flôres,
Que as mereces. De não sabido bardo
Estes gemidos são. Languidas brisas
No taquaral á noite sussurrando,
Ou enrugando o molle dorso ás vagas,
Não tem a voz com que domina os echos
Despenhada cachoeira. São, comtudo,
Mas que debeis e tristes, no concerto
Da orquestra universal cabidas notas.
Alveja a nebulosa entre as estrellas,
E abre ao pé do rosal a flôr da murta.


NIANI

(HISTORIA GUAYCURU)

Desde então cobriu-se Nanine de uma mortal melancolia, sendo seus olhos sempre chorosos. Assim se passaram trez mezes, quando um dia, estando deitada na sua rustica cama, lhe deram a noticia que seu desleal marido se tinha casado com uma rapariga de menor esphera. Senta-se então Nanine na cama, como arrebatada, chama para junto de si um pequeno indio que era seu cativo, e diz-lhe na presença de varios antecris: «És meu captivo; dou-te a liberdade, com a condição de que te chamarás toda a vida Panenioxe.»

F. RODRIGUES PRADO, Hist. dos Indios Cavalleiros.

...che piange
Vedova sola.

DANTE

I

Contam-se historias antigas
Pelas terras de além-mar,
De moças e de princezas,
Que amor fazia matar.

Mas amor que entranha n'alma
E a vida soe acabar,
Amor é de todo o clima,
Bem como a luz, como o ar.

Morrem delle nas florestas
Aonde habita o jaguar,
Nas margens dos grandes rios
Que levam troncos ao mar.

Agora direi um caso
De muito penalisar,
Tão triste como os que contam
Pelas terras de além-mar.

II

Cabana que esteira cobre
De junco trançado a mão,
Que agitação vae por ella!
Que ledas horas lhe vão!

Panenioxe é guerreiro
Da velha, dura nação,[13]
Cayavaba ha já sentido
A sua lança e facão.[14]

Vem de longe, chega á porta
Do afamado capitão;
Deixa a lança e o cavallo,
Entra com seu coração.

A noiva que elle lhe guarda
Moça é de nobre feição,
Airosa como agil corça
Que corre pelo sertão.

Amores eram nascidos
Naquella tenra estação
Em que a flôr que hade ser flôr
Inda se fecha em botão.

Muitos agora lhe querem,
E muitos que fortes são;
Niani ao melhor delles
Não dera o seu coração.[15]

Casal-os agora, é tempo;
Casal-os, nobre ancião!
Limpo sangue tem o noivo,
Que é filho de capitão.[16]

III

«—Traze a minha lança, escravo,
Que tanto peito abateu;
Traze aqui o meu cavallo
Que largos campos correu.»

«—Lança tens e tens cavallo
Que meu velho pae te deu;
Mas aonde te vás agora
Onde vais, esposo meu?»

«—Vou-me á caça, junto á cova
Onde a onça se metteu...»
«—Montada no meu cavallo,
Vou comtigo, esposo meu.»

«—Vou-me ás ribas do Escopil,
Que a minha lança varreu...»
«—Irei pelejar na guerra,
A teu lado, esposo meu.»

«—Fica-te ahi na cabana
Onde o meu amor nasceu.»
«—Melhor não haver nascido
Se já de todo morreu.»

E uma lagrima,—a primeira
De muitas que ella verteu,—
Pela face cobreada
Lenta, lenta lhe correu.

Enxugal-a, não a enxuga
O esposo que já perdeu,
Que elle no chão fita os olhos,
Como que a voz lhe morreu.

Traz o escravo o seu cavallo
Que o velho sogro lhe deu;
Traz-lhe mais a sua lança
Que tanto peito abateu.

Então, recobrando a alma,
Que o remorso esmoreceu,
Com esta dura palavra
Á esposa lhe respondeu:

«—A bocayuva trez vezes
No tronco amadureceu,[17]
Desde o dia em que o guerreiro
Sua esposa recebeu.»

«Trez vezes! Amor sobejo
Nossa vida toda encheu.
Fastio me entrou no seio,
Fastio que me perdeu.»

E pulando no cavallo,
Sumiu-se... desapareceu...
Pobre moça sem marido,
Chora o amor que lhe morreu!

IV

Leva o Paraguay as aguas,
Leva-as no mesmo correr,
E as aves descem ao campo
Como usavam de descer.

Tenras flôres, que outro tempo
Costumavam de nascer,
Nascem; vivem de egual vida;
Morrem do mesmo morrer.

Niani, pobre viuva,
Viuva sem bem o ser,
Tanta lagrima chorada
Já te não pode valer.

Olhos que amor desmaiára
De um desmaiar que é viver,
O choro empana-os agora,
Como que vão fenecer.

Corpo que fôra robusto
No seu cavallo a correr,
De continua dor quebrado
Mal se póde já suster.

Collar de prata não usa,
Como usava de trazer;
Pulseiras de finas contas
Todas as veiu a romper.[18]

Que ella, se nada ha mudado
Daquelle eterno viver,
Com que a natureza sabe
Renascer, permanecer,

Toda é outra; a alma lhe morre,
Mas de um continuo morrer,
E não ha magua mais triste
De quantas podem doer.

Os que out'rora a desejavam,
Antes della mal haver,
Vendo que chora e padece,
Rindo se põem a dizer:

«—Remador vai na canoa,
Canoa vae a descer...
Piranha espiou do fundo
Piranha, que o vae comer.

Ninguem se fie da braza
Que os olhos veem arder,
Sereno que cae de noite
Ha de fazel-a morrer.

Panenioxe, Panenioxe,
Não lhe sabias querer.
Quem te pagára esse golpe
Que lhe vieste fazer!»

V

Um dia,—era sobre tarde,
Ia-se o sol a afundar;
Calumby cerrava as folhas
Para melhor as guardar.

Vem cavaleiro de longe
E á porta vai apear.
Traz o rosto carregado,
Como a noite sem luar.

Chega-se á pobre da moça
E assim começa a falar:
«—Guaycurú dói-lhe no peito
Tristeza de envergonhar.

Esposo que te ha fugido
Hoje se vae a casar;
Noiva não é de alto sangue,
Porém de sangue vulgar.»

Ergue-se a moça de um pulo,
Arrebatada, e no olhar
Rebenta-lhe uma faisca
Como de luz a expirar.

Menino escravo que tinha
Acerta de ali passar;
Niani attentando nelle
Chama-o para o seu logar.

«—Cativo és tu; serás livre,
Mas vaes o nome trocar;
Nome avesso te pozeram...
Panenioxe has de ficar.»

Pela face cobreada
Desce, desce com vagar
Uma lagrima: era a ultima
Que lhe restava chorar.

Longo tempo alli ficára,
Sem se mover nem fallar;
Os que a veem naquella magoa
Nem ousam de a consolar.

Depois um longo suspiro,
E ia a moça a expirar...
O sol de todo morria
E ennegrecia-se o ar.

Pintam-n'a de vivas cores,
E lhe lançam um collar;[19]
Em fina esteira de junco
Logo a vão amortalhar.

O triste pae suspirando
Nos braços a vae tomar,
Deita-a sobre o seu cavallo
E a leva para enterrar.

Na terra em que dorme agora
Justo lhe era descançar,
Que pagou foro da vida
Com muito e muito penar.

Que assim se morre de amores
Aonde habita o jaguar,
Como as princesas morriam
Pelas terras de além-mar.


A CHRISTÃ NOVA

...essa mesma foi levada
captiva para uma terra estranha.

NAUM, cap. III, v. 10

PARTE I

I

Olhos fitos no céu, sentado á porta,
O velho pae estava. Um luar frouxo
Vinha beijar-lhe a veneranda barba
Alva e longa, que o peito lhe cobria,
Como a nevoa na encosta da montanha
Ao destoucar da aurora. Alta ia a noite,
E silenciosa: a praia era deserta,
Ouvia-se o bater pausado e longo
Da somnolenta vaga,—unico e triste
Som que a mudez quebrava á natureza.

II

Assim talvez nas solidões sombrias
Da velha Palestina
Um propheta no espirito volvera
As desgraças da patria. Quão remota
Aquella de seus paes sagrada terra,
Quão differente desta em que ha vivido
Os seus dias melhores! Vago e doce,
Este luar não allumia os serros
Estereis, nem as ultimas ruinas,
Nem as ermas planicies, nem aquelle
Morno silencio da região que fôra
E que a historia de todo amortalhára.
Ó torrentes antigas! aguas santas
De Cedron! Já talvez o sol que passa,
E vê nascer e vê morrer as flôres,
Todas no leito vos seccou, em quanto
Estas murmuram placidas e cheias,
E vão contando ás deleitosas praias
Esperanças futuras. Longo e longo
O devolver dos seculos
Será, primeiro que a memoria do homem
Teça a mortalha fria
Da região que inda tinge o albor da aurora.

III

Talvez, talvez no espirito fechado
Do ancião vagueavam lentamente
Estas ideias tristes. Junto á praia
Era a austera mansão, donde se via
Desenrolarem-se as serenas vagas
Do nosso golpho azul. Não a enfeitavam
As galas da opulencia, nem os olhos
Entristecia co'o medonho aspecto
Da miseria; não pródiga nem surda
A fortuna lhe fora, mas aquella
Mediana sobria, que os desejos
Contenta do philosopho, lhe havia
Doirado os tectos. Guanabara ainda
Não era a flôr aberta
Da nossa edade; era botão apenas,
Que rompia do hastil, nascido á beira
De suas ondas mansas. Simples e rude,
Ia brotando a juvenil cidade,
Nestas incultas terras, que a lembrança
Recordava talvez do antigo povo,
E o guáu alegre, e as rispidas pelejas,
Toda essa vida que morreu.

IV

Sentada
Aos pés do velho estava a amada filha,
Bella como a açucena dos Cantares,
Como a rosa dos campos. A cabeça
Nos joelhos do pae reclina a moça,
E deixa resvalar o pensamento
Rio abaixo das longas esperanças
E namorados sonhos. Negros olhos
Por entre os mal fechados
Cilios estende á serra que recorta
Ao longe o céu. Morena é a face linda
E levemente pallida. Mais bella,
Nem mais suave era a formosa Ruth
Ante o rico Booz, do que essa virgem,
Flôr que Israel brotou do antigo tronco,
Corada ao sol da juvenil America.

V

Mudos viam correr aquellas horas
Da noite, os dous: ele voltando o rosto
Ao passado, ella os olhos ao futuro.
Cansam-lhe enfim ao pensamento as azas
De ir voando, atravez da espessa treva,
Frouxas as colhe, e desce ao campo exiguo
Da realidade. A delicada virgem
Primeiro volve a si; os lindos dedos
Corre-lhe ao longo da nevada barba,
E: «—Pae amigo, que pensar vos leva
Tão longe a alma?» Estremecendo o velho.
«—Curiosa!—lhe disse,—o pensamento
E como as aves passageiras: voa
A buscar melhor clima.—Opposto rumo
Ias tu, alma em flôr, aberta apenas,
Tão longe ainda do calor da sesta,
Tão remota da noite... Uma esperança
Te sorria talvez? Talvez, quem sabe,
Uns namorados olhos que me roubem,
Que te levem... Não córes, filha minha!
Esquecimento, não; lembrança ao menos
Ficar-te-ha do paterno affecto; e um dia,
Quando eu na terra descansar meus ossos,
Haverás doce balsamo no seio
Da affeição juvenil... Sim; não te accuso;
Ama: é a lei da natureza, eterna!
Ama: um homem será da nossa raça...»

VI

Estas palavras taes ouvindo a moça,
Turbada os olhos descaiu na terra,
E algum tempo ficou calada e triste,
Como no azul do céu o astro da noite,
Se uma nuvem lhe empana a meio a face.
Subito a voz e o rosto alevantando,
Com dissimulação,—peccado embora,
Mas innocente:—«Olhai, a noite é linda!
O vento encrespa mollemente as ondas,
E o céu é todo azul e todo estrelas!
Formosa, oh! quão formosa a terra minha!
Dizei: além desses compridos serros,
Além daquelle mar, á orla de outros,
Outras como esta vivem?»

VII

Fresca e pura
Era-lhe a voz, voz d'alma que sabia
Entrar no coração paterno. A fronte
Inclina o velho sobre o rosto amado
De Angela.—Na cabeça osculo santo
Imprime á filha; e suspirando, os olhos
Melancholicamente ao ar levanta,
Desce-os e assim murmura:
«Vaso é digno de ti, lyrio dos vales,
Terra solene e bella. A natureza
Aqui pomposa, compassiva e grande,
No regaço recebe a alma que chora
E o coração que tumido suspira.
Comtudo, a sombra pesarosa e errante
Do povo que acabou pranteia ainda
Ao longo das areias,
Onde o mar bate, ou no cerrado bosque
Inda povoado das reliquias suas,
Que o nome de Tupan confessar podem
No proprio templo augusto. Ultima e forte
Consolação é esta do vencido
Que viu tudo perder-se no passado,
E unico salva do naufragio imenso
O seu Deus. Patria não. Uma ha na terra
Que eu nunca vi... Hoje é ruina tudo,
E viuvez e morte. Um tempo, emtanto,
Bella e forte ella foi; mas longe, longe
Os dias vão da fortaleza e gloria
Escoados de todo como as aguas
Que não volvem jamais. Oleo que a unge,
Finas telas que a vestem, atavios
De ouro e prata que o colo e os braços lhe ornam,
E a flôr de trigo e mel de que se nutre,
Sonhos, são sonhos do propheta. É morta[20]
Jerusalem! Oh! quem lhe dera os dias
Da passada grandeza, quando a planta
Da senhora das gentes sobre o peito
Pousava dos vencidos, quando o nome
Do que ha salvo Israel, Moysés...»
«—Não! Christo,
Filho de Deus! Só elle ha salvo os homens!»
Isto dizendo, a delicada virgem
As mãos postas ergueu. Uma palavra
Não disse mais; no coração, emtanto,
Murmurava uma prece silenciosa,
Ardente e viva, como a fé que a anima
Ou como a luz da lampada
A que não faltou oleo.

VIII

Taciturno
Esteve longo tempo o ancião. Aquella
Alma infeliz nem toda era de Christo
Nem toda de Moyses; ouvia attento
A palavra da Lei, como nos dias
Do eleito povo; mas a doce nota
Do Evangelho não raro lhe batia
No alvoroçado peito,
Solemnissima e pura... Descambava
No entanto a lua. A noite era mais linda,
E mais augusta a solidão. Na alcova
Entre a pallida moça. Da parede
Um Christo pende; ela os joelhos dobra,
Os dedos cruza e reza,—não serena,
Nem alegre tambem, como costuma,
Mas a tremer-lhe nos formosos olhos
Uma lagrima.

IX

A lampada accendida
Sobre a meza do velho, as largas folhas
Allumia de um livro. O maximo era
Dos livros todos. A escolhida lauda
Era a do canto dos captivos que iam
Pelas ribas do Euphrates, relembrando
As desgraças da patria. A sós, com elles,
Suspira o velho aquelle psalmo antigo:

Junto os rios da terra amaldiçoada
De Babylonia, um dia nos sentamos,
Com saudades de Sião amada.

As harpas nos salgueiros penduramos,
E ao relembrarmos os extintos dias
As lagrimas dos olhos desatamos.

Os que nos davam cruas agonias
De captiveiro, alli nos perguntavam
Pelas nossas antigas harmonias.

E diziamos nós aos que fallavam:
«Como em terra de exilio amargo e duro
Cantar os hymnos que ao Senhor louvavam?»

Jerusalem, se inda n'um sol futuro,
Eu desviar de ti meu pensamento
E teu nome entregar a olvido escuro,

A minha dextra a frio esquecimento
Votada seja; apegue-se á garganta
Esta lingua infiel, se um só momento

Me não lembrar de ti, se a grande e santa
Jerusalem não for minha alegria
Melhor no meio de miseria tanta.

Oh! lembra-lhes, Senhor, aquelle dia
Da abatida Sião, lembra-lh'o aos duros
Filhos de Edom, e á voz que alli dizia:

Arruinai-a, arruinai-a; os muros
Arrazemol-os todos; só lhe baste
Um montão de destroços mal seguros.

Filha de Babylonia, que peccaste,
Abençoado o que se houver comtigo
Com a mesma oppressão que nos mostraste!

Abençoado o barbaro inimigo
Que os tenros filhos teus ás mãos tomando,
Os for, por teu justissimo castigo,
Contra um duro penedo esmigalhando!


PARTE II

I

Era naquella doce e amavel hora
Em que vem branqueando a alva celeste,
Quando parece que remoça a vida
E toda se espreguiça a natureza.
Alva neblina que espalhara a noite
Frouxamente nos ares se dissolve,
Como de uns olhos tristes
Foge co'o tempo a já ligeira sombra
De consoladas maguas. Vida é tudo.
E pompa e graça natural da terra,
Mas que não seja no ermo,
Onde seus olhos rutilos espraia
Livres a aurora, sem tocar vestigios
De obras caducas do homem, onde as aguas
Do rio bebe a fugitiva corça,
Vivo aroma nos ares se difunde,
E aves, e aves de infinitas cores
Voando vão e revoando tornam,
Inda senhoras da amplidão que é sua,
Donde as hade fugir o homem um dia
Quando a agreste solidão entrar o passo
Creador que derruba. Já de todo
Nado era o sol; e á viva luz que innunda
Estes meus patrios morros e estas praias,
Sorrindo a terra moça
Noiva parece que o virgineo seio
Entrega ao beijo nupcial do amado.
E hade os funebres véus lançar a morte
Na verdura do campo? A natureza
A nota vibrará da extrema angustia
Neste festivo cantico de graças
Ao sol que nasce, ao Creador que o envia,
Como renovação de juventude?

II

Coava o sol pela miuda e fina
Gelosia da alcova em que se apresta
A recente christã. Singelas roupas
Traja da ingenua cor que a natureza
Pintou nas plumas que primeiro brota
O seu patrio guará. Vinculo frouxo
Mal lhe segura a luzidia trança,
Como ao desdem lançada
Sôbre a espadua gentil. Joia nenhuma,
Mais que seus olhos meigos, e essa doce
Modestia natural, encanto, enlevo,
Casta flôr que aborrece os mimos do horto,
E ama livre nascer no campo, á larga,
Rustica, mas formosa. Não lhe ensombram
As tristezas da vespera o semblante,
Nem da secreta lagrima na face
Ficou vestigio.—Descuidosa e alegre,
Ri-se, murmura uma cantiga, ou pensa,
E repete baixinho um nome... Oh! se elle
Espreital-a pudesse ali risonha,
A sós comsigo, entre o seu Christo e as flôres
Colhidas ao tombar da extincta noite,
E vecejantes inda!

III

De repente,
Aos ouvidos da moça enamorada
Chega um surdo rumor de soltas vozes,
Que ora crescendo vae, ora se apaga,
Extranho, desusado. Eram... São elles,
Os francezes, que vem de longes praias
A cobiçar a perola mimosa,
Nictheroy, na alva-azul concha nascida
De suas aguas recatadas. Rege
O atrevido Duclerc a flôr dos nobres,
Cuja tez branca requeimára o fogo
Que o vivo sol dos tropicos dardeja,
E a lufada dos ventos do oceano.
Cobiçam-te elles, minha terra amada,
Como quando nas faixas sempre-verdes
Eras envolta; e rude, inda que bello,
O aspecto havias que poliu mais tarde
A clara mão do tempo. Inda repetem
Os ecos do reconcavo os suspiros
Dos que vieram a buscar a morte,
E a receberam dos varões possantes
Companheiros de Estacio. A todos elles,
Prole de Luso ou geração da Gallia,
Captivara-os a nayade escondida,
E o sol os viu travados nessa longa
E sangrenta porfia, cujo premio
Era teu verde, candido regaço.
Triunphára o trabuco lusitano
Naquele exticnto seculo. Vencido,
O pavilhão francez volvera á patria,
Pela agua arrastando o longo crepe
De suas tristes, mortas esperanças.
Que vento novo o desfraldou nos ares?

IV

Angela ouvira as vozes da cidade,
As vozes do furor. Já receiosa,
Tremula, foge á alcova e se encaminha
Á camera paterna. Ia transpondo
A franqueada porta... e pára. O peito
Rompe-lh'o quasi o coração,—tamanho
É o palpitar, um palpitar de gosto,
De sorpresa e de susto. Aquelles olhos,
Aquella graça mascula do gesto,
Graça e olhos são delle, o amado noivo,
Que entre os mais homens elegeu sua alma
Para o vínculo eterno... Sim, que a morte
Póde arrancar ao seio humano o alento
Ultimo e derradeiro; os que deveras
Unidos foram, volverão unidos
A mergulhar na eternidade. Estava
Junto do velho pae o gentil moço,
Elle todo agitado, o ancião sombrio,
Calados ambos. A attitude de ambos,
O mysterioso, gelido silencio,
Mais que tudo, a presença nunca usada
Daquelle homem ali, que mal a espreita
De longe e a furto, nos instantes breves
Em que lhe é dado vel-a, tudo á moça
O animo abala e o coração enfia.

V

Mas o tropel de fóra avulta e cresce
E os tres accorda. A virgem, lentamente,
Rosto inclinado ao chão, transpõe o espaço
Que dos dous a separa... O tenro collo
Curva ante o pae, e na enrugada dextra
O osculo imprime, herdada usança antiga
De filial respeito. As mãos lhe toma
Enternecido o velho; olhos com olhos
Alguns instantes rapidos ficaram,
Até que elle, voltando o rosto ao moço:
«—Perdoai,—disse,—se o paterno affecto
Me atou a lingua. Vacillar é justo
Quando á pobre ruina a flôr lhe pedem
Que unica lhe nasceu,—unica adorna
A aridez melancholica do extremo,
Pallido sol... Não protesteis! Roubal-a,
Arrancal-a aos meus ultimos instantes,
Não o fareis de certo. Pouco importa
Dês que a metade lhe levaes da vida,
Dês que seu coração, comvosco parte
Affeições minhas.—Ao demais, o sangue
Que lhe corre nas veias, condemnado,
Nuno, será dos vossos...» Longo e frio
Olhar estas palavras acompanha,
Como a arrancar-lhe o pensamento interno.
A donzella estremece. Nuno o alento
Recobra e falla: «Puro sangue é elle,
Se lhe corre nas veias. Tão mimosa,
Candida creatura, alma tão casta,
Inda nascida entre os incréos da Arabia,
Deus a votara á conversão e á vida
Dos eleitos do céu. Aguas sagradas
Que a lavaram no berço, já nas veias
O sangue velho e impuro lhe trocaram
Pelo sangue de Christo...»

VI

Neste instante
Cresce o tumulto exterior. A virgem
Medrosa toda se conchega ao collo
Do velho pae. «Ouvis? Fallae! é tempo!
Nuno prossegue.—Este commum perigo
Chama os varões á rispida batalha;
Com elles vou. Se um galardão, emtanto,
Merecer de meus feitos, não á patria
Irei pedil-o; só de vós o espero,
Não o melhor, mas o unico na terra,
Que a minha vida...» Rematar não pôde
Esta palavra. Ao escutar-lhe a nova
Da imminente peleja
E a decisão de combater por ella,
Inteiras sente as forças que se perdem
A donzella, e bem como ao rijo vento
Inclina o collo o arbusto
Nos braços desmaiou do pae. Volvida
A si, na pallidez do rosto o velho
Attenta um pouco, e suspirando: «As armas
Empunhae; combatei; Angela é vossa.
Não de mim a havereis: ella a si mesma
Toda nas vossas mãos se entrega. Morta
Ou feliz é a escolha; não vacillo:
Seja feliz, e folgarei com ella...»

VII

Sobre a fronte dos dous, as mãos impondo,
Ao seio os conchegou, bem como a tenda
Do patriarcha santo agasalhava
O moço Isaac e a delicada virgem
Que entre os rios nasceu. Delicioso[21]
E solemne era o quadro; mas solemne
E delicioso embora, ia esvair-se
Qual celeste visão, que accende a espaços
O animo do infeliz. A guerra, a dura
Necessidade de immolar os homens,
Por salvar homens, a terrivel guerra
Corta o amoroso vinculo que os prende
E á moça o riso lhe converte em lagrimas.
Misera és tu, pallida flôr; mas soffre
Que o calor deste sol te acurve o calix,
Morta, não, nem já murcha,—mas apenas
Como cançada de queimor do estio.
Soffre; a tarde virá serena e branda
A reviver-te o alento; a fresca noite
Choverá sobre ti piedoso orvalho
mais risonha surgirás á aurora.

VIII

Foge á estancia da paz o hardido moço;
Esperança, fortuna, amor e patria
A guerrear o levam. Já nas veias
O vivo sangue irrequieto pulsa,
Como ancioso de correr por ambas,
A bella terra e a suspirada noiva.
Triste quadro a seus olhos se apresenta;
Nos femininos rostos vê pintados
Incerteza e terror; lamentos, gritos
Soam de entorno. Voam pelas ruas
Homens de guerra; homens de paz se aprestam
Para a crua peleja; e, ou nobre estancia,
Ou choupana rasteira, armado é tudo
Contra a forte invasão. Nem lá se deixa
Quieto, a sós com Deus, na estreita cella,
O solitario monge que ás batalhas
Fugiu da vida. O patrimonio santo
Cumpre salval-o. Cruz e espada empunha,
Deixa a serena região da prece
E voa ao torvelinho do combate.

IX

Entre os fortes alumnos que dirige
O ardido Bento, a perfilar-se corre[22]
Nuno. Estes são os que o primeiro golpe
Descarregam no attonito inimigo.
Do militar officio ignoram tudo,
De armas não sabem; mas o brio e a honra
E a lembrança da terra em que primeiro
Viram a luz, e onde o perdel-a é doce,
Essa a escola lhes foi. Pasma o inimigo
Do nobre esforço e galhardia rara,
Com que inda nos humbraes da vida que orna
Tanta esperança, tanto sonho de ouro,
Resolutos a morte encaram, prestes
A retalhar nas dobras
Da vestidura funebre da patria
O piedoso lençol que os leve á campa,
Ou com ella cingir o eterno louro.

X

Ó mocidade, ó baluarte vivo
Da cara patria! Já perdida é ella,
Quando em teu peito enthusiasmo santo
E puro amor se extingue, e áquelle nobre,
Generoso despejo e ardor antigo
Succede o frio calcular, e o torpe
Egoismo, e quanto ha hi no humano peito,
Que é fructo nosso e podre... Muitos caem
Mortos alli. Que importa? Vão seguindo
Avante os bravos, que a invasão caminha
Implacavel e dura, como a morte,
A pelejar e a destruir. Tingidas
Ruas de extranho sangue
E sangue nosso, lacerados membros,
Corpos de que ha fugido a alma cançada,
E o denso fumo e os funebres lamentos,
Quem nessa confusão, miseria e gloria
Conhecerá da juvenil cidade
O aspecto, a vida? Aqui da infancia os dias
Nuno vivêra, á vecejante sombra
Do seu patrio arvoredo, ao som das vagas
Que inda batendo vão na amada areia;
Risos, jogos da verde meninice,
Esta praia lhe lembra, aquella pedra,
A mangueira do campo, a tosca cerca
De espinheiro e de flôres enlaçadas,
A ave que voa, a brisa que suspira,
Que suspira como elle ha suspirado,
Quando rompendo o coração do peito
Ia-lhe empós dessa visão divina,
Realidade agora... E ha de perdel-as
Patria e noiva? Esta ideia lhe esvoaça
Torva e surda no cerebro do moço,
E ao contrahido espirito redobra
Impeto e forças. Rompe
Por entre a multidão dos seus, e investe
Contra o duro inimigo; as balas voam,
E com ellas a morte, que não sabe
Dos escolhidos seus a terra e o sangue,
E indistinctos os toma; elle, no meio
Daquelle horrivel turbilhão, parece
Que a faisca do genio o leva e anima,
Que a fortuna o votára á gloria.

XI

Soam
Enfim os gritos de triunmpho; e o peito
Do povo que lutou respira á larga,
Como ao que, após ardua subida, chega
Ao cimo da montanha, e ao longe os olhos
Estende pelo azul dos céus, e a vida
Bebe nesse ar mais puro. Farto sangue
A victoria custára; mas, se em meio
De tanta gloria ha lagrimas, soluços,
Gemidos de viuvez, quem os escuta,
Quem as vê essas lagrimas choradas
Na multidão da praça que troveja
E folga e ri? O sacro bronze que usa
Os fieis convidar á prece, e a morte
Do homem pranteia lugubre e solemne,
Ora festivo canta
O comum regosijo; e pela aberta
Porta dos templos entra a frouxo o povo
A agradecer com lagrimas e vozes
O triumpho,—piedoso instincto da alma,
Que a Deus levanta o pensamento e as graças.

XII

Tu, mancebo feliz, tu bravo e amado,
Voa nas asas rutilas e leves
Da fortuna e do amor. Como ao indiano,
Que, ao regressar das porfiadas lutas,
Por estas mesmas regiões entrava,
A encontral-o saía a meiga esposa,
—A recente christã, entre assustada
E jubilosa coroará teus feitos
Co'a melhor das capelas que hão pousado
Em fronte de varão,—um doce e longo
Olhar que inteiro encerra a alma que chora
De gosto e vida! Voa o moço á estancia
Do ancião; e ao pôr na suspirada porta
Olhos que traz famintos de encontral-a,
Frio terror lhe empece os membros. Frouxo
Ia o sol transmontando; lenta a vaga
Melancholicamente ali gemia,
E todo o ar parecia arfar de morte.
Qual se pallida a víra, já cerrados
Os desmaiados olhos,
Frios os doces labios
Cansados de pedir aos céus por elle,
Nuno estacára; e pelo rosto em fio
O suor lhe caiu da extrema angustia;
Longo tempo vacilla;
Vence-se emfim, e entra a mansão da esposa.

XIII

Quatro vultos na camara paterna
Eram. O pae sentado,
Calado e triste. Reclinada a fronte
No espaldar da cadeira, a filha os olhos
E o rosto esconde, mas tremor continuo
De um abafado soluçar o esbelto
Corpo lhe agita. Nuno aos dous se chega;
Ia a fallar, quando a formosa virgem,
Os lacrimosos olhos levantando,
Um grito solta do intimo do peito
E se lhe prostra aos pés: «Oh! vivo, és vivo!
Inda bem... Mas o céu, que por nós vela,
Aqui te envia... Salva-o tu, se pódes,
Salva meu pobre pae!» Estremecendo,
Nella e no velho fita Nuno os olhos,
E agitado pergunta: «Qual ousado
Braço lhe ameaça a vida?» Cavernosa
Uma voz lhe responde: «O sancto officio!»
Volve o mancebo o rosto
E o merencorio aspecto
De dous familiares todo o sangue
Nas veias lhe gelou.

XIV

Solemne o velho
Com a voz, não frouxa, mas pausada, falla:
«Vês? Todo o brio, todo o amor no peito
Te emudeceu. Só lastimar-me podes,
Salvar-me, nunca. O carcere me aguarda,
E a fogueira talvez; cumpril-a, é tempo,
A vontade de Deus. Tu, pae e esposo
Da desvalida filha que ahi deixo,
Nuno, serás. A relembrar com ella
Meu pobre nome, applacareis a immensa
Colera do Senhor...» Sorrindo ironico,
Estas palavras ultimas lhe caem
Dos labios tristes. Ergue-se: «Partamos!
Adeus! Negou-me Aquelle que no campo
Deixa a arvore ancian perder as folhas
No mesmo ponto em que as nutriu viçosas,
Negou-me ver por estas longas serras
Ir-se-me o ultimo sol. Brando regaço
A filial piedade me daria
Em que eu dormisse o derradeiro somno,
E em braços de meu sangue transportado
Fora em horas de paz e de silencio
Levado ao leito extremo e eterno. Vive
Ao menos tu...»

XV

Um familiar lhe corta
O adeus ultimo: «Vamos: é já tempo!»
Resignado o infeliz, ao seio aperta
A filha, e todo o coração n'um beijo
Lhe transmitiu, e a caminhar começa.
Angela os lindos braços sobre os hombros
Trava do austero pae; flôres dissereis
De parasita, que enroscou seus ramos
Pelo cançado tronco, esteril, secco
De arvore antiga: «Nunca! Hão de primeiro
A alma arrancar-me! Ou se heis peccado, e a morte
Pena hade ser da commettida culpa,
Convosco descerei á campa fria,
Juntos a mergulhar na eternidade.
Israel tem vertido
Um mar de sangue. Embora! á tona delle
Verdeja a nossa fé, a fé que anima[23]
O eleito povo, flôr suave e bella
Que o medo não desfolha, nem já secca
Ao vento mau da colera dos homens!»

XVI

Trémula a voz do peito lhe saía.
Das mãos lhe trava um dos algozes. Ella
Entrega-se risonha,
Como se o calix da amargura extrema
Pelos meles da vida lhe trocassem
Celeste e eterna. O coração do moço
Latejava de espanto e susto. Os olhos
Pousa na filha o desvairado velho.
Que ouviu?—Attenta nella; o lindo rosto
O céu não busca jubiloso e livre,
Antes, como travado de agra pena,
Pende-lhe agora ao chão. Dizia acaso
Entre si mesma uma oração, e o nome
De Jesus repetia, mas tão baixo,
Que o coração do pae mal pôde ouvir-lh'o.
Mas ouviu-lh'o; e tão forte amor, tamanho
Sacrificio da vida a alma lhe rasga
E deslumbra. Escoou-se um breve tempo
De silencio; elle e ella, os tristes noivos,
Como se a eterna noite os recebêra,
Gelados eram; levantar não ousam
Um para o outro os arrasados olhos
De mal contidas e teimosas lagrimas.

XVII

Nuno, enfim, lentamente e a custo arranca
Do coração estas palavras: «Fôra
Misericordia ao menos confessal-o
Quando ao fogo do barbaro inimigo
Me era facil deixar o derradeiro
Sopro da vida. Premio é este acaso
De tamanho lidar? Que mal te hei feito,
Por que me dês tão barbara e medonha
Morte, como esta, em que o cadaver guarda
Inteiro o pensamento, inteiro o aspecto
Da vida que fugiu?» Angela os olhos
Magoados ergue; arfa-lhe o peito afflicto,
Como o dorso da vaga que intumesce
A asa da tempestade. «Adeus!» suspira,
E a fronte abriga no paterno seio.

XVIII

O rebelde ancião, domado emtanto,
Afracar-se-lhe sente dentro d'alma
O sentimento velho que bebera
Com o leite dos seus; e sem que o labio
Transmitta a ouvidos de homem
O duvidar do coração, murmura
Dentro de si: «Tão poderosa é essa
Ingenua fé, que inda negando o nome
Do seu Deus, confiada acceita a morte,
E guarda puro o sentimento interno
Com que o véu rasgará da eternidade?
Ó Nazareno, ó filho do mysterio,
Se é tua lei a unica da vida
Escreve-m'a no peito; e dá que eu veja
Morrer commigo a filha de meus olhos
E unidos irmos, pela porta immensa
Do teu perdão, á eternidade tua!»

XIX

Mergulhára de todo o sol no occaso,
E a noite, clara, deliciosa e bella,
A cidade cobriu,—não socegada,
Como costuma,—porém leda e viva,
Cheia de luz, de cantos e rumores,
Victoriosa enfim. Elles, calados,
Foram por entre a multidão alegre,
A penetrar o carcere sombrio.
Donde ao mar passarão, que os leve ás praias
Da ancian Europa. Carregado o rosto,
Ia o pae; ella, não. Serena e meiga,
Entra affouta o caminho da amargura,
A custo soffreando internas maguas
Da amarga vida, breve flôr como ella,
Que inda mais breve a mente lhe affigura.
Anjo, descera da região celeste
A pairar sobre o abysmo; anjo, subia
De novo á esphera luminosa e eterna,
Patria sua. Levar-lhe-ha Deus em conta
O muito amor e o padecer extremo,
Quando romper a tunica da vida
E o silencio immortal fechar seus labios.


JOSÉ BONIFÁCIO

De tantos olhos que o brilhante lume
Viram do sol amortecer no occaso,
Quantos verão nas orlas do horizonte
Resplandecer a aurora?

Innumeras, no mar da eternidade,
As gerações humanas vão cahindo;
Sobre ellas vae lançando o esquecimento
A pesada mortalha.

Da agitação esteril em que as forças
Consumiram da vida, raro apenas
Um eco chega aos seculos remotos,
E o mesmo tempo o apaga.

Vivos transmite a popular memoria
O genio creador e a sã virtude,
Os que o patrio torrão honrar souberam,
E honrar a especie humana.

Vivo irás tu, egregio e nobre Andrada!
Tu, cujo nome, entre os que á pátria deram
O baptismo da amada independencia,
Perpetuamente fulge.

O engenho, as forças, o saber, a vida
Tu votaste á liberdade nossa,
Que a teus olhos nasceu, e que teus olhos
Inconcussa deixaram.

Nunca interesse vil manchou teu nome,
Nem abjectas paixões; teu peito illustre
Na viva chamma ardeu que os homens leva
Ao sacrificio honrado.

Se teus restos ha muito que repousam
No pó commum das gerações extinctas,
A patria livre que legaste aos netos
E te venera e ama,

Nem a face mortal consente á morte
Que te roube, e no bronze redivivo
O austero vulto restitue aos olhos
Das vindouras edades.

«Vede (lhes diz) o cidadão que teve
Larga parte no largo monumento
Da liberdade, a cujo seio os povos
Do Brasil te acolheram.»

«Póde o tempo varrer, um dia, ao longe,
A fabrica robusta; mas os nomes
Dos que o fundaram viverão eternos,
E viverás, Andrada!»


A VISÃO DE JACIUCA

Prestes de novo a batalhar, chegavam
Os valentes guerreiros. Mas onde elle,
O duro chefe da indomavel tribu,
O senhor das montanhas? Affirmava
Tatupeba que o vira, antes da aurora,
Erguer-se, e ao longo do visinho rio,
Por algum tempo caminhar calado,
Como se o abafára um pensamento
E lhe impedíra o somno. Vão receio
De batalhar? Oh! não! Quasi na infancia,
A torva catadura viu da guerra,
Officio de homens, que aprendeu brincando
Com seu pae, extremado entre os guerreiros,
E na bravura e na prudencia; a frecha
Ninguem soubera menear como elle,
Nem mais veloz nem mais certeira nunca.

A lentos passos caminhando chega,
Enfim, o bravo Jaciuca. Torvo
E mereneorio traz o duro aspecto.
«—Vamos (diz elle) a descansar na taba,
Entre festas e dansas; penduremos
As armas nossas, que sobeja ha sido
A gloria, e a doce paz nos chama.»
Leve,
Surdo rumor entre os guerreiros soa;
Vai subindo, é rugido, é já tumulto,
Como o grunhir de tajassús no matto,
Que se approxima e cresce. Jaciuca
Olhos quietos pelo campo estende;
Seu feio rosto é como a rocha dura
Que o raio quebra, mas não lasca o vento.
Fecha os labios e pensativo espera.

Tatupeba, que a raiva a custo esconde,
Ergue-se então; crava-lhe os fulvos olhos,
Como a afiada ponta de uma frecha.
Seu porte, entre os irmãos, semelha á vista
Jequitibá robusto; mais que todos,
Terror inspira e universal respeito.
Ergue-se e fala:—«Longos soes hei visto,
Pelejei muitas guerras; a meu lado
Vi cair mais valentes do que folhas
Arranca o furacão; mas nunca o animo
Dos lidadores abalou a palavra
Como essa tua; nunca os braços nossos
Ficar deixaram nos desertos campos
Os ossos não vingados dos guerreiros.
Que genio mau te insinuou tal crime?»

Assim fallando, Tatupeba o solo
Com a planta feriu. Os olhos todos
Pendem da boca do sombrio chefe.
Silencioso Jaciuca ouvira
As fallas do guerreiro; silencioso
E quieto ficou. Após instantes,
A fronte sacudiu, como expellindo
Ideias más que o cerebro lhe turvam,
E a voz lhe rompe do intimo do peito.

«Ó guerreiros (diz elle), aqui deitados
Estivestes a noite, e toda inteira
A dormistes de certo; eu, não distante,
Do rio á margem a trabalhar commigo,
Afiava na mente atra vingança;
Até que os frouxos membros descaíram
Sobre a macia relva, e um tempo largo
Assim fiquei entre vigilia e somno.
Viam meus olhos ondular as aguas,
Mas no alheado pensamento os ecos
Sussurravam da infancia. Um genio amigo
Aos tempos me levava em que no rosto
De meu pae aprendi, com frio pasmo,
A rara intrepidez, válida herança,
Que tanto custa ao perfido inimigo.»

«De repente, uma luz pallida e triste
Inunda o campo: transparente nevoa
E luminosa aquillo parecia,
Ou baço reflectir da branca lua
Que nuvens cobrem. Livido e curvado,
Içayba a meus olhos apparece.
Vi-o qual era antes da fria morte;
Só a expressão do rosto lhe mudára;
Energicas não tinha, mas serenas
As feições. «Vem comigo!» Assim me falla
O extincto bravo; e, subito estreitando
Ao peito o corpo do saudoso amigo,
Juntos voámos á região das nuvens.
«Olha!» disse Içayba, e o braço alonga
Para a terra. Ó guerreiros! largo espaço
Era prêsa de alheio senhorio.
Fitei os olhos mais; e pouco a pouco,
Como enche o rio e todo o campo alaga,
Umas gentes extranhas se estendiam
De sertão em sertão. Presas do fogo
As mattas vi, abrigo do guerreiro,
E ao torvo incendio e ás invasões da morte
Vi as tribus fugir, ceder a custo,
Com lagrimas alguns, todos com sangue,
A virgem terra ao barbaro inimigo.
Mau vento os trouxe de remota praia
Aquelles homens novos, jamais vistos
De guerreiro ancião, a quem não coube
Sequer a gloria de morrer contente
E todo reviver na ousada prole.
Era o termo da vida que chegára
Ao povo de Tupan! Grito de morte
Unico enchia os ares,—um suspiro
De tristeza e terror, que reboava
Pelos recessos da floresta antiga
E talvez ameigava o peito ás feras...
Surdos os manitós deixado haviam
Os seus fortes heroes; surdos se foram
Entre os genios folgar da raça nova,
E rir talvez das lagrimas choradas
Pelos olhos das virgens... Oh! se ao menos
Fora pranto de livres! Era a morte
A menor das angustias; vi curvada
E captiva rojar no po da terra
A fronte do guerreiro, agora altiva,
Livre, como o condor que frecha as nuvens;
Não kanitar a cinge, mas vergonha,
Melancholico adorno do vencido.

O rosto desviei do extranho quadro.
«Olha!» repete o pallido Içayba.
Olhei de novo, e na saudosa taba,
Que os nossos arcos defender souberam,
Em vez da sombra do piaga santo,
Que, ao som do maracá, colhia as vozes
Do pensamento eterno, e as infundia
No seio do guerreiro, como o fumo
Do petum lhe dobrava impeto e força,
Um vulto descobri de vestes negras,
Nua quasi a cabeça, e cor de espuma
Alguns cabellos raros. Tinha o rosto
Alvo e quieto. Em suas mãos sustinha
Extenso lenho com dois curtos braços.
Ia só; todo o campo era deserto.
Nem um guerreiro! um arco!«—A tribu?»
—«Extinta!»

«A tal palavra, uma pesada sombra
A vista me apagou, e pela face
Senti rolar a lagrima primeira.
O sinistro espectaculo mudára.
Ao dissipar-se a nuvem de meus olhos
Achei-me junto do visinho rio,
Reclinado como antes, e defronte
A pallida figura de Içayba.
«—Torna á taba, me disse o extincto moço;
«Luas e luas volverão no espaço
«Antes da morte, mas a morte é certa,
«E terrivel será. Nação bem outra,
«Sobre as ruinas da valente raça
«Virá sentar-se, e brilhará na terra
«Gloriosa e rica. Uma chorada lagrima,
«Talvez, talvez, no meio de triunphos
«Ha de ser a tardia, escassa paga
«Da morte nossa. Poupa ao menos essa
«Derradeira esperança de guardal-o
«Todo o valor para o supremo dia
«E com honra ceder a extranhas hostes;
«Salva ao menos as ultimas reliquias
«Desta nação vencida; não se rasguem
«Peitos que irmãos ao mesmo sol nasceram
«E Anhangá fez contrarios... Todos elles[24]
«Poucos serão para a tremenda luta,
«Mas de sobra hão de ser para choral-a.»

«Assim fallára o pallido Içayba;
Alguns instantes contemplou meu rosto,
Calado e firme. A cachoeira ao longe
Interrompia apenas o silencio;
E eu morto, eu mesmo me sentia morto.
Elle um triste suspiro magoado
Soltou do peito; os apagados olhos
Ás estrellas ergueu, sereno e triste,
E de novo rompendo o voo aos ares,
Como uma frecha penetrou nas nuvens.»


A GONÇALVES DIAS

Ninguém virá, com titubeastes passos.
E os olhos lacrimosos, procurando
O meu jazigo...

GONÇALVES DIAS.—Últimos Cantos.

Tu vive e gosa a luz serena e pura.

J. BAZILIO DA GAMA.—Uraguai, c. V.

Assim vagou por alongados climas,
E do naufragio os humidos vestidos
Ao calor enxugou de extranhos lares
O lusitano vate. Acerbas penas
Curtiu naquelas regiões; e o Ganges,
Se o viu chorar, não viu pousar calada,
Como a harpa dos exules profetas,
A heroica tuba. Elle a embocou, vencendo
Co'a lembrança do ninho seu paterno,
Longas saudades e miserias tantas.
Que monta o padecer? Um só momento
As maguas lhe pagou da vida; a patria
Reviu, apoz a suspirar por ella;
E a velha terra sua
O despojo mortal cobriu piedosa
E de sobejo o compensou de ingratos.

Mas tu, cantor da America, roubado
Tão cedo ao nosso orgulho, não te coube
Na terra em que primeiro houveste o lume
Do nosso sol, achar o ultimo leito!
Não te coube dormir no chão amado,
Onde a luz frouxa da serena lua,
Por noite silenciosa, entre a folhagem
Coasse os raios humidos e frios,
Com que ella chora os mortos... derradeiras
Lagrimas certas que terá na campa
O infeliz que não deixa sobre a terra
Um coração ao menos que o pranteie.

Vinha contudo o pallido poeta
Os desmaiados olhos estendendo
Pela azul extensão das grandes aguas,
A pesquizar ao longe o esquivo fumo
Dos patrios tectos. Na abatida fronte
Ave da morte as asas lhe roçára;
A vida não cobrou nos ares novos,
A vida, que em vigilias e trabalhos,
Em prol dos seus, gastou por longos annos,
Co'essa largueza de animo fadado
A entornar generoso a vital seiva.
Mas, que importava a morte, se era doce
Morrel-a á sombra deliciosa e amiga
Dos coqueiros da terra, ouvindo acaso
No murmurar dos rios,
Ou nos suspiros do nocturno vento,
Um eco melancholico dos cantos
Que elle outrora entoára? Traz do exilio
Um livro, monumento derradeiro
Que á patria levantou; alli revive
Toda a memoria do valente povo
Dos seus Tymbiras...

Subito, nas ondas
Bate os pés, espumante e desabrido,
O corcel da tormenta; o horror da morte
Enfia o rosto aos nautas... Quem por elle,
Um momento hesitou quando na fragil
Tabua confiou a unica esperança
Da existencia? Mysterio obscuro é esse
Que o mar não revellou. Ali sosinho,
Travou naquella solidão das aguas
O duello tremendo, em que a alma e corpo
As suas forças ultimas despendem
Pela vida da terra e pela vida
Da eternidade. Quanta imagem torva,
Pelo turbado espirito batendo
As fuscas azas, lhe tornou mais triste
Aquelle instante funebre! Suave
É o arranco final, quando o já frouxo
Olhar contempla as lagrimas do affecto,
E a cabeça repousa em seio amigo.
Nem affectos nem prantos; mas somente
A noite, o medo, a solidão e a morte.
A alma que alli morava, ingenua e meiga,
Naquele corpo exiguo, abandonou-o,
Sem ouvir os soluços da tristeza,
Nem o grave salmear que fecha aos mortos
O frio chão. Ella o deixou, bem como
Hospede mal acceito e mal dormido,
Que prossegue a jornada, sem que leve
O osculo da partida, sem que deixe
No rosto dos que ficam,—rara embora,—
Uma sombra de pallida saudade.

Oh! sobre a terra em que pousaste um dia,
Alma filha de Deus, ficou teu rasto
Como de estrella que perpétua fulge!
Não viste as nossas lagrimas; comtudo
O coração da patria as ha vertido.
Tua gloria as seccou, bem como orvalho
Que a noite amiga derramou nas flôres
E o raio enxuga da nascente aurora.
Na mansão a que foste, em que ora vives,
Has de escutar um eco do concerto
Das vozes nossas. Ouvirás, entre ellas,
Talvez, em labios de indiana virgem!
Esta saudosa e suspirada nenia:

«Morto! é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirai commigo!»

«A grande agua o levou como invejosa.
Nenhum pé trilhará seu derradeiro
Funebre leito; elle repousa eterno
Em sítio onde nem olhos de valentes,
Nem mãos de virgens poderão tocar-lhe
Os frios restos. Sabiá da praia
De longe o chamará saudoso e meigo,
Sem que ele venha repetir-lhe o canto.
Morto! é morto o cantor de meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirai comigo!»

Ele houvera do Ybake o dom supremo
De modular nas vozes a ternura,
A colera, o valor, tristeza e magua,
E repetir aos namorados ecos
Quanto vive e reluz no pensamento.
Sobre a margem das aguas escondidas,
Virgem nenhuma suspirou mais terna,
Nem mais válida a voz ergueu na taba,
Suas nobres acções cantando aos ventos,
O guerreiro tamoyo. Doce e forte,
Brotava-lhe do peito a alma divina.
Morto! é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirai comigo!

«Coema, a doce amada de Itajuba,
Coema não morreu; a folha ágreste
Póde em ramas ornar-lhe a sepultura,
E triste o vento suspirar-lhe em torno;
Ella perdura a virgem dos Tymbiras,
Ella vive entre nós. Airosa e linda,
Sua nobre figura adorna as festas
E enflora os sonhos dos valentes. Elle,
O famoso cantor, quebrou da morte
O eterno jugo; e a filha da floresta
Hade a historia guardar das velhas tabas
Inda depois das ultimas ruinas.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da mata, suspirai commigo!

«O piaga, que foge a extranhos olhos,
E vive e morre na floresta escura,
Repita o nome do cantor; nas aguas
Que o rio leva ao mar, mande-lhe ao menos
Uma sentida lagrima, arrancada
Do coração que ele tocára outr'ora,
Quando o ouviu palpitar sereno e puro,
E na voz celebrou de eternos carmes.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da matta, suspirai comigo!»


OS SEMEADORES[25]

(Século XVI)

Eis ahi saiu o que semêa a semear...

MATH., XIII, 3.

Vós os que hoje colheis, por esses campos largos,
O doce fruto e a flôr,
Acaso esquecereis os asperos e amargos
Tempos do semeador?

Rude era o chão; agreste e longo aquelle dia;
Comtudo, esses heroes
Souberam resistir na afanosa porfia
Aos temporaes e aos soes.

Poucos; mas a vontade os poucos multiplica,
E a fé, e as orações
Fizeram transformar a terra pobre em rica
E os centos em milhões.

Nem somente o labor, mas o perigo, a fome,
O frio, a descalcez,
O morrer cada dia uma morte sem nome,
O morrel-a, talvez,

Entre barbaras mãos, como se fora crime,
Como se fora réu
Quem lhe ensinára aquela ação pura e sublime
De as levantar ao céu!

Ó Paulos do sertão! Que dia e que batalha!
Vencestel-a; e podeis
Entre as dobras dormir da secular mortalha;
Vivereis, vivereis!


A FLOR DO EMBIROÇU

Noite, melhor que o dia, quem não te ama?

FIL. ELIS.

Quando a noturna sombra envolve a terra
E á paz convida o lavrador cansado,
Á fresca brisa o seio delicado
A branca flôr do embiroçú descerra.

E das limpidas lagrimas que chora
A noite amiga, ella recolhe alguma;
A vida bebe na ligeira bruma,
Até que rompe no horizonte a aurora.

Então, á luz nascente, a flôr modesta,
Quando tudo o que vive alma recobra,
Languidamente as suas folhas dobra,
E busca o somno quando tudo é festa.

Suave imagem da alma que suspira
E odeia a turba vã! da alma que sente
Agitar-se-lhe a aza impaciente
E a novos mundos transportar-se aspira!

Tambem ella ama as horas silenciosas,
E quando a vida as lutas interrompe,
Ella da carne os duros elos rompe,
E entrega o seio ás ilusões viçosas.

É tudo seu,—tempo, fortuna, espaço,
E o céu azul e os seus milhões de estrellas;
Abrazada de amor, palpita ao vel-as,
E a todas cinge no ideal abraço.

O rosto não encara indifferente,
Nem a traidora mão candida aperta;
Das mentiras da vida se liberta
E entra no mundo que jamais não mente.

Noite, melhor que o dia, quem não te ama?
Labor ingrato, agitação, fadiga,
Tudo faz esquecer tua aza amiga
Que a alma nos leva onde a ventura a chama.

Ama-te a flôr que desabrocha á hora
Em que o ultimo olhar o sol lhe estende,
Vive, embala-se, orvalha-se, recende,
E as folhas cerra quando rompe a aurora.


LUA NOVA[26]

Mãe dos fructos, Jacy, no alto espaço
Eil-a assoma serena e indecisa:
Sopro é della esta languida brisa
Que sussurra na terra e no mar.
Não se mira nas aguas do rio,
Nem as ervas do campo branqueia;
Vaga e incerta ella vem, como a ideia
Que inda apenas começa a espontar.

E iam todos; guerreiros, donzellas,
Velhos, moços, as redes deixavam;
Rudes gritos na aldeia soavam,
Vivos olhos fugiam p'ra o céu:
Iam ve-la, Jacy, mãe dos fructos,
Que, entre um grupo de brancas estrellas,
Mal scintila: nem póde vencel-as,
Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.

E um guerreiro: «Jacy, doce amada,
Retempera-me as forças; não veja
Olho adverso, na dura peleja,
Este braço já frouxo cair.
Vibre a setta, que ao longe derruba
Tajassú, que roncando caminha;
Nem lhe escape serpente damninha,
Nem lhe fuja pesado tapir.»

E uma virgem: «Jacy, doce amada,
Dobra os galhos, carrega esses ramos
Do arvoredo co'as frutas que damos
Aos valentes guerreiros, que eu vou
A buscal-os na mata sombria,
Por trazel-os ao moço prudente,
Que venceu tanta guerra valente,
E estes olhos consigo levou.»

E um ancião, que a saudara ja muitos,
Muitos dias: «Jacy, doce amada,
Dá que seja mais longa a jornada,
Dá que eu possa saudar-te o nascer,
Quando o filho do filho, que hei visto
Triumphar de inimigo execrando,
Possa as pontas de um arco dobrando
Contra os arcos contrarios vencer.»

E elles riam os fortes guerreiros,
E as donzelas e esposas cantavam,
E eram risos que d'alma brotavam,
E eram cantos de paz e de amor.
Rude peito criado nas brenhas,
—Rude embora,—terreno é propicio;
Que onde o germen lançou beneficio
Brota, enfolha, verdeja, abre em flôr.


SABINA

Sabina era mucama da fazenda;
Vinte annos tinha; e na provincia toda
Não havia mestiça mais á moda,
Com suas roupas de cambraia e renda.

Captiva, não entrava na senzala,
Nem tinha mãos para trabalho rude;
Desbrochava-lhe a sua juventude
Entre carinhos e affeições de sala.

Era cria da casa. A sinhá moça,
Que com ella brincou sendo menina,
Sobre todas amava esta Sabina,
Com esse ingenuo e puro amor da roça.

Dizem que á noite, a suspirar na cama,
Pensa n'ella o feitor; dizem que um dia,
Um hospede que alli passado havia,
Poz um cordão no collo da mucama.

Mas que vale uma joia no pescoço?
Não pôde haver o coração da bella.
Se alguem lhe acende os olhos de gazella,
É pessoa maior: é o senhor moço.

Ora, Octavio cursava a Academia.
Era um lindo rapaz; a mesma edade
Co'as passageiras flôres o adornava
De cujo extincto aroma inda a memoria
Vive na tarde pallida do outomno.
Oh! vinte anos! Ó pombas fugitivas
Da primeira estação, porque tão cedo
Voaes de nós? Pudesse ao menos a alma
Guardar comsigo as illusões primeiras,
Virgindade sem preço, que não paga
Essa descolorida, árida e sêcca
Experiencia do homem!

Vinte annos
Tinha Octavio, e a belleza e um ar de corte,
E o gesto nobre, e seductor o aspecto;
Um vero Adonis, como aqui diria
Algum poeta classico, d'aquella
Poesia que foi nobre, airosa e grande
Em tempos idos, que ainda bem se foram...

Cursava a Academia o moço Octavio;
Ia no anno terceiro, não remoto
Via desenrolar-se o pergaminho,
Premio de seus labores e fadigas;
E uma vez bacharel, via mais longe
Os curvos braços da feliz cadeira
D'onde o legislador a redea empunha
Dos lepidos frisões do Estado. Emtanto,
Sobre os livros de estudo, gota a gota
As horas despendia, e trabalhava
Por metter na cabeça o jus romano
E o patrio jus. Nas suspiradas ferias
Volvia ao lar paterno; ali no dorso
De brioso corsel corria os campos,
Ou, arma ao hombro, polvorinho ao lado,
Á caça dos veados e cotias,
Ia matando o tempo. Algumas vezes
Com o padre vigario se entretinha
Em desfiar um ponto de intrincada
Philosophia, que o senhor de engenho,
Feliz pae, escutava glorioso,
Como a rever-se no brilhante aspecto
De suas ricas esperanças.

Era
Manhã de estio; erguera-se do leito
Octavio; em quatro sorvos toda esgota
A taça de café. Chapeo de palha,
E arma ao hombro, lá foi terreiro fóra,
Passarinhar no mato. Ia costeando
O arvoredo que além beirava o rio,
A passo curto, e o pensamento á larga,
Como leve andorinha que saísse
Do ninho, a respirar o hausto primeiro
Da manhã. Pela aberta da folhagem,
Que inda não doura o sol, uma figura
Deliciosa, um busto sobre as ondas
Suspende o caçador. Mãe d'água fôra,
Talvez, se a cor de seus quebrados olhos
Imitasse a do céu; se a tez morena,
Morena como a esposa dos Cantares,
Alva tivesse; e raios de ouro fossem
Os cabellos da cor da noite escura,
Que ali soltos e humidos lhe caem,
Como um véu sobre o collo. Trigueirinha,
Cabello negro, os largos olhos brandos
Cor de jaboticaba, quem seria,
Quem, senão a mucama da fazenda,
Sabina, emfim? Logo a conhece Octavio,
E n'ella os olhos espantados fita
Que desejos accendem.—Mal cuidando
D'aquelle extranho curioso, a virgem
Com os ligeiros braços rompe as aguas,
E ora toda se esconde, ora ergue o busto,
Talhado pela mão da natureza
Sobre o modelo classico. Na opposta
Riba suspira um passarinho; e o canto
E a meia luz, e o sussurrar das aguas,
E aquella fada ali, tão doce vida
Davam ao quadro, que o ardente alumno
Trocára por aquillo, uma hora ao menos,
A Faculdade, o pergaminho e o resto.

Subito erige o corpo a ingenua virgem;
Com as mãos, os cabellos sobre a espadua
Deita, e rasgando lentamente as ondas,
Para a margem caminha, tão serena,
Tão livre como quem de extranhos olhos
Não suspeita a cubiça... Véu da noite,
Se lh'os cobrira, dissipára acaso
Uma historia de lagrimas. Não póde
Furtar-se Octavio á commoção que o toma;
A clavina que a esquerda mal sustenta
No chão lhe cae; e o baque surdo accorda
A descuidada nadadora. Ás ondas
A virgem torna. Rompe Octavio o espaço
Que os divide; e de pé, na fina areia,
Que o molle rio lambe, erecto e firme,
Todo se lhe descobre. Um grito apenas
Um só grito, mas unico, lhe rompe
Do coração; terror, vergonha... e acaso
Prazer, prazer mysterioso e vivo
De captiva que amou silenciosa,
E que ama e vê o objecto de seus sonhos,
Ali com ella, a suspirar por ella.

«Flôr da roça nascida ao pé do rio,
Octavio começou—talvez mais bella
Que essas bellezas cultas da cidade,
Tão cobertas de joias e de sedas,
Oh! não me negues teu suave aroma!
Fez-te captiva o berço; a lei somente
Os grilhões te lançou; no livre peito
De teus senhores tens a liberdade,
A melhor liberdade, o puro affecto
Que te elegeu entre as demais captivas,
E de affagos te cobre! Flôr do matto,
Mais viçosa do que essas outras flôres
Nas estufas criadas e nas salas,
Rosa agreste nascida ao pé do rio,
Oh! não me negues teu suave aroma!»

Disse, e da riba os cubiçosos olhos
Pelas aguas estende, emquanto os d'ella,
Cobertos pelas palpebras medrosas
Choram,—de gosto e de vergonha a um tempo
Duas unicas lagrimas. O rio
No seio as recebeu; comsigo as leva,
Como gottas de chuva, indifferente
Ao mal ou bem que lhe povoa a margem;
Que assim a natureza, ingenua e docil
Ás leis do Creador, perpétua segue
Em seu mesmo caminho, e deixa ao homem
Padecer e saber que sente e morre.

Pela azulada esphera inda trez vezes
A aurora as flôres derramou, e a noite
Vezes trez a mantilha escura e larga
Mysteriosa cingiu. Na quarta aurora,
Anjo das virgens, anjo de azas brancas,
Pudor, onde te foste? A alva capella
Murcha e desfeita pelo chão lançada,
Coberta a face do rubor do pejo,
Os olhos com as mãos velando, alçaste
Para a Eterna Pureza o eterno voo.
Quem ao tempo cortar pudera as azas
Se deleitoso voa? Quem pudera
Suster a hora abençoada e curta
Da ventura que foge, e sobre a terra
O gozo transportar da eternidade?
Sabina viu correr tecidos de ouro
Aqueles dias unicos na vida
Toda enlevo e paixão, sincera e ardente
Nesse primeiro amor d'alma que nasce
E os olhos abre ao sol. Tu lhe dormias,
Consciencia; razão, tu lhe fechavas
A vista interior; e ella seguia
Ao sabor dessas horas mal furtadas
Ao captiveiro e á solidão, sem vel-o
O fundo abysmo tenebroso e largo
Que a separa do eleito de seus sonhos,
Nem pressentir a brevidade e a morte!

E com que olhos de pena e de saudade
Viu ir-se um dia pela estrada fóra
Octavio! Aos livros torna o moço alumno,
Não cabisbaixo e triste, mas sereno
E lepido. Com ella a alma não fica
De seu jovem senhor. Lagrima pura,
Muito embora de escrava, pela face
Lentamente lhe rola, e lentamente
Toda se esvae num pallido sorriso
De mãe.

Sabina é mãe; o sangue livre
Gira e palpita no captivo seio
E lhe paga de sobra as dores cruas
Da longa ausencia. Uma por uma, as horas
Na solidão do campo há de contal-as,
E suspirar pelo remoto dia
Em que o veja de novo... Pouco importa,
Se o materno sentir compensa os males.

Riem-se della as outras; é seu nome
O assunto do terreiro. Uma invejosa
Acha-lhe uns certos modos singulares
De senhora de engenho; um pajem moço,
De cobiça e ciume devorado,
Desfaz nas graças que em silencio adora
E consigo medita uma vingança.
Entre os parceiros, desfiando a palha
Com que entrança um chapeo, solenemente
Um Caçanje ancião refere aos outros
Alguns casos que viu na mocidade
De captivas amadas e orgulhosas
Castigadas do céu por seus pecados,
Mortas entre os grilhões do captiveiro.

Assim falavam elles; tal o aresto
Da opinião. Quem evitá-lo póde
Entre os seus, por mais baixo que a fortuna
Haja tecido o berço? Assim falavam
Os captivos do engenho; e porventura
Sabina o soube e o perdoou.

Volveram
Após os dias da saudade os dias
Da esperança. Ora, quiz fortuna adversa
Que o coração do moço, tão voluvel
Como a brisa que passa ou como as ondas,
Nos cabellos castanhos se prendesse
De donzella gentil, com quem atára
O laço conjugal: uma belleza
Pura, como o primeiro olhar da vida,
Uma flôr desbrochada em seus quinze annos,
Que o moço viu n'um dos serões da corte
E captivo adorou. Que há de fazer-lhes
Agora o pae? Abençoar os noivos
E ao regaço trazel-os da familia.

Oh! longa foi, longa e ruidosa a festa
Da fazenda, por onde alegre entrára
O moço Octavio conduzindo a esposa.
Viu-os chegar Sabina, os olhos secos,
Attonita e pasmada. Breve o instante
Da vista foi. Rapido foge. A noite
A seu tremulo pé não tolhe a marcha;
Voa, não corre, ao malfadado rio,
Onde a voz escutou do amado moço.
Ali chegando: «Morrerá comigo.
O fruto de meu seio; a luz da terra
Seus olhos não verão; nem ar da vida
Hade aspirar...»

Ia a cair nas aguas,
Quando subito horror lhe toma o corpo;
Gelado o sangue e tremula recúa,
Vacilla e tomba sobre a relva. A morte
Em vão a chama e lhe fascina a vista;
Vence o instincto de mãe. Erma e calada
Ali ficou. Viu-a jazer a lua
Largo espaço da noite ao pé das aguas,
E ouviu-lhe o vento os tremulos suspiros;
Nenhum deles, comtudo, o disse á aurora.


ULTIMA JORNADA[27]

I

E ella se foi n'esse clarão primeiro,
Aquella esposa misera e ditosa;
E elle se foi o perfido guerreiro.

Ella serena ia subindo e airosa,
Elle á força de incognitos pesares
Dobra a cerviz rebelde e luctuosa.

Iam assim, iam cortando os ares,
Deixando embaixo as fertiles campinas,
E as florestas, e os rios e os palmares.

Oh! candidas lembranças infantinas!
Oh! vida alegre da primeira taba;
Que aurora vos tomou, aves divinas?

Como um tronco do matto que desaba,
Tudo caiu; lei barbara e funesta:
O mesmo instante cria e o mesmo acaba.

De esperanças tamanhas o que resta?
Uma historia, uma lagrima chorada
Sobre as ultimas ramas da floresta.

A flôr do ipê a viu brotar maguada,
E talvez a guardou no seio amigo,
Como lembrança da estação passada.

Agora os dois, deixando o bosque antigo,
E as campinas, e os rios e os palmares,
Para subir ao derradeiro abrigo,
Iam cortando lentamente os ares.

II

E elle clamava á moça que ascendia;
«—Oh! tu que a doce luz eterna levas,
E vais viver na região do dia,

«Vê como rasgam barbaras e sevas
As tristezas mortaes ao que se afunda
Quasi na fria região das trevas!

«Olha esse sol que a criação inunda!
Oh quanta luz, oh! quanta doce vida
Deixar-me vae na escuridão profunda!

«Tu ao menos perdoa-me, querida!
Suave esposa, que eu ganhei roubando,
Perdida agora para mim, perdida!

Ao maldito na morte, ao miserando,
Que mais lhe resta em sua noite impura?
Sequer allivio ao coração nefando.

«Nos olhos trago a tua morte escura.
Foi meu odio cruel que há decepado,
Ainda em flôr, a tua formosura.

«Mensageiro de paz, era enviado
Um dia á taba de teus pais, um dia
Que melhor fôra se não fôra nado.

Ali te vi; ali, entre a alegria
De teus fortes guerreiros e donzellas,
Teu doce rosto para mim sorria.

«A mais bella eras tu entre as mais bellas,
Como no céu a creadora lua
Vence na luz as vívidas estrellas.

«Gentil nasceste por desgraça tua;
Eu covarde nasci; tu me seguiste;
E ardeu a guerra desabrida e crua.

«Um dia o rosto carregado e triste
Á taba de teus pais volveste, o rosto
Com que alegre e feliz d'ali fugiste.

«Tinha expirado o passageiro gosto,
Ou o sangue dos teus, correndo a fio,
Em teu seio outro affecto havia posto.

«Mas, ou fosse remorso, ou já fastio,
Ias-te agora leve e descuidada,
Como folha que o vento entrega ao rio.

«Oh! corça minha fugitiva e amada!
Anhangá te guiou por mau caminho,
E a morte poz na minha mão fechada.

«Feriu-me da vingança agudo espinho;
E fiz-te padecer tão cruas penas,
Que inda me doe o coração mesquinho.

«Ao contemplar aquellas tristes scenas
As aves, de piedosas e sentidas,
Chorando foram sacudindo as pennas.

«Não viu o cedro ali correr perdidas
Lagrimas de materno amado seio;
Viu somente morrer a flôr das vidas.

«O que mais houve da floresta em meio
O sinistro expectaculo, de certo
Nenhum estranho contemplal-o veio.

«Mas, se alguem penetrasse no deserto,
Vira cair pesadamente a massa
Do corpo do guerreiro; e o craneo aberto,

«Como se fôra derramada taça
Pela terra jazer, ali chamando
O feio grasno do urubú que passa.

«Em vão a arma do golpe irão buscando,
Nenhuma houve; nem guerreiro ousado
A tua morte ali foi castigando.

«Talvez, talvez Tupan, desconsolado,
A pena contemplou maior do que era
O delicto; e de colera tomado,

«Ao mais alto dos Andes estendera
O forte braço, e da arvore mais forte
A setta e o arco vingador colhêra;

«As pontas lhe dobrou, da mesma sorte
Que o junco dobra, sussurrando o vento,
E de um só tiro lhe enviou a morte.”

Ia assim suspirando este lamento,
Quando subitamente a voz lhe cala,
Como se a dor lhe suffocára o alento.

No ar se perdêra a lastimosa falla,
E o infeliz, condenado á noite escura,
Os dentes range e treme de encontral-a.

Leva os olhos na viva aurora pura
Em que vê penetrar, já longe, aquella
Doce, mimosa, virginal figura.

Assim no campo a timida gazella
Foge e se perde; assim no azul dos mares
Some-se e morre fugidia vela.

E nada mais se viu fluctuar nos ares;
Que elle, bebendo as lagrimas que chora,
Na noite entrou dos immortaes pesares,
E ella de todo mergulhou na aurora.


OS ORISES[28]

(Fragmento)

I

Nunca as armas christans, nem do Evangelho
O lume criador, nem frecha extranha
O valle penetraram dos guerreiros
Que, entre serros altissimos sentado,
Orgulhoso descança. Unico o vento,
Quando as azas desprega impetuoso,
Os campos varre e as selvas estremece,
Um pouco leva, ao recatado asylo,
Da poeira da terra. Acaso o raio
Alguma vez nos asperos penedos,
Com fogo escreve a assolação e o susto.
Mas olhos de homem, não; mas braço affeito
A pleitear na guerra, a abrir ousado
Caminho entre a espessura da floresta,
Não affrontára nunca os atrevidos
Muros que a natureza a pino erguêra
Como eterna atalaia.

II

Um povo indocil
Nessas brenhas achou ditosa patria,
Livre, como o rebelde pensamento
Que ímpia força não doma, e airoso volve
Inteiro á eternidade. Guerra longa
E porfiosa os adestrou nas armas;
Rudes são nos costumes mais que quantos
Ha criado este sol, quantos na guerra
O tacape meneiam vigoroso.
Só nas festas de plumas se ataviam
Ou na pelle do tigre o corpo envolvem,
Que o sol queimou, que a rispidez do inverno
Endureceu como os robustos troncos
Que só verga o tufão. Tecer não usam
A preguiçosa rede em que se embale
O corpo fatigado do guerreiro,
Nem as tabas erguer como outros povos;
Mas á sombra das arvores antigas,
Ou nas medonhas cavas dos rochedos,
No duro chão, sobre mofinas ervas,
Acham somno de paz, jamais tolhido
De ambições, de remorsos. Indomavel
Essa terra não é; prompto lhes volve
O semeado pão; vecejam flôres
Com que a rudez tempera a extensa matta,
E o fructo pende dos curvados ramos
Do arvoredo. Harta messe do homem rude,
Que tem na ponta da farpada setta
O pesado tapir, que lhes não foge,
Nhandu, que á flôr de terra inquieto voa,
Sobejo pasto, e deleitoso e puro
Da selvagem nação. Nunca vaidade
De seu nome souberam, mas a força,
Mas a destreza do provado braço
Os foros são do imperio a que hão sugeito
Todo aquelle sertão. Murmuram longe,
Contra elles, as gentes debelladas
Vingança e odio. Os ecos repetiram
Muita vez a pocema de combate;
Nuvens e nuvens de afiadas settas
Todo o ar cobriram; mas o extremo grito
Da victoria final só delles fôra.

III

Despem armas de guerra; a paz os chama
E o seu barbaro rito. Alveja perto
O dia em que primeiro a voz levante
A ave sagrada, o nume de seus bosques,
Que de agouro chamamos, Cupuaba
Melancholica e feia, mas ditosa
E benefica entre eles. Não se curvam[29]
Ao nome de Tupan, que a noite e o dia
No céu reparte, e ao rispido guerreiro
Guarda os sonhos do Ybake e eternas danças.
Seu deus unico é ella, a bemfazeja
Ave amada, que os campos despovoa
Das venenosas serpes,—viva imagem
Do tempo vingador, lento e seguro,
Que as calumnias, a inveja e o odio apagam,
E ao conspurcado nome o alvor primeiro
Restitue. Uso é delles celebrar-lhe
Com festas o primeiro e o extremo canto.

IV

Terminára o cruento sacrificio.
Ensopa o chão da dilatada selva
Sangue de caitetus, que o pio intento
Largos mezes cevou; barbara usança
Tambem de alheios climas. As donzellas,
Mal sahidas da infancia, inda embebidas
Nos ledos jogos de primeira edade,
Ao brutal sacrificio... Oh! cala, esconde,
Labio christão, mais barbaro costume.

V

Agora a dansa, agora alegres vinhos,
Trez dias ha que de inimigos povos
Esquecidos os trazem. Sobre um tronco
Sentado o chefe, carregado o rosto,
Inquieto o olhar, o gesto pensativo,
Como alheio ao prazer, de quando em quando
Á multidão dos seus a vista alonga,
E um rugido no peito lhe murmura.
Quem a fronte enrugara do guerreiro?
Inimigo não foi, que o medo nunca
O sangue lhe esfriou, nem vão receio
Da batalha futura o desenlace
Lhe fez incerto. Intrepidos como elle
Poucos vira este céu. Seu forte braço,
Quando vibra o tacape nas pelejas,
De rasgados cadaveres o campo
Inteiro alastra, e ao peito do inimigo,
Como um grito de morte a voz lhe soa.
Nem só nas gentes o terror infunde;
É fama que em seus olhos cor da noite,
Inda creança, um genio lhe deixara
Mysteriosa luz, que as forças quebra
Da onça e do jaguar. Certo é que um dia
(A tribu o conta, e seus pagés o juram)
Um dia em que, do filho acompanhado,
Ia costeando a orla da floresta,
Um possante jaguar, escancarando
A bocca, em frente do famoso chefe
Estacára. De longe um grito surdo
Solta o jovem guerreiro; logo a setta
Embebe no arco, e o tiro sibilante
Ia já disparar, quando de assombro
A mão lhe afrouxa a distendida corda.
A fera o colo timida abatêra,
Sem ousar despregar os fulvos olhos
Dos olhos do inimigo. Ureth ousado
Arco e frechas atira para longe,
A massa empunha, e lento, e lento avança;
Trez vezes volteando a arma terrivel,
Enfim despede o golpe; um grito apenas
Unico atroa o solitario campo,
E a fera jaz, e o vencedor sobre ella.


OCCIDENTAES

O DESFECHO

Prometheu sacudiu os braços manietados
E supplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos seculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.

Mais dez, mais cem, mais mil e mais um billião,
Uns cingidos de luz, outros ensanguentados...
Subito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a aguia em cima os olhos espantados.

Pela primeira vez a viscera do heroe,
Que a immensa ave do céu perpetuamente roe,
Deixou de renascer ás raivas que a consomem.

Uma invisivel mão as cadeias dilue;
Frio, inerte, ao abysmo um corpo morto rue;
Acabára o supplicio e acabára o homem.


CIRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
—«Quem me dera que fosse aquella loura estrella,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!»
Mas a estrella, fitando a lua, com ciume:

—«Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega columna á gothica janella,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bella!»
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

—«Misera! tivesse eu aquella enorme, aquella
Claridade immortal, que toda a luz resume!»
Mas o sol, inclinando a rutila capella:

—«Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbella...
Por que não nasci eu um simples vagalume?»


UMA CREATURA

Sei de uma creatura antiga e formidavel,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
Com a sofreguidão da fome insaciavel.

Habita juntamente os valles e as montanhas;
E no mar, que se rasga, á maneira de abysmo,
Espreguiça-se toda em convulsões extranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o bello e o monstruoso.

Para ella o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbavel, como
Pelo vasto areal um vasto paquyderme.

Na arvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flôr, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flôr e corrompe-lhe o fructo;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o polluto e o impolluto;
Começa e recomeça uma perpetua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.


A ARTHUR DE OLIVEIRA, Enfermo

Sabes tu de um poeta enorme
Que andar não usa
No chão, e cuja estranha musa,
Que nunca dorme,

Calça o pé, melindroso e leve,
Como uma pluma,
De folha e flôr, de sol e neve,
Crystal e espuma;

E mergulha, como Leandro,
A fórma rara
No Pó, no Sena, em Guanabara
E no Scamandro;

Ouve a Tupan e escuta a Momo,
Sem controversia,
E tanto ama o trabalho, como
Adora a inercia;

Ora do fuste, ora da ogiva,
Sair parece;
Ora o Deus do occidente esquece
Pelo deus Siva;

Gosta do estrepito infinito,
Gosta das longas
Solidões em que se ouve o grito
Das arapongas;

E, se ama o lepido besouro,
Que zumbe, zumbe,
E a mariposa que succumbe
Na flamma de ouro,

Vagalumes e borboletas,
Da côr da chamma,
Roxas, brancas, rajadas, pretas,
Não menos ama

Os hippopotamos tranquillos,
E os elephantes,
E mais os bufalos nadantes
E os crocodilos,

Como as girafas e as pantheras,
Onças, condores,
Toda a casta de bestas feras
E voadores.

Se não sabes quem elle seja
Trepa de um salto,
Azul acima, onde mais alto
A aguia negreja;

Onde morre o clamor iniquo
Dos violentos,
Onde não chega o riso obliquo
Dos fraudulentos;

Então, olha de cima posto
Para o oceano,
Verás n'um longo rosto humano
Teu proprio rosto.

E has de rir, não do riso antigo,
Potente e largo,
Riso de eterno moço amigo,
Mas de outro amargo,

Como o riso de um deus enfermo
Que se aborrece
Da divindade, e que apetece
Tambem um termo...


MUNDO INTERIOR

Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol á infima luzerna.

Ouço que a natureza,—a natureza externa,—
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hydra de Lerna
Entre as flôres da bella Armida.

E comtudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo á luz de outro sol, outro abysmo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Róla a vida immortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu ambito enorme,
Um segredo que attrae, que desafia—e dorme.


O CORVO

(EDGAR POE)

Em certo dia, á hora, á hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, cahindo de somno e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi á porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras taes:
«É alguem que me bate á porta de mansinho;
«Ha de ser isso e nada mais.»

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembro;
Cada braza do lar sobre o chão reflectia
A sua ultima agonia.
Eu, ancioso pelo sol, buscava
Saccar d'aquelles livros que estudava
Repouso (em vão!) á dôr esmagadora
D'estas saudades immortaes
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.
E que ninguem chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por elle padecido.
Enfim, por aplacal-o aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: «Com effeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
«Que bate a estas horas taes.
«É visita que pede á minha porta entrada:
«Ha de ser isso e nada mais.»

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacillo e d'esta sorte
Fallo: «Imploro de vós,—ou senhor ou senhora,
«Me desculpeis tanta demora.
«Mas como eu, precisando de descanço,
«Já cochilava, e tão de manso e manso
«Batestes, não fui logo, prestemente,
«Certificar-me que ahi estaes.»
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Sómente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal ha já sonhado,
Mas o silencio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra unica e dilecta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca saes;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro com alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella:
«Seguramente, há na janella
«Alguma cousa que sussurra. Abramos,
«Eia, fôra o temor, eia, vejamos
«A explicação do caso mysterioso
«D'essas duas pancadas taes.
«Devolvamos a paz ao coração medroso,
«Obra do vento e nada mais.»

Abro a janella, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortezias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e recto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima vôa dos portaes,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquella rigida postura,
Com o gesto severo,—o triste pensamento
Sorriu-me alli por um momento,
E eu disse: «Ó tu que das nocturnas plagas
«Vens, embora a cabeça nua tragas,
«Sem topete, não és ave medrosa,
«Dize os teus nomes senhoriaes;
«Como te chamas tu na grande noite umbrosa?»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

Vendo que o psssaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico attonito, embora a resposta que dera
Difficilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem ha visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
N'um busto, acima dos portaes,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: «Nunca mais.»

No emtanto, o corvo solitario
Não teve outro vocabulario,
Como se essa palavra escassa que alli disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: «Perdi outr'ora
Tantos amigos tão leaes!
Perderei tambem este em regressando a aurora.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exacta! é tão cabida!
«Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia
«Que ele trouxe da convivencia
«De algum mestre infeliz e acabrunhado
«Que o implacavel destino ha castigado
«Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
«Que dos seus cantos usuaes
«Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga,
«Esse estribilho: «Nunca mais.»

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no velludo
Da poltrona que eu mesmo alli trouxera
Achar procuro a lugubre quimera,
A alma, o sentido, o pavido segredo
Daquelas syllabas fataes,
Entender o que quiz dizer a ave do medo
Grasnando a phrase: «Nunca mais.»

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava,
Sentia o olhar que me abrazava.
Conjecturando fui, tranquillo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lampada cahiam,
Onde as tranças angelicaes
De outra cabeça outr'ora alli se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Suppuz então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de seraphins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro thuribulo invisivel;
E eu exclamei então: «Um Deus sensivel
«Manda repouso á dor que te devora
«D'estas saudades immortaes.
«Eia, esquece, eia, olvida essa extincta Lenora.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
«Onde reside o mal eterno,
«Ou simplesmente naufrago escapado
«Venhas do temporal que te ha lançado
«N'esta casa onde o Horror, o Horror profundo
«Tem os seus lares triumphaes,
«Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo?»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende!
«Por esse céu que além se estende,
«Pelo Deus que ambos adoramos, falla,
«Dize a esta alma se é dado inda escutal-a
«No Eden celeste a virgem que ella chora
«Nestes retiros sepulchraes,
«Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
«Regressa ao temporal, regressa
«Á tua noite, deixa-me commigo.
«Vae-te, não fique no meu casto abrigo
«Pluma que lembre essa mentira tua.
«Tira-me ao peito essas fataes
«Garras que abrindo vão a minha dor já crua.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»

E o corvo ahi fica; eil-o trepado
No branco marmore lavrado
Da antiga Pallas; ei-lo immutavel, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demonio sonhando. A luz cahida
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fóra
D'aquelas linhas funeraes
Que fluctuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!


PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Venus Formosa, Venus fulgurava
No azul do céu da tarde que morria,
Quando á janella os braços encostava
Pallida Maria.

Ao ver o noivo pela rua umbrosa,
Os longos olhos avidos enfia,
E fica de repente côr de rosa
Pallida Maria.

Correndo vinha no cavallo baio,
Que ela de longe apenas distinguia,
Correndo vinha o noivo, como um raio...
Pallida Maria!

Trez dias são, trez dias são apenas,
Antes que chegue o suspirado dia,
Em que elles porão termo ás longas penas...
Pallida Maria!

De confusa, naquelle sobressalto,
Que a presença do amado lhe trazia,
Olhos accesos levantou ao alto
Pallida Maria.

E foi subindo, foi subindo acima
No azul do céu da tarde que morria,
A ver se achava uma sonora rima...
Pallida Maria!

Rima de amor, ou rima de ventura,
As mesmas são na escala da harmonia.
Pousa os olhos em Venus que fulgura
Pallida Maria.

E o coração, que de prazer lhe bate,
Acha no astro a fraterna melodia
Que á natureza inteira dá rebate...
Pallida Maria.

Maria pensa: «Tambem tu, decerto,
«Esperas ver, neste final do dia,
«Um noivo amado que cavalga perto,
«Pallida Maria?»

Isto dizendo, subito escutava
Um estrepito, um grito e vozeria,
E logo a frente em ancias inclinava
Pallida Maria.

Era o cavallo, rabido, arrastando
Pelas pedras o noivo que morria;
Maria o viu e desmaiou gritando...
Pallida Maria!

Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,
E a mesma noiva, semi-morta e fria,
Sobre elle as folhas do noivado espalha.
Pallida Maria!

Cruzam-se as mãos, na derradeira prece
Muda que o homem para cima envia,
Antes que desça á terra em que apodrece.
Pallida Maria!

Seis homens tomam do caixão fechado
E vão leval-o á cova que se abria;
Terra e cal e um responso recitado...
Pallida Maria

Quando, trez soes passados, rutilava
A mesma Venus, no morrer do dia,
Tristes olhos ao alto levantava
Pallida Maria.

E murmurou: «Tens a expressão do goivo,
«Tens a mesma roaz melancholia;
«Certamente perdeste o amor e o noivo,
«Pallida Maria?»

Venus, porém, Venus brilhante e bella,
Que nada ouvia, nada respondia,
Deixa rir ou chorar n'uma janela
Pallida Maria.


TO BE OR NOT TO BE

(SHAKESPEARE)

Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um somno apenas,
Que as angustias extingue e á carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por elle.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a duvida. Ao perpetuo somno,
Quando o lodo mortal despído houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesal-o cumpre.
Essa a razão que os luctuosos dias
Alonga do infortunio. Quem do tempo
Soffrer quizera ultrajes e castigos,
Injurias da oppressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas maguas,
Das leis a inercia, dos mandões a affronta,
E o vão desdem que de rasteiras almas
O paciente merito recebe,
Quem, se na ponta da despida lamina
Lhe acenára o descanço? Quem ao pezo
De uma vida de enfados e miserias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno paiz mysterioso
D'onde um viajor sequer ha regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a supportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciencia.
Assim da reflexão á luz mortiça
A viva côr da decisão desmaia;
E o firme, essencial commettimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de acção perder o nome.


LINDOYA

Vem, vem das aguas, misera Moema,
Senta-te aqui. As vozes lastimosas
Troca pelas cantigas deleitosas,
Ao pé da doce e pallida Coema.

Vós, sombras de Iguassú e de Iracema,
Trazei nas mãos, trazei no collo as rosas
Que o amor desabrochou e fez viçosas
Nas laudas de um poema e outro poema.

Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta
De Lindoya, que a voz suave e forte
Do vate celebrou, a alegre festa.

Além do amavel, gracioso porte,
Vede o mimo, a ternura que lhe resta.
Tanto inda é bella no seu rosto a morte!


SUAVE MARI MAGNO

Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espurio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe désse gozo
Ver padecer.


A MOSCA AZUL

Era uma mosca azul, azas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua,—melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
«Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que t'o ensinou?»

Então ella, voando, e revoando, disse:
—«Eu sou a vida, eu sou a flôr
«Das graças, o padrão da eterna meninice,
«E mais a gloria, e mais o amor.»

E elle deixou-se estar a contemplal-a, mudo,
E tranquillo, como um faquir,
Como alguem que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem reflectir.

Entre as azas do insecto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço
E viu um rosto, que era o seu.

Era elle, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o collo nú
Um immenso collar de opala, e uma saphyra
Tirada do corpo de Vischnu.

Cem mulheres em flôr, cem nayras superfinas,
Aos pés delle, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que tem lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem ethiopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.

Vinha a gloria depois;—quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triumphaes
De trezentas nações, e os parabens unidos
Das coroas occidentaes.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em agua que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então elle, estende a mão callosa e tosca,
Affeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quiz vel-a, quis saber a causa do mysterio.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que alli tinha um imperio,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa occupação
Miudamente, como um homem que quizesse
Dissecar a sua illusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ella,
Rota, baça, nojenta, vil,
Succumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquella
Visão fantastica e subtil.

Hoje, quando elle ahi vae, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.


ANTONIO JOSE

(21 DE OUTUBRO DE 1739)

Antonio, a sapiencia da Escriptura
Clama que ha para a humana creatura
Tempo de rir e tempo de chorar,
Como ha um sol no ocaso, e outro na aurora.
Tu, sangue de Ephraim e de Issacar,
Pois que já riste, chora.


SPINOZA

Gosto de ver-te, grave e solitario,
Sob o fumo de esqualida candeia,
Nas mãos a ferramenta de operario,
E na cabeça a coruscante ideia.

E emquanto o pensamento delineia
Uma philosophia, o pão diario
A tua mão a labutar grangeia
E achas na independencia o teu salario.

Sôem cá fora agitações e lutas,
Sibille o bafo asperrimo do inverno,
Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sobrio, tranquillo, desvellado e terno,
A lei commum, e morres, e transmutas
O suado labor no premio eterno.


GONÇALVES CRESPO

Esta musa da patria, esta saudosa
Niobe dolorida,
Esquece acaso a vida,
Mas não esquece a morte gloriosa.

E pallida, e chorosa,
Ao Tejo vôa, onde no chão caida
Jaz aquella evadida
Lyra da nossa America viçosa.

Com ella torna, e, dividindo os ares,
Trepido, molle, doce movimento
Sente nas frouxas cordas singulares.

Não é a aza do vento,
Mas a sombra do filho, no momento
De entrar perpetuamente os patrios lares.


ALENCAR

Hão de annos volver,—não como as neves
De alheios climas, de geladas cores;
Hão de os annos volver, mas como as flôres,
Sobre o teu nome, vividos e leves...

Tu, cearense musa, que os amores
Meigos e tristes, rusticos e breves,
Da indiana escreveste,—ora os escreves
No volume dos patrios esplendores.

E ao tornar este sol, que te ha levado,
Já não acha a tristeza. Extincto é o dia
Da nossa dor, do nosso amargo espanto.

Porque o tempo implacavel e pausado,
Que o homem consumiu na terra fria,
Não consumiu o engenho, a flôr, o encanto...


CAMÕES

I

Tu quem és? Sou o seculo que passa.
Quem somos nós? A multidão fremente.
Que cantamos? A gloria resplendente.
De quem? De quem mais soube a força e a graça.

Que cantou elle? A vossa mesma raça.
De que modo? Na lyra alta e potente.
A quem amou? A sua forte gente.
Que lhe deram? Penuria, ermo, desgraça.

Nobremente soffreu? Como homem forte.
Esta immensa oblação?... É-lhe devida.
Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.

Chama-se a isto? A gloria appetecida.
Nós, que o cantamos?... Volvereis á morte.
Elle, que é morto?... Vive a eterna vida.

II

Quando, transposta a lugubre morada
Dos castigos, ascende o florentino
Á região onde o clarão divino
Enche de intensa luz a alma nublada,

A saudosa Beatriz, a antiga amada,
A mão lhe estende e guia o peregrino,
E aquelle olhar ethereo e cristallino
Rompe agora da palpebra sagrada.

Tu, que tambem o Purgatorio andaste,
Tu, que rompeste os circulos do Inferno,
Camões, se o teu amor fugir deixaste,

Ora o tens, como um guia alto e superno
Que a Natercia da vida que choraste
Chama-se Gloria e tem o amor eterno.

III

Quando, torcendo a chave mysteriosa
Que os cancellos fechava do Oriente,
O Gama abriu a nova terra ardente
Aos olhos da companha valorosa,

Talvez uma visão resplandecente
Lhe amostrou no futuro a sonorosa
Tuba, que cantaria a acção famosa
Aos ouvidos da própria e extranha gente.

E disse: «Se já n'outra, antiga edade,
«Troya bastou aos homens, ora quero
«Mostrar que é mais humana a humanidade.

«Pois não serás heroe de um canto fero,
«Mas vencerás o tempo e a immensidade
«Na voz de outro moderno e brando Homero.»

IV

Um dia, junto á foz de brando e amigo
Rio de extranhas gentes habitado,
Pelos mares asperrimos levado,
Salvaste o livro que viveu comtigo.

E esse que foi ás ondas arrancado,
Já livre agora do mortal perigo,
Serve de arca immortal, de eterno abrigo,
Não só a ti, mas ao teu berço amado.

Assim, um homem só, naquelle dia,
Naquelle escasso ponto do universo,
Lingua, historia, nação, armas, poesia,

Salva das frias mãos do tempo adverso.
E tudo aquillo agora o desafia.
E tão sublime preço cabe em verso.


1802-1835

Um dia, celebrando o genio e a eterna vida,
Victor Hugo escreveu numa pagina forte
Estes nomes que vão galgando a eterna morte,
Isaias, a voz de bronze, alma sahida
Da coxa de David; Eschylo que a Orestes
E a Prometheu, que sofre as vinganças celestes
Deu a nota immortal que abala e persuade,
E transmitte o terror, como excita a piedade;
Homero, que cantou a colera potente
De Aquilles, e colheu as lagrimas troyanas
Para gloria maior da sua amada gente,
E com elle Virgilio e as graças virgilianas;
Juvenal que marcou com ferro em brasa o hombro
Dos tyrannos, e o velho e grave florentino,
Que mergulha no abysmo, e caminha no assombro,
Baixa humano ao inferno e regressa divino;
Logo após Calderon, e logo após Cervantes;
Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria;
E, para coroar esses nomes vibrantes,
Shakespeare, que resume a universal poesia.

E agora que elle ahi vae, galgando a eterna morte,
Pega a Historia da penna e na pagina forte,
Para continuar a serie interrompida,
Escreve o nome d'elle, e dá-lhe a eterna vida.


JOSÉ DE ANCHIETA

Esse que as vestes asperas cingia,
E a viva flôr da ardente juventude
Dentro do peito a todos escondia;

Que em paginas de areia vasta e rude
Os versos escrevia e encomendava
Á mente, como esforço de virtude;

Esse nos rios de Babel achava,
Jerusalem, os cantos primitivos,
E novamente aos ares os cantava.

Não procedia então como os captivos
De Syão, consumidos de saudade,
Velados de tristeza, e pensativos.

Os cantos de outro clima e de outra edade
Ensinava sorrindo ás novas gentes,
Pela lingua do amor e da piedade.

E iam caindo os versos excellentes
No abençoado chão, e iam caindo
Do mesmo modo as mysticas sementes.

Nas florestas os passaros, ouvindo
O nome de Jesus e os seus louvores,
Iam cantando o mesmo canto lindo.

Eram as notas como alheias flôres
Que verdejam no meio de verduras
De diversas origens e primores.

Anchieta, soltando as vozes puras,
Achas outra Syão neste hemispherio,
E a mesma fé e egual amor apuras.

Certo, ferindo as cordas do psalterio,
Unicamente contas divulgal-a
A palavra christã e o seu mysterio.

Trepar não cuidas a luzente escala
Que os heroes cabe e leva á clara esphera
Onde eterna se faz a humana fala.

Onde os tempos não são esta chimera
Que apenas brilha e logo se esvaece,
Como folhas de escassa primavera.

Onde nada se perde nem se esquece,
E no dorso dos seculos trazido
O nome de Anchieta resplandece
Ao vivo nome do Brasil unido.


SONETO DE NATAL

Um homem,—era aquella noite amiga,
Noite christã, berço do Nazareno,—
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lepida cantiga,

Quiz transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua edade antiga,
Naquella mesma velha noite amiga,
Noite christã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A penna não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
«Mudaria o Natal ou mudei eu?»


OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE

(LA FONTAINE)

Mal que espalha o terror e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os peccados do mundo, a peste, em summa, a peste,
Capaz de abastecer o Aqueronte n'um dia,
Veio entre os animaes lavrar;
E, se nem tudo succumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento.
Não havia manjar que o appetite abrisse,
Raposa ou lobo que saisse
Contra a presa innocente e mansa,
Rola que á rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança!
O leão convocou uma assembléa e disse:
«Sócios meus, certamente este infortunio veio
A castigar-nos de peccados.
Que o mais culpado entre os culpados
Morra por applacar a colera divina.
Para a commum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos taes é de uso haver sacrificados;
Assim a historia nol-o ensina.
Sem nenhuma illusão, sem nenhuma indulgencia,
Pesquizemos a consciencia.
Quanto a mim, por dar mate ao impeto glotão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me offendera? em nada.
E tive mesmo occasião
De comer egualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, prompto.
Mas, assim como me accusei,
Bom é que cada um se accuse, de tal sorte
Que (devemos querel-o, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte.»
«—Meu senhor, accudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e villã, pode lá ser peccado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer, muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida,
Pois são daquellas gentes taes
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animaes.»
Disse a raposa, e a corte applaudiu-lhe o discurso.
Ninguem do tigre nem do urso,
Ninguem de outras iguaes senhorias do matto,
Inda entre os actos mais damninhos,
Ousava esmerilhar um acto;
E até os ultimos rafeiros,
Todos os bichos resingueiros,
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro:«—Tenho ideia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da occasião, da fome e do capim viçoso,
E póde ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade.»
Mal o ouviu, a assembléa exclama: «Aqui d'el-rei!»
Um lobo, algo lettrado, arenga e persuade
Que era força immolar esse bicho nefando,
Empesteado autor de tal calamidade;
E o pecadilho foi julgado
Um attentado.
Pois comer erva alheia! ó crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um peccado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.

Segundo sejas tu miseravel ou forte
Aulicos te farão detestavel ou puro.


DANTE

(PURGATORIO, canto XXV)

Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo
As mãos em figas, deste modo brada:
«Olha, Deus, para ti o estou fazendo!»

E desde então me foi a serpe amada,
Pois uma vi que o collo lhe prendia,
Como a dizer: «não falarás mais nada!»

Outra os braços na frente lhe cingia
Com tantas voltas e de tal maneira
Que elle fazer um gesto não podia.

Ah! Pistoia, por que n'uma fogueira
Não ardes tu, se a mais e mais impuros,
Teus filhos vão nessa mortal carreira?

Eu, em todos os circulos escuros
Do inferno, alma não vi tão rebellada,
Nem a que em Thebas resvalou dos muros.

E ele fugiu sem proferir mais nada.
Logo um centauro furioso assoma
A bradar: «Onde, aonde a alma damnada?»

Maremma não terá tamanha somma
De reptis quanta vi que lhe ouriçava
O dorso inteiro desde a humana coma.

Junto á nuca do monstro se elevava
De asas abertas um dragão que enchia
De fogo a quanto alli se approximava.

«Aquelle é Caco,—o Mestre me dizia,—
Que, sob as rochas do Aventino, ousado
Lagos de sangue tanta vez abria.

«Não vae de seus irmãos acompanhado
Porque roubou malicioso o armento
Que alli pascia na campanha ao lado,

«Hercules com a maça e golpes cento,
Sem lhe doer um decimo ao nefando,
Poz remate a tamanho atrevimento.»

Ele falava, e o outro foi andando.
No emtanto embaixo vinham para nós
Trez espiritos que só vimos quando

Atroára este grito: «Quem sois vós?»
Nisto a conversa nossa interrompendo
Elle, como eu, no grupo os olhos pôz.

Eu não os conheci, mas succedendo,
Como outras vezes succeder é certo,
Que o nome de um estava outro dizendo,

«Cianfa aonde ficou?» Eu, por que esperto
E attento fosse o Mestre em escutal-o,
Puz sobre a minha boca o dedo aberto.

Leitor, não maravilha que acceital-o
Ora te custe o que vás ter presente,
Pois eu, que o vi, mal ouso acredital-o.

Eu contemplava, quando uma serpente
De seis pés temerosa se lhe atira
A um dos trez e o colhe de repente.

Co'os pés do meio o ventre lhe cingira,
Com os da frente os braços lhe peava,
E ambas as faces lhe mordeu com ira.

Os outros dous ás coxas lhe alongava,
E entre ellas insinua a cauda que ia
Tocar-lhes os rins e dura os apertava.

A hera não se enrosca nem se enfia
Pela arvore, como a horrivel féra
Ao peccador os membros envolvia.

Como se fossem derretida cera,
Um só vulto, uma côr iam tomando,
Quaes tinham sido nenhum delles era.

Tal o papel, se o fogo o vae queimando,
Antes de negro estar, e já depois
Que o branco perde, fusco vae ficando.

Os outros dous bradavam: «Ora pois,
Agnel, ai triste, que mudança é essa?
Olha que já não és nem um nem dous!»

Faziam ambas uma só cabeça,
E na unica face um rosto mixto,
Onde eram dous, a apparecer começa.

Dos quatro braços dous restavam, e isto,
Pernas, coxas e o mais ia mudado
N'um tal composto que jamais foi visto.

Todo o primeiro aspecto era acabado;
Dous e nenhum era a cruel figura,
E tal se foi a passo demorado.

Qual camaleão, que variar procura
De sebe ás horas em que o sol esquenta,
E correndo parece que fulgura,

Tal uma curta serpe se apresenta,
Para o ventre dos dous corre accendida,
Livida e côr de um bago de pimenta.

E essa parte por onde foi nutrida
Tenra creança antes que á luz saisse,
N'um delles morde, e cae toda estendida.

O ferido a encarou, mas nada disse;
Firme nos pés, apenas bocejava,
Qual se de febre ou somno alli caisse.

Frente a frente, um ao outro contemplava,
E á chaga de um, e á boca de outro, forte
Fumo saía e no ar se misturava.

Cale agora Lucano a triste morte
De Sabello e Nasidio, e attento esteja
Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.

Cale-se Ovidio e neste quadro veja
Que, se Arethusa em fonte nos ha posto
E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.

Pois duas naturezas rosto a rosto
Não transmudou, com que elas de repente
Trocassem a materia e o ser opposto.

Tal era o accordo entre ambas que a serpente
A cauda em duas caudas fez partidas,
E a alma os pés ajuntáva estreitamente.

Pernas e coxas vi-as tão unidas
Que nem leve sinal dava a juntura
De que tivessem sido divididas.

Imita a cauda bifida a figura
Que alli se perde, e a pele abranda, ao passo
Que a pelle do homem se tornava dura.

Em cada axilla vi entrar um braço,
A tempo que iam esticando á fera
Os dous pés que eram de tamanho escasso.

Os pés de traz a serpe os retorcêra
Até formarem-lhe a encoberta parte,
Que no infeliz em pés se convertêra.

Emquanto o fumo os cobre, e de tal arte
A côr lhes muda e põe á serpe o vello
Que já da pelle do homem se lhe parte,

Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcel-o
Aquelle torvo olhar com que ambos iam
A trocar entre si o rosto e a vel-o.

Ao que era em pé as carnes lhe fugiam
Para as fontes, e alli do que abundava
Duas orelhas de homem lhe saiam.

E o que de sobra ainda lhe ficava
O nariz lhe compõe e lhe perfaz
E o labio lhe engrossou quanto bastava.

A boca estende o que por terra jaz
E as orelhas recolhe na cabeça,
Bem como o caracol ás pontas faz.

A lingua, que era então de uma só peça,
E prestes a falar, fendida vi-a,
Emquanto a do outro se une, e o fumo cessa.

A alma, que assim tornado em serpe havia,
Pelo valle fugiu assobiando,
E esta lhe ia falando e lhe cuspia.

Logo a recente espadua lhe foi dando
E á outra disse: «Ora com Buoso mudo,
Rasteje, como eu vinha rastejando!»

Assim na cova setima vi tudo
Mudar e transmudar; a novidade
Me absolva o estylo desornado e rudo.

Mas que um tanto perdesse a claridade
Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,
Não fugiram com tanta brevidade,

Nem tão occultos, que eu não conhecesse
Puccio Sciancato, unica alli vinda
Alma que a fórma propria não perdesse;
O outro chóral-o tu, Gaville, ainda.


A FELICIO DOS SANTOS

Felicio amigo, se eu disser que os annos
Passam correndo ou passam vagarosos,
Segundo são alegres ou penosos,
Tecidos de affeições ou desenganos,

«Philosophia é esta de rançosos!»
Dirás. Mas não ha outra entre os humanos.
Não se contam sorrisos pelos damnos,
Nem das tristezas desabrocham gozos.

Banal, confesso. O precioso e o raro
É, seja o céu nublado ou seja claro,
Tragam os tempos amargura ou gosto,

Não desdizer do mesmo velho amigo,
Ser com os teus o que elles são comtigo,
Ter um só coração, ter um só rosto.


MARIA

Maria, ha no seu gesto airoso e nobre,
Nos olhos meigos e no andar tão brando,
Um não sei quê suave que descobre,
Que lembra um grande passaro marchando.

Quero, ás vezes, pedir-lhe que desdobre
As azas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Leval-a ao tecto azul que a terra cobre.

E penso então, e digo então commigo:
«Ao céu, que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.

«Passaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excellentes
Da nossa cara e lepida Maria.»


A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flôres um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou tem assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mez
Das almas já ressequidas.

Os soes e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.


CLODIA

Era Clodia a vergontea illustre e rara
De uma familia antiga. Tez morena,
Como a casca do pecego, deixava
Transparecer o sangue e a juventude.
Era a romana ardente e imperiosa
Que os écos fatigou de Roma inteira
Co'a narração das longas aventuras.
Nunca mais gentil fronte o sol da Italia
Amoroso beijou, nem mais gracioso
Corpo envolveram tunicas de Tyro.
Sombrios, como a morte, os olhos eram.
A vermelha botina em si guardava
Breve, divino pé. Humida boca,
Como a rosa que os zephyros convida,
Os beijos convidava. Era o modelo
Da luxuosa Lamia,—aquella moça
Que o marido esqueceu, e amou sem pejo
O musico Pollião. De mais, fazia
A illustre Clodia trabalhados versos;
A cabeça curvava pensativa
Sobre as tabellas núas; invocava
Do classico Parnaso as musas bellas,
E, se não mente linguaruda fama,
Davam-lhe inspiração vadias musas.

O ideal da matrona austera e fria,
Caseira e nada mais, esse acabava.
Bem hajas tu, patricia desligada
De preconceitos vãos, tu que presides
Ao festim dos rapazes, tu que estendes
Sobre verdes coxins airosas fórmas,
Enquanto o esposo, consultando os dados,
Perde risonho válidos sestereios...
E tu, viuva misera, deixada
Na flôr dos anos, merencoria e triste,
Que seria de ti, se o gozo e o luxo
Não te alegrassem a alma? Cedo esquece
A memoria de um obito. E bem hajas,
Discreto esposo, que morreste a tempo.
Perdes, bem sei, dos teus rivaes sem conta
Os custosos presentes, as ceiatas,
Os jantares opiparos. Comtudo,
Não verás cheia a casa de creanças
Loiras obras de artífices extranhos.

Baias recebe a celebrada moça
Entre festins e jubilos. Faltava
Ao pomposo jardim das lacias flôres
Esta rosa de Pœstum. Chega; é ella,
É ella, a amavel dona. O céu ostenta
A larga face azul, que o sol no occaso
Co'os frouxos raios desmaiado tinge.
Terno e brando abre o mar o espumeo seio;
Molles respiram virações do golpho.
Clodia chega. Tremei, moças amadas;
Ovelhinhas dos placidos idylios,
Roma vos manda esta faminta loba.
Prendei, prendei com vínculos de ferro,
Os voluveis amantes, que os não veja
Esta formosa Páris. Inventai-lhes
Um philtro protector, um philtro ardente,
Que o fogo leve aos corações rendidos,
E aos vossos pés eternamente os prenda;
Clodia... Mas, quem pudera, a frio e a salvo,
Um requebro affrontar daquelles olhos
Ver-lhe o turgido seio, as mãos, o talhe,
O andar, a voz, ficar marmore frio
Ante as supplices graças? Menor pasmo
Fôra, se ao gladiador, em pleno circo,
A panthera africana os pés lambesse,
Ou se, á cauda de indomito cavallo,
Ovantes hostes arrastassem Cesar.

Coroados de rosas os convivas
Entram. Trajam com graça vestes novas
Tafues de Italia, finos e galhardos
Patricios da republica expirante,
E madamas faceiras. Vem entre elles
Celio, a flôr dos vadios, nobre moço,
E opulento, o que é mais. Ambicioso
Quer triumphar na classica tribuna
E honras aspira até do consulado.
Mais custoso lavor não vestem damas,
Nem aroma melhor do seio exhalam.
Tem na altivez do olhar sincero orgulho,
E certo que o merece. Entre os rapazes
Que á noite correm solitarias ruas,
Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam,
Nenhum como elle, com mais ternas falas,
Galanteou, vencendo, as raparigas.

Entra: pregam-se nelle cobiçosos
Olhos que amor venceu, que amor domina,
Olhos fieis ao férvido Catullo.

O poeta estremece. Brando e frio,
O marido de Clodia os olhos lança
Ao mancebo, e um sorriso complacente
A boca lhe abre. Imparcial na luta,
Vença Catullo ou Celio, ou vençam ambos.
Não se lhe oppõe o dono: o aresto acceita.

Vistes já como as ondas tumultuosas,
Uma após outra, vem morrer á praia,
E mal se rompe o espumeo seio áquella.
Já esta corre e expira? Tal no peito
Da calorosa Lesbia nascem, morrem
As voluveis paixões. Vestal do crime,
Dos amores vigia a chamma eterna,
Não a deixa apagar; prompto lhe lança
Oleo com que a alimente. Enrubescido
De ternura e desejo o rosto volve
Ao mancebo gentil. Baldado empenho!
Indifferente aos magicos encantos,
Celio contempla a moça. Olhar mais frio,
Ninguem deitou jamais a graças tantas.
Ella insiste; ele foge-lhe. Vexada,
A moça inclina languida a cabeça...
Tu nada vês, desapegado esposo,
Mas o amante vê tudo.

Clodia arranca
Uma rosa da fronte, e as folhas deita
Na taça que enche generoso vinho.
«Celio, um brinde aos amores!» diz, e entregalh'a.
O cortejado moço os olhos lança,
Não a Clodia, que a taça lhe offerece,
Mas a outra não menos afamada,
Dama de igual prosapia e eguaes campanhas,
E taça igual lhe acceita. Affronta é esta
Que á moça faz subir o sangue ás faces,
Aquelle sangue antigo, e raro, e illustre,
Que atravessou purissimo e sem mescla
A corrente dos tempos... Uma Clodia!
Tamanha injuria! Ai, não! mais que a vaidade,
Mais que o orgulho de raça, o que te peza,
O que te faz doer, viciosa dama,
É ver que um rival merece o zelo
Deste pimpão de amores e aventuras.
Pega na taça o nescio esposo e bebe,
Com o vinho, a vergonha. Sombra triste,
Sombra de occultas e profundas magoas,
Tolda a fronte ao poeta.

Os mais, alegres,
Vão ruminando a saborosa ceia;
Circúla o dito equivoco e chistoso,
Comentam-se os decretos do senado,
O molho mais da moda, os versos ultimos
De Catullo, os leões mandados de Africa
E as victorias de Cesar. O epigramma
Rasga a pelle ao caudilho triumphante;
Chama-lhe este: «O larapio endividado»,
Aquelle: «Venus calva», outro: «O bithynio...»
Opposição de ceias e jantares,
Que a marcha não impede ao crime e á gloria.

Sem liteira, nem lybicos escravos,
Clodia vae consultar armenio aruspice.
Quer saber se hade Celio amal-a um dia
Ou desprezal-a sempre. O armenio estava
Meditabundo, á luz escassa e incerta
De uma candeia etrusca; aos ombros delle
Decrepita coruja os olhos abre.
«Velho, aqui tens dinheiro (a moça fala),
Se á tua inspiração é dado agora
Adivinhar as cousas do futuro,
Conta-me...» O resto expõe. Ergue-se o velho
Subito. Os olhos lança cobiçosos
Á fulgente moeda.—«Saber queres
Se te hade amar esse mancebo esquivo?»
—«Sim.»—Cochilava a um canto descuidada
A avezinha de Venus, branca pomba.
Lança mão della o aruspice, e de um golpe
Das entranhas lhe arranca o sangue e a vida.
Olhos fitos no velho a moça aguarda
A sentença da sorte; empallidece
Ou ri, conforme do ancião no rosto
Ocultas impressões vem debuxar-se.
«Bem haja Venus! a victoria é tua!
O coração da victima palpita
Inda que morto já...»

Não eram ditas
Estas palavras, entra um vulto... É elle?
És tu, cioso avante!

A voz lhes falta
Aos dous, contemplam-se ambos, interrogam-se;
Rompe afinal o lugubre silencio...

Quando o vate acabou, tinha nos braços
A namorada moça. Lacrimosa,
Tudo confessa. Tudo lhe perdôa
O desvairado amante. «Nuvem leve
Isto foi; deixa lá memorias tristes,
Erros que te perdoo; amemos, Lesbia;
A vida é nossa; é nossa a juventude.»
«Oh! tu és bom!»—«Não sei; amo e mais nada.
Foge o mal donde amor plantou seus lares.
Amar é ser do céu.» Supplices olhos
Que a dor humedecera e que umedecem
Lagrimas de ternura, os olhos buscam
Do poeta; um sorriso lhes responde,
E um beijo sella esta alliança nova.

Quem jamais construiu solida torre
Sobre a arêa voluvel? Poucos dias
Decorreram; viçosas esperanças
Subito renascidas, folha a folha,
Alastraram a terra. Ingrata e fria,
Lesbia esqueceu Catullo. Outro lhe pede
Premio á recente, abrasadora chamma;
Faz-se agora importuno o que era esquivo.
Victoria é della; o arúspice acertára.


VELHO FRAGMENTO

I

Reinava
Affonso VI. Da corôa em nome
Governava Alvarenga, incorruptivel
No serviço do rei, astuto e manso,
Alcaide-mór e protector das armas;
No mais, amigo deste povo infante,
Em cujo seio placido vivia
Até que uma revolta mysteriosa
Na cadeia o metteu. O douto Mustre
A vara de ouvidor nas mãos sustinha.

II

Que lance ha ahi, nessa comedia humana,
Em que não entrem moças? Descorada,
Como heroina de romance do hoje,
Alva, como as mais alvas deste mundo,
Tal, que disseras lhe negara o sangue
A madre natureza, Margarida
Tinha o suave, delicado aspecto
De uma santa de cêra, antes que a tinta
O matiz beatifico lhe ponha,
Era alta e fina, senhoril e bella,
Delicada e subtil. Nunca mais vivo
Transparecera em rosto de donzella
Vergonhoso pudor, agreste e rude,
Que até de uns simples olhos se offendia
E chegava a corar, se o pensamento
Lhe adivinhava anonymo suspiro
Ou remota ambição de amante ousado.
Era vel-a, ao domingo, caminhando
Á missa, co'os parentes o os escravos
A um de fundo, em grave e compassada
Procissão; era ver-lhe a compostura,
A devoção com que escutava o padre,
E no agnus-dei levava a mão ao peito,
Mão que enchia do fogos e desejos
Dez ou doze amadores respeitosos
De suas graças, varios na figura,
Na posição, na edade e no juizo,
E que alli mesmo, á luz dos bentos cyrios
(Tão de longe vêm já os maus costumes)!
Ousavam inda suspirar por ella.

III

Entre esses figurava o moço Vasco.
Vasco, a flôr dos vadios da cidade,
Namorador dos adros das egrejas,
Taful de cavalhadas, consummado
Nas hippicas façanhas, era o nome
Que mais na baila andava. Moça havia
Que por elle trocara (erro do moça)!
O seu logar no céu; e este peccado,
Inda que todo interior e mudo,
Dous terços lhe custou de penitencia
Que o confessor lhe impoz. Era sabido
Que nas salas da casa do governo,
Certa noite, de magua desmaiaram
Duas damas rivaes, porque o magano
As cartas confundira do namoro.
Estas proezas taes, que o fertil vulgo
Com argumentos de casa encarecia,
E a bem lançada perna, e o luzidio
Dos sapatos, e as sedas e os velludos,
E o franco applauso de uns, e a inveja do outros,
O sceptro lhe doaram dos peraltas.

IV

E, comtudo, era em vão que á ingenua dama
A flôr do esquivo coração pedia;
Inuteis os suspiros lhe brotavam
Do intimo do peito; nem da esperta
Mucama,—natural complice amiga
Desta sorte de crimes,—lhe valiam
Os recados de boca;—nem as longas,
Maviosas lettras em papel bordado,
Atadas co'a symlolica fitinha
Cor de esperança,—e olhares derretidos,
Se a topava á janella,—raro evento,
Que o pae, varão de bolsa e qualidade,
Que repousava das fadigas longas
Havidas no mercado de africanos,
Era um typo de solidas virtudes
E muita experiencia. Poucas vezes
Ia á rua. Nas horas de fastio,
A jogar o gamão, ou recostado,
Com um vizinho, a tasquinar nos outros,
Sem trabalho maior, passava o tempo.

V

Ora, em certo domingo, houve luzida
Festa de cavalhadas e argolhinhas,
Com danças ao ar livre e outros folgares,
Recreios do bom tempo, infancia d'arte,
Que o progresso apagou, e nós trocamos
Por brincos mais da nossa juventude
E melhores de certo; tão ingenuos,
Tão simples, não. Vão longe aquellas festas,
Usos, costumes são que se perderam,
Como se hão perder os nossos de hoje,
Nesso rio caudal que tudo leva
Impetuoso ao vasto mar dos seculos.

VI

Abolada a cidade, quasi tanto
Como nos dias da solemne festa
Da grande acclamação, de que inda fallam
Com saudade os muchachos de outro tempo.
Varões agora do medida e peso,
Todo o povo deixara as casas suas.
Grato ensejo era aquelle! Resoluto
A correr desta vez uma argolinha,
O intrepido mancebo empunha a lança
Dos combates, na fronte um capacete
De longa, verde, fluctuante pluma,
Escancha-se no dorso de um cavallo
E armado vae para a festiva guerra.
Ia a passo o corcel, como ia a passo
Seu pensamento, certo da conquista,
Se ella visse o brilhante cavalleiro
Que, por amor daquelles bellos olhos,
Derrotar promettia na estacada
Um cento de rivaes. Subitamente
Vê apontar a rispida figura
Do rispido negreiro; a esposa o segue,
E logo atraz a suspirada moça,
Que lentamente e placida caminha
Com os olhos no chão. Corpilho a veste
De azul velludo; a manga arregaçada
Ate á doce curva, o braço amostra
Delicioso e nú. A indiana seda
Que a linda mão de moça arregaçava,
Com aquella sagaz indifferença
Que o demo ensina ás mais singelas damas,
A furto lhe mostrou, breve e apertado
No sapatinho fino, o mais gracioso,
O mais galante pé que inda ha nascido
Nestas terras:—tacão alto e forrado
De setim rubro lhe alteava o corpo,
E airoso modo lhe imprimia ao passo.

VII

Ao brioso corcel encurta as redeas
Vasco, e detem-se. A bella ia caminho
E iam com ella seus perdidos olhos,
Quando (visão terrivel)! a figura
Pallida e commovida lhe apparece
Do Freire, que, como elle namorado,
Contempla a dama, a suspirar por ella.
Era um varão distincto o honrado Freire,
Tabellião da terra, não mettido
Nas arengas do bairro. Pouco amante
Dessa gloria que tantas vezes fulge
Quando os mortaes merecedores della
Jazem no eterno pó, não se illustrara
Com actos de bravura ou de grandeza,
Nem cobiçara as distincções do mando.
Confidente supremo dos que á vida
Dizem o ultimo adeus, só lhe importava
Deitar em amplo in-folio as derradeiras
Vontades do homem, repartir co'a penna
Pingue ou magra fazenda, já cercada
De farejantes corvos,—grato emprego
A um coração philosopho, e remedio
Para matar as illusões no peito.
Certo, ver o usurario, que a riqueza
Obteve á custa dos vintens do proximo,
Comprar a eterna paz na eterna vida
Com biocos do posthumas virtudes;
Em torno delle contemplar anciados
Os que, durante longo-aridos annos,
De lisonjas e afagos o cercaram;
Depois alegres uns, sombrios outros,
Conforme foi silencioso ou grato
O abastado defuncto,—emprego é esse
Pouco adequado a jovens e a poetas.

VIII

Joven não era, nem poeta o Freire;
Tinha oito lustros e fallava em prosa.
Mas que és tu; mocidade? e tu, poesia?
Um auto de baptismo? quatro versos?
Ou brancas azas da sensivel pomba
Que arrulha em peito humano? Unico as perde
Quem o lume do amor nos seios d'alma
Apagar-se-lhe sente. A nevoa póde,
Qual turbante mourisco, a cumiada
Das montanhas cingir da nossa terra,
Que muito, se ao redor viceja ainda
Primavera immortal? Um dia, ao vel-a
De tantos requestada a esquiva moça,
Sente o Freire bater-lhe as adormidas
Azas do coração. Que não desdoura,
Antes lhe dá realce e lhe desvinca
A nobre fronte a um homem de justiça,
Como os outros mortaes, morrer de amores;
E amar e ser amado é, neste mundo,
A tarefa melhor da nossa especie,
Tão cheia de outras que não valem nada.


NO ALTO

O poeta chegára ao alto da montanha,
E quando ia a descer a vertente do oeste,
Viu uma cousa extranha,
Uma figura má.

Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,
Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,
N'um tom medroso e agreste
Pergunta o que será.

Como se perde no ar um som festivo e doce,
Ou bem como se fosse
Um pensamento vão,

Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.
Para descer a encosta
O outro estendeu-lhe a mão.


NOTAS

[1]Os poetas classicos francezes usavão muito esta fórma a que chamavão triolet. Depois do longo desuso, alguns poetas d'este seculo resuscitarão o triolet, não desmerecendo dos antigos modelos. Não me consta que se haja tentado empregal-a em portuguez, nem talvez seja cousa que mereça trasladação. A fórma entretanto é graciosa e não encontra difficuldade na nossa lingua, creio eu.

[2]Maximiliano, quando estava em Miramar, costumava retratar photographicamente a archiduqueza, escrevendo por baixo do retrato: «La marchesa de Miramar.»

[3]Perdoem-me estes versos em francez; e para que de todo em todo não fique a pagina perdida aqui lhes dou a traducção que fez dos meus versos, o talentoso poeta maranhense Joaquim Serra:

É um velho paiz, de luz e sombras,
Onde o dia traz pranto, e a noite a scisma;
Um paiz do orações e de blasphemia,
N'elle a crença na duvida se abysma.

Ahi, mal nasce a flôr, o verme a corta,
O mar é um escarcéo, e o sol sombrio;
Se a ventura n'um sonho transparece
A suffoca em seus braços o fastio.

Quando o amor, qual sphynge indecifravel
Ahi vai a bramir, perdido o sizo...
Ás vezes ri alegre, e outras vezes
É um triste soluço esse sorriso...

Vive-se n'esse e paiz com a mágoa e o riso;
Quem d'lle se ausentou treme e maldiz;
Mas ai, eu n'elle passo a mocidade,
Pois é meu coração esse paiz!

[4]Os poetas postos n'esta colecção são todos contemporaneos. Encontrei-os no livro publicado em 1868 pela Sra. Judith Walter, distincta viajante que dizem conhecer profundamente a lingua chineza, e que os traduziu em simples e corrente prosa.

[5]É do Sr. Antonio Feliciano de Castilho a traducção d'esta odezinha, que deu lugar á composição do meu quadro. Foi immediatamente á leitura da Lyrica de Anacreonte, que eu tive a idéa de pôr em acção a ode do poeta de Teos, tão portuguezmente sahida das mãos do Sr. Castilho que mais parece original quo traducção. A concha não vale a perola; mas o delicado da perola disfarçará o grosseiro da concha.

[6]Simão de Vasconcellos não declara o nome da india, cuja acção refere em sua Chronica.

Achei que não foi o caso desta tamoya o unico em que tão galhardamente se manifestou a fidelidade conjugal e christã. O padre Anchieta, na carta escripta ao padre-mestre Laynez, a 16 de Abril de 1563, menciona o exemplo de uma india, mulher de um colono, a qual, depois de lh'o matarem os indios, caiu em poder destes, cujo Principal a quiz violentar. Ella resistiu e desapareceu. Os indios fizeram correr a voz de que se matára; Anchieta suppõe que elles mesmos lhe tiraram a vida. Caso analogo é referido pelo padre João Daniel (Thesouro descoberto no Amazonas, p. 2, cap. III); essa chamava-se Esperança e era da aldêa de Cabu.

[7]A villa de S. Vicente.

[8]Tinham os indios a religião monetheista que a tradicção lhes attribue? Nega-o positivamente o Sr. Dr. Conto de Magalhães em seu excellente estudo acerca dos selvagens, asseverando nunca ter encontrado a palavra Tupan nas tribus que frequentou, o ser admissivel a ideia de tal deus, no estado rudimentar dos nossos aborigenes.

O Sr. Dr. Magalhães restitue aos selvagens a theogonia verdadeira. Não integramente, mas só em relação ao sol e á lua. (Coaracy e Jacy), acho noticia della no Thesouro do padre João Daniel (citado em [1]); e o que então faziam os indios, quando apparecia a lua nova, me serviu á composição que vae incluida neste livro.

Sem embargo das razões allegadas pelo Sr. Dr. Magalhães, que todas são de incontestavel procedencia, conservei Tupan nos versos que ora dou a lume; fil-o por ir com as tradicções litterarias que achei, tradicções que nada valem no terreno da investigação scientifica, mas que tem por si o serem acceitas e haverem adquirido um como direito de cidade.

[9]É ocioso explicar em notas o sentido desta palavra e de outras, como pocema, mussurana, tangapema, kanitar, com as quais todo o leitor brasileiro está já familiarisado, graças ao uso que dellas teem feito poetas e prosadores. É tambem desnecessario fundamentar com trechos das chronicas a scena do sacrificio do prisioneiro, na estancia XI; são cousas comezinhas.

[10]Simão de Vasconcellos (Not. do Bras., liv. 2o.) citando Marcgraff e outros autores, conta, como verdadeira, a fabula a que alludem estes versos. Aproveitou-se d'alli uma comparação poetica: nada mais.

[11]Veja G. Dias, Ult. Cant., pag. 159:

... Quando meu corpo
Á terra, mãe commum...

[12]Anagé na lingua geral, quer dizer gavião.

[13]Tratando de descobrir a significação de Panenioxe, conforme escreve Rodrigues Prado, apenas achei no escasso vocabulario guaycurú, que vem em Ayres do Casal, a palavra nioxe traduzida por jacaré. Não pude accertar com a significação do primeiro membro da palavra, pane; ha talvez relação entre elle e o nome do rio Yppané.

[14]«Estas duas armas (lança e facão) tem sido tomadas aos portuguezes e hespanhóes, e algumas compradas a estes que inadvertidamente lh'as tem vendido.» (RODR. PRADO, Hist. dos Índios Cavalleiros.)

[15]Nanine é o nome transcripto na Hist. dos Índios Cavalleiros. Na lingua geral temos niani, que Martius traduz por infans. Esta fórma pareceu mais graciosa; e não duvidei adoptal-a, desde que o meu distincto amigo, Dr. Escragnolle Taunay, me asseverou que, no dialecto guaycurú, de que elle ha feito estudos, niani exprime a ideia de moça franzina, delicada, não lhe parecendo que exista a fórma empregada na monographia de Rodrigues Prado.

[16]Os Guaycurus dividem-se em nobres, plebeus ou soldados, e captivos. Do proprio texto que me serviu esta composição se vê a que ponto repugna aos nobres toda a alliança com pessoas de condição inferior.

A este proposito direi a anedocta que me foi referida por um distincto official da nossa armada, o capitão de fragata Sr. Henrique Baptista, que em 1857 esteve no Paraguay commandando o Japorá, entre o forte Coimbra e o estabelecimento Sebastopol. Ia muita vez a bordo do Japorá um chefe guaycurú, Capitãosinho, muito amigo da nossa officialidade. Tinha elle uma irmã, que outro chefe guaycurú, Lapagata, cortejava e desejava receber por espôsa. Lapagata recebêra o titulo de capitão das mãos do presidente de Matto-Grosso. Oppunha-se com todas as forças ao enlace o Capitãozinho. Um dia, perguntando-lhe o Sr. H. Batista por que motivo não consentia no casamento da irmã com Lapagata, respondeu o altivo Guaycurú:

—Oponho-me, porque eu sou capitão por herança de meu pae, que já o era por herança do pae delle. Lapagata é capitão de papel.

[17]As bocayuvas servem de alimento aos Guaycurús; nas proximidades de sazonarem os cocos fazem elles grandes festas. (Veja CASAL e PRADO).

[18]Taes eram os adornos das mulheres guaycurús. (Veja PRADO, CASAL e D'AZARA).

[19]«As moças ricas vão enfeitadas, como se ornariam para o proprio noivado.» (AIRES DO CASAL, Coroa., 280).

[20]Allude a um trecho do propheta Daniel:

«9.—E lavei-te na agua, e alimpei-te do teu sangue; e te ungi com um oleo;

«13.—E foste enfeitada de ouro e prata, e vestida de linho e de roupas bordadas, e de diversas cores; nutriste-te da farinha e de mel e de azeite, e foste mui aformoseada em extremo.» (DANIEL, XV)

[21]Rebecca, filha da Mesopotamia.

[22]Bento do Amaral Gurgel, que dirigiu a companhia de estudantes por occasião daquella e da seguinte invasão, em 1711.

[23]Angela pratica o inverso daquelle conselho attribuido aos rabbinos de Constantinopla, respondendo aos judeus de Hespanha que batisassem os corpos, conservando as almas firmes na Lei. Angela conserva o baptismo da alma, e entrega o corpo ao supplicio como se fosse verdadeiramente judeu. Nega a fé com os labios, confessando-a no coração: maneira de conciliar o sentimento christão e a piedade filial.

[24]A verdadeira pronúncia desta palavra é an-hanga. É outro caso em que fui antes com a maneira corrente e commum na poesia.

[25]Il y aurait une fort grande injustice à juger jésuites du seizième siècle et leurs travaux, d'après les idées que peut inspirer le système suivi dans les missions. Là on peut voir des projets ambitieux s'allier à des vues habiles: dans les premiers travaux exécutés par les pères de la compagnie, au Brésil, tout fut désintéressé; et au besoin, Le récit de leurs souffrances pourrait le prouver. (F. DENIS, Le Brésil.)

[26]Veja nota [8].

«... E na verdade tem occasiões em que festejam muito a lua, como quando apparece nova; porque então saem de suas choupanas, dão saltos de prazer, saudam-n'a e dão-lhe as boas vindas.» (JOÃO DANIEL, Thes. descob. no Amaz., part. II, cap. X)

[27]Não me recordo de haver lido nos velhos escriptos sobre os nossos aborigenes a crença que Montaigne lhes attribue acerca das almas boas e más. Este grande moralista tinha informações certamente exactas a respeito dos indios; e aquella crença traz certamente um ar de verossimilhança. Não foi só isso o que me induziu a fazer taes versos; mas tambem o que achei poetico e gracioso na abusão.

[28]Tinha planeado uma composição de dimensões maiores, e não a levei a cabo, por intervirem outros trabalhos, que de todo me divertiram a attenção. Foi o nosso eminente poeta e litterato Porto Alegre, hoje barão de Santo Angelo, que ha cerca de quatro annos, me chamou a attenção para a relação de Monterroyo Mascarenhas, Os Orizes conquistados, que vem na Rev. Inst. Hist., t. VIII.

A aspereza dos costumes daquelle povo, habitante do sertão da Bahia, cêrca de duzentas legoas da capital, sua rara energia, as circumstancias singulares da conquista e conversão da tribu, eram certamente um quadro excellente para uma composição poetica. Ficou em fragmento, que ainda assim não quis excluír do livro.

[29]«Lastimosamente cegos de discurso, reconhecem e adoram por deus a coruja, chamando na sua linguagem Oitipô-cupuaaba; e o motivo de sua adoração consiste na beneficio que recebem desta ave, que, naturalmente inimiga das cobras, numerosissimas naquelle paiz, as espia nos mattos, e lhes tira a vida.» (J. F. MONTERROYO MASCARENHAS, Os Orizes conquistados.)


INDICE

Advertencia

CHRYSALIDAS

Musa consolatrix
Visio
Quinze annos
Stella
Epitaphio do Mexico
Polonia
Erro
Elegia
Sinhá
Horas vivas
Versos a Corinna
Ultima folha

PHALENAS

Flor da mocidade
Quando ella falla
Manhã de inverno
La marchesa de Miramar
Sombras
Ite, missa est
Ruinas
Musa dos olhos verdes
Noivado
A Elvira
Lagrimas de cêra
Livros e flôres
Passaros
O verme
Un vieux pays
Luz entre sombras
Lyra chineza
Uma ode de Anacreonte
Pallida Elvira

AMERICANAS

Potyra
Niani
A Christã nova
José Bonifacio
A visão de Jaciuca
A Gonçalves Dias
Os semeadores
A flôr do embiroçu
Lua nova
Sabina
Ultima jornada
Os Orises

OCCIDENTAES

O desfecho
Circulo vicioso
Uma creatura
A Arthur de Oliveira, enfermo
Mundo interior
O corvo
Perguntas sem resposta
To be or not to be
Lindoya
Suave mari magno
A mosca azul
Antonio José
Spinoza
Gonçalves Crespo
Alencar
Camões
1802-1835
José de Anchieta
Soneto de Natal
Os animaes iscados da peste
Dante
A Felicio dos Santos
Maria
A uma senhora que me pediu versos
Clodia
Velho fragmento
No alto






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Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of
computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It
exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations
from people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future
generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see
Sections 3 and 4 and the Foundation information page at
www.gutenberg.org



Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by
U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the
mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its
volunteers and employees are scattered throughout numerous
locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt
Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to
date contact information can be found at the Foundation's web site and
official page at www.gutenberg.org/contact

For additional contact information:

    Dr. Gregory B. Newby
    Chief Executive and Director
    gbnewby@pglaf.org

Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To SEND
DONATIONS or determine the status of compliance for any particular
state visit www.gutenberg.org/donate

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations. To
donate, please visit: www.gutenberg.org/donate

Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project
Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be
freely shared with anyone. For forty years, he produced and
distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of
volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in
the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not
necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper
edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search
facility: www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.