The Project Gutenberg EBook of Dom Casmurro, by Machado de Assis This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have to check the laws of the country where you are located before using this ebook. Title: Dom Casmurro Author: Machado de Assis Release Date: October 15, 2017 [EBook #55752] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK DOM CASMURRO *** Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version,also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) (Images generously made available by the Bibliotheca Nacional Digital Brasil.) DOM CASMURRO POR MACHADO DE ASSIS DA ACADEMIA BRAZILEIRA H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR RUA MOREIRA CEZAR, 71 RIO DE JANEIRO 6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6 PARIZ I Do titulo. Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéo. Comprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos póde ser que não fossem inteiramente maus. Succedeu, porém, que como eu estava cançado, fechei os olhos tres ou quatro vezes; tanto bastou para que elle interrompesse a leitura e mettesse os versos no bolso. --Continue, disse eu accordando. --Já acabei, murmurou elle. --São muito bonitos. Vi-lhe fazer um gesto para tiral-os outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me _Dom Casmurro._ Os visinhos, que não gostam dos meus habitos reclusos e calados, deram curso á alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anecdota aos amigos da cidade, e elles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: «Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.»--«Vou para Petropolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Rhenania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vae lá passar uns quinze dias commigo.»--«Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do theatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.» Não consultes diccionarios. _Casmurro_ não está aqui no sentido que elles lhe dão, mas no que lhe poz o vulgo de homem calado e mettido comsigo. _Dom_ veiu por ironia, para attribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Tambem não achei melhor titulo para a minha narração; se não tiver outro d'aqui até ao fim do livro, vae este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o titulo seu, poderá cuidar que a obra é sua. Ha livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto. II. Do livro. Agora que expliquei o titulo, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a penna na mão. Vivo só, com um creado. A casa em que moro é propria; fil-a construir de proposito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimil-o, mas vá lá. Um dia, ha bastantes annos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga rua de Matacavallos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquella outra, que desappareceu. Constructor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo predio assobradado, tres janellas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos egual, umas grinaldas de flores miudas e grandes passaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de Cesar, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de taes personagens. Quando fomos para a casa de Matacavallos, já ella estava assim decorada; vinha do decennio anterior. Naturalmente era gosto do tempo metter sabor classico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é tambem analogo e parecido. Tenho chacarinha, flôres, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobilia velha. Emfim, agora, como outr'ora, ha aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescencia. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é egual, a physionomia é differente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante á pintura que se põe na barba e nos cabellos, e que apenas conserva o habito externo, como se diz nas autopsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte annos de edade poderia enganar os extranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto ás amigas, algumas datam de quinze annos, outras de menos, e quasi todas creem na mocidade. Duas ou tres fariam crer nella aos outros, mas a lingua que falam obriga muita vez a consultar os diccionarios, e tal frequencia é cançativa. Entretanto, vida differente não quer dizer vida peor; é outra cousa. A certos respeitos, aquella vida antiga apparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é tambem exacto que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memoria, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco appareco e menos falo. Distracções raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal. Ora, como tudo cança, esta monotonia acabou por exhaurir-me tambem. Quiz variar, e lembrou-me escrever um livro. Jurisprudencia, philosophia e politica acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessarias. Depois, pensei em fazer uma _Historia dos Suburbios_, menos secca que as memorias do padre Luiz Gonçalves dos Santos, relativas á cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo arido e longo. Foi então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma vez que elles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da penna e contasse alguns. Talvez a narração me désse a illusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras, como ao poeta, não o do trem, mas o do _Fausto: Ahi vindes outra vez, inquietas sombras...?_ Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a penna na mão. Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande Cesar, que me incitas a fazer os meus commentarios, agradeço-vos o conselho, e vou deitar ao papel as reminiscencias que me vierem vindo. Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma obra de maior tomo. Eia, comecemos a evocação por uma celebre tarde de Novembro, que nunca me esqueceu. Tive outras muitas, melhores, e peores, mas aquella nunca se me apagou do espirito. É o que vás entender, lendo. III A denuncia. Ia a entrar na sala de visitas, quando ouvi proferir o meu nome e escondi-me atraz da porta. A casa era a da rua de Matacavallos, o mez Novembro, o anno é que é um tanto remoto, mas eu não hei de trocar as datas á minha vida só para agradar ás pessoas que não amam historias velhas; o anno era de 1857. --D. Gloria, a senhora persiste na ideia de metter o nosso Bentinho no seminario? É mais que tempo, e já agora póde haver uma difficuldade. --Que difficuldade? --Uma grande difficuldade. Minha mãe quiz saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentrarão, veiu ver se havia alguem no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a difficuldade estava na casa ao pé, a gente do Padua. --A gente do Padua? --Ha algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande mettido nos cantos com a filha do _Tartaruga_, e esta é a difficuldade, porque se elles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separal-os. --Não acho. Mettidos nos cantos? --É um modo de falar. Em segredinhos, sempre juntos. Bentinho quasi que não sae de lá. A pequena é uma desmiolada; o pae faz que não vê; tomara elle que as cousas corressem de maneira, que... Comprehendo o seu gesto; a senhora não crê em taes calculos, parece-lhe que todos têm a alma candida... --Mas, Sr. José Dias, tenho visto os pequenos brincando, e nunca vi nada que faça desconfiar. Basta a edade; Bentinho mal tem quinze annos. Capitú fez quatorze á semana passada; são dous creançolas. Não se esqueça que foram criados juntos, desde aquella grande enchente, ha dez annos, em que a familia Padua perdeu tanta cousa; d'ahi vieram as nossas relações. Pois eu hei de crer...? Mano Cosme, você que acha? Tio Cosme respondeu com um «Ora!» que, traduzido em vulgar, queria dizer: «São imaginações do José Dias; os pequenos divertem-se, eu divirto-me; onde está o gamão?» --Sim, creio que o senhor está enganado. --Póde ser, minha senhora. Oxalá tenham razão; mas creia que não falei senão depois de muito examinar... --Em todo caso, vae sendo tempo, interrompeu minha mãe; vou tratar de mettel-o no seminario quanto antes. --Bem, uma vez que não perdeu a ideia de o fazer padre, tem-se ganho o principal. Bentinho ha de satisfazer os desejos de sua mãe. E depois a egreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o padre Feijó governou o imperio... --Governou como a cara d'elle! atalhou tio Cosme, cedendo a antigos rancores politicos. --Perdão, doutor, não estou defendendo ninguem, estou citando. O que eu quero é dizer que o clero ainda tem grande papel no Brasil. --Você o que quer é um capote; ande, vá buscar o gamão. Quanto ao pequeno, se tem de ser padre, realmente é melhor que não comece a dizer missa atraz das portas. Mas, olhe cá, mana Gloria, ha mesmo necessidade de fazel-o padre? --É promessa, ha de cumprir-se. --Sei que você fez promessa... mas, uma promessa assim... não sei... Creio que, bem pensado... Você que acha, prima Justina? --Eu? --Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou tio Cosme; Deus é que sabe do todos. Comtudo, uma promessa de tantos annos... Mas, que é isso, mana Gloria? Está chorando? Ora esta! Pois isto é cousa de lagrimas? Minha mãe assoou-se sem responder. Prima Justina creio que se levantou e foi ter com ella. Seguiu-se um alto silencio, durante o qual estive a pique de entrar na sala, mas outra força maior, outra emoção... Não pude ouvir as palavras que tio Cosme entrou a dizer. Prima Justina exhortava: «Prima Gloria! prima Gloria!» José Dias desculpava-se: «Se soubesse, não teria falado, mas falei pela veneração, pela estima, pelo affecto, para cumprir um dever amargo, um dever amarissimo...» IV Um dever amarissimo! José Dias amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental ás ideias; não as havendo, servir a prolongar as phrases. Levantou-se para ir buscar o gamão, que estava no interior da casa. Cosi-me muito á parede, e vi-o passar com as suas calças brancas engommadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos ultimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de setim preto, com um aro de aço por dentro, immobilisava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira o leve, parecia nelle uma casaca de cerimonia. Era magro, chupado, com um principio de calva; teria os seus cincoenta e cinco annos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquelle vagar arrastado dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um syllogismo completo, a premissa antes da consequencia, a consequencia antes da conclusão. Um dever amarissimo! V O aggregado. Nem sempre ia naquelle passo vagaroso e rigido. Tambem se descompunha em accionados, era muita vez rapido e lepido nos movimentos, tão natural nesta como naquella maneira. Outrosim, ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas communicativo, a tal ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, todo a pessoa, todo o mundo pareciam rir nelle. Nos lances graves, gravissimo. Era nosso aggregado desde muitos annos; meu pae ainda estava na antiga fazenda de Itaguahy, e eu acabava de nascer. Um dia appareceu alli vendendo-se por medico homeopatha; levava um _Manual_ e uma botica. Havia então um andaço de febres; José Dias curou o feitor e uma escrava, e não quiz receber nenhuma remuneração. Então meu pae propoz-lhe ficar alli vivendo, com pequeno ordenado. José Dias recusou, dizendo que era justo levar a saude á casa de sapé do pobre. --Quem lhe impede que vá a outras partes? Vá aonde quizer, mas fique morando comnosco. --Voltarei daqui a tres mezes. Voltou dalli a duas semanas, acceitou casa e comida sem outro estipendio, salvo o que quizessem dar por festas. Quando meu pae foi eleito deputado e veiu para o Rio de Janeiro com a familia, elle veiu tambem, e teve o seu quarto ao fundo da chacara. Um dia, reinando outra vez febres em Itaguahy, disse-lhe meu pae que fosse ver a nossa escravatura. José Dias deixou-se estar calado, suspirou e acabou confessando que não era medico. Tomára este titulo para ajudar a propaganda da nova escola, e não o fez sem estudar muito e muito; mas a consciencia não lhe permittia acceitar mais doentes. --Mas, você curou das outras vezes. --Creio que sim; o mais acertado, porém, é dizer que foram os remedios indicados nos livros. Elles, sim, elles, abaixo de Deus. Eu era um charlatão... Não negue; os motivos do meu procedimento podiam ser e eram dignos; a homeopathia é a verdade, e, para servir á verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo. Não foi despedido, como pedia então; meu pae já não podia dispensal-o. Tinha o dom de se fazer acceito e necessario; dava-se por falta delle, como de pessoa de familia. Quando meu pae morreu, a dôr que o pungiu foi enorme, disseram-me, não me lembra. Minha mãe ficou-lhe muito grata, e não consentiu que elle deixasse o quarto da chacara; ao setimo dia, depois da missa, elle foi despedir-se della. --Fique, José Dias. --Obedeço, minha senhora. Teve um pequeno legado no testamento, uma apolice e quatro palavras de louvor. Copiou as palavras, encaixilhou-as e pendurou-as no quarto, por cima da cama. «Esta é a melhor apolice», dizia elle muita vez. Com o tempo, adquiriu certa autoridade na familia, certa audiencia, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo. Ao cabo, era amigo, não direi optimo, mas nem tudo é optimo neste mundo. E não lhe supponhas alma subalterna; as cortezias que fizesse vinham antes do calculo que da indole. A roupa durava-lhe muito; ao contrario das pessoas que enxovalham depressa o vestido novo, elle trazia o velho escovado e liso, cirzido, abotoado, de uma elegancia pobre e modesta. Era lido, posto que de atropello, o bastante para divertir ao serão e á sobremesa, ou explicar algum phenomeno, falar dos effeitos do calor e do frio, dos polos e de Robespierre. Contava muita vez uma viagem que fizera á Europa, e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa familia, dizia elle, abaixo de Deus, era tudo. --Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia. --Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração. E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que elle punha Deus no devido logar, e sorriu approvando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a copia de papeis de autos. VI Tio Cosme. Tio Cosme vivia com minha mãe, desde que ella enviuvou. Já então era viuvo, como prima Justina; era a casa dos tres viuvos. A fortuna troca muita vez as mãos á natureza. Formado para as serenas funccões do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no fòro: ia comendo. Tinha o escriptorio na antiga rua das Violas, perto do jury, que era no extincto Aljube. Trabalhava no crime. José Dias não perdia as defesas oraes de tio Cosme. Era quem lhe vestia e despia a toga, com muitos comprimentos no fim. Em casa, referia os debates. Tio Cosme, por mais modesto que quizesse ser, sorria de persuasão. Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vel-o montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escriptorio. O preto que a tinha ido buscar á cocheira, segurava o freio, emquanto elle erguia o pé e pousava no estribo; a isto seguia-se um minuto de descanço ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, egual effeito. Emfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças physicas e moraes, dava o ultimo surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme accommodava as carnes, e a besta partia a trote. Tambem não me esqueceu o que elle me fez uma tarde. Posto que nascido na roça (donde vim com dous annos) e apezar dos costumes do tempo, eu não sabia montar, e tinha medo ao cavallo. Tio Cosme pegou em mim e escanchou-me em cima da besta. Quando me vi no alto (tinha nove annos), sósinho e desamparado, o chão lá embaixo, entrei a gritar desesperadamente: «Mamãe! mamãe!» Ella acudiu pallida e tremula, cuidou que me estivessem matando, apeou-me, affagou-me, emquanto o irmão perguntava: --Mana Gloria, pois um tamanhão destes tem medo de besta mansa? --Não está acostumado. --Deve acostumar-se. Padre que seja, se fôr vigario na roça, é preciso que monte a cavallo; e, aqui mesmo, ainda não sendo padre, se quizer florear como os outros rapazes, e não souber, ha de queixar-se de você, mana Gloria. --Pois que se queixe; tenho medo. --Medo! Ora, medo! A verdade é que eu só vim a apprender equitação mais tarde, menos por gosto que por vergonha de dizer que não sabia montar. «Agora é que elle vae namorar devéras», disseram quando eu comecei as licções. Não se diria o mesmo de tio Cosme. Nelle era velho costume e necessidade. Já não dava para namoros. Contam que, em rapaz, foi acceito de muitas damas, além de partidario exaltado; mas os annos levaram-lhe o mais do ardor politico e sexual, e a gordura acabou com o resto de ideias publicas e especificas. Agora só cumpria as obrigações do officio e sem amor. Nas horas de lazer vivia olhando ou jogava. Uma ou outra vez dizia pilherias. VII D. Gloria. Minha mãe era boa creatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um annos de edade, e podia voltar para Itaguahy. Não quiz; preferiu ficar perto da egreja em que meu pae fòra sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôz ao ganho ou alugou, uma duzia de predios, certo numero de apolices, e deixou-se estar na casa de Matacavallos, onde vivera os dous ultimos annos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a familia Fernandes. Ora, pois, naquelle anno da graça de 1857, D. Maria da Gloria Fernandes Santiago contava quarenta e dous annos de edade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quizesse preserval-a da acção do tempo. Vivia mettida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um chale preto, dobrado em triangulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabellos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia touca branca de fólhos. Lidava assim, com os seus sapatos de cordavão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até á noite. Tenho alli na parede o retrato della, ao lado do do marido, taes quaes na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá ideia de ambos. Não me lembra nada delle, a não ser vagamente que era alto e usava cabelleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, effeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sae de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechosinho pegado ás orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte annos, e tinha uma flôr entre os dedos. No painel parece offerecer a flôr ao marido. O que se lè na cara do ambos é que, se a felicidade conjugal póde ser comparada á sorte grande, elles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as accusou ainda de immoraes, como ninguem tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter tirado a esperança no fundo; em alguma parte ha de ella ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outr'ora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para elles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatidica. São retratos que valem por originaes. O de minha mãe, estendendo a flôr ao marido, parece dizer: «Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!» O de meu pae, olhando para a gente, faz este commentario: «Vejam como esta moça me quer...» Se padeceram molestias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era creança e comecei por não ser nascido. Depois da morte delle, lembra-me que ella chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como photographias instantaneas da felicidade. VIII É tempo! Mas é tempo de tomar áquella tarde de Novembro, uma tarde clara e fresca, socegada como a nossa casa e o trecho da rua em que moravamos. Verdadeiramente foi o principio da minha vida; tudo o que succedera antes foi como o pintar e vestir das pessoas que tinham de entrar em scena, o accender das luzes, o preparo das rabecas, a symphonia... Agora é que eu ia começar a minha opera. «A vida é uma opera,» dizia-me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu... E explicou-me um dia a definição, em tal maneira que me fez crer nella. Talvez valha a pena dal-a; é só um capitulo. IX A opera. Já não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. «O desuso é que me faz mal», accrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da Europa, ia ao empresario e expunha-lhe todas as injustiças da terra e do ceu; o empresario commettia mais uma, e elle saía a bradar contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papeis. Quando andava, apezar de velho, parecia cortejar uma princeza de Babylonia. Ás vezes, cantarolava, sem abrir a bocca, algum trecho ainda mais edoso que elle ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possiveis. Vinha aqui jantar commigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse que a vida tanto podia sor uma opera, como uma viagem de mar ou uma batalha, abanou a cabeça e replicou: --A vida é uma opera e uma grande opera. O tenor e o barytono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimarios, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimarios. Ha córos numerosos, muitos bailados, e a orchestração é excellente... --Mas, meu caro Marcolini... --Quê...? E, depois de beber um gole de licor, pousou o calix, e expoz-me a historia da creação, com palavras que vou resumir. Deus é o poeta. A musica é de Satanaz, joven maestro de muito futuro, que apprendeu no conservatorio do ceu. Rival de Miguel, Raphael e Gabriel, não tolerava a precedencia que elles tinham na distribuição dos premios. Póde ser tambem que a musica em demasia doce e mystica daquelles outros condiscipulos fosse aborrecivel ao seu genio essencialmente tragico. Tramou uma rebellião que foi descoberta a tempo, e elle expulso do conservatorio. Tudo se teria passado sem mais nada, se Deus não houvesse escripto um libretto de opera, do qual abrira mão, por entender que tal genero de recreio era improprio da sua eternidade. Satanaz levou o manuscripto comsigo para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros,--e acaso para reconciliar-se com o ceu--compoz a partitura, e logo que a acabou foi leval-a ao Padre Eterno. --Senhor, não desapprendi as licções recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admitti-me com ella a vossos pés... --Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada. --Mas, Senhor... --Nada! nada! Satanaz supplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cançado e cheio de misericordia, consentiu em que a opera fosse executada, mas fóra do ceu. Creou um theatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primarias e comprimarias, córos e bailarinos. --Ouvi agora alguns ensaios! --Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libretto; estou prompto a dividir comtigo os direitos de autor. Foi talvez um mal esta recusa; della resultaram alguns desconcertos que a audiencia prévia e a collaboração amiga teriam evitado. Com effeito, ha logares em que o verso vae para a direita e a musica para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a belleza da composição, fugindo á monotonia, e assim explicam o tercetto do Eden, a aria de Abel, os córos da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razao sufficiente. Certos motivos cançam á força de repetição. Tambem ha obscuridades; o maestro abusa das massas choraes, encobrindo muita vez o sentido por um modo confuso. As partes orchestraes são aliás tratadas com grande pericia. Tal é a opinião dos imparciaes. Os amigos do maestro querem que difficilmente se possa achar obra tão bem acabada. Um ou outro admitte certas rudezas e taes ou quaes lacunas, mas com o andar da opera é provavel que estas sejam preenchidas ou explicadas, e aquellas desapparecam inteiramente, não se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos deste. Juram que o libretto foi sacrificado, que a partitura corrompeu o sentido da lettra, e, posto seja bonita em alguns logares, e trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até contraria ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do poeta; é uma excrescencia para imitar as _Mulheres patuscas de Windsor._ Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma apparencia de razão. Dizem elles que, ao tempo em que o joven Satanaz compoz a grande opera, nem essa farça nem Shakespeare eram nascidos. Chegam a affirmar que o poeta inglez não teve outro genio senão transcrever a lettra da opera, com tal arte e fidelidade, que parece elle proprio o autor da composição; mas, evidentemente, é um plagiario. --Esta peça, concluiu o velho tenor, durará emquanto durar o theatro, não se podendo calcular em que tempo será elle demolido por utilidade astronomica. O exito é crescente. Poeta e musico recebem pontualmente os seus direitos autoraes, que não são os mesmos, porque a regra da divisão é aquillo da Escriptura: «Muitos são os chamados, poucos os escolhidos.» Deus recebe em ouro, Satanaz em papel. --Tem graça... --Graça? bradou elle com furia; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror á graça. Isto que digo é a verdade pura e ultima. Um dia, quando todos os livros forem queimados por inuteis, ha de haver alguem, póde ser que tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é musica, meu amigo. No principio era o _dó_, e o _dó_ fez-se _ré_, etc. Este calix (e enchia-o novamente) este calix é um breve estribilho. Não se ouve? Tambem não se ouve o pau nem a pedra, mas tudo cabe na mesma opera... X Acceito a theoria. Que é demasiada metaphysica para um só tenor, não ha duvida; mas a perda da voz explica tudo, e ha philosophos que são, em resumo, tenores desempregados. Eu, leitor amigo, acceito a theoria do meu velho Marcolini, não só pela verosimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem á definição. Cantei um _duo_ ternissimo, depois um _trio_, depois um _quatuor..._ Mas não adeantemos; vamos á primeira tarde, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denuncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que elle me denunciou. XI A promessa. Tão depressa vi desapparecer o aggregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri á varanda do fundo. Não quiz saber de lagrimas nem da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projectos ecclesiasticos, e a occasião destes é a que vou dizer, por ser já então historia velha; datava de dezeseis annos. Os projectos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse, promettendo, se fosse varão, mettel-o na egreja. Talvez esperasse uma menina. Não disse nada a meu pae, nem antes, nem depois de me dar á luz; contava fazel-o quando eu entrasse para a escola, mas enviuvou antes disso. Viuva, sentiu terror de separar-se de mim; mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente, para que nos separassemos o mais tarde possivel, fez-me apprender em casa primeiras lettras, latim e doutrina, por aquelle padre Cabral, velho amigo do tio Cosme, que ia lá jogar ás noites. Prazos largos são faceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos. Minha mãe esperou que os annos viessem vindo. Entretanto, ia-me affeiçoando á ideia da egreja; brincos de creança, livros devotos, imagens de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar. Quando iamos á missa, dizia-me sempre que era para apprender a ser padre, e que reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de missa,--um tanto ás escondidas, porque minha mãe dizia que missa não era cousa de brincadeira. Arranjavamos um altar, Capitú e eu. Ella servia de sacristão, e alteravamos o ritual, no sentido do dividirmos a hostia entre nós; a hostia era sempre um doce. No tempo em que brincavamos assim, era muito commum ouvir á minha visinha: «Hoje ha missa?» Eu já sabia o que isto queria dizer, respondia affirmativamente, e ia pedir hostia por outro nome. Voltava com ella, arranjavamos o altar, engrolavamos o latim e precipitavamos as cerimonias. _Dominus, non sum dignus..._ Isto, que eu devia dizer tres vezes, penso que só dizia uma, tal era a golodice do padre e do sacristão. Não bebiamos vinho nem agua; não tinhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do sacrificio. Ultimamente não me falavam já do seminario, a tal ponto que eu suppunha ser negocio findo. Quinze annos, não havendo vocação, pediam antes o seminario do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a pretexto de nada, para apertal-a muito. XII Na varanda. Parei na varanda; ia tonto, atordoado, as pernas bambas, o coração parecendo querer sair-me pela bocca fóra. Não me atrevia a descer á chacara, e passar ao quintal visinho. Comecei a andar de um lado para outro, estacando para amparar-me, e andava outra vez e estacava. Vozes confusas repetiam o discurso do José Dias: «Sempre juntos...» «Em segredinhos...» «Se elles pegam de namoro...» Tijolos que pisei e repisei naquella tarde, columnas amarelladas que me passastes á direita ou á esquerda, segundo eu ia ou vinha, em vós me ficou a melhor parte da crise, a sensação de um goso novo, que me envolvia em mim mesmo, e logo me dispersava, e me trazia arrepios, e me derramava não sei que balsamo interior. Ás vezes dava por mim, sorrindo, um ar do riso de satisfação, que desmentia a abominação do meu peccado. E as vozes repetiam-se confusas: «Em segredinhos...» «Sempre juntos...» «Se elles pegam de namoro...» Um coqueiro, vendo-me inquieto e adivinhando a causa, murmurou de cima de si que não era feio que os meninos de quinze annos andassem nos cantos com as meninas de quatorze; ao contrario, os adolescentes daquella edade não tinham outro officio, nem os cantos outra utilidade. Era um coqueiro velho, e eu cria nos coqueiros velhos, mais ainda que nos velhos livros. Passaros, borboletas, uma cigarra que ensaiava o estio, toda a gente viva do ar era da mesma opinião. Com que então eu amava Capitú, e Capitú a mim? Realmente, andava cosido ás saias della, mas não me occorria nada entre nós que fosse devéras secreto. Antes della ir para o collegio, eram tudo travessuras de creanca; depois que saiu do collegio, é certo que não restabelecemos logo a antiga intimidade, mas esta voltou pouco a pouco, e no ultimo anno era completa. Entretanto, a materia das nossas conversações era a de sempre. Capitú chamava-me ás vezes bonito, mocetão, uma flòr; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos. E comecei a recordar esses e outros gestos e palavras, o prazer que sentia quando ella me passava a mão pelos cabellos, dizendo que os achava lindissimos. Eu, sem fazer o mesmo aos della, dizia que os della eram muito mais lindos que os meus. Então Capitú abanava a cabeça com uma grande expressão de desengano e melancolia, tanto mais de espantar quanto que tinha os cabellos realmente admiraveis; mas eu retorquia chamando-lhe maluca. Quando me perguntava se sonhára com ella na vespera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhára commigo, e eram aventuras extraordinarias, que subiamos ao Corcovado pelo ar, que dansavamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, afim de os dar a outros anjos que acabavam de nascer. Em todos esses sonhos andavamos unidinhos. Os que eu tinha com ella não eram assim, apenas reproduziam a nossa familiaridade, e muita vez não passavam da simples repetição do dia, alguma phrase, algum gesto. Tambem eu os contava. Capitú um dia notou a differença, dizendo que os della eram mais bonitos que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que sonhava... Fez-se còr de pitanga. Pois, francamente, só agora entendia a emoção que me davam essas e outras confidencias. A emoção era doce e nova, mas a causa della fugia-me, sem que eu a buscasse nem suspeitasse. Os silencios dos ultimos dias, que me não descobriam nada, agora os sentia como signaes de alguma cousa, e assim as meias palavras, as perguntas curiosas, as respostas vagas, os cuidados, o gosto de recordar a infancia. Tambem adverti que era phenomeno recente accordar com o pensamento em Capitú, e escutal-a de memoria, e estremecer quando lhe ouvia os passos. Se se falava nella, em minha casa, prestava mais altenção que d'antes, e, segundo era louvor ou critica, assim me trazia gosto ou desgosto mais intensos que outr'ora, quando eramos sómente companheiros de travessuras. Cheguei a pensar nella durante as missas daquelle mez, com intervallos, é verdade, mas com exclusivismo tambem. Tudo isto me era agora apresentado pela bocca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que pudesse vir de um e do outro. Naquelle instante, a eterna Verdade não valeria mais que elle, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Em amava Capitú! Capitú amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, tremulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciencia a si propria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparavel qualquer outra sensação da mesma especie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente tambem por ser a primeira. XIII Capitú. De repente, ouvi bradar uma voz de dentro da casa ao pé: --Capitú! E no quintal: --Mamãe! E outra vez na casa: --Vem cá! Não me pude ter. As pernas desceram-me os tres degraus que davam para a chacara, e caminharam para o quintal visinho. Era costume dellas, ás tardes, e ás manhãs tambem. Que as pernas tambem são pessoas, apenas interiores aos braços, e valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de ideias. As minhas chegaram ao pé do muro. Havia alli uma porta de communicação mandada rasgar por minha mãe, quando Capitú e eu éramos pequenos. A porta não tinha chave nem taramela, abria-se empurrando de um lado ou puxando de outro, e fechava-se ao peso de uma pedra pendente de uma corda. Era quasi que exclusivamente nossa. Em creancas, faziamos visita batendo de um lado, e sendo recebidos do outro com muitas mesuras. Quando as bonecas de Capitú adoeciam, o medico era eu. Entrava no quintal della com um pau debaixo do braço, para imitar o bengalão do doutor João da Costa; tomava o pulso á doente, e pedia-lhe que mostrasse a lingua. «É surda, coitada!» exclamava Capitú. Então eu coçava o queixo, como o doutor, e acabava mandando applicar-lhe umas sanguesugas ou dar-lhe um vomitorio: era a therapeutica habitual do medico. --Capitú! --Mamãe! --Deixa de estar esburacando o muro; vem cá. A voz da mãe era agora mais perto, como se viesse já da porta dos fundos. Quiz passar ao quintal, mas as pernas, ha pouco tão andarilhas, pareciam agora presas ao chão. Afinal fiz um esforço, empurrei a porta, e entrei. Capitú estava ao pé do muro fronteiro, voltada para elle, riscando com um prego. O rumor da porta fel-a olhar para traz; ao dar commigo, encostou-se ao muro, como se quizesse esconder alguma cousa. Caminhei para ella; naturalmente levava o gesto mudado, porque ella veiu a mim, e perguntou-me inquieta: --Que é que você tem? --Eu? Nada. --Nada, não; você tem alguma cousa. Quiz insistir que nada, mas não achei lingua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela bocca fora. Não podia tirar os olhos daquella creatura de quatorze annos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabellos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma á outra, á moda do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz recto e comprido, tinha a bocca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns officios rudes, eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos nem aguas de toucador, mas com agua do poço e sabão commum trazia-as sem macula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ella mesma dera alguns pontos. --Que é que você tem? repetiu. --Não é nada, balbuciei finalmente. E emendei logo: --É uma noticia. --Noticia de què? Pensei em dizer-lhe que ia entrar para o seminario e espreitar a impressão que lhe faria. Se a consternasse é que realmente gostava de mim; se não, é que não gostava. Mas todo esse calculo foi obscuro e rapido; senti que não poderia falar claramente, tinha agora a vista não sei como... --Então? --Você sabe... Nisto olhei para o muro, o logar em que ella estivera riscando, escrevendo ou esburacando, como dissera a mãe. Vi uns riscos abertos, e lembrou-me o gesto que ella fizera para cobril-os. Então quiz vel-os de perto, e dei um passo. Capitú agarrou-me, mas, ou por temer que eu acabasse fugindo, ou por negar de outra maneira, correu adeante e apagou o escripto. Foi o mesmo que accender em mim o desejo de ler o que era. XIV A inscripção. Tudo o que contei no fim do outro capitulo foi obra de um instante. O que se lhe seguiu foi ainda mais rapido. Dei um pulo, e antes que ella raspasse o muro, li estes dous nomes, abertos ao prego, o assim dispostos: BENTO CAPITOLINA Voltei-me para ella; Capitú tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficámos a olhar um para o outro... Confissão de creanças, tu valias bem duas ou tres paginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falámos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exacta daquelle gesto. Devia tel-a marcado; sinto a falta de uma nota escripta naquella mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de orthographia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a differença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. Não soltámos as mãos, nem ellas se deixaram cair de cançadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a metter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim deante della como de um altar, sendo uma das faces a Epistola e a outra o Evangelho. A bocca podia ser o calix, os labios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguem apprende, e é a lingua catholica dos homens. Não me tenhas por sacrilego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estylo. Estavamos alli com o ceu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas creaturas uma só, mas uma só creatura seraphica. Os olhos continuaram a dizer cousas infinitas, as palavras de bocca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham... XV Outra voz repentina. Outra voz repentina, mas desta vez uma voz de homem: --Vocês estão jogando o siso? Era o pae de Capitú, que estava á porta dos fundos, ao pé da mulher. Soltámos as mãos depressa, e ficámos atrapalhados. Capitú foi ao muro, e, com o prego, disfarçadamente, apagou os nossos nomes escriptos. --Capitú! --Papae! --Não me estragues o reboco do muro. Capitú riscava sobre o riscado, para apagar bem o escripto. Padua saiu ao quintal, a ver o que era, mas já a filha tinha começado outra cousa, um perfil, que disse ser o retrato delle, e tanto podia ser delle como da mãe; fel-o rir, era o essencial. De resto, elle chegou sem colera, todo meigo, apezar do gesto duvidoso ou menos que duvidoso em que nos apanhou. Era um homem baixo e grosso, pernas e braços curtos, costas abahuladas, donde lhe veiu a alcunha de Tartaruga, que José Dias lhe poz. Ninguem lhe chamava assim lá em casa; era só o aggregado. --Vocês estavam jogando o siso? perguntou, Olhei para um pé do sabugueiro que ficava perto; Capitú respondeu por ambos. --Estavamos, sim, senhor, mas Bentinho ri logo, não aguenta. --Quando eu cheguei á porta, não ria. --Já tinha rido das outras vezes; não póde. Papae quer ver? E séria, fitou em mim os olhos, convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente serio; eu estava ainda sob a acção do que trouxe a entrada de Padua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazel-o, para legitimar a resposta de Capitú. Esta, cançada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquella vez por estar ao pé do pae. E nem assim ri. Ha cousas que só se apprendem tarde; é mister nascer com ellas para fazel-as cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde. Capitú, após duas voltas, foi ter com a mãe, que continuava á porta da casa, deixando-nos a mim e ao pae encantados della; o pae, olhando para ella e para mim, dizia-me, cheio de ternura: --Quem dirá que esta pequena tem quatorze annos? Parece dezesete. Mamãe está boa? continuou voltando-se inteiramente para mim. --Está. --Ha muitos dias que não a vejo. Estou com vontade de dar um capote ao doutor, mas não tenho podido, ando com trabalhos da repartição, em casa; escrevo todos os noites que é em desespero; negocio de relatorio. Você já viu o meu gaturamo? Está alli no fundo. Ia agora mesmo buscar a gaiola; ande ver. Que o meu desejo era nenhum, crê-se facilmente, sem ser preciso jurar pelo ceu nem pela terra. Meu desejo era ir atraz de Capitú e falar-lhe agora do mal que nos esperava, mas o pae era o pae, e demais amava particularmente os passarinhos. Tinha-os de varia especie, côr e tamanho. A área que havia no centro da casa era cercada de gaiolas de canarios, que faziam cantando um barulho de todos os diabos. Trocava passaros com outros amadores, comprava-os, apanhava alguns, no proprio quintal, armando alçapões. Tambem, se adoeciam, tratava delles como se fossem gente. XVI O administrador interino. Padua era empregado em repartição dependente do ministerio da guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade delle. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu n'um meio bilhete de loteria, dez contos de reis. A primeira ideia do Padua, quando lhe saiu o premio, foi comprar um cavallo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpetua de familia, mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que alli está á porta dos fundos da casa, em pé, falando á filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir ás molestias grandes. Padua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi só nessa occasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Padua. Escutai; a anecdota é curta. O administrador da repartição em que Padua trabalhava teve de ir ao Norte, em commissão. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorarios. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem: era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se ás despezas superfluas, deu joias á mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em theatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dous mezes na supposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, afflicto e desvairado, ia perder o logar, porque chegara o effectivo naquella manhã. Pediu a minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia soffrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas elle não attendia a cousa nenhuma. --Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a familia, tornar atraz... Já disse, mato-me! Não hei de confessar á minha gente esta miseria. E os outros? Que dirão os visinhos? E os amigos? E o publico? --Que publico, Sr. Padua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher não tem outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem... Seja homem, ande. Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova,--ou então no quintal, ao pé do poço, como se a ideia da morte teimasse nelle. D. Fortunata ralhava: --Joãosinho, você é creança? Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir a minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achal-o á beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquella de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pae de familia, imitar a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe. --Vontade minha, não; é obrigação sua. --Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo. Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido á parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéo em cortejar a visinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Padua começou a interessar-se pelos negocios domesticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranquillo as noites e as tardes, a conversar e dar noticias da rua. A serenidade regressou; atraz della veiu a alegria, um domingo, na figura de dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já elle ria, já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo. Com o tempo veiu um phenomeno interessante. Padua começou a falar da administração interina, não sómente sem as saudades dos honorarios, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hegyra, donde elle contava para deante e para traz. --No tempo em que eu era administrador... Ou então: --Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dous mezes antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mez e meio antes; foi mez e meio antes, não foi mais. Ou ainda: --Justamente; havia já seis mezes que eu administrava... Tal é o sabor posthumo das glorias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escriptura, dizia que com o visinho Padua se dava a licção de Eliphaz a Job: «Não desprezes a correcção do Senhor; elle fere e cura.» XVII Os vermes. «Elle fere e cura!» Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Achilles tambem curou uma ferida que fez, tive taes ou quaes velleidades de escrever uma dissertação a este proposito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abril-os, a comparal-os, calando o texto e o sentido, para achar a origem commum do oraculo pagão e do pensamento israelita. Catei os proprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roidos por elles. --Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, uns não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos. Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repeliam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silencio sobre os textos roidos, fosse ainda um modo de roer o roido. XVIII Um plano. Pae nem mãe foram ter comnosco, quando Capitú e eu, na sala de visitas, falavamos do seminario. Com os olhos em mim, Capitú queria saber que noticia era a que me affligia tanto. Quando lhe disse o que era, fez-se côr de cêra. --Mas eu não quero, acudi logo, não quero entrar em seminarios; não entro, é excusado teimarem commigo, não entro. Capitú, a principio não disse nada. Recolheu os olhos, metteu-os em si e deixou-se estar com as pupillas vagas e surtias, a bocca entre-aberta, toda parada. Então eu, para dar forca ás affirmações, comecei a jurar que não seria padre. Naquelle tempo jurava muito e rijo, pela vida e pela morte. Jurei pela hora da morte. Que a luz me faltasse na hora da morte se fosse para o seminario. Capitú não parecia crer nem descrer, não parecia sequer ouvir; era uma figura de pau. Quiz chamal-a, sacudil-a, mas faltou-me animo. Essa creatura que brincára commigo, que pulára, dansára, creio até que dormira commigo, deixava-me agora com os braços atados e medrosos. Emfim, tornou a si, mas tinha a cara livida, e rompeu nestas palavras furiosas: --Beata! carola! papa-missas! Fiquei aturdido. Capitú gostava tanto de minha mãe, e minha mãe della, que eu não podia entender tamanha explosão. É verdade que tambem gostava de mim, e naturalmente mais, ou melhor, ou de outra maneira, cousa bastante a explicar o despeito que lhe trazia a ameaça da separação; mas os improperios, como entender que lhe chamasse nomes tão feios, e principalmente para deprimir costumes religiosos, que eram os seus? Que ella tambem ia á missa, e tres ou quatro vezes minha mãe é que a levou, na nossa velha sege. Tambem lhe dera um rosario, uma cruz de ouro e um livro de _Horas..._ Quiz defendel-a, mas Capitú não me deixou, continuou a chamar-lhe beata e carola, em voz tão alta que tive medo fosse ouvida dos paes. Nunca a vi tão irritada como então; parecia disposta a dizer tudo a todos. Cerrava os dentes, abanava a cabeça... Eu, assustado, não sabia que fizesse; repetia os juramentos, promettia ir naquella mesma noite declarar em casa que, por nada neste mundo, entraria no seminario. --Você? Você entra. --Não entro. --Você verá se entra ou não. Calou-se outra vez. Quando tornou a falar, tinha mudado; não era ainda a Capitú do costume, mas quasi. Estava seria, sem afflicção, falava baixo. Quiz saber a conversação da minha casa; eu contei-lh'a toda, menos a parte que lhe dizia respeito. --E que interesse tem José Dias em lembrar isto? perguntou-me no fim. --Acho que nenhum; foi só para fazer mal. É um sujeito muito ruim; mas, deixe estar que me ha de pagar. Quando eu fôr dono da casa, quem vae para a rua é elle, você verá; não me fica um instante. Mamãe é boa de mais; dá-lhe attenção de mais. Parece até que chorou. --José Dias? --Não, mamãe. --Chorou porque? --Não sei; ouvi só dizer que ella não chorasse, que não era cousa de choro... Elle chegou a mostrar-se arrependido, e saiu; eu então, para não ser apanhado, deixei o canto e corri para a varanda. Mas, deixe estar, que elle me paga! Disse isto fechando o punho, e proferi outras ameaças. Ao relembral-as, não me acho ridiculo; a adolescencia e a infancia não são, neste ponto, ridiculas; e um dos seus privilegios. Este mal ou este perigo começa na mocidade, cresce na madurera e attinge o maior grão na velhice. Aos quinze annos, ha até certa graça em ameaçar muito e não executar nada. Capitú reflectia. A reflexão não era cousa rara nella, e conheciam-se as occasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circumstancias mais, as proprias palavras de uns e de outros, e o tom dellas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ella mesma, não lhe pude dar toda a significação. A attenção de Capitú estava agora particularmente nas lagrimas de minha mãe; não acabava de entendel-as. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer padre; era a promessa antiga, que ella, temente a Deus, não podia deixar de cumprir. Fiquei tão satisfeito de ver que assim espontaneamente reparava as injurias que lhe sairam do peito, pouco antes, que peguei da mão della e apertei-a muito. Capitú deixou-se ir, rindo; depois a conversa entrou a cochilar e dormir. Tinhamos chegado á janella; um preto, que, desde algum tempo, vinha apregoando cocadas, parou em frente e perguntou: --Sinhásinha, qué cocada hoje? --Não, respondeu Capitú. --Cocadinha tá boa. --Vá-se embora, replicou ella sem rispidez. --Dê ca! disse eu descendo o braço para receber duas. Comprei-as, mas tive de as comer sósinho; Capitú recusou. Vi que, em meio da crise, eu conservava um canto para as cocadas, o que tanto póde ser perfeição como imperfeição, mas o momento não é para definições taes; fiquemos em que a minha amiga, apezar de equilibrada e lucida, não quiz saber de doce, e gostava muito de doce. Ao contrario, o pregão que o preto foi cantando, o prégão das velhas tardes, tão sabido do bairro e da nossa infancia: Chora, menina, chora, Chora, porque não tem Vintem, a modo que lhe deixára uma impressão aborrecida, Da toada não era; ella a sabia de cór e de longe, usava repetil-a nos nossos jogos da puericia, rindo, saltando, trocando os papeis commigo, ora vendendo, ora comprando um doce ausente. Creio que a lettra, destinada a picar a vaidade das crianças, foi que a enojou agora, porque logo depois me disse: --Se eu fosse rica, você fugia, mettia-se no paquete e ia para a Europa. Dito isto, espreitou-me os olhos, mas creio que elles não lhe disseram nada, ou só agradeceram a boa intenção. Com effeito, o sentimento era tão amigo que eu podia excusar o extraordinario da aventura. Como vês, Capitú, aos quatorze annos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na pratica faziam-se habeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. não sei se me explico bem. Supponde uma concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e hypothetico de me mandar para a Europa, Capitú, se pudesse cumpril-o, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma fila de canoas daqui até lá, por onde eu, parecendo ir á fortaleza da Lage em ponte movediça, iria realmente até Bordéos, deixando minha mãe na praia, á espera. Tal era a feição particular do caracter da minha amiga; pelo que, não admira que, combatendo os meus projectos de resistencia franca, fosse antes pelos meios brandos, pela acção do empenho, da palavra, da persuasão lenta e diuturna, e examinasse antes as pessoas com quem podiamos contar. Rejeitou tio Cosme; era um «boa-vida»; se não approvava a minha ordenação, não era capaz de dar um passo para suspendel-a. Prima Justina era melhor que elle, e melhor que os dous seria o padre Cabral, pela autoridade, mas o padre não havia de trabalhar contra a egreja; só se eu lhe confessasse que não tinha vocação.... --Posso confessar? --Pois, sim, mas seria apparecer francamente, e o melhor é outra cousa. José Dias.... --Que tem José Dias? --Póde ser um bom empenho. --Mas se foi elle mesmo que falou.... --Não importa, continuou Capitú; dirá agora outra cousa. Elle gosta muito de você. Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que ha de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que póde. Dê-lhe bem a entender que não é favor. Faça-lhe tambem elogios; elle gosta muito de ser elogiado. D. Gloria presta-lhe attenção; mas o principal não é isso; é que elle, tendo de servir a você, falará com muito mais calor que outra pessoa. --Não acho. não, Capitú. --Então vá para o seminario. --Isso não. --Mas que se perde em experimentar? Experimentemos; faça o que lhe digo. D. Gloria póde ser que mude de resolução; se não mudar, faz-se outra cousa, mette-se então o padre Cabral. Você não se lembra como é que foi ao theatro pela primeira vez, ha dous mezes? D. Gloria não queria, e bastava isso para que José Dias não teimasse; mas elle queria ir, e fez um discurso, lembra-se? --Lembra-me; disse que o theatro era uma escola de costumes. --Justo; tanto falou que sua mãe acabou consentindo, e pagou a entrada aos dous.... Ande, peça, mande. Olhe; diga-lhe que está prompto a ir estudar leis em S. Paulo. Estremeci de prazer. S. Paulo era um fragil biombo, destinado a ser arredado um dia, em vez da grossa parede espiritual e eterna. Prometti falar a José Dias nos termos propostos. Capitú repetiu-os, accentuando alguns, como principaes; e inquiria-me depois sobre elles, a ver se entendera bem, se não trocara uns por outros. E insistia em que pedisse com boa cara, mas assim como quem pede um copo de agua a pessoa que tem obrigação de o trazer. Conto estas minucias para que melhor se entenda aquella manhã da minha amiga; logo virá a tarde, e da manhã e da tarde se fará o primeiro dia, como no Genesis, onde se fizeram successivamente sete. XIX Sem falta. Quando voltei a casa era noite. Vim depressa, não tanto, porém, que não pensasse nos termos em que falaria ao aggregado. Formulei o pedido de cabeça, escolhendo as palavras que diria e o tom dellas, entre secco e benevolo. Na chacara, antes de entrar em casa, repeti-as commigo, depois em voz alia, para ver se eram adequadas e se obedeciam ás recommendações de Capitú: «Preciso falar-lhe, _sem falta_, amanhã; escolha o logar e diga-me.» Proferi-as lentamente, e mais lentamente ainda as palavras _sem falta_, como para sublinhal-as. Repeti-as ainda, e então achei-as seccas de mais, quasi rispidas, e, francamente, improprias de um creançola para um homem maduro. Cuidei de escolher outras, e parei. Afinal disse commigo que as palavras podiam servir, tudo era dizel-as em tom que não offendesse. E a prova é que, repetindo-as novamente, saíram-me quasi supplices. Bastava não carregar tanto, nem adoçar muito, um meio termo. «E Capitú tem razão, pensei, a casa é minha, elle é um simples aggregado... Geitoso é, póde muito bem trabalhar por mim, e desfazer o plano de mamãe.» XX Mil padre-nossos e mil ave-marias. Levantei os olhos ao ceu, que começava a embruscar-se, mas não foi para vel-o coberto ou descoberto. Era ao outro ceu que eu erguia a minha alma; era ao meu refugio, ao meu amigo. E então disse de mim para mim: --Prometto rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o seminario. A somma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas não cumpridas. A ultima foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Theresa. Não choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me a pedir ao ceu os seus favores, mediante orações que diria, se elles viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e á medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos numeros vinte, trinta, cincoenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a divida antiga. Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a sentia attenuada pela vida! O ceu fazia-me o favor, eu adiava a paga. Afinal perdi-me nas contas. --Mil, mil, repeti commigo. Realmente, a materia do beneficio era agora immensa, não menos que a salvação ou o naufragio da minha existencia inteira. Mil, mil, mil. Era preciso uma somma que pagasse os atrazados todos. Deus podia muito bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito dinheiro.... Homem grave, é possivel que estas agitações de menino te enfadem, se é que não as achas ridiculas. Sublimes não eram. Cogitei muito no modo de resgatar a divida espiritual. Não achava outra especie em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escripturação da minha consciencia moral sem _deficit._ Mandar dizer cem missas, ou subir do joelhos a ladeira da Gloria para ouvir uma, ir á Terra-Santa, tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas celebres, tudo me acudia sem se fixar de vez no espirito. Era muito duro subir uma ladeira de joelhos; devia feril-os por força. A Terra-Santa ficava muito longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-mo outra vez a alma.... XXI Prima Justina. Na varanda achei prima Justina, passeando de um lado para outro. Veiu ao patamar e perguntou-me onde estivera. --Estive aqui ao pé, conversando com D. Fortunata, e distraí-me. É tarde, não é? Mamãe perguntou por mim? --Perguntou, mas eu disse que você já tinha vindo. A mentira espantou-me, não menos que a franqueza da noticia. Não é que prima Justina fosse de biocos; dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro; mas, confessar que mentira é que me pareceu novidade. Era quadragenaria, magra e pallida, bocca fina e olhos curiosos. Vivia comnosco por favor de minha mãe, e tambem por interesse; minha mãe queria ter uma senhora intima ao pé de si, e antes parenta que extranha. Passeámos alguns minutos na varanda, alumiada por um lampião. Quiz saber se eu não esquecera os projectos ecclesiasticos de minha mãe, e dizendo-lhe eu que não, inquiriu-me sobre o gosto que eu tinha á vida de padre. Respondi esquivo: --Vida de padre é muito bonita. --Sim, é bonita; mas o que pergunto é se você gostaria de ser padre, explicou rindo. --Eu gósto do que mamãe quizer. --Prima Gloria deseja muito que você se ordene, mas ainda que não desejasse, ha cá em casa quem lhe metta isso na cabeça. --Quem é? --Ora, quem! Quem é que hade ser? Primo Cosme não é, que não se importa com isso; eu tambem não. --José Dias? conclui. --Naturalmente. Enruguei a testa interrogativamente, como se não soubesse nada. Prima Justina completou a noticia dizendo que ainda naquella tarde José Dias lembrára a minha mãe a promessa antiga. --Prima Gloria póde ser que, em passando os dias, vá esquecendo a promessa; mas como ha de esquecer se uma pessoa estiver sempre, nos ouvidos, zás que darás, falando do seminario? E os discursos que elle faz, os elogios da egreja, e que a vida de padre é isto e aquillo, tudo com aquellas palavras que só elle conhece, e aquella affectação... Note que é só para fazer mal, porque elle é tão religioso, como este lampião. Pois é verdade, ainda hoje. Você não se dê por achado... Hoje de tarde falou como você não imagina. --Mas falou á toa? perguntei, a ver se ella contava a denuncia do meu namoro com a visinha. Não contou; fez apenas um gesto como indicando que havia outra cousa que não podia dizer. Novamente me recommendou que não me désse por achado, e recapitulou todo o mal que pensava de José Dias, e não era pouco, um intrigante, um bajulador, um especulador, e, apezar da casca de polidez, um grosseirão. Eu, passados alguns instantes, disse: --Prima Justina, a senhora era capaz de uma cousa? --De quê? --Era capaz de... Supponha que eu não gostasse de ser padre... a senhora podia pedir a mamãe... --Isso não, atalhou promptamente; prima Gloria tem este negocio firme na cabeça, e não ha nada no mundo que a faça mudar de resolução; só o tempo. Você ainda era pequenino, já ella contava isto a todas as pessoas da nossa amizade, ou só conhecidas. Lá avivar-lhe a memoria, não, que eu não trabalho para a desgraça dos outros; mas tambem, pedir outra cousa, não peço. Se ella me consultasse, bem; se ella me dissesse: «Prima Justina, você que acha?» a minha resposta era: «Prima Gloria, eu penso que, se elle gosta de ser padre, póde ir; mas, se não gosta, o melhor é ficar.» E o que eu diria e direi se ella me consultar algum dia. Agora, ir falar-lhe sem ser chamada, não faço. XXII Sensações alheias. Não alcancei mais nada, e para o fim arrependi-me do pedido: devia ter seguido o conselho de Capitú. Então, como eu quizesse ir para dentro, prima Justina reteve-me alguns minutos, falando do calor e da proxima festa da Conceição, dos meus velhos oratorios, e finalmente de Capitú. Não disse mal della; ao contrario insinuou-me que podia vir a ser uma moça bonita. Eu, que já a achava lindissima, bradaria que era a mais bella creatura do mundo, se o receio me não fizesse discreto. Entretanto, como prima Justina se mettesse a elogiar-lhe os modos, a gravidade, os costumes, o trabalhar para os seus, o amor que tinha a minha mãe, tudo isto me accendeu a ponto de elogial-a tambem. Quando não era com palavras, era com o gesto de approvação que dava a cada uma das assersões da outra, e certamente com a felicidade que devia illuminar-me a cara. Não adverti que assim confirmava a denuncia de José Dias, ouvida por ella, á tarde, na sala de visitas, se é que tambem ella não desconfiava já. Só pensei nisso na cama. Só então senti que os olhos de prima Justina, quando eu falava, pareciam apalpar-me, ouvir-me, cheirar-me, gostar-me, fazer o officio de todos os sentidos. Ciumes não podiam ser; entre um pirralho da minha edade e uma viuva quarentona não havia logar para ciumes. É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitú, e até lhe fez algumas criticas, disse-me que era um pouco trefega e olhava por baixo; mas ainda assim, não creio que fossem ciumes. Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espectaculo das sensações alheias uma resurreição vaga das proprias. Tambem se goza por influição dos labios que narram. XXIII Prazo dado. --Preciso falar-lhe amanhã, sem falta; escolha o logar e diga-me. Creio que José Dias achou desusado este meu falar. O tom não me sairia tão imperativo como eu receiava, mas as palavras o eram, e o não interrogar, não pedir, não hesitar, como era proprio da creança e do meu estylo habitual, certamente lhe deu ideia de uma pessoa nova e de uma nova situação. Foi no corredor, quando iamos para o chá; José Dias vinha andando cheio da leitura de Walter Scott que fizera a minha mãe e a prima Justina. Lia cantado e compassado. Os castellos e os parques saíam maiores da bocca delle, os lagos tinham mais agua e a «abobada celeste» contava alguns milhares mais de estrellas centelhantes. Nos dialogos, alternava o som das vozes, que eram levemente grossas ou finas, conforme o sexo dos interlocutores, e reproduziam com moderação a ternura e a colera. Ao despedir-se de mim, na varanda, disse-me elle: --Amanhã, na rua. Tenho umas compras que fazer, você póde ir commigo, pedirei a mamãe. É dia de licção? --A licção foi hoje. --Perfeitamente. Não lhe pergunto o que é; affirmo desde já que é materia grave e pura. --Sim, senhor. --Até amanhã. Fez-se tudo o melhor possivel. Houve só uma alteração: minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entrámos no omnibus, á porta de casa. --Não importa, disse-me José Dias; podemos apear-nos á porta do Passeio Publico. XXIV De mãe e de servo. José Dias tratava-me com extremos de mãe e attenções de servo. A primeira cousa que conseguiu logo que comecei a andar fora, foi dispensar-me o pagem; fez-se pagem, ia commigo á rua. Cuidava dos meus arranjos em casa, dos meus livros, dos meus sapatos, da minha hygiene e da minha prosodia. Aos oito annos os meus pluraes careciam, alguma vez, da desinencia exacta, elle a corrigia, meio serio para dar autoridade á licção, meio risonho para obter o perdão da emenda. Ajudava assim o mestre de primeiras lettras. Mais tarde, quando o padre Cabral me ensinava latim, doutrina e historia sagrada, elle assistia ás licções, fazia reflexões ecclesiasticas, e, no fim, perguntava ao padre: «Não é verdade que o nosso joven amigo caminha depressa?» Chamava-me «um prodigio»; dizia a minha mãe ter conhecido outr'ora meninos muito intelligentes, mas que eu excedia a todos esses, sem contar que, para a minha edade, possuia já certo numero de qualidades moraes solidas. Eu, posto não avaliasse todo o valor deste outro elogio, gostava do elogio; era um elogio. XXV No Passeio Publico. Entrámos no Passeio Publico. Algumas caras velhas, outras doentes ou só vadias espalhavam-se melancolicamente no caminho que vae da porta ao terraço. Seguimos para o terraço. Andando, para me dar animo, falei do jardim: --Ha muito tempo que não venho aqui, talvez um anno. --Perdôe-me, atalhou elle, não ha tres mezes que esteve aqui com o nosso visinho Padua; não se lembra? --É verdade, mas foi tão de passagem... --Elle pediu a sua mãe que o deixasse trazer comsigo, e ella, que é boa como a mãe de Deus, consentiu; mas ouça-me, já que falamos nisto, não é bonito que você ande com o Padua na rua. --Mas eu andei algumas vezes... --Quando era mais joven; em creança, era natural, elle podia passar por creado. Mas você está ficando moco, e elle vae tomando confiança. D. Gloria, afinal, não pode gostar disto. A gente Padua não é de todo má. Capitú, apesar daquelles olhos que o diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos della? São assim de cigana obliqua e dissimulada. Pois, apesar delles, poderia passar, se não fosse a vaidade e a adulação. Oh! a adulação! D. Fortunata merece estima, e elle não nego que seja honesto, tem um bom emprego, possue a casa em que móra, mas honestidade e estima não bastam, e as outras qualidades perdem muito de valor com as más companhias em que elle anda. Padua tem uma tendencia para gente réles. Em lhe cheirando a homem chulo é com elle. Não digo isto por odio, nem por que elle fale mal de mim e se ria, como se riu, ha dias, dos meus sapatos acalcanhados... --Perdão, interrompi suspendendo o passo, nunca ouvi que falasse mal do senhor; pelo contrario, um dia, não ha muito tempo, disse elle a um sujeito, em minha presença, que o senhor era «um homem de capacidade e sabia falar corno um deputado nas camaras.» José Dias sorriu deliciosamente, mas fez um esforço grande e fechou outra vez o rosto; depois replicou: --Não lhe agradeço nada. Outros, de melhor sangue, me tem feito o favor de juizos altos. E nada disso impede que elle seja o que lhe digo. Tinhamos outra vez andado, subimos ao terraço, e olhámos para o mar. --Vejo que o senhor não quer senão o meu beneficio, disse eu depois de alguns instantes. --Pois que outra cousa, Bentinho? --Neste caso, peço-lhe um favor. --Um favor? Mande, ordene, que é? --Mamãe... Durante algum tempo não pude dizer o resto, que era pouco, e vinha de cór. José Dias tornou a perguntar o que era, sacudia-me com brandura, levantava-me o queixo e espetava os olhos em mim, ancioso tambem, como a prima Justina na vespera. --Mamãe quê? Que é que tem mamãe? --Mamãe quer que eu seja padre, mas eu não posso ser padre, disse finalmente. José Dias endireitou-se pasmado. --Não posso, continuei eu, não menos pasmado que elle, não tenho geito, não gósto da vida de padre. Estou por tudo o que ella quizer; mamãe sabe que eu faço tudo o que ella manda; estou prompto a ser o que fôr do seu agrado, até cocheiro de omnibus. Padre, não; não posso ser padre. A carreira é bonita, mas não é para mim. Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, peremptorio, como póde parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e timida. Não obstante, José Dias ouvira-o espantado. Não contava certamente com a resistencia, por mais acanhada que fosse; mas o que ainda mais o assombrou foi esta conclusão: --Conto com o senhor para salvar-me. Os olhos do aggregado escancararam-se, as sobrancelhas arquearam-se, e o prazer que eu contava dar-lhe com a escolha da protecção não se mostrou em nenhum dos musculos. Toda a cara delle era pouca para a estupefacção. Realmente, a materia do discurso revelára em mim uma alma nova; eu proprio não me conhecia. Mas a palavra final é que trouxe um vigor unico. José Dias ficou aturdido. Quando os olhos tornaram ás dimensões ordinarias: --Mas que posso eu fazer? perguntou. --Póde muito. O senhor sabe que, em nossa casa, todos o apreciam. Mamãe pede muita vez os seus conselhos, não é? Tio Cosme diz que o senhor é pessoa de talento... --São bondades, retorquiu lisonjeado. São favores de pessoas dignas, que merecem tudo... Ahi está! nunca ninguem me ha de ouvir dizer nada de pessoas taes; porque? porque são illustres e virtuosas. Sua mãe é uma santa, seu tio é um cavalheiro perfeitissimo. Tenho conhecido familias distinctas; nenhuma poderá vencer a sua em nobreza de sentimentos. O talento que seu tio acha em mim confesso que o tenho, mas é só um,--é o talento de saber o que é bom e digno de admiração e de apreço. --Ha de ter tambem o de proteger os amigos, como eu. --Em que lhe posso valer, anjo do ceu? Não hei de dissuadir sua mãe de um projecto que é, além de promessa, a ambição e o sonho de longos annos. Quando pudesse, é tarde. Ainda hontem fez-me o favor de dizer: «José Dias, preciso metter Bentinho no seminario.» Timidez não é tão ruim moeda, como parece. Se eu fosse destemido, é provavel que, com a indignação que experimentei, rompesse a chamar-lhe mentiroso, mas então seria preciso confessar-lhe que estivera á escuta, atraz da porta, e uma acção valia outra. Contentei-me de responder que não era tarde. --Não é tarde, ainda é tempo, se o senhor quizer. --Se eu quizer? Mas que outra cousa quero eu, senão servil-o? Que desejo, senão que seja feliz, como merece? --Pois ainda é tempo. Olhe, não é por vadiação. Estou prompto para tudo; se ella quizer que eu estude leis, vou para S. Paulo... XXVI As leis são bellas. Pela cara de José Dias passou algo parecido com o reflexo de uma ideia,--uma ideia que o alegrou extraordinariamente. Calou-se alguns instantes; eu tinha os olhos nelle, elle voltara os seus para o lado da barra. Como insistisse: --É tarde, disse elle; mas, para lhe provar que não ha falta de vontade, irei falar a sua mãe. Não prometto vencer, mas lutar; trabalharei com alma. Devéras, não quer ser padre? As leis são bellas, meu querido... Póde ir a S. Paulo, a Pernambuco, ou ainda mais longe. Ha boas universidades por esse mundo fóra. Vá para as leis, se tal é a sua vocação. Vou falar a D. Gloria, mas não conte só commigo; fale tambem a seu tio. --Hei de falar. --Pegue-se tambem com Deus,--com Deus e a Virgem Santissima, concluiu apontando para o ceu. O ceu estava meio enfarruscado. No ar, perto da praia, grandes passaros negros faziam giros, avoaçando ou pairando, e desciam a roçar os pés, na agua, e tornavam a erguer-se para descer novamente. Mas nem as sombras do ceu, nem as dansas fantasticas dos passaros me desviavam o espirito do meu interlocutor. Depois de lhe responder que sim, emendei-me: --Deus fará o que o senhor quizer. --Não blaspheme. Deus é dono de tudo; elle é, só por si, a terra e o ceu, o passado, o presente e o futuro. Peça-lhe a sua felicidade, que eu não faço outra cousa... Uma vez que você não póde ser padre, e prefere as leis... As leis são bellas, sem desfazer na theologia, que é melhor que tudo, como a vida ecclesiastica é a mais santa... Porque não ha de ir estudar leis fóra daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos; veremos as terras estranjeiras, ouviremos inglez, francez, italiano, hespanhol, russo e até sueco. D. Gloria provavelmente não poderá acompanhal-o; ainda que possa e vá, não quererá guiar os negocios, papeis, matriculas, e cuidar de hospedarias, e andar com você de um lado para outro... Oh! as leis são bellissimas! --Está dito, pede a mamãe que me não metia no seminario? --Pedir, peço, mas pedir não é alcançar. Anjo do meu coração, se vontade de servir é poder de mandar, estamos aqui, estamos a bordo. Ali! você não imagina o que é a Europa; oh! a Europa... Levantou a perna e fez uma pirueta. Uma das suas ambições era tornar á Europa, falava della muitos vezes, sem acabar de tentar minha mãe nem tio Cosme, por mais que louvasse os ares e as bellezas... Não contava com esta possibilidade de ir commigo, e lá ficar durante a eternidade dos meus estudos. --Estamos a bordo, Bentinho, estamos a bordo! XXVII Ao portão. Ao portão do Passeio, um mendigo estendeu-nos a mão. José Dias passou adiante, mas eu pensei em Capitú e no seminario, tirei dous vintens do bolso e dei-os ao mendigo. Este beijou a moeda; eu pedi-lhe que rogasse a Deus por mim, afim de que eu pudesse satisfazer todos os meus desejos. --Sim, meu devoto! --Chamo-me Bento, accrescentei para esclarecel-o. XXVIII Na rua. José Dias ia tão contente que trocou o homem dos momentos graves, como era á rua, pelo homem dobradiço e inquieto. Mexia-se todo, falava de tudo, fazia-me parar a cada passo deante de um mostrador ou de um cartaz de theatro. Contava-me o enredo de algumas peças, recitava monologos em verso. Fez os recados todos, pagou contas, recebeu alugueis de casa; para si comprou um vigesimo de loteria. Afinal, o homem tezo rendeu o flexivel, e passou a falar pausado, com superlativos. Não vi que a mudança era natural; temi que houvesse mudado a resolução assentada, e entrei a tratal-o com palavras e gestos carinhosos, até entrarmos no omnibus. XXIX O imperador. Em caminho, encontrámos o imperador, que vinha da Escola de Medicina. O omnibus em que iamos parou, como todos os vehiculos; os passageiros desceram á rua e tiraram o chapeu, até que o coche imperial passasse. Quanto tornei ao meu logar, trazia uma ideia fantastica, a ideia de ir ter com o imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria. esta ideia a Capitú. «Sua Majestade pedindo, mamãe cede,» pensei commigo. Vi então o imperador escutando-me, reflectindo e acabando por dizer que sim, que iria falar a minha mãe; eu beijava-lhe a mão, com lagrimas. E logo me achei cm casa, á espera, até que ouvi os batedores e o piquete de cavallaria; é o imperador! é o imperador! toda a gente chegava ás janellas para vel-o passar, mas não passava, o coche parava á nossa porta, o imperador apeava-se e entrava. Grande alvoroço na visinhança: «O imperador entrou em casa de D. Gloria! Que será? Que não será? «A nossa familia saía a recebel-o; minha mãe era a primeira que lhe beijava a mão. Então o imperador, todo risonho, sem entrar na sala ou entrando,--não me lembra bem, os sonhos são muita vez confusos,--pedia a minha mãe que me não fizesse padre,--e ella, lisongeada e obediente, promettia que não. --A medicina,--porque lhe não manda ensinar medicina? Uma vez que é do agrado de Vossa Majestade... --Mande ensinar-lhe medicina; é uma bonita carreira, e nós temos aqui bons professores. Nunca foi á nossa Escola? É uma bella Escola. Já temos medicos de primeira ordem, que pódem hombrear com os melhores de outras terras. A medicina é uma grande sciencia; basta só isto de dar a saude aos outros, conhecer as molestias, combatel-as, vencel-as... A senhora mesma ha de ter visto milagres. Seu marido morreu, mas a doença era fatal, e elle não tinha cuidado em si... É uma bonita carreira; mande-o para a nossa Escola. Faça isso por mim, sim? Você quer, Bentinho? --Mamãe querendo. --Quero, meu filho. Sua Majestade manda. Então o imperador dava outra vez a mão a beijar, e saía, acompanhado de todos nós, a rua cheia de gente, as janellas atopetadas, um silencio de assombro; o imperador entrava no coche, inclinava-se e fazia um gesto de adeus, dizendo ainda: «A medicina, a nossa Escola.» E o coche partia entre invejas e agradecimentos. Tudo isso vi e ouvi. Não, a imaginação de Ariosto não é mais fertil que a das creanças e dos namorados, nem a visão do impossivel precisa mais que de um recanto de omnibus. Consolei-me por instantes, digamos minutos, até destruir-se o plano e voltar-me para as caras sem sonhos dos meus companheiros. XXX O Santissimo. Terás entendido que aquella lembrança do imperador ácerca da medicina não era mais que a suggestão da minha pouca vontade de sair do Rio de Janeiro. Os sonhos do accordado são como os outros sonhos, tecem-se pelo desenho das nossas inclinações e das nossas recordações. Vá que fosse para S. Paulo, mas a Europa... Era muito longe, muito mar e muito tempo. Viva a medicina! Iria contar estas esperanças a Capitú. --Parece que vae sair o Santíssimo, disse alguem no omnibus. Ouço um sino; é, creio que é em Santo Antonio dos Pobres. Pare, Sr. recebedor! O recebedor das passagens puxou a correia que ia ter ao braço do cocheiro, o omnibus parou, e o homem desceu. José Dias deu duas voltas rapidas á cabeça, pegou-me no braço e fez-me descer comsigo. Iriamos tambem acompanhar o Santissimo. Effectivamente, o sino chamava os fieis áquelle serviço da ultima hora. Já havia algumas pessoas na sacristia. Era a primeira vez que me achava em momento tão grave; obedeci, a principio constrangido, mas logo depois satisfeito, menos pela caridade do serviço que por me dar um officio de homem. Quando o sacristão começou a distribuir as opas, entrou um sujeito esbaforido; era o meu visinho Padua, que tambem ia acompanhar o Santissimo. Deu comnosco, veiu comprimentar-nos. José Dias fez um gesto de aborrecido, e apenas lhe respondeu com uma palavra secca, olhando para o padre, que lavava as mãos. Depois, como Padua falasse ao sacristão, baixinho, approximou-se delles; eu fiz a mesma cousa. Padua solicitava do sacristão uma das varas do pallio. José Dias pediu uma para si. --Ha só uma disponível, disse o sacristão. --Pois essa, disse José Dias. --Mas eu tinha pedido primeiro, aventurou Padua. --Pediu primeiro, mas entrou tarde, retorquiu José Dias; eu já cá estava. Leve uma tocha. Padua, apesar do medo que tinha ao outro, teimava em querer a vara, tudo isto em voz baixa e surda. O sacristão achou meio de conciliar a rivalidade, tomando a si obter de um dos outros seguradores do pallio que cedesse a vara ao Padua, conhecido na parochia, como José Dias. Assim fez; mas José Dias transtornou ainda esta combinação. Não, uma vez que tinhamos outra vara disponivel, pedia-a para mim, «joven seminarista», a quem esta distincção cabia mais direitamente. Padua ficou pallido, como as tochas. Era pôr á prova o coração de um pae. O sacristão, que me conhecia de me ver alli com minha mãe, aos domingos, perguntou de curioso se eu era devéras seminarista. --Ainda não, mas vae sel-o, respondeu José Dias piscando o olho esquerdo para mim, que, apesar do aviso, fiquei zangado. --Bem, cedo ao nosso Bentinho, suspirou o pae de Capitú. Pela minha parte, quiz ceder-lhe a vara; lembrou-me que elle costumava acompanhar o Santissimo Sacramento aos moribundos, levando uma tocha, mas que a ultima vez conseguira uma vara do pallio. A distincção especial do pallio vinha de cobrir o vigario e o sacramento; para tocha qualquer pessoa servia. Foi elle mesmo que me contou e explicou isto, cheio de uma gloria pia e risonha. Assim fica entendido o alvoroço com que entrára na egreja; era a segunda vez do pallio, tanto que cuidou logo de ir pedil-o. E nada! E tornava á tocha commum, outra vez a interinidade interrompida; o administrador regressava ao antigo cargo... Quiz ceder-lhe a vara; o aggregado tolheu-me esse acto de generosidade, e pediu ao sacristão que nos puzesse, a elle e a mim, com as duas varas da frente, rompendo a marcha do pallio. Opas enfiadas, tochas distribuidas e accesas, padre e ciborio promptos, o sacristão de hyssope e campainha nos mãos, saiu o prestito á rua. Quando me vi com uma das varas, passando pelos fieis, que se ajoelhavam, fiquei commovido. Padua roía a tocha amargamente. É uma metaphora, não acho outra fórma mais viva de dizer a dôr e a humilhação do meu visinho. De resto, não pude miral-o por muito tempo, nem ao aggregado, que, parallelamente a mim, erguia a cabeça com o ar de ser elle proprio o Deus dos exercitos. Com pouco, senti-me cançado; os braços caíam-me, felizmente a casa era perto, na rua do Senado. A enferma era uma senhora viuva, tisica, tinha uma filha de quinze ou dezeseis annos, que estava chorando á porta do quarto. A moça não era formosa, talvez nem tivesse graça; os cabellos caíam despenteados, e as lagrimas faziam-lhe encarquilhar os olhos. Não obstante, o total falava e captivava o coração. O vigário confessou a doente, deu-lhe a communhão e os santos oleos. O pranto da moça redobrou tanto que senti os meus olhos molhados e fugi. Vim para porto de uma jannela. Pobre creatura! A dor era communicativa em si mesma; complicada da lembrança de minha mãe, doeu-me mais, e, quando emfim pensei em Capitú, senti um impeto de soluçar tambem, enfiei pelo corredor, e ouvi alguem dizer-me: --Não chore assim! A imagem de Capitú ia commigo, e a minha imaginação, assim como lhe attribuira lagrimas, ha pouco, assim lhe encheu a bocca de riso agora; vi-a escrever no muro, falar-me, andar á volta, com os braços no ar; ouvi distinctamente o meu nome, de uma doçura que me embriagou, e a voz era della. As tochas accesas, tão lugubres na occasião, tinham-me ares de um lustre nupcial... Que era lustre nupcial? Não sei; era alguma cousa contraria á morte, e não vejo outra mais que bodas. Esta nova sensação me dominou tanto que José Dias veiu a mim, e me disse ao ouvido, em voz baixa: --Não ria assim! Fiquei serio depressa. Era o momento da saida. Peguei da minha vara; e, como já conhecia a distancia, e agora voltavamos para a egreja, o que fazia a distancia menor,--o peso da vara era mui pequeno. Demais, o sol cá fora, a animação da rua, os rapazes da minha edade que me fitavam cheios de inveja, as devotas que chegavam ás janellas ou entravam nos corredores e se ajoelhavam á nossa passagem, tudo me enchia a alma de lepidez nova. Padua, ao contrario, ia mais humilhado. Apesar de substituido por mim, não acabava de se consolar da tocha, da miseravel tocha. E comtudo havia outros que tambem traziam tocha, e apenas mostravam a compostura do acto; não iam garridos, mas tambem não iam tristes. Via-se que caminhavam com honra. XXXI As curiosidades de Capitú. Capitú preferia tudo ao seminario. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial: --Não, Bentinho, deixemos o imperador socegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que elle disse que falaria a sua mãe? --Não marcou dia; prometteu que ia ver, que falaria logo que pudesse, e que me pegasse com Deus. Capitú quiz que lhe repetisse as respostas todas do aggregado, as alterações do gesto e até a pirueta, que apenas lhe contára. Pedia o som das palavras. Era minuciosa e attenta; a narração e o dialogo, tudo parecia remoer comsigo. Tambem se póde dizer que conferia, rotulava e pregava na memoria a minha exposição. Esta imagem é por ventura melhor que a outra, mas a optima dellas é nenhuma. Capitú era Capitú, isto é, uma creatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, ahi fica. Se disse, fica tambem. Ha conceitos que se devem incutir na alma do leitor, á força de repetição. Era tambem mais curiosa. As curiosidades de Capitú dão para um capitulo. Eram de varia especie, explicaveis e inexplicaveis, assim uteis como inuteis, umas graves, outras frivolas; gostava de saber tudo. No collegio onde, desde os sete annos, apprendera a ler, escrever e contar, francez, doutrina e obras de agulha, não apprendeu, por exemplo, a fazer renda; por isso mesmo, quiz que prima Justtina lh'o ensinasse. Se não estudou latim com o padre Cabral foi porque o padre, depois de lh'o propôr gracejando, acabou dizendo que latim não era lingua de meninas. Capitú confessou-me um dia que esta razão accendeu nella o desejo de o saber. Em compensação, quiz apprender inglez com um velho professor amigo do pae e parceiro deste ao sólo, mas não foi adeante. Tio Cosme ensinou-lhe gamão. --Anda apanhar um capotinho, Capitú, dizia-lhe elle. Capitú obedecia e jogava com facilidade, com attenção, não sei se diga com amor. Um dia fui achal-a desenhando a lapís um retraio; dava os ultimos rasgos, e pediu-me que esperasse para ver se estava parecido. Era o de meu pae, copiado da tela que minha mãe tinha na sala e que ainda agora está commigo. Perfeição não era; ao contrario, os olhos sairam esbogalhados, e os cabellos eram pequenos circulos uns sobre outros. Mas, não tendo ella rudimento algum de arte, e havendo feito aquillo de memoria em poucos minutos, achei que era obra de muito merecimento; descontai-me a edade e a sympathia. Ainda assim, estou que apprenderia facilmente pintura, como apprendeu musica mais tarde. Já então namorava o piano da nossa casa, velho traste inutil, apenas de estimação. Lia os nossos romances, folheava os nossos livros de gravuras, querendo saber das ruinas, das pessoas, das campanhas, o nome, a historia, o lograr. José Dias dava-lhe essas noticias com certo orgulho de erudito. A erudição deste não avultava muito mais que a sua homoepathia de Cantagallo. Um dia, Capitú quiz saber o que eram as figuras da sala de visitas. O aggregado disse-lho summariamente, demorando-se um pouco mais em Cesar, com exclamações e latins: --Cesar! Julio Cesar! Grande homem! _Tu quoque, Brute?_ Capitú não achava bonito o perfil de Cesar, mas as acções citadas por José Dias davam-lhe gestos de admiração. Ficou muito tempo com a cara virada para elle. Um homem que podia tudo! que fazia tudo! Um homem que dava a uma senhora uma perola do valor de seis milhões de sestercios! --E quanto valia cada sestercio? José Dias, não tendo presente o valor do sestercio, respondeu enthusiasmado: --É o maior homem da historia! A perola de Cesar accendia os olhos de Capitú. Foi nessa occasião que ella perguntou a minha mãe porque é que já não usava as joias do retrato; preferia-se ao que estava na sala, com o de meu pae; tinha um grande collar, um diadema e brincos. --São joias viuvas, como eu, Capitú. --Quando é que botou estas? --Foi pelas festas da Coroação. --Oh! conte-me as festas da Coroação! Sabia já o que os paes lhe haviam dito, mas naturalmente tinha para si que elles pouco mais conheceriam do que o que se passou nas ruas. Queria a noticia das tribunas da Capella Imperial e dos salões dos bailes. Nascera muito depois daquellas festas celebres. Ouvindo falar varias vezes da Maioridade, teimou um dia em saber o que fora este acontecimento; disseram-lh'o, e achou que o imperador fizera muito bem em querer subir ao throno aos quinze annos. Tudo era materia ás curiosidades de Capitú, mobilias antigas, alfaias velhas, costumes, noticias de Itaguahy, a infancia e a mocidade de minha mãe, um dito daqui, uma lembrança dalli, um adagio d'acolá... XXXII Olhos de ressaca. Tudo era materia ás curiosidades de Capitú. Caso houve, porém, no qual não sei se apprendeu ou ensinou, ou se fez ambas as cousas, como eu. É o que contarei no outro capitulo. N'este direi sómente que, passados alguns dias do ajuste com o aggregado, fui ver a minha amiga; eram dez horas da manhã. D. Fortunata, que estava no quintal, nem esperou que eu lhe perguntasse pela filha. --Está na sala penteando o cabello, disse-me; vá devagarzinho para lhe pregar um susto. Fui devagar, mas ou o pé ou o espelho traiu-me. Este póde ser que não fosse; era um espelhinho de pataca (perdoai a barateza), comprado a um mascate italiano, moldura tosca, argolinha de latão, pendente da parede, entre as duas janellas. Se não foi elle, foi o pé. Um ou outro, a verdade é que, apenas entrei na sala, pente, cabellos, toda ella voou pelos ares, e só lhe ouvi esta pergunta: --Ha alguma cousa? --Não ha nada, respondi; vim ver você antes que o padre Cabral chegue para a licção. Como passou a noite? --Eu bem. José Dias ainda não falou? --Parece que não. --Mas então quando fala? --Disse-me que hoje ou amanhã pretende tocar no assumpto; não vae logo de pancada, falará assim por alto e por longe, um toque. Depois, entrará em materia. Quer primeiro ver se mamãe tem a resolução feita... --Que tem, tem, interrompeu Capitú. E se não fosse preciso alguem para vencer já, e de todo, não se lhe falaria. Eu já nem sei se José Dias poderá influir tanto; acho que fará tudo, se sentir que você realmente não quer ser padre, mas poderá alcançar...? Elle é attendido; se, porém... É um inferno isto! Você teime com elle, Bentinho. --Teimo; hoje mesmo elle ha de falar. --Você jura? --Juro! Deixe ver os olhos, Capitú. Tinha-me lembrado a definição que José dera delles, «olhos de cigana obliqua e dissimulada.» Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitú deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a côr e a doçura eram minhas lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que era um pretexto para miral-os mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados nelles, e á isto attribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Rhetorica dos namorados, dá-me uma comparação exacta e poetica para dizer o que foram aquelles olhos de Capitú. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estylo, o que elles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquella feição nova. Traziam não sei que fluido mysterioso e energico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me ás outras partes visinhas, ás orelhas, aos braços, aos cabellos espalhados pelos hombros; mas tão depressa buscava as pupillas, a onda que saía dellas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastámos naquelle jogo? Só os relogios do ceu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pendulas nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos supplicios. Ha de dobrar o gozo aos bemaventurados do ceu conhecer a somma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim tambem a quantidade das delicias que terão gozado no ceu os seus desaffectos augmentará as dores aos condemnados do inferno. Este outro supplicio escapou ao divino Dante; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabellos de Capitú, mas então com as mãos, e disse-lhe,--para dizer alguma cousa,--que era capaz de os pentear, se quizesse. --Você? --Eu mesmo. --Vae embaraçar-me o cabello todo, isso, sim. --Se embaraçar, você desembaraça depois. --Vamos ver. XXXIII O penteado. Capitú deu-me as costas, voltando-se para o espelhinho. Peguei-lhe dos cabellos, colhi-os todos e entrei a alisal-os com o pente, desde a testa até ás ultimas pontas, que lhe desciam á cintura. Em pé não dava geito: não esquecestes que ella era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse. --Senta aqui, é melhor. Sentou-se. «Vamos ver o grande cabelleireiro», disse-me rindo. Continuei a alisar os cabellos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções eguaes, para compor as duas trancas. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem suppôr os cabelleireiros de officio, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aquelles fios grossos, que eram parte della. O trabalho era atrapálhado, ás vezes por desaso, outras de proposito, para desfazer o feito e refazel-o. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espaduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, emfim, os cabellos iam acabando, por mais que eu os quizesse interminaveis. Não pedi ao ceu que elles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteal-os por todos os seculos dos seculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um numero innominavel de vezes. Se isto vos parecer emphatico, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca puzestes aos mãos adolescentes na joven cabeça de uma nympha... Uma nympha! Todo eu estou mythologico. Ainda ha pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Thetis; risquei Thetis, risquemos nympha; digamos somente uma creatura amada, palavra que envolve todas as potencias christãs e pagãs. Emfim, acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas? Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando alli, até que exclamei: --Prompto! --Estará bom? --Veja no espelho. Em vez de ir ao espelho, que pensaes que fez Capitú? Não vos esqueçaes quo estava sentada, de costas para mim. Capitú derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e amparal-a; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ella, rosto a rosto, mas trocados, os olhos de um na linha da bocca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu. --Levanta, Capitú! Não quiz, não levantou a cabeça, e ficámos assim a olhar um para o outro, até que ella abrochou os labios, eu desci os meus, e... Grande foi a sensação do beijo; Capitú ergueu-se, rapida, eu recuei até á parede com uma especie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando elles me clarearam, vi que Capitú tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quizesse, faltava-me lingua. Preso, atordoado, não achava gesto nem impeto que me descolasse da parede e me atirasse a ella com mil palavras callidas e mimosas... Não mofes dos meus quinze annos, leitor precoce. Com dezesete, Des Grieux (e mais era Des Grieux) não pensava ainda na differença dos sexos. XXXIV Sou homem! Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitú compoz-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou á porta, ella abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarello. nenhuma contracção de acanhamento, um riso espontaneo e claro, que ella explicou por estas palavras alegres: --Mamãe, olhe como este senhor cabelleireiro me penteou; pediu-me para acabar o penteado, e fez isto. Veja que tranças! --Que tem? acudiu a mãe, transbordando de benevolencia. Está muito bem, ninguem dirá que é de pessoa que não sabe pentear. --O que, mamãe? Isto? redarguiu Capitú desfazendo as tranças. Ora, mamãe! E com um enfadamento gracioso e voluntario que ás vezes tinha, pegou do pente e alisou os cabellos para renovar o penteado. D. Fortunata chamou-lhe tonta, e disse-me que não fizesse caso, não era nada, maluquices da filha. Olhava com ternura para mim e para ella. Depois, parece-me que desconfiou. Vendo-me calado, enfiado, cosido á parede, achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação... Como eu quizesse falar tambem para disfarçar o meu estado, chamei algumas palavras cá de dentro, e ellas acudiram de prompto, mas de atropello, e encheram-me a bocca sem poder sair nenhuma. O beijo de Capitú fechava-me os labios. Uma exclamação, um simples artigo, por mais que investissem com força, não logravam romper de dentro. E todas as palavras recolheram-se ao coração, murmurando: «Eis aqui um que não fará grande carreira no mundo, por menos que as emoções o dominem...» Assim, apanhados pela mãe, éramos dous e contrarios, ella encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silencio. D. Fortunata tirou-me daquella hesitação, dizendo que minha mãe me mandára chamar para a licção de latim; o padre Cabral estava á minha espera. Era uma saida; despedi-me e enfiei pelo corredor. Andando, ouvi que a mãe censurava as maneiras da filha, mas a filha não dizia nada. Corri ao meu quarto, peguei dos livros, mas não passei a sala da licção; sentei-me na cama, recordando o penteado e o resto. Tinha estremeções, linha uns esquecimentos em que perdia a consciencia de mim e das cousas que me rodeavam, para viver não sei onde nem como. E tornava a mim, e via a cama, as paredes, os livros, o chão, ouvia algum som de fóra, vago, proximo ou remoto, e logo perdia tudo para sentir sómente os beiços de Capitú... Sentia-os estirados, embaixo dos meus, egualmente esticados para os della, e unindo-se uns aos outros. De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho: --Sou homem! Suppuz que me tivessem ouvido, porque a palavra saiu em voz alta, e corri á porta da alcova. Não havia ninguem fóra. Voltei para dentro, e, baixinho, repeti que era homem. Ainda agora tenho o éco aos meus ouvidos. O gosto que isto me deu foi enorme. Colombo não o teve maior, descobrindo a America, e perdoai a banalidade em favor do cabimento; com effeito, ha em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de Outubro. Fiz outros achados mais tarde; nenhum me deslumbrou tanto. A denuncia de José Dias alvoroçara-me, a licção do velho coqueiro tambem, a vista dos nossos nomes abertos por ella no muro do quintal deu-me grande abalo, como vistes; nada disso valeu a sensação do beijo. Podiam ser mentira ou illusão. Sendo verdade, eram os ossos da verdade, não eram a carne e o sangue della. As proprias mãos tocadas, apertadas, como que fundidas, não podiam dizer tudo. --Sou homem! Quando repeti isto, pela terceira vez, pensei no seminario, mas como se pensa em perigo que passou, um mal abortado, um pesadelo extincto; todos os meus nervos me disseram que homens não são padres. O sangue era da mesma opinião. Outra vez senti os beiços de Capitú. Talvez abuso um pouco das reminiscencias osculares; mas a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memorias antigas. Ora, de todas as daquelle tempo creio que a mais doce é esta, a mais nova, a mais comprehensiva, a que inteiramente me revelou a mim mesmo. Outras tenho, vastas e numerosas, doces tambem, de varia especie, muitas intellectuaes, egualmente intensas. Grande homem que fosse, a recordação era menor que esta. XXXV O protonotario apostolico. Enfim, peguei dos livros e corri á licção. Não corri precisamente; a meio caminho parei, advertindo que devia ser muito tarde, e podiam ler-me no semblante alguma cousa. Tive ideia de mentir, allegar uma vertigem que me houvesse deitado ao chão; mas o susto que causaria a minha mãe fez-me rejeital-a. Pensei em prometter algumas dezenas de padre-nossos; tinha, porém, outra promessa em aberto e outro favor pendente... Não, vamos ver; fui andando, ouvi vozes alegres, conversavam cuidadosamente. Quando entrei na sala, ninguem ralhou commigo. O padre Cabral recebera na vespera um recado do internuncio; foi ter com elle, e soube que, por decreto pontificio, acabava de ser nomeado protonotario apostolico. Esta distincção do papa dera-lhe grande contentamento e a todos os nossos. Tio Cosme e prima Justina repetiam o titulo com admiração; era a primeira vez que elle soava aos nossos ouvidos, acostumados a conegos, monsenhores, bispos, nuncios, e internuncios; mas que era protonotario apostolico? O padre Cabral explicou que não era propriamente o cargo da curia, mas as honras delle. Tio Cosme viu exalçar-se no parceiro de voltarete, e repetia: --Protonotario apostolico! E voltando-se para mim: --Prepara-te, Bentinho; tu pódes vir a ser protonotario apostolico. Cabral ouvia com gosto a repetição do titulo. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do titulo como que lhe dobrava a magnificencia, posto que, para ligal-o ao nome, era demasiado comprido; esta segunda reflexão foi tio Cosme que a fez. Padre Cabral acudiu que não era preciso dizel-o todo, bastava que lhe chamassem o protonotario Cabral. Subentendia-se apostolico. --Protonotario Cabral. --Sim, tem razão; protonotario Cabral. --Mas, Sr. protonotario,--acudiu prima Justina para se ir acostumando ao uso do titulo,--isto o obriga a ir a Roma? --Não, D. Justina. --Não, são só as honras, observou minha mãe. --Agora, não impede,--disse Cabral, que continuava a reflectir,--não impede que nos casos de maior formalidade, actos publicos, cartas de cerimonia, etc., se empregue o titulo inteiro: protonotario apostolico. No uso commum, basta protonotario. --Justamente, assentiram todos. José Dias, que entrou pouco depois de mim, applaudiu a distincção, e recordou, a proposito, os primeiros actos politicos de Pio IX, grandes esperanças da Italia; mas ninguem pegou do assumpto; o principal da hora e do logar era o meu velho mestre de latim. Eu, voltando a mim do receio, entendi que devia comprimental-o tambem, e este applauso não lhe foi menos ao coração que os outros. Bateu-me na bochecha paternalmente, e acabou dando-me férias. Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e férias! Creio que o meu rosto disse isto mesmo, porque tio Cosme, sacudindo a barriga, chamou-me peralta; mas José Dias corrigiu a alegria: --Não tem que festejar a vadiação; o latim sempre lhe ha de ser preciso, _ainda que não venha a ser padre._ Conheci aqui o meu homem. Era a primeira palavra, a semente lançada á terra, assim de passagem, como para acostumar os ouvidos da familia. Minha mãe sorriu para mim, cheia de amor e de tristeza, mas respondeu logo: --Ha de ser padre, e padre bonito. --Não esqueça, mana Gloria, e protonotario tambem. Protonotario apostolico. --O protonotario Santiago, accentuou Cabral. Se a intenção tio meu mestre de latim era ir acostumando ao uso do titulo com o nome, não sei bem; o que sei é que quando ouvi o meu nome ligado a tal titulo, deu-me vontade de dizer um desaforo. Mas a vontade aqui foi antes uma ideia, uma ideia sem lingua, que se deixou ficar quieta e muda, tal como d'ahi a pouco outras ideias... Mas essas pedem um capitulo especial. Rematemos este dizendo que o mestre de latim falou algum tempo da minha ordenação ecclesiastica, ainda que sem grande interesse. Elle buscava um assumpto alheio para se mostrar esquecido da propria gloria, mas era esta que o deslumbrava na occasião. Era um velho magro, sereno, dotado de qualidades boas. Alguns defeitos tinha; o mais excelso delles era ser guloso, não propriamente glotão; comia pouco, mas estimava o fino e o raro, e a nossa cosinha, se era simples, era menos pobre que a delle. Assim, quando minha mãe lhe disse que viesse jantar, afim de se lhe fazer uma saude, os olhos com que acceitou seriam de protonotario, mas não eram aposlolicos. E para agradar a minha mãe novamente pegou em mim, descrevendo o meu futuro ecclesiastico, e queria saber se ia para o seminario agora, no anuo proximo, e offerecia-se a falar ao «senhor bispo», tudo marchetado do «protonotario Santiago.» XXXVI Ideia sem pernas e ideia sem braços. Deixei-os, a pretexto de brincar, e fui-me outra vez a pensar na aventura da manhã. Era o que melhor podia fazer, sem latim, e até com latim. Ao cabo de cinco minutos, lembrou-me ir correndo á casa visinha, agarrar Capitú, desfazer-lhe as tranças, refazel-as e concluil-as daquella maneira particular, bocca sobre bocca. É isto, vamos, é isto... Ideia só! ideia sem pernas! As outras pernas não queriam correr nem andar. Muito depois é que sairam vagarosamente e levaram-me á casa de Capitú. Quando alli cheguei, dei com ella na sala, na mesma sala, sentada na marqueza, almofada no regaço, cosendo em paz. Não me olhou de rosto, mas a furto e a medo, ou, se preferes a phraseologia do aggregado, obliqua e dissimulada. As mãos pararam, depois de encravada a agulha no panno. Eu, do lado opposto da mesa, não sabia que fizesse; e outra vez me fugiram as palavras que trazia. Assim gastámos alguns minutos compridos, até que ella deixou inteiramente a costura, ergueu-se e esperou-me. Fui ter com ella, e perguntei se a mãe havia dito alguma cousa; respondeu-me que não. A bocca com que respondeu era tal que cuido haver-me provocado um gesto de approximação. Certo é que Capitú recuou um pouco. Era occasião de pegal-a, puxal-a e beijal-a... Ideia só ideia sem braços! Os meus ficaram caidos e mortos. Não conhecia nada da Escriptura. Se conhecesse, é provavel que o espirito de Satanaz me fizesse dar a lingua mystica do _Cantico_ um sentido directo e natural. Então obedeceria ao primeiro versiculo; «Applique elle os labios, dando-me o osculo da sua bocca.» E pelo que respeita aos braços, que tinha inertes, bastaria cumprir o vers. 6.o do cap. II: «A sua mão esquerda se pôz já debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abraçará depois.» Vedes ahi a chronologia dos gestos. Era só executal-a; mas ainda que eu conhecesse o texto, as attitudes de Capitú eram agora tão retrahidas, que não sei se não continuaria parado, foi ella entretanto, que me tirou daquella situação. XXXVII A alma é cheia de mysterios. Padre Cabral eslava esperando ha muito tempo? --Hoje não dei licção; tive férias. Expliquei-lhe o motivo das férias. Contei-lhe tambem que o padre Cabral falara da minha entrada no seminario, apoiando a resolução de minha mãe, e disse delle cousas feias e duras. Capitú reflectiu algum tempo, e acabou perguntando-me se podia ir comprimentar o padre, á tarde, em minha casa. --Póde, mas para que? Papae naturalmente ha de querer ir tambem, mas é melhor que elle vá á casa do padre; é mais bonito. Eu não, que já sou meia moça, concluiu rindo. O riso animou-me. As palavras pareciam ser uma troça comsigo mesma, uma vez que, desde manhã, era mulher, como eu era homem. Achei-lhe graça, e, para dizer tudo, quiz provar-lhe que era moça inteira. Peguei-lhe levemente na mão direita, depois na esquerda, e fiquei assim pasmado e tremulo. Era a ideia com mãos. Quiz puxar as de Capitú, para obrigal-a a vir atraz dellas, mas ainda agora a acção não respondeu á intenção. Comtudo, achei-me forte e atrevido. Não imitava ninguem; não vivia com rapazes, que me ensinassem anecdotas de amor. Não conhecia a violação de Lucrecia. Dos romanos apenas sabia que falavam pela artinha do padre Pereira e eram patricios de Poncio Pilatos. Não nego que o final do penteado da manhã era um grande passo no caminho da movimentação amorosa, mas o gesto de então foi justamente o contrario deste. De manhã, ella derreou a cabeça, agora fugia-me; nem é só nisso que os lances differiam; em outro ponto, parecendo haver repetição, houve contraste. Penso que ameacei puxal-a a mim. Não juro, começava a estar tão alvoroçado, que não pude ter toda a consciência dos meus actos; mas concluo que sim, porque ella recuou e quiz tirar as mãos das minhas; depois, talvez por não poder recuar mais, collocou um dos pés adeante e o outro atraz, e fugiu com o busto. Foi este gesto que me obrigou a reter-lhe as mãos com força. O busto afinal cançou e cedeu, mas a cabeça não quiz ceder tambem, e, caida para traz, inutilisava lodos os meus esforços, porque eu já fazia esforços, leitor amigo. Não conhecendo a licção do _Cantico_, não me acudiu estender a mão esquerda por baixo do cabeça della; demais, este gesto suppõe um accordo de vontades, e Capitú, que me resistia agora, aproveitaria o gesto para arrancar-se á outra mão e fugir-me inteiramente. Ficámos naquelle luta, sem estrepito, porque apesar do ataque e da defesa, não perdiamos a cautela necessaria para não sermos ouvidos lá de dentro; a alma é cheia de mysterios. Agora sei que a puxava; a cabeça continuou a recuar, até que cançou; mas então foi a vez da bocca. A bocca de Capitú iniciou um movimento inverso, relativamente á minha, indo para um lado, quando eu a buscava do lado opposto. Naquelle desencontro estivemos, sem que ousasse um pouco mais, e bastaria um pouco mais... Nisto ouvimos bater á porta e falar no corredor. Era o pae de Capitú, que voltava da repartição um pouco mais cedo, como usava ás vezes. «Abre, Nanata! Capitú, abre!» Apparentemente era o mesmo lance da manhã, quando a mãe deu comnosco, mas só apparentemente; em verdade, era outro. Considerai que de manhã tudo estava acabado, e o passo de D. Fortunata foi um aviso para que nos compuzessemos. Agora lutavamos com as mãos presas, e nada estava sequer começado. Ouvimos o ferrolho da porta que dava para o corredor interno; era a mãe que abria. Eu, uma vez que confesso tudo, digo aqui que não tive tempo de soltar as mãos da minha amiga; pensei nisso, cheguei a tental-o, mas Capitú, antes que o pae acabasse de entrar, fez um gesto inesperado, pousou a bocca na minha bocca, e deu de vontade o que estava a recusar á força. Repito, a alma é cheia de mysterios. XXXVIII Que susto, meu Deus! Quando Padua, vindo pelo interior, entrou na sala de visitas, Capitú, em pé, de costas para mim, inclinada sobre a costura, como a recolhel-a, perguntava em voz alta: --Mas, Bentinho, que ó protonotario apostolico? --Ora, vivam! exclamou o pae. --Que susto, meu Deus! Agora é que o lance é o mesmo; mas se conto aqui, taes quaes, os dous lances de ha quarenta annos, é para mostrar que Capitú não se dominava só em presença da mãe; o pae não lhe metteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a lingua, usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o coração não lhe batia mais mais nem menos. Allegou susto, e deu á cara um ar meio enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. Foi logo falar ao pae, que apertou a minha mão, e quiz saber porque a filha falava em protonotario apostolico. Capitú repeliu-lhe o que ouvira de mim, e opinou logo que o pae devia ir comprimentar o padre em casa delle; ella iria á minha. E colligindo os petrechos da costura, enfiou pelo corredor, bradando infantilmente: --Mamãe, jantar, papae chegou! XXXIX A vocação. Padre Cabral estava naquella primeira hora das honras em que as minimas congratulações valem por odes. Tempo chega em que os dignificados recebem os louvores como um tributo usual, cara morta, sem agradecimentos. O alvoroço da primeira hora é melhor; esse estado da alma que vê na inclinação do arbusto, tocado do vento, um parabém da flora universal, traz sensações mais intimas e finas que qualquer outro. Cabral ouviu as palavras de Capitú com infinito prazer. --Obrigado, Capitú, muito obrigado; estimo que você goste tambem. Papae está bom? E mamãe? A voce não se pergunta; essa cara é mesmo de quem vende saude. E como vamos de rezas? A todas as perguntas, Capitú ia respondendo promptamente e bem. Trazia um vestidinho melhor e os sapatos de sair. Não entrou com a familiaridade do costume, deteve-se um instante á porta da sala, antes de ir beijar a mão a minha mãe e ao padre. Como désse a este, duas vezes em cinco minutos, o titulo de protonotario, José Dias, para se desforrar da concurrencia, fez um pequeno discurso em honra «ao coração paternal e augustissimo de Pio IX.» --Você é um grande _prosa_, disse tio Cosme, quando elle acabou. José Dias sorriu sem vexame. Padre Cabral confirmou os louvores do aggregado, sem os seus superlativos; ao que este accrescentou que o cardeal Mastai evidentemente fôra talhado para a tiára desde o principio dos tempos. E, piscando-me o olho, concluiu: --A vocação é tudo. O estado ecclesiastico é perfeitissimo, comtanto que o sacerdote venha já destinado do berço. Não havendo vocação, falo de vocação sincera e real, um joven póde muito bem estudar as lettras humanas, que tambem são uteis e honradas. Padre Cabral retorquia: --A vocação é muito, mas o poder de Deus é soberano. Um homem póde não ter gosto á egreja e até perseguil-a, e um dia a voz de Deus lhe fala, e elle sae apostolo; veja S. Paulo. --Não contesto, mas o que eu digo é outra cousa. O que eu digo é que se póde muito bem servir a Deus sem ser padre, cá fóra; póde-se ou não se póde? --Póde-se. --Pois então! exclamou José Dias triumphalmente, olhando em volta de si. Sem vocação é que não ha bom padre, e em qualquer profissão liberal se serve a Deus, como todos devemos. --Perfeitamente, mas vocação não é só do berço que se traz. --Homem, é a melhor. --Um moço sem gosto nenhum á vida ecclesiastica póde acabar por ser muito bom padre; tudo é que Deus o determine. Não me quero dar por modelo, mas aqui estou eu que nasci com a vocação da medicina; meu padrinho, que era coadjutor de Santa Rita, teimou com meu pae para que me mettesse no seminario; meu pae cedeu. Pois, senhor, tomei tal gosto aos estudos e á companhia dos padres, que acabei ordenando-me. Mas, supponha que não acontecia assim, e que eu não mudava de vocação, o que é que acontecia? Tinha estudado no seminario algumas materias que é bom saber, e são sempre melhor ensinadas naquellas casas. Prima Justina interveiu: --Como? Então póde-se entrar para o seminario e não sair padre? Padre Cabral respondeu que sim, que se podia, e, voltando-se para mim, falou da minha vocação, que era manifesta; os meus brinquedos foram sempre de egreja, e eu adorava os officios divinos. A prova não provava; todas as creanças do meu tempo eram devotas. Cabral accrescentou que o reitor de S. José, a quem contara ultimamente a promessa de minha mãe, tinha o meu nascimento por milagre; elle era da mesma opinião. Capitú, cosida ás saias de minha mãe, não attendia aos olhos anciosos que eu lhe mandava; tambem não parecia escutar a conversação sobre o seminario e suas consequencias, e, aliás, decorou o principal, como vim a saber depois. Duas vezes fui á janella, esperando que ella fosse tambem, e ficassemos á vontade, sósinhos, até acabar o mundo, se acabasse, mas Capitú não me appareceu. Não deixou minha mãe, senão para ir embora. Eram ave-marias, despediu-se. --Vae com ella, Bentinho, disse minha mãe. --Não precisa, não, D. Gloria, acudiu ella rindo, eu sei o caminho. Adeus, Sr. protonotario... --Adeus, Capitú. Tendo dado um passo no sentido de atravessar a sala, é claro que o meu dever, o meu gosto, todos os impulsos da edade e da occasião eram atravessal-a de todo, seguir a visinha corredor fóra, descer á chacara, entrar no quintal, dar-lhe terceiro beijo, e despedir-me. Não me importou a recusa, que cuidei simulada, e enfiei pelo corredor; mas, Capitú que ia depressa, estacou e fez-me signal que voltasse. Não obedeci; cheguei-me a ella. --Não venha, não; amanhã falaremos. --Mas eu queria dizer a você... --Amanhã. --Escuta! --Fica! Falava baixinho; pegou-me na mão, e poz o dedo na bocca. Uma preta, que veiu de dentro accender o lampião do corredor, vendo-nos naquella attitude, quasi ás escuras, riu de sympathia e murmurou em tom que ouvissemos alguma cousa que não entendí bem nem mal. Capitú segredou-me que a escrava desconfiara, e ia talvez contar ás outras. Novamente me intimou que ficasse, e retirou-se; eu deixei-me estar parado, pregado, agarrado ao chão. XL Uma egua. Ficando só, reflecti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias. Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho Novo, reproduzindo a de Matacavallos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existencia, viva, rapida, inquieta, alguma vez timida e amiga de empacar, as mais dellas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tacito que as eguas iberas concebiam pelo vento; se não foi nelle, foi n'outro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande egua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavallo de Alexandre; mas deixemos metaphoras atrevidas e improprias dos meus quinze annos. Digamos o caso simplesmente. A fantasia daquella hora foi confessar a minha mãe os meus amores para lhe dizer que não tinha vocação ecclesiastica. A conversa sobre vocação tornava-me agora toda inteira, e, ao passo que me assustava, abria-me uma porta de saida. «Sim, é isto, pensei; vou dizer a mamãe que não tenho vocação e confesso o nosso namoro; se ella duvidar, conto-lhe o que se passou outro dia, o penteado e o resto... » XLI A audiencia secreta. O resto fez-me ficar mais algum tempo, no corredor, pensando. Vi entrar o doutor João da Costa, e preparou-se logo o voltarete do costume. Minha mãe saiu da sala, e, dando commigo, perguntou se acompanhara Capitú. --Não, senhora, ella foi só. E quasi investindo para ella: --Mamãe, eu queria dizer-lhe uma cousa. --Que é? Toda assustada, quiz saber o que é que me doia, se a cabeça, se o peito, se o estomago, e apalpava-me a testa para ver se tinha febre. --Não tenho nada, não, senhora. --Mas então que é? --É uma cousa, mamãe... Mas, escute, olhe, é melhor depois do chá; logo... Não é nada mau; mamãe assusta-se por tudo; não é cousa de cuidado. --Não é molestia? --Não, senhora. --É, isso é volta de constipação. Disfarças para não tomar suadouro, mas tu estás constipado; conhece-se pela voz. Tentei rir, para mostrar que não tinha nada. Nem por isso permittiu adiar a confidencia, pegou em mim, levou-me ao quarto della, accendeu vela, e ordenou-me que lhe dissesse tudo. Então eu perguntei-lhe, para principiar, quando é que ia para o seminario. --Agora só para o anno, depois das férias. --Vou... para ficar? --Como ficar? --Não volto para casa? --Voltas aos sabbados e pelas férias; é melhor. Quando te ordenares padre, vens morar commigo. Enxuguei os olhos e o nariz. Ella afagou-me, depois quiz reprehender-me, mas creio que a voz lhe tremia, e pareceu-me que tinha os olhos humidos. Disse-lhe que tambem sentia a nossa separação. Negou que fosse separação; era só alguma ausencia, por causa dos estudos; só os primeiros dias. Em pouco tempo eu me acostumaria aos companheiros e aos mestres, e acabaria gostando de viver com elles. --Eu só gosto de mamãe. Não houve calculo nesta palavra, mas estimei dizel-a, por fazer crer que ella era a minha unica affeição; desviava as suspeitas de cima de Capitú. Quantas intenções viciosas ha assim que embarcam, a meio caminho, n'uma phrase innocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntaria como a transpiração. Por outro lado, leitor amigo, nota que eu queria desviar as suspeitas de cima de Capitú, quando havia chamado minha mãe justamente para confirmal-as; mas as contradicções são deste mundo. A verdade é que minha mãe era candida como a primeira aurora, anterior ao primeiro peccado; nem por simples intuição era capaz de deduzir uma cousa de outra, isto é, não concluiria da minha repentina opposição que eu andasse em segredinhos com Capitú, como lhe dissera José Dias. Calou-se durante alguns instantes; depois replicou-me sem imposição nem autoridade, o que me veiu animando á resistencia. Dahi o falar-lhe na vocação que se discutira naquella tarde, e que eu confessei não sentir em mim. --Mas tu gostavas tanto de ser padre, disse ella; não te lembras que até pedias para ir ver sair os seminaristas de S. José, com as suas batinas? Em casa, quando José Dias te chamava Reverendissimo, tu rias com tanto gosto! Como é que agora...? Não creio, não, Bentinho. E depois... Vocação? Mas a vocação vem com o costume, continuou repetindo as reflexões que ouvira ao meu professor de latim. Como eu buscasse contestal-a, reprehendeu-me sem aspereza, mas com alguma força, e eu tornei ao filho submisso que era. Depois, ainda falou gravemente e longamente sobre a promessa que fizera; não me disse as circumstancias, nem a occasião, nem os motivos della, cousas que só vim a saber mais tarde. Affirmou o principal, isto é, que a havia do cumprir, em pagamento a Deus. --Nosso Senhor me acudiu, salvando a tua existencia, não lhe hei de mentir nem faltar, Bentinho; são cousas que não se fazem sem peccado, e Deus que é grande e poderoso, não me deixaria assim, não, Bentinho; eu sei que seria castigada e bem castigada. Ser padre é bom e santo; você conhece muitos, como o padre Cabral, que vive tao feliz com a irmã; um tio meu tambem foi padre, e escapou de ser bispo, dizem... Deixa de manha, Bentinho. Creio que os olhos que lhe deitei foram tão queixosos, que ella emendou logo a palavra; manha, não, não podia ser manha, sabia muito bem que eu era amigo della, e não seria capaz de fingir um sentimento que não tivesse. Molleza é o que queria dizer, que me deixasse de molleza, que me fizesse homem e obedecesse ao que cumpria, em beneficio della e para bem da minha alma. Todas essas cousas e outras foram ditas um pouco atropelladamente, e a voz não lhe saia clara, mas velada e esganada. Vi que a emoção della era outra vez grande, mas não recuava dos seus propositos, e aventurei-me a perguntar-lhe: --E se mamãe pedisse a Deus que a dispensasse da promessa? --Não, não peço. Estás tonto, Bentinho? E como havia de saber que Deus me dispensava? --Talvez em sonho; eu sonho as vezes com anjos e santos. --Tambem eu, num filho; mas é inútil... Vamos, é tarde; vamos para a sala. Está entendido: no primeiro ou no segundo mez do anno que vem, irás para o seminario. O que eu quero é que saibas bem os livros que estás estudando; é bonito, não só para ti, como para o padre Cabral. No seminario ha interesse em conhecer-te, porque o padre Cabral fala de ti com enthusiasmo. Caminhou para a porta, saimos ambos. Antes de sair, voltou-se para mim, e quasi a vi saltar-me ao collo e dizer-me que não seria padre. Este era já o seu desejo intimo, á proporção que se approximava o tempo. Quizera um modo de pagar a divida contrahida, outra moeda, que valesse tanto ou mais, e não achava nenhuma. XLII Capitú reflectindo. No dia seguinte fui á casa visinha, logo que pude. Capitú despedia-se de tres amigas que tinham ido visital-a, Paula e Sandia, companheiras de collegio, aquella de quinze, esta de desessete annos, a primeira filha de um medico, a segunda de um commerciante de objectos americanos. Estava abatida, trazia um lenço atado na cabeça; a mãe contou-me que fora excesso de leitura na vespera, antes e depois do chá, na sala e na cama, até muito depois da meia noite, e com lamparina... --Se eu accendesse vela, mamãe zangava-se. Já estou boa. E como desatasse o lenço, a mãe disse-lhe timidamente que era melhor atal-o, mas Capitú respondeu que não era preciso, estava boa. Ficámos sós na sala; Capitú continuou a narração da mãe, accrescentando que passara mal por causa do que ouvira em minha casa. Tambem eu lhe contei o que se déra commigo, a entrevista com minha mãe, as minhas supplicas, as lagrimas della, e por fim as ultimas respostas decisivas: dentro de dous ou tres mezes iria para o seminario. Que fariamos agora? Capitú ouvia-me com attenção sofrega, depois sombria; quando acabei, respirava a custo, como prestes a estalar de colera, mas conteve-se. Ha tanto tempo que isto succedeu que não posso dizer com segurança se chorou devéras, ou se sómente enxugou os olhos; cuido que os enxugou sómente. Vendo-lhe o gesto, peguei-lhe na mão para animal-a, mas tambem eu precisava ser animado. Caimos no canapé, e ficámos a olhar para o ar. Minto; ella olhava para o chão. Fiz o mesmo, logo que a vi assim... Mas eu creio que Capitú olhava para dentro de si mesma, emquanto que eu fitava devéras o chão, o roido das fendas, duas moscas andando e um pé de cadeira lascado. Era pouco, mas distraía-me da afflicção. Quando tornei a olhar para Capitú, vi que não se mexia, e fiquei com tal medo que a sacudi brandamente. Capitú tornou cá para fora e pediu-me que outra vez lhe contasse o que se passára com minha mãe. Satisfil-a, attenuando o texto desta vez, para não amofinal-a. Não me chames dissimulado, chama-me compassivo; é certo que receiava perder Capitú, se lhe morressem as esperanças todas, mas doia-me vel-a padecer. Agora, a verdade ultima, a verdade das verdades, é que já me arrependia de haver falado a minha mãe, antes de qualquer trabalho effectivo por parte de José Dias; examinando bem, não quizera ter ouvido um desengano que eu reputava certo, ainda que demorado. Capitú reflectia, reflectia, reflectia... XLIII Você tem medo? De repente, cessando a reflexão, fitou em mim os olhos de ressaca, e perguntou-me se tinha medo. --Medo? --Sim, pergunto se você tem medo. --Medo de que? --Medo de apanhar, de ser preso, de brigar, do andar, de trabalhar... Não entendi. Se ella me tem dito simplesmente: «Vamos embora!» póde ser que eu obedecesse ou não; em todo caso, entenderia. Mas aquella pergunta assim, vaga e solta, não pude atinar o que era. --Mas... não entendo. De apanhar? --Sim. --Apanhar de quem? Quem é que me dá pancada? Capitú fez um gesto de impaciencia. Os olhos de ressaca não se mexiam e pareciam crescer. Sem saber de mim, e, não querendo interrogal-a novamente, entrei a cogitar d'onde me viriam pancadas, e porque, e tambem porque é que seria preso, e quem é que me havia de prender. Valha-me Deus! vi de imaginação o aljube, uma casa escura e infecta. Tambem vi a presiganga, o quartel dos Barbonos e a Casa de Correcção. Todas essas bellas instituições sociaes me envolviam no seu mysterio, sem que os olhos de ressaca de Capitú deixassem de crescer para mim, a tal ponto que as fizeram esquecer de todo. O erro de Capitú foi não deixal-os crescer infinitamente, antes diminuir até ás dimensões normaes, e dar-lhes o movimento do costume. Capitú tornou ao que era, disse-me que estava brincando, não precisava affligir-me, e, com um gesto cheio de graça, bateu-me na casa sorrindo, e disse: --Medroso! --Eu? Mas... --Não é nada, Bentinho. Pois quem é que ha de dar pancada ou prender você? Desculpe que eu hoje estou meia maluca; quero brincar, e... --Não, Capitú; você não está brincando; nesta occasião, nenhum de nós tom vontade de brincar. --Tem razão, foi só maluquice; até logo. --Como até logo? --Está-me voltando a dôr do cabeça; vou botar uma rodella de limão nas fontes. Fez o que disse, e atou o lenço outra vez na testa. Em seguida, acompanhou-me ao quintal para se despedir de mim; mas, ainda ahi nos detivemos por alguns minutos, sentados sobre a borda do poço. Ventava, o ceu estava coberto. Capitú falou novamente da nossa separação, como de um facto certo e definitivo, por mais que eu, receioso disso mesmo, buscasse agora razões para animal-a. Capitú, quando não falava, riscava no chão, com um pedaço cie taquara, narizes e perfis. Desde que se mettera a desenhar, era uma das suas diversões; tudo lhe servia de papel e lapis. Como me lembrassem os nossos nomes abertos por ella no muro, quiz fazer o mesmo no chão, e pedi-lhe a taquara. Não me ouviu ou não me attendeu. XLIV O primeiro filho. --Dê cá, deixe escrever uma cousa. Capitú olhou para mim, mas de um modo que me fez lembrar a definição de José Dias, obliquo e dissimulado; levantou o olhar, sem levantar os olhos. A voz, um tanto sumida, perguntou-me: --Diga-me uma cousa, mas fale verdade, não quero disfarce; ha de responder com o coração na mão. --Que é? Diga. --Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia? --Eu? Fez-me signal que sim. --Eu escolhia... mas para que escolher? Mamãe não é capaz de me perguntar isso. --Pois, sim, mas eu pergunto. Supponha você que está no seminario e recebe a noticia de que eu vou morrer... --Não diga isso! --... Ou que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quizer que você venha, diga-me, você vem? --Venho. --Contra a ordem de sua mãe? --Contra a ordem de mamãe. --Você deixa seminario, deixa sua mãe, deixa tudo, para me ver morrer? --Não fale em morrer, Capitú! Capitú teve um risinho descorado e incredulo, e com a taquara escreveu uma palavra no chão; inclinei-me e li: _mentiroso._ Era tão extranho tudo aquillo, que não achei resposta. Não atinava com a razão do escripto, como não atinava com a do falado. Se me acudisse alli uma injuria grande ou pequena, é possivel que a escrevesse tambem, com a mesma taquara, mas não me lembrava nada. Tinha a cabeça vazia. Ao mesmo tempo tomei-me de receio de que alguem nos pudesse ouvir ou ler. Quem, se eramos sós? D. Fortunata chegara uma vez á porta da casa, mas entrou logo depois. A solidão era completa. Lembra-me que umas andorinhas passaram por cima do quintal e foram para os lados do morro de Santa Theresa; ninguem mais. Ao longe, vozes vagas e confusas, na rua um tropel de bestas, do lado da casa o chilrear dos passarinhos do Padua. Nada mais, ou sómente este phenomeno curioso, que o nome escripto por ella, não só me espiava do chão com gesto escarninho, mas até me pareceu que repercutia no ar. Tive então uma ideia ruim; disse-lhe que, afinal de contas, a vida de padre não era má, e eu podia acceital-a sem grande pena. Como desforço, era pueril; mas eu sentia a secreta esperança de vel-a atirar-se a mim lavada em lagrimas. Capitú limitou-se a arregalar muito os olhos, e acabou por dizer: --Padre é bom, não ha duvida; melhor que padre só conego, por causa das meias roxas. O roxo é côr muito bonita. Pensando bem, é melhor conego. --Mas não se póde ser conego sem ser primeiramente padre, disse-lhe eu mordendo os beiços. --Bem; comece pelas meias pretas, depois virão as roxas. O que eu não quero perder é a sua missa nova; avise-me a tempo para fazer um vestido á moda, saia balão e babados grandes... Mas talvez nesse tempo a moda seja outra. A egreja ha de ser grande, Carmo ou S. Francisco. --Ou Candelaria. --Candelaria tambem. Qualquer sorve, comtanto que eu ouça a missa nova. Hei de fazer um figurão. Muita gente ha de perguntar: «Quem é aquella moça faceira que alli está com um vestido tão bonito?»--«Aquella é D. Capitolina, uma moça que morou na rua de Matacavallos...» --Que morou? Você vae mudar-se? --Quem sabe onde é que ha do morar amanhã? disse ella com um tom leve de melancolia; mas tornando logo ao sarcasmo: E você no altar, mettido na alva, com a capa de ouro por cima, cantando... _Pater noster..._ Ah! como eu sinto não ser um poeta romantico para dizer que isto era um duello de ironias! Contaria os meus botes e os della, a graça de um e a promptidão de outro, e o sangue correndo, e o furor na alma, até ao meu golpe final que foi este: --Pois, sim, Capitú, você ouvirá a minha missa nova, mas com uma condição. Ao que ella respondeu: --Vossa Reverendíssima póde falar. --Promette uma cousa? --Que é? --Diga se promette. --Não sabendo o que é, não prometto. --A falar verdade são duas cousas, continuei eu, por haver-me acudido outra ideia. --Duas? Diga quaes são. --A primeira é que só se ha de confessar commigo, para eu lhe dar a penitencia e a absolvição. A segunda é que... --A primeira está promettida, disse ella vendo-me hesitar, e accrescentou que esperava a segunda. Palavra que me custou, e antes não me chegasse a sair da boca; não ouviria o que ouvi, o não escreveria aqui uma cousa que vae talvez achar incredulos. --A segunda... sim... é que... Promette-me que seja eu o padre que case você? Que me case? disso ella um tanto commovida. Logo depois fez descair os labios, e abanou a cabeça. --Não, Bentinho, disse, seria esperar muito tempo; você não vae ser padre já amanhã, leva muitos annos... Olhe, prometto outra cousa; prometto que ha de baptisar o meu primeiro filho. XLV Abane a cabeça, leitor. Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fóra este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possivel. Mas, se o não fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma pagina, sem crer por isso na veracidade do autor. Todavia, não ha nada mais exacto. Foi assim mesmo que Capitú falou, com taes palavras e maneiras. Falou do primeiro filho, como se fosse a primeira boneca. Quanto ao meu espanto, se tambem foi grande, veiu de mistura com uma sensação exquisita. Percorreu-me um fluido. Aquella ameaça de um primeiro filho, o primeiro filho de Capitú, o casamento della com outro, portanto, a separação absoluta, a perda, a anniquilação, tudo isso produzia um tal effeito, que não achei palavra nem gesto; fiquei estupido. Capitú sorria; eu via o primeiro filho brincando no chão... XLVI As pazes. As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha gloria, e diria que as negociações partiram de mim; mas não, foi ella que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ella abaixou tambem a cabeça, mas voltando os olhos para cima afim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quiz levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitú fitou-me uns olhos tao ternos, e a posição os fazia tão supplices, que me deixei ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ella pegou-me na ponta dos dedos, e... Outra vez D. Fortunata appareceu á porta da casa; não sei para quê, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desappareceu logo. Podia ser um simples descargo de consciencia, uma cerimonia, como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos proprios olhos a realidade que o coração lhe dizia... Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificámos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pediamos reciprocamente perdão. Capitú allegava a insomnia, a dôr de cabeça, o abatimento do espirito, e finalmente «os seus calundús.» Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia os olhos molhados... Era amor puro, era effeito dos padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação. XLVII «A senhora saiu.» --Está bom, acabou, disso eu finalmente; mas, explique-me só uma cousa, porque é que você me perguntou se eu tinha medo de apanhar? --Não foi por nada, respondeu Capitú, depois de alguma hesitação... Para que bolir nisso? --Diga sempre. Foi por causa do seminario? --Foi; ouvi dizer que lá dão pancada... Não? Eu tambem não creio. A explicação agradou-me; não tinha outra. Se, como penso, Capitú não disse a verdade, força é reconhecer que não podia dizel-a, e a mentira é dessas creadas que se dão pressa em responder ás visitas que «a senhora saiu», quando a senhora não quer falar a ninguem. Ha nessa cumplicidade um gosto particular; o peccado em commum eguala por instantes a condição das pessoas, não contando o prazer que dá a cara das visitas enganadas, e as costas com que ellas descem... A verdade não saiu, ficou em casa, no coração de Capitú, cochilando o seu arrependimento. E eu não desci triste nem zangado; achei a creada galante, appetecivel, melhor que a ama. As andorinhas vinham agora em sentido contrario, ou não seriam as mesmas. Nós é que eramos os mesmos; alli ficámos sommando as nossas illusões, os nossos temores, começando já a sommar as nossas saudades. XLVIII Juramento do poço. --Não! exclamei de repente. --Não quê? Tinha havido alguns minutos de silencio, durante os quaes reflecti muito e acabei por uma ideia; o tom da exclamação, porém, foi tão alto que espantou a minha visinha. --Não ha de ser assim, continuei. Dizem que não estamos em edade de casar, que somos creanças, creançolas,--já ouvi dizer creançolas. Bem; mas dous ou tres annos passam depressa. Você jura uma cousa? Jura que só ha de casar commigo? Capitú não hesitou em jurar, e até lhe vi as faces vermelhas de prazer. Jurou duas vezes e uma terceira: --Ainda que você case com outra, cumprirei o meu juramento, não casando nunca. --Que eu case com outra? --Tudo póde ser, Bentinho. Você póde achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ella e casar. Quem sou eu para você lembrar-se de mim nessa occasião? --Mas eu tambem juro! Juro, Capitú, juro por Deus Nosso Senhor que só me casarei com você. Basta isto? --Devia bastar, disse ella; eu não me atrevo a pedir mais. Sim, você jura... Mas juremos por outro modo; juremos que nos havemos de casar um com outro, haja o que houver. Comprehendeis a differença; era mais que a eleição do conjuge, era a affirmação do matrimonio. A cabeça da minha amiga sabia pensar claro e depressa. Realmente, a formula anterior era limitada, apenas exclusiva. Podiamos acabar solteirões, como o sol e a lua, sem mentir ao juramento do poço. Esta formula era melhor, e tinha a vantagem de me fortalecer o coração contra a investidura ecclesiastica. Jurámos pela segunda formula, e ficámos tão felizes que todo receio de perigo desappareceu. Eramos religiosos, tínhamos o ceu por testemunha. Eu nem já temia o seminario. **--Se teimarem muito, irei; mas faço de conta que é um collegio qualquer; não tomo ordens. Capitú temia a nossa separação, mas acabou acceitando este alvitre, que era o melhor. Não affligiamos minha mãe, e o tempo correria até o ponto em que o casamento pudesse fazer-se. Ao contrario, qualquer resistencia ao seminario confirmaria a denuncia de José Dias. Esta reflexão não foi minha, mas della. XLIX Uma vela aos sabbados. Eis aqui como, após tantas canceiras, tocavamos o porto a que nos deviamos ter abrigado logo. Não nos censures, piloto de má sorte, não se navegam corações como os outros mares deste mundo. Estavamos contentes, entramos a falar do futuro. Eu promettia a minha esposa uma vida socegada e bella, na roça ou fóra da cidade. Viriamos aqui uma vez por anno. Se fosse em arrabalde, seria longe, onde ninguem nos fosse aborrecer. A casa, na minha opinião, não devia ser grande nem pequena, um meio termo; plantei-lhe flôres, escolhi moveis, uma sege e um oratorio. Sim, haviamos de ter um oratorio bonito, alto, de jacarandá, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. Demorei-me mais nisto que no resto, em parte porque eramos religiosos, em parte para compensar a batina que eu ia deitar as ortigas: mas ainda restava uma parte que attribuo ao intuito secreto e inconsciente de captara protecção do ceu. Haviamos de accender uma vela aos sabbabos... L Um meio termo. Mezes depois fui para o seminario de S. José. Se eu pudesse contar as lagrimas que chorei na vespera e na manhã, sommaria mais que todas as vertidas desde Adão e Eva. Ha nisto alguma exageração; mas é bom ser emphatico, uma ou outra vez, para compensar este escrupulo de exactidão que me afflige. Entretanto, se eu me ativer só á lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze annos, tudo é infinito. Realmente, por mais preparado que estivesse, padeci muito. Minha mãe tambem padeceu, mas soffria com alma e coração; demais, o padre Cabral achára um meio termo, experimentar-me a vocação; se no fim de dous annos, eu não revelasse vocação ecclesiastica, seguiria outra carreira. --As promessas devem ser cumpridas conforme Deus quer. Supponha que Nosso Senhor nega disposição a seu filho, e que o costume do seminario não lhe dá o gosto que me concedeu a mim, é que a vontade divina é outra. A senhora não podia pôr em seu filho, antes de nascido, uma vocação que Nosso Senhor lhe recusou... Era uma concessão do padre. Dava a minha mãe um perdão antecipado, fazendo vir do credor a relevação da divida. Os olhos della brilharam, mas a bocca disse que não. José Dias, não tendo alcançado ir commigo para a Europa, agarrou-se ao mais proximo, e apoiou o «alvitre do Sr. protonotario»; só lhe parecia que um anno era bastante. --Estou certo, disse elle, piscando-me o olho, que dentro de um anno a vocação ecclesiastica do nosso Bentinho se manifesta clara e decisiva. Ha de dar um padre de mão cheia. Tambem se não vier em um anno... E a mim, mais tarde, em particular: --Vá por um anno; um anno passa depressa. Se não sentir gosto nenhum, é que Deus não quer, como diz o padre, e nesse caso, meu amiguinho, o melhor remedio é a Europa. Capitú deu-me egual conselho, quando minha mãe lhe annunciou a minha ida definitiva para o seminario: --Minha filha, você vae perder o seu companheiro de creança... Fez-lhe tão bem este tratamento de _filha_ (era a primeira vez que minha mãe lh'o dava), que nem teve tempo de ficar triste; beijou-lhe a mão, e disse-lhe que já sabia disso por mim mesmo. Em particular animou-me a supportar tudo com paciencia; no fim de um anno as cousas estariam mudadas, e um anno andava depressa. Não foi ainda a nossa despedida; esta fez-se na vespera, por um modo que pede capitulo especial. O que unicamente digo aqui é que, ao passo que nos prendiamos um ao outro, ella ia prendendo minha mãe, fez-se mais assidua e terna, vivia ao pé della, com os olhos nella. Minha mãe era de natural sympathico, e egualmente sensivel; tanto se doía como se aprazia de qualquer cousa. Entrou a achar em Capitú uma porção de graças novas, de dotes finos e raros; deu-lhe um anel dos seus e algumas galanterias. Não consentiu em photographar-se, como a pequena lhe pedia, para lhe dar um retrato; mas tinha uma miniatura, feita aos vinte e cinco annos, e, depois de algumas hesitações, resolveu dar-lh'a. Os olhos de Capitú, quando recebeu o mimo, não se descrevem; não eram obliquos, nem de ressaca, eram direitos, claros, lucidos. Beijou o retrato com paixão, minha mãe fez-lhe a mesma cousa a ella. Tudo isto me lembra a nossa despedida. LI Entre luz e fusco. Entre luz e fusco, tudo ha de ser breve como esse instante. Nem durou muito a nossa despedida, foi o mais que pôde, em casa della, na sala de visitas, antes do accender das velas; ahi é que nos despedimos de uma vez. Jurámos novamente que haviamos de casar um com outro, e não foi só o aperto de mão que sellou o contracto, como no quintal, foi a conjuncção das nossas boccas amorosas... Talvez risque isto na impressão, se até lá não pensar de outra maneira; se pensar, fica. E desde já fica, porque, em verdade, é a nossa defesa. O que o mandamento divino quer é que não juremos _em vão_ pelo santo nome de Deus. Eu não ia mentir ao seminario, uma vez que levava um contracto feito no proprio cartorio do ceu. Quanto ao sello, Deus, como fez os mãos limpas, assim fez os labios limpos, e a malicia está antes na tua cabeça perversa que na daquelle casal de adolescentes... Oh! minha doce companheira da meninice, eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de S. José, a buscar de apparencia a investidura sacerdotal, e antes della a vocação. Mas a vocação eras tu, a investidura eras tu. LII O velho Padua. Ja agora conto tambem os adeuses do velho Padua. Logo cedo veiu á nossa casa. Minha mãe disse-lhe que fosse falar-me ao quarto. --Dá licença? perguntou mettendo a cabeça pela porta. Fui apertar-lhe a mão; elle abraçou-me com ternura. --Seja feliz! disse-me. A mim e a toda a minha gente creia que ficam muitas saudades. Todos nós estimamos muito o senhor, como merece. Se lhe disserem outra cousa, não acredite. São intrigas. Tambem eu, quando me casei, fui victima de intrigas; desfizeram-se. Deus é grande e descobre a verdade. Se algum dia perder sua mãe e seu tio,--cousa que eu, por esta luz que me allumia, não desejo, porque são boas pessoas, excedentes pessoas, e eu sou grato ás finezas recebidas... Não, eu não sou como outros, certos parasitas, vindos de fóra para desunião das familias, aduladores baixos, não; eu sou de outra especie; não vivo papando os jantares nem morando em casa alheia... Emfim, são os mais felizes! --Porque falará assim? pensei. Naturalmente sabe que José Dias diz mal delle. --Mas, como ia dizendo, se algum dia perder os seus parentes, póde contar com a nossa companhia. Não é sufficiente em importancia, mas a affeição é immensa, creia. Padre que seja, a nossa casa está ás suas ordens. Quero só que me não esqueça; não esqueça o velho Padua... Suspirou e continuou: --Não esqueça o seu velho Padua, e, se tem algum trapinho que me deixe em lembrança, um caderno latino, qualquer cousa, um botão de collete, cousa que já lhe não preste para nada. O valer é a lembrança. Tive um sobresalto. Havia embrulhado em um papel um cacho dos meus cabellos, tão grandes e tão bonitos, cortados na vespera. A intenção era leval-os a Capitú, ao sair; mas tive ideia de dal-o ao pae, a filha saberia lomal-o e guardal-o. Peguei do embrulho e dei-lh'o. --Aqui está, guarde. --Um cachinho dos seus cabellos! exclamou Padua abrindo e fechando o embrulho. Oh! obrigado! obrigado por mim e pela minha gente! Vou dai-o á velha, para guardal-o, ou á pequena, que é mais cuidadosa que a mãe. Que lindos que são! Como é que se corta uma belleza destas? Dê cá um abraço! outro! mais outro! adeus! Tinha os olhos humidos devéras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito numero,--um numero tão bonito! LIII A caminho! Fui para o seminario. Poupa-me as outras despedidas. Minha mãe apertava-me ao peito. Prima Justina suspirava. Talvez chorasse mal ou nada. Ha pessoas a quem as lagrimas não acodem logo nem nunca; diz-se que padecem mais que as outras. Prima Justina disfarçava naturalmente os seus padecimentos intimos, emendando os descuidos de minha mãe, fazendo-me recommendações, dando ordens. Tio Cosme, quando eu lhe beijei a mão em despedida, disse-me rindo: --Anda lá, rapaz, volta-me papa! José Dias, composto e grave, não dizia nada a principio; tinhamos falado na vespera, no quarto delle, onde fui ver se era ainda possivel evitar o seminario. Já não era, mas deu-me esperanças e principalmente animou-me muito. Antes de um anno estariamos a bordo. Como eu achasse muito breve, explicou-se. --Dizem que não é bom tempo de atravessar o Atlantico, vou indagar; se não fôr, iremos em Março ou Abril. --Posso estudar medicina aqui mesmo. José Dias correu os dedos pelos suspensorios com um gesto de impaciencia, apertou os beiços, até que formalmente rejeitou o alvitre. --Não duvidaria approvar a ideia, disse elle, se na Escola de Medicina não ensinassem, exclusivamente, a podridão allopatha. A allopathia é o erro dos seculos, e vae morrer; é o assassinato, é a mentira, é a illusão. Se lhe disserem que póde apprender na Escola de Medicina aquella parte da sciencia commum a todos os systemas, é verdade; a allopathia é erro na therapeutica. Physiologia, anatomia, pathologia, não são allopathicas nem homeopathicas, mas é melhor apprender logo tudo de uma vez, por livros e por lingua de homens cultores da verdade... Assim falára na vespera e no quarto. Agora não dizia nada, ou proferia algum aphorismo sobre a religião e a familia; lembro-me deste: «Dividil-o com Deus é ainda possuil-o.» Quando minha mãe me deu o ultimo beijo: «Quadro amantissimo!» suspirou elle. Era manhã de um lindo dia. Os moleques cochichavam; as escravas tomavam a benção: «Benção, nhõ Bentinho! não se esqueça de sua Joanna! Sua Miquelina fica rezando por vosmecê!» Na rua José Dias insistiu nas esperanças: --Aguente um anno; até lá tudo estará arranjado. LIV Panegyrico de Santa Monica. No seminario... Ah! não vou contar o seminario, nem me bastaria a isso um capitulo. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possivel que componha um abreviado do que alli vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. Esta sarna de escrever, quando pega aos cincoenta annos, não despega mais. Na mocidade é possivel curar-se um homem della; e, sem ir mais longe, aqui mesmo no seminario tive um companheiro que compoz versos, a maneira dos de Junqueira Freire, cujo livro de frade poeta era recente. Ordenou-se: annos depois encontrei-o no còro de S. Pedro e pedi-lhe que me mostrasse os versos novos. --Que versos? perguntou meio espantado. --Os seus. Pois não se lembra que no seminario... --Ah! sorriu elle. Sorriu, e continuando a procurar n'um livro aberto a hora em que tinha do cantar no dia seguinte, confessou-me que não fizera mais versos depois de ordenado. Foram cocegas da mocidade; coçou-se, passou, estava bom. E falou-me em prosa de uma infinidade de cousas do dia, a vida cara, um sermão do padre X... uma vigairaria mineira... Contrario a isso foi um seminarista que não seguiu a carreira. Chamava-se... Não é preciso dizer o nome; baste o caso. Tinha composto um _Panegyrico de Santa Monica_, elogiado por algumas pessoas e então lido entre os seminaristas. Alcançou licença de imprimil-o, o dedicou-o a Santo Agostinho. Tudo isso é historia velha; o que é mais moço é que um dia, em 1882, indo ver certo negocio em repartição de marinha, alli dei com este meu collega, feito chefe de uma secção administrativa. Deixára seminario, deixára lettras, casára e esquecera tudo, menos o _Panegyrico de Santa Monica_, umas vinte e nove paginas, que veiu distribuindo pela vida fóra. Como eu precisasse de algumas informações, fui pedir-lh'as, e seria impossivel achar melhor nem mais prompta vontade; deu-me tudo, claro, certo, copioso. Naturalmente conversamos do passado, memorias pessoaes, casos de estudo, incidentes de nada, um livro, um verbo, um mote, toda a velha palhada saiu cá fóra, e rimos juntos, e suspiramos de companhia. Vivemos algum tempo do nosso velho seminario. Ou porque eram delle, ou porque eramos então moços, as recordações traziam tal poder de felicidade que, se alguma sombra contraria houve então, não appareceu agora. Elle confessou-me que perdera de vista todos os companheiros do seminario. --Tambem eu, quasi todos; uma vez ordenados, voltaram naturalmente ás suas provincias, e os daqui tomaram vigairarias fóra. --Bom tempo! suspirou elle. E, após alguma reflexão, fitando em mim uns olhos murchos e teimosos, perguntou-me: --Conservou o meu _Panegyrico?_ Não achei que dizer; tentei mover os beiços, mas não tinha palavra; afinal, perguntei: --Panegyrico? Que panegyrico? --O meu _Panegyrico de Santa Monica._ Não me lembrou logo, mas a explicação devia bastar; e depois de alguns instantes de pesquiza mental, respondi que por muito tempo o conservára, mas as mudanças, as viagens... --Hei de levar-lhe um exemplar. Antes de vinte e quatro horas estava em minha casa, com o folheto, um velho folheto de vinte e seis annos, encardido, manchado do tempo, mas sem lacuna, e com uma dedicatoria manuscripta e respeitosa. --E o penultimo exemplar, disse-me; agora só me resta um, que não posso dar a ninguem. E como me visse folhear o opusculo: --Veja se lhe lembra algum pedaço, disse-me. Vinte e seis annos de intervallo fazem morrer amizades mais estreitas e assiduas, mas era cortezia, era quasi caridade recordar alguma lauda; li uma dellas, accentuando certas phrases para lhe dar a impressão de que achavam echo em minha memoria. Concordou que fossem bellas, mas preferia outras, e apontou-as. --Recorda-se bem? --Perfeitamente. _Panegyrico de Santa Monica!_ Como isto me faz remontar os annos da minha mocidade! Nunca me esqueceu o seminario, creia. Os annos passam, os acontecimentos vêm uns sobre outros, e as sensações tambem, e vieram amizades novas, que tambem se foram depois, como é lei da vida... Pois, meu caro collega, nada fez apagar aquelle tempo da nossa convivencia, os padres, as licções, os recreios... os nossos recreios, lembra-se? o padre Lopes, oh! o padre Lopes... Elle, com os olhos no ar, devia estar ouvindo, e naturalmente ouvia, mas só me disse uma palavra, e ainda assim depois de algum tempo de silencio, recolhendo os olhos e um suspiro! --Tem agradado muito este meu _Panegyrico!_ LV Um soneto. Dita a palavra, apertou-me as mãos com as forças todas de um vasto agradecimento, despediu-se e saiu. Fiquei só com o _Panegyrico_, e o que as folhas delle me lembraram foi tal que merece um capitulo ou mais. Antes, porém, e porque tambem eu tive o meu _Panegyrico_, contarei a historia de um soneto que nunca fiz; era no tempo do seminario, e o primeiro verso é o que ides ler: Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! Como e porque me saiu este verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida de verso, pensei em compor com elle alguma cousa, um soneto. A insonmia, musa de olhos arregalados, não me deixou dormir uma longa hora ou duas; as cocegas pediam-me unhas, e eu coçava-me com alma. Não escolhi logo, logo o soneto; a principio cuidei de outra fórma, e tanto de rima como de verso solto, mas afinal ative-me ao soneto. Era um poema breve e prestadio. Quanto á ideia, o primeiro verso não era ainda uma ideia, era uma exclamação; a ideia viria depois. Assim na cama, envolvido no lençol, tratei de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir com aquelle monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas tristezas, como elle dissera as suas no claustro. Decorei bem o verso, e repetia-o em voz baixa, aos lençóes; francamente, achava-o bonito, e ainda agora não me parece máu: Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! Quem era a flòr? Capitú, naturalmente; mas podia ser a virtude, a poesia, a religião, qualquer outro conceito a que coubesse a metaphora da flòr, e flòr do ceu. Aguardei o resto, recitando sempre o verso, e deitado ora sobre o lado direito, ora sobre o esquerdo; atinai deixei-me estar de costas, com os olhos no tecto, mas nem assim vinha mais nada. Então adverti que os sonetos mais gabados eram os que concluiam com chave de ouro, isto é, um desses versos capitaes no sentido e na fórma. Pensei em forjar uma de taes chaves, considerando que o verso final, saindo chronologicamente dos treze anteriores, com difficuldade traria a perfeição louvada; imaginei que taes chaves eram fundidas antes da fechadura. Assim foi que me determinei a compôr o ultimo verso do soneto, e, depois de muito suar, saiu este: Perde-se a vida, ganha-se a batalha! Sem vaidade, e falando como se fosse de outro, era um verso magnifico. Sonoro, não ha duvida. E tinha um pensamento, a victoria ganha á custa da propria vida, pensamento alevantado e nobre. Que não fosse novidade, é possivel, mas tambem não era vulgar; e ainda agora não explico por que via mysteriosa entrou n'uma cabeça de tão poucos annos. Naquella occasião achei-o sublime. Recitei uma e muitas vezes a chave de ouro; depois repeti os dous versos seguidamente, e dispuz-me a ligal-os pelos doze centraes. A ideia agora, á vista do ultimo verso, pareceu-me melhor não ser Capitú; seria a justiça. Era mais proprio dizer que, na pugna pela justiça, perder-se-hia acaso a vida, mas a batalha ficava ganha. Tambem me occorreu acceitar a batalha, no sentido natural, e fazer della a lula pela patria, por exemplo; nesse caso a flor do ceu seria a liberdade. Esta accepção, porém, sendo o poeta um seminarista, podia não caber tanto como a primeira, e gastei alguns minutos em escolher uma ou outra. Achei melhor a justiça, mas afinal acceitei definitivamente uma ideia nova, a caridade, e recitei os dous versos, cada um a sou modo, um languidamente: Oh! flòr do ceu! oh! flòr candida e pura! e o outro com grande brio: Perde-se a vida, ganha-se a batalha! A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito. Começar bem e acabar bem não era pouco. Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos celebres, e notei que os mais delles eram facilimos; os versos saíam uns dos outros, com a ideia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ella é que os fizera, se elles é que a suscitavam. Então tornava ao meu soneto, e novamente repetia o primeiro verso e esperava o segundo; o segundo não vinha, nem terceiro, nem quarto; não vinha nenhum. Tive alguns impetos de raiva, e mais de uma vez pensei em sair da cama e ir ver tinta e papel; póde ser que, escrevendo, os versos acudissem, mas... Cançado de esperar, lembrou-me alterar o sentido do ultimo verso, com a simples transposição do duas palavras, assim: Ganha-se a vida, perde-se a batalha! O sentido vinha a ser justamente o contrario, mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma ironia: não exercendo a caridade, póde-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha do ceu. Criei forças novas o esperei. Não tinha janella; se tivesse, é possivel que fosse pedir uma ideia á noite. E quem sabe se os vagalumes, luzindo cá em baixo, não seriam para mim como rimas das estrellas, e esta viva metaphora não me daria os versos esquivos, com os seus consoantes e sentidos proprios? Trabalhei em vão, busquei, catei, esperei, não vieram os versos. Pelo tempo adeante escrevi algumas paginas em prosa, e agora estou compondo esta narração, não achando maior difficuldade que escrever, bem ou mal. Pois, senhores, nada me consola daquelle soneto que não fiz. Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metaphysica, dou esses dous versos ao primeiro desoccupado que os quizer. Ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer occasião de lazer, póde tentar ver se o soneto sae. Tudo é dar-lhe uma ideia e encher o centro que falta. LVI Um seminarista. Tudo me ia repetindo o diabo do opusculo, com as suas lettras velhas e citações latinas. Vi sair daquellas folhas muitos perfis de seminaristas, os irmãos Albuquerques, por exemplo, um dos quaes é conego na Bahia, emquanto o outro seguiu medicina e dizem haver descoberto um especifico contra a febre amarella. Vi o Bastos, um magricella, que está de vigario em Meia-Ponte, se não morreu já; Luiz Borges, apesar de padre, fez-se politico, e acabou senador do imperio... Quantas outras caras me fitavam das paginas frias do _Panegyrico!_ Não, não eram frias; traziam o calor da juventude nascente, o calor do passado, o meu proprio calor. Queria lel-as outra vez, e lograva entender algum texto, tão recente como no primeiro dia, ainda que mais breve. Era um encanto ir por elle; ás vezes, inconscientemente, dobrava a folha como se estivesse lendo de verdade; creio que era quando os olhos me caíam na palavra do fim da pagina, e a mão, acostumada a ajudal-os, faziam o seu officio... Eis aqui outro seminarista. Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com elle podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar dellas, porque os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tel-os entre os seus, já não tinha nada. O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá. Esta difficuldade em pousar foi o maior obstaculo que achou para tomar os costumes do seminario. O sorriso era instantaneo, mas tambem ria folgado e largo. Uma cousa não seria tão fugitiva, como o resto, a reflexão; iamos dar com elle, muita vez, olhos enfiados em si, cogitando. Respondia-nus sempre que meditava algum ponto espiritual, ou então que recordava a licção da vespera. Quando elle entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miudas, e tinha memoria para guardal-as todas, até as palavras. Talvez esta faculdade prejudicasse alguma outra. Era mais velho que eu trez annos, filho de um advogado de Corityba, aparentado com um commerciante do Rio de Janeiro, que servia de correspondente ao pae. Este era homem de fortes sentimentos catholicos. Escobar tinha uma irmã, que era um anjo, dizia elle. --Não é só na belleza que é um anjo, mas tambem na bondade. Não imagina que boa creatura que ella é. Escreve-me muita vez, hei de mostrar-lhe as cartas della. De facto, eram simples e affectuosas, cheias de caricias e conselhos. Escobar contava-me historias della, interessantes, todas as quaes vinham a dar na bondade e no espirito daquella creatura; taes eram que me fariam capaz de acabar casando com ella, se não fosse Capitú. Morreu pouco depois. Eu, seduzido pelas palavras delle, estive quasi a contar-lhe logo, logo, a minha historia. A principio fui timido, mas elle fez-se entrado na minha confiança. Aquelles modos fugitivos cessavam quando elle queria, e o meio e o tempo os fizeram mais pousados. Escobar veiu abrindo a alma toda, desde a porta da rua até ao fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, e uma casa assim disposta, não raro com janellas para todos os lados, muita luz e ar puro. Tambem as ha fechadas e escuras, sem janellas, ou com poucas e gradeadas, á semelhança de conventos o prisões. Outrosim, capellas e bazares, simples alpendres ou paços sumptuosos. Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurral-as, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que... LVII De preparação. Ah! mas não eram só os seminaristas que me iam saindo daquellas folhas velhas do _Panegyrico._ Ellas me trouxeram tambem sensações passadas, taes e tantas que eu não poderia dizel-as todas, sem tirar espaço ao resto. Uma dessas, e das primeiras, quizera contal'a aqui eu latim. Não é que a materia não ache termos honestos em nossa lingua, que é casta para os castos, como póde ser torpe para os torpes. Sim, leitora castissima, como diria o meu finado José Dias, podeis ler o capitulo até ao fim, sem susto nem vexame. Já agora metto a historia em outro capitulo. Por mais composto que este me saia, ha sempre no assumpto alguma cousa menos austera, que pede umas linhas de repouso e preparação. Sirva este de preparação. E isto é muito, leitor meu amigo; o coração, quando examina a possibilidade do que ha de vir. as proporções dos acontecimentos e a copia delles, fica robusto e disposto, e o mal é menor mal. Tambem, se não fica então, não fica nunca. E aqui verás tal ou qual esperteza minha; porquanto, ao ler o que vás ler, é provavel que o aches menos cru do que esperavas. LVIII O tratado. Foi o caso que, uma segunda-feira, voltando eu para o seminario, vi cair na rua uma senhora. O meu primeiro gesto, em tal caso, devia ser de pena ou de riso; não foi uma nem outra cousa, porquanto (e é isto que eu quizera dizer em latim) porquanto, a senhora tinha as meias mui lavadas, e não as sujou, levava ligas de seda, e não as perdeu. Varias pessoas acudiram, mas não tiveram tempo de a levantar; ella ergueu-se muito vexada, sacudiu-se, agradeceu, e enfiou pela rua proxima. --Este gosto de imitar as francezas da rua do Ouvidor, dizia-me José Dias andando e commentando a queda, é evidentemente um erro. As nossas moças devem andar como sempre andaram, com sou vagar e paciencia, e não este tique-tique afrancezado... Eu mal podia ouvil-o. As meias e as ligas da senhora branqueavam e enroscavam-se deante de mim, e andavam, caíam, erguiam-se e iam-se embora. Quando chegámos á esquina, olhei para a outra rua, e vi, a distancia, a nossa desastrada, que ia no mesmo passo, tique-tique, tique-tique... --Parece que não se machucou, disse eu. --Tanto melhor para ella, mas é impossivel que não tenha arranhado os joelhos; aquella presteza é manha... Creio que foi «manha» que elle disse; eu fiquei «nos joelhos arranhados». Dalli em deante, até o seminario, não vi mulher na rua, a quem não desejasse uma quéda; a algumas adivinhei que trazia as meias esticadas e as ligas, justas... Tal haveria que nem levasse meias... Mas eu as via com ellas... Ou então... Tambem é possivel... Vou esgarçando isto com reticencias, para dar uma ideia das minhas ideias, que eram assim diffusas e confusas; com certeza não dou nada. A cabeça ia-me quente, e o andar não era seguro. No seminario, a primeira hora foi insupportavel. As batinas traziam ar de saias, e lembravam-me a quéda da senhora. Já não era uma só que eu via cair; todas as que eu encontrara na rua, mostravam-me agora de relance as ligas azues; eram azues. De noite, sonhei com ellas. Uma multidão de abominaveis creaturas veiu andar á roda de mim, tique-tique... Eram bellas, umas finas, outras grossas, todas ageis como o diabo. Accordei, busquei afugental-as com esconjuros e outros methodos, mas tão depressa dormi como tornaram, e, com as mãos presas em volta de mim, faziam um vasto circulo de saias, ou, trepadas no ar, choviam pés e pernas sobre a minha cabeça. Assim fui até madrugada. Não dormi mais; rezei padre-nossos, ave-marias, e credos, e sendo este livro a verdade pura, é força confessar que tive de interromper mais de uma vez as minhas orações para acompanhar no escuro uma figura ao longe, tique-tique, tique-tique... Pegava depressa na oração, sempre no meio para concertal-a bem, como se não tivesse havido interrupção, mas certamente não unia a phrase nova á antiga. Vindo o mal pela manha adeante, tentei vencel-o, mas por um modo que o não perdesse de todo. Sabios da escriptura, adivinhai o que podia ser. Foi isto. Não podendo rejeitar de mim aquelles quadros, recorri a um tratado entre a minha consciencia e a minha imaginação. As visões feminis seriam de ora avante consideradas como simples encarnações dos vicios, e por isso mesmo contemplaveis, como o melhor modo de temperar o caracter e aguerril-o para os combates asperos da vida. Não formulei isto por palavras, nem fui preciso; o contracto fez-se tacitamente, com alguma repugnancia, mas fez-se. E por alguns dias, era eu mesmo que evocava as visões para fortalecer-me, e não as rejeitava, senão quando ellas mesmas, de cançadas, se iam embora. LIX Convivas de boa memoria. Ha dessas reminiscências que não descançam antes que a penna ou a lingua as publique. Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memoria. A vida é cheia de taes convivas, e eu sou acaso um delles, comquanto a prova de ter a memoria fraca seja exactamente não me acudir agora o nome de tal antigo; mas era um antigo, e basta. Não, não, a minha memoria não é boa. Ao contrario, é comparavel a alguem que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar dellas nem caras nem nomes, e sómente raras circumstancias. A quem passe a vida na mesma casa de familia, com os seus eternos moveis e costumes, pessoas e affeições, é que se lhe grava tudo pela continuidade e repetição. Como eu invejo os que não esqueceram a còr das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei hontem. Juro só que não eram amarellas porque execro essa côr; mas isso mesmo póde ser olvido e confusão. E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se póde metter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me afflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as cousas que não achei nelle. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as egrejas que não vi nas folhas lidas, todos me apparecem agora com as suas aguas, as suas arvores, os seus altares, e os generaes sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista. É que tudo se acha fóra de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim pódes tambem preencher as minhas. LX Querido opusculo! Assim fiz eu ao _Panegyrico de Santa Monica_, e fiz mais: puz-lhe não só o que faltava da santa, mas ainda cousas que não eram della. Viste o soneto, as meias, as ligas, o seminarista Escobar e vários outros. Vás agora ver o mais que naquelle dia me foi saindo das paginas amarellas do opusculo. Querido opusculo, tu não prestavas para nada, mas que mais presta um velho par de chinellas? Entretanto, ha muita vez no casal de chinellas um como aroma e calor de dous pés. Gastas e rotas, não deixam de lembrar que uma pessoa as calçava de manhã, ao erguer da cama, ou as descalçava á noite, ao entrar nella. E se a comparação não vale, porque as chinellas são ainda uma parte da pessoa e tiveram o contacto dos pés, aqui estão outras lembranças, como a pedra da rua, a porta da casa, um assobio particular, um prégão de quitanda, como aquelle das cocadas que contei no cap. XVIII. Justamente, quando contei o prégão das cocadas, fiquei tão curtido de saudades que me lembrou fazel-o escrever por um amigo, mestre de musica, e grudal-o ás pernas do capitulo. Se depois jarretei o capitulo, foi porque outro musico, a quem o mostrei, me confessou ingenuamente não achar no trecho escripto nada que lhe accordasse saudades. Para que não aconteça o mesmo aos outros profissionaes que por ventura me lerem, melhor é poupar ao editor do livro o trabalho e a despeza da gravura. Vès que não puz nada, nem ponho. Já agora creio que não basta que os pregões de rua, como os opusculos de seminario, encerrem casos, pessoas e sensações; é preciso que a gente os tenha conhecido e padecido no tempo, sem o que tudo é calado e incolor. Mas, vamos ao mais que me foi saindo das paginas amarellas. LXI A vacca de Homero. O mais foi muito. Vi sairem os primeiros dias da separação, duros e opacos, sem embargo das palavras de conforto que me deram os padres e os seminaristas, e as de minha mãe e tio Cosme, trazidas por José Dias ao seminario. --Todos estão saudosos, disse-me este, mas a maior saudade está naturalmente no maior dos corações; e qual é elle? perguntou escrevendo a resposta nos olhos. --Mamãe, acudi eu. José Dias apertou-me as mãos com alvoroço, e logo pintou a tristeza de minha mãe, que falava de mim todos os dias, quasi a todas as horas. Como a approvasse sempre, e accrescentasse alguma palavra relativamente aos dotes que Deus me dera, o desvanecimento de minha mãe nessas occasiões era indescriptivel; e contava-me tudo isso cheio de uma admiração lacrimosa. Tio Cosme tambem se enternecia muito. --Hontem até se deu um caso interessante. Tendo eu dito á Excellentissima que Deus lhe dera, não um filho, mas um anjo do ceu, o doutor ficou tão commovido que não achou outro modo de vencer o choro senão fazendo-me um daquelles elogios de galhofa que só elle sabe. Não é preciso dizer que D. Gloria enxugou furtivamente uma lagrima. Ou ella não fosse mãe! Que coração amantissimo! --Mas, Sr. José Dias, e a minha saida daqui? --Isso é negocio meu. A viagem á Europa é o que é preciso, mas póde fazer-se daqui a um ou dous annos, em 1859 ou 1860... --Tão tarde! --Era melhor que fosse este mesmo anno, mas demos tempo ao tempo. Tenha paciencia, vá estudando, não se perde nada em ir sabendo já daqui alguma cousa; e, demais, ainda não acabando padre, a vida do seminario é util, e vale sempre entrar no mundo ungido com os santos oleos da theologia... Neste ponto,--lembra-me como se fosse hoje,--os olhos de José Dias fulguraram tão intensamente que me encheram de espanto. As palpebras cairam depois, e assim ficaram por alguns instantes, até que novamente se ergueram, e os olhos fixaram-se na parede do palco, como que embebidos em alguma cousa, se não era em si mesmos; depois despegaram-se da parede e entraram a vagar pelo pateo todo. Podia comparal-o aqui á vacca de Homero; andava e gemia em volta da cria que acabava de parir. Não lhe perguntei o que é que tinha, já por acanhamento, já porque dous lentes, um delles de theologia, vinham caminhando na nossa direcção. Ao passarem por nós, o aggregado, que os conhecia, cortejou-os com as deferencias devidas, e pediu-lhes noticias minhas. --Por ora nada se póde affiançar, disse um delles. mas parece que dará conta da mão. --É o que eu lhe dizia agora mesmo, acudiu José Dias. Conto ouvir-lhe a missa nova; mas ainda que não chegue a ordenar-se, não póde ter melhores estudos que os que fizer aqui. Para a viagem da existencia, concluiu demorando mais as palavras, irá ungido com os santos oleos da theologia... Desta vez a fulguração dos olhos foi menor, as palpebras não lhe cairam nem as pupillas fizeram os movimentos anteriores. Ao contrario, todo elle era attenção e interrogação; quando muito, um sorriso claro e amigo lhe errava nos labios. O lente de theologia gostou da metaphora, e disse-lh'o; elle agradeceu, explicando que eram ideias que lhe escapavam no correr da conversação; não escrevia nem orava. Eu é que não gostei nada; e logo que os lentes se foram, sacudi a cabeça: --Não quero saber dos santos oleos da theologia; desejo sair daqui o mais cedo que puder, ou já... --Já, meu anjo, não póde ser; mas póde succeder que muito antes do que imaginamos. Quem sabe se este mesmo anno de 58? Tenho um plano feito, e penso já nas palavras com que hei de expôl-o a D. Gloria; estou certo que ella cederá e irá comnosco. --Duvido que mamãe embarque. --Veremos. Mãe é capaz de tudo; mas, com ella ou sem ella, tenho por certa a nossa ida, e não haverá esforço que eu não empregue, deixe estar. Paciencia é que é preciso. E não faça aqui nada que dê logar a censuras ou queixas; muita docilidade e toda a apparente satisfação. Não ouviu o elogio do lente? E que você tem-se portado bem. Pois continue. --Mas, 1859 ou 1860 é muito tarde. --Será este anno, replicou José Dias. --Daqui a tres mezes? --Ou seis. --Não; tres mezes. --Pois sim. Tenho agora um plano, que me parece melhor que outro qualquer. É combinar a ausencia de vocação ecclesiastica e a necessidade de mudar de ares. Você porque não tosse? --Por que não tusso? --Já, já, não, mas eu hei de avisar você para tossir, quando fôr preciso, aos poucos, uma tossesinha secca, e algum fastio; eu irei preparando a Excellentissima... Oh! tudo isto é em beneficio della. Uma vez que o filho não póde servir a egreja, como deve ser servida, o melhor modo de cumprir a vontade de Deus é dedical-o a outra cousa. O mundo tambem é egreja para os bons... Pareceu-me outra vez a vacca de Homero, como se este «mundo tambem é egreja para os bons», fosse outro bezerro, irmão dos «santos oleos da theologia.» Mas não dei tempo á ternura materna, e repliquei: --Ah! entendo! mostrar que estou doente para embarcar, não é? José Dias hesitou um pouco, depois explicou-se: --Mostrar a verdade, porque, francamente, Bentinho, eu ha mezes que desconfio do seu peito. Você não anda bom do peito. Em pequeno, teve umas febres e uma ronqueira... Passou tudo, mas ha dias em que está mais descorado. Não digo que já seja o mal, mas o mal póde vir depressa. N'uma hora cae a casa. Por isso, se aquella santa senhora não quizer ir comnosco,--ou para que vá mais depressa, acho que uma boa tosse... Se a tosse ha de vir de verdade, melhor é apressal-a... Deixe estar, eu aviso... --Bem, mas em saindo daqui não ha de ser para embarcar logo; saio primeiro, depois cuidaremos do embarque; o embarque é que póde ficar para o anno. Não dizem que o melhor tempo é abril ou maio? Pois seja maio. Primeiro deixo o seminario, daqui a dous mezes... E porque a palavra me estivesse a pigarrear na garganta, dei uma volta rapida, e perguntei-lhe á queima-roupa: --Capitú como vae? LXII Uma ponta de Iago. A pergunta era imprudente, na occasião em que eu cuidava de transferir o embarque. Equivalia a confessar que o motivo principal ou unico da minha repulsa ao seminario era Capitú, e lazer crer improvavel a viagem. Comprehendi isto depois que falei; quiz emendar-me, mas nem soube como, nem elle me deu tempo. --Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquillo emquanto não pegar algum peralta da visinhança, que case com ella... Estou que empallideci; pelo menos, senti correr um frio pelo corpo todo. A noticia de que ella vivia alegre, quando eu chorava todas as noites, produziu-me aquelle effeito, acompanhado de um bater de coração, tão violento, que ainda agora cuido ouvil-o. Ha alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiencia aqui não é das orelhas, senão da memoria, chegaremos á exacta verdade. A minha memoria ouve ainda agora as pancadas do coração naquelle instante. Não esqueças que era a emoção do primeiro amor. Estive quasi a perguntar a José Dias que me explicasse a alegria de Capitú, o que é que ella fazia, se vivia rindo, cantando ou pulando, mas retive-me a tempo, e depois outra ideia... Outra ideia, não,--um sentimento cruel e desconhecido, o puro ciume, leitor das minhas entranhas. Tal foi o que me mordeu, ao repetir commigo as palavras de José Dias: « Algum peralta da visinhança.» Em verdade, nunca pensara em tal desastre. Vivia tão nella, della e para ella, que a intervenção de um peralta era como uma noção sem realidade; nunca me acudiu que havia peraltas na visinhança, vária idade e feitio, grandes passeadores das tardes. Agora lembrava-me que alguns olhavam para Capitú,--e tão senhor me sentia della que era como se olhassem para mim, um simples dever de admiração e de inveja. Separados um do outro pelo espaço e pelo destino, o mal apparecia-me agora, não só possivel, mas certo. E a alegria de Capitú confirmava a suspeita; se ella vivia alegre é que já namorava a outro, acompanhal-o-hia com os olhos na rua, falar-lhe-hia á janella, ás ave-marias, trocariam flores e... E... que? Sabes o que é que trocariam mais; se o não achas por ti mesmo, escusado é ler o resto do capitulo e do livro, não acharás mais nada, ainda que eu o diga com todas as lettras da etymologia. Mas se o achaste, comprehenderás que eu, depois de estremecer, tivesse um impeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar a casa do Padua, agarrar Capitú e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da visinhança. Não fiz nada. Os mesmos sonhos que ora conto não tiveram, naquelles tres ou quatro minutos, esta logica de movimentos e pensamentos. Eram soltos, emendados e mal emendados, com o desenho truncado e torto, uma confusão, um turbilhão, que me cegava e ensurdecia. Quando tornei a mim, José Dias concluía uma phrase, cujo principio não ouvi, e o mesmo fim era vago: «A conta que dará de si.» Que conta e quem? Cuidei naturalmente que falava ainda de Capitú, e quiz perguntar-lh'o, mas a vontade morreu ao nascer, como tantas outras gerações dellas. Limitei-me a inquirir do aggregado quando é que iria a casa ver minha mãe. --Estou com saudades de mamãe. Posso ir já esta semana? --Vae sabbado. --Sabbado? Ah! sim! sim! Peça a mamãe que me mande buscar sabbado! Sabbado! Este sabbado, não? Que me mande buscar, sem falta. LXIII Metades de um sonho. Fiquei ancioso pelo sabbado. Até lá os sonhos perseguiam-me, ainda accordado, e não os digo aqui para não alongar esta parte do livro. Um só ponho, e no menor numero de palavras, ou antes porei dous, porque um nasceu de outro, a não ser que ambos formem duas metades de um só. Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é do vosso sexo, que perturbava assim a adolescencia de um pobre seminarista. Não fosse elle, e este livro seria talvez uma simples pratica parochial, se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou uma encyclica, se papa, como me recommendára tio Cosme: «Anda lá, meu rapaz, volta-me papa!» Ah! porque não cumpri esse desejo? Depois de Napoleão, tenente e imperador, todos os destinos estão neste seculo. Quanto ao sonho foi isto. Como estivesse a espiar os peraltas da visinhança, vi um destes que conversava com a minha amiga ao pé da janella. Corri ao logar, elle fugiu; avancei para Capitú, mas não estava só, tinha o pae ao pé de si, enxugando os olhos e mirando um triste bilhete de loteria. Não me parecendo isto claro, ia pedir a explicação, quando elle de si mesmo a deu; o peralta fôra levar-lhe a lista dos premios da loteria, e o bilhete saira branco. Tinha o numero 4004. Disse-me que esta symetria de algarismos era mysteriosa e bella, e provavelmente a roda andára mal; era impossivel que não devesse ter a sorte grande. Emquanto elle falava, Capitú dava-me com os olhos todas as sortes grandes e pequenas. A maior destas devia ser dada com a bocca. E aqui entra a segunda parte do sonho. Padua desappareceu, como as suas esperanças do bilhete. Capitú inclinou-se para fóra, eu relancei do olhos pela rua, estava deserta. Peguei-lhe nas mãos, resmunguei não sei que palavras, e accordei sósinho no dormitorio. O interesse do que acabas de ler não está na materia do sonho, mas nos esforços que fiz para ver se dormia novamente e pegava nelle outra vez. Nunca dos nuncas poderás saber a energia e obstinação que empreguei em fechar os olhos, apertal-os bem, esquecer tudo para dormir, mas não dormia. Esse mesmo trabalho fez-me perder o somno até á madrugada. Sobre a madrugada, consegui concilial-o, mas então nem peraltas, nem bilhetes de loteria, nem sortes grandes ou pequenas,--nada dos nadas veiu ter commigo. Não sonhei mais aquella noite, e dei mal as licções daquelle dia. LXIV Uma ideia e um escrupulo. Relendo o capitulo passado, acóde-me uma ideia e um escrupulo. O escrupulo é justamente de escrever a ideia, não a havendo mais banal na terra, posto que daquella banalidade do sol e da lua, que o ceu nos dá todos os dias e todos os mezes. Deixei o manuscripto, e olhei para as paredes. Sabes que esta casa do Engenho Novo, nas dimensões, disposições e pinturas, é reproducção da minha antiga casa de Matacavallos. Outrosim, como te disse no capitulo II, o meu fim em imitar a outra foi ligar as duas pontas da vida, o que aliás não alcancei. Pois o mesmo succedeu áquelle sonho do seminario, por mais que tentasse dormir e dormisse. Donde concluo que um dos officios do homem é fechar e apertar muito os olhos, a ver se continua pela noite velha o sonho truncado da noite moça. Tal é a ideia banal e nova que eu não quizera pôr aqui, e só provisoriamente a escrevo. Antes de concluir este capitulo, fui á janella indagar da noite por que razão os sonhos hão de ser assim tão tenues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais. A noite não me respondeu logo. Estava deliciosamente bella, os morros pallejavam de luar e o espaço morria de silencio. Como eu insistisse, declarou-me que os sonhos já não pertencem á sua jurisdicção. Quando elles moravam na ilha que Luciano lhes deu, onde ella tinha o seu palacio, e donde os fazia sair com as suas caras de varia feição, dar-me-hia explicações possiveis. Mas os tempos mudaram tudo. Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cerebro da pessoa. Estes, ainda que quizessem imitar os outros, não poderiam fazel-o; a ilha dos sonhos, como a dos amores, como todas as ilhas de todos os mares, são agora objecto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados-Unidos. Era uma allusão ás Fillipinas. Pois que não amo a politica, e ainda menos a politica internacional, fechei a janella e vim acabar este capitulo para ir dormir. Não peço agora os sonhos de Luciano, nem outros, filhos da memoria ou da digestão; basta-me um somno quieto e apagado. De manhã, com a fresca, irei dizendo o mais da minha historia e suas pessoas. LXV A dissimulação. Chegou o sabbado, chegaram outros sabbados, e eu acabei affeiçoando-me á vida nova. Ia alternando a casa e o seminario. Os padres gostavam de mim, os rapazes tambem, e Escobar mais que os rapazes e os padres. No fim de cinco semanas estive quasi a contar a este as minhas penas e esperanças; Capitú refreou-me. --Escobar é muito meu amigo, Capitú! --Mas não é meu amigo. --Póde vir a ser; elle já me disse que ha de vir cá para conhecer mamãe. --Não importa; você não tem direito de contar um segredo que não é só seu, mas tambem meu, e eu não lhe dou licença de dizer nada a pessoa nenhuma. Era justo, calei-me e obedeci. Outra cousa em que obedeci ás suas reflexões foi, logo no primeiro sabbado, quando eu fui á casa della, e, após alguns minutos de conversa, me aconselhou a ir embora. --Hoje não fique aqui mais tempo; vá para casa, que eu lá vou logo. É natural que D. Gloria queira estar com você muito tempo, ou todo, se puder. Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez que eu bem podia deixar de citar um terceiro exemplo, mas os exemplos não se fizeram senão para ser citados, e este é tão bom que a omissão seria um crime. Foi á minha terceira ou quarta vinda á casa. Minha mãe depois que lhe respondi ás mil perguntas que me fez sobre o tratamento que me davam, os estudos, as relações, a disciplina, e se me doia alguma cousa, e se dormia bem, tudo o que a ternura das mães inventa para cançar a paciencia de um filho, concluiu voltando-se para José Dias: --Sr. José Dias, ainda duvida que saia daqui um bom padre? --Excellentissima... --E você, Capitú, interrompeu minha mãe voltando-se para a filha do Padua que estava na sala, com ella,--você não acha que o nosso Bentinho dará um bom padre? --Acho que sim, senhora, respondeu Capitú cheia de convicção. Não gostei da convicção. Assim lh'o disse, na manhã seguinte, na quintal della, recordando as palavras da vespera, e lançando-lho em rosto, pela primeira vez, a alegria que ella mostrára desde a minha entrada no seminario, quando eu vivia curtido de saudades. Capitú fez-se muito séria, e perguntou-me como é que queria que se portasse, uma vez que suspeitavam de nós; tambem tivera noites desconsoladas, e os dias, em casa della, foram tão tristes como os meus; podia indagal-o do pae e da mãe. A mãe chegou a dizer-lhe, por palavras encobertas, que não pensasse mais em mim. --Com D. Gloria e D. Justina mostro-me naturalmente alegre, para que não pareça que a denuncia de José Dias é verdadeira. Se parecesse, ellas tratariam de separar-nos mais, e talvez acabassem não me recebendo... Para mim, basta o nosso juramento de que nos havemos de casar um com outro. Era isto mesmo; deviamos dissimular para matar qualquer suspeita, e ao mesmo tempo gosar toda a liberdade anterior, e construir tranquillos o nosso futuro. Mas o exemplo completa-se com o que ouvi no dia seguinte, ao almoço; minha mãe, dizendo tio Cosme que ainda queria ver com que mão havia en de abençoar o povo á missa, contou que, dias antes, estando a falar de moças que se casam cedo, Capitú lhe dissera: «Pois a mim quem me ha de casar ha de ser o padre Bentinho; eu espero que elle se ordene!» Tio Cosmo riu da graça, José Dias não dessorriu, só prima Justina é que franziu a testa, e olhou para mim interrogativamente. Eu, que havia olhado para todos, não pude resistir ao gesto da prima, e tratei de comer. Mas comi mal; estava tão contente com aquella grande dissimulação de Capitú que não vi mais nada, e, logo que almocei, corri a referir-lhe a conversa e a louvar-lhe a astucia. Capitú sorriu de agradecida. --Você tem razão, Capitú, concluí eu; vamos enganar toda esta gente. --Não é? disse ella com ingenuidade. LXVI Intimidade. Capitú ia agora entrando na alma de minha mãe. Viviam o mais do tempo juntas, falando de mim, a proposito do sol e da chuva, ou de nada; Capitú ia lá coser, ás manhãs; alguma vez ficava para jantar. Prima Justina não acompanhava a parenta naquellas finezas, mas não tratava de todo mal a minha amiga. Era assaz sincera para dizer o mal que sentia de alguem, e não sentia bem de pessoa alguma. Talvez do marido, mas o marido era morto; em todo caso, não existira homem capaz de competir com elle na affeição, no trabalho e na honestidade, nas maneiras e na agudeza de espirito. Esta opinião, segundo tio Cosme, era posthuma, pois em vida andavam ás brigas, e os ultimos seis mezes acabaram separados. Tanto melhor para a justiça della; o louvor dos mortos é um modo de orar por elles. Tambem gostaria de minha mãe, ou se algum mal pensou della foi entre si e o travesseiro. Comprehende-se que, de apparencia, lhe désse a estima devida. Não penso que ella aspirasse a algum legado; as pessoas assim dispostas excedem os serviços naturaes, fazem-se mais risonhas, mais assiduas, multiplicam os cuidados, precedem os famulos. Tudo isso era contrario á natureza de prima Justina, feita de azedume e de implicancia. Como vivesse de favor na casa, explica-se que não desestimasse a dona e calasse os seus resentimentos, ou só dissesse mal della a Deus e ao diabo. Caso tivesse resentimentos de minha mãe, não era uma razão mais para detestar Capitú, nem ella precisava de razões supplementares. Comtudo, a intimidade de Capitú fel-o mais aborrecivel á minha parenta. Se a principio não a tratava mal, com o tempo trocou de maneiras e acabou fugindo-lhe. Capitú, attenta, desde que a não via, indagava della e ia procural-a. Prima Justina tolerava esses cuidados. A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de os infringir deslavadamente. Demais, Capitú usava certa magia que captiva; prima Justina acabava sorrindo, ainda que azedo, mas a sós com minha mãe achava alguma palavra ruim que dizer da menina. Como minha mãe adoecesse de uma febre, que a pòz ás portas da morte, quiz que Capitú lhe servisse de enfermeira. Prima Justina, posto que isto a aliviasse de cuidados penosos, não perdoou á minha amiga a intervenção. Um dia, perguntou-lhe se não tinha que fazer em casa; outro dia, rindo, soltou-lhe este epigramma: «Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu ás mãos lhe ha de ir.» LXVII Um peccado. Já agora não tiro a doente da cama sem contar o que se deu commigo. Ao cabo de cinco dias, minha mãe amanheceu tão transtornada que ordenou me mandassem buscar ao seminario. Em vão tio Cosme: --Mana Gloria, você assusta-se sem motivo, a febre passa... --Não! não! mandem buscal-o! Posso morrer, e a minha alma não se salva, se Bentinho não estiver ao pé de mim. --Vamos assustal-o, --Pois não lhe digam nada, mas vão buscal-o, já, já, não se demorem. Cuidaram fosse delirio; mas, não custando nada trazer-me, José Dias foi incumbido do recado. Entrou tão atordoado que me assustou. Contou particularmente ao reitor o que havia, e recebi licença para ir a casa. Na rua, iamos calados, elle não alterando o passo do costume,--a premissa antes da consequencia, a consequencia antes do conclusão,--mas cabisbaixo e suspirando, eu temendo ler no rosto delle alguma noticia dura e definitiva. Só me falára na doença, como negocio simples; mas o chamado, o silencio, os suspiros podiam dizer alguma cousa mais. O coração batia-me com força, as pernas bambeavam-me, mais de uma vez cuidei cair... O anceio de escutar a verdade complicava-se em mim com o temor de a saber. Era a primeira vez que a morte me apparecia assim perto, me envolvia, me encarava com os olhos furados e escuros. Quanto mais andava aquella rua dos Barbonos, mais me aterrava a ideia de chegar a casa, de entrar, de ouvir os prantos, de ver um corpo defuncto... Oh! eu não poderia nunca expòr aqui tudo o que senti naquelles terriveis minutos. A rua, por mais que José Dias andasse superlativamente devagar, parecia fugir-me debaixo dos pés, as casas voavam de um e outro lado, e uma corneta que nessa occasião tocava no quartel dos Municipaes Permanentes resoava aos meus ouvidos como a trombeta do juizo final. Fui, cheguei aos Arcos, entrei na rua de Matacavallos. A casa não era logo alli, mas muito além da dos Invalidos, perto da do Senado. Trez ou quatro vezes, quizera interrogar o meu companheiro, sem ousar abrir a bocca; mas agora, já nem tinha tal desejo. Ia só andando, acceitando o peor, como um gesto do destino, como uma necessidade da obra humana, e foi então que a Esperança, para combater o Terror, me segredou ao coração, não estas palavras, pois nada articulou parecido com palavras, mas uma ideia que poderia ser traduzida por ellas: «Mamãe defuncta, acaba o seminario.» Leitor, foi um relampago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo effeito do remorso que me ficou. Foi uma suggestão da luxuria e do egoismo. A piedade filial desmaiou um instante, com a perspectiva da liberdade certa, pelo desapparecimento da divida e do devedor; foi um instante, menos que um instante, o centesimo de um instante, ainda assim o sufficiente para complicar a minha afflicção com um remorso. José Dias suspirava. Uma vez olhou para mim tão cheio de pena que me pareceu haver-me adivinhado, e eu quiz pedir-lhe que não dissesse nada a ninguem, que eu ia castigar-me, etc. Mas a pena trazia tanto amor, que não podia ser pezar do meu peccado; mas então era sempre a morte de minha mãe... Senti uma angustia grande, um nó na garganta, e não pude mais, chorei de uma vez. --Que é, Bentinho? --Mamãe...? --Não! não! Que ideia é essa? O estado della é gravissimo, mas não é mal de morte, e Deus póde tudo. Enxugue os olhos, que é feio um mocinho da sua edade andar chorando na rua. Não ha de ser nada, uma febre... As febres, assim como dão com força assim tambem se vão embora... Com os dedos, não; onde está o lenço? Enxuguei os olhos, posto que de todas as palavras de José Dias uma só me ficasse no coração; foi aquelle _gravissimo._ Vi depois que elle só queria dizer _grave_, mas o uso do superlativo faz a bocca longa, e, por amor do periodo, José Dias fez crescer a minha tristeza. Se achares neste livro algum caso da mesma familia, avisa-me, leitor, para que o emende na segunda edição; nada ha mais feio que dar pernas longuissimas a ideias brevissimas. Enxuguei os olhos, repito, e fui andando, ancioso agora por chegar a casa, e pedir perdão a minha mãe do ruim pensamento que tive. Emfim, chegámos, entramos, subi tremulo os seis degraus da escada, e d'ahi a pouco, debruçado sobre a cama, ouvia as palavras ternas de minha mãe que me apertava muito as mãos, chamando-me seu filho. Estava queimando, os olhos ardiam nos meus, toda ella parecia consumida por um volcão interno. Ajoelhei-me ao pé do leito, mas como este era alto, fiquei longe das suas caricias: --Não, meu filho, levanta, levanta! Capitú, que estava na alcova, gostou de ver a minha entrada, os meus gestos, palavras e lagrimas, segundo me disse depois; mas não suspeitou naturalmente todas as causas da minha afflicção. Entrando no meu quarto, pensei em dizer tudo a minha mãe, logo que ella ficasse boa, mas esta ideia não me mordia, era uma velleidade pura, uma acção que eu não faria nunca, por mais que o peccado me doesse. Então, levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituaes, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria dous mil padre-nossos. Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a ultima vez que o empreguei. A crise em que me achava, não menos que o costume e a fé, explica tudo. Eram mais dous mil; onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas candidas e verdadeiras taes promessas são como a moeda fiduciaria,--ainda que o devedor as não pague, valem a somma que dizem. LXVIII Adiemos a virtude. Poucos teriam animo de confessar aquelle meu pensamento da rua de Matacavallos. Eu confessarei tudo o que importar á minha historia. Montaigne escreveu de si: _ce ne sont pas mes gestes que j'ecris; c'est moi, c'est mon essence._ Ora, ha só um modo de escrever a propria essencia, é contal-a toda, o bem e o mal. Tal faço eu, á medida que me vae lembrando o convindo á construção ou reconstrucção de mim mesmo. Por exemplo, agora que contei um peccado, diria com muito gosto alguma bella acção contemporanea, se me lembrasse, mas não me lembra; fica transferida a melhor opportunidade. Nem perderás em esperar, meu amigo; ao contrario, acóde-me agora que... Não só as bellas acções são bellas em qualquer occasião, como são tambem possiveis e provaveis, pela theoria que tenho dos peccados e das virtudes, não menos simples que clara. Reduz-se a isto que cada pessoa nasce com certo numero delles e dellas, alliados por matrimonio para se compensarem na vida. Quando um de taes conjuges é mais forte que o outro, elle só guia o individuo, sem que este, por não haver praticado tal virtude ou commettido tal peccado, se possa dizer isento de um ou de outro; mas a regra é dar-se a pratica simultanea dos dous, com vantagem do portador de ambos, e alguma vez com resplendor maior da terra e do ceu. É pena que eu não possa fundamentar isto com um ou mais casos extranhos; falta-me tempo. Pelo que me toca, é certo que nasci com alguns daquelles casaes, e naturalmente ainda os possuo. Já me succedeu, aqui no Engenho Novo, por estar uma noite com muita dòr de cabeça, desejar que o trem da Central estourasse longe dos meus ouvidos e interrompesse a linha por muitas horas, ainda que morresse alguem; e no dia seguinte perdi o trem da mesma estrada, por ter ido dar a minha bengala a um cego que não trazia bordão. _Voilà mes gestes, voilà mon essence._ LXIX A missa. Um dos gestos que melhor exprimem a minha essencia foi a devoção com que corri no domingo proximo a ouvir missa em S. Antonio dos Pobres. O aggregado quiz ir commigo, e principiou a vestir-se, mas era tão lento nos suspensorios e nas presilhas, que não pude esperar por elle. Demais, eu queria estar só. Sentia necessidade de evitar qualquer conversação que me desviasse o pensamento do fim a que ia, e era reconciliar-me com Deus, depois do que se passou no capitulo LXVII. Nem era só pedir-lhe perdão do peccado, era tambem agradecer o restabelecimento de minha mãe, e, visto que digo tudo, fazel-o renunciar ao pagamento da minha promessa. Jehovah, posto que divino, ou por isso mesmo, é um Rothschild muito mais humano, e não faz moratorias, perdoa as dividas integralmente, uma vez que o devedor queira devéras emendar a vida e cortar nas despezas. Ora, eu não queria outra cousa; dalli em deante não faria mais promessas que não pudesse pagar, e pagaria logo as que fizesse. Ouvi missa; ao levantar a Deus, agradeci a vida e saude de minha mãe; depois pedi perdão do peccado e relevação da divida, e recebi a benção final do officiante como um acto solemne de reconciliação. No fim, lembrou-me que a egreja estabeleceu no confessionario um cartorio seguro, e na confissão o mais authentico dos instrumentos para o ajuste de contas moraes entre o homem e Deus. Mas a minha incorrigivel timidez me fechou essa porta certa; receiei não achar palavras com que dizer ao confessor o meu segredo. Como o homem muda! Hoje chego a publical-o. LXX Depois da missa. Rezei ainda, persignei-me, fechei o livro de missa e caminhei para a porta. A gente mão era muita, mas a egreja tambem não é grande, e não pude sair logo, logo, mas devagar. Havia homens e mulheres, velhos e moços, sedas e chitas, e provavelmente olhos feios e bellos, mas eu não vi uns nem outros. Ia na direcção da porta, com a onda, ouvindo as saudações e os cochichos. No adro, onde se fez claro, parei e olhei para todos. Vi então uma moça e um homem, que saíam da egreja e pararam; e a moça olhava para mim falando ao homem, e o homem olhava para mim, ouvindo a moça. E chegaram-me estas palavras: --Mas que queres? --Queria saber della; papae pergunte. Era sinhásinha Sancha, a companheira de collegio de Capitú, que queria noticias de minha mãe. O pae veiu a mim; disse-lhe que estava restabelecida. Depois saimos, mostrou-me a casa delle, e, como eu vinha na mesma direcção, viemos juntos. Gurgel era homem de quarenta annos ou pouco mais, com propensão a engrossar o ventre; era muito obsequioso; chegando á porta da casa, quiz por força que eu fosse almoçar com elle. --Obrigado; mamãe espera-me. --Manda-se lá um preto dizer que o senhor fica almoçando, e irá mais tarde. --Venho outro dia. Sinhásinha Sancha, voltada para o pae, ouvia e esperava. Não era feia; só se lhe podia notar a semelhança do nariz, que tambem acabava grosso, mas ha feições que tiram a graça de uns para dal-a a outros. Vestia simples. Gurgel era viuvo e morria pela filha. Como eu recusasse o almoço, quiz que descançasse alguns minutos. Não pude recusar e subi. Quis saber a minha edade, os meus estudos, a minha fé, e dava-me conselhos para o caso de vir a ser padre; disse-me o numero do armazem, rua da Quitanda. Emfim, despedi-me, veiu ao patamar da escada; a filha deu-me rocommendações para Capitú e para minha mãe. Da rua olhei para cima; o pae estava á janella e fez-me um gosto largo de despedida. LXXI Visita de Escobar. Em casa, tinham já mentido dizendo a minha mãe que eu voltára e estava mudando de roupa. «A missa das oito já ha de ter acabado... Bentinho devia estar de volta... Teria acontecido alguma cousa, mano Cosme?... Mandem ver...» Assim falava ella, de minuto a minuto, mas eu entrei e commigo a tranquillidade. Era o dia das boas sensações. Escobar foi visitar-me e saber da saude de minha mãe. Nunca me visitára até alli, nem as nossas relações estavam já tão estreitas, como vieram a ser depois; mas sabendo a razão da minha saida, tres dias antes, aproveitou o domingo para ir ter commigo e perguntar se continuava o perigo ou não. Quando lhe disse que não, respirou. --Tive receio, disse elle. --Os outros souberam? --Parece que sim: alguns souberam. Tio Cosme e José Dias gostaram do moço; o aggregado disse-lhe que vira uma vez o pae no Rio de Janeiro. Escobar era muito polido; e, comquanto falasse mais do que veiu a falar depois, ainda assim não era tanto como os rapazes da nossa edade; naquelle dia achei-o um pouco mais expansivo que de costume. Tio Cosme quiz que jantasse comnosco. Escobar reflectiu um instante e acabou dizendo que o correspondente do pae esperava por elle. Eu, lembrando-me das palavras do Gurgel, repeti-as: --Manda-se lá um preto dizer que o senhor janta aqui, e irá depois. --Tanto incommodo! --Incommodo nenhum, interveiu tio Cosme. Escobar acceitou, e jantou. Notei que os movimentos rápidos que tinha e dominava na aula tambem os dominava agora, na sala como na mesa. A hora que passou commigo foi de franca amizade. Mostrei-lhe os poucos livros que possuia. Gostou muito do retrato de meu pae; depois de alguns instantes de contemplação, virou-se e disse-me: --Vê-se que era um coração puro! Os olhos de Escobar, claros como já disse, eram dulcissimos; assim os definiu José Dias, depois que elle saiu, e mantenho esta palavra, apesar dos quarenta annos que traz em cima de si. Nisto não houve exageração do aggregado. A cara rapada mostrava uma pelle alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa, vindo a risca do cabello quasi em cima da sobrancelha esquerda; mas tinha sempre a altura necessaria para não affrontar as outras feições, nem diminuir a graça dellas. Realmente, era interessante de rosto, a bocca fina e chocarreira, o nariz curvo e delgado. Tinha o séstro de sacudir o hombro direito, de quando em quando, e veiu a perdel-o, desde que um de nós lh'o notou um dia no seminario; primeiro exemplo que vi de que um homem póde corrigir-se muito bem dos defeitos miudos. Nunca deixei de sentir tal ou qual desvanecimento em que os meus amigos agradassem a todos. Em casa, ficaram querendo bem a Escobar; a mesma prima Justina achou que era um moço muito apreciavel, apesar... Apesar de que? perguntou-lhe José Dias, vendo que ella não acabava a phrase. Não teve resposta, nem podia tel-a; prima Justina provavelmente não viu defeito claro ou importante no nosso hospede; o _apesar_ era uma especie de resalva para algum que lhe viesse a descobrir um dia; ou então foi obra de uso velho, que a levou a restringir, onde não achára restricção. Escobar despediu-se logo depois de jantar; fui leval-o á porta, onde esperámos a passagem de um omnibus. Disse-me que o armazem do correspondente era na rua dos Pescadores, e ficava aberto até ás nove horas: elle é que se não queria demorar fóra. Separámo-nos com muito affecto: elle, de dentro do omnibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me á porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para traz, mas não olhou. --Que amigo é esse tamanho? perguntou alguem de uma janella ao pé. Não é preciso dizer que era Capitú. São cousas que se adivinham na vida, como nos livros, sejam romances, sejam historias verdadeiras. Era Capitú, que nos espreitara desde algum tempo, por dentro da veneziana, e agora abrira inteiramente a janella, e apparecera. Viu as nossas despedidas tão rasgadas e affectuosas, e quiz saber quem era que me merecia tanto. --É o Escobar, disse eu indo pôr-me embaixo da janella, a olhar para cima. LXXII Uma reforma dramatica. Nem eu, nem tu, nem ella, nem qualquer outra pessoa desta historia poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não annuncia as peripecias nem o desfecho. Elles chegam a seu tempo, até que o panno cae, apagam-se as luzes, e os espectadores vão dormir. Nesse genero ha porventura alguma cousa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim. Othello mataria a si e a Desdemona no primeiro acto, os tres seguintes seriam dados á acção lenta e decrescente do ciume, e o ultimo ficaria só com as scenas iniciaes da ameaça dos turcos, as explicações de Othello e Desdemona, e o bom conselho do fino Iago: «Mette dinheiro na bolsa.» Desta maneira, o espectador, por um lado, acharia no theatro a charada habitual que os periodicos lhe dão, porque os ultimos actos explicariam o desfecho do primeiro, especie de conceito, e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor: Ella amou o que me affligira, Eu amei a piedade della. LXXIII O contra-regra. O destino não é só dramaturgo, é tambem o seu proprio contra-regra, isto é, designa a entrada dos personagens em scena, dá-lhes as cartas e outros objectos, e executa dentro os signaes correspondentes ao dialogo, uma trovoada, um carro, um tiro. Quando eu era moço, representou-se ahi, em não sei que theatro, um drama que acabava pelo juizo final. O principal personagem era Ashaverus, que no ultimo quadro concluia um monologo por esta exclamação: «Ouço a trombeta do archanjo!» Não se ouviu trombeta nenhuma. Ashaverus, envergonhado, repetiu a palavra, agora mais alto, para advertir o contra-regra, mas ainda nada. Então caminhou para o fundo, disfarçamente tragico, mas effectivamente com o fim de falar ao bastidor, e dizer em voz surda:** «O piston! o piston! o piston!» O publico ouviu esta palavra e desatou a rir, até que, quando a trombeta soou devéras, e Ashaverus bradou pela terceira vez que era a do archanjo, um gaiato da platéa corrigiu cá debaixo: «Não, senhor, é o piston do archanjo!» Assim se explicam a minha estada debaixo da janella de Capitú e a passagem de um cavalleiro, um _dandy_, como então diziamos. Montava um bello cavallo alazão, firme na sella, redea na mão esquerda, a direita á cinta, botas de verniz, figura e postura esbeltas: a cara não me era desconhecida. Tinham passado outros, e ainda outros viriam atraz; todos iam ás suas namoradas. Era uso do tempo namorar a cavallo. Relê Alencar: «Porque um estudante (dizia um dos seus personagens de theatro de 1858) não póde estar sem estas duas cousas, um cavallo e uma namorada.» Relê Alvares de Azevedo. Uma das suas poesias é destinada a contar (1851) que residia em Catumby, e, para ver a namorada no Cattete, alugara um cavallo por trez mil reis... Trez mil reis! tudo se perde na noite dos tempos! Ora, o _dandy_ do cavallo baio não passou como os outros; era a trombeta do juizo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é o seu proprio contra-regra. O cavalleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitú, e olhou para Capitú, e Capitú para elle; o cavallo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para traz. Tal foi o segundo dente de ciume que me mordeu. A rigor, era natural admirar as bellas figuras; mas aquelle sujeito costumava pagar alli, ás tardes; morava no antigo Campo da Acclamação, e depois... e depois... Vão lá raciocinar com um coração de braza, como era o meu! Nem disse nada a Capitú; saí da rua á pressa, enfiei pelo meu corredor, e, quando dei por mim, estava na sala de visitas. LXXIV A presilha. Na sala de visitas, tio Cosme e José Dias conversavam, um sentado, outro andando e parando. A vista de José Dias lembrou-me o que elle me disséra no seminario: «Aquillo emquanto não pegar algum peralta da visinhança que case com ella....» Era certamente allusão ao cavalleiro. Tal recordação aggravou a impressão que eu trazia da rua; mas não seria essa palavra, inconscientemente guardada, que me dispoz a crer na malicia dos seus olhares? A vontade que tive foi pegar em José Dias pela gola, leval-o ao corredor e perguntar-lhe se falara de verdade ou por hypothese; mas José Dias, que parára ao ver-me entrar, continuou a andar e a falar. Eu, impaciente, queria ir á casa ao pé, imaginava que Capitú saisse da janella assustada e não tardasse a apparecer, para indagar e explicar.... E os dous falavam, até que tio Cosme ergueu-se para ir ver a doente, e José Dias veiu ter commigo, ao vão da outra janella. Ha um instante tinha eu desejo de lhe perguntar o que havia entre Capitú e os peraltas do bairro; agora, imaginando que vinha justamente dizer-m'o, fiquei com medo de ouvil-o. Quiz tapar-lhe a bocca. José Dias viu no meu rosto algum signal differente da expressão habitual, e perguntou-me com interesse: --Que é, Bentinho? Para não fital-o, deixei cair os olhos. Os olhos, caindo, viram que uma das presilhas das calças do aggregado estava desabotoada, e, como elle insistisse em saber o que é que eu tinha, respondi apontando com o dedo: --Olhe a presilha, abotoe a presilha. José Dias inclinou-se, eu saí correndo. LXXV O desespero. Escapei ao aggregado, escapei a minha mãe não indo ao quarto della, mas não escapei a mim mesmo. Corri ao meu quarto, e entrei atraz de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me á cama, e rolava commigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitú aquella tarde, nem nunca mais, e fazer-me padre de uma vez. Via-me já ordenado, deante d'ella, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo, muito desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre elles. Da cama ouvia voz della, que viera passar o resto da tarde com minha mãe, e naturalmente commigo, como das outras vezes; mas, por maior que fosse o abalo que me deu, não me fez sair do quarto. Capitú ria alto, falava alto, como se me avisasse; eu continuava surdo, a sós commigo e o meu desprezo. A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterral-as bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue.... LXXVI Explicação. Ao fim de algum tempo, estava socegado, mas abatido. Como me achasse estirado na cama, com os olhos no tecto, lembrou-me a recommendação que minha mãe fazia de me não deitar depois de jantar para evitar alguma congestão. Ergui-me de golpe, mas não saí do quarto. Capitú ria agora menos e falava mais baixo; estaria afflicta com a minha reclusão, mas nem por isso me abalou. Não ceei e dormi mal. Na manhã seguinte não estava melhor, estava differente. A minha dòr agora complicava-se do receio de haver ido além do que convinha, deixando de examinar o negocio. Posto que a cabeça me doesse um pouco, simulei maior incommodo, com o fim de não ir ao seminario e falar a Capitú. Podia estar zangada commigo, podia não querer-me agora e preferir o cavalleiro. Quiz resolver tudo, ouvil-a e julgal-a; podia ser que tivesse defesa e explicação. Tinha ambas as cousas. Quando soube a causa da minha reclusão da vespera, disse-me que era grande injuria que lhe fazia; não podia crer que depois da nossa troca de juramentos, tão leviana a julgasse que pudesse crer.... E aqui romperam-lhe lagrimas, e fez um gesto de separação; mas eu acudi de prompto, peguei-lhe das mãos e beijei-as com tanta alma e calor que as senti estremecer. Enxugou os olhos com os dedos, eu os beijei de novo, por elles e pelas lagrimas; depois suspirou, depois abanou a cabeça. Confessou-me que não conhecia o rapaz, senão como os outros que alli passavam ás tardes, a cavallo ou a pé. Se olhara para elle, era prova exactamente de não haver nada entre ambos; se houvesse, era natural dissimular. --E que poderia haver, se elle vae casar? concluiu. --Vae casar? Ia casar, disse-me com quem, com uma moça da rua dos Barbonos. Esta razão quadrou-me mais que tudo, e ella o sentiu no meu gesto; nem por isso deixou de dizer que, para evitar nova equivocação, deixaria de ir mais á janella. --Não! não! não! não lhe peço isto! Consentiu em retirar a promessa, mas fez outra, e foi que, á primeira suspeita da minha parte, tudo estaria dissolvido entro nós. Acceitei a ameaça, e jurei que nunca a haveria de cumprir: era a primeira suspeita e a ultima. LXXVII Prazer das dôres velhas. Contando aquella crise do meu amor adolescente, sinto uma cousa que não sei se explico bem, e é que as dôres daquella quadra, a tal ponto se espiritualisaram com o tempo, que chegam a diluir-se no prazer. Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. A verdade é que sinto um gosto particular em referir tal aborrecimento, quando é certo que elle me lembra outros que não quizera lembrar por nada. LXXVIII Segredo por segredo. De resto, naquelle mesmo tempo senti tal ou qual necessidade de contar a alguem o que se passava entre mim e Capitú. Não referi tudo, mas só uma parte, e foi Escobar que a recebeu. Quando voltei ao seminario, na quarta-feira, achei-o inquieto; disse-me que era sua intenção ir ver-me, se eu me demorasse mais um dia em casa. Perguntava-me com interesse o que é que tivera, e se estava bom de todo. --Estou. Ouvia, espetando-me os olhos. Tres dias depois disse que me estavam achando muito distrahido; era bom disfarçar o mais que pudesse. Elle, á sua parte, tinha razões para andar distrahido tambem, mas buscava ficar attento. --Então parece-lhe....? --Sim, você ás vezes está que não ouve nada, olhando para hontem; disfarce, Santiago. --Tenho motivos.... --Creio; ninguem se distrae á toa. --Escobar.... Hesitei; elle esperou. --Que é? --Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo tambem; aqui no seminario você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fóra, a não ser a gente da familia, não tenho propriamente um amigo. --Se eu disser a mesma cousa, retorquiu elle sorrindo, perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguem, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso. Commovido, senti que a voz se me precipitava da garganta. --Escobar, você é capaz de guardar um segredo? --Você que pergunta é porque duvida, e nesse caso.... --Desculpe, é um modo de falar. Eu sei que é moço serio, e faço de conta que me confesso a um padre. --Se precisa de absolvição, está absolvido. --Escobar, eu não posso ser padre. Estou aqui, os meus acreditam, o esperam; mas eu não posso ser padre. --Nem eu, Santiago. --Nem você? --Segredo por segredo; tambem eu tenho o proposito de não acabar o curso; meu desejo é o commercio, mas não diga nada, absolutamente nada; fica só entre nós. E não é que eu não seja religioso; sou religioso, mas o commercio é a minha paixão. --Só isso? --Que mais ha de ser? Dei duas voltas e sussurrei a primeira palavra da minha confidencia, tão escassa e surda, que não a ouvi eu mesmo; sei porém que disse «uma pessoa...» com reticencia. Uma pessoa....? Não foi preciso mais para que elle entendesse. Uma pessoa devia ser uma moça. Nem cuides que pasmou de me ver namorado; achou até natural e espetou-me outra vez os olhos. Então contei-lhe por alto o que podia, mas demoradamente para ter o gosto de repisar o assumpto. Escobar escutava com interesse; no fim da nossa conversação, declarou-me que era segredo enterrado em cemiterio. Deu-me de conselho que não me fizesse padre. Não podia levar para a egreja um coração que não era do ceu, mas da terra; seria um mau padre, nem seria padre. Ao contrario. Deus protegia os sinceros; uma vez que eu só podia servil-o no mundo, ahi me cumpria ficar. Não calculas o prazer que me deu a confidencia que lhe fiz. Era como que uma felicidade mais. Aquelle coração moço que me ouvia e me dava razão, trazia a este mundo um aspecto extraordinario. Era um grande e bello mundo, a vida uma carreira excellente, e eu nem mais nem menos um mimoso do ceu; eis a minha sensação. Nota que eu não lhe disse tudo, nem o melhor; não lhe referi o capitulo do penteado, por exemplo, nem outros assim; mas o contado era muito. Que voltámos ao assumpto, não é preciso dizel-o. Voltámos uma e muitas vezes; eu louvava as qualidades moraes de Capitú, materia adequada á admiração de um seminarista, a simpleza, a modestia, o amor do trabalho e os costumes religiosos. Não lhe tocava nas graças physicas, nem elle me perguntava por ellas; apenas insinuei a conveniencia de a conhecer de vista. --Agora não é possivel, disse-lhe na primeira semana, ao voltar de casa; Capitú vae passar uns dias com uma amiga da rua dos Invalidos. Quando ella vier, você irá lá; mas póde ir antes, póde ir sempre; porque não foi hontem jantar commigo? --Você não me convidou. --Pois precisa convidar? Lá em casa todos ficaram gostando muito de você. --Tambem eu fiquei gostando de todos, mas se é possivel fazer distincção, confesso-lhe que sua mãe é uma senhora adoravel. --Não é verdade? retorqui cheio de alvoroço. LXXIX Vamos ao capitulo. Com effeito, gostei de ouvil-o falar assim. Sabes a opinião que eu tinha de minha mãe. Ainda agora, depois de interromper esta linha para mirar-lhe o retrato que pende da parede, acho que trazia no rosto impressa aquella qualidade. Nem de outro modo se explica a opinião de Escobar, que apenas trocara com ella quatro palavras. Uma só bastava a penetrar-lhe a essencia intima; sim, sim, minha mãe era adoravel. Por mais que me estivesse então obrigando a uma carreira que eu não queria, não podia deixar de sentir que era adoravel, como uma santa. E por ventura era certo que me obrigava á carreira ecclesiastica? Aqui chego a um ponto, que esperei viesse depois, tanto que já pesquizava em que altura lhe daria um capitulo. Realmente, não cabia dizer agora o que só mais tarde presumi descobrir; mas, uma vez que toquei no ponto, melhor é acabar com elle. É grave e complexo, delicado e subtil, um destes em que o autor tem de attender ao filho, e o filho ha de ouvir o autor, para que um e outro digam a verdade, só a verdade, mas toda a verdade. Cabe ainda notar que esse ponto é que torna justamente a santa mais adoravel, sem prejuizo (ao contrario!) da parte humana e terrestre que havia nella. Basta de prefacio ao capitulo; vamos ao capitulo. LXXX Venhamos ao capitulo. Venhamos ao capitulo. Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, e das suas praticas religiosas, e da fé pura que as animava. Nem ignoras que a minha carreira ecclesiastica era objecto de promessa feita quando fui concebido. Tudo está contado opportunamente. Outrosim, sabes que para o fim de apertar o vinculo moral da obrigação, confiou os seus projectos e motivos a parentes e familiares. A promessa, feita com fervor, acceita com misericordia, foi guardada por ella, com alegria, no mais intimo do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar. Meu pae, se vivesse, é possivel que alterasse os planos, e, como tinha a vocação da politica, é provavel que me encaminhasse somente á politica, embora os dous officios não fossem nem sejam inconciliaveis, e mais de um padre entre na luta dos partidos e no governo dos homens. Mas meu pae morrera sem saber nada, e ella ficou deante do contracto, como unica devedora. Um dos aphorismos de Franklin é que, para quem tem de pagar na paschoa, a quaresma é curta. A nossa quaresma não foi mais longa que as outras, e minha mãe, posto me mandasse ensinar latim e doutrina, começou a adiar a minha entrada no seminario. É o que se chama, commercialmente falando, reformar uma lettra. O credor era archi-millionario, não dependia daquella quantia para comer, e consentiu nas transferencias de pagamento, sem sequer aggravar a taxa do juro. Um dia, porém, um dos familiares que serviam de endossantes da letra, falou da necessidade de entregar o preço ajustado; está n'um dos capitulos primeiros. Minha mãe concordou e recolhi-me a S. José. Ora, nesse mesmo capitulo, verteu ella umas lagrimas, que enxugou sem explicar, e que nenhum dos presentes, nem tio Cosme, mau prima Justina, nem o aggregado José Dias entendeu absolutamente; eu, que estava atraz da porta, não as entendi mais que elles. Bem examinadas, apesar da distancia, vê-se que eram saudades prévias, a magoa da separação,--e póde ser tambem (é o principio do ponto), póde ser que arrependimento da promessa. Catholica e devota, sentia muito bem que as promessas se cumprem; a questão é se é opportuno e adequado fazel-as todas, e naturalmente inclinava-se á negativa. Porque é que Deus a puniria, negando-lhe um segundo filho? A vontade divina podia ser a minha vida, sem necessidade de lh'a dedicar _ab ovo._ Era um raciocinio tardio; devia ter sido feito no dia em que fui gerado. Em todo caso, era uma conclusão primeira; mas, não bastando concluir para destruir, tudo se manteve, e eu fui para o seminario. Um cochilo da fé teria resolvido a questão a meu favor, mas a fé velava com os seus grandes olhos ingenuos. Minha mãe faria, se pudesse, uma troca de promessa, dando parte dos seus annos para conservar-me comsigo, fóra do clero, casado e pae; é o que presumo, assim como supponho que rejeitou tal ideia, por lhe parecer uma deslealdade. Assim a senti sempre na corrente da vida ordinaria. Succedeu que a minha ausencia foi logo temperada pela assiduidade de Capitú. Esta começou a fazer-se-lhe necessaria. Pouco a pouco veiu-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto annunciado), a esperança de que o nosso amor, tornando-me absolutamente incompativel com o seminario, me levasse a não ficar lá nem por Deus nem pelo diabo, esta esperança intima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Neste caso, eu romperia o contracto sem que ella tivesse culpa. Ella ficava commigo sem acto propriamente seu. Era como se, tendo confiado a alguem a importancia de uma divida para leval-a ao credor, o portador guardasse o dinheiro comsigo e não levasse nada. Na vida commum, o acto de terceiro não desobriga o contractante; mas a vantagem de contractar com o ceu é que intenção vale dinheiro. Has de ter tido conflictos parecidos com esse, e, se és religioso, haverás buscado alguma vez conciliar o ceu e a terra, por modo identico ou analogo. O ceu e a terra acabam conciliando-se; elles são quasi irmãos gemeos, tendo o ceu sido feito no segundo dia e a terra no terceiro. Como Abrahão, minha mãe levou o filho ao monte da Visão, e mais a lenha para o holocausto, o fogo e o cutello. E atou Isaac em cima do feixe de lenha, pegou do cutello e levantou-o ao alto. No momento de fazel-o cair, ouve a voz do anjo que lhe ordena da parte do Senhor: «Não faças mal algum a teu filho; conheci que temes a Deus.» Tal seria a esperança secreta de minha mãe. Capitú era naturalmente o anjo da Escriptura. A verdade é que minha mãe não podia tel-a agora longe de si. A affeição crescente era manifesta por actos extraordinarios. Capitú passou a ser a flôr da casa, o sol das manhãs, o frescor das tardes, a lua das noites; lá vivia horas e horas, ouvindo, falando e cantando. Minha mãe apalpava-lhe o coração, revolvia-lhe os olhos, e o meu nome era entre ambas como a senha da vida futura. LXXXI Uma palavra. Assim contado o que descobri mais tarde, posso trasladar para aqui uma palavra de minha mãe. Agora se entenderá que ella me dissesse, no primeiro sabbado, quando eu cheguei a casa, e soube que Capitú estava na rua dos Invalidos, com Sinhásinha Gurgel. --Porque não vaes vel-a? Não me disseste que o pae de Sancha te offereceu a casa? --Offereceu. --Pois então? Mas é se queres. Capitú devia ter voltado hoje para acabar um trabalho commigo; certamente a amiga pediu-lhe que dormisse lá. --Talvez ficassem namorando, insinuou prima Justina. Não a matei por não ter a mão ferro nem corda, pistola nem punhal; mas os olhos que lhe deitei, se pudessem matar, teriam supprido tudo. Um dos erros da Providencia foi deixar ao homem unicamente os braços e os dentes, como armas de ataque, e as pernas como armas de fuga ou de defesa. Os olhos bastavam ao primeiro effeito. Um mover delles faria parar ou cair um inimigo ou um rival, exerceriam vingança prompta, com este accressimo que, para desnortear a justiça, os mesmos olhos matadores seriam olhos piedosos, e correriam a chorar a victima. Prima Justina escapou aos meus; eu é que não escapei ao effeito da insinuação, e no domingo, ás onze horas, corri á rua dos Invalidos. O pae de Sancha recebeu-me em desalinho e triste. A filha estava enferma; caira na vespera com uma febre, que se ia aggravando. Como elle queria muito á filha, pensava já vel-a morta, e annunciou-me que se mataria tambem. Eis aqui um capitulo funebre como um cemiterio, mortes, suicidios e assassinatos. Eu anciava por um raio de luz clara e ceu azul. Foi Capitú que os trouxe á porta da sala, vindo dizer ao pae de Sancha que a filha o mandara chamar. --Está peor? perguntou Gurgel assustado. --Não, senhor, mas quer falar-lhe. --Fique aqui um bocadinho, disse-lhe elle; e voltando-se para mim: É a enfermeira de Sancha, que não quer outra; eu já volto. Capitú trazia signaes de fadiga e commoção, mas tão depressa me viu, ficou toda outra, a mocinha de sempre, fresca e lepida, não menos que espantada. Custou-lhe a crer que fosse eu. Falou-me, quiz que lhe falasse, e effectivamente conversámos por alguns minutos, mas tão baixo e abafado que nem as paredes ouviram, ellas que tèm ouvidos. De resto, se ellas ouviram algo, nada entenderam, nem ellas nem os moveis, que estavam tão tristes como o dono. LXXXII O canapé. Delles, só o canapé pareceu haver comprehendido a nossa situação moral, visto que nos offereceu os serviços da sua palhinha, com tal insistencia que os acceitámos e nos sentámos. Data dahi a opinião particular que tenho do canapé. Elle faz alliar a intimidade e o decoro, e mostra a casa toda sem sair da sala. Dous homens sentados nelle pódem debater o destino de um imperio, e duas mulheres a graça de um vestido; mas, um homem e uma mulher só por aberração das leis naturaes dirão outra cousa que não seja de si mesmos. Foi o que fizemos, Capitú e eu. Vagamente lembra-me que lhe perguntei se a demora alli seria grande... --Não sei; a febre parece que cede... mas... Tambem me lembra, vagamente, que lhe expliquei a minha visita á rua dos Invalidos, com a pura verdade, isto é, a conselho de minha mãe. --Conselho della? murmurou Capitú. E accrescentou com os olhos, que brilhavam extraordinariamente: --Seremos felizes! Repeti esta palavras, com os simples dedos, apertando os della. O canapé, quer visse ou não, continuou a prestar os seus serviços ás nossas mãos presas e ás nossas cabeças juntas ou quasi juntas. LXXXIII O retrato. Gurgel tornou á sala e disse a Capitú que a filha chamava por ella. Eu levantei-me depressa e não achei compostura; mettia os olhos pelas cadeiras. Ao contrario, Capitú ergueu-se naturalmente e perguntou-lhe se a febre augmentára. --Não, disse elle. Nem sobresalto nem nada, nenhum ar de mysterio da parte de Capitú; voltou-se para mim, e disse-me que levasse lembranças a minha mãe e a prima Justina, e que até breve; estendeu-me a mão e enfiou pelo corredor. Todas as minhas invejas foram com ella. Como era possivel que Capitú se governasse tão facilmente e eu não? --Está uma moça, observou Gurgel olhando tambem para ella. Murmurei que sim. Na verdade, Capitú ia crescendo ás carreiras, as fórmas arredondavam-se e avigoravam-se com grande intensidade; moralmente, a mesma cousa. Era mulher por dentro e por fóra, mulher á direita e á esquerda, mulher por todos os lados, e desde os pés até á cabeça. Esse arvorecer era mais apressado, agora que eu a via de dias a dias; de cada vez que vinha a casa achava-a mais alta e mais cheia; os olhos pareciam ter outra reflexão, e a bocca outro imperio. Gurgel, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de moça, perguntou-me se Capitú era parecida com o retrato. Um dos costumes da minha vida foi sempre concordar com a opinião provavel do meu interlocutor, desde que a materia não me aggrava, aborrece ou impõe. Antes de examinar se effectivamente Capitú era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então elle disse que era o retrato da mulher delle, e que as pessoas que a conheceram diziam a mesma cousa. Tambem achava que as feições eram semelhantes, a testa principalmente e os olhos. Quanto ao genio, era um; pareciam irmãs. --Finalmente, até a amizade que ella tem a Sanchinha; a mãe não era mais amiga della... Na vida ha dessas semelhanças assim exquisitas. LXXXIV Chamado. No saguão e na rua, examinei ainda commigo se effectivamente elle teria desconfiado alguma cousa, mas achei que não e puz-me a andar. Ia satisfeito com a visita, com a alegria de Capitú, com os louvores de Gurgel, a tal ponto que não acudi logo a uma voz que me chamava: --Sr. Bentinho! Sr. Bentinho! Só depois que a voz cresceu e o dono della chegou á porta é que eu parei e vi o que era e onde estava. Estava já na rua de Matacavallos. A casa era uma loja de louça, escassa e pobre; tinha as portas meio-cerradas, e a pessoa que me chamava era um pobre homem grisalho e mal vestido. --Sr. Bentinho, disse-me elle chorando; sabe que meu filho Manduca morreu? --Morreu? --Morreu ha meia hora, enterra-se amanhã. Mandei recado a sua mãe agora mesmo, e ella fez-me a caridade de mandar algumas flores para botar no caixão. Meu pobre filho! Tinha de morrer, e foi bom que morresse, coitado, mas apesar de tudo sempre doe. Que vida que elle teve!... Um dia destes ainda se lembrou do senhor, e perguntou se estava no seminario... Quer vel-o? Entre, ande vel-o... Custa-me dizer isto, mas antes peque por excessivo que por diminuto. Quiz responder que não, que não queria ver o Manduca, e fiz até um gesto para fugir. Não era medo; n'outra occasião póde ser até que entrasse com facilidade e curiosidade, mas agora ia tão contente! Ver um defuncto ao voltar de uma namorada... Ha cousas que se não ajustam nem combinam. A simples noticia era já uma turvação grande. Às minhas ideias de ouro perderam todas a côr e o metal para se trocarem em cinza escura e feia, e não distingui mais nada. Penso que cheguei a dizer que tinha pressa, mas provavelmente não falei por palavras claras, nem sequer humanas, porque elle, encostado ao portal, abria-me espaço com o gesto, e eu, sem alma para entrar nem fugir, deixei ao corpo fazer o que pudesse, e o corpo acabou entrando. Não culpo ao homem; para elle, a cousa mais importante do momento era o filho. Mas tambem não me culpem a mim; para mim, a cousa mais importante era Capitú. O mal foi que os dous casos se conjugassem na mesma tarde, e que a morte de um viesse metter o nariz na vida do outro. Eis o mal todo. Se eu passasse antes ou depois, ou se o Manduca esperasse algumas horas para morrer, nenhuma nota aborrecida viria interromper as melodias da minha alma. Porque morrer exactamente ha meia hora? Toda hora é apropriada ao obito; morre-se muito bem ás seis ou sete horas da tarde. LXXXV O defuncto. Tal foi o sentimento confuso com que entrei na loja de louça. A loja era escura, e o interior da casa menos luz tinha, agora que as janellas da área estavam cerradas. A um canto da sala de jantar vi a mãe chorando; á porta da alcova duas creanças olhavam espantadas para dentro, com o dedo na bocca. O cadaver jazia na cama; a cama... Suspendamos a penna e vamos á janella espairecer a memoria. Realmente, o quadro era feio, já pela morte, já pelo defuncto, que era horrivel... Isto aqui, sim, é outra cousa. Tudo o que vejo lá fóra respira vida, a cabra que rumina ao pé de uma carroça, a gallinha que marisca no chão da rua, o trem da Estrada Central que bufa, assobia, fumega e passa, a palmeira que investe para o ceu, e finalmente aquella torre de egreja, apesar de não ter musculos nem folhagem. Um rapaz, que alli no becco empina um papagaio de papel, não morreu nem morre, posto tambem se chame Manduca. Verdade é que o outro Manduca era mais velho que este,** pouco mais velho. Teria dezoito ou dezenove annos, mas tanto lhe darias quinze como vinte e dous, a cara não permittia trazer a edade á vista, antes a escondia nas dobras da... Vá, diga-se tudo; é morto, os seus parentes são mortos, se existe algum não é em tal evidencia que se vexe ou dôa. Diga-se tudo; Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrivel. Quando eu vi, estendido na cama, o triste corpo daquelle meu visinho, fiquei apavorado e desviei os olhos. Não sei que mão occulta me compelliu a olhar outra vez, ainda que de fugida; cedi, olhei, tornei a olhar, até que recuei de todo e saí do quarto. --Padeceu muito! suspirou o pae. --Coitado de Manduca! soluçava a mãe. Eu cuidei de sair, disse que era esperado em casa, e despedi-me. O pae perguntou-me se lhe faria o favor de ir ao enterro; respondi com a verdade, que não sabia, faria o que minha mãe quizesse. E rapido saí, atravessei a loja, e saltei á rua. LXXXVI Amai, rapazes! Era tão perto, que antes de tres minutos me achei em casa. Parei no corredor, a tomar folego; buscava esquecer o defuncto, pallido e disforme, e o mais que não disse para não dar a estas paginas um aspecto repugnante, mas pódes imaginal-o. Tudo arredei da vista, em poucos segundos; bastou-me pensar na outra casa, e mais na vida e na cara fresca e lepida de Capitú... Amai, rapazes! e, principalmente, amai moças lindase graciosas; ellas dão remedio ao mal, aroma ao infecto, trocam a morte pela vida... Amai, rapazes! LXXXVII A sege. Chegara ao ultimo degrau, e uma ideia me entrou no cerebro, como se estivesse a esperar por mim, entre as grades da cancella. Ouvi de memoria as palavras do pae de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro no dia seguinte. Parei no degrau. Reflecti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro... Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da conducção. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com minha mãe ás visitas de amizade ou de ceremonia, e á missa, se chovia. Era uma velha sege de meu pae, que ella conservou o mais que poude. O cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via á poria, vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo: --Pae João vae levar nhonhô! E era raro que eu não lhe recommendasse: --João, demora muito as bestas; vae devagar. --Nhã Gloria não gosta. --Mas demora! Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque ella não permittia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um oculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fóra. --Senta, Bentinho! --Deixa espiar, mamãe! E em pé, quando era mais pequeno, mettia a cara no vidro, e via o cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a redea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido. Tudo incommodo, as botas, o chicote e as mulas, mas elle gostava e eu tambem. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou fechadas, com gente ou sem ella, e na rua as pessoas que iam e vinham, ou atravessavam deante da sege, com grandes pernadas ou passos miudos. Quando havia impedimento de gente ou de animaes, a sege parava, e então o espectaculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na calçada ou á porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si, naturalmente sobre quem iria dentro. Quando fui crescendo em edade imaginei que adivinhavam e diziam: «É aquella senhora da rua de Matacavallos, que tem um filho, Bentinho...» A sege ia tanto com a vida recondita de minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuámos a andar nella, e era conhecida na rua e no bairro pela «sege antiga». Afinal minha mãe consentiu em deixal-a, sem a vender logo; só abriu mão della porque as despezas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inutil foi exclusivamente sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pae era conservado como um pedaço delle, um resto da pessoa, a mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho tambem do carrancismo que ella confessava aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos habitos, velhas maneiras, velhas ideias, velhas modas. Tinha o seu museo de reliquias, pentes desusados, um trecho de mantilha, umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, a si mesma se queria fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto, não alcançava tudo o que queria. LXXXVIII Um pretexto honesto. Não, a ideia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e suas doçuras. A origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao seminario, e podia fazer outra visita a Capitú, um tanto mais demorada. Eis ahi o que era. A lembrança do carro podia vir accessoriamente depois, mas a principal e immediata foi aquella. Voltaria á rua dos Invalidos, a pretexto de saber de Sinházinha Gurgel. Contava que tudo me saisse como naquelle dia, Gurgel afflicto, Capitú commigo no canapé, as mãos presas, o penteado... --Vou pedir a mamãe. Abri a cancella. Antes de transpôl-a, assim como ouvira da memoria a palavra do pae do morto, ouvi agora a da mãe, e repeti a meia voz: --Coitado de Manduca! LXXXIX A recusa. Minha mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro. --Perder um dia de seminario... Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente pobre... Tudo o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela negativa. --Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe. --Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi? Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao aggregado, este sorriu, e disse-me que o motivo escondido da prima era provavelmente não dar ao enterro «o lustre da minha pessoa.» Fosse o que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando no motivo, não me desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular. XC A polemica. No dia seguinte, passei pela casa do defuncto, sem entrar nem parar,--ou, se parei, foi só um instante, ainda mais breve que este em que vol-o digo. Se me não engano, andei até mais depressa, receiando que me chamassem como na vespera. Uma vez que não ia ao enterro, antes longe que proximo. Fui andando e pensando no pobre diabo. Não eramos amigos, nem nos conheciamos de muito. Intimidade, que intimidade podia haver entre a doença delle e a minha saude? Tivemos relações breves e distantes. Fui pensando nellas, recordando algumas. Reduziam-se todas a uma polemica, entre nós, dous annos antes, a proposito... Mal podeis crer a que proposito foi. Foi a guerra da Criméa. Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pae enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde elle espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi alli que o vi uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto não attrahia, de certo. Tinha eu de treze para quatorze annos. Da segunda vez que o vi alli, como falassemos da guerra da Criméa, que então ardia e andava nos jornaes, Manduca disse que os alliados haviam de vencer, e eu respondi que não. --Pois veremos, tornou elle. Só se a justiça não vencer neste mundo, o que é impossivel, e a justiça está com os alliados. --Não, senhor, a razão é dos russos. Naturalmente, iamos com o que nos diziam os jornaes da cidade, transcrevendo os de fóra, mas póde ser tambem que cada um de nós tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto moscovita nas minhas ideias. Defendi o direito da Russia, Manduca fez o mesmo ao dos alliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocámos outra vez no assumpto. Então Manduca propoz que trocassemos a argumentação por escripto, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel contendo a exposição e defesa do direito dos alliados, e da integridade da Turquia, concluindo por esta phrase prophetica: «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» Li-a e metti-me a refutal-a. Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecel-os, agora que o seculo está a expirar; mas a ideia que me ficou delles é que eram irrespondiveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde elle jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. Ou gosto da polemica ou qualquer outra causa que não alcanço, não me deixou sentir toda a repugnancia que saía da cama e do doente, e o prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte, por mais nojosa que tivesse então a cara, o sorriso que a accendou dissimulou o mal physico. A convicção com que me recebeu o papel e disse que ia ler e responderia é que não tem palavras nossas nem alheias que a digam de todo e com verdade; não era exaltada, não era ruidosa, não tinha gestos, nem a molestia os permittiria, era simples, grande, profunda, um goso infinito de victoria, antes de saber os meus argumentos. Tinha já papel, penna e tinta ao pé da cama. Dias depois recebi a réplica; não me lembra se trazia cousas novas ou não; o calor é que crescia, e o final era o mesmo: «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» Trepliquei, e dahi continuou por algum tempo uma polemica ardente, em que nenhum de nós cedia, defendendo cada um os seus clientes com força e brio. Manduca era mais longo e prompto que eu. Naturalmente a mim sobravam mil cousas que distrahiam, o estudo, os recreios, a familia, e a propria saude, que me chamava a outros exercicios. Manduca, salvo o palmo de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assumpto da cidade e do mundo, mas que ninguem ia tratar com elle. O acaso dera-lhe em mim um adversario; elle, que tinha gosto á escripta, deitou-se ao debate, como a um remedio novo e radical. As horas tristes e compridas eram agora breves e alegres; os olhos desapprenderam de chorar, se por ventura choravam antes. Senti esta mudança delle nas proprias maneiras do pae e da mãe. --Não imagina como elle anda agora, depois que o senhor lhe escreve aquelles papeis, dizia-me o dono da loja, uma vez, á porta da rua. Fala e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os papeis delle, entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e que pergunte ao moleque, quando passar. Emquanto espera, relê jornaes e toma notas. Mas tambem, apenas recebe os seus papeis, atira-se a lel-os, e começa logo a escrever a resposta. Ha occasiões em que não come ou come mal; tanto que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande á hora do almoço ou de jantar... Fui eu que cancei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até que não dei mais nenhuma; elle ainda teimou duas ou tres vezes depois do meu silencio, mas não recebendo contestação alguma, por fadiga tambem ou por não aborrecer, acabou de todo com as suas apologias. A ultima, como a primeira, como todas, affirmava a mesma predicção eterna: «Os russos não hão de entrar em Constantinopla!» Não entraram, effectivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predicção será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema difficil. O proprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou tres annos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a historia, não se faz brincando. A vida delle resistiu como a Turquia; se afinal cedeu foi porque lhe faltou uma alliança como a anglo-franceza, não se podendo considerar tal o simples accordo da medicina e da pharmacia. Morreu afinal, como os Estados morrem; no nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morrerá, porque a morte não poupa a ninguem, mas se os russos entrarão algum dia em Constantinopla; essa era a questão para o meu visinho leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos... XCI Achado que consola. É claro que as reflexões que ahi deixo não foram feitas então, a caminho do seminario, mas agora no gabinete do Engenho Novo. Então, não fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de allivio um dia ao meu visinho Manduca. Hoje, pensando melhor, acho que não só servi de allivio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora não esquecerei mais que dei dous ou tres mezes de felicidade a um pobre diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma cousa na liquidação da minha vida. Se ha no outro mundo tal ou qual premio para as virtudes sem intenção, esta pagará um ou dous dos meus muitos peccados. Quanto ao Manduca, não creio que fosse peccado opinar contra a Russia, mas, se era, elle estará purgando ha quarenta annos a felicidade que alcançou em dous ou tres mezes,--donde concluirá (já tarde) que era ainda melhor haver gemido sómente, sem opinar cousa nenhuma. XCII O diabo não é tão feio como se pinta. Manduca enterrou-se sem mim. A muitas outros aconteceu a mesma cousa, sem que eu sentisse nada, mas este caso affligiu-me particularmente pela razão já dita. Tambem senti não sei que melancolia ao recordar a primeira polemica da vida, o gosto com que elle recebia os meus papeis e se propunha a refutal-os, não contando o gosto do carro... Mas o tempo apagou depressa todas essas saudades e resurreições. Nem foi só elle; duas pessoas vieram ajudal-o, Capitú, cuja imagem dormiu commigo na mesma noite, e outra que direi no capitulo que vem. O resto deste capitulo e só para pedir que, se alguem tiver de ler o meu livro com alguma attenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o diabo não é tão feio como se pinta. Quero dizer... Quero dizer que o meu visinho de Matacavallos, temperando o mal com a opinião anti-russa, dava á podridão das suas carnes um reflexo espiritual que as consolava. Ha consolações maiores, de certo, e uma das mais excellentes é não padecer esse nem outro mal algum, mas a natureza é tão divina que se diverte com taes contrastes, e aos mais nojentos ou mais afflictos acena com uma flòr. E talvez saia assim a flòr mais bella; o meu jardineiro affirma que as violetas, para terem um cheiro superior, hão mister de estrume de porco. Não examinei, mas deve ser verdade. XCIII Um amigo por um defuncto. Quanto á outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu collega Escobar que no domingo, antes do meio dia, veiu ter a Matacavallos. Um amigo suppria assim um defuncto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não visse desde longos mezes. --Você janta commigo, Escobar? --Vim para isto mesmo. Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e elle respondeu com muita polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra prompta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O que elle disse, em resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada educação; no seminario todos me queriam bem, nem podia deixar de ser assim, accrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, «na doce e rara mãe» que o ceu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e tremula. Todos ficaram gostando delle. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dous superlativos, tio Cosme dous capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veiu ella confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto mettidiço e tinha uns olhos policiaes a que não escapava nada. --São os olhos delle, expliquei. --Nem eu digo que sejam de outro. --São olhos reflectidos, opinou tio Cosme. --Seguramente, acudiu José Dias, entretanto, póde ser que a senhora D. Justina tenha alguma razão. A verdade é que uma cousa não impede outra, e a reflexão casa-se muito bem á curiosidade natural. Parece curioso, isso parece, mas... --A mim parece-me um mocinho muito serio, disse minha mãe. --Justamente! confirmou José Dias para não discordar della. Quando eu referi a Escobar aquella opinião de minha mãe (sem lhe contar as outras naturalmente) vi que o prazer delle foi extraordinario. Agradeceu, dizendo que eram bondades, e elogiou tambem minha mãe, senhora grave, distincta e moça, muito moça... Que edade teria? --Já fez quarenta, respondi eu vagam ente por vaidade. --Não é possivel! exclamou Escobar. Quarenta annos! Nem parece trinta; está muito moça e bonita. Tambem a alguem ha de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exactamente os della. Enviuvou ha muitos annos? Contei-lhe o que sabia da vida della e de meu pae. Escobar escutava attento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão pequenino viera, contou-me duas ou tres reminiscencias dos seus tres annos de edade, ainda agora frescas. E não contavamos voltar á roça? --Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquelle preto que alli vae passando, é de lá. Thomaz! --Nhonhô! Estavamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou. --É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está? --Está soccando milho, sim, senhor. --Você ainda se lembra da roça, Thomaz? --Alembra, sim, senhor. --Bem, vá-se embora. Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquelle José, aquelle outro Damião... --Todas as lettras do alphabeto, interrompeu Escobar. Com effeito, eram differentes lettras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um appellido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguella, Antonio Moçambique... --E estão todos aqui em casa? perguntou elle. --Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possivel ter todos em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá. --O que me admira é que D. Gloria se acostumasse logo a viver em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é naturalmente grande. --Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que ha de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da rua da Quitanda... --Conheço essa; é bonita. --Tem tambem no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Cattete... --Não lhe hão de faltar tectos, concluiu elle sorrindo com sympathia. Caminhámos para o fundo. Passámos o lavadouro; elle parou um instante ahi, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a proposito do asseio; depois continuámos. Quaes foram as reflexões não me lembra agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, elle riu tambem. A minha alegria accordava a delle, e o ceu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir tambem comnosco. São assim as boas horas deste mundo. Escobar confessou esse accordo do interno com o externo, por palavras tão finas e altas que me commoveram; depois, a proposito da belleza moral que se ajusta á physica, tornou a falar de minha mãe, «um anjo dobrado», disse elle. XCIV Ideias arithmeticas. Não digo o mais, que foi muito. Nem elle sabia só elogiar e pensar, sabia tambem calcular depressa e bem. Era das cabeças arithmeticas de Holmes (2+2=4). Não se imagina a facilidade com que elle sommava ou multiplicava de cór. A divisão, que foi sempre uma das operações difficeis para mim, era para elle como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos: estava prompto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os proprios signaes das sommas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alphabeto. --Ha lettras inuteis e lettras dispensaveis, dizia elle. Que serviço diverso prestam o _d_ e o _t_? Tem quasi o mesmo som. O mesmo digo do _b_ e do _p_, o mesmo do _s_, do _c_ e do _z_, o mesmo do _k_ e do _g_, etc. São trapalhices calligraphicas. Veja os algarismos: não ha dous que façam o mesmo officio; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a belleza com que um 4 e um 7 formam esta cousa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por egual numero, dá 484, e assim por deante. Mas onde o perfeição é maior é no emprego do _zero._ O valor do _zero_ é, em si mesmo, nada; mas o officio deste signal negativo é justamente augmentar. Um 5 sósinho é um 5; ponha-lhe dous 00, é 500. Assim, o que não vale nada faz valer muito, cousa que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto _approvo_ com um _p_ como com dous _pp._ Criado na orthographia de meus paes, custava-me a ouvir taes blasphemias, mas não ousava refutal-o. Com tudo, um dia, proferi algumas palavras de defesa, ao que elle respondeu que era um preconceito, e accrescentou que as ideias arithmeticas podiam ir ao infinito, com a vantagem que eram mais faceis de menear. Assim que, eu não era capaz de resolver de momento um problema philosophico ou linguistico, ao passo que elle podia sommar, em tres minutos, quaesquer quantias. --Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de numeros que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o numero das casas de sua mãe e os alugueis de cada uma, e se eu não disser a somma total em dous, em um minuto, enforque-me! Acceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escriptos em um papel os algarismos das casas e dos alugueis. Escobar pegou no papel, passou-os pelos olhos afim de os decorar, e emquanto eu fitava o relogio, elle erguia as pupillas, cerrava as palpebras, e sussurrava... Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me: --Dá tudo 1:070$000 mensaes. Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os alugueis variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu gastaria tres ou quatro minutos,--e havia de ser no papel,--fel-o Escobar de cór, brincando. Olhava-me triumphalmente, e perguntava se não era exacto. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei do bolso o papelinho que levava com a somma total, e mostrei-lh'o; era aquillo mesmo, nem um erro: 1:070$000. --Isto prova que as ideias arithmeticas são mais simples, e portanto mais naturaes. A natureza é simples. A arte é atrapalhada. Fiquei tão enthusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçal-o. Era no pateo; outros seminaristas notaram a nossa effusão; um padre que estava com elles não gostou. --A modestia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos; pódem estimar-se com moderação. Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propoz-me viver separados. Interrompi-o dizendo que não; se era inveja, tanto peor para elles. --Quebremos-lhe a castanha na bocca! --Mas... --Fiquemos ainda mais amigos que até aqui. Escobar apertou-me a mão ás escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É illusão, de certo, se não é effeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a penna por alguns instantes... XCV O papa. A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quiz ficar atraz. Na primeira semana disse-me este em casa: --Agora é certo que você vae sair já do seminario. --Como? --Espere até amanhã. Vou jogar com elles que me chamaram; amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na rua, indo á missa, conto-lhe o que ha. A ideia é tão santa que não está mal no santuario. Amanhã, Bentinho. --Mas é cousa certa? --Certíssima! No dia seguinte revelou-me o mysterio. Ao primeiro aspecto, confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não menos que isto. Minha mãe, ao parecer delle, estava arrependida do que fizera, e desejaria ver-me cá fóra, mas entendia que o vinculo moral da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompel-o, e para tanto valia a Escriptura, com o poder de desligar dado aos apostolos. Assim que, elle e eu iriamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me parecia? --Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Póde ser um bom remedio. --É o unico, Bentinho, é o unico! Vou já hoje conversar com D. Gloria, exponho-lhe tudo, e podemos partir daqui a dous mezes, ou antes... --Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro... --Oh! Bentinho! interrompeu o aggregado. Pensar em que? Você o que quer... Digo? não se amofina com o seu velho? Você o que quer é consultar a uma pessoa. Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitú e Escobar, mas eu neguei a pés juntos que quizesse consultar ninguem. E que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe confiasse tal assumpto. Não, nem reitor, nem professor, nem ninguem; era só o tempo de reflectir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a ideia não me parecia má. --Não? --Não. --Pois resolvamos hoje mesmo. --Não se vae a Roma brincando. --Quem tem bocca vae a Roma, e bocca no nosso caso é a moeda. Ora, você póde muito bem gastar comsigo... Commigo, não; um par de calças, tres camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como S. Paulo, que vivia do officio emquanto ia prégando a palavra divina. Pois eu vou, não prégal-a, mas buscal-a. Levaremos cartas do internuncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a objecção que se póde oppôr a esta ideia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta reflectir que é muito mais solemne e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o proprio objecto do favor, o levita promettido, que vae pedir para sua mãe ternissima e dulcissima a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apostolos; Sua Santidade, com o sorriso evangelico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recommenda ao santissimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na terra seja egualmente amado no ceu... Não digo mais, porque é preciso acabar o capitulo, e elle não acabou o discurso. Falou a todos os meus sentimentos de catholico e de namorado. Vi a alma alliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitú, ambas em casa, e eu com ellas, e elle comnosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu só geographicamente sabia onde ficava; espiritualmente, tambem, mas a distancia que estaria da vontade de Capitú é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitú achasse longe, não iria; mas era preciso ouvil-a, e assim tambem a Escobar, que me daria um bom conselho. XCVI Um substituto. Expuz a Capitú a ideia de José Dias. Ouviu-me attentamente, e acabou triste. --Você indo, disse ella, esquece-me inteiramente. --Nunca! --Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Italia principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D. Gloria está morta para que você saia do seminario. --Sim, mas julga-se presa pela promessa. Capitú não achava outra ideia, nem acabava de adoptar esta. De caminho, pediu-me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis mezes estaria de volta. --Juro. --Por Deus? --Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis mezes estarei de volta. --Mas se o papa não tiver ainda soltado a você? --Mando dizer isso mesmo. --E se você mentir? Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse. Capitú metteu o negocio á bulha, rindo e chamando-me disfarçado. Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim não consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa, e eu que visse tambem por meu lado. Quando voltei ao seminario, contei tudo ao meu amigo Escobar, que me ouviu com egual attenção e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quasi me comeram de contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de ideia. E ouvi-lhe dizer com volubilidade: --Não, Bentinho, não é preciso isso. Ha melhor,--não digo melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo,--mas ha cousa que produz o mesmo effeito. --Que é? --Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ella póde muito bem tomar a si algum mocinho orphão, fazel-o ordenar á sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você... --Entendo, entendo, é isso mesmo. --Não acha? continuou elle. Consulte sobre isto o protonotario; elle lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo consulto, se quer; e se elle hesitar, fala-se ao Sr. bispo. Eu, reflectindo: --Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre. Escobar observou que, pelo lado economico, a questão era facil; minha mãe gastaria o mesmo que commigo, e um orphão não precisaria grandes commodidades. Citou a somma dos alugueis das casas, 1:070$000, além dos escravos... --Não ha outra cousa, disse eu. --E saimos juntos. --Você tambem? --Tambem eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou theologia. O proprio latim não é preciso; para quê no commercio? --_In hoc signo vinces_, disse eu rindo. Sentia-me pilherico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois ficámos a cuidar de nós mesmos, cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os delle estavam assim, quando tornei de longe, e agradeci de novo o plano lembrado; não podia havel-o melhor. Escobar ouviu-me contentissimo. --Ainda uma vez, disse elle gravemente, a religião e a liberdade fazem boa companhia. XCVII A saida. Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o padre Cabral, tendo consultado o bispo, voltou a dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminario no fim do anno. Tinha então pouco mais de dezesete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiencia fez-me ir atraz da penna, e chego quasi ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não ha mais que leval-a a grandes pernadas, capitulo sobre capitulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta pagina vale por mezes, outras valerão por annos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrificios que faço a esta dura necessidade é a analyse das minhas emoções dos dezesete annos. Não sei se alguma vez tiveste dezesete annos. Se sim, deves saber que é a edade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosissimo, diria o meu aggregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizel-o aqui, sem cair no erro que acabo de condemnar; a analyse das minhas emoções daquelle tempo é que entrava no meu plano. Posto que filho do seminario e de minha mãe, sentia já, debaixo do recolhimento casto, uns assomos de petulancia e de atrevimento; eram do sangue, mas eram tambem das moças que na rua ou da janella não me deixavam viver socegado. Achavam-me lindo, e diziam-m'o; algumas queriam mirar de mais perto a minha belleza, e a vaidade é um principio de corrupção. XCVIII Cinco annos. Venceu a razão; fui-me aos estudos. Passei os dezoito annos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em direito. Tudo mudára em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabellos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outr'ora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descançar. A prima Justina apenas estava mais edosa. José Dias tambem, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir á minha graduação, e descer commigo a serra, lepido e viçoso, como se o bacharel fosse elle. A mãe de Capitú fallecera, o pae aposentára-se no mesmo cargo em que quiz dar demissão da vida. Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro annos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que elle affagára a ideia de convidar minha mãe a segundas nupcias; mas, se tal ideia houve, cumpre não esquecer a grande differença de edade. Talvez elle não pensasse em mais que associal-a aos seus primeiros tentamens commerciaes, e de facto, a pedido meu, minha mãe adeantou-lhe alguns dinheiros, que elle lhe restituiu, logo que poude, não sem este remoque: «D. Gloria é medrosa e não tem ambição.» A separação não nos esfriou. Elle foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitú. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pae de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitú, e fel-o servir a ambos nós, como amigo. A principio, custou-lhe a ella acceital-o, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de creança. Venceu Escobar; posto que vexada, Capitú entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu elle o obsequio... Que elle casou,--adivinha com quem,--casou com a boa Sancha, a amiga de Capitú, quasi irmã della, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a «sua cunhadinha.» Assim se formam as affeições e os parentescos, as aventuras e os livros. XCIX O filho é a cara do pae. Minha mãe, quando eu regressei bacharel quasi estalou de felicidade. Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de S. João, e dizendo ao ver-nos abraçados. --Mulher, eis ahi o teu filho! Filho, eis ahi a tua mãe! Minha mãe, entre lagrimas: --Mano Cosme, é a cara do pae, não é? --Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pae, um pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora, mana Gloria, não foi melhor que elle não teimasse em ser padre? Veja se este peralta daria um padre capaz. --Como vae o meu substituto? --Vae indo, ordena-se para o anno, respondeu tio Cosme. Has de ir ver a ordenação; eu tambem, se o meu senhor coração consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração. --Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defuncto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com elle, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco... --Sim, mana Gloria, o bigode realmente... mas é muito parecido. E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever. Tio Cosme, para alegral-a, chamava-me doutor, José Dias tambem, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Padua, a filha, e ella mesma repetiam-me o titulo. C «Tu serás feliz, Bentinho!» No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na gloria. Via o casamento e a carreira illustre, emquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma fada invisivel desceu alli, e me disse em voz egualmente macia e callida: «Tu serás feliz, Bentinho; tu vaes ser feliz.» --E porque não seria feliz? perguntou José Dias endireitando o tronco e fitando-me. --Você ouviu? perguntei eu erguendo-me tambem, espantado. --Ouvi o que? --Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz? --É boa! Você mesmo é que está dizendo... Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, metteram-se no coração da gente e falam de dentro para fóra. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distincta. Ha de ser prima das feiticeiras da Escocia: «Tu serás rei, Macbeth!»--«Tu serás feliz, Bentinho!» Ao cabo, é a mesma predicção, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias: --... Ha de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que alli está, que não é favor de ninguem. A distincção que tirou em todas as materias é prova disso; já lhe contei que ouvi da bocca dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a gloria, é tambem outra cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias está ahi para um canto, é cajú chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é moço muito distincto, e trabalhador, e marido de truz; mas, **enfim, velho tambem sabe amar... --Mas que é? --Que ha de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquella intimidade de visinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma benção do ceu, porque ella é um anjo, é um _anjissimo_... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de accentuar a perfeição daquella moça. Cuidei o contrario, outr'ora; confundi os modos de creança com expressões de caracter, e não vi que essa menina travêssa e já de olhos pensativos era a flòr caprichosa de um fructo sadio e doce... Porque é que não me contou tambem o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e approvado? --Mamãe approva devéras? --Pois então? Temos falado sobre isso, e ella fez-me o favor de pedir a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. Padua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e entregal-o á filha. A filha é que distribue o dinheiro, paga as contas, faz o rol das despezas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o anno passado. E quanto á formosura você sabe melhor que ninguem... --Mas, devéras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento? --Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitú não daria uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D. Gloria não negou e até deu um ar de riso. --Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitú. --Você sabe que ellas se dão muito, e por isso é que sua prima anda cada vez mais amuada. Talvez agora case mais depressa. --Prima Justina? --Não sabe? São contos, naturalmente; mas emfim, o doutor João da Gosta enviuvou ha poucos mezes, e dizem (não sei, o protonotario é que me contou) dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si, casando-se. Ha de ver que não ha nada, mas não é fora de proposito, comquanto ella sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos... Só se ella é um cemiterio, commentou rindo; e logo serio: Digo isto por gracejo... Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia, mas já então sem palavras: «Tu serás feliz, Bentinho » E a voz de Capitú me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim tambem a de Escobar, os quaes ambos me confirmaram a noticia de José Dias pela sua propria impressão. Emfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me egual prophecia, salva a redacção própria de mãe: «Tu serás feliz, meu filho!» CI No ceu. Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde do março, por signal que chovia. Quando chegámos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o ceu recolheu a chuva e accendeu as estrellas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos seculos. Foi grande fineza e não foi unica. S. Pedro, que tem as chaves do ceu, abriu-nos as portas delle, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o baculo, recitou alguns versiculos da sua primeira epistola: «As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno dellas o enfeite dos cabellos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração.... Do mesmo modo, vós, maridos, co-habitai com ellas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras comvosco da graça da vida....» Em seguida, fez signal aos anjos, e elles entoaram um trecho do _Cantico_, tão concertadamente, que desmentiriam a hypothese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no ceu. A musica ia com o texto, como se houvessem nascido juntos, á maneira de uma opera de Wagner. Depois, visitámos uma parte daquelle logar infinito. Descança que não farei descripção alguma, nem a lingua humana possue fórmas idoneas para tanto. Ao cabo, póde ser que tudo fosse um sonho; nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escriptura. É verdade que Capitú, que não sabia Escriptura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: «Sentei-me á sombra daquelle que tanto havia desejado.» Quanto ás de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a unica renda e o unico enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo. CII De casada. Imagina um relogio que só tivesse pendulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escriptas. O pendulo iria de um lado para outro, mas nenhum signal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquella semana da Tijuca. De quando em quando, tornavamos ao passado e divertiamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os annos da adolescencia, a denuncia que está nos primeiros capitulos, e riamos de José Dias, que conspirou a nossa desunião, e acabou festejando o nosso consorcio. Uma ou outra vez, falavamos em descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir. Não obstante, achei que Capitú estava um tanto impaciente por descer. Concordava em ficar, mas ia falando do pae e de minha mãe, da falta de noticias nossas, disto e daquillo, a ponto que nos arrufámos um pouco. Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim. --Eu? --Parece. --Você ha de ser sempre creança, disse ella fechando-me a cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus. Então eu esperei tantos annos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é realmente assim, creio que elles pódem estar desejosos de ver-nos e imaginar alguma doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver papae. --Pois vamos amanhã. --Não; ha de ser com tempo encoberto, redarguiu rindo. Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciencia continuou, e descemos com sol. A alegria com que poz o seu chapéo de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciencia de Capitú eram os signaes exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas arvores; precisava do resto do mundo tambem. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ella, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmasses e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: «Quem são?» e um sabido explicava: «Este é o doutor Santiago, que casou ha dias com aquella moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de creanças; moram na Gloria, as familias residem em Matacavallos.» E ambos os dous: « É uma mocetona!» CIII A felicidade tem boa alma. Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a unica pessoa cá de baixo que nos visitou na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras que eram musicas verdadeiras; não as ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia, comparou-nos a aves criadas em dous vãos de telhado contiguos. Imagina o resto, as aves emplumando as azas e surtindo ao ceu, e o ceu agora mais largo para poder contel-as tambem. Nenhum de nós riu; ambos escutavamos commovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858.... A felicidade tem boa alma. CIV As pyramides. José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os jantares da Gloria com os almoços de Matacavallos. Tudo corria bem. Ao fim de dous annos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saude de minha mãe era boa; a nossa excellente. Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando. Escobar contribuira muito para as minhas estréas no fòro. Interveiu com um advogado celebre para que me admitisse á sua banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo espontaneamente. Demais, as nossas relações de familia estavam previamente feitas; Sancha e Capitú continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do seminario. Elles moravam em Andarahy, aonde queriam que fossemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejavamos, iamos lá jantar alguns domingos, ou elles vinham fazel-o comnosco. Jantar é pouco. Iamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só nos separavamos ás nove, dez e onze horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naquelles dias de Andarahy e da Gloria, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos como as Pyramides. Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negocio de theatro, não sei que actriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escandalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me: --Homem, deixa lá. Deus os dará quando quizer, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no ceu. --Uma creanca, um filho é o complemento natural da vida. --Virá, so fòr necessário. Não vinha. Capitú pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedil-o. Já não era como em creança; agora pagava antecipadamente, como os alugueis da casa. CV Os braços. No mais, tudo corria bem. Capitú gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros tempos, quando iamos a passeios ou espectaculos, era como um passaro que saisse da gaiola. Arranjava-se com graça e modestia. Embora gostasse de joias, como as outras moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia affligiu-se tanto que prometti não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo. A nossa vida era mais ou menos placida. Quando não estavamos com a familia ou com amigos, ou se não iamos a algum espectaculo ou serão particular (e estes eram raros) passavamos as noites á nossa janella da Gloria, mirando o mar e o ceu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. Ás vezes, eu contava a Capitú a historia da cidade, outras dava-lhe noticias de astronomia; noticias de amador que ella escutava attenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochillasse um pouco. Não sabendo piano, apprendeu depois de casada, e depressa, e dahi a pouco tocava nas casas de amizade. Na Gloria era uma das nossas recreações; tambem cantava, mas pouco e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. De dansar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que... Os braços merecem um periodo. Eram bellos, e na primeira noite que os levou nús a um baile, não creio que houvesse eguaes na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no marmore, donde vieram, ou nas mãos do divino esculptor. Eram os mais bellos da noite, a ponto que me encheram de desvanecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vel-os, por mais que elles se entrelaçassem aos das casacas alheias. Já não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para elles, de os buscar, quasi de os pedir, e que roçavam por elles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tedios; concordou logo commigo. --Sanchinha tambem não vae, ou irá de mangas compridas; o contrario parece-me indecente. --Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitú já me chamou assim. Nem por isso deixei de contar a Capitú a approvação de Escobar. Ella sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escomilha ou não sei quê, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o sendal de Camões. CVI Dez libras esterlinas. Já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas tambem de cousas usadas, dessas que se guardam por tradição, por lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e principio da perna, os ultimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da commoda, com outras velharias, dizendo-me que eram pedaços de creança. Minha mãe, que tinha o mesmo genio, gostava de ouvir falar e fazer assim. Quanto ás puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta. Foi justamente por occasião de uma licção de astronomia, á praia da Gloria. Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciumes. --Você não me ouve, Capitú. --Eu? Ouço perfeitamente. --O que é que eu dizia? --Você... você falava de Sirius. --Qual, Sirius, Capitú. Ha vinte minutos que eu falei de Sirius. --Falava de... falava de Marte, emendou ella apressada. Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhára o som da palavra, não o sentido. Fiquei serio, e o impeto que me deu foi deixar a sala; Capitú, ao percebel-o, fez-se a mais mimosa das creaturas, pegou-me na mão, confessou-me que estivera contando, isto é, sommando uns dinheiros para descobrir certa parcella que não achava. Tratava-se de uma conversão de papel em ouro. A principio suppuz que era um recurso para desentadar-me, mas d'ahi a pouco estava eu mesmo calculando tambem, já então com papel e lapis, sobre o joelho, e dava a differença que ella buscam. --Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim. Capitú fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despezas. --Tudo isto? --Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher poude arranjar, em alguns mezes, concluiu fazendo tinir o ouro na mão. --Quem foi o corretor? --O seu amigo Escobar. --Como é que elle não me disse nada? --Foi hoje mesmo. --Elle esteve cá? --Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse. Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente commemorativo, mas Capitú deteve-me. Ao contrario, consultou-me sobre o que haviamos de fazer daquellas libras. --São suas, respondi. --São nossas, emendou. --Pois você guarde-as. No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazem, e ri-me do segredo de ambos. Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escriptorio contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitú) tinha-lhe falado naquillo por occasião da nossa ultima visita a Andarahy, e disse-lhe a razão do segredo. --Quando contei isto a Sanchinha, concluiu elle, ficou espantada: «Como é que Capitú póde economisar, agora que tudo está tão caro?»--«Não sei, filha; sei que arranjou dez libras.» --Vê se ella apprende tambem. --Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas tambem não é poupada; o que lhe dou chega, mas só chega. Eu, depois de alguns instantes de reflexão: --Capitú é um anjo! Escobar concordou de cabeça, mas sem enthusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias tu tambem, tão certo é que as virtudes das pessoas proximas nos dão tal ou qual vaidade, orgulho ou consolação. CVII Ciumes do mar. Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitú; mas não é por isso que torno a ella, é para que não cuides que a vaidade de professor é que me fez padecer com a desattenção de Capitú e ter ciumes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive taes ciumes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fóra ou acima della. É sabido que as distracções de uma pessoa pódem ser culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto, um decimo de culpadas, pois que em materia de culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação delles. Não é mister peccado effectivo e mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou signal ainda mais miudo e leve. Um anonymo ou anonyma que passe na esquina da rua faz com que mettamos Sirius dentro do Marte, e tu sabes, leitor, a differença que ha de um a outro na distancia e no tamanho, mas a astronomia tem dessas confusões. Foi isto que mo fez empallidecer, calar e querer fugir da sala para voltar. Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou á janella, continuando a licção interrompida: --Marte está a distancia de... Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciumes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o ceu, a terra e as estrellas. A verdade é que fiquei mais amigo de Capitú, se era possivel, ella ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitú empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar tambem se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais proximas, e as nossas conversações mais intimas. CVIII Um filho. Pois nem todo isso me matava a sède de um filho, um triste menino que fosse, amarello e magro, mas um filho, um filho proprio da minha pessoa. Quando iamos a Andarahy e viamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capitúsinha, por differençal-a de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome á pia, ficavamos cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os paes, como os outros paes, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando voltavamos á noite para a Gloria, vinhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo mentalmente ao ceu que nol-as matassem... ... As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao mundo o fructo dellas. Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão robusto e lindo. A minha alegria quando elle nasceu, não sei dizel-a; nunca a tive egual, nem creio que a possa haver identica, ou que de longe ou de perto se pareça com ella. Foi uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não affligir Capitú convalescente. Tambem não caía, porque ha um deus para os paes novos. Fóra, vivia com o espirito no menino; em casa, com os olhos, a observal-o, a miral-o, a perguntar-lhe donde vinha, e porque é que eu estava tão inteiramente nelle, e varias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas no fòro por descuido. Capitú não era menos terna para elle e para mim. Davamos as mãos um ao outro, e, quando não olhavamos para o nosso filho, conversavamos de nós, do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e mysterio eram as de amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquella união da natureza para a nutrição e vida de um ser que não fòra nada, mas que o nosso destino affirmou que seria, e a nossa constancia e o nosso amor fizeram que chegasse a ser, ficava que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que dissesse me saisse escuro. Escusai minucias. Assim que, não é preciso contar a dedicação de minha mãe e de Sancha, que tambem foi passar com Capitú os primeiros dias e noites. Quiz rejeitar o obsequio de Sandia; respondeu-me que eu não tinha nada com isso; tambem Capitú, em solteira, fora tratal-a á rua dos Invalidos. --Não se lembra que o senhor foi lá vel-a? --Lembra-me; mas Escobar... --Eu virei jantar com vocês, e ás noites sigo para Andarahy; oito dias, e está tudo passado. Bem se vê que você é pae de primeira viagem. --Tambem você; onde está a segunda? Usavamos então estas graças em familia. Hoje, que me recolhi á minha casmurrice, não sei se ainda ha tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o que disse; jantava comnosco, e ia-se á noite. Sobre tarde desciamos á praia ou iamos ao Passeio Publico, fazendo elle os seus calculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho medico, advogado, negociante, metti-o em varias universidades e bancos, e até acceitei a hypothese de ser poeta. A possibilidade de politico foi consultada, e cri que me saisse orador, e grande orador. --Póde ser, redarguia Escobar; ninguem diria o que veiu a ser Desmosthenes. Escobar acompanhava muita vez as minhas creancices; tambem interrogava o futuro. Chegou a falar da hypothese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total ausencia de palavras com que alli assignei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força. Acceitei a lembrança, e propuz que os encaminhassemos a este fim, pela educarão egual e commum, pela infancia unida e correcta. Era minha ideia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao ver a creança, disse-lhe entre outros carinhos. --Anda, toma o benção a teu padrinho, velhaco. E, voltando-se para mim: --Não desisto do favor; e ha de ser depressa o baptisado, antes que a minha doença me leve de vez. Contei discretamente a anecdota a Escobar, para que elle me comprehendesse e desculpasse; riu-se e não se magoou. Fez mais, quiz que o almoço do baptisado fosse na chacara delle, e foi. Eu ainda tentei espaçar a cerimonia a ver se tio Cosme succumbia primeiro á doença, mas parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não houve remedio senão levar o menino á pia, onde se lhe deu o nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quiz supprir deste modo a falta de compadrio. CIX Um filho unico. Ezequiel, quando começou o capitulo anterior, não era ainda gerado; quando acabou era christão e catholico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco annos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se quizessem namorar todas as moças da visinhança, ou quasi todas. Agora, se considerares que elle foi unico, que nenhum outro veiu, certo nem incerto, morto nem vivo, um só e unico, imaginarás os cuidados que nos deu, os somnos que nos tirou, e que sustos nos metteram as crises dos dentes e outras, a menor febricula, toda a existencia commum das creanças. A tudo acudiamos, segundo cumpria e urgia, cousa que não era necessario dizer, mas ha leitores tão obtusos, que nada entendem, se se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto. CX Rasgos da infancia. O resto come-me ainda muitos capitulos; ha vidas que os tem menos, e fazem-se ainda assim completas e acabadas. Aos cinco e seis annos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos da praia da Gloria; ao contrario, adivinhavam-se nelle todos as vocações possiveis, desde vadio até apostolo. Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala; mettia-se ás vezes comsigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim tambem, agitava-se todo e instava por ir persuadir ás visinhas que os doces que eu lhe trazia eram doces devéras; não o fazia antes de farto d'elles, mas tambem os apostolos não levam a boa doutrina senão depois de a terem toda no coração. Escobar, bom negociante, opinava que a causa principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar implicitamente as visinhas a egual apostolado, quando os paes lhe trouxessem doces; e ria-se da propria graça, e annunciava-me que o faria seu socio. Gostava de musica, não menos que de doce, e eu disse a Capitú que lhe tirasse ao piano o prégão do preto das cocadas de Matacavallos... --Não me lembra. --Não diga isso; você não se lembra daquelle preto que vendia doce, ás tardes... --Lembro-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada. --Nem das palavras? --Nem das palavras. A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com attenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infancia e adolescencia; haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça. Assim me replicou Capitú, e não achei treplica. Fiz, porém, o que ella não esperava; corri aos meus papeis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a um professor de musica que me transcrevesse a toada do prégão; elle o fez com prazer (bastou-me repetir-lh'o de memoria), e eu guardei o papelinho; fui procural-o. D'ahi a pouco interrompi um romance que ella tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lh'o; ella teclou as dezeseis notas. Capitú achou á toada um sabor particular, quasi delicioso; contou ao filho a historia do prégão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a musica para pedir-me que desmentisse o texto dando-lhe algum dinheiro. Fazia de medico, de militar, de actor e bailarino. Nunca lhe dei oratorios; mas cavallos de pau e espada á cinta eram com elle. Já não falo dos batalhões que passavam na rua, e que elle corria a ver: todas as creancas o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ancias de gosto com que assistia á passagem da tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores. --Olha, papae! olha! --Estou vendo, meu filho! --Olha o commandante! Olha o cavallo do commandante! Olha os soldados! Um dia amanheceu tocando corneta com a mão; dei-lhe uma cornetinha de metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que elle mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de artilharia, um soldado caído, outro de espada alçada, e todos os seus amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingenua edade!) perguntou-me impaciente: --Mas, papae, porque é que elle não deixa cair a espada de uma vez? --Meu filho, é porque é pintado. --Mas então porque é que elle se pintou? Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha pintado no papel, mas o gravador, e tive de explicar tambem, o que era gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitú, em summa. Taes são os principaes rasgos da infancia: mais um e acabo o capitulo. Um dia, na chacara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na bocca. O gato nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-se, e ficou olhando. Ao vel-o assim attento, perguntámos-lhe de longe o que era; fez-nos signal que nos calassemos. Escobar concluiu: --Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-me a casa, que é o diabo. Vamos ver. Capitú quiz tambem ver o filho; acompanhei-os. Effectivamente, era um gato e um rato, lance banal, sem interesse nem graça. A unica circumstancia particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O gato, logo que sentiu mais gente, dispoz-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos de cima, fez-nos outro signal de silencio; e o silencio não podia ser maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar a totalidade do silencio, mas tambem porque havia naquella acção do gato e do rato alguma cousa que prendia com ritual. O unico rumor eram os ultimos guinchos do rato, aliás frouxissimos; as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o gato fugiu. Os outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido. --Ora, papae! --Que foi? A esta hora o rato está comido. --Pois sim, mas eu queria ver. Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça. CXI Contado depressa. Achei-lhe graça, e não lh'a nego ainda agora, apesar do tempo passado, dos successos occorridos, e da tal ou qual sympathia ao rato que acho em mim; teve graça. Não me pesa dizel-o; os que amam a natureza como ella quer ser amada, sem repudio parcial nem exclusões injustas, não acham nella nada inferior. Amo o rato, não desamo o gato. Já pensei em os fazer viver juntos, mas vi que são incompativeis. Em verdade, um roe-me os livros, outro o queijo; mas não é muito que eu lhes perdoe, se já perdoei a um cachorro que me levou o descanço em peores circumstancias. Contarei o caso depressa. Foi quando nasceu Ezequiel; a mãe estava com febre, Sancha vivia ao pé della, e tres cães na rua latiam toda a noite. Procurei o fiscal, e foi como se procurasse o leitor, que só agora sabe disto. Então resolvi matal-os; comprei veneno, mandei fazer tres bolas de carne, e eu mesmo inseri nellas a droga. De noite, saí; era uma hora; nem a doente, nem a enfermeira podiam dormir, com a bulha dos cães. Quando elles me viram, afastaram-se, dous desceram para o lado da praia do Flamengo, um ficou a curta distancia, como que esperando. Fui-me a elle, assobiando e dando estalinhos com os dedos. O diabo ainda latiu, mas fiado nos signaes de amizade, foi-se calando, até que se calou de todo. Como eu continuasse, elle veiu a mim, devagar, mexendo a cauda, que é o seu modo de rir delles; eu tinha já na mão as bolas envenenadas, e ia deitar-lhe uma dellas, quando aquelle riso especial, carinho, confiança ou o que quer que seja, me atou a vontade; fiquei assim não sei como, tocado de pena e guardei as bolas no bolso. Ao leitor póde parecer que foi o cheiro da carne que remetteu o cão ao silencio. Não digo que não; eu cuido que elle não me quiz attribuir perfidia ao gesto, e entregou-se-me. A conclusão é que se livrou. CXII As imitações de Ezequiel. Tal não faria Ezequiel. Não comporia bolas envenenadas, supponho, mas não as recusaria tambem. O que faria com certeza era ir atraz dos cães, a pedrada, até onde lhe dessem as pernas. E se tivesse um pau, iria a pau. Capitú morria por aquelle batalhador futuro. --Não sae a nós, que gostamos da paz, disse-me ella um dia, mas papae em moço era assim tambem; mamãe é que contava. --Sim, não sairá maricas, repliquei; eu só lhe descubro um defeitosinho, gosta de imitar os outros. --Imitar como? --Imitar os gestos, as modos, os altitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um geito dos pés de Escobar e dos olhos... Capitú deixou-se estar pensando e olhando para mim, e disse afinal que era preciso emendal-o. Agora reparava que realmente era vezo do filho, mas parecia-lhe que era só imitar por imitar, como succede a muitas pessoas grandes, que tomam as maneiras dos outros; e para que não fosse mais longe... --Tambem não vamos mortifical-o. Sempre ha tempo de corrigil-o. --Ha, vou ver. Você tambem não era assim, quando se zangava com alguem... --Quando me zangava, concordo; vingança de menino. --Sim, mas eu não gosto de imitações em casa. --E naquelle tempo gostavas de mim? disse eu batendo-lhe na face. A resposta do Capitú foi um riso doce de escarneo, um desses risos que não se descrevem, e apenas se pintarão; depois estirou os braços e atirou-m'os sobre os hombros, tão cheios de graça que pareciam (velha imagem!) um collar de flores. Eu fiz o mesmo aos meus, e senti não haver alli um esculptor que nos transferisse a altitude a um pedaço de marmore. Só brilharia o artista, é certo. Quando uma pessoa ou um grupo saem bem, ninguem quer saber de modelo, mas da obra, e a obra é que fica. Não importa; nós saberiamos que eramos nós. CXIII Embargos de terceiro. Por falar nisto, é natural que me perguntes se, sendo antes tão cioso della, não continuei a sel-o apesar do filho e dos annos. Sim, senhor, continuei. Continuei, a tal ponto que o menor gesto me affligia, a mais intima palavra, uma insistencia qualquer: muita vez só a indifferença bastava. Cheguei a ter ciumes de tudo e de todos. Um visinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança. E certo que Capitú gostava de ser vista, e o meio mais proprio a tal fim (disse-me uma senhora, um dia) é ver tambem, e não ha ver sem mostrar que se vê. A senhora que me disse isto cuido que gostou de mim, e foi naturalmente por não achar da minha parte correspondencia aos seus affectos que me explicou daquella maneira os seus olhos teimosos. Outros olhos me procuravam tambem, não muitos, e não digo nada sobre elles, tendo aliás confessado a principio as minhas aventuras vindouras, mas eram ainda vindouras. Naquelle tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a minima parte do amor que tinha a Capitú. A minha propria mãe não queria mais que metade. Capitú era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nella. Ao theatro iamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ella, um beneficio de actor, e uma estréa de opera, a que ella não foi por ter adoecido, mas quiz por força que eu fosse. Era tarde para mandar o camarote a Escobar; saí, mas voltei no fim do primeiro acto. Encontrei Escobar á porta do corredor. --Vinha falar-te, disse-me elle. Expliquei-lhe que tenha saido para o theatro, donde voltára receioso de Capitú, que ficára doente. --Doente de que? perguntou Escobar. --Queixava-se da cabeça e do estomago. --Então, vou-me embora. Vinha para aquelle negocio dos embargos... Eram uns embargos de terceiro; occorrera um incidente importante, e, tendo elle jantado na cidade, não quiz ir para casa sem dizer-me o que era, mas já agora falaria depois... --Não, falemos já, sóbe; ella póde estar melhor. Se estiver peor, desces. Capitú estava melhor e até boa. Confessou-me que apenas tivera uma dor de cabeça de nada, mas aggravára o padecimento para que eu fosse divertir-me. Não falava alegre, o que me fez desconfiar quo mentia, para me não metter medo, mas jurou que era a verdade pura. Escobar sorriu e disse: --A cunhadinha está tão doente como você ou eu. Vamos aos embargos. CXIV Em que se explica o explicado. Antes de ir aos embargos, expliquemos ainda um ponto que já ficou explicado, mas não bem explicado. Viste que eu pedi (cap. CX) a um professor de musica de S. Paulo que me escrevesse a toada daquelle prégão de doces de Matacavallos. Em si, a materia é chocha, e não vale a pena de um capitulo, quanto mais dous; mas ha materias taes que trazem ensinamentos interessantes, senão agradaveis. Expliquemos o explicado. Capitú e eu tinhamos jurado não esquecer mais aquelle prégão; foi em momento de grande ternura, e o tabellião divino sabe as cousas que se juram em taes momentos, elle que as registra nos livros eternos. --Você jura? --Juro, disse ella estendendo tragicamente o braço. Aproveitei o gesto para beijar-lhe a mão; estava ainda no seminario. Quando fui para S. Paulo, querendo um dia relembrar a toada, vi que a ia perdendo inteiramente; consegui recordal-a e corri ao professor, que me fez o obsequio de a escrever no pedacinho de papel. Foi para não faltar ao juramento que fiz isto. Mas has de crer que, quando corri aos papeis velhos, naquelle noite da Gloria, tambem me não lembrava já da toada nem do texto? Fiz-me de pontual ao juramento, e este é que foi o meu peccado; esquecer, qualquer esquece. Ao certo, ninguem sabe se ha de manter ou não um juramento. Cousas futuras! Portanto, a nossa constituição politica, transferindo o juramento á affirmação simples, é profundamente moral. Acabou com um peccado terrivel. Faltar ao compromisso é sempre infidelidade, mas a alguem que tenha mais temor a Deus que aos homens não lhe importara mentir, uma vez ou outra, desde que não mette a alma no purgatorio. Não confundam purgatorio com inferno, que é o eterno naufragio. Purgatorio é uma casa de penhores, que empresta sobre todas as virtudes, a juro alto e prazo curto. Mas os prazos renovam-se, até que um dia uma ou duas virtudes medianas pagam todos os peccados grandes e pequenos. CXV Duvidas sobre duvidas. Vamos agora aos embargos... E porque iremos aos embargos? Deus sabe o que custa escrevel-os, quanto mais contal-os. Da circumstancia nova que Escobar me trazia apenas digo o que lhe disse então, isto é, que não valia nada. --Nada? --Quasi nada. --Então vale alguma cousa. --Para reforçar as razões que já temos vale menos que o chá que você vae tomar commigo. --É tarde para tomar chá. --Tomaremos depressa. Tomámos depressa. Durante elle, Escobar olhava para mim desconfiado, como se cuidasse que eu recusava a circumstancia nova por forrar-me a escrevel-a; mas tal suspeita não ia com a nossa amizade. Quando elle saiu, referi as minhas duvidas a Capitú; ella as desfez com a arte fina que possuia, um geito, uma graça toda sua, capaz de dissipar as mesmas tristezas de Olympio. --Seria o negocio dos embargos, concluiu; e elle que veiu até aqui, a esta hora, é que está impressionado com a demanda. --Tens razão. Palavra puxa palavra, falei de outras duvidas. Eu era então um poço dellas; coaxavam dentro do mim, como verdadeiras rans, a ponto de me tirarem o somno algumas vezes. Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ella. Pois aqui mesmo valeu a arte fina de Capitú! --Ja disse a você o que é; cousas de sogra. Mamãesinha tem ciumes de você; logo que elles passem e as saudades augmentem, ella torna a ser o que era. Em lhe faltando o neto... --Mas eu tenho notado que já é fria tambem com Ezequiel. Quando elle vae commigo, mamãe não lhe faz as mesmas graças. --Quem sabe se não anda doente? --Vamos nós jantar com ella amanhã? --Vamos... Não... Pois vamos. Fomos jantar com a minha velha. Já lhe podia chamar assim, posto que os seus cabellos brancos não o fossem todos nem totalmente, e o rosto estivesse comparativamente fresco; era uma especie de mocidade quinquagenaria ou do ancianidade viçosa, á escolha... Mas nada de melancolias; não quer falar dos olhos molhados, á entrada e á saida. Pouco entrou na conversação. Tambem não era differente da costumada. José Dias falou do casamento e suas bellezas, da politica, da Europa e da homeopathia, tio Cosme das suas molestias, prima Justina da visinhança, ou de José Dias, quando este saía da sala. Quando voltámos, á noite, viemos por alli a pé, falando das minhas duvidas. Capitú novamente me aconselhou que esperassemos. Sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura. Dalli em deante foi cada vez mais doce commigo; não me ia esperar á janella, para não espertar-me os ciumes, mas quando eu subia, via no alto da escada, entre as grades da cancella, a cara deliciosa da minha amiga e esposa, risonha como toda a nossa infancia. Ezequiel ás vezes estava com ella; nós o havíamos acostumado a ver o osculo da chegada e da saida, e elle enchia-me a cara de beijos. CXVI Filho do homem. Apalpei José Dias sobre as maneiras novas de minha mãe; ficou espantado. Não havia nada, nem podia haver cousa nenhuma, tantos eram os louvores incessantes que elle ouvia «á bella e virtuosa Capitú.» --Agora, quando os ouço, entro tambem no côro, mas a principio ficava envergonhadissimo. Para quem chegou, como eu, a arrenegar deste casamento, era duro confessar que elle foi uma verdadeira benção do ceu. Que digna senhora nos saiu a creança travessa de Matacavallos! O pae é que nos separou um pouco, em quanto não nos conheciamos, mas tudo acabou em bem. Pois, sim, senhor, quando D. Gloria elogia a sua nora e comadre... --Então mamãe?... --Perfeitamente! --Mas, porque e não nos visita ha tanto tempo? --Creio que tem andando mais achacada dos seus rheumatismos. Este anno tem feito muito frio... Imagine a afflicção della, que andava o dia inteiro; agora é obrigada a estar quieta, ao pé do irmão, que lá tem o seu mal... Quiz observar-lhe que tal razão explicava a interrupção das visitas, e não a frieza quando iamos nós a Matacavallos; mas não estendi tão longe a intimidade do aggregado. José Dias pediu para ver o nosso «prophetasinho» (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume. Desta vez falou ao modo biblico (estivera na vespera a folhear o livro de Ezequiel, como soube depois), e perguntava-lhe: «Como vae isso, filho do homem?» «Dize-me, filho do homem, onde estão os teus brinquedos?» «Queres comer doce, filho do homem?» --Que filho do homem é esse, perguntou-lhe Capitú agastada. --São os modos de dizer da Biblia. --Pois eu não gosto delles, replicou ella com aspereza. --Tem razão, Capitú, concordou o aggregado. Voce não imagina como a Biblia é cheia de expressões cruas e grosseiras. Eu falava assim para variar... Tu como vaes, meu anjo? Meu anjo, como é que eu ando na rua? --Não, atalhou Capitú; já lhe vou tirando esse costume do imitar os outros. **--Mas tem muita graça; a mim, quando elle copia os meus gestos, parece-me que sou eu mesmo, pequenino. Outro dia chegou a fazer um gesto de D. Gloria, tão bom que ella lhe deu um beijo em paga. Vamos, como é que eu ando? --Não, Ezequiel, disse eu, mamãe não quer. Eu mesmo achava feio tal séstro. Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como o das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar da cabeça deste, quando falava, e o de deixal-a cair, quando ria. Capitú ralhava. Mas o menino era travesso, como o diabo; apenas começámos a falar de outra cousa, saltou ao meio da sala, dizendo a José Dias: --O senhor anda assim. Não podemos deixar de rir, eu mais que ninguem. A primeira pessoa que fechou a cara, que o reprehendeu e chamou a si foi Capitú. --Não quero isso, ouviu? CXVII Amigos proximos. Já então Escobar deixára Andarahy e comprára uma casa no Flamengo, casa que ainda alli vi, ha dias, quando me deu na gana experimentar se as sensações antigas estavam mortas ou dormiam só; não posso dizel-o bem, porque os somnos, quando são pesados, confundem vivos e defunctos, a não ser a respiração. Eu respirava um pouco, mas póde ser que fosse do mar, meio agitado. Emfim, passei, accendi um charuto, e dei por mim no Cattete; tinha subido pela rua da Princeza, uma rua antiga... Ó ruas antigas! ó casas antigas! ó pernas antigas! Todos nós éramos antigos, e não é preciso dizer que no máu sentido, no sentido de velho e acabado. Velha é a casa, mas não lhe alteraram nada. Não sei até se ainda tem o mesmo numero. Não digo que numero é para não irem indagar e cavar a historia. Não é que Escobar ainda lá more nem sequer viva; morreu pouco depois, por um modo que hei de contar. Emquanto viveu, uma vez que estavamos tão proximos, tinhamos por assim dizer uma só casa, eu vivia na delle, elle na minha, e o pedaço de praia entre a Gloria e o Flamengo era como um caminho de uso proprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Matacavallos, com o seu muro de permeio. Um historiador da nossa lingua, creio que João de Barros, põe na boca de um rei barbaro algumas palavras mansas, quando os portuguezes lhe propunham estabelecer alli ao pé uma fortaleza; dizia o rei que os bons amigos deviam ficar longe uns dos outros, não perto, para se não zangarem como as aguas do mar que batiam furiosas no rochedo que elles viam dalli. Que a sombra do escriptor me perdoe, se eu duvido que o rei dissesse tal palavra nem que ella seja verdadeira. Provavelmente foi o mesmo escriptor que a inventou para adornar o texto, e não fez mal, porque é bonita; realmente, é bonita. Eu creio que o mar então batia na pedra, como é seu costume, desde Ullysses e antes. Agora que a comparação seja verdadeira é que não. Seguramente ha inimigos contiguos, mas tambem ha amigos do perto e do peito. E o escriptor esquecia (salvo se ainda não era do seu tempo) esquecia o adagio: longe dos olhos, longe do coração. Nós não podiamos ter os corações agora mais perto. As nossas mulheres viviam na casa uma da outra, nós passavamos as noites cá ou lá conversando, jogando ou mirando o mar. Os dous pequenos passavam dias, ora no Flamengo, ora na Gloria. Como eu observasse que podia acontecer com elles o que se dera entre mim e Capitú, acharam todos que sim, e Sancha accrescentou que até já se iam parecendo. Eu expliquei: --Não; é porque Ezequiel imita os gestos dos outros. Escobar concordou commigo, e insinuou que alguma vez as creanças que se frequentam muito acabam parecendo-se umas com as outras. Opinei de cabeça, como me succedia nas materias que eu não sabia bem nem mal. Tudo podia ser. O certo é que elles se queriam muito, e podiam acabar casados, mas não acabaram casados. CXVIII A mão de Sancha. Tudo acaba, leitor; é um velho truismo, a que se póde accrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes faceis; ao contrario, a ideia de que um castello de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito, difficilmente se despegará da cabeça, e é bom que seja assim, para que se não perca o costume daquellas construcções quasi eternas. O nosso castello era solido, mas um domingo... Na vespera tinhamos passado a noite no Flamengo, não só os dous casaes inseparaveis, como ainda o aggregado e prima Justina. Foi então que Escobar, falando-me á janella, disse-me que fossemos lá jantar no dia seguinte; precisavamos falar de um projecto em familia, um projecto para os quatro. --Para os quatro? Uma contradança. --Não. Não és capaz de adivinhar o que seja, nem eu digo. Vem amanhã. Sancha não tirava os olhos de nós durante a conversa, ao canto da janella. Quando o marido saiu, veiu ter commigo. Perguntou-me de que é que falaramos; disse-lhe que de um projecto que eu não sabia qual fosse; ella pediu-me segredo, e revelou-me o que era: uma viagem á Europa dalli a dous annos. Disse isto de costas para dentro, quasi suspirando. O mar batia com grande força na praia; havia ressaca. --Vamos todos? perguntei por fim. --Vamos. Sancha ergueu a cabeça e olhou para mim com tanto prazer que eu, graças ás relações della e Capitú, não se me daria beijal-a na testa. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternaes, pareciam quentes e intimativos, diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janella, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. A noite era clara. Dalli mesmo busquei os olhos de Sancha, ao pé do piano; encontrei-os em caminho. Pararam os quatro e ficaram deante uns dos outros, uns esperando que os outros passassem, mas nenhuns passavam. Tal se dá na rua entre dous teimosos. A cautela desligou-nos; eu tornei a voltar-me para fóra. E assim posto entrei a cavar na memoria se a alguma vez olhára para ella com a mesma expressão, e fiquei incerto. Tive uma certeza só, é que um dia pensei nella, como se pensa na bella desconhecida que passa**; mas então dar-se-hia que ella adivinhando... Talvez o simples pensamento me transluzisse cá fóra, e ella me fugisse outr'ora irritada ou acanhada, e agora por um movimento invencivel... Invencivel; esta palavra foi como uma benção de padre á missa, que a gente recebe e repete em si mesma. --O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim. --Você entra no mar amanhã? --Tenho entrado com mares maiores, muito maiores.--Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões,--disse elle batendo no peito, e estes braços; apalpa. Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso supprimil-a; era jarretar a verdade. Nem só os apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra cousa: achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; accresce que sabiam nadar. Quando saímos, tornei a falar com os olhos á dona da casa. A mão della apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. A modestia pedia então, como agora, que eu visse naquelle gesto de Sancha uma sancção ao projecto do marido e um agradecimento. Assim devia ser, mas um fluido particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escripta. Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de peccado. Passou depressa no relogio do tempo; quando cheguei o relogio ao ouvido, trabalhavam só os minutos da virtude e da razão. **--...Uma senhora deliciosissima, concluiu José Dias um discurso que vinha fazendo. --Deliciosissima! repeti com algum ardor, que moderei logo, emendando-me: Realmente, uma bella noite! --Como devem ser todas as daquella casa, continuou o aggregado. Cá fóra, não; cá fóra o mar está zangado; escute. Ouvia-se o mar forte,--como já se ouvia de casa,--a ressaca era grande, e, a distancia, viam-se crescer as ondas. Capitú e prima Justina, que iam adeante, detiveram-se n'uma das voltas da praia, e fomos conversando os quatro; mas eu conversava mal. Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocámos. Agora achava-lhes isto, agora aquillo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relogio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação. José Dias despediu-se de nós á porta. Prima Justina dormiu em nossa casa; iria embora, no dia seguinte, depois do almoço e da missa. Eu recolhi-me ao meu gabinete, onde me demorei mais que de costume. O retrato de Escobar, que eu tinha alli, ao pé do de minha mãe, falou-me como se fosse a propria pessoa. Combati sinceramente os impulsos que trazia do Flamengo; rejeitei a figura da mulher do meu amigo, e chamei-me desleal. Demais, quem me affirmava que houvesse alguma intenção daquella especie no gesto da despedida e nos anteriores? Tudo podia ligar-se ao interesse da nossa viagem. Sancha e Capitú eram tão amigas que seria um prazer mais para ellas irem juntas. Quando houvesse alguma intenção sexual, quem me provaria que não era mais que uma sensação fulgurante, destinada a morrer com a noite e o somno? Ha remorsos que não nascem de outro peccado, nem tem maior duração. Agarrei-me a esta hypothese que se conciliava com a mão de Sancha, que eu sentia de memoria dentro da minha mão, quente e demorada, apertada e apertando... Sinceramente, eu achava-me mal entre um amigo e a attracção. A timidez póde ser que fosse outra causa daquella crise; não é só o ceu que dá as nossas virtudes, a timidez tambem, não contando o acaso, mas o acaso é um méro accidente; a melhor origem dellas é o ceu. Entretanto, como a timidez vem do ceu, que nos dá a compleição, a virtude, filha della é, genealogicamente, o mesmo sangue celestial. Assim reflectiria, se pudesse; mas a principio vaguei á tôa. Paixão não era nem inclinação. Capricho seria ou quê? Ao fim de vinte minutos era nada, inteiramente nada. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a altitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me. CXIX Não faça isso, querida. A leitora, que é minha amiga e abriu este livro com o fim de descançar da cavatina de hontem para a valsa de hoje, quer fechal-o ás pressas, ao ver que beiramos um abysmo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo. CXX Os autos. Na manhã seguinte accordei livre das abominações da vespera; chamei-lhes allucinações, tomei café, percorri os jornaes e fui estudar uns autos. Capitú e prima Justina sairam para a missa das nove, na Lapa. A figura de Sancha desappareceu inteiramente no meio das allegações da parte adversa, que eu ia lendo nos autos, allegações falsas, inadmissiveis, sem apoio na lei nem nas praxes. Vi que era facil ganhar a demanda; consultei Dalloz, Pereira e Souza... Uma só vez olhei para o retrato de Escobar. Era uma bella photographia tirada um anno antes. Estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita mettida ao peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatoria, escripta embaixo, não nas costas do cartão: «Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70.» Estas palavras fortaleceram-me os pensamentos daquella manhã, e espancaram de todo as recordações da vespera. Naquelle tempo a minha vista era boa; eu podia lel-as do logar em que estava. Tornei aos autos. CXXI A catastrophe. No melhor delles, ouvi passos precipitados na escada, a campainha soou, soaram palmas, golpes na cancella, vozes, acudiram todos, acudi eu mesmo. Era um escravo da casa de Sancha que me chamava: --Para ir lá... sinhô nadando, sinhô morrendo. Não disse mais nada, ou eu não lhe ouvi o resto. Vesti-me, deixei recado a Capitú e corri ao Flamengo. Em caminho, fui adivinhando a verdade. Escobar metteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fóra que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu. As canoas que acudiram mal puderam trazer-lhe o cadaver. CXXII O enterro. A viuva... Poupo-vos as lagrimas da viuva, as minhas, as da outra gente. Sai de lá cerca de onze horas; Capitú e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estupido, outra enfastiada apenas. --Vão fazer companhia a pobre Sanchinha; eu vou cuidar do enterro. Assim fizemos. Quiz que o enterro fosse pomposo, e a affluencia dos amigos foi numerosa. Praia, ruas, praça da Gloria, tudo eram carros, muitos delles particulares. A casa, não sendo grande, não podiam lá caber todos; muitos estavam na praia, falando do desastre, apontando o logar em que Escobar fallecèra, ouvindo referir a chegada do morto. José Dias ouviu tambem falar dos negocios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens, mas havendo accordo em que o passivo devia ser pequeno. Elogiavam as qualidades de Escobar. Um ou outro discutia o recente gabinete Rio Branco; estavamos em Março de 1871. Nunca me esqueceu o mez nem o anno. Como eu houvesse resolvido falar no cemiterio, escrevi algumas linhas e mostrei-as em casa a José Dias, que as achou realmente dignas do morto e de mim. Pediu-me o papel, recitou lentamente o discurso, pesando as palavras, e confirmou a primeira opinião; no Flamengo espalhou a noticia. Alguns conhecidos vieram interrogar-me: --Então, vamos ouvil-o? --Quatro palavras. Poucas mais seriam. Tinha-as escripto com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No tilbury em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminario, as relações de Escobar, as nossas sympathias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida, até que um lance da fortuna fez separar para sempre duas creaturas que promettiam ficar por muito tempo unidas. De quando em quando enxugava os olhos. O cocheiro aventurou duas ou tres perguntas sobre a minha situação moral; não me arrancando nada, continuou o seu officio. Chegando a casa, deitei aquellas emoções ao papel; tal seria o discurso. CXXIII Olhos de ressaca. Emfim, chegou a hora da encommendação e da partida. Sancha quiz despedir-se do marido, e o desespero daquelle lance consternou a todos. Muitos homem choravam tambem, as mulheres todas. Só Capitú, amparando a viuva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancal-a dalli. A confusão era geral. No meio della, Capitú olhou alguns instantes para o cadaver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lagrimas poucas e caladas... As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as della; Capitú enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de caricias para a amiga, e quiz leval-a; mas o cadaver parece que a retinha tambem. Momento houve em que os olhos de Capitú fitaram o defuncto, quaes os da viuva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fóra, como se quizesse tragar tambem o nadador da manhã. CXXIV O discurso. --Vamos, são horas... Era José Dias que me convidava a fechar o ataúde. Fechámol-o, e eu peguei n'uma das argolas; rompeu o alarido final. Palavra que, quando cheguei á porta, vi o sol claro, tudo gente e carros, as cabeças descobertas, tive um daquelles meus impulsos que nunca chegavam á execução: foi atirar á rua caixao, defuncto e tudo. No carro disse a José Dias que se calasse. No cemiterio tive de repetir a cerimonia da casa, desatar as correias, e ajudar a levar o feretro á cova. O que isto me custou imagina. Descido o cadaver á cova, trouxeram a cal e a pá; sabes disto, terás ido a mais de um enterro, mas o que não sabes nem póde saber nenhum dos teus amigos, leitor, ou qualquer outro extranho, é a crise que me tornou quando vi todos os olhos em mim, os pés quietos, as orelhas attentas, e, ao cabo de alguns instantes de total silencio, um sussurro vago, algumas vozes interrogativas, signaes, e alguem, José Dias, que me dizia ao ouvido: --Então, fale. Era o discurso. Queriam o discurso. Tinham jus ao discurso annunciado. Machinalmente, metti a mão no bolso, saquei o papel e li-o aos trambolhões, não todo, nem seguido, nem claro; a voz parecia-me entrar em vez de sair, as mãos tremiam-me. Não era só a emoção nova que me fazia assim, era o proprio texto, as memorias do amigo, as saudades confessadas, os louvores á pessoa e aos seus meritos; tudo isto que eu era obrigado a dizer e dizia mal. Ao mesmo tempo, temendo que me adivinhassem a verdade, forcejava por escondel-a bem. Creio que poucos me ouviram, mas o gesto geral foi de comprehensão e de approvação. As mãos que me deram a apertar eram de solidariedade; alguns diziam: «Muito bonito! muito bem! magnifico!» José Dias achou que a eloquencia estivera na altura da piedade. Um homem, que me pareceu jornalista, pediu-me licença para levar o manuscripto e imprimil-o. Só a minha grande turvação recusaria um obsequio tão simples. CXXV Uma comparação. Priamo julga-se o mais infeliz dos homens, por beijar a mão daquelle que lhe matou o filho. Homero é que relata isto, e é um bom autor, não obstante contal-o em verso, mas ha narrações exactas em verso, e até mau verso. Compara tu a situação de Priamo com a minha; eu acabava de louvar as virtudes do homem que recebera defuncto aquelles olhos... E impossivel que algum Homero não tirasse da minha situação muito melhor effeito, ou quando menos, egual. Nem digas que nos faltam Homeros, pela causa apontada em Camões; não, senhor, faltam-nos, é certo, mas é porque os Priamos procuram a sombra e o silencio. As lagrimas, se as tèm, são enxugadas atraz da porta, para que as caras appareçam limpas e serenas; os discursos são antes de alegria que do melancolia, e tudo passa como se Achilles não matasse Heitor. CXXVI Scismando. Pouco depois de sair do cemiterio, rasguei o discurso e deitei os pedaços pela portinhola fóra, sem embargo dos esforços de José Dias para impedil-o. --Não presta para nada, disse-lhe eu, e como posso ter a tentação de dal-o a imprimir, fica já destruido de uma vez. Não presta, não vale nada. José Dias demonstrou longamente o contrario, depois elogiou o enterro, e por ultimo fez o panegyrico do morto, uma grande alma, espirito activo, coração recto, amigo, bom amigo, digno da esposa amantissima que Deus lhe dera... Neste ponto do discurso, deixei-o falar sósinho e peguei a scismar commigo. O que scismei foi tão escuro e confuso que não me deixou tomar pé. No Cattete mandei parar o carro, disse a José Dias que fosse buscar as senhoras ao Flamengo e as levasse para casa; eu iria a pé. --Mas... --Vou fazer uma visita. A razão d'isto era acabar de scismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou não, podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça scismasse á vontade. Fui andando e scismando. Tinha já comparado o gesto de Sancha na vespera e o desespero daquelle dia; eram inconciliaveis. A viuva era realmente amantissima. Assim se desvaneceu de todo a illusão da minha vaidade. Não seria o mesmo caso de Capitú? Cuidei de recompôr-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impôr-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que aqui vae por ordem logica e deductiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensações, graças aos solavancos do carro e ás interrupções de José Dias. Agora, porém, raciocinava e evocava claro e bem. Conclui de mim para mim que era a antiga paixão que me offuscava ainda e me fazia desvairar como sempre. Quando cheguei a esta conclusão final, chegava tambem á porta de casa, mas voltei para traz, e subi outra vez a rua do Cattete. Eram as duvidas que me affligiam ou a necessidade de affligir Capitú com a minha grande demora? Ponhamos que eram as duas causas; andei largo espaço, até que me senti socegar, e endireitei para casa. Batiam oito hora n'uma padaria. CXXVII O barbeiro. Perto de casa, havia um barbeiro, que me conhecia de vista, amava a rabeca e não tocava inteiramente mal. Na occasião em que ia passando, executava não sei que peça. Parei na calçada a ouvil-o (tudo são pretextos a um coração agoniado), elle viu-me, o continuou a tocar. Não attendeu a um freguez, e logo a outro, que alli foram, a despeito da hora e de ser domingo, confiar-lhe as caras á navalha. Perdeu-os sem perder uma nota; ia tocando para mim. Esta consideração fez-me chegar francamente a porta da loja, voltado para elle. Ao fundo, levantando a cortina de chita que fechava o interior da casa, vi apontar uma moça trigueira, vestido claro, flôr no cabello. Era a mulher delle; creio que me descobriu de dentro, e veiu agradecer-me com a presença o favor que eu fazia ao marido. Se me não engano, chegou a dizel-o com os olhos. Quanto ao marido, tocava agora com mais calor; sem ver a mulher, sem ver freguezes, grudava a face ao instrumento, passava a alma ao arco, e tocava, tocava... Divina arte! Ia-se formando um grupo, deixei a porta da loja e vim andando para casa; enfiei pelo corredor e subi as escadas sem estrepito. Nunca me esqueceu o caso deste barbeiro, ou por estar ligado a um momento grave da minha vida, ou por esta maxima, que os compiladores, pódem tirar daqui e inserir nos compendios de escola. A maxima é que a gente esquece devagar as boas acções que pratica, e verdadeiramente não as esquece nunca. Pobre barbeiro! perdeu duas barbas naquella noite, que eram o pão do dia seguinte, tudo para ser ouvido de um transeunte. Suppõe agora que este, em vez de ir-se embora, como eu fui, ficava á porta a ouvil-o e a namorar-lhe a mulher; então é que elle, todo arco, todo rabeca, tocaria desesperadamente. Divina arte! CXXVIII Punhado de successos. Como ia dizendo, subi as escadas sem estrepito, empurrei a cancella, que estava apenas encostada, o dei com prima Justina e José Dias jogando cartas na saleta proxima. Capitú levantou-se do canapé e veiu a mim. O rosto della era agora sereno e puro. Os outros suspenderam o jogo, e todos falámos do desastre e da viuva. Capitú censurou a imprudencia de Escobar, e não dissimulou a tristeza que lhe trazia a dor da amiga. Perguntei-lhe por que não ficára com Sancha aquella noite. --Tem lá muita gente; ainda assim offereci-me, mas não quiz. Tambem lhe disse que era melhor vir para cá, e passar aqui uns dias comnosco. --Tambem não quiz? --Tambem não. --Entretanto, a vista do mar ha de ser-lhe penosa, todas as manhãs, ponderou José Dias, e não sei como poderá... --Mas, passa; o que é que não passa? atalhou prima Justina. E como em torno desta ideia, começassemos uma troca de palavras, Capitú saiu para ir ver se o filho dormia. Ao passar pelo espelho, concertou os cabellos tão demoradamente que pareceria affectação, se não soubessemos que ella era muito amiga de si. Quando tornou trazia os olhos vermelhos; disse-nos que, ao mirar o filho dormindo pensára na filhinha de Sancha, e na afflicção da viuva. E, sem se lhe dar das visitas, nem reparar se havia algum criado, abraçou-me e disse-me que, se quizesse pensar nella, era preciso pensar primeiro na minha vida. José Dias achou a phrase «lindissima», e perguntou a Capitú porque é que não fazia versos. Tentei metter o caso á bulha, e assim acabámos a noite. No dia seguinte, arrependi-me de haver rasgado o discurso, não que quizesse dal-o a imprimir, mas era lembrança do finado. Pensei em recompôl-o, mas só achei phrases soltas, que uma vez juntas não tinham sentido. Tambem pensei em fazer outro, mas era já difficil, e podia ser apanhado em falso pelos que me tinham ouvido no cemiterio. Quanto a recolher os pedacinhos de papel deitados á rua, era tarde; estariam já varridos. Inventariei as lembranças de Escobar, livros, um tinteiro de bronze, uma bengala de marfim, um passaro, o album de Capitú, duas paizagens do Paraná e outras. Tambem elle as possuia de minha mão. Vivemos assim a trocar memorias e regalos, ora em dia de annos, ora sem razão particular. Tudo isso me empanava os olhos... Vieram os jornaes do dia: davam noticia do desastre e da morte de Escobar, os estudos e os negocios deste, as qualidades pessoaes, a sympathia do commercio, e tambem falavam dos bens deixados, da mulher e da filha. Todo isso foi na segunda feira. Na terça-feira foi aberto o testamento, que me nomeava segundo testamenteiro; o primeiro logar cabia á mulher. Não me deixava nada, mas as palavras que me escrevera em carta separada eram sublimes de amizade e estima. Capitú desta vez chorou muito; mas compoz-se depressa. Testamento, inventario, tudo andou quasi tão depressa como aqui vae dito. Ao cabo de pouco tempo, Sancha retirou-se para a casa dos parentes no Paraná. CXXIX A D. Sancha. D. Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houver lido até aqui, abandone o resto. Basta fechal-o; melhor será queimal-o, para lhe não dar tentação e abril-o outra vez. Se, apesar do aviso, quizer ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber. O que já lhe tiver feito, contando os gestos daquelle sabbado, esse acabou, uma vez que os acontecimentos, e eu com elles, desmentimos a minha illusão; mas o que agora a alcançar, esse é indelevel. Não, amiga minha, não leia mais. Vá envelhecendo, sem marido nem filha, que eu faço a mesma cousa, e é ainda o melhor que se póde fazer depois da mocidade. Um dia, iremos daqui até a porta do ceu, onde nos encontraremos renovados, como as plantas novas, _come piante novelle_, Rinovalatte di novelle fronde. O resto em Dante. CXXX Um dia... Porquanto, um dia Capitú quiz saber o que é que me fazia andar calado e aborrecido. E propoz-me a Europa, Minas, Petropolis, uma serie de bailes, mil desses remedios aconselhados aos melancolicos. Eu não sabia que lhe respondesse; recusei as diversões. Como insistisse, repliquei-lhe que os meus negocios andavam mal. Capitú sorriu para animar-me. E que tinha que andassem mal? Tornariam a andar bem, e até lá as joias, os objectos de algum valor seriam vendidos, e iriamos residir em algum becco. Viveriamos socegados e esquecidos; depois tornariamos á tona da agua. A ternura com que me disse isto era de commover as pedras. Pois nem assim. Respondi-lhe seccamente que não era preciso vender nada. Deixei-me estar calado e aborrecido. Ella propoz-me jogar cartas ou damas, um passeio a pé, uma visita a Matacavallos; e, como eu não acceitasse nada, foi para a sala, abriu o piano, e começou a tocar; eu aproveitei a ausencia, peguei do chapéo e saí. ... Perdão, mas este capitulo devia ser precedido de outro, em que contasse um incidente, occorrido poucas semanas antes, dous mezes depois da partida de Sancha. Vou escrevel-o; podia antepôl-o a este, antes de mandar o livro ao prélo, mas custa muito alterar o numero dos paginas; vae assim mesmo, depois a narração seguirá direita até o fim. Demais, é curto. CXXXI Anterior ao anterior. Foi o caso que a minha vida em outra vez doce e placida, a banca do advogado rendia-me bastante, Capitú estava mais bella, Ezequiel ia crescendo. Começava o anno de 1872. --Você já reparou que Ezequiel tem nos olhos uma espressão exquisita? perguntou-me Capitú. Só vi duas pessoas assim, um amigo de papae e o defuncto Escobar. Olha, Ezequiel; olha firme, assim, vira para o lado de papae, não precisa revirar os olhos, assim, assim... Era depois de jantar; estavamos ainda á mesa, Capitú brincava com o filho, ou elle com ella, ou um com outro, porque, em verdade, queriam-se muito, mas é tambem certo que elle me queria ainda mais a mim. Approximei-me de Ezequiel, achei que Capitú tinha razão; eram os olhos de Escobar, mas não me pareceram exquisitos por isso. Afinal não haveria mais que meia duzia de expressões no mundo, e muitas semelhanças se dariam naturalmente. Ezequiel não entendeu nada, olhou espantado para ella e para mim, e afinal saltou-me ao collo: --Vamos passear, papae? --Logo, meu filho. Capitú, alheia a ambos, fitava agora a outra borda da mesa; mas, dizendo-lhe eu que, na belleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe, Capitú sorriu abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher alguma, provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que vale a affeição da gente, e é dahi que mestre Povo tirou aquelle adagio que quem o feio ama bonito lhe parece. Capitú tinha meia duzia de gestos unicos na terra. Aquelle entrou-me pela alma dentro. Assim fica explicado que eu corresse á minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijos; mas este outro incidente não é radicalmente necessario á comprehensão do capitulo passado e dos futuros; fiquemos nos olhos de Ezequiel. CXXXII O debuxo e o colorido. Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vae enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quasi, até que a familia pendura o quadro na parede, em memoria do que foi e já não póde ser. Aqui podia ser e era. O costume valeu muito contra o effeito da mudança: mas a mudança fez-se, não á maneira de theatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janellas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as lettras. Li a carta, mal a principio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, mettia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a lettra era clara e a noticia clarissima. Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminario e do Flamengo para se sentar commigo á mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me á noite a benção do costume. Todas essas acções eram repulsivas; eu tolerava-as e praticava-as, para me não descobrir a mim mesmo e ao mundo. Mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazel-o a mim, que vivia mais perto de mim que ninguem. Quando nem mãe nem filho estavam commigo o meu desespero era grande, e eu jurava matal-os a ambos, ora de golpe, ora devagar, para dividir pelo tempo da morte todas os minutos da vida embaçada e agoniada. Quando, porém, tornava a casa e via no alto da escada a creaturinha que me queria e esperava, ficava desarmado e differia o castigo de um dia para outro. O que se passava entre mim e Capitú naquelles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miudo e repetido, e já tão tarde que não se poderá dizel-o sem falha nem canceira. Mas o principal irá. E o principal é que os nossos temporaes eram agora continuos e terriveis. Antes de descoberta aquella má terra da verdade, tivemos outros de pouca dura; não tardava que o ceu se fizesse azul, o sol claro e o mar chão, por onde abríamos novamente as velas que nos levavam ás ilhas e costas mais bellas do universo, até que outro pé de vento desbaratava tudo, e nós, postos á capa, esperavamos outra bonança, que não era tardia nem dubia, antes total, proxima e firme. Releva-me estas metaphoras; cheiram ao mar e á maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram tambem aos olhos de ressaca de Capitú. Assim, posto sempre fosse homem de terra, conto aquella parte da minha vida, como um marujo contaria o seu naufragio. Já entre nós só faltava dizer a palavra ultima; nós a liamos, porém, nos olhos um do outro, vibrante e decisiva, e sempre que Ezequiel vinha para nós não fazia mais que separar-nos. Capitú propoz mettel-o em um collegio, donde só viesse aos sabbados; custou muito ao menino acceitar esta situação. --Quero ir com papae! Papae ha de ir commigo! bradava elle. Fui eu mesmo que o levei um dia de manhã, uma segunda feira. Era no antigo largo da Lapa, perto da nossa casa. Levei-o a pé, pela mão, como levára o ataúde do outro. O pequeno ia chorando e fazendo perguntas a cada passo, se voltaria para casa, e quando, e se eu iria vel-o... --Vou. --Papae não vae! --Vou sim. --Jura, papae! --Pois sim. --Papae não diz que jura. --Pois juro. E lá o levei e deixei. A ausencia temporaria não atalhou o mal, e toda a arte fina de Capitú para fazel-o attenuar, ao menos, foi como se não fosse; eu sentia-me cada vez peor. A mesma situação nova aggravou a minha paixão. Ezequiel vivia agora mais fóra da minha vista; mas a volta delle, ao fim das semanas, ou pelo descostume em que eu ficava, ou porque o tempo fosse andando e completando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz; dentro de pouco, já me parecia a mesma. Aos sabbados, buscava não jantar em casa e só entrar quando elle estivesse dormindo; mas não escapava ao domingo, no gabinete, quando eu me achava entre jornaes e autos. Ezequiel entrava turbulento, expansivo, cheio de riso e de amor, porque o demo do pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora uma aversão que mal podia disfarçar, tanto a ella como aos outros. Não podendo encobrir inteiramente esta disposição moral, cuidava de me não fazer encontradiço com elle, ou só o menos que pudesse; ora tinha trabalho que me obrigava a fechar o gabinete, ora saía ao domingo para ir passear pela cidade o arrebaldes o meu mal secreto. CXXXIII Uma ideia. Um dia,--era uma sexta feira,--não pude mais. Certa ideia, que negrejava em mim, abriu as azas e entrou a batel-as de um lado para outro, como fazem as ideias que querem sair. O ser sexta-feira creio que foi acaso, mas tambem póde ter sido proposito; fui educado no terror daquelle dia; ouvi cantar balladas em casa, vindas da roça e da antiga metropole, nas quaes a sexta-feira era o dia de agouro. Entretanto, não havendo almanaks no cerebro, é provavel que a ideia não batesse as azas senão pela necessidade que sentia do vir ao ar e á vida. A vida é tão bella que a mesma ideia da morte precisa de vir primeiro a ella, antes de se ver cumprida. Já me vás entendendo; lê agora outro capitulo. CXXXIV O dia de sabbado. A ideia saiu finalmente do cerebro. Era noite, e não pude dormir, por mais que a sacudisse de mim. Tambem nenhuma noite me passou tão curta. Amanheceu, quando cuidava não ser mais que uma ou duas horas. Sai, suppondo deixar a ideia em casa; ella veiu commigo. Cá fóra tinha a mesma côr escura, as mesmas azas trepidas, e posto avoasse com ellas, era como se fosse fixa; eu a levava na retina, não que me encobrisse as cousas externas, mas via-as atra vez della, com a côr mais pallida que de costume, e sem se demorarem nada. Não me lembra bem o resto do dia. Sei que escrevi algumas cartas, comprei uma substancia, que não digo, para não espertar o desejo de proval-a. A pharmacia falliu, é verdade; o dono fez-se banqueiro, e o banco prospera. Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o premio da loteria gasta-se, e a morte não se gasta. Fui a casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a titulo de visita. Ou de verdade ou por illusão, tudo alli me pareceu melhor nesse dia, minha mãe menos triste, tio Cosme esquecido do coração, prima Justina da lingua. Passei uma hora em paz. Cheguei a abrir mão do projecto. Que era preciso para viver? Nunca mais deixar aquella casa, ou prender aquella hora a mim mesmo... CXXXV Othello. Jantei fóra. De noite fui ao theatro. Representava-se justamente _Othello_, que eu não vira nem lera nunca; sabia apenas o assumpto, e estimei a coincidencia. Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço,--um simples lenço!--e aqui dou materia á meditação dos psychologos deste e de outros continentes, pois não me pude furtar á observação de que um lenço bastou a accender os ciumes de Othello e compor a mais sublime tragedia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os proprios lençóes; alguma vez nem lençóes ha, e valem só as camisas. Taes eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, á medida que o mouro rolava convulso, e Iago distilava a sua calumnia. Nos intervallos não me levantava da cadeira; não queria expôr-me a encontrar algum conhecido. As senhoras ficavam quasi todas nos camarotes, emquanto os homens iam fumar. Então eu perguntava a mim mesmo se alguma daquellas não teria amado alguem que jazesse agora no cemiterio, e vinham outras incoherencias, até que o panno subia e continuava a peça. O ultimo acto mostrou-me que não eu, mas Capitú devia morrer. Ouvi as supplicas de Desdemona, as suas palavras amorosas e puras, e a furia do mouro, e a morte que este lhe deu entre applausos freneticos do publico. --E era innocente, vinha eu dizendo rua abaixo;--que faria o publico, se ella devéras fosse culpada, tão culpada como Capitú? E que morte lhe daria o mouro? Um travesseiro não bastaria; era preciso sangue e fogo, um fogo intenso e vasto, que a consumisse de todo, e a reduzisse a pó, e o pó seria lançado ao vento, como eterna extincção... Vaguei pelas ruas o resto da noite. Ceei, é verdade, um quasi nada, mas o bastante para ir até á manhã. Vi as ultimas horas da noite e as primeiras do dia, vi os derradeiros passeadores e os primeiros varredores, as primeiras carroças, os primeiros ruidos, os primeiros albores, um dia que vinha depois do outro e me veria ir para nunca mais voltar. As ruas que eu andava como que me fugiam por si mesmas. Não tornaria a contemplar o mar da Gloria, nem a serra dos Orgãos, nem a fortaleza de Santa-Cruz e as outras. A gente que passava não era tanta, como nos dias communs da semana, mas era já numerosa e ia a algum trabalho, que repetiria depois; eu é que não repetiria mais nada. Cheguei a casa, abri a porta devagarinho, subi pé ante-pé, e metti-me no gabinete; iam dar seis horas. Tirei o veneno do bolso, fiquei em mangas de camisa, e escrevi ainda uma carta, a ultima, dirigida a Capitú. Nenhuma das outras era para ella; senti necessidade de lhe dizer uma palavra em que lhe ficasse o remorso da minha morte. Escrevi dous textos. O primeiro queimei-o por ser longo e diffuso. O segundo continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer. CXXXVI A chicara de café. O meu plano foi esperar o café, dissolver nelle a droga e ingeril-a. Até lá, não tendo esquecido de todo a minha historia romana, lembrou-me que Catão, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Não tinha Platão commigo; mas um tomo truncado de Plutarcho, em que era narrada a vida do celebre romano, bastou-me a occupar aquelle pouco tempo, e, para em tudo imital-o, estirei-me no canapé. Nem era só imital-o nisso; tinha necessidade de incutir em mim a coragem delle, assim como elle precisára dos sentimentos do philosopho, para intrepidamente morrer. Um dos males da ignorancia é não ter este remedio á ultima hora. Ha muita gente que se mata sem elle, e nobremente expira; mas estou que muita mais gente poria termo aos seus dias, se pudesse achar essa especie de cocaina moral dos bons livros. Entretanto, querendo fugir a qualquer suspeita de imitação, lembra-me bem que, para não ser encontrado ao pé de mim o livro de Plutarcho, nem ser dada a noticia nas gazetas com a da côr das calças que eu então vestia, assentei de pôl-o novamente no seu logar, antes de beber o veneno. O copeiro trouxe o café. Ergui-me, guardei o livro, e fui para a mesa onde ficára a chicara. Já a casa estava em rumores; era tempo de acabar commigo. A mão tremeu-me ao abrir o papel em que trazia a droga embrulhada. Ainda assim tive animo de despejar a substancia na chicara, e comecei a mexer o café, os olhos vagos, a memoria em Desdemona innocente; o espectaculo da vespera vinha intrometter-se na realidade da manhã. Mas a photographia de Escobar deu-me o animo que me ia faltando; lá estava elle, com a mão nas costas da cadeira, a olhar ao longe... --Acabemos com isto, pensei. Quando ia a beber, cogitei se não seria melhor esperar que Capitú e o filho saissem para a missa; beberia depois; era melhor. Assim disposto, entrei a passear no gabinete. Ouvi a voz de Ezequiel no corredor, vi-o entrar e correr a mim bradando: --Papae! papae! Leitor, houve aqui um gesto que eu não descrevo por havel-o inteiramente esquecido, mas crê que foi bello e tragico. Effectivamente, a figura do pequeno fez-me recuar até dar de costas na estante. Ezequiel abraçou-me os joelhos, esticou-se na ponta dos pés, como querendo subir e dar-me o beijo do costume; e repetia, puxando-me: --Papae! papae! CXXXVII Segundo impulso. Se eu não olhasse para Ezequiel, é provavel que não estivesse aqui escrevendo este livro, porque o meu primeiro impeto foi correr ao café e bebel-o. Cheguei a pegar na chicara, mas o pequeno beijava-me a mão, como de costume, e a vista delle, como o gesto, deu-me outro impulso que me custa dizer aqui; mas vã lá, diga-se tudo. Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso. Inclinei-me e perguntei a Ezequiel se já tomára café. --Já, papae; vou á missa com mamãe. --Toma outra chicara, meia chicara só. --E papae? --Eu mando vir mais; anda, bebe! Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a chicara, tão tremulo que quasi a entornei, mas disposto a fazel-a cair pela guela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava frio... Mas não sei que senti que me fez recuar. Puz a chicara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doudamente a cabeça do menino. --Papae papae! exclamava Ezequiel. --Não, não, eu não sou teu pae! CXXXVIII Capitú que entra. Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitú deante de mim. Eis ahi outro lance, que parecerá de theatro, e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam á missa, e Capitú não saía sem falar-me. Era já um falar secco e breve; a mór parte das vezes, eu nem olhava para ella. Ella olhava sempre, esperando. Desta vez, ao dar com ella, não sei se era dos meus olhos, mas Capitú pareceu-me livida. Seguiu-se um daquelles silencios, a que, sem mentir, se pódem chamar de um seculo, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitú recompoz-se; disse ao filho que se fosse embora, e pediu-me que lhe explicasse... --Não ha que explicar, disse eu. --Ha tudo; não entendo as tuas lagrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês? --Não ouviu o que lhe disse? Capitú respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessal-o seria perder a esperança do silencio e da reconciliação; por isso negou a audiencia e confirmou unicamente a vista. Sem lhe contar o episodio do café, repeti-lhe as palavras do final do capitulo. --O que? perguntou ella como se ouvira mal. --Que não é meu filho. Grande foi a estupefacção de Capitú, e não menor a indignação que lhe succedeu, tão naturaes ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso fôro. Já** ouvi que as ha para varios casos, questão de preço; eu não creio, tanto mais que a pessoa que me contou isto acabava de perder uma demanda. Mas, haja ou não testemunhas alugadas, a minha era verdadeira; a propria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar della. Assim que, sem attender á linguagem de Capitú, aos seus gestos, á dôr que a retorcia, a cousa nenhuma, repeti as palavras ditas duas vezes com tal resolução que a fizeram afrouxar. Após alguns instantes, disse-me ella: --Só se póde explicar tal injuria pela convicção sincera; entretanto, você que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal ideia? Diga,--continuou vendo que eu não respondia nada,--diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não póde ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale! fale! Despeça-me d'aqui, mas diga tudo primeiro. --Ha cousas que se não dizem. --Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo. Tinha-se sentado n'uma cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de accusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse. --Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais! --A separação é cousa decidida, redargui pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizessemos por meias palavras ou em silencio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vae o que lhe posso dizer, e é tudo. Não disse tudo; mal pude alludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitú não poude deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente ironico e melancolico: --Pois até os defunctos! Nem os mortos escapam aos seus ciumes! Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, emquanto eu, que não pedia outra cousa mais que a plena justificação della, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitú olhou para mim com desdem, e murmurou: --Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminario, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada. CXXXIX A photographia. Palavra que estive a pique de crer que era victima de uma grande illusão, uma phantasmagoria de allucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando:--«Mamãe! mamãe! é hora da missa!» restituiu-me á consciencia da realidade. Capitú e eu, involuntariamente, olhámos para a photographia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão della fez-se confissão pura. Este era aquelle; havia por força alguma photographia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De bocca, porém, não confessou nada; repetiu as ultimas palavras, puxou do filho e sairam para a missa. CXL Volta da egreja. Ficando só, era natural pegar do café e bebel-o. Pois, não, senhor; tinha perdido o gosto á morte. A morte era uma solução; eu acabava de achar outra, tanto melhor quanto que não era definitiva, e deixava a porta aberta á reparação, se devesse havel-a. Não disse _perdão_, mas _reparação_, isto é, justiça. Qualquer que fosse a razão do acto, rejeitei a morte, e esperei o regresso de Capitú. Este foi mais demorado que de costume; cheguei a temer que ella houvesse ido á casa de minha mãe, mas não foi. --Confiei a Deus todas as minhas amarguras, disse-me Capitú ao voltar da egreja; ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensavel, e estou ás suas ordens. Os olhos com que me disse isto eram embuçados, como espreitando um gesto de recusa ou de espera. Contava com a minha debilidade ou com a propria incerteza em que eu podia estar da paternidade do outro, mas falhou tudo. Acaso haveria em mim um homem novo, um que apparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso era um homem apenas encoberto. Respondi-lhe que ia pensar, e fariamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito. No intervallo, evocára as palavras do finado Gurgel, quando me mostrou em casa delle o retrato da mulher, parecido com Capitú. Has de lembrar-te dellas; se não, relê o capitulo, cujo numero não ponho aqui, por não me lembrar já qual seja, mas não fica longe. Reduzem-se a dizer que ha taes semelhanças inexplicaveis... Pelo dia adeante, e nos outros dias, Ezequiel ia ter commigo ao gabinete, e as feições do pequeno davam ideia clara das do outro, ou eu ia attentando mais nellas. De envolta, lembravam-me episodios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não poz malicia, e a que faltou o meu velho ciume. Uma vez em que os fui achar sósinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra della sonhando, todas essas reminiscencias vieram vindo agora, em tal atropello que me atordoaram... E porque os não esganei um dia, quando desviei os olhos da rua onde estavam duas andorinhas trepadas no fio telegraphico? Dentro, as minhas outras andorinhas estavam trepadas no ar, os olhos enfiados nos olhos, mas tão cautelosos que se desenfiaram logo, dizendo-me uma palavra amiga e alegre. Contei-lhes o namoro das andorinhas de fóra, e acharam-lhe graça; Escobar declarou que, para elle, seria melhor se as andorinhas, em vez de trepadas no fio de arame, estivessem á mesa do jantar cosidas. «Nunca comi os ninhos dellas, continuou, mas devem ser bons, se os chins os inventaram.» E ficámos a tratar dos chins e dos classicos que falaram delles, emquanto Capitú, confessando que a aborreciamos, foi a outros cuidados. Agora lembrava-me tudo o que então me pareceu nada. CXLI A solução. Aqui está o que fizemos. Pegámos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; parámos na Suissa. Uma professora do Rio-Grande, que foi comnosco, ficou de companhia a Capitú, ensinando a lingua materna a Ezequiel, que apprenderia o resto nas escolas do paiz. Assim regulada a vida, tornei ao Brazil. Ao cabo de alguns mezes, Capitú começára a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão. As della eram submissas, sem odio, acaso affectuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um anno depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam della, queriam noticias, e eu dava-lh'as, como se acabasse de viver com ella; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião. Um dia, finalmente... CXLII Uma santa. Entenda-se que, se nas viagens que fiz á Europa, José Dias não foi commigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quasi invalido, e a minha mãe, que envelheceu depressa. Tambem elle estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lenço, os proprios olhos que enxugava eram taes que me commoviam tambem. A ultima vez não foi o bordo. --Venha... --Não posso. --Está com medo? --Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei sé me verá mais; creio que vou para a outra Europa, a eterna... Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro. Procura no cemiterio de S. João Baptista uma sepultura sem nome, com esta unica indicação: _Uma santa._ É ahi. Fiz fazer essa inscripção com alguma difficuldade. O esculptor achou-a exquisita; o administrador do cemiterio consultou o vigario da parochia; este ponderou-me que as santas estão no altar e no ceu. --Mas, perdão, atalhei, eu não quero dizer que naquella sepultura está uma canonisada. A minha ideia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as virtudes que a finada possuiu na vida. Tanto é assim que, sendo a modestia uma dellas, desejo conserval-a postuma, não lhe escrevendo o nome. --Todavia, o nome, afiliação, as datas... --Quem lhe importará com datas, filiação, nem nomes, depois que eu acabar? --Quer dizer que era uma santa senhora, não? --Justamente. O protonotario Cabral, se fosse vivo, confirmaria aqui o que lhe digo. --Nem eu contesto a verdade, hesito só na formula. Conheceu então o protonotario? --Conheci-o. Era um padre-modelo. --Bom canonista, bom latinista, pio e caridoso, continuou o vigário. --E possuia algumas prendas de sociedade, disse eu; lá em casa sempre ouvi que era insigne parceiro ao gamão... --Tinha muito bom dado! suspirou lentamente o vigario. Um dado de mestre! --Então, parece-lhe...? --Uma vez que não ha outro sentido, nem poderia havel-o, sim, senhor, admitte-se... José Dias assistiu a estas diligencias, com grande melancolia. No fim, quando saimos, disse mal do padre, chamou-lhe meticuloso. Só lhe achava desculpa por não ter conhecido minha mãe, nem elle nem os outros homens do cemiterio. --Não a conheceram; se a conhecessem, mandariam esculpir _santissima._ CXLIII O ultimo superlativo. Não foi o ultimo superlativo de José Dias. Outros teve que não vale a pena escrever aqui, até que veiu o ultimo, o melhor delles, o mais doce, o que lhe fez da morte um pedaço de vida. Já então morava commigo; posto que minha mãe lhe deixasse uma pequena lembrança, veiu dizer-me que, com legado ou sem elle, não se separaria de mim. Talvez a esperança delle fosse enterrar-me. Correspondia-se com Capitú, a quem pedia que lhe mandasse o retrato de Ezequiel; mas Capitú ia adiando a remessa de correio a correio, até que elle não pediu mais nada, a não ser o coração do joven estudante; pedia-lhe tambem que não deixasse de falar a Ezequiel no velho amigo do pae e do avô, «destinado pelo ceu a amar o mesmo sangue.» Era assim que elle preparava os cuidados da terceira geração; mas a morte veiu antes de Ezequiel. A doença foi rapida. Mandei chamar um medico homeopatha. --Não, Bentinho, disse elle; basta um allopatha; em todas as escolas se morre. Demais, foram ideias da mocidade, que o tempo levou; converto-me á fé de meus paes. A allopathia é o catholicismo da medicina... Morreu sereno, após uma agonia curta. Pouco antes ouviu que o ceu estava lindo, e pediu que abrissemos a janella. --Não, o ar póde fazer-lhe mal. --Que mal? Ar é vida. Abrimos a janella. Realmente, estava um ceu azul e claro. José Dias soergueu-se e olhou para fóra; após alguns instantes, deixou cair a cabeça, murmurando: Lindissimo! Foi a ultima palavra que proferiu neste mundo. Pobre José Dias! Porque hei de negar que chorei por elle? CXLIV Uma pergunta tardia. Assim chorem por mim todos os olhos de amigos e amigas que deixo neste mundo, mas não é provavel. Tenho-me feito esquecer. Móro longe e saio pouco. Não é que haja effectivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo, comquanto reproduza a de Matacavallos, apenas me lembra aquella, e mais por effeito de comparação e de reflexão que de sentimento. Já disse isto mesmo. Hão de perguntar-me por que razão, tendo a propria casa velha, na mesma rua antiga, não impedi que a demolissem e vim reproduzil-a nesta. A pergunta devia ser feita a principio, mas aqui vae a resposta. A razão é que, logo que minha mãe morreu, querendo ir para lá, fiz primeiro uma longa visita de inspecção por alguns dias, e toda a casa me desconheceu. No quintal a aroeira e a pitangueira, o poço, a caçamba velha e o lavadouro, nada sabia de mim. A casuarina era a mesma que eu deixara ao fundo, mas o tronco, em vez de recto, como outr'ora, tinha agora um ar de ponto de interrogação; naturalmente pasmava do intruso. Corri os olhos pelo ar, buscando algum pensamento que alli deixasse, e não achei nenhum. Ao contrario, a ramagem começou a sussurrar alguma cousa que não entendi logo, e parece que era a cantiga das manhãs novas. Ao pé dessa musica sonora e jovial, ouvi tambem o grunhir dos porcos, especie de troça concentrada e philosophica. Tudo me era extranho e adverso. Deixei que demolissem a casa, e, mais tarde, quando vim para o Engenho Novo, lembrou-me fazer esta reproducção por explicações que dei ao architecto segundo contei em tempo. CXLV O regresso. Ora, foi já nesta casa que um dia, estando a vestir-me para almoçar, recebi um cartão com este nome: EZEQUIEL A. DE SANTIAGO --A pessoa está ahi? perguntei ao criado. --Sim, senhor; ficou esperando. Não fui logo, logo; fil-o esperar um dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçal-o, falar-lhe na mãe. A mãe,--creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suissa. Acabei de vestir-me ás pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pae, um pae entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos, e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e joven companheiro do seminario de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo, e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. Trajava á moderna, naturalmente, e as maneiras eram differentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o proprio, o exacto, o verdadeiro Escobar. Era o meu comborço; era o filho de seu pae. Vestia de luto pela mãe; eu tambem estava de preto. Sentámo-nos. --Papae não faz differença dos ultimos retratos, disse-me elle. A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancezado. Expliquei-lhe que realmente pouco diferia do que era, e comecei um interrogatorio para ter menos que falar e dominar assim a minha emoção. Mas isto mesmo dava animação á cara delle, e o meu collega do seminario ia resurgindo cada vez mais do cemiterio. Eil-o aqui, deante de mim, com egual riso e maior respeito; total, o mesmo obsequio e a mesma graça. Anciava por ver-me. A mãe falava muito em mim, louvando-me extraordinariamente, como o homem mais puro do mundo, o mais digno de ser querido. --Morreu bonita, concluiu. --Vamos almoçar. Se pensas que o almoço foi amargo, enganas-te. Teve seus minutos de aborrecimento, é verdade; a principio doeu-me que Ezequiel não fosse realmente meu filho, que me não completasse e continuasse. Se o rapaz tem saido á mae, eu acabava crendo tudo, tanto mais facilmente quanto que elle parecia haver-me deixado na vespera, evocava a meninice, scenas e palavras, a ida para o collegio... --Papae ainda se lembra quando me levou para o collegio? perguntou rindo. --Pois não hei de lembrar-me? --Era na Lapa; eu ia desesperado, e papae não parava, dava-me cada puxão, e eu com as perninhas.... Sim, senhor, acceito. Estendeu o copo ao vinho que eu lhe offerecia, bebeu um gole, e continuou a comer. Escobar comia assim tambem, com a cara mettida no prato. Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de archeologia, que era a sua paixão. Falava da antiguidade com amor, contava o Egypto e os seus milhares de seculos, sem se perder nos algarismos; tinha a cabeça arithmetica do pae. Eu, posto que a ideia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da resurreição. Ás vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defuncto falava e ria por elle. Não havendo remedio senão ficar com elle, fiz-me pae deveras. A ideia de que pudesse ter visto alguma photographia de Escobar, que Capitú por descuido levasse comsigo, não me acudiu, nem, se acudisse, persistiria. Ezequiel cria em mim, como na mãe. Se fosse vivo José Dias, acharia nelle a minha propria pessoa. Prima Justina quiz vel-o, mas estando enferma, pediu-me que o levasse lá. Conhecia aquella parenta. Creio que o desejo de ver Ezequiel era para o fim de verificar no moço o debuxo que por ventura houvesse achado no menino. Seria um regalo ultimo; atalhei-o a tempo. --Está muito mal, disse eu a Ezequiel que queria ir vel-a, qualquer emoção póde trazer-lhe a morte. Iremos vel-a, quando ficar melhor. Não fomos; a morte levou-a dentro de poucos dias. Ella descança no Senhor ou como quer que seja. Ezequiel viu-lhe a cara no caixão e não a conheceu, nem podia, tão outra a fizeram os annos e a morte. No caminho para o cemiterio, iam-lhe lembrando uma porção de cousas, alguma rua, alguma torre, um trecho de praia, e era todo alegria. Assim acontecia sempre que voltava para casa, ao fim do dia; contava-me as recordações que ia recebendo das ruas e das casas. Admirava-se que muitas destas fossem as mesmas que elle deixára, como se as casas morressem meninas. Ao cabo de seis mezes, Ezequiel falou-me em uma viagem á Grecia, ao Egypto, e á Palestina, viagem scientifica, promessa feita a alguns amigos. --De que sexo? perguntei rindo. Sorriu vexado, e respondeu-me que as mulheres eram creaturas tão da moda e do dia que nunca haviam de entender uma ruina de trinta seculos. Eram dous collegas da universidade. Prometti-lhe recursos, e dei-lhe logo os primeiros dinheiros precisos. Commigo disse que uma das consequencias dos amores furtivos do pae era pagar eu as archeologias do filho; antes lhe pagasse a lepra.... Quando esta ideia me atravessou o cerebro, senti-me tão cruel e perverso que peguei no rapaz, e quiz apertal-o ao coração, mas recuei; encarei-o depois, como se faz a um filho de verdade; os olhos que elle me deitou foram ternos e agradecidos. CXLVI Não houve lepra. Não houve lepra, mas ha febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze mezes depois, Ezequiel morreu de uma febre typhoide, e foi enterrado nas immediações de Jerusalem, onde os dous amigos da universidade lhe levantaram um tumulo com esta inscripção, tirada do propheta Ezequiel, em grego: «Tu eras perfeito nos teus caminhos.» Mandaram-me ambos os textos, grego e latino, o desenho da sepultura, a conta das despesas e o resto do dinheiro que elle levava; pagaria o triplo para não tornar a vel-o. Como quizesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, e achei que era exacto, mas tinha ainda um complemento: «Tu eras perfeito nos teus caminhos, _desde o dia da tua creação._» Parei e perguntei calado: «Quando seria o dia da creação de Ezequiel?» Ninguem me respondeu. Eis ahi mais um mysterio para ajuntar aos tantos deste mundo. Apesar de tudo, jantei bem e fui ao theatro. CXLVII A exposição retrospectiva. Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou ahi para um canto como uma flor livida e solitaria. Não lhe dei essa côr ou descôr. Vivi o melhor que pude, sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira. Caprichos de pouca dura, é verdade. Ellas é que me deixavam como pessoas que assistem a uma exposição retrospectiva, e, ou se fartam de vel-a, ou a luz da sala esmorece. Uma só dessas visitas tinha carro á porta e cocheiro de libré. As outras iam modestamente, _calcante pede_, e, se chovia, eu é que ia buscar um carro de praça, e as mettia dentro, com grandes despedidas, e maiores recommendações: --Levas o catalogo? --Levo; até amanhã. --Até amanhã. Não voltavam mais. Eu ficava á porta, esperando, ia até á esquina, espiava, consultava o relogio, e não via nada nem ninguem. Então, se apparecia outra visita, dava-lhe o braço, entravamos, mostrava-lhe as paizagens, os quadros historicos ou de genero, uma aquarella, um pastel, uma _gouache_, e tambem esta cançava, e ia embora com o catalogo na mão.... CXLVIII E bem, e o resto? Agora, porque é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana obliqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitú da praia da Gloria já estava dentro da de Matacavallos, ou se esta foi mudada naquella por effeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciumes, dir-me-hia, como no seu cap. IX, vers. 1: «Não tenhas ciumes de tua mulher para que ella não se metta a enganar-te com a malicia que apprender de ti.» Mas eu creio que não, e tu concordarás commigo; se te lembras bem da Capitú menina, has de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a summa das summas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos tambem, quiz o destino que acabassem juntando-se e enganando-me.... A terra lhes seja leve! Vamos á _Historia dos suburbios._ FIM INDICE Capitulo I Do titulo II Do livro III A denuncia IV Um dever amarissimo! V O aggregado VI Tio Cosme VII D. Gloria VIII É tempo! IX A opera X Acceito a theoria XI A promessa XII Na varanda XIII Capitú XIV A inscripção XV Outra voz repentina XVI O administrador interino XVII Os vermes XVIII Um plano XIX Sem falta XX Mil padre-nossos e mil ave-marias XXI Prima Justina XXII Sensações alheias XXIII Prazo dado XXIV De mãe e de servo XXV No Passeio Publico XXVI As leis são bellas XXVII Ao portão XXVIII Na rua XXIX O imperador XXX O Santissimo XXXI As curiosidades de Capitú XXXII Olhos de ressaca XXXIII O penteado XXXIV Sou homem! XXXV O protonotario apostolico XXXVI Ideia sem pernas e ideia sem braços XXXVII A alma é cheia de mysterios XXXVIII Que susto, meu Deus! XXXIX A vocação XL Uma egua XLI A audiencia secreta XLII Capitú reflectindo XLIII Você tem medo? XLIV O primeiro filho XLV Abane a cabeça, leitor XLVI As pazes XLVII «A senhora saiu» XLVIII Juramento do poço XLIX Uma vela aos sabbados L Um meio termo LI Entre luz e fusco LII O velho Padua LIII A caminho! LIV Panegyrico de Santa Monica LV Um soneto LVI Um seminarista LVII De preparação LVI O tratado LIX Convivas de boa memoria LX Querido opusculo LXI A vacca de Homero LXII Uma ponta de Iago LXII Metades de um sonho LXIV Uma ideia e um escrupulo LXV A dissimulação LXVI Intimidade LXVI Um peccado LXVII Adiemos a virtude LXIX A missa LXX Depois da missa LXXI Visita de Escobar LXXII Uma reforma dramatica LXXIH O contra-regra LXXIV A presilha LXXV O desespero LXXVI Explicação LXXVII Prazer das dôres velhas LXXVIII Segredo por segredo LXXIX Vamos ao capitulo LXXX Venhamos ao capitulo LXXXI Uma palavra LXXXII O canapé LXXXIII O retrato LXXXIV Chamado LXXXV O defuncto LXXXVI Amai, rapazes LXXXVII A sege LXXXVIII Um pretexto honesto LXXXIX A recusa XC A polemica XCI Achado que consola XCII O diabo não é tão feio como se pinta XCIII Um amigo por um defuncto XCIV Ideias arithmeticas XCV O papa XCVI Um substituto XCVII A saida XCVIII Cinco annos XCIX O filho é a cara do pae C «Tu serás feliz, Bentinho!» CI No ceu CII De casada CIII A felicidade tem boa alma CIV As pyramides CV Os braços CVI Dez libras esterlinas CVII Ciumes do mar CVIII Um filho CIX Um filho unico CX Rasgos da infancia CXI Contado depressa CXII As imitações de Ezequiel CXIII Embargos de terceiro CXIV Em que se explica o explicado CXV Duvidas sobre duvidas CXVI Filho do homem CXVII Amigos proximos CXVIII A mão de Sancha CXIX Não faça isso, querida CXX Os autos CXXI A catastrophe CXXII O enterro CXXIII Olhos de ressaca CXXIV O discurso CXXV Uma comparação CXXVI Scismando CXXVII O barbeiro CXXVIII Punhado de successos CXXIX A D. Sancha CXXX Um dia CXXXI Anterior ao anterior CXXXII O debuxo e o colorido CXXXIII Uma ideia CXXXIV O dia de sabbado CXXXV Othello CXXXVI A chicara de café CXXXVII Segundo impulso CXXXVIII Capitú que entra CXXXIX A photographia CXL Volta da egreja CXLI A solução CXLII Uma santa CXLIII O ultimo superlativo CXLIV Uma pergunta tardia CXLV O regresso CXLVI Não houve lepra CXLVII A exposição retrospectiva CXLVIII É bem, e o resto? End of the Project Gutenberg EBook of Dom Casmurro, by Machado de Assis *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK DOM CASMURRO *** ***** This file should be named 55752-8.txt or 55752-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/5/5/7/5/55752/ Produced by Laura Natal Rodriguez & Marc D'Hooghe at Free Literature (online soon in an extended version,also linking to free sources for education worldwide ... MOOC's, educational materials,...) (Images generously made available by the Bibliotheca Nacional Digital Brasil.) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you'll have to check the laws of the country where you are located before using this ebook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that * You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." * You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. * You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. * You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and The Project Gutenberg Trademark LLC, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is in Fairbanks, Alaska, with the mailing address: PO Box 750175, Fairbanks, AK 99775, but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.