The Project Gutenberg EBook of Memórias, by Raúl Brandão

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Title: Memórias

Author: Raúl Brandão

Release Date: April 3, 2011 [EBook #35762]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Abril 2011)



Direitos reservados




MEMORIAS







DE RAUL BRANDÃO



A PUBLICAR:


Theatro cinematographico
A historia humilde






RAUL BRANDÃO


Memorias


1.º VOLUME





EDIÇÃO DA

«RENASCENÇA PORTUGUESA»

PORTO






AOS MORTOS









PREFACIO


Janeiro de 1918.



Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda n'este sonho poído. Não me habituo: não posso vêr uma arvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplendido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei—nem me importo—se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectaculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso [10] me enche: levo-o para a cova, para remoer durante seculos e seculos, até ao juizo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas... Fugi sempre dos phantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existencia foram outros: foram, por exemplo, D. João da Camara, poeta e santo, Correia d'Oliveira, um chapeu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornaes?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dôr tambem.

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memoria intacta de dois ou tres rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem [11] lá no fundo e enebriam-me, como um pouco d'agua fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nitidas como na primeira hora: ouço hoje como hontem os passos de meu pae quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hydranjas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvae-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de mim... Algumas sensações, ternura, côr, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frivolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo d'oiro, a outra banda verde... Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos historicos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrario este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquella laranjeira que, de velha e tonta, deu flôr no inverno em que seccou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

[12] Lá está a velha casa abandonada, e as arvores que minha mãe, por sua mão, dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente, o mesmo barco archaico sobe o rio, guiado á espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a vêr, e não ha lagrimas no mundo que os façam resuscitar.

Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou colerico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó; no armario, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e da [13] fortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha:—Ó sê Manuel cá p'ra baixo p'r'o mar!—Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos!—e foi hontem... A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar profundo—chape que chape—só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve.—Iça! iça!—e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra [14] toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as rêdes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalteravel o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bemdito, tanta foi a pesca.—Quantas duzias?—Um cento! dois centos!—Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra [15] dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fóra, anunciando o inverno que vem proximo. O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada—vento sul, camaroeiro içado—com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas:—Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver!—E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.

[16] O que sei de bello, de grande ou de util, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dôr e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balburdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram misterio que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fertil em emoção e aventura, que a armadilha aos passaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pégadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacavel de agosto. Os passaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sêde aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!... Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua [17] estagnada. Toca n'uma palheira de visco—é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!... Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura tôrva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmurio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte. Quasi todos os meus amigos—o Nel, que não tornei a ver...—são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos—que já não existem—acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que [18] chama por mim... Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Boia espuma na agua viva que a maré traz da barra... E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.



Agosto de 1910.


Aos 23 do mez passado morreu meu pae amachucado, exhausto e pobre. Encontrão de um, repelão de outro, assim foi até á cova. Tinha 67 annos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Ha muitos annos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas sem fim sobre um velho romance de Camillo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha casa abandonada...

[19] Sobe a lua no céo, e a sombra no monte. Seis arvores, quatro paredes—tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas outras sêdes se apagarão n'aquella agua. Outros virão tambem sentar-se no banco de pedra... Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto... Olho para ti e os teus primeiros cabellos brancos fazem-me chorar.



Setembro de 1910.


Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete:—É inutil! é inutil!

A aquiescencia, o sorriso:—pois sim... pois sim...—a necessidade de transigir, [20] o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr inutil, que não sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque nem de desespero sou capaz.

A vida antiga tinha raizes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa epocha é horrivel porque já não cremos—e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruinas, á espera...

Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida. Contudo ha horas, as horas perdidas—e só essas—que queria tornar a viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os philosophos que os resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As coisas bellas reduzem-se a meia duzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estôpa e a luz.

[21] Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia pódo as minhas arvores, á noite sonho. Sinto Deus—toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me—não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem...

Como em ti, ha em mim varias camadas de mortos não sei até que profundidade. Ás vezes convoco-os, outras são elles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silencio mais profundo ainda, conto ouvil-os a todos.

Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e pouco a pouco o circulo da minha vida restringe-se a um ponto—a cova.

Teimo: ha uma acção interior, a dos mortos, ha uma acção exterior, a da alma. A inteligencia é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos d'uma maneira diferente. [22] Destas duas acções resulta o conflicto tragico da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constroe e se impõe—mas é impelido pela alma universal, na meia duzia de coisas essenciaes á Vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pae para falar com elle. Não é só saudade que sinto: é uma impressão physica. Agora é que acharia encanto até ás lagrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo...


Fevereiro de 1918.


Isso que ahi fica não são memorias alinhadas. Não teem essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento—e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a côr, um aspecto, uma linha, um quadro, [23] uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explical-a. Não afirmo nem nego. Ha muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer—desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio d'este mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a chimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importancia neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigil-o e canalisal-o... Tambem entendo que é tão dificil asseverar a exactidão de um facto como julgar um homem com justiça. Todos os dias mudamos de opinião, todos os dias somos empurrados para leguas de distancia por uma coisa phrenetica, que nos leva não sei para onde. Succede sempre que, passados mezes sobre o que escrevo—eu proprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço... [24] É por isso que não condemno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim proprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo—para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erroneas. Sou talvez uma arvore que cresce á sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, á chuva e ao vento. Não admitto poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu visinho, o senhor Crasto, que morreu de oitenta annos, curvado, a lavrar a terra, do que a do senhor Hintze Ribeiro, que considero inutil e destituida de toda a belleza.

Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos mascaras, [25] só lidamos com phantasmas, e ninguem, por mais que queira, se livra de paixões. No que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi. Poderão objectar-me:—Então com que destino publico tantas paginas desalinhadas, de que eu proprio sou o primeiro a duvidar? É que ellas ajudam a reconstituir a atmosphera d'uma epocha; são, como dizia um grande espirito, o lixo da historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a historia viva tanto se faz com a verdade como com a mentira—se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é preciso crear-lhe primeiro a atmosphera propicia. «Algumas palavras sob caricaturas grosseiras dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, á rainha, ao conde de Artois, a madame Lamballe, ao pacto da fome, aos vampiros que sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda, que elle acha util, sahiu a grande revolução»—diz um [26] historiador. A gente nunca sabe ao certo se da infamia poderão nascer coisas bellas... A mentira, o boato, o que se diz ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de odio, de ambição e de interesses, que não cabe na historia com H grande, tem o seu logar n'um livro como este de memorias despretenciosas. Eis uma razão. Tenho outra ainda: torno a vêr e a ouvir alguns mortos. Recordo, o que é necessario a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as suas arvores. Isto aquece quasi tanto os primeiros annos da minha velhice, como o lume que arde até junho na lareira d'esta casa[1].


Cantareira, Foz do Douro—1918.




ALGUMAS FIGURAS



Janeiro—1900.


Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do Correio da Manhã. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de classicos—conhece muito a lingua—e uma forma ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na Tarde com o Espirito de S. Ex.a.

Eis algumas maximas de Urbano de Castro:


—A paciencia é uma virtude de capote e lenço.

—Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.

—Os homens publicos são como os papeis de credito—o que hoje tem uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

[28]
—Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.

—A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma, mas o vinho é outro.

—Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.

—No coração mora-me Deus, no figado o diabo.

—Mortal é o contrario de imortal. Imortal é o que é sempre. Logo, mortal—é o que não é nunca.

—Theologia—a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que nós não entendemos.

—De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau... de dois bicos.

—Jornalista—fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a unica genuina é a da sua lavra.

—Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.

—O suicida tem para mim um lado sympathico—não se julga insubstituivel.


Junho—1903.


Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial? Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal [29] d'esta existencia de acaso, com aflições de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta—pan! pan! pan!—e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.

Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos, que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:

—Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!


Fevereiro—1900.


A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G... só escreveu trez folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no [30] café, G... aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:

—A tua obra, bem sei... Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.

G... embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo, para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:

—O Fialho fazes favor de me dizer que horas são... no relogio do teu sogro?


Fevereiro—1903.


Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico, olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma modestia no dizer, e um medo de magoar... A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.

—O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido.—E mais baixo:—Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.

[31] Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros, ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria, como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.

Hontem contou-me isto que é encantador:

—Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou sempre a dormir... Esta manhã—estava acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me acordar, e beijou-me...

E fica extatico.

Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do Sermão da Montanha e de outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha:—Bem sei é da Dinorah!... Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano, e as ceias que demos juntos!—Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer conheceram as pessoas de quem falam... Outras vezes conta-me a sua vida:

—O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia... N'essa noite O Pantano cahira. [32] Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde.—Não haveria que pôr no prégo?—Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da manhã... Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura:—Não emprestamos sobre casacas.—Fui a outro e esperei no portal que abrisse. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!...

Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo:—Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores peças...—Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o americano—e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.


Columbano.—Auto-retrato.
Columbano.—Auto-retrato.




[33]
Junho—1903.


Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam.—Era um homem com um ôlho assim...—E logo o ôlho se lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua.—Ninguem faz caso de mim...—Estranha quando o não vão esperar á estação—e está sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna:—Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado.—Agora arremeda este e aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer:—Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira.—E que o infante, quando lhe perguntaram:—Então em Londres que tal, com aquelles principes todos?—Mal, mal... eu sou um principe aza de mosca...

E acaba—é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D. Maria—por dizer:—Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!

[34] Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do Antonio Maria. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.

Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:

—O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na carruagem.


Dezembro—1900.


Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:

Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem mais nem menos, [35] compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.

D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:

—Ahi vem o duque... E aposto que vem para cá.

Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha perguntou-lhe:

—Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.

—Mas não tenho opinião nenhuma...

—Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.

—Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.

[36] —Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?

—Se V. Ex.a quizesse...

—Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.

Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.

—O maior segredo...—recomendou o Latino.

N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:

—O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.

Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:

—Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder...

Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:

[37] —V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?

Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor...


*


Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:

—Mas ha-de ser tudo assassinado—toda a familia real.

—Isso não!—protestou logo o Latino.


*


Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:

—Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.


*


Junqueiro dizia de Latino:

—Sim, é um homem admiravel, que em logar de c... tem duas castanhas piladas!

[38]
Maio—1903.


Um jornal publica hoje esta noticia:


POVOA DE LANHOSO, 29—Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.

O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.


O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. [39] Em que scismava? Decerto no passado longinquo...

Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.

—E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?

E elle, com os olhos razos de lagrimas:

—Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles um recado, esta palavra:—«Adeus!» Foi o ultimo!

Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir... O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta força enorme:—a [40] fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.

Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.

Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.


Julho—1903.


O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no coração:

—Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul. [41] Era de certo a isto que o Manuel se referia ao escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!

E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda:—Arre bandidos!

De repente, sem transição, põe-se a rir:

—Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim:—Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle...

E o mestre:

—Esse velho não era nada tolo!

Ri-se. Depois fica outra vez triste:

—Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!


*


O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos—o Fialho diz:

—...era isto e aquillo e uma mão enorme [42] atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente, apertando a nossa.

O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!...


Fevereiro—1904.


Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca—miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio... Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha:—Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento... Minha mulher, uma velhinha lá fica... Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a á nossa meza... Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer:—Isto dá vontade de morrer! «Que faria—accrescenta—se vivesse hoje!»—O Conservatorio lembra-lhe [43] o Palmeirim—«que foi da minha creação»—É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã. E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo! Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.


Março—1904.


Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas largas, marcas de bexigas, barba com muitas brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha curta e olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista e secco.

—A gente quando chega a certa edade tem de se isolar para não viver n'uma perpetua irritação. Olhem agora se eu encontrava o Pequito ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça em rapaz! E muitos outros, que aos quarenta annos começam a desafinar-nos os nervos... Vivo no Cartaxo, n'um descampado: a quinta [44] fica entre duas estradas. Não passa lá ninguem... Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro acrescentei-lhe uma cozinha, depois um quarto: agora tenho lá uma casa. E já não posso viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica mesmo por cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras em flôr, aquillo é adoravel...


Abril—1903.


Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver, com uma sobrecasaca riquissima de gola de veludo. Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço, indiferença ou desprezo, a palpebra cahida, o olhar vazio de expressão.—Que me importa! que me importa!...—Parece um morto, farto de sofrimento e de goso, e, sob aquella apparencia de sceptico raros se magoam como elle. Toda a vida tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa horas a descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e tiras de papel, a tarefa do jornal, sem dizer palavra nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel, curvado sobre os linguados, sem lhe dizer palavra... Por fim ella, desesperada, berrou-lhe:

—És um estupido!

Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito calmo:

[45] —Teem-me chamado tudo, mas estupido é a primeira vez!

E continuou a escrever.

Por fóra uma aparencia de sceptico, por dentro uma sensibilidade enorme. Anda sempre metido em complicações e negocios, em caminhos de ferro, em pedaços de Africa, bahia de Lobito, etc., e afinal não passa d'um sonhador que tem as propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze contos de reis.


Setembro—1903.


O Antonio José de Freitas, homem de lettras mediocre, é um conversador admiravel. Se conseguisse escrever como fala, e désse á prosa aquella vida que dá á palavra, seria um grande escriptor. Pequeno, branco, na ponta dos pés, sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:

—Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um dia começou a imaginar que estava pobre, porque no Banco de Portugal lhe não quizeram, como sempre se fez, descontar uma lettra só com o nome d'elle. Disse ao Barros Gomes:—Vae beber da merda!—E sahiu furioso. D'ahi começou a imaginar que tinha cahido na pobreza e alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma vez sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o a casa.—Sobe.—Tenho ainda que [46] escrever para o Brazil...—Insistiu, subi—e eil-o a clamar no quarto:—Que diriam meus avós se vissem alli o circo e os palhaços!...—Estava desesperado. Descompul-o.

Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o n'aquelle mesmo quarto, e, altas horas da noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o circo Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo do cadaver, iluminado pelo clarão do incendio, alli onde o ouvira evocar com desespero os seus mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar no caixão, veio de roldão uma chusma de cocheiros e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e, erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até á cova...


*


—O Eça usou toda a vida bentinhos ao pescoço. Vi-lhos eu, que dormi por diferentes vezes com elle no mesmo quarto...


*


Depois fala no Resende:

—Se vivesse era decerto o chefe do partido conservador. Que homem encantador, polido e sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia magnetica sobre nós todos. O medico, já quando elle estava muito mal, recomendou-lhe ares do mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes [47] ia eu com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe botijas com agua quente, porque sentia sempre um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com uma botija em cada mão. O Rabecão, um jornal de caricaturas do tempo, disse que nós iamos emborrachar todas as noites para o rio. Muito nos rimos... Pois o Resende, atheu toda a vida, morreu como um crente.

Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma das piramides do Egypto. Nessa viagem ouviram ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem. O Eça cahiu logo de joelhos; quando levantou a cabeça para ver o quadro, dois ou trez mil peregrinos tinham como elle ajoelhado sob o mesmo impulso irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo no braço, se conservava de pé, sem perder a serenidade nem a linha, um unico homem: o Resende.


*


Os vencidos da vida, depois que se juntaram diziam mal uns dos outros. Não se podiam ver.


Março—1900.


Ha mezes que Junqueiro não aparecia na Praça, onde outrora era certo á noite, rodeado de esbirros, e discutindo politica ou arte com alguns amigos mais intimos. Eil-o agora de volta, [48] depois de umas febres palustres apanhadas n'essa longinqua quinta que replanta de vinha lá para a Barca d'Alva.

Vem curioso. Teem por acaso os senhores noticia d'um Junqueiro adunco e janota, mephistophelico, com ditos em braza explodindo sobre o ultimo acontecimento, e conhecem talvez a lenda da casa de hospedes celebre da rua dos Retrozeiros, d'onde em tempos sahiram gritos subversivos, pamphletos, versos, theorias philosophicas, satyras e revistas do anno, e onde—consta dos archivos da policia—morou o proprio Diabo em pessoa, na intimidade do poeta?... Lembram-se? Depois, n'outra phase da vida, viram-no talvez autoritario e feroz, com o mesmo perfil em bico d'aguia, sob um chapéo molle e gasto, atacar o velho Padre Eterno?... Pois ahi o teem agora philosopho e christão. Parece um prégador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta: traz ainda terra pegada nas mãos e uma roupa velha, a que só faltam alguns remendos cosidos á ultima hora... Usa uma camisola de lã e diz assim:—Eu não me visto: cubro-me.

Chega da Barca d'Alva, um terreno enorme lá para a raia, entre pantanos, que reuniu leira a leira, depois d'uma scena, que dava um capitulo á Balzac. É elle mesmo que a evoca em meia duzia de traços, e a gente vê logo d'um lado os cavadores tartamudos e hesitantes, do outro o Senhor Poeta, como elles lhe chamam, com um [49] livro de cheques na algibeira, encafuando-os a todos na sala do cartorio:—Se chegam a concertar-se era uma discussão para seculos. Pediam-me uma fortuna!—Um a um compareceram diante do tabelião:—Quanto quer? Assigne!—E sahiam logo por outra porta.





Já pouco a pouco a lenda se forma, discutindo-se a nova thebaida, que d'aqui a annos será visitada como Valle de Lobos e Seide. Que procuram os nossos grandes escriptores, desde Herculano a Fialho, na natureza, que pouco nos dá em troca do muito que lhe damos? Afastar-se dos outros ou esquecer-se a si proprios?Talvez as arvores e os montes nos preparem melhor para o sepulchro e para o verme, ainda que eu julgue que não ha como um 6.º andar, com livros e papeis, e um cinematographo no rez do chão, para acabar com a vida.

Seria um curioso estudo aquelle que comparasse Valle de Lobos, Seide e a quinta de Junqueiro, a decoração escolhida por tres homens superiores—o fundo de tres grandes retratos. Na Barca tem o poeta uma casota de cão, com os muros ainda em osso, e uma varanda onde passeia todo o dia infatigavelmente. De quando em quando escreve na cal da parede versos ou contas. Seide, n'um cahir de tarde outomniça, lembra a alma de Camillo. Ha lá um calvario d'arvores decepadas que parecem forcas. Ha lá uma casa tragica, pintada d'amarello. Um ermo, [50] que, a meia legoa da estrada, fica ao cabo do mundo, e que parece escolhido de proposito para esconder uma desgraça ou combinar um crime. Peor: ficou na casa abandonada, no ambito, nas pedras, alguma coisa daquella alma dilacerada de sceptico e de crente, mixto doloroso que só tinha como solução o infortunio. O que se ouve são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!... Parece que elle anda ainda por aqui, sardonico e immenso, desgraçado e immenso. Valle de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda diferente, e não diz bem com a alma de Herculano?... Quanto a Junqueiro, a sua paizagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta e grandiosa como o seu genio.

Camillo não encontrou decerto resignação nas arvores, nem nos montes, porque, para o mestre, em toda a natureza só o homem existia:—Não ha na sua obra uma arvore, nota o poeta...—Nem Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na lucta, com os seus livros, as suas theorias, a sua maneira suprema de discutir e de encarar os problemas do universo.

—Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser João Brandão ou S. Francisco d'Assis.

De forma que a Barca d'Alva não é bem uma thebaida para o poeta. Os senhores vão agora conhecel-o sob este aspecto novo—agricultor. A Barca é-lhe mais que um refugio: é [51](palavras que fazem bater o coração de todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, agricultor, tem ainda genio: inventa e descobre. Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a terra, que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito propaga a febre. O jornaleiro macilento bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e resolve as questões agricolas muito melhor que os lavradores da região, de quem diz:

—Plantam vinhas, como quem joga na batota—ao acaso!

Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem logo uma vida extraordinaria, as boccas que não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos de toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados, filhos para a desgraça, os sêres deformados e enormes, os tipos que se transformam em simbolos... Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia, essa operação cirurgica, como elle lhe chama, falhe, e, sob as suas ordens, trabalham alguns centos de homens, que se encostam ás enxadas para ouvirem o Senhor Poeta... Não é raro vel-o subito, tempo humido, perigo para as vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato. Adivinha, presente melhor a natureza que os sabios—e cria. Tudo o que toca toma sob as suas mãos um aspecto novo, tão certo é que os homem de genio, como quer Carlyle, são sempre superiores e ineditos.

E de que maneira paradoxal elle expõe as [52] suas theorias! Nervoso, pequeno, calcando o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que giganteas formas de sonho não vae creando aquella magica palavra!... A sua phantasia é eminentemente decorativa.

—Sabem—dizia o poeta uma noite—sabem que scismo na fórma de transformar toda a agricultura? Acabaram-se os pobres, a fome, os annos tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não bastarão toneis como torres e para o pão arcas como predios. Uma carrada de bois será apenas suficiente para carregar uma abobora, e um simples cacho de uvas dará vinho para duzias de borrachões. Como? Aplicando ás arvores, ás vides, ás plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard. O sabio dá a um organismo gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos. Calculem o resultado d'esse sistema aplicado na agricultura...

Um castanheiro dura seculos, tem uma vida extraordinaria. É mais que uma arvore—é uma força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram, os seus ramos tocam no céo. Imagine que injecto polen de castanheiro n'uma vide... Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. D'um pé de melancia tiro um fructo capaz de carregar um carro. Tres maçãs metem no fundo uma náu.

E eis, por uma noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder da phantasia [53] e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em cima no céo em parasoes roxos; pinheiros transformam-se em montanhas; monstros erguem as suas corolas de veludo, e na verdade não passam de humildes flores bravias. Uma petala desaba com o fragor de penedos, e multidões sobre multidões sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo colossal:—o morango. Ha que tempos que eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de papoulas!...

Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio, de imprevisto, de elevação. Vê os factos mais simples com um olhar que os engrandece. Assombra de pitoresco e de inedito. O homem de genio é, como todos os homens, filho da mesma lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas, aguas correntes, detrictos de florestas, restos de nuvens e a emoção profunda da natureza. Por isso sabem tudo, sentem tudo... É pena que as suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos, e decerto esquecidos, se não possam juntar, porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios do seu genio. Seria esse talvez o seu melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros, a explicação prodigiosa dos Christos de madeira—o Christo dos soldados, o dos ladrões, o dos cavadores, da sua sala de jantar, unicas obras d'arte de que não quer desfazer-se, e a [54] sua philosophia, a maneira superior como encara o universo e ilumina o desconhecido...

Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba hisurta, embrulhado n'um casaco coçado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:


Tolstoi o meu sapateiro...


E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de proposito procural-o para lhe prégar Deus?

Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide, de que o grande escriptor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê phantasmas, e sae do horror com blasphemias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo... O poeta tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez... Já o julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem emfim estas palavras ironicas:

[55] ...—Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como tres Voltaires.


Março—1904.


Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica—as raizes do universo—elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da Europa—quiz ser tambem um santo... Durante annos procurou como Fausto o segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje plenamente confirma.

Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande barba de santo, começo [56] de calva amarelada no alto da cabeça, chapéo baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem com a simplicidade verdadeira ou ficticia da sua alma. E sobre isto os olhos terriveis que nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodigio que evoca, ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e novos aspectos que entontecem.

Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não palidamente, nem decerto com as inexactidões com que reproduzo, o seguinte:

—É um livro interessante. O autor conseguiu deixar falar a parte de inconsciente que cada um de nós traz comsigo... Porque, meu amigo, a porção de infinito que cabe a cada homem é exactamente a mesma. O camiseiro alli defronte e um homem de genio teem na alma identico quinhão. Sómente o camiseiro não consegue encontral-a nem pode exteriorisal-a. Porque? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo reduzido... Que cada um pudesse deixar-se narrar—e teriamos a mais maravilhosa historia do mundo!...

E como incidentemente se refira á sciencia, eil-o que se desvia por outro esplendido caminho:

—As ultimas descobertas modificaram completamente a sciencia. Foi um terremoto. E eu entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao seguinte resultado:—radiação universal e desassociação dos atomos. Fiz experiencias, que me [57] de sciencia que não me quizeram atender. Um dia vim de proposito a Lisboa falar a Sousa Martins e expuz-lhe as minhas theorias. Ouviu-me... Quando me fui embora encolheu decerto os hombros. E no emtanto, passados annos, vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra... Que quer?... Faltavam-me como comprehende os meios de verificação. Precisava de factos.


D. João da Camara.
D. João da Camara.


Cala-se um momento e depois continua:

—Hei-de publicar, depois da Oração á luz, que sae brevemente, uma serie de memorias, com os resultados dessas experiencias. A vida—é o Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis tudo. Seguir-se-ha a minha theoria philosophica. Adivinhei todo este terremoto que se deu ultimamente na sciencia. Hoje a materia não existe: já a definem—associação d'energias. O que é feito dos materialistas? A sciencia futura será portanto o estudo de energias. Por ultimo publicarei uma introducção á sciencia, visto que não posso escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer—a tarefa de toda uma vida.

—E tem muitos documentos?

—Tenho tudo prompto. Necessito apenas de encontrar a fórma precisa, a fórma mathematica, para exprimir as minhas idéas.

Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado passeia horas e horas, a conversar... Não conversa—monologa.


[58]
*


Da Barca d'Alva diz:

A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras de pinho. Depois de comer, quando quero um palito, corto-o na meza.


*


Ramalho definido por Junqueiro:—um pinheiro com uma melancia em cima.


*


Junqueiro na redacção do «Mundo»:

—D'aqui a pouco reparto a minha fortuna com as minhas filhas e o que me restar dou-o aos pobres.


*


Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou, o Junqueiro do bric-á-brac. O Junqueiro que a má lingua do Porto afirma que percorre disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro pela arreata apregoando:—Ha por ahi quem tenha louça para vender?—O Junqueiro que foi procurado um dia no hotel, em Salamanca:—Está cá o grande poeta Guerra Junqueiro?—Não conheço,—disse o porteiro.—Mas elle vem sempre para aqui. É um homem de barbas...—teimou, explicou o outro.—Esse es Guerra el antiquario!...

[59] Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas são indispensaveis para completar o retrato. Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto uma parte que se deve ao arranjo—e que é a inferior e outra em que elle obedece á raça e que é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor: o homem é sempre um tablado onde varios phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos puxam para o fundo, ha outras que nos procuram levantar cada vez mais alto. Deus nos livre de julgar os mortos!


*


Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:

—E não aparecer um doido, com um grande martelo, que deite tudo aquillo abaixo! Qualquer dia botam as arvores a terra e põem pedraria até á Pampilhosa!


Dezembro—1907.


Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com um velho casaco comprado n'um adelo, e muitas rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E, como o José de Figueiredo lhe fale no Rodin:

—É verdade, passei um dia inteiro com o Rodin, a explicar-lhe a sua obra. Disse-lhe: você é um grande artista, mas exactamente, como [60] em todos os grandes artistas, a melhor parte da sua obra é inconsciente. Porque em todos nós a razão é nada, o que é grande é o inconsciente. Aquella cabeça que você tem no Luxembourg, emergindo da pedra—é assim, é aquillo... Mas falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a cabeça á pedra. Assim choca, é brutal. É como o Pensador, a estatua que está no Pantheon. Toda a critica franceza tem tentado explicar aquella estatua, e ainda ninguem disse as palavras necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo não é o Pensador, nem o Pensamento: é o primeiro pensamento em cabeça de homem. Dispa você um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o Dante, por exemplo, e encontra um corpo deformado. Porque o pensamento peza mais de que montanhas. Devora. O que você fez foi uma besta, um gorilha, um homem capaz de arrastar calháos: Pois bem: inconscientemente fez uma grande obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça d'homem. Esse primeiro homem athletico, ao deparar com o primeiro pensamento, essa flor abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o Atlas em cima e esmaga-o... E adeus, são horas de partir para o comboio.


*


D. Carracida, professor de chimica biologica na Universidade de Madrid, homem ilustre e que [61] conhece perfeitamente a literatura portugueza, diz assim de Junqueiro... (D. Carracida fala portuguez pausadamente).

—O senhor Junqueiro, grande poeta, é um mistico... Está agora no misticismo. O senhor Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de Villa do Conde, de cá para lá—e o senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor. Uns rapazinhos acendiam balões para uma festa, e eu e o senhor Junqueiro passeavamos de cá para lá... O senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor, e um dos balões cahiu na cabeça do senhor Junqueiro, que levantou a bengala e deu com ella no rapazinho... E nós continuamos a passear de cá para lá, e o senhor Junqueiro a prégar a piedade e o amor...


Março—1903.


Fialho não é este janota de palio rico, com uma joia tão grande que parece falsa na gravata de veludo. Fialho era outro estranho tipo, intratavel e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme cheia de sarcasmo. Um principe de gabinardo, que fazia cahir as peças do alto do galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, [62] que deslumbrou de sonho e atascou em sonho.—Fialho! Fialho!...—Esses aplaudiram-no e amaram-no... Esquecidos do frio e da pobreza, não despregavam os olhos d'aquelle sonho desconforme.—Fialho! Fialho!...—Depois sumia-se n'um terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sae da noite e implora. Havia uma velha—nunca mais me esquece—alli á porta do Monte Pio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a quem elle, ao dar-lhe esmola, lhe afagava a cabeça... Depois, amargo, feroz, insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos, transtornando as figuras decorativas, cheias de veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado de phrases, como quem quer fugir ao proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate perpetuo de que sahia livido, exhausto, e com a mascara transtornada. Este que fala do seu vinho:—Livros?... O que eu trato de editar é um vinhinho branco lá de Cuba...—este, que vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos com um novo e horrivel fato, é outro Fialho, que talvez tenha saudades d'essa vida absurda de outros tempos...

Fialho! Fialho!... Pronuncio este nome e diante de mim desfila o assombro, pamphletos, a [63] obscenidade e o genio—farrapos arrancados a ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes—o estoiro d'uma bexiga d'entrudo—ironia e esgares. E logo gritos! e agora gritos!... Ouço a dor, sinto a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista, d'uma audacia e d'um rithmo incomparavel, escorrendo sonho, aflição, miseria, sinto-a até nos impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores surprehendidos e irritados. Está aqui diante de mim aquella bocca enorme, aquella figura de gabinardo e chapeu molle que nas noites de tristeza e abandono me dizia:—O que eu sofri! o que eu sofri!...—Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento, de que fala nos Gatos, bello como um ephebo á prôa do seu barco.—Como eu queria ter saude e ser forte!—Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que imaginar se pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera e a dor, e, esse macaco sem fé, esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descripções perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com a casaria a escorrer vicio e aspectos tetricos... É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem lhe ouviu.—E maior! ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camillo. [64] Exigem-lhe um livro harmonico—Os cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquillo de que elles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme. Fialho via os pormenores atravez d'uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando genio á propria obscenidade. Nunca conheceu Barjona, nunca viu Barjona, e, com duas ou tres anecdotas, creou uma figura com um relevo que falta ao mediocre Barjona da realidade. Precisou sempre de se exagerar para se encontrar. Sacrificou o seu melhor amigo a um dito, é certo, mas começou por se sacrificar a si próprio. Foi sempre o primeiro a sofrer. Houve tempo em que alguem o definiu um doente com inveja das doenças dos outros... Desatou então a gargalhar com lagrimas nos olhos. Perdeu o pé. Arrancou as azas disformes ao Sonho e rojou-as com maldade no enxurro.—Encharcou-as de lama e empoou-as de estrellas... O vestido ficou mas era o d'um espectro... Não nos podemos medir todos pela mesma craveira. Fialho tem de tudo na alma: a casa de hospedes, a existencia reles d'estudante, a pobreza, as mil saburras, os pequenos nadas que gastam, desgastam e transformam, e uma alma vibratil, um feixe de nervos (capaz de tempestades que se domam com uma palavra) ligado a uma enchente de sonho e a um orgulho doentio, como os que sentem dentro de si, e o suportam, um mundo desconhecido e [65] nunca dantes navegado. Fialho, se o virassem do avêsso, escorria ternura... É tambem um timido capaz de todas as audacias, e que sae da doença e do isolamento com desespero e escarneo. Esta figura tão conhecida de todos nós, não é a exacta expressão da sua alma. Ainda hoje ninguem se entende...

Eça de Queiroz.—Desenho de Antonio Carneiro.
Eça de Queiroz.—Desenho de Antonio Carneiro.


Silva Telles, por exemplo, conheceu um estudantinho aplicado e mediocre, que se chamava José Valentim Fialho d'Almeida; ha ainda talvez quem se recorde d'um moço de botica reservado e triste; e, o que é mais extraordinario, de outro Fialho respeitoso, que não podia suportar o exagero alheio, e d'outro, noctambulo e feroz, com risadas estridulas de sarcasmo—e de outro, de outro maior, de outro espectro, que vem aqui sentar-se a meu lado na sua tragica mudez. No fundo talvez tudo aquillo fosse dor. No fundo, bem no fundo, quando irrompia n'uma phrase cruel, não era aos outros que dilacerava, era a si proprio que se dilacerava, e tão a serio que todos o viamos sangrar. Reparem: pouco a pouco a figura range de dor. Arfa atravez da sua obra. É o filho do professor d'instrucção primaria, d'aquelle homem severo, de quem dizia baixinho:—O meu pae foi duro! o meu pae foi tão duro! Era um homem sem ternura...—É o praticante de botica alheado e transido, o neto deformado de cavadores, que inveja a sociedade distante, e que só aos impetos se atreve a enchel-a de sarcasmos. [66] Que inveja o grande escriptor, o desgraçado Fialho, o homem de genio que passou a vida a fazer chacota das veneras, das academias, das elegancias, dos grotescos cobertos de patacos—que lhe faziam falta? Tanta tinta, tanto desespero calcado e recalcado, tanta contradição e pobreza, e uma lucta de noites e noites de que sae amarfanhado—e com paginas soberbas! Mas tu não vês que no dia em que te roçares por elles estás perdido, como no dia em que a cobra perde o veneno? Vae-se-te o melhor do teu genio...—Não, eu rio-me, eu sofro...—Tantas paginas bellas!—Se soubesses como isso se paga!—Então explica-te...—Não posso, não sei. Até dos idolos postiços que deito abaixo me ficam saudades... Nem eu proprio sei o que quero.—Pobre Camillo, que estoirou a cabeça de desespero, pobre Anthero, exilado e em debate com uma sombra com que não podia arcar; pobre Fialho, pobre cavador de genio, em perpetua discussão com os seus mortos, em lucta comsigo e com os outros e no fundo um reverente—foi-o sempre—sahindo em farrapos d'este inferno a que se chama a vida!...

Da sua existencia oculta faz parte uma figura de dor calcada e recalcada, sobre a qual outra se encarniça com desespero. Talvez seja a verdadeira... Contentemo-nos em fixar duas ou tres aparencias, apontando n'este canhenho algumas anecdotas frivolas... Se elle podesse gritar [67] gritava ainda. D'essa figura contraditoria restam farrapos—mas que farrapos! d'essa lucta suprema existem vestigios, que nunca encarei sem espanto... Vio-o algumas vezes ao amanhecer, n'um 3.º andar do Arco da Bandeira, quando elle cahia exhausto sobre a banca de tortura, á luz d'um candieiro de petroleo, com um frasco d'alcool ao lado e o cobertor enrodilhado nos pés. A mascara livida estava de todo mudada. Era outro! era outro! Surprehendi-o em noites, nos giros sem destino pela Graça, pela Penha, pelo Monte—quando o seu dedo apontava boqueirões de treva, tropeis de casaria, sitios ermos onde duas ou tres oliveiras torcidas se ajuntam para concertar um crime, ou, peor ainda, nas horas de amargo descalabro, em que, dorido e sem phrases, procurava fugir de si proprio para muito longe. Não queria então que ninguem o seguisse nas caminhadas que duravam até ao dia—elle e a dor, elle e a noite! Amigos, silencio...


*


—O que eu sofri!—dizia elle.—Tiveram-me preso oito annos n'uma botica alli na Bemposta, ao pé da Escola do Exercito, na idade em que queria viver. Estragaram-me a vida, encheram-me de desespero. Quando me soltaram não imagina a minha alegria! Podia ter sido outro... Ter saude, ser forte!... O que eu sofri! D'uma vez, [68] no Reporter, o Martins mandou-me escrever um artigo sobre uma kermesse de fidalgas. Fui e fiz uma troça, e elle rasgou-me os linguados na cara. Para me vingar, tirando um bocado ás noites, escrevi um artigo formidavel para publicar em folheto. Era na occasião em que essas peidorreiras arranjavam um bazar para os pobres, que rendeu oitocentos mil reis. Ora eu descobri por acaso um gallego, que se juntava com outros e tiravam todas as semanas meio dia de ganho, para irem ao domingo ao hospital dar cigarros aos doentes, penteal-os, cortar-lhes as unhas, untar-lhes a cabeça com banha de porco. É um velho, de barba de passa piolho, que está sempre no largo de Camões. Homem de poucas falas. Tratou-me mal. Tive prompto o folheto em que comparava essas mulheres, cheias de snobismo, com adulterios e infamias, com esse santo desconhecido... Imagine... Perdi o artigo.

E depois, falando da mulher Oliveira Martins:—Não era a mulher que convinha áquelle homem. E elle subordinava-se-lhe. Foi ella que o fez confessar á hora da morte. Contou-me o Sousa Martins que a sacudira de ao pé de si ao morrer...


*


Fala do livro A Cloaca, um d'estes livros que se sonham e nunca se chegam a escrever:

O primeiro capitulo está feito: é uma festa da [69] alta sociedade no claustro da Batalha... Aproveito a epoca do Burnay e do marquez da Foz, a lucta da finança, quando o Foz tinha palacios e o Moser carro a duas parelhas. Deram-se festas esplendidas... Tenho as figuras todas, homens de negocio e jornalistas, o Mariano e o Navarro... Um dia alugam um comboio especial e vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia formidavel, com mulheres da grande roda, politicos, literatos, e, dentro do claustro, entre a grandeza e a severidade d'aquellas pedras, caem de bebados e mijam pelos cantos, nos tumulos. O principe tambem lá está, com o conde de Maricas—fedes: no fim do banquete, á sahida, a babar-se, escreve nas paredes monumentaes esta palavra obscena: p... Os outros riem-se, as mulheres aplaudem. Fora a multidão apupa. Outro capitulo ha de ser a noite em que os jornaes apregoaram em suplemento o escandalo Foz e a sua prisão:—Foi n'essas horas—dizia a marqueza—que os cabellos se me puzeram brancos da noite para o dia.


*


Nunca terminou outro livro A Quebra, que chegou a trezentas paginas impressas, no editor Costa Santos. Tinha capitulos admiraveis. Acabou por o inutilisar:—A minha dificuldade é a falta de proporções. Perco-me n'um incidente, e quando [70] mal me percato estou em quatrocentas paginas.—Sei tambem que escreveu alguns capitulos d'Os Cavadores. Talvez d'Os Ceifeiros pertencessem a esse livro, em que elle queria pegar no homem do campo e leval-o, sempre explorado, desde o baptismo até á morte...


*


Inventou este nome para o conde de Arnoso, a rainha Draga, e diz do retrato a oleo que o Columbano lhe pintou:

—O Columbano é tão cortezão que lhe poz um velho olho do Eça de Queiroz.


*


Contemplando o cadaver do Cardia:

—Só aos quarenta anos é que se sabe o que é isto!

Isto é a morte, á qual tem horror, assim como á velhice.


*


E falando a proposito do Cardia:

—Eu tambem sou assim... Ha dias em que ninguem me arranca seja o que fôr da cabeça. Sinto a mesma impressão de vasio que o Cardia sentia. Depois escrevo por impetos uma pagina, pedaços destacados que me matam de desespero para ligar. E se não escrever logo, passadas horas já não posso, não sei... Varreu-se-me tudo!


[71]
*


Está furioso com a inauguração do monumento ao Eça. No fundo nunca o pode vêr: faltou-lhe o carinho, a consideração—e isso maguou-o muito—que rodeou o grande escriptor dos Maias. Elle proprio diz: ganhou sempre a trabalhar menos que um pedreiro. No jornaleco A Tribuna escreveu em dois numeros successivos, sem assignatura, as seguintes notas com o titulo


o monumento


Já noticiamos n'outro numero do nosso jornal com todos os seus detalhes e pormenores, como foi a festa d'inauguração do monumento a Eça de Queiroz. Damos hoje um reflexo do humor da multidão que assistiu ao acto. Porque, emfim, a nosso vêr, tudo é documento para a historia.


*


Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diaphano da phantasia. Dizem os amigos que n'esta frase se alegorisa a obra de Eça. Mas olha cá. Estando a Verdade completamente nua do ventre para cima, e só rebuçada d'ahi para baixo, o que sob o manto da fantasia se guarda é indecente.

—Ahi está a razão porque a alegoria é flagrantissima.


*


—Tu, se fosses casado, davas o Primo Bazilio a lêr a tua mulher?

—Lá isso não. Mas não tinha a mais pequena duvida em o dar á tua.



[72]
*


—Que lhe parece a Verdade do monumento?

—Um calix de bitter para fazer bocca ao Chat Noir, que fica em baixo.


*


—Condessa, de todos os cavalheiros que fallaram, qual d'elles é o conde d'Avila?

—O conde d'Avila são todos.


*


—Este Monteiro Milhões, que inconveniencia! Consentir que das suas cavallariças um burro esteja a interromper os oradores!

—Condessa, é o echo.


*


—O que eu n'esta consagração sobretudo admiro, é o grande coração do conde d'Arnoso. O Municipio devia premiar tão nobre musculo.

—Com uma urna, como se fez ao D. Pedro IV?

—Com uma urna não. Com uma travessa.


*


—Seria interessante conhecer todos os tramites do trabalho de creação do esculptor, até ao momento da estatua apparecer.

—Ah, eu lh'os conto. Primeiramente, o Carlos Mayer, na sua qualidade de judeu, queria uma descida da Cruz, e por isso, o grupo do Eça e da Verdade cheiram um pouco á scena da Paixão. Veio depois o Arnoso a lembrar se dessem ao monumento reminiscencias mais contemporaneas, ex.: o Genio perguntando á Verdade quantos dentes queixaes queria tirar. D'esta dualidade d'inspiração resulta o mysterio, que faz com que o monumento seja o que v. ex.a quizer, sendo o melhor—não perguntar.


[73]
*


Apparece no estrado o Conselheiro António Candido.

—Silencio! Vae fallar o maior orador da Peninsula.

—«...[*espaço?]no povo portuguez ainda ha o grande brio dos feitos altos, (sussurro). Se ámanhã esta Verdade tão núa fôr ter ao Pelourinho, ninguem sabe até onde o amor da Pátria ha-de crescer! (ovação).


*


Interview com o conselheiro Barahona.

—V. Ex.a leu alguma vez o Eça?

—Ler, nunca, mas conheci-o em Evora, delegado do thesouro, e até por causa d'isso vim ao Principe Real ver-lhe um drama de ladrões, que estava mesmo escripto ao meu sabor.

—Mas isso não é o Eça de Queiroz, é o Eça Leal.

—O que?! Não é o mesmo? Ai, os meus ricos dois contos de réis!


*


Interview com o Snr. Monteiro Milhões.

—V. Ex.a que pensa do monumento?

—Penso que tenho de voltar a frontaria da minha casa, para o Theatro D. Amelia. Imagine que os meus netos estão constantemente a perguntar quem é aquella senhora sem camisa. Já o outro dia lhes disse que era D. Maria II, mas com estes frios, os pequenitos, educados na compaixão, não me largam para que lhe mande dar um cobertor.

—E que impressão faz das suas janellas a barriga da Verdade?

—Aqui entre nós (arregalando o olho) é uma d'aquellas barrigas que está mesmo a glorificar a «sensação nova» (irritado). Não era mais condizente á minha camoneana, transferirem o epico immortal aqui para o meu largo, e levarem aquelle senhor para as proximidades do Bairro Alto?

—De modo que V. Ex.a, irritado, nem chega á janella?


[74]
—Emquanto a Camara não mandar pôr, de roda da figura um resguardo pintado de cinzento.


*


—Tu ouviste os discursos. Que opinião por elles se pode ter da capacidade mental dos oradores?

—Metade d'aquelles senhores não leu o Eça, e a outra metade não tem lucidez para o julgar. Isto foi uma festa de «snobs»; o monumento que ali está, não foi erguido á memoria do Eça litterato: é a glorificação do conde Reinaldo e da Alfonsine.

—E se o flamejante garoto agora cá tornasse? Mettia-os a todos n'um romance endiabrado.

—Já estão mettidos. Mas o que tu acabas de vêr é os Maias em quadro vivo.


*


Duas guapissimas, na turba.

Pero Eça de Queiroz, quien és?

Un caballero que escribió del minuete.



*


G..., antigo companheiro de Fialho, sepultado hoje no fundo d'uma biblioteca, diz assim a proposito da livraria do grande escriptor[2]:

«Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil volumes ou pouco mais, mas—vae surprehendel-o esta minucia—estam quasi todos por abrir. Ha aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail. [75] Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta litteratura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas amarguradas».

Era. A elle e a outros grandes espiritos basta-lhes o proprio drama para os amargurar. Anthero, nos dias aziagos de Villa do Conde, deitado n'um sofá, só lia Gaborieu. Para tragedia chegava-lhe a sua.

«O Fialho tinha uma admiração extraordinaria pela obra camiliana. Imagine que até n'um livro da mocidade poz uma dedicatoria a Camillo, em que dizia: «acabo de lêr toda a sua obra». E quasi nada lêra a esse tempo... Afora as obras portuguesas, na biblioteca de Fialho só ha volumes em espanhol e em francez. Nos ultimos anos merecera-lhe uma atenção particular a literatura espanhola.»

E a proposito de Fialho intimo assevera:

«O Fialho, que tinha grandes rasgos generosos e perversidades femininas—repito-o não era bem o Fialho que se vê atravez dos seus livros admiraveis. Era o outro. As suas irreverencias das paginas rubras eram fundamentalmente apenas o odio do plebeu que inveja o fidalgo. Sim, porque ele invejava a sociedade na sua fase demolidora porque não tinha nela um lugar. Uma infantilidade de homem de genio.»

E explica:

«Como se sabe o Fialho não tinha meios de fortuna nem ascendencias nobres. Fez a sua vida [76] ali no «Martinho», vivia de noite e era um blageur incorrigivel, e apezar de valer bem os seis milhões de portugueses que existem sobre esse solo, a Monarquia, o Paço, os conselheiros, não lhe achavam qualidades para triunfar nessa sociedade formalisada e cheia de convencionalismos. Está explicado o Fialho dos Gatos—foi a revolta. Meteu-lhes medo—oh sim, um medo terrivel com as suas blagues sangrentas—fazia-os passar de largo, mas ainda mais se afastou do ancien régime. Entre os republicanos, onde se lançou de alma e coração, sentiu-se depois desconsiderado. O Fialho continuava a ser... o blageur. Nunca lhe deram um cargo de confiança. Que pena teve o Fialho de não ficar na Comissão da subscrição nacional a quando do ultimatum!»

E termina com esta nota inedita:

«Sabe que o Fialho era um orador. Nunca ouviu dizer talvez que elle fizesse um discurso? Mas ouvi-lhe eu muitos, todos os dias, durante longos annos. A sua timidez invencivel nunca o deixou falar em publico apesar de, como ninguem, sentir a necessidade do aplauso. Muita vez me disse que desejaria ser actor, ser um grande actor, para ouvir bem de perto o som das palmas com que o saudariam, para viver intensamente, ruidosamente, uma grande hora de triunfo. Tinha coisas o Fialho... Registe esta nota curiosa pois muito poucos a sabem: era soberbo, orando alucinado para um auditorio de [77] tres amigos intimos no alto da Avenida, ou noite alta, á beira do Tejo.»


*


Á figura que se senta ao pé de mim falta-lhe talvez a rigidez das estatuas. O gabinardo, reparem, está amachucado e encardido, a phisionomia retrae-se no escuro e só a bocca se salienta, enorme e prestes a escorraçar-nos com gritos e apupos. Atravessou a vida: foi injusto, foi cruel por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar. Atordoou-se com sarcasmos e phrases. Foi incoherente. Obedeceu ao impulso. Não se pôde furtar a sentimentos que veem do fundo dos fundos e nos deixam prostrados, reclamando da morte que nos apavora—enfim! enfim!—o primeiro dia de descanço bem ganho, ao termo desta discussão que nunca cessa e em que nos despedaçamos, sem nos comprehendermos a nós proprios quantos mais aos outros... Toda a sua alma, que deixou fragmentada em varias figuras, em todas as paginas dos seus livros, nos retratos, nos tipos, nas paisagens, no Manuel, em Guilherme de Azevedo ou na manhã do Tejo, se condensa enfim n'esta bocca amarga capaz ainda de nos fulminar de colera ou de acusar bem alto a vida que lhe foi impiedosa... É assim que te vejo ao pé de mim, com detrictos, escorrencias, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano, que para sintetisar a [78] tua vida, só me servem as palavras com que um espectador ilustre sauda o Hamlet no fim da representação:—Boas noites, meu principe, és um homem, o homem e todo o homem!

4 de Janeiro—1908.


Morreu ante hontem d'albuminuria o pobre D. João da Camara. Tinha feito annos no dia 27. Conheci-o sempre, até nos maiores frios, de casaco d'alpaca, a sorrir... Antes de acabar sahiu do torpôr e, em dois acessos de delirio, descreveu o fim do mundo com terror e espanto. Depois rezou, disse versos seus, e ficou, n'um ultimo suspiro. Remexeram-lhe nos papeis e nos bolsos: só lhe encontraram recortes de jornaes, anuncios de desgraçados pedindo esmola.

Mezes depois ainda os pobres o procuravam nos sitios do costume:—O senhor D. João? o senhor D. João?—Morreu.—Morreu! morreu!...—E partiam a chorar.

Agora é que eu sinto todo o encanto d'esse homem falando baixinho, a olhar a gente por cima das lunetas. Andou mal vestido. Não soube o valor do dinheiro. Desceu aos desgraçados com uma ternura e uma simplicidade de fidalgo e de santo. Nos ultimos quatro annos ganhou alguns tão vivo, tão humano, que para sintetisar a [79] contos de reis: deu tudo, levaram-lhe tudo. Até de madrugada o procuravam para lhe pedirem dinheiro emprestado. E nunca o ouvi queixar-se, nem dizer mal de ninguem. Foi um poeta e um santo. Deixa, alem de algumas obras admiraveis, uma peça incompleta, com poucas scenas escriptas—As comadres de Panoia, e talvez se lhe encontrem tambem apontamentos de outra em que tanto falou e em que tanto sonhou—O Sermão da Montanha.


18 de Março—1900.


Faz hoje annos que morreu Antonio Nobre. Foi uma figura inconfundivel de poeta. Por mim nunca encontrei tambem rapaz mais lindo. Um pouco afectado talvez... Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus versos no jardim solitario do Palacio, e pedia, com os olhos limpidos e sofregos, uma Biblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão... Estou a ve-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela janella da casa á beira rio, de Mattosinhos, onde Alberto d'Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto d'Oliveira, esperto e tão dominador, que, quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo... Antonio [80] Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdem. Fugiam d'elle antes de publicar o ; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o . Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para consul quizeram reprová-lo: foi preciso que Alberto d'Oliveira explicasse ao jury quem era o poeta Antonio Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e até os seus amigos mais intimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha vivido—só. Até Alberto d'Oliveira teve de interromper uma amizade de irmão quando se encontrou diante d'este dilema: ou deixar-se dominar por elle, que o tratava como uma creança, ou feril-o em pleno coração:—A nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou trez pontos á craveira. Ou mante-la ou quebra-la.—Quebrou-a. O ilustre escriptor possue d'esse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de Antonio Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só elle pode e deve escrever.

Digamol-o, digamol-o... No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe poderam perdoar a impertinencia, o desdem, o genio. Era um sêr diferente. Não agradava a ninguem. Só as [81] mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida pratica. Tinha a consciencia do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar. Estavamos todos mortos por nos desfazermos d'esse ser aparte, d'esse eterno consul sem consulado, d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredamos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo—que nos ficou na alma...

Antonio Nobre no caixão.
Antonio Nobre no caixão.


Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdem infantil de Antonio Nobre.

Foi para a cova completar trinta e tres annos n'um dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um principe e adoravel como uma creança. Quantos estavam alli á beira do tumulo? Meia duzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu—e quem mais? quantos mais? Os jornaes deram a sua morte em duas rapidas linhas. Respirou-se.

Hoje é um dos poetas portuguezes com mais admiradores. É um poeta de simpathia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida pratica. Ao contrario, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si proprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua [82] alma. E poentes, arvores, estrellas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo. Que universo dirás? O meu? o teu?... Não, o que elle descobriu, scismando como um navegador, á prôa do seu barco... Por isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no sepulchro.


30 de Janeiro—1911.


Janota e coçado, com uma flor na botoeira e a fumar um charuto de dez reis, ahi vae o poeta Gomes Leal. Quem não viu n'outro tempo este homem extraordinario, não conheceu um verdadeiro, um authentico poeta satanico. Passou nas ruas de chapéo alto, falando com intimidade ás estrellas e tocando no céo com as guias do bigode. Escreveu as paginas das Claridades do Sul, da Traição e do Anti-Christo. Viveu alheado, como é indispensavel a quem convive todo o dia, tu cá, tu lá, com o sonho. Cantou a plebe, destruiu os deuses, arremessou sarcasmos aos banqueiros, satirisou o grotesco, e tocou-nos hombro com hombro, apontando altivo o cravo vermelho da lapela:

[83] —Amigos, as flores são as condecorações dos poetas!

Prodigalisou-o a caricatura: teve na vida misterios perturbantes: um dia acometeram-no no comboio, em Espinho, quando regressava do Porto, até onde seguira a rainha Maria Pia, depois de lhe atirar uma rosa escarlate, que arrancou da botoeira, em plena praça, com um desdem supremo pela burguezia endinheirada... Sim, foi este que teve a gloria da cadeia, que cantou as estrellas, Jesus e Mephistopheles, foi este mesmo homem, a quem falta roupa na cama no inverno glacial, e que sorri com humildade para nós, avelhantado e timido... As janellas não teem vidros, a roupa é pouca, mas tu viveste o que não vive um rei, e o imperio deslumbrante, que creaste á custa de dôr, cheio de obscuridades e de genio, com catadupas d'oiro, como nas lendas, e palidas figuras; essa mescla de gritos, de paixão; esse sonho confuso e immenso, pertence-te, e não ha quem t'o roube, mesmo com as janellas abertas de par em par. Deixa entrar o frio—e sorri...


Agora vae todas as manhãs ouvir missa á Pena ou ao Resgate. É um homem encolhido e friorento, que a banalidade tem gasto e desgasto como as moedas fóra de curso que se fartaram de correr de mão em mão, e ainda ha dias o encontrei no Porto, n'uma manhã de sol, [84] de casaco de borracha e colarinho suspeito. Ia pregar á Associação Catholica, e atravessava a Praça entre os aplausos dos palidos sachristas, que o rodeavam como quem força um deus, sem repararem que só levavam um simulacro. No sonho de outrora não ha mãos que se atrevam a tocar... Elle sorria enlevado, com o eterno charuto ao canto da bocca.

A vida feroz torna-nos grotescos. Consegue tudo. Deforma-nos. O proprio sonho entra ás vezes no dominio da chacota. Onde, porém, Garrett chega ao ridiculo, com tres cabelleiras postiças, Gomes Leal, de casaco de borracha e discursos de propaganda, atinge o tragico... Eu bem sinto a tristeza, bem sei, bem vejo o arranco, bem palpo a dôr. A figura que cheira a bafio como se sahisse do fundo do armario do passado para a plena luz, faz rir e faz chorar. No esforço para não ir ao fundo, no gesto de naufrago que se apéga com desespero, quando a dôr estala por todas as costuras, ha um rictus de clown. Olha lá: o peor é tu ousares tocar no que ha em mim de mais sagrado, o peor é tu transformares-me o sonho n'uma noticia do Seculo, o peor de tudo é tu atreveres-te a tocar n'este jardim da vida—e, peor ainda, é que eu continuo a sorrir como se possuisse o antigo thesouro de Ali-Baba. Mais um momento, outro passo e reduzes-me á condição de trapo. Deitas-te commigo, acordo comtigo ao meu lado, e [85] ha occasiões em que até o som da minha voz me sobresalta. Por ora debato-me, por ora sinto o coração opresso, fingindo que não existes, mas ha já terror no meu sorriso, e, quando me ouço, ouço-te tambem os passos. Sei perfeitamente que o momento terrivel depende de um unico traço de separação—agora, já, d'aqui a bocado...

Estás por traz de mim e o minuto grotesco será quando eu deixar de te conhecer e quando sentir a tua mão gelada... Estás por traz de mim! estás por traz de mim! Bem sei que estás por traz de mim, e que vaes ser a minha companhia até á cova. Confesso-te: o que me aterra não é o momento que passou, nem o que ha-de vir—é o momento, que vale um seculo, em que tenho de galgar o abysmo. Por ora teimo, por ora ainda digo:—A sciencia, meu rapaz, sabes o que é? É um cifrão cortado.—Mas como o digo!...

...Ha um momento tetrico nos Espectros em que um novo personagem se introduz em scena. Desde o principio que o sabemos atraz da frandulagem de papelão: está alli presente, não como uma figura de theatro, mas monstruoso, real e patente, como o Destino, á espera de intervir. Desde então perco o fio da peça, não sigo mais os bonecos que se agitam no tablado, só ouço o meu proprio monologo, e quedo-me d'olhos atonitos n'outro espectaculo atroz. Tenho a certeza absoluta de que não ha forças humanas que lhe detenham a marcha. Começa então a tragedia...

[86] É este mesmo personagem que se intromete na vida do poeta. As palavras conteem ainda e sempre as mesmas letras, mas até as palavras mirraram. Esqueci tudo, troquei tudo pelo sonho, e, quando tu quizeres, de mim proprio ficarei desconhecido! Como eu comprehendo agora aquella phrase de outro poeta: «Sinto que não posso trabalhar! sinto que não posso trabalhar!» É com esta angustia que te ouço os passos mais perto. Já não é só a scena que tu enches, é a sala toda, figura invisivel, unico personagem do drama, que te entranhas na alma dos espectadores. Emquanto os bonecos teimam em pronunciar palavras que não ouço, que não teem significação nem importam, tu levas-me, quer eu queira, quer não queira, a sorrir com enlevo á propria banalidade.


*


A casa em que mora Gomes Leal, na esquina do palacio da Bemposta, parece arrancada a um velho quadro de Velasquez, com a sua entrada de pedra e um arco na escada. O soalho entreaberto oscila, as janellas não teem vidros. Conheço-a. Já lá morei ha annos no mesmo quarto que dá para um quintalorio, com duas ou trez oliveiras carcomidas. Do buraco, onde nunca chega o sol, sae um frio de morte. Bato, a porta abre-se, o soalho range, e o poeta [87] surge com o velho chapeu ás trez pancadas, luvas pretas—até de luvas escreve Gomes Leal!—e no quarto desagasalhado ha luvas por toda a parte, por cima das mezas, entre os livros, penduradas no tecto. O leito é um catre. Ao lado um Christo, uma mezinha de pé de gallo, e no soalho apodrecido, montões de jornaes e de livros. Na parede, que ressuma humidade, um quadro a crayon, com o vidro partido: o retrato da mãe de Gomes Leal.

—Vivo só, não tenho familia. Minha mãe morreu-me e aqui estou como um orphão.

—Vive isolado sempre?

—Levanto-me cedo, vou aos templos. Depois passo pelas bibliothecas e pelos livreiros e venho para casa escrever. Almoço e janto onde calha. Quando tenho bebo para esquecer, á noite escrevo, deito-me cedo e durmo... Tenho trez livros para publicar: As memorias d'um revoltado, continuação da historia da minha vida, O macaco de Nero, estudo de Roma, e o livro em prosa Cidade do Diabo, onde trato da decadencia do mundo moderno. Comecei tambem Christo nos infernos, poema em verso. Conservo as minhas ideias religiosas, que não são incompativeis com a republica, e ficarei contente por ver realisado o sonho de toda a minha vida, que acalentei como um poeta, e que desejo que se não dissolva como uma bola de sabão na cabeça d'um prego...

E queda-se n'um silencio amargo. A chuva [88] cae lá fóra. A noite e um frio, uma humidade de poço, trespassam-me...


No seu genio houve sempre sincopes, falhas, absurdos. Se tropeçou, ergueu-se sempre mais alto. Aos trinta annos reage-se. Mas chega um momento da vida em que a gente se sente transida pelo ar do sepulchro e uma sombra desmedida avoluma-se e sufoca-nos. Foi d'esse negrume, que se chama a Morte, que elle ouviu sahir uma voz cheia de ternura—a ternura que toda a vida o envolveu—e que começou a falar-lhe baixinho. N'esse momento Gomes Leal deixou de viver no mundo da realidade para cohabitar com um phantasma...


Setembro—1907.


Antonio Corrêa d'Oliveira, ossos, nervos e a pelle necessaria para os cobrir—com um chapeu alto e lustroso em cima—grande poeta, com raizes profundas na natureza, tem na Beira uma tia que passa a vida em dialogos estranhos com as arvores e as pedras. E mal chega á noite eil-a começa a cumprir o seu fadario: leva até á madrugada a dar de beber indistinctamente ás plantas do seu quintal e ás dos quintaes vizinhos, [89] n'uma aflicção, n'uma piedade que se estende até ás hervas ignoradas e ruins. Monologando sempre, vae e vem,—que não fique alguma com sede—com o regador nas mãos, até que a manhã a encontra exhausta, feliz, encharcada até aos ossos e ainda embebida n'aquelle sonho phrenetico de ternura... Toda a emoção do poeta está aqui, do grande poeta que diz:—Sinto em mim uma força da natureza... hei-de aproveital-a.—Os avós deram cabo da casa. O pae ninguem o arrancava ás suas arvores, e um tio, personagem de Camillo, morreu cosido de facadas. A mocidade do poeta foi tambem dolorosa. Chamavam-lhe magico. Para não pezar á mãe escreveu á raza n'um tabelião e foi proposto de recebedor em Cezimbra, elle que nunca soube sommar. Iam as mulheres dos pescadores pedir-lhe perdão das decimas; e nunca na memoria de homem se viu recebedor em semelhantes apuros, perplexo diante dos papeis, dos pobres, da desgraça, das contas e da sua propria alma! Um dia gostou d'uma mulher e escreveu os primeiros versos, Ladainhas,—Eu não sabia o que eram versos, nem medir versos. Sahiu-me aquillo... Troçaram-me tanto que estive para endoidecer. Sabe o que me valeu? Um artiguinho do Trindade Coelho no Reporter. Essas palavras salvaram-me!


Corrêa d'Oliveira em 1903.
Corrêa d'Oliveira em 1903.



[90]
Janeiro—1911.


Passei a noute de hontem em casa do Fernandes Thomaz, um velho bibliophilo, coleccionador de autographos, de livros raros, de gravuras antigas. Bom como o pão arruinou-se em papeis velhos... Eis emfim um homem feliz, suponho eu, entre as estantes que revestem os muros, como a traça entre as folhas d'um pergaminho. Ingenuo, surdo, com sessenta e tres annos e coleccionador apaixonado de papeis velhos ainda por cima—que sorte!...—De repente pega-me nas mãos e desata a chorar:

—Tenho sido um martir!

Á roda muitos documentos, muitos alfarrabios, muitos calhamaços preciosos. São duas, tres salas catalogadas, onde tem livros e papeis por toda a parte. A sua vida devia correr esquecida e placida, sem sobresaltos nem duvidas, folheando, rabiscando, anotando, sonhando sempre em coisas faceis.

—Não imagina o que tenho sofrido! Sempre gostei muito de creanças... Trouxe para casa uma sobrinha, morreu-me de raiva nos braços. Minha mãe um dia teimou:—Has-de casar.—Fiz-lhe a vontade. Casei. Minha mulher, ao fim de dois annos, abalou levando-me quasi tudo o que eu tinha. [91] Demandas, processos—fiquei pobre. Agora meu filho quer ir por força para a Africa.

E põe-se a chorar como uma creança, com a cabeça branca pousada sobre os livros, os papeis, as gravuras...—deante d'aquella documentação cerrada e inutil, que tem sido a razão da sua vida.


1 de Fevereiro.


Venho de casa do Fernandes Thomaz. Teve um ataque apopletico. Está hemiplegico, deitado n'um sofá, somnolento e tremulo. Nunca encontrei bibliophilo que tivesse prazer em indicar, em ensinar, senão este... É outro homem adoravel que morre, mas felizmente não sabe que morre. Á beira do tumulo ainda me pede que lhe arranje um catalogo da guerra peninsular. E diz-me de Theophilo: (estes homens dos papeis velhos nunca se puderam vêr...):

—Pode crer que nunca passou necessidades como elle diz. Conheço-o de Coimbra, morava em casa do conde de Valença. Todos os mezes o pae lhe mandava pelo correio duas libras em oiro n'uma caixinha de madeira. Ora n'esse tempo valiam tanto como hoje quatro...




PÓ DA ESTRADA



Março—1902.


Este homem immenso e louro, o Alpoim, não tem um minuto de seu: não descansa, não pode. Escreve cincoenta cartas por dia, faz a chronica do Janeiro, corre ao parlamento, intriga nos corredores, enche uma pagina do jornal, recebe toda a gente, encanta e domina toda a gente n'um riso aberto:—Meu querido amigo...—e, mal se fecha por dentro, arranca os ultimos pêlos do bigode e cae exhausto, exclamando n'um pranto:—Ai que filhos da p...! ai que filhos da p...! Eu não posso! eu morro!—Nem para ser rei de Portugal valia a pena semelhante esforço.

No fundo é um politico com este fito: o poder. Mas alguma coisa o distingue dos outros que conheço, do espesso Ferreira d'Almeida, por exemplo, que exclama diante de mim sem pudor:—Hei-de ser ministro porque quero mandar! gosto de mandar!—É um fidalgo com talento, e tanto serve um amigo como um desgraçado de quem nada tem a esperar. O esforço é identico.—Vou [94] ao inferno por um amigo...—Ha ainda quem se lembre dum Alpoim de chapeu desabado e capa á espanhola, mas o amor fel-o janota...

Na sua vida, como em todas estas existencias de aparencia e lucta, ha um trabalho de sapa, que quasi totalmente desconheço. Sabe tudo, pode tudo com os seus e com os outros. O Hintze tem por elle um fraco, o José Luciano entrega-lhe nas mãos a meada politica:—Nada se faz sem mim. Sei tudo!—diz muitas vezes com o olho esperto a luzir. O Teixeira de Souza é o seu amigo mais intimo. Uns temem-no, respeitam-no os outros. Este que lhe sorri atraiçoa-o—e elle fala-lhe amavelmente:—Não me podem vêr porque lhes faço sombra. Eu sei... Mas ninguem exija dos homens mais do que elles podem dar.—Conspira. Tem nas mãos os mil fios da emaranhada teia politica. Vae mais alto ou mais fundo?... Não sei, mas é talvez a isso que elle se refere quando afirma:—Ninguem sabe a que portas vou bater!

Hoje conta o movimento de protesto quando dos comicios contra o governo regenerador. Reuniam-se já ha tempos alguns pés de boi em casa de José Luciano, que um dia sae-se com esta:

—Bem, meus senhores, precisamos de acabar com isto senão cahimos no ridiculo. A tomar chá não fazemos nada. Que é que os senhores resolvem?

[95] —A revolução! queremos a revolução!—concluiram todos.

—Eu disponho de seis mil homens.

—Vamos para a rua!

—Estamos dispostos a tudo, mas temos um pedido a fazer a V. Ex.a: é que se responsabilize a que a guarda municipal não atire sobre nós...

O José Luciano, a puxar pelo bigode, sem sahir da sua pachorra ironica:

—Oh senhores, mas se eu dispozesse da municipal não precisava dos meus amigos para nada!

—O José Luciano o que tem tido toda a vida é sorte,—observa alguem do lado.

—Garanto-lhes pela saude dos meus filhos, atalha logo o Alpoim—que é um homem inteligentissimo. E senão vejam como elle conseguiu arredar e vencer todos os do seu tempo. Ninguem luctou mais do que eu para a eleição do Mariano a chefe do partido progressista, ninguem!... E que succedeu?... O José Luciano tinha em segredo conseguido pôr o paço de seu lado. Na vespera da eleição o Mariano disse-me:—Está tudo perdido, votem no José Luciano...—Se não o elegessemos, o rei nunca mais chamava o partido progressista.

Sob aquelle aspecto de inalteravel bonhomia, é um homem d'uma alta inteligencia pratica. Muitos ao seu lado caminharam para o mesmo destino, e elle, não sendo nem um grande jornalista nem um grande orador, sem brilho mas [96] solido—e com caracter! com tenacidade e caracter!—pouco a pouco ficou sosinho em campo: arredou-os todos.



Fui do seu meio e do seu tempo. O Fuschini chamava-lhe com desdem:—Essa vil alforreca...—Diz-se que no salão dos Navegantes se dava tudo o que se podia dar—e que não lhe pertencia: logares, negocios e empregos. Talvez. Mas se não teve a grandeza de resistir aos homens, conteve os interesses fataes dentro de certos limites. Não podendo ser nem um santo nem um genio, manteve essa linha de superioridade, chegando, mais tarde, a ser uma figura. Sentado na cadeira de rodas, o velho obstinado, n'uma sociedade a liquifazer-se, resistiu até á ultima, e adquiriu relevo e grandeza como se os alicerces fossem de pedra. Foi dono do paiz, dictou a lei, e, arredado e sempre lucido, leu no futuro pronunciando algumas phrases que a historia terá de registar...


Junho—1902.


Contava o marquez de Ficalho, pae deste Ficalho, e que era vivo ainda ha quinze annos, o seguinte caso, que mostra bem o medo que D. João VI tinha a Carlota Joaquina. Um dia o [97] D. João VI, ia de sege para Cintra, Queluz, ou não sei para onde. Ao lado galopava o Ficalho, com dezasseis annos, cavalariço do rei. De repente, ao longe, avista-se na estrada uma nuvem de pó, e o rei, deitando a cabeça de fóra da sege, brada:

—Parem! para traz que ahi vem a p...!

A p...—era a mulher. As palavras são textuaes.


Fernandes Thomaz.
Fernandes Thomaz.



Março—1903.


Diz o Abel d'Andrade:

Dos oito mil contos de deficit, quatro mil é a casa real que os gasta. Que ministerio tem força para se impôr ao rei? Ambos os chefes estão com medo ao João Franco...


*


Arroyo queria atacar o rei nas camaras. Houve mosquitos por cordas para o dissuadirem...


*


Sabem quanto faz o Arroyo por anno? Dez contos.


[98]
*


O rei foi aqui ha tempos para Setubal, e, depois de jantar, bateu o fado com um malandrão. O Duval Telles, no outro dia, ao jantar, aludiu ao de leve ao caso, achando-o improprio. Á noite encontrou na mezinha de cabeceira uma carta do rei com estas palavras: Dispenso-te do meu serviço. Seis meses não fez serviço; agora, antes da rainha partir, pediu-lhe apoquentadissimo a sua intervenção. Outra carta do rei com estas palavras: Entra outra vez de serviço, mas nunca mais me dês conselhos sem t'os pedir.


Março—1903.


Alpoim:

—Antes de seis meses temos ahi graves acontecimentos...

—?

—Um governo fóra dos partidos, uma dictadura feroz.

E a proposito dos acontecimentos de Coimbra:

—Em Coimbra existem sociedades secretas. O governo sabe. Quando foi da espera do Carrilho, tinham tudo combinado. Dois grupos fariam descarrilar o comboio, apoderando-se dos papeis que o Carrilho trazia e matando-o. Entravam lentes e estudantes...


[99]
*


O Alpoim:

—O Mousinho d'Albuquerque antes de morrer disse-me:—O unico homem com quem eu poderia ser ministro era com o José Luciano.—Dantes dizia muito mal d'elle. D'uma vez estava no Paço, no vão d'uma janella, a dizer cobras e lagartos de José Luciano; o rei, um pouco afastado, ouviu-o:

—Ó Mousinho cala-te.

—Se incomodo V. Majestade saio d'aqui.

—Não, podes estar, mas acaba lá com a conversa.


*


—E porque é que o rei não gostava do Mousinho?

—Se lhe parece! Vêr sempre o Mousinho a seu lado, carrancudo, sem palavra, mas severo como um censor... Irritou-se. Quem lhe valeu mais d'uma vez foi a rainha.


Abril—1903.


O Adrião de Seixas, secretario do Banco de Portugal:

—Já por diferentes ocasiões o Estado tem corrido o risco de ir a pique. Houve mezes em que [100] quasi faltou o dinheiro para pagar á tropa, e mais que uma vez o Banco de Portugal se viu em transes para arranjar trezentos contos de reis.


*


Um architecto do Paço conta que a rainha D. Maria Pia fuma constantemente charuto como um homem, e atira as pontas para onde calha, sobre os sofás e os tapetes. Atraz d'ella anda sempre um creado de farda, com medo que pegue o fogo, a apanhar as pontas. Anno passado, antes de ir para o extrangeiro, mandou fazer umas obras no Paço.

—E não volto sem estar tudo prompto.

Quando voltou nem foi vel-as, mas, dias antes de ir outra vez para fóra, lembrou-se das obras—e mandou deitar tudo abaixo.

—Não volto sem estarem concluidas.

As provas dos vestidos são um martirio para as pobres costureiras, que mantém de joelhos duas horas seguidas, pregando-lhe alfinetes. Quando as vê cahir exhaustas, arranca tudo, despedaça tudo...


*


O Alpoim conta:

O rei é muitissimo bem educado, mas não gosta nada que ponham a rainha em primeiro [101] logar. Não se importa com o paiz e julga-se um grande rei constitucional. Os ministros para elle não existem: só ouve e atende o presidente do conselho. É tão governamental que trata delicadamente os politicos quando estam na oposição, mas não conversa com elles. Não é como o D. Luiz, que ás vezes fazia-se com os ministros contra o presidente do conselho. Chegava a conspirar contra o José Luciano, partidario da aliança ingleza, com o Barros Gomes, que era pela Alemanha. Ás vezes andava uma hora de braço dado com o Mariano e Emydio Navarro, sem fazer caso do presidente do conselho. E depois d'elles sahirem, perguntava-lhe:

—Olha lá, quando é que tu pões fóra estes gatunos?

O D. Carlos não é assim: para elle os ministros não existem. Trata-os sempre por tu, menos quando é da assignatura. Não conserva odios. E fica contentissimo se os ministros descompõem a oposição. Quando foi da exhoneração do Mousinho pelo Dias Costa, este quiz demitir-se e queixou-se ao José Luciano:

—No Paço todos me fazem má cara.

O José Luciano disse-o ao rei, que protestou:

—Não, por mim não é verdade. Quanto á rainha que a trate com todas as atenções, mas que não faça caso.

E para reforço traz o caso Oliveira Martins: O José Dias Ferreira nunca chegava a presidente [102] de conselho se o Martins tem cathegoria. Imaginou que manejava facilmente o velho rabula—e escolheu-o para taboleta. Enganou-se... O Valbom ainda tentou organisar ministerio, mas o Martins, sem manha politica, teimou no José Dias. Pois ao fim de dois mezes era elle quem mandava e que o queria alijar... No Paço, nem este rei nem o D. Luiz, gostavam do José Dias; apezar d'isso, quando o Martins, aborrecido, se fingiu doente, e o José Dias se queixou, o D. Carlos disse ao Arnoso:

—Olha lá, diz ao Joaquim Pedro—era assim que elle o tratava—que se levante ou que se demita. Isto não é vida.


*


Diz-se para ahi que o D. Carlos tem o habito de mentir, e que pensa em restaurar a monarchia no Brazil.


Maio—1903.


Os jornaes d'hontem contam que a Rainha D. Amelia não quiz receber o presidente Loubet, por escrupulos de consciencia. Como é muito religiosa respondeu, quando lhe foram anunciar a visita:

—Viajo incognita.

—Peor fez ella na Italia. Estava em Napoles, [103] e o rei mandou-a convidar para ir a Roma. Acceitou, e no dia seguinte safou-se para Livorno. O governo italiano deu immediatamente ordem aos navios que estavam em Livorno—para sahirem uma hora antes da entrada do yacht...


*


Silva Pinto contado por D. Maria Augusta:

O Silva Pinto escrevia de quando em quando cartas á condessa d'Edla, pedindo-lhe dinheiro. A condessa architectou um romance: nunca o vira e imaginou um poeta pobre, n'umas aguas-furtadas, morrendo por ella. E mandava-lhe ás vinte e trinta libras. Um dia viu-lhe o retrato no atelier de Columbano...

—Então este velho é que é?!...

E não lhe deu mais vintem.


Maio—1903.


Hoje 11 o Arroyo discutiu nos pares a viagem da rainha. Acusou-a de não ter querido receber Loubet. O Wenceslau de Lima levantou-se e negou.

Comentario do Alpoim:

—Que havia elle de responder? Mentiu como um cão!

[104] De resto o discurso foi cheio de alusões. Chegou a isto: a lançar suspeitas sobre as relações do Soveral com a rainha. «Que está fazendo o snr. Soveral em Paris? Façam-no recolher imediatamente a Londres[3]

—Triste simptoma—afirma o D. João de Alarcão—n'um paiz monarchico ninguem se levantou para defender o rei. Alguns como o Ayres de Gouveia foram cumprimentar o Arroyo; outros, como o José Luciano, sahiram dos seus logares e chegaram-se mais para perto, para não perderem pitada.


*


—O que nós fazemos não é discursos, é historia—diz o Arroyo.


*


Diz-se:

O rei chama nomes ao Arroyo, o Arroyo chama-lhe corno...


[105]
*


O Alpoim:

O Arroyo chama corno ao rei, o rei chama aos outros ladrões. Eu sempre queria que me dissessem o que elle é...


*


A quinta da Bacalhôa—continua o Alpoim—foi comprada pela casa de Bragança. Quem faz as obras é a Casa Real, isto é o Estado.


Maio—1903.


O rei—diz hoje D. João d'Alarcão em conversa com o Alpoim—não se importa nada com isto. Tomára elle ser kkediva d'este cantinho, defendido pelas baionetas inglezas.


*


O rei tem uma lista celebre a que chama a lista dos ladrões.


*


O Arroyo volta á discussão e, a proposito, conta-se de novo a historia dos tapetes:

«—Havia em Mafra um grande tapete persa, o mesmo que está hoje em Vila-Viçosa, por signal [106] muito mal tratado. Ninguem fazia caso d'elle, até que um dia disse ao almoxarife que o guardasse. Mas fiquei sempre com a impressão de que era magnifico. Duma vez que D. Carlos apareceu extasiado por ter comprado qualquer tapete insignificante, lembrei-lhe:

—V. Magestade tem em Mafra um muito melhor do que esse...

—Ora adeus!

Teimo, chama-se o almoxarife, reclama-se o almoxarife e o tapete, e o homem instado apresenta, em logar do tapete, dois papelinhos... A saber: a ordem de Pedro Victor para entregar o tapete e o respectivo recibo. Não vi o telegrama do rei, mas vi a resposta do administrador da casa real: «Vossa Magestade manda, obedeço».

Dahi a dias aparecia o tapete. O Arroyo tinha-o lobrigado em Mafra e comprado por 75$000 ao Pedro Victor. Entregou-o, e está hoje n'uma parede do palacio de Vila-Viçosa».


*


Conversa entre o Soveral e o Alarcão:

—Ninguem diga d'este Soveral não beberei. Ainda has-de ser presidente do conselho.

—Para quê? Então tu imaginas que deixo a minha situação lá fóra por isto? Que mais quero eu? Sou par, sou do conselho d'estado marquez...

[107] E o Alarcão conclue:

—Acredito que elle não queira. Só se fôr para arranjar algum negocio, que elle anda muito precisado de dinheiro...


Maio—1903.


É certo que o rei falou ao José Luciano na dissolução da camara dos pares, substituindo-a por outra em bases diferentes. A noticia foi para os jornaes para assustar o Arroyo—que quer fazer outro discurso sensacional contra o rei.


*


O José Luciano procurou o Arroyo em casa:—Venho pedir-lhe que não faça o discurso contra o rei. É um homem na minha edade, perto da cova, que lhe pede isto em nome d'interesses superiores.—Sim senhor... se V. Ex.a me assevera que por traz d'isto não está o sr. Hintze Ribeiro...

E chorou.


*


—O rei—diz o Alpoim—está contentissimo. O discurso era tremendo. O Arroyo afirmava [108] que o rei pedia dinheiro aos ministros. D'uma vez pediu mil e seiscentos contos. Elle proprio, quando ministro, lhe deu muitas vezes dinheiro.—Aqui estam as provas!—E apresentava-as.—O primeiro a ser castigado devo ser eu, porque delinqui.


Junho—1903.


Os jornaes trazem a noticia de que o rei partiu para o mar no yacht D. Amelia e de que o duque d'Orleans chega na segunda-feira a Lisboa.

O rei safou-se de proposito para o mar, para o não receber. Do Paço mandaram ordem para se antecipar a festa ao Barbosa du Bocage, na Sociedade de Geographia. Tudo porque o rei supoz que os acontecimentos de Paris com a rainha se relacionavam com imposições da familia Orleans.

...Afinal o rei sempre veio do mar e recebeu o duque.—Mas houve o diabo!...—diz o Alpoim.


*


—O Navarro defende-o, senhor Alpoim...

—O Navarro diz hoje bem de mim, como amanhã diz mal—por doze vintens.


[109]
Junho—1903.


O Diario de Noticias publica hoje esta curiosissima informação:

As recepções em casa do sr. conselheiro João Arroyo, constituem sempre um acontecimento na nossa sociedade elegante. O talento multiforme do illustre parlamentar, que é um artista de raça, converteu o antigo palacete da rua do Telhal em uma das residencias mais notaveis de Lisboa, tanto sob o ponto de vista da decoração dos salões, como pelas preciosidades do mobiliario e valiosas collecções de arte ornamental que elles encerram.

Não se encontra ali um “bibelot„ que não seja um objecto de arte ou não faça parte de uma collecção, paciente e sabiamente reunida e disposta com perfeito gosto e conhecimento. De todos aquelles raros objectos que se agrupam pelos tampos dos buffetes, das commodas e dos contadores seculares ou nas prateleiras dos armarios e «vitrines», resalta sempre uma vibrante nota de arte, que define o criterio do colleccionador e marca fundamente o seu temperamento esthetico. A sala dos xarões e dos cobres e bronzes esmaltados e «cloisonnés» é por certo a mais bella que existe no nosso paiz, e só por si basta para aferir o elevado grau que occupa o colleccionador no nosso meio artistico. Ha, porem, muito mais, tão bom ou melhor que admirar nas salas do sr. João Arroyo, as quaes dão aos «gourmets do bric-a-brac» a impressão de verdadeiros escrinios de arte. Nestes casos estão a graciosa collecção de figuras e mascaras chinezas, a preciosa exposição de leques, cujos pannos ostentam as mais lindas illuminuras dos pintores francezes do seculo XVIII ou são apenas formados de finissimas rendas a ponto, de Allençon ou de Bruxellas; os limpidos cristaes da Bohemia e os finissimos vidros de Veneza; as raras faianças da China, e de Saxe; as soberbas «boiseries» da casa de jantar, bello trabalho decorativo no estylo Renascença, do architecto Bigaglia, com o seu fogão monumental, o seu grande lustre de ferro forjado e as prateleiras dos «lambris» repletas de exquisitas pratas, faianças e cristaes.

[110]
Por toda a parte, emfim, desde o vestibulo e da galeria da escada até ás salas do jogo, quadros a oleo das escolas italiana, flamenga, hollandeza e franceza, tapeçarias de Gobelins e do Oriente, colchas da India e da Persia, tudo quanto o persistente e criterioso esforço de um artista e o bom gosto de um homem elegante poude colleccionar, tudo chama a nossa attenção, que só encontra ali maior attractivo no bondosissimo tracto da illustre dona de casa, a sr.a D. Maria Thereza Pinto de Magalhães (Arriaga) e na conversa scintillante de seu marido, um dos mais espirituosos e interessantes cavaqueadores da nossa sociedade, e que tem tido naquella senhora uma valiosa collaboração artistica, assignalada em mais de uma das preciosidades que se contem na sua bella residencia.

Por tudo isto, o «raout» de hontem esteve concorridissimo e encantou todos os convidados dos illustres amphitriões, entre os quaes estavam:


[111]
Conselheiro Hintze Ribeiro e esposa, ministros da justiça, obras publicas, guerra, fazenda, marinha e esposas, nuncio de S. S. e secretarios, Rouvier, ministro da França e esposa, ministro de Hespanha e esposa, conde e condessa de Azevedo, Miguel da Motta e esposa, monsieur e madame Bruno, marquez da Foz e filha D. Marianna, duqueza d'Avila, condes d'Avila, marquezes de Guell, marqueza de Bellas, conselheiro Schroeter e esposa, Costa Pinto e esposa, conselheiro José Vianna, Pedro Diniz e filha, Carlos Ribeiro Ferreira e esposa, viscondessa de View e filhas, José Sassetti e esposa, viscondes de Santo Thyrso, conselheiro Germano Sequeira e esposa, condes de Paçô Vieira, almirante conde de Paço d'Arcos, Sarrea Prado, conselheiro Achilles Machado e esposa, conselheiro José de Azevedo e esposa, conselheiros José e Antonio Arroyo, conselheiro Matheus dos Santos e esposa e filha, condes de Sabroso, conselheiro José Ribeiro da Cunha e esposa, José E. de Barros e esposa, Joaquim Lima, Alberto Braga, João de Freitas Rego, F. Baerlein e esposa, Albino Freire d'Andrade, viscondes de Mangualde, conselheiro Ferreira Lobo Francisco d'Aguiar, conselheiro Souza Monteiro, Barbosa Colen, conselheiro Deslandes e esposa, Terra Viana, esposa e cunhado, Carlos Blanch e esposa, D. Elisa Pinto de Magalhães e D. Luiza Pinto de Magalhães, Alberto Monteiro, conde de Mesquitella, Dr. Furtado e esposa, Virgilio Teixeira, marquezes de Funchal, monsenhor Santos Viegas, conselheiro Moraes de Carvalho, Henrique Burnay, conselheiro Francisco Mattoso, Henrique Anjos e esposa, Carlos Soares Cardoso e esposa, conde de Verride, D. Juan de Castro e filha, Condes de Tattenbach, Alvaro Rego, conselheiro Poças Falcão e esposa, José Fernando de Sousa, barão de S. Pedro, conselheiro Thomaz Rosa, condessa d'Almedina e filha D. Luiza, Antonio Caria e esposa, M. Emygdio da Silva, etc., etc.



*


O que faltou a esta sociedade foi um Balzac, que os trouxesse desde a obscuridade e da pobreza, que nos contasse o esforço, as transigencias, o talento gasto e o fel gasto, até chegarem ao poder—Navarro, filho d'um mestre de musica de Bragança, Mariano pobre, Arroyo pobre. Alguem que nos desse a vida occulta, a audacia e o descalabro, a chaga politica que os engrandece e corroe, que corroeu o proprio Chagas, o [112] romantico da Morgadinha, até ao ponto de acabar por estas palavras amargas, com o ultimo suspiro:—A vida é uma comedia!—Alguem que nos mostrasse Arroyo e os seus phantasmas, Mariano e os seus phantasmas, Navarro e os seus phantasmas.

Como a vida efectivamente transtorna, enxovalha e envilece—se lhe falta ideal, paixão, ou um forte sentimento que caldeie as figuras e as eleve! Não, a vida não é uma comedia. A vida é profunda. Elles é que lidaram apenas com inferioridades e interesses mesquinhos. Mariano acabou quasi desprezado. O talento não lhe serviu de nada. Talvez o prejudicasse... Ha um momento tragico na sua vida, aquelle em que João Chrisostomo d'Abreu e Souza lê em plena camara a declaração, em seu nome e no dos seus colegas, de que lhes haviam sido desconhecidos os actos irregulares praticados pelo ministro da fazenda Mariano de Carvalho. Vejo-o mudo, livido—com um olhar atono, como nunca vi em mais ninguem. O sceptico! o sceptico amarfanhado, reduzido a trapo, com um golphão de desprezo, por si e pelos outros, na bocca, com um golphão de negrume!... Jamais me esquece esta figura, que vi morta entre os vivos, sentado n'um canto da camara, sem ninguem fazer caso d'elle, vendo sem vêr, ouvindo sem ouvir, e não tendo podido realisar nenhuma das suas ambições:—Deixem-me! deixem-me!—Deixem-no com os seus [113] phantasmas! Arroyo talvez encontrasse na musica um refugio... Navarro, porém, acabou no mesmo abatimento. Temiam-no—mas só o temiam. Arredaram-no. No fim da vida ficava horas e horas absorto ou ia para o fundo d'um camarote do Gimnasio ouvir musica. Apegara-se—mau simptoma—aos netos. Desconfio que o celebre estadulho não passava d'um espantalho, e que era grande a sua sensibilidade:—Sinto-me ferido em pleno coração—Do coração morreu, sem nunca o deixarem realisar as suas ambições.


Guerra Junqueiro
Guerra Junqueiro.


Metidos n'aquella roda de navalhas foram até ao fim do combate, luctando sempre. Os que tinham de escrever, escrevendo sempre, espremendo o cerebro, os que tinham de intrigar, intrigando sempre, com a mascara livida e sorrindo sempre, ferindo sempre, e cahindo de pé. Oh quem me dera um momento, só um momento para vêr a série de phantasmas em que se desdobrou cada um destes sêres, para os lêr até ao amago, para lhes descobrir o instante de cansaço e o ponto vulneravel—rodeados de invejas, de odios, de inimigos, que esperavam na sombra e não perdoavam um desfalecimento—uns fingindo-se cinicos, sorrindo aos insultos, e cravando as unhas na carne até ao sangue, como Rodrigo da Fonseca Magalhães, outros respon Metidos n'aquella roda de navalhas foram até ao fim do combate, luctando sempre. Os que tinham de escrever, escrevendo sempre, espremendo o cerebro, os que tinham de intrigar, intrigando sempre, com a mascara livida e sorrindo sempre, ferindo sempre, e cahindo de pé. Oh quem me dera um momento, só um momento para vêr a série de phantasmas em que se desdobrou cada um destes sêres, para os lêr até ao amago, para lhes descobrir o instante de cansaço e o ponto vulneravel—rodeados de invejas, de odios, de inimigos, que esperavam na sombra e não perdoavam um desfalecimento—uns fingindo-se cinicos, sorrindo aos insultos, e cravando as unhas na carne até ao sangue, como Rodrigo da Fonseca Magalhães, outros respondendo á audacia com audacia, outros sucumbindo ao nojo, com estas palavras que já surprehendi a alguem [114] n'um momento supremo:—Não, não valia a pena!


*


O mundo politico é tão curioso! O que está á vista não tem importancia, o que se mostra não passa de scenario. Para viver aqui dentro é preciso habituar a pelle a todas as alfinetadas e afivelar na cara uma mascara perpetua. Este homem elogia outro e combate-o a occultas. O que se diz nas camaras precisa de ser explicado nos corredores, para ser comprehendido. O Cypriano Jardim atacou ha dias o governo. Porquê? Estava nas colonias a ganhar seis libras em oiro por dia e chamaram-no á metropole. O artigo D. Folião do Colen fez successo... Já se diz:—Escreveu-o porque o Mattoso dos Santos lhe não despachou uma pessoa de familia. Foi preciso um ataque rude, para o ministro lhe dar, antes de cahir, um logar não sei onde. Ha politicos que se servem de todos os meios: ha-os—sei eu—que se escrevem cartas anonimas. Parece até que os ha mais completos... Um franquista barafusta hoje nos corredores das camaras, ácerca dum deputado da maioria:—O que eu admiro é o descaramento de Fulano, que se atreve a fazer discursos alli na minha frente, quando sabe perfeitamente que trago na algibeira uma [115] acta em que elle se confessa ladrão!—Este mundo tem as suas leis, as suas convenções, os seus preconceitos, e a sua honra especial. O principal é o que se diz ao ouvido. Aquillo alli nas côrtes é apenas aparato: o José Luciano combina tudo com o Hintze, o Alpoim com o Teixeira de Souza. Mas surge ás vezes o inesperado e deita a frandulagem de pernas ao ar... A atitude violenta do Arroyo explica-se assim: O Arroyo queria ser do conselho do Estado, o Hintze prometeu nomeal-o, o rei opoz-se. O Hintze teimou—o rei teimou:—Vae para casa e pensa...—A atitude do Navarro explica-se porque o rei nunca o deixou ser par...[4] D'ahi o odio—d'ahi barafunda... O José Luciano procurou o Arroyo para lhe pedir que não fizesse o discurso contra o rei:—Sou eu, chefe dum grande partido, que lhe afirmo que não está inutilisado.—E publica no Correio da Noite o discurso com alusões á rainha—que o Alpoim manda retirar do Dia, por causa do Paço... Os chefes ainda conservam certa linha, mas cá em baixo vêm-se referver os interesses, as ambições, os despeitos. O D. Carlos mantem-se n'uma atitude que faltou ao D. Luiz—e é talvez por isso mesmo que o atacam e o acusam. Não [116] intriga. O D. Luiz mais de uma vez propoz ao José Luciano, no tempo de Braamcamp, que organizasse ministerio:—Isso não, meu senhor! E vou já d'aqui dizel-o ao Braamcamp.—Tudo parece confusão, todos os dias a teia se emaranha. Ainda ha quem defenda este e aquelle, que pertence ao seu partido, por interesse, por camaradagem, seja pelo que fôr, mas já não ha ninguem que defenda o rei. Alto ou baixo, ao ouvido ou em plena rua, só se fala no rei... O rei! o rei! o rei!...


Junho—1903.


—Os Braganças, dizia o Latino Coelho, ou são pedantes ou fadistas.

A este proposito o D. João da Camara conta, que um dia D. Pedro V leu um discurso á mãe, dizendo-lhe ella no fim:

—O menino ha-de sahir um bom pedante.

Se tarda em morrer acabava odiado.


E acabava. As grandes figuras moraes são sempre uma calamidade para si e para os outros. O universo é amoral, e não ha como os acomodaticios, com alguma hipocrisia ao seu dispôr... Os outros só fazem a sua desgraça e a desgraça dos que os rodeiam.


[117]
Junho—1903.


Pateo de Martel. Um cantinho com uma figueira e malvaiscos. Uma fiada de casas e no extremo o atelier do Columbano. Por traz a quinta... E outra luz diferente, outra atmosphera... O mestre, pobre e obstinado, fez alli os seus melhores retratos; a senhora D. Maria Augusta, n'uma sala de trez metros quadrados, creou as suas mais bellas rendas. Lá no fundo morou Eugenio de Castro, pobre, morou depois o Justino e outros diplomatas ilustres... Alli o mestre, como os artistas da Renascença, experimentou o fresco, as tapeçarias, os trabalhos em cêra e prata. A senhora D. Maria Augusta sorria-nos com a maior bondade e carinho e dizia:

—Quando meu pae morreu ficamos sete irmãos. Criei-os a todos.

—E o Columbano?

—Esse é meu irmão, meu filho e meu mestre. Por alli passaram tambem os maiores homens de Portugal, de quem o Columbano ás vezes fala:

—O Oliveira Martins contou-me, quando veio ao meu atelier pousar para o retrato, que um dia a rainha o mandou chamar e lhe apareceu transtornada:

—Salve-nos! salve-nos!

Era depois dos acontecimentos do ultimatum. [118] O Martins procurou ou escreveu—não me lembro—ao Anthero do Quental e elle afastou-se e abandonou tudo.

São curiosos os grandes homens contados pelo Columbano, que os retratou. Um levava um pente na algibeira para compor o cabelo, outro pedia para se lhe não ver a careca. O Junqueiro era mephistophelico. Aparecia, desaparecia logo: não pousava cinco minutos a fio. Um dia o Columbano ouviu bater a porta, e entrou-lhe no atelier um homem já cansado, de grossos sapatões, apegado a uma bengala, que parecia um bordão de pedinte:

—Disseram-me que gostava de fazer o meu retrato e aqui estou...

Era o Anthero. Parecia um cavador, de meias grossas de lã azul—mas quando falava!... Nunca olhou para o retrato.

—Está prompto?

Foi-se embora como viera...


Junho—1903.


O José de Figueiredo diz-me:

—Copiei por minhas mãos, para o Antonio Candido, a carta em que o Soveral é durissimo para os partidos, fala d'alto ao rei e lhe diz que, se não tivermos juizo, a Inglaterra tutela-nos.


[119]
Junho—1903.


—Ninguem me mete na cabeça que esta rainha é boa pessoa—diz o Alpoim ao vel-a descer o Chiado.

Mas, quando passa, toda a redacção do Dia corre á janella, para a cumprimentar, e o Moreira d'Almeida, que tem por ella culto e paixão, põe á pressa o chapeu na cabeça, para se ir desbarretar n'uma grande cortezia.


*


Fala-se hoje do Soveral na redacção do Dia, e da amizade que o liga ao rei d'Inglaterra.

—São tão amigos que por occasião do ultimatum, ainda Eduardo VII era Principe de Gales, este pode prevenil-o da atitude da Alemanha. Iam ambos n'um cortejo: o principe, de passagem, chegou-se-lhe ao ouvido e só lhe disse estas palavras:—A Alemanha está comnosco...

O Soveral correu ao telegrapho.


Junho—1903.


O Adrião de Seixas, que, nos seus tempos aureos, entrou em muitas combinações de finança, [120] negociou emprestimos, esteve ligado aos Mosers, etc.:

—Quasi todos os homens publicos recebiam luvas, posso garantir-lh'o. Todos estendiam a mão. Duma vez trouxe para um, um aparelho de chá, magnifico, de prata, comprado em Paris. Elle recebeu-o e, destapando o assucareiro, afirmou com desplante, sorrindo:—É magnifico... só lhe falta o assucar.—Eu, que já ia prevenido, tirei das algibeiras alguns rolos de libras, despejei-os dentro e perguntei:—E agora?—Agora está optimo.—E concluiu:—Você é uma mercearia ambulante!


Junho—1903.


O marquez de Soveral em conversa com o Alberto Braga:

—É que eu vivo em Londres longe de tudo isto... Se me visse forçado a viver em Portugal, fazia-me revolucionario.


*


Tambem o Alpoim diz hoje:

—Quem me dera uma revolução!

E, deante do nosso espanto, explica:

[121] —Para pôr o rei no seu logar... Eu não tenho nada a perder, meus filhos estão colocados, o que tenho chega-me para viver na Regoa como um fidalgo... Era preciso que o rei tivesse medo. Mas quê! Agora com a aliança ingleza é muito peor. Ainda outro dia dizia o José Luciano:—Podem vir os republicanos todos juntos, os de cá e os de Hespanha, que não fazem nada. É da aliança que, se houver qualquer movimento, desembarcam tropas e defendem o rei.

E acrescenta:

—Eu vi tudo, vi as perguntas e as respostas, posso assegurar-lho.


*


—Elle é mau, é—diz o Alpoim do rei—mas a gente não tem outro.


Junho—1903.


O Abel d'Andrade:

—Conheço muito bem o Hintze. Tem duas qualidades magnificas n'um homem, pessimas n'um chefe. É delicadissimo. Sorri sempre, mesmo quando sabe que o enganam—e nunca resolve nada, o que lhe acarreta dificuldades, que vão [122] crescendo á medida que elle as adia. Tem outro defeito enorme; não é capaz de dizer não peremptoriamente a ninguem.


Junho—1903.


O Emygdio Navarro está furioso com o rei. Sentiu immenso que o não convidassem para nenhuma das festas dadas ao rei d'Inglaterra—quando foi elle que iniciou, defendeu e preparou a aliança anglo-portugueza.

Junho—1903.


Estive hoje em casa do juiz Veiga, lá para o Rato, por causa d'uma querela do Dia. É um homem atarracado e forte, com um ar de falsa bonhomia. Ha n'elle não sei quê de inquisidor e de satiro, e é tão desconfiado, que, logo que eu entro, pousa sobre os papeis da secretaria uma larga folha azul, com medo que lh'os leia. Na sala, de cadeiras doiradas de palhinha e consoles com gatos de vidro, ha varios mostrengos em exposição: o retrato delle e retratos de familia, temerosos, o busto do rei D. Carlos em marmore e outro não sei de quem, ambos de arripiar. E, entre [123] a papelada que trasborda e estas coisas de mau gosto, o juiz Veiga fuma n'um cachimbo d'espuma com uma mulher em pêlo...

É este o homem que sabe tudo e pode tudo, que conhece os segredos das familias e os segredos da politica. N'outro dia obrigou um janota a entregar-lhe as cartas, que comprometiam uma mulher casada. Contam-se mais casos curiosos. É omnipotente e omnisciente. Comanda, diz-se, bufos ilustres de quem ninguem suspeita. Tem um cofre sem fundo á sua disposição para distribuir dinheiro a rodos. Acode a desgraçados. Tortura—verdade ou mentira?—no fundo das celulas alguns presos politicos para lhes arrancar segredos. Ainda ha tempos me contaram que ao José do Valle não o deixaram dormir sem elle confessar tudo...—É uma especie de Pina Manique, que pouco abusa do seu lugar e da sua autoridade. Afirmam-no bondoso. Ha até quem o diga uma especie de Providencia. É incontestavelmente um homem esperto, que protesta:—Quero-me ir embora antes que tudo isto desabe. Esta gente não sabe ou não quer defender-se...

Fala baixinho, sem me olhar nos olhos e resolve n'um prompto, como quem não encontra nunca obstaculos. Quando saio, no patamar da escada, surprehendo duas creadas de avental sujo e chinelos esbeiçados, que dão de comer, ás escondidas, a um policia. Enganam-no na sua propria casa e deitam a fugir quando me vêem.


[124]
Junho—1903.


O artigo de hontem, das Novidades, sobre a mortandade da Servia, cheio d'alusões ao rei, fez sensação. E dizia-se por ahi:

—Quando se faz cá o mesmo?

—Foi uma limpeza!—phrase do Alpoim.


*


O Beirão:

—O Alpoim não quer vêr que o partido do João Franco, apezar de pequeno, é um partido de protesto. Qualquer dia o rei chama-o e dá-lhe os mesmos poderes que tem dado ao Hintze ou ao José Luciano.


Junho—1903.


Judice Bicker, casado com uma filha do Andrade Corvo, conta, a proposito do rei e do poder pessoal:

—Possuo diferentes cartas do D. Luiz, e entre ellas uma ao Corvo, pedindo-lhe que apresente certa proposta, mas de maneira que não pareça poder pessoal... Os homens desse tempo impunham-se. Um dia ao D. Augusto meteu-se-lhe em cabeça casar com uma infanta d'Hespanha. Era no tempo em que se falava muito na [125] união iberica. O Corvo opoz-se, apesar da insistencia desesperada do infante. Por ultimo procurou-o e disse-lhe:

—Escusa de insistir, que não casa. É pelo bem do paiz.


*


O Corvo foi um dos primeiros estadistas a pensar a serio na Africa e no seu engrandecimento. Quiz augmentar o territorio de Angola e estabelecer-lhe os limites, d'acordo com a Inglaterra. Tudo era possivel n'esse tempo e tinhamo-nos livrado de dificuldades, do Estado livre do Congo, etc. Avançavamos um seculo, se elle não cae por causa do tratado de Lourenço Marques. Deitaram-no a terra, espalhando que recebera milhões. Eu que casei com a filha, sei o que elle deixou!...

Nas camaras o governo d'então declarou que o tratado não tenha ido a conselho de ministros. O Andrade Corvo possuia o tratado com anotações do punho de Fontes e Thomaz Ribeiro. Apesar d'isso calou-se. Se fosse hoje!...


Junho—1903.


—O rei tem pensado. E tanto que o infante quiz ir agora ao estrangeiro e pediu dinheiro ao Hintze, que lhe respondeu:—Peço-lhe que desista.—O [126] infante rasgou a carta furioso. Com a Maria Pia sucedeu o mesmo. Essa inventou uma doença d'olhos e preveniu o D. Carlos de que precisava de ir ao estrangeiro. Resposta do rei:—Cá ha um bom especialista.—Mandou-lho, e elle disse ao rei que a Maria Pia não tinha nada. A Maria Pia insistiu, n'um desespero, e o rei mandou-lhe o Antonio Lencastre. O rei tem pensado...

—Se isso fosse verdade!—exclama o Alpoim.


Junho—1903.


Esta tarde sahiu dos Martires, mesmo em frente do Dia, a procissão do Corpo de Deus. Todos á janella cahiram de joelhos—quando o bispo de Trajanopolis passou, a barba loura, muito cuidada, e um capachinho no alto da cabeça, apartado ao meio... O Alpoim exclamou:

—Ó que maroto! Foi a este que o Barros Gomes, quando ministro, disse um dia: Ajoelhe a meus pés! Peça perdão!—Tinha hypothecado lá fóra os rendimentos do curia por noventa annos!


Junho—1903.


O D. João da Camara conta que no Algarve encontrou em todas as casas dois retratos—o de João de Deus e o do Remexido. E a proposito diz [127] que um tio de Coelho de Carvalho levava já a galope o comutamento da pena do Remexido, quando o fuzilaram. E termina:—A Angela Pinto é neta do Remexido. Aposto que não sabiam!


Julho—1903.


—Vou pedir um logar que está vago no Supremo Tribunal—disse um patusco ao Marçal Pacheco.

—De juiz?!

—Isso.

—Mas você endoideceu! Não lh'o dão!

—Isso sei eu.

—Mas então porque é que o pede?

—Já pedi umas poucas de coisas, vou pedir mais esta. Recusam-ma, já sei, mas é capital de queixa que amontôo.


*


O Alpoim:

—Um dia o cardeal patriarcha convidou-me para jantar. Estavam muitos bispos. São jantares que nunca acabam, de quinze pratos, serviço esplendido—e não calcula a impressão que eu senti, no fim, quando elles se levantaram muito [128] congestionados, cheios de vinhos magnificos, mamando charutos enormes e com as saias arregaçadas...


Setembro—1903.


O Henrique de Vasconcellos, genro do Navarro, contou-me hoje que o Paço por trez vezes mandou insistir com o sogro, para elle não continuar com os ataques nas Novidades.


Outubro—1903.


O Alpoim recomenda no Dia que se não publique nada que possa ferir as susceptibilidades da côrte hespanhola. Afonso XIII está desconfiadissimo. Além d'isso o nosso rei e rainha de Hespanha não se podem ver: têem um pelo outro odio figadal.


*


Um coronel inglez, que ahi esteve, veio por ordem do seu governo vêr em que estado tinhamos as fortificações de Lisboa. Examinou tudo.

José Luciano encerra o Parlamento.—Caricatura inedita de Celso Herminio.
José Luciano encerra o Parlamento.—Caricatura inedita de Celso Herminio.



[129]
*


Com as festas de Afonso XIII encheu-se muita gente. Um regabofe. Da iluminação da Avenida diz-se:—Dos Restauradores para cima dirige o Costa Pinto, dos Restauradores para baixo digere o...


*


Ao ouvido conta-se que o rei de Hespanha e os que o acompanhavam troçaram tudo isto: o paiz, a côrte, as festas. De manhã, no quarto, emquanto elle tomava café ou chocolate, os particulares e os intimos maldiziam, n'uma chacota pegada... Só o rei, fracamente, se opunha.


Outubro—1903.


O D. João da Camara conta o seguinte:

—O D. Luiz deu, até pouco antes de morrer, trezentas libras por mez á Rosa Damasceno. Todos os dias 10, 20 e 30, o Nazareth lhe entregava [130] cem libras em oiro, que elle nem sequer contava: mandava-as logo á Rosa. Morreu no dia 19 de Outubro: pois no dia 10 ainda lhe mandou o dinheiro.—E o Brazão?—Cuido que não são casados, apezar do que por ahi se diz. O que é certo é que antigamente, as coisas arranjavam-se por forma que a Rosa e o Brazão nunca entravam na mesma peça, e um d'elles ia sempre passar a noite ao Paço. O D. Luiz dizia do Brazão:—É o meu melhor amigo. A Rosa nunca abusou da situação: apenas empregou dois ou tres homens e o D. Luiz sentia por ella verdadeira ternura. Traduziu-lhe a Odette e assistia aos ensaios. A Maria Pia sabia tudo. Um dia deixou no quarto do Paço onde a Rosa costumava ficar, um lenço de rendas a tapar a fechadura. Ás vezes o D. Luiz apresentava-lhe joias para ella escolher e depois levava-as á Rosa. E ia com a rainha ao theatro, para que ella visse o efeito das joias no colo da actriz.


Outubro—1903.


—Vi eu, vi eu!—exclama o Antonio José de Freitas—o Oliveira Martins, n'uma sala, deslumbrado, solicitar a apresentação d'um janota qualquer, d'um janota banal.


[131]
Dezembro—1903.


O Adrião de Seixas, secretario do Banco de Portugal:

—Não se fazem descontos, porque não ha dinheiro e o Banco já recorreu ás reservas de prata. O governo está sempre a pedir dinheiro. Imagine o meu amigo que todos os annos ha um deficit de 7:000 contos. Ninguem tem a coragem de dizer as coisas como ellas são e por isso se faz um orçamento falsificado. Resultado: como o orçamento é falso, pode-se roubar á vontade!


*


O José Luciano está a morrer. O que ahi vae com a chefia do partido progressista! Ao Antonio Candido não o tragam os progressistas, ao Beirão não o quer o Paço, nem o Navarro, nem o Mariano. Lança-se o nome de Antonio Candido para encobrir o seguinte proposito: presidente do conselho o Mathias de Carvalho, com o Alpoim na pasta do reino.

Mathias de Carvalho é uma figura decorativa, sempre de palito na bocca e de miolos empedernidos, que ficará na presidencia e estrangeiros. Esta solução é preferida pelo Navarro e pelo [132] Mariano. De Mathias apenas se sabe que é incapaz: como diplomata foi quem deu ensejo a esfriarem-se as relações com a Italia.

—Se o José Luciano morrer é á facada!—exclama o Alpoim.

Morrer era ainda—Deus me perdoe!—uma solução... Peor será conserval-o na cadeira de rodas, obstinado, querendo mandar, e os herdeiros á espera do testamento. Toda a politica portugueza vae girar em volta d'este leito de enfermo, onde o velho continua a dar ordens imperiosas.—Hoje deitou um litro de pus pela pelle.—Está salvo!—Morre!—Fica invalido!—Tem sifilis!—Nesta altura da politica portugueza, é elle quem manda tudo. Que o diga, o José d'Azevedo, por exemplo, que o não pode vêr, porque o José Luciano o não deixou realizar as suas pretenções. É na sua casa que se resolvem as questões maximas. A politica é pelo menos n'uma grande parte, na melhor parte, representada nos bastidores... «Vejam a vergonha desta gente! O Campos Henriques vae a casa do José Luciano com o Julio de Vilhena, para conseguir que as emendas do codigo civil passem. Não passam e elle fica no ministerio! O Teixeira de Souza vae lá todas as semanas. Não, este Hintze... Eu palavra de honra antes queria ser ladrão d'estrada!...»

Outro facto extraordinario da nossa politica: é sempre no campo adverso que estes homens [133] tem mais radicadas amizades. E tambem se percebe nitidamente que no fundo da lucta só ha uma força, o rei. Por isso mesmo o rei é sempre o culpado. Quem tudo manda é o Paço—dizem todos os politicos—e tanto mais que não ha um nucleo de resistencia no paiz. Os republicanos não estão organizados e o Paço nem sabe o que póde. Uma revolução no paiz é, segundo a opinião geral, impossivel, a não ser que se succedam trez annos de fome.—Tudo quanto se faz de mau é o rei quem o faz...—Ainda hoje ouvi esta conversa:—Foi o Hintze quem disse ao Arroyo, como disse ao Mariano e ao Navarro. «É el-rei que não quer». Nunca lh'o deveria ter dito.—Os politicos inutilisam-no e inutilizam-se. Todos os dias inventam novas atoardas. Hoje a proposito d'uma nota oficiosa que o ministro da fazenda fez publicar no Noticias, no Seculo e no Diario, anunciando um grande emprestimo no estrangeiro, conta-se que é um negocio de acordo com a casa Fonseca, Santos & Viana, que tinha comprado fundos. Acusa-se o Teixeira de Souza de conivencia. Mas já a 2 de junho o Alpoim afirma:—Quem não deixa passar o emprestimo é o Burnay. N'outro paiz devia ter a cabeça cortada. No ministerio da fazenda ha documentos que provam as suas maquinações no estrangeiro. Elle manda em tudo:—manda no Credito Predial, no Banco de Portugal, na Companhia Real. É uma desgraça que o emprestimo [134] não passe. Temos nós de o fazer e em que condições!... E tudo isto com que fim? E o Burnay a ver se obriga os progressistas ao contracto dos tabacos.—A esta trapalhada juntem a doença do José Luciano e as ambições, que levantam a cabeça, a guerra de sapa que se encarniça.—Hoje deitou mais pus!—Morre!—Com quem está o Paço?—O Moreirinha com a algalia não lhe sae da cabeceira.—Quem vae ao poder? O João Franco?

—Nem elle sabe a guerra oculta que eu lhe tinha feito. Ha-de pagar-me caro o discurso que fez contra mim: Viva a folia, dançar! dançar!... São mil os interesses, mil as ambições.—Tudo menos o Beirão, que só tem por si a gente velha, a gente conhecida pelos batibarbas.

Mas o velho teimoso e perspicaz, não admite sequer a idéa de que alguem, que não seja elle, vá ao poder. Até á ultima—ambição ou grandeza?—ha-de disputar e mandar, como o Alpoim, até ao ultimo suspiro, ha-de conspirar. Aqui, á roda d'esta agonia, não se discutem apenas os interesses d'uma familia. O drama é maior: são os interesses dos partidos, com mil e uma ambições e enredos que nem sequer se suspeitam. A confusão augmenta, redobra. O Ressano Garcia comanda o ataque, á frente dos batibarbas, contra o Alpoim, e o Alpoim, que ainda hontem atacava o João Franco, já hoje (Janeiro 1904) diz, depois do conluio feito pelo Silva Graça:—Com esse me entendo eu!


[135]
Fevereiro—1904.


Hontem, terça-feira de entrudo, assisti ao espectaculo em S. Carlos. Estava tudo, o rei, a rainha, a côrte... Senhoras decotadas com os vestidos presos aos hombros por uma fita. A D. Amelia de vermelho. Andava no ar uma bola enorme de borracha, e ao janota que quiz saltar dentro d'um camarote tiraram-lhe as botas dos pés. Mas a risota, a chalaça, a delicia, era um penico em miniatura, que passava de mão em mão, por entre as grosserias, que é do uso antigo as senhoras dizerem umas ás outras na terça-feira gorda. O fundo d'estes risos vem sempre da mesma palavra pegajosa: merda! merda! merda! O rei, gordo e louro, soprava por um canudo setas de papel, botando o olho de revez, e houve um momento em que o infante mostrou do camarote o quer que era de borracha, um canudo cheio de vento, immenso e obsceno. Foi um delirio entre aquellas cabeças empoadas, na gente da alta roda de que se contam baixinho os escandalos.

Ouçam um destes rapazes que estão na plateia, e que falam das senhoras, como quem fala com desprezo das mulheres da Antonia. Muita desta gente não se sabe aonde vae buscar o dinheiro. É um misterio. Aquelle louro e correcto, [136] que está além n'uma atitude romantica, ainda ha dias quiz extorquir alguns contos de reis, para o jogo, a uma mulher casada. Outro só vive da roleta. Mais além, o herdeiro de um nome ilustre, tem um modesto logar na alfandega, e a mulher usa brilhantes esplendidos. Aquelle, acolá, tão decorativo, é conhecido pelo conde de Monta-a-Velha. São raros os que não têm alcunhas. A uma senhora de perfil soberano chamam-lhe a Vareira. Outra tem um sobriquet infame. Deste e de aquella diz-se alto a chronica escandalosa. A mulher do S. deu este anno grande escandalo em Cintra. Outra foi apanhada aos beijos a um embaixador. Com aquella, mais além, fina como uma cobra, e que ostenta um colar magnifico, puzeram-se os B. de mal, acusando-a de lhes ter roubado uma carteira com trezentos mil reis, depois de terem sido todos seus amantes. A mulher do J... deixa o marido, pé de boi rico que só lhe serve para puxar á nora, e gasta-lhe a rodos o dinheiro que juntou. Eis esta mãe viciosa com a filha ao lado—de olhos limpidos e innocentes. Peor, ha peor... E mais esta—e mais esta—e mais esta condessa, que n'outro dia foi apanhada no comboio n'uma atitude peor que equivoca...

Puz-me a ouvir, a ouvir,—verdade? mentira?—e lembrei-me ao mesmo tempo da côrte da senhora D. Carlota Joaquina e da Chartreuse de Parma.


[137]
*


O general Lencastre de Menezes:

—Se o 31 de Janeiro fosse agora as coisas não se tinham passado assim...


Março—1904.


Morreu um dia d'estes um preto riquissimo, que quiz por força passar por branco, o que lhe custou os olhos da cara. Se teima em viver mais algum tempo acabava a pedir. Rodeara-se d'uma corte que lhe custava carissima: lisongeavam-no e rapavam-lhe o cofre até ao fundo. Depois inventavam-lhe processos, depois demandas... Depois sopravam-lhe á vaidade incomensuravel. E o preto sorria, o preto dizia sempre que sim. Tinham-no casado com uma linda rapariga branca—e o preto, á farta, pagara tudo, dotara tudo, a noiva, os paes da noiva, os parentes da noiva... E cada vez mais brancos lhe faziam a côrte e o enredavam n'uma vasta teia de interesses, com muitas zumbaias e papel selado.

Um dia foi a Inglaterra e quiz viajar como um principe branco: comprou um yacht de luxo para ir a S. Thomé. Cincoenta contos. Na volta não [138] havia carvão a bordo e deitaram-se a queimar a madeira entalhada, os doirados do barco, as portas, os salões, as molduras. E o preto sorria. Quando chegou a Lisboa vendeu o barco por uma côdea.

Rodearam-no mais brancos, apareceram-lhe mais brancos infatigaveis, pressurosos, obsequiadores. E mais papel selado, mais contractos e procurações para assignar—o enredo, a teia subtil em que o negralhão foi arrastado e envolvido, o verdadeiro, o authentico drama, emfim, do preto que quer ser branco... Se elle tinha por acaso um sobresalto, falavam-lhe logo á vaidade ou davam-lhe noticia d'uma coisa que se chama o Codigo, a Lei, a Formula, e o preto, que não comprehendia e que se sentia feliz, submetia-se sem contestar, com uma grande satisfação por fazer parte d'esta raça ilustre e respeitada de brancos, por ser visconde, por pertencer á côrte e á alta sociedade elegante.

...Antes de morrer lá lhe deram o ultimo golpe—de preto. Os brancos ficaram-lhe com as roças, e as propriedades de S. Thomé foram transferidas para uma sociedade por quotas. É o que consta por ahi, emquanto o negralhão estoira com uma pneumonia dupla—e lá em casa se toca desaforadamente piano, com as janellas abertas de par em par.


[139]
Março—1904.


As obras da sala de jantar do Paço das Necessidades custaram 180 contos.


*


O Abel d'Andrade contou-me que a modista da mulher lhe dissera que a mulher do Hintze lhe devia lá uma capa ha mais dum anno.


Março—1904.


O Celso morreu ha um mez n'um dia de chuva como este. Mas, quando o caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no vasto campo dos tumulos agitaram-se as cabeças amarellas dos malmequeres. Os passaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:—O amigo... o camarada... descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou na nossa decadencia, e por fim o Carneiro de Moura mastigou tambem uma banalidade... Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os passaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho:

[140] —Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia duzia de amigos!...


Abril—1904.


O Ovidio d'Alpoim ácerca da D. Maria Emilia Seabra de Castro:

—Mete-se em tudo. D'uma vez eu e o José Luciano estavamos a discutir umas alterações á Carta Constitucional e ella começou do lado a dar a sua opinião. O José Luciano mandou-a embora. D'outra vez sahia eu de casa do José Luciano com o Antonio Candido e vinhamos á porta da sala grande, quando ella do alto da galeria:

—Ó senhor Antonio Candido então agora é que vae para Amarante, quando é cá preciso? E é para isto que nós os fazemos pares e os enchemos de honrarias?...

O Antonio Candido não respondeu. Ficou tão vexado que, de casa até á baixa, não trocamos palavra.


Março—1904.


As filhas de D. Carlota Joaquina, com excepção de duas, eram tal qual como a mãe. O Camara conta que a duqueza de Loulé, que foi [141] casada com o mais lindo homem do seu tempo, estava um dia, em solteira, á janella, quando o conde de Vimioso passou a cavallo para os touros, já vestido de oiro e prata. Ella chamou-o, trocaram meia duzia de palavras, elle subiu—e depois desceu e foi tourear...

O marquez de Vallada sabia quem eram os paes de todos os filhos de D. Carlota Joaquina.


Abril—1904.


A Hespanha concentra tropas na Galliza. Nós não podemos mobilisar quinze mil homens. Nem dez mil! Hontem o Pimentel Pinto queixava-se ao Maximiliano d'Azevedo, de que nem artilharia de campanha possuimos: a que temos ficava liquidada no fim de meia hora de combate. A artilharia do campo entrincheirado de Lisboa, comprehendendo os obuzes, serve apenas para navios imperfeitamente protegidos. Peor: o municiamento mal chega para uma hora de combate!


Abril—1904.


O dr. Antonio Centeno protesta:

—Isto não pode ser! O ministro deu pela iluminação electrica do Paço de Belem quarenta [142] contos! Havia quem a fizesse por sete. Agora vae dar a iluminação electrica de todos os paços por trezentos contos. Ha quem a faça por quarenta. Mas d'esta vez oponho-me porque prejudica a Companhia do Gaz. Vou procural-o e dizer-lho. Se teimar levo a questão para a camara e para os jornaes.


Abril—1904.


Quem faz a politica externa é o rei e o Several. O ministro dos estrangeiros chancela.


Abril—1904.


Isto é um paiz para estrangeiros. Não ha nenhum que não enriqueça. Hoje afirma-se que o Chapuy, engenheiro da Companhia Real, vendeu machinas á Companhia por cento e trinta e tres mil francos, que valiam setenta mil. O Croneau, director do Arsenal, tambem está rico.


Abril—1904.


Diz o Alpoim:

—O rei não ouve ninguem. Antigamente ainda atendia o general Queiroz, que era nosso [143] amigo. Agora não: só ouve os presidentes do conselho. Tratava muito bem o Teixeira de Souza; pois quando o Hintze resolveu pol-o na rua, passou logo a tratal-o mal.


Maio—1904.


O alferes que no 31 de Janeiro comandava a guarda municipal, por traz do campo de Santo Ovidio, nas escadas da Egreja da Lapa, e que depois comandou o fogo na rua de Santo Antonio, garante que o Lencastre e Menezes, então comandante do 18, não sahiu com o regimento emquanto não viu tudo decidido. E dentro do quartel havia socego...

—Eu disse-o depois ao rei.


*


A proposito de 31 de Janeiro sei pelo José de Figueiredo, que o ouviu por diferentes vezes ao Antonio Candido, que o rei e a gente do Paço queriam um castigo exemplar. Antonio Candido opoz-se e ficou mal visto durante muitos annos.


[144]
Junho—1904.


Disse-me hoje o Camara que o Soveral tomou parte, activa no tratado d'entente entre a Inglaterra e a França. É hoje um dos melhores amigos de Delcassé.


Julho—1904.


A Maria Pia, que quer ir por força ao estrangeiro, mandou pedir dinheiro aos agiotas de Paris sobre hypotheca das suas propriedades—chalet do Estoril e parte do palacio das Necessidades, que ella afirma pertencer-lhe... Ao todo cento e oitenta contos. De intermediarios serviram um agiota do Porto, uma mulher designada na correspondencia pelo nome de madame Blanche, e que recebia dez mil francos, etc.


*


Do Antonio José de Freitas:

O marquez da Fronteira nunca poude levar a bem o casamento de D. Fernando com a comica, como elle lhe chamava. Uma senhora da aristocracia conversando com o marquez:

—Fui visitar el-rei que me disse:—Não queres [145] vêr a condessa?—Falei com ella e parece-me...—hesitando—muito interessante...


Celso Herminio.
Celso Herminio.

E o marquez logo:

—A senhora já tinha, é claro, relações anteriores com a condessa...


Dezembro—1904.


O João da Camara repartiu com os netos de Camillo os direitos de auctor do Amor de Perdição. Os filhos de Nuno nem pão tinham no dia em que receberam inesperadamente esse dinheiro. O Camara, quando juntou duzentos e tantos mil reis, escreveu á viuva e mandou-lhe metade.—N'esse dia—disse ella ao Alberto Pimentel—não tinha que lhes dar de comer.


*


O rei e a rainha vivem separados. Os seus aposentos são, uns n'um extremo, outros no outro extremo do palacio. E por ahi afirma-se que elle, depois do tifo, ficou como Affonso VI...


Dezembro—1904.


O velho obstinado teima... Não lhe falem na successão! Ainda n'outro dia fez uma scena, quando a D. Maria Emilia lhe leu o artigo das Novidades. [146] Um amigo disse-lhe:—Deixe lá o Sebastião Telles ou o Alpoim ser presidente do conselho.—Essa hypothese não a admito eu!—protestou logo. O Hintze está gasto, o João Franco foi acolhido no norte como um Messias. O Beirão fez um discurso nas camaras—talvez proposital—dizendo que cortaria nos empregos publicos e que não admitia direitos adquiridos senão dentro da lei.—Elle quer inutilisar-se...—É um tipo esgalgado, d'astronomo, com uma grande penca—o nariz do Beirão—motivo facil de caricatura. Homem de costumes simples, alheado e indiferente a corrilhos, agarrado aos seus livros[5]. Já em Abril, no conselho d'estado, taes coisas [147] disse que, á sahida, afirmou:—Acabo de dar uma enxadada na minha reputação!—Quanto ao Alpoim desconfia que o José Luciano o quer comer, e o Teixeira de Souza trata de crear forças dentro do seu proprio partido: comprou A Tribuna e parece influenciar no Diario.—Ao Hintze custa-lhe a largar o poder, elle bem sabe porquê...—Os tumultos nas camaras succedem-se e a situação politica agrava-se.

Do rei diz-se o peor possivel. Diz-se que colocou muito dinheiro no Banco d'Inglaterra, (11 de Junho) diz-se que deu um colar de brilhantes á bailarina Imperio, que ahi está na zarzuella... As questões prendem-se, e agora com o contracto [148] dos tabacos só se fala em escandalos. Tudo come! tudo come! Come o Navarro, come o Mariano, e um amigo meu, literato e jornalista, afirma-me:—Se a Companhia dos Phosphoros tem feito o contracto, eu estava rico.—Corre que os republicanos se organisam e o Bernardino Machado publicou manifesto, aproveitando um jornal e um jornalista hespanhol:


...«Ha uma lei que domina todas as outras na historia da humanidade: nenhuma instituição vive, se sustenta e se radica senão pelo amor á liberdade. A lei, em virtude da qual existem instituições liberaes, cumpriu-se nos nossos annais contemporaneos. De 1851 a 1885 tivemos um periodo de liberdade e de paz. Foi um periodo de ascensão liberal.

«Aboliu-se a pena de morte, e só por esse feito se proclamou pela lei o direito á Vida. Proclamou-se esse direito com toda a sua elevação, dando a todos, inclusivamente aos indigenas das nossas colonias, onde se acabou com a escravatura, a faculdade de existir espiritualmente, como uma personalidade moral. Alargou-se a liberdade religiosa, tornando-a efectiva com o registo civil. Alargou-se a liberdade economica pela extinção dos bens de mão morta, pela abolição dos monopolios e pela criação legal das associações de socorro mutuo e das cooperativas. Dilataram-se as liberdades politicas com a extensão do sufragio e representação das minorias. Descentralizaram-se os municipios, deram-se as maximas franquias aos distritos e até se exarou na Constituição o principio liberal da eleição parcial da Camara dos Pares. Nesse periodo, que começou ouvindo-se a voz do grande tribuno José Estevão, parece que resoaram até ao final os acentos do seu verbo eloquentissimo.

[149]
«Essa epoca venturosa termina com a morte de Sampaio, Braamcamp e Fontes. E a prova de que todos os partidos colaboravam nessa grande obra de pacificação e de liberdade, está em que foi o conservador Fontes quem mais contribuiu para ella.

«Os partidos de governo definem-se pela sua concepção da constituição nacional: Constituição liberal, partido liberal; Constituição arbitral, partido reaccionario. Porque o arbitrio póde ser, num dado momento, a liberdade; mas sempre se converte por fim em absolutismo.

«No periodo de iniciação liberal fez-se a Constituição quasi republicana de 1822, e, em troca, os constitucionais da campanha da Terceira, do Cerco do Porto, de Almoster e da Asseiceira, tiveram a carta outorgada de 1826, que foi, consoante o livre alvedrio do imperante, a liberdade com D. Pedro IV, e a opressão com D. Maria II. Em oposição á carta outorgada, Passos Manuel e os setembristas fizeram a democratica constituição de 1838, decretada pela vontade da nação.

«No segundo periodo da nossa vida constitucional, que abre com José Estevão e se encerra pouco depois da morte de Sampaio, periodo que inaugura entre nós o parlamentarismo, os regeneradores fizeram os actos adicionaes de 1852 e de 1885, que são verdadeiros pactos constitucionaes, e não intervalos historicos, mas reformistas, constituintes, republicanos, que apresentavam os seus projectos, qual delles mais avançado, da reforma constitucional.

«De 1886 até hoje sopra um vento imperialista. A inspiração, em vez de vir da Inglaterra liberal, vem da Alemanha cesarista. O partido progressista faz a centralisação dos serviços materiaes. Segue-se-lhe, no Poder, o partido regenerador, e faz a centralisação dos serviços espirituaes na instrucção, e depois dissolve as associações, rasga as liberdades municipaes, acaba com as representações das minorias, legisla dictatorialmente... E, por fim, para que toda esta centralisação não suscite uma revolução violenta, promulga a lei sobre o anarquismo, que é uma ameaça sempre suspensa sobre todos os liberaes.

[150]
«Antes de 86, o partido republicano, como partido de tal natureza, não era um perigo. Caminhava-se lentamente, pacificamente, para a Republica, e não haveria ninguem tão insensato que sonhasse fazer uma revolução para conseguir pela força o que se conseguiria, num prazo fatal, pela lei e pela liberdade. Além disso, ninguem faz revoluções por meras fórmas. Nós, os verdadeiros liberaes, duvidamos se não é preferivel uma monarchia, com todas as liberdades efectivas, com todas as descentralisações vivas, ou uma Republica como a francesa, em que o Poder central é omnimodo, e o regimen autonomo local nulo.

«Depois de 86, fracassadas todas as tentativas para regressar ao antigo caminho constitucional; fracassada a grande, generosa e derradeira tentativa de 93 a 94; com a fazenda publica em bancarrota; com todas as liberdades suprimidas; com a pena de morte restabelecida para os delictos militares e até para certos delictos civis; com a politica do engrandecimento do Poder Real no seu auge,—toda a gente pensa na Republica, porque ella não é já uma questão de mera fórma mas sim um problema organico de vida ou de morte para Portugal...


*


«A anarchia da nação demonstra-se: no interior pelo desencadeamento das forças dissolventes do caciquismo, da plutocracia e a agitação do clericalismo e fóra, pelas mesmas consequencias dolorosas que se seguem a qualquer dictadura progressista ou regeneradora. Depois da dictadura progressista, o ultimatum, a bancarrota, a invasão congreganista, sobresaltando os animos, como no caso da irmã Collecta. Depois da dictadura regeneradora, Kionga, o convenio definitivo da divida, e o fanatismo clerical, irrompendo no caso Calmon.

[151]
«Os partidos estão em dissolução. O regenerador, com dois chefes; o progressista, com a perspectiva tremenda de uma herança tempestuosa. Mas poder-se-hão reconstituir dentro da monarchia? Andam varios nomes de boca em boca: os dos srs. Dias Ferreira, visconde de Chancelleiros, Costa Lobo, Augusto Fuschini, Anselmo d'Andrade e Augusto de Castilho. Viu-se, porém, o caso da monarchia rodear-se d'esses homens de positivo merito? São convidados sequer para as suas festas, que são oficiaes e não particulares?

«Entenderá e quererá a monarchia apoiar-se nas classes trabalhadoras, visto a burguezia estar contaminada? Foi esse o sonho do socialismo do Estado de Oliveira Martins e talvez o do militarismo democratico de Mousinho de Albuquerque. Mas a monarchia não soube aproveitar-se nem de um nem doutro. Oliveira Martins morria politicamente poucos mezes depois de ser chamado ao governo. Mousinho de Albuquerque não chegou sequer aos conselhos da Corôa, e suicidou-se. A monarchia tinha para a realização desse programma, alem d'esses homens, a voz mais eloquente dos nossos dias, a de Antonio Candido, successor de José Estevão, que teria sabido conquistar as massas populares, e para captar as simpathias internacionaes um diplomata, o marquez de Soveral, que pelas suas maneiras e espirito, é da raça dos Palmellas. Aproveitou-os, porventura? Antonio Candido, desiludido, emudeceu. O marquez de Soveral nada mais pode fazer do que abrandar o protectorado inglez.

«Hoje as massas afastam-se cada vez mais da monarchia, porque, como tudo se concentrou no Poder Real, todas as responsabilidades se lhe atribuem; o protectorado inglez serve para salvaguarda da monarchia; a ruina financeira do paiz vem da confusão dos dois erarios, e até o jesuitismo, se bem que não se imputa ao rei, é comtudo imputado aos que o rodeiam.

[152]
«Não é licito pois esperar a salvação dentro da monarchia. Por grande que seja a cultura do chefe do Estado, por muito que seja o seu valor, a empreza da nossa regeneração não é para um individuo só. Só a nação é que pode erguer sobre os seus hombros tão imenso peso.

«E não se diga que a monarchia está identificada com a independencia da patria. A nação foi, com efeito, sempre monarchica; mas desgraçadamente a monarchia tem-se encarnado na monarchia usurpadora dos Filippes, no governo napoleonico de Junot, no governo de Beresford, sob Jorge IV. A monarchia teve um papel soberano no começo da nossa Historia, mas foi-se gradualmente divorciando do povo.

«E as nossas alianças? Essas não são dos reis, mas dos povos. A aliança da Inglaterra é com Portugal, e não com as suas fórmas de governo.


*


«É indispensavel organisar as forças vivas da nação portugueza. Organisando-se o partido republicano salvar-se-ha a nação. É preciso que o partido republicano se transforme em partido do governo, e que cesse com a sua obra de demolição, já feita. Se não pode alcançar logares no parlamento, conquiste-os nos municipios; se não pode intervir no municipio, intervenha na parochia. Não deixe ao abandono nenhum logar, por minimo que seja. E faça sobretudo por apoiar todas as justas reivindicações dos pobres e dos humildes.

«Deve ser um partido republicano profundamente socialista. Quando os republicanos, por meio de toda a sua campanha, se mostrarem homens de governo, podem estar certos de que a Republica se fará em Portugal como se fez no Brasil, e á maneira do que succedeu em 1871, em França, onde a Assembleia Legislativa, com uma maioria de monarchicos, elegeu para seu chefe o republicano Grévy e para chefe do Estado Thiers, que era um monarchico convertido á Republica.

[153]
«A Republica em Portugal é necessaria para elevar a sua cultura, para acabar com o numero incrivel de analfabetos, para se consagrar á educação do povo. O estado actual o demonstra: tanto é certo que quando sofre a liberdade sofre tambem com ella a instrucção.

«A Republica em Portugal é necessaria para que a religião seja a união das almas pelo amor, como na economia social o é pelo trabalho. As ordens religiosas atacam não só o Estado como a verdadeira religião, cujos primeiros vinculos devem ser o amor da familia, a cooperação economica e o progresso politico da sociedade. O primeiro é combatido e negado pelo voto de celibato; o segundo pelo voto de pobreza, e o terceiro pelo voto de obediencia servil.

«Torna-se necessario defender a religião como um principio immanente de justiça e de bem, e não como uma superstição e um instrumento politico. O partido republicano não pretende destruir a religião; o que nós pretendemos é tornal-a sincera e pura, tornando-a voluntaria e livre.

«A aspiração do partido republicano encerra-se nestes tres principios: liberdade politica, liberdade economica e liberdade religiosa. Em nome de todos que querem saber, e não podem, oprimidos pela reacção politica, essa infinidade de creaturas analfabetas; em nome de todos os que querem trabalhar e não podem, oprimidos pela reacção economica, essa infinidade de proletarios; em nome de todos os que querem amar e ser bons e em cujo seio a reacção religiosa lança a semente de odio; em nome dessa infinidade de santas e piedosas mulheres que o clericalismo tenta desvairar e arrastar para fóra dos seus deveres; pelos pobres, pelos humildes, pelos fracos, saudemos a Liberdade e com ella o unico partido que hoje a sustenta e defende em Portugal: o partido republicano.

«Se a Republica que não pede senão o restabelecimento e o respeito á lei, não vier bem depressa, corromper-se-ha e perder-se-ha o santo fundo deste povo exemplar, um dos modelos de virtude, de paciencia e de resignação que existem sobre a face da terra».


[154] D'outubro para novembro cae o governo, abalado pela questão dos tabacos: os homens estão cada vez mais divididos por ambições e interesses. D'um lado os Phosphoros, do outro os Tabacos; dum lado o Seculo e o Navarro, que ainda ha tres dias (Novembro) teve uma conferencia com o José Luciano, dizendo depois á familia:—O José Luciano está cada vez mais velhaco!—De outro o Burnay e o seu grupo... Os homens vão dia a dia diminuindo de estatura moral! Ainda hontem alguem me contou esta anecdota que define uma figura:—O Rebello da Silva era muito amigo do Latino—mas muito mais amigo ainda da sua ambição: queria ser ministro depressa. Um dia, de repente, cessou com as visitas que fazia ao grande escriptor. Tinha descoberto um prefacio antigo, em que o Latino advogava a união iberica, e foi para as camaras atacal-o. A questão durou tres dias, o governo cahiu, e o Rebello da Silva substituiu o Latino na pasta da marinha. Nessa mesma noite procurou-o de novo, e foi encontral-o a lêr serenamente uma grammatica russa, cujo estudo interrompera durante o tempo do governo.

—Tu já sabes, se queres alguma coisa é como se fosses ministro.

—Eu?!...—e sorriu-se, encolhendo os hombros. Mas tão triste, tão sereno, que o outro ficou gelado...


[155]
Dezembro—1907.


O velho major Fumega, em conversa com outro militar reformado:

—Em 66 o Saldanha d'acordo com o Prim, tinham resolvido proclamar o D. Luiz imperador da Iberia. Chegaram a distribuir dinheiro aos sargentos. A mim, que era então sargento, deram-me seis contos, para distribuir dezoito tostões por soldado. Tornei a entregal-os intactos. Se fosse hoje gastava-os no brodio.

—Eu apanhei trezentos mil reis e dei cabo d'eles.

—O movimento abortou, porque foi denunciado pelo Graça, mais tarde celebre como major Graça, no 31 de Janeiro, que, depois de assignar as actas, como quartel-mestre, descobriu tudo. Era um denunciante, foi-o sempre—conclue o Fumega, fumando placidamente o seu cigarro.


Dezembro—1907.


O D. Carlos a um oficial do exercito, depois da lucta com o João Franco, das descomposturas ao rei, etc.,—e referindo-se aos politicos:

—Tu ouvel-os falar, não é verdade? Pois se [156] lesses as cartas que todos os dias me escrevem, e que estão alli n'aquella gaveta, enchias-te de nojo!


Dezembro—1907.


Conta-me o D. João da Camara:

—A rainha era amicissima do meu irmão, o conde da Ribeira Grande. Visitou-o seis vezes durante a sua doença. N'uma das ultimas noites elle puxou-a a si, beijou-a, e explicou:

—É como se fosse minha filha.

Já na agonia, ella entrou-lhe no quarto e elle pode ainda dizer-lhe, n'um ultimo arranco, estas palavras proheticas:

—Os politicos! Cautela com os politicos!

E ella respondeu-lhe:

—Descanse, não ha-de ter duvida, se Deus quizer.


*


Era um pouco apagado, mas bondosissimo. D'uma vez uma senhora foi dar-lhe os pezames pela morte do filho. Tinha-lhe tambem morrido um filho fazia um mez e desatou a chorar, a falar n'elle, cheia de saudade e de lagrimas. E o conde da Ribeira, esquecendo a propria dôr, passou a consolal-a...


[157]
Janeiro—1908.


O Fialho conta, indignado, que a viuva do Eça de Queiroz, a quem o Estado dá uma pensão, vae vender uma propriedade no Alemtejo, por cento e tantos contos.

—Veja você que pouca vergonha! São uns poucos de kilometros de terra de semeadura e montado de azinho e bolota, que sustenta um cento de cevados! Bem sei que metade da propriedade é da irmã, da mulher do Luiz Osorio... Ainda assim são cincoenta contos. Mas n'este paiz faz-se tudo o que o senhor Arnoso quer!...


Janeiro—1908.


Um oficial d'armada, ao José de Figueiredo:

—Todos os oficiaes d'armada, á excepção de meia duzia, não podem vêr o rei, a quem chamam o pulha. Se houvesse em terra um movimento republicano, secundavam-no logo.


*


Diz-se por ahi:

—Venha tudo, venha o peor, venha o diabo do inferno, que nos livre d'isto!


[158]
Janeiro—1908.


No Turf e no Club Tauromachico joga-se sempre escandalosamente. O conde de... lá vae outra vez para a Africa, arruinado pelo jogo no Club Tauromachico, o visconde de... tambem lá perdeu uma fortuna.


Janeiro—1908.


Grosso escandalo com o livro do Albuquerque, O Marquez da Bacalhôa. Este Albuquerque, conhecido pelo Lendea, é o ultimo descendente, pelo pae, do grande Afonso d'Albuquerque, e, pela mãe, do grave, do douto João de Barros. Ainda aqui ha annos, quando o rei visitou uma terra de provincia e se hospedou na casa delle, sahiram das lojas caixotes de louça da India, que nunca tinham sido abertos. Elle tem tido uma vida de aventuras: bateu-se em duello em Madrid, caçou no Cabo com lords, tocou guitarra em Ourville e teve uma loja d'instalações electricas na Italia. Agora é jornalista, escriptor, poeta e publica este livro d'escandalo, em que a rainha, Senhora na mais alta acepção da palavra, é posta de rasto... Mas faça-se-lhe justiça: tudo aquillo—e peor—anda por ahi de bocca em [159] bocca ha muito tempo. E não vem de baixo—vem de cima...


*


Do Paço mandaram buscar um exemplar á livraria Ferreira.


Janeiro—1908.


O rei em Villa Viçosa caça; o João Franco em Carnide dorme com a casa cercada de policia. Fala-se em conspirações, na tropa, em transferencias d'oficiaes e sargentos. O Maximiliano d'Azevedo disse hoje na livraria ao Bernardino Machado:

—Isto cheira a cadaver...

—Cheira a polvora, é que é—respondeu lhe elle.

Espera-se tudo: a falencia, tiros, a revolta. Ha prisões—fala-se em mais prisões ainda e os jornaes estão garrotados.


*


O Maximiliano d'Azevedo:

—É falso que fosse o Correia de Barros quem matou a Manuela Rey. Disse-me muitas vezes a Emilia Adelaide como o caso se passou: Um irmão [160] do Tanas (Pereira das Neves) fez a corte á Manuela. Ella aceitou-lha, e uma noite o Correia de Barros surprehendeu-os. O Tanas, ao vel-o brandindo a bengala, saltou por uma janella. A Manuela fugiu e foi para a rua das Galinheiras, para uma casa onde morava a cabeleireira do theatro, e deitou-se vestida sobre a cama, a chorar.

Debalde o Correia de Barros lhe perdoou:

—Não! Não!

Chorou—e morreu. Já estava tisica ha muito tempo.


*


E conta-me tambem:

—A Emilia das Neves estava n'uma casa de mulheres. Deram com ella por acaso. Quem primeiro a ensaiou foi o Garrett. Tinha genio: mal sabia lêr e toda a vida deu sylabadas.


Janeiro—1908.


O governo retira as munições a alguns regimentos e á marinha: só tem confiança na guarda. Diz-me o Schwalbach:—«Ouvi-o da bocca do oficial encarregado d'esse serviço. A noite passada retiraram as munições a um regimento da capital». Corre com insistencia que o coronel Albano [161] da Fonseca morreu envenenado... Os navios de guerra foram desarmados, sob pretexto de estudo de renovação e adaptação das munições, que se removeram para o serviço de torpedos. O Maximiliano diz-me tambem que varias peças do campo entrincheirado ficaram assestadas sobre os navios de guerra.

Gomes Leal.—Desenho de Antonio Carneiro.
Gomes Leal.—Desenho de Antonio Carneiro.


*


O Fialho está um franquista ferrenho:

—O João Franco já me mandou chamar tres vezes.

E, como eu me espante de o vêr conservador, elle diz:

—Fui-o sempre. Já esse maroto do Arnaldo Fonseca dizia a meu respeito:—É um bohemio que trata a roupa com nephetalina!


*


A Angela Pinto está com um preto que lhe poz automovel.

—Ó Angela, então tu agora?!

—Vocês que querem? Não andam todos os dias ahi a prégar que o futuro de Portugal está nas nossas colonias?


[162]
Janeiro—1908.


Prenderam hontem o Antonio José de Almeida. O João Barreira conta-me que a policia apanhou sessenta rewolveres aos republicanos, mas não descobriu os depositos d'armamento. O João Pinto dos Santos diz:

—A prisão de Antonio José d'Almeida é um ensaio. Se virem que as massas populares não protestam, desatam a prender a torto e a direito. Eu estou aqui estou preso: o João Franco odeia-me.


*


Um livreiro:

Fizeram mal em prohibir O Marquez da Bacalhôa. Já ha quem tenha dado por um exemplar tres mil reis, e o preço corrente é agora de dez a quinze tostões... Se o queriam inutilizar aprehendessem-no, tanto mais que toda a gente sabia onde era impresso.

28 de Janeiro—1908.


A atmosphera é electrica.—Isto não pode ser! isto não pode ser!—ouve-se a cada passo. Toda a gente espera acontecimentos. O boato corre de ouvido para ouvido: o comandante [163] da municipal afirmou ao rei que não podia contar com a guarda para combater a tropa; ha tumultos no Porto e Villa Real; está assignado um decreto expulsando do paiz republicanos e dissidentes; e—sabem? sabem?—o movimento é preparado pelo João Franco para tomar medidas d'excepção... O Coelho de Carvalho, de grandes barbas brancas, sempre ironico, pontifica na livraria Ferreira:—Tudo isto obedece a um plano para estabelecer o protectorado inglez, com o rei gordo e replecto, e a dotação augmentada em cento e sessenta contos, pagos em oiro.

Ás sete da noite encontro o Alpoim que me pergunta ancioso:—Que ha? que ha?...—Eu sei... diz-se por ahi que varios oficiaes se reunem no Arco da Bandeira....—Só?—E arranca-me das mãos o Correio da Noite:—Vem feroz! vem optimo!...—No comercio não se desconta uma letra. A rua do Oiro não tem metade do movimento habitual. Consta que o João Franco disse hontem:—Dá-se-lhes uma sangria...—O que eu lhe posso garantir, e sei-o por uma senhora de relações intimas do João Franco—diz o Fialho,—é que elle passa as noites sem dormir.—Medo—ou revolução? As mulheres vão buscar os maridos ás repartições e aos bancos, outras, na previsão de acontecimentos, fornecem-se á pressa nas lojas. Ha nervos na atmosphera. A questão dos adeantamentos levantou todo o paiz contra o rei. Ha muito que o D. Carlos é visado, [164] discutido e injuriado. Atribuem-se-lhe todos os males. O Hintze morreu: foi elle quem matou o Hintze com desgostos. Os Braganças são todos ingratos. Que quer o rei? O rei só quer dinheiro, o rei chama ao paiz, que despreza, a piolheira, o rei é um ladrão. Dizem-no até os cavadores d'enxada da provincia:—O rei é um ladrão! o rei é um ladrão!—Gera-se não sei que excitação que se apega e propaga. Todos estamos debaixo da mesma pressão a que não ha fugir. Nas esquinas ainda se vêem farrapos de cartazes, anunciando o folhetim Soror Amelia, com o retrato da rainha vestida de freira...

O que os jornaes de grande circulação não se atrevem a dizer, o Seculo, o Mundo, o Noticias, propala-se de ouvido para ouvido, ou publica-o o Correio da Noite, do velho José Luciano, que ataca com violencia o rei e o governo.—Que há? Que há?—Um policia aliciado pelo João Chagas denunciou a revolução; o juiz ao lêr o depoimento do Antonio José d'Almeida, exclamou:—Ora até que emfim encontro um homem!—O Cunha e Costa pequenino, d'oculos e olho esperto atravez dos vidros:—Vocês que querem? Está tudo minado. Hoje, ao entrar na Boa Hora, deparei com este quadro: d'um lado da porta um municipal lia O Mundo, do outro, outro municipal lia A Lucta.

E no entanto a vida segue o seu curso habitual: todas as noites enchentes nas revistas, Ou [165] vae... ou racha, Pr'a frente! Todas as noites o mesmo falatorio no Rocio, o mesmo formigueiro humano seguindo as suas manias, as suas ambições, os seus interesses...


*


Os populares atacaram as esquadras. No largo do Rato um bando, que queria matar o João Franco, entrou n'um café. A policia tentou apalpal-os—defenderam-se a tiro. Um cahiu varado: e retiraram em ordem, fazendo fogo. Na esquadra dos Terramotos trocaram ainda balas com os guardas. Havia um plano de revolução? É fóra de duvida. Lançaram-se bombas que não explodiram a varias esquadras—á do Campo de Sant'Anna, por exemplo. A policia estava, prevenida, e prendeu-os, quando um grupo de dissidentes, Alpoim, João Pinto, Ameal, etc., se dirigia para o elevador da Bibliotheca, no intuito de lançar um foguetão, que desse o signal á esquadra e a varios grupos que, ao mesmo tempo e em diferentes pontos, deviam assaltar os quarteis. Só o Alpoim e o Ameal conseguiram fugir. No elevador havia armas, destinadas ao ataque dos correios e telegraphos. No forte de Caxias estão presas 93 pessoas, e presos estão tambem o Afonso Costa, o João Pinto dos Santos, o Ribeira Brava, etc. A policia desandou então a prender a tôrto e a direito. O José de Figueiredo que [166] mora no Campo de Sant'Anna, por cima da esquadra, ouviu isto: Ao telefone, o chefe da esquadra para o governo civil:—Já prendemos quatro.—Prendam mais.—Era preso quem passava na rua.

Á revolução adheriam varios oficiaes e toda a armada. Havia fanaticos decididos a correr a municipal á bomba, e todo o trabalho do directorio parece que foi sustel-os á ultima hora. Varios bandos foram prevenidos logo que o signal falhou. Os que esperavam no café do Rato, a hora do assalto á casa do João Franco, foram presos. Um creado do Moura Cabral, que m'o contou, foi aliciado para atacar a esquadra da Graça—e deram-lhe um rewolver e bebidas. Em diversas partes tem sido encontradas bombas, e diz-se que quem denunciou um deposito d'armas, escondido em casa d'um negociante, foi uma irmã dum actor de D. Maria.


*


—Isto—toda a gente o afirma—acaba logicamente no atentado pessoal.


30 de Janeiro—1908.


Corre com insistencia que o João Chagas morreu d'uma pleurizia no hospital.


[167]
*


Os bufos são aos centos. Pára-se a conversar—tem-se logo um bufo á perna. O Baracho procurou hoje o ministro da guerra e declarou-lhe:

—Eu não conspiro; portanto não me mandem espionar, senão corro os bufos a tiro. Se desconfiam de mim, julguem-me, que eu me defenderei. E deixe-me tambem dizer-lhe uma coisa: Os senhores não hão-de ser sempre ministros. Se me incomodam ou me infamam, quando deixarem de o ser, eu lhes tomarei as responsabilidades.—Ao que o ministro respondeu:—Se soubesse, general, as saudades que eu tenho do meu caminho de ferro!...


*


Tem sido tambem presos alguns oficiaes do exercito. E o Fialho faz blague:

—Desde que a policia entrou no caminho das descobertas, foi dar com a escripturação completa da revolta. Tudo por ordem e por partidas dobradas. Uma revolução burocrata!


31 de Janeiro—1908.


Sabem qual é a impressão geral? Pena de que o movimento gorasse.


[168]
*


Até as mulheres estão furiosas com o Franco. Ha-as que dizem:—Eu vou matal-o!—Mas ha tambem quem o defenda e aplauda como nenhum ministro foi defendido e aplaudido. Um padre franquista barafusta em plena rua do Ouro:

—Eu até agora dizia que o João Franco tinha uns c... que não cabiam em Lisboa. Agora não, agora digo bem alto: o João Franco tem uns c... que não cabem em Portugal!


*


O Bernardino Machado:

—Sabe o que isto parece? Parece que o rei disse ao João Franco, entregando-lhe uma carabina:—«João arranja-me dinheiro».—O João Franco executa.—«João torna a levar a carabina e traz mais dinheiro».—E a atitude vergonhosa das nações estrangeiras que assistem com aplauso a este espectaculo! Porquê? Pelo que eu disse um dia d'estes a um negociante francez:—Ha um dictado em Portugal que explica tudo:—Ladrões não se encobrem de graça!


1 de Fevereiro—1908.


O João Franco responde aos clamores e á revolta com o decreto d'hoje:

[169]
Senhor—São bem conhecidas de Vossa Magestade as occorrencias dos ultimos mezes, em que uma pequena minoria d'elementos revolucionarios criminosos tem ultimamente procurado impedir a vida politica e representativa do Paiz, alterar a ordem publica e pôr em perigo a segurança das pessoas e das propriedades.

Imperturbavelmente tem o governo obedecido ao proposito de limitar a acção das medidas de circumstancia á esphera restricta de legitima defeza social, reduzindo-as ao que de momento se tem afigurado absolutamente indispensavel, sempre na esperança de que essa publicação fosse um meio preventivo sufficiente e constituisse aviso efficaz aos agitadores.

D'essa ordem d'ideias derivaram o decreto de 21 de Junho sobre publicações attentatorias da ordem publica e o de 21 de Novembro sobre crimes contra a segurança do Estado, das pessoas e das propriedades.

Factos dos ultimos dias vieram, porém, demonstrar que as tentativas e propositos criminosos, longe de afrouxarem, se teem mantido obstinadamente e aggravado a ponto de ser urgente e indispensavel o rapido afastamento do nosso meio social dos principaes dirigentes e instigadores d'esta pertinaz conspiração contra a paz publica e segurança do Estado antes que perdas lamentaveis de vidas venham accrescentar se ás desgraças já occasionadas e, porventura, originar prejuizos irremediaveis ao credito publico e á fortuna nacional.

Ha poucos dias ainda, o governo da Nação vizinha apresentou ás côrtes um projecto de lei que auctoriza a fazer sair do reino por deliberação do conselho de ministros, sob prévia informação das auctoridades locaes, as pessoas que pertençam a associações hostis á ordem social e que de semelhantes principios façam propaganda, e como sejam estes factos muito graves e perigosos, seguramente não o são mais nem podem ter mais larga, mais profunda repercussão em toda a vida nacional que os tramas e attentados para mudar violenta e criminosamente a forma de governo de Estado.

[170]
N'essa ordem d'ideias, procuramos com o presente diploma, habilitar tambem o governo com a faculdade d'expulsar do Reino ou fazer transportar para uma provincia ultramarina aquelles que, uma vez reconhecidos culpados pela auctoridade judicial competente, importe á segurança do Estado e tranquillidade publica e interesses geraes da Nação afastar, sem mais delongas, do meio em que se mostrarem e tornarem perigosa e contumazmente incompativeis.

Não podem, por egual, gosar immunidades parlamentares aquelles que contra a segurança do proprio Estado se manifestam ou que como inimigos da sociedade se apresentam.

Taes são, Senhor, as principaes disposições do diploma que tenho a honra de submeter á apreciação de Vossa Magestade.

Paço, em 31 de Janeiro de 1908. João Ferreira Franco Pinto Castello BrancoAntonio José Teixeira d'AbreuFernando Augusto Miranda Martins de CarvalhoAntonio Carlos Coelho Vasconcellos PortoAyres d'Ornellas de VasconcellosLuciano Afonso da Silva MonteiroJosé Molheira Reymão.



*


O Alpoim fugiu para a Hespanha.


*


O Cunha e Costa:

—Ha mais de duzentas pessoas apostadas em matar o João Franco. Isto acaba por um atentado pessoal.


[171]
1 de Fevereiro—1908.


Está uma tarde linda, azul, morna, diaphana. Converso na livraria Ferreira com o Fialho, quando entra esbaforido e palido, o pintor Arthur de Mello, que conheço do Porto, e diz n'um espanto, ainda transtornado:—Acabam de matar agora o rei!—O quê?!—Eu vi, ouvi os tiros, deitei a fugir...

Fecham-se á pressa os taipaes das lojas. Uma mulher do povo exclama:—Mataram agora o rei. Vi os que o mataram. Eram tres. Dois lá estam estendidos. Passou um agora por mim, a rasto, com a cabeça despedaçada!...—Ha palmas para o lado da praça da Figueira. Anoitece. Um esquadrão desemboca da rua da Mouraria... Mais tarde no comboio, um empregado do Jorge O'Neill confirma:—Vi do escriptorio um policia correr atraz d'um dos assassinos. A certa altura cahiu-lhe o chapeu: era calvo. O policia varou-o com um tiro.

E pela narração do Mello, do Armando Navarro e d'outros, que assistiram, reconstituo assim a tragedia:

O comboio descarrilara. Seguia atrazado. Durante o trajecto o rei não fumou nem jogou, como costumava. Vinha aprehensivo e a autopsia demonstrou mais tarde que não tinha comido n'esse dia.

[172] O Malaquias de Lemos contou que na vespera, em Villa Viçosa, o rei jogara com o principe. Era ao entardecer. Na chaminé um grande brazeiro. Trouxeram-lhe uma carta. Para a lêr melhor, levantou-se, chegando-se á janella. Duas vezes a percorreu com a vista, e depois rasgou-a em bocadinhos que atirou ao lume. Petrificou-se um momento envolto na sombra...—El-Rei não joga?—perguntou o principe.—Jogo, jogo...—Sentou-se, jogou, mas tão preocupado que quasi não jantou n'esse dia nem almoçou no seguinte.

Nem uma nuvem. «Tarde sem par»—escreveu Ramalho.—Linda tarde para uma bomba—exclama uma menina da alta, na ponte da estação. Havia, é natural, um certo receio, e a duqueza de Palmella, ao ouvido de João Franco:—Não haverá perigo?—V. Ex.a vae ver que ovação!—Tinha-lha preparada para a recita da noite, em S. Carlos. O rei e a rainha detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcellos Porto, que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D. Carlos opoz-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a familia real junta. Ao pé da estatua um grupo... Dissiminados pela Arcada alguns policias, e, sentado n'um banco da praça um homem de varino, que veio, sem precipitação, colocar-se á porta do ministerio do reino[6].

[173] Os empregados da fazenda tinham-no notado. Seria um bufo? Os bufos eram tantos, que se não conheciam uns aos outros.—«Eu assisti—diz o Navarro.—Fui para lá uma hora antes fumar o meu charuto. Tres descargas cerradas partiram da Arcada do ministerio da fazenda. Ficou tudo desorientado. Os policias deitaram a fugir»... Um negociante da rua de S. Julião teve de os sacudir da escada. «Eu estava a quatro passos—confirma o pintor Mello. Um homem subiu ás trazeiras do carro, olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro de rewolver. Vi um fumosinho branco sahir-lhe do pescoço. O rei voltou-se, e, cem annos que eu viva, nunca mais me esquece a expressão de espanto d'aquella mascara. Disse uma palavra que não percebi bem»...—«Ao primeiro tiro—continua o Navarro—a cabeça do rei descahiu para a frente, ao segundo tombou para o lado». O Buiça, que tirára a carabina debaixo do gabão, apontava e descarregava. O principe real ergueu-se—cahiu varado. A rainha, louca de dôr, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de flores.—Então não acodem?! Não ha quem me acuda?!—Ninguem. Um cartuxo falhara ao Buiça: sacou-o, e ia apontar outra vez, quando o Francisco Figueira o estendeu á cutilada. Ouvi que, [174] logo aos primeiros tiros, alguem procurara intervir—mas uma roda de gente desconhecida protegeu-o. Succederam-se então os tiros sem interrupção. Muita gente falou em descargas... A policia disparava os rewolveres a torto e a direito. O Correia de Oliveira esteve para ser morto:—Vinha de chapeu alto e foi o que me valeu!... Um policia avançou direito a mim com o rewolver apontado, exclamando como um doido:—Matei agora um! matei agora um!


*


Correu hoje que o João Franco se suicidára e que o tinham acabado a tiro quando sahia do Paço.


*


O infante D. Afonso seguia desvairado atraz do carro, com o rewolver em punho, dizendo:

—O mano nunca quiz ouvir os conselhos da mãe!

Depois, no Arsenal, para onde foram conduzidos o rei e principe, teve este movimento colerico: bater no João Franco.


*


Acusam á boca cheia o João Franco—que não tomou precauções para o rei—de se meter [175] por um corredor quando foi ao Arsenal, e de, mais tarde, endireitar por uma cavalariça, para se enfiar na carruagem. De alguns ministros diz-se que, aos primeiros tiros, se esconderam no sotão dos ministerios entre a papelada e as cadeiras sem fundo.


*


A rainha no Arsenal disse ao João Franco:

—Veja a sua obra...


*


O rei chegou ao Arsenal já sem vida; ao principe custou-lhe muito a morrer. Foram ungidos depois de mortos. O padre não teve escrupulos, porque os medicos garantiram-lhe que a vida podia prolongar-se por meios artificiaes.


*


Do Arsenal seguiu a marcha tragica para as Necessidades; n'um carro a rainha e o D. Manuel, n'outro carro o cadaver do rei, que a custo conseguiram meter lá dentro, e que o oficial de serviço amparava, e, no ultimo, o duque de Bragança. Que se iria seguir? A revolução? Um negrume, o terror do inesperado, afasta do Paço todos os que lá deviam estar áquella hora. Vem a noite... Se seis tambores fossem rufar para [176] deante do Paço a monarchia acabava hoje mesmo. Espera-se tudo, espera-se o peor. E cada um trata de não se comprometer, ou de se comprometer o menos possivel...


*


Phrase cruel d'um popular:

—Foi caçado como elle caçava os javardos—e em tempo defezo.


*


No dia dois, depois da morte do rei, foram assaltados alguns quarteis, evidentemente chamando as tropas á revolução. Em artilharia os soldados sahiram das casernas e fizeram fogo: os oficiaes não os puderam conter. Em Campo d'Ourique houve tiroteio. No alto da Avenida ficaram estendidas vinte e tantas pessoas.


*


A caminho do Paço, depois do atentado, o pequeno dizia:

—Vamo-nos embora! vamo-nos embora!...

E a rainha:

—Has-de cumprir o teu dever até ao fim.


D. Carlos I de Portugal.
D. Carlos I de Portugal.


[177] O organisador da revolta militar era Candido dos Reis, oficial superior da armada. Muitos oficiaes se reuniam no Arco da Bandeira.


*


Na tarde do regicidio estavam na Arcada homens com faixas á espanhola e as faixas cheias de bombas. Diz-se tambem que havia varios grupos postados nas esquinas até ás Necessidades.


*


A rainha, quando o João Franco chegou ao Paço:

—Foram portuguezes?

—Foram.

—Ahi tem o que o senhor fez dos portuguezes.

E a Maria Pia, que há muito o não pode ver:

—Diziam por ahi que o senhor era o coveiro da monarchia, mas o senhor foi peor, foi o assassino do meu filho e do meu neto!

Isto cheira a phrase feita, mas como esta repetem-se, insiste-se, inventam-se outras mais.


*


O João Franco tinha perdido a cabeça. Só elle mandava: não queria ouvir ninguem. Quando [178] fugiu d'uma esquadra um homem que estava preso pelo fabrico de bombas, o juiz d'instrucção criminal foi-lhe dar parte do caso. Ficou furioso:

—Vá beber da merda!

—Digo a V. Ex.a que a policia não teve culpa...

—Vá beber da merda o senhor e a policia!

—Mas...

—Vá beber da merda! vá beber da merda! vá beber da merda!


*


Diz-se que o Alpoim estava escondido em casa do Teixeira de Souza e que fugiu emquanto a policia lhe cercava a casa.


*


Paçô Vieira:

—Na noite do regicidio fui ao Paço, com o Campos Henriques. O Julio de Vilhena, a quem procurei em casa, não foi porque lhe faltava um botão na braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e o principe de dentro do carro. O rei estava disforme. A rainha, se tinha dito alguma coisa desagradavel ao João Franco no Arsenal, no Paço não lhe disse palavra. A Maria Pia perguntava de quando em quando:—A mo —Na noite do regicidio fui ao Paço, com o Campos Henriques. O Julio de Vilhena, a quem procurei em casa, não foi porque lhe faltava um botão na braguilha. Assisti a tudo: tiraram o rei e o principe de dentro do carro. O rei estava disforme. A rainha, se tinha dito alguma coisa desagradavel ao João Franco no Arsenal, no Paço não lhe disse palavra. A Maria Pia perguntava de quando em quando:—A morte do rei será muito sentida?—Estava tudo preparado para [179] uma revolução. O Afonso Costa não deu o signal porque esperava a morte do Franco. Pormenor absolutamente authentico: o João Franco ainda se ofereceu para governador civil de Lisboa.

—Na noite tragica o Antonio Candido foi dos raros que apareceram no Paço. Estavam lá tambem o Campos Henriques e o Teixeira de Souza. Mais ninguem—nem sequer o corpo diplomatico. Esperava-se a cada momento a revolução. Os creados carregaram em padiolas pelas escadas acima os corpos do rei e do principe. A D. Amelia passeava na sala de cá para lá, infatigavelmente. Passou, perguntou-lhe:—Que diz o Antonio Candido?—Elle não respondeu e ella continuou a passear de cá para lá como um automato. A rainha velha estava sentada n'uma cadeira, sem uma palavra, sem uma lagrima, d'olhos vitreos fixos na parede. E assim ficou horas, muda e de pedra, emquanto a D. Amelia passeava na sala, de cá para lá, infatigavelmente...


3 de Fevereiro—1908.


Venho agora de Lisboa e—caso curioso—a impressão geral é d'alivio. Respira-se. Estava muita gente n'um grupo: o João Barreira, o Armando Navarro, o Rangel de Lima, o Antonio Arroyo, o Columbano, o Maximiliano d'Azevedo, [180] e todos concordaram em que o rei era mau e quasi glorificaram os homens que o assassinaram.

—Era um pulha, um pulha e um doido. Vejam o retrato que vem estampado no Je sais tout... Era elle quem escrevia cartas anonimas á propria mulher—afirma o João Barreira.

—Foi um grande exemplo e uma tremenda lição.

—Se escapa tinhamos ahi uma dictadura feroz. Era capaz de tudo!

Só o Manuel Ramos, obstinado e cego, teima:

—A memoria do rei há-de ser rehabilitada.


*


No conselho d'estado o João Franco foi absolutamente inconsciente. Por proposta do Julio de Vilhena não se leram as actas da sessão anterior, como é costume, para lhe não ser completamente desagradavel.


*


O João Franco teimou até á ultima, agarrou-se a tudo, para meter um ministro no governo—o Penha Garcia. Disseram-lhe:

—Mas não pode ser, bem vê que o governo tem de revogar a maior parte das suas medidas.

—Mas eu concordo com isso. Eu escrevo até uma carta concordando com isso.


[181]
*


A ultima piada do ministro dos estrangeiros, Luciano Monteiro:

—Então V. Ex.a não faz testamento?

—Não, o rei tambem o não fez...


*


O rei e os principes traziam rewolveres comsigo. Afirma-se que o principe real e o infante D. Manuel ainda chegaram a dar dois tiros n'um dos assassinos.


*


Hoje correram boatos de revolta no Porto, de ter chegado a Cascaes uma esquadra ingleza, etc.. Tudo falso.


*


No Paço, na camarilha, havia dois partidos, o do rei e o da rainha. O da rainha está agora de cima.


*


Insiste-se em que se o rei escapasse ao atentado havia uma hecatombe. Diz-se que o Fontes, que tinha a qualidade intuitiva de conhecer os homens, dizia de D. Carlos:—«Nunca o pude perceber».


[182]
*


Agora voltam-se as atenções para o novo rei. Dizem:—É Saboia.—No conselho d'estado foi simpatico. Chorou, entregou-se nas mãos dos que o ouviam:—Não estou preparado para reinar.

Os irmãos adoravam-se. O que foi assassinado zangava-se quando este lhe chamava prior do Crato. D. Luiz Fillipe era mais reflectido. Este é mais impetuoso—mas tem melhor coração.


Fevereiro—1908.


Nos ultimos tempos o rei tinha scenas violentissimas com a D. Amelia.


*


A impressão no Porto foi curiosa: Quem ás onze horas da noite passava na praça de D. Pedro via muita gente aos grupos de dez a onze pessoas cada um. Ninguem discutia, não se falava alto. Era um borborinho de quem conversa em segredo, a medo—ch... ch... ch...—ao ouvido. A noticia soube-se pelo telephone do Borges & Irmão.


[183]
*


Foi no automovel do Baltar do Janeiro que o Alpoim se safou para a Hespanha.


*


As Anjos contaram á D. Maria Augusta que o electricista de S. Carlos tinha tudo preparado para o D. Carlos morrer quando se encostasse ao rebordo do camarote no theatro.

O homem suicidou-se quando se viu descoberto.


*


O novo rei não gosta de sport. Sofre de reumatismo. Adora a musica. Em pequeno dizia:

—Reger uma orchestra n'uma grande sala e ouvir no fim os aplausos do publico, isso sim, é que é gloria!...

As meninas da alta roda, falando d'elle, diziam desdenhosas:

—Isso são mariquices do senhor infante.


*


Uma velha, a tia Julia, da familia Bordallo:

—Coitadinho do principe! Parecia mesmo uma menina!... E não estava estragado como estes rapazes d'agora. Tinha uma carinha de menina. [184] E não era porque elle não tivesse vontade, era porque o não deixavam!...


*


Muita gente que tinha bombas em casa tem-nas deitado ao rio.


*


Da camarilha contam-se coisas como esta. Alguem me diz:

—Conheço uma senhora muito de bem, a quem este e aquelle (e cita os nomes) foram fallar da parte do rei, para ir a bordo do yacht. Ella deu-lhes uma desanda tremenda.


*


O João Franco já tinha organisado listas de proscripções. A alguns administradores de concelho foram enviadas circulares, pedindo o nome dos individuos que na localidade entravavam a marcha do governo.


*


O pae do João Franco e os redactores do Jornal da Noite foram corridos do Suisso.


[185]
*


Trindade Coelho conta que João Franco, nas vesperas dos acontecimentos, foi consultar a bruxa—M.me Brouillard, uma transmontana esperta que ahi está em Lisboa.


*


Já ha seis contos para a familia do Buiça. Muita gente lhe arrancou botões, cabellos, bocados de vestido. João de Deus Guimarães foi vel-o á morgue. Era prohibido tocar no cadaver. Entrou em conversa com o guarda:

—Ah! O Buiça tem ainda o braço rigido!

—Qual!

—Parece...

—Já teve, já, mas agora está lasso.

—Mas olhe que...

E aproximando-se do cadaver correu-lhe a mão pelo braço, como quem apalpa, e deu-lhe um formidavel aperto de mão.

O frigorifico é um buraco, e os tres cadaveres foram atirados uns por cima dos outros a trouxe mouxe, de mistura com pedaços de gelo. Toda a gente tira o chapéu e fala baixinho. O regicid é um buraco, e os tres cadaveres foram atirados uns por cima dos outros a trouxe mouxe, de mistura com pedaços de gelo. Toda a gente tira o chapéu e fala baixinho. O regicida está amarfanhado, com lama na barba e nos cabellos. Seus olhos não são olhos de morto—exprimem espanto e colera, e a figura é séria, é [186] tremenda. Tem rasgões, feridas na cara, e mãos nervosas, mãos delicadas de mulher.


*


Diz hoje um professor que conheceu o Buiça:

—Era um homem profundamente serio e que protestava sempre com colera, quando se lhe falavam em politica:—Não me falem em politiquices! não me falem em politiquices!


*


O João Pinto dos Santos:

—Emquanto estive preso alimentei-me de vegetaes e de odio. Nos primeiros dias aquillo impressionou-me; mas logo que tive livros serenei... Queriam fechar as janellas, mas eu disse ao Malaquias de Lemos:—O ar não! o ar não m'o tirem, prefiro morrer! E tambem lhe peço que quando bater á porta m'a abram logo, senão não aguento. Antes duas balas!—Deixaram-me a janella aberta... Mandei vir uns poucos de fatos, calças de verão, d'inverno, etc.—para ter a sensação de que estava livre. Depois emprestaram-me livros. Entre outros um volume de viagens na China, onde ha algumas paginas sobre a vida da mulher chineza. E aquillo fez-me chorar, tão certo é que a desgraça nos aproxima dos desgraçados. Afinal chegaram os livros que tinha [187] pedido, um compendio francez de philosophia, sete calhamaços de economia politica—e fui quasi feliz. O juiz interrogou-me:—Porque está preso?—Não sei.—Há uma testemunha que o viu no elevador da bibliotheca.—É falso. Estava n'uma casa perto da bibliotheca, para combinar com o Alpoim e alguns amigos a nossa atitude perante as prisões que estavam sendo feitas.—Chamou-se um policia a quem o juiz perguntou: —Conhece o snr. João Pinto dos Santos?—Não senhor.—Diante d'isto é claro que o juiz tinha de me mandar embora. Que imagina que fez o João Franco? O João Franco avocou o processo a conselho de ministros e condemnou-me! Era odio pessoal. Na municipal fui sempre bem tratado.

—E souberam?

—Alguma coisa presentimos na noite em que foi atacado o regimento de Campo d'Ourique. Supozemos uma revolução gorada. Se atiram bombas ao quartel eramos indubitavelmente fuzilados. Uma noite ouvimos formar as tropas, carregaram com precipitação as armas, um oficial passou a correr e diante do meu quarto bradou á sentinella:—Cuidado com esse sujeito!—O Chagas disse-me hontem que, quando chegou á janella, um soldado lhe fez um manguito. Os oficiaes é que continham a soldadesca—mas até onde?

[188] —E disse no seu depoimento que havia de matar o João Franco?

—É falso; o comandante da guarda falou-me n'isso e eu respondi-lhe:—Bem vê V. Ex.a que não quero que meus filhos possam dizer:—Meu pae foi um assassino.—Isso não! Mas se um dia, depois de o insultar bem insultado, n'uma discussão em plena camara, elle avançar para mim, deito-lhe as mãos ás guellas, e nem V. Ex.a nem toda a guarda municipal m'o arrancam das unhas!


*


Ha quem diga do João Franco:—Foi sempre um cobarde. Em Coimbra a valentia vinha-lhe do José Lobo e dos irmãos, uns tipos d'aquelle feitio, e agora da municipal e da policia. O pae era a mesma coisa, e o tio, o Mil diabos da capinha, dava tiros e fazia disturbios sempre que tinha as costas quentes.


*


João Franco fazia cincoenta e quatro annos este mez de Fevereiro.


8 de Fevereiro—1908.


É hoje o dia do enterro. Essa gente que veio de fóra para assistir ao funeral, principes, duques, [189] generaes, diplomatas, está cheia de medo. E por ahi diz-se á bocca cheia:

—Ainda bem que foram portuguezes os que executaram o rei. É a primeira vez que um rei portuguez morre ás mãos do seu povo. Até agora acabavam ás mãos das camarilhas.


*


Não me sae dos olhos este quadro do enterro. Esperam-se bombas... Os sinos tocam, todos os sinos das egrejas; rufam os tambores cobertos de luto. Desfilam coches com principes e carros com fardas. Um homem apregoa:—O ultimo granadeiro! quem quer O ultimo granadeiro?—Mais carros, mais coches, o filho do imperador da Allemanha, guardado por uma escolta de prussianos, que o pae mandou com elle com medo que lh'o matem. Tropas em fila, carroças de gala, generaes, diplomatas glabros, com o olho desconfiado e vontade que aquillo termine depressa... Agora a carroça com o sceptro e a corôa, e outra com crepes a rasto como se levasse o luto da monarchia.—O ultimo granadeiro!...—Mais coches, e aqui e alli o desfile cortado pela multidão irrespeitosa. Um laivo de grotesco na tragedia, riscos exagerados de carvão que fazem medo... Phisionomias lividas nas fardas pomposas, decorações, gente que mal se atreve a olhar a plebe temerosa—silencio e um largo ah! a que se segue [190] uma gritaria d'inferno. Bicha de carros interminavel, mortos por largarem n'uma abalada de pavor—carros funerarios passando entre a indiferença gelada—farrapos de multidão que atravessam o prestito propositalmente, tropas esbandalhadas, corôas que parecem velhas... E por fim mais tropas e o mesmo grito insistente:—O ultimo granadeiro! quem quer O ultimo granadeiro?...

Dias mais tarde havia sujeitos que se chegavam á beira das pessoas que deitavam luto e perguntavam-lhe com ar de troça:—Então morreu-lhe alguem da familia?...


*


O Correia d'Oliveira:

—Se visse!... Quasi ninguem tirava o chapeu quando o enterro passou... A sombra do rei comeu, sumiu a do principe.


*


Tem-se distribuido muitos papeis com estes dizeres:


Morte aos Sanguinarios
Afonso Costa, Alpoim, Ribeira Brava,
os Verdadeiros Assassinos

DE EL-REI E DO PRINCIPE REAL.


[191] E outros, escriptos á machina, atribuindo o crime a este e áquelle...


*


A preocupação do rei é esta:

—N'este caso que faria D. Pedro V?


*


O João Franco possue cartas do rei, em que elle lhe apontava escandalos em diferentes secretarias.


*


O dr. Curry Cabral, que é um homem ponderado, disse em casa das Thomares:

—Ha cinco annos que o João Franco está doido.

E o Silva Bastos, que foi da sua intimidade:

—Ás vezes avançava para a gente de punhos fechados, n'um phrenesi. Depois dava-lhe a nevralgia e deitava as mãos á cara ou desatava aos berros—e, n'um instante, como n'uma roda que gira vertiginosamente e vae passando por dois buracos, lia-se-lhe nos olhos, sucessivamente e sem interrupção, colera, despreso, ambição, serenidade, medo, orgulho, riso, ferocidade, paz, vertigem...


[192]
*


E outro:

—Era a obra de Martins posta em pratica por um doido. Sómente o Martins dissera, arrependido, a Junqueiro:

—Nas penitenciarias está gente muito melhor que o rei.


11 de Fevereiro—1908.


Espalha-se que, se isto não socegar, o rei e a rainha se vão embora e o estrangeiro toma conta das colonias. Pede-se repressão. Diz-se que há oficiaes de artilharia e cavalaria que querem fazer uma intentona—e os politicos já se não entendem por causa das nomeações dos governadores civis!


*


O João Chagas surge na livraria, mais gordo, com um esplendido casacão alvadio:

—Tenho estado preso diferentes vezes, mas nunca senti tanto a falta de liberdade como d'esta. Das outras falava, tinha ar e luz á minha disposição. Agora foi a incomunicabilidade absoluta. E, se atirassem bombas ao quartel, eramos despedaçados. [193] E eu, que sabia que alguns grupos tinham combinado tudo como quem resolve um problema—dizia comigo:—Se esses diabos não têm a caridade de se lembrarem de nós, estamos perdidos!—Um dia á noite tive a impressão nitida de que iamos ser fusilados. Ouvi reboliço, as tropas carregaram as armas, e até senti que, com a precipitação, deixavam cahir alguns cartuxos. Tentei espreitar por um postigo. Um oficial que passou correndo disse á sentinela:—Cuidado!—O frio era mortal. O soldado encostou-se á porta—não pude espreitar. Ignorava tudo. Estendi-me em cima da cama e só ás quatro horas da manhã sucumbi de cansaço... Que horas! É horrivel morrer assim sem lucta. Cheguei a fazer um pequeno testamento...


Oliveira Martins.—Desenho de Antonio Carneiro.
Oliveira Martins.—Desenho de Antonio Carneiro.


E o João Pinto dos Santos:

—Pude ver d'uma vez o Diario Illustrado, nas mãos d'um soldado, com o retrato do rei, mas calculei:—chegaram de Vila Viçosa.

—Mas nem sequer reparou na tarja de luto?

—Eu não. O Antonio José d'Almeida diz que reparou e que desconfiou que o rei tinha sido morto.

—Os oficiaes—continua o Chagas—trataram-me muito bem, mas á despedida disse-lhes:—Agradeço-lhes muito a amabilidade com que me trataram, mas para outra vez prefiro ir para a Penitenciaria. Lá talvez chegue algum rumor.

E conclue:

[194] —Acalmação sim, acalmação, se assim o entenderem, durante alguns mezes. Ah não foi em vão que trabalhamos vinte annos!...


*


Fui hoje ao café do Gelo ver o sitio onde o Buiça se reunia com os amigos. O café é já de si curioso, com duas salas d'aspecto completamente diverso, uma para o Rocio, d'aparato; outra, nas trazeiras, baixa, para os freguezes envergonhados, com portas para a rua do Principe. Era ali, n'aquella meza, do canto, á direita quem entra pelas trazeiras, que o professor se juntava com os outros e passavam horas a conversar baixinho.

—Eram muitos?

—Ás vezes doze ou quinze—diz o creado.—E ficavam até tarde em grandes discussões...


*


Todos os politicos são concordes n'isto: o D. Carlos gastara nos ultimos annos, alem da dotação, dez ou doze mil contos.


*


E toda a gente diz que era um mentiroso e que difamava a mulher. Ainda hoje alguem contou [195] que um dia apareceram uns papeis inventando infamias da rainha com a Sandoval. Investigou-se. E o José Luciano disse logo:—Escusam de procurar, isso é d'El-Rei.


*


O Seculo, disse-me o Avelino d'Almeida, tem tido tiragens de 160:000 exemplares.


Fevereiro—1908.


Depois da morte do rei o Arnoso foi ao Malaquias de Lemos propor-lhe a contra revolução.

—Nem me fale n'isso. Se veem para a rua corro-os a bala raza e vou já d'aqui contar tudo ao Ferreira do Amaral.


20 de Fevereiro—1908.


Era hoje que devia rebentar a contra revolução, para impôr ao Paço uma dictadura militar.


*


Hoje fui a casa do Schvalbach, ao Conservatorio. Coisas antigas e louça das Caldas, velhos [196] quadros do Liborio e tectos pintados em caramanchão pelo Augusto Pina. O homem está aqui: é uma revista de anno—dificuldades de que sae com um sorriso, enredo, e um fio de oiro e de ternura a envolver tudo isto...

Conheceu o rei e explica-o:

—Quando queria era um charmeur. Ás vezes ninguem o podia aturar e mentia como uma cesta rôta. Ultimamente déra nesta: quando se falava d'alguma rapariga bonita, ahi dos seus quinze annos, dizia com um sorriso:—É minha filha.

E conclue:

—Era um grande pantomimeiro!


Fevereiro—1908.


O Antonio José de Freitas, amigo do Paço, do Arnoso e do Sabugosa:

—O rei era d'estes homens que gostam de esconder as boas qualidades e de salientar os seus defeitos. Inteligente, de bom coração, artista, não soube ou não quiz tratar com os homens. Podia ter com elle todos os que pensam ou escrevem em Portugal—afastou-os. Ha annos para cá o caso explica-se: garanto-lhe que, depois que teve o tipho, ficou impotente e sentia-se humilhado e inferior ao primeiro gallego que passa na rua... Ha cartas d'elle adoraveis de simplicidade, [197] ha casos da sua vida e da vida palaciana que se não comprehendem.

—E como artista?

—Era elle, sem duvida, que fazia com talento os esboços. Mas, como não tinha tempo—outros lhe acabavam os quadros... Como rei só teve um mal—começou a sel-o apenas ha um anno.


Fevereiro—1908.


Todos os dias no Paço se recebem cartas anonimas com ameaças de morte. O medo é enorme. A rainha tem sempre deante dos olhos o quadro horroroso, e, se acorda de noite, quer por força vêr o filho.


*


O Manuel Ramos:

Serviam-se, o Franco e os outros, da pimponice do rei, para lhe arrancarem medidas de repressão. Se o viam hesitar:—Mas se Vossa Magestade receia...—E elle logo decidido:—Eu não!—E assignava tudo. E fique você sabendo: não foi elle só que comeu: a maior parte do dinheiro, dos dez ou doze mil co Serviam-se, o Franco e os outros, da pimponice do rei, para lhe arrancarem medidas de repressão. Se o viam hesitar:—Mas se Vossa Magestade receia...—E elle logo decidido:—Eu não!—E assignava tudo. E fique você sabendo: não foi elle só que comeu: a maior parte do dinheiro, dos dez ou doze mil contos gastos a mais, ficou no bolso dos politicos.


[198]
Fevereiro—1908.


A guarda-fiscal de Cascaes tem ordens apertadas. Teme-se um desembarque de armas e munições.


*


Foi prohibido o desfile do publico diante dos cadaveres regios, porque a urna do rei era coberta de escarros!


Fevereiro—1908.


O João Chagas:

—Tem visto a atitude palaciana do Dia? Eu, de mim, tenho um caderno com este titulo Alpoim e todos os dias collo pedaços do Janeiro e do Dia. Tome logares porque vai assistir a um espectaculo estraordinario... Nunca o estrangeiro fez tanta pressão sobre nós como agora... Impõe-nos um governo—e esse governo, não podendo ser rotativo, ha-de sahir da praça publica. Ora não sendo republicano, á maneira do que se fez na Italia ou no Brasil, vae ser do Alpoim. E verá! verá!... Eu já disse: escrevo logo um artigo com este titulo O Regicida, se elle e [199] os seus amigos nos atraiçoarem—os seus amigos, que, diante de mim e de Afonso Costa, se declaravam todos republicanos. D'antes procuravam-nos todas as noites, agora fogem-nos. Vae ver, vae-os ver servirem-se da policia contra nós. Oh, mas eu hei-de declarar que elles é que nos forneciam as bombas! O Alpoim ha-de morrer ás nossas mãos!


Março—1908.


O Brazão conta que na première do Othelo, o irmão de Augusto Machado foi cumprimental-o ao camarim:

—Vaes admiravelmente no papel, mas deixa-me dizer-te (aqui para nós) a peça é uma grande borracheira...


9 de Março—1908.


Na recepção de ante-hontem a raínha tinha os olhos cheios de lagrimas sufocadas e disse:

—Não tenho medo por mim, é por elle...

—Os politicos, agora vão ter juizo...—disse alguem. E ella respondeu:

—Os politicos não teem coração.

E o rei dizia a um e a outro:

—Seja bom portuguez e meu amigo.


[200]
Março—1908.


—Vou a Lisboa—diz o Columbano ao conde d'Arnoso.

—Tambem eu vou a essa Penitenciaria onde andam os assassinos á solta.


Março—1908.


Antonio José de Freitas:

—O Marianno de Carvalho tinha ido a Paris negociar um emprestimo e, conversando com Rouvier, perguntou-lhe:

—Se se fizer a republica em Portugal?...

—Que me importa! Que me importa mesmo que se faça a republica em Hespanha. Mas se se fizer a federação iberica, então alto lá! fazemos a federação latina.


Rodrigo da Fonseca dizia dos Castilhos:

—Que familia! O melhor de todos é o cego—mas esse mesmo, se tivesse olhos, era preciso furar-lhos!


[201]
Março—1908.


O João Chagas:

—O Alpoim foi quem nos forneceu as armas para a revolução. Foi o que elle fez. Nós tinhamos homens, elles deram-nos as armas e uns contos de reis. Todos elles se declaravam republicanos, menos o Moreira d'Almeida, que disse:—Eu não só não sou republicano, mas sou anti-republicano.—Quando sahiamos das reuniões, eu e o Afonso Costa riamos ás gargalhadas.

Este João Chagas tão facil, tão insinuante, com o riso prompto nos labios grossos e sua pôpa branca no alto da cabeça, nunca conversa, nunca o vi conversar: se encontra alguem, seja onde fôr, conspira logo. Tem passado a vida, sempre simpathico e facil, sempre bem vestido e correcto como um actor que desempenha o seu papel. Mas no fundo d'esta alma, sob este riso e esta pôpa que parece pintada, só existe uma vontade que nunca esmorece, uma ambição tenaz e um egoismo feroz.

—Isto ha-de resolver-se em 1909. Ah, não passa d'ahi! É um conflicto inevitavel. Que me importa o Porto?

E como eu duvide:

—Temos o exercito comnosco. Até na municipal. [202] Na provincia ha terras em que os regimentos são completamente nossos.


Abril—1908.


Hontem no Porto encontrei o Junqueiro, mais velho, mais magro, e a proposito da atitude palaciana de Eduardo Burnay no Jornal do Commercio, conta que elle em tempos, quando atacava o rei, o fôra procurar ao Porto e lhe disséra do D. Carlos:

—D'uma vez, n'uma d'aquellas ceias que dava no Alemtejo aos esturdios seus amigos, ofereceu a cada conviva uma navalha de ponta e mola, com as armas reaes.


Novembro—1908.


A rainha não disse que conhecia o assassino do rei. Phrase textual ouvida pelo Batalha Reis:

—Os outros não os conheço, mas aquella cara do homem das barbas nunca mais me sae dos olhos[7].


[203]
Dezembro—1908.


O caso do dia é este:—Um alferes da guarnição no Paço, quando assistia ao jantar levantou-se, e, contra todas as regras e todas as conveniencias, falou ao rei pouco mais ou menos n'estes termos:—Vossa Magestade anda iludido.

[204] Esta gente que o cerca engana-o. A situação do paiz é deploravel, etc.

Imaginem, se podem, as atitudes, o espanto, o espectaculo d'esta gente, interrompida pela primeira vez naquella representação em que o formulario é respeitado como um culto. Mas na verdade o alferes disse o que cada um sente no fundo da sua consciencia. Foi inconveniente, mas poz o dedo na ferida. O rei está rodeado de ficções e de mentiras. Não soube assumir as responsabilidades do pae, com decisão e coragem, nem totalmente repelil-as.

Enredam-no. Os politicos dão-se o ar de o proteger e é elle quem os protege. Hesita, tem medo... Sente-se que tudo isto vacila...


[205]
Janeiro—1909.


—Esta vida artificial como lhe sinto a falta!—exclama o Fialho ali ao pé do Suisso.

—E porque não vive em Lisboa?

—Não posso! não posso! Se soubesse!... Tenho um irmão epileptico, que meu pae me legou á hora da morte. Não devo abandonal-o, nem entregal-o a mãos mercenarias... Depois as arvores, depois as vides, a que a gente cria amor...—Uma pausa triste, uma hesitação, uma duvida e acrescenta isto:—Não tenho tido quinze dias de felicidade em toda a minha vida!

Falamos de politica:

—Isto está a pedir sangue... E olhe: no Alemtejo não ha republicanos—ha odios. O pobre não pode vêr o rico. É uma gente roída de invejas e rancores, que passa annos e annos da vida a cubiçar um campo...


*


O João Barreira, pequenino, inalteravel, de capinha:

—A revolução abortou em onze de Fevereiro porque os chefes foram todos presos. O Chagas tinha nas mãos as chaves do movimento.


[206]
*


Quem são os regicidas?... O Ferreira do Amaral, ao sahir do ministerio, declarou que não tinha apurado nada de definitivo. Diz:—Eu bem sabia, por cartas anonimas, que se preparavam para me alijar, mas deixei-os fazer...—Porquê, almirante?—A situação não me era agradavel.


*


Novos boatos de intentonas, de massacres, novos boatos de reacção. Agora é certo!... Os regicidas vão ser presos. Conta-se que o Heitor Ferreira dissera:—Vendi a carabina a Fulano.—O ministerio Amaral cahiu, porque, dispondo de todos os elementos, não quiz prender os assassinos. Um dos regicidas está em França, mas Clemenceau recusa-se a extradital-o.


*


O Mello Barreto garante como absolutamente autentico o boato que por ahi correu, de que o rei se confessa todas as semanas.


*


Larga distribuição d'estes papelinhos:[nota de editor]


[207]
Janeiro—1909.


Fala-se hoje d'um Munhoz, oficial do exercito, tipo acabado de lisboeta—café, conversa e parodia, cheio de graça popular e literaria. Já reformado, vae aos domingos aos touros para a Outra Banda, com um cabaz no braço e um chalemanta ás costas... Esteve amigado com uma mulher já fannée, mas ainda com linha e um grande nariz imperial, que ahi andou por Lisboa e se fazia passar como aparentada com as mais ilustres familias de Hespanha. A mulher não tinha dinheiro, mas alguem presenteara-a, quando a deixou, com uma rica mobilia. E Munhoz e ella iam vivendo dos trastes, hoje um tremó vendido, amanhã uma comoda, depois um sofá...

—E que tal, Munhoz?

—Vae-se vivendo, filho. Vamos vendendo os trastes. Olha, menino, hoje almoçamos nós um bidet—e por signal que não estava nada mau!...


*


Lá no alto, no friorento Paço d'Ajuda, entre gente caduca e algumas damas do passado, a rainha Maria Pia passa os dias e as noites, como uma figura de tragedia, a regar as flores d'um tapete. Mataram-lhe o pae, o filho e o neto. Peor: envelheceu. Se pára de regar conta:—Um... [208] dois... três...—A quem se refere? Ao pae, ao rei, ao principe, todos assassinados? Senta-se á meza e diz a figuras imaginarias ou aos phantasmas que se sentam a seu lado:—Come, Luiz? Não queres d'este prato, Carlos?—E lá torna a regar um dia, outro dia, sempre, as flores que não reverdecem do mesmo tapete do seu quarto... E esta mulher elegante, que despertou paixões e inspirou poetas, parece uma velha actriz, cheia de rugas, sem contracto, fóra do seu meio e da sua época. Ao vel-a passar, baixando a cabeça para aqui e para acolá, no mesmo gesto machinal, a gente supõe que o passado sahiu do sepulchro e teima em sorrir-nos, com os dentes postiços e o cabelo pintado a escorrer amarelo...


*


O D. Afonso adora o sobrinho. Afiança:—Se m'o matarem quero ser rei uma hora, mas n'essa hora hei-de mandar...


*


—E o rei?

—O rei...—diz alguem que foi duas ou tres vezes ao Paço—O rei é um fidalguinho muito religioso e temente a Deus, e cheio de vontade e de orgulho.—E acrescenta:—Não trata, como o pae, a gente por tu, mas por você.


[209]
Janeiro—1909.


Fala-se com o Antonio José de Freitas, do D. Pedro V e um do lado diz:

—Era um pedante.

—Se era! O que vocês não sabem é que deixou vinte e tantos calhamaços sobre coisas militares com o titulo em latim. E de todos esses livros não se apura uma pagina...

Do D. Luiz e da D. Maria Pia narra anecdotas, ditos...

—O D. Luiz mandava-me chamar muitas vezes ao Paço—e algumas por causa do Shakespeare. Uma vez quiz discutir o Hamlet commigo—elle que me roubou duzentas e tantas phrases!—e eu disse-lhe:—Pois sim, vamos lá discutir, mas V. Magestade não ha-de extranhar que eu me defenda com quantos argumentos tenha, nem que fale mais alto, porque fui professor de meninos e tenho esse mau habito. Alem de tudo isso sou um homem nervoso...—E discuti, discuti com unhas e dentes. Por fim elle disse-me:—Pois sim, Freitas, mas você o que não pôde é conceber o Hamlet como eu, sob o ponto de vista de dissimulador, porque não tem a minha categoria. Só um principe sabe o que é dissimular...

E eu respondi logo:

[210] —Se V. Magestade dissimula por causa da sua categoria, é porque é um diplomata; se é por organisação é porque é um histerico...

E elle mandou-me embora.


*


Quem os põe assim aos reis, ao D. Carlos, ao D. Luiz, ao imperador do Brazil, são os grandes homens, o Victor Hugo, o Rossini, os que os incensam a torto e a direito. O D. Luiz era inteligente e conhecia os classicos musicaes, mas, como não estudava, tocava mal. Pois um dia o Rossini, em Paris, depois de o ouvir, disse-lhe:—Vou organisar um concerto em minha casa, para que V. Magestade, que é um dos melhores musicos que conheço, seja ouvido e apreciado.


*


O D. Luiz, como todos os fidalgos portuguezes, gostava de conviver com gente baixa. Quando se iam embora os ajudantes e a côrte, ficava com os particulares, com a gente que lhe chamava doutor Tavares, e então regalava-se de escandalo, de ditos, de má lingua ordinaria.


*


Não me admira que elle gostasse da Rosa Damasceno. Era uma mulher caline, muito meiga. [211] Na intimidade devia ser adoravel. E boa. Desde que foi amante de D. Luiz, dava todo o dinheiro que ganhava no theatro.


*


A Maria Pia é uma mulher inteligente, apezar de pessimamente educada, sem mãe. Detestavam-se, mas que diplomatas, ella e o rei! Quando se anunciou o casamento do D. Carlos, D. Luiz disse-me:

—Casa por amôr. Fez a côrte á mulher, escreveram-se, elle mandou-lhe flôres e ia para a plateia d'um theatro em Paris namoral-a para o camarote.


*


Não sei quem fala do Saldanha...

—Foi o diabo para o mandarem para Londres, quando se quizeram vêr livres d'elle. O governo perguntou para a Inglaterra e de lá responderam que não era persona grata. Foi preciso que o D. Fernando escrevesse á rainha Victoria, que acabou por ceder, dizendo:—Mandem lá esse velho pecador.


Fevereiro—1909.


O Judice Bicker, oficial da armada e antigo governador da Guiné no tempo do Hintze:

[212] —Não, não me falem em dictaduras nem em governos de repressão! Quando fui governador da Guiné apareceram-me lá um dia cem homens mandados pelo governo. E com elles uma simples lista de nomes, sem a minima indicação de crimes. Nada. Era gente que o governo me mandava e de que se queria desfazer. Que lhes havia de fazer na Guiné? Sentei-lhes praça, e d'esses criminosos, aos quaes nunca tive ocasião de aplicar um castigo, seis mezes depois tinham morrido cincoenta de febres!...


*


No outro dia—diz o Freitas—estive com a rainha D. Amelia. Está uma mulher amarella e feia, enorme, com as mãos do tamanho do Maximiliano d'Azevedo. E, como lhe notasse os dedos cheios de joias, estranhei, perguntei e explicaram-me:—São os aneis de brilhantes, que ella arrancou aos cadaveres do marido e do filho—e que traz sempre comsigo.


*


Um empregado da fazenda:

—Em cada um dos grandes bairros de Lisboa ha milhares de processos de dividas á fazenda parados. Companhia que tenha votos paga quando quer e como quer. Só os desgraçados [213] são penhorados. Isto representa muitas centenas de contos, que se perdem por empenho, por politica, por desleixo.

Fevereiro—1909.


O Pad'Zé contado pelo Vicente da Camara:

—O extravagante Pad'Zé era no fundo um homem methodico. Quando chegava a Coimbra ia sempre com grandes ideias de aprumo e arranjo: uma cama para dormir, uma meza para escrever, etc.. Excusado será dizer que, meia duzia de dias depois, dormia no chão. Mas á cabeceira lá estavam sempre muito arranjadinhos os seus livros e os seus papeis. Se no dia em que se matou, na propria hora em que deitou a mão ao rewolver, alguem o convidasse para uma ceia,—adeus suicidio! adeus morte! trocava-a por uma guitarrada.


*


No dia em que fugiu para Badajoz o D. João da Camara encontrou-o: levava para o exilio um livro de Garrett, um par de meias e cinco mil reis emprestados.


*


Trazia sempre nas algibeiras envolucros de bombas e mostrava-os ás vezes aos amigos, no [214] Suisso. Na algibeira do medico que morreu na explosão foi encontrada uma carta sua, pedindo-lhe que lhe mandasse pelo portador «seis peras do Fundão». Trazia-as ás vezes pela rua n'uma malinha de mão, e, quando ia ao urinol, pedia ao Anibal Soares, de quem era amigo intimo, para lha segurar:—Mas tem cuidado que são ovos!...—observava sempre.


*


Dizem por ahi que se matou, para não matar... Tinha-lhe cahido em sorte, n'uma loja, executar um alto personagem...


25 de Fevereiro—1909.


Visita ao Coelho de Carvalho, que está doente, e mora n'um velho palacio, na rua do Arco do Cego. Moveis Imperio, uma cama imponente com golphinhos doirados e espelhos, falsos quadros de mestre nas paredes d'estuque, onde todos os caiadores de Lisboa pintam sempre o mesmo friso azul ferrete, e salas que se sucedem com alguns moveis antigos isolados. São restos de grandeza d'uma existencia d'artista... Como sempre, fala-se em politica. Não se fala n'outra coisa...—A policia tem o processo do atentado concluido, mas fica-se por ahi. [215] Sabe-se que no dia 21, n'uma loja maçonica, foi proposto o assassinato do rei. O Alpoim esperava na rua, dentro d'um carro, os seus amigos. Mal foi que o acordo com os franquistas gorasse. Sabe que o Alpoim teve uma combinação politica com o João Franco? Disse-mo elle a mim:—«O acordo esteve feito para uma dictadura liberal, mas o rei opoz-se. Foi quando eu e Sicrano e Beltrano decidimos perdel-o»...—Posso garantir-lhe isto: ouvi-o a elle proprio... Quem os aproximou, ao Alpoim e ao Franco, foi o Silva Graça. Tinham até ajustado uma serie de comicios de propaganda contra os adiantamentos. E foi por isso que o João Franco pôde responder como respondeu ao Centeno, dizendo-lhe que tinha nas mãos provas d'essa combinação.

Um tipo fino. Literato e homem de negocios, tendo ganho fortunas e dissipado fortunas. Tem um castello em Arade sobre rocha e mar e uma existencia um pouco dispersa. E com isto curioso e alegre, phantasista acima de tudo, paradoxal acima de tudo. O seu escriptorio de advogado que foi muito tempo no ministerio da justiça, é hoje alli n'uma meza do Martinho. Desconfio que mistifica os clientes—para se divertir... As dificuldades da sua vida são talvez invenciveis, mas a desgraça encontra-o sempre de pé, com o mesmo riso nas mesmas lindas barbas todas brancas enquadrando uma face moça, e oculos redondos de tartaruga, que lhe [216] dão uma aparencia de retrato de Holbein.—Os oculos de Spinoza...—como elle lhes chama.


Março—1909.


O Armando Navarro:

—D'aqui por cincoenta annos estamos absorvidos pela Hespanha, sob a forma federativa. A autonomia municipal, a mais rasgada de todas as que conheço, e que o conservador e reaccionario Maura acaba de dar á Hespanha, é o primeiro passo...


6 de Março—1909.


Foi hoje o enterro do Taborda. Aqui ha tempos cahiu de cama e disse a alguem a chorar:

—D'esta vez é certo! Sinto que vou morrer... E a vida é tão linda!

Tinha oitenta e cinco annos. Os jornaes contaram d'elle esta coisa enternecedora: D'uma vez foi recitar um monologo a um asylo de raparigas da sua terra. O monologo começava assim: «Boas noites, meus senhores...». Entrou no palco e disse a phrase:


Boas noites, meus senhores...



[217] E as meninas do asylo, que o conheciam todas, levantaram-se e responderam á uma:

—Muito boas noites, senhor Taborda!

A morte engrandece sempre, mas acho horrivel acabar na rua dos Calafates, entre a convenção e a mentira, andar por cima, andar por baixo, corôas secas, photographias e recordações de bastidores. Um velho tem direito a morrer entre arvores, em plena natureza. Os bichos, quando sentem aproximar-se o fim, procuram um buraco para se esconder... São mais felizes.


Março—1909.


As declarações do Ferreira do Amaral na Camara dos Pares vieram autenticar o que se dizia do rei. O Ferreira do Amaral afirmou:—«A reacção envolve o rei».—Acrescenta-se cá fóra que é um jesuita hespanhol quem dirige o rei e o Paço, e parece certo que o Ferreira do Amaral o impedia por vezes de ir de livro e contas á missa—fazendo-o visitar no Porto tres fabricas por cada missa que ouvia...


*


Espalha-se que foi a rainha quem pôz fóra o Ferreira do Amaral, e que elle quer lá voltar para lhe dar uma lição.


[218]
Março—1909.


Apresentam-me hoje um velho janota, o visconde da Torre da Murta. É um velho magro e esticado, de luvas e chapeu alto. Cheio de pretensões e os cabelos todos brancos. Parece ligado por arames. Vive na miseria. A mulher enganou-o, deixou-o. Pagou-lhe as dividas—e ficou pobre: são as Thomares que o sustentam. O velho conserva uma grande dignidade e só sae de luvas e chapeu alto. Mas quem sobretudo lhe vale é a creada, uma destas extraordinarias mulheres do povo, que nascem para os outros e que já disse que quando morrer lhe ha-de deixar as suas economias «para o senhor visconde não passar necessidades». O senhor visconde vive n'um cubiculo, e da sua passada grandeza restam-lhe meia duzia de livros com magnificas encadernações.


Março—1909.


Fuschini, que fui hoje visitar, está velho e tem uma doença de coração muito adiantada.

—Porque não escreve as suas memorias?

—Não sei, custa-me. Tenho pensado em escrever a minha autobiographia... Depois deixo-me d'isso.

[219] E conta-me:

—Quando foi da conversão da divida externa fui eu e poucos mais que obstamos a que viessem tres estrangeiros para Portugal mandar n'isto. Creia... Chegaram a dizer-me:—Não faça questão, que será um dos membros da junta.

E diz:

—Ao tempo da dictadura do João Franco lembrei-me de reunir em Lisboa um congresso de todos os homens publicos. Procurei os republicanos, o Afonso Costa, que me prometeram o seu apoio. Estava de relações cortadas com o Hintze, mas mandei-lhe falar e elle fez-me ir ao Estoril. Disse-me o peor que é possivel do rei e acrescentou:—Aceito a sua idéa... E tem casa?—Tenho.—E se a policia intervier?—Resistimos e apelamos para o povo.—Bem, vá falar ao José Luciano.—Procurei essa vil alforreca, que exclamou:—Mas isso é a revolução!... Preciso de falar primeiro com o Hintze. Tenho uma idéa melhor...—Dias depois o Hintze dizia-me:—O José Luciano não quer fazer nada, disse-me que era melhor esperarmos para Outubro, quando o rei regressar a Lisboa.—Tambem me lembrei de escrever um manifesto dirigido ao estrangeiro e assignado pelos estadistas portuguezes.—Ex, que exclamou:—Mas isso é a revolução!... Preciso de falar primeiro com o Hintze. Tenho uma idéa melhor...—Dias depois o Hintze dizia-me:—O José Luciano não quer fazer nada, disse-me que era melhor esperarmos para Outubro, quando o rei regressar a Lisboa.—Tambem me lembrei de escrever um manifesto dirigido ao estrangeiro e assignado pelos estadistas portuguezes.—Excelente, disse-me logo o Hintze, venha cá amanhã... Olhe, amanhã não, que é o enterro do Casal Ribeiro. Depois de amanhã.—No dia seguinte estava morto.


[220]
Março—1909.


Eis a impressão geral: Foi a rainha quem tramou a queda do Ferreira do Amaral. O Julio de Vilhena queria que saissem apenas dois ministros regeneradores, substituindo-os por outros. Foi uma tramoia do Paço. Toda a gente diz que a rainha está feita com os reaccionarios. O D. Carlos, emquanto vivo, opunha-se-lhe, e, logo ás primeiras investidas—festas de Santo Antonio, etc.—poz-se do lado dos que combatiam a reacção. Agora manda. E conta-se que o Ferreira do Amaral entrou um dia d'estes no Paço e perguntou pelo rei.—Está com o seu director espiritual.—Então preciso de falar á rainha.—Está tambem com o seu director espiritual.


*


A rainha—dizem-no todos—arrisca-se um dia a ser desfeiteada. Acusam-na de deitar a perder o rei.


Março—1909.


Barreira conta-me que varios republicanos teem insistido junto do general Baracho para se pôr á frente d'um movimento.

—Bem sei, vocês querem que eu tire as castanhas do lume, para que os outros as comam!


[221]
Março—1909.


O Cunha e Costa:

—O Ferreira do Amaral desarmava pela bonhomia. Um dia constou ao Bernardino que para os lados do Campo Grande havia tumultos. Telefonou ao Amaral:—São os reaccionarios que querem repetir as scenas de cinco de Abril...—Vou indagar.—Meia hora depois:—Está? Sou o Amaral.—E muito placidamente:—Ó Bernardino, olhe que aquelles homens que os senhores mandaram para o Campo Grande ainda lá não chegaram...—!!!—Os republicanos do Mundo, quando lhes constou que iam ser atacados:—Senhor presidente do conselho, consta-nos isto...—A casa do cidadão é inviolavel e todos teem o direito de se defender.—Ao Pimentel Pinto, cheio de dividas e que não paga a ninguem, respondendo á acusação de jantar com os makavenkos:—Janto, janto, mas pago, meus senhores, pago sempre.—Ao Arroyo, quando lhe dizia:—Enganaram-no, almirante.—É que eu sou um ingenuo.


Abril—1909.


Fazem correr por ahi esta infamia: que o Wenceslau de Lima é amante da rainha D. Amelia.


[222]
*


O Eduardo Pimenta, que serviu com o Mousinho em Africa:

—Um orgulho desmedido, uma decisão rapida, e uma insensibilidade, como nunca vi, ao frio, á fome, ao trabalho... D'uma vez, por qualquer questiuncula, fomos obrigados a dar uma satisfação á Alemanha. Que scena! O Mousinho arrancou do peito constelado todas as medalhas, todas as condecorações—todas. Só lá deixou a Aguia Vermelha que obriga o alemão a conservar-se de pé diante dos que a teem. Poz o bonnet às tres pancadas e entrou por a casa do consul dentro. Ergueram-se todos—e elle, á porta, sacudido, impertinente, enorme, disse a phrase protocolar:—O governo de Sua Magestade Fidelissima encarrega-me, etc.—E sem esperar pela resposta, outra vez levou dois dedos ao bonnet e rodou sobre os calcanhares, deixando-os estupefactos.


*


Jayme de Seguier encontra o João Franco no estrangeiro. São amigos. E João Franco que não queria, que jurára não tornar a falar em politica, durante duas longas horas não conversou, não falou n'outra coisa.

—Tinha previsto tudo. Tinha previsto a minha [223] morte: o que eu não previra foi o assassinato do rei. Isso nunca me passou pela cabeça...

—Mas o que eu não comprehendo é que dissolvesse as côrtes estando aliado com os progressistas...

—Tinha-lhes pedido ministros, recusaram-mos. Ficava enfraquecido. Isso é que não. Não podendo tel-os como amigos, então antes como inimigos declarados.

Quem me fornece estas notas (Jaime Victor) fala d'um João Franco cheio, de sensibilidade e de coração, capaz de ir até ao fim...—P'ra diante! p'ra diante contra tudo e contra todos!—Era um convencido. Diz-se que os outros o empurravam. A verdade é que ninguem o podia deter: nem palavras nem acções o faziam recuar; ia como uma bala na sua trajectoria. Contam-me que n'um dos ultimos conselhos de ministros João Franco expoz a situação: o movimento revolucionario, as medidas que tomára, etc.. Vasconcellos Porto, placido e enorme, expoz a sua opinião e concluiu:

—Deixe-os vir para a rua, que eu conto com o exercito. E depois de vencermos, governaremos...

Ao que João Franco respondera:

—Não, podendo evitar-se o sangue—evitamol-o.

E Jaime Victor conclue:

—A morte de D. Carlos trouxe-nos extraordinarias complicações. Elle, por exemplo, tinha [224] seguro o tratado de comercio com o Brazil, que nunca mais se fará. No Brazil fizeram-se despezas extraordinarias para o receber.


Novembro—1909.


Guerra Junqueiro desalentado:

—Isto está liquidado, a ocasião passou. Agora o rei casa com uma ingleza e vem para ahi um caixeiro qualquer da Inglaterra, que manobra por traz da cortina. Não reparou n'isto?... Nas camaras passou uma lei que os auctorisa a vender inscripções. É a bancarrota adiada por muito tempo. D'aqui a annos o juro da divida interna é reduzido, mas vae-se vivendo e paga-se ao estrangeiro, que é o principal.


*


Do João Franco diz:

—Mentia com o coração nas mãos... Então é que era ocasião. O Franco e o rei eram dois cães damnados... A ocasião passou, a republica passou.


*


O Carneiro de Moura:

—Os bispos e as beatas deram para a imprensa reaccionaria, para O Portugal, vinte contos. Já lá vão em pagodes!


Dantas Baracho.—Caricatura inedita de Celso Herminio.
Dantas Baracho.—Caricatura inedita de Celso Herminio.



[225]
Novembro—1909.


Conta hoje o Fuschini—sempre com a Alice Lawrence atraz, sempre a caminho da Sé, com o chapeu sobre os olhos e um rôlo de papeis debaixo do braço, sempre sufocado quando sobe as escadas, porque o coração cada vez lhe trabalha peor, sempre irrequieto e interessante, apesar da edade e dos cabelos todos brancos:

—O Soveral é um homem de negocios[8].[226] O que elle quer é dinheiro. Já tive todos os fios d'essa meada nas mãos... Obrigou agora o rei a ir á Inglaterra fazer uma figura triste. Pois posso [227] garantir-lhe que ha dois mezes esteve em Lisboa um correspondente do Dail Maily, que contou á Alice que o proprio duque de Fife mandára [228] ao jornal o seu secretario desmentir a noticia do casamento.


*


O Avelino de Almeida, jornalista com a especialidade de padres e beatas:

—Quem deu o dinheiro para O Portugal foram as beatas. Um padre lazarista é que andou metido n'isso. Arranjaram dezoito contos. Só a viscondessa de Sarmento deu seis.


*


Um artigo curioso do Corriere de la Sera, assignado pelo Gomes dos Santos:


«Um caso singularissimo poz recentemente a policia na pista d'uma conspiração de aventureiros que punham o seu braço ao serviço do radicalismo, promptos para tudo quanto lhes fosse ordenado em nome... da utopia. Uma longa serie de crimes politicos que datam do regicidio e cujos auctores até agora tinham ficado envoltos no mysterio, coloca em evidencia os factos preteritos e abre um caminho seguro para a liquidação das responsabilidades. Hoje ninguem duvida da existencia d'uma sociedade secreta que, sob a aparencia de loja maçonica, é o verdadeiro poder executivo do partido revolucionario, o braço sempre prompto a ferir, a espada que cae traiçoeiramente sobre as victimas designadas pelos dirigentes da politica radical?

[229]
Ninguem ignora em Portugal as circumstancias em que se desenrolou o regicidio. Na confusão da tarde tragica, a policia cae sobre dois dos regicidas e mata-os em legitima defeza. Mas permanece sempre firme a convicção de que os regicidas não eram sómente Buiça e Costa, que pagaram com a vida o seu delicto! Esta convicção fundava-se em factos de ordem material e moral, sobre os quaes não havia duvida de especie alguma. A prova moral da existencia d'outros cumplices reside na impossibilidade do atentado haver sido organisado e levado a efeito apenas por dois homens. A prova material forneceram-na numerosissimas testemunhas que viram a carruagem real ser alvejada, simultaneamente, de varios pontos e observaram a fuga de alguns dos cumplices do regicidio, um dos quaes, perseguido pela policia quando fugia, com o rewolver fumegante em punho, conseguiu perder-se de vista ao voltar uma rua, confundindo-se depois com a multidão espavorida que fugia do logar do crime.

É um vulgar principio de investigação judiciaria que os deliquentes se devem procurar entre aquelles a quem o delicto aproveita. Ora quem podia aproveitar com a carnificina da familia real? Se houvesse produzido uma mudança politica, aproveitavam evidentemente os republicanos cujo triumpho teria sido d'esta arte facilitado. Se tivesse originado apenas (como realmente produziu) uma substituição de governo resultaria proveitosa para os mesmos republicanos aos quaes João Franco havia fechado todos os caminhos. Vendo presos os seus principaes chefes e ameaçada toda a sua organisação, os republicanos esperavam reconquistar, com um golpe de mão, as posições primitivas. Não ha outras hypotheses a considerar, visto que o crime não podia ter sido perpetrado por uma conspiração de monarchicos nem representa um caso individual de terrorismo porque os regicidas não eram anarchistas.

[230]
O Buiça e o Gosta eram republicados militantes: trabalhavam nas ultimas filas dos revolucionarios. Livres pensadores, pertenciam á sociedade de propaganda d'onde, de resto, teem sahido todos os criminosos politicos. Homens de acção, pertenciam a uma loja secreta, a «Montanha», mixto de instituição maçonica e de comité revolucionario, sem local fixo e sem estatutos, que se reune a um simples convite dos jornaes da seita, ninguem sabe onde e que se compõe de homens capazes de tudo. Tudo deixa crer que o regicidio foi ahi deliberado e que, como é costume, os executores foram tirados á sorte, visto que apenas o sorteio explicava a escolha d'um dos regicidas, cujo passado se não ilustra com actos de grande coragem individual.

Mas sobre o regicidio, que inaugura a conhecida série de delictos politicos, não mais se tratou de fazer luz. Não se chegou a apurar quem foram os cumplices da emboscada e, se porventura se tentou esclarecer o caso, acabaram por concluir que era melhor guardar silencio sobre elle. No entretanto, occorriam novos factos que vieram documentar melhor a existencia d'uma organisação que liquidava pelo assassinio as dificuldades susceptiveis de embaraçar o movimento revolucionario. Poucos mezes depois do regicidio, um humilde engraxador apresentava-se á policia perfeitamente apavorado e narrava que dois republicanos lhe tinham proposto lançar uma bomba no coche que devia conduzir D. Manuel ao Parlamento. A declaração era verdadeira? Ignoro-o. Mas a policia prende os dois mencionados instigadores, um dos quaes é fulminado por uma congestão cerebral no gabinete do juiz. Este, quando se prepara para colher do denunciante novos esclarecimentos, vê o engraxador morrer envenenado n'um hospital no meio de horriveis aflicções. O desventurado declarava que morria por haver dito a verdade. Por falta de provas o processo foi archivado, o que poz de bom humor a imprensa revolucionaria, que já se dispunha a desviar a opinião publica com um diversivo.

[231]
Poucos mezes depois outro crime vem afirmar a existencia da seita. Alguns militares acusados de terem tomado parte no movimento revolucionario de 28 de janeiro, foram condenados a penas graves pelo tribunal, graças ao depoimento d'um sargento chamado Lima, que se insurgiu e referiu o facto aos seus superiores. O sargento passeava um dia em Setubal, para onde fôra transferido, quando um revolucionario se lançou contra elle e lhe cravou um punhal no coração. O assassino, preso quando fugia, allega uma historia inverosimil de rivalidade que as investigações policiaes desmentiram. Quanto á opinião da auctoridade e dos que conhecem de perto as scenas, referidas anteriormente, da quadrilha revolucionaria, é clara e expressa: o sargento foi condemnado á morte por ter denunciado a existencia da conspiração.

Dois suicidios mysteriosos—um sob o comboio de Cascaes, outro na redacção d'um jornal revolucionario—parecem ter intimas relações com a existencia da Mão Negra local.

Diz-se que os suicidas, designados para certos cometimentos, preferiram escapar pela morte ás intimações d'uma implacavel organisação secreta. Não faço aqui menção do caso das bombas explosivas com que ultimamente pretenderam alvejar algumas egrejas, depois da execução de Ferrer. Não ha provas da intervenção da Mão Negra, mas simples indicios de presumpção. Mas o que acabou de esclarecer o paiz sobre a existencia d'uma formidavel e perigosa associação secreta foi o recente crime de Cascaes, a que os jornaes independentes dedicaram longas columnas.

Vão decorridos alguns mezes depois que na administração das alfandegas se descobriu um importante furto de armas, que estavam para chegar ao seu destino. A ausencia d'um operario da fabrica de armas provou a sua responsabilidade no furto, logo confirmada pela captura d'um cumplice—um dos implicados na revolução republicana de 28 de janeiro—que era o receptador das armas roubadas. Já a policia averiguou o destino das armas, que se reservavam, com a complacencia de empregados aduaneiros, ao movimento revolucionario, quando no meio dos rochedos das arribas de Cascaes, a oito kilometros de Lisboa, se encontra assassinado mysteriosamente o empregado da alfandega, auctor do furto.

[232]
Com os documentos que lhe encontraram nas algibeiras e com as indicações fornecidas pela familia do assassinado, a policia reconstituiu facilmente o crime. O pobre empregado, vendo descoberto o furto das armas, dirigiu-se aos que o tinham impelido e suplica-lhes que o salvem. Deram-lhe dinheiro para transpôr a fronteira com promessa de o sustentarem no estrangeiro e o homem refugiou-se em Badajoz, territorio hespanhol. Mas o dinheiro falta; as promessas não são mantidas e o refugiado escreve aos que o haviam levado ao crime, suplicando socorro. Como não obtivesse resposta, ameaça-os com declarações. A Mão Negra destaca para Badajoz um dos seus agentes, que o conduz a Lisboa enganado com promessas de continuar a viagem para Africa; na primeira ocasião levam-no a Cascaes a fim de seguir ocultamente para o seu novo destino e matam-no, arrastando-o para o mar e precipitando-o do alto das ribas.

O assassino foi preso na fronteira, quando tentava refugiar-se em Hespanha, e conduzido a Lisboa, sob rigorosa escolta. Aqui, depois de alguns dias de apertados interrogatorios, apanhado em contradição, não sabendo explicar as manchas de sangue que tinha no fato, confessa finalmente que cometera o crime,—e que, além de ser antigo empregado n'um centro republicano, é membro da associação secreta a «Montanha», como os regicidas, como os auctores dos outros crimes politicos. É a existencia da Mão Negra averiguada e confessada.

[233]
Os jornaes da seita, republicanos e revolucionarios, perante esta sensacional descoberta, mantiveram a principio o maior silencio; jornaes que costumavam ocupar columnas com o mais insignificante acontecimento, evitaram, por todos os modos, referir-se a elle. Depois, desesperados por não poderem conservar-se calados, começaram a agredir violentamente e, por ultimo, a ameaçar a imprensa independente que, mostrando-se bem informada, se ocupou dos factos com uma certa largueza. E, emquanto a imprensa vermelha assim procedia, a policia vinha a saber que os revolucionarios tinham projectado fazer evadir o preso e teve a finura de o transferir do deposito de segurança para uma caserna militar, onde está de sentinella á vista.

Por outro lado, diz-se que as declarações relativas ao crime de Cascaes revelaram uma nova pista para a descoberta dos regicidas e a policia afadiga-se no intuito de descobrir e prender os membros da Mão Negra. Alguns jornaes lembram, a proposito d'este facto, a fuga precipitada de certa personagem para o estrangeiro. A Mão Negra é uma especie de comité executivo, dentro do qual se encontra todo o elemento revolucionario. Disporá o Estado de força para resistir a esta formidavel organisação que nem sequer hesita ante o crime?

A experiencia da fraqueza dos governos, que se sucederam no poder após o regicidio, não auctorisa a responder tranquilamente a esta interrogação...»



Dezembro—1909.


Segundo varias pessoas, ha efectivamente em Lisboa muitas agremiações carbonarias.


Dezembro—1909.


O A... que se suicidou hontem tinha-se alcançado em não O A... que se suicidou hontem tinha-se alcançado em não sei quanto—outros, passeiam por essa Lisboa. Um, o M., alcançou-se em dezoito [234] contos. Castigaram-no reformando-o com o ordenado por inteiro.


*


Conta o Columbano que a seu pae Manuel Bordallo Pinheiro, pediu um dia um companheiro de repartição:

—Tenho lá em casa na cocheira (do conde de Lumiares), um quadro muito negro que queria que você visse.

Manuel Bordallo foi buscar a tela, limpou-a da bosta dos cavalos, lavou-a da camada de negro... Era, nem mais nem menos, o retrato de Carlos I d'Inglaterra, por Van Dyck, que o D. Luiz depois comprou e está hoje na galeria do Paço d'Ajuda.


Dezembro—1909.


O Avelino d'Almeida:

—A verdadeira razão por que o Seculo se fez republicano?... É que no Paço, das ultimas vezes que o Silva Graça lá foi, receberam-no mal, trataram-no d'alto.


*


—Um homem muito honesto o Hintze—diz o Carneiro de Moura—um homem muito [235] honesto que fazia assim:—Ó Val-Flôr, empreste-me vinte contos.—E o Val-Flôr emprestava-lhos—e recebia do Estado compensações que valiam o dôbro. Um homem muito honesto, o Hintze; que nunca tirou dos cofres do Estado o valor de cincoenta mil reis.


Dezembro—1909.


Ministerio novo. O bloco foi comido. O Alpoim furioso, exclama, em pleno Chiado:—O rei mentiu-nos! o rei é um imbecil! o rei tinha-nos prometido o poder!

E o Vilaça conta:

—O José Luciano reuniu-nos hontem á noite, a mim, ao Beirão, ao Dias Costa, ao Moreirinha e disse-nos:—Se os senhores estão no partido apenas para serem pares do reino e para que os encha de favores, isto acabou, hoje mesmo se liquida o partido progressista. Não podem recusar as pastas que eu lhes indicar.—Todos se curvaram, o Vilaça, que perde dez contos por anno, e o proprio Dias Costa, que de forma alguma queria ser outra vez ministro.


23 de Dezembro—1909.


O Julio de Vilhena deixou hoje de ser chefe do partido regenerador. Conta o João Pinto [236] dos Santos, que o Vilhena falou ao rei de cabeça alta, e por tal forma, que D. Manuel sahiu afogueado d'essa ultima entrevista, dizendo a alguem:—Só lhe faltou bater-me...


Dezembro—1909.


O Mardel é um homemzinho pitoresco e anecdotico que conhece Lisboa como as suas mãos. Ninguem como elle desenha um tipo ou vae ao passado buscar uma figura. Sabe tudo e inventa o resto. É um prazer ouvil-o. Constroe genealogias, negoceia em bric-à-brac e escreve satyras. D'uma vez, a um figurão que se dizia filho natural de D. Pedro IV e que mostrava desvanecido a toda a gente o retrato do rei que tinha na sala, perguntando:—Hein, com quem se parece?...—escreveu elle a seguinte quadra:


Do Imperador, de quem diz que é filho,
Tem o retrato na sala,
Mas da p... que o pariu
Não tem retrato nem fala...



*


Encontro em casa do Mardel o marquez da Foz, de barbas brancas e aspecto venerando, que desata a narrar conversas extraordinarias, surprehendidas [237] a meninas do Sacre Coeur sobre a masculinidade dos creados... Depois fala d'arte, de mobilia, quadros e maravilhas que comprou e vendeu. Vive hoje arredado em Torres Novas.

—D'uma vez, quando se vendeu a mobilia do palacio de Oeiras, dos Pombaes, os que fizeram a liquidação, pediram-me para lhes ceder um andar d'uma casa que eu tinha com escriptos na rua do Ferragial, para se fazer o leilão. Cedi e antes da praça fui lá, agradaram-me diferentes coisas e comprei-as. Custaram-me oito contos. Entre varias trapalhadas iam cinco vasos da China, cinco maravilhas, como nunca tinha visto. Eram precisas duas pessoas para lhes pegarem. Ao centro de cada vaso viam-se as armas de Pombal. Quatro coloquei-os á entrada da minha casa, o outro levei-o para a sala de jantar e pul-o defronte d'uma estufa... Um dia reparei: por causa do calor o verniz estalára. Levantei-me, olhei: sob a casca aparecia outro desenho. Tirei com uma faca o craquelé—e debaixo das armas, do Pombal apareceram as armas dos Tavoras! Tão certo é que até os grandes homens estão sujeitos a estas miserias...

Depois trata da baixela do Paço, que no tempo de D. Luiz estudou a fundo, e que então andava a trouxe-mouxe pelos armarios. São peças magnificas, signé Germain, e que valem um milhar de contos.—D'uma vez disse a D. Luiz:—Deixe-me V. Magestade arranjar-lhe uma sala de [238] jantar com a boiserie de Queluz e a sua baixela, que nenhuma côrte da Europa apresenta uma sala assim.—Ainda hoje não ha côrte nenhuma, nem a da Russia, que tenha uma baixela tão rica. São mil e tantas peças admiraveis. É falso que lá esteja tambem a baixela do duque de Aveiro. Vi as contas todas, photographei tudo...


*


—Um dia fui ao Leitão ourives, a esse artista...—e sorri com ironia—comprar qualquer joia. Ia a sahir quando dei com uma prata antiga a um canto.—Que é aquillo?—Está alli para derreter.—Deixem-me vêr.—Eram três peças esplendidas, com as armas do duque d'Aveiro—uma salva enorme, a que faltava um bocado da aza, com desenhos magnificamente gravados, e duas enormes compoteiras de prata com festões d'ervilhas, tudo marcado, assignado, admiravel.—São para derreter? Então venda-m'as. Quanto pezam?—Quinhentos mil reis.—Dou seiscentos.—Venderam-mas, levei-as para casa. Tinham feito uma tentativa para lhe apagar as armas. Quando depois as vendi deram-me alguns contos de reis.

Por fim fala de ninharias, d'isto, d'aquillo—e d'algumas peças que tinham pertencido ao D. Fernando e «nas quaes alguem fez mão baixa»...


[239]
*


Uma anecdota que elle tem como absolutamente autentica e que andou sempre na tradição da sua familia:

—O D. João VI estava para morrer. O patriarcha procurou a D. Carlota Joaquina para a reconciliar com o rei. Recebido na sala do throno, em Queluz, diz-lhe as palavras banaes do costume—mas ella não cede. Pede, suplica—perde o seu tempo. A rainha está renitente. Então retira-se depois das contumelias da pragmatica—e, ao sahir, volta-se de repente e dá com ella a fazer-lhe um grande, um imponente, um magestoso manguito...


*


Ha dias comprou por cento e cincoenta mil reis um quadro de Alberto Durer, absolutamente autentico e com a assignatura perfeita.—É o pendant do que está no Museu. E estou em vesperas de comprar mais quatro, entre os quaes um Corregio. Suspeito, pela proveniencia, que todos estes do que está no Museu. E estou em vesperas de comprar mais quatro, entre os quaes um Corregio. Suspeito, pela proveniencia, que todos estes quadros pertenceram á galeria do duque d'Aveiro.


[240]
Janeiro—1910.


Contam-me hoje a morte tragica do Marianno de Carvalho. Estava doente, de cama, e a familia sahiu, deixando-lhe uma campainha á cabeceira. Os creados aproveitaram a oportunidade e safaram-se tambem. Quando voltaram foram dar com elle morto, agarrado á campainha, n'um ultimo desespero...


Janeiro—1910.


O juiz d'instrucção criminal, dr. Antonio Emilio, a um amigo meu:

—No dia vinte e oito de Janeiro os soldados apanharam junto a qualquer quartel da municipal um homem com um caixote de bombas e duas pistolas automaticas. Meteram-no no calabouço—e confessa, não confessa... o homem nada! Então o oficial chamou um soldado e disse-lhe:—Nós vamos alli para a porta do calabouço e tu diz-me a tudo que sim. Vamos lá.—E começou:—Carrega lá essa pistola para darmos cabo d'esse diabo, que vinha aqui para nos atirar bombas!—Quando o oficial abriu a porta do calabouço o preso atirou-se-lhe aos pés:—Não me matem que eu confesso tudo.—Então quem te entregou o caixote?—Foi o Alfredo [241] Costa.—Veio a participação para o governo civil—mas só chegou ás mãos do juiz depois da morte do rei...


José Maria de Alpoim.
José Maria de Alpoim.



*


O juiz:

—Estamos sobre um vulcão. Prendi varios homens das associações secretas, podia prender mil. Já ninguem salva isto a não ser uma forte dictadura militar. E eu vou-me embora porque não quero incorrer nas iras populares.


*


O dr. Antonio Emilio ao Beirão:

—Ou vamos para a frente, ou os senhores metam-se em casa á espera que os chacinem.

E garante que a explosão de outro dia na Baixa, atribuida a gaz extravasado, foi devida a uma bomba de dinamite.


Janeiro—1910.


Os brincos de brilhantes que o Pedro d'Araujo deu á mulher do José Luciano quando o fizeram par, custaram cem mil francos. Diz-se, diz-se...


[242]
Fevereiro—1910.


O Paço está rodeado de piquetes. Forças vigiam a Tapada. Garante-se por ahi que, emquanto os regicidas não forem presos, o rei não casa. O Maximiliano d'Azevedo, oficial do campo entrincheirado, conta-me que as forças do campo foram ante-hontem (1 de Fevereiro) postas sob as ordens do general de divisão e com ordem de marcharem sobre Lisboa ao primeiro aviso.


*


O que se diz por ahi baixinho, de ouvido para ouvido, é tremendo. Diz-se o que O Povo d'Aveiro, que está tendo tiragens enormes, publicou nos ultimos numeros[9].


[243]
*


O T..., d'O Mundo, disse-me que janta duas vezes por semana com o Alpoim, e já se tem gabado que é elle um dos auctores do Diz-se...


*


O Colen, n'um jantar intimo, onde esteve alguem que m'o conta:

—No dia vinte e oito de Janeiro estava tudo preparado e seriamente preparado para a deposição de D. Carlos—marinha, tropa, organisações, tudo. E tudo falhou porque o Afonso Costa [244] não quiz dar o signal sem que o João Franco estivesse morto.


Março—1910.


Á reunião celebre do Castello, onde se decidiu a morte do rei, assistiram trinta pessoas.


*


Paçô Vieira:

—A carta que o rei escreveu ao Hintze e que fez com que o ministerio cahisse, foi conhecida, antes de lhe ser enviada, pelos republicanos. Eu lhe conto: um dia estava em Paçô, quando o Hintze me chamou. Parti logo, corri [245] logo a casa d'elle. Encontrei-o na sala de bilhar: tinha um papel na mão.—Desculpe e obrigado. Já não é necessario. Recebi hoje esta carta do rei que me levou a pedir a demissão.—Repliquei-lhe:—Sei perfeitamente o que diz essa carta. Posso repetir-lha quasi phrase por phrase.—E diante do espanto do Hintze:—Vim no comboio com o Afonso Costa que me disse, palavra por palavra, o que continha essa carta...—Assombro do Hintze. A copia da carta fôra mandada pelo rei aos republicanos—naturalmente ao Bernardino—antes de ser enviada ao Hintze.


Março—1910.


Quantos Fialhos, todos diferentes, tenho conhecido pela vida fóra! Este, de ventre e barbicha de bode, esta figura de que os mortos se conseguiram apoderar, agarrado á terra, conservador, discutindo com o padre da freguezia os melhoramentos da sua egreja, este é—emfim! emfim!—o descendente autentico dos cavadores alemtejanos. Custou... As suas melhores obras—as que sonhou e nunca se resolveu a escrever—leva-as elle para a cova... De quando em quando ainda tem uma revolta:

—É horrivel a minha vida na aldeia. Se não fossem os livros já me tinha suicidado. Cada vez preciso mais de ver gente e d'esta vida artificial [246] de Lisboa. Na aldeia, em Cuba, não falo com ninguem, não tenho ninguem com quem comunicar. São de bronze aquelles filhos da p...! E nem a mais pequena sombra de sensibilidade. E se imaginam que a gente não tem dinheiro, estamos perdidos!...

—Fuja.

—Não posso. Quem me ha-de tratar d'aquillo? E depois criei interesse ás oliveiras que plantei, á vinha... Ah, mas as noites!... Tenho noites em que pego n'um livro e saio. Ha uma estrada em volta de Cuba—e eu alli ando á roda toda a noite a falar sósinho como um condenado!


Março—1910.


Centenario d'Herculano. Missa nos Jeronymos pelo padre Matos. O S. Boaventura diz-me que, pela avó materna, é ainda parente de Herculano.—Que eram seus avós?—Pedreiros.—Efectivamente no retrato Herculano parece um pedreiro da minha aldeia; efectivamente Herculano descende de pedreiros e toda a sua obra é, na realidade, a d'um homem que moe e lavra com solemnidade a pedra, a d'um d'esses extraordinarios montantes que metem o ferro até á raiz da fraga, racham o penedo, afeiçoam a lage, e acabam, emfim, por construir a cathedral. Herculano edificou em granito—e no granito [247] abriu pacientes e admiraveis lavores... A seriedade, a obstinação, e até o amôr á terra, ao azeite e ao pão, seu ultimo ideal e refugio, são caracteristicos e o ideal tambem d'essa legião de trabalho imensa e obscura, cuja alma, á força de lidar com a pedra, adquire dureza e grandeza tambem. Essas figuras, só osso e pelle, descarnadas, que partem de manhã com o saquitel e a borôa, que só pronunciam palavras graves, e ao dar do meio dia se descobrem e mastigam o pedaço sêco de pão com um ar solemne,—acabaram, emfim, por encontrar um descendente como elles austero e grave, capaz de exprimir o universo—o que sentiram, o que sofreram e o que sonharam—e capaz de edificar com alicerces para seculos. Tudo, até a falta de phantasia e imaginação, até o miudo lavor pacientemente trabalhado, até a casa simples, vulgar e mal repartida, até a companheira, até a austeridade, veio a Herculano d'essa grande geração de pedreiros portuguezes, que antes d'elle fizeram obra digna de homens e desapareceram para sempre no pó—mas poderam transmitir, filho atraz de pae, a solemnidade e a grandeza, a quem um dia erguesse uma cathedral mais vasta e com raizes mais fundas do que elles todos juntos. Mas todos trabalharam tambem, sabe Deus durante quantos seculos, com tenacidade e firmeza, para a obra do pedreiro maximo de toda a sua geração.


[248]
Março—1910.


José d'Azevedo:

—Anno passado o rei chamou-me e pediu-me para votar o projecto da União Vinicola. Disse-lhe logo:—Não, meu senhor, não voto. E V. Magestade pede-me isso porque não sabe de que se trata. O projecto é ruinoso.


Abril—1910.


O Fernando de Serpa, agora em foco por causa das cartas que o Afonso Costa leu no Parlamento[10] e se teem publicado n'O Mundo—esteve [249] estes dias para se suicidar. A mulher não dorme e o irmão d'ella entrou hoje n'O Imparcial e disse ao José d'Azevedo:—Se isto assim continua minha irmã endoidece, e se minha irmã endoidece eu mato o Afonso Costa.—Segundo elle, esse Fernando de Serpa que se metia em tantos negocios, deve afinal quinze contos de reis e tem agora os seus vencimentos suspensos...


*


Porque o José d'Azevedo não foi ministro com o Hintze:

—O Hintze tinha por mim uma grande admiração, mas nunca me fez ministro, porque a sua vida economica andava muito atrapalhada e um dia em que me mostraram uma lista de pares que elle ia fazer, entre os quaes estava o meu nome, eu disse:—Mas isso não é uma lista de pares—é uma lista de credores.—Soube-o logo e nunca me perdoou.


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Quem roubou ao Paçô as celebres cartas de que o Afonso Costa se serviu no parlamento, foi o creado. Soube-o hoje por acaso. O Urbano Rodrigues vendo um rapaz de dezeseis annos na redacção d'O Imparcial, disse:—Este é o creado do Paçô, que vae muito ao Mundo e pertence ás associações secretas.


[250]
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—O José Luciano foi sempre um homem pernicioso—diz o José d'Azevedo.

—Emquanto fôr uma sombra ha-de mandar—conclue o Fuschini. E acrescenta:—Quem manda é o seu salão onde se fazem os negocios mais escuros e mais porcos d'este paiz.


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—Esse ministro italiano que ahi está—conta o José d'Azevedo—foi um dos que mais concorreu para salvar Dreyfus. Paulucci, então secretario de legação em Paris, viu os documentos da embaixada e convenceu-se da inocencia de Dreyfus. Falou ao embaixador, seu tio, que lhe disse:—Prohibo-te que te metas n'isso.—Não se importou. Procurou Bernard Lazare, que o recambiou para o José Reinach.—Isso é extraordinario. Vamos ter com Max Nordau e com Zola.—Reuniram-se e examinaram os documentos da legação italiana. Dos papeis não só se deprehendia que era outro o traidor, mas resaltava nitida e clara esta preciosa informação: o adido encarregado da espionagem alemã possuia a esse respeito vinte e nove cartas absolutamente decisivas. Max Nordau partiu para Berlim e pediu ao imperador da Alemanha a publicação das cartas. O imperador opoz-se. Paulucci não desanimou: foi a Roma, bateu á porta d'um cardeal, [251] pediu-lhe que o partido catholico tomasse a defeza de Dreyfus inocente, o que assegurava ao catholicismo um papel triumphante no mundo; falou emfim a Leão XIII, a quem só arrancou boas palavras. (E d'ahi veio o combate da França republicana contra o clericalismo. Que outro não seria o papel da Egreja se Leão XIII se manifesta!) Nem assim Paulucci desanima. Insiste com o tio:—Pois meu tio tem nas suas mãos documentos que provam a inocencia de Dreyfus e pode dormir descançado! Apresento-me como testemunha.—O embaixador conseguiu que todos os secretarios fossem testemunhas no processo. Paulucci tinha doze mil e setecentos documentos (copias) da questão Dreyfus, que arderam no ultimo fogo da embaixada italiana no campo de Santa Clara. Paulucci dizia muitas vezes:—Andei dois annos com febre!


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José d'Azevedo:

—Fui eu que machinei e atirei com o ministerio Ferreira do Amaral a terra. Tinha-me feito um agravo que, se é directo, m'o pagava n'um conflicto pessoal. Fui eu que fiz tudo. O José Luciano não queria. Procurei-o na Anadia. Obstinava-se. Mas eu fui ao Porto—e venci. Uma tarde o Campos Henriques recebeu uma carta do Paçô, que encontrára o Tavares Festas no comboio (o Tavares Festas vinha de casa do [252] José Luciano), carta em que lhe dizia: «Ouvi que vae formar ministerio com estes nomes...» O Campos Henriques mostrou a carta á mulher:—Olha o que me diz o Paçô...—E riu-se. No dia seguinte era chamado ao Paço e organisava o ministerio, tal qual o Paçô lhe dizia na carta. Ordens de José Luciano.


1 de Maio—1910.


José d'Azevedo diz a respeito do escandalo do Credito Predial:—Não são sessenta contos que faltam, são oitocentos! A escripta está toda viciada. Venderam-se obrigações, deram-se juros entrando-se pelo capital, emfim um descalabro medonho, que se não podia fazer sem auctorisação dos governadores.


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É um politico reservado e frio? Não sei. É um homem audacioso e inteligente, que parece calmo. Mas ha n'elle uma parte em carne viva. Sente-se a ferida sob aquella aparencia forte. Escreve sem uma emenda, linguado atraz de linguado; nem hesitações nem duvidas e um prazer que synthetisa n'estas palavras:—Babo-me... Não escrevo, babo-me...—Não crê senão em si mesmo, e não deve ter um amigo, como todos os que [253] contam apenas com as suas proprias forças. A mulher d'um diplomata que viajou com elle, dizia:—As maneiras encantaram-me, os olhos meteram-me medo.—São os olhos dos Brocas.

—Sou das raras pessoas que teem assistido ao suplicio dos chinezes. Fui com o meu creado, a cavalo—e por signal que elle desmaiou. Cortam-lhes primeiro a carne dos ante-braços, depois a das pernas, depois os seios, depois os braços e as pernas pelas articulações; dão-lhes emfim um golpe no coração e acabam por os decepar. Pois durante todo o suplicio atroz, os desgraçados não deram um unico grito, um só gemido: erguiam a cabeça e bufavam ou mijavam-se. Mais nada. Um d'elles prestou-se, sorrindo, a que o photographassem, emquanto o carrasco levantava a espada para o degolar...


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Uma phrase camilliana de uma tia, irmã de Camillo:—Sobrinho, Deus não existe... ou embarcou!


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E esta de Camillo, que tinha vindo a Lisboa muito doente, e a quem Souza Martins, para o sacudir, começou ralhando muito. Camillo, para o José d'Azevedo, depois do medico sahir:

—Vê, meu sobrinho, vê, não me perdoam o Eusebio Macario, estes filhos de boticario!


[254]
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Camillo para o José d'Azevedo, mostrando-lhe o filho, que já estava no primeiro periodo de loucura:—Veja esse desgraçado... Era um rapaz inteligente...—E depois d'uma pausa dolorosa:—E tudo isto porquê, sobrinho? Por ter lido as obras do Theophilo Braga.


Junho—1910.


Nos quarteis continua a fazer-se uma larga propaganda republicana. Distribuem-se aos soldados versos e folhetos. Exemplo:

PROPAGANDA ELEIÇOEIRA
DO BLOCO PREDIAL



(Musica—A MARSELHEZA)
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Ide escravos quebrar os grilhões,
As algemas da fome homicida;
Armas promptas contra esses ladrões,
Que nos roubam a bolsa e a vida! (bis)
Nova aurora de Paz, Redempção,
Vá doirar nossos valles e cerros,
Libertando os captivos dos ferros,
Dando aos pobres a luz e o pão.

Avante! Lusitanos!
Largae a servidão!
Unir! Unir! contra os tyramnos,
Salvemos a Nação!
Avante Lusitanos,
Salvemos a Nação.


Tareco.



[255] E o folheto «Os Barbadões»[11]:

«O rei D. João I da gloriosa dynastia de Aviz, enamorou-se da filha de Pero Esteves, sapateiro alemtejano, conhecido pela alcunha O Barbadão; d'estes amores nasceu um filho que foi conde de Barcellos e primeiro duque de Bragança; casando este com uma filha do condestavel Nun'Alvares, deu origem á nobre casa que ha 267 annos reina em Portugal.

A casa de Bragança foi-se engrandecendo á custa de doações regias, bens nacionaes que os reis cediam em usufructo apenas, e que o capricho do soberano ou a conveniencia do Estado, podiam fazer voltar ao seu legitimo proprietário: A Nação.

Não foram os serviços relevantes que engrandeceram esta casa, mas as intrigas continuas, salientando-se entre todas a que levou o glorioso infante D. Pedro á chacina de Alfarrobeira.

Com a revolução de 1640 que libertou Portugal do jugo da Espanha, o oitavo duque de Bragança foi aclamado rei com o nome de João IV; beato e poltrão liga-se aos jesuitas, e para salvar a pelle e o titulo de rei, não hesita em negociar por intermedio do padre Antonio Vieira (jesuita) a entrega do seu paiz á França, ou novamente á Espanha, a troco de o reconhecerem como rei do Brazil; a sua pessoa era tudo, o seu paiz era nada. Os melhores servidores do Estado foram lançados em prisões ou conduzidos ao cadafalso (o ministro Lucena, o marquez de Montalvão, Mathias d'Albuquerque vencedor de Montijo, etc.). O seu reinado foi coroado pelo presente que fez á Inglaterra, como dote de sua irmã, das cidades de Bombaim e Tanger, ricas flores de laranjeira que a infante portugueza levou prezas ao seu vestido de noiva!


[256]
Seu filho Afonso VI que no throno lhe sucedeu, corria de noite as ruas da cidade, com a sua purria fidalga, assaltando os cidadãos indefezos; era doido, e d'isso se aproveita seu irmão Pedro II para lhe tirar a corôa e... a mulher, com o consentimento do papa; este (Pedro II) dominado pelos jesuitas tambem, desterra o conde de Castello Melhor, glorioso ministro (que por tres vezes salvou Portugal da dominação espanhola), e celebra com a Inglaterra o vergonhoso tratado de Methwen, que nos tira o comercio do Oriente e nos impossibilita de montar fabricas e oficinas.

João V que lhe sucede, gasta o oiro que do Brazil lhe vem, na construção de conventos, em festas de egreja e em presentes ao padre santo; deixa perder sem enviar socorros, as nossas colonias da India, Ceylão e Oceania, porque o dinheiro era pouco para presentear as freiras de quem fez amantes e o papa de quem se fez lacaio.

José I faz morrer no cadafalso toda a familia Tavora, por meio de horriveis tormentos, com o pretexto de serem cumplices na conspiração do duque de Aveiro, o que se não provou, sendo a causa verdadeira a oposição que essa familia fazia aos seus amores adulteros com a marqueza; nada escapou ao seu furor sanguinario: nem velhos, nem mulheres, nem creanças. Para dignamente coroar o seu reinado, abandona aos mouros as cidades que possuiamos em Marrocos, e que tanto sangue portuguez custaram.


Teixeira de Sousa.
Teixeira de Sousa.


[257]
Maria I tira o poder ao Marquez de Pombal, entrega-o aos frades e endoidece; seu filho João VI que em seu nome governou e lhe sucedeu, foge covardemente para o Brazil abandonando o povo de que era rei, quando os francezes invadiram o paiz; Junot entra em Lisboa á frente de 70 soldados!!! Portugal revolta-se contra os francezes, e o rei entrega-o aos desprezos de Wellington e ás brutalidades de Beresford; os inglezes protegendo-nos, fazem-nos peor mal que os invasores: arrazam as nossas provincias, queimam as nossas fabricas, conquistam a Madeira, e impõem-nos os vergonhosos tratados de 1810, ainda peores que o de Methwen. O general Gomes Freire, por tentar libertar o paiz das garras inglezas, é enforcado em S. Julião da Barra; outros 17 martires pagam com a vida, no Campo de Sant'Anna, a sua dedicação patriotica. A revolução popular de 1820 salva Portugal do leopardo britanico, obriga o rei a voltar ao seu posto e liberta o exercito do oprobrio de ser comandado por oficiaes inglezes.

D. Miguel foi quem primeiro estabeleceu em Portugal um governo de força, á semelhança do que desejam actualmente alguns idiotas barriguistas; nada lhe faltava: as alçadas, as forcas, o cacete, 80.000 homens de tropa e um povo fanatico e imbecil; contra si, em todo o paiz, apenas tinha alguns liberaes desarmados; o seu retrato figurava nos altares, e as mães pediam-lhe a honra de lhes desflorar as filhas. Prende, enforca ou manda fuzilar toda a gente de que suspeita, mas com toda a sua força, deixa que uma esquadra estrangeira lhe escarre na cara e no Paiz, sem que um só tiro partisse a repelir a afronta. Este idolo poderoso cahe do seu pedestal de sangue, é corrido do throno pela revolução triumphante; seu numeroso exercito pouco a pouco o foi abandonando, vindo para o lado do povo liberal, e o bronco tigre que ao começar a guerra civil tinha 80.000 homens ás suas ordens, perde a batalha de Asseiceira com os 5.000 homens unicos que até esse momento lhe ficaram fieis.

Pedro IV, o que tem estatua no Rocio, revolta o Brazil contra Portugal, faz-se seu imperador e manda fuzilar no Rio de Janeiro os soldados portuguezes á traição; corrido do Brazil, volta a Portugal a tentar fortuna, dirigindo a guerra civil contra o irmão; emquanto esta se não decide a seu favor, não tem vergonha de offerecer á Inglaterra, em troca de auxilio desta, o pouco que nos restava do nosso imperio indiano.

[258]
Maria II para se aguentar no throno chama marujos inglezes e 30:000 soldados de Espanha; faz invadir a sua patria e assassinar o seu povo, para satisfação do seu orgulho de rainha liberal.

Pedro V não poude passar sem irmãs de caridade, e deixa que mansamente de novo se estabeleçam entre nós as congregações religiosas; novamente, um almirante estrangeiro (Lavaud) nos faz o mesmo que Roussin fizera em tempo de D. Miguel.

Luiz I arvora o cynismo em governo e faz reinar a bandalheira; deixa que na conferencia de Berlim nos roubem a maior parte do nosso territorio Africano, e conduz o paiz á bancarrota que estala pouco tempo depois da subida ao throno de seu filho Carlos. Este, esbofeteado pela Inglaterra, curva-se rasteiramente, chama piolheira á nação que lhe paga, e... rouba-a; rouba-lhe o seu dinheiro e rouba-lhe a liberdade; no seu reinado perdemos vastos territorios nas nossas colonias de Moçambique, Angola e Guiné. O seu ultimo ministro João Franco, que queria pôr tudo isto no xão atirou com elle ao chão. Seu filho Manuel II que lhe succedeu, com sua bella e radiosa mocidade, já deu a seu povo uma explendida amostra do muito amor que lhe tem: a chacina de 5 de abril (14 mortos e 100 feridos!); em troca o seu primeiro ministerio entendeu que o povo lhe devia dar mais ordenado; ainda não roubou como o papá, mas paga-se melhor; passa a sua vida de rozario na mão, envergando a roupêta de jezuita, seguindo os conselhos das fraldas femeninas reaccionario-palatinas.

[259]
Até hoje 14 reis da casa de Bragança teem governado o Paiz, e como se vê são os legitimos representantes duma nação de idiotas, barriguistas e poltrões; tambem não resta duvida que esta dynastia é, como tem sido, a mais solida garantia da integridade do nosso imperio ultramarino. Grandes são os beneficios que a Nação lhe deve: uma divida colossal de oitocentos mil contos, nenhumas industrias, nenhum commercio, uma agricultura atrazadissima, um povo tuberculoso e analphabeto, esmagado com impostos á mercê dos pontapés estrangeiros; nem exercito nem marinha; estradas ao abandono e bufos com fartura, taes são as fontes de riqueza que os Braganças nos deixam, e tudo isto por pouco dinheiro, baratinho: 365 contos por anno só para elle, mais 60 contos para a mamã, outros 60 para a vóvó e 16 para o titi; tem tambem para alfinetes 160 contos a mais por anno que o generoso Amaral lhe deu, pagamos tambem á sua guarda real de archeiros, á orchestra da sua real Camara, e ao seu yacht, e como isto é pouco, damos-lhe dinheiro pela honra que nos faz em alojar os seus cavallos e carros nas nossas casas e pela licença que nos deu de utilisarmos em serviço do Estado os nossos palacios; tudo isto, bem entendido, nada tem com os rendimentos da casa de Bragança que disfructa. Quando casar, se S. M. nos der essa felicidade, dar-lhe-hemos mais 60 contos para os alfinetes de sua esposa; e se tiver meninos? então morreremos de alegria e daremos 20 contos annuaes por cada pimpolho.

Como veem, não é pagar cara a certeza que temos de ganhar o reino do ceu pela mão do nosso radioso soberano, com a benção de Pio X, as indulgencias de Merry del Val e as preces solemnes do sr. patriarcha e do reverendo bispo de Beja.


*


Oliveira Martins, que foi ministro de D. Carlos, diz na sua historia de Portugal: Força é reconhecer que na familia dos Braganças não vingou a semente da nobre raça dos Nun'Alvares; viu-se em todos elles a descendencia do crasso sangue alemtejano da filha do Barbadão.


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Portuguezes! façamos votos pela conservação d'esta gloriosa dynastia—OremosPadre NossoAve-Maria.



[260]
Junho—1910.


Fui hoje a casa do Fernando Martins de Carvalho consultal-o. Não sae ainda com medo aos republicanos. É pequeno, inteligente, arguto. Está livido.

—A rainha D. Amelia é que quiz forçosamente que o ministerio João Franco fôsse abaixo e até se opunha a que se lavrassem os decretos como habitualmente.

—E o rei?

—O rei, como dizia o Totenbach, não é um homem... Oh, vivemos dias horriveis! Olhe, tenho provas moraes absolutas de que os republicanos quizeram assassinar o João Franco, quando elle viesse de Carnide no automovel. Ha na estrada uma azinhaga: de repente uma carroça surgia, fazia parar o automovel e os assassinos cahiam-lhe em cima...


Julho—1910.


Do João de Menezes:

—Possuo documentos (que hão-de aparecer a seu tempo) e que provam que foi a rainha D. Amelia, d'acordo com a condessa de Paris e a duqueza de Monpensier, quem introduziu as ordens religiosas no paiz. Foram ellas que deram dinheiro para jornaes e o resto.


[261]
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A dissidencia, o assassinato do rei, o caso do Credito Predial, foram golpes profundos e certeiros vibrados na monarchia. Está efectivamente tudo minado... E os ataques dos republicanos ao juiz de instrução criminal demonstram que elle lhes tocou na ferida... Mas quem ha ahi que se queira comprometer a serio pela monarchia, sobretudo depois do exemplo de João Franco?—A um ministro foi preciso escrever-lhe uma ordem necessaria «porque a mão lhe tremia...» O que resta de pé não passa de ficção. Quem manda, quem governa, mesmo na oposição, são os republicanos, que o Alpoim leva pela mão até ás questões importantes.—O exercito é nosso.—E o João Chagas, para convencer um oficial incredulo, manda desfilar certa noite no Rocio os soldados d'um regimento, que, por senha, um a um lhe fazem todos a continencia. Sucedem-se os governos, mas a força é outra, que se sente por traz do scenario... O José d'Azevedo desafia-os:—Venham para a rua!—Fiado em quê? O pacto de Vila Viçosa efectivamente existe?[12] [262] Já o João Franco dizia tambem com arrogancia:—Se podem fazer a republica façam-na depressa, porque d'aqui a dois annos garanto-lhes que a não fazem.—Mas será este rei um chefe?—pergunta necessaria e decisiva, a que os proprios monarchicos respondem d'esta forma n'O Liberal:

«O rei de Portugal está exautorado, está reduzido a uma chancella de quem lhe bate os pés.

«Podia ser um rei, e é um simulacro da realeza.

[263]
«Em tempo algum se curvaram os reis perante ameaças de qualquer natureza e ainda menos, quando tendentes a esquecer os nossos protestos e juramentos a que está ligada a propria dignidade e a honra de uma nação.

«Póde asseverar-se que o snr. D. Manuel não chegou a ser rei. No momento em que se esqueceu do que devia á sua dignidade de nós todos, que lhe confiamos um cargo, que é incapaz de conservar sem o deixar cair, o snr. D. Manuel deixou de ser rei».


[264] A excitação politica não tem diminuido, e o Teixeira de Souza, no poder, ignora tudo que o juiz d'instrucção repete a quem o quer ouvir:—Estamos sobre um vulcão!—A audacia dos republicanos todos os dias augmenta:—Lisboa é nossa!—exclama o Chagas.—Se os republicanos fizessem um comicio ao alto da Avenida e viessem por ali abaixo, a republica estava feita!—afirma o Silva Graça—E o Porto e a provincia?—pergunto [265] eu ao Chagas.—Que me importa a provincia! Que importa mesmo o Porto! A republica fazemol-a depois pelo telegrapho.—Outro diz-me:—A marinha está toda comnosco. Tem havido ocasiões em que a esquadrilha do Algarve nos pertence desde o oficial mais graduado até ao ultimo fogueiro. O dificil tem sido contel-os...—Todos os dias corre um boato e a agitação popular augmenta pela carestia da vida[13]. Que vae sahir d'aqui? Uma [266] grande revolução, o terror, mortes?...—Não, soceguem, quando se fizer a republica—já o anunciou ha annos o pontifice maximo Guerra Junqueiro—o que se ha-de ouvir não é um grande ruido de espadas, é um grande ruido de talheres...



A SOCIEDADE ELEGANTE


Rodeiam a rainha o Figueiró e a Figueiró, e algumas relações intimas da Figueiró e Sabugosa; e o rei o Ficalho, alguns velhos em oficio na côrte, como o marquez d'Alvito, o conde de Villa Nova de Cerveira, que, ao que se disse, morreu por ser preterido pelo conde de Sabugosa, por influencia da rainha—o que é redondamente falso: D. Pedro de Noronha, vulgo o Paço d'Arcos, morreu de velho. Era um homem sem cultura, e tinha oitenta e seis annos quando foi preciso nomear novo mordomo mór por morte do Ficalho. Acompanham o rei no yacht o Fernando de Serpa, o Manuel Figueira, o Pinto Basto (Nico), o Malaquias de Lemos, o Queiroz, que passou por ser a alma danada do paço; e que na realidade tinha um certo geito para disciplinar soldados, montar a cavallo, dirigir esperas de touros—e mais nada; algumas vezes o major Santos, feitor da Bacalhôa, e o Soveral que, quando estava em Lisboa, era o menino bonito [268] da corte, onde tinham influencia o Bernardo Pindella, o Caldeira, comandante do yacht, e poucos mais.

A seguir ao paço podem citar-se os Palmellas, em casa de quem se dava beijamão aos creados e ás creadas, se isto não é uma lenda como muitas outras... Era uma pequena corte. Ella, a duqueza, viveu sempre entre coisas bellas; elle, o duque, era um apagado guarda livros[14]. Só recebiam raros parentes, e a duqueza toda a vida detestou os Sousa Holstein. No tempo de D. Luiz ainda muita gente nobre mantinha uma grande linha, que se foi pouco a pouco apagando: os Penafieis que então fizeram uma vida brilhante; o marquez de Vianna cujo palacio se vendeu ao marquez da Praia.—Aquella gente nem sabe acender um lustre, dizia o velho marquez ao falar d'«esses morgadotes da ilha...» Os condes de Lumiares davam bellas festas no palacio quasi pegado, onde é hoje o do Marquez da Fóz. Abriam-se as janellas, apagavam-se os milhares de lustres e continuava-se a conversa ate á missa das almas na capella proxima.

Chamavam-se essas festas «rosas divinas». [269] Debutou ahi, nas salas de Lisboa, o snr. Luiz de Soveral. No rez do chão do mesmo palacio davam pequenas partidas os Castellos Melhor. Tocava o seu amigo Bomtempo e juntavam-se alguns politicos, entre os quaes o Manuel Vaz Preto. No fim do reinado de D. Luiz já a maior parte dos palacios de Lisboa ou tinham sido alugados ou mudado de dono. No palacio de Tancos estava o colegio do dr. Sicuro; nos dos viscondes de Asseca instalou-se o visconde de Ouguella e depois uma fabrica; o dos condes de Murça transformou-se n'uma escola; o do marquez de Abrantes—que ocupava apenas um recanto—foi alugado pela legação da França; o dos condes Barão, no largo do mesmo nome, passou a uma familia de judeus, barão de Villa de Foscôa; o dos Almadas Carvalhaes, senhores d'Ilhavo, á Empreza Editora; no do conde da Ribeira, de quem o rei dizia que era o homem mais honesto do seu tempo, e que morava na casa dos Mordomos, instalou-se o colegio Arriaga. Já os Angejas, representados pelo conde de Peniche, tinham deixado o palacio de S. Lazaro, que depois ardeu, e o visconde de Sampaio mudára para a rua de S. Vicente. Os condes Valladares e Povolide haviam vendido ao snr. Burnay o palacio das Portas de Santo Antão e retirado para a provincia. O palacio dos condes de Paraty é hoje escola municipal, no dos condes da Ponte, á Boa Morte, [270] habitou o general Palmeirim, e no dos condes de Farrobo móra o snr. Monteiro Milhões, que tambem comprou as Laranjeiras, vendidas depois successivamente até cahirem nas mãos do snr. conde de Burnay. O palacio dos Castellos Melhor passou ás mãos do marquez da Fóz, que alli deu algumas festas sumptuosas. Mas a mais brilhante, a que deixou grande impressão na gente da epoca, foi o celebre baile das Chagas, na antiga residencia, antes de mudar para o palacio da Avenida. N'esse baile se exhibiram todas as preciosidades que o marquez adquirira—quadros, baixelas Germain, etc. Romperam-se os tectos da sala de baile, para se construir uma galeria onde tocaram os musicos, acompanhados pelo côro de S. Carlos. Ahi começou tambem o marquez a arruinar-se. Gastou, gastou... Só as grades de ferro do corrimão do palacio da Avenida custaram noventa e cinco contos. O marquez chegou a ter cem contos de renda.

Muitas outras familias ilustres ocupavam, retiradas da vida mundana, os seus palacios: o conde de Alcaçovas, na rua da Cruz dos Poiaes, o marquez de Pombal na rua Formosa, os marquezes de Penalva, etc. Os condes de Sabugosa, n'uma residencia que o conde tornou encantadora, recebiam ainda com brilho. Na rua Formosa existia tambem o salão da snr.a D. Maria Kruz Brito, que no seu genero foi o unico comparavel aos salões da Restauração e 2.º Imperio, de [271] Paris. Sua filha, a senhora condessa de Ficalho, no solarengo palacio dos Mellos de Serpa, aos Caetanos, reunia a fina flor da elegancia em certos dias da semana (segundas-feiras). É o palacio ainda hoje ocupado pela senhora D. Maria de Mello, condessa de Ficalho. O destruido e inhabitavel palacio da Rosa, solar dos viscondes de Villa Nova de Cerveira, marquezes de Ponte de Lima, resurgiu pelos esforços do actual marquez de Castello Melhor, visconde da Varzea pelo seu casamento com a herdeira das casas Castello Melhor e Ponte de Lima, e alli se deram e dão esplendidas festas.



Citam-se como as mulheres mais lindas d'essa epoca—fim do reinado de D. Luiz e principio de D. Carlos—a duqueza de Palmella, a condessa de Penamacôr, a condessa de Ficalho, a condessa de Villa Real e Mello, e a formosissima D. Anna de Sousa Coutinho, filha do Conde de Linhares, portanto neta da Senhora Infanta D. Anna de Jesus Maria, dama da rainha, e pelo espirito, pelo talento, a condessa de Rio Maior (mãe), a marqueza sua nora, filha dos marquezes de Bemposta Sub-Serra (Saint Leger) e tantas outras sumidas ou desaparecidas no turbilhão da vida.

Uns pobres, outros mortos, outros arredados, deram logar a esta sociedade mais mesclada, [272] a gente de dinheiro, a gente que enriquece, alguns nobres de mistura, alguns fidalgotes feitos á ultima hora, e a uma certa roda que se diverte, citada nos jornaes, e que constitue em toda a parte o que se chama a sociedade elegante. Uma senhora de espirito dividia a sociedade portugueza em aristocracia, smart set, alto pirismo (pirismo, é claro, vem de Pires), baixo pirismo e povo. «Esta ideia veio-me—diz ella—d'uma visita que recebemos um dia e que muito nos impressionou: num grupo d'automobilistas do Monte Estoril nossos conhecidos, tinha vindo a F..., aquelle sitio apartado á beira-mar, onde já o nosso pae costumava passar o verão, uma menina da boa sociedade de Cascaes. Essa menina, dizia minha irmã cheia de extranhêza, que nunca tinha vindo áquella casa, esteve durante toda a tarde exclusivamente a namorar um dos taes automobilistas, e nem antes nem depois nem nunca, esboçou para com os donos da casa um leve sorriso de agradecimento! Porquê n'uma menina tão fina tanto «falta de chá!...»? Porquê, entre ellas, e as meninas finas nossas conhecidas com mais intimidade, tamanha diferença?... Foi assim por comparações estabelecidas e deduções tiradas, que concluimos em dividir as classes da sociedade actual em aristocracia, smart set, alto pirismo, baixo pirismo e povo.

É inutil explicar o que se entende por aristocracia [273] e povo. Cada uma dessas classes, no seu extremo oposto, está suficientemente definida por sua propria natureza. Baixo pirismo é nome novo para a baixa burguezia, classe de que tanto, com tanta graça, e tanta verdade, se ocupou Gervasio Lobato. Alto pirismo... alto pirismo, somos nós, por exemplo, as manas da descoberta, muito bem acompanhadas por todas as nossas amigas e por quasi todos os nossos conhecimentos, mais ou menos endinheirados (ha de tudo!) de maior ou menor bom gosto e cultura. Classe numerosissima, em que está incluida toda a boa gente que cuida de ser bem educadinha e agradavel e que trata de sustentar, por um alevantado valor civico—que muitas vezes é inconsciente...!—as regras, os preconceitos, as convenções, de que uma sociedade bem organisada não pode prescindir.

Ha alguns grupos no alto pirismo, muitissimo agradaveis—se n'elle incluimos tanta gente!...—em que se cultiva ainda a boa conversa, em que, sem sombra de pedantismo, se discutem livros, ideias, arte, e em que ninguem sente saudades de jogar o bridge. Mas ha outros grupos, em que nas festas os homens não estão na mesma sala em que estão as senhoras, festas em que só dança, e pouco, a gente muito nova, e em que as meninas, nada interessantes, mas com aquelle ar de timidez e de recato, que tanto agrada aos portuguezes á volta d'uma viagem [274] pelo extrangeiro, namoram pelos processos archaicos, sob os olhares mais ou menos adormecidos da mamã. Festas essas em que, a alturas tantas, nós, com a certeza absoluta de que o relogio está parado, começamos a sentir verdadeiro odio pelas begonias artificiaes—ainda se encontram!—que ornamentam a étagère, e que cresceram em leque de dentro d'uma especie de musgo sêco, muito mal imitado; festas em que só pela muita fôrça da boa educação recebida nos obrigamos a trocar umas palavras vazias de interesse por uma contorsão dificil e dolorosa do corpo, com a senhora gorda que está sentada no borne atraz de nós! (Tambem ainda se encontram muitos bornes!!)

São estes grupos do alto pirismo, é preciso dizer a verdade toda, que nos enchem precocemente a cabeça de cabelos brancos.

A smart set (cá está a tal menina que apareceu na F...) foi certamente organizada em Cascaes. Deve ter nascido na Parada...—e foi fundada provavelmente por um pequeno grupo de aristocratas neurasthenicos e comodistas, aos quaes logo, muito contentes, se agregaram por facilidades de convivencia e porque os souberam imitar, alguns membros do alto pirismo. Hoje é uma classe bastante numerosa e certamente a mais chic. Distingue-se das outras por varias coisas; por exemplo: desprezo absoluto pela prudente instituição do «chaperon» (esses entreteem-se [275] com o bluff)—desprezo absoluto pelas boas maneiras, pela cortezia corrente (só se cumprimentam as pessoas que passem perto e essas mesmas com marcada indiferença)—ignorancia completa das regras da gramatica (isso seria «falar dificil»!) e da orthographia. Cultivam só o corpo diplomatico e a religião; vestem bem, jogam muito, dançam muito e bem, e flirtam na perfeição. Votaram ao ostracismo algumas palavras que nós dizemos e que são pessidonias como: chavena, trem, pharmacia, carnaval etc. etc. etc. Tratam-se todos por «você»; alguns teem muita piada e usam todos um ar muito chateado. (É da praxe, o calão.) A smart diverte-se... mas não sabe sorrir».

Esta sociedade, que anda todos os dias nos jornaes, vem do alto até baixo, da aristocracia ao povo, forma uma lista infindavel, tem um chronista celebre, o snr. Luiz Trigueiros, e pode ser vista ás tardes no Dia e de manhã no Diario Nacional. Dessa lista destaca outro informador algumas senhoras: Branca de Gonta Colaço, poetisa distincta, voz de ouro, herdada do pae, bonita a valer e sempre apaixonada pelo marido, o artista Jorge Colaço; Magdalena Trigueiros de Martel Patricio, pequenina, vivissima compleição d'artista, gostos aristocraticos, fazendo versos em francês e d'uma alegria comunicativa; Elisa Baptista de Sousa Pedroso, pianista eximia, sempre em concertos, em recitas de caridade, [276] em festas que dá em sua casa e onde reune uma sociedade mesclada de artistas, diplomatas, aristocratas e politicos; Sarah da Motta Vieira Marques, voz rica e sciencia no cantar, só rivalisando com a sciencia de receber: o seu salão pode considerar-se um dos poucos refugios dos ultimos dez annos, no dizer dos seus amigos; Adelaide Coelho da Cunha, esposa do director do Diario de Noticias, grande organisadora de festas, no seu palacio a S. Vicente de Fora, festas dramaticas d'uma grande riqueza de apresentação e mise-en-scêne; a malograda Ada Weinstin, a esposa do conhecido banqueiro, recitando maravilhosamente, vestindo com suprema distincção, bonita, elegante, cheia de charme; Candida da Nova Kendall, formosura triumphante, que passou pela sociedade lisboeta como um meteoro louro, cantou como um rouxinol, e voou para terras da Santa Cruz, sua patria: ella a bem dizer tinha duas patrias: Bahia-Paris; Alda Decken Lino, figurinha de madona, de bandós negros e olhos transparentes, mulher do architecto Raul Lino; Maria Emilia Macieira Lino, cantora e organisadora de soirées artisticas com representações de autos de Gil Vicente; Alice Munró dos Anjos, dando festas na sua casa da Praça dos Restauradores, onde se dança alegremente, presididas pelas suas filhas, a linda condessa de Arnoso e a simpathica condessa de S. Lourenço; Luzia Patricio de Balsemão, grande [277] linha de elegancia, certa em todas as premiéres; Irene Gilman, filha de Thomaz Ribeiro, loura, inteligente, maliciosa e dançando maravilhosamente; Christina Rezende da Silva, d'uma belleza e elegancia patricias; Elisa Baerlein; Conceição de Carvalho, filha de Mariano, organisadora de festas artisticas, para que escrevia peças, em casa de seus sogros os Viscondes de Carnaxide, bonita e intelligente; Zulmira Franco Teixeira, pequenina, d'uma requintada elegancia, fazendo versos, como sua irmã a condessa de Almeida Araujo, etc. etc.


*


A sociedade lisboeta tinha dois pontos principaes de contacto—Cascaes e o theatro de S. Carlos. Era ahi que os ricos, ou os que aparentavam, procuravam impor-se a certa roda, que dificilmente os recebia.



De 1880 para cá as emprezas succedem-se em S. Carlos como os ministerios progressistas e regenerador e Valdez disputa com Freitas Brito a vinda a Lisboa das grandes celebridades. Se Valdez traz Masini, Patti, Devriés, Vidal, Castel Mary, Devoyod, Cotogni, a tragica Ristori, a Regina Pacini, Novelli, de Bassini, que passou por amante [278] d'uma rainha (vêr Fialho), os irmãos Andrades, etc.; Freitas Brito apresenta Varesi, Gayarre, Rapp, irmãos De Reskée, Navarrini, Tetrazzini, Theodorini, Gabrielesco, Nevada, Kaschmann, Sarah Bernhard, Marini, Ristori, Salvini, Rossi, Desreins, Sherie, Belincioni, Ferrani Darclée, Tamagno, Borghi Mamo (Herminia), baritono Aldighieri, Pandolfini, Saloni, Arkel, maestro Gula, Delman, tenor De Marchi, Morconi, Sarasate, e tantos outros. Os partidarios de Freitas Brito pateavam sempre na epoca de Valdez, os de Valdez na epoca de Freitas Brito—o que não os impedia de se juntarem em jantares semanaes, a que assistiam os dois emprezarios... A estas duas emprezas segue Paccini, que faz fortuna. Foi n'essa epoca que S. Carlos se transformou n'um grande salão. Vem a Lisboa os reis e presidentes de republicas. O numero de recitas augmenta, a assignatura augmenta. Paccini dá cincoenta recitas de assignatura, vinte e quatro extraordinarias e doze extraordinarissimas, a que o publico chama dos Sebastiões, e no palco desfilam Belincioni, Krucinisky, De Lerma, Renaud, Tita Ruffo, Lassalle, etc., etc. Segue-se Anahory, com a carruagem, o charuto, Wagner—e o desastre.

Ahi está todo o mundo literario e elegante, nos camarotes ou na plateia, toda a Lisboa como se diz nos jornaes: Carlos de Freitas Jacome, antigo diletanti, e que se julgava pae da [279] Patti, Freitas Rego, o Principe Negro, conquistador irresistivel, D. Luiz da Camara, o conde de Mesquitella e Antonio de Brito, que formavam um grupo, de que Bordallo fez tres medalhões para distribuir pelos assignantes de S. Carlos; Joaquim Pessoa, do Diario de Noticias, apaixonado da Baresi; José Saragga, critico do Jornal do Commercio; o phantastico Eduardo Cheira; Mr. Garaty e mulher, assignantes chronicos de S. Carlos, elle muito baixo, ella muito alta; dr. Patrocinio, professor de mathematica, com uma paixão assolapada pela cantora Pasqua; Antonio da Costa e Silva, um dos mais elegantes rapazes de Lisboa; Alfredo Anjos, enamorado da Devriés, e que na noite do seu beneficio lhe mandou compor um deslumbrante jardim natural para o 3.º acto do Fausto; Francisco da Fonseca Benevides e esposa, o auctor da «Historia do Theatro de S.Carlos» (recitas impares n'uma frisa, recitas pares n'uma torrinha), Freitas Branco, Silva Canellas, Jayme Arthur da Costa Pinto, que foi director da sociedade lyrica que se fundou em S. Carlos com o Paccini pae; Motta Marques, que casou com a cantora Meccoci; May Figueira, o exotico marquez de Franco e Silva Carvalho, todos tres adoradores do corpo de baile; Custodio Borja, José Bacellar e Ottolini da Veiga, com mania de canto e voz de basso—e que, d'uma vez, corrido pelo publico, a quem fizera um [280] manguito, fugiu no comboio para o Porto, ainda vestido de frade, com o fraque enfiado por cima—Eduardo Cordeiro e Augusto Ribeiro, enorme e sempre com muitos calos; Dantas Baracho; Eduardo Tavares; Espregueira e mulher n'uma frisa; José Martinho da Silva Guimarães; o Guerra, pae das meninas Guerras; o barão da Regaleira, Antonio Duarte da Cruz Pinto, Agostinho Franco, José d'Alpoim, Rufino d'Almeida, o padeiro gordissimo de S. Carlos, etc., etc. e n'uma torrinha, que ficou na tradição, a 115, o Antonio Manuel Teixeira, depois secretario de S. Luiz de Braga, o Luiz Campeão e o Oliveira, chamado das cautelas de 25: era d'ahi que partiam sempre os aplausos ou as pateadas monumentaes.

Nos camarotes e nas frizas as lindas sobrinhas do marquês de Franco, Falcarreras; a lindissima baroneza da Regaleira; e a mais bella mulher de todos os tempos, já velha e sempre decotada, a duqueza de Avila e Boiama; Espregueira, que foi a primeira que se apresentou com vestidos sem hombros, ostentando magnificos collares de brilhantes; Moreira Marques; a condessa de Figueiró; a condessa de Taveira, acompanhada pelo marido, sempre de casaca com botões amarellos; a condessa d'Edla, o gentilissimo pagem do Baile de Mascaras,—da cantora a rainha—; Poitier, loira ideal, que casou com o filho de Monteiro Milhões; a duqueza de Palmella; a condessa de [281] Alferrarede; a condessa de Alverca; a viscondessa de Idanha, e a de S. Luiz de Braga etc. etc. e no camarote de bocca de 3.ª ordem n.º 70—esta Lisboa foi sempre monumental!—a Antonia Moreno com as suas espanholas, pilar do estado, necessario e decerto muito mais util que a Junta de Credito Publico. Essa mulher acabou deixando por testamenteiro Frederico Arouca, que repudiou a fortuna que ella lhe legou, e depois de passar para alguns camarotes brazonados de fresco uma ou outra das suas mais lindas pupilas...



«Cascaes, com a adjacencia dos Estoris,—diz-me um frequentador—era a côrte na intimidade, em robe-de-chambre, mais faceis as relações, mais accessiveis e amaveis, tu cá, tu lá. Quasi tudo gente do rei, que ia para lá cedo, por meiados de setembro, cansados de Cintra onde D. Carlos raro pernoitava, fugindo, a pretexto de tudo e de nada, á convivencia da rainha e da Figueiró. A separação do rei e da rainha, segundo me informaram, porviera de certa dama, que lançou entre elles a sizania. Conheci-a ainda linda e elegante, um pouco roliça, de olhos aveludados e labios vermelhos: nos ultimos annos engordára, e banalisara-se. Tinha a furia do dominio, e rodeava-a uma côrte de gente em que ella mandava e da qual fazia parte um diplomata mais tarde em evidencia. Passava [282] por ter relações anormaes com a rainha... O marido pouco esperto, só tinha como ideal ser ministro plenipotenciario e par do reino.

Em Cascaes, a rainha não se vulagrizava. Saía a cavalo emquanto poude montar. Tinha varizes nas pernas,—informou um dia o D. Afonso. No meu tempo não passeava de barco, passeava de carruagem, descendo ás vezes para andar a pé. Dava as suas recepções á tarde, principalmente em vespera de festa, para serem apresentadas pessoas que desejavam ir aos bailes, e que em Cascaes mais facilmente obtinham o convite e a apresentação preliminar indispensavel, que o conde da Ribeira, quando estava de serviço, facilitava extraordinariamente. A Figueiró voltava para Cintra logo que acabava serviço.

O D. Carlos fazia vida hygienica de madrugador, tirava photographias, pintava ligeiramente algumas marinhas, sentindo o mar. Logo de manhã, saía de carro ou a cavalo, com chuva ou com sol (demorava-se até meiados de novembro em Cascaes), ou ia á procura de senhoras que elle perseguia. Tivera, pelo menos um anno, n'uma vila do Mont'Estoril, uma amante, mas isso não o dispensava de querer que o julgassem homem de boas fortunas. Escrevia a miudo a outras damas, em caligraphia disfarçada, cartas em prosa e verso á mistura, quasi sempre em francez. Eram muito tolas. Vi algumas e podia ter guardado uma, [283] que rasguei. Serviam-no dois alcoviteiros ilustres, que o faziam encontrado com as mulheres que lhe agradavam. Outro chegou a dar um baile, para que o rei conhecesse uma senhora da burguezia media atraz de quem andou annos.

Iam ao Sporting Club, mais conhecido pela Parada, jogar o tennis. Não havia escolha nos pareceiros. O almirante Capelo, o explorador, ficava com o sobretudo do rei no braço, emquanto elle jogava. D. Carlos era um timido, falava pouco, nunca olhava de frente: seus pequenos olhos claros evitavam sempre os dos outros.

A Parada era a capital do reino de Cascaes. Ahi se reunia a flor da aristocracia e o ingresso não era facil, como socio. Só nos ultimos tempos é que o Tompson, a quem chamavam moço fidalgo, facilitou a entrada. Aos domingos davam-se salsifrés á noite, e todos os annos um grande baile, a que assistia o rei, que distribuia os parceiros e dançava uma contradança. A rainha, se ia, não se demorava. Nos dias de semana, poucas pessoas lá estavam, preferindo os casinos á beira-mar, principalmente o Estoril.

O rei, todas as tardes, ia para a Boca do Inferno e quedava-se ali, se encontrava algumas senhoras que o interessassem. Por isso chegaram a chamar ao D. Carlos o balão cativo...

O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia logo que lhe era poss O rei mal recebia os ministros, de que se desfazia logo que lhe era possivel. Não se demoravam em Cascaes, não os convidava para assistir, [284] sequer, ás partidas. Teve d'uma vez, como hospede, o Soveral. Não lhe conheci nenhum outro.

O D. Afonso ia cedo para o Monte Estoril, para a vila sobre o mar, que ali possuia a mãe. Descia a praia, com uma grande simplicidade de maneiras. Falava pouco, era bom rapaz, e a maior manifestação intelectual que lhe conheci foi anti-clerical*. Vestia-se sumariamente: uma camisola azul, casaco e calça da mesma côr e bonet. Assim andava, de manhã até á noite. Ás vezes ia ao mar, e os barqueiros gostavam d'elle. Nunca tinha vintem. Os ajudantes ou oficiaes ás ordens não lhe emprestavam dinheiro, porque sabiam que elle não lhes pagava.

Não era dado a senhoras—preferia as outras... Certa condessa é que conseguiu ser amante d'elle, porque conhecia todas as maneiras de conquistar um homem. Deu um baile para que convidou o infante e a fina flôr. O marido estava encantado. Nenhuma moral em nenhum d'elles. Elle era muito cioso da sua nobreza e gostava de parecer. Ella queria gozar a vida. O A... que foi seu amante, contou-me que em Madrid ella dissera d'uma vez ao marido, que não tinha um ceitil quando casou: «Tu, para chulo, és caro de mais!»

Em Cascaes era dificil chegar a vias de facto com uma mulher. Meio pequeno, coscovilheiro, maldoso, maldizente. Não se falava senão nesta ou naquella, em escandalos, repetindo-se os ditos de ouvido para ouvido ou acentuando-se as infamias. [285] A M... foi apanhada no pinhal dos Olivaes n'uma atitude equivoca... A S... faz namoro descarado ao rei... Mas as coisas arranjavam-se para Lisboa. Vinham ao dentista, ás compras, etc. A forçada e grande intimidade estabelecida, de manhã na praia, á tarde na Boca do Inferno, onde toda a gente ia, apezar do vento e da poeira, na Parada ou á boquinha da noite no passeio Maria Pia, junto á cidadela, onde ás vezes fazia uma ventania infernal, á noite nos casinos, ou nalguma partida de bridge, a vida quasi em comum e os namoros travados, o ar do mar que desiquilibra os nervos e torna os amores exigentes, fizeram tecer muitas aventuras escandalosas. Um ainda fugiu a tempo com a mulher, que já madura, esteve em vesperas de cair... Nunca mais voltou a Cascaes.

As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes. Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma madrugada, num baile do M..., chegou a iniciar-se a lucta... A alta sociedade era, em regra, pelintra. As grandes familias tinham gasto as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam, dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis annos de assignatura... As ceias nos bailes eram pugnas. Vi isso até no Paço. Uma descendente de D. João IV, vi-a eu agarrar-se a um bufete, com unhas e dentes. Em certas casas, as ceias nunca chegavam. Uma madrugada, num baile do M..., chegou a iniciar-se a lucta... A alta sociedade era, em regra, pelintra. As grandes familias tinham gasto as fortunas, e muitas não queriam, ou não podiam, dar bailes. Só tinham dividas. Não era possivel deixar d'ir a S. Carlos e de satisfazer outras exigencias. Havia-os com actrizes com dezasseis annos de assignatura... Fóra o Palmella e poucos mais, não recebiam porque de todo não podiam. [286] E, se o faziam, era sem-cerimonia. Não havia dinheiro! não havia dinheiro!

Descaiam muito os fidalgos, mas obstinavam-se sempre em parecer. Um oficial jogador e pae de uma serie de filhos, mandava a miudo incomodar D. Carlos... Todos os seus famulos lhe extorquiam dinheiro, quanto podiam. Choravam, punham-se de joelhos, contavam-lhe miserias reaes ou falsas. Tive, em Cascaes, semanas uma arca com prata para fugir a uma penhora iminente... Um grande fidalgo, no fim de algum tempo, despediu os creados—mas nunca pagou a nenhum. Outro chegou a não ter que jantar, porque o mercieiro não lhe fiava, ninguem lhe fiava, mas bebia todos os dias garrafas de champagne.

Havia mancebias antigas e tão respeitaveis, como o casamento, assim, por exemplo, F... e F... Já ninguem convidava uma sem o outro.

Quer que lhe fale tambem da gente que fingia de nobre, da burguezia vaidosa e que fazia mexerico para ser convidada? A mulher d'um grande industrial conseguiu entrar na casa d'um fidalgo, onde ia toda a gente, da grande e da baixa. Convidou-a para jantar, para o theatro e andava contente como um cuco. Um dia não a convidou mais. Chorou. Isto foi-me afirmado por uma amiga que o viu. Era uma dama, muito linda, com um soberbo colo, mas com o cerebro d'uma arara...»

[287] Ahi fica o quadro levemente esboçado por um frequentador de Cascaes. Tudo isto é frivolo e tragico. Lembremo-nos que d'esta maledicencia, dos ditos d'estas boccas que sorriem, da ninharia e do encanto, se gerou parte da athmosphera donde devia sahir o descredito da rainha e o assassinato do rei.



O MUNDO POLITICO


Novembro—1918.


Os acontecimentos dos ultimos reinados afiguraram-se-me sempre faltos de logica e de nexo. Estão talvez muito perto de nós ainda: precisam de perspectiva que os coloque nos seus devidos logares. Só o historiador poderá crear mais tarde, com documentos e memorias, e certa aparencia de verdade, o romance da nossa vida. Nós, por ora não sabemos nada, nem mesmo dar resposta plausivel ás perguntas que nos obsidiam... Porque foi, por exemplo, morto D. Carlos? É fora de duvida que até os monarchicos receberam com alegria a sua morte. «Não vi lagrimas»—diz Julio de Vilhena. Eu avanço mais: só vi aplausos. E no entanto já hoje se pode afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades. Respirou-se! respirou-se!—o que não impede que, a cada anno que passa, esta figura cresça, a ponto de me parecer um dos maiores reis da sua dinastia. Já redobra de proporções e não se [290] tira do horizonte da nossa consciencia. O rei tinha na verdade defeitos, mas—diga-se! diga-se!—não foram os seus defeitos que o mataram, foram as suas qualidades. Só o assassinaram quando elle tomou a serio o seu papel de reinar, e quando, com João Franco, quiz realisar dentro da monarchia o sonho de Portugal Maior. Foi esse o momento em que, talvez pela primeira vez na historia, os monarchicos aplaudiram um crime que os deixava sem chefe, e se abriram de par em par as portas das prisões, congraçando-se todos os politicos sobre os corpos ainda mornos dos dois desventurados.



O D. Luiz pôde ir até ao fim do seu reinado, porque elle proprio o disse—«um principe é um dissimulador». Mas D. Carlos é que não foi nunca um dissimulador. D. Carlos desprezava os politicos. Dizia:—Tu ouvel-os falar? Se lesses as cartas que me escrevem enchias-te de nojo.—Essas cartas existem... Na verdade toda a gente dizia mal da politica e desprezava os politicos: só elle os não podia desprezar. É authentico tambem que no seu desdem chegou a envolver o paiz. Toda a gente, desde o literato ao homem rude, dizia mal do paiz. Tempo houve em que foi moda dizel-o. Só elle não devia dizer mal do paiz. Realmente pediu muito dinheiro aos politicos, mas os politicos pediram muito mais dinheiro á [291] nação, dando cabo d'elle com as suas clientelas. E ninguem lhes tomou nunca contas: todos morreram honrados. Hintze passou por ser um homem integro. José Luciano tambem. Pessoalmente decerto, mas com o que ambos elles esbanjaram reconstruia-se o paiz de alto a baixo. O partido regenerador tinha tal fama que se dizia em Lisboa: «quem não é regenerador é ladrão de si mesmo». Na realidade não havia a esse tempo—porque hoje tudo mudou de figura—senão um partido em Portugal capaz de sacrificios, o partido republicano: os outros, para me servir da phrase tão justa de Homem Christo, eram apenas «quadrilhas politicas». Ser politico em Portugal foi a mais rendosa de todas as industrias. «Logo que chega ao poder um chefe de partido não pensa senão em explorar o paiz em proveito das suas clientellas. O Estado é a preza dos politicos... Se eu podesse encontrar um homem integro que podesse modificar tudo isto dar-lhe-hia todo o meu apoio».

Parecia que o proprio paiz na verdade só queria comer:—Pedem tudo! pedem as maiores poucas vergonhas!—exclamava o Alpoim; e o dr. Antonio Cabral escrevia:


[292]
«No tempo da monarquia essa mesma maioria acomodaticia e pedinchona, só conhecia o caminho dos ministérios para ir importunar os secretarios de Estado com solicitações de empregos, de benesses, de estradas, de favores, até de escandalos. Não ia levar aos ministros uma ideia, um plano, a lembrança de um beneficio para o país. Ia procurar interesses, buscar comodidades, exigir condescendencias, sem se lembrar de que tudo isso custava, muitas vezes, dinheiro ao Tesouro Publico e só causava prejuizos á nação.

Depois, quando a tempestade bramia e as moscas varejeiras zumbiam em tôrno da montureira politica, essa mesma maioria, de larga guela e incomensuravel ventre, era a primeira a gritar contra as imoralidades que provocara, contra os atropelos da lei que impuzera, contra os êrros de administração que imperiosamente reclamara! Para essa maioria prudente... e de muito comer, os culpados de tudo—criminosos execrandos!—eram o Rei, os ministros, os deputados, todos, emfim, que tinham na mão as rédeas da governação publica. Ella, a maioria exigente e dificil de contentar, era inocente e de tudo lavava as mãos.

Ella, a maioria composta dos influentes, dos caciques, dos compadres, dos despoticos senhores do país, que hoje se encolhem, transidos de pavor, e então barafustavam do alto do seu pedestal de mandões; ella, a maioria que ordenava, que dispunha de votos, que sabia impôr-se com arrogancia—ella, de nada era culpada e escondia o rosto púdico na alva clamide de vitima dos maus politicos!...

Veiu, por fim, a queda no abismo, em que se evidenciou a traição de muitos e a incompetencia de tantos. A maioria dos portugueses, se não delirou de contentamento, remeteu-se ao cómodo e discreto silencio em que se comprazem os covardes e os maus cidadãos, para só os interromper com murmurios de reprovação, soprados nos centros de conversa contra os politicos... que ella empurrára para o mau caminho e ajudara a despenhar no precipicio.

Oh! a maioria dos bons cidadãos de larga pança!...»


Hintze e José Luciano tinham-se congraçado no reinado de D. Carlos, e só elles podiam tudo, [293] só d'elles dependiam lugares, favores, vaidades e interesses. Antonio Cabral está certo que foi pelos seus meritos—que não são poucos—que chegou a ministro?... Ai de quem lhes desagradasse. Ao irrequieto Fuschini entretiveram-no com as obras da Sé para o arredarem da politica; ao José Dias Ferreira, que foi dos raros homens de governo comezinho do seu tempo, nem sequer o ouviam nas camaras. Toda a gente lhe voltava as costas quando falava. Sabia-se que o Paço o detestava. O José Luciano e o Hintze sucederam-se, d'acordo, no governo do paiz e no governo do Credito Predial, com identico sucesso!

Ambos elles eram pessoalmente muito boas pessoas, ambos elles tiveram um fraco extraordinario pelos tratantes. O Hintze, o homem que não ri, o casaca de ferro, era um homem um pouco cansado e com um lindo sorriso para toda a gente:—Pois sim, pois sim...—Trato encantador. Nas camaras era vel-o! Ninguem apresentava assim as questões: tinha tudo catalogado, arrumado, disposto, e os papeis saltavam-lhe da carteira por arte magica. O José Luciano, mais bonacheirão e ao mesmo tempo mais caustico, conhecia como poucos os homens que lhe tinham passado em fita pelo salão da sua casa, com as suas vaidades, as suas miserias, os seus rancores e os seus vicios, e tocava-lhes sempre no ponto fraco. Pessoalmente honesto,—quem o duvida?—mas tendo cada vez mais imperiosa [294] a necessidade de satisfazer clientelas cada vez mais sofregas—ambos acabaram de corromper o paiz, já meio corrompido, até á medula. Importa pouco que o snr. D. Luiz de Castro diga: «Hintze vendeu todo o seu patrimonio e o de sua mulher para servir o reino e o rei» (Dia, fevereiro, 1917). Sim, mas Hintze distribuiu a rodos o dinheiro da nação, principalmente depois da scisão João Franco, e colocou toda a gente a começar pelos seus[15].

[295] Não resistiu. Delapidou, principalmente depois da scisão João Franco, sem conta nem pezo nem medida. Anselmo Vieira diz: «José Maria dos Santos entregou á viuva do Hintze, no dia do enterro, 21 contos de lettras vencidas. Ora a questão do alcool entre o norte e o sul foi sempre adiada pelo Hintze, o que fez ganhar 300 contos ao José Maria dos Santos.» Na sua phrase pitoresca a politica portugueza estava condemnada porque era um regimen de validos e badamecos. E cita este e aquelle e aquelloutro, que, na sua opinião, e todos juntos, não valiam um estadista. O Hintze não resolvia um problema, arredava-o, e as complicações augmentavam sempre; se tinha a escolher entre dez homens, escolhia sempre o peor... O honradissimo capitão Machado, duro como o silex, chegou a par, porque, quando atacavam o José Luciano na camara alta, dizia sempre:—Viessem elles cá para os deputados e quem os ensinava era eu.—O pobre monsenhor inutil, que se chamou Santos Viegas, achou outro truc para o Hintze o elevar á mesma cathegoria: quando o chefe do partido regenerador falava, cahia n'um assombro, de que não havia arrancal-o!...—«Chegaram [296] a ministros seres destituidos de todo o miolo. O honradissimo Pequito, santissima creatura, foi um dia para uma comissão, a que o José Dias presidia, com o Contracto dos Tabacos, que elle só tinha assignado e mais nada. Havia um artigo redigido de forma que cincoenta milhões de francos ficavam encobertos, para se poderem pagar as dividas da Casa Real. José Dias pediu explicações, o outro embrulhou-se, José Dias insistiu, o outro ficou de bocca aberta, com cara de pasmo—até que o velho rabula lhe disse com soberano desprezo:—Comprehendo, comprehendo... o snr. ministro da fazenda precisa de ouvir os seus colegas para depois responder...—Se o José Dias tem deixado passar aquella trapalhada talvez D. Carlos não tivesse sido assassinado.»

A politica portugueza chegára a estar apenas nas mãos e dependente da vontade dos chefes. O José Luciano dizia:—O meu partido não é que me leva ao poder—sou eu que levo o meu partido ao poder. Dois homens e clientelas. Alguem se filiou jamais n'um destes partidos por principio, por ideal? ou foi por interesses, e, mais simplesmente, por simpathias pessoaes?

E assim a força desses dois homens chegára tambem a ser ficticia:—não provinha do paiz—provinha do rei... As camaras mero scenario; os discursos, as atitudes, theatraes: o que havia a decidir não se decidia alli. Tudo estava resolvido, [297] preparado de antemão, nos salões, nas ante camaras, nos gabinetes ou nos corredores, entre os chefes. O resto era um espectaculo com as suas regras e os seus figurantes, absolutamente inutil—absolutamente falso—absolutamente fóra de toda a realidade...


*


As camaras... Por lá passou Junqueiro, que de lá sahiu um dia dizendo:—Vão áquella parte—; por lá passou o grande, o pobre João de Deus, que nunca poude abrir a bocca, e outros homens ilustres. De lá sahiu Fuschini, que se foi embora fazendo-lhes um manguito, quando Arroyo n'uma sessão celebre lhe disse:—Ajoelhe a meus pés!—Oliveira Martins, exhausto de trabalho; o romantico Chagas, cujas ultimas palavras foram estas:—A vida é uma comedia.—Já não os ouvi, mas vi e ouvi ainda o pachydermico Antonio d'Azevedo Castello Branco, o esguio e taciturno Beirão, sempre alheado, o grande orador Antonio Candido, o canarim Elvino de Brito, que manejava a palavra como quem maneja um florete, e que o Hintze tratava d'alto, o anecdotico Baracho, cujos discursos não tinham fim, o Campos Henriques, lyrio pendente, o theatral Arroyo, o José d'Azevedo, o Eduardo Villaça tão amavel para todos, tão afavel que ficou para sempre o Villacinha, o Chanceleiros, com a sua grande gaforina branca, o severo e taciturno [298] Dias Costa, que morreu de desgosto, tendo cumprido o seu dever como um soldado, a nobilissima figura do conde de Arnoso, que vejo sempre diante de mim, bradando por justiça, e que acabou envolto em treva, jungido á sua dor, o Jacintho Candido, um pouco apagado, mas resistente e teimoso, o João Franco, o decorativo Wenceslau de Lima, o Pimentel Pinto, do alto dos seus tacões, o Albano de Mello, tão admirador do José Luciano que chegou a ponto de se parecer com elle na atitude, na voz e até no rosto, e, na outra camara, a um lado o pitoresco conego José Dias, apopletico e jovial, lá das bandas de Monsão, o torrencial Oliveira Mattos, que, a primeira vez que falou, fez rebentar os cós das calças ao Chagas, que perguntava entre spasmos de riso:—Mas quem é este homem? onde foram buscar este homem?—e a quem ouço ainda invectivando o ministro da guerra:—Heroe de Trajouce! heroe de Trajouce!—os Cabraes, um polido e soturno, que o Hintze estimava, o outro, Antonio, de bigodes assanhados, como um galo de combate; o José d'Alpoim, impulsivo, terrivel na replica; o João Pinto dos Santos, um sistema de philosophia para cada caso futil do dia, já branco, de punhos solidos, e sempre o mesmo aprumo, a mesma linha, a mesma conducta; o Moreirinha, o Centeno, e o juiz Francisco Medeiros que pouco antes de morrer (estou a ouvil-o) me disse assim:—Tenho [299] pena de não ter roubado como os outros...—E, diante do meu espanto, concluiu:—Quando morrer deixo a minha filha pobre e os outros estão ricos.—E a outro lado, o elegante, o frivolo conde de Paçô Vieira, o lustroso conde de Castro Solla, o Anselmo Vieira, sempre a debater finanças, sempre á espera das grandes ocasiões, sempre esquecido á ultima hora na lista do ministerio, o estrabico Dias Ferreira, falando baixinho para dois fieis que lhe restavam; o Matoso dos Santos, sempre enfronhado em algarismos, o Sergio de Castro, o D. Alberto Bramão e outros jornalistas da Tarde, o Schwalbach aparecendo, desaparecendo, atarefado, e tantos outros sumidos lá para o fundo na obscuridade e no silencio.

Juntem a este mundo o mundo dos jornaes, os meios politicos onde tudo se comenta e desfigura, e o mundo financeiro, com alguns tipos que é necessario anotar rapidamente: primeiro os Mosers e o Foz, predominando com o Mariano, a casa Torlades e outros grupos; a casa Burnay e o impenetravel Jonh, e, nos ultimos tempos da monarchia, a casa Wernestein, Alfredo da Silva e a casa alemã Ernest George. Entre essas figuras conheci uma d'um alto pitoresco: Gomes Netto, sem instrucção, mas d'um grande senso pratico. Não raro o encontravam em mangas de camisa no seu escriptorio. Escrevia em largos quartos de papel e depois dizia:—Ponham-lhe lá a gramatica!—Acabou já velho e amoroso, fazendo [300] todos os dias compras de legumes e peixe, na Praça da Figueira, que depois ia distribuir de coupé por casa das amantes, pescada aqui, pescada alli... Juntem a isto as redacções dos jornaes, em forja rubra a certas horas da tarde ou da noite, os ditos, as noticias espalhadas, a côrte ao senhor conselheiro... Era peor o que se dizia do que o que se fazia... Era o descredito lançado sobre tudo e todos, a tal ponto que um dia, mais tarde, quando um juiz monarchico (Paçô Vieira) foi despachado para a provincia, o delegado disse-lhe muito a serio:—Mas como queria V. Ex.a que se sustentasse um regimen em que as filhas do José Luciano eram apalpadeiras da alfandega com cem mil reis por mez?—Nos comicios asseverava-se que a rainha D. Amelia comprava no estrangeiro vestidos por vinte e quatro contos. Peor, peor... Depois da republica o Eduardo Villaça encontrou-se com João Chagas em Paris e perguntou-lhe com ironia:—Então esses famosos inqueritos da republica, com que fizeram tanto espalhafato, não deram nada?—Ao que o outro, lépido, respondeu:—Vocês que querem? Tanto se acusaram de ladrões uns aos outros, que a gente acreditou...


*


—Um homem! um homem!—reclamava o D. Carlos. Um momento de hesitação e de duvida [301] na sua vida... Dois caminhos na frente: um commodo e largo, de transigencias faceis, o outro perigoso mas util para o seu paiz. Decidiu-se pelo peor. Ia jogar a vida.

Elle era, como toda a gente, um mixto de qualidades e defeitos... Ha homens que se nos afiguram d'uma só peça. Desconfiem d'elles: andam mascarados... Timidez e orgulho. Todos dizem:—Era encantador.—Todos estão de acordo n'este ponto: ninguem o podia aturar. Um oficial afirma:—Tratava os politicos como lacaios, tratava a gente do povo com extrema bondade.—Um dia escreveu um bilhete nas costas do Hintze, que se curvou para lhe servir de secretária; outro dia, já a cavalo para uma ferra de touros, atirou com a capa a um velho general seu servidor:—Guarda lá isso!—D'outra vez dispoz o ministerio á chuva para lhe tirar o retrato. Tratava-os com desdem. Sacrificou sempre os homens que se lhe dedicaram, o Martins e o Mousinho, por exemplo. O Carlos Lobo d'Avila tinha-lhe dado uma formula que o lisonjeou e o deitou a perder. Era um valente. Escrevia cartas anonimas á mulher. Media tudo pela mesma bitola—e, se o deixam viver, tinha sido um dos maiores reis da sua dinastia. Acabou á bala, quando ia matal-o o figado: comia e bebia enormemente e pezava-lhe em cima esta tara: era filho d'uma histerica e d'um sifilitico. Este mixto, n'um homem inteligente como elle, só tem uma explicação: [302] timidez e orgulho—timidez e orgulho...

Efectivamente resolver-se a luctar contra os interesses dos partidos e dos homens, desencadear paixões, era lançar-se n'um combate de que não podia esperar senão contrariedades e a morte. Salientaram-lhe logo todos os defeitos. Tudo que se fazia de mau era sempre o rei que o fazia. Obscureceram-lhe de proposito as qualidades. Esqueceram que D. Carlos colocara o paiz n'uma situação externa admiravel, e que os dois ou tres actos de homem d'estado do seu tempo lhe pertencem, como a unica acção grande da republica pertence a Bernardino Machado, que conseguiu levar as tropas portuguezas para a frente europeia—quando os inglezes reclamavam apenas o nosso esforço em Africa[16]. As viagens a Paris, a Berlim, a Londres corôam o anno de 1895. A aliança ingleza é um facto. Veem a Lisboa os grandes chefes d'estado. Vae começar uma grande época. Aponta a Africa a uma pleiade brilhante de oficiaes, que elle proprio incita, comprehendendo que o grande Portugal é outro, e que esta facha de terreno, com um clima agricola horrivel, só pode ser uma vinha e um logar de repouso e prazer. [303] De lá, d'esse novo Brazil—dos extensos planaltos d'Angola, que duas vezes por anno produzem trigo—tem de nos vir o oiro e o pão. O resto é visão de pequenos estadistas de trazer por casa. Só elle concebe e incita. Só elle fala e sonha n'um Portugal maior, n'um Portugal esplendido. O plano estabelecido e iniciado, fecha-se com um ponto culminante: o tratado de commercio com o Brazil, que D. Carlos teve realisado, e que, ao que parece, tarde, dificilmente, ou jamais, se conseguirá. Foi este homem que assassinaram como ladrão a uma esquina de Lisboa...



Porque foi morto, afinal, o rei?... Um velho philosopho meu amigo traduziu um dia toda a ancia contemporanea n'aquella grande phrase, que não me canso de repetir:—Nós tambem queremos comer...—Sómente para ser justo e completo, a uma verdade devia juntar outra verdade:—E não cabemos todos!

Não, os partidos não cabiam todos, não podiam caber todos, e estavam completamente desacreditados. A grande força de João Franco foi, na realidade, de protesto. E quem falhou, diga-se já, não foi o rei, foi João Franco; quem não esteve á altura do seu papel, não foi D. Carlos, foi o dictador. João Franco tinha atraz de si um partido pouco numeroso (as clientellas haviam de vir...), mas resistente, tenaz, entusiastico. Os franquistas [304] de hontem são ainda hoje franquistas. Não perdem a fé, e nem agora nem nunca despegam um olho do Fundão, embora lancem o outro, com prazer, ironia ou desdem, sobre o ridente panorama da vida... É preciso que realmente esse homem disponha de qualidades excepcionais para conseguir tal poder de dominação. Era um impulsivo: grande fraqueza e grande força. Procurava os obstaculos para os dominar e gastou uma energia desmedida a resolver ninharias. Em Lisboa dizia-se com espanto:—Este homem só levanta carrapatas!—Ora caçava no seu terreno, ora no terreno dos republicanos. Homem d'estado, ia talvez ter ocasião de o mostrar—depois da morte do rei. Ahi é que era vel-o!... Valente e calmo foi-o decerto. Vi-o eu n'uma ocasião grave da sua vida. Os republicanos (Ribeira Brava, talvez) tinham obtido a sua prisão logo depois do cinco d'outubro. De Cintra levaram-no para um gabinete da Boa-Hora. Cá fóra o França Borges, refestelado n'uma poltrona, gosava a sua vingança e o seu triumpho, separado do cacifro por uma porta escancarada. O juiz Meirelles e um delegado de pera ruiva e gravatinha vermelha, vinham de quando em quando trocar não sei que impressões com elle. Pela porta aberta vi o João Franco de pé, sereno e palido: parecia enorme, junto dos dois bonifrates. E quando o juiz lhe disse, acabado o interrogatorio:—É talvez melhor sahir por outra porta, porque o povo [305] mata-o!...—o homem teimou, o homem cresceu dois palmos:—Eu só saio por a porta por onde entrei.—Estava preso, obrigaram-o emfim a descer umas escadinhas, a meter-se ás escondidas no automovel, que o esperava na calçada que sobe quasi a pique para a Biblioteca, emquanto alguem—juro-o—prevenia a furiosa onda popular, que correu aos gritos de—morra! morra!—a esperal-o em baixo, á esquina. Um borborinho. Tiros de pistola. Dois marinheiros apontaram as espingardas, defendendo o automovel, que só a custo arrancou—emfim! emfim!—pela calçada acima.—Morra o João Franco!...—E as vozes colericas gritavam:—Morra! matem-no!...—Era este o homem, que, com o rei, estava em frente dos partidos progressista, regenerador, dissidente e republicano. Os ataques sucediam-se e agravavam-se. Os monarchicos, dificilmente sustidos pelos chefes, ameaçavam ingressar no partido republicano, que todos os dias ganhava em numero, cohesão e audacia. O proprio José Luciano perdia a serenidade:


«Ha uma coisa que aos governos nunca deve esquecer, que a lição da historia a cada instante repete: á revolução do alto, pode muito bem suceder que responda a revolução de baixo». (Correio da Noite, 14 de Maio de 1907).

«O presidente do conselho blazona e conta com o auxilio, sem duvida, poderoso e eficaz do Rei, e zomba da opinião publica, que tanto pretendeu captar, antes de subir ao poder? Faz mal, porque ha-de chegar e oxalá que chegue a tempo o momento em que El-Rei se recorde das suas palavras de ha um anno:

[306]
A responsabilidade do decreto, ainda que aparentemente só acto do poder executivo, recahe mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão de pedir a responsabilidade da sua assignatura». (Correio da Noite, 15 de Maio de 1907).


E a 24 de Maio vociferava: «A monarchia precisa dos monarchicos... a monarchia precisa dos monarchicos, mais do que estes precisam da monarchia». Todos os dias novos boatos, todos os dias nova causa de excitação. Barafunda, prisões, protestos. N'uma reunião celebre, por um triz que os regeneradores não passam em massa para o campo republicano. E o Correio da Noite, no acesso do delirio, apelava já para a linguagem biblica: «O que tem ouvidos para ouvir ouça; o que tem olhos para ver veja...»

«Do alto deve descer o exemplo, e quando as acções dos que governam são de preversão e de crime, de corrupção e de suborno, de desbarato dos dinheiros publicos e de abuso do poder, os actos dos governados não podem ser de veneração e de paz, de obediencia e de acatamento.


Com torrentes de sangue se conquistou a alforria do povo, com oceanos de lagrimas se lavou a mancha do absolutismo». (Correio da Noite, 1 de Junho de 1907).


Que faziam os dissidentes, o mais avançado dos partidos monarchicos? Os dissidentes conspiravam. As dissidencias anteriores, a do Mariano, a do Navarro, tinham fracassado: a do [307] Alpoim ia dar como resultado a revolução.—Foi o senhor que fez a republica.—E elle dizia, com o olho esperto a luzir:—Levei-os pela mão.—Julgando conquistar o poder, perdeu-o para sempre. «Baralhou para dar», como aconselhava o Marçal Pacheco—mas enganou-se no trunfo. Depois que se separou do José Luciano nunca mais acertou, na phrase do Moreira d'Almeida... Era um grupo tremendo: o João Pinto dos Santos, tenaz e resoluto como as armas; o pratico Centeno, mola distendida sabe Deus até onde; o Queiroz Ribeiro, o Pedro Martins; o sagacissimo Egas Moniz, a quem ninguem consegue ouvir os passos—mas que toda a noite, todo o dia, roda nos meandros da politica, conspirador e politico até á medula; o Moreira d'Almeida, capaz de falar e de escrever um dia inteiro, sem um desfalecimento, enfiando todas as formas e todos os estilos, de tal maneira que, muitas vezes o Antonio Ennes ou o Alpoim duvidavam se os artigos, que elle escrevia, lhes pertenciam, apanhando no ar as questões, e com um grupo de amigos a latere, que conheciam a fundo as colonias e as finanças; mais este e aquelle, e outras raizes lançadas ao acaso, e ligações no Porto com um «mercante espertissimo», como nas discussões ouvi chamar a Lima Junior. O chefe d'este grupo unido e compacto era extraordinario... Agitação perpetua. Orador admiravel, sobretudo na réplica, em que perdia a retorica e ficava incisivo [308] e nu como uma espada. Um passo a mais e seria um escriptor ilustre: não teve um momento de seu para rever as provas. Com a paixão, a colera, o arrebatamento, um grande coração. Nunca lhe conheci odios, e muitas vezes lhe ouvi defender até o seu maior inimigo, o José Luciano. Ao proprio D. Manuel elle diz: «...O José Luciano vale mais do que todos os progressistas e regeneradores juntos, contando com elle proprio Alpoim ». (Documentos politicos). E quem conheceu o Alpoim sabe que as notas que o rei escreveu são mais que exactas, são phonographadas. É elle a falar d'este e d'aquelle, dos amigos, dos inimigos—de Deus e do Diabo. Uma ambição do poder que o leva arrastado, mais pela lucta em si, necessaria a um temperamento excessivo, do que por vaidade ou vangloria. Principios poucos—meios aquelles que os adversarios, a tenacidade e o rancor de José Luciano, lhe deixavam. Acusaram-no de tudo—acusaram-no da morte de D. Carlos... «Até disseram, Senhor, que fui eu que matei El-Rei D. Carlos!!!» (Documentos politicos). Resistiu sempre; morreu a conspirar. Nos seus ultimos annos não sei que tristeza o envolve... A figura parece maior, as palavras simplificam-se-lhe, os sentimentos tambem. Engrandece. Raros teriam, como elle teve, a sinceridade de escrever: «Na minha defeza, que teve de ser espectaculosamente rude por vezes e d'uma acção subterranea por outras, excessos cometi [309] de que me penitenceio—mais do que se imagina»... E repete e insiste: «Em muitos actos da minha vida de lucta, por vezes injustamente combatido, tenho sido exagerado—e errei. De muitas coisas estou repezo, e d'ellas hoje se admira a minha inteligencia e peço perdão á minha propria consciencia e até aos homens!» Quantos ha ahi capazes d'esta grandeza? Quantos—tendo todos juntos concorrido para a morte de D. Carlos—o acusaram a elle só, com a tinta do Correio da Noite ainda fresca?


«Aqui d'El-Rei—se nos pode ouvir El-Rei—contra quem mandou assassinar o povo de Lisboa.» (Correio da Noite, tarjado de luto). «Aparecem hoje, segundo ameaças do governo e segundo as suas notas oficiosas sempre irritantes á imprensa, decretos esmagadores. Tanto peor para o Rei e para as Instituições. As responsabilidades d'esses decretos, ainda que aparentemente só do poder executivo recairão mais uma vez sobre o Rei, a quem todos hão-de pedir a responsabilidade da sua assignatura. (Correio da Noite, 20 de Junho de 1907).


*


Quem reina agora em Portugal não é o senhor D. Manuel, é sua Magestade o Mêdo. Que quadro para um Saint-Simon, que descrevesse os politicos e a côrte, o que se diz e o que se adivinha, o que resalta dos Documentos politicos, e o que se conserva na sombra como um baixo [310] relevo de odios e de interesses! Enredam, intrigam-se, perdem-se todos juntos. A politica portugueza gira sobre este fulchro: «O José Luciano, não podendo governar por se achar impossibilitado... e não querendo substituir-se para não perder o comando de que é muito cioso»[17] emprega até ao fim todos os esforços para inutilisar o Julio de Vilhena. Só pela vã ambição de mandar? O velho é perspicaz e teimoso, o velho conhece, como poucos, os homens e entende que só elle pode e sabe governar. É teimosia e grandeza. Não abdica, não pode. Toda a vida foi obedecido. Aferra-se. O que elle quer é ser o «Deus ex-machina da nossa politica sem se mexer da sua chaise-longue». Que tipo! Governou sempre, mandou sempre, conservou-se sempre lucido. E tanta serenidade, que até no dia em que lhe assaltaram a casa dos Navegantes, é o unico que não perde o sangue-frio, e, quando o querem esconder n'uma banheira, teima em ficar na cadeira de rodas! Tem a logica do diabo e uma manha, um conhecimento dos homens, a que os outros não chegam. Desde o principio que todos se congregam para enfraquecer o partido regenerador. «Isto—diz a velha rapoza—é uma lucta de politicos que se querem inutilisar e desacreditar uns aos outros». É assim—e nenhum [311] d'elles se lembrou que só os republicanos lucravam. Até os franquistas. «Os franquistas, por intermedio do Martins de Carvalho, forneceram aos republicanos todos os elementos que poderam colligir para descredito dos rotativos» (T. do Amaral ao rei). Até os nacionalistas. Entretanto o rei ouve-os e toma notas... A sua vontade é acertar. Passa a vida a acertar, o que não é bem a missão d'um chefe, mas a d'um relojoeiro. Não creio que os homens se governem só pelo interesse ou pelo terror, como queria Napoleão, mas creio que se não governam com pannos quentes, e que mais vale tomar uma decisão má do que não tomar nenhuma. O povo, como o soldado, precisa de sentir um chefe, e adivinha-o logo. Tudo no rei são boas intenções. Mal ousa dar um passo, não se resolve nunca—e atraz d'elle está a mãe, que quer educal-o para rei, mas que tem diante dos olhos o quadro horroroso... Apezar d'isso é ella propria que o incita a passear á luz do dia, como uma vez quando o trouxeram a galope, entre uma escolta de cavalaria, do Rocio ao Paço... Arrisca-o. Procura congraçar toda a gente. E odiada. A D. Maria Pia, histerica e perdularia, agradou sempre: até os seus ditos se repetiam:—O senhor é um merda!—ao D. Luiz, quando elle aceitou as imposições do Saldanha; até os seus vestidos, a sua ostentação, a atmosphera de rainha extravagante, que só sabia que existiam contos e patacos, os chapeus que [312] mandava vir de Paris, aos trinta e quarenta, em cada estação; até a sua desordem elegante de histerica. Nem os jornaes republicanos a atacavam. E quando foi para o exilio, já doida, com um pão debaixo do braço e uma manta pela cabeça, só ella deixou saudades. Era a Rainha. A D. Amelia não. Essa senhora, de quem alguem disse:—É um grande homem de bem!—subiu todo o calvario da vida. Era religiosa—o que só a honra—chamaram-lhe beata. Andou nos folhetins e nos pamphletos. Os seus criados detestavam-na[18]. Ao passo que a rainha D. Maria Pia, [313] falso anjo de caridade, pouco fez com o seu espalhafato e foi adorada, a D. Amelia, que combateu metodicamente a tuberculose, espalhando o bem a mãos cheias, fundando a Assistencia Nacional, com os seus sanatorios e dispensarios, as cozinhas economicas, o hospital do Rego, o Instituto de Socorros a Naufragos, e contribuindo para a fundação do Instituto Bacteriologico, etc., foi sempre odiada, calumniada, insultada. Nem dentro de sua casa lhe era possivel conversar. Um dia, para falar em segredo com um ministro, chamou-o para o meio da sala:—Aqui, porque senão vem tudo amanhã no Mundo.—E vinha. Até o homem dos telephones era carbonario... Estou em dizer que é o acaso que governa a vida: a razão não é, com certeza.

Ponham agora á roda d'estas figuras, os politicos e as paixões falando cada vez mais alto. É o momento em que todos á uma querem ser chefes! Querem ser chefes o Teixeira de Souza [314] e o Alpoim, querem-no ser o Wenceslau de Lima e o Campos Henriques, e até o pobre, o inculto Pimentel Pinto, que Antonio Candido fez um dia ministro, tem um deslumbramento e sonha na candidatura. Elle é «o Vilhena muito afectuoso, muito lisongeiro e muito avido de poder»; elle é o Teixeira de Souza, «todo agrado, comtanto que elle entre no governo n'uma situação que não seja inferior á do Campos Henriques»—retrata-os o Wenceslau, que é o unico que sobe, como um balão cheio de vento, no conceito de quasi todos os politicos, que se reveem n'elle como n'um espelho.—E o José Luciano teima: «O Vilhena está quasi abandonado pelos seus marechaes». Todos á uma proclamam ao rei e ao mundo que esse homem é incompetente.—É um homem de talento—afirma um ex-ministro graduado—mas nunca vi incompetencia maior como politico.—Porquê? É o que resta saber. Elle é dos poucos que sabe o que quer, que tem um plano e que o apresenta (Antes da Republica)—é tambem o unico com superioridade mental organisada. Pequeno, sempre pendurado no charuto, conserva, até nas ocasiões criticas, serenidade e firmeza. Mas todos concordam na sua inferioridade politica...

Se só pelo triumpho é que se demonstra tino politico, como quer alguem—na verdade Julio de Vilhena falhou completamente. Nem todos os meios lhe serviam, e em Portugal não existem correntes [315] de idéas ou de principios que levem um homem ao poder. O que se chama opinião não se pronuncia. Os chefes de partido são simples chefes de bando. O Paço é que faz ou desfaz os politicos, ou outros meios obscuros, de que cada um se pode servir, como no tempo de Luiz XIV. Escolheram-no para chefe n'uma occasião em que nenhum dos outros o podia ser, mas atraz delle estava a tenacidade do Teixeira de Souza, a politiquice de Campos Henriques e a astucia de Wenceslau.—Esse sim, chame V. Magestade o Wehceslau—diz o Alpoim.—O Wenceslau sim—concorda o José Luciano. Elle é o homem do Paço e dos politicos. Começa a ser indispensavel. O outro tropeço não lhes sae da frente. Era a occasião de governar quem governasse, mas ao José Luciano só lhe convêm «governos mixtos em que elle mande, ou que, pelo menos, ponham o cofre das graças á sua disposição.» (P. Pinto). E todos ou quasi todos só pensam no Wenceslau, que promete muito, que sorri a toda a gente, e que não tem nada lá dentro. É o optimista necessario. Impõe-se pela parte decorativa, pela boa educação, pela maneira como contenta o mundo. As vezes chega a oferecer o governo a um, tendo-o já oferecido a outro... (J. de Vilhena). Só o lunatico não entende... Elle bem protesta: «Quem o conhece tem obrigação de saber que nunca foi um aventureiro ambicioso, nem um intrigante ordinario, [316] capaz de empregar processos menos correctos para obter quaesquer posições». Mas foi exactamente isso que o perdeu! Num paiz onde não ha opinião, não pode haver chefes de partido. Que diferença entre elle e o Teixeira de Souza, espadaúdo e forte, abundante, abrindo logo os braços a toda a gente:—Tu que queres, filho?!—D'outro feitio era o Campos Henriques, procurador encartado do norte, escrevendo a meio mundo e satisfazendo a outro meio (agua molle em pedra dura...); d'outro feitio, emfim, era o palaciano Wenceslau de Lima, o favorito, que censurava as cartas do rei e lhe escrevia os borrões. Nenhum homem mais souple nem mais agradavel, sempre a mastigar e a sorrir. Está nas antecamaras quando o rei conferenceia, e ha um momento em que só elle põe e dispõe, e em que aconselha ao rei:—Chame-me a mim, para eu declinar!—E o rei chama-o. As duas grandes figuras do reinado, vinham a ser o Wenceslau de Lima e o Soveral. O proprio José Luciano estava condemnado...

Tudo isto se passa sob o olhar ironico ou severo dos republicanos e diante do phantasma da republica. Nem assim os interesses e as ambições abdicam. Nunca, nem no inferno, abdicaram! Acima de tudo está o odio do José Luciano, estão as paixões do Alpoim, que sonha no poder, e que na manhã de 5 d'Outubro ainda dizia:—Agora, sufocada a revolução, o rei não [317] pode deixar de me chamar a mim...—Interesses e homens, tendo cada um «a sua policia», como diz o Teixeira de Souza. E o rei no trono, no palacio onde as paredes teem ouvidos, sempre a rabiscar papeis, incitando-os ás vezes (J. de Vilhena), sem prever o mundo de coleras que está para vir á superficie. Quando á noite se apanha só, abre a gaveta e desata a escrever aquelle interminavel romance politico, que caminha a galope para o remate da fuga e do exilio. E as vozes, cada vez mais altas, obstinaram-se:—Não pode haver ordem nem tranquilidade com o Alpoim no paiz—exclama um.—Elle é um espirito claro e nada mais! protesta outro.—É uma cambada! A propria dissidencia que é? É um inferno!—conclue o Alpoim.—É um idiota! O mal foi elegel-o para chefe.—E o Teixeira do Amaral observa ácerca d'um grupo:—São pescadores d'aguas turvas...

Quem ha-de conter os homens e os acontecimentos? O rei? O rei escreve, escreve sempre... O Credito Predial desaba:—Foi então que os burguezes, vendo-se roubados, nos deixaram fazer a republica...—asseverou Junqueiro. Ao poder sobe emfim o fatidico Teixeira de Souza. Os acontecimentos precipitam-se. Atraz dos homens está uma força monstruosa que parece empurral-os a todos—até ao rei, que, de quando em quando, pára de escrever e sorri enlevado para os dois bonecos que tem em cima da comoda, [318] a caricatura d'um marinheiro inglez e a caricatura do Soveral—e vae leval-os a todos, sob o olhar impassivel do destino, para o desenlace fatal.

Todos esses homens tinham defeitos. Alguns eram até ridiculos. Mas, apezar de tudo, não ultrapassavam determinada linha, apegados a preconceitos e a formulas, de que não havia arrancal-os... Vae o senhor D. Manuel, não tarda, porque a monarchia ha-de voltar—tudo sucede vertiginosamente n'este paiz—conhecer outros, com muito menos escrupulos, que o hão-de encher de desgostos. V. Magestade verá.

FIM DO 1.º VOLUME







INDICES




LISTA DAS PESSOAS CITADAS NO 1.º VOLUME



A


Abel d'Andrade

Abrantes (Marquez de)

Ada Weinstin

Adelaide Coelho da Cunha

Adrião de Seixas

Affonso Costa

Affonso (Infante D.)

Affonso VI

Affonso XII

Affonso XIII

Agostinho Franco

Albano de Mello

Albano da Fonseca (Coronel)

Alberto Bramão (D.)

Alberto Braga

Alberto Pimentel

Alberto d'Oliveira

Albuquerque (Alexandre)

Alcaçovas (Conde de)

Alda Decken Lino

Alexandre Herculano

Alferrarede (Condessa de)

Alexandre Cabral

Alfredo Anjos

Alfredo Costa

Alfredo da Silva

Alice Lawrence

Alice Munró

Alpoim

Almada Carvalhais

Almeida Araujo (Condessa de)

Alvito (Marquez de)

Ameal (Conde do)

Amelia (D.)

Anna de Sousa Coutinho (D.)

Angejas

Anibal Soares

Anjos (As)

Anna de Jesus

Antonio Azevedo

Antonio Bandeira

Antonio de Brito

Antonio Cabral

Antonio Candido

Antonio Centeno

Antonio Emilio

Antonio da Costa e Silva

Antonio D. da Cruz Pinto

Antonio Ennes

Antonio José d'Almeida

Antonio José de Freitas

Antonio Manuel Teixeira

Antonia Morena

Antonio Moreira da Camara Coutinho

Antonio Nobre

Angela Pinto

Anselmo Vieira

Antero

[322] Armando Navarro

Arnaldo Fonseca

Arnoso (Conde de)

Arnoso (Condessa)

Arroyo (Antonio)

Arroyo (João)

Arthur de Mello

Asseca (Viscondes de)

Augusto Cymbron

Augusto Machado

Augusto Pina

Augusto Ribeiro

Avelino d'Almeida

Aveiro (Duque de)

Avila e Bolama (Duqueza de)

Avila (Conde de)

Ayres de Gouveia


B

Baltar

Barão (Condes)

Barahona

Barbosa Colen

Barbosa du Bocage

Barjona

Barros Gomes

Batalha Reis

Bemposta Sub-Serra (Marquezes da)

Beirão

Bernard Lazare

Bernardino Machado

Bernardo Pindella

Bomtempo

Borges & Irmão

Bourbon de Menezes

Braamcamp

Branca de Gonta Colaço

Brazão

Brito Aranha

Brouillard (Madame)

Buiça

Bulhão Pato

Burnay


C

Caldeira

Camillo

Campos Henriques

Candida da Nora Kendall

Candido dos Reis

Capelo (Almirante)

Cardia

Carlos (D.)

Carlos de Freitas Jacome

Carlos Lobo d'Avila

Carlos Mayer

Carlota Joaquina (Dr.)

Carnaxide (Visconde de)

Carneiro de Moura

Carracida

Carrilho

Casal Ribeiro (Conde de)

Castello-Melhor

Castilho

Castro Solla (Conde de)

Celso Herminio

Chancelleiros

Chapuy

Christina Rezende da Silva

Cipriano Jardim

Coelho de Carvalho

Columbano

Conceição de Carvalho

Correia de Barros

Correia d'Oliveira

Costa Pinto

Costa Santos

Croneau

Cunha e Costa

Curry Cabral

Custodio Borja


D

Dantas Baracho

Delcassé

Dias Costa

Dreyfus

Duval Telles


[323] E

Eça de Queiroz

Eça Leal

Edla (Condessa de)

Eduardo Burnay

Eduardo Cheira

Eduardo Cordeiro

Eduardo de Sousa

Eduardo Pimenta

Eduardo Tavares

Eduardo VII

Egas Moniz

Elisa Baerlein

Elisa Baptista de Sousa Pedroso

Elvino de Brito

Emidio Navarro

Emilia Adelaide

Emilia das Neves

Ernest George

Espregueira

Eugenio de Castro


F

Falcarreras

Fernandes Thomaz

Fernando (D.)

Fernando de Serpa

Fernando Martins de Carvalho

Ferreira d'Almeida

Ferreira do Amaral

Fialho

Ficalho (Conde de)

Ficalho (Condessa de)

Ficalho (Marquez de)

Fife (Duque de)

Figueiró (Conde de)

Figueiró (Condessa de)

Fonseca, Santos & Viana

Fontes

Foz (Marquez da)

França Borges

Francisco Figueira

Francisco Medeiros

Franco (Marquez de)

Francisco da Fonseca Benevides

Frederico Arouca

Frei

Freitas Branco

Freitas Brito

Freitas Rego

Fronteira (Marquez da)

Fumega (Major)

Fuschini


G

Garrett

Garaty (Mr. Garaty (Mr. e M.me)

Garrido

Guerra Junqueiro

Gervasio Lobato

Gomes dos Santos

Gomes Leal

Gomes Netto

Graça (Major)

Guilherme de Azevedo


H

Heitor Ferreira

Henrique de Vasconcellos

Hintze Ribeiro


I

Idanha (Viscondessa de)

Imperador do Brazil

Irene Gilman


J

Jacintho Candido

Jayme Arthur da Costa Pinho

Jayme de Seguier

[324] Jayme Victor

João d'Alarcão (D.)

João Barreira

João Chagas

João Chrisostomo

João da Camara (D.)

João de Deus

João de Deus Guimarães

João Franco

João Pinto dos Santos

João de Menezes

João VI (D.)

Joaquim da Boa Morte Alves de Moura

Joaquim Pessoa

John Burnay

Jorge Colaço

Jorge O'Neill

José d'Azevedo

José Bacellar

José Dias (conego)

José Dias Ferreira

José de Figueiredo

José Lobo

José Luciano

José Maria dos Santos

José Nunes

José Paulo Menano

José Reinach

José Saragga

Julio de Vilhena

Judeu

Judice Bicker

Julia Bordallo

Justino


L

Latino Coelho

Leão XIII

Leitão (Ourives)

Lencastre de Menezes (General)

Lima Junior

Linhares (conde de)

Lopo Vaz

Loubet

Loulé (Duqueza de)

Luciano Monteiro

Lumiares (condes de)

Luiza Patricio de Balsemão

Luiz (D.)

Luiz da Camara (D.)

Luiz Campeão

Luiz de Castro (D.)

Luiz Fillipe (D.)

Luiz Osorio

Luiz Trigueiros


M

Machado (capitão)

Malaquias de Lemos

Manuela Rey

Manuel (D.)

Manuel Bordallo Pinheiro

Manuel Figueira

Manuel Hintze Ribeiro

Manuel Ramos

Manuel Ribeiro Borges

Manuel Vaz Preto

Marçal Pacheço

Magdalena Trigueiros

Mardel

Maria Augusta (D.)

Maria Emilia Seabra (D.)

Maria Emilia Macieira Lino (D.)

Maria (Infanta D.)

Maria II (D.)

Maria Kruz Brito (D.)

Maria Pia (D.)

Maria Tereza Pinto de Magalhães (D.)

Marquez da Foz

Marcelino de Mesquita

Mariano

Martins de Carvalho

Mathias de Carvalho

Matoso dos Santos

[325] Maura

Max Nordau

Maximiliano d'Azevedo

May Figueira

Mello Barreto

Mesquitella (conde de)

Monpensier (Duqueza de)

Moreira d'Almeida

Moreira Marques

Moreirinha

Monteiro Milhões

Motta Marques Meirelles (Juiz)

Moser

Moura Cabral

Mousinho

Munhoz

Murça (condes de)


N

Napoles

Navarro

Nazareth

Norton de Mattos

Nuno Castello Branco


O

Oliveira (das cautellas)

Oliveira Martins

Oliveira Mattos

Ottolini da Veiga

Ouguella (Visconde de)

Ovidio d'Alpoim


P

Paccini

Paçô Vieira (conde de)

Pad' Zé

Padre Matos

Palmeirim

Palmeirim (General)

Palmella (Duqueza de)

Paraty (condes de)

Paris (condessa de)

Patrocinio (D.)

Paulucci

Pedro d'Araujo

Pedro Martins

Pedro de Noronha (D.)

Pedro IV (D.)

Pedro V (D.)

Pedro Victor

Penalva (Marquez de)

Penamacor (condessa de)

Penha Garcia (conde de)

Peniche (conde de)

Pequito

Pereira das Neves

Pimentel Pinto

Pinheiro Chagas

Pinto Basto

Poitier

Pombal (Marquez de)

Ponte de Lima (Marquezes)

Povolide (conde de)

Praia (Marquezes da)

Prim


Q

Queiroz

Queiroz Ribeiro


R

Ramalho

Rangel de Lima

Raphael Bordalo

Rebello da Silva

Regaleira (Baroneza da)

Ressano Garcia

Rezende

Ribeira Brava (Visconde da)

Ribeira Grande (conde da)

Ricardo Jorge

Rio-Maior (condessa de)

Rodin

[326] Rodrigo da Fonseca Magalhães

Rosa Damasceno

Rosa pae

Rossini

Rufino d'Almeida


S

Sabugosa (conde de)

Saldanha (Duque de)

Sampaio (Visconde de)

Santos (Major)

Santos Viegas

Sarah da Motta Vieira Marques

Saraiva de Carvalho

Schwalbach

Sebastião Telles

Sergio de Castro

S. Boaventura

S. Lourenço (condessa de)

S. Luiz de Braga (Viscondes de)

Silva Bastos

Silva Canellas

Silva Carvalho

Silva Graça

Silva Pinto

Silva Telles

Sousa Holstein

Sousa Martins

Soveral (Marquez de)


T

Taborda

Tavares Festas

Taveira (condessa de)

Teixeira de Sousa

Teodoro d'Almeida

Theophilo Braga

Thomaz Ribeiro

Tompson

Torlades (casa)

Torre da Murta (Visconde da)

Totenbach

Trindade Coelho


U

Urbano de Castro

Urbano Rodrigues


V

Valbom

Valdez

Valença (conde de)

Val-Flôr (Marquez de)

Vallada (Marquez de)

Valladares (conde de)

Varzea (Visconde da)

Vasconcellos Porto

Vianna (Marquez de)

Vicente da Camara

Victor Hugo

Victoria (Rainha)

Vilaça

Villa de Fozcoa (Barão de)

Villa Nova de Cerveira (conde de)

Villa Real e Mello (condessa de)

Vimioso (conde de)


W

Wenceslau de Lima

Wernestein


Z

Zola

Zulmira Franco Teixeira



INDICE DOS CAPITULOS



Pags.
Prefacio 9
Algumas Figuras 27
Pó da Estrada 93
A Sociedade Elegante 267
O Mundo Politico 289




INDICE DAS GRAVURAS


Pags.
Columbano, Auto—retrato 33
Fialho d'Almeida 49
D. João da Camara 57
Eça de Queiroz 65
Antonio Nobre no caixão 81
Correia d'Oliveira 89
Fernandes Thomaz, no seu gabinete 97
Guerra Junqueiro 113
José Luciano encerra o Parlamento 129
Celso Herminio 145
Gomes Leal 161
D. Carlos I de Portugal 177
Oliveira Martins 193
Papelinhos sobre o regicidio 206
Dantas Baracho 225
José Maria d'Alpoim 241
Teixeira de Sousa 257





acabou de se imprimir
na tipografia da «renascença portuguesa»
rua dos mártires da liberdade, 178,
aos 21 de janeiro de 1919.
porto



Notas:

[1] Estas Memorias devem formar quatro volumes:—2.º vol.—Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.º vol.—A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.º vol.—A Republica e os seus homens. Vida militar.

[2] Republica, 23 de Fevereiro de 1915.

[3] «Volta-se para o governo do seu paiz, e pede-lhe que se lembre da recepção de Afonso XII em Paris, e que ponha Sua Magestade a coberto de qualquer manifestação que possa porventura nascer, da atitude da Rainha. Limem-se as dificuldades, empreguem-se todos os esforços, nossos e alheios; lancemos mão da nossa situação privilegiada com a Inglaterra; ponhamos todos os elementos disponiveis em acção, para que o céo serene. Por exemplo: que está fazendo o sr. Soveral em Paris? Façam-no recolher imediatamente a Londres».

[4] Existe uma carta em que o rei D. Carlos diz ao Navarro, que é absolutamente falso que elle se oponha a que o nomeiem par do reino. Seriam os politicos capazes de armar a intriga?...

[5] Um dos seus sobrinhos escreveu um artigo interessante, do qual extracto os seguintes periodos:

«No seu espirito fluctuava uma bondade inata que se traduzia por uma profunda afabilidade na vida intima e por uma indulgencia estranha no julgamento dos homens. Jámais acreditou em malevolas intenções e nunca da sua bocca saiu uma insinuação maliciosa. Confiava sempre na bondade dos outros, não hesitando, nos momentos de agitação popular, em atravessar serenamente as ruas da capital revoltada, como sucedeu em 5 de outubro e 14 de maio. E quando a familia, naturalmente receiosa, lhe solicitava para não sahir, respondia sempre com toda a tranquilidade: «a mim ninguem me faz mal, pois eu nunca fiz mal a ninguem».

«As suas ferias passava-as a estudar. Ora meditava trabalhos de jurisprudeneia, ora, para descansar, apreciava as mais belas obras de literatura. Dotado de uma memoria privilegiada, sabia de cór longos trechos de versos, e até nos ultimos horriveis momentos da sua existencia, arquejando no leito de dôr, ora recomendava pontos importantes dos processos que trazia entre mãos, ora citava frases de grandes poetas e filosofos referentes á hora suprema que rapidamente se aproximava. E quando a noite cahia, tudo envolvendo no seu manto de tristeza, era com uma anciedade estranha que esperava, na longa vigilia dolorosa, a chegada do sol radiante. E foi com uma precisão rara que previu a hora da sua morte. Mais tres dias, mais dois dias e tudo estará acabado. E, de facto, assim sucedeu!

«Apaixonava-o o estudo da astronomia, e nos ultimos tempos antes de morrer, apesar da sua avançada idade de 75 anos, vergado sobre obras da especialidade e, nas horas silenciosas das serenas noites de verão, passeando na sua quinta dos Covas, ou encostado ás amplas janelas da sua biblioteca, que tanto amava, reconhecia uma a uma as constelações e descobria entre os inumeros astros que recamavam o firmamento, aquelles que os seus auctores haviam indicado.»

[6] «Effectivamente, segundo nos informam... o homem das barbas e da carabina não sahiu debaixo da Arcada (sic) do Ministerio do Reino, visto, que com outro individuo se encontravam juntos da aludida arvore.»—Para quê?... por José Nunes.

[7] Parece que o que salvou a rainha foi o cocheiro poder arrancar, bater nos cavalos, por ordem da condessa de Figueiró, e aquilo seguir, com os mortos e a rainha louca de dôr:—Mortos! mortos! e ninguem para os salvar!—N'um gesto maternal debruçara-se cobrindo o filho com o proprio corpo.


—Quem matou o rei... «O grupo foi em parte organisado durante o dia 31 e ás 3 horas da madrugada do dia 1 de fevereiro, em uma quinta dos arredores de Lisboa decidiu-se que só fossem cinco os individuos a executar o plano do Boulevard Poissonière.»—Para Quê? por José Nunes.

...«Se na tarde do 1.º de fevereiro de 1908 não se désse mais que o primeiro tiro que se deu, e esse foi de carabina, ficariam vivas todas as pessoas reaes, excepto o rei. Não obstante o tiroteio ter-se desenvolvido momentaneamente, assaltando-se ao mesmo tempo a carruagem, foi então que, sobre o pae e o filho, se dispararam mais tiros, alguns d'elles mortaes».—Para Quê? por José Nunes.


...—Ao menos responda-nos a esta pergunta: o Buiça e o Costa teriam cumplices?

E o sr. Laranjeira, sorrindo, affirma:

—Tinham varios amigos...?—E hesita.—O que lhe posso garantir, é que o Buiça não foi o heroe principal; quem preparou tudo foi o Alfredo Costa na «Loja Obreiros do Trabalho». O Costa tinha uma grande influencia sobre varios rapazes de valor e de audacia. Tambem sem receio de ser desmentido lhe posso asseverar que o Alfredo Luiz da Costa foi assassinado por mão occulta, quando vinha, preso e vivo, para o posto da Camara Municipal. Note que as suas ultimas palavras foram estas.—Ai minha mãe, que me trahiram!—E o chefe Bazilio, um dos que o conduzia, não pôde vêr quem lhe descarregára a arma, matando-o... No meu modo de vêr, os novelleiros encartados, dizem coisas sobre coisas, sem conhecerem o fio á meada, e é exactamente o que tem prejudicado tudo e todos.»

Revelações sobre o regicidio—Entrevista com o sr. Rodrigues Larangeira publicada no Imparcial de 1 de julho de 1910.

[8] Apurou-se que o ex-ministro em Londres, de julho de 1892 a 12 de Novembro de 1910, recebera o seguinte:


1892-1893 10.833$890
1893-1894 12.841$593
1894-1895 16.699$006
1895-1896 (10 de Junho a 30 de Setembro) 2.163$750
1896-1898 17.264$456
1896-1897 (26 de Abril a 26 de Julho) 2.441$625
1898-1899 15.618$168
1899-1900 15.835$443
1900-1901 12.976$500
1901-1902 14.211$412
1902-1903 21.807$881
1903-1904 15.963$505
1904-1905 35.481$112

A transportar 194.138$341
Transporte 194.138$341
1905-1906 21.437$118
1906-1907 25.749$787
1907-1908 20.447$868
1908-1909 11.802$562
1909-1910 12.487$687
1910-1911 (de 16 de Julho a 12 de Novembro) 3.515$680

289.679$044


Recebeu mais:

Pela rubrica de adeantamentos 5.743$815
Pela rubrica de suprimentos 226$035
Pela rubrica de adeantamentos 450$000
Pela rubrica da visita aos Reis d'Inglaterra, 1904-1905. 21.042$935

Total—Reis 317.041$828


—As despezas legaes auctorisadas eram de 10.950$000 réis por anno. Vê-se como eram excedidas!

—Segundo o oficio do ex-ministro Vilaça para o ministro da fazenda, pedindo mais dinheiro para Soveral, este, no almoço e ornamentação da legação, na visita do rei Carlos, consumira mais o seguinte:


Almoço, libras 325 — 12 — 0
Vinho, libras. 49 — 6 — 6
Decorações, libras 1.760 — 1 — 0

Total, libras. 2.134 — 19 — 6



—Averiguou-se, pelo oficio do ex-director geral da thesouraria, Perestrelo, que pelo mesmo motivo da visita do rei Carlos, Soveral recebera mais:


Em 30 de Novembro de 1904, libras 1.500
Em 10 de Dezembro do mesmo anno, libras 1.000

Total, libras. 2.500


Todas estas quantias, em libras, ou em réis, foram calculadas ao cambio par. Como n'aquellas épocas houve subido agio sobre o ouro, e calculando esse agio n'uma media de 15%, vê-se que notavel aumento ha nas despezas descritas!

Soveral recebeu mais, pela verba de despezas diversas extraordinarias no anno economico de 1909-1910, sem qualquer justificação, réis 1.934$855; e pela verba destinada á viagem a Londres do rei D. Manuel, réis 4.468$900.

Na liquidação e pagamento dos direitos de mercê, emolumentos e sellos, houve enorme trapalhada durante muitos annos, d'onde resultou Soveral esquivar-se ao cumprimento das leis fiscaes.

Deve os direitos de mercê e emolumentos e sello pelo titulo de Conselho, pelo titulo de Marquez, pelo cargo de secretario da legação em Londres, pelo cargo de ministro em Londres, pela gran-cruz da Torre e Espada, etc.

Quando foi ministro dos negocios estrangeiros, teve a habilidade de em 17 mezes, só á sua parte, consumir em despezas reservadas, réis 37.757$515, sem deixar no ministerio qualquer documento, explicando ou justificando o emprego de qualquer verba!—Intransigente, de 31 de Março de 1911.

[9] «Escrevem-nos de Braga:

Joaquim de Sequeira Lopes, negociante, e Manoel Coelho dos Santos, penhorista, são pessoas de bem e residem em Espinho.

Sequeira Lopes foi em Novembro de 1907 para Lisboa curar uma molestia hospedando-se em casa de seu irmão Frederico, negociante, chefe graduado do alpoinismo. D'ali escrevia semanalmente ao Coelho, com quem tinha negocios, quando na capital começou a agitação para derrubar o Franco, dando em cada carta uma noticia politica, que o Coelho lia em toda a parte onde se lia politica. Na quarta-feira ou quinta da semana do regicidio, essa noticia era d'este theor: Disseram hoje a Frederico, no escriptorio forense... que João Franco seria assassinado em 24 horas. Quando chegou a Espinho a carta que continha esta noticia, tinham passado as taes 24 horas, por isso o valor da noticia estava prejudicado. Deu-se o atentado no sabado e na quarta-feira seguinte a carta habitual dava esta noticia:

Os revolucionarios, vendo-se perdidos pela prisão dos chefes, reuniram-se secretamente, republicanos e dessidentes d'acção, e resolveram a morte da familia real. Propoz-se que os executores fossem tirados á sorte, mas o professor Buiça protestou, oferecendo-se voluntariamente, sendo o seu alvitre secundado por muitos que se promptificaram a auxilial-o.

Estes apontamentos foram dados ao ministro Campos Henriques logo depois da formação do gabinete Amaral. Foram em carta anonyma, mas acompanhados d'um grande numero de testemunhas que viram e leram as taes noticias, figurando n'ellas o coronel reformado Raul de Passos, d'Elvas, que na ocasião residia em Espinho e dava a semelhantes noticias um grande valor para a investigação.

Campos Henriques, o que demitiu o juiz Alves Ferreira e chamou o outro da Meda, fez de conta que nada era com elle. N'esta pista ninguem mexeu.»


*


«A reunião, afirma-se, teve logar na Costa do Castello. Tomaram parte n'ella quadrilheiros da quadrilha republicana e de todas as quadrilhas monarchicas»...[9a]

[9a] Quem quizer conhecer a historia contemporanea tem de lêr e consultar a colecção d'O Povo d'Aveiro. É indispensavel. Essa voz tremenda e colérica préga, ha annos, sem um desfalecimento, meia duzia de verdades essenciaes ao paiz. Além d'isso Homem Christo é o maior jornalista portuguez e um pamphletario que só tem outro na nossa literatura que se lhe compare—José Agostinho de Macedo.


[10] Essa extraordinaria sessão, em que o parlamento parecia estar no banco dos réus e o Afonso Costa, theatral, surgia como um acusador triumphante!... O ministerio tinha desaparecido. Fugira! Ninguem sabia do que se ia tratar: esperava-se peor, muito peor... A impressão real, patente, autentica, era de que elle ia fulminal-os com provas á vista, acusando-os d'um crime... De que crime tremendo? Quando leu os documentos houve uma impressão de alivio, quasi a exclamação:—Era só aquillo?...—E quando baralhou e se enganou nos nomes da pessoa que acusava—ninguem soube aproveitar o momento, o erro, a oportunidade... Ninguem se quiz comprometer... A defeza feita pelo Paçô foi fragil, risonha, quasi «pedindo desculpa»...

[11] Folheto de 10 paginas, com este titulo: Os Barbadões, resumo historico por D. Sebastião de Vasconcellos, Bispo de Beja, Par do Reino e Comendador da Nobilissima Ordem de N. S. da Conceição de Villa Viçosa. Propriedade da Empreza Editora do Jornal «Portugal» Limitada.

[12] Carta publicada n'O Norte de 1 de Setembro de 1918 pelo snr. Bourbon e Menezes:

Meu Senhor:


Tenho a honra de communicar a V. Magestade que, nos termos assentados, escrevi ao seu encarregado de negocios em Berlim para fazer-lhe saber a conveniencia q. haveria em retro-trahir (sic) a data da visita de V. Magestade para 20 de novembro e nesta orientação lhe expuz, para levar ao conhecimento do Ministerio dos Negocios Estrangeiros allemão, os argumentos e razões que me pareceram apropriados ao fim que se pretende. Julgo q. isto merecerá a aprovação de V. Magestade.

Quanto ao assunto da nossa conversação no Paço das Necessidades, entendi hoje aproveitar a oportunidade de vir o marquez de Villalobar dar-me uns informes que é natural que V. Magestade já conheça pelo conde de Sabugosa, para entrar com elle em conversa officiosa sobre a conveniencia de estreitar em bases definidas as nossas relações politicas, visto os dois paizes soffrerem de um mal commum—a invasão da onda democratica. Neste sentido lhe fiz um longo arrazoado que elle recebeu com agrado a ponto de me perguntar se queria que levasse isso ao conhecimento do seu soberano ou apenas do Presidente do Conselho. Fiz-lhe notar que esta idea era apenas pessoal e minha, que sobre ella não tinha consultado o governo e que V. Magestade nem de leve suspeitava d'este meu ponto de vista, que a minha idea era de que as duas nações por um instrumento secreto se comprometessem a um mutuo auxilio, no caso de irrompessem(sic) movimentos revolucionarios que puzessem lá e cá em risco a segurança das instituições.

Elle concordou em que o interesse era commum e por isso reciproca a vantagem e lhe parecia que seria grato ao coração de S. Magestade o Rei D. Affonso o lembrarmo-nos d'elle em tal conjunctura, independentemente das estipulações da nossa alliança com a Inglaterra. Entendi pôr n'este pé a questão porq. tinha opurtunidade (sic) e corresponde a uma necessidade que não é só nossa mas tambem d'elles. O ministro comprehendeu bem a minha idea e disse-me que a ia transmitir a Espanha, a Canalejas, afirmando-me que poria n'isto todo o seu empenho. Fiz-lhe sentir que seria bom pôr só a questão em principio e quanto á extensão e detalhes do acordo seria para regular depois quando V. Magestade e o governo conhecessem o assumpto. Não quiz ir mais longe para me não envolver em dissertações sobre acordos economicos que me parecem pouco convenientes agora para nós. Eis o que fiz e o que me parece que diviria (sic) fazer-se por emquanto, pois que este assumpto, quanto ás outras nações, carece de opurtunidade (sic) e entrados na via de explicações correriamos o risco de prejudicar os interesses que temos em vista.

O que se me affigura necessario e conveniente é ligar os dois paizes n'uma deffeza (sic) commum, visto que as vantagens e riscos são communs e não julgo difficil chegar-se ao desejado fim, tanto mais quanto as suas informações se referem a um movimento revolucionario nos dois paizes, com dinheiro vindo de França.

Muito prazer terei se o meu parecer merecer a subida honra da aprovação de V. Magestade, pois que outro não é o meu desejo se não de corresponder á sua confiança com a pratica de actos meus que sejam acertados.

Mostrou-se o Marquez de Villalobar muito empenhado em saber o quer que fosse do casamento de V. Magestade. Continuei affirmando-lhe q. nada sabia porque o que se estava ainda fazendo em Inglaterra era à l'insu do governo, mas que logo q. soubesse cousa digna de ser-lhe communicada, lhe não faltaria com essa confidencia.

Disse-me elle q. o seu empenho de saber correspondia ás sucessivas perguntas que de Espanha lhe fazia o seu Soberano.

Forse che si: forse che nó.

Beijo respeitosamente as mãos de V. Magestade e em tudo aguardo, com o devido respeito, as ordens que se dignar dar ao

seu ministro
e subdito obediente

Lisboa, 19-7-910.


(a) José d'Azevedo Castello Branco.


[13]

PREÇO DA VIDA

Pão—kilo 90
Carne de segunda qualidade 300
Carne limpa 600
Vitella 800
Carne de porco 480
Toucinho 320
Banha 320
Assucar pilé 240
Bacalhau 200
Massas 150
Manteiga 800
Ovos—duzia 250
Feijão branco—litro 70
Petroleo 90
Leite 100
Feijão frade 50
Feijão da ilha (manteiga) 100
Azeite 400
Carvão—arroba 300
Uma pescada 500
Um vestido de senhora 30$000
Um fato de homem 20$000
Um par de botas 4$000
Média do aluguer d'um andar, por semestre (casa para uma familia da mediania) 120$000


[14] Foi oficial na marinha ingleza, condecorado na campanha do Baltico com a medalha militar, e um excelente administrador. Diz-se que graças a elle é que a casa da mulher sahiu da barafunda e quasi ruina a que chegára á data do casamento. Por isso talvez é que passou por um apagado guarda livros...

[15] Do Correio Nacional, na sua secção Ecos:

O sr. Hintze Ribeiro é d'uma grande generosidade para com a sua familia.

Demonstra-o a seguinte lista, cuidadosamente confeiçoada sob informes do Diario do Governo:

Para o elevado logar de inspector dos impostos no Porto foi transferido o sr. dr. José Paulo Menano, de 24 annos de edade, casado com uma cunhada do sr. Hintze.

Ha tempos, foi colocado no logar de director do hospital das Caldas da Rainha o sr. dr. Augusto Cymbron Borges de Sousa, cunhado do sr. Hintze.

O sr. Manuel Hintze Ribeiro, irmão do sr. Hintze, foi graduado em inspector superior da alfandega de Ponta Delgada, passando de 1.170$000 a 1.700$000, mais do que ganha um director geral.

O sr. Antonio Moreira da Camara Coutinho, sobrinho do sr. Hintze, foi nomeado director da alfandega do Porto, com quatro contos de reis anuaes, o ordenado d'um ministro, quasi.

O sr. Manuel Rebello Borges, 2.º oficial da alfandega de S. Miguel, foi nomeado director da mesma casa fiscal, com um conto seiscentos e vinte mil reis.

É uma fortuna para o paiz que a familia do sr. Hintze não seja mais numerosa.

Aliaz, não haveria contribuintes cuja pelle chegasse para pagar tantos encargos...

[16] De passagem apontemos a figura de Norton de Matos, o maior ministro da guerra contemporaneo, organizador capaz d'um trabalho de ferro, que só os technicos serão capazes de avaliar em toda a sua extensão.

[17] Todas as palavras entre comas são dos Documentos politicos.

[18] Introduziu a ordem no Paço.—Até o preço do peixe quer saber!—dizia-se cá fóra com indignação. Quando do 5 d'outubro todos os creados diziam bem do rei—todos diziam mal da rainha. O pequeno quadro que segue explica talvez muita coisa:

«Havia familias das proximidades do Paço que se alumiavam só com as vellas do palacio real, compradas por vil preço. As contrabandistas andavam pelas casas dos seus freguezes oferecendo roupas, desde os vestidos da rainha e dos fatos do rei até ás roupas brancas, meias de seda e sapatos de setim com a corôa real, para não oferecer duvidas acerca da procedencia. D'estes factos tivemos conhecimento de sciencia certa, por vivermos n'esse tempo perto do Paço e nos terem vindo oferecer por mais de uma vez os espojos do saque, que não aceitamos por varias razões, sendo uma d'ellas a falta de vocação para receptadores de roubos. A vocação nasce com a pessoa. Da ucharia do Paço banqueteavam-se os parentes dos empregados e cremos que até os amigos.

A audacia do latrocinio chegou ao extremo. Indo um dia o rei D. Luiz caçar á Tapada e tendo morto tres coelhos, ao chegar ao Paço lembrou-se de os mostrar á rainha.

Mandou-os buscar, mas apenas lhe apresentaram um, porque os dois restantes tinham desaparecido durante o breve precurso da Tapada até á Ajuda.

Nos proprios charutos do rei todos os dias dava um ataque epileptico que os obrigava a saltar das caixas sem que se soubesse para onde tinham desertado. Chegou o descaramento a ponto de não deixarem um charuto para o rei fumar».





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 91 iuutil ... inutil
#pág. 263 esqueeeu ... esqueceu
#pág. 291 eomer ... comer


Identificou-se a não existência nos dois originais de uma figura que se encontraria entre as páginas 206 e 207. Presume-se que por não se encontrar em ambas as obras da mesma edição, que se trata de um erro de impressão que afectou esta edição em particular.

Foram efectuadas correcções na numeração das páginas no indíce de forma a coincidir com a localização correcta no livro.

As figuras no original encontram-se entre páginas.






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