The Project Gutenberg EBook of O Condemnado/Como os anjos se vingam, by Camilo Castelo Branco This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: O Condemnado/Como os anjos se vingam Author: Camilo Castelo Branco Release Date: May 29, 2010 [EBook #32586] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CONDEMNADO/COMO OS ANJOS *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) O CONDEMNADO * * * * * O CONDEMNADO DRAMA EM TRES ACTOS E QUATRO QUADROS SEGUIDO DO DRAMA EM UM ACTO COMO OS ANJOS SE VINGAM POR CAMILLO CASTELLO BRANCO PORTO VIUVA MORÉ--EDITORA PRAÇA DE D. PEDRO 1870 * * * * * IMPRENSA PORTUGUEZA Rua do Bomjardim, 181. * * * * * A JOSÉ CARDOSO VIEIRA DE CASTRO Se ainda tens lagrimas, se ainda as tens no coração, meu infeliz amigo, permitta Deus que possas verter alguma na pagina onde encontrares uma palavra, um grito de lacerante angustia, como tantos que has de ter abafado. N'este livro, não pude bem assignalar um leve traço do teu enorme infortunio. Não pude, porque a tua desgraça não tem nome. Figura-se-me que tu, Vieira de Castro, na tua cerrada noite de seis mezes, ainda não pudeste vêr ao sol de Deus os sulcos por onde desceu de teus olhos o sangue, a seiva toda de tua mocidade. Entre o teu passado e este dia de hoje--cujas horas vão já batendo na eternidade de uma tristeza irremediavel--estás tu empedrado de assombro a encarar no abysmo onde te resvalou a mão que beijavas e ungias de lagrimas de felicidade. No fundo d'essa voragem vês as tuas corôas de gloria a seccarem-se, a desfazerem-se, a pulverisarem-se--o desabar deploravel d'uma esplendida vida que foi a tua, ó grande espirito! Levanta d'ahi os olhos, alma atormentada, antes que vejas em lodo o pó das tuas grinaldas, sobre as quaes vão cuspindo homens tão escassos de misericordia, como de dignidade. Deus que te veja chorar, e te envie o doce trago da morte, que receberás sorrindo como todo o homem que expira vergado ao pêso de sua cruz, mas não á ignominia d'ella. Falta-te morrer, Vieira de Castro, para que em tua sepultura se respeitem as cinzas d'um grande coração extremado na honra e na desgraça. CAMILLO CASTELLO BRANCO. PERSONAGENS D. Eugenia de Vasconcellos (ou D. Leonor) 28 annos Viscondessa de Pimentel 50 » Visconde de Vasconcellos 55 » Rodrigo de Vasconcellos 28 » Pedro Gavião Aranha 27 » Jorge de Mendanha ou Jacome da Silveira 51 » José de Sá 50 » Joaquim, criado. João, criado. Outros criados e pessoas que não fallam. * * * * * A scena corre no Porto em 1857. O CONDEMNADO ACTO PRIMEIRO Sala pomposamente trastejada, mas em desordem. Portas ao fundo e lateraes. Dois criados estão espanando a mobilia. N. B. _O criado João, mais montezinho que os outros, denota a estupidez velhaca do aldeão._ SCENA I JOAQUIM E JOÃO Joaquim _(refestelando-se em um sophá)_ Ó João, toca a descansar; senta-te, mas com geito, se não afundas. João _(apalpando o estofo)_ Isto foi amanhado com bexigas cheias de vento? Queres tu vêr que eu vou rebentar o fole? _(Deixa-se cair e levantar pelo elasterio das molas)_ Ih! cuidei que dava co' costado no solho! Um homem regala o cadaver n'estas enxergas! Joaquim Isto sempre é melhor que andar a guardar ovelhas na Samardan, eim? João O quê? pois não fostes? Tomára-me eu lá com as minhas ovelhas. Assim que m'alembram os nossos montes, começo a esbaguar e átrigar-me aqui dentro do coração _(pondo a mão na barriga)_. Joaquim O coração não é ahi, bruto! Ahi são as reins. João Onde é então? Joaquim Aqui. _(Pondo a mão perto do sovaco do braço direito)_. João _(com espanto)_ Aqui?! Credo! Joaquim Ahi mesmo. Aqui foi sempre o coração; e o bucho está aqui, salvo tal logar _(apontando o umbigo)_. João O bucho aqui? aqui é a espinhela; o bucho é onde cáe a trincadeira. Joaquim _(rindo-se com ar de ironica piedade)_ João, tu chegaste da Samardan ha quinze dias, e eu tenho palmilhado todas as capitaes do reino de Portugal. Olha se me ensinas onde está o bucho, a mim, que tenho sido criado de conselheiros, de conegos, de barões, e mesmamente de ministros de estado! O bucho desde que o mundo é mundo, foi sempre aqui _(insiste na demarcação)_. Faz-te esperto, rapaz! O patrão já me disse hontem: «Ó Joaquim, este teu primo é um burro.» João Eu bem ouvi. Não foi assim que te disse o patrão. O que elle disse foi: «Ó Joaquim, este teu primo é tão burro como tu.» Joaquim Não disse isso. João Na minha salvação, disse; e cá a mim, se o patrão me torna a chamar burro, vou-me p'ra a terra. Eu não sou burro, sou christão baptisado. Alcunhas não nas quero. Cá no Porto é costume essa chalaça. Joaquim Que chalaça? João Todos são bichos. Joaquim Todos são bichos? Más maleitas me tolham, se eu te percebo! João Lembras-te quando eu fui p'ra porta da rua saber quem vinha cá? Pois olha, ao primeiro veio um fidalgo que se chamava _Lobo_; depois um _Raposo_; depois um _Leão_; depois um _Coelho_ e um _Lebre_, e outro senhor chamado _Camello_, e outro _Pato_, e um _Rola_. Olha que bicharia! Eu estava a vêr quando chegava um Urso e um Boi. Lá na Samardan toda a gente aveza nomes de gente, pois não aveza? Joaquim Homem, tu nunca viste nada. Faz minga correr todas as capitaes do reino de Portugal como eu. Olha que os fidalgos quasi todos tem bichos... João _(atalhando)_ Tem bichos? Arrenego-os eu! Joaquim Não me falles á mão; quasi todos teem bichos no nome é o que eu queria declarar na minha proposta. Tu não inzaminaste as armas reaes que o patrão tem nas quintas lá de riba? João Olha que já estive a malucar que na porta da quinta do Corgo estão as armas do rei com dois largatos e um lacrau. Os largatos, salvo seja, teem assim as unhas _(recurvando os dedos)_. E o lacrau tem a lingua á dependura _(figurando)_. Mas cá o patrão não se chama largato nem lacrau, que eu saiba. Joaquim O animal que viste não é lacrau. O bicho que bota a lingua de fóra chama-se leopardo. João Isso é nome de christão... Leonardo! Joaquim Leopardo, asno! João Tu não me chames asno, primo! Não me desfeiteies. Quem não sabe, aprende. Então por que tem o patrão o leopardo nas armas reaes? Joaquim É historia antiga lá da familia. João Então esse bruto era da familia do patrão? Tu tamen não és pequeno alimal, Joaquim! Estás um bom fistor! Olha se me engrampas a mim. Olha... _(Arregaça o olho esquerdo)_. Joaquim _(alvoroçado)_ Espana, que ahi vem gente... SCENA II OS MESMOS E O VISCONDE DE VASCONCELLOS Joaquim Tenha vossa excellencia muito bons dias, senhor visconde. Visconde Adeus. Meu filho saiu? Joaquim Saiu ás nove horas e mais a senhora. Acho que foram comprar arranjos para o baile. Visconde Quando é o baile? Joaquim Ámanhan, senhor visconde. João É ámanhan, mas saberá vossa excellencia que só começa de noite. Joaquim _(acotovelando-o)_ Cala-te ahi! Visconde Vão; e assim que meu filho entrar digam-lhe que estou aqui. _(Os criados sáem)_. SCENA III Visconde de Vasconcellos Bailes! bailes! com que tristeza os imagino!... Quem me dera não saber que meu filho dá bailes!... Deixasse-me eu ficar na solidão do meu desterro na aldeia... Era preciso que a minha amargura entrasse no coração viçoso e feliz de meu filho, para que a desgraça o não assalte em pleno gozo de mocidade, saude e abundancia... Era preciso; mas ha cruel impertinencia n'este meu desejo. Um velho a querer regelar uma alma em flor com os seus pezares, com os seus tantos invernos vividos e chorados ao pé d'uma sepultura!... isto é uma iniquidade! Os experientes da vida, os que envelheceram penitentes, onde quer que chegam, levam comsigo um fantasma funesto. Na sua presença, aos descuidados do futuro desmaia-se a côr brilhante das alegrias; aos loucos afortunados irrita-os a catadura torva da tristeza; os mais generosos espiritos não desculpam o velho, que sáe ao encontro da mocidade e lhe diz: «Envelhece antes do inverno da vida, para que o desandar da roda te não colha ainda na primavera, e te não abra no rosto o sulco das lagrimas. _(Ouve-se o rodar de sege)_. Eil-o que vem respirando as fragrancias dos vinte e oito annos; e eu aqui estou como espectro de terriveis presagios, esperando-o nos salões, d'onde a noite de ámanhan fugirá de pressa como fogem as noites que abrem na memoria uma data, um nome, que no fim da vida as lagrimas não podem desfazer... Para que hei de entristecel-o? Deixal-o sonhar, deixal-o illudir-se. Que desconte na desgraça porvir isto que se chama felicidade, este brincar com as flores que cobrem a boca do abysmo. Deixal-o ser moço até que a primeira nortada do infortunio lhe bata no rosto. _(Suspenso e recolhido)_. Não posso, não posso. Aquelles que ainda podem salvar-se quero que me ouçam gemer no parcel onde naufraguei. SCENA IV VISCONDE E RODRIGO DE VASCONCELLOS Rodrigo _(beijando-lhe a mão)_ Esperou muito tempo, meu pae? Visconde Não esperei. Onde está tua mulher? Rodrigo Eugenia vem já. Foi largar a capa e o chapéo, e naturalmente matar saudades do filho. Eu tencionava ir logo pedir-lhe a sua vinda ao baile de ámanhan. Visconde Ias convidar-me para um baile, Rodrigo?! A mim?! já me viste em bailes? Rodrigo Certamente não. Nas quintas, onde vossa excellencia costuma viver, seria rara a tentação dos bailes _(sorrindo)_; e meu pae, que deixou ha tantos annos as salas de Lisboa, de certo não succumbiria á tentação em Lamego ou Amarante. Eu sei no entanto que meu pae frequentou os bailes da capital, e se distinguiu entre os mais notaveis moços, alguns dos quaes ainda hoje reflorescem alegres primaveras, a julgal-os pela côr das barbas. Ainda hontem uma dama da alta sociedade de Lisboa, prima dos condes de Travaços, me perguntou se o pae ainda conservava memorias do gentil rapaz que havia sido. Recorda-se de uma senhora viscondessa de Pimentel? Visconde Muito bem. Rodrigo Póde vêl-a aqui ámanhan. Visconde Essa dama ainda folga em bailes? Rodrigo Porque não? Representa uns trinta e cinco annos. Visconde _(sorrindo)_ É mais nova do que eu uns cinco annos. Eu tenho cincoenta e seis. Lembro-me perfeitamente da Francisquinha Almeida, que depois casou com um Pimentel, que a fez viscondessa. Era mulher de talento satyrico, pouco exemplar nos costumes, e... _(Mudando de tom)._ Deve ter branco o formoso cabello loiro que tinha... Rodrigo Agora é negro. Visconde Sim? Ahi tens, meu filho, uma das proeminencias ridiculas do teu baile: essa dama tingida, pintada, galhardeando-se, e talvez polkando garbosamente como quem sacode dos hombros o pêso de meio seculo. Mas o ridiculo dos bailes não é o mau; o mau, o péssimo é o que é triste, é o que não póde ser visto senão por olhos que choraram muito... Rodrigo _(interrompendo-o)_ Vai o pae entristecer-se... e começou tão bom, tão ironico... Visconde As minhas ironias, Rodrigo, são sempre amargas; mas o fel que ellas tem, todo contra mim reverte. Ahi vem Eugenia; mudemos de conversação. SCENA V OS MESMOS E D. EUGENIA D. Eugenia _(beijando a mão do Visconde)_ Como está, meu pae? Visconde Bom. Vejo que está excellente a minha filha. Ainda não perdeu as boas côres que trouxe da provincia. D. Eugenia Quem me lá dera outra vez! Visconde Na aldeia? n'aquella casa melancolica, cercada de montanhas, onde nunca chegaram os ecos das musicas de um baile? Queria-se outra vez na aldeia a minha Eugenia? D. Eugenia A primavera ainda vem tão longe... Visconde E depois que lá estiver, a menina ha de ter saudades do baile de ha quinze dias, do baile de ámanhan, e dos bailes que... D. Eugenia _(interrompendo-o)_ Não, senhor. O que eu vejo e sinto agradavel nos bailes é o contentamento de Rodrigo. Elle está acostumado a estes recreios, e acha n'elles o prazer que eu provavelmente acharia tambem, se não tivesse sido creada e educada em um recolhimento. Por mais que a gente queira habituar-se á vida cá de fóra, o geito e o acanhamento da clausura não se perde. Visconde A minha filha, portanto, sacrifica-se aos usos e costumes da sociedade elegante... D. Eugenia Aos costumes da sociedade elegante, não, senhor; ao contentamento de Rodrigo, sim. Visconde Pois, Eugenia, encarecidamente lhe peço que empenhe todo o valor do seu coração em persuadir a meu filho que ha contentamentos mais solidos e ineffaveis que os bailes. Insinue-lhe com as suas phrases singelas e amoraveis que as serenas delicias da vida intima fogem assustadas das folias estrondosas das salas. E diga-lhe que, no fim de uma noite de baile, apparecem nos tapetes umas flores sem viço, que muitas vezes symbolisam corações sem innocencia. Corações e flores perderam a candura e aroma na mesma hora, queimados pelo calor da mesma respiração. Rodrigo _(sorrindo)_ Ahi vem o pae com as suas theorias pessimistas. Ainda ninguem viu os vicios da sociedade por vidros de tamanho augmento! Visconde Eugenia, deve ter muito em que lidar. Quem dá um baile precisa mortificar-se oito dias antes, e fazer holocausto das suas canceiras ao Bom-Tom, idolo creado pelo paganismo moderno. A civilisação tem apostolos e martyres. Ora vá. D. Eugenia Janta comnosco, sim? Visconde Póde ser. D. Eugenia Até logo, _(apertando-lhe a mão--Sáe)_. SCENA VI VISCONDE E RODRIGO Visconde _(com gravidade)_ Agora, se te apraz, Rodrigo, argumentaremos a respeito de bailes; e ficas avisado para, na presença de tua mulher, nunca me desafiar a discutir comtigo em assumptos de corrupção social. Agradece tu ao acaso a santa ignorancia que Eugenia te trouxe do recolhimento. Não a illustremos; ouviste, Rodrigo? Não a illustremos... Bem vejo que estás no proposito de descondensar as trevas que a separam das brilhantes damas que decoram as tuas salas. Sei isso. Queres o diamante lapidado; queres que elle refulja á luz dos bailes. Vaes entrando com ella por estas portas do grande mundo, por estes bazares onde a mercadoria humana se assoalha; onde os corações como que andam á vista nos seios descobertos; onde, emfim, as almas se caiam e purpuream como as caras... Rodrigo Jesus! que imaginação! Meu pae está illudido com a sociedade. Visconde Illudido, eu! Pois... quem cuidas que eu fui?! Rodrigo Sei que meu pae foi um rapaz distincto, um cortezão, um modelo de fidalgos; sei que meu pae se estremou na sua sociedade, e de certo lá não achou as demazias de desmoralisação que se lhe figuram na sociedade de hoje. Suppondo que nos salões de ha vinte e tantos annos, meu pae encontrou almas viciosas e pessimas, quantas se lhe não depararam virtuosas e optimas? Se eu lá procuro exemplo de bons costumes em moço rico e considerado, não encontro meu pae? Visconde Não. Quem te disse a ti que eu não fui um... um villão? Rodrigo Se meu pae houvesse sido um villão, ninguem ousaria dizer-m'o... Sei o que meu pae foi. Teve os lapsos e quedas proprias da idade, sem quebra de honra. Desenganou-se ou cansou-se mais cedo que o vulgar dos homens, apartou-se d'elles sem deixar rasto de ignominia. É isto que eu conjecturo do seu passado. Visconde Se t'o assim disseram, mentiram-te; e, se finges ignorar o que fui, sou incapaz de baixas hypocrisias a pretexto de manter a minha dignidade de velho e de pae. _(Pausa)_. Rodrigo, eu depravei-me... perdi-me. Teu pae confessa-se diante de ti, para ajuntar mais um flagello ao açoute com que a Providencia o fere. A força da alma, a probidade, a indole generosa que se me formou na educação, perdi-as, e foi nos salões que as perdi. Não me foi necessario immergir na lama das orgias para de lá sahir libertino. Nunca ahi desci. Foi nas salas que o meu coração se encheu da peçonha dos desejos perversos; foi nos bailes que eu perdi os mais vulgares sentimentos da honra, não salvando sequer a coragem, esse derradeiro anteparo do cynico, essa falsa honra que empresta a mascara aos assassinos em duello. Dos bailes é que eu sahi infamado e infame aos meus proprios olhos. Imaginas tu o que é isto de sentir-se um homem infame diante de si mesmo? E sabes o que seja envelhecer debaixo da pesada cruz da vida, sem ter um acordar tranquillo no longo espaço de vinte e dois annos? E tomar-te eu nos braços quando eras menino, e dizer-te muitas vezes: «Ó filho, ó creatura innocentinha, pede á misericordia divina que se dê por contente com o immenso calix de amargura que tenho devorado. Dize a Deus que m'o receba cheio de lagrimas de sangue.» _(Soluça)_. Rodrigo Meu querido pae, que extraordinaria dôr é essa!? O seu espirito sombrio está exagerando culpas ignoradas. Nunca me fallou alguem nos seus crimes. Se elles fossem enormes, ou sequer sabidos, não teriam esquecido... Visconde A sociedade esquece tudo. Esquece victimas e algozes. Mas não esqueças tu que viste chorar teu pae. Se poder ser, vê sempre estas lagrimas através das alegrias dos teus bailes, e escuta-me lá algumas vezes como se eu te estivesse pedindo que fujas d'elles com tua mulher; e, se não pódes defender-te d'estes prazeres traiçoeiros, meu filho, consente que tua mulher se não aparte das arvores onde a chamam as saudades; deixa que ella se fique na quietação da aldeia, e vem tu para as cidades. Tu voltarás mais tarde cansado e dilacerado; e, quando cuidares que vaes sem coração, encontral-o-has no seio puro de tua mulher e no sorriso de teus filhos. Perde-te; mas poupa a alma de Eugenia, para que te não falte o ultimo refugio. Olha que uma esposa sem macula, um amor de mulher sem remorso de crime, nem receio de que lh'o descubram, é luz que nos vai procurar a todas as voragens. Abysma-te; mas não a desvies do berço de teu filho; não quebres o sagrado laço, que Deus formou entre a alma que se está formando, e a alma de mãe, onde é preciso que arda um grande amor, santificado por consciencia de grandes virtudes. SCENA VII OS MESMOS E JOÃO João Fidalgo, está alli um senhor que se chama... Rodrigo Como se chama? João Elle, a fallar a verdade, disse como se chama; mas barreu-se-me de todo; e mais tenho-o debaixo da lingua, como lá diz o outro. _(Recorda)_ Elle tem dous nomes de bichos. Rodrigo De bichos?! João Sim, senhor fidalgo; mas não é dos que vem cá a casa. Rodrigo Dos que vem quê? João D'aquelles fidalgos, que se chamam Leões, Lobos e Camellos. Rodrigo Burro! João Tambem não é burro... Ah! _(sacudindo a mão direita)_ Parece-me que me lembra. Um é assim, um nome de passarôlo grande, que se chama.... Ora o diabo.... que se chama.... Não é corvo, nem pato, nem milhafre, nem... ah! é Gavião. Rodrigo Gavião? João Saberá vossa excellencia que sim; mas elle ainda tem outro nome de alimal. Rodrigo _(ao pae)_ Eu foi muito amigo d'um rapaz que viaja ha annos, chamado Gavião Aranha. João Aranha! é isso mesmo. É Aranha. Rodrigo Vai de pressa; que entre. _(João sáe)_. SCENA VIII O VISCONDE, RODRIGO E DEPOIS PEDRO GAVIÃO ARANHA Rodrigo Foi um dos meus amigos mais constantes. Ha quasi dous annos que não sei d'elle. Visconde Vou sahir. Até logo. Rodrigo Permitta que eu lhe apresente o Aranha. É um excellente rapaz, o melhor coração de cátavento que ha no mundo. Eil-o ahi está! _(Vem entrando Pedro: Rodrigo vai recebel-o nos braços)_ Não ha que duvidar. É o Pedro Aranha. Como estás tu, rapaz? Bello, gentil, com uma cara espirituosamente franceza. Pedro Americano-ingleza, se dás licença. Estas barbas procedem de Nelson, e dão-me o grave tom plastico de um negociante de queijos londrinos. Rodrigo Meu pae, apresento o meu intimo amigo de collegio e dos salões de Lisboa. As nossas alegrias e tristezas da mocidade eram communs. Pedro, aperta a mão ao melhor dos paes. Pedro Respeitosamente aperto a mão ao senhor visconde de Vasconcellos. Ha dous mezes me perguntaram em New-York se eu conhecia vossa excellencia. Respondi que tinha a honra de ser amigo muito particular d'um filho do senhor visconde. Visconde Quem se lembrará de mim na America Ingleza? Pedro Um portuguez que disse chamar-se Jorge de Mendanha. Visconde _(recordando-se)_ Jorge de Mendanha! Não tenho a mais leve lembrança de tal nome! D'onde é elle? Pedro Provinciano, não sei de qual provincia. Visconde Deve ser velho. Pedro Entre cincoenta e cincoenta e cinco annos, penso eu. A cara é de maritimo torrada do sol, um bronzeado de africano; mas a linguagem tem certo relevo litterario, e as maneiras são aristocraticas, sem pretenção. Visconde E disse que me conheceu? Pedro Não, senhor visconde; apenas me perguntou se eu conhecia a vossa excellencia. Visconde Provavelmente é algum dos muitos rapazes da minha criação no collegio dos nobres. Esqueci todos, excepto um ou dous que já são mortos. Jorge de Mendanha!... não me posso lembrar. Senhor Gavião Aranha, conversem, que hão de ter muito que recordar. Eu folgo de conhecer vossa excellencia. Demora-se no Porto? Creio que não é daqui... Pedro Sou algarvio. Quando cheguei a Lisboa e soube que Rodrigo estava no Porto, e casado, parti sem demora a vêr se conseguia ainda usurpar á esposa alguma da muita amizade que elle me deu. Visconde Meu filho sabe apreciar os verdadeiros amigos. _(Aperta-lhe a mão, e sáe)_. SCENA IX PEDRO E RODRIGO. Pedro Senhor Rodrigo de Vasconcellos, vamos a contas. Quando recebeu vossê a minha ultima carta? Rodrigo Ha anno e meio, datada no Cairo. Respondi para o Cairo. Pedro Não recebi. Estava em Alexandria, embrenhei-me pela Asia dentro, e voltei á America do Norte ha seis mezes. Escrevi-te para Lisboa. Rodrigo Sahi de Lisboa ha dezeseis mezes. A tua carta, provavelmente recheada de descripções romanticas, não ousou profanar o esconderijo onde me foragi com a minha felicidade de marido extremoso. Vou apresentar-te minha mulher. Pedro Venha cá vossê. Antes de me apresentar sua senhora, conte-me a historia do seu casamento. Todos os pormenores são pontos essenciaes d'esse solemnissimo desmentido ás tuas grandes theses de celibatario defendidas nas enormes ceias, em que tu parecias sepultar no estomago o esqueleto do coração. Rodrigo Esqueleto do coração!... Ó ignorante, aprende que o coração é musculo. Pedro É musculo ôco; eu tambem já sabia isso, mestre; tambem fiz do peito amphitheatro anatomico; e quando procurava dezoito imagens de mulheres meio delidas na superficie rugosa do coração, encontrei o musculo, de que tens noticia, fundi-o, e achei o vacuo. E tu que encontraste? Rodrigo Isso. Pedro Isso quê? Rodrigo O vacuo do coração; mas a plenitude da alma, que é outra casta de entranha. Pedro Entranha! a alma é entranha! Collocas a essencia immortal na categoria do figado e do baço! Deixemos essa questão á Academia real das sciencias, e vamos á historia do teu casamento. Vaes contar-me alguma historia onde o lyrico, o ideal, o extraordinario realcem e deslumbrem a vulgaridade do matrimonio. Vamos ás peripecias. _(Em tom emphatico de narrador)_ Era uma formosa tarde de estio.... Rodrigo Não tem romance, nem sequer lyrismo a historia do meu casamento. Pedro Não?! Rodrigo Vê lá se este casamento recende alguma poesia. Meu pae, estando eu em Beja, mandou-me procurar no recolhimento da Piedade de Evora duas senhoras nossas parentas, e que lhes lembrasse o seu antigo primo e amigo, e offerecesse a nossa casa e os nossos haveres, se ellas carecessem de soccorros. Fui a Evora, perguntei no recolhimento pelas senhoras, e soube que ambas eram fallecidas, e que na cella onde tinham morrido vivia uma sobrinha d'ellas, muito doente do peito e para pouca vida. Vai vendo que funebre exordio! Pedro Sim: temos já duas mortas, e uma moribunda! Entras no templo de amor pelo cemiterio! Rodrigo Mandei pedir a minha prima se me concedia o favor de a cumprimentar. Permittiu que a visitasse no dia seguinte. Fui com um exquisito alvoroço e presentimento. Appareceu uma formosa menina com as rosetas da tysica nas faces e um sorriso de santa, como se a sahida d'este mundo lhe désse alegria. Conversamos muitas horas. Contou-me que era orphan, e tinha um pequeno patrimonio, de cujo rendimento se sustentava e mais a sua Eugenia, um anjo que Deus lhe mandára, como compensação, que em poucos annos a indemnisasse da felicidade e amor, em desconto do muito que poderia viver. Visitei-a segunda vez. Apresentou-me então a sua amiga. Não trato de te incutir espanto da sua formosura. Eugenia tem a belleza reflexa do ideal incorporeo e indefinido. O que muito me impressionou, e mais do que a belleza, foi o ar de bondade e melancolia, uns olhos que pareciam estar sempre lagrimosos e fitos em uma grande calamidade, um scismar e concentrar-se sem affectação, sem sequer attender á presença de um homem que poderia ter a vaidade de fazer-se attendivel. Participei a meu pae o que tinha visto. Recommendou-me que convidasse de sua parte minha prima Celestina para passar-se do convento aos ares saudaveis de nossa casa em Traz-os-Montes, e lhe pedisse que levasse comigo Eugenia. Mostrei a carta de meu pae. Celestina pensou tres dias, e aprestou-se para a jornada com a sua amiga e as suas criadas. Pelo caminho me foi contando minha prima a breve historia de Eugenia. Uma senhora de Lisboa entrou no recolhimento da Piedade de Evora com uma menina de tres annos, a quem chamava sobrinha. Esta senhora vivia com poucos meios, e morreu não deixando alguns, quando Eugenia contava dezeseis annos. Minha prima levou para a sua cella a desvalida menina, e repartiu com ella a sua pensão. N'este sereno affecto encontrei as duas orphans. As recolhidas, segundo depois averiguei, suspeitavam que Eugenia fosse filha da reclusa que lhe chamava sobrinha. Eugenia presume ter a certeza de que não é filha da senhora que a creou. Como quer que fosse, a supposição de que a orphan denotava com o seu sombrio silencio a procedencia de algum desgraçado amor, obrigava talvez a curiosidade a não devassar o mysterio de que minha prima não tinha a menor elucidação. Celestina melhorou algum tanto na provincia; mas ao cahir da folha, expirou nos braços da companheira de infancia, dizendo a meu pae, em tom supplicante, que adoptasse como sua filha a pobre Eugenia. Passados dias.... Vê lá se te estou estafando com a historia. Pedro Homem, não vês o interesse e a gravidade com que te escuto! Passados dias... Rodrigo _(proseguindo)_ Meu pae, adivinhando-me, disse que o meu silencio lhe não lisongeava a alma, que eu ainda mal conhecia.--Se amas Eugenia, casa, disse elle. Fui a Evora averiguar por onde poderia haver certidões necessarias ao casamento. Nada obtive; apenas um antigo capellão do recolhimento me disse, que a senhora D. Maria da Gloria, tia ou o que quer que fosse de Eugenia, entrára no convento em 1837 e morrêra em 1849 sem ter escripto nem recebido alguma carta; e que uma vez cada anno apparecia na portaria um homem ordinario, procurando a reclusa, e provavelmente entregava a D. Maria da Gloria o dinheiro com que ella parcamente se sustentava. No pensar do capellão esta dama era fidalga, porque o padre que a confessava uma vez dissera que a secular tinha tão nobre sangue como espirito. Este padre confessor era já fallecido quando o procurei em Lisboa. Nada pude, portanto, averiguar, nem cuidei mais de inuteis indagações. Obtive dispensa das mais urgentes certidões, e casei com Eugenia... Por esta occasião meu pae perfilhou-me. Pedro Tu eras filho natural? Eu não sabia. Rodrigo Não? Nem eu. Só depois que sahi do collegio dos nobres e fui á provincia, é que os criados me contaram que minha mãe era uma formosa e pobre moça que amou muito e viveu pouco. Como vinha dizendo, meu pae perfilhou-me. Deu-me em dote a maior parte da sua casa, e reservou para si uma quinta afogada entre serranias em Traz-os-Montes. Ora aqui tens. Pedro E dizias que não tinhas romance!... Rodrigo Romance não é; é o que os romancistas não sabem pintar: a felicidade perfeita. Eugenia é boa como todas as mães extremosas. Tenho um filho de seis mezes: a criancinha figura-se-me uma flor que se abriu da innocente e doce alma da mãe. Eu não tinha direito a tanto contentamento sem intercadencia de tristeza. Sou feliz; e creio que o sou, porque ha Deus, e porque me liguei a um dos seus anjos n'este mundo. Pedro Que linguagem! que transformação! Deixei-te sceptico a respeito de mulheres; atheu, a respeito dos deuses; e um consummado Herodes a respeito dos meninos. Acho-te um coração cheio dos tres e unicos elementos da felicidade humana: o amor do marido, a ternura de pae, e a religião que recebe os bens e os males da vida como favores da Providencia. Eu tambem creio em tudo isso; mas tambem creio no diabo. Depois d'isto o que eu poderia desejar-te era doze contos de renda, e um supplemento de boa saude, como pedia Henri Heine quando não tinha esposa, nem filho, nem Deus, nem saude, nem dinheiro. Saude tens tu á proporção dos capitaes, não é verdade? Rodrigo Sim; vivo bem, e desassombrado de credores. Pedro Ah! tu já não tens credores?! _(baixo)_ Transgrediste o solemne juramento que fizemos em Lisboa de não pagar a uzurario que abuzasse da nossa innocencia do juro da lei?! Rodrigo Meu pae mandou pagar tudo e a todos. Pedro E não te amaldiçoou? Rodrigo Não. Pedro Oh! que pae! que santo! que patriarcha hebreu! Rodrigo Disse-me isto sómente: «Se houvesses contrahido dividas no valor do que possues, eu pagaria as dividas e ficarias pobre. Por óra és rico; mas, se teimares em dissipar, o opprobrio te ensinará o caminho da infamia.» Pedro Apre! Isso parece-me estylo de pae grego ou romano. Esse caso deve passar para a nova edição do _Thesouro de meninos_! Rodrigo E tu não pagaste áquelle dos oculos verdes? Pedro A qual dos oculos verdes? Todos os uzurarios que eu conheci tinham oculos verdes. Eu não paguei a nenhum. Sou equitativo, e não distingo credores. Tambem sou romano e grego quando dou a minha palavra. Jurei não pagar. Rodrigo Teu pae provavelmente pagou... Pedro As minhas dividas? Seria virtude mais velha que os heroismos de Grecia e Roma, se meu pae pagava as minhas dividas não pagando as d'elle! Os meus credores devem morrer de spasmo quando souberem que na minha familia não ha avô que pague pelo filho e pelo neto. Descendo de uma raça insoluvel desde meu vigesimo quarto avô D. Ordonho, principe gothico, até mim, que tambem não pago porque me não chamem gothico, como éra meu vigesimo quarto avô D. Ordonho. SCENA X OS MESMOS E D. EUGENIA _D. Eugenia assoma no limiar de uma porta, e faz menção de retroceder vendo um estranho_ Rodrigo Entra, Eugenia. _(Ella entra com uma carta aberta.)_ Quero apresentar-te ao meu amigo Pedro Gavião Aranha. Pedro Amigo desde o collegio, e de quantos elle teve e tem o mais participante das felicidades em que o venho encontrar depois de quatro mezes de auzencia. D. Eugenia O Rodrigo já me tinha fallado de V. Ex.ª com muita estima; e eu tenho muito prazer em vêl-o n'esta casa. _(Voltando-se a Rodrigo)_ Chegou agora esta carta da condessa de Travaços. Vê. Rodrigo _(depois de a lêr mentalmente)_ Pede um convite para o baile... _(reflectindo)_ Ó Pedro Aranha, como se chamava o sujeito que em New-York te fallou em meu pae? Pedro Jorge de Mendanha. Rodrigo Ora ouve lá: _(lê)_. «Minha querida, senhora. Peço-lhe que obtenha do Rodrigo de Vasconcellos um cartão de convite para um sugeito de fóra que foi apresentado ao conde. Chama-se Jorge de Mendanha. Da sua prima e amiga etc.» Pedro Oh! cá está o homem! E é singular coisa! Quando sahi da America estive com elle, e nada me disse de vir a Portugal!.. Vão V. Ex.as vêr um homem de romance. D. Eugenia _(com simplicidade)_ Então quem é esse homem? Rodrigo _(risonho)_ Essa pergunta assusta-me! Alvoroça-te a prespectiva d'um homem romantico? D. Eugenia _(sorrindo ingenuamente)_ Nunca vi nenhum... Rodrigo Nem á mim? Então que sou eu? Não sou... sequer romantico! D. Eugenia Não; tu, Rodrigo, és bom... Eu li alguns romances no convento; e não encontrei n'elles a semelhança do teu genio; e nós lá quando diziamos que algum sujeito ou alguma senhora eram romanticos, não lhes faziamos elogio algum. Por isso é que eu desejava saber em que opinião se deve ter o tal sujeito que o snr. Pedro Aranha diz que é de romance. Pedro E poderei eu responder-lhe, minha senhora? Jorge de Mendanha é o mysterio; é um portuguez com uma cara de beduino; um velho com uns ares que impõe respeito, e ao mesmo tempo se insinuam no affecto dos moços. É eloquente; mas falla á moda dos atticos. Tem estylo sentencioso, concizo e cathedratico. Emfim, minha snr.ª, estimo grandemente o novo encontro com este homem que se destaca das espalmadas vulgaridades que nos acotovellam nos bailes, nos cafés, nas ruas, em todo este Portugal que é uma especie de viveiro, onde todos os homens parecem educados para meninos do côro. Rodrigo _(sorrindo)_ Por exemplo, aqui tens, Eugenia, um menino do côro creado nos viveiros de Portugal. _(Indica Pedro)_. Pedro Pois bem; eu não inculco a minha sufficiencia para corista; mas é que eu fui reedificar-me, para assim dizer, nos paizes onde as artes são por tal modo milagrosas que transformam um homem. A civilisação anglo-americana é uma especie de depillatorio que descabella os ursos de todas as nações. Rodrigo Tudo portanto que não foi, como tu, receber da thesoura ingleza uma tosquia, é urso. Obrigado, snr. Gavião Aranha. Dá alvará de urso aos seus compatriotas, e eu tenho um criado que vinga os seus patricios annunciando-te como sujeito que tem dois bichos mais ou menos ferozes na sua pessoa. Pedro O que? SCENA XI OS MESMOS E JOÃO João Está lá em baixo uma fidalga n'um carrão. Rodrigo N'um carrão? Pedro Hade ser carroção. Pois ainda ha no Porto fidalgas que se fazem mover por bois? Rodrigo _(a João)_ É carroção ou carroagem? João É sim senhor. Rodrigo O quê? João É uma d'estas chirinolas que trazem os moxillas na tampa de diante. Rodrigo _Chirinolas que trazem os moxillas na tampa de diante._ Entendeste, ó Pedro? Pedro Tu deves ter diccionario particular para entender o sujeito. A linguagem tem certo pittoresco, e um sabor classico. D. Eugenia _(rindo)_ Falla á moda de Traz-os-montes. Rodrigo Essa coisa é puxada por bois ou cavallos? João São eguas, fidalgo. Rodrigo _(a Pedro que ri)_ Este é o creado que te annunciou com dois bichos. _(Para João)_ Quem é a senhora? João Um dos moxillas disse que é a snr.ª D. Viscondessa de Pimentel. Rodrigo _(com as mãos na cabeça, comicamente)_ Ai! ai! ai! Pedro Pois está no Porto a viscondessa de Pimentel? Rodrigo Eu vou recebel-a á portinhola; mas tu depois dispensa-me, Eugenia. Deixas-me fugir, sim, meu amor? D. Eugenia _(sorrindo)_ Pois sim. _(Rodrigo e João sahem)_. SCENA XII D. EUGENIA E PEDRO Pedro A viscondessa de Pimentel! como atura V. Ex.ª esta arara de conserva? D. Eugenia Conheço-a ha poucos dias. Encontrei-a em casa da condessa de Travaços, e fui visital-a depois ao hotel de Francfort... É a primeira vez que vem cá. Pedro Mas ridicula até á commiseração, não é verdade? D. Eugenia Não... Faz-me dó! Tenho muitissima pena das senhoras que se não resignam com a velhice. No convento, onde eu fui creada, muitas senhoras, sendo em tudo exemplares, esqueciam-se de se fazer venerar pela idade; e eu tinha muita compaixão quando se riam d'ellas. Pedro Ella ahi está explendida de antiguidade como uma cathedral! SCENA XIII OS MESMOS, RODRIGO E A VISCONDESSA DE PIMENTEL _A viscondessa é uma senhora de 50 annos, trajando no requinte da moda, e dissimulando a idade com o caio no rosto e cabellos postiços. Nos trejeitos e meneios exagera um desembaraço ridiculo, com o intento de affectar o garbo e desenvoltura de rapariga. Entretanto convem que se não desmanche dos modos verdadeiramente palacianos e proprios de esmerada educação e pratica da melhor sociedade._ D. Eugenia _(indo ao encontro da Viscondessa)_ Senhora viscondessa, como está V. Ex.ª? Viscondessa Muito nervosa. E V. Ex.ª? Hontem no theatro deu-me grande cuidado a sua sahida no intervalo do 2.º acto. Pedi ao primo Travaços que soubesse se algum motivo extraordinario alem do _spleen_... oh! o _spleen_!.. é uma calamitosa enfermidade esta, não acha?.. depois soube felizmente que o snr. Rodrigo de Vasconcellos dera uma gentil e formosissima razão da sua sahida... D. Eugenia Ah! sim... Eu sahi porque... _(sustendo-se)_. Rodrigo _(a Pedro)_ Porque teve saudades do filho, Pedro Aranha. Viscondessa _(com alvoroço)_ Pedro Aranha! Pois está aqui o snr. Pedro Aranha... Bem me parecia conhecer... mas por mais que concentrasse as minhas reminiscencias... Pedro _(apertando a mão da viscondessa)_ Eu esperava ensejo de poder comprimentax V. Ex.ª Viscondessa Vem de Pariz? Pedro Da Suissa, minha senhora. Viscondessa Da Suissa? paiz das montanhas colossaes, com muitas bellezas selvagens, e a poesia magestosa e imponente do extraordinario, não é assim? Pedro Sim, minha senhora; ha muita poesia grandiosa na Suissa. Viscondessa Eu amo as soberbas descripções d'esse paiz! Já pedi ao visconde que me mostrasse a Suissa; mas o egoista respondeu que detesta as viagens em nações montanhosas. Ha certos espiritos que querem as nações chatas como elles. Quem me dera beber o ar que sacode os cabellos nos pincaros das serranias! É desejo que me devora desde menina. O visconde diz com a mais desgraciosa semsaboria que suba ás agulhas do Marão ou da serra da Estrella onde ha muito ár puro. Vejam que curteza de alentos! Para certas almas o ar é ar em toda a parte. Vêr o mar do rochedo de Santa Helena ou da Trafaria é igual. Tudo é agua: não é assim, snr. Aranha? Pedro _(ironico)_ Sempre espirituosa, sempre admiravel de critica, e inexoravel com o seu bom senso em castigar os espiritos canhestros... Viscondessa Pois não é assim? Pedro Irrefutavelmente é assim, senhora viscondessa. Eu recebo as ordens de V. Ex.ª _(a D. Eugenia. Rodrigo pega no chapeu.)_ D. Eugenia Vão sahir? Vem fazer companhia ao Rodrigo e ao pae? A gente espera o snr. Aranha. Pedro Não me dispenso da honra e do prazer, minha senhora. Rodrigo _(á viscondessa)_ Senhora viscondessa. Eugenia, até logo. _(beija-a. A viscondessa aperta a mão dos dois que sahem)_. SCENA XIV D. EUGENIA E A VISCONDESSA Viscondessa Teve carta da prima condessa? D. Eugenia Sim, minha snr.ª Viscondessa Jantou hontem comnosco um homem sobremaneira excentrico. É esse Jorge de Mendanha de quem lhe falla a prima. É portuguez, e vem de Inglaterra recommendado ao conde--coisa singular!--por um lord de tal que o primo conheceu em Londres. Disse que estivera em Lisboa ha bastantes annos, e fallou de familias da primeira ordem como quem as conhecia muito. Perguntei-lhe, quando se tomava o café, se tinha conhecido, nos bailes do marquez de Vianna, Francisca de Almeida, que sou eu. Fitou-me com um sorriso indescriptivel, e disse: «conheci». E se a visse hoje, conhecel-a-hia?--perguntei eu «Graças á solidez da sua belleza, (disse elle) a viscondessa de Pimentel é ainda a depositaria da insigne formosura de Francisca d'Almeida». Não podia dizer uma amabilidade com tanto e tão delicado espirito, pois não? Ha não sei que de puro parisiense n'isto, _un beau trait d'esprit_ não vulgar em portuguezes, acha? D. Eugenia Sim... Este amigo do Rodrigo conheceu-o na America ingleza, e diz que elle é velho, mas muito romantico... _(sorrindo)_. Viscondessa Velho?! não, minha snr.ª.. _(Vê-se ao fundo o visconde)_. É homem de quarenta e poucos mais; mas V. Ex.ª ha de vêr um gentleman, um _distingué_, _un homme à bonnes fortunes_ como lá se diz. SCENA XV AS MESMAS E O VISCONDE Visconde _(com mal reprimido azedume)_ A mulher de meu filho não sabe francez, snr.ª viscondessa. D. Eugenia Ah! o pae!.. Estava ahi! Viscondessa Com effeito! é possivel que eu tenha o tão desejado jubilo de vêr o snr. visconde!? Ha que infinitos annos o não vi! Que doce surpresa!.. mas, ao mesmo tempo, _(com a mão na fronte, pensativa)_ que turbilhão de recordações melancolicas! Vê? não posso vencer a commoção! _(Leva o lenço aos olhos)_ . Visconde _(sorrindo)_ São os meus cabellos brancos e as rugas profundas que a commovem, minha snr.ª? Ainda bem que V. Ex.ª me não sensibilisa com o espectaculo pungente da decadencia, snr.ª viscondessa. Viscondessa Pois creia que padeço infinitamente, visconde. Fóra de Lisboa, recobro forças e energia. Eu disse ao Pimentel: quero sahir d'aqui; estou farta d'isto; Lisboa está estupida; a vida d'esta sociedade é a proza chilra das sociedades gastas, sem feição, toda safada em relevos, um _cancan_, uma palestra de senhoras visinhas; emfim, Lisboa acabou-se... a Lisboa do nosso tempo... Visconde _(com intenção ironica)_ A Lisboa dos nossos velhos tempos, minha snr.ª... Viscondessa _(sem attender á interrupção)_ Resolvi sahir instada pelo primo Travaços. Vim, e sinto-me melhor. Acho certa novidade nos costumes, nas maneiras, no _ensemble_ da vida portuense. Logo que cheguei e a prima condessa me apresentou esta snr.ª como espoza de um filho do visconde de Vasconcellos, pedi logo que me dessem occasião de vêr a V. Ex.ª Visconde Muito grato ao obsequio... Viscondessa Não me pergunta por alguem de Lisboa, visconde? Não quer saber de alguem? Visconde Das pessoas que conheci em Lisboa ha 25 annos que me dirá V. Ex.ª? Umas morreram, outras envelheceram. Não me parece aprazivel o passearmos em um cemiterio a lêr epitaphios de pessoas amigas ou conhecidas; nem V. Ex.ª folgaria de encontrar-se com alguns velhos que encaram a morte espantados, e apertam no peito ainda com amor o abutre da saudade. Viscondessa Que funebre! que elegiaco!.. V. Ex.ª abafa o seu antigo espirito com o pezo dos crepes! Aqui está o que faz a aldeia. Eu estive algum tempo no campo, onde o visconde se desterrou, sacrificando-me ás experiencias agricolas. Ao fim de oito dias, snr.ª D. Eugenia, as minhas ideias eram pavorosas. Se me demoro outra semana, morria abafada. Snr. visconde, trate de viver, e deixe á morte o cuidado de o apanhar, quando estiver distrahido. V. Ex.ª acha sensato estar-se a gente a vêr morrer todos os dias? Eu não. É uma doidice que não abre as portas de Rilhafoles, nem as da Arrabida, nem as de Cartucha, visto que se acabaram os frades contemplativos; mas, snr. visconde, olhe que um mysantropo da sua especie dá cabo de si proprio, e flagella, os outros com as suas visões. Visconde _(ironico)_ Eu sentiria atrozmente se incutia a V. Ex.ª ideias funeraes, e usurpava á sociedade feliz as alegrias da sua optima indole, snr.ª viscondessa. Viscondessa Vamos... Venha a ironia que me faz lembrar o Heitor de Vasconcellos de ha 24 annos. Ria maliciosamente, que eu antes o quero vêr assim. Minha querida amiga, entrego-lhe o cuidado de restaurar o espirito de seu pae. Diga-lhe as coisas floridas e rejuvenescedoras que a mocidade sabe dizer. Remoce este animo arido, e não o deixe voltar á aldeia. E adeus, visconde. Até amanhã. Conversaremos muito... Ah! é verdade! Ó visconde, olhe se se lembra de ter visto em Lisboa um tal Jorge de Mendanha que lá me conheceu ha vinte e tantos annos... Visconde Eu já hoje ouvi aqui fallar d'esse Jorge de Mendanha que estava na America ingleza. Viscondessa Está no Porto. Visconde No Porto?! Viscondessa E vem ámanhã ao baile. Visconde Tenho certa curiosidade de o vêr. Viscondessa É extraordinario! Visconde Que singularidade são as do homem, viscondessa? Viscondessa É o _incompris_!.. tem a aureola do mysterioso; o incognito, o romance. _(O visconde solta um frouxo de riso)_ De que se ri, visconde? Visconde De mim, por ter a innocente ignorancia de me espantar... Viscondessa Espantar-se! de quê? Visconde Do enthusiasmo juvenil com que V. Ex.ª pinta o homem, que, se nos conheceu ha 24 annos, deve ter uma velhice rasoavel. Viscondessa Ahi vem uma jeremiada sobre a velhice!.. Visconde E, se elle é maior de 50 annos, e finge o _incompris_, o incognito, o romance, e tem aureola de mysterio, o tal sujeito deve ser ridiculissimo. Não me tente, minha presada snr.ª, que eu sou capaz de vir ao baile para não morrer sem ter visto um homem do nosso tempo com uma aureola de mysterio. Viscondessa _(dando-lhe com a luneta no hombro)_ Maganão! Cuida que toda a gente lhe ha de _fazer cauda_ na via dolorosa da sepultura!.. Ha muito quem ainda sinta o coração desopprimido sob o pezo da consciencia; deixe rir alguem para que nos não affoguemos em diluvio de lagrimas. _(Com intenção.)_ Visconde _(pensativo e abatido)_ Eu é que não posso rir-me; mas sei que ha corações que não soffrem o pezo das consciencias que nada pezam. Viscondessa Adeus, minha querida amiga. Adeus, visconde... Ah! que não me esqueça furtar-lhe duas camelias do seu jardim, que as vi lindissimas quando vinha subindo. D. Eugenia Sim, minha snr.ª, vamos colher quantas V. Ex.ª quizer. Viscondessa Eu amo infinitamente as camelias. As senhoras do Porto mereceram da providencia dos jardins muito mais amor que as de Lisboa. _Sahem._--_(O visconde senta-se alquebrado)_. SCENA XV O VISCONDE E DEPOIS JOÃO Visconde _Ha muito quem ainda sinta o coração desopprimido sob o pezo da consciencia_, disse ella. Bem sei, bem sei onde apontavas a frecha... Estas allusões moraes e penetrantes resaltam ás vezes das consciencias mais diluidas. Receio que esta mulher conte a Eugenia o meu passado... João _(entrando com o «Commercio do Porto»; e, como não vê o visconde, que o espaldar da poltrona encobre, olha em redor)_ Não enxergo ninguem. _(Começa a lêr, e vae sentar-se n'outra poltrona, que tem as costas voltadas para a do visconde)_ Deixa-me vêr se ainda leio por cima. Acho que é inglez, isto. Será? Não me parece. Quem sabe lêr n'estes _coisos_ é cá o meu primo Joaquim que já foi entregador ou redactor ou não sei quê d'uma trapalhada d'estas. _(Lendo no alto da primeira pagina) Po, lí, po, lí tí, ca, in, ter, na. Politega eterna._ Isto acho que é a respeito da religião, ou lá da eternidade do outro mundo. Vamos vêr o que diz dos governos: _(Lendo na quarta pagina) Rolhas e palitos, rua da Ferraria, 46. (Soletrando)_ Não é aqui. Ha-de ser mais abaixo, _(lendo) Linguas de bacalhau, em Cima do Muro._ Linguas de bacalhau! Isto é chalaça aos deputados... _(O visconde tosse. João levanta-se atrapalhado, deixa o jornal sobre a cadeira, e sáe da sala derreando-se para não ser visto. Ao mesmo tempo vem entrando D. Eugenia por outra porta)_. SCENA XVI VISCONDE E D. EUGENIA D. Eugenia _(aproximando-se da cadeira e inclinando-se com meiguice)_ Como está triste! que tem, meu pae? Visconde _(erguendo-se)_ Grande pezar de já ter sido alguma hora alegre, minha filha. D. Eugenia Parece qué a visita da viscondessa o contrariou. Visconde _(pegando do «Commercio», e lendo mentalmente ao mesmo tempo que conversa)_ O conhecimento d'esta senhora não lhe convem, Eugenia. Estas mulheres, emancipadas da opinião publica aos vinte annos, não costumam ser as mais uteis amigas na velhice. D. Eugenia Amiga! Eu apenas a conheço, e não sinto a menor inclinação para ser amiga de tal senhora. Visconde _(lendo sempre. Declamação vagarosa)_ Quando a viscondessa quizer contar-lhe as muitas historias que ella deve saber da vida de Lisboa, mostre-se a minha filha inteiramente descuriosa de as saber. Esteja de prevenção. Eugenia, acautele-se das mulheres que não tem outra virtude sabida senão a de murmurar dos vicios alheios. A viscondessa creio eu que não murmura. Hypocrita nunca ella foi. Mas conta, folga de contar: tira dos bastantes annos que tem o partido possivel, como quem se preza de conhecer o romance dos ultimos 30 annos de Lisboa. Além d'isto, ha de a minha filha observar que certas damas contam historias de pessima moral acontecidas com muitas das suas amigas. O seu industrioso plano é dar a perceber que o vicio está por tal forma naturalisado que já não ha razão para espantos nem sequer para censuras. Ora eu muito queria que minha filha soubesse de mim sómente que na sociedade habitual da viscondessa de Pimentel as theses de moral são assim todas pouco mais ou menos. _(Suspende-se subitamente. Vivamente agitado, fixa attentamente o que está lendo, emquanto Eugenia se intretem tocando em qualquer adorno das mezas. O visconde serena-se com grande exforço e disfarce. Depõe o jornal, e toma o chapeu. D. Eugenia tem reparado na commoção do visconde)_. Até já, Eugenia. D. Eugenia O pae está tão pallido! Visconde Pallido! Não sei o que seja!.. D. Eugenia Sente-se doente? Visconde Não, minha filha... Isto são accessos de hypocondria... Vou tomar ar ao jardim. Volto já. _(Sáe)_. SCENA XVII D. Eugenia, _(só)_ Elle ía tão mudado e sobresaltado! E estava a lêr com tanta inquietação! Que seria? que viu elle n'este jornal?! _(Pega do jornal e corre os olhos pela primeira pagina)._ Que é isto? _(estremecendo)_ Este nome... Jacome da Silveira! _(Faz menção de lêr agitadamente, e lê alto): Cego pela paixão feroz do ciume matou..._ Pois elle vive, meu Deus! Que commoção tão funda eu sinto! Que ancia! que susto de que esta noticia me traga desventuras! _(Lendo) Jacome da Silveira... D. Martha de Villasboas!_ São estes os nomes!.. O desgraçado vive!.. Ainda o verei? E poderia amal-o, se o visse? Oh! não... Eu vejo sempre o cadaver d'ella... _(Senta-se a soluçar)._ SCENA XVIII D. EUGENIA E RODRIGO DE VASCONCELLOS _(Eugenia forceja por limpar as lagrimas)_ Rodrigo _(reparando)_ Estavas chorando, filha? D. Eugenia Estava. Rodrigo Porque? São as primeiras lagrimas que te vejo. D. Eugenia É verdade... Rodrigo Mas porque choras, Eugenia? Tu estavas lendo n'este jornal... D. Eugenia Sim, estava... Vem ahi uma historia muito triste. Rodrigo _(procurando no fundo do jornal)_ No folhetim? Pois os romances fazem-te chorar, creança? D. Eugenia Não é romance; é aqui. _(Indicando-lhe o alto da primeira columna)._ Rodrigo Aqui na Correspondencia de Pariz? _(Ella faz um gesto affirmativo)_ Pois que é? _(Correndo com os olhos alguns periodos, balbucia inintelligiveis palavras, e depois lê):_ «Contar-lhe-hei um successo digno de attenção, e d'algum modo romantico, se bem que procede d'um lance de tragedia.» É aqui? D. Eugenia É. Rodrigo _(lendo)_ «Um cavalheiro portuguez, que hontem encontrei no _Bois de Bologne_, me mostrou um sujeito que ia passando sósinho, triste e vagaroso. E depois me contou o seguinte caso que teceria o enredo de um bom romance, se cahisse na officina de Alexandre Dumas. Ha duas duzias de annos, pouco mais ou menos, um homem de consideração, residente em Lisboa, de nome Jacome da Silveira, casado com uma distincta e formosa senhora, chamada Martha de Villasboas, cego pela paixão feroz do ciume, matou a espoza. Poucas horas depois, apresentou-se ao governador civil declarando que matára sua mulher. Interrogado sobre os motivos do crime, respondeu que não tinha obrigação, vontade, ou necessidade de declarar o crime da senhora morta, porquanto já estava castigada, e a memoria d'ella não esperava da sociedade estigma nem rehabilitação. Perguntado como é que se apresentava, respondeu: «Como homem que matou». Na qualidade pois de homicida voluntario com premeditação foi Jacome da Silveira encarcerado, julgado e sentenciado em 20 annos de degredo para Africa, em attenção não sabemos a que circumstancias attenuantes. A sociedade de Lisboa, o jury, e o juiz que o julgaram e sentenciaram sabiam de sobejo que D. Martha de Villas-boas morrêra criminosa. O cumplice da adultera éra conhecido. Constava que o réo encontrára superabundantes provas do crime, as quaes valeriam tanto na consciencia do jury como o flagrante delicto. Todavia como Silveira teimou pertinaz e loucamente em não declarar o crime de sua mulher, a condemnação éra inevitavel, a não estar o jury, como não estava, á altura da tão infeliz quanto generosa alma do réo. Jacome da Silveira era rico. Todos suppozeram que elle se transferisse d'Africa para onde bem quizesse, sobrando-lhe recursos com que armar navio que o transportasse á Europa ou America do norte, a não querer antes levantar-se com o senhorio de Angola e proclamar-se rei d'áquem e d'alem mar em Africa, etc. Estas conjecturas eram indignas do nobre e excentrico animo do condemnado. Jacome cumpriu a sentença; completou 20 annos de degredo; e, cobrando alvará de soltura, passou ao coração da Europa, e nomeadamente ao _Bois de Bologne_, onde hontem o vi. Tanto quanto de relance o pude vêr, deixou-me uma impressão melancolica. «N'aquelle rosto de bronze, transluzia d'esta historia a pagina que escreveram lagrimas choradas por espaço de 24 annos. Na historia ha duas victimas, e um infame. D'este personagem não lhe sei dizer o nome. Esse talvez tenha envelhecido socegadamente em Portugal, e esteja lendo com olhos enxutos esta noticia». _(Declama):_ Mais nada. Saibamos agora porque choraste, Eugenia? D. Eugenia Porque chorei!? não foi tão infeliz e triste a sorte d'esta senhora?! Rodrigo Triste? decerto foi; mas não era justo que fosse alegre. Esta mulher deshonrou o marido: foi punida. Ella matou um coração honrado; elle matou um corrupto. Não ha comparação racional entre os dous delictos. Se tu chorasses por elle que soffreu primeiro a deshonra, e depois a condemnação a degredo de vinte annos!... As tuas lagrimas poderiam revelar a piedade abraçada á justiça; mas chorar pela criminosa que... D. Eugenia _(atalhando-o)_ Tens razão... Perdôa ás minhas lagrimas... Em poucas palavras me fizeste comprehender a desgraça d'esse infeliz. Rodrigo _(pausadamente)_ Pois não é assim, filha?.. Primeiro, a affronta recebida no coração; depois o aviltamento do amor-proprio e os risos insultadores do mundo; depois o horrendo trance da morte com as angustias infernaes que deviam lacerar-lhe a alma; depois o carcere e a sentença; depois vinte annos sem patria; e finalmente... SCENA XIX OS MESMOS E O VISCONDE Visconde Que estavas tu dizendo tão commovido, Rodrigo? Rodrigo Conversavamos a respeito d'esta noticia, meu pae. _(Mostra-lh'a no Jornal)._ Visconde Já vi. D. Eugenia Parece-me que o pae tambem a leu com amargura. Visconde Li... Na sala de espera, Eugenia, estava alguem agora a procural-a. D. Eugenia Sim? eu vou. _(Sáe)._ SCENA ULTIMA RODRIGO E O VISCONDE Visconde Pungiu-te essa noticia, Rodrigo? Rodrigo Eugenia é que estava chorando de compaixão da mulher que o marido matou. Visconde Deixasse-l'a chorar, coitada! Essa mulher, que morreu, foi uma virtuosa espoza como Eugenia. Rodrigo Então morreu innocente? Visconde Não. Rodrigo N'esse caso, o confronto não lisongêa minha mulher... Visconde Eu ia dizer-te que D. Martha entrou innocente n'um baile; e, quando sahiu, sentia a febre da paixão que antecede a morte do brio e do pundonor. Estava n'esse baile um homem de preversidade contagiosa. Lê as ultimas linhas d'essa correspondencia, ahi onde começa: _Na historia ha duas victimas e..._ Rodrigo _(lendo)_ «Na historia ha duas victimas e um infame. D'este personagem não lhe sei dizer o nome. Esse talvez tenha socegadamente envelhecido em Portugal, e esteja lendo com olhos enxutos esta noticia.» Visconde _(commovido até ás lagrimas)_ Vês os meus olhos enxutos? Repára, filho, que eu estou chorando... Rodrigo Está; mas que querem dizer as suas lagrimas?! Visconde Querem dizer que o infame, de que falla essa noticia, é... teu pae. _(Rodrigo estremece. Corre o panno)._ FIM DO PRIMEIRO ACTO. ACTO SEGUNDO. A sala do primeiro acto. Ouve-se musica que vem soando das salas, onde se dança. Damas e cavalheiros cruzam n'esta sala, mas no segundo plano. SCENA I VISCONDESSA DE PIMENTEL E O CONSELHEIRO JOSÉ DE SÁ Viscondessa Surpreza assim! José de Sá n'um baile do Porto! Encontrar-me ha quinze dias no Chiado, e não me diz que vem ao Porto. Creatura mais mysteriosa, com vislumbres de romantica, nunca vi! E estar no Francfort, meu companheiro d'hotel, sem eu saber! Há quantos annos o não encontro em bailes, conselheiro? Deixe-me vêr se me lembro... Foi, foi, foi ha... José de Sá Ha 22 annos, minha senhora. Viscondessa Mas que maravilhosa conversão foi esta? como é que V. Ex.ª depois de duas duzias d'annos d'um anachoretismo selvagem, volta aos bailes, a estes pedaços modernos da Babilonia antiga? José de Sá _(sorrindo)_ Milagres d'amôr, snr.ª viscondessa, acho eu. Ha amôres que rebentam no inverno da vida como os tortulhos com as primeiras chuvas; e, como não achem coração onde se hospedem dignamente, recolhem-se á cabeça, e tamanhos estragos lá fazem que não é raro vêr em bailes muitos doudos que trazem nos miolos um cupido mais destruidor que um rato em queijo de cabeça de preto. Viscondessa Vejo que fez conserva da linguagem pittoresca d'outro tempo! José de Sá Pois está claro; nas nossas idades... quero dizer, na minha idade, são tudo sequeiros e conservas... O coração, como eu o sinto, é verdadeiramente uma betarraba já curtida... Viscondessa Pois sim mas não zombe do amor, que não perdôa sarcasmos... Olhe que a occasião é de grande perigo... Veja, veja, o que ahi vai de bellezas... _(apontando para as senhoras que vão passando)_. José de Sá _(mirando-as com a luneta)_ É verdade. Bem vejo. Ó minha querida snr.ª viscondessa, defenda-me com o seu bom conselho. Diga-me de que Circes devo acautelar-me. Viscondessa De todas. José de Sá De todas? pois tambem V. Ex.ª terá a crueldade de não poupar uma antiga victima dos seus desdens? Constituamos o dialogo em pleno reinado d'el-rei nosso senhor Dom João V. Viscondessa _(ironica)_ E quem tem um espirito d'este tamanho andou 22 annos por fóra dos bailes! José de Sá _(rapido)_ Para o não perder, minha snr.ª. Viscondessa Diz bem. O espirito aqui perde-se. Esta gente nova parece que sáe bronca dos collegios. Aprendem linguas estrangeiras para fallarem com espirito, e guardam o portuguez para dizerem semsaborias. Vae vêr. Entre por essas salas; encontra cincoenta galantes meninas de uma enxabidez monumental. Espirito! Foi tempo. Não ha hoje em dia quem saiba conversar cinco minutos sem justificar o mais sincero abrimento de bôcca. José de Sá Espirito de papoulas, não, minha snr.ª? Excellente coisa! Eu durmo ha muito tempo ajudado pelos artigos de fundo das gazetas. Se eu podesse adormecer acalentado pelas semsaborias dos anjos, trocaria a insipidez dos anjos pelo sal dos politicos. Viscondessa Ai! politicos! não me falle em politica que me estorce os nervos! Pois não sabe que o visconde por causa da candidatura de meu cunhado me fez ir a Setubal dirigir as eleições contra o governo? José de Sá V. Ex.ª fez as eleições em Setubal? Isso tem graça; acho-lhe um sal, mais sal do que Setubal exporta! V. Ex.ª fez eleições? Viscondessa Fiz. José de Sá E venceu? Viscondessa Venci. José de Sá Está claro. Venceu. O amôr vence tudo, inclusive as eleições. Um ou dois raios d'amor despedido por olhos ardentes sobre a urna, fariam o prodigio de converter em ministerial o deputado opposicionista. Mas, ó querida viscondessa, V. Ex.ª não receou que os irritados manes de Bocage a satyrizassem em Setubal? Viscondessa Satyrizar-me, porquê? José de Sá Pois uma snr.ª toda poesia, toda flôres, toda céo, a combinar com as facções o arranjo d'um deputado, ha ahi cousa que deva recear-se mais da satyra bocagiana?.. Uma dama politica! Uns dedos finos e côr de rosa, affeitos a volver as paginas do livro do coração, a profanarem-se na entrega das listas de costaneira! Ó muito illustre e muito presada minha amiga, posto que V. Ex.ª qual outra Judith venceu o Holofernes administrativo de Setubal, não posso deixar de lhe dizer que se V. Ex.ª e as suas correligionarias começam a fazer politica, eu e os meus correligionarios teremos de fazer meia. Este paiz é muito pequeno, e a custo dará politica para o sexo feio. Viscondessa Já vejo que o snr. conselheiro continua a considerar a mulher uma incapacidade para os actos do espirito. José de Sá Não minha snr.ª Eu sou obrigado a confessar que ha senhoras intelligentissimas e com grande capacidade. Viscondessa Mas com intelligencia sómente honorifica. Concedem-nos a honra da intelligencia; mas sem exercicio... Obrigadissimas, rei da creação, obrigadissimas... _(Reparando)_ Ah! ahi vem o Jorge de Mendanha, conhece? José de Sá _(intencionalmente)_ Não conheço Jorge de Mendanha. Viscondessa E não se lembra de ter conhecido este nome? José de Sá Não conheci. Viscondessa Eu apresento-o! José de Sá _(áparte)_ Tem graça a apresentação... SCENA II VISCONDESSA, JOSÉ DE SA, D. EUGENIA, JORGE DE MENDANHA Viscondessa _(a Jorge)_ Apresento o snr. conselheiro José de Sá, cavalheiro pertencente á mais selecta sociedade de Lisboa. Talvez conhecesse V. Ex.ª _(Indicando Jorge)_ O snr. Jorge de Mendanha. É natural que já se hajam visto... _(Os apresentados apertam-se as mãos, fixando-se de um modo que deixa entrever disfarce)_. José de Sá Certamente. Viscondessa Em Lisboa? _(Signal de começar-se uma polka. Rodrigo offerece o braço á viscondessa, e Aranha a D. Eugenia. Movimento de pares que atravessam rapidamente)_. Rodrigo _(offerecendo o braço)_ É a terceira polka, minha snr.ª Viscondessa Ah! sim? vamos... D. Eugenia _(com distracção a Pedro Aranha)_ Sou seu par, snr. Aranha? Aranha Sim, minha snr.ª; mas, se V. Ex.ª... D. Eugenia _(desprendendo-se do braço de Jorge)_ Desculpe, cuidei que... _(Sáem os dois pares)._ SCENA III JORGE E JOSÉ DE SA José de Sã Que vieste, afinal, fazer aqui? Jorge Ver como se houve a Providencia n'este pleito que eu terminei com a sociedade. Fui condemnado. Apellei da iniquidade da terra para a justiça do céo. Agora, vim vêr como a justiça do céo sentenciou. Quero vêr, face a face, e sem que me conheçam, o homem que matou a alma da mulher que a sociedade disse que morreu ás minhas mãos. Morta estava ella. Matou-a quem a cobriu de opprobrio: matou-a o infame que eu venho procurar n'estas salas, 20 annos depois que offereci a minha sentença de desterro á suprema alçada de Deus. Vejamos, pois, o que Deus fez d'elle. Por ora, o que presenceamos, meu amigo, faz-me desconfiar que a justiça celestial não desce a sujar as suas balanças n'este lamaçal da terra. _(sorrindo)_ Suspeito que o meu recurso de revista foi lá em cima julgado por desembargadores que fazem obra pela jurisprudencia que levaram de cá. _(Triste e concentrado)_ Ainda o não vi; mas sei que estou nas suas opulentas salas. Aqui de certo não mora a desgraça. Os infelizes não accendem tantas serpentinas para se mostrarem. O homem que depravou Martha, e atirou ás mãos da minha vingança esse cadaver, Heitor de Vasconcellos vive! nobilitaram-no com uma corôa de visconde, saborea-se nas dôces chimeras que esmaltam o ouro da vida; e, de mais d'isso, tem um filho que lhe regala a velhice com estas musicas e danças. _(Ouve-se a orchestra, por um breve espaço, durante o qual Jorge medita concentrado. Depois a musica descahe para uma toada triste e como remota acompanhando a declamação)_ E o condemnado fui eu. Abri-lhe as portas de minha casa, leveio-o ao intimo do meu lár, puz na sua mão a de uma mulher que eu adorava, dizendo a ambos que se dessem os parabens da minha felicidade. E elle empestou-lhe a alma, insinuou-lhe no coração o despejo, e a infernal coragem de me trahir e matar. Matou-me. Quem foi dos trez o desgraçado? E ella jaz onde a infamia lhe não peza. Eu venho de arrastar meia existencia debaixo de um céo maldito. Heitor de Vasconcellos envelheceu: placidamente lhe corre a vida debaixo d'estes tectos explendidos e por sobre estas alcatifas aveludadas. A sociedade respeita-o. Nos seus salões estão os sabios, os virtuosos, os ricos, e tambem o pae de familias com suas filhas, e os maridos com as espozas sem macula. O condemnado fui eu. Perdi a mulher que amei, perdi a honra que amava mais, lavei o sangue de minhas mãos com lagrimas em vinte mezes de carcere, e vinte annos sem patria. Aqui estou. Venho vêr o que a divina Providencia me diz d'este homem que voltou as costas á sepultura da mulher que ambos matamos... ao infame que envelheceu feliz. Respondi, José de Sá. Não me perguntes mais o que vim aqui fazer. SCENA IV OS MESMOS E A VISCONDESSA PELO BRAÇO DE RODRIGO Viscondessa _(descendo para o proscenio)_ Mas o visconde não vem, snr. Vasconcellos? Rodrigo Meu pae prometteu vir, se bem que ainda ao anoitecer estava na cama bastante incommodado, e com tenções de ir esta madrugada para a provincia. Viscondessa Incommodado de que? Ainda hontem o vi com bastante animação; mas, em verdade, muitissimo abatido de espirito está elle! O snr. conselheiro, não viu ha muito o visconde de Vasconcellos? José de Sá Ha vinte e trez annos, minha snr.ª Viscondessa Então não o reconhece, sem que lh'o mostrem. Rodrigo _(á viscondessa)_ V. Ex.ª quer aqui ficar? _(sorrindo)_ Eu não posso deixar de ir ser testemunha das incommodidades que V. Ex.as soffrem n'esta casa. Snr. Jorge de Mendanha, eu folgaria que um baile no Porto não intédiasse antes da meia noute o cavalheiro que vem dos salões de Pariz. Jorge Dos areaes da Africa, snr. Vasconcellos. Rodrigo Mas tambem viajou na Europa... Jorge Na volta d'Africa, passei por algumas cidades da Europa: mas não frequentei bailes; e, quando os visse, quer-me parecer que as salas de V. Ex.ª não poderiam temer-se da confrontação. Rodrigo Ó snr. Mendanha... _(Rodrigo fica gesticulando com Jorge)._ Viscondessa _(que tem estado a conversar com José de Sá)_ Nada, polkas não quero mais. Bate-me o coração espantosamente. Olhe este pulso, snr. Sá. José de Sá _(apalpando-lhe o pulso)_ Valentissimo! É o palpitar dos 18 annos, é vida, é sangue que pula, que polka n'um coração ainda rijo. Eu iria jurar que V. Ex.ª tem um aneurisma... Viscondessa O quê? José de Sá Um aneurisma d'amor, não se assuste. A viscondessa já sabe que não se morre de taes aneurismas. Viscondessa Acha? Este Sá é o contraste de seu pae, snr. Rodrigo. O visconde é a elegia, este é o madrigal. Olhe o que faz viver no Chiado em Lisboa ou nas Mattas de Traz-os-montes! Veja o espirito folgazão d'este rapaz... José de Sá Ó cruel! Póde caber tamanha vingança em alma tão dôce? Chegamos a um tempo em que até os favos de mel se azedam! Não me disse ainda ha pouco, minha muito contraditoria senhora, que eu tinha vivido duas duzias de annos como anachoreta selvagem? Viscondessa Fóra dos bailes; mas dentro de Lisboa, onde os espiritos remoçam e esvoaçam como... José de Sá Como morcegos nas torres da Conceição velha. Viscondessa _(a Rodrigo)_ Olhe, olhe esta fecundidade! o que eu queria era vêr seu pae assim galhofeiro, snr. Vasconcellos. Rodrigo _(sorrindo, a retirar-se)_ Pois eu logo que o veja, snr.ª viscondessa... Póde ser que o duelo de espirito em que V. Ex.as tão destramente se batem, produza no meu velho e melancholico pae uma inveja salutar. _(Sáe)._ SCENA V JORGE, VISCONDESSA E JOSÉ DE SÁ Viscondessa _(acautelando-se de que a ouçam os que atravessam a sala)_ Ó conselheiro, lembra-se perfeitamente da parte que teve o Vasconcellos n'aquella tragedia do Largo do Intendente?.. Ora se lembra!.. José de Sá N'aquella tragedia... ah! sim,.. Não recordemos, não recordemos... Jorge Recordemos... Eu gosto de ouvir tragedias. Viscondessa Se V. Ex.ª esteve em Lisboa ha 20 e tantos annos ha de lembrar-se de uma senhora que o marido matou por ciumes... Jorge Injustos? Viscondessa Isso não. Ella amava sem duvida nenhuma este visconde de Vasconcellos. Não se recorda? Jorge Tenho uma vaga lembrança. Viscondessa Como se chamava elle? o marido? Lembra-se, José de Sá? Espere... era Silveira não era? Jorge Conheceu-o V. Ex.ª? Viscondessa Não. Quem conheci muito foi ella. Estivemos ambas no collegio de M.elle Duchateaux, no Rato. Era lindissima a pobre Martha de Villasboas! Nunca vi o marido, porque nunca a visitei depois que casou, visto que não recebi parte do casamento. Offereceu-se-me ensejo de o conhecer em alguns bailes onde concorremos, mas nem o vi nem desejei conhecel-o desde que me asseveraram que elle fizera uma rigorosa selecção das amigas de sua mulher, receando que as amigas mais desempoadas a despenhassem no abysmo. _(Rindo)_ Ha assim muitos maridos que rodeam as mulheres de anjos; mas Satanaz que é indisputavelmente mais esperto que os anjos, e gosta de luctar com as difficuldades, consegue ás vezes pregar logros verdadeiramente infernaes aos maridos, deixando os anjos tristes e até certo ponto compromettidos. É o que aconteceu ás irreprehensiveis amigas da pobre Martha--umas creaturas que andaram pelas egrejas a orar por alma d'ella, como se precizassem introduzil-a no céo, para poderem alegar um exemplo em seu favor no dia do juizo... José de Sá Intrepida lingua, snr.ª viscondessa! Espada de dois gumes! Viscondessa A minha lingua não é intrepida, é portugueza. José de Sá Seja; mas os mortos que durmam em paz. Jorge Mas eu pediria á snr.ª viscondessa que me relacionasse com todos os mortos que deixaram na terra memorias tragicas. Terá V. Ex.ª a bondade de satisfazer a curiosidade de um homem, cuja attenção só póde ser captiva de grandes desgraças? _(José de Sá com ar de enfado vae ao fundo e torna)._ Viscondessa Sim, eu resumo a historia em duas palavras para não ferir a sensibilidade do snr. conselheiro. Martha apaixonou-se por este Heitor de Vasconcellos, homem perigoso que o Silveira recebeu na sua intimidade. Não sei bem como o marido suspeitou a perfidia, ou interceptou a correspondencia. O que penso é que Martha não soube esconder a culpa na mascara d'aquella santa hypocrisia que costuma escrever nas sepulturas os epitaphios d'algumas excellentes esposas, que eu conheço, e o conselheiro tambem conhece, não acha? José de Sá Eu conheço muitas esposas excellentes. Viscondessa Mascaradas? José de Sá _(apontando para D. Eugenia que vem entrando pelo braço de Pedro Aranha)_ Ahi tem um modelo de esposos. Viscondessa Cazou ha anno e meio. SCENA VI OS MESMOS, D. EUGENIA E PEDRO ARANHA D. Eugenia Eu andava procurando V. Ex.as Fogem do bulicio? tomára eu tambem fugir. Pedro _(a D. Eugenia)_ A snr.ª viscondessa é hoje muito generosa com V. Ex.ª D. Eugenia Sim? pois quando deixou de ser generosa a snr.ª viscondessa? Pedro Se V. Ex.ª quizer, despovoa-lhe as salas onde se dança. Basta annunciar-se que a snr.ª viscondessa está aqui derramando as perolas do seu espirito. Viscondessa Cuida que está lisongeando uma _femme savante_ de Moliere este Trissotin em formato pequeno! este snr. Aranha que tem mais peçonha que o appellido quando quer ter um espirito de ventosa. Pedro Eu sou das aranhas que não tecem a sua teia em todas as ruinas. José de Sá _(áparte)_ Bravo! estão bonitos! D. Eugenia _(ouve-se a orchestra)_ Vai dançar-se, snr.ª viscondessa. Viscondessa Eu não vou dançar, minha querida. Fico por aqui a reconstruir o passado com o auxilio das reminiscencias do snr. conselheiro Sá. Estou a imaginar-me com vinte e dois annos. Isto é bom e innocente recreio. Se a gente retrocede alguns annos, acha-se em sociedade de menos parvos. D. Eugenia _(a Jorge)_ E V. Ex.ª está triste? Jorge Ó minha senhora, não... D. Eugenia Está; pois eu não vejo? Parece-me que ama tanto os bailes como o pae de Rodrigo e como eu... Pedro _(ao novo signal da mazurka)_ Vamos, minha snr.ª? _(Sahem. Movimento dos pares atravessando no corredor)._ SCENA VII VISCONDESSA, SÁ E JORGE Viscondessa Já viram uma sinceridade mais infantil? A dona do baile a dizer-nos que não gosta de bailes? Tanto importa como declarar-nos que a nossa companhia lhe é mediocremente agradavel; não acham?.. Jorge Esta senhora parece-me boa, triste, mas realmente pouco habituada ás salas. É do Porto? Viscondessa Nada, não é; mas eu tambem não sei d'onde seja. Este casamento de Rodrigo dá dois capitulos para um romance semsabor como se escrevem em Portugal. Jorge Os romances portuguezes póde ser que sejam semsabores; mas as tragedias tem um não sei que de irritante, um acre de sangue... Vamos á tragedia, snr.ª viscondessa, á tragedia interrompida. Viscondessa Pois eu não conclui? Jorge Não minha snr.ª V. Ex.ª chegou ao ponto em que... Viscondessa Em que o marido a matou. Ella morreu envenenada, e elle entregou-se á justiça. Ajude-me a recordar, snr. José de Sá? Que explicações deu o Silveira matando a mulher e deixando viver o Vasconcellos? José de Sá Silveira não deu explicação alguma, snr.ª viscondessa. Viscondessa _(com impeto)_ Ai! ai! ai! a quem eu estou contando a historia... Ainda agora me lembro! ora esta! pois V. ex.ª não era o amigo intimo de Silveira? Não passava os dias com elle no Limoeiro? José de Sá Passava, minha snr.ª Viscondessa Então aqui tem o melhor informador que V. Ex.ª podia encontrar. Conte o que sabe, conselheiro. É verdade, queira dizer-me: a filha de Martha de que tomou conta a Maria da Gloria Villasboas, que é feito d'ella, sabe? José de Sá Não sei. Viscondessa Então que sabe? Esta ignorancia é singular, por não dizer irrizoria! Querem vêr que a candura d'este varão se está insurgindo contra uma historia de corrupção social. José de Sá _(sorrindo)_ Isto não é candura, minha snr.ª Eu estou corrompido bastantemente para não ser tolo. Na nossa sociedade, minha viscondessa, as canduras apodreciam antes de florir innocencias tamanhas. Declaro a V. Ex.ª que não sei o que é feito da filha de D. Martha de Villasboas. Mas que insistencia, senhora! Tendo V. Ex.ª tantas flôres e tantas coisas cheias de vida e de luz no seu espirito; para que ha de estar enluctando a sua gentil conversação com umas memorias em que ha lagrimas a respeitar e infamias a perdoar? Jorge _(severamente)_ A perdoar! Viscondessa E eu accuso alguem! O snr. está exquisito! Eu não sei se a Humanitaria dá medalhas aos sentimentalistas como V. Ex.ª Este snr. se vir representar o Othello de Shaskspeare sáe do theatro para não vêr historiada a infelicidade de Desdemona e a colera barbara do marido. É capaz de os ir accusar á policia! José de Sá Eu não me retirava do theatro, nem iria accusar á policia as adulteras mortas visto que não accuso as vivas; não sahiria do theatro; mas em vez de olhar para o palco, olharia para as snr.as que contemplam sem impallidecer o horrendo trance da morte de Desdemona; e, na seguinte noite, irão vêr no mesmo palco representar uma comedia em que se zombe d'um marido deshonrado, e se mova a piedade das plateias a favor da adultera e do seu cumplice. Viscondessa Optimo! Isso é bom, bonito e eloquente. Mas eu, se não desmaio quando vejo as agonias fantasticas das peccadoras no theatro, tambem me não rio dos maridos escarnecidos, nem me commovo pela desventura d'aquellas que fizeram do seu coração um filtro de peçonha e de infames lagrimas. Quando Martha de Villasboas foi morta, eu não fui das que se vestiram de lucto e andaram pelas egrejas a fazer-lhe uns baratos suffragios pela alma, e formavam grupos nos adros execrando a ferocidade do homem que não pôde dispôr da pacifica tolerancia dos maridos que acompanharam ás egrejas as devotas esposas. Se eu tivesse a fé que ensina a rezar pela salvação das almas, rezava em caza. Não indo á egreja, nem saindo a irritar odios contra o infeliz marido de Martha, cuido que respeitei bastantemente a desgraça de ambos. E, se as minhas orações valessem perante Deus, eu pediria perdão para ella, e misericordia para elle. Jorge Esse grande desgraçado, se ouvisse a snr.ª viscondessa, cuidaria que houve no mundo duas pessoas que choraram por elle... Viscondessa Eu que tinha sido excluida das relações de Martha, fiz mais, snr. Mendanha. Sabia que existia uma menina de tres annos, quando a minha amiga de infancia morreu. Fiz inuteis exforços para descobrir a paragem da menina. Se tivesse encontrado em desamparo a filha de Martha, leval-a-ia para minha caza... _(Momentos antes Eugenia e Pedro Aranha tem entrado na sala que vão atravessando, e Eugenia applica o ouvido ao que se está dizendo: e solta com sobresalto uma exclamação quando a viscondessa termina)._ SCENA VIII OS MESMOS, PEDRO, D. EUGENIA D. Eugenia Ah! Pedro Que tem V. Ex.ª? D. Eugenia _(aproximando-se do grupo com dissimulado socego)_ V. Ex.as estavam conversando a respeito de... Viscondessa De frivolidades, minha snr.ª D. Eugenia _(com muito embaraço)_ Cuidei que ouvi proferir um nome que... V. Ex.as diziam coisa que eu não devo ouvir... A minha chegada perturbou a snr.ª viscondessa. Viscondessa Não minha snr.ª Estava-se conversando e recordando coisas antigas... a sociedade de Lisboa de ha vinte annos. D. Eugenia Pois sim; mas V. Ex.ª não fallou de uma senhora chamada Martha de Villasboas?.. Jorge Fallou, snr.ª D. Eugenia. E que sabe V. Ex.ª da pessoa que teve esse nome?.. D. Eugenia _(encarando-o com susto)_ Nada... Jorge _(á parte a José de Sá)_ Sabe a historia do sogro. José de Sá _(o mesmo)_ É natural. Viscondessa O senhor Aranha, diz-me onde está a prima Travaços... Pedro Eu conduzo V. Ex.ª _(dá-lhe o braço.. Sahem)._ SCENA IX D. EUGENIA, JORGE, SÁ Jorge _(aproximando a cadeira)_ De Martha de Villasboas estavamos nós effectivamente conversando, minha snr.ª Quando a mulher que teve esse nome sahiu d'este mundo, V. Ex.ª teria apenas nascido. D. Eugenia V. Ex.ª conheceu-a? Jorge Vi-a. Quer V. Ex.ª provavelmente que se lhe conte um episodio da historia de seu sogro... D. Eugenia _(erguendo-se de impeto)_ De meu sogro? Não intendo... que tem que vêr meu sogro com essa senhora? José de Sá _(á parte a Jorge)_ Descrição. _(Sáe)._ SCENA X D. EUGENIA E JORGE Jorge No semblante angelico de V. Ex.ª reluz sinceridade. Não posso crêr que a snr.ª D. Eugenia finja ignorancia; mas tambem não posso perceber o ar de interesse com que me pergunta se eu conheci Martha de Villasboas. D. Eugenia Fui creada n'um recolhimento, onde muitas vezes ouvi contar a desventurada sorte d'essa snr.ª Jorge Ah! ficou-lhe na memoria o nome, e no coração o dó da mulher que teve a infelicidade de ser amada do marido até ao extremo de ser morta por elle... D. Eugenia E elle amava-a!? Jorge Que pergunta! Pois não vê que elle a matou por ciumes? D. Eugenia _(como aterrada)_ Matar! que horror, meu Deus! Jorge O horror não é matar; é sobreviver a esse cadaver que deixa uma herança de deshonra eterna. O horror é viver com o pezo d'esse cadaver, não sobre a consciencia, mas sobre o coração esmagado para nunca mais ressurgir. Para que V. Ex.ª possa sem espavorir-se, pôr os olhos de sua alma no homem que matou Martha, imagine-o esposo, amante e apaixonado, ao quarto anno ainda noivo, cuidando que sua mulher a cada novo dia que vem sempre de caricias, sente a precisão de redobrar de ternura e gratidão. Veja-o de joelhos, ao pé de um berço onde lhe brincava com os beijos uma creança que elle chamava filha... D. Eugenia _(com impeto)_ Então V. Ex.ª conheceu-o? Jorge Se conheci!.. Considere-o de repente sem a esposa, sem a filha, com a alma varada pela morte das duas vidas que viviam n'elle. A mãe descaroada vae ao berço onde está a creança, grava-lhe no rosto o labéo da sua infamia, involve-a na sua mesma mortalha, sepulta-se com ella. O marido e pae é de repente arrancado a impuxões de opprobrio dos braços de uma esposa querida. Quando lhe elle agradecia as alegrias de seu amor, e a creança sorrindo parecia entender os jubilos do pae, Martha punha um pé sobre o coração do marido, outro, sobre o seio da filha, e repartia entre os dois a deshonra que lhe subejava. Do homem que por espaço de quatro annos lhe beijára os pés, fez um desgraçado sem nome; mas a sociedade precizando dar um nome a esse desamparado, chamou-lhe assassino. Elle matou-a, snr.ª D. Eugenia; foi a si proprio que elle se matou. Era forçoso espedaçar a alma que se identificára ao corpo contaminado da mulher perdida. As convulsões do veneno dilaceraram-lhe duas robustas vidas, a do coração e a do pundonor. O anjo que esse homem chamava filha cahiu dos braços da mãe, e elle repulsou-a dos seus, porque... não sei onde estão torturas comparaveis ás da incerteza entre um berço onde sorri um innocente e a sepultura onde os vermes completam a podridão de uma coisa infame como é a mulher que deixou seus filhos envergonhados se lhe proferirem o nome. Peço perdão, se estou magoando a sua sensibilidade, minha snr.ª V. Ex.ª está soffrendo, e eu disse palavras acerbas como se as estivesse dizendo em frente dos juizes que condemnaram Jacome da Silveira. Chora! V. Ex.ª chora?! porque? D. Eugenia E porque não pediria essa criancinha a vida de sua mãe? Ella choraria o seu remorso ao pé do berço da filha... O desgraçado que praticou um tão duro castigo devia deixal-a viver, abandonal-a, para que a orfã não ficasse tão sem abrigo, á caridade de estranhos... Não se mata uma mãe que tem nos braços uma criancinha de tres annos. Jorge _(severo)_ Essa mulher que morreu tinha o amante que primeiro lhe matou os brios; a criança podia ser filha do amante; e, se elle fosse menos infame do que cobarde, deveria retribuir a deshonra da mãe, repartindo com a orfã as pompas d'esta casa. D. Eugenia _(vivamente agitada)_ Não entendo, snr.! Porque diz V. Ex.ª que a filha de Martha devia ter parte nas pompas d'esta casa? Responda... diga... diga que segredo é este de que vae estalar uma grande desgraça... Olhe que é atroz a minha desconfiança... é horrivel... e eu receio morrer... Jorge É incomprehensivel o susto de V. Ex.ª! Receia morrer... porquê? A snr.ª D. Eugenia está formando espantosas tragedias na sua fantasia! Olhe que não ha nada extraordinario que deva atemorisal-a... Contou-se aqui a historia d'um homem atraiçoado, e d'uma mulher morta... D. Eugenia Mas meu sogro teve parte n'esse terrivel acontecimento? Jorge E quando tivesse, minha snr.ª? Ha ahi nada mais vulgar, que um homem deshonrado por outro? E acaso viu V. Ex.ª incapellarem-se grandes tormentas á volta das pessoas como seu sogro? D. Eugenia Mas... só duas palavras... depressa, antes que venha gente. Meu sogro foi quem perdeu Martha.... foi? _(Agitando os braços, desprende-se-lhe uma pulseira, que Jorge levanta; mas, ao acolchetar-lh'a, repara e estremece)._ Jorge _(rancoroso)_ Quem lhe deu esta pulseira? quem lhe deu este retrato, senhora? D. Eugenia Retrato! isto não é retrato... Esta pulseira deu-m'a... Jorge _(interrompendo-a com mal reprimido arrebatamento)_ Seu sogro? Esse ignobil costuma dar ás esposas dos filhos os retratos das amantes? D. Eugenia Jesus! Ouça-me... Jorge Sabe a snr.ª que este retrato é o de uma adultera que se chamou Martha? uma adultera que deu a seu sogro o retrato que o marido lhe dera n'esta pulseira entre as joias do noivado? _(Arroja a pulseira ao chão, e vae pizal-a quando Eugenia a levanta impetuosamente)._ D. Eugenia Pois este retrato é o d'ella? _(beijando-o e soluçando)_ Oh! eu não sabia... Vem gente... não quero que me vejam chorar... siga-me... eu tenho muito que lhe dizer... siga-me a outra sala. _(Toma-lhe o braço e sahem rapidos)._ SCENA XI VISCONDE DE VASCONCELLOS E JOSÉ DE SÁ Visconde Quando me disseram que estavas aqui esperava eu que as forças me deixassem preparar para a jornada... José de Sá Para onde vaes, visconde? Visconde Para Traz-os-montes, para uma torre onde estaria bem apartado da sociedade o Leproso de Xavier de Maistre... Ha muitos annos que te não vejo, José de Sá. Eramos rapazes a derradeira vez que nos vimos! Estás ainda robusto, e com o colorido da mocidade nos gestos e nos olhos. Vê-se que não inclinaste a cabeça para o peito a chorar. Não afogaste em lagrimas, quando eras moço, os embriões d'onde te floriram as alegrias da velhice. Não fui eu assim, José de Sá. Sabes que formidavel trance me envelheceu quando eu principiava a viver. A Providencia ainda não levantou a mão inexoravel. Não pódes imaginar o que ha sido a minha vida. José de Sá Basta-me vêr-te para crêr que tens soffrido; porém, não o imaginava eu assim. Depois que sahiste de Lisboa, poucos annos passados soube que tinhas um filho. Ha dias chegando ao Porto, soube que teu filho dava um baile, e que tu vivias quasi sempre na provincia. Estas noticias, a fallar verdade; não me parecem bastantemente significativas da vida dolorosa que tens passado. Eu julgava-te feliz como o vulgar dos homens. Visconde José de Sá, o mundo quando vê padecer os grandes criminosos, recusa acreditar que elles soffrem, para os ter sempre debaixo do peso do seu odio. Se um supplicio secreto os mata lentamente, o mundo, embora lhes veja lagrimas nas rugas do rosto, não tem compaixão d'elles. A sociedade crê pouco nos castigos occultos da justiça divina, porque não conhece justiça efficaz e exemplar senão a dos carceres, dos degredos e das forcas. Desde aquella hora funesta em que eu me vi ao mesmo tempo o mais miseravel e despresivel homem... quando me foi forçoso esconder no meu antro as lagrimas por aquella... cuja sepultura eu abri... desde aquella hora accendeu-se em minh'alma um inferno inextinguivel. José de Sá Os teus amigos cuidaram que terias então a louvavel e virtuoza coragem do suicidio. Visconde A virtuoza coragem do suicidio! depois que se atropellaram em frente de mim desgraças tamanhas, o matar-me então seria coragem? O partir a corrente que me prende ha vinte e dois annos a um incessante supplicio seria coragem? Eu n'aquelle tempo não tinha o menor vislumbre de religião, o matar-me sem pavor da eternidade seria, nas minhas circumstancias, o complemento de uma vida proterva. Fechar olhos para não vêr a sombra de Martha, nem Jacome no degredo, seria um acto de valor? Não. Valor é ter ainda hoje lagrimas para ambos... E no dia em que eu não poder chorar, descrerei de Deus e então... matar-me-hei, por intender que expiei acerbamente, e não fugi ao castigo... José de Sá Mas parece que fugiste do duelo. Visconde Eu não podia affrontar-me com o homem que eu deshonrara. Criminosos como eu aceitam uma bala, não aceitam um contendor no campo da honra. Matam-se, não se desaffiam taes homens. A sociedade quereria que eu apontasse um florete ao coração do marido de Martha? Se eu o matasse atenuaria a minha baixeza com esse acto de deshumanidade?. José de Sá Mas a sociedade, quando vê os delinquentes na tua condição, pergunta como é que expiam. Visconde Essa pergunta me fazes tu em nome da sociedade? José de Sá Não: se eu te interrogasse, visconde, seria por minha conta. A sociedade creio eu que não te pergunta nada. Dá-lhe bailes; que a sociedade troca por isso o prazer de te diffamar. A sociedade em quanto dança não dilacera reputações. Evita, quanto puderes, ser desgraçado e pobre. Isso é que se não perdôa. Ainda que os remorsos te cortem o coração, sê tu rico, e verás que a sociedade conspira em te distrahir com o espectaculo da farça humana em que os truões sacodem os cascaveis para que não ouças os gemidos da tua consciencia. Visconde Eu não dou bailes; dá-os meu filho que é moço, e não se priva dos gozos da mocidade porque me vê chorar. José de Sá, tens sido duramente severo comigo. Não me queixo. Generosamente me apertaste a mão; e eu não merecia tanto. Se alguem houvesse compaixão de mim, não serias tu por certo, que foste amigo de Silveira e o confidente de afflicções superiores ao entendimento de desgraçados maiores do que eu. Chorei-os ambos, porque os matei ambos. Peguei d'aquelles trez entes cheios das alegrias da honra e do amôr... e atirei-os á voragem do opprobrio e da morte... Despreza-me tu, desprezem-me todos, que eu não tenho rehabilitação... não posso arrancar-me das prezas implacaveis do meu remorso. _(Cahe extenuado numa cadeira)._ José de Sá _(comtemplando-o, e entre si)_ Não te erguerás não, infeliz! Péza-te na consciencia o cadaver de Martha... SCENA XII OS MESMOS, VISCONDESSA, PEDRO ARANHA COM OUTROS GRUPOS QUE SE CRUZAM AO FUNDO Viscondessa Ai! alli está o visconde! _(aproxima-se inclinando-se)_ Visconde! Visconde Minha senhora... _(levantando-se a custo)._ Viscondessa Soubemos agora que V. Ex.ª tinha chegado, e procuramol-o em todas as salas. Reanime-se! Visconde Estou bem, snr.ª viscondessa.. E V. Ex.ª tem-se enfastiado? Viscondessa Não me enfastio; gelo-me de horror, quando penso que a luz do sol nos ha de mandar sahir d'este paraizo. Pedro Onde todos os pomos são prohibidos. José de Sá E os maduros tambem? _(tregeitando como allusão á viscondessa)._ Viscondessa Os verdes principalmente é que são prohibidos pela mesma razão que o eram as uvas á rapoza; não acha, snr. Pedro Aranha? Pedro Eu acho que V. Ex.ª sabe tudo, adivinha tudo, é a arvore da sciencia d'este paraizo. Descubriu ultimamente que eu vinha depôr o meu inveterado scepticismo ás plantas de uma menina portuense. José de Sá E eu não admiro; que n'estas salas tenho eu visto explendidas bellezas, ás quaes seria facil empreza dobrar o orgulho d'esta moderna seita de scepticos, e de jovens cançados d'amor que se deploram em Portugal por versos mais ou menos errados, e morrem quasi sempre desconhecidos na sua rua. Viscondessa _(ao visconde)_ Que abstracção! que melancholia! Distraia-se!.. Ó visconde _(indigitando um par)_ quem é aquella menina que parece ir adormecida sobre o hombro do menino respectivo? Visconde Não sei, minha snr.ª Eu conheço n'esta sala V. Ex.ª e a mulher de meu filho. Onde está Eugenia? Viscondessa É uma pergunta que eu ia fazer. Ha coisa d'um quarto de hora que a vi passar pelo braço de Jorge de Mendanha. Visconde Não tive o prazer de vêr esse cavalheiro, e provavelmente já o não verei por que vou sahir. José de Sá Tu não estás hospedado em casa de teu filho? Visconde Não, José de Sá. Eu amo bastante meu filho e minha nora para os não mortificar com a presença continuada d'uma velhice repellente... Viscondessa Ahi vem lamentação do profeta... Se vem, deixo cahir a fronte com o pezo da mortificação!.. Ah! aqui vem a snr.ª D. Eugenia com Jorge Mendanha. SCENA ULTIMA OS MESMOS, JORGE, RODRIGO, EUGENIA, E CONVIDADOS QUE VÃO PASSANDO _Do lado fronteiro, por onde entrou Mendanha, vem Rodrigo que se avisinha do pae no intento de o apresentar. Jorge de Mendanha pára, em frente do visconde, largando o braço de Eugenia e deixando pender os braços. O visconde encara Mendanha com penetrante frieza e spasmo._ Rodrigo _(a Mendanha)_ Tenho a honra de apresentar a V. Ex.ª meu pae. _(O visconde está fitando convulsamente Jorge. Este mantem-se immovel, com a fronte alta e o olhar fixo e sinistro. O visconde recua, erguendo as mãos em attitude de quem repelle uma visão, e cahe nos braços de Eugenia e de José de Sá)._ Rodrigo _(avisinhando-se com altivez de Jorge)_ Quem é o senhor? Jorge _(apontando para o visconde)_ Pergunte-lh'o. _(Desce o pano vagarosamente)._ FIM DO SEGUNDO ACTO. ACTO TERCEIRO (1.º QUADRO) Sala do hotel de Francfort.--Vêem-se gallegos atravessar carregados de malas. SCENA I VISCONDESSA, E UM CREADO, POUCO DEPOIS Viscondessa _(em trajes de viagem)_ A carroagem ainda não chegou? Creado Foi-se chamar, snr.ª viscondessa. Viscondessa _(irritada)_ Parece que as carroagens no Porto não se mandam buscar, mandam-se fazer. A velocidade aqui é impossivel, fóra do carroção! Ai! Lisboa, Lisboa! Olé! _(ao creado)._ Creado Minha senhora. Viscondessa O snr. Mendanha já se levantou? Creado Parece-me que ainda se não deitou. Desde que chegou do baile tem passeado sempre no quarto. Viscondessa _(ao creado que está sacudindo o pano da jardineira)_ Ó sôr homem! Creado Minha senhora. Viscondessa O snr. conselheiro José de Sá está com o snr. Mendanha? Creado Está no quarto d'elle. Viscondessa Está mais alguem de Lisboa n'este hotel? Creado Mais ninguem, snr.ª viscondessa. Viscondessa _(tirando dois bilhetes d'uma carteira)_ Pegue lá: dê estes bilhetes aos snrs... Creado Ahi vem o snr. conselheiro. _(sáe)._ SCENA II JOSÉ DE SÁ E VISCONDESSA José de Sá Que madrugada é esta! V. Ex.ª, á uma hora da tarde, já radiosa, em trem de viagem! Viscondessa Não dormi nada, tenho os nervos em convulsões, estou doente, e vou para Lisboa no _Lusitania_ que sáe ás duas horas felizmente. Que me diz á scena melodramatica do baile? José de Sá Pareceu-me mais tragica do que melodramatica. Viscondessa Mas quem anda a fazer tragedias pelos bailes hoje em dia! Aquillo é d'um anachronismo e máo gosto revoltantes! Se os maridos atraiçoados começam a dar-se ares de fantasmas tragicos nos bailes, os salões hão de tornar-se medonhos, e cada marido ha de dar-se o tom e o feitio d'um bravo de Veneza em veteranos. José da Sá Não se graceja assim com o infortunio, snr.ª viscondessa. Viscondessa Ora pelo divino amôr de Deus, snr. Sá! A gente não ha de vestir-se de lucto por que o senso commum vae morrendo hydropico de ridicularias! Eu acho natural e perdoavel que o seu amigo Jacome da Silveira despisse os ares carregados e funebres da _vendetta_, e esmurraçasse na Praça Nova ou no jardim de S. Lazaro o visconde; mas isto de enroupar-se n'uma _toilette_ mysteriosa, coriscando dos olhos uns fulgores fulminantes, para afinal de contas ajuntar o escandalo á irrisão, sinto dizer-lhe, conselheiro, que é um soberano disparate, e que o seculo vae muito luminoso para podermos receber a sério estas excrecencias da idade media. Que diz? José de Sá Eu não disse nada. Estou ouvindo e admirando a snr.ª viscondessa de Pimentel. Viscondessa Eu não armo á admiração, meu presado conselheiro; quero apenas que me vejam protestar contra tudo que tem vislumbres de tolice. Ora queira dizer-me: não estava ha muito tempo esquecida a desventura de Martha? O visconde não fugiu da sociedade para que ninguem se lembrasse d'ella e d'elle? Isto é verdade: que diz? José de Sá Ainda não disse nada, minha senhora. Viscondessa Bem sei que não disse nada. O snr. Sá ensaia-se para estadista n'esta diplomacia de _boudoir?_ Parece-me que desperdiça a sua infinita sagacidade n'esses ares meditativos com que trata coisas insignificantissimas. José de Sá _(sorrindo)_ Estou quasi resolvido a irritar-me contra V. Ex.ª Se continua a injuriar-me, ai da viscondessa e de mim! Viscondessa Mas rebata isto, snr. Sá. Que lucrou o seu amigo bulindo nas cinzas de Martha? Reviver miserias... José de Sá Minha senhora, não bula V. Ex.ª n'ellas, que a memoria de Martha é sacratissima desde que expiou acerbamente a sua culpa. Viscondessa Concordo; e por isso mesmo reprovo que Silveira... Ah! uma nota curiosa... O conselheiro, reparou n'aquelle pendor sentimental da cabeça de Eugenia sobre o hombro de Silveira, quando passeavam nas salas menos concorridas? José de Sá _(ironico)_ Não reparei n'esse escandalo! Viscondessa Não? foi coisa que deu nos olhos de muita gente. Que infinita graça e que profundo mysterio não teria o apaixonar-se Eugenia... _(rindo)._ José de Sá Ora, minha senhora... V. Ex.ª traz a sua formosa cabeça repleta de máos romances... Bem se vê que os seus nervos andam destemperados pelo terror das tragedias... _(ouve-se o rodar da sege)._ Viscondessa Ahi está a sege... Adeus. _(apertando-lhe a mão)_ Vou por casa de Eugenia deixar-lhe um bilhete, se a não poder vêr de relance. José de Sá Vae auscultar-lhe o coração a vêr se effectivamente está apaixonada pelo meu amigo? Viscondessa Quem sabe?... quem sabe... José de Sá Ah! viscondessa, viscondessa... Receio que seu benemerito esposo esteja mais arriscado que o de Eugenia... Viscondessa _(fazendo-lhe uma mezura á antiga)_ _Ça n'est pas gentil, mon cher. Au revoir._ José de Sá _(cortejando-a profundamente)_ Sempre admirador e sempre admirado. _(A viscondessa sáe)._ SCENA III JOSÉ DE SÁ E UM CREADO Creado O snr. Mendanha mandou-me saber se V. Ex.ª já estava a pé. José de Sá Diga-lhe que estou aqui. SCENA IV JOSÉ DE SÁ E DEPOIS JORGE José de Sá É necessario revelar a este infeliz as minhas esperanças de ainda podermos encontrar a filha de Martha, fazendo-lhe chegar ao coração a certeza de que é sua filha. _(Examinando a carteira)_ Felizmente que tenho comigo a carta. Se não alcanço nortear-lhe o espirito para outro destino, receio que uma terrivel fatalidade venha recomeçar as desventuras d'este malfadado homem. _(A Jorge que entra)._ Descançaste? Jorge Nem levemente: começo a vêr novos abysmos. José de Sá Tambem eu, Jacome. Jorge Esta minha vinda a Portugal... José de Sá Eu não t'a aprovei. Se o teu intento era completar um plano de vingança, fizeste bem não me consultar. Eu te responderia que uma grande calamidade não justifica planos sanguinarios, por melhor mascarados que venham em requintes de pundonor. Se me consultasses, dir-te-hia que a honra que ensanguenta as mãos só póde a allucinação desculpal-a, e que um assassinio premeditado vinte annos é um acto de selvageria, se a demencia o não desculpar. Quando me avisaste da tua chegada ao Porto com um pseudonimo, comecei a duvidar da sanidade do teu juizo. A mudança de nome não podia dissimular um plano incompativel com a honra que te perdeu. Jorge _(interrompendo-o e levantando-se com impeto)_ A honra que me perdeu!.. excellente palavra. A honra devia nobilitar-me, se era honra. O que perde e avilta deveria ser o despejo, o cynismo, o impudor, o desvergonhamento que petrefica na cara do infame a lama que lhe atiram. Comigo não foi assim. A honra quiz desafrontar-se; sacudi de mim a vibora que me crivava o coração de infernaes farpas; mas a sociedade e a sua justiça vieram e bradaram-me: «Vae, condemnado; vai-te sem alma, sem dignidade, sem amigos, sem a misericordia de ninguem! Vae-te n'essa leva de ladrões e facinoras; vae contar na Africa as horas de 7300 dias e noites. Vae, por que tiveste a audacia de condemnar pelo teu desforço os centenares de despejados que não consentem que tu sejas mais brioso do que elles. Se querias gozar os teus direitos de cidadão, se querias a liberdade dos homens de bem, se querias a consideração dos honestos, recebesses a affronta em silencio, embora a sociedade te visse o ferrete na testa; ostentasses ignorancia da tua deshonra; apertasses em publico a mão que estrangulara na garganta de tua mulher os sagrados juramentos da sua lealdade. Se da tua casa haviam feito um prostibulo, e dos teus carinhos de esposo um incentivo para irritar os prazeres do crime, bebesses o teu calix como tantos para quem o fel de uma deshonra de mera convenção chega a perder o seu travo. Quem te disse a ti, assassino, que a vida humana não era inviolavel? Eras marido amantissimo? Estremecias tua mulher com ternura de pae? Durante trez annos de idolatria não imaginaste sequer que o teu amor podesse ser assim galardoado? E foste trahido? E foste apunhalado pela mão que beijavas? E viste a mulher adorada roxeada nas faces pelos beijos d'outro homem? viste-a bem perdida, bem na lama, bem no abysmo? Não importa. A vida humana é inviolavel! Soffresses, miseravel! Acceitasses a ignominia que deixou de o ser desde que os infames a partilhal-a são tantos que não se podem escarnecer. E, se tinhas necessidade de sacudir o dardo do coração, bebesses tu o veneno, e morresses, e deixasses tua mulher viuva e formosa viver, a sua inviolavel vida e gozar-se na inviolabilidade da sua devassidão...» É assim que a sociedade falla aos desgraçados como eu, José de Sá? José de Sá Desafoga, Jacome; mas em nome das tuas infinitas amarguras te peço que vejas em mim o unico homem que te quiz enxugar as lagrimas. Eu louvo os moralistas, que escrevem excellencias sobre a inviolabilidade da vida humana, e invejo-lhes o socego, a placidez, o solido raciocinio com que legislam para as paixões no conforto do seu gabinete. Esses taes nos darão exemplos de cordura quando a sorte funesta os collocar entre a deshonra e a theoria; mas, meu querido amigo, não me perguntes se a tua vingança está cumprida, e se a tua desaffronta requer a vida d'esse esmagado homem que hontem á noute viste cahir nos meus braços. Que queres tu fazer d'aquella preza de remorsos? Não o vês tão dobrado pela mão da Providencia? Não lhe vias na face a escuridão profunda d'aquella alma? Jorge E quem te disse que eu vim a Portugal procurar esse homem para o matar? José de Sá Suspeitou-o o receio que tenho de que o prazo dos teus infortunios ainda não esteja fechado. Jorge Essa suspeita vinda de outro que não fosses tu seria ultrajante. Se nos meus designios entrasse a morte de tal homem, eu não praticaria o abjecto ardil de entrar disfarçado em sua casa. Hontem te disse no baile o que alli fôra fazer. Encarei o reprobo que tremia debaixo do fardo da sua ignominia. Não tenho mais que vêr. A vida é o patibulo d'aquelle condemnado. A Providencia sentenciou-o. Para que não falte nada ao seu supplicio até a coragem do suicidio o desamparou. Creio em ti, Deus! Não se é perverso impunemente. Os que morrem afogados nas lagrimas que fazem chorar não são os que mais dolorosamente expiam. Incomportavel inferno deve ser-lhes o recordar-se!.. A minha vingança, José de Sá, completa-se com a vida do algoz da minha felicidade. Quero que elle viva. Não tenho mais que fazer em Portugal. José de Sá Tens. O teu coração póde reflorecer ainda. Penso poder vaticinar-te um resto de vida com luz, com alegria, com amor. Eu suspeito que Leonor existe. Jorge A filha de Martha? José de Sá A tua filha. Jorge Minha!.. Não me afflijas. Olha que ainda se faz noite na minha alma, se vejo a imagem d'essa creança. Minha! que absurda nova! onde foste saber que ella era minha filha? José de Sá Se viste nas rugas do visconde de Vasconcellos assignalada a mão da Providencia, por que duvidas crêr que a Providencia premeie as tuas agonias, tamanhas e com tanta paciencia soffridas, mostrando-te a creança que se acalentou em um seio sem macula, a filha do teu sangue, do teu coração e da tua alma? Jorge _(com vehemencia)_ Queres tu enlouquecer-me? queres que eu vá d'essa esperança á tristeza mortal do desengano? Como sabes tu que ella vive... e é minha filha? José de Sá Escuta. SCENA V OS MESMOS E UM CREADO, O CREADO COM UM BILHETE DE VISITA N'UMA BANDEJA Jorge _(lendo)_ Rodrigo de Vasconcellos _(Declamando:)_ Que vem aqui fazer este homem? Não lhe fallo... Em que occasião!.. José de Sá Ha de sobrar-nos tempo. Falla-lhe; mas não deixes apagar pela rajada da colera a ideia luminosa de que tens uma filha. _(Ao creado)_ Que entre. _(O creado sáe)._ Vou para o meu quarto. Quando elle tiver sahido voltarei. _(Sáe)._ SCENA VI RODRIGO E JORGE Rodrigo _(com altivez sarcastica)_ Não sei a quem tenho a honra de me dirigir. Jorge Já tive a honra de lhe dizer que o perguntasse a seu pae. Rodrigo _(com solemnidade e tristeza)_ Meu pae não me responde. Soffre em silencio, e eu receio que elle morra. Quem é o snr. que entrou nas minhas salas, e introduziu no seio da minha familia o escandalo e a desgraça em presença de centenares de testemunhas? Jorge Entrei nas suas salas, tencionando sahir d'ellas dignamente como seu pae não costumava sahir. Não dei escandalo. Os seus convidados viram um homem estremecer e desmaiar diante de mim sem que eu lhe chamasse sequer infame. Rodrigo Lembro-lhe que está fallando com um filho do visconde de Vasconcellos. Jorge Sei isso. Tome nota do conhecimento que tenho de V. Ex.ª, para todos os effeitos. Quer por tanto saber quem sou? A minha biographia diz-se depressa. Fui amigo de seu pae, desde a infancia que ambos passamos no collegio dos Nobres. Cazei. Era suprema a felicidade de marido, quando convidei seu pae a vêr nas doçuras da minha vida intima o soberano bem d'este mundo. Disse-me seu pae que via em minha mulher a belleza do anjo e o coração da sancta. D'este anjo e d'esta sancta fez seu pae uma adultera. Deshonrou-me. Matei-a. Seu pae fugiu. Eu encarcerei-me; esperei a sentença, e fui condemnado a degredo. Ha seis mezes que sahi de Africa. Vim vêr seu pae. Vêl-o e mais nada. Vi. Achei-o miseravel até ao asco. Repelle e enoja. A Providencia fêl-o asqueroso. Deixei-o á Providencia, que sabe a rasão mysteriosa porque taes creaturas se fazem. Resta-me dizer-lhe o meu nome. Sou Jacome da Silveira. Rodrigo Ouvi dizer ahi que meu pae fugiu. Não creio. Jorge Informe-se. Rodrigo Meu pae é um cavalheiro. Jorge Em relação a mim, seu pae é um villão. Desejo que V. Ex.ª não torne irrisoria esta nossa já longa, primeira e ultima pratica. Parece-me irracional, senão insensata a noticia que me dá do cavalheirismo de seu pae, quando eu lhe conto uma historia... Rodrigo _(com desdem)_ Vulgar. Jorge São vulgares na sua familia estas historias? Semelhante cynismo vae mal e indecorosamente a um marido! Bom será que sua senhora não se familiarise com historias assim vulgares, principalmente se aos infamissimos personagens se dá o nome de cavalheiros. Rodrigo Minha mulher não tem que vêr com a nossa entrevista, snr. Jorge De accôrdo. Respeito-a muito. Nunca vi lagrimas mais dignas da virtude. É pena que ella chore n'este tremedal... Rodrigo Insisto em affirmar que meu pae é cavalheiro. Não ouso condemnar as fragilidades d'elle. Limito-me a lastimal-as, tanto mais que nenhum homem, virtuoso ou vicioso, educou um filho com tão elevados conselhos e exemplos. Jorge _(sorrindo)_ Exemplos! Rodrigo Nunca deslizei da linha da honra que meu pae me traçou. Adivinhei que elle havia soffrido uma cruel catastrophe em sua mocidade, por que no vigor da vida o conheci triste, apartado da sociedade, sombrio, e só. Ha trez dias soube a causa da sua longa expiação--expiação emfim acabada, porque sei que meu pae chegou ao termo de sua funesta carreira, e estende os braços para a bemaventurança da sepultura. No entanto, se elle podesse desafogar-se das dores mortaes que o abafam, V. Ex.ª encontraria deante da sua mal empregada bravura o homem que lhe não fugiu; mas fugiu á horrenda contingencia de matar o homem que tinha offendido. Permitta Deus que meu tão honrado quanto infeliz pae restaure, pouco que seja, de suas forças, e V. Ex.ª conte com um peito bem a descoberto do seu ferro, se á sua vingança se fazem necessarias algumas gottas de sangue. Jorge Regeito. Eu quero que seu pae viva. Rodrigo Sem embargo d'essa sarcastica concessão de vida, cumpre-me dizer ao snr. Silveira: primeiro, que tenho um só nome, e que o não mudarei quando houver de insultar o mais valente, ou o mais covarde; segundo, que, morto meu pae da angustia que o abateu, hei de obrigar o seu indirecto assassino a retirar de sobre a sua campa as injurias cuspidas sobre as cans d'um velho, cujo crime, longamente expiado, o havia posto na posição alta onde os vituperios de V. Ex.ª não deviam chegar; terceira, que sinto um verdadeiro prazer na hypothese de que o snr. Silveira terá a coragem que inculca. Jorge Eu tenho apenas inculcado desprêso; e d'hora em diante não poderei senão inculcar o tedio que o snr. Vasconcellos me está fazendo. _(Aponta-lhe a sahida da sala)._ Rodrigo Concluiremos n'outra parte. _(Sáe)._ SCENA VII JORGE E JOSÉ DE SÁ José de Sá Ouvi tudo. Mal vae isto, Jacome! Bem pressagiava eu que se estão encadeando outros elos á corrente das tuas fatalidades!.. Como evitarás o duelo? Jorge _(serenamente)_ Em meio de tudo isto, o rapaz teve momentos em que me abalou profundamente. Via-se ali um filho, nobre coração de filho. D'uma vez divisei-lhe lagrimas. Se elle, n'esse lance, me diz que seu pae era um desgraçado digno de compaixão, eu creio que lhe diria: «Peça a Deus que quebre ao penitente os espinhos do remorso; que eu deixal-o-hei a sós com o fantasma que o arrasta á sepultura...» E, depois, que immensa piedade me fez a mulher d'este moço, aquella doce alma que se desfazia em prantos pedindo-me commiseração... José de Sá Calculemos o progresso d'esta nova calamidade. O visconde, fulminado pela tua presença, provavelmente succumbe. Se elle morre, o filho desafia-te. Irás ao campo. Se o matas, matarás um homem que quiz, com ou sem razão, defender a memoria de seu pae. Imagina o restante da tua vida, da tua velhice, com mais um fantasma para as tuas noites de insomnia. Se elle te mata, fechaste lastimavelmente o cyclo das tuas desventuras. Morres sem que os teus amigos de ti possam dizer que tinhas precisão de morrer legitimamente; quero dizer, que acabaste consoante as leis da honra; por que eu considero trez vezes scelerado o homem que vae n'um duelo apontar uma pistola ao peito d'outro que não odeia. Que rancor podes ter ao filho do visconde? ao marido d'aquella meiga creatura que hontem chorava diante de ti com a uncção do anjo que pede commiseração para a perversidade humana? Não te disse ella que, se tivesses uma filha, os odios entranhados em teu coração sahiriam nas primeiras lagrimas de contentamento? Pois bem. Tratemos de procurar essa, filha de cujo amor depende a tua regeneração. Vejamos se ainda ha n'esta vida algum contentamento para ti. Se estas esperanças fallecerem, joga a tua vida nos desafios, ou para te entreteres matando, ou para morrer entretido. Jorge Vamos... conta-me o teu sonho. José de Sá O meu sonho, se sonho é, começa na deploravel noite em que D. Martha sentindo aproximar-se a morte... Jorge Depressa. José de Sá Antes de expirar escreveu uma carta. Jorge A quem? José de Sá _(tirando a carta da carteira)_ Á irmã que tinha no convento da Encarnação. Lê. Jorge _(examina a lettra com grande commoção)_ Lê tu... Não posso. José de Sá _(lendo)_ «Minha irmã, escrevo-te nas ancias de uma terrivel morte. Morro envenenada por Jacome. Invoco o sancto nome de Deus para jurar que Leonor é filha de meu marido. Elle disse que não era seu pae quando eu lhe pedi que a não desamparasse. Mostra-lhe este meu juramento, feito ao ir d'esta vida á presença de Deus. Se elle a desamparar, dá-lhe tu metade do teu pão. Adeus. Chora-me e pede ao Senhor pela tua pobre Martha.» D. Maria da Gloria recebeu esta carta, sahiu do convento, e entrou em tua casa, quando a irmã era morta. Eu dirigi o enterro da defuncta, e na volta do cemiterio soube que D. Maria da Gloria tinha levado a sobrinha. Indaguei na Encarnação; ninguem me soube dizer a paragem de tua cunhada. Jorge E soubeste depois?.. José de Sá Quem o sabia era um teu creado velho que já o havia sido do pae de Martha; mas esse disse-me que jurára a D. Maria da Gloria nunca divulgar a residencia da filha de sua irmã. Jorge Porque? José de Sá Porque não queria atirar aos desprêsos do mundo a filha d'uma senhora assassinada... Jorge Nada me disseste... José de Sá Que importava dizer-t'o para Loanda? Sobejavam-te lá mortificações. Além de que a delicadeza impunha-me o dever de te não fallar da creança que tu não julgavas tua filha. Jorge Mas esta carta... José de Sá Esta carta está em meu poder ha dois annos. Jorge Quem t'a deu? Maria da Gloria? Então onde está Maria da Gloria? onde está minha filha? José de Sá Quando ha dois annos voltei da Exposição de Pariz, encontrei no meu escriptorio uma carta escripta vinte dias antes e assignada por um empregado do hospital de S. José, pedindo-me que chegasse lá para negocio urgente. O empregado chamou um enfermeiro, o qual me apresentou uma carta ditada pelo teu creado, nos ultimos momentos de vida, em que declarava que D. Maria da Gloria o mandara chamar, cinco annos antes, em perigo de morte, e lhe entregara uma carta para te ser entregue se voltasses a Portugal. E no ponto em que ia proferir o nome do convento onde tua filha estava, expirou golfando sangue. Jorge E afinal? onde está minha filha? José de Sá Até hoje tem sido frustradas as minhas dilligencias nos conventos de Lisboa; mas tu vaes lançar mão de recursos em que tenho toda a confiança. Jorge Quaes? Que esperanças me dás, José de Sá? SCENA VIII OS MESMOS E UM CREADO Creado Procura V. Ex.ª o snr. Pedro Gavião Aranha. Jorge _(a José de Sá)_ Já será o cartel? _(ao creado)_ Que entre. _(O creado sáe)._ José de Sá _(sorrindo)_ Jacome, olha que temos de procurar tua filha. Jorge Na eternidade? SCENA IX OS MESMOS E PEDRO ARANHA Pedro _(cortejando-os)_ Snr. Silveira, snr. conselheiro. A minha missão é triste... Jorge _(risonho)_ Eu havia adivinhado a sua missão triste. Pedro Que tinha V. Ex.ª adivinhado? Isso é extraordinario! Jorge Vem representar o pundonor agastado do snr. Rodrigo de Vasconcellos? Pedro Não, snr. Rodrigo de Vasconcellos, d'aqui a poucas horas, se verter sangue, será o de suas lagrimas. V. Ex.ª entrando n'aquella casa, fulminou a felicidade de dois esposos que se adoravam, e o futuro d'uma creancinha que me parece condemnada a não poder dizer o nome de seus paes. Jorge Que lhes fiz eu? Pedro Creio bem que V. Ex.ª, trasido na onda da fatalidade, senão antes pela mão da Providencia, o mal que fez, as tempestades que levantou, não as promoveu voluntariamente. O snr. Jacome da Silveira quando entrou em casa de Rodrigo de Vasconcellos, e viu os sobresaltos e anciedades de D. Eugenia, decerto não podia prever que ia separar os dois esposos dilacerando-os pelo coração. Jorge Não o entendo, snr. Aranha!.. Que é? Eu separei e dilacerei os corações dos dois esposos! Que tenho eu que vêr com um ou outro? A snr.ª D. Eugenia fallou-me de outra que morreu, e disse-me que ouvira contar a sua historia, e chorou, não sei se compadecida de mim se d'ella... Tinha uma pulseira com um retrato, que denunciava a impudencia de quem o possuira e lh'o dera... Pedro O retrato que D. Eugenia tinha na pulseira era o retrato de sua mãe. Jorge Isso é falso, snr.! O retrato era d'uma mulher que se chamou Martha, e foi amante de... _(sustendo o impeto de colera)_. Pedro Sem duvida nenhuma. O retrato da snr.ª D. Martha é o que a snr.ª D. Eugenia tem na pulseira. Jorge Não me diga pois que o retrato é da mãe d'essa senhora. Pedro Affirmo a V. Ex.ª que a esposa de Rodrigo de Vasconcellos é filha de D. Martha de Villasboas, e que a pulseira não a houve do sogro, mas sim de D. Maria da Gloria, irmã de sua mãe. Jorge _(rapido)_ Entendi eu bem? Repita... Comprehendes tu, José de Sá? Repita o snr... Pedro Que o filho do visconde está casado com uma senhora cuja filiação ainda hontem ignorava. Sabe D. Eugenia que V. Ex.ª foi o marido de sua mãe, e tambem suspeitava desde muito, e desde hontem principalmente soube que V. Ex.ª, desconfiado da lealdade de sua senhora, repulsára uma menina chamada Leonor, a qual viveu em um Recolhimento, chamando-se Eugenia, e d'esse Recolhimento sahiu com uma prima do honrado rapaz com quem casou. Esta deploravel senhora está hoje apertada na cruelissima angustia de se vêr apontada por V. Ex.ª como filha do pae de seu marido. Este conflicto é pungentissimo para uma alma, cuja sensibilidade está exaltada por sentimentos religiosos. Eu acabo de presenciar a destruição rapida que a paixão e a vergonha estão fazendo n'aquella desoladissima senhora--vergonha de ser apontada como filha da adultera morta a veneno, e como suspeita filha do cumplice de sua mãe, e esposa de seu proprio irmão! Fui chamado a confidenciar n'este inferno, e aconselhei-a que occultasse o mysterio do seu nascimento. «Não posso, bradou ella, sinto-me morrer esmagada pelo opprobrio da minha situação. Se o visconde é meu pae, receio vêl-o morrer ás mãos do matador de minha mãe; se meu pae é Jacome da Silveira, eu não posso deixar de me abraçar n'aquelle grande desgraçado, e dizer-lhe que sou sua filha!» Jorge _(interrompendo-o com as mãos fincadas nos braços d'elle)_ Ouça, snr... Ella chamou-se Leonor? É filha de Martha? Foi ella mesma que lhe disse: «eu sou filha de Martha?» Pedro Quem poderia dizer-m'o senão a snr.ª D. Eugenia? Jorge José, como comprehendes tu isto? José de Sá Que tens a tua filha. A Providencia collocou o anjo á borda d'um abysmo em que tarde ou cedo cahirias. Jorge Vá dizer-lhe que está aqui seu pae... Diga-lhe que eu lhe inundei o rosto de lagrimas quando a deixei no berço aos trez annos. Diga-lhe que ajoelhei com ella nos braços, e dei brados a Deus pedindo-lhe um abalo no coração que se despedaçou quando a infernal duvida m'a desentranhou do peito, e eu a repulsei, exclamando: «não és minha filha». Nas primeiras noites de carcere, eu via um spectro, e uma sombra compadecida, como a de um anjo lagrimoso. O anjo quando eu cahia de rosto contra as lages, e adormecia atrophiado pelo frio da madrugada, punha-me na face a mão e aquecia-m'a; collava os labios nos meus ouvidos aturdidos de um gritar estridente, e dizia-me: «pae». Eu despertava, e cria que a febre cerebral ia matar-me... Fui para o desterro. Por entre o bramir, das ondas ouvia o vagir da creancinha; e de noite, buscando-a no céo, parecia-me vêl-a envolta em mortalha branca, entre as nuvens que passavam, e as estrellas que pareciam contemplar em mim o homem que reuniu em si quantas agonias Deus pôde crear n'um dia de cruel omnipotencia. Eu não podia então chorar como hoje. Deus não me deu a esmola das lagrimas para que o reconhecesse e confessasse na hora em que viesse a encontrar a face do anjo que nas infinitas noutes de degredo ainda me apparecia e dizia: «Espera» Chegaram. Sinto as lagrimas. Sinto-as no coração, que renasce; mas aqui dentro ha um anciar que me suffoca... Onde foi Deus levar minha filha?.. _(sorrindo)_ Deus!.. Onde hei de eu ir procural-a?.. Alli... alli onde a desgraça, um acaso, um accidente estupido a levou! Hei de eu ir buscal-a, pedil-a... a quem? ao marido? ao filho do meu algoz? Meus amigos, este apparecimento de minha filha não é um bem com que Deus me premeia... É uma nova esponja de fel, que me dão para eu matar a minha sêde d'amor e de felicidade. Não existe... Leonor está morta para mim... para sempre morta... meu Deus!.. Deixai-me choral-a segunda vez. _(Esconde o rosto soluçante entre as mãos)._ FIM DO PRIMEIRO QUADRO 2.º QUADRO Ante-camara luxuosa. D. Eugenia ajoelhada á beira de um berço com armação de cortinados, contemplando um filho de poucos mezes. Rodrigo, com o aspeito quebrantado, vem entrando vagarosamente. SCENA I D. EUGENIA E RODRIGO Rodrigo _(com muita brandura)_ Eugenia... D. Eugenia _(levantando-se)_ Meu bom anjo, estavas aqui? Rodrigo O sorriso da creancinha alumiou a escuridão da tua alma? D. Eugenia Adormeceu, e suspira de sorte que parece lhe está gemendo o coração... _(beijando o rosto da creança)_ Eu não posso com tantas agonias, Rodrigo! _(abraçando-o impetuosamente)_ Espedaça-me o arrependimento de não te haver dito o nome de minha mãe... Eu sei que teu pae me daria o pão da subsistencia ainda que não fosse causa da morte d'ella; mas minha tia disse-me que eu seria desprezada e repellida, se declarasse o nome de minha mãe; que as mais deshonestas senhoras teriam vergonha de se compadecerem de mim; e que eu, sobre tantas desventuras, tinha a da pobreza, a mais repugnante de todas. Isto me dizia a minha sancta tia, lavando-me o rosto com lagrimas, como se quizesse purificar-m'o das manchas do opprobrio da minha infeliz mãe. Mas o que ella me não disse foi que eu não poderia proferir sem receio o nome de meu pae. Ella não quiz aviltar aos meus olhos a sua pobre irmã assassinada. Nem me revelou quem foi o homem que a tentou e perdeu, nem sequer me deixou entrever a duvida de que eu fosse filha d'esse, que hontem cobriu de eterno lucto a nossa familia. Se elle não é meu pae, Rodrigo, que me és tu a mim? Não vês que o marido de minha mãe dirá que eu sou tua irmã, e que o nosso filho herda a deshonra d'esta nossa união impossivel... impossivel, meu Deus! Rodrigo Que queres tu pois fazer da tua vida, da minha, e d'esta creança?! D. Eugenia Não m'o perguntes a mim, que morro de afflicção! Ensina-me a ter animo... Dize-me, Rodrigo, como ha de chegar um raio de luz a esta nossa situação tão negra! Que te diz o coração, filho? Rodrigo Que esperemos, Eugenia. Quando meu pae estiver menos febril, perguntar-lhe-hei com dolorosa franqueza o segredo do teu nascimento, e... D. Eugenia _(interrompendo-o anciada)_ Não perguntes que pódes matal-o. Se elle tem de morrer, que vá sem a terrivel surpreza de saber quem sou. Poupa-o, que eu tenho tanta pena d'elle como de ti. Não lhe digas quem sou. Ha nada mais afflictivo? Ó Rodrigo, que horrenda angustia a d'elle se eu sou... sua filha! _(Esconde o rosto nas mãos)._ Rodrigo Ahi vem o pae... SCENA II OS MESMOS E O VISCONDE _O visconde vem amparado por dois creados_ Rodrigo _(adiantando-se a recebel-o com apparente alegria)_ Óptimo! bella surpreza! N'esta cadeira, meu pae. _(Rodrigo e Eugenia vão recebel-o dos braços dos creados, e conduzem-o á cadeira)._ D. Eugenia Está muito melhor... Visconde Estou, filha. Rodrigo Que sente agora? Visconde Ancia de repouso, e a nuvem da eternidade a toldar-me os olhos. Eis que chega a noite da morte. _(Fitando Eugenia)_ Como está desfeita a sua formosura, Eugenia! Onde as lagrimas chegam, começa a morte a sua obra de destruição... Comprehendo bem a sua piedade, menina. Como não conheceu mãe nem pae, o grande amor filial que tinha no seu coração, deu-o ao pae do seu Rodrigo. Deus lh'o recompense no amor de meu neto... Cheguem para aqui o berço. Quero vêr o meu Álvaro... _(Approxima Eugenia o berço)_ Adeus. Adeus. Tu entras, e eu vou sahir. Guardai-o, filhos. Conta-lhe tu, Rodrigo, a minha vida e morte... Eu queria beijal-o. _(A Eugenia que faz menção de o tirar do berço)_ Não, não. Deixal-o dormir... Que serenidade! Tambem eu hei de têl-a. Para os grandes desgraçados o sepulchro é suave e socegado como o berço das creanças. Eugenia, venha aqui... Não chore d'esse modo, filha! Lamente-me, se eu viver. D. Eugenia Eu não choro... o pae ha de restabelecer-se. _(Rodrigo gesticula a Eugenia para que ella se esconda de modo que o pae a não veja)._ Rodrigo Meu pae. _(Espera instantes que o pae levante a cabeça)._ Visconde Eugenia? Rodrigo Foi lá dentro. Na ausencia d'ella, faço uma pergunta a meu pae, e da ousadia lhe peço perdão. Visconde Pergunta. Rodrigo Essa infeliz senhora que meu pae amou... a mulher de Jacome da Silveira, tinha filhos? Visconde Uma filha. Rodrigo Que se chamava... Visconde Leonor. Uma creança entre trez e quatro annos, muito formosa. Sabes alguma coisa d'essa menina? Rodrigo Meu pae soube que destino lhe deram? Visconde Não. Alguns amigos meus de Lisboa a procuraram sem resultado. Se ella tivesse apparecido, eu adoptal-a-hia, sabendo que o pae a renegára de filha aleivosamente, mas digno de desculpa... Rodrigo Mas meu pae tem a certeza de que Leonor era filha de Jacome da Silveira? Visconde Como tu tens a certeza de que este filho é teu: jural-o-hei com os olhos na sepultura, e o coração na misericordia de Deus. Quando comecei a... cavar o abysmo da minha victima... Leonor já tinha dois annos e meio, e fitava-me com os seus grandes olhos d'um modo mui triste que parecia dizer-me: «Eu por amor de ti, ficarei sem pae e sem mãe» E ficou. _(Eugenia, que tem ouvido muito alvoroçada este dialogo, n'este lance corre em grande transporte aos braços de Rodrigo)._ D. Eugenia Graças, graças, meu Deus! Fizestes o milagre, virgem do céo! Agora sim, que toda a minha alma respira desopprimida! És meu Rodrigo! _(Ajoelhando aos pés do visconde)_ Bem haja, bem haja que me tirou a morte de sobre o coração, e de sobre esta creança um affrontoso opprobrio! Visconde _(enleado)_ Que é?! que diz, Eugenia? D. Eugenia Chame-me Leonor, que eu sou Leonor... Sou a filha da peccadora que morreu... Sou a orfã que a mãe de Deus guiou até ao coração de seu filho. Visconde _(agitadissimo)_ É isto febre, meus filhos? é o delirio dos ultimos arrancos? Não me está esta senhora dizendo que é filha de Martha?! D. Eugenia Sou... sou... Visconde Ajudai-me... erguei-me... Forças, vida, um dia de vida, meu Deus! Um dia para chorar comtigo, Leonor... Olha que tinhas a mais amoravel e extremosa das mães... o coração mais sancto do amor maternal. Formosa como tu... da tua edade... respeitada e adorada; contente, feliz, virtuosa, boa... Mas... matei-a... Não foi teu pae que a matou, Leonor... Fui eu!... O veneno que lhe fazia espumar sangue, e ranger os dentes convulsos, e rojar-se no chão, e atirar-se a gritar para o teu berço, esse veneno fui eu que lh'o vasei no peito... Eu fui quem a despenhei dos respeitos publicos para a deshonra irrevogavel, da mais rica e florida existencia para um torrão desconhecido do cemiterio, para a valla dos pobres... e levantei-lhe como monumento uma memoria infame! Fui eu... eu fui o algoz... _(Resvala á cadeira, soluça e prosegue:)_ Meus filhos, ide, ide... Pede-vol-o com as mãos erguidas o penitente na agonia... Ide pedir a Jacome da Silveira... Vae, filha, vae pedir a teu pae que me perdôe. Dize-lhe que é um agonisante que lh'o pede... Um homem que até esta hora invocou a morte, e a morte, a enviada de Deus, não quiz derrubar-me sem este grande trance. Vae, Leonor, vae dizer a teu pae que eu morro. Apaga-lhe o fogo da ira com as tuas lagrimas... Chora-lhe no coração, que a piedade renascerá, e o perdão virá a tempo de eu poder acabar sem estas angustias de remorso que me... SCENA III OS MESMOS, E PEDRO ARANHA Pedro _(a D. Eugenia)_ Se V. Ex.ª quizesse sahir á primeira salla, encontraria seu pae. D. Eugenia Jesus! Que hei de eu fazer, Rodrigo! Visconde Vae... cumpre o meu pedido, Leonor. Dize a teu pae que Heitor de Vasconcellos lhe pede perdão. SCENA ULTIMA OS MESMOS, JOSÉ DE SA E JORGE DE MENDANHA Jorge _(com as costas voltadas para o visconde)_ Aqui estou, Leonor. _(Leonor inclina-se como quem vae ajoelhar)._ Não ajoelhes. Se algum de nós deve ajoelhar, sou eu diante de ti. Vingada estás do meu desamparo, filha. Perdi as tuas caricias por espaço de vinte e um annos. Agora, o que pódes dar-me é lagrimas. Eu t'as recebo como signaes da misericordia divina. Snr. Rodrigo. _(Rodrigo approxima-se)_ Vou expatriar-me outra vez. Deixo-lhe o bom e nobre coração de minha filha. Quem a aceitou e amou pobre, nada lhe importa saber que ella é rica. Filha, privei-te do amor de pae; mas os bens de fortuna, como não podiam dar-me um instante de paz, não se perderam. Poderás enxugar com elles muitas lagrimas, se ellas não forem de angustias tamanhas como a minha. D. Eugenia _(ajoelhando)_ O perdão, meu pae! Jorge Que tenho eu que perdoar-te, anjo?! D. Eugenia O perdão... para o pae de meu marido. _(O visconde está erguido e amparado nos braços de Pedro Aranha e José de Sá)._ Jorge _(sem olhar para o visconde)_ A misericordia dos homens não póde ser mais indulgente que a de Deus. Quando esse homem não sentir sobre a consciencia o pezo da justiça divina, o meu perdão ser-lhe-ha inutil. Eu não posso perdoar-lhe a elle, por que Deus ainda me não perdoou a mim. Leonor, eu ainda choro tua mãe. Elle... que morra a choral-a. _(Aponta-o sem o vêr)._ FIM. * * * * * COMO OS ANJOS SE VINGAM DRAMA EM UM ACTO. PERSONAGENS FRANCISCO DE VALLADARES--30 annos, esposo de D. ALBERTINA--entre 20 e 25 annos. D. ANTONIA DE VALLADARES--irmã de Francisco de Valladares, 25 annos. CONSELHEIRO SOUSA--pae de Albertina. JOÃO LOBO--medico, entre 30 e 40 annos. LEONARDO--creado velho. Uma creada, nova. * * * * * COMO OS ANJOS SE VINGAM ACTO UNICO Ante-camara espaçosa, bem mobilada. Portas ao fundo e lado. _João Lobo vem sahindo do quarto ao fundo. Albertina sáe de pós elle._ SCENA I JOÃO LOBO E D. ALBERTINA Albertina _(com vehemencia e receio)_ O nosso doente continua bem, não é verdade, snr. Lobo? João Lobo Seu marido, minha senhora, pareceu-me mais concentrado, mais triste. Albertina _(afflicta)_ Sim?! Peorou? João Lobo Deixei-o hontem risonho, com excellente pulso, a planear viagens, bailes... Albertina _(sobresaltada)_ E tornou a febre, meu Deus? João Lobo Sim, ha o quer que seja.... e póde ser que isto não passe d'um accidente... mas... Que está V. Ex.ª cogitando? Suspeita que alguma impressão moral... Albertina _(preoccupada e abstrahida)_ Nada... Eu hontem de tarde sahi para vêr minha mãe. Demorei-me uma hora; e quando entrei no quarto achei-o a conversar com minha cunhada. Beijei-o; elle sorriu-se de um modo extranho. Quiz pedir-lhe explicação d'um ar tão desacostumado na nossa vida de cinco annos; mas temi inquietal-o. Perguntei depois a minha cunhada se... Ella ahi vem. SCENA II OS MESMOS E D. ANTONIA João Lobo _(comprimentando-a)_ V. Ex.ª nos vae dizer se alguma impressão moral póde explicar a tristeza e abatimento em que encontro seu mano. D. Antonia _(desdenhosa)_ Já a mana Albertina me fez a mesma pergunta. Acho curiosa a indagação! Eu não sei se meu mano recebeu impressões moraes... João Lobo _(sempre sereno e risonho)_ É que eu deixei-o hontem socegado e alegre... D. Albertina É verdade. Bem viu a mana Antonia como elle estava bom quando eu sahi; depois, encontrei-o com a mana, e fui recebida com certas maneiras... havia não sei que desconfiança e mysteriosa intelligencia entre meu marido e... D. Antonia _(atalhando-a)_ E eu?! D. Albertina Sim... pareceu-me... D. Antonia Ora esta! Tem coisas esta senhora! Sempre injusta comigo! D. Albertina Injusta, não. Sou incapaz de ajuizar mal de ninguem. Não vá o doutor cuidar que eu tenho sido para a mana Antonia o que ella deixa entender... Que mal lhe fiz? que injustiças minhas a offenderam? _(Ouve-se o toque de campainha no quarto de Francisco Valladares)_ O Francisquinho chama. _(Corre ao quarto)._ SCENA III JOÃO LOBO E D. ANTONIA João Lobo A mim cumpre-me lembrar-lhe, minha senhora, que o estado de seu irmão é melindroso. Olhe que os dois fios quasi quebrados d'aquella vida estão mal soldados. Sacudam-lhe a alma com alguma leve paixão, que os fios partem-se... D. Antonia _(impaciente)_ Mas que fiz eu ou que disse?! João Lobo Não sei o que V. Ex.ª disse ou que fez. O que sei é que a snr.ª D. Antonia odeia sua cunhada. D. Antonia Que calumnia! odeio minha cunhada! João Lobo _(sempre sereno)_ E, se puder perdêl-a, perde-a. D. Antonia Porquê?.. por que hei de eu querer perdêl-a?.. João Lobo Não lhe respondo. O meu silencio pede á sua consciencia que responda, minha senhora. E se V. Ex.ª calar a voz da consciencia, verá como ahi na sociedade do Porto se levantam cem vozes a dizer-lhe... D. Antonia O quê?.. SCENA IV OS MESMOS E D. ALBERTINA D. Albertina _(alvoroçada)_ Elle está tão inquieto!.. Vamos lá, doutor... _(suspende-se)_ Vá... vá! _(O doutor entra na alcôva)._ SCENA V D. ALBERTINA E D. ANTONIA D. Albertina _(com brandura e commovida)_ Mana Antonia, se me fez mal, remedeie o mal que fez a seu mano e a mim. D. Antonia Eu! que teima! que aleivozia! D. Albertina _(rapida e a meia voz)_ Eu accuso-me de ter querido obrigar a mana Antonia a ser honesta, a ser uma digna irmã de meu marido. Accuse-se a senhora de ter tentado vingar-se de mim calumniando-me. D. Antonia Que me accuse! É original a ordem! Ahi vem a virtuosa senhora com a deshonestidade da minha vida! Dê-me licença. Retiro-me que não vá ser contagiosa a minha deshonestidade! _(Sáe rindo uma rizada nervosa. Albertina encaminha-se para a alcôva guando o doutor vem sahindo)._ SCENA VI JOÃO LOBO E D. ALBERTINA D. Albertina Já?! que tem elle? João Lobo Mandou-me sahir: quer estar só. D. Albertina _(com espanto)_ Mandou-o sahir?! João Lobo Terminantemente; mas com delicadeza. D. Albertina Então que vem a ser isto, meu Deus? O snr. Lobo suspeita que meu marido possa... João Lobo Possa o quê, minha senhora? Enlouquecer? é o que V. Ex.ª quer perguntar? Não ouso dizer-lhe as minhas suspeitas. D. Albertina Então é certo? O Francisco póde enlouquecer?! João Lobo Podemos todos enlouquecer, minha excellente amiga... Descance. O snr. Francisco Valladares está febril; não está doudo... Aquella febre tem o ardor d'uns infernos que costumam accender-se n'uns corações perversissimos... D. Albertina _(atalhando-o)_ O coração de meu marido é bom, snr. Lobo. João Lobo Não me entendeu, snr.ª D. Albertina... Seu marido desconfia da minha probidade. D. Albertina Como? desconfia?! João Lobo E da virtude de V. Ex.ª... desconfia tambem. D. Albertina _(tremula e anciada)_ Não póde ser, não póde ser! _(Faz menção de correr para a alcôva: o medico sustem-a com um gesto)._ João Lobo _(a meia voz)_ Repito-lhe que a fragil vida do snr. Valladares nos está aconselhando muitas cautelas. Escute-me serenamente. Eu suspeito que sua cunhada começou hontem a obra infame do descredito de V. Ex.ª Era preciso dar-lhe um cumplice: fui eu. Sua cunhada escolheu o homem competente, porque a sociedade me tem calumniado mil vezes para usar largamente do direito que eu lhe dei de me accusar uma vez com justiça. É sempre assim; excepto quando o vicioso ou a viciosa aprenderam as artes da hypocrisia depois que a primeira fragilidade lhes fez resvalar o pé e cahir com estrondo. O grande caso é cahir sem estrondo. Ora seu marido, minha nobre senhora, não me julga melhor nem peor do que sou julgado pelo restante da sociedade. Chamou-me, quando receou morrer; e hoje talvez preferisse a morte á fraqueza de me chamar... Eu, porém... D. Albertina _(interrompendo-o)_ Mas então é preciso que eu me defenda já, e na sua presença, snr. Lobo!.. João Lobo Não, minha senhora. As commoções e luctas que necessariamente acompanhariam tal defeza, abririam a sepultura ao lado do leito do snr. Valladares. É cedo. Seu marido por emquanto apenas vê em V. Ex.ª o anjo, e em mim o tentador. _(sorrindo)_ D'um pobre diabo _(desculpe V. Ex.ª a phrase plebea)_; d'um pobre diabo tem querido a sociedade fazer um sugeito possuido das influencias satanicas dos Tenorios e dos Faustos. Não se impaciente, minha senhora. Olhe que não está sósinha. Quando mais opprimida sentir a sua innocente e nobilissima alma, imagine que vê sempre ao seu lado... a Providencia. D. Albertina Mas o meu silencio póde condemnar-me. João Lobo Quando a interrogarem responda; mas não provoque altercações. Espere que seu marido se fortaleça; não queira V. Ex.ª curar uma alma enferma como a delle. Qualquer balsamo o irritará. E quando eu lhe disser que se vingue restaurando a sua dignidade, então será tempo de salvar o seu nome... e o meu. Não posso nem devo demorar-me. Adeus, minha senhora. D. Albertina _(apertando-lhe a mão muito affectuosamente)_ Adeus, meu bom amigo... Não o desampare... _(D. Albertina vae á porta da alcôva, escuta, e hesita; vae levantar o fêcho quando a porta se abre)._ SCENA VII D. ALBERTINA E FRANCISCO VALLADARES _Francisco Valladares extremamente magro e pallido, caminhando a custo. Veste um rob de chambre_ D. Albertina _(tomando-lhe o braço)_ Pois tu levantas-te, meu filho? Francisco de Valladares Estou bom... não vês, Albertina? Sinto-me forte. _(Senta-se prostrado)._ D. Albertina Ardem-te as mãos... Que imprudencia! O medico consentiu que te levantasses? Francisco de Valladares _(após uma longa pausa, em que conserva o rosto escondido nas mãos)_ Quero sahir. O dia está sereno. D. Albertina Pois tu queres sahir em convalescença tão arriscada?! Não vês que pódes recahir! Francisco de Valladares A recahida é a cura. Onde uma sepultura se fecha, fechou-se a bôcca d'um abysmo. A morte quando se aproxima é bella; só vista ao longe, é horrivel. _(Ergue-se)_ Estou vigoroso. Vou a Cintra. Que tirem a caleche. D. Albertina Pela tua vida te rogo que não vás, meu querido filho. Francisco de Valladares A minha vida!.. por que me não pedes antes pela minha honra? D. Albertina Pois sim, peço-t'o pela tua honra... Francisco de Valladares E pela tua... D. Albertina _(com dignidade)_ O quê? Que me pedes tu? Francisco de Valladares A ti?.. que me deixes morrer... D. Albertina _(muito commovida)_ E tu queres morrer? Francisco de Valladares Honrado. SCENA VIII OS MESMOS, LEONARDO E DEPOIS O CONSELHEIRO SOUSA Leonardo Está aqui o snr. conselheiro Sousa. _(Sáe. D. Albertina vae ao encontro do pae e beija-lhe a mão)._ Conselheiro Ólá! a pé! Optima convalescença, snr. Valladares! Ainda hontem lhe davam vinte dias de cama!.. Francisco de Valladares Estou melhor. Conselheiro E tu como estás, filha? D. Albertina Bem; e a mamã peor? Conselheiro Peor, e pediu-me que te viesse buscar, se teu marido podesse dispensar-te. Imagina que morre, e quer todos os filhos á volta da cama. Já lá estão tuas irmãs. Francisco de Valladares Póde ir; eu mesmo insto que vá. Conselheiro Tenho ahi a sege; não te demores na _toilette_. _(Sáe Albertina)._ SCENA IX O CONSELHEIRO E FRANCISCO VALLADARES Conselheiro Não seria perigosa imprudencia sahir da cama, snr. Valladares? Acho-lhe um certo rubor nas faces... Francisco de Valladares É signal de bom sangue, quando não seja de nobre vergonha. Conselheiro Como? Francisco de Valladares _(inquieto)_ Quero sahir de Portugal por algum tempo... Vou para Florença... É um clima restaurador; quem lá não póde viver sente-se morrer mais suavemente. Os grandes infelizes devem pensar em morrer onde as agonias lhes sejam menos crueis. Vou só... quero ir só. Estou intratavel, impertinente, phrenetico. Tudo me enoja, e eu devo enojar a todos. Conselheiro Menos a sua esposa que o ama extremosamente e o não deixará ir só. Francisco de Valladares Deixa... ha de deixar. Não admitto contradicções que poderiam matar-me... Conselheiro _(com assombro)_ Matarem-no!.. quem? Francisco de Valladares E para quê?! Eu não embaraço a passagem a ninguem! _(Com exaltação de louco)_ Passem! Praça ao vicio! Rompa triumphante. Eu sou pequeno para me atravessar á bôcca da voragem. Entrem, abysmem-se, esmaguem-me o coração, mas deixem-me a honra salva. Conselheiro _(áparte)_ Está perdido! SCENA X OS MESMOS E D. ALBERTINA D. Albertina Estou prompta, meu pae. _(Aproxima-se do marido, beija-lhe a fronte com serena altivez)._ Até logo, Francisco. Conselheiro O doutor Lobo aconselha viagens a teu marido? D. Albertina Eu ainda não ouvi fallar em viagens. Conselheiro _(encarando-os alternadamente)_ A infelicidade entrou n'esta casa ha poucas horas... D. Albertina Entrou, mas ha de sahir. _(Com resolução. Aproxima-se do marido tocando-lhe no hombro)._ Olha que eu tenho Deus por mim. Hei de vencer. Vamos, meu pae. _(Sáem)._ SCENA XI FRANCISCO DE VALLADARES E DEPOIS LEONARDO Francisco de Valladares Pois esta mulher sabe que me é suspeita a sua lealdade, e não se justifica? Não seria natural que me interrogasse com lagrimas e fizesse ahi grande estrondo com a sua dignidade ferida? _(Tange uma campainha com phrenesi. Apparece Leonardo)._ A snr.ª D. Antonia? Leonardo _(com ar de maliciosa candura)_ A snr.ª D. Antonia está a conversar no jardim. V. Ex.ª quer que a chame? Francisco de Valladares A conversar... com quem?! Leonardo Com o visconde de Espinhal. Francisco de Valladares E esse homem está no meu jardim?! Leonardo Não, snr.: está no jardim do visinho. Francisco de Valladares Chama essa senhora. _(Leonardo sáe)._ SCENA XII FRANCISCO DE VALLADARES N'esta casa consideram-me morto... Ha em tudo isto que me cerca e atormenta o travor da peçonha que está dilacerando uma familia. Assim que a doença me prostrou, a deshonra chegou ao meu leito de moribundo para me abafar. _(Inclina a cabeça para o peito; demora-se um instante, senta-se de golpe, mas a custo, e amparando-se)_ Eu não quero morrer! Fui um homem inutil; mas antes da minha morte, hei de deixar uma lição aos infames, e um exemplo aos que não acceitam de boamente o seu opprobrio. _(Reflectindo)_ É impossivel. O meu coração não podia enganar-se assim. A duvida nunca passou pelo meu espirito, nem sequer o receio... Estará ella innocente?.. SCENA XIII O MESMO E D. ANTONIA D. Antonia O mano chamou? Francisco de Valladares Chamei. D. Antonia Eu tinha ido ao jardim vêr as suas araucarias. Estão lindissimas. Francisco de Valladares Eu recommendei-lhe ha mezes, Antonia, que se não descuidasse um momento dos seus deveres n'umas relações amorosas em que a vi muito arriscada. O visconde do Espinhal é um homem que tem perdido no conceito da sociedade algumas senhoras na posição da mana Antonia. O mundo, que despreza as mulheres que elle diffamou, nobilitou-o ao mesmo tempo com o diploma de conquistador, e o visconde considera-se obrigado a sustentar a sua reputação. Á justiça ou á dignidade dos irmãos e dos maridos responde com o duello; e á moral pacifica das familias com a zombaria. Ora eu, prevendo que o seu descredito, Antonia, me levaria ao extremo de lhe pedir a elle contas do seu honrado nome, pedi á mana que terminasse essa perigosa inclinação. Antonia prometteu terminar. Cumpriu? D. Antonia _(hesitante)_ Cumpri, mano Francisco. Francisco de Valladares É sempre assim verdadeira? Quando accusa os outros é tão sincera como quando se absolve a si? D. Antonia Não percebo... Francisco de Valladares Mentiu; mas está perdoada com a condição de desmentir-se das suspeitas que me deixou da fidelidade de Albertina. Repita-me o que sabe de sua cunhada. Chamo a sua consciencia á presença de Deus. Diga, mana Antonia, que viu? em que funda as suas desconfianças? D. Antonia As minhas desconfianças?.. Francisco de Valladares Sim; não me obrigue a repetir o que está bem impresso na sua lembrança. D. Antonia Eu já disse que desconfiava... porque... Ha certas coisas... que inspiram suspeitas até certo ponto... sim, eu desconfiei porque... Francisco de Valladares Essa hesitação parece um annuncio de arrependimento por haver calumniado a pobre Albertina... D. Antonia Calumniado! Tem coisas o mano Francisco! Sou incapaz de calumniar. Francisco de Valladares Bem. Diga então lá desembaraçadamente. _(Vê-se ao fundo Leonardo que escuta por entre o reposteiro)._ D. Antonia Disse e digo que Albertina faz ostentação de virtudes que não tem. Francisco de Valladares Disse mais pelo claro que lhe parecia que ella trazia o coração distrahido... D. Antonia Foi isso. Francisco de Valladares E que Albertina amava o doutor Lobo. D. Antonia Justamente. Francisco de Valladares Agora venham as provas que hontem lhe não pude pedir porque Albertina entrou. D. Antonia As provas! Francisco de Valladares Tem as provas? D. Antonia Para que quer o mano saber... São coisas que o affligem, e lhe aggravam os padecimentos. Francisco de Valladares Não me dê razões parvas. _(Ergue-se convulso)_ Responda! Mando que responda! As provas? D. Antonia Não se exaspere. Eu vou satisfazêl-o... Quando o medico sahiu uma vez do seu quarto, Albertina esperou-o n'esta salêta, e demorou-se algum tempo a conversar com elle, tendo-lhe as mãos apertadas nas d'ella. Outra vez, a creada de sala contou-me que ella estava a chorar de joelhos, e o medico a levantara com muito carinho e palavras meigas. D'outra vez fui eu que a vi abraçada n'elle com ar de grande alegria... Outra pessoa me disse tambem que a vira sahir de casa do medico e entrar n'uma sege... Francisco de Valladares Que pessoa? D. Antonia Certa pessoa... Francisco de Valladares _(irritado)_ O nome? D. Antonia O visconde do Espinhal. Francisco de Valladares Já o nome de minha mulher cahiu n'essa sentina? _(muito agitado)_ Então está perdido tudo! Embora esteja innocente, Albertina perdeu-se! A deshonra da mulher de Fracisco de Valladares é propalada pelo visconde do Espinhal. _(Fita a irmã rancorosamente, travando-lhe do braço)_ Se ella estiver pura, é preciso que a senhora vá ser infame longe d'esta casa onde morreu sua mãe... _(Francisco de Valladares sáe impetuosamente a entrar no quarto, mas encosta-se de fraco ao espaldar d'uma poltrona. Leonardo sáe apressado a dar-lhe o braço)._ SCENA XIV OS MESMOS E LEONARDO Francisco de Valladares Onde estavas, Leonardo? Leonardo Passava no corredor quando V. Ex.ª ia cahir. Francisco de Valladares Eu não cáio. Deixa-me só. _(Entra no quarto)._ SCENA XV D. ANTONIA E LEONARDO Leonardo _(com respeito)_ Minha senhora, vou-lhe pedir um favor por alma de sua mãe. A menina é christã, e não ha de faltar-me. D. Antonia _(com sobranceria)_ Que quer? Leonardo Que se arrependa emquanto é tempo, e vá dizer a seu mano que a senhora faltou á verdade na intriga que armou á sua pobre cunhada. Faça-me isto, porque a senhora é catholica. D. Antonia Quem lhe permittiu o atrevimento de me fallar assim? Leonardo Isto não é atrevimento, senhora; é confiança e amisade de creado antigo. D. Antonia Os creados antigos são sempre creados, entendeu? _(Menção de sahir)._ Leonardo A menina faz favor de me ouvir aqui baixinho? _(Á bôcca da scena)._ D. Antonia Diga. Leonardo Lembre-se que sua cunhada desfaz esta meada quando quizer; e se ella a não desfizer, desfaço-a eu, dou-lhe a minha palavra de homem catholico, que me preso de ser. D. Antonia _(alto)_ Que meada? que meada? Leonardo A menina quer que eu lhe responda tambem a gritar? Veja lá. Seu mano está alli pertinho, e a demanda póde ficar acabada aqui n'esta sancta hora. Torno a pedir-lhe por alma de sua mãesinha que vá dizer a seu irmão que não disse a verdade. A senhora disse a verdade até certas alturas; mas torceu-lhe as voltas para arranjar a mentira; sim, V. Ex.ª bem me percebe, e a consciencia lá lhe está gritando; porque a menina é, foi, e ha de ser sempre catholica. D. Antonia _(afogando os impetos da ira)_ Que petulante! que villão! SCENA XVI OS MESMOS E UMA CREADA _Leonardo fica ao fundo, escutando ao quarto de Francisco Valladares, emquanto a creada se aparta com D. Antonia_ Creada _(a meia voz, e rapidamente)_ O snr. visconde mandou saber se havia alguma novidade. D. Antonia Elle ainda está no jardim? Creada Está, sim, minha senhora. D. Antonia Vê se o passas para a sala do meio... Preciso muito fallar-lhe. Quero sahir d'esta casa quanto antes. Creada O peor é se Leonardo dá fé... Veja se o entretém cá para dentro... _(Sáe)._ SCENA XVII D. ANTONIA E LEONARDO D. Antonia Venha cá, Leonardo. Leonardo Minha senhora. D. Antonia Explique-me essas embrulhadas que esteve atrapalhando. Não o entendi. Leonardo Não?! pois então logo lhe explicarei. São horas de dar o lunch ao snr. Francisquinho. _(Vae a sahir)._ D. Antonia Espere. Leonardo Tenha paciencia que está o doente esperando. _(Sáe)._ D. Antonia O maldito desconfiou!.. SCENA XVIII D. ANTONIA E O CONSELHEIRO SOUSA Conselheiro _(a D. Antonia com severidade)_ Seu mano, senhora? D. Antonia Está no seu quarto. Conselheiro Avise-o de que o estou esperando. D. Antonia Elle ahi vem. _(Sáe)._ SCENA XIX CONSELHEIRO E FRANCISCO DE VALLADARES Conselheiro Snr. Valladares, minha filha descreveu-me com mais lagrimas que palavras a infelicidade com que a Providencia a está castigando porque me desobedeceu. O snr. Valladares soffre tambem porque induziu minha filha a rebellar-se contra a vontade de seu pae. Adivinhei que Albertina seria desgraçada; mas nunca me feriu o coração o receio de que o snr. diffamasse minha filha com affrontosas suspeitas. Albertina tem um defensor; sou eu, é seu pae. Accuse-a na minha presença. Francisco de Valladares _(com enfado)_ Estou doente, estou febril, snr.; não venha atormentar-me... Esses ares magestosos de pae irritado não me salvam da ignominia, nem desculpam os desvarios da snr.ª D. Albertina. A accusação, se houver de fazer-se, não tem de ser julgada por juiz tão incompetente, como V. Ex.ª Ora, se eu não me queixo para que ha de queixar-se o snr. conselheiro? Eu, por emquanto, resumo os meus queixumes em dizer-lhe que estou aviltado, que sou escarnecido, que pertenço aos incentivos da zombaria, e contribuo para sustentar á custa da minha dignidade a irrisão nos salões e nas praças onde se applaude o impudor do visconde do Espinhal, e de... Conselheiro Basta. Ouvi ahi um nome que é personagem n'este romance torpe que V. Ex.ª está urdindo. O visconde do Espinhal!.. As salas onde este illustre devasso é recebido são as salas de muito homem de bem, incluindo as suas, snr. Valladares. Francisco de Valladares As minhas!.. as minhas!.. Conselheiro As suas. Francisco de Valladares Já encontrou em minha casa o visconde? Conselheiro Não, snr., por que eu nunca entrei nas suas alcôvas. Francisco de Valladares Isso é uma insinuação hedionda, snr. conselheiro! Conselheiro Insinuação hedionda e vilissimo affrontamento é o que o snr. está cuspindo na cara de minha filha. Sou pae, snr.; e sou pae de uma mulher virtuosa que outra mulher perdida calumniou. A hora da justiça não tardará. O cumplice de minha filha será interrogado na presença do calumniador. Francisco de Valladares Na minha presença! É original o escandalo! Então V. Ex.ª quer fazer justiça, ridiculisando-me? Não o conseguirá, que eu estou em minha casa; bom será lembrar-lh'o. Conselheiro Não me esqueci; mas, se a intenção da indelicadeza é mandar-me sahir, declaro-lhe que não sahirei, sem levar d'aqui a minha filha a retratação de V. Ex.ª Provavelmente ella não voltará a esta casa... SCENA XX OS MESMOS E D. ALBERTINA D. Albertina Volto, aqui estou, por que não hei de voltar?! _(serenamente)_ O pae não me deu tempo a estar com a mamã alguns instantes. Receiei que tivesse vindo para aqui, e magoadamente lhe digo que me arrependi de ser tão expansiva!.. Como estás abatido, meu pobre Francisco! Matam-te, meu filho! Parece incrivel que a Providencia divina não diga á tua alma que eu estou innocente! Francisco de Valladares _(concentrado)_ Seria preciso que a Providencia tivesse cegado as que a viram sahir de casa de... _(Retrahindo-se com doloroso esforço)._ SCENA XXI OS MESMOS, LEONARDO, E DEPOIS JOÃO LOBO Leonardo O snr. doutor Lobo. _(Sáe)._ Francisco de Valladares _(ao conselheiro)_ Esta indecente situação preparou-m'a V. Ex.ª! D. Albertina _(afflicta)_ Que vem a ser isto, meu pae? Não vê o estado de meu marido?! Conselheiro Importa-me a tua dignidade muito mais. SCENA XXII OS MESMOS E JOÃO LOBO João Lobo Felizmente que eu chegava a casa quando recebi o recado. Conselheiro Fui eu, snr. doutor, que pedi a sua vinda. João Lobo _(tomando o pulso de Francisco Valladares)_ Isto assim não vae bem, snr. Valladares. Se V. Ex.ª não quer, ou não póde subordinar á rasão e á necessidade o alvoroço em que está o seu espirito, mais doente do que o corpo, não tenho que fazer aqui. Tenha a briosa coragem de ser homem, para viver. _(Francisco de Valladares faz um gesto de constrangimento, sorrindo-se com amargura)._ Conselheiro É o que elle faz, snr. Lobo. Vae affastar de si as pessoas que o atormentam, ou mais exactamente são essas pessoas que muito por sua vontade se affastam. Eu sou uma, e minha filha é a outra pessoa importuna que está impeçonhando o máo ár que este doente respira. João Lobo Sua filha?! Pois a snr.ª D. Albertina atormenta seu marido?! V. Ex.ª sem duvida proferiu um gracejo ou uma ironia, mas ha n'isso alguma coisa que me punge como principal testemunha do incomparavel amor que esta senhora tem a seu marido, ou tinha ha poucos dias. E como principal testemunha, embora não seja chamada, vou depôr n'este pleito, e hei de ser escutado pela delicadeza de V. Ex.as _(Circumvagando a vista pela sala)_ Falta alguem no meu auditorio. O tribunal não póde funccionar sem a presença da snr.ª D. Antonia. Requeiro que seja chamada S. Ex.ª _(O conselheiro tange a campainha)._ Francisco de Valladares _(erguendo-se com impeto)_ Eu é que me nego a pertencer ao seu auditorio, snr. João Lobo. Querem sujeitar-me a uma tutella vergonhosa! _(Quer sahir)._ Conselheiro _(retendo-o)_ Não sáia. Prohibe-lh'o a honra de sua mulher. _(A Leonardo que entra)_ Diz á snr.ª D. Antonia que se lhe pede o favor de entrar n'esta sala. _(Leonardo sáe)._ D. Albertina _(a meia voz)_ Tu precisas de ouvir a minha justificação, Francisco? Francisco de Valladares _(fixando-a lagrimoso)_ Quem podesse tirar-me de sobre a alma este pezo de infelicidade!.. SCENA XXIII OS MESMOS, D. ANTONIA E LEONARDO QUE FICA AO FUNDO _Silencio d'algum segundos. D. Antonia entra sobresaltada_ João Lobo Ouvi agora dizer, snr.ª D. Antonia, que sua cunhada vae separar-se de seu marido. Esta má nova commoveu-me tão profundamente quanto eu estava convencido de que esposos, como estes eram, amantissimos e felizes, raros se encontrariam, e principalmente nas classes elevadas onde as apparencias de felicidade conjugal são quasi sempre convencionaes, uma especie de hypocrisia que é assim mesmo um tal qual respeito que se presta á virtude. Se V. Ex.ª não sabia isto que me espantou, deve estar admirada pelo menos... D. Antonia Decerto. João Lobo E a não ser V. Ex.ª, ninguem como eu póde testemunhar quanto a snr.ª D. Albertina amava seu marido, posto que, só ha trez mezes fui chamado para tratar o snr. Valladares; V. Ex.ª porém, que ha cinco annos conhece sua cunhada em familiar intimidade, decerto póde levantar voz mais auctorisada em abono d'esta virtuosa senhora. _(Fixam todos D. Albertina que se mostra mortificada pelo interrogatório)_ Mas, se V. Ex.ª quer ter a bondade de me conceder a mim a satisfação de ser o primeiro a depôr, serei eu testemunha, e será V. Ex.ª o juiz. Quando fui chamado á junta que se fez ao snr. Francisco de Valladares encontrei o seu assistente e mais facultativos conformes em capitular de incuravel a sua doença. Recordo-me que ao sahir com os meus collegas da sala da consulta, encontramos esta senhora na sala immediata com as mãos postas diante de nós, perguntando se não tinhamos esperança de lhe salvar o esposo. Ninguem respondia por compaixão; mas eu quasi convencido disse afoitamente á snr.ª D. Albertina: «seu marido póde restaurar-se, minha senhora.» Proferidas estas palavras, S. Ex.ª quiz beijar-me as mãos; não o conseguiu, mas orvalhou-m'as de lagrimas. Comecei o tratamento do snr. Valladares, por voto do seu assistente. A doença progrediu, desmentindo os meus vaticinios. Já as esperanças me iam tambem abandonando, e eu a compenetrar-me das enormes angustias que atormentam a vida do medico, emquanto elle não sente esfriar-lhe o coração como o dos cadaveres em que vê desapparecer o orgulho da sciencia. Eu considerava o doente perdido, quando lhe sobreveio uma pneumonia em extremos de fraqueza. Um dia, sahi d'aquella alcôva, e encontrei alli de joelhos esta senhora supplicando-me a vida de seu marido, tão abafada por soluços e perdida de côres, que, ao levantal-a quasi desmaiada, a amparei nos meus braços e lhe pedi que suffocasse o chôro para que o doente a não ouvisse. D'esta vez _(sorrindo)_ recordo-me, sem esconder o riso, que S. Ex.ª, com a mais perdoavel das prodigalidades, me disse extremamente anciada: «Eu dou tudo quanto temos a quem salvar meu marido». Vejam como o amor e a paixão fizeram no elevado espirito d'esta senhora um intervalo de insensatez!--angelica e sancta insensatez! S. Ex.ª queria dizer talvez que dava a propria vida pela do esposo; mas o coração antes queria a indigencia para ambos que vida para um só. Acho mais sublime o sacrificio dos bens da fortuna. Eu é que não podia acceitar a proposta sem que o snr. Francisco de Valladares fosse ouvido, por que as senhoras, segundo o codigo civil, não podem dispôr dos bens do casal... _(Sorri-se, e vae tomar o pulso ao enfermo)_ Está muito agitado. Se o estou constrangendo, fecho o depoimento... Dá-me licença que prosiga?.. Mas ainda agora reparo que V. Ex.ª me tem ouvido de pé!.. Eu pedia que... _(O conselheiro senta-se. D. Antonia tambem com ar de violentada; D. Albertina permanece em pé, ao lado da poltrona do marido, João Lobo tambem de pé)._ N'outro dia, tendo-me eu demorado de proposito para dar tempo aos effeitos d'umas sarjas, foi-me annunciada a visita de uma senhora que apeava d'uma sege. Eram 7 horas da manhã. Como eu estivesse ainda recolhido, e minha mãe me dissesse que era a snr.ª D. Albertina que me procurava afflictivamente, pedi a minha mãe que fosse á sala receber S. Ex.ª Quando entrei estava a lagrimosa senhora rogando a minha mãe que me pedisse a mim a salvação de seu marido. O quadro tinha uns traços de magestosa tristeza! Minha mãe respondia-lhe a chorar que pediria a Deus, e não ao medico. N'outra occasião, por volta de uma hora da noute, era eu chamado ao pateo do Club, onde encontrei a esposa do snr. Valladares. D'esta vez não podia eu já dar-lhe esperanças que não tinha. Mas vinte e quatro horas depois a febre remittiu, a anciedade acalmou, o doente sorriu-me, e a esperança renasceu. Mais trez dias depois, disse eu á snr.ª D. Albertina: «seu marido está livre de perigo». S. Ex.ª então mais allucinada pelo jubilo do que estivera pela angustia, abraçou-me, e chamou-me seu querido salvador. Não me chamou salvador de seu marido; que isto seria uma vulgaridade; chamou-me seu salvador, como quem diz: «a vida que salvaste é a minha; eu sentia-me morrer da morte de meu marido». Até aqui o sublime. Agora a loucura da felicidade. S. Ex.ª foi buscar o seu estojo de joias, poz-m'o entre as mãos, e disse: «quando tiver esposa dê-lhe esta lembrança da mais feliz das esposas». Foi-me necessario _(sorrindo)_ convencer aquella senhora de que eu fiz voto de celibato, e não podia sem infracção do voto agenciar esposa a quem dar as joias. S. Ex.ª transigiu, e dispensou-me de quebrantar o proposito. Falta quasi nada á conclusão do meu depoimento. Depois d'estas commoventes manifestações d'um amor de esposa virtuosissima, seu mano, snr.ª D. Antonia, influenciado não sei porque máos espiritos, atira á face sem mancha d'aquella senhora um labeo de muito injuriosa suspeita. Ora diga-me V. Ex.ª se isto não é injustiça para fazer chorar os anjos! _(D. Antonia parece quebrantada)._ Conselheiro _(erguendo-se)_ O meu depoimento é mais breve. D. Albertina _(correndo para o pae)_ Pela vida de minha mãe... por tudo que ha mais nobre e sancto na sua alma!.. Conselheiro O que ha mais sancto na minha alma é a tua honra. D. Albertina Mas meu marido está seguro da minha innocencia, e não precisa que eu me justifique. Conselheiro Eu é que devo e quero justificar a tua sahida d'esta casa. Francisco de Valladares E quem diz a V. Ex.ª que minha mulher sae d'esta casa? Conselheiro Nenhum direito obriga minha filha a conciliar-se tão de barato com quem a infamou. O marido que desacredita sua mulher innocente é apenas... um baixo calumniador sem direito a impôr-lhe a obrigação de o amar, e muito menos de o soffrer. Não póde a minha filha morar sob o mesmo tecto da snr.ª D. Antonia. D. Albertina _(a D. Antonia a meia voz)_ Mana Antonia, é melhor sahir d'esta sala. Eu vou remediar como puder este infortunio. D. Antonia _(erguendo-se animosa)_ Como a senhora quizer. _(Vae sahir)._ Francisco de Valladares _(á irmã)_ Espere! Conselheiro O que deu causa á torpe aleivosia d'esta senhora foi minha filha ter reprehendido brandamente sua cunhada porque as suas tendencias a perder-se doudamente eram de tal força que nem já o escandalo de descer ao jardim alta noite escondia dos seus criados. D. Antonia Os creados mentem! Que o digam na minha presença. _(O creado que está ao fundo avança dois passos tranquillamente)._ D. Albertina _(supplicante)_ Está bom, meu pae... pelo divino amor de Deus! Conselheiro Espero ser desmentido pelos seus criados, snr.ª D. Antonia! _(Leonardo dá mais dois passos)._ D. Albertina _(perpassando pelo creado a meia voz)_ Nem uma palavra. D. Antonia _(a Leonardo)_ Viu-me alguma vez no jardim depois que as portas se fecham? _(Relance d'olhos entre D. Albertina, e Leonardo)._ Conselheiro O calumniador por tanto sou eu, minha filha. É deploravel o papel que me distribues. Menos caridade com os infames, e mais respeito aos meus cabellos brancos e á tua propria dignidade, Albertina! D. Albertina Mas que trance este, meu pae! Terminemos isto, peço a todos por piedade que terminemos isto! Francisco de Valladares Como é que se defende, Antonia? Calumniou Albertina porque ella reprovava os seus depravados instinctos de mulher que perdeu os brios de senhora? D. Antonia Não quiz calumnial-a, nem os conselhos da mana Albertina me eram precisos para eu conservar brios de senhora. As mulheres solteiras que amam não perderam os brios nem são deshonestas. Francisco de Valladares _(irritado)_ Calumniou ou não? D. Antonia Não a quiz calumniar. Calumniada sou eu, quando me dizem que perdi os brios, e que vou de noute ao jardim, e que... Conselheiro E que não vae ao jardim desde que o visconde do Espinhal sóbe facilmente do jardim ás janellas d'esta casa. D. Antonia Quem disse tal? Leonardo Fui eu; e, se o não disse, o snr. conselheiro advinhou que eu o queria dizer. D. Antonia Vossê mente! _(Leonardo caminha para uma porta do lado)_. D. Albertina _(atalhando-o)_ Onde vae? Leonardo _(a meia voz)_ O visconde está n'esta primeira sala. D. Albertina _(a meia voz)_ Por piedade não faça isso, Leonardo! _(Alto)_ Eu comprehendo bem a insistencia da mana Antonia. Ella sabe que eu me ajoelhei aos pés do snr. João Lobo; sabe que o abracei; sabe que eu fui a casa d'elle: tudo isto é verdade. O que ella não sabia é que eu pedia ao doutor a vida de seu irmão quando ajoelhava, e lh'a agradecia cheia de lagrimas quando o abraçava. No mundo julgam-se assim muitos actos e o mundo não é nem responsavel nem condemnado. Deus que assim nos fez é por que quer que assim nos sofframos uns aos outros. A mana Antonia não reflectiu na intenção dos meus actos. Viu-os pelo lado máo, e julgou-me como era justo ao seu modo de vêr. Eu sómente me queixo da imprudencia dos seus juizos. Francisco de Valladares Basta. Esta senhora não é imprudente, é infame. Leonardo, dá-me a chave do meu escriptorio que está no meu quarto. _(Leonardo sae)_ O seu dote, senhora, é tão opulento que o visconde do Espinhal em troca d'elle vae dar-lhe um optimo esposo e uma corôa de viscondessa. Vou entregar-lhe duas inscripções nominaes de 2:000$000. Valem no mercado uma quantia que sobredoira as suas virtudes. A senhora, recebido o seu dote, retire-se, e vá fazer ao dote o que fez á herança de virtudes de nossa mãe. _(Leonardo entrega-lhe a chave. Elle levanta-se convulso)_. D. Albertina Onde vaes, meu filho? Não vás... Logo... ámanhã se fará isso, Francisco. Descança, senta-te. Francisco de Valladares Não me afflijas, deixa-me. D. Albertina Pois senta-te, e dá-me a chave que eu vou. Eu sei onde estão as inscripções... Francisco de Valladares Vae. _(Da-lhe a chave)._ D. Albertina _(perpassando pela cunhada)_ Não se afflija, que eu espero salval-a. _(Sae)._ SCENA XXIV OS MESMOS EXCEPTO D. ALBERTINA Francisco de Valladares Snr. João Lobo, devo-lhe duas vidas; e mais lhe devo pela da alma, por este desafôgo do coração... Perdoou-me já, não é verdade, doutor? João Lobo Se o snr. Valladares me pede a mim perdão, em que termos ha de pedir a misericordia de sua senhora? Francisco de Valladares _(apontando para a irmã)_ E aquella!.. onde irá dar?.. que vergonhas se preparam para o apellido de minha sancta mãe!.. João Lobo Eu creio que ella tem um grande e sagrado refugio. Francisco de Valladares Qual? João Lobo O coração da snr.ª D. Albertina. SCENA ULTIMA OS MESMOS, E D. ALBERTINA D. Albertina Aqui estão as inscripções. Francisco de Valladares _(a Leonardo)_ Entregue isto á snr.ª D. Antonia. _(Leonardo demora-se a olhar para o rôlo com hesitação)._ D. Albertina _(muito carinhosa)_ Então ficas sósinho, Francisco? Sahimos ambas? Francisco de Valladares Se sahem ambas?! Sahires tu, minha querida Albertina! Deixa-me então ajoelhar a teus pés, e rogar o teu perdão com as mais contrictas lagrimas que a minha alma te póde dar! _(Ajoelha)._ D. Albertina _(erguendo-o)_ Meu filho, estás perdoado com uma condição. Se esta fôr penosa, tem paciencia; peço-te que a acceites, em desconto das angustias que me despedaçaram desde o instante em que estive perdida para o teu coração. Acceitas a condição, meu querido amigo? Francisco de Valladares Qual condição?! D. Albertina _(tomando a mão da cunhada)_ Has de perdoar-lhe... _(Sorrindo)_ ou eu não perdôo. Francisco de Valladares Então é certo que és uma sancta, minha filha? D. Albertina Não sou sancta; sou apenas uma mulher que se esforça por que tu sejas sempre um anjo de bondade. FIM. * * * * * Pertencem ao auctor os direitos provenientes da representação dos dois dramas que formam este livro. Porto 30 de Dezembro de 1870. CAMILLO CASTELLO BRANCO. * * * * * ERRATAS ESSENCIAES PAG. LINH. ERROS EMENDAS 35 1 passarôl passarôlo 41 8 de de marido de marido 43 14 estando em Beja estando eu em Beja 46 15 precedencia procedencia 68 ult. conhecidos conhecido 104 15 Em Lisboa Em Lisboa? 117 4 snr.ª viscondessa? senhora viscondessa! 120 14 espirito de venturoza espirito de ventosa 122 8 VISCONDE VISCONDESSA » 9 Visconde Viscondessa 134 14 com o pesar d'esse cadaver com o pezo d'esse cadaver 140 9 que se chama que se chamou 144 4 pois que depois que * * * * * PORTO--IMPRENSA PORTUGUEZA Rua do Bomjardim, 181. End of the Project Gutenberg EBook of O Condemnado/Como os anjos se vingam, by Camilo Castelo Branco *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CONDEMNADO/COMO OS ANJOS *** ***** This file should be named 32586-8.txt or 32586-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/3/2/5/8/32586/ Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. 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Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.