The Project Gutenberg EBook of O Carrasco de Victor Hugo José Alves, by 
Camilo Castelo Branco

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: O Carrasco de Victor Hugo José Alves

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: October 4, 2009 [EBook #30176]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-15

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CARRASCO DE VICTOR HUGO ***




Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net






 

 

O CARRASCO

DE

Victor Hugo José Alves

{2}
{3}

 

 

 

 

O CARRASCO

DE

Victor Hugo José Alves

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

Os cantaré un estraño cuento que no le avreis oydo tal en toda vuestra vida.

M. CERVANTESNovellas.

 

 

 

 

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
DE Lello & Irmão, editores
1902.{4}

 

 

 

 

Porto—Imprensa Moderna.{5}

 

I
A LUVEIRA DA RUA NOVA DA PALMA

Il y a ici quelque chose... une fleur... cherchez!

SAINT-BEUVE, Portraits des Femmes.

Á volta de uma mesa do café Martinho, em Lisboa, estavam, por 1857, cinco ou seis sujeitos saturados de politica. Estava tambem eu em principio de saturação—palavra pedida de emprestimo á chimica para bem materialisar a idéa do corpo abeberado d'aquelle civico enthusiasmo que salva as nações... nos botequins.

N'aquella noite, os meus interlocutores eram todos mais ou menos republicanos. Havia tal que dizia acreditar na metempsycose, porque sentia dentro do seu ventre os figados de Robespierre; e outro, que arredondava musicamente os periodos corrosivos, revelava-nos, com modestia{6} parelha do talento, que sentia coriscar-lhe no craneo o cérebro de Mirabeau;—coriscos, se o eram, todos para dentro; que do fogo, que lhe faiscava da fronte, não havia que receiar combustão em armazem de sulphureto de carbonio.

Os outros não me lembra quem tinham dentro de suas pessoas.

Pelo que me diz respeito, recenseando longa fileira de defuntos historicos, suspeitei ser eu a paragem de dois pedaços transmigrados, um de Falstaff, outro de Sancho, por me sentir rasamente lerdo á beira d'aquellas pessoas trabalhadas por crudelissimas almas de torna-viagem.

Suppunha Gerard de Nerval, que Méry, pela admiravel intuição que tinha das coisas da India, devia ser a metempsycose d'um mouni do Indostão na pelle d'um marselhez; ora eu, se é licita a comparação ambiciosa, á vista da sisuda pachorra com que assistia aos projectos regicidas d'aquelles cavalleiros andêjos, devo presumir que ha em mim o que quer que seja do pagem do cavalleiro triste, antes de intontecido pelas lisonjas dos ilheos que o degeneraram.

Havia ali um que esmurraçava o marmore das mesas, protestando que os thronos seriam aluidos, quando a lava, escandecente no seio{7} da Liberdade, irrompesse, resfolegando para si os monarchas, e revessando para fóra, com o novo baptismo de fogo, uns evangelhos novos.

O meu terror foi grande. Encarei n'aquelles homens exterminadores, e agourei-lhes mentalmente que morreriam justiçados para descanço do genero humano, e particularmente dos possuidores de inscripçoens e outros fundos.

Agora é de saber que todos aquelles regicidas, hoje em dia, vampirisam as veias desangradas do paiz, pisam alcatifas do paço, e fumam, nos aposentos dos camaristas, charutos da munificencia real, pelos quaes se lhes vaporaram os figados de Robespierre, o encephalo de Mirabeau, e toda a mais peçonha que lhes petrolisava as entranhas, tirante a do estomago, que ainda é corrosiva, como sempre.

Revertendo aos assumptos debatidos n'aquella roda de trogloditas, cujas caras a lavareda do ponche azulejava terrificamente, dizia um que os monarchas lusitanos, em seculos de bons costumes e fé viva, procreavam filhos illegitimos.

Esta noticia fez-me calafrios.

Em confirmação da these, individuou o sujeito, com prodigiosa retentiva, os filhos bastardos de cada soberano, e não sómente os{8} abonados pelos chronistas, senão outros muitos denunciados pela tradição, e sonegados pelos historiadores em preito a insignes familias.

Occasionou-se-me então o ensejo de observar que o senhor D. Miguel de Bragança, bem que malsinado de frasqueiro e muito dado a damarias, não deixára filhos illegitimos reconhecidos, ou sequer suspeitos: d'onde eu inferia que a calumnia superfluamente lhe encarecêra os vicios, não querendo imputar-lhe sómente á descultura do espirito e aos ruins companheiros da mocidade os funestos casos do seu reinado.

Redarguiu de prompto o malsim das reaes progenituras que o snr. D. Miguel podia ser menos fecundo que seus avós, sem ser mais casto que D. Diniz; e acrescentou que affirmava a existencia de filhos do principe proscripto, e me desculpava da ignorancia por eu ser da provincia, e desconhecer as entranhas tuberculosas da côrte.

Estimulado por este dizer oriental e therapeutico, pedi que me dissessem quem eram os notorios filhos do snr. D. Miguel Maria do Patrocinio.

O sujeito interrogado nomeou cinco ou seis pessoas de ambos os sexos, umas que eu conhecia de vista, e outras dos appellidos heraldicos dos seus progenitores legaes.{9}

Feita a resenha, um dos circumstantes ajuntou:

—Ainda te falta uma.

—Quem é?—acudiu o outro.

—A luveira da Rua Nova da Palma.

—É verdade... a luveira, a mais sympathica e adoravel e florida vergontea d'um tronco roído e verminoso. Hei de mostrar-lhe a vossê a luveira, a dôce creatura que faz lembrar a borboleta iriada que saíu de uma crysalida paludosa. Quer?

—Com a mais ardente curiosidade—respondi.

—Ámanhã.

No dia seguinte, o pontual amigo levou-me á Rua Nova da Palma, e ahi entramos em uma pequena loja de luvas e camisaria.

A dentro do balcão estava sentada a costurar uma senhora, singelamente vestida, e formosa quanto a mais descompassada phantasia podéra cobiçar. Figurava, quando muito, vinte annos; mas eu já ia prevenido de que ella não podia contar menos de vinte e sete; e, se o não fosse, desde logo, em vista da sua edade apparente, refutaria a procedencia que lhe davam, se queriam que houvesse nascido durante o reinado de D. Miguel.

José Parada cortejou-a gravemente, chamando-lhe D. Maria José. Ella recebeu o cumprimento{10} com agraciado rosto, e correspondeu á minha cortezia, depois que lhe fui apresentado como homem de letras... maiusculas, minusculas, cursivo, bastardinho, etc.—letras, que, longe de serem ganancia, seriam o desdouro d'um cambista e a fallencia de dois bancos.

Logo percebi que a dama luveira era mais ou menos entendida em romances, pelo benevolente sorriso com que acceitou a minha apresentação; e tambem observei, de passagem, que esta senhora, se estimava livros, não se parecia extremamente com os avós—dessimilhança, porém, que não fazia implicancia á magestade da sua origem.

Não duvidei, por tanto, que D. Maria José em verdade houvesse a prosapia realenga que lhe attribuiam; antes me quiz parecer que o seu porte altivo sem soberba, e um certo natural nada commum, sem laivo de artificio, estavam inculcando uma senhora de fidalga condição.

—Aqui tem uma filha do snr. D. Miguel de Bragança—disse o meu amigo com urbana e grave seriedade, mais do que eu esperava de tamanho republicano; e ajuntou logo, coherente com os seus principios:—N'esta honrada posição é que eu unicamente respeito os descendentes dos reis. No sublime abatimento do trabalho é que as pessoas, nascidas para a{11} ociosidade principesca e devoradora das nações se me figuram regeneradas para a humanidade laboriosa, e repostas pela mão do Christo na plana da egualdade a que elle chamou todos os filhos de Deus. Deante d'esta operaria, sinto o reverente enthusiasmo que os abjectos sentiriam se a vissem a roçagar nos pavimentos vellosos da Ajuda o manto de princeza.

D. Maria abaixou ligeiramente a cabeça, depois de haver relançado os olhos com suave magestade ao rosto do seu admirador. E eu, que tinha entrado com animo indisposto para tão solemne colloquio, compenetrei-me de involuntaria sisudeza e compostura como se ali estivesse uma princeza de lista civil, uma genuina vergontea das senhoras Dona Carlota de Bourbon e Dona Maria de Saboya.

Como sou de natureza bastante monarchica, e fui creado com o bom leite do antigo amor portuguez aos seus reis, grande foi o enleio em que me vi, rosto a rosto de tão egregia dama!

Com quanto acatamento e cortezania pude, enviei-lhe umas tartamudas palavras significativas de respeitosa vassallagem. E ella, sem descompor-se do seu palaciano aprumo, proferiu estas vozes:

—Contento-me com ser respeitada como costumam sêl-o as mulheres que vivem decorosamente.{12} Algumas vezes tenho sido alvo de motejos por ser filha de um principe desafortunado; mas ainda não fui escarnecida por quem pudesse reprehender os actos da minha vida. O ter nascido grande não deve desmerecer-me pela resignação com que me sujeito á humildade da minha posição.

E, levantando-se, foi vender um peito de camisa a uma mulher que lhe chamava «Dona Mariquinhas».

Pouco depois entrou na loja um rapaz, asseiado a primôr, mui fragrante de cosmeticos, e todo elle uma bonita caçoula a recender perfumes de mocidade. O meu amigo apertou-lhe a mão, chamando-lhe Raul Baldaque, e acotovelou-me. Não percebi o intento espirituoso do cotovelo de José Parada.

O paralta encarou-me do alto da sua importancia, arregaçando a face direita para prender no olho correspondente um vidro. N'aquelle olhar preponderante, o sujeito parecia querer-me annunciar que era o filho unico do famoso capitalista conde de Baldaque, chegado da America, seis annos antes.

Sahimos os dous sem haver dispendido no estabelecimento mais que o ouro puro das nossas phrases. Eu ainda quiz comprar duas camisas e um par de luvas verde-gaio; mas acanhei-me de mercadejar com tamanha senhora,{13} receiando desafinar da linguagem aulica e tom de côrte em que não fui de todo bajoujo.

Contou-me, depois, José Parada que D. Maria José de Portugal, a luveira, havia sido requestada, para casamento, de homens não só abastados, mas tambem fidalgos da raça cavalleirosa e da industrial, e até—o que mais importa—de litteratos.

—Não duvide vossê—proseguiu elle, derivando do meu ar desconfiado a incredulidade com que escuto, em geral, historias de desprendimento, quando são de ouro os ganchos com que a alma d'um homem pretende acolchetar-se na alma d'uma mulher.—Não duvide—insistiu Parada.—Eu não faço romances, nem invento prodigios. Nego a existencia da virtude em quanto a não palpo e lhe não sacudo a poeira dos preconceitos; mas se chego a convencer-me, o systema de duvidar não póde tanto comigo, que, por amor de seita, hesite em crer que ha princezas não refesteladas em almadraques de setim, princezas que não disputam ás nações pobres a enxerga dos desherdados, para quem o dormir é a consolação da fome.

D'este phraseado bem é de perceber que o meu interlocutor não erguia mão de sobre a mais singela resposta sem lhe esponjar exordios para discurso sedicioso.{14}

Não inquiri quem fossem os ricos e fidalgos pretendentes de D. Maria José de Portugal; quanto, porém, aos concorrentes litteratos, desejei, por affecto á classe, reconhecer os meus collegas, ambiciosos de se aparentarem tão affins com a casa reinante. Satisfez-me a curiosidade o meu amigo, nomeando um poeta de piano, um prosador de calendario, um redactor do Jardim das Damas, charadista historico dos almanaks de Castilho. D. Maria José havia recusado as mãos d'estes litteratos pobres assim como já tinha recusado os pés d'alguns capitalistas.

E acrescentou José Parada:

—Um homem que morre por ella é aquelle Raul que lá ficou na loja. Ali tem vossê um rapaz que ha-de herdar mil e duzentos contos. A figura é correcta, não acha? Dá jantares, e empresta dinheiro aos convivas insoluveis, que o lisongeiam e escarnecem alternadamente. As mulheres, que o amam, são tantas como as abelhas á volta d'um favo que tem dentro a essencia de todas as flores de mil e duzentos contos. Pois sabe que mais? quer um milagre em pleno seculo XIX? A luveira repelle com fidalga delicadeza, e ouve com supremo desdem a apotheose dos milhões do conde de Baldaque. Não é isto, em tempos de infame positivismo, um caso assombroso?{15}

E concluiu emphaticamente:

—Quando as filhas dos marquezes, com dezoito avós aforados, não se desaforam, confundindo nas veias dos filhos o seu sangue ostro-godo com a lama dos argentados escapados ao cruzeiro, não é de espantar que a obscura filha de um principe, pobre e chasqueada, recuse abastardar a sua regia stirpe, adjudicando-se ao ouro de um plebeu? Devo repetir-lhe que desprézo o prejuiso das distincções, posto que procedo de avós honrados no serviço da patria; entretanto, se os instinctos fidalgos alam o espirito ao de cima das idéas villissimas d'esta quadra de chatins, eu me curvo então, repassado da religiosa reverencia, e comprehendo que a nobreza das indoles não é phantasmagoria obsoleta; será antes divina loucura, se de uma parte reluz a pobreza radiosa com a sua aureola do trabalho humilde, e da outra rutila a fascinação explendida dos milhões.

Puff!—disse eu entre mim—ou mais exactamente, disseram dentro de mim o pedaço do Falstaff ao pedaço do Sancho.

Aquelle puff, interpretado pelos glossologicos da ultima camada, quer dizer: «Bem me fio eu em ti e n'ella!»{16}
{17}

II
PERFIL DE VICTOR HUGO JOSÉ ALVES

Personne de servile condition et de race servile.

AMYOT, ALCIB., Vers. de Plut.

Tudo quanto este homem arengou me pareceu acertado.

A luveira não se me delia da idéa.

Ao outro dia fui lá, resolvido a derrear bastante o estylo, de feição que me não ficasse canhestro comprar, nem a D. Maria José de Portugal vender, seis collarinhos. Por onde, a toda a luz se mostra com que innocentes intençoens lá fui.

N'este proposito mercantil, entrei; mas, feita a cortezia, não pude aparrar a linguagem ao raso de um freguez de collarinhos.

Não se póde. Um homem capaz de aconsoantar uma quintilha, não sabe regatear com{18} damas camisolas de flanella. O que logo lembra, em presença da filha de um principe, se ella é bonita, e os amores lhe esvoaçam á volta da regia fronte, é a mandóra dos provençaes, o enamorado Macias, as trovas suspiradas no harpejar do bandolim, á barbacan do castello, ou mais dentro, se é possivel.

Assim foi que nossos decimos avós, se eram menestreis e cytharistas, procederam com as filhas e açafatas dos reis, não contando com as portuguezas, tirante as inspiradoras de D. João da Silva[1] e de Bernardim Ribeiro—que as restantes princezas saíram todas muito descaroadas de poetas, de theorbas e cytharas, bem que a musica foi sempre bemquista dos nossos monarchas, desde D. Pedro I, que tangia trombeta bastarda, até D. João IV, que tocava tudo, compunha motetes, e escrevia livros ácerca da musica. E, se D. João V não exercitava pessoalmente a formosa prenda, folgava de ouvir retroar os cento e quinze badalos do carrilhão de Mafra, que comprou por mil e trezentos contos de reis. Depois, encontramos o snr. D. João VI cantando psalmos entre os seus frades; e, hoje em dia, o{19} snr. D. Luiz I, basso primoroso, revive os saraus melicos da sala da Ajuda, como elles foram em Queluz, quando, na orchestra real, regida por David Peres, se viam as loiras infantas de Bragança tocando rebeca.

Revertamo-nos, em boa hora, ao conto.

Estava a dama lendo a Nação. Depoz cortezmente a gazeta para me attender. Pedi-lhe que por minha causa não interrompesse leitura tão lenimentosa para as dores do seu filial coração. D. Maria José, penhorada por estas suaves expressoens, fitou-me brandamente e murmurou:

—Mal sabe......

—O quê, minha senhora?

—Quantas lagrimas eu tenho chorado sobre este jornal...... lagrimas inuteis, que fariam até sorrir de piedoso motejo as pessoas felizes......

Todas as fibras sensiveis e sonoras da minha alma se desataram então em plangentes melodias de coisas, de que não tomei apontamento; porém, taes e tão insinuantes lh'as influí no animo, que vinguei merecer-lhe confiança e desafôgo de sentimentos circumspectamente abafados.

Esta confiança, com as visitas diarias, fez-me digno de lhe ouvir, interpoladamente, revelaçoens que vou compendiar, de mistura com{20} esclarecimentos obtidos, Deus sabe com que perspicacia e finura.

D. Maria José havia nascido em Lisboa, no anno de 1832. Seu pae era o snr. D. Miguel de Bragança, rei n'aquelle anno. Sua mãe tinha sido D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, senhora portugueza, nascida em Lisboa, e descendente de fidalgos de régia plana por bastardia, como ao diante se dirá. Vivêra D. Maria em companhia de sua mãe, rodeada de pompas, aias, mestras e caricias, até á edade dos quinze annos. Lembrava-se de sua mãe ter carruagem brazonada, librés, e relaçoens de grande posição na aristocracia; e, em meio d'esta disfarçada felicidade, a vira frequentemente lavada em lagrimas, que de dia para dia lhe iam desbotando a formosura deslumbrante.

Observou mais que as alfaias valiosas desappareceram umas depós outras; que a sege foi vendida; que os convivas rarearam á mesa; que os hospedes da noite foram tambem rareando, e que em fim ninguem entrava na casa desbalisada de sua mãe, senão duas senhoras de baixa origem que a não desampararam até á morte.

Lembrava-se tambem de que sua mãe, nos derradeiros annos da vida, abrira um hotel; e, n'essa posição decahida, morrêra.{21}

A morte de sua mãe não sabia ella dizer se foi natural, se violenta. Conjecturava, porém, que houvesse sido suicidio com veneno contido em um frasco de crystal, que depois se encontrara vasio. Era esta hypothese confirmada pelo caso de sua mãe, na véspera do dia em que se finou, lhe haver dado um cofre de sandalo, dizendo que lhe não podia legar outro patrimonio; mas que, n'aquella caixa, encontraria titulos que a elevassem sobranceira ás primeiras senhoras de Portugal.

Ora o cofre encerrava cartas do snr. D. Miguel—cartas que ella me não mostrava por conterem coisas intimas e segredos de estado de maximo melindre.

Fallecida D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolim de Portugal, a orphã, que então vicejava uns quinze annos, como facil me foi imaginar-lh'os, passou para a companhia das duas mulheres, unicas pessoas que assistiram aos funeraes de sua mãe.

Por conselho d'estas, escreveu a alguns homens insignes e relaçoens de sua casa, participando-lhes que estava orphã. Contava ella que cada palavra escripta lhe custava uma lagrima por sentir-se abatida n'aquella mal dissimulada supplica de esmola. Ninguem lhe respondeu, exceptuado um agiota de raça judaica e humilde extracção que devia, não{22} sabia ella como, a sua prosperidade á mãe, de quem havia sido escudeiro, mordomo, ou coisa assim.

Quiz este homem leval-a para sua casa; mas, como ella se esquivasse a deixar as duas senhoras, o generoso agiota offereceu-lhe abundante mesada, que ella acceitou para soccorrer as amigas que a não podiam alimentar e vestir sem sacrificio.

Aos desoito annos, D. Maria José alcançara notaveis conhecimentos litterarios, sem descuidar-se de outras prendas mais caseiras e accommodadas ao seu sexo.

N'aquelle anno de 1850, falleceu o caridoso rebatedor, testando á filha de D. Marianna de Portugal nove contos de reis em inscripçoens e um predio pequeno na rua Nova da Palma.

Longo tempo indecisa no destino que melhor lhe quadrava, foi habitar a casinha herdada, porque, primeiro que tudo, almejava a soledade, a tristeza, o recolhimento, a leitura, o chorar sem testimunhas nem consolaçoens importantes. Os ultimos lances da vida de sua mãe, e a penuria do seu proscripto pae davam-lhe horas muitissimo amarguradas. N'aquella doentia compleição havia que receiar quebra de juizo por excesso de sensibilidade, ou morte prematura.{23}

Divulgou-se a residencia da filha de D. Miguel. Muita gente duvidou-lhe da filiação. Outra acreditou, poetisando o caso de sua natureza prosaico e vulgar como todos os phenomenos d'esta especie. Uns e outros, ainda assim, forcejaram debalde por vêl-a.

D. Maria José, ao abrir da manhã, em dias santificados, ia á missa d'alva, e voltava a horas em que nenhum homem de siso sairía da cama para vêr a propria Semiramis. Á casa da Rua Nova da Palma entravam apenas as duas amigas de sua mãe, conhecidas pelas Picôas, e presumidas descendentes bastardas dos condes de Povolide. Com certeza, porém, estas duas irmãs, Rozenda e Euphemia, nasceram e criaram-se na casa chamada das Picôas, onde seu pae tinha sido estribeiro-ferrador, e sua mãe ama sêcca dos fidalguinhos.

Redarguindo contra este argumento dos linhagistas de estrebaria, Rozenda e Euphemia asseveraram—por lh'o haver affirmado a mãe com tal qual competencia, ao que é de suppôr—que o pae d'ellas não era o ferrador; mas sim um monsenhor parente da casa. Não me recordo bem se diziam monsenhor da patriarchal, se dom abbade de bernardos, declaro. N'este livro, se alguma vez a verdade gretar, é involuntariamente. Assim que me{24} pruem escrupulos, coço-os com a rectificação. Escrever para a posteridade é assim.

Aquellas duas senhoras, ambas prolificas, iam com os seus meninos já pennugentos de buço a casa de D. Maria José; e uma d'ellas, D. Rozenda Picôa, proprietaria d'um hotel na Travessa do Estevão Galhardo, levava comsigo um filho já barbaçudo que dizia ser litterato-politico, e se chamava Victor.

Este sujeito é quem nos botequins andava pregoando a belleza e os dotes espirituaes da filha do snr. D. Miguel; e tão a miudo e encarecidamente o fazia que sobrava rasão a desconfiar que elle, amando honestamente D. Maria, queria subir pelo estribo do avô ao cavallo branco do timbre ducal das armas bragantinas, ou guindar-se ao banco de pinchar, para não ficar estatellado sobre o banco do ferrador. E D. Rozenda, mãe d'este litterato-politico, algumas vezes deu a perceber á princeza que as suas entranhas maternaes estremeciam de jubilo, quando sonhava com o hymeneu de Victor e Maria.

É certo que a neta dos reis se nauseava, se a indiscreta albergueira repetia similhante injuria; mas tanto era seu juizo que nunca levou a desaffronta além do silencio.

Convem saber que Victor, nos seus primordios litterarios, quando se viu no Chiado,{25} com a republica a fervilhar-lhe nos miolos, ajuntou ao nome o sobrenome Hugo, crendo que o chamar-se Victor era predestinação que o fizera sahir já republicano da pia: e d'ahi o assanhar-se contra os monarchas, á imitação d'aquella sublime vêspa que zunia estrophes demagogas em Gersey.

Obrigado pelo sobrenome, Victor fez versos vermelhos como sangue de javali. As suas quadras cheiravam a gamella de fressureira. E tambem, nas prosas d'elle, as testas coroadas não eram tratadas com mais caridade que a syntaxe.

No emtanto, os criticos ordeiros, vituperando a ira republicana do rapaz, diziam que não admirava raivasse tanto contra os nobres quem era filho de um sapateiro, ao qual muitos fidalgos não haviam pagado os remontes, e neto d'um ferrador a quem outros fidalgos não haviam pago as ferraduras.

Esta matraca, impressa nas gazetas, desvairou o litterato que forçou a mãe a declarar pelos prélos que seu defunto marido não havia sido sapateiro; mas sim negociante de couros. Ninguem contestou; já por ser verdade, já porque ninguem podia desfazer na palavra da snr.ª Picôa, quanto á mercadoria do snr. João José Alves, seu marido. Pelo que respeita ao ferrador, guardou ella judicioso silencio em{26} attenção ás cinzas do dom abbade de bernardos.

Manteve-se o politico, não obstante, socialista e orador de assemblêas populares até 1854. N'este anno, porém, ahi por maio, quando as arvores florejam, e as calhandras trilam, e nas quebradas dos montes hervecidos ornejam as poesias lyricas da preceptora de Balaam, achou-se Victor Hugo José Alves invadido d'amor.

Se não amaria! Era maio portuguez, sasão de paraizo terreal, em que a todos nos quer parecer que o matrimonio foi inventado pelos cardeaes na primavera.

Notou-se então no paiz, e particularmente desde o Chiado até ao Rocio, que o Hugo da travessa do Estevão Galhardo gorgeava umas endeixas passarinheiras que ninguem creria destiladas do mesmo craneo que trovejara Nemesis clangorosas de odes republicanas! Elle, o Victor, que dissera em dous versos:

Eu hei-de avassallar os reis ao genio,
E pol-os histriões sobre um proscenio,
E... etc.

Elle, que escrevêra aquillo, vinha agora offertando a uma mulher-rainha a monarchia da sua alma, á similhança de Filinto Elysio{27} que offerecêra a sua em dous versos de um soneto salobro como infusão de chicorea:

Nise gentil, que até á sepultura
Terás d'esta minh'alma a monarchia...

(Não podia deixar de ter a drastica mamona o verso).

Por algum tempo, o filho de Rozenda conciliou a mansidão de bardo amoriscado com as fumaças de publicista revolucionario; mas, por 1855, encontra-o a historia litteraria e politica da Europa a desviar-se notavelmente da vereda do Hugo, que lhe havia de ser bussola entre o Marrare-das-Sete Portas e o templo da memoria, se elle antes não pudesse trocar o nicho perpetuo do Pantheon por um logar vitalicio de aspirante de alfandega de raia sêcca.

Este genio, cujas guedelhas serpejavam, revoltas e besuntadas, como idéas a espumejarem-lhe do cerebro á feição do muco esverdinhado que esvurma das fauces de um chacal, revirou-se com effeito, perguntando ao governo se era decoroso que a um filho do snr. D. João VI—a um rei vencido e exul, se roubasse perversamente o seu patrimonio.

«Á casa do infantado, ao pão do proscripto, que lhes fizestes, ladrões?» bradava Victor Hugo José Alves no seu periodico socialista.{28}

E acrescentava:

«Roubastes o throno, desterrando o principe espoliado, como em encruzilhada da Calabria. Não vos bastava a usurpação de um titulo?

«Roubastes o altar, expulsando os seus ministros mendigos. Não quizestes que sobrevivesse no cenobio um só homem de bem que testimunhasse os vossos latrocinios!

«Salteadores!

«Á barra!

«Aos tribunaes! aos tribunaes!»

N'aquelle tempo, o pudor dos ministros era mais historico e provavel que o da Lucrecia de Collatino.

O ministerio publico deu a suspirada querella. Inaugurou-se, pois, o martyrio do Victor Hugo portuguez. Condemnaram-no em vinte dias de gloriosos ferros, e nas custas.

É o que elle queria.

Queria a hecatomba, para elle sosinho a gloria, que nos sacrificios antigos tinham os cem bois: hecaton, cem: boûs, boi. (Lardo de erudição que não fecha as portas da academia a ninguem). Queria a hecatomba, a via dolorosa da Boa Hora até ao Limoeiro, para depois, nobilitado pelo holocausto, se consubstanciar no coração de D. Maria. O carcere sorria-lhe como um templo em que, velando{29} as armas, sairía de espora d'oiro, nobre e digno paladim da dama a quem se devotára, apostatando do Evangelho de Mazini, de Cabet, e do Herminigildo do pão barato.

Declarou-se. Ousou remetter directamente á neta dos Braganças o manifesto nem sempre humilde das suas aspirações. Estabeleceu confrontos de casamentos em que a desigualdade do sangue era retemperada pelo amor.

Respigando exemplos na propria familia da noiva requestada, contou a alliança do representante dos senhores de Biscaia com uma neta de um duque de Bragança. Bem é de vêr que o filho de Rozenda ousava equiparar-se aos senhores d'Azambuja e Val de Reis, inculcando-se producto de coito damnado entre o dom abbade de Cistér e a ama sêcca dos condes de Povolide.

E mais despejada petulancia foi livelar-se elle hombro a hombro com o fidalgo gentilissimo de quem as mais augustas e bellas damas de Portugal solicitavam á competencia um sorriso, um relance dos olhos requebrados, uma phrase languida de deliciosa pachorra. Elle, Victor Hugo José Alves, a medir-se com as graças plasticas do garboso môço de quem um principe prussiano escrevera isto:... «O marquez de Loulé, com os vestidos dos grandes de Philippe II, pareceria decerto um Buckingham,{30} ou o bem-quisto de todas as rainhas galanteadoras dos tempos feudaes... Esse portuguez admiravelmente bello e verdadeiramente perigoso... tinha enlouquecido tantas cabeças femininas...»[2]

Como quer que parvoejasse em displantes de tal atrevimento, Victor cerrava a missiva fazendo votos por que o mais ditoso lance de sua vida fosse o instante em que elle Alves, dobrando os joelhos ás plantas do rei legitimo, pudesse exclamar: «Pae, e senhor!»

«Para servir-vos, braço ás armas feito;
Para cantar-vos, mente ás musas dada.»

Donde havemos de inferir que para uso de muitos tolos creou Deus as mulheres formosas, e creou Camoens os formosos versos.{31}

III
D. ROZENDA

Dizem que disse assim.

BERNARDIM RIBEIRO, Menina e Moça.

D. Maria José de Portugal, bem que muito grata ao denôdo civico do litterato, não entendeu que as filhas dos reis desenthronisados devessem pagar com a moeda do matrimonio um artigo condemnado, que, por via de regra, os emprezarios das gazetas costumam pagar á razão de 800 reis a publicistas de maior pôlpa.

Extremamente delicada, respondeu a Victor Hugo em termos pautados pela mais atilada prudencia, mantendo-se na alteza da sua dignidade, sem aviltar os brios do pretendente. Escreveu ella muito bem que as mulheres, nascidas nas grimpas culminantes, estavam,{32} por isso, nas borrascas da vida, mais ao alcance dos raios da adversidade;—que não podiam essas invejadas infelizes ser arbitras do seu destino, principalmente, se, como ella, tinham pae a quem a proscripção, usurpadora do throno, não podéra usurpar direitos sobre a alma de uma filha que o respeitava e adorava. Etc.

Com os acicates do orgulho cravados no epigastrico, onde a sciencia diz que as paixões amorosas espoream mais, replicou o bardo absolutista. Dispensando os naturaes raciocinios que desfazem chiméras de castas, combateu as razoens de D. Maria de Portugal, inculcando-lhe a procedencia visigothica de seu avô D. Guterres Pelayo, e o parentesco ainda não safado pelo atrito de dous seculos entre os duques de Bragança e os condes de Povolide.

Maria não replicou, retransida de espanto. Sua mãe havia-lhe dito que as duas irmãs estalajadeiras eram filhas do estribeiro da casa de Povolide, e que Rozenda era viuva de um negociante de bezerro, que malbaratava os seus haveres no partido dos Cabraes. Era-lhe por tanto espantosa nova o parentesco de Victor Hugo José Alves com a casa real.

Como Rozenda a visse meditativa depois que leu a carta do neto de D. Guterres Pelayo,{33} perguntou-lhe o que tinha, suppondo que o amor motivasse aquella abstracção.

A menina respondeu com innocente reparo que o snr. Victor lhe escrevera coisas de fazerem receiar que elle tivesse a razão alterada.

Pediu explicaçoens a sobresaltada mãe.

Hesitou algum tempo D. Maria José; mas, obrigada pelas instancias, mostrou a carta.

O carão da viuva, já enfiado de susto, ganhou côres quando viu, no contheudo da epistola, o infundado medo da menina.

—Ai! não se assuste, snr.ª D. Maria José...—disse Rozenda velhaqueando certo pudor no tregeito das maxillas—Meu filho está muito em seu juizo... Elle diz a verdade...

—Como?—tornou D. Maria José espantada—Pois a snr.ª D. Rozenda é parenta da casa real?!

—Sou, sim, minha senhora—volveu a filha do ferrador, baixando os olhos com pudicicia que parecia pedir misericordia para as fragilidades da mãe. E proseguiu, tirando dois, suspiros do esôphago, e rolando os olhos na direcção do céo, d'onde provavelmente a estava ouvindo a alma do pae:

—Perdoae-me, minha santa mãe, se offendo a vossa memoria!

E, expectorando outro bafejo a modo de gemido puchado do diaphragma, continuou:{34}

—Minha mãe era galante, e foi educada no mosteiro de Odivellas, onde tinha já estado tambem minha avó, que era sobrinha de uma ama de leite que creou um filho da freira d'el-rei D. João V, a qual freira se chamava por signal a Garça, e o menino chamava-se Antoninho. Não sabia d'estes amores do rei com a Freira, snr.ª D. Maria?

—Ouvi contar...—respondeu a outra, um tanto pezarosa de recordar esta fraqueza do seu quarto avô.

—Talvez não saiba uma coisa que minha bisavó contou a minha mãe... E era que a freira recebia o rei na cella, e que o rei saía de lá até á portaria debaixo do pallio com a abbadeça atraz e mais a communidade.

—Não me conte similhante desatino, que isso é calumnia!—acudiu a neta do fundador da egreja patriarchal de Lisboa.—Affligem-me...—tornou D. Maria molestamente nervosa—Affligem-me essas funestas e deturpadas paginas da historia de minha familia.

—Eram usos d'aquelle tempo, minha senhora—observou ethnographicamente D. Rozenda Picôa.—As freiras tinham enguiços que enfeitiçavam toda a fidalguia e mais os frades, que era mesmo uma pouca vergonha—perdôe-me a expressão, que não é muito civilisada. E então o snr. D. João V? Isso era um ratão!{35} Olhe que ajuntou na Palhavan tres filhos de differentes mulheres! Mas bom pae era elle, honra lhe seja! Dizia minha avó que os poz todos ao serviço da egreja, fazendo-os inquisidores, e arcebispo um d'elles, chamado o Flor da Murtha. E os amores que elle teve com aquella cigana, chamada Margarida do Monte...

—Acabe com isso, snr.ª D. Rozenda!—interrompeu D. Maria José offendida pela teimosia de escavar escandalos nas cinzas do creador da capella de S. Roque.

—Pois sim, menina, eu vou acabar o que tinha a dizer. Como eu vinha contando, minha mãe foi educada em Odivellas com uma freira muito pronóstica, que eu ainda conheci na rua da Bombarda a viver com o prégador da casa real, o padre José Agostinho de Macedo, muito amigo do seu paezinho. Ora minha mãe casou com um sujeito que ella imaginava cavalleiro, porque o viu a cavallo na companhia de alguns fidalgos que namoravam as freiras; e, só depois que casou, é que soube que elle era estribeiro dos condes de Povolide. Ora imagine, minha rica senhora, a embaçadella que levou a noiva quando soube com quem estava casada, tendo rejeitado as offertas de muitos titulares que lhe tinham querido pôr casa e sege em Lisboa! Emfim, não havia remedio a dar-lhe. Resignou-se com a sua{36} sorte, e foi viver ás Picôas no palacio onde estava o impostor do homem. Minha mãe era tão querida das fidalgas que até a levavam comsigo a visitas como aia e mestra dos meninos. Os senhores da casa e de fóra perseguiam-na de dôr de ilharga, perdôe-me a expressão, que não é muito civilisada; ao mesmo tempo que o libertino do marido andava á gandaia por touradas e pagodes, sem se importar com ella. As mulheres não são santas, não é verdade, menina? Minha mãe era uma perola! Ai! que anjo do céo aquelle! Já não nas ha d'aquella raça! Resistiu ás tentaçoens, passante de dois annos; mas, por fim, o coração desconsolado da infeliz esposa enfraqueceu, e... rendeu-se!

Deteve-se D. Rozenda algum tempo recolhida na sua dôr, e continuou:

—Depois d'aquella desgraça, nasci eu. Meu pae era um alto dignatario da egreja, que morreu d'apoplexia, na véspera mesmo de um sabbado em que tencionava reconhecer-me e fazer testamento a meu favor e da minha irmã Euphemia, legando-nos os appellidos e uma herança em harmonia com o nosso nascimento.

Aqui, D. Rozenda, a malograda herdeira, limpou os olhos onde apenas espumava a humidade serosa d'uma ophtalmia chronica. Depois, ajuntou com suspirosas intercadencias:

—Minha pobre mãezinha morreu de saudades{37} de meu pae... sim, de meu pae... quero dizer do outro, percebe a menina? O homem d'ella morreu primeiro d'uma borracheira em Queluz, onde foi com os fidalgos de bambochata. Achei-me sósinha com minha irman, tidas e havidas na baixa conta de criadas de nossas primas. Esta posição não se dava com a nobreza do meu sangue. Quiz vêr se me admittiam como criada ordinaria do paço. A mãezinha de v. ex.ª, que tinha então muito valimento, e nós conheciamos desde que a vimos, linda como as estrellas do céo, a passeiar leites na quinta das Galveas, pediu por nós; mas não havia logar. Resolvi casar-me com o primeiro homem endinheirado que me fizesse a côrte, fôsse elle o proprio diabo em pessoa. Appareceu-me neste comenos o meu defunto Alves, que constava ter cincoenta mil cruzados em sola e dinheiro. Casei-me. Ai! foi outra logração como a que levou minha mãe que Deus haja! Ora oiça, menina. O meu esposo, desde que os chamorros o fizeram pedreiro-livre e regedor, e lhe deram o habito de Christo, não quiz saber mais de negocio. Entregou os armazens aos caixeiros, que nos roubaram; e, á volta e meia, foi-se tudo, e aqui fiquei eu viuva, na flôr da edade, com o meu Victor no berço, e... quer saber? Ainda tive de pagar as custas d'uma querella por causa d'umas cacetadas{38} que meu marido dizem que dera nas eleições!

D. Rozenda, neste agoniado lance da sua chronica, escumou os olhos com o lenço, e proseguiu, em quanto D. Maria a contemplava com enternecido semblante:

—Poucas viuvas se portariam como eu me portei... ficando pobre e bonita, sem amparo de alguem, senão da snr.ª D. Marianna de Portugal, sua mãezinha, que nos valeu em grandes apêrtos...

—Não esteja agora a lembrar-se d'isso, minha senhora...—atalhou D. Maria José—Está bom, está bom, conversemos n'outra coisa...

—Tudo isto que eu disse—volveu a viuva do pedreiro-livre—veio a proposito do meu filho escrever n'esta carta que os seus avós são parentes da familia real. Se eu sou filha de quem sou, e elle é meu filho como de facto é, ninguem póde duvidar que nobreza não nos falta... assim nós tivessemos dinheiro, não acha?—E ajuntou sorrindo e festejando as faces de D. Maria com dengosas meiguices:—Socegue, menina, socegue que meu filho não está doudo nem para lá caminha. O que elle aqui diz na carta é verdade pura, e bem certa estou que foi a paixão que o obrigou a declarar isto; porque elle foi sempre republicano e nunca se lhe importou com os avós; pelo contrario,{39} quando eu lhe contava quem era meu pae, o rapaz mettia-me a ridiculo, e até uma vez lhe preguei uma bofetada por elle me dizer que acreditava que eu fôsse fidalga por ser muito burra.

D. Maria deu visiveis signaes de enfastiada da longa pratica, e assim tratou de cortar o discurso por onde Rozenda pendia a lhe propôr francamente o enlace com o filho.

Voltando despeitada a casa, contou a albergueira o succedido, e concluiu por estas acrimoniosas palavras aceradas com um perverso sorriso:

—Ella não quer casar com o nosso Victor... tu verás... Enfeita-se para o primo duque de Cadaval provavelmente... Ora queira Deus que eu não venha a pôr-lhe a calva á mostra... O folheto ainda ali está na gaveta...

—Ó mulher!—accudiu Euphemia—não me falles no folheto, que já foi a causa da morte de D. Marianna! Tu bem sabes que tudo que ali escreveram é falso... Não mettas a tua alma no inferno! Deixa-a lá casar com quem ella quizer.

Ora este folheto...

A seu tempo.{40}
{41}

IV
O ESTOMAGO DE VICTOR HUGO

Da vara de Epicuro idoneo porco.

HORACIO, Epist., Liv. 1.

E o litterato, como a filha do infante lhe não contradissesse a linhagem realenga, nem lhe nevasse desdens sobre o coração ardente, pediu explicaçoens á mãe, que lh'as deu, senão lisonjeiras, inoffensivas do seu orgulho.

Era muito para lastimas vêr aquelle rapaz tão soberbo dos desaforados brazoens que lhe procediam da deshonestidade da avó! Tolejando chimeras da sua mascavada jerarchia, cachoava-lhe o sangue como no empenho que, mezes antes, desvelára em nivelar-se com a plebe, no intento de lhe trepar aos hombros sordidos para de lá ser visto. E ahi, no atascadeiro da escumalha social, era elle mais nauseativo,{42} porque toda a gente limpa se arreda do cerdo que sahe d'um esgoto, sacudindo-se.

Operou-se, todavia, notavel mudança no genio e costumes de Victor Hugo, restituido á liberdade. Os mais aristocratas fautores do grupo absolutista acarearam-no ao seu gremio, ás suas assemblêas clandestinas, ás suas novenas secretas, e á sua maçonaria, se tal nome quadra á ordem de S. Miguel da Ala, na qual o adepto foi armado cavalleiro, chamando-se Fuas Roupinho—nome de guerra.

Entretanto, a menina revelava-lhe candidamente sentimentos de affectiva gratidão, e folgava que elle se nobilitasse na convivencia de pessoas distinctas e amigas de seu real progenitor, as quaes lhe confiavam cartas do principe para que a filha as visse, e por ellas lhe repontasse aurora de esperança na longa noite da sua saudade filial.

Mas, na correnteza d'estes successos, Victor, por muito que melindrosamente escrutasse o coração de D. Maria José, não se via lá. Sem embargo, o cavalleiro de S. Miguel da Ala, cobrando alentos, prudencia e heroismo do seu patrono Fuas, confiára-se aos lances do acaso, ás transformaçoens do tempo, á versatilidade femeal, e, em fim, a um imprevisto rapto de amor, não raro em peitos sensiveis das senhoras.{43}

Outra coisa agora.

Não é vulgar contarem romancistas de que vivem os poetas das suas novellas. Provavelmente, como os desenham mais em espirito que em substancia adiposa, esgalgados, esbatidos, fumarentos, na vigesima dynamisação de fibrina, mais ethereos que azotados, o publico incauto cuida que elles não comem, e se nutrem das brisas lusitanas, pelo mesmo systema physiologico das eguas portuguezas que concebiam das mesmas brisas, segundo assevera algures frei Bernardo de Brito e eu tambem.

Muitos annos ha que escrevo biographias de poetas e outras pessoas phantasticas, sem descurar o capitalissimo predicado da sua maneira de se alimentarem.

Bem sei que vae n'isto prosaismo plebeu, e por isso me hão de malsinar de immortalisador de bagatellas com egual razão da que apódam Camoens por entremetter na vida epica de Vasco da Gama o tacanho caso de não se ter podido vender de prompto a pimenta que o heroe ia negociando nas feitorias asiaticas. Ora os criticas fingem não saber que a pimenta, o cravo e a canella explicam melhor que todo o restante poema o patriotismo de D. Vasco; e que, na mesma razão explicativa, está para Victor Hugo{44} José Alves o bife do Mata, a dobrada do Penim, o pato da Praça da Alegria, e o linguado da Taverna ingleza.

Não me dispenso, por tanto, de espreitar com um olho o coração, e com o outro a cozinha d'este sujeito, e tambem o guarda-roupa, desde que elle se nos estadêa vestido com apontado primor, e nutrido nos mais selectos restaurantes da capital. Não era elle assim quando esbombardeava contra o altar e o throno. Parecia querer então inculcar que se vestia na «feira da ladra» e que ao abysmo profundo do seu desprezo das frioleiras humanas atirára os figurinos do Keill e do Catarro, juntamente com a carta constitucional, com o codigo do bom-tom, e com os tratadistas hygienicos, quanto a lavagem de cara, orelhas e dentes. Haviam-lhe dito ao sordido que Cabet e Proudhon andavam sujos; e devéras lhe doia desconfiar que o Victor Hugo francez se lavava todos os dias. Este requinte de limpeza tinha para elle o fortum burguez improprio do genio.

A sua alimentação predominante era alface, espinafre, e a fava em grande cópia no tempo. Rejeitava carnes vermelhas e brancas, porque o azote era elemento infesto ao cerebro e por tanto obnoxio ás funcçoens do intellecto. Em compensação, comia á tripa{45} fôrra pescadinhas marmotas em razão de abundar no peixe o phósphoro que é grande parte na estructura do cerebêllo.

Afóra as indicaçoens da sciencia, este regimen era-lhe aconselhado por intuitos de ordem assás psycologica e social. Como o seu proposito fôsse caldear e refundir o genero humano, recuando-o á simplicidade dos costumes patriarchaes, estudava em si mesmo o retrocesso do fillet-aux-trouffes á bolota crua, affrontando com selvatica heroicidade os appetites, as cubiças, as fomes, as tantalisaçoens que separam Apicio de Epicuro.

Esta lucta do eu-abdomen com o eu-psyche trazia-o magro e esgrouvinhado. Da cabeça revolta, onde toda a vitalidade se lhe congestionára, estourava-lhe a idéa com umas fulguraçoens indicativas de excesso de phósphoro, extrahido do goraz e do carapau. O seu rancor ás praxes triviaes da arte commum de fallar da rhetorica mercieira—como elle dizia—manifestava-o em discursos e escriptos com argumentos ad odium contra quem comia bons bocados. Os preceitos da grammatica e os canones da logica—coisas crassas e sandias—asseverava elle que tinham sido ideadas por monges atoicinhados em alma e corpo pelo pingue refeitorio da orelheira afeijoada. {46}

Além da injuria que Victor Hugo José Alves irrogava á grammatica, aos frades e ás vitualhas saborosas, acrescia que esfusiava tempestades de phrases horridas contra as ucharias reaes, inventariando as vitelas e bois que semanalmente eram espostejados nos paços, depois de haverem atravessado as ruas de Lisboa amortalhados em xareis com as armas brigantinas. O disparate da censura faria rir á desgarrada os ouvintes, se a cara do orador não estivesse pregoando ao mesmo tempo quanto é para sagrados horrores a eloquencia dyspeptica da fome, e as refulguraçoens acendidas pela superabundancia do phósphoro. Segundo elle, a sanguinea lubricidade dos sujeitos gordos procede da demasia dos globulos rubros do sangue enriquecido pelas carnes esmoídas nos vinhos seculares.

Depois, na ladeira destas supremas semsaborias, esbarrava na lista civil. Era então o remontar-se a raptos propheticos em toada biblica, e assomos de Ezequiel, e conclusoens tanto a frisar que eu, uma vez, assim admirado quanto aterrado, lhe ouvi dizer que elle, sonhador da felicidade do povo, tinha visto uma visão de sete vaccas magras escornarem sete vaccas gordas, e derrubal-as. O meu terror não seria escorreito, se elle depois não{47} acrescentasse que as vaccas magras eram a republica, e as vaccas gordas a monarchia!

Tal era o discolo nos seus dias de gloria, de fome civica, de quinzena cossada, e do phósphoro dos safios e caçoens.

Como se fez por fóra a transfiguração que mal pode explicar-se pelo reviramento do espirito?

A nediez da epiderme, os caracoes da cabelleira, os camapheus da abotoadura, a phantasia das gravatas que pareciam aves do Amazonas, a luneta de ouro, o bigode encalamistrado, o lemiste do fraque, a bota do Sthelpflugg, a badine de unicornio, o galhardear das attitudes, e, sobre tudo, a nutrição—quem lhe deu tudo aquillo ao filho de Rozenda?

O chamar-se Fuas Roupinho politicamente, o afivelar a espora de cavalleiro da Ala, não nos auctorisa a decidir que elle, em arrancadas contra sarracenos, se apossasse christãmente do thesouro de algum rei mauritano. Conjecturar que os partidarios da realeza se fintassem para arraçoarem no presepio o futuro continuador da Besta esfolada, tambem não é racional, attendendo á pleiada de talentos que lá reluzem com habilidade para mais.

Então que era?{48}
{49}

V
O CORAÇÃO DE D. ROZENDA

Agnosco veteris vestigia flammæ.
Ca sinto 'inda o calor da antiga brasa.

VIRGILIO, Eneida, Liv. IV, V. 23.

Estava um dia D. Maria José de Portugal lendo a Nação, e de subito as lagrimas lhe turvaram os olhos. Acabava de ler a piedosa senhora uma invocação aos esmoleres amigos do principe desterrado, tanto mais compungente quanto o tragico articulista historiava as penurias do filho de D. João VI, desde o dia em que D. Miguel, conforme o testimunho do visconde de Arlincourt, não tivera em Roma com que comprar o leite para o almoço.

Da concentração lagrimosa passou D. Maria, de repente, a uns transportes de alegria desacostumada, exclamando de golpe:

—Como é bom ser rica!{50}

E, feita breve pausa, acrescentou já menos expansiva:

—Rica!... eu não sou rica!... mas em comparação de meu pae, tão pobre, tão infeliz, tenho muito!

Em seguida, escreveu a D. Rozenda Picôa, annunciando-lhe a primeira radiação de jubilo em sua vida, e a ancia em que ficava de lhe revelar os seus anhelos.

A mãe de Victor, lendo a carta, disse alvoroçada á irman:

—Tenho nora!

—Tens nora? exclamou Euphemia—Então diz-t'o? ella quer?

—Não se explica bem; mas eu já lhe entendo o palavriado. Ouve lá, mana.

E releu a carta, accentuando cada palavra com intimativa perspicaz para emfim interpretar complexamente que D. Maria José de Portugal se achára de salto possuida do amor que ella, em sua linguagem perlicteta, chamava anhelos.

—Essa palavra anhelos—observou D. Euphemia, arregaçando o beiço de baixo, com o dedo indicador—parece-me que é isso mesmo que tu dizes, mana Rozenda... Não te lembras... ora pucha pela memoria... não te lembras das cartas que te escrevia aquelle furriel{51} de lanceiros quando ficaste viuva? Chamava-te meu anhelo.

—Não era o furriel—corrigiu Rozenda.—Quem me chamava seu anhelo era o Peixoto.

—O capitão da carta? Tens razão; era esse... Pois dizes bem; o que ella quer dizer é isso. Anhelo é amor. Ora espera, mana... Eu tambem agora me estou a recordar de não sei quem que me dizia que eu era os seus anhelos, ou anhelitos... Não sei se era aquelle tenente de marinha que nos deu de almoçar na barcaça dos banhos, se era o Januario da rua dos Fanqueiros...

E, reparando na melancolia da irman, disse adocicando o tom:

—Estás triste, mana! Já sei o que é... Lembrei-te o Peixoto... Se eu soubesse...

—Ai!—suspirou Rozenda pondo a mão no lado esquerdo do peito—Ainda aqui me palpita por esse ingrato! Quando o encontro ainda não sou senhora de mim! Se amei alguem n'este mundo, foi elle! Dizias-me tu, quando o perfido se casou, que o melhor systema era o teu:—amar outro até esquecer aquella pessoa. Bem quiz... mas vou-te agora confessar que nem o deputado Elias me fez esquecer o Peixoto!...

—Não é tanto assim, mana...—emendou Euphemia.—Já depois andaste muito apaixonada{52} pelo conego Antunes, pois não andaste?

—Gostei d'elle—respondeu Rozenda langorosamente requebrada.—Não desgostei... mas amar de paixão foi só uma vez... Ai! o Peixoto! o Peixoto! não sei que feitiços me fez!...

Concentrou-se largo espaço com os olhos vidrados de lagrimas, e exclamou por fim com abrupta cólera:

—Canalhas! O Elias, quando depois foi ministro, pedi-lhe que me arranjasse uma pensão já que o meu defunto Alves perdeu tudo na politica dos Cabraes, e nada me fez o patife! O conego Antunes, quando foi despachado bispo para o ultramar, pedi-lhe que fallasse aos ministros na minha pretenção, e safou-se sem me dar cavaco! Corja de tratantes! que tornem para cá!...

Não pareça caricatura a vaidosa precaução com que a snr.ª Picôa se resguarda ou finge acautelar-se das tentaçoens, escarmentada por varios casos funestos. As decepçoens experimentadas podem ainda aproveitar-lhe, se ella esconjurar os embellécos de um major reformado que protestou induzil-a a trahir certo professor de bellas-artes, cuja ternura, como se viu, não tapa os lacrymaes sempre gottejantes da saudosa Rozenda, quando lhe punge na{53} lembrança a imagem do capitão da carta—aquelle Peixoto que lhe desfibrinou o melhor sangue do coração.

D. Rozenda não pôde ainda atravessar despercebida a corrupção do seculo. Tem quarenta e sete annos remoçados pelas madeixas postiças que lhe inquadram o rosto besuntado de posturas. Piza ainda com a firmeza e garbo de meneios que hoje em dia deshonestam o decoro de quem os usa; mas que, n'aquelle tempo, era o estylo das damas que haviam já florecido em 1834, e não mostravam desesperado empenho em ser citadas como exemplares de castidade. Favorecida pela magrêza que, no lapso de trinta annos, desilludira os enfeitiçados de sua elegancia, desde o seu defunto Alves até ao conego, desde o lyrico amador, que lhe chamava anhelo, até ao major reformado que lhe chamava o osso do seu osso, D. Rozenda estofava e boleava os musculos, mantendo a flexibilidade e donaire que muitas damas ainda viçosas perderam logo que os tecidos espessos refegaram e descahiram placidamente.

Lisboa, como todas as capitaes das naçoens que tem civilisação, gaz e ostras, encerra bastas mulheres da tempera de Rozenda, pomos menos prohibidos que sorvados, creaturas observantissimas, em demasia talvez, d'aquelle{54} preceito colonisador com que Moysés justifica Rozenda e as outras philogynias dadas ás contemplaçoens geneticas.

Isto de acabar cedo para o erotismo, o esfriar do sangue, o atrophiar dos nervos, é triste condão das mulheres provincianas.

As que viveram cinco annos da mocidade, curvadas sobre o berço dos filhos, estillaram no seio d'elles todo o seu coração, bafejaram-lh'o nos beijos; o namorado brilho dos olhos desluziram-lh'o as lagrimas de uma noite desvelada á cabeceira de creancinha enferma; sorrisos de amor ou desdem perderam a doçura ou o agro,—já a ninguem enlouquecem de jubilo ou desesperação: é um sorrir para filhos e para Deus que lh'os ha-de manter e guiar. Isto é formoso e santo; mas as mães assim envelhecem cedo; as cores do rosto esmaia-lh'as o gear interno; não lhes esmalta a vida uma restea do sol da alma, não as desperta o alvoroço de sonho apaixonado, nem a esperança lhes enxuga nas palpebras cerradas uma lagrima de saudade. Ninguem as vê, ninguem as ama; porque, na voluntaria abdicação da mulher esquecida de si, e toda absorvida nas graças das vidas que estremece, ha uma glacial repulsão que não deixa aquecer em peito de homem desejo impuro. Os filhos, que a rodeam, são uns como que baluartes sagrados.{55} Primeiro amor e ultimo, maternidade, insulação, muitas maguas, raras alegrias, uma primavera com flores abertas, e logo fenecidas; e depois, memorias sacratissimas, e a posteridade que attribue a sua honra á benção da alma digna do céo.

Ó Lisboa, que vantagem levaria a tua civilisação á das provincias, se lá houvesse duas d'estas mulheres, além d'uma que é decerto a esposa do leitor!{56}
{57}

VI
O SANTO CORAÇÃO DE FILHA

Tu lanças de ti tres raios:

Belleza, innocencia, aurora.

GUILH. BRAGA, Heras e Violetas.

Acudiu pressurosa Rozenda ao chamamento de D. Maria; e, para logo mostrar á conspicua menina que lhe percebera as figuras do estylo, entrou exclamando ridentissima:

—Com o amor não se brinca, minha querida menina. Quando o coração empurra, a cabeça vae para diante. A gente, por mais que faça, não resiste ao que tem de ser. E máo é que nos amem; que nós, frageis por natureza, mais hoje, mais amanhan, amamos quem nos ama, não acha?

D. Maria José, fitando os explendidos olhos na illuminada e tregeitosa cara da snr.ª Picôa, quedou-se pasmada sem perceber nem responder.{58} A mulher anhelada do capitão da carta, attribuindo a pudor o silencio espantadiço da menina, continuou gesticulando como creatura de ralé, que não houvesse sido polida pelo deputado Elias e pelo conego Antunes:

—Não se acanhe, que eu bem sei o que é um coração de donzella. Já por lá passei; e, pudesse eu voltar aos dezoito, que escolheria onde quizesse e me fizesse conta. Eu sempre gostei dos homens sabios; mas, como não amei senão o meu Alves, fiquei sem saber o que é a satisfação de estar uma senhora constantemente a ser adorada de um poeta. O meu defunto não era tolo; mas tambem d'isto de sciencias e escrever nas folhas não sabia nada. E, veja o que são as coisas, o meu Victor Hugo sahiu esperto como a menina vê e o sabe apreciar melhor que eu! Dizia-me a este respeito o deputado Elias, que foi meu hospede—a menina bem se lembra d'aquelle deputado baixo e gordo—pois dizia-me elle, muito admirado do talento de Victor, que o menino havia de vir a ser em Portugal uma coisa grande. E eu por amor disso, não me poupei a despezas: mandei-lhe ensinar tudo quanto ha... Ainda bem que elle achou uma senhora que lhe soube dar a devida estimação!... Ha muitas meninas em Lisboa que namoram asnos—perdoe-me a expressão que não é muito {59} civilisada. O que ellas querem é chelpa, e marido seja lá como fôr. São raras as que sabem apreciar a poesia e os dotes de um rapaz fino. Graças a Deus que o meu Victor Hugo amou quem é digna delle! Cheguei ao que tanto desejava... Vou ter uma filha que me ha de dar netos muito lindos... Se não fosse ser ella quem é, eu não queria ainda ser avó...

D. Rozenda cascalhava umas casquinadas com o mais desgracioso e tolo artificio, quando D. Maria perguntou serenamente:

—Então o snr. Victor vae casar?

—Se vae casar!—acudiu Rozenda estupefacta—Pergunta-me isso a menina?

—Sim, minha senhora... Pois não acaba de me dizer que seu filho encontrou uma menina que o sabe apreciar!?

—Ora essa!—tornou a mãe do poeta, avincando o sobrôlho—ou a senhora está a desfructar-me, ou estou doida varrida! Pois a menina não me escreveu uma carta...

—Sim, escrevi, pedindo-lhe o favor de aqui chegar...

—Para me contar os seus anhelos...

—É verdade, para lhe contar que sou feliz com a certeza de que posso ser util a meu pae, que recebe esmolas dos portuguezes... envergonhados de estar um principe portuguez mendigando o pão estrangeiro...{60}

—Ah!—atalhou Rozenda, prolongando a exclamação á medida do seu azedume mal disfarçado—Então, pelos modos, a menina quer dar o seu dinheiro ao snr. D. Miguel?!

—Com a melhor vontade e o mais inteiro contentamento. Nunca me senti feliz como hoje. Imagino que cada pessoa deve receber dos thesouros do céo egual porção de bens da alma, de alegrias puras. A uns sorri a fortuna em gosos de cada dia; a outros, em meio de muitos annos lutuosos que passaram e de outros escurissimos que hão de vir, abre-se-lhes o céo em subitas torrentes de felicidade, que trazem comsigo em uma hora todos os jubilos de longa vida satisfeita.

D. Rozenda abria a bocca a vêr se percebia, emquanto D. Maria de Portugal continuava:

—Foi Deus comigo liberal e justiceiro, dando-me esta occasião de poder mandar a um rei sem throno, e a um principe portuguez sem tecto que o cubra nos paços dos reis seus avós, recursos que devem ser valiosos para o indigente que os pede; e confio que elle os receba sem pejo porque lh'os manda uma filha.

—Então a menina—repisou D. Rozenda em tom reprehensivo—quer dar o que tem e ficar pobre!?... Estou passada! Que tenciona fazer depois, não me dirá? Sim... pergunta a{61} minha curiosidade, depois que der as suas inscripçoens e a sua casa, para onde vae?

—Eu ainda lhe não expliquei todo o meu pensamento...

—A snr.ª D. Maria José tem o coração de uma pomba;—proseguiu a snr.ª Picôa, desdenhando a interrupção explicativa—mas ha de dar-me licença que eu lhe diga que não tem juizo para regular a sua vida... Coração toda a gente o tem; mas cabeça... isso é raro.

—Eu lhe respondo, snr.ª D. Rozenda—insistiu reportadamente a filha do snr. D. Miguel, soffreando a redea aos instinctos soberbos que por natureza e raça lhe deviam beliscar o pundonor.—A minha tenção não é mandar a meu pae tudo quanto possuo. Elle mesmo receberia com desprazer, se o não recusasse, o beneficio de uma mulher que depois da sua imprudente liberalidade, se expozesse aos aviltamentos que marêam a pobreza, e a não deixam mostrar-se á luz a que as senhoras opulentas costumam alumiar as suas virtudes. Repito, minha senhora, não dou ao snr. D Miguel tudo que possuo; mas decerto lhe darei tudo que me sobra. Eu vivo com pouco. A minha amiga sabe que os meus alimentos e vestidos não requerem grandes despezas; mas, ainda que eu estivesse habituada{62} ás pomposas superfluidades da dispensa e da guarda-roupa, corrigiria as loucas demasias, logo que soubesse que meu pae pedia aos homens de quem foi rei os sobejos da minha mesa e do meu toucador.

—Mas...—interrompeu D. Rozenda com ar de quem entendêra.

—Deixe-me dizer o resto, e depois ouvil-a-hei com prazer, minha senhora. Tenho esta casa e nove contos de reis em inscripçoens. A casa não a dou por ora, mas dal-a-hei tambem, se meu pae carecer do valor d'ella, e irei servir, se com o meu abatimento e baixesa puder obstar a que o aviltem. O producto das inscripçoens quero enviar-lh'o, excepto a quantia precisa para eu abrir n'esta casa um estabelecimento de luvas.

—Luveira!—bradou D. Rozenda persignando-se e exprimindo pausadamente as palavras da cartilha—Luveira! a filha do snr. D. Miguel! Ó céos, que escuto! Que dirá sua mãe no outro mundo se a vir a fazer luvas!

—Minha mãe, se me vê do outro mundo, ha-de abençoar-me—respondeu placidamente D. Maria José.—Não ha trabalho deshonroso, nem ociosidade honrada, snr.ª D. Rozenda!... Que dirá minha mãe no outro mundo, disse a senhora! Pois eu não sei a vida de minha infeliz mãe nos seus ultimos annos! Não a{63} conheci apparentemente rica? Não vi sahirem da cocheira a carruagem e os cavallos penhorados? Esqueci eu já que minha mãe teve um hotel, e que nem ahi, em tão obscura e humilde paragem, a desfortuna deixou de a perseguir? Que mais brasoens tem a hospedaria que a loja de luvas?

—Faz differença...—explicou D. Rozenda em desaffronta do seu hotel na travessa do Estevão Galhardo—faz muita differença, muitissima! A dona d'um hotel está nas suas salas, no seu escriptorio, tem criados que servem, e dispensam de tratar cara a cara com os hospedes, percebe? A menina bem sabe que eu nunca admitti á minha mesa, senão o deputado Elias, que depois foi ministro, e o conego Antunes, que depois foi bispo. Eram dois cavalheiros que me tratavam com o maior respeito, e nunca me disseram a menor desattenção n'um tempo em que eu não deixava de ser galantinha. Ora, agora, uma luveira é outra coisa. Tem de estar ao balcão á espera de quem vem. Entra um, entra outro, chalaça d'aqui, chalaça d'acolá, faz lá idéa?! E, quando se tem a cara da menina, imagina lá os atrevimentos que lhe hão de dizer os rapazes, ainda que saibam que a menina é filha de quem é? Hoje em dia, não se respeita senão o dinheiro... Luveira! a snr.ª D. Maria José de{64} Portugal luveira! Sabe que mais? A menina leu tanto que tresleu! Essa sua idéa faz-me lembrar o theatro onde apparecem passagens que não acontecem n'este mundo. Se leu em novellas algum caso d'esses, mande as novellas e mais quem as fez ao diabo, que não fica rico com o presente. Os romances são patranhas que perturbam as cabeças do sexo sem pratica do mundo, como bem dizia o conego Antunes. Emfim, minha senhora, o dinheiro é seu, póde atiral-o á rua, se quizer; mas eu, para desaggravar a minha consciencia de escrupulos, declaro-lhe que faz grande asneira, e perdôe a expressão, que não é muito civilisada.

E como D. Maria permanecesse largo tempo silenciosa, folheando distrahidamente um livro, D. Rozenda colligiu que a mudez era perplexidade, e talvez uma saudavel reconsideração, devida ao acêrto de suas razoens. Vaidosa pois do triumpho, ganhou fôlego e proseguiu:

—Quer a menina fazer bem a seu pae? Dê tempo ao tempo. Arranje-se primeiro. Case com quem saiba augmentar a sua fortuna, e depois reparta do que lhe sobejar; mas de feitio que os seus filhos não fiquem a pedir, por causa de serem netos d'uma pessoa real. Pois não é assim? Se a senhora D. Maria der{65} o que tem, e se puzer a vender luvas, cuida que acha pessoa de teres que a queira para esposa, apesar de ser muito linda? Não ha de faltar quem a queira; mas a felicidade, que lhe ha de vir d'esses pretendentes, Deus m'a desvie da porta pela sua divina misericordia...

—Está bom!—cortou D. Maria José, com enfado e sobranceria.

—Não se zangue, minha senhora... O que eu lhe digo é o que sua mãezinha lhe diria...

—Não offenda a memoria de minha mãe, que foi uma desgraçada digna de respeito.

A viuva do mercador de couros sorriu então com um tão brutal esgar de bocca e olhos que fez transluzir no semblante de D. Maria a raiva de ver-se affrontada por aquelle tregeitar de beiços que lhe pareceram estar escarnecendo a memoria de sua mãe.

—De que se ri a senhora?—perguntou desabridamente.

—De que me rio? Pois a gente não ha de rir-se, quando ouve dispauterios? Em que offendi a memoria de sua mãe? Essa é boa! Então dizer eu á filha do snr. D. Miguel e da snr.ª D. Marianna Rolim de Portugal que não se faça luveira, é offender a memoria de sua mãe! Ora, minha senhora, não nos entendemos! A menina é sabia, lê livros e casos romanticos;{66} e eu cá, a respeito de livros, basta-me a experiencia que não é máo livro, e o mundo que não tem pouco que ler... Emfim, minha menina, estou ás ordens de V. Ex.ª, e hei de amal-a sempre como filha, tanto me faz que seja luveira como rainha. Prometti a sua mãe, quando a fui encontrar nas agonias da morte, que, emquanto eu fosse viva, a menina, não passaria precisoens. E, se as não passou porque teve quem lhe désse uma mezada, tambem as não passaria, se nada tivesse de seu. Deus permitta que não; mas, se alguma, vez a snr.ª D. Maria José chegar á pobreza, ha de achar-me tão sincera amiga como fui e sou.

A menina, commovida e repêza da altivez, com que interrogára a amiga de sua mãe e sua gasalhosa hospedeira em annos perigosos, abraçou-a, pediu-lhe desculpa, e ao mesmo tempo protestou, soluçando, que não deixaria de soccorrer seu desvalido pae.

—Faz bem, faz bem, menina!—obtemperou Rozenda sensibilisada e, ao mesmo tempo, previdente.—Se seu pae voltasse ao throno...

—Nunca mais!—murmurou D. Maria com os braços pendidos e os dedos entrelaçados—nunca mais!

—Por que não?!—replicou a mãe do vidente, que assoprava á pira do fogo sacro no{67} escriptorio da Nação.—Tenha esperanças, menina! Meu filho diz que o snr. seu pae ha de vir, e ha de ser elle mesmo, o meu Victor, quem o ha de pôr no throno!

—O snr. Victor é poeta...—volveu D. Maria, sorrindo melancolicamente.—Cuida que as phrases inspiradas pela justiça fulminam as iniquidades dos homens. Engana-o a miragem do genio, que se julga omnipotente. Os raios do talento não são como os do céo que vão direitos aos durissimos brilhantes e os pulverisam. A sociedade sabe e a experiencia mostra que os coriscos, arremessados contra os poderosos, apagam-se quando o resplendor do ouro os deslumbra...

—Sempre é muito esperta!—interrompeu D. Rozenda ingenuamente admirada—A gente esquece-se a ouvil-a, minha senhora! Quantas vezes o deputado Elias me disse que a menina havia de ser uma grande capacidade! O meu Victor Hugo diz tambem que a snr.ª D. Maria José, se quizer, póde idear novellas. Porque não dá a menina alguma coisa á luz? Escreva um romance de amores...

—De amores!...—obstou, sorrindo, D. Maria—como hei de eu escrever do que não entendo?

—Não entende!?... Boa vae ella! O amor{68} não tem nada que entender. Quem ensinou os passarinhos a amar? não me dirá? A natureza tanto ensina os animaes como a gente. A menina, se não sabe, é porque não quer.

—Não posso, nem penso em tal. O amor só entra em coraçoens abertos ao contentamento. Alma em trevas não attrahe raios de luz tão intensos. O amor é como o sol que decerto não brilhará neste recinto, se eu conservar as janellas fechadas d'uma noite a outra noite.

—Ora deixe lá...—redarguiu em excellente prosa a quinhoeira do lyrismo do deputado Elias.—A snr.ª D. Maria José ha de pagar o tributo como as outras: se não fôr Sancho, será Martinho. O que a menina faz é o que eu tenho feito desde que enviuvei: não quer amar; isso lá percebo eu. Bem importunada tenho eu sido por pretendentes ás segundas nupcias, tantos como a praga dos gafanhotos do Egypto! Resisti e hei de resistir, porque jurei eterna fidelidade até á morte ao meu defunto Alves, apesar de elle me deixar pobre, sacrificando-me á politica cabralista. Lá se elle fosse esperto como o filho, ainda valia a pena deixar o negocio pela politica; mas, Deus o tenha á sua vista, aquelle perdeu-se por ser um toleirão! O meu Victor{69} Hugo sahiu ao avô cá pelo meu lado, que dizem que era muito sabio meu pae de Povolide. Todos me dizem que o rapaz ainda pode ser ministro. Eu não engulo carapêtas; mas, quando me lembro que o meu hospede Elias chegou a ministro, sendo elle bom homem, mas muito tapadinho, diga-se a verdade, não me admira nada que meu filho, cedo ou tarde, venha a subir ao governo. Se o snr. D. Miguel viesse, a menina pedia-lhe que désse uma pasta ao meu filho, não pedia?

—As mulheres, minha senhora, quer sejam princezas, quer sejam luveiras, não devem intrometter-se nos negocios do estado. Se meu pae tornasse a Portugal, dir-lhe-hia eu que o snr. Victor soffreu vinte dias de carcere por amor d'elle.

—E o mais que elle soffrerá ainda...—ampliou D. Rozenda.—Acho-o tão incanzinado no partido realista, que, qualquer hora, estoura trovoada peior, que a outra. Os fidalgos trazem-no nas palminhas, e eu vejo-me atrapalhada para o vestir com mais luxo, porque elle vae a todas as casas principaes, e não me falla senão na senhora marqueza d'Abrantes, na senhora condessa de Pombeiro, de Redondo, da Figueira, Barbacenas, Pancas, etc. E bem vê a menina que quem gira nesta roda{70} fina não se ha de ir vestir ao Nunes Algibebe por dez ou doze pintos. Deus sabe com que linhas cada qual se coze...

—Peço-lhe, minha amiga, que disponha do que é meu—disse a menina apertando-lhe a mão.

—Muito agradecida, minha senhora; por emquanto, cá me irei remindo, como puder. O que eu queria da minha menina para o meu apaixonado Victor, sabe o que era?—isto.

E, apontando-lhe ao coração, trejeitava com os olhos mui derramados e um pender de cabeça languescida—coisas e modos que muitas vezes deviam ter eschammejado vesuvios no deputado Elias e no conego Antunes.

—Tem de mim o snr. Victor—disse solemnemente D. Maria—o mais que posso offerecer a um irmão.—E logo, norteando a palestra n'outro rumo:—Ainda me falta pedir-lhe um favor, minha amiga. Queria eu que seu filho soubesse a maneira de eu remetter a meu pae tres contos de reis, que é o que posso liquidar das inscripçoens, tirando para mim o necessario para manter a minha lojinha de luvas.

—Ella cá torna com a mania! Então não muda de idéa?{71}

—Não.

O tom imperioso e sêcco da resposta fechou o debate.

D. Rozenda sahiu, promettendo communicar-lhe o que seu filho lhe informasse quanto ao modo de remetter o dinheiro.

No dia seguinte, D. Maria, recebidas as informaçoens, entregou a D. Rozenda os seus papeis legalisados para a venda.{72}
{73}

VII
OS TRES CONTOS DE REIS

Por entre o labio torpe e podres dentes,
D'aquelle abysmo esqualido, que póde
          Sahir que não tresande!?

GOETH., Fausto Segundo—côro.

E n'aquelle tempo reinava em Portugal D. Pedro V—cidadão portuguez, que morreu honrado e sinceramente carpido.

Aquelle rei era triste, porque o sol ardente do espirito, o ardor da sciencia lhe crestaram o viço da juventude.

O conde da Carreira e outros pedagogos, que trajavam ainda calção e rabicho na alma, intouriram o animo do principe com iguarias indigestas, introvertendo-lhe para o viver intimo, em florescencias sem aroma, os gomos da mocidade que nunca desabrocharam perfumes de contentamento. {74}

E, porque era triste, era bom, compadecido, esquivo a vanglorias, como quem sabia, que, nas naçoens livres e pobres, nenhumas ostentaçoens sobredouram o manto real senão as da reportada parcimonia e abstenção de soberanias extemporaneas.

Um regimen de governação, que facultasse ao rei amplas prerogativas, demonstraria que o primogenito da snr.ª D. Maria II era especulativo de mais para deliberar n'esta rasa missão de governar homens. O polyglotto snr. Viale inoculara-lhe empólas academicas, uns arrôbos já bastantemente serodios em glossas de mysterios dantescos, pelos quaes o principe, absorto entre o enigma da meia-edade e o enigma peior dos mestres, revelou predilecção impertinente.

Que farte sabia o previsto alumno dos pingues sabios que lhe não montaria ganancia alguma o estudo da sciencia de governar este manso povo, que lhe havia apedrejado o avô e rossado a injuria desbragada pela sombra da mãe impolluta. Nas angustias da snr.ª D. Maria da Gloria se lhe revelou a condição acerba de quem ha de ver homens e factos atravéz do prisma dos validos. Desde o padre Marcos até ao senhor do castello de Gualdim Paes, encadearam-se successos que mostraram ao meditativo principe o indeclinavel calix{75} em que sua mãe lhe legara—para saudades e exemplo—o travo de suas lagrimas.

Por isso aquelle moço não provára as alegrias e regalos de sua edade e jerarchia.

Ao saír do sereno ambiente do gabinete de estudo para as borrascas da vida pratica, retrahia-se aos braços da chimera luzentissima que esvoaçava ás regioens sombrias da Divina Comedia—semsaboria immortal!—ou se librava nas nevoas de Macpherson,—immortal semsaboria!

O ar do paço tresandava ás prêas que os escaravêlhos rolavam pelas alcatifas. Da camarilha das mulheres ainda vaporavam as caçoletas encontradas nas recamaras da Bemposta. Na camarilha dos homens mal podia o principe sincero extremar entre respeito e adulação, e entre silencio estupido e sisudeza discreta. Se os mestres, preleccionando-lhe o reinado de seu tio-avô, bosquejassem o caracter dos validos que o derrancaram, o rei, nas suas salas, cuidaria achar redivivos, em cada cortezão, o Vadre, o barbeiro viscondisado, e o Sedvem, mais seriamente vestidos com as librés de 1857.

Uma vez, D. Pedro V, obedecendo a impulsos de bonissima indole, ordenou que as lastimas dos queixosos de iniquidades pudessem chegar á quasi soledade onde se amiserava{76} um rei. Inaugurou-se a celebrada caixa onde os requerimentos eram lançados. A chave d'esse cofre de lagrimas, que já haviam sido acalcanhadas no peito dos repulsos, era el-rei que a tinha. Confluiram a centenares os appêllos da injustiça dos ministros para o simulacro do braço soberano; mas as reparaçoens eram baldas, porque D. Pedro V o mais que podia dar em beneficio dos queixosos era a esmola aos que lh'a mendigavam, e commiseração aos que se deploravam, pedindo justiça ao rei e não esmola ao abastado. O alvitre do imperante denotára alma egregia; mas o infortunio vingára apenas fazer-se conhecido no gabinete real. E mais nada. As virtudes do rei não podiam ser mais fecundantes que as do cidadão, primeiro na jerarchia, mas não decerto o primeiro em bens de fortuna. Era rei, consoante a pauta constitucional; e os accusados no seu tribunal fantastico eram os pennachos, as togas, os arminhos e os argentarios a quem os éphoros pediam de usurario emprestimo as mezadas da lista civil.

Os aulicos de quem o principe se rodeava, forçado pela pragmatica, nunca lhe referiram com certeza as penurias que esmaltavam as cans de D. Miguel de Bragança. Não era respeito á legitima soberania, nem temor do real desagrado que os amordaçava. Elles sabiam{77} que na alma do rei não negrejavam odios ao irmão do seu avô, nem se quer á sequéla legitimista que explorava nas franquias do codigo liberal a liberdade de injuriar o throno, vendendo a injuria impressa. Enfreava-os o receio de espertar em a liberalidade do coração dadivoso, defraudando-se dest'arte do quinhão que repartiam, pondo o almoxarife á porta das mercearias insoffridas a pedir-lhes que não denegassem ao refeitorio do rei de Portugal as massas e os paios fiados com desconfiança.

Não obstante, D. Pedro V soube que D. Miguel, levado pela providencia applacada aos braços da espôsa, que lhe tapetava de flores tardias o breve caminho da sepultura, e o rodeava de alegres berços, povoados de ridentissimas creanças—uma senhora, no mais vicejante dos annos, e no esplendor da belleza, immaculada, neta de reis—espectaculo que dulcifica lagrimas!—offerecia o seio para reclinatorio de um velho expatriado e pobre!

No regaço d'aquella dama alguns portugueses, ajoelhados, não á rainha, mas ao anjo, depunham o producto das esmolas colhidas em Portugal.

O Senhor D. Pedro V apreciára a virtude dos que, sem esperança de galardão, mantinham no exilio a mediania do infante. Quiz,{78} pois, egualar-se no sentimento da caridade aos que se devotavam ao homem esbulhado de todas as grandezas, e até privado da gloria posthuma com que a historia fartas vezes honra a lapide dos que resvalaram do throno ao sepulcro pela rampa do exilio.

E, depois, o magnanimo monarcha, arrobado no resplendor de uma estrella que lhe levára para Deus a luz ephemera dos seus jubilos, alou-se no raio celestial, e gosou-se de lá na contemplação das mais sinceras lagrimas que ainda alguma nação chorou sobre a mortalha do seu principe.

E então somente em um secreto livrinho de lances, que o rei deixára escriptos de sua vida intima, se encontrou a verba mensal de trezentos mil reis votada a D. Miguel de Bragança.

Ora haveis de saber que o irmão do snr. D. Pedro IV nunca recebeu a mezada do rei de Portugal, nem os tres contos de reis de D. Maria José.

Posto isto, leitor attento e sobre tudo philosopho, diga-me V. Ex.ª, se dado o exemplo da fraude em tão altas regioens, é muito de espantar que Victor Hugo José Alves enriquecesse o seu sangue depauperado com a substancia metallica dos tres contos de reis que a obscura D. Maria José enviara ao pae!{79}

É d'este modo que se esclarecem as melhorias tão depressa feitas na pessoa espiritual e corporea do filho de D. Rozenda Picôa.

O procedimento d'este escriptor não seria, talvez, digno da commenda de S. Thiago da Espada, nem tambem me consta que elle a pedisse; todavia, não se me figura irreprehensivel equidade alcunhar de ladrão qualquer sujeito, porque não foi agraciado. Se não teem sido muitos os exemplos d'este descuido em Portugal, as excepçoens não devem menoscabar os creditos de Victor Hugo. Os reis não podem, sobraçando a cornucopia das mercês, espreitar todos os latibulos onde se forjam malfeitorias. Não é da attribuição dos cabos de policia enviarem a sua magestade um mappa mensal dos malandrins mais conspicuos da sua esquadra. Por via de regra, o poder executivo não leva todas as quintas feiras á munificencia regia pessoas de quem o leitor costuma acautelar o seu relogio, ou receia encontrar em ruas não patrulhadas.

Quando um ministro do reino apresentava, ha poucos annos, ao senhor D. Luiz I, que Deus guarde, o decreto que laureava com a corôa de barão de S. Diniz um proprietario de bordeis no Rio de Janeiro, seria indecoroso para o alcouceiro agraciado ajoujarem-no a um biltre ordinario. O rei sabia que tambem Catão{80} ministrava em Roma collarejas de alquilaria das quaes cobrava percentagem. Qual rei denegaria um baronato a Catão censorino?

Victor Hugo José Alves que espere. Mais tarde será regalardoado na proporção da injustiça ou da inveja que lhe atabafou os meritos. Deixe o bem estreiado cidadão germinar a semente que fiou do uberrimo torrão da sua patria. A arvore ha de bracejar vergonteas afestoadas de grinaldas que algum dia lhe hão de juncar a escarpa do capitolio.

Entretanto, a conversão de tres contos de reis em objectos attinentes á reformação physica e moral do poeta, seria acto digno de moderados elogios, se o sujeito não precedesse de calculos e consideraçoens politicamente transcendentes a consubstanciação do metal com a sua pessoa. Dotado de vistas perfurantes nas nuvens pardas do futuro, Victor Hugo, estribando-se nos correligionarios, e mais ainda na efficacia dos seus proprios artigos e instinctos amotinadores, previu que o principe proscripto seria cêdo ou tarde redintegrado no throno. Não era base menos fundamental de seus propheticos raciocinios a depravação das doutrinas liberaes, desde que a classe media corrompida gafára de sua lepra a gentalha, de quem se divorciou, pensando que o irmanar-se com fidalgos desbragados{81} era desencanalhar-se da ralé onde havia nascido.

O severo snr. Alexandre Herculano, no prologo Da Origem e estabelecimento da Inquisição, tinha escripto umas phrases biliosas de que Victor Alves inferiu a provavel restauração do rei legitimo. O vidente historiador, no conceito do cavalleiro da Ala, não podia illudir-se, quando vaticinava a restituição do absolutismo pelos proprios esforços da burguezia, sua triumphante inimiga, a qual, já temerosa das sanhas da plebe desafrontada do cabrêsto religioso, se colligaria com reaccionarios para repor rei absoluto que lhe caucionasse os haveres, cortando com a espada dos dragoens de Chaves as cubiças dos proletarios.

Prenhe d'estes grandes palpites sociologicos, Victor impoz-se o dever civico de jurar bandeiras na vanguarda do trôço mais aguerrido, metter a cabeça aventureira á brecha mais bombardeada, e lampejar claroens onde a noite dos espiritos fosse mais caliginosa—claroens de eloquencia nos clubs, nos botequins, e até nas salas das Aspazias vetustas, que, desde 1834, anafavam as barbas de todos os Pericles—como elles vingam n'este paiz—mais ou menos similhantes em esthetica e plastica ao chorado Elias de D. Rozenda.

Á mais vivida luz do entendimento se mostra{82} que Victor Hugo não conseguiria relacionar-se na sociedade, onde lhe cumpria fecundar com o verbo as convicçoens legitimistas, se não se entrajasse com o asseio e galanice que hoje em dia realçam as clausulas do bom orador. Decerto lhe seria atravancado o accesso aos saloens, se na sua guarda-roupa tivesse sómente a quinzena de panno pilôto com que mediocremente se distinguia nas cêas do Collete-Encarnado; e com a qual se escondia na penumbra de um «caffé» da rua de S. Roque, aquecendo a grogs fiados a fantasia. Tempos calamitosos eram esses em que o deputado Elias o brindava com um paletó no fio, e um collete de mozaico desbotado, relançando á mãe um olhar que requeria gratidão, fidelidade, e talvez a renuncia completa ás caricias do conego Antunes!

Victor Hugo tinha presenciado das galerias da camara baixa que os homens, em cuja testa latejava a inspiração estuosa dos Izocrates e Hortencios, primavam na casquilhice do trajo, no adamado da penteadura lustrosa, no azeviche brunido dos bigodes. Viu que o involtorio engrandecia mais que muito as posturas sculpturaes e antigas da gesticulação, bem que a clamyde grega ondularia mais imponente nas omoplatas do snr. José de Moraes, do que em verdade as abas do fraque um tanto{83} canhestras para as attitudes largas e arrojadas. Reparou em particular o embellesado Victor Hugo José Alves no aprumo estatuario do snr. Carlos Bento; e, com quanto o fino gosto dos Phidias inéditos estivesse cubiçando uma toga cahida com romana magestade sobre aquella confirmação de myologia classica, o bem posto da pessoa entre as costuras da vestimenta não prejudicava de todo os raptos de eloquencia que lhe phosphoreciam no aspeito grávido de idéas. Ia n'estes effeitos, desconhecidos a Longino, o segredo da arte de vestir bem.

Não lhe fez menor impressão o snr. Arrobas, que sorria de esconso para o collete listrado do já hoje defuntissimo snr. João Elias; nem pôde esquivar-se a imaginar que o snr. Mártens Ferrão, sem o primor das suas casacas, e o compassado pendulo do braço direito á competencia com o pendulo compassado do braço esquerdo, apenas vingaria com os seus discursos retirar das pharmacias o láudanum, e constituir a camara em permanente jardim das Oliveiras, onde os discipulos de Jesus dormiam de tristesa, como S. João refere. Dormir de tristeza!—é o mais curial e justificado somno que pode narcotisar uma assemblêa de legisladores, quando a providencia das naçoens não encarrega alguns deputados bem penteados e vestidos de manterem o{84} auditorio em alegres insomnias, salvante o snr. duque de Loulé para quem o proprio snr. padre Antonio Ayres do Porto seria uma amendoada.

Destas contemplaçoens sahiu o filho de D. Rozenda Picôa bastante inquieto sobre a proveniencia dos recursos precisos a quem por força, privado d'elles, havia de abdicar dos destinos apontados fatidicamente pelo genio.

Se elle enviasse ao snr. D. Miguel de Bragança os tres contos de reis, e assim se exonerasse de ser o motor da restauração, á mingua de fato digno d'um restaurador, não seria isto damnificar o paiz, a trôco de ser honrado com um homem? Que montaria mais ao proscripto—o ouro da filha, ou a restituição da corôa? E, se alguns punhados de ouro, em mãos alheias, lhe estavam logrando juros de patria e corôa, não era obra para tres vezes bemdita aquella santa ladroagem que habilitava o revolucionario a acercar-se, depois, do solio do rei restituido, com a ufania de outros bandoleiros que elle via assentados á orla do solio usurpado?

Tres contos de reis nas algibeiras de Victor Hugo, estavam germinando casos e transformaçoens de magnitude incalculavel, ao passo que, enviados a Heubach, seriam ingloriamente{85} consummidos em comestiveis e outras ridiculezas de todo ponto inuteis á reivindicação da lei fundamental de Lamego.

Ao proposito da legislação patria, derogada pelo direito da força, muniu-se Victor Hugo de copiosa livraria; mas tanta era a confiança que pozera na espontaneidade original dos seus syllogismos, que lia quasi nada, contentando-se com o substractum extrahido dos escriptos do padre José Agostinho de Macedo e fr. Fortunato de S. Boaventura. Um livro que elle preferia ao Punhal dos Corcundas era Les talismans de lá biauté, obra até certo ponto estranha ás estudiosas vigilias d'um conspirador; mas conducente aos seus intuitos de coadjuvar a beldade dos actos do espirito com a compostura esmerada do corpo.

A limpeza da sua pessoa, longos annos suja, não se fez rapida nem superficialmente. O talento, que o infuriava hydróphobo contra os banhos do doutor Nilo, impunha-lhe agora a necessidade de, todas as manhans, se retoiçar voluptuariamente n'um banho aromatisado com Lait d'amande douce, friccionando-se com saboens de Thridace e da la reine des abeilles, ou Crème froid mousseuse. Depois, no amanho dos espessos e oleentos cabellos, que em outro tempo fariam recuar um javali assanhado, enfileirava os cosmeticos numerados desde o{86} Baume des violettes d'Italie e crèmes duchesses até á Eau redivive de Nangavaki e á Diamantine lustrale. N'esta operação capillar, em frente d'um espelho de Veneza ladeado de columnas com arandelas de bronze, formadas por Leda com o cysne e Europa com o boi, ia Victor Hugo ensaiando as prégas da fronte e os vincos do sobrôlho, significativos de cerebro causticado pela cantharida do genio: ensaio previo que elle imaginava contribuir assás para os triumphos oratorios do snr. Sá Vargas.

Involto em robe de chambre azul-ferrete de brocatel, cingido á cinta por cordoens de sêda e borlas escarlates, Victor encaracolava as favoritas do bigode, encerando-o e lustrando-o com Pommade hongroisse; depois ungia a epiderme com crème Pompadour, e operava o quarto lavatorio da untuosa cara com agua saturada de rosée des abeilles. Finalmente, seguia-se o polimento das unhas escovadas e alfanadas com poudre oriental. Todo o requinte n'este ponto lhe parecia baldo, figurando-se-lhe que as suas mãos não accusavam na delgadeza e transparencia a aristocracia dos Marialvas ou Vimiosos.

Feito isto, alli se quedava largo espaço narcizando-se diante do vidro com o languor mulheril de um Bathylo ou Juvencio. Requebrava{87} o colo em dengosas flexuras de cysne preto, e entre-abria sorrisos de donzel, deixando apenas descerrar os labios. Risos francos e abertos não os confiava sequer do espelho. Eram-lhe dôr, desaire e violencia enormes não poder rir.

E porque não ria este homem tão alvoroçado de alegrias intimas? Seria para simular profundeza de juizo, e cuidados de conspirador que lhe traziam os miolos amartellados? Não, senhores. É que tinha os dentes lurados de cavernas cariadas e chumbadas, e as gengives tábidas d'um gluten verdoengo. Era uma podridão de caveira, um arcaboiço de mandibulas a vaporar febres perniciosas.

Tirante os dentes, o alinho complexo do poeta, visto a vulto, recendia a olorosa elegancia que lhe perfumava o ambiente, mitigando-lhe o halito paludoso, e temperando sadiamente o ar a favor dos circumvisinhos.

Não assevero que Victor Hugo ensaiasse com alguma felicidade, nos saloens da aristocracia herdada, a influencia anachreontica dos seus dotes physicos; antes pendo a suspeitar que lá se sentisse mais a corrupção dos seus dentes que a da sua alma.

As finas bellezas das raças historicas olhavam-no de soslaio, e trocavam entre si tregeitos indicativos de espanto e mofa. O inculcado{88} talento do poeta não obteria sequer, na sociedade frivola das damas illustres, aquella attenção convencional e contrafeita que a sociedade burgueza dispensa aos litteratos, sob condição de que o poeta escreva o soneto em dia de annos, ou a necrologia nos obitos da familia.

Rosnava-se, porém, que uma marqueza, já bem esfolinhada de teias de aranha de preconceitos em 1820, não o fizera esperar, como Ninon a um certo abbade, o anniversario natalicio dos seus annos ultra-canonicos, para o convencer de que a lira do bardo hodierno podia, sem profanar o culto antigo, desferir endeixas accommodadas á magestade de uma cathedral gothica. Outro sim constava que o filho do Alves dos couros, morto em odor de caceteiro cabralista, cultivára aquelles amores como quem escarda, no estylo do seculo XVI, archaismos para os lardear, com presumpção de entendido, nas modernas formulas litterarias.

Queriam dizer, ou dizia elle que a marqueza, reliquia das antigas usanças de palacio, collectora de anecdotas attinentes ao viver intimo da fidalguia, e refinadamente polida de maneiras exclusivas da sua casta, pagava generosa as fumigações do nardo, dando ao seu poeta uma demão de verniz de bom-tom,{89} que elle decerto não dispensaria para escodear as crustas da educação, na convivencia do capitão da carta e nas cêas de figado frito na tasca da Rua das Pretas com os clowns do Price.

Como quer que fosse, n'estes amores transitorios e meramente acceites como appendice de policiamento, Victor Hugo José Alves guardava intemerata e sem nodoa a poesia do seu peito. D. Maria não se lhe despintava da idéa apaixonada.

A conversão do dinheiro em beneficio da causa de D. Miguel era incentivo a maior para que elle, mais ao diante, na liquidação de suas contas com D. Maria José de Portugal, descontasse a verba empalmada, incendrando-lhe em ternuras o mais fino ouro do seu amor.

Entretanto, o causidico da legitimidade ganhava entre os seus confrades o nivel dos mais esperançosos talentos da restauração. Ensejo de fallar melodramaticamente não perdia um. Ageitava a occasião de exhibir troços de discursos que compunha no seu escriptorio, declamando-os á tia Euphemia, que se mostrava accessivel ás descargas electricas da metaphora, resultado da sua diuturna familiaridade com um auctor dramatico, que a denominava a sua Laforêt, e a beijava com{90} delirio, se ella lhe cantava, com as mãos no peito bambo, as chacaras dos seus dramas. Com os olhos suados de saudoso liquido, D. Euphemia, attenta ás oraçoens do sobrinho, cuidava estar ouvindo o dramaturgo, que se fôra d'este mundo com os ouvidos ainda atroados das ovaçoens do Salitre, e o coração alanceado de invejas roazes aos Dous Renegados do snr. Mendes Leal.{91}

VIII
RAUL

No rosto do anjo que desdem tão nobre!

DANTE, Inf., c. IX.

Relataram-se os casos anteriores ao realisado designio de fazer-se luveira D. Maria José.

Já, ao começo d'esta historia, José Parada, o meu introductor á presença da filha de D. Miguel, nos referiu, mais ou menos hyperbolicamente, a concorrencia de preitos á volta da galante dama. Não foi, certo, encarecido louvaminheiro quando nos relatou as esquivanças da luveira ás propostas de casamento, já com velhos endinheirados, já com rapazes de genio, e até com um rico e elegante môço que podia aspirar ao mais selecto consorcio na melhor sociedade da côrte. Tal era aquelle Raul, filho unico do conde de Baldaque, millionario{92} que entrára em Lisboa com o seu socio e amigo Manoel Pinto da Fonseca, o homem de ouro que as mulheres de carne cognominaram o conde de Monte-Christo.

D. Maria José não estremára o filho do conde entre os frequentadores da sua loja, senão pela timidez tartamuda, e rara infelicidade no acovardar as phrases, tão avêssas da galhardia dos meneios e tom de peralvilho que lhe dava a luneta, e de uma certa dextridade a que devia nos saloens o renome de bom conversador.

Nas suas praticas com a luveira da Rua Nova da Palma mediavam intercadencias de silencio que tanto podia significar amor que absorve a palavra na contemplação, como cansaço de duas almas em spasmos de tedio reciproco.

Raul, porém, amava n'aquelle extremo em que a mulher impõe respeitosa adoração, independente do prestigio do nascimento. Póde ser que elle, desconhecendo a origem real da luveira, se houvesse em presença d'ella com menos resguardos, sem todavia lhe querer menos; mas, em leal verdade, o dizer-se que a gentil menina era filha de um rei, e o porte soberano com que ella, sem arte e genialmente, justificava sua fidalga condição, eram realços á já de si peregrina belleza, os quaes,{93} a meu vêr, insinuaram ao animo enthusiasta do môço brazileiro a idolatria genuflexa que se confunde com a superstição.

Raul de Baldaque, saltando do dog-cart á porta de D. Maria de Portugal, e atirando as guias ao jockei, ia encontrar a luveira pregando botoens em luvas. A gentil senhora correspondia-lhe graciosamente ao cumprimento, passava-lhe uma cadeira, que elle recebia com ademanes de extremada cortezia; e, cumprido o dever de urbanidade como se o exercitasse nas salas opulentas de sua mãe, continuava o seu negocio, tratando os freguezes com semblante prasenteiro e um sorrir de paciencia que ninguem, entendido em dôres recalcadas no fundo da alma, poderia vêr sem pena.

Raul, subtilisado pela paixão que adelgaça os temperamentos mais espêssos, adivinhou um dia que o sorriso da luveira em resposta aos desabrimentos de certa mulher que lhe regeitava umas luvas esgarçadas ao vestir, era a expressão ironica do infortunio que se irritava, ou acaso a serena alegria da voluntaria martyr.

Desatou-se-lhe então da alma ao concentrado môço um dizer que o engrandeceu no conceito de D. Maria:{94}

—Quantos sorrisos d'esses terá tido o snr. D. Miguel de Bragança!...

A senhora fitou-o com os olhos já nubelosos de lagrimas, e respondeu:

—Não ha comparação, snr. Baldaque. O snr. D. Miguel não póde sorrir. O que póde haver egual entre o principe e a luveira é o chorar... Mas que differença no travôr das lagrimas! Eu choro por elle, e elle... chora por si mesmo. Eu vejo a tortura, e compadeço-me: elle é o torturado. E essa mesma piedade que lá chega em escassos beneficios deve ser-lhe fél coado ás feridas do pundonor... Ha infelizes que se estorcem em sêdes abrasadoras; os amigos querem apagar-lh'as, e dão-lhes veneno... Não sei se para esses, que tudo perderam, a mais relevante caridade seria deixal-os morrer...

Não seria facil a Raul atar as idéas descozidas e interceptadas por silencios; mas o que elle percebeu animou-o a proferir uma expansiva bondade que soou asperamente nos ouvidos da luveira:

—Se eu não fosse rico, as suas palavras, minha senhora, seriam tambem para mim uma tortura...

—Não me comprehendeu—murmurou ella, abaixando o rosto sobre o engenho das luvas.{95}

—Creio que entendi;—replicou Baldaque—mas, se a magoei, perdôe-me...

—Que entendeu?—disse ella, sem levantar os olhos.—Que eu lhe pedia uma esmola para o snr. D. Miguel?

—Não, minha senhora, eu entendi que... balbuciou o môço grandemente embaraçado.

—Então que foi que entendeu?

—Que V. Ex.ª lamentava que seu pae não tivesse morrido, antes de acceitar os donativos dos seus partidarios.

—Se assim é, que importa que V. Ex.ª seja rico?

—Tenho medo de lhe responder—disse Raul, erguendo-se de golpe, e sacudindo com a mão os longos cabellos que lhe afogueavam as faces.

—Mêdo!... que poderá dizer-me que o intimide?

—Tem razão, minha senhora. Eu preciso ser franco... preciso ser mais feliz do que sou... quero abrir-lhe a minha alma... quero, emfim...

Susteve-se algum espaço; e maior seria a detença se D. Maria José o não desfitasse d'aquella penetrativa interrogação que parecia recommendar-lhe summa prudencia nas palavras que ia proferir.{96}

E proseguiu, tirando brios propriamente da necessidade que tinha de se justificar:

—Se eu ainda lhe não disse que a adoro, é porque, na sua presença, todas as minhas resoluções fraqueam. Sou ainda novo; mas conheço o mundo. As almas infelizes envelhecem cedo. Eu não amei nunca; mas sei as palavras com que se pintam as grandes paixoens. Depois de aqui vir repetidas vezes, disposto a dizer-lhe que a amo, e não o fiz, deliberei escrever-lhe. A mesma timidez me acanhava em lhe entregar a carta. Cheguei a ter pejo de mim proprio; porque vi o desassombro com que certos homens, sem lhe faltarem ao respeito, ousavam dizer-lhe palavras que me feriam o coração e o amor proprio, ao mesmo tempo. Restava-me, ao menos, em meio de minhas amarguras uma consolação: e era que, dado que V. Ex.ª me não visse a alma atravéz do silencio, me não julgaria um frivolo namorador, sempre a ponto em dizer palavras banaes. E ainda outra consolação mais me lisongeava: era ver que V. Ex.ª, se me desprezava, ou me não via, não prestava maior attenção ás pessoas que a cortejavam, sabendo eu que o proposito de algumas era tão honesto quanto eu quizera que minhas irmans, se as eu tivesse, o merecessem.{97}

—Eu nunca dei occasião a que me fizessem propostas de natureza nenhuma—interrompeu a luveira.—Digo-lhe isto, snr. Baldaque, para o despersuadir de que tenho a vaidade de haver rejeitado propostas que o mundo chama partidos vantajosos.

—Sei isso...—acudiu Raul, algum tanto abatido da coragem com que ia discorrendo, por inferir da interrupção assomado orgulho.—Sei isso...; e, porque o sabia, contive-me, aconselhado pelo desengano dos outros. Mas, apezar de tudo, talvez me illudisse a vaidade de me suppor mais digno do que elles, porque eu sentia por V. Ex.ª a veneração, que não impediu que os outros se declarassem. É isto a unica distincção que me deve singularisar; pois, sendo natural que todos amem uma senhora bella no semblante, no coração e no espirito, nem sempre succede que a paixão se deixe abafar pelo acatamento. Agora, porém, minha senhora, já não haverá nada que me empeça de lhe revelar em poucas palavras todas as minhas meditaçoens de seis mezes; mas, se V. Ex.ª me está ouvindo constrangida... se me confunde com os homens que a importunaram com phrases mais ou menos similhantes ás minhas, então diga-me que me escuta por mera delicadeza... {98}

—Por mera delicadeza o estou ouvindo—disse serenamente D. Maria José.

—Pois bem...—tartamudeou o moço empallidecendo—calar-me-hei... Mas...—volveu elle, passados instantes em que o rubor succedeu á pallidez.—Mas... V. Ex.ª perguntou-me ha pouco:—que importava que eu fosse rico?—E eu disse-lhe que tinha medo de responder. A snr.ª D. Maria José animou-me a explicar-me; e antes que eu chegasse á justificação, emmudece-me, declarando que me está ouvindo, porque é delicada! Se fosse tão boa de coração quanto é melindrosa, não m'o dizia tão seccamente... antes havia de permittir que eu me desculpasse d'umas palavras innocentes que lhe deram de mim conceito injusto e máo.

—Máo conceito, não, senhor—emendou D. Maria—pareceram-me apenas uma impertinente phrase que só violentada podia entrar na nossa conversação. Eu dizia-lhe que o snr. D. Miguel é infeliz; e V. Ex.ª respondeu-me que era rico. Figurou-se-me que me considerou medianeira nas esmolas que se pedem para elle...

—Errou, minha senhora—retorquiu Raul, fortalecido pela pureza nobilissima das suas tençoens.{99}

—Então, seja generoso em me desculpar, e creia que por interesse, e não por civilidade desejo ouvil-o.

Baldaque, após uma longa pausa, em que denotou no rosto penosa inquietação do animo, disse verdadeiramente conturbado:

—Já não posso...

—Não póde!?—sobreveio a luveira com ares de incrédula.—Então não póde? porquê? Isso faz-me desconfiar que...

—Desconfiar?...

—Sim, desconfiar que V. Ex.ª, em sua hesitação, me dá a perceber a difficuldade de combinar o respeito, que me tem, com a explicação que me ia dar da sua riqueza. Se assim é, agradeço-lhe mais o silencio que a explicação... Deixemos no escuro o seu segredo e esqueçamos o que houve de mais nas suas revelaçoens. Entretanto, snr. Baldaque, não lhe direi que vou ser com V. Ex.ª mais sincera do que fui com outras pessoas de quem me não aggravo nem me orgulho. Com essas pessoas a minha evasiva foi o silencio, sem desdem nem menos preço. Com V. Ex.ª não será assim. Serei verdadeira, porque vou responder ao que me disse e talvez até ao que formou tenção de me dizer. No dia em que abri esta loja de luvas, estabeleci com a sociedade as unicas relaçoens compativeis com{100} este modo de vida. Não escolhi esta posição, calculando outra melhor. Não pensei puerilmente em prender admiraçoens de espiritos extraordinarios que folgam de matizar os actos vulgares da vida com o ouropel da poesia. Esta loja, com uma pobre mulher que tira d'aqui o seu parco sustento, não é romance, é occupação ajustada ás minhas faculdades e aos meus recursos. Eu poderia optar por encargo mais senhoril e lucrativo; poderia ensinar nos collegios as linguas que estudei, e algumas prendas que vou deixando esquecer como inuteis; poderia; mas o contacto com a sociedade assustava-me; a convivencia de mestra com as discipulas privar-me-hia dos confortos da alma que esperava achar e achei neste viver obscuro: é a soledade, o estar sósinha o maior numero das minhas horas, o desprendimento de cuidados que me forçariam a sahir de mim mesma, se eu quizesse dar boa conta do meu prestimo salariado á educação de meninas. Sei que me desempenharia mal por não poder, com este espirito que tenho egoista de sua tristeza, prestar attenção aos sagrados deveres de quem educa...

—Mas V. Ex.ª...—interrompeu Baldaque.—Perdão!... receio ser indiscreto, fazendo-lhe uma pergunta...

—Queira dizer.{101}

—Se ouso perguntar, é porque muita gente diz que V. Ex.ª herdou...

—Esta casa e nove contos de reis em inscripçoens.

—Nove contos de reis em inscripçoens...—volveu receioso o filho do millionario—não bastam para quem tiver aspiraçoens menos modestas que V. Ex.ª; mas... o rendimento d'elles, creio eu, dispensariam a snr.ª D. Maria José de dirigir este negocio tão pouco lucrativo; e, se me concede dizer mais, bem podéra V. Ex.ª, afastando-se inteiramente da sociedade, gosar as suas horas todas de solidão, poupando-se ás lagrimas que ha pouco vi explicarem o seu sorriso... Peço outra vez perdão, se me excedi nestas observaçoens á sua vida intima.

—As observaçoens são justas—respondeu tranquillamente D. Maria—mas eu não tenho hoje de meu senão esta casa e o valor dos objectos desta loja. A indagação de V. Ex.ª deve satisfazer-se com saber isto, e nada mais. Se mais alguem o sabe, não ha razão para que eu esconda a minha pobreza d'uma pessoa já convencida de que eu desejo ser pobre.

—Ó minha senhora!... nem mais palavra hei de proferir a tal respeito...

—A minha pobreza é voluntaria, reflectida e aprazivel—continuou a filha de D. Miguel.{102} Quem tiver pena de mim, usurpa a sua commiseração a quem a merece e necessita... Ha pouco me disse V. Ex.ª que eu não dei valor ás generosas propostas de cavalheiros abastados que me pretendiam com honrosos intentos. Não dei valor á opulencia que me offereciam; mas ao sentimento que os moveu a favorecer-me sou muito grata. Eu desejava que para cada mulher mal-afortunada sorrisse a ventura dos casamentos ricos. Deve ser muito cubiçada similhante felicidade, porque tenho visto o espanto, e talvez o despeito, no rosto das pessoas cuja riqueza eu me dispensei de apreciar. E a mim, ao mesmo tempo, parecia-me indiscrição e mediania de polidez vir aqui alguem obrigar-me a ser indelicada para evitar exposiçoens de affectos, que só então me faziam pensar na inconveniencia de ser luveira.

Dona Maria sorriu, passou a mão alvissima pela fronte, deteve n'ella a cabeça como quem revoca idéas fugitivas, e proseguiu:

—Snr. Baldaque, cheguei ao fim do que deve saber de mim propria. Escolhi esta posição. Se sahisse d'ella, attrahida por bens de fortuna, a minha alma teria pejo de sua baixa indole. Ha sacrificios que tem glorificaçoens intimas e ineffaveis. São dôres que os pacientes não querem consoladas; são as rozetas{103} dos cilicios que as creaturas delirantes de amor divino apertam mais, quando é maior a angustia. Ha penitencias moraes muito parecidas com as voluntarias macerações das santas. Nem a penitente acceitaria os supremos regalos deste mundo a trôco das suas disciplinas, nem eu trocaria a minha independencia, nesta solitaria e obscura distancia de theatros e bailes, pelo brilho que meus olhos cançados de chorar não supportariam.

—Comprehendi, minha senhora... disse Raul, revelando a magua no tremor da voz.—A palavra coração nem uma só vez appareceu entre as phrases glaciaes com que me repelle. Ha poesia sublime e santa no mysterio que lhe nortêa a existencia; mas, nas suas estrellas, no céo das suas visoens, estrella de amor não brilha nenhuma... Como havia de V. Ex.ª comprehender-me, se eu, articulando em soluços as minhas confissoens, seria como o infeliz que exhora uma divindade de marmore, e não a alma apaixonada que pretende communicar o seu ardor a outra alma?... As minhas confidencias não poderiam ser ouvidas no alto ponto d'um sentimento incomprehensivel em que V. Ex.ª me esconde as suas phantasias. Eu sabia que tinha posto os olhos da face e os da alma na mulher virtuosa; mas tambem cuidava que as excellencias{104} do espirito não matam de esterilidade as flores, do coração. Na sua edade, snr.ª D. Maria José, ha almas devastadas, que, desde o baixo positivismo do descrer, vingaram, por effeito da fé ou da graça divina, desferir nas azas da piedade altos vôos até pousarem no seio de Deus; essas, porém, sei eu que lá mesmo do céo devem chorar sobre as illusoens perdidas da terra. Sei que ha almas assim cahidas e resgatadas; mas sobre as cinzas de minha mãe irei jurar que na pureza do rosto, na serenidade do olhar, na virtuosa altivez de suas palavras, minha senhora, lhe transluz a vida inteira, sem nodoa, sem laivo escuro que ahi deixasse o anjo maldito do desengano. Nenhuma esperança lhe foi mentida, nenhum desejo lhe foi malogrado. V. Ex.ª não desejou nem esperou as felicidades que espera e deseja a mulher na flor dos annos. Se alguma hora sentiu estremecimentos de amor, soffreou-os com a violencia da sua justa vaidade...

—Vaidade!—interrompeu D. Maria—Vaidade!

—A palavra não é esta;—insistiu Raul com firmeza—ha outra mais bem cabida, mais senhoril; mas tambem menos desculpavel em nossos dias de luz, de expansão e de guerra victoriosa aos preconceitos...{105}

—Diga a palavra... Não se constranja...

—Orgulho do seu nascimento—obedeceu elle receioso.

—Louvo-lhe o coragem, snr. Baldaque. Se disfarçasse a idéa, não conseguiria enganar-me. Agradeço-lhe a franqueza. Tenho orgulho, é verdade, tenho muito orgulho de ser filha do principe pobre, do principe desterrado; e, cortejada á beira do throno de meu pae, talvez o não tivesse. Tenho orgulho de me ver abatida, e tenho pezar de não haver compartido das amarguras do grande infeliz. Quando elle soffreu extremas necessidades nos primeiros annos do seu desterro, ainda eu via nas salas e guarda-roupa de minha mãe valiosas reliquias de uma opulencia que não havia sido d'elle, nem do estado, nem da casa do infantado, nem das extorsoens feitas a uma nação arruinada. Se essa opulencia subsistisse áquella hora em que fiquei orfan, eu venderia até o leito de minha mãe para o soccorrer, e ajoelharia á divina Providencia, exhorando-lhe que me deixasse ganhar o pão de cada dia, e permittisse que a miseria se abraçasse com a dignidade, e as lagrimas, se era precizo choral-as, me não sahissem impuras do coração. O meu orgulho já vê, snr. Raul, que principiou assim: principiou como começa a humildade de muita gente desafortunada. Filhas de{106} reis haverá muitas que se julgariam aviltadas pelo trabalho; e eu soccorri-me do trabalho humilde para sustentar o meu orgulho de filha d'um rei. A mulher que se dá a fidalga distincção de igualar-se á plebe, reservando para si a superioridade de agradecer com um sorriso as offensas inevitaveis nas posiçoens humildes, não se lembra que é neta de reis para ter orgulho. Mas esta palavra é aspera, é negativa da virtude, sôa rispidamente aos ouvidos da moral christan. Tambem aos meus. Se a consciencia me não dissesse que ella exprime innocentemente o conceito que de mim fórmo, pediria a V. Ex.ª que antes lhe chamasse energica hombridade, vigor de caracter, condição excentrica e singular, se quizer, mas defeito de coração seria injustiça attribuir-m'o. Orgulho de pobreza, sim; mas sem as irritaçoens do orgulho plebeu; sem a cupidez infernada na alma. Tenho uma ambição, mortificante mas inoffensiva, uma ancia, que, se é peccaminosa, as lagrimas, que ella me faz chorar, de certo me tem lavado a alma das suas impurezas. Esta ambição é um desvario de enfermo que se estorce no ardor da febre; mas é peor ainda;... que as minhas agonias não devem revelar-se, são profundas, abafo-as, escondo-as de todos; porque estou sósinha n'este mundo; e tão desgraçada{107} que não acharia allivio algum em confidencial-as... Expliquei-lhe o meu orgulho—concluiu D. Maria José, sorrindo e bebendo as lagrimas ao mesmo tempo.

E, volvidos alguns segundos, como Raul, embebecido na contemplação d'aquella mulher, em que duas formosuras pareciam deslumbrar-se, não proferisse um monosyllabo, disse ella, amaciando a aspereza da pergunta, com a brandura do tom:

—Chamou-me orgulhosa do meu nascimento, snr. Baldaque. Eu confessei que sou; e, olhe, tenho uma qualidade mais reprehensivel ainda... quer que lh'a diga?

—Outra virtude?

—Outro defeito... Sou soberba.

—Soberba!...

—Sim, disto que vê: d'aquellas luvas, d'aquellas camisas, d'estas farraparias que me rendem as preciosas galas que eu preciso para sustentar a minha soberba.

E terminou por um frouxo de riso indescriptivel, talvez um gemido convulso, um regolfo de lagrimas que se retrahiu ao coração.

N'este lance, entrava uma criadinha com duas latas, de feição de marmitas, nas quaes ia o jantar da luveira, comprado em uma taverna das portas de Santo Antão.

Raul, com olhos turvos e voz tremente,{108} apertou a mão de D. Maria José de Portugal, murmurando estas palavras de modo que a criada as não ouvisse:

—Eu não a mereço... mas hei de amal-a como um escravo, que eu tive, me quer e ama ainda hoje. E assim como o amor do escravo me faz bem á alma, póde ser que o meu amor seja na vida de V. Ex.ª um sentimento suave.

E sahiu.

José Parada, e os convivas de Raul de Baldaque e eu não duvidamos assacar ao amador da luveira os estimaveis defeitos que dão quilate superior a quem faz praça d'elles com a invulneravel petulancia da riqueza. Julguei-o mal á primeira vez que o vi galhardear-se com tregeitos e garridices incompetentes de rapaz sisudo. Além de que, na altania do seu olhar, no sobrecenho arrogante com que mediu as minhas modestas dimensoens, emfim n'aquelle hirto aprumo da sua catadura, eu, illudido pela experiencia de dezenas de exemplares de tolos que me trazem desconfiado, conjecturei que Raul hão tinha dotes que podessem inliçar o affecto da filha de D. Miguel, a não ser a sua pessoa tafulamente vestida, o urco do seu phaeton, e o alardo de uns presumptivos mil e tantos contos.

Este rapaz escolhêra o peor expediente para se fazer acceitar na estima dos seus conhecidos{109} em Lisboa. Deu-lhes jantares cuja magnificencia inculcava proposito de ostentação; e, não contente da vangloria de ser rico, desvanecia-se em exceder nas graças de espirito os seus contubernaes. A reputação de nescio crearam-lhe estes. Havia na calumnia o ignobil intuito de se arranjarem com a consciencia que os arguia de parasitas; e o accôrdo, que elles faziam com a sua dignidade beliscada, era imaginarem-se «disfructadores» do parvena.

Póde ser que o filho do conde de Baldaque, alguma vez ou todas as vezes que presidiu ás suas ceias irritantes e escandecentes no Matta, quer inflammado pelo ardor natural da sua compleição, quer exagitado pela perfidia dos licores, se demasiasse em basofias de galan, relatando com indiscreta jactancia proezas fameaes, mais ou menos phantasmagoricas. Os seus commensaes, mordidos no orgulho nacional, de mate forçoso deviam trocar-se aquelle geito de olhar de soslaio com que o despeito convencionalmente se dá a mascara de disfructe. Não sei até que ponto o sensato idolatra da luveira havia direito á fatuidade de afortunado em jerarchias somenos da filha de um Bragança, mas tanto ou quanto aparentadas com a sua real amada. Como quer que fosse, os seus amigos apregoavam-no{110} petisco infinitamente brazileiro; e as suas amigas, com aquelle fino faro de que são prendadas as damas menos candidas, por tal arte o haviam conceituado que todas as aventuras contadas, em estylo de roué, vinham a ser o mais desgraçadamente exactas que é possivel;—desgraçadamente, digo, porque eu desejo que no seio das familias, que respeito, não sejam sómente conhecidas as tres virtudes theologaes.

Se as entranhas d'aquelle rapaz de vinte e seis annos estavam canceradas; se as suas victimas lhe resvalavam do seio de gêlo á sepultura levadas em lagrimas torrenciaes, não sei, nem o diria quando o soubesse; que este livro não é obituario. Contra quem me levanto, é contra mim proprio, porque, á primeira intuição, o aquilatei no vulgar dos rapazes ricos, libertinos, e cansados.

Não fundamento esta retratação e protesto unicamente na sensibilidade, polidez, e atilado accento de suas palavras á luveira, por tanta maneira louvaveis que, sendo apaixonadas, não desatremam da prudencia, e podem ser dadas como exemplar de colloquios do paço dos nossos reis e senhores.

O meu protesto cimenta em bases que não podem dar de si. É o estylo. Quem falla d'aquelle feitio a linguagem portugueza,—quem{111} ama com todas as partes da oração em concordancia irreprehensivel, poderá, por inveja ou injustiça grave, não ser mencionado nos Logares selectos; mas tolo é que não pode ser.

Ora agora, se amar luveiras regiamente phantasticas, com tamanho siso e tão desusada reverencia, é hoje em dia argumento contra a sanidade intellectual de um homem que representa mais de dois milhoens, isso é outra questão que ha de ventilar-se opportunamente.{112}{113}

IX
DAMIÃO RAVASCO

A pelle é feia; mas o sangue que gira dentro é estimavel.

EURIPEDES, O Cyclope, acto IV.

A gravidade fria e desanimadora de D. Maria José de Portugal não vingou despersuadir o filho do conde. As visitas continuaram com a mesma quotidiana assiduidade, bem que menos demoradas. Raul Baldaque, ao reverso do que era natural, em vez de ganhar alento e desembaraço, depois que tão resolutamente se manifestára, tornou áquella timidez de collegial, vencida no impeto da paixão.

Ás vezes, o abatido moço sahia confuso e como corrido de sua tibieza, pedindo aos proprios brios que o salvassem de tão ridicula, senão indecorosa pusillanimidade. Desconfiado,{114} porém, da inefficacia do seu pundonor em assumpto de per si rebelde a razoens de orgulho, formava a só comsigo venerandos juramentos de sacrificar a chimera da luveira á realidade do seu alegre viver de rapaz. N'estes protestos fazia elle entrar a sacratissima memoria de sua mãe; imagem que raramente lhe passava diante dos olhos do espirito sem lhe deixar no coração bons sentimentos e um suavissimo ideal da felicidade humana estreme de dissabores, tedios e remorsos.

Mas a querida imagem, invocada a solemnisar o juramento, não lhe antepunha mulher que offuscasse a filha do infante. A deparar-lh'a, dar-se-hia o unico milagre possivel n'estas conjuncturas, milagre aliás frequente, quando as mulheres queridas não tem comsigo a predestinação da luveira, e o iman tresdobradamente portentoso da formosura, do talento e do espirito, sem fazer menção do mais feiticeiro filtro que ha ahi n'isto de magia amorosa, que vem a ser a esquivança da que é adorada, um não-querer de exempta, uma delicada repellencia que a um tempo vos alanceia coração e amor-proprio.

As conversaçoens de Raul e D. Maria versavam, ás vezes, sobre occorrencias politicas d'onde derivou a guerra civil funesta ao rei absoluto. D. Maria José, sem ousar arguir as{115} imprudencias do pae, lamentava que os seus conselheiros não fossem mais esclarecidos do que elle, cuja educação apoucada o obcecara em meio das alvorejantes idéas do seu seculo. Discorrendo varonilmente ácerca da historia das luctas entre a democracia e o privilegio, concatenou os successos que precederam a revolução de 1820, e justificou as resultas de que seu pae devia ser a victima, em castigo de prestar-se a representante passivo dos ambiciosos estupidos que lhe aconselharam a transgressão do juramento feito.

Baldaque saboreava-se não do tom preleccionador da dama, que não o tinha; mas da feminil suavidade com que ella simplificava, em breves e claros termos, passagens da historia patria, na maior parte ignoradas do brazileiro.

O leitor, que esvoaça em regioens diaphanas onde se não condensam vapores crassos de historia, dispensaria que a inspiradora das suas lyricas lhe referisse chronologicamente os annaes de D. João VI no estylo flatulento de mestra regia bem saturada da philosophia do historiographo snr. Moreira de Sá, ou qualquer Niebuhr da sua estôfa. Quero até persuadir-me que o leitor anemico, e avêsso a iguarias condimentosas, rejeitaria mesmamente a senhora de espiritos assás metricos{116} que lhe leccionasse os fastos lusitanos em estancias do snr. conselheiro Viale, poeta voluptuoso como gondola veneziana, vista da Ponte dos Suspiros, a balouçar-se cheia de... repôlhos.

Dou-lhe razão.

O amor seria divindade indigna das lagrimas que se lhe choram nas aras, se algum peito succubo d'elle podesse acceitar liçoens de historia como flechas do seu carcaz.

A ignorancia, mais ou menos absoluta, é uma das clausulas que nos impõe á nossa servidão o filho da deusa viciosa, cuja illustração não poderia medir-se com a da senhora Dona Canuto, Venus Urania, se é forçoso mitifical-a—ou outra capacidade menos provada.

No adro dos templos do frécheiro não demandemos philosophos eructando azias hegelianas, nem jurisperitos polvilhando a ambula dos perfumes com o vinagrinho que lhes espirita o cerebro resentido da cegueira da justiça. O que lá se nos depara, em redor dos pagodes do deus cego, é gentio a rir e a chorar, que ora se postra supplicante, ora se espoja em desbragada alegria.

Amor spasmodico, amor macabro, amor epileptico. Ha d'estas tres castas d'amor na zona luminosa da mulher peregrina. O spasmodico{117} é o comtemplativo; o macabro é o que salta e se estorce nas vascas voluptuosas do deleite; o epileptico é o que escabuja debaixo da garra da perfidia. Ha uma quarta especie d'amor, do qual ninguem faz livros porque é a mais analphabeta: é o amor de mercearia, o amor sebaceo e rubido como o burril antigo o immortalisou nas cascatas, e no coração de nossas avós. Encontra-se esta reliquia dos tempos honestos no terceiro andar das familias cujos chefes labutam nas suas tendas. Está sentado na travesseirinha do leito nupcial, brincando com os folhos e borlas azues da almofada. Resfolega, por bochechas de cravelina, frouxos de riso á esposa, quando ella, depois da ceia, desaperta os nastros da ceroula conjugal, emquanto elle encarapuça o marido no barrete de dormir. Não temos que entender com algum d'esses amores n'esta chronica, exceptuado o primeiro, o spasmodico. Nem Stendhal creou adjectivo tanto ao ponto. Deixemo-nos de crystallisaçoens. Spasmos, macabrismos e epilepsias—é o que ha. Mais nada.

Raul de Baldaque estava, pois, escutando as narrativas da luveira em arroubos que sobreexcedem os de um alumno de boa fé absorto a escutar o snr. João Felix Pereira, quando arenga ácerca de Herodoto.{118}

Em uma d'essas tardes de innocentissimo prazer, entrou na loja de D. Maria José um mulato offegante, com os olhos vidrados de lagrimas, e exclamou em soffocativas intermitentes, dirigindo-se a Raul:

—Menino, venha depressa a casa... venha depressa... que o snr. conde...

—Que é, Damião?!—interrompeu Raul—que tem meu pae?...

—Cahiu por morto, quando ia a entrar na carroagem... levei-o nos braços para casa... chamou-se o medico; mas já não respirava...

O moço, apertando a mão de D. Maria José, que balbuciava algumas palavras compassivas, sahiu acceleradamente.

Quando entrou no quarto de seu pae, as pessoas que rodeavam o leito, não responderam á interrogação de Raul. O medico apertou-lhe convulsamente a mão e sahiu. Os restantes eram criados, cujos aspeitos exprimiam mais espanto do que dôr.

O filho ajoelhou á beira do leito e beijou a mão do cadaver; depois, encostando a face ao hombro do pae, soluçou palavras inintelligiveis. Do outro lado do leito ajoelhou alguem com os punhos cerrados na fronte e as lagrimas a borbulharem-lhe dos olhos espavoridos no rosto do morto: era o mulato Damião.

Digamos d'este homem que se nos revela{119} sympathicamente em frente d'um filho que chora, e ao lado do velho que lhe expira nos braços.

Damião Ravasco era o seu nome. Gentil corporatura de mestiço. Feiçoens levemente denunciativas da origem indiana de sua mãe. Olhos fulgurantes. Epiderme esmaiada, aquelle esfumado de marfim antigo, que nas raças europêas distingue as bellezas finas, o pallor romantico, a vantagem do espirito sobre a riqueza do sangue.

Damião Ravasco orçava pelos trinta e dous annos. Já sua mãe havia nascido em casa de Antonio Ferreira Baldaque, pae do defunto conde. Ninguem lhe attribuia filiação d'este ou d'aquelle. As escravas eram muitas e fecundas todas. Entretanto, nos traços physionomicos de Damião, realçavam parecenças com o pae de Raul; e, no particular affecto com que o capitalista o estremara desde a primeira infancia, havia o quer que fosse indicativo de virtude não vulgar nos progenitores dos filhos das escravas.

Antonio Ferreira Baldaque deu aso a suspeitarem-no pae do mulato quando o mandou á escóla, trajando-o com decencia incompetente a um servo. Aggravaram-se, porém, as desconfianças, quando, prompto em primeiras lettras, o rapaz seguiu estudos superiores.{120}

Poucos annos antes, havia casado o negociante com a mãe de Raul, a qual, ciosa da consideração que o esposo liberalisava ao filho da escrava, disparou em impertinencias que poderiam resultar a felicidade do mulato, se elle pendesse a engrandecer-se por lettras.

Quiz o prudente esposo restabelecer a paz domestica, enviando Damião a seguir em Portugal a carreira da jurisprudencia ou da medicina na universidade de Coimbra. O rapaz ouviu as ordens do padrinho, e respondeu humilde, mas com firmeza, que não queria ser doutor, nem tinha queda para estudos.

Esta confissão não era vaidade mal rebuçada em modestia. Em Damião Ravasco, ao passo que a esforçada musculatura se alargava com proporçoens agigantadas, parecia que as potencias da alma lhe eram deprimidas pelo pezo da materia. Os condiscipulos não ousavam motejar-lhe a rudêza, desde que elle, em polemicas grammaticaes, abusando dos preceitos mais vulgares da camaradagem litteraria, respondia com sôccos ou marradas aos argumentos dos adversarios: indignidade que ainda não vimos praticada em outra parte, senão no parlamento portuguez.

Os professores haviam já prevenido o protector do mulato, quanto á incapacidade rebelde{121} do estudante; apesar disso, Baldaque desejou illustral-o, até ao momento em que Damião por claros termos se recusou.

Interrogado sobre o modo de vida que melhor quadrava ao seu genio, o rapaz, que então contava dezoito annos, respondeu que o seu gosto era ser boleeiro; e acrescentou que tarde ou cedo o havia de ser, porque ninguem fugia á sua estrella.

Ou porque respeitasse a estrella de cada sujeito, ou receiasse denunciar o que era, ou dar mais fortes suspeitas do que não era, o negociante offerecera alguns contos de reis a Damião Ravasco a fim de que se estabelecesse, consoante sua vontade e vocação.

O mulato rejeitara o dinheiro dizendo entre soluços que não queria deixar o padrinho; e, abraçado ao pequeno Raul, rogava-lhe, debulhado em lagrimas, pedisse ao pae e á mãe que o não mandassem embora.

A esposa do submisso negociante não condescendera. Os rasteiros instinctos de Damião, preferindo a cocheira á universidade, e a sella ás cartas de bacharel, acerbaram o desamor da dama que afiava cortantes chacotas contra a defunta escrava, assacando-lhe que ella arteiramente capacitara da tal paternidade o seu senhor, usurpando direitos de progenitura a algum obscuro lacaio. Antonio Baldaque,{122} posto que não se desse como pae do mulato claramente, devorava em silencio o insulto, deixando-se invilecer e maneatar pelas centenas de contos que a esposa augmentara aos seus haveres.

Não era elle todavia insensivel ao espinho occulto que lhe pungia na vaidade de pae, quando diligenciava demover o afilhado da vil profissão de boleeiro, incitando-o a sair para Portugal, onde lhe segurava recursos para negociar, se não quizesse outra carreira.

Damião Ravasco, soffreando esforçadamente a sua mania, cuidou que poderia conformar-se, e já parecia vencido das indirectas instancias do padrinho. Mas, um dia, como visse annunciada a venda de carroagem e parelha do ministro francez, concorreu ao leilão, licitou por não poder conter-se, e arrematou o trem, obedecendo á espora do instincto que o não deixou reflectir na desobediencia.

Dado tal passo, Damião foi despedir-se do padrinho que o recebeu de máo rosto, improperando-lhe a baixeza das inclinaçoens. O moço, porém, possuido dos fidalgos espiritos de muitos portuguezes coevos, netos de Gamas, Albuquerques, Castros e outros, respondeu que a sua inclinação, não o deshonrando a elle não podia deshonrar ninguem.

A pessoa de quem Damião Ravasco se{123} despediu com muitas lagrimas era o menino Raul. A creança pagava amorosamente os afagos do mulato, defendendo-o como podia, quando a mãe o tratava com desaffecto, e fugindo d'ella para os carinhos do filho da preta, quando a retrincada senhora o appellidava affrontosamente o negro.

Começou o mulato sua vida de alquilador prosperamente, comprando carroagens, e boleando-as elle mesmo. A paixão da almofada e do pingalim não lhe consentia aristocratisar-se na sua esphera de proprietario de nove parelhas normandas e seis aceados trens. Era artista em extremo grau. Entrajava com menos alinho que os seus criados. Todo o seu deliciar-se em luzimento e galhardia de composturas eram os arreios dos cavallos e o brilhante verniz das equipagens.

A propensão do mulato não era das que menos se prestam a irritar as sanhas das indoles brigosas. A parçaria com homens de Cavalhariça, de natural bulhentos, muitas vezes o poz no gume do perigo, e outras tantas lhe deu admiraveis triumphos de pugilato, quando não era a navalha que empurrava os adversarios para o hospital. A policia, inquietada e nem sempre respeitada pelo valentão, quiz prendêl-o em cumprimento d'uma pronuncia por crime de tentativa de morte nas{124} pessoas de dous negros que haviam maltratado na chacara Raul de Baldaque, em occasião que este se comprazia frechando-os com alfinetes desempolgados do arco, sob pretexto de ensaiar-se para Guilherme Tell.

Homisiou-se Damião em Vassouras, recommendado pelo padrinho, a quem cumpria patrocinar o generoso defensor do filho legitimo.

Este caso amolleceu a dura condição da mãe do menino, cujo prazer de assetear negros lhe seria descontado em torcegoens de orelhas, se o filho da escrava não sangrasse a ferro as iras dos offendidos. Quebrou-se, pois, a antipathia da dama, até á condescendencia de permittir que o marido sahisse a publico em abono do afilhado, legalisando as navalhadas como justa defesa.

Damião Ravasco regressou absolvido, mas não emendado, ao Rio de Janeiro. A impunidade alargara-lhe o fôlego das proezas. Cuidar-se-hia que a sua paixão dos quadrupedes ia desandando n'outra menos estranha á super-intendencia do codigo criminal. Quando evitasse o ensejo de provar a mão na cara dos que se lhe arrostavam, vêr-se-hia á sua beira Raul a quem elle obedecia docilmente; mas, como essas occasioens eram menos que os lances em que o provocavam, ou elle se considerava provocado, raro era o dia em que{125} Ravasco não tivesse de explicar á policia a razão por que certos queixosos haviam perdido alguns dentes, ou, com os olhos tapados por contusoens, recorriam á justiça pouco menos cega que elles.

N'este meio tempo, falleceu a esposa do capitalista.

O viuvo apressou a liquidação dos seus grandes bens de fortuna, com o proposito de repatriar-se, e saborear em socego o restante da vida.

Não queria elle trazer para Portugal o mulato, receiando desgostos e sobresaltos, em tempo e terra onde lhe sorriam esperanças de remançosa tranquillidade. Tanto poderam, no emtanto, com elle instancias do filho que não houve recusar-lhe a companhia do amigo.

O conde de Baldaque, em Lisboa, ostentava opulencia ajustada ao titulo. Damião mordomisava a cocheira, com voto deliberativo na escolha das parelhas e carroagens. A paixão recrudecera-lhe a termos de não querer outra posição em casa do padrinho. Pelo que toca ao sestro das valentias, corrigira-se tanto quanto o conde podia ambicionar. Como não tinha inimigos em Lisboa, o mulato, absorvido no deleite de palmear e almofaçar as ancas dos seus cavallos, apenas uma ou outra vez esbofeteava os criados gallegos da cavallariça{126} para exercitar a pujança dos tendoens in anima vili.

Raul de Baldaque, nas estouvices de rapaz, se precisava de um amigo que lhe antepozesse a sua vida aos lances arriscados, aventurava-se aos maiores perigos com Damião ao lado. Confidencias amorosas, particularidades que elle escondia dos seus commensaes, dialogos intimos com damas de primeira plana, tudo revelava a Damião Ravasco. O mulato ria das aventuras do amo, e aconselhava-o a ser rasgado e audacioso com as fidalgas quando elle se prezava de o ser com as môças dos visinhos.

Não lhe era portanto mysterioso o amor de Raul á luveira.

E o seu modo de pensar a respeito d'esses amores, que tão mudado lhe traziam o pensativo menino, o saberemos logo.

Dada em resumo a biographia do mulato, personagem de maxima importancia n'esta historia, temos explicado aquellas lagrimas, que o filho da escrava chorava, beijando a mão fria do homem a quem nunca ousára chamar pae, posto que, no silencio da alma, uma voz mysteriosa lhe dissesse que Raul era seu irmão.{127}

X
FRUCTA DO BRAZIL

Murro, s. m. pancada com a mão fechada. Soco.

ROQUETE, Dicc. da Lingua Port.

Aqui desapparece o romantico nome de Raul.

Vamos ter a vulgaridade d'um conde. Queixem-se do ministro que dera o titulo em duas vidas ao primeiro. Todavia, entre luveira e conde o relevo dos amores deve dar margem e contrastes mais palpitantes de actualidade, como já se não diz. Amores de luveira...

Não é isto exactamente. A luveira não o amava. Era para elle em rigor o que lhe disse que era.

Distinguia-o do acume d'onde o via em baixo, bem que no seu levantado orgulho{128} houvesse uns brios de magestoso abatimento. Era irreconciliavel o divorcio de sua fidalga pobreza com opulencias provenientes de homem que intentasse offuscal-a com esta cousa sobremaneira desprezivel chamada dois milhoens, ou—mais execravel ainda—tres milhoens!

O conde honrou a memoria de seu pae, encerrando-se por espaço de quinze dias.

Como a saudade filial lhe estivesse pedindo consolaçoens que ninguem sabia dar-lhe, o moço desafogava em cartas enviadas a D. Maria José, nas quaes se carpia como se devesse achar allivio na condolencia da mulher destinada a duplicar-lhe os perdidos affectos de pae em caricias de esposa.

D. Maria José de Portugal respondia compassivamente ás cartas, adoçando-lhe a dôr com a certeza de que lh'a conhecia, porque tambem ella havia perdido sua mãe, e gemêra na dupla orphandade de mulher e mulher pobre. As suas respostas, se alguma vez pareciam dulcificadas por sensibilidade de amiga, nunca tocavam o sentimentalismo amoroso. E, tanto era o desartificio com que naturalmente se expressava, que ninguem veria nas cartas d'ella o esforço da mulher que se disfarça, ou procura colorir com termos delicados a parcimonia de mais affectivos sentimentos. {129}

O conde não escondia o seu despeito de Damião Ravasco. Lia-lhe as cartas que escrevia e as respostas recebidas por intermedio d'elle. E o mulato, pouco dado a interpretaçoens de phrases que se afiguravam reconditas á vaidade do conde, sahia-se ás vezes com umas reflexoens alheias do bom senso que irritavam sobre modo a delicadeza do amo.

Por exemplo, uma vez, andando o conde a passeiar no seu quarto, e a dizer em vozes interrompidas por suspiros que a luveira o havia de matar ou endoudecer, Damião, tomando-lhe o passo, fallou do seguinte theor:

—Ora meu amigo, vamos a isto. Estou farto de palavriado. Obras, obras é que se quer. Seja homem, e attenda lá ao que lhe vou dizer. Se o menino quer morrer ou perder o siso, não quero eu. A mulher ha de ser sua tanto me importa a mim que seja filha do rei como do diabo! Luveira é ella, isso vou eu jural-o, porque ainda hontem lhe comprei umas luvas de camurça. Mas, se fosse filha de rei e morasse no palacio real, antes de V. Ex.ª morrer ou endoudecer, havia eu de fazer mais restolho que dez milhoens de diabos para que ella fosse sua. Se eu pudesse, muito que bem; se não pudesse, quem havia de morrer primeiro que o snr. conde era eu.{130}

—Que fazias tu, Damião?—perguntou entre grave e risonho o conde.

—Que fazia?

—Sim...

—Vamos aqui fallar serio. Sente-se o snr. conde, e, se eu disser alguma parvoice, não se enfade, que perde o tempo. Um homem é um homem, parta d'este principio, como dizia o frade que me queria ensinar logica. Um homem não é uma mulher. As mulheres vencem com choradeiras, os homens vencem com obras: percebe o que eu quero dizer na minha? Um homem sem desembaraço... é mulher. Lá que a gente morre, quando não se desengana a puxar por si, não tem duvida nenhuma. Ha muito tempo que eu andaria ás malvas, se me deixasse estar quieto a conversar com a prudencia. A prudencia é boa nas terras onde não ha marotos...

—Mas a que vem tudo isso, Damião? Bem se vê que o frade não conseguiu ensinar-te logica!... Então que queres tu que eu faça?

Damião Ravasco soltou uns froixos de riso sêcco, esfregou as mãos, deu duas palmadas nas pernas, e respondeu:

—Se o menino me dissesse: «Damião, eu quero aquella mulher, custe o que custar»—a mulher seria sua, ou eu me dava em corpo e alma ao maioral do inferno! Diga-me cá,{131} snr. conde: como foi que se arranjou no Rio aquelle negocio da franceza que estava com o chanceller? O menino contou-me que ella não o queria, e o maltratára diante de outros...

—Cala-te, que me estás irritando!—atalhou o conde.—Não admitto comparaçoens entre a franceza e D. Maria!

—Mas o menino dizia da franceza a mesma alicantina que diz d'esta—observou o mulato, maliciando o sorriso com a velhacaria d'um pratico do coração humano.—Eu fui dar com V. Ex.ª, na chacara de Petropolis, triste, pensativo, a fallar só, a dar uns ais que parecia rebentar de paixão d'alma. Perguntei-lhe que tinha. Disse-me que amava a franceza do chanceller, e que dava um tiro na cabeça, se a não pudesse tirar ao francez. Foi assim, ou não foi?

—Não me atormentes!—insistiu o conde, corrido talvez de confrontação que o mulato equiparava entre as duas situaçoens analogas.

—Mas...—tornou Ravasco.

—Já te disse que me não afflijas... Queres dizer-me que fazes á filha d'um principe o que fizeste á franceza?...

—Sim... eu... acho que...

—Achas que D. Maria póde ser levada n'uma sege á traição, e calar-se depois mediante alguns centos de libras como a outra?...{132}

Damião sacudiu os hombros á feição de quem cynicamente presume que a distancia divisoria entre duas mulheres não é tamanha como os poetas a medem. O conde todavia assanhado pelo tregeito do mulato, ergueu-se de impeto, coriscou-lhe um lance de olhos humilhante, e sahiu, murmurando:

—Instinctos de cocheiro... a final!

O insulto confrangeu a alma forte do filho da negra; mas nem leve assomo de colera se denunciou na mudança d'aquelle aspecto. O amor de Damião ao filho de seu padrinho era tolerante e impassivel até á covardia. Beijal-o-ia, depois da injuria, como as mães beijam os filhinhos que as esbofeteam.

Não obstante, logo que o espanto e a dôr cederam á reacção da dignidade, o mulato procurou o conde, e disse-lhe dissimulando a commoção:

—O cocheiro vem despedir-se. Vou recolher-me á cavalhariça de V. Ex.ª, e sahirei de lá para outra, quando souber que o snr. conde encontrou feitor que me substitua.

O conde deteve-se momentos a contemplar a serenidade do mulato, que o fitava com os olhos turvos de lagrimas a desmentirem a dureza do semblante.

Qualquer que fosse o agastamento do amador da luveira, a offensa feita á filha dos Braganças{133} podia menos no amor do moço que a inveterada gratidão aos extremos do mulato. Demais d'isso, a opinião publica do Rio de Janeiro, quanto á filiação do filho da escrava, não era estranha ao conde; e mais que tudo, seu defunto pae, louvando o sisudo proceder do afilhado, em Lisboa, havia dito ao filho que a sua maior pena era não ter podido elevar Damião á decente independencia que projectára.

Por tanto, ainda que de si mesmo quizesse esconder as proprias suspeitas, o conde não podia esquivar-se á conjectura de que o mulato era seu irmão; e tal desconfiança, penetrante como um sobresalto de subita evidencia, lhe alvorotou o animo no instante em que as lagrimas de Damião, rebeldes á vontade, pareciam a um tempo queixar-se do ingrato e pedir perdão para o desvario d'um doudo enthusiasta que, em serviço das paixoens frequentes de seu amo, não distinguia entre a concubina d'um chanceller e a filha de um rei.

Estas e outras louvaveis reflexoens ponderavam no espirito do conde, quando, approximando-se de Ravasco, lhe abriu os braços, estreitou-o ao peito, e disse:

—Não finjas que me deixas, Damião, porque tu não deves nem podes deixar-me...

E o mulato, rindo e chorando, tartamudeava{134} palavras convulsas, em quanto o conde proseguia:

—Não se deixa um rapaz de quem se é amigo, desde o berço, e a quem se deu protecção quando elle a precisava menos que hoje. Olha que estou só no mundo, Damião. Não tenho ninguem que me estime, senão tu. Dos affectos que me rodearam na infancia e mocidade, vives tu só. Se me faltares, accuso-te de máo e ingrato, e hei de convencer-me que não ha para ti amisade duradoura senão... a dos trens—concluiu jovialmente o conde, já quando o mulato o levantára nos braços como quem afaga no colo uma creança para desamuál-a com meiguices.

D'ahi a pouco estava outra vez o conde confidenciando a Ravasco o seu fatal amor á mulher que lhe não dava mais estimação ás qualidades pessoaes do que á riqueza e ao titulo. O mulato transiu-se de assombrado quando o millionario lhe affirmou que a luveira pobre o rejeitaria, se lhe elle offerecesse a mão de esposa.

—O menino já lh'o disse?!—interrogou Damião.

—Não. Disse-m'o ella para me poupar ao dissabor da pergunta.

—Snr. conde—volveu o sceptico—olhe que ha mulheres finorias!... Olho vivo, menino!{135}

—Damião!—accudiu desabrido o conde em desforço de D. Maria.—Sinto que o teu espirito não saiba respeitar devidamente a mulher que eu escolheria para minha esposa!

—Respeito, sim, senhor. Isto é um modo de fallar. Mas não creio que haja senhora rica ou pobre que rejeite o snr. conde, que é moço, é bem parecido, sabe o que diz, e tem mais do que pensa. A mulher, que o não quizer, tem outro homem, ou é douda. Eu, no seu logar, tratava de averiguar se essa creatura é o que parece, e regula bem da cabeça.

—Damião!... és incorrigivel!—bradou o conde.

—Palavra de honra, que não sei fallar com o menino! Sabe V. Ex.ª que mais, senhor conde? Ha por ahi duzias de amigos que o intendam e o enganem; eu cá por mim, sou d'esta laia. Digo as cousas toscamente como sei. Se a senhora fidalga é boa, não perde nada com a minha opinião; se não é boa, peor para ella. O que eu quero é que V. Ex.ª não soffra, nem seja enganado. Das duas uma, como dizia o meu mestre de logica: se ella o ama, case com ella; se o não ama, de que lhe serve padecer? Eu cá não queria mulher que me quizesse por compaixão.

Apezar da nimia tolerancia com que o escutava,{136} o conde pretextou qualquer motivo para cortar a conversação.

N'esse mesmo dia, Damião Ravasco foi á loja da luveira, com o disfarce de quem passava, e perguntou a D. Maria José se queria alguma cousa para o snr. conde.

—Elle está bom?—perguntou ella.

—Não, minha senhora.

—Não! que tem? está doente?

—Da alma.

—Saudades do pae?

—Tudo se ajunta. Saudades... e paixão....

—Paixão? sim... paixão pelo pae...

—Paixão por V. Ex.ª

D. Maria córou. Não era bem o pejo de tal revelação feita por pessoa de esphera infima. Era febre de mais fidalga enfermidade: era o decoro de princeza, fibra estremecida por nevralgia de orgulho, mas fibra que não é commum de todas as senhoras fibrinosas. É um filamento adelgaçado pelo esmeril do tempo atravéz das raças; cousa que vem das castellans do cyclo feudal; que estremeceu nas mulheres dos baroens da meia edade; que não tem vibração nenhuma nas baronezas d'esta edade recentissima. E vai depois o mulato, como eu vinho contando, foi embargado no seu plano de requerer a mão da luveira para o conde.{137}

É que dous sujeitos, vestidos ao bizarro, e bem talhados de suas pessoas, entraram á loja, e com ademanes farçolas, pediram collarinhos de bretanha.

Expoz no balcão a luveira as bocêtas dos colleirinhos.

Os freguezes, a par e passo que os iam examinando mui devagar, galanteavam a silenciosa senhora com uns dizeres desta casta:

—Mal empregados olhos em almofadas de costura! Quem os tem tão matadores melhor uso lhes daria, se se dignasse olhar para outros que a amam...

Eram negros côr da noite
Uns olhos negros que eu vi...

O sujeito que assim fallava, dava ares de deputado do norte, papa-fina, calaceiro de damas sertanejas, gallo de aldêa vezado a cacarejar finezas; mas bem creado e de fama na sua comarca, e talvez mais adiante, como pessoa perigosa para senhoras frageis ao dom da palavra.

O outro, que vislumbrava esperteza e garbo de lisboeta, sorrindo desdenhoso á linguagem do amigo um tanto rançosa das galanices do Clarimundo, fallou d'esta arte:

—Esta menina, aqui onde a vês, tem, segundo{138} consta, sangue real nas veias. Se eu fosse principe, fazia-lhe os meus cumprimentos, e pedia-lhe um osculo.

—E eu dois—ajuntou o deputado dos Arcos ou de Melgaço—(de Melgaço é que era, se bem me lembro); mas, prescindindo dos osculos—continuou mais requebrado—limito as minhas ambiçoens a pedir-lhe que me tome medida do pescoço afim de saber-se quaes colleirinhos hei de comprar. Vou sentir o avelludado das suas alabastrinas mãos, mãos de princeza...

D. Maria José, durante as pungentes facecias dos mal-fadados, não erguêra do balcão os olhos carregados de lagrimas. Mal-fadados lhes chamei; porque Damião Ravasco, em quanto elles fallavam, trincava e cuspia a pedaços um charuto, ao mesmo tempo que, fervendo em ira, e agitando machinalmente os braços, parecia dar-lhes alôr para uma pega mortal.

E os dois faceiras decerto não attentaram nos olhos assanhados do mulato, nem dariam significação funesta áquelles tregeitos, se os vissem.

O deputado, entretanto, como a luveira não respondesse ao pedido, aliás honesto, de lhe medir o pescoço, insistiu abemolando a rogativa com um sorriso de ironica meiguice:

—Então o meu anjo não se humanisa até{139} á humanidade de me tomar a medida do pescoço?

—Meço-lh'o eu—disse Ravasco, abarbando-se com o sujeito.

E, proferido o serviçal offerecimento, recurvou-lhe os dedos da mão direita na garganta, sacudiu-o de encontro á hombreira da porta, e d'ahi, tangido pelo impulso de uma valente pescoçada com um sonoro ponta-pé, tombou-o á rua. Consummado o feito, voltou-se para o outro, que se quedava immovel, fulminado, empedrenido talvez por sua justa indignação, e disse-lhe:

—Vossê tambem ha de ter o beijo que pediu.

E o mesmo foi convidal-o com trez tapa-olhos á mão tente, cascados de tal guisa que, ao terceiro, o sujeito mordia o macadam dos fortes colhidos de sobresalto, resvalando os dous degraus que o separavam do seu infausto amigo.

Cobriu-se de profunda amargura o aspeito de Damião Ravasco, ao ver que os dous freguezes de colleirinhos, depois de se escovarem reciprocamente com os lenços, e de trocarem entre si palavras mysteriosas, calcurriaram-se embora com apparencias de sãos e escorreitos.

Na sua fome de musculo e sede de sangue, o mulato, dando redia á furia, idealisára{140} o deleite de esfaquear e mastigar aquelles homens, porque pensava que elles, repostos na posição vertical, o atacariam façanhosamente.

N'este emtanto, D. Maria não dava signaes de susto, nem d'aquelle nervoso palpitar que vai tão senhorilmente ás compleiçoens feminis, quando um homem esmurraça dois na sua presença. Longe d'isso. A desaffronta dilatara-lhe o coração que o pejo retrahira. Reluzia-lhe o prazer nos olhos. O odio aos insultadores da sua honesta pobreza accendera-lhe no peito, por momentos, a ruim, mas natural paixão da vingança. O sangue de princeza, orgulhosa de raça, refluira ao coração da luveira, humilde por estudo. Sentia-se bem. Não podia nem queria fingir-se descontente do arrojo do mulato. Com a fronte alta e a commoção do prazer dos deuses olympicos na voz, disse a Damião:

—Praticou um acto de generoso valor! Se houver de soffrer por minha causa, não se arrependa de defender a mulher que só tem tido a sua dignidade e paciencia a resguardal-a de peores insultos...

Avisinhou-se então o estrupido de uma carruagem. Damião conhecia o trotar cadenciado dos seus normandos.

—É o patrão...—disse elle, correndo á rua.

E abriu a portinhola da carruagem.{141}

—Estavas cá?—perguntou o conde.—Que faz aqui este povo?

Referia-se ao ajuntamento do rapazio e mulherigo que escutavam das primeiras testemunhas do conflicto o caso dos dois homens afocinhados na rua.

—Que faz aqui esta gente?—instou o conde ao mulato que se occupava distrahidamente em alargar umas fivélas dos arreios.

—Fui eu que sacudi o pó a dous pirangas que...

—Tornas ao fadario antigo?... Que te fizeram?—volveu o conde mal assombrado.

—A mim? nada...

—Então a quem?

—Estavam a rinchar pachuchadas e chalaças á senhora alli da loja como quem derriça por uma mulherinha de pouco mais ou menos. Figurou-se-me que o snr. conde, se cá estivesse, faria o mesmo que eu fiz... Os cavallos estão endiabrados com a mosca! Olha a rédea falsa, rapaz! Vai ahi até ao Rocio, e desanda. Toca!... Não me deixes escarvar o gado que se escabreia... Olha o cavallo da mão... não no vês a arrifar?

—Espera!—disse o conde ao sota.—Eu volto a pé... Damião, salta para a almofada, mette os cavallos á cocheira, e espera-me em casa.

O mulato obedeceu constrangido. Vaticinava-lhe{142} o coração que ausentar-se era perder lanço de desemperrar as articulaçoens dos pulsos.

D. Maria de Portugal referiu o successo, colorindo-o nos promenores improprios da sua narrativa; mas entremostrando, nas hesitaçoens delicadas, que os offensores haviam merecido o castigo recebido.

N'esta conjectura, abeirou-se da porta um dos curiosos, que mantinham na rua o auditorio á espera da explicação da desordem, e disse para dentro que os dois janotas socados pelo mulato vinham do lado da Praça da Figueira com tres municipaes.

—Snr. conde!—disse D. Maria assustada—rogo-lhe que se retire...

—Não me peça V. Ex.ª sacrificios em que a minha dignidade seja violentada. Retirar-me de que perigos? O procurado pelos soldados de certo, não sou eu! Prouvera a Deus que o fosse... N'este momento invejo Damião; e prezo-o mais do que é costume prezar as pessoas que se invejam.

Dito isto, o conde assomou ao limiar da porta, a tempo que os soldados e os dois respeitadores da intervenção judicial defrontavam com a loja.

O conde conheceu o amigo do deputado. Era um dos seus commensaes nas ceas amostardadas{143} por dançarinas, mulheres que dissolviam o coração em champagne, e o espumavam nos labios em beijos acres de tanino. Os quaes beijos, na alma deste contubernal do liberalissimo Raul, haviam deixado contusoens menos duradoiras que os tres bofetoens do selvagem americano nas maçans pizadas da sua cara.

Acercou-se o paralta da porta da loja e perguntou:

—Ó conde, ahi dentro está um preto?

—Não.

—O scelerado fugiu! disse o deputado.

—Não fugiu—emendou o conde.—De quem havia de fugir elle? De VV. Exc.as? Dos soldados de certo não; porque seria injuriar dois cavalheiros dessa laia, suppor que VV. Ex.as, castigados ao mesmo tempo por um só homem, iam invocar a protecção de trez municipaes!

—Que ar é esse teu?—perguntou o lisboeta, estranhando o tom insolentemente ceremonioso do conde.—Que tens tu com o assassino que nos assaltou ahi na loja d'essa notabilidade protegida por sicarios de tal casta?

—Vejo que a protecção da força armada—replicou rindo o conde—lhe permitte á lingua a actividade que lhe falta nos braços!... O homem que lhe bateu, não fugiu.

—Então onde está?{144}

—Quer esclarecimentos para instaurar querella contra elle? Eu lh'os dou. Chama-se Damião Ravasco, e vive na casa de Raul Baldaque, ás Janellas Verdes... Procure-o lá.

—Ah! então o preto é da sua familia brazileira?—atalhou o lisboeta casquinando.—Eu não sabia que a sua nobilissima raça era bicolor! E nós a cuidarmos que o assassino era um bolieiro!—proseguiu o esmurraçado, tregeitando jogralmente para o legislador melancolico.

—Ó camaradas!—disse o conde aos municipaes—a nação portugueza paga-lhes para guardarem as costas a covardes d'esta ralé?

O que parecia mais auctorisado entre os soldados, voltando-se aos dois queixosos, disse que elle e seus camaradas não tinham que fazer alli, visto que o homem que os espancára já lá não estava.

E, como, depois se retirassem, os queixosos seguiram o exercito.

E logo a gentalha, o jury permanente das ruas, usando aquella sarcastica philosophia que lhe dá a independencia dos farrapos, apupou os janotas, socados por um mulato de jaleca.

—Lá vão a mastigar fructa do Brazil! dizia um caiador preto, floreando o pincel com ademanes de vaidoso patriotismo.{145}

XI
SOLEMNIA VERBA

Allons, de l'égoisme, de l'esprit, et de l'impudence, e tu seras bientôt dans les grandeurs.

BALZAC.

Elle rugiu de indignação, e metteu na algibeira um rewolver de seis tiros, quando soube que D. Maria José de Portugal tinha sido ultrajada. Elle quem?

Victor Hugo José Alves—pois quem havia de ser?

D. Maria, n'aquella tarde da sova subministrada por Damião Ravasco, nutava indecisa se deveria fechar o estabelecimento e obstar a novo insulto, se affrontar animosamente as contingencias da sua posição.

N'esta penosa alternativa, em que de um lado preponderava a inflexivel necessidade, e{146} do outro lado o medo da zombaria, a encontrou Victor Hugo.

O ingresso precipitado, que elle fez na loja esbofando, alvorotou a dama.

—Acabo de saber—disse elle, com intercadencias de asphyxia—que dois biltres ousaram aggraval-a, minha senhora! Eu antevi sempre que V. Ex.ª, baixando á plana onde se acha, seria alvo de taes vilipendios. O sentimento de excelsa virtude, que lhe aconselhou tal passo, não podia ser entendido n'este javardeiro de Lisboa. Ha dedicaçoens santas que se não permittem ás mulheres formosas. É prohibido aos anjos avoejarem por este inferno sem crestarem as azas. Eu avisei-a, snr.ª D. Maria José. Contava com isto. Sei o que é esta sociedade. Esperava que a sua innocente alma provasse o fel do intransitivo calix que está sempre emborcado aos labios puros. Mas... não venho arguil-a... Venho saber os nomes dos bigorrilhas que a offenderam!

—Não conheço as pessoas que me offenderam, snr. Victor—respondeu D. Maria José, abafando o despeito que lhe causara o tom pretencioso da censura.

—Mas aqui—volveu o cavalleiro da Ala, arejando-se com o chapéo e chibatando a perna direita com a badine de caoutchouc—aqui{147} estava alguem que sabia os nomes dos dois birbantes!...

—Estava, sim. O conde de Baldaque sabe quem são: eu não sei.

—N'esse caso, vou procurar... sua excellencia... o snr. conde de Baldaque.

Victor Hugo pausou em cada syllaba uma accentuação ironica, deixando vêr nos dentes caninos o azedume e a podridão.

—Procural-o...—acudiu D. Maria, mais receiosa da tolice que da braveza—Procural-o!...

—Sim..., minha senhora.

—Para quê?

—Para que me diga o nome dos dois sujeitos que enxovalharam V. Ex.ª, se é que o snr. conde não reserva para si a honra de a desaggravar.

—O favor do desaggravo já o recebi de um criado do conde; entretanto, agradeço ao snr. Victor a resolução com que veio aqui.

—Mas eu, minha senhora!—replicou o filho de Rozenda, enroscando a badine, e fazendo resaltar a ponta de uma para outra mão—eu lamento profundamente que V. Ex.ª fosse desaggravada por um criado de quem quer que seja. As senhoras, nascidas em degraus inferiores da escala social, recusariam tão ordinario paladim; salvo se o conde de{148} Baldaque pode armar cavalleiros os seus criados.

D. Maria José encarou soberanamente no poeta, e disse:

—A final, que ares são esses que se está dando, snr. Victor? Depois das zombarias dos homens que não conheço, vem V. S.ª com os seus motejos? Estou em lhe dizer que os insultos dos estranhos não me ferem tanto como as ironias das pessoas que me conhecem.

—Eu não a motejo, snr.ª D. Maria—acudiu Victor Hugo, compondo a cara de visagens melodramaticas.—Queixo-me, deploro-me, appéllo do seu orgulho para o seu coração. Uns peitos recalcados dão lagrimas; outros dão sangue; e os mais infelizes são os que não podem desafogar chorando, nem succumbem ao gume da ingratidão que os sangra e retalha... Os mais dignos de lastima são os que a si mesmos se despedaçam com os gryphos do escarneo. Mas eu queixo-me, senhora, sem accusar. Accusar a filha d'um principe não ousa o vérme, o plebeu, a fronte onde a mão de Deus pode ser que esculpisse a palavra GENIO...

(Em parenthesis: Victor Hugo, quando pronunciou a palavra «genio», não fez algum signal indicativo que me auctorisasse a escrevêl-a{149} em lettras maiusculas, a não ser o tom, a pancada com que elle a proferiu, batendo na testa).

—GENIO,—repetiu elle—só genio; corôa de conde, não: as corôas não as dá Deus; compram-se cá. Vinte negros, vendidos depois de azorragados, dão uma corôa de conde, snr.ª D. Maria José de Portugal. O sangue de vinte negros n'um prato da balança; e no outro prato a corôa de conde. Aqui tem como hoje na monarchia de seu pae se forjam os grandes do reino, os senhores do novo feudo, os castellãos dos armazens de molhados, os ricos-homens que conquistaram pendão e caldeira nas arrancadas de Africa, nas costas de Guiné, pelos sertoens dentro, á montaria das rezes negras, que se acurralam nos poroens dos açougues, e se infeiram nos atrios dos palacios d'estes condes, d'estes Baldaques, d'estes...

D. Maria, que o estivera escutando com os olhos baixos, relançou-lhe um olhar de frecha, e disse:

—Está-me incommodando, senhor Victor! Lembro-lhe o dever de não insultar uma pessoa ausente, que me tem tratado com a maior delicadeza, e de quem V. S.ª não tem razão de se queixar.{150}

—Estou-a incommodando!—replicou elle com espanto.—Onde foi V. Ex.ª escavar palavra tão aviltante, tão despresadora!?... Diga-me antes que a injurio. Incommodar! Isso diz-se a um mendigo importuno, a um miseravel que nos enoja, a uma lama que nos salpica o verniz das botas! Incommodar! V. Ex.ª perdeu a magnanimidade com que tratava os humildes, antes de viver com os condes? A mim, senhora, devêra incommodar-me o carcere onde estive por amor de V. Ex.ª, e não me incommodou! Deviam incommodar-me as vaias, as zombarias dos correligionarios que deixei por amor de V. Ex.ª, e não me incommodaram! Devia incommodar-me o aprumo realengo das suas vozes sentenciosas quando me falla, e não me incommodam; porque as ingratidoens de V. Ex.ª não incommodam, dilaceram; não são fastidiosas como a impertinencia; são percucientes como a ponta hervada d'um punhal!...

—Tanta palavra, meu Deus!—exclamou D. Maria José, rebuçando a ironia no tregeito da admiração.—Todo esse excesso de sentimentalismo seria bom de perceber, se algum acto da minha vida me obrigasse a dar conta dos outros ao snr. Victor Hugo... Mas eu creio que não... A amisade não explica o zelo{151} de V. S.ª nem me força a respeitar a censura que me faz. Se me avalía injustamente, sinto; mas não sei que lhe faça...

—Quer dizer—sobreveio o poeta—que ama o conde de Baldaque?

—Não, senhor; quero dizer que amo a minha liberdade.

—E nega que ama o filho do negreiro?

—Quem é o negreiro?

—O negreiro era o pae do roué, cujo escravo despicou V. Ex.ª. Vai bem á filha do snr. D. Miguel de Bragança deixar-se requestar de um homem a quem seu augusto pae daria como escudo um tagante sobre as costas negras d'um ethiope a ressumbrarem sangue? Senhora D. Maria José de Portugal, não responda: medite, e, depois dir-me-ha se eu devo noticiar aos fidalgos portuguezes, com quem me dou, que V. Ex.ª fez d'este balcão uma especie de altar baixo, ao réz da rua, bem baixo, para que algum ignobil transeunte pudesse levantar até aqui o braço humilde e depôr o vóto. Só assim, minha senhora, o arlequim, trajado de conde, ousaria defrontar-se com V. Ex.ª. Emfim, começo a ler no seu rosto o fastio que avilta. Eu retiro-me... Saiba, porém, que a amo, snr.ª D. Maria José... Note bem... que a amo! E os homens da minha tempera, quando são indignamente menoscabados,{152} morrem, ou fazem guerra mortal a quem os despreza! Note bem isto! palavras solemnes!...

E sahiu.

Victor Hugo José Alves era assim! Amava e bramia d'aquelle feitio; mas era homem—como já poucos havia, e não ha hoje nenhuns—capaz de desfechar valentes rhetoricas á face de uma senhora. Não lhe afeminavam os olhos as lagrimas da pieguice. Em vez de suspiros ciciosos como auras entre moitas de rosmaninho e trevo, trovejava urros, quando o ôdre da paixão lhe rebentava dentro. Fizeram-no assim a natureza e o theatro, o sangue do dom abbade de Cistér misturado ao sangue do Alves da sóla, caceteiro defunto; e, além d'estes sangues, a arte, os dramas do snr. Mendes Leal, cheios de judeus ciosos, e outros facinoras metaphoricos.

Na noite d'esse dia funesto, o amador aviltado pediu a D. Rozenda que lhe mostrasse um folheto publicado em 1840 contra a mãe de D. Maria José de Portugal.

D. Rozenda, receiosa de alguma imprudencia intempestiva, quiz saber que destino o filho tencionava dar ao folheto.

—Nenhum,—disse elle, coando um riso feroz por entre as luras croozothicas de tres dentes incisivos.{153}

—Vê lá, Victor!... Não faças mal á rapariga...—instou a mãe.—Se ella doidejar, deixal-a... Olha que este folheto mente que tem diabo... Lá que ella é filha de D. Miguel, isso é tão certo como tu seres meu filho... O que tu tens sei eu... É ferro... soubeste que ella namora um conde... Isso já eu desconfiava... E então que se lhe ha de fazer?...

—Que pergunta!—replicou sacudindo a juba o equivoco neto do ferrador de Povolide.—Que se lhe ha de fazer!... Ignobil pergunta! Ó mãe, mãe, que é dos instinctos nobres da sua origem? Como pode consentir que seu filho seja acalcanhado por um villão, que se diz conde? Conde! Nós, os legitimistas, não reconhecemos titulos outhorgados pelo governo usurpador. Baldaque é o negreiro, é o chatim, é o plebeu reféce. Maria José de Portugal, a luveira, é filha de um rei. Nós, os que defendemos o prestigio dos nomes historicos, não consentimos que um bandalho, vestido de conde na guarda-roupa d'esta tramoia que se chama o systema liberal, se atreva a mercadejar com o producto das negras uma senhora que teve o pae no throno...

—Pois se sabes que ella teve o pae no throno—replicou a mãe sensata—que queres fazer ao folheto?

—O que quero? Vêr se posso convencer-me{154} de que esta mulher não é filha do snr. D. Miguel, casando ella com o plebeu, arraiado dos xaireis de conde, percebe?

—Mas, ó rapaz, se esse conde tem dois ou tres milhoens...

—Ahi vem a senhora com as baixezas do costume!... É o que eu lhe tenho dito muitas vezes... Está contaminada...

—O quê?—interrompeu D. Rozenda funestando a cara com uma ruim visagem.—Estou contaminada?!

—Sim, senhora! está contaminada da peste do dinheiro; está gafa da podridão dos costumes. Creio sinceramente que nasceu nobre; mas a convivencia com um homem de negocio abastardou-lhe o sangue...

—Olha que esse homem era teu pae, Victor! Vê lá como fallas do auctor dos teus dias; que eu não admitto atrevimentos, ouviste? Já uma vez te puz as mãos na cara, por me dizeres que bem se via que eu era fidalga por ser burra; agora, dizes que estou contaminada dos costumes, porque acho que a luveira não andaria mal, se se fizesse condessa... Ora queira Deus que as tuas faltas de respeito me não obriguem a quebrar-te a cara, percebes?

Victor Hugo, voltando o dorso ás ameaças maternas, ia retirar-se, quando ella, retendo-o pelas abas do fraque, exclamou:{155}

—Já p'r'aqui, malcriado! Você volta as costas a sua mãe! Olhe que o espatifo, ouviu?

N'isto, acudiu aos brados da mulher de rija tempera a irmã Euphemia, cuja brandura de alma se operara debaixo das emollientes meiguices e trechos litterarios do finado dramaturgo e d'outros homens sensiveis dados ás lettras. As duas irmans altercaram largo tempo ácêrca da materia sujeita. Rozenda opinava que o filho era um bréjeiro. Euphemia desculpava-o, porque todos os poetas eram assim esquentados da idéa:—these que ella poderia provar com o snr. conselheiro Viale, se o conhecesse tão de perto e á lareira como devem ser apalpados os poetas grandes.

Assistiu Victor Hugo, impando de tedio, á discussão das manas. Aquelle espirito, dilatado ao calorico das salas da côrte, não cabia na área burgueza onde outr'ora Elias e Antunes couberam com as suas almas fadadas para a pasta e para a mitra. O rival do conde pejava-se de ter estado no seio de Rozenda por espaço de nove luas. Dizia-lhe a philosophia que o talento é emancipação quando a tutela é bruta, e que as mães de natural bronco, bem que sejam respeitaveis como machinas productoras, devera ser desviadas{156} do caminho do genio, se lh'o atravessam com babozeiras e outras coisas chatas. Encabrestado por estas idéas, Victor, ainda então bastante adinheirado d'aquelles tres contos das inscripçoens da luveira, sahiu da casa da mãe, e foi morar no Hotel de Bragança.{157}

XII
EXPLOSÃO DE AMOR

Deus, ecce Deus!

VIRGILIO, Eneida, L. VI, V. 46.

Um dia, corridos poucos mezes depois dos successos relatados, entrou na loja da luveira um ancião com tres senhoras pobremente vestidas de luto e quatro meninos pallidos, magros, com os olhos grandes e socavados da fome.

Descobriram-se o velho e as crianças. D. Maria José levantou-se e respondeu á cortezia profunda das tres mulheres, que a cortejaram como a desgraça corteja o valimento.

O homem, que parecia engulir as lagrimas para poder fallar, disse com o chapéo em uma das mãos e a outra no peito:

—Está na presença de V. Ex.ª um brigadeiro{158} que em Evora-monte entregou a espada aos vencedores. Em vez de entregal-a, se eu não tivesse mulher e quatro filhas, ter-me-hia inclinado para a ponta da espada, e cahiria vingado da sorte, já que as balas do inimigo me pouparam para tão longa e desmerecida infelicidade. Estas tres mulheres são minhas filhas, A mãe morreu esgotada de forças, porque teve fome quando creava a ultima menina, que não está aqui, porque tambem morreu ha seis mezes. Era já viuva: foi descançar na sepultura, e deixou-me quatro netos que são estas crianças. Somos oito pessoas de familia. As minhas filhas trabalham quanto podem e em tudo que sabem. Mas pouco sabem, porque a si devem tudo. As duas mais velhas ainda estiveram dois annos em collegio; porém, aprendiam linguas, como cumpria que aprendessem as filhas d'um official-general, com appellidos tradicionaes e serviços á patria mais valiosos que os appellidos. Tirei-as do collegio, logo que principiei a vender as joias de minha mulher. As duas meninas, voltando a casa, fallaram em francez á mãe, que tinha sido educada no estrangeiro; e eu disse então ás innocentes mal entendidas na desgraça de seu pae: «Filhas, aprendei a pedir esmola em portuguez.» Ellas estremeceram e choraram,{159} como se adivinhassem a fóme e a nudez.

D. Maria José, com as palpebras trementes e as lagrimas a borbulharem, atalhou o brigadeiro:

—Deve ser muito penoso a V. S.ª contar-me a sua desgraça, e a mim ouvil-a. Se me julga nas circumstancias de soccorrer as suas mais urgentes precisoens, e se quer servir-se do meu pouco, espere V. S.ª que eu vou buscar algum dinheiro...

—Não, minha senhora—tornou o velho.—É certo que venho pedir a V. Ex.ª uma esmola, mas esmola muito avultada: nada menos que o pão, a educação e o futuro destes meus netinhos...

—Oh! se eu pudesse...—atalhou D. Maria—V. S.ª provavelmente está enganado com os meus recursos...

—Eu não me valho dos recursos da fortuna; mas sim dos da alma de V. Ex,ª. Receio estar roubando-lhe tempo, minha senhora, e portanto serei succinto quanto possa, até para me não parecer com todos os desgraçados que são geralmente diffusos. Ha um mancebo poderoso em Lisboa, do qual muitas familias realistas, de seis mezes a esta parte, recebem mezadas abundantes. Este caritativo senhor não é legitimista; não sei o{160} que é politicamente: sei que é bom; é dos que professam a divina legitimidade de Jesus Christo. Chama-se elle o snr. conde de Baldaque...

D. Maria José corou: eram o nome, a surpreza, e o jubilo, tudo simultaneamente.

O ancião proseguiu:

—Eu tambem sou dos favorecidos pela bem-fazeja mão do snr. conde, que me não conhece, nem recebe á sua presença as pessoas que o buscam para lhe agradecerem a esmola: recebe apenas as que vão pedir-lh'a. Eu já o procurei. Annunciei-me como portador das lagrimas reconhecidas de meus filhos e netos. O benigno mancebo mandou-me dizer que voltasse eu a pedir á minha familia que lhe mandasse sorrisos em vez de lagrimas. Delicado coração! Como é possivel haver no peito de um rapaz afortunado, que nunca soffreu, esta sciencia da desgraça, este respeito ao pêjo com que um velho, outr'ora feliz e affagado de ricas esperanças, se dobra a beijar a mão que lhe reparte o pão de cada dia pela sua familia! Diga-me V. Ex.ª minha senhora, como tão cedo se formou na alma do snr. conde de Baldaque a virtude que é costume retemperar-se na fragua das dores!... Teria elle, em annos tão verdes, experimentado desenganos, perdas de nobres{161} affectos, dissabores grandes que antecipam a velhice moral e influem a precoce piedade dos anciãos como eu, e das familias angustiadas como esta minha?

—Não posso responder-lhe...—disse a luveira—conheço o snr. conde ha pouco mais de um anno... Não sei de alguma dôr grande na sua vida, senão da morte do pae...

—Um cavalheiro que o conhecia não me disse mais do que V. Ex.ª—continuou o velho.—A este cavalheiro, que priva muito com os meus correligionarios e se chama Victor Hugo José Alves, perguntei se as relaçoens, que tem com o snr. conde, o auctorisariam a pedir-lhe um favor para o desvalido brigadeiro Tavares. Respondeu-me o snr. Victor Hugo que não; mas ajuntou que me diria pessoa idonea, e logo me nomeou a snr.ª D. Maria José de Portugal. Hesitei se devia acceitar a informação seriamente, porque havia no tom das palavras e no gesto d'elle certo azedume ou ironia que me fez desconfiar. Contei isto a minhas filhas, e ellas, principalmente as duas mais velhas, quando eu proferi o nome de V. Ex.ª, disseram logo que tinham conhecido uma filha do snr. D. Miguel, no collegio onde algumas vezes foram visitar as suas antigas mestras; e uma{162} d'ellas, se bem se lembra, ainda deu liçoens de francez a V. Ex.ª...

—É aquella!—exclamou com alvoroço D. Maria José, saindo fóra do balcão para abraçal-a.—É a snr.ª D. Ernestina Tavares... Eu entrevia no seu rosto uma pessoa conhecida...

—É esta velha que aqui vê de cabellos todos brancos aos trinta e cinco annos... disse Ernestina.

E D. Maria, com mais familiar sorriso:

—Eu tenho uma saleta, onde posso receber senhoras minhas amigas e de mais a mais pobres...—E, subiu a escada, correu um reposteiro de chita, e esperou que as oito pessoas entrassem.

Depois, mandou para a loja a criada, e pediu ao brigadeiro Tavares que lhe desse a satisfação de ser util á sua familia.

—Eu não sei que futuro hei de dar a estes quatro meninos...

N'este acto, parou um cabriolet defronte da casa. A luveira chegou á vidraça, e disse serenamente ao brigadeiro:

—É o snr. conde de Baldaque... Eu digo-lhe que suba, e V. S.ª tem excellente occasião de dispensar o meu patrocinio, pedindo directamente o que pretende.{163}

Levantaram-se todos com alvoroto e certa inquietação como de medo. Mil e duzentos contos representados por um homem é coisa capaz de assustar um ministerio, quanto mais uma familia pobre!

O conde ficou maravilhado quando D. Maria José, descendo até ao ultimo degrau da escada, lhe pediu que subisse á salinha.

Era o primeiro convite que recebia.

Entrou, e deu logo de rosto com o velho inclinado, quasi ajoelhado que lhe tomára a mão, e a levára aos labios.

—Eu não conheço...—tartamudeou o conde no maior enleio.

—Sou um brigadeiro do exercito do snr. D. Miguel, sou Christovão de Pina Tavares, a quem V. Ex.ª ha seis mezes dá o pão d'esta numerosa familia que aqui está.

—Mas...—balbuciou o conde, voltando-se para D. Maria José.—V. Ex.ª não me disse que conhecia esta familia...

—Não conhecia—respondeu a luveira—; mas reconheci agora esta senhora que algum tempo me leccionou em francez, no mesmo collegio onde ella foi educada. Alguem disse ao snr. Tavares que V. Ex.ª me honrava com a sua amisade; e este senhor, carecendo d'um empenho para o snr. conde, procurou-me, e agora mesmo começava a expor a sua pretenção.{164} Estava dizendo o snr. brigadeiro que não sabia que destino havia de dar áquelles quatro meninos, seus netos... Queira continuar, snr. Tavares...

O ancião, tomado de sobresalto, acanhou-se na presença do millionario. O pejo e a dignidade empéciam-lhe a eloquencia da palavra, realçando-lhe a do silencio. O conde olhou na face das creanças uma por uma, chamou-as para si, e disse brandamente:—É necessario fazermos homens estes pequerruchos... Então que querem ser? Provavelmente generaes. Quasi todas as creanças querem ser generaes...

—Seduzidos talvez pela fortuna militar do avô...—interrompeu Tavares; e continuou animado pela communicativa lhaneza do millionario.—O que eu muito desejo obter do valimento de V. Ex.ª, mediante a protecção d'esta senhora que bondosamente nos recebeu, é que os meus quatro netos sejam recebidos em algum azilo de infancia desvalida. Eu já requeri ao actual governo, documentando o requerimento com os meus serviços de soldado, desde 1801 até ao anno em que eu devia ter desertado da bandeira jurada, para estar hoje na alta posição onde subiram os meus camaradas desertores. Escravo da obediencia e da disciplina, segui os meus generaes{165} e acabei a minha carreira onde a honra me fez parar. Ora, se a extrema da honra foi ao mesmo tempo para mim o começo da penuria, isso é questão que não vem ao ponto, nem que viesse eu importunaria V. Ex.ª com queixumes e lastimas. Requeri, pois, pedindo a admissão de meus netos no collegio militar. A absurdeza do pedido era pelos modos tamanha que o meu requerimento nem sequer mereceu a consideração de ser indeferido. Fechadas as portas da justiça, bati ás da caridade. É V. Ex.ª, snr. conde, o bom anjo que sahiu a escutar os meus rogos, e...

—Muito bem...—obstou o conde, amargurado pelas lagrimas do velho.—Tenho entendido que V. S.ª deseja que os seus netos sejam recebidos em algum estabelecimento de educação... Ámanhan, á hora da tarde que lhe convier, queira enviar-m'os a minha casa...

O conde affagou as faces dos meninos, que lhe beijaram as mãos, sorrindo para elle com a graça do infantil amor que vem do coração das creancinhas aos labios que ainda não sabem agradecer. Depois, ergueu-se; apertou francamente a mão do venerando veterano; cumprimentou-lhe as filhas, que o contemplavam com os olhos anuviados de lagrimas;{166} e despediu-se de D. Maria José, que o fitava com estranho e amoravel olhar.

Ao entardecer do dia seguinte, Christovão Tavares entrou na loja da luveira impando de cançasso e exultação. Contou que o snr. conde o mandára entrar com os meninos para a sala, onde elle estava com um sujeito, a quem dissera:—Aqui estão os seus alumnos.

—Era o director d'um collegio de primeira ordem—ajuntou o velho.—O snr. conde enviou os meus netos a um collegio, minha senhora, com ordem de os proverem de roupas abundantes, de todo o enxoval prescripto aos meninos ricos. Depois, os pequenos e mais eu e o mestre entramos na caleche do snr. conde, e fomos a minha casa despedil-os das tias que choravam de contentamento. O generoso moço disse-me á sahida que fosse todos os mezes ao escriptorio d'um cambista á rua dos Retrozeiros, e que hoje mesmo lhe apresentasse um bilhete que me deu. Eu estava por tal maneira aturdido e embriagado de felicidade, que nem sei se lhe agradeci... Os desgraçados, minha senhora, quando de repente se acham a respirar uma atmosphera que não é a sua, suffocam, ouram, e não se acham em si mesmos, no seu habitual viver de escura cerração!... Fui á rua dos Retrozeiros, apresentei o bilhete, e recebi cem{167} mil reis! Eil-os aqui, snr.ª D. Maria! Cem mil reis para cada mez! E quatro netos no collegio a expensas d'aquelle anjo que a Providencia divina mandou travar a roda da minha desfortuna! Veja isto, minha querida senhora! Se eu me não affizer a esta luz que me alumia o fim da existencia, receio enlouquecer de alegria! Mas tanta felicidade é a V. Ex.ª que a devo...

—A mim, snr. Tavares?! pois que fiz eu?

—Que fez, meu Deus?! Recebeu-me na sua casa; olhou compassivamente para minhas filhas, disse palavras amorosas aos meus netos, e quiz que o snr. conde nos visse atravez do seu coração... Oh! eu creio que este milagre o fez a piedade abraçada ao amor... Quem nos deu o pão abundantissimo, o vestir, a casa com ar e sol, o acordar alegre sem o fantasma da fome diante, o futuro das creanças... quem foi senão a... futura condessa de Baldaque?

Ao proferir as ultimas palavras, o velho pegára convulsante da mão de D. Maria José e collára n'ella os labios tremulos.

A filha de D. Miguel sentira n'esse lance mui deliciosa commoção, um alvorecer de luz em cheio na alma, a revelação subita d'um amor, o primeiro, com as santas alegrias da pureza, e a confiança profunda nas virtudes{168} do homem amado. A revelação, em tom prophetico, feita por aquelle velho de barbas brancas orvalhadas de lagrimas, soou-lhe na alma com religiosa suavidade.

O instante foi solemne. A poesia pode engrinaldar o quadro com as suas flores e a moral regosijar-se, como é justo, de um caso de amor nascido em condiçoens tão honestas.

Eu, de mim, menos attreito que o leitor á idealisação de coisas naturalmente explicaveis, penso que ella já o amava tão devéras e de dentro da consciencia, que, se o conde descorçoado por desdens, se vingasse esquecendo-a, teria levado pela mão da saudade a filha do principe á sepultura; mas ás fragilidades das amorosas mais celebradas, não.

Isto é o que me parece; mas não afirmo que assim houvesse de acontecer. Sei historias de amores tão bem começadas como esta e acabadas nas enfermarias das loucas. Os personagens masculinos d'algumas andam ahi ao flaino ainda com a sua velhice tingida e sadia. Creio que o castigo d'elles é andarem pintados; mas o diabo conhece-os, apezar do fluido. Elles lá irão cair-te nas prezas, ó horrendo Minos!{169}

XIII
DESASTRE DO GATUNO

Vem agora aqui o casar.

D. FRAC. M. DE MELLO, Carta de Guia de Casados

Aquelle rapaz abrazado de cara, a refulgurar uns olhos vertiginosos á feição dos ebrios, cercado de gente, que o escuta, á mesa redonda do Hotel Bragança, é Victor Hugo José Alves.

O energumeno vocifera contra certa mulher que o trahiu. Conta que lhe immolou as convicçoens politicas, a juventude e a liberdade. Diz que por amor d'ella apostatára do socialismo, renegára das crenças republicanas, furtára ao edificio do futuro as achêgas do seu talento, e puzera o seu nome illustre debaixo das maldiçoens da posteridade.

Alguns convivas riem de esguêlha, em quanto outros lhe vão solicitamente reparando{170} o destroço que elle faz no kumel, acinte pedido para afogar a hydra que lhe roe as fêveras da alma.

Disse elle mais que essa perfida havia casado no dia anterior com o filho de um negreiro que morrera conde, transmittindo ao herdeiro, com a herança ignominiosa de tres milhoens, o titulo, o pergaminho onde o ministro fizera assignar ao rei a abdicação da sua moralidade. Acrescentou que o segundo conde de Baldaque se deixára embair do ardil de uma luveira, que se dava ares de princeza bastarda, tendo sido sua mãe uma famosa aventureira que não poderia com exactidão apontar o pae aos filhos que tivera. Disse mais... Não disse mais nada, porque n'este comenos estalava-lhe em cada face uma bofetada das que entupem os jorros da mais caudal eloquencia.

O que dera aquellas provas muito equivocas da sua admiração á objurgatoria do poeta era um velho barbaçudo, de espessos bigodes brancos, alto, gravemente vestido, magestoso aspeito de soldado da guerra peninsular. Era o ex-brigadeiro Christovão de Pina Tavares.

Victor Hugo, estupefacto da injuria e talvez atordoado do choque, encarou fremente, mas silencioso, o veterano que elle perfeitamente conhecia.{171}

—Villão!—rugia o velho com os olhos brilhantes da chamma dos vinte annos—Torpissimo gaiato que insultas a senhora que roubaste! Bandido, que comes no Hotel Bragança os tres contos de reis de...

Tavares susteve-se, reprimido pela mão da caridade. O homem, que havia bebido o fel da injustiça, receiou ultrapassar o direito do castigo. Conteve-se, vendo o quebranto do miseravel, e o fundo abysmo a que podia tombal-o com o pé.

Outro militar, general das fileiras da liberdade, antigo camarada de Chistovão Tavares, e seu convidante n'aquelle jantar, tirou-lhe com força pelo braço, e levou-o.

Os galhofeiros ouvintes de Victor sahiram de espaço, sem sequer averiguarem da injustiça do insulto. Elle, porém, restaurado da pancada moral, recolheu-se ao seu quarto, atirou-se contra o estofo d'uma voltaire, fincou os dedos na testa, e resmuneou cabeceando entre as sacudidelas da colera e dos gazes da indigestão:

—Ó minha vingança!... Ó minha vingança!...

Terribilissimo, formidando e medonho pela cara que fez então!

Quando, passados minutos, o criado lhe{172} entrou ao quarto com os castiçaes, Victor Hugo remetteu contra elle, bramindo:

—Que queres?

E cambaleava como se as luzes lhe inflammassem o alcool.

—Que queres?—tornou elle de murros apontados á cara innocente do gallego.

—Trago as luzes, snr. Victor Hugo...—tartamudeou o moço assombrado.

—Vai-te!... Deixa-me!... Negro, negro, quero tudo negro, como a vingança!

O criado sahiu, e disse á criada, que espreitava o poeta:

—Safa-te, que elle está borracho!...

Safemo-nos tambem nós: deixemol-o gizar a traça da vingança; não assistamos áquella alchimia diabolica; que o kumel e o cognac se lhe destillem em peçonha escorrida da fornalha do cerebro ao coração.

Mas quem disse a Christovão Tavares que o seu correligionario consumia em golodices francezas, no famigerado hotel, as inscripçoens da condessa de Baldaque?

Não foi ella.

Acontecera, como era natural, contar a luveira ao conde o destino que dera aos seus apoucados haveres. Esta confidencia—bem se lembra o leitor—denegada n'outra occasião,{173} fêl-a espontaneamente depois que, sem rodeios nem contrafeito pudor, disse ao conde que o amava. Similhante revelação realçou-lhe a virtude no conceito do noivo. Nada mais formoso, mais para se adorar que a pobreza tão de vontade, o despojar-se a magnanima senhora em beneficio d'um pae que lhe não enviára sequer palavra de agradecimento! Esta magua tocara-lhe o coração; mas sem queixar-se.

Entretanto, o conde, quando soube quem tinha sido o medianeiro da remessa do dinheiro, suspeitou da fraude, sem todavia insinuar ao animo de D. Maria as suas desconfianças.

Neste tempo, o brigadeiro Tavares era muito da casa do conde, e estimado como amigo com todas as excellencias de leal caracter, ao passo que D. Maria José solicitára a familiaridade das filhas a quem communicava as delicias do seu amor.

Contou o conde a Tavares o lance admiravel da remessa do dinheiro; mas, duvidando que o principe proscripto o recebesse, encarregou o velho de averiguar dos maioraes do partido legitimista, se alguem, auctorisado por D. Maria José de Portugal, remettera tal quantia ao snr. D. Miguel de Bragança. O indagador{174} levava instrucçoens para não citar o nome do medianeiro, talvez com o proposito de lhe não ferir o pundonor, se elle houvesse honradamente cumprido o encargo.

A commissão de soccorros respondeu que nenhuma quantia lhe fôra entregue de ordem de tal dama; posto que muitas vezes, nas reunioens onde concorria Victor Hugo José Alves, se houvesse mencionado tal senhora como filha d'el-rei o snr. D. Miguel—filiação aliás duvidosa para elles membros da commissão de soccorros.

No dia immediato, Christovão Tavares entregava tres contos de reis aos encarregados de remetter para Heubach os donativos, e pedia que se fizesse chegar ao conhecimento de D. Maria José de Portugal qualquer palavra que o snr. D. Miguel escrevesse a tal respeito.

Antes de volvidas tres semanas, a commissão de soccorros enviava, por via do ex-brigadeiro, á luveira da Rua Nova da Palma, uma carta do principe proscripto ao vice-rei, perguntando-lhe se a senhora que tão generosa o visitava no seu desterro era filha de Marianna Franchiosi Rolim de Portugal.

O conde, disfarçando a parte que tinha no jubilo da sua amiga, assistiu ao mavioso espectaculo{175} da ternura com que ella beijava a carta do pae.

Dizia então D. Maria, para aliviar escrupulos de ter sido injusta:

—Olhe, Raul, eu nunca lhe disse isto; mas digo-lh'o agora como quem se alivia de um peccado, confessando-o. Cheguei a desconfiar que Victor Hugo não mandasse o dinheiro. Nunca ousei perguntar-lhe por nada, receiando que elle me adivinhasse a suspeita... Pobre rapaz!...

E o conde sorria, sem lhe entre-mostrar uns longes da verdade.

Tavares, por sua parte, obedecia ás ordens do conde, guardando, com superior esforço e dolorosa violencia, o segredo do roubo. Quando, ainda assim, encontrava o ladrão entre os homens de bem do partido absolutista, o velho descorava, torcia-se, gaguejava monologos, resfolegava fumaradas de colera, e fugia com o segredo, que lhe pezava, como se levasse sobre a alma um enorme remorso—remorso de não avisar os seus correligionarios.

Uma vez pediu com as mãos erguidas ao conde que o deixasse expulsar d'entre os realistas aquelle hediondo larapio. E o conde respondeu:

—Isso é de justiça; mas deixe-me casar e saír de Portugal; depois, quando minha mulher{176} estiver longe, fará o que entender. Não lhe roubemos á feliz menina o prazer de ter sido d'ella o dinheiro que D. Miguel recebeu. Se o snr. Tavares denuncia o furto, o escandalo andará tão fallado por essa Lisboa que D. Maria será das primeiras pessoas que o saibam.

N'este bom proposito, esperava o velho, quando concorreu áquelle jantar, a convite do antigo camarada, que solemnisava n'esse dia, com duas garrafas do Porto, a sua reforma em marechal de campo. A garrafa correspondente ao ex-brigadeiro, a gratidão e a honra cooperaram n'aquelle impeto das duas bofetadas. Mas, graças ao sentimento de commiseração que o reteve, os circumstantes não perceberam senão que Victor Hugo insultava uma senhora a quem havia roubado tres contos de reis.

No dia seguinte, contava-se o caso no Chiado. Uns diziam que Victor havia sido amante da luveira casada agora com o conde, e lhe gatunára a herança que ella tivera d'um agiota. Esta era a opinião dos sugeitos contusos por Damião Ravasco. Outros, rejeitando a tradição mais corrente, asseveravam que a roubada tinha sido uma marqueza velha, e que o official realista, que bofeteara o litterato, era amante da marqueza desde 1801—ou 1789,{177} acrescentava o meu amigo José Parada para quem todos os infortunios eram cornucopias de chalaça.

O conde, recolhido á dôce intimidade do noivado por muitos dias, ignorou o successo; e, quando saíu, não houve indiscreto que lh'o referisse.

No emtanto, Victor Hugo dava que scismar aos seus partidarios, não comparecendo nas reunioens onde innocentemente conspiravam os letrados da causa; nem sequer nos saráos somnolentos, onde a idéa velha passava as noites cabeceando acalentada nos braços do snr. padre Beirão e d'outros.

Naturalmente se explica o desvio do cavalleiro da Ala pelo justo receio de ser interrogado ácêrca dos tres contos de reis, sabido já o roubo pelo ex-brigadeiro, que tinha accesso ás casas principaes, e reputação de homem honesto.

E mais depressa ainda se esclarece a conversão d'este desgarrado bode ao seu rebanho antigo,—á seita dos carbonarios, reorganisada em 1848, com elementos combustiveis de tanta força, que todos se vaporaram, deixando as fezes ahi por essas secretarias do Terreiro do Paço, encrustadas nas pastas dos ministros que foram, que são, e hão de ser. Diziam os{178} seus confederados na loja: que Victor Hugo, restituido á bandeira que desertára por amor d'uma ingrata Dalila, nunca fôra tão Samsão na força do verbo, tão Hugo na energia das figuras, tão republicano na medula dos seus ossos. O seu auditorio destampava em gargalhadas quando o Fuas Roupinho da esquadra naufragada, zombando do seu proprio appellido de guerra, chacoteava da ordem de S. Miguel, que elle denominava a cavallaria desferrada do archanjo.

É justo que não se esqueça, na correnteza d'estes casos, a familia d'esta pessoa.

D. Rozenda Picôa, assim que viu annunciado o casamento de D. Maria José de Portugal, deliberou visital-a e manter boas relaçoens com a sua hospeda, visto que a fortuna caprichosa a collocara na posse pouco vulgar de uma corôa de condessa com tres milhoens.

Annunciou-se ao guarda-portão do palacio. Tangeu-se uma campainha. Desceu um escudeiro que recebeu o nome da visita. E com demora de alguns minutos, voltou o escudeiro dizendo que a snr.ª condessa não recebia.

—Então porque?!—perguntou D. Rozenda abespinhada.{179}

—Porque não quer... É boa a pergunta!—respondeu o escudeiro com altivez.

—Não quer?!—redarguiu a mãe de Victor.

—Então a snr.ª luveira já não conhece as amigas velhas?... Não?... Ella me conhecerá!...

E saíu enfurecida em busca do filho, deliberada a conciliar-se com elle para collaborarem na vingança.

Em abono do benigno coração da condessa cumpre saber-se que ella receberia com alegre sombra a visita de D. Rozenda, se o conde, ao ouvir proferir o nome da mãe de Victor Hugo, não pedisse brandamente á esposa que se abstivesse de receber tal senhora.

Perguntou ella que razão havia para não a receber. O conde respondeu:

—Deve ser muito forte a causa que me faz contrariar-te pela primeira vez, minha filha. Tu a saberás. Por em quanto, basta que eu te diga que esta mulher é mãe de um homem que os meus lacaios recusariam acceitar nas suas assemblêas de taverna. Sabes de mais que eu não defendo minha casa aos pobres; as tuas amigas e os meus amigos são todos pobres. Se essa senhora está necessitada, soccorre-a; mas não a recebas, porque é mãe de um homem que está hoje escarnecendo os amigos de teu pae. {180}

A condessa ficou sabendo que Victor Hugo renegara da sua quarta ou quinta religião politica, e mais nada. Observava ella porém:

—O que a mim me admira, Raul, é ter elle entregado os tres contos de reis! É uma honra que não se entende bem a d'este homem!...{181}

XIV
A VINGANÇA

Sunt quædam quœ honestè non possum dicere.
Ha ahi coisas que eu não posso honestamente referir.

CICERO, Seg. Philipica.

Tenho á vista o folheto que Rozenda Picôa entregou ao filho, feito o pacto de vingança.

Em 1840, desoito annos antes dos successos até aqui referidos, publicou-se em Lisboa, na Typographia portuense, estabelecida na rua da Palmeira n.º 36, um opusculo de 23 paginas em 8.º, intitulado: A villan fidalga. Ou aventuras e transformaçoens da filha d'um moleiro conhecida em Lisboa pela alcunha de D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolem Portugal, moradora actualmente na Travessa nova de S. Domingos n.º 4, segundo andar, etc. {182}

O signatario do opusculo, Luiz Caetano da Rocha, principia por uma Breve exposição na qual relata que Marianna Joaquina o arguira de falsificador de um titulo de divida, em que a assignatura da querelante era imitada. O ministerio publico tambem querelara. Luiz Caetano, depois de oitenta dias de cadeia, foi ao tribunal para assistir á ratificação da pronuncia.

O advogado da accusação era Abel Maria Jordão, que morreu visconde de Paiva Manço; o da defeza era Antonio José Dique da Fonseca. Arcaram os dois athletas forenses com toda a pujança da sua notoria habilidade. Diziam os espectadores que o melhor causidico de D. Marianna era a sua formosura, bem que ella orçasse então pelos trinta e nove annos. O certo é que a parcialidade do juiz e delegado eram por tanta maneira insidiosas que o patrono do réo foi chamado á ordem, quando contava aos jurados a vida escandalosa da auctora. Quer, porém, o jury se deixasse vencer do soborno ou convencer da justiça, é certo que não ratificou a pronuncia e affirmou que era dolosa a querela.

Vem depois o réo absolto á imprensa com os documentos que o seu advogado não logrou ler no tribunal.

Examinemol-os succintamente, bem longe{183} de os acceitarmos com a importancia que o foliculario lhes dava quando escrevia: talvez que ainda uma penna habil se sirva d'estes documentos para compor uma novella... a qual mostrará que no mundo muitas vezes o plebeu se atavia com as galas da nobreza, o vicio se encobre com a capa da virtude, e nem tudo é o que parece.[3]

O primeiro documento é um attestado onde se diz que Marianna Joaquina, filha de Eusebio Joaquim e d'outra Marianna Joaquina fugira de Azeitão em 1814 com João Lopes Giraldes.

Do segundo documento convem trasladar o seguinte, que é já copiado da nota do tabellião de Lisboa Thomaz Isidoro da Silva Freire (Livro 214, folhas 103):

 

Saibam quantos este instrumento de declaração virem que no anno do nascimento de nosso Senhor Jesus Christo, de mil oito centos e trinta e um, aos vinte e nove dias do mez de novembro, n'esta cidade de Lisboa, na rua da Magdalena n.º 70 e casas de morada de D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolem, aonde eu tabellião vim, estando ahi presente Eusebio Joaquim da {184} Silva, morador em Villa Fresca de Azeitão, e por elle foi dito na minha presença e das testimunhas ao diante nomeadas: que, no anno de mil oito centos e quatro, lhe foi entregue e a sua mulher Marianna Joaquina da Conceição, uma menina para crear, a qual viveu em sua companhia, e da dita sua mulher na Villa d'Azeitão, reputada como sua filha até á edade de treze annos para quatorze em que se casou, e que agora pela prezente escriptura declara que a referida menina é a dita D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolem, e que não é sua filha, nem com ella tem parentesco algum, e que esta declaração promette, e se obriga haver em todo o tempo por firme e valiosa. Estando tambem presente a dita D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolem por ella foi dito acceita esta declaração na forma d'ella.

 

O terceiro documento é um auto lavrado em 1838, na villa de Azeitão, onde appareceu um José Antonio Atalaya, com procuração de pessoa que o documento omitte, citando Eusebio Joaquim da Silva para jurar em sua alma se D. Marianna Joaquina de Portugal residente em Lisboa, é sua filha, e se ali possue uma quinta. Eusebio declara ser verdade o allegado na petição.

Segue um documento denominado Querela.{185}

É o traslado da querela que deu em 1821 contra Marianna Elisia, mulher solteira, um Manoel Rodrigues, padeiro na Travessa do Secretario da Guerra, queixando-se de ter sido roubado em objectos de ouro e diamantes no valor de 848$000 reis.

Vem depois um attestado do solicitador de causas Antonio Gamarra, passado em 1838, certificando que Marianna Joaquina da Conceição Elisia, concubinaria do padeiro em 1821, era a mesma que, desasete annos depois, se chamava D. Marianna Joaquina Franchiosi Rolem Portugal, e vivia na rua da Emenda, onde tinha carruagem propria.

Accresce outra attestação do prior de S. Nicolau Francisco do Rozario e Mello, datada em 1839. Jura elle in verbo sacerdotis que, no anno de 1827, apparecêra no cartório da egreja de S. Nicolau uma mulher de capote dizendo que pretendia se lhe baptizasse um menino filho de paes incognitos, e que trazia procuração do desembargador Ferraz para ser padrinho; mas, no acto de lançar o competente assento no livro, ella observára que, sendo verdadeiramente padrinho quem tocava no menino, melhor seria não designar elle prior como padrinho o dito desembargador, mas sim o portador da procuração. Attesta mais o padre que, volvido algum tempo, appareceu{186} no mesmo cartorio uma senhora ostentando grande personagem pela tafularia dos vestidos e carruagem de que apeara, e disse chamar-se D. Marianna Joaquina Portugal; mas declara o prior que logo reconheceu ser a mesma que solicitara o baptismo já referido. E declarou a dama que tinha havido um filho do desembargador Ferraz, o qual menino ali fôra baptisado como filho de paes incognitos. Acontecendo, porém, ter proximamente fallecido o desembargador, ella pretendia que no assento baptismal de seu filho se declarasse o nome do pae. O padre recusou-se, sem que a competente auctoridade o auctorisasse. Dias depois, voltou a mesma senhora com uma ordem do vigario geral, o desembargador José Gonçalves Pereira, mandando proceder o prior ás diligencias necessarias para averiguar se o menino Francisco era filho do desembargador Ferraz. Em observancia de tal mandado foi o prior a casa de D. Marianna de Portugal, e ouviu o depoimento de tres mulheres; todavia, no dizer do padre, as testimunhas eram tão discordes nas circumstancias, que nenhum credito lhe mereceram. E acrescenta que tendo elle despedido um preto seu criado, o preto entrou no serviço de D. Marianna de Portugal; e, voltando para casa d'elle prior, declarara que na casa, d'onde sahira, havia um{187} menino comprado para herdar d'um homem rico e fallecido.

Temos agora outra attestação, que vae integralmente copiada:

 

José Joaquim do Cabo Pinto, commendador da ordem de S. Bento de Aviz, tenente coronel de cavallaria, governador do Forte da Cruz Quebrada. Attesto que D. Marianna Joaquina Franchiosi Portugal, hoje intitulada Rolem, talvez por se ter naturalisado franceza, tem sido heroina sem egual, como é notorio n'esta cidade, querendo-se intitular fidalga, sendo filha de um moleiro de Azeitão, por nome Euzebio, a quem fugiu com um official de Marinha, vindo assistir para o pé da Fundição; dizem que depois cazou com um sombreireiro, que a deixou e fugiu; tomou uma caza na rua dos Douradores, a que deu o nome de hospedaria, aonde iam os figuroens com as suas amasias, e por isso adquiriu grandes conhecimentos, dos quaes soube tirar partido, sendo seus apaixonados Luiz da Motta Fêo, o Barrão, coronel de milicias, Antonio Sicard, tenente de cavallaria que morreu na Torre de S. Julião, e um Rego, e a final o desembargador Ferraz que lhe poz carruagem, e ella largou então a hospedaria, e veio morar para o Carmo; mas, indo todos os dias á Travessa de Pombal a caza do tal Ferraz, que morreu quasi de repente, apoderou-se de um {188} bahu em que elle tinha os seus papeis; e, por temer que lh'os procurassem em caza, foi morar ao pé do Paço de Bem Formoso, e metteu-se depois a protectora de pretendentes, alcançando muitas coizas pois era protegida do ministro da fazenda D. Diogo Lousan; passou a ser espia de D. Miguel, a quem ia fallar um dia sim outro não, quasi sempre, e por isso contrahiu grande amisade com o Vadre. E, como receasse a chegada do snr. D. Pedro a Lisboa, se naturalisou franceza, pois sei a quem ella mostrou a carta de naturalisação; isto era para jogar com um pau de dous bicos. Finalmente é heroina do seculo, como é notorio. E, como me consta haver uma cauza que a dita propoz ao snr. F... na qual diz que uma menina que tem em caza é filha do tal F... declaro pela presente que ainda que ella fosse sua mãe propria, era impossivel saber se...[4] Mas é constante por ella o dizer ás suas amigas que a menina era sua afilhada, e a tinha tomado por a mãe ser pobre; mas agora no seu proceder se conheceu o fim para que a tomou... etc. Lisboa 5 de julho de 1838.

 {189}

Agora são duas senhoras que véem quebrar a dureza do quadro com as mimosas feminilidades dos seus dizeres. A snr.ª D. Maria Leonor da Cunha Saldanha, solteira, diz em 1838 que conhecera D. Marianna de Portugal em 1831 e 1832, a cuja casa ia; e vendo então uma menina de peito lhe perguntára de quem era. Primeiro, D. Marianna respondera que era filha d'uma mulher que a declarante via por lá; e, passados mezes, dissera que aquella menina era sua filha e do snr. D. Miguel, intitulado rei n'aquelle tempo.

A snr.ª D. Joanna Candida da Silva Monteiro, viuva, diz que conhecera entre 1817 e 1818 D. Marianna Elisia, criada de M.me Chapsal. Sabe que ella depois teve amisade com um padeiro, e depois com Luiz da Motta Fêo, e depois com o desembargador Ferraz; e que uma menina que tem em casa, e conta hoje de seis para sete annos, por nome Maria José, lhe disse ella que era sua afilhada. Declara mais D. Joanna que conhecia a pessoa contra quem depõe por ter sido ella depoente sua costureira, depois que, na ausencia de M.me Chapsal, a sua antiga criada, já n'outra posição, ficára senhora da casa.

————

{190}

Eis muito compendiada a substancia do opusculo que D. Rozenda entregou ao filho.

Victor Hugo empeçonhou a segunda edição do libello com prefacio e notas, para fazer bem sensivel que a filha de Marianna era a logrativa luveira da Rua Nova da Palma, feita por obra e graça dos seus olhos feiticeiros condessa de Baldaque.

O folheto, impresso clandestinamente, espalhou-se pela posta interna. O conde e a esposa receberam exemplares em duplicado. Foi ella quem os recebeu e descintou, á hora em que seu marido não estava em casa. Leu as primeiras paginas, e já pouco percebeu do affrontoso attestado do tenente coronel de cavallaria. O sangue, regorgitando-lhe do coração anciado, estuou-lhe no cerebro. Escurentou-se-lhe a vista, não por lagrimas, mas pela treva da congestão que lhe deu receios da morte. A attribulada senhora ainda chamou a brados a sua amiga Ernestina Tavares, lançou-se-lhe nos braços já esvahida, e balbuciou ainda:

—Que Raul não veja...

Alludia ao folheto que ali estava cahido no pavimento; mas Ernestina, sem attentar no folheto nem ponderar as inintelligiveis palavras, rompeu em altos clamores, mandando todos os criados procurar o conde. {191}

Já elle subia accelerado as escadas, perguntando a Damião Ravasco se o correio da posta interna havia trasido alguns papeis.

—Trouxe dois folhetos;—disse o mulato—um para V. Ex.ª e outro para a senhora condessa.

—Que desgraça!—murmurou o conde.

É que elle, entrando em casa do seu banqueiro, vira sobre a escrivaninha um folheto ainda cintado, e lera nas margens onde não chegava o papel sobrescriptado as palavras Marianna e Portugal. Pediu licença para abrir o folheto, leu salteando algumas linhas de cada pagina, e sahiu precipitadamente no intento de impedir que a condessa visse os insultos a sua mãe.

Entrou ao quarto onde Ernestina escutava a agitada respiração da condessa.

—Ella leu o folheto?—perguntou o conde.

—Não sei que folheto V. Ex.ª diz... Eu ouvi-a gritar, corri logo, e achei-a n'este estado. Ainda me disse não sei que palavras que mal percebi...

A este tempo, Damião Ravasco, esquecido do respeito usado com a ante-camara de seu amo, tinha tambem entrado, e erguido do chão o impresso. O conde, que transportára nos braços a esposa para o quarto inferior, não reparou no mulato que ficara lendo o folheto.{192} Quando, passados dez minutos, voltou para mandar procurar um medico, achou Damião a lêr.

—Quem te chamou aqui?—perguntou com azedume.

—Vim eu, snr. conde—respondeu serenamente o mulato.—Estava aqui a vêr quem é que fez isto... Ha de dar-me licença de levar este folheto... Quem o escreveu, dou-lhe a minha palavra de honra, juro-lhe pela alma de seu pae, que não torna a escrever outro. Diga-me, pela memoria de sua mãe, e pela vida da snr.ª condessa lhe peço que me diga quem escreveu isto?

—Não sei, Damião...—respondeu o conde reconhecido ao zelo e vehemencia dos rogos do mulato—Nós o saberemos... Vae chamar medico... Não te demores.

O medico não tardou; mas Damião Ravasco só entrou noite alta. Dizia-se que um mulato, com o fogo do inferno nos olhos, andára perguntando de typographia em typographia se um folheto que mostrava tinha lá sido impresso. Parava á beira dos grupos e imaginava que poderia descobrir rasto por onde fariscasse o auctor do folheto. Estacára no Chiado em frente do deputado da sova memoranda, a vêr se poderia, com mais ou menos justiça, escorchal-o contra um frade de pedra. Offerecêra{193} dinheiro grande a uns agentes da policia que lhe descobrissem a victima. E nestas diligencias que lhe queimaram o sangue e centuplicaram os demonios do máo genio, andou Ravasco todo o dia e grande parte da noite.

Quando chegou a casa foi muito ás surdas até á porta dos aposentos do conde. Escutou e ouviu passear na ante-camara. Bateu de mansinho. O conde sahiu á saleta.

—Como está a senhora?—perguntou Damião.

—Está com febre.

—Não descobri nada—voltou o mulato.

—Não descobriste o quê? que procuravas tu?

—O auctor do papel.

—Prohibo-te que faças taes indagaçoens. Eu o saberei; mas, se o souber, prohibo-te que me vingues. Se o infame não puder ser castigado por um homem de bem sêl-o-ha por um lacaio; mas não por ti que és... meu irmão...

Damião dobrou os joelhos, e cobriu de lagrimas as mãos do conde.{194}
{195}

XV
A PROLE DE D. AFFONSO VI

Para vós verdes como coisa nenhuma é encoberta.

BERN. RIB., Menina e Moça, cap. XII

Aquelle folheto, impresso em 1840, explica tres annos de angustias dilacerantes que levaram Marianna Rolem de Portugal ao extremo desafôgo do suicidio, ao ver-se desvalida das pessoas que se pejavam de conviver com a mulher infamada, e de mais a mais empobrecida.

Mas quem era Marianna Joaquina Franchiosi Rolem de Portugal?

Que havemos de inferir dos attestados reimpressos por conta de Victor Hugo?

É a filha aventureira do moleiro de Azeitão? Fugiu d'alli com um official da armada?

É a criada da franceza Chapsal?{196}

É a infiel contubernal do padeiro Manoel Rodrigues?

É a supposta parturiente do menino Francisco, e a indigitada amante de D. Miguel?

Donde lhe veem aquelles appellidos? Quem a levou a Joaquim Euzebio para que a creasse?

Vamos derivar a resposta de tão justa curiosidade desde 1661.

Onde isto vae!

A historia patria, que o leitor conhece impressa, não lhe refere que D. Affonso VI, á volta dos dezoito annos, viu em Lisboa, nas circumvisinhanças de Queluz, uma rapariga muito formosa, pelo braço de um mancebo de boa figura. Encarregou o valido Henrique Henriques de indagar quem fosse a galante menina. Descobriu-se que era Catharina Arrais, natural de Coimbra, donde fugira com seu primo, Manoel Arrais, estudante, a fim de se casarem em Lisboa, logo que obtivessem dispensa de parentesco e remoção de outros impedimentos canonicos attinentes ás fragilidades da sua céga paixão.

Sabido isto, e a residencia dos profugos amantes, estava sabido tudo. Manoel Arrais foi preso e conduzido a Coimbra. Catharina, na noite d'esse dia, foi assaltada no seu esconderijo por um tal Agostinho Nunes e por{197} Henrique Henriques de Miranda que a levaram ao rei.

Dois annos depois, Catharina Arrais era freira em Santa Anna, e Manoel Arrais era fallecido de dôr.

Antes, porém, de ser dada como esposa a Jesus Christo, houvera Catharina uma filha de Affonso VI, a qual se chamou D. Luiza de Portugal.

Esta D. Luiza, quando prefez seis annos, foi transferida a casa do famoso estadista conde de Castello Melhor, onde recebia tratamento de alteza.

Aqui se deteve com honras de infanta até ao anno de 1667, em que o pae já estava preso á ordem do principe seu irmão. Mas um dia o corregedor da côrte entrou á força no palacio do marquez, apoderou-se de D. Luiza de Portugal, e levou-a para o mosteiro de Santa Anna.

Soror Catharina recebeu sua filha, pensionada pelo infante, com a declaração de que sua alteza não a reconhecia como sobrinha; mas a protegia como desgraçada victima da libertinagem de seu augusto irmão.

Vejamos agora o que se fez para destruir as conjecturas de ser filha de D. Affonso VI aquella menina. A historia impressa não o diz. Ha manuscriptos que nos elucidam; e um,{198} que possuo com a maior estimação e de nenhum modo suspeito, vae referir-nos a villissima traça que teceram os partidarios da rainha e do infante para desfazerem a embaraçosa hypothese da fecundidade do filho de D. João IV.

O manuscripto intitula-se: Vida de el-rei D. Affonso VI, escripta no anno de 1684.[5]

Dava que pensar e receiar a crença publica de existir a filha do rei. O processo do divorcio, fundamentado em rasoens de torpissima deshonestidade, tropeçava n'aquella menina.{199} O procurador da rainha, duque do Cadaval, refere o expediente que lhe desatravancou o passo. Sobeja malvadez onde a imaginação coxêa no enredo. O homem escreveu isto para a posteridade, e talvez vaidoso de engenhar o capitulo d'uma novela ao sabor do tempo. Conta elle: «Offerecia-se ao duque uma grande duvida do bom successo da causa (o divorcio); porque dizia que era impossivel, tendo el-rei uma filha em casa do conde de Castello Melhor, chamada D. Luiza e com tratamento de alteza. Achando-se este negocio com esta grande duvida, Deus, que é a mesma verdade, foi servido de buscar os meios de se descobrir e averiguar com toda a certeza.

Recolheu-se um dia ao jantar para casa; achou na mão de um criado seu, um escripto que ali tinha deixado um moço. Dizia elle: Se V. Ex.ª quer saber um negocio muito importante para a cauza da rainha com que V. Ex.ª corre, ache-se á noite no seu coche, só, ás escadas do Loreto, de sorte que espere n'aquelle logar o sino da meia noute. E não se assignava o escriptor. Logo foi o duque á Esperança,[6] e, mostrando o escripto á rainha, lhe disse ella{200} que de maneira nenhuma queria que fosse, por que aquillo podia ser de grande perigo. Respondeu-lhe o duque que havia de ir, e que deixasse sua magestade á conta d'elle a segurança.

«Reedificava-se a egreja do Loreto do incendio que havia padecido. Tinha no adro um grande telheiro a cujo abrigo trabalhavam os officiaes da obra. Mandou o duque metter n'elle o capitão de cavallos Manoel Travassos e o de couraças Manoel Caldeira, ambos de grande valor. Acompanhavam aos capitães quatro creados do duque, todos valorosos e bem armados com ordem de que, se vissem mais de que uma pessoa, sahissem do logar onde estavam. Foi o duque áquelle logar assignalado esperar a meia noite. Eis que chega ao estribo do coche uma mulher embuçada; e, perguntando ao duque se a conhecia, o duque lhe respondeu que não; e ella lhe tornou que era D. Anna Saraiva, que havia muitos annos o duque a vira e lhe fallara muitas vezes; e disse-lhe o duque que entrasse no coche, e que fossem até á Cotovia, que era parte mais solitaria.

«Disse-lhe D. Anna Saraiva que lhe queria mostrar como uma menina, que estava em caza do conde de Castello Melhor não era filha d'el-rei, posto que tractada por tal. Perguntando-lhe{201} o duque como o sabia, lhe contou toda a historia, e disse que, morando Agostinho Nunes nas cazas do armeiro-mor, a convidou para ir ver botar uma náo ao mar; e que alli vira uma moça bem parecida, descorada e com o cabello cortado; e que, perguntando-lhe algumas cousas a fim de saber quem era, e que vida era a sua, lhe respondeu que as más cores do seu rosto eram effeito da sua dor, e os cabellos lhe haviam sido cortados pela mão d'el-rei. Foi D. Anna, que era destra, inquirindo a môça, até que esta lhe manifestou sua desgraça, e disse que se chamava Chatharina Arrais; e, galanteando-a Manoel Arrais seu primo em Coimbra, viera para Lisboa com animo de casar com elle; e que, morando em umas cazas com o dito seu primo, a foram furtar uma noite Agostinho Nunes e Henrique Henriques, e a levaram ao paço, e pernoitou na camara de el-rei: que seu primo morrera de magua em Coimbra, e ella fôra para casa de Agostinho Nunes, onde se achava, e fôra obrigada a dizer, quando desse á luz, que a creança era filha d'el-rei; e sobre isso lhe fizeram grandes tyrannias até chegar el-rei a cortar-lhe os cabellos. Disse mais D. Anna Saraiva que D. Catharina Arrais estava freira em Santa Anna, e que ella lhe fallara, e estava resolvida{202} a vingar-se, declarando a verdade. Chamou o duque a Agostinho Nunes e em presença de Duarte Ribeiro foi inquirido e disse a verdade. Resolveu-se o duque a ordenar a Aurelio de Miranda, tabellião de notas, fosse ao campo de Santa Anna, perto da egreja, e alli esperasse recado d'elle duque; o qual deixando Augusto Nunes no seu coche, mandou dizer á prelada que quizesse fallar-lhe; e, vindo a prelada, lhe disse que tinha que fallar com Catharina Arrais, e sua mercê lh'a mandasse á grade. Assim fez. Appareceu; e, dizendo-lhe o duque que não vinha tirar-lhe a sua tença, antes conservar-lh'a; que elle sabia a verdade do que tinha passado; que convinha muito que o depuzesse em juizo, e que elle pediria licença á rainha para tal deposição. Veio Aurelio de Miranda. Disse D. Catharina o que havia succedido, e assignou. Averiguada esta materia, foi D. Luiza tirada pelo corregedor da côrte de casa do conde de Castello Melhor, e o infante lhe deu uma tença. Tirado este impedimento, se processou a causa de divorcio até final conclusão, etc.»

Até aqui a fantasia do historiador, atando alguns lanços verosimeis com outros de todo o ponto irracionaes. Que precisão tinha D. Anna Tavares de revelar o mysterio, a deshoras,{203} nas escadas do Loreto? De quem se temia ella, se tinha por si a rainha, o infante, o duque, Agostinho Nunes e todos quantos haviam sido alcayotes do rei preso? Quem teve a sandia credulidade de acceitar que D. Catharina, á primeira vez que via D. Anna, lhe contasse as miudezas vilipendiosas de sua vida? E o caso de el-rei lhe cortar de mão propria as tranças, por que ella se recusava de o acceitar como pae da creança que havia de nascer? Claro é que os personagens d'aquelle tenebroso drama de cruezas e devassidoens eram melhores algozes que romancistas.

Todavia é certo que soror Catharina recebeu sua filha, e, segundo a vontade de quem lh'a pensionára, quiz que ella fosse religiosa. Estava, porém, um amor infantil começado em casa do grande ministro de Affonso VI com D. Pedro de Mello e Alencastre, fidalgo de primeira plana, aparentado com os Castello-melhor. O moço, com quanto nobilissimo, olhava timidamente para a filha do rei; mas, depois que a prepotencia rebaixara a jerarchia de D. Luiza, complanou-se o terreno em que elle mais affoitamente podia requestal-a.

Estreitaram-se as relaçoens amorosas—tanto quanto os degenerados mosteiros do tempo as facilitavam—mantidas, ainda assim,{204} no mais alto ponto da honestidade. D. Pedro de Mello e Alencastre casou com D. Luiza de Portugal, e viveram em uma quinta do Riba-Tejo, em um quasi desterro imposto pelo contrariado infante.

Houveram varios filhos todos varoens, e um d'estes, D. Prior de Guimaraens, de amores com uma dama da côrte e de stirpe muito selecta, reconheceu sua filha D. Maria de Portugal, que casou com Marco Franchiosi, filho de um conde milanez, que militara em Portugal, no fim do reinado de D. Pedro II. Seguiu-se, neta de D. Luiza, D. Maria Izabel Franchiosi de Mello e Portugal e Alencastre, dama da côrte da rainha D. Marianna de Austria, acolhida pela soberana por dó da extrema pobreza em que a deixára o pae, homem de vida estragada.

N'este tempo, appareceu em Lisboa um provinciano riquissimo, de Pinhel, chamado Salvador da Costa Fagundes, a quem D. João V fez capitão de cavallos, deu habito de Christo, foro de fidalgo, e nomeou sargento mór da sua terra.[7]{205}

Este Salvador Fagundes, movido pela formosura e prosapia da açafata da rainha, casou{206} com D. Maria Izabel, segunda neta de D. Luiza de Portugal.

Tiveram quatro filhos: um que succedeu na casa, dois que professaram em Santa Cruz de Coimbra, e uma senhora que se chamou D. Maria Escolastica Pulcheria Fagundes de Alencastre Portugal.

Esta menina, que vivia na côrte em casa de parentes, amou um official francez chamado Hilario Lescœure Rolem, (Rolin?) com o qual fugiu para Azeitão e mais uma filhinha nascida em Lisboa. Por Azeitão viveram anno e meio clandestinamente em uma quinta que o francez ali comprara. Descoberto e perseguido pela justiça, o official foi assassinado em acto de resistencia, e D. Maria reconduzida aos seus parentes, depois de ter deixado entregue a Joaquim Eusebio, moleiro em Azeitão, a filha, que se chamou Marianna Joaquina.

D. Maria, em 1808, forçada pelo irmão, casou para o alto Minho com o representante de uma casa antiquissima, cujos appellidos omitto em respeito a seus netos.

E, como em 1816 ficasse viuva, foi a Lisboa, e encarregou um seu afilhado, official de marinha, de procurar Marianna em Azeitão, e convencêl-a a seguil-o para Lisboa, se tivesse a fortuna de a encontrar.

O official encontrou a filha de sua madrinha{207} moirejando no cazebre do moleiro. Facil lhe foi movêl-a a acompanhal-o.

Orçava então pelos treze annos D. Marianna Elisa. Era linda quanto Deus podia fazel-a. A mãe nobilitou-lhe o nascimento com as suas lagrimas, e entregou-a aos disvellos de uma franceza illustrada que se chamava madame Chapsal.

A mãe demorou-se com a filha alguns mezes, fez-lhe doação da quinta de Azeitão revindicada de illegitimos possuidores, estabeleceu-lhe abundantes recursos, e voltou para a provincia, onde tinha filhos na primeira infancia.

Não sei se esta senhora voltou a Lisboa desde aquelle anno até ao de 1819 em que faleceu, depois de haver rogado a um provedor Ferraz, então seu hospede em Ponte do Lima, que entregasse a Marianna o seu cofre de joias, não podendo legalisar-lhe outra herança.

Este Ferraz, quando entregou as joias, rendeu-se por tal feitio á belleza da orfan, que não houve mais desenliçar-se d'aquella fascinação. Por desventura, o provedor era rivalisado por um gentil cadete de cavallaria, de nome Antonio Sicard.

Travou-se entre os dois emulos batalha de odios abafados, que mais tarde levaram Sicard, já alferes de cavallaria, por denuncia aleivosa de Ferraz, á Torre de S. Julião, onde morreu.{208}

Presume-se, todavia, que D. Marianna decidira o pleito a favor do cadête, por maneira tão decisiva e inappellavel que se estadiava em publico, de braço dado com o esbelto môço.

Tambem conjuraram bastantes tradiçoens a confirmar que o desembargador Ferraz, homem teimoso e rico, lográra tal qual dominio no coração de D. Marianna, á custa de liberalidades, entre as quaes realçavam o palacete e a carruagem.

Que D. Marianna de Portugal quiz mais tarde legitimar um filho para succeder na herança do magistrado é de todo o ponto inquestionavel, segundo jura o prior de S. Nicolau; mas essa creança não desdoira os creditos da quinta neta de Affonso VI. Era um filho artificial.

A opinião publica desdoira as mães dos filhos naturaes; dos artificiaes, não. Ultraja-se a natureza e respeita-se a arte.

Vivia D. Marianna de Portugal fóra de portas, quando D. Miguel a viu. Sua sexta avó D. Catharina Arrais soprara a mesma lavareda no peito de Affonso VI. Mas o real amante, graças á brandura de costumes d'este seculo, não a tosquiou, antes lhe beijou as tranças, e se deixou encadear por ellas. Tambem não consta que Marianna se doêsse do pejo da maternidade, á imitação da freira de Santa Anna,{209} consoante o duque de Cadaval a calumniou. Muito pelo invéz: ella adorava o principe, e sentia-o na alma e no sangue quando a creança lhe palpitava no seio.

Attesta o coronel José Joaquim do Cabo Pinto, no opusculo reeditado por Victor Hugo José Alves, que D. Marianna visitava D. Miguel de dois em dois dias. Isto não me parece exacto. Pendo a crêr que ella o visitasse todos os dias. Quanto á espionagem, que lhe assaca o desbragado commendador d'Aviz em estylo de tarimba, isso é calumnia a descambar em parvoice. As espias absolutistas não tratavam com o rei directamente: começavam no Miguel alcaide, e tocavam o ápice do valimento se levavam a denuncia até ao intendente geral da policia.

D. Marianna de Portugal empobreceu durante a sua intimidade com o rei. Para sustentar carruagem, libré e uma apparente abastança, vendeu as joias da mãe, depois que exhauriu o peculio que amealhara nos cofres do desembargador. Animo isempto e estreme de vil ganancia ostentou-o nobremente quando o coração predominou e abafou os baixos sentimentos que a pertinacia do desembargador lhe implantara na alma plebeamente educada. Um amor grande com os luzimentos verberados{210} da corôa real, devia ser segundo baptismo para o coração da neta de reis.

Acabada a guerra e desterrado o infante, D. Marianna estava pobre e tinha uma filha.

O desembargador Ferraz volveu a procural-a como amigo, como protector, e como velho inveterado de paixão, agora exacerbada pelos realces que o amor de D. Miguel haviam resurtido da belleza de D. Marianna.

Se é preciso confessar que a desvalida senhora acceitou a protecção do magistrado por amor á filha e desamor á penuria, diga-se o delicto bem alto, e haja de lhe perdoar em silencio a notoria sensibilidade do leitor.

Voltou a neta de D. Catharina Arrais a equipar sege e lacaios; mas, em 1838, o desembargador, aquelle Merlin cupidineo, levou comsigo para o inferno dos desembargadores a lanterna milagrosa que fazia prodigios de ouro á volta de Marianna.

Recorreu a mãe de Maria José ao expediente da hospedaria. N'esse trato, ia provendo á educação da filha, e costeando certas pompas um tanto desbotadas, mas incongruentes ainda assim com o seu estado. Contrahiu dividas, precipitou a queda na rampa da uzura; e é bem de presumir que o agiota, de quem a filha herdou, a desbalisasse a termos de lhe {211} não poder a consciencia com o roubo. Exemplo unico.

O insulto publicado em 1840 impeçonhou a vida da infausta vergontea de Bragança. Os tres annos que ainda arrastou á volta da filha, como quem se estorce e despedaça entre o amor de mãe e a necessidade de morrer, foram expiação acerba, purificação que nos torna respeitavel a memoria d'esta senhora de tão illustre sangue.

Em 1842 devia ter D. Marianna de Portugal quarenta annos proximamente, e vivia ahi por perto da Praça dos Romulares, com o seu hotel bastante luxuoso ainda, para dignamente hospedar o principe Lichnowsky.

Este principe viu-a, admirou-lhe as graças, comquanto já desluzidas, e então soube que uma linda menina, que ali se via, era filha do principe proscripto. Nas suas Recordaçoens, do anno de 1842, escreveu elle: Fui recebido na rua de... em uma hospedaria...[8]A dona da casa, uma ci-devant bella mulher com ainda classicos vestigios de depostos encantos, esteve antigamente na posse de ternas relaçoens com D. Miguel. Ha mesmo alguem assás atrevido{212} para chegar a assegurar que existem provas vivas d'aquella perdilecção real.[9]

Poucos mezes mais disputou a vida atormentada, a desgraça, que, de dia para dia, lhe esvasiava os guarda-fato e os bahús. Não é mister rendilhar phrases lugubres, que deixem transparecer as dilaceraçoens que a levaram ao suicidio.

Duas palavras bastam: vergonha e pobreza. Vergonha dos opprobrios d'aquelle folheto, e ninguem que a defendesse. Pobreza, que explicava o desamparo dos protectores, e a impunidade da injuria.

Morreu, descansou.{213}

XVI
RESSURREIÇÃO DE UMA ALMA

Nec sine premio virtutes.
Não ha virtude despremiada.

BOETIUS, da Consolação da Philosophia, Liv. IV.

A medicina, informada da origem da enfermidade moral da condessa, aconselhou viagens como distracção. O caracter intermittente dos accessos de lagrimas, e a incongruencia das palavras, delirantes sem febre, eram symptomaticas de perturbação de juiso. Todo seu empenho apontava em provar ao marido que as affrontas atiradas á sepultura de sua mãe eram calumniosas. O conde esforçava-se por convencêl-a de estar d'isso bem persuadido; ella, porém, sobrevinha na mesma prova, se despertava apoz um breve espaço de repouso.

Assim que a desfigurada condessa ganhou{214} forças e se docilisou ás carinhosas supplicas do marido, aprestou-se tudo rapidamente para a viagem.

Da casa e direcção dos negocios do conde ficou encarregado Damião Ravasco. O mulato exultou quando o dispensaram de os acompanhar, sem todavia manifestar o intento que o prendia a Lisboa. Toda a sua esperança era descobrir o publicador do folheto, bem que de si para comsigo devia ser um dos dois que elle esmurraçára, sem embargo de lhe dizer Christovão Tavares que suspeitava muito d'um tal Victor Hugo. Queria muito o mulato que lh'o mostrassem a fim de o não procurar longo tempo, se um dia o diabo o atraiçoasse. E, com effeito, chegou a vêl-o á porta do Marrare do Chiado. Contemplou-o com disfarce, e disse entre si: «deve ser este!» Entretanto, as cartas vindas de differentes paragens da Europa, não davam esperanças do restabelecimento da condessa. A monomania da justificação da mãe resistia ás diversoens, aos rogos, ás caricias, e á therapeutica dos banhos, frios da Allemanha.

No outono de 1860, chegaram a Baden, esperançados nas aguas mineraes. Ao mesmo tempo, chegava D. Miguel de Bragança com sua esposa e alguns filhos.

O conde levou alvoroçado a noticia á enferma,{215} que teimava em não sahir do seu quarto. A condessa agitou-se, riu-se, chorou, bateu as palmas, abraçou o marido, beijou a sua amiga Ernestina, e exclamou com febril vertigem:

—Vou vêr meu pae!... vaes vêl-o, Raul!... verás o que elle te diz de minha mãe... verás que é tudo calumnia!...

Mas o conde receiava que o infante desconfiasse da sanidade intellectual de uma senhora que lhe saisse ao encontro a chamar-lhe pae, sem de antemão se haver prevenido para tal apresentação.

Contida no seu enthusiasmo a condessa por considerações de etiqueta indispensaveis com os principes, o conde fallou a um sacerdote da pequena comitiva do infante, e industriou-o sobre a maneira de precaver D. Miguel para ser cumprimentado por uma dama portugueza, a condessa de Baldaque.

O principe alegremente mostrou vivo desejo de conhecer a esposa de um cavalheiro a quem elle e os legitimistas portuguezes deviam relevantes finezas.

Incutia receios o arquejar do peito da condessa, quando apeou da carruagem á porta do infante.

Sahiu D. Miguel de Bragança ao patamar da escada a recebel-os. Quando, com a mais{216} lhana cortezia, o principe offerecia a mão á dama, ella ajoelhou; e, suffocada por soluços, cobriu de lagrimas e beijos a mão que não pôde esquivar-se áquelle estranho transporte.

—Ó minha senhora!—exclamava o infante—por quem é! peço-lhe que se levante...

E olhava para o conde, como a pedir-lhe a explicação da anciedade da dama.

E o conde, com os olhos turvos de lagrimas, disse:

—Vossa magestade comprehenderá a perturbação de minha mulher, sabendo que ella é Maria José de Portugal, filha da snr.ª D. Marianna...

—Ah!—exclamou o infante—já sei... já comprehendo...

E, com maior esforço, inclinando-se até poder levantal-a dos seus pés, abraçou-a, beijou-a na testa, correu-lhe as mãos pelas fontes, e murmurou:

—Vi-a creancinha... de seis mezes...

E, tomando-lhe o braço, conduziu-a á sala, sentou-a na othomana, ao seu lado, lançou-lhe o braço pela cintura, e disse-lhe quasi em segredo:

—Sua mãe... é morta?

—Ha muitos annos...—balbuciou a condessa.

—Porque me não escrevia, quando me{217} enviava...—tornou elle, feita uma longa pausa.

—Oh!—atalhou D. Maria—peço-lhe que não se lembre... vossa magestade...

—Que me não lembre?... Eu não me esqueço senão dos ingratos... minha filha!...—E voltando-se para o conde:—sênte-se, senhor... Como se chama seu marido?—perguntou á condessa.

—Raul—respondeu ella.

—Sênte-se, snr. Raul... Sei que é brazileiro... Agradeço-lhe esta boa hora da minha vida—proseguiu tomando entre as suas a mão de Maria.—Mal diria eu!... Ella aqui está... aquella creança que eu via como um anjo lá ao longe da vida... um ponto branco e luminoso do passado... um sonho!...

D. Miguel alongou os olhos tristes para o horisonte azul que as montanhas recortavam. Que visão! que saudade! que escuridade ia dentro d'aquella alma, purificada na onda das lagrimas, na fragua da indigencia, no cadinho ardente do desesperar!

O conde, embevecido no aspecto respeitavel e triste d'aquellas cans geadas dos invernos de vinte e oito annos, escutava-o tão admirado, quanto em Portugal a opinião da plebe das letras malsinava de ignorancia o principe. D. Miguel interrogava, ora o conde,{218} ora a filha sobre coisas e pessoas da patria, alheando-se da politica, e instando a sua dolorosa curiosidade em miudezas de certos sitios, dourados pelo sol da infancia, e esmaltados de indeleveis côres pelo archanjo da saudade, que lá de longe nos segue até nos entregar ao archanjo da morte.

Quando um criado entrou á sala annunciando que a rainha se recolhera do banho, o infante disse ao conde:

—Minha mulher ha de querer cumprimental-os em occasião mais opportuna.

A condessa levantou-se, dobrou o joelho ao lado do esposo, beijaram as mãos do principe, que deu o braço á dama, até ajudal-a a subir ao estribo da carruagem.

Desde esta hora, raiou luz nova no espirito da condessa. As lagrimas do enthusiasmo filial diluiram a mancha negra que lhe ennoitecia, a intervallos, a razão. Se a causa d'aquelles crepusculos da escuridade da alma tinha sido julgar-se abatida pela calumnia aos olhos do marido, a cura operou-se pelo exalçamento que lhe dera a consideração do pae em presença do conde. Só assim: nenhuma outra ancora salvaria do golpho das trevas aquelle espirito. A ferida escalavrara o orgulho da neta de Affonso VI, por sua mãe e por seu pae.

Demorou n'aquella paragem o conde até{219} que D. Miguel recolheu a Heubach. Depois, deteve-se em Allemanha. Por espaço de anno, raros dias se não viram as duas familias. A felicidade de Maria José era o céo, como raras vezes a virtude n'este mundo o encontra, na consciencia, e nas alegrias inalteraveis da vida exterior.

O conde, adivinhando os discretos silencios da esposa, disse que nunca mais voltaria a Portugal. Projectou, pois, deter-se na Europa mais dois annos, e voltar para o Brazil, onde o chamavam as memorias da infancia, como quem queria continuar as doçuras da vida adulta e lá esperar a quietação da velhice.

N'este proposito ordenou ao seu procurador e mormente a Damião Ravasco a venda de todos os seus haveres em Lisboa, com ordem ao leal amigo de o ir encontrar a Marselha, levando comsigo Christovão Tavares e toda a familia do afortunado velho.

Quando Damião, grandemente desconsolado por ter de sahir de Portugal sem vingar o conde, obedecia ás ordens recebidas, foi colhido de sobresalto por uma noticia que, segundo elle affirmou, por pouco o não matava de prazer.

Christovão Tavares mostrou-lhe uma gazeta liberal em que o articulista, em polemica virolenta com o redactor d'outra gazeta, escrevia{220} estas lisonjas: «... Quem é este sevandija que nos falla em moralidade, em caracter, em firmeza de principios, em dignidade jornalistica? Quem é o gaiato, o fundibulario das esnogas d'Alfama, que nos despede a pedra, sem receio que o recochête lhe vá bater no stigma infamante da testa, onde a lei já não deixa escrever LADRÃO com ferro em braza? Quem é, e donde veio este Victor José Alves, que incravou no nome plebeu o «Hugo» tão honrado no mundo? Quem lhe disse a elle que onde estava o Alves, para memoria de um certo Diogo, devia intervir o sobrenome do primeiro poeta do universo?

«Victor Hugo! elle, o filho da estalajadeira, que ainda tem, como brazão de familia, atraz da porta o cacete do marido, que quiz mercadejar com as costas dos septembristas, como com os coiros de vacca onde se levantou subindo pela tripeça do pae!

«Victor Hugo! elle que imbaiu uma certa luveira a dar a D. Miguel uns tres contos de reis, que o escroc desbaratou em pasteis de camarão e orgias nos bordeis!

«Victor Hugo! elle que depois prefaciava um apontoado de injurias aleivosas que haviam matado a infeliz mãe da luveira roubada, e levaram depois ao cairel do sepulcro moral a razão de certa condessa, que hoje{221} erra foragida da patria em companhia de seu honrado marido!

«Elle, Victor Hugo, que apoz tantas protervias, umas culminantes de infamia, outras de irrisão, exerce hoje um logar de confiança politica, o secretariato d'um governo, e pendura na lapella da casaca, que devia ser blusa de forçado, duas commendas, uma que lhe dá o foro de fidalgo, e outra que o representa benemerito das consideraçoens litterarias!... Elle que...»

Damião Ravasco arrojou o jornal, e atirou-se aos braços de Tavares exclamando:

—É meu o homem! Se alguem lhe põe a mão, arranco-lhe os figados pela bocca!

E parecia jorrar ascuas de forja afogueada por ambos os olhos.{222}
{223}

CONCLUSÃO

É immolado um porco á terra.

HORACIO, Epist. I, Livro II.

Corria o mez de agosto de 1862.

Na estação de seges de praça, que descorrem pela cidade baixa, notaram os boleeiros a concorrencia de um mulato, que elles tinham visto, adestrando as soberbas parelhas do conde de Baldaque, ou aderençando pôtros rebelloens e alfarios com a galhardia de consummado picador. Reputavam-no mordomo do millionario; porém, quando o viram na praça, boleando uma sege numerada, inquiriram d'elle mesmo se deixára o serviço do conde. E elle respondeu:

—O conde foi-se embora para França, e eu, que me dou bem por cá, empreguei as minhas soldadas n'este trem, e vou vivendo.{224}

O serviço de Damião agradava sobre modo aos rapazes do Chiado. O mulato era já conhecido da mocidade de pechisbeque, versão genialmente portugueza da jeunesse dorée lá d'álem. Em dia de toirada era ditoso quem o emprazava de vespera.

Victor Hugo rara vez sahia de sua caza na Travessa do Estevão Galhardo—aonde voltára reconciliado com a mãe e um tanto fallido ao dinheiro—que não visse o mulato convidando-o a acceitar-lhe o seu serviço.

Uma vez, entrou na sege, e disse:

—Ás camaras!

A sege voou. Victor, apeando, disse:

—Isso é que é andar, rapaz! Como te chamas?

—O mulato.

—Mas como é o teu nome?

—Mulato.

—Mulato não é nome, é côr. Tu deves ser Simão ou André ou Belchior...

—Sou mulato.

—Pois então, mulato—voltou sorrindo o commendador da Conceição—queres ir amanhã levar-me a Cascaes?

—É longe, meu amo. Faz muito calor. Estafo os cavallos á torreira do sol; e eu não sei andar a passo. É para lá! bem vê V. Ex.ª... Eu não poupo o gado...{225}

—Pois vamos de noite, queres?

—De noite? A que horas?

—Ás tres.

—Isso é de dia.

—Ás duas, serve-te?

—Convem. Chegamos lá ás sete.

—Sabes onde moro?

—Parece-me que sei... é...

—No Hotel da Travessa...

—Do Estevam? já sei... Lá estou ás duas em ponto.

—Sem falta? palavra?

—De mulato. Quer que espere?

—Não. Pega lá...

E deu-lhe, com fidalga bizarria, dez tostoens. Damião recebeu-os na luva de algodão. Subiu á almofada, largou para a rua de S. Bento, e deixou caír as duas corôas no regaço de uma mendiga cega.

Á uma hora da manhã Victor Hugo recolheu do Gremio, e sevou o seu rewolver de seis tiros. Depois trajou-se á campezina, fato inteiro azul anil, luva amarella, chapéo de palha, uma gravata de muitas pontas com muitas flores e muitas borboletas. O espelho lisongeava-o, occultos os dentes, o vestibulo infecto d'aquella caverna do peito, as navalhas podres do javali que esfoçava lá dentro.

Victor Hugo ia a Cascaes á cata d'uma grega{226} que, por aquelles dias, alvorotára os galans enfrascados em damarias d'aquella casta. Farto de amores peninsulares, o poeta Alves almejava um amor grego, perfumado das auras do Bosphoro, coisa que lhe désse uma vez ao menos as morbidezas do oriente na Travessa do Estevam Galhardo.

A grega perseguida dos caens vadios de Lisboa, que se lhe penduravam de cauda de murzêlo, fugira para Cascaes, no intuito outro sim de traduzir o Alkorão para uso dos seus cathecumenos.

Victor Hugo ia procurar a grega, fugida do serralho de Bysancium, e disposto a enrodilhar o turbante na cabeça, mahometanizar-se, restaurar a Grecia por amor d'ella, dar a casca em Missolonghi, e almoçar com ella, se pudesse.

Ás duas horas rodou a sege na calçada e parou. D. Rozenda, quando o filho passava no corredor, disse lá de dentro da alcôva:

—Onde vaes tão cedo, Victor?

—Vou a Cascaes.

—Que vaes fazer a Cascaes, homem?!

—Respirar as brizas do mar.

—Forte asno!—murmurou a mãe, e adormeceu. A sege abalou velocissima.

Ahi por Paço d'Arcos, Victor perguntou ao boleeiro, quando a sege ia muito a passo:{227}

—A quem compraste esta boa parelha?

—No leilão do conde de Baldaque. V. Ex.ª conhece-os?

—Conheço o conde, os cavallos não.

—Não me saberá dizer porque é que o conde se foi embora?

—Sei: casou com uma aventureira...

—Que vendia luvas...

—Isso...

—E depois?—tornou o mulato.

—A opinião publica fez-lhe troça e elles safaram-se.

—Ah!... então a troça como foi?... Acho que havia de ser um folheto que ouvi ler, a dizer o diabo da mãe da tal condessa...

—É isso...

—E aqui, ha de haver um mez, leram-me um jornal onde se dizia que o folheto fôra publicado por um snr. Victor Hugo, que tinha roubado grande chelpa á tal luveira. Sempre ha cada malandro! O senhor conhece-o?

—Quanto déste pela parelha?—perguntou Victor, como se a pergunta fosse feita a um pavão, que berrava no arvorêdo dos Palhas.

—Cincoenta libras—respondeu o mulato, muito mais delicado que o seu interlocutor.

—Não foi cara.

—Todo o trem do conde se vendeu ao desbarato. Contou-me um criado d'elle, meu patricio,{228} quero dizer, tambem mulato, que a condessa fôra de Lisboa doida, por causa do tal folheto, publicado pelo larapio que a roubou. Veja V. Ex.ª que patife aquelle! O mulato é levadinho de dez milhoens de diabos, e disse-me que não se vae embora de Portugal sem cortar a cabeça ao tal Victor Hugo!

—Quem, o preto?—perguntou sorrindo o commendador.

—Sim, o preto...

—Ha de ser um que dava sôcos nos namoros da luveira...

—Hade ser esse, provavelmente...

—Pois, se o vires, dize-lhe que o tal Victor Hugo só deixa cortar o pescoço depois que mette seis balas na cabeça de quem lh'o quer cortar.

—Então o homem pelos modos é têzo?

—É: fia-te em mim.

—Não duvido, patrão; mas a valentia não tira que elle seja um ladrão; e um malvado que roubou a alegria e o juizo a uma senhora que lhe não fez mal nenhum, que eu saiba.

—Elle lá teve as suas rasoens... Olha lá, não deixes adormecer os cavallos... Ainda agora vamos em Oeiras...

—Temos muito tempo, patrão... V. Ex.ª não conhece um caminho por onde se atalha uma legua boa?{229}

—Não.

—Quando chegarmos ao fim do muro da quinta do marquez, eu lh'o mostrarei.

Damião chicotou os cavallos com frenezi. Era a onda de sangue que já lhe girava como meandro de vitriolo por entre os seios do cerebro. As chicotadas eram uma maneira de se desafogar d'aquella congestão.

Chegados á extrema do muro, o mulato metteu por uma vereda estreita, desterroada e pedregosa.

—Não é por ahi!—disse Victor—por onde diabo vaes?

—Por aqui é o atalho—respondeu Ravasco.

—Deixemo-nos de atalhos agora de noite!

—Não tenha medo, patrão. O snr. não traz rewolver?—dizia e affoitava a parelha.

—Trago rewolver; mas...

—Então que medo tem?

—Não é medo de ladroens; é medo que esbarrondes a sege! Olha que o caminho vae já bater ahi n'uma charneca fechada, não vês? Volta para traz, bruto!

Damião Ravasco não respondeu. Levou impetuosamente os cavallos aos sacoens até entestal-os com um comoro eriçado de piteiras e socavado nas margens resvaladias, e saltou de golpe da almofada, quando as bestas se escabravam trepando á valla.{230}

Este abrupto salto, depois da pertinacia do cocheiro em fustigar os cavallos contra o vallado, incutiu em Victor Hugo a suspeita de estar em perigo de ser roubado pelo mulato. Instinctivamente arrancara do rewolver, quando o boleeiro saltou. E, no conflicto em que Damião arremettendo á sege, puchava de repellão pelas cortinas embreadas, Victor desfechou-lhe um tiro na face, e o segundo no respaldo da sege, porque o pulso lhe estalou e revirou-se na mão do mulato como se os ossos se deslocassem dos ligamentos estorcidos por uma tenaz.

E do mesmo impeto fincou-lhe na garganta a garra esquerda, e empuchou-o para fóra da sege.

Victor, escabujando de encontro aos raios da roda, rugia gritos de soccorro, luctando em balde para arrancar a mão ainda armada á torquez que lhe desarticulava o pulso.

O mulato remessou-lhe um joelho ao ventre, e disse-lhe n'um rouquejar de voz, mudada em bramido pela ferocidade da ira:

—Hasde saber quem sou, perverso ladrão! Sou o preto do conde de Baldaque. Dá-me seis tiros na cabeça antes que eu te corte a tua. Um já cá o tenho no rosto; se morrer delle, perdoo-te.

Á ultima palavra vociferou elle um rispido{231} regougo, coisa parecida ao soturno urrar da féra; e, no mesmo acto, arrancou da navalha espanhola já aberta entre a manga da jaleca e o braço, e cravou-lh'a através da garganta.

Era cadaver o insultador da condessa de Baldaque; mas o leão não desenterrára os gryphos aduncos das carnes do tigre morto.

A cólera recrudescia ao compasso da dôr atroz que lhe sangrava na cara. Levou a mão ao olho direito, e retirou-a empapada em sangue e humores. Receiou morrer, e este mêdo dava-lhe vertigens, e um raivar de demonio, cada vez que o sangue barbotando lhe tolhia a vista.

Talvez que a vingança ficasse áquem das raias da barbaridade, se Victor o não houvesse ferido mortalmente, como elle suppunha. Travou dos cabellos ao cadaver, e correu-lhe á volta do pescoço repetidos golpes até o degolar. Atirou para dentro da sege a cabeça, e deixou o restante no chão ensopado da sangueira.

Antes de repontar o sol, sege e cavallos estavam na cocheira do conde.

A cabeça de Victor Hugo foi submersa em álcool n'uma vasilha negra. E Damião Ravasco, entregue aos cuidados de Chistovão Tavares e d'um cirurgião, soffria a dolorosa anatomia{232} da extracção do olho direito e esquirolas da orbita correspondente.

Ai! elle não poderia mais vêr a cabeça de Victor Hugo José Alves senão com um olho!

Do apparecimento do cadaver descabeçado na Azinhaga das Cobras deve lembrar-se perfeitamente o leitor de Lisboa. Primeiro, disse-se que era uma victima das vinganças clandestinas dos carbonarios. Alguem pensou que fosse o administrador do concelho de Oeiras, que n'esse dia estava sadio e incolume em Cascaes namorando a grega. Outros, os mais sensatos, pediam a cabeça do sujeito para fazerem o seu juiso ácêrca da identidade da pessoa. A final soube-se quem era, por causa d'umas cartas de namoro que lhe encontraram na algibeira, dirigidas a Victor Hugo; mas tambem isto foi motivo a conjecturar-se que o auctor do Napoleon—Le petit, viera incognito a Lisboa, e o imperador dos francezes o mandára assassinar, decapitar, etc., etc. O que é certo é que muita gente, quando se disse que o descabeçado era o Victor, filho do Alves dos coiros, respondeu brutalmente: Foi bem feito.

Sarado da ferida, mas cego do olho, e esburacado no bordo inferior da orbita, Damião Ravasco, liquidado o trem da homicida façanha, fez-se ao mar e mais o official realista e{233} as filhas e os netos. Marselha era o itinerario prescripto pelo conde. Dirigiram-se á rua Camebiere, hotel des Empereurs.

Entraram juntos á sala privativa do conde. Damião ia na frente, sobraçando uma caixa de estanho, com argolas lateraes. Quando se defrontou com o conde e a condessa, ambos exclamaram espantados da tão differente cara de Ravasco:

—Que é isso!?—bradou o conde—Vens cego de um olho, Damião?

—E que profunda cicatriz elle tem na face!—disse a condessa.

—Que foi isso?—tornou o irmão.

—Este olho que me falta—respondeu Ravasco pousando o caixote sobre uma banca; e repetiu:—Este olho, que me falta, tirou-m'o um sujeito chamado Victor Hugo José Alves.

—Porque, meu Deus?—disse a condessa.

—É possivel!?—exclamou o conde—E tu...

—Eu sempre ouvi dizer ao meu mestre de latim: «olho por olho, dente por dente»—respondeu Ravasco;—mas, a fallar a verdade, não me accommodo com esta lei. Quem me tira um olho a mim ha de ficar sem dois, pelo menos.

E, dizendo, destapava a caixa de estanho. A condessa tremia convulsamente. O conde encarava-o estupefacto. O ex-brigadeiro e as{234} filhas e netos agrupavam-se á volta da condessa. E Damião continuou:

—Ora eu que não tinha vagar, nem a occasião era a melhor, para tirar os dois olhos ao sujeito que me tirou um, achei que o mais summario e seguro era cortar-lhe a cabeça. Eil-a aqui! Vejam se a conhecem!—disse o mulato, mostrando a cabeça tragica, mergulhada em espirito de vinho, no amplo frasco extraído da caixa.

A condessa parecia desmaiar nos braços do marido, exclamando em extrema afflicção:

—Jesus! que horror! que barbaridade!...

—Horror, sim, minha filha!—disse o conde—mas barbaridade... Não culpes Damião sem o escutar.

E Ravasco, aproximando-se da condessa, fallou serenamente:

—Eu tenho pouco que dizer em minha defesa, snr.ª condessa. Em Lisboa sahiu um folheto no qual se dizia que sua mãe roubava padeiros de quem era amazia...

—Silencio!—bradou o conde.

—Deixe defender-se o barbaro, snr. conde!—volveu Damião—N'esse folheto havia uma nota em que se dizia que o conde de Baldaque casára com uma aventureira. Se o snr. conde casasse com uma mulher perdida, eu não o vingaria, por entender que era justo{235} o castigo; mas como eu sei que V. Ex.ª era uma senhora honesta, entendi que devia cortar a cabeça d'onde sahiram os insultos a V. Ex.ª e a um homem que me chamou irmão. Não tenho mais que dizer. Cá levo a cabeça para lhe dar honrosa sepultura nos esgotos de Marselha.

E sahiu com o caixote debaixo do braço. Na sala era tetrico e profundo o silencio. Nem que aquillo fosse a cabeça de Holofernes, ou de Pompeu! E as lagrimas derivavam copiosas no rosto de Maria José.

Ó egregia alma, como essas lagrimas deviam ser abençoadas do soberano e inexprimivel Espirito que tão perfeita scintilla de sua divindade te bafejou no berço!{236}{237}

EPILOGO

Os condes de Baldaque, n'este anno de 1872, viajam no Oriente, com o filho mais velho.

Damião Ravasco, reconhecido irmão do conde, e quasi millionario, vive no Ceará com sua mulher D. Luiza Tavares, a mais nova das filhas do ex-brigadeiro já fallecido.

As outras filhas, exceptuada Ernestina que acompanha a condessa, casaram e são ricas.

Os netos do brigadeiro, doutorados na universidade de S. Paulo, estão estabelecidos no imperio brazileiro.

D. Rozenda Picôa é mestra regia na Porcalhota.{238}

D. Eufemia, dada ao mysticismo, e repêza de escrupulos purificantes, está no seminario de Brancanes, encarregada da limpeza dos jesuitas.

Obrigado pelas leis da transmigração, Victor Hugo José Alves resuscitou nos corpos e almas de tres sujeitos que hão-de prosperar n'este paiz, se não encontrarem mulatos...

 

FIM{239}

 

 

[1] Veja os amores deste fidalgo com a filha d'el-rei D. Duarte.

[2] PORTUGAL, Recordações do anno de 1842, pelo principe Lichnowsky. Lisboa, 1844.

[3] Pag. 5.

[4] Elidem-se phrases que ressumbram de mais á cazerna onde o commendador d'Aviz escrevia o seu despejado depoimento.

[5] A pagina 111, penultima do ms., lê-se o seguinte: «Este Epytome da vida d'Affonso VI, foi copiado exactamente do original, que se achava na livraria do duque de Cadaval, composto sobre as «Memorias» de Luiz Teixeira de Carvalho, que foi official maior da secretaria de estado, por cuja mão correram as ditas «Memorias»; porém, ha n'ellas circumstancias tão particulares que persuadem serem ditadas pelo duque D. Nuno Alvares Pereira, que teve tanta parte na deposição deste monarcha. Suas queixas o fizeram esquecer das grandes acções do governo d'este infeliz rei e das gloriosas victorias do seu reinado. Veja-se sua vida por o auctor mais critico.»

Segue outra declaração:

«A copia a que se allude, e da qual esta foi tirada, pertence a D. Miguel Antonio de Mello; e hoje possue-a o conselheiro Antonio Joaquim Gomes de Oliveira, official maior da secretaria de estado dos negocios estrangeiros. Lisboa, 29 de Maio de 1845. Jacintho da Silva Mengo.»

[6] Mosteiro onde se recolhera D. Maria de Saboya.

[7] Á margem do livro-genealogico donde vou trasladando esta linhagem, está escripta uma nota curiosa: «Salvador Fagundes era um homem ordinario de Pinhel, que andava a vender meias, e neste tracto o viu o padre Francisco Xavier da Mesquita Pimentel, frade loio, que m'o disse, em Fevereiro de 1775. E diz que haverá setenta annos que lhe vira vender as ditas meias. Outros me dizem que fôra pintor; emfim, sempre foi pessoa humilde. Porém, enriquecendo, foi pagador d'um regimento, e ajuntou tanto cabedal, que era já muito estimado. A um general que de Castella veio andar nas guerras de Portugal fez grandes offertas; e, quando se recolheu a Hespanha, lhe mandou por todas as partes offerecer todo o dinheiro que quizesse e na forma que lhe parecesse; e por ultimo, julgando o general que aquillo seria bazofia, disse em uma parte que queria 50$000 cruzados; e, como logo lh'os dessem, os não acceitou, e ficou muito agradecido por ver que era verdade, e escreveu a el-rei de Portugal, dando-lhe parte de tudo, e pedindo-lhe que premiasse aquelle homem que tantos obsequios lhe fizera, João Pinto Ribeiro de Castro Vella me disse que o dito Fagundes ajuntára muito cabedal, quando fôra assentista e pagador nos tempos da guerra; e que, suspeitando que o governador o queria culpar pelo muito que furtára, lhe foi fallar; e como o governador o não quizesse receber, o Fagundes fingira um flato ou accidente, deixando uma bengala que trazia, na qual, pegando um criado do governador, e achando-a muito pezada, a levara ao amo que, admirado do pezo, a entrou a examinar e a achou cheia de moedas de 6$400 reis, com as quaes se accommodou, etc.»

Viessem cá hoje Fagundes com taes bengalas, que levavam com ellas... depois de vasias.

[8] Não percebo o pudor de quem traduziu, omittindo o nome da proprietaria do hotel.

[9] Portugal. Recordaçoens do anno de 1842—pag. 18.

INDICE






End of the Project Gutenberg EBook of O Carrasco de Victor Hugo José Alves, by 
Camilo Castelo Branco

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CARRASCO DE VICTOR HUGO ***

***** This file should be named 30176-h.htm or 30176-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/3/0/1/7/30176/

Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.