The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
póde dormir. Nº 9 (de 12), by Camilo Castelo Branco

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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 9 (de 12)

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: February 23, 2009 [EBook #28155]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, NO 9 (DE 12) ***




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[1]

BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA

OFFERECIDAS

A QUEM NÃO PÓDE DORMIR

POR

Camillo Castello Branco


PUBLICAÇÃO MENSAL



N.º 9—SETEMBRO


LIVRARIA INTERNACIONAL
DE
ERNESTO CHARDRON
96, Largo dos Clerigos, 98
PORTO
EUGENIO CHARDRON
4, Largo de S. Francisco, 4
BRAGA

1874

[2]





PORTO

TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA

68—Rua da Cancella Velha—62


1874

[3]

BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA


NOITES DE INSOMNIA


SUMMARIO

Os salões, pelo exc.mo visconde de OuguellaCondemnação de corpo e almaO doutor BotijaO palco portuguez em 1815Bibliographia (Senna Freitas, Cunha Vianna, Monsenhor Joaquim Pinto de Campos)Que segredos são estes

[5]

OS SALÕES

Os capitulos, assim intitulados e publicados nestes livrinhos, vão ser reproduzidos em volume com outros, complementares da obra. Teremos, pois, um livro de mão primorosa, de extenso folego, portuguez na fórma, bem que estranho á indole nacional. Entre portuguezes, os estudos sociaes, profundos e largos, não se ajustam á irrequieta vertigem dos que navegam de costeagem com o baixel da politica.

Aqui proeja-se ao descançado porto das situações gananciosas, e deixa-se ao acaso resolver os problemas.

O snr. visconde de Ouguella revelou-se n'este severo estudo um espirito de grande alcance, e discipulo dos que melhormente professam a sciencia historica. Se algumas vezes a sua penna roça asperrima na crusta das ulceras que lhe fazem nauseas, resgata-se briosamente avoando ás regiões altas, no rasto luminoso das augustas verdades.

O livro, que ha de ser a affirmação da[6] honrada consciencia que nunca, desde a primeira mocidade, apostatou da religião do berço, é dedicado a uma formosa criança, Ramiro Soares de Oliveira da Silva Coutinho, filho do snr. visconde de Ouguella.

São maviosas de affecto paternal e de nobre civismo estas expressões que o pai dirige á alma que se está formando entre as caricias de uma familia virtuosa: É incentivo, estimulo e lição, para seguir, como luzeiro e farol do seu futuro, as nobilissimas tradições liberaes, legadas por seu avô, e meu presadissimo pai, Ricardo Sylles Coutinho. Seja este tambem o testemunho do meu acrisolado amor filial.

O prefacio que precede os Salões é igual a elles na elevação e rigidez da idéa, no donaire e esplendor da linguagem; mas avantaja-se ao restante como prognostico dos brilhantes capitulos que hão de proceder de tão desprendido e intransigente programma.

São raros em Portugal os escriptores que, á imitação do visconde de Ouguella, podem enlaçar a independencia com o talento, e esculpir no frontal do templo, onde os vendilhões armam tenda de bufarinheiros a legenda, que lhe compete.

Eis o prefacio:[7]

AO LEITOR

La pensée est pouvoir.
Tout pouvoir est devoir.

VICTOR HUGO.

Este livro tem uma missão, e tem um fim.

Escripto para o povo, a sua missão é levar a luz ás ultimas camadas sociaes. Diffundil-a no tugurio do operario, e na choupana humilde do aldeão.

Inspirado nas mais sinceras crenças da democracia, aceita, como fim, arrancar ás garras d'esse immenso desalento e d'essa torpe corrupção—que por ahi vai gangrenando as sociedades—os generosos espiritos populares, para que as almas se não gelem, e os corações—que vivem de nobres aspirações—se não atrophiem, n'este completo desmoronamento de todas as instituições existentes.

O author d'este livro não tem pretenções, nem vaidades, nem receios. Não se julga apostolo, nem propheta, nem vidente. O mais obscuro dos obreiros d'este seculo—como é, e quer ser—escuta, attento, o ruido que vai lá fóra, nos paizes onde a idéa tem um culto, onde as crenças consubstanciam religiões, onde[8] as sociedades se debatem na agonia de organisações politicas, sociaes e religiosas, que tendem a desapparecer; e pelo facto de existir, e de se considerar obrigado ás luctas da existencia, giza o terreno em que combate, sem orgulho, sem odios, e sem rancores pessoaes.

Volta-se para os seus irmãos no trabalho, operarios tambem—qualquer que seja a fórma por que exercem a sua actividade, e diz-lhes:

«Eu penso assim. Aqui tendes o producto das minhas meditações, e dos meus estudos. Dou-vos os lavores do meu espirito. Combatei-me, ou enfileirai-vos commigo.»

Eis a razão do livro.

Vêde, agora, a sua desenvolução.

O author crê nas inspirações grandiosas do povo, crê na mocidade estudiosa das escolas, e crê nas leis immutaveis, fataes, e inexoraveis do progresso, que acompanham a vida das gerações, e que nos conduzem a uma determinada somma de civilisação, a um especimen de perfectibilidade relativa, quaesquer que sejam os cyclos de descrença, de abjecto abatimento, de egoismo individual, e de corrupção momentanea em que se debatem as sociedades.

O author d'este livro é espiritualista.

Devotado ás leis sagradas e eternas por[9] que se rege a humanidade, curvando-se, submisso e reverente, á vontade absoluta, que governa, e dirige o universo, pronuncia a medo, e na humildade da sua existencia, o nome do Ente Supremo, e crê firmemente, que todos os homens são iguaes. Ajoelha, e adora a omnipotencia, a infinita bondade, e sublime misericordia de Brahma, Zeus, Jezeu, Elohim, Jehovah, Allah, Osiris, Jupiter, Deus, Christna, Christo, finalmente do Eterno—qualquer que seja o nome sagrado, e mysterioso, por que as gerações modernas o pretendam appellidar.

O seculo dezoito teve por missão destruir.

O seculo dezenove é a transição, que liga, e une civilisações heterogeneas, é o parenthesis aberto n'estas luctas do espirito, n'esta convulsão moral, em que as sociedades actuaes trabalham para se regenerarem radicalmente, sob um differente aspecto, e aceitando novos dogmas, e diversas doutrinas.

O author d'este livro não despreza o passado. Não o injuria, não o diffama, nem o calumnia. Explica-o até, e, por vezes, justifica-o.

Mas aceita jubilosamente a corrente das idéas do seu seculo, e louva o Eterno na effusão das suas crenças.

Todavia não volta o rosto, como a mulher de Loth, para contemplar Sodoma.[10]

Só a magestosa omnisciencia do Ser Supremo póde avaliar os entes que creou.

Ao sentar-se nos bancos das escolas superiores, no prefacio de um livro—dado a lume por um irmão d'armas, ferido, e cahido moribundo, já, na arena da discussão, pelas luctas da palavra—escreveu as seguintes linhas:

«Pergunta-se—se os gozos, se os prazezes pertencem unicamente a um pequeno numero de homens?—se a maioria, se as classes proletarias, se os Spartacus da civilisação moderna teem de escolher entre o passamento ignominioso nas gemonias do seculo dezenove, ou nas barricadas, nascidas do desespero, que a miseria e o ardor do martyrio obrigam a levantar? Pergunta-se—se o monopolio, se a concorrencia, são os dogmas injustos e tyrannicos, que hão de destruir as massas, como o carro do idolo Jagrenat, entre os indios, esmaga o craneo dos brahmanes, ou se a associação, esse credo dos assalariados das industrias, que os economistas victoriam—póde acabar com o pauperismo, e obstar á ignorancia dos povos, palladio deshumano a que os ambiciosos se seguram?»

Ainda hoje o author d'estas linhas formúla as mesmas perguntas, com a mesma severidade, e aceita a responsabilidade d'ellas na tranquillidade constante, e inalteravel do seu espirito.[11]

A quem o accusar de leviano, de voluvel, e de imaginoso, no seio d'este hediondo tropel de ambições, que renegam, e apostasiam a cada hora—redemoinhando, revoltas, em torno do poder, seja qual fôr a sua origem ou procedencia—responde o author d'este livro com o sorriso do desprezo, e com a consciencia segura de que não sabe, não póde, nem quer deslizar nunca da lei augusta e sacrosanta do dever.

Os espiritos, para quem a libré é mais do que um distinctivo, e uma triste e crapulosa missão, porque chega a ser um sacramento imprimindo caracter,—esses, que se curvem, que se dobrem, e que degradem a face humana, varrendo, com a fronte, o pó das alcatifas e alfombras das regias aulas e alcaceres dos principes, magnates e satrapas do poder.

Pouco importa.

O vocabulo lacaio tem, na sua etymologia, a justa e bem merecida ignominia.

É a pena que a dignidade humana confere á abjecção.

Um dos primeiros—senão o primeiro escriptor d'este seculo—narra o seguinte:

«Octavio Augusto, na madrugada da batalha de Accio, encontrou um jumento a quem o burriqueiro alcunhára ou appellidára Triumphus. Este Triumpho, dotado com a faculdade de zurrar, pareceu-lhe de bom agouro.[12] Octavio Augusto ganhou a batalha, lembrou-se do Triumpho, mandou-o fundir, e esculpir em bronze, e collocou-o no capitolio. Burro capitolino foi elle—mas ficou sempre burro.»

Eis a historia das vaidades humanas.

«O habito não faz o monge», diz a sabedoria dos povos.

As grandezas da terra são, as mais das vezes, o pelourinho de todas as ignominias—assim como do sambenito, e da cana verde da irrisão pharisaica surgem, em ondas de luz, a magestosa auréola do martyrio, e a apotheose deslumbrante, que a posteridade engrandece e divinisa.

O author d'este livro não crê nos partidos militantes, nos diversos grupos parlamentares, nas ambições e cubiças, que fervilham em torno das insignias consulares—quer se chamem opposições ou governo.

Escalar o poder pelo poder, aceital-o em todas as condições, á sombra de todas as bandeiras, na defeza de todos os codigos, e na metamorphose de todos os principios, parece ser a maxima inspiração de todas estas phalanges, ávidas e sedentas de governo, que reputam, como suprema beatitude, o ineffavel gozo de dirigirem uma situação politica qualquer.

D'aqui vem o scepticismo partidario, a indifferença[13] profunda, e a descrença completa do povo.

N'isto, como em tudo, o author d'este livro está ao lado do povo.

Basta.

Fecha-se este prologo com uma simples remissão ao prefacio ou introducção do livro, que fica referido.

Assim termina esta advertencia ao leitor:

«A educação, nas classes pobres da nossa terra, tem sido desprezada: o povo ignora tudo, porque tudo lhe é vedado. Convinha, pois, que á frente de um livro, que narra com singeleza as tristes vicissitudes por que a governação entre nós tem passado; que aponta, sem exagerações, como a liberdade vai sendo sophismada, fossem estampadas algumas linhas, que levassem a esperança a corações para quem a educação é um miseravel scepticismo, e a vida um sudario de pungentes dôres.»

Estas linhas, escriptas ha vinte annos, firma-as o author d'este livro, com a convicção plena de que ainda não deslizou d'estas crenças, nem renegou, n'um só momento, a religião da sua mocidade.

Em mil oitocentos cincoenta e seis, quando a pena de morte era lei entre nós, quando o homicidio legal erguia a sua sinistra, e hedionda influencia n'esta terra—terminava o author d'este livro, em presença de um tribunal[14] e em defeza de um réo, pelo seguinte modo, a sua oração:

«Quanto a mim, resta-me a honra de ter pelejado com a forca, esta peleja solemne e derradeira. Se eu ficar vencido, se triumphar o carrasco, tanto peor para o seculo em que combati, e para a philosophia que invoquei.»

Foi já rasgada a lei do homicidio. Falleceu o ultimo carrasco.

Bemdito seja Deus!

Venceu aqui a civilisação.

É para crêr, que venceu, tambem, a justiça absoluta, a consciencia, e a sociedade.

A inviolabilidade da vida humana é mais do que um principio, mais do que uma doutrina, mais do que uma lei: é um culto prestado ao Ente Supremo.

Deixai, agora, que o author d'este livro peleje pela democracia.

É esta, e só esta a verdadeira religião do futuro: é a obra sublime do Creador.

Lisboa, 24 de julho de 1874.

VISCONDE DE OUGUELLA.[15]


CONDEMNAÇÃO DE CORPO E ALMA

A lei dos justiçados, antes de 5 de fevereiro de 1587, condemnava o corpo e a alma, não admittindo á communhão os condemnados á morte. Os juizes faziam-se intrepretes da justiça divina. Trancavam as portas do purgatorio á contrição, privando a alma do sacramento, que a theologia declarára indispensavel ao viador da eternidade, por fóra das regiões das trevas infinitas.

Não sei onde os legisladores acharam o esteio de tão cruel severidade com as almas dos justiçados. Não podemos, porém, duvidar d'este desprezo da lei de Jesus, em época tão assignalada de bons theologos, comprehendida nos reinados de D. Manoel e D. João III. Que os condemnados á morte não eram admittidos á communhão deprehende-se do tratado De sacramentis prœstandis ultimo supplicio damnatis, do famoso jurisconsulto Antonio da Gama, já no cap. I, já na dedicatoria ao cardeal D. Henrique, impressa pela primeira vez em 1559, e não em 1554, como diz o abbade de Sever, na Bibl. Lusit. O mesmo se infere do Compromisso da Misericordia de Lisboa, cap. 36, confirmado[16] por alvará de 19 de maio de 1618. Ahi se estabelece o modo de acompanhar os padecentes e de lhes assistir. Estes usos subsistiram, através de dous seculos, exceptuados os enforcados politicos a quem por misericordia matavam com pouco apparato processional.

Ainda depois da lei que permittia o Viatico aos condemnados, nem todos gozaram esse dôce prazer, essa extrema consolação que lhes abria no reino de Deus a porta da esperança. Themudo, nas Decisões, tom. II, decis. 155, pag. 126, n.º 3, conta que o marquez de Villa Real, cumplice na conjuração de 1641 contra D. João IV, pediu licença ao arcebispo de Lisboa para commungar, na vespera do dia em que fôra degolado. O arcebispo concedeu a licença. Á meia noite ouviu missa no oratorio, e ás tres da tarde do dia seguinte (28 de agosto de 1641) foi executado. Ao mesmo proposito, leiam os curiosos o Commentario aos Lusiadas, por Manoel de Faria e Sousa, cant. III, est. 38.

Os co-réos do marquez de Villa Real ou não pediram licença, ou lhes foi negada. Agostinho Manoel de Vasconcellos, poeta, escriptor galante, e mais verde de juizo do que de annos—pois já orçava pelos cincoenta e tantos—parece que não tinha absoluta confiança no sacramento, pois que morreu sem elle. Póde ser que este peccador incontrito, vendo que[17] os theologos do seculo XVI dispensavam os condemnados da communhão, e os julgavam irreparavelmente precítos na outra vida, fosse da opinião d'elles, e se deixasse ir até vêr o que succedia aos seus companheiros do cadafalso, passado o estreito medonho d'aquella horrenda morte.

Tenho lido romances historicos portuguezes, e de bom pulso, em que os condemnados coevos de D. João I e II, se confessam e commungam. Esta inventiva piedade dos romancistas encontra as cruezas repellentes da historia. É erro muito desculpavel. Qual é o romancista que lê os reinícolas Antonio da Gama, e Themudo, e o Codigo Filippino, e a Synopsis Chronologica?! Estes livros são escumadeiras das faculdades imaginosas. Quem se affizer a herborisar em taes charnecas, póde ser que vingue saber muita cousa obsoleta; mas toda a sua erudição, fundida na moeda miuda dos livros de passatempo, não logra captivar o leitor que lhe attribua a vigilia de uma noite. Não se é escriptor ameno e agradavel sem muita ignorancia. Eu devo a isto os meus creditos e a minha fecundidade.[18]


O DOUTOR BOTIJA

Francisco Dias Gomes,—considerado pelo snr. A. Herculano o homem talvez de mais apurado engenho que Portugal tem tido para avaliar os meritos de escriptores—foi malquisto de uns poetas contemporaneos que lhe chamavam o doutor Botija, allusão tirada das vasilhas de seu commercio de mercearia.

Um dos seus medianos admiradores era o abalisado mathematico e estimavel poeta José Anastacio da Cunha. Dos seus raros amigos—pois que os não grangeava em razão de sua indole desconversavel e um tanto hypochondriaca—o mais esclarecido e provado foi Garção Stochler, então lente de mathematica, e depois barão e general.

Francisco Dias Gomes, posto que modesto e conformado com a sorte de especieiro, não se deixava insensivelmente morder pelos epigrammas de quem quer que fosse. A honesta musa que lhe inspirou os graves e soporiferos poemas constantes do seu livro impresso por ordem da academia real, algumas vezes se lhe apresentou despeitorada e de saia curta, n'aquelle desatavio que desnorteia a circumspecção[19] de um philologo da polpa de Francisco Dias.

O leitor, provavelmente, ainda não viu como este sisudo academico jogava o venabulo da satyra. A academia, se alguma topou entre os manuscriptos do seu confrade, com certeza a pospoz como damnosa aos serios escriptos com que a esposa e filhos do finado critico haviam de quebrar alguns espinhos da herdada pobreza.

Não me recordo se Stochler, na noticia critico-biographica anteposta aos versos posthumos do seu amigo, faz referencia ao espirito satyrico de Francisco Dias; o que certissimamente sei é que nunca vi impressa a satyra seguinte contra José Anastacio da Cunha, nem tão pouco a replica d'este poeta, que no proximo numero sahirá como prova do retrincado odio com que, em todos os tempos, os escriptores se expozeram á irrisão dos ignorantes, mutuando-se affrontosas injustiças.

Francisco Dias é iniquissimo no conceito que finge formar de José Anastacio, e tanto mais censuravel quanto aquelle douto e infeliz philosopho nunca desfizera na valia do mercieiro poeta, segundo se deprehende da resposta.

N'esta satyra o que muito vale é a pureza da linguagem condimentada com especies do seculo XVII, bastante avelhentadas e rancidas;[20] mas, assim mesmo, saborosas a paladares não de todos depravados pela malagueta da poesia vermelha que ultimamente vige e viça.

Quanto a graça, é tão difficil achal-a em Francisco Dias como nas comedias de Jorge Ferreira. Os nossos bons classicos, quer fossem moços e mundanos, quer ascetas e encanecidos, não sei como pensavam; mas no escrever, eram todos como uns frades velhos que digeriam as suas idéas, tal qual um estomago dyspeptico de hoje em dia esmoe um paio do Alemtejo.

Ahi vai, tal e quejanda, a satyra do doutor Botija:

SATYRA

Vem cá, louco varrido, que diabo
Te metteu na cabeça ser poeta?
Quem te chegou a tão extremo cabo?

Não vês que toda a gente anda inquieta,
Cançada de soffrer teus argumentos,
Que te julga demente, que és pateta?

Eu nunca imaginei que teus intentos
Fossem fazer-te vão: agora julgo
Que em nada se tornaram teus talentos.

Se eu crêra em quantas pêtas conta o vulgo,
Das feiticeiras sordidas e aváras,
E outras, que aqui não digo, nem divulgo;[21]

Dissera que perjuro te mostráras,
Que infido amante da cruel Canidia,
Seus magicos encantos divulgarás.

Que ella, por castigar tua perfidia,
Sobre as azas d'um Lémure correra
O Tauro, o Atlante, o Nilo, e a sêcca Lidia,

Onde hervas potentissimas colhêra,
Com que mixtos veneficos, horrenda,
De funestos effeitos compozera.

E porque ao fim viesse da contenda,
Pela alta noite, barbara, ullulára,
Com voz funesta, horrisona e tremenda,

Que as infernaes Deidades convocára
Do tremebundo Tartaro, formando
Mil circulos no chão com fatal vara.

Pallida, e consumida, suspirando,
As horridas madeixas eriçadas,
Com ellas murmurára um canto infando.

Alli foram de todo desatadas
As prisões, que a teu corpo o siso unia;
Alli tuas idéas perturbadas;

Sómente em ti ficou triste mania
De maus versos fazer, de argumentar
Com quantos ha, nas praças, noite, e dia.

Não deixa a gente já de murmurar
D'essa tremenda furia que te agita,
D'esse teu furioso e vão fallar.

Cuidas que, ainda que nescio, assim se excita
A celebrar-te o povo por sciente,
Elle que em tudo mofa, e fel vomita?![22]

E julgas que de rustico não sente
A differença que ha do branco ao preto?
Por certo que te enganas claramente.

Tu crês que só quem faz um bom soneto,
Ou decifra um enigma mathematico,
Esse só tem juizo, e é só discreto?

Se para ser qualquer da vida pratico,
Bem aviado está, se lhe é preciso,
Ser um grande geometra, ou grammatico.

Tal ha por esse mundo, e tal diviso,
Que sem saber a regra do abc,
É sagaz como trinta, e tem juizo.

Como queres tu pois que não te dê
Surriadas o povo maldizente,
Posto que nunca estuda, e nunca lê?

Se elle anda já cançado longamente
De ouvir as tuas vãs declamações
Com que pretendes emendar a gente!

Se defender intentas conclusões,
Mestre em artes, de borla, ou capacete,
Porque te ouçam as tuas decisões;

Rapa a cabeça tu, frade temete:
Combaterás então mais forte e ufano,
Que um guerreiro montado em bom ginete.

Não andes pelas ruas como insano
Syllogismos em barbara formando;
Se assim queres ter fama, é grande engano.

Que quer dizer, continuo, andar fallando
Em curvas, corollarios e problemas,
Demonstrações fazendo, e explicando?[23]

Quando te ouvem fallar em theoremas,
Escalenos triangulos, e rectas,
Espheroides, polygonos, e lemmas,

Julgam ser isso termos de patetas
Ou d'esses que tem pacto c'o diabo,
E lhe fallam em partes mui secretas.

Pois eu d'aconselhar-te não acabo,
Se por tal te tiverem, fugirás
Como cão com funil atado ao rabo.

Em vão com grande esforço ladrarás,
Distinguindo a menor, que concedendo
Quanto o povo quizer á força irás.

Que achaste, inda que tu lhe vás dizendo,
Do circulo a sonhada quadratura,
Nada te valerá, segundo entendo.

C'os rapazes e moços, gente escura,
Gente indomita em fim, tua pessoa
Não poderá jámais andar segura.

Tanto já de ti fallam por Lisboa,
Que quando vaes por uma praça, ou rua,
Grande susurro em toda a parte sôa.

Ora pois tem razão, que a audacia tua,
E teus discursos vãos, e palavrosos
Dão causa a que qualquer teu sestro argua.

Eis aqui porque chamam ociosos
Aos que ás letras se applicam, temerarios,
Phantasticos, herejes, mentirosos.

Os fidalgos os tem por ordinarios,
Baixos de nascimento, sem avós,
De humildes pensamentos, vãos e varios.[24]

Se alguem com acto humilde e baixa voz
Lhe offerece o elogio em prosa ou rima,
Louco, dizem, te vai longe de nós.

De nós a poesia não se estima;
Vê se tens outra cousa por que valhas,
Falla-nos de cavallos ou de esgrima.

De cavallos, de esgrima, de batalhas,
Não d'essas verdadeiras batalhadas
Com lança e espada, aereas antigualhas.

Entra por esta brecha ás cutiladas,
Amigo, tu que n'isto és o primeiro,
Segundo já te ouvi grandes roncadas.

Não te ficou venida no tinteiro,
Nem tantas soube o Molho destemido,
De malsins espantalho verdadeiro.

Se te ouvira o Palermo esmorecido
Da côrte se ausentára, por não vêr
Com teu valor seu credito abatido.

Bem pódes pelo mundo discorrer,
Novo Roldão, armado d'armas brancas,
Mil encantos e aggravos desfazer.

Leva do teu cavallo sobre as ancas
Tua dama sentada; esgrime e clama,
Que assim tudo afugentas, tudo espancas.

Ganharás maior nome, e maior fama,
Do que andar versos maus vociferando,
Dignos dos becos sordidos d'Alfama.

Se a fazer versos lá do lago infando
O diabo sahisse em tons diversos,
Taes como os teus faria, impio, e nefando.[25]

Por isso não os tenhas por perversos,
Aos que pulhas te dizem, porque em fim,
Não ha cousa peor do que maus versos.

Antes mais vale ser villão ruim,
Frade apostata em casa das mancebas,
Do que ser mau poeta, antes malsim.

Agora quero eu que me percebas,
Se alguem te applaude e rijo as palmas bate,
É porque mais em teu vicio te embebas.

Que aqui te manifesto sem debate,
Todos esses amigos que te cercam,
Todos te tem por um famoso orate.

Quaes ha que rindo o folego não percam,
Vendo, quando andas só, teu ar profundo?
Se o gosto não lh'o invejo, caro o mercam.

Como o que anda d'um bosque lá no fundo
As féras conversando e as amadríadas
Desgostoso das gentes, e do mundo,

Quem te vê tão suspenso, outras iliadas
Julga que andas compondo, alto portento!
Outros novos altissimos Lusiadas.

Mas cada vez que recordar intento
Teu soberano e largo magisterio,
Fico qual nau sem leme ao som do vento.

Alli tudo decides com imperio:
Não foram tão despoticos em Roma
O tyranno Caligula, ou Tiberio.

Qualquer, de ti pendente, lições toma,
Não ousa, inda que queira, dizer nada,
Que tudo á tua voz se rende, e doma.[26]

Alli qualquer materia é bem tratada,
Com larga voz e cópia de palavras,
Alli com teu discurso illuminada.

Antes fallasses tu em gado ou lavras,
Do que em sciencias, de que nada entendes:
Ou fosses para o monte guardar cabras.

Novos systemas se fundar emprendes,
Porque a fama no numero te conte
Dos grandes homens, que offuscar pretendes,

Pede ao bom Ariosto que te monte
Sobre o seu grifo rapido, e serás
Outro Astolfo, outro audaz Bellerophonte.

Ao concavo da lua subirás
Para vêr se descobres novos mundos,
Mas nunca o teu juizo encontrarás;

Perdeu-se como pedra em poços fundos,
Que nunca acima vem, nem nada, ou boia:
Juizos são de Deus, altos, profundos!

Não te esqueça maranha, nem tramoia,
Porque ao fim desejado te Conduzas,
Mais famoso serás que Helena e Troia.

Avante, ó novo Gama, já confusas
Com as tuas acções vejo as antigas,
E para te cantar promptas as musas.

Tem-nas da tua parte por amigas,
Materia dando a satyras facetas
Como as de Horacio, destro n'estas brigas.

Se minhas forem, não serão discretas,
Porque da rima a musica sonante
Adorna as minhas pobres cançonetas.[27]

Inda esta nos faltava, a cada instante
Andares tu contra ella declamando!
Que mal te fez o pobre consoante?

Quando o chamas não vem logo a teu mando?
É porque com verdade não se preza
Do teu engenho o som suave e brando.

Elles fogem de ti com ligeireza
Os consoantes, porque em ti não sentem
Para bem usar d'elles natureza.

Se as minhas conjecturas me não mentem,
Os que poetas querem ser á força,
Pouco de um secco rábula desmentem.

Em vão um pobre espirito se esforça
Porque os seus versos sóem docemente,
Por mais e mais que o pensamento torça.

Nunca ouviste dizer que Apollo ardente
Agita a phantasia dos poetas,
Para que mais seu cerebro se esquente?

Inda que ouçam razões muito discretas
Das mulheres e filhos que pão pedem,
Deixam ficar-se, assim como patetas.

Nem fomes, nem trabalhos os impedem,
Que exercitem o dom divino e raro:
Tanto em seu desatino se desmedem;

Por isso ás vezes julga o vulgo ignaro,
Que elles são intrataveis, desabridos,
Posto que os bons lhe dêm louvor preclaro.

Mas tu que nunca ergueste os teus sentidos,
Que em idéas vulgares e confusas
Sempre andaste com elles envolvidos;[28]

Se nunca conheceste Apollo, ou musas,
Nem pintado sequer viste o Parnaso,
Para que de seus dons sem saber usas?

Se temes que o teu nome em negro vaso
Para sempre se veja sepultado;
Usa do para que tiveres azo.

Não digas mal do consoante amado
Tanto dos bons engenhos peregrinos
Dos do tempo d'agora e do passado.

Se tu fundas em Miltons e Trissinos
Teus aereos phantasticos systemas,
Assás de bons não foram seus destinos.

Poucos ou raros lêm os seus poemas;
Um triste e melancolico caminha
Farto de extravagancias mil extremas.

A musa d'outro misera e mesquinha,
Languida e fria, sem adorno e graça
Da solta prosa jaz quasi visinha.

Ninguem jámais a noite e o dia passa
Seus aridos escriptos estudando,
Por muito que o seu gosto contrafaça.

Não o nego porém, de quando em quando
D'elles se eleva um resplendor sublime,
Digno do Pindo e Phebo claro e brando.

Mas tu a quem a rima tanto opprime,
Se não sabes, aprende: o canto hebraico
Dizem que ás vezes n'ella bem se exprime.

E que por evitar o tom prosaico,
Algumas vezes d'ella se servira
O poeta syriaco e o chaldaico.[29]

Tambem a musa grega ao som da lyra,
Lá nos tempos antigos, d'ella usou;
E o romano que a face ao mundo vira.

Novamente o seu uso renovou
Dando-lhe fórma e ser o provençal,
De nova graça a poesia ornou.

Mas isto para ti de nada val,
Que porque te foi d'ella Apollo escasso,
D'ella e dos que a usaram dizes mal.

Que mal te fez Camões e o culto Tasso?
Camões a quem as musas educaram
Na sua gruta, e virginal regaço?

Qu'o cantico divino lhe inspiraram
Em que aos astros ergueu os lusos feitos,
Que tanto pelo mundo se afamaram.

Para exprimir altissimos conceitos
Nunca jámais a rima lhe fallece
Estylo e puro culto sem defeitos.

Qualquer rustico espirito conhece,
Que quanto o Camões quiz dizer, o disse
Facil e natural, como apparece.

Quem quer que d'elle mal fallar te ouvisse,
Diria afoutamente e com verdade,
Q'isso em ti era inveja, era doudice.

Ora pois, porque tens difficuldade
Em dizer teu conceito em dôce rima,
Vituperal-a é grande iniquidade.

Julgavas facil e de pouca estima
Dôces versos fazer? amigo, não,
É preciso trabalho, estudo e lima.[30]

E isto sem natural inclinação,
Ou pouco ou nada val: se disso és pobre
Martellarás no pobre siso em vão.

A vêa natural não se descobre,
Mil glosas n'um outeiro recitando,
Mais vis que escoria vil de ferro ou cobre.

Oh quanto te escarnece a gente quando
N'elle estás como insano loucamente
«Tyrse, Tyrse!» com larga voz gritando.

Inda do consoante tão vãmente,
Te atreves, pobre infusa, a blasphemar,
Sendo tu tão vã cousa, e tão demente!

Elle nunca se deixa demonstrar
Na tão formosa lingua portuguesa
A quem com diligencia o procurar:

Qualquer, inda que pouca natureza
Tenha, dirá rimando o que quizer
Em estylo corrente e com clareza.

Tanto que aqui mui bem se póde vêr
Que sendo o meu engenho rude e baxo,
Exprimo quanto tenho que dizer.

Ou bem ou mal os consoantes acho,
Tão facilmente ás vezes me apparecem
Que para os apanhar me não abaxo.

Mas julgo que os ouvintes adormecem
Co'a minha longa pratica: eu me calo,
Pois que os gostos d'ouvir-me lhes fallecem.

Em fim já sem refolho aqui te fallo;
Se os meus versos conseguem felizmente
Fazer dentro em teu peito algum abalo,[31]

Que o teu fado se quebre em continente,
Tornando-te, de louco, homem cordato,
E acabes de ser fabula da gente.

Tuas acções medindo com recato,
Deixando versos maus, vãos argumentos
Que te fazem de todo mentecato,

Darei por bem gastados os momentos
Que empreguei n'esta misera escriptura,
Censurando os teus fatuos pensamentos,
E ter-me-hei por mimoso da ventura.

O PALCO PORTUGUEZ EM 1815

Já n'aquelle anno, em meio da bruteza das nossas platêas, se confrangiam de magoa e pejo alguns raros entendimentos que vaticinavam a resurreição do theatro nacional. Almeida Garrett orçava então pelos dezeseis annos. Florecidas mais seis primaveras n'aquelle precoce espirito, a arte nova lhe desbotoaria as primeiras flôres da grinalda.[32]

A tristeza dos bons entendimentos, em presença do abatido e nojoso palco d'aquella época, prenunciava a aurora que alvoreceu, passados quinze annos, com o primeiro dia da liberdade. As musas, trajadas com elegancia e aquecidas ao sol de estranhos, repatriaram-se com os desterrados que lá fóra retemperaram o genio na incude da pobreza, e reviveram nos esplendores da civilisação.

Um dos liberaes, que emigraram em 1828, e cursavam as aulas em 1815, escreveu, n'este anno, uma carta ácerca do theatro nacional. Se este escripto da primeira mocidade não revela vasto estudo nem gentilezas de phrase, com certeza denota razão esclarecida. O author da carta volveu á sua patria, mais atido á espada que á penna. Uma e outra lhe cahiram simultaneamente da mão, no cerco do Porto. Não sei o nome do official que jaz obscurecido na valla dos que morreram em batalha. Apenas em uma nota que precede a seguinte carta se diz que o author d'ella, morto na rareada fileira dos mais audazes soldados do imperador, teria sido um dos melhores cultores das letras que esmeradamente seguira na emigração. Archivemos o documento que merece ser lido como desfastio aos indigestos pastelões de historia theatral com que o snr. Theophilo Fernandes (Joaquim) nos tem intestinado o tedio da leitura:[33]

Carta escripta a um amigo em 3 de fevereiro de 1815 sobre a chegada dos comicos italianos, com algumas reflexões sobre os theatros portugueses.

Chegou finalmente a esta cidade a companhia dos comicos italianos, ha tanto tempo esperada, e hontem fizeram o seu primeiro ensaio. Domingo gordo vão, pela primeira vez, á scena, onde a curiosidade dos dilettanti é igual á impaciencia com que viam o theatro de S. Carlos fechado por falta de actores. Será bem difficil que estes, que chegaram, satisfaçam plenamente a espectação publica, onde se conserva ainda bem gravada a lembrança dos excellentes cantores, que tanto nos deleitaram n'estes ultimos tempos, e que brilharam com a mais bem merecida reputação n'este nosso theatro de S. Carlos, e que illustraram distinctamente a arte da musica tão agradavel, que a nossa mesma imaginação figura os anjos, cantando no paraiso a gloria do Deus Supremo.

Geralmente os portuguezes amam a musica com extremo, e tem um gosto particular por esta arte, principalmente depois que o senhor rei D. José fez vir para o seu theatro magnifico, que infelizmente o grande terremoto do anno de 1755 devorou, os melhores cantores que então havia em toda a Italia. Depois[34] d'esta época sustentou o mesmo monarcha a mesma inclinação por esta arte, em que era muito entendido, e á sua imitação a nação toda se costumou tanto á boa musica, que houve particulares que chegaram a rivalisar com os mesmos professores. Ainda hoje não teem perdido de todo este gosto, principalmente os habitantes de Lisboa, que conservam viva a lembrança do canto melodioso, suave e delicado da Crescentini, de Cafforina, e da celebre Catalana, que por uma maneira nova de cantar, levaram esta sublime arte áquelle grau de perfeição, a que ella póde humanamente chegar.

Não julgo que estes virtuosos, que vieram, sejam iguaes em talentos áquelles de quem venho de fazer menção. Como não é sómente a arte, mas a natureza igualmente que os produz, e nem sempre esta é fertil em semelhantes producções, parece-me que o seu canto não causará nos espectadores o mesmo interesse, com que todos os lisbonenses corriam para o theatro a ouvir a melodia de vozes, e a harmonia de accentos, que realisavam os fabulosos das serêas. Como dizem, porém, que vem duas raparigas que não são mal parecidas, não deixarão de serem bem applaudidas pela platêa de Lisboa, na qual a mocidade olha sempre com mais attenção para os agrados da natureza do que para as perfeições da[35] arte, ás quaes não paga tão grande tributo como á belleza.

É muito provavel que d'aqui em diante os bons cantores sejam mais raros na Italia, onde em outro tempo eram mais communs, não sómente porque os successos politicos tem influido consideravelmente n'esta parte da Europa sobre os progressos das artes liberaes, onde nasceram e tiveram o seu berço; mas porque o infame e detestavel costume da castração, com o fim de fazer as vozes finas, e bons sopranos, está justamente prohibida por uma lei sabia e judiciosa. Pois que barbaridade maior podia haver do que condemnarem os paes seus proprios filhos a uma mutilação que degrada a especie humana, que a inutilisa e que annulla os votos da natureza em prejuizo das suas mais admiraveis producções?

Não poderemos, pois, ouvir d'aqui em diante um novo Echiziel ou um Crescentini, que modulavam as suas vozes finas á custa do bem que tinham perdido, por umas notas successivas e prolongadas, que bem longe de moverem a alma pela força da expressão, a affligiam pelos patheticos esforços de uma modulação uniforme; mas ouviremos talvez com um prazer mais interessante os sons masculinos d'aquellas vozes fortes e animadas, que conciliem com os seus accentos a viva expressão dos sentimentos differentes da nossa alma, em[36] que um gosto sublime e delicado faz consistir a perfeição da musica, para o qual não é o melhor musico aquelle que se occupa só em vencer difficuldades; mas aquelle que, pelas doçuras da harmonia, inspira na nossa alma, e lhe communica os mesmos sentimentos que exprime no seu canto.

Qualquer que seja, porém, o merecimento dos novos comicos, é sempre uma especie de satisfação para os moradores de Lisboa verem o melhor theatro, que teem, aberto, e terem quem trabalhe n'elle, o que é sempre um grande recurso em uma grande cidade, destituida de divertimentos publicos, e onde se consome o homem, e sobre tudo os estrangeiros, á força de uma negra melancolia, não havendo outro passatempo, que não seja o de algumas sociedades particulares, onde só apparecem aquelles que possuem grandes meios, para alli ostentarem toda a sua vaidade, e quasi sempre todo o seu orgulho. É bem verdade que toda a comica representação, que alli fazem, é quasi sempre á custa da sua bolsa, pois que é descredito entre elles não jogar. Os gatunos que nunca faltam n'estas assembléas, nunca perdem a occasião de os depennarem; e os murmuradores e maldizentes de admirarem o como a fortuna faz de um tolo um homem entendido, e como transforma um sevandija em um fidalgo cortezão.[37]

É certo que os invernos são bem custosos de passar em Lisboa sem o recurso dos theatros, não havendo outro algum divertimento publico, mais do que as assembléas acima referidas, onde nem todos podem ir, e que nem a todos é permittido frequentar. Não ha aqui, como em Londres, em Paris, em Vienna, em Petersbourg e em Veneza salas publicas de baile, onde se passem as noites, e menos cafés bem compostos, em que todo o homem bem creado acha a melhor companhia, e onde trava amizade com os homens mais distinctos e que são assás uteis muitas vezes. Os nossos costumes reservados, e os principios da politica, de os dirigir pela desconfiança ou pelo temor, em que a policia ganha porque tem menos que observar e menos motivo para temer que a ordem publica seja alterada, fazem que estas privações se soffram com toda a paciencia, contentando-se cada um que não tem os meios competentes para frequentar as companhias do melhor tom, a ir passar a noite com o seu compadre ou com o seu visinho, a murmurarem uns dos outros. Sem este recurso ficariam sempre em casa, semelhantes ás mumias do Egypto, embrulhados nos seus capotes, unico meio de que se servem para resistirem aos rigores da estação.

Não faltará quem diga que faço um quadro de Lisboa, no tocante aos seus divertimentos[38] publicos, menos vantajoso; pois que uma cidade populosa que tem tres theatros nacionaes, além do italiano, e uma quantidade immensa de grandes sociedades, que tem nas semanas dias fixos em que se ajuntam, não está de menor condição n'esta parte ás mais opulentas da Europa. Esta reflexão, se ficasse sem replica, me attribuiria talvez, na opinião geral, um espirito de maledicencia que eu não tenho; e para me salvar de qualquer imputação que n'este particular se me haja de fazer, vejo-me obrigado a fazer aqui algumas observações sobre os nossos theatros nacionaes, que pela sua construcção material e pelo genio dos actores, que n'elles representam, não constituem um divertimento que chame o gosto, o interesse e a distracção da classe mais escolhida da nação, a quem não fazem grande honra nem excitam aquella curiosidade que faz frequentar estas escólas dos costumes e do bom gosto.

Quanto á construcção destes nossos theatros duvido que se achem, ainda nas mesmas provincias dos reinos mais civilisados, outros semelhantes ao da rua dos Condes ou do Salitre. As incommodidades que cada um é obrigado alli a supportar, não compensam os agrados mais deleitaveis da melhor representação, ainda no caso que a houvesse. No meio da platêa arde em fogo, nas mesmas noites mais frias do[39] inverno, o desgraçado espectador que acha alli lugar; pelos lados da mesma platêa vem um vento encanado pelos corredores, que atormenta todo o miseravel que occupa estes assentos. Nos camarotes, que são tão mesquinhos como tudo o mais, estes incommodos são ainda mais penosos; por entre as frestas das portas entra um frio pelo inverno, que gela, e que é principio certo de catarrhos, pleurizes e constipações, que circulam amplamente n'aquelle triste recinto; e quando o espectaculo acaba, nem lugar reservado, em que se esperem as carruagens, nem modo algum de prevenir os grandes males, a que cada um fica exposto á porta da rua ou no aperto dos corredores, até que chegue a carruagem que o ha de transportar. O theatro do Salitre e o da Boa Hora teem estas incommodidades mais marcadas; de maneira que todo aquelle que se propõe a ir a algum d'elles passar uma noite, deve ir disposto a vir doente: se é de verão, pelo nimio calor, se é de inverno, pelo frio. Assim não conheço um meio mais proprio a quem está em boa saude, de estar doente, do que ir a um d'estes theatros. Ora, que divertimento póde ter n'estes espectaculos aquelle, que cuida mais em se livrar dos males a que se vê exposto, do que gozar das illusões que apresenta á imaginação uma sala de espectaculo? Se todos estes incommodos, que se compram[40] por dinheiro, fossem, comtudo, compensados pelo deleite de uma boa representação, seria ainda assim desculpavel, sacrificar ao prazer certos incommodos, de que uns não fazem caso por genio, e que outros desprezam, porque lhes insta a necessidade que sentem de se distrahirem. Mas a representação é tão insipida e tão enfadonha! Os comicos interessam tão pouco; e os caracteres que representam são, ou por falta de natureza ou por ignorancia propria, tão mal sustentados, que não valem a pena de se ouvirem á custa dos grandes detrimentos que se soffrem, principalmente quando um homem tem o seu gosto formado pelos bons modelos da arte dramatica, a quem um actor mediocre e baixo é tão insupportavel, como uma musica desafinada e sem harmonia na sua composição. Taes são, portanto todos os nossos actores, os quaes entram n'esta carreira mais com o fim de acharem n'ella uma subsistencia segura e commoda, que com o nobre intento de adquirirem uma gloria que immortalisou os famosos nomes de Molière, de Baron, de Garrik e de le Kain.

Pois que uma casualidade impensada me chegou a ponto de fazer algumas observações sobre os nossos theatros, não quero perder esta occasião de expor o meu juizo sobre este assumpto, que aliás é um seguro thermometro, que indica o grau em que se acha a civilisação[41] e os costumes das nações. Como escrevo uma carta e não faço uma dissertação, cuidarei quanto podér de abreviar o meu discurso, que não terá mais que simplesmente o resultado de fazer vêr quanto Thalia e Melpomene favorece pouco os engenhos dos portuguezes nas artes a que presidem estas musas, cujas influencias são tão brilhantes e tão liberaes para outras nações, que cultivam com o melhor successo esta arte, que nos representa vivamente os vicios e as virtudes dos homens, assim como tambem os seus defeitos e os seus ridiculos.

Podemos seguramente dizer com toda a verdade, que nós, os portuguezes, não podemos ter a gloria de dizer que temos um theatro nacional, pois que não temos nem actores dramaticos nem actores capazes de desempenharem estas bellas composições do espirito humano. Não é de admirar que não haja bons representantes, onde faltam os poetas; porque aquella mesma natureza, que inspira o enthusiasmo da imaginação, não deixa de inspirar tambem o gosto particular da imitação, de modo que é observação demonstrada, que onde os engenhos sabem conceber os mais brilhantes pensamentos e estudam todos os movimentos da nossa alma, dirigida pelas suas affeições ou pelos impulsos das paixões humanas, ahi se encontram tambem aquelles talentos superiores[42] e naturaes, que na scena representam com toda a energia e delicadeza aquelles mesmos movimentos; de maneira que parece realidade o que não é mais que imitação. Garrik, a cada sentimento que exprimia nos theatros de Londres, mudava de voz e de semblante, como a expressão requeria; e Molière, em França, ridiculisava com uma graça tal todas as classes de homens de que se compõe o corpo social, quando a vaidade, presumpção ou amor proprio as desviava dos principios que a razão prescreve, que todos sentiam em si o defeito de que elle ria e zombava, para se corrigirem quando se julgavam objecto dos epigrammas e dos gestos comicos do comediante. Como este mesmo era o author das suas comedias, não é de admirar que exprimisse com energia aquillo mesmo que a sua alma sentia com toda a sua força; e é d'este modo que os theatros, que são as escólas dos costumes, onde se pintam ao natural pela fealdade do vicio ou pela ridicula pratica que os degrada, preenchem plenamente o fim para que foram instituidos; pois é evidente que todo aquelle actor que não tiver meios proprios para penetrar a alma dos seus espectadores pelas mais vivas e mais naturaes maneiras, figura e gestos da sua representação, não póde produzir o effeito que esta admiravel arte de imitação é capaz de produzir, e sem o qual effeito, uma sala[43] de espectaculo não é mais do que uma camara optica em que os sentidos podem gozar de algumas momentaneas illusões, mas onde a alma jámais se deixará possuir d'aquelles prestigios do sentimento que faz amar a virtude e detestar o vicio, nas peças tragicas, e nas comicas, temer o amargoso fel da critica que corrige o homem, fazendo mofa dos seus costumes que pinta, quando são ridiculos, ao natural.

É para notar que os engenhos portuguezes, dotados, como todos os mais que gozam das dôces influencias do céo puro e crystallino do meio-dia, de uma viva e ardente inclinação para as artes de pura imaginação, principalmente a da poesia, se contentem só de a cultivarem á margem dos rios e á sombra dos arvoredos, onde suspiram pelas suas amadas, em versos sim, amorosos e sentimentaes, mas que só fallam de amor, de saudades, de ciumes e de ingratidão. Um só d'estes genios favorecidos das musas tem aspirado á gloria de rivalisar com Euripedes ou com Sophocles, de igualar a Plauto ou a Terencio, e aquelle que tem intentado dar alguns passos na carreira dramatica, tem sido com tão infeliz successo, que parou no principio d'ella. Muitas vezes tenho pensado sobre a causa por que os nossos poetas, sendo inspirados de um estro proprio a todo o genero de versificação, só para[44] o theatral não teem os talentos requeridos; e por resultado das minhas observações a este respeito, tenho colhido a idéa de que para compôr uma ecloga, um idyllio, uma epistola ou uma elegia, basta ao poeta exprimir os seus proprios sentimentos em bons versos e harmoniosos para ter um nome distincto no Parnaso: mas para compôr uma tragedia ou uma boa comedia de caracter, é preciso exprimir com elegancia, pureza e enthusiasmo os sentimentos dos outros, que é absolutamente necessario conhecer e aprofundar para os saber desenvolver pela acção. Ora este conhecimento não se adquire senão por um grande uso do mundo, e por um tacto particular do coração do homem e de toda a natureza humana em geral; mas este grande livro não se acha nas livrarias escripto, acha-se espalhado no tumulto da sociedade, onde os homens desenvolvem todas as suas idéas, todos os seus sentimentos, as suas paixões, os seus vicios, os seus crimes e o seu heroismo. É n'este livro que o poeta dramatico aprende a pintar na scena as virtudes de Catão e as ridiculas maneiras de um villão afidalgado; mas se o poeta, concentrado no fogo do seu amor, não conhece senão Damiana a quem dirige seus ais e seus queixumes, como ha de pintar as paixões dos homens e os seus ridiculos caprichos? Esta ignorancia me parece ser a causa por que os[45] poetas portuguezes não consagram as suas musas mais que simplesmente ao amor a que os chama uma natural ternura, e o conhecimento de uma paixão, que elles conhecem melhor que quaesquer outras, e que explicam com mais sensibilidade e doçura. Nunca sahindo dos seus lares, vivendo em um pequeno circulo, uma imaginação, por mais poetica que seja, não póde produzir grandes e brilhantes concepções; e por consequencia, se conceber o plano de uma tragedia, que, segundo a opinião de mr. de la Harpe, é a obra prima do espirito humano, onde ha de ir buscar a materia para os debates? Se quizer compôr uma comedia, apenas saberá ridiculisar os defeitos do seu visinho tendeiro ou sapateiro.

Para provar que o cothurno não é feito para os nossos poetas lusitanos, basta lembrar que o assumpto da morte tragica da rainha D. Ignez de Castro, assumpto dos mais interessantes que tem apparecido em scena, tanto nos tempos antigos como nos modernos, tem apurado o estro dos nossos poetas portuguezes, não só pelo interesse da acção, mas por ser a acção passada entre nós, e que para excitar a compaixão tem de mais a historia que a proclama verdadeira. Tres ou quatro tragedias temos na nossa lingua portugueza d'este infeliz successo, e uma só d'ellas o immortalisa pelas bellezas dramaticas, que pouco ou nada[46] correspondem a um assumpto igualmente sublime que pathetico. Não fallo da primeira e mais antiga de Antonio Ferreira, que passa aliás por poeta classico entre nós, e na qual se não acha a força de sentimentos, a violencia das paixões, postas em jogo para trazerem imminentemente a catastrophe que finalisa a tragedia. As scenas sem ligação, a intriga mal combinada e tão descoberta pelo dialogo, que todo o espectador conhece, desde o primeiro acto, qual será o fim da peça. Não fallo n'estes dialogos, em que as personagens que os declamam não tem bastante força para mostrarem todo o horror da inveja que instiga e anima os cortezãos orgulhosos da côrte de D. Affonso IV para sacrificarem ao furor d'aquella paixão o amor fino, legitimo e innocente de dous corações ternos, ligados pelos dôces e sagrados laços do hymeneu. Os córos que o author Ferreira introduziu por intervallos dos actos d'esta sua tragedia, á maneira dos gregos, é o que ha n'ella de melhor, por serem compostos de uma bella poesia, e tão pathetica, que movem o coração á maior sensibilidade. Outra tragedia, que temos sobre o mesmo assumpto, composta por o arcade Alcino não tem merecimento algum: as regras do theatro não são observadas; a versificação é languida e sem elegancia; os sentimentos friamente exprimidos, e os actores sempre sustentando um caracter[47] forçado e não tirado da natureza da acção, d'aquella acção que deriva de paixões complicadas e violentas, que deviam ser mais energicamente desenvolvidas. Esta peça não tem regularidade nem entrecho de uma tragedia; é um drama feito á imitação dos de Metastasio, que não é poeta tragico, pois que além dos seus dramas interessarem geralmente mais pela musica do que pelo desenvolvimento da peça, este vem muitas vezes no segundo acto, e o terceiro é composto então de incidentes accessorios, quasi sempre insipidos e frios, porque n'elles não ha acção. Lembra-me ha annos vêr representar no theatro do Bairro Alto uma tragedia de D. Ignez de Castro tirada de uma comedia hespanhola de Don Calderon de la Barca, intitulada Reynar despues de morir. Esta peça foi geralmente applaudida e gostada pela energia e força de alma, com que uma actriz, chamada Cecilia, representou o papel de D. Ignez de Castro; mas esta peça deveu ao genio e aos talentos d'esta actriz o bom successo que teve, pois que examinando a contextura da peça, ella tinha os defeitos da hespanhola, em que não havia mais que tiradas de bons versos; mas pouca ou nenhuma verdade na acção; pois que, depois da morte d'esta infeliz princeza, apparecia uma scena em que o seu cadaver, sentado debaixo do solio, era coroado e solemnemente[48] proclamado pelo seu amante, já rei, e por todo o seu povo como sua legitima rainha, e isto muito tempo depois de ter sido a victima das paixões dos cortezãos, invejosos de verem a familia dos Castros sobre o throno de Portugal. Esta scena, que pela sua magestosa decoração fazia todo o interesse d'esta peça, não parece ser uma segunda acção, que se representa? onde está pois a unidade da acção tragica, que é o primeiro preceito da tragedia? A coroação da rainha na mesma peça é tão irregular, quanto é novo de sentar em um solio o cadaver de uma princeza, assassinada no seu proprio palacio, muito tempo depois de enterrada no silencio de um sepulcro. Passemos todas estas incongruencias, que sómente trago á lembrança para mostrar que a poesia dramatica não é largamente distribuida pelas musas aos portuguezes.

N'estes ultimos tempos appareceu entre nós, sobre o mesmo assumpto, uma tragedia com o titulo de Nova tragedia de Ignez de Castro. Esta peça observa melhor os preceitos do theatro; a sua versificação é em algumas scenas elegante e sentimental; mas em outras não conserva esta igualdade. O fim ou o desatado da intriga é a catastrophe, que vem um pouco precipitada e não trazida por um jogo de paixões, susceptiveis de modificações differentes, que levam o coração humano ao excesso da[49] paixão que agita e move os animos; o que faz que os dialogos são curtos e as scenas ainda mais. A da entrevista de Affonso IV com D. Ignez de Castro, que é uma das mais interessantes da peça, não póde satisfazer os espectadores, que vêem que um rei se occupa da sorte da infeliz Castro, de quem se separa, dizendo-lhe que vai para o conselho de estado, onde ella ha de ser julgada, e alli elle advogará a sua causa. Que enormes incongruencias! O rei tem no seu poder o perdoar-lhe; não é uma acção generosa salvar a innocencia das mãos que pretendem banhar-se no seu sangue? O conselho de estado não é um tribunal judiciario, que é só quem póde julgar e condemnar. E um ajuntamento de conselheiros, que o rei convoca para tratar da sorte de D. Ignez de Castro, como um negocio simplesmente politico. E então que triste personagem faz elle em advogar pela infeliz Castro, diante não de ministros que a julgam pelas leis, em que elle mesmo póde dispensar, mas diante de conselheiros invejosos, que verdadeiramente são algozes! Esta scena podia ser conduzida mais nobremente, conciliando a bondade do rei, que se mostra interessado a favor de Castro, com a dignidade da sua corôa, que póde ser enganada pelo artificio dos seus conselheiros, a quem é indigno da sua parte dar-lhes consentimento para serem os executores de um assassinio.[50] Estas delicadezas não escapariam a Racine nem a Voltaire, se tratassem esta materia, porque, exactos observadores de tudo o que é decente e decoroso, não atropellariam tão facilmente o respeito da magestade, fazendo-a instrumento de crimes odiosos em um theatro em que um monarcha, se pelas paixões é um homem como outro qualquer, pela soberania é sempre executor da lei.

Alguns outros poetas n'estes tempos posteriores teem ensaiado o seu estro n'este genero de composição. A condessa de Vimieiro compoz uma tragedia, que foi laureada pela academia das sciencias de Lisboa, mais por favor que por justiça. Um certo Francisco Dias, homem só conhecido pelos seus talentos litterarios que cultivou no lugar humilde de uma tenda, compoz outra, cuja sorte foi, segundo creio, ainda mais infeliz do que a da condessa; e tantos esforços juntos não tem produzido um bom poeta tragico em Portugal que possa pôr-se ao pé do grande Corneille ou do sentimental Racine, mas ainda junto dos mais mediocres poetas tragicos do theatro francez. Esta inopia não vem ella do principio que acima já apontei? Para Raphael pintar uma obra prima no inimitavel quadro da transfiguração de Christo, foi preciso que a sua imaginação sublime lêsse no grande livro do universo todas as bellezas da natureza, para as saber pintar[51] com propriedade, e conforme as suas primitivas creações; para um poeta tragico reproduzir o caracter de Catão, de Cesar, de Marco Antonio, de Brutus e da infeliz Dido, é necessario que entre com a sua imaginação no immenso theatro do mundo e contemple a variedade de successos que os interesses dos homens, as suas paixões, os motivos que as põem em acção, os progressos que fazem sobre as suas almas para virem a dominal-as com despotico poder, os crimes e as acções infames de que são causa, a degradação, em fim, da intelligencia humana, quando de todo se sujeita á perversidade do vicio e se entrega á corrupção dos costumes: sobre este quadro immenso a imaginação quer um campo largo para o contemplar, examinar e estudar; mas este campo falta aos nossos poetas, que levados do gosto dominante da nação, que tem por objecto o amor, não são pintores para retratarem grandes caracteres, nem teem imaginação bastante para darem aos grandes successos uma fórma que mostre todos os horrores dos vicios e todas as bellezas das virtudes, que é o principal objecto das tragedias.

Se este genero de composição não tem dado nome a poeta algum portuguez, menos se teem elles distinguido na comedia, pois que não temos uma, não digo boa, mas ainda muito mediocre. Parece que as musas são ainda n'esta[52] parte mais avaras com os engenhos portuguezes, que, sendo os primeiros que abraçaram logo as artes graciosas, que no seculo XV a fortuna transplantou da Grecia para a Italia, onde acharam um benigno acolhimento, foram aquelles que por meio dellas menos gloria teem adquirido. As comedias que os nossos poetas do nosso seculo de Augusto—que é o d'el-rei D. João III—nos deixaram, não merecem sequer o nome de comedias; o que me não faz espanto, pois que Portugal então não tinha um só theatro, mais que o dos campos de Marte, e onde não ha theatros não ha quem componha comedias. A nossa feliz época da boa litteratura passou, e Camões ficou conhecido pelo primeiro poeta das Hespanhas pelo seu poema lyrico e não pelas suas miseraveis comedias, e a mesma sorte tiveram os seus contemporaneos que molharam o seu pincel na paleta de Melpomene. Os castelhanos que se senhorearam de Portugal, se distinguiram, mais que nenhuma outra nação da Europa, na arte de Aristophanes e de Menandro; porém não nos passaram este gosto, ou os portuguezes o não quizeram seguir, talvez por ser de uma nação que aborreciam. Como quer que seja, a arte dramatica foi inteiramente desprezada em Portugal, e o bom gosto da litteratura tendo-se corrompido n'este paiz pelos successos politicos, por que passou, fez totalmente esquecer[53] aos poetas do tempo este genero de composição. Elle se limitava só a alguns autos sacramentaes, que se representavam popularmente em festas de igrejas e nos adros dos templos. As vidas dos santos davam assumpto para muitos d'estes autos, que correm ainda entre nós; e a piedade christã ia buscar n'estas representações mais estimulos para amarem a religião, do que motivos para cultivarem uma arte que, segundo Horacio, castigat ridendo mores. Não tenho idéa, nem pela historia nem por tradição alguma, que em Portugal houvesse um theatro em que se representassem comedias portuguezas, de que não appareciam authores, ou pelos embaraços da longa guerra, que houve n'este reino para sustentar a corôa na casa de Bragança, que não deram lugar para a applicação das artes, ou porque os portuguezes não quizeram imitar os seus inimigos, exercitando as suas musas na poesia dramatica em que os hespanhoes excediam a todas as outras nações da Europa. Estes não tinham theatros fixos; companhias ambulantes de comediantes, de que lemos na historia de Gil Blaz a descripção tão circumstanciada como critica. Corriam de villa em villa, a recitar as comedias de Calderon, Moreto, Solis, tres «Ingenios» que inundavam toda a Hespanha, em tanto que o espirito dos portuguezes se contentava com os seus autos sacramentaes de[54] Santa Genoveva, de Santo Aleixo e outros semelhantes, que se davam ao publico em espectaculo nos dias das maiores festividades da igreja. Assim não se sabia entre nós o que era uma boa comedia, e n'esta ignorancia vivemos até que no principio do seculo passado appareceu o judeu Antonio José, que compoz um theatro de operas, as quaes nem pela poesia, pois que são em prosa, nem pelos titulos, que são Labyrintho de Creta, Encantos de Medêa e outros iguaes podem chamar-se comedias, ou porque trazem misturada musica de recitados e de arias, á maneira dos italianos, ou porque lhe falta aquelle caracter que distingue a comedia, e que Molière só fixou em França na época feliz da sua mais brilhante litteratura. Aquelle engenho, porém, infeliz pela fórma das suas composições dramaticas e mais ainda pela miseravel sorte que teve de ser condemnado a morrer queimado pelo santo officio, foi comtudo, o primeiro que viu as suas operas representadas no theatro do Bairro Alto, o primeiro que houve em Lisboa e onde os representantes eram bonecos que se moviam por arame e que fallavam pelas vozes dos interlocutores, que se mettiam por entre os bastidores. Tal era o estado em que se achava a arte dramatica em Portugal, quando já Molière brilhava em França como o restaurador dos theatros de Grecia e Roma, pelas[55] suas admiraveis comedias e como um modelo perfeito da mais decente, entendida, natural e agradavel representação que até então não tinha apparecido em algum theatro do mundo antigo e moderno.

Nem este excellente author, que deu tanta gloria á França como Aristophanes tinha em outro tempo dado a Athenas, nem o genio particular que a natureza lhe tinha dado para imitar na scena as differentes personagens, que como author era obrigado a representar, causaram o mais pequeno estimulo aos engenhos portuguezes para o seguirem na carreira dramatica. As suas musas ficaram mudas n'este ponto, até que el-rei D. José, apaixonado pela musica, logo que subiu ao throno, mandou construir um magnifico theatro; e mandando vir da Italia os mais celebres musicos para cantarem n'elle as peças de Metastasio, extinguiu de todo o gosto da nação pelas comedias em lingua vulgar. Quem poderá deixar de reflectir que houvesse theatro nacional em uma nação em que o rei não gostava, e, por conseguinte, o não protegia? Não o havia, pois—nem comedias para se representarem, no caso de o haver; porque, como já disse, a poesia n'este genero emmudeceu em Portugal. O theatro real era tão magestoso que não admittia mais que pessoas de qualidades superiores; e as que ficavam mais abaixo não indo a elle ignoravam[56] o que era uma comedia, uma tragedia e os mesmos dramas em musica, que se punham no theatro real. Succedeu o fatal terremoto de 1755; arruinou-se com a maior parte da cidade este sumptuoso espectaculo, e, até que a confusão d'aquella calamidade se ordenou, nem el-rei teve theatro nem o povo. Mas no anno de 1758 abriu-se o da rua dos Condes, que ainda hoje existe nas ruinas do palacio do marquez do Louriçal, com algum augmento que teve, depois da sua primitiva creação. As peças que ao principio n'elle se representavam eram as operas de Metastasio traduzidas em portuguez, Artaxerxes, Alexandre na India, Demofonte em Thracia, Ezio em Roma, etc. com relações á maneira hespanhola, e mil bufonerias, que d'aquelles bellos dramas faziam as peças mais ridiculas que se podiam pôr em scena; e, para tornar o theatro de todo desprezivel, eram homens vestidos de mulheres que representavam o papel de Erytrêa e das mais damas das peças e suas criadas, que os traductores introduziam para fazerem rir a plebe. Um só poeta appareceu com uma composição dramatica que fosse digna de apparecer em scena; e os directores d'este miseravel theatro pozeram em contribuição poetas hespanhoes e italianos para sustentarem o theatro.

Alguns annos depois um novo empresario estabeleceu um theatro no Bairro Alto, não[57] onde havia o dos bonecos em tempo mais antigo, mas nas ruinas do palacio do conde de Soure, cuja abertura foi com uma companhia de musicos italianos que foi buscar a Londres. Esta empresa não durou muito tempo, e aos italianos succederam os portuguezes com o mesmo successo que tinham os da rua dos Condes, que podiam chamar-se actores de arraial. Este theatro do Bairro Alto de todo acabou e succedeu-lhe o do Salitre, que se conserva sem melhoramento algum que possa acreditar os engenhos portuguezes, que, nem pelas suas composições, nem pelo jogo da representação, tem dado á sua patria a gloria de ter um theatro nacional.

N'esta curta narração historica dos theatros portuguezes tenho feito vêr o pouco progresso que a arte dramatica tem feito em Portugal. Não é de admirar, porque onde os talentos superiores não são apreciados com justiça e recompensados com a grande estimação que lhe é devida, nem podem produzir fecundos fructos na arte theatral, que fazem as delicias do homem de gosto fino e delicado das cidades mais opulentas da Europa, nem terem a esperança de vêr seus nomes inscriptos nos monumentos que os homens gratos lhes consagram. As artes não florecem senão quando são immediatamente protegidas e estimadas pelos soberanos; e quer seja poeta, quer seja actor,[58] se tem talentos distinctos, não merece a attenção e a estimação do seu principe, quem contribue para fazer a sua gloria mais brilhante? Os seculos de Augusto, de Leão X e dos Medicis de Florença, o de Luiz XIV em França não provam esta verdade? Não me detenho em amplificar estas minhas idéas com outras razões, porque não padece duvida que a memoria dos soberanos que se tem pronunciado protectores das bellas-artes vive ainda nos padrões que ellas lhe tem erigido, entretanto que a dos mais famosos conquistadores ficou confundida nos estragos que fizeram. Infelizmente os nossos soberanos portuguezes tem esquecido esta verdade, como muitas outras, e deixaram morrer Camões, que dá tanta gloria a Portugal, em um hospital. Desde esta desgraçada época tem sido os poetas n'este paiz tão pouco venturosos pela sua arte, que o nome de poeta só entre nós é synonymo de pobre e de miseravel. Que comedias, que tragedias boas podia pois haver em um tal paiz?

Se não podemos competir com as nações que cultivam as bellas-artes n'este genero dramatico, menos ainda os actores dos nossos theatros podem rivalisar com os das outras nações que tem formado já um gosto apurado e exquisito n'aquella parte que se chama representação. Ella não é mais do que uma simples imitação da natureza, que é o primeiro principio[59] que deve seguir todo o bom actor. Separar-se d'elle por acanhamento ou por excesso, não acompanhar de gestos correspondentes as expressões, não saber desenvolver pelas attitudes os sentimentos que tem para declamar ou recitar, deixar-se transportar por estes sentimentos sem faltar á dignidade e á decencia que exige a personagem que representa, pronunciar com clareza e energia o que lhe compete dizer, e mostrar pela physionomia que o que diz vem do fundo da sua alma, sem estudo nem affectação, são as circumstancias principaes que formam um bom actor. Ora examinemos quaes dos nossos as sabem pôr em uso. Os grandes artistas desenvolvem os seus talentos estudando a natureza e seguindo os modelos que aprenderam a imital-a. Guido, Carrache, Albano devem a admiravel belleza dos seus quadros a este estudo singular de imitação; mas onde podem achar os nossos actores modelos, a quem possam imitar e talvez exceder? Não fazem estudo algum da natureza; ensaiam os seus papeis como simples obreiros, que tem uma empreitada a fazer e que hão de acabar seja como fôr; e n'esta parte o povo que compõe a platêa dos nossos theatros é o mais tolerante povo do universo, pois que soffre com a maior paciencia todos os actores bons, maus, medianos e incapazes de apparecerem. Por isso[60] nunca aspiram áquella superioridade, em que o bom gosto, dirigido por um discernimento perspicaz e por uma critica sã e judiciosa, faz consistir a gloria do grande talento. Molière, o primeiro restaurador da comedia, como já disse acima, foi tambem o primeiro actor da França. Conta-se d'elle que os papeis que representava recitava-os antes a uma criada que tinha, que decidia, como intelligente, da sua boa ou má representação, e como bom juiz corrigia e emendava os seus defeitos. Um dia Molière, para melhor se convencer da intelligencia d'esta sua criada, recitava-lhe um papel de um author estranho, que fazia uma grande differença d'aquelles que eram composição d'aquelle homem inimitavel; ella conheceu logo o engano, e voltando-se para o amo lhe disse: «Vós representaes as vossas comedias como um exellente actor; mas essa que ensaiaes nem é vossa, nem vos fará applaudir.» Eis aqui como a applicação, o estudo e o modo de estudar secunda os dons da natureza: ora qual dos nossos actores tem imitado a Molière? Qual d'elles tem sido capaz de apurar o seu talento, se o tem, por um modo tão novo e tão extraordinario?

É difficil que um homem, que tem algum conhecimento de theatros, possa aturar a representação dos nossos comicos portuguezes, sempre affectada, sempre fóra do natural e[61] sempre exprimida em vozes altisonantes, e cujos dialogos acabam geralmente em um hiato desagradavel e musical, estylo que não é proprio de quem conversa, que é o que compete á comedia, a qual representa um facto, um caracter, uma intriga, que se explica por uma conversação natural e semelhante ás que se fazem nas sociedades. Se a este estylo declamatorio ajuntarmos o excesso com que os criados ou criadas que vem á scena desempenham os seus papeis em gracejos que divertem o publico e que pela maior parte são insipidos, e sem outro interesse mais que o da risota, acharemos que está entre nós tão atrazado o jogo da representação theatral, que os nossos actores em seguindo bem o ponto, que lhes indica o que hão de dizer, são proprios para todas as personagens, e por conseguinte bons para nenhuma.

Lembra-me ha annos ir ao theatro da rua dos Condes assistir á representação da tragedia intitulada A Vestal, que traduzira em portuguez com elegancia o celebre Bocage. Esta peça tragica, susceptivel da mais brilhante representação pelo seu assumpto e pelos grandes interesses que n'ella se tratam, foi desgraçadamente tão mal representada, que pela parte que me toca não me fez a menor sensação. Quantas vezes disse commigo mesmo: «Ah! famoso[61] Talma[1] que estiveste em Londres muitos annos com o fim de reunires os talentos da arte theatral dos dous paizes, que os sabem tão bem apreciar! se tu aqui estivesses, como verias esta excellente peça despedaçada por semelhantes actores?» Em uma das scenas apparece o grande pontifice que deve fazer executar a lei imposta ás vestaes sacrilegas e criminosas; reconhece que sua filha é a delinquente accusada; que conflicto de grandes e violentos sentimentos da religião e da natureza não devem combater a alma de um pai, que sendo igualmente pontifice ou ha de faltar á observancia da lei, primeira obrigação do homem, ou ha de calcar os estimulos quasi invenciveis da natureza, sacrificando o seu proprio sangue á vindicta da lei? Que genio, que talentos, que energia de caracter não são precisos para desenvolver toda esta opposição de sentimentos que combatem o coração humano de uma e de outra parte? O pobre miseravel actor era um automato no meio do theatro, e sem duvida eu tive tanta afflicção de vêr a sua insufficiencia pessoal, como aborrecimento de vêr a indifferença com que o povo portuguez soffre semelhantes actores, a quem[63] convém mais propriamente uma enxada, do que a profissão de uma arte para a qual lhes faltam todos os requisitos. Esta peça me desenganou inteiramente da mediocridade dos nossos actores portuguezes e do estado miseravel em que estão os nossos theatros nacionaes, que tem a desgraça de verem estropeados nos seus proscenios as mais admiraveis producções do espirito humano.

Tenho dado uma curta idéa do pouco que a poesia dramatica concorre n'esta parte para a gloria nacional, assim como do pouco que os nossos actores contribuem para fazer brilhar uma arte que os povos mais polidos amam com tanto excesso, porque n'ella acham uma dôce e agradavel distracção aos seus negocios civis, quando ella é cultivada principalmente por aquelles talentos sublimes que ennobrecem tanto as nações que os viu nascer e creou, como a mesma arte que souberam aperfeiçoar.

Os limites de uma simples carta não me permittiram que eu tratasse este assumpto com aquella extensão que elle requeria para desilludir os muitos ignorantes que se persuadem da boa direcção dos nossos theatros e dos grandes talentos dos nossos actores. Contentei-me unicamente com tocar este ponto pela superficie conforme convinha a uma simples carta, em que a casualidade quiz que o fizesse entrar, a fim de dar a conhecer o[64] nosso grande atrazamento n'esta parte; e creio que algumas das minhas observações não serão frivolas na opinião d'aquelles que tem frequentado os theatros estrangeiros, em que as peças que se representam n'elles concorrem tão poderosamente para a educação publica se ir aperfeiçoando cada vez mais, o que, a meu vêr, é o principal objecto da instituição dos theatros.

O povo de Lisboa não gosta com preferencia senão de farças e entremezes, por que só quer rir e divertir-se com as baboseiras que se dizem n'elles; mas é porque não conhece ainda a grande utilidade que poderia tirar de uma escóla de costumes e de maneiras que lhe quadrariam melhor que as muitas chalaças que ouvem, que lhes pervertem toda a inclinação que poderiam ter para aprenderem a ser polidos, decentes, modestos e virtuosos cidadãos—o que as peças theatraes que estão vendo representar, todos os dias, lhes não ensinam.

Adeus, meu bom amigo; perdôe esta matraca que lhe dou em favor do espirito com que a escrevi, que é o do bem publico, que se estende tambem a este ramo, que produz os fructos delicados do bom gosto, o qual se adquire nos theatros, e d'aquella urbanidade que não é filha da imitação; mas de uma intelligencia dirigida pela razão—tão util ao homem[65] na sua condição particular, como gloriosa para a nação a que elle pertence.

Sou sinceramente

amigo fiel e affectivo

M.

[1] Talma, primeiro actor tragico do theatro de Paris.


BIBLIOGRAPHIA

(Padre Senna Freitas—Cunha Vianna—Monsenhor Joaquim Pinto de Campos)

Padre Senna Freitas. No presbiterio e no templo, vol. I, Livraria Internacional de E. Chardron. Porto. 1874.—Este primeiro tomo comprehende dezesete artigos que se rivalisam na excellencia da doutrina e da linguagem. Alguns, sem destoar da seriedade do livro, movem o leitor a um sorriso complacente. N'este genero, estrema-se o intitulado Asphyxia... pela imprensa. Tem resaltos de graça e nervo epigrammatico. Faz lembrar as paginas felizes de Luis Veuillot nos Odeurs de Paris. «Livros, opusculos, livrorios, livrecos,[66] nacionaes, nacionalisados, in folio, in quarto, in octavo, em dezeseis; obesos, normaes, anemicos, succulentos, indigestos, aquosos; edicionados aos mil, aos dous, aos tres mil, de mais de dez a menos de dous tostões; impressos a capricho, moldurados, coloridos, iriados, rendilhados, casquilhos.» (Pag. 215 e 216).

Recenseia d'esta arte o snr. padre Senna Freitas as producções asphyxiosas; mas não se deprehenda que elle, o illustrado escriptor respiraria melhor oxygeneo em regiões onde escasseassem prelos e authores. O que o suffoca é o gaz acido carbonico das inepcias em dicção, em philosophia, e em moral. Contra as da linguagem protesta o snr. Senna Freitas, abrasado nas risonhas coleras do padre Francisco Manoel do Nascimento: «Pois ha nada comparavel em elegancia castiça de terminologia áquellas paginas e áquellas columnas arrebicadas de gallicismos, e anglicismos tão expressivos e engraçados que deixam a nossa lingua corrida? Travemos, por exemplo, d'uma gazeta (salvas, bem entendido, as que fazem honra ao jornalismo). A pouco fundo, já lá apparecem a boiar os «meetings», os «comités», as recriminações do articulista contra as «chicanas» parlamentares, e as «coalições» ministeriaes, e o estylo por demais «descosido» em que se exprimiu o deputado fulano de tal, etc... Passemos á revista interna[67] e noticiosa—prosegue o analysta bem humorado.—Acaba de dar-se um successo tristemente «remarcavel» que o noticiador conta «em detalhe» aos leitores, «tirando d'elle partido» para fazer uma discreta consideração moral. Em seguida, dá um leve «golpe de vista» pelo «high-life» da terra, e analysa o ultimo livro publicado por... que é na sua apreciação um verdadeiro «chefe d'obra.» (Pag. 219).

E assim, com razão e discreto sal, o esclarecido moço, que tão digna e exemplarmente allia o viçor da idade ao respeito do habito clerical, vai desfiando o ruim tecido dos maus livros, quer na fórma, quer na substancia.

Culpa os romances nimiamente realistas de perversores dos bons costumes: «Ha o romance serio, instructivo, philosophico, moral, espiritualista, da tempera do Promessi Sposi de Manzoni, que nos transporta a uma atmosphera salubre, onde se respira um ar impregnado de oxygeneo; que photographa todo o lado bello, puro e grande da humanidade. E ha o romance enervante, declinação insipida e interminavel d'elles e d'ellas; o romance bohemio ou cigano, composto pelo mancebo apaixonado, que come no restaurante de terceira classe, e morre etico aos vinte e cinco annos; e o romance realista ou positivista, ainda peor que o precedente, sem ideal algum; condensado de todos os miasmas da lama, de todas as corrupções do esphacelo, e de todos os sarcasmos e negações do atheismo, sem outra esphera por conseguinte mais que a materia pura, só por uma ironia de mau gosto chamado a alma nova.» (Pag. 227 e 228).

Acato a opinião do snr. Senna Freitas, quanto ás novellas descriptivas da vida contemporanea; mas desliso da severidade do seu juizo. Creio que assim como os bons e moralissimos romances não morigeram, tambem os immoraes não desmoralisam. Não são os romances que formam os costumes bons e maus; são os costumes que fazem os romances. E casos ha em que as novellas saturadas de virtude são inverosimeis e puramente phantasticas. Eu já escrevi algumas, nomeadamente as Lagrimas abençoadas e as Tres irmãs. Ninguem acreditou aquillo; e toda a gente aceitou como copias do natural Os brilhantes do brazileiro e A mulher fatal—dous livros miasmaticos, que só podem lêr-se com o interior do nariz plantado de alfadega e mangericão. Quando o marquez d'Urfé escrevia as suas novellas pastoraes, embrincadas de polidissima cortezia nos amores, vivia-se em França, pouco mais ou menos, como nos romances de Soulié, de Kock e de Feydeau. Ha de tudo. Ha muitissima gente honesta que lê a Lelia de Sand, e muitissima gente de ruins manhas que lê a[69] Fabiola do cardeal Wisemann. Sem embargo estes reparos não desluzem a efficacia das considerações do snr. Senna Freitas.

Da summa do seu livro direi, com sincera admiração e devida justiça, que se revela ahi um excellente escriptor, um padre illustradissimo, um homem de bem, um argumentador convicto e em grande parte irrefutavel. D'este modo ajuiza o author da sua obra: É um livro christão que não fará ruim companhia junto ao lar das boas familias: nada mais.

É muito mais; porque afervora as crenças tibias, alvoroça as almas marasmadas na indifferença religiosa, descondensa a escuridade que fez noite algida nos corações abatidos pela desgraça. O snr. Senna Freitas nobilita o clero portuguez e honra as letras patrias. Se não fosse a palavra religião, quem explicaria tão obscura vida em tão alumiado espirito?

Congratulo-me com o meu benemerito amigo Ernesto Chardron, quando vejo entre as edições da sua copiosa livaria a estreia gloriosa do snr. Senna Freitas.


Cunha Vianna. Relampagos, com um prologo por João Penha. Livraria Internacional. Porto, 1874.—O author está na primeira florecencia[70] dos annos. Reçumbra-lhe do rosto a branda tristeza dos que soffrem com o encontro da incerteza nos umbraes da vida. Nuta entre os parceis, quando as vagas descahem, e lhe abrem um vacuo onde as idealisações lhe não dão pé, nem o positivismo ancora. É um dos muitos, cuja salvação depende de pouco: a experiencia da vida, o entrar na inanidade das cousas, o acordar com a cabeça ferida na corrente que fecha a galé dos obreiros do ideal—especie de somnambulos que fallam comsigo proprios, como João Penha, o redactor do Prologo.

Este, ainda assim, tem momentos de apégar no commum da vida. O seu fechar dos sonetos conhecidos e decorados é sempre a zombaria das altas cousas, dos raptos á divindade que se esconde, e aos mysterios do céo que atira estrellas a milhões sobre os seus interrogadores. O paio de Lamego e o presunto de Melgaço raro deixam de testemunhar que o espirito de João Penha é escorreito, e que a poesia, quando lhe apparece, como as revoadas das andorinhas, passa, não deixando de si no azul um vestigio de saudade.

O snr. Cunha Vianna está ainda entre os poetas de consciencia e inspiração. N'estes seus poemas não ha os desmandos e dislates que individualisam a poesia ultimamente inventada. É muito moço, e a sua musa parece[71] filha da que floreceu em Portugal ha trinta annos. Não se dôa por isso o esperançoso escriptor. Do bom senso dos seus versos ha de derivar-se o bom senso da sua prosa. Quando as flôres fenecerem, e os fructos se desabotoarem, verá quanto proveitoso é ter sido, a um tempo, o interprete do vago da alma e o aprendiz do positivo dos bons diccionarios.

Entre as suas poesias escolho um fragmento da Armada para que o leitor se convença de que lhe não inculco no snr. Cunha Vianna um arrolador de podridões, de anemias, de chloroses, e de tanta outra moxinifada com que intentam fazer-nos da imaginação hospital.

N'este poema, o oceano interroga Portugal algemado na grilheta do despotismo. Veleja ao longe a esquadra da Terceira que aprôa ao Mindelo. O grande Atlante pergunta á armada o seu destino:

—Somos a Liberdade!
a esplendida epopéa!
a voz da humanidade!
o sol da Nova-Idéa!
Somos, oh monstro aquatico,
o verbo democratico,
tão forte como Deus!
mais rijo que a tormenta!
Astros, descei dos ceus!
Nuvens, descei do espaço!
vinde beijar o traço
das nossas naus possantes![72]
Nós somos os gigantes,
os Cyclopes modernos:
vimos livrar os mundos
de horrificos infernos.
Vimos fazer a guerra,
bradar a Torquemada:
—pódes fugir da terra,
que o teu imperio é nada!
Somos a Liberdade!
a esplendida epopéa!
a voz da humanidade!
a luz da Nova-Idéa!

«—Eu vos saúdo, ministros
d'uma idade d'esplendores!
Expulsai corvos sinistros
d'essa terra de condores!
—aves d'arrojo inaudito,
que muitas vezes s'elevam
ás solidões do infinito!
Que lindo paiz! é vêl-o:
por toda a parte boninas,
e, mais além, do Mindelo
as vicejantes campinas!
E mais ao longe a cidade,
que reflora ao Douro a estancia,
a Ostende da liberdade,
nova rival de Numancia!
—o Capitolio altaneiro
d'um povo livre e guerreiro,
que, n'um heroismo ardente,
unico, bello, e assombroso,
roubou mais d'um continente
ao meu reino tormentoso!
Heis de vencer, porque a historia,
a virgem que vos inspira,
já vos prepara na lyra[73]
os hosannas da victoria!
Vencerá ao retrocesso
quem este abysmo venceu:
tendes por guia o progresso—
d'esta idade o Prometheu!»

        *        *        *

Tempos depois a luz da nova aurora
illuminava os montes e a cidade!
A tyrannia, aniquilado o sceptro,
        como livido espectro
lá transpunha os umbraes da soledade;
e um povo inteiro, a quem a paz inflora,
        salvava estrepitoso
        o brilho radioso
        da augusta Liberdade!

Eis aqui um poeta.


Jerusalem, por Joaquim Pinto de Campos, etc. Lisboa, 1874.—Precede este precioso livro uma carta do snr. visconde de Castilho. Ahi se annunciam primores, quanto ao modo como a obra é escripta, e se dá de suspeito o snr. visconde quanto á substancia, ao contexto da idéa. «Creei-me semi-pagão entre pagãos millenarios do melhor engenho, sociedade minha ainda hoje», diz o grande poeta,[74] em quem reviveram as almas de Anacreonte e Ovidio.

Comprehende-se este retrocesso no rasto esplendoroso que nos leva até casa dos Mecenas; mas, se ahi nos convida Petronio para uma cêa de Trimalcião, dá-nos vontade de fugir para uma das ágapes lôbregas em que o bocado de pão se ungia de lagrimas.

Magestade, estrondo, alegrias, febris prazeres e infernaes delicias tudo teriam de seu as musas pagãs com que deleitar a inspiração e o officio dos seus dilectos; mas poesia, a sincera, a ideal, a que aformosêa a vida dentro dos abysmos das suas quedas, essa não nos vem herdada de Horacio nem de Catullo: deu-nol-a o christianismo.

Aos muito affeiçoados a reliquias do velho Oriente suscita o monsenhor Pinto de Campos as reminiscencias dos cyclos anteriores á sagração do local em que passaram os lances da divina missão de Jesus Christo. A cada passo, resaltam ahi recordações da Roma imperial, com todos os accessorios que lhe lustraram a prosperidade como contraste da voragem que de um hausto a sorveu para sempre apagada.

O livro é tão de molde para todos os paladares, cinge-se tão caroavel ao deleite do curioso, do sabio e do devoto, que a ninguem será estranho o prazer da leitura. Em duas[75] palavras qualifica um doutissimo critico fluminense o livro do snr. Pinto Campos: para mim tenho que a opinião classificará esta obra entre as de mór vulto que este seculo ha visto em lingua portugueza. (Reflexões de um solitario relativas ao livro Jerusalem, pag. 3).

Evidentemente, o snr. Pinto de de Campos conhece e exercita as menos communs bellezas da nossa lingua. Já o haviamos admirado nas fluencias descuidadas da conversação, antes de o reconhecermos no purismo d'este livro perfeitamente executado. O seu estylo tem a sobriedade, a parcimonia de enfeites que se adquirem quando a sã e alumiada razão os escolhe. As pompas e os recamos da dicção occorrem-lhe a ponto com rigorosa propriedade. A unção religiosa dos quadros nunca é prejudicada pelos estofos da rhetorica. As figuras cedem a sua luz ficticia ao brilho permanente da verdade. A relanços descriptivos da Terra Santa, resôa ás vezes o dizer chão e affavel de fr. Pantaleão de Aveiro, alternando-se com os raptos vehementes da piedade de Chateaubriand e do apaixonado lyrismo de Lamartine; mas tudo isto tão nosso, tão portuguez, tão condimentado do idioma de Sousa e de Bernardes, que não póde ser senão de monsenhor Pinto de Campos.

O leitor, que lê os telegrammas vindos do Brazil, já viu que lá se ergueu uma voz calumniadora[76] acoimando de plagiario o author da Jerusalem. Sem interposição de tempo, sahiu pela honra e lealdade do calumniado escriptor um dos maiores sabios que hoje se contam viventissimos na rareada fileira dos sinceros homens de letras em Portugal. Parece-nos ter entrevisto no Solitario, que tão egregiamente repelle os detrahidores de Pinto de Campos, o conselheiro José Feliciano de Castilho, o mais poderoso talento alliançado á mais tenaz memoria de que temos noticia, e, mais que noticia, lição aturada e incansavel.

Eis aqui a repulsão da aleivosia, que trasladamos textualmente:

 

Li uns artigos em que, confrontando-se trechos da Jerusalem com outros semelhantes das obras de Pozada Arango e de Perinaldo, se qualificam essas transcripções de plagiatos escandalosos, furto na mão, bocca na botija, acto proprio para fazer subir o pejo ás faces do culpado, motivo de indignação, etc., etc. Assim enfeixadas as injurias, não se dirá que as attenuo; e quanto ao facto da reproducção d'esses e outros passos no soberbo livro, começo declarando que elle é real, licito; publicado, antes de o ser pelos censores, pelo proprio escriptor; e que, nas circumstancias d'esta polemica, pouca prova de lealdade de quem occulta essa declaração com que o author de antemão[77] desmorona todo esse castello de cartas. Ah! isso não convinha aos sinceros Aristarchos: esmerilharam tudo, mas fecharam olhos nada menos que sobre o peristilo do monumento, ao qual apenas fazem uma referencia vaga, passando como cão por vinha vindimada.

«O author podia, como grande numero dos seus predecessores em um assumpto d'esta ordem, reproduzir aquillo que bem entrasse no plano da sua obra, em materia de descripções, de averiguações e narrações dos successos, sem citar as fontes. Pois acaso inventa-se a religião? Inventa-se a historia? Inventa-se a natureza? Inventam-se factos? Sempre que em tudo isso se toca, é evidente que se repete o que já se ha dito; e todas as vezes que essas descripções estão bem feitas, que utilidade ha em alteral-as? Nada haveria mais facil que dar sempre as mesmas idéas por diversas palavras, mas n'isso então é que se daria manifesta má fé, porque transpareceria a intenção culposa, o que nunca póde imputar-se a quem, uma ou outra vez, traduz litteralmente de livros que andam em todas as mãos.

«Não desenvolverei este ponto em these, como tão facil seria; limitar-me-hei a demonstrar a candura com que monsenhor Pinto de Campos, logo ao romper o seu livro, nos denunciou... isso mesmo que hoje se lhe assaca? Completa elle o seu prologo (pag. XVI e XVII),[78] revelando a quem vai lêr, que transcreveu largos trechos de escriptores antigos e modernos; enumera os principaes d'esses escriptores; affirma, com inexcedivel modestia, que só a ess'outros (o que é descabido) deve ser restituida qualquer gloriola, que das suas paginas se possa colher; que se embrenhou na floresta d'esses authores; que das flôres d'elles sugou o mel. Transcreverei (com as almejadas aspas):

«Na averiguação e narração dos successos, tomei por norma seguir os varões doutissimos e diligentissimos, citando lealmente suas palavras ás vezes, muitas outras suas sentenças; assim como é certo que lhes addicionei outras muitas, que pelo proprio estudo alcancei... Segui de preferencia a Sagrada Escriptura, Flavio José, S. Jeronymo, e entre os proporcionalmente modernos, Quaresmio... Em muitos outros, antigos e modernos, procurei flôres que em meu ramilhete ennastrasse, e a todos os quaes fiquei mais ou menos devedor; se n'este rescende alguma fragrancia, a elles e não a mim se deve. Sem ordem nem de merito nem de idades, aqui apontarei Adricomio, Biagio Terzi, Calmei, Mariano Morone de Maléo, Chateaubriand, Lamartine, conde Marcellus, Valiani, Geramb, Poujoulat, Michaud, fr. Pantaleão d'Aveiro; Mislin, fr. Lavinio, Renazzi, Gaume, Pozada Arango, Escrich,[79] Munk, Dupin, De Saulcy, Saint Aignan; e particularmente os padres Dupuis e Perinaldo me foram de inexcedivel auxilio... Não se destina esta enumeração a ostentar pompa de erudição; serve, ao contrario, para restituir a outros qualquer gloriola que de entre estas paginas podesse ser colhida. Solícita abelha, embrenhei-me n'essa vasta floresta e sem estragar as flôres, suguei-lhes o mel; e se em alguma havia veneno, lá o deixei.»

«O que ahi fica (idéa que mais de uma vez apparece reiterada no corpo da obra), constitue um luxo de precauções, a fim de que nenhum mal intencionado ousasse attribuir-lhe a intenção de locupletar-se com a jactura alheia. «Eu segui varões doutissimos», «suas palavras ás vezes, muitas outras suas sentenças.» «Em muitos authores procurei flôres que em meu ramilhete ennastrasse, e a todos fiquei mais ou menos devedor.» «Apontarei entre estes Pozada Arango, Michaud, Milsin.» «Particularmente o padre Perinaldo me foi de inexcedivel auxilio.» «Se n'este ramilhete rescende alguma fragrancia, a elles, e não a mim se deve.» «Seja a elles restituida qualquer gloriola que d'entre estas paginas podesse ser colhida.» «Na vasta floresta dos authores citados, suguei o mel de suas flôres. »

«Santo Deus! É n'estas circumstancias que se imputa a um escriptor a perpetração de[80] (nada menos!) plagios escandalosos! O que ahi fica, se pecca é pela repetição, até á saciedade, do proprio facto com que os inimigos hoje o criminam. Foi innocentemente o monsenhor quem deu essas armas contra si. Leram no prefacio os seus detractores que elle declarava haver transcripto numerosos passos de Michaud, Mislin, Pozada Arango; e que Perinaldo principalmente lhe havia sido de inexcedivel auxilio. O processo da malevolencia tornava-se, desde então, singelissimo.

«Ah! elle diz que ha um escriptor chamado Perinaldo, que lhe foi de inexcedivel auxilio? que ha um Pozada Arango, etc., de quem extrahiu as proprias palavras, ás vezes, ou sentenças? que para este ramilhete colheu d'esses livros muitas flôres, e as mais preciosas? Ora, copiosas flôres, colhidas de livros, não podem ser rosas, nem malmequeres, são forçosamente paginas. Toca a procurar esses livros, cuja existencia elle nos patentêa; a pesquizar ahi os trechos do que nos revela ter-se apoderado; e depois, lançando-lhe em rosto o que elle mesmo nos denunciou, tripudiaremos, e subindo ao capitolio, iremos render graças aos deuses!»

«Em tal procedimento, a lealdade pede meças á justiça.»

 

Delida a macula com que a malevolencia,[81] aborto de odios politicos, tentou denegrir a mais notavel obra modernamente escripta com os primores da lingua portugueza por um brazileiro—que entre os seus e os nossos a escreve como os distinctissimos—não temos senão a louvar o grande alento que tirou a salvo de tropeços esta obra perduravel com que monsenhor Pinto de Campos brindou os seus conterraneos e os da patria de seus avós. Já conheciamos e reverenciavamos o orador religioso e parlamentar. Agora lhe recebemos de sua mão um livro que vamos reler e collocar entre os que nos ensinaram a escrever.[82]


QUE SEGREDOS SÃO ESTES?...

Fosse terror ou sentimento fosse
De mais occulta origem...

Garrett.


A pallida doença lhe tocava
Com fria mão o corpo enfraquecido.

          Camões.

 

I

—Fui hoje vêr á casa da saude o Duarte Valdez.

—O nosso companheiro de casa em Coimbra?

—Justamente.

—Que tem elle?

—Os dias contados.

—Tisico?

—Perguntei ao doutor Arantes que doença[83] era a do Valdez. Fez com os hombros um tregeito significativo de que a medicina nem sempre tem alçada para devassar das doenças que matam, e denominal-as com terminações inflammatoriamente gregas. Quando, porém, é a alma que mata o corpo, os medicos lavam d'ahi as mãos como o governador da Judêa.

Tive este dialogo, em Lisboa, ha hoje doze annos, e, seguidamente, fui á casa da saude no largo do Monteiro.

Quando, na ida, atravessava o jardim da Estrella, sentei-me a encadear as lembranças vagas e desatadas que eu tinha de Duarte Valdez.

Tres épocas me occorreram.

Primeira, a da nossa jovial convivencia em um casebre da Couraça dos Apostolos, em Coimbra, no anno 1845. Segunda, outra menos modesta e menos alegre camaradagem de quarto, no hotel Francez, do Porto, em 1851.

Antes de mencionar a terceira época, urge saber-se que nenhum de nós se formára. Elle contentára-se com um diploma de insufficiencia em rhetorica, e eu com a prenda não commum de arpejar tres varios fados na viola. Não rivalisavamos em sciencia. Formavamos da nossa reciproca ignorancia um conceito honesto. Não queriamos implicar com sabios, nem para os invejar nem para os detrahir.[84]

A terceira época ou terceiro encontro foi em 1856. Vi-o em S. João da Foz, e ouvi-lhe revelar mysteriosamente que estava emboscado em uns arvoredos, entre Lordello e Pastelleiro, com uma extremosa e estremecida menina, fugida aos paes. Não me recordo os pormenores d'estes amores que elle me disse serem os primeiros e ultimos. Tenho, porém, a certeza de que me ri d'uns amores ultimos, aos vinte e cinco annos de idade.

N'aquelle tempo a fuga de uma menina qualquer não era successo por tanta maneira horrido, que eu devesse desmaiar na presença do meu acelerado amigo. Eu já contava então uns decrepitos vinte e nove annos, e conhecia varios acontecimentos impudicos, por exemplo, aquelle da D. Hermenigilda d'Amarante, que eu exhibi ás lagrimas do publico sensivel nas Scenas da Foz. Aquella especie de pellicula carmezim que assetina a epiderme do rosto, e se chama pudicicia nos droguistas da moral, tinham-m'a delido as aguas lustraes da nossa civilisação pagã, para o que tambem muito contribuiram as reuniões semanaes da Philarmonica, na rua das Hortas, onde os rabecões entravam cheios de cupidos e sahiam cheios de suspiros. Muitas senhoras portuenses, que hoje cedem a primazia da ternura ás filhas, viram n'aquellas salas da Philarmonica os anjos com quem se maridaram. Os annuncios[85] das festas lyricas, enviados dos corações aos corações, rezavam assim: Sabbado, ás 7 da noite, musica de Mozart, e Laços de Hymemeu. Tudo antigo e bom.

Isto veio a proposito de eu não ter uma congestão de pudor, quando Duarte Valdez me segredou que se embrenhára nas selvas rumorosas do Pastelleiro com uma menina perdida de amor, e tão cega de alma que já não via na imaginação, sequer, as lagrimas da mãi, e o mortal abatimento do pai que a amaldiçoava.

II

O enfermeiro-mór da casa da saude conduziu-me ao quarto de Duarte. Com certeza, se eu o encontrasse desprevenidamente, não o conheceria. O espasmo dos olhos seria bastante a desfigurar-lhe as outras feições, quasi sumidas na desgrenhada cabelleira e nas barbas. Immobilisava-lhe o semblante a sinistra quietação da demencia contemplativa.

Tambem elle me não reconheceu a mim, sem que eu lhe dissesse o meu nome. Fitava-me com repulsão, como se a presença de um[86] desconhecido o molestasse fortemente; porém, depois que eu me nomeei, sahiu do torpor, levantou-se de golpe, e abraçou-me com transporte.

—Que tens tu, Duarte?... Estavas aqui, e não me participavas?

—Eu não sabia que estavas em Lisboa, nem tinha a vaidade de suppôr que ainda me conhecesses. Desde que te fallei na Foz, em 1856, nunca mais nos encontramos nem escrevemos.

—É verdade; mas nem por isso me eram estranhos os principaes passos da tua vida. Soube que casaste...

—Sim... casei...

—Com aquella menina que então... estava comtigo?

—Não...—respondeu Duarte com assombrado aspecto, e um sacudir de cabeça indicativos de azedume por tal pergunta.

Hesitei, á vista de tão subita mudança, se devia proseguir em tal interrogatorio. Foi elle quem interrompeu o silencio, repetindo:

—Não, não casei com essa...—e acrescentou, pondo-me no hombro a mão tremula—casei com outra... que já morreu...

—Morreu?

—Sim, morreram ambas; matei-as eu...

E, erguendo-se, travou-me do braço, levou-me comsigo para a janella, que abria sobre um[87] jardim, alongou a vista na direcção da cupula do convento de Jesus, fez um gesto com a mão direita apontando para o céo, e quiz dizer umas palavras que, abafadas pelos gemidos, pareciam rever-lhe nos olhos em lagrimas copiosas.

E eu, que poderia imaginar agora phrases muito apropositadas á situação do meu amigo, não as invento, porque não lh'as disse então.

E quem seria mais verboso que eu, em lance tão desusado? Se elle, com effeito, havia matado as duas mulheres, eu, na verdade, não devia ensaiar maneiras de o consolar, dizendo-lhe que, se as matou, fizera muito bem. Figurou-se-me que Duarte fallára figuradamente. Porque ha muitos sujeitos, ainda mal, que vivem penalisados com remorsos de ter matado certas senhoras, sem ao menos admittirem que os medicos collaborassem com elles. Ora eu que reputára, n'outro tempo, aquelle Duarte Valdez tanto ou quê desarranjado pelas novellas, attribui ao seu romanticismo a parte odiosa no assassinio das duas senhoras.

Passados alguns segundos, fiz-lhe esta vulgarissima pergunta:

—Como as mataste tu?

—Despedaçando-as uma contra a outra.

Póde ser que o leitor esteja sorrindo; saiba, porém, que o tremor d'aquellas palavras vibrava tanto do seio do afflicto moço que uns[88] calefrios me correram a espinha, e o turvamento das lagrimas me embaciou a vista. Situações analogas terá experimentado o leitor no theatro. Duas palavras, em uma ficção dramatica, exprimidas pelo actor que pintou os vincos da desgraça no rosto com fino pó de carvão, obrigam ás lagrimas pessoas que não chorariam, se a desgraça fosse com ellas.

—Chora, chora!—me disse elle, com vehemente exaltação.—Preciso que me chorem, porque... eu morrerei, adorando as duas mulheres que matei... e ninguem me ha de chorar.

—Pódes tu contar-me a tua historia?—perguntei eu.

—Posso... quero contar-t'a; mas receio que m'a não creias... A minha familia, e os medicos da provincia dizem que eu me deixo matar pela superstição, indigna da minha intelligencia... É um phantasma que me mata, dizem elles... Ah! se o vissem! se eu te podesse contar...

—Mas olha, Duarte, conta o que poderes... Eu hei de comprehender das tuas dôres alguma cousa mais que o vulgar dos homens. Até as superstições, se as tens, eu t'as entenderei; porque ha infortunios que não podem entender-se, sem a intervenção de alguma cousa sobrehumana.

—Pois então, vou contar-te a minha desastrada vida... Aquella infeliz menina que esteve[89] na Foz, ha dez annos—começou Duarte com pausadas intercadencias—seria a minha bemaventurança, se eu não viesse a este mundo com a predestinação dos reprobos. Meu pai, desde que eu a tirei da casa paterna, ganhou-me entranhado odio; não por causa da culpa; mas com receio que eu remediasse a culpa com o casamento. O seu primeiro acto de vingança foi dar a casa a meu irmão, e reduzir-me a um patrimonio tão escasso que não chegaria ás minhas despezas de dous annos. Maria do Resgate era mais pobre que eu. Não desisti ainda assim de casar com ella. Pedi um emprego com a eloquencia da virtude desgraçada, já quando a minha subsistencia corria por conta dos paes de Maria. Estava eu em vespera de ser despachado amanuense do governo civil de Bragança, quando meu pai conseguiu inutilisar os esforços humilhantes que eu fizera para adquirir tão mesquinho emprego. Fui ajoelhar aos pés de meu pai: estava ao pé de mim, para me defender dos primeiros impetos da ira d'elle, minha mãi. Eu pedi-lhe simplesmente que não se oppozesse á minha collocação. Respondeu que se dava por aviltado, se seu filho fosse exercer tão ignobil occupação; e, sem me dar a confiança de questionar com o seu orgulho, disse que me dava recursos para estar dous annos em Lisbôa,[90] ou o tempo necessario para me esquecer da filha do procurador de causas.

Minha mãi chamou-me de parte, e aconselhou-me que annuisse; na certeza de que, no espaço de dous annos, se eu não esquecesse Maria do Resgate, ella conseguiria o consentimento de meu pai.

Cedi forçado pela extrema necessidade. Maria, tão confiada em mim quanto eu confiava no meu proprio coração, accedeu na ausencia dos dous annos. Assim que eu sahi para Lisboa, sahiu ella para um convento de Bragança.

Cheguei aqui, e encontrei dinheiro em abundancia, amigos, relações, mulheres, liberdade, distracções, theatros, cêas, um desafogo de vida tão agradavel quanto amargurado me tinha corrido o ultimo anno.

Ás vezes, em meio dos meus divertimentos, assaltavam-me remorsos. Era então que eu respondia ás cartas apaixonadas de Maria, e perguntava a minha mãi se já tinha conseguido amollecer o duro coração de meu pai. Respondia-me que esperasse, e Maria respondia-me que esperava uma de duas cousas, que ambas lhe serviam: sahir da sua cella para mim ou para a sepultura. Os meus amigos viam estas cartas, e riam-se da minha credulidade.

Ao cabo de um anno, os remorsos que me[91] incutiam as cartas, já nem a virtude tinham de as inspirar verdadeiras. Maria graduou por ellas o sentimento frio que as disfarçava, e disse-me que eu era tão ingrato que nem ao menos a deixava morrer enganada.

Aborreciam-me já as lastimas e a obrigação de as consolar. Sentava-me constrangido para lhe escrever. Já me queixava da sua pertinacia em me accusar de ingrato, quando ella mesma se acommodára á cruel necessidade da separação. Culpando-a de indiscreta, perguntava-lhe se quereria para mando um homem que teria de mendigar ou roubar para sustental-a. Aqui havia uma occulta infamia na mentira. Se eu pretendesse em Lisboa um emprego, tel-o-hia, sufficiente á sustentação de uma familia modesta; mas eu, desde que pisei os tapetes dos salões, pensava em ter salões com tapetes, e desde que as carruagens dos meus amigos me levaram aos theatros, desejei possuil-as para me desquitar de obrigações aos meus amigos. Eu estava perdido como meu pai me desejára; estava deshonrado bastantemente para desviar a imaginação da filha do procurador de causas, quando as titulares de Lisboa me perguntavam quem era a rainha dos bailes.

Ao fim de dous annos, minha mãi, quando eu já não perguntava o resultado das suas diligencias, avisou-me que meu pai vinha a[92] Lisboa, na companhia de um nosso primo e de nossa prima, chegados do Brazil, com o proposito de nos visitarem.

Estes nossos primos eram naturaes do Rio de Janeiro. Alli ficára meu tio, pai d'elles, quando meu avô, que para lá fôra com o principe regente na qualidade de desembargador do paço, voltou para Portugal. Eu sabia d'estes parentes, e muitas vezes meu pai dissera que seria convenientissimo casar um de seus filhos com a prima brazileira, cuja fortuna rendia mais n'um mez que toda a nossa casa em um anno.

Confesso-te miseravelmente que me sobresaltou o aviso da vinda de minha prima. Vi salões com tapetes, e vi as suspiradas carruagens. Quem eu não vi foi a imagem de Maria do Resgate.

Minha prima Olinda era adoravel, ainda sem riqueza.

Este conceito que formei ao vêl-a e ouvil-a, dispensou-me de o formar, de mim, de grande villão. Amnistiava-me com a idéa de que, sendo ella pobre, eu a quereria para esposa. Amei-a, é certo que a idolatrei. Não tenho outra virtude que contrabalance com os meus delictos na presença de Deus, e d'ella e da outra desgraçada.

Havia dous mezes que Maria do Resgate me não escrevia, quando aqui chegou Olinda,[93] e, passados dous mezes, sahia eu de Lisboa, casado com minha prima, a ir visitar minha mãi, para depois ir ao Rio receber os trezentos contos de minha mulher, e d'alli passarmos a residir em Lisboa, n'um palacio, com tapetes e carruagens.

Meu pai foi adiante preparar as festas da recepção, e ornamentar as salas para o baile, e a hospedagem para os convidados da nossa grande parentella.

Entrei profundamente triste na minha villa. As janellas da casa de Maria do Resgate estavam fechadas como se houvesse alli morrido alguem. Nas casas visinhas, havia senhoras e crianças que choviam abadas de flôres sobre o nosso carro.

Pouco depois que sahimos da mesa do jantar, atravessei com minha mulher a sala de espera, para descermos ao jardim. N'este transito, vimos sahir de um canto da sala uma mulher trajada de luto, que marchou de encontro a Olinda, sem levantar o véo espesso do rosto.

Não a conheci; mas mal podia suster-me de convulso.

—Que tens?!—disse minha mulher.—Esta senhora parece que tem alguma cousa que me dizer...

—Tenho, sim, minha senhora—acudiu a mulher de luto—v. exc.ª não me conhece[94] nas salas de seu marido, porque eu sou a viuva de um pobre procurador de causas que morreu ha quinze dias, quando perdeu a esperança de vêr remediada a deshonra de nossa filha. Em quanto ella teve pai, embora perdida no conceito do mundo, tinha o pão, que seu pai lhe ganhava; mas agora, reduzida á orphandade, á pobreza, e á deshonra, venho implorar a v. exc.ª que a receba como sua criada, visto que foi seu marido que a perdeu. V. exc.ª fará o que a sua virtude e caridade lhe aconselhar.

E sahiu sem esperar resposta.

Estas palavras ouço-as ainda como se a alma da mulher que as disse m'as estivesse escrevendo na consciencia com um estylete de fogo.

—Que é isto?—perguntou-me minha mulher.

—É uma desgraça que eu te contarei—respondi torvamente.

—Conta-m'a já, e remediêmol-a sem demora—tornou ella.

Escondi-me com Olinda no mais sombrio do jardim, e tudo lhe referi com a sinceridade de um penitente. Ella ouviu-me com semblante carregado, avincando a testa, e ás vezes com signaes de compaixão, que de certo não era por mim.

Depois, ergueu-se, repelliu com brandura[95] a minha mão que lhe acariciava o rosto e murmurou:

—Eu ignorava tudo isto. Desgraça irremediavel, já agora! Eu quero fallar com a mãi d'essa infeliz menina.

E assim que foi noite fechada, sahiu com um escudeiro, que a conduziu a casa da viuva do procurador.

Suspeito que a conferencia versou sobre a rica dotação de Maria do Resgate. A viuva repelliu a proposta, porque minha mulher voltando ao seu quarto, disse, como se ninguem a escutasse:

—As deshonradas... de certo não são ellas.

Até aqui—proseguiu Duarte Valdez—não ha nada maravilhoso na minha historia...

—De certo não; tudo vulgar—obtemperei eu que sabia centurias d'estas historias, cuja trivialidade nenhum romancista de tino hoje em dia aproveita da fardagem dos vicios communs.

—O horrivel maravilhoso começa agora—continuou Duarte.—Passados vintes dias, divulgou-se a noticia de estar moribunda no convento de Bragança Maria do Resgate. E em uma das seguintes noites, estando eu a dormir profundamente em um leito proximo do de minha mulher, acordei, sentindo no pescoço os apertões convulsos de duas mãos que me estrangulavam; e, abrindo os olhos,[96] vi distinctamente nas trevas o rosto macerado de Maria muito perto do meu rosto; e, ao mesmo tempo que as suas mãos me asphyxiavam, sentia que o joelho d'ella me esmagava o coração. N'este lance dei um grito, e ouvi o estrebuchar de minha mulher, que soltava uns gemidos afflictissimos, como se lá sentisse angustias de suffocação iguaes ás minhas. Saltei do leito, e fui á recamara buscar a lamparina. Quando voltei, minha mulher estava de joelhos á beira da sua cama, com as mãos postas, com as faces cobertas de lagrimas, e os olhos esgazeados de terror.

—Que é isto, Olinda?—exclamei.

E ella, escondendo o rosto entre as mãos, murmurou:

—Vi agora a desgraçada menina que tu abandonaste. Já estava amortalhada. Era formosa como as martyres, e bem mais linda do que eu... Disse-me adeus... Sabia que eu tinha chorado por ella... Veio dizer-me que estava remida das suas dôres.

Eu não disse a Olinda que tambem vira Maria do Resgate.

O meu terror abafava-me a voz na garganta. Recorri á oração...—eu que desde a infancia não tinha orado. Fui ao quarto de minha mãi; acordei-a; pedi-lhe que viesse commigo para o oratorio. Contei-lhe as torturas[97] da minha visão, e a visão de Olinda. Ella pegou de tremer e chorar. Se eu lhe dizia, sobre-posse, que a coincidencia dos sonhos podia acontecer, sem intervenção do phantasma de Maria, minha mãi não achava isto possivel, e mais me trespassava de horror.

No dia seguinte, chegou a noticia de ter expirado á uma hora da noite antecedente a reclusa do convento de Bragança. A pessoa que trouxe a nova, era encarregada de me entregar o maço de minhas cartas. Em volta das ultimas, que eu lhe escrevêra de Lisboa, havia uma cinta de papel e um escripto interposto com estas palavras:

 

Quando receber isto, que lhe deixo, para se convencer de que não ha testemunho escripto da sua crueldade, a mais feliz serei eu, porque estarei morta. O senhor de certo nunca será feliz, porque infamia e boa consciencia não se encontram juntas. Perdôo-lhe o que me fez: mas não posso perdoar-lhe a morte de meu pai nem o desamparo em que fica minha mãi.

 

Resta-me dizer-te—ajuntou Duarte, arquejando de cansaço e commoção—que minha mulher desde aquella hora nunca mais teve um instante de alegria nem saude. Viemos, passados dias, para Lisboa. D'aqui partimos[98] para o Rio de Janeiro. Ao cabo de oito mezes, eu estava viuvo, e rico, muitissimo rico, e cada dia, cada hora mais desgraçado, mais combalido de uma enfermidade indescriptivel. Voltei ao seio de minha familia. Já não encontrei minha mãi; e a presença de meu pai coava-me nas veias um estremecimento de pavor. Ha cinco annos que arrasto esta vida sem a coragem de a despedaçar. Sinto ainda na garganta a pressão dos dedos fincados do phantasma. Ajoelho-lhe, alta noite, e imploro-lhe que me deixe morrer socegado. Peço á alma de minha mulher que suavise com palavras compassivas a vingança da desgraçada que deve estar na presença de Deus... Em fim...

 

E não proseguiu, porque n'este momento entrava o doutor Arantes, o previsto medico da casa da saude, que, sem ouvir esta narrativa, sabia que aquelle enfermo devia morrer, pela mesma razão mysteriosa que muitos atacados de semelhante morbus engordam e porejam saude por todos os orificios da sua enxundiosa epiderme.

*
*      *[99]

Duarte Valdez, que ainda vi na vespera da sua ida para a Madeira, foi e não voltou. As supplicas de Olinda lograriam que a misericordia divina o resgatasse da presa do seu remorso.

Que segredos são estes da natura?

Perguntaria Luiz de Camões.

FIM DO 9.° NUMERO


 

 

Ernesto Chardron, editor

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Volume 5.º (ultimo) estará á venda em dezembro de 1874.






End of the Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem
não póde dormir. Nº 9 (de 12), by Camilo Castelo Branco

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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


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