The Project Gutenberg EBook of Infelizes, by Ana de Castro Osório

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Title: Infelizes
       Historias Vividas

Author: Ana de Castro Osório

Release Date: November 4, 2008 [EBook #27155]

Language: Portuguese

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INFELIZES

Anna de Castro Osorio

INFELIZES

(HISTORIAS VIVIDAS)

 

 

 

 

Decoração da Capa

 

 

 

 

LISBOA
Empreza Litteraria Lisbonense
LIBANIO & CUNHA
145—Rua do Norte—145
1898

INDICE

Decoração de Pagina

INDICE

 

 

 

Áquelles que no mundo estimo[VI]

[VII]

 

 

 

Como n'essa noite uma febre intensa me tomasse, uma grande saudade, uma grande piedade, me invadiu o espirito, por todos os tristes, por todos os humildes—os infelizes da terra...

No principio da doença, quando o corpo começa de sentir o embate grosseiro do mal, que o vencerá; quando o frio nos arrepia a carne, n'um estremecer sangrento, n'um espicaçar de venenosas agulhas; vem-nos um profundo egoismo, um completo esquecimento dos outros. Na contemplação das nossas dôres, tudo mais desapparece sem nenhum valor.

Depois, a intensidade da febre espiritualisa-nos, a alma desliga-se do[VIII] corpo extenuado e sóbe a mais alto. O proprio soffrimento se desdobra n'uma vaga e serena piedade por tudo o que existe, por todos os que choram...

Então, n'uma d'essas horas de sonho e de nitidas recordações, eu lembrei pobres almas inferiores, tristes desvairamentos em grandes espiritos, máguas inconfessadas—que a minha alma conheceu ou presente nos humildes, nos desprezados...

D'alguns me lembrei fallar; outros ficaram na piedosa tristeza da minha memoria—não porque as suas lagrimas me pareçam menos dignas de serem recolhidas, não porque sejam menos estimados, mas porque quasi nada poderia interessar aos outros a repetição[IX] d'essas singelas historias de vidas simples, monotonamente eguaes pelo soffrimento.

Phantasmas sympathicos ao meu espirito, elles vieram todos rodear o leito, onde, febril, o meu corpo fatigado cahia.

A minha cabeça dorida abysmava-se n'um confuso recordar de cousas passadas.

E elles vieram, um a um, mostrar as suas pobres figuras empallidecidas pela distancia ou pela morte, n'um desejo de serem evocados...

Setubal, maio de 96.[X]


DEZOITO ANNOS

[1]

Decoração de Pagina


DEZOITO ANNOS

A tia Clara, essa adoravel velhinha que fez ha dias cento e quatro annos, teve tambem os seus dezoito—e por signal encantadores de frescura e graça.

Mal podemos crêr isto, nós que a vemos hoje tão serena, tão identificada com a nossa vida, tão egual a nós pela lucidez do espirito, sempre d'uma intelligencia e d'um interesse perfeitamente juvenil.

Eu adoro essa querida velhinha que não se envolveu nas recordações e remordimentos egoistas como n'uma antipathica couraça eriçada d'espinhos.

Não! Ella recorda todo o passado, mas suavemente, sem comparações[2] desfavoraveis para nós, como os velhos impertinentes costumam!... Relembra, levemente melancolica, os tempos longinquos da mocidade, tão distante aos nossos olhos, tão vivos ainda na sua memoria.

A sua alma é um piedoso Campo Santo habitado pela saudade de todos os seus amigos, de toda a sua familia mais proxima, que a um e um a foram deixando na velha casa senhorial, já em parte abandonada de grande que é!... mas o seu coração santissimo vae florindo sempre joven, amando com egual affecto todos os que de novo chegam á familia...

Ah! Eu não me esqueço, minha boa amiga, da saudade reconhecida que me ficou na alma quando, a ultima vez que a visitei, a vi affastar-se lentamente na meia obscuridade do longo corredor. Seguia-a um ligeiro esvoaçar de recordações, toadas simples vindas de muito longe—os francezes, guerras, mortes, nascimentos, toda a sua vida singela passada na hereditaria quinta perdida entre serras, onde os echos do mundo devem ter chegado sempre esbatidos em meias tintas pallidas.[3]

Tenho ainda no meu ouvido o som inolvidavel da sua vózinha quebrada dizendo serena e sorridente: «assisti ás ultimas endoenças no convento de Maceira Dão!...» E tudo morto n'esse passado cheio de poesia, visto assim de longe, evocado pelo seu espirito bondoso!...

Mas a desvairada fuga aos francezes é que eu, mais do que tudo, gosto de lhe ouvir contar.

*
*     *

—Era uma tarde de fins de setembro, luminosa, quente ainda. O céo, todo em fogo no poente, flammejava n'um incendio colossal—toda a alma da Patria agonisante levantando para Deus a ultima esperança, no ultimo clarão de tiros ao longe.

«Os francezes, os francezes!...» Esse grito estridente como uivos de animaes apavorados corria de bocca em bocca, era um signal de fuga, de miseria, d'espanto geral.

O povo ignorante e bom voltava para o céo os punhos cerrados n'uma desesperada ameaça. Abandonado por todos na sua patria invadida, agarrava-se á[4] terra como á sua unica defeza, o seu unico amôr, a unica razão d'existir.

As mães uivavam de dôr pelos caminhos, torciam os braços convulsos vendo do alto dos montes os filhos que partiam para a guerra. Outras estarreciam-se n'um silencio medroso...

Toda a alma portugueza fremia n'um anseio de liberdade.

Os reis fugiam despresivelmente covardes; os ricos ainda por vezes abriam os seus palacios em festa ao passeio triumphal dos invasores; só no povo era sem treguas o odio. Elle saberia resistir ou morrer! Miseravel povo que sacudiu n'um impeto de revolta olympica o jugo dos invasores e acurvou a cabeça humilde ás exigencias dos alliados! Desgraçada gente que não teve a hombridade de receber na ponta das suas baionetas ensanguentadas pelos inimigos os reis que o tinham abandonado nas horas más! Ingenuo povo que todos vão acordar em sobresalto quando o perigo bate á porta e de que todos se riem depois, quando não é já precisa a força do seu braço nem a furia da sua coragem!...

Tambem a Fornos de Maceira Dão, a esse cantinho da Beira que parecia [5] dever estar esquecido, guardado pelos matagaes e serranias bravas, chegou o desvariado clamôr, o tremendo grito:

«Os francezes, os francezes!...» a pôr em fuga toda a familia da Clarinha—era assim chamada ha oitenta e seis annos a minha boa tia Clara.

Ella era a mais nova das irmãs; fina, graciosa, d'uma pallidez de reclusa, uma grande curiosidade perfulgindo nos seus olhos castanhos.

Ao saber a noticia o coração pulsou-lhe commovido n'uma inconfessada alegria... Qual de nós aos dezóito annos não comprehenderá essa alegria? Não ter sahido nunca do seu vetusto solar—salas e salas, quartos incontaveis, corredores tão compridos que é impossivel conhecer quem vem ao fundo!... Os santos da capella doirados e ridentes seriam os seus mais queridos companheiros, aquelles que melhor comprehenderiam a sua alma inquieta, sedenta de novo!... Se ella não havia d'estar alegre, no fundo, bem no fundo do seu coração, por essa fuga decidida que a ia tirar por algum tempo da monotona vida de todos os dias?!...[6]

Era triste a existencia da Clarinha, passada na miseravel aldeia de casebres colmados, que rodeiam a quinta dos fidalgos como outr'ora as choupanas dos servos se encostavam medrosas ás fortificações dos castellos feudaes. As irmãs, casadas; os irmãos, passando a vida dos fidalgos d'aquelle tempo, caçavam, namoravam as primas de vinte leguas em redor, estafavam cavallos e corriam as feiras.

De quando em quando, pelas festas do anno, cortavam o fastidioso correr da vida cavalgadas que chegavam ao pateo, primos e primas que se apeavam contentes abraçando a Clarinha, que alvoraçada os vinha esperar á porta. Então, dançava-se, passeava-se e, mais do que tudo, comiam-se jantares phenomenaes e ceias lucullianas.

Mal os hospedes sahiam, a vida regulava-se tediosamente como de costume e apezar da familia ser muita, passavam uns pelos outros como sombras na enormidade da casa. Quantas vezes, pelas agonisantes tardes d'outomno, não atravessou ella a quinta e subindo o outeiro em frente se foi sentar nos degraus do Santo Christo, phantasiando o mundo, sonhando com alguma[7] coisa nova que a fizesse soffrer e viver?!...

Já então, como agora, como será d'aqui a muitos annos, a imagem do Christo era ingenuamente feita d'uma fealdade que espanta, escondendo-se no seu nicho branco, erguendo na tristeza da paysagem os braços misericordiosos de Deus moribundo perdoando sempre á humanidade que chora.

Como agora tambem, a Clarinha ouvia pela quebrada das serras os carros chiando carregados com as dornas para os lagares... Os bois olhavam'na pensativos, sacudindo as cabeças phylosophicamente, fazendo retinir as campainhas das colleiras de coiro que lhes cingem os cachaços robustos... Primitiva e sempre egual a vida passada n'aquelle recanto de natureza agreste.

Que admira pois que a Clarinha ficasse intimamente alegre quando o medo aos francezes a atirou para longe—como um passarito engaiolado a quem de subito abrissem as portas do carcere e visse diante de si o luminoso espaço onde á vontade poderia bater as azas!?...

«Os francezes, os francezes!...» Era alguma coisa de vivo, e espirituoso e[8] brilhante, que ella não conhecia, mas que a não assustava.

N'essa tarde luminosa de fins de setembro os cavallos esperavam no pateo desde muito e só a Clarinha, impaciente, estava montada. Toda a familia partia: quarenta pessoas, entre velhos, mulheres, crianças e criados—que eram, patriarchalmente, uma continuação menor da familia. Os homens válidos, os rapazes, esses lá andavam pela guerra, e bastante invejados pela Clarinha!.. Os velhos despediam-se chorosos. Arrancavam-se d'alli como quem tirasse d'um peito ainda vivo um coração sangrento. Fugia-lhes a vida em gemidos. Os cedros da quinta tinham para elles a maguada significação dos cyprestes da igreja, onde toda a sua familia, desde seculos, ia dormir descançadamente; mais felizes eram esses...

Pela madrugada chegaram a Vizeu. Deserta a pequena cidade, de sombrias e tortuosas ruas. Os cavallos batiam rijamente nas calçadas, pondo em sobresalto os pacificos habitantes. Abriam-se janellas a medo e caras enfiadas de susto espreitavam inquerindo: seriam os francezes?!...—Não, não[9] eram ainda, mas gente que fugia d'elles!...—Então sempre era certo; vinham, vinham!...—E as janellas fechavam-se rapidamente como se quizessem espancar assim a visão dos francezes, monstros de pezadello!

Caminhavam sempre. Em São Pedro do Sul, a mais risonha terra da Beira, um jardim que a natureza cultiva amoravelmente entre as rudes serranias beirãs, o mesmo pânico estampado em todos os rostos que entreviam—que raros eram!.. Um deserto que se fazia por toda a parte ao grito terrificante: «Os francezes, os francezes!...»

E esse grito de pavôr perseguia-os sempre, como dobre a finados para os velhos e medo para as criancitas—que imaginavam o papão formidavel e negro levando os meninos nas garras aduncas!.. Só as mulheres, com o espirito mais vivo, mais aventuroso, começavam a achar deliciosa aquella correria louca diante do desconhecido. Para a Clarinha era sempre a mesma ideia:—elles seriam alguma coisa de vivo e espirituoso e brilhante, que ella não conhecia, mas que a não assustava!...[10]

A noite cahia muito fria, d'esse frio secco e cortante da serra. As estrellas brilhavam mais do que nunca, com um nervoso piscar d'olhos bonitos... Ella olhava-as, sonhando acordada!—Via um cavalleiro vestido d'oiro que levava pela estrada da via lactea todo um povo conquistador e bello... E uma aguia enorme, com azas feitas de soes, cobria o mundo n'uma efabulação de luz!...

Alli tiveram que parar algumas horas. O pequenino irmão da Clarinha, o mais novo da familia, a criança que ella amava já com entranhas maternaes, ficou-lhe sem vida nos braços, morto quasi repentinamente pelo frio e incommodidades da jornada. E esse pequenino corpo que em circunstancias normaes ella teria chorado desesperada, cobrindo-o de beijos, sahiu-lhe quasi indifferentemente dos braços fatigados. Era a propria mãe que lhe dizia que não chorassem; era preciso fugir, fugir, fugir sempre: «Os francezes, os francezes!...» Era a propria mãe, tão estremosa, tão cheia de cuidados por todos, quem dizia aquillo!... Pasmava.

Bem certo é que as grandes dores se fazem pequenas quando não ha tempo[11] para as sentir. O medo é um grande consolador.

Ao sahirem de São Pedro do Sul, entravam os francezes pelo outro lado. Algum destacamento perdido do grosso do exercito, ou talvez esfomeados procurando viveres... Em todo o caso levando o pânico até onde chegava o ruido das suas vozes de commando.

E esse dia passado sem comer, porque apenas tinham levado um pão para cada um, não contando com o deserto em que tudo se encontrava, enervava-os, fazia-lhes hallucinações, mal se podiam sustentar sobre os cavallos.

Chegaram á Trapa. Oh, a horrorosa terra!—Casitas negras e baixas, feitas de pedras soltas cobertas de colmo e telha vã, sem janellas nem frestas, uma unica porta para dar luz e para a entrada. Mais pareciam tócas d'animaes selvagens do que habitações de gente, n'um paiz civilisado.

O avô da Clarinha, apesar de velho a quasi não poder mexer-se, viera deitado n'um carro de bois até alli; mas então desanimou:—que o deixassem, que o deixassem!.. Morria mais descançado. Os francezes não o descobririam n'aquella terra inculta que se debruça[12] no abysmo das montanhas e nem de longe se distingue da negrura d'ellas; que fugissem, que fugissem depressa!...—E no egoismo dos grandes perigos ninguem se lembrou de contradizer o velho. Elle era um estorvo na viagem; ficarem todos seria talvez a morte. Só a mãe da Clarinha ficou para acompanhar o sogro, que n'uma incoercivel lagrima de saudade deliu todas as maguas da sua ultima hora. Porventura elle revia n'esse momento unico toda a sua vida passada:—a casa onde nascera e contara morrer, as arvores muito amadas... Festas de familia, perfis de parentes mortos havia muito, casamentos, caçadas, presentimentos de desgraça para os filhos e netos, que andavam na guerra...—Tudo isso se devia confundir, amalgamar, no aturvado animo do pobre moribundo.

Os outros continuavam a jornada passando por terreolas abandonadas, d'uma desolação infinita. Essa região montanhosa, largamente bosquejada, d'uma austeridade de contornos que limita a phantasia, tem sempre uma estranha belleza selvatica, que intimida os mais alegres. Então, precipitadamente[13] abandonada pelos seus bizonhos habitadores, devastada pelos fugitivos que passavam em caravanas, em familias, um a um, como lobos perseguidos, tinha um aspecto quasi tragico, macabro como um desenho de Doré, mas para elles tudo era bom, tudo divertia e alegrava na excitação da fuga. Aqui, tinham todos por cama uma casa terrea cheia de palha e de manhã acordavam cobertos com um frio e branco lençol de geada... Alem, comiam feijões cosidos sem nenhum tempero e pão de cevada negro e pegajoso como o pez... E tudo supportavam alegremente no egoismo brutal e profundamente humano—de viver e ter saude.

Tias e primas da Clarinha, velhas senhoras habituadas á doce paz do chásinho conventual, suspiravam, lamentavam-se muito por o não terem tomado havia uns poucos de dias! Affirmavam—que antes queriam ficar sem pão. Deu-se volta aos alforges e n'uma algazarra cheia d'alegria cada um appareceu triumphante com sua coisa, que na precipitação da ultima hora alli tinha mettido sem saber para quê, sem mais se lembrar de tal. Havia chá, assucar e agua, até chicaras appareceram;[14] mas onde a chaleira?.. Todos os olhos se dirigiram para a panella de barro negro onde se tinha cosido o caldo... Era a unica coisa que havia e essa mesmo serviu; sem que ninguem se lembrasse d'aventar repugnancias... E por essa noite frigidissima de fins de setembro, n'uma casita negra esburacada, perdida entre serras e mattas, ellas tomaram o seu chásinho quente, que teve um sabor particular—nada bom a dizer a verdade—mas que lhes lembrou toda a vida.

Pela serra da Gralheira fóra era um nunca acabar de risos e gritos alegres, quando um cahia do cavallo, quando outro escorregava, e principalmente com as historias do guia, o padre Manuel da Trapa. Era um bom homem rustico, folgasão e fallador como poucos, um montanhez ás direitas, portuguez velho. Despresava os francezes; não chegava mesmo a acreditar n'elles. Por sua vontade tinham ficado todos na residencia e os taes francezes que apparecessem!...

Subito, interrompendo uma historia que elle ia contando aos da frente, um grito sahiu dilacerante d'uma bocca contorcida. Todos pararam ânsiados,[15] voltando a cabeça para traz. Aquelle grito tinha vindo tão do fundo d'alma, revelava uma tal acuidade de soffrer, que a todos fez pulsar o coração pensando em que alguem tivesse rebolado pela montanha abaixo despedaçando as carnes pelos fraguedos! Não era isso, mas um sofrimento maior ainda, que gritava assim desesperado:—uma tia da Clarinha saltára do cavallo e, pallida de morte, estorcia-se no mais pavoroso inferno de dôres! Estava grávida no ultimo periodo e todas aquellas commoções e sustos tinham apressado a crise. Que fazer? Olhavam-se todos aterrorizados, indecisos... Impossivel parar n'aquelle descampado, seria mata-la... E os franceses!?...

«Com trezentos diabos, isto não pode ser assim!»—gritava furioso o padre Manuel, sem nenhuma attenção nem sombra de delicadeza pelo soffrimento crudelissimo da pobre mulher. Com uma voz que elle se esforçava por tornar ainda mais rude do que naturalmente era—para disfarçar o diabo d'um nó que se lhe puzera na garganta, explicava elle depois—mandou que lhe dessem a senhora que elle[16] a levaria deante de si. A boa egua podia com tudo e depois—que diabo, já estavam perto da estalagem das Maçarocas, no caminho do Porto, bem conhecida por aquellas redondezas.

E lá continuaram a marcha, agora tristemente acompanhada pelos gemidos da infeliz creatura, que soffria cada vez mais.

Chegaram emfim a Carregal de Monhoce, uma insignificante aldeia quasi desconhecida de todo. Em frente era o Bussaco; sentiam-se tiros ao longe; o que iria por lá?...

«Os francezes, os francezes!...» E a Clarinha, pondo os olhos na linha arroxeada e muito nitida da montanha fronteira, pensava n'elles... Nunca os vira mas sonhára sempre com alguma coisa d'extraordinario e scintillante, que a não assustava no fim de contas!...

 

Terminada a guerra, tornaram pacificamente para a grande casa, que ella encontrou ainda mais sombriamente solitaria. Muitos faltaram á chamada, no primeiro repasto d'expatriados que reviam o seu lar bem amado!...

E a Clarinha lá continuou a sua vida,[17] a mesma, sempre cortada pelos mesmos incidentes de visitas e festas.

O Santo Christo era, como hoje é tambem para nós, o seu passeio favorito nas tardes melancolicas d'outomno—estação de tristezas e desalentos, que morre lentamente em cada folha que se desprende das arvores, lagrimas silenciosas da natureza, que em breve será de luto, quando o inverno vier implacavel... Em frente, a verde cortina dos pinheiros mansos esconde o antigo convento de Maceira Dão. Triste, bem triste, é hoje esse convento em ruinas onde a herva cresce em liberdade, atravessado por todos os ventos, por todas as chuvas; é quasi um milagre estar ainda em pé! N'esses tempos, que tão remotos nos parecem já, como elle devia ser bonito! E a tia Clara, sentada nos degraus da capellinha, ouviria com um doloroso confranger de coração a austeridade do bronze chamando ao côro os bons frades cistercienses.

Aquelle som lacrimoso devia repercutir-se de serra em serra como um soluçar de penitencia. Como ia longe, a tarde luminosa de fins de setembro, quando o grito «Os francezes, os francezes!...» afugentou e confundiu tudo!...[18]

Mais tarde houve ainda um rasgão de luz na sua vida monotona: um novo clamôr de guerra punha as almas em sobresalto. O grito de liberdade foi um rastilho de fogo que incendiou todas as cabeças. Os frades fugiram; os irmãos, os homens da familia, foram todos combater por D. Miguel. Quando elle foi expulso, quando a guerra acabou tão frouxamente que a esperança continuou por largos annos no ânimo dos legitimistas, os irmãos da tia Clara recolheram á velha casa de provincia onde por muito tempo ainda se reuniram todos os fieis partidarios do rei absoluto que viviam nas Beiras e Traz-os-montes.

Depois, tudo foi passando...

A morte e a vida vieram de mãos dadas terminar muita esperança, muita alegria, como enxugar muitas lagrimas com novas felicidades!.. Na memoria dulcissima da nossa adoravel velhinha é que tudo vive intacto. Principalmente os longinquos factos da sua mocidade, e, entre elles, essa aventurosa fuga aos francezes—o que eu mais gosto de lhe ouvir contar.

Recorda a com tantas particularidades, com tal clareza de incidentes, que[19] me enche d'admiração. Coisas passadas ha menos tempo não as recorda ella tão nitidamente! Lembra o signal vincado com a unha na passagem mais interessante d'um romance e que de folha para folha se vae conhecendo menos até desapparecer de todo.

Um dia perguntei-lhe tambem: «Tia Clara, que ha de verdade no «Retrato de Ricardina», n'aquelle romance de Camillo passado aqui tão perto?!...»

«Alguma coisa ha!... Bem tristes tempos eram esses!...» E a sua veneravel cabeça branca inclinou-se umas poucas de vezes n'uma recordação que lamentava ainda—lagrimas vistas correr ha muitos annos e nunca esquecidas!..

 

Agosto de 96.[20]

Decoração de Pagina

[22]


TIO BARREIROS

[23]

Decoração de Pagina

TIO BARREIROS

O tio Barreiros:—Óra os senhores vão imaginar talvez que eu tenho para lhes contar a historia d'algum tio illustre, muito respeitavel na sua gravidade de conselheiro... Ou ainda d'algum general com o peito cheio de condecorações, fartos bigodes brancos, respirando nobreza e altivez... Nada d'isso. Era um simples e humilde criado de lavoura, de cara rapada, com uns olhos d'um azul luminoso, o tio Antonio Barreiros.

Encantador o costume patriarchal de viverem as crianças com antigos[24] criados, quasi da familia, que ellas se acostumam a amar sem o respeito que enfastia, mas tambem sem a desagradavel auctoridade sobre essas velhas cabeças embranquecidas, sempre inclinadas para os mais pequeninos, os ultimos...

Por isso, o tio Barreiros é uma das figuras mais sympathicas que na minha memoria sorri.

Para criado de lavoura entrou elle em casa, já velho; pouco podia, o pobresito! Muito corcovado, o fato de saragoça grosseira, o chapéo braguez um pau na mão—quasi nos pareceu um mendigo.

Mas não; tinha seus brios o tio Antonio. Trabalhava como um rapaz; rejuvenescia, coitado!

Um risonho ar philosophal dava-lhe á face uma certa finura aristocratica. E contava-nos:—«Que eu, meninos, dizem que sou filho do Deão de Decermillo. Mas que monta?... Fui pastor em rapazelho; depois entrei para criado dos fidalgos de S. Thiago e por lá estive até que me casei. Bons tempos, bons tempos!...»

—«E depois, tio Barreiros?»

Uma lagrima diluia-se no azul dos seus olhos finos.[25]

—«Depois, depois... A mulher morreu para alli, negrinha das bexigas, que foi uma dôr d'alma!»

—...«A rapariga, essa... Já depois de grande, um dia morreu tambem, que nem eu sei de quê!... Agora, a minha familia são os meninos, cá esta casa. Isto é como se fosse meu, pela amizade que lhes criei...»

A nota melancolica da conversa desapparecia por completo do nosso espirito para só avultar aquella estranha palavra:—Deão!—Que seria aquillo?... Talvez uma coisa escarlate franjada a oiro, como os guiões, que levavam uns pobres homens derreados, na procissão do Corpo de Deus!

E o velho Barreiros, com tal probabilidade de pae, avultava aos nossos olhos prodigiosamente, tornava-se quasi divino, n'um hieratico esplendor de festa religiosa.

Por fim, o pobre velho já não se atrevia a sahir ás propriedades de fóra—honestamente pediu que lhe baixassem a soldada, que elle ficava só para tratar da horta. E ás tardes, n'aquelles poentes tristissimos das regiões montanhosas, nós passeavamos sob a parreira da horta: elle de sacho na mão,[26] parando de quando em quando a apanhar uma folha velha das enormes couves, que só elle fazia crescer espantosamente. Nunca mais vi couves assim! Talvez por ser eu muito pequena, tudo me parecesse grande; talvez porque o tio Barreiros tivesse receita especial para as fazer crescer!...—«Que isto, meninos, as criadas não devem pôr mão na horta. Uma desgraça, decepam tudo, uma estragação!»

Claro; nós eramos sempre pelo velho contra ellas.

—«Lá em casa dos fidalgos, havia couves ainda mais altas do que estas!...»—

—«Mais altas, tio Barreiros?!...»

Que grande coisa ser fidalgo!—pensava. Até a horta se resentia de tamanha altura heraldica!

Ah tio Barreiros, tio Barreiros, que loucuras risonhas nos mettia na cabeça a vossa bastardia fidalga! Que saudades, meu amigo!...

Uma vez—ha quanto tempo isso vae!—mal começava a aprender a ler, por premio assignaram-me um jornal, que devia vir directamente para mim.

Esperava n'uma febre a chegada do[27] carteiro; e nada do jornal apparecer, para o meu nome, como eu sonhava noite e dia!... Desabafava com o tio Antonio, aquillo parecia-nos historia...—«Mas o papá pagou isso, menina?»

—«Pagou, tio Antonio, para vir para o meu nome.»

—«Pois olhe que foi no que elle andou mal. Nunca fiar!...»

E lá esperavamos, consternados, mais vinte e quatro horas. Mas um dia soube-se:—o jornal tinha vindo logo, mas, como eu tivesse n'uma terra proxima uma tia com o mesmo nome, os empregados do correio vá de lh'o remetterem. Eu, muito queixosa, fui ter com o Barreiros ao quintal. Elle indignou-se:

—«Vou já lá de caminho. Não, que uma coisa assim!... Nem que a minha ama nova não soubesse já lêr, não fosse capaz de ter um jornal!» Era uma injuria para nós ambos. E eu ficava consolada, vendo-o atravessar o pateo, seguido das gallinhas, gallos, perús, marrecos, com o ganso pae á frente—o Caetano—como lhe chamavamos.

E elle lá ia com toda a pressa que as suas velhas pernas lhe permittiam—um casaco[28] que lhe tinham dado, arrastando na frente e muito curto atraz, tão dobrado andava elle, o pobresito, a pender para a terra!..

E o caso é que fez um discurso no correio. Mas por fim discutimos:—«Menina, o melhor é mudar de nome. Olhe que hade haver sempre enganos!»

E esta coisa de haver enganos—tocou-me. Toda a vida a não receber os meus jornaes...

—«Pois está dito, tio Antonio! É o melhor.» E assim foi.

Mas o velho começou a enfraquecer. De dia para dia o corpo se lhe dobrava mais para a cova. Já pouco comia, sustentava-se de vinho e marmellada, nada mais.

E n'um inverno muito rude, em que a neve cahiu mais a miudo e de manhã a agua dos tanques apparecia gelada—o tio Antonio Barreiros apanhou uma tossita; levantava-se tarde, já não ia com o sacho para a horta...

Sentiamos que o seu espirito, risonhamente infantil, já andava longe, n'um meio sonho, quasi desligado da terra...

Fallava na mulher, fallava na filha,[29] com uma grande serenidade e um redobramento d'affecto—como quem pensava em as encontrar breve. Depois olhava-nos com uma tal saudade...

E n'uma fria manhã d'inverno, voltado para a parede, embrulhado na manta de riscas, elle appareceu serenamente adormecido para sempre. A sua bocca ironica eternamente risonha; fechados os olhos azues d'uma graça aristocratica... O seu perfil accentuado, desenhava-se muito nitido na brancura da parede. As glycineas, despidas de folhas, mettiam os braços hirtos pela abertura da janella, n'uma ultima despedida ao velho amigo que as tinha plantado... E elle dormindo na manhã brumosa, sem responder ao nosso chamamento!...

E que falta elle fazia, á noite, na ceia dos criados, contando historias, oh! lindas historias de feiticeiras e lobishomens—de que o velho se ria, um poucochinho sceptico, vamos lá!...—Guerras que elle vira, dramas de familia a que tinha assistido, trovoadas no meio da serra a quando pastor... Ah! tudo isso nos fazia muita falta, muita falta!... E nunca mais nós esqueceremos[30] o tio Barreiros, dormindo socegadamente junto dos patrões, que primeiro nos tinham deixado.

 

Junho de 96.[31]

Decoração de Pagina

[32]


SOLTEIRÃO

[33]

Decoração de Pagina

SOLTEIRÃO

A inesperada morte do velho doutor Mendes fez-me volver os olhos um bom par d'annos atraz—a quando criancita gulosa lá ia ver passar as procissões e beber a minha chicara de leite com sopas de biscoitos caseiros.

Essa morte rastejou-me na alma uma pequena sombra de melancolia, não que eu amasse muito esse velho nem que a sua falta seja desventura para alguem,—mas é que os sinos, dobrando n'uma pardacenta tarde de fevereiro, são d'uma tamanha tristeza!...

Com uma persistencia dolorosa de[34] choro, as badaladas succediam-se atirando para o espaço os seus pesados lamentos—unicos que acompanharam o doutor Mendes na sua primeira noite d'além.

Morreu, pobre velho inutil, despertando apenas a ironica piedade que inspiram aquelles cuja alma subalternisada não soube crear uma familia nem chegou á consciente bondade dos fortes.

Ninguem o estimava já. Outr'ora havia inspirado medo como mandão d'aldeia; diziam-no vingativo e cruel nos tempos aureos do seu poderio... Por fim, esse poder era uma triste caricatura.

...Porque—eu ainda lhes não disse?—fazem-me tristeza as caricaturas. D. Quixote é para mim mais commovente do que Jocelyn.

Em novo fôra o doutor Mendes um feliz conquistador de creadas e caseiras, que olhavam agora para os filhos grosseiros e brutaes, encarquilhando os olhos cúpidos, julgando-os possiveis herdeiros da bella fortuna do velho. Tudo podia sêr; se elle não tinha herdeiros forçados!

E lá ia vivendo, certo em todas as[35] festas, imaginando-se imponente á força de tesura, o bigode branco cortado em escova, a calva luzidia, a face sanguinea. Dava realce ás festas—diziam rindo chocarreiramente aquelles que lhe tinham tirado o bastão de commando, deixando-o, mono de palha, para a imposturice da figura.

Estou a ve-lo, o senhor doutor, com a sua casaca prehistorica, lustrosa, d'um feitio unico; o lenço d'Alcobaça, azul escuro, com pintinhas brancas, a sahir dos bolsos; comprimentando receoso, estendendo apenas dois dedos gordos e vermelhos; soprando contente a cada palavra...

Levava a umbella em todas as procissões e na minha poderosa imaginativa infantil aquillo engrandecia-o a tal ponto que o revia no céo acompanhando as almas purificadas ante o throno d'oiro do Padre Eterno.

Se cahiu de tão alto no meu conceito, não foi d'elle a culpa, que impassivel continuou elle a sua vida quasi hieratica entre o incenso dos thuribulos e o cheiro fresco do rosmaninho—eu é que mudei, infelizmente!

Porque não detemos nós a vida; porque não conservâmos o nosso espirito[36] na meia hallucinação dôce da infancia? Se vale a pena isto!... Andar a primeira parte da vida a construir altares, a enramalheta-los, a venera-los com todo o nosso enthusiasmo; gastar outro tanto tempo a destrui-los; e o resto da vida passar a chora-los! Não, não acho que vá bem assim o mundo! Ou as crianças teem que nascer com a sabedoria dos velhos ou os velhos ficarem com a ingenuidade das crianças. Quanta tristeza se pouparia a certos espiritos por demais vibrateis!... Assim, eu escusava de soffrer vendo a pobre cabeça do velho doutor Mendes, que diziam intelligente, ser agora uma coisa esteril e ôca.

O seu risito infantil, em hi, hi, hi, como dava uma prova dos frageis juizos humanos! E tinha sido terrivel em vinganças do tempo dos Cabraes, elle que hoje fazia rir as crianças!

A rodear o idoso doutor Mendes fazia-se uma atmosphera de coisas envelhecidas e desbotadas. A sala de recepção—forrada a pannos d'Arrhas, com ingenuas scenas da Biblia, onde as côres já murchas se confundiam e empallideciam suavemente a dar um tom uniforme á filha dos Pharaós salvando[37] um esperto Moysés e ao seu terrivel pae affogando-se nas justiceiras aguas do Mar Vermelho—abria-se lá pelas festas ás raras visitas. Impunha respeito com os seus tectos altos, o delgado friso doirado a dividir os pannos, as suas doze cadeiras formadas aos lados do sophá incommodo como um potro inquisitorial, o indispensavel tremó e espelho a encima-lo.

Logo ao entrar no pateo, á noite sempre illuminado esperando problematicas visitas, uma gelida impressão de silencio nos envolvia. Subia-se meio receoso a escadaria de pedra, a abrir-se nobremente em dois lanços, como um velho amigo que nos recebe de braços abertos. Essas bellissimas escadas das casas antigas, que dão bem a nota carinhosa do nosso gosto pela hospitalidade, eram mais uma frisante ironia n'aquelle interior fechado, esquecido, só de longe em longe visitado por indifferentes.

Entrava-se a medo na sombria casa e esperava-se, em silencio, que os donos apparecessem. Passado um tempo, que nos parecia infindavel, vinham, as quatro manas—miudinhas, desbotadas ellas tambem, muito parecidas[38] umas com as outras, fallando baixo, repetindo todas o que dizia a mais nova, sentenciosamente, a módos de oraculo. Muito devotas, um grande respeito pelo mano doutor, ellas lá iam todos os domingos, em carreirinho de formigas, á missa pacata da freguezia. Muito velhitas, com antigos enfeites na cabeça, vestidos de seda passados de modas ha tempos immemoriaes, lencinhos de renda no pescoço, restos d'antiga garridice, cheirando a alfazema e a camphora.

Como isto vae longe, perdido no montão de saudades que me enchem a memoria; e como eu sinto ainda toda a impressão de poeirento, de velhez, que me tomava toda quando as ia visitar ceremoniosamente!

Porque o tempo já ia longe em que a minha inconsciente criancice ousava penetrar sem receio n'aquelle tumulo. O tempo das procissões e do leite frio passára com a minha primeira infancia e com as passeatas á igreja para ver as mudanças de toilettes que Nossa Senhora soffria de cada vez que a passeavam procissional e dolorida.

E ainda hoje ellas córam e baixam[39] os olhos admirando a immoralidade que vae por esse mundo.—«Tudo perdido, tudo perdido, manas...»—dizia a mais nova, fechando os olhos a cada palavra.—«É verdade, é verdade, é verdade...»—respondiam as tres a um tempo.—«Ainda bem que o mano não quiz casar!... Nem nós tambem, que fomos bastante pretendidas!...»—«É verdade, é verdade, é verdade!»—fazia o côro.—«Que módas, santo Deus! Os homens cruzam a perna deante das senhoras e apertam as mãos!! Que gente, que immoralidade!...»—E as outras abanavam a cabeça affirmativamente, emquanto o doutor Mendes, á janella, lia a Nação, escondendo das boas irmãs um sorriso velhaco.

 

E foi elle, tão córado e gorducho, o primeiro a morrer.

A sua morte déra brado. Murmurava-se: «Afinal não fizera testamento? Podera! Até na morte fazia partida. Fôra sempre assim.»—E lá iam seguindo o enterro, bocejantes, sem nenhuma pena, maçados. Enterro de indifferentes que nenhum respeito contêm no seu aborrecimento.

As pobres irmãs, mirraditas, gemiam[40] frouxos lamentos. Tão velhinhas, tão longe d'este mundo—nem gritos já tinham para se lamentar. Era um correr de lagrimas, sem soluços nem febre, um resignado soffrer de pallidos phantasmas.

Por suprema ironia das coisas humanas, até o enterro foi causa de riso. Do antigo mandão d'aldeia, que inspirara medo e profundos odios, apenas restava esse corpo inerte deitado n'uma eça branca, com a fita do caixão risonhamente branca. Se elle fosse vivo como a levaria imperturbavel!...

Mas os sinos lá ao longe tangiam maguas, que se iam alastrando como nodoa d'azeite na pardacenta tarde de um fevereiro triste.

Como é enervante pensar na vida assim, sem interesse pelos outros, sem nenhum grande affecto que nos chore bem alto, a fazer calar todos os risos!...

N'essa paysagem, paralysada pelo inverno, só eu parecia viver—campos de vinha estorcendo os braços esqueleticos, pinhaes muito graves no seu eterno verde, o riacho a correr ao fundo do valle, e como gigantesca parede as serras violeta, escarpadas e selvagens...[41] Ao fundo, vaporisando-se no poente, as torres alvas das igrejas lançavam pelo espaço o seu lamentoso dobre: dão!... dão!... dão!...

Uma grande amargura me affogava a alma, vinda d'essa paysagem desolada, d'esse cahir da tarde sombria, da lembrança de morte que fluctuava no ar—de qualquer coisa emfim que me segredava desalentos e angustias...

A chuva começou de cahir miudinha, sem ruido, para o fim da tarde... Que desagradavel noite essa primeira que o velho doutor Mendes passou solitario no seu tumulo, guardado pelas sentinellas esguias dos cyprestes!

 

1895.[42]

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HAMLET

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Decoração de Pagina

HAMLET

Quem o via, embrulhado em flanellas, apoiando-se a um grosso bambú, sorumbatico, fugindo a todo o convivio, apparecendo só de longe com a mulher e filhitos, procurando as estradas desertas para passear, tudo sujeitando á hygiene,—decerto nunca imaginaria que a sua lucida intelligencia de subtil penetração e réplica prompta nas mais intricadas questões cahiria n'aquelle phantasmagorico sonho de grandezas, que o levou á cella d'um hospital de alienados.

Jurisconsulto erudito, advogado eloquente e cuidadoso, tinha sempre que[46] fazer; mas são poucos os lucros n'uma terra onde a propriedade está accumulada em meia duzia de felizes e só os pobres se mettem com justiças.

Vivia modestamente, n'um grande orgulho de trabalhador. Não queria favores de ninguem. Se tivesse muito, muito daria; pedir, nunca!...

E, subito, de volta d'uma estação d'aguas, eis que elle muda completamente. Luxo, passeios, viagens, projectos de compras, tantos e taes, descriptos com tal apparencia de logica, com tão ardente enthusiasmo de phrase, que chegava—não a convencer-nos da realidade de taes sonhos, mas a fazer nos viver na hallucinante miragem em que o seu espirito se perdia.

Depois que, no regresso da villegiatura, vira representar o Hamlet, apaixonára-se pela loira e ideal Ophelia, por essa pallida figura tão intensamente dramatica na sua passividade de amorosa, tão angelicamente resignada e feminil, que é já uma forma palpavel do ideal... Verdadeiras e dignas de piedade as suas lagrimas—symbolisando todas as que no mundo teem vertido olhos de tristes despresados.

E o sympathico doutor, um bom, um[47] sincero, um sentimental, apaixonára-se por essa irmã da sua alma, que vae desfolhando as niveas flores do seu dôce amôr, cedo queimado pela ingratidão.

A crueza de Hamlet resgatou-a elle, levantando no seu coração de romantico um templo auriluzente onde a incensava com a myrrha do seu talento, que a loucura, parece, exacerbára, requintára, fazendo-o subir ás etherias regiões onde as mais solidas cabeças sentem vertigens!...

Todas as mulheres passaram a ser para elle suaves Ophelias; n'ellas via a amada, o seu puro ideal; adorava-as como se essa adoração fosse ainda uma homenagem rendida á dama dos seus pensamentos—alma de cavalleiro trovadoresco, vencendo emfim a gelida couraça da materialidade burgueza.

A medicina, o amôr e o delirio das grandezas eram as suas ideias fixas. E então—vendo uma loira e anemica rapariga de silencioso porte, obrigava-a a beber aguas de Vidago e gritava com grandes braçadas enthusiastas: «beba, beba, que eu hei-de fazer d'um pastel de nata um pastel de carne!...» Logo respondia irado a um primo, que, por[48] troça, aconselhava uns tamancos e passeios pelas serras como remedio mais efficaz: «fallou o livro Caixa!... Uma estrella de tamancos!... É uma blasphemia sideral!...»

Tinha agudezas de ditos que nos punham em duvidas. Doido?!... Se isso podia ser, fallando elle tão prodigiosamente bem, encontrando com tanta facilidade a memoria da sua juventude!

A sua palavra quente, d'uma fluencia correntia e d'um enternecimento tão sincero que pelas lagrimas tinha arrancado muito perdão aos jurados commovidos—tomára um tom d'inspirado, quasi prophetico!

Doido, doido!?... E que seriamos nós, que o não comprehendiamos? A imperceptivel linha que separa o juizo da loucura tremia diante da nossa duvida.

Os seus pobres nervos exacerbados estalavam em ditos faiscantes, desfaziam-se em lagrimas, espalhavam o seu immenso talento em estilhaços—e apezar d'isso tão brilhante!—como aerolithos, atravessando a deprimente vida provinciana. Fazia-nos uma atmosphera de sonho, de desvairamento[49] e d'exotismo; que a terriola já parecia—una casa de locos sin locura!...

Elle, que só por muito favor pegava d'antes no violão, recordava agora todas as antigas musicas com uma revivescencia da sua vida bohemia d'estudante. Cantava, com a mesma alegria da mocidade, a triumphal recita do quinto anno.

Fazia pena ver o pobre violão dobrar-se todo para gemer trechos de musica já passados de moda ha mais de vinte annos. E mais pena ainda ve-lo tão alegre, d'essa alegria que tanta vontade de chorar nos causa!

Ia ao cemiterio conversar com a mãe—affirmava. Narrava, em voz estrangulada, extraordinarias coisas que, parece, ella lhe dizia baixinho... Essa familiaridade com o desconhecido fazia errar em torno de nós as sombras dos bons mortos... uma nevoa revoluteante de estranhos sonhos...

Que as cabeças não andavam lá muito seguras, não!...

Quando o levaram para o hospital, despediu-se radiante—certo de que ia ser o director, projectando grandes reformas e esperando encontrar lá a sua pallida Ophelia, absorvida n'um[50] delicioso sonho feito de sorrisos de noivos e de camelias idas na corrente de luar...

Com os seus cabellos fluctuantes, as suas mãos translucidas desfolhando flores, arrastando as alvinitentes vestes—ella o aguardava...


Assim se extinguiu aquelle brilhantissimo espirito! Assim ficou silenciosa aquella eloquentissima voz, que fazia repuxar lagrimas aos olhos dos mais ferozes julgadores! Assim morreu aquelle coração de romanticos arrebatamentos, naufragando na banalidade ultima da vida material!

 

Setembro de 96.[51]

Decoração de Pagina

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A SENHORA ANGELICA

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Decoração de Pagina

A SENHORA ANGELICA

A senhora Angelica forneira era a cara mais phenomenalmente feia que eu tenho visto—e verei. Espero esse favor de Deus Nosso Senhor, que nos fez á sua imagem e semelhança...

Eu nem sei explicar aquella mascara de gente! Não se pode mesmo comprehender como a face humana perde assim toda a forma macia de carne e se torna enrugada e musgosa como um velho carvalho—que vae morrendo aos pedaços e que todas as primaveras enverdece menos, lá para o cimo dos ramos.

Pois, apesar da horrivel fealdade da senhora Angelica, ella resumiu para[54] mim, durante a minha infancia, um mundo de sonhos e phantasticas imaginações.

Mal a via assomar ao cimo do largo; a saia de riscado curta a mostrar um começo de pernas gretadas e uns pés enormes, deformados e sujos; saracoteando-se desgraciosa com o taboleiro de brôa cozida á cabeça; corria logo á cozinha para lhe ouvir recontar pela millesima vez o estranho caso.

E se dissessemos ainda que ella sabia muitas historias! Não, era só uma... Mas essa unica, verdadeira, accidentada de peripecias, era d'effeito. Enchia-me a cabeça e dava até assumpto para um grande romance rocambolesco.

Todas as semanas, quando a velha trazia a fornada de pão de milho para os criados, os tres alqueires do costume, era certo eu lá estar na cozinha á espera d'ella. Fazia-me muito amavel; pedia o meu bolo; mastigava fastienta em pequenas dentadas de coelho esse pão grosseirissimo, sabendo a farinha crua, adocicado e peganhento, ao qual nunca o amôr á terra natal me pôde habituar.

A velha ria parvamente, mettia com as negras mãos encarquilhadas o cabello[55] frisado, d'um branco sujo, para dentro do lenço de chita, e contava sempre a mesma coisa, dita com as mesmas palavras, com uma precisão de phonographo. O bastante porém para fermento da minha phantasia.


Era no tempo em que os rapazes d'um certo nome imitavam, com mais ou menos parecença e espirito, as estravagancias do conde de Vimioso.

Por moda, por chic e muito por gosto tambem, faziam sociedade com os ciganos sem eira nem beira, embriagavam-se pelas tabernas, vestiam-se de fadistas e pouco ou nada se distinguiam d'elles, moral e intellectualmente. Aquillo que no Vimioso era um artistico grãosinho de loucura, nos outros não passava d'uma ridicula imitação, muito grosseira até.

Como houvesse lá na terra um d'estes esperançosos moços—tambem conde, por signal—os ciganos passavam frequentemente por alli e assentavam arraiaes mesmo no interior da villa.

Á noite as barracas illuminavam-se, deixando entrever, n'um clarão de magica, os finos perfis das gitanitas de[56] cabello negro e olhar mortifero, envoltas em flammantes trajos; os acobreados ciganos vestidos de gala, jaqueta curta com alamares de prata; e ao fundo, acocoradas n'um espasmo de profunda estupidez, velhas repellentes, cobertas de trapos sujos, fumando por cachimbos de barro.

As forjas onde concertavam caldeiras, tachos, bacias, toda a bateria de cobre da gente da villa e arredores, abriam-se n'um crepitar incandescente, mostravam boqueirões de fogo a lembrar infernos dantescos.

As mulheres vendiam pannos, lenços, contas, tudo que podia seduzir a garridice feminina das boçaes aldeãs. Elles eram soberbos! O verdadeiro zingaro, com ares de grande de Hespanha e condottiére italiano; vendendo e trocando cavallos, experimentando-os em correrias pelo largo sem arvores, com uma maestria e uma elegancia de gaúchos.

Nada tinham dos miseraveis ciganos que atravessam os campos, melancholicos, seguindo-nos n'uma guincharia lamurienta, acompanhada pelos urros dos pobres ursos espancados e famintos e pelos intoleraveis macacos [57] com os seus gritos de convulsionar os nervos... Perseguidos pelas auctoridades e pelo odio do povo, que encontra sempre para contar arrepiantes historias dos vagabundos—crianças dadas a comer aos animaes, colheitas devastadas, roubos...—esgueiram-se logo, passam de largo pelos povoados, com a falsa humildade dos cães batidos.


N'esse dia tratava-se d'um casamento e o arraial estava em grande animação. O conde era o padrinho; mandára para lá vinho a rodos e leváva convidados. Promettia ser luzida, fallada por muitos annos, a festa.

Os beirões, de cabeça dura, enraizados na terra como pinheiros selvagens, olhavam, com um mixto d'espanto e de desprezo, para esses eternos vadios, instaveis como a areia do deserto. Alguns, mais entendidos, contavam o que aquillo era:—Nada de padre, nem de pregões, nem de igreja! Quebrava-se uma bilha e ficariam juntos tantos annos, quantos os cacos em que ella se fizera.—Horrores!... E as velhas benziam-se, assustadas.—Credo, Santo nome de Jesus! E viviam assim![58] Criaturas que nem eram de Deus!... E o sr. conde mettido com aquella gente! Oxalá a mãe não andasse aos tombos no outro mundo pela estragação de mimos em que o criára!...»

A senhora Angelica forneira, n'esse tempo era ainda uma rapariga, casada de pouco com o seu Joaquim, que sempre fôra bom homem, isso é verdade! Amigo da pinguita, por isso não juntaram vintem; morrendo porque ella lhe levasse pontas de cigarro para se entreter lá pelo forno; mas bom homem, no fim de contas, bom homem. Se lhe batia ás vezes, era por amôr—claro!...

N'esse dia, como toda a gente da terra, embasbacava-se a sr.ª Angelica deante do acampamento em festa. Como se adeantasse mais, curiosa de vêr a noiva, depois de ter admirado a gentil figura do noivo, chegou-se a ella uma rapariga, a sahir da infancia, d'uma brancura de pelle, d'uma côr de cabello, d'uma reserva de maneiras que accusava uma raça bem differente. Approximou-se com o disfarce ondulante do gato, que quer fugir sem ser visto pelo dono; puxou-lhe pela saia e murmurou-lhe ao ouvido:—que a levasse[59] d'alli, tinha uma coisa importante a dizer...

A senhora Angelica, que tinha todas as virtudes femininas, excedia quasi o seu sexo na curiosidade. Como pôde lá se metteu com a rapariga por entre o povo, sem que nem dentro nem fóra do acampamento dessem por isso, e levou-a para o cimo da villa onde ninguem estava áquella hora.

Imaginem o espanto da pobre mulher, quando a pequena se agarra a ella a chorar:—que a escondesse, que ella não era cigana! Tinha sido roubada lá muito longe, n'uma povoação da raia. Seus paes eram ricos—o que elles a não teriam chorado e procurado por toda a parte!... Havia dois annos que andava com os ciganos pelo mundo, sem ter podido fugir! Era raro que elles acampassem em povoado e quando assim acontecia não a perdiam de vista nem uma hora. N'esse dia a festa do casamento, com a assistencia do conde, puzera tudo em confusão e ella pudera escapar-se n'uma aberta. Que a não abandonasse, a senhora Angelica!...—O que lhe fazia mais horror era o seu proximo casamento com um dos mais lindos rapazes da tribu! Dois annos a[60] viver com aquella gente e ainda não pudera vencer a repugnancia que a affastava d'elle cada dia mais! A inferioridade de raça enchia-a d'um instinctivo tedio, quasi aversão, por esse sadio rapaz que a escolhera, sem duvida o mais amado das outras raparigas.

A senhora Angelica era mulher de expediente. Consolou-a como pôde e levou-a a um sitio isolado, um cabeço árido, cemiterio dos velhos cavallos lazarentos que os corvos vêem comer deixando os ossos a branquejar ao sol, tristemente apertado entre pinhaes, onde só ella conhecia uma gruta formada pelos rochedos sobrepostos—que decerto era a Cova da Moira.

É que uma vez, ainda em solteira, fôra para alli ao matto e descobrira a caverna. Calára-se com aquillo porque é uma tradição velhissima na terra: que entre modorno e modorninho ha sete cargas d'oiro fino,—que uma moira encantada as guarda, tecendo n'um tear de marfim e chamando alta noite de luar, por quem a vá desencantar!... E ella não quizera dizer a ninguem a sua descoberta, esperando talvez que a moira lhe desse um dia os thezoiros.[61]

Metteu lá a sua protegida e foi levar-lhe comida á boquinha da noite.

Tres dias a teve escondida alli, com medo dos ciganos. Elles é que, postos em rebate pela fuga da prisioneira, foram-se andando sem dizerem nada e sem ninguem lhes pôr estorvos.

Só então a senhora Angelica tomou ânimo, e lá foi, mais medrosa do que vaidosa da sua obra, sem ter grande consciencia de ter andado bem, contar o caso ao administrador...

Foi um alvoroto na terra! Toda a gente quiz ir ver a menina, que veio em triumpho para a villa. Todos lhe queriam fallar e tocar, perguntando-lhe, cada um por sua vez, a historia, que ella repetia sempre, contente por poder desabafar as suas máguas. Os que não conseguiam chegar até junto d'ella abraçavam a senhora Angelica, davam-lhe os parabens, tinham-n'a já como uma gloria patria, quasi uma padeira d'Aljubarrota. Ella andava radiante, contando e recontando o caso.

Nova e maior alegria foi ainda quando chegaram os paes da menina, no louco enthusiasmo de quem chora uma filha morta e a encontra cheia de vida e saude.[62]

A senhora Angelica foi bem recompensada, mas sempre me dizia: «que dinheiro nenhum lhe pagaria o susto em que andára muito tempo, parecendo-lhe ver ciganos em todos os cantos, punhaes e navalhas reluzentes que de todos os lados lhe dirigiam ao coração!...

Não era mentira! Tão certo como haver Deus, que aquelle rapaz, que devia casar com a menina, rondára por alli muito tempo!... Um medo assim! Nem ella sabia em que se mettera!...»


Esta era a historia da velha. Depois, o que eu compunha e arredondava!... Muitas vezes visitei a Cova da Moira e não era essa com os seus lamentos de triste encantada, com os seus cabellos d'oiro, com o seu tear de marfim, a que me enchia a imaginação. Era a pobre rapariga fugida aos ciganos, alli sósinha, temendo ser descoberta, temendo o silencio da noite, a sombra dos pinhaes, os gritos lugubres dos corvos!... Punha-me no seu logar e pensava: Senhor, como pôde ella não morrer de susto?!...[63]

Depois, como os amantes infelizes me fizeram sempre muita pena, acabava por ter dó do cigano que queria casar com a menina e que no dizer da senhora Angelica por alli rondára muitos annos, como alma penada.

 

Agosto de 1896.[64]

Decoração de Pagina

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ALGARVE

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Decoração de Pagina

ALGARVE

Algarve era o seu nome. Tinha nos olhos leaes uma tal expressão de bondade, que inspirava logo confiança aos timidos, aos pobres, ás criancinhas.

Era muito distincto, com seu ar de grande senhor dos tempos passados. Ao atravessar o corredor para vir deitar-se aos meus pés, dir-se-hia um velho diplomata acostumado ás etiquetas palacianas.

Não fazia barulho; apparecia junto de nós como uma sombra. Nunca lhe vi aquella alegria ruidosa que faz bem ver, mesmo nos cães. Era silencioso, meigo, taciturno—como se uma saudade[68] ou um remorso lhe pesasse na alma.

Ás vezes, quando a dormir, tinha sonhos afflictivos, gemia baixinho, com estremecimentos bruscos em todo o corpo—como se quizesse lançar-se n'uma corrida para salvar alguem que visse em perigo...

Todas as tardes sahia. Fechava-se-lhe a porta, saltava pela janella. Era a unica occasião em que mostrava a energia da sua vontade decidida e teimosa. Voltava ás dez horas, impassivel e sereno, tal qual como se tivesse ido ao club fazer dois dedos de conversa.

Um dia quiz segui-lo; presentiu-me e veiu ter commigo fazendo-me festas, como a pedir que voltasse para traz. Não quiz comprehender e elle então acompanhou-me disfarçadamente, algum tempo, e logo que me viu distrahida fugiu a bom correr.

E ás dez horas, inalteravelmente, voltava, sereno e grave, como homem elegante que atira o charuto e descalça a luva da mão direita, antes d'entrar em casa.

Mas—coitadinho!—era já muito velho e a sua mocidade parece ter sido[69] um tanto aventurosa. Á mão me veiu elle ter, já cansado, quasi sem dentes, o pello a cahir.

Nos olhos do pobre Algarve queria eu ler toda a sua historia. E, quem sabe, talvez que me não engane muito contando o que li, tudo o que adivinhei nos olhos bons do meu pobre amigo—que um genio altivo e independente levou a uma triste morte.

Veria pela primeira vez a luz n'um paiz branco, todo branco de neve. Grandes montanhas, d'uma transparencia ligeiramente rosada quando o sol muito pallido as illumina, avançam lentamente, n'um deslizar de fadas em doce ronda nocturna... e lenta, mas seguramente, caminham para o seu fim—o grande leito amargo do Oceano.

Muitos navios vinham todos os annos á pesca; então, lembrava-se de ver homens que, de quando em quando, vinham a terra e tristissimamente iam depositar o corpo d'um companheiro, no cemiterio branco picado de cruzinhas negras que lá em cima se via... E a mãe, uma famosa cadella preta de pello luzidio ligeiramente ondeado, acostumára-o a seguir aquelles cortejos funebres, com respeito, quasi com magua...[70]

Depois, ao primeiro annuncio do inverno, os navios fugiam, como as andorinhas vôam ligeiras para a dôce paz dos seus ninhos de lá baixo—andorinhas aventureiras que todos os annos voltam, mas á custa de quantos sacrificios! Quantos ficarão perdidos por esse mar sem fim! E esses homens rudes, que tanto e tanto trabalham por um pedaço de pão, seriam a melhor lembrança do meu pobre Algarve...

Quando maior, levaram-no um dia esses mesmos pescadores que elle se habituára a amar e a seguir humildemente. E então foi uma vida de sobresaltos e perigos, passada sobre as quatro tabuas d'um navio, tal qual um velho marinheiro muito affeito a perigos e tempestades.

D'um naufragio se salvou, salvando o capitão. Appareceu não sei como em Setubal. Depois, de mão em mão, chegou á minha.

Que nostalgia profunda a do seu olhar, quando se fitava n'essa bahia etherealmente e incomparavelmente azul! Com quanta saudade elle recordaria esses mares tão differentes, por onde a sua mocidade se passeára, sobre a tolda dos navios?!...[71]

Nas longuissimas tardes de maio, sempre as mesmas, sempre doiradas e tepidas, eu gostava de me ir com elle até á praia. Alli, na aureola d'oiro fulvo com que o céo santifica o mar, ficava-me sonhando, os olhos fitos no pharol do Outão, que era um ponto mais brilhante na gloria do poente.

Oh! as lindas tardes, as lindas manhãs, as lindas paysagens que nós contemplâmos em extasi; veem-nos passar com a mesma serena indefferença e assim continuarão a encantar os homens na sua rapida passagem pela terra. E mais rapida ainda a d'esses pobres animaes tão intelligentes, tão bons, tão dedicados—e que tão poucos d'entre nós teem alma para comprehender e amar!

 

Uma noite o Algarve não appareceu ás dez horas regulamentares. Um palpite de tristeza me annuviou o espirito... Faltou essa noite e faltou em todas d'ahi em deante. Um bebedo tinha-se posto deante do seu caminho, n'uma estupida e humana graça. O cão voltou, para seguir por outra rua, e o homem, n'uma selvageria que envergonhava o animal, agarrou-o, entre as[72] gargalhadas dos espectadores que da taverna proxima assistiam ao espectaculo—que na verdade devia ser d'uma infinita graça! O cão filou-o rijamente, sacudiu-o com os dentes e passou.

Mas a injustiça e o odio dos homens torna-os mais ferozes do que os proprios animaes. A alma—se homens como aquelle a teem—apenas lhes serve para mais conscientemente fazerem o mal.

Ao outro dia o meu pobre Algarve tinha desapparecido para sempre, levado para a suprema ignominia da sepultura dos cães vadios.

 

Junho de 97.[73]

Decoração de Pagina

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CÚMULO

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Decoração de Pagina

CÚMULO

Trabalhava muito, a mulhersinha. Era para admirar como um corpo tão debil podia com tanto. Ella era os recados, a lavagem das casas, as compras...

De manhã passava avergada por grandes cabazes, onde as cebolas côr de rosa conversam amigavelmente com os pimentos d'um bello verde de porcelana, a couve abre grandes folhas já murchas cobrindo as batatas ainda com terra, as cenouras doiradas, o raminho de salsa cheirosa e a carne junto da escama prateada do peixe é uma sangrenta mancha—como ramo de cravos n'um corpete branco. A extravagante mistura que as cosinheiras[76] recebem torcendo o nariz, ralhando com as pobres compradoras e por fim acommodando-se, vencidas pela avalanche de commentarios e explicações... Tudo pela hora da morte! Não ha quem possa chegar á mais insignificante coisa! E cada vez peor. Verão que os pobres hão de morrer de fome qualquer dia!...

Com um sorriso estagnado, magrinha, grave, trabalhava muito, muito. Silenciosa, sem incommodar ninguem, passava ou, melhor, escoava-se por entre a multidão como um peixe dentro d'agua por entre os dedos da mão que o quer segurar. Não faltava ás missas, ouvia recolhida todos os sermões, frequentava as novenas, mas não tinha excessos devotos. Tudo fazia comedidamente, sem nenhum exagero.

Não sei como dizer em phrase vulgar a sua figura tenue. Que isto não dá a ideia, não completa a impressão que d'ella fica, leve como um desenho mal esboçado a esfuminho quasi limpo... Honesta, vestidinha d'escuro, aceada, faz gosto vê-la. Tem um ar senhoril, distincto, quasi d'uma velha fidalga sem fortuna que precisa agradar.

As filhitas andaram sempre muito[77] arranjadinhas. Emquanto pequenas, era mesmo um encanto. Fatos velhos talvez, mas tão gentilmente postos, que ao vê-las dir-se-hia que eram duas meninas ricas. No collegio não se confundiam com as mais pobres, não. Mal ficára viuva deixára a renda na almofada encher-se de pó, amarellar com o tempo e confundirem-se os bilros n'uma indesmanchavel meada.

Viuva?!...

Se ella acaso o era!... Que o marido embarcára e ha dezeseis annos que não sabiam d'elle. Tantas vezes navegára n'aquelle navio mercante e sempre voltara tão alegre, trazendo tanta coisa estranha de paizes distantes, que ella nem comprehendia que podessem existir!.. O que o pobre homem ria de gosto com os espantos da sua mulhersinha! Porque a amava muito, apezar do seu feitio rude, das suas maneiras largas d'embarcadiço; morria por ella e pelas pequenas. Não pensava em mais nada, nas longas viagens trabalhosas por esses mares fóra.

E dezeseis annos sem dar conta de si—decerto que tinha morrido!... Mas sem o confessar, no fundo do coração alimentava ainda uma esperança...[78] Custa tanto acreditar na morte das pessoas amadas, mesmo quando deixam de soffrer deante dos nossos olhos!... Que fará, assim?!...

As raparigas eram bonitinhas, belleza da mocidade, uma certa finura da mãe, com os instinctos aventurosos do pae, talvez. Queriam luxo, muito fato, como as outras. Côres claras, leques, fitas, plumas, rendas... coisas tão caras, mesmo quando ordinarias, para uma pobre mulher que mal ganha para a comida. Quantos recados era preciso fazer; quantas casas esfregar! Por mais que se estafasse não chegava a nada. Sempre as outras melhor do que ellas; sempre as raparigas a grazinar.

Um dia, furtivamente, tirou uma renda de sobre o mostrador d'uma loja de modas, onde comprava para outros o que tanto desejava para as filhas. E que linda golla fizeram! D'ahi em deante, nas casas que servia, ia tirando sempre, sempre, na tentação que crescia como serena maré n'um mar feito de lama amornada. Abria as gavetas, desapparecia dinheiro... desconfiavam e despediam-na. E as raparigas que desejavam blusas novas, casacos, lenços!... Por fim, até chapeo.[79] A pobre mulher, que não tinha remedio a dar-lhe, dobrava-se sobre si mesma, compungida da sua desgraça. Não era remorso; era pena de não ter a quem roubar, devagarinho, sem haver escandalo.

Um dia, cançadas de não terem o luxo que desejavam, abalaram as duas deixando a mãe a governar-se sósinha. E ella—nunca mais tirou nada a ninguem! É tão fiel, tão honesta, que não haveria perigo em lhe confiar uma fortuna.

«Que as filhas são muito boas...—murmura a pobre, muito convencida,—dizem por ahi mal d'ellas; mas tudo é inveja. Coitadinhas, andam bem vestidas, andam, mas isso o que tem? A mais velha hade casar em morrendo a mulher do homem que a sustenta... E Deus hade fazer esse milagre!—Sinceramente o pede nas suas fervorosas orações.—A outra casa para a paschoa, com um empregado publico. Vive como senhora.»

E ha quantos annos que ella espera essas boas festas!...

 

Setembro de 96.[80]

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A AMA

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Decoração de Pagina

A AMA

Quando a Rosita do Simão casou, foi um desconsolo pela rapaziada. Pudera, se ella e a irmã eram das mais bonitas caras da aldeia! Claro que não se poderiam chamar bellezas em qualquer terra de formosuras, mas alli, entre a fealdade quasi geral, pareciam duas flôres. Decerto que era pena ve-la casar com o bruto do Antonio Marques!

A Mariquinhas estava a servir em Lisboa, n'uma bella casa arranjada pelo sr. vigario, e vinha á terra d'annos a annos, toda senhora, toda posta no seu serio—boas mantilhas, bons fatos, uma figurona! E á Rosa, a[84] ter que casar com o Marques, mais lhe valêra ir tambem servir...

Ella é que se não importou com os commentarios, e lá foi toda contente, com o seu vestido preto, o lenço de seda, o chale de vêr a Deus, dar a mão de esposa ao sr. Antonio Marques, que ia todo taful, de capote ás costas e chapéo novo. Foi uma festa.

No poente rubro, tepido, da primavera que ia no fim, a passarada cantava umas alegres canções—coisas d'elles, d'esses vadios sem futuro. Umas pessimas cabeças, as da passarada!

E o Leandro, amigalhaço do Antonio Marques e convidado para o arroz doce, tocava os sinos todos n'um desaforo de repiques.

O velho campanario tremia entre os braços da hera. A pobre igrejita enchia-se do oiro mordente que o sol enfiava pela rosacea do côro. A vinha do passal perfumava a atmosphera como uma enorme corbêlha de reseda e os pinhaes, os soutos e os olivedos reviveciam n'uma vida fresca, novinha em folha. Errava no ar uma tal expressão de vida natural, que inconscientemente todas as boccas se abriam em risos. O sr. vigario, muito solemne, fez uma[85] bella prédica á Rosita; as palavras cahiam-lhe dos labios, sérias, claras e precisas como se viessem classificadas, numeradas, sabendo d'antemão o logar que occupariam na vida. O latim era tão explicado, que fazia gosto ouvi-lo... «Ser casada por elle—dizia a Rosita—até dá felicidade. Parece que fica a gente mais bem casada!...»


Passados tempos, já não dizia o mesmo. O Antonio era um bruto, um avarento; tudo o que ganhava enterrava na fazenda. Em casa, a Rosa mortificava-se, com tres criancitas intanguidas de frio e fome—dizia mal da sua cabeça tonta. Ir casar com um trabalhador d'enxada já fôra uma tolice—e sahir-lhe elle assim!... Louvado seja Deus, que tão pouco juizo dá ás raparigas! Porque não fizera ella como a Mariquinhas, que vinha á terra tão bem vestida, que era a inveja de todos?!...

No baptisado do terceiro sobrinho foi ella ser madrinha, com incumbencia d'uma ama para Lisboa. O ordenado era bom e o Antonio Marques,[86] muito avarento, lembrou a mulher. Lá por saudavel e bonita não havia outra nos arredores. Os pequenos ficavam com a avó e haviam de se crear como os mais, á graça de Deus!

Fallou-se ao sr. vigario—que dissesse elle a sua opinião. A Mariquinhas explicava—que era para casa da sr.ª viscondessa, prima da sua senhora, o sr. vigario sabia...

—«Óra se sabia! Perfeitamente. Ia muito bem; que fosse, que fosse!...»

Custou-lhe muito separar-se dos filhos, á pobre da Rosita. Chorava inconsolavel pedindo á mãe que lh'os tratasse bem, que ella mandaria dinheiro para isso; nada de o entregar ao homem que tudo iria enterrar na fazenda e deixaria morrer os pobres anjinhos.

Dois annos que a Rosa esteve por lá, mandou sempre bom dinheiro, que o marido guardava. Os garotos iam-se creando pelas portas, negros e sujos, tristonhos—uns selvagens. Acabada a creação chegou ella, esperada em triumpho por todos os parentes, que de fóra da gare lhe acenavam com os lenços chamando-a alegremente. Nem parecia a mesma! Mais bonita que nunca,[87] a rapariga. Os filhos fugiam d'ella, enrodilhavam-se na saia da avó, choravam confundidos por se verem acariciados por mãe tão de grande gala. E ella olhava-os lacrimejante, sem grandes esforços de ternura, que os conquistasse. Achava-os tão feios no fim de contas!... Mostrava o retrato do seu menino—recostado entre almofadas e rendas, risonho e expressivo como se da photographia fosse estender os braços roliços á boa ama.

—«Que lindo menino, se vissem! Uma gracinha de criança, que tudo lhe ficava bem. Quando o levava pela rua toda a gente se voltava enlevada na sua belleza. Um amôr! Nunca poderia esquecer o seu menino, o querido anjo que criára ao peito...

Aprendera a fallar, a Rosita. Estava outra. Até já sabia escrever e passava horas a rabiscar umas cartas inintelligiveis, que mandava á sua senhora. «Não podia esquecer o menino, o seu querido menino! O seu lindissimo Gut, tão branco e rosado como uma flôr...»

Com a vinda da mãe os pequenos andavam mais limpinhos, isso andavam. A casa estava outra—alteada,[88] janellas abertas, branca de cal. Um palacio. Mas, dizia-lhe um dia o sr. vigario:—«andas tão triste, Rosa! Parece que tens saudades de Lisboa...»

Desatou a chorar.

«Oh! muitas, muitas, do meu menino! Tinha-lhe um amôr... Não lhe passava d'alli!»—E apontava para a garganta entumecida pelos soluços.

—«Cá, tens os teus filhos, Rosa. Hade dizer-se que não gostas d'elles!... Isso é tentar a Deus, rapariga!»

—O sr. vigario que perdoasse; ella gostava dos filhos—pois se eram seus filhos, não havia de gostar!—mas o seu menino era outra coisa! Tão lindo, tão esperto, tão bem vestido!... Que Deus lhe perdoasse, mas tinha-lhe tanta affeição, que o não podia esquecer!... E beijava o seu retrato, chorando.

O vigario, depois de dar os seus conselhos, affastou-se resmungando:—«o démo da mulher! Se não conhecesse a casa onde esteve e não soubesse que foi sempre uma boa rapariga, até desconfiava d'aquellas lagrimas! Emfim... Decerto que o filho da viscondessa é bem mais bonito do que os negritos do Antonio Marques, mas são filhos, afinal!...»—E rematava sentencioso—o[89] demonio são as mulheres! Umas adoram os filhos mais do que ao proprio Deus; outras até os matam; esta quer mais aos alheios que aos d'ella!... Ha de tudo cá por este mundo!»—E lá se ia á missa primeira, esfregando as mãos geladas pelo nordeste, levantando, a golla de pelles do casaco, batendo com as botas-tamancos na calçada, para aquecer os pés.

 

Outubro de 96.[90]

Decoração de Pagina

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ENTARDECER

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Decoração de Pagina

ENTARDECER

Uma tarde tristissima.

Desde manhã que uma chuva miudinha e impertinente cahia sem cessar. O céo, muito pesado, muito baixo, esmagava o meu espirito, fazia-me soffrer de quantas maguas inconfessadas existem na vida—tão cruel, tão absurda ás vezes!

A lama na estrada chegava ao passeio; as arvores lamentavam-se desoladamente, todas gottejantes e trémulas, chorando a primavera que tanto, tanto custava a chegar esse anno!

Bandos d'andorinhas passavam arrevoando junto á terra, piando, friorentas, saudades do sol, que deixaram lá em baixo[94] a doirar minaretes agudos, a acariciar palmeiras, que ondulam brandamente as suas folhas em leque, e graves mulheres que passam envolvidas em brancas musselinas transparentes.

Encostada aos vidros da minha janella, eu olhava distrahida... Quem passaria por uma tarde assim?... A lama viscosa e pardacenta parecia querer subir, em maré cheia de tedio, a engolfar o mundo na sua molleza repugnante. Tardes ennodoadas e longas que ennoitam o nosso espirito, fazendo-nos perder a esperança de que jamais um raio de sol ou uma nesga de céo azul venha alvoroçar-nos em sonoridades de risos!

Uma rapariguinha passava, tão magra, tão pallidasita... A saia, muito fina, a cingir-se-lhe ao pobre corpo d'anemica; agasalhava-se tremendo n'um pedaço de velho chale esfarrapado e nas mãositas roxas segurava um pequeno embrulho.

Talvez seis annos...

E as botinas cambadas, maiores do que os pés, a enterrarem-se na lama, a não a deixarem andar depressa...

E a noite cahindo silenciosamente, e ella sósinha, no campo sombrio,[95] áquella hora e n'aquella tarde tão abandonado e triste como um cemiterio.

Seguindo-a com o olhar, abstracta, quasi inconsciente, pensei: quantas crianças da mesma edade brincariam alegres e palreiras, em casas confortaveis, bem vestidas, quentes?... Quantas, n'essa hora vaga do cair da tarde, não correriam, sobraçando os arcos, rindo da chuva e do frio, por entre moitas verdejantes de lindos jardins, seguidas por loiras mestras altas e sérias? Bibes brancos a esvoaçar como azas de borboletas; finos cabellos encaracolados cahindo em maciezas de luz, a nimbar d'oiro Varezo cabecinhas graciosas... Bellas crianças feitas de mimos e de beijos, rosadas e fortes, promptas para a vida sem maguas nem canceiras.

E aquella! Uma infancia miseravel, a prepara-la para o longo e obscuro martyrio que termina na valla commum passando pela fabrica e pelo hospital.

E a pequenita caminhava vagarosamente, com uma precoce gravidade destoante dos seus poucos annos. Mas...

Uma carroça vinha em doida desfilada, com barulho irritante de velhas molas ferrugentas e guisos casquinando[96] sarcasmos na tarde chuvosa. Assustada, querendo fugir, a criança deixou cahir o embrulho. O papel rasgou-se e todo o milho que levava se espalhou no chão lamacento. Nada mais pungente de ver; nada que mais esgarçasse a alma n'uma angustia—que a pallida figurinha da pequena contemplando aquelle desastre!...

A carroça passou e ella foi apanhando, grão aqui, grão além, aquelles que a lama não tinha completamente perdido. Depois affastou-se lentamente, com um sorriso d'infinita resignação na sua boquinha já soffredora.

Seis annos apenas—como ella aprendeu cedo a resignação amargurada da vida! Uma immensa piedade, uma dolorosa impressão d'irremediavel soffrimento, me invadiu o espirito, pensando em todas as anonymas desventuras que se acotevelam na vida.

A noite vinha descendo lentamente. Pezava como chumbo a tristeza arreliante d'esse fim de dia...

 

Março de 95[97]

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BRETAN

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Decoração de Pagina

BRETAN

Certamente a mais ninguem acontece ter como eu um medo atroz, um respeito fetichista, pelo correio.

Um comboio que passa, com a sua cabelleira ao vento; os seus gritos agudos, o seu tamtam monotono, não me traz á ideia a alegria descuidosa dos que partem para recreadas viagens, não! Eu penso que n'aquella caixinha, estreita como um esquife, vae amortalhado muito coração, vae muita lagrima alastrada em tinta, levar a todos os cantos do mundo a magua que a fez sangrar.

Muita alegria diz tambem aquella[100] pequena chapa com sete lettras a preto... Diz certamente; mas não a alegria sã e completa dos felizes que não teem ausentes! Quanta saudade de mãe amargurada, que ao deitar a sua carta na caixa sentirá a mesma impressão dilacerante de lançar com ella o coração!... Quanto conselho de pae, martelado a soluços!... Quanto desespero de namorada confiando ao acaso das viagens o seu pobre amôr feito em frangalhos!... Quanta tristeza n'uma phrase em que se pergunta pelo anjinho, que se viu nascer e que longe cresce e se faz sabio, sem que os nossos olhos o envolvam de caricias!... Quanto beijo dado no vacuo; quantos braços estendidos a pedir soccorro, cahindo inertes sem ter que abraçar! Quanta mentira, quanto desespero, quanta saudade!... Tudo isto passa pelo meu espirito annuviado, dando-me a gelida impressão de temôr!

Até os pobres carteiros, cuja miseria reclama esportula, teem um modo auctoritario de bater ás nossas portas. Queiras ou não queiras, ahi te vae a carta de preto que faz refluir todo o sangue ao coração, a phrase crúa que despedaça amizades, o rendilhado fementido[101] d'um affecto que sentimos morto.

Sobre uma carta encontrada, toda uma vida se pode refazer; desenhar justamente um caracter; ter quasi palpavel, diante dos nossos olhos, a figura sorridente ou lacrimosa, enthusiasta ou fria, resignada ou inquieta, que ao papel confiou as suas impressões. Mas nenhuma como esta, que uma piedade estranha roubou á bruta indifferença d'um pae, dá a flagrancia d'uma alma.

Por delicadissima offerta de quem sente a vida como eu a sinto e comprehende como eu comprehendo a amargura dos que soffrem, ella me chegou ás mãos, tal qual a vou copiar:

 

—«*** (Bretagne) le 8 Fevrier 1892.

 

Cher Père

 

Je rèponds a ta lettre reçu le 2 Fevrier nous sommes en très bonne santé nous désirons que toi il en soit de même. Nous avons reçu avec beaucoup de plaisir les details de ta situation soit sur le passée comme sur le prèsent. Je s'ai que tu n'est pas en peine pour diriger tous les travaux comme ils se[102] font en France. Pour faire la cuisine tu n'est pas noice l'on doit être content d'avoir un aussi bon cuisinier que toi surtout pour lapin et lievre. Avec 3 jambons et du lard tu en a là pour prépare beaucoup des liévres.

Je pense que tu dois boire du vin j'ai entendu dire qu'on recolté du vin très renommé. Je suis très satisfaite que tu ai fait toutes ces emplettes car elles sont bien utiles. Mais maintenant que tu as toustes vètements nécessaires, puis qu'il y a beau coup du gibier cela doit servir pour une bonne parti de ta nourriture alors une personne seule avec le gage que tu gagne si j'etais a ta place il me semble que je tacherai moyen de mettre un peu d'argent de côté car si plutard tu en avant besoin tu aurai là ce qu'il te faudrai car l'argent ne nuie jamais, je ne pense pas. Cher père de te fâche quoique je te donne ce petit conseil mais tu s'ai l'argent est bien utile sans cela ou ne peut rien faire. Comme tu me dis que tu as acheté une couverture de laine dans ta prochaine lettre tu me dira si tu a un appartement ou tu fait ta cuisine et si tu couche dans un lit tu me l'expliquera. Tu connais donc le roi du[103] Portugal? ce serait un grand honneur pour toi si Sa Magésté venait chasser avec toi ainsi que tu me le dit mais je crois que tu ma dit cela pour me faire rire mais peut être il n'y a pas beaucoup des chasseurs en Portugal. Fait-on la chasse aux macreuses comme ici toi qui aime tant cette chasse lá tu n'en parle pas. Comme tu me parle de la mer vois-tu la Mer Méditerranée ou l'Ocean Atlantique? Tu me dira aussi si tu parle Français ou Portugais. Tache moyen de conserver ta bonne place et du commerce ne m'en parle pas car c'est le commerce qui nous a occasionné tous nos grands malheurs. J'ai a te dire qu'il y a appeine un an que j'ai commencé un petit jardin dans la cour du cellier je vai t'en donner un aperçu a partir du portail jusqu'au 1.er figuier j'ai fait une palissade, lá j'ai planté 3 rangs d'arbres fruitiers, j'ai fait un petit chemin qui fait le tour des arbres, et j'ai fait des anglaises, lá j'ai planté tout éspeces de fleurs ce serait trop long pour te dire tous les noms des fleurs que j'ai planté, tout cet été qui s'ai les fleurs que j'ai eu pour porter á l'Eglise. J'y ai mis aussi des fraisiers, des grosselliers, des souches pour faire grimper[104] en un mot rien n'y manque que d'avoir un puits. Comme je ne sort jamais pour aller en promenade je vai passer beaucoup des moments a voir mes plants les arroser lui enlever les mauvaises herbes et cela me distrait beaucoup. Depuis le mois de Novembre mon jardin est plein de violettes. Le climat du Portugal doit être plus chaud qu'ici il ne doit sans doute pas tombé de neige, mais pour nous il fait un hiver pluvieuse nous n'avons seulement pas eu le vent du nord nous voyons la neige sur les montagnes mais il ne fait pas froid. Si tu ne peux pas ecrire pour la fin des mois jusqu'au mois d'Avril ou Mai c'est trop loin tu peux ecrire vers le millieu de Mars le plustard. J'ai donnè des nouvelles a ma Tante e mon Cousin. Ton ami Gilbert vient a la maison de temps en temps il nous demande toujours de tes nouvelles car il t'aime bien mais Gilbert a été bien éprouvé comme nous, tu peux penser comme il est desolé il y a plus d'un an qu'il a pérdu sa pauvre fille.

Je termine ma lettre cher père en t'embrassant du fond du c½ur ma mère et moi.

Ta fille—Celeste ***[105]

Quand même je te parle de Gilbert n'y écrit pas tant a lui comme a d'autres personnes avec moi il y en a assez.»


Com os seus erros d'orthographia e a sua completa ignorancia de grammatica, com a maneira simples, natural e humana de dizer o que sente, é a mais delicada, a mais dôce, a mais sentida nota que uma obscura alma de rapariga tem feito resoar no meu coração.

Como ella se desvanece, primeiro, com os talentos culinarios do Cher Père. Depois vem o seu instincto economico de petite mére, a dar tão bons conselhos ao pae de má cabeça—que parece elle foi...

O espanto da pobre rapariga, o orgulho que sorri entre duvidas, de que, elle conheça Sa Magesté!... Perdida n'um cantinho da Bretanha, na sua grande França republicana, essa ideia será para ella qualquer coisa de grandioso e vago como os radiosos contos de princezas e fadas de que a sua infancia foi entretecida.

Nem tu sabes, touquinha branca d'azas engommadas, como o sol do pequenino[106] paiz onde teu pae refaz a sua fortuna desbaratada, engrandece os humildes e banalisa os grandes!

Ignorante Gaud d'olhos côr da flôr do linho, pondo com grande esforço de memoria a pena nos dentes, a consultar a sabedoria da escola: vois tu la Mer Mediterranée ou l'Océan Atlantique?

O grande Atlantico, minha querida!—a vastidão do mar que deu ao insignificante paiz, que mal te lembras de vêr no mappa, a vastidão dos continentes novos!...

Vem depois o horror ao commercio, como um rebate d'incendio... Comprehendo o teu medo, o teu grande desgosto, pobresita! Estou a vêr a tua casa muito arranjadinha, com o «leito á moda da cidade», os teus fatos ricos a fazer inveja,—a bella herdeira que tu eras, a chamar pretendentes!... E d'um instante para o outro, tudo desfeito, como um sonho de criança! Sim tremer, tremer das más cabeças, no commercio. Le pauvre cher Père!...

Vem aligeirar a carta a linda descripção do jardim, que ficou o seu luxo, a consolação dos dias tristes passados com a velha mãe a lembrar o ausente—fugitivo, criminoso talvez?!...[107]

O adoravel perfume, tão fresco das suas arvores de fructo!... E os ramos de flôres tão variadas que seria longo ennumerar, como na sua melancholica egreja devem dizer bem, no altar de Nossa Senhora! Mas o poço que falta lhe faz, á paciente jardineira!

Parece que toda a carta ficou impregnada d'esse aroma honesto de violetas, que desde novembro enchem o paraizo da voluntaria reclusa.

A vaga impressão de sol que lhe suggere o clima de Portugal... Como teria ella aqui formosas flôres para cultivar!

Abre-se deante dos nossos olhos a serenidade da sua vida desfeita e conformada, lendo esta singela carta toda sahida do coração; o amigo Gilbert visitando a familia, e tão triste, elle tambem, com a morte da pobre filha!...

Leva-lhe, Céleste, ao seu coval de virgem, braçadas das tuas flores tão queridas! Leva-lh'as. E será melhor pedires á boa amiga que te deixou, um logar ao seu lado, na pacificação do vosso cemiterio raso. Com o teu coração, Céleste, que farás tu n'este mundo de lama e oiro, pobre querida?!... Pede—aconselho-t'o eu—á filha do teu amigo Gilbert um logarsinho doce[108] onde te deites socegadamente, com a touca engommada pela ultima vez, o teu vestido dos dias felizes, os sapatinhos que nunca terão uso. É o melhor que tens a fazer, se não queres o teu coração gelado pela indifferença alheia, como a neve que nas montanhas alveja deante dos teus olhos sonhadores.

O susto em que vives, sympathica desconhecida, que eu comprehendo e amo. Nem o teu amigo Gilbert, nem esse mesmo deve saber ao certo onde pára o filho prodigo!

Que despedaçadores martyrios e desgostos; que mortificantes saudades curtidas longe!...

 

Setembro de 96.[109]

Decoração de Pagina

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VICTORIA

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Decoração de Pagina

VICTORIA

Victoria.

Tinha este nome triumphante, que suggere ao nosso espirito manhãs claras de sol a bater nas espadas polidas dos guerreiros, musicas estridulas que fallam de sangue de heroes e de glorias coroadoras... E comtudo nada mais triste do que a sua face de quasi idiota, o seu olhar inexpressivo, o seu rir incolôr!

Ainda aos domingos era boa de vêr: as saias de chita muito rodadas, o lenço claro, o casaquito novo; o seu riso até era mais infantil e mais sonoro. Mas nos outros dias fazia pena, mesmo muita pena, vê-la tão pobresita, quasi miseravel—a saia de riscado muito remendada,[112] o cabello a sair-lhe do lenço, rôto pelo cantaro sempre em equilibrio sobre a sua cabeça tão vazia.

Dava agua ás casas ricas, por trez tostões ao mez. Senhor, como se é infeliz; como póde alguem viver assim, n'um mundo em que outros teem tanto de sobejo!

A mãe, viuva muito nova, ficára com uma ranchada de filhos, que fôra creando á custa de muito trabalho. Depois, todos grandes, os rapazes começaram de morrer tisicos; e as raparigas, as que tinham prestimo, estavam a servir para Lisboa. Ella, a desditosa, para alli ficára abandonada no casebre enegrecido, feito de pedra solta e telha vã, onde todos os seus tinham nascido e morrido.

Fizera-se aguadeira—para que mais poderia servir tão inferior, tão desageitada? E mesmo isso lhe ia a faltar: os ataques não a poupavam e os cantaros partiam-se todos os dias, n'um desespero para as donas de casa que ficariam pobres com tanta despeza.

E a Victoria, vá d'entristecer, já por vezes a encontrava sentada no pateo, na ansiosa espera d'uma esmola de pão...


[113]Uma manhã—linda manhã que ella era!—na villa muito alegre, muito branca, passava um bello ar de dia festivo. Manhã domingueira. O sol, nada quente, no rigor do inverno. Da serra da Estrella vinha uma reverberação de neve immaculada e uma aragem fininha, aguda, que fazia bem.

Para a missa passavam as mulheres dos povos, vestidas d'escuro, a capoteira de panno lustroso, o lenço de seda amarello e vermelho. As da villa afidalgavam-se com os chales de borlas, os lenços de côres mais finas. E homens e mulheres iam apressados para a missa das onze—a ultima.

Criança, eu, á janella, olhava com certo prazer o movimento do largo, quasi deserto áquella hora nos dias de trabalho.

Em frente, a estrada em sombra era toda branca ainda da geada da noite. Da fonte vinha uma grande alegria de vozes femininas, que riam alto, n'um bem estar de vida satisfeita.

A Victoria estivera lá, fallara e rira como as outras; com o cantaro á cabeça, o fato dos domingos bem aceadinho, tinha quasi um ar gentil, quando ia passando.[114]

Preparava-me para lhe dizer adeus, n'uma alacridade d'amigas velhas. Eu, que sempre amei os humildes, os infelizes, entendia-me com a pobresinha.

A infantilidade dos meus poucos annos comprehendia bem a eterna infantilidade da sua alma inferior.

Mas, bruscamente, ella parou, estendeu os braços para a frente...—e não me esquecerá nunca a curva que o cantaro descreveu, indo despedaçar-se na terra endurecida, ao mesmo tempo que o corpo, n'uma rigidez cadaverica, caia para traz... E a cabeça no chão teve uma pancada secca, d'arrepiar!

Correram de todos os lados a soccorre-la, a levanta-la, mas o ataque epileptico veio-lhe todo inteiro n'uma loucura estrebuchante de desarticulações e esgares, n'um desespero de soffrimento que allucinava!

Na cara feiasita e habitualmente tão parada da pobre rapariga, passaram todas as expressões, as mascaras de todos os nossos sentimentos e paixões, de todas as nossas alegrias e lagrimas.

Todo um mundo cabe na cabeça d'um pobre doido.

Estarrecida de pavôr, eu ficára-me a olha-la muito fixamente, a seguir o estranho[115] espectaculo. Agarrava-me ás grades da varanda, como se n'uma vertigem algum vento de loucura me fosse levar tambem. Que terror infantil! N'um empedramento de irresolução pela piedade e pelo espanto, eu permanecia alli, sem gritos na bocca e sem lagrimas nos olhos! O meu pequeno coração modelava-se dolorosamente n'uma concentração profunda do soffrimento alheio! É por isso que, olhando para dentro de mim mesma, eu sempre encontro, nitidas, gravadas a frio, eternas, soffredoras sempre,—as figuras tragicas dos que vi padecer e chorar...


Quando levaram a Victoria, já sem sentidos, todo o seu fato dos domingos, cuidadosamente lavado e guardado com tanto amôr, ia em farrapos!

Miseravel criatura, victima inconsciente, para quem a unica alegria da vida será a morte redemptora e pacificante!...

Só então ella dormirá em paz, no cemiterio melancolico da terra agreste e linda que unicamente conheceu na vastidão do mundo!... Os pinheiros rumorejantes, as pedras, as flores, as coisas[116] inanimadas, comprehenderão melhor a sua pobre alma inferior.

Ás vozes mudas da natureza juntar-se-ha a sua voz—queixume de triste desdenhada pelo egoismo dos homens.

 

18 de junho de 96.[117]

Decoração de Pagina

[118]


A TERRA

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Decoração de Pagina

A TERRA

Quando um homem se apega á terra, ella é por vezes d'uma ingratidão que chega a revoltar. Com a sua impassibilidade de coisa morta irrita o amôr até ao fanatismo, leva á loucura.

O Manuel Carpinteiro não tinha mulher, nem filhos, nem sobrinhos, ninguem que lhe ajudasse a levar a vida alegremente, que pelas manhãs o acordasse com sonoras alvoradas de risos.

Vivia só, n'um casinhoto ao cimo da villa. Elle mesmo fazia o caldo e cosia umas batatas; a brôa comprava-a de caminho em casa da sr.ª Candida, quando á noite recolhia d'enxada ao hombro,[120] tristonho, indifferente, para alli uma coisa sem nada lhe importar. Passava pelas mulheres com uma completa indifferença de desconhecido. Era um simples cavador, mas chamavam-lhe carpinteiro porque o pae o tinha sido; já em garoto alcunhavam-no de Manél do carpinteiro; depois, com o tempo, por abreviatura, ficára com aquelle nome.

Á custa de muita avareza e muita miseria arranjou meia duzia de vintens, e tanto pediu, tantos empenhos metteu, que na camara lhe emprasaram um bocado de serra. Mas, como a pobresa é muita n'aquella região, o povo miseravel toma os maninhos como proprios. Ninguem lhes pode tocar, sob pena de revoltas e gritos do mulherio, dos sem eira nem beira, que por vezes teem percorrido a villa esbracejando, cabellos desgrenhados, lenços escarlates a agitarem-se como bandeiras de guerra.

Os invernos são rudes e os desgraçados vivem da serra como animaes inferiores. Queimam pelas noites bravas d'invernia os sargaços verdes, que enchem de fumo os casebres e nem ao menos se desfazem crepitando risos d'oiro. Vendem aos lavradores mólhos[121] de fetos para comprarem o pão de cada dia e as ovelhas teem o seu magro pasto por essa serraria além, entre pedreiras e pinhaes.

Temendo um levantamento, os graves senhores da camara emprasaram ao Manuel carpinteiro uma courella de terreno inculto—aquillo que não prestava para os outros.

O povo todo explodiu n'uma sonora gargalhada:—que ia fazer aquelle maluco com um bocado de maninho tão secco? Por mais que se matasse nunca lhe daria senão uma reles terra centeeira...

O Manuel arreliou-se fortemente com esses ditos e, cabeçudo como um verdadeiro beirão, arranjou uma cabanita, no meio da belga e alli vivia como um selvagem.

Trabalhava desde que o sol vinha, irrompente, até que se escondia nos poentes gloriosos dos dias longos do estio. No inverno apanhava a pé firme as chuvas, a neve, o vento e o frio. Era um labutar sem descanço, e ella, a ingrata, pagava-lhe com umas anemicas paveias de centeio, que ondeavam pallidamente, mostrando a terra branca de seixos como dentes descarnados[122] de rapariga tysica. Elle mesmo assim a adorava, a essa belguita que ia fazendo com o seu trabalho, regando com o suor do seu rosto. Em metade plantou um bacello, mas a uva não amadurava; deu-lhe um vinho palhete muito leve, muito agradavel, mas para vender era uma desgraça—nenhum negociante lhe pegava. E no emtanto elle amava-a como se fosse uma mulher formosa, sempre prompta a pagar-lhe em sorrisos os cuidados de que a rodeava.

O que lhe falta é só agua,—dizia elle sombriamente—o mais é uma terra nova, boa de lei. E continuava a revolve-la com a ansia de quem procura thesouros. Vinham homens entendidos, os védores, ensinar o bom sitio para fazer os poços, mas tinha que os entulhar logo, quasi desanimado. Agua, onde é que ella apparecia alli?! Só a tal profundidade, que era absurdo pensar n'isso.

E o povo a rir, a rir perdidamente do desgraçado!..

Picado por esses risos, foi hypothecar a belga e metteu jornaleiros a cavar, até darem com o sangue da terra. Pedras e só pedras é que appareciam,[123] depois, rocha viva, que foi preciso despedaçar a tiro. E elle chorava, o pobre homem!

A face distendeu-se-lhe pela primeira vez, n'um sorriso satisfeito, no dia em que um delgado fio d'agua borbulhou no fundo do poço. Balbuciava coisas sem nexo ria por entre lagrimas que lhe avermelhavam os olhos. Nem parecia o mesmo; a alegria quasi o endoideceu. Depois de ter o poço completamente forrado, tinha ainda pedra de sobejo para murar a territa; e elle tudo era pensar em grandezas.

Porque o povo começava a inveja-lo, quiz ir até ao fim, começando pelo largo portal para carro...

Mas a terra não dava os juros a dez por cento que o triste pagava—ella que apenas rende, quando muito bôa a cinco. Fallavam-lhe em penhoras, desgraças... e o rude camponio começou d'andar aturvado de juizo.

Passava dias a olhar o fundo do poço onde a agua se mostrava estagnada, negra, e ao mesmo tempo fascinante—como a prometter-lhe descanço no interior da terra bem amada.

A propriedade era tão nova que nem os fetos denticulados em primorosa[124] renda o revestiam de verdura, nem a avenca delicada lançára ainda entre o musgo as suas hastes muito finas!...

E horas e horas que elle levava sobre uma fragil tábua, agarrado á varella do engenho com os seus braços cabelludos e fortes, fazendo descer o balde ao fundo para o tirar cheio d'agua fria, que, entornada na piasita ao lado, se ia perder na terra empapada!...

Queria muita, muita agua—era a sua ideia fixa. Parecia-lhe que só assim ella lhe daria todo o seu dinheiro. Os paus do primivo engenho, friccionados no balanço compassado, rangiam lugubres soluços, atiravam para o espaço uns gemidos estertorosos.

O desgraçado até já mettia medo, com os olhos encovados e emfebrecidos, com a magresa musculosa do seu corpo affeito a trabalhos e fomes.

Levaram-n'o então para a villa; mas os cuidados d'indifferentes servem de pouco. Ninguem mesmo se atrevia a guarda-lo de noite porque as passava a gritar—que o diabo estava alli, que um gato preto o queria afogar, que lhe roubavam a fazenda!...

Mal o sino das ave-marias dava a ultima badalada—que se envolve já[125] nos murmurios nostalgicos da noite que se avisinha; o chocalhar dos rebanhos recolhendo ao curral, os carros chiando torturadamente, as cantigas e os risos das raparigas na fonte, as rãs, os grillos e ralos que dispertam para a sua faina palreira—fechavam-lhe por fóra a porta do casebre e deixavam-no sósinho esbravejar e gritar á vontade.

Até que um dia saltando da cama conseguiu arrombar a porta e a correr chegou á propriedade.

Quando de manhã deram por falta do Manuel, foram procural-o á fazenda. Decerto que não fugiria para outro sitio. Todo o camponez comprehende aquella loucura. Foram encontra-lo no fundo do poço. Um rictus medonho mordia a sua face desvairada—nem a morte conseguira pacificar aquella physionomia roida de ambições e terriveis desenganos!...


No fim de tudo, quem ganhou foi o uzurario que lhe emprestára o dinheiro e ficou com a belga, já feita, pela divida pequena do pobresito.

Até faz pena ve-la agora, com o seu[126] portão de ferro pintado de fresco, a nora cantante, o ar de quinta de ricaço que vae tomando.

 

Dezembro de 76.[127]

Decoração de Pagina

[128]


FREIRAS

[129]

Decoração de Pagina

FREIRAS

Na pallidez do poente, d'um azul cinzento, a igreja destacava-se em negro na elegancia da sua torre manuelina.

Em baixo, o largo era todo em festa; as luzes começavam a accender-se, pondo aqui e alli sorrisos d'oiro.

Olhando a massa sombria do convento, uma vaga tristeza me ganhou o espirito. Lá em cima, na pequena janella gradeada, quantos lindos olhos terão chorado, vendo o mundo com o tumultuar das suas paixões e risos, alindado pela ignorancia das suas almas prisioneiras?!...[130]

Por mais artistico e lindo que seja um convento de frades, não me faz sonhar como os de freiras. Se eu comprehendo tão bem o martyrio das pobres almas femininas encerradas duplamente pelas grades e pela ignorancia!...

As que fugiram do mundo, porque n'elle soffreram, essas não me fazem tanta pena—tinham para companheira da sua soledade a doçura amarga das lagrimas, que recordam venturas idas...

Mas, pobres entes muitas vezes votados antes de nascer á frieza claustral, arrepia-se-me a carne só em pensar nas victimas inconscientes d'esses sacrificios barbaros!

Conta-se que aos quatro annos Santa Margarida d'Hungria tomou habito, tendo ido para o convento ainda com a ama. Aos seis trazia cilicios e aos doze professava—«já fadada para santa tinha vindo» accrescenta o chronista.

Mas as outras, que fossem mulheres verdadeiras, de carne e nervos e sangue a palpitar vida sadia e humana!... Ah, essas pobres plantas criadas em subterraneos, cahiriam estioladas na[131] frescura dos annos. Então—sem mesmo serem choradas—iriam para a terra resgatar a mocidade em perfume de flores... Outras, affazendo-se á solidão, vivendo na phantasmagoria luminosa do flos sanctorum, iriam de degrau em degrau á loucura santificada. E, mortas tambem, seriam adoradas sobre os altares...

Não sei que doçura tristissima encontra o meu espirito em visitar os conventos de freiras, em piedosa romaria evocativa!

Aquelle de que eu mais gosto pela belleza da sua architectura rendilhada, acontece ser hoje um hospital servido por irmãs de caridade. Ao ver passar ao fundo do claustro deserto a mancha negra dos seus habitos, não sei que lufada d'outro tempo me enche a alma de sombras!

Calcando essas lages desiguaes, onde tantos corações arquejantes de fé foram descançar para sempre, uma historia me lembrou, que alguem, que alli viveu trinta annos, piedosamente me contava:

—Era quasi noite; o céo de purpura, onde o sol agonisava, esbatia-se gradualmente, vindo morrer n'um loiro[132] cendrado, confundindo-se com a lua que se levantava em crescente. Duas freiras das mais novas passeavam pelo claustro, onde, já do seu tempo, tantas esposas do Senhor tinham ido esconder a face macerada, dormindo o eterno somno.

Que diriam ellas, assim juntas, na hora das dôces confidencias, deslizando como sombras no silencio religioso do velho claustro?... Que maguas viriam subindo da memoria longinqua dos seus amores mundanos?... Que sorrisos e que lagrimas?!...

Uma disse:—«Cheira tanto a terra!»—«Breve estarás com ella!...»—Respondeu-lhe uma voz formidavel vinda do chão, vinda da noite, das grandes casas desertas!...

E o caso é que a pobre freira entrou d'entristecer, de cahir n'uma grande e incuravel doença d'alma, que em poucos dias a levou para o supremo descanço, fazendo certa a prophecia.

Ainda este convento tinha a belleza incolume das suas columnas em marmore, a alegria dos grandes dormitorios cheios de luz, o encanto do côro todo em azulejos e atufado d'imagens santas.[133]

Mas, outro lá para a Beira, onde eu estive uns dias, escuro, enorme, sem belleza nenhuma, pezando sobre a nossa alma com a bruta espessura das suas paredes mestras... Ah, n'esse, como seria horrivel viver!

Apenas lá encontrei duas freiras. Uma, a prioreza,—santa senhora!—alma lavada, riso franco, uma encantadora ingenuidade no seu virgem coração d'oitenta annos. A outra, sombria, um olhar por vezes desvairado a fuzilar sob a brancura da toalha de linho, que lhe emmoldurava o rosto opalescido. Relativamente nova para ser freira professa ao tempo que acabaram os conventos, fez-me curiosidade. Perguntei á prioreza, e ella, a santa velhinha,—morreu o outro dia... que pena tive!—ella contou-me tudo:

—«É que soror Maria fôra mettida no convento aos quatro annos. Para que o morgado ficasse livre d'encargos? Promessa de paes muito piedosos? Não se sabia.

Mas a ella não a tinha Deus fadado para santa! O seu coração, nascido para viver, nunca se podera aclimatar áquella existencia de mortos.

Aos quinze annos, os parentes obrigaram-na[134] a entrar para o noviciado. A ordem das bentas não reformadas, não era apertada, ao menos...

Pelas grades das janellas via-se a pequena cidade rumorejante e activa como uma colmeia.

E a gentil noviça tinha prendido os olhos aos olhos d'um lindo moço, que de fóra a contemplava em extasi...

Á noite, nos outeiros sentimentaes, a conversa corria alegre e facil como a agua clara que desce das montanhas. Que duvida? Se elles eram novos e os seus espiritos tinham tenteado o espaço que os separava, decerto que se haviam de amar!...

Depois, o eterno drama dos amôres contrariados:—espiões, todos os olhos que a fitavam; criadas compradas; a familia insistindo cada vez mais pela profissão...

Já vagamente se fallava em liberdade. Da França vinham flammulas de luz. O namorado pedia-lhe que resistisse... o governo miguelista seria vencido em breve. Era a sua esperança! E então, ninguem a poderia obrigar a ser freira, ninguem se opporia a que ella sahisse, noiva feliz, da prisão fanatica.[135]

Ah! fallar cedo de mais, meu pobresito, é um grande perigo!...

Desappareceu o namorado e a triste da noviça deixou de resistir á vontade dos paes.

Já quando no sul os liberaes entravam, cantando a victoria que os atordoava a ponto de quasi duvidarem, d'inesperada que foi,—tomava ella o habito á pressa, tudo arranjado pela familia, tumultuariamente, temendo de a verem sahir.

Mas não. Com a morte do seu namorado tudo morrera n'ella! Sempre silenciosa, aquillo que alli estava!...

Desde esse dia, olhava com um romantico interesse, procurava a antiga belleza d'esse rosto marmoreo, amortalhado em vida, o capuz do habito cortado em bico sobre a testa, os labios cerrados n'um silencio desesperador...

Parece-me ainda estar a vê-la, no côro, na reza da noite, emquanto a bôa prioreza—acompanhada por duas meninas com vélas na mão—ia lendo o seu latim e apagando as luzes uma a uma!... Soror Maria abstrahia-se da vida presente e a sua alma parecia voar para um mundo de recordações e sonhos tragicos...[136]

A um canto, com o lencinho branco das recolhidas, eu seguia o officio funebre da prioreza, nos olhos desolados da triste monja.

Depois de lhe saber a historia, dediquei-lhe um grande affecto, que os meus labios jámais lhe confessaram, atemorisados por um não sei quê d'altivo que havia na sua dôr! São mais eloquentes, mais verdadeiros, os discursos que um delicado pudôr espiritual apenas nos deixa balbuciar com os olhos. Nunca ella comprehendeu esse affecto—porque, almas despedaçadas como a sua, já nada comprehendem nos sentimentos alheios!...

 

O que ha de triste no meio de tudo, é que o quebrar das cadeias tambem acarretou comsigo muitas e pungentes lagrimas. Companheiras insubstituidas, deixando um vazio de morte nos casarões sombrios... As cercas tiradas pelo governo... A miseria, a fome mesmo... Quanta tristeza na alma devastada das ultimas freiras!...

E as festas d'este novo mundo, vistas das janellas gradeadas, seriam bem pouco comprehendidas por ellas!

No largo, em frente do convento onde[137] a minha pobre Soror Maria soffreu, fizeram barulhentas toiradas cheias de pó e gritos selvagens, espectaculo que dá, a certos espiritos delicados, a mais frigida impressão de tristeza! Vendo esse divertimento todo material, podia ella sequer recordar, lá em cima da janella gradeada, os combates de poesia a que a sua mocidade assistira e onde o seu coração ficára tão mortalmente ferido?!...

E assim, se alguma freira de Jesus se levantasse da cova e arrastando o seu habito de franciscana fosse á ultima janella espreitar o largo—que diria ella ao ver os balões em linhas caprichosas, esboçando phantasticos desenhos de luz na escuridão da noite?...

E o povo passando em onda, em chusma, por entre a alegria clara dos vestidos femininos...

Que diriam ellas, que diriam?!...

 

Julho de 96.[138]

Decoração de Pagina

[140]


SOMBRAS

[141]

Decoração de Pagina

SOMBRAS

Para a minha rica mana Rosa!...»

Por acaso, n'uma caixa aromatica de xarão vinda de minha avó, encontrei um dia, entre pequenas coisas d'outro tempo e cartas de familia, uma que decerto foi—ha muitos annos já—lida e relida por uns adoraveis olhos azues que bastante devem ter chorado as tristezas do exilio...

Velha carta amarellecida, quebrada de antigas dobras, n'um antiquissimo papel—como ella evoca, ao meu espirito historias quasi phantasticas para nós, d'essas existencias decorridas ha tantos, tantos annos!...[142]

«Minha querida mana Rosa do meu coração!...»

São adoraveis essas cartas d'antigamente, feitas com uma simpleza e uma ingenuidade quasi infantis—como não somos já capazes de fazer! E elles sentiam tanto como nós sentimos; mais ainda talvez...

Não eram as separações quasi eternas? Quem poderia esperar, ao sahir de Macau, n'uma longuissima viagem em navio á vela, que decorridos annos tornaria a ver essa familia muito querida, deixada por outra mais querida ainda?!

Quanta amargura, quanta tristeza, nos dizem essas pequenas cartas criancilmente simples, a quasi nos fazer sorrir! É que a alma humana não tinha chegado ainda á suprema tortura de se sentir pensar, de se saber despedaçar aos bocadinhos, palavra por palavra, lettra por lettra, lagrima por lagrima!... Não tinha chegado ainda ao espiritual impudor com que nós procuramos traduzir em phrases bem redondas, bem nitidas, bem palpitantes, a amargura que nos cava fundo no coração.


[143]Ao dar com essa singela carta de ha muitos annos, uma grande sympathia, envolta em uma especie de saudade, me veio por as encantadoras figurinhas do tempo passado, sorridentes, frageis, movendo-se musicalmente na graça antiga do minuete passeado...

Vejo-as: com os seus grandes chapeos á directorio, de cintas muito curtas e leques de plumas, levantando graceis os vestidos compridos,—mostrando, n'uma coquetterie quasi infantil, a meia de seda clara arrendada, com fitas a enlaçar, como era a moda.

Têm uma doçura pallida, um encanto murcho d'outros tempos, um perfume apagado, immaterial,—essas historias tão graciosas e tão puras.

É com meiga tristeza que recordâmos todas as que foram lindas e amadas ha muitos annos e hoje desapparecem no pó!... Finas silhouettes que os nossos filhos nem já saberão distinguir no montão de saudades que lhe vamos accumulando!

É um delicado prazer do espirito relembra-las assim, uma por uma, essas empallidecidas figuras de mulheres formosas vestidas com antigos trajos—que eu só posso imaginar bonitas e[144] moças, e tão velhinhas seriam se ainda podessem existir!

E foram bellas e foram novas e foram amadas—essas que hoje não são mais do que sombras!


Mas para escrever uma historia d'essas—feita de ligeirissimos esboços, de recordações muito vagas, quasi de tenuidades de sonho...—quanta concentração de bondade, e delicadeza e amôr é necessario?!...

Ao olhar, ao tocar um pequenino retalho de seda que serviu outr'ora n'um vestido de noivado,—toda a nossa alma hade estremecer n'uma saudade fugitiva, o nosso coração vibrar palpitando, como proprias, as alegrias e as tristezas de todos aquelles que no mundo passaram...

É como se os vissemos diante de nós, sangrando ainda todo o amargo soffrimento da vida...


Minha querida mana Rosa...

Rosa—apesar de se chamar Anna, essa linda irmãsinha, a que o rosado das faces déra esse nome deliciosamente[145] familiar e perfumadamente fresco—n'uma calligraphia larga, antiga, n'um portuguez estrangeirado, ella vae dizendo as saudades e as tristezas que a vinda para Portugal da irmã mais amada lhe deixára na alma.

Nem um grito, nenhuma revolta. Na rectidão do seu espirito de ingleza essa partida era um dever sagrado, que não se devia amargurar por inuteis lagrimas.

E nada litteraria essa ingenua carta d'uma doce e loira inglezinha nascida lá muito longe, na velha terra de Macau. Conselhos para a viagem, d'uma graça toda maternal e muito prática:—«Não he bom tomar caldo de gallinha emquanto está enjoado. Hade fazer muito mal. Eu mando dôce de laranja. Diz que é muito bom comer quando está enjoada. E um pouco de gengibre salgado. Deixa ficar um bocado na bocca, sempre...»—E por fim, quasi n'um soluço: «Adeus minha querida mana, mande noticias suas sempre, para socegar este afflicto coração.»—Saudades, beijos aos sobrinhos,—assignado: Julianna Moor.

Ao ler este nome eu recordei, quasi involuntariamente, toda essa historia,[146] bem certa, que minha avó contou aos filhos, que os filhos nos contaram a nós.

Sim, era ella, foi ella, essa pobre e querida irmã deixada para sempre, que á despedida lhe disse:—«ai minha rica mana que não nos tornâmos a ver!... Mas eu irei despedir-me de ti!...»

E veio. É tão sympathica ao meu espirito essa pequena historia, ouvia-a tanta vez contada por minha mãe—que eu tambem a posso contar como se a ella assistisse.

Primeiro, eu as imagino, a essas candidas figuras d'inglezitas, vestidas de seda clara, muito loiras, com a ingenuidade idealista da sua raça, apaixonadas aos quinze annos por estrangeiros, que as levariam para longe—o pae bem o previa!.. Mas n'essa idade quem presente as lagrimas que as alegrias trazem comsigo?!

E tambem a contemplo, á minha linda avósinha, com os seus deliciosos quinze annos, o cabello muito loiro em bandós encaracolados, uma fita estreita a fazer a cinta debaixo dos braços, os hombros quasi infantis a destacarem muito brancos na seda rosa do vestido imperio...[147]

Muito linda, muito linda! Tal qual me sorri na miniatura encantadora que tenho aqui diante dos meus olhos.

E a outra devia ser parecida—quasi eguaes, como duas pombas sahidas do mesmo ninho. Alegres e felizes ambas por bastantes annos ainda, na terra que as vira nascer, crescer e amar. E os filhos da outra, tão amados por ambas que só na separação distinguiram a verdadeira mãe...

Mas tinha de ser. Uma vinha para Portugal na nova familia que ella criára; tão estremecidamente amada no dia em que morreu como no dia em que casou. A outra lá seguiu com o marido para Goa, na logica dos seus destinos e da sua raça.


Mas uma noite...

Já muitos annos tinham passado; aquella que fôra uma gentil criança era então uma formosa mulher, ao de leve empallidecida, de sorriso a murchar, conhecendo já o amargôr das lagrimas... Ella não esquecêra ainda essa familia querida, deixada tão longe, deixada para sempre!... E a irmã, que amava mais que a todos, quando a[148] veria?... Pedia-lhe o coração que fosse bem tarde—porque era uma certeza para o seu espirito que só á alma, desprendida do corpo para sempre, seria dado esse infinito prazer...

Uma noite ella dormia serena, junto do marido, quando uma voz a chamou de manso... Como não acordasse de todo, julgando-se a sonhar,—tres pancadas dadas muito de leve na cama despertaram-na completamente.

Era ella, a irmã muito querida, n'uma sombra suave, que não assustava ninguem. Sentava-se-lhe á cabeceira, sorria, dizia-lhe n'uma caricia de voz ciciada:—«Cumpro a minha promessa, venho despedir-me!...»—E muito baixo, com uma infinita magua de mãe:—«Ah, custa-me muito deixar a minha Julianna! É a mais nova... E não lh'a poder entregar!...»—Levantando-se, desvaneceu-se silenciosamente n'um raio de luar que vinha pela janella mal fechada.

Ella olhava, olhava ainda, procurando na solidão do quarto a imagem da irmã, que lhe apparecia tal qual era e tão differente do que fôra! Só a voz era a mesma. De resto—quasi a não poderia reconhecer n'essa ligeira sombra[149] vestida á moda do tempo, tão differente d'aquella em que a deixára: a cinta muito comprida, a saia de largo balão, o fechu de rendas que aconchegava com a mão esguia, muito fina, ao pescoço nu!

Era ella, bem certo que era ella!... A côr do vestido ficou-lhe bem nitida na memoria—azul pallido, quasi prateado...

Os soluços suffocavam-na, chorava sem consolação a amada morta que se viera despedir a tantas leguas de distancia!

Foi em vão que o marido a quiz convencer a esperar noticias. Elle escreveu logo confiando em que a resposta á sua carta a tiraria d'aquella tristissima impressão... Para ella é que não havia duvida possivel!

E a fatal noticia—que a morta viera trazer n'uma noite de luar tão branca como a santa amizade que as ligára—só passados seis mezes era confirmada por cartas vindas de Goa.—«E na ultima hora, minha querida tia, a minha mãe fallava em V. Ex.ª...»

É bem dolorosamente triste essa pequenina carta em lettra miudinha, de myope, fragil como o coração da pobre[150] orphã abandonada tão longe dos seus!—Familia talvez em França, de onde era o pae, familia em Macau, familia em Portugal... Em Goa, elles sós! Como é triste essa carta, triste a fazer mal! Pobre pequena carta que eu guardarei eternamente—a relembrar as vagas, esparsas tristezas d'exilada que me andam na alma...

E mais tarde, morta a minha avó rodeada de filhos e netos, feliz na serenidade do seu lar, que ella soube sempre fazer tão querido,—a que longinquos paizes iria a sua alma peregrinar em amorosa despedida a algum dos seus?!...

 

Fevereiro de 96.[151]

Decoração de Pagina

 

 

 

 

Da mesma auctora:

PARA AS CRIANÇAS

(PUBLICAÇÃO MENSAL)

1.ª serie; 2.ª edição 400 rs.

Por assignatura, cada serie 340 »

AMBIÇÕES

Romance (no prélo).[159]

Nota do transcritor:

Para facilitar a navegação no livro, nesta versão electrónica o índice foi movido para o inicio do texto. No original o índice encontra-se no fim do livro.






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electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
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1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
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fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

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written explanation to the person you received the work from.  If you
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opportunities to fix the problem.

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in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
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1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
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with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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