Nota de editor:
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mantida de acordo com o original. No final deste livro
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Rita
Farinha (Set. 2008)
OBRAS COMPLETAS
DE
LUIZ AUGUSTO REBELLO DA SILVA
XII
VOLUMES PUBLICADOS
I |
― |
Ráusso por
homizío |
II |
― |
Odio velho não
cança (1.º) |
III |
― |
Odio velho não
cança (2.º) |
IV |
― |
A Mocidade de D.
João V (1.º) |
V |
― |
A Mocidade de D.
João V (2.º) |
VI |
― |
A Mocidade de D. João V (3.º) |
VII |
― |
A Mocidade de D. João V (4.º) |
VIII |
― |
A Mocidade de D. João V (5.º) |
IX |
― |
Lagrimas e thesouros (1.º) |
X |
― |
Lagrimas e thesouros
(2.º) |
XI |
― |
A Casa dos Fantasmas (1.º) |
XII |
― |
A Casa dos Fantasmas (2.º) |
XVI |
― |
Othello―As redeas do governo |
XVII |
― |
A mocidade de D. João V (drama). |
XVIII |
― |
O amor por conquista (comedia)―O Infante Santo
(fragmento). |
XIX |
― |
Fastos da Egreja (1.º) |
XX |
― |
Fastos da Egreja (2.º) |
XXI |
― |
Fastos da Egreja (3.º) |
XXII |
― |
Fastos da Egreja (4.º) |
obras completas de luiz
augusto rebello da silva
revistas e methodicamente coordenadas
ROMANCES E NOVELLAS―V
A CASA DOS FANTASMAS
EPISODIO DO TEMPO DOS FRANCEZES
2.ª EDIÇÃO
VOLUME II
LISBOA
Empreza da Historia de Portugal
Sociedade editora
LIVRARIA
MODERNA
R. Augusta, 95 |
|
| |
TYPOGRAPHIA
45, R. Ivens, 47 |
1908
A CASA DOS FANTASMAS
I
Quando Deus queria... do norte
chovia
A procissão do Corpo de Deus, em Lisboa,
era talvez a festa religiosa mais solemne da
cidade. Nossos avós, e sobre tudo nossas avós,
preparavam-se para ella mezes antes, e nas
vesperas do grande dia as costureiras, os
alfayates, e os cabelleireiros viam-se doidos
com as impertinencias, recados, e instancias.
É que todas as sumptuosidades da mobilia,
toda a prata mareada das baixellas, todo o
recheio das arcas e armarios tinha de apparecer
e luzir n'aquella bem vinda festividade,
que abria as portas das casas e o seio das familias
a uma verdadeira inundação de visitas,
de conhecidos, e de curiosos. As janellas das
ruas, por onde passava o prestito do bemaventurado
S. Jorge, santo cavalleiro e general
ao serviço de Portugal desde os tempos
heroicos de el-rei D. João I, em odio a Castella
e como pirraça ao senhor Santiago, convertiam-se
em outros tantos camarotes armados
de sanefas e listões de purpura nas vergas
[6]
e ombreiras, forrados de colchas da India e
de cobertas de seda da China.
O copo de agua, que era costume offerecer
aos convidados, despejava as lojas mais sortidas
dos confeiteiros e conserveiros da moda.
O jantar, ao qual se assentavam os hospedes
mais aceitos, só com a vista fartaria a gula
mais faminta. As galas devotas espertavam a
emulação, e as bolsas mais discretas e apertadas
não se negavam por excepção aos
maiores
sacrificios para que vestidos, joias, e toucados
brilhassem ao menos uma vez no anno
com esplendor digno da vaidade e ufania de
seus donos.
Instituida por Urbano IV, em 1264, na primeira
quinta feira depois da festa da Trindade,
afim de solemnizar o culto particular do
Santissimo Sacramento, confirmada e ampliada
por muitos Papas, a procissão do Corpo de
Deus fôra sempre feita em Portugal com
fausto e invenções notaveis nas terras principaes
do reino. O brutesco acompanhamento,
que a seguia na meia edade, e ainda no seculo
XVI, tornava-a ao mesmo tempo um acto religioso
e um espectaculo profano. A imaginação
popular de nada se esquecia para que ella
fosse unica e singular pela extravagancia das
figuras e pela riqueza ostentada pelas
corporações
mechanicas em competencia e rivalidade
umas com as outras. As naus e galés dos
carpinteiros e calafates da Ribeira das naus,
os anjos e gigantes dos merceeiros e boticarios,
a torre e a serpe dos alfayates, o sagitario
dos armeiros, uma nuvem de demonios
de todos os feitios, e mil outras representações
entresachadas de danças e folias, no meio
das musicas mais desvairadas e dos instrumentos
mais oppostos, como gaitas de folles,
tambores, pandeiros, violas, córos de donzellas,
flautas, e doçainas pastoris, tudo isto
[7]
compunha, variava, e confundia o cortejo, o
qual consumia quasi o dia todo nas ruas apinhadas
de povo, e alegradas de alecrins e rosmaninhos.
O senhor D. João V, o Salomão portuguez,
creando a patriarchal em 1717, não omittiu
em sua liberalidade a festa mais pomposa da
côrte, e com espiritos regiamente devotos modificou
o plano e accessorios da famosa procissão.
Este grande acto inspirou a um dos
mais respeitosos admiradores do prodigioso
genio de sua magestade, a um dos eruditos
irmãos Barbosas, um volume em folio de 240
paginas, obra monumental, que attesta ao
mesmo passo a importancia do assumpto e a
profunda philosophia do auctor. N'este livro,
curioso em muitos trechos pelas noticias, que
encerra ácerca da capital nos principios do
seculo XVIII, veem narradas com escrupulosa
miudeza as circumstancias, que mais preocuparam
o augusto reformador e os seus conselheiros
circa sacra. El-rei com
mão firme
supprimiu do solemne acto as figuras, e as
danças, mas empalideceu talvez com o arrojo.
O golpe era temerario. O povo a tudo indifferente,
em materia de recreação ao Divino era
zeloso e irritavel como um tribuno da plebe
dos nossos dias.
As chacotas, os andores, o baile
das espadas,
e a folia dos moleiros, por entre as visagens
dos diabos sarapintados, e os uivos e
bramidos das féras de papellão, serviam-lhe
de opera comica, e foi necessaria grande firmeza
de vontade, e toda a sabedoria de sua
magestade, instruida pela sua larga experiencia
das confrarias e irmandades, para o obrigar
a contentar-se com os arcos, medalhas,
columnas e louros, que ornavam o paço e as
ruas do transito, e com a magra e dolorosa
substituição de um anjo vestido de brocado,
[8]
com suas azas de cambraia tesas de gomma
e chapins altos, unico personagem, que sobreviveu
de todos os vistosos e engraçados
momos, que distraíam d'antes a procissão
com seus esgares e jogralidades.
A ausencia da côrte e da nobreza, a tristeza
impaciente causada pelo jugo estrangeiro, e
o receio, que vozes vagas faziam conceber de
alguma explosão popular, não diminuiam, apesar
d'isso, o alvoroço, nem a concorrencia.
No palacio do governo as apprehensões eram
mais vivas. Lagarde recebia de momento para
momento avisos assustadores, e lia-os sobresaltado
aos collegas. Herman meneava a cabeça
com ar incredulo. Junot sorria-se e encolhia
os hombros. A frivolidade do seu espirito
e os arrebatamentos do seu genio não lhe
offuscavam todavia a penetração natural. Conhecia
e despresava as murmurações do vulgo,
e confiava no seu valor, e no das tropas
que lhe obedeciam. Sabia que as linguas e as
ameaças eram mais intrepidas, do que as
acções. Além d'isto o plano innocente
dos
honrados conspiradores de toga e rabicho tinha
ferido o seu amor proprio, e por nenhum
caso admittia que se julgasse, que elle queria
furtar-se ás ciladas e assaltos theoricos do
Conselho Conservador. «O perigo, exclamou,
depois de larga discussão, vem do mar com os
inglezes; está nas serras e desfiladeiros do
norte com os camponezes armados! O que
rosnam, ou vociferam aqui mercieiros obesos,
frades apopleticos, e desembargadores tropegos,
não vale uma escorva. O galope de um
esquadrão seria de mais para os metter pelo
chão abaixo. Lisboa não é
Paris.»
Lagarde suspirava, o ministro da guerra e
da marinha limpava os vidros dos oculos, e o
conde da Ega affectava ar heroico para não
desmentir o elevado conceito, que suppunha
[9]
merecer ao duque de Abrantes. O conselho
dilatou-se, e terminou já pela noite dentro,
dois dias antes da ceremonia, com uma transacção
digna da prudencia insidiosa do intendente
geral da policia. Não podendo alcançar
que a procissão não saisse, Lagarde obteve ao
menos que Junot a não acompanhasse, pegando
ás varas do pallio, mas que se resignasse a
vel-a passar da varanda do palacio da inquisição
para, dizia o astucioso magistrado, não
estimular a saudade e o ciume dos portuguezes,
os quaes de certo se aggravariam se elle
occupasse o lugar do principe regente e os
ministros francezes o dos fidalgos expatriados!
O general em chefe resistiu, porém cedeu.
Receando que o accusassem de um rasgo de
vaidade nescia, e que a ostentação da sua pessoa
désse armas aos inimigos, não podia negar,
egualmente, que, fóra do cortejo, lhe seria
mais facil accudir para atalhar qualquer
emoção provocada entre as multidões,
que se
acotovellavam, riam, e chasqueavam nas praças,
e travessas da capital.
Dispostas assim as cousas, amanheceu o
appetecido dia. Os regimentos francezes ás
quatro horas da madrugada formaram no Passeio
publico, e a alegria marcial das musicas
annunciou á cidade a grande solemnidade. Os
raios do sol principiavam a beijar as grimpas
dos telhados e as cruzes dos campanarios. As
senhoras, que mal tinham repousado, sentadas
em cadeiras, para não arrepiarem a symetria
laboriosa dos toucados, começavam a enfeitar-se
com as ricas modas escolhidas para
esta occasião. As janellas, armadas como templos,
guarneciam-se de damas e cavalheiros,
mais curiosos ainda de se mostrarem, e de serem
vistos, do que de gozarem o espectaculo,
que servia de pretexto á reunião.
Nas ruas, areadas e cobertas de espadanas e
[10]
flores, enxameiava com zumbidos cada vez
mais fortes a primeira irrupção de abelhas
matutinas,
saída do cortiço popular com os arreboes
da aurora. A véstia de abas e o calção
curto do saloio contrastavam tanto com a jaqueta
de ramagem do campino, como o lenço
e a capa das mulheres da cidade com as roupinhas
a saia vermelha, e a carapuça das matreiras
filhas de Friellas e Alcabideche. A pouco
e pouco os enxames engrossaram, as mangas
de povo cresceram, os zumbidos converteram-se
em borborinho, e por entre as alas de
tropas postadas desde S. Domingos até ao Terreiro
do Paço, entrou a avultar, colleando similhante
a serpe gigantesca e monstruosa, o immenso
concurso, que esperava a procissão, e
cujo sussurro perenne era cortado, ou avivado
a miudo, por vaias brutescas, por estridulos
pregões, e pelas corridas e contendas de algum
Adão menos soffrido, que os gritos e
queixas da sua Eva expunham aos apupos e
sorriadas da plebe.
Os repiques festivos dos sinos nas torres
das parochias e conventos despenhavam sobre
a cidade um verdadeiro alarido de notas metalicas,
imitando com arte mais, ou menos
boçal os cantos e melodias em voga nas serenatas
e nas operas. A esta matinada pouco
harmoniosa, e assás impertinente, rebate estrondoso
do sagrado alvoroço das freguezias
e communidades, respondiam as salvas do
castello, dos navios, e das fortalezas. O jubilo
espiritual da população traduzia-se em pragas,
exclamações, e algazarras, em que não
eram poupados pelo patriotismo escandecido
dos zelosos os soldados de Napoleão, firmes e
silenciosos como estatuas em seus pedestaes.
Rebentaram gritos de alegria, moveu-se maior
tropel de povo, e ondas encontradas, impellindo-se
e remoinhando no adro de S. Domingos
[11]
e no Rocio, deram o signal de que o prestito
transpunha, emfim, os umbraes do templo.
As bandeiras dos officios, na figura de
grandes paineis suspensos de cordões de seda
em compridas varas, tremulavam na testa do
cortejo, representando entre ricas bordaduras
a ouro e preciosas tarjas as imagens dos santos,
que em sua vida haviam exercido o trabalho
manual, de que eram advogados e protectores
no paraizo. Atraz das bandeiras, oscillando
sobre um formoso cavallo branco,
vinha o vulto equestre de S. Jorge, precedido
de trombeteiros montados e de tambores a
pé, entre a furia sonorosa dos clarins e atabales.
Um homem d'armas, robusto comparsa
alugado para queimar dentro de uma pesada
casca de ferro o sangue e a corpulencia, erguia
o guião do cavalleiro santo sobre a lança,
capitaneando,
meio suffocado e tonto de vertigens,
o vistoso apparato dos cavallos da casa
de Bragança ricamente ajaezados, e levados
á mão pelos moços das
cavalhariças reaes. A
imagem de S. Jorge vestia arnez, coxotes e
grevas, e trazia na cabeça o gorro de velludo,
que em tempos mais ditosos adornavam os
diamantes do duque de Cadaval. Um pagem
enfeitado de vistoso cocar de plumas, quasi
tão alto como elle, acabava de figurar a
ficção
das emprezas militares do glorioso general,
que nunca vira os campos de batalha portuguezes,
por que nunca pelejou contra os
inimigos da fé, ou da independencia na Peninsula.
Seguiam-se as irmandades de Lisboa e do
termo, os servos das diversas confrarias, e os
farricoucos, amortalhados em hollandilhas da
cabeça até os pés, todos sequiosos de
alardearem
sua compuncção anonyma. Eram perto de
cem as irmandades e confrarias, que desfilavam
[12]
em passo grave com suas tochas na mão
e suas opas de variadas côres, trocando em
voz baixa de umas para outras censuras e
chascos nada caridosos ácerca do numero,
ou negligencia de seus irmãos em Jesus Christo.
No couce d'estes virtuosos auxiliares do
altar, com os olhos baixos, e ademanes reverentes,
caminhavam as communidades, Franciscanos,
Ordens Terceiras, Trinos descalços,
Agostinhos, Carmelitas, Capuchos, Capuchinhos,
Arrabidos e innumeros outros ramos
da frondosa arvore monastica, cujo tronco brotado
da piedade e munificencia dos soberanos
era alimentado pela devoção, ou pelos remorsos
dos fieis. Transparecia o orgulho beato da
santidade no rosto de muitos d'elles. Os religiosos
de S. Domingos fechavam a rectaguarda
da sacra milicia.
Depois dos monges e mendicantes começava
o clero regular, e apoz elle, debaixo da
cruz patriarchal, todo o clero secular, os padres
da congregação de S. Filippe Nery, os
das Missões, e os parochos, curas, e presbyteros
das freguezias de Lisboa, conegos, e as
dignidades, e a curia ecclesiastica. Rematavam
o longo e estendido sequito os conselhos
e tribunaes da côrte, os fidalgos que residiam
em Portugal, e os cavalleiros das ordens militares.
As varas do pallio pegavam as pessoas
mais nobres e conspicuas por sangue,
empregos, e representação.
Havia tres horas, que a procissão andava
fóra, e ainda nenhum tumulto, ou
perturbação
justificára os presentimentos sinistros da policia.
O povo olhava com enlevo para tudo,
ajoelhava e batia nos peitos, e limitava a
maldições
abafadas a sua aversão aos francezes.
Junot, que assistia da varanda do palacio do
Rocio ao religioso acto, e cujos olhos indagadores
não cessavam de espreitar o menor indicio
[13]
de agitação, vendo tudo sereno e socegado,
e os maus prognosticos desmentidos,
ria-se já sem disfarce dos receios do intendente
Lagarde, e perguntava-lhe em ar de mofa
pelo nome dos malsins assustadiços, que tinham
inventado a conspiração, talvez para os
promover na falta de concorrentes ao logar,
ainda vago, apezar da sua proclamação, de
Camões do reino do Algarve!
De repente o duque de Abrantes suspendeu-se.
O riso gelou-se-lhe nos labios. Herman,
que estava á sua direita, enfiou; e Lagarde,
crescendo sobre os aprumados collarinhos,
dilatou o pescoço fóra da gravata. Um olhar,
em que se retratava ao mesmo tempo o receio
e o triumpho fez comprehender em sua muda
eloquencia ao general em chefe, que se rira
cedo de mais da infallibilidade da policia. O
que succedia, porém, n'este momento para
assim mudarem de subito as scenas e as phisionomias?
Estálara a revolução promettida?
Tinham os conspiradores denunciados deixado
cair a um signal, como no theatro do Salitre
o imperador José II, as becas, as capas,
os habitos, ou as sotainas, e appareciam metamorphoseados
em actores de novas e segundas
vesperas sicilianas? Ninguem podia dizer
ainda. Da varanda de pedra, Junot e o seu cortejo
viam e ouviam o tumulto, sentiam-n'o
avultar, mas ignoravam as causas e os incidentes.
As bandeiras dos officios dobravam já
com todo o socego da rua Augusta para a rua
do Ouro, dando a volta pelo Terreiro do Paço,
e o pallio e o Sacramento saíam da egreja de
S. Domingos, quando uma furiosa vaga de
povo, encapellando-se inopinadamente, investe
com o corpo da procissão na rua Augusta,
envolvendo e afogando em suas ondas loucas
as confrarias e communidades, derruba tudo
[14]
no impeto irresistvel, corre infrene como
inundação despenhada, como furacão
vertiginoso,
e por cima de todos os obstaculos galga
invencivel até ao Rocio, aonde, similhante a
rio caudaloso que se precipita, rasga por entre
milhares de vultos o seu caminho!
No meio da praça esta onda, repellida pela
corrente opposta, golfada das portas de S.
Domingos, vê-se entalada sem poder avançar,
ou recuar, lucta com esforço desesperado, e
por fim, semeando o terror e o espanto por
toda a parte, vae acabar de se desfazer em redemoinhos,
ou em pinhas oscillantes, que se
quebram, e renovam á entrada das ruas e travessas
por onde as multidões se escoam, fugindo
feridas de demencia.
Os clamores, os gritos de angustia, as
interjeições
de pavor cortam os ares, e ensurdecem
os ouvidos. Mulheres e crianças arrastadas no
tropel, meio suffocadas, pallidas e quasi moribundas,
alçam em vão os braços supplicantes,
e desapparecem perdidas depois nos rolos,
que se ennovellam e arremessam a cada
passo.
A tropa, cujas alas vergam e se rompem
com o embate da plebe, é cortada em todos os
sentidos, e debalde tenta reunir-se. Os artilheiros
desordenados cedem e desamparam as
carretas.
Colhida no centro do bulcão popular, a
procissão rota e dispersa em mil fragmentos,
que vozeam e se revolvem, como troços semi-vivos
de um reptil, alastra as ruas de cruzes,
de tochas, e de insignias, calcadas por milhares
de pés. Frades, padres, magistrados, cavalleiros,
irmãos, e penitentes bradam, imploram,
atropellam-se, e ora dobados no ar, ora
estatelados em terra, lividos, moidos, e descompostos
pelejam por se arrancarem a este
pelago tempestuoso, em que abafam, buscando
[15]
por similhante forma refugio contra o perigo.
O prelado, que trazia a custodia, e o pomposo
sequito que rodeava o pallio, vê de repente
a praça tornada um mar procelloso, e
ouve sobre o clamor geral as vozes dos officiaes
francezes mandando carregar as armas
á guarda de granadeiros, e accender os morrões
aos artilheiros da bateria postada junto
do adro. Attonitos e paralyzados um instante,
o medo presta-lhes azas depois. Luctam, repellem-se,
volvem a traz, e rompendo, como
cunha viva, por meio da multidão, que transborda
do templo, vão cair uns sobre os outros
de roldão na sacristia, deixando o pavimento
juncado de thuribulos, de capas de asperges,
de roquetes dilacerados, de chapéus de plumas,
e de mantos das ordens militares.
A cavallaria de Junot une as fileiras. As
largas espadas dos soldados reluzem por cima
das cabeças com lampejos terriveis. O povo
agglomerado, entre a muralha que o atira sobre
os cavallos, e o terror das armas, que o
ameaçam, solta horriveis clamores, peleja por
abrir passagem, e augmenta o ruido, o sossobro,
e a confusão do tumulto immenso.
Não ha pincel, nem tintas que possam desenhar
quadro tão medonho! Os gemidos, os
choros, as quedas, contrastam a cada minuto
com os lances comicos e os episodios risiveis.
O medo inspira os ardis mais burlescos. O desespero
suggere os arbitrios mais violentos.
As ruas e travessas proximas, similhantes
a canaes rotos á furia das aguas, engolem e
despejam incessantemente os bandos variegados
dos fugitivos, entre os quaes a egualdade
do terror acotovella os commendadores
e os togados com o operario, o frade e o farricouco
pelo judeu transido, ou pela collareja
[16]
tão veloz nos passos, como solta de lingua
e prompta de gestos.
Capotes, cabelleiras, chinós, sapatos, abas
de fardas e de casacas, canhões e gollas bordadas,
lenços, cintos, farrapos, de todas as
telas e de todos os matizes em fim, coalham
este campo de batalha, aonde os mortos, felizmente,
isto é os que baqueiam, resuscitam
logo ao beijarem o chão, e se levantam para
disputar celeridade aos mais ligeiros. No
meio dos alaridos e dos estrepitos, do centro
d'este cahos ruidoso de furias, bramidos, e
uivos bestiaes, vozes tremulas e roucas de
susto, em perguntas e replicas instantaneas,
exclamam confusas e lugubres: «O terremoto!
Os inglezes! As ruas minadas!»
II
De um argueiro um cavalleiro
As vozes, o espanto, o terror, e o tumulto
das ruas, todas as apparencias, em fim, inculcavam
a cidade sublevada e as apprehensões
de Lagarde confirmadas.
O denodo e a presença de espirito de Junot
não o atraiçoaram n'este lance. Descendo os
degraus da escadaria á pressa, emquanto o intendente
da policia se emparedava e calafetava
no gabinete secreto, o duque de Abrantes
atravessa intrepido por meio das ondas revoltas
do povo, rompe pelo centro d'ellas até á
egreja, corre á sacristia, e á força
de estimulos
e persuasões consegue arrancar d'aquelle
asylo pouco seguro o prelado e os sacerdotes,
que tremem de medo, e que julgam chegada
a sua ultima hora.
Chamando depois os padres, os fidalgos, e os
cavalleiros das ordens militares e animando-os
com as palavras e o exemplo, diz-lhes:
―De que se receiam? O que temem? Não
estou eu aqui? Não vêem os meus soldados
firmes? Continuemos a procissão.
Recompondo, do modo possivel depois, o
[18]
prestito disperso manda saír o pallio, e acompanha-o
a pé com o seu estado maior.
Patrulhas fortes circulam ao mesmo tempo,
e dispersam os mais pequenos ajuntamentos.
O regimento 86.º marcha com tanta
precipitação,
que leva o pão espetado nas bayonetas
por carecer de vagar para comer o rancho!
Qual fôra, porém, a origem do estrondoso
successo? Nascêra de planos concertados pelos
amigos da independencia, como cuidaram
os francezes, ou rebentára espontaneo da
agitação
e do odio comprimido dos habitantes de
Lisboa? Nem uma, nem outra cousa. Um grão
de areia fez parar a roda. Um sopro desenfreou
o temporal. A verdadeira causa do arruido
colossal do dia 16 de junho de 1808 foi
uma imprudencia policial do honrado sargento
Cabrinha, e um esquecimento de lingua do
seu virtuoso assessor Gaspar Preto, por alcunha
o
Sapo. Estes dois personagens, que
não
cabiam em si de vaidade, desde que os louvores
do intendente geral da policia inflammaram
o seu zelo pelo serviço da sua magestade
o
imperador e rei, succumbiram um
instante
á fraqueza dos grandes homens, e estiveram
a ponto de fazer nadar a capital em
sangue. Eis como se passou o notavel episodio.
Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel
Simões da Aramanha, e o João da Ventosa,
obedientes como bons patriotas ás instancias
do morgado de Penin, capitão de milicias
de Rio Maior, tinham feito a jornada de
companhia, e por um triz não apanharam em
Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que
partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres
em Lisboa alojaram-se em uma casa conhe
Já sabemos que o Antonio da Cruz, o Manuel
Simões da Aramanha, e o João da Ventosa,
obedientes como bons patriotas ás instancias
do morgado de Penin, capitão de milicias
de Rio Maior, tinham feito a jornada de
companhia, e por um triz não apanharam em
Villa Franca o sargento e o seu ajudante, que
partiam para os denunciar a Lagarde. Os tres
em Lisboa alojaram-se em uma casa conhecida
do lavrador da ponte da Asseca, regalaram-se
de bom vinho e de bons boccados, e
esperaram resignados que a causa nacional
[19]
lhes pedisse o auxilio do braço ou do cajado.
Na madrugada do dia da procissão, muito
antes do sol fóra, já o triumvirato ribatejano
palmilhava as ruas com a curiosidade mais
inoffensiva, e apenas se abriu a primeira taverna
uma copiosa libação desjejuára os tres
vastos estomagos, montados em diamante.
Começou a concorrer gente, acabou a parada
no Passeio publico, e desfilaram as tropas.
Davam nove horas, e o fazendeiro da Aramanha,
interpellando o João da Ventosa, perguntou
alto aonde era o almoço, e se teriam
tempo de o engulir antes da procissão? A
resposta foi sumirem-se por uma travessa escusa,
entrarem para uma especie de furna escura,
immunda, e humida, e sentarem-se em
mochos vacillantes á roda de uma mesa, cuja
toalha bem mostrava nunca haver deixado os
lençoes de vinho. Chiavam as appetitosas iscas
de figado, e o cheiro exhalado das enfumadas
frigideiras convidava o olfato dos
freguezes.
Quando os tres se levantaram d'este banquete
plebeo, a procissão andava já no Rocio,
e o Deus Baccho tambem lhes fazia a elles
mil travessuras na vista e no equilibrio. Metteram
hombros ao apertão, foram rompendo
a murro e a calcadellas, mas á esquina da
travessa da Assumpção encontraram resistencia
tal, que se viram obrigados a ceder.
As bandeiras dos officios fluctuavam nos
ares, e uma linha cerrada de bayonetas, pouco
condescendentes, não consentiu que os provincianos
a atravessassem. O lavrador e seus
amigos rosnaram algumas pragas, mas tiveram
de as engulir em sêcco e de ficar.
Antonio da Cruz, guapo e decidido, trajava
bem suas galas domingueiras, e dava-se ares
de moço mui desempenado debaixo das abas
do chapéu novo de Braga. Vendo-o assim alegre
[20]
e pimpão, meio encostado ao cajado, uma
saloia, fresca e viçosa como as rosas do campo,
pediu-lhe licença de passar para deante
afim de ver melhor, e o moleiro officioso fez-lhe
logar immediatamente, acto de cortezia
recompensado por um sorriso, que descobriu
indiscretamente as trinta e duas perolas, que
escondiam uns beiços mais vermelhos, do que
bagos de romã. Ao mesmo tempo o João da
Ventosa e o Manuel Simões, encontrando-se
hombro a hombro com um marchante conhecido,
homiziavam-se com elle a furto no retiro
de uma tasca chamada loja de bebidas,
para onde os iniciados se introduziam por um
corredor estreito, disfarçado no fundo da entrada
da casa, deante da qual se achavam.
Até aqui corrêra tudo admiravelmente, mas
o demonio depressa as arma. O sargento, o
Sapo, e uma quadrilha de beleguins
da policia
seguiam de longe o triumvirato innocente,
desde as portas do Passeio publico. Haviam-n'o
perdido de vista, quando á voz do almoço o
robusto lavrador capitaneou a evolução, que
levára os convivas ao sujo templo, aonde o
Comus enfarruscado das iscas os detivera
duas horas.
Cabrinha recebêra ordem expressa de Lagarde
de se apoderar dos tres amigos, e de os
hospedar na cadeia, mas fôra egualmente admoestado
para obrar com finura e sem ruido.
Era a razão porque não se atrevêra a
empolgal-os
na rua, e no meio do povo, que seus
gritos podiam alvorotar. Quando lhe desappareceram,
como se a terra se tivesse sumido
com elles, scismando um instante, disseminou
logo depois a quadrilha em duas mangas. Uma
partiu para o Rocio e foi postar-se á esquina
do arco do Bandeira. A outra conservou-se
na rua Augusta, vigiando-a. O
Sapo,
trepado
em um frade d,
trepado
em um frade de pedra, servia de vedeta.
[21]
O Antonio da Cruz estava todo embebido
nos colloquios e requebros de seu galanteio
com a saloia, quando sentiu de repente, que
lhe batiam no hombro. Virou-se, e deu de
rosto com um sujeito magro e grelado, de
chapéu arrombado, calções espigados,
casaca
de côr cambiante, e sapatos risonhos, que lhe
disse muito manso ao ouvido, travando-lhe
do braço.
―Está preso! Venha commigo. Não faça
bulha!
Ao mesmo tempo outro escudeiro, baixo,
roliço, olhos encarnados e chorosos, e nariz
expansivo, cravejado de rubis assanhados,
deitava-se-lhe ao outro braço, ao braço do
cajado,
pendurando-se quasi n'elle. N'um rapido
relancear o moleiro descobriu a poucos
passos, cozidos com as hombreiras da porta,
por onde se tinham escoado os seus amigos,
o sargento, o
Sapo, e um terceiro
quadrilheiro.
Esta apparição revelou-lhe que era serio o
caso.
Soltando um assobio forte e prolongado,
signal aos companheiros para se juntarem e
accudirem, o Antonio, sem accusar a intenção
na physionomia, sem levantar voz, ou grito,
por um movimento secco dos hombros saccudiu
de si os dois malsins, e empunhando-os
já no ar pela gola assás madura das casacas
cossadas e transparentes, cuspiu-os das mãos,
colhidos em flagrante, cada qual para sua
direcção.
Ao arremesso momentaneo, o homem
esguio e grelado, por ser mais leve, subiu
mais alto, e veiu caír por elevação
sobre as
costas de um massiço prebendado, com os
olhos escudados de oculos e palla verde, o
qual estava explicando a duas sobrinhas
boqui-abertas a lenda aurea de S. Crispim,
pintado na bandeira dos sapateiros. O agarrador,
grosso e baixo, mais pesado, voou
[22]
rasteiro, deixando metade da gola, as costas,
e uma aba da casaca no punho do moleiro, e
foi bater, como pella despedida, no vulto enorme
de certa dona viuva e namoradeira, notavel
pelo toucado impossivel e alteroso, a qual
occupava os ocios em tiroteio amoroso com
um alferes da brigada da marinha, pessoa
corpulenta, forçosa, e de maus narizes, cuja
carranca um par de bigodes hirsutos e alastrados
tornava ainda mais temerosa.
O prebendado com a pancada afocinhou o
chão, não sem trazer comsigo tambem de
golpe o tambor mór de um dos regimentos,
que por acaso seus braços extendidos empolgaram
na ancia de se amparar. O militar
francez, verdadeiro Alcides, arqueava n'aquelle
instante o corpo com donaire, e dobrado
para traz, firme nas pontas dos pés, aparava
com a palma aberta o couto do bastão
volteado com graça. A dona, impellida pelo
esbirro-tortulho, soltou um grito agudo, desabando
de chofre sobre o peito do seu Adonis.
O volume era colossal, e o alferes desapercebido,
não podendo suster de pé posto o
pezo d'aquella montanha de ternura, que em
cima d'elle o alluia, apalpou a calçada com as
costas, mastigando uma blasphemia por entre
as guias dos bigodes.
O drama complicou-se então. Advertido
pelo signal, o João da Ventosa deixára em
meio o monstruoso caneco de vinho de Torres,
que saboreava, e saltou da tasca vermelho e
inflammado. A primeira figura, com que a fortuna
o obsequiou, foi a figura patibular do sargento
Cabrinha, o qual primeiro se offereceu ás
iras do lavrador. Um murro capaz de fulminar
um touro prostrou o espião sem sentidos
sobre o lagedo. Nem o sacrificador, nem a victima
tiveram tempo de proferir palavra. Ao
mesmo tempo o marchante, que vinha atraz,
[23]
colleando os beiços com a lingua, esbarrando
com o quadrilheiro entufado em defeza do
seu superior, despediu-o nos bicos dos sapatos,
e remetteu-o ao meio da rua, aonde se
espalmou sobre os pés gotosos de um frade
arrabido, mestre e prégador, cujas rezas nasaes
paralyzou o baque repentino.
Finalmente, o Manuel Simões da Aramanha,
que saíra em ultimo logar, como homem
de consciencia, porque não quizera deixar o
copo cheio, encarando com o
Sapo,
que se fazia
pequeno como um verme a ver se escapava,
calado, mas terrivel de gesto, alongou o
braço com a rapidez e a força irresistivel da
mola de aço, que resalta, e aferrando o aborto
pela nuca, com um murro metteu-lhe os dentes
e os queixos pelas guelas, e metade a
rastos, metade por seu pé, seguiu com elle
atordoado e alagado em sangue o rasto dos
companheiros. Os tres cortaram depois intrepidos
pelo meio da procissão alvoroçada, por
entre as alas de tropa baralhadas, e pelo centro
dos magotes de povo em remoinho, e entranhando-se
por travessas e bêccos desertos
esquivaram-se modestamente aos justos applausos
de suas proezas.
Cabrinha tornando a si, e os beleguins moidos
e estirados, soltavam gritos espantosos,
bradando pelo soccorro da justiça. Respondeu-lhes
a bengala magistral do tambor mór,
e a bainha de ferro da espada do alferes, vingando
com raiva incansavel o riso e as vaias
da queda desastrada no dorso dos delinquentes.
O mais agil dos dois, o homem-grelo, fulo
de dor, e cego de medo, para se furtar ao
chuveiro de bastonadas, que não cessava de
lhe afagar as costellas, atirou-se de um pulo,
ao meio do prestito, abalroou um desditoso
cruciferario banhado em suor, e encontrando-o
em cheio, rolou com elle. Amotinou-se o
[24]
vulgo, ferveram juras, ameaças, e punhadas,
e um patriota, que espreitava a occasião, lembrou-se
de açular a desordem, exclamando:
«Fujam! fujam! Ahi vem os inglezes!» Não
foi preciso mais. O espanto e o terror obraram
prodigios. A multidão precipitou-se, e o tumulto
tomou as proporções, que sabemos.
Em quanto nos quarteirões da cidade baixa
se representavam estas scenas, corriam os tres
auctores do motim direitos ao caes hoje chamado
da Areia. Chegados em poucos minutos
viram uma falua do Riba-tejo de verga de
alto, e o arraes, seu conhecido, metteu-os
dentro sem mais perguntas. D'ahi a pouco navegavam
rio acima, e o
Sapo, sempre
hypocrita
e vil, estorcia-se aos pés dos inimigos
triumphantes, chorando e supplicando, com
prantos mulherís! Mas o Manuel Simões
apontava-lhe
para a cicatriz da bala, com que o
ferira na cabeça, o João da Ventosa encolhia
os hombros, e o Antonio da Cruz, grave e
conciso, como um juiz do crime, mandava-o
calar, jurando-lhe que a arvore e a corda estavam
promptas, e não podiam esperar, e que
a sua palavra, uma vez dada, havia de ser
cumprida. O arraes e os marujos, um ao
leme, e dois á proa, assobiavam como se não
vissem, ou não ouvissem nada.
O vento soprou de feição, e ás dez
horas da
noite a falua atracava a Villa Franca.
III
Um conciliabulo politico
no anno de 1808
Voltemos á ponte da Asseca, de que ha
tanto estamos ausentes.
Vamos saber se o palacio arruinado conserva
a sua reputação diabolica, e se o João
da
Ventosa, depois do façanhudo murro, que esboroou
quasi a cabeça ao sargento Cabrinha,
se recolheu são e salvo a seus lares, ou se a
vingança do espião punido o obrigou a tomar
ares mais fortes no exercito nacional do general
Bernardim Freire. Avisinhemo-nos com
certo resguardo. É noite, e ainda com o luar
claro podem tomar-nos por francezes, e pescar-nos
com alguma bala patriotica.
Deram onze horas. Provavelmente o patrão
e os creados dormem a somno solto esfalfados
do trabalho da eira e dos carretos do celleiro.
Não! Ha luz no quarto terreo. Espreitemos!
Lá está o lavrador sentado com o
sabido caneco ao lado, o bojudo cangirão defronte,
e o eterno Manuel Simões a fazer-lhe
a segunda. Estes pelo menos não emigraram
para o Porto, nem mudaram de costumes.
[26]
A opinião de que os tumultos do Corpo de
Deus tinham sido obra de uma conspiração
mallograda salvou das perseguições da policia
os tres camponezes. Uma das pessoas, que
podia denuncial-os, o sargento Cabrinha,
agonizava no hospital accommettido de uma
congestão cerebral, e com a perna esquerda
partida e amputada, tudo fructos amargosos
do funesto dia, que o céu destinára para castigo
de seus crimes. Mesmo que escapasse da
amputação e á febre, o que os
facultativos
duvidavam, todos prognosticavam que acabaria
demente, ou nescio.
Restava o Gaspar Preto, o
Sapo, do
qual
nos despedimos a ultima vez, deixando-o entre
as garras de dois inimigos resentidos e
inexoraveis, o Antonio da Cruz e o fazendeiro
da Aramanha. O que é feito d'elle?
Tres dias depois as mulheres que iam ceifar
ao campo, passando pelo alto do Valle, viram
de longe balouçado pelo vento nos galhos
da figueira do José Lopes, a mais elevada e
formosa arvore dos contornos, um vulto, que
á luz incerta e na meia treva do alvorecer,
tomaram por espantalho pendurado para assustar
os passaros.
Palraram, discorreram, entre si as comadres
e as visinhas ácerca d'aquella novidade, e acabaram
por decidir, como verdadeiras pêgas
curiosas, que o caso merecia exame. Subiram
a encosta. Quando chegavam acima, rompia
ainda pallido o primeiro raio de sol. Soltaram
um grito de susto, e ataram as mãos na
fronte! O espantalho era um homem enforcado!
Quizeram fugir, mas o peccado de nossa mãe
Eva deteve-as. Antes das linguas paroleiras
tocarem a rebate no logar e nos arredores era
indispensavel conhecer o infeliz. As mais velhas
e resolutas armaram-se de valor, e approximaram-se.
[27]
Outra exclamação, em que o espanto
se revelava mais, do que o dó, chamou
em volta d'ellas as raparigas. O padecente, que
em vida fôra assaz feio, apparecia-lhes medonho
n'este patibulo repentino com a cabeça
pendente, a lingua fóra da bôcca, e os olhos
esbugalhados
e saidos das orbitas. Tinha as mãos
amarradas atraz das costas e um rotulo no
peito, que dizia: «Justiça de
Deus! Por Judas!»
As mulheres benzeram-se em silencio, e
olharam umas para as outras. O medo curou-as
por um instante da loquacidade. Apezar
das contorsões, que desfiguravam o rosto da
victima, e que a morte como que immobilizára,
petrificando-as com sua rigidez, aquella cara,
tantas vezes vista, não podia enganar a memoria
das matronas e donzellas. Era o
Sapo!
o
Sapo garrotado!
Satisfeito este ultimo instincto de sua indole,
as mulheres dispersaram-se como um
vôo de gralhas ao tiro do caçador, e esquecendo
a ceifa e o jornal, correram, como loucas
cada uma para sua parte, a fim de espalharem
a noticia. O primeiro, que avistaram, e a quem
a deram, foi ao
Antonio da Cruz,
que acharam
assentado á porta do
moinho,
com o cigarro
acceso na bôcca, e a espingarda ao lado. Escutou-as
sem se alterar, saccudiu o lume com
um piparote, e erguendo-se vagaroso e sereno,
respondeu-lhes:
―Então! São coisas! Deus escreve muitas
vezes direito por linhas tortas! O velhaco não
merecia uma, mas cem forcas.
Fechou depois a porta, metteu a chave no
bolso da vestia, e partiu direito a Santarem
pela Ponte da Asseca sem olhar para traz. A
isto se reduziu da sua parte a oração funebre
do desgraçado malsim!
O povo commentou, como costuma, o successo,
repartiram-se os votos sobre a causa e
[28]
os auctores da execução, porém nem um
só
dos patriarchas da aldeia se lembrou de boquejar
no Antonio da Cruz. Os contrabandistas,
como tinham os hombros largos, carregaram
com todas as culpas, e a versão mais seguida
foi que o desditoso
Sapo
recebêra de
alguns d'elles com capital e juros o premio
de suas espertezas e denuncias.
No emtanto os acontecimentos politicos
adeantavam-se. A revolução do norte
creára
forças, e os francezes, acossados e repellidos
de toda a parte pelas populações iradas,
já
não chamavam seu, senão ao terreno que pisavam.
A derrota dos insurgidos do Alemtejo
por Loison em Evora, o saque e o martyrio
da cidade levada de assalto, longe de acalmarem
os animos, exaltaram-n'os com a narração
exagerada dos horrores perpetrados pelos
francezes. O nome de Loison, já odioso, tornou-se
execravel; e a sêde de vingança accendeu-se
em todos os peitos, ardente e implacavel.
Lisboa principiou a agitar-se. Os moradores
mais abastados, fugindo ao jugo detestado
dos estrangeiros, accolhiam-se ás provincias
sublevadas. A cidade tornou-se um
deserto. Em pleno dia as ruas eram silenciosas,
como se a peste as houvesse despovoado.
A falta de communicações com o norte e o
sul do reino, e com o mar, elevou o custo dos
generos a preços fabulosos, e a escacez do trabalho
assentou a miseria e a fome no albergue
do pobre e do operario. Os proprietarios
não recebiam suas rendas, nem os empregados
seus ordenados. Mais de vinte mil pessoas decentes,
que viviam dos salarios da côrte e dos
lucros do commercio, pediam agora esmola!
Os habitantes ruraes, intimados para entregarem
as espingardas, evadiam-se em grande
numero com ellas, e iam engrossar a insurreição.
Ninguem podia sair as portas de Lisboa
[29]
sem passaporte. As bombas, os foguetes, e os
fogos de artificio, alegria e paixão das festas
e arraiaes, foram prohibidos. Emfim todas as
oppressões e violencias se accumulavam para
apressar as horas de dominio, que o governo
francez ainda havia de contar, quasi reduzido
á capital do reino e suas cercanias.
Leiria, vendo o Porto, Braga, e Coimbra
levantadas, quiz imital-as com
mais zelo, do
que prudencia. Os vaticinios patrioticos do
morgado de Penin, excellente portuguez e
pessimo soldado, não se tinham cumprido,
senão na parte mais facil.
O
resto, o peior da
empreza, encarregou-se o brigadeiro Margaron
de o concluir por ordem de Junot. O ex-coronel
de cavallaria e alcaide mór Rodrigo
Crespo, e o coronel do regimento de milicias
Isidoro Pinto Gomes, com um punhado de
soldados indisciplinados, unidos ao capitão
mór das ordenanças do termo, Manuel Carranca,
sonharam uma restauração temeraria,
decidiram o bispo a cantar um
Te
Deum na
egreja matriz, e passeiaram em triumpho entre
acclamações estrepitosas o estandarte de
Portugal.
Vimos com que leviandade o major Alvaro
e o morgado de Penin discutiam os seus planos
de rebellião, como se os veteranos de Bonaparte
fossem soldados de chumbo, ou de
papelão. As avançadas inimigas, entrando
em Rio Maior, despertaram os dois velhos
crianças de suas illusões. O galope de seus
cavallos, reputados os melhores da Extremadura,
salvou-os de ficarem prisioneiros e trouxe-os
já meio desenganados a Leiria, aonde a
sua presença sobre-excitou as paixões, em
vez de as aplacar. Todos juraram morrer
defendendo os muros derrocados e o
castello da terra natal; anoiteceu porém, e os
heroes, conversando com o travesseiro, sentiram
[30]
esfriar repentinamente os brios. O prelado
recordou-se de que, ministro de um Deus
de paz, devia abominar o sangue, e, cavalgando
a mula episcopal, apartou-se a bom andar
do sitio da tentação. Muitos dos granadeiros
da independencia, que na vespera rachavam
ainda os céus com féros brados, lembrados de
que á noite todos os gatos são pardos,
aproveitaram
o escuro, e eliminaram-se sem ruido,
mais cuidadosos da saude do corpo, do que do
esplendor de suas armas. Ficou o povo, gente
quasi inerme, alvoroçada, e inconstante. A
primeira descarga inimiga varreu, como pó,
essa plebe, e abriu as portas aos francezes.
Como Achilles os lidadores de Leiria sobresaíram
na ligeireza dos pés!
Mas até os triumphos de Junot conspiravam
a sua ruina. Cada derrota dos portuguezes
levantava em favor da independencia milhares
de braços. Quando um povo inteiro se torna
inimigo, o seu nome é legião, e a fabula de
Cadmo realiza-se. Evora e Leiria volveram logo
a si, e Loison e os generaes estrangeiros
recuaram. A ambição de Bonaparte
cansára a
fortuna, e Deus tinha designado a peninsula
para theatro das primeiras licções dadas ao seu
orgulho, e dos primeiros revezes experimentados
pelas suas aguias. Encarando o bello
sol das Hespanhas, a estrella do imperio sentiu
esmorecer o brilho, e começou a declinar.
Os adversarios irreconciliaveis, aos quaes o
novo Cesar imaginou cerrar para sempre
nossas praias, saltaram n'ellas como libertadores,
e romperan essa guerra, alternada de
victorias e revezes, que só havia de findar ás
portas de París. Sir Arthur Wellesley á frente
dos soldados embarcados em Cork, seguidos
de perto pelas tropas de Sir John Moore,
transportadas do Baltico, combinando as operações
com o almirante Sir Charles Cotton, e
[31]
com os generaes, que dirigiam a insurreição
de Portugal, havia de pisar em breve a terra,
aonde o esperavam tantos tropheos, marchando
direito sobre Lisboa, decidido a
arriscar em um só lanço a sorte de toda a
lucta.
O duque de Abrantes era uma alma bem
temperada. Se as prosperidades entorpeciam
a sua indole um pouco frivola, o infortunio,
ou os perigos, encontravam-o sempre intrepido.
As más noticias não o desalentaram. Decidido
a disputar até á ultima escorva a capital
do paiz, que por momentos julgára esquecido
dos seus reis e da sua autonomia, não trepidou
um momento, empregando todos os esforços
para conservar Portugal engastado
como joia inestimavel no diadema do conquistador.
Para que a heroica decisão não desmentisse
tão audaciosas esperanças, era necessario
reunir em Lisboa todas as forças activas.
Kellerman expelliu de Alcacer do Sal os bandos
de guerrilhas, que a infestavam, evacuou
Setubal, e veio coroar com suas tropas as
eminencias de Almada.
Todos os preparativos, ditados com vigor,
correram rapidos. As prevenções compativeis
com o pequeno numero de bayonetas, que lhe
obedeciam, foram adoptadas a tempo. O general
Graindorge defendeu a margem esquerda
do Tejo. O regimento 47.º guarneceu o forte
da Trafaria, a torre do Bogio, e os navios fundeados.
O regimento 66.º occupou Cascaes. A
legião do Meio Dia a torre de S. Julião da
Barra. O regimento 26.º cubriu Belem, o Bom
Successo, e a Ericeira. O 15.º Lisboa e Sacavem.
O marechal Travou foi nomeado governador
das armas da capital; o general Avril
governador do castello de S. Jorge; e o conde
de Novion, á testa da guarda da policia rareada
[32]
pelas deserções, e quasi limitada ao seu
estado maior, auxiliava a conservação da cidade,
reputada por Junot como base essencial
de todos os seus projectos.
No dia 15 de agosto, anniversario do nascimento
de Napoleão, o duque logar-tenente
reuniu ainda nas salas do palacio da sua residencia,
a nobreza, o clero, os magistrados, e
os officiaes superiores, e recebeu-os com um
rosto tão alegre e prazenteiro, como se Catilina
não batesse quasi ás portas de Roma, ou
como se o trovão dos canhões britannicos,
já
bem proximo, não acordasse os echos dos
campos de batalha, aonde se ia jogar esta
partida, que deu o signal a tantas tempestades
na Europa!
Eis o estado dos negocios, e pedimos venia
ao leitor de o ter demorado tanto na Ponte
da Asseca com esboço tão informe de noticias
politicas e militares. Voltando atraz, e penetrando
com elle discretamente no corredor,
meio alluido do andar nobre do palacio
maldicto,
pedimos licença para o guiarmos pelo
som das vozes, que parecem altercar em uma
sala proxima, até o seio mesmo do congresso
dos conspiradores, que alli pleiteiam competencias,
e apuram alvitres afim de coadjuvarem
as armas nacionaes e os progressos dos
alliados.
Era noite, já o dissemos, e noite adeantada.
A lua alta nos ceus espalhava o seu clarão
sobre as aguas dormentes da villa, e prateava
de luz branca, franjando-as, as copas das oliveiras,
trepadas pela encosta fronteira. Tinham
dado onze horas, e havia duas que os
oradores patriotas exgotavam toda a sua eloquencia
sem se entenderem. A casa vasta, arruinada,
com os tectos a cair, e os sobrados a
desfazer-se de podridão, estava mais de metade
mettida na escuridade quasi clara, que
[33]
fazia a sombra das paredes luctando com a
lua e as estrellas. Todas as janellas, que
abriam para as hortas, sem vidraças, nem
portas, deixavam coar livremente o ar, e os
ruidos de fóra, tão sensiveis na
solidão e no
silencio nocturno.
Na parte mais reparada, entre duas portas
quasi penduradas das couceiras carcomidas
pela ferrugem, via-se uma comprida mesa de
pinho allumiada por enorme candieiro de latão
de tres bicos, cuja chamma enfumada a
aragem saccudia e ondeava. Á roda da mesa,
ornada apenas de um tinteiro de pau immenso,
de pennas resequidas, e de papel em branco,
sentados em mochos toscos, viam-se alguns
homens, tão diversos nos trajos e maneiras,
como na physionomia e expressão.
Na cabeceira, com a face recostada no punho,
as palpebras quasi fechadas, e certo ar
de imperio indolente, estava um ancião, que
a farda de panno azul escuro com abotoadura
e guarnições brancas, e dragonas de cachos,
denunciavam como official superior de um
dos corpos de milicias. Era o coronel Isidoro
Pinto Gomes, que a espada do general Margaron
não podéra alcançar em Leiria, e que o
zelo attrahia a todos os conciliabulos patrioticos.
O major Alvaro á direita d'elle, e o morgado
de Penin á esquerda, ambos de uniforme,
e com os capotes, com que se encobriam
apezar da estação, abertos, ou derrubados para
traz, compunham o que hoje diriamos a mesa
da presidencia.
Mais abaixo a farda verde comprida com
vistas brancas e o chapeu armado de outro
personagem accusavam com evidencia egual
o seu cargo de capitão-mór de
ordenanças.
Manuel Carranca, tambem salvo por milagre
do conflicto de Leiria, inflammava-se em um
debate violento com uma pessoa, que o habito
[34]
e o cordão, as bochechas redondas, a triplice
rosca da barba, e o ventre empinado proclamavam
logo como um dos mais apopleticos,
irasciveis, e facciosos filhos de S. Francisco.
Este padre, conhecido e respeitado como orador
sagrado, pertencia ao convento de Santarem,
e chamava-se fr. João Salgado. O segundo
interlocutor, com o qual repartia os thesouros
da dialectica, ainda moço, pallido, melancholico,
e esbelto, sem lhe ceder uma pollegada
de terreno, sorria-se dos clamores freneticos
do reverendo, e parecia atiçal-os mesmo
com prazer maligno, lançando no meio de
suas apostrophes uma interjeição, ou uma
exclamação repentina, que tinham a virtude
de fazer saltar o theologo aos ares como uma
mina carregada. Os outros conjurados ouviam
calados, trocando apenas algum relancear de
olhos, como no circo os espectadores comtemplam
as vicissitudes da lucta entre dois
campeões afamados, contentando-se com o
espectaculo, e abstendo-se de o perturbar
com os seus applausos, ou com a sua reprovação.
―Os laços da prudencia humana não me
prendem! exclamava o padre com o barretinho
de seda arregaçado para a nuca, a calva
purpurea, e o sobrolho franzido... Mais poderoso
e forte do que todos os artificios mundanos
é o Senhor dos exercitos!... Para vencermos
os jacobinos basta a candura da pomba.
―Cuidado com as garras do milhafre!...
interrompeu pela terceira vez o mancebo pallido
com um sorriso ironico.
―Ao milhafre atira-se, sr. Mannel Coutinho,
gritou o bellicoso servo de S. Francisco,
ferindo a mesa com o punho cerrado. Bons
caçadores temos, e se for preciso, Deus pela
sua infinita misericordia fará um milagre em
nosso favor.
[35]
―Nada de milagres! accudiu o capitão-mór
de ordenanças, Manuel Carranca, o qual, rouco
de gritar, aproveitava o incidente para
locupletar com duas valentes inspirações o
pulmão estafado. Nada de milagres! Se v. s.
a
rev.
ma julga, que os francezes fogem com
estolas,
hyssopes, e caldeirinhas de agua benta,
engana-se redondamente. Vá a Leiria, e lá lhe
dirão de que serviu o bello cantoxão do bispo
e dos clerigos!... Safa! Tenho ainda nos
ouvidos os bérros das peças de artilheria, e
os alaridos d'aquelles malditos granadeiros...
Pareciam gatos a marinhar e leões a arremetter...
Esta apostrophe, sem desmaiar a resolução
dos ouvintes, tornou mais grave o rosto de
alguns. Houve até quem applaudisse com
um aceno de cabeça assaz expressivo a rustica
e quasi impia declaração do
capitão-mór.
As momices bellicosas e varias do franciscano
começavam a aborrecel-os. Veremos no
capitulo seguinte a verdade do adagio: Pela
fructa se conhece a arvore!
IV
Reina a confusão no campo de
Agramante
Fr. João era o mais irado, ou antes, era o
unico irado. O seu labio superior, extendido
como tromba cresceu, e a barba de tres andares
descaíu-lhe com o beiço de baixo quasi
até o peito, signal manifesto de seu despreso.
O suor da colera, colera de frade, oleosa e leveda,
inundou-lhe a testa. As pupillas faiscavam.
―Santo Deus! que ouço!... atalhou pondo-se
em pé, hirto e furioso, e alçando os
braços
como se afagasse a peroração do melhor de
seus sermões. É o sr. Manuel Carranca quem
profere taes blasphemias, ou é algum inimigo
de Deus e da patria?!...
―Padre mestre! accudiu não menos irritado
e furibundo o arguente interpellado, já
tambem de pé. Não me tente a paciencia! Eu
digo a verdade e não solto blasphemias. Pão
pão, queijo queijo! Nunca tive trato com
mouros, judeus, ou herejes, nem consinto que
ponham nota na minha religião, entende?...
―Se não quer ser lobo não lhe vista a pelle.
[37]
Sou ministro de Deus, e não adulador de poderosos.
Castigo os que erram! replicou o orador
com um gesto inimitavel de desdem
olympico.
―Castiga? Diz que ha de castigar-me?!...
bradou o capitão-mór livido e convulso de
raiva.
―Digo-lhe que já o castiguei, e que hei de
continuar!... retorquiu o frade não menos
rascivel crescendo dentro dos habitos.
―A mim! Manuel Carranca, morgado e
capitão-mór de ordenanças de Leiria,
pae de
familia, e homem de sessenta annos de edade?!...
insistiu o outro suffocado, roxo, e com
os punhos cerrados.
―Quem o ouvisse não lhe faria doze annos!
Uma criança não fala mais loucamente; concluiu
fr. João encolhendo os hombros, limpando
o suor, e sentando-se de golpe.
―Sabe que mais, sôr padre? gritou quasi
em delirio o aggredido. Tenho pena de o ver
de saias. Senão!... Juro-lhe por alma de Eufrasia,
minha santa companheira, que Deus
tem, que deixava metade da pelle agarrada
aos nós da corda, com que o havia fustigar!...
Só o pugilato podia terminar a contenda,
chegada a estes termos. Fr. João parecia possesso.
Sentava-se, erguia-se, estorcia-se, clamava,
e accusava, defendia-se, ameaçava, enternecia-se,
e elle só fazia mais ruido, do
que cem mendigos implorando voz em grita
a caridade dos fieis. O seu adversario ria-se
com despreso das contorsões do prégador, e
repetia entre gargalhadas nervosas, quando
uma pausa nos accessos do reverendo lh'o
consentia:
―Juro-lhe! Se os frades como as mulheres,
não vestissem saias, o padre mestre saía esta
noite d'aqui em carne viva!
O auditorio escutava calado e neutro as
[38]
imprecações dos contendores, ria-se das
interjeições
e dos trejeitos, e murmurava, porque
se perdia em puerilidades similhantes um
tempo precioso.
A algazarra dos dois subiu, porém, a tal
ponto, que o coronel de milicias, que dormitava
talvez encostado ao punho, como insensivel
ao ruido, que o cercava despertou meio
sobresaltado, abriu metade das palpebras preguiçosas,
e articulou em tom pausado sómente
estas palavras:
―Que vozeria é esta, senhores? Estamos á
porta de algum açougue, ou em uma casa honesta,
deliberando a bem da patria? Peço socego.
Não foi preciso mais. Tudo emmudeceu.
Isidoro Pinto Gomes era um ancião veneravel,
nobre pelo sangue, exemplar pelas virtudes,
e acatado geralmente.
―Vamos! Proseguiu. Não é já cedo, e
é
preciso sem demora concluir! E correu a vista
serena pelos collegas, detendo-a um pouco
severa sobre o frade e o capitão-mór, que,
sentados um defronte do outro, ainda se ameaçavam
com os olhos. O sr. fr. João Salgado
propunha que montassemos a cavallo, e partissemos
d'aqui a levantar Santarem, Villa
Franca, Leiria...
―Todo o reino, sr. coronel. È facil! interrompeu
o padre.
―È fácil de fazer e difficil de sustentar,
redarguiu
Manuel Coutinho. Os francezes ainda
estão em Abrantes e Lisboa...
―É para os lançar fóra que eu queria
que
todos esses povos armados...
―E vossa reverendissima conta acompanhar-nos
e combater ao nosso lado? interrogou
o coronel sempre com a mesma gravidade.
―Certamente! exclamou o prégador menos
[39]
enthusiasmado já. Com as minhas
orações,
com as armas espirituaes...
Uma risada estrondosa de escarneo, desatada
com insolencia pelo capitão-mór, estrangulou-lhe
entre os dentes o resto do discurso.
―Sr. Manuel Carranca, observou Isidoro
Pinto, risadas não são razões. Queira
reportar-se.
Estamos em acto serio, e que póde custar
a cabeça a todos nós... Continuemos!
As armas espirituaes de grande auxilio nos
poderão ser, porém infelizmente não
bastam.
Junot e os seus soldados pelejam com valentia,
e não se dispersam com exorcismos. Sr.
Manuel Coutinho, o seu voto? Vem de Lisboa,
é militar, e tem prudencia. O que entende?
―Que novos levantamentos nos atrazam
em vez de nos adeantar. Os francezes são soldados,
e bons soldados, força é confessal-o, e
só por outros soldados podem ser vencidos.
O povo tem desejos e vontade, mas falta-lhes
disciplina...
―
Deus super omnia! exclamou o
incorregivel
fr. João. Não lhes queria estar na pelle
se de Leiria até ás abas da capital toda a
gente se levantasse contra elles. Só os nossos
campinos e guardadores, que formoso esquadrão!
De mais Lisboa está á primeira voz.
Sei-o com certeza. O Conselho Conservador
na primeira occasião atira pelos ares os inimigos
de Deus e de el-rei...
―Vossa reverendissima está enganado! respondeu
o mancebo inalteravel, em quanto o
frade rubro e arquejante esponjava com o
lenço de algodão o suor da eloquencia, e sorvia
uma apoz outra tres pitadas triumphantes
de esturro.
―Estou enganado?! bradou. ―Estou enganado?! bradou. Queira dizer
em que?
[40]
―Em tudo. Primeiro o povo não se levanta
assim de repente e todo. Depois os campinos
e guardadores não aturam uma carga de cavallaria
ou o fogo da artilharia, a qual alcança
longe, e mette medo. Por ultimo a cidade de
Lisboa não se move!...
―Ora essa! Muito mal nos iria então!...
―Porque? Não marcham os inglezes de
Montemór, ao pé de Coimbra? Confie mais
n'elles, que sabem fazer a guerra. O general
Bernardim Freire com as milicias e voluntarios
tambem avança. O que queria de Lisboa?
Uma revolução de paizanos? As baterias do
castello e as bayonetas de Junot depressa a
venceriam. Ninguem deseja mais a capital liberta,
do que eu, como portuguez, como militar,
e... Os outros motivos são só meus.
Mas conheço a necessidade e resigno-me. A
nossa causa ha de triumphar nos campos de
batalha, e não nas ruas, e com tumultos. As
victimas já não têem sido poucas.
―Qual é então a sua opinião, sr.
Manuel
Coutinho? observou o coronel, calando com
um volver de olhos imperioso a loquacidade
do prégador, que abria a bôcca para replicar.
O que devemos fazer?
―A minha opinião é que montemos a cavallo,
recrutemos o maior numero possivel
de homens valentes, e que sem ruido nos vamos
unir ao exercito de operações. O nosso
posto é lá.
―Muito bem! Sou do mesmo voto. O que
dizem os senhores?
―Que estamos promptos, disse o capitão-mór
de ordenanças. Ardo em impaciencia de
tirar uma desforra mestra da grande sova de
Leiria...
―E nós todos de tirarmos desforra da invasão!
atalhou Isidoro Pinto com dignidade.
[41]
Partiremos esta madrugada, e se Deus quizer
seremos mais felizes d'esta vez.
―Que gloria, senhores, para nós e para
nossos descendentes! exclamou o morgado de
Penin, cujo enthusiasmo facil de inflammar
se exaltava n'estas occasiões. A patria libertada,
Portugal triumphante!...
―O que não rirá sua alteza real o principe
regente, quando souber como nós por cá
tractámos
os francezes! Para mim o melhor dia
da minha vida ha de ser o ditoso momento
em que possa beijar os augustos pés do meu
rei... Oh, se elle voltar, e ha de voltar, apezar
de indigno filho de S. Francisco, irei com
o povo puchar aos varaes da sua carruagem!
E espraiando o zelo monarchico n'esta jaculatoria
servil, o frade corria os olhos, de
que já saltavam as lagrimas de uma alegria
antecipada, pela assembléa soffrivelmente fria,
ou quasi hostil á demonstração.
―Sr. fr. João, disse o coronel de milicias,
levantando-se, e alçando a cabeça com ar
magestoso,
se o principe D. João voltar, e Deus
o traga depressa, deixe ás mulas de Alter,
cujo é, o peso do seu coche. Essas mãos sagradas
são para os officios divinos, e não para
as tarefas dos cocheiros...
―Mas! replicou o frade interdicto e atalhado
com a licção. Não estamos todos aqui
ajuramentados para verter até á ultima gota
de sangue pelo principe e pela familia real?...
Se não fosse isto e a santa religião tanto fazia
Bonaparte como qualquer outro.
―Eu lhe digo! redarguiu Isidoro Pinto.
Sou portuguez e sou catholico. Como portuguez
quero morrer livre aonde nasci; como
catholico detesto os que adoram o meu Deus
só com os labios, roubando e profanando os
templos, prendendo e espoliando em Roma o
vigario de Christo. Depois de Deus e da patria―mas
[42]
só depois―é que vem para mim a
restauração do throno de nossos reis...
―Depois?! É singular! murmurou fr. João
contrariado e aggressivo.
―Pois não devia achar singular, redarguiu
o coronel serenamente. E senão diga-me: Para
que são os reis?...
―Essa é boa! Para que são?!... Deus
instituiu-os...
―Como pastores, guardas, e defensores dos
povos. E o que defendeu, ou guardou o principe
regente? A sua pessoa, as suas alfaias, a
sua segurança. A nós mandou-nos abrir as
fronteiras, e entregou-nos manietados por uma
ordem sua aos inimigos, de que fugia.
―Nunca tal ouvi! clamou o prégador attonito.
O que queria o sr. coronel que sua alteza
fizesse em tão grande aperto?
―O que fez D. João I e D. João IV. Que
ficasse! Era a sua obrigação. Os reis
não estão
acima de todos para se esconderem dos perigos
atraz dos ultimos vassallos, ou para esperarem
que elles combatam e vençam na sua
ausencia.
―Que importa isso? Não estamos nós?
―Importa muito! É verdade que estamos,
mas elle falta; e em quanto sua alteza, que
Deus guarde, saboreia a duas mil leguas
d'aqui os ananazes e bananas da sua xacara
de S. Christovam, choramos nós a liberdade
perdida mettidos no captiveiro, em que nos
deixou...
―Mas sua alteza não se esqueceu de nós. O
seu manifesto declarando a guerra á França!...
―Ah sim! Bem sei! Declarou-lhes a guerra!
Quem a sustenta? Nós e nossos filhos com
o sangue vertido no campo e nos patibulos,
com as casas saqueadas e reduzidas a cinzas,
com os bens e a saude arruinados. A côrte
[43]
festeja de longe o nosso valor. A Gazeta do
Rio chama-nos heroes; porém!... Uns comem
os figos, e aos outros arrebenta-se-lhes
a bôcca. Acha isto justo, nobre, e bem feito?
Se acha, faz mal, se concorda, calo-me. O
principe e os titulares hão de voltar, quando
lhes abrirmos as portas; em quanto houver
perigo, não! Se os cavalheiros de provincia,
se o clero, se o povo imitassem tanta ingratidão―tamanha
vergonha―deixe-me chamar
as cousas pelo seu nome, Portugal seria de
Napoleão, de Junot, do principe da Paz, da
Hespanha, de todos, emfim, menos de quem o
desamparou para cuidar de si. Louvado Deus,
se o rei fugiu, e desertou do throno, nós
lembrámo-nos
da nossa historia, dos nossos brios,
e do nosso juramento. Esqueceremos apenas...
que estamos combatendo sós! Quando
o senhor D. João e os fidalgos se recolherem,
nós, pobres e mutilados, mas honrados, iremos
dar-lhe os parabens, e tornaremos logo para
casa a ver se ainda salvamos do naufragio o
pão de nossos filhos... Peço desculpa d'estas
palavras, meus senhores! ajuntou, cortejando
os conspiradores, que o tinham ouvido silenciosos,
porém sympathicos. Sou velho, e os
velhos têem o defeito ás vezes de falarem
muito. Prometto emendar-me, porque a occasião
é de acções, e não de
palavras. Amanhã
de madrugada partimos. Boas noites! São
horas de descanço.
Fr. João mettia dó. A sua filaucia oratoria,
punida pelas sinceras e sisudas reflexões do
coronel, tinha-se convertido em humildade,
em mais do que humildade, em consternação.
A verdade e a justiça das queixas, que ouvia,
eram tão evidentes, que não lhe consentiam
replica. Arrependido de as ter provocado,
apertou com expressivo ardor a mão do velho
cavalheiro, e com os olhos baixos e modos
[44]
contrictos encaminhou-se ao aposento, em
que o aguardava a cadeira, em que havia de
repousar. Os seus amigos não tinham melhor
leito.
Os outros cavalheiros iam separar-se egualmente,
quando os assustou o tropear de muitos
cavallos caminhando a trote largo. Manuel
Coutinho por uma fresta das tabuas, que tapavam
uma das janellas rasgadas sobre a estrada,
espreitou com precaução, e ao clarão
do luar viu reluzir os cascos, e peitos de armas
dos dragões francezes. Ao mesmo tempo
uma voz forte dava a ordem de alto, e por um
instante tudo caiu em silencio. Os conspiradores
olharam uns para os outros e instinctivamente
levaram a mão ao punho da espada.
O mancebo continuava entretanto o seu exame
sem se sobresaltar.
―É uma escolta de seis homens, e acompanha
dois officiaes! disse elle retirando-se. Somos
doze, e os nossos creados que dormem na
granja muitos mais e decididos. Apaguemos
já a luz, vamos para o outro lado do palacio, e
demos tempo ao lavrador de nos avisar. Naturalmente
os francezes pedem hospedagem, e
passam aqui a noite...
―Se assim for! E a nossa jornada?! atalhou
o capitão-mór de ordenanças.
―A nossa jornada está primeiro do que elles!
accudiu sorrindo-se Manuel Coutinho.
Simplesmente o que póde acontecer é
apresentarmo-nos
com alguns prisioneiros ao exercito.
―Excellente! Excellente! gritou a voz de
trovão do morgado de Penin. Vamos a elles.
Que nenhum escape!
―Mais baixo, senhor morgado, mais devagar!
Não acorde o leão que dorme. Os soldados
é facil apanhal-os aonde ficam. Os officiaes
ainda mais. O João decerto os mette nos
[45]
quartos, que sabemos, e pela porta de espelho...
Entretanto por causa das suspeitas, e
porque esta casa ainda póde ser-nos util, sou
de voto, que os assustemos e afugentemos com
uma representação de fantasmas... e que
á
saída lhes demos a voz de presos.
―Lá está o João da Ventosa com elles
à fala!
observou o major, que espreitava á janella:
Apeiam-se! A ceia que os espera ha de custar-lhes
a digerir.
―Deram-nos tão mau almoço em Leiria, atalhou
rindo o coronel, que lhes devemos esta
ceia. Vamos ensaiar os nossos papeis.
D'ahi a um momento estava deserta a vasta
sala. Os conspiradores tinham desapparecido
por uma porta falsa, aberta na parede com
tal arte, que ninguem seria capaz de a descobrir.
V
Francezes á meia noite
Em quanto Manuel Coutinho e seus amigos
traçavam á pressa o plano, que
acabámos
de escutar, os dois officiaes francezes batiam,
chamando o lavrador com a auctoridade de
quem mandava.
João da Ventosa e Manuel Simões conservavam-se
ainda na mesma posição, mas os canecos
tinham ido tantas vezes á fonte do cangirão,
e o summo da cepa fôra tão seductor,
que, apezar de suas dimensões respeitaveis, o
alentado vaso estava quasi no fundo. A lingua
começava a pegar-se ao céu da bôcca dos
dois bebedores, e os olhos a piscarem-se. Ambos
cabeceavam a compasso com aquelle sorriso
beatifico e petrificado, proprio da embriaguez
mansa, quando as pancadas rijas dos
militares os despertaram em sobresalto.
Saltaram de um pulo para o meio da casa.
O baralho sebento e coçado do uso quotidiano,
com que haviam jogado a bisca voou
das mãos ao fazendeiro espavorido, e as cartas
espalharam-se ao acaso pelo chão. As
proezas contra os agentes de policia de Lisboa,
[47]
e a execução summaria de Gaspar Preto,
(o
Sapo), eram dois espinhos, que
não lhes
deixavam a consciencia tranquilla. A todas
as horas tremiam de ver a justiça á porta,
sem animo todavia para fugir, o que acontece
varias vezes.
―O que será? balbuciava o robusto camponez
da Aramanha. A modo que sinto patas
de cavallos lá fóra. Arrastam espadas. Com
mil cobras! Estaremos caídos na esparrella,
sôr compadre?
―Valha-o um milheiro... de lacraus, homem!
retorquiu o companheiro de copo, affectando
serenidade, porém mais morto, do que
vivo tambem. Sempre se lembra de cousas!...
Não é nada, aposto! Não ha de ser
nada...
―Deus queira! Mas olhe: não gosto nada
de francezes á meia noite!...
―Nem eu com a breca! Caluda! Batem como
quem se despede. Os excommungados, se
não abro, pregam-me com a porta dentro!
Vamos! Alma até Almeida!... O que fôr
soará. Você ouve? Fique-se ahi para esse
canto, estire-se, durma, ou finja que dorme, e
nem tugir, nem mugir. Deixe-me cá a mim
com elles! Muito finos hão de ser se metterem
os pés pelas algibeiras ao João!... Ahi vae!
Ahi vae! Isto aqui não é nenhuma estalagem!...
E rosnando, e gritando, o lavrador accudia
o mais devagar, que lhe era possivel, contando
os passos, tropegos das libações e do
susto.
A porta desaferrolhou-se por fim, as trancas
rangeram e cairam, e o pobre João da Ventosa
esteve quasi perdendo os sentidos, quando
viu deante de si os dois officiaes francezes
apeiados, e a escolta ainda a cavallo. Um tremor
invencivel apoderou-se-lhe dos membros,
e um suor frio, acompanhado de arrepios
[48]
suspeitos pela espinha dorsal, acabou de o
paralyzar. Em um instante passaram-lhe pela
mente todas as conjecturas lugubres, que o
medo podia forjar. Sentiu os ossos dos dedos
estalados com os anginhos e os braços cortados
com as cordas. Viu-se na enxovia comido
de miseria, nas garras do escrivão e do carcereiro,
dois abutres insaciaveis. Ouviu e respondeu
aos interrogatorios; e, convencido do
seu delicto, escutou a sentença de morte, entrou
para o oratorio, e com os cabellos hirtos
e a lividez do terror encarou o espectro pavoroso
da forca...
Olhava, e não via, movia os beiços, e
não
falava, procurava arrastar os pés, e elles parecia
que tomavam raiz no chão! Foi um minuto
de delirio e anciedade, mas um minuto
de tal agonia, que a outro qualquer toda a
cabeça se poria de certo branca. Entretanto
era animoso, e recobrou-se. O sangue quasi
gelado aqueceu, os espiritos acovardados
restauraram-se.
―Assim como
assim, disse
comsigo, melhor
é acabar aqui de uma bala, ou de uma
cutilada, do que nas mãos do carrasco. Vivo
não me levam elles de casa, e muito inteiros
não hão de ficar tambem. Veremos.
Tomada esta prompta resolução, socegou
mais, levantando os olhos para os recem-chegados.
Os officiaes tinham-se arredado um
pouco, e falavam a meia voz com o sargento.
Quando voltaram, um d'elles, cujo ar aberto
e espirituoso, rosto juvenil, e vista maliciosa
não promettiam na apparencia nenhum executor
de ordens severas, tocou-lhe então no
braço, e na aravia arrevesada, com que os estrangeiros
arremedam e estropiam de ordinario
o idioma portuguez, exclamou:
―Ah! Ah! O sr. lavrador é que é o dono
da casa dos fantasmas? Venho fazer-lhe uma
[49]
visita de proposito, e pedir-lhe que me arranje
um quarto, aonde possa falar á vontade
com os seus inquilinos, as almas do outro
mundo. Mal sabe as curiosas cousas, que desejo
perguntar-lhes...
―A quem? bradou o João ainda vexado de
receios. É escusado. Não sei nada.
Póde prender-me,
matar-me...
―Prendel-o! Matal-o!... Quem lhe metteu
essas loucuras na cabeça?... Sou capitão, e
chamo-me Armand d'Aubry. Ouvi falar d'este
palacio e dos fantasmas, que dão bailes e concertos
á meia noite, e jurei convidar-me com
este meu amigo para assistir a um d'elles...
Diga-me senhor, tem bastante valimento na
casa para me alcançar dos seus espectros o favor
de se não incommodarem por amor de
mim, e de me tractarem como pessoa da familia?...
O lavrador não sabia se estava sonhando,
se estava acordado, ou se aquelle homem era
doido. Não o entendia, e fitando n'elle os olhos
espantados contemplava-o boqui-aberto e
quasi nescio de estupefacção.
―A proposito! proseguiu o militar. Andámos
um bom par d'estas suas leguas portuguezas,
que são eternas e cançativas, e estamos
caindo de fome e de somno. Póde dar-nos
sem demora um pedaço de pão, um gole de
vinho, e uma cama? Aonde poderei alojar os
meus soldados?...
―V. s.
a está em sua casa! redarguiu
por fim
o lavrador, respirando mais desafogado. Queira
entrar. Eu chamo já a velha e os creados,
que estão dormindo. É um instante em quanto
se lhes fazem as camas e se arranja alguma
cousa para ceiarem. Sem ceremonia entrem
camaradas! Tragam os cavallos á redea e venham
commigo. Graças a Deus temos aonde
aquartelar um regimento... Safa! accrescentou
[50]
limpando depois o suor da testa com as
costas da mão. A gente não ganha para sustos!
Sempre cuidei!... Ah! E os outros lá de
cima? E os creados d'elles que estão na granja
da encosta? Com a breca! Se dão com a
lingua nos dentes vae tudo por ares e ventos.
Valha-me Deus!... Se eu nunca hei de acabar
de ser tôlo! Já minha avó me dizia:
João,
para que te mettes tu a dobar meadas alheias?!
Não ha remedio. É preciso fazer das fraquezas
forças.
E juntando o exemplo ao preceito, a sua
voz taurina fez saltar em um momento, e pôr
de pé os moços e a governante, accender o
lume, e preparar tudo para que a hospitalidade
promettida aos dragões francezes correspondesse
á fartura e largueza, de que se
prezava.
―Sabeis que este palacio negro e a caír
faria a fortuna de um auctor de novellas tragicas?
observou em francez o companheiro de
Armand, o tenente Lassagne. Se os espectros
o vexam, como se diz, devêmos confessar que
escolheram scena propria para seus terrores.
―Espero antes de nos separarmos, atalhou
d'Aubry na mesma lingua, que d'esta vez as
almas do outro mundo é que hão de ter medo
e fugir. Sei de uma excellente receita para
isso.
―Ah! Ah! E o nosso sargento, curtido em
trinta campanhas, o que diz do demonio e
seus saquazes?
―Roberto?!... Ri-se e encrespa os bigodes.
Tanto lhe faz combater os austriacos e
os prussianos, como os mamelucos, ou os subditos
de sua magestade infernal Satanaz I.
É capaz de disparar á queima-roupa sobre
Asmodeu em pessoa.
―Ha de ser curioso! O meu receio unico é
que os phantasmas se recolham aos bastidores
[51]
e addiem a representação. N'esse caso os logrados
seriamos nós....
―De certo!... Mas tenho motivos para
crer que a noite de hoje entra no programma
diabolico. A demora em abrir a porta, a
perturbação
d'este lavrador que me parece um
contra-regra soffrivel de visões e espectros,
certo ar de mysterio e de desconfiança, tudo
me faz suppor, que apenas deitarmos a cabeça
no travesseiro... teremos logo de a levantar
para nos entendermos com as almas do
outro mundo. Aposto que lá em cima os ensaiadores
andam já a tombos com o averno,
ou com o purgatorio?!
―Talvez! Então este casarão é o
quartel
general?...
―De todos os conspiradores, desertores, e
foragidos, que nos fazem a honra de detestar
o nome francez como estrangeiro, como jacobino,
e como herege! Podeis estar seguro!
Se dessemos busca ás salas e corredores
arruinados do andar nobre, punhamos a mão,
juro-vos, sobre o ninho ainda quente d'esses
escandecidos patriotas, que se tornam invisiveis,
sempre que podem, para nos darem detraz
dos muros e vallados os bons dias e as
boas noites com as balas das espingardas. Meu
tio, o intendente Lagarde, não hesitava, e a
esta hora já tinha uma nuvem de beleguins e
soldados a cercar tudo, e a farejar e aforoar
os cantos e desvãos... Eu... creio mais nas
minhas pistolas e na minha espada, do que
nos laços e ardis da policia, e ha tres noites
que sonho a fio com delicias na probabilidade
de um duello, ou de um combate com uma
legião de fantasmas...
Entrou n'este instante o João da Ventosa,
e os creados, multiplicando-se, pozeram a
mesa, interrompendo o dialogo dos dois officiaes.
A ceia não tardou, e o lavrador, por
[52]
calculo, ou por generosidade, viu-se claramente,
que desejava estimular por todos os modos
a sêde dos hospedes, convidando-os a
libações
repetidas, que a natural sobriedade de Lassagne,
e a prudencia de Armand tiveram o
cuidado de conter dentro de limites rasoaveis.
Apezar dos louvores encarecidos, com que o
rustico Amphitryão encarecia os productos
da colheita ribatejana, e a despeito da qualidade
fina e capitosa do licor, os dois militares
honraram o Baccho portuguez com summa
circumspecção. O amigo de Manuel
Simões,
pouco satisfeito, ao que parecia, e forçado
nos ultimos entrincheiramentos, ergueu-se
para ir pessoalmente escolher na adega duas
garrafas, uma de Madeira, e outra do Porto,
capazes, affiançava elle, de vencer o jejum de
um cenobita, a immobilidade de um morto, e
a frieza de um velho.
―Sentido! murmurou d'Aubry quasi ao
ouvido do tenente. Os espectros, segundo
noto, são eruditos. Leram Virgilio, Horacio,
e Vegecio. Este aldeão medita uma nova
edição
do cavallo de Troia em formato reduzido.
O que elle vae buscar não é vinho, é
somno
para nos ter á sua disposição...
―Nos meus dias de taful e de rapaz talvez
se arrependesse, porque me atreveria a beber
o mar! disse Lassagne sorrindo, e retorcendo
entre os dedos as guias do bigode louro.
―Ah! Leão! Meu querido Leão! Muito verdadeiro
é o adagio que diz: viaja para aprenderes.
Quem havia de suppor, que, sem sermos
Samsão, vinhamos encontrar em umas
ruinas da Ponte da Asseca esta parodia dos
artificios biblicos de Dalilla?
―Oh! accudiu o tenente rindo. Dalilla de
vestea, calções, e varapau?!
―Porque não? O habito não faz o monge.
Álerta! Ahi vem o nosso homem, e suspeito
[53]
que a adega, como a famosa caverna de não
sei que santo, ha de ter uma bôcca aberta
para o inferno. Deus me perdoe, se o calumnio,
porém creio firmemente, que elle foi saber
a senha dos fantasmas para o espectaculo
d'esta noite.
As duas garrafas continham na realidade o
licor precioso das colheitas rivaes das vinhas
do Douro e dos cachos insulanos, e tinham
sido escolhidas por um entendedor emerito.
Os officiaes festejaram-as com o alvoroço, que
mereciam suas qualidades e seus annos, simulando
mesmo certa turbulencia, que a um
observador mais habil, do que o João da
Ventosa, pareceria mais do que suspeita, se
attentasse para a expressão maliciosa dos
olhos de Aubry, e para o sorriso ironico engatilhado
nos labios de Lassagne. Tudo tem
comtudo um termo, e davam tres quartos
para a meia noite, quando os dois francezes,
entre bocejos, e dando mostras de excessivo
peso na cabeça, pediram treguas, e manifestaram
o desejo de descançar das fadigas da jornada
e dos effeitos narcoticos da campanha
bacchica. O lavrador accendeu dois castiçaes
de casquinha, e mais vacillante, do que elles,
porque não se poupára durante o combate
para os estimular, guiou-os pela escada interior
aos dois quartos, aonde, como sabemos,
já tinha aquartellado Leonor e seu pae
na famosa noite, immortalizada pelas proezas
do sargento Cabrinha e de seus milicianos.
―Viva Deus! exclamou Aubry, rindo, depois
de corresponder ás boas noites e offerecimentos
encarecidos do patrão, de fechar logo
a porta a duas voltas de chave, e de ouvir o
ruido dos passos do rendeiro a descer a escada.
Viva Deus! Estamos nas covas de Salamanca,
e aposto que separados apenas por uma parede
[54]
da sala regia aonde os fantasmas dão as suas
audiencias. Lassagne! Ha mezes passaveis por
ser a primeira pistola e a mais fina espada do
regimento. Não deixeis ficar mal a destreza
n'estas ruinas, porque vos affirmo, que, vivos
ou mortos, os que entrarem n'este quarto,
pela janella, pelo sobrado, pelo tecto, ou pelos
muros, não saem d'aqui sem dizer d'onde vem,
e para onde vão.
―Virão elles? replicou o outro official, encolhendo
os hombros com o usal sorriso. Receio
que algum diabrete os avise...
Não receieis.
Não faltam. Diz-m'o o coração.
A fortuna tem sido madrasta commigo, e deve-me
tanto, que de certo não me nega o
gosto de ver e apalpar um espectro, e de lhe
perguntar noticias dos... inglezes, do general
Bernardim Freire, ou de algum guerrilha
emboscado perto d'aqui! Se vos parecer deixaremos
para depois o itinerario do purgatorio
e os fogachos do inferno....
―Impio! respondeu o seu interlocutor em
tom jovial. E não quereis que nos chame esta
gente jacobinos e herejes?! Em que acreditaes?
―Em Deus, que nos ouve; em Jesus, que
nos remiu; na immortalidade, que ha de
unir-nos em espirito aos que amámos e chorâmos
n'este desterro chamado vida! retorquiu
o mancebo de repente serio e quasi melancholico.
Mas!... São horas de apreciarmos
os colchões das camas, e de dormirmos um
instante com os olhos abertos. Lassagne tendes
o somno pesado?...
―Leve como um açor! Um nada me desperta.
―Bello! Eu tambem. Por esse lado não ha
que temer. Agora as pistolas. Optimo! As
escorvas estão seccas e ardem bem. Tende
sempre as armas á mão. Boas noites! Deus
[55]
permitta que os fantasmas se não arrependam.
Estou ancioso de os conhecer.
E o estouvado, rindo e espreguiçando-se,
apertou a mão do amigo, pousou as pistolas
á cabeceira sobre um velador, e deitando-se
vestido em cima do leito, cerrou os olhos.
Lassagne imitou-o. D'ahi a um momento resonavam
ambos.
Teria passado uma hora, e jazia tudo em
profundo socego, quando Aubry, que na realidade
tinha o somno esperto de uma ave,
accordou ao ruido lento dos gonzos enferrujados
da porta falsa, que abria sobre o seu
quarto, disfarçada com o velho espelho porta
pela qual vimos verificada a evasão de Paulo
de Azevedo mezes antes. O mancebo tinha
conservado a véla accesa, e ao primeiro som
esfregando os olhos, e reassumindo os espiritos
perturbados, sentou-se na cama, correndo
a vista por todo o aposento afim de perceber
d'onde partia o assalto.
Um instante bastou para formar exacta
idéa d'elle. A porta resistia de velhice, mas,
gemendo, cedia sempre, e o espelho recuava.
O sobrinho de Lagarde saltou de manso á
casa, engatilhou as pistolas, e com ellas nas
mãos, e a espada núa debaixo do braço,
pé
ante pé, encaminhou-se á entrada do quarto,
em que repousava Lassagne.
Achou-o erguido tambem, e armado. Com
o dedo sobre os labios recommendou-lhe silencio.
Os dois apenas trocaram um gesto. Não
era preciso mais. Estavam entendidos.
Aubry encobriu-se com o cortinado do
leito; Lassagne atraz do vão da porta, e ambos
aguardaram que os espectros acabassem
de vencer os obstaculos. Queriam desenganar-se
finalmente por seus olhos da verdadeira
significação das mysteriosas
apparições,
que vinham visital-os. Não esperaram muito!
VI
Uma visão pouco sobrenatural
O espelho continuava a desviar-se, girando
de vagar, descobrindo a porta secreta. De repente
dois vultos embuçados apontaram á
entrada, e com passos subtís adeantaram-se
cautelosos. Atraz d'elles, como sentinella no
seu posto, ficou uma terceira figura com meio
corpo na escuridão e meio corpo frouxamente
allumiado pelo escasso clarão da lanterna,
que trazia, a qual aclarava os tres personagens
enroupados de mais para a estação e
assás
pesados e volumosos para passarem por espiritos.
―Dormem! Estão apanhados! disse o primeiro
em voz submissa.
―A luz?! respondeu o segundo. Aonde está
o outro francez?...
―Ahi! Segure-o sem bulha. Este fica por
minha conta!
―Bem!
Deram algumas passadas surdas, abriu o
primeiro as cortinas da cama de Aubry, correu
o segundo com a vista o leito deserto de
Lassagne.
[57]
Recuaram. Os officiaes, não só não
dormiam,
como tinham desapparecido!
―Fugiram! exclamou o vulto mais alto, levantando
a voz.
―Manuel Coutinho! Sr. Manuel Coutinho!
gritou o mais baixo. Fomos sentidos. Os jacobinos
pozeram-se ao fresco!
―Por onde? Não póde ser! Procurem bem!
accudiu o amante de Leonor, que era quem
guardava a porta falsa.
―È verdade! Os nossos vélam! Fóra
tudo
está quieto!...
―De certo, sr. morgado! atalhou o capitão-mór.
A esta hora os dragões estão apanhados
como coelhos na rede. Mas aonde se sumiram
então os homens?!...
N'este momento ouviu-se um silvo forte e
prolongado da banda da estrada, e dispararam-se
dois, ou tres tiros quasi debaixo das
janellas.
―Que é isto? bradou Manuel Coutinho.
Estaremos vendidos?
―Não, meus senhores, não estão!
accudiu
Aubry, soltando-se de repente das cortinas,
que o escondiam, e cortejando com extrema
urbanidade os conspiradores.
Ao mesmo tempo Lassagne apparecia aos
umbraes da entrada do quarto grave e silencioso.
As armas, que os officiaes traziam nas
mãos, provavam, que vinham apercebidos e
dispostos para um encontro.
Houve um momento de pausa, durante o
qual os cinco personagens reunidos por modo
tão singular se mediram e encararam sem
proferir palavra.
―Conversemos, senhores! disse por fim o
sobrinho de Lagarde. Não imaginam a impaciencia,
que tinha em os encontrar aqui.
Andei doze leguas a cavallo, sem resfolegar,
[58]
e que leguas, santo Deus! para ter o gosto de
conversarmos cinco minutos!...
―Talvez se arrependa! bradou o morgado,
carregando o sobrolho, e fazendo o gesto de
buscar no cinto as pistolas.
―Nada de imprudencias, por quem é!...
atalhou Aubry, de repente serio, e apontando
as suas, acção que Lassagne imitou serenamente.
Não comecemos a narração pelo epilogo,
erro crasso de rhetorica, segundo affirmava
o
padre Laly, sabio professor do
meu collegio.
Tambem trazemos com que responder, e
menos mal. Deixemos, porém, as
explicações
de polvora e bala para o fim se não nos entendermos.
É melhor!...
―Pois bem, seja! redarguiu Manuel Coutinho.
Caímos em uma emboscada, e...
―E não sabe se o feitiço se virou contra o
feiticeiro? interrompeu, rindo, o official. Parece-me
que sim. Queiram sentar-se, meus
senhores...
―Estamos bem! O que temos a dizer em
duas palavras se acaba!... exclamou o
capitão-mór,
que as maneiras polidas, mas zombeteiras
d'Aubry irritavam excessivamente.
―Quem sabe?! tornou o mancebo, fitando-o
com ironia, e torcendo entre os dedos e com
graça as guias do bigode. A mobilia não
é
opulenta, mas as cadeiras chegam. De mais
soldados com pouco se contentam. Queiram
sentar-se. Muito bem! proseguiu depois de os
ver sentados. Posso saber o motivo a que devo
a felicidade d'esta visita? O meu nome é
Armand d'Aubry, capitão do 1.º de
dragões
da guarda...
―Ah! exclamou Manuel Coutinho com
certo sobresalto, Armand d'Aubry?!...
―Exactamente. O meu companheiro chama-se
o sr. Leão Lassagne, tenente do mesmo
[59]
corpo, conhecido dos austriacos, prussianos e
hespanhoes pela firmeza dos golpes e certeza
do tiro...
Aqui o morgado e o capitão-mór enfadados
da prolixidade dos cumprimentos olharam
um para o outro encolhendo os hombros.
Manuel Coutinho, frio e reportado, ouvia,
sem desafinar a expressão intrepida do rosto,
este prologo cerimonioso de Aubry, não se
dignando mesmo patentear o menor indicio
de impaciencia.
O official francez percebia maravilhosamente
tudo o que passava pela mente dos interlocutores,
porém, simulando ingenuidade maliciosa,
divertia-se em ter suspensa aquella
anciosa curiosidade.
―Ser-me-ha licito, agora, que dei conta de
mim e do meu amigo, perguntar o nome dos
cavalheiros, que nos honram com a sua presença?...
―De certo! redarguiu Manuel Coutinho,
inclinando-se levemente. Se nos cobrimos com
as trevas da noite é porque somos opprimidos,
e ainda não soou a hora de combatermos
á luz do dia. Este senhor é o morgado de Penin,
administrador de uma das casas mais
nobres e ricas da provincia. Aquelle é o senhor
capitão-mór de ordenanças de Leiria,
Manuel Carranca, pessoa distincta e estimada
pelo nome e qualidades... Eu chamo-me
Manuel Coutinho, appellido não de todo
obscuro, e fui desligado do regimento, aonde
servia como capitão... Bem vê, sr. d'Aubry,
que está em excellente companhia, e que,
apezar da hora, não entrou em nenhuma caverna
de salteadores...
―Oh! Pelo amor de Deus! Quem se lembrou
nunca de tal?!... Seria importuno se
insistisse em perguntar ainda a razão, porque
tres cavalheiros tão amaveis nos fizeram o
[60]
favor de perturbar o nosso somno, roubando
aos espectros d'este palacio o segredo das visões
theatraes?
―Nada mais justo! retorquiu o amante de
Leonor. Precisavamos da casa para nós, e não
queriamos ser vistos, nem seguidos...
―E então, como o sr. Aubry muito bem
disse, occorreu-nos roubar aos espectros o
segredo d'esta porta. Vinhamos...
―Prender os dois officiaes que julgavam
adormecidos, na boa fé da hospitalidade portugueza?!...
―Hospitalidade forçada! É verdade, vinhamos,
deplorando que a guerra nos coagisse
a incommodar duas pessoas, que tanto
careciam de repouso. Felizmente d'esse remorso
estamos absolvidos. Não interrompemos
o somno de viajantes cansados; encontrámos
a vigilancia de militares affeitos a todos
os rebates dos campos...
―Mil vezes obrigado por tanta benevolencia!
replicou Aubry, pagando ironia com
ironia n'este duello cortez, que espantava
o morgado e o capitão-mór, mais propensos
aos argumentos de ferro e pau, do que aos tiros
dos epigrammas.
―E agora? interrogou Aubry, cuja alegria
se apagou, convertida subitamente a expressão
risonha em aspecto quasi severo.
―Agora?! redarguiu Manuel Coutinho,
levantando-se com os seus amigos, e cortejando-o
em ar resoluto. Agora, como não podemos
espaçar mais a partida, e decidimos
vencer todos os obstaculos, offerecemos ao
sr. d'Aubry e ao sr. Lassagne as nossas desculpas
pelo incommado, que lhes
causámos,
pedimos-lhes que não nos disputem a passagem,
e como seria mais do que imprudencia
deixar na rectaguarda inimigos tão valentes á
testa de uma força, vemo-nos constrangidos
[61]
a rogar-lhes, que nos entreguem as suas espadas...
―Ah! atalhou o official com um sorriso
amargo. Não pede pouco. Pelo que vejo chegámos...
―Áquellas explicações mais vivas,
accudiu
o mancebo, de que nos falou no principio
da nossa conversação... Creia que sinceramente
o sinto...
―Oh! Não se afflija, por quem é! Estamos
mais longe d'isso, do que cuida. Pois, na realidade
suppoz, que dois officiaes armados e
apercebidos haviam de ceder deante de tres
homens?...
―Somos dez e quasí todos militares. Não
ha deshonra. Veja!
De feito os outros conspiradores attrahidos
pela demora acabavam de apparecer á porta
secreta, e, entrando, rodearam em um instante
os dois francezes, socegados e pacificos,
como se tudo fosse pura ficção theatral.
―Agora nós!... Ouça! observou d'Aubry.
Lassagne não são os passos do sargento Roberto?
Abri a porta!
D'ahi a um momento assomava á entrada
o vulto colossal e herculeo do novo protogonista,
o qual parou aprumado e hirto, com a
mão na palla da barretina, e o rosto invadido
quasi todo por bigodes e suissas enormes,
aguardando de pé, respeitosamente, que o
interrogassem. Os conspiradores eram todos
olhos e ouvidos.
―Quantos prezos Roberto? perguntou o
official.
―Doze! Meu capitão!
―Armados?
―Até aos dentes.
―O meio esquadrão?
―Parte cérca o palacio, parte está na ponte
e á bôcca da estrada do Cartaxo.
[62]
―Houve resistencia?
―Dois tiros, mas não feriram ninguem.
―Aonde está o lavrador d'esta casa?
―Fugiu pelas vinhas com outro paizano.
―Que ordens déstes aos dragões?
―As vossas. Fogo sobre quem tentasse fugir
pelas janellas, ou pelas portas. Quartel a
quem se rendesse.
―Bem! Desembainhae a espada. Vigilancia!
Prompto á primeira voz! Meus senhores
ouviram? accrescentou, virando-se para os
cavalheiros portuguezes, e cruzando os braços.
―Tudo! respondeu o coronel de milicias
Isidoro Pinto Gomes, adeantando-se, e fitando
no mancebo os olhos placidos e firmes.
―E o que fazem?
―O mesmo que o senhor official de certo
contava fazer... Passâmos! retorquiu o coronel
sem elevar a voz, e tão manso de gesto e
de physionomia, como se estivesse tractando
de cousas indifferentes.
―Por entre as balas e as espadas dos meus
dragões?!...
―Tanto vale aqui, como mais adeante! replicou
intrepidamente Manuel Coutinho. Principiâmos
vinte e quatro horas mais cedo.
―Muito bem! Mas de que serve verterem
tantas pessoas illustres o sangue debalde? A
honra fica salva, e o sacrificio...
―É inutil, ia dizer? Perdôe-me a
interrupção,
sr. d'Aubry! A honra do soldado talvez
ficasse salva perante o numero, porém a de
portuguezes, que juraram pelejar pela patria,
de certo não! Viemos aqui para morrer por
ella!... Se tivessemos por nós a força usavamos
d'ella sem escrupulo... Faça o mesmo.
A fortuna traiu-nos aos primeiros passos. Que
importa? Estas armas empunhadas para sermos
livres não hão de ser-nos arrancadas
senão
com a vida...
[63]
―É a sua ultima resolução?
―É!
―E a de todos nós! ajuntou o coronel, apertando
a mão do mancebo, animado assim como
o morgado, o capitão-mór, e os outros portuguezes
pela eminencia do perigo.
―Muito a meu pezar sou obrigado a oppôr-me.
Lassagne! Roberto! Firmes! nem um passo,
senhores! exclamou. Queiram atirar primeiro!
Damos-lhe o partido que nossos avós
deram aos inglezes em Fontenoy!...
―Talvez houvesse meio de evitar!... murmurou
ao ouvido do coronel a voz tremula
de fr. João, cujo rosto apopletico convertêra
de repente em pallidez suspeita as assanhadas
côres.
―Nenhuma! respondeu sêcco e irado Isidoro
Pinto. Se tem medo retire-se, entregue-se,
faça o que quizer, mas deixe-nos! Vamos!
Abram-nos caminho, senhores francezes! Esta
é a nossa terra, e havemos de passar, ou acabar
n'ella!
E o velho official, venerando pelos cabellos
brancos e pelo ardor nobre, que lhe restituia
os brios juvenis, com a espada na direita, e
uma pistola engatilhada na esquerda, seguido
dos companheiros, avançou contra Lassagne
e Roberto, em quanto Manuel Coutinho por
calculo, ou por acaso, se achava deante do capitão
d'Aubry. O conflicto parecia inevitavel.
―Logar! bradou o mancebo portuguez com
um gesto de ameaça.
As pupillas do official francez despediram
dois relampagos; o seu rosto tomou terrivel
aspecto. Foi só por um instante. Inclinando
a espada, e reprimindo a colera, disse ao adversario
pasmado da mudança:
―Agradeça a Deus! A lembrança de um
[64]
anjo suspende-me o braço! Alto! accrescentou
em voz sonora e cheia. Um momento!
Senhor Manuel Coutinho sabe quem eu
sou?
―É o sobrinho do intendente Lagarde, do
homem que...
―Não diga mais. Sei que está offendido e
que tem razão de o estar. Mas!... A roupa
suja lava-se em familia. É o noivo de D. Leonor?
Aquelle a quem ella prometteu e
jurou
amar?...
―Sou, porque?...
―Porque fui sem o saber causa innocente
de suas lagrimas. Sinto encontral-o aqui. Podia,
se fosse vil, prevalecer-me do acaso. Quero
que me fique conhecendo. Quero mostrar-lhe
que sou digno do honrado nome de meu
pae. Se o deixar saír para onde vai?
―Para o exercito de sir Arthur Wellesley.
É lá o meu posto. Replicou Manuel sem hesitar.
―Adivinhava a resposta. Pode ir! Lá nos
encontraremos como inimigos, mas como inimigos
que se estimam.
―E os meus companheiros? perguntou o
mancebo pasmado de
tanta
generosidade.
―Os seus companheiros?! Bem! É justo!
Que se recolham com os espectros, e que esperem.
Deixem-me partir a mim e aos meus
dragões. Lassagne e Roberto são discretos e
fieis. Se for preciso dirão que não viram nada.
―A sua mão sr. d'Aubry!? insistiu Manuel
Coutinho commovido e com os olhos humidos.
Quero apertal-a cheio de admiração pela
grande alma, que se nos acaba de revelar. Em
todas as occasiões, succeda o que succeder,
lembre-se de que tem um amigo, um irmão
em mim!
―Menos no campo de batalha? accudiu o
official sorrindo.
[65]
―Lá mesmo! Se as armas lhe forem contrarias....
―Obrigado, mas!... E quem sabe?! A fortuna
póde cansar-se um dia. Uma pergunta.
Paulo de Azevedo!?...
―Continua preso e vae ser julgado.
―Meu tio enganou-me então? É o mesmo!
Ainda estamos a tempo. Hei de cumprir a minha
promessa. Sr. Manuel Coutinho, se não
tornarmos a ver-nos, diga aos seus amigos,
diga a D. Leonor... que fiz o meu dever.
Agora adeus. Os seus amigos que se retirem
já! A scena dos espectros, ajuntou volvendo
ao gracejo proprio da indole jovial, ia-se tornando
tragica. D'aqui a duas horas parto.
Siga depois a sua sorte, e não
se
ria muito de
mim, quando se recordar dos lances d'esta
noite. A proposito, aquelle reverendo que
vejo tremulo entre os seus, é o capellão da
guerrilha? Parece-me pouco bellicoso!
E voltando-se para Lassagne e para o sargento,
immoveis assim como os conspiradores,
em quanto durára a conversação com
Manuel Coutinho, d'Aubry disse-lhes com o
seu ar de riso habitual:
―Meus amigos, estes senhores, que por muito
enroupados no verão tomavamos por homens
friorentos, são na realidade espectros, e
vão desapparecer. Já lhes agradeci o favor da
visita, e depois da explicação, que acabo de
ter, creio que se convenceram de que era perigoso
passeiar fóra de horas por este mundo.
Lassagne! Logo vos explicarei o enigma. Roberto!
Mandai soltar os presos da granja.
Partimos dentro de duas horas. Senhores fantasmas!
A sua visita causou-me o maior prazer,
mas espero que seja a ultima. Muito boas
noites! Queiram dar recados da minha parte
ás almas de meus parentes, que encontrarem
no purgatorio!
[66]
Um momento depois Lassagne e d'Aubry
achavam-se outra vez inteiramente sós nos
quartos, o tenente abraçava o seu companheiro
d'armas pelo nobre rasgo, que ennobrecia
mais o seu caracter, do que uma victoria. A
magnanimidade é a mais alta e a mais sublime
das virtudes do guerreiro.
VII
Primeiros clarões de um grande dia
A Gran-Bretanha entrou por fim em campo.
Sir Arthur Wellesley, cujo nome, conhecido
então apenas pelas campanhas da India,
em breve os revezes de Napoleão haviam
de tornar famoso, avançava das praias do Figueira, pela
estrada de Coimbra e de
Pombal, com treze mil infantes, duzentos cavallos,
e dezoito canhões. As forças nacionaes,
organizadas, ás ordens do general Bernardim
Freire, não excediam de seis mil bayonetas e
de seiscentos homens de cavallaria. Nos dias
10 e 11 de agosto os alliados occuparam Leiria,
e no dia 12 descansavam em Pombal as
tropas portuguezas.
Mas se os nossos e os inglezes eram ainda
poucos, atraz d'elles vinha a nação inteira.
Os casaes e aldeias despovoavam-se; os povos
accudiam á beira das estradas, saudando
com suas acclamações os libertadores. A capital,
ainda sujeita ao jugo, tremia de raiva entre
as armas que lhe tolhiam resgatar-se. As
proclamações de Wellesley e de Cotton, apezar
da severidade vigilante de Lagarde, zombavam
[68]
da policia, penetravam em todas as
casas, e lidas com avidez e enthusiasmo inflammavam
o patriotismo. Os olhos voltavam-se
sofregos para o Tejo, esperando de um momento
para outro ver ondear o estandarte
britannico nos topes dos mastros. Os ouvidos
credulos transformavam a cada instante o
mais leve rumor longiquo nas sonhadas descargas,
que haviam de annunciar a catastrophe
á usurpação. A victoria do marechal
Bessiéres em Rio Sêcco pouco avivára o
prestigio
offuscado pela derrota e capitulação de
Dupont em Andujar. O rei Joseph, como já
dissémos, apenas entrado com a sua côrte em
Madrid logo se vira constrangido a retroceder
até as margens do Ebro.
A posição de Junot não podia ser mais
precaria
nem arriscada. Os seus vinte mil soldados,
repartidos pelos presidios e hospitaes,
entre o paiz irado, que não lhes concedia quartel,
e que os assaltava de todas as partes, entre
os treze mil inglezes, que seguidos de perto
por outros vinte mil de sir John Moore e
de sir Hew Dalrymple, entre o bloqueio das
esquadras britannicas, no mar, e a aggressão
violenta, em terra, do odio armado de tres
milhões de habitantes, achavam-se limitados
á capital e ao territorio, que pizavam, sentindo
fugir tudo debaixo dos pés, sem esperança
de auxilio, sem caminho aberto á retirada.
O duque de Abrantes mostrou-se
digno dos
feitos heroicos, que ennobreceram a sua carreira.
Adoptando as providencias, que o aperto
aconselhava, e tomando Lisboa por base de
operações, cuidou logo em concentrar o numero
necessario para arremessar as tropas
britannicas vencidas e escarmentadas outra
vez ás aguas.
[69]
Não lhe sobrava outro recurso!
Havia de atravessar duzentas leguas por
terrenos montanhosos, com alguns rios caudaes
a vadear, e populações insurgidas a disputar-lhe
o passo, renovando a temeridade de
Xenophonte e dos dez mil, ou tinha de sair
ao encontro dos inimigos, feril-os de espanto
pela rapidez dos golpes, e anniquilal-os, tornando-lhes
funestas pela grandeza do desastre,
as praias que buscavam! Junot optou pelo ultimo
arbitrio. A execução, porém,
não correspondeu
ao que exigiam imperiosamente as
circumstancias.
Mandou sair o general Laborde para observar
os inglezes, e atalhar o progresso de sua
marcha. Chamou de Almeida Loison, e determinou-lhe
o itinerario. Finalmente reuniu e
organizou na capital todas as reservas, disposto
a confiar a sorte da invasão ao atrevido
lance de uma batalha. Accusam-n'o entretanto
de não ter sabido attrahir a victoria.
Laborde partiu a 6 de agosto á frente do
regimento 70.º, de dois esquadrões do 27.º
de
caçadores a cavallo, e de cinco peças.
Thomiéres,
que defendia Obidos e Peniche com o 2.º
ligeiro, e um batalhão do 4.º de suissos, havia
de unir-se-lhe em Alcobaça no dia 11. N'esse
mesmo dia chegava Loison a Thomar, contando-se
que a 14 ou a 15, o mais tardar, se acharia
em Alcoentre para coadjuvar seus companheiros
de armas.
[1]
[70]
Laborde era official distincto pela intrepidez
e aptidão. Avisado de que as tropas britannicas
e portuguezas estavam em Leiria, a
poucas horas sómente das suas, retirou a 14
sobre a Roliça, legua e meia atraz, reforçando
a guarnição de Peniche com o 4.º
batalhão
de suissos, postando em um moinho sobre a
esquerda do Arnoia outro batalhão, e estendendo
até ao Cadaval e Bombarral tres companhias
do 62.º para darem as mãos a Loison,
o qual não devia demorar-se.
Sabendo os francezes do outro lado da Serra
de Minde, conservou-se o exercito do general
Bernardim Freire em Leiria apezar das
instancias de sir Arthur. Este, não recebendo
dos nossos mais do que o auxilio de mil e
quatrocentas bayonetas e duzentos e sessenta
cavallos, proseguiu apezar d'isso o movimento
offensivo. No dia 14 aquartelou-se em
Alcobaça, e no dia 15 dormiu nas Caldas. Um
combate entre as suas avançadas e o batalhão
francez postado junto do moinho sobre o Arnoia,
advertiu-o da proximidade dos soldados
de Napoleão. Fiel ao seu caracter circumspecto,
deteve-se até ao dia 16, talvez indeciso
por falta de informações.
Da Roliça ás Caldas medem-se tres leguas
de distancia. As duas povoações campeiam
nos extremos, norte e sul da vasta bacia, rasgada
ao oeste, no meio da qual se ergue a
villa de Obidos, notavel pelo aqueducto e
pelo castello mourisco. A estrada de Lisboa
cortava uma planicie arenosa até á
Roliça,
aonde um ramal de collinas se destaca da serra
principal, correndo limitado por um ribeiro
até á Columbeira. Ao primeiro volver de
olhos dir-se-hia que findavam alli todas as
communicações. A estrada perdida em um
desfiladeiro sinuoso e estreito quasi que desapparecia
da vista, não principiando a alargar-se,
[71]
senão passada a Azambujeira dos
Carros. Laborde occupava a planicie desde a
Roliça até poucos metros adeante da Columbeira.
No dia 17 de agosto, ás nove horas da manhã,
um tiroteio nos postos da direita deu o
primeiro rebate da visinhança dos inglezes.
Eram elles, de feito, marchando em numero
de perto de onze mil, com a disciplina e serenidade
que lhes grangeou os louros depois
festejados em toda a guerra da Peninsula.
As tropas de Laborde, na maior parte recrutas
quasi imberbes, nunca tinham entrado
em fogo. A vista marcial d'aquelle exercito,
que avançava silencioso, detendo-se a espaços
para reformar as filas rotas pelos obstaculos
do terreno, e continuando depois, firme e ordenado,
como se houvesse de figurar em uma
parada, por força havia de commover e sobresaltar
soldados bisonhos, que apenas contavam
dois mil e quinhentos homens, comprehendidas
as tres companhias destacadas sobre
a direita.
Laborde não esmoreceu. A planicie, attendida
a desegualdade de forças, não podia defender-se.
Cedendo á necessidade mandou então
guarnecer as fortes posições situadas nas
costas da Columbeira pelo regimento 70.º,
em quanto á testa do 2.º ligeiro da artilheria,
e da cavallaria, cobria a entrada do desfiladeiro,
transportando assim o theatro da lucta
com mais favoraveis condições.
Executou-se a evolução com celeridade e
na melhor ordem. As novas posições dos francezes,
quasi inaccessiveis, offereciam aos inimigos
cinco barrancos em rampas asperas,
afogadas em murtas, sargaços e arbustos alpestres.
Wellesley, da sua parte, tambem não
hesitou, mandando atacal-a formando em cinco
columnas. O combate feriu-se e durou
[72]
quatro horas. O valor das duas nações, travadas
afinal corpo a corpo no continente, ostentou
n'elle todos os brios. Trepando as encostas
debaixo de uma chuva de balas deixando
em cada passo vestigios do sangue vertido, e
semeando de cadaveres o terreno conquistado,
os inglezes chegaram a coroar uma vez de
seus estandartes a crista das alturas; mas a
furia guerreira dos legionarios de Bonaparte,
avivada pelo exemplo dos chefes, depressa
transformou para os soldados de Wellington
o meio triumpho em desastroso revez. Precipitados
nas pontas das bayonetas pelo impeto
irresistivel dos contrarios, atropellados uns
sobre os outros na descida, ou antes na queda,
os alliados despenharam-se, como torrente
que maior torrente impelle, até á planicie,
espiando os jubilos momentaneos e o ardor
temerario.
Assim mesmo o leopardo britannico, recuando,
levou nas garras provas palpaveis das
perdas irreparaveis dos adversarios. Mais de
quinhentos francezes, prostrados no campo,
mortos ou feridos, attestavam qual fôra de
parte a parte a braveza do encontro. Ao mesmo
tempo a vista penetrante de Laborde, seguindo
a marcha das duas columnas, que sir
Arthur tinha enviado desde o começo da
acção
para lhe tornear as posições divisou a do
major-general Fergusson já proxima da
Azambujeira. Fôra loucura insistir mais. A
retirada principiou.
Á testa dos melhores soldados, Laborde
repellia os inglezes, detendo-os por meio de
descargas á queima roupa, soltando sobre elles
o galope fogoso dos caçadores a cavallo,
ou arrancando nos gumes dos ferros de seus
recrutas, tornados veteranos, os atiradores
britannicos, a cada instante dispersos, e quasi
acossados até debaixo do fogo das grandes
[73]
massas, que os protegiam. O terrivel estampido
e os pelouros dos dezoito canhões de Wellesley
não calaram senão tarde o fogo das
cinco peças do general francez. Nem um instante
o passo firme e seguro de seus batalhões
se accelerou deante do perigo a cada instante
mais terrivel. Fazendo alto para reunir as tres
companhias destacadas sobre a direita só entrou
em Runa depois de as unir a si, conservando
até ao fim a mais inabalavel firmeza.
Foi um nobre e formoso espectaculo este
prologo curto, mas heroico, da guerreira epopeia,
cujas paginas a gloria havia de inscrever
nos muros voados e nos campos assolados
de Portugal e da Hespanha. Armand d'Aubry,
sempre ao lado de Laborde, de Brenier, ou
de Arnaux, assimilhava-se áquelles semi-deuses
de Homero, que petrificavam legiões
inteiras pelo terror do seu braço. Voando na
frente dos mais ousados por entre os clarões
das bôccas de bronze a vomitarem ondas de
metralha, envolto em fumo, e cuspindo de si
invulneravel os pelouros dos fuzis, como o
leão africano cospe as frechas encrespando a
juba, o mancebo, multiplicando-se, apparecia
em toda a parte, e em toda a parte a sua presença,
similhante ao furacão das batalhas,
rasgava largas brechas nas fileiras contrarias.
Mil vezes a morte, desafiada em poucas horas,
não se atreveu a tocal-o; e contemplando
o sorriso, que lhe brincava nos labios, quando
a um grito d'elle o esquadrão levantava comsigo
tempestades de ferro e de fogo, dir-se-hia,
que, para este homem, verdadeiro centauro,
as rapidas e pungentes commoções, e
a brava alegria das pelejas eram um prazer,
uma sensação deliciosa, um enlevo!
Manuel Coutinho, que as ordens de Wellesley
prendiam junto do estado-maior, admirando
de longe a valentia radiosa do moço
[74]
official, invejou-lhe em mais de um rasgo a
galhardia, tremendo ter de lhe chorar a
queda.
Quando a noite, descendo, envolveu em seus
veus a agitada scena, em que gemiam tantas
dores, e em que tantas victimas agonizavam,
o amante de Leonor ainda por entre as
sombras avistou na ultima carga o sobrinho
de Lagarde, rodeado do relampaguear de cem
fuzis, arremessando contra elles o peito do
cavallo. Como se a fadiga de um dia inteiro
fosse repouso para elle, invencivel nos arções,
d'Aubry assignalava o cruento caminho da
retirada com o afuzilar tremulo da espada
por entre clamores dos que o fogoso corsel
calcava aos pés!
As aguias feridas principiaram alli a encolher
as azas e os vôos. O sol ardente da Peninsula,
cegando-as, precipitou-as palpitantes
dos ninhos sobre as rochas vivas da terra, que
suppunham escravizar para sempre!
Em quanto a guerra erguia na Roliça o primeiro
padrão de uma lucta, que havia de ensanguentar
por annos as Hespanhas, Junot
procurava realçar com as pompas officiaes os
derradeiros dias do seu dominio.
O anniversario de Napoleão foi solemnizado
pomposamente, e os cortezãos da fortuna,
um pouco desmaiados com as noticias do desembarque
dos inglezes e da sublevação das
provincias, ainda ouviram da bôcca do general
em chefe promessas e illusões de conforto,
que, se não os tranquillizaram, lhes minoraram
ao menos as apprehensões. Herman engulia
o sorriso, parecendo despedir-se com os
olhos da bella capital, pela qual já ia quasi
esquecendo a patria. Luyt, preoccupado, expedia
ordens, meneando a cabeça com tristeza.
Finalmente, Lagarde, sombrio e taciturno,
recolhia-se como Pythagoras atraz da cortina
[75]
mysteriosa do seu antro, e, prevendo a catastrophe,
arrependia-se de não deixar aos portuguezes
ainda mais pesadas memorias da sua
administração. Assim mesmo o paço de
Queluz lembra-se bastante d'elle!
O duque de Abrantes partiu para o exercito,
depois de concertar com o general Thiébault,
seu chefe de estado maior, as ultimas
disposições da breve campanha, que iam encetar.
O rosto de Junot disfarçava mal o receio
de que a sua ausencia apressasse a explosão
dos sentimentos mal comprimidos da
capital. Desguarnecida a cidade, podiam as
naus britannicas forçar a barra, e os habitantes
vingar em uma hora a aversão e offensas
de muitos mezes. Aos cuidados do governo
juntavam-se no animo do general em chefe
outras magoas, talvez mais pungentes. Os
formosos olhos, que lhe sorriam no meio do
esplendor, ser-lhe-iam fieis na adversidade, ou
bastaria um revez para lhe roubar com os
prestigios do poder corações, que tinham jurado
amal-o sempre até á morte?!...
Mas a voz do dever chamava-o; foi obrigado
a obedecer. A 15 de agosto, á noite, marchou
á testa do regimento de granadeiros, de
um batalhão do 82.º, do 3.º provisorio de
dragões,
e de uma bateria de dez peças. Parou em
Villa Franca, e a 17 seguiu
vagaroso
na direcção
do Cercal, quatro leguas distante da
Roliça, aonde o despertou o echo amortecido
do canhão disparado no primeiro campo da
batalha d'esta guerra.
Deixemol-o rodear-se de exploradores, e estimular
com suas ordens cheias de instancias a
marcha de Loison e de Thiébault, para não
arriscar a lucta senão com todas as forças
reunidas contra sir Arthur Wellesley. Transportemo-nos
no emtanto e sem demora do
Cercal e Torres Vedras ao palacio do Rocio,
[76]
e entremos na sala do conselho, aonde deliberam
os membros do governo. O que então
se passava alli não era menos curioso e importante,
do que o que occorria debaixo da barraca
do quartel general nas vesperas da acção
decisiva, que se planeava.
Em ambos os theatros o dedo da Providencia
escrevia em lettras de fogo a sublime palavra
de Deus, suprema consolação dos que
padecem, terror infinito dos oppressores!
VIII
Ralham as comadres descobrem-se as
verdades
Voltemos á mesma sala, onde assistimos ha
dias nos paços da Inquisição ao
conselho de
governo, presidido pelo duque de Abrantes.
As figuras, que vamos encontrar, são ainda as
mesmas. Só falta o general em chefe já a caminho
para se collocar á testa do exercito.
Á direita da sua cadeira vazia, senta-se
o conde da Ega, nomeado conselheiro do governo,
e encarregado da pasta da justiça por
decreto de 1 de julho, em virtude da demissão
do Principal Castro. Á esquerda, mas de
pé, e com indicios evidentes de summa
agitação,
está Lagarde, não só pallido, mas
verde
de bilis concentrada, todo convulso, e amarrotando
com grande ira um papel entre as
mãos. Francisco Antonio Herman, sempre
apurado no trajo e primoroso nas joias e galas
pessoaes, corre pela vista, quasi sem a ler,
uma folha coberta de algarismos, resumo
pouco agradavel do ultimo balanço do erario.
Luyt, com a barba quasi em cima da mesa,
e os oculos assestados, faz voar a penna em
[78]
linhas miudas, enchendo varios diplomas e
interrompendo-se com frequencia para menear
a cabeça em ar de hesitação, ou para
espreitar
por baixo dos oculos a posição e os
modos das pessoas, que o rodeiam.
Dois
personagens mais completam
o quadro.
O primeiro é o capitão Magendie, de
grande uniforme, passeando silencioso, e medindo
o aposento em largas passadas de um a
outro extremo. O segundo, que apresentâmos
ao leitor pela primeira vez, chama-se mr. Juffré,
merece a reputação de estelionario, que
o flagella, passa com razão pela harpia mais
ávida de todo o bando de abutres, que espicaçam
o corpo quasi moribundo de Portugal,
e honra-se e faz vida essencialmente de ser
cunhado de um general.
No momento, em que entrámos, a discussão,
acalorada, tinha-se interrompido de salto com
a chegada de Lagarde, o qual rebentára do
antro da policia grávido de cuidados, de
apprehensões,
e de pessimas noticias. Apenas acabou
de balbuciar o prologo da elegia dos infortunios
consummados e das desgraças imminentes,
alguns dos ministros, como petrificados,
sumiram-se nas cadeiras, pozeram a
vista no chão, ou cairam n'aquellas sombrias
meditações ácerca da fatalidade, de
que o vulto
dramatico de Hamlet é a personificação
sublime.
O menos sensivel na apparencia aos revezes
e receios era Herman. O sorriso, é verdade,
tornou-se-lhe contrafeito, as faces desmaiaram
um pouco, e o brilho das pupillas esmoreceu
visivelmente; porém nenhum outro symptoma
accusou n'elle enleio, ou perplexidade. Magendie,
official intrepido, mas pouco affeito a
dissimulações diplomaticas, tinha exhalado a
primeira explosão de colera, descarregando
uma punhada furiosa sobre o bofete, e ornando
[79]
o gesto violento de uma rajada de pragas
maritimas de sabor alcatroado excessivamente
forte para o paladar e delicadeza nervosa
do auditorio. Partiu depois direito á parede
de fundo da casa, encetando o passeio peripatetico,
annotado de murmurios surdos, em que
viemos colhel-o.
O ministro da guerra e da marinha, o incomparavel
Luyt, vivia em um resfriamento perenne,
e era quasi impossivel concluir cousa
alguma da expressão apathica e insignificante,
por calculo, do seu rosto immovel e
descorado. Escrevia, olhava, tornava a escrever,
sacudia o arieiro, e sobretudo não perdia
palavra, nem movimento dos collegas. Dir-se-hia
um automato funccionando em quanto
lhe durava a corda. Quem não queria, nem
sabia enganar o observador menos perspicaz
era de certo o conde da Ega. O honrado fidalgo
retratava no semblante, sem o menor disfarce,
a tragedia do partido, que tinha abraçado.
Ignorâmos se começára já
para elle o
arrependimento, e se lamentava a docilidade,
que o fizera mais francez, do que alguns ministros
de Napoleão; mas ousâmos asseverar
que as faces jaspeadas de malhas lividas, o
luto das feições contraídas, e o
profundo desalento,
que respirava a sua mudez glacial,
exprimiam uma grande agonia moral, e equivaliam
a um bilhete de pesames aos protectores,
e a uma certidão de obito passada á
causa imperial na Peninsula!
Finalmente mr. Juffré, especie de peão fidalgo
da côrte do duque de Abrantes, verdadeira,
mas rachitica estatua de Nabuco invertida,
com bases de prata, e cabeça de barro, ora
sobre um pé, ora sobre o outro, recuava, pulava,
e adeantava-se em saltinhos de pulga
industriosa, com o chapeu na mão direita, a
bengala na esquerda, e dois lenços ricamente
[80]
bordados e almiscarados a rebentarem pelos
bolsos da casaca côr de pinhão.
Um risinho amarello, meio enfiado, tremia-lhe
nos cantos dos labios, delgados e sumidos,
revelando indiscretamente, que aquella
bôcca voraz, era rasgada, como a do tubarão de
orelha a orelha. O nariz expansivo e recurvo,
como bico de ave da rapina, quasi que arremettia
com os beiços, invadindo-os; e os dentes
finos, juntos, e agudos, assimilhavam-se
a duas serras parallelas.
Anão de estatura, enfeitado como
uma
imagem,
recendente a aromas como um pivete,
dir-se-hia a alma do Judeu de Veneza no estojo
dourado de um pintalegrete de quarenta
annos! As luvas estalavam-lhe nas mãos, os
calções modelavam o algodão que
chumaçava
as coxas, e a meia de seda exgotava os poderes
da elasticidade para não trahir, abrindo-se,
o segredo da perna artificial d'este Nemorino
em edição correcta.
A testa immensa e esguia, como que escorregava
para a nuca, acabando aonde principiava
o chinó, que, forcejando por ser louro,
sahira, comtudo, quasi alaranjado, arqueando
as sanefas graciosas do mais vistoso topete.
Os olhos azues, da tinta das más porcelanas
japonezas, volviam-se cheios de vivacidade,
armando ciladas quasi constantes á formosura,
ou á riqueza, duas conquistas em que seu
dono os empregava com summo gosto. N'este
momento, um véu de inquieta tristeza assombrava
a sympathica physionomia de mr.
Juffré. A vista penetrante e obliqua do homunculo
estava de sentinella á leitura, de que
o ministro Herman se distraía a miudo, e inculcava
ao mesmo tempo a desconfiança, e a
cubiça luctando com o medo e a avareza.
―Emfim! exclamou por fim Herman, sorvendo
[81]
com pausa uma pitada. Até que temos
os inglezes á porta!...
―Diga dentro de casa, e quasi senhores
d'ella, que diz a verdade! redarguiu Lagarde
meio suffocado. Ouçam o resto. Ainda não li
tudo. Vejam como Wellesley e Cotton rematam
a proclamação: «O nobre
esforço contra a
tyrannia e usurpação da França
será sustentado
pelas forças unidas de Portugal, Hespanha
e Inglaterra; e para o exito feliz de causa
tão justa e gloriosa os designios de sua magestade
britannica são eguaes aos que nos animam»...
Ah! proseguiu animando-se, os
traidores sabem que nos achâmos sobre um
barril de polvora, e lançam fogo ao rastilho,
calculando pelo relogio a hora de nos fazerem
voar!...
―Mas a policia apanhou de certo os agentes,
e arrancou as proclamações? accudiu
Luyt sem levantar a cabeça, nem a penna do
papel, e com a accentuação fria e nasal, que
lhe era propria.
―A policia, senhor Luyt, atalhou o intendente
colerico, fulminando o ministro com a
vista accesa em chammas, a policia não possue
o dom de ubiquidade, nem os cem braços
de Briareu... Esta madrugada todas as esquinas
amanheceram forradas de pasquins e
de impressos incendiarios. Arrancaram-se
muitos. Pois bem! Á tarde já lá
estavam
outros!...
―Se não serve ao menos para isso, de que
vale então a policia? repetiu o fleugmatico
ministro da marinha, continuando a escrever.
―De que serve?!... Serviu, bradou Lagarde
enfurecido, para não cairmos umas poucas
de vezes nos laços dos conspiradores! Inaudita
pergunta! De que serve a policia! De accordar
os que dormem, de velar pela ordem, de
[82]
conter e reprimir os maus sentimentos de
uma população que nos detesta. Achais pequeno
milagre conservarmos ainda Lisboa, quando
o reino todo se levanta e os inglezes marcham
contra nós?!... De que serve a policia?!
É boa! Serve para isto!...
Ao mesmo passo mr. Juffré, vendo Herman
pousa a folha coberta de algarismos, interpellava-o
em tom meio submisso, meio
agastado.
―Então?! O que diz?...
―É exacto. Estão escripturados e dados
em entrada por emprestimo, a trinta dias, vencendo
juro de 15 por cento os seus cento e
trinta contos...
―Bem! Agora a ordem para os receber do
erario?...
―É inutil.
―Inutil! Porque?! interrogou o argentario
sobresalto.
―Porque no erario não ha real. Todo o dinheiro,
que existia, levou-o o duque na caixa
militar...
―Ah! Malditos inglezes! Mas! E o penhor?
A prata da egreja de S. Roque, que está na
Moeda, e que s. ex.
a o general meu cunhado
me affiançou?...
―Por ordem do duque restituiu-se outra
vez á egreja. Póde ir lá buscal-a...
se lh'a
derem.
―Mas n'esse caso estou roubado, despido,
e nú! Caí nas garras de uma quadrilha de
salteadores!
berrou o uzurario, ao qual as palavras
mansas do ministro quasi arrancavam a
alam aos pedaços com tenazes em braza.
―Modere-se sr. Juffré. Veja aonde está e a
quem fala...
―Falo ao salteador que me espoliou! O sr.
Herman rouba-me e escarnece-me.
―Engana-se. Está fazendo a satyra do duque
[83]
de Abrantes. São d'elle as ordens de que
se queixa. Eu obedeci.
―Pois então clamo e juro, que s. ex.
a
o duque
é tão bom, ou peior do que o sr. Herman.
―Olhe, atalhou o ministro, muito sereno,
monte a cavallo e vá dizer-lh'o a elle. Fica
além d'isso mais perto dos seus cento e trinta
contos de réis. O que não lhe prometto, se o
duque lhe ouvir metade das palavras, com
que me está regalando a mim, é que não
lhe
pague capital e juros com um chicote na cara
ás vergalhadas...
―Que insolencia! Ousa dizer-me?! exclamou
Juffré fulo e convulso.
―Um conselho! Não torne a falar aqui em
ladrões. Não acorde o cão que dorme.
Observou
Herman, olhando de revez para Lagarde,
e apunhalando o uzurario com o sorriso.
―Porque? É capaz de insinuar? atalhou o
outro já em voz baixa.
Sou capaz de me lembrar, sim senhor,
e
muita gente commigo. Fazem-lhe hoje trezentos
contos, e quando veiu para aqui não
trazia treze francos. Quem o ignora? Cuida
que todos são esquecidos? O sr. Juffré e outros
similhantes foram a vergonha e o opprobrio
do nosso governo. Deus queira que não
sejam tambem os instrumentos da sua ruina.
Adeus! O conselho tem cousas sérias de que
tractar, e a mesa dos publicanos é lá
fóra. Vá!
―Miseravel! Salteador! gritou o homunculo
roxo de ira, cerrando os punhos, e crescendo
contra o ministro, cuja frieza motejadora
o exasperava.
Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto,
quando sentiu a larga e pesada mão de
Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos
calções, leval-o pelos ares até
á porta, abril-a
com o pé, e despedil-o como um fardo, accrescentando
no fim de todo este drama e
Mas a raiva converteu-se-lhe logo em susto,
quando sentiu a larga e pesada mão de
Magendie a ferral-o pela gola e pelo fundo dos
calções, leval-o pelos ares até
á porta, abril-a
com o pé, e despedil-o como um fardo, accrescentando
no fim de todo este drama em acção:
[84]
―Desprezivel sanguesuga! Se aqui voltas
protesto cortar-te e salgar-te as orelhas, a
unica cousa que não é postiça em ti!
O argentario calado e tremulo ergueu-se
moido, reparou á pressa os ultrajes das roupas
amarrotadas, e desceu as escadas rabiando
como buscapé acceso em arraial.
Depois d'esta proeza, pouco heroica pela
qualidade da victima, o capitão Magendie
approximouse da meza, e fitando Lagarde,
disse-lhe
com a concisão militar, que lhe era
usual:
―Quem espalhou as proclamações?...
―Não se sabe. Ha indicios... replicou Lagarde
assumindo o seu ar mysterioso.
―Quem as trouxe de bordo da nau ingleza?
insistiu o official, continuando o interrogatorio.
―Ignora-se ainda, mas suppõe-se! respondeu
o intendente um pouco turvado.
―Quaes são os agentes dos sublevados do
norte em Lisboa?...
―Tracta-se de os descobrir, porèm!...
―Não sabeis nada então?
―È verdade. Nada certo.
―Muito bem! Se não sabeis nada certo, se
para vós tudo são trevas e ignorancia, tinha
razão mr. Luyt. De que serve a policia? De
engulir dinheiro e denuncias, e de fazer render
os serviços que não faz. Não nos
quebreis,
pois, mais os ouvidos com os vossos malsins
surdos, cegos, immundos, e famintos, e fazei-nos
o obsequio de nos deixar discutir em paz.
―Oh! exclamou Lagarde livido e convulso
de ira. Tractas-me como se fosse um verme.
Sois acaso Napoleão o grande!? Cuidais que
hei de supportal-o? Sou magistrado independente,
e não recebo ordens, nem censuras senão
dos superiores...
―De mais tendes recebido dos inferiores,
[85]
mas peitas e dinheiro. Até nas enxovias e
prostibulos se diz que bateis moeda! Olhai
bem para mim! Toda a minha riqueza consiste
n'estas dragonas, em cem francos que trago
no bolso, e nos copos de prata da minha
espada. Não levarei de Portugal senão mais
alguma cicatriz, e um nome honrado. Se vos
atreveis a asseverar o mesmo, aqui está a minha
mão, apertai-a, estou prompto a pedir-vos
mil desculpas. Se não ousais!... Sumi nas
trevas com os vossos morcegos toda a historia
da policia de Lisboa, e não faleis de collo
alto aos que vos conhecem e se envergonham
de vos
ter pôr
compatriota.
Lagarde espumava. Immovel de colera e
espanto cada phrase do capitão feria-o no
rosto e na consciencia como um açoute. A sua
posição era tão falsa e dolorosa, que
Herman
compadecido quiz pôr-lhe termo.
―Vamos, senhores, exclamou, deliberemos
e não questionemos. Hoje os minutos valem
horas. Lagarde! Receiais algum tumulto na
capital?
―Não. Apezar de contar com pouca força
respondo sobre minha cabeça pela tranquillidade
de Lisboa, se os inglezes não entrarem.
―E eu respondo sobre a fé e honra de meus
canhões, que os inglezes não passam as torres!
acudiu Magendie. As minhas proclamações
de polvora e bala agradam-lhes menos
ainda, do que as suas de papel nos lisongeam
a nós.
―Excellente! tornou o ministro do reino.
Então por esse lado podemos estar descançados.
Mas os inimigos, é provavel, que não
queiram perder de todo o lanço, e hão de
trabalhar.
Dão-me cuidado os inglezes tão proximos,
e os odios vivos de toda esta gente.
O general partiu com o
melhor das tropas.
Novion avisa-me de que a guarda da policia
[86]
já desertou quasi toda. Só hontem fugiram
sessenta soldados. Se acaso se levanta um tumulto
repentino, e é facil, com que havemos
de contar?!...
Lagarde encolheu os hombros e calou-se. O
conde da Ega estremeceu e fez-se mais pallido.
Luyt, com a penna suspensa, e os olhos
parados atraz dos vidros dos oculos, respondeu
a meia voz:
―Com umas segundas vesperas sicilianas!...
―Em que todos seremos assassinados?! interrogou
Herman affectando serenidade, porém
um pouco tremulo. Meus senhores, parece-me
que o caso merece ser examinado. Estou
prompto a verter o sangue no campo, pelejando
como soldado, mas a idéa de uma affrontosa
morte, dos ultrages e supplicios, de que
nos ameaça a vingança de uma plebe de canibaes,
aterra-me, não o encubro. Confesso mais.
Falta-me o valor para a encarar com intrepidez!
Lagarde, vamos! Reanimai-vos. Os homens
são para as occasiões. Que imaginastes
para conter e enfrear o populacho, que murmura,
e que o canhão de Wellesley, ou de
Cotton póde dispertar e enfurecer?...
―O terror! O reinado do terror! Só o medo
póde salvar-nos! redarguiu o intendente sombrio
e fitando os collegas.
―O terror?! Renovar as scenas de 1793
em Lisboa? Levantar o patibulo em permanencia?!...
―Sim! O estado de sitio em todo o seu rigor!
Não foi já decretado? O verdugo e o cadafalso
são a razão extrema da autoridade
contra o povo.
―Mas as horrorosas execuções de partidos
inteiros, de classes adversas quasi em massa,
que nos propondes o que salvaram em Paris?
Já vos esqueceu o famoso dia de thermidor?...
[87]
―Não! Salvaram a França das armas dos
alliados, cobriram as fronteiras de recrutas,
que luctaram como veteranos, assegurando
o triumpho e unidade da republica.
Achais pouco? Reparais nas manchas de sangue?!...
―Dizei nas torrentes, é mais exacto...
―Sim! Mas esse sangue, embora jorrasse
innocente muito, confirmou a liberdade, e tornou
a França grande, invencivel e temida.
Robespierre, Saint Just, e Carrier, os chefes
e os proconsules succumbiram afinal, e foram
arrastados no rolo furioso da tempestade, desenfreada
por elles? A expiação do systema
foi o mesmo patibulo aonde o tinham architectado?
Que importam tres, ou quatro cabeças
mais no cesto da guilhotina, quando tantos
resultados abonam a logica inexoravel, que o
dictou? Estamos quasi sós no meio de uma
nação insurgida e irritada, que a saudade da
independencia e de seus principes subleva,
que a dor e a ira das offensas exaspera!... Os
inglezes bloqueiam-nos por mar, e accommettem-nos
por terra! A nossa sorte é vencermos,
acabar aqui, ou passarmos por cima de montões
de ruinas e de cadaveres. Não temos
quartel a dar, nem a receber! Na falta de
forças seja o terror a nossa espada! Na falta
de todo o apoio seja o cadafalso a nossa
força!...
―Para que o sangue das victimas nos afogue?
Para que o luto de um povo assassinado
macule de eterno opprobrio o lustre de nossas
armas?!... exclamou Hermam erguendo-se
com impeto, severo, e indignado. Não! mil
vezes não! Esse crime inutil, porque apressaria
só a nossa queda, fôra a sentença de
morte
da honra franceza. A civilização, que
representâmos,
esconderia o rosto de vergonha.
O imperio teria de córar deante d'esse anachronismo
[88]
sanguinario. O anno de 1808 não é
o anno de 1793. Podem tental-o; mas eu não
lançarei essa grande nodoa sobre mim e sobre
a patria. Os vencedores de Austerlitz por
meu voto nunca hão de vestir a opa vermelha
do carrasco...
―Veremos como os guerrilhas e os sicarios
do principe regente vos agradecem! Quando
virdes o punhal sobre o coração, ou o
trabuco apontado ao peito...
―Poderá tremer no homem o que é fragil,
por ser barro e limos, redarguiu o ministro
com um gesto de suprema elevação moral,
mas a consciencia, ao menos, não ha de accusar-me
n'essa hora suprema! Alguns mezes
menos de vida não valem o sangue de milhares
de innocentes, a infamia do meu nome, o
opprobrio da minha memoria.
―N'esse caso, accudiu Lagarde, lavo as
mãos de tudo, e não respondo...
―Respondo eu! interrompeu Magendie,
que escutava o dialogo havia minutos, e que
de pé e silencioso, mas cheio de impaciencia,
a custo reprimia a colera. Respondo eu! As
taboas de proscripção não
hão de aviltar-nos.
Somos soldados e temos armas. Se Lisboa se
insurgir, os canhões dos meus navios e os
machados dos meus marinheiros chegam ainda
para varrer, como pó levantado, as espumas
da plebe enfurecida e indisciplinada, sr.
Lagarde! O reinado do terror, o arremedo
das carnificinas de 1793, não se ha de fazer
em Lisboa, em quanto uma bala me não varar
o coração. Nunca o sangue dos patibulos,
que eu saiba, que eu consinta, salpicará as
aguias, que beijámos como symbolo da honra...
Sei porque lhe occorreu exhumar do
arsenal infamado dos dias mais funestos da
revolução o cadafalso de Robespierre! Tem
mais sede de ouro, do que de sangue, a sua
[89]
idéa é mais de vingança, de
cubiça, do que de
medo! Se fossemos agora ao castello de Lisboa,
talvez achassemos a explicação do plano,
que nos propõe!...
―Sr. Magendie! É a terceira vez que hoje
me affronta n'esta casa! bradou o intendente
enraivecido, mas pallido de susto deante
dos relampagos, que despediam os olhos do
capitão.
―Acha? Uma já devia ser de mais! Quer a
reparação? Está a minha espada
ás suas ordens...
―A sua espada?! Desafia-me?! A occasião
podia ser mais opportuna.
―Creia que nunca lhe fiz a injuria de suppor,
que podia encontrar um homem no sr.
Lagarde. Estava zombando quando falei na
minha espada; é arma que não conhece. Se
fosse uma mordaça, e fossem algemas?!...
―Senhores! Senhores! Por quem são! accudiu
o conde da Ega interpondo-se.
―A minha paciencia, atalhou o intendente,
limpando dos labios a escuma, e empregando
vãos esforços para vencer a convulsão
nervosa,
a minha longanimidade não se altera com
estas provocações grosseiras proprias de uma
educação de tarimba...
―Agradecido pela clemencia, meu fidalgo!
redarguiu Magendie, inclinando-se ironicamente.
Mas o plebeu, que se levantou da tarimba,
e poz estas dragonas présa os brios
como um ducado. Quereis saber porque este
homem de bem queria fazer de todos nós
assassinos, e dos soldados da França verdugos?
Eu vol-o digo em duas palavras! Machinou
casar a filha de um cavalheiro rico de
Mafra com Armand d'Aubry seu sobrinho. A
donzella resistiu, e o sr. Lagarde vingou-se
accusando falsamente o pae, sepultando-o em
um carcere, e dando a escolher á filha a morte
[90]
d'elle, ou um resgate infame a troco da sua
mão e dos seus bens! Encontrou duas almas
nobres; Aubry rejeitou o pacto; a filha não
se quiz vender para salvar a velhice de um
militar, deshonrando-lhe os cabellos brancos...
O sr. Lagarde não se deu por vencido,
e trabalhou para si. A esta hora achar-se-ha
um agente seu na prisão do cavalheiro, que
se chama Paulo de Azevedo, e ha de já ter-lhe
intimado a decisão final de pagar trinta
contos de réis até ámanhã,
ou de ouvir a sentença
de um conselho de guerra, e de aparar
no peito as balas de um pelotão na praça do
castello! Eis o verdadeiro motivo do santo
zelo que o inflamma. O reinado do terror sería
para elle uma chuva de ouro, ou de sangue,
segundo a docilidade das victimas!...
―Calumnia! Infame calumnia! exclamou
Lagarde branco e tremulo de colera.
―A accusação é grave, sr. Magendie!
observou
Herman, que se poz em pé assim como os
collegas, e que leu no rosto demudado do intendente,
apezar de todo o cynismo d'elle, vehementes
indicios da culpa. Veja o que acaba
de asseverar! Allude a um magistrado, a um
homem que mereceu a confiança do imperador.
Provará o que affirmou?
―Se houver alguem que ouse repetil-o deante
de mim, interrompeu Lagarde suffocado,
consinto que me condemnem!
―Acceito! disse Magendie. Ouvirá a
confirmação
da verdade, e de uma bôcca insuspeita.
Aubry!...
A porta abriu-se, e Armand appareceu aos
umbraes, pallido e resoluto.
―Meu tio, disse depois de saudar o conselho
com uma cortezia, jurei-lhe que seria
punido se não remediasse o mal, e aqui estou
para cumprir a promessa. Na presença de
Deus e dos homens, por alma de meus paes,
[91]
assevero e juro que o capitão Magendie disse
a verdade e só a verdade! Agora, que deante
de vós, e de todos os que me escutam prestei
testemunho á consciencia, curvae a cabeça, e
arrependei-vos, porque, por vossa propria
bôcca estais condemnado!
O tom, em que Aubry falou, inculcava
maior tristeza, do que ira. Lagarde petrificado
deixou pender a fronte e murmurou:
―Tambem tu, Armand!...
―Fiz o meu dever. Sois irmão de minha
mãe, mas da herança de meu pae, o que acima
de tudo préso é a honra do nome, e essa,
já
vol-o tinha dito, hei de sepultal-a commigo
pura no campo da batalha, aonde posso caír e
morrer hoje, ou ámanhã! Meus senhores,
adeus.
Pedí a Deus que exalte as nossas armas!
Ditas estas palavras saíu sereno e grave,
deixando todos pasmados e silenciosos.
IX
O pae e a filha
―Trinta contos! É um sacrificio grande,
bem sei, mas a vida e a liberdade valem mais.
As provas estão em nossas mãos. Se as abrirmos,
o conselho de guerra ámanhã...
―Condemna-me á morte?!...
―Sem duvida nenhuma. O capitão de mar
e guerra Magendie, nomeado para o presidir,
passa por severo e intractavel. Os outros officiaes,
sobre tudo mr. Etienne, estão resentidos,
e entendem que um exemplo é indispensavel...
―Bem! E o capitão Magendie e os outros
officiaes sabem o que me propõe?
―Deus nos accuda! Pois isto são segredos
de chocalheiros?! O que lhe estou dizendo ficará
entre tres pessoas. O senhor
Lagarde, o
senhor Paulo de Azevedo, e eu. Vamos! Decida-se.
O tempo vôa. O conselho reune-se
ámanhã ás nove horas do dia, e esta
noite hão
de ser-lhe presentes, ou negados os documentos.
―Uma palavra ainda! Leonor sabe?...
―Para que a haviamos de affligir? A sr.
a
[93]
D. Leonor, como boa filha, ha de achar tudo
justo e rasoavel; mas se for preciso...
―Pois senhor... Quer dizer-me o seu
nome?
―Simão... Simão basta.
―Pois, sr. Simão, a minha resposta é simples.
Não acceito. Estamos em Portugal, e
não nas roças do Brazil. Sou innocente, nunca
tive medo da morte, e não compro por nenhum
preço esses curtos e
attribulados dias,
que ainda posso viver. Diga isto a quem o
mandou.
―Veja! Medite! Olhe que depois não tem
remedio.
―Vejo a infamia, e não me admira. Tractam-nos
como captivos, e pedem-nos o resgate?
O meu, ao menos, não hão de leval-o d'aqui.
Antes as balas dos inimigos da minha
patria no peito, do que atirar um real ás mãos
immundas dos falsos magistrados, que vendem
o sangue.
―Ha de arrepender-se.
―É commigo. Não se incommode a convencer-me.
―Mas a sr.
a D. Leonor?!...
―É filha de soldado. Poupe-lhe a sua piedade.
Não gaste mais em vão um tempo precioso;
talvez ache em outra parte alguem
mais docil. Lance a derrama, colha na rêde o
que apanhar, mas, por Deus! livre-me da sua
presença e das suas propostas. Está-me fugindo
a paciencia por instantes!...
―A sr.
a D. Leonor vem ahi...
―Minha filha?!...
―Sim. Vem vêl-o, e despedir-se talvez. Sabe
o que o ameaça. Foi avisada. Dou-lhe uma
hora para a abraçar e falarem. Póde revelar-lhe
a minha proposta. Aqui volto logo...
―É escusado. Tenho uma palavra só.
―Não importa. Deixe! A firmeza inspira-me
[94]
interesse. Gosto dos homens da sua rijeza.
Seria pena se!...
―Se eu me não quizesse comprar por trinta
contos?...
―É verdade. O que são trinta contos para
um cavalheiro rico?
―Nada! São sómente uma infamia e uma
covardia. O senhor Simão acha natural, e não
era de esperar outra coisa; eu unicamente
sinto ter as mãos atadas, e não poder estampar
a resposta nas faces do villão que me
suppoz capaz de tal deshonra. Queira sair!
―Não tenha esse genio! Não lhe levo a mal
o desafogo. A gente quando se entala doe-lhe
e grita, mas depois vem a reflexão...
―Saia! Não vê que me faz horror e asco?
―Jesus! Que palavras! Eu saio, eu saio!
Não se escandeça. Socegue! O que lhe estou
dizendo é para seu bem. Até logo! Abrace sua
filha, lembre-se de que tudo tem remedio,
menos a morte, e caia em si. Acha cara por
trinta contos a protecção que lhe offerecemos?!
É a vida, é a liberdade!...
Estas palavras foram já ditas de fóra da
porta chapeada da prisão. Um impeto de Paulo
de Azevedo apressou a retirada do mellifluo
procurador das veniagas da policia. O
agente, cujos modos e indole de certo denunciou
logo ao leitor o dialogo, que acabàmos
de escutar, seria homem de cincoenta annos.
Baixo, livido, e anafado, com uma cabelleira
cravada até á testa, uma pala verde deante
dos olhos, e um tom aflautado e mavioso,
pertencia áquella especie de algozes, que
abraçam a victima com o riso nos labios, e
que a dilaceram, consolando-a com phrases
dulcissimas.
Mas a physionomia abjecta e repugnante
não podia enganar ninguem. A providencia
traduzira fielmente em suas feições ignobeis
[95]
a perfidia e a traição. Aguazil promovido por
mil torpezas á jerarchia de espião em chefe e
de confidente de Lagarde, vociferava contra
sua maldade até a plebe dos malsins, seus humildes
subditos. As lagrimas e os tractos eram
para elle um prazer suave; e armado de dentes
até o umbigo, a sua avidez insaciavel, mas
inventiva, achára artes de devorar até a pobreza
e a miseria, tornando suas tributarias as
enxovias, as galés, e a prostituição.
Nunca Paulo d'Azevedo alcançára sobre si
maior victoria, do que reprimindo os accessos
de colera, em que por vezes o sangue lhe
subiu ao rosto, e abstendo-se de corrigir, alli
mesmo, e por sua mão, o emissario descarado
da venalidade do intendente geral da policia.
A lucta custou-lhe, porém, esforços, que depois
lhe quebraram o animo. Leonor, entrando,
assustou-se de o ver sentado, ou antes prostrado,
com o rosto entre as mãos, e a alma e
o coração tão trespassados, que de
desfallecimento
quasi havia perdido todo o accordo.
Para o despertar do lethargo doloroso foi necessario,
que a mão delicada e a voz affectuosa
da filha despertassem a ternura em seu
peito quasi insensivel á força de
oppressão.
―Meu pae! Meu querido pae! exclamou a
donzella, cingindo-lhe os braços ao collo, e
beijando-o extremosa e arrebatada.
―És tu Leonor! Minha Leonor! Ai filha! Que
saudades e que tristezas desde que nos separámos!
―Então! São trabalhos com que Deus quer
provar a nossa resignação. Louvemos a sua
bondade e confiemos na sua justiça.
―Nunca duvidei d'ellas. Submisso e conforme
com a vontade do Altissimo espero
que Elle disponha de mim. Já sabia que
vinhas, que te davam licença...
[96]
―Disse-lh'o aquelle homem de preto, que
saiu, quando entrei?...
―Disse. E nunca os ferros me pesaram
tanto como ha pouco. Não imaginas o que
elle me propoz?!...
―Da parte de Lagarde? Adivinho! Um casamento
para mim?!...
―Um casamento para ti?! bradou Paulo
erguendo-se
convulso. Pois o infame atreveu-se
a pedir a tua mão?...
―Tranquillize-se, meu pae, não era para
elle. N'esse ponto ao menos fez-me justiça,
accudiu a donzella sorrindo.
―Então para quem?
―Para um sobrinho seu, Armand d'Aubry,
militar, moço, e digno de estima pelas qualidades.
―E tu? interrogou o pae, fitando-a.
―Respondi que não! redarguiu Leonor serenamente.
Como a minha mão era o pretexto
de um resgate, e o que Lagarde cubiçava
eram os meus bens, offereci-lhe os que herdei
de minha mãe em troca da vossa liberdade.
―Fizeste mal! disse o cavalheiro severo,
mas commovido. E o sobrinho, esse Aubry, tão
vil como o tio, extendeu logo a mão, e acceitou
o preço? Vens pedir o meu consentimento?!
―O sobrinho, meu pae, alma grande e nobre,
tudo, rejeitou a minha mão e os meus
bens, redarguiu a donzella.
―Ah! Tanta generosidade em um francez!...
Espanta-me! Acaba!
―Tenho concluido. Aubry pediu-me perdão
da vileza do tio, e jurou proteger-nos...
―De graça? Duvido! Verás que não!
insistiu
Paulo, meneando a cabeça com ar incredulo.
Representou um lance de theatro,
talvez ensaiado em casa para figurar de homem
de brios, e a esta hora estará rindo-se
[97]
com Lagarde da tua simplicidade em o acreditar.
―Não julgo, meu pae, que se ria de mim
com Lagarde, porque rompeu com elle.
―Apparencias!
―Verdades! E a prova é que se Manuel
Coutinho, o coronel de milicias de Leiria, e
muitos outros não gemem hoje em uma prisão,
á generosidade de Aubry o devem.
―Ah! Conta-me essa historia. Quero sabel-a.
Leonor expoz-lhe então os successos, que o
leitor já conhece, e terminou manifestando a
sua confiança nas promessas do official francez.
―É um procedimento nobre! Quasi que tenho
pena que a acção fosse de um francez.
Não gosto de dever a inimigos. Não importa.
De hoje em deante esse mancebo é sagrado
para nós como um parente. Agora, Leonor,
chega-te mais para mim. Quero ver-te mais
de perto. Estás pallida, muito pallida, mas
fica-te bem. Cada vez mais linda! E havia de
um estrangeiro levar-me a joia da minha alma
por uns mezes mais, ou menos de velhice
cansada?! És o retrato de tua sancta
mãe―não
nos olhos!―os teus são mais pretos e
formosos e os cabellos tambem! Senta-te aqui
nos meus joelhos. Agora um beijo, muitos
beijos!... Ha tanto tempo que te não via, filha!
Não imaginas como a tua falta me fazia
velho! Dize-me, ajuntou com um sorriso humido
das lagrimas, que estavam a saltar, e os
amores, como vão os nossos amores? Manuel
Coutinho adora-te como tu mereces, não? É
sempre escravo dos caprichos da sua noiva?
Quero saber tudo!...
―Meu pae! accudiu ella córando cheia de
rubor, e escondendo a face no hombro do ancião.
[98]
Por isso mesmo, porque sou
teu pae, é que
pergunto. Bem! Bem! Se Deus quizer hão de
ser muito felizes ambos! Mas disseram-me
que vinhas despedir-te...
―Despedir-me?! exclamou a donzella sobresaltada.
Despedir-me porque?! A condessa
da Ega alcançou-me licença para entrar aqui,
e vim logo. Sabe as noticias, as grandes noticias
que ha, e que já são certezas?
―Não sei nada, filha. Não falo senão
com
os guardas, que são francezes, e bem
vês...
―Que hão de encobrir tudo. Pois ouça. Tenho
muito que lhe contar. Alegre-se, e diga
se não tenho razão de lhe pedir
alviçaras.
A narração feita pela donzella com as
mãos
entre as do pae, com os lindos olhos accesos
em enthusiasmo, e fitos nos d'elle, e com o
rosto inflammado nas risonhas côres da esperança,
a pouco e pouco foi communicando a
Paulo de Azevedo o ardor e o jubilo, que
exaltavam aquelle animo juvenil. Suspenso
dos labios queridos da filha, quando ella lhe
pintou a insurreição de Traz-os-Montes, o
cavalheiro não poude conter-se, que não
exclamasse:
―Ah! Sepulveda! Que invejas hão de ter
muitos mancebos aos teus oitenta annos!...
Quando lhe descreveu o Algarve, Coimbra,
Leiria, e o Alemtejo sublevados, e desafiando
com as armas na mão a pericia dos francezes,
o antigo official, levantando-se, e córando
de prazer, bradou:
―Portugal! Julgavam-te morto, e até
queriam rasgar e repartir entre si a tua mortalha?!
Bom é que lhes mostres que vives,
como viveram nossos antepasados. Aljubarrota,
Valverde, o Canal, e Montes Claros foram
a licção dos invasores de hontem, assignala o
teu valor em novos campos de batalha para
[99]
terror e castigo dos invasores de hoje! Continúa,
Leonor!
A amante de Manuel Coutinho, proseguindo,
contou-lhe a chegada e o desembarque de
sir Arthur Wellesley, a marcha do exercito
nacional ás ordens de Bernardim Freire, o
combate da Roliça, e a saída de Junot ao encontro
das tropas britannicas.
―Louvado sejaes, Senhor, pela grandeza insondavel
de vossa justiça! exclamou o ancião,
inclinando reverente a fronte, e erguendo as
mãos. Do grão de areia formaste a montanha,
que se levanta contra os soberbos, dos fracos
e desamparados compões a força, que ha de
subjugal-os. Leonor! Junot será vencido!
Diz-m'o o coração, diz-m'o a vontade do
céu
manifestada em tantos prodigios. Ditosos
olhos os que virem romper a aurora do grande
dia da nossa liberdade, que já sinto proximo!
―Então, meu pae, não lhe dizia eu, que o
nosso captiveiro estava a findar por pouco?!
―O teu, filha, o da patria, e ainda bem! O
meu!...
―O vosso tambem. Porque não?! accudiu
ella, abraçando-o.
―Talvez acabe mais cedo mesmo! Quem
sabe! Não importa. No fim de tudo?! murmurou
comsigo. Possa o meu sangue, como
expiação, lavar as ultimas nodoas da culpa,
por que este reino foi castigado!
―Senhor Paulo! Passou a hora! O que me
diz? Está mais socegado. Volveu á serenidade
que tão bem lhe fica?
Era a voz aflautada do agente de Lagarde,
cuja cabeça de reptil se arriscava, toda olhos
e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido.
O cavalheiro estrem
Era a voz aflautada do agente de Lagarde,
cuja cabeça de reptil se arriscava, toda olhos
e ouvidos, por entre a porta aberta sem ruido.
O cavalheiro estremeceu e descórou. Cresceu-lhe
a ira, e investindo contra elle obrigou-o
a desapparecer. Um clarão sombrio,
[100]
que faiscou ao mesmo tempo de suas pupillas,
exprimiu toda a sua raiva.
―Ah! bradou elle. Ainda este homem
aqui!...
―Quer que entre? perguntou o delator
sempre escudado com a porta.
―Entre! Leonor, és filha de militar. Tens
animo e constancia, bem sei. Ouças o que ouvires,
não te assustes, não digas uma
palavra.
Voltando-se para o confidente da policia,
cujo sorriso oleoso parecia grávido de mysterios
e de insinuações, accrescentou depois:
―Veiu propor-me ainda agora, que eu comprasse
a minha vida por trinta contos. Já lhe
respondi, e repito deante de minha filha: se
estivesse solto, seu amo pagaria a affronta, a
que teve a covardia de se atrever contra um
preso! Captivo, e em poder de inimigos, tenho
só livre a alma para protestar, e para dizer
que prefiro mil vezes a morte á infamia
de pesar o meu sangue a ouro nas balanças
iniquas de um salteador e de um espião. Póde
sair!
―Sr.
a D. Leonor, gritou Simão,
não deixe
seu pae assassinar-se por uma teima! E o agente,
simulando compuncção hypocrita, quasi
se lançára de joelhos aos pés da
donzella,
que se desviou enojada. O sr. Paulo não lhe
disse nada, agora vejo! O conselho de guerra
julga-o ámanhã ás dez horas; e a sua
sentença...
é de morte! Offereci-lhe salval-o por
uma quantia. Quer á força sacrificar-se!
Commetter
um crime, um suicidio! Diga-lhe!...
―Que o meu coração se despedaça de o
perder,
mas que a minha alma se arrebata de admiração
com a sua nobre recusa? É isto o
que quer que eu diga? Para quê?! Ha muito
que meu pae e eu nos conhecemos!...
―Oh! minha senhora! Cuidei que amava
[101]
mais seu pae, do que trinta contos de réis!
observou o espia ferindo todos os alvos.
―Meu pae fez o seu dever. Rejeitou o pacto
infame. Eu cumpro o meu, dizendo-lhe que
nunca tive tanto orgulho em me chamar sua
filha.
―Mas! A sentença é infallivel e executa-se
logo. Ámanhã á tarde terá
de orar sobre um
cadaver! Veja que está matando seu pae!
―Silencio! clamou o cavalheiro indignado
e terrivel de aspecto. Assassino és tu, mas da
honra dos homens, e até da fraqueza de uma
senhora. Vai-te! Perdes aqui o tempo, não
achas compradores, e podes encontrar... Por
Deus! Não me tentes mais!
―Tenha dó de si! insistiu o agente, recuando
deante do ancião, mas orando sempre em
nome dos trinta contos. Não se fie em vans
esperanças. Ninguem o salva senão nós,
minha
senhora! O capitão Magendie, conhecido
pela severidade, é o presidente do conselho
de guerra, e a vida de seu pae...
O honrado Simão aqui estacou com o resto
da phrase estrangulado na garganta. Uma larga
mão, desabando-lhe sobre o hombro com o
peso de um rochedo, acachapou-o debaixo do
seu vigoroso impulso. Ao mesmo passo uma
voz aspera e imperiosa dizia-lhe com ironica
intenção:
―Chamavas pelo capitão Magendie, creio
eu. Aqui está o capitão Magendie! Repete
deante d'elle o que dizias nas suas costas!
Quero saber se ousavas fazer-me cumplice do
infame pacto de sangue, que vieste propor!
Fala!
Paulo de Azevedo e sua filha contemplaram
attonitos e cheios de assombro a subita
intervenção
d'aquelle homem, que um erro de officio
do espia, deixando a porta da prisão aberta
atraz de si, introduzira no momento mais
[102]
interessante do drama, de que eram auctores
e personagens.
―Fala que mando eu! repetiu o capitão,
saccudindo o delator livido, tremulo, e mudo
de terror.
O cavalheiro e Leonor começavam já a
compadecer-se
do infeliz Simão, muito parecido
n'este instante a um chacal colhido nas garras
do leão.
―Fala, ou morres aqui mesmo! bradou
pela terceira vez o capitão de mar e guerra.
Quero ouvir e saber tudo!
N'este momento as faces de Leonor afoguearam-se
do mais vivo carmim. Uma figura
nova acabava de entrar em scena. Era Armand
d'Aubry. O mancebo approximou-se
d'ella com um sorriso, cortejou Paulo de
Azevedo, disse-lhe o seu nome, e beijando a
mão á donzella com respeito, disse-lhe:
―Não é verdade, minha senhora, que já
me accusava de vanglorioso, ou de esquecido?...
―Eu, senhor d'Aubry! Que direito tinha
para isso?
―A minha palavra dada.
―Sei que é escravo d'ella; mas ás vezes ha
razões...
―Nenhuma póde desculpar um descuido,
que eu confesso, e que podia ter sido fatal.
Fiei-me na palavra... de um homem que a
trahiu, e descancei de mais. Felizmente chego
ainda a tempo!
Um grito agudo de dor arrancado ao virtuoso
Simão pelos dedos de ferro de Magendie
interromperam n'este ponto a conversação.
D'Aubry, adeantando-se, interpoz-se entre
a victima e o militar irritado.
―Magendie! disse meio serio, meio a sorrir-se,
quereis esmagar esse verme debaixo
dos tacões das botas?!...
[103]
―Não! Fôra vergonha e opprobrio! Mas o
miseravel invocava o meu nome, quando entrei!
Quero saber o que ousou inventar!
―Deixe-o! accudiu Leonor, dando alguns
passos para o capitão. O que elle propunha
não deshonra o sr. Magendie.
―Espero que não se atrevesse a implicar-me
nas torpezas, que vinha aqui negociar. Se
o fez... juro pela minha espada que lhe arranco
a lingua mentirosa...
―Não! Não! atalhou a donzella. Falou
só
da severidade do sr. Magendie, e da sentença
de morte que ha de proferir ámanhã contra
meu pae.
―Eu! Ah! Pois tiveste a insolencia de fazer
de mim carrasco? Serás punido! E arremettendo
contra o espia, inerte e transido, serviu-lhe
as costellas de tres, ou quatro pranchadas,
que retiniram, seguindo-se umas ás
outras com a velocidade do raio.
―Magendie! Basta! Deixa esse desgraçado!
clamou Armand, sustendo-lhe o braço já
alçado
para repetir a correcção.
―Sáe! ajuntou arrastando o delator quasi
pela gola da casaca, e lançando-o fóra. Se te
demoras... não levas um osso inteiro.
Simão desappareceu, lastimado do corpo, e
dorido da alma, pelo exito pessimo da sua
missão.
―Minha senhora, disse d'Aubry com nobreza.
Os instantes são preciosos. O general Junot,
que não é tão mau, como o odio dos
portuguezes
o crê, informado de tudo―porque
não lhe occultei nada―assignou a ordem de
soltura de seu pae sob palavra sómente, de
que o sr. Paulo de Azevedo não ha de pegar
em armas contra as tropas de sua magestade
o imperador e rei n'esta ocasião. Fui talvez
temerario, mas obriguei-me em nome do preso.
Se me excedi, como só eu respondo...
[104]
―Meu pae! Meu querido pae! Livre! Solto!...
exclamou Leonor apertando o ancião
nos braços. Obrigada sr. Armand! Obrigada!
―Sr. d'Aubry! redarguiu o cavalheiro, vencendo
a custo a commoção, e não soltando do
coração a filha amorosamente cingida ao peito,
a palavra, que deu, é como se fosse minha.
Não abusarei da sua generosidade. Verei de
longe os successos, mas não estranhe, não me
leve a mal, que suspire pela victoria dos
meus compatriotas...
―É tão natural! O que hei de estranhar?
Sr.
a D. Leonor! Se lhe disserem que Armand
d'Aubry ficou no campo, lembre-se d'elle,
lembre-se do homem, que, não podendo merecel-a,
quiz ao menos eximir-se ao seu despreso.
―Despreso!? Porque nos fez Deus nascer
tão separados, sr. d'Aubry!
―Paciencia, accudiu o mancebo com um
sorriso contrafeito. Seja minha irmã! E se
em suas orações não póde
pedir a Deus que
faça triumphar a minha causa, rogue-lhe ao
menos que me dê a morte gloriosa do soldado.
Adeus! Lembre-se alguma vez de mim
sem odio. Magendie são horas! Se quereis ser
dos primeiros na batalha... a cavallo, e a galope!
X
Antes de se levantar o panno
Junot sobresaía no valor heroico. Era a
imagem viva dos paladinos cantados pelo
Ariosto. O peso das responsabilidades acurvava-lhe,
porém, o animo, e as complicações
do governo afrouxavam-lhe a vontade. Soldado
sem emulo na intrepidez facilmente
se offuscava no gabinete, ou no conselho, aonde
a sua estrella esmorecia com frequencia.
Grande, quando não era o primeiro, sentia
vacillar nas mãos o leme do Estado no exercicio
da suprema auctoridade.
Accrescentemos, para sermos justos, que a
culpa das infelicidades foi menos sua, do que
filha das ordens que o subjugaram de longe,
e das circumstancias que o opprimiram de
perto. A invasão de Portugal e a
usurpação
da Hespanha, dois attentados agravados por
meios ardilosos, assignalaram os primeiros
passos de Napoleão I para o precipicio, d'onde
se despenhou poucos annos depois.
A casa de Bragança e a dynastia dos Bourbons,
duas realezas desamparadas, dois cadaveres
(na opinião do conquistador), uma fugida
[106]
na America, outra expiando em Vincennes
as scenas de Bayonna, apenas lhe mereceram
que lançasse sobre ambas o seu manto
de abelhas para as sepultar! Riscadas do livro
de ouro dos soberanos pela espada, suppoz
erradamente o moderno Cesar, que tambem
acabariam de se extinguir no amor dos
subditos, como tinham desapparecido a um
aceno seu do theatro agitado da epocha. Cegueira!
Captivos os principes ou ausentes, a
saudade e os brios das nações armaram contra
elle adversarios mais terriveis. Pela primeira
vez se encontrou com os povos, e a sua
fortuna começou a empallidecer desde então.
Com estes novos adversarios a tactica e a
disciplina quasi que eram vans; as victorias
consumiam os vencedores; e cada gotta de
sangue, que tingia a terra, levantava uma legião
de inimigos.
A alliança das revoluções populares
com a
causa dos monarchas
proscriptos
mudou todas
as condições da lucta. As derrotas não
provaram
nada em favor dos invasores; pelo contrario
os revezes anniquilavam exercitos completos.
O exemplo de Bailén viera demonstral-o.
O duque de Abrantes via tremer em Portugal
pelos alicerces o edificio da dominação
franceza, e apprehensões rasoaveis diziam-lhe
que, desabando elle de repente, podia colhel-o
debaixo das ruinas, e aos seus companheiros
de armas. D'este receio se originaram os maiores
erros, que lhe censuram n'esta campanha.
Se não contrahiu a tempo as forças repartidas
pelos presidios do reino, é porque temeu,
aos primeiros rebates do canhão inglez, que
Lisboa lhe escapasse, e que as praças, chaves,
de provincias populosas, lhe cerrassem as
portas, obrigando-o a escolher entre a morte
do soldado e a capitulação affrontosa de
Dupont.
De dois males inevitaveis optou pelo
[107]
menor. A furia guerreira de seus granadeiros
podia talvez supprir a inferioridade do
numero; mas, sublevada a capital, e perdidas
as fortalezas, todas as esperanças de retirada
se desvaneciam. Foi o que o decidiu.
Sir John Moore abicára com o seu corpo de
tropas ás praias da Figueira. Sir Harry Burrard,
Clinton, e Murray com suas brigadas
já avistavam as costas de Portugal. Demorar-se
em repellir Wellesley equivalia a deixar
engrossar pela juncção a vaga
ameaçadora
dos contrarios. Junot lembrou-se, de que
não era costume seu recuar, e arremessando a
luva aos inmigos com tantas probabilidades
contra si, confiou talvez, em que um dos ultimos
raios do sol de Austerlitz viria illuminar
mais um dia de triumpho para as armas
francezas.
Calculadas pelos mappas, as tropas francesas
no dia 15 de julho ascendiam a vinte e
seis mil homens; porém, um mez depois, quando
se contaram as praças presentes para as
metter em linha, apenas appareceram dez mil
soldados effectivos! As marchas forçadas de
julho pela Extremadura e Alemtejo, as fadigas
e ardores do clima tinham devorado quasi
tres mil prostrados nos leitos dos hospitaes.
Cinco mil e seiscentos occupavam Almeida,
Elvas, Palmella, Peniche e Santarem. Dois
mil e quatrocentos guardavam Lisboa; mil
continham a bordo dos navios os prisioneiros
hespanhoes: e os tres mil restantes vigiavam
os fortes, as baterias, e as torres levantadas
nas duas margens do Tejo.
O duque, partindo para abrir a campanha,
já tarde conheceu, que em vez de conservar
sobre os inglezes a superioridade indispensavel
para os ferir e arrancar no momento dado,
sacrificára ao proposito secundario de assegurar
a defeza do rio e das fortificações do
[108]
reino a sorte das aguias imperiaes, avistando-se
com Wellington na proporção de
um contra dois, ou peior ainda, depois do
desembarque das quatro mil e duzentas bayonetas
dos brigadeiros Anstruther e Ackland,
desembarque operado durante o dia e parte
da noite de 20 de agosto. Apezar d'isso, resolveu
Junot, não só pelejar, mas sahir ao encontro
de sir Arthur, e combatel-o aonde o encontrasse.
O astro do imperio resplandecia
ainda sobre a Europa, e as victorias, companheiras
fieis dos capitães de Buonaparte, apenas
em Hespanha lhe negavam um, ou outro
sorriso. Mas a fortuna principiava já a cansar-se,
e o genio de Napoleão, unico digno de
a dominar, faltava n'este instante critico aos
batalhões desterrados no extremo occidente
pela sua ambição.
Foi em Torres Vedras, que o duque de
Abrantes concentrou todo o exercito, e que,
passando-lhe revista, encontrou só onze mil e
quinhentos soldados, mesmo arrolando os
não combatentes. Duas divisões de infanteria
commandadas por Delaborde e Loison, uma
reserva de granadeiros, e uma divisão de cavallaria
ás ordens de Margaron, em força de
mil e duzentos homens, caçadores a cavallo,
e dragões, em quatro regimentos de dois
esquadrões
cada um, com vinte e seis bôccas de
fogo, regidas pelo general Taviel, compunham
todo o poder militar, de que dispunha
o logar-tenente de Napoleão I na vespera da
batalha, em que se iam travar braço a braço
as duas nações ha tantos annos emulas, e cada
dia mais implacaveis no designio de se supplantarem,
como se uma devesse necessariamente
offuscar a outra, ou como se a Europa
não offerecesse espaço sufficiente a ambas
para existirem e prosperarem.
Sir Arthur Wellesley, nos exordios da sua
[109]
carreira na Peninsula, logo revelou as qualidades
que o habilitavam a competir com os
mais illustres capitães sem desafiar um d'aquelles
immensos desastres, que immortalizam
nas paginas da epopeia napoleonica o
infortunio de tantos generaes. Concedendo
pouco, ou nada, ao acaso, e não estribando
as combinações nos rasgos duvidosos de temerarias
emprezas, concebêra o seu plano
com a prudencia fria, que sempre em tudo
caracterizou seus calculos. Prevendo que, senhores
de Lisboa, os francezes podiam atravessar
o Tejo sem obstaculo, assoberbar as
provincias do sul, e communicarem, por via
d'ellas, com a fronteira hespanhola, e não
querendo arriscar-se a um revez possivel no
ataque de Torres Vedras, determinára tornear
o exercito do duque de Abrantes por um
movimento audaz, cortando a marchas forçadas
pela estrada de Mafra, e chegando adeante
d'elle ás portas da capital. A sir John
Moore cumpria ao mesmo passo descer de
Coimbra e occupar Santarem, vedando tambem
por este lado a retirada dos contrarios.
Estavam expedidas as ordens n'este sentido,
e marcados o dia e a hora, em que haviam de
principiar a executar-se. Mas sir Harry Burrard,
tenente general mais antigo, e segundo
commandante das tropas britannicas, afferrou
no dia 20 de agosto a enseiada de Maceira, e
Wellesley foi immediatamente a bordo conferenciar
com elle, e expor-lhe o verdadeiro
estado das operações. Sir Harry não
formava
exacto juizo das forças de Junot, nem sabia
apreciar as difficuldades, que podiam oppor-lhe.
Ignorava tudo. A tenacidade da resistencia
de Laborde na Roliça infundia-lhe receios,
e antes de se medir com os francezes quiz
ter proximos os onze mil auxiliares de sir
John Moore, ordenando a sir Arthur, que se
[110]
sustentasse no terreno, aonde acampára, e
expedindo avisos sobre avisos aos navios
fundeados no porto da Figueira para que o
desembarque de suas tropas se realizasse nas
proximidades da Lourinhã.
As posições occupadas por Wellesley eram
seguras e pouco accessiveis. O Vimeiro assenta-se
no regaço de um valle banhado pelas
aguas do Maceira. Ao norte altea-se em seios
sinuosos um ramal de collinas, cortado da
parte de leste por uma quebrada rota em
largo barranco. A estrada da Lourinhã atravessa
por cima dos cabeços d'esta cordilheira
passando pelos casaes de Fontanel e da Ventosa.
Nas costas do Vimeiro, ligadas quasi
as primeiras casas da povoação com suas
faldas, ergue-se uma montanha, meio vestida
de arvores e matas, meio nua e escalvada.
De seu topo annuviado descobriam-se os caminhos
e sendas, torcidas em diversas direcções
para Torres Vedras. Sobranceira a esta
elevação, enlaçando-se os montes, e
empinando-se
uns por cima dos outros, corre a serrania,
a qual em ondulações, mais ou menos
asperas, se prolonga quasi a beijar o mar,
abraçando do lado de oeste todo o espaço
comprehendido entre a margem esquerda do
Maceira e a orla da costa.
Seis brigadas ás ordens de Hill, Crawford,
Ackland, Nightingale e Fergusson, com as
avançadas sobre a estrada de Mafra, guarneciam
as alturas com oito peças de artilheria,
em quanto as brigadas Anstruther e Fane,
com meia bateria de 9 e
meia bateria
de 6 defendiam
a montanha. A cavallaria guardava
as bôccas do valle, e um piquete de portuguezes
e de
riflemen observava a estrada da
Lourinhã.
Eis a disposição do acampamento inglez antes
das vedetas dispararem os primeiros tiros.
[111]
O duque de Abrantes não mandára reconhecer
o exercito inimigo, e sabia apenas pela noticia
dos destacamentos de cavallaria, que tinham
batido o terreno como exploradores,
que elle estava reunido no Vimeiro, e que de
noite se tinham visto arder tres linhas de fogueiras.
A impaciencia natural e a necessidade
não lhe consentiram maior informação.
Instava
com elle tudo para que precipitasse o
encontro decisivo. Lisboa, agitada e descontente,
podia libertar-se de um momento para
outro, sopeando a pequena
guarnição
que a
refreava. Os inglezes tinham tudo a lucrar, e
elle tudo a perder com a demora. Em circumstancias
assim apuradas, o melhor conselho
era combater logo, sem escolher o campo,
sem contar o numero.
Suas instrucções foram promptas e audazes.
A cavallaria com o grosso da infanteria marchou
no dia 20 á noite pelo desfiladeiro, que
de Torres Vedras desemboccava no ponto, aonde
se bifurcavam as estradas do Vimeiro e
da Lourinhã. Aos primeiros clarões do dia 21
Armand d'Aubry, e o capitão Magendie, os
quaes em poucas horas de trote rasgado tinham
vencido as sete leguas, que os separavam
do campo francez, encontraram já os
corpos em descanso a legua e meia dos postos
avançados de sir Arthur, o qual não inculcava
haver-se apercebido ainda de sua
visinhança.
Do sitio, aonde as tropas respiravam da rapidez
de marcha, ás eminencias por cima da
povoação do Vimeiro, encoberta com relevo
do terreno, alargava-se uma charneca, toda
areia e rochas, que em ingremes pendores
baixava por uma parte até ao barranco no
fundo do qual se apinhavam os tectos da aldeia
de Toledo, e pela outra vinha quasi tocar
as bordas do Maceira, cuja corrente preguiçosa
[112]
scintillava no seu leito, illuminada dos
raios nascentes do sol, que já em todo o seu
esplendor dourava os cumes dos montes, recortados
no celeste azul e transparente, inundando
de jorros cada vez mais vivos de luz
os terraços e as encostas das montanhas, os
valles e os desfiladeiros, aonde as sombras
mais tempo luctam com a claridade matutina.
Junot avançou direito ás alturas, com a
cavallaria
na vanguarda, com a infanteria formada
em columnas de duas brigadas, e com a
artilheria nos intervallos. D'Aubry recebeu
ordem ao mesmo tempo de avisar o coronel
do 3.º provisorio de dragões para que, atravessando
a quebrada perto da aldeia de Toledo,
se elevasse até ao moinho de vento de Fontanel,
e ahi extendesse as filas brilhantes de
seus cavalleiros pela corôa dos serros, cortando
a estrada do Vimeiro á Lourinhã.
A vista do bello regimento, campeando
descoberto no posto, que lhe fôra designado,
deu o primeiro signal da batalha.
A manhã rompia serena e clara. Sir Arthur
Wellesley, que n'este dia principiou a saír da
meia obscuridade para as paginas luminosas
da historia, rodeado de um luzido estado
maior, mettia o pé no estribo, quando chegaram
as primeiras noticias do inimigo. A physionomia
do general, placida e firme, não denunciava
em nenhuma nuvem os cuidados do
commando. D'ahi a pouco a cavallo, silencioso,
e attento, todos o viram consultar com o
oculo os horizontes nas direcções d'onde deviam
surgir os contrarios, enviando de curtos
em curtos espaços a todo o galope um ajudante
encarregado de suas ordens. O socego
profundo da natureza, o riso das plantas ainda
frescas dos orvalhos nocturnos, os vôos rasteiros
das aves, e os murmurios brandos da
corrente, contrastavam com os ruidos do
[113]
campo, nuncios e precursores da procella, de
que a ira dos homens inflammaria em breve
aquelles pacificos contornos.
Entre o primeiro sobresalto da presença dos
inimigos, e os primeiros rebates interpoz-se
longa pausa. De parte a parte os exercitos,
como dois luctadores antes de entrarem no
circo espreitaram os movimentos um do outro,
calculando todas as vantagens.
Antevendo o ataque pela frente e a esquerda
de suas posições, sir Arthur destacou para
as alturas da estrada da Lourinhã a brigada
Fergusson, e logo atraz as de Nightingale, de
Ackland, e de Bowes. Em breve a montanha
do Vimeiro, em que ha pouco se accumulavam
reunidas as forças de seis brigadas, appareceu
quasi desguarnecida, não conservando mais
que os tres regimentos de infanteria de reserva,
confiados á pericia do general Hill.
As tropas portuguezas, ás quaes se tinham
aggregado recentemente sessenta soldados de
cavallaria da policia, capitaneados por Manuel
Coutinho, duzentos artilheiros de Valença,
fugidos da praça de Peniche, o coronel de milicias
de Leiria, o morgado de Penim,
e outros voluntarios, postados a principio no
valle, foram logo mandados subir tambem a
encosta, para formarem na planura do monte
com a brigada Crawford.
O duque de Abrantes acompanhou estes
movimentos da esquerda dos inglezes, ordenando
as manobras correspondentes.
A brigada Brenier, por ser a mais proxima,
adeantou-se em auxilio do 3.º de dragões, e a
brigada Solignac, que seguia em columna a
de Brenier, carregou egualmente sobre a direita
com seis peças de artilheria. Assim, antes
de ferida a peleja, metade das forças britannicas
operava na estrada da Lourinhã, opposta
a um terço pouco mais, ou menos, do
[114]
exercito francez; mas a differença era notavel.
O movimento de Junot, inopinado e fortuito,
deixára grande distancia entre a direita
reforçada
e o principal corpo do exercito, em
quanto os inglezes, pelo contrario, se ligavam
concentricamente, não aproveitando menos os
cinco regimentos de Bowes e Ackland ao general
Fergusson, do que á defeza do Vimeiro,
cujo aspecto infundia respeito até aos veteranos
pela sua apparencia marcial.
O espectaculo dos dois exercitos, avisinhando-se
um do outro, era bello e grandioso.
A infanteria ingleza com os seus uniformes
escarlates, dragonas brancas de lã, e barretinas
largas de couro ornadas de pennachos de
varias côres, desfilava a marche-marche cerrando
filas, e mettendo em fórma. Duas linhas,
cujas oscillações, cessando de repente se
converteram na immobilidade da firmeza,
postadas nos contrafortes e terraços da montanha,
dominavam em amphitheatro as ladeiras
aprumadas por onde os soldados de Junot
haviam de avançar. Por cima d'ellas, mais
atraz, e na rectaguarda das posições, ainda os
serros se coroavam de bayonetas. Era a terceira
linha extendida pela brigada do general
Hill! Os canos luzentes das espingardas, e os
ferros de lança dos estandartes scintillavam;
as chapas douradas dos capacetes da cavallaria,
os peitos de aço e as espadas nuas dos
soldados, faiscavam, deslumbrando. De intervallo
a intervallo, no cume de um pico mais
alto, na cabeça de uma collina mais elevada,
reluziam as peças de bronze assestadas, e
ainda silenciosas.
O galope dos esquadrões, ennovellando-se a
distancia entre rolos de pó, a brava alegria
dos clarins, o desafio das trombetas, o rufar
dos tambores juntos ás harmonias guerreiras
das musicas, ao ondear das bandeiras soltas
[115]
ao vento, e ao galope dos corseis dos ajudantes
e generaes, cruzando a paizagem em todos
os sentidos, compunham um quadro animado
e vívido, que levava apoz si os olhos e
a vontade, incendiando de enthusiasmo os
animos mais timidos e indifferentes.
Ia romper-se a batalha. Armand d'Aubry,
rodeando com a vista todo o campo, como o
falcão paira dos espaços sobre a presa, disse
para Lassagne, cujo sorriso parecia convidar
os perigos:
―Julio! Dias como este nunca mais esquecem!
Olha como os inglezes nos aguardam!
Faz gosto vel-os assim de marmore em suas
linhas, e saber que a nossa espada fará calar
em breve os rugidos d'aquellas bôccas de
bronze em que Wellesley confia para nos deter!...
Logo verá de que lhe valem!
―Se as calarmos! redarguiu o tenente. Os
soldados que alli temos, não se afugentam
como guerrilhas.
―Melhor! Quanto mais cara, mais gloriosa
será a victoria! Quando mandará o duque
romper o baile?! Sinto uma impaciencia!...
―Escutai! Eil-o que principia! atalhou
Lassagne. Se a fortuna proteger as armas da
França, este dia póde ser um grande dia!
E largando as redeas, os dois partiram a
bom correr para o posto, que haviam de
occupar, e aonde Magendie e outros officiaes
esperavam já por elles.
XI
A batalha
Deram oito horas da manhã. Um silencio
profundo afogou de repente todos os estrepitos
e todas as vozes nos dois campos. Similhante
á pausa abafada, que precede os gemidos
da procella, em breve iam rebentar d'este
silencio momentaneo, todas as tempestades,
que o odio e as paixões encerram.
A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia
dos defensores promettiam aos soldados
de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as
massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam,
nem paralysaram, o seu esforço. A
divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento,
como se á ira dos homens se antepozessem
as consolações do ceu, ouviu-se o repique
longiquo, mas claro, de uma sineta, na
capella da aldeia, convidando os fieis á
oração.
Logo apoz reboou, immensa e prolongada,
acclamação
festiva dos batalhões francezes. Era
a brigada Thomières, que a passo ordinario, e
com os estandar
A fortaleza das posições do Vimeiro, e a valentia
dos defensores promettiam aos soldados
de Junot disputada lucta. Apezar d'isso as
massas accumuladas nas eminencias, nem suspenderam,
nem paralysaram, o seu esforço. A
divisão Laborde começou o ataque. N'esse momento,
como se á ira dos homens se antepozessem
as consolações do ceu, ouviu-se o repique
longiquo, mas claro, de uma sineta, na
capella da aldeia, convidando os fieis á
oração.
Logo apoz reboou, immensa e prolongada,
acclamação
festiva dos batalhões francezes. Era
a brigada Thomières, que a passo ordinario, e
com os estandartes desenrolados, partia intrepida
a escalar as escarpas da montanha, d'onde
tres linhas inabalaveis juravam repellil-a.
[117]
Cobria-lhe a frente uma nuvem de atiradores.
Os reparos dos canhões, rodando nos
flancos, abalavam o chão, confundindo com o
tropear da marcha o seu rolar soturno. O espaço,
que separava os contendores, depressa
se encurtou; o vulto da columna depressa se
estreitou tambem, e diminuiu na distancia.
Uma orla de fumo alvacento, franjada de relampagos,
elevou-se lentamente da testa da
linha no meio de detonações repetidas. Ao
mesmo tempo os tambores, as trombetas, as
gaitas escocezas, as cornetas, e os cheios sonoros
dos instrumentos bellicos romperam em
harmonia guerreira do centro das brigadas
inglezas. Encostando as coronhas ao hombro,
com os murrões accesos junto ao ouvido das
peças, os soldados de Wellesley acceitavam
resolutos o desafio das aguias francezas.
D'ahi a um momento ao trovão da artilheria
juntava-se o estampido de milhares de fuzis.
A montanha, silenciosa e fria até então,
vestiu-se
de clarões lividos, e uma densa nuvem de
fumo, baixa e quasi immovel, véu sinistro,
escondeu os combatentes da vista anciosa dos
espectadores. De instante em instante novas
explosões atroavam o campo, e por entre os
rolos de pó e as fumaradas dos tiros faiscaram
como fitas tortuosas de lume as descargas
dos batalhões. Os pelouros, bastos como
granizo, silvaram, varejando as fileiras. As
balas de artilheria, cortando o ar, e zumbindo,
vinham enterrar-se, escarvando o solo aos pés
das companhias, ou, rasgando-lhes e esmigalhando-lhes
as filas, abriam por meio d'ellas
cruentas e largas brechas, assignalando no
chão juncado de cadaveres e moribundos o
seu rasto destruidor.
Pendurados das ingremes ladeiras, ouvindo
por cima das cabeças estourar a voz de bronze
dos canhões, sentindo debaixo dos pés retremer
[118]
e escorregar a terra, no meio de uma
atmosphera ardente, ora atropellados pelos
que a morte despenha adeante das pontas dos
alcantis, ora impellidos pelo tropel impaciente
dos que atraz d'elles bramem e se apinhoam
na subida, os soldados do regimento 26.º, respondendo
com a audacia do silencio á tempestade
vomitada das cristas das alturas, alcançam
por fim a aresta da montanha, conquistam
a beira da planura, e arremessam-se
como leões raivosos, em linhas crespas, contra
a muralha de aço, que lhes oppõem o 5.º
regimento inglez. Foi como o encontro de
duas nuvens carregadas de electricidade. A
meia distancia uns dos outros, os canos das
espingardas inclinam-se, dois relampagos immensos
lambem a face das columnas, e o ruido
de duas descargas quasi unisonas ribomba
de cerro em cerro até aos valles.
As vozes dos chefes por cima dos mil rumores
da peleja, e o tinir do ferro nos pelotões
calando bayonetas soam distinctamente
durante a curta pausa, que se segue. Depois,
violentos estremeções sacodem os membros
convulsos dos dois corpos gigantes, e n'um
abrir e fechar de olhos ambos se precipitam
um contra o outro, esperando suffocar-se
n'este abraço, em que toda a sua colera ruge
frenetica.
A cortina de fumo, que os encobre, adelgaçando,
rarea-se um pouco, e o duello temeroso
dos dois regimentos, arcando peito a peito,
com os ferros apontados ao coração, brilha por
momentos em toda a sua magestade!
Loison e Charland, com os batalhões 32.º e
82.º já a esse tempo estavam travados com
tres dos regimentos de sir Arthur, o 97.º o
43.º e o 52.º. As linhas britannicas,
abaladas
pelo furioso embate, vacillam, encurvando-se.
O impetuoso encontro das companhias francezas,
[119]
sulcando-as, e mutilando-as em partes,
cuida um momento tel-as arrancado, desordenadas
e vencidas, do solo a que a disciplina
parece arraigal-as. Mas a confusão dura apenas
minutos! As filas confundidas reconstruem-se,
e os assaltos vertiginosos dos guerreiros
de Thomières e Loison quebram-se em
vão contra a firmeza admiravel d'aquelle rochedo
humano!
O sangue ensopa o chão, amortecendo o ruido
dos carros e reparos, e o estrupido medonho
dos pés dos combatentes. A chamma das bôccas
dos canhões e fuzis cresta o rosto dos mais
avançados. Fileiras sobre fileiras, minadas
pelo bater incessante dos pelouros, escorregam
no solo humido de carnificina, e prostram-se
depois para não se levantarem, conservando
apenas, aqui, e acolá, de pé, um ou outro
soldado,
sentinella perdida, que sobrevive ao
estrago commum.
De lado a lado mordem o pó os mais valentes.
O coronel Pillet e o general Charland, feridos,
multiplicam as ordens e o esforço. O
tenente coronel Peytavy adormece do somno
dos fortes. Os inglezes pelejam com pouco
enthusiasmo, mas com tenacidade indomita.
Sem retirada, a derrota equivale para elles a
um desastre sem nome. Nas suas costas aprumam-se
despenhadeiros a pique; a seus pés
ronca o mar enfurecido! Wellesley sabe-o,
mas conta com os obstaculos naturaes, e com
o valor e o numero de suas tropas. As columnas
de Junot não são assás profundas para
varrerem na ponta das bayonetas as tres linhas,
que têem defronte.
Kellermann desdobra os batalhões da reserva
a dois tiros de peça do Vimeiro. O duque
d'Abrantes, perto d'elle, contempla o progresso
dos ataques de Delaborde e Loison. Uma
ordem sua manda marchar em auxilio dos
[120]
dois generaes o 2.º de granadeiros, commandado
pelo coronel Sainte-Claire. Avançando
em columna, e em pelotões, o regimento costêa
a quebrada, que baixa á direita para o barranco,
aonde passa a estrada do Vimeiro a
Toledo. Os inglezes, desopprimidos das forças
de Delaborde, constrangidas a recuar,
respiram por instantes, recuperando-se á pressa
dos golpes precedentes.
Avistando os inimigos, que se adeantam,
são suas disposições promptas e
decisivas.
Os artilheiros assestam contra elles as bôccas
de dezoito canhões e obuzes, e dando-lhes
fogo a um tempo cobrem o terreno de projectis.
As balas ôccas dos obuzes, enfiando filas
inteiras, vem rebentar como bombas e granadas
no centro dos segundos pelotões. Cuidam
que o espanto e o terror dissiparam o ataque,
e que os francezes cedem sem entestar com
suas linhas! Illusão! Mal protegido pelos
frouxos tiros das baterias da primeira divisão
e da reserva, investindo por baixo de uma
chuva de balas, que o consome, o regimento,
como se entrasse em parada, prosegue inalteravel,
semeando de mortos e feridos todo o
caminho, e pagando com torrentes de sangue
cada passo adeantado. Os que se aprestam a
rechaçal-o, sentindo-o acercar, sem o ver, pelo
som cada vez mais forte da marcha, vencem
a custo o sobresalto inspirado por aquelle
silencio ameaçador, grávido da
vingança
de tantas perdas.
Finalmente as pontas das bayonetas relampejam
sobranceiras ás cristas da montanha, e
as companhias, desfilando a cincoenta toezas
da planura, principiam a formar-se em batalha.
De repente, espectaculo doloroso, porém
cheio de grandeza(!), um mar de fogo irrompe
de todos os lados, e envolta em chammas a
pequena columna oscilla, arqueja, relucta
[121]
ainda, mas em vão e alue-se por fim, crivada
pelas descargas convergentes da mosquetaria
de seis regimentos! As explosões das peças
acompanham o trovão rolante das descargas,
os clamores do combate, e as ameaças dos
tambores e cornetas. Os cavallos de trem da
artilheria franceza extendem-se uns após outros,
deixando os reparos desmontados. Os
coroneis Foy e Prost pugnam debalde, e salpicam
de sangue os canhões emmudecidos.
Os primeiros pelotões de infanteria varridos
pelo tufão de metralha desapparecem fulminados,
e quando o fumo, que cega o campo,
se desvanece, do bello e soberbo regimento,
cujos brios os contrarios mesmo haviam applaudido,
apenas restam reliquias, que em
troços dilacerados se derivam fugitivas pela
encosta, golfando de todos os membros o sangue
de mil feridas!
Kellerman, que seguíra o 2.º de granadeiros
com o 1.º regimento, ás ordens do coronel
Morancin, atravessado o barranco, fôra encontrar-se
de rosto com a brigada de Ackland.
Sir Arthur, notando cuidadoso este movimento
contra o centro, e receando pela povoação
do Vimeiro, tractára de anniquilar sem demora
o novo ataque. As tropas britannicas baixaram
em forças duplas sobre a columna de Kellermann,
e flanquearam-n'a. Não contente ainda
com a fuzilaria cerrada, que dizima as fileiras
contrarias, o general inglez arroja sobre
ellas o impetuoso choque de quatrocentos cavallos
do 20.º de dragões ligeiros, da guarda
de policia portugueza, e dos voluntarios da
Beira Alta e Extremadura.
Os granadeiros, colhidos no meio de um
verdadeiro furacão de ferro, antes de poderem
formar quadrado, vêem reluzir sobre as cabeças
os sabres dos dragões e as espadas da
cavallaria portugueza, á qual a voz e o exemplo
[122]
de Manuel Coutinho, do coronel de milicias
de Leiria, do morgado de Penin, e dos
outros cavalheiros, que dias antes encontrámos
no palacio da Asseca, infundem animo
superior a maiores emprezas. As aguias rojam
no pó pela primeira vez, e o amante de
Leonor, alcançando a preço de ferimento leve
a gloria de tomar um dos estandartes fadados
até então pela victoria é saudado com
vivas
e felicitações pelos soldados, ebrios de
enthusiasmo.
Os granadeiros acutilados dispersam-se deante
dos cavalleiros, que os perseguem, alastrando
o terreno de victimas, destroços, e captivando
quasi a cada passo os que fogem, arremessando
as armas.
―Safa com a calma! brada um dos officiaes
portuguezes, que a farda, a estatura herculea,
e a voz atroadora denunciam de longe ser
o bellicoso patriota, o major Alvaro. Trago
os miolos assados dentro d'esta barretina,
d'esta maldita panella. Forte asneira! Pôrem á
cabeça da gente um cantaro que peza arrobas!
Trago a camisa pegada ao corpo de suor!
―Que dia, meu amigo, que grande dia! disse
o capitão-mór de ordenanças de Leiria,
Manuel Carranca, limpando junto d'elle a testa
com a aba verde da farda, e restabelecendo
o equilibrio ameaçado pela carreira do cavallo,
um pouco fogoso de mais talvez para
a sua pericia equestre. Não sinto já o
braço de
jogar cutiladas a estes cães, sr. Alvaro! Respiremos
um instante!
―Pouco os acúa! Não me estejam a fazer
de um agreiro um cavalleiro! accudiu o alcaide-mór
Rodrigo Crespo com a serenidade de
um veterano callejado. Isto de que os senhores
se admiram não é nada em
comparação do
que foi pelo Roussillon! Se caíssem sobre um
quadrado a espirrar fogo por todos os lados,
[123]
e crespo de bayonetas como um ouriço, então
veriam. Mas estes granadeiros, que se derretem
como alcôrce mal os cavallos lhes fungam
ás barbas?! Historia!... Olhe, sr. Isidoro
Pinto! ajuntou, voltando-se para o coronel de
milicias, que acabava de sofrear o ginete, e
que o escutava. Olhe como Manuel Coutinho,
vae guapo na frente. Corre que desapparece!
Ah, rapazes, rapazes!
―Bom sangue não mente! redarguiu o velho
cavalheiro, resguardando a vista do sol
com a mão curva, e contemplando o espectaculo
terrivel e variado, que se descortinava
no campo por todas as partes.
―Ah, meu coronel! exclamou o major Alvaro
escarlate de fadiga e de regozijo. Tenho
engulido mais de dois alqueires de terra, ando
todo n'um lago, mas juro-lhe por todos os
sanctos da côrte do ceu, que não trocava por
um condado a alegria d'esta hora... Como
elles fogem! Parecem gamos! Ah senhores
francezes, cheira-lhes a esturro a nossa polvora?
Bravo! Lá apanharam os inglezes um
pelotão quasi inteiro! Fortes covardes!...
―Não diga isso, senhor Alvaro! atalhou o
coronel Isidoro Pinto. Agradeça a Deus o
que estamos presenciando, e antes de tempo
não cante victoria! Os francezes são valentes
soldados, e aqui mesmo o estão mostrando.
Fogem estes, e quem sabe, talvez d'aqui a
nada tenhamos de fugir tambem. Agora por
elles, e logo por nós. São sortes da guerra.
―Qual fugir, nem meio fugir! gritou Rodrigo
Crespo, rindo desentoadamente. Mas
espera! Que é aquillo lá em baixo!
E alçando-se nos estribos apontava para a
linha de arvores de um pequeno bosque, copado
sobre a esquerda, d'onde principiavam
a enrolar-se certas ondas suspeitas de poeira,
[124]
avultando, como nuvem que desponta e se
desdobra, em corpo numeroso.
―Aquillo?! O que é aquillo? berrou o major
Alvaro depois de fitar por um pouco a
vista de lince no ponto designado. Aquillo
são francezes. É uma emboscada de cavallaria
jacobina. Estamos lambidos, com mil diabos!...
―Fale mais devagar, observou o experimentado
alcaide-mór. Noticias d'estas não se
gritam por cima dos telhados. É verdade, são
francezes, e com peças montadas e atiradores
na frente! Formam em columna e em pelotões
á saída do bosque! Temos festa!... Rapazes!
Alto! accrescentou virando-se para o
meio esquadrão de voluntarios que o seguia.
Apparece um grosso de cavallaria inimiga
pelo flanco! Sentido! Toca a reunir ao tenente
coronel Taylor.
E o alcaide-mór, collocando-se á testa do
meio esquadrão, ajuntava friamente voltado
para o major e para o capitão-mór:
―O sr. Isidoro Pinto tinha razão. Vamos
receber uma carga a fundo, e receio que a
nossa gente a não supporte. A confusão
desordenada,
em que a cavallaria ingleza corre
no alcance dos granadeiros, póde ser-nos fatal.
Em todo caso... somos portuguezes. Aqui
havemos de vencer ou morrer!
―Viva o principe regente! Viva a santa
religião! bradou o major floreteando a pesada
espada, e atirando a barretina ao ar.
―Viva Portugal, e sejamos homens! exclamou
o coronel sereno e intrepido, mettendo o
cavallo ao lado do do alcaide-mór.
―Eil-os comnosco! gritou Manuel Carranca.
Deus me perdôe! Como vem feros! Se
não fosse vergonha dizia, que mettem medo...
de longe!
―Póde dizer, que não lhe fica mal. Mais
[125]
d'estes lances tenho eu visto na minha vida,
e confesso-lhe que estimaria achar-me agora
em outra parte... São ossos do officio, não ha
remedio senão roel-os. Paciencia!
A conjectura do velho official era exacta.
Vendo disperso pelo fogo das brigadas e
pelo ferro dos dragões inglezes e da guarda
da policia o bello regimento de Morancin,
o general Margaron, emboscado desde o romper
da manhã com toda a divisão de cavallaria
franceza, deu por fim o signal do ataque,
signal, que Armand de Aubry, Lassage, e
muitos outros officiaes, não menos impacientes
do que elles, aguardavam cheios de ira,
e mordendo os beiços.
O formoso quadro, que offereciam á vista
os pelotões, desfilando a trote de entre as arvores,
cobertos por uma linha de atiradores,
e trazendo nos flancos as bôccas de fogo chamadas
da reserva, ao passo que enlevava os
olhos, confrangia o coração. De momento
para momento apertava o perigo dos alliados
soltos em carreira desenfreada após os vencidos.
Avançando em duas columnas, uma composta
da guarda do general em chefe e do
regimento 26.º de caçadores a cavallo,
ás ordens
do principe de Salm-Salm, a outra formada
dos regimentos 4.º e 5.º de dragões, na
frente dos quaes galopavam Margaron, os
majores Leclerc, Theron, e todo o estado
maior, os esquadrões francezes, desenvolvendo-se,
arremettem com os estandartes altos,
e as espadas núas, no meio da brava alegria
dos clarins, direitos a uma eminencia, que
precisam vencer para dominar o campo.
Similhantes a duas serpes monstruosas,
suas columnas enroscam-se, colleando pelas
veredas da encosta, e subindo, ora entumecem,
ora estiram os anneis luzentes pelas voltas
[126]
sinuosas, precedidas dos relampagos, que
fuzilam as bôccas das peças, do trovão,
com
que a artilheria annuncia a sua presença, e da
cortina de fumo, que ondeia e paira sulcada
de coriscos, sobre a ladeira opposta pela
qual já se precipitam os atiradores, investindo-a.
Vendo-os accommetter assim vistosos e intrepidos,
o tenente coronel Taylor olhou em
redor de si, e apontando para elles exclamou:
splendid! Soldado applaudia a
bizarra apparencia
de outros soldados dignos do seu valor!
Firme deante da ameaça d'aquelle golpe sua
voz resoa em brados viris superior a todos os
ruidos. Indifferente aos perigos, vôa, ora a
um, ora a outro lado, ordenando e confortando
os seus.
Os clarins britannicos e portuguezes respondem
altivos ao desafio guerreiro do inimigo.
As nossas bandeiras tremulam com orgulho
deante das bandeiras oppostas. Retrocedendo
em ondas loucas do alcance, que os attraíra,
os portuguezes e os dragões britannicos entram
nas fileiras uns após outros, e a ordem
de batalha reconstrue-se sobre o terreno já
cavado pelas balas dos francezes. Manuel
Coutinho e os officiaes unem os esforços aos
do valente capitão inglez e acodem á
confusão
inevitavel d'este momento de sobresalto.
―
Eil-os partem! exclama o amante
de
Leonor, vendo a cavallaria contraria arremessar-se
a todo o galope.
―Ávante! A elles, dragões! Bradou Taylor,
largando as redeas, e soltando o fogoso
ginete, cujas crinas ondeantes açoutam o ar.
Foi como o encontro de dois vulcões rolando
ennovelados por cima da terra, que parecia
gemer e vergar opprimida com a tempestade
de homens e cavallos, cujo estrondo abafado
[127]
recresce á medida, que as duas muralhas
de ferro se approximam.
O chão embebe-se rapido debaixo dos pés
dos corseis. Já não é senão
uma estreita orla
entre dois rolos de pó.
O sol bate de chapa sobre a planicie. As
armas scintillam despedindo clarões sinistros.
A distancia desapparece! As primeiras filas
topam em cheio. Um grito, uma explosão,
um estrondo horrendo, assonancia de mil clamores
e de mil estrepitos, acompanha o medonho
choque!
As fileiras baralham-se, e a peleja individualiza-se.
Os pelotões atiram-se uns contra
os outros como vagas furiosas e encapelladas,
estourando no meio d'aquelle mar agitado.
Com as redeas nos dentes, os cavallos empinados,
e a pistola, ou o sabre em punho, n'este
duello immenso composto de mil combates
parciaes, cada qual busca um contendor e logo
o esquece, derrubado e nas ancias da morte,
ou distraído no ardor da nova
provocação. Ao
fuzilar das espadas juntam-se as detonações,
a chamma fugaz dos tiros disparados á queima
roupa, e os jorros de fogo que illuminam
a frente das baterias.
A atmosphera suffoca. Ao alento fumegante
dos cavallos, nitrindo de colera, une-se a
respiração abrazada dos homens, cujos olhos
relampejam, cujo odio encanecido em momentos
devora o adversario alçado deante d'elles.
O sangue gotteja das armas e dos uniformes.
Gemidos e brados acompanham a agonia e a
vingança. Por meio d'esta scena de furia e delirio
feroz atravessam ginetes sem dono com
as crinas soltas, e cruzam esvaindo-se pelas
feridas corseis arrastando presos dos estribos
os cavalleiros moribundos. A lucta é toda de
força e destreza. Deslumbra a vista o faiscar
incessante dos golpes. As fileiras raream-se.
[128]
As vozes dos chefes retumbam por cima do
concerto horrendo dos combatentes travados
como feras no circo.
D'Aubry, fiel
á sua
palavra, mais
parecia
buscar a morte, do que a gloria. O seu braço
fere infatigavel; o seu peito offerece-se descoberto
ás balas e ao ferro. Por onde passa, os
mais fortes e audazes, recuam, ou caem. Manuel
Coutinho, ao lado de Taylor, viu-o atirar
o cavallo ao encontro do coronel, saír intacto
e invulneravel do arremesso de cem contrarios,
e avisinhar-se com a espada alta sobre
o commandante inglez.
Sentindo fugir-lhe o campo, e divisando rotas,
ou desordenadas suas fileiras, Taylor
accommette quasi só os inimigos com aquelle
supremo desdem do perigo, feição heroica do
seu caracter. Poucos dragões e alguns portuguezes
ainda o rodeam, porém já desfallecidos.
Os esquadrões britannicos recuam e fazem
já meia volta, retirando-se surdos ás ordens
e á desesperação dos
capitães.
Lassagne e o coronel inglez encontram-se
um defronte do outro por um d'esses acasos,
que a guerra tantas vezes arrasta. D'Aubry
luctava perto por abrir caminho, mas se podia
ver o combate, não podia soccorrer o companheiro
de armas. De subito a espada do tenente
francez faiscou baixando a cravar-se
no hombro esquerdo de Taylor, que a dor
faz vacillar nos arções, mas ao qual a ira,
restituindo
o alento, presta
novas forças.
Um golpe terrivel depressa o vinga, e Lassagne,
varado de uma estocada pelos peitos, baquêa
do cavallo em terra.
―Adeante! clama a voz do coronel, apertando
os joelhos ao cavallo, e floreteando o
sabre.
Não poude dizer mais. Uma bala suspende-o
na carreira. A mão inerte solta as redeas,
[129]
a espada núa escapa-lhe dos dedos, e o
corpo seguro na sella por segundos oscilla e
prostra-se afinal sem vida. A bala tinha-lhe
atravessado o coração!
Manuel Coutinho olhou e empallideceu. Na
mão de Armand d'Aubry fumegava ainda a
pistola, que disparára o tiro. A queda de Taylor
acabou de abalar os soldados já vacillantes.
Alguns d'elles comtudo, cercam d'Aubry,
accesos em raiva e esquecem tudo para saciar
o odio, que os abraza. Triste com a perda do
amigo, insensivel á propria morte, o mancebo
quasi que mal lhes disputa a existencia. Já
o sangue lhe corre de largas feridas, já a espada
lhe treme na guarda, já um véu principia
a turvar-lhe a vista, quando de repente
vê a larga folha de um sabre ameaçar-lhe a
fronte, outro ferro antepor-se e aparar a golpe,
e uma voz conhecida bradar-lhe:
―Rende-te!
Entregou a espada já sem ver a quem, e fechou
os olhos.
Quando tornou a abril-os, achou-se debaixo
do tecto de uma barraca de lona ingleza,
com o cirurgião-mór de um corpo britannico
ao lado, e Manuel Coutinho á cabeceira.
A batalha tinha terminado. A brigada Solignac
na estrada da Lourinhã, e a brigada Crenier
na assomada da Ventosa haviam tentado
tambem de balde a ventura das armas. A fortuna
de Wellesley foi mais poderosa. As posições
do Vimeiro, immortalizadas pela firmeza
dos alliados, repelliram todos os ataques.
No fim de duas horas e meia de fogo, os
francezes contaram fóra de combate mil e
oitocentos homens entre mortos e feridos,
bastantes prisioneiros, entre elles o general
Brenier, e treze peças de campanha perdidas,
com vinte e tres carros de munições. O duque
de Abrantes, salva a honra, inclinou-se
[130]
deante da adversidade, e ordenou a retirada.
Restava-lhe morrer, capitular, ou abrir
pelo meio dos inimigos a retirada. A sorte
compadecida não quiz que elle encontrasse
um tumulo em Portugal, aonde quasi possuira
um throno. Por mão dos proprios adversarios
lhe franqueou as portas da patria.
XII
Sol entre nuvens
Voltemos áquella casa tão risonha do campo
do Ourique, aonde ouvimos as imprecações
de Manuel Coutinho, as palavras prudentes
do bispo de Malaca, e a resposta de
Leonor ás propostas de Lagarde. Apenas decorreram
algumas semanas, mas os successos
precipitaram-se, e tudo mudou de aspecto.
Entremos sem ruido pela alcova, cujas portas
de vidraça, recatadas pelo reposteiro de
seda, abrem sobre a sala, aonde vimos a filha
de Paulo de Azevedo jurar ao seu amante
eterno amor. Os moveis e o adorno do aposento
são ainda os mesmos. Os raios do sol
afagam de luz dourada as avezinhas, que saltam
nas gaiolas, e beijam as corollas das flores,
cujos variados matizes sobresaem, marchetando
os bellos ramos, que enfeitam as antigas
jarras japonezas em cima do marmore dos
tremós.
O gato valido dormita enrolado sobre o seu
coxim de lã. A agulha continúa esquecida, picando
a tela na folha começada mezes antes
no bastidor. Lá está aberta a
«Imitação de
[132]
Christo» na pagina, que Leonor lia, quando a
entrada de Manuel Coutinho a veiu interromper.
Além se descobrem, junto do espelho de
talha alta, os outros livros, fieis companheiros
da donzella, nas suas horas de tristeza e solidão!
Tudo parece o mesmo, e, todavia não sei
que invisivel e indiscreto delator logo revela
aos olhos, que o infortunio e as magoas já
não humedecem de suas lagrimas aquellas
paredes, aonde já se respira conforto e alegria.
Soam passos e vozes na rua mais proxima
do jardim. A areia range debaixo dos pés de
tres pessoas, que se encaminham lentamente
para a meia laranja rasgada deante da escada
de pedra.
Todas tres são nossas conhecidas. No meio,
mais grave e preoccupado, do que o vimos
nos dias de oppressão e de risco, vem o veneravel
bispo de Malaca. Conserva ainda o bondoso
sorriso e a serena expressão do semblante,
mas um véu de melancholia lança-lhe algumas
sombras sobre o rosto. Á sua direita
Manuel Coutinho com o braço esquerdo ao
peito parece escutar com impaciencia as
phrases, que Paulo de Azevedo solta com
vehemencia, todo inflammado em ira.
―Não, Manuel, não me convence! exclamava
o velho cavalheiro colerico. A capitulação
de Cintra é um opprobrio para nós, e uma infamia
para quem a assignou! Se foi para nos
tractarem como conquista sua, para nos venderem
a honra e a fazenda a retalho, excusavam
os inglezes de vir a Portugal. Estrangeiros
por estrangeiros cá tinhamos o Junot.
Ladrões por ladrões cá estavam Lagarde
e
Juffré. Não era necessario encommendarem-se
os Trant, os Dalrymple, e os Ackland!...
―Não vá tão longe, sr. Paulo de
Azevedo,
não seja injusto! accudiu o bispo, interpondo-se
[133]
mansamente. Louve a Deus pelas maravilhas
da nossa restauração, e não se afflija
tanto
com o mais. Tudo tem remedio.
―De mais, observou Manuel Coutinho, estou
certo de que os alliados já conhecem o
seu erro, e hão de cedo emendar o mal. Sir
Arthur Wellesley disse...
―Tão bom é elle, como os outros! interrompeu
Paulo, levantando a voz. Manuel Coutinho
é muito moço. Conto mais annos e mais
experiencia. Lembre-se de que tambem os
francezes entraram aqui com pés de lã, e
depois...
―Pois cuida?! É impossivel!...
―Cuido, sim, senhor. Não sei o que acham
os estrangeiros n'esta tira de terra, mas a verdade
é que todos a cubiçam, hespanhoes, francezes
e inglezes! Mas se estes de agora imaginam
representar ao vivo a fabula da ostra e
dos litigantes talvez se arrependam. Não hão
de comer a polpa e dar as cascas a Bonaparte
e ao principe regente! Em Portugal ainda ha
fouces roçadouras e espingardas caçadeiras
por essas choupanas para exterminar hereges
e traidores!...
―Socegue! Pois julga que o governo inglez
havia de cair na loucura de querer apoderar-se
do reino!? atalhou o bispo sorrindo-se. Os
generaes alliados não nos tractaram bem, concedo.
Faltaram ao respeito devido á rainha,
nossa senhora, dispondo sem audiencia
nossa, do que pertence á sua corôa; mas suppor
que o fizessem com o ruim sentido de substituir
a sua usurpação á de
França, não posso
crel-o!
―Creia o que quizer, senhor bispo; mas
saiba que o illude a sua bondade natural. Senão
diga-me: Estamos hoje a dez de setembro.
Ha oito dias, que o Tejo se vê coalhado de navios
de transporte e de vazos de guerra inglezes.
[134]Que
bandeira tremula em S. Julião, nos
fortes, em Paço d'Arcos, e em Belem? Uma
commissão de estrangeiros, em que só figura
por esmola um portuguez, abriu balcão no
largo do Loreto n.º 8, para tomar conta das
mobilias dos paços reaes, das
repartições publicas,
e dos objectos furtados dos arsenaes,
como de cousas inteiramente suas! Os francezes
acampam nas praças com as peças carregadas!
Os inglezes estão quasi ao lado d'elles!
Pode dar-me noticia de Bernardim Freire e
do exercito portuguez? Sabe aonde pára? Não
o pozeram fóra, a elle, que era de casa, para
se metterem a si de dentro?!...
―É verdade! respondeu Manuel Coutinho
um pouco enleiado, porque a amisade e respeito
ao velho cavalheiro o prendiam por um
lado, em quanto pelo outro se lhe figuravam
exageradas suas queixas e apprehensões. Mas
a capitulação foi negociada e assignada entre
Junot e os alliados! Talvez seja essa a causa
da falta do nosso general n'este momento.
―E essa falta, attestada pelo protesto, que
elle de certo ha de fazer como bom portuguez
e bom soldado, é a maior accusação,
que existe,
contra a insolencia, com que somos tractados!
bradou Paulo de Azevedo com os olhos scintillantes.
Pois dispõe-se assim da soberania,
da independencia, da honra, dos interesses, e
da
segurança de um
reino
amigo sem chamar
ás conferencias o general, que o representa, e
que empunha as armas para os sustentar?!
Aonde estariam a esta hora Wellesley, Dalrymple,
Beresford, e Moore, se as nossas villas
e cidades se não sublevassem, e se o nosso
exercito lhes não cobrisse a marcha sempre?
A bordo dos navios, ou vencidos e afogados
no mar! São muito esquecidos estes senhores
inglezes!
―E aonde estariamos nós, tambem, accudiu
[135]
Manuel Coutinho, por fim irritado, se esses
inglezes, que o sr. Paulo de Azevedo quasi
amaldiçôa, como inimigos, não
combatessem
pela nossa liberdade na Roliça e no Vimeiro?
Julga que as milicias de Bernardim Freire,
e os Terços tumultuosos eram capazes de desalojar
De Laborde, ou de vencer Junot?
Quer que sejamos injustos? Todos viram o
que succedeu. Foi ainda hontem! O sangue
vertido pelos estrangeiros em nossa defeza
está vivo e fresco. Não lhe parece cedo para
começarmos a ser ingratos?!...
―Ingratos?! Ah! Manuel Coutinho não
esperava similhantes palavras da sua bôcca!
Pois já se namorou tanto dos estrangeiros
n'estes poucos dias, que lhe esqueçam as
offensas da patria escarnecida, vilipendiada?...
―Ajudei a vingal-as no campo, sr. Paulo
de Azevedo! redarguiu o mancebo com alguma
altivez. O que digo vi-o por meus olhos.
O meu sangue correu tambem alli! Se defendo
os inglezes é porque os admirei como soldados,
e juro que não receio d'elles, que se
nos convertam em inimigos. Acredite! Agora
podemos confessar a verdade. As sublevações
das provincias não expulsavam os francezes
de Portugal!
―É tambem o meu voto! disse o bispo, pondo
a mão no hombro do velho cavalheiro, e
persuadindo-o mais pela amenidade do sorriso
e dos modos, do que com as palavras. Nós
sós contra tropas firmes e disciplinadas podiamos
ennobrecer de victimas o martyriologio
nacional; mas vencer parece-me que não.
Vamos, meu amigo. Melhor o fará Deus! Estamos
em suas mãos, e Elle por sua infinita
misericordia não ha de levantar de cima
d'este reino a protecção visivel, com que nos
está soccorrendo. Não vae tudo tão bem
como
[136]
devia ir? Fomos offendidos e aggravados?
Paciencia! Do mal o menos.
―Paciencia! exclamou o pae de Leonor já
mais brando. Paciencia?! Sinto arder o sangue
nas veias, e o pejo nas faces, quando leio
as proclamações e editaes d'esses libertadores,
que mandam como se não tivessemos
patria, rei, e independencia! Os francezes
riem-se de nós como de crianças enganadas.
Lagarde entrouxa e enfarda as riquezas de
Queluz. Junot tracta do Castello de S. Jorge,
e embarca caixotes e caixotes cheios de preciosidades.
Os traidores, que nos venderam,
vão saír com elle ricos e impunes, e
não nos
levam amarrados com gargalheiras de ferro
ao pescoço para nos venderem, como negros,
talvez porque não têem navios para tanta
gente!...
N'este momento os tres chegavam defronte
da escada. No alto, entre os humbraes da porta,
despontava, pallida e graciosa, a figura
delicada de Leonor, envolta em um penteador
de rendas, com um meigo sorriso nos labios.
―Alli está a nossa irmã da caridade, a nossa
fada! Leio nos seus olhos melhores noticias
dos enfermos! accudiu o bispo, acenando risonho
á donzella, que esperasse, e começando a
subir os degraus com a pausa da edade.
Manuel Coutinho córou de alvoroço, e a
sua vista, em um relance, disse tantos segredos
amorosos ao coração palpitante, que voava
para elle, que as faces de Leonor se avivaram
de instantaneo rubor.
Paulo de Azevedo, no peito do qual principiavam
a applacar-se as iras murmurando
ainda, apenas fitou a filha, sentiu de repente
o animo de todo sereno, e as mais grossas nuvens
dissipadas. A alegria intima espraiou-se-lhe
pelo rosto, e com a bôcca cheia de riso,
[137]
exclamou ainda do meio dos canteiros de flores:
―Ah! Ah! Pelo que vejo levantámo-nos
com a aurora e saímos fresca e viçosa com
ella?! Manuel, que fizeste á tua noiva, que
não te fala? Temos amuos, ou estaes hoje
deveras mal, filhos?
Os dois amantes, sorrindo-se, trocaram um
volver de olhos tão suave e enlevado, que os
anjos custodios de ambos, se não fossem tão
puros espiritos, teriam inveja ás felicidades
da terra.
Paulo percebeu e sorriu-se tambem, offerecendo
o braço a Manuel ainda ferido no braço
esquerdo, e contuso em uma perna, para o
ajudar a subir. Ao mesmo passo ameaçava
com o dedo a Leonor, accrescentando:
―Bem! Muito bem! Entendo! Estão apostados
para enganar o pobre velho, que já não
sabe de si, nem dos outros? Pois sim! Quer
saber, sr. bispo? Estes dois innocentes, que
não pestanejam deante de nós, que não
dizem
uma palavra com medo de que o ar os toque,
vou jurar, que já se viram e se falaram hoje
da janella?! Adivinhei? Sim, ou não, Manuel
Coutinho?
―Adivinhou metade. Já nos vimos, é verdade.
Agora falarmos não. Para que?
―De certo! atalhou o cavalheiro rindo com
malicia. Se não me esqueci do meu tempo de
rapaz, para que deu Deus olhos aos amantes,
senão para dizerem tudo callados? Vamos!
São mais do que horas de almoço. O passeio
e a disputa abriram-me o appetite! E d'Aubry?
Passou melhor a noite? O accesso não
voltou?
―Não, meu pae. Graças a Deus, está
salvo.
Disse-o o medico ainda ha pouco.
―Ah! o doutor Thomaz esteve por aqui?
Não me chamaram?! Com que então temos
[138]
homem? Estimo immenso. D'Aubry, apezar
de jacobino, é uma perola, e sou seu amigo
verdadeiro. Aquelle coração...
―É um nobre e grande coração, sr.
Paulo,
um coração de ouro! atalhou Manuel
Coutinho. Devemos-lhe muito, e ainda bem
que o acaso me trouxe pela mão ao sitio em
elle de proposito se estava deixando matar!...
―E o outro francez, o tenente Lassagne?
observou o bispo depois de beijar Leonor na
testa com paternal carinho. Tenho por elle
tanta sympathia!...
―Está livre de perigo tambem, disse-o o
doutor, redarguiu Leonor.
―Podem pezar-se ambos a cêra, que no estado,
em que os vi entrar aqui nas macas, não
cuidei nunca que escapassem. É verdade,
que reis não eram tractados com mais desvelo.
Leonor! Nasceste mesmo para mulher de um
capitão. Foste uma enfermeira exemplar.
―Devia-o ser, meu pae. Não foi d'Aubry
quem abriu as portas da sua prisão e enxugou
as nossas lagrimas? Manuel lembrou-se,
e, salvando-o, verteu por elle o seu sangue.
Eu! Havia de fazer menos e ser ingrata?
Quando voltar a França, não ha de dizer, que
a nossa memoria foi mais curta, do que o beneficio.
Achou em Manuel um irmão...
―E em ti uma irmã! Muito bem! Elle merece-o.
Sabes a minha pena? É aquelle maldito
Lagarde! Porque ha de Aubry ser sobrinho
de similhante velhaco?! Se não fosse
isso! Antes do senhor intendente nos dizer
adeus, havia de ajustar com elle as minhas
contas! Entremos. Com aguas passadas não
moem moinhos.
Os tres entraram, e em quanto elles almoçam
e conversam, informaremos nós o leitor
em duas palavras dos acontecimentos a que
alludiram no jardim, quando os encontrámos.
[139]
A batalha do Vimeiro provou ao duque de
Abrantes, que lhe escasseavam as forças para
arrancar os inglezes de Portugal. Kellermann,
acompanhado de dois esquadrões de cavallaria,
apresentou-se no quartel general inglez, e
aproveitando habilmente a timidez e a falta
de tacto de sir Hew Dalrymple, negociou com
elles a famosa capitulação de 30 de agosto,
que tomou o nome de villa Cintra, aonde foi
assignada, e que feriu ao mesmo tempo o orgulho
britannico e o amor proprio nacional,
murchando metade dos louros da victoria, e
esmorecendo o enthusiasmo, com que Portugal
abria os braços aos alliados, e os acclamava
restauradores da sua independencia!
Os francezes por ella obrigaram-se a evacuar
o reino com armas e bagagens, não como
prisioneiros, mas como tropas em armas, que
os navios britannicos haviam de desembarcar
em Rochefort, podendo servir na guerra apenas
entrados na sua patria. As praças de
guerra deviam ser entregues aos soldados
inglezes! Ao exercito era livre transportar
comsigo, além da artilheria e do trem, a caixa
militar, e tudo o que pertencesse aos corpos
e aos chefes! Os feridos e doentes ficaram entregues
ao cuidado do governo inglez. Junot
prometteu concentrar as suas divisões a duas
leguas de Lisboa, e o general em chefe sir
Hew a tres leguas. A convenção
affiançou de
mais a segurança e a impunidade das pessoas
addictas ao dominio dos invasores, e a troca
de todos os prisioneiros desde o começo das
hostilidades. Dos portuguezes, do seu rei, dos
seus direitos, nem uma palavra! Foi como se
não existissem! Nem os ouviram, nem os attenderam!
O general Bernardim Freire de Andrade,
aggravado do completo esquecimento ou antes
do desprezo, com que viu omittida a sua
[140]
patria n'estas memoraveis estipulações, protestou
contra ellas em 14 de setembro, e suas
justas queixas, inseridas nas folhas de Londres,
exacerbaram ainda mais a indignação
do povo inglez. A capitulação, condemnada
como um acto vergonhoso, mereceu o stygma,
de que a flagellou a soberba imprecação de
Byron em um dos cantos de
Child
Harold.
O duque de Abrantes affrontou a adversidade
com valor, e houve-se com destreza antes,
e depois do revés. Escarneceram-o por
mandar illuminar Torres Vedras na vespera
da batalha, festejando antecipadamente o triumpho!
As luminarias eram para illudir e
conter as iras da capital. Recolhido de novo
á côrte, á testa de suas tropas, a
impaciencia
dos habitantes, por mais que o desejasse,
não poude ler o annuncio do desastre no
seu rosto impenetravel. Sereno e intrepido
conservou seguras até ao ultimo instante as
chaves!
A anciedade attribulou muitos dias o animo
dos moradores. Lagarde e a Policia, caso
raro (!) alcançaram entreter as incertezas, encobrindo
a noticia da convenção. Os primeiros
signaes da liberdade proxima deu-lh'os sómente
em 2 de setembro a entrada dos navios
britannicos no Tejo. O exercito francez principiou
a embarcar por divisões, e com elle se
abrigaram egualmente debaixo dos estandartes
estrangeiros os portuguezes compromettidos,
que o odio publico apodava de jacobinos.
A bandeira dos alliados hasteava-se em S.
Julião e nos fortes das margens do rio, em
Paço de Arcos, e em Belem! Os inglezes
acampavam em Arroyos e no Campo de Santa
Anna, tomando posse dos quarteis, á medida,
que os regimentos de Junot os despejavam.
Todos estes movimentos, e a vigilancia
[141]
militar e hostil, com que os francezes se guardavam
nas praças com as peças carregadas á
bôcca das ruas e os murrões accesos, despertavam
as esperanças dos nossos, inflammando
o seu zelo, reprimido do maior impeto pelos
avisos de sir Carlos Cotton, enviados de bordo
da nau
Hybernia, e pelos conselhos
prudentes
de alguns patriotas respeitados.
Ao povo tudo isto se representava um
sonho. Aos homens sisudos doiam no orgulho
nacional as condições da
capitulação,
mas temperava-se a magoa d'ellas com a
idéa de estar por um fio a queda da
usurpação.
D'Aubry e Lassagne, perigosamente feridos
no Vimeiro, salvos por Manuel Coutinho, e
transportados para a casa hospitaleira do bispo
de Malaca, graças aos disvelos do mancebo,
tornando a si do agudo padecimento, souberam
que veriam de novo a França em breve.
Seria sem saudade da terra que iam deixar?
XIII
Conclusão
―Então ainda duvida? Somos livres. Não
lhe dizia eu que estavamos nas mãos de
Deus?!..
―Ainda bem que acabou assim, sr. bispo,
ainda bem! Mas sou teimoso. Os inglezes portaram-se
mal. Não os defenda. Dão ao céu o
que o demonio não quiz...
―Valham-me os Santos Martyres de Marrocos,
sr. Paulo de Azevedo! Nada o contenta.
Nem este dia de gloria e de jubilo, em que
todos parecemos loucos!?...
―Olhe! Quem vai de certo contente é o
Junot. Leva ao seu imperador um exercito
que devia ficar prisioneiro...
―Se o derrotassemos!...
―Derrotavamos de certo. Não tinha retirada.
E o traficante de Lagarde, que sae a barra
cheio, como um ovo, de tudo o que roubou
com as garras da policia. A proposito, viu
d'Aubry? Como supportou elle a noticia?...
―Da capitulação? Como um homem de brios
e de grandes espiritos.
―E conta partir, e deixar-nos? Que remedio!
[143]
Sabe que ha de fazer-me falta. Estava
costumado aos seus ditos joviaes, e agora!...
―Sente a separação? Tambem eu e elle a
não sentimos pouco. Lassagne foi com Manuel
Coutinho ao quartel general inglez apresentar-se,
e tirar guia para o enbarque. Está
muito pallido, mas fica-lhe bem. Excellente
rapaz!
―Vamos nós dar tambem uma volta pela
cidade. Apezar de tudo... accrescentou sorrindo,
a alegria do povo, mais ou menos, sobe
sempre á cabeça dos que não se illudem
com
as apparencias. O dia 15 de setembro será por
muito tempo um dia memoravel nas recordações
da patria.
―Ora ainda bem que o ouço falar assim.
Vamos.
E os dois saíram pela porta do jardim.
D'Aubry ao mesmo tempo achava-se no
vão de uma janella da sala, onde víra Leonor
pela primeira vez. Mais desmaiado e mais
consumido de physionomia, do que antes dos
ferimentos, os olhos conservavam, todavia, o
antigo brilho, offuscado n'este momento por
um véu de contemplativa melancholia.
Tinha na mão um volume aberto, estava de
pé, e julgando-se só fugia-lhe a vista com o
pensamento das paginas mortas do livro para
as paginas vivas das ultimas semanas da
existencia. Duas lagrimas furtivas, e a magoada
expressão do rosto, revelavam, que, se o
corpo convalescia da molestia, a alma traspassada
de occultos espinhos ainda continuava
enferma.
De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe
no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer.
Sem ver adivinhou que era Leonor. A
côr afogueou-lhe as faces subi
De repente uns dedos melindrosos, tocando-lhe
no hombro ao de leve, fizeram-o estremecer.
Sem ver adivinhou que era Leonor. A
côr afogueou-lhe as faces subitamente, e um
sorriso contrafeito passou-lhe pelos labios,
mais triste, do que a propria dor immobil.
[144]
―Que é isto?! accudiu a donzella, fitando-o
compassiva e carinhosa. O meu doente aqui,
e só, com os olhos no céu, e, Deus me perdoe (!)
ainda humidos de pranto!? O que teve Armand?
Que mal lhe fizemos para estar assim
magoado? Offendi-o sem saber, offendeu-o alguem
d'esta casa innocentemente?!...
―Offender-me, sr.
a D. Leonor! Os anjos
deixam saudades e não aggravos! Estava-me
lembrando dos ditosos dias que passei aqui...
―Ditosos?! Entre dôres, e moribundo?!
―Ditosos sim. Que eram as dôres para mim,
quando a tinha a meu lado, imagem suave da
consolação e do affecto? O corpo parecia morto,
estava quasi morto, mas se soubesse o que
o espirito vivia e sonhava então!... Delirios
de enfermo! Illusões que a realidade cura...
cruelmente, é verdade, ou que só o tumulo acaba
muitas vezes!...
―Não diga isso. O que chama illusões
são
realidades, todos aqui dariamos a vida, que
lhe devemos, para o vermos salvo e satisfeito.
Creio que apesar de se ver entre estranhos...
―Estranhos?! Não me faça ingrato, que
não lh'o mereço. Nunca houve mais extremosos
amigos! Deus, compadecido da minha solidão,
quiz dar-me antes de morrer, porque me
diz o coração que o primeiro campo de batalha
será a minha sepultura, a alegria de possuir
no seu affecto o que a morte de meus
paes me roubou na infancia desamparada. Leonor!
Consinta que repita assim o seu doce
nome. Disse-me um dia que era minha irmã!...
―Acha que o não fui, que o não sou
já?!
atalhou ella com um sorriso meigo.
―Não! Porque me salvou da morte, quando
a eu buscava e ella vinha? Minha irmã!
Que distancias, que inimigos, e que esquecimento
dentro em dias a vão apartar para sempre
do triste ferido! É noiva, ámanhã
será
[145]
esposa! Póde caber no seu peito com o amor...
de outro, a memoria do estrangeiro, que lhe
passou deante apenas como sombra, que lhe
deu occasião de provar os thesouros admiraveis
da mais piedosa compaixão?!...
E, proferindo estas vozes apaixonadas, o
mancebo, pallido, e quasi desvairado, suffocava-se
em cada phrase, porque a dôr lhe cortava
o peito. Leonor entristecia-se de o ouvir.
Aquelles gemidos eram mais do que amisade,
eram gritos de uma ternura delirante, que a
vontade em vão luctava por conter. Em cada
suspiro, em cada palavra gottejava o sangue
da alma.
A donzella commovida fez-se de repente
pallida, como elle; e afogando em um sorriso
superficial os sentimentos, que principiavam
a combatel-a, respondeu, affectando a serena
innocencia da ignorancia:
―Somos irmãos, não o disse já?
Devo-lhe
tanto, que nas orações, nas supplicas, que elevo
ao céu, não posso, não sei, separar do
nome
de meu pae, do nome e do extremo... do que
ha de ser meu marido, o nome estimado de
Armand d'Aubry! A minha alma é maior do
que suppõe. Cabem n'ella amor de mulher,
affecto de filha, e amisade de irmã!...
―Leonor! Se eu ousasse!... Se quizesse
adivinhar? atalhou o sobrinho de Lagarde,
em cujas pupillas faiscou momentaneamente
um clarão de esperança. É um segredo,
que o
meu coração calla e recolhe em si, mas que o
devora como alguns venenos corroem o vaso
que os encerra...
―E envergonha-se de o confessar? accudiu
ella tremula do estado, em que o via, e receiosa
da palavra imprudente, proxima a saltar
dos labios do mancebo. Cuida que não adivinho
o motivo da sua tristeza, a razão das lagrimas,
[146]
que esconde, e que são o orgulho da
nossa amisade?!...
―Ah! Calle-se, Leonor. Calle-se! Não vê
que se me espedaça o coração de
ouvil-a falar
assim!...
―Das saudades, que leva d'aqui, e que nos
deixa?! proseguiu a filha de Paulo de Azevedo
no mesmo tom, mas fria e tremula por
dentro da dôr e anciedade comprimida de
Aubry. Não se envergonhe d'ellas! Tambem
eu as sinto como irmã...
―É tão pouco! mumurou
Armand quasi
desfallecido e a meia voz.
Depois, cobrindo o rosto com as mãos, e
suspirando, conservou-se por algum tempo
mudo. Quando ergueu por fim a fronte, a vista
era já mais firme e socegada, e o sorriso doloroso
menos cortante.
―Perdoe-me, Leonor, affligi-a, bem sei. Somos
irmãos, só irmãos, nada mais!
Não
podemos
ser senão irmãos!... O que disse―o que
pensei um momento―foram sonhos, foram
delirios. Esqueçamol-os. Não conheci minha
mãe. Apenas se inclinou sobre o meu berço
para se despedir de mim com um beijo e voar
ao seio dos anjos. Nunca amei do coração
senão
agora! É falso! Nem agora! A minha
paixão, a minha esposa, foi sempre a gloria,
não quero, não devo ter outra, e ha de ser. O
tumulo é o leito nupcial que ella abre aos
que a adoram. Se lhe disserem breve, que este
amor, o da gloria, me custou a vida, dê-me
uma lagrima e uma memoria! Manuel Coutinho
não o póde estranhar. Os mortos não
causam ciume aos vivos!...
―Jesus! Aubry! Que tristes idéas! Magoam-n'o
os festejos populares? Se quer vamos
para outra casa, aonde se ouçam menos!
―Não! Não! A maior dor passou. Veja!
Quero outra vez ser o estouvado, que a obrigava
[147]
a rir-se de suas eternas distracções! Sae?
Mal conto por minutos as horas que tenho de
a ver ainda! Não vê que roubar-m'os é
quasi
um delicto? Recaí nos galanteios francezes,
pasto usual de suas ironias. D'esta doença é
que me não curo!...
Leonor meneou a cabeça. A voz e o gesto
desmentiam as palavras. Armand amava-a, e
fiel á lealdade jurada e á amisade de Manuel
Coutinho, arguia-se do sentimento invencivel
como de um crime.
A entrada de Lassague, do seu amante, e do
cavalheiro de Mafra trouxe diversão salutar
á violenta coacção dos dois.
Nem um, nem outro podiam já dissimular.
―Bravo! gritou da porta Paulo de Azevedo.
Não sabes Leonor? A bandeira branca, a bandeira
sem mancha, já tremula no castello e
nas fortalezas! Os vivas nas ruas da baixa
atrôam tudo. Os foguetes em girandolas sobem
e estalam nos ares. Os repiques dos sinos, as
salvas de artilheria no rio, coalhado de navios
e botes, e nas torres, ensurdecem. Os montes
da cidade estão negros de gente. É um delirio,
uma loucura! Deram-me mais de cem abraços,
e não sei ainda a quem os devo! Somos livres.
Temos rei e patria!... Manuel Coutinho
dentro de tres dias quero que seja meu filho.
Temos a dispensa concedida e o padre de casa,
o nosso santo bispo. D'Aubry! Deixe rir e
cantar os rapazes! Não faça caso. Quando vier
a paz geral... venha comer comnosco a Lisboa
as broas do natal!...
Armand, ouvindo anunciar para tão breve o
casamento de Leonor, tinha-se tornado livido
como um cadaver, e vacillára. A vista cobriu-se-lhe
de nuvens, e se Lassagne o não amparasse,
não se sustinha de pé. A donzella, á
qual
Manuel Coutinho apertava a mão com namorado
enlevo, leu a desesperação nos olhos do
[148]
official francez, e sentiu quasi remorsos do
amor que o matava a elle. Silenciosa e pallida
inclinou a fronte, e sepultou no peito o suspiro,
que ia jà a soltar indiscretamente. D'Aubry
venceu-se de pressa.
Tornando-se a si, adivinhou o que encerrava
de affectuoso e nobre o silencio da noiva,
e resolveu corresponder-lhe com generosidade
egual. Pegando na mão de Manuel e de Leonor,
e unindo-as, disse ao velho cavalheiro
com um sorriso:
―Sr. Paulo de Azevedo! Este dia de jubilo
para Portugal não me entristece. Nós o
vingaremos,
como soldados, em outros campos. Consinta
que na hora de partir, e de lhe dizer
adeus para sempre, eu beije a mão de minha
irmã, e que estreite nos braços o
irmão
que me salvou!...
E depois de abraçar Manuel, os seus labios
tocaram por instantes a bella mão de Leonor.
A donzella, sentindo caír sobre ella uma lagrima
ardente, que lhe escaldou a alma, refugiou-se
confusa e anciosa contra o peito do
esposo promettido.
―Aubry! Não acceito desculpas. Ha de ser
dos nossos, assista ao casamento de minha
filha!
―É impossivel! redarguiu Armand com
tristeza, logo dissipada pelo impeto affectado
do seu genio jovial. As nupcias de Manuel fizeram-me
lembrar, de que tambem tenho uma
noiva, a gloria, noiva que espera por mim para
consumar o meu destino. Leonor, adeus. É
melhor despedirmo-nos já d'aqui... até
á
eternidade! ajuntou em voz sumida.
―Armand! respondeu ella no mesmo tom.
Fique! Não vê que a morte, que deseja,
é um
suicidio?!
―Não. É um dever. Adeus. Lassagne!
Quando em França nos recordarmos de Portugal...
[149]
a doce imagem do anjo, que nos salvou,
sempre gravada no peito, será a companheira
e a consoladora de nossas saudades.
Manuel Coutinho! A sua felicidade com a esposa,
que vae ter, é para ser invejada até do
céu. Não importa, merece-a. Nunca encontrei
maior alma, nem coração mais puro. Sr. Paulo
de Azevedo! Ficam-lhe dois filhos para amparo
da sua velhice. Quer lançar uma benção
sobre o terceiro, que não tornará a ver talvez,
mas que jura amal-o sempre?
O cavalheiro commovido apertou-o nos braços,
beijou-o como filho, e arrancando-se a
custo ao doloroso enlace, exclamou:
―D'Aubry! Se Deus me tivesse dado um
filho assim?! Adeus. Não se demore. Faltar-me-ia
o animo. Não quero... vel-o partir.
Um momento depois Lassagne e Armand
volviam para aquella casa um derradeiro e
sentido olhar. O primeiro levava só vivas as
saudades; o segundo deixava n'ella para sempre
metade da sua alma e a alegria de toda a
vida.
Silenciosa e triste, Leonor seguiu-os com a
vista até desapparecerem. Depois enxugou as
lagrimas a furto, e suffocou os suspiros.
Teria receio de amar de mais o irmão que
fugia d'ella para não entristecer a sua felicidade!?
Quem se atreverá a decifrar os mysterios do
coração feminino?
A guerra da independencia prolongou-se.
Armand e Manuel Coutinho, pelejando debaixo
de bandeiras oppostas, não se encontraram.
Paulo de Azevedo e sua filha falavam a miudo
do official francez, que o seu coração
não sepultára
com a ausencia, e o avô, fazendo saltar
nos braços o primeiro neto, fructo mimoso do
afortunado enlace, muitas vezes repetia com
[150]
os olhos humidos: Deus te faça um homem,
como teu pae, ou como Armand d'Aubry!
Quando a batalha de Waterloo encerrou a
ultima pagina da epopeia maravilhosa do primeiro
imperio, Manuel, que subíra por suas
proezas a um posto elevado no exercito, e que
teve a gloria de não assistir obscuro áquelle
derradeiro feito de armas, levantou do campo
o coronel d'Aubry, moribundo e varado de
balas nos quadrados da velha guarda. A morte
d'esta vez quizera accudir, mas vagarosa e incerta,
ao chamamento do mancebo. Tres mezes
depois Armand pelo braço do esposo de Leonor
batia de novo á porta da casa, de que se
despedira sem esperanças de a tornar a ver.
A sua presença, festejada por Paulo de
Azevedo e pela filha, como verdadeira ventura
domestica, avisou a serena alegria, em
que se escoavam os ditosos dias dos seus amigos.
D'Aubry mostrava ter esquecido na lucta
de gigantes da épocha o louco amor, que lhe
apressára annos antes a saída de Portugal.
Nem um gesto, nem uma palavra revelaram
da sua parte a menor fraqueza! Sómente, ao
apartar-se, já na vespera de embarcar para
Londres, é que o segredo foi revelado por um
gemido mais alto do coração. Leonor, sempre
discreta, simulou não o entender, mas percebeu
que o francez partia para não voltar!
A antiga ferida continuava aberta, seria sem
remedio d'esta vez?
FIM DO SEGUNDO E ULTIMO VOLUME DA
«CASA DOS FANTASMAS»
NOTAS AO SEGUNDO VOLUME
I
As
chacotas os andores, o baile das
espadas etc.
pag. 7
A festa do Corpo de Deus, instituida em 1264 pelo
Papa Urbano IV, para dar a Jesus Christo culto particular,
era solemnizada nas villas e cidades principaes
do reino com exquisitas invenções de figuras,
danças,
e folias. A procissão saía na primeira
quinta-feira, depois
da festa da Santissima Trindade, attraindo os
olhos, e enlevando a imaginação do povo pelo
esplendor
e pompa, de que se rodeava.
As noticias impressas mais antigas, que sobrevivem
ácerca d'ella, encontram-se nas
Dissertações
Chronologicas
de João Pedro Ribeiro, e no
Novo Regimento
para
o governo da mesa da bandeira de S. Jorge, fundada nas
cartas, alvarás e lembranças do antigo regimento,
que
se queimou pelo terremoto de 1755, publicado pelos
habeis
archivistas da camara municipal de Lisboa, em
cujo cartorio se guarda.
No seu romance intitulado o
Monge de
Cister, com
tanta rasão admirado como primoroso modelo da novella
historica, descreve o sr. A. Herculano (tomo II e
pag. XVII) a procissão de corpus referida ao anno de
1384; reinado de D. João I; e o quadro do poeta, desenhado
do natural, é tão perfeito e verdadeiro, que
vemos resuscitadas e vivas n'elle as feições do
grande
espectaculo religioso da meia edade n'este dia.
João Pedro Ribeiro, no tomo III das
Dissertações
Chronologicas, doc. LII pag. 153, insere um
alvará datado
de 16 de agosto de 1630, pelo qual o rei ordena, que
os tribunaes do Porto acompanhem de futuro a procissão
[152]
do Corpo de Deus da mesma fórma, que a tinham
acompanhado n'este anno. No tomo IV das
Dissertações
(doc. XIII a XVI.) publica duas cartas da
rainha
regente D. Catharina, uma datada de 30 de maio de
1560, e a outra de 13 de maio de 1561, nas quaes dicta
alguns preceitos ácerca do modo e fórma de reger
a procissão na cidade do Porto, e de cohibir as
representações
deshonestas e escandalosas, introduzidas
n'ella.
Outras duas cartas, uma de el rei D. Filippe III, escripta
em Aranjuez em 15 de maio de 1607, outra dirigida
ao juiz, vereadores e procurador da camara da
cidade do Porto, pelo marquez de Castello Rodrigo em
18 de maio de 1608, (doc. XV e XVI), tractando do
mesmo
assumpto, respondem ás queixas do bispo D. Fr.
Gonçalo
de Moraes, e providenceiam ácerca d'ellas. Finalmente
o
Regimento feito pelos officiaes da camara da cidade
do Porto para a procissão de corpus com o parecer
do Dr. Antonio de Cabral, chanceller da
Relação,
regimento approvado pelo alvará de 15 de julho de
1621, encerra o plano de distribuição das
figuras, córos,
danças, folias, monstros, chacotas, imagens, anjos,
demonios, andores, charolas, communidades, clero, e
tribunaes, que haviam de acompanhar o prestito, determinando
o logar, que lhes cabia n'elle, e a ordem
em que tinham de caminhar.
No
Regimento Novo de Lisboa, que
já citámos, diz-se
que a primeira vez, que o sr. S. Jorge saiu com o seu
estado na procissão foi no anno de 1387 por ordem expressa
de D. João I. No reinado de D. João III, em
1538, o prestito era tão vistoso e variado pela
singularidade
e invenções das figuras, e pela opulencia e
riqueza
que ostentavam as corporações mechanicas, que
não admirava que se despovoassem os arrabaldes e
até
as provincias para assistir a tão sumptuosa festa. Em
tempos mais proximos havia toirada no dia da procissão.
D. João V, instituindo a Patriarcal em 1717, decretou
nova fórma á procissão de corpus,
tornada menos
profana e mais devota. A grande pompa e o immenso
cortejo, que a ennobreceu no anno de 1719, proporcionou
fecundo thema á eloquencia do incansavel irmão
Barbosa Machado, auctor da obra a que se refere o
texto.
[153]
II
O resto, o peior da empreza,
encarregou-se o brigadeiro
Margaron de o concluir por ordem de Junot, etc.,
pag. 29.
Coimbra sublevou-se contra os francezes no dia 22
de junho, formando logo para sua defeza a legião academica,
composta dos estudantes ás ordens do vice-reitor.
O Porto tinha-se levantado no dia 18, dando o
exemplo a toda a provincia do Minho. O Algarve insurgiu-se
a 16. A provincia da Beira não se demorou
tambem. Dentro de poucos dias o incendio tinha-se
extendido a todo o reino, tornando-se geral.
Os francezes conservavam guardas avançadas em
Pombal e Leiria. Quinze estudantes e um cabo conceberam
o projecto de desalojar, e sairam com esse intento
de Coimbra no dia 28 de junho. Perto de Leiria
foram accommettidos por vinte e dois dragões de Junot;
travou-se a peleja; a cavallaria inimiga cedeu, e communicou
o panico ao resto da força postada á entrada
da ponte. Esta, recuando, dispersou-se, ferida de terror.
O governo francez, offendido do atrevimento, decidiu
dar um exemplo severo, castigando Leiria. O general
Margaron partiu de Lisboa á frente de dois
batalhões,
de quatro companhias escolhidas, e de seis peças de
artilheria, incumbido da execução marcial
decretada
contra a cidade.
A columna provou logo em Alcoentre o seu ardor
de vingança. Tomando o innocente cirio da Ameixieira
por um tropel de guerrilhas, Margaron manda armar
uma embuscada por traz de um pinhal, e o chefe de
esquadrão Salm-Salm investe, intrepido e implacavel,
os aldeãos devotos, como se fossem leões
embravecidos.
Aos primeiros tiros caem por terra banhados em
sangue o gaiteiro e o prégador. Depois são
assassinados
indistinctamente homens, mulheres, e crianças. A
fuga salva o maior numero da furia dos vencedores,
cujos despojos n'esta batalha incrivel são duas bandeiras
de Nossa Senhora, expostas como tropheus no quartel
general. O boletim de 7 de julho teve a ingenuidade
de commemorar como derrota de um exercito de rebeldes
esta carnificina do povo inerme!
No dia 5 uniu-se o general Thomiéres com 800 homens
[154]
a Margaron, e marcharam ambos contra Leiria
A cidade passou, como é de crer, dos fogosos arrebatamentos
de jubilo patriotico a uma sombria apprehensão
dos males, que a ameaçavam. Não contava para
se defender, senão com os brios já desalentados
de algumas
companhias de ordenanças, que haviam principiado
a organizar-se sob o commando do coronel de
cavallaria Rodrigo Barba Allardo, alcaide mór. O
capitão
mór, Manuel Trigueiros, auxiliava-o com mais
zelo, que pericia, e o coronel de milicias Isidoro dos
Santos Ferreira procurava reanimar o esforço de todos
com seus discursos. Era pouco para arrostar em
fortificações,
nem meios solidos de resistencia o valor disciplinado
dos soldados do exercito da Gironda.
A noite, e a noticia do que occorrêra em Alcoentre,
acabaram de arrefecer o enthusiasmo amortecido dos
moradores. Rodrigo Barba, os magistrados, e o bispo,
não julgando prudente, desarmados, como se viam, affrontar
as iras dos inimigos, evadiram-se sem ruido
durante a calada das trevas. Quando rompeu o dia, apenas
oitocentos homens da plebe, e duzentas ordenanças
de espingardas e chuços se atreveram com temeridade
louca a disputar sem chefes a entrada da cidade
aos francezes. Margaron deu-lhes as honras de
guerreiros consumados, tomando as disposições,
que
poderia exigir uma força regular e numerosa.
Avançou
contra Leiria com as tropas divididas em duas
álas e a artilheria no centro. Disparados os primeiros
canhões, e dadas as primeiras descargas de mosqueteria,
o povo fugiu em confusão, e os francezes apoderaram-se
da cidade com perda de um homem morto
e de dois feridos!
Os vencedores despregaram então toda a crueldade
contra velhos, mulheres, e crianças, que imploraram
debalde a sua misericordia, e metteram toda a
povoação
a ferro e saque. O principe de Salm-Salm sobresaiu
com ferocidade n'esta campanha contra prisioneiros
inermes. O palacio episcopal, a Sé, e os templos
foram roubados; as egrejas desacatadas; as casas particulares
invadidas e despojadas. O resultado foi incenderem-se
mais os odios, e recrudescer a resistencia
nacional. (Vid. general Foy tomo II liv. VIII).
[155]
III
O duque de Abrantes mostrou-se digno dos feitos heroicos,
que ennobreceram a sua carreira etc.
pag. 68.
A vida de Junot comporia quasi um romance.
Nascido em 23 de outubro de 1771 contava trinta e
sete annos em 1808. Estudante do collegio de Châtillon,
quando rebentou a revolução, alistou se como
voluntario
em uma companhia de granadeiros, e combateu
com denodo em defeza da patria. O valor temerario
e arrebatado grangeou-lhe no quartel a alcunha do
Tempestade; mas a sua
elevação começa em Toulon.
Bonaparte conheceu-o e apreciou-o alli, e nunca mais
deixou de o proteger.
As proezas com que sobresaiu nas campanhas de
Italia e do Egypto, e a dedicação pessoal, que
sempre
votou a Napoleão I, apressaram a sua carreira. Nomeado
governador de Paris depois do dia IX thermidor,
e casado com Mademoiselle Permon, cuja casa
frequentára com Bonaparte em dias menos felizes, subiu
rapidamente os postos. Em 1804 achava-se coronel
general dos hussards. Embaixador em Lisboa e
condecorado por D. João, principe regente com a gran-cruz
de Christo, saiu da côrte portugueza em outubro
de 1805 sem licença, e veiu apresentar-se a Bonaparte
nas vesperas da batalha de Austerlitz, aonde realçou
a antiga valentia em mais de um rasgo brilhante.
Em julho de 1806 foi nomeado governador de Paris
e commandante da primeira divisão militar. Prodigo e
singular nos appetites, não havia ouro que o saciasse.
Os excessos repentinos e fulminantes da sua ira assustavam
até os amigos mais intimos. Napoleão escolheu-o
para capitanear o exercito, que invadiu Portugal em
1807, e a principio não teve rasão de se
arrepender.
A sua marcha rapida sobre Lisboa pelas montanhas
da Beira mereceu os louvores dos militares, e justificou
o titulo de duque de Abrantes, com que o imperador
o recompensou.
A convenção de Cintra não interrompeu
a carreira
de Junot. Na Hespanha, na Allemanha, e outra vez
em Portugal, mas ás ordens de Massena, a sua espada
não ficou ociosa. Ferido gravemente no rosto durante
a guerra da Peninsula recolheu-se a Paris. Depois da
[156]
campanha de 1812, em que o imperador o censurou
de irresoluto em um dos seus boletins, a rasão do duque
de Abrantes principiou a vacillar, e em Veneza
acabou de se abysmar nas sombras da demencia. Transportado
para casa de seu pae, em Montbard, falleceu
a 22 de julho de 1813 de um accesso violento de febre
depois de uma dolorosa amputação.
Junot não era soldado rude e grosseiro. Gentil e urbano,
sabia attrahir pelas maneiras, e era susceptivel de
sentimentos elevados e de acções nobres.
Intrepido e
intelligente, se os perigos e a morte o não faziam recuar,
o pezo das responsabilidades acurvando-lhe com
frequencia o animo, tornava-o inferior a si proprio nas
posições eminentes. Nascêra para ser o
segundo e
nunca para ser o primeiro nas arriscadas funcções
do
governo. Os erros, que lhe estranham mais, derivaram-se
todos d'esta incapacidade natural. Cultor das
boas artes, e dotado de gosto e critica judiciosa, a sua
bibliotheca encerrava os mais bellos exemplares das
edições de Bodoni e Didot impressas em velino. Em
Lisboa, entre as cousas raras, que tomou para si, figuravam
a famosa Biblia ornada das miniaturas de
Julio Clovio e alguns quadros preciosos.
Junot morreu aos quarenta e dois annos, tendo vivido
por seus vicios e fadigas quasi tres edades de homem.
Os costumes dissolutos, que, longe de encobrir,
parecia alardear, a avidez pouco escrupulosa, com que
se maculou em diversos lances, o fausto e as prodigalidades,
de que se rodeava, e as furias momentaneas
de um genio assomado, raiando quasi em demencia empanaram
e diminuiram a gloria conquistada pelo seu
valor de paladino em campos de batalha memoraveis.
Sua mulher, a duqueza de Abrantes, não foi menos
celebre como escritora e como dama espirituosa.
DOCUMENTOS
N.º 1
Tratado secreto
concluido em Fontainebleau
entre o imperador dos francezes e
el-rei de Hespanha
Napoleão por graça de Deus, etc., etc., etc.,
havendo
lido e examinado o tractado concluido e assignado em
Fontainebleau em 27 de outubro pelo general de divisão,
Miguel Duroc, nosso mordomo mór, etc., etc., em
virtude dos plenos poderes que para esse fim lhe démos,
com D. Eugenio Izquierdo de Ribera y Lesaun,
conselheiro d'estado honorario de sua magestade el-rei
de Hespanha, egualmente munido de plenos poderes
de seu soberano, cujo tractado está concebido na
fórma
seguinte:
Sua magestade o imperador dos francezes, rei de
Italia, etc., etc., e sua magestade catholica el-rei de
Hespanha, desejando de sua livre vontade regular os
interesses dos dois estados, e determinar a sorte futura
de Portugal de uma maneira congruente com a
politica de ambas as nações, nomearam para seus
ministros
plenipotenciarios, a saber: Sua magestade o
imperador dos francezes ao general de divisão Miguel
Duroc, mordomo mór de sua imperial casa, etc., e sua
magestade catholica el-rei de Hespanha a D. Eugenio
Izquierdo de Ribera y Lesaun, seu conselheiro d'estado
honorario, etc., os quaes, depois de haverem trocado
seus plenos poderes, convieram em o seguinte:
Artigo 1.º
As provincias
d'entre
Douro e Minho com
a cidade do Porto serão dadas com toda a sua propriedade
e soberania a sua magestade el-rei de Etruria,
com o titulo de rei da Lusitania septentrional.
Art. 2.º A
provincia do
Alemtejo
e reino do Algarve
[158]
serão dados com toda a sua propriedade e soberania
ao principe da Paz, para os possuir com o titulo
de principe dos Algarves.
Art. 3.º As
provincias da
Beira,
Traz-os-Montes e
Extremadura portugueza permanecerão em deposito
até á paz geral, em que d'ellas então
se disporá, conforme
as circumstancia, e pela maneira que for determinada
pelas altas partes contratantes.
Art. 4.º O
reino da
Lusitania
septentrional será possuido
pelos descendentes, herdeiros de sua magestade
el-rei de Etruria, conforme as leis de successão observadas
pela familia reinante de sua magestade catholica.
Art. 5.º O
principado dos
Algarves será hereditario
na descendencia do principe da Paz, segundo as
leis de successão, vigentes em a familia reinante de
sua magestade el-rei de Hespanha.
Art. 6.º Por
falta de
descendente, ou legitimo herdeiro
de el-rei da Lusitania septentrional, ou do principe
dos Algarves será a investidura d'estes dois paizes
garantida a sua magestade catholica, com a
condição
porém de que nunca ficarão reunidos em a mesma
pessoa, nem á corôa de Hespanha.
Art. 7.º O
reino da
Lusitania
septentrional e o principado
dos Algarves reconhecem tambem como protector
a sua magestade; e os soberanos d'estes paizes
nunca poderão fazer a guerra, ou a paz sem o seu
consentimento.
Art. 8.º No
caso que as
provincias da Beira, Traz-os-Montes,
e Extremadura portugueza, conservadas
como em sequestro, forem pela paz geral restituidas
á casa de Bragança por troca de Gibraltar,
Trindade,
e outras colonias, que os inglezes hão conquistado aos
hespanhoes e a seus alliados, o novo soberano d'estas
provincias contrahirá para com sua magestade el-rei de
Hespanha as mesmas obrigações, que ligam
á sua augusta
pessoa el-rei da Lusitania septentrional e o principe
dos Algarves.
Art. 9.º Sua
magestade
el-rei de
Etruria cede com
toda a sua propriedade e soberania o reino de Etruria
a sua magestade o imperador dos francezes, rei da
Italia.
Art. 10.º
Logo que se
leve a
effeito a occupação definitiva
das provincias de Portugal, os principes respectivos,
que d'ellas tomarem posse, nomearão entre
[159]
si commissarios para demarcar os convenientes limites.
Art. 11.º
Sua magestade o
imperador dos francezes,
rei da Italia, garante a sua magestade catholica el-rei
de Hespanha a possessão de seus estados na Europa
ao sul dos Pyrenéos.
Art. 12.º
Sua magestade o
imperador dos francezes,
rei da Italia, annue a reconhecer sua magestade catholica,
el-rei de Hespanha, como imperador das duas
Americas, quando sua magestade catholica se resolver
a tomar este titulo, o que terá logar pela paz
geral, ou dentro de tres annos o mais tardar.
Art. 13.º
Fica entendido
entre as
altas partes contratantes,
que ellas repartirão egualmente entre si as
ilhas, colonias, e mais possessões maritimas de Portugal.
Art. 14.º O
presente
tractado
ficará secreto: será ratificado
e as ratificações se trocarão em
Madrid vinte
dias o mais tardar depois da data em que foi assignado.
Feito em Fontainebleau.
Duroc.―E. Izquierdo.
(
E logo por baixo).
Approvámos e approvâmos, pelas
presentes ratificações o antecedente tractado, e
todos,
e cada um dos artigos que n'elle se contém.
Declarâmos
que fica acceito, ratificado e confirmado, e
promettemos que será inviolavelmente observado. Em
fé do que assignâmos com o nosso proprio punho as
presentes ratificações, depois de lhe havermos
feito
pôr o nosso sêllo imperial.
Fontainebleau aos 29 de outubro de 1807.
NAPOLEÃO.
O ministro dos negocios estrangeiros.
Champagny.
O ministro secretario d'estado.
H. B. Marat.
[160]
N.º 2
EDITAL.
O principe regente nosso senhor foi servido mandar
remetter á mesa do desembargo do paço o decreto
do teor seguinte.
Tendo sido sempre o meu maior desvelo conservar
em meus estados, durante a presente guerra, a mais
perfeita neutralidade pelos reconhecidos bens que
d'ella resultavam aos vassallos d'esta corôa; com tudo
não sendo possivel conserval-a por mais tempo, e
considerando,
outrosim, o quanto convem á humanidade
a pacificação geral: Houve por bem acceder
á causa
do continente, unindo-me a sua magestade o imperador
dos francezes, rei de Italia, e a sua magestade catholica,
com o fim de contribuir, quanto em mim fôr,
para a acceleração da paz maritima. Por tanto,
sou
servido ordenar, que os portos d'este reino sejam logo
fechados á entrada dos navios, assim de guerra, como
mercantes, da Grã-Bretanha. A mesa do desembargo
do paço o tenha assim entendido e faça executar,
mandando
affixar este por edital, e remetter a todos os logares,
aonde convier, para que chegue á noticia de
todos. Palacio de Mafra em vinte de outubro de mil
oitocentos e sete.―Com a rubrica do principe regente
nosso senhor.―Para que chegue á noticia de todos,
se mandou affixar este edital.―Lisboa 22 de outubro
de 1807.―
José Federico
Ludovici.
N.º 3
O governador de Paris, primeiro ajudante de campo
de sua magestade o imperador, e rei, general em
chefe, grão-cruz da ordem de Christo de Portugal.
Habitantes do reino de Portugal.―Um exercito
francez vae entrar no vosso territorio. Elle vem para
vos tirar do dominio inglez, e faz marchas forçadas
para livrar a vossa bella cidade de Lisboa da sorte de
[161]
Copenhague. Mas será d'esta vez illudida a
esperança
do vosso perfido governo inglez. Napoleão, que fitou
seus olhos na sorte do continente, viu a preza que os
tyrannos dos mares antecipadamente devoravam em
seu coração, e não soffrerá
que ella cáia em seu poder.
O vosso principe declarou a guerra á Inglaterra.
Nós
pois fazemos causa commum.
Habitantes pacificos dos campos, nada receieis. O
meu exercito é tão bem disciplinado, como
valoroso.
Eu respondo, sobre a minha honra, pelo seu bom comportamento.
Ache elle por toda a parte o agazalho,
que lhe é devido, como a soldados de Napoleão o
grande.
Ache elle, como tem direito a esperar, os viveres
de que tiver precisão; mas sobre tudo o habitante dos
campos fique socegado em sua casa.
Eis o que eu vos prometto. Guardar-vos-hei minha
palavra.
Todo o soldado do exercito francez, que fôr achado
roubando, será punido com o mais rigoroso castigo.
Todo o individuo de qualquer ordem que seja, que
tiver percebido alguma contribuição injustamente,
será
conduzido perante um conselho de guerra, para ser
julgado segundo todo o rigor das leis.
Todo o individuo do reino de Portugal, não sendo
soldado da tropa de linha, que se apanhar fazendo
parte de qualquer ajuntamento armado, será arcabuzado.
Todo o individuo convencido de ser chefe de ajuntamento,
ou de conspiração, tendente a armar os
cidadãos
contra o exercito francez, será arcabuzado.
Toda a cidade, villa, ou aldêa, em que se derem tiros
de espingarda contra a tropa franceza, será queimada.
Toda a cidade, villa ou aldêa, em cujo territorio
fôr
assassinado um individuo pertencente ao exercito francez,
pagará uma contribuição, que
não poderá ser menor
que tres vezes o seu rendimento annual.
Os quatro habitantes principaes servirão de refens
para o pagamento da somma; e para que a justiça
seja exemplar, a primeira cidade, villa, ou aldêa, onde
fôr um francez assassinado, será queimada, e
arrasada
inteiramente.
Mas eu quero persuadir-me que os portuguezes hão
de conhecer os seus verdadeiros interesses; que auxiliando
as vistas pacificas do seu principe, nos receberão
[162]
como amigos; e que particularmente a bella cidade
de Lisboa me verá com prazer entrar em seus
muros á frente de um exercito, que só a
póde preservar
de ser preza dos eternos inimigos do continente.
Dada no meu quartel general d'Alcantara aos 17 de
novembro de 1807.―
Junot.
N.º 4
DECRETO
Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar
a neutralidade, de que até agora tem gozado os
meus fieis e amados vassallos, e apezar de ter exhaurido
o meu real erario, e de todos os mais sacrificios
a que me tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar
os portos dos meus reinos aos vassallos do meu
antigo e leal alliado o rei da Grã-Bretanha, expondo o
commercio dos meus vassallos á total ruina, e a soffrer
por este motivo grave prejuizo nos rendimentos da minha
corôa: vejo que pelo interior do meu reino marcham
tropas do imperador dos francezes e rei de Italia,
a quem eu me havia unido no continente na persuasão
de não ser mais inquietado, e que as mesmas se
dirigem a esta capital: E querendo eu evitar as funestas
consequencias, que se pódem seguir de uma defeza,
que seria mais nociva que proveitosa, servindo
só de derramar sangue em prejuizo da humanidade, e
capaz de accender mais a dissensão de umas tropas que
tem transitado por este reino com o annuncio e promessa
de não commetterem a menor hostilidade; conhecendo
egualmente que ellas se dirigem muito particularmente
contra a minha real pessoa, e que os meus
leaes vassallos serão menos inquietados, ausentando-me
eu d'este reino: Tendo resolvido, em beneficio dos
mesmos meus vassallos, passar com a rainha minha senhora
e mãe, e com toda a real familia para os Estados
da America, e estabelecer-me na cidade do Rio de
Janeiro até a paz geral. E considerando mais quanto
convem deixar o governo d'estes reinos n'aquella ordem,
que cumpre ao bem d'elles e de meus povos, como
cousa a que tão essencialmente estou obrigado, tendo
n'isto todas as considerações que em tal caso me
são
[163]
presentes: Sou servido nomear para na minha ausencia
governarem e regerem estes meus reinos o marquez
de Abrantes, meu muito amado e prezado primo, Francisco
da Cunha de Menezes, tenente general dos meus
exercitos; o principal Castro do meu conselho e regedor
das justiças; Pedro de Mello Breiner do meu conselho
que servirá de presidente do meu real erario, na
falta e impedimento de Luiz de Vasconcellos e Sousa,
que se acha, impossibilitado com as suas molestias;
D. Francisco de Noronha, tenente general dos meus
exercitos e presidente da mesa da consciencia e ordens;
e na falta de qualquer d'elles o conde monteiro
mór, que tenho nomeado presidente do senado da camara,
com a assistencia dos dois secretarios, o conde
de Sampaio, e em seu logar D. Miguel Pereira Forjaz,
e do desembargador do paço e meu procurador da
corôa,
João Antonio Salter de Mendonça, pela grande
confiança que de todos elles tenho e larga experiencia
que elles têem tido das cousas do mesmo governo;
tendo por certo que os meus reinos e povos serão governados
e regidos por maneira que a minha consciencia
seja desencarregada, e elles governadores cumpram
inteiramente a sua obrigação em quanto Deus
permittir
que eu esteja ausente d'esta capital, administrando
a justiça com imparcialidade, distribuindo os premios
e castigos conforme os merecimentos de cada um. Os
mesmos governadores o tenham assim entendido, e
cumpram na fórma sobredita, e na conformidade das
instrucções que serão com este decreto
por mim assignadas,
e farão as participações
necessárias ás repartições
competentes. Palacio de Nossa Senhora da
Ajuda em vinte e seis de Novembro de mil oitocentos
e sete.
Com a rubrica do principe regente nosso senhor.
N.º 5
Instrucções
a que se refere o
meu real decreto
de 26 de
novembro de 1807
Os governadores, que houve por bem nomear pelo
meu real decreto da data d'estas, para na minha ausencia
governarem estes reinos, deverão prestar o juramento
[164]
do estylo nas mãos do cardeal patriarcha, e
cuidarão com todo o desvelo, vigilancia e actividade
na administração da justiça,
distribuindo-a imparcialmente,
e conservando em rigorosa observancia as
leis d'este reino.
Guardarão aos nacionaes todos os privilegios, que
por mim, e pelos senhores reis meus antecessores se
acham concedidos.
Decidirão á pluralidade de votos as consultas,
que
pelos respectivos tribunaes lhes forem apresentadas,
regulando-se sempre pelas leis e costumes do reino.
Proverão os logares de letras, e os officios de
justiça
e fazenda, na fórma até agora por mim practicada.
Cuidarão em defender as pessoas e bens dos meus
leaes vassallos, escolhendo para os empregos militares
as que d'elles se conhecerem serem benemeritas.
Procurarão, quanto possivel fôr, conservar em paz
este reino, e que as tropas do imperador dos francezes
e rei de Italia sejam bem aquarteladas, e assistidas de
tudo que lhes fôr preciso, em quanto se detiverem
n'este reino, evitando todo e qualquer insulto, que se
possa perpetrar, e castigando-o rigorosamente, quando
aconteça; conservando sempre a boa harmonia, que
se deve practicar com os exercitos das nações,
com as
quaes nos achâmos unidos no continente.
Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum
dos ditos governadores elegerão á pluralidade de
votos
quem lhe succeda. Confio muito da sua honra e virtude,
que os meus povos não soffrerão incommodo na
minha ausencia, e que, permittindo Deus que volte a
estes meus reinos com brevidade, encontre todos contentes,
e satisfeitos, reinando sempre entre elles a boa
ordem e tranquillidade, que deve haver entre vassallos,
que tão dignos se tem feito do meu paternal cuidado.
Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis
de novembro de mil oitocentos e
sete.―
Principe.
[165]
N.º 6
Decreto do
Bonaparte impondo uma
contribuição
de guerra a Portugal
Napoleão, etc., etc., temos ordenado e ordenâmos o
seguinte:
Artigo 1.º
Uma
contribuição extraordinaria de guerra
de cem milhões de francos
[2]
será
lançada sobre o
reino de Portugal pelo resgate das propriedades particulares,
qualquer que seja a denominação d'ellas.
Art. 2.º
Esta
contribuição será repartida por
provincias
e concelhos, segundo os respectivos meios, o
que ficará a cargo do general em chefe do nosso exercito,
que dará todas as providencias para ser promptamente
cobrada.
Art. 3.º
Sequestrar-se-hão todos os bens pertencentes
á rainha, ao principe regente, e aos demais principes
que disfructarem qualquer apanagio.
Art. 4.º
Serão
egualmente sequestrados todos os bens
dos que acompanharam o principe regente no acto de
abandonar o paiz, se não regressarem ao reino até
15
de fevereiro de 1808.
Dado no palacio real de Milão em 23 de dezembro
de 1807.
NAPOLEÃO
N.º 7
A deputação portuguesa enviada
junto a sua
magestade o imperador dos franceses e rei
da Italia, protector da confederação do
Rheno, aos compatriotas
A confiança que depositastes no grande principe,
junto ao qual temos a honra de ser interpretes dos
vossos sentimentos, e dos vossos votos, foi inspirada,
menos pelo conhecimento dos interesses da patria, do
que pelo desejo de confiar a decisão da nossa sorte ao
poderoso genio, que, tendo restaurado o seu paiz, deu
uma nova constituição á Europa.
[166]
O tempo que nos demorámos na fronteira do imperio
francez, e que precedeu a chegada de sua magestade
imperial e real, cabalmente nos mostrou o imperio,
que o grande monarcha exerce nos corações de
todos.
As acclamações cada vez mais vivas de seus
subditos
nos annunciaram o momento, em que devia completar-se
a felicidade d'elles e começar a nossa.
Sua magestade imperial e real concedeu o primeiro
dia da sua chegada a Bayona aos seus subditos (este
é o tributo ordinario do seu desvelo para com elles), e
dignou-se conceder-nos o segundo. Sua magestade imperial
e real conhecia, ainda mesmo antes de lh'as expormos,
a vossa posição, as vossas necessidades e tudo
quanto vos interessa. Se alguma cousa póde egualar o
seu genio, é a elevação da sua alma e
a generosidade
dos seus principios.
Ao passo, que sua magestade imperial e real se dignava
falar-nos das nossas circumstancias politicas
com affabilidade verdadeiramente paternal, fazia as
reflexões mais interessantes ácerca da nossa
felicidade,
e manifestava os principios mais elevados a respeito
do uso dos direitos que as circumstancias lhe deram.
Não foi como conquistador que sua magestade imperial
e real entrou no nosso territorio, nem como tal
quer que o seu exercito ahi permaneça. O imperador
sabe que nunca tivemos guerra com sua magestade imperial
e real. Pela grande distancia, que separa a nossa
patria do seu imperio, não póde sua magestade
imperial
e real vigiar sobre ella com a mesma attenção,
com
que vigia os outros Estados seus, e com que, satisfazendo
a todas as necessidades d'elles satisfaz tambem
o amor que sua magestade imperial e real consagra
aos que têem a fortuna de ser seus subditos: seguem-se
muitos inconvenientes da delegação de uma grande
auctoridade
em paizes mui distantes. Sua magestade imperial
e real não nutre desejo algum de vingança, nem
mostra rancor ao principe, que, nos governava, nem á
sua real familia. Sua magestade imperial e real occupa-se
de objectos mais nobres, e não tracta senão de
nos ligar com as outras partes da Europa ao grande
systema continental, do qual devemos fechar o ultimo
annel: tracta de nos livrar da influencia estrangeira
que nos dominou tantos annos: o imperador não
póde
consentir uma colonia ingleza no continente: o imperador
[167]
não póde nem quer deixar aportar a
Portugal o
principe, que o deixou, confiando-se na protecção
de
navios inglezes.
Sua magestade imperial e real, considerando a vossa
situação, houve por bem declarar-nos que a nossa
sorte
dependia de nós; isto é, do espirito publico que
mostrassemos,
com o qual nos unissemos ao systema geral
do continente, e concorressemos para os acontecimentos
já preparados, assim como da nossa vigilancia e da
firmeza, com que repellissemos as sugestões e intrigas
que são de esperar, e que, sem proveito real para os
que forem auctores, ou objectos d'ellas só pódem
causar
a nossa desgraça. Estes são os signaes por onde
sua magestade imperial e real quer julgar se somos
ainda dignos de formar uma nação capaz de
sustentar
no throno o principe, que nos governar, e de occupar
entre as nações o logar que nos compete, ou se,
devemos
ser confundidos com aquella, cuja posição mais se
approxima de nós mas de quem tão grandes motivos
nos
afastam. Vereis com reconhecimento e admiração
nestas
sabias disposições os profundos conhecimentos de
sua magestade imperial e real, que não quer decidir a
sorte de um Estado, senão conforme os seus desejos
manifestados por factos. Cumpre aos magistrados e ás
pessoas mais auctorizadas que existem entre vós, cumpre
a vós todos dar a maior publicidade ás beneficas
intenções de sua magestade imperial e real.
Esperâmos
pois que confirmareis os protestos que lhe fizemos
em vosso nome.
Quando um grito unanime, arrancado no fundo dos
nossos corações, mostrou o desejo que tinhamos de
ser uma nação, então mais do que nunca
nos julgámos
dignos interpretes dos vossos sentimentos. O imperador,
que depois de tantas tempestades soube fazer da
sua patria o primeiro paiz do mundo, deverá conhecer
que a nossa não merece ser o ultimo.
Sua magestade imperial e real conhece as
privações
que a interrupção momentanea do commercio vos faz
supportar: vosso estado a este respeito é o mesmo que
o do resto da Europa e que o da America; é consequencia
de uma lucta, cujo futuro resultado vos póde
compensar os trabalhos do tempo actual; tambem
não
esqueceu a sua magestade imperial e real a
coacção,
em que vos poz a entrada de um exercito estrangeiro.
[168]
O imperador deseja ardentemente prevenir que esta
desgraça se renove.
Affigiu assáz seu coração o pezo da
contribuição que
opprime Portugal: a sua bondade lhe dictou a promessa
de a reduzir conforme fosse compativel com os
nossos haveres. Os portuguezes, que estavam prisioneiros
em França, graças á clemencia do
imperador, gozam
já da liberdade.
Sua magestade imperial e real nos auctoriza para
que vos participemos as suas intenções, certos
que ellas
excitarão em vós a maior gratidão e o
mais sincero
desejo de lhe corresponderdes.
Continuaremos a preencher junto a sua magestade
imperial e real, e conforme suas ordens, uma missão
que não tem difficuldades, pois que a bondade do imperador
se une á sua sabedoria para simplificar os nossos
maiores interesses.
Bayona, 27 da Abril de
1808―(
assignados) marquez
de Penalva―marquez de Marialva―D. Nuno
Caetano Alvares Pereira de Mello―marquez de
Valença―marquez de Abrantes―marquez de Abrantes,
D. José―conde do Sabugal―Francisco, bispo
de Coimbra―conde de Arganil―José, bispo, inquisidor
geral―visconde de Barbacena―D. Lourenço
de Lima―D. José, prior mór da ordem militar de
S.
Bento de Aviz―Joaquim Alberto Jorge―Antonio
Thomaz da Silva Leitão.
N.º 8
Representação
feita em Lisboa na
junta dos
tres Estados pelos pseu-deputados de
todas as classes
Ordenando o general Junot que na junta dos tres
Estados se ajuntassem os deputados de todas as ordens
civis para expressarem o voto geral da nação, em
consequencia do que a deputação portugueza havia
communicado na sua carta escrita do Bayonna em 27
de abril de 1808, foram nomeados por esta conferencia
secreta os seguintes:
Pelo clero. O principal Miranda,
decano. O principal
Noronha, seu immediato.
Pela nobreza. O conde de Peniche,
que presidia no
[169]
conselho de fazenda. D. Francisco Xavier de Noronha,
presidente da meza da consciencia e ordens.
Pela municipalidade e povo. O
desembargador João
José de Faria da Costa Abreu Guião, que presidia
no
senado da camara. O desembargador Luiz Coelho Ferreira
Faria, seu immediato. O juiz do povo. O escrivão
do povo.
Pela ordem da magistratura. O
desembargador Nicolau
Esteves Negrão, chanceller mór do reino. O
desembargador
Lucas de Seabra da Silva, chanceller da
caza da supplicação.
Estes dez deputados, juntando-se aos da junta dos
tres Estados, que então eram o conde da Ega, que
presidia por ser titulo mais antigo, o conde de Almada,
e o conde de Castro Marim filho, todos elles
assim reunidos, formularam de commum accordo a seguinte
representação:
Senhor:―Os representantes da nação portugueza,
conhecida nos annaes do mundo, e celebre, atrevemo-nos
a dizêl-o, pelas suas conquistas e pela sua
fidelidade, teem a honra de apresentar-se ao throno augusto
de vossa magestade imperial e real.
Os acontecimentos extraordinarios, senhor, que agitaram
a Europa toda comprehenderam Portugal: uma
politica mal entendida fez a esta nação victima
innocente
dos males que tem experimentado. A consideração
dos interesses e relações que formam o presente
systema federativo da Europa, e as disposições
beneficas
de vossa magestade para com Portugal, nos fazem
conceber as mais lisongeiras esperanças de futura
felicidade, accolhendo-nos debaixo da magnifica
protecção do heroe do mundo, do arbitro dos reis
e dos
povos, que só póde cicatrizar as feridas da
patria, defendel-a
do perigo da escravidão, e dar-lhe, entre as
potencias da Europa, aquelle logar distincto, que as
profundas vistas politicas de vossa magestade lhe tem
desde já, como esperâmos, designado. As
circumstancias
do tempo presente e a probabilidade do que ha
de vir nos faz conceber a causa dos males que temos
soffrido e o unico remedio a que devemos recorrer.
Interpretes e depositarios dos votos da nação, em
nome de toda ella rogâmos e aspirâmos a formar um
dia parte da grande familia, de que vossa magestade
é pae benefico e soberano poderoso, e nos
lisongeâmos,
senhor, que ella merece tal graça. Ninguem melhor do
[170]
que o representante de vossa magestade, o general em
chefe do exercito de Portugal, e com elle todo o seu
exercito, póde dar maiores testemunhos do espirito publico,
que anima uma nação, que apezar dos maiores
sacrificios e privações, que as actuaes
circumstancias
lhe têem feito experimentar, nada foi capaz de a fazer
afrouxar em os sentimentos de admiração, de
respeito
e de gratidão que todos nós professâmos
a vossa
magestade, antes pelo contrario a intriga, as
insinuações
d'aquelles que se oppõem ao nosso socego, e o
pessimo exemplo dos nossos visinhos não fizeram mais
do que augmentar estes mesmos sentimentos, desenvolvendo
aquelle antigo germen de affeição, que sempre
subsistiu entre estas duas nações, lembrando-se
os portuguezes de que o seu primeiro soberano fôra o
conde D. Henrique, principe francez.
Achâmo-nos, pois, plenamente convencidos de que
Portugal não póde conservar a sua independencia,
animar
a sua energia e o caracter de sua propria dignidade,
sem recorrer ás benevolas disposições
de vossa
magestade. Ditosos seremos se vossa magestade nos
considerar dignos de ser contados no numero de seus
fieis vassallos; e quando pela nossa situação
geographica,
ou por outra qualquer razão, que a alta
consideração
de vossa magestade tenha concebido não possamos
lograr esta felicidade, seja vossa magestade
quem nos dê um principe da sua escolha, ao qual entregaremos,
com inteira e respeitosa confiança, a defeza
das nossas leis, dos nossos direitos, da nossa religião
e de todos os mais sagrados interesses da patria.
Debaixo dos auspicios da Providencia, debaixo da
gloriosa protecção de vossa magestade e do
governo
tutelar, que respeitosa e unanimemente supplicâmos, nos
lisongeâmos esperar, senhor, que Portugal assegurado
para sempre da affeição do maior dos monarchas, e
unido por uma mesma constituição politica aos
destinos
da França, verá renascer os ditosos dias da sua
antiga grandeza; a sua prosperidade será solida como
a vossa gloria, eterna como o vosso nome.
Lisboa, 24 de maio de 1808.
Copiada do Correio Braziliense―Vol.
13.º fl. 738.
N. B. Foi esta mensagem assignada
pelo conde da
Ega, como presidente d'aquella commissão secreta, e
bem assim por todos os titulares e mais fidalgos que
[171]
se achavam em Lisboa, á excepção do
marquez das
Minas, o unico que a isso se recusou. Os signatarios
de modo algum representavam a nação, com cujos
interesses
pouco se importavam; tinham apenas em mira
obter de Napoleão a conservação das
regalias e privilegios
que Filippe II e D. João IV haviam confirmado
a seus antepassados. A
Junta dos Tres
Estados,
de que era presidente o conde da Ega, só tinha
attribuições
administrativas, não se parecendo em cousa alguma
com as antigas côrtes do reino. O juiz do povo
foi obrigado a assignar esta representação contra
a
qual havia a principio protestado.
N.º 9
Projecto para a constituição de
Portugal
Lembrando-se os portuguezes, de que são de raça
franceza, como descendentes dos que conquistaram
este bello paiz aos mouros em 1147, e que devem á
França, sua mãe patria, o beneficio da
independencia
que recobraram como nação em 1640, solicitos
recorrem
cheios de respeito e gratidão á paternal
protecção
que o maior dos monarchas ha por bem outorgar-lhes.
Dignando se o immortal Napoleão patentear-nos
a sua vontade por orgão de nossos deputados, quer
que sejamos livres, e que nos liguemos com indissoluveis
laços ao systema continental da familia europea,
quer as nações, que compõem esta
grande familia vivam
unidas, e que prestes possam gosar das delicias
de uma prolongada paz, á sombra dos sabios governos
fundados nas grandes bazes da legislação e da
liberdade
maritima e commercial. É portanto do nosso peculiar
interesse, assim como dos outros povos confederados,
que a nossa deputação continue a ser junto
a sua magestade imperial e real a interprete de nossos
unanimes votos e que lhe diga:
Senhor! desejamos ser ainda mais do que eramos
quando abrimos o Oceano a todo o universo;
Pedimos uma constituição e um rei constitucional,
que seja principe de sangue de vossa imperial familia;
Dar-nos-hemos por felizes se tivermos uma
constituição
em tudo similhante á que vossa magestade imperial
e real houve por bem outorgar ao grão-ducado
de Varsovia, com a unica differença de que os representantes
da nação, sejam eleitos pelas camaras municipaes,
[172]
a fim de nos conformarmos com nossos antigos
usos;
Queremos uma constituição, na qual, á
similhança
de Varsovia, a religião catholica, apostolica, romana
seja a religião do Estado; em que sejam admittidos
os principios da ultima concordata entre o imperio
francez e a santa sede; pela qual sejam livres todos
os cultos e gozem da tolerancia civil e de exercicio
publico; em que todos os cidadãos sejam eguaes perante
a lei; em que o nosso territorio europeu seja dividido
em oito provincias, assim a respeito da
jurisdicção
ecclesiastica, como da civil, de maneira que só fique
havendo um arcebispo e sete bispos; em que as
nossas colonias, fundadas por nossos avós, e com o seu
sangue banhadas, sejam consideradas como provincias,
ou districtos, fazendo parte intregante do reino,
para que seus representantes, desde já designados,
achem em a nossa organização social os logares
que
lhes pertencem, logo que venham, ou possam vir occupal-os;
em que haja um ministerio especial para dirigir
e inspeccionar a instrucção publica; em que seja
livre a imprensa, por quanto a ignorancia e o erro tem
originado a nossa decadencia; em que o poder executivo
seja assistido nas luzes de um conselho d'Estado,
e não possa obrar senão por meio de ministros
responsaveis;
em que o poder legislativo seja exercido por duas
camaras com a concorrencia da auctoridade executiva;
em que o poder judicial seja independente, o codigo
de Napoleão posto em vigor, e as sentenças
proferidas
com justiça, publicidade e promptidão; em que os
empregos
publicos sejam exclusivamente exercidos por
nacionaes que melhor os merecerem, conforme o que
se acha determinado no artigo 2.º da
constituição polaca;
em que os bens de mão morta sejam postos em
circulação; em que os impostos sejam repartidos
segundo
as posses e fortuna de cada um sem excepção
alguma de pessoa ou classe e da maneira que mais facil
e menos oppressiva fôr para os contribuintes; em
que toda a divida publica se consolide e garanta
completamente visto, haver recursos para lhe fazer
face.
Queremos egualmente que a organização pessoal da
administração civil, fiscal e judicial, seja
conforme o
systema francez, e por conseguinte se reduza o numero
immenso de nossos funccionarios; mas desejâmos
[173]
e pedimos que todos os empregados que ficarem
fóra dos quadros recebam sempre os ordenados, ou
pelo menos uma proporcionada pensão,
e que
nas vacaturas
tenham preferencia a outros quaesquer.
Era sem duvida inutil lembrar esta medida de equidade
ao grande Napoleão; mas como sua magestade
imperial e real quer conhecer a nossa opinião em tudo
o que nos convem, evidentemente nos prova que é mais
pae do que soberano nosso, dignando-se consultar seus
filhos, e prestar-lhes os meios de serem felizes.
Viva
o imperador!
N.º 10
O general em chefe do exercito francez em Portugal,
em nome de sua magestade o imperador dos francezes,
rei de Italia, e em observancia das suas ordens,
decreta:
Artigo 1.º O
reino de
Portugal
será d'aqui por diante
administrado todo inteiro, e governado em nome
de sua magestade o imperador dos francezes, rei de
Italia, pelo general em chefe do exercito francez em
Portugal.
Art. 2.º O
conselho
de regencia,
creado por sua alteza
real o principe do Brazil, no momento em que
este principe abandonou o reino de Portugal, fica supprimido.
Art. 3.º
Haverá um
conselho de governo, presidido
pelo general em chefe, composto de um secretario de
Estado encarregado da administração do interior,
e
das finanças, com dois conselheiros de governo, um
encarregado da repartição do interior, e outro
encarregado
da repartição das finanças.
De um secretario de Estado encarregado da
repartição
da guerra, e da marinha, com um conselheiro de
governo encarregado da repartição da guerra, e da
marinha.
De um conselheiro de governo encarregado da justiça,
e dos cultos, com o titulo de regedor.
Haverá um secretario geral do conselho encarregado
dos archivos.
Art. 4.º Os
senhores
corregedores
das comarcas, juizes
de fóra, juizes do crime e juizes ordinarios; os
desembargadores
dos differentes tribunaes, o senado da
camara de Lisboa, a junta do commercio, as diversas
[174]
camaras, o presidente do terreiro público, em uma palavra,
todos os encarregados da administracção publica
são conservados, á excepção
das reducções que
o interesse publico mostrar que é necessario
fazerem-se
pelo tempo adeante, e das mudanças nos objectos
relativos a seus cargos, que a nova organização
do
governo julgar indispensaveis.
Art. 5.º Mr.
Herman é nomeado secretario do Estado,
encarregado da repartição do interior e das
finanças.
D. Pedro de Mello é nomeado conselheiro de governo,
da repartição do interior.
O senhor d'Azevedo da repartição das
finanças.
Mr. Lhuitte é nomeado secretario de
Estado, encarregado
da guerra e da marinha.
O sr. conde de São Paio é nomeado conselheiro de
governo, da repartição da guerra, e da
repartição da
marinha.
O senhor principal Castro é nomeado conselheiro de
governo encarregado da justiça e dos cultos, com o titulo
de regedor.
Mr. Viennez-Vaublanc é nomeado secretario geral.
Art. 6.º
Haverá em cada provincia um administrador
geral com o titulo de corregedor mór, encarregado
de dirigir todos os ramos da administração, de
vigiar
sobre os interesses da provincia, de indicar ao governo
os melhoramentos que devem fazer-se, tanto a respeito
da agricultura, como da industria; devendo corresponder-se
sobre qualquer d'estes objectos com o secretario
de Estado da competente repartição, e com o
regedor,
pelo que pertencer á justiça, e ao culto.
Haverá egualmente em cada provincia um official
general encarregado de manter a ordem, e a tranquillidade:
as suas funcções são puramente
militares;
mas nas ceremonias publicas, terá seu logar á
direita
do corregedor mór.
Haverá um corregedor mór na provincia da
Estremadura,
que residirá em Coimbra, e um corregedor
mór na cidade de Lisboa, e seu termo, o qual será
demarcado
de uma maneira exacta.
Art. 7.º O
presente
decreto
será impresso, e affixado
em todo o reino, para ter força de lei.
O secretario de Estado do interior, e das finanças,
o secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o
[175]
regedor são encarregados de sua
execução, cada um
pela parte que lhe toca.
Dado no palacio do quartel general no primeiro de
fevereiro de 1808.==
Junot.
N.º 11
O governador de Paris, primeiro
ajudante de campo
de S. M. o imperador e rei, general em chefe decreta:
Da data d'este em deante todos os actos publicos,
leis, sentenças, etc., etc., de qualquer natureza que sejam,
que até agora se faziam e processavam em nome
de S. A. R. o principe regente de Portugal, principiarão
pela fórmula seguinte:
Em nome de S. M. o
imperador
dos francezes, rei de Italia,
protector da
confederação
do Rheno.
Todos os actos administrativos, e na execução,
relativos
a qualquer decreto, ou ordem, emanados do
actual governo, terão, além da fórmula
acima, a seguinte:
E em consequencia do decreto, ou das ordens de
sua excellencia o governador de Paris, primeiro ajudante
de campo de S. M., e general em chefe do exercito
francez em Portugal.
A formula empregada pelo governo, será:
Em
nome
de S. M. o imperador dos francezes, rei de Italia, protector
da confederação do Rheno, ouvido o conselho do
governo: (quando o conselho tiver sido consultado.)
O governador de Paris, primeiro ajudante de campo
de S. M., general em chefe do exercito francez em
Portugal,
decreta.
E quando não tiver havido deliberação
no concelho,
a fórmula será:
Em nome de S. M. o
imperador dos
franceses, etc., etc..
O governador de Paris, etc., etc.,
decreta ou ordena:
O sello do governo será o mesmo do imperio francez,
com esta leganda:
Governo de
Portugal.
O secretario de Estado do interior, e das finanças, o
secretario de Estado da guerra, e da marinha, e o regedor,
são encarregados da execução do
presente decreto,
cada um pela parte que lhe toca.
Dado no palacio no quartel general no primeiro de
fevereiro de 1808.
INDICE
I |
― |
Quando Deus queria... do norte
chovia |
5 |
II |
― |
De um argueiro um
cavalleiro |
17 |
III |
― |
Um conciliabulo politico no anno de
1808 |
25 |
IV |
― |
Reina a confusão no campo de
Agramante |
36 |
V |
― |
Francezes á meia
noite |
46 |
VI |
― |
Uma visão pouco
sobrenatural |
56 |
VII |
― |
Primeiros clarões de um grande
dia |
67 |
VIII |
― |
Ralham as comadres descobrem-se as
verdades |
77 |
IX |
― |
O Pae e a
filha |
92 |
X |
― |
Antes de se levantar o
panno |
105 |
XI |
― |
A
batalha |
116 |
XII |
― |
Sol entre
nuvens |
131 |
XIII |
― |
Conclusão |
142 |
Notas ao segundo
volume |
151 |
Documentos |
157 |
Notas:
[1]
Vidé
General Foy,
Histoire de
la Guerre de la
Peninsule livro IX.
Dêpeches et ordres du jour du Feld
Marechal duc de Wellington, (Recueil choisi) N.º
228-261.
Successos de Portugal, ou Prodigiosa
Restauração
da Lusitania Feliz. Por um Portuguez. Lisboa 1809
pag. 17 e seguintes.
[2] Em
consequencia da
deputação enviada a Bonaparte foi esta
contribuição reduzida a 50 milhões de
francos.
Lista de erros corrigidos
Aqui
encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Foram
mantidas as variações de nomes
próprios.