The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das
Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz

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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes
       Maio a Junho de 1877

Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz

Release Date: July 6, 2005 [EBook #16219]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL ***




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Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas

AS FARPAS

RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ

CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES

NOVA SERIE TOMO IX

Maio a Junho 1877


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

A burra do Estado. Porque motivo o ministerio Fontes se deitou abaixo d'essa burra, e do mais que então passou. A queda do dente. Elogio do dente pelo sr. Assumpção. O dente embrulhado n'um papel. O dente aos pés do throno. O dente demittido. Pede-se um dente novo.—O drama Leonor de Bragança e a caixa do Poder Moderador. Parallelo da peça do sr. Luiz de Campos e da do sr. Alfredo Ansúr. Os caracteres em cada uma das duas peças, a lingoagem, o stylo, a cortezania, a intenção moral. Conclusões do referido estudo: requisita-se para o sr. Ansúr a commenda do lagarto ou metade da caixa conferida pelo Poder ao sr. Campos.—As corridas de cavallos—O premio do Jockey-Club e o premio da Academia—O progresso em Lisboa durante o ultimo semestre. A sociedade affirma o seu movimento ascendente na civilisação por meio de dois novos estancos e de uma ourivesaria. Philosophia de uma vitrine de joias—A peregrinação a Roma. Os preparativos. A partida. A prescripção da toilette. A chegada a Lourdes. Aspecto pittoresco e elegante do milagre: o restaurant, o trem de Paris, as parties fines sobre a relva, o Champagne e as bilhinhas da agoa. Em Roma. As offerendas. O dinheiro de S. Pedro. A applicação d'esta receita. O album dos peregrinos e o que n'elle se contém. A nossa allocução. O primeiro e o ultimo jubileu. Pio IX e Bonifacio VIII. A antiga fé. Os peregrinos em 1300. A fé actual e os peregrinos d'hoje. O conflicto da sciencia e da fé. O Deus de Darwin. Os novos poderes espirituaes. De como ninguem quer o ceu do Padre Marnoco—A primeira communhão de sua alteza o principe—A civilisação africana e as conferencias academicas. Uma conferencia que se não faz: Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores.


Era em uma bella manhã do mez de março. A primavera, essa filha do amor e da brisa—como diria o sr. Antonio de Serpa se as conveniencias partidarias lhe permittissem ainda dedilhar a theorba sob o lyrico balcão de D. Mafalda—tinha estendido sobre as campinas o seu manto de esmeraldas. Nas estradas que convergem a Lisboa um alegre raio de luz animava a circulação da vida suburbana. Havia um novo tom festivo no chocalhar das recuas dos almocreves, no rodar das pesadas carroças da hortaliça de que se exhalam emanações appetitosas de cuentro e de pimpinella, no tic-tic do passo miudo e zeloso dos jumentos saloios ajoujados de bilhas de leite e de seirões de roupa lavada. A agua das regas rumorejava suavemente por baixo da macia verdura aveludada dos favaes. As cotovias cantavam na espessura das hortas. Pelos portões das quintas, de pateo ajardinado, sahia em calidas baforadas o perfume dos limoeiros. Por cima dos muros pintados de amarelo bracejavam sobre os caminhos as hastes dos pecegueiros em flôr. Uma aragem tepida e balsamica cahia do ceu azul e envolvia n'um doce torpor voluptuoso e suave os nervos dos lisboetas que madrugavam voltando de Cintra ou desembarcando na gare de Santa Apolonia.


Foi dominado por essas influencias do clima, da paizagem, dos aspectos da natureza, que o sr. Fontes Pereira de Mello deliberou deitar-se abaixo do governo, retirando-se ao diletantismo particular e abandonando aos que iam pela via a burrinha pacata e fiel do poder, que elle cavalgara em cinco annos de choito glorioso atravez das diversas provincias da publica administração.

Somos informados de que s. ex.ª, reunindo os seus collegas do ministerio e os seus mais intimos amigos politicos, lhes fallara d'esta arte:

Senhores! Achando-me esta manhã á janella do meu quarto, fazendo algumas considerações philosophicas e a barba, deliberei apear-me por algum tempo da azemola do poder.

Vozes de amigos intimos desapontados.—Oh! oh! Não o cremos!... Não o podemos crer!... É um gracejo, um puro gracejo de s. ex.ª! Que a burra do poder venha á presença de s. ex.ª para que s. ex.ª a cavalgue! S. ex.ª não pode assim descer da burra! Seria altamente impolitico deixar-nos n'este momento com a burra devoluta nos braços! deixar-nos, para assim dizer, com a burra atravessada na garganta! Haja ao menos um pretexto, haja uma razão!

O sr. presidente proseguindo: Quereis uma razão? Eu vol-a dou. Acho-me impossibilitado de proseguir provincias da publica administração além. Á força de meditar nos altos negocios do estado acaba de me cahir um dente ...

Vozes—Dê o dente para ordem do dia!

O sr. presidente (tirando o dente da algibeira e collocando-o na discussão)—Ahi tendes o dente. Abri sobre elle os mais largos e rasgados debates, e julgae-o como vos approuver. É um queixal. Nada mais acrescento. Sobre este ponto considerações de melindre pessoal me inhibem de continuar. Farei apenas sentir aos meus amigos politicos e aos meus collegas do gabinete que nem a camara nem o paiz nem a corôa poderão, segundo penso, exigir da minha fidelidade partidaria que eu sacrifique á investigação dos negocios os dentes que o meu ardente patriotismo me impõe a obrigação de reservar para os inimigos da patria. Tenho dito.

(Vozes:—Muito bem! Muito bem!)


O sr. Manuel da Assumpção, havida então venia para fallar, consta que estendera a dextra sobre o dente, e proferira com ardor e enthusiasmo as seguintes palavras:

«Meus senhores! Este dente é a pagina mais gloriosa da nossa historia. É effectivamente um queixal, como s. ex.ª muito bem disse na sua phrase tersa, de uma energia e de uma concisão dignas de Tacito. Ha oito dias que os jornaes que nos guerreiam lançaram este dente na tela da discussão, procurando fazer acreditar ao paiz e ás nações extrangeiras, por meio de insinuações malevolas, que elle é canino. Mandando o dente para a meza o sr. presidente acaba de confundir de uma vez para sempre os seus adversarios. Queixal! Longa foi a tua carreira gloriosa. Enraizado no queixo de s. ex.ª atravessaste com elle as mais duras provações de uma carreira brilhante. Roeste o pão negro do ostrocismo. Atolaste-te na lampreia d'ovos das doces illusões. Mascaste a cabedella dos terriveis desenganos. Depois de cada um d'esses estadios na senda dos progressos materiaes e moraes, s. ex.ª, com mão decisiva, palitava-te. Um dia porém, á meza do orçamento, no grande banquete da civilisação, n'esse campo de batalha onde se travam os combates incruentes do progresso e onde o talher de s. ex.ª por muitas vezes fulgurou desembainhado ao sol das victorias, tu, depois de uma violenta refrega, com umas amendoas torradas de exercicios lindos, com uns biscoutos de gerencias anteriores, e com algumas outras verdades duras de tragar, appareceste furado. No dia seguinte s. ex.ª chamava ás armas a reserva e um dentista, e tu, ó dente, recebias como os bravos o baptismo do chumbo. A bala inimiga....

O sr. Presidente—Tomo a liberdade de interromper o illustre deputado e meu nobre amigo para lhe fazer notar que o dente não recebeu o baptismo do chumbo sob a forma de bala, mas simplesmente sob a forma de pingo.

O orador—Do mesmo modo então que um fundo de chaleira?

O sr. Presidente—Precisamente do mesmo modo.

O orador—Agradeço infinitamente a s. ex.ª a informação que acaba da prestar-me, e, se s. ex.ª m'o permitte prosigo, pondo de pane a piada relativa á bala do inimigo ...

Dente! cahiste alfim. A tua queda tem o caracter de um triumpho, pois não cahiste arrancado por uma opposição accintosa e malevola; cahiste porque tinhas os teus dias cheios e um pouco tambem porque estavas podre.

Que mais queres, ó dente? que mais desejas? que mais ambicionas?...

O sr. Presidente—Peço perdão para ainda uma vez interromper o illustre deputado, rogando-lhe que não tome por incivil o silencio do dente ás suas interrogações. O dente é hoje a primeira vez que apparece em publico separado dos seus companheiros, e deve-se ter em conta o justo acanhamento que a sua nova situação lhe infunde. Eu acho-me porém habilitado para satisfazer a curiosidade do illustre deputado em quanto ás ambições do dente logo que s. ex.ª o exija.

O orador—Como deputado da maioria tenho a declarar ao sr. presidente que nunca dirijo ao governo, nem no seu conjuncto nem separadamente a nenhum dos seus queixaes pergunta alguma para que deseje resposta. As minhas interrogações são puramente rhetoricas. O silencio com que fui escutado pelo dente não sómente me não escandalisa mas antes pelo contrario me penhora como um testemunho de benevolencia a que não ousava aspirar.

Concluindo, tenho a honra de propor que, depois de embrulhado respeitosamente em um papel, o dente seja levado ás plantas do poder moderador, para que sua magestade haja por bem resolver como lhe approuver esta passageira crise. Faço votos por que o sr. Presidente do conselho se apresse em pôr ao serviço da nação um novo dente.»


Approvada unanimemente a eloquente proposta do sr. Assumpção, o sr. Presidente do conselho recolheu-se a sua casa a tomar bochechos emolientes emquanto o resto do ministerio partia para o Paço a levar ao soberano o dente resignatario.

Constou pelos jornaes quo apenas recebera o dente sua magestade se dirigira a casa do sr. presidente do conselho, com o qual teve uma entrevista de duas horas. Estas duas horas foram empregadas pela corôa em procurar reintegrar, pelas suas proprias mãos, o dente caído na maxilla do illustre estadista.

Diz-se que a corôa, suando em bica, esgotára, para consolidar o dente caído no seu logar primitivo, todos os meios compativeis com as disposições do codigo fundamental da monarchia. Sua magestade tentára fixar o dente ao chefe do gabinete com obreias, com adhesivo, com lacre, com pez, com gomma arabica, com barbante, com alfinetes e com pregos.

O dente reagiu a todas as reaes instancias: o excelso politico, em cujo queixo inferior elle se firmára durante cinco annos de gerencia governativa não queria mais a confiança da corôa, queria unicamente cosimento de malvas.

O monarcha lavrou então o decreto mandando o seu antigo ministerio bochechar, e encarregou o sr. marquez de Avila e Bolama de reunir com os seus amigos o numero de dentes necessarios para formar uma gerencia duradoura e firme.

D'este encargo se desempenhou o sr. marquez com o zelo que o caracterisa, e o actual ministerio nasceu.


Um dos nossos mais distinctos amadores, o sr. Luiz de Campos, acaba de dotar o theatro de D. Maria com um drama, cujo exito constitue o maior triumpho modernamente alcançado pelas letras portuguezas.

Não só os jornaes todos consagraram a esta obra louvores emittidos com uma energia desusada, mas até a alta sociedade, de ordinario tão parcimoniosa de curiosidade dispendida com a arte, patrocinou com especial favor esta peça. O auctor teve a gloria de ver os seus finaes d'acto applaudidos do fundo dos primeiros camarotes pelas mãos mais aristocraticas. Nas situações patheticas do seu assumpto lagrimas illustres sulcaram o pó d'arroz com que se perfumam os brazões das mais nobres e distinctas familias. Finalmente no fim do espectaculo o Poder Moderador, que assistira á representação em companhia da sua familia, expediu um dos seus camareiros, o qual foi ao palco cumprimentar o laureado dramaturgo, pedir-lhe desculpa de lhe não pingar do alto do throno sobre o peito da casaca a commenda de S. Thiago, e entregar-lhe em vez das insignias d'essa ordem excelsa e em nome do referido Poder um cofre com uma pedra preciosa, que os jornaes do outro dia pela manhã almotaçaram em 1:500$000 réis.


O drama do sr. Luiz de Campos intitula-se Leonar de Bragança e encerra a historia d'aquella desditosa, cuja mocidade e belleza feneceram de subito, surprehendidas no ventre por trez facadas com que a brindou seu esposo, o mui nobre e poderoso duque de Bragança, um dos antepassados do Poder que hoje nos rege, e ao qual, bem como á sua familia, acima tivemos a honra de reportar-nos submissa e respeitosamente.

O pretexto sob o qual D. Jayme damnificou com instrumento perfurante o abdomen de sua mulher foram os amores d'esta com o pagem Antonio Alcoforado.

Existiram effectivamente esses amores? Era a duqueza realmente culpada de uma fraqueza anormal pelos pagens? Era Alcoforado um honesto e leal servidor do principe D. Theodosio, ou era uma ratoeira vil de duquezas incautas?


Ha duas opiniões ácerca do modo de considerar no theatro a natureza d'este facto.

Na sua Leonor de Bragança, escripta em prosa, o sr. Luiz de Campos entende que a duqueza é innocente. Na sua Leonor de Bragança, escripta em verso, o sr. Alfredo Ansúr julga a duqueza culpada.

Os fados, que tão propicios foram á obra do festejado sr. Campos, trataram adversamente a obra não menos estimavel do malogrado sr. Ansúr. Julgamos do nosso dever protestar contra esta dura injustiça pondo em cotejo as duas composições a que deu origem a tragica aventura de Leonor.


No drama do sr. Luiz de Campos a culpa toda do nojoso sarrabulho perpetrado por D. Jayme está unicamente, segundo diz o sr. Campos, em haver o pagem um coração. O sr. Luiz de Campos emprega constantemente haver em logar de ter, não só nos casos em que esse verbo é usado como auxiliar mas ainda quando se toma na accepção de possuir. Acatamos discretamente as rasões de pundonor e de dignidade que possam ter levado este cavalheiro a cortar as suas relações pessoaes com o verbo ter. O simples depoimento do verbo haver, conjugado com tanta lealdade, cravado no discurso com tanta firmeza como aquella que se admira em todas as locubrações litterarias d'este auctor, basta para nos convencer da innocencia de Leonor.

Todos os encontros da duqueza com o pagem no decurso d'esta peça são de um caracter fortuito absolutamente illibado.

A scena está vasia. Leonor tem por acaso de atravessar do segundo bastidor á esquerda para o segundo bastidor á direita exactamente no momento em que Alcoforado por egual acaso atravessa do segundo bastidor á direita para o segundo bastidor á esquerda. Elles veem ambos meditando no verbo haver, e descarregam um sobre o outro o objecto das suas cogitações pouco mais ou menos nos seguintes termos:

Duqueza—Houveste alfim volvido?

Pagem—Houve; e vós, senhora, que heis de determinar-me?

Duqueza—Nada hei.

Pagem—Hão, quiçá, offendido-vos outra vez?

Duqueza—Não hão. Pagem, havereis de volver a casa do sr. D. Theodosio.

Pagem—Visto que não heis de mim de, senhora minha, haja de se cumprir vossa vontade! Haverei força, haverei de havel-a ... Manhã, ao toque de prima, serei partido. De nada mais heis mister?

Duqueza—De nada mais hei, pagem; e a Deus prasa que jámais haja de haver! Idevos presto a D. Theodosio, consoante-vos hei di-lo pouco ha.

Pagem—Em mim havei fé, minha senhora ama: eu me vou.

(Saem ambos, cada um por seu lado, meditabundos.)

A entrevista que dá causa á vingança do duque não a tem Alcoforado com a duqueza mas sim com uma das suas damas. Em toda a peça, finalmente, a duqueza, nem por carta, nem de viva voz, nem de simples ôlho, tem para Antonio uma palavra, um aceno, um gesto, em que se presinta de leve que seja a exhalação da perfidia.


O sr. Ansúr é menos complacente com os seus personagens, como vamos ver.

BEATRIZ ANNES

Grande mal, grande mal, senhor Fernão!

FERNÃO RODRIGUES

Que mal?

BEATRIZ ANNES

Homem em casa.

FERNÃO RODRIGUES

Com a aia?

BEATRIZ ANNES

Não.

FERNÃO RODRIGUES

Com quem pois?

BEATRIZ ANNES

Com nossa ama.

O fogoso e pittoresco sr. Ansúr vae mais longe ainda: colloca o pagem aos pés da duqueza e põe na bocca de um e outro estas palavras:

PAGEM

  Que enthusiasmo sinto! Arfa-me o seio
  Em vertigem de amor! Sinto a poesia
  Na mente distillar grata ambrosia.
  Ó senhora duqueza! Minha vida!
  Como vos amo!

LEONOR

  Antonio! alma querida...

PAGEM

  Longe de vós a vida é-me desterro...
  Perdoar-me-heis do coração este erro?

LEONOR

  Sim.

PAGEM

  Sem vos escutar e sem vos ver
  Não podia, senhora, mais viver!
  Meu peito abrasa.

LEONOR

  Doce pensamento,
  Longe de ti é egual o meu tormento.

E a duqueza prosegue exaltando-se n'uma gradação rhetorica perfeitamente calculada pelo sr. Ansúr até o ponto de lhe dizer o Alcoforado:

  Calae-vos por piedade! Tende imperio
  Sobre a imaginação.

Em outra scena da peça depois de uma entrevista secreta com o pagem, á hora da meia noite, a duqueza profere uma palavra physiologica, de um sentido decisivo:

  Como evitar que o duque venha, e veja
  Aqui tua presença que me peja?

PAGEM

  Meu Deus!

LEONOR

  Jesus! esconde-te!

Ao que o pagem, com o temerario valor que só os altos sentimentos persuadem, replica energicamente:

  Fujamos!

LEONOR

  Por onde oh! ceus?!

PAGEM

  Por esta porta.

LEONOR

  Vamos.

Sendo tanto a Leonor de Bragança do sr. Luiz de Campos como a Leonor de Bragança do sr. Alfredo Ansúr peças offerecidas pelos seus auctores a sua magestade el-rei o sr. D. Luiz I, é claro que ellas devem ser consideradas pela critica não como livres producções litterarias mas como especiaes mimos dedicados á familia de Bragança. Ora sob este ponto de vista—não hesitamos em dizel-o—a obra do sr. Ansúr parece-nos muito mais completa e perfeita que a do sr. Luiz de Campos.

Pomos de parte a questão da investigação historica, que foi egualmente aprofundada pelos dois auctores. O sr. Luiz de Campos reforça-se com o testemunho dos documentos que manuseou: A historia genealogica, As Decadas de Couto e de Barros, a Chronica de D. Manuel por Damião de Goes e o Auto de inquirição e devassa existente na Torre do Tombo. O sr. Alfredo Ansúr fortifica-se exactamente com os mesmos documentos por elle compulsados.

Para suas excellencias, armados de eguaes argumentos pró e contra a duqueza, a escolha do papel que tem de lhe ser dado n'este drama é pois uma questão de gosto. O sr. Ansúr, emquanto a nós, escolheu melhor, e fez a sua magestade el-rei uma dadiva mais delicada.

Segundo o sr. Ansúr o duque de Bragança D. Jayme é um cavalheiro infeliz em familia, ao qual succede—como muito bem diz Menelau na Bella Helena—uma fatalidade. O duque deteriora a região intestinal da duqueza, mas deteriora-a em legitimo desforço da sua dignidade offendida e ao abrigo das leis do reino.

Segundo o sr. Luiz de Campos, dada a innocencia da esposa, o duque não passa de um sanguinario estupido, que envolve o seu brasão de familia e a futura tradição dynastica n'um ignobil e affrontoso chouriço de sangue innocente. O acto de mandar desossar pelo cosinheiro o pagem Alcoforado, com o mesmo facalhão com que se picam os bifes, é um facto indecente que, posto o criterio do sr. Luiz de Campos, estabelece um precedente que pode levar os servidores da casa de Bragança a não distinguirem inteiramente a differença que ha em ir para o paço e em ir para a salgadeira.

Eliminada a circumstancia do adulterio o duque é um facinora vulgar sem nenhum apoio na jurisprudencia ou na legislação. Depois da leitura da peça do sr. Luiz de Campos, um jury sensato que houvesse de julgar D. Jayme, mandal-o-hia degradado por toda a vida para a Costa de Africa. Só assim se poria uma sociedade culta ao abrigo de um principe que faz das esposas e dos vassalos um consumo que se não justifica pelas necessidades ordinarias da vida exterior.


Parece-nos ser um serviço em extremo subalterno prestado a alguem o publicar a historia de um dos seus antepassados á luz de uma critica cujas derradeiras consequencias são, como no drama do sr. Campos, a condemnação do mesmo antepassado a um genero de glorificação e de apotheose que elle só pode remir com a prisão correcional perpetua.

Na peça do sr. Ansúr o antepassado do alto personagem a quem elle a offerece e consagra apparece-nos satisfactoriamente levado ao crime por uma provocação cheia de solicitude e de cortezia. «Ha homem em casa. Com a creada? Não. Com a patrôa.» Este grito sublime de clareza e de concisão esparge no facto um raio de luz juridica e lança um immenso clarão de legalidade e de justiça sobre o chifarote brigantino destinado á perfuração das damas.

Nada mais tocante do que a situação do duque ao receber o fatal desengano:

  Horror! Infamia! Anathema! Vergonha!
  .......................................
  Rompe-se-me do ser toda a harmonia,
  Passa-se-me na mente extranha orgia!
  Estalam-me no corpo algumas fibras!
  Meu pobre espirito, que assim te libras
  Do desespero na mortal esphera,
  Não te consumas tanto! Acalma! Espera!
  .........................................
  Mofina dor me roe, me despedaça!
  Emquanto descuidoso andara á caça,
  Tu deliravas... tu... oh! que villeza!

E depois dirigindo-se ao pagem:

  Arrepende-te dos teus peccados
  Que os fios da tua vida estão contados!

PAGEM

  Perdão! piedade!

DUQUE

  Soffre com valor
  Que mais soffreu par nós o Redemptor!
  .....................................
  .........................Alfim
  Com o manchil Domingos cortará
  A cabeça do pagem. Morrerá.

A duqueza intervem com esta conceituosa mas intempestiva maxima:

  Jamais decepes com manchil odioso
  A cabeça de um justo. É horroroso!

O duque não precisa que lhe ensinem a resposta...

  Sabe mostrar do Barbadão de Veiros
  O descendente, como pune o ultraje,
  Que lhe fizeste, Leonor! Apage.

Não são estes porém os unicos serviços prestados pelo sr. Ansúr á clareza justificativa dos factos e ao esplendor immarcessivel da casa de Bragança. A peça d'este benemerito cavalheiro abunda em conceitos e em noções preciosas para a historia da nossa monarchia. Quem é o luso que, presando-se de amar o rei e a patria, deixará de ler sem uma commoção profunda as seguintes palavras que o auctor põe na bocca da mãe de D. Manuel, por occasião do advento d'este monarcha ao regio solio?

  Omnipotente Deus! quiz o destino
  Dar existencia ao throno manuelino!
  Quem predissera tal, filho cadete,
  Quando surgiste á luz em Alcochete?!

Temos por indigno e refece todo o cortezão que achando-se ao serviço da casa de Bragança se recusar a decorar os seguintes carmes em que o sr. Ansúr celebra os antigos privilegios heraldicos de tão distincta familia:

  A não ser o real, não ha poder,
  Que possa hoje nos reinos exceder
  O de nosso senhor! Póde D. Jayme
  (Ó fóros brigantinos inspirae-me)
  Nas salas dos seus paços ter doceis
  E sitiaes nas egrejas dos fieis.
  Forrada com arminhos, rica, larga
  Vestir opa vermelha aberta á ilharga;
  Ante si leva estoque, segundo acho,
  Com o extremo voltado para baixo,
  Distinctivo dos reis, que é para cima.

Faz gosto ler estas noticias e pensar a gente que pertence a um paiz em cujo throno se acha uma familia que antes de reinar tinha o direito de levar estoque para baixo, que ao reinar adquiriu o direito de levar estoque para cima, de sorte que póde hoje em dia (ó fóros brigantinos acudi-me), levar estoque simultaneamente para cima e para baixo!

A unica coisa que se nos offerece reprehender na peça do sr. Ansúr, por innumeros titulos superior á do sr. Luiz de Campos, é que o auctor a não tivesse accrescentado com mais um acto, no qual, para completa rehabilitação da casa de Bragança, o duque D. Jayme nos apparecesse resgatando-se aos olhos do Omnipotente por meio das penitencias em que consumiu até o ultimo dia da sua taciturna viuvez. Nos paços de Villa Viçosa ainda hoje se mostra aos viajantes uma tina cavada no chão, a que se desce por quatro degraus, na qual é tradição geralmente crida que o nobre duque se mettia em agua, durante uma hora por dia, para desaggravo e remissão de suas culpas. O illustre heroe tão devéras se arrependeu que chegou a mortificar-se d'esta maneira insolita e sem precedentes—tomando banho!

Seria um bello melhoramento na obra do sr. Ansúr que s. ex.ª a completasse com um breve epilogo, em que D. Jayme fosse visto amarrado pelo grilhão da penitencia a uma bacia, e ciliciado no vivo das suas carnes ultrajadas e viuvas pelo contacto expurgante de um sabão.


Postas estas considerações, não podemos deixar de perguntar: Porque motivo não caiu do alto da regia munificencia sobre o peito inspirado do sr. Ansúr o pingo da nobre ordem do lagarto, do merito artistico e litterario, pingo suspenso da real goteira sobre as boças poeticas do sr. Luiz de Campos? Não fez o sr. Ansúr um drama de assumpto brigantino como o do seu collega? Não tem o sr. Ansúr a precedencia n'esta creação litteraria? Não é a sua obra dedicada egualmente a el-rei? Não é ella escripta em bellas parelhas de versos de dez syllabas, em vez de o ser em prosa villôa como a do seu competidor?

O sr. Luiz de Campos, não podendo pela sua qualidade de deputado receber mercês honorificas, teve de el-rei o presente de um cofre no valor acima referido de 1:500$000 réis.

Não so dando com o sr. Ansúr a incompatibilidade annexa ao mandato popular, porque não se lhe confere a commenda da nobre ordem ou, quando menos, a sua equivalencia em cofre com pedra preciosa no valor de réis 1:500$000?

Grave e inexplicavel injustiça! Se a nossa debil voz póde chegar até ás orelhas da corôa, nós diremos ao augusto soberano:

Senhor! A vossa protecção ás letras patrias não se tem até hoje desmarcado de uma reserva tão discreta como constitucional. Os dramaturgos que precederam Luiz de Campos e Alfredo Ansúr apenas teem colhido da regia liberalidade a graça de haverem possuido collocado em uma avant-scène, durante uma ou duas representações das suas peças, o vosso real perfil, que outros não possuem senão collocado nas moedas de 5$000 réis, coisa miseravel e vil. Acabado o espectaculo vós enfiaes o vosso paletot, accendeis o vosso charuto, retomaes o vosso sceptro no bengaleiro, e ides para casa recolher as commoções da noite sob o agasalho da vossa corôa de dormir, de algodão branco com uma borla na ponta. O genio nacional não pôde ainda até hoje obter da vossa munificencia manifestações mais expressivas. Uma vez, porém, que deliberastes inaugurar a éra do galardão litterario, dae a Alfredo Ansúr a commenda que Luiz de Campos não pôde acceitar. Dae-lh'a quanto antes. Não espereis que á cabeceira do vosso leito se erga o espectro do remorso, e que, sob a figura do poeta menosprezado, elle vos brade nos silencios da noite:

«Descendente de Barbadão! solta-me o lagarto! Larga o lagarto, Barbadão!»

Se o throno for surdo ás nossas vozes, cairemos sobre o sr. Luiz de Campos, e com o manchil da justiça distribuitiva em punho cortar-lhe-hemos a dadiva regia ao meio!

Que o sr. Ansúr nos diga para onde quer que se lhe mande a metade do brinde que lhe lhe compete.


Hoje, 7 de maio, corridas de cavallos no hippodromo de Belem.

Um premio foi disputado por quatro cavallos, um foi disputado por tres, outro por dois, e o ultimo finalmente por um cavallo só. Este cavallo partiu correndo vertiginosamente atraz de si mesmo, e desenvolveu tal ardôr e tal velocidade que chegou á meta, no meio das ovações e dos applausos geraes, passando adiante de si proprio!

Nota-se esta curiosa influencia do premio do governo, do premio de el-rei, e do premio do Club, sobre o desenvolvimento da raça cavallar:—quanto mais premios se distribuem menos cavallos ha.

Se a instituição se mantem por dois ou tres annos mais, é-nos licito acariciar a esperança de que terminaremos por não haver cavallo nenhum, e teremos ainda o gosto de ver o primeiro dos sportmen que figuram no programma da presente corrida, o ex.'mo sr. Galileo, acabar por percorrer a pista montado no seu telescopio.


E no entanto o campo das corridas é o mais bello sitio dos contornos de Lisboa, o mais aprazivel ponto de passeio de carruagem, a cavallo ou a pé nas tardes de verão, e é susceptivel de ser explorado pelo Jockey-Club com sufficiente lucro da associação e com grande vantagem do publico. Bastaria para utilisar e aformosear o campo circumdal-o por fora da pista com uma rua de arvores intermeadas de bancos de jardim; estabelecer no centro do hippodromo um jogo do Cricket para os membros de um Cricket-Club addido ao Jockey-Club; organisar um tiro ao alvo, um Croquet para as senhoras, alguns jogos gymnasticos para o povo e para as creanças; promover nos domingos da primavera e de verão no recinto do campo pequenos certames agricolas e industriaes, concursos de vaccas, de carneiros, de gallinhas, de porcos gordos, exposições de flores, de fructas, de legumes, de queijos, de instrumentos de agricultura e de jardinagem, etc.

Lisboa carece vergonhosamente de uma instituição d'este genero que reuna com as condições de recreio os desenvolvimentos de actividade e de educação. Visto que nem o governo nem a municipalidade se occupam d'essa questão, o Jockey-Club prestaria um serviço relevante procurando resolvel-a.


Mas de modo algum pretendemos forçar o Jockey-Club a acceitar esse encargo. O Jockey-Club fará o que entender, e nós acharemos sempre que entendeu bem; a unica coisa que lhe rogamos é que reflicta no futuro que o espera continuando na senda assustadora em que principia a resvalar. O club achou ainda um meio de resolver o problema do concurso diante da simples unidade: queremos saber o que fará quando vier a apparecer a fracção, e a quem se dará o premio de el-rei, quando para o anno concorrer unicamente a disputal-o—um selim!


Ao mesmo passo que o Jockey-Club, sob a protecção de suas magestades o sr. D. Luiz e o sr. D. Fernando confere premios no valor de tres contos de réis annuaes ás bestas velozes, a Academia Real das Sciencias, sob a presidencia e sob a protecção dos mesmos augustos principes, confere apenas 50$000 réis de premio aos sabios extenuados.

Um cavallo que percorre a galope uma distancia de mil e quinhentos metros ganha réis 1:500$000. Os sabios do paiz inteiro ganharão 50$000 réis satisfazendo entre varios outros os seguintes pontos do programma da Academia para o anno de 1877:

Em mechanica: Apresentar um trabalho sobre o movimento dos fluidos; achar o melhor systema de obras a eslabelecer nas margens do Tejo a fim de satisfazer simultaneamente as condições de salubridade, irrigação e segurança das propriedades adjacentes. Em physica: estudar a capacidade calorifica dos atomos nos corpos simples; indicar a construcção da pilha de effeito mais constante e mais propria para ser applicada á telegraphia; apresentar a synthese dos alcaloides organicos; estudar a composição chimica das principaes aguas sulfureas e alcalinas de Portugal. Nas sciencias historico-naturaes: Fazer a descripção ampelographica das principaes castas de uvas portuguezas e determinar o melhor processo para o fabrico dos vinhos genuinos; fazer um ensaio monographico da fauna portugueza. Nas sciencias medicas: Determinar as alterações da saude e as doenças devidas ás principaes industrias do paiz e indicar os meios efficazes de as prevenir; fazer um estudo critico do systema de esgoto e saneamento da capital, que satisfaça a todas as condições prescriptas pela hygiene, apresentando o modo da sua realisação; estudar a mortalidade de Lisboa, suas causas e meios de as attenuar. Em litteratura: Fazer um romance historico, fazer um poema, fazer um glossario das palavras e locuções hoje obsoletas ou antiquadas que se leem nos antigos cancioneiros portuguezes acompanhando esse vocabulario de observações linguisticas e philologicas. Nas sciencias economicas e administrativas: Memorias ácerca da descentralisação em Portugal e do melhor systema de circulação fiduciaria. Em historia e archeologia: Estudo ácerca do estado da sociedade portugueza ao tempo da morte de D. João V; determinar e caracterisar as relações artisticas de Portugal nos seculos XV e XVI no tocante á architectura, esculptura, pintura, musica e artes industriaes, indicando os meios officiaes e extra-officiaes que facilitaram essas relações pondo os resultados em parallelo com a historia da arte em geral, etc., etc., etc.


Se nós fossemos sabios preferiamos ao trabalho de responder a qualquer dos alludidos quesitos pela somma de 50$000 réis, o trabalho de percorrer á desfilada a pista do hipodromo de Belem—de graça.


Durante o semestre que finda este mez Lisboa não produziu nem um só livro util, nem uma só notavel obra d'arte na pintura, na musica, na poesia.

Não se fez nem uma prelecção nem uma conferencia litteraria ou scientifica. A estação toda passou-se como a estação anterior, como as estações precedentes, sem que esta sociedade em marasmo désse um unico signal de vida intelligente.

Lisboa é hoje a unica capital da Europa em que isto succede. Não queremos dar-lhe em parallelo Paris, Berlim, Bruxellas, Londres, S. Petersburgo, qualquer das grandes cidades da Italia ou da Hollanda. Apontaremos apenas Madrid, e não citaremos senão um dos seus institutos particulares, o Atheneu, sociedade da natureza do Gremio Litterario em Lisboa. No Atheneu os cursos publicos, livres, gratuitos, abriram-se no mez de outubro, tendo havido desde o dia da abertura prelecções, conferencias ou debates em todas as noites. Teem-se ventilado as mais interessantes questões da philosophia e da sciencia social no ponto de vista de espiritos altamente cultos.

Em Lisboa o progresso social, o movimento ascendente da civilisação manifestou-se unicamente pela apparição de tres estancos novos no Chiado e de uma ourivesaria no largo das Duas Egrejas. Como á falta de objecto para outros interesses mais elevados, nós occupavamos os nossos ocios encostando-nos ás humbreiras das tabacarias a ver dispersar-se no ar o fumo dos nossos charutos, as tabacarias comprehenderam que este estado geral dos espiritos deveria começar a fatigar os habitantes de Lisboa, e dotaram-os com sofás. Para o anno os estancos requintarão ainda as condições de commodidade e havemos de ver os estanqueiros sairem ao encontro dos desejos do publico com colchões. Chegaremos á Casa Havaneza, despir-nos-hemos, poremos a camisa de dormir e fumaremos os nossos carvajales deitados em camas, á porta.


A ourivesaria do largo das Duas Egrejas teve o successo de uma instituição. Ella é como um templo ao luxo, como um altar ao deus Ouro, tal como o conceberiam, erigido com todo o esplendor do culto, os Pharaós da Rua dos Capellistas. A armação interior da loja é feita em Paris segundo os elegantes modelos das joalherias da rua de la Paix ou do Palais Royal. Armarios da mais verosimil imitação de ebano sobre um parquet brunido. Tecto de um azul idealisado, representando um trecho de ceu coberto de creme.

Nas vitrines, de um só cristal immaculado, desdobram-se em degraus, como n'um throno de lausperenne, as prateleiras de veludo cor de cereja, de cuja suavidade macia e ardente destacam em vigoroso relevo as joias em exposição. A um lado pendem em meada as correntes de relogio exhibidas como o corpo de delicto de uma quadrilha de pick-pocket apanhados com o roubo. Suspensos nas extremidades das correntes pousam em baixo os breloques, n'um grande molho confuso, como se adornassem um collete monstro sobre o estomago collectivo e proeminente do capital.

Nos logares mais proximos de quem olha estão os miudos objectos preciosos, as finas pedras raras, os olhos de gato castanhos e amarellos em pequenas elypses cujo grande eixo é indicado por uma linha que separa nitidamente as duas côres; as perolas negras de um tom profundo, que não é o preto, é o infinitamente escuro, como a noite; as perolas côr de rosa sobresaindo em cercaduras de brilhantes como capsulas cabalisticas feitas de substancias extraidas de uma cristalisação mimosa de beijos ternos e de perfumes castos.

No segundo plano apparecem os ornamentos de mais vulto: os broches tremelusentes e vivos como esparrinhaduras de diamantes e de rubis chispando no ar; as flores imaginosas de petalas de aljofar ou de saphira, orvalhadas de pulverisações de esmeralda; os medalhões em camafeus preciosos sobre pedras de tres côres nos tres planos da esculptura; as eflorescencias phantasticas das onix, das granadas, das malaquites, das opalas; em raios como estrellas, em sobreposições como pinhas, listradas, rajadas, mosquetadas, affestoadas, zebradas com todas as scintillações do prisma.

Mais longe offerecem-se os braceletes nos seus estojos côr de lilaz. Uns são fortes e duros como os violentos desejos, outros vaporosos e finos como aspirações platonicas. Nas suas variadas formas teem physionomias, revelam temperamentos. Ha-os lascivos e ardentes, colleados em quatro roscas de um ouro fulvo, terminando n'uma cabeça de cobra esmagada por um esbraseamento de rubi. Ha-os contemplativos e ingenuos, de uma côr limphatica, salpicados de frias e innocentes turquezas. Tambem os ha trasbordantes de uma vida farta e victoriosa, largos, rendilhados, superabundantes de cores, expansivos e triumphaes como orchestras, soprando hymnos de um enthusiasmo sanguineo, vermelho, despotico.

Em outra vitrine está a exposição das pratas: os centros de mesa representando palmeiras, á sombra das quaes se empinam cavallos em pello, que deverão parecer relinchar de amor no meio das sobremesas, entre as frutas empilhadas geometricamente em pyramide sobre taças de filigrana e os gelados transparentes impregnados de luz, tremulos, côr de topasio; as bacias de mãos, de desenhos bysantinos repoussés; os jarros de forma etrusca; os assucareiros graves e concentrados como vasos de particulas sagradas; e os grossos bules barrigudos e polidos, nos quaes se espelham os rostos em caricatura monstruosa, com bochechas obscenas, narizes que incham como focinhos de vitela e bocas que riem até as nucas.


Ao accender das luzes, ás oito horas e pouco depois, magotes compactos de espectadores estacionam defronte da vitrine das joias. Demoram-se mais as mulheres: mulheres de amanuenses e de pequenos empregados, costureiras das modistas, que saem a essa hora das officinas quando não ha serão.

Candieiros de gaz com fortes reflectores não só alumiam intensamente os objectos expostos nas vitrines, mas alumiam tambem pedaços de espectadores, em que se podem fazer exames minuciosos, de microscopio.

As mulheres magras, pallidas, que olham, teem as faces oleosas da transpiração do trabalho de 14 horas em pequenos gabinetes abafados, cheios de exhalações mornas de roupa suja. Na mão esquerda o dedo que aponta para um colar de mil libras tem uma nodoa escura, esfarpada, produzida pelas picaduras da agulha, e o dedo polegar mostra uma unha curta atrophiada no habito de esmagar costuras. Os chapeus adornam-se com velhas flores em terceira mão, desbotadas e tristes; e das cuias, caidas sobre a mancha gordorosa que tem entre as espaduas a alpaca poida dos vestidos, sae um cheiro acido de cabellos humidos e embrulhados, em fermentação.

Dentro da loja uma bella mulher risonha que se apeou de um coupé, embrulhada em fina renda branca, debruça-se no mostrador e aproxima da mão do caixeiro que lhe segura um brinco a polpa aveludada da sua orelha carnuda, sensual, de comilona feliz.

Os espelhos dos angulos da sala e os que forram as vitrines reproduzem infinitamente para todas as direcções essa cabeça bonita envolta em renda, e mostrada ao mesmo tempo de todos os lados, de frente, de perfil, de tres quartos, acompanhada sempre da mão que enfia o brinco.

As macilentas Margaridas de olhos pisados vão ver em cada noite esse espectaculo de tentação, em quanto na esquina fronteira, na Casa Havaneza, os Doutores Faustos accendem os seus charutos, e muitos diabinhos invisiveis volitam no ar dizendo segredos, deitando de fóra impudentemente as linguinhas de chamma e coçando os seus piqueninos chavelhos com freneticas contracções aduncas, como quem se sente inteiramente cheio de phosphoro e de alacridade.


A peregrinação a Roma foi promovida pelos chefes do partido clerical com um zelo fervoroso, que acabamos de ver coroado com o mais prospero exito.

Suas excellencias annunciáram com a devida antecedencia a celebração do jubileu pontificio; facilitaram a romagem com esclarecimentos que fariam a gloria do Guide Joanne; conseguiram o estabelecimento de comboyos de recreio, ida e volta, preços reduzidos, de Lisboa a Roma, com escala por Nossa Senhora de Lourdes; deram os preços dos hoteis e dos restaurantes romanos, a regimen de peixe ou de carne, para as grandes bolsas, para as bolsas medias e para as pequenas bolsas; fixaram finalmente a toilette, explicando que as senhoras deveriam apresentar-se com vestidos de seda preta e véos de renda, e os homens de uniforme ou de casaca preta e gravata branca.

Porque—suas excellencias o explicáram—o santissimo padre não recebe senão senhoras de rendas e homens de casaca. Os peregrinos vestidos de sacco e burel, as peregrinas cingidas pela estamenha e pela corda de esparto, não sobem a escada do Vaticano. Os pés privilegiados para pisarem os tapetes do Vigario de Christo na terra são os pés mimosos e aristocraticos, calçados em escarpins de setim ou de polimento. Os sapatos ferrados dos caminheiros plebeus, as sandalias espalmadas das peccadoras que não vem de passeiar em victoria ou em caleche á Daumont, de volta do Corso ou do Pincio, mas que chegam das escabrosas veredas da miseria; as alpagartas dos penitentes que vieram trilhando abrolhos sangrentos no aclive da via dolorosa, são generos de calçado expulsos pelos enxota-cães, e expulsos com os respectivos pés, porque tambem se não entra descalço no Vaticano como se entra no templo em Jerusalem, ou na mesquita de Santa Sophia em Constantinopla.

Facultados tão interessantes esclarecimentos muitas pessoas partiram a receber as bençãos paternaes offerecidas pelo pontifice ás rendas e ás casacas pretas do orbe christão.


Alguns episodios d'essa piedosa viagem são já do dominio da imprensa. Da estação do caminho de ferro de Braga sairam os romeiros entre acclamações sympathicas e vivas enthusiasticos á santa religião e ao summo pontifice Pio IX. Em compensação na gare do Porto foram os mesmos romeiros acolhidos aos gritos não menos enthusiasticos de «Fóra os hypocritas! fóra os patifes!» Por este ultimo successo damos a suas excellencias os nossos cordeaes parabens, porque suppomos que elles viajam com um fim de humildade e mortificação, e que lhes serão agradaveis todas as manifestações publicas tendentes a exacerbar-lhes o pungimento expurgante das duras penitencias.

Em Lourdes, refere o telegramma de um sacerdote ao jornal A Nação, que á vista da gruta toda a romagem rompera em pranto e se prostrára em joelhos. Devemos crêr que esta prostração fosse passageira, não só porque um telegramma subsequente nos annuncia a chegada dos peregrinos á cidade eterna, mas ainda porque em Lourdes a belleza da paisagem, a exuberancia da vegetação, o rumor das aguas, as perspectivas sombrias e flexuosas da floresta, a clara alegria do restaurante, de gelosias abertas, de stores desdobrados ao sol, com a sua grande taboleta Á Notre Dame de Lourdes, e os seus subtitulos em caracteres appetitosos Diners à la carte et déjeuners à la fourchette,—gras et maigre, tudo convida os espiritos ascetas a uma conciliação amavel com a carnalidade mundana.

Além do aspecto das coisas, as exterioridades das pessoas contribuem tambem poderosamente para arrancar os adventicios ás attitudes prostradas e contemplativas.

Os comboyos de Paris chegam e partem cheios de alegres touristes de um e outro sexo.

São graciosas peccadoras com adoraveis toilettes de viagem; chapeus de grossa palha de fôrma aguda e aba estreita derrubada sobre os olhos, descobrindo a nuca, em que se enrolam as tranças loiras, e a nascença do cabello junto do pescoço, com os seus flocosinhos de pennugem crespa e doirada penetrada de luz; os vestidos decotados no collo em linhas quadradas como os colletes dos devotos bretões; as saias curtas deixando ver as meias de seda listradas de azul, e os sapatos de pelle de gamo atacados com correntes de aço, que telintam ao andar. Estas gentis romeiras abordoam-se a cajados rusticos comprados no boulevard dos Italianos, trazem ao tiracollo os grandes rosarios de contas de madeira, grossas como bugalhos, terminando em uma cruz egualmente de madeira que chega á barra do vestido,—ornato local de um pittoresco picante.

São os homens de nickerbockar de flanella alvadia e capacetes de sabugo envoltos em véos turcos, com uma flor de madresilva na boutonière, fazendo gelar o champagne e preparando debaixo das arvores os seus jantares em partie fine, emquanto padres solicitos vendem a agua milagrosa, ou aos copos á bica da gruta, ou em bilhinhas de lata devidamente lacradas e selladas authenticamente, facultando na igreja recantos reservados e escusos para as applicações em banhos parciaes, ou em compressas, a orgãos enfermos que as devotas desejem submeter á cura nos proprios logares benzidos e sagrados.


Em cem contos é calculada a somma dos donativos em dinheiro levada pelos peregrinos portuguezes ao Santo Padre.

É valiosa na occasião presente essa contribuição, porque a historia do dinheiro de S. Pedro teve sob a gerencia do cardeal Antonelli episodios devastadores. Procurando ha annos o governo de Victor Manuel realisar uma operação bancaria destinada a equilibrar as finanças da Italia, o cardeal Antonelli, como fino rabula e zeloso ultramontano, concebeu o plano de um coup de bourse destinado a combater as intenções do governo italiano provocando uma descida que impossibilitasse a emissão de novos fundos. Para este fim o astuto financeiro vendeu em massa, pela baixa, os titulos da divida italiana que a Santa Sé possuia e que representavam o dinheiro de S. Pedro. É porém perigoso, mesmo para um italiano, jogar as peras com outro italiano. Na Italia todo o homem habil deve estar preparado para encontrar um mais habil que o logre. Foi o que succedeu a Antonelli. O seu plano foi estrategicamente contraminado pelo governo de Victor Manuel, organisando-se um syndicado de banqueiros que despedaçou a armadilha do illustre cardeal.

O dinheiro de S. Pedro convertido outra vez em metal pela operação malograda nos seus effeitos, foi então convertido em fundos turcos, operação arrojada mas tão lucrativa que promettia duplicar, em poucos annos, o capital empregado, a não ser que um caso, então imprevisto, prejudicasse o exito da transacção fazendo estalar no Oriente uma guerra inesperada.

Foi, como se sabe, o que veiu a succeder desgraçadamente para os bens do Papa. De sorte que o dinheiro de S. Pedro, piedosamente accumulado pelos catholicos para o esplendor da Igreja, achou-se, pela mais estranha das coincidencias, consumido em polvora por uma potencia chamada ao fogo como perseguidora dos christãos!


Além dos donativos em dinheiro e dos presentes em objectos preciosos, os peregrinos levaram, para offerecer a Sua Santidade, um grande album, em que vae inserida uma declaração de principios assignada por todos os romeiros. Os jornaes que nos transmittem essa noticia não nos dão o texto do documento precioso. Não temos, portanto, a ventura de saber o que suas excellencias dizem. O que deveriam dizer era o seguinte:


Santissimo Padre

Ha hoje quinhentos e setenta e sete annos que o primeira jubileu da Igreja Catholica Apostolica Romana foi celebrado por um dos predecessores de Vossa Santidade, o papa Bonifacio VIII.

Esta solemnidade não tinha por fim, como o anno jubilario do Mosaismo, dar a liberdade aos escravos, fazer reverter os bens territoriaes aos seus primitivos possuidores, tornar o homem insoluvel de cincoenta em cincoenta annos, e ao cabo de cada um d'esses prazos reconstituir a familia nos seus primitivos direitos, operando periodicamente aquillo que hoje chamariamos a liquidação social, e a que o Pentateuco chamava simplesmente a—santificação do quinquagesimo anno.

O papa Bonifacio, antigo rabula, (quia primo advocatus), preoccupava-se pouco com as interpretações do direito; promettendo a remissão dos peccados a todos os que viessem a Roma visitar, durante trinta dias, as igrejas dos apostolos, o seu fim unico era realisar um dos seus sonhos de decrepito allucinado: inaugarar o seculo XIV com uma solemnidade unica na historia—a reunião em Roma do genero humano prostrado aos seus pés, como perante o Deus vingador no dia do juizo final, no valle de Josaphat.

N'esse tempo, Santissimo Padre, ainda no mundo existia a fé. O numero dos peregrinos que vieram a Roma foi tão grande, que chegaram a contar cem mil. Por fim não poderam ser arrolados. Cresciam monstruosamente como esses formigueiros da America do Sul que n'um mez minam os alicerces de um predio e aluem uma torre. Eram insufficientes para albergal-os as casas dos moradores, os hospicios, as ermidas, as igrejas. Acampavam nas ruas e nos campos suburbanos. A escassez dos alimentos e a malaria produziam uma infinidade de doenças. Houve uma fome e quasi uma peste. A mortalidade era enorme. Uns não regressavam mais. Outros não conseguiam chegar ao termo da romagem, e extenuados de fadiga e de fraqueza, com os pés em sangue, morriam saudando de longe a sagrada collina.

Com quanto o poder papal entrasse já então na phase de declinação que até os nossos dias devia progressivamente arrastal-o ao occaso, Bonifacio suppunha-se ainda o senhor e o arbitro do mundo. Por occasião da morte de Alberto d'Austria, tendo-se feito acclamar imperador Adolpho de Nassau, o papa Bonifacio tinha posto a corôa na cabeça, tinha brandido uma espada, e do alto do monte Aventino havia bradado: «Eu é que sou o Cesar! eu é que sou o imperador!»

Era elle ainda que na bula ausculta filii tinha escripto estas palavras supremas: «Deus collocou-nos, apezar de indigno, acima dos reis e acima dos reinos, impondo-nos o jugo da servidão apostolica para arrancar, destruir, dispersar, dissipar, e para edificar e plantar em seu nome e segundo a sua doutrina

No dia do jubileu, para celebrar a ceremonia de bater com o malhete de prata e de desmoronar o muro com que se veda para esse fim uma das portas de S. Pedro, o Papa appareceu á multidão prostrada e atravessou pelo meio d'ella, vestindo as insignias imperiaes, levando adiante de si a espada e o sceptro sobre o globo do mundo, symbolo da monarquia universal, enquanto um arauto proclamava: «Aqui vão duas espadas. Pedro, eis o teu successor. Christo, eis o teu vigario.»

Os peregrinos que haviam conseguido visitar os tumulos dos apostolos, cujas columnas são feitas com o bronze subtraído da abobada do Pantheon, os que haviam chegado a receber com a benção apostolica a absolvição das suas culpas, regressavam á familia encanecidos, alquebrados, assombrados para o resto dos seus dias, como os tocados de raio, pelos aspectos collossaes da tragica Roma, pela historia do seu passado, semi-vivo ainda nos monumentos destroncados da edade republicana e da edade imperial, pelas visões portentosas de um mundo extincto que lhes haviam apparecido como tremendos phantasmas, na arcaria dos aqueductos truncada a espaços como os elos partidos de um enorme grilhão estendido na vasta campina; nos banhos de Caracala; nas dispersas columnas corinthias; nos obeliscos egypcios; no Capitolio convertido em Colina das cabras; no Forum transformado em Campo das vaccas; no Coliseu, finalmente, com as suas tres ordens de columnas doricas, jonicas e corinthias, monumento collossal, em que trabalharam doze mil captivos, em que cabiam cem mil espectadores e em que não há uma pedra que não corresponda a uma golfada de sangue de um gladiador ou de um martyr.

Os peregrinos regressados n'um vago estado de somnambulismo, como aluados, haviam porém levado do jubileu uma consoladora lição: haviam desaprendido de viver, mas tinham-lhes ensinado a morrer tranquillos na esperança doce e firme da bemaventurança promettida. O que era porém o mundo, Santissimo Padre, n'esses tempos remotos e sombrios em que os homens eram isto?

Em Paris e em Londres as casas eram feitas de madeira ou de lama endurecida, com tectos de canas. As ruas eram montões de immundicia em fermentação miasmatica. O uso de banhos tinha desapparecido. A amante de Petrarca tinha uma unica camisa. O poderoso arcebispo de Cantorbery e outros altos ecclesiasticos tinham piolhos. Os burguezes vestiam-se de couros mal curtidos, de um cheiro infecto. Os pobres cobriam-se de palha. Em muitos pontos das Ilhas Britanicas conta um papa do nome augusto de Vossa Santidade, Pio II, que não se conhecia a existencia do pão. Os trabalhadores dos campos comiam herva e cascas de arvores. E era já o seculo XV! No seculo XI, por occasião de uma fome, vendeu-se e comeu-se cosida carne humana. A medicina tinha passado de moda, desprestigiada pelos padres. Tinham-a substituido as penitencias, as promessas aos santos e as viagens ás ermidas. As reliquias faziam as vezes de pharmacias. As pestes afugentavam-se não com medidas sanitarias, mas com preces. Para curar os males da humanidade, conta Draper que varias abbadias possuiam a corôa de espinhos do Salvador; onze igrejas conservavam a lança que trespassou o sacratissimo lado; nas guerras santas os Templarios vendiam como panacéa universal garrafinhas de leite da Virgem Maria; em um mosteiro de Jerusalem guardava-se n'um relicario um dedo—do Espirito Santo. A chuva e o bom tempo determinavam-se com orações. Era egualmente com orações que se combatiam os eclypses e as trovoadas. O cometa de Halley foi exorcismado e enxotado do céo pelo papa Calixto III, que o amaldiçoou em nome de Deus.

N'esse estado das coisas e n'esse estado dos espiritos um serviço enorme foi inconscientemente prestado pelo papado á civilisação e á humanidade. Das peregrinações á Roma pontificia sairam as duas maiores revoluções do mundo moral: do jubileu do principio do seculo XIV saiu Dante com a Divina Comedia e a reconstituição do direito pelo sentimento: do jubileu do seculo XVI saiu Luthero com a Reforma e com a liberdade do pensamento humano. Alea jacta erat!

Desde então até hoje, Santissimo Padre, que serie enorme de revoluções successivas e incruentas, determinadas pelo livre espirito do homem, cortando lentamente a corrente tenebrosa das perseguições, boiando sempre progressiva e sempre victoriosa sobre o occeano de sangue e de puz com que a superstição ecclesiastica e o auctoritarismo monarchico procuram debalde afogar o advento da nova era! Os reis oppõem os seus exercitos; a igreja oppõe as suas excommunhões; o seu inferno, em que ha o ranger dos dentes por todos os seculos dos seculos sem fim; os seus carceres em que a lepra corroe até á medula os ossos dos condemnados; os seus tormentos, em que ha o fogo lento, a grelha, o forno rubro, o borzeguim que se descalça levando comsigo, palpitantes, todos os musculos e todos os nervos das pernas, a pua que fura as unhas e o torno que esmaga os ossos do craneo e faz rebentar o cerebro como um abcesso espremido.

E tudo é em vão! A sciencia intemerata prosegue, inerme e candida, sem haver feito uma unica victima, sem uma só gota de sangue derramado, sem uma só lagrima vertida! E deante da branca visão benigna que se aproxima, o dogma espavorido recúa mais profundamente fulminado por um simples raciocinio humano de que nunca o foi a mais fraca das almas deante da colera implacavel e infinita dos deuses immortaes.

Tudo quanto atravez de toda a historia moderna a auctoridade tem procurado conservar pela força se tem fatalmente destruido pelo tempo. O que a auctoridade e a força têem conseguido é unicamente atrazar o movimento intellectual, determinando os longos periodos estacionarios da humanidade. Pelo contrario tudo quanto a sciencia iniciou se transmittiu de idade em idade, se desenvolveu, se relacionou, se perpetuou. Nem uma unica semente lançada á terra pelo trabalho e pelo estudo deixou ainda de vingar e de frutificar em resultados decisivos de tolerancia, de paz, de liberdade e de justiça.

Na astronomia, na physica e na chimica, na geologia, na meteorologia, na zoologia, na medecina, na philologia quantos descobrimentos novos! E cada novo descobrimento é uma conquista nos dominios da Igreja, dominios que ella successivamente cede na mesma proporção em que a sciencia caminha.

É um novo diluvio aquelle de que a historia do pensamento humano nos offerece a imagem caudalosa e tremenda. A inundação espraia-se no vasto campo da theologia, e vemos ao longe, fugindo desgrenhadas, as ultimas superstições, medonhas como os grandes monstros pre-historicos que vão ser tragados pela vaga.

Cançada de combater a theologia finalmente rende-se. Tendo perseguido Galileu, Giordano Bruno, Savanarola, Averroes, Luthero, tendo combatido todos os iniciadores de um novo systema do universo ou de uma nova comprehensão dos destinos do homem, a Igreja vê apparecer Darwin, e nem se quer tenta lutar!

O transformismo, revelado por Lamarck, supitado um momento na Academia Franceza sob a auctoridade funesta de Cuvier, é finalmente definido e promulgado, e todo o immenso edificio theologico da creação do mundo e do homem cae aluido pela lei da adaptação e da seleção natural na luta pela existencia.

Ás grandes revoluções nas sciencias physicas e naturaes succederam-se modificações equivalentes nas theorias e nas praxes da vida social, na economia, na administração, na politica, no sentimento, na critica, na poesia, na arte, na moral e na propria religião.

Da philosophia zoologica de Darwin sae um Deus como religião alguma tinha até hoje tido o poder de concebel-o, o unico Deus compativel com a noção da sabedoria infinita. Segundo os systemas da creação anteriores ao transformismo, e adoptados pela Igreja, Deus era o auctor de um universo que elle successivamente revia e emendava, depois de cada um dos cataclismos que passavam por cima da sua obra, como passa uma esponja sobre uma operação incorrecta. Segundo a theoria darwiniana, experimentalmente demonstrada e contraprovada pelos mais sabios analysadores, Deus não revê, Deus não corrige, Deus não se emenda, Deus não se aperfeiçôa sendo assim perfectivel e portanto imperfeito, como fatalmente deveriamos admittir que o era acceitando a doutrina do Genesis e a critica paleontologica de Cuvier e de todos os adversarios de Lamarck de Goethe, de Darwin e de Haeckel.

As especies extinctas não foram cortadas pelo Creador no livro da terra como por meio de um signal posto á margem na prova de uma segunda edição.

Os orgãos rudimentares dos animaes, os orgãos que não têem funcção, deixaram de ser excrecencias de stylo inadvertidas pelo auctor ou empregadas por elle com um intuito de ornato rhetorico. Se o homem, por exemplo, tem em estado rudimentar e na atrophia de uma inercia de milhares de seculos, uma cauda indicada pelas suas vertebras falsas, se tem mamillas sem amamentar, se tem utero sem conceber, se tem um segundo estomago sem ruminar, escusamos já hoje de explicar estes factos por um descuido indolente ou por uma emphase premeditada na confecção do nosso organismo. A evolução genealogica de todos os seres e a sua procedencia de um tronco ancestral commum, descoberta e provada pela lei de Darwin, basta para nos explicar cabalmente todas as apparentes anomalias da creação sem quebra da infalibilidade suprema.

Assim o Deus revelado ao mundo pelos modernos philosophos theistas é o unico Deus omnipotentemente sabio, o unico Deus verdadeiramente divino, porque não procede na obra da creação por emendas, revisões successivas, reedições augmentadas e correctas, como o Deus theologico: Elle cria a vida no atomo primitivo vogando na immensidade, deixa cair a cellula primordial nas profundidades fecundas do Mar Tenebroso e ordena-lhe que se desenvolva dentro de uma lei prefixa. Depois do quê não só não descansa, não só não revê, não só não modifica, mas nem sequer espera, porque infinito Elle mesmo, e prehenchendo o infinito no espaço e o infinito no tempo, possue em si proprio, completa, a infinita evolução.

Surge finalmente invencivel na sociedade contemporanea um novo poder temporal, o poder da industria, e um novo poder espiritual—o poder da consciencia na comprehensão da solidariedade humana.

Vae pois longe, dercorrida ha muitos annos a idade ingenua em que o genero humano acreditava na virtude das peregrinações aos santos logares!

Compare Vossa Santidade a primeira e a segunda cruzada com esta que nós outros, portadores do album em que escrevemos estas linhas, acabamos de emprehender e de levar a cabo em comboyo de recreio de ida e volta, a preços reduzidos, guiados pelo padre Conceição Vieira, um sacrista, e pelo Pedro de Alcantara, um grotesco! E estes dois sujeitos são quanto pudemos obter como successores de Pedro Eremita e de Godofredo de Bulhões.

Somos noventa e nove, de um paiz de quatro milhões de habitantes, o menos instruido de todo o orbe christão, aquelle em que por mais tempo vigorou, com detrimento do nosso senso commum e um pouco tambem da nossa pelle o despotismo da inquisição e do direito divino. Isto ainda assim não obsta porém a que deixassemos na patria tres milhões novecentos mil novecentos e um individuos que não quizeram vir, perdendo assim a indulgencia plenaria e deixando de resgatar as suas almas das penas eternas a troco da modica quantia de dezeseis libras, ida e volta, em segunda classe!

Porque elles entendem—principalmente depois que o fogo do Santo Officio deixou de afervoral-os—que não é facil despir os peccados como se despe um collete de flanela, descalçar a culpa como se descalçam as chinellas de trazer no quarto, e pendurar a responsabilidade como se pendura a robe de chambre para envergar a toilette redemptora de uma viagem a Roma.

Parece-lhes que o Diabo não é tão tolo como alguem o presume, e que, se elle tiver, por exemplo, a idéa de filar o padre Conceição Vieira ou o padre Marnoco para os referver no caldeirão destinado á classe ecclesiastica apanhada em peccado, não será porque os mesmos Conceição e Marnoco lhe digam que estão afivelando a chapeleira para ir buscar as indulgencias a Roma, que o Diabo crusará os braços e deixará escapar-lhe sob essa evasiva, aliás engenhosa, uma tão interessante presa.

Estão profundamente convencidos—os herejes!—de que, acima da auctoridade dos pontifices, que teem o poder de resgatar as culpas e de franquear a entrada no reino dos céos, está um outro poder mais alto—o poder da incorruptivel consciencia, segundo o qual não é pelas romagens divertidas nem pelas orações authomaticas, nem pelas estereis penitencias, mas sim pela simples pratica do dever, austero e inilludivel, que cada um se affirma como verdadeiro justo.

Acham ridiculo um céo em que tenha de sentar-se, glorioso e triumphal, á mão direita do Deus da Justiça, um padre Marnoco—simplesmente porque obteve as indulgencias no jubileu pontificio, em quanto á mão esquerda fique ardendo nos tormentos eternos um Lincoln, que pacificou a America, que deu a paz a tres milhões de negros e que, depois de uma vida toda consagrada á justiça e á abnegação, entrou finalmente na eternidade pela porta do martyrio, coberto com a benção da humanidade e com a benção da historia, mas sem a benção dos papas.

Santissimo Padre! estas convicções profundas d'aquelles que não vieram a este jubileu, não podemos deixar de vos dizer n'este album,—como seríamos forçados a dizer-vol-o, se estivessemos aos vossos pés n'uma confissão geral, humildes e contrictos, batendo nos peitos,—estas convicções dos que não vieram são tambem no intimo das nossas almas as convicções de todos os que nos achamos aqui, quer chegados das occidentaes praias lusitanas, quer procedentes de qualquer outra região do globo.

E a evidente prova de que a nossa fé está irremissivelmente apagada e precisa de se reconstituir em novas bases, é que, no tempo em que o papa era o imperador e o Cesar, no tempo em que elle brandia uma espada de justiça e de guerra, meio milhão de homens rojados aos seus pés estariam prontos a recomeçar as guerras santas ao seu minimo aceno.

Hoje vós proclamaes que sois captivo, que sois ultrajado, espoliado, perseguido, e entre todos os que vos trazem offertas não ha um só que seja capaz de derramar o seu sangue para vos restituir a liberdade que dizeis perdida e o poder que dizeis violado! Beijamos devotamente o vosso pé sacrosanto; depois do quê, em vez de enristarmos uma lança, vimos para a rua com as mãos nos bolsos e um charuto nos beiços ver desfilar em pelotões marciaes os esveltos bersaglieri da Italia unificada.

Debalde nos dizeis que «os pedreiros livres atacam a religião e chamam os catholicos a combater.» Os pedreiros livres são bem lastimaveis se não teem mais nada que fazer do que chamar-nos ao combate! A verdade não se alimenta com sangue, alimenta-se com principios, e não necessita de victimas, necessita unicamente de razões: é precisamente n'isso que ella se distingue do erro e da mentira.

Se os pedreiros livres querem por força combater, a resposta mais sensata ao seu convite aos catholicos é mandar-lhes um medico que os sangre e lhes prescreva os debilitantes. Que os senhores pedreiros tenham a bondade, antes de nos reptar ao combate, de experimentar a dieta!

Emquanto á guerra, não! Oh! não! Esse é um privilegio dos reis. Hoje só os reis, e algum tanto tambem os diplomatas, é que fazem as guerras. Por uma razão muito simples: é que só elles as pódem fazer por um modo exclusivamente verbal,—mandando partir os seus exercitos.

Quando os exercitos se lembrarem de mandar partir adeante os reis e os diplomaticos, teremos então firmada para todo sempre a paz geral.

Concluindo pois, Santissirno Padre, dignae-vos de lançar-nos a vossa benção e de nos permittir que a transmittamos a todos os nossos concidadãos, que saberão devidamente presal-a sendo enviada por quem é, como vós, um ancião veneravel, cuja longa vida é para todos os que trabalham e para todos os que soffrem um nobre exemplo de constancia nos principios, de firmeza na luta e de resignação na derrota.


Sua alteza o principe real, herdeiro presumptivo da corôa, acaba de tomar a primeira communhão.

Comparecendo pela primeira vez no tribunal da graça aprendeu sua alteza a theoria do resgate da culpa pela penitencia.

A familia real e a côrte reuniram-se solemnemente no templo para verem ensinar a esse menino por que methodo facil os reis podem deixar na terra o oprobrio e enfiarem no entanto para o ceu o mais candido vôo, alados pelos anjos que, ao som da musica da real capella e ao signal da benção lançada pelo sacerdote, baixam aos reaes paços a pegarem ao collo nas almas dos principes devidamente desobrigados.

Dizem todos os jornaes que foi extremamente edificante e commovente esse augusto espectaculo.


Para ministrar ao principe a sagrada eucharistia foi chamado expressamente do Porto o sr. bispo D. Americo.

Parece-nos—comquanto não ouzemos dizel-o sem uma reserva profundamente timida—que sendo a communhão um acto puramente religioso, seria talvez mais consentaneo com a humildade christã que o sr. bispo D. Americo não fosse chamado, que se não fizesse da pratica de um sacramento uma distincção aristocratica, e que sua alteza commungasse simplesmente como os demais christãos na igreja da sua freguezia e pelas mãos do seu parocho.

Poderão objectar-nos que, não comprehendendo as abluções do rito senão as pontas dos dedos no sacrificio da missa e sendo as douches applicadas unicamente aos sacerdotes pelo bico de um galheta, ha parochos que, por não ultrapassarem as prescripções liturgicas teem nas suas lobas tantas nodoas como botões, e não sómente cheiram penetranremente ao fumo do incenso e ao murrão dos cirios, mas cheiram tambem algum tanto a saes ammoniacaes e a uréa, d'onde poderia resultar que no banquete eucharistico a qualidade da baixella desgostasse o principe da pureza mystica do manjar.

A essa objecção respondemos que seria mais economico e talvez mesmo mais efficaz para remedio do baixo clero que, em vez de só mandar vir o sr. D. Americo, deslocando-o dispendiosamente da sua diocese com os seus famulos e a sua mitra, se mandasse chamar simplesmente o sr. Cambournac.

Porque—acreditem-o—não é com a presença do illustre e correcto bispo portuense, nitidamente barbeado, perfumado pelo uso de bons comesticos, com bellas meias de seda escrupulosamente esticadas por um destro valet de chambre, com fina roupa branca e lustrosas unhas esmeradamente limadas e polidas, não é com exemplos que deslumbram que se ha de obstar á decadencia das nossas batinas. Ellas em Portugal não querem por emquanto exemplos. O que ellas querem é directamente benzina.


Se, porém, se entende definitivamente que á mesa da communhão devamos nós os catholicos aproximar-nos por cathegorias e por classes, como á mesa dos paquetes, então pedímos uma tarifa para regularisação do serviço ecclesiastico. Que a Igreja nos diga definidamente quem são os passageiros da terceira classe que commungam na tolda com a marinhagem e quaes os escolhidos com direito a receberem a communhão á mesa do commandante!


Depois da ceremonia religiosa, accrescentam os jornaes, que fora servido no paço um opiparo almoço aos dignatarios da côrte e ao alto clero. Esperamos que o sr. patriarcha fazendo aos poderes temporaes o duro sacrificio de não cumprir o preceito jejuando, pozesse ao menos a condição de que a sua costelleta fosse de bacalhhau!


A narração feita pelo capitão Cameron da sua viagem no continente africano veio levantar em Portugal, entre alguns incidentes, a seguinte questão:

O que devemos fazer para manter por meio de medidas civilisadoras o dominio das nossas colonias?

Para isto ha uma unica resposta: Para dominar o que se deve fazer é crear faculdades dominantes.

Quem tem força para dirigir manda; quem a não tem serve.

A escola dos grandes exploradores e dos colonisadores é a escola da força nos individuos. Quando Stanley deu pela primeira vez conta em uma conferencia em Londres, da viagem que fizera em procura de Levingstone o argumento que mais convenceu o publico de que o conferente não era um simples phantasista foi a expressão energica da sua figura agigantada, a sua saude de Hercules e os fortes pulsos com que na gesticulação elle parecia estar outra vez abatendo e supplantando de novo aos olhos do auditorio os obstaculos com que dizia ter luctado.

Deante de um retrato do capitão Cameron sentimos a mesma impressão, que explica o successo de uma empreza difficil e perigosa pela decisão e pela firmeza do que a emprehende. A physionomia um pouco espessa e dura de Cameron, o seu grosso pescoço solidamente plantado entre uns hombros athleticos são para a consideração de todos os inglezes os mais bellos attributos de raça, o mais apreciavel caracteristico de uma distincção privilegiada. Porque na educação ingleza a saude, o vigor muscular, a força physica são o objecto de um culto.

Nos collegios Eton, Rugby, Harrow, os jogos athleticos, a pella, o exercicio do remo, a carreira, o foot ball, o cricket occupam todos os dias algumas horas de applicação. Duas vezes por semana, quando menos, as aulas terminam ao meio dia para darem tempo aos exercicios physicos. As contendas entre os alumnos decidem-se ao pugilato, deante de testemunhas, com padrinhos que estabelecem as condições do combate, que amparam o vencido, que lhe refrescam com agua as contusões, porque estes encontros não terminam sem um ou outro ou ambos os contendores ficarem com um olho pisado, um dedo partido, ou um beiço esmurrado por um dos socos do adversario. Toda a creança que se exhime a liquidar n'um combate leal as suas pendencias de honra é despresada pelos seus camaradas e considerada como incapaz de vir a ser jámais um verdadeiro gentleman.

Do collegio passam os alumnos creados n'este regimen durante a adolescencia para as universidades, onde a mocidade se desenvolve sob um regimen egual: conhecem-se as celebres regatas no Tamisa entre as equipagens das duas universidades de Oxford e de Cambridge. Os estudantes ricos exercitam-se e fortificam-se ainda montando a cavallo, caçando a raposa, governando a quatro. Para se tornarem vigorosos e dextros, creanças, moços, adultos, homens de quarenta e cincoenta annos, outros muito mais velhos, como por exemplo lord Palmerston, cumprem as mais severas prescripções hygienicas, submettem-se a uma alimentação especial, absteem-se de todo o excesso que prejudique o desenvolvimento systematico da musculatura. Os principaes divertimentos nacionaes são os exercicios de agilidade e de força. Ha crickters que teem ido jogar partidas solemnes de Londres á Australia.

Em Lisboa vivem dois inglezes que vão frequentemente a Cintra a pé, levam as suas espingardas, passam o dia a caçar nos Capuchos e regressam á noite sempre a pé. Tripulam uma pequena embarcação com a qual teem batido em muitas apostas todos os catraeiros do Caes do Sodré. Ha poucos dias foram ao Porto expressamente para regatar com o club d'aquella cidade. Foram vencidos pelos do Porto. Depois da regata havia uma partida de cricket. Um dos inglezes a que nos referimos sustentou-se no campo cinco horas consecutivas sem nunca sair do jogo. Dois officiaes a bordo de um dos navios da ultima esquadra que esteve no Tejo partem a pé de Lisboa, pela manhã, vão a Mafra, passeiam na mata, percorrem todo o enorme edificio do convento, almoçam um bife e voltam a pé a Lisboa, chegando a tempo de estarem em um jantar de convite, á hora fixada, lavados, perfumados, frescos, com os seus uniformes de soirée e uma rosa de Mafra na casa da farda.

D'estes factos e de muitos outros equivalentes, que seria prolixo enumerar, deduz-se que o assumpto de uma conferencia, que não vemos por emquanto citada entre as que nos annuncia a Academia ácerca da civilisação africana, poderia intitular-se: Da influencia do «sport» no caracter dos povos exploradores.


A Academia póde muito bem civilisar a Africa pelo modo mais superiormente sabio na rua do Arco a Jesus, mas não seria talvez inteiramente ocioso o perguntar quem é que ha de ir levar aos interiores inhospitos da Africa as bases elementares d'essa civilisação. Não ha duvida que é possivel mas não é completamente inaccessivel a algumas objecções a hypothese de que os negros se queiram desde já civilisar a si mesmos e venham expressamente para esse fim á Academia escutar. Ao passo que, por outro lado, as prelecções dos illustres academicos não se distinguem das conferencias feitas em Paris e em Londres pelos viajantes extrangeiros unicamente no facto de encararem os assumptos por um ponto de vista contrario, distinguem-se ainda pela particularidade de que os srs. Cameron e Young fizeram as suas exposições depois de chegarem, e os srs. academicos, com excepção do sr. José Horta, fazem as suas um poucochinho antes de partirem. Isto em nada prejudica o valor real da doutrina academica, que de modo algum menospresamos. O que pretendemos simplesmente notificar é que talvez não seja facil encontrar-se de pronto quem vá traduzir em bunda ao gentio de Africa a prosa eloquente e vernacula dos civilisadores inamoviveis da metropole. Não é facil encontrar esses homens, porque a raça dos nossos antigos expedicionarios abastardou-se e extinguiu-se na molleza dissoluta dos costumes modernos.

Folheem-se os velhos chronistas, examinem-se os retratos dos homens dos nossos descobrimentes e das nossas conquistas:

Affonso de Albuquerque, aos sessenta e tres annos de idade, cercado dos desgostos mais profundos, arrosta durante cinco mezes com os estragos devastadores da terrivel dysenteria asiatica, porque—diz João de Barros—como era fragueiro e pouco mimoso de sua pessoa só se lançava em cama, quando mais não podia. Albuquerque que em saude reunia á força physica a grande força moral da alegria—era homem de muitas graças e motes, e em algumas melancolias leves, no tempo de mandar, soltava muitas, que davam prazer a quem estava de fóra,—assim tocado de morte por uma enfermidade que não perdôa nunca, reune conselho de capitães, nomeia o seu successor põe bôa ordem em todos os negocios da administração da India, escreve a el-rei a famosa carta, modelo de hombridade e de independencia, cujo autographo se conserva na Torre do Tombo, despede-se do rei de Ormuz, e faz-se ao mar em um dos seus navios, onde expira, tendo fulminado a incompatibilidade das monarchias com o direito por via da conhecida phrase: mal com o rei por amor dos homens, mal com os homens por amor do rei.

O infante D. Henrique—segundo o mesmo João de Barros—tinha largos e fortes membros acompanhados de carne: a côr da qual era branca e corada, em que bem mostrava a boa compleição dos humores. Tinha os cabellos algum tanto alevantados, e o acatamento (por a gravidade de sua pessoa) um pouco temeroso a quem d'elle não tinha conhecimento.

Do conde Duarte de Menezes, a quem D. Affonso V deu a capitania de Alacer-Ceguer, e que foi um dos heroes da Africa, diz Gomes Eanes de Azurara: «Foi este conde de baixa estatura de corpo, enformado em carnes, e de cabellos corredios, e graciosa presença, embargado na falla, e homem de grande e bom entendimento, pouco risonho nem festejador, tal que quasi do berço começou de ter auctoridade e representação de senhorio. Foi muito amador de verdade e de justiça, mui temperado em comer, e beber, e dormir, e soffredor de grandes trabalhos, tanto que parecia que elle mesmo se deleitava em os haver, porque quando lhos a necessidade nom apresentava elle por si mesmo os buscava. E segundo entender dos homens nem se desenfadava tanto em outra cousa, como nos feitos da cavallaria, como aquelle que quasi do berço usara o officio das armas.»

Diriamos estar vendo colorida no stylo das nossas velhas chronicas a photographia moderna de um sportman da Grã-Bretanha.

Do mesmo Duarte de Menezes diz Schoeffer: «O poder que tinha sobre si mesmo, a sua gravidade natural, que raras vezes interrompia por um sorriso, e sobretudo o seu juizo são e a sua alta intelligencia tornavam-o proprio para o commando

O infante D. Pedro, o que, segundo o proloquio popular, viajou as sete partidas do mundo, era alto e magro; diz Schoeffer que a suavidade do seu olhar abrandava a impressão de receio produzida pela sua estatura e pelo seu rosto fortemente carregado; «irado tinha um aspecto que infundia terror».

Os corações eram de uma tempera inquebrantavel, hostil á sentimentalidade e á ternura. Em um combate no assedio de Alcacer, Martim de Tavora arranca do poder dos moiros a golpes de espada o seu fidagal inimigo Gonçalo Vaz Coutinho, verte para o conseguir o seu proprio sangue, arrisca eminentemente a sua vida, e quando Gonçalo Vaz lhe pergunta como viverão d'ahi em diante, Tavora responde-lhe duramente: «Como dantes.» E a inimisade dos dois continuou inabalavel.

Os que eram dados ao galanteio das damas commoviam-as mais pela asperesa varonil do aspecto do que pela suavidade effeminada das formas.

Na lenda dos doze que foram bater-se na corte de Londres pelas damas do Palacio, o Magriço diz á loura miss que depois do combate ia deitar-lhe agua ás mãos: «Sabei, senhora, que as minhas mãos, segundo as tenho assim tão grosseiras e cabelludas, poderão ser-vos molestas e temo que vos causem desgosto.» Ao que a mimosa ingleza replica fazendo sentir ao calejado e cabelludo cavalleiro que a bella mão de um homem é a que denota pelo seu aspecto não dedicar-se ás caricias molles, mas sim aos fortes trabalhos que teem como fim a honra e como premio o amor.

O Vasco da Gama era de um porte tão exforçado e valoroso, que o rei D. Manuel, hesitante na escolha do homem a quem devia entregar o commando da expedição projectada, vendo-o atravessar por acaso na sala em que ia sentar-se á mesa para jantar, determina que seja aquelle o que vá descobrir-lhe a India.

O modo como o Gama esmaga a seu bordo a conspiração dos pilotos basta para provar que D. Manuel tinha o olho prescrutante que adivinha os homens pela cara. Sacudido pela tempestade temerosa no meio de empresa de tanto risco e de tamanha aventura, quando a guarnição desalentada e espavorida pede em todos os navios da frota que se arribe, que se regresse á patria, o Gama prende a um por um todos os pilotos cabeças do motim, carrega-os de ferros, encarcera-os no porão, intima-os a que lhe entreguem «quantas cousas tinham da arte de navegar» sob pena de os enforcar a todos, e havendo na mão as cartas que os deviam orientar na volta, lança tudo ao mar, exclamando: «Olhae que não tendes mais mestres nem pilotos nem quem vos ensine o caminho de hoje em diante. A Deus vos encommendae e pedi misericordia, e a mim de hoje ávante ninguem me diga que arribe; porque de mim sabei certo que, se não achar recado do que venho buscar, não voltarei nunca mais.»

Ao que a guarnição se submetteu com a docilidade de quem não tinha senão dois caminhos que escolher n'aquella viagem:—o da India ou o da morte.

O proprio Camões, o immortalisador das façanhas d'essa velha raça, era elle mesmo um forte, um destemido, um lord Byron da Renascença. Os seus costumes de audaz espadachim e de famigerado tranca-ruas crearam-lhe na India conflictos arriscados, de cujas ameaças elle sorria dizendo: que só era vulneravel pelas solas dos pés e que estas ninguem lh'as vira nem havia de ver.

Em todas as altas figuras do nosso grande seculo se patenteia o typo expressivamente caracteristico de uma forte raça privilegiada, hoje extincta.

A Europa sahia apenas do regimen feudal. Conservavam-se vivas no coração de todos os fidalgos as tradições da cavallaria. Os besteiros de conto eram apenas uma debil tentativa do que deviam vir a ser mais tarde os nossos exercitos permanentes.

Os grandes vassalos defendiam os seus foros com numerosas lanças, e nos prasos em que não serviam o rei e a patria batendo-se com inimigos extrangeiros, adestravam a mão em sortidas e escaramuças intestinas. Quando não combatiam monteavam.

Tinham a educação da guerra, a experiencia das aventuras arrojadas e das duras privações.

Os divertimentos publicos eram ainda os jogos guerreiros: o tavlado, um exercicio de força, e as canas, um exercicio de destreza.


A moderna educação portugueza esterilisou a sociedade para o fim de gerar homens proprios para as lutas do trabalho nas regiões inclementes em que é preciso arrostar com a fadiga, com o sol tropical, com as febres dos rios podres.

Os cidadãos que em Portugal recebem alguma cultura de espirito sacrificam-lhe de tal modo o seu desenvolvimento physico que não só não podem levar a sua influencia e a sua dominação intellectual ao interior da Africa, mas nem sequer a levam de Lisboa a Cascaes se lhes suprimirem as facilidades do rebocador ou do carrão.

Sabemos que ha excepções, mas essas constituem uma vantagem pessoal de poucos individuos, e não uma feição do paiz.

Na Inglaterra pelo contrario o sport está na mesma alma da nação, completa o caracter do paiz.

O principe de Galles readquiriu depois da sua ultima viagem a popularidade que antes d'ella tendia a fugir-lhe. O simples facto de ter penetrado na India e de ter caçado as feras a tiro com risco de vida é um dos seus mais poderosos titulos á estima publica. O sport é na Inglaterra uma especie de religião. O inglez bem educado atravessa a Africa por fanatismo. Simplesmente para a ter atravessado, e para ter a gloria incomparavel de o poder referir ás sociedades sabias de geographia, de zoologia, de botanica, de meteorologia, de anthropologia, aos differentes clubs dos caminheiros da Inglaterra, da França e da Suissa, deixando a enorme distancia atraz de si os seus compatriotas de curto folego que apenas subiram ao Monte Branco ou percorreram a pé os Pyreneus.

Ora sem esse fanatismo e sem esse enorme ecco na opinião e na popularidade não ha paiz que se possa medir com a empresa enorme de explorar e de civilisar as regiões salvagens. São insufficientes para esse fim todos os esforços do governo, das sociedades geographicas, das academias e de todas as agregações artificiaes de alguns individuos; é preciso que o grande impulso parta do genio collectivo do povo.


O povo pertuguez não está creado para esses movimentos energicos. Era uma raça audaz, enthusiasta e forte. Preverteram-a com duzentos annos de uma educação dogmatica e de uma disciplina fradesca.

Estamos como o filho de um homem que herda um estaleiro em que o pae fazia navios e em que elle para sustentar a fabrica tem de brandir um machado e de talhar madeira durante dez horas por dia. Ora esse filho é um anemico, que não pode com a sua badine. O que ha de fazer? Restaurar a sua constituição ou vender o machado e ir tossir para o Martinho.


Contra os agentes da dissolução em que cahimos uma ou duas vozes em todo o paiz protestam—o que até o dia de hoje 15 de junho, ás 11 horas e meia da noite, tem sido completamente inutil. Deitam-se abaixo livrarias, enegrecem-se com prosa official resmas de papel da Abelheira, abrem-se conferencias publicas, organisam-se expedições,—tudo para dar a entender ao mundo que somos um povo forte. E no entanto o povo continua nas condições de abatimento em que estava, as quaes não podem tornal-o proprio para o dominio, mas sim para a servidão.

Vimos já, ligeiramente esboçado, o quadro da educação inglesa. Vejamos o espectaculo correspondente na nossa organisação social.

Olhem ao domingo e á quinta feira para um dos nossos collegios de educação em passeio na baixa. Uma fieira de pequenos macilentos e enfesados, encarreirados a dois de fundo, vestidos de preto ou com falsos uniformes de guarda-marinhas, vigiados por dois padres. Que differença dos collegiaes inglezes, com os seus chapeus de palha, a blusa de flanella, o calção curto, a meia de lã, correndo livremente nos campos, com os grossos sapatos cheios de lama, em plena liberdade, entregues a si mesmos, responsaveis pelos seus actos, conscientes do seu direito e do seu dever como pequenos republicos!

Em Portugal um cão fraldiqueiro pode andar sem perigo pelas ruas, sabe-se governar, sabe-se dirigir, sabe morder, sabe voltar para casa; um joven racional de dez ou doze annos, dos quaes cinco de escola sob a pressão dos compendios do sr. João Felix, não aprendeu nada d'isso, e precisa de um padre ou d'um aguadeiro que o leve pela mão para atravessar a rua!

Essa miseravel creatura tem uma mãe que o não deixa saltar para que não quebre as pernas, que o não deixa trepar para que não quebre a cabeça, que o não deixa metter-se na agua fria para que não se constipe. Era melhor que elle tivesse quebrado uma perna uma vez, que tivesse rachado a cabeça quatro, e que se tivesse constipado dezeseis, e houvesse aprendido assim a ser um principio d'homem, do que não ter passado por nenhum d'esses desares e ser unicamente um lamentavel boneco, medroso e covarde, que um gaiato, creado na lama da rua e tendo metade da edade que elle tem, pode impunemente encher de bofetadas nas duas faces e estofar de ponta-pés em todo o resto do corpo, servindo-se para isso dos membros que não quebrou, nem a trepar, nem a correr, nem a deitar-se de mergulho ao ribeiro, apezar dos perigos previstos pela mãe do molestado.

O primeiro acto da vida civil d'esse sujeitinho consiste em metter empenhos para ser approvado em instrucção primaria.

A primeira gloria da sua existencia consiste em se considerar tão importante personagem que sahiu approvado com dez valores, apezar de ter passado a metter os dedos pelo nariz e a explorar exclusivamente esse orgão todo o tempo destinado a aprofundar concomitantemente as doutrinas do sr. Felix.

No anno seguinte começa a estudar as linguas e a fumar cigarros ás escondidas.

Penetra finalmente na rhetorica e na leitura dos romances, em que passam visões de mulheres que o tornam cada vez mais amarelo.

Chega da côr de uma cidra ao fim do curso dos lyceus, tendo, além de todos os preparatorios, mau halito, as pernas cambadas, a espinha torcida, algum tedio da vida e muita caspa.

Matricula-se então na faculdade de direito na universidade de Coimbra e o primeiro effeito dos estudos superiores sobre a sua cabeça é augmentar-lhe a caspa.

Depois a vida academica absorve-o e elle percorre toda a escala das nobres loucuras de uma mocidade espirituosa e vivaz: empenha as piugas, toca o fado, dá canelões nos caloiros, espanca os burguezes, faz algumas canções «grivoises», entorna o môlho das ceias pelo peito da batina, e regressa a Lisboa bacharel formado.

Tem vinte annos e fez vinte exames. Para cada exame pediu protecção a tres individuos;—pediu protecção e pediu feriados; pediu humildemente, inclinado, arrastando a capa, retirando-se ás arrecúas como uma pêga assustada, sorrindo com um agrado pusilanime:—Sr. doutor, imploro submissamente a valiosa protecção de v. ex.ª!... Sr. doutor, criado de v. ex.ª!... Criado de v. ex.ª! ex.'mo sr. doutor ...

O espinhaço do bacharel traz feita de Coimbra a curva servil do pretendente do Terreiro do Paço.

O que na universidade pedia, em Lisboa requer. É apenas a mudança de nome: «—Sr. ministro, imploro submissamente a protecção de v. ex.ª ... Criado de v. ex.ª, sr. ministro ... Ex.mo sr. ministro, humilde servo de v. ex.ª ...» E sae ás arrecúas dos gabinetes dos ministros como saía dos gabinetes dos lentes, dando-se o ar lastimoso de um cão pelludo ao emergir da agua, com o seu velho sorriso deploravel, anediando a copa do chapéo com o canhão da sobrecasaca.

Depois de ter cambado os tacões de cinco ou seis pares de botas nos passeios por baixo da arcada das secretarias, o bacharel alcança o que deseja. Um ministro despacha-o—para se ver livre d'elle. Consegue ser empregado publico ou candidato governamental por um circulo do continente ou do ultramar.

Desde então as engrenagens do machinismo official apoderam-se d'elle para nunca mais o largarem. É um escravo. Perdeu a personalidade. Pertence á grande legião. Vae para onde ella for, diz o que ella disser, pensa o que ella pensar, dentro de limites intransitaveis, na distancia prefixa do cepo a que o amarraram.

É assim que uma quantidade iunumeravel de individuos que formam a classe dirigente vivem d'este cuidado unico: O cuidado de se não comprometterem. Nunca mais dizem o que sentem. Nas suas idéas, nas suas opiniões, na sua linguagem, tudo é riscado pela pauta official. Se alguma vez do fundo do nojo que suscita esta dyspepsia moral lhes vem á bocca uma verdade, engolem-a para baixo como o caroço de uma fruta prohibida.

Como pelo desdem do trabalho vivem n'uma estreiteza pecuniaria visinha da miseria, muitos se lançam á caça do casamento rico, e, vexando-se de ser tecelões ou ferreiros, não se vexam de casar por interesse, e acceitam para toda a vida a intimidade indissoluvel de uma mulher feia, estupida, malcreada, sem espirito de ordem, sem methodo, sem a dignidade do conforto e do aceio domestico,—a viva negação de todas as condições que tornam a casa feliz e a familia amavel.

É d'esses consorcios sem idealidade e sem amor, contraidos fóra da mutua dedicação que completa o homem pelo seu par e cria o verdadeiro individuo social duplicadamente corajoso, digno e forte, que saem os filhos dissolutos, os jovens cynicos, desdenhosos das affeições honestas, hostis a todos os sentimentos de familia, cujos nobres encantos nunca aprenderam a conhecer e a estimar.

D'esses consorcios procedem tambem as meninas futeis e pretenciosas, frageis entes inuteis, a que falta a condição essencial da nobreza e da dignidade da mulher—a comprehensão do ménage, o culto do santuario domestico. Ellas refugiam-se da convivencia antipathica da sua familia, constituida sem bases organicas, na religião, ou, para que o digamos no termo mais preciso, na igrejice, e na leitura dos romances sentimentaes. A igrejice e o romance são os dois pólos da sua vida moral.

Como qualquer d'essas meninas desconhece completamente a arte de cultivar e desenvolver os seus encantos de espirito e de caracter, um instincto de aperfeiçoamento, desencaminhado pela educação, leva-a ao cultivo do trapo como um fim de superioridade, e arroja-a no lastimavel fetichismo dissipador da moda.

Ignora completamente todas as artes que constituem os elementos da felicidade conjugal e que só por uma grande pratica e por uma longa tradição se aprendem: a arte de se fazer bella pelo simples modo de atar uma fita, de pôr em si uma flor, pela maneira de coser, de caminhar, de se sentar n'um fauteuil, de pegar no talher, de estar á mesa; a arte de dirigir a cozinha, de organisar a alimentação, de extrair da sua chimica a alegria e a saude dos seus commensaes; a arte de arranjar a casa, de lhe dar physionomia, de a obrigar a mostrar talento, a exprimir idéas, a ter quasi conversação, fazendo respirar como coisas vivas nos armarios as pilhas perfumadas da roupa branca, sorrir nas prateleiras da casa de jantar o esmalte das loiças e o estanho reluzente das tampas das canecas, estenderem-nos os braços as cadeiras do salão, e solicitarem-nos a permanecer a côr dos cortinados, o tom dos estofos, o assumpto dos quadros, a collocação dos moveis, a graduação da luz, a frescura do ar, a nitidez geral do aceio e a sabia disposição dos livros e dos jornaes sobre o panno da mesa.

A menina em similhantes condições de inutilidade raramente se casa, ou se desquita do marido se algum dia o vem a ter. As suas inclinações romanescas e doentias chamam-a para beata. De resto é essa talvez a sua melhor maneira de ter um fim, porque, emquanto a ser mãe, prohibe-lh'o physica e moralmente a accumulada estreiteza do coração e dos ossos.

Taes são, no caracter dos individuos de um e outro sexo, os frutos da educação portugueza na classe mais preponderante da sociedade, aquella que fórma a opinião e determina as tendencias do espirito publico. Com similhante estado é irreconciliavel o genio explorador, a tendencia para as viagens entre póvos barbaros e finalmente o poder de dirigir e de dominar.


Como colonisadores temos apenas uma vantagem sobre os outros póvos europeus: a sobriedade, que permitte aos nossos operarios alimentarem-se com a simplicidade d'esses chins cuja concorrencia, pelo simples facto d'elles se satisfazerem não comendo senão arroz e não tendo outra baixella senão dois paus, faz tremer todos os trabalhadores do mundo.

Mas esta grande virtude de raças inferiores, caracteristica principalmente dos nossos operarios do Minho e de Traz-os-Montes, é insufficiente para nos conservar o dominio de extensos territorios, que se não arroteiam para a civilisação senão pelo esforço combinado de altas faculdades administrativas que não temos, de uma grande robustez physica que tambem não temos, e de um enthusiasmo impulsivo e desinteressado, tirado de uma grande corrente nacional das mesmas idéas e das mesmas convicções, o qual egualmente nos falta.


Nenhum phenomeno mais expressivo da nossa anarchia administrativa e da nossa abdicação governamental do que o estado da nossa marinha.

Em todo o paiz colonial e maritimo a industria da pesca é a escola em que se iniciam os marinheiros. A pesca é a infancia da marinha. A Hollanda comprehendeu admiravelmente essa verdade, e a industria piscatoria é desde muitos annos objecto dos cuidados e das attenções mais desveladas por parte do governo hollandez, cuja marinha é hoje florentissima. Essa marinha constituiu-a a Hollanda attraindo, com grande augmento de salarios, os pescadores biscaynhos que iam á pesca da baleia ao cabo de Finisterra.

As pescarias no mar largo, como a da baleia e principalmente a do bacalhau, são particularmente favorecidas por todas as nações maritimas com grandes premios conferidos pelo estado. É na classe numerossima dos tripulantes de milhares de navios empregados nas chamadas grandes pescas que se recrutam os marinheiros das armadas europêas.

O governo francez protege, com grandes subsidios na armação dos navios e com avultados premios sobre o pescado importado, as suas pescas do bacalhau, cujo producto augmenta extraordinariamente os recursos alimenticios do paiz, elevando-se o seu valor em dinheiro á somma de 17 milhões por anno. A pesca do bacalhau emprega em França 400 navios e 12 mil marinheiros.

Um facto bem notavel e digno de ser ponderado pelos legisladores portuguezes é que a prosperidade e o progresso da França teem sido marcado, como a temperatura em um termometro, pelo desenvolvimento ou pela estagnação das suas grandes pescas! No tempo da emancipação communal a pesca do bacalhau desenvolve-se enormemente; cae com a corrupção monarchica do regimen despotico; revive deante das medidas legisladas pela Revolução.

Talvez o governo ignore as condições em que actualmente se tributa o sal que os pescadores francezes nos compram com destino ao seu bacalhau. Os navios francezes que veem ao nosso porto fornecer-se d'esse genero fazem fiscalisar o seu carregamento pelo respectivo consulado; o consul francez remette ao seu governo a nota dos moios de sal carregados em Lisboa e cujos direitos de importação em França são pagos no porto d'onde o navio partiu pelo proprietario responsavel por este imposto. D'este modo evita-se todo o contrabando na importação do sal: os direitos estão pagos na razão de 50 centimos por cem kilogrammas. Quando porém o navio que carregou em Lisboa volta a França com o sal empregado nos bacalhaus que pescou, o governo restitue-lhe os direitos anteriormente percebidos, não já na razão de 50 centimos por cada cem kilogrammas de sal, mas sim na de 13 francos por cada cem kil. de bacalhau. É assim que na questão de um simples imposto se revela o plano de um paiz para o qual a administração tem um fim de progresso.

Portugal possue no mar dos Açores, segundo a asseveração de varios navegantes, um banco de bacalhau que muitos julgam superior ao da Terra Nova, o qual se diz descoberto por um portuguez Gaspar Côrte Real. E deixa morrer ao desamparo essa grande industria riquissima, a pesca de um peixe precioso em que tudo se transforma em riqueza: as linguas constituem um artigo especial presadissimo dos gourmets; dos intestinos faz-se o melhor adubo da terra; do figado extrae-se o oleo importantissimo para a industria e para a medicina; os ovos empregam-se com grande vantagem na pesca da sardinha.

Apezar de Portugal ser um paiz privilegiado para a pesca do bacalhau, pelo valor e pela pericia dos seus pescadores, pela posse do melhor sal que se conhece para salgar o peixe e do melhor sol que ha para o secar, o nosso governo despresa este importantissimo ramo da actividade commercial, perdendo por esse mesmo facto a melhor escola pratica dos nossos marinheiros e dos nossos navegantes. A grande pesca tambem é para nós um symptoma da vitalidade nacional. Quando eramos fortes mandavamos cincoenta ou sessenta navios de pesca para a Terra Nova. Hoje pescamos na costa o carapau para o gato, servindo-nos de redes que deveriam ser prohibidas, despovoando as aguas de pequenos peixes insignificantes, que pelo contrario pesariam dois kilos e seriam um importante artigo alimenticio, se tivessemos estudado os nossos apparelhos de pesca e soubessemos legislar sobre a dimensão permittida ás malhas das redes. O governo portuguez nunca deu a este assumpto, base de toda a exploração colonial, um só instante de attenção.

O parlamento nomeia em cada anno uma commissão de pescas, que ainda não serviu para mais nada se não para tributar o pescador. As especies de peixes que frequentam as nossas costas estão por estudar. A piscicultura não tem sido objecto de maiores disvellos que a ictyologia: nem uma só medida tomada pelo Estado para repovoar as aguas das nossas costas e dos nossos rios principaes; nenhum estudo feito sobre os botes e sobre os apparelhos empregados na pesca. Assim o pescador considera o Estado, que elle nunca viu representado senão pelo fisco, como um puro explorador.

Na Povoa de Varzim ha um antigo quebra-mar destinado a formar um porto de abrigo, que nunca se concluiu. Todas as reclamações, todas as instancias feitas para este fim teem sido inuteis.

Ha cerca de seis annos el-rei em pessoa visitou a Povoa acompanhado por um dos seus ministros, o sr. Avelino, o qual em nome do soberano prometteu aos pescadores que ia ser concluido o paredão. Até hoje ainda se não accrescentou uma pedra áquelle monumento unico do desleixo nacional!

E todavia o espirito aventuroso dos nossos antigos navegantes, que o sr. marquez de Sousa Holstein acaba de procurar resuscitar com a sua eloquente e erudita conferencia ácerca da escola de Sagres, está ali vivo ao pé d'esse paredão em ruinas. Ha ahi tres mil homens que em cada dia jogam as suas vidas com a mesma coragem com que nós aqui em Lisboa jogamos as cartas. Os poveiros são os homens mais alentados e mais robustos que tem Portugal. É raro o que se enterra no cemiterio da freguezia. Morrem no mar, sob um céo de chumbo, estrangulados pela inclemencia das vagas, á vista da terra, ao alcance das vozes das suas mulheres e dos seus filhos, por lhes faltar o abrigo a que se destina o quebra-mar de conclusão em projecto! Não ha um que saiba ler. Habitam em terra um bairro infecto e miseravel. Os cações escalados, destinados á alimentação no inverno, secam pregados ás portas interiores das casas. Cheios de vermine, homens, mulheres e creanças, dormem no mesmo quarto, n'uma promiscuidade horrorosa. A terra da patria dá-lhes apenas um farol, que elles illuminam á sua custa, e um barco de salva-vidas, que elles mesmos tripulam. E é para isso que elles, desgraçados, quasi mendigos, pedindo esmola em bandos durante o inverno, pagam um imposto annual de cerca de seis contos de réis, integralmente devorados pelo fisco.

Imagine-se como elles lhe hão de querer e como a hão de amar, á querida terra da patria!

A unica vingança que esses generosos lobos do mar tiram do Estado, que tão vilmente os explora e os rouba, consiste em não darem nem um só homem para o recrutamento maritimo. Não ha meio algum de os obrigar a fornecer um recruta á armada. Preferem morrer mil vezes a servir taes amos.

E eis ahi está o ultimo capitulo na provincia do Minho da historia, feita pelo sr. marquez de Sousa, da escola dos navegadores portuguezes fundada em Sagres pelo infante D. Henrique!

Como a administração das nossas colonias depende directamente da organisação da nossa marinha, como a importancia da nossa marinha depende da organisação das nossas pescas, a Academia prestou á civilisação da Africa um serviço verdadeiro, não organisando conferencias, mas tomando uma deliberação mais obscura e todavia mil vezes mais importante: a de nomear o sr. Brito Capello, naturalista adjunto do museu zoologico, para ir estudar ao longo do nosso littoral a industria da pesca e de expôr os meios de a reorganisar.

Comtudo a opinião, que tem de julgar os factos, tão esclarecida é, que applaudiu como um notavel beneficio patriotico a iniciativa das conferencias—um espectaculo de erudição, e não teve uma palavra de applauso para a missão do sr. Capello—o primeiro passo para atacar o mal na sua verdadeira origem!


Do estado verdadeiramente deploravel em que se acha a nossa força maritima póde-se ter uma idéa pela recente medida tomada pelo governo de convidar a servir na armada, mediante uma gratificação apregoada na folha official todas as praças de infanteria ou de caçadores que para esse fim se apresentem! O governo tem de um marinheiro esta comprehensão:—que elle se fabrica por meio do abono de quatrocentos réis por dia dados a um soldado de caçadores!

Mas, a não ser que o façam ao acaso ou que se determinem por uma escolha baseada na côr dos olhos ou na fórma do nariz, que razões podiam ter levado o governo a alistar na arma de caçadores um dos seus recrutas? Suppomos que estas razões devem ser tiradas das condições em que foi educado o recruta; que o fizeram caçador porque habitava as montanhas, porque era um caminheiro, porque tinha a agilidade que dá a luta com os terrenos escabrosos nas visinhanças das serras. Ora, sendo assim, como querem sujeitar á vida sedentaria do mar e á familiaridade das ondas esse montanhez, que nunca pegou n'um remo, que chegou das Alturas de Barroso, do Marão ou da Serra da Estrella e que sente as pernas enferrujadas e o pulmão opprimido desde que não anda mais de uma legua por dia trepando saudosamente ás colinas que cercam o logar do seu quartel?

Outro facto não menos expressivo é o que ha pouco tempo se deu com alguns guarda-marinhas do nosso conhecimento em estação em Loanda.

Sabe-se que não ha plantas dos nossos portos da Africa, cuja navegação se faz por meio de cartas inglezas.

Os jovens marinheiros a que nos referimos, impellidos por esta vergonha da nossa marinha, quizeram levantar a planta do porto de Loanda. Empregaram todos os esforços para obter os necessarios instrumentos, não puderam conseguir senão unicamente a offerta de um bote, unico elemento de trabalho que o governador se achava habilitado a pôr á disposição d'esses extravagantes. Elles comprehenderam então que não tinham senão uma coisa que consagrar aos destinos da patria; não era o talento, não era a dedicação, não era o trabalho; era unicamente a saude. E foram immolar o figado á administração nacional para bordo do seu navio, como patos de engorda pregados pelos pés á respectiva capoeira.

Quando os nossos officiaes teem conseguido arruinar completamente as suas visceras na inanição official das nossas estações de Africa, voltam doentes á metropole e concluem a missão civilisadora que o paiz lhes incumbiu tomando as aguas alcalinas de Vidago.

As aguas de Vidago são o fim supremo do seu destino militar.


Emquanto estas coisas se passam os inglezes, com um poder creador que faz muitas vezes o elogio das suas faculdades inventivas, acham em cada dia pretextos novos para intervirem com o seu protectorado humanitario nos negocios do interior africano, e dilatam a pouco e pouco a sua occupação e o seu dominio manso sobre o nosso territorio.


Um dos incidentes que acompanham a questão suscitada pela viagem do capitão Cameron é a revelação feita por este viajante de que as auctoridades portuguezas no interior da Africa não obstam ao trafico dos escravos, que ainda ali vigora.

Como é que nós respondemos á denuncia d'este facto? Respondemos negando a asseveração do sr. Cameron e fazendo protestos.

Para decidirmos se um tal modo de retorquir nos podia ser ou não permittido, vejamos quem é o homem que nos acusa.

Cameron é o segundo europeu depois de Levingstone que modernamente atravessou a Africa desde a costa oriental até a costa occidental, levado por um intuito exclusivamente scientifico. D'esta viagem, que durou quatro annos, trouxe o sr. Cameron o projecto de ligar a costa do oriente com a do occidente por meio da navegação fluvial, aproveitando as relações hydrographicas do rio Congo e do Zambese, o primeiro dos quaes desemboca de um lado no Zaire e o outro do lado opposto, ao sul de Moçambique.

Durante esses quatro annos passados entre selvagens, o capitão Cameron parte de Bogamoyo em frente de Zanzibar, passa em Rehenneko, atravessa o paiz de Ounyanyembe, o paiz de Ugara, o Ujiji, o lago Tanganyika, o mercado de Nyaugwe, o estado de Urua, a Ponta do Lenho, desce as margens do Congo, toca em Benguela, chega finalmente a Loanda. Os companheiros de viagem que haviam saido de Inglaterra para o acompanharem—o doutor Dillon, Moffat sobrinho de Levingstone, o artilheiro Murphy, não podem seguil-o a mais do começo d'essa longa e perigosa expedição. Adoecem successivamente todos. Moffat morre em Bogamoyo. Em Ounyanyembe apparecem-lhe os homens de Levingstone trazendo o cadaver do explorador que o precedera. Então Murphy e Dillon, ambos gravemente enfermos, desistem de continuar essa immensa viagem e regressam com o corpo de Levingstone para Zanzibar. Dillon morre no caminho.

Cameron, só, sem nenhum outro companheiro europeu, armado de uma clavina, seguido por uma escolta de negros, prosegue, caminhando atravez de regiões inexploradas e desconhecidas, sob um clima mortifero, deixando atraz de si, marcado com a morte dos seus camaradas e cada um dos primeiros estadios da sua portentosa peregrinação.

Não sabemos quem era Cameron ao partir. Admittimos que saisse da Inglaterra com a educação commum de um simples tenente da armada britanica. Mas dizemos que uma viagem como a que elle fez, e nas condições em que a fez, basta para retemperar uma alma e para formar um caracter. Um tal homem não mente. N'elle a mentira seria a refutação de todos os principios do nosso aperfeiçoamento, seria a violação de todas as leis da natureza humana.

Nada mais lastimosamente ridiculo do que a indignação patriotica de qualquer dos nossos politicos, chupando auctoritariamente um cigarro no Gremio ou á porta da Casa Havaneza, bombardeando a atmosphera com balas de fumo, e desmentindo o homem mais competente que hoje existe no mundo para nos informar do que se passa em Africa!

O que Cameron disse ácerca da escravatura africana na conferencia feita em Londres foi o seguinte:

«Cerca da linha de separação das bacias do Zambese e do Congo fomos retardados no primeiro acampamento por causa da caça aos escravos fugidos. Quando pela manhã me preparava para partir, chega um mensageiro dizendo-nos: Não partaes; Kouaroumba vae chegar com os seus escravos. Depois do meio dia chegou effectivamente Kouaroumba com uma fila de cincoenta ou sessenta infelizes mulheres, carregadas com a presa, trazendo algumas os seus filhos nos braços. Estas mulheres representavam pelo menos a ruina e a destruição de quarenta ou cincoenta aldeias e a matança d'aquelles dos seus habitantes masculinos que não conseguiram refugiar-se nos juncaes para ali viverem como podessem ou morrerem de fome. É para mim fóra de duvida que estas cincoenta ou sessenta escravas representam mais de 500 individuos mortos na defeza do seu lar ou acabando mais tarde de inanição. As mulheres a que me refiro vinham presas umas ás outras pela cinta por meio de cordas cuidadosamente atadas. Quando ellas affrouxavam na marcha, batiam-lhes desapiedadamente. Os traficantes portuguezes, negros ou mestiços são muito brutaes; os arabes pelo contrario tratam geralmente bem os escravos. Os negros caçados como estas mulheres no interior da Africa não são em geral levados para a costa. Vão para Sakaleton, onde por varios motivos a população é rara e são mui procurados os escravos. São vendidos por marfim, que os traficantes trazem para a costa.»

Estas palavras são perfeitamente explicitas e terminantes.

Persiste com todos os seus horrores no interior das nossas possessões da Africa o trafico dos escravos. Emquanto se não provar manifestamente o contrario esta é que é a verdade, verdade referida pelo sr. Cameron, já anteriormente ennunciada pelo viajante francez o sr. Jocolliot, confirmada pelo sr. Young, explorador inglez, e ultimamente, mesmo em Lisboa em uma carta publicada no Progresso pelo sr. Pinheiro Bayão, que esteve por algum tempo em Africa empregado do Estado.

Para factos d'esta ordem os protestos de toda a imprensa 1 e de todo o parlamento, por mais unanimes que elles sejam, não teem a natureza de uma refutação nem o caracter de uma resposta, são uma pura evasiva compacta.

1 Um unico periodico, de que tenhamos noticia, o Seculo, de Coimbra, tomou a defeza do capitão Cameron em um artigo poderosamente escripto pelo sr. Correia Barata.

A primeira noticia dada em Portugal da viagem de Cameron foi objecto de uma sabia exposição feita á primeira classe da Academia das Sciencias pelo fallecido naturalista o dr. Bernardino Antonio Gomes. O resultado d'essa exposição dos serviços prestados pelo viajante inglez á civilisação universal foi dirigir-se a Academia ao ainda então tenente Cameron, agradecendo-lhe em nome da sciencia e em nome de Portugal a contribuição valiosissima com que elle tinha cooperado para o progresso da sociedade humana.

O governo, deliberando tomar officialmente conhecimento dos factos referidos pelo capitão Cameron, não tinha senão uma resposta que dar-lhe:—nomear uma commissão de inquerito que syndicasse rigorosamente da cumplicidade dos funccionarios portuguezes no menosprezo ou na contravenção das leis que aboliram a servidão.

Em quanto á camara dos srs. deputados, parece-nos que ella teria procedido, pelo lado scientifico com mais logica, e pelo lado patriotico com mais tacto, se em vez das protestações que iniciou houvesse seguido o exemplo que lhe fôra dado pela Academia e agradecesse simplesmente ao sr. Cameron as informações que este lhe prestára.

D'esse modo teria a camara dos sr. deputados evitado receber do Times a mais dura e humilhante lição que por via da penna de um jornalista se pode inflingir a uma sociedade.

O preconceito do patriotismo é o mais funesto de todos os preconceitos sociaes sempre que elle nos leva a trahir a verdade. Manter na opinião publica a mentira é violar o progresso da humanidade pelo modo mais sacrilego e mais nefando. A decomposição em que se acha a governação e a politica em Portugal deve-se principalmente á fraqueza dissolvente dos caracteres publicos em testemunhar a verdade. Todo aquelle que por meio da sua palavra ou por meio da sua penna não tem o preciso valor para ennunciar a sua inteira opinião é um traidor da civilisação e um perigoso inimigo do genero humano. Não queremos para a nossa consciencia de escriptor o remorso d'essa voluntaria culpa, e é por isso que dizemos aos srs. deputados:

A verdade, meus senhores, é o que vos disse o Times. «A questão, como diz o referido periodico, não é se Portugal prestou serviços á causa do progresso africano, nem se os estadistas foram estudiosamente polidos na sua linguagem tratando com uma nação alliada e amiga; a questão é se os factos são ou não são como recentes viajantes affirmaram que eram. Que o commercio da escravatura na Africa central seja feito mui largamente por negociantes portuguezes e sob a protecção da bandeira portugueza é accusação que pode ser refutada, não pela linguagem de uma indignação ficticia ou real, não por patrioticas reminiscencias, nem por uma referencia a cumprimentos diplomaticos, mas sim deixando-se de permittir que haja materia para que a accusação continue. Sabemos quanto Portugal tem feito no papel para acabar a escravatura, e conhecemos tambem o pouco effeito que as suas energicas declarações produziram.»

Os quatro milhões de vozes de que o paiz inteiro pode dispor, a protestarem todas perante o universo, não poderão convencer um só homem de que a verdade seja differente do que é. A declamação n'este ponto é completamente inutil com outro qualquer fim que não seja um puro exercicio de eloquencia nacional.

Por tal modo, meus senhores, não julgueis contribuir para a civilisação. Vós contribuis apenas para o Peculio de Oradores, do sr. João Felix.






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     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
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work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
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Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org

Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

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Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
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