The Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das
Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz

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Title: As Farpas: Chronica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes
       Janeiro a Fevereiro de 1877

Author: Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz

Release Date: July 6, 2005 [EBook #16218]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS: CHRONICA MENSAL ***




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Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas

AS FARPAS

RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ

CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES

NOVA SERIE TOMO VIII

Janeiro a Fevereiro 1877


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande Universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

A actual situação politica. Conceituosa parabola das moscas e das maselas. O partido revolucionario e o partido conservador. A funcção de um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora. Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A profunda synthese do pipo do Estado.—As inundações. Crise meteorologica. Theoria da chuva. Os irrigamentos e as cheias. As civilisações e os rios. As previsões industriaes e economicas. O regimen das torrentes. A arborisação. Os diques provisorios. As fontes de Palissy. Crise economica. O Estado e o Inundado. Troca de correspondencias. Lisboa durante a crise: os salões, os espectaculos, a imprensa, o parlamento. Intervenção de sua magestade a rainha. A caridade como elemento de administração. Autopsia do anjo. De como este não baixou do ceu. Demonstra-se que saiu da arcada do Terreiro do Paço. A intervenção dos Prelados. As preces para mudar o tempo e os observatorios para o estudar. Os moinhos do Tibet e as cabaças dos Kalmuks. A intervenção da colonia portugueza no Brazil. O brazileiro que parte, e o brazileiro que chega. O patriotismo dos nostalgicos. A commissão de soccorros.—Um banquete militar. O que se passa dentro dos craneos sob a pressão das barretinas.—O centenario da Academia das Sciencias. A tradição academica. A Academia, berço da revolução e da liberdade. Ferreira Gordo, o abbade Correia da Serra, o padre Antonio Pereira, o duque de Lafões, academicos e jacobinos.—O crime do Padre Amaro romance d'Eça de Queiroz.

A situação politica...

Mas, perdão—antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia:

Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida. Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel, olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas philosophicas.

Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de coices. A vetusta ossada angulosa do ancião parecia furar-lhe a pelle resequída e aspera. Um espesso enxame de moscas cobria-lhe as mataduras do lombo e dava-lhe o aspecto de ter um albardão feito de zumbidos e d'asas sobre um fundo de missangas pretas e palpitantes,—coisa rabujosa á vista.

—Sacode esse mosqueiro, disse-lhe o burro novo. Dar-se-ha o caso de que, á similhança do homem, deixasses tambem tu atrophiar o precioso musculo que ahi tens na face para por meio d'elle abanares a orelha e moveres a pelle?... Sacode-te, bestiaga!

Ao que o lazarento, pausado, retorquiu:

—Não sabes o que zurras, joven temerario! O destino de quem tem maselas é que o mosqueiro o cubra. As moscas que tu vês, e de que o meu cerro é a estalagem com mesa redonda, são moscas fartas, teem a mansidão abundante dos estomagos cheios. Se eu as sacudisse, viriam outras,—as famintas, de ferrões gulosos, que zinem como frechas, pousam como causticos, mordem como furunculos. As que tu vês prestam-me um serviço impagavel:—livram-me das que podem vir; são o meu xairel benigno e suave, o meu arnez, a minha couraça. Quando te chegar a idade de seres pasto de moscas (e breve te soará essa hora porque a mocidade é, como a herva, uma ephemera transição entre o alfobre da meninice e a palha da edade madura); quando te chegar o teu dia, lembra-te, asninho imprudente, d'este conselho amigo de um burro velho, que não aprende linguas, mas que tem a experiencia que vale tanto como o ouro: Nunca sacudas mosca desde que creares masela! Teme-te dos papos vasios das revoadas novas. Papos cheios não só não mordem mas até empacham! Comprehendeste, burrinho, a philosophia da minha inercia?

Revertamos agora, como vinhamos dizendo, á situação politica.

Em toda a sociedade em movimento ha dois unicos partidos: o partido conservador e o partido revolucionario.

A funcção do partido revolucionario, qualquer que seja o seu nome—republicano, socialista, federalista, fourrierista, proudhonista, positivista, etc.—é transformar a ordem estabelecida, modificando as condições da civilisação no sentido de um mais rapido progresso.

Para este fim o partido revolucionario agita constantemente por meio de idéas novas as opiniões preconcebidas.

Como, porém, não está ainda definido o programma geral e harmonico da revolução, como a tendencia progressiva das multidões indisciplinadas se basea no sentimentalismo esteril ou no phantastico ideal methaphysico dos phraseadores eloquentes, succede que todo o esforço revolucionario representa para a sociedade um perigo de desordem, de incoherencia e de anarchia.

A funcção do partido conservador é a manutenção da ordem contra todas as invasões que directa ou indirectamente ameacem a integridade da organisação existente. Em todas as velhas sociedades os governos são por essa rasão, os inimigos natos do progresso. A evolução progressiva da humanidade realisa-se, a despeito d'elles, pela elaboração irresistivel das idéas fora da esphera official, sob a acção das descobertas da sciencia ou das suggestões da arte. O mais que fazem os governos é submetterem-se ás transformações sociaes que a solução de cada novo problema resolvido pela sciencia impõe á existencia dos povos. Os governos, portanto, sempre que uma forte effervescencia intellectual não agita a sociedade e os não abala constantemente na eminencia do seu posto forçando-os a concessões successivas, tendem ao retrocesso.

A civilisação não é na orbita politica senão o justo equilibrio das forças resultantes d'essas duas tendencias: a tendencia retrograda na ordem, a tendencia anarchica na revolução.

Em Portugal o que succede?

A vida intellectual é extremamente debil. A sciencia não tem cultores desinteressados e ardentes, a acção da arte sobre a aspiração dos espiritos é nulla.

O resultado é que os partidos de opposição, não encontrando nos phenomenos da vida nacional a profunda expressão implacavel de novas necessidades a que os governos tenham de amoldar-se, acham-se naturalmente desarmados das grandes rasões que reptam os governos a progredir ou a abdicar.

Em taes condições o partido revolucionario dentro da milicia politica, partido fabricado pelos proprios governos com a corrupção do suffragio,—sendo uma pura convenção, uma fixão constitucional, uma expressão rhetorica, sem raizes na consciencia e na vontade popular,—acabou por desapparecer inteiramente do nosso systema representativo. Ha muitos annos que a revolução não tem quem a represente no parlamento portuguez.

Ha, todavia, uma maioria parlamentar e uma opposição composta de varios grupos dissidentes. Estes grupos são fragmentos dispersos do unico partido existente—o partido conservador—fragmentos cuja gravitação constitue o organismo do poder legislativo.

Estes partidos, todos conservadores, não tendo principios proprios nem idéas fundamentaes que os distingam uns dos outros, sendo absolutamente indifferente para a ordem e para o progresso que governe um d'elles ou que governe qualquer dos outros, conchavaram-se todos e resolveram de commum accordo revesarem-se no podler e governarem alternadamente segundo o lado para que as despesas da rhetorica nos debates ou a força da corrupção na urna fizesse pesar a balança da regia escolha. Tal é o espectaculo recreativo que ha vinte annos nos esta dando a representação nacional.

Imaginem meia duzia de almocreves sequiosos que acham na estrada um pipo de vinho. Como nenhum d'elles tem mais direito que os outros a beber do pipo, combina-se que cada um d'elles ponha a bocca ao espicho e beba em quanto os pontapés dos outros o não contundirem até o ponto de o obrigar a largar as mãos da vasilha para as apertar na parte ferida pelos pontapés applicados pela companhia que espera. É exactamente o que ha muito tempo tem sido feito pelos partidos portuguezes com relação ao usofructo do poder que elles acharam na estrada, perdido.

Chegou finalmente a vez de pôr o pipo á bocca um partido excepcionalmente valoroso de sede e inconfundivel de fibra. Este partido não desemboca o pipo por mais que lhe façam. Protestações escandalisadas, de almocreves, retroam.

—Este partido abusa!

—Isto não vale!

—Isto não é do jogo!

—Elle esvasia o pipo!

—Larga o pipo, pipa!

—Larga o pipo, pimpão!

—Larga o pipo, ladrão!

E incitam-se uns aos outros até á ferocidade:

—Chega-lhe rijo!

—Mais! que lhe dôa bem!

—Rebenta-me esse ôdre!

—Racha-me esse tunel!

—Ah! cão!

O partido, porém, continua sempre a beber, e é insensivel a tudo: á dor, ao insulto, ao chasco, ao improperio, á graça pesada, á insinuação perfida e á alusão venenosa!

Em vista de uma tal pertinacia, que nós mesmos somos forçados a taxar de irregular, os partidos em expectativa do pipo, confederam-se, ferem o pacto da Granja, constituem-se n'um só partido novo,—n'uma só bocca para o pipo. Fazem um programma, redigem um manifesto, vão de terra em terra pedindo ao paiz que intervenha. Precisamente lhes occorreu n'esse momento que o pipo tem dono! que é do paiz o pipo!

Instado a intervir pelos pactuantes da Granja, pelos signatarios do manifesto, pelos auctores do novo programma, pelos oradores dos meetings revolucionarios, pelos jornaes opposicionistas, o paiz responde-lhes:

Lestes a historia do sabio burro lazarento contada pelas Farpas? Eu sou esse burro. Vós sois a revoada das novas moscas pretendendo expulsar a revoada velha. Ora, moscas por moscas—sendo meu destino que ellas sempre me cubram e me comam—prefiro as antigas moscas saciadas ás novas moscas famintas.

Deixae-me em paz. E notae que eu nem sequer vos abano as orelhas,—que é para não bolir comigo!


Nuvens escuras, espessas, parecendo feitas da conjugação erea de Hymalaias de cinza e de Caucasos de cebo, toldam o céu, descem no espaço sobre as nossas cabeças, rolam pelos telhados com os idyllios felinos do mez de janeiro, cáem sobre os candieiros das ruas, espraiam-se pelo asphalto dos passeios, valsam nas ruas, envolvem os transeuntes em abraços aquosos que lhes atravessam o paletot, o collete de flanella e as articulações dos ossos; penetram em rodopio no interior das casas pelos resquicios das portas e das janellas, e na sua dança macraba as pardas e humidas filhas do ar cobrem de sofregos beijos molhados e bolorosos as lombadas dos livros, o liso marfim dos teclados, o marmore polido das chaminés, os cabellos que se desfrisam e as idéas que se dissolvem. Ao cabo de pouco tempo chove de toda a parte: chove do céu, chove das paredes e dos tectos das casas, das portas, da mobilia, dos castões das bengalas, dos abat-jours dos candieiros, e dos barretes de dormir. Ha dois violentos temporaes com poucos dias de espaço entre um e outro. Trasbordam os rios. Inundam-se os campos. Desenraizam-se arvores. Desmoronam-se casas. Os rebanhos, os instrumentos agricolas, os generos em deposito nos celleiros, os viaductos e os rails das linhas fereas são arrebatados pela corrente das aguas. O curso ordinario dos negocios, o movimento das mercadorias e dos viajantes suspende-se. Alguns dos habitantes das regiões inundadas ficam na miseria e têem fome.


Ha por tanto duas crises: uma crise meteorologica e uma crise economica.


Sendo a crise economica um effeito da crise meteorologica,a questão fundamental no estudo d'essas duas crises é a questão da chuva.

Esta questão acha-se definida e tem a sua theoria na sciencia.

Assim como a agua sujeita a uma dada elevação de temperatura se evapora e se converte em ar, assim o ar sujeito a uma proporcional depressão athmospherica se transforma e se converte em agua. Os conhecimentos que já hoje se possuem da physica do globo permittem determinar os differentes tramites do processo seguido pela natureza para obter os resultados achados pela observação humana.

Todo o vento (effeito da rotação da terra) humedecido pela impregnação aquatica do mar, encontrando na sua passagem um estorvo que o dilate na atmosphera, transforma-se em chuva, ou transforma-se em neve, segundo o gráu de arrefecimento, maior ou menor, resultante da altura a que o eleva no espaço o volume do estorvo interposto na sua corrente.

Assim se explica o phenomeno da chuva, a existencia da neve nos pincaros de todas as altas montanhas, e o nascimento dos rios. D'estes, uns, como o Rhodano, o Rheno, o Danubio, são formados pela opposição das cordilheiras á corrente regular de certos ventos; outros, como o Mississipi e o Missouri, nascem do encontro das duas correntes atmosphericas oppostas, uma que sáe do golpho do Mexico, outra que parte dos Estados Unidos na direcção da Europa.

Achando-se determinado que 200 metros de elevação acima do nível do mar dão 3 gráus de frio, é facil calcular, o frio que deve actuar no ar elevado ás alturas dos Alpes, dos Pyreneus, do Caucaso, e de descobrir assim as causas das geleiras, do mesmo modo se descobriu a origem das chuvas e a do nascimento dos rios.

Possuida esta simples e clara noção, o homem adquiriu o poder de intervir no meteoro. Em 14 de novembro de 1854 uma tempestade medonha caíu sobre as esquadras franceza e ingleza, estacionadas no Mar Negro. Todos os navios das duas marinhas tiveram avarias desastrosas. Muitas embarcações de transporte naufragaram. O sr. Leverrier, director do observatorio de Paris, procedeu então a um inquerito sobre as perturbações atmosphericas d'esse dia, dirigindo circulares a todos os meteorographos do mundo. Duzentas e cincoenta respostas de differentes observatorios provaram que a onda atmospherica qua determinara a tempestade fôra presentida pelos observadores, e que a catastrophe teria sido evitada se o telegrapho, que caminha mais depressa do que a corrente do ar, houvesse feito passar de observatorio em observatorio a noticia do phenomeno.

Antigamente faziam-se preces e penitencias para pedir chuva; hoje em dia a chuva não se pede, manda-se-lhe simplesmente que caia, e ella cáe precisamente no ponto que se lhe designa.

Ha poucos annos ainda, no Baixo Egypto, não chovia nunca. Os celleiros eram construidos ao ar livre, a descoberto, sobre os telhados. Desde tempos immemoriaes que o vento secco do norte mantinha esse estado de coisas na referida região. Um dia, porém, a corrente septentrional chega á Alexandria e encontra uma certa difficuldade em passar com a rapidez do costume; detem-se um momento, retarda-se um instante: basta isso para que ella se dilate, para que se eleve no espaço, para que arrefeça na razão da altura a que subiu e para que, por-consequencia, se converta em chuva. D'onde viera esta poderosa resistencia á invasão do vento esteril? De uma revolução geologica na configuração do solo? Do encontro de um vento opposto? Da influencia calorifica da radiação solar? Não. A voz de preso dada ao vento norte, o encarceramento d'elle n'uma certa porção do espaço, a sua condemnação inilludivel a condensar-se e a ser chuva, fôra simplesmente a obra do homem, que vencera o vento plantando a arvore.

As florestas que têem o poder de occasionar as chuvas por meio da sua interferencia na corrente dos ventos, possuem ainda a propriedade de lhes regular os effeitos impedindo os excessivos irrigamentos, e as inundações.

Além de certos processos de cultura e de arborisação nos cabeços dos montes e nas encostas das colinas, ha outros meios de impedir os estragos das cheias,—dando aos rios um regimen torrencial, operando largos cortes transversaes nos declives do solo para regular a descida das aguas, construindo tubos de drenagem, etc.

Quando um dique, como o de Vallada, se rompe por effeito de um repentino augmento no volume da agua no leito de um rio, ha meios praticos, prontos, expeditos, de construir diques provisorios. O sr. Babinet, nos seus estudos ácerca da chuva e do irrigamento da França, lembra para os casos analogos ao de Vallada a construcção de barreiras feitas com grandes caixas de ferro fundido similhantes ás que transportam a agua potavel nas navegações de longo curso. Estas caixas enchem-se com a mesma agua do rio e sobrepõem-se ou enfileiram-se de encontro á corrente até formarem um obstaculo de dimensões adquadas ao volume da agua que se tem por fim represar.

O mesmo sr. Babinet suggere para o meio preventivo da arborisação o sabio alvitre, tão moralisador, de organisar regimentos de plantadores formados de corpos de veteranos, cujas praças encontrariam n'esse trabalho um suave emprego da sua actividade, que o Estado poderia utilisar remunerando-a com liberalidade superior á importancia mesquinha do soldo e proporcional ao serviço prestado por esses cidadãos, até hoje inuteis, á salubridade e á riqueza publica.

Por occasião das ultimas inundações em França, das recentes inundações na Inglaterra, os meios apontados e muitos outros, descobertos pela sciencia no momento do perigo, em frente da catastrophe, têem sido objecto dos mais graves estudos por parte do governo, por parte da imprensa, por parte principalmente das corporações especiaes, dos meteorologistas, dos engenheiros hydrographos, dos de florestas, dos de pontes e calçadas, etc.

Em Portugal deante do facto da inundação espraiada sobre as povoações do Ribatejo, e das margens do Guadiana, a questão principal, a questão summa, a questão technica, é posta completamente de parte, ou nem sequer chega a ser afastada: não concorre no problema, é como se não existisse!


Em face do desastre, dos nossos periodicos, do nosso parlamento, dos nossos proprios estabelecimentos de instrucção, irrompe um só grito enorme, consternado, lacrimoso, impotente, imbecil:—Caridade! Caridade! Caridade!

Parece não se ter unicamente em vista achar um remedio, mas cumprir uma expiação que minore os castigos do Ceu!

Um antigo proloquio egypcio dizia: Chuva em Tebas, desgraça no Egypto. A população portugueza não mostra ter da chuva uma comprehensão menos supersticiosa que a da tradição tebana. Estamos na metaphysica dos cataclismos incommensuraveis.

Debalde a meteorologia—com quanto em estado rudimentar, não constituida ainda em sciencia sobre bases experimentaes e com processos deductivos,—nos annuncia, ainda assim, que não ha nos phenomenos do ar aberrações extraordinarias, inaccessiveis á previsão, mas sim uniformidades periodicas de successão, as quaes o estudo das ondas atmosphericas e da acção magnetica do globo, estudo dirigido harmonicamente em uma cinta de observatorios que cinja ininterrompidamente o globo, chegará por certo a poder um dia regulamentar systematicamente. Definir-se-ha o sentido scientifico do sonho symbolico das vaccas magras e das vaccas gordas, demonstrando-se como aos annos de estiagem e de fome succedem annos compensadores de irrigação e de abundancia.

Debalde a historia nos mostra que foi das inundações dos grandes rios que saiu a iniciação dos grandes progressos humanos; que foi das inundações do Nilo que procedeu a civilisação do Egypto; das inundações do Hoang-Ho que procedeu a civilisação da China; das inundações do Euphrates, que procedeu a civilisação da Caldea, da Babilonia e da Syria. Povos na infancia, desprovidos das lições da experiencia, desarmados dos instrumentos da analyse moderna, souberam fundar a sua vida historica na previsão industrial e na previsão economica das cheias dos seus rios.

Nós, portuguezes, em pleno seculo XIX, na posse dos mais importantes segredos da mechanica, da astronomia, da physica, da chimica, nós, filhos de Kepler, de Galileu, de Newton e de Francklin, nós, contemporaneos de Mayer, de Helmboltz, de Virchow, de Haeckel, de Humboldt, e de Wourtz, de Ampere, de Leverrier, nós, não sabemos tirar das inundações successivas de um rio que vem de annos a annos, periodicamente, contra nossa vontade, fertilisar os nossos campos, nenhuma das lições que a experiencia devia suggerir-nos para regularmos e utilisarmos em nosso proveito a acção violenta d'esse phenomeno!

Ha perto de trezentos annos que um velho naturalista, um modesto oleiro, um simples, um santo, Bernardo Palissy, ensinou a construir as fontes artificiaes, fazendo passar as aguas da chuva atravez de um pequeno trato de terreno arborisado sobre um declive de cimento argiloso, terminando n'um muro de supporte que se corta no ponto em que se colloca a fonte e onde se deseja que a chuva, armazenada no inverno entre as raizes do pomar plantado na encosta de subsolo sedimentado, venha a correr no verão em bica de agua mineralisada e limpida. Ha trezentos annos que isto se ensinou. Em Portugal, onde a chuva torrencial é um facto de quasi todos os invernos, onde a falta de agua potavel é um facto de quasi todos os verões, ainda ninguem aprendeu a construir a fonte de Palissy!

Em Lisboa cairam alguns muros e desabaram algumas casas. Se um ligeiro abalo de terra se tivesse seguido ás grandes chuvas é natural que muitos outros predios aluissem, porque a grave questão das edificações em Lisboa está absolutamente despresada e abandonada á rotina do velho systema adoptado pelo marquez de Pombal. Ora esse systema, aliás excellente no tempo da reedificação subsequente ao terremoto, é hoje imperfeito e perigoso. A canalisação da agua e as chaminés dos fogões de sala vieram modernamente alterar os dados do problema resolvido pela sabia administração pombalina. Os andaimes de madeira geralmente adoptados para sustentar os soalhos e os tectos ou apodrecem rapidamente ao contacto dos canos da agua que envolvem os predios ou se carbonisam por effeito do calor que lhes communicam os tubos das chaminés. A elasticidade que se tem em vista obter para evitar os desabamentos procedentes dos terremotos, substituindo os madeiramentos pela pedra, só poderia conseguir-se, sem perigo do apodrecimento ou da carbonisação, empregando nas construcções modernas o ferro em vez do pau. Esta modificação tão facil, tão economica, tão urgentemente exigida nos novos systemas de edificar, o nosso desleixo nacional não nol-a tem deixado ensaiar. De modo que a mesma previsão do perigo discorrida pelo unico homem que acordou em Portugal por occasião do grande tremor de terra com que á natureza benigna approuve tentar acordar-nos, essa mesma a nossa indolencia e a nossa incuria conseguiu converter dentro de poucos annos em mais uma causa de destruição e de aniquilamento!

Do regimen torrencial dos rios, da arborisação das montanhas, dos côrtes transversaes das vertentes, da construcção dos tubos de drenagem, das applicações da draga, dos diques moveis organisados por meio das grandes caixas de ferro fundido, caixas que boiam na agua em quanto vasias e que um pequeno vapor munido do um cabo de reboque poderia conduzir aos centos sobre o Tejo para os pontos da margem que conviesse resguardar pelo pequeno espaço de tempo necessario para evitar o perigo, quasi momentaneo, das inundações, do emprego finalmente de qualquer dos muitos meios conhecidos para dominar as cheias ou para utilizar as chuvas, ninguem se occupa—nem o governo que assiste ao espectaculo commodamente sentado nos seus fauteuils de orchestre e applica á marcha dos successos o seu binoculo de dilettanti correcto, imperturbavel, nem o parlamento, nem a imprensa, nem finalmente o paiz!


A crise economica não nos parece ter sido objecto de cuidados mais serios do que aquelles que cercaram a questão hydraulica. Ou é certo ou não é que a inundação do Tejo e os temporaes que concorreram com ella destruíram as casas, devastaram os campos, reduziram povoações inteiras á miseria e á fome. Se isto é uma pura invenção dos reporters sentimentaes, o diligente esforço humanitario empregado para arrancar da caridade o remedio supremo do grande mal é uma simples ostentação insensata e ridicula. Se são verdadeiras as informações que os jornaes vagamente nos transmittem das desgraças provenientes da inundação do Tejo e do Guadiana, n'esse caso a questão não se resolve pela caridade particular mas sim pela assistencia publica.

Porque—reflictamos um momento—ou existe esse conjuncto harmonico de instituições solidarias e responsaveis chamado o Estado, ou não existe.

Se não existe, em nome de que principio nos estão aqui a impôr o serviço militar, o exercito, as barreiras, as alfandegas, o funccionalismo e a lista civil?

Se o Estado existe, o que é para elle o lnundado? O Inundado é o productor e é o contribuinte. Agricultando o seu campo, creando o cavallo, engordando o boi, creando o porco, tosquiando a ovelha, pisando a azeitona, podando a cepa, descaseando o sobreiro, o Inundado desde tempos immemoraveis que não faz mais do que estas duas coisas: produz e paga.

Nós outros, habitantes do Chiado, assignantes de S. Carlos, socios do Gremio e do Club, frequentadores do Martinho e do Passeio Publico, nós, republicanos, regeneradores ou granjolas, commendadores de Christo e mesarios da confraria das Chagas, nós outros não produzimos e por conseguinte, em rigor, tambem não pagamos.

Funcionnerios publicos, capitalistas, banqueiros, ministros, oradores, poetas lyricos, jogadores na bolsa, proprietarios de predios, vendedores de bilhetes de loteria, consumidores insaciaveis de charutos, de copos de cerveja, de dobrada com hervilhas e de bolos de especie,—nós, francamente, não produzimos coisa nenhuma qae signifique dinheiro, isto é, trabalho crystalisado, obra, ou, por outra, valor. Somos apenas—mais ou menos legitimamente—os usufrutuarios, os administradores officiosos ou officiaes do dinheiro dos outros.

Portanto, como acima dissemos, nóa outros, como não produzimos, em rigor tambem não pagamos. Aquillo que alguns suppomos pagar é apenas uma parte que se nos deduz n'aquillo que recebemos. Quem em ultima analyse vem a pagar é unica e simplesmente o Inundado, queremos dizer o productor, o que planta o trigo, o bacelo, a oliveira e o sobro, o que cega a cevada e apanha a bolota, o que carda a ovelha, cria o boi, o cavallo, o porco e o carneiro, o que dá a cortiça, o mel, a cebola, o pão, o vinho, o azeite, o sal, o figo, a amendoa e as laranjas.

É elle, o Inundado, quem até hoje tem pago o subsidio de S. Carlos, as carruagens dos ministros, os cavallos dos correios de secretaria, as purpuras dos nossos reis, as toilettes das nossas dançarinas, os penachos do nosso exercito, a campainha e o copo d'agua dos nossos parlamentos, finalmente toda a despeza de administração, de pompa, de luxo e de força, cujo conjuncto constitue a coisa chamada o Estado.

Como foi que o Estado resolveu o Inundado a pagar-lhe as suas contas? O Estado resolveu-o fazendo-lhe o seguinte discurso:

Inundado! Você trabalha como um boi de nora, o que o não impede de ser um infeliz e um estupido. Eu sou o Estado. Proponho-me dar-lhe a felicidade material, intellectual e moral, cujos elementos lhe faltam, e que v. não sabe nem póde constituir sem mim. Você não sabe lêr nem escrever, você não sabe trabalhar, não sabe prevêr, não sabe economisar. Você não nem a escola rural, nem a biblioteca rural, nem a policia rural, nem o banco rural. Você não tem a granja modelo que lhe ensine os novos processos agricolas e lhe empreste as grandes machinas de trabalho. Você não tem arborisação nos seus montes nem canalisação nos seus rios. Para o dotar com todos esses instrumentos de aperfeiçoamento e de prosperidade, arranjei-lhe eu um systema, que se chama o systema monarchico-representativo, com uma carta, um rei, e doze homens, sendo seis ministros e seis correios a cavallo, um parlamento, composto de duas camaras, uma electiva e outra hereditaria. Quer você ou não quer a civilisação? Se a quer, aceite o meu systema e eleja um deputado que vá á minha camara electiva pedir por boca em seu nome tudo o que você appeteça. Em troca d'este enorme serviço que eu lhe presto ha de você resignar-se a pagar-me um imposto annual, que eu cá mandarei cobrar pelo escrivão de fazenda, e cuja importancia applicarei a regalal-o e a divertil-o summamente com um exercito, uma côrte, um sceptro, varias duzias de repartições publicas, um theatro, um Diario das Camaras, um arsenal, uma cordoaria, uma imprensa, etc., etc.

O Inundado começou desde então a pagar e o estado começou a dispender. Ha perto de cincoenta annos que dura esta troca de serviços. O Inundado, porém, ainda até hoje não pôde obter nem a escola pratica, nem a bibliotheca, nem a granja, nem os novos instrumentos agricolas, nem as grandes machinas para a lavoura a vapor, nem a arborisação, nem os trabalhos hydraulicos no rio.

Um bello dia, um temporal rebenta, as aguas das chuvas, sem florestas que as espongem, sem valas que sangrem a torrente, desabam de chofre no rio, este trasborda por cima de velhos diques em ruina, alaga as povoações, invade as casas, e deixa o Inundado entregue á nudez, á desolação e á fome.

O Inundado pede então a alguem que em seu nome exponha ao Estado a situação em que elle se acha:


Excellentissimo Estado e meu amigo.—Ha cincoenta annos que para aqui me acho, tendo pago sempre a v. ex.'a quantia que combinámos quando v. ex.'a fez comigo o contracto de eu lhe mandar o imposto para Lisboa e de v. ex.'a me mandar para aqui a civilisação. Até á data d'esta nada recebi.

Os deputados que para ahi tenho expedido á custa de muita intriga, de muito dinheiro, de muito copo de vinho e de bastantes bordoadas distribuidas com as listas á bocca da urna, nada remetteram para cá senão discursos cheios de exclamações e de erros de grammatica. Graças aos effeitos de quarenta annos de eloquencia sobre os trabalhos da terra e sobre as obras do rio, este cresceu repentinamente com as ultimas chuvas, invadiu-me a casa e levou-me tudo: moveis, roupas, generos, ferramentas.

Acho-me na derradeira miseria.

Antigamente, antes do contrato que v. ex.'a fez comigo e a que já alludi, o dinheiro que eu ganhava, em vez de o mandar para Lisboa, entregava-o aqui assim ao morgado, ao capitão-mór, e ao convento. Mas o morgado e o capitão-mór, se por um lado me arrancavam a pelle como v. ex.'a hoje faz, por outro lado eram meus amigos. Eram meus compadres, padrinhos dos meus filhos; davam-lhes as brôas e as amendoas pelas festas do anno, esperavam pelas rendas, punham os varapaus argolados dos seus moços e os d'elles proprios ao serviço da nossa causa, quebravam todos os ossos do corpo aos corregedores, aos alcaides, aos portageiros e aos almotacés, quando estes se faziam finos, matavam-nos de quando em quando a creação ou davam-nos chicotadas quando estavam bebados, mas em seu juizo eram bons homens e tinham sempre as portas e os braços abertos para nos acudirem, para nos protegerem e para nos ajudarem. Os frades resavam,—o que, se não nos fazia bem, tambem nos não fazia mal; e esta é a differença que distingue os frades dos seus successores, os deputados: o frade resava, os deputados intrigam. Além d'isso, os frades, se diziam asneiras, diziam as pelo menos em latim, o que sempre acho que lhes custaria mais do que dizel-as em portuguez rasteiro e agallegado como me dizem que os deputados fazem. Finalmente os frades, se de ordinario viviam á nossa custa, tambem nas occasiões de crise nos permittiam viver á custa d'elles, e o caldo da portaria era uma restituição.

Quem até hoje não tem restituido a importancia de um vintem nem em dinheiro, nem em caldo, nem em presentes, nem em favores de nenhuma especie é v. ex.'a, meu nobre e illustre senhor.

Tudo quanto tenho pago a v. ex.'a a titulo de imposto, v. ex.'a o tem gasto na verba recreios: exercito com as suas revistas e as suas paradas; corpo diplomatico; côrte; gratificações aos doze homens que representam o governo trotando sobre as pilecas de uns atraz das tipoias dos outros; governadores civis e secretarios geraes; desembargadores para Gôa e juizes para os Açores; repartições publicas; arsenaes; imprensa nacional; fabrica das cordas; etc.

Portanto, achando-me eu hoje sem real em consequencia de uma desgraça de que v. ex.'a tem a principal culpa, quer-me parecer que não serei desarrazoado pedindo-lhe o favor de me abonar para as minhas necessidades mais urgentes uma pequenissima parte das sommas com que eu ha cincoenta annos tenho estado a custear uma galhofa para a qual nem sequer ao menos me teem convidado

D'este que é

De v. ex.'a

Humilde subdito e servo

O Inundado.

A resposta do Estado a estas argumentações e a estas instancias é de tal modo recreativa, que pareceria inventada, se a sua authenticidade não fosse reconhecida, como é, de todo o mundo.

O Estado respondeu:

Meu caro Inundado.—A tua estimada carta veiu encontrar-me em uma situação bem critica para te poder servir, como desejava.

Acho-me a braços com a resposta ao discurso da corôa, com a apparição dos granjolas e com a segarrega do Barros e Cunha. Falta-me tempo para me occupar de ti.

Pedi a sua magestade a Rainha para te abrir uma subscripção. A rainha acceitou gostosa esta incumbencia. Vieram a Palacio todos os banqueiros e todos os capitalistas da cidade. Nomearam-se commissões de homens e commissões de senhoras para promover bazares de prendas, concertos de amadores e recitas de curiosos em teu beneficio.

Dizes-me que não tens nada de comer. É pouco. Todavia espero que, com alguma economia, possas d'isso mesmo tirar alguns jantares, ainda que simples, com que te alimentes durante este mez e parte do que vem. Sê sobrio. Um bom caldo, um peixe, um assado, um prato de legumes e meia garrafa de vinho é quanto te deve bastar. Como não tens nada, resigna-te um pouco e abstem-te de champagne e de faisões dourados. Perdeste a casa, a mobilia e o fato. Vae para o hotel, enrola-te na tua robe de chambre e não saias por estes dias. Conserva-te no teu quarto, ao fogão, toma grogs e lê romances. Reveste-te de paciencia, já que não podes revestir-te de pano piloto, e espera.

Tudo está preparado e em via de execução para te acudir. Eduardo Coelho e Rio de Carvalho escrevem o hymno e estão no segundo moteto. O nosso Luiz de Campos prepara versos. Prepararam egualmente versos o nosso Thomaz Ribeiro, o nosso Pinheiro Chagas, o nosso Fernando Caldeira, o nosso Forte Gato, e outros.

É tal o movimento poetico e o consumo de rimas que escaceam já os consoantes para rainha; manda-me pelo telegrapho os que ahi tiveres disponiveis e mais proprios do alto estylo do que tainha, morrinha, doninha, carapinha, picoinha, espinha, ventoinha, gallinha e mezinha. Manda tambem para Pia os que poderes obter, menos os que pareça conterem allusões irreverentes como enguia, folia, tosquia, letria, azia, mania e bacia.

Cada um ajusta ao pé o patim da caridade e guina para seu lado em arabescos cheios de phantasia e de elegancia: está-se n'um skating rink de beneficencia para te accudir, meu grande maganão.

Além dos que fazem versos e dos que fazem hymnos, ha sujeitos a quem os teus revezes—tão lastimados elles são!—têem feito espigar mazurkas e rebentar polkas ... de pura dôr.

Entre as modistas tem havido largas discussões para se decidir se a caridade se deve fazer com decote ou com vestido afogado. Para os actos de beneficencia diurna têem-se adoptado geralmente os vestidos de meia caridade, de veludo ou casimira, abotoados. Para os rasgos de beneficencia nocturna as toilettes são sempre de grande-caridade, isto é: decotes quadrados guarnecidos de renda de Bruxellas, toda a cauda, luvas de dez botões, e diamantes.

É indiscriptivel a animação ferverosa que reina em todos os salões para se tratar de ti. Triplicaram as soirées n'este inverno e dança-se todas as noites com o expresso fim de te favorecer. Tocam-se os lanceiros e fazem-se discursos para te obsequiar.

—Elle geme nas vascas da mais horrorosa agonia!... Chaine anglaise, minha senhora!

—Mas nós havemos de arrancal-o das fauces da miseria ... Sirva-me um gelado!

—Arrancal-o-hemos, ainda que seja a ferros!... De fructa ou de leite, minha senhora?

—Salvemol-o vivo ou morto!... De leite!

Ás duas horas ceia, volante ou de bufete, serviço quente e frio, menu de Baltresquí.

Um telegramma que chega:—O Inundado está com agua pela cinta.

Um sujeito fugindo com um perú assado:—Vou levar-lhe uma boia!

Uma menina gritando:

—Não! Não! não o devo consentir! não consentirei jámais que o coração generoso d'aquelle que me deu o ser se sacrifique assim, principalmente por um inundado que só está em perigo—da cinta para baixo! Accudam ao papá! Subtraiam-lhe essa boia! Subtraiam-lh'a, que lhe vae fazer mal: elle já comeu uma!

De rasgos d'estes poderia citar-te centenas.

Restos de velhas edições de livros, de polkas, de almanacks, que o consumo do publico se recusou a tragar e que jaziam desde tempos remotos nos archivos de familia dos respectivos autores, acabam de te ser coasagrados e cáem sobre as subscripções abertas para te proteger como bençãos dos genios incomprehendidos e olvidados.

A mesma infancia estudiosa abre nas aulas de instrucção primaria subscripções para te acudir, e meninos, que ainda não conseguiram penetrar no quadro de honra como sufficientemente fortes em leitura, figuram nas resenhas dos jornaes como bemfeitores dos homens.

Não sei realmente, querido Inundado, como poderás agradecer-nos tão reiterados e tão grandes beneficios! Como não sabes fazer mais nada, espero ao menos quo rezes por nós. Compenetra-te bem de quanto nos deves, e não te esqueças nunca, em primeiro logar de nos pagar as decimas, e em segumdo de nos encommendares a Deus em todas as tuas orações de manhã e de tarde para que o Altissimo vele constantemente pelos nossos preciosos e divertidos dias e nos dilate a vida pelos mais longos annos, como desejas e has mister.

Não te assustes, por quem és, com esse passageiro incidente da agua pela cinta. Mantem-te em uma attitude serena e firme. As cheias bolindo-se com ellas ainda enchem mais. Ao passo que, abandonadas a si mesmas, as cheias aborrecem-se e esvasiam. Por tanto deixa obrar a natureza. Logo que o tempo enxugue e os terrenos sequem, socega que irei ver-te. Podes desde já preparar a foguetada, o vivorio, e o publico regosijo, para receberes quem é devéras

Teu amo e protector

O Estado.

P. S. O bom amigo Luiz de Campos recommenda-se-te muito e manda perguntar-te como gostas mais da caridade, se escripta á latina com c a, ou á grega com c h a.


Diz-se geralmente—e parece-nos util fixar este boato como um symptoma da epoca—que sua magestade a rainha fôra aconselhada e guiada em todos os tramites da sua intervenção a favor do Inundado por um personagem já hoje eminentemente poderoso, mas ao qual os recentes conselhos a sua magestade vão dar um novo grau de importancia culminante e unica na governação publica. Será perfeitamente legitima essa importancia. Se effectivamente houve um homem sufficientemente sagaz para se conservar na sombra e para suggerir a sua magestade a rainha a idéa profunda de apparecer ella, unica e exclusivamente, a debellar unma catastrophe publica, esse homem fez aos partidos conservadores em Portugal um servigo incomparavel e deu uma prova de pericia e de habilidade que nunca se egualou e que se não póde exceder.

Como se sabe, os partidos conservadores não têem idéas, não podem e não devem tel-as; os que por excepção as produzem commettem um erro fatal e são victimas do seu proprio acto. Em todo o statu quo toda a idéa nova é um rombo. Quem no poder tem idéas, afunde-o. Nos regimens conservadores, como o que vigora em Portugal desde muitos annos, as idéas são erupções revolucionarias extranhas á acção governativa. A missão dos que governam não é lançar na circulação essas idéas, mas sim e unicamente vigiar o systema, como se vigia a couraça de um monitor em batalha naval, e sempre que uma idéa penetre, rolhar o furo e disciplinar em seguida o elemento novo introduzido a bordo pelo projectil inimigo.

Aos governos conservadores não se pedem por conseguinte idéas: pedem-se expedientes. Expedientes para quê? Para conservar. Como? Por todos os meios que produzam este resultado:—a consolidação do que está.

É de dentro d'esta theoria, que encerra toda a sciencia de governar, que nós dizemos: os conselhos a sua magestade a rainha, se alguem effectivamente lh'os deu (cremos que sim e diremos já porque) são o acto mais sabio, porque esse acto faz recair no assumpto o expediente mais adequado e mais proficuo.

Se o governo procurasse directamente estudar e resolver o problema da inundação, que succederia? A opposição contraditava-o. Na imprensa e na camara os partidos dissidentes discutiriam as medidas ministeriaes, controvertel-as-hiam, impugnal-as-hiam com argumentos, com sarcasmos, com insultos. Quem sabe se o governo assim batido tenazmente de bombordo e estibordo não acabaria por metter agua, iniciando um simulacro de alguma coisa parecida ainda que remotamente, com uma idéa?!

Que aconteceu, porém, em vez d'isso?

Sua magestade a rainha, disse-se, toma a iniciativa de todos os soccorros ás victimas da inundação. E sobre esta noticia publicada em grandes letras nos jornaes da manhã, o governo foi para a camara, cruzou os braços e esperou corajosamente que a representação nacional se manifestasse. Então a opposição em peso, composta dos srs. Barros e Cunha, Osorio de Vasconcellos e Pinheiro Chagas, pediu a palavra pela bocca dos seus oradores.

O sr. Osorio de Vasconcellos disse:—«Partiu de alto a iniciativa; partiu de uma illustre senhora, de sua magestade a rainha. Pois congratulemo-nos com o paiz inteiro; congratulemo-nos com este sentimento homogeneo de caridade manifestado por todos os cidadãos sem distincção de classe e que veio em allivio e amparo da miseria, que é geral (apoiados) do soffrimento que é grande; das amarguras que são immensas ... O nosso paiz foi sempre reconhecido pelos impulsos da caridade ... Se porventura do alto do Golgotha o Divino Mestre, etc., etc.»

O sr. Barros e Cunha:—«Mando para a mesa a seguinte proposta que espero seja desde já votada por acclamação: A camara prestando a caridosa iniciativa de que sua magestade a rainha houve por bem usar em beneficio das victimas das inundações a homenagem que lhe deve em nome do povo que representa, resolve que este voto seja lançado na acta das suas sessões, e que uma grande deputação deponha aos pés da augusta princeza o tributo do seu reconhecimento.»

O sr. Pinheiro Chagas, (fallando comsigo mesmo)—«Trago tambem aqui uma proposta da mensagem a sua magestade, feita com tanto patriotismo como a de Barros e Cunha e com mais grammatica. Visto, porém, que a camara approvou a d'elle, vou pôr a minha em verso e levo-a para o Gymnasio. Tenho concluido.»

E na camara dos srs. deputados, onde o governo poderia ter sido violentamente e perigosamente accusado pela sua cumplicidade nos effeitos da inundação, os unicos tres deputados da opposição que n'este dia se achavam na sala não tiveram voz senão para louvar a caridade, para citar o Golgotha e para convidar uma grande commissão a ir depôr nos degraus do solio os testemunhos mais humildes do reconhecimento popular!

A imprensa toda, unanimemente, confessou que sua magestade a rainha era indubitavelmente um anjo, ao qual todos os noticiaristas deviam permittir-se a liberdade de mexer um pouco nas azas em signal de gratidão.

Depois da imprensa e da camara dos deputados vieram as corporações todas com o seu obulo e o seu communicado aos jornaes. Os soldados, os empregados das repartições publicas, os carpinteiros, os serralheiros, os cocheiros, etc. collocaram a sua prosa apologetica sobre os voadouros angelicaes da santa princeza: versos, hymnos, valsas brilhantes, speechs, mensagens, missivas particulares, desenhos á penna, vivas, bordados a cabello e a missanga, hurrahs explosivos, tropheus emblematicos e pratos montados com figuras allegoricas, tudo concorreu n'esta immensa apotheose.

E, se, depois de tudo isto, o dique de Vallada ficou no estado em que anteriormente estava, o throno dos nossos reis, pelo menos, acha-se mais firme que nunca no amor dos novos.

Confessamos, pois, em vista de todos os factos, que o expediente de resolver a crise aconselhando sua magestade a rainha a intervir pela caridada revela o politico mais habil, o homem de estado mais profundo que o paiz podia desejar na sua situação presente.


O que nos leva a admittir que sua magestade foi aconselhada por um promotor das conveniencias politicas e não guiada por impulsos expontaneos é o exame das pequenas circumstancias que acompanharam a intervenção da Corôa e nas quaes se revela a mão burocratica do conselheiro de estado, mais habituado a manejar algarismos e a redigir programmas do que a imitar a graça engenhosa, a poetica delicadeza, o fino primor, o tacto subtil, exclusivamente feminino, que assignala os actos nativos de um coração de mulher. N'esses actos, quando legitimos e authenticos, ha uma especie de vinco mimoso, de perfume ideal, que os laboratorios officiaes não imitam senão por meio de falsificações baratas e reles.

Por este lado, que já não é o lado politico mas sim o lado esthetico, o lado artistico, por este lado o vosso anjo da caridade, o anjo que vós, meus senhores, puzestes no vosso andor e passeastes em procissão de popularidade pelo paiz inteiro, tem os defeitos das ingenuas nas companhias de amadores dramaticos em que só representam homens: tem os pés chatos, a cinta grossa, e uma rouca voz de falsete, fingida e miseravel.

Por baixo das candidas vestes do vosso anjo percebem-se os contornos grossos e rijos do um forte modelo masculino. Reparando-se um pouco na alva pennugem immaculada das brancas azas em que o sr. Luiz de Campos collocou os seus inspirados versos, reconhece-se com evidencia que essas azas prendem por articulações de couro a espaduas de porta-machado.

Sua magestade a rainha, uma mulher, uma senhora, uma princeza, se vós a não bouvesseis violentado com os vossos conselhos, ella de per si só, teria representado a caridade por modo muito diverso. Guiada simplesmente pelo seu delicado instincto de mulher e pela sua perfeita educação de senhora, ella saberia ser util sem ser espectaculosa; far-se-hia amar sem se deixar applaudir; chegaria á dedicação absoluta de toda a sua alma pelos desgraçados e pelos humildes, sem passar por cima da arêa encarnada dos triumpos de rua, sem transpôr os arcos de murta das glorias de phylarmonica, sem se vulgarisar, finalmente, até o ponto de animar os poetas e os jornalistas a fazerem-lhe as mesmas réclames com que se lisongeam as actrizes, tirando imagens sentimentaes e sonoras do perfume dos seus cabellos, das pregas dos seus vestidos, da flexibilidade da sua estatura, etc. Houve um folhetinista que chegou pelo desenfreamento do lyrismo a comparar sua magestade—a Magdalena!

Nós protestamos contra similhantes invasões do enthusiasmo nos dominios da dignidade pessoal, e negamos á rhetorica monarchica o direito de lançar ás faces de uma digna mulher que passa levando o seu sceptro pela mão, as mesmas finesas que as bailarinas bonitas mandaram na vespera deitar fora com as camelias murchas.

Este abuso iniquo e grosseiro fostes vós, conselheiros habeis nos manejos politicos mas imperitos nas questões do gosto,—que os promovestes e auctorisastes.

Vós começastes por abusar da vossa influencia no espirito da soberana prefixando a quantia de um conto de reis como verba de subscripção. Quando a miseria é geral, quando as amarguras são immensas, como disse o proprio sr. Osorio de Vasconcellos, quando dos poderes publicos não baixa uma só medida para acudir a tanto infortunio, quando todo o remedio para tamanhos males se confia da liberalidade de uma rainha, como quereis vós que se acredite que essa rainha, em uma tal conjunctura, se tenha posto a contar pelos seus dedos magnanimos até achar o numero de libras que compense a miseria geral e a amargura immensa? Por que vibrações de piedade, por que processo de sentimento, por que logica de consternação, por que inducção de pezares, quereis vós que o alanceado coração de sua magestade tenha chegado de dor em dor, de lagrima em lagrima, á conta, que só vós podieis ter feito, de duzentas e vinte e duas libras em oiro e dez tostões em prata? Esta conta deploravel é de um estalajadeiro ou de um cambista. Uma princeza, não tendo aprendido pelas necessidades proprias qual é o valor do dinheiro, não sabe contal-o para as necessidades dos outros. Se vós lhe tivesseis dito simplesmente que para acudir a uma catastrophe nacional não havia nem uma só disposição da sciencia ou da lei e que todo o remedio para essa desgraça publica se esperava da influencia regia, a rainha, entregue ao impulso instinctivo do seu coração, não deixaria de contribuir para esse fim de um modo illimitado, sacrificando-se inteiramente e incondicionalmente á fatalidade da fome como teria de se sacrificar á fatalidade da guerra.

Depois não vos occorreu que tudo quanto se dispendesse em pompas se cerceava em soccorros no producto dos espectaculos em beneficio das victimas da inundação. Sendo esses espectaculos dirigidos por uma senhora esqueceu-vos um ponto essencial que a toda a mulher occorreria: a prescripção da toilette. Como sois homens publicos e viveis permanentemente na ostentação e no apparato vós não podeis conceber quanto ha de inopportuno, de indelicado, de offensivo do bom gosto no aspecto de senhoras que se reunem para um fim de caridade cobertas de joias como para um certame de luxo. Se fosse effectivamente uma senhora quem tivesse a direcção d'esses actos de phylantropia, as joias teriam sido abolidas, o preço das luvas de baile teria sido applicado á subscripção para os pobres, e nas mãos nuas um annel de ferro mandado fazer pela commissão ornaria toda a pessoa que quizesse acceital-o em troca de um annel de oiro offerecido aos inundados. Em vez dos ramilhetes, de 15 ou 20 libras, offertados aos actores, aos musicos e aos poetas, uma mulher economisaria em favor dos pobres essa luxuosa despesa e manifestaria o seu agradecimento por um modo extremamente mais economico e mais expressivo como seria por exemplo, o offerecimento de uma pequena photographia de sua magestade com uma simples dedicatoria autographa.


Além da commissão de soccorros presidida nominalmente por sua magestade a rainha a unica corporação que em Portugal se occupou do problema das inundações foi a de suas excellencias os srs. bispos.

Apenas constou que alguns dos nossos rios tinham trasbordado, em todos os bispados do reino se fizeram preces implorando da divina misericordia que os rios voltassem aos seus leitos.

Este recurso piedoso lembra-nos que seria vantajoso para o fim de pôr em harmonia a meteorologia e a religião, crear barometros especiaes dedicados ás nossas circumscripções ecclesiasticas.

Estes barometros, que os srs. parochos collocariam nas sacristias ao lado das folhinhas em que se prescreve a côr das vestimentas, teriam as indicações precisas para constituirem um formulario perpetuo sem o incommodo da intervenção dos srs. bispos por via das suas pastoraes. Bastaria que os aneroides ad usum ecclesiae fossem um pouco mais desenvolvidos na indicação dos resultados da pressão atmospherica sobre os aspectos do tempo. Por exemplo:—78, bom tempo fixo, faça preces a pedir chuva;—74 grande chuva, faça preces a pedir sol;—73 tempestade, saia procissão e faça preces a pedir bom tempo.

N'este caso os observatorios astronomicos e meteorologicos poderão ser substituidos com vantagem pelas cabaças rotatorias dos Kalmuks ou pelos moinhos do Tibet. As cabaças, cheias de orações e agitadas polo vento, produzem a adoração perenne. Os moinhos são uma fabrica mecanica de preces continuas, de moagens devotas.

É preciso que n'este ponto nos decidamos por uma das duas:—pela meteorologia ou pela prece. Se os estados atmosphericos se determinam nos templos é absolutamente inutil estudal-os nos observatorios. As duas coisas juntas refutam-se e destroem-se. Ou bem cabeças que pensem ou bem cabaças que rodem. Decidam!


O que escreve estas linhas, tendo sahido do Porto no dia 8 de janeiro, foi surprehendido pela tempestade e embargado pelas cheias, não podendo chegar a Lisboa senão oito dias depois d'aquelle em que partira do Porto. Foram seus companheiros de viagem alguns mancebos—quinze ou vinte—que emigravam para o Brasil e vinham do Minho tomar em Lisboa um dos paquetes da Mala Ingleza. Nas primeiras estações proximas de Gaya esses rapazes, descorados, surprehendidos, vestidos de cotim, tendo pendente do pescoço por um cordel a chave da caixa, apeavam e abraçavam nas gares os seus parentes que ahi tinham ido abençoal-os, dar-lhes os ultimos conselhos e as ultimas lagrimas. Havia um grande alarido de mulheres que choravam. Vozes soluçadas diziam: «Adeus! adeus talvez para sempre!» Abraços tenazes parecia não poderem deslaçar-se dos derradeiros abraços. Tangia a sineta para largar a locomotiva. Passageiros alegres, indifferentes, debruçados das portinholas, intervinham nos excessos da ternura, nas crises da saudade, com palavras recreativas, com commentarios facetos, com exclamações punidoras. Um aldeão já velho, magro, alto, beijava um pequeno emigrante, talvez seu neto, que se lhe abraçára ao pescoço; um jocoso soldado, trazendo a fardeta desabotoada e uma borracha ao tiracollo, gritou-lhe da carroagem:—«Ó labrego, larga o rapaz!» e accrescentou sentenciosamente este conceito:—«Beijos de homens são coices de burro!» O velho teve a coragem de sorrir com uma visagem dolorosa, de quem fingia resignar-se, e mettendo o rapaz na carroagem, á pressa, em voz baixa, envergonhada: «Deus Nosso Senhor te abençôe! Deus Nosso Senhor te abençôe e te dê boa sorte!»

O comboyo batido pelas rajadas do vento e pelas torrentes da chuva não pôde, em consequencia dos rombos da estrada, passar de Pombal, onde chegou ás duas horas da noite. Os pequenos aldeões, trespassados de frio e talvez de fome, com as golas das jaquetas levantadas, os pés molhados nas suas chinelas de coiro cru, as mãos nas algibeiras das calças, adormeceram nas carroagens da terceira classe ou nas bancadas da estação. O comboyo demorou-se ahi tres ou quatro dias. Os emigrados, perdidos no meio da indifferença, desappareceram. Quando nós, no primeiro dia em que a estrada se tornou praticavel, proseguimos de Coimbra, onde ficaramos, até Santarem, não encontramos nenhum dos nossos pequenos companheiros. É provavel que tivessem continuado a pé, sob a tempestade, até chegarem a Lisboa, ao encontro da Mala Real Ingleza. Esses pequenos, obscuros, miseraveis passageiros, troçados, escarnecidos na sua dôr, cobertos de lagrimas e de lama nas suas esperanças de fortuna, eram os embriões da riqueza portugueza, eram o brasileiro ao deixar a patria.

Outro companheiro d'esta nossa viagem atravez das inundações era um velho de sessenta e cinco a setenta annos. Traz apertado ao queixo, por baixo do chapeu, um lenço de seda e ás costas uma manta couvre-pieds, que elle abrocha no peito com uns fechos de prata e que lhe cae por traz até os calcanhares. Esta manta, de pano baetão, tem estampada a figura de um tigre, o que dá ao nosso companheiro, visto pelas costas, com o seu lenço na cabeça, os seus sócos, o seu chapeu de chuva, o aspecto de um Attila domesticado e doente. Viaja em companhia de uma sua prima, mais velha que elle, e de um pão de ló mais volumoso do que os dois primos juntos.

Este sujeito conferiu-nos a honra de nos dar a provar o seu pão de ló e de nos contar a sua historia. Vinha de Felgueiras, terra da sua naturalidade, e trazia o pão de ló, que as chuvas avariaram, para um seu amigo, o sr. Azevedo, pharmaceutico na rua larga de S. Roque. Fôra em creança para o Brasil, reunira á força de trabalho e de economia uma modesta fortuna. Já na velhice liquidara todo o seu capital, voltara para Felgueiras, reedificara a pequena casa em que tinham morrido seus paes, adquirira algumas terras, empregara o seu capital na fundação de uma lavoura; comprara juntas de bois, assoldadara moços, mettera operarios e jornaleiros, plantara milhares de carvalhos e de castanheiros. As potencias eleitoraes de Felgueiras convidaram-o em nome de dois ou tres partidos do sitio a intervir com a sua influencia na politica local. Elle recusara-se. Queria acabar em paz os seus dias, contentando-se com a modesta gloria de restituir á terra em que nascera toda a sua fortuna convertida na verdadeira e unica riqueza nacional—a fertilisação do solo e o desenvolvimento do trabalho. Desde esse dia os partidos confederados de Felgueiras começaram a hostilisal-o como o inimigo commum de todos os partidos, o qual inimigo é em toda a parte—a imparcialidade. Enredaram-o em pequenas intrigas, empeceram-o, desgostaram-o em todos os seus projectos, em todas as suas aspirações. Elle, como velho trabalhador macerado, resistira. Um golpe inesperado acabara, porém, de o ferir no coração: dias antes da nossa viagem, na vespera do Natal, uma chusma de gatunos, arregimentados para esse fim, invadira a sua nascente propriedade e destruira inteiramente todas as suas arvores. Elle querelára, e vinha para Lisboa esperar que se lhe fizesse justiça. «Exijo—dizia elle—que me paguem indemnisação na medida da perda que esta offensa representa para um velho como eu, a quem pouco tempo já resta para esperar que as arvores cresçam. Venho para Lisboa até que os tribunaes decidam a minha sorte. Se não me fizerem justiça, irei fallar com o rei, e dir-lhe-hei: Meu senhor! Não tendo achado na patria meios de enriquecer, fui procural-os n'um paiz extranho. De regresso a Portugal no ultimo quartel da vida, repatriando-me com todo o dinheiro que pude adquirir e que vinha dispender entre os meus compatriotas, acho-me aqui vilipendiado, roubado e escarnecido. Lavrador por vocação e por velho geito adquirido, parto hoje pelo caminho de ferro para França, e plantarei a minha horta n'essa terra estimavel, onde os homens não teem rei nem os campos teem muros mas onde a nação da justiça baixou já dos dominios da intelligencia até penetrar nos costumes e ter a sua encarnação nas leis. Sirva-se portanto vossa magestade abater o meu nome no seu rol e contar com um subdito de menos. 1

1 Textual.

Este homem representava a ultima faze da vida em que iam entrar os pequenos emigrados que perdemos de vista em Pombal. Aquelles eram o brasileiro ao partir; este era o brasileiro ao chegar.

Entre aquella infancia despresada e esta velhice desprotegida, está o portuguez residindo e trabalhando no Brasil. Lá, esquecido do que passou na infancia, despreoccupado do que o espera na velhice, o portuguez desenvolve, como uma enfermidade nostalgica, o mais ardente patriotismo. Nas suas allucinações de exilado a patria apparece-lhe deslumbrante de todos os prestigios com que a saudade e o amor aureolam os seus idolos. Assim como elle proprio se aperfeiçôa em cada dia pelo trabalho, imagina que a patria se desenvolve proporcionalmente pelo progresso, e mede pelo esforço d'elle, muitas vezes sublime e heroico, o empenho com que estão concorrendo para a civilisação no paiz os seus homens de estado, os seus politicos, os seus industriaes, os seus escriptores e os seus artistas. Á similhança da colonia de que elle faz parte, suppõe a patria um grande todo confederado e harmonico com interesses solidarios, com intuitos communs, com fins determinados, tendo ideias, tendo principios, tendo sentimentos, sendo capaz de paixões profundas, de dedicações fortes, de sacrificios illimitados. E tem pela patria os mesmos affectos e as mesmas dedicações de que a suppõe susceptivel.

Assim é que, chegando ao Rio de Janeiro a noticia das nossas inundações a colonia portugueza principia a mandar para a metropole milhares de libras por cada paquete.

Os rios cahiram nos respectivos alveos, as terras enxugaram, as sementeiras começam a crescer, a lembrança da catastrophe principia a dissipar-se, e o dinheiro das subscripções do Brasil continua a chegar. Dentro de pouco tempo a commissão portugueza de soccorros aos inundados não saberá o destino que ha de dar ao dinheiro que amontôa.

As crises do trabalho subsequentes ás inundações são transitorias e tão rapidas como as proprias inundações. Desde que a inundação cessa, o trabalho restabelece-se nas suas condições normaes. Os estragos causados pelas cheias não affectam os trabalhadores e os pobres, affectam unicamente os proprietarios. Ora estes poderiam acceitar um emprestimo proposto pelo governo, mas não podem receber um donativo feito pela caridade. Portanto, desde que o governo não acudiu aos pobres em tempo opportuno nem auxiliou os proprietarios pelo meio conveniente, todo o dinheiro accumulado pela caridade é inutil a todos: aos pobres porque não tem a opportunidade do tempo em quê, e aos ricos porque não tem a opportunidade do modo como.

É por estas rasões que suppomos fazer um serviço á commissão de soccorros suggerindo-lhe um meio de applicar uma parte das sommas com que se acha a braços. Este meio é: dar em nome do paiz uma satisfação de honra aos portuguezes residentes no Brasil—1.° indemnisando os emigrantes minhotos sahidos do Porto nos comboyos dos dias 7 e 8 de janeiro pelos prejuizos provenientes de não haverem chegado a Lisboa a tempo de embarcarem nos paquetes de 8 e 10 do mesmo mez; 2.° fundando em Felgueiras uma policia rural que empeça a população indigena de destruir as propriedades fundadas pelos emigrados que chegam, por isso que na provincia do Minho, de que principalmente procedem os portuguezes residentes no Brasil, os unicos estragos recentes de que temos noticia e que acima referimos, procedem, não das inundações dos rios, mas da indisciplina dos homens.


Para servir de complemento á historia das inundações portuguezas, eis o que succedeu no Minho, junto de Villa Nova de Famalicão, com um pequeno riacho obscuro que ali passa.

Havia-se ultimamente deliberado dotar a alludida corrente com o adminiculo de uma ponte. Como esta ponte, além de uma obra fluvial, era tambem um viaducto entre duas collinas e um atalho entre dois caminhos, todos os grandes proprietarios da região em que passava o ribeiro pretenderam ter a ponte á sua respectiva porta. N'este sentido ferveram os pedidos, os empenhos, as intrigas, as ameaças, as pressões dos votos, todos os meios finalmente que em Portugal movem e removem a tendencia das idéas, a direcção dos principios, os planos das estradas e os projectos das pontes.

A obra fez-se finalmente sob a acção d'essas influencias e, como é costume, em satisfação do empenho mais preponderante. Era no verão, e tinha seccado o ribeiro. Vieram n'este inverno os grandes temporaes e as copiosas chuvas, o ribeiro encheu, trasbordou, correu pelos campos e pelos caminhos, passou por toda a parte, sómente não passou—por baixo da ponte!

Enviamos os nossos parabens aos habitantes de Famalicão. A sua ponte é verdade que não representa completamente uma ponte, mas representa um symbolo monumental, que os habitantes não procurarão para atravessar o ribeiro, mas que todos os extrangeiros, todos os historiadores e todos os philosophos irão ver com admiração e respeito para se compenetrarem do legitimo espirito da politica e da administração na presente phase da civilisação portugueza.


Contam os periodicos que no dia de Natal sua magestade el-rei se dignára de brindar magnanimamente os soldados da sua real guarda, offerecendo-lhes em Palacio um banquete composto das iguarias mais finas e mais preciosas, taes como sopa de massa, boi cosido com chouriço, carne guisada com batatas e laranjas.

No momento em que os briosos filhos de Marte, coroados com os louros da guerra e com as rosas da paz, libavam as taças da victoria, nas quaes, a um gesto da regia munificencia o doutor roxo se repartira e prodigalisára na razão de dois decilitros por praça, o sr. capitão da companhia, penetrando na sala do festim e impondo silencio aos dithyrambos, ás canções bachicas e aos hymnos bellicos que o aspecto tão anachreontico quanto marcial da carne guisada com batatas jámais deixa de influir em mentes inflammadas e em animos generosos, proclamou d'esta arte:

«Soldados! O principe, cujo pennacho branco vós tendes visto constantemente á vossa frente, conduzindo-nos ao fogo e guiando-vos ás victorias, o principe cuja espada invencivel vós tendes visto sempre no meio de vós, já relampagueando intemerata ao sol das batalhas, já embebendo-se sedenta no sangue inimigo, o principe, generoso e magnanimo, n'este dia consagrado ao ephemero repouso dos acampamentos, convoca a este festim guerreiro os seus amados companheiros d'armas. Uma coisa de que sua real magestade jámais se póde esquecer é a maneira como vos tem visto pelejar! Porque é mister dizer-vol-o: no maior ardor dos combates, no proprio momento em que mais absorto elle parece no afan de retalhar em postas os exercitos inimigos, nunca o principe vos perdeu de seu real olho!

«Tudo elle viu, e nada do que obrastes lhe é occulto.

«Viu-vos caminhar ávante para as hostes contrarias! Viu-vos quando, no meio do estrondo e do fumo das descargas, tomastes as bandeiras e os estandartes do outro campo! Viu-vos quando á chegada fatal da maldita cavallaria inimiga, formastes quadrado e a esperastes impavidamente e a pé firme, no posto da honra! Viu-vos depois cair a um por um feridos pelo peito como heroes! Viu-vos morder o pó! Viu-vos finalmente exhalar o ultimo suspiro, a vós todos, desde o primeiro ao ultimo, até nada mais se ver no logar onde estaveis senão um monte de cadaveres abraçados a um monte de bandeiras! Foi ainda o principe, piedoso e grande, quem, percorrendo o campo no dia seguinte á batalha, recolheu e enfrascou as vossas cinzas, restituindo-as elle proprio ás vossas viuvas, e dizendo-lhes entre suspiros e lagrimas: «Em cada um d'esses frascos, marcados com o numero da praça e da companhia, encontrareis uma pitada de tudo quanto vos resta d'esse punhado de bravos!»

«Foi depois de todas essas provações—tão arduas!—que sua magestade deliberou reunir-vos n'este banquete sumptuoso.

«Soldados! em testemunho de agradecimento a uma tão manifesta prova de consideração e de amor, peço-vos que ergaes as vossas taças, de dois decilitros cada, e que, antes de haurirdes o phalerno de Torres que ellas encerram, me acompanheis nos vivas que passo a entoar e com os quaes dou por finda esta allocução marcial. Viva sua magestade el-rei! Viva a real familia! Viva a carta constitucional da monarchia!»

Nenhum soldado respondeu em discurso, como pede a etiqueta dos toasts, porque nenhum dispunha da fortaleza cerebral necessaria para criticar os seus proprios sentimentos, para os discernir e para os coordenar em palavras. De modo que se contentaram em dar vivas e beber, coçando nas cabeças essa especie de comichão produzida por todo o rude encontro de idéas contradictorias e confusas.

Expressos sob a fórma litteraria, os sentimentos que o soldado revelou sob a fórma de coceira dariam o seguinte discurso:

«Capitão! Ha alguns annos que eu fui agarrado á força na minha terra para vir para a tropa. A minha primeira idéa foi livrar-me comendo um dedo. Affiançaram-me, porém, que poderia egualmente livrar-me dizendo que tinha queixa de peito. Assim o disse, mas não me acreditaram, e cá fiquei ás ordens.

«Desde que jurei bandeiras é raro o dia em que o capitão, o major, o tenente-coronel ou o proprio commandante me não fallam do meu ardor mavorcio, da minha firme e tremenda attitude diante do inimigo e dos meus louros cegados com a espada nos campos da batalha.

«Eu devo dizer ao capitão, com toda a franqueza, que desde que estou na militança nunca tive ardôr mavorcio nem d'outra qualquer especie, a não ser que o capitão se refira ao que senti nas orelhas quando na recruta me puchava por ellas o sargento instructor. Se é d'este ardôr que se trata, tive-o, e se o sargento o não teve ainda, ha de tel-o tambem se, quando eu largar a farda, elle continuar a conservar as orelhas, que eu, como livre paisano, lhe hei de então estender conscienciosamente desde a porta do quartel até á entrada da minha minha freguezia.

«Emquanto ao inimigo declaro que o não conheço, e muito obrigado ficaria ao capitão se tivesse a bondade de m'o mostrar para que eu podesse desenferrujar estas inuteis pernas applicando-lhe sem perigo de offender a disciplina alguns dos pontapés que em observancia da mesma disciplina não tenho até hoje feito senão receber.

«Quem é o inimigo? Não farão favor de me responder:—quem é o inimigo?

«Julguei algum tempo que fosse um sujeito de casaco côr de pinhão, de gola levantada para cima, que ás vezes se mettia commigo nas guardas. Tinha resolvido atacal-o, quando vim a saber que era um simples curioso das artes da guerra.

«Vejo todavia que não fazemos mais do que preparar-nos constantemente para resistir ao inimigo, o qual parece não implicar com mais ninguem senão connosco. Pelo menos ninguem o teme senão a tropa.

«Ha familias, compostas unicamente de mulheres, que dormem sósinhas nas suas casas sem medo a ninguem; no quartel, cheio de homens, cada um dos quaes tem uma espingarda e uma bayoneta, é preciso pôr sentinellas a todas as portas, velam uns emquanto os outros dormem, e ha sempre gente armada até aos dentes, com os olhos arregalados nas trevas da noite, para que não nos surprehenda o inimigo!—Que é sempre com o que lhe dão:—com o inimigo!

«Emquanto aos loiros segados nos campos das batalhas cumpre-me egualmente fazer sentir ao capitão que desde que estou no exercito ainda não seguei.

«A minha vida tem consistido unica e exclusivamente em deitar todas as manhãs umas correias ás costas e em pôr uma tocha ao hombro para marchar ao som da musica ou para passear de sentinella á porta dos edificios publicos.

«Pelo que diz respeito ao banquete opiparo para que sua real magestade me convidou, agradeço-o muito, confesso-me profundamente sensivel aos attractivos da real carne guizada e das fulgidas batatas da corôa. Todavia não posso esconder que o que principalmente me lisongeava seria que me fizessem a especial mercê de me mandar embora.

«Apezar da excellencia das iguarias preciosas de que consta este banquete olympico, sou forçado a dizer que por mais de uma vez a esta meza o bocado se me tem enfardelado na bocca sem querer ir para baixo. Porque? Porque me sobe do coração e me aperta a guela a lembrança da minha aldeia, da alegre festa do Natal, n'este dia, ao pé do lar, no casal da minha velha ... Chamo-lhe eu a minha velha! O capitão faz idéa ... Fallo-lhe da minha mãe.

«Hontem matava ella o porco, ou antes era eu que lh'o matava. Hoje tinhamos lombo assado á fogueira do lar, n'um espeto de loureiro. Que lombo aquelle, capitão! Com que vontade que eu principiava a jantar outra vez se fosse d'esse lombo que me déssem! E depois não era o rei que me convidava a mim,—o capitão ha de comprehender o effeito moral d'esta differença—era eu que poderia convidar o rei a comer no meu casal, d'aquillo que era meu, que eu proprio ganhara ou ajudara a ganhar com o meu trabalho, com a minha força, com o meu prestimo! Na minha aldeia eu era, mais ou menos, um dono de casa, um trabalhador, um cidadão, um homem. E dentro do meu quinteiro, como o meu pequeno rebanho e com o meu cajado, o rei era eu!

«Aqui, que diabo! Aqui, francamente, capitão, que raio de diabo!

«Aqui, que sou eu? Um monte de cisco, um molho de palha, um estafermo, um espantalho de botões de ouro fingido, de espingarda descarregada e de patrona vasia, para metter medo a outro estafermo, a outro espantalho, a outra abantesma de espingarda egualmente descarregada e de patrona egualmente vasia, o qual outro se chama o inimigo!

«Dizem qae tambem sirvo para—manter a ordem. A ordem que eu mantenho é outra historia da carocha como a do inimigo que eu combato.

«Na minha aldeia, onde nunca de memoria de homem appareceu o bico de uma bayoneta, todos vivem em harmonia e em paz. Aqui, onde a ordem é mantida por dez ou doze regimentos, ha desordens todos os dias e todos os annos ha revoltas. Revoltas de quem, meu capitão?—Dos sargentos!

«Ora, se eu não sirvo para nada, se o inimigo, sendo outro que tal como eu, não serve tambem para coisa nenhuma, não acha o capitão, que o mais justo seria mandar-nos para nossas casas a ambos—ao inimigo e a mim?

«Se como o capitão affirma, el-rei é meu amigo e pretende obsequiar-me, que sua real magestade cesse de esbanjar-se nos acepipes com que me cumula! Que me permitta estar na minha casa, como sua magestade está na d'elle com sua excellentissima esposa e com os seus interessantes filhos! Eu lhe protesto que não só dispensarei todos os seus favores, mas que poderei ainda fazer-lhe alguns, e me tornarei um cidadão independente, serviçal e util, em vez de me desfallecer para aqui, dentro d'este uniforme, coberto por esta barretina, inundado de ociosidade, comido de tedio, 2 de nojo de mim mesmo, de todas as más molestias da alma e do corpo, perdido para o bem dos outros e não prognosticando grande coisa senão para o mal de mim mesmo. Nada mais accrescento porque está a cair o quarto e tenho de me ir deitar ao inimigo,—passeiando de sentinella á porta de palacio.»

2 No dia em que estas linhas foram escriptas suicidavam-se dois soldados, um de infanteria n.° 1, em Belem, outro de caçadores n.° 10, em Setubal.

Depois de coçado este discurso na cabeça dos soldados, terminou o banquete, retirando-se todos os convivas profundamente penhorados pela excellencia do serviço e pelas delicadas maneiras do sr. capitão.


Referem os jornaes que a Academia Real das Sciencias celebrará no mez de março do futuro anno de 1879 a festa do primeiro centenario da sua fundação.

A primeira das rasões porque folgamos com esta noticia e que se inicia em Portugal uma tendencia nova no espirito das sociedades modernas:—a tendencia a reformar o calendario, substituindo as ephemerides ecclesiasticas pelas taboas historicas.

Essa tendencia revela um progresso.

A igreja tem, certamente, datas memoraveis que a civilisação ha de manter entre as grandes epocas da humanidade. Mas essas datas, por mais gloriosas que sejam, não bastam para prehencher os fastos da humanidade e para pautar o culto devido á lembrança dos grandes factos e á memoria dos grandes homens.

Se a igreja tem os seus santos, os seus martyres, os seus doutores, a liberdade, a sciencia, o trabalho, a arte, teem tambem os seus, e a gratidão humana não deve menos aos segundos do que aos primeiros. O dia de S. Bernardino, a 20 de maio, é tambem o dia de Christovão Colombo. O dia de S. Luciano, a 8 de janeiro, é egualmente o dia Galileu. O dia 5 de abril é o de Santo Adriano e é o de Danton e de Camille Desmoulins. O dia 23 do mesmo mez é o aniversario do nascimento de S. Jorge e é tambem o da morte de Shakespeare e de Cervantes.

Nem toda a gente sabe, de pronto, sem consultar a collecção dos bolandistas ou o Flos Sanctorum o que foram precisamente para o mundo e para Deus, Bernardino, Adriano ou Luciano. Ninguem todavia ignora o que a humanidade deve a Colombo, a Galileu, a Danton e a Shakespeare.

Depois a circumstancia de ir para o ceu por uma decisão dos concilios nem sempre equivale a haver deixado na terra um exemplo que fortifique as almas para servirem ao mundo ou para servirem a Deus.

Temos por exemplo que, segundo S. Lucas, capitulo XXII, versiculo 61, S. Pedro, convicto da divindade de Jesus, o renega por tres vezes no tribunal de Caiphaz. No tribunal da Inquisição, deante da fogueira que o vae devorar se não renegar o seu livro, Giordano Bruno prefere morrer a trahir a verdade. S. Pedro fundou a igreja christã; Giordano Bruno fundou uma nova teoria do Universo. Um é adorado como santo; o outro é condemnado como hereje. E todavia é com Bruno e não é com Pedro que todos nós, filhos do seculo ou filhos da religião, temos que aprender como se sustenta uma convicção ou como se defende uma crença.

A iniciativa da Academia contribuirá poderosamente, de certo, para fazer entrar nos costumes a fecunda lição alliada ao culto dos grandes homens e á commemoração dos grandes feitos, ceremonias destinadas a tornarem-se as festas nacionaes de todos os povos civilisados.

Ao centenario da Academia succeder-se-ha sem duvida o do apostolo da nacionalidade portugueza Camões, e o do martyr da liberdade de pensamento Damião de Goes.


A segunda rasão porque nos regosija a noticia que registamos é que a celebração do jubileu academico, pedindo a publicação de uma historia d'aquelle instituto, virá por meio d'esse documento recordar o papel brilhantissimo que teve na historia das idéas em Portugal essa corporação scientifica, e chamar talvez alguns dos actuaes academicos a reatarem a tradição gloriosa d'aquelles que os precederam na direcção intellectual do paiz.

A Academia Real das Sciencias foi o foco da revolução e o berço da moderna liberdade em Portugal.

Em um excellente livro do sr. Theophilo Braga, recentemente publicado—Bocage, sua vida e epoca litteraria—encontram-se os mais preciosos documentos para a nossa moderna historia litteraria, documentos até hoje ineditos e pacientemente colligidos por aquelle eminente escriptor, em cujas obras, as mais eruditas que em Portugal se teem feito, o publico não aprendeu ainda senão a calumniar o auctor. Entre esses documentos tirados a lume pelo sr. Theophilo Braga, acham-se as mais curiosas revelações para a historia dos nossos primeiros academicos.

O duque de Lafões, o abbade José Correia da Serra, Joaquim José Ferreira Gordo, Antonio Pereira de Figueiredo, insignes na philosophia e nas sciencias naturaes, conhecidos e respeitados na Europa, estavam denunciados ao governo como jacobinos e eram espionados e perseguidos pela policia sob a direcção do intendente Pina Manique, o qual nas suas contas para as secretarias, manuscriptos conservados na Torre do Tombo, por differentes vezes se refere aos alludidos academicos, accusando-os como sectarios das idéas da Revolução franceza, relacionados com os homens da Convenção, iniciadores do movimento liberal em Portugal. A policia envolve-os na mesma suspeição com os livreiros francezes residentes em Lisboa, com os addidos á legação de França, com os frequentadores de botequins que se atrevem a ostentar nas tampas das suas caixas de rapé a figura da liberdade, com os populares finalmente que em certa noite vão debaixo das proprias janellas do paço entoar a canção do Ça-ira.

Os cabeças d'este movimento de revolta contra o despotismo monarchico-catholico são designados pelo intendente Manique com o nome generico, ainda hoje em voga, de philosophos modernos. Os livros dirigidos de França á Academia sob o nome do duque de Lafões são sequestrados na alfandega.

A publicação de qualquer escripto revolucionario por parte da Academia é impossivel sob a espionagem de Manique, mas a adhesão d'esta companhia ás idéas francezas é manifesta em muitas passagens dos registros policiaes.

«Acha-se n'esta corte—diz o intendente Manique—nas casas da Academia das sciencias, ao Poço dos Negros, hospedado, segundo me dizem pelo abbade Correia, Broussonet, que foi medico de profissão em Paris, e depois secretario de Necar (É assim que Manique escreve o nome de Necker) e aquelle que se fez marcar quando na sessão da convenção Nacional, de que era tambem deputado, continuou o discurso que o sobredito Necar não acabou de recitar por lhe dar no meio d'este acto um deliquo; e ainda mais conhecido por ser um d'aquelles sanguinarios do partido de Robespierre na Convenção. Pela morte que este assassino soffreu, fugiu aquelle e aqui foi acolhido e introduzido ao duque de Lafões na qualidade de agricultor, e hospedado nas casas da Academia das Sciencias, d'onde frequenta as casas do sobredito duque e do abbade Correia que é amigo mui particular do ministro e consul da America do Norte e dos mais jacobinos que aqui se acham e de que tenha dado parte a v. ex.ª, e reputado por pedreiro livre.»

Eguaes accusações pesam sobre Ferreira Gordo e sobre o auctor da Recreação Philosophica o Padre Theodoro de Almeida, «com o qual, accrescenta Manique, o já alludido Broussonet fica algumas vezes na casa do Espirito Santo de Lisboa.»

A Academia encerrava pois no seu gremio o fermento da revolução, levedada mais tarde em 1820, e da qual procedeu a reforma das nossas instituições em 1834 e a liberdade subsequente.

A missão da Academia em Portugal não pode ainda hoje ser senão a mesma que era no fim do seculo passado.

Não é no estado de indifferença, de egoismo e de ignorancia em que ainda hoje se acha o espirito portuguez que as Academias podem assumir, como queria Proudhon, a funcção moderadora dos trabalhos do pensamento e das creações da arte.

A intervenção das academias como elemento official e conservador pode ser util e salutar em França ou em Hispanha, onde a temeridade impaciente e indisciplinada dos escriptores revolucionarios, actuando constantemente na opinião, pode perturbar a lei da continuidade historica e lançar a sociedade na anarchia. Ahi compete ás academias salvaguardar a ordem pelo ascendente moral.

Em Portugal, porém, onde a revolução de modo algum ameaça partir da circumferencia para o centro movida pelas tendencias progressivas e invasoras dos espiritos, é absolutamente preciso, para que nos possamos considerar uma nação, que a revolução parta do centro para a periferia, que seja a Academia quem a enuncie e quem a propague, acolhendo no seu gremio as intelligencias mais avançadas, discutindo os problemas mais vivos da philosophia, aclarando todas as questões relativas aos maximos interesses do espirito, á religião, á politica, á esthetica, implantando finalmente a revolução na esphera intellectual para que d'ahi ella penetre nos costumes e se infunda nas instituições.

Se o desempenho d'este papel, que lhe está marcado pela sua tradição, é incompativel com as ligações existentes entre a Academia, presidida pelo chefe do Estado, e o mesmo Estado, o que á Academia compete fazer é libertar-se d'essa dependencia e constituir-se em corporação livre. O poder espiritual, de que ella é a encarnação litteraria, não lhe procede de ser a hngida do Estado mas sim a da sciencia.

Subsidiada pelos governos ou não subsidiada por elles, estabelecida em um palacio ou refugiada em um sotão, recrutando os seus membros entre os invalidos da popularidade ou entre os dispersos batalhadores vigorosos da controversia moderna, separando-se da sua tradição gloriosa, ou sendo-lhe fiel, a Academia acha-se destinada a ser d'estas duas coisas uma:—ou a força dirigente do futuro social, a cabeça do paiz, ou uma excrecencia apparatosa, um orgão atrophiado e inutil á civilisação.


Sendo os homens que escrevem ordinariamente superiores aos homens que lêem, a funcção da publicidade é predominar nos espiritos—ou seja lisonjeando-os, ou seja combatendo-os. Toda a obra litteraria dá um d'esses resultados; ou se adapta ás opiniões existentes e as consolida e reforça ou reage sobre ellas e as decompõe. Toda a litteratura ou é conservadora ou é revolucionaria. Queremos dizer: ou transige passivamente com as condições do meio social ou se debate contra o obstaculo que a influencia d'esse meio lhe impõe.

Sempre que a litteratura toma o caracter conservador tende a immobilisar a sociedade e a atrophiar o progresso. Foi o que succedeu nos seculos em que a litteratura não fez mais do que fortalecer as superstições que achou consagradas no seu caminho, prostrando a humanidade n'um marasmo de quinhentos annos embalados com o esteril rumor monotono das homilias e das legendas dos santos. Felizmente, desaprendendo quasi completamente de ler, a humanidade voltou a si. A litteratura havia sido para ella uma catacumba em que jazera sepultada pela credulidade, amortalhada pelo mysticismo. Guizot calcula em vinte e cinco mil as vidas de santos de que se compõe a bibliotheca bollandista, e são esses acta sanctorum quotquot tote orbe coluntur que encerram a historia inteira da humanidade sob o regimen clerical em toda a Europa e em quasi todo o Oriente, desde o seculo VI até o seculo XII! Com razão conclue Buckle—o grande historiador da civilisação—que o maior dos estorvos do progresso tem sido a manutenção do erro pelo poder litterario.

Nos tempos modernos, sob os dominios despoticos, em quanto a obra do pensamento foi disciplinada pela policia clerical e monarchica como succedeu em Portugal durante o imperio do Santo Officio, a litteratura deixou egualmente de ser o livre producto artistico e converteu-se n'um poder do Estado, o mais enervante para a imaginação, o mais dissolvente da intelligencia e da dignidade humana.

Portanto: a primeira condição social para a existencia de uma litteratura compativel com o progresso é a liberdade.

Todo o escriptor portuguez actual nasceu n'esse meio propicio. Todavia, por uma fatalidade physiologica, por um effeito da heriditariedade, falta-nos a orientação cerebral da independencia. O nosso espirito conserva o stygma servil, o signal da marca que, em muitas gerações que nos precederam, foi deixando a grilheta da oppressão mental. A nossa tendencia de escriptores é ainda hoje, geralmente, para lisonjear a rotina, para comprazer com o vulgo, para seguir as correntes da credulidade geral.

A maior parte dos individuos que fazem um livro teem, nas precauções da forma, no rebuço das opiniões, na doblez do stylo, o ar miseravel de pedintes que solicitam venia para divertir inoffensivamente o respeitavel publico.

Entre as aberrações eminentes d'essa tendencia geral, como por exemplo os srs. Anthero de Quental e Guerra Junqueiro na poesia, o sr. Theophilo Braga na historia e na critica, o sr. Oliveira Martins na economia politica, a Sr.ª D. Maria Amalia Vaz de Carvalho no folhetim,—apparece-nos o sr. Eça de Queiroz no romance. Na pequena litteratura portugueza destinada a ser um agente na evolução das ideias e dos costumes, um elo no grande encadeamento das causas e dos effeitos sociaes, O crime do padre Amaro, representa a obra mais profundamente caracteristica.

Este livro foi recebido pela imprensa periodica com um silencio que pode parecer o resultado de um mot d'ordre. Cremos, para honra do jornalismo, que a razão do apparente despreso de que foi objecto este romance está no simples facto de que a critica se considerou incompetente para o julgar. A unica coisa de que temos de accusar a critica é de nos não haver dito isso mesmo. Em circumstancias analogas as Farpas deram um exemplo de sinceridade que ficou esteril. Um dia escreviamos um artigo ácerca do adulterio; a logica arrastava-nos a deducções que nos não atreviamos a imprimir; publicámos o nosso artigo até o ponto em que o julgavamos compativel com os costumes e concluimol-o com a confissão franca de que nos achavamos coactos pelo publico. Quando tivemos medo confessamol-o. É verdade que omittimos uma opinião, mas, estudando os costumes, revelamos pelo menos um estado de espirito que elles determinavam e que seria um symptoma a ponderar pelos analysadores que se nos seguissem.

O crime do padre Amaro é effectivamente difficil de sentenciar porque constitue um caso novo, não previsto nas ordenações porque se regulam as audiencias geraes do folhetim e do noticiario.

Essencialmente moderno este romance não é a narrativa de uma aventura ou de uma serie de aventuras á Lessage, á Dumas ou á Gaboriot, não é um estudo de sentimento á Rousseau, á Alfred de Musset ou á George Sand. É uma pintura de caracteres, mas não uma pintura á Balzac ou á Flaubert, porque este livro não é exclusivamente de nenhuma escola senão da escola de si mesmo, e é esse cunho profundamente pessoal qne lhe dá o caracter que o distingue como verdadeira obra d'arte.

Ora uma exposição de caracteres se pertence á sphera da arte pelos processos da pintura, é um ramo da historia e está subordinado á sciencia pelas operações de critica e de relacionação. O officio do historiador é discernir no estudo das epocas e no estudo dos acontecimentos o seu caracter social. O officio do romancista é discernir no mesmo estudo das epocas e no mesmo estudo dos factos o seu caracter artistico. O methodo do historiador é o methodo do romancista. Não pode ser romancista um simples observador. Cada sciencia tem, como diz Littré, o seu methodo particular e caracteristico. A observação é um methodo exclusivo da astronomia, para cujos phenomenos irreductiveis o astronomo não pode fazer mais que olhar. O chimico procede pela experiencia e pela analyse. O biologo tem por methodo especial a comparação. O historiador, e por tanto o romancista, teem como instrumento particular a filiação, isto é, a producção dos estados sociaes uns pelos outros. Pintar um caracter é expor no personagem a figura moldada dentro do contorno delineado n'uma dada porção do espaço e do tempo por um certo estado social.

Um caracter é um phenomeno historico, que se não comprehende senão emoldurado na convergencia de todos os factores que o produziram.

É por isso que o romance de caracteres tem de ser uma exposição concentrica de todas as influencias que determinam um pensamento ou um acto;—influencias naturaes, o solo, o clima, os aspectos da paizagem, o sexo, a idade, o temperamento, a idiosyncrasia, a heriditariedade; influencias sociaes, as instituições, os costumes, a familia, a educação, a profissão.

Comprehende-se a commoção de surpreza que produziu este livro, ao notar-se que a proposito da biographia de um padre em uma parochia da provincia elle suscitava as mais graves e melindrosas questões physiologicas e sociaes que podem envolver a igreja, o celibato, a sentimentalidade e o mysticismo, isto é, todos os pontos de controversia philosophica que o jornalismo exclue da discussão para se não pôr em conflicto com o assignante. Confessamos que n'este caso o melhor que tinha que fazer a critica jornalistica era effectivamente calar-se.

Pela nossa parte, como é precisamente o conflicto que constitue o nosso programma, não temos rasão plausivel para abster-nos da apreciação d'este livro.

A rasão da condemnação silenciosa, do escandalo branco, que envolveu a apparição do Crime do padre Amaro está no simples facto de que elle é um romance de caracter. Esta simples designação explica tudo. O genero é novo e sem precedentes. Os livros do sr. Camillo Castello Branco são romances de sentimento. A obra de Julio Diniz pertence á litteratura de tricot cultivada com ardor na Inglaterra pelas velhas miss. Apesar das suas qualidades de paizagista, do seu mimo descriptivo, da sua feminilidade ingenua e pittoresca, as novellas de Julio Diniz não teem alcance social, são meras narrativas de salão.

O livro do sr. Eça de Queiroz offerece-nos o primeiro exemplo de uma obra d'arte suggerida pela consideração de um problema social.

E todavia O crime do padre Amaro não é de nenhum modo um livro de critica, é um livro de pura arte na mais alta accepção d'esta palavra. Nem na bocca do auctor nem na de nenhum dos seus personagens ha uma palavra declamativa ou didactica.

Em uma pequena cidade de provincia, na Extremadura portugueza, o velho parocho morre, o novo parocho chega com o seu capote ecclesiastico e o seu bahu, apeia-se da diligencia de Chão de Maçãs, sobe aos quartos que lhe estão preparados, calça uns chinellos de ourelo, veste o casaco velho, e o drama principia, desdobra-se e termina de um folego, caminhando para o seu desfecho, recto, implacavel, como um traço riscado pela fatalidade atravez d'aquella estreita vida de provincia, com a sua intriga local, os seus personagens mesquinhos, os seus padres, as suas beatas, os seus tristes aspectos de coisas, sujos, tortuosos, compungidos, pretenciosos, miseraveis.

D'este fundo sombrio, espesso, pesado como o tedio, a acção destaca-se luminosamente, e penetra-nos com a nitidez poderosa dos espectaculos vivos. É a vida mesma com toda a sua trivialidade real que n'essas paginas perpassa aos nossos olhos como aquellas florestas que andam no sonho de Machet.

Nunca artista portuguez desenvolveu na sua obra maior poder de execução.

O dialogo, trasbordante de verdade, é de um rigor psychologico, de um colorido flagrante e de uma energia de naturalidade que os primeiros stylistas francezes não conseguiram ainda egualar. A lingua portugueza, pela incomparavel variedade das suas construcções grammaticaes, pela inexgotavel abundancia dos seus idiotismos, pela bravura inculta do seu arranco plebeu, presta-se admiravelmente a estes prodigios de execução sempre que a não deturpa esse maneirismo requintado, esse culto da farragem e do euphemismo, que tem sido em Portugal a sarna epidemica do estylo erudito.

O dialogo do sr. Eça de Queiroz, não porque o trabalhasse a preoccupação do purismo, mas em resultado do escrupulo com que foi arrancado da indole e da natureza dos personagens, é de tal modo genuino e tão accentuadamente portuguez, que o temos por intraduzivel.

Ao lado do dialogo mais vivamente travado e das situações dramaticas mais profundamente sentidas, mais commoventemente narradas, o auctor compraz-se habitualmente em pintar, com frio cynismo, as ridentes paizagens em que scintillam as frescuras da manhã, os suaves occasos do outomno impregnados do rumor das aguas e do perfume dos prados, os tepidos interiores aconchegados e pacificos, todos os aspectos da natureza vegetativa, da natureza animal, da natureza morta. E nada mais profundamente real do que a impressão deduzida d'esse contraste entre a inclemente immobilidade das coisas e a devastação tempestuosa das supremas paixões no fundo da alma humana!

O desenho dos caracteres e principalmente o das duas personagens principaes sobre que versa o drama, o padre Amaro e Amelia, é deduzido com o mais scientifico rigor da diagnose n'um caso de pathologia psychica.

A infancia de Amaro em uma casa nobre, onde a mãe d'elle era criada de quarto. Os pequenos pormenores d'esse interior de familia, onde o catholicismo era um requinte heraldico, onde as meninas, acreditando em Deus como na omnipotente elegancia, tinham como culto dos destinos da alma a preoccupação da toilette com que haviam de entrar no paraizo. A creação de Amaro até aos doze annos n'essa convivencia mulheril, ajudando ás missas na capella, espanando os santos, aparando as hostias, dormindo entre as criadas, que lhe faziam cocegas, lhe chamavam Padreca, Frei Lombrigas, e o utilisavam nas suas intrigas para «fazer as queixas.» A sua mocidade no seminario, «abafando na estreitesa dos corredores, invejando todos os destinos ainda os mais humildes, o almocreve que via passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro!» Os seus primeiros alvoroços de adolescente ao pensar na mulher sobre os livros dogmaticos: «Que ser era esse que atravez de toda a theologia ora era collocado sobre o altar como a Rainha da Graça ora amaldiçoado com apostrophes barbaras? Que poder era o seu que a tragica legião dos santos, ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extactica, dando-lhe n'uma acclamação o profundo reino dos céus, ora vae fugindo diante d'ella como do universal inimigo com soluços de terror e com gritos de odio, e, escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas, nos claustros e nos sepulchros, vae alli morrendo do mal de a ter amado? Amaro sentia, sem as definir, estas perturbações, e julgava-se desgraçado e maldito.»

Vemos, a dia por dia, crescer, constituir-se, formar-se esse homem, branco, lymphatico, molle, creado entre chumaços de mulheres ordinarias, e sobrepelizes de padres boçaes, no fartum das alcovas sujas e na sombra humida dos claustros musgosos. E prevê-se a quéda fatal d'essa natureza stagnada e paludosa, atravez da qual os desejos insaciados luzem como os olhos de um tigre.

É egualmente bem assignalado o caracter de Amelia. A sua educação sentimental e devota é descripta a golpes de bisturi. Cada traço é uma incisão. Aos oito annos tinha ido para a escola. A mestra era uma velhita roliça e branca que fôra tacho das freiras de Santa Joanna em Aveiro; com os seus oculos redondos, junto da janella, empurrando a agulha, morria-se por descrever o convento, os seus terrores, as suas legendas, as suas peripecias; as perrices da escrivã sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira preguiçosa e pacata, com uma pronuncia minhota; a mestra de canto-chão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Tavoras; a historia de uma freira que morrera de amor e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e chamando:—Augusto! Augusto!... Tinham-lhe ensinado o cathecismo e a doutrina: fallavam-lhe sempre dos castigos do céu; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um Ser que dá o soffrimento e a morte, e que é necessario abrandar resando e jejuando, ouvindo novenas e amando os padres. Era por isso toda cuidadosa e se ás vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro dia porque temia que Deus lhe mandasse sessões ou a fizesse cair na escada.» Além da doutrina aprendera a tocar piano com um velho romanesco. Lêra livros de versos, fôra namorada durante uma estação de banhos por um estudante de Coimbra, que lhe fizera umas quadras. Estava pedida por um escrevente de tabellião, que se perturbava sob o seu olhar voluptuoso mas que ella não amava, sentindo em si «como um grande somno do coração.» Não tinha pae. Era sanguinea e forte, de grossos beiços levemente sombreados de pennugem negra. Ouvia missa todos os dias e confessava-se todas as semanas.—A mãe era protegida por um conego. Ella padecia tedios nevralgicos e inquietações hystericas.

Todos os demais personagens, alguns d'elles apenas indicados por quatro palavras, que têem o poder de uma evocação, o conego Dias, o padre Natario, o padre Brito, o chantre, o coadjutor, o Libaninho, o tio Esguelha, o escrevente, o redactor da Voz do Districto, as senhoras Gançosos, a sr.ª D. Maria da Assumpção, a Joanneira,—vivem, têem uma physionomia, uma personalidade.

O desenlace do drama, a morte de Amelia, a fuga do padre da quinta da Cortegaça, de noite, levando o filho escondido na capa; o seu terror ao sentir-se seguido, ao ouvir atraz de si no macadam as passadas surdas do escrevente, passadas commedidas pelas d'elle, acompanhando-o como o remorso, como o presentimento da catastrophe que se aproxima; o infanticidio perpetrado no escuro, com os pés no lodo, á beira do rio, escondido nos juncos como um animal ferido cercado pelos latidos raivosos da matilha; a sua retirada de Leiria ao outro dia, por uma serena tarde de outomno, de uma poetica serenidade ineffavel, partindo a cavallo no momento em que os sinos da sé começavam a soluçar o dobre de defuntos, emquanto um realejo toca na rua um trecho da Norma, e, de uma casa defronte, um pequerrucho seguro ao peitoril da janella pelo pae e pela mãe que riem, lhe diz adeus com a sua pequena mãosita papuda;—constituem paginas de uma concepção e de uma tonalidade tragica, profundamente elegiaca e solemne, que fica vibrando por muito tempo na memoria como o ecco funebre de um dies irae.

Este livro misanthropicamente concebido, e executado com uma ironia mordente e com um humorismo repassado de lagrimas, deixa todavia no espirito uma forte impressão consoladora; é a obra de um grande artista, de um poderoso revelador de ideal; e como toda a idealisação perfeita, repousa-nos das nossas preoccupações pessoaes e egoistas, engrandece-nos, eleva-nos aos nossos proprios olhos, infunde-nos a fé, obriga-nos a crêr no sagrado desinteresse da arte, na divina immortalidade do bello.


Se depois da idéa que procurei dar-te d'este livro, tu, leitor me perguntares se o deves dar a ler á menina tua filha, eu respondo-te terminantemente que não. As meninas nunca lêem romances, quaesquer que elles sejam.

Se o podem lêr as mulheres—é uma outra questão, á qual respondo que podem, ainda que com esta reserva—ás escondidas.

Não que este livro seja immoral. A arte é absolutamente independente da moral, e não póde nunca nem servil-a nem prejudical-a.

Quando para minha consolação e refrigerio eu me desvio da estrada em que succumbo de fadiga mordido pelo sol, e vou descançar um momento á sombra de uma arvore, não pergunto se essa arvore dá peras ou se dá pilritos, se da sua resina se póde extrair um balsamo ou um veneno, se dos seus filamentos se póde entrançar uma corda para o sino ou um baraço para a fôrca, se no seu tronco se podem serrar as pranchas para construir a arca ou para armar o patibulo. A unica coisa que lhe pergunto é se ella tem, para m'a dar, uma boa sombra fresca, macia, aromatica; e se a tem, eu, que n'esse momento não sou um negociante de productos alimenticios, nem um madareiro nem um chimico nem um engenheiro constructor, mas sim um caminheiro prostrado, eu declaro, não só em meu nome, mas em nome da sciencia, em nome da moral, em nome da religião, em nome do homem e em nome de Deus, que essa arvore é boa, é util, é necessaria—não pelos materiaes que ministra, não pelos fructos que produz, nem pelas substancias que segrega, mas unica e simplesmente por uma condição imponderavel e etherea, da qual em dada crise pode depender o meu destino inteiro e toda a minha vida; e essa condição é a de se interpôr no espaço entre mim e o ceu, e projectar sombra.

Na esphera das multiplas vegetações do nosso espirito a sciencia e a philosophia fornecem as substancias alimenticias e ministram os materiaes das construcções; a arte é a arvore santa, a arvore da sombra para os peregrinos do pensamento.

Schiller em uma das suas cartas, cujo texto não tenho presente, expôe uma theoria que pode resumir-se n'estes termos: «Se um critico em nome da moral processa o meu livro não pelo que eu n'elle escrevi mas pelas conclusões que elle critico lhe extrae, eu despreso esse julgamento. Se, porém, a critica me convencer de que, dado o assumpto qual eu o concebi, eu poderia executal-o por outro modo, eu n'esse caso submetto-me, não porque tenha errado contra a moral, mas porque errei contra a arte.

Ora na execução do livro do sr. Eça de Queiroz ha na parte descriptiva dois ou tres pormenores que não quereriamos eliminados—com quanto isso fosse possivel sem quebra da verdade—mas que nos parece poderem ser referidos de um modo—não dizemos mais pudico—dizemos mais artistico.

Ha em todos os grandes romancistas modernos, desde Balzac até o sr. Queiroz, uma tendencia de que o vulgo tem feito o attributo de uma escola, tendencia febril a demorarem sensualmente as analyses da torpeza e da podridão.

O grande Eschylo dizia, censurando Euripides: «Elle deprimiu tudo aquillo em que pegou, eu enobreci tudo aquillo em que toquei; os homens saidos das minhas mãos respiram gladios e lanças, capacetes de pennachos brancos e escudos reforçados com sete couros.» Os artistas modernos não podem infelizmente inscrever nos seus brazões a nobre divisa do velho tragico. A sociedade actual não fornece á arte os grandes crimes que alimentaram o interesse da tragedia grega, porque as depravações contemporaneas não gravitam em torno do crime heroico mas sim em torno do vicio mesquinho e vergonhoso. Quem descreve os caracteres modernos tem fatalmente de operar na gangrena; o que nos não parece egualmente inevitavel é que o puz do tumor salpique a mão que o opera. Ora o que julgamos notar, por duas ou tres vezes como acima dissemos, na obra tão profundamente casta do sr. Eça de Queiroz é que os seus instrumentos anatomicos, tão bem acerados e tão finos, teem os cabos demasiadamente curtos.

A dissecção—permitta o nosso amigo que lh'o observemos—tem tambem as suas leis de conveniencia e de elegancia. Além de que, para estudar um orgão é ocioso expôr aos olhos do amphitheatro toda a nudez do cadaver. Mesmo em anatomia o completo conjuncto é obsceno, porque é inutil.

As damas da côrte tão pointilleuse de Luiz XIV—ellas que representavam tudo quanto possamos conceber mais escrupuloso e mais exigente no decoro e no gosto—frequentavam, sem offensa do seu fragil melindre de estufa, os theatros anatomicos.

«Á medida, diz Fontenelle, que Verney se tornava um homem á moda punha em moda a anathomia, a qual, encerrada até ahi nas escolas de medicina ou em Saint-Côme, ousou produzir-se na alta sociedade apresentada pela mão d'elle.» O tacto especial de Verney contém um exemplo que pode não ser inutil ao sr. Eça de Queiroz.

As senhoras portuguezas não cursam os estudos scientificos. Não teem os menores principios de biologia, de anathomia e de physiologia, principios indispensaveis para entrar nos estudos mais complexos do homem como são na sciencia a historia e na arte o romance de caracter e a esculptura do nú.

Por isso a falsa noção que ellas teem do pudor as torna incompativeis com muitas das mais preciosas convivencias intellectuaes.

Uma noção social não pode, porém, ser modificada pelos escriptores ou pelas academias. Essa reforma é a obra collectiva e impessoal do progresso nos costumes e nas instituições.

N'estas condições, deploraveis mas inamoviveis, maior deve ser a atenção do artista em limar—tanto quanto isto seja possivel sem detrimento da obra—os pequenos angulos subalternos que difficultem a adaptação d'ella aos costumes.

Sob este ponto de vista O crime do Padre Amaro está adeante do seu tempo. Como obra de arte é este um destino feliz, porque n'este caso ter de esperar é adquirir a certeza de sobreviver. Como obra de hygiene social lamentamos que elle não possa desde já actuar pela sua influencia no espirito d'este paiz onde o primeiro livro da educação moderna La femme, le prêtre et la famille é ainda tido por um sacrilegio de Michelet, o impio!






End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas: Chronica Mensal da
Politica, das Letras e dos Costumes, by Ramalho Ortigão and Eça de Queiroz

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