The Project Gutenberg EBook of As Farpas, Janeiro de 1878 by Ramalho Ortigao and Jose Maria Eca de Queiroz This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: As Farpas (Janeiro 1878) Author: Ramalho Ortigao and Jose Maria Eca de Queiroz Release Date: August 2, 2004 [EBook #13092] Language: Portuguese Character set encoding: ASCII *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS *** Produced by Claudia Ribeiro, Larry Bergey and PG Distributed Proofreaders. Produced from page scans provided by Biblioteca Nacional de Lisboa. [Illustration: ECA DE QUEIROZ--RAMALHO ORTIGAO--AS FARPAS] RAMALHO ORTIGAO--ECA DE QUEIROZ AS FARPAS CHRONICA MENSAL DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES TERCEIRA SERIE TOMO I Janeiro de 1878 Ironia, verdadeira liberdade! Es tu que me livras da ambicao do poder, da escravidao dos partidos, da veneracao da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiracao das grandes personagens, das mystificacoes da politica, do fanatismo dos reformadores, da supersticao d'este grande universo, e da adoracao de mim mesmo. P.J. PROUDHON SUMMARIO A romagem dos mortos. Raspail, Courbet, Victor Manuel, Jose de Alencar, Augusto Soromenho.--_A senhora portuense_ e _as Farpas_. O libello d'aquella dama. A nossa resposta. Nao, a mulher portugueza nao sabe fazer caldo e deve aprender a fazel-o, como se torna a demonstrar. A litteratura feminina e a cozinha de minha avo.--Da influencia dos hymnos sobre os cerebros coroados. Cumplicidades do telephonio.--Os cemiterios. A intervencao do sr. marquez d'Avila e a do sr. Luiz Jardim. A cabelleira e a formula de s. ex.ª Mostra-se que s. ex.ª nao e o velho Tobias. O catholicismo e a carta. A liberdade de pensamento e o registro civil.--A ex'ma Camara Municipal do Porto ou a quem suas vezes fizer.--A situacao politica. As ultimas sessoes parlamentares. Alguns perfis. Os partidos. Os compadres. A jumentinha da publica governacao. No breve espaco dos ultimos quinze dias a humanidade pagou a morte um pesado tributo. Escrevemos no meio de tumulos gloriosos e amados. Deixaram de existir, em Franca Raspail e Courbet; na Italia Victor Manuel, no Brazil Jose de Alencar; em Portugal Augusto Soromenho. Raspail, entre todos esses o maior, deixa na terra um immenso vacuo imprehenchivel. Desappareceu com elle uma das mais poderosas forcas sociaes do mundo moderno, a porcao mais fecunda e mais gloriosa da grande alma do povo. Ninguem como elle amou a humanidade e ninguem empregou tao vastas e tao profundas faculdades no culto do seu amor. Foi o maior contribuinte dos descobrimentos scientificos d'este seculo. Creou a chimica organica e pode-se dizer que creou tambem a physiologia botanica e a anathomia microscopica. Fundou a hygiene em bases novas, nao como uma dependencia da medicina, mas como um desdobramento da sciencia social. Foi elle o que definiu pela primeira vez em fundamentos positivos o dogma do suffragio universal. Foi ainda elle o primeiro que proclamou no Hotel de Ville a Republica de 48. Este eximio cultor, acrescentador e reformador do todas as sciencias physicas, de todas as sciencias biologicas e de todas as sciencias socilaes, astronomo, chimico, physiologista, medico, archeologo, economista, era alem d'isso um delicado e valente escriptor. O seu genio profundo actuou efficazmente no desenvolvimento do estudo dos astros, das plantas, dos animaes, do homem, e bem assim na reforma do todas as instituicoes politicas e sociaes, na reforma administrativa, na reforma judiciaria, na reforma penitenciaria e na reforma penal. O seu altivo caracter de soberano plebeu tornou-o sempre irreconciliavel com todo o favor, com lodo o auxilio, com toda a collaboracao official. Recusou todas as distincoes honorificas, todos os cargos publicos, todos os diplomas scientificos ou litterarios. As suas observacoes astronomicas, os seus trabalhos de chimica, as suas applicacoes do microscopio ao estudo das celulas e dos tecidos fizerarn-se n'uma agua furtada humilde dos bairros baratos de Paris com os instrumentos mais rudimentares, no isolamento austero da independencia o do sacrificio. Esse intrepido filho do povo tinha a fibra de Galileu, de Giordano Bruno e do Bernardo Palissy. A academia franceza, commovida com uma tao exemplar grandeza d'alma, resolveu conferir-lhe em 1833 o premio Montyon, declarando-lhe pela boca do grande Geoffroy-Saint-Hilaire que ella o considerava como sendo o homem que mais servicos tinha prestado a sciencia e a humanidade. Guizot, entao ministro da instrucao publica, interveio na resolucao da academia prohibindo que _o premio da virtude cahisse no cofre da rebeliao_.[1] O chefe do partido conservador francez nao podia esquecer que fora esse mesmo sabio obscuro o despremiado o que no anno anterior, em plena Restauracao, ousara fulminar a votacao da lista civil com a phrase memoravel paga por elle com 500 francos de multa e 15 mezes de cadeia: "Deveria ser enterrado vivo debaixo das ruinas das Tulherias todo o cidadao que ousasse pedir a Franca 14 milhoes para viver." [Nota 1: Guizot, que recusou um premio a Raspail, recusou tambem uma cadeira no magisterio a Augusto Comte. O illustre historiador teve a desgraca de firmar com o seu nome a responsabilidade d'esses dois crimes, inconscientes, da politica nefasta que elle dirigia.] E que Raspail, a intelligencia sempre apta para organisar, foi egualmente o braco constantemente pronto para resistir. Portentosa existencia, que ficara na historia entre as mais bellas e mais estraordinarias legendas do genio do homem! Destinado por seu pae a carreira ecclesiastica, foi educado n'um seminario, comecou por ser um theologo. Era porem de tal modo intenso e explosivo o seu amor de verdade e do progresso que, principiando por ensinar theologia aos dezenove annos, acabou por alcancar a gloria immarcessivel de ser condemnado aos oitenta,--aos oitenta annos de idade!--por abuso da liberdade de pensamento! O poder espiritual do mundo moderno era representado em Franca por uma trindade sacrosanta:--Victor Hugo, a forca do sentimento; Raspail, a forca do trabalho; Littre, a forca da philosophia. D'esses tres anciaos o primeiro que desceu ao tumulo e o que mais fecundo exemplo nos podia legar, porque as virtudes que o assignalaram sao d'aquellas que dependem mais da vontade que do entendimento. Esse exemplo de uma actividade sempre enthusiasta, juvenil e ardente, em nenhuma outra parte e mais precioso do que na sociedade portugueza, onde as ideas radicaes, que sao as sentinelas avancadas da civilisacao, tao raramente encontram servidores desinteressados que as mantenham; onde a mocidade mais vivaz e intelligente esta defendendo no parlamento e no jornalismo as opinioes mais retrogradas, onde finalmente o futuro nao tem partido. Possa a memoria do sublime Raspail alentar a perseveranca e a firmeza no coracao d'aquelles que, longe de todas as correntes officiaes se sacrificam heroicamente pelo estudo desprotegido, pelo trabalho talvez calumniado, talvez perseguido, ao amor e ao aperfeicoamento dos seus similhantes! Que todos os que sao mocos e fortes se inclinem sobre esta campa onde repousa um triumpho, e reflictam, que e na pedra tumular de Raspail que deverao agucar o fio das suas espadas todos aquelles que combatem pela consciencia e pela verdade! * * * * * Courbet foi um conspirador da esthetica, um rebelde ao despotismo de um ideal que elle tinha por condemnado solidariamente com as velhas instituicoes sociaes de que fazia parte. A sua vida foi consagrada a derrocar pela pintura a inspiracao da antiga arte assim como derrocou pelo uso do poder executivo a columna da praca Vendome. Louvavel empenho, porque Courbet considerava essa inspiracao uma fonte envenenada para o trabalho artistico, assim como considerava essa columna um symbolo ultrajante para a dignidade humana. A demolicao da columna, que toda a imprensa europea stygmatisou com palavras tao resentidas e acerbas, nao podera deixar de ser um dia olhada pela critica desapaixonada como a consequencia logica e fatal dos principios de justica social constantemente professados pelo immortal artista. Courbet foi condemnado a pagar a reconstituicao da columna. Breve porem soara a hora em que o nobre espirito francez deixe de considerar puerilmente que se deve ser _Fier d'etre francais Quand on regarde la colonne!_ Paris, a cidade eterna da arte, a grande martyr, a grande pacificadora, comprehendera em pouco tempo que e uma injuria ao seu bello destino na obra da conciliacao humana a ostentacao orgulhosa de um monumento que o distico diz ser: _levantado a gloria do grande exercito por Napoleao o Grande!!_ Paris, qua vae na proxima exposicao celebrar dentro do regimen republican a grande festa universal da industria e da paz, Paris cujo municipio acaba de votar 546 contos de reis para os seus estabelecimentos publicos de instruccao primaria ao anno corrente, Paris que ainda ultimamente consagrou cerca de 5 mil contos a reorganisacao dos seus lyceus, nao podera manter em pe por muitos annos mais, em uma das suas pracas publicas, um symbolo que contradiz todas as suas aspiracoes philosophicas e humanitarias, celebrando uma das maiores nodoas da civilisacao: o triumpho cannibalesco do militarismo sobre os direitos do homem, a sujeicao da Franca aos caprichos de um despota em cuja fronte as justicas da historia estamparam ja o ferrete da ignommia. A legenda napoleonica esvahiu-se inteiramente das consciencias, e bastou um sopro de Michelet para apagar para todo sempre nas tradicoes marciaes da geracao actual o sol de Austerlitz. Courbet morreu antes da poder ser reembolsado da importancia da multa a que o condemnaram como inconoclasta. Mas a posteridade o desaggravara, ratificando a sua obra, demolindo pela segunda vez a columna Vendome e pondo no logar d'ella, em vez do genio das batalhas que lhe serve de remate, o genio da arte representado na estatua do grande pintor que na maneira de conceber e de executar a obra do espirito fundou a escola que sera uma das glorias d'este seculo, e na maneira de usar do governo em que teve parte commetteu o erro sempre fatal em politica de antecipar na pratica dos seus actos a opiniao do seu tempo. * * * * * Victor Manuel foi o homem forte por excellencia. Tinha o pulso athletico de Godofredo de Bulhoes. Poderia como elle decepar de um so golpe da espada a cabeca de um boi ou o tronco de um reaccionario; commandou como elle uma cruzada,--a cruzada de Novara ate Roma, como elle chegou a terra promettida; morreu moco como elle, como todos os heroes que tendo realisado na terra uma grande missao, se sentem de repente invadidos na alma pela tristeza immensa dos saciados. Teve a virtude symptomatica dos fortes--a colossal bondade. Ninguem abriu bocas mais fundas nas espadas dos seus adversarios; ninguem calcou a terra com sapatos mais fortes, mais intrepidos e mais bem ferrados, atraz dos tyrannos e dos cabritos, atraz das raposas e dos padres. Ninguem trepou com pulmoes mais rijos as altas cumiadas dos Appeninos e da liberdade. Ninguem sorriu com mais encanto e com mais prestigio a fadiga, ao perigo, as mulheres e a morte. Era evidentemente um forte. E como a forca e o maior de todos os attractivos humanos, ninguem conciliou como elle em torno de si tao contradictorias sympathias e tao heterogeneas affeicoes: foi o amigo do Papa e de Garibaldi, de Bismark e de Gambetta. Feliz homem! * * * * * A morte de Jose de Alencar, o auctor do _Guarany_ e de _Luciola_, representa uma das maiores perdas para a litteratura brazileira, tao notavel nos ultimos tempos pela cooperacao dos seus poetas e dos seus pensadores. Na sociedade do Brazil, que o principio da escravidao desviou por tantos annos tenebrosos do seu destino e do seu desenvolvimento natural, a organisacao moderna do trabalho livre e ao mesmo tempo a creacao de um novo elemento social--o povo. Jose de Alencar, romancista, poeta, jornalista, tribuno, influenciando poderosamente o seu tempo pela penna e pela palavra, era a imagem synthetica d'esse poder que se chama a Plebe, que procede da lama, e decide da sorte dos imperios. Elle, que alcancara um dos mais luminosos logares entre os homens mais celebres e mais prestigiosos do seu tempo, sahira do esgoto da cidade, procedera da roda dos expostos. Esse engeitado era a personalisacao mais gloriosa da soberania do trabalho, affirmando elle mesmo o seu direito, desembainhando no throno da arte a sua larga espada de justica, vestindo a tunica e a dalmatica azul, calcando as esporas de ouro nos coturnos hordados de lizes, e fazendo-se ungir e sagrar pelas multidoes como os antigos eleitos do senhor. E era a elle, como a todo o artista victorioso e triumphante, que se deveria dizer como Samuel ao rei Saul: "Deus te elegeu para reinar sobre a sua heranca e para livrar os povos das maos dos seus inimigos." * * * * * Augusto Soromenho foi o mais infeliz dos trabalhadores. A doce consolacao de cumprir um destino, consolacao compensadora de tantas amarguras e de tantos sacrificios, nao foi concedida na terra aquella natureza essencialmente desgracada. Tinha um incomparavel poder de applicacao e de estudo e ninguem possuia em Portugal uma provisao mais copiosa de nocoes e do factos. Foi o collaborador do Alexandre Herculano nas investigacoes da historia nacional, foi o seu melhor discipulo e o seu unico successor. Ninguem melhor do que elle conhecia as fontes e as correntes historicas dos nossos costumes e das nossas tradicoes. Era archeologo, diplomatico, jurista, bibliographo. Nao havia inscripcao truncada na epigraphia nem texto ambiguo nos codices que resistisse aos processos da sua sagacidade portentosa. A sua memoria phenomenal dava-lhe a omnipresenca de quanto tinha lido no recolhimento de vinte annos de estudo fervoroso e incessante. Era um tomo de erudicao vastissima, assombrosa, que ninguem consultava de balde em qualquer ponto da historia dos costumes; do direito, da politica, do governo, da economia, da arte, da litteratura e da lingua. Faltava-lhe porem no seu vasto e poderoso cerebro a faculdade da generalisacao. Nao sabia tirar dos factos as leis de que elles sao a funccao. Nao sabia correlacionar. Nao tinha o poder creador. Por esse motivo a isolacao suffocava a efficiencia da sua actividade. Era um instrumento, cujo machinismo precioso parava sem a impulsao de energias concomitantes e confluentes. Mas a sociabilidade litteraria a que elle estava condemnado a submetter-se para ser uma forca na civilisacao, repugnava ao seu temperamento de uma susceptibilidade intransigente aggravada por uma falsa educacao. Essa capacidade tao prodigiosa de contensao, de investigacao, de exame, de absorpcao de ideas, estava na sua natureza alliada a um temperamento caprichoso e feminil. Extremamente lymphatico, tendo sido epileptico na infancia, nao poderia fatalmente deixar de ser o que era: um sentimentalista. A sentimentalidade foi o cachopo de todas os naufragios da sua inquieta o attribulada existencia. A indifferenca perante o conflicto e uma nobre virtude. Raros a possuem. O que succede com as naturezas vulgares e que a nossa resolucao boa, conscientemente reflectida, reforcada na mais legitima compenetracao do dever, da dignidade, da honra, desmaia na conjunctura do conflicto que vae provocar entre amigos, entre companheiros, entre camaradas, e nos precisamos de reagir sobre nos mesmos com toda a forca da nossa coragem para nos determinarmos a effectuar pela nossa iniciativa a explosao da crise irreconciliavel que presentimos latente, palpitante, dependente da palavra decisiva que por um dever de consciencia profundo e sagrado vamos lancar ao coracao d'aquelles que nos rodeiam. Pois bem: essa virtude, tao rara, tao viril, de desmanchar implacavelmente prazeres para implantar controversias, essa virtude, dizemos, possuia-a Soromenho no estado de uma exageracao pathologica. O conflicto na convivencia social nao somente lhe nao repugnava mas attrahia-o--como succede as mulheres nervosas. Consideravam-o geralmente uma vibora. Elle era apenas uma creanca. As suas violencias mais asperas procediam todas logicamente da sua sensibilidade doentiamente delicada. Ninguem teve a injuria mais pronta pela mesma rasao de que ninguem teve egualmente a compaixao mais facil. Ninguem proferiu improperios mais pungentes, mas tambem ninguem chorou lagrimas mais enternecidas. Os que o viram aggressivo e verberante nas sessoes da Academia, nos conselhos do Lyceu Nacional e do Curso Superior de Lettras nao conheceram senao metade d'essa physionomia tao caracteristicamente meridional nos tracos moraes como nas formas physicas. Era preciso ouvil-o na intimidade da sua bibliotheca, no terceiro andar obscuro e modesto, conhecido de toda a mocidade estudiosa, terceiro andar a que tantas vezes subiram para fumar o cigarro democratico da camaradagem litteraria Lord Talbot, Lord Stanley, Gayangos, o conde de Brandebourg e tantos outros extrangeiros e viajantes illustres, para os quaes aquella humilde casa de litterato, tao hospitaleira e tao pobre, tinha altractivos que nao podiam propornionar as exigencias dos philosphos e dos principes, os mais brilhantes saloes de Lisboa. Era preciso onvil-o ahi dissipar em bonhomia e em sensibilidade todo o nervosismo do seu coracao com a mesma prodigalidade cem que nas assembleas officiaes acabara de dispender as violencias do seu cerebro imperfeitamente orientado. Quando alludia a sua encantadora aldeia natal nas margens do Ave, perto da Villa do Conde, as doces paizagens do Minho onde elle viajara alegremente a pe nos dias azues da sua mocidade; quando repetia o estribilho de uma saudosa cantiga, os versos melancolicos de uma lenda ou de um romance popular; quando narrava a volta de uma _esfolhada_ nocturna, sob o luar, ouvindo o gotejar da agua no fundo da deveza o canto dos rouxinoes atravez da espessura negra dos pomares; quando descrevia as madrogradas da caca as perdizes no monte de S. Felix, ou as outras madrugadas mais alegres ainda das romarias minhotas, em que os clarinetes amanhecem antes dos melros, fazendo dancar pelos caminhos as bellas raparigas louras; quando finalmente se referia aos companheiros, aos amigos, que deixara dispersos na vida, os seus olhos de arabe, negros, rasgados, contemplativos, marejavam-se-lhe de lagrimas, e a sua voz cheia, incisiva e dominante, que nunca tremia nem se velava no maximo arrebatamento da colera, embargava-se-lhe em solucos, estrangulada pela saudade ao recordar um companheiro da infancia, um bom sitio amado, uma velha cancao querida. Banido da Academia, banido da Torre do Tombo, os dois unicos campos em que se podia exercer com proveito e com honra da patria a actividade da sua intelligencia, Augusto Soromenho foi enterrado vivo, e vivo foi sepultado n'este medonho tumulo--o despreso. Nos seus ultimos tempos trabalhava ainda. Trabalhou ate o seu ultimo dia. Ha cerca de um anno padecia uma dor sternalgica, symptomatica do aneurisma. Esta dor lancinante, que o privava do movimento, forcando-o a parar de repente na rua, obrigou-o a interromper antes d'hontem de madrugada a leitura que estava fazendo desde a meia noite na sua biblioteca. Acudiu-lhe a sua familia, chamou-se a pressa um medico. Inutilmente. Elle estava morto. Seria mais que omisso, seria infame, que, tendo conhecido Augusto Soromenho desde a sua infancia, o que escreve estas linhas deixasse de acrescentar que a reputacao tao frequentemente discutida d'esse traballhador desventurado foi sempre pura e immaculada aos olhos de quem o tratara intimamente durante o longo decurso de perto de trinta annos. O que faz este depoimento deseja para honra da humanidade que os Curcios e os Plutarcos encarregados de celebrar a vida e feitos dos Scipioes illustres e dos Catoes celebres achem sempre nos seus heroes tantas qualidades desinteressadas e nobres para serem cobertas de rhetorica, quantas aquellas que em Augusto Soromenho foram deturpadas pela maledicencia. * * * * * Com esle titulo--_Ao sr. Ramalho Ortigao_--publicou o _Diario da Manha_ o folhetim seguinte: _Os exames no Lyceu Nacional--Os fins da educacao--Um programma de ensino para o sexo feminino--Como se prepara a emancipacao das mulheres--Duas catastrophes: o estado da litteratura feminina, e o estado da cosinha nacional--Grito afflictivo do paiz: menos odes e mais caldo_. Termina assim o summario do ultimo numero das _Farpas_. Qual de nos deixaria de ler com a maxima attencao um artigo escripto pelo sr. Ramalho, sobre assumptos de tanto interesse para o nosso sexo? nenhuma de certo. E para que se nao diga com verdade que o grito afflictivo do paiz, do qual o sr. Ramalho se faz orgao, pedindo-nos caldo, nao foi ouvido por uma so mulher portugueza, que, condoida, o soccorresse, venho por mim e em nome das senhoras portuenses, dar-lhe nao so _caldo_, mas tambem _luz_, que o alumie nas suas investigacoes acerca d'um assumpto, que e realmente grave--a dyspepsia nacional, que s. ex.ª attribue a nossa ignorancia culinaria, fazendo assim pesar sobre nos, tao tremenda responsabilidade. Se o assumpto de que se trata, nao fosse realmente grave, contentar-nos-hiamos com o praser que nos da sempre a leitura dos escriptos do sr. Ramalho, pela elegancia do seu estylo, e finura do seu espirito, e apenas diriamos, na nossa linguagem de cozinheiros: E pena que os escriptos do sr. Ramalho nao sejam mais succulentos! sao como os caldos feitos pelos cosinheiros francezes, de apparencia magnifica, depurados ate a transparencia, muito aromatisados ... mas sem substancia. Quer-nos porem parecer, apesar da ironia com que o sr. Ramalho falla sempre de nos, que nao tem rasao para nos querer mal; e que como filho, esposo e irmao de senhoras portuguezas, e por isso quasi nosso irmao, deseja com certeza a nossa felicidade e se promptificaria da melhor vontade a fazer-nos um favor se lh'o pedissemos. Ouca-me pois. Nao ensine a sr.ª D. Jeronyma, nem a mulher nenhuma portugueza, como se faz esse alambicado caldo francez, tao purificado, que por fim como o proprio sr. Ramalho confessa, deixa de ser um alimento. Se tem amor a sua patria, anime-nos, e aconselhe-nos a que continuemos a fazer os classicos caldos portuguezes, succulentos e compactos como os faziam nossas avos, e como nos todas ainda hoje sabemos fazer. Se o principal agente do temperamento d'um povo, do seu caracter e da formacao das suas ideas, e, como s. ex.ª diz a sua alimentacao, nao esquecamos que foi comendo esses caldos e quasi so com elles, que os energicos e valentes portuguezes contiveram sempre em respeito o poder de Castella, e que na Africa, e na Asia praticaram accoes de tao prodigioso valor. E descendo a historia dos nossos dias, lembre-se que os vultos grandiosos dos lidadores da epopea da liberdade, apesar de alimentados pelo caldo nacional e entao infelizmente bem magro, mostraram em cem combates a sua heroica energia, e sua valorosa audacia, sem que o estomago se incommodasse com a dyspepsia nacional. E so com caldo, e com broa que todos os dias se alimentam aqui centenares de homens do povo, que supportam, sem cansaco, nem fadiga, durante dez ou doze horas por dia, os mais rudes trabalhos; e comtudo nao soffrem de dyspepsia. Sera por terem _mulheres muito instruidas_, ou porque o _caldo que comem e preparado por cosinheiros de 5:000 francos_? deve ser por uma d'estas rasoes, visto que e o sr. Ramalho quem nol-o affirma. A dyspepsia nao e em Portugal uma doenca nacional, e quasi privativa dos homens das classes elevadas--e quer que lhe digamos porque? Porque elles teem com raras excepcoes, uma mocidade dissipada; porque na idade dos quinze aos vinte annos, quando os rapazes inglezes e allemaes fazem consistir o seu maior prazer em se exercitarem nos jogos athleticos, e todo o seu orgulho em serem vencedores n'uma corrida ou n'uma regata, os portuguezes vao descancar das lides do estudo nos bancos dos botequins e das tavernas, onde e considerado heroe aquelle que come e bebe mais brutalmente, e como deus o que engole successivamente vinte e um calices de licor ou cognac, o que na pittoresca phraseologia d'esses senhores se chama dar uma salva real! Desculpa-os porem o axioma do nosso codigo de educacao: que e preciso dar muita cabecada para vir a ser homem serio. Conhece o sr. Ramalho, bem melhor do que nos, todos os perigos porque passam os rapazes desde que se emancipam da tutella materna, ate que chegam a ser homens. Estude o meio de os livrar d'esses perigos, e de lhes regenerar os costumes, e vera que, quando chegarem a ser chefes de familia, seu natural destino, nao precisarao de encontrar na esposa o braco forte que lhes seja amparo, e terao o estomago sao como em criancas, podendo digerir perfeitamente um caldo, mesmo quando elle nao seja perfeitamente transparente, e ate quando tenha seus vestigios de gordura. Faca isto que lhe pedimos, e todas nos bemdiremos o seu nome, pois d'este modo tera prestado um importantissimo servico ao seu paiz. O seu programma para a educacao das mulheres parece-nos excellente para a Franca, Inglaterra e outros paizes onde as meninas sao educadas nos collegios, longe da familia; mas aqui onde em geral as creancas que os frequentam comem e dormem em casa, essa educacao que nos habilita a ser boas _menageres_, ja que o sr. Ramalho gosta de francezismos, recebemol-a nos todas com o exemplo e licao de nossas maes. Em Portugal onde todo o servico domestico e geralmente feito em casa, todas nos sabemos como se lava, como se engomma, como se cozinha, como se faz doce, como se talha um vestido, etc. Mesmo as senhoras que nao fazem esses servicos sabem como elles sao feitos, pois desde criancas os viram fazer. O que nao sabemos, la isso nao, e _differencar os differentes generos de mobilia e o seu estylo caracteristico nas epocas mais notaveis da arte ornamental_, etc. etc.; mas em quanto considerarmos, como ate agora, a vontade, e o gosto do dono da casa, a suprema lei que nos rege na escolha de todos esses artigos em que nos falla, deixaremos esses conhecimentos aos cuidados dos nossos maridos. Em quanto a nossa educacao moral, estamos convencidas que em paiz nenhum as mulheres sao mais honestas, mais laboriosas, mais dedicadas, mais sobrias e economicas, mais submissas a vontade do marido que nos, e toda a eloquencia do sr. Ramalho nao e capaz de abalar sequer a nossa conviccao. Em Franca e em Inglaterra ha muitas mulheres--por profissao--enfermeiras, aqui nao as ha senao nos hospitaes, e nem se lhes sente a falta, porque em toda a casa onde ha uma mulher, quer ella seja mae, esposa, filha, irma, ou mesmo criada, ha uma enfermeira sollicita, carinhosa e dedicada, cuja coragem nem sequer vacilla ante os horrores do contagio, que tantas vezes aniquilla o animo de homens energicos e audaciosos. Para sabermos fazer prodigios de economia nao precisamos de nos alistar n'uma escola ingleza, e, se o nao soubessemos, a primeira mulher do povo que interrogassemos n'ol-o ensinaria. Tambem em Portugal se pode sustentar uma familia com 18$000 reis por semana, mas n'essa familia--o chefe, que trabalha do nascer ao por do sol, sustenta-se comendo tres tigellas de caldo que lhe custam 10 reis cada uma, 20 reis de sardinhas, e 10 reis de broa por dia: total 90 reis. Convenca os homens, com a sua deslumbrante eloquencia, de que este alimento e muito sufficiente para lhes conservar robustas as forcas vitaes, e vera como nos todas fazemos economias prodigiosas, e como uma casa deixara de ser uma _loba_ para se transformar n'uma _burra_. Mas se considera como o ideal da perfeicao na mulher, ser ella o _braco forte e escudo da familia_, tambem lhe podemos aqui apontar numerosos exemplos d'essas. As mulheres de Avintes passam os dias remando e guiando barcos no nosso Douro para ganhar o pao dos filhos, em quanto os maridos ficam em casa cosinhando: ja ve que para qualquer de nos realizar o seu ideal basta casar em Avintes. A educacao intellectual das mulheres, quando ellas se nao dediquem a ser mestras, pode, e ate deve, assim como a moral, receber, como complemento necessario, as licoes dos homens de quem forem esposas. Assim reconhecendo no marido superioridade em tudo, ate mesmo nos conhecimentos litterarios, ser-lhes-ha mais facil ter por ele esse respeito que a religiao e a sociedade nos impoem como o primeiro dever da esposa. Em quanto a emancipacao das mulheres, esse sonho dourado das senhoras inglezas--nos, menos profundas pensadoras, nao o queremos. Entendemos que a naturesa, que nos obriga a soffrer cruciantes dores physicas para attingirmos o apogeo da nossa gloria--o ser mae, nos ensina a todas, que a nossa missao na terra, e saber soffrer e amar, por isso beijamos com os olhos rasos de lagrimas de alegria o filho que acaba de nos fazer soffrer as dores da maternidade, e abencoamos reconhecidas a mao que prende as nossas algemas de escravas, quando essa mao e a de um homem, em quem passados os enthusiasmos da paixao, encontramos as solidas virtudes que apreciamos e respeitamos. Regenerados os costumes dos homens, a familia portugueza, constituida como ate agora, poderia ser apresentada como modelo as nacoes mais civilizadas da Europa. Filhos ambos da mesma terra, e quasi da mesma idade, considero-me sua irma e como tal deixe-me dar-lhe um conselho. Se eu tivesse a sua intelligencia, inquestionavelmente uma das mais brilhantes do paiz, essa sua robustez physica, a sua grande cabeca na qual o chapeo de Thiers ou de Bismark assentaria perfeitamente, dedicar-me-hia a escrever livros, que fossem mais uteis do que agradaveis, e deixaria aos palhacos dos circos o trabalho de fazer rir o publico. Em paga de todos os favores, que lhe peco, prometto fazer-lhe so um, mas esse importantissimo. Nao dizer a nenhuma senhora portugueza com que caldo creseu e medrou o sr. Ramalho, senao julgal-o-hiam tao criminoso como quem maldiz dos seus. Sua _Irma de Caridade_ * * * * * Reproduzimos esse importante folhetim porque nos asseguram que effectivamente e escripto por uma senhora. Sob este ponto de vista elle e para nos de um valor inestimavel. Este folhetim e a mulher. Nao somos ja agora nos que tenhamos de dar-nos ao trabalho delicado e subtil de a retratar. E ella mesma que vem reproduzir-se n'estas paginas com n'um espelho. Esta imagem directa do vivo constitue a mais preciosa acquisicao da nossa galeria. Nao somos nos que a descrevemos, que a phantasiamos, deturpando-a talvez na pureza da sua linha por meio de um lapis suspeito de inhabilidade ou de ma fe. Veem que e ella mesma que apparece, que faz o favor de mostrar-se viva, a corpo inteiro, na sua prosa com atravez de um vidro. Queira approximar-se, meus senhores! queiram approximar-se! espreitem por este buraco e vejam-a! Ahi a teem! E assim que ella e. Nao ha artificio, nao ha preparo, nao ha processo nenhum de stylo para a fazer melhor ou peor do que a realidade mesma. Reparem bem, meus senhores, que nao e Proudhon que a descreve, nao e Coubert que a pinta, nao e Offenbach que a poe em musica. E ella mesma, ella em pessoa, que corre uma cortina e apparece. O que estaes contemplando e a obra da direccao mental que nos mesmos imprimimos ao nosso tempo, e o fructo legitimo e authentico da philosophia, da litteratura, da arte, da corrente geral de ideas que temos produzido e impulsionado: e a nossa mulher tal como nol-a fizeram os contactos da nossa convivencia--a escola, o jornal, o livro. Revede-vos na vossa obra. Esse curioso ente representa a somma de vinte annos de poesia lyrica e de po de arroz, de rhetorica e de _chic_, de doce d'ovos e de cuia, de recitacao ao piano e de tacoes Luiz XV, de collegio nacional e de _cold-cream_, de figurino e d'agua morna. Glorioso conjuncto. Vede que lucidez de razao! que firmeza de criterio! que contensao de raciocinio! Como se adivinha bem no poder d'essas faculdades intellectuaes a circulacao facil e viva atravez da rede dos nervos encephalicos de um sangue opulento e forte! A mente sa que tao vigorosamente se affirma no curioso trecho litterario que acabaes de ler presume o organismo mais perfeito, o corpo mais denso, o musculo mais racionalmente exercitado por uma sabia hygiene. Pela sua forte maneira de pensar podeis ajuizar com seguranca da sua forte maneira de viver. Vede e applaude! Aplaudi-a a ella pelo que aprendeu; applaudi-vos a vos mesmo pelo que lhe ensinastes. * * * * * Esta senhora, em nome de todas as outras senhoras, das quaes ella se diz interprete, dirigi-se as _Farpas_ na pessoa do seu auctor. O que sao as _Farpas_ com relacao as mulheres? As _Farpas_ sao a publicacao periodica--unica em Portugal--que em artigos consecutivos desde a sua apparicao ate hoje se tem constantemente consagrado por meio dos seus processos de critica a reconstituicao dos costumes e a reorganisacao da familia segundo o criterio porque se dirigem as sociedades modernas; ellas teem combatido violentamente o divorcio; teem despojado o adulterio da clamyde dramatica em que tantas vezes o envolve a poesia doentia, para o flagellarem pelo ridiculo na sua torpeza nua; teem honrado o casamento indissoluvel como sendo a mais sagrada das instituicoes perante a dignidade humana; teem fulminado o celibato como um aleijao physiologico e social; teem dado como base a emancipacao da mulher a instruccao pratica, tao defficiente, e a alta cultura do espirito, tao negligentemente descurada na antiga educacao; teem-lhe ensinado que e aprendendo desveladamente a ser util que ella descobrira o segredo de ser verdadeiramente e eternamente amada; teem sollicitado a sua collaboracao no estudo dos modernos problemas sociaes como factor indispensavel a fixacao do nosso destino; teem pedido instantemente para ella a fundacao de novas escolas de ensino especial e de ensino superior; teem-lhe dirigido constantemente durante cinco ou seis annos palavras graves, affectuosas, sinceras; teem-lhe fallado, como velhas amigas dedicadas, dos seus interesses mais caros: das bonecas das suas filhas, dos jantares de seu marido, dos arranjos da sua casa, da cosinha, do jardim, da adega, do armario das roupas brancas, do valor dos alimentos, da ordem, da economia domestica, etc.; teem-lhe feito presente de uma infinidade de theorias, de nocoes, de projectos, de systemas, de programmas completos, imperfeitamente concebidos--e claro--mas demonstrando uma dedicacao excepcional, por isso que nenhuma das publicacoes periodicas que precederam esta se dirigiu jamais as mulheres a nao ser para lhes consagrar romances de uma moralidade suspeita ou versos de uma honestidade duvidosa. Depois de publicados cerca de quarenta volumes da collecao das _Farpas_ uma senhora tem finalmente alguma cousa que dizer ao auctor, e manda-lhe o seguinte conselho como resumo da opiniao collectiva de todas as damas portuguezas: "Que elle trate d'outro officio e deixe aos _palhacos dos circos_ o trabalho a que ate aqui se tem dado de fazer rir os outros!" Este simples conselho e como um relampago, nas trevas do nosso espirito. Elle de per si so basta para nos convencer de que a educacao das senhoras portuguezas nao so e igual--como a auctora modestamente formula--a das primeiras mulheres extrangeiras, mas que pode mesmo considerar-se-lhe superior. Effectivamente madame Sand, madame de Girardin, Lady Morgan nao tiveram nunca para dirigir a um escriptor qualquer--amigo ou adversario--uma palavra tao lucida, tao conceituosa, tao profunda e ao mesmo tempo tao finamente aristocratica, tao nobremente distincta como aquella com que somos honrados pelo criterio da nossa illustre compatriota. Sua excellencia entende que nao somos mais que _um palhaco de circo_, opiniao profundamente philosophica. E talvez isso mesmo o que todas as mulheres extrangeiras pensariam se nos lessem. E natural porem que ellas tivessem achado entre as suas perolas, entre as suas rendas, por baixo das suas luvas, no fundo de algum velho cofre perfumado, de alguma doce gaveta esquecida, entre as mimozas recordacoes perdidas da sua carteira ou do seu coracao, um pequeno meio qualquer de nao chamarem completamente palhaco com todas as suas cinco lettras e a sua respectiva cedilha, _p-a-l-h-a-c-o_ a um homem a quem os seus maridos lhes houvessem permittido dirigir uma carta pela imprensa. Sua excellencia a illustre escriptora portuense tem da dignidade alheia e da sua propria dignidade uma comprehensao diversa, que nao podemos deixar de attribuir com orgulho patriotico a influencia local da rua de Cedofeita sobre os requintes da delicadeza feminina. Nao e menos original nem menos profundo o modo como a nossa distincta compatriota contesta a conveniencia de ensinar physiologia humana e chimica culinaria as meninas portuguezas. Se sua excellencia tivesse effectivamente a instrucao que nos pretendemos que se lhe deve dar; se sua excellencia houvesse comprehendido que a mais nobre missao da mulher e, como diz Michelet, a de alimentar o homem; se para nos provar que estava apta para cumprir no seio da sua familia essa missao, sua excellencia nos convencesse de que conhecia a synthese chimica da nutricao, a evolucao cellular, a relacao existente entre os phenomenos da nutricao e do desenvolvimento, do movimento e da combustao; se nos mostrasse que estava habilitada a distinguir os principios alimentares pelas suas classificacoes mais genericas, os que fornecem o calor e a forca e os que ministram os alimentos reparadores; se nos revelasse que sabia dirigir technicamente um jantar, ou fazer pelo menos um simples caldo, por lhe terem passado pelos olhos, uma vez pelo menos, alguns dos eminentes trabalhos consagrados a este assumpto essencialmente vital pelo sr. Gautier, que fez um tratado de chimica applicada a hygiene, pelos srs. Moleschott e Geoffrey Saint-Hilaire nas suas cartas sobre as substancias alimenticias, pelo sr. Champouillon na sua _Hygiene alimentar_, pelo sr. Claude Bernard nas suas licoes e conferencias, pelo sr. Bouchardat na sua memoria sobre a alimentacao insuficiente, pelos srs. Liebig, Payen, Foussagrives, Gustave le Bon, Letheby, Marvaud, Michel Levy, Coulier, Lacassagne, Fleury, Motard, Wurtz, etc.; se sua excellencia possuisse finalmente--ainda que no estado da mais ligeira tintura--alguma das nocoes em que se basea a theoria da cosinha, que e um dos mais importantes factos da hygiene ou da physiologia applicada, o seu voto n'esse caso poderia ter discussao. A brilhante ausencia de ideias que sua excellencia manifesta sobre este assumpto da ao seu voto um caracter irrevogavel, que nao pode infundir nos adversarios senao admiracao e respeito. E inutil que Smith por um lado e o doutor Byasson por outro se tenham dado ao trabalho de reconhecer por meio de experiencias feitas sobre o seu proprio organismo qual o dispendio de carbone e de azote em cada hora, ja dormindo, ja caminhando, ja executando um trabalho mental ou muscular, para regular sobre este dispendio a racao alimentar de cada individuo. E inutil que o doutor Franckland e Payen tenham feito as analyses mais escrupulosas para nos darem um quadro do valor nutritivo dos diversos alimentos e da quantidade de forca e de calor desenvolvida pela oxydacao d'elles. E inutil que o doutor Chenu e o doutor Shimpton nos tenham mostrado pela comparacao das estatisticas da salubridade nas campanhas da Crimea e da Italia o extraordinario poder da qualidade da alimentacao sobre a saude e sobre a energia dos soldados. E inutil que pelo estudo de iguaes estatisticas com relacao a alimentacao de operarios empregados nas grandes industrias se tenha provado que da qualidade da alimentacao resulta o augmento ou a diminuicao de 20 a 30 por cento no trabalho de cada homem. E inutil que Geoffrey Saint-Hilaire nos tenha dito: "Quantos factos na vida das nacoes attribuidos pelos historiadores a diversas causas complexas e cujo segredo reside simplesmente na cosinha das familias!". E inutil que toda a sciencia tenha provado que a maioria dos crimes e dos vicios se deve attribuir em cada sociedade ao seu regimen alimenticio; que o uso dos alimentos nervinos e uma necessidade inviolavel na rude concorrencia vital do nosso tempo; que e indispensavel perante a moral e perante a justica melhorar a alimentacao dos trabalhadores facilitando-lhes a acquisicao dos alimentos plasticos e reparadores geralmente insufficientes na sua economia. E inutil que em todos os paizes civilisados os sabios, os philosophos, os estadistas procurem por todos os meios de vulgarisacao e de associacao chamar a attencao das mulheres para o estudo e para a resolucao d'esse grave problema cuja sede e a cosinha. E inutil tudo quanto se tenha allegado e quanto possa allegar-se para convencer esta illustre senhora portuense da vantagem que resultaria para os seus similhantes do facto de ella aprender a fazer caldo um pouco menos empyricamente do que por tel-o visto fazer a cozinheira da sua avo. Sua excellencia tem para manter a inalteravel tradicao sobre os methodos de deitar a carne a panella nas cosinhas da sua rua este argumento supremo: Foi com essa panella a frente que os portuguezes contiveram em respeito o poder de Castella e praticaram prodigios de valor Da Asia, na Africa e na Epopea da Liberdade. Segundo sua excellencia foi abracados a travessa do cosido que nossos avos descobriram a India e que os paes de uns de nos resistiram aos paes dos outros durante o cerco do Porto. Os vencidos jantavam no _Bignon_ ou no _Cafe Anglais_. Em presenca d'essa logica de ferro submettemo-nos humilhados e reverentes. Uma vez que as coisas se passaram como sua excellencia affirma, nada se nos offerece retorquir. Mantenha-se o _statu quo_ na perfeita educacao da mulher portugueza. Continue sua excellencia imaginar que sabe cosinhar, que sabe lavar a roupa, que sabe talhar um vestido e que sabe tambem--o legitimo orgulho!--_fazer doce_.--De mais a mais--notem--sua excellencia faz doce! Nao! positivamente nada se nos offerece retorquir-lhe. Faz doce? Bem. Nao precisa de saber mais nada. Ahi tem sua excellencia uma opiniao que lhe garantira "as solidas virtudes que seu marido desenvolver no lar domestico passados os enthusiasmos da paixao":--sua excellencia gosta de assucar! Quem sabe se nao sera por um effeito do atavismo sobre a gula qae os meninos de quinze annos de quem sua excellencia nos falla vao beber licores para os botequins? As maes dos que amam os jogos athleticos e as proezas musculares teem ellas mesmas nao a opiniao do assucar mas sim a do _roast-beef_ e da agua fria; nao fazem doce, fazem gymnastica, e nao ensinam os filhos unicamente a comer marmelada, a ir a novena e a nao metter os pes nas pocas; ensinam-lhes o cricket, a natacao e o _box_, dao-lhes desde a idade mais tenra os habitos mais viris, e, como sabem impedir que elles vao para os botequins, nao costumam encarregar os criticos de lh'os ir la buscar. * * * * * Sua excellencia nao se recusa unicamente a aprender a fazer bom caldo segundo os preceitos de Liebig, que nos lhe aconselhamos suppondo que Liebig, um dos primeiros chimicos do mundo, sempre saberia um pouco mais d'isso do que o Antonio das Mocas, celebre inculcador de cosinheiras, encarregado de ministrar as donas de casa portuenses as suas mestras da arte culinaria. Sua excellencia nao so nao quer fazer caldo em termos para seu marido, mas nem mesmo quer escolher a mobilia, comprar os pratos e os copos, determinar a differenca de cor nos estofos do salao e da sala de jantar, tornar a casa alegre, ridente, aprasivel e digna, pagando assim em elegancia, em delicadeza e em bom gosto a sociedade conjugal um servico igual aquelle que recebe d'ella em protecao, em trabalho e em forca. Sua excellencia prefere _deixar todos esses conhecimentos aos cuidados do dono da casa_ (!) _cuja vontade considera a lei suprema, na escolha de todos os artigos!_ Ficariamos na mais inquietadora duvida acerca das funccoes que sua excellencia deseja exercer no lar domestico, se ella mesma nao tivesse a bondade de nos explicar que a occupacao para que se reserva e a de _abencoar agradecida a mao que prende as suas algemas de escrava_ (!) O que nos parece e que esse mister exclusivo de sua excellencia nao promette uma existencia bem divertida em familia ao portador das suas algemas! Se fossemos seu marido declaramos que nos desquitariamos se sua excellencia recusasse aprender pelo menos, alem de abencoar os ferros, a jogar a bisca. O nosso temperamento nao nos permittiria estar a dar-lhe constantemente o grilhao a abencoar; quereriamos ter a faculdade de poder dar-lhe tambem, de quando em quando, para variar, uma boa rolha. * * * * * O folhetim de sua excellencia termina com uma allusao pessoal a nossa robustez physica e ao caldo que nol-a creou. Sobre este ponto pedimos licenca para ministrar alguns breves esclarecimentos biographicos: Eu--pois que e bom precisar a clareza dos numeros--eu, auctor d'estas linhas, nao me creei no regimen dietetico do Chiado ou da Calcada dos Clerigos. Nao, minha senhora: eu creei-me no caldo d'unto e na broa dos homens do campo. Estou prevendo que sua excellencia tirara d'este facto a conclusao maliciosa de que nao tomei cha em pequeno. Que sua excellencia nao hesite um momento em tirar tal conclsao! E ate favor que me faz--para simplificar os dados do problema--o partir do principio de que nao tomei ease cha. Agora o que tomei, foi o bom ar puro, saudavel e honesto da querida courella onde nasci e em que me creei. Entre os preciosos alimentos mineraes de que me nutria havia um principio de primeira importancia para o perfeito desenvolvimento do meu arcabouco:--o phosphato de cal, que eu ingeria em grandes dozes. A nossa casa, cercada d'arvores, no meio de campos, nao tinha saguao, nao tinha visinhas de cuia do retroz e de sapatos achichelados, nao tinha pia. A vida que cercou a minha infancia era simples, rude, poderosa, como o grande ar vivificante que me envolvia. Dos homens da minha familia o primeiro plumitivo sou eu. As mulheres eram ingenuas creaturas que, sem terem lido nunca Proudhon ou Taine, sem conhecerem nenhuma das theorias dos modernos moralistas tinham todavia comprehendido e assimilado por um instincto cheio de lucidez, os dois principaes deveres de uma mulher: Primeiro ser saudavel; Segundo nao ser conhecida. No interior da sua casa eram admiraveis exemplos de dignidade, de trabalho, d'ordem, de economia, de bom humor. Madrugavam como as cotovias e nunca o velho piano de cauda, que eu conheci ao canto da sala grande, deixou de se fechar de memoria d'homems as 10 horas da noite, o mais tardar. Nao se desprezavam de cultivar, ellas mesmas, os seus canteiros de tulipas e de cravos, e eu seria o primeiro dos artistas portuguezes se conseguisse um dia condensar n'um livro toda a somma de methodo, de ordem, de execucao esthetica, de picante espirito pittoresco, de risonha graca, de que era modelo a incomparavel cosinha da minha avo,--aberta ao nivel do pateo defronte do poco, cheia das alegrias scintillantes do sol e do balsamico perfume dos limoeiros; enfumada, com os dois escabellos de carvalho de cada lado da borralheira sobre o vasto lar de granito; a enorme capoeira onde se espanejavam os capoes; os tropheus ornamentaes dos instrumentos agricolas; as prateleiras da louca reluzente; o cortico da barrela e a masseira do pao a um canto; os bambolins de paios e de presuntos do fumeiro suspensos do tecto; a comprida meza dos mocos da lavoura tendo em cima a grande celha com a bracada verde dos frescos legumes picada com as pintas douradas das cenouras entre as avelumeio e gordas efflorescencias dos broculos; e no meio d'isso a intervencao periodica do mendigo de estrada, de alforge ao pescoco, que vinha encher a sua escudela de batatas ou de caldo, em quanto os pardaes mais atrevidos iam sem pedir esmola debicar a broa do balaio na testada do forno. Esse conjuncto exhalava uma penetrante sensacao de tepido aconchego, de suave alegria, de inalteravel paz; inspirava sentimentos praticos e honestos; era o complemento e o commentario vivo das velhas historias contadas a lareira; infundia o respeito da tradicao; dava o amor da familia; explicava o amor a, terra da patria pela dedicacao as quatro bracas de solo cobertas por esse velho tecto. A cosinha de minha avo era finalmente uma profunda obra d'arte, da qual os mais bellos quadros da escola flamenga, tao penetrados como sao da poesia domestica, nao poderam dar-me jamais senao uma ideia desbotada e fria. Escuso de acrescentar que toda a obra de quantas litteratas tem havido em Portugal nao pode senao fazer-me sorrir comparada a obra modesta de minha avo, que ella tirou n'um preciosa exemplar unico para a educacao das suas filhas, para a fixacao do respeito, da veneracao e da saudade eterna dos seus netos. A minha robustez physica e o mais contraproducente dos argumentos que a minha contraditora podia adduzir em favor da sua doutrina. Diz Hahnmann que a fraqueza do homem principia sempre na fraqueza da mae. A minha robustez devo-a eu a descender de uma vigorosa raca de mulheres, que os nobres cuidados da sua casa e da sua familia tiveram sempre ao abrigo das sentimentalidades enervantes e das publicidades burlescas: poucas vezes empallideceram nos bailes e nao tiveram nunca de que corar aos folhetins dos periodicos. * * * * * Terminando, agradeco de novo os conselhos de sua excellencia a illustre escriptora minha patricia, mas peco licenca para os nao seguir. Continuarei a fazer rir os outros, o que me nao impedira de fazer tambem chorar alguns, uma ou outra vez, quando for preciso. * * * * * Por occasiao da visita de el-rei a Escola Polytechnica funccionou o telephonio entre uma das salas da Escola e o Observatorio da Tapada. Approximando-se do novo apparelho transmissor dos sons, dizem os jornaes que sua magestade ouvira--um solo de cornetim! Houve primeiro duvida sobre se o fio ligava a Escola Polytechnica com o Observatorio Astronomico ou se a ligava com a phylarmonica _Uniao e Capricho_. O solo era effcctivamente executado pelo Observatorio. Emquanto a astronomia tocava cornetim e natural que, em compensacao, a arte musical se occupasse em determinar uma parallaxe. A unica cousa que extranhamos e que o Observatorio nao observasse entre as suas pecas de musica alguma coisa mais interessante para transmittir a el-rei do que o proprio hymno do mesmo augusto senhor. Que o Observatorio cultive a especialidade do cornetim, perfeitamente de accordo! mas que elle cultive igualmente a especialidade do hymno parece-nos um abuso que o principe nao levara a bem. Reflectiu por acaso o Observatorio no que e o hymno para um cerebro coroado? Cremos que o Observatorio nao desceu ainda com as suas conjecturas ao fundo d'esse abysmo. E horroroso. Para os cerebros coroados o hymno equivale a uma enfermidade monstruosa. O observatorio faz certamente ideia do que e ter zumbidos, nao e verdade? Pois ter hymno e peor. E ter constantemente, durante toda a vida, em casa, na rua, em viagem, nas cidades, nas villas, nas aldeias, sobre as proprias aguas do mar, sempre, por toda a parte como doenca chronica, como affeccao incuravel do nervo acustico, a audicao do mesmo trecho de musica!--O que deve levar paulatinamente a loucura. Que o Observatorio se compadeca do infeliz principe condemnado a tao incomportavel flagello! O Observatorio ha de ter conhecimento das contrariedades que amarguram a existencia; o Observatorio ha de ter faltas de dinheiro, ha de ter constipacoes, ha de ter dores de dentes, ha de ter calos. O principe tem tudo isto, e demais a mais tambem tem hymno. Poupemol-o ao desgosto de o fazer acompanhar pelo seu triste mal as regioes da sciencia! Inflijamos-lhe o solo, visto que nao ha outro remedio, mas perdoemos-lhe por esta vez o hynmo! Sejamos terriveis, mas sejamos justos! A providencia collocou-nos na mao o cornetim. O monarcha presta-nos submissamente o seu real ouvido. Nao abusemos d'esse instrumento poderoso e d'essa orelha innocente! Compenetremo-nos da tremenda responsabilidade que pesa sobre nossas cabecas! Somos cornetistas, mas somos tambem astronomos ... Toquemos o _Pirolito!_ E a posteridade nos abencoara. * * * * * Ha tempos que na sociedada portugueza se notava esta grande falta: A hydra da reaccao desapparecera da orbita dos conflictos do poder politico e do poder clerical. Os srs. ministros, reunindo-se em cada manha nas secretarias do Terreiro do Paco, perguntavam angustiadamente uns aos outros: --Nao viram por ahi a hydra? Ninguem a tinha visto por ali. Os joanetes do sr. Barros e Cunha entumeciam de impaciencia por nao poderem esmagar o monstro; e o sr. Mexia, sem hydra que accommetter, sentia-se calvar de humilhacao na sua dupla qualidade de ministro dos negocios ecclesiasticos e de preterito imperfeito do verbo Mexer. * * * * * N'esta conjunctura por tantos titulos dolorosa o sr. marquez d'Avila, presidente do conselho, tomou uma resolucao heroica: determinou ser hydra do meio dia por deante. E principiou a accumular engenhosamente as suas funccoes de bicha ultramontana com as suas funccoes administrativas de homem de estado. Pela manha s. ex.ª governa. De tarde s. ex.ª rabea. Eis um dos resultados da dualidade que s. ex.ª se dignou de assumir para salvar a situacao da falta da hydra: * * * * * O servico dos enterramentos era feito em Lisboa na mais perfeita paz. Catholicos e nao catholicos eram levados para o cemiterio municipal pelos seus respectivos padres ou simplesmente pelos seus amigos ou pelos seus parentes, e todos tinham o seu logar na cidads dos mortos como o haviam tido na cidade dos vivos. Pendia apenas d'esse facto uma pequena questao canonica que o sr. patriarcha de Lisboa resolveu do modo mais exemplarmente sensato, ordenando que, visto considerar-se o cemiterio como uma instituicao municipal, os parochos benzessem as sepulturas dos que desejassem repousar em terreno sagrado, e nao benzessem as d'aquelles que se contentassem com uma modesta cova simplesmente civil. Nao tinha jamais de intervir a policia. O ministerio do reino estava a esse respeito completamente socegado em sua secretaria. Finalmente podia-se morrer em Lisboa so pelo gosto de ser tao tranquillamente enterrado. N'isto o sr. presidente do conselho sobrevem na sua forma de hydra e determina em favor da morte catholica a creacao de um muro similhante ao que o sr. Guillomin imaginou para abrigo da vida privada. A camara municipal de Lisboa reune-se para dar cumprimento a portaria de s.ex.ª e discutir o modo de levantar o muro. Propoem-se a tal respeito varios alvitres sobre os quaes predomina em ultima analyse o do sr. dr. Jardim. * * * * * Era previsto que o sr. Jardim seria o vencedor n'este pleito. Concorrem de facto n'essa cavalheiro todas as condicoes que se requisitam para o triumpho. Em primeiro logar, pelo lado physico, elle dispoe da primeira cabelleira do paiz. Em segundo logar, pelo lado intellectual, elle tem uma formula. A sua formula e esta: "..._O bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha_ ..." Sempre que esse homem terrivel arroja para traz das orelhas a sua cabelleira e descarrega sobre os auditorios a sua formula, a victoria e d'elle. A sua existencia tem sido uma serie nunca interrompida de triumphos, alcancados pela sua cabelleira e pela sua formula. Foi pintando cheio de cabello e de ardor o _bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha_ que elle triumphou no quinto anno da sua formatura em direito, na defeza das suas theses de doutoramento, na exhibicao das provas do seu concurso para lente da universidade, nas reunioes das associacoes operarias e phylarmonicas de Coimbra, nos conselhos fiscaes dos bancos hypothecario e de Lisboa e Acores, nas suas eternas preleccoes sobre o terceiro estado, e finalmente na discussao do muro Guillomin da morte catholica ordenado por s. ex.ª a nobre hydra de Avila e Bolama. * * * * * Foi baseado nos seus principios de direito administrativo e de direito canonico extraidos do _bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha_, e ardendo em zelo pela sua alta comprehensao scientifica e philosophica do phenomeno social da religiao e do facto biologico da morte,--comprehensao egualmente haurida do ja alludido bucentauro rasgando os supracitados flancos,--que s.ex.ª o sr. doutor convenceu a vereacao lisbonense a approvar nao so a creacao de um muro--o que a hydra parecera sufficiente--mas a de quatro muros, o que ao bucentauro ainda parece pouco. O muro primitivo da hydra com os tres muros complementares do sr. Jardim fecharao o recinto destinado de ora avante aos enterramentos de todos aquelles que morrerem fora do gremio da religiao catholica apostolica romana. * * * * * Nos suppunhamos que o caracteristico religioso que distinge um catholico dos membros de qualquer das outras cinco mil seitas religiosas que cobrem a superficie da terra era um facto dos dominios exclusivos da consciencia: que esse caracter desapparecia no limiar do obscuro portico infinito onde para a vida; que o cadaver deixava de ter uma religiao, cessava de pertencer a igreja, para pertencer exclusivamente a chimica. Suppunhamos que o cemiterio, considerado nao so pelo seu lado civil mas mas principalmente ainda pela intencao do seu instituto christao, era o campo sagrado do respeito, da tolerancia, do esquecimento de toda a discrepancia de ideas, de toda a offensa, de toda a injuria, a mansao eterna do perdao e do amor para todos aquelles que padeceram na terra as amarguras communs da grande humanidade coberta em toda a redondeza do orbe pela larga bencao incondicional de Jesus. Estavamos grosseiramente illudidos. O cemiterio, o cemiterio de Lisboa, pelo menos, o dos Prazeres ou o do Alto de S. Joao, e puramente um recinto de caracter official, destinado a fermentacao exclusiva das podridoes privilegiadas. Um sr. conselheiro, por exemplo, que morre hydropico na sua cama, bem ungido pela liberalidade amiga do seu cura, bem chapinhado em agua benta pelo compadrio do seu prior, correcta e apparatosamente amortalhado, com as suas calcas de galao de ouro duplamente retesadas pela inchacao e pelas presilhas, com a sua farda vestida, a sua barba feita, a commenda no peito, o espadim ao lado, o chapeo armado aos pes, o cordao da ordem terceira de S. Francisco a cinta, vae legitimamente e no uso do mais sagrado direito para o cemiterio, a esperar na morte a trombeta da resurreicao da carne, como esperou na vida a hora da sua reparticao. No dia da chamada geral no valle de Josaphat elle pora na cabeca o seu chapeo de bicos e ira tomar o competente logar na gloria eterna, na bancada dos conselheiros, a mao direita de Deus Padre Todo Poderoso. Mas tu, miseravel canalha, tu, concebido no monturo e dado a luz no cano do esgoto, tu que nao conheceste pae nem mae, producto espontaneo da grande immundice anonyma, apparecido como a flor da febre a superficie do pantano, tu que nao recebeste baptismo, nem confirmacao, nem ordem, nem matrimonio, nenhum finalmente d'esses preciosos beneficios que abrem o ceo e que a igreja confere por uma tarifa de precos superiores aos teus capitaes, tu, nao tinhas no cemiterio de Lisboa senao um logar usurpado, roubado indignamente as pessoas de bem. Estoiraste para um canto no enchurro em certa noite de inverno. Viveste e morreste fora dos sacramentos da nossa Santa Madre Igreja. Es como um cao. A tua natureza humana nao e a da outra gente. A tua podridao nao e a da cabelleira do sr. Jardim nem a do abafadoiro do sr. marquez de Avila. Tu es uma besta. Es peior ainda: es um impio. Vao conceder-te agora um quintal para ires para debaixo a terra para a estrumeira execranda dos atheus. Muito favor te fazem estes bons senhores em te nao remetterem as equarissagens para o esfollal Ainda que, por outro lado, na equarissagem, esfolado, distillado, amanhado convenientemente, podias ainda ter o prazer de uma sobrevivencia industrial, util ao teu proximo. Os teus principios chimicos, o teu hydrogenio, o teu oxigenio, o teu carbono, o teu azote, poderiam achar uma applicacao pratica e decente. Poderias aspirar na tua outra vida a abotoar com os teus ossos as calcas do sr. marquez de Avila e o lustrar com as tuas banhas a cabelleira do sr. Jardim e de outros doutores da camara municipal e da igreja. Na estrumeira dos impios que te destinam nada mais seras do que um eterno objecto de execracao e de horror para os teus concidadaos. Quando passarem por cima da tua cova os homens serios, a quem esta promettido o ceo sob a palavra de honra do padre Marnoco e de outros ecclesiasticos, elles cuspirao sobre a tua dissolucao infecta. As maes passarao de longe, correndo, com os seus filhos pela mao, fazendo-te figas. As velhas senhoras aristocraticas, entrevendo de passagem o teu cypreste agoirento, benzer-se-hao com as suas finas maos pallidas e rezarao os esconjuros mais efficazes no fundo tepido dos seus ligeiros _coupes_. Assim com as abencoadas sepulturas dos santos fazem os benignos milagres, a tua sepultura dara os horrendos enguicos. E eu te affirmo que ainda havemos de ver aquelles que eram cegos e que recuperaram a vista abracando-se as sagradas reliquias de um bom santo, perderam-a outra vez por a prostituirem affirmando-se nas vegetacoes malignas cujas raizes se tenham contaminado no teu humus preverso! Finalmente seras detestado, abominado, execrado, maldito,--cem mil vezes maldito pelos homens, pelas mulheres, pelas creancas, pela cidade inteira. E cuidas tu, miseravel, que poderas encontrar um dia na eterna justica inviolavel a compensacao d'este despreso systematisado, d'este rancor que e um regulamento municipal, d'este odio que e uma lei do reino? Como te enganas! O que tem de te succeder e irremissivelmente o seguinte: No dia do juizo final tu ouviras na profundidade do teu estrume o canglor da enorme trombeta mais longa que a via lactea, soprada por um anjo que desde o principio do mundo tera estado a recolher no pulmao para os expellir n'esse instante, todos os estampidos da natureza, todos os bramidos do mar, todas as erupcoes dos vulcoes, todas as quedas das catadupas, todos os estrondos reunidos do vendaval, do trovao e do raio. Nao teras remedio senao acordar,--quer queiras, quer nao--do teu pesado somno da materia bruta. Seras levado a revista do grande valle por dois ceruleos cherubins de pequenas azas luminosas suspensas nas espaduas como moxilasinhas feitas da pennugem do sol. Esses cherubins dir-te-hao com a sua doce voz pollida, affectuosa, mas vibrante: "Vocemece ha de ter a bondade de passar ali para a mao esquerda de Deus Padre porque e condemnado." Tentaras escapulir-te, safar-te para a podridao de que tinhas vindo. Appellaras para o juiz supremo. O arbitro da eterna justica inquebrantavel cravara em ti os seus olhos. Tu o veras tambem a elle, com a sua longa barba que envolvera toda a terra, o seu bigode de interminaveis nuvens grisalhas, de cujas guias, ao contacto dos seus dedos, chisparao os raios na amplidao infinita. Ouviras a sua grande voz, cujas sylabas cairao na tua alma, a uma por uma, mais pesadas que o Monte Branco e que o Nevado de Sorata. Elle dira:--"Deram-lhe o baptismo? Nao. Deram-lhe a confirmacao? Nao. Deram-lhe a penitencia? Nao. Deram-lhe a absolvicao da culpa? Nao. Nao lhe deram nada. O cherubim tem razao. Passe para a mao esquerda." Entao passaras para a esquerda. O teu anjo custodio abrira um alcapao aos teus pes e gritara para baixo, para as profundidades do immenso vortice:--"Fogo eterno para um!" Depois do que, te tocara com um sopro. Tu despenhar-te-has cortando o espaco como um astro cadente, sem luz, similhante a uma estrella sombria feita de lama, ate te submergires no tremendo abysmo, na punicao eterna. E sera por todos os seculos dos seculos, sem fim jamais. Eis ahi tens o que te espera, segundo a religiao do dr. Jardim e outros. Religiao bem diversa da do santo velho Tobias, que com as suas tremulas maos decrepitas violava piedosamente as leis vigentes e enterrava elle mesmo os infelizes condemnados pelo rei da Assyria a ficarem insepultos! Bem diversa da d'aquelles christaos da igreja primitiva, que assombravam Tertulliano empregando mais perfumes para embalsamar os seus mortos do que os pagaos consumiam para celebrar os seus sacrificios; lavavam os cadaveres, envolviam-os em seda; vellavam-os durante tres dias antes do os conduzirem a sepultura, onde ao som dos hymnos e dos psalmos os collocavam estendidos com a face voltada para o nascer do sol. E nao resumiam a caridade em enterrar unicamente os seus correligionarios: os primeiros christaos enterravam tambem, indistinctamente, todos os pagaos pobres e desamparados, todos os hereticos, todos os atheus, todos os impios. Para lhes merecer o amor bastava ser homem. Para lhes merecer o sacrificio bastava ser desgracado. Por isso disia o imperdor Juliano que fora a obra gratuita e incondicional de enterrar os mortos a que mais contribira para o estabelecimenlo e para a propagacao do christianismo. * * * * * Agora, estabelecido o novo cemiterio, resta-nos ver como s. ex.ª o ministro do reino resolvera os conflictos promovidos contra elle mesmo por s. ex.ª a hydra. E sobre este ponto temos algumas duvidas a que muito desejavamos que o sr. Jardim prestasse por um momento as suas esclarecidas madeixas e o seu profundo bucentauro, ou--porque o digamos n'outros termos--a attencao do seu genio. Eis um dos casos sobre que pretendemos consultar s. exª: * * * * * Imagine o sr. doutor que o seu reverente servo auctor d'estas linhas, nao querendo enterrar-se de todo por uma so vez, resolvia enterrar-se por partes e dar a terra uma das suas pernas para a terra se ir entretendo. N'esta hypothese pergunta-se: Onde e que o sr. doutor determina que se sepulte a perna de que eu tenha o capricho de descartar-me? Estou prevendo que o bucentauro de s. ex.ª, attribuindo indifferentemente a qualquer das minhas pernas a paternidade do presente escripto, me prescrevera o logar destinado por s. ex.ª para os membros impios e locomotores. A isto porem replico a s. ex.ª que a minha perna quer se trate da direita, quer se trata da esquerda, e boa catholica apostolica romana. Tinha eu oito dias de idade, ex'mo sr. quando a acompanhei a pia baptismal, e ahi lhe foi perguntado pelo parocho da minha freguezia, em lingua latina, que ella a esse tempo ainda nao tinha tido tempo de aprender, se queria baptisar-se, ao que meu padrinho respondeu _Volo_! E este volo era como se fosse a minha propria perna que houvesse aprendido as linguagens e que assim ousasse exprimir-se. Mas lhe perguntou o parocho se ella acreditava na communicacao dos santos, na resurreicao da carne e na vida eterna. Ao que ella respondeu, sempre pela boca do meu padrinho, que em tudo acreditava piamente e que era por isso que ali tinha ido com o seu respectivo pe e com o pequeno apendice que era o resto da minha exigua e innocente pessoa. Desde esse dia ate hoje bem varias e bem extranhas aventuras se teem passado com a perna cujas crencas religiosas nos cabe discutir para averiguar o logar que lhe compete na funeral mansao. Ella porem, ex'mo. sr. doutor, apezar de todas as vicissitudes que tem atravessado na vida, nunca ate hoje contradisse--que me conste--as declaracoes latinas feitas em seu nome por meu padrinho: _Volo, credo, abrenuntio_. Ella portanto e catholica, e tem direito a sepultura sagrada na terra e a bemaventuranca no paraiso. O sr. Jardim nao pode de modo alguma mandal-a para o cemiterio dos atheus. * * * * * Supponhamos agora que o sr. doutor determina que o logar que compete a funeral jazida de uma das minhas pernas e o cemiterio catholico. A essa resolucao tenho egualmente de oppor-me com os fundamentos seguintes: Uma vez nascida em Portugal, o baptismo, a confissao, a missa, a communhao, a pratica de todos os sacramentos e de todas as ceremonias nao significa da parte da minha perna uma affirmacao religiosa mas sim uma affirmacao civil. Pelas leis do reino a religiao catholica apostolica romana nao e facultativa, e obrigatoria. A minha perna nao pode entrar no estado sem ter previamente passado pela igreja. Na falta de um registro que substitua o assento baptimal para a consignacao do nascimento, a minha perna nem sequer portugueza pode ser emquanto nao for baptisada! Em todo o decurso da vida civil, ella nao pode dar um so passo sem primeiramente demonstrar que e catholica. Sem a certidao de baptismo, primeiro, sem o attestado passado pelo parocho da frequencia de todos os demais sacramentos depois, ella nao pode fazer exame de instruccao primaria; nao pode matricular-se em nenhuma das escolas; nao pode entrar no exercito, nem na armada, nem no professorado, nem no funccionalismo, nem na magistratura, nem na representacao nacional. Nao sendo catholica nao pode ter nacionalidade, nao pode ter profissao, nao pode ter estado, nao pode ter mulher, nao pode ter filhos, nao pode nem ao menos ter nome! A todas as portas da sociedade portugueza se pergunta a minha perna antes de a deixar penetrar, se ella e catholica, exactamente como se lhe pergunta se ella esta isempta do recrutamento e se e vaccinada. Desde que veiu a luz em Portugal a minha perna, pelo simples facto de nascer, pertence irremissivilmente a igreja. Sem previa licenca da igreja ella nao pode dar um unico passo para dentro do estado ou para dentro da familia. Esta simples aspiracao, tao modesta: ser filha de meu pae e de minha mae--a minha perna esta prohibida de a ter sem que a igreja diga que sim. Chega mesmo a ser impossivel o poder eu demonstrar de um modo juridico e authentico que a minha perna seja effectivamente minha emquanto a igreja nao disser tambem que sim. De sorte que, quando eu ouso dizer _a minha perna_, sirvo-me de uma arrojada methaphora, que espero me seja relevada pelo sr. dr. Jardim. O que eu rigorosamente deveria dizer em linguagem litteral, para me referir a minha perna, era--a perna da igreja. Se estamos pois n'um paiz onde o estado priva absolutamente a minha perna da faculdade de escolher uma religiao, chumbando-lhe elle mesmo o catholicismo no tornozello, como se chumba a grelheta n'um condemnado, recuso absolutamente ao sr. dr. Jardim e a todos os demais doutores o direito de affirmarem que a minha perna tenha ua religiao. Pelo facto de ser baptisada, de ouvir missa, de se confessar ao menos uma vez cada anno, de commungar pela Paschoa da Resurreicao, de jejuar a sexta feira, de acreditar na infallibilidade do papa, etc., a minha perna nao esta na religiao, esta apenas na lei civil, esta na carta. Em quanto a crencas religiosas, o mais que se podera dizer da minha perna, apezar de baptisada, de jejuada, de confessada, etc., e que ella e cartista. Como porem a creacao das duas especies de cemiterios imaginados em Lisboa pelo sr. Jardim e pelo sr. marquez de Avila nao pode ter por fim separar os cidadaos que obedecem a carta dos cidadaos que lhe nao obedecem--o que seria absurdo por equivaler a acompanhar a mesma lei de dois regulamentos oppostos, um para o cumprimento d'ella e outro para a sua transgressao,--e claro que nao pode ser unicamente pelo facto de estarem os restos de alguem dentro da lei civil que se lhes ha de designar a sepultura sagrada. Em conclusao final: Dada a coexistencia de dois cemiterios, um catholico outro nao catholico para o fim de enterrar todo o mundo, a minha perna pela impossibilidade de se determinar rigorosamente se ella e effectivamente catholica ou se nao e catholica, acha-se no caso especial de nao poder ser mandada nem para um nem para outro d'esses cemiterios, e de ter de ficar insepulta em quanto o sr. dr. Jardim nao mandar o contrario. Ora succede que todos os cidadaos portuguezes, sem excepcao alguma, se encontram precisamente nas mesmas condicoes em que se acha a minha perna. Nao se pode affirmar que alguem e catholico ou que o nao e emquanto a creacao do registro civil nao assegurar a cada cidadao a livre faculdade de exercer ou nao qualquer d'estes direitos: nascer sem padre, casar sem padre, morrer sem padre. * * * * * Excellentissima camara municipal da muito nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto ou quem suas vezes fizer--Pacos da Camara na Praca Nova, esquina do Laranjal Porto Excellentissima camara e minha boa senhora. E cheio dos maiores cuidados pela preciosa saude de v. ex.ª que lancamos mao da pena para, em nome de todos os forasteiros que foram a essa cidade por occasiao da cerimonia inaugural da ponte sobre o Douro, dirigir a v. ex.ª algumas regras. Principiaremos por dar a v. ex.ª uma breve noticia da festa em que tomamos parte e em que v. ex.ª teve as suas razoes para nao se dignar de comparecer. Por convite da direccao da companhia dos caminhos de ferro portuguezes reunimo-nos na estacao das Devezas no dia 4 do mez de novembro passado pelas 11 horas da manha. Cerca de uma hora depois partiamos em um grande comboyo extraordinario e paravamos em frente do Porto, a entrada da nova ponte, na margem esquerda do rio. Maravilhoso espectaculo o que presenceamos desde Gaya ate a estacao de Campanha e do qual procurarei, certamente debalde, dar uma longiqua ideia a v. ex.ª! Um delicioso dia de outomno, de um largo tom lacteo e ceruleo como o de uma perola azul, abraca amorosamente a natureza e banhava a paizagem n'uma luz vaporosa impregnada da frescura dos orvalhos e do aroma das violetas. A cidade fronteira desdobrava aos nossos olhos todos os seus encantos topographicos, desde a Foz, envolta na sua athmosphera maritima, salgada e humida, ate os montes longinquos do lado opposto, levemente esfumados no horisonte sob as douradas pulverisacoes do sol. Viamos a ridente collina de Villar coberta de verdura e coroada pelo Palacio de cristal; os copados bosques do Candal e de Valle de Amores; o caes da Ribeira com a sua arcaria denegrida e o seu pittoresco mercado de velhas barracas alpendradas brunidas pelo sol; a ingreme ladeira da Corticeira; o parque das Fontainhas; a casaria emassada das freguezias da Se e do Bomfim, com os seus predios esguios, terminando quase em _pignon_ como na Hollanda: uns bem aprimados, tesos, vidrosos, reluzentes, forrados de faianca, outros barrigudos, sombrios enodoados, fazendo fincape para nao cambalearem como ebrios taciturnos; outros, ainda, pintados de branco, pintados de azul, pintados de cor de rosa, com chamines bordadas e claras-boias phantasistas rematadas por trabalhosas ventoinhas, jocundos, satisfeitos de si, rindo pelas sacadas abertas ornadas de craveiros e de alecrins; depois, de valle em valle, os lindos suburbios de Riba Douro: o choupal do Areinho, as espessas e murmurosas frescuras das quintas de Quebrantoes, da Oliveira, da freguezia de Avintes; a bahia do Freixo, onde o rio tem a configuracao de um pequeno lago circular dominado por um elegante palacio Luiz XV, de torreoes e eirados senhoriaes, cuja elegante escadaria exterior mergulha venezianamente na agua. Todas as eminencias que viam o ponto onde paramos para a celebracao da ceremonia inaugural estava litteralmente cobertas de gente. Os montes proximos achavam-se completamente submergidos sob uma espessa vegetacao humana. Em frente, todos os degraus da penedia, todos os socalcos, todos os jardins, todos os quintaes, todas as janellas, todos os muros, todos os telhados, todas as superficies, todos os contornos, todas as arestas, tinham um debrum de gente.--Enorme romagem nunca vista. A cidade do Porto em peso e 40 ou 60 mil peregrinos advindos de todas as regioes do paiz estavam ahi reunidos. Para que? Para celebrar um puro facto scientifico--a solucao de um problema de mechanica. N'este simples facto, exm.ª camara, que symptoma! que phenomeno! que revolucao! Ha bens poucos annos ainda so o fanatismo religioso tinha o poder de determinar as grandes romagens a S. Thiago de Campostella, a S. Torquato de Guimaraes, a senhora da Nazareth, a senhora do Cabo. Os peregrinos iam entao solicitar a intervencao milagrosa dos bons santos nos seus casos pathologicos, nas suas ambicoes pessoaes, nas suas questoes domesticas: os paralyticos iam pedir movimento, os cegos iam pedir luz, os tristes iam pedir consolacao, os turbulentos iam pedir paz, e os mendigos suspensos nas suas moletas, com o grande alforge ao pescoco, a longa barba cor de greda empastada no suor da jornada e no po dos caminhos, iam simplesmente a beira das estradas pedir pao em troca de plangentes ladainhas e de arrastadas melopeas nazaes. Os peregrinos a ponte sobre o Douro nao eram movidos por interesse algum pessoal. Esta romagem de novo genero exprime uma mentalidade nova; mostra que, se o nosso apparelho social mantem ainda por um lado os mesmos aspectos exteriores da sua velha structura, por outro lado elle annuncia ja uma funccionalidade diversa. Um poder absolutamente novo, que nao e o poder religioso nem o poder politico, com quanto nao affirmado ainda nas instituicoes, revela-se ja por este facto na comprehensao dos espiritos. Esse novo poder, irrevogavelmente destinado a substituir todos aquelles que sob diversos nomes teem gerido ate hoje a direccao da sociedade, e na esphera espiritual a sciencia e na esphera temporal a industria. A ponte sobre o Douro e a mais bella e a mais perfeita expressao symbolica d'esse poder, ao qual o paiz inteiro acaba de prestar o culto mais unanime, o mais desinteressado, o mais convicto, o mais solemne de que ha exemplo na historia das manifestacoes do applauso publico. Era tao superiormente elevado o caracter d'esta grande festa da civilisacao, que perante o objecto d'ella desappareceram como por encanto n'esse dia todas as incompatibilidades, todas as dissidencias, todas as distinccoes de gerachia, de seita e de partido, que dividem a sociedade portugueza. A direccao da companhiados caminhos de ferro teve o bom gosto de convidar para o banquete que se seguiu a solemnidade da inauguracao os individuos representantes das opinioes mais extremas, o mundo official e o mundo dissidente, tudo o que ha mais retrogado e tudo o que ha mais progressivo, os mais ferrenhos conservadores e os mais ardentes revolucionarios. Estes personagens tao justamente surprehendidos de se acharem juntos pela primeira vez na sua vida, tomando parte em um almoco cujos convivas nao tinham precisamente por fim devorarem-se uns aos outros e serem os bifes de si mesmos, confraternisaram do modo mais tolerante e mais affectuoso, porque, acima de todas as suas divergencias episodicas de opiniao, havia um sentimento de attraccao commum, de conciliacao geral, em nome do qual ahi tinham convergido todos. E esse sentimento era o respeito do trabalho, d'essa immensa e irresistivel forca anonyma, obscura, lenta, perseverante, que o seio das bibliothecas, das fabricas, dos laboratorios, dos gabinetes de estudo, vae dando em cada dia aos destinos humanos um novo impulso para o aperfeicoamento e para a felicidade. Nao foram os reis nem os exercitos nem os padres, mas nao foram tambem os jacobinos nem os demagogos nem os atheus os que teem guiado e dirigido ate hoje a humanidade na sua ascencao atravez da historia. Foi elle unicamente, foi o trabalho modestamente, obscuramente exercido nos remansos da paz, nos recolhimentos da applicacao e do estudo o que determinou todas as conquistas, todas as victorias, todos os triumphos das sociedades. A ponte sobre o Douro symbolisa uma d'essas conquistas, uma d'essas victorias, um d'esses triumphos:--a conquista de perto de meio seculo de paz; a victoria, proporcional a esse periodo, da intelligencia do homem sobre as fatalidades da natureza, o triumpho finalmente do destino progressivo do nosso espirito sobre a immobilidade das nossas instituicoes. Ha cerca de quarenta annos apenas, ex.'ma camara, essas duas montanhas estreitamente enlacadas agora por um abraco de ferro, eram separadas por um rio vermelho de sangue. Nos mesmos logares onde nos agora nos reunimos para regar o solo com o champagne das agapes modernas, os nossos paes e os nossos avos espingardeavam-se convictamente, decidindo com o sacrificio das suas vidas a questao de palacio a esse tempo debatida entre dois principes. A guerra com tal fundamento seria hoje insustentavel. E evidente que progredimos, e o facto de irmos ao Porto, desinteressadamente, aos milhares, celebrar um facto industrial, significa a mais eloquente affirmacao d'esse progresso. A cidade do Porto que por muitas vezes tem recebido a visita dos seus principes, dos seus reis, dos seus generaes, dos seus mandoes de toda a especie, teve pela primeira vez n'esse dia a visita do povo. Como foi que v. ex.ª, representante do municipio portuense recebem este seu novo hospede? Nao lhe apparecendo! V. ex.ª, que tem dado a esse espinhaco os tratos mais violentos e mais irracionaes para conseguir encurvar-se e acocorar-se n'uma reverencia satisfatoriamente abjecta diante de todas as testas coroadas; v. ex.ª que tem desengoncado e desarticulado a rhetorica municipal debaixo dos pes da real familia; v. ex.ª que conserva ainda entre os ferros velhos do seu stylo declamatorio--ao mesmo tempo alambicado e labrego--_as chaves d'esse heroico baluarte_ depostas em cada anno por v. ex.ª--dizemos--nao teve um dito, uma palavra, um gesto sequer, para agradecer a cincoenta mil viajantes a mais solemne e a mais extraordinaria manifestacao de estima de que ainda foi objecto uma cidade por parte dos representantes de um paiz inteiro. Este simples facto basta para nos provar que v. ex.ª desconhece completamente qual e o espirito municipal das modernas sociedades democraticas, que v. ex.ª esta cem annos atraz do seu tempo, e cem furos abaixo da missao em que foi investida pelos suffragios da populacao portuense, tao energica, tao intelligente e tao progressiva. E possivel que v. ex.ª tivesse tido que fazer n'esse dia que houvesse contrahido compromissos anteriores, que se achasse por ventura associada com alguma camara sua visinha para uma honesta merenda, para uma boa patuscada, para alguma das bem conhecidas _sapateiradas_, nas quaes todo o nosso ser se disgrega do mundo exterior para se abysmar no arroz do forno e na carne assada no espeto. Mas n'esse caso porque e que v. ex.ª nos nao preveniu? Durante a ausencia de v. ex.ª, minha boa senhora, a sua cidade estava immunda. Se tivessemos sido contemplados com um aviso telegraphico nos, que fomos d'aqui unicamente com as nossas camizas, teriamos levado tambem as nossas vassouras nas malas e a nossa resignacao para o desgosto de a nao vermos no espirito. Acceite minha senhora a expressao dos nossos sentimentos, tao cordeaes como aquelles que v. ex.ª nos nao exprimiu. * * * * * Dissemos no precedente volume d'estas chronicas que o sr. Fontes Pereira de Mello, doendo-lhe um dente, desmontara e abandonara nos prados, entre os deputados governamentaes e as boninas em flor, a jumentinha do poder. Eis o que ao depois occorreu: * * * * * A pacata bestinha da governacao andou a monte por alguns mezes, choutando ao acaso, pungidas nos ilhaes pelos tacoes do sr. Barros e Cunha e sobre a anca pela ponteira do guarda sol do mesmo illustre estadista e cavalleiro. Para onde e que s. ex.ª, coberto de zelo e de suor, queria com tanta violencia equestre encaminhar a onagra? --Para a senda da moralidade e da economia! bradava s. ex.ª com uma das maos na redea e com a outra mao sobre a carta constitucional. Mas os burriqueiros experimentados no trilho peguinhado pela burrinha bambeavam dubitativamente a cabeca, e do alto das montanhas, com a mao aberta em viseira sobre os olhos, dilatando a vista ao futuro, diziam: --Nao. Para onde elle vae e para a senda de Cacilhas a Cova da Piedade. E deixaram-o ir. * * * * * Como porem soasse o momento psychologico em que a asninha do governo, com a sella no ventre, considerou que ia de longada para muito longe da estrebaria, apertou-lhe as entranhas a nostalgia da cevada, e fitando a orelha, baixando a cabeca, cravando os olhos sinistros nos cascos deanteiros, arrojou ao firmamento ingrato duas parelhas de coices adiante dos quaes ascendeu da albarda para as alturas o vulto do grande homem. Depois do que elle baqueou no charco fronteiro, como se a perfidia das ras o tivesse aferrado pelo coccix e attrahido ao abysmo,--sempre com uma das maos na carta, mas ja tem a outra mao na redea. * * * * * Cousa verdadeiramente admiravel de ver foi a velocidade com que a cavalgadurinha do Estado principiou entao a dar terra para feijoes, retrocedendo para casa e bebendo o espaco com o freio nos dentes e com a saudade da mangedoura na alma.--Tao poderoso e fecundo e o ascendente moral que exerce o principio sagrado da racao sobre as actividades officiaes! * * * * * Quando as boninas e os representantes da nacao tornaram a ver a burrinha do poder no prado florido onde convalescia entre os idylios do ocio o dente do sr. Fontes, grande foi o ardor e a emulacao entre os circumstantes que a porfia queriam segurar a asna. Coube essa gloria ao sr. Jose Dias Ferreira. Empolgando com mao dextra e firme a camba do freio a alimaria do poder, o sr. Jose Dias exclamou triumphante e glorioso: --A mim, rapazes! E gritando em coro: "Ave, Jose vencedor!"--os rapazes foram a elle. * * * * * Eis senao quando, que hao de ver os rapazes que a elle tinham ido e bem assim elle mesmo? Atonitos elles veem--caso que os olhos se lhes recusam acreditar--que a burra ja nao esta devoluta, que a albarda tem gente em cima! Effectivamente emquanto o sr. Jose Dias intrepido segurava a redea, o sr. Fontes veloz encavalgara o poder. * * * * * O primeiro acto do novo cavalleiro foi alijar dos alforges as provisoes do governo que o precedera. S. ex.ª sacou os 150 contos de tijolo para a Penitenciaria e atirou-os para um lado. Sacou os vinte e quatro conegos, rochuchundos, atochadas como paios, e atirou-os para o outro lado. Tirou depois os quinze beneficiados com os seus competentes livros de coro e o seu devido rape; tirou a cadeira de Sanskrito com o seu professor em cima; tirou a matta do Bussaco forrada de papel e enchumacada de algodao para sua magestada passear; tirou o porto artificial de Leixoes cheio de dourados bergantins e de ligeiras caravellas com os seus competentes nautas, obra de grande pacienca e curiosidade; mais tirou o _Times_; e, como ainda restasse o que quer que fosse no fundo dos alforges, foram estes virados com o de dentro para fora, e appareceu por ultimo o sr. Venancio Deslandes, director da Imprensa Nacional e secretario da commissao da exposicao de Paris. S. ex.ª trazia empunhada e aberta a delicada umbela de linho cru forrada de tafeta azul com a qual s. ex.ª abrigava dos raios solares desde o Terreiro do Paco ate a rua do Duque de Braganca a fronte capitolina do ex-sr. presidente do conselho de ministros. O ar de s. ex.ª o sr. Deslandes era cheio de uma grave auctoridade, e a sombra do chapeu de sol de linho cru forrado de tafeta azul o seu rosto parecia envolto na aureola de uma competencia genial! Despejado o alforge o cavalleiro pediu um exemplar do codigo fundamental da monarchia, que metteu em uma das bolsas; depois, lembrando-se das causas que determinaram o partido regenerador a abster-se de governar durante alguns mezes e querendo obviar a repeticao d'essa intermittencia, pediu o dentista Guerreiro e acondicionou-o na outra bolsa do alforge ministerial. Sorrindo em seguida e despedindo-se do sr. Jose Dias do alto da burra, enfiou a trote marcial provincias da publica administracao em fora. * * * * * E todos seguiram pressurosos o chibante cavalleiro. Tao somente no mesmo logar em que sr. Fontes tivera estado a chumbar o seu dente foi visto nas ervas o sr. marquez d'Avila, acocorado na solidao, a chapinhar com arnica o seu galo. * * * * * Na semana seguinte aquella em que estes successos occorreram houve jantares de convite em todos os restaurantes de Lisboa. Estes banquetes eram o resultado de apostas feitas contra e a favor da victoria do sr. Fontes pelos _gentlemen_ do _turf_ politico. O sr. Fontes depois d'esse notavel triumpho ficou marcado gloriosamente como o _Gladiateur_, e ninguem mais tornara a apostar contra o nobre estadista sem a condicao previa de que se sobrecarregue com mais alguns kilogrammas de chumbo o dente de s. ex.ª * * * * * Uma vista d'olhos a uma das ultimas sessoes da camara dos senhores deputados: * * * * * Enorme concorrencia nas galerias. Senhoras, diplomatas, escriptores, funccionarios publicos, militares, operarios, enchem as tribunas desde os parapeitos ate ao tecto. Na sala um sugeito, embrulhado no seu paletot, com a perna tracada sobre o joelho, preside somnolentamente como um dilettante enfastiado. Serve de secretario, lancando apontamentos a uma larga folha de papel um individuo que ha poucos mezes se chamava apenas Alfredo, mas que, em resultado de um lucto occorrido durante o ultimo interregno parlamentar, publicou nos jornaes que principiava a chamar-se em testemunho de dor--Alfredo Angelino. S. ex.ª traja rigorosmente de negro. Em frente da presidencia alinham-se os srs. ministros devidamente encasados nos seus _fauteuils_. Nao teem uma apparencia espirituosamente feliz, mas parecem refrigerados nas cadeiras do poder e olham o espaco com a expressao passiva e tao caracteristicamente pacata dos individuos calidos quando instalados em decoccoes emolientes de alfavaca de cobra. No meio do amphitheatro um digno sr. deputado, com uma das maos sobre o coracao, a outra mao alongada patheticamente no espaco, esta orando. Em torno do tribuno agrupam-se em pe varios representantes da Nacao. Uns rolicos, atochados, vermelhos, semelham tympanites enformadas em amplas sobrecasacas pomposas. Sente--se que elles respiram com exforco. O abuso do feijao suffoca-os como o sangue de Danton suffocava Robespierre--Sao os empaturrados da coisa publica. Outros magros, defecados, pallidos, com as orelhas lividas, os pes mettidos para dentro, as calcas esbambeadas pelas joelheiras dos sedentarios, teem sorrisos que se parecem com as referidas calcas e que descobrem mucoses desbotadas e dentes morbidos.--Sao os espinhelas cahidas do systema que felizmente nos rege. No fundo escuro da bancada sobresaem da cor sombria dos vestuarios de inverno duas maos longas, pallidas, frias, magras, de um aspecto dramatico, boas para assignarem um decreto de proscripcao ou uma sentenca de morte. O dono utilisa-as em explorar o seu proprio nariz inoffensivamente, n'uma abstracao magnanima. --Sr. presidente--diz o orador, e a sua voz e pungente, elegiaca, lacrimejante--Sr. presidente! onde nao ha religiao nao ha dignidade. Um ecclesiastico, alto, magro, macilento, volve para o orador o seu estrabismo convergente, de mystico, e applaude-o com um grave meneio de cabeca. Este padre, de aspecto sombrio e inquisitorial, e aquelle orador de vinte e cinco a trinta annos, cheio de robustez, de saude, de mocidade, estao ambos de accordo sobre esse ponto: que a dignidade e uma resultante da religiao. E todavia e a religiao que obriga esse pallido mystico a conciliar-se com o celibato, a sequestrar-se na contemplacao, a abandonar todos os bens terrenos pela posse dos fructos celestiaes, a submetter-se pela humilhacao, pelo desprezo de si mesmo, a offerecer uma face quando o esbofetearem na outra, finalmente a padecer e a resignar-se. E e pelo contrario a dignidade que obriga esse rapaz sanguineo e robusto a caminhar na direccao opposta a d'esse anemico, a constituir a familia, a luctar, a nao perder tempo em contemplacoes e em extasis, a ser pratico e positivo, a ter filhos gordos e camisas lavadas, a resistir finalmente e a triumphar na grande lucta pela vida moderna, em que as costelletas com batatas, as garrafas de Collares e as botas novas nao caem do ceu cob a forma de mana, caem unicamente do trabalho perseverante e rude sob a forma de riqueza. Elles porem estao ambos de accordo emquanto a allianca indissoluvel da dignidade de um e da religiao do outro perante o principio transcendente da rhetorica constitucional. Diz mais o orador: --"Sr. presidente!--e a entonacao do tribuno continua a ser lacrimosa e pathetica--li os sarcasmos de Voltaire, as ironias de Swift, as investigacoes de Renan, os de-esperos de Schopenhauer, Hartman inventando religioes para o futuro, Buchner divinisando a materia. Tudo isto porem nao apagou na minha alma a doce esperanca que n'ella lancaram aquellas palavras divinas, que dizem: Bemaventurados os que soffrem porque elles serao consolados". E muitas vozes enthusiasticas e convictas bradam de todos os lados da camara:--"Muito bem! muito bem!" A morbida corrente intellectual do pessimismo allemao representado por Hartman e por Schopenhauer a Inglaterra oppoe o naturalissimo de Darwin e as poderosas systematisacoes de Spencer, a Franca oppoe o positivismo victorioso de Augusto Comte e de Littre. Em Portugal, onde estas questoes nao foram nunca ventiladas senao por pobres escriptores desconhecidos em periodicos tao desconhecidos como elles, a camara dos srs. deputados ouve pela primeira vez a solucao official d'esse debate. Ao optimismo leibniziano, ao deismo kantiano, ao ideologismo hegeliano, ao inconscientismo de Hartman, ao pessimismo de Schopenhauer e de Julius Bahnsen, ao naturalismo de Darwin, ao positivismo de Spencer, de Stuart Mill e de Littre, a intellectualidade portugueza responde mostrando a alma virginal do sr. Manuel d'Assumpcao. E a comprehensao mais perfeita dos destinos do universo fica de uma vez para sempre definida depois d'isto: a alma do nosso Manuel persiste inabalavel nas suas primitivas crencas. Que queria a philosophia moderna? A philosophia moderna nao queria evidentemente senao uma coisa: apagar a esperanca na alma d'este moco. Pois ficara sabendo que o nao conseguiu. A camara dos deputados da nacao portuguez esmaga toda a obra do entendimento moderno collocando-lhe em cima o sr. Assumpcao e a esperanca da sua alma, no meio dos applausos geraes de todo o parlamento. E, nao obstante, querem dizer alguns que a politica nao e mais do que a applicacao da philosophia a direccao pratica das sociedades. A politica de Bismark e um grande poder social porque atraz d'elle esta, como o peito pelo outro lado da couraca, a disciplina philosophica de Kant, de Hegel e de Hartman. Danton, a alma da Revolucao, era na esphera executiva o instrumento da philosophia da Encyclopedia; e a primeira republica franceza baqueou precisamente no dia em que o principio philosophico que determinou o grande movimento cahiu com a cabeca de Danton, guilhotinado pela indisciplina mental. Foi ainda a anarchia das ideas, resultante da falta de um methodo philosophico, que comprometteu o destino da segunda republica em 1848. Finalmente para que a democracia se fundasse em Franca sobre bases definitivas foi preciso que Danton resuscitasse para gloria das ideias e para honra do espirito humano na pessoa de Gambetta, que e o filho triumphante da philosophia positiva do seculo XIX, assim como Danton e o filho damasiadamente precoce da philosophia do seculo passado. Na Italia o que e a politica actual, que libertou e unificou a grande peninsula, senao a somma das expeculacoes de uma longa serie de pensadores, desde Dante, o vidente, ate esse taciturno Leopardi, que foi o alliado intellectual de Hartman assim como Victor Manuel foi o alliado politico do imperador Guilherme? Em todos os estados actualmente em dissolucao qual e a causa do mal senao a perturbacao da mentalidade pelo empyrismo da politica arbitraria? Sera preciso citar a Turquia? Sera preciso citar a Hispanha? Mas a Hispanha renasce em cada ida, em cada hora, com um assombroso vigor intellectual, que em poucos annos despedacara todos os velhos preconceitos e todas as caducas instituicoes que embargarem a sua ascencao politica. O federalismo, forma definitiva da civilisacao na peninsula iberica, esta-se affirmando no paiz visinho de um modo que nos certifica da impossibilidade de um retrocesso. O federalismo perde a pouco e pouco o caracter de uma opiniao partidaria. E um resultado philosophico, que em toda a Hispanha esta sendo pacificmente revisto e contraprovado por todas as sciencias: pela mechanica, pela mesologia, pela climatologia, pela ethnologia, pela anthropologia, pela linguistica, pela historia. Quando esta idea chegar ao cabo da sua elaboracao especulativa, ella converter-se-ha em uma lei sociologica e actuara sobre o seu fito, irresistivelmente, como uma forca da natureza. Quando por toda a parte a philosophia estabelece e dilata tao experimentalmente e tao evidentemente os seus dominios sobre o destino humano, a camara dos srs. deputados em Portugal applaude na sua grande maioria a condemnacao da critica e do pensamento moderno; declara-se indissoluvelmente abracada a theologia; e a todas as conquistas da sciencia no presente seculo ella oppoe triumphantemente a posse d'esta nocao: "Bemaventurados os que soffrem porque elles serao consolados." A ironia emudece de pasmo deante de um symptoma tao patente de esphacelamento cerebral. Estamos n'um congresso de legisladores ou estamos n'um seminario de caturras?--E unicamente o que perguntamos. * * * * * O medo como a camara pensa da-nos a justa medida do modo como a camara governa. Ha muitos annos que ella nao toma uma unica medida tendente a coordenar e a systhematisar harmonicamente os esforcos da progressao social. A reforma da lei eleitoral, fonte da reconstituicao politica, esta por fazer. A liberdade religiosa nao esta regulamentada de modo que torne effectivo o principio em que se funda. A distribuicao racional do imposto ainda nao foi definida. Finalmente a organisacao da instruccao publicia, esse elemento vital de uma sociedade em movimento, acha-se por enunciar. N'este ponto a mesma Turquia esta muito adeante de nos. Os parlamentos, sem direccao mental, sem criterio scientifico, sem destino politico, esterelisam-se successivamente na phraseologia e dissolvem-se na banalidade. As crises parlamentares determinadas unicamente pelo conflicto dos personagens impacientes ou despeitados attrahem periodicamente as camaras uma grande concorrencia de ouvintes que nao recebem ahi senao as mais perigosas licoes de cynismo e de immoralidade. Das duas coisas uma: ou o espirito publico esta bastante corrompido para assimilar sem perturbcao do seu organismo a entoxicacao d'esses exemplos, e n'esse caso seria um paiz condemnado a dissolucao; ou a burguezia, cumplice n'esta decadencia, tem ainda um resto de senso moral, e n'esse caso revoltar-se-ha e o actual regimen politico ha de cair como caiu em Franca o segundo imperio por effeito de um movimento similhante aquelle a que Luiz Veuillot chamou a _revolucao do despreso_. A similhanca de um corpo morto o parlamento immobilisou-se por falta de circulacao intellectual. Os partidos politicos sao os centros nervosos do systema representativo. Atrophiados esses centros o systema cessa de funccionar. Ora qual e o estado dos partidos politicos em Portugal? * * * * * Ha um partido que esta hoje no poder. E um partido conservador. E catholico, e monarchico, e auctoritario, e proteccionista, e militarista, e unitario. Quer um parlamento com duas camaras, uma electiva e outra hereditaria; quer uma igreja e uma religiao do Estado; quer as alfandegas com as suas velhas pautas; quer um exercito permanente com os seus respectivos canhoes Krupp e a sua competente pena de morte; quer as colonias com o seu antigo systema de direccao e de governo; quer ainda fazer o seu gancho de negocio e ter um estaleiro, uma fabrica de polvora, uma imprensa, uma fundicao de typo, uma fabrica de cordas, uma photographa, etc. Ha por outro lado quatro ou cinco partidos que alternativamente se disgregam ou se unificam, conforme as necessidades da sua tactica, e que pelas suas ideas nao formam realmente senao um partido unico: o partido opposicionista. Que differenca ha entre este partido na opposicao e o partido actualmente no governo? E revolucionario? Nao: e egualmente conservador. E racionalista? Nao: e egualmente catholico. E evolucionista? Nao: e egualmente auctoritario. Quer a liberdade da industria e a liberdade do commercio? Nao: quer egualmente a proteccao das pautas. Quer egualmente o exercito com os seus generaes, e a universidade de Coimbra com os seus theologos; quer egualmenle a magistratura anarchica, a instruccao cahotica, o suffragio corrompido, o governo arbitrario. Tambem quer fazer de quando em quando para se distrahir o seu bico de obra, e procura manter para esse fim a imprensa, a photographia, a cordoaria, a fundicao, etc. A unica opiniao que a opposicao diz ter e que ella accusa o governo de nao professar e a opiniao abstracta da economia, da ordem, da moralidade e do progresso. Como porem todos os governos, qualquer que seja o partido de que elles procedam, teem successivamente cahido do poder perante a accusacao de nao servirem o progresso, a moralidade, a ordem e a economia, devemos acreditar que, ou essas virtudes, que alias nao podem constituir principios de programma, sao communs a todos os partidos ou nao sao especiaes de partido nenhum. Os partidos portanto nao se differencam senao pelos nomes dos individuos mais ou menos numerosos do que elles se compoem. N'esta ausencia completa de ideas contrapostas o governo em Portugal, versando constantemente sobre si proprio, da-nos o espectaculo de um organismo vivo isolado na creacao, alimentando-se na sua propria substancia e digerindo-se pouco e pouco a si mesmo. * * * * * Deixando de ser uma lucta de principios e de ideas a politica converte-se fatalmente em uma questao de compadres. O compadrio elevado a cathegoria de instituicao nacional, domina tudo, corrompe tudo, dissolve tudo. Os partidos que nao podem conquistar o appoio da opiniao pelas ideas que representam, procuram manter-se pelo appoio dos compadres que favorecem. E na proporcao exacta do numero dos compadres que annualmente despacha e emprega, que um partido augmenta ou diminue de adeptos, progride ou retrograda na confianca da coroa e no favor da urna. O dogma fundamental do compadrio impoe-se por tal modo que transforma todas as outras nocoes moraes segundo o criterio de que elle e a expressao. Transforma a justica, a honra, a probidade, a propria consciencia. Nenhum partido politico ousa violar o compadrio: seria commetter a mais vil e a mais nefanda das traicoes politicas! Despachando o compadre mais servical com exclusao do adversario mais competente todo o governo honesto julga praticar um acto de gratidao e de lealdade. E ninguem ve quanto ha de profundamente subversivo da ordem moral n'este simples facto tao vulgar, tao frequente, tao despercebido: a exclusao da competencia! Excluir a competencia, ou quando menos preteril-a, por um anno, por um mez, por um dia, por uma hora que seja, e commetter o attentado mais criminoso de que o Estado pode ser reo deante da sociedade. Esse attentado resume todas as violacoes do direito e todas as affrontas da justica. E um roubo violento e descarado, aggravado com a offensa do merito, com a injuria da capacidade, com o insulto ao trabalho, com o escarneo a moral, com o ultrage ao dever. Na politica portugueza, que tem o seu calao como as mulheres publicas e como os ratoneiros, esse crime infame toma o nome dourado de _compromisso politico ou de acto de fidelidade partidaria_. E do ministro que o pratica e para o qual se deveria pedir a prisao correccional ou o degredo com trabalhos publicos, a opiniao diz apenas:--E fiel aos seus correligionarios, sabe ser amigo, despachou o compadre, vou para o partido d'elle. O officio do governo e servir o paiz. Como porem o paiz, por effeito do machinismo eleitoral, e representado constantemente pelos compadres do governo, o officio do governo em ultima analyse nao e mais do que servir o compadre. Esta no seu destino. Gracas aos elementos de corrupcao de que o governo dispoe, o cidadao, nao votando como cidadao mas votando como compadre, da o primeiro impulso que poe em movimento toda a engrenagem do systema: elegendo o compadre e elle mesmo que funda a tyrannia absoluta e despotica do compadrio que depois o governa. A sociedade esta a merce do compadre. E se ha poder que possa contrabalancar alguma vez, em dadas conjuncturas, o poder do compadre, esse poder e unicamente--o da comadre. A aptidao provada, a capacidade, o talento, o trabalho, a firmesa no dever, a tenacidade no estudo, a mais alta comprehensao e o mais rigoroso cumprimento da solidariedade e da honra--palavras, palavras, unicamente palavras! Na esphera dos fattos, na ordem pratica, positiva, real; compadrice, comadrice--eis tudo. * * * * * Um unico remedio poderia reconstituir a politica portugueza, cuja decadencia e tanto mais lamentavel quanto e certo que a sociedade que ella tem por fim dirigir esta na anarchia economica e tende para uma miseria que se tornaria inevitavel sem os supprimentos do Brazil. Esse remedio e a entrada no parlamento de um partido novo constituido de quatro ou cinco individuos de opinioes radicaes: republicanos, socialistas, federalistas, positivistas--o que quizerem--com tanto que sejam homens profundamente convictos e determinados a peleja de cada dia e de cada hora. Este pequeno partido, desde que tivesse um criterio philosophico, determinaria uma corrente de ideias de tal modo poderosa que obrigaria todos os conservadores a confederarem-se para lhe resistir, nao ja pela phraseologia e pela rhetorica mas pelo estudo reflectido e consciencioso de todos os problemas da civilisacao. E das concessoes mutuas e successivas, feitas, ja ao principio da ordem pelos revolucionarios impacientes, ja ao principio do progresso pelos conservadores retrogrados, resultaria para a sociedade o movimento actualmente paralysado no conflicto das pequenas paixoes e dos mesquinhos interesses das mediocridades dirigentes e triumphantes. * * * * * Falhando o meio que propomos pela falta doa quatro homens que sollicitamos, resta-nos entao adoptar o expediente ultimamente proposto pela municipalidade de Lisboa:--tratar o parlamentarisrao pela cal. Mas que quanto antes, n'esse caso, a municipalidade effectue o seu projecto: caiar o palacio das cortes, branquear por fora o parlamento--_dealbatum sepulchrum_! End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas, Janeiro de 1878 by Ramalho Ortigao and Jose Maria Eca de Queiroz *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK AS FARPAS *** ***** This file should be named 13092.txt or 13092.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/1/3/0/9/13092/ Produced by Claudia Ribeiro, Larry Bergey and PG Distributed Proofreaders. Produced from page scans provided by Biblioteca Nacional de Lisboa. Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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