The Project Gutenberg EBook of As Farpas, Janeiro de 1878
by Ramalho Ortigão and José Maria Eça de Queiroz

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Title: As Farpas (Janeiro 1878)

Author: Ramalho Ortigão and José Maria Eça de Queiroz

Release Date: August 2, 2004 [EBook #13092]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

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Eça de Queiroz—Ramalho Ortigão—As Farpas

AS FARPAS

RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ

CHRONICA MENSAL

DA POLITICA, DAS LETRAS E DOS COSTUMES

TERCEIRA SERIE—TOMO I

Janeiro de 1878


Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder, da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo das sciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações da politica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grande universo, e da adoração de mim mesmo.

P.J. PROUDHON


SUMMARIO

A romagem dos mortos. Raspail, Courbet, Victor Manuel, José de Alencar, Augusto Soromenho.—A senhora portuense e as Farpas. O libello d'aquella dama. A nossa resposta. Não, a mulher portugueza não sabe fazer caldo e deve aprender a fazel-o, como se torna a demonstrar. A litteratura feminina e a cozinha de minha avó. —Da influencia dos hymnos sobre os cerebros coroados. Cumplicidades do telephonio. — Os cemiterios. A intervenção do sr. marquez d'Avila e a do sr. Luiz Jardim. A cabelleira e a formula de s. ex.ª Mostra-se que s. ex.ª não é o velho Tobias. O catholicismo e a carta. A liberdade de pensamento e o registro civil.—A ex'ma Camara Municipal do Porto ou a quem suas vezes fizer.— A situação politica. As ultimas sessões parlamentares. Alguns perfis. Os partidos. Os compadres. A jumentinha da publica governação.


No breve espaço dos ultimos quinze dias a humanidade pagou á morte um pesado tributo. Escrevemos no meio de tumulos gloriosos e amados. Deixaram de existir, em França Raspail e Courbet; na Italia Victor Manuel, no Brazil José de Alencar; em Portugal Augusto Soromenho.

Raspail , entre todos esses o maior, deixa na terra um immenso vacuo imprehenchivel. Desappareceu com elle uma das mais poderosas forças sociaes do mundo moderno, a porção mais fecunda e mais gloriosa da grande alma do povo.

Ninguem como elle amou a humanidade e ninguem empregou tão vastas e tão profundas faculdades no culto do seu amor. Foi o maior contribuinte dos descobrimentos scientificos d'este seculo. Creou a chimica organica e póde-se dizer que creou tambem a physiologia botanica e a anathomia microscopica. Fundou a hygiene em bases novas, não como uma dependencia da medicina, mas como um desdobramento da sciencia social. Foi elle o que definiu pela primeira vez em fundamentos positivos o dogma do suffragio universal. Foi ainda elle o primeiro que proclamou no Hotel de Ville a Republica de 48.

Este eximio cultor, acrescentador e reformador do todas as sciencias physicas, de todas as sciencias biologicas e de todas as sciencias socilaes, astronomo, chimico, physiologista, medico, archeologo, economista, era alem d'isso um delicado e valente escriptor. O seu genio profundo actuou efficazmente no desenvolvimento do estudo dos astros, das plantas, dos animaes, do homem, e bem assim na reforma do todas as instituições politicas e sociaes, na reforma administrativa, na reforma judiciaria, na reforma penitenciaria e na reforma penal. O seu altivo caracter de soberano plebeu tornou-o sempre irreconciliavel com todo o favor, com lodo o auxilio, com toda a collaboração official. Recusou todas as distinções honorificas, todos os cargos publicos, todos os diplomas scientificos ou litterarios. As suas observações astronomicas, os seus trabalhos de chimica, as suas applicações do microscopio ao estudo das celulas e dos tecidos fizerarn-se n'uma agua furtada humilde dos bairros baratos de Paris com os instrumentos mais rudimentares, no isolamento austero da independencia o do sacrificio.

Esse intrepido filho do povo tinha a fibra de Galileu, de Giordano Bruno e do Bernardo Palissy.

A academia franceza, commovida com uma tão exemplar grandeza d'alma, resolveu conferir-lhe em 1833 o premio Montyon, declarando-lhe pela boca do grande Geoffroy-Saint-Hilaire que ella o considerava como sendo o homem que mais serviços tinha prestado á sciencia e á humanidade.

Guizot, então ministro da instrução publica, interveio na resolução da academia prohibindo que o premio da virtude cahisse no cofre da rebelião. 1 O chefe do partido conservador francez não podia esquecer que fôra esse mesmo sabio obscuro o despremiado o que no anno anterior, em plena Restauração, ousara fulminar a votação da lista civil com a phrase memoravel paga por elle com 500 francos de multa e 15 mezes de cadeia: «Deveria ser enterrado vivo debaixo das ruinas das Tulherias todo o cidadão que ousasse pedir á França 14 milhões para viver.»

1 [Guizot, que recusou um premio a Raspail, recusou tambem uma cadeira no magisterio a Augusto Comte. O illustre historiador teve a desgraça de firmar com o seu nome a responsabilidade d'esses dois crimes, inconscientes, da politica nefasta que elle dirigia.]

É que Raspail, a intelligencia sempre apta para organisar, foi egualmente o braço constantemente pronto para resistir.

Portentosa existencia, que ficará na historia entre as mais bellas e mais estraordinarias legendas do genio do homem! Destinado por seu pae á carreira ecclesiastica, foi educado n'um seminario, começou por ser um theologo. Era porém de tal modo intenso e explosivo o seu amor de verdade e do progresso que, principiando por ensinar theologia aos dezenove annos, acabou por alcançar a gloria immarcessivel de ser condemnado aos oitenta,—aos oitenta annos de idade!—por abuso da liberdade de pensamento!

O poder espiritual do mundo moderno era representado em França por uma trindade sacrosanta:—Victor Hugo, a força do sentimento; Raspail, a força do trabalho; Littré, a força da philosophia.

D'esses tres anciãos o primeiro que desceu ao tumulo é o que mais fecundo exemplo nos podia legar, porque as virtudes que o assignalaram são d'aquellas que dependem mais da vontade que do entendimento. Esse exemplo de uma actividade sempre enthusiasta, juvenil e ardente, em nenhuma outra parte é mais precioso do que na sociedade portugueza, onde as idéas radicaes, que são as sentinelas avançadas da civilisação, tão raramente encontram servidores desinteressados que as mantenham; onde a mocidade mais vivaz e intelligente está defendendo no parlamento e no jornalismo as opiniões mais retrogradas, onde finalmente o futuro não tem partido.

Possa a memoria do sublime Raspail alentar a perseverança e a firmeza no coração d'aquelles que, longe de todas as correntes officiaes se sacrificam heroicamente pelo estudo desprotegido, pelo trabalho talvez calumniado, talvez perseguido, ao amor e ao aperfeiçoamento dos seus similhantes!

Que todos os que são moços e fortes se inclinem sobre esta campa onde repousa um triumpho, e reflictam, que é na pedra tumular de Raspail que deverão aguçar o fio das suas espadas todos aquelles que combatem pela consciencia e pela verdade!


Courbet foi um conspirador da esthetica, um rebelde ao despotismo de um idéal que elle tinha por condemnado solidariamente com as velhas instituições sociaes de que fazia parte. A sua vida foi consagrada a derrocar pela pintura a inspiração da antiga arte assim como derrocou pelo uso do poder executivo a columna da praça Vendôme. Louvavel empenho, porque Courbet considerava essa inspiração uma fonte envenenada para o trabalho artistico, assim como considerava essa columna um symbolo ultrajante para a dignidade humana.

A demolição da columna, que toda a imprensa europea stygmatisou com palavras tão resentidas e acerbas, não poderá deixar de ser um dia olhada pela critica desapaixonada como a consequencia logica e fatal dos principios de justiça social constantemente professados pelo immortal artista.

Courbet foi condemnado a pagar a reconstituição da columna. Breve porém soará a hora em que o nobre espirito francez deixe de considerar puerilmente que se deve ser

Fier d'être français
Quand on regarde la colonne!

Paris, a cidade eterna da arte, a grande martyr, a grande pacificadora, comprehenderá em pouco tempo que é uma injuria ao seu bello destino na obra da conciliação humana a ostentação orgulhosa de um monumento que o distico diz ser: levantado à gloria do grande exercito por Napoleão o Grande!!

Paris, qua vae na proxima exposição celebrar dentro do regimen republican a grande festa universal da industria e da paz, Paris cujo municipio acaba de votar 546 contos de réis para os seus estabelecimentos publicos de instrucção primaria ao anno corrente, Paris que ainda ultimamente consagrou cerca de 5 mil contos á reorganisação dos seus lyceus, não poderá manter em pé por muitos annos mais, em uma das suas praças publicas, um symbolo que contradiz todas as suas aspirações philosophicas e humanitarias, celebrando uma das maiores nodoas da civilisação: o triumpho cannibalesco do militarismo sobre os direitos do homem, a sujeição da França aos caprichos de um despota em cuja fronte as justiças da historia estamparam já o ferrete da ignommia.

A legenda napoleonica esvahiu-se inteiramente das consciencias, e bastou um sopro de Michelet para apagar para todo sempre nas tradições marciaes da geração actual o sol de Austerlitz.

Courbet morreu antes da poder ser reembolsado da importancia da multa a que o condemnaram como inconoclasta. Mas a posteridade o desaggravará, ratificando a sua obra, demolindo pela segunda vez a columna Vendôme e pondo no logar d'ella, em vez do genio das batalhas que lhe serve de remate, o genio da arte representado na estatua do grande pintor que na maneira de conceber e de executar a obra do espirito fundou a escola que será uma das glorias d'este seculo, e na maneira de usar do governo em que teve parte commetteu o erro sempre fatal em politica de antecipar na pratica dos seus actos a opinião do seu tempo.


Victor Manuel foi o homem forte por excellencia. Tinha o pulso athletico de Godofredo de Bulhões. Poderia como elle decepar de um só golpe da espada a cabeça de um boi ou o tronco de um reaccionario; commandou como elle uma cruzada,—a cruzada de Novara até Roma, como elle chegou a terra promettida; morreu moço como elle, como todos os heroes que tendo realisado na terra uma grande missão, se sentem de repente invadidos na alma pela tristeza immensa dos saciados. Teve a virtude symptomatica dos fortes—a colossal bondade. Ninguem abriu bocas mais fundas nas espadas dos seus adversarios; ninguem calcou a terra com sapatos mais fortes, mais intrepidos e mais bem ferrados, atraz dos tyrannos e dos cabritos, atraz das raposas e dos padres. Ninguem trepou com pulmões mais rijos ás altas cumiadas dos Appeninos e da liberdade. Ninguem sorriu com mais encanto e com mais prestigio á fadiga, ao perigo, ás mulheres e á morte. Era evidentemente um forte. E como a força é o maior de todos os attractivos humanos, ninguem conciliou como elle em torno de si tão contradictorias sympathias e tão heterogeneas affeições: foi o amigo do Papa e de Garibaldi, de Bismark e de Gambetta.

Feliz homem!


A morte de José de Alencar, o auctor do Guarany e de Luciola, representa uma das maiores perdas para a litteratura brazileira, tão notavel nos ultimos tempos pela cooperação dos seus poetas e dos seus pensadores.

Na sociedade do Brazil, que o principio da escravidão desviou por tantos annos tenebrosos do seu destino e do seu desenvolvimento natural, a organisação moderna do trabalho livre é ao mesmo tempo a creação de um novo elemento social—o povo.

José de Alencar, romancista, poeta, jornalista, tribuno, influenciando poderosamente o seu tempo pela penna e pela palavra, era a imagem synthetica d'esse poder que se chama a Plebe, que procede da lama, e decide da sorte dos imperios.

Elle, que alcançára um dos mais luminosos logares entre os homens mais celebres e mais prestigiosos do seu tempo, sahira do esgoto da cidade, procedera da roda dos expostos.

Esse engeitado era a personalisação mais gloriosa da soberania do trabalho, affirmando elle mesmo o seu direito, desembainhando no throno da arte a sua larga espada de justiça, vestindo a tunica e a dalmatica azul, calçando as esporas de ouro nos coturnos hordados de lizes, e fazendo-se ungir e sagrar pelas multidões como os antigos eleitos do senhor. E era a elle, como a todo o artista victorioso e triumphante, que se deveria dizer como Samuel ao rei Saul: «Deus te elegeu para reinar sobre a sua herança e para livrar os povos das mãos dos seus inimigos.»


Augusto Soromenho foi o mais infeliz dos trabalhadores. A doce consolação de cumprir um destino, consolação compensadora de tantas amarguras e de tantos sacrificios, não foi concedida na terra áquella natureza essencialmente desgraçada.

Tinha um incomparavel poder de applicação e de estudo e ninguem possuia em Portugal uma provisão mais copiosa de noções e do factos. Foi o collaborador do Alexandre Herculano nas investigações da historia nacional, foi o seu melhor discipulo e o seu unico successor. Ninguem melhor do que elle conhecia as fontes e as correntes historicas dos nossos costumes e das nossas tradições. Era archeologo, diplomatico, jurista, bibliographo. Não havia inscripção truncada na epigraphia nem texto ambiguo nos codices que resistisse aos processos da sua sagacidade portentosa. A sua memoria phenomenal dava-lhe a omnipresença de quanto tinha lido no recolhimento de vinte annos de estudo fervoroso e incessante. Era um tomo de erudição vastissima, assombrosa, que ninguem consultava de balde em qualquer ponto da historia dos costumes; do direito, da politica, do governo, da economia, da arte, da litteratura e da lingua.

Faltava-lhe porém no seu vasto e poderoso cerebro a faculdade da generalisação. Não sabia tirar dos factos as leis de que elles são a funcção. Não sabia correlacionar. Não tinha o poder creador. Por esse motivo a isolação suffocava a efficiencia da sua actividade. Era um instrumento, cujo machinismo precioso parava sem a impulsão de energias concomitantes e confluentes. Mas a sociabilidade litteraria a que elle estava condemnado a submetter-se para ser uma força na civilisação, repugnava ao seu temperamento de uma susceptibilidade intransigente aggravada por uma falsa educação.

Essa capacidade tão prodigiosa de contensão, de investigação, de exame, de absorpção de idéas, estava na sua natureza alliada a um temperamento caprichoso e feminil. Extremamente lymphatico, tendo sido epileptico na infancia, não poderia fatalmente deixar de ser o que era: um sentimentalista. A sentimentalidade foi o cachopo de todas os naufragios da sua inquieta o attribulada existencia.

A indifferença perante o conflicto é uma nobre virtude. Raros a possuem. O que succede com as naturezas vulgares é que a nossa resolução bôa, conscientemente reflectida, reforçada na mais legitima compenetração do dever, da dignidade, da honra, desmaia na conjunctura do conflicto que vae provocar entre amigos, entre companheiros, entre camaradas, e nós precisamos de reagir sobre nós mesmos com toda a força da nossa coragem para nos determinarmos a effectuar pela nossa iniciativa a explosão da crise irreconciliavel que presentimos latente, palpitante, dependente da palavra decisiva que por um dever de consciencia profundo e sagrado vamos lançar ao coração d'aquelles que nos rodeiam. Pois bem: essa virtude, tão rara, tão viril, de desmanchar implacavelmente prazeres para implantar controversias, essa virtude, dizemos, possuia-a Soromenho no estado de uma exageração pathologica. O conflicto na convivencia social não somente lhe não repugnava mas attrahia-o—como succede ás mulheres nervosas.

Consideravam-o geralmente uma vibora. Elle era apenas uma creança. As suas violencias mais asperas procediam todas logicamente da sua sensibilidade doentiamente delicada. Ninguem teve a injuria mais pronta pela mesma rasão de que ninguem teve egualmente a compaixão mais facil. Ninguem proferiu improperios mais pungentes, mas tambem ninguem chorou lagrimas mais enternecidas. Os que o viram aggressivo e verberante nas sessões da Academia, nos conselhos do Lyceu Nacional e do Curso Superior de Lettras não conheceram senão metade d'essa physionomia tão caracteristicamente meridional nos traços moraes como nas fórmas physicas.

Era preciso ouvil-o na intimidade da sua bibliotheca, no terceiro andar obscuro e modesto, conhecido de toda a mocidade estudiosa, terceiro andar a que tantas vezes subiram para fumar o cigarro democratico da camaradagem litteraria Lord Talbot, Lord Stanley, Gayangos, o conde de Brandebourg e tantos outros extrangeiros e viajantes illustres, para os quaes aquella humilde casa de litterato, tão hospitaleira e tão pobre, tinha altractivos que não podiam propornionar ás exigencias dos philosphos e dos principes, os mais brilhantes salões de Lisboa. Era preciso onvil-o ahi dissipar em bonhomia e em sensibilidade todo o nervosismo do seu coração com a mesma prodigalidade cem que nas assembléas officiaes acabara de dispender as violencias do seu cerebro imperfeitamente orientado.

Quando alludia á sua encantadora aldeia natal nas margens do Ave, perto da Villa do Conde, as doces paizagens do Minho onde elle viajara alegremente a pé nos dias azues da sua mocidade; quando repetia o estribilho de uma saudosa cantiga, os versos melancolicos de uma lenda ou de um romance popular; quando narrava a volta de uma esfolhada nocturna, sob o luar, ouvindo o gotejar da agua no fundo da deveza o canto dos rouxinoes atravez da espessura negra dos pomares; quando descrevia as madrogradas da caça ás perdizes no monte de S. Felix, ou as outras madrugadas mais alegres ainda das romarias minhotas, em que os clarinetes amanhecem antes dos melros, fazendo dançar pelos caminhos as bellas raparigas louras; quando finalmente se referia aos companheiros, aos amigos, que deixara dispersos na vida, os seus olhos de arabe, negros, rasgados, contemplativos, marejavam-se-lhe de lagrimas, e a sua voz cheia, incisiva e dominante, que nunca tremia nem se velava no maximo arrebatamento da colera, embargava-se-lhe em soluços, estrangulada pela saudade ao recordar um companheiro da infancia, um bom sitio amado, uma velha canção querida.

Banido da Academia, banido da Torre do Tombo, os dois unicos campos em que se podia exercer com proveito e com honra da patria a actividade da sua intelligencia, Augusto Soromenho foi enterrado vivo, e vivo foi sepultado n'este medonho tumulo—o despreso.

Nos seus ultimos tempos trabalhava ainda. Trabalhou até o seu ultimo dia. Ha cerca de um anno padecia uma dôr sternalgica, symptomatica do aneurisma. Esta dôr lancinante, que o privava do movimento, forçando-o a parar de repente na rua, obrigou-o a interromper antes d'hontem de madrugada a leitura que estava fazendo desde a meia noite na sua biblioteca. Acudiu-lhe a sua familia, chamou-se á pressa um medico. Inutilmente. Elle estava morto.

Seria mais que omisso, seria infame, que, tendo conhecido Augusto Soromenho desde a sua infancia, o que escreve estas linhas deixasse de acrescentar que a reputação tão frequentemente discutida d'esse traballhador desventurado foi sempre pura e immaculada aos olhos de quem o tratara intimamente durante o longo decurso de perto de trinta annos. O que faz este depoimento deseja para honra da humanidade que os Curcios e os Plutarcos encarregados de celebrar a vida e feitos dos Scipiões illustres e dos Catões celebres achem sempre nos seus heroes tantas qualidades desinteressadas e nobres para serem cobertas de rhetorica, quantas aquellas que em Augusto Soromenho foram deturpadas pela maledicencia.


Com esle titulo—Ao sr. Ramalho Ortigão—publicou o Diario da Manhã o folhetim seguinte:

Os exames no Lyceu Nacional—Os fins da educação—Um programma de ensino para o sexo feminino—Como se prepara a emancipação das mulheres—Duas catastrophes: o estado da litteratura feminina, e o estado da cosinha nacional—Grito afflictivo do paiz: menos odes e mais caldo.

Termina assim o summario do ultimo numero das Farpas. Qual de nós deixaria de ler com a maxima attenção um artigo escripto pelo sr. Ramalho, sobre assumptos de tanto interesse para o nosso sexo? nenhuma de certo. E para que se não diga com verdade que o grito afflictivo do paiz, do qual o sr. Ramalho se faz orgão, pedindo-nos caldo, não foi ouvido por uma só mulher portugueza, que, condoida, o soccorresse, venho por mim e em nome das senhoras portuenses, dar-lhe não só caldo, mas tambem luz, que o alumie nas suas investigações ácerca d'um assumpto, que é realmente grave—a dyspepsia nacional, que s. ex.ª attribue á nossa ignorancia culinaria, fazendo assim pesar sobre nós, tão tremenda responsabilidade.

Se o assumpto de que se trata, não fosse realmente grave, contentar-nos-hiamos com o praser que nos dá sempre a leitura dos escriptos do sr. Ramalho, pela elegancia do seu estylo, e finura do seu espirito, e apenas diriamos, na nossa linguagem de cozinheiros: É pena que os escriptos do sr. Ramalho não sejam mais succulentos! são como os caldos feitos pelos cosinheiros francezes, de apparencia magnifica, depurados até á transparencia, muito aromatisados ... mas sem substancia.

Quer-nos porem parecer, apesar da ironia com que o sr. Ramalho falla sempre de nós, que não tem rasão para nos querer mal; e que como filho, esposo e irmão de senhoras portuguezas, e por isso quasi nosso irmão, deseja com certeza a nossa felicidade e se promptificaria da melhor vontade a fazer-nos um favor se lh'o pedissemos. Ouça-me pois.

Não ensine á sr.ª D. Jeronyma, nem a mulher nenhuma portugueza, como se faz esse alambicado caldo francez, tão purificado, que por fim como o proprio sr. Ramalho confessa, deixa de ser um alimento. Se tem amor á sua patria, anime-nos, e aconselhe-nos a que continuemos a fazer os classicos caldos portuguezes, succulentos e compactos como os faziam nossas avós, e como nós todas ainda hoje sabemos fazer. Se o principal agente do temperamento d'um povo, do seu caracter e da formação das suas idéas, é, como s. ex.ª diz a sua alimentação, não esqueçamos que foi comendo esses caldos e quasi só com elles, que os energicos e valentes portuguezes contiveram sempre em respeito o poder de Castella, e que na Africa, e na Asia praticaram acções de tão prodigioso valor. E descendo á historia dos nossos dias, lembre-se que os vultos grandiosos dos lidadores da epopéa da liberdade, apesar de alimentados pelo caldo nacional e então infelizmente bem magro, mostraram em cem combates a sua heroica energia, e sua valorosa audacia, sem que o estomago se incommodasse com a dyspepsia nacional. É só com caldo, e com brôa que todos os dias se alimentam aqui centenares de homens do povo, que supportam, sem cansaço, nem fadiga, durante dez ou doze horas por dia, os mais rudes trabalhos; e comtudo não soffrem de dyspepsia. Será por terem mulheres muito instruidas, ou porque o caldo que comem é preparado por cosinheiros de 5:000 francos? deve ser por uma d'estas rasões, visto que é o sr. Ramalho quem nol-o affirma.

A dyspepsia não é em Portugal uma doença nacional, é quasi privativa dos homens das classes elevadas—e quer que lhe digámos porque? Porque elles teem com raras excepções, uma mocidade dissipada; porque na idade dos quinze aos vinte annos, quando os rapazes inglezes e allemães fazem consistir o seu maior prazer em se exercitarem nos jogos athleticos, e todo o seu orgulho em serem vencedores n'uma corrida ou n'uma regata, os portuguezes vão descançar das lides do estudo nos bancos dos botequins e das tavernas, onde é considerado heroe aquelle que come e bebe mais brutalmente, e como deus o que engole successivamente vinte e um calices de licor ou cognac, o que na pittoresca phraseologia d'esses senhores se chama dar uma salva real! Desculpa-os porém o axioma do nosso codigo de educação: que é preciso dar muita cabeçada para vir a ser homem serio.

Conhece o sr. Ramalho, bem melhor do que nós, todos os perigos porque passam os rapazes desde que se emancipam da tutella materna, até que chegam a ser homens. Estude o meio de os livrar d'esses perigos, e de lhes regenerar os costumes, e verá que, quando chegarem a ser chefes de familia, seu natural destino, não precisarão de encontrar na esposa o braço forte que lhes seja amparo, e terão o estomago são como em crianças, podendo digerir perfeitamente um caldo, mesmo quando elle não seja perfeitamente transparente, e até quando tenha seus vestigios de gordura. Faça isto que lhe pedimos, e todas nós bemdiremos o seu nome, pois d'este modo terá prestado um importantissimo serviço ao seu paiz.

O seu programma para a educação das mulheres parece-nos excellente para a França, Inglaterra e outros paizes onde as meninas são educadas nos collegios, longe da familia; mas aqui onde em geral as creanças que os frequentam comem e dormem em casa, essa educação que nos habilita a ser boas ménagéres, já que o sr. Ramalho gosta de francezismos, recebemol-a nós todas com o exemplo e lição de nossas mães.

Em Portugal onde todo o serviço domestico é geralmente feito em casa, todas nós sabemos como se lava, como se engomma, como se cozinha, como se faz doce, como se talha um vestido, etc. Mesmo as senhoras que não fazem esses serviços sabem como elles são feitos, pois desde crianças os viram fazer. O que não sabemos, lá isso não, é differençar os differentes generos de mobilia e o seu estylo caracteristico nas epocas mais notaveis da arte ornamental, etc. etc.; mas em quanto considerarmos, como até agora, a vontade, e o gosto do dono da casa, a suprema lei que nos rege na escolha de todos esses artigos em que nos falla, deixaremos esses conhecimentos aos cuidados dos nossos maridos.

Em quanto á nossa educação moral, estamos convencidas que em paiz nenhum as mulheres são mais honestas, mais laboriosas, mais dedicadas, mais sobrias e economicas, mais submissas á vontade do marido que nós, e toda a eloquencia do sr. Ramalho não é capaz de abalar sequer a nossa convicção.

Em França e em Inglaterra ha muitas mulheres—por profissão—enfermeiras, aqui não as ha senão nos hospitaes, e nem se lhes sente a falta, porque em toda a casa onde ha uma mulher, quer ella seja mãe, esposa, filha, irmã, ou mesmo criada, ha uma enfermeira sollicita, carinhosa e dedicada, cuja coragem nem sequer vacilla ante os horrores do contagio, que tantas vezes aniquilla o animo de homens energicos e audaciosos.

Para sabermos fazer prodigios de economia não precisamos de nos alistar n'uma escola ingleza, e, se o não soubessemos, a primeira mulher do povo que interrogassemos n'ol-o ensinaria. Tambem em Portugal se póde sustentar uma familia com 18$000 réis por semana, mas n'essa familia—o chefe, que trabalha do nascer ao pôr do sol, sustenta-se comendo tres tigellas de caldo que lhe custam 10 réis cada uma, 20 réis de sardinhas, e 10 réis de brôa por dia: total 90 réis.

Convença os homens, com a sua deslumbrante eloquencia, de que este alimento é muito sufficiente para lhes conservar robustas as forças vitaes, e verá como nós todas fazemos economias prodigiosas, e como uma casa deixará de ser uma lôba para se transformar n'uma burra.

Mas se considera como o ideal da perfeição na mulher, ser ella o braço forte e escudo da familia, tambem lhe podemos aqui apontar numerosos exemplos d'essas. As mulheres de Avintes passam os dias remando e guiando barcos no nosso Douro para ganhar o pão dos filhos, em quanto os maridos ficam em casa cosinhando: já vê que para qualquer de nós realizar o seu ideal basta casar em Avintes.

A educação intellectual das mulheres, quando ellas se não dediquem a ser mestras, póde, e até deve, assim como a moral, receber, como complemento necessario, as liçoes dos homens de quem forem esposas. Assim reconhecendo no marido superioridade em tudo, até mesmo nos conhecimentos litterarios, ser-lhes-ha mais facil ter por ele esse respeito que a religião e a sociedade nos impõem como o primeiro dever da esposa.

Em quanto á emancipação das mulheres, esse sonho dourado das senhoras inglezas—nós, menos profundas pensadoras, não o queremos.

Entendemos que a naturesa, que nos obriga a soffrer cruciantes dores physicas para attingirmos o apogeo da nossa gloria—o ser mãe, nos ensina a todas, que a nossa missão na terra, é saber soffrer e amar, por isso beijamos com os olhos rasos de lagrimas de alegria o filho que acaba de nos fazer soffrer as dôres da maternidade, e abençoamos reconhecidas a mão que prende as nossas algemas de escravas, quando essa mão é a de um homem, em quem passados os enthusiasmos da paixão, encontramos as solidas virtudes que apreciamos e respeitamos.

Regenerados os costumes dos homens, a familia portugueza, constituida como até agora, poderia ser apresentada como modelo ás nações mais civilizadas da Europa.

Filhos ambos da mesma terra, e quasi da mesma idade, considero-me sua irmã e como tal deixe-me dar-lhe um conselho. Se eu tivesse a sua intelligencia, inquestionavelmente uma das mais brilhantes do paiz, essa sua robustez physica, a sua grande cabeça na qual o chapéo de Thiers ou de Bismark assentaria perfeitamente, dedicar-me-hia a escrever livros, que fossem mais uteis do que agradaveis, e deixaria aos palhaços dos circos o trabalho de fazer rir o publico.

Em paga de todos os favores, que lhe peço, prometto fazer-lhe só um, mas esse importantissimo.

Não dizer a nenhuma senhora portugueza com que caldo creseu e medrou o sr. Ramalho, senão julgal-o-hiam tão criminoso como quem maldiz dos seus.

Sua

Irmã de Caridade


Reproduzimos esse importante folhetim porque nos asseguram que effectivamente é escripto por uma senhora. Sob este ponto de vista elle é para nós de um valor inestimavel. Este folhetim é a mulher. Não somos já agora nós que tenhamos de dar-nos ao trabalho delicado e subtil de a retratar. É ella mesma que vem reproduzir-se n'estas paginas com n'um espelho. Esta imagem directa do vivo constitue a mais preciosa acquisição da nossa galeria. Não somos nós que a descrevemos, que a phantasiamos, deturpando-a talvez na pureza da sua linha por meio de um lapis suspeito de inhabilidade ou de má fé. Vêem que é ella mesma que apparece, que faz o favor de mostrar-se viva, a corpo inteiro, na sua prosa com atravez de um vidro. Queira approximar-se, meus senhores! queiram approximar-se! espreitem por este buraco e vejam-a!

Ahi a teem! É assim que ella é. Não ha artificio, não ha preparo, não ha processo nenhum de stylo para a fazer melhor ou peor do que a realidade mesma. Reparem bem, meus senhores, que não é Proudhon que a descreve, não é Coubert que a pinta, não é Offenbach que a põe em musica. É ella mesma, ella em pessoa, que corre uma cortina e apparece.

O que estaes contemplando é a obra da direcção mental que nós mesmos imprimimos ao nosso tempo, é o fructo legítimo e authentico da philosophia, da litteratura, da arte, da corrente geral de idéas que temos produzido e impulsionado: é a nossa mulher tal como nol-a fizeram os contactos da nossa convivencia—a escola, o jornal, o livro. Revêde-vos na vossa obra.

Esse curioso ente representa a somma de vinte annos de poesia lyrica e de pó de arroz, de rhetorica e de chic, de doce d'ovos e de cuia, de recitação ao piano e de tacões Luiz XV, de collegio nacional e de cold-cream, de figurino e d'agua morna. Glorioso conjuncto.

Vede que lucidez de razão! que firmeza de criterio! que contensão de raciocinio! Como se adivinha bem no poder d'essas faculdades intellectuaes a circulação facil e viva atravez da rede dos nervos encephalicos de um sangue opulento e forte! A mente sã que tão vigorosamente se affirma no curioso trecho litterario que acabaes de ler presume o organismo mais perfeito, o corpo mais denso, o musculo mais racionalmente exercitado por uma sabia hygiene. Pela sua forte maneira de pensar podeis ajuizar com segurança da sua forte maneira de viver. Vede e applaude! Aplaudi-a a ella pelo que aprendeu; applaudi-vos a vós mesmo pelo que lhe ensinastes.


Esta senhora, em nome de todas as outras senhoras, das quaes ella se diz interprete, dirigi-se ás Farpas na pessoa do seu auctor.

O que são as Farpas com relação ás mulheres?

As Farpas são a publicação periodica—unica em Portugal—que em artigos consecutivos desde a sua apparição até hoje se tem constantemente consagrado por meio dos seus processos de critica á reconstituição dos costumes e á reorganisação da familia segundo o criterio porque se dirigem as sociedades modernas; ellas teem combatido violentamente o divorcio; teem despojado o adulterio da clamyde dramatica em que tantas vezes o envolve a poesia doentia, para o flagellarem pelo ridiculo na sua torpeza nua; teem honrado o casamento indissoluvel como sendo a mais sagrada das instituições perante a dignidade humana; teem fulminado o celibato como um aleijão physiologico e social; teem dado como base á emancipação da mulher a instrucção pratica, tão defficiente, e a alta cultura do espirito, tão negligentemente descurada na antiga educação; teem-lhe ensinado que é aprendendo desveladamente a ser util que ella descobrirá o segredo de ser verdadeiramente e eternamente amada; teem sollicitado a sua collaboração no estudo dos modernos problemas sociaes como factor indispensavel á fixação do nosso destino; teem pedido instantemente para ella a fundação de novas escolas de ensino especial e de ensino superior; teem-lhe dirigido constantemente durante cinco ou seis annos palavras graves, affectuosas, sinceras; teem-lhe fallado, como velhas amigas dedicadas, dos seus interesses mais caros: das bonecas das suas filhas, dos jantares de seu marido, dos arranjos da sua casa, da cosinha, do jardim, da adega, do armario das roupas brancas, do valor dos alimentos, da ordem, da economia domestica, etc.; teem-lhe feito presente de uma infinidade de theorias, de noções, de projectos, de systemas, de programmas completos, imperfeitamente concebidos—é claro—mas demonstrando uma dedicação excepcional, por isso que nenhuma das publicações periodicas que precederam esta se dirigiu jámais ás mulheres a não ser para lhes consagrar romances de uma moralidade suspeita ou versos de uma honestidade duvidosa.

Depois de publicados cerca de quarenta volumes da colleção das Farpas uma senhora tem finalmente alguma cousa que dizer ao auctor, e manda-lhe o seguinte conselho como resumo da opinião collectiva de todas as damas portuguezas:

«Que elle trate d'outro officio e deixe aos palhaços dos circos o trabalho a que até aqui se tem dado de fazer rir os outros!»

Este simples conselho é como um relampago, nas trevas do nosso espirito. Elle de per si só basta para nos convencer de que a educação das senhoras portuguezas não só é igual—como a auctora modestamente formula—á das primeiras mulheres extrangeiras, mas que póde mesmo considerar-se-lhe superior. Effectivamente madame Sand, madame de Girardin, Lady Morgan não tiveram nunca para dirigir a um escriptor qualquer—amigo ou adversario—uma palavra tão lucida, tão conceituosa, tão profunda e ao mesmo tempo tão finamente aristocratica, tão nobremente distincta como aquella com que somos honrados pelo criterio da nossa illustre compatriota. Sua excellencia entende que não somos mais que um palhaço de circo, opinião profundamente philosophica. É talvez isso mesmo o que todas as mulheres extrangeiras pensariam se nos lessem. É natural porem que ellas tivessem achado entre as suas perolas, entre as suas rendas, por baixo das suas luvas, no fundo de algum velho cofre perfumado, de alguma doce gaveta esquecida, entre as mimozas recordações perdidas da sua carteira ou do seu coração, um pequeno meio qualquer de não chamarem completamente palhaço com todas as suas cinco lettras e a sua respectiva cedilha, p-a-l-h-a-ç-o a um homem a quem os seus maridos lhes houvessem permittido dirigir uma carta pela imprensa.

Sua excellencia a illustre escriptora portuense tem da dignidade alheia e da sua propria dignidade uma comprehensão diversa, que não podemos deixar de attribuir com orgulho patriotico á influencia local da rua de Cedofeita sobre os requintes da delicadeza feminina.

Não é menos original nem menos profundo o modo como a nossa distincta compatriota contesta a conveniencia de ensinar physiologia humana e chimica culinaria ás menínas portuguezas. Se sua excellencia tivesse effectivamente a instrução que nós pretendemos que se lhe deve dar; se sua excellencia houvesse comprehendido que a mais nobre missão da mulher é, como diz Michelet, a de alimentar o homem; se para nos provar que estava apta para cumprir no seio da sua familia essa missão, sua excellencia nos convencesse de que conhecia a synthese chimica da nutrição, a evolução cellular, a relação existente entre os phenomenos da nutrição e do desenvolvimento, do movimento e da combustão; se nos mostrasse que estava habilitada a distinguir os principios alimentares pelas suas classificações mais genericas, os que fornecem o calor e a força e os que ministram os alimentos reparadores; se nos revelasse que sabia dirigir technicamente um jantar, ou fazer pelo menos um simples caldo, por lhe terem passado pelos olhos, uma vez pelo menos, alguns dos eminentes trabalhos consagrados a este assumpto essencialmente vital pelo sr. Gautier, que fez um tratado de chimica applicada á hygiene, pelos srs. Moleschott e Geoffrey Saint-Hilaire nas suas cartas sobre as substancias alimentícias, pelo sr. Champouillon na sua Hygiene alimentar, pelo sr. Claude Bernard nas suas lições e conferencias, pelo sr. Bouchardat na sua memoria sobre a alimentação insuficiente, pelos srs. Liebig, Payen, Foussagrives, Gustave le Bon, Letheby, Marvaud, Michel Levy, Coulier, Lacassagne, Fleury, Motard, Wurtz, etc.; se sua excellencia possuisse finalmente—ainda que no estado da mais ligeira tintura—alguma das noções em que se basea a theoria da cosinha, que é um dos mais importantes factos da hygiene ou da physiologia applicada, o seu voto n'esse caso poderia ter discussão.

A brilhante ausencia de ideias que sua excellencia manifesta sobre este assumpto dá ao seu voto um caracter irrevogavel, que não pode infundir nos adversarios senão admiração e respeito.

É inutil que Smith por um lado e o doutor Byasson por outro se tenham dado ao trabalho de reconhecer por meio de experiencias feitas sobre o seu proprio organismo qual o dispendio de carbone e de azote em cada hora, já dormindo, já caminhando, já executando um trabalho mental ou muscular, para regular sobre este dispendio a ração alimentar de cada individuo. É inutil que o doutor Franckland e Payen tenham feito as analyses mais escrupulosas para nos darem um quadro do valor nutritivo dos diversos alimentos e da quantidade de força e de calor desenvolvida pela oxydação d'elles. É inutil que o doutor Chenu e o doutor Shimpton nos tenham mostrado pela comparação das estatísticas da salubridade nas campanhas da Criméa e da Italia o extraordinario poder da qualidade da alimentação sobre a saude e sobre a energia dos soldados. É inutil que pelo estudo de iguaes estatísticas com relação á alimentação de operarios empregados nas grandes industrias se tenha provado que da qualidade da alimentação resulta o augmento ou a diminuição de 20 a 30 por cento no trabalho de cada homem. É inutil que Geoffrey Saint-Hilaire nos tenha dito: «Quantos factos na vida das nações attribuidos pelos historiadores a diversas causas complexas e cujo segredo reside simplesmente na cosinha das familias!». É inutil que toda a sciencia tenha provado que a maioria dos crimes e dos vicios se deve attribuir em cada sociedade ao seu regimen alimenticio; que o uso dos alimentos nervinos é uma necessidade inviolavel na rude concorrencia vital do nosso tempo; que é indispensavel perante a moral e perante a justiça melhorar a alimentação dos trabalhadores facilitando-lhes a acquisição dos alimentos plasticos e reparadores geralmente insufficientes na sua economia. É inutil que em todos os paizes civilisados os sabios, os philosophos, os estadistas procurem por todos os meios de vulgarisação e de associação chamar a attenção das mulheres para o estudo e para a resolução d'esse grave problema cuja sede é a cosinha. É inutil tudo quanto se tenha allegado e quanto possa allegar-se para convencer esta illustre senhora portuense da vantagem que resultaria para os seus similhantes do facto de ella aprender a fazer caldo um pouco menos empyricamente do que por tel-o visto fazer á cozinheira da sua avó.

Sua excellencia tem para manter a inalteravel tradição sobre os methodos de deitar a carne á panella nas cosinhas da sua rua este argumento supremo: Foi com essa panella á frente que os portuguezes contiveram em respeito o poder de Castella e praticaram prodigios de valor Da Asia, na Africa e na Epopea da Liberdade. Segundo sua excellencia foi abraçados à travessa do cosido que nossos avós descobriram a India e que os paes de uns de nós resistiram aos paes dos outros durante o cerco do Porto. Os vencidos jantavam no Bignon ou no Café Anglais.

Em presença d'essa logica de ferro submettemo-nos humilhados e reverentes. Uma vez que as coisas se passaram como sua excellencia affirma, nada se nos offerece retorquir. Mantenha-se o statu quo na perfeita educação da mulher portugueza. Continue sua excellencia imaginar que sabe cosinhar, que sabe lavar a roupa, que sabe talhar um vestido e que sabe tambem—ó legítimo orgulho!—fazer doce.—De mais a mais—notem—sua excellencia faz doce! Não! positivamente nada se nos offerece retorquir-lhe. Faz doce? Bem. Não precisa de saber mais nada. Ahi tem sua excellencia uma opinião que lhe garantirá «as solidas virtudes que seu marido desenvolver no lar domestico passados os enthusiasmos da paixão»:—sua excellencia gosta de assucar!

Quem sabe se não será por um effeito do atavismo sobre a gula qae os meninos de quinze annos de quem sua excellencia nos falla vão beber licores para os botequins?

As mães dos que amam os jogos athleticos e as proezas musculares teem ellas mesmas não a opinião do assucar mas sim a do roast-beef e da agua fria; não fazem doce, fazem gymnastica, e não ensinam os filhos unicamente a comer marmelada, a ir á novena e a não metter os pés nas poças; ensinam-lhes o cricket, a natação e o box, dão-lhes desde a idade mais tenra os habitos mais viris, e, como sabem impedir que elles vão para os botequins, não costumam encarregar os criticos de lh'os ir lá buscar.


Sua excellencia não se recusa unicamente a aprender a fazer bom caldo segundo os preceitos de Liebig, que nós lhe aconselhamos suppondo que Liebig, um dos primeiros chimicos do mundo, sempre saberia um pouco mais d'isso do que o Antonio das Môças, celebre inculcador de cosinheiras, encarregado de ministrar as donas de casa portuenses as suas mestras da arte culinaria. Sua excellencia não só não quer fazer caldo em termos para seu marido, mas nem mesmo quer escolher a mobilia, comprar os pratos e os copos, determinar a differença de côr nos estofos do salão e da sala de jantar, tornar a casa alegre, ridente, aprasivel e digna, pagando assim em elegancia, em delicadeza e em bom gosto á sociedade conjugal um serviço igual áquelle que recebe d'ella em proteção, em trabalho e em força. Sua excellencia prefere deixar todos esses conhecimentos aos cuidados do dono da casa (!) cuja vontade considera a lei suprema, na escolha de todos os artigos!

Ficariamos na mais inquietadora duvida acerca das funcções que sua excellencia deseja exercer no lar domestico, se ella mesma não tivesse a bondade de nos explicar que a occupação para que se reserva é a de abençoar agradecida a mão que prende as suas algemas de escrava (!)

O que nos parece é que esse mister exclusivo de sua excellencia não promette uma existencia bem divertida em familia ao portador das suas algemas!

Se fossemos seu marido declaramos que nos desquitariamos se sua excellencia recusasse aprender pelo menos, alem de abençoar os ferros, a jogar a bisca. O nosso temperamento não nos permittiria estar a dar-lhe constantemente o grilhão a abençoar; quereriamos ter a faculdade de poder dar-lhe tambem, de quando em quando, para variar, uma bôa rôlha.


O folhetim de sua excellencia termina com uma allusão pessoal à nossa robustez physica e ao caldo que nol-a creou. Sobre este ponto pedimos licença para ministrar alguns breves esclarecimentos biographicos:

Eu—pois que é bom precisar a clareza dos numeros—eu, auctor d'estas linhas, não me creei no regimen dietetico do Chiado ou da Calçada dos Clerigos. Não, minha senhora: eu creei-me no caldo d'unto e na broa dos homens do campo. Estou prevendo que sua excellencia tirará d'este facto a conclusão maliciosa de que não tomei chá em pequeno. Que sua excellencia não hesite um momento em tirar tal conclsão! É até favor que me faz—para simplificar os dados do problema—o partir do principio de que não tomei ease chá.

Agora o que tomei, foi o bom ar puro, saudavel e honesto da querida courella onde nasci e em que me creei. Entre os preciosos alimentos mineraes de que me nutria havia um principio de primeira importancia para o perfeito desenvolvimento do meu arcabouço:—o phosphato de cal, que eu ingeria em grandes dozes.

A nossa casa, cercada d'arvores, no meio de campos, não tinha saguão, não tinha visinhas de cuia do retroz e de sapatos achichelados, não tinha pia.

A vida que cercou a minha infancia era simples, rude, poderosa, como o grande ar vivificante que me envolvia. Dos homens da minha familia o primeiro plumitivo sou eu. As mulheres eram ingenuas creaturas que, sem terem lido nunca Proudhon ou Taine, sem conhecerem nenhuma das theorias dos modernos moralistas tinham todavia comprehendido e assimilado por um instincto cheio de lucidez, os dois principaes deveres de uma mulher: Primeiro ser saudavel; Segundo não ser conhecida. No interior da sua casa eram admiraveis exemplos de dignidade, de trabalho, d'ordem, de economia, de bom humor. Madrugavam como as cotovias e nunca o velho piano de cauda, que eu conheci ao canto da sala grande, deixou de se fechar de memoria d'homems ás 10 horas da noite, o mais tardar. Não se desprezavam de cultivar, ellas mesmas, os seus canteiros de tulipas e de cravos, e eu seria o primeiro dos artistas portuguezes se conseguisse um dia condensar n'um livro toda a somma de methodo, de ordem, de execução esthetica, de picante espirito pittoresco, de risonha graça, de que era modelo a incomparavel cosinha da minha avó,—aberta ao nivel do pateo defronte do poço, cheia das alegrias scintillantes do sol e do balsamico perfume dos limoeiros; enfumada, com os dois escabellos de carvalho de cada lado da borralheira sobre o vasto lar de granito; a enorme capoeira onde se espanejavam os capões; os tropheus ornamentaes dos instrumentos agricolas; as prateleiras da louça reluzente; o cortiço da barrela e a masseira do pão a um canto; os bambolins de paios e de presuntos do fumeiro suspensos do tecto; a comprida meza dos môços da lavoura tendo em cima a grande celha com a braçada verde dos frescos legumes picada com as pintas douradas das cenouras entre as avelumeio e gordas efflorescencias dos broculos; e no meio d'isso a intervenção periodica do mendigo de estrada, de alforge ao pescoço, que vinha encher a sua escudela de batatas ou de caldo, em quanto os pardaes mais atrevidos iam sem pedir esmola debicar a broa do balaio na testada do forno.

Esse conjuncto exhalava uma penetrante sensação de tepido aconchego, de suave alegria, de inalteravel paz; inspirava sentimentos praticos e honestos; era o complemento e o commentario vivo das velhas historias contadas á lareira; infundia o respeito da tradição; dava o amor da familia; explicava o amor á, terra da patria pela dedicação ás quatro braças de solo cobertas por esse velho tecto.

A cosinha de minha avó era finalmente uma profunda obra d'arte, da qual os mais bellos quadros da escola flamenga, tão penetrados como são da poesia domestica, não poderam dar-me jámais senão uma ideia desbotada e fria. Escuso de acrescentar que toda a obra de quantas litteratas tem havido em Portugal não pode senão fazer-me sorrir comparada á obra modesta de minha avó, que ella tirou n'um preciosa exemplar unico para a educaçao das suas filhas, para a fixação do respeito, da veneração e da saudade eterna dos seus netos.

A minha robustez physica é o mais contraproducente dos argumentos que a minha contraditora podia adduzir em favor da sua doutrina. Diz Hahnmann que a fraqueza do homem principia sempre na fraqueza da mãe. A minha robustez devo-a eu a descender de uma vigorosa raça de mulheres, que os nobres cuidados da sua casa e da sua familia tiveram sempre ao abrigo das sentimentalidades enervantes e das publicidades burlescas: poucas vezes empallideceram nos bailes e não tiveram nunca de que corar aos folhetins dos periodicos.


Terminando, agradeço de novo os conselhos de sua excellencia a illustre escriptora minha patricia, mas peço licença para os não seguir. Continuarei a fazer rir os outros, o que me não impedirá de fazer tambem chorar alguns, uma ou outra vez, quando for preciso.


Por occasião da visita de el-rei á Escola Polytechnica funccionou o telephonio entre uma das salas da Escola e o Observatorio da Tapada.

Approximando-se do novo apparelho transmissor dos sons, dizem os jornaes que sua magestade ouvira—um solo de cornetim!

Houve primeiro duvida sobre se o fio ligava a Escola Polytechnica com o Observatorio Astronomico ou se a ligava com a phylarmonica União e Capricho. O solo era effcctivamente executado pelo Observatorio. Emquanto a astronomia tocava cornetim é natural que, em compensação, a arte musical se occupasse em determinar uma parallaxe.

A unica cousa que extranhamos é que o Observatorio não observasse entre as suas peças de musica alguma coisa mais interessante para transmittir a el-rei do que o proprio hymno do mesmo augusto senhor.

Que o Observatorio cultive a especialidade do cornetim, perfeitamente de accordo! mas que elle cultive igualmente a especialidade do hymno parece-nos um abuso que o principe não levará a bem.

Reflectiu por acaso o Observatorio no que é o hymno para um cerebro coroado? Cremos que o Observatorio não desceu ainda com as suas conjecturas ao fundo d'esse abysmo. É horroroso.

Para os cerebros coroados o hymno equivale a uma enfermidade monstruosa. O observatorio faz certamente ideia do que é ter zumbidos, não é verdade? Pois ter hymno é peor. É ter constantemente, durante toda a vida, em casa, na rua, em viagem, nas cidades, nas villas, nas aldeias, sobre as proprias aguas do mar, sempre, por toda a parte como doença chronica, como affecção incuravel do nervo acustico, a audiçao do mesmo trecho de musica!—O que deve levar paulatinamente á loucura.

Que o Observatorio se compadeça do infeliz principe condemnado a tão incomportavel flagello! O Observatorio ha de ter conhecimento das contrariedades que amarguram a existencia; o Observatorio ha de ter faltas de dinheiro, ha de ter constipações, ha de ter dores de dentes, ha de ter calos. O principe tem tudo isto, e demais a mais tambem tem hymno. Poupemol-o ao desgosto de o fazer acompanhar pelo seu triste mal ás regiões da sciencia! Inflijamos-lhe o solo, visto que não ha outro remedio, mas perdoemos-lhe por esta vez o hynmo! Sejamos terriveis, mas sejamos justos! A providencia collocou-nos na mão o cornetim. O monarcha presta-nos submissamente o seu real ouvido. Não abusemos d'esse instrumento poderoso e d'essa orelha innocente! Compenetremo-nos da tremenda responsabilidade que pesa sobre nossas cabeças! Somos cornetistas, mas somos tambem astronomos ... Toquemos o Pirolito!

E a posteridade nos abençoará.


Ha tempos que na sociedada portugueza se notava esta grande falta: A hydra da reacção desapparecera da orbita dos conflictos do poder politico e do poder clerical. Os srs. ministros, reunindo-se em cada manhã nas secretarias do Terreiro do Paço, perguntavam angustiadamente uns aos outros:

—Não viram por ahi a hydra?

Ninguem a tinha visto por ali. Os joanetes do sr. Barros e Cunha entumeciam de impaciencia por não poderem esmagar o monstro; e o sr. Mexia, sem hydra que accommetter, sentia-se calvar de humilhação na sua dupla qualidade de ministro dos negocios ecclesiasticos e de preterito imperfeito do verbo Mexer.


N'esta conjunctura por tantos titulos dolorosa o sr. marquez d'Avila, presidente do conselho, tomou uma resolução heroica: determinou ser hydra do meio dia por deante. E principiou a accumular engenhosamente as suas funcções de bicha ultramontana com as suas funcções administrativas de homem de estado. Pela manhã s. ex.ª governa. De tarde s. ex.ª rabêa.

Eis um dos resultados da dualidade que s. ex.ª se dignou de assumir para salvar a situação da falta da hydra:


O serviço dos enterramentos era feito em Lisboa na mais perfeita paz. Catholicos e não catholicos eram levados para o cemiterio municipal pelos seus respectivos padres ou simplesmente pelos seus amigos ou pelos seus parentes, e todos tinham o seu logar na cidads dos mortos como o haviam tido na cidade dos vivos. Pendia apenas d'esse facto uma pequena questão canonica que o sr. patriarcha de Lisboa resolveu do modo mais exemplarmente sensato, ordenando que, visto considerar-se o cemiterio como uma instituição municipal, os parochos benzessem as sepulturas dos que desejassem repousar em terreno sagrado, e não benzessem as d'aquelles que se contentassem com uma modesta cova simplesmente civil. Não tinha jámais de intervir a policia. O ministerio do reino estava a esse respeito completamente socegado em sua secretaria. Finalmente podia-se morrer em Lisboa só pelo gosto de ser tão tranquillamente enterrado.

N'isto o sr. presidente do conselho sobrevem na sua fórma de hydra e determina em favor da morte catholica a creação de um muro similhante ao que o sr. Guillomin imaginou para abrigo da vida privada. A camara municipal de Lisboa reune-se para dar cumprimento á portaria de s.ex.ª e discutir o modo de levantar o muro. Propõem-se a tal respeito varios alvitres sobre os quaes predomina em ultima analyse o do sr. dr. Jardim.


Era previsto que o sr. Jardim seria o vencedor n'este pleito. Concorrem de facto n'essa cavalheiro todas as condições que se requisitam para o triumpho. Em primeiro logar, pelo lado physico, elle dispõe da primeira cabelleira do paiz. Em segundo logar, pelo lado intellectual, elle tem uma formula. A sua formula é esta: «...O bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha ...» Sempre que esse homem terrivel arroja para traz das orelhas a sua cabelleira e descarrega sobre os auditorios a sua formula, a victoria é d'elle. A sua existencia tem sido uma serie nunca interrompida de triumphos, alcançados pela sua cabelleira e pela sua formula. Foi pintando cheio de cabello e de ardor o bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha que elle triumphou no quinto anno da sua formatura em direito, na defeza das suas theses de doutoramento, na exhibição das provas do seu concurso para lente da universidade, nas reuniões das associações operarias e phylarmonicas de Coimbra, nos conselhos fiscaes dos bancos hypothecario e de Lisboa e Açores, nas suas eternas prelecções sobre o terceiro estado, e finalmente na discussão do muro Guillomin da morte catholica ordenado por s. ex.ª a nobre hydra de Avila e Bolama.


Foi baseado nos seus principios de direito administrativo e de direito canonico extraidos do bucentauro do progresso rasgando os flancos da montanha, e ardendo em zelo pela sua alta comprehensão scientifica e philosophica do phenomeno social da religião e do facto biologico da morte,—comprehensão egualmente haurida do já alludido bucentauro rasgando os supracitados flancos,—que s.ex.ª o sr. doutor convenceu a vereação lisbonense a approvar não só a creação de um muro—o que à hydra parecerá sufficiente—mas a de quatro muros, o que ao bucentauro ainda parece pouco.

O muro primitivo da hydra com os tres muros complementares do sr. Jardim fecharão o recinto destinado de ora avante aos enterramentos de todos aquelles que morrerem fóra do gremio da religião catholica apostolica romana.


Nós suppunhamos que o caracteristico religioso que distinge um catholico dos membros de qualquer das outras cinco mil seitas religiosas que cobrem a superficie da terra era um facto dos dominios exclusivos da consciencia: que esse caracter desapparecia no limiar do obscuro portico infinito onde pára a vida; que o cadaver deixava de ter uma religião, cessava de pertencer á igreja, para pertencer exclusivamente á chimica. Suppunhamos que o cemiterio, considerado não só pelo seu lado civil mas mas principalmente ainda pela intenção do seu instituto christão, era o campo sagrado do respeito, da tolerancia, do esquecimento de toda a discrepancia de idéas, de toda a offensa, de toda a injuria, a mansão eterna do perdão e do amor para todos aquelles que padeceram na terra as amarguras communs da grande humanidade coberta em toda a redondeza do orbe pela larga benção incondicional de Jesus.

Estavamos grosseiramente illudidos. O cemiterio, o cemiterio de Lisboa, pelo menos, o dos Prazeres ou o do Alto de S. João, é puramente um recinto de caracter official, destinado á fermentação exclusiva das podridões privilegiadas.

Um sr. conselheiro, por exemplo, que morre hydropico na sua cama, bem ungido pela liberalidade amiga do seu cura, bem chapinhado em agua benta pelo compadrio do seu prior, correcta e apparatosamente amortalhado, com as suas calças de galão de ouro duplamente retesadas pela inchação e pelas presilhas, com a sua farda vestida, a sua barba feita, a commenda no peito, o espadim ao lado, o chapéo armado aos pés, o cordão da ordem terceira de S. Francisco à cinta, vae legitimamente e no uso do mais sagrado direito para o cemiterio, a esperar na morte a trombeta da resurreição da carne, como esperou na vida a hora da sua repartição. No dia da chamada geral no valle de Josaphat elle porá na cabeça o seu chapéo de bicos e irá tomar o competente logar na gloria eterna, na bancada dos conselheiros, á mão direita de Deus Padre Todo Poderoso.

Mas tu, miseravel canalha, tu, concebido no monturo e dado á luz no cano do esgoto, tu que não conheceste pae nem mãe, producto espontaneo da grande immundice anonyma, apparecido como a flor da febre á superficie do pantano, tu que não recebeste baptismo, nem confirmação, nem ordem, nem matrimonio, nenhum finalmente d'esses preciosos beneficios que abrem o céo e que a igreja confere por uma tarifa de preços superiores aos teus capitaes, tu, não tinhas no cemiterio de Lisboa senão um logar usurpado, roubado indignamente ás pessoas de bem. Estoiraste para um canto no enchurro em certa noite de inverno. Viveste e morreste fóra dos sacramentos da nossa Santa Madre Igreja. És como um cão. A tua natureza humana não é a da outra gente. A tua podridão não é a da cabelleira do sr. Jardim nem a do abafadoiro do sr. marquez de Avila. Tu és uma besta. És peior ainda: és um impio. Vão conceder-te agora um quintal para ires para debaixo a terra para a estrumeira execranda dos atheus. Muito favor te fazem estes bons senhores em te não remetterem ás equarissagens para o esfollal Ainda que, por outro lado, na equarissagem, esfolado, distillado, amanhado convenientemente, podias ainda ter o prazer de uma sobrevivencia industrial, util ao teu proximo. Os teus principios chimicos, o teu hydrogenio, o teu oxigenio, o teu carbono, o teu azote, poderiam achar uma applicação pratica e decente. Poderias aspirar na tua outra vida a abotoar com os teus ossos as calças do sr. marquez de Avila e o lustrar com as tuas banhas a cabelleira do sr. Jardim e de outros doutores da camara municipal e da igreja. Na estrumeira dos impios que te destinam nada mais serás do que um eterno objecto de execração e de horror para os teus concidadãos. Quando passarem por cima da tua cova os homens sérios, a quem está promettido o céo sob a palavra de honra do padre Marnoco e de outros ecclesiasticos, elles cuspirão sobre a tua dissolução infecta. As mães passarão de longe, correndo, com os seus filhos pela mão, fazendo-te figas. As velhas senhoras aristocraticas, entrevendo de passagem o teu cypreste agoirento, benzer-se-hão com as suas finas mãos pallidas e rezarão os esconjuros mais efficazes no fundo tepido dos seus ligeiros coupés. Assim com as abençoadas sepulturas dos santos fazem os benignos milagres, a tua sepultura dará os horrendos enguiços. E eu te affirmo que ainda havemos de vêr aquelles que eram cegos e que recuperaram a vista abraçando-se ás sagradas reliquias de um bom santo, perderam-a outra vez por a prostituirem affirmando-se nas vegetações malignas cujas raizes se tenham contaminado no teu humus preverso! Finalmente serás detestado, abominado, execrado, maldito,—cem mil vezes maldito pelos homens, pelas mulheres, pelas creanças, pela cidade inteira.

E cuidas tu, miseravel, que poderás encontrar um dia na eterna justiça inviolavel a compensação d'este despreso systematisado, d'este rancor que é um regulamento municipal, d'este odio que é uma lei do reino? Como te enganas! O que tem de te succeder é irremissivelmente o seguinte:

No dia do juizo final tu ouvirás na profundidade do teu estrume o canglor da enorme trombeta mais longa que a via lactea, soprada por um anjo que desde o principio do mundo terá estado a recolher no pulmão para os expellir n'esse instante, todos os estampidos da natureza, todos os bramidos do mar, todas as erupções dos vulcões, todas as quedas das catadupas, todos os estrondos reunidos do vendaval, do trovão e do raio. Não terás remedio senão acordar,—quer queiras, quer não—do teu pesado somno da materia bruta. Serás levado á revista do grande valle por dois ceruleos cherubins de pequenas azas luminosas suspensas nas espaduas como moxilasinhas feitas da pennugem do sol. Esses cherubins dir-te-hão com a sua doce voz pollida, affectuosa, mas vibrante: «Vocemecê ha de ter a bondade de passar ali para a mão esquerda de Deus Padre porque é condemnado.» Tentarás escapulir-te, safar-te para a podridão de que tinhas vindo. Appellarás para o juiz supremo. O arbitro da eterna justiça inquebrantavel cravará em ti os seus olhos. Tu o verás tambem a elle, com a sua longa barba que envolverá toda a terra, o seu bigode de interminaveis nuvens grisalhas, de cujas guias, ao contacto dos seus dedos, chisparão os raios na amplidão infinita. Ouvirás a sua grande voz, cujas sylabas cairão na tua alma, a uma por uma, mais pesadas que o Monte Branco e que o Nevado de Sorata. Elle dirá:—«Deram-lhe o baptismo? Não. Deram-lhe a confirmação? Não. Deram-lhe a penitencia? Não. Deram-lhe a absolvição da culpa? Não. Não lhe deram nada. O cherubim tem razão. Passe para a mão esquerda.» Então passarás para a esquerda. O teu anjo custodio abrirá um alçapão aos teus pés e gritará para baixo, para as profundidades do immenso vortice:—«Fogo eterno para um!» Depois do que, te tocára com um sopro. Tu despenhar-te-has cortando o espaço como um astro cadente, sem luz, similhante a uma estrella sombria feita de lama, até te submergires no tremendo abysmo, na punição eterna. E será por todos os seculos dos seculos, sem fim jámais.

Eis ahi tens o que te espera, segundo a religião do dr. Jardim e outros. Religião bem diversa da do santo velho Tobias, que com as suas tremulas mãos decrepitas violava piedosamente as leis vigentes e enterrava elle mesmo os infelizes condemnados pelo rei da Assyria a ficarem insepultos! Bem diversa da d'aquelles christãos da igreja primitiva, que assombravam Tertulliano empregando mais perfumes para embalsamar os seus mortos do que os pagãos consumiam para celebrar os seus sacrificios; lavavam os cadaveres, envolviam-os em seda; vellavam-os durante tres dias antes do os conduzirem á sepultura, onde ao som dos hymnos e dos psalmos os collocavam estendidos com a face voltada para o nascer do sol. E não resumiam a caridade em enterrar unicamente os seus correligionarios: os primeiros christãos enterravam tambem, indistinctamente, todos os pagãos pobres e desamparados, todos os hereticos, todos os atheus, todos os impios. Para lhes merecer o amor bastava ser homem. Para lhes merecer o sacrificio bastava ser desgraçado. Por isso disia o imperdor Juliano que fôra a obra gratuita e incondicional de enterrar os mortos a que mais contribira para o estabelecimenlo e para a propagação do christianismo.


Agora, estabelecido o novo cemiterio, resta-nos vêr como s. ex.ª o ministro do reino resolverá os conflictos promovidos contra elle mesmo por s. ex.ª a hydra. E sobre este ponto temos algumas duvidas a que muito desejavamos que o sr. Jardim prestasse por um momento as suas esclarecidas madeixas e o seu profundo bucentauro, ou—porque o digamos n'outros termos—a attenção do seu genio. Eis um dos casos sobre que pretendemos consultar s. exª:


Imagine o sr. doutor que o seu reverente servo auctor d'estas linhas, não querendo enterrar-se de todo por uma só vez, resolvia enterrar-se por partes e dar á terra uma das suas pernas para a terra se ir entretendo.

N'esta hypothese pergunta-se:

Onde é que o sr. doutor determina que se sepulte a perna de que eu tenha o capricho de descartar-me?

Estou prevendo que o bucentauro de s. ex.ª, attribuindo indifferentemente a qualquer das minhas pernas a paternidade do presente escripto, me prescreverá o logar destinado por s. ex.ª para os membros impios e locomotores.

A isto porém replico a s. ex.ª que a minha perna quer se trate da direita, quer se trata da esquerda, é boa catholica apostolica romana. Tinha eu oito dias de idade, ex'mo sr. quando a acompanhei à pia baptismal, e ahi lhe foi perguntado pelo parocho da minha freguezia, em lingua latina, que ella a esse tempo ainda não tinha tido tempo de aprender, se queria baptisar-se, ao que meu padrinho respondeu Volo! E este volo era como se fosse a minha propria perna que houvesse aprendido as linguagens e que assim ousasse exprimir-se. Mas lhe perguntou o parocho se ella acreditava na communicação dos santos, na resurreição da carne e na vida eterna. Ao que ella respondeu, sempre pela boca do meu padrinho, que em tudo acreditava piamente e que era por isso que ali tinha ido com o seu respectivo pé e com o pequeno apendice que era o resto da minha exigua e innocente pessoa. Desde esse dia até hoje bem varias e bem extranhas aventuras se teem passado com a perna cujas crenças religiosas nos cabe discutir para averiguar o logar que lhe compete na funeral mansão. Ella porém, ex'mo. sr. doutor, apezar de todas as vicissitudes que tem atravessado na vida, nunca até hoje contradisse—que me conste—as declarações latinas feitas em seu nome por meu padrinho: Volo, credo, abrenuntio. Ella portanto é catholica, e tem direito á sepultura sagrada na terra e á bemaventurança no paraiso. O sr. Jardim não póde de modo alguma mandal-a para o cemiterio dos atheus.


Supponhamos agora que o sr. doutor determina que o logar que compete á funeral jazida de uma das minhas pernas é o cemiterio catholico. A essa resolução tenho egualmente de oppôr-me com os fundamentos seguintes:

Uma vez nascida em Portugal, o baptismo, a confissão, a missa, a communhão, a pratica de todos os sacramentos e de todas as ceremonias não significa da parte da minha perna uma affirmação religiosa mas sim uma affirmação civil.

Pelas leis do reino a religião catholica apostolica romana não é facultativa, é obrigatoria. A minha perna não póde entrar no estado sem ter previamente passado pela igreja. Na falta de um registro que substitua o assento baptimal para a consignação do nascimento, a minha perna nem sequer portugueza póde ser emquanto não fôr baptisada! Em todo o decurso da vida civil, ella não póde dar um só passo sem primeiramente demonstrar que é catholica. Sem a certidão de baptismo, primeiro, sem o attestado passado pelo parocho da frequencia de todos os demais sacramentos depois, ella não póde fazer exame de instrucção primaria; não póde matricular-se em nenhuma das escolas; não póde entrar no exercito, nem na armada, nem no professorado, nem no funccionalismo, nem na magistratura, nem na representação nacional. Não sendo catholica não póde ter nacionalidade, não póde ter profissão, não póde ter estado, não póde ter mulher, não póde ter filhos, não póde nem ao menos ter nome!

A todas as portas da sociedade portugueza se pergunta á minha perna antes de a deixar penetrar, se ella é catholica, exactamente como se lhe pergunta se ella está isempta do recrutamento e se é vaccinada.

Desde que veiu á luz em Portugal a minha perna, pelo simples facto de nascer, pertence irremissivilmente á igreja. Sem previa licença da igreja ella não póde dar um unico passo para dentro do estado ou para dentro da familia. Esta simples aspiração, tão modesta: ser filha de meu pae e de minha mãe—a minha perna está prohibida de a ter sem que a igreja diga que sim. Chega mesmo a ser impossivel o poder eu demonstrar de um modo juridico e authentico que a minha perna seja effectivamente minha emquanto a igreja não disser tambem que sim. De sorte que, quando eu ouso dizer a minha perna, sirvo-me de uma arrojada methaphora, que espero me seja relevada pelo sr. dr. Jardim. O que eu rigorosamente deveria dizer em linguagem litteral, para me referir á minha perna, era—a perna da igreja.

Se estamos pois n'um paiz onde o estado priva absolutamente a minha perna da faculdade de escolher uma religião, chumbando-lhe elle mesmo o catholicismo no tornozello, como se chumba a grelheta n'um condemnado, recuso absolutamente ao sr. dr. Jardim e a todos os demais doutores o direito de affirmarem que a minha perna tenha ua religião. Pelo facto de ser baptisada, de ouvir missa, de se confessar ao menos uma vez cada anno, de commungar pela Paschoa da Resurreição, de jejuar á sexta feira, de acreditar na infallibilidade do papa, etc., a minha perna não está na religião, está apenas na lei civil, está na carta. Em quanto a crenças religiosas, o mais que se poderá dizer da minha perna, apezar de baptisada, de jejuada, de confessada, etc., é que ella é cartista.

Como porém a creação das duas especies de cemiterios imaginados em Lisboa pelo sr. Jardim e pelo sr. marquez de Avila não póde ter por fim separar os cidadãos que obedecem á carta dos cidadãos que lhe não obedecem—o que seria absurdo por equivaler a acompanhar a mesma lei de dois regulamentos oppostos, um para o cumprimento d'ella e outro para a sua transgressão,—é claro que não póde ser unicamente pelo facto de estarem os restos de alguem dentro da lei civil que se lhes ha de designar a sepultura sagrada.

Em conclusão final: Dada a coexistencia de dois cemiterios, um catholico outro não catholico para o fim de enterrar todo o mundo, a minha perna pela impossibilidade de se determinar rigorosamente se ella é effectivamente catholica ou se não é catholica, acha-se no caso especial de não poder ser mandada nem para um nem para outro d'esses cemiterios, e de ter de ficar insepulta em quanto o sr. dr. Jardim não mandar o contrario.

Ora succede que todos os cidadãos portuguezes, sem excepção alguma, se encontram precisamente nas mesmas condições em que se acha a minha perna.

Não se póde affirmar que alguem é catholico ou que o não é emquanto a creação do registro civil não assegurar a cada cidadão a livre faculdade de exercer ou não qualquer d'estes direitos: nascer sem padre, casar sem padre, morrer sem padre.


Excellentissima camara municipal da muito nobre, sempre leal e invicta cidade do Porto ou quem suas vezes fizer—Paços da Camara na Praça Nova, esquina do Laranjal

Porto

Excellentissima camara e minha boa senhora. É cheio dos maiores cuidados pela preciosa saude de v. ex.ª que lançamos mão da pena para, em nome de todos os forasteiros que foram a essa cidade por occasião da cerimonia inaugural da ponte sobre o Douro, dirigir a v. ex.ª algumas regras.

Principiaremos por dar a v. ex.ª uma breve noticia da festa em que tomamos parte e em que v. ex.ª teve as suas razões para não se dignar de comparecer.

Por convite da direcção da companhia dos caminhos de ferro portuguezes reunimo-nos na estação das Devezas no dia 4 do mez de novembro passado pelas 11 horas da manhã. Cerca de uma hora depois partiamos em um grande comboyo extraordinario e paravamos em frente do Porto, á entrada da nova ponte, na margem esquerda do rio. Maravilhoso espectaculo o que presenceamos desde Gaya até á estação de Campanhã e do qual procurarei, certamente debalde, dar uma longiqua ideia a v. ex.ª!

Um delicioso dia de outomno, de um largo tom lacteo e ceruleo como o de uma perola azul, abraça amorosamente a natureza e banhava a paizagem n'uma luz vaporosa impregnada da frescura dos orvalhos e do aroma das violetas. A cidade fronteira desdobrava aos nossos olhos todos os seus encantos topographicos, desde a Foz, envolta na sua athmosphera maritima, salgada e humida, até os montes longínquos do lado opposto, levemente esfumados no horisonte sob as douradas pulverisações do sol. Viamos a ridente collina de Villar coberta de verdura e coroada pelo Palacio de cristal; os copados bosques do Candal e de Valle de Amores; o caes da Ribeira com a sua arcaria denegrida e o seu pittoresco mercado de velhas barracas alpendradas brunidas pelo sol; a ingreme ladeira da Corticeira; o parque das Fontainhas; a casaria emassada das freguezias da Se e do Bomfim, com os seus predios esguios, terminando quase em pignon como na Hollanda: uns bem aprimados, tesos, vidrosos, reluzentes, forrados de faiança, outros barrigudos, sombrios enodoados, fazendo fincapé para não cambalearem como ebrios taciturnos; outros, ainda, pintados de branco, pintados de azul, pintados de côr de rosa, com chaminés bordadas e claras-boias phantasistas rematadas por trabalhosas ventoinhas, jocundos, satisfeitos de si, rindo pelas sacadas abertas ornadas de craveiros e de alecrins; depois, de valle em valle, os lindos suburbios de Riba Douro: o choupal do Areinho, as espessas e murmurosas frescuras das quintas de Quebrantões, da Oliveira, da freguezia de Avintes; a bahia do Freixo, onde o rio tem a configuração de um pequeno lago circular dominado por um elegante palacio Luiz XV, de torreões e eirados senhoriaes, cuja elegante escadaria exterior mergulha venezianamente na agua.

Todas as eminencias que viam o ponto onde paramos para a celebração da ceremonia inaugural estava litteralmente cobertas de gente. Os montes proximos achavam-se completamente submergidos sob uma espessa vegetação humana. Em frente, todos os degraus da penedia, todos os socalcos, todos os jardins, todos os quintaes, todas as janellas, todos os muros, todos os telhados, todas as superficies, todos os contornos, todas as arestas, tinham um debrum de gente.—Enorme romagem nunca vista. A cidade do Porto em peso e 40 ou 60 mil peregrinos advindos de todas as regiões do paiz estavam ahi reunidos. Para que?

Para celebrar um puro facto scientifico—a solução de um problema de mechanica. N'este simples facto, exm.ª camara, que symptoma! que phenomeno! que revolução!

Ha bens poucos annos ainda só o fanatismo religioso tinha o poder de determinar as grandes romagens a S. Thiago de Campostella, a S. Torquato de Guimarães, á senhora da Nazareth, á senhora do Cabo. Os peregrinos iam então solicitar a intervenção milagrosa dos bons santos nos seus casos pathologicos, nas suas ambições pessoaes, nas suas questões domesticas: os paralyticos iam pedir movimento, os cegos iam pedir luz, os tristes iam pedir consolação, os turbulentos iam pedir paz, e os mendigos suspensos nas suas moletas, com o grande alforge ao pescoço, a longa barba cor de greda empastada no suor da jornada e no pó dos caminhos, iam simplesmente á beira das estradas pedir pão em troca de plangentes ladainhas e de arrastadas melopeas nazaes.

Os peregrinos á ponte sobre o Douro não eram movidos por interesse algum pessoal.

Esta romagem de novo genero exprime uma mentalidade nova; mostra que, se o nosso apparelho social mantem ainda por um lado os mesmos aspectos exteriores da sua velha structura, por outro lado elle annuncia já uma funccionalidade diversa.

Um poder absolutamente novo, que não é o poder religioso nem o poder politico, com quanto não affirmado ainda nas instituições, revela-se já por este facto na comprehensão dos espiritos. Esse novo poder, irrevogavelmente destinado a substituir todos aquelles que sob diversos nomes teem gerido até hoje a direcção da sociedade, é na esphera espiritual a sciencia e na esphera temporal a industria.

A ponte sobre o Douro é a mais bella e a mais perfeita expressão symbolica d'esse poder, ao qual o paiz inteiro acaba de prestar o culto mais unanime, o mais desinteressado, o mais convicto, o mais solemne de que ha exemplo na historia das manifestações do applauso publico. Era tão superiormente elevado o caracter d'esta grande festa da civilisação, que perante o objecto d'ella desappareceram como por encanto n'esse dia todas as incompatibilidades, todas as dissidencias, todas as distincções de gerachia, de seita e de partido, que dividem a sociedade portugueza. A direcção da companhiados caminhos de ferro teve o bom gosto de convidar para o banquete que se seguiu á solemnidade da inauguração os individuos representantes das opiniões mais extremas, o mundo official e o mundo dissidente, tudo o que ha mais retrogado e tudo o que ha mais progressivo, os mais ferrenhos conservadores e os mais ardentes revolucionarios. Estes personagens tão justamente surprehendidos de se acharem juntos pela primeira vez na sua vida, tomando parte em um almoço cujos convivas não tinham precisamente por fim devorarem-se uns aos outros e serem os bifes de si mesmos, confraternisaram do modo mais tolerante e mais affectuoso, porque, acima de todas as suas divergencias episodicas de opinião, havia um sentimento de attracção commum, de conciliação geral, em nome do qual ahi tinham convergido todos. E esse sentimento era o respeito do trabalho, d'essa immensa e irresistivel força anonyma, obscura, lenta, perseverante, que o seio das bibliothecas, das fabricas, dos laboratorios, dos gabinetes de estudo, vae dando em cada dia aos destinos humanos um novo impulso para o aperfeiçoamento e para a felicidade.

Não foram os reis nem os exercitos nem os padres, mas não foram tambem os jacobinos nem os demagogos nem os atheus os que teem guiado e dirigido até hoje a humanidade na sua ascenção atravez da historia. Foi elle unicamente, foi o trabalho modestamente, obscuramente exercido nos remansos da paz, nos recolhimentos da applicação e do estudo o que determinou todas as conquistas, todas as victorias, todos os triumphos das sociedades.

A ponte sobre o Douro symbolisa uma d'essas conquistas, uma d'essas victorias, um d'esses triumphos:—a conquista de perto de meio seculo de paz; a victoria, proporcional a esse periodo, da intelligencia do homem sobre as fatalidades da natureza, o triumpho finalmente do destino progressivo do nosso espirito sobre a immobilidade das nossas instituições.

Ha cerca de quarenta annos apenas, ex.'ma camara, essas duas montanhas estreitamente enlaçadas agora por um abraço de ferro, eram separadas por um rio vermelho de sangue. Nos mesmos logares onde nós agora nos reunimos para regar o solo com o champagne das agapes modernas, os nossos paes e os nossos avós espingardeavam-se convictamente, decidindo com o sacrificio das suas vidas a questão de palacio a esse tempo debatida entre dois principes.

A guerra com tal fundamento seria hoje insustentavel. É evidente que progredimos, e o facto de irmos ao Porto, desinteressadamente, aos milhares, celebrar um facto industrial, significa a mais eloquente affirmação d'esse progresso.

A cidade do Porto que por muitas vezes tem recebido a visita dos seus principes, dos seus reis, dos seus generaes, dos seus mandões de toda a especie, teve pela primeira vez n'esse dia a visita do povo.

Como foi que v. ex.ª, representante do municipio portuense recebem este seu novo hospede? Não lhe apparecendo!

V. ex.ª, que tem dado a esse espinhaço os tratos mais violentos e mais irracionaes para conseguir encurvar-se e acocorar-se n'uma reverencia satisfatoriamente abjecta diante de todas as testas coroadas; v. ex.ª que tem desengonçado e desarticulado a rhetorica municipal debaixo dos pés da real familia; v. ex.ª que conserva ainda entre os ferros velhos do seu stylo declamatorio—ao mesmo tempo alambicado e labrego—as chaves d'esse heroico baluarte depostas em cada anno por v. ex.ª—dizemos—não teve um dito, uma palavra, um gesto sequer, para agradecer a cincoenta mil viajantes a mais solemne e a mais extraordinaria manifestação de estima de que ainda foi objecto uma cidade por parte dos representantes de um paiz inteiro.

Este simples facto basta para nos provar que v. ex.ª desconhece completamente qual é o espirito municipal das modernas sociedades democraticas, que v. ex.ª está cem annos atraz do seu tempo, e cem furos abaixo da missão em que foi investida pelos suffragios da população portuense, tão energica, tão intelligente e tão progressiva.

É possivel que v. ex.ª tivesse tido que fazer n'esse dia que houvesse contrahido compromissos anteriores, que se achasse por ventura associada com alguma camara sua visinha para uma honesta merenda, para uma boa patuscada, para alguma das bem conhecidas sapateiradas, nas quaes todo o nosso ser se disgrega do mundo exterior para se abysmar no arroz do forno e na carne assada no espeto. Mas n'esse caso porque é que v. ex.ª nos não preveniu? Durante a ausencia de v. ex.ª, minha boa senhora, a sua cidade estava immunda. Se tivessemos sido contemplados com um aviso telegraphico nós, que fomos d'aqui unicamente com as nossas camizas, teriamos levado tambem as nossas vassouras nas malas e a nossa resignação para o desgosto de a não vermos no espirito.

Acceite minha senhora a expressão dos nossos sentimentos, tão cordeaes como aquelles que v. ex.ª nos não exprimiu.


Dissemos no precedente volume d'estas chronicas que o sr. Fontes Pereira de Mello, doendo-lhe um dente, desmontara e abandonara nos prados, entre os deputados governamentaes e as boninas em flor, a jumentinha do poder.

Eis o que ao depois occorreu:


A pacata bestinha da governação andou a monte por alguns mezes, choutando ao acaso, pungidas nos ilhaes pelos tacões do sr. Barros e Cunha e sobre a anca pela ponteira do guarda sol do mesmo illustre estadista e cavalleiro. Para onde é que s. ex.ª, coberto de zelo e de suor, queria com tanta violencia equestre encaminhar a onagra?

—Para a senda da moralidade e da economia! bradava s. ex.ª com uma das mãos na redea e com a outra mão sobre a carta constitucional.

Mas os burriqueiros experimentados no trilho peguinhado pela burrinha bambeavam dubitativamente a cabeça, e do alto das montanhas, com a mão aberta em viseira sobre os olhos, dilatando a vista ao futuro, diziam:

—Não. Para onde elle vae é para a senda de Cacilhas á Cova da Piedade.

E deixaram-o ir.


Como porem soasse o momento psychologico em que a asninha do governo, com a sella no ventre, considerou que ia de longada para muito longe da estrebaria, apertou-lhe as entranhas a nostalgia da cevada, e fitando a orelha, baixando a cabeça, cravando os olhos sinistros nos cascos deanteiros, arrojou ao firmamento ingrato duas parelhas de coices adiante dos quaes ascendeu da albarda para as alturas o vulto do grande homem. Depois do que elle baqueou no charco fronteiro, como se a perfidia das rãs o tivesse aferrado pelo coccix e attrahido ao abysmo,—sempre com uma das mãos na carta, mas já tem a outra mão na redea.


Cousa verdadeiramente admiravel de ver foi a velocidade com que a cavalgadurinha do Estado principiou então a dar terra para feijões, retrocedendo para casa e bebendo o espaço com o freio nos dentes e com a saudade da mangedoura na alma.—Tão poderoso e fecundo é o ascendente moral que exerce o principio sagrado da ração sobre as actividades officiaes!


Quando as boninas e os representantes da nação tornaram a ver a burrinha do poder no prado florido onde convalescia entre os idylios do ocio o dente do sr. Fontes, grande foi o ardor e a emulação entre os circumstantes que á porfia queriam segurar a asna. Coube essa gloria ao sr. José Dias Ferreira.

Empolgando com mão dextra e firme a camba do freio á alimaria do poder, o sr. José Dias exclamou triumphante e glorioso:

—A mim, rapazes!

E gritando em coro: «Ave, José vencedor!»—os rapazes foram a elle.


Eis senão quando, que hão de ver os rapazes que a elle tinham ido e bem assim elle mesmo?

Atonitos elles vêem—caso que os olhos se lhes recusam acreditar—que a burra já não está devoluta, que a albarda tem gente em cima!

Effectivamente emquanto o sr. José Dias intrepido segurava a redea, o sr. Fontes veloz encavalgara o poder.


O primeiro acto do novo cavalleiro foi alijar dos alforges as provisões do governo que o precedera. S. ex.ª sacou os 150 contos de tijolo para a Penitenciaria e atirou-os para um lado. Sacou os vinte e quatro conegos, rochuchundos, atochadas como paios, e atirou-os para o outro lado. Tirou depois os quinze beneficiados com os seus competentes livros de côro e o seu devido rapé; tirou a cadeira de Sanskrito com o seu professor em cima; tirou a matta do Bussaco forrada de papel e enchumaçada de algodão para sua magestada passear; tirou o porto artificial de Leixões cheio de dourados bergantins e de ligeiras caravellas com os seus competentes nautas, obra de grande pacienca e curiosidade; mais tirou o Times; e, como ainda restasse o que quer que fosse no fundo dos alforges, foram estes virados com o de dentro para fóra, e appareceu por ultimo o sr. Venancio Deslandes, director da Imprensa Nacional e secretario da commissão da exposição de Paris. S. ex.ª trazia empunhada e aberta a delicada umbela de linho cru forrada de tafetá azul com a qual s. ex.ª abrigava dos raios solares desde o Terreiro do Paço até á rua do Duque de Bragança a fronte capitolina do ex-sr. presidente do conselho de ministros. O ar de s. ex.ª o sr. Deslandes era cheio de uma grave auctoridade, e á sombra do chapeu de sol de linho cru forrado de tafetá azul o seu rosto parecia envolto na aureola de uma competencia genial!

Despejado o alforge o cavalleiro pediu um exemplar do codigo fundamental da monarchia, que metteu em uma das bolsas; depois, lembrando-se das causas que determinaram o partido regenerador a abster-se de governar durante alguns mezes e querendo obviar á repetição d'essa intermittencia, pediu o dentista Guerreiro e acondicionou-o na outra bolsa do alforge ministerial.

Sorrindo em seguida e despedindo-se do sr. José Dias do alto da burra, enfiou a trote marcial provincias da publica administração em fóra.


E todos seguiram pressurosos o chibante cavalleiro. Tão sómente no mesmo logar em que sr. Fontes tivera estado a chumbar o seu dente foi visto nas ervas o sr. marquez d'Avila, acocorado na solidão, a chapinhar com arnica o seu galo.


Na semana seguinte áquella em que estes successos occorreram houve jantares de convite em todos os restaurantes de Lisboa. Estes banquetes eram o resultado de apostas feitas contra e a favor da victoria do sr. Fontes pelos gentlemen do turf politico.

O sr. Fontes depois d'esse notavel triumpho ficou marcado gloriosamente como o Gladiateur, e ninguem mais tornará a apostar contra o nobre estadista sem a condição previa de que se sobrecarregue com mais alguns kilogrammas de chumbo o dente de s. ex.ª


Uma vista d'olhos a uma das ultimas sessões da camara dos senhores deputados:


Enorme concorrencia nas galerias. Senhoras, diplomatas, escriptores, funccionarios publicos, militares, operarios, enchem as tribunas desde os parapeitos até ao tecto.

Na sala um sugeito, embrulhado no seu paletot, com a perna traçada sobre o joelho, preside somnolentamente como um dilettante enfastiado.

Serve de secretario, lançando apontamentos a uma larga folha de papel um individuo que ha poucos mezes se chamava apenas Alfredo, mas que, em resultado de um lucto occorrido durante o ultimo interregno parlamentar, publicou nos jornaes que principiava a chamar-se em testemunho de dôr—Alfredo Angelino. S. ex.ª traja rigorosmente de negro.

Em frente da presidencia alinham-se os srs. ministros devidamente encasados nos seus fauteuils. Não teem uma apparencia espirituosamente feliz, mas parecem refrigerados nas cadeiras do poder e olham o espaço com a expressão passiva e tão caracteristicamente pacata dos individuos calidos quando instalados em decocções emolientes de alfavaca de cobra.

No meio do amphitheatro um digno sr. deputado, com uma das mãos sobre o coração, a outra mão alongada patheticamente no espaço, está orando.

Em torno do tribuno agrupam-se em pé varios representantes da Nação.

Uns roliços, atochados, vermelhos, semelham tympanites enformadas em amplas sobrecasacas pomposas. Sente—se que elles respiram com exforço. O abuso do feijão suffoca-os como o sangue de Danton suffocava Robespierre—São os empaturrados da coisa publica.

Outros magros, defecados, pallidos, com as orelhas lívidas, os pés mettidos para dentro, as calças esbambeadas pelas joelheiras dos sedentarios, teem sorrisos que se parecem com as referidas calças e que descobrem mucoses desbotadas e dentes morbidos.—São os espinhelas cahidas do systema que felizmente nos rege.

No fundo escuro da bancada sobresaem da côr sombria dos vestuarios de inverno duas mãos longas, pallidas, frias, magras, de um aspecto dramatico, boas para assignarem um decreto de proscripção ou uma sentença de morte. O dono utilisa-as em explorar o seu proprio nariz inoffensivamente, n'uma abstração magnanima.

—Sr. presidente—diz o orador, e a sua voz é pungente, elegiaca, lacrimejante—Sr. presidente! onde não ha religião não ha dignidade.

Um ecclesiastico, alto, magro, macilento, volve para o orador o seu estrabismo convergente, de mystico, e applaude-o com um grave meneio de cabeça.

Este padre, de aspecto sombrio e inquisitorial, e aquelle orador de vinte e cinco a trinta annos, cheio de robustez, de saude, de mocidade, estão ambos de accordo sobre esse ponto: que a dignidade é uma resultante da religião. E todavia é a religião que obriga esse pallido mystico a conciliar-se com o celibato, a sequestrar-se na contemplação, a abandonar todos os bens terrenos pela posse dos fructos celestiaes, a submetter-se pela humilhação, pelo desprezo de si mesmo, a offerecer uma face quando o esbofetearem na outra, finalmente a padecer e a resignar-se. E é pelo contrario a dignidade que obriga esse rapaz sanguineo e robusto a caminhar na direcção opposta á d'esse anemico, a constituir a familia, a luctar, a não perder tempo em contemplações e em extasis, a ser pratico e positivo, a ter filhos gordos e camisas lavadas, a resistir finalmente e a triumphar na grande lucta pela vida moderna, em que as costelletas com batatas, as garrafas de Collares e as botas novas não caem do ceu cob a fórma de maná, caem unicamente do trabalho perseverante e rude sob a forma de riqueza. Elles porém estão ambos de accordo emquanto á alliança indissoluvel da dignidade de um e da religião do outro perante o principio transcendente da rhetorica constitucional.

Diz mais o orador:

—«Sr. presidente!—e a entonação do tribuno continua a ser lacrimosa e pathetica—li os sarcasmos de Voltaire, as ironias de Swift, as investigações de Renan, os de-esperos de Schopenhauer, Hartman inventando religiões para o futuro, Buchner divinisando a materia. Tudo isto porem não apagou na minha alma a doce esperança que n'ella lançaram aquellas palavras divinas, que dizem: Bemaventurados os que soffrem porque elles serão consolados».

E muitas vozes enthusiasticas e convictas bradam de todos os lados da camara:—«Muito bem! muito bem!»

Á morbida corrente intellectual do pessimismo allemão representado por Hartman e por Schopenhauer a Inglaterra oppõe o naturalissimo de Darwin e as poderosas systematisações de Spencer, a França oppõe o positivismo victorioso de Augusto Comte e de Littré. Em Portugal, onde estas questões não foram nunca ventiladas senão por pobres escriptores desconhecidos em periodicos tão desconhecidos como elles, a camara dos srs. deputados ouve pela primeira vez a solução official d'esse debate. Ao optimismo leibniziano, ao deismo kantiano, ao ideologismo hegeliano, ao inconscientismo de Hartman, ao pessimismo de Schopenhauer e de Julius Bahnsen, ao naturalismo de Darwin, ao positivismo de Spencer, de Stuart Mill e de Littré, a intellectualidade portugueza responde mostrando a alma virginal do sr. Manuel d'Assumpção. E a comprehensão mais perfeita dos destinos do universo fica de uma vez para sempre definida depois d'isto: a alma do nosso Manuel persiste inabalavel nas suas primitivas crenças. Que queria a philosophia moderna? A philosophia moderna não queria evidentemente senão uma coisa: apagar a esperança na alma d'este moço. Pois ficará sabendo que o não conseguiu. A camara dos deputados da nação portuguez esmaga toda a obra do entendimento moderno collocando-lhe em cima o sr. Assumpção e a esperança da sua alma, no meio dos applausos geraes de todo o parlamento.

E, não obstante, querem dizer alguns que a politica não é mais do que a applicação da philosophia á direcção pratica das sociedades.

A politica de Bismark é um grande poder social porque atraz d'elle está, como o peito pelo outro lado da couraça, a disciplina philosophica de Kant, de Hegel e de Hartman.

Danton, a alma da Revolução, era na esphera executiva o instrumento da philosophia da Encyclopedia; e a primeira republica franceza baqueou precisamente no dia em que o principio philosophico que determinou o grande movimento cahiu com a cabeça de Danton, guilhotinado pela indisciplina mental.

Foi ainda a anarchia das idéas, resultante da falta de um methodo philosophico, que comprometteu o destino da segunda republica em 1848.

Finalmente para que a democracia se fundasse em França sobre bases definitivas foi preciso que Danton resuscitasse para gloria das ideias e para honra do espirito humano na pessoa de Gambetta, que é o filho triumphante da philosophia positiva do seculo XIX, assim como Danton é o filho damasiadamente precoce da philosophia do seculo passado.

Na Italia o que é a politica actual, que libertou e unificou a grande peninsula, senão a somma das expeculações de uma longa serie de pensadores, desde Dante, o vidente, até esse taciturno Leopardi, que foi o alliado intellectual de Hartman assim como Victor Manuel foi o alliado politico do imperador Guilherme?

Em todos os estados actualmente em dissolução qual é a causa do mal senão a perturbação da mentalidade pelo empyrismo da politica arbitraria? Será preciso citar a Turquia? Será preciso citar a Hispanha?

Mas a Hispanha renasce em cada ida, em cada hora, com um assombroso vigor intellectual, que em poucos annos despedaçará todos os velhos preconceitos e todas as caducas instituições que embargarem a sua ascenção politica. O federalismo, forma definitiva da civilisação na peninsula iberica, está-se affirmando no paiz visinho de um modo que nos certifica da impossibilidade de um retrocesso. O federalismo perde a pouco e pouco o caracter de uma opinião partidaria. É um resultado philosophico, que em toda a Hispanha está sendo pacificmente revisto e contraprovado por todas as sciencias: pela mechanica, pela mesologia, pela climatologia, pela ethnologia, pela anthropologia, pela linguistica, pela historia. Quando esta idéa chegar ao cabo da sua elaboração especulativa, ella converter-se-ha em uma lei sociologica e actuará sobre o seu fito, irresistivelmente, como uma força da natureza.

Quando por toda a parte a philosophia estabelece e dilata tão experimentalmente e tão evidentemente os seus dominios sobre o destino humano, a camara dos srs. deputados em Portugal applaude na sua grande maioria a condemnação da critica e do pensamento moderno; declara-se indissoluvelmente abraçada á theologia; e a todas as conquistas da sciencia no presente seculo ella oppõe triumphantemente a posse d'esta noção: «Bemaventurados os que soffrem porque elles serão consolados.»

A ironia emudece de pasmo deante de um symptoma tão patente de esphacelamento cerebral.

Estamos n'um congresso de legisladores ou estamos n'um seminario de caturras?—É unicamente o que perguntamos.


O medo como a camara pensa dá-nos a justa medida do modo como a camara governa. Ha muitos annos que ella não toma uma unica medida tendente a coordenar e a systhematisar harmonicamente os esforços da progressão social.

A reforma da lei eleitoral, fonte da reconstituição politica, está por fazer.

A liberdade religiosa não está regulamentada de modo que torne effectivo o principio em que se funda.

A distribuição racional do imposto ainda não foi definida.

Finalmente a organisação da instrucção publicia, esse elemento vital de uma sociedade em movimento, acha-se por enunciar. N'este ponto a mesma Turquia está muito adeante de nós.

Os parlamentos, sem direcção mental, sem criterio scientifico, sem destino politico, esterelisam-se successivamente na phraseologia e dissolvem-se na banalidade.

As crises parlamentares determinadas unicamente pelo conflicto dos personagens impacientes ou despeitados attrahem periodicamente ás camaras uma grande concorrencia de ouvintes que não recebem ahi senão as mais perigosas lições de cynismo e de immoralidade.

Das duas coisas uma: ou o espirito publico está bastante corrompido para assimilar sem perturbção do seu organismo a entoxicação d'esses exemplos, e n'esse caso seria um paiz condemnado à dissolução; ou a burguezia, cumplice n'esta decadencia, tem ainda um resto de senso moral, e n'esse caso revoltar-se-ha e o actual regimen politico ha de cair como caiu em França o segundo imperio por effeito de um movimento similhante áquelle a que Luiz Veuillot chamou a revolução do despreso.

Á similhança de um corpo morto o parlamento immobilisou-se por falta de circulação intellectual. Os partidos politicos são os centros nervosos do systema representativo. Atrophiados esses centros o systema cessa de funccionar. Ora qual é o estado dos partidos politicos em Portugal?


Ha um partido que está hoje no poder. É um partido conservador. É catholico, é monarchico, é auctoritario, é proteccionista, é militarista, é unitario. Quer um parlamento com duas camaras, uma electiva e outra hereditaria; quer uma igreja e uma religião do Estado; quer as alfandegas com as suas velhas pautas; quer um exercito permanente com os seus respectivos canhões Krupp e a sua competente pena de morte; quer as colonias com o seu antigo systema de direcção e de governo; quer ainda fazer o seu gancho de negocio e ter um estaleiro, uma fabrica de polvora, uma imprensa, uma fundição de typo, uma fabrica de cordas, uma photographa, etc.

Ha por outro lado quatro ou cinco partidos que alternativamente se disgregam ou se unificam, conforme as necessidades da sua tactica, e que pelas suas idéas não formam realmente senão um partido unico: o partido opposicionista. Que differença ha entre este partido na opposição e o partido actualmente no governo? É revolucionario? Não: é egualmente conservador. É racionalista? Não: é egualmente catholico. É evolucionista? Não: é egualmente auctoritario. Quer a liberdade da industria e a liberdade do commercio? Não: quer egualmente a protecção das pautas. Quer egualmente o exercito com os seus generaes, e a universidade de Coimbra com os seus theologos; quer egualmenle a magistratura anarchica, a instrucção cahotica, o suffragio corrompido, o governo arbitrario. Tambem quer fazer de quando em quando para se distrahir o seu bico de obra, e procura manter para esse fim a imprensa, a photographia, a cordoaria, a fundição, etc.

A unica opinião que a opposição diz ter e que ella accusa o governo de não professar é a opinião abstracta da economia, da ordem, da moralidade e do progresso. Como porém todos os governos, qualquer que seja o partido de que elles procedam, teem successivamente cahido do poder perante a accusação de não servirem o progresso, a moralidade, a ordem e a economia, devemos acreditar que, ou essas virtudes, que aliás não pódem constituir principios de programma, são communs a todos os partidos ou não são especiaes de partido nenhum.

Os partidos portanto não se differençam senão pelos nomes dos individuos mais ou menos numerosos do que elles se compõem. N'esta ausencia completa de idéas contrapostas o governo em Portugal, versando constantemente sobre si proprio, dá-nos o espectaculo de um organismo vivo isolado na creação, alimentando-se na sua propria substancia e digerindo-se pouco e pouco a si mesmo.


Deixando de ser uma lucta de principios e de idéas a politica converte-se fatalmente em uma questão de compadres.

O compadrio elevado á cathegoria de instituição nacional, domina tudo, corrompe tudo, dissolve tudo. Os partidos que não pódem conquistar o appoio da opinião pelas idéas que representam, procuram manter-se pelo appoio dos compadres que favorecem. É na proporção exacta do numero dos compadres que annualmente despacha e emprega, que um partido augmenta ou diminue de adeptos, progride ou retrograda na confiança da corôa e no favor da urna.

O dogma fundamental do compadrio impõe-se por tal modo que transforma todas as outras noções moraes segundo o criterio de que elle é a expressão. Transforma a justiça, a honra, a probidade, a propria consciencia. Nenhum partido politico ousa violar o compadrio: seria commetter a mais vil e a mais nefanda das traições politicas!

Despachando o compadre mais serviçal com exclusão do adversario mais competente todo o governo honesto julga praticar um acto de gratidão e de lealdade. E ninguem vê quanto ha de profundamente subversivo da ordem moral n'este simples facto tão vulgar, tão frequente, tão despercebido: a exclusão da competencia! Excluir a competencia, ou quando menos preteril-a, por um anno, por um mez, por um dia, por uma hora que seja, é commetter o attentado mais criminoso de que o Estado póde ser réo deante da sociedade. Esse attentado resume todas as violações do direito e todas as affrontas da justiça. É um roubo violento e descarado, aggravado com a offensa do merito, com a injuria da capacidade, com o insulto ao trabalho, com o escarneo á moral, com o ultrage ao dever.

Na politica portugueza, que tem o seu calão como as mulheres publicas e como os ratoneiros, esse crime infame toma o nome dourado de compromisso politico ou de acto de fidelidade partidaria. E do ministro que o pratica e para o qual se deveria pedir a prisão correccional ou o degredo com trabalhos publicos, a opinião diz apenas:—É fiel aos seus correligionarios, sabe ser amigo, despachou o compadre, vou para o partido d'elle.

O officio do governo é servir o paiz. Como porém o paiz, por effeito do machinismo eleitoral, é representado constantemente pelos compadres do governo, o officio do governo em ultima analyse não é mais do que servir o compadre. Está no seu destino. Graças aos elementos de corrupção de que o governo dispõe, o cidadão, não votando como cidadão mas votando como compadre, dá o primeiro impulso que põe em movimento toda a engrenagem do systema: elegendo o compadre é elle mesmo que funda a tyrannia absoluta e despotica do compadrio que depois o governa.

A sociedade está á mercê do compadre. E se ha poder que possa contrabalançar alguma vez, em dadas conjuncturas, o poder do compadre, esse poder é unicamente—o da comadre.

A aptidão provada, a capacidade, o talento, o trabalho, a firmesa no dever, a tenacidade no estudo, a mais alta comprehensão e o mais rigoroso cumprimento da solidariedade e da honra—palavras, palavras, unicamente palavras! Na esphera dos fattos, na ordem pratica, positiva, real; compadrice, comadrice—eis tudo.


Um unico remedio poderia reconstituir a politica portugueza, cuja decadencia é tanto mais lamentavel quanto é certo que a sociedade que ella tem por fim dirigir está na anarchia economica e tende para uma miseria que se tornaria inevitavel sem os supprimentos do Brazil. Esse remedio e a entrada no parlamento de um partido novo constituido de quatro ou cinco individuos de opiniões radicaes: republicanos, socialistas, federalistas, positivistas—o que quizerem—com tanto que sejam homens profundamente convictos e determinados á peleja de cada dia e de cada hora. Este pequeno partido, desde que tivesse um criterio philosophico, determinaria uma corrente de ideias de tal modo poderosa que obrigaria todos os conservadores a confederarem-se para lhe resistir, não já pela phraseologia e pela rhetorica mas pelo estudo reflectido e consciencioso de todos os problemas da civilisação. E das concessões mutuas e successivas, feitas, já ao principio da ordem pelos revolucionarios impacientes, já ao principio do progresso pelos conservadores retrogrados, resultaria para a sociedade o movimento actualmente paralysado no conflicto das pequenas paixões e dos mesquinhos interesses das mediocridades dirigentes e triumphantes.


Falhando o meio que propomos pela falta doa quatro homens que sollicitamos, resta-nos então adoptar o expediente ultimamente proposto pela municipalidade de Lisboa:—tratar o parlamentarisrao pela cal. Mas que quanto antes, n'esse caso, a municipalidade effectue o seu projecto: caiar o palacio das côrtes, branquear por fóra o parlamento—dealbatum sepulchrum!






End of the Project Gutenberg EBook of As Farpas, Janeiro de 1878,
by Ramalho Ortigão and José Maria Eça de Queiroz

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