The Project Gutenberg eBook of Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume II)

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Title: Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume II)

Author: Francisco Rodrigues Lobo

Release date: January 25, 2024 [eBook #72793]

Language: Portuguese

Original publication: Lisboa: Comp. Nacional Ed, 1890

Credits: Rita Farinha, Laura Natal and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO (VOLUME II) ***
cover

BIBLIOTHECA UNIVERSAL
ANTIGA E MODERNA

CÔRTE NA ALDEIA
E
NOITES DE INVERNO

POR

FRANCISCO RODRIGUES LOBO

VOLUME II

16.ª SERIE—NUMERO 63

LISBOA
COMPANHIA NACIONAL EDITORA
Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES
40—Rua da Atalaya—52
FILIAES: Praça de D. Pedro, 127, 1.º andar, PORTO
38, rua da Quitanda, Rio de Janeiro
1890


i002

LISBOA
TYPOGRAPHIA DA COMPANHIA NACIONAL EDITORA
309, Rua da Rosa, 309
1890

INDICE


[Pg 3]

CÔRTE NA ALDEIA
E
NOITES DE INVERNO


DIALOGO IX
DA PRATICA E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS

(Continuação)

—De maneira (disse D. Julio) que temos averiguado que falar vulgar, e propriamente, é falar bem: e na verdade, da boa linguagem a principal parte é a clareza; e o mais d’ella consiste em fugir d’esses atoleiros. Mas ainda eu tenho por peior de todos o da prolixidade, de cujas partes se tocou o principal na noite passada.—Ha muitos homens (proseguiu Leonardo) tão palavrosos, que vos não deixam tomar carta na conversação; e são tão amigos de levarem um comprimento até o fundo, que nem com o silencio vos defendeis dos seus; e é vicio, de que se ha de fugir como de peste da discrição. E já me occorreu por que razão chamariam aos faladores paroleiros, ou homens de parola; que posto que a phrase seja italiana, lhe acho uma mais secreta galanteria; e é que, como a lingua de Italia é mais copiosa, ornada, e comprida nas razões; aos que na nossa falam muito, áquella semelhança chamaram homens de parola, como se lhe chamaram italianos.—Boa está a derivação (tornou o fidalgo) porém vamos á brevidade, que eu me não atrevera a culpar, se agora vos não ouvira.—Não sou eu o primeiro (respondeu elle) que o disse; que [Pg 4] já o poeta se queixou que quando queria ser breve ficava escuro. E verdadeiramente a pratica comprida não a comprehende a memoria; e a mais breve do necessario cega o entendimento; e ha muitos, que, por abreviarem o que dizem, não declaram o que querem: que posto que a brevidade seja louvada, e por ella se avantajassem os laconicos na linguagem dos outros gregos, o cortezão nem ha de dizer as cousas em tres palavras, nem em trezentas.—Dizeis bem como em tudo (accudiu o doutor) que ha alguns, que, por quererem atar tudo em um feixe (como disse o proverbio) desconcertam o que com poucas palavras mais podia ser bem dito: e muito se me parece esse erro de abreviar com o de enfeitar as palavras, que é como perder um por carta de menos, outro por a ter de mais. Posto que o mesmo vicio (proseguiu elle) se tratou a noite que falámos das cartas, não o deixarei passar agora sem outra lembrança, porque é um trabalho não sómente escusado, mas odioso, que a pratica artificiosa embaraça aos que sabem pouco, e não agrada mais ao discreto, e serve de nevoa para as cousas que se tratam; que com o ornamento das razões se perde muitas vezes o sentido principal d’ellas: e é tão culpavel o feitio, que n’isso se perde, como o que as mulheres usam em desmentir as graças da natureza com fingida formosura, que nunca aos bem entendidos pode parecer verdadeira. E deixando esta parte, passemos á principal, e que mais pertence ao discreto, que é não se descuidar com a confiança; porque ha muitos, que de confiados em sua sufficiencia, falam por si, e não pesam as palavras com o receio, que para bem ha de ser sempre a balança d’ellas. E assim hora dizem algumas pouco decentes á honestidade da conversação; outras, escandalosas a algum dos ouvintes; outras, que, por serem fóra de tempo, perdem o logar, e elle na opinião dos que escutam o que com muitos outros tem alcançado.

O primeiro descuido da confiança, e o que fica mais em descredito do cortezão, é quando entre mulheres principaes usa de algumas palavras que ou no som ou na materia, offendam a honestidade de seu estado; culpa, em que cahem muitos confiados, mórmente nas visitas de [Pg 5] desposorios e nascimento de filhos, e em outras semelhantes, em que é mais necessario ao discreto as redias na mão, porque elle não perca os estribos e a ellas se não mude a côr. E tambem sou de opinião que antes fuja de dizer algumas cousas que de lhes mudar o nome, como chamar ás pernas sustinentes ou andadeiras; porque, nomeando estas partes das mulheres deante d’ellas, não é cortezia.—Parece (perguntou Pindaro) que nomeando logo as pernas dos homens não será erro, ainda que seja deante d’ellas?—Não (respondeu elle) porque nas mulheres é parte occulta, e nos homens manifesta; e o trajo de cada um ensina esta cortezia: e muitos ha, que, de escrupulosos n’ella dão em disparates: como me contaram ha pouco de um mestre de grammatica, que, desculpando-se um discipulo seu que não viéra ao estudo, porque aquelle dia parira sua mãe, o mandou castigar, dizendo que em publico não se haviam de falar palavras mal soantes á honestidade. E outros, que fazem cortezia de mudarem os nomes ás cavalgaduras, e por se desencontrarem de um asno, darão mil rodeios.—N’iso tem elles muita razão (acudiu D. Julio) porque não vi eu peior azar que esse encontro. E devia de ser inventada esta maneira de cortezia, por não nomearem asno deante de algum que o parecesse, por guardar a advertencia do rifão, em casa de ladrão não lembrar baraço: sendo assim, que nos animaes nojentos, e as sevandijas nomeam por o seu nome, ainda que isto não usára eu entre donas e damas delicadas, a quem com menos occasião se enoja o estomago.—Mui bem trazida está essa lembrança (proseguiu Leonardo) e continuando com as outras, me parece que o segundo descuido é quando o discreto fala, ou allega latins entre pessoas que o não sabem, ou que não tem obrigação de o entender, como são mulheres: ou conta deante d’ellas historias da India, ou de outras regiões remotas, onde esteve, dizendo as cousas com muitas palavras dos nomes proprios d’aquellas partes; que ha alguns, que em colhendo na pratica Ormuz, Malaca ou Sofala, não sabem dar um passo sem palanquins, bajús, catanas, bois, larins e bazarucos; e outras palavras, que deixam em jejum o entendimento dos ouvintes, sem os seus por isso ficarem melhor acreditados. O ultimo descuido e mais perigoso, é que motejando [Pg 6] em materia que possa offender a terceiro, não advirta, antes de falar, se está na presença a quem toque por sangue ou amizade a offensa que se faz ao ausente, ainda que seja em materia leve; ou se está alli outro do mesmo estado de que se murmura, do mesmo cargo, vicio ou costume; que, não tendo esta vigilancia, lhe poderia nascer da sua graça uma resposta.—Pois se offereceu (disse D. Julio) falardes em graça, dando côr de que na murmuração se acha mais certa, estimarei saber que é o que chamam sal os discretos, que é um termo de falar muito ordinario entre elles.—A resposta d’isso (tornou Leonardo) está por conta do doutor, que parecem esquecidos da noite passada: com elle o haveis de haver; que eu vou já dando fim ao que me cahiu em sorte.—Sou contente (disse o doutor) de me chamardes por parte n’esta pergunta do sr. D. Julio por o servir a elle, e dar occasião a Solino de saber a vantagem que n’isso nos tem a todos. Primeiramente o sal, a quem um auctor chamou conducto de todos os outros, é o que dá sabor, e faz appetite ao desejo para todos elles.—Muito se parece n’isso com a fome (acudiu Solino).—Assim é (disse o doutor) porém tem demais que os conserva e sustenta com sua força; pelos quaes attributos Homero e Platão chamaram ao sal divino: e assim como os mantimentos sem elle não obrigam a vontade; assim tambem por elle (como disse Plinio) significamos os effeitos do animo; chamando homem sem sal, pratica sem elle, riso em sosso, e ainda formosura sem sal, como escreveu Catullo, de Quincia que pintando-a formosa, branca e comprida, diz que em toda aquella figura não havia uma pedra de sal. De maneira que, conforme a este sentido, o sal é uma graça, e composição da pratica, do rosto ou do movimento do andar, que faz as pessoas apraziveis. E esta, segundo alguns, particularmente se declara no que obriga a riso e alegria, com um modo de murmuração leve. D’onde Seneca disse que o sal da conversação dos amigos não havia de ter dentes: e assim como os mantimentos que tem mais sal, fazem maior sede a quem os come; assim a conversação que tem mais d’elle, é mais appetitosa e desejada dos ouvintes: e como sem sal todas as iguarias são semsabores e desgostosas, assim a pratica onde a sua graça [Pg 7] falta, é puro fastio. Porém, quanto a mim, o que da tenção d’estes auctores convém mais com o seu modo de falar, sal quer dizer graça, que é o contrario da frieza e semsaboria: e dizemos do gracioso que é salgado; e do bemdito que tem muito sal, e do que o não é, que não tem nenhum.—Porque razão (perguntou Feliciano) sendo o sal cousa tão excellente, os egypcios não queriam usar d’elle em nenhum mantimento, e até o amassavam sem sal, tendo-o por inimigo?—Os egypcios o faziam (respondeu elle) por lhes parecer que observavam n’isso a castidade, attribuindo á virtude do sal a fecundidade e o appetite carnal, por razão do calor, a cujo respeito fingiram os poetas que Venus nascera do sal, que é da espuma marinha; e alguns naturaes disseram que só com comerem e usarem muito do sal, concebiam alguns animaes. Outro auctor diz que os egypcios o faziam por sobriedade e abstinencia, tirando o sabor e gosto ás iguarias, em lhe não deitarem sal: mas a verdade é que, se elles o tinham por inimigo da vida, não ha cousa n’ella mais saborosa: porque as duas cousas que a sustentam, como escreveu um auctor grave, são sal e sol: e ainda depois da morte o sal conserva os corpos sem corrupção e os sustenta inteiros sem deixar apartar os membros da sua compostura: por as quaes propriedades o fizeram os antigos symbolo da amizade (como diz Pierio Valeriano nos seus jeroglificos) que ella, assim como o sal, tempera todas as cousas da vida entre os humanos. E a primeira cousa que se punha aos amigos na mesa era o sal; costume que ainda agora se usa, posto que se não saiba em muitas partes a razão d’elle; nem a porque se enojam e enfadam os hospedes, de se derramar o sal pela meza; que n’este nosso reino querem fazer particular agouro dos Mendoças, sendo a causa geral: porque lhes parecia aos antigos que se apartava e perdia a amizade, entornando-se o sal, que na mesa fazia a figura d’ella. E á semelhança tinham por boa sorte derramar-se o vinho, que, como era symbolo da alegria e contentamento, desejavam que entre todos se espalhasse. Com isto tenho dito do sal o que me perguntastes, posto que, para lhe dar mais solidos louvores, o pudéra levar á Escriptura Sagrada, onde não só significa confederação e amizade, mas por elle se entende a [Pg 8] doutrina evangelica; e aos mesmos apostolos e prégadores d’ella chama Christo sal. E pois para falar d’este tomei mais tempo do que quizera, é bem que vos deixe livre este, que fica, para que todos nos aproveitemos de vos ouvir.—Pouco pudéra eu dizer (respondeu Leonardo) se não fosse acostado á vossa erudição e auctoridade. E do sal me não fica outra cousa que advertir mais, que haver-se de maneira com elle o cortezão que não seja a pratica toda de graças, nem sem ella: se não uma certa liga, com que se componha o galante e o sizudo, que é uma differença, que sempre fiz do engraçado ao gracioso; porém como isto ha de ser em conformidade das materias, occasiões e pessoas com que se pratica, não posso dar a isso regra ordenada. Fica além d’isto que advertir ao discreto a mecanica geral dos termos, e nomes dos principaes instrumentos com que se exercitam as artes mais nobres, como a pintura, esculptura, architectura, arithmetica, astrologia e musica: saber as peças e os nomes d’ellas, com que se arma um cavalleiro: as que pertencem ao jaez e arreio de um cavallo: os logares, ordens e disposição de um esquadrão formado: o maneio militar de uma galé bogante: os nomes de um edificio bem fabricado, e de uma fortaleza bem guarnecida: saber a côr e o nome a todas as pedras de valia: os quilates do ouro; o peso dos metaes, a melhoria d’elles; e outras cousas semelhantes a estas, que, como andam sempre na praça ordinaria da conversação, não é justo que faltem ao discreto palavras, com que mostre que tem conhecimento de todas. Com estas lembranças me hei por despedido d’esta materia, posto que fiquem de fóra algumas cousas d’ella, como são contos, historias e novellas dos cortezãos, e agudeza de ditos; que cada uma pedia mais compridas horas de pratica: porém com a minha voz tenho a todos cançados, sem eu ficar ocioso.—O das historias (disse Pindaro) podeis vós, senhor, dilatar, mas não vos escusareis de as dizer, mórmente quando pela inculca, que de mim fizestes, me importa mais que a todos saber o particular d’ellas.—Fiquem essas guardadas para ámanhã (disse Solino) e se temeis que até então se damnem, obrigae ao doutor que do muito sal, que aqui lançou, á minha conta deite n’ellas algum.—Boa lembrança [Pg 9] foi (acudiu o doutor) eu confesso a culpa de não applicar o que disse á vossa graça e galantaria, que é o sal com que vos convidei, e que a todas as praticas d’esta nossa conversação faz parecer agradaveis e saborosas a todo o entendimento.—Vós, senhor doutor, replicou elle, me tendes feito um saleiro com vossos louvores; e com a vangloria d’elles não me tenho por seguro no assento de qualquer logar.—Se entornardes o sal (acudiu Pindaro) não será a primeira vez que déstes má conta da amizade.—De confiado na minha (tornou elle) falaes contra o que entendeis d’ella, que mais se acredita nas obras que nas palavras.—A verdade é (disse Leonardo) que sois bom amigo, ainda que com muito sal; e que sem encarecimento vos podiam chamar o mesmo nome.—Ainda (disse elle) me haveis aqui de converter em sal.—Antes (acudiu Pindaro) no que disse Marco Varrão que o sal era a alma do porco; e eu sei, e todos da vossa graça, e ninguem dará fé que tenhaes alma.—Essa (tornou Solino) está agora no purgatorio de vos ouvir: e porque estes senhores já com uns bocejos dissimulados dão signaes de que tem necessidade de repouso, fique a demasia para ámanhã.

Todos então se levantaram mostrando que ainda o faziam com pouca vontade, porque nas praticas de gosto primeiro cansam os sentidos, que os desejos.


DIALOGO X
DA MANEIRA DE CONTAR HISTORIAS NA CONVERSAÇÃO

Depois que os amigos se apartaram, e D. Julio se recolheu a casa para repousar, achou n’ella uma occasião de desasocego, que lhe fez perder o somno. Porque lhe trouxe novas um creado, a que tinha encommendada a diligencia, que o prior se partia na manhã seguinte para a cidade, acompanhando aquella formosa peregrina para o recolhimento da clausura a que de tão longe estava affeiçoada: e como elle o ficou tanto de sua vista, e corrido comsigo mesmo dos poucos extremos, que por ella fizera, determinou com a occasião de caçador (que já fôra principio [Pg 10] d’aquella ventura) fazer-se encontradiço no caminho, e acompanhar ao prior até o fim da jornada: para o que tirou a luz aos melhores concertos de campo que tinha, e o vestido e galas mais louçãs, com que podia apparecer n’aquelle disfarce, usando o mesmo nos creados que levava. Ao outro dia pôz em execução este pensamento: e deixando para seu tempo o successo que teve, os da conversação o não souberam todo aquelle dia: e quando veiu a noite, que o acharam menos, houve quem désse novas de como o encontrára n’aquella empreza; e com esta occasião começaram a pratica, e disse o doutor:—Sempre ouvi que os cuidados de amor em peitos generosos sahem com seus extremos ao longe; e que então se forçam quando os outros sugeitos desconfiam. Aquelles encarecimentos de meu amigo D. Julio, aquelle silencio e segredo, aquelle respeito de cortezia tão encolhido, parece que apanhava pedras para melhor tempo; e n’este costuma a fazer seus lanços este diabinho do amor, porque tem outros da sua parte, á conta de estorvarem seu bom proposito.—Segundo isso (disse Solino) receiaes que a que engeitou principes mais louros que salmonetes, acceite agora um fidalgo retirado na aldeia, d’onde sahe com as galantarias mais penujentas, que marmelo temporão.—Muitas damas (tornou elle) que engeitaram grandes senhores, não desprezaram grande amor: e outras, a quem offenderam procedimentos ingratos, estimaram de sugeitos mais humildes devidas cortezias.—Não façamos (acudiu Leonardo) offensa aos ausentes; nem a ella demos por arrependida, nem a D. Julio por tão namorado: porém maiores cousas houve no mundo. Tudo podia tecer o amor, e acabar a ventura: e se essa cahira á conta de D. Julio, outra pudera ser peior empregada.—Não estou bem (disse Solino) com a ventura dos casamentos por amores.—Será (respondeu Feliciano) por estardes mal nas muitas, que por elles se alcançaram: e bem pudéra eu a essa conta trazer alguma historia de notavel exemplo, se estas horas não estiveram promettidas a outro exercicio.—Antes a materia, que hontem ficou por acabar (disse Pindaro) era como se havia de haver o cortezão nos contos e historias; e vem a vossa a tempo, que servirá de exemplo, e, o que sobre ella se [Pg 11] disser, de doutrina.

—Ainda que isso parece mais concerto de amigos falados (disse Solino) que occasião, digo que tendes justiça, e sou de parecer que vá de historia: mas praza a Deus que não caiaes no atoleiro, de que vos desviastes a primeira noite da nossa conversação.—Bem sabeis (respondeu elle), que em ribeiro grande saltar de traz: e assim primeiro hei de vêr as balizas de meu companheiro, do que caia nas vossas mãos.—Enganaes-vos (replicou Solino), que menos seguro vae o cego do que o moço que o guia.—Não aperteis tanto com os amigos (acudiu Leonardo), ouçamos ao licenciado a sua historia; e quando as pellas vierem a Pindaro, elle as tornará á vossa vista, e direis o que entenderdes.—Outra cousa espero eu (accrescentou o doutor), e é que haveis de passar pela lei que ordenardes, contando tambem a vossa historia, da qual se ha de devassar como das mais: e, por dilatarmos esta menos, diga o licenciado, e declare se vende a sua historia por verdadeira.—Por tal a conto (respondeu elle) e de um auctor mui approvado e verdadeiro, e é a seguinte:

“Na côrte do imperador da Allemanha Oton III, d’este nome, que foi a mais florente, e frequentada de principes, que houve muitos annos antes, e depois n’aquelle imperio, assistia, com grande satisfação de suas partes, Aleramo, filho do duque de Saxonia, mancebo de pouca edade, e de muita gentileza, magnanimo, esforçado, liberal, e tão cheio de graças naturaes, que n’elle, como em um thesouro, parece que as depositara todas a natureza. Tinha o imperador uma filha da mesma edade, e de tanta formosura, que, sem o que a sorte devia a seu nascimento, merecia ter o imperio do mundo: e se em a belleza tinha esta vantagem a todas as damas de Allemanha, ainda lh’a fazia muito maior na discrição, aviso e galanteria. Aleramo, que no serviço do imperador tinha sempre á vista aquelle despertador de pensamentos altos, e que, além dos que a grandeza de seu sangue lhe permittia nos olhos de Adelazia (que este era o nome da princeza) ia aprendendo pouco a pouco a lhe querer muito, foi descobrindo esta vontade, até que foi testemunha de seus effeitos a propria causa. Não se houve [Pg 12] por offendida d’este amor Adelazia, por lhe parecer devido á sua gentileza, e natural em um coração magnanimo, e generoso; maiormente que na vista, e fama de Aleramo achava tudo o que podia desejar para um emprego amoroso, ainda que a desegualdade dos estados o defendesse. Foi elle accrescentando o amor, e este gerando atrevimentos, que são as salamandras que n’este fogo se criam; e ella, depois de batalhar com os receios largamente, descobriu ao mancebo sua vontade, encommendando, na fé do que lhe queria, o segredo d’ella, porque bastava para total destruição de suas vidas uma leve suspeita, que o imperador tivesse de seus amores. Continuou muito tempo este segredo, sem ser entendido; e pouco a pouco se apurava a paciencia d’estes dois amantes, tratando em uma amorosa correspondencia seus cuidados, sem outros mensageiros, ou secretarios mais que os seus olhos: eram estes comtudo sem esperança, por quão alheio o imperador estava de consentir n’elles; parecendo-lhe pouco, para os merecimentos d’aquella filha, dar-lhe por esposo o mais rico e poderoso dos reis christãos, quanto mais um filho menor de um seu vassallo. Mas como o poder de amor se mostra em ter em menos conta a maior grandeza, fez tanto com Adelazia, que, esquecendo todos os interesses, offertas e esperanças da fortuna, se determinou de fugir com Aleramo, que, sem respeitar o perigo, se offereceu ao que sua senhora ordenasse. Escolhido o tempo e occasião opportuna, levando ella comsigo as joias de preço que tinha, e elle as cousas de valor que pôde grangear, sahiram da côrte, e andaram em pouco espaço de tempo tanto caminho, quanto lhes foi necessario para pôr em salvo as vidas, a que a ira de Oton ameaçava: o qual achando menos a filha, a quem queria mais que a tudo o da vida, esteve a risco de a perder com sentimento; e mandou logo atalhar as estradas, e caminhos de toda a Europa com bandos e pregões de grandes promessas a quem descobrisse, ou désse novas do roubador de Adelazia: mas ella e seu esposo caminhando a pé contra a parte de Italia em habito de peregrinos, foram ter ao condado de Tirol: e porque o temor de serem conhecidos os desviava sempre do povoado, vieram na montanha a poder de salteadores, que [Pg 13] roubando-lhes as joias e dinheiro, que traziam, lhes deixaram sómente as vidas sujeitas a tão grande miseria e pobresa, que lhes foi necessario, para poder sustental-as, andarem pedindo esmola por toda Lombardia de logar em logar, já tão mudados de seu parecer, e gentileza com os trabalhos, que a mudança lhes pudera escusar os de seu receio. Resolvendo-se comtudo de não fazerem assento em Milão, nem em outra cidade imperial, se foram viver a umas montanhas entre Asti e Savona, onde amor e a necessidade lhes ensinaram com os trajos vis a conformar exercicio de que vivessem, que era cortando lenha n’aquelles bosques, fazerem carvão, que vendiam nos logares d’aquelle districto; e com esse sustentavam em vivas brasas o verdadeiro amor, que lhes dava a vida. Alli com a riqueza, de que elle os tinha satisfeitos, contentes de tão saborosa necessidade, com habitos humildes, nomes mudados, e corações conformes, houveram sete filhos varões, que logo nos rostos o pareciam ser de paes illustres, e de um tão amoroso ajuntamento. O maior d’elles, a quem pozeram nome Guilhelmo, começou logo na sua puericia a ajudar a seus progenitores n’aquella miseria, levando o carvão e lenha a vender a Asti, Savona, Alba, e a outros muitos logares, que por alli havia: e como a sua generosa, e natural inclinação vencia a razão daquelle estado miseravel, em que se criára, do que com seu trabalho ganhava n’aquello trato, um dia comprava um punhal, outro uma espada, outro um cão de caça, sem que valessem ao generoso pae as reprehensões com que o persuadia do que convinha mais para sua pobresa. Passaram alguns dias, quando elle veiu com o emprego de todo o cabedal, que levára, em um gavião, a que estava muito affeiçoado, mostrando-o a Adelazia, que com muitas lagrimas lhe disse estas razões: “Bem sei, meu amado Guilhelmo, que com a culpa d’esta tua estranha demasia quer a natureza em parte emendar a fortuna, deitando-lhe em rosto os bens, que te tirou, com o emprego que te ensina a fazer d’estes: mas, se é de animos generosos edificar torres altivas sobre a humildade, não é menor grandeza obedecer ao tempo, e dar logar á sorte, emquanto a sua ira se executa em nossa miseria. Se o espirito te inclina a voar mais alto, [Pg 14] lembra-te, filho meu, que não foram menores os pensamentos de quem vive com as azas tão encolhidas n’este deserto; e que esse exercicio, que desejas, não convém com o que usas, tão necessario a teu pae e mãe, que tambem no imperio de Allemanha poderam ter logares mais levantados, se amor quizera. Tem compaixão de mim e d’esta misera pobresa, em que vivo; e antes para sustentar teus pequenos irmãos, e esta mãe, que com tantas difficuldades te criou, emprega teu cuidado, que tomar outros tão improprios a esta vida, quão naturaes a teu generoso sangue e pensamento. E pois os thesouros, que a sorte me guardava, se tornaram neste carvão, de que agora vivo, não levantes com elle chammas de vaidade, que venham a espalhar as faiscas d’este fogo por Allemanha, em cuja opinião está já sepultado nas cinzas frias.” Interneceu-se o illustre moço com as maternas lagrimas; e entendendo que não podia continuar n’aquella vida, nem resistir á sua inclinação, d’alli a poucos mezes desappareceu da montanha, e se foi ao campo imperial fazer soldado; e n’elle em pouco tempo cresceu tanto no esforço e opinião dos homens, que já entre elles e do mesmo imperador era mui conhecido. Sentiram Adelazia e seu marido a ausencia d’este filho com grandes extremos, assim por o grande amor, como porque n’aquelle seu trato humilde os ajudava: mas emquanto os outros irmãos menores se exercitavam no officio, que elle deixára, ía Guilhelmo na guerra dando claros signaes de seu nascimento; e veiu a ser por seu valor tão acceito a seu avô, que para o accrescentar a dignidades, e logares, que por sua pessoa merecia, lhe perguntou quem foram seus paes? Ao que elle respondeu, que eram vivos, allemães de nascimento, mas que viviam pobremente em as montanhas de Savona, posto que não desmereciam por sangue, e ascendencia terem um filho honrado. Desejoso Oton de saber a verdade, e já encaminhado da ventura do animoso mancebo, mandou com elle um particular valido seu para que ambos em companhia troxessem á côrte o pae, e mãe de Guilhelmo com sua familia. Era este privado mui chegado parente de Aleramo: e sabendo no caminho do moço quem era, com um novo espanto e alegria ficou enleado, abraçando com muitas lagrimas [Pg 15] ao sobrinho. Chegaram em poucos dias ás montanhas de Savona, á porta da morada pobre dos ricos amantes; e d’alli chamando-o pelo seu proprio nome, causou em toda a humilde morada estranha turbação e sobresalto. Sahiu primeiro fóra, e cheia de um frio temor Adelazia; e conhecendo o filho, que com os ricos vestidos e galas de soldado fazia parecer em tudo maior sua gentilesa, com infinitas lagrimas de alegria o abraçou; chamando ao marido, com os mesmos effeitos o festejou; e conheceu ao primo, em quem o tempo não fizera a mudança, que n’elle os trabalhos de tão estreita vida. Recolheram os hospedes com o agasalhado de sua pobresa. Vieram de noite os filhos de vender a sua mercadoria; e foram n’elles e nos paes tantas as lagrimas de contentamento, que nem davam logar ás palavras, nem ás cortezias. Sabida depois a vontade do imperador, e que era forçado obedecer ao seu mandado, pondo nas mãos da fortuna e nos olhos da piedade real sua esperança, d’alli a poucos dias caminharam; que os leves apparatos da pobresa lhe faziam mais faceis as jornadas, e muito seguros os caminhos. Chegaram á côrte: e lançados aos pés do imperador, elle conheceu de improviso sua filha, e Aleramo: e vendo a fecunda geração d’aquelles sete filhos, que podiam na formosura competir com os planetas, com grande contentamento, e que nadava nas aguas dos seus olhos, os recebeu, perdoando aos paes a culpa, e dando aos netos a satisfação da miseria padecida em seus tenros annos. A Guilhelmo creou marquez de Monferrato, ao segundo de Savona, ao terceiro de Saluzzo, ao quarto de Sena, ao quinto de Inciza, ao sexto de Ponzão, ao setimo do Bosque. E d’estes sete marquezes nasceu generosa descendencia, que enriqueceu Italia, a qual ficou devendo a gloria d’esta nobreza ao verdadeiro amor destes dois amantes: que, ainda que elle encaminhe por asperas difficuldades estes successos, sempre o fim, que por meio de suas obras se alcança, é glorioso.

—Maravilhosa é a historia para exemplo (disse o doutor) e tambem poderá servir d’elle no como se devem contar outras semelhantes, com boa discrição das pessoas, relação dos acontecimentos, razão dos tempos e logares e uma pratica por parte de alguma das figuras, que [Pg 16] mova mais a compaixão e piedade; que isto faz dobrar depois a alegria do bom successo.—Sómente (acudiu Leonardo) me pareceu comprida, sendo a materia d’ella muito breve.—Essa differença (lhe tornou Feliciano) me parece que se deve fazer dos contos ás historias; que ellas pedem mais palavras que elles, e dão maior logar ao ornamento e concerto das razões levando-as de maneira, que vão affeiçoando o desejo dos ouvintes: e os contos não querem tanto de rhetorica; porque o principal, em que consistem, é a graça do que fala, e na que tem de seu a cousa que se conta.—Não sou contra esse parecer (disse o doutor); mas antes de averiguarmos a demasia, deixemos logar a que Pindaro comece a sua historia, e não lhe lancemos deante preceitos que lhe façam receio.—Necessaria me era (disse elle) grande confiança para vencer os que tenho, sem me crescerem outros de novo: porque, se antes de ouvir a Feliciano tomára esta empreza, tivera um atrevimento menos culpavel; mas agora será despejo a minha ousadia.—Eu sou (disse elle) o que me corro da desculpa; e posto que me vinha bem que estes senhores acceitassem qualquer das vossas para não ficar tão manifesta a vantagem que me fazeis, não quero que com essa fingida humildade castigueis a confiança, com que me offereci.—Melhor me está obedecer que competir (tornou Pindaro); quero contar uma historia semelhante á vossa, só para me aproveitar do modo que n’ella tivestes: se eu acertar, a vós se deve o louvor de tudo; e se me perder, tambem sereis culpado, por a força que agora me fazeis.

“Manfredo, mancebo bem nascido, a quem em gentileza e discrição ficavam muito inferiores todos os de sua edade, na casa do imperador Constantino III, cujo cortezão era, teve tanta ventura nos olhos de Eurice, filha de Constancio, que depois succedeu no imperio, que lhe parecia a ella que não podia esperar dos fados maior ventura, que a de o alcançar por seu esposo, e gosar em qualquer estado humilde o fructo de sua affeição; triumpho que o amor alcança da vaidade com o favor dos espiritos mais illustres e levantados. O mancebo alheio d’estes pensamentos, porém obrigado das mostras que lhe revelavam aquella affeição, determinou de lhe não ser ingrato; porque além da grandeza de estado, que na opinião dos homens avalia melhor os [Pg 17] merecimentos naturaes da cousa amada, era Eurice tão formosa, que de quem no sangue lhe fosse egual merecia os maiores extremos de affeição. Não fazia comtudo Manfredo os que desejava, porque como entendido sabia o risco, em que punha a vida, se se publicasse na côrte este segredo: e posto que não via caminho de poder tirar algum fructo de seu amor, o sustentava sem esperanças com toda a fé, que a Eurice era devida. Passou algum tempo até que em ambos a grande força do amor venceu a razão, e triumphou a vontade do entendimento de Manfredo, que sem outro conselho fugiu com a sua Eurice, em companhia de dois creados que o serviam, de cuja fidelidade tinha feito prova da experiencia. Passaram a Italia: tomaram primeiro terra no reino de Napoles, d’onde foram a Ravena, e d’alli ao districto de Modena, onde agora chamam Mirandola, que eram n’aquelle tempo montanhas incultas, habitadas sómente de alguns pastores: entre estes começaram a viver os dois amantes guardando gado, e fazendo verdadeiros os bem fingidos amores pastoris: tendo, em logar dos paços reaes, tanques e jardins de Constantino, as humildes cabanas, a natural verdura dos floridos valles, e a cristallina corrente das claras fontes: e a troco das galas, sedas e toucados galantes, que deixaram, os simplices vestidos da montanha, as capellas de flôres e boninas, e os surrões e cajados de guardadores: alli pisando com um generoso desprezo a vaidade, livres de ingratos ciumes e enganosas suspeitas, gosavam de seu puro querer, e verdadeiro, sem haver outra cousa que perturbasse aquelle contentamento, mais que o receio de serem por algum modo conhecidos. Manfredo, pouco a pouco desbaratando por via d’aquelles dois creados algumas joias de preço, foi comprando gados e propriedades n’aquellas montanhas em tanta copia que veiu a ser o mais rico morador que n’ellas havia: e por sua riqueza, prudencia e pessoa era tão respeitado e querido de todos, que, como se fôra senhor d’elles lhe obedeciam. Já n’este tempo de sua prosperidade tinha da formosa Eurice copiosa geração; porque do primeiro parto lhe nasceram tres filhos bellissimos, que com os trajos e nomes d’aquella montanha se crearam. Depois lhe [Pg 18] foram nascendo cinco, que com a melhoria de seu estado accrescentou nos nomes, chamando a um d’elles do seu proprio; e a duas filhas a uma Eurice e outra Constancia. Com esta generosa familia, e sem outros cuidados, n’aquella doce e amada companhia passavam alegremente a vida sem sobresaltos. Tendo depois Constancio o governo do imperio, passou com grande exercito á Italia, e assentou arraial junto á cidade de Aquileia, aonde todos os povos italianos lhe mandaram por seus embaixadores dar a obediencia. Juntaram-se os moradores de Modena e de seus contornos, e elegeram para esse cargo a Manfredo considerando sua gentileza, cortezania e entendimento, e o poder ir com melhor tratamento de sua pessoa e creados. Houve elle de acceitar o cargo, seguro de ser já conhecido de nenhum dos que em outro tempo haviam tratado, com a mudança dos annos, e da vida que tinha n’aquella aspereza. Mas Eurice com amor e esperança duvidosa, com mil receios deante, lhe dizia: “Não sei, meu querido esposo, que desejo me anima a que consinta n’essa vossa jornada, temendo n’ella tantos perigos assim de serdes conhecido de meu pae, a quem tanto offendestes, como de me deixardes só n’esta montanha, onde vossa presença me sustenta a vida, tendo-me tão mal acostumada, que nem saberei viver uma hora sem vós, nem estar em mim, em quanto vos detiverdes em Aquileia: comtudo um certo presagio da ventura me aconselha que não tema este damno: e considero que não fôra muito menor, se me levareis em vossa companhia, para que quando a sorte quizesse que, sendo do imperador descoberto o nosso segredo, vos accommettesse a sua ira, ou o movessem minhas lagrimas á piedade, ou, havendo de haver algum risco com vossa vida, a padecesse a minha de um mesmo golpe. Aconselhae-me, caro Manfredo, o que farei, tomando as minhas partes contra vossa propria determinação; que me não deixa amor fazer a escolha; nem os receios em que tropeço me dão caminho e logar para que acerte. Porque se a ventura me busca para me restituir o que deixei em seu poder, quando no querer do amor puz minhas esperanças, não quero faltar-lhe pelo que vos quero: e se pelo contrario quer tomar vingança do despreso com que tratei [Pg 19] suas prosperidades, justo é que se desvie dos castigos quem se soube esconder de seus favores.“—Estas e outras palavras piedosas lhe dizia Eurice; a que elle com outras de muita segurança respondia, e a animava a que não podia temer nenhum successo desencaminhado; desfazendo-lhe com boas razões o seu feminino receio: com estas e outras de muito amor e saudade se despediram. Ella ficou chorando sua ausencia: elle chegou a Basyléa; e houve-se com tanto aviso e cortezania na embaixada, que o imperador lhe ficou affeiçoado, e o fez gentil homem de sua casa, mandando-lhe que ficasse n’ella em seu serviço com promessas e palavras mui compridas. Houve Manfredo de acceitar o novo cargo, por não mover alguma suspeita que sahisse em seu damno. Escreveu logo a Eurice o que passava; e ella começou com novo sentimento e devidos extremos a chorar sua ausencia e sua privança; mal, que só sabe receiar quem conhece a mudança e perigo de vontades; que sempre as mais levantadas são mais mudaveis e ligeiras, e os da inveja que sempre como sombra acompanha os validos. O imperador cada dia cobrava a Manfredo maior affeição, achando no seu entendimento e humildade tudo o que em todos buscava; elle admittido nos conselhos e nas occasiões de maior importancia ia crescendo; mas como estes bens lhe impediam o maior da vida, que era a sua Eurice, não recebia d’elles contentamento, nem os tinha por ventura. A mulher da mesma maneira vivia em pena naquella montanha, que d’antes lhe parecia um paraiso terrestre; e como sentia egualmente os cuidados de Manfredo e a sua ausencia, para o alliviar dos da côrte, lhe mandou Fantulo e Manfredo seus filhos menores a visital-o, porque a estes mostrava elle maior affeição; e eram elles taes por seu parecer, que a todos os que os vissem a mereciam. O pae ainda que com amorosos extremos os festejou; combatido de um novo receio, estava turbado, porque era o do seu nome tão parecido a Constancio, que temia que na vista désse occasião de alguma lembrança que descobrisse o segredo de sua culpa. E como a vinda dos meninos foi sabida de muitos, e o imperador os havia de vêr pela graça que já tinha a seu pae, elle mesmo se quiz oppôr ao perigo, e lh’os foi apresentar com [Pg 20] toda a humildade. O avô os recebeu com estranha alegria; que ás vezes a natureza com estes effeitos descobre os segredos do tempo, e acaba o que não póde levar ao fim a industria humana. O pae como discreto sabia escolher as occasiões; que este é o mais verdadeiro toque do entendimento. Entrando com o imperador e com os filhos em um aposento particular, lançado a seus pés lhe disse estas palavras: “Não é justo, poderoso senhor, que á conta de salvar a vida, e de escusar n’ella o castigo que meus erros merecem, tire a esses innocentes o merecimento e o favor de vossa graça, com que agora podem tornar atraz a fortuna: e assim com a confiança em vossa piedade e menos seguro ao perdão, que obrigado do muito que vos devo, confesso minha culpa, pedindo com estes meninos misericordia, que para si e para sua mãe e irmãos estão com caricias pueris grangeando a vossa vontade. Sabei, piedoso senhor, que são netos vossos, filhos de Eurice, vossa filha e meus; que, sendo desposado com ella secretamente, por fugir ao rigor da vossa ira, vivo ha tantos annos nas asperas penedias e incultas montanhas de Modena, fazendo penitencia de minha ousadia com o mesmo amor, que foi o culpado. Se esta confissão, com o pesar de vos haver offendido, merece que useis commigo de brandura, lançado a vossos pés peço perdão, tomando por padrinhos a estes caros penhores do sangue vosso: e se pelo contrario se ha de empregar o vosso rigor em sujeito tão vencido, aqui me tendes com a vontade offerecida para os maiores tormentos da crueldade.” O imperador com um estranho sobresalto ficou enleiado sem saber determinar: e pondo os olhos n’aquelles bellos retratos da sua Eurice, abrandou a ira, com que os havia de pôr em Manfredo, reconhecendo-os por seus netos, e perdoando ao pae a culpa commettida. Depois foi elle proprio ás montanhas a vêr a Eurice, e á venturosa progenie que creára; a quem com muitas lagrimas de alegria recebeu em sua graça: e alli fez a Manfredo conde e marquez de todo aquelle districto, que fica entre os rios Pado, Tanaro e Sequia, dando-lhe poder para edificar villas, castellos e cidades, que accrescentasse a seu senhorio: mandou que elle, seus netos, e todos da [Pg 21] sua descendencia, trouxessem por armas a aguia negra dos imperadores. E por admiravel progenie da sua Eurice pôz á terra Miranda, que depois chamaram vulgarmente Mirandola. Manfredo e sua mulher em vida de Constancio seguiram a côrte com grande accrescentamento de estados: e depois que falcou no imperio, se recolheram ao seu marquezado, fazendo muitas povoações e cidades, em que seus filhos succederam, alliando-se depois com todos os potentados de Italia e de Allemanha, que dão ainda verdadeiro testemunho de que os casamentos por amor nem podem ser extranhados da natureza, nem desfavorecidos, por a maior parte, da ventura.

—Ambos (disse Solino), me parece que podereis partir a fogaça, porque vos houvestes de maneira, que o que se atrever a julgar a melhoria, tomará tão difficultosa empreza, como seria a de querer agora competir com a boa linguagem e modo que tivestes.—Entendo (tornou Leonardo) que chegais braza á vossa sardinha: mas não a haveis de tirar do fogo com a mão do gato, nem livrar a vossa obrigação, com a que nós tenhamos de dar a Feliciano e Pindaro louvores tão bem merecidos. Nenhuma razão tendes para não fazer no terreiro vossa cortezia.—Eu sou de voto (disse o doutor), que lhe aceitemos qualquer escusa, porque a sua rhetorica serve mais aos contos, que ás historias, segundo disse o Licenciado.—Grande aggravo se lhe faz (disse Pindaro) em o tirarem da conta dos historiadores, que elle se confessou por esse, e por affeiçoado aos livros de cavallarias; e além dos seus contos engraçados sabe tantas historias, que a ser figura de arithmetica, poderá ser conto de contos.—Bem sei (respondeu Solino) que me sommais para me diminuir: ainda que a meu pesar confesso que, se a historia de cada um de vós me cahira nas mãos, houvera de sahir d’ellas com mais bordões, e muletas do que tem uma casa de romaria, porque me não escapam termos das velhas, nem remendos dos descuidados que lhe não misture.—Quando menos (disse o doutor) ouçamos isso, ficará á vossa conta o exemplo do que se ha de fugir, pois os dois amigos nos ensinarão a acertar.—Tambem errar por obrigação é difficultoso, (replicou elle) mas aceito o partido, por vender por alheios meus [Pg 22] erros proprios. E ouvi o que passa: farei de um peão dama, e de um conto historia por ser mais breve:

“Dizem que era um rei: vem este rei casou por amores com a filha de um seu vassallo: era ella tão formosa que podia por sua belleza ser confiada, pois por essa alcançára o ser rainha: mas sem lhe valerem esses privilegios deu em tão ciosa, que bem a mão não dava o marido um passo que ella não acompanhasse com as suspeitas; assim que apertavam estas tanto com ella, que já mais vivia em paz com seu gosto. Vem ella, e por vencer esta desconfiança vai, e manda secretamente chamar uma feiticeira, que n’aquella terra havia de muita fama, em cujo engano achavam os namorados uma botica de remedios para seus males. Assim que dizia: esta feiticeira por lhe vender mais cara sua diligencia, feitas algumas fingidas, metteu em cabeça á boa da rainha que o marido amava com grande extremo a uma criada sua, que ella pintou logo a mais galante, airosa e bem assombrada que havia no paço. Quando ella aquillo ouviu ficou guarde-nos Deus! como uma mulher transportada, e sem sangue; por maneira, que prometteu áquella feiticeira que lhe faria e aconteceria, se desaffeiçoasse ao rei d’aquelles amores, e empregasse n’ella todos os seus: a outra, que não queria mais que aquillo, vede vós como ficaria contente; vem, e promette á rainha que lhe daria tres aguas conficionadas de tal maneira, que uma, tanto que el-rei a provasse, bebesse logo os ventos por ella, e lhe quizesse mais que o lume dos olhos, com que a via; a outra, que, em a rainha a bebendo, parecesse a seu marido o maior extremo de formosura que havia no mundo; a terceira que, tanto que a dama a bebesse, a desfigurasse de maneira, que a todos aborrecesse a sua vista. As palavras não eram ditas, a rainha lhe deu muitos haveres, e fez grandes mercês e promessas; que muito facil é de enganar a que deseja aquillo, com que lhe mentem. Vai a feiticeira d’alli a poucos dias, e traz aquellas aguas conficionadas, encarecendo muito a virtude, e segredo d’ellas: mas ou porque lhes errou a tempera, ou porque todas se resolvem n’estas boas obras, a mudança que ella queria que houvesse na vontade, e nos pareceres, [Pg 23] lhe houveram de fazer na vida; que a peçonha, que é sempre material dos seus unguentos, penetrou de maneira que os teve a todos tres em passamento; e a bom livrar ficaram d’ahi a poucos dias sem juizo. Ainda bem a feiticeira não soube o damno que fizera, e que, por não trazer a mão certa n’aquelles adubos, podia vir a estado de a pôrem nas da justiça, desappareceu. Eis senão quando se juntaram todos os medicos eminentes, que havia no Reino; e depois de muitos mezes de cura, (olhai vós quantas se fariam a taes pessoas) foram pouco e pouco cobrando os sentidos e entendimentos; e com a força do mal lhes cahiu a todos o cabello da cabeça sem lhes ficar um só. E não foi tão ruim o partido, como era ter cabeça sem elle quem antes o trazia sem ella. Tornando ao meu proposito, tanto que a rainha se viu tão desfigurada, conhecendo o desatino que fizera, dando todas as culpas a amor, confessou seu erro, a criada sua innocencia, e o rei sua desgraça: d’alli adiante, conformando-se com o exemplo daquelle successo fizeram vida sem ciumes: que d’elles e de casamentos por amores não escapam senão ou com as mãos nos cabellos, ou com elles pellados.”

Festejáram os amigos a historia de Solino, porque se conformava no modo e acção de falar com o que dizia; e como tinha graça, até os erros lhes pareciam bem. E assim lhe disse o doutor:—Tudo vos succede a pedir por boca, porque na vossa até o exemplo do que nos outros enfada tem graça para dar contentamento; e posto que as duas historias passadas foram tão primas, não desdizem d’ellas os vossos bordões.—Se eu não tivera o de vossa auctoridade para me sustentar (respondeu elle) manquejára em tudo.—Em nada (proseguiu elle) haveis de mister favor alheio, e menos n’este particular, em que entrais com todo o cabedal que requer uma historia, que é boa linguagem, discrição natural, relação ordenada, praticas com piedade, successos com brevidade, sentenças com que se auctorise, e graça com que se conte. Porém são horas de deixarmos esta, e darmos as suas ao repouso da noite.

Com isto se levantaram continuando com a mesma pratica até á escada; que das coisas, que dão satisfação á vontade, não se sabem despedir as razões.


[Pg 24]

DIALOGO XI
DOS CONTOS, E DITOS GRACIOSOS E AGUDOS NA CONVERSAÇÃO

No dia seguinte, antes das horas em que os amigos se haviam de ajuntar para a conversação, Leonardo e os mais tiveram recados de D. Julio, em que lhes fazia a saber que chegara doente, e que tinha por hospede ao prior com outro irmão seu: que receberia de todos grande mercê em quererem juntar-se aquella noite em sua casa, porque só com este remedio daria allivio ao mal que trouxera da cidade. Elles, que (além de a petição ser justa) eram interessados em sua saúde, amigos e obrigados a o visitarem, ouviram que lhe deviam obedecer. Solino acompanhou a Leonardo: e não faltaram no caminho murmurações discretas, nem em o doutor, e os estudantes juizos temerarios. Acharam a D. Julio na cama, o prior junto a ella, e o irmão, que era homem mancebo, bem afigurado, e que no trajo vestia mais ao soldado, que ao cortezão. Sentados todos depois de lhe fazerem cortezia, e comprimentos devidos, disse Leonardo:—Bem me parece, senhor D. Julio, que estaes já tão aldeão com a nossa companhia, que vos apalpam os ares da cidade; e que os regalos d’ella fizeram que o senhor prior se esquecesse d’aquella sua estalagem tão cheia de vontade para o servir.—Onde vós estaes (respondeu D. Julio) é a côrte; e a falta d’esta me podia fazer aldeão. Do senhor prior fazer a troca por esta noite, tive eu a culpa; porque com esta condição acceitei em terra alheia a sua pousada nas casas do sr. Alberto seu irmão, a quem tambem obriguei a que me fizesse esta mercê.—Não me desculpo (accudiu o prior) porque tudo o sr. D. Julio tomou á sua conta: porém em occasião estaes de haver muitas, em que mudeis o queixume, fazendo-o antes de minha importunação sobeja, que d’essa falta: porque vem apostado meu irmão, pelo que lhe contei, a perder poucas noites d’esta aldeia, em quanto as tiverdes tão boas como duas que me aconteceram.—Assim (disse o doutor) serão ellas melhores, porque com vossa presença, autoridade e discrição, e com [Pg 25] favores seus, ficarão melhor assombradas; terá saúde este fidalgo, e então vos convidaremos para a primeira; que ainda não sabemos de que vem maltratado.—Do meu achaque (disse elle) tive eu a culpa, que me entreguei hontem mais, do que era razão, na ceia; porque foi de pescado e marisco, e doces; e como cresceu com a novidade o appetite, quiz-se forrar á custa do estomago de quantas vezes nos faltam semelhantes regalos n’este logar; e certo que tive um accidente muito rijo, e não podia com o cansaço, que me deixou sem vossa vista, e d’estes senhores; e por isso me vali do atrevimento do recado.—O allivio (disse o doutor) é tanto em favor nosso, que, a ser menor o mal, consentiramos n’elle.—Maiormente (accudiu Solino) se é o que eu cuido, que como experimentado de ordinario, julgo mais a enfermidade pelo pulso, que pela informação.—Não parece que vol-o deve offerecer quem a tem tão boa de vossa malicia, (tornou o fidalgo).—Antes estou tão emendado em alguma, que vol-o pareceu (replicou Solino) que já não suspeito senão o que é.—Tarde vos mettestes n’essa recoleta (disse o doutor) e os que em velhos começam a ser bons, pouco tempo lhes fica para usarem da virtude.—Não sei logo (lhe respondeu elle) como, sabendo isso, vos descuidastes tanto, que nunca para uma murmuração vos achei descalço.—Parece-me (disse D. Julio) que será bom que o mais fraco aparte esta briga com pedir que me façaes mercê de me dizer em que se passou hontem entre vós a noite.—Parte (disse Solino) em cuidar em como passarieis o dia, e na grande falta que nos fizestes; a outra em dizer como se haviam de contar as historias na conversação; e n’aquella se disseram duas para negaças, e uma para espantalho; ficou para continuar a materia de contos graciosos, ditos agudos e galantes: tereis vós saude logo, e nós com ella gosto para proseguir, e ouvirão estes senhores o que não cuidaram.—Não me ponhaes vós isso em dilação (disse o fidalgo) que antes em quanto mal disposto quero, como dizem, accrescentar esta noite á vida; e se m’a desejaes como amigo, sabei que n’isto a tenho.—Se como a doente (respondeu Solino) vos houverem de fazer a vontade, não sei se fôra esta. Com tudo, ao menos para divertir, comece o doutor; que eu aqui trago as armas, com [Pg 26] que costumo accudir a esta guerra; e cada um diga o seu conto, e conte o seu dito, encommendando a todos que riam do que eu disser, porque é vicio, dos que cuidam que tem graça, a desconfiança.—Tambem essa me parece, (accudiu o doutor) e dando-vos a obediencia por servir ao senhor D. Julio: A noite, em que nos faltou sua presença, se tocou n’esta conversação o modo que havia de ter o discreto em contar uma historia; fugindo muitos vicios, e bordões que os nescios tem n’ellas introduzidos; e como em dependencia d’esta materia se falou nos contos galantes, que tem d’ellas muito grande differença; pois elles não consistem em mais, que em dizer com breves e boas palavras uma cousa succedida graciosamente. São estes contos de tres maneiras: uns fundados em descuidos, e desattentos: outros em mera ignorancia: outros em engano e subtileza. Os primeiros e segundos tem mais graça, e provocam mais a riso, e constam de menos razões, porque sómente se conta o caso, dizendo o cortezão com graça propria os erros alheios. Os terceiros soffrem mais palavras, porque deve o que conta referir como se houve o discreto com o outro que o era menos, ou que na occasião ficou mais enganado. E porque n’isto declaram menos as regras, que os exemplos, diga cada um o seu; que eu, por desimpedir o caminho, quero que passe por conto o que me aconteceu ha poucos dias:

“Fui a casa de um letrado meu amigo, a quem achei mui colerico, tirando pelas orelhas ao seu moço, que se desculpava, chorando, que não sabia de uns oculos, por que perguntava: olhei, e vi que tinha uns no nariz presos; perguntei-lhe se eram aquelles: o letrado ficou corrido, porque, tendo-os nos olhos, os não via; e o moço queixoso, porque as suas orelhas pagavam a pena que as do letrado mereciam.”

—Esse desattento (disse Leonardo) é muito ordinario nos escrivães que buscarão duas horas na mesa, e nos papeis a penna que trazem na orelha. Mas para desattento, e descuido: o que n’este logar aconteceu ha muitos annos a um cortezão que aqui vivia, que tendo uns amores humildes, que tratava com muito segredo, tinha um relogio de peito que trazia tão esperto, e bem temperado, que fazia horas quasi a todos os moradores [Pg 27] d’este logar. Desattentou, e estando com elle ao pescoço uma noite em casa da delinquente, deu o relogio meia noite: e ás escuras manifestou a toda a visinhança a verdade, que até então escondera dos olhos, e suspeitas de todos.—Ainda (disse o prior) me parece peor o successo de um meu conhecido, que em um bairro de pouca visinhança tinha em Lisboa amores com uma moça que lhe estava já affeiçoada; falava-lhe de noite de uma janella, e ambos se temiam de outra, d’onde um visinho de parede em meio os espreitava: por se livrar d’este inconveniente, deu-lhe a moça ponto para uma noite lhe falar de mais perto, entrando pela janella, fazendo primeiro certo signal, com que ella havia de accudir. Buscou elle para isto uma noite chuvosa, e escura, poz sua escada, subiu; e errando a barreira, foi bater e fazer o signal na janella de que se vigiavam. Accudiu o visinho, e abrindo-a, viu o namorado seu erro á candeia; e com o sobresalto d’esta desgraça, cahiu com a escada e com o segredo na lama.

Festejáram todos o conto com muito riso. E disse Solino:—N’este mesmo logar conheci um galante, que falava muitas noites de pé da janella a uma dama, com quem tinha amores; e assim em vendo visinhança recolhida, e logar quieto, disfarçando-se com os moveis, que para aquelle mister tinha apparelhados, vigiando todos os portos por onde podiam contraminar a cautella do seu segredo, se vinha ao posto. Uma noite, que lhe não coube vez senão perto da madrugada, falando a moça com elle, sentiu dentro reboliço; e por não ser sentida, pediu-lhe que se encobrisse com a sombra, e que ella tornaria a lhe fazer signal, como tudo se aquietasse. Sentou-se elle em uma pedra; e a moça vendo o negocio mal parado, por desmentir algumas suspeitas se foi lançar na cama: o galante, que como estava trasnoitado achou branda a em que se recolhera, adormeceu com tão boa vontade, que já alto dia foi achado como Leandro na praia de Césto, dormindo com o trajo de outras horas, espada núa, e rodela mal vestida, sem dar acordo; até que, depois de estar á vergonha, um amigo o recolheu a casa, e a dama padeceu a esta conta muitas, que costumam a ser o ganho d’estes empregos.

[Pg 28]

Com egual alegria foi recebido este conto, que o do prior: e disse Leonardo a Feliciano, e a Pindaro, que pois elles tinham dado exemplo dos contos de descuido, e desattento, a elles ambos tocavam os da ignorancia.—Não nos guardastes para bom logar (tornou Pindaro) porque mais convinha aos mancebos contarem descuidos e desattentos dos velhos, que ignorancias suas: mas para que saibaes que não faltam umas e outras culpas n’essa edade, me não escuso.

Um homem de melhor parecer e estatura, que entendimento, se apartou a viver alguns annos longe da cidade em um monte, onde além de tratar pouco do culto de sua pessoa, com o ar dos matos, o discurso da edade, e algumas enfermidades que tivera, estava do rosto e das feições mui dissimilhado; vindo depois com nova occasião a viver á terra, d’onde sahira, querendo-se vestir, e concertar ao galante, mandou que lhe comprassem um espelho: fez o creado dilligencia, e não achou nenhum de que se satisfizesse o amo, tendo provado muitos, ou quasi todos os que havia: e perguntando-lhe porque os engeitava, respondeu: “Porque fazem tão mau rosto, e tão avelhantado, que se não pode um homem de bem vêr a elles; e ha poucos annos que os havia n’esta terra tão excellentes, que me faziam o rosto como de um anjo.” Riu-se o moço dizendo entre si: “Mais se desconhece meu amo por ignorante, que por mal visto; pois ao espelho põe a culpa que tiveram montes, e a edade.”

—Outro (disse Feliciano) tão fraco de animo como de entendimento, passando em sua casa de uma para outra, com uma porcelana de sangue que levava para certo effeito, acertou de tropeçar na porta por onde entrava, e entornou-se-lhe o sangue pelas mãos: e accudindo logo com ellas ao chapéo, que lhe cahia, encheu a testa de sangue que lhe corria em gôttas sobre o rosto: um filho, que olhando para elle o viu ensanguentado, começou com grandes gritos e choros a chamar sua mãe; a qual, tanto que achou o marido d’aquella maneira, com as mãos nos cabellos pranteava sua desaventura: elle ouvindo os gritos de todos, sem saber o que era, cahiu esmorecido na casa, onde podera morrer de nescio, como outros morrem de mal feridos.

Pareceu muito galante, e provocou a todos riso o conto de Feliciano; [Pg 29] e proseguiu o doutor dizendo:—Os contos da ignorancia tem mais graça, que os da malicia; e assim dizia um discreto que só a parvoice com auctoridade era sem sabor; que não pode ser maior galanteria, que um engeitar ao sirgueiro o chapéo porque não tinha a rosa para deante, podendo-a elle voltar para onde quizesse: o outro espantar-se muito de lhe não tingirem umas meias negras de verde, sendo assim que havia pouco tempo que umas verdes lhe tingiram de negro: e o outro, que para não perder a chave do cadeado, a metteu dentro na canastra encourada antes de o fechar; e depois lhe foi necessario quebrar a elle, ou romper a ella para tirar a chave: e muitas semelhantes, que contar agora seria infinito.—Ainda (accudiu D. Julio) haveis de dar licença ao conto de um meu conhecido, que ouvindo falar que havia antipodas, e que andavam com os pés para os nossos, o não pude persuadir de que modo podia estar esta gente, sem cahir de cabeça abaixo, andando ás avessas.—Todos esses (disse Leonardo) são extremados; porém os de engano, se tem menos occasião de provocar a riso, tem a graça mais viva na subtileza e malicia; e quando a materia é graciosa, levam a todos os outros muita vantagem. “Um amigo meu era mui regalado de doces; e no tempo das flôres e das fructas mandava fazer em sua casa muita variedade d’elles: uma das creadas, com que se servia, era tão gulosa, que, em vendo boccados a enxugar, não se aquietava até tomar a sua ração, que era cercealos a todos como a reales. Desejando o senhor de saber qual dos seus moços, ou creadas, lhe fazia aquella travessura, mandou fazer certos boccados com azebre, cobertos de assucar; e, postos ao sol, deu mais logar á moça, que accudindo ao reclamo, fez seu lanço; e como logo se quiz aproveitar do ponto, foi tão grande o amargor na bôcca, que o não poude encobrir: fazendo muitas diligencias, começou a dar signaes, e a agastar-se: o amo fingindo suspeitas de peçonha, metteu toda a casa em revolta, e a moça em desconfiança, fazendo-a beber azeite, e tomar outros defensivos: porém como elle não podia encobrir o riso de a tomar na empreza com aquelle engano, entendeu ella o que seria; e por remediar sua falta, fingindo estar atribulada, disse que lhe declarassem se morria, porque havia de deixar culpado [Pg 30] quem a convidara com aquelle doce, por ella não descobrir os que lhe vira muitas vezes furtar dos taboleiros: e d’este modo remedeou seu erro, deixando ao amo na mesma duvida que tinha d’antes.”—Um estudante (disse Feliciano) que entre outros era hospede em casa de um amigo, jazendo todos na cama, por ser o tempo de verão, elle que era menos corrido, que engraçado, lhes disse: Não se riam vossas mercês tanto do meu pé, que apostarei que ha na companhia outro peior: cada um fiado nos seus, zombava, e sahia á aposta, de maneira que a fizeram que, se elle o mostrasse, ganharia certo preço, ou perderia outra egual valia: feita a aposta, tirou elle o pé esquerdo, que tinha escondido, que por calçar mais dois pontos, que o outro, tinha os dedos em arcos, tão tortos, e cheios de cravos, e o pé de joanetes, que não parecia natural: e assim ganhou, com muito riso de todos, o que tinha apostado.“—Outro estudante do meu tempo (proseguiu Pindaro) passando parte de uma noite de inverno em casa de um amigo, que morava perto do rio, choveu tanta agua, e cresceu com tanta furia o Mondego, que lançou por fóra, e fez ilha das casas do estudante: o hospede esperava que o convidasse a ficar; e o amigo não tinha essa vontade, porque temia a roupa de alguns males contagiosos, que d’elle suspeitava: estiveram assim grande espaço da noite, sem cessar a chuva, até que o senhor da casa começou a bocejar, e o hospede a se despir: e perguntando-lhe o amigo para que se despia? respondeu: Que ou para nadar, ou para se lançar na cama. Vendo-se elle apertado, respondeu: Pois assim é; alli tendes uma taboa, ou vos salvae nella, ou fazei d’ella cama em que vos lanceis.”—Esse conto (accudiu Solino) tem o pé em duas raias, ou parte com dois termos, que consta de dito, e de feito; mas passe sem sello, por ser vosso.—Signal é (respondeu elle) que vos não deve direitos. Então gabaram todos os contos, e disse o doutor:—Além d’estas tres ordens de contos, de que tenho falado, ha outros muito graciosos, e galantes, que, por serem de descuidos de pessoas, em que havia em todas as cousas de haver maior cuidado, nem são dignos de entrar em regra, nem de serem trazidos por exemplo: a geral é que o desattento, ou a ignorancia d’onde menos se espera, tem maior graça. [Pg 31] Atraz dos contos graciosos se seguem outros de subtileza, como são furtos, enganos de guerra, outros de medos, phantasmas, esforço, liberdade, desprezo, largueza, e outros semelhantes, que obrigam mais a espanto, que a alegria; e posto que se devem todos contar com o mesmo termo, e linguagem, se devem n’elles usar palavras mais graves que risonhas.—Não era essa materia (disse D. Julio) para se passar por ella tão apressadamente; porém já que no fim da noite, em que me eu apartei, se tratava do sal; parece que sinto menos a falta da que perdi, com vos achar ainda agora n’esta graça, como dependencia do que então se falou; que não a pode haver melhor acceita que a dos ditos agudos e galantes: assim que não havemos de consentir que o doutor se divirta para outra cousa.—Eu não posso (disse elle) sahir de vosso gosto; porém a materia não era para tão de repente, nem para tão breve tempo como se requere que seja o da visita. Porque primeiramente, dito, na significação portugueza tomamos por cousa bem dita, ou seja grave, como o são as sentenças; ou aguda, e maliciosa, como o são as de que agora tratamos: e chama-se dito, porque dizem uma só palavra, ou muito poucas muito de entendimento, de graça, ou de malicia. E deixando a sentença, que terá em outro dia o seu logar, os ditos agudos consistem em mudar o sentido a uma palavra para dizer outra cousa, ou em mudar alguma lettra, ou accento á palavra para lhe dar outro sentido; ou em um som e graça, com que nas mesmas cousas muda a tenção do que as diz: e de uns e outros os mais engraçados, e excellentes são os de respostas; porque além de estas serem mais apressadas, e tão de repente, que tomam entre portas o entendimento; tem materia sem suspeita nas perguntas.

Dos da primeira especie não tem pouca graça os que dizem sobre os nomes proprios, como aconteceu a um cortezão, que, perguntando a um amigo pelo nome de uma dama da côrte, a quem visitavam infinitos galantes, lhe respondeu que se chamava N. do Valle. Deve ser (tornou elle) o de Josaphat, segundo a gente que corre para esta parte. Nenhuma me parece (replicou o outro) que vem a juizo; porque nem ella o tem, nem os que a buscam.—Esse dito (disse o prior) tem a graça dobrada em ambas as [Pg 32] pessoas: porém um cortezão galante, e de muita idade, visitando a uma sobrinha sua, que estava desposada com um N. do Carvalhal, homem muito velho, e senhor de um morgado rico, lhe disse: Sobrinha, o que vos mais releva é que tireis d’esse tronco algum enxerto, que fique preso; por isso não vos descuideis; e quando não puder ser de Carvalhal, seja de Cornicabra. “Todos festejáram muito o dito: e proseguiu Leonardo:—Um amigo meu tinha uma amiga muito magra e comprida, a que chamavam N. Quaresma; e queixando-se uma sexta feira de falta de pescado, lhe disse outro: Quem se atreve a uma Quaresma tão estreita e comprida, porque receia uma sexta feira? Porque (respondeu elle) tenho a quaresma por carnal, e a sexta feira por dia de quaresma.—A graça na mudança das letras, ou accento (disse D. Julio) não é pouco galante; como aconteceu a um mancebo, que vendo uma moça á janella, que lhe pareceu bem, sem ter d’ella outra noticia a namorava, mui embebido em sua gentilesa: passou um amigo, que vendo-o acenar lhe disse: Que quereis a essa moça? Se ella quizesse (respondeu elle) tomal-a por minha dama. Cuidei (tornou o outro) que por ama; porque há poucos mezes que pariu. Tambem por esse caminho me parece gracioso o dito de uma mulher, que não tratava bem de obras a honra de seu marido, e elle muito mal de palavras a de toda sua visinhança: era o seu nome d’elle N. Ramos; e pondo-se um dia em praticas com a mulher, começou a contar com ella todos os cornudos que havia no seu bairro: a mulher com raiva da sua má natureza, a cada passo dizia: Erramos marido; tornai a contar, que falta um. Elle, que entendia mal o remoque, sem se meter na conta, a tornava a fazer de novo muitas vezes.—Ainda que o dito é mui sabido (tornou Pindaro) não vem fóra da razão n’este logar; nem se deve negar tambem a outro, de um cortezão engraçado, que levando-o um alcaide preso diante de certo julgador, por trazer seda contra a pragmatica; e allegando que era homem nobre; lhe disse o juiz, que, pois o era, porque não trazia o que devia?—Antes (respondeu elle) o faço assim, porque ainda devo tudo o que trago. Sabei, senhor (tornou elle) que se vos fez a divida maior, pois o tomam por perdido.—Por perdido [Pg 33] (disse elle) m’o poderá tomar seu dono: mas pois vossa mercê o quer julgar ao alcaide, requeiro que lhe passe com seus encargos.—Outros ditos ha engraçados a essa similhança (proseguiu o doutor) que só na mudança dos sentidos das coisas (como já disse) tem a galanteria; como o que aconteceu ha poucos mezes a uma donzella, que servio seis a uma Dona mui miseravel de condição, a qual a despediu sem mais galardão, que um vestido de serguilha, a que chamam cilicio. E perguntando-lhe uma senhora: Como vos pagou N. o tempo que a servistes? Pagou-me (respondeu a moça) como um confessor, com este cilicio, e seis mezes de pão, e agua.” E porque disse que de uns, e outros os melhores consistiam na graça de uma boa resposta; e quasi todos, os que aqui se disseram, o parecem, me quero declarar assim com razões, como com algum exemplo, que as declare. Resposta aguda ha, que como esta, e outras, que ficam ditas, agradam muito, porem não incluem a brevidade das que fazem a sentença com as palavras da pergunta. “Um cortezão fallando de outro, que alcançára por sua valia muitos logares honrados, e perdera um, em que tinha empenhado todo o seu cabedal, por ser de humilde geração, perguntava a um amigo: Se N. sempre acertou até agora em suas pretenções, como n’esta, que mais lhe importava, errou? Respondeu o outro: foi por baixo.” “A outro, que vivera muito tempo na privança de um senhor com grande prosperidade, vendo-o depois um amigo em estado miseravel, lhe perguntou: Como de tanta altura descestes da graça de N. a esta miseria? Ao que elle respondeu: Cahi.”—Ainda (disse o irmão do prior) que em querer dar minha razão seja atrevido, a profissão de soldado me desculpa; entre os quaes até a temeridade é digna de louvor. Mas em Flandres, onde andei na milicia hespanhola alguns annos, acudiam muitos doutores catholicos, e outros scismaticos encobertos, a umas conclusões, que havia em uma cidade pequena, de theologia: certos frades de S. Francisco, aos quaes não davam logar suas enfermidades para poderem caminhar a pé, iam em asnos. Passando por elles alguns do outro bando em mulas muito luzidas, e auctorisadas; um d’estes por motejar aos menores, lhes perguntou: Aonde vão os [Pg 34] asnos? Respondeu um frade velho: Nas mulas: e com uzar da agudeza, na sua mesma pergunta os envergonhou, mudando o sentido a uma palavra d’ella. Gabaram todos o dito, e o commedimento do novo companheiro; e continuou o doutor:—Temos tratado dos contos graciosos, e ditos agudos, e galantes, com exemplos muito a proposito da sua differença; fica para dizer o como na pratica se deve usar d’elles; e posto que me tirava d’este trabalho o conhecimento que tenho da sufficiencia dos que estão presentes, como eu n’esta materia aponto as regras mais para as aprender, que para me seguirem, é necessario tocar ao menos o que d’ella me parece: e assim como dizem que muito ensina o que bem pergunta, assim se póde dizer que muito aprende o que deante dos mestres ensina. Os contos e ditos galantes devem ser na conversação como os passamanes, e guarnições nos vestidos, que não pareça que cortaram a seda para ellas, senão que cahiram bem, e botaram com a côr da seda, ou do panno, sobre que os puzeram; porque ha alguns, que querem trazer o seu conto a remo, quando lhe não dão vento os com que pratica; e ainda que com outras coisas lhe cortem o fio, torna a teia, e o faz comer requentado, tirando-lhe o gosto e graça que podia ter, se cahira a caso e a proposito, que é quando se falla na materia da que elle trata; ou quando se contou outro similhante. E se convém muita advertencia e decóro para os dizer, outra maior se requer para os ouvir; porque ha muitos tão sôfregos do conto ou dito, que sabem, que, em ouvindo começar a outrem, ou se lhe adiantam, ou vão ajudando a versos como se fora psalmo: o que a mim me parece notavel erro; porque, posto que a um homem lhe pareça que contará aquillo mesmo, que ouve, com mais graça, e melhor termo, se não ha de fiar de si, nem sobre essa certesa se querer melhorar do que o conta; antes ouvir, e festejar com o mesmo applauso, como se fora a primeira vez que o ouvisse, porque muitas vezes é prudencia fingirem algumas coisas ignorancia.—Agora vos digo (accudiu Solino) que não se deve pouco a quem sabe passar essa dor sem dar signaes d’ella; porque, saber um homem o que o outro conta ás vezes mal e sujamente, e estar feito pedra, é peior que darem-lho com uma na cabeça; e cuidei que só aos [Pg 35] prégadores lhes era concedido esse privilegio, por fallarem sem lhes haver outrem de responder: porém haveis de consentir que haja n’isso uma excepção; e é que quando algum disser o conto, ou dito com algum erro, o possa emendar e advertir o que o viu passar, ou esteve presente quando succedeu.—Em tal caso (respondeu o doutor) piedosamente o consentirei, se o que conta, ou lhe tirar a graça principal, ou errar as pessoas e o sujeito. Tambem não sou de opinião que, se um homem souber muitos contos ou ditos de uma mesma materia, em que fallou, os traga todos ao terreiro, como jogador que levou rufa de um metal; mas que deixe logar aos outros, e não queira ganhar o de todos, nem fazer a conversação só comsigo.—Parece-me (disse Solino) que vos ficou por tratar uma especie de ditos graciosos, que muitas vezes não tem o peior logar na galanteria da conversação. E porque, ficando fóra das vossas regras, os podem tomar d’aqui adeante por perdidos, a mim me releva por o meu particular saber o como o discreto se ha de haver n’elles; que são os de similhanças, a que commummente chamam apódos; que, se são bem appropriados, dão sal á pratica, e gosto aos ouvintes.—Tendes muita razão (respondeu elle) que ainda que deixei de fóra outros muitos por os metter nas regras dos que nomeei, que a esses estava mais obrigado de trazer a exemplo, e ao menos considerar que se não hão de buscar de proposito, que seria fazer da graça chocarrice; antes hão de ser trazidos tanto a caso, que sejam mettidos na pratica como translações d’ella, fugindo de alguns, que escandalizem em pouco, ou em muito, a parte de que se trata; e seja exemplo de como Pindaro comparou as minhas casas, que, por serem pequenas, muitas, e bem guarnecidas, lhes chamou gavetas de escriptorio.—E Solino (accudiu Pindaro) disse que fizereis aquelle estojo para vos recolherdes na velhice.—Não tenho eu por menos galante (disse elle) o que, vendo a gelozia de Solino com cinco, ou seis meninas com habitos de freiras de S. Francisco, lhe chamou capoeira de rolas. E a um moço do Licenciado, que aqui anda muito pequeno e magro, com uma espada muito comprida, frangão espetado.—Mais me parece (disse Solino) esse moço cabos da espada, que homem com ella. Mas a [Pg 36] uma moça muito louca, a que todos sabemos o nome, que tem o rosto da côr dos cabellos, e ainda com uns mantéos engommados de azul, chamou um galante porcelana de ovos doces.—A essa, disse (D. Julio) chamaram tambem pampilho, e rosto de alambre. Porém, se nos houvermos de espalhar n’estas similhanças, e passarem de mão em mão, não haverá quem nos desapegue da materia.—Antes me parecia a mim (disse Solino) que assim dos contos galantes, ditos engraçados, e apódos rizonhos, se ordenasse que em uma d’estas noites, tomando um proposito, cada um contasse a elle o seu conto, e dissesse o seu dito; e seria um modo extremado para se tirar outro novo alivio de caminhantes, com melhor traça que o primeiro.—Fique a vosso cargo essa (tornou Leonardo) para outro dia; e agora não demos má noite ao doente, nem aos hospedes ruim agazalho.—Este (disse o prior) é o melhor, que podia pintar o meu desejo; e suspeito que por vingança fizestes a noite mais breve: mas o que d’ella perder, determino cobrar na de amanhã, porque a obrigação, que tenho, de obedecer ao senhor D. Julio me faz esquecer até as de meu estado. E se a do outro dia não fora de domingo, ainda n’ella gosara o interesse de mercês suas, e das honras vossas.—Com esse (respondeu Leonardo) de havermos de ter ao senhor Alberto, e a vós por mais espaço n’este logar, dissimularei o queixume, que de ambos tinha.—Da minha culpa (tornou Alberto) darei toda a satisfação; porque nem pelas do prior, nem por sua conta, hei de perder a honra, e mercê d’essa vontade.

N’isto se começaram os mais a levantar. E perguntando a D. Julio se estava melhorado do seu achaque, respondeu que não sentia outra pena n’aquelle tempo mais, que o que perdera de tão boa conversação; dando-se por mui obrigado do favor da visita, que, posto que aos illustres se deve em tudo respeito, obediencia, e cortezia, nenhum a sabe melhor estimar, que o generoso.


[Pg 37]

DIALOGO XII
DAS CORTEZIAS

Depois que os amigos se despediram, os hospedes ficaram gabando a D. Julio a graça e bom termo de falar, de todos os que entravam n’aquella conversação; dizendo que em tal aldeia se podiam ensaiar os que quizessem apparecer na côrte apercebidos, approvando a maneira que se tinha de discursar sobre cousas tão miudas e tão esquecidas, sem causa, dos cortezãos. D. Julio lhe relatou algumas materias, de que tinham tratado aquelles dias, que ao soldado deixaram cobiçoso; e foram n’esta pratica tomando tantas horas emprestadas ao repouso, que, para se entregarem d’elle pela manhã, se levantaram da cama para a mesa: tiveram o doente e os hospedes suas visitas; e quando veiu a noite, já os amigos estavam juntos em sua casa, com gosto de Leonardo que o pediu a todos elles. E D. Julio para lhes pagar esta diligencia no em que elle sabia que mais desejavam a satisfação, lhes disse:—Não parece razão que á conta da cortezia, com que dissimulaes commigo, me encerre eu com o que sei que desejaes de ouvir com muito cuidado. Quero agora acudir aos remoques de Solino, e á curiosidade dos mais, que lançáram juizos temerarios sobre a minha jornada; e para que não esconda nenhuma das cousas que passei, a conto deante de tão abonadas testemunhas. Soube (e não quero dizer que acaso), porque o procurei de proposito, o dia, em que o sr. prior levava para a cidade aquella religiosa peregrina; que por ter tantas cousas do céo, deixou todas as da terra, vencidas com seu despreso, e acanhadas e humildes com sua formosura. E assim por o acompanhar a elle em obra de tanto merecimento, como por vêr despedir de todas as pretenções humanas quem em tantas partes e extremos era divina; e na resolução sua e desengano vêr o das esperanças, que o desejo podia fundar em sua gentileza: me fiz encontradiço no caminho, onde me dei por obrigado a chegar até á cidade, fingindo que alli de novo soubera sua determinação. Conheceu ella ser eu o mesmo que na fonte da serra a encontrára; e [Pg 38] lembrada e agradecida da cortezia e respeito com que a tratei, sem saber quem fosse, me pagou com a brandura de seus olhos a alma que n’elles perdi quando a olhava n’aquelle desvio. Disse-lhe o sr. prior quem eu era, accrescentando do seu o que agora fico a dever á sua cortezia: e conhecendo a extrangeira a sua vontade, me fez muitas mercês e favores pelo caminho; que, a não ser aquelle o derradeiro, que havia de fazer no mundo, me pudéra eu encher de vaidade para os não trocar por todos os interesses d’elle. O que n’ella vi foi o que já me ouvistes; e posto que o decóro e respeito com que a levavam, não accrescentou graças á sua formosura, lhe dava outro valor differente, como o engaste de ouro bem lavrado o costuma dar ás pedras finas. Ficou entregue ao céo com quem se parecia, e os olhos, que alli deixaram as saudades e desenganos. Não foram estas occasiões de minha doença, que não costuma a ser tão leve a que d’elles se gera: e assim póde fazer em mim maiores effeitos a sua lembrança.—Da vossa parte (disse o prior) tendes contado o que passastes: porém d’aquella extrangeira pudéra eu dizer muito mais; que só no que lhe ouvi se podia conhecer quanto estimou o bom termo da vossa cortezia, e muito mais esta segunda de a acompanhardes.—A primeira de a deixar sem companhia (tornou o fidalgo) me foi a mim mais custosa. E ainda que diz o rifão antigo, que cortezia e falar bem custo pouco, e val muito, não se podia dizer pela minha.—Antes sim (disse o soldado) pois vos rendeu tanto, e vós não mettestes mais cabedal, que dar logar á razão, onde o não podia ter o appetite. E posto que a cortezia tem muito grande logar entre os portuguezes, porque no comedimento fazem vantagem a muitas outras nações; no falar bem, segundo o sentido d’esse rifão, acham elles a difficuldade; porque dizel-o dos seus proprios naturaes lhes não custa pouco (que é uma culpa que nos arguem com razão os extrangeiros) na qual peccamos contra o principal termo da cortezia. Mas certamente que uma e outra era devida áquella gentil senhora, de cuja riqueza e estado eu, como fronteiro que fui daquella ilha, pudéra dar informação; e a vi tão obrigada e desejosa de se mostrar agradecida ao sr. D. Julio, que excedia o modo da sua brandura e [Pg 39] receio.—Já desejo (disse o doutor) que passemos d’esta romaria; e não sei eu melhor occasião, que falar em cortezias, assim extrangeiras como naturaes; que é materia que beta muito bem com as das noites passadas.—Quem haverá (respondeu Alberto) que não approve a vossa escolha? que, além de vir a pratica a proposito das que entre nós se trataram, temos presente o sr. prior, a quem está melhor, que a todos, o cargo de nos fazer cortezãos por doutrina, assim como o póde ensinar a todos com o exemplo.—São os meus habitos (disse elle) tão alheios do estylo cortezão, que estão culpando a vossa inculca, e o atrevimento que eu desejo tomar para vos obedecer; porém tenho por menor erro cahir em muitos n’esta empreza, que desobedecer em todas ao vosso mandado: mas com tal condição, que acudaes vós, por cortezia, aos descuidos que eu n’ellas fizer, porque então não terei receio de falar, nem estes senhores pejo ou fastio de me ouvir. E falando em este nome de cortezia, é um vocabulo particular que entre nós tem a significação mui larga, porque no seu verdadeiro sentido ainda é mais estreito que o latino, que é urbanidade derivado de urbs, que quer dizer cidade; e assim é o comedimento e bom modo dos que vivem n’ella em differença dos aldeãos; e cortezia é dos que seguem a côrte, em differença de uns e outros. Porém na significação generica este nome comprehende estas tres especies de cortezia: Ceremonia, que é a veneração com que tratamos as cousas sagradas da egreja e dos ministros d’ella, que pertence á côrte ecclesiastica do papa, dos bispos e dos outros prelados inferiores: Cortezia, que é a que se tem aos reis, principes, senhores, titulos e ministros reaes: Bom ensino, que é a inclinação, reverencia e comedimento, que se costuma entre os eguaes, ou sejam de maior ou de menor qualidade. E deixando de tratar das duas primeiras e de outras duas, que muitos põem no segundo genero, que é cortezia militar, a que chamam ordem, usada nos exercitos, esquadrões e alojamentos; e a outra naval, que se usa nas frotas, armadas e navegações, porque umas e outras tem regras e leis declaradas, tratarei sómente do bom ensino. Para o que me parece advertir que da ceremonia se derivou a cortezia, e d’ella o bom ensino, descendo [Pg 40] por degraus como o mostram os exemplos de uma e outra; que como os reis e principes se endeosaram com a vaidade, foram tomando muito na cortezia do que era devido só a Deus; e porque egualmente os inferiores quizeram parecer-se com os reis, foram tambem contrafazendo os seus estylos na cortezia, a qual consiste em tres cousas, na moderação, na inclinação e nas palavras: e trazendo o exemplo de cada uma com seus principios, a Deus falamos com os joelhos em terra por cerimonia, aos reis com o esquerdo posto no chão por cortezia, aos eguaes com elle dobrado, tornando o pé atraz por bom ensino: a Deus beijamos o chão ou o assento do altar, onde está posto; ao papa o pé; ao rei a mão (posto que a alguns da gentilidade costumam ainda beijar o joelho). Entre os eguaes beijamos a mão com que tocamos a sua, e de palavras as de todos. Nas palavras se quizeram os reis levantar mais com os titulos divinos: e de mercê e senhoria, que era o seu proprio logar, subiram a alteza, que era só de Deus; e depois a magestade; e ainda, se se poderam chamar divindade, e omnipotencia, me parece que o fizeram. Aos eguaes tratamos de mercê, como que fomos tomando o que os reis deixaram; e ficou-se o vós, e a brandura d’elle para os amigos, e para os mal ensinados. Bom ensino é tratamento de homens bem doutrinados, ou por experiencia da côrte e cidade, ou por ensino de outros que n’ella viveram. A inclinação consiste em abaixar a cabeça, ou a descobrir, em dobrar os joelhos ou os pôr em terra, em inclinar a vista, ou a desviar do com quem se fala. A moderação em se mostrar mais humilde em beijar primeiro a mão, em dar o melhor logar ao que fazemos a reverencia, ou, para melhor dizer, em tomar de tudo menos do que nos cabia. As palavras ellas mesmas declaram quaes são da côrte na conformidade do proverbio, ou sentença com que começamos, que é falar bem do terceiro, dizendo o que faça em seu favor, e escutando com cortezia em quanto ouvimos o que fala: fóra outra cortezia de palavras, a que chamam cumprimentos, de que por ora não determino tratar. Esta cortezia no exterior differe mui pouco da virtude da humildade, e tem o mesmo fruito entre os homens da terra, que o Evangelho promette [Pg 41] no céo aos humildes, que é serem levantados; porque tambem para os vangloriosos e arrogantes é grangearia o bom ensino e comedimento, porque assim são mais bemquistos, acceitos e respeitados dos menores. Tem esta virtude da cortezia, ou bom ensino (a quem tambem Marco Tullio chama virtude) quatro escolas principaes, em que se exercita, que são o encontro, a visita, a mesa e a conversação: os dois termos, em que se sustenta, são humilhar-se uma das partes, e a outra querer-se melhorar na humildade; porque quanto um mais se aproveita d’ella, mais obriga ao outro a se querer mostrar bem ensinado. No encontro do caminho da visita, ou do passeio, é a regra entre os eguaes, que o que vem, ou está melhorado de logar, seja o primeiro na cortezia, assim da fala como do chapéo ou mesura: como, se vem andando, e o outro está parado, se vem a cavallo, e o outro está, ou vem a pé; e se ambos andam, e um vem da mão direita, ou do logar mais alto; e da mesma maneira o que está em terra, casa ou logar seu, seja o primeiro que accommetta a cortezia.—D’esse termo de cortezia (disse Leonardo) temos uma historia antiga em Portugal, que nos póde servir de exemplo e auctoridade para ella. Conta a chronica de el-rei D. Fernando de Portugal que, quando elle e el-rei D. Henrique de Castella falaram no Tejo em dois bateis, houve de ambas as partes duvida em qual d’elles seria o primeiro que falasse; e el-rei de Castella se resolveu em ser o primeiro por ter Lisboa de cerco, e estar na guerra de melhor condição que el-rei D. Fernando; sendo assim que, por ser em terra de Portugal, havia elle de ser o primeiro: e assim lhe disse: Mantenha-vos Deus, senhor rei de Portugal; porque estes eram os cumprimentos d’aquella boa edade.—O mesmo (acudiu o doutor) entendia el-rei D. Filippe, o Sabio, quando com tanto excesso de cortezias recebeu no seu reino a el-rei D. Sebastião seu sobrinho na jornada de Guadalupe, onde na fala e mesura foi sempre o primeiro, como eu posso mostrar de uma relação que tenho da mesma jornada: e tambem se alcança da visita que o infante D. Luiz fez ao imperador Carlos V quando, dando-lhe a deanteira na entrada de uma porta, o infante, não se podendo escusar, arremetteu a huma tocha com que ia deante um [Pg 42] creado, porque era de noite, e foi allumiando ao imperador, para tambem o vencer na cortezia que com elle usára.—O mesmo (disse Feliciano) aconteceu a uma pessoa de não tanta qualidade, porém de sangue illustre, que, dando-lhe um titular a deanteira na entrada de uma porta travessa de uma egreja, elle se voltou a elle com agua benta fazendo o officio de seu capellão.—Todos esses lances e outros semelhantes são estratagemas e finezas de cortezia (respondeu o prior) das quaes eu me não esquecerei no seu logar. E proseguindo a materia, a visita tem tres termos de cortezia, que são: o recebimento, o assento e o acompanhamento da despedida. O recebimento é sahir o visitado fóra da casa, onde ha de tomar a visita, até á sala, para na entrada dar a deanteira e melhoria ao que o vem visitar. O assento, dar o seu ao hospede, e tomar outro egual á sua mão esquerda, sem ser o primeiro que se assente. O acompanhamento da despedida é sahir com elle até á casa onde o recebeu, tomando sempre a sua mão esquerda, dando-lhe d’este modo a melhoria na entrada, logar e passeio.—O descuido dos ignorantes (respondeu Leonardo) tem pervertido essas regras tão verdadeiras; ou, ao menos, embaraçado pela sua má correspondencia: porque no receber das visitas ha alguns, que são como pesos de lagar, que se levantam devagar e se assentam de pressa: e a um dos taes disse um cortezão: que era bom para testemunho falso, porque o não levantariam. Outro disse a um titular: que menos era para senhor que para vassallo; porque nunca se levantaria. Já no recebimento ha muitos que se ficam atraz dos paus, por não deixarem a casa só, e assim dão cinco, e fazem o mesmo no acompanhamento da despedida: a cujo proposito cabe aquelle dito excellente de um senhor tão illustre por sangue, como por entendimento n’este reino; que vizitando a um legado do papa vindo de pouco a Lisboa, na despedida deu com elle mui poucos passos ao sahir da casa; e elle tomando-o pela mão, o trouxe adeante dizendo: “Para italiano faz V. S. muito pouco exercicio.” Porém declarae-me se nas vizitas falaes tambem das que se costumam a fazer a enojados e enfermos: porque serão necessarias outras regras muito differentes.—Não podia eu (disse o prior) fazer essa [Pg 43] mistura sem grande confusão e enleio. Mas d’ellas e das que se fazem a donas e donzellas, e outras semelhantes, determino particularmente dar meu voto debaixo da censura de vosso entendimento; e agora seguindo a minha determinação: A terceira escola da cortezia é a mesa, em a qual as regras são muitas; porém muito ordinarias e conhecidas. A primeira é do assento, a segunda do serviço, a terceira das iguarias, a quarta das graças depois de comer. O assento, em mesa de muitos, é o primeiro logar o topo, a que chamam cabeceira, que fica á mão direita dos outros; entendendo que ha de ficar uma das partes da mesa livre para o serviço dos ministros d’ella: e quando é do menos gente, sempre o que agasalha toma por cortezia o logar da mão esquerda. No serviço o primeiro é dar agua ás mãos, em que sempre se ha de preferir o hospede; e andam n’isto já os servidores tão apurados, que não fica aos convidados logar mais que de algum leve comprimento. O segundo (entre os amigos) é o fazer o senhor da casa para cada um dos outros os pratos, que se hão de dividir na mesa, melhorando ao hospede na escolha de cada cousa, a que podem chamar cortezia mimosa. O comer ha de ser sem sofreguidão, sem mostra de gula nem demasiado appetite; e tambem não mostrar uma frieza cheia de fastio, que é desagradecer a comida e a vontade do que lh’a offerece. O beber seja sem pressa, e com tento, não levantando o copo nem o pucaro, quando outrem o tem na bôcca; salvo onde se usar a differente cortezia dos extrangeiros, que se convidam a beber em um mesmo tempo. O que está á mesa não ha de falar sempre em quanto os outros comem, nem comer em quanto os outros falam. E de uma maneira e outra, o que se disser não seja cousa que possa enojar o estomago ou diminuir o gosto dos convidados. Tambem deve cada um acabar de comer quando os mais, ainda que lhe tivessem vantagem na brevidade. As graças pertencem primeiro ao dono da casa; e aos hospedes a cortezia depois d’ellas; que é uma maneira de agradecimento cortezão. E posto que pudéra calar estas miudezas por mui sabidas (como outras que deixo pela mesma razão) tenho alguma de falar n’ellas em quanto me servem para ao deante.—Antes de ess’outras (acudiu Solino) [Pg 44] me quero eu metter como cebolinha em restea; que, se até agora’não pescava em tanto fundo, porque a conversação obriga aos costumes, e eu estou ha tantos annos pelos d’esta aldeia; para as cousas da mesa tenho feito outro aranzel de cortezia: e posto que n’ella e na humildade dizem que abaixo fica quem se não adeanta, como as cousas de comer, e de proveito se atravessam com a vaidade d’este estylo, tenho outra regra mui differente, por que me rejo, registada nos livros dos rifães e proverbios das velhas, e encommendadas á memoria do meu moço, com muito cuidado, distincta por itens, muito importantes á quietação, e socego da vida de uma aldeia. Primeiramente: melhorar o hospede por assento, e a mim no mantimento: dar-lhe nas cortezias o que a mim nas iguarias: elle o primeiro no prato, e a mim o melhor boccado: Se fôr pouco o vinho, beba eu deante; que quem leva a primeira não fica sem ella: Se fôr pouco o pão, tel-o eu na mão, por não pôr nas da cortezia o que folgo de ter na minha: Não tirar prato de deante sem vir outro, que m’o alevante: Em quanto outrem apara, fingir que não vejo a faca: Se os outros falarem muito, dizer, os amens: porque ovelha, que bala, boccado perde. Em quanto tiver fome, zombar de quem não come: E quando tiver sede, lembral-a a quem não bebe. E quanto em todas as mais entradas e sahidas, como são o lavar das mãos, mesuras e prolfaças, liberal como nas eiras. E a verdade é que o verdadeiro cumprimento em que se declaram os demais, e que serve de lei mental a todos, é: Todo sou vosso, tirando fazenda e corpo. E passando da mesa, seguem logo outras regras não menos respeitosas, como são: No acudir ao perigo, fingir-se manco: Na cama pequena, deitar no meio: No logar estreito correr deante; que quem vem tarde, mal se agasalha: Ribeiro grande, saltar de traz; que a verdadeira discrição é experimentar na cabeça alheia: e a mais trilhada parvoice é não cuidei.—Não vos desfaçaes d’essa doutrina (disse Leonardo) que é a melhor regra de viver em paz sobre a face da terra, que quantas andam nas cartilhas antigas.—Eu (tornou o prior) não defendo aquella seita aos que a quizerem seguir, respeitando mais a commodidade que a cortezia. E deixando esta eleição, a ultima escola é a da conversação; que se entende no passeio, na [Pg 45] roda ou na visita. O passeio, quando é de dois ou tres, voltam com os rostos sempre eguaes (não virando as costas um ao outro, como costumam os extrangeiros) e os que recebem em uma volta á mão direita, a dão na outra aos que trouxeram á esquerda. Se são muitos, ou se dividem no meio ao voltar para ficarem todos de rosto; ou, se ha logar para isso, voltam em ala, ficando o primeiro da mão direita o ultimo da esquerda na volta do passeio: o que entra de novo faz primeiro cortezia aos que andam n’elle. E elles abrindo-o, lhe devem offerecer no meio o logar da mão direita; que elle não acceitará, senão o ultimo da esquerda, por não romper a ala; e porque na volta fica logo com o que na entrada lhe offerecem. Na roda ou ajuntamento se usa o mesmo; porém é para advertir a obrigação de cada um, para levantar do chão qualquer cousa que caia aos companheiros, como são luvas, contas, livro, chapéo, lenço e outras semelhantes; e, quanto a mim, esta obrigação de acudir a alçal-a é do visinho da mão direita.—N’isso (respondeu Solino) me releva pordes taxa certa, pelas cabeçadas que vi dar a muitos que acudiam juntos a essa cortezia: e tenho-me sempre com o primeiro que se alevanta; mórmente na roda onde todos os cabos são de palheta.—O que eu aconselhára (replicou o prior) é que, commettendo um, cessassem os mais, deixando o cumprimento ao dono da cousa.—Pois não é esse o termo (disse Leonardo) dos menos delicados na cortezia, assim no passeio, e roda, como na visita: e não só nas cousas, que cahem a caso, mas nas que se arremessam, ou com que tiram de proposito. E deixando o que aconteceu a um cortezão mancebo, que atirando-lhe uma dama, em castigo de um atrevimento, com um chapim, elle o beijou, e lh’o tornou a offerecer, e com este lanço a obrigou a d’alli adeante o ter em mais conta: um principe de sangue real d’este reino, andando á caça de montaria com um rei d’elle, se lhe adeantou a dar uma lançada em um porco montez, parecendo-lhe que se lhe mettia em o meio do perigo, por atalhar algum da vida de seu rei. Porém elle, que era mal soffrido, com paixão atirou ao principe com a lança: e elle apeando-se a levantou, e beijando-a lh’a tornou a offerecer; e com isto venceu a colera do [Pg 46] rei, e o obrigou a vergonhoso arrependimento.—Ainda agora (disse Solino) lhe eu houvera de deixar passar a ira; que quem se guardou não errou: e á furia de senhor terra em meio: e posto que lhe succedeu bem a cura, não houvera eu de provar a mezinha; que com estes perde o bem fazer a cento por um, que é o que com Deus se ganha. E porque no passeio se me offereceu uma duvida, pergunto: Quando um se diverte dos com que vae passeando, e fica carta atraz falando com alguem que passou e o deteve; ou em outro caso semelhante; que regra se ha de seguir?—Pararem os outros á vista (respondeu o prior) e elle, quando tornar, fazer sua cortezia, e entrar no passeio, tomando o logar mais humilde, como tenho dito.—E se passearem a cavallo (replicou elle) e a mula de um dos mantenedores se parou a ourinar, e os companheiros foram adeante, é obrigado o que torna á têa a fazer cortezia em nome da sua mula?—Isso não (tornou o prior) porque no primeiro caso a cortezia é uma satisfação da tardança: e o segundo é um acto de um bruto irracional, que não merece ser desculpado. Com isto me parece que tenho tocado o que é o cantochão da cortezia, em cujo contraponto ha cem mil galanterias e extremos, que não cabem em regras tão limitadas; como tambem o seriam para as cortezias, que consistem em palavras, a que se não póde pôr limite.—Vós (disse o doutor) tendes tratado a materia com muita curiosidade: e posto que fica assás auctorisada com razões tão verdadeiras, costumes tão approvados, e, o que mais é, com experiencia vossa; quero eu accrescentar o que li, mais por me fazer figura no em que vós sois auctor, que por mostrar que o posso ser em alguma cousa sem favor vosso. E porque me lembra que na divisão fizestes á inclinação a principal parte d’ella, me pareceu dizer alguma cousa de sua antiguidade: porque já os Hebreus, Persas, Gregos e Romanos usaram inclinar a cabeça por cortezia, como contam Josepho, Plutarco, Eliano e outros auctores graves: e esta reverencia faziam em signal de humildade, confessando fraqueza, e menos poder ante aquelle a cujo valor se abatiam: posto que dos Romanos, Alexandre Severo, successor do Heliogábalo, não consentiu que ninguem lhe fizesse esta cortezia, havendo-a por lisonja; antes mandava lançar de sua [Pg 47] presença a quem a usava (como escreve Lampridio) dizendo que só a Deus se devia aquella inclinação. Os de Thebas, se sabiam que algum dos seus inclinasse a cabeça a pessoa humana, o castigavam rigorosamente: e esta lei pôz em grande confusão a Ismenias, que elles mandaram por embaixador a Artaxerxes (como na sua vida o escreve Plutarco) o qual estando já na sala para falar ao rei, lhe disse um capitão, chamado Tithraustes, que se não havia de fazer ao rei a inclinação que os Persas costumavam, que lhe désse a elle o recado, e que faria em seu nome a embaixada. Elle não querendo fiar de outrem o que lhe fôra encommendado, entrando a falar ao rei, deixou cahir um annel que trazia no dedo; e abaixando-se a o levantar, fez a inclinação dos persas sem poder ser culpado dos Thebanos.—Essa inclinação (disse o prior) de inclinar a cabeça, dobrar os joelhos, ou pôl-os em terra, e extendendo o braço para a pessoa, a que queremos venerar, beijar a mão propria, é ceremonia antiquisima, que só a Deus se fazia; e assim se colhe de muitos logares da escriptura, como é no livro V dos Reis, capitulo XIX, no de Job capitulo XXXI, e no Deuteronomio capitulo XVII. O que tambem alguns gentios usaram, como lêmos em Plinio livro XXVIII, capitulo II. E d’aqui creio que se derivou este uso, que entre nós ha, do beijo as mãos de V. M.—O costume de beijar a mão (respondeu o doutor) entre os Romanos antigos foi dos escravos a seus senhores. Mas Plutarco conta que, depois que Catão deu fim á sua milicia, despedindo-se d’elle os soldados com muitas lagrimas, e extendendo-lhe as capas e os vestidos por onde passava, lhe beijavam a mão; e d’aqui começaram os livres a usar esta cortezia; de que logo lançaram mão os pretendentes para grangearem animos e vontades alheias, como Seneca diz na Epistola CXVIII. E logo os imperadores modernos mandaram que seus vassallos lhes beijassem a mão, como escreve Pomponio Leto: e os reis da Hespanha o puzeram por ordenação, como se vê nas leis de el-rei D. Affonso nas leis de Castella livro V, titulo XXV, pag. IV. E d’aqui se derivou o beijo as mãos de V. M., que é confessar-se por escravo ou vassallo d’aquelle, a quem se faz a cortezia.—Essa (acudiu Solino) me custa a mim bem pouco: porque não gasto n’ella mais que [Pg 48] palavras, e essas com as abreviaturas de agora são já muito menos. O que me a mim cansa é o tirar o chapéo, que me fazem de despeza as boas correspondencias de forros, e caireis, a fóra os damnos do feltro; o que Deus sabe e eu o sinto; e não me pesára saber d’onde teve principio este mal que padeço.—O chapéo (respondeu o doutor) era entre os romanos signal de nobreza, e symbolo da liberdade; e quando a queriam significar, pintavam um chapéo, como se vê nas moedas de Claudio, de Antonio e de Galba. E assim quando libertavam aos escravos, lhes davam chapéo, como refere Pierio Valeriano nos seus jeroglificos, livro XL, onde tambem affirma que os escravos, que se vendiam por maus costumes e ruins partes que tinham, os punham em almoeda com chapéo na cabeça, em signal que seu senhor o não queria por escravo, nem se obrivava a fiar sua má natureza. De sorte que o descobrir um homem a cabeça, e tirar o chapéo ao outro, é confessar-se por seu escravo; e a esta cortezia responde a de chamarmos senhores aos eguaes e maiores com que tratamos, e ainda os inferiores.—Pois eu vos affirmo (disse Solino) que a muitos tiro o chapéo, de que não quizera parecer escravo; e esses m’o fazem trazer tal, que parece dos que o são. Comtudo me fizestes mui grande mercê em me descobrir essa razão e a de outra cousa em que eu já cansei algumas vezes o pensamento, que era saber o porque os chucarreiros se cobrem deante dos principes, e, sendo gente tão vil gosam de tão grande preeminencia; e agora entendo que deve ser por estarem no andar dos escravos, que se vendem por ter más manhas, que se vendem com chapéo para serem por elle conhecidos.—Mais me parece a mim (acudiu D. Julio) que é pelo pouco caso que se faz da sua cortezia; ou porque se entenda que, assim como tem aquella liberdade, tem outras para falarem o que não é licito aos homens cortezãos bem disciplinados. Porém não sei a causa, porque nos esquecemos da cortezia a que chamam cumprimentos, que n’esta edade tem chegado á mór perfeição de encarecimento que póde ser.—Nisso (disse Feliciano) se acredita ella muito pouco, e menos os que usam muito d’elles; que á falta de verdades e de obras, se introduziram no mundo os cumprimentos, que são um [Pg 49] engano desaforado de toda a jurisdicção; conforme ao rifão que diz, que palavras de cortezia não obrigam a pessoa.—Parece-me (tornou D. Julio) que tornamos á sentença, com que se começou a pratica, em quanto diz que falar bem val muito, e custa pouco: o que á letra se entende dos cumprimentos, pois que custam tão pouco, que ninguem por elles fica obrigado.—Não digamos mal d’elles (disse Solino) que são a melhor cousa do mundo, salvo que perderam reputação como as sardinhas, que, por as haver sempre e custarem baratas, as não estimam; e não era a materia dos cumprimentos para ficar de fora n’esta occasião.—A noite (respondeu o doutor) é a que não basta a tanto; e n’esta me não atrevo eu a vos acompanhar mais: e assim me haveis de dar licença que me recolha.

Com isto se levantaram todos, e deram boas noites; e, depois de recolhidos, gastaram em o desejo da que se seguia o mesmo espaço que d’aquella poupavam; que muitas vezes a recreação dos sentidos vence a necessidade do repouso que os suspende.


DIALOGO XIII
DO FRUCTO DA LIBERALIDADE E DA CORTEZIA

Tendo Feliciano e seu companheiro por cousa sem duvida que se havia de tratar a materia dos cumprimentos a noite seguinte; e que já d’aquella ficavam encetados para se haverem de proseguir; se aperceberam de exemplos, historias e razões mui escolhidas, com que lhes pareceu que deixariam a perder de vista os cortezãos velhos, em cuja mocidade é certo que se usa menos d’esta alquimia de palavras fóra da tenção mental de quem as offerece. Com este fundamento se chegaram ao outro dia com muita confiança: e juntos os amigos, disse o soldado:—Foi para mim tão saborosa a conversação da noite passada, que até a lembrança d’ella antepuz ao repouso; e sem poder entrar em o do somno me lembrou uma historia famosa que succedeu a um capitão nosso portuguez n’aquellas partes do norte, procedida de uma cortezia sua bem empregada, que lhe rendeu graça com as damas extrangeiras [Pg 50] e naturaes, inveja nos companheiros, e nos contrarios, gloriosa fama com louvor, e honra da nação portugueza. E como algum dia der logar o nosso exercicio, a hei de contar n’esta companhia em prova do muito preço e valor, que tem a cortezia com a gente generosa e illustre.—Certo (disse o doutor) que será bem errada cousa dilatarmos esta historia para mais tarde; que, posto que a todo o tempo as vossas o gastam mui bem aos ouvintes, agora tem ella o seu, e sahe bafejando á mesma materia que temos entre as mãos, maiormente que, como seja em favor e honra do nome portuguez, não consentirá o sr. D. Julio na tardança.—Antes (respondeu elle) se não accudíreis com tanta pressa, me quizera já queixar da dilação: porque, por a materia, por a historia, e por ser o sr. Alberto o que a ha de contar, obriga por mil caminhos o meu desejo; e do d’estes senhores tenho a mesma opinião.—Não é errada (disse Feliciano) no que pertence á minha escolha.

E porque todos vieram na mesma vontade, começou o soldado:

“Um capitão portuguez, que nas guerras do Norte com singular esforço fez seu nome conhecido no mundo, e sua fama immortal na memoria d’elle; e que não representava menos na presença de sua vista, do que dava a conhecer a experiencia do valor de seu braço, com as mais partes de juizo, e galanteria, que pode desejar um cortezão; cessando por razão da entrada do inverno o exercicio da guerra, escolheu, ou lhe coube em sorte, para alojar as suas companhias, um districto das terras do inimigo, que eram aldeias sem defensão. Acertaram estas ser de uma senhora flamenga, donzella de muita qualidade; a qual vendo o damno sem reparo, que a seus vassallos se apparelhava, além de com a assistencia dos Hespanhoes perder o interesse das rendas que colhia, e de que se sustentava; não sabendo que meio tivesse contra este mal, lhe veiu á imaginação de com as armas, mais poderosas por brandura, que por rigor, conquistar a cortezia do capitão, de cuja liberalidade e nobreza estava bem informada e satisfeita: e fiando de uma donzella, e de um rustico mensageiro o segredo do que queria, lhe mandou uma carta, que vinha a [Pg 51] comprehender as razões que se seguem:

“Se o valor e grandeza de vosso animo vence a cubiça e crueldade de inimigo, confiada estou que o não queiraes ser de uma dama illustre, cujo dote, pelos successos da guerra, poz na vossa mão a ventura: e pois o ganho de me despojardes d’elle é tão pequeno, que nem basta para agazalhardes bem os vossos soldados; perdoae antes a essas fracas aldeias com brandura, havendo que ganhaes com ella o coração de uma mulher nobre, que em quanto viver vos ficará captiva (trophéo differente do que se pode esperar de um rustico alojamento), e pois de quem sois, e da fama que vos abona e engrandece se não espera que queiraes perseguir a uma dama rendida a vosso nome, dae-me liberdade para que em o de meus vassallos, para quem a peço, vos offereça os mantimentos, que ha n’esse pobre senhorio; que então será mais vosso, quando eu o possuir com o favor e mercê, que de vós espero, etc.”

O capitão, que, além do valoroso animo que tinha, sabia conhecer o muito que em semelhantes lanços se ganhava; lendo a carta se alegrou por extremo, como quem achara occasião de se mostrar gentil-homem a tão illustre e discreta senhora: e traçando primeiro o como melhor poderia responder com effeito a seus rogos; mandando vestir o rustico que trouxe a carta, e fazendo-se-lhe o agazalho e tratamento que, por quem o mandava, lhe era devido, sem respeitar a incommodidade do que para os seus não tinha, respondeu em maneira semelhante:

“Ainda as armas me não deram maior gloria que esta ventura: porque tenho por tão grande a de vos servir, que estimára em menos dominar um grande senhorio da terra, que ficar agora por guarda e defensor das vossas, as quaes tomo tanto á minha conta, que não sómente lhe tirarei a oppressão dos soldados que lhe causavam receio, mas farei que nenhuns outros lhe possam fazer offensa. Perdei, senhora, o cuidado d’ella; e crêde que saberei estimar o vosso dote mais que a propria vida. E se á custa d’ella quizerdes conquistar bens da fortuna, que egualem o preço [Pg 52] das graças que vos deu a natureza, elle será mais copioso, e eu não ficarei menos satisfeito. Por as mercês, que me offereceis, vos beijo as mãos; porém n’ellas as renuncio; porque mais quero parecer a estes companheiros contrario vencido, que amigo obrigado.”

Não se satisfez o capitão com responder tanto a gosto d’aquella dama; mas ordenou juntamente que, quando tivesse a carta, lhe chegassem as novas do que por a sua fazia; e para isto escreveu a um capitão, que alli perto se alojára; do qual tendo licença, se foi para elle com os seus soldados, aos quaes com regalos, vantagens, favores, e cortezias ia satisfazendo a falta do alojamento que deixaram. Soube isto a dama, cujo nome era Floriza; e vencida do primor da obra, e das palavras da carta do Luzitano, o começou a amar por informações que cada hora lhe trazia a sua fama; que estas costumam a ser mais favorecidas, que as da presença. Esta desejava ella de vêr extranhamente; porém a difficuldade de contrario lh’a fazia impossivel. Accommetteu por vezes fazer-lhe presentes, a que elle nunca deu logar; antes n’aquelles, que libertára, havia poucas pessoas que não experimentassem favores e boas obras do capitão, todo o tempo, que durou a visinhança do seu alojamento. Passado o inverno, tornaram a continuar as guerras d’aquella fronteira, muito mais intricadas e perigosas, que as que haviam precedido: e como n’ellas o capitão buscava sempre as occasiões de maior risco; porque o seu esforço o punha sobre o animo dos mais guerreiros; na defensão de um posto, que lhe quiz ganhar o inimigo, ficou elle mui mal ferido, porém o contrario desbaratado, e com muitos soldados menos. Chegou a fama do successo á agradecida senhora, que o sentiu por extremo; e desejosa de fazer algum, com que manifestasse a pena que tinha de seu damno, determinou de (com salvo conducto) passar ao campo contrario a o visitar: e havida a licença, sem levar comsigo mais que duas creadas, atravessou em um coche o arraial. Sendo d’isto avisado o capitão, preveniu os seus soldados para com bellicas alegrias receberem e festejarem a sua chegada. E mandando entrar algumas companhias de guarda, lh’a fizeram a ella com grinaldas de fogo sobre [Pg 53] os morriões, e com bombas em os piques, que parece que ardiam até a empunhadura da manopla; e outros foguetes e invenções de polvora muito apraziveis. Sahiu ella do coche á porta da tenda do capitão, vestida de uma téla verde, semeada de borboletas de ouro, que lhe estava muito bem; porque dava graça á neve do seu rosto, que com a afronta d’aquelle atrevimento se enchera de rosas encarnadas; os olhos tão alegres, que parece que se vinham rindo das estrellas, como os cabellos o poderam fazer do sol, se elle já não estivera escondido de pura inveja. Sobre elles trazia uma rede de prata, cujos laços se rematavam com perolas á maneira de camarinhas; e da parte esquerda tres plumas altas, uma branca e duas encarnadas, presas a um camafeu: sobre os pensamentos das orelhas rosas de flôres perfiladas de ouro, e pendurado em cada uma um Cupido, que quebrava o arco sobre um diamante; no pescoço uma volta pequena com pontas de aljofares muito miudos, e uma gargantilha de uns passarinhos de ouro com os peitos de esmeraldas. As creadas vestiam de setim amarello gualde, com guarnição de prata. O Portuguez, posto que não quizera mostrar descuido no que convinha para se entender, que no ornamento militar, e cortezão da sua pessoa, e tenda não faltava, como estava ferido, e incapaz de se valer das galas; converteu tudo em pavilhão rico, armação custosa, e trophéos de armas, que faziam a tenda muito agradavel, e auctorisada. D’alli com grande acatamento e inclinação, e com os olhos cheios de alvoroço festejou a boa chegada da formosa e discreta Floriza, que com as palavras accrescentou infinitas graças á sua formosura. Durou a visita grande espaço com mil finezas, e extremos de cortezia. E posto que o capitão com as feridas estava desfigurado, representava no brio e modo de seu parecer a gentileza de sua pessoa, sem a desculpa, que uns olhos affeiçoados offerecem com a parte offendida. A dama se lhe rendeu de maneira, que o mostrava na vista, empregando na sua muitas vezes os olhos. E por não ter mais tempo, suspensos os que esperavam vêr o successo da visita, lhe deu fim com nova graça: e voltando por onde viera, achou a mesma guarnição, e ordem nos soldados, que quando entrára. Logo entre elles e nos mais do exercito se praticou a causa d’aquelle excesso e [Pg 54] novo extremo de cortezia, havendo que a que o capitão tinha com ella usado o merecia. Porém não fez termo aqui o seu desejo; que depois de ausente, mandando por muitas vezes a visital-o na convalescença das feridas com que o vira, já de todo livre d’ellas, lhe escreveu Floriza, dizendo que, pois o vira em tal estado, e n’elle lhe parecera tão bem a sua gentileza, lhe pedia um retrato seu, tirado no campo em que elle fôra mais gentil-homem, e se contentára mais de suas partes. Elle, que em nada perdia o cuidado de se mostrar cortez, se mandou retratar no estado em que recebera a sua visita: e n’este lhe mandou o retrato, escrevendo-lhe que, só quando merecera a ventura de a vêr, se tivera por galhardo, e gentil-homem; e que não sómente n’aquella occasião, mas em todas as mais, que se lhe representasse aquelle bem, seria de si contente, e satisfeito. E tambem procurou logo ter da mesma senhora outro retrato no mesmo trajo, com que o viera visitar, tirado por o natural, com muito artificio, sem ella ter noticia d’esta diligencia, senão depois que era manifesto que o capitão o tinha na sua tenda mui venerado. E sobre um e outro se tratavam de recados com muitas gentilezas e cortezias, com a fama das quaes se accrescentou tanto a formosura e discrição de Floriza, que d’alli adeante era mais conhecida e requestada assim dos nobres do exercito, como dos senhores comarcãos, com que as suas terras avisinhavam. Sobre todos os mais entrou nesta affeição um gentil soldado filho do conde de Hieme, fidalgo, de cujo esforço, brio, e gentileza havia no campo geralmente muita satisfação, e em muitos soldados nobres não menor inveja. Este se determinou que na primeira occasião, que houvesse de assalto, havia de fazer mais do possivel por se encontrar, e provar as armas com o hespanhol, a quem Floriza mostrava tão declarada affeição. Porém como esta escolha havia de ser da sorte, e não da sua vontade, succedeu que a primeira occasião, que houve, de poderem vir ás armas, foi sobre o contrario querer ganhar um posto para se entrincheirar n’elle, e fazer sombra a uma mina secreta, que para seus intentos ordenava. Foi revelado este ao general; e com um dissimulado apercebimento tomou ás mãos os inimigos, entre os quaes captivou o gentil soldado, que se desejava [Pg 55] assignalar n’aquella fronteira escurecendo a fama do Luzitano, a quem invejava. Elle, que já sabia d’aquella pretenção, fez muita diligencia para que ficasse depositado em seu poder; o que alcançou facilmente. E tratando-o logo com termos de excessiva brandura, e affabilidade, o tinha mais como hospede mimoso, que como preso vencido. De sorte que enleado elle lhe perguntou a causa, porque lhe fazia tantas mercês, podendo-o tratar como seu escravo, e ao menos do modo que o costumam fazer os capitães aos mais vencidos. “Eu (lhe disse o portuguez) vos trato como companheiro, por saber que, fóra da obrigação de Marte, nas de Cupido servimos ambos a um senhor: e sei que ainda n’esta egualdade me tendes muita vantagem, porque alcançaes na presença o premio de vossos extremos; e eu ausente faço só emprego de meus desejos; e por esta via me podera obrigar a inveja a má tenção, que em vós já fez o ciume. Porém como da senhora Floriza não pretendo mais, que ser ella amada, e servida como merece; e sei de vossa qualidade, e valor que sois digno sujeito da sua formosura, como a cousa já sua vos quiz antes offerecer a casa, que o campo: n’esta estareis servido, não como mereceis, e eu desejo, mas á medida das incommodidades da malicia, de que já tendes experiencia.” Não sómente espantado, mas corrido ficou o illustre mancebo do bom termo e gentileza do capitão: e pondo os olhos n’elle com o animo mais affeiçoado, que o com que partira do arraial, lhe disse: “Tão alcançado estou do meu engano, quão vencido e obrigado de vossa cortezia: e já, senhor, não desejarei liberdade d’esta prisão mais, que para ser mais vosso quando fôr meu: e agora vejo quão bem adivinhava o meu receio em me fazer que temesse a vossa competencia, só por o que a vossa fama lhe descobria; mas agora, pelo que sei da presença, não só confessarei o muito que ella acredita, mas que deve ainda muito mais ao vosso valor, e d’elle serei eu a mais fiel testemunha ante a senhora Floriza.” Eu, “senhor soldado (respondeu elle) no serviço d’esta senhora não pretendo mais, que, conhecendo-a por tal, não faltar a seu credito, honra, e satisfação, e conhecer ella de mim, junto com esta verdade, que não sou ingrato á mercê que me faz. E muito melhor satisfaço a esta obrigação em lhe gabar o muito [Pg 56] que vos deve, e o quão acertada será a sua eleição, escolhendo-vos por esposo, que em me mostrar competidor com vossos pensamentos. Com este presupposto podeis usar da minha vontade, e companhia sem receio, nem ciume. E se vós tiverdes confiança, e ella me der licença que eu seja terceiro de se effeituar esta pretenção, d’aqui prometto de fazer extremos por facilitar brevemente o meio de vossa liberdade.” O soldado cada hora mais vencido, e devedor a tão bom procedimento, se lhe lançava aos pés, sem saber cousa que respondesse n’este mesmo intento. Tratou logo de sua soltura; a qual se fez brevemente com todos os mais, que n’aquella occasião ficaram presos; trocando-se por outros hespanhoes, que tambem havia no campo contrario. Por elle e em seu favor escreveu á formosa e agradecida Floriza, que com esta fineza de nova cortezia dobrou sua affeição: e vendo que elle era o que lhe havia escolhido tal esposo, o acceitou por esse, ficando ambos unidos em aquella fiel amisade do cortez Lusitano, que sempre conservaram, posto que nos limites de contrario a respeito de seu rei; que estes são os poderes da cortezia, que não só vence e obriga os mais barbaros animos do mundo, mas faz concordia e firme liança em corações tão inimigos.

—Excellente me pareceu a historia (disse o doutor) e ainda mais porque nos dá motivo para uma questão, que pode fazer esta noite mais agradavel, se a estes senhores parecer tão bem o meu voto como a historia do sr. Alberto. A isso responderam todos que o queriam seguir e obedecer: e, juntamente gabaram com muita satisfação aquelle exemplo de cortezia: e pedindo ao doutor que continuasse o que queria dizer, elle o fez em a maneira seguinte:—Pois são tão grandes os interesses da cortezia, e com exemplos, e razões tão approvado entre os bem nascidos o emprego d’ella, parecia-me a proposito esta pergunta, e é: “Com qual de duas cousas se obriga e grangeia mais o animo dos homens, se com a liberalidade, se com a cortezia? e os effeitos que cada uma d’ellas faz para este fim?” Bem pareceu aos amigos a questão: e depois que a approvaram, accudiu o prior:—Pouca duvida me parece que pode haver em apartar estas virtudes; porque, a meu parecer, a cortezia [Pg 57] é sómente um effeito da liberalidade: e assim fica correndo melhor a pergunta d’este outro modo: Qual obriga mais os animos agradecidos, se o liberal da fazenda, se o que o é na cortezia? Porque a liberalidade é um habito do animo, que o move a dar aos benemeritos o que está na mão do liberal, ou pedindo-lh’o outrem, ou offerecendo-o elle: e isto pode ser dinheiro, cortezia, honra, logar, e outras cousas muitas.—Boa é essa razão (respondeu elle) porém com os vossos mesmos livros hei de sustentar a minha; que, conforme define Santo Agostinho, liberal é o que dá sem obrigação de lei, nem de promessa, e sem esperança de satisfação do que deu. E Santo Thomaz diz que a liberalidade é uma virtude, que sabe dispender as riquezas em bom uso. E Aristoteles de todo desempeça a questão, dizendo que é virtude, que com o dinheiro, e fazenda se mostra benefica aos homens. E d’este modo não pode a cortezia ser effeito da liberalidade; que ha muitos cortezãos pouco liberaes, e alguns liberaes pouco cortezãos.—Posto que me atrevo a muito (disse Feliciano) hei de dar entre as vossas minha razão com a de alguns auctores, que chamaram á liberalidade humanidade: porque verdadeiramente as obras de cada uma parecem muito eguaes, se ellas o não são; porque accudir ao pobre, dar ao benemerito, ser affavel, brando, e piedoso é humanidade; e os mesmos effeitos obra o liberal. E se a humanidade é a mesma cousa que a liberalidade, esta é a cortezia. E não o comprova menos o que escreve Aristoteles quando diz que a liberalidade pelo affecto se chama benignidade, e pelo effeito beneficencia: e vem a ser ambas uma mesma virtude.—Isso não (tornou o prior) mas diz Santo Agostinho que são companheiras liberalidade, humanidade, e clemencia. E por esta auctoridade sua, fundado nas mais razões que me ajudavam, tinha a opinião que o doutor não consente.—Os exemplos (tornou elle) nos mostrarão o engano; e a differença descobrirá a verdade. Primeiramente, o liberal, posto que o seja com a limitação que os auctores escrevem, que é dar ao necessitado, e benemerito o que ha de mister, sem que haja de sentir em si a falta do mesmo que deu; todavia fica sem a fazenda, ou dinheiro, que tem dado; e no que recebe fica viva a obrigação e a divida do que recebeu: e o cortez nem fica sem a honra que deu, nem o a quem honrou [Pg 58] a fica devendo, sendo digno da mesma cortezia, e mostrando-se a ella agradecido. Pela mesma maneira tambem a humanidade nem é cortezia, nem liberalidade; porque ás vezes consiste em perdoar, e não já em dar, e em compadecer-se de males alheios, sem fazer n’elles despesa alguma; e em outros actos semelhantes: e d’este modo me parece que está bastantemente mostrada a differença, para tratarmos agora da que faz o cortez ao liberal em vencer e obrigar os animos agradecidos.—Parece-me (disse Leonardo) que da verdade da differença está dito o que baste, para que já o sr. D. Julio tome á sua conta dizer qual faz mais amavel, servido, respeitado e famoso a um cortezão, se o fazer cortezias, se o dispensar riquezas? E quem de cada uma d’estas cousas tem tanto exercicio, não lhe ha de faltar experiencia para tratar d’ellas com muitas vantagens.—As que me daes (tornou elle) quizera eu acreditar e merecer; e n’esta materia me vinha melhor ouvir para aprender, que falar para me escutarem: mas ainda que fique corrido, quero ser obediente. E tratando primeiro do liberal, me parece que o pode ser de duas maneiras; ou liberal por condição, e natureza, ou por prudencia, e entendimento; que é o que costuma a encher os vasios, e supprir as faltas d’ella. O liberal por natureza poucas vezes guarda a regra da vossa definição: porque não sabe negar, nem tratar de escolher; e mais consiste o acto da sua virtude no que lhe pede, que n’elle que ha de conceder.—Esses liberaes (disse Solino) são perigosos, e antes lhes chamara prodigos: porque ás vezes entornam o que haviam de dar, empregando-o em sujeitos depravados.—Com tudo isso (respondeu Pindaro) não faltou um auctor grave, que disse que o liberal não é obrigado a essa escolha: antes que fazer mercês a muitos, ainda que indignos, é obrigal-os a que as mereçam.—Tambem (replicou elle) quereis dizer que não será prodigo dando o que ha de mister.—Ao menos (tornou Pindaro) não direi que deixou de ser liberal: e Pomponio diz que é proprio do liberal não olhar, nem respeitar a si mesmo, senão aos que ha de accudir.—Pois a esse (disse Solino) almagrai-o por ladrão, ou por mentiroso: porque o que dá mais, do que pode, sem respeitar o que a si se deve, é necessario que furte a outrem para o poder [Pg 59] fazer; e o que promette, ou concede mais do que tem, é forçado mentir a quem prometteu. De sorte que com estes dois vicios mal pode caber a virtude.—Eu (proseguiu D. Julio) darei á vossa duvida satisfação, repugnando um pouco á minha natureza por accudir á doutrina, e verdade dos escriptores; que pelo meu voto, para dar a quem o merece, se pode roubar a quem sem merecimentos o possue. E tornando ao meu ponto, o liberal por natureza quer fazer bem a todos, e não negar a nenhum dos que lhe pedem; mas temperando com a prudencia a condição, dá segundo o que tem: escolhe primeiro os que merecem, e o tempo e occasiões, em que aproveite o que dá. O que é liberal por entendimento, muitas vezes faz mercancia da liberalidade; e assim, posto que com ella obriga mais, lhe elevem menos: porque se muitas vezes a emprega nos que merecem quasi todas, busca os que hão de ser publicos pregoeiros do que deu. D’onde nasce que ha muitos senhores, que aos benemeritos faltam com as mercês, pelas empregarem em o chucarreiro que as publique, no espadachim que as encareça, no farçante que as mostre, no extrangeiro que as passe de um para outro reino, e ás vezes na dama que as assoalhe. O primeiro se faz amavel a todos; o segundo famoso a muitos; porém um obriga melhores animos, e adquire mais certos amigos que o outro; um compra corações, o outro enganos; porém ambos com a liberalidade prendem a vontade dos homens. O que se viu na sua miseria favorecido põe facilmente a vida por quem lhe deu a fazenda; onde ouve falar n’elle, o acredita: onde vê ir contra sua honra, o defende; na sua presença se humilha; ouvindo o seu nome, se alegra; e servindo-o se deleita e satisfaz. Para isto me não pareceu fraco conselho o que um auctor deu em culpa a um principe nosso. Porém serve aos liberaes por entendimento, e que não tem riquezas demasiadas para o poderem ser. E a culpa é que dera a muitos, e que a nenhum dera muito. E se isto no rei foi vicio, a mim me parece que nos senhores de menor logar é acertada cautella: porque basta que um tenha recebida uma obra boa para se obrigar a dizer bem de quem lh’a fez; e com muitas empenhando a muitos, terá a todos por devedores, e pregoeiros de sua largueza: tirando os de tão má natureza, que com a [Pg 60] peçonha da lingua corrompem o bem que lhe fizeram: que para estes nem bastam os bens de Cresso, nem a condição de Alexandre.

E deixando exemplos antigos e modernos, com que posso provar o muito que póde a liberalidade para atar, vencer e adquirir animos agradecidos: com tudo me parece que tem muitas vantajens o cortez ao liberal: e a razão é; que a gente, que se obriga do soccorro do interesse, é de muito menor condição, que a que se cativa da cortezia; e quanto é maior ganho ser a esta amavel, que a outra acceito, tanto vence a cortezia á liberalidade para o effeito que dizemos. O pobre, o humilde, o necessitado, o perseguido, o homiziado, o vagabundo e o taful estimam mais vezes a fazenda que lhe dais, que a cortezia que lhe fazeis: porque o seu ponto não é de honra, senão de interesse. Mas o honrado, o nobre, o cavalheiro, o cortezão, o brioso, o discreto e o rico antes quer que o honreis, que não que o enriqueçais. Os grandes com cortezias roubam os corações dos menores, quando com maior liberalidade d’ellas os favorecem: porque o animo generoso, posto que sente muito a estreitesa propria, mais lhe custa o despreso alheio, por não perder a opinião que de si tem á conta do com que lhe faltou a fortuna. Contam que um principe hespanhol tinha um creado seu, a quem queria muito, e de cuja fidelidade confiava mais, conhecendo-o por verdadeiro, fiel, honrado e brioso: e encarecendo-lhe o principe a confiança que d’elle tinha, lhe perguntou: N. por que preço me fizereis uma traição? Ao que elle respondeu: A vós, senhor, por nenhum preço; mas por um despreso muito me receára de mim mesmo. De outro ouvi contar que, honrando com favor em publico a um creado seu, a quem não pagava bem os ordenados de seu serviço, e outras dividas caseiras; querendo depois o mesmo senhor fazer a conta d’estas obrigações, lhe respondeu o creado: Vós, senhor, me deveis o com que cuidastes que me pagaveis; e agora vos devo eu dares-me o que me não promettestes, e o que eu tinha em maior estimação: por isso fazei livro novo, riscando as lembranças passadas, que só as presentes o serão na minha memoria, na qual conheço que vos devo muito. De maneira que o que é nobre, ou [Pg 61] tem partes que o sejam, mais abraça a cortezia que o proveito. E certo que até aos senhores vãos, e ambiciosos de serem endeosados está melhor esta liberalidade, que outra alguma: porque é grangearia não só para ser amado, mas para ser buscado e servido: porque sendo amavel por ella a todos, cada um o acompanha, o grangea, o louva, o acredita e deseja de lhe dar quanto tem; porque só tal homem lhe pareça digno de ter tudo. Tambem declaro que o cortez ha de ter a eleição do liberal, para não levar a todos por a mesma medida, mas distribuir conforme a razão os effeitos do dom, que lhe deu a natureza. E tem tal força de obrigar a cortezia, que não sómente a faz ao que a recebe, senão ainda aos que a vêem fazer, por satisfação, por imitação, por inveja, e por outros caminhos. Uma infante n’este reino tinha uma creada de não muita qualidade, porém de tantas partes, gentileza e discrição, que a antepunha a muitas que a serviam com melhor foro do que esta tinha, que era moça da camara. Desejando a senhora grangear-lhe a ventura e graça dos cortezãos, uma vez que viu a sua casa acompanhada d’elles, mandou em publico que lhe chamassem aquella creada, nomeando-a; e que lhe trouxesse papel e escrevaninha. Como isto era officio, que pertencia ás damas, veiu a moça; e esteve parada com o que trazia, esperando que o viesse tomar da sua mão quem tinha a cargo de o offerecer á infante: a qual tornando-a a chamar lhe disse em maneira que todos ouviram: Chegai; que, ainda que o officio seja de outrem, não podeis ter por estranho o que mereceis. E em quanto a moça esteve de joelhos, e a senhora escrevendo, lhe falava com o rosto cheio de alegria, dizendo-lhe entre outras coisas: O intento, que n’isto tenho, posto que logo o não saibas, d’aqui a pouco o virás a saber. Foi assim; que, vendo os cortezãos o caso que a infante d’ella fazia, um de muita qualidade a pediu para sua esposa, e se casou com ella, movendo-se de vêr aquella cortezia, para o que um copioso dote o não obrigára.—Extremamente provastes vossa tenção (disse o doutor) e me parece certo que essa é a verdade, que se ha de ter n’esta materia da cortezia: porque não póde a vileza do interesse egualar-se com a nobreza e magnanimidade da honra.—Galante coisa é (arguiu Solino) [Pg 62] quereres vós temperar todas as panellas, e falar sempre á vontade ao senhor D. Julio, o qual n’esta occasião acudiu por si, para nos culpar a nós: porém elle e vós me dareis licença para que tire á luz uns embargos, que tenho a essa resolução; em os quaes entendo provar que só a liberalidade, no dispender faz amaveis aos liberaes, e aos devedores cativos. E se dizeis que não são estes os nobres; ouvi aos poetas que subiram mais a corda, dizendo que dadivas venciam homens, e obrigavam Deuses: e o rifão diz, que quebram pedras. Boa cousa é a cortezia, mas nenhuma comparação tem com a liberalidade. Falaes-me em quem dá o seu para soccorrer a outrem, no que soccorre ao aperto, á falta, á occasião, e á necessidade: que coisa poz aos homens entre as estrellas, se não o saberem dar? que só isto leva após si os homens, as feras, os animaes e as aves. O outro Plafon andava o seu nome no bico dos passaros pelos outeiros, e coruchéos da cidade de Ephezo, porque sustentava á sua custa as mesmas aves. E vós quereis que o outro, que não lança agua a pintos, só com uma inclinação dobrada, uma mesura rebatida, e umas palavras doces leve as lampas a um liberal? E além d’isto, como póde ser que obrigue e ganhe mais o que emprega menos? e que vença o cortez com uma barretada o que mereceu um liberal com obra tão custosa, como é dispender fazenda? Alexandre, Tito, Fabio, Flaminio, Tullo Hostilio, e outros similhantes, não deixaram assombrado o mundo com sua grandesa, e vencido o tempo com sua fama por cortezes, senão por liberaes: porque a cortezia não satisfaz mais que a vaidade; e a largueza acode ao principal da vida. E de mim confesso, como povo, que antes quero um descortez liberal, que um cortezão miseravel: porque esses cameleões da cortezia, que se sustentam com os ares d’ella, não são tão firmes como cuidais; nem ás vezes falam de fartos; e póde ser que não enjeitáram os comprimentos de contado, e que renunciaram facilmente os da urbanidade cortezã.—Não falta na companhia (disse Leonardo) quem queira defender a vossa parte, e a do liberal: porém uma duvida tenho, e é que esses, que de maior liberalidade fizeram extremos no mundo, todos eram prodigos como Alexandre, Tito, e outros similhantes.—Na dignidade real (disse D. Julio) cabem todas [Pg 63] as grandezas sem a limitação com que tratamos d’esta virtude; que Alexandre dava cidades, e talentos, sem que esses lhe pudessem fazer falta: o que nos menores tem muita differença; porque o modo n’elles sustenta a virtude para que (como diz S. Jeronymo) com a muita liberalidade não pereça a liberalidade: e nos reis e monarcas a tenção acredita a obra, se é feita de arrogancia, e benignidade; porque o liberal sempre acha desculpa para haver de fazer mercês como Alexandre, que a Perilo se desculpa, conformando-se com quem era para não culpar a demasia do que lhe dava: e a Xenocrates, que lhe diz que não lhe são necessarios os cincoenta talentos que lhe manda, responde que, se tem amigos, para elles os ha mister, pois a elle não bastaram as riquezas de Dario para os que tinha. E pelo contrario Antigono, a quem Diogenes pedia um talento, se escuzou dizendo que pedia muito para philozopho; e pedindo-lhe um dinheiro, disse que era pouco para dar um rei. De maneira, que o que o avaro busca para negar, acha o generoso para fazer mercês, que, conforme ao que diz Marco Tullio, são grilhões da liberdade dos homens. E porque é tarde, me dai por desobrigado d’estes.

Com isto se levantáram todos; e Pindaro, e Feliciano o fizeram assás descontentes com a magua dos seus conceitos mal logrados; que quando, depois de escolhidos, não vem a lume, deixam o entendimento arrependido, a memoria queixosa, e a vontade offendida.


DIALOGO XIV
DA CRIAÇÃO DA CÔRTE

Porque todas as cousas de novo na primeira vista contentam mais, e com maior razão a quem vive na aldeia, em a qual a continuação das que se offerecem de ordinario deleitam pouco quando não enfastiam muito: estavam os amigos tão affeiçoados ao irmão do prior pela sua [Pg 64] arte, e bom modo de falar e proceder, que vieram ao dia seguinte muito alvoroçados a o buscar nas horas costumadas, offerecendo-lhe cada um por seu caminho aquelle desejo, a que elle por todos se sabia mostrar muito obrigado. Depois de darem fim aos cumprimentos, que levam sempre a vanguarda n’estas batalhas, lhes disse Pindaro:—Posto que o natural de cada um é a principal parte que o favorece, para em todos os exercicios se melhorar na communicação dos outros homens; nenhuma escola me parece melhor para os bem nascidos, que a milicia. E ainda que me não ensinasse a experiencia esta verdade, claramente a conheço no exemplo de muitos soldados, com que me achei em occasiões; e sobre todos do senhor Alberto, que parece um exemplar, e espelho, em que se pode vêr um perfeito homem de guerra, e de côrte, pelo que de ambas colheu, aperfeiçoando a doutrina d’ellas com a clareza do seu engenho e a disposição, e vantagem de seu entendimento.—Eu desejo merecer (respondeu elle) a boa opinião, com que me honraes deante d’estes senhores, e logo a pago mal com a desacreditar tanto á vista d’elles: pelo que me era necessario accudir a essa falta com nova desculpa, dizendo que ha olhos que de argueiros se pagam; e que mais favorece um engano, que muitas verdades, porque bastava no vosso ter ventura para a alcançar em tão honrada conversação. Porém devo attribuir aos louvores da milicia os de que me fazeis mercê; e d’elles, como soldado, tirarei a minha parte; ainda que tendes tantas, que, quando o sejaes n’esta competencia, terão as lettras muita vantagem ás armas.—Não são de pouca estima os cumprimentos (accudiu Leonardo) se continuar com estes principios o discurso que se pode fazer sobre a differença da creação da côrte, da milicia, e das universidades, que são os tres exercicios nobres, em que os homens se occupam, apuram e engrandecem; e n’elles se pode gastar a noite com muita satisfação dos presentes, pois assim pode cada um saber muitas cousas das que convém ao particular de sua profissão.—Entendo (disse D. Julio) que escolhestes bem, e que vos cabe o primeiro logar para tratar da côrte: ao senhor Alberto o segundo para dizer da milicia: ao doutor Livio o terceiro para falar das [Pg 65] universidades. E se eu n’este voto parecer atrevido, confiança me deu a liberdade da nossa conversação, e o costume dos mais. “Todos approvaram a escolha de Leonardo, e a repartição de D. Julio. Porém Solino não ficou tão satisfeito que se calasse, antes disse para D. Julio:—Vós, por vos forrardes do trabalho, fintastes os outros. E posto que não se pode ir contra eleição tão acertada, se o ensino da côrte se houver de pintar pela tempera velha, e tratar sómente do canto chão, de seus estilos, e gentilezas, ninguem dará melhor conta d’isto que o senhor Leonardo; porque se achou no paço ainda em tempo que eramos troianos, e viu luzir o que agora está cheio de ferrugem. Mas se houver de falar ao moderno, em que é tudo de outra freguezia, receio que lhe fique muito por dizer.—O mesmo receio tenho eu (tornou Leonardo) porém não são os males e bens da côrte tão pouco antigos como vos parece; que já no meu tempo havia os mesmos queixumes de agora: porém ha tanto que dizer d’ella, que de necessidade hão de passar muitos pela malha a quem vive ha muitos annos n’este desvio, e que no remanso do descuido da vida afogou todas as lembranças d’ella; e assim houvera o senhor D. Julio de passar esta obrigação a outrem que dê melhor conta d’ella.—Não faço eu as minhas tão erradas (respondeu elle) que vos desobrigue.” A isto ajudaram todos os presentes; e Leonardo começou d’esta maneira:

—Quatro maneiras de exercicios ha na côrte, que para todas as cousas civis fazem um homem politico, cortez e agradavel aos outros. A primeira é o trato dos principes, e a communicação das pessoas que andam junto a elles: n’esta consiste o principal do a que chamamos Côrte, que é conhecimento d’aquelle supremo tribunal da terra, do rei, ou principe a quem pertence mandar, como a todos os inferiores obedecer na conformidade das leis, por que se governam. Traz isto o estado e serviço do mesmo rei, e dos seus, a obediencia, a cortezia, a inclinação, a mesura, a discrição no falar, a policia no vestir, o estylo no escrever, a confiança no apparecer, a vigilancia no servir, a gentileza e bisarria, que para os logares publicos se requer. O trato do principe no paço, na mesa, no conselho, na caça, nos caminhos e occasiões, como se grangeam os validos, se visitam os grandes, e [Pg 66] como se hão de haver os cortesãos, para communicar a uns, e outros. O segundo exercicio é o decóro, e veneração, com que se servem as damas; e d’este se alcança todo o bom procedimento, e perfeição cortezã, que pode desejar o homem bem nascido: porque sobreleva muito do serviço real, e com muitas vantagens faz a um cortezão discreto, cortez, advertido, galante, airoso, bem trajado, extremado na cortezia, no dito, na graça, no mote, na historia e galanteria: este o faz ser bom ginete nas praças, bem visto nas salas, bem ouvido nos saraus, e bem acreditado nos ajuntamentos. E como o serviço das damas é o mais apurado exame para se conhecerem sujeitos honrados, ellas graduam e auctorizam os homens; e do seu voto toma a fama informações para os fazer grandes na opinião de todos. O terceiro exercicio é a communicação dos estrangeiros: porque como os que assistem nas côrtes ou são homens de muito sangue e qualidade, ou de muita prudencia e valor, ou de muita confiança e riqueza, sempre d’elles se colhe uma doutrina mui avantajada para o cortezão, que é saber as gentilesas de outras côrtes, as leis de outros reinos, a belleza e serviço de outras damas, o estylo de outros reis, e finalmente os costumes e institutos de outras gentes. Esta variedade deleita e enriquece o entendimento e a memoria do que é bem nascido. O quarto exercicio é o soffrimento e diligencia dos pretendentes, que, para tirarem fructo de seus serviços, acções e requerimentos, se recolhem ao amparo dos grandes, ao favor dos ministros, á companhia dos criados, e se sujeitam a todos os encontros e avisos, que padece quem pede, sustentados no doce engano de uma esperança, que lhes sáe muitas vezes mentirosa. Sobre estas quatro maneiras de exercicio de côrte poderei discorrer o que baste para vos enfadar este serão, se o doutor, como costuma, interpozer a auctoridade de suas lettras na falta de minha sufficiencia, e Solino com addições de sua graça a der a minhas advertencias.—Essa humildade (tornou elle) como é demasiada, argue soberba, quando a respeito do doutor não seja adulação. Vós podeis falar ás duas mãos como em jogo de bola, e buscaes padrinho! E com tudo isso, se eu vir azas, por onde pegue, direi meu dito.—Assim o faremos todos (disse o doutor) e com isto proseguiu [Pg 67] Leonardo:—A pessoa real é a cabeça da republica, como escreve Plutarco; e nenhuma cousa na terra ha sobre ella mais que a lei, a que deve obedecer; e ella fica sendo lei para todos os inferiores para a imitação dos costumes e virtudes, que no principe estão mais certas que em outra pessoa particular, de maneira que fica sendo uma lição viva e continua, para os que assistem em sua côrte, na religião, na observancia das leis, na excellencia das virtudes, na reformação dos costumes, na moderação das paixões, na justiça, na clemencia, na liberalidade, na modestia, na magnanimidade e na constancia. E tanto é melhor a doutrina do seu exemplo, quanto de mais alto logar ensina a todos. E posto que houve e ha muitos reis (a que convém mais o nome de tyrannos) a que sua depravada natureza desvia d’estas condições reaes, que juntamente com a corôa, e sceptro se lhe communicam: pela maior parte os reis se sujeitam mais á lei e á razão, que os que, obrigados de forçoso poder, não podem evitar o castigo de seus erros. E ainda o mesmo nome e superioridade de rei lhes põem em certo modo condição de serem os mais perfeitos entre os homens, para os regerem e mandarem; que para o primeiro se requer muita prudencia, para o segundo grande auctoridade.—Os reis por eleição (disse o doutor) d’essa maneira o começaram a ser no mundo; e pela excellencia de suas pessoas alcançavam o titulo que agora compete aos reis por nascimento. Os Persas não podiam eleger rei, que não fôsse mui douto na arte magica, como escreve Tullio no 1.º de Diviniatione. Os Médos escolhiam por rei, como conta Strabo, liv. II, o que aos outros excedia em forças naturaes. Os Catheos, povo da India, como escreve Deodoro, liv. 17, não subiam á dignidade real, senão o que em gentilesa e formosura de corpo excedesse aos mais: e a mesma eleição faziam os de Meroe, como escreve Pomponio Mela. Os de Libia davam o titulo de rei ao que na velocidade do correr deixasse atraz a todos. E, como conta Herodoto, os Gordios tinham por digno do mando e titulo de rei o que fôsse mais grosso o comprido, e tivesse o pescoço mais levantado, deduzindo da grandeza do corpo a excellencia do animo, que para exercitar tão grande nome lhe era necessario: de modo que todos estes e outros povos entendiam que o [Pg 68] ser rei convinha ao homem mais excellente n’aquella parte, que elles julgavam por melhor de todas, segundo a opinião em que viviam.—Esses (respondeu Leonardo) imitavam a natureza na superioridade que deu aos animaes por forças, velocidade e ligeireza. Porém entre os que são governados por razão, e policia, parece que era devido o nome de rei ao que no entendimento fizesse vantagem aos outros homens. E assim Platão chamou bem-aventurada á republica, onde os philosophos reinassem, ou os principes philosophassem. E Seneca disse que era edade de ouro a em que os sabios reinaram. E Vegecio, no liv. 1 da Milicia, escreve que nenhuma cousa convém mais ao rei, que a sabedoria; pelo que Salomão não pediu a Deus outra cousa para reinar.—É verdade (disse o doutor) porém os reis, que succedem aos reinos por herança, não podem ser eguaes no entendimento e prudencia; mas com a dos que por elles governam vem a alcançar esta perfeição; d’onde nasceu o proverbio antigo de Atheneo que o rei tem muitos olhos, e muitas orelhas, pois ouve, e vê pelos ministros que governam o seu estado: E como diz Tullio, se é real cousa mandar, não o é menos escolher doutos e famosos varões, por quem se governem: e ainda os reis, que foram mais sabios (ou por este respeito tidos por esses) procuraram ter comsigo os mais afamados homens de seu tempo, de cujo conselho se valessem. Anthioco mostrou a Hannibal quanto se presava de favorecer os sabios em sua côrte. E Theodozio o Magno dizia que o rei quando comia, caminhava, governava, e se retirava, se não havia de achar sem homens sabios: o que tambem Lampridio escreve de Marco Aurelio. E d’este conhecimento nasceu a Dionysio mandar a Lydia a buscar o philosopho Platão: e aos reis do Egypto mandarem por seus embaixadores buscar o poeta Menandro. Por esta razão Frontino Filosofo foi tão grande pessoa na côrte do imperador Antonino; e Dion Sofista na de Trajano; Euripides na de Archelau rei de Macedonia; e outros muitos, que não bastara esta noite para os contar. E assim, como tendes mostrado, sempre a pessoa real é uma lição viva que por si, e seus sabios, e ministros está ensinando a todos os inferiores. Além do que o mesmo rei, por necessidade, e quasi por força, ha de ser nos costumes mais puro que todos os seus, [Pg 69] por viver mais registradamente que elles, constrangido de sua mesma dignidade; o que mostra bem Xenofonte na disputa de Hieron tyranno com Symonides sobre a vida regia, e particular: e tambem as mesmas leis os obrigam mais a elles, que aos particulares. Os reis do Egypto, como conta Diodoro Siculo, por lei não podiam beber mais que uma certa medida mui limitada, de que não passavam, porque com algum excesso não fizessem desordens. Os Athenienses, segundo affirma Alexandre de Alexandro liv. 3, tinham lei, que condemnava á morte o rei, que com o demasiado vinho se alienasse. Os Indios, de que escreve Atheneo, cujo rei davam em guarda a certo numero de donzellas, ordenaram que, se algumas d’aquellas o achasse com vinho demasiado fóra de seu juizo, e o matasse, esta fôsse desposada com o successor, a quem vinha o reino. Os Macinenses, como o seu rei fazia algum erro no governo, não lhe davam de comer aquelle dia. Os Persas faziam ao seu rei estar escondido no interior das casas, para nem vêr mulheres, nem ser muito tratado dos homens, como conta Herodoto liv. 3. De maneira que por razão, lei e força os principes são mais observantes das leis divinas, e humanas, mais sobrios, temperados, recolhidos e honestos. Além de que, sendo menos vistos, são mais respeitados, como ensina Aristoteles no livro do Mundo, em que conta do rei de Persia, que estava encerrado em um castello com tres muros, e que se não mostrava senão a poucos de seus amigos: como tambem dá a entender a Escriptura, falando da prerogativa dos sete sabios da Persia, que viam ao seu rei, e que cada dia tinha novas de todo o seu imperio.—Deixados (disse Leonardo) esses exemplos tão antigos, e costumes tão louvaveis e excellentes da gentilidade; os principes por creação, e natureza são mais benignos, liberaes, magnanimos, justos, animosos e verdadeiros, que os outros homens, e dotados pela maior parte d’aquellas virtudes, a que por excellencia chamamos reaes. E como é proprio dos homens de bom nascimento e inclinação aspirarem ás cousas mais altas, e desejarem vantagem e melhoria dos outros; tendo diante de si, e no alto da vista um espelho tão claro como é o seu principe, a elle se estão vestindo e enfeitando d’ellas; primeiro e melhor os que o vêem de mais perto; e [Pg 70] depois os que por communicação d’estes participam da mesma doutrina.

Ao rei por assistencia lhe ficam mais perto os favorecidos, e officiaes de sua casa, que os grandes, e titulares. Porém estes, como primeiros por dignidade, se preferem a todos. D’estes se aprende o logar que tem na casa real, nas côrtes, nas jornadas, na guerra e em outras occasiões: a familia de que são, o appellido que tem: se os seus titulos são de juro, se de mercê: e os bens que tem de patrimonio, e da corôa: logo o que toca aos officios maiores do rei, em que occasiões não faltam, e nas em que precedem uns a outros: e assim os filhamentos, e moradias do mordomo mór: as entradas do porteiro mór: os pertos do camareiro mór: as praças, provimentos, e penas do monteiro mór: as aves, e ministros do caçador mór: as capitanias do guarda mór: os potros, e jaezes do estribeiro mór: os privilegios do almotacé mór: as vias do correio mór: e os particulares dos mais officios da côrte; assim os ecclesiasticos de capellão mór, e esmoler, e deão; os da guerra, como condestavel, alferes mór, almirante, marechal, e meirinho mór.—Não era fóra de proposito (accudiu D. Julio) tratar mais miudamente de cada um d’estes cargos, e das obrigações e origem d’elles, e de outros menores, que agora com differentes nomes se accrescentaram no serviço real de Hespanha.—A esse desejo (tornou elle) satisfarei eu em outra noite; que agora nem da obrigação, que tomei, me atrevo a sahir com minha honra.—Com essa promessa (replicou D. Julio) eu fico contente, e vós podeis ir adeante.—Faço-o (disse Leonardo) por me desobrigar mais depressa. E falando dos privados e favorecidos do principe, tambem são dos mestres principaes que ensinam a viver os particulares, assim no adquirir a graça do senhor, como em a sustentar, usar d’ella, avalial-a, e encarecel-a aos cortezãos: porque assim como a privança é vidrenta e perigosa, assim os meios, por que se conserva, são muito subtis, e delicados: e posto que o eleger privado está na vontade do senhor, a diligencia faz n’esta parte muitas vezes o officio da natureza; que se, conforme a sentença de um sabio, a semelhança é raiz da affeição, tambem a diligencia é mãe da boa ventura. Os reis é cousa muito antiga e certa terem privados: e a [Pg 71] Providencia Divina o ordenou assim para o remedio de muitos, e allivio da pessoa real: quando elles são varões de valor, justiça, e bondade, como para este officio se requerem (que de outro modo seria cahir peçonha na fonte, de que bebe todo o povo, como escreveu discretamente o nosso bom portuguez Francisco de Sá de Miranda) a estes se inclina de ordinario, ou por semelhança de partes, ou satisfação d’ellas, com uma natural sympathia, que concilia este amor. Se o principe é affeiçoado a armas, se a amores, se a gentilezas, se a forças, se a caça, ou a montaria, se a musica, ou a poesia, ou outras artes, e disciplinas, contentam-lhe os que tem essas mesmas partes, ou se inclinam a ellas. E assim o que entra n’esta pretenção, que é dos que andam mais perto do serviço do principe, o primeiro, que estuda, é a sua natureza, inclinação, e costume, para se ajustar, ou avizinhar com o seu gosto, e se fingir aquelle que lhe convém ser para o contentar: e porque os homens até a seus proprios defeitos são affeiçoados, maiormente os principes, a quem chega mais tarde o desengano d’elles, até n’estes o imita o que sabe grangear a sua vontade; como ouvi contar de um favorecido de Filippe rei de Macedonia, que se fingia coxo de uma perna, porque el-rei o era de outra; outro se finge curto da vista, outro indisposto, e outro se faz pallido e descorado, achando que o rei tem os mesmos accidentes: no andar, no falar, no olhar, no vestir, e em todas as acções o imita; aprende a arte, o jogo, o exercicio em que o rei se occupa, para que, sendo n’elle extremado, seja muitas vezes escolhido, e faça degraus á sua pretenção; entristece-se, e se alegra segundo ao mesmo rei a que grangea. E ainda passam adeante como a Carizosopho, privado de Dionysio, que estando o rei em conversação com alguns da côrte, e movendo-se entre elles grande riso, o favorecido, que estava apartado d’elles, se começou a rir desentoadamente: e perguntando-lhe Dionysio de que se ria, respondeu, que porque imaginava que as cousas, de que o via rir, seriam de gosto. Se entende que no jogo o principe se alegra com ganhar, deixa-se perder; se estima ser gabado, busca rodeios para que, sem parecer de proposito, trate de seus louvores. E de um ouvi eu contar que as mesmas historias, que ao [Pg 72] principe ouvia, das cousas de seu gosto, e das gentilezas, e esforço de sua mocidade, lh’as tornava d’ahi a tempos a referir, dizendo que as ouvira de outras pessoas; encarecendo-as, accrescentando-as, e pondo de casa o que movesse a mais gosto, e vangloria o mesmo Principe. Não faltar na continuação de sua presença (como Aristipo Cyreneo) que nem á necessaria deixava ir a Dionysio sem o acompanhar. E quando com estas, e outras diligencias alcança a graça do rei, é outro novo, e maior trabalho sustental-a; que é o cuidado com que todos os privados se desvelam, porque não comem com gosto, não bebem com quietação, não dormem com descanço, não vivem sem receio. E entre outras advertencias me parecem muito principaes, e excellentes as que aponta o bispo de Mondonhedo no seu Aviso de Privados: convém a saber, que o favorecido não descubra ao principe tudo o que cuida; que lhe não mostre tudo o que tem; que não tome tudo o que deseja; que não diga tudo o que sabe; que não faça tudo o que pode; que não negoceie para si, nem para outrem fora de tempo; e que em todos se incline e favoreça a parte justa, para que com conhecida sem razão não arrisque o logar de sua privança. Atraz d’isto se seguem os ciumes de seus competidores, o cuidado de os apartar da vista, e da communicação do principe: e ainda os de que mais se receie, trabalhar de os ausentar da côrte com despachos, dadivas e mercês do mesmo senhor, dourando com ellas a pirola de sua dissimulada tenção. Para o que é notavel exemplo o de uma historia que conta o cardeal Navarro no seu tratado da Murmuração, de um Fr. Francisco de Mendania seu natural, muito aceito ao imperador Carlos V; ao qual senhor privado, que se receava de sua valia, persuadiu com grandes louvores do frade que seria de muita importancia nas Indias Occidentaes para converter a gentilidade por sua admiravel doutrina, e bom modo de persuadir: e d’esta maneira com capa de amigo o fez prover com o bispado de Nicaragua, desterrando-o da vista, e lembrança do Imperador, e d’ahi a poucos mezes da propria vida. Outro valido, que não teve este meio para deitar da côrte um gentil-homem, que alcançava graça com o rei, e que nenhum cargo quiz acceitar fora de sua vista, espreitando occasião de uma enfermidade [Pg 73] sua, se falou com o medico que o curava, e fez que o persuadisse que viviria mui pouco, se assistisse n’aquelle logar, onde a côrte estava, por ser muito contrario a seus achaques. Elle vendo que se atravessava a vida com a privança, procurou de proposito o que antes enjeitara mil vezes, e se sahiu da presença do principe, deixando ao privado livre de ciumes. Tambem importa muito que o favorecido, depois de estar na graça do senhor se lhe não queira egualar, ou adeantar por opinião em alguma parte, de que elle se preze; nem mostrar-se mais discreto, mais valente, mais bem visto, mais airoso, mais acceito a damas, e em outras partes semelhantes; que é cousa, que os reis soffrem muito mal. El-rei D. João o II, e el-rei D. Sebastião não queriam que em fôrças, e valor se lhe egualasse nenhum vassallo, como se collige de muitas historias suas; e el-rei D. Manuel no entendimento: o que tambem se prova d’aquella historia, referida de Antonio Peres, que lhe succedeu ao mesmo rei com o conde de Sortelha D. Luiz da Silveira, a quem mandou que fizesse uma carta para o papa sobre certa materia de importancia, dizendo que elle faria outra minuta para de ambas escolherem a mais acertada: succedeu que, trazendo o conde a sua a el-rei, pareceu tão bem, que não lhe quiz mostrar a que fizera, e assignou a do conde: elle descontente d’este successo se foi a casa, e fez uma pratica a seus filhos, dizendo que cada um buscasse sua vida; porque já el-rei tinha entendido que sabia mais que elle. Assim que o mais alto logar da privança se sustenta com os maiores extremos da humildade em respeito do mesmo senhor; porém para os de fora lhe é necessaria uma ostentação, e ufania, que mereça mais seus poderes, e quebre os animos que podiam ter com elle competencia, para se não atreverem a capitular seus erros, e a contrastar sua valia. E abreviando esta materia, por ser mui larga, se aprende tambem dos cortezãos, assim dos ministros, como dos continuos da côrte, aos quaes pela communicação dos superiores, e exemplo do principe convém serem modestos, sobrios no comer, cortezes no tratar, discretos no falar, polidos no vestir, honrados no gastar, bem creados no conversar, e amaveis a todo o genero de pessoa: e tem mais d’estas partes os que por creação da meninice tomaram este leite, [Pg 74] como são os filhos dos que no mesmo serviço gastaram a vida. Esta é a primeira escola, em que os homens aprendem o que pertence á profissão de homem de côrte.—O segundo exercicio (disse o prior) me parece que é o mesmo que tendes mostrado, advertindo mais algumas poucas cousas que são particulares do serviço das damas. O decóro e primor, com que ellas se tratam (respondeu Leonardo) n’este reino, principalmente as que assistem no paço, parece que em certo modo conserva aquella preeminencia, que os egypcios lhe deram, que com o exemplo do bom governo de Isis reinavam as mulheres, porque em presença, e ausencia os cortezãos as nomeiam por senhoras, se lhes descobrem, e ajoelham como a deusas, lhes fazem festas, jogos, justas, e torneios como a Deidades, estão pendurados de seus favores, e respostas, como de oraculos; as acompanham como a cousas sagradas; se vestem, ornam e enfeitam pelas agradar; se desvelam pelas servir; se apuram, para as merecer, no esforço, na gentileza, na galantaria, no dito discreto, no escripto avisado, no mote galante, na endecha subtil, no soneto conceituoso; por ellas se ensaiam para o sarau, no dançar, no falar, no acompanhar, e no offerecer; por ellas se apressam nas occasiões, de jornadas, de creados, e librés, galas, e ginetes; por ellas continuam e passeiam á vista das janellas, atravessam as salas á sua conta, e rodeiam o terreiro do paço mil vezes por seu gosto; por ellas se offerecem a todo o perigo: porque qual é, que um servidor de damas não ache facil por amor d’ellas? que palavras diz? que extremos receia? que esquivanças não soffre? que riquezas estima? que chimeras não finge? que occasiões não busca? vela de noite, não descança de dia, não se entristece com a pena, não desconfia com o desengano, não faz conta de aggravos, nem estima desprezos, não cura de vinganças, e emfim tudo é veneração e humildade, com que as engrandece. E d’esta escola de seu serviço (como no principio disse) sahem os homens tão apurados no que convém á honra, primor, e discrição, que se não pode esperar d’elle vilania em nenhuma cousa. E porque falta a Portugal ha tantos esta creação, tem tão pouca muitos filhos dos illustres do reino, que livres d’este aprazivel, e honrado senhorio, ficaram no de sua vontade. [Pg 75] E posto que a minha era dilatar mais esta materia, nem pela edade, nem pela confiança tenho licença.—Essa vos deram todos facilmente (disse então o irmão do prior) e eu de melhor vontade a procurara para com as damas honrar, e engrandecer as armas: contento-me porém que vos hei de ter presente para as duvidas, e perguntas, que se me podem offerecer.—Em tudo (respondeu elle) estaes vós tão avantajado, que mais podeis mover duvidas para me envergonhar, que para saberes alguma cousa de novo; e assim de corrido, e de corrida me passo ao terceiro exercicio da communicação dos extrangeiros, da qual se não alcança menos doutrina, que de todos os exercicios cortezãos. Quatro generos de gente extranha costuma a assistir nas côrtes dos principes. A primeira reis, principes, e senhores, e homiziados, que por alguma occasião vem a acolher-se a seu amparo, ou por adversa fortuna ficam debaixo de seu senhorio. O segundo são embaixadores, com os nobres e ministras, que os acompanham. O terceiro gentis-homens, que vem a saber a grandeza dos reinos extranhos. O quarto mercadores, que por razão do commercio e correspondencia vem a assentar nas praças principaes do mundo, que são as mais das vezes onde os reis assistem. E todas estas quatro condições de gente são de muita importancia para se colher d’ella muito fructo. Primeiramente facil é de julgar a varia noticia de costumes e condições de gentes e dos ritos e leis de provincias, que os cortezãos portuguezes alcançaram com a vinda de tantos reis e principes extrangeiros, assim infieis, como catholicos, á côrte d’este reino, quantos reis, e senhores da Barbaria, da Ethiopia, e de outras partes da Africa, da India, de Maluco, e de Japão, e de outras remotas partes do mundo; e que cousa apurou mais a côrte d’el-rei D. João o I, que a vinda a ella do duque de Alencastre irmão d’el-rei Richarte de Inglaterra, a cujo respeito houveram os doze portuguezes em Londres aquella celebrada victoria em favor das damas? Pois os mais homiziados e queixosos, que se ampararam á sombra do principe, pela maior parte são homens de valor, sangue, e esforço. Os embaixadores, do que d’elles temos dito, se collige o de quanta importancia sejam para dar exemplo. Os gentis-homens, que por curiosidade vem a saber o estilo [Pg 76] e gentilezas de côrtes extranhas, esta mesma diligencia os acredita; e além d’isto é de presumir que tenham visto, ouvido e sabido muito de reinos alheios: de modo, que de uns e de outros se colhe grande doutrina para a conversação civil, e perfeição do homem bem nascido; porque cada um conta da côrte, trajo, modo, e estilo do seu reino, a maneira de reger, governar, julgar, tratar, e peleijar da sua nação: d’elles se aprende as excellencias particulares, e os defeitos das provincias, e de que as suas gentes são mais notadas: como a gentileza de França, a furia de Inglaterra, a fortaleza de Allemanha, o siso de Lombardia, as cautelas de Toscana, a fidelidade de Milão, a presumpção de Esclavonia, a conta e trato de Genova, a destreza de Bretanha, a caridade de Borgonha, a continencia de Picardia, a justiça de Veneza, a magnanimidade de Roma: e logo a crueldade de Hungria, a infidelidade de Turquia, a lisonja de Grecia, as zombarias de Piemonte, a luxuria de Catalunha, e a golodice de Barbaria. Pois dos mercadores se não colhe tambem pequeno fructo: porque, deixando o que pertence á conta, peso, medida, correspondencia, confiança, credito, verdade e razão, se alcança do commercio das provincias o que falta em muitas partes; e as em que ha todas as cousas, que por via dos mercadores se communicam, e os portos, caminhos, e escalas de todo o mundo: por elles se conhecem as pedras finas, drogas, roupas, e materiaes de medicinas da India Oriental; as pedras, aljofar, porcelanas, e alcatifas da China; o ouro de Sofala; como no Occidente de Dalmacia, e Germania; e na França o celebrado de Tolosa: a prata de Nova Hespanha, e de Saxonia, e Sardenha: o metal de Corintho, e Chipre: o estanho, cobre, e arame de Flandres, e Inglaterra: o ferro, aço, e chumbo de Cantabria e Sicilia: o marfim da India, Brazil, e Ethiopia: as lãs de Bretanha, Calabria, Calcedonia, e França: o algodão, cheiros, e myrrha de Arabia, Pancaia, e Assyria: as télas e sedas de Persia: o alabastro de Napoles: as martas, e arminhos de Polonia, e Moscovia: o papel e vidros de Veneza: o assucar de India, Brazil, e ilhas de Portugal: o coral de India e Marselha: courames, madeiras, vinhos, e trigo das ilhas do Oceano, que pertencem á conquista dos portuguezes: e muitas outras cousas, que [Pg 77] querer agora contar fôra infinito; e por o não parecer este discurso, tratarei brevemente de quatro exercicios dos pretendentes da côrte: materia mui larga, que pedia mais tempo, e muito importante a todos, porque do seu cuidado, diligencia e soffrimento se pode colher uma lição universal para todo o estado, e condição de pessoa, pois nenhuma ha a que não seja necessario desvelar-se, negocear e soffrer para effeito de dar alcance ao que deseja. E como n’este tempo os homens estão já desenganados de quão pouco valem merecimentos, que (por elles o não serem) vieram a chamar valia ás adherencias; e lhes tem mostrado a experiencia a verdade d’aquelle rifão, que cada um dança segundo os amigos que tem na salla; e que só põe em pé os serviços quem os arrima a boa parede, por mais arrastados que andassem na opinião da gente. Já nenhum pretendente discreto faz tanto cabedal d’elles como de ministros que o ouçam, creados que o admittam, amigos que o lembrem, ricos que o abonem, terceiros que o cheguem, e peitas que o despachem. Para o que o avisado, depois de fazer o signal da cruz á sua pretenção, primeiro sabe os que valem com o principe, depois d’isto os que tem logar e entrada com os privados: logo conhecer os creados mais mimosos; em sabendo a sala do valido, tomal-a de empreitada, ser continuo no passeio d’ella; onde a todos a primeira cortezia, e a mais humilde seja a sua; o riso sempre na bôca, os offerecimentos na lingua, os olhos no seu intento; dar o melhor logar a todos, porque acaso não falte a algum que pode ser em seu favor; não se aparte da vista do que grangea; faça-se encontradiço onde o veja; na egreja tomar o logar da porta; na salla a sahida; no acompanhamento o deanteiro, para parar onde fique tomando os olhos do privado, para que assim, ou com a continuação mereça, ou com a importunação o despache: usar do trajo limpo, mas não custoso: o comer leve, mas concertado, porque arguem moderação com gravidade: o falar sempre á vontade do ministro, dizendo os amens a todas suas orações, mostrar-se ao favor humilde, á representação agradavel, á esperança contente, ao desengano confiado: falar a todos no seu negocio, porque muitas vezes acerta com um, de que elle não esperava abrir caminho a seu despacho; saber dos que [Pg 78] tiveram os outros, e valer-se da queixa dos mal galardoados, para que, antepondo-lhe os seus merecimentos, approve a justiça e favor, que lhes fizeram. E no que toca á moderação das paixões naturaes, ninguem as traz mais registadas que o pretendente; porque dos cinco sentidos e tres potencias usa d’esta maneira. Vê tudo, e olha pouco; vigia, porque, como dizem, a quem vela tudo se lhe revela; mas com os olhos no que procura dissimula o que vê, ouve, e não escuta: e assim as más respostas dos ministros cançados, ou insolentes não o escandalisam, antes lhe mostra alegria fazendo do escandalo materia de agradecimento; cheira de longe o que receia; e dissimula, fingindo confiança no que merece: apalpa, e tenta todos os meios de seu remedio, e finge-se ignorante a tudo o que releva; põe o gosto no de quem o favorece, para não fazer mais que o que lhe contente: a memoria occupa-se em relatar seus serviços, e obrigações fingidas, por vêr se assim as pode ter verdadeiras: esquece-se do entendimento para não sentir, e para tambem com elles obedecer; porque o que pretende é muitas vezes prudencia fingir ignorancia, accommodar a vontade com a sua em um voluntario e forçoso captiveiro; a d’aqui nasce que os que pretendem vivem em pobreza, porque não podem ter proprio emquanto dependem de favores alheios; em obediencia, porque a tem com tanta sujeição, que, se ao senhor deseja parecer creado, ao creado quer parecer escravo, e ao amigo, e parente servidor; fazendo-se com todos os ventos para o contentar; em castidade, porque a sua inquietação e cuidado não dão logar aos de amor, que se criam em pensamentos ociosos, que além do pretendente ser humilde, liberal, cortez, paciente, discreto, comedido, sombrio, advertido; casto, diligente, e temperado, a sua cortezia é mais apurada, a sua discrição mais advertida, a sua liberalidade mais prodiga, a sua offerta mais timida, a sua queixa mais moderada, a sua paciencia mais humilde, o seu louvor mais encarecido, a sua voz mais baixa, a sua razão melhor encaminhada. Emfim é ornado de todas as partes boas, de que se pode prezar o homem bem nascido quando as tenha por natureza, e costume, como os pretendentes as fingem e guardam por necessidade. Com isto me deveis haver por desobrigado do cargo, que [Pg 79] me déstes; e posto que as horas, que são passadas da noite, culpam a minha tardança, a materia a pedia; ainda que o desejo de não enfadar me aconselhasse outra cousa.—Tendes dito todas tão bem (respondeu elle) que a pratica, e a noite pareceu breve. Com isso vamos a descançar para na guerra de ámanhã entrarmos mais esforçados.—N’essa me dou já por vencido (disse elle).—E eu por atalhado (accudiu Roberto) e todos se despediram com os olhos n’aquella côrte pintada, que ainda com as sombras da verdadeira enganava os sentidos.


DIALOGO XV
DA CREAÇÃO NA MILICIA

Solino foi o primeiro que a noite do outro dia buscou aos amigos em casa de D. Julio; e elle, e os hospedes lhe agradeceram muito a diligencia. E o prior (que lhe não era pouco affeiçoado) disse:—Bem me parece que não fez a edade falta no vosso animo, ainda que as cãs queiram desacreditar as forças, pois sois o primeiro que acudis á guerra.—Como esta (respondeu elle) ha de ser em alojamento, primeiro apparecem as barbacãs, que os soldados.—N’ellas (acudiu Alberto) está o mais seguro presidio contra os perigos; e tendo eu hoje as vossas da minha parte, temerei pouco as que tiver contra mim n’esta occasião.—Em muitas (replicou Solino) me releva mostrar que sou vosso, por dar boa conta da razão com que de mim faz alguma o sr. D. Julio; que, como sabe melhor o que se vos deve, me terá por rustico, se não pagar com esta vassallagem o que mereceis.—Nada haverá (disse D. Julio) que commigo vos desacredite, mórmente para um cumprimento, segundo agora vos vi armado para elles.—Pois se vae a falar verdade (tornou elle) eu vos affirmo que de nenhum inimigo desejo tanto fugir como de um cumprimento; porém ha alguns, que tomam a um homem como em becco sem sahida, onde o faz animoso a necessidade; e á minha acudistes vós agora com essa interlocutoria; que já minha copia verborum [Pg 80] ia dando os fios.—Se com esses me armaes a que vol-o gabe (disse elle) estaes enganado; que me importa poupar o cabedal para outra occasião.—Bem sabeis vós (tornou elle) que em nenhuma me quero gabado, antes; praguejado como Adem; porque se é verdade (como diz Pindaro) que tenho a graça na murmuração, como a cobra a peçonha no rabo; quando me põem o pé n’elle, sei morder com mais subtileza, que na doçura de um cumprimento abemolado, de que já a mercê arda tão estylada a puras sincopas e signalefas que parece tisica, e não sei se, de o estar nas palavras, o anda agora nas obras dos senhores.—Ruim agouro foi para uma e outra cousa (disse o prior) escreverem-a sempre em breve letra por parte: e certo que nenhuma cousa era tão necessaria ás mercês de agora, como o mantenha-vos Deus do tempo antigo. Porém, se me não engano, ouço já os vossos aventureiros, que vem falando alto.—Eu tambem sou com elles (disse Solino) e conheço a Pindaro no riso, que sempre entra com chocalhada como picadeiro. A esta pratica atalhou a chegada d’elles, que com mais compridas desculpas do que foi a tardança se assentaram. E porque Solino tinha um galeote vestido, que trouxera por razão do frio, lhe disse Pindaro: nem de côrte, nem de milicia vos vestistes hoje; e não parece razão que em actos tão solemnes venhaes de caça a casa do sr. D. Julio.—O melhor seria (respondeu Solino) que me cortasseis vós agora de vestir, pois não tendes boa tesoura; e já sabeis que as ruins fazem a bôcca torta aos alfaiates. Porém já que vinheis de côrte para esta casa, onde ha tanta, porque antes de vêr o meu gabão rieis tão alto d’elle?—Vingado estaes (acudiu Feliciano) e o certo é que, se faltardes á milicia, nunca vos faltará a malicia.—Se nos mettermos por ella (disse Leonardo) não ficará tempo para que o sr. Alberto satisfaça á obrigação de nos ensinar a boa creação, que se adquire com as armas.—E se eu com as do vosso entendimento (tornou elle) não soccorrer a minhas faltas, mal me irá n’esta batalha: porém como as mais das instrucções da policia militar dependem, ou se parecem com as da côrte, do que d’estas dissestes tão doutamente me aproveitarei agora, pondo sómente de meu cabedal a differença. E [Pg 81] assim me parece que a creação da milicia leva a todas as outras grandes vantagens por quatro fundamentos; que cada um d’elles apura mais aos homens bem nascidos, que o trato da côrte e o exercicio das escolas. O primeiro é, que a honra é a fonte de todo o bom ensino, policia, procedimento e valor; e esta que mais nasce, se cria e conserva na guerra, que em nenhuma outra parte: e assim os reis, que são o primeiro logar, d’onde aprendem os seus inferiores, e d’elles passa a doutrina a todo o vulgo, primeiro os fez a milicia que os tivessem as côrtes: e o primeiro, que houve no mundo, que foi Nembrot, na guerra tomou o nome, e assentou com elle o seu imperio em Assyria; e de então todos, os que por fio de geração não succederam, as armas lhes deram titulo, corôa, sceptro e senhorio; e depois d’elles o tiveram pelo mesmo modo os potentados, duques, marquezes, condes, barões e ricos homens, que nas conquistas, instituições, ou restaurações de reinos, fizeram obras heroicas: e d’elles passaram a seus descendentes os appellidos, armas, insignias, senhorios, terras, vassallos, jurisdicções, liberdades, honras e rendas que engrandecem a nobreza. O segundo fundamento é o rigor, com que na milicia se conserva a lei da policia, bom termo, primor e procedimento; porque se commettem muitas vezes ás armas as faltas e emendas que a estes tocam; e onde o erro é tão arriscado, é a vigilancia e advertencia muito pontual; e por este respeito andam os soldados tão vistos nas miudezas e particulares da cortezia, que nenhum ponto perdem, nem deixam perder. O terceiro é a continuação do soffrimento, e da paciencia militar, que em tudo se adeanta com grande differença a pretendentes, creados ministros, no que é com maior risco da vida, ora seja marchando, ora navegando, ora em alojamento, ora em campanha, pelas incommodidades de sitios, gasalhados e mantimentos; e pelas continuas vigilias, que fazem por lei o repouso tão limitado, como o póde fazer por curiosidade o mais estudioso. O quarto fundamento é a variedade das terras e provincias que vê, as diversas nações e gentes com que trata; que é a creação mais importante para o homem bem nascido, e que na côrte ou nas escolas se não póde adquirir tão facilmente. E para que, ao menos imitando a ordem do sr. Leonardo, dê [Pg 82] alguma a minhas razões, discursarei com maior brevidade, que satisfação sobre estes quatro fundamentos, fazendo o principal de minha confiança no favor que d’elle, e de todos estes senhores espero.—Até o tomar na graça (acudiu Solino) ambos levastes um mesmo vento, senão quanto ao sr. Leonardo metteu mais traquetes e cevadeiras: e se isto até ao fim fôr em arremedados, póde ser que entre eu na musica antes de muitos dias.—De boa vontade (disse o doutor) vos passarei eu o de ámanhã.—Não o hei de pedir (respondeu elle) por alvará de renunciação, que será difficultoso o consentimento d’estes senhores; buscarei logar vago: e porque me entalei n’este em ruim tempo, o quero deixar ao sr. Alberto.—Pareceis-me n’elle tão bem (tornou elle) que já me esquecia de o cobrar; porém, já que me daes licença, o primeiro fundamento é que a honra se apura e sustenta mais na guerra que na côrte e nas escolas: este me parece que se prova melhor com uma sentença que diz que a boa fama é o patrimonio na milicia; porque a honra, o ser, o preço e a riqueza de um soldado, não consiste no appellido de sua familia, na herança de seus avós, na riqueza e morgado de seu pae, nem outros juros, tenças e rendas de que tenha esperança; senão na opinião em que está tido entre os amigos e contrarios, segundo seu valor e merecimentos. E se é certo que a verdadeira honra não consiste nas estatuas dos antigos, nem nos pavezes e escudos em que se conserva a memoria dos principios da nobreza, senão na virtude, valor, magnanimidade e exforço proprio; só o soldado é filho de suas obras, e se póde chamar honrado por si mesmo, sem por roubo, emprestimo ou herança se chamar nobre: porque os que de nascimento o são, e pelas armas o merecem ser, assim honram a seus passados, melhoram e obrigam a seus descendentes. E os que de principios humildes chegaram por seu braço a merecer titulos, grandezas e senhorios, dão felice principio a sua familia, e tambem a reinos, potentados e casas, que os ficam em seus successores eternisando, como por maravilhosos exemplos dos antigos conhecemos; e por experiencia dos modernos se vê cada dia. Ptolomeu de soldado de uma companhia do exercito de Alexandre, veiu por seu valor a ser rei do Egypto. Dario e Artaxerxes por esforço e [Pg 83] merecimentos proprios, sendo de mais humilde nascimento, alcançaram o sceptro e corôa real dos Persas. Valentiniano e Justino imperadores de Roma, nascendo rusticos e pastores, por o braço vieram a merecer aquelle supremo titulo da grandeza humana. Viriato e Tamorlão, de pastores, caçadores e soldados vieram a ser, um imperador dos Scythas, o outro governador e general dos Luzitanos: e outros mais modernos, como foi Primislau rei de Bohemia, Francisco Esforcia duque de Milão, e outros muitos; e na milicia presente de Flandres, França, Allemanha e Inglaterra, na de Asia, e na do Oriente, e da Nova Hespanha, conheço eu por vista, e sei por nome, e da fama de muitos soldados, que, sendo de escuro nascimento, por sua extremada valentia e esforço se fizeram tão claros e illustres, e como taes tem os cargos importantes, os logares, honras e vantagens da milicia. De maneira que, pois a honra é uma universidade, em que se aprendem todos os bons termos, procedimentos e cortezias; e esta está fundada na milicia, onde entre as armas nasce, com ellas se ganha, apura e sustenta; n’ella deve estar mais apurado o fructo de sua disciplina. O segundo fundamento é o rigor com que os erros contra a policia se castigam na guerra; de que nasce a vigilancia e cuidado, com que os soldados se disvellam para andarem apontados até em miudezas, de que na côrte se descuidam os mais advertidos para a differença que ha, cortando-se á espada o maio que cresce ao que é pouco cultivado no bom ensino e procedimento; de modo que, mais periga um homem em uma descortezia ás vezes, que em uma batalha. E assim o falar composto, o responder brando, o perguntar com tento, o tratar do ausente, o defender ao amigo, e o falar do contrario, cada cousa tem na guerra suas leis estabelecidas, em cuja execução se procede com todo o rigor; o dos particulares d’ellas nasceram os desafios e duellos tão justamente reprovados na republica catholica, quanto na barbara opinião antiga bem recebidos, como foi na dos reis de Lombardia, que reduziram o duello a dezoito casos das leis: o o imperador Frederico a quatro; e Filippe rei de França a tres: e Frotanio rei de Dacia fez lei que toda a contenda que havia de ser em juizo, se averiguasse [Pg 84] pelas armas. E como o descuido que o soldado tem na cortezia, a soltura na palavra, a má correspondencia no procedimento, a liberdade com que fala do ausente e do contrario, está sujeita a dar satisfação por um caminho tão breve: qualquer soldado pratico está mais advertido que o melhor cortezão no bom ensino, respeito e brandura com que ha de tratar aos homens.—A verdade é (disse o doutor) que os soldados conversam com toda a brandura e bom termo: e já Platão disse que o bom soldado devia de ser como o cão; para os domesticos e conhecidos muito fagueiro; e contra os inimigos arriscado e valente. Porém o duello é cousa muito mais antiga, e que se não inventou para essas miudezas que dizeis: porque, conforme a opinião dos legistas, é um combate e batalha particular de corpo a corpo para provar alguma cousa duvidosa, da qual o que sahe vencedor se entende que provou o que queria, como o desafio de Menelau com Paris, de Enéas com Diomédes, de Ajax com Heitor; os duellos de Lucio Sicinio Dentato, que oito vezes á vista dos dois exercitos sahiu vencedor; o de Tito Manlio Torquato, e de Lucio Emilio com o capitão dos Samnitas; de Alexandre Magno com Póro rei da India, o de Scanderbhec com Zayá, e Tambrá valorosos Persas: o de Roe rei de Dacia com Hudingo duque de Saxonia: e muitos dos nossos valorosos Luzitanos em muitas partes do mundo, o de Alvaro Gonçalves Coutinho o Magrisso em Flandres; o de Alvaro Vasques de Almada conde de Abranches em França; o de Duarte Brandão cavalleiro da Garrotea em Inglaterra; o de Gonçalo Ribeiro em Castella; o de D. Francisco de Almeida em Granada: e muitos outros no Oriente, na Asia e em Barbaria.—Não são esses (respondeu Alberto) os duellos reprovados de que agora tratei, que modernamente se usam, e se definem por differente modo, e por todos com bastantissima causa se defendem; que os de que falaes assim, como são batalhas singulares de corpo a corpo, se usavam de cento a cento, vinte a vinte, dez a dez e doze a doze, como foram os portuguezes de Inglaterra. Duellos, segundo a definição moderna, é um combate de homens, que despresando as leis, querem averiguar por seu braço o que toca á sua honra ou opinião, movidos do interesse de a sustentarem, [Pg 85] ou de vangloria, arrogancia, inimisade ou vingança: e d’estes usa na milicia a furto das leis e generaes, que com muito rigor os castigam: procedendo todos sobre miudezas e pontos as mais vezes impertinentes, introduzidos pela bizarria e fonfarria soldadesca, pendendo do que disse, calou, passou, respondeu, olhou, se gabou? se ficou melhor nas palavras, se alguma era escura, e ficou mal entendida? sobre perguntas, declarações, satisfações e respostas, e outras cousas, que, por não merecerem ser tratadas, antes com razão reprehendidas, deixo de dizer. Mas a conclusão, para o meu intento, é que na milicia andam as leis da cortezia, e procedimentos mais ajustadas com a razão, que em outra parte alguma, por meio d’este rigor, que faz aos que militam levarem muitas vantagens. O terceiro fundamento é a paciencia e soffrimento dos soldados, que creados no trabalho, e incommodidade d’aquella vida, é o maior de todos os estados; trazendo sempre como grilhões o peso das armas: que se o proverbio diz que quem traz no dedo o annel apertado, faz para si voluntaria prizão, quanto maior o será o cossolete, o morrião, o pique, o mosquete e o arcabuz, traz isto trazer o somno registrado pelas leis do tambor, acudir ao seu quarto no melhor do repouso; e no maior escuro, e geada do inverno, passear á sombra das nuvens carregadas de agua, sem mais luz que a dos relampagos, e mais lume que a do murrão; e ter por cama a terra, que de ordinario serve aos soldados, que se alojam no campo, ou fronteira dos inimigos. E se d’el-rei D. Affonso Henrique, do condestavel D. Nuno Alvares Pereira, do condestavel D. Pedro de Menezes, e de outros generaes portuguezes lêmos, que muitos annos inteiros dormiam as noites sem despirem a malha, e couraças com que pelejavam de dia: que colxões lhes podiam servir para tão asperos lençóes, se não fossem as carretas da artilheria, o espigão dos muros, e o reparo das trincheiras e barbacãs? Pois se a sobriedade e temperança é tão gabada nos bons costumes pelos muitos que d’ella nascem, quem póde ser mais temperado e sobrio que o soldado, do qual tantas vezes a necessidade é cosinheira, o escudo ou cossolete a mesa, o morrião o pucaro, e fome a iguaria? E deixando as famosas, que houve no mundo, de que os auctores escreveram, que [Pg 86] todas couberam em sorte aos soldados; qual se não ha de presumir que aconteça onde ha muita gente junta, da qual tudo se receia e nada se fia? E se em alguma gente se conserva o costume dos mantimentos da primeira edade, que eram fructas das arvores e legumes dos campos, só na da milicia acontece muitas vezes: não tratando ainda da guerra naval, que com maiores incommodidades e perigos da vida se exercita; nem nos cêrcos, onde mais vezes a necessidade da fome a põe em almoeda. Atraz d’estes extremos de soffrimento se segue a obediencia militar, que é o esteio em que se sustenta o principal peso da guerra, devida e guardada pelo mais valoroso soldado ao menor e mais humilde official do exercito, havendo n’elle tantos, como são general do exercito, coroneis, capitães, tenentes, governadores, mestre de campo, sargentos-móres, generaes de infanteria, de cavallaria, capitães de gente de armas, capitães de cavallos ligeiros, generaes e capitães de artilheria: fóra os particulares, alferes, sargentos, cabos de esquadra, e outros officiaes não combatentes, como são provedor geral, commissario geral, furriel mór, barrachel, thesoureiros, collateraes, pagadores, e meirinhos, e outros muitos.

E em o que toca ao governo de cada um, nenhum soldado desobedece na ordem, na estancia, no concerto, no acometter, retirar, assistir, reconhecer, vigiar, e em todos os mais actos militares: e ainda que se lhes atravesse deante o rosto da morte, o despresa por acodir á obediencia de quem tem a seu cargo mandallo. E faltando esta sujeição, totalmente se destruirão os exercitos, conforme aquella sentença, que o maior inimigo, que ha na guerra, é a discordia entre os proprios soldados: e assim se perderão muitos campos, e armadas, por a inconveniencia dos capitães, e a discordia, e desobediencia dos inferiores. De modo que, por ser esta experiencia tão approvada, vieram os reis, e generaes, a castigar bons successos, quando fóra da obediencia, e ordem militar se conseguiram; enjeitando aos vencedores a ventura, e castigando a ousadia, com que traspassaram a lei da milicia, como eu vi acontecer algumas vezes. Ha além d’esta outra obediencia não menos importante nos soldados, que é a do segredo; [Pg 87] que vence ao maior que se deve aos negocios civis, e cortezãos: este se usa nos desenhos, intentos, avisos, estratagemas, ciladas, e até em o dar o nome ordinario da vigia; que tudo se guarda com inviolavel observancia. Assim que em tudo o soffrimento, e obediencia do soldado, muitas vezes alcança na guerra mais merecimentos que o seu esforço. E todas estas leis, costumes, e sujeição fazem a um homem tão apurado, polido, discreto, amavel, secreto, brando e animoso, que deixa atraz a todos os que nos outros exercicios se adiantam. O quarto fundamento é a communicação dos estrangeiros, e a vista de differentes terras, e provincias, que o fazem sciente, pratico e visto nos costumes, ritos, e reinos estranhos: porque um exercito se compõe de gente de muitas nações, que por soldo, irmandade, soccorro, pacto ou visinhança se ajudam uns aos outros: e assim capitães como soldados, cada um por competencia, não sómente quer assinalar seu nome, e honrar a sua nação, mas engrandecer os costumes, gentilezas, trajo, e galas da sua patria, contando ainda as guerras e empresas de seus naturaes, as grandesas da sua provincia, e outras miudesas, que nem pela lição escripta se pode comprehender tão facilmente. Pois a vista, que é só a que de todo satisfaz o animo, e enriquece o entendimento, ninguem a tem mais varia que o soldado, ora seja navegando, ora em presidios fóra de sua patria, aprendendo nas alheias todo o bom termo de proceder, de obrigar, grangear, servir, e de se ennobrecer, apurando a sua gentileza, e partes no serviço das damas, sua liberalidade com ellas, e com os soldados: a policia no seu trajo, e bizarria; a discrição na sua pratica; e todos os outros costumes, que á vista de tantas testemunhas exercita, conquistando honra com o esforço, amigos com o bom procedimento, servidores com a liberalidade, a affeição das damas com a gentilesa; fama entre os estranhos, nome com seus naturaes, merecimentos com o rei; que, quando sejam mal galardoados da ventura, não lhe póde essa tirar o seu verdadeiro preço, que é o louvor que á virtude se deve. Tambem não é para despresar na discrição do soldado, antes muito para engrandecer, a relação dos successos, e occasiões, em que se achou, e contar as coisas d’elles com mais propriedade que [Pg 88] os cortezãos, e escriptores; pintando o campo em ordem, a cabeça do esquadrão, o rosto, as alas, os lados, e as costas d’elle, o logar das insignias e bandeiras, e dos instrumentos, artilharia e bagagem, a guarnição dos mosqueteiros, as mangas dos arcabuzeiros, as companhias dos alabardeiros, archeiros, bésteiros, escopeteiros, e piqueiros; dispondo nos combates cada uma d’estas coisas em razão, e termo militar. E egualmente no assalto, ou defensão, ou fortalesa, saber dos fortes os bastiões, torres, muralhas, ameias, barbacans, parapeitos, corredores, bombardeiras, séteiras, torreões, baluartes, terraplenos, platafórmas, trincheiras, praça de baluartes, respiradouros, casamata, rebelins, vias secretas, porta mestra, porta falsa, ponte levadissa, cavas, minas, fóssos, reparos, contrafortes, contraminas e contrareparos, e outros nomes, e serviço de coisas, em que só os experimentados nas armas podem falar propriamente: pelo que tenho o exercicio d’ellas por mais excellente para o homem bem nascido, que todos os outros.—Vós (disse Solino) canonisastes hoje aos soldados, e engrandecestes sobre todas a vossa profissão. E são tão boas as razões com que o fizestes, que se assim foram os seus costumes d’elles, não vos podia ninguem contradizer; nem eu o fizera agora, se tratáreis do que todos vemos em vossa pessoa; mas pela differença de outras, com que eu tratei, correndo tantos lares, e estalagens, como João de espera em Deus, haveis-me de dar licença que mostre o avesso a essa pintura, e diga que a milicia um é homicidio commum, uma escola de todos os vadios, e ociosos do mundo. E os soldados não são outra coisa, que soldados pagos, e armados em damno da republica, roubadores de honras, ladrões de fazendas, blasfemos, jogadores, insolentes, espadachins, matadores, rufiães, adulteros, sacrilegos, incestuosos, e perjuros, e cheios de todos os mais vicios, e maldades abominaveis, considerados na liberdade soldadesca, e em sujeitos tão perdidos, como o são os mais dos que se lançam por o caminho da milicia; de sorte que, se alguns saem tão bem doutrinados como vós, os mais são tão differentes, que desmerecem vossos louvores.—Bem sei (respondeu Alberto) que não posso provar commigo o que tenho dito dos soldados; mas podéra allegar com [Pg 89] outros, que me fazem grandes vantagens; e com ellas me desobrigaram, se os tivera presentes, ou dos que aqui o estão foram conhecidos: e tambem é coisa clara que vos não faltarão muitos, com que proveis o que dissestes: porém fallo dos soldados honrados, que são os termos em que se deve tratar do fructo da sua profissão.—Pouca razão (acodio o doutor) mostrou Solino no seu arguir: porque primeiramente, a arte militar é muito approvada para a conservação da republica; e já Platão disse que era n’ellas tão necessaria como a agricultura; e os erros dos viciosos, e depravados não podem desacreditar a profissão, nem tirar merecimento aos bem disciplinados, e generosos: que se houvermos de fazer essa consideração em todos os exercicios, nenhum ha sem egual desconto: porque se no da côrte, em que falou Leonardo tão discretamente, quizermos escolher os perdidos, acharemos que são mais que os aproveitados; e o mesmo proverbio declara que são a maior parte, em quanto diz que a côrte é para privados, e para homens mal acostumados; e o mesmo, e peior acontece nas escolas. De maneira que a boa creação da milicia se deve entender sómente nos bem creados, a quem a honra obriga a que se queiram avantajar do vulgo; e não em os que fazem d’ella tão pouco cabedal, que empregam o de seu animo, e saber em cousas indignas de homens bem nascidos, occupando-os em latrocinios, forças, traições, maldades, enganos, e infamias.—Não me péza (disse Solino) senão porque me gabáram de valente quando aqui cheguei, para me não dar por vencido de duas razões tão fracas como as vossas; e com tudo me hei de calar até vos colher em um duello, em que eu escolha as armas, que vos não hão de valer as de quantos bachareis degolaram o mundo.—Guardae-lhe (disse D. Julio) esse animo vingativo para ámanhã, e virá mais a tempo.—Não já para mim (lhe tornou Solino) porque tem da sua parte muito favor, não sómente o de Solino, pelo que lhe importa, mas de Pindaro que tem estillada a quinta essencia dos louvores escolasticos, e não ha travessa, nem beco sem sahida nas lettras, de que não possa fazer um mappa mui copioso.—E achaes (tornou D. Julio) que é isso mau para letrado?—Antes o tenho [Pg 90] por muito bom (disse Solino), prazerá a Deus que virá elle a saber ao que agora cheira, e assim o espero: que, posto que estes estudantes mancebos entornam ás vezes tudo no caminho, elle foi sempre pelo mais acertado.—Tambem a mim me parece agora (acodiu Alberto) acabar o meu discurso na vossa differença: para o que peço a estes senhores que me hajam por desobrigado de ir por diante.—Se estivera em mim (respondeu Leonardo) o poder obrigar-vos a dizer mais, como está o gosto, e desejo de vos ouvir, não sei se vos deixara despedir tão de pressa: porem deve ser tarde; porque já o era quando aqui viemos, por uma occupação que me deteve mais do que queria.—Não me parece a mim (disse D. Julio) que é tarde, nem entendi que estava tanto no fim a nossa pratica, que não podesse fazer algumas perguntas, como costumo, de algumas miudezas que o sr. Alberto passou por muito visto n’ellas, como eram alguns particulares, e differenças na ordem da infanteria, e cavallaria, e muitas da milicia naval.—Porque essas cousas tocavam menos ao meu intento (respondeu elle) passei tanto por ellas: mas quando outro dia tiveres gosto de ouvil-as, terei eu muito pouco trabalho em as relatar.

N’este tempo, porque os mais estavam já levantados, se despediram. E Solino se foi pendurando em palavras de galanteria com o doutor com tanta graça, que desejaram os companheiros poderem fazer o caminho mais comprido; que, por muito que o seja, a boa conversação o faz parecer breve, e desejado.


DIALOGO XVI
DA CREAÇÃO DAS ESCOLAS

Estava tão desejoso e alvoroçado Pindaro para na creação escolastica passar aquellas duas columnas, que Leonardo e Alberto levantáram no estreito limite da policia civil, que, imaginando que lhe fugia o tempo, sem o dar ao doutor, para vir com elle, obrigou a Feliciano a que se fossem mais cedo a casa do D. Julio, dizendo-lhe pelo caminho:—Certo que não desejei cousa como alliviar ao doutor do [Pg 91] trabalho d’esta empresa; que, posto que a sua auctoridade culpa o meu atrevimento, tambem o amor, que tenho ás sciencias, o favorece.—Muito bem estivera na vossa mão (respondeu elle) por quão boa a tendes para tudo: porém não desejeis de a tirar da sua; porque até em aquillo, que eu sei muito melhor que outros, quizera antes ouvir aos que sabem mais, que escutarem-me elles: e a razão é, que, além de aos antigos estar tão bem a confiança, como aos mancebos o receio, vou pesando o que lhes ouço com o que eu tinha para dizer, e faço mais certo juiso de meu cabedal para outras occasiões. E n’este appetite me parecestes homem que sabe a historia que ouve contar, que se adianta nos passos d’ella ao que a vai dizendo, e por mostrar que a sabe, faz perder o gosto ao que a ouve, e o feitio a quem a relata. Lanço é de habil essa prestesa, e ferir lume com qualquer golpe; mas de sizudo dissimular as faiscas.

Não vos abataes a todo o passaro, ainda que seja da vossa ralé, que não haverá quem queira caçar com vosco.—Mas quereis (tornou o amigo) que me fizesse mar morto, sem levantar ondas quando me vem o vento tão fresco: muito repugna a agudeza do engenho á paciencia de um fleugmatico como vós, que não sei dobrar as mãos quando a pélla me vem pular aos pés; e cedo vereis se tem razão a minha cubiça.—Perto estaes (disse Feliciano) do desengano, e muito mais perto da casa de D. Julio.

N’esta pratica chegaram a ella, e não muito depois os companheiros, e como Solino, em entrando, os vio sentados, disse logo:—Todavia viestes deante para mostrares que ereis os mordomos da festa: e muito confiados na eloquencia, e auctoridade do doutor, vos parecerá que tendes a fogaça em casa, e eu cuido o contrario, se eu entrar na lucta, e vos não valer; que o dia, que se prega de um Santo, é elle o maior de todos.—Não sei que tendes contra as lettras (disse Leonardo) que, sendo tão grande amigo de Pindaro, vos picaes sempre contra a sua profissão.—Dir-vos-hei (respondeu Solino) o d’onde isso nasce; e é que as lettras não posso negar que são cousa boa, mas assentam as mais vezes sobre ruim papel; e como é feito de trapos, tenho achado tantos [Pg 92] n’elles, que me aborrecem.—Melhor dissereis trampas, (tornou elle). Porém no amigo que por vos fizeram?—Ir-se-me todo em lettras (replicou Solino)—Não é razão (accudiu o doutor) que vos adeanteis tanto para me tomar a estrada: deixae-me primeiro falar, que eu vos darei tempo quando me quizeres arguir; que, por mais que se apure a vossa murmuração, não pode diminuir os quilates e preço das sciencias.

—Pede razão o doutor (disse D. Julio) e porque elle e os mais desejavam de o ouvir, fizeram silencio; e elle começou d’esta maneira:—Duas cousas me envergonham n’esta empreza, que a puderam facilitar em outro sujeito, a clareza manifesta da muita vantagem que tem a creação das escolas a todas as outras. A segunda poder mostrar deante com exemplos vivos o que hei de provar com razões menos sufficientes, e que sempre á sua vista ficarão limitadas. Porém para accudir á obrigação, em que me puzeram, deixo a que tenho ás lettras, que era não pôr em disputa, como cousa duvidosa, o seu merecimento, e a muita differença que faz o estudo d’ellas a todos os outros exercicios; porque as escolas, e universidades do mundo, que foram instituidas para o governo e conservação d’elle, são o coração dos reinos, onde estão fundadas, do qual sáem as operações principaes para o regimento da vida civil. E se, como diz Cassiodoro, ha tanta distancia do que alcançou sciencia ao idiota, como de homem ao que o não é: julgae quanto importe a creação das escolas, onde todas se aprendem, em differença de outras profissões, em que só por experiencia e communicação chegam algumas sombras das vivas côres da sabedoria. Esta é a razão, porque Diogenes buscava um homem entre os que o pareciam: e o porque disse do que viu estar sentado sobre um penedo que estava pedra sobre pedra. E assim como os metaes, que entre ellas se criam, sáem brutos, e toscos e desconhecidos, até que por via da fundição e beneficio da arte tem lustro, preço e merecimentos, assim a forja, em que se apuram os homens, e se põem nos quilates com que hão de ter a valia que a este nome se deve, são escolas, nas quaes da mesma maneira, que por alchimia de cobre se faz ouro, n’ellas de um idiota, e quasi bruto se faz homem com saber, merecimentos, e [Pg 93] sufficiencia para se avantajar do vulgo. E começando da grammatica das linguas, que é o primeiro degrau das lettras, ou, como disse um auctor grave, a primeira porta por que se entra a todas as sciencias, com cujo beneficio ellas se conservam, e se perpetúa a memoria das coisas; ainda que, como escreve Quintiliano, tem mais de trabalho, que de ostentação; é, como diz Izidoro, o fundamento de todas as artes liberaes, e disciplinas nobres. A esta dividem alguns em artificial, historica, e propria: que a primeira ensina o concerto, e disposição das lettras, com que escrevemos; a ortographia, e propriedade das palavras que falamos; a segunda, e terceira pertencem ao conhecimento dos logares, e obras dos historiadores, e poetas, e a explicação do que n’elles por antiguidade, e differença da lingua está escuro e duvidoso, mórmente nas tres linguas hebraica, grega, latina, das quaes triumphando a carreira dos annos deixou em muitas edades differença. Na primeira da hebraica e chaldêa. Na segunda na grega commum, attica, dorica, laconica, e eloica. A terceira em prisca, latina, romana, e mixta: e em umas e outras, e na propria de cada um ensina a grammatica a pronunciação das lettras, o som, e accento diverso das palavras, a distincção das vogaes, e consoantes, e a ordem de falar com pureza, e policia. E se este primeiro degrau é tão necessario aos homens, que parece que sem o conhecimento d’esta arte lhes não é licito abrir os beiços; que será levantar-se, e subir ao cume mais alto das sciencias, e disciplinas nobres? O segundo degrau d’esta escada é a logica, arte, que ensina a distinguir e fazer differença do falso ao verdadeiro, e do torpe ao honesto; e como o entendimento é causa do obrar, assim o é ella do entender: é o peso, e balança, em que se conhecem todas as cousas leves, e pesadas; arte, que não sómente ensina a saber a verdade de todas as cousas, mas a poder manifestal-a aos que mentem; reduzindo a dez cabeças, ou predicamentos, toda a variedade de cousas que o mundo tem, achando o verdadeiro modo de definir a todas ellas, e descobrindo os generos, especies, differenças, substancias, e accidentes; esta ensina diversos modos de arguir, provar e sustentar o que concebemos no entendimento: pelos quaes officios é esta arte tão celebrada, que [Pg 94] Platão, e depois d’elle Santo Agostinho a fizeram parte da philosophia, dividindo-a em moral, natural e racional. Aristoteles, Scoto, e outros lhe chamam sciencia, e instrumento de saber: de cujo testemunho, e verdade se alcança que sem o conhecimento d’ella não pode um homem falar seguro entre os outros. E posto que ha tão boas disposições de entendimentos, que naturalmente discorrem, e conhecem sem favor da doutrina estas miudezas; comtudo sem o favor da arte escurece ás mais vezes a clareza do engenho. O terceiro logar é da rhetorica, que ensina a falar bem, e a persuadir aos ouvintes com razões bem concertadas ao intento do que pratica, não fazendo o fundamento na verdade do que diz, senão no concerto, e semelhança da razão, com que obriga, e move. E porque d’esta arte se fala mais diffusamente n’esta conversação em favor da linguagem portugueza, passarei d’ella á poesia, arte tão nobre, e desejada, que, trabalhando sempre os invejosos por escurecer seu preço, lhe não puderam tirar o que hoje tem na opinião e exercicio dos principaes senhores de Hespanha: e bastava para o seu grande valor ser conhecido ter n’ella o fundamento toda a philosophia, pois Plutarco conta, e Aristoteles confessa que todos os philosophos, e suas diversas seitas se derivaram das poesias de Homero: e não só deu principio a ella, mas Prometheu, Lino, Muzeu, e Orfeu, e esses mesmos, e outros deram fundamento ás deidades, que os antigos ritos da gentilidade veneravam. E deixando a recommendação de seus louvores para quem com vivo exemplo pode tratar d’elles, dizendo de sua perfeição, e grandeza o que eu em tão limitadas horas não posso dignamente declarar; passarei á mathematica: e, como a parte principal d’ella, á geometria, arte tão excellente, e tão necessaria ao cortezão, que favorece todas as boas partes que n’elle se requerem; e tão natural ao sabio, que Platão tinha na entrada da sua escola um letreiro que dizia: não entre n’esta casa homem, que não saiba geometria. E Filo Hebreu diz d’ella, que é princeza, e mãe de todas as disciplinas. E Francisco Patricio na sua republica, soccorro, e presidio de todas as artes. E Platão escreve d’ella estes louvores, que levanta o animo, e pensamento ao estudo da verdadeira philosophia, o [Pg 95] que é necessaria para a conquista de todas as disciplinas, favorecendo a arte militar no formar dos campos, dispôr os esquadrões, recolher e dividir as companhias, sustentando a cosmographia em suas medidas, a architectura em suas proporções, a arithmetica, e musica em seus numeros, e a outras infinitas; medindo em todas ellas as fórmas, espaços, grandezas, medidas, corpos, pesos, e todas as cousas que d’elles se compõem; e de medida de agua, vento, terra, nervos, cordas, e cousas semelhantes, como torres, fortalezas, relogios, moinhos, e instrumentos de musica; consta de linhas rectas, curvas, flexuosas, perpendiculares, planas, parallelas, e de angulos, rectilineo, curvilineo, direito, agudo, e obtuso; finalmente de superficie, circulo, circumferencia, centro, diametro, e outros nomes, e termos naturaes d’aquella arte, que na pratica commum parecerão peregrinos, e de que é bem que o homem cortezão se não ache alheio. Atraz d’esta se segue sua companheira a astrologia, sciencia tão levantada, que penetra da terra os segredos das estrellas, tratando do mundo em universal, e em particular, das espheras, dos orbes, do movimento, e curso d’elles: das estrellas fixas, e de seus aspectos: da theorica dos planetas: dos eclypses do sol, e da lua: dos eixos, ou pólos celestes: dos climas, e hemispherios: de circulos diversos excentricos, epyciclos, retrogrados, raptos, accéssos, e recéssos, e outros semelhantes: e de outros muitos movimentos pertencentes aos céos, e ás estrellas, de cujo curso, e estações de tempos se faz natural juizo das cousas futuras tocantes á agricultura, e navegação, não admittindo a especie supersticiosa dos mathematicos, que é a astrologia judiciaria. E passando d’esta á philosophia, sem cujo conhecimento parece que os homens não podem alcançar perfeição alguma; é tão levantada, que lhe chama Santo Izidoro, no II das suas Etymologias, sciencia de todas as cousas divinas, e humanas, em quanto é possivel ao homem alcançar d’ellas. E Platão diz que ella é o maior bem, que Deus concedeu aos homens: porque ella é a lei da vida, a estrada da virtude, a fortaleza contra os vicios; a fórma das acções humanas, o lume de nossas obras, a ordem dos pensamentos internos, regra do entendimento, a mestra dos nossos costumes, e descobridora dos segredos elementares: mas comtudo [Pg 96] não chegou a conhecer a philosophia christã, a qual envolve as tres virtudes theologaes, cujo proprio officio é o que escuramente Platão tocou em seus louvores: e finalmente a contemplação de todas as cousas supremas do céo: e para as da terra ella é a chave que abre os segredos da natureza: que ensina a viver com disciplina; que destroe os erros, e aclara a confusão, e trevas do entendimento; une as differenças; restitue o governo com ordem; rege as cidades com justiça; e administra as nações com sabedoria. E repartindo estes attributos seus pelas cinco partes, em que se divide, physica, ethica, economica, politica, metaphysica; a primeira trata dos principios naturaes, e movimentos, quietação, finito, logar, vacuo, tempo, especies de movimento, medidas do tempo, até chegar ao primeiro e supremo movedor de tudo. A ethica se emprega na composição dos costumes, e na moderação das paixões humanas, em que consiste a felicidade da nossa vida. A economica ensina o governo, e regimento particular da casa, familia, mulher, filhos, e criados. A politica dá os preceitos á legitima ordem, e governo das republicas, reinos, e cidades, assim em razão dos que mandam, como dos que obedecem. A esta chamou Isocrates alma das cidades; porque n’ellas faz o mesmo officio, que a alma em um corpo. E Socrates lhe chamou sciencia dos principes; porque a elles mais, que aos outros homens, pertence o conhecimento d’ella. A metaphysica trata das cousas, por altissimas, segregadas de toda a materia sensivel, e ainda intelligivel do modo que os bons metaphysicos n’esta divina sciencia praticam. Finalmente considera as fórmas separadas, passando da contemplação das da natureza á das sobrenaturaes; das corporeas, das idéas, dos atomos, da materia prima, da introducção das fórmas, do fado, da eternidade do céo, dos transcendentes, das intelligencias assistentes ás espheras celestes. De modo, que só nos principios moraes d’esta sciencia está fundada toda a doutrina da côrte, e da milicia, que nas noites dos dias atraz se tem mui doutamente praticado. Na physica que é, como tenho dito, a primeira parte da philosophia, está fundada a arte da medicina, que assim pelo importante sujeito em que [Pg 97] se emprega, como pelas artes, e sciencias, que lhe ajunta, e encadeia, é o conhecimento d’ella mui digno do homem sabio, e bem nascido. Esta se divide em empirica, methodica, dogmatica, ou racional. A primeira é fundada sómente na experiencia dos remedios, nas virtudes das hervas, pedras, plantas, e animaes. A segunda considera sómente a substancia das enfermidades, sem respeitar conjuncção, tempo, logar, região, edade, natureza, ou habito. A terceira, não despresando a experiencia, nem a razão dos exemplos d’ella, abraça tambem as naturaes, em que está fundada a arte. Na ethica politica tiveram principio as nobilissimas profissões, e sciencias das leis civis, e sagrados canones, e derivadas d’estas fontes da philosophia, e do direito natural, e divino.

E se, como disse Solon, a republica, que não tinha leis, semelhava um monstro, que não tinha mais que o parecer humano; assim se pode imaginar o homem, que não tiver noticia d’ellas, que, por serem tão importantes ao mundo, endeusaram os antigos todos os inventores d’ellas, como Saturno, Belo, Minos, Pheaco, Solon, Licurgo, e outros muitos: e os nossos maiores fizeram leis segundo a differença dos estados; não umas sós, por que todos se governassem, mas convenientes ao genero da vida que cada um tomava. E assim os que apartados do gremio da republica civil se empregam no serviço da egreja, obedecem ás leis que os summos pontifices, e os concilios dos padres ordenaram, que são os Canones Sagrados: porém os seculares se governam pelas leis, e ordenações, que os seus reis fizeram, ou confirmaram; recorrendo em os casos, a que os particulares não alcançam, ás leis imperiaes dos romanos, e disposição do direito commum. E de quererem confundir esta tão necessaria differença os perfidos scismaticos, negando auctoridade ás leis allumiadas pelo Espirito Santo, na cega confusão das suas, que fundam em sua depravada liberdade, vivem em escuras trevas: sendo como disse Tullio as leis vinculo da republica, fundamento, e segurança da liberdade, e fonte da justiça. E por vos não parecer que na minha profissão particular me extendo muito, deixo o que d’ellas pudera dizer, que é infinito, começando dos primeiros legisladores até o estado presente, em que esta profissão está tão levantada, e [Pg 98] ennobrecida. E só pela reformação do imperador Justiniano estão em seus volumes escriptas doze mil e setecentas e sete leis, tiradas de muitas mais que confusamente estavam nos livros romanos derramadas. E subindo da metaphysica á divina theologia, fundada sobre a verdade evangelica, se apura um homem, e chega ao mais alto a que se pode levantar o entendimento humano. Esta se divide em escolastica, e escriptura: a primeira é a que com argumentos fortes, razões demonstrativas, e provas invenciveis, disputa contra os hereges, e infieis, em todos os dogmas importantes á verdade da Fé Catholica Romana: como é da Trindade, e Omnipotencia de Deus, da presença divina, da predestinação, do livre arbitrio, da graça, da justificação, da gloria; do peccado, das penas, do logar do Purgatorio, dos Sacramentos, e dos Artigos de nossa Fé. A Escriptura consiste na interpretação, e exposição da Sagrada Escriptura, segundo os quatro principaes sentidos d’ella, que são literal, moral, tropologico, e anagogico: com cuja noticia dada aos homens por meios da sciencia, como antes foi dada por revelação aos prophetas, apostolos, e santos padres, não só dão perfeição ao sabio, mas o fazem parecer uma semelhança de Deus na terra. E supposta esta grandeza das sciencias, com cujo lume fica tão claro o entendimento humano como tenho dito, que outra cousa é universidade, que uma côrte especulativa, em a qual se sabe o que nas dos reis se executa; onde á vista dos doutores prudentes, na lição dos mestres escolhidos, na communicação dos nobres bem acostumados, na conversação modesta dos religiosos, está o nobre em uma continua lição de policia, tendo por palmatoria de seus erros a vergonha de os commetter á vista de tantos censores d’elles; ajudando a advertencia de lhes fugir a curiosidade com que se espreitam, e a liberdade com que se reprehendem: pois a entrada nas escolas, a assistencia nas aulas, qualquer pequeno descuido se rebate com os pés dos que n’ellas assistem, obrigando a todos á compostura do rosto, á quietação do corpo, á modestia do trajo, á pontualidade na cortezia, ao cuidado no falar, e não se querer algum fazer singular entre os outros. Tem as escolas além d’estes um bem, que favorece esta opinião, e é que de ordinario os que as buscam, [Pg 99] ou são filhos segundos, e terceiros da nobreza do reino, que por instituições dos morgados de seus avós ficaram sem heranças, e procuram alcançar a sua pelas lettras; ou são filhos dos homens honrados, e ricos d’elle, que os podem sustentar com commodidade, nos estudos; ou religiosos escolhidos nas suas provincias, por de mais habilidade, e confiança para as lettras, e assim fica sendo a gente mais creada do reino; differença, que não pode haver na côrte, e na milicia. E á vista de tantas vantagens, sem tratar de outras particularidades menos importantes, me parece que tenho mostrado o quanto seja mais, que todos os outros exercicios, proveitoso o das lettras, pedindo por a dignidade d’ellas ao prior, e a Pindaro, e Feliciano, que tomem á sua conta aperfeiçoar o que eu não soube dizer, pois o exemplo de suas partes é a mais legitima prova de minhas razões.—As vossas (respondeu o prior) menos dão logar a glosas, que a invejas; e se essa me deixara dizer os louvores que vos devo, renovára no vosso sujeito os das escolas, pois n’ellas nos mostrastes o que sois, que é um mappa de todas as sciencias, tão perfeito, distincto, e intelligivel, que parece que as pode medir qualquer rasoado entendimento; porque recolhidas em vós como em proprio centro estão na sua altura.—Esta vantagem (accudiu Feliciano) tem os que sabem perfeitamente, que não é só para si, mas para ensinarem aos com que falam. Certo estava eu que o doutor sabia de tudo o que disse, não só os termos, e fundamentos, mas ainda o mais difficultoso, e substancial de todas as artes, e sciencias: mas o praticar dellas de modo, que eu as entendesse, é graça de seu saber, e não sufficiencia do meu engenho.—Tambem essa sua submissão (disse Leonardo) é grande prova dos merecimentos de vossa habilidade, que a essa nada ficaria escuro, senão o que por culpa de quem falasse estivera confuso: porém em mim se vêem mais os poderes do doutor, que o posso agora parecer no que lhe ouvi.—A isto (accudiu Solino) todos dizem amen, amen, sinò D. Sancho que calla. Pindaro está descontente, pois que emudeceu: se o deixarem, elle vos fará guerra.—Para que a quereis commigo (respondeu Pindaro) se as razões e a occupação da noite é do doutor? a elle podeis contradizer; que para o que calla não servem argumentos.—Bem sei (replicou elle) [Pg 100] onde estão os páus; mas quizera costear a bolla por este rodeio, que todos os lettrados sois como cerejas, que se vem após uma todas as outras.—Ahi não ha cousa boa sem contradicção (disse D. Julio) ouçamos as de Solino, e veremos quem tem lebre.—E por vós correrdes esta (lhe disse elle) metteis os cães na mouta, e quereis (como dizem) tirar a sardinha com a mão do gato: na vossa tendes a faca, e o queijo, cortae, que não falta por onde: que eu não tenho nenhuma cousa contra o doutor, salvo se elle me deixar com os outros do seu gráu que o não merecem; que eu farei um A, B, C, por onde á primeira vista lhe conheçam logo as lettras.—Já desde hontem (disse o doutor) os tendes ameaçado; e eu consenti no desafio: não sei agora a causa, porque o temeis.—Porque (disse elle) tendes no campo muitos padrinhos da vossa parte, que o são minhas n’esta demanda. Porém dae-me licença, que em boa paz vá botando a rasoura a esses louvores das sciencias que accogulastes; e sabereis que de cento não ha um lettrado, que não traga cascavél, por onde lhe conheçaes a altura em que anda como furão; e se o tirardes do bairro de sua profissão, se perde na metade da hora do dia, como em bêcco sem sahida: para o que eu tenho um astrolabio excellente, que me deu a experiencia em penhor do serviço de alguns annos sem galardão, que ainda o tempo me deve. Primeiramente, como o vós virdes falar por secundum quid e metter a materia prima, e dividir em abstracto, accudindo a um ergo, e a fortiori, assentae-m’o por logico: mas se vos falar em superficie plana, e figura quadrilatera, corpo rotundo, semicirculos, e outras semelhantes cousas, entendei que é geómetra, se o ha no mundo. Se vos disser dos nervos opticos, dos meatos, intestinos, veias mezeraicas, palpitações, sufocações, apoplexias, ophtalmias, matriculae-m’o na medicina: se vos desandar com uns pontinhos das regras de direito, que são os anexins dos juris-consultos, e falar em ad rem, e jus in re, e em liti pendente, e in rei veritatem, in foro exteriori, e outros verbos d’esta linhagem, não escapa de jurista. Ora os theologos, que pela preeminencia, e grandeza de sua profissão tem logar apartado aos dois lanços se alevantam da conversação com a materia dos anjos, e dos auxilios, e outras, em que vos deixam o entendimento em jejum, [Pg 101] sem darem um bordo á commum, e civil conversação dos cortezãos. Pois se qualquer d’estes, que digo, acerta de ser official de grammatica, além de debruar tudo de versos de Ovidio, e de sentenças de Plauto e de Terencio, por levar o portuguez arrastro até o fazer latim, fala por septe, docto, scripto, e benigno. De maneira que para bem, e conservação da lingua portugueza, e para se não corromper de todo, me parecia que se houveram de arruar os lettrados; que receio, se se misturam, que em poucos annos nos achemos em uma certa Babylonia.—Não cuidei (disse o doutor) que estaveis hoje tão venial; a isso chamam morder na capa: esperava eu que viesseis com algum libello mais rigoroso contra os lettrados; que essas palavras, que se lhes pegam dos termos das mesmas sciencias, não são defeituosas, ainda que não sejam vulgares; porque muitas vezes significam mais propriamente que as outras.

—Bem esteve o libello (replicou Solino), mas se lhe quereis uns artigos accumulativos, com a auctoridade d’um auctor moderno, diz elle que tres cousas deu Deus ao homem de maior estima, que os letrados lhe tem deitado a perder, que são corpo, fazenda e consciencia: o corpo os medicos que com suas purgas, xaropes e sangrias, nem a invenção da polvora foi mais prejudicial que elles para a vida. A fazenda os legistas, que com demandas, embaraços e conluios a põem cada dia em passamento, sem haver entre a poeira de suas encontradas opiniões quem enxergue a verdade: e ainda para si proprios vereis poucos medicos sãos; e nenhum legista vencer demanda sua. Dos da consciencia não quero tratar por ser cousa perigosa: mas ha muitos que fazem por esta parte grande damno. E posto que isto não é culpa das sciencias, senão dos letrados, elles tiraram a innocencia fóra do couce, e abriram de par em par as portas á malicia, semeando enganos e hypocrisias, de que andam mais inçadas as escolas, que de nanteos de fêsto: isto é quanto á linguagem e aos costumes: que na policia do vestir, a sua anda fóra do roteiro dos cortezãos; porque o letrado que se quer trajar galante, como não sabe por uso, segue extremos; porque ou traz a espada que lhe dá com os cabos nas virilhas, ou tão alta que lhe vem comer á bôcca; e por fazer addições ao vestir de modo accrescenta de [Pg 102] novo que se conhecem na côrte os estudantes entre os outros homens, como podengos de agua pela guedelha: e pelo costume do barrete, ou tiram o chapéo de meio a meio, ou o penduram pela ponta do cairel, como em tenda de sirgueiro.—Bem sei (disse o prior) que quem vos agora fôr á mão dará nova materia á vossa habilidade: mas sem embargo de todas as culpas que arguis aos letrados, que eu agora não trato de defender, por vos não ajudar a vós e offender a elles, vós sabeis a differença que elles fazem aos outros homens, que não aprenderam; pois sem habilidade, exercicio e doutrina não se alcança sabedoria, de maneira que muitos idiotas não fazem um letrado.—Tambem eu sei (respondeu Solino) que muitos letrados não fazem um homem cortezão; e que este ás vezes vence em pouco tempo o que elles trabalharam em muitos annos: porque além de ser comprido o caminho das sciencias por preceitos, e breve por exemplos, o cortezão, que o é, põe de sua parte maior desejo de saber uma cousa que o estudante: e é certo que alli tem maior força o engenho onde está mais prompta a vontade: e no que toca aos letrados pudera eu agora trazer um par de historias em meu favor, que cabiam n’este proposito.—A essas (disse Leonardo) não faltará logar em nenhum tempo, porém é gastado parte do d’esta noite: e pois esta foi das lettras, não mettamos contra ellas maior cabedal.—Agora (acudiu Pindaro) lhe destes jogo, porque lhe parece que nos perdoou aquellas historias; sendo cousa clara que toda a sua opinião nasceu de uns principios de grammatica que teve; que, depois de ferrugentos n’aquella edade, os alimpou com a cinza do borralho d’esta aldeia para se levantar contra os que sabem; sendo sua murmuração puras fezes de idiota; e se o virem entre os rusticos do termo falar latins, notar prégações, aconselhar em demandas, e applicar medicinas a enfermos, dirão que é manta de retalhos das escolas, e presa-se de dizer mal do que acredita.—Já parece (respondeu Solino) que tomastes folego, que estaveis mui mortal: a verdade é que não sois agudo, senão quando vos dou quatro fios sêccos na minha sufficiencia; e de a eu ter para tudo, me nasce abranger aonde vós não chegaes; que, segundo a [Pg 103] capacidade dos que aprenderem, aproveita a doutrina dos que ensinam: e sabei outra cousa, que se não póde chamar sabio o que não conhece os nescios, e d’estes que nenhum se conhece a si.—No se maten tales dos (disse Leonardo) deixemos as letras em paz, e a Solino com seu credito; que são horas de partirmos esta briga, e acabar por hoje a conversação.—Em todas me é de proveito o vosso favor (disse Pindaro) e mais agora que estava colerico contra meu amigo; que, ainda que o não pareça no modo com que me encontra, eu o sou seu na verdade com que o amo, e estimo suas cousas.—Amisade (respondeu elle) quando é segura não periga, nem quebra em tão pequeno salto; que nem por este deixaremos de ir juntos para casa. E querendo os mais levantar-se, começaram alguns a fazer juizo das duas noites passadas com aquella: porque cada um era interessado na profissão que se seguia, se calaram deixando a eleição ao voto de quem o tiver desapaixonado, se ha algum que ao menos na inclinação o não seja á côrte, armas e lettras, de cujo fructo, se são muitos os queixosos por parte da ventura, nenhum ha que da sua propria sufficiencia se mostre descontente.—Eu o estou de mim (disse o doutor) porque esta madrugada determino fazer um caminho á cidade, em que me hei de deter alguns poucos de dias, e esses hei de ter de penitencia na falta de tão boas noites: e para isto peço licença ao sr. D. Julio.—Porque consentir n’essa (respondeu D. Julio) é obedecer-vos, o faço muito á minha custa, com tal condição, que volteis com muita brevidade, que sem vós nem podem estas praticas ir deante, nem deixarei de sentir agora muito mais a falta de vossa conversação, partindo-se ámanhã, como determina, para a sua egreja o sr. prior.—D’essa maneira (acudiu Solino) faço conta que se dividiram os dialogos das noites de inverno, e que ficam servindo esta, e as passadas de uma primeira parte d’ellas, que se continuará com a vossa boa vinda; e em tanto se apurarão os entendimentos e a linguagem para materias e sujeitos mais escolhidos que sejam proveitosos e agradaveis aos ouvintes.—Em muitas outras cousas (disse Leonardo) soffrêra eu intervallos, mas n’esta conversação os sinto agora por extremo; por [Pg 104] isso, já que n’ella nos tendes bem acostumados, não tardeis muito.—Até nos gostos (tornou o doutor) a muita continuação causa fastio; pelo que os auctores discretos, por não cansarem com elle o juizo dos curiosos, dividem seus volumes em partes, e essas em capitulos e outras divisões, que com a novidade e brevidade, facilitem a leitura.—Fazem elles muito bem (disse Solino) que ha uns livros sem estalagens, tão compridos como leguas do Alemtejo, que os deixa um homem muitas vezes no signal da cruz, por se não atrever a os levar de um trago. E tambem os poetas nas suas comedias, que são mais proprias para recreação e passatempo, dividiram a obra em actos, a que agora chamam jornadas, e essas repartiram em scenas; e por divertir da gravidade e decóro das pessoas introduzidas, inventaram os comicos modernos entremezes e bailes. Não vos detenhaes muito, e tornaremos ao nosso exercicio com maior desejo e melhor cuidado.—Eu o terei (respondeu elle) de fazer pouca tardança; que o interesse me não deixará cahir em descuido, quanto mais esta nova obrigação em que me pondes.

Dizendo isto se levantou, e os mais o vieram acompanhando, feita primeiro cortezia ao senhor da casa, e aos hospedes que ficaram n’ella. Em quanto com a falta daquelles assistentes a houve tambem na conversação das noites que se seguiram, será justo que descansemos um pouco da continuação d’este estylo; que se ao gosto dos curiosos leitores fôr bem acceito, sahirá brevemente á luz outro volume de dialogos, que espera vêr o successo dos primeiros; pois esta virtude de escrever não tem no auctor d’elles outro fructo mais, que a satisfação dos animos affeiçoados a seus escriptos, aos quaes com o trabalho de suas obras deseja pagar a vontade e opinião com que acreditam.

FIM DA “CÔRTE NA ALDEIA”


[Pg 105]

ECLOGA
CONTRA O DESPRESO DAS BOAS ARTES

[Pg 106]


[Pg 107]

ECLOGA
CONTRA O DESPRESO DAS BOAS ARTES

(Bieito, Aleixo, Corino.)

BIEITO

Uma novilha dourada,
Que anda naquella floresta
Com uma estrella na testa
Silva branca e remendada,
Viste, Aleixo, d’onde veio,
Que anda alli sem companhia?

ALEIXO

Quiçais se derramaria,
Será d’algum gado alheio.
Para nós se vem chegando,
E se eu tenho ainda o meu tino.
A novilha é de Corino,
E o pastor anda-a buscando.
É n’estes pastos extranha,
Veio ha pouco a seu curral,
Acha-se no campo mal,
E foge para a montanha.

[Pg 108]

BIEITO

E d’onde houve aquella rez.
Que elle poucas vacas cria?

ALEIXO

Ganhou-a n’uma porfia
Nas festas, que Ergasto fez.
Houve então grão desafio
Em lucta, canto, e louvores,
Venceu todos os pastores
Da serra, e d’além do rio.

BIEITO

Muito sabe, mui bem canta,
Muito faz quem se lhe atreve:
Como dança! como é leve!
Que voz tem! como a levanta!
Viu, correu muitas aldeias,
Viveu numa, e n’outra parte;
E com ser só na nossa arte,
Sabe o muito das alheias.
E segundo tenho ouvido,
Já elle houve outro cuidado
Bem longe de guardar gado
Com o nosso trajo, e vestido.
Foi na villa dos melhores:
Mas uma dor bem sentida
Fez que deixasse essa vida,
E buscasse a dos pastores.
Mas ainda quando se eguala
Com o nosso modo aldeão,
D’outra sorte dá razão,
D’outra sorte canta, e fala.

[Pg 109]

ALEIXO

Digo-te que assim parece;
Que logo na arte, e no geito
Tem uma graça, um respeito,
Que aos pastores nos fallece.
Vêl-o? assoma na ladeira;
Anda o bom pastor sem tino,
Chamo por elle, ah Corino.

BIEITO

Não responde com canceira.
Cá anda a tua estrellada.
Para nós vem, já nos vê:
Façamos que um pouco estê
Com nosco n’esta abrigada.
Que uma hora do seu falar,
E um lanço do seu saber,
Nem é para se perder,
Nem é para se pagar.

CORINO

Deus vos salve: venho morto.

ALEIXO

Senta-te descançarás.

CORINO

Corri todo o valle atraz,
E ainda agora tomei porto.

ALEIXO

Tens a novilha segura;
Descansa e descuida d’ella.

[Pg 110]

CORINO

Folgo de achal-a, e perdel-a
Já não tenho em má ventura.
Porque é tão grande interesse
O de vossa companhia,
Que de ganho ficaria
Quando de todo a perdesse.
Ha muito que estais aqui?

BIEITO

Já sol fóra nos juntámos,
E até gora não cantámos:
Foi dita esperar por ti.

CORINO

Eu não sei negar-me: agora
Vedes que venho cansado,
Que não me quero rogado:
Cantára, se isto não fôra.
Faz seu officio a edade,
Sou já velho, a voz fallece:
Mas se a vontade merece,
Tendes bem certa a vontade.

BIEITO

Toma alento; então nos dá
O que sem te ouvir não temos;
Que a vaca nós a traremos.
E t’a levaremos lá.
Faze-nos prazer que ouçamos
Aquelle cantar primeiro,
Que te ouvimos no ribeiro
Quando acaso te topamos;
Que mui gabado, e mui raro
Para a coisa de que trata.

[Pg 111]

CORINO

Canto emfim: que quem dilata
Dizem que quer vender caro.
E pois que em al não mereço,
Quero colher d’isto o fruito.

BIEITO

Tudo o que dizes val muito,
Mas isso só não tem preço.

(Canta Corino)

“Aqui nesta montanha,
Aonde este trajo humilde, e despresado
Dos homens não se extranha;
Aonde só com um cajado,
Vence a fortuna um pobre desarmado;
Aonde não tem valia
As mais custosas pedras do Oriente,
E as riquezas que cria
O mar, que ousadamente
Commetteu cubiçosa, e cega gente;
Aqui n’esta rudeza
Só de humildes pastores escolhida,
Aonde a natureza,
Já menos offendida,
Dá doce amparo á desejada vida;
Aqui meu desengano
Góso contente, e minha liberdade,
Livre d’aquelle dano
Da cega vaidade,
Que corrompeu nos homens a vontade;
Aqui de burel grosso
Me vestirei contente, e esquecido
D’aquelle traje nosso
Tão vão, tão mal trazido,
Dos primeiros principios esquecido.

[Pg 112]

Qual entre a concha amada
A tartaruga tem quieto abrigo,
Não se teme de nada,
E no maior perigo,
Escondida entre si, vive comsigo;
Tal o meu pensamento
Não quero que á ventura o logar deva;
Que não ha mór isento.
Nem que melhor se atreva,
Que o que tudo, que tem, comsigo leva.
Qual cobra na espessura,
Que deixa entre os espinhos esquecida
A velha vestidura,
E d’ella já despida,
Como anguia no mar, renova a vida;
Assim quando me vejo
Que começo a viver n’esta mudança,
Contento meu desejo,
Troco minha esperança,
Não quero mais de enganos, que a lembrança.
A cauta cotovia,
Vendo o ligeiro imigo, o voo nega;
N’elle não se confia,
Com a terra se apega,
Porque ali com as azas não lhe chega.
D’esta arte se defende
O Pastor despresado da ventura,
Que ella sempre pretende
Descer da mór altura
Quem cuida que no alto se assegura.
Da lã d’este meu gado
Coberto escaparei, terei socego;
Que n’ella disfarçado,
Em perigo mais cego,
Escapou do gigante o cauto grego.

[Pg 113]

E o meu desejo acceso,
Que encontrando a razão mal se empregava,
Ponha em mãos do despreso
Os bens que procurava,
Da liberdade minha, que era escrava.
Adeus doces enganos;
Já parece razão que vos despida,
Viveis ha muitos annos,
Deixae-me agora a vida,
Que, em quanto a vós tivestes, foi perdida.”

BIEITO

Ah! Corino, quem podera
Dizer agora o que sente,
Se, só com te vêr prezente,
A voz não lhe emmudecera.
Confesso que estou culpado,
Mas não só de atrevido:
Mil vezes te tenho ouvido,
E só agora escuitado.
Quem te trouxe entre pastores,
Aonde esta vida t’extranha?
Que póde dar-te a montanha,
Senão rusticos louvores?
Quem não sabe conhecer-te,
Como saberá presar-te?
Mas ainda acertaste em parte,
Pois vinhas para esconder-te.
Não fieis da serra tanto;
Que al vai de vêl-a a sentil-a:
Torna pastor para a villa,
E serás na villa espanto.
Não apouques ao teu muito,
Não vivas n’estas aldeias,
Aonde entre as ramas alheias
Se não conhece o seu fruito.

[Pg 114]

CORINO

Louvores mal empregados,
Quando as partes são presentes,
Menos deixam de contentes.
Pastor, que de envergonhados.
Porém te affirmo, Bieito,
Que n’estas nossas montanhas
Ás boas partes, e manhas
Se tem ainda algum respeito.
Que eu já na villa tratei
Muitos mezes, muitos annos,
Trouxe d’ella os desenganos,
Com que aos matos me tornei.
Aprendi muito, e bradavam
Os mestres para ensinar-me:
Ensinaram-me a queixar-me,
Porque todos se queixavam.
Depois de ter conhecido
Homens, e o seu proceder,
Aprendi a me esquecer
De quanto tinha aprendido.
Ouvi gabar esta vida,
Este trajo, este cajado;
Busquei-a agora obrigado
Da que já tinha perdida.
Que ainda cá por esta serra
Se ama o saber; se deseja,
Lá não lhe deixa a inveja,
Lugar, em que estê na terra.
Não se tecem já coroas
Para as partes estimadas;
Entre nós de envergonhadas
Se encolhem as artes boas.

[Pg 115]

Saber, e conhecimento
Fazem já desmerecer;
De sorte, que o não saber
Serve de merecimento.
Assim que é melhor partido,
Ao que busca o que convém,
Enterrar partes se as tem,
E andar dos outros vestido.

BIEITO

Á fé que não dizes mal
Quem m’o disse hora? qual dia?
Que o bem que perde a valia,
Porque entre os homens não val.
Cresce a virtude louvada,
A planta favorecida,
A vontade agradecida,
E a parreira alevantada.
Fui domingo a vêr a lucta,
E outros com grande alvoroço;
Vim encantado d’um moço,
Que alli cantava em disputa.
Dos pastores mais gabados
Tinha á roda mais de mil,
Que ao som do seu rabil
Estavam como enlevados.
Perguntei, vendo occasião,
Onde, e que gado guardava,
Entre nós? que eu n’isto dava
Primeira fé de affeição.
Eis quando alli se murmura,
Que se ia d’estas aldeias
A buscar terras alheias,
Ou buscar n’ellas ventura.

[Pg 116]

Engeitou-lhe a natureza
O bem de seu natural;
Então sustenta-se mal
A arte onde se despresa.

CORINO

As hervas que os gados pascem,
E as flôres que os olhos vem,
Mais poderes do sol tem,
Que não da terra onde nascem.
O grão, que na varzea cresce,
Com humidade arrebenta:
O sol cria, o chão sustenta,
Levanta-se e reverdece.
O enxerto já crescido
Com o sol, e agua accommodada,
Se cae sobre elle a geada,
Secca-se murcho, encolhido.
O bom natural é parte,
Que o despreso desanima:
Como a cousa não se estima,
Não podes d’ella prezar-te.
Vi eu d’isto uma pintura
Com arte e modo extremado;
E se inda estou bem lembrado,
Tinha ella esta figura:
Um mancebo que encaminha
Vôar com desejo acceso,
D’uma mão atado um peso,
Na outra umas azas tinha;
Uma livre, outra sujeita,
E dizia a lettra assim:
Se esta pésa contra mim,
Est’outra que me aproveita?

[Pg 117]

Quanto melhor parecera
Valer menos tudo o mais,
E que ás partes naturaes
A mão, e o favor se déra!
Em que se hão de conhecer
Os homens, se n’isto não?
Que em forças vence o leão,
E outro animal qualquer.
Nas partes que o mundo présa,
Quantas feras vão deante,
No corpo, gesto e semblante
Nas forças, na ligeiresa?
Só no saber as vencemos,
Com elle as senhoreamos;
E quantos n’isto encontramos,
Que nos vencem, não soffremos.
D’isto, em que o mundo se pôz,
Nasce já que os animaes
No que eram tão deseguaes,
Nos podem vencer a nós.
Não posso ter soffrimento
N’esta queixa, e não me val;
Que acanha um baixo metal
A um subido entendimento.
Os homens como pintura
Falam só com o que apparece:
Cada um monta e merece
Pelas mostras da figura.
Dizem que já n’outra edade
Falaram os animaes,
(E eu creio que por signaes
Inda hoje falam verdade).

[Pg 118]

Ouvi cantar como então
Se fez valente, e temido
Um vil jumento escondido
Nos despojos de um leão.
Emquanto de longe o viam
Os outros, fugiam d’elle;
Eram milagres da pelle
Do rei, a que elles temiam.
Quiz falar, buscou seus damnos,
Que os outros com raiva crúa
Fazem pagar pela sua
Da outra pelle os enganos.
Quantos ha na nossa aldeia
Leões e lobos fingidos,
Que houveram de andar despidos,
Se não fôra a pelle alheia!
Sem sabor, sem consciencia
Andam com ella entre nós,
Conhecem-os pela voz,
Honram-os pela apparencia.

BIEITO

O bom tempo é já perdido;
N’este de agora, em que estamos,
Taes somos, que nos mostramos
Ou no tracto, ou no vestido.
Vendem-se as mostras de fóra;
Al era no tempo antigo;
Deus dê repouso a Rodrigo,
D’isso canta, e d’isto chora.
Eram tempos deseguaes,
Tratava a sorte melhor;
Se ás partes davam louvor,
Não lhe negavam o mais.

[Pg 119]

Se Franco cantava bem,
Era por isso estimado:
E hoje quiçaes que é culpado
Por essa parte que tem.

CORINO

Muitos annos ha que dura
O queixume em toda a parte,
De vêr que não póde a arte
Vencer em tudo a ventura.
Mas se houve alguns queixosos
N’esses bons tempos passados,
Quantos houve levantados?
Quantos houve venturosos?
Com muitos provára o dito;
Mas calo-os, porque em respeito
Contar poucos é defeito,
E todos fora infinito.
Não demos culpa á edade
Com tudo que é desacerto:
Temos a causa mais perto,
Porque é nossa enfermidade.
Que estes desprezos que vemos,
Do bom saber, da boa arte,
Não se usa em toda a parte,
Que al na terra onde nascemos.
Nas outras ainda se présa;
(E não sei se diga mais)
Nós, e os nossos naturaes
Somos de má natureza.
Queremos grão mal ao bem,
(Se isto se póde dizer)
Sómente pelo querer
A quem o merece, e tem.

[Pg 120]

Verás um pastor, dotado
De mil graças excellentes,
Andar entre as nossas gentes
Assim como homiziado.
Descontente, e mal vestido,
De encolhido não se atreve;
E assim como o homem, que deve,
Sempre só, sempre escondido.
E a causa, que lhe sobeja,
Porque traz em companhia
Saber, que é mercadoria,
Que deve muito á inveja.
Coitado do passarinho,
Que nasceu no valle escuso,
Aonde nem canta por uso,
Nem ha quem lhe saiba o ninho.
Coitado do que nasceu
N’esta nossa terra ingrata,
Que tão mal conhece e trata
Bens da sorte, e dons do céo.
Que o mais honrado, e mais dino
Pelas partes naturaes,
Não lhe serve de ser mais,
Senão de ser mais mofino.
Sempre cae, sempre periga:
No que ama, no que procura
Faz-lhe acintes a ventura,
Que é declarada inimiga.
De tudo lhe nega o fruito:
Se com pouco se sustenta,
É-lhe do pouco avarenta;
E se de muito, é de muito.

[Pg 121]

Agua, Fogo, Terra e Ar,
Sol, Estrellas, Austro e Norte,
Tudo lhe negára a sorte,
Se lh’o pudéra negar.
E os homens por condição,
Ao que devem mór corôa,
Se lhe vem vir sorte boa,
Vão-lhe mil vezes á mão.
E qualquer que a causa seja,
É bem baixo o fundamento
Ou de fraco entendimento,
Ou de mui forçosa inveja.
Vão mil por este caminho
De erros qu’eu contar não posso:
Pesa-nos do bem que é nosso,
Quando o vêmos n’um vizinho.
Ouvir qualquer extrangeiro
Falar de seus naturaes,
Dá d’elles tão bons signaes,
Que o não tem por verdadeiro.
Falem-vos n’um natural,
Dizeis faltas que não tem:
Mente o outro para bem;
Nós mentimos para mal.
Deixemos para outra dia
Os queixumes, que é já hora;
Que a meu pesar deixo agora
A elles, e a companhia.

ALEIXO

Da tua é para sentir
A perda: mas bens não duram,
Porque os muitos, que os procuram,
Os tem affeito a fugir.

[Pg 122]

Comtigo iremos andando,
Que isto tambem foi partido:
E pois o valle é comprido,
Bem podemos ir cantando.
Que eu quero da minha parte
Mostrar que na voz me atrevo:
E se não pago o que devo,
Mostro que não sei pagar-te.

CORINO

Tu farás como eu presumo,
Que é como o melhor da aldeia;

ALEIXO

Ante ti quem não receia?
Quanto mais eu, que o costumo.
Vamos, qu’eu quero ir deante:
Por este caminho estreito
Torna a novilha, Bieito.

CORINO

Chega manso, não se espante.

FIM DO SEGUNDO VOLUME


INDICE

DIALOGO IXDA PRATICA E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS 3
DIALOGO XDA MANEIRA DE CONTAR HISTORIAS NA CONVERSAÇÃO 9
DIALOGO XIDOS CONTOS, E DITOS GRACIOSOS E AGUDOS NA CONVERSAÇÃO 24
DIALOGO XIIDAS CORTEZIAS 37
DIALOGO XIIIDO FRUCTO DA LIBERALIDADE E DA CORTEZIA 49
DIALOGO XIVDA CREAÇÃO DA CÔRTE 63
DIALOGO XVDA CREAÇÃO NA MILICIA 79
DIALOGO XVIDA CREAÇÃO DAS ESCOLAS 90
ECLOGA CONTRA O DESPRESO DAS BOAS ARTES 107

NOTAS DO EDITOR

Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos.

A pontuação, a hifenização e a ortografia foram tornadas consistentes quando uma preferência predominante foi encontrada no texto original; caso contrário, não foram alterados.

As aspas irregulares foram corrigidas quando a mudança era evidente e, caso contrário, foram deixadas de acordo com o original.