The Project Gutenberg eBook of Verdadeiro metodo de estudar (Vol. I)

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Title: Verdadeiro metodo de estudar (Vol. I)

Author: Luís António Verney

Release date: August 14, 2023 [eBook #71405]

Language: Portuguese

Original publication: Valensa [Nápoles: oficina de Antonio Balle [Gennaro e Vincenzo Muzio, 1746

Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)

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VERDADEIRO
METODO
DE ESTUDAR,

PARA
Ser util à Republica, e à Igreja:
PROPORCIONADO
Ao estilo, e necesidade de Portugal.
EXPOSTO
Em varias cartas, escritas polo R. P. * * * Barbadinho
da Congregasam de Italia, ao R. P.
* * *
Doutor na Universidade de Coimbra.

TOMO PRIMEIRO.

VALENSA
NA OFICINA DE ANTONIO BALLE.
ANO MDCCXLVI.
COM TODAS AS LICENSAS NECESARIAS, &c.


AOS REVERENDISIMOS
PADRES MESTRES,
DA VENERAVEL RELIGIAM DA COMPANHIA
DE JEZUS.
No Reino, e Dominio de Portugal.

ANTONIO BALLE
OBZEQUIOZAMENTE SAUDA.
 

Saiem à luz, Reverendisimos Padres, as cartas eruditas, de um autor moderno: as quais até agora corrèram manuscritas, por algumas maons: mas chegando às minhas, e conhecendo eu, que podiam utilizar a muitos, me-rezolvi impremi-las. O argumento delas é este. Certo Religiozo da Universidade de Coimbra, omem mui douto, como mostra nas suas cartas; pedio a um Religiozo Italiano, seu amigo, que vivia em Lisboa; que lhe-dèse algumas instrusoens, em todo o genero de estudos. O que o dito Barbadinho executa, em algumas cartas: explicando-lhe em cada-uma, o que lhe-parece: e acomodando tudo, ao estilo de Portugal. Este autor escreveo-as, sem nem menos suspeitar, que se poderiam impremir: como consta de alguns periodos destas, que nam impremi; e de outras que conservo, em que declara com mais individuasam, o motivo desta conrespondencia: e explica varias coizas, que aqui nam se-acham. Onde, para consolar o dito autor, que nam sei se ainda vive, e fazer o que dezejava; nam impremi senam as que me-parecèram necesarias: e ainda nestas ocultei os nomes dos conrespondentes, e de algumas pesoas, que nelas se-nomiavam: parecendo-me justo e devido, nam revelar os segredos, das conrespondencias particulares: principalmente, quando podia conseguir o fim, de utilizar o Publico, sem prejuizo de terceiro. As cartas encadeiam tam bem umas com outras, que se-podem chamar, um metodo completo de estudos. podem servir para todos; mas especialmente sam proporcionadas, ao estilo de Portugal: pois este era o fim do autor. Protesta ele nas mesmas cartas ineditas, que nam dera em varias coizas, melhor metodo; porque temia, que o seu amigo mostráse as cartas, a pesoas preocupadas: as quais nam fariam nada, se lhe-aconselháse tudo, o que praticam em outros Reinos: e que por iso se-acomodava ao gosto, do paîz em que estava. E nam cesava de encomendar-lhe, que as-nam-lese a omens, que interpretasem mal as suas palavras; e as-aplicasem, a outro sentido.

E querendo eu agora impremir estas cartas, a quem as-devo dedicar, senam a VV. RR.? Prezumo, e com muita razam, que se o autor ouvèse de publicar estes escritos, a ninguem mais os-ofereceria, que a esa sagrada Religiam: visto mostrar a cada paso, o respeito e venerasam, que lhe-profesava. E sendo eu nam menos propenso, e obrigado a toda a Companhia; quero tambem mostrar-lhe o meu reconhecimento, nesta pequena oferta. Se a minha posibilidade dèse mais, mais faria: mas as forsas nam conrespondem aos dezejos: e VV. RR. costumam estimar mais a vontade, que as ofertas. Alem diso, por todos os titulos deviam estas cartas, ser consagradas ao seu nome. Sam VV. RR. aqueles, que só podem ajudar, os pios dezejos deste autor: aqueles, que só tem forsas, para iso: e finalmente aqueles, que mais que ninguem dezejam, o adiantamento da Mocidade, e se-cansam, para o-conseguir. Acrecento, que o autor confesa, que tudo aprendèra, com a diresam desa Roupeta, e polos seus autores. E asim, torno a dizer, por todos os titulos estes livros, se-lhe-devem dedicar.

Quam oportuna ocaziam se-me-oferecia agora, de referir os louvores desa veneravel Religiam, se a moderasam, e umildade de VV. RR. nam me-tapáse a boca! Quem tem dado mais, e mais ilustres escritores a ese Reino, que a Companhia? Quem tem promovido com mais empenho os estudos, que os seus mestres? Onde florecem as letras com mais vigor, que nos seus Colegios? Que omem douto tem avido em Portugal, que nam bebèse os primeiros elementos, nas escolas desa Religiam? Nam leio as istorias dese Reino, e Conquistas, que nam veja a cada paso, exemplos memoraveis, da grande piedade, da suma erudisam, do inexplicavel zelo dos seus Religiozos! VV. RR. que abrîram no-Oriente as portas, ao Evangelho, tem trabalhado com tal empenho, na vinha do Senhor; que se contamos somente os Povos convertidos, tem conquistado para a Fé, e tambem para o Reino, imperios vastisimos. Nem sei a quem atribua maior gloria: se às armas vitoriozas dos Portuguezes, no Oriente; se às pias exortasoens, e fadigas, dos seus Misionarios. Mas se é mais gloriozo o triumfo, que se-consegue sem sangue, somente com a forsa da eloquencia, sem prejuizo dos Povos, e com grande utilidade da Republica: ficam VV. RR. muito mais gloriozos, que os mesmos ilustres Generais Portuguezes; pois conseguîram a vitoria, nam dos corpos, mas dos animos. Vencèram VV. RR. nam derramando o sangue dos outròs, mas o proprio: e com ele escrevèram o seu nome, nam só nos livros da fama, e destas istorias caducas; mas no-mesmo livro da-vida: e levantáram um padram naquela patria, em que as virtudes se-estimam: premeiam-se dignamente os servisos: e a gloria dos vitoriosos nam morre. Nam me-volto para a Africa, para a America, que nam veja os Religiozos da Companhia, convertendo os idolatras, ajudando os fieis, ensinando a todos. Aî mesmo em Portugal, quem á que nam seja obrigado, à Companhia; e nam experimente os influxos, desa benigna Religiam? Quem ja mais chegou, a uma das cazas desa Religiam, para buscar um confesor, a qualquer ora da noite; que nam ficáse consolado? um Pregador, para qualquer festividade; que nam fose obedecido, ainda sem interese? quem foi pedir conselho, em materias de conciencia; que nam tivese promta resposta? quem quiz um parecer escrito, em qualquer materia que o-quizese; que nam tornáse satisfeito? Se olho para as prizoens, vejo os Religiozos da-Companhia consolando os aflitos, procurando os livramentos, confesando, e confortando a todos. Se olho para as prasas, e ruas publicas, vejo os mesmos Religiozos, doutrinando os ignorantes, excitando a emulasam nos-meninos, atraindo com suave maneira os que pasam, para ouvirem a verdade Evangelica. Se olho para as igrejas, vejo-os frequentes no confesionario, exortando os fieis em dias determinados, exatisimos nas funsoens divinas, que celebram com toda a magnificencia, e devosam. Se olho para as escolas, vejo-os ensinando aos meninos com grande amor, e paciencia, nam só as letras, mas a piedade, que em toda a ocaziam lhe-inspiram. As mesmas portarias das suas cazas, ensinam com o exemplo; nos muitos martires, e doutos, que nelas vemos pintados; que muda, mas eficazmente persuadem, seguir a mesma estrada: e ensinam com a doutrina, nos livros que nelas incontramos, que suavemente inclinam a vontade, para abrasar a vida perfeita. Finalmente se olho para qualquer Religiozo da Companhia, vejo o retrato da continencia, da moderasam, da mansidam, da afabilidade, do respeito: coizas que me-infundem um sagrado terror. Bemdita Religiam, em que o Prelado nam se-distingue do Sudito, senam em ter mais trabalho, e suportar o pezo, do governo economico. Ninguem aspira aos governos: ninguem busca meios de conseguilos: sinal certo, que se-administram com os olhos em Deus, e na sua obrigasam. Nam á distinsam de magisterios: nam á izensam de graos. O mesmo que ensina a Teologia na cadeira, ensina o catechismo nas prasas: o mesmo que confesa os Grandes, confesa os Pequenos: o mesmo Prelado que manda aos mais, obedece, e serve nas ocazioens a todos. Finalmente todos conspiram, para dar gloria a Deus, utilidade ao proximo, e servir no que podem à Republica.

Nam quero trazer à memoria, o que esa sua Religiam tem feito, e faz, nas mais partes da Europa Catolica. Deixo de parte, a inviolavel uniam que sempre teve, com a Sé Apostolica: e as persiguisoens, e censuras criticas, que tem sofrido por esa cauza. Nem menos falo na gloria, que rezulta à Companhia, de ver que tantas Religioens, e Congregasoens, que se-fundáram despois dela, todas a-tem tomado por treslado: e nam julgam merecer com justisa, os louvores dos omens pios, senam quando se-avizinham mais, ao seu instituto. Este é um milagre continuo daquele bemaventurado espirito, que la no-Ceo está sempre pedindo a Deus, pola propagasam, e aumento da Religiam que ca deixou: unir tantas vontades, para imitarem uma Religiam, que nam conta longa serie de seculos, mas que é a mais moderna, entre as famozas. Nam, nam quero referir mais singularidades. Intraria na verdade em uma materia vastisima, que me-daria argumento, para muitos e dilatados panegiricos; mas excederia os meus limites. Só considero, o que faz em Portugal, e o que pratîca no seu dominio. Estas coizas ocupam de sorte a minha ideia, e admirasam, que me-nam-permitem considerar o demais, aindaque seja grande e singular. Nem tem que me-dizer, que as outras Religioens sagradas todas se-cansam em obzequio da Igreja: ensinam muito, e edificam muito. Confeso, que todas tem as suas singularidades: todas merecem ser louvadas: todas dam gloria a Deus, e servem à Igreja: mas cadauma no seu genero. Nam vejo alguma, que tenha todas as prerogativas, que se-acham juntas, na Religiam da Companhia: e que as-pratique, nam por vaidade, nam por outro interese mundano; mas por amor de Deus, e por caridade do proximo. Estam todos os Portuguezes tam persuadidos, desta verdade, que quem quizese dizer o contrario, serîa publicamente escarnecido. Os mesmos Monarcas de Portugal, que sabem justamente estimar a Virtude; nam costumam intregar, a diresam da sua conciencia, senam aos Religiozos da Companhia. Desde que VV. RR. intráram neses Reinos, conspiráram todos eses Soberanos a reconhecèlos, como prudentisimos diretores, da conciencia dos omens: e por iso os-elegèram, para seus Confesores. Os Principes, a Caza Real, os Grandes, a maior parte dos omens de letras, e empregos, todos praticam o mesmo. Nam é posivel, que se-inganem tantos omens, de diferentes gerarchias, e de incontrados intereses, sem que os-obrigue a experiencia, e a verdade. Em todos os seculos, e entre todos os omens de juizo, o consenso de todos, foi argumento irrefragavel, da evidencia. Todos os omens prudentes louvam a VV. RR. todos os-engrandecem, todos os-buscam, todos se-servem das suas prendas, e virtudes: E asim sam VV. RR. tais como eles intendem.

Mas eu PP. RR. ja saî fóra do-meu argumento. Comesei uma carta, e acho-me engolfado em um elogio: caî naquilo mesmo que dezejava evitar. Nam sei se ofendi a sua moderasam, com as minhas expresoens: que é verdade que nacem do corasam, e sam proferidas com toda a sinceridade, de um bom amigo; mas emfim sam elogios. Nam obram VV. RR. polos louvores: mas por um fim mais alto, mais grande, mais admiravel. Nam obram bem para o-parecerem, e paraque todos o-conhesam; mas porque o seu instituto asim obriga: asim foram criados: vivem persuadidos diso mesmo: e nam podem obrar de outra sorte. Este é o elogio, que aquele encarecido Romano[1] deu la, ao seu Catam Uticense, com adulasam excesiva: mas que eu intendo, que só se-pode aplicar a VV. RR. nam com lizonja, mas com verdade notoria; porque o-digo publicamente, e a todo o mundo. Asim é, nam obram bem os Religiozos da Companhia, para agradar ao mundo, e conseguir os seus louvores: e dejando eu fazer-lhe a vontade, nam devo opor-me aos seus dezejos. Verdade é, que falando desa Religiam, dificultozamente podia deixar de expremir, alguma coiza do que intendo. Mas VV. RR. nam mo-permitem; eu me-desdigo, e dou por nam dito, quanto até aqui tenho significado. Só digo, que lhe-ofereso, e dedico as cartas de um autor, que conforme julgáram os omens doutos, que as-lèram, conheceo o verdadeiro modo de estudar: e para o-conseguir, deu excelentes doutrinas: e quem as-ler com animo dezapaixonado, e tiver voto na materia, achará nelas tudo o que é necesario, para aquistar o bom gosto literario; quero dizer, um juizo critico, que ensine abrasar somente o que se-deve, em todo o genero de estudos. Acho nelas algumas vezes, certas palavras, e diversidade na uniam dos-Pronomes, e outras particulas com os Verbos &c. conforme o idiotismo Italiano; que o autor pode ser que mudáse, se lhe-puzese a ultima mam: porque me-parece, que era bem informado da-lingua Portuguesa, e nam pecou por-ignorancia. Mas se nelas á algumas coizas que emendar, e acrecentar, quem melhor o-pode fazer, que VV. RR. Comque ponho-as nas suas maons, e ofereso-as ao seu criterio: e só direi o que me-pertence, a cerca da prezente edisam.

O autor segue uma Ortografia particular, (que eu, movido das mesmas razoens, abrasei) e que ainda nam está bem recebida, nese Reino: e asim para nam parecer novidade, será precizo ler as cartas, como se-acham impresas: observando bem a primeira, na qual dá razam, da sua Ortografia. Mas como em outras cartas explica varias coizas, que aqui nam se-acham; devo declarálas, paraque os leitores formem conceito, das opinioens do autor. Em certa carta, escrita entre a primeira, e segunda do primeiro tomo, diz, que nam obstante que disèse[2], que a linha se-pode pór entre as disoens, para evitar os equivos: v.g. na particula por, quando significa cauza, para a-distinguir do-verbo pòr: ou tambem nas particulas no, do, da; para as-distinguir dos sustantivos , , e do verbo, , dás: Contudo observando ao despois, que podia embarasar os principiantes, ver as linhas nestas particulas, que sam frequentes; julgára mais acertado, tirálas das ditas particulas: como tambem de todas as terminasoens plurais dos verbos: v.g. disera-mos, amaria-mos, quizer-mos, fizer-des &c. pola razam que estas terminasoens sam mui frequentes, e todos as-intendem mui bem. Acrecenta, que tambem nam se-deve pòr, naquelas palavras e verbos, em que se-acrecenta uma letra, para evitar a uniam de vogais, que fasam equivocos, v.g. fazèla, quando vale o mesmo, que fazer-a, isto é, fazer esa coiza. Tambem quando se-introduz o pronome no verbo: v.g. dirmeám, que vale o mesmo que, diram-me: falosîa, obrigalosîa, que muitos escrevem mal asim; falos-ia, obrigalos-ia: porque a dita palavra compoem-se destas: faria-os, obrigaria-os: acrecentando um l, para facilitar a pronuncia das-vogais: onde separando, ia, separam uma parte necesaria da palavra, e fazem erro. Nestes cazos diz, que basta o acento em fazèla, dirmeám, obrigalosîa. Aindaque na primeira e semelhantes, quando sam imperativos, faze-la, quere-la &c. que valem, faze-a, quere-a; nam reprova que se-ponha a linha, para mostrar que é esdruxola, e que se-pronuncîa diferentemente. Asimque para facilitar a Ortografia, somente deixa as ditas linhas nestes cazos. I. Na uniam dos pronomes com os verbos, ou das particulas que servem de pronomes, e sam diferentes das terminasoens dos verbos: v. g. fazemos-lhe, lhes-fazem, nos-dizem, dizem-no, o-dizem, as-querem. II. Nos verbos impesoais, que unem com o reciproco: fazem-se, chamam-se, se-nam-fazem: ou tambem nestes; nos-explicarmos, nos-virmos &c. e outras unioens semelhantes: como no verbo á quando une com a particula se: porque sempre se-pronuncîa unido: se-á-de, ám-de &c. Tudo isto advertîra confuzamente, no lugar apontado: mas aqui o-explica melhor. E com efeito tendo escrito com as linhas, as primeiras trez cartas, nas seguintes observa as regras, que aqui dá. E devendo eu, ou tirar as linhas de todas, ou polas em todas, para proceder coerente; segui esta segunda parte: aindaque em algum plural de verbo, alguma vez a-nam-puz. A quem nam agradar, observe as regras que o noso autor dá; que eu tambem observo.

Adverte na mesma carta o autor, que serîa utilisimo, que os omens doutos, seguindo a regra da pronuncia, puzesem i em muitos verbos, e nomes que deles nacem, que se-pronunciam geralmente com i; e nam se-podem pronunciar com e, sem se-esforsar: v.g. emprestar, engrandecer, envergonhar &c. Diz porem, que ele só o-praticou em poucos, e mais comuns, v.g. intrar, incontrar, inganar, intender, ingenhar, importar, informar, e algum outro rarisimo. O que fez, para nam escandalizar de um jato os leitores, pouco informados destas coizas: mas aconselhava, que pouco a pouco se-introduzisem com i. Como tambem se-escrevesem com e, alguns infinitos, v.g. admetir, permetir, defirir, &c. nam obstante se pronunciarem com i, os prezentes &c.

Em algumas partes, de duas ou trez palavras compoem o autor uma só: damesma, contantoque, namobstanteque. Outras vezes escreve-as separadas: com tanto que, nam obstante que, &c. o que eu conservei na impresam. Mas diz o autor que o-fez, para mostrar, que se-podem unir, e separar, como cadaum quizer: O que fazem os seus Italianos, em varias palavras; e os mesmos Latinos em paulo minus, nihilo minus, quam ob rem, et enim &c. que escrevem ou separadas, ou juntas, como lhe-parece mais elegante. Mas o noso autor comumente escreve-as unidas.

Algum erro de Ortografia segundo os tais principios, se-cometeo nesta edisam: o que moralmente nam se-podia evitar, nam sendo o mesmo autor, o que correge a impresam. Estes parece-me que se-podem reduzir, a varios capitulos. I. Puzeram algumas vezes acento agudo, em lugar do grave; e polo contrario: o que o autor distingue mui bem. II. Falta o acento em algumas palavras, em que o autor costuma polo, ou para evitar equivoco, ou para facilitar a pronuncia: v.g. serîa, verbo; e seria adjetivo: escrevèram, preterito remoto; e escreverám, futuro: fórma, nome da escola; e forma, nome de artifice: &c. aindaque neste particular o contexto, comumente tira o equivoco. III. Acha-se alguma linha, em parte onde nam devia, ou falta onde devia: mas sam cazos mais raros. IV. Varias vezes escrevèram i, por e, em admitir, defirir, prefirir, permitir &c. que o autor sempre escreve por e, admetir &c. conformando-se, segundo diz, com a pronuncia comua, e facil, que sempre exprime o e, tirando em bem poucos. Polo contrario puzeram tambem e por i, em ingano, incontrar, intrar, inganar &c. que o autor sempre escreve por i, pola mesma razam da pronuncia. V. Falta alguma virgula onde devia estar, segundo os principios do autor: e alguma se-acrecentou. VI. Dividîram algumas palavras mal no-fim das regras: v.g. min-ha, con-heso, mel-hor, ba-sta, &c. devendo porem o n, e l das primeiras unir-se com h; e o s da segunda com o a. Em inco-gnito, per-spetiva, e outras poucas que tem origem Latina, ou sam quazi Latinas; intendo que è melhor, dividilas nesta fórma, seguindo o estilo Latino.

Estes erros sucedèram mais frequentemente, nos principios de ambos os tomos, que se impremiam juntos: tempo em que o corretor nam tinha toda a noticia, da Ortografia do autor. Mas como os ditos erros nam pervertem o sentido do-discurso; por iso os-nam-apontei nas erratas. E asim só apontei aqueles, que me-parecèram que mudavam o sentido, ou que eram totalmente contrarios, ao estilo do autor, ou comum da dita lingua. Com as reflexoens que aqui aponto, pode o leitor cortez emendàlos, quando s’incontrarem: tendo à vista esta regra: Que achando-se diversidade em alguma palavra, que às vezes tem uma letra, e n’outras ocazioens letra diferente; observe o que é mais frequente; e saiba, que iso é o que o autor aprova.

Advirto alem disto, que os que impremîram o primeiro tomo, nam tinham U vogal maiuscolo pequeno, e asim servîram-se deste U, para vogal; e d’estoutro V, para consoante. No segundo tomo comumente se-distinguem na figura. Tambem advirto, que a minha imprensa nam tinha estas duas linhas =, para pòr no-fim da-regra, na divizam forsada das-palavras: (o que serîa necesario para distinguir, o que o autor aponta, na primeira carta) e asim puz somente, a linha simplez. O que advirto ao leitor, paraque nam estranhe, faltarem aquelas duas linhas, que o autor encomenda, e pratîca: aindaque com uma só linha, muito bem se-conhece, e distingue o sentido. Finalmente advirto, que puz alguns titulos das materias, no corpo de algumas cartas. v.g. na da Gramática, Medicina, &c. o que fiz, para facilitar a inteligencia aos leitores, e distinguir as materias. Isto é, RR. PP. o que tenho que advertir nesta carta, sobre a impresam, e inteligencia das-ditas cartas. O mais que se-contem nelas, compendiei nos-sumarios, que puz no-principio de cadauma, e tambem se-acham no-Index, de cada tomo. Nem me-pertence amim formar juizo delas, quando as-ofereso a pesoas tam doutas, de quem eu devo receber os ditames. Onde acabo a prezente carta, repetindo de novo a VV. RR. a venerasam que lhe-tenho, e dezejando-lhe as maiores felicidades, e a toda a sua Religiam.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Velleio Paterculo.

[2] Carta I. pag. 36.


INDEX

Do que contem as Cartas do primeiro Tomo.


CARTA I.

Motivo desta correspondencia: e como se-deve continuar. Mostra-se, com o exemplo dos Antigos, a necesidade de uma Gramatica Portugueza, para comesar os estudos. Dá-se uma ideia, da melhor Ortografia Portugueza: e responde-se aos argumentos contrarios. Que o Vocabulario do Padre Bluteau se-deve reformar, para utilidade da Mocidade. Pagina 1.

CARTA II.

Danos que rezultam da Gramatica Latina, que comumente se-ensina. Motivos porque nas escolas de Portugal, nam se-melhora de metodo. Nova ideia de uma Gramatica Latina facilisima, com que, em um ano, se-pode aprender fundamentalmente Gramatica &c. pag. 59.

CARTA III.

Abuzos que se-introduzîram em Portugal, no ensinar a lingua Latina. Mao modo que os mestres tem, para instruir a Mocidade. Propoem-se o metodo, que se-deve observar, para saber com fundamento, e facilidade, o que é pura Latinidade. Necesidade da Geografia, Cronologia, e Istoria, para poder intender os livros Latinos. Apontam-se os autores, de que os mestres se-devem servir na Latinidade: e como devem servir-se deles; e explicálos com utilidade; e as melhores edisoens. Aponta-se o modo de cultivar a Memoria, e exercitar o Latim nas escolas. pag. 74.

CARTA IV.

Necesidade das linguas Orientais, principalmente Grega, e Ebraica, para intender as letras Umanas: mas muito principalmente, para a Teologia. Modo de as-aprender. Utilidade da lingua Franceza, e Italiana, para ser erudito com facilidade, e sem despeza. pag. 112.

CARTA V.

Discorre-se da utilidade, e necefidade da Retorica. Mao metodo com que se-trata em Portugal. Vicios dos Pregadores; que sam totalmente ignorantes de Retorica. Que absolutamente deve deixar o antigo estilo, quem quer saber Retorica. pag. 124.

CARTA VI.

Continua-se a mesma materia da Retorica. Fazem-se algumas reflexoens, sobre o que é verdadeira Retorica, e origem, dela. Que coiza sejam figuras, e como devemos uzar delas. Diversidade dos estilos, e modo de os-praticar: e vicios dos que os-nam-admitem, e praticam. Qual seja o metodo de persuadir. Qual o metodo dos panegiricos, e outros sermoens. Como se-deve ensinar Retorica aos rapazes, e ainda aos mestres. Algumas reflexoens, sobre as obras do P. Antonio Vieira. pag. 153.

CARTA VII.

Fala-se da Poezia. Os Portuguezes sam meros versejadores. Prejuizos dos mestres, de nam poetarem em Vulgar. Que coiza seja ingenho bom, e mao. Especies de obras de mao ingenho, em que caîram alguns Antigos, mas principalmente os Modernos. Necesidade do Criterio, e Retorica, em toda a sorte de Poezia. Primeiro defeito de Poezia, a inverosimilidade: exemplos. Segundo defeito, os argumentos ridiculos. Reflexoens particulares, sobre as compozisoens pequenas Portuguezas; que nam podem dar nome, a um omem: defeitos da Nasam, provados com exemplos. Reflexoens sobre o Epigrama Latino, Elogios, inscrisoens Lapidares, Eglogas, Odes, Satiras, poemas Epicos. Que os Portuguezes nam conhecèram as leis, do poema Epico; prova-se com Camoens, Chagas, Botelho de Morais. Aponta-se o metodo, com que se-devem regular os rapazes, no-estudo da Poezia. Nova ideia de uma Arte Poetica, util para a Mocidade. pag. 215.

CARTA VIII.

Trata-se da Filozofia. Mao metodo com que se-trata em Portugal. Advertencia das outras Nasoens, em procurar a Ciencia. Necesidade da istoria da Filozofia, para se-livrar de prejuizos. Ideia da serie filozofica. Danos e impropriedades da Logica, que comumente se-explica. Dá-se uma ideia, da boa Logica. pag. 276.


[Pg 1]

CARTA PRIMEIRA.
SUMARIO.

Motivo desta conrespondencia: e como se-deve continuar. Mostra-se, com o exemplo dos-Antigos, a necesidade de uma Gramatica Portugueza, para comesar os estudos. Dá-se uma ideia, da-melhor Ortografia Portugueza: e responde-se aos argumentos contrarios. Que o Vocabulario do-Padre Bluteau se-deve reformar, para utilidade da-Mocidade.

Meu amigo e senhor: Nesta ultima carta, que recebo de V. P. entre varias coizas que me-propoem, é a principal, o dezejo que tem, de que eu lhe-diga o meu parecer, sobre o metodo dos-estudos deste Reino: e lhe-diga seriamente, se me-parece racionavel, para formar omens, que sejam utis, para a Republica, e Religiam: ou que coiza se-pode mudar, para conseguir o dito intento. Alem disto, quer tambem, que eu lhe-dé alguma ideia, dos-estudos das-outras Nasoens, que eu tenho visto. Quanto às outras proguntas, parece-me que bastantemente respondo, inviando-lhe o papel incluzo: no-qual achará, tudo o que queria saber. Mas polo que respeita ao negocio, dos-metodos diferentes de estudos, duvidei por-algum tempo, se obedeceria a V. P. e tinha algumas razoens, que me-pareciam forsozas; suposta a grande pratica que tenho, deste mundo, e deste Reino. Eu sou Estrangeiro: e com dificuldade me-explicarei em uma lingua, que nam mamei no-berso. Que nas minhas cartas particulares, eu cometa erros, a bondade de V. P. mos-desculpa. mas se eu escrever em[Pg 2] materia, que se-posa mostrar a outrem; e me-fugir da-boca, alguma expresam menos propria; averá censores tam dezumanos, que me-condenem, por-escrever em lingua alheia, talvez sem advertirem, que iso está sucedendo todos os dias, aos mesmos nacionais, que frequentemente os-cometem. Alem disto, sempre foi coiza odioza, dar regras em caza alheia: e lembrando-me eu de alguns, que me-diseram muito mal, do-grande serviso que fez ao Reino o P. Bluteau, compondo o seu Vocabulario; via de longe, a tempestade que se-levantaria contra mim, se este meu parecer tivese a infelicidade, de sair das-maons de V. P. Mas a maior razam era, porque isto, de emendar o mundo, e principalmente o querer arrancar certas opinioens, do-animo de omens envelhecidos nelas, e consagradas ja por-um costume, de que nam à memoria; é negocio, que excede as forsas de um só omem: e principalmente de um omem, de tam pouco merecimento, e autoridade como eu. E V. P. que é tam versado na Istoria, pode trazer à memoria, mil exemplos destes, que deram, e ainda oje dam, ao mundo Literario, materia de grande admirasam. Lembrou-me tambem, que eu sou Religiozo, em uma Religiam, em que geralmente florecem pouco os estudos: e que, por-este principio, nam faltariam omens, ainda prezados de doutos, que, se chegasem a saber, de quem eram as cartas, as-desprezasem; sem terem a paciencia, de examinar as minhas razoens: por se-persuadirem, que certos acidentes exteriores, de emprego, vestido, &c. conduzem muito, para o merecimento das-obras: e que, sem pizar os ladrilhos de certas Universidades, nam se-pode fazer coiza boa.

Estas, e outras coizas, que se me-ofereceram à memoria, me-tiveram, como lhe-dise, duvidozo. Finalmente as repetidas instancias que V. P. me-faz: a sua grande autoridade: e as plauziveis razoens que me-alega, me-fizeram pegar na pena, para escrever o meu parecer. V. P. segura-me certas coizas, que nam sam de pouca considerasam. Diz-me, que oje á muita gente do-seu parecer, nam só entre os Seculares, mas tambem entre os Regulares: de que me-cita bons exemplos. Diz-me, que o bom gosto nas Artes, e Ciencias, se-comesou a introduzir em Portugal, no-feliz reinado deste Augusto Monarca: o qual nisto, tem ajudado mais o Reino, que todos os seus antecesores. Finalmente promete-me, que as minhas cartas, nam sairám da-sua mam, ao menos em meu nome. Com, estas condisoens, obedeso a V.P. e me-gloreio muito,[Pg 3] que um omem da-sua literatura, nam despreze o parecer, de um sugeito de tam pouca doutrina. Dividirei o argumento, em varias cartas: e como as minhas ocupasoens, e molestias mo-permitirem, irei comunicando a V. P. as minhas reflexoens. Devo porem, nesta primeira carta, fazer algumas protestas. Primeira: Que eu nam acuzo, ou condeno, pesoa alguma deste Reino. Se às vezes nam me-agradam as opinioens, nem por-iso estimo menos os sugeitos, e autores, distingo muito o merecimento pesoal, do-estilo de cada um, ou metodo que observa: e poso fazer esta separasam, sem ofender pesoa alguma.

Esta reflexam para V. P. é superflua, pois conhese mui bem o meu animo; e sabe, que eu só pego na pena, para lhe-dar gosto. Mas porque poderá ler esta carta, a algum ignorante, ou malevolo; que intenda, que eu, dizendo o que me-parece dos-estudos, com isto digo mal, da Religiam da-Companhia de Jezu; que neste Reino, é a que principalmente ensina a Mocidade: devo declarar, que nam é ese o meu animo. Eu venero esta Religiam doutisima, por-agradecimento, e por-justisa. Por-agradecimento, porque ese pouco que sei, eles mo-ensináram: e aindaque nas escolas nam aprendese tudo, aprendi-o conversando com eles particularmente, e lendo os seus autores. Sempre conservei com eles, intrinseca amizade: e disto conservarei uma memoria sempiterna. Por-justisa, porque sendo todas as Religioens veneraveis; esta o-é mais que todas, segundo a minha opiniam. Parece que mandou Deus à Igreja estes Religiozos, unicamente para utilidade dos-proximos, pois eles ensinam a doutrina, e piedade, com grande amor, e trabalho: sacrificam-se polos Fieis, em todas as ocazioens: e sam perpetuos defensores da-Igreja Catolica, como confesam os mesmos Erejes. Estes sam os motivos da-minha venerasam, e parcialidade por-eles. Mas asimcomo nem todos os Jezuitas, seguem as mesmas opinioens de doutrina, mas permitem aos seus mesmos, a liberdade de filozofar, dentro dos-limites do-justo; e uns sam contrarios de sentimentos a outros: Asimcomo alguns Jezuitas Estrangeiros, tem reprovado diante de mim, o metodo de Portugal; e alguns Portuguezes me-confesáram, que o-seguiam por-necesidade, e nam por eleisam; e confesáram limpamente, que se-podia, e devia emendar em muitas coizas: (achará V. P. muitos, que lhe-digam, que aquela Logica Carvalha, e Barreta, nam se-deviam explicar nas escolas, mas coizas mais utis: o que eu ouvi[Pg 4] muitas vezes) Asim tambem nam será maravilha, que eu me-desvie em muitas coizas, do-estilo que seguem, os Religiozos da-Companhia neste Reino: e reprove outras, que observam alguns dos-seus autores. Para tudo teria exemplos na mesma Companhia, e tambem em Portugal. Mas nam me-é necesario tanto: porque os mesmos Jezuitas, reconhecem de antemam esta verdade; e sabem, que, sem injuriar uma Religiam, pode um omem, ser de contrario parecer. Conhecem muito bem estes doutos Religiozos, que nestas diferensas de pareceres, nam deve entrar o corasam, porque estam fóra da-sua jurisdisam: e se-podem dar entre pesoas, mui unidas de inclinasam. Os Jezuitas todos sam prudentes: e nenhum omem prudente ignora, e contrareia estas coizas. Os individuos de uma comunidade, nem todos sam de igual talento: e as comunidades de uma Religiam, nem todas seguem o mesmo metodo. Alem diso, aqui em Portugal, á muita outra gente que ensina. os outros Religiozos, ensinam os seus, e os de fóra. os mestres seculares, tambem ensinam. E asim as minhas opinioens, podem ter por-objeto, nam uma só pesoa. Isto me-basta advertir, a estas pesoas, que querem saber mais que os autores: e quererám explicar, e interpretar mal as minhas palavras. Onde concluo, que a todos venero, e estimo mui particularmente: somente direi, o que me-parece se-devia fazer, para poder instruir com fruto. A segunda coiza é: que eu nam me-cansarei, em escrever Portuguez elegante: mas me-servirei das-palavras, de que comumente me-sirvo, no-discurso familiar. Nas materias de doutrina, por-forsa devo servir-me, de algumas palavras, que nam sam Portuguezas: o que tambem fazem os Latinos, quando tratam semelhantes pontos. porque no-estado em que as coizas estam, nam se-servindo das-ditas palavras, nam é posivel, explicar bem as materias. E asim deve V. P. estar preparado, para nam se-admirar, de alguns termos novos; e para me-desculpar, os erros que posa cometer. Ocorre-me ainda terceira: e vem aser, que eu suponho, que V.P. me-dispensa, de citar todos os momentos autores, de que tiro algumas das-noticias, que lhe-diser. com tanto que eu aponte, o que é necesario, nam emporta quem o-diz. Basta que eu diga, uma vez por todas, que a major parte do-que digo, experimentei eu mesmo: outras coizas, observei em terceira pesoa; ou li em autor aprovado. V.P. olhe para a razam, em que eu me-fundo: porque esta deve valer mais, que a autoridade extrinseca.[Pg 5] Tambem incidentemente digo, nam a V. P. que sabe conhecer as coizas; mas a algum, que posa ler estas cartas: que, se algumas vezes apontar como optimos, alguns autores Erejes; nam louvo neles a sua particular religiam, mas a erudisam, ou metodo. Comumente avizarei, quais sam os Erejes, paraque nam se-leiam, sem licensa devida. Mas se acazo me-esquecer entam advertilo, aqui o-advirto para sempre.

Comeso pois nesta carta, pola Gramatica: que é a porta dos-outros estudos: da-qual depende, a boa eleisam dos-mais. Porque muitos nam intendem, o que significa este nome, por-iso nam fazem, grande progreso na Gramatica. Eu, ainda que falo com V. P. que o sabe, falarei daqui emdiante, como se faláse, com quem o-nam-soubese.

A Gramatica, é a arte de escrever, e falar corretamente. Todos aprendem a sua lingua no-berso: mas se acazo se-contentam com esa noticia, nunca falarám como omens doutos. Os primeiros mestres das-linguas vivas, comumente sam molheres, ou gente de pouca literatura: de que vem, que se-aprende a propria lingua com muito erro, e palavra impropria, e pola maior parte palavras plebeias. É necesario emendar com o estudo, os erros daquela primeira doutrina. Uma razam, aindaque boa, um pensamento exquizito, exposto com palavras toscas, ou que nam signifiquem, o que se quer; dezagrada muito, e comumente nam persuade. Contudo iso por-muitos seculos, se-contentàram os Omens, de falar, como primeiro lhe ensináram. Nam foi senam despois do-terceiro milenario, que os Omens se-aplicáram a falar bem. Foram os Gregos os primeiros, de que a Istoria nos-aponta, que se-aplicasem a este estudo: e tal vez os unicos, entre todos os Orientais. A sua Gramatica consistia, em conhecer bem as diferensas das-letras: ler, escrever, e falar bem. Explicavam tambem os Poetas; nos-quais aprendiam a Politica, e Religiam. O governo da-Grecia, que era quazi todo de Republica, (nas quais as publicas asembleias do-Povo, deliberavam nos-maiores negocios) lhe-inspirou este dezejo. conhecéram eles, quanto emportava falar bem, para falar em publico: e se-aplicáram tanto a iso, que deram, e ainda oje dam, documentos a todo o mundo. Talvez niso foram mais escrupulozos doque convinha: porque, para conservar a sua lingua pura, nam queriam aprender, lingua alguma estrangeira. Estavam tam satisfeitos, das-belezas da-sua lingua,[Pg 6] que quazi desprezavam as outras todas. desorteque quando os Romanos, despois de vencidos os Gregos, os-transportáram a Roma; avendo nesta tantos, e de diferentes gerarchias, se-observou (como nota um autor de bom juizo) que os Romanos, aprenderam o Grego: mas nenhum Grego, estudou a lingua Romana: aindaque com o uzo, alguma coiza intendese. E este costume, durava ainda nos-tempos de Cicero.

Com a lingua pasou da-Grecia para Roma, a inclinasam para a Gramatica. porque se-observou, que a lingua Latina se-comesou a aperfeisoar, desde o tempo dos-Cipioens, e continuou até o seculo de Augusto. que é justamente o tempo, em que os Gregos, destruido o seu imperio, comunicáram a sua lingua aos Romanos. Pois aindaque, desde o tempo da-guerra com os Sanitas, e outros Povos da-Magna Grecia, polos anos de Roma 471. algum Romano comesáse a intender, e falar o Grego; foi raro: e somente para poder intendelos nas Embaixadas, e coizas semelhantes, é que o-aprendiam. nam era vulgar este estilo: o que só sucedeo ao despois. Foram os Romanos os primeiros, que aprenderam voluntariamente lingua estrangeira. o que nam consta, que Povo algum, antes deles, tivese feito. E nisto mesmo, me-parecem mais racionaveis: porque conhecendo a necesidade dela, para o estudo da-Filozofia, Matematica, e belas Letras, nam se-envergonháram de receber lisoens, daqueles mesmos a quem tinham vencido, e davam leis. Este é um grande elogio, para uma Nasam tam considerada, como a Romana: conhecer que é vencida em merecimento; e confesar publicamente ese vencimento; e pór o remedio a esa falta. Paolo Emilio, aquele grande omem, que destruio na pesoa de Perseo, o imperio de Macedonia, antes de tornar para Roma, pedio aos Ateniezes, que lhe-buscasem um excelente Filozofo, para acabar de instruir, seus dois filhos. Outros omens grandes, que por-brevidade nam aponto, seguiram o seu exemplo. Lelio, e Cipiam Emiliano, que tanto rafináram a lingua Romana, eram inseparaveis, dos-seus mestres Gregos: dos-quais nam só aprendiam a Filozofia, mas tambem a Gramatica; e o modo de falar bem, e aperfeisoar a sua lingua. Os Filozofos daquele tempo, nam se-ocupavam somente, com discursos aereos de Logica; mas estendiam o seu conhecimento, para muitas outras coizas.

Mas, é necesario confesar uma verdade; em todo o tempo ouve[Pg 7] dificuldade, em se-receberem costumes novos, aindaque fosem utis. os Velhos nam querem ceder dos-costumes, que uma vez espozáram. Isto vimos em Roma, no-consulado de Estrabo, e Messala: que publicáram um decreto, em que ordenavam aos Filozofos, e Retoricos, sairem de Roma[3]. Catam o velho, que temia, que os Romanos, pola vaidade de quererem falar bem, servisem mal à Republica no-oficio das-armas; foi um grande protetor disto. Mas a Verdade, por-mais que se encubra, sempre transpira. Trez Embaixadores Ateniezes, que, cinco ou seis anos despois do-tal decreto, vieram a Roma, namoráram todos com os seus discursos. e, nam obstante a repugnancia de Catam, e de alguns outros, os estudos das belas Letras se-introduziram em Roma, e cada dia mais se-aumentáram[4]. A Grecia foi reconhecida por-mestra: e Atenas foi sempre reputada, a Universidade de Roma: aonde se-mandavam os nobres Romanos, para aprenderem o bom gosto. Os dois celebres Antonios, Atico, Cicero pai, e filho, e muitos outros lá foram aprender o que souberam. e o que mais cauza admirasam, é, irem em tempo, que as letras tinham descaido na Grecia. tal era a boa opiniam que tinham dela! Outros muitos Gregos vinham a Roma, e publicamente ensinavam, os estudos Gregos.

Com este exemplo, pouco mais de um seculo antes de Cristo, se-abriram escolas Latinas em Roma. as quais, ainda que com alguma contrariedade, felizmente e com grande concurso se-continuáram. Delas sairam omens mui grandes, que apuráram, quanto puderam, a lingua propria. Tais foram Cota, Sulpicio, Ortensio, Marco Cicero, Caio Cezar, Marco Bruto, Messala, Asinio Pollio, e muitos outros que entam, e oje veneramos, como mestres da-lingua Latina. À imitasam dos-Gregos, comesáram os Romanos a aprender, a Gramatica da-sua lingua, no-mesmo tempo que aprendiam a Grega. A Gramatica, nam se-reputava, coiza de pouca emportancia: mas a-consideravam como baze da-Eloquencia: e por-iso a ela se-aplicavam omens grandes; e nela empregavam um tempo consideravel, os que queriam, fazer figura na Republica. Os livros Retoricos de Cicero, principalmente os[Pg 8] trez de Oratore ad Quintum Fratrem, especialmente o ultimo: o livro intitulado: Orator ad Marcum Brutum: e o de Oratoriis Partitionibus: nam só ensinavam Retorica, mas principalmente falar a sua lingua, com toda a pureza, e grasa: que era uma parte principal da-Retorica. Caio Julio Cezar, aquele grande omem em armas, e letras, nam se-envergonhou, de escrever dois livros, sobre a Analogia da-lingua Latina[5]. Marco Terencio Varram escreveo comentarios doutisimos sobre a sua lingua, e uma Gramatica. Continuou este costume, até o tempo de Quintiliano, e seu dicipulo Plinio o moso: o qual Quintiliano, alem de nos-explicar, como se-ensinava a Gramática Latina; ele mesmo nos-deixou uns Elementos dela, no-primeiro livro das-suas Instituisoens. E é de crer, que se-continuase este estilo, até os principios do-quinto seculo de Cristo; em que os Godos entráram em Roma: ou um pouco despois, em que os Ostrogodos se-estableceram na Italia, e arruináram o imperio Latino: abrindo com isto a porta aos Longobardos, que nela domináram tantos anos. Desorteque com o Imperio no-Occidente, se-pode dizer, que se arruinou a lingua Latina: porque comesando a destruir-se, com a mescla de outras palavras, foi necesario emendála com o estudo, e fazer Gramatica dela.

Este metodo de ensinar aos nacionais, a Gramatica da-sua lingua, nam só praticáram os Antigos; mas até em um seculo barbaro, qual foi o de Carlo Magno, foi conhecido, e praticado: e o mesmo Carlo no-dito VIII. seculo, escreveo uma Gramática Tudesca, que era a lingua da-sua corte. Nos-seguintes seculos até o duodecimo, em que a ignorancia tanto dominou, nam foi ignoto este uzo. Mas alguma Gramatica que se-fazia, era para intender o Latim. os livros eram rarisimos. a critica nenhuma. e asim nam é maravilha, se nam se-aplicáram ao que deviam. Desde o seculo duodecimo até todo o seculo decimosexto, reinou outra particular ignorancia, sobre o metodo. Muitos se-aplicáram as letras, mas muito mal. só reinavam as agudezas, e o estilo ridiculo. No-seculo pasado, é que resuscitou este metodo, de ensinar a Gramatica da-propria lingua.

E, na verdade, o primeiro principio de todos os estudos deve ser, a Gramática da-propria lingua. A razam porque nos-parece tam dificultozo, o estudo da-Gramatica Latina, (alem de outros[Pg 9] motivos que em seu lugar direi) é porque nos-persuadimos, que toda aquela machina de regras, é particular da-lingua Latina: e nam á quem nos-advirta, quais sam as formas particulares desa lingua, a que chamam Idiotismos: quais as comuas com as outras. Se a um rapaz que comesa, explicasem, e mostrasem na sua propria lingua, que á Verbo, Cazo, Adverbio &c. que á formas particulares de falar, deque se-compoem, a Sintaxe da-sua lingua: Se sem tantas regras, mas com mui simplezes explicasoens, fizesem, comque os principiantes refletisem, que, sem advirtirem, executam as regras, que se-acham nos-livros: e isto, sem genero algum de preceitos, mas polo ouvirem, e exercitarem: Seguro a V. P. que abririam os olhos por-uma vez, e intenderiam as coizas bem: e se-facilitaria a percesám das-linguas todas.

Isto suposto, julgo que este deve ser, o primeiro estudo da-Mocidade. e que a primeira coiza, que se-lhe-deve aprezentar é, uma Gramatica da-sua lingua, curta, e clara: porque neste particular, a voz do-Mestre, faz mais que os preceitos. E nam se-devem intimidar os rapazes, com mao modo, ou pancadas, como todos os dias sucede: mas, com grande paciencia, explicar-lhe as regras: e, sobre tudo, mostrar-lhe nos-seus mesmos discursos, ou em algum livro vulgar, e carta bem escrita, e facil; o exercicio, e a razam, de todos eses preceitos. Se me-tocáse o-fazelo, regularia tudo desta maneira. Primeiro, explicaria brevemente as regras: e obrigalosîa a repetir, as mesmas noticias gerais. Despois, darlheîa um livro de Cartas, vg. as do-P. Antonio Vieira: escolhendo as mais facis: ou alguma istoria pequena, digo, que tivese capitulos pequenos, e periodos nam mui compridos: e mandaria, que a-lesem: e no-mesmo tempo apontaria, quais eram as partes da-orasam. o que se-observa, com grande facilidade. Ajuntaria a isto, as regras mais principais de Sintaxe: porque como tudo isto, se-á-de recozer na Latinidade, basta nesta ocaziam, uma noticia geral. Feitos estes principios, ensinaria duas coizas, mui principais em materia de linguas. a primeira é, a propriedade das-palavras: mostrando-lhe, a forsa de cadauma daquelas, que sam menos comuas. a segunda é, a naturalidade da-fraze: ensinando-lhe, que a afetasam, se-deve fugir em tudo: e que se-deve cuidar em explicar tudo, com palavras mui naturais. Alem disto, ensinaria aos rapazes, pronunciar bem, e ler expeditamente. Este ponto,[Pg 10] é mui necesario: achando-se todos os dias omens feitos, que lem soletrando, e cantando: e que dizem mil barbarismos. o que tudo procede, de nam terem tido mestres, que lhes-ensinasem bem. Quando os rapazes estivesem mais adiantados, obrigálosia, a escrever algumas cartas, a diversos asumtos. e introduziria entre dois, uma conrespondencia epistolar: ensinando-lhe os tratamentos, e modo de escrever, a diversas pesoas. Nesta ocaziam tem lugar, ensinar-lhe a boa Ortografia, e Pontuasam. É incrivel, a utilidade que daqui rezulta, nam só para a inteligencia da-Latinidade; mas para todos os estudos da-vida. Este estudo pode-se fazer, sem trabalho algum: e se-pode continuar no-mesmo tempo, emque se-explica o Latim: bastando meia ora cada menhan, ler, e explicar o Portuguez. Isto se-pratica oje, em algumas partes da-Europa. e só os que nam tem juizo, para conhecerem a utilidade, que daqui rezulta, é que negam, a necesidade deste metodo.

Mas aqui, deixe-me V. P. lamentar, e admirar, a negligencia dos-Portuguezes em promover, tudo o que é cultura de ingenho, e utilidade da-Republica. Ainda até aqui, nam tem cuidado nestas coizas: e será rarisimo, o que souber, que esta Gramatica pode ser util. Especialmente nóto isto, sobre a falta de escritos, para instruir um Secretario principiante. (falo dos-secretarios dos-Grandes, e de tudo o mais, fóra das-Secretarias Reais.) Nas-outras Nasoens á livros, que ensinam a qualquer, a urbanidade e ceremonial do-seu Reino. Como escrevem os Reis, e os Grandes entre si, e às pesoas de diferentes gerarchias mais inferiores. como os inferiores escrevem, a toda a sorte de pesoas de maior esfera, tanto Secular, como Ecleziastica. &c. apontam-se os sobrescritos, e poem-se algumas cartas para exemplo. Isto ensina a todos; e impede o fazer erros. Mas em Portugal, é desconhecido este metodo. Um secretario de um Bispo, ou Cardial, ou Fidalgo, ou Dezembargador &c. governa-se por-uma pura tradisam; ou porque asim vio alguma carta; sem mais conhecimento da-materia. Comtantoque um moso, tenha um carater comprido, e dezembarasado, a que eles chamam, letra de Secretaria, é o que basta. Confeso a V. P. que ainda até aqui, nam vi secretario algum destes, que soubese escrever duas palavras, com juizo. que tecese uma carta, considerando quem escreve, e a quem escreve: emque circunstancia: se com dependencia, ou sem ela: se por-agradecimento de alguma fineza, e atensam, ou por-outro motivo. Nam consideram[Pg 11] circunstancia alguma destas: as quais porem deveriam considerar muito; porque fazem a carta, mais, ou menos abundante de atensam: Sendo certo, que o Secretario, deve conservar o decóro de seu amo: mas no-mesmo tempo deve procurar, que paresa mais cortez que posa ser. Mas isto, é o que eles nam intendem. e nada mais cuidam, que mostrar, nam digo a grandeza, mas a soberba de quem escreve. Verá V. P. um pobre Cavalheiro das-Provincias, do-qual se pode dizer, como dise aquele noso amigo==Est res angusta domi==; escrever uma carta, com mais soberania e magestade, que nam fará o Papa. porque este, comumente poem==Dilecto filio==: e aquele, comesará uma carta ex abrupto, e imprudentemente, sem atensam alguma. Os de maior gerarchia, ainda fazem pior. e apenas se achará um, que nam queira mostrar na carta, que é mais, da-pesoa a quem escreve. Por-fóra, costumam pór==do-Bispo Fulano: do-Marquez Sicrano== &c. á coiza mais digna de rizo doque esta! As cartas mandam-se lacradas, para que ninguem saiba, de quem sam; e nem suspeite, o que contem: e estes tais poem, e asinam-se de fóra! Que o-fasa o Secretario de Estado, ou outro Ministro, que tem jurisdisam publica; é justo: paraque todos conhesam, de quem é a carta; e, se mais suceder perdela, quem a-achar, a-entregue; e lhe-tenham o respeito, que é devido. mas que o-fasam os outros, e em negocios particulares; e que o-fasam por-grandeza, merece compaixam. Tenho visto milhares de cartas, de Cardiais, Principes Soberanos de outros Reinos, e muitos outros Gran-senhores, e nenhum praticava esta rapaziada. Mas eu vi mais doque isto: porque vi carta de uma grande pesoa, que V. P. conhece, que escrevia a outro mui condecorado, que tinha no-sobrescrito: A Fulano: pondo o simplez nome, sem Senhor, nem titulo, &c. e dentro asinava-se, sem lhe-fazer comprimento, como se-faz nas Patentes.

Pertencem à clase asima, os que carregam o sobrescrito, com todas as circunstancias de Pai, Primo, Cunhado &c. o que tudo pode dar ocaziam, a abrir a carta por-curiozidade. O mesmo digo, dos-que poem: Familiar do-S. Oficio, e outras coizas destas. Basta pór um titulo principal, ou, quando muito, dois maiores: os mais ja se-intendem, ou se-supoem. Estes sam semelhantes àqueles, de que ja falámos tantas vezes, que, no-titulo das-censuras dos-livros, poem uma enfiada de empregos velhos: Ex-Provincial: Ex-Difinidor: &c. e dos-quais V. P. dizia, com tanta grasa, que lhes-faltava[Pg 12] pór: Ex-Porteiro: Ex-Guardiam: Ex-Procurador. &c. O pior é que nisto, caiem tambem os Seculares: e poem frequentemente: Colegial que foi no-Colegio de S. Paulo: Lente que foi de Leis, ou de Instituta. &c. só lhes-falta acrecentar a prepozisam, e dizer: Ex-Colegial: Ex-Leitor: Ex-Secretario: Ex-General: Ex-Coronel. Que tendo os empregos, o-declarem; é mui justo: mas que ponham os que tiveram, e sam inferiores aos que oje tem; é uma vaidade mal fundada: e é querer ser estimado, mais polos empregos, que polo merecimento. Leia V. P. a istoria, que escreveo Alexandre Ferreira, e verá, que no-titulo da-obra, escreve toda a sua vida. Outros fazem dedicatorias de livros, a pesoas Grandes, e enchem boa meia folha de papel, de titulos: Capitam-mor de cá: Alcaide-mor de lá: &c. Quando tivesem dito: Marquez, ou Conde; Conselheiro, ou General &c. estes titulos sorvem todos os outros. Destes se-pode tambem dizer, que lhes-esqueceo escrever, todas as quintas, e cazas, que posuem em diversas Vilas, e Cidades, as pesoas a quem louvam, e dedicam as obras.

Em Italia, seria grande injuria, tratando-se com um grande Principe, por-lhe todos os titulos: porque era mostrar, que sam menos conhecidos polo nome, e pesoa. Á cazas, que tem muitos Principados, Marquezados, Condados: e nam somente de titulo, mas com inteira jurisdisam e dominio, pois tem o direito==Vitæ & Necis: e contentam-se com um só titulo, ou, quando muito, dois: Vg. Lourenso Colona, Duque de Paliano, Condestavel do-Reino de Napoles. Domingos Orsini, Duque de Gravina. Prospero Conti, Duque de Poli. Estas cazas tam antigas, que algumas contam mais de mil anos, e tem dado, alem de infinitos Cardiais, 13. Papas, outras cinco, à Igreja de Deus; nam fazem vaidade destes ridiculos titulos; porque sabem, que sam mui bem conhecidas. Mas os *** e principalmente os Portuguezes, governam-se por-outros principios. Tem alem diso estes Senhores por-injuria, se lhe-escrevem por-secretario; e quando nam vem toda a carta, de proprio carater, tocam a fogo. Veja V. P. quam diferentes sam, os costumes estrangeiros! Em Roma, aonde o ceremonial está tanto em vigor, que às vezes é excesivo, nam se-faz cazo de tal coiza. escreve um Cardial a outro, por-secretario. escrevem os inferiores &c. por-secretario. Isto nam prova descortezia, mas que um omem, é sumamente ocupado. nem pesoa alguma faz cazo disto. Somente se-pratica, escrever de proprio punho, quando é primeira[Pg 13] carta de ceremonia a pesoa grande, ou quando respondo, a quem escreve de proprio punho: ou n’outros cazos asim. Mas aqui, seria um cazo rezervado, praticar o contrario.

Ora tudo isto, é intender mal as coizas: é falta de educasam: falta de livros bons: e é expor-se ao rizo dos-omens de juizo. Isto pois deve acautelar o mestre, quando instrue os rapazes. deve informar-se das-coizas: ensinar-lhe como se-devem regular: e finalmente dizer-lhe em poucas palavras aquilo, que, por-falta de livros, somente se-pode saber, com uma longa experiencia. Estas coizas devem-se tratar, nestes primeiros estudos.

Despois de ter escrito isto, me-veio à mam, uma Gramatica Portugueza, composta polo P. Argote, Teatino. Verdadeiramente nam é Gramatica completa: mas o autor declara, que só dá regras, para facilitar a inteligencia da-lingua Latina. O juizo que formo desta Gramatica, é este. O autor, introduzindo um dialogo enfadonho, dise, em muitas folhas, o que podia dizer, em poucas regras. Os dialogos nam servem mais, que de fazer mil repetisoens sem necesidade. servem de cansar á memoria aos rapazes, sem fruto: ensinando-os a falar como papagaio: vistoque nam intendem o que dizem. quando polo contrario poucos preceitos, bem explicados com a viva voz do-Mestre, ensinam mais, com menos trabalho. Isto, quanto ao metodo. quanto às regras: O que diz da-Analogia das-vozes, parece-me mui bem; e pode-se ensinar com utilidade. A Sintaxe de concordar, pode pasar: a de reger, nada me-agrada. O P. Argote dezemparou o seu mesmo metodo, por-seguir os erros de Manoel Alvares, e multiplicar regras sem necesidade; asinando regencias falsas: quando tudo aquilo se reduzia, a explicar a regencia dos-Cazos, polas regras fundamentais; que sam mui poucas. Isto é o que deve cuidar o Mestre: reduzindo as regras, às verdadeiras cauzas da-regencia: apontando algum particular idiotismo &c. porque isto basta: vistoque a Gramatica Latina, tambem se-deve explicar em Portuguez, e com poucas regras. A terceira parte, da-sintaxe Figurada, tirando a extensam, tambem pode pasar. Na quarta parte, o que diz dos-Dialetos &c. pode pasar: aindaque tudo aquilo se dizia, em duas palavras. o que diz do-modo de reger a lingua Portugueza, é uma grande superfluidade, e pedanteria: vistoque nam á mestre tam tolo, que nam saiba, como á-de reger, uma carta Portugueza. Isto se-faz, quando o estudante nas escolas, vai lendo[Pg 14] a lingua dita: e o mestre lhe-explica, o dialeto da-proza, e do-verso. Antes seria loucura, querer explicar ao principio, o dialeto do-verso. porque os Poetas, que pola maior parte nam pezam bem as coizas, sem excetuar o Camoens; caîram na parvoice, de aportuguezar mil palavras Latinas, sem necesidade alguma: e asim nam é coiza para rapazes. Antes, polo contrario, deve o mestre advertir-lhe, que ese estilo, nam se deve uzar. Finalmente, a Ortografia do-P. Argote nada vale, como abaixo direi. Mas, em quanto nam aparece outra, ou se-reforma esta arte; pode o mestre uzar dela, com as ditas cautelas.

Devo tambem dizer a V. P. alguma coiza, sobre a Ortografia Portugueza. noticia que me-parece mui necesaria, e que com todo o cuidado se-deve comunicar aos principiantes: pois da-falta desta doutrina nace, que em toda a sua vida, escrevam mal: e, ainda despois de estarem em lugares de letras, é lastima ver, como muitos escrevem. E estas reflexoens, servirám para emendar, o que diz o P. Argote, nas suas Regras Portuguezas, e algum outro.

Isto suposto, e compreendendo em pouco, o muito que outros escrevem nesta materia, digo, que os Portuguezes devem pronunciar, como pronunciam os omens de melhor doutrina, da-Provincia de Estremadura: e, posto isto, devem escrever a sua lingua, da-mesma sorte que a-pronunciam. Esta é uma singularidade da-lingua Portugueza, que só se-acha nela, na Italiana, e na Castelhana: aindaque esta tenha sua variedade: ponho de parte a Latina, que é morta. Daqui fica claro, que devem desterrar-se da-lingua Portugueza, aquelas letras dobradas, que de nada servem: os dois SS. dois LL. dois PP. &c. Na pronuncia da-lingua, nam se-ouve coiza alguma, que fasa dobrar, as ditas consoantes. Que se-escreva Terra, Perra, com dois rr, intendo eu a razam: e o ouvido me-aviza, que a pronuncia é fortisima no-r. pois quando nam é forte, como em Pera, Caracol, escreve-se um só r. mas em Elle, Essa, é coiza superflua: porque ou tenha um, ou dois ss. sempre seá-de pronunciar, da-mesma sorte. Nas linguas mortas, faso escrupulo, de mudar uma letra: mas nas vivas, em que nós temos todo o poder, e uzo, quando a boa pronuncia nam ensina o contrario, sam superfluas as repetisoens.

Os nosos Italianos somente dobram as letras, quando a pronuncia é diferente: e sam tam escrupulozos observadores da-pronuncia, que nam á Nasam, que os-iguale. De que nace, a grande[Pg 15] dificuldade que os Estrangeiros tem, em pronunciar bem a nosa lingua, nam obstante ser labial. porque nam tendo eles, ouvido tam esperto, para poder perceber, a diferente pronuncia das-letras dobradas; na pronuncia delas, servem-se de uma pronuncia doce e simplez; a qual os-acuza, por-Estrangeiros. O motivo que os Nosos tem, para pronunciarem asim, é uma antiga tradisam, desde o tempo em que a lingua Latina, era viva e domestica entre os seus antepasados. pois é sem duvida, que os Romanos cuidavam muito, em pronunciar bem a sua lingua; e que os mestres, ensinavam isto aos dicipulos com cuidado. Esta tradisam conservou-se sempre em Italia. e nacendo o Italiano, da-corrusam do-Latim, conserváram sempre as mesmas letras dobradas, que os Latinos tem: e talvez acrecentáram mais alguma. Donde vem, que os Italianos, achando no-Latim as letras dobradas, pronunciáram-nas como dobradas: e, por-este mesmo principio, pronunciando o Italiano, com alguma semelhansa do-Latim, dobráram tambem as letras da-sua lingua por cuja razam, sam nela desculpadas, as repetisoens. Os Francezes dobram algumas letras, por-necesidade, para distinguirem as pronuncias: outras dobram, porque tomáram os ditos nomes, dos-Gregos, e Latinos, entre os quais antigamente se-pronunciavam, e escreviam asim: como mostram os omens, que escreveram nesta materia. Tambem nisto tem variado muito: e nam sam aprovados, polos melhores criticos. E oje os Francezes mais doutos, regeitam muitas letras, que parecem escuzadas, por se-nam-pronunciarem: como adverte o P. Lima, na sua Arte Portugueza, e Franceza. Muitos Francezes sam de parecer, que se-devam desterrar todas. e talvez com o tempo, escrevam como falam: vistoque ainda nam á muito tempo, que esta lingua se-comesou a purificar: o que nam excede o tempo, de Luiz XIV. Mas concedamos-lhe o mesmo, que oje concedemos, aos Ebreos, Caldeos &c. é certo, que a lingua Portugueza, todos asentam, se-deve escrever como se-pronuncîa: e asim, nam deve receber letras, que se-nam-proferem.

Deste meu parecer, sam muitos Portuguezes de boa doutrina, com quem tenho conversado nesta materia: os quais nam podiam sofrer, que, sendo a pronuncia a regra da-Ortografia; ainda asim ouvesem omens prezados de doutos, que embrulhasem a Ortografia, com a preocupasam de quererem seguir, a derivasam e origem. Se eu ouvese de escrever, tudo o que me ocorre[Pg 16] nesta materia, ou tudo o que se-pode dizer nela, faria um longo tratado; que seria contra o meo asumto, e tambem contra a necesidade da-materia, a respeito de V. P. Direi somente, o que pertence ao meu argumento. Nam obstante que eu á muitos anos, viva nesta opiniam, que a Ortografia comua é muito má; e, com esta ideia, tenha feito um tratadinho dela, para uzo, e regulamento meu; contudo nam me-atrevia, a declarar a todos, o meu animo, como faso a V. P. sabendo, que ainda os mais doutos se-ririam, de que um Estrangeiro, viese dar regras, nesta materia: Sem se-lembrarem, que tambem os que nestes ultimos seculos, escrevèram sobre a Ortografia Latina, eram Estrangeiros nela: semque por-iso, sejam mal ouvidos. Mas agora, devendo dizer a V. P. o meu parecer nela, puz de parte, todos os respeitos politicos; e nam só quiz apontar, o que condeno; mas, para o-fazer melhor, tive a curiozidade de ler, o que dise nesta materia o P. Bluteau. cuja leitura me-confirmou, no-meu propozito, e me-convida, a abrir-me mais promtamente: porque alfim vejo, que tenho mais padrinhos, doque nam cuidava[6].

Digo pois, que da-observasam que asima fiz, e maxima que estableci, se-devem tirar as reflexoens, para as outras letras, e para todas as mudansas e corresoens da-Ortografia. E comesando pola letra A, dobram alguns esta letra, em Menhaan, Vaan &c. e deste parecer, é Duarte Nunes de Leam. Nam se-pode intender, a razam destes omens. Na pronuncia, nam se-ouve aquele segundo A, e seria verdadeiro ridiculo, quem o-quizese pronunciar. e asim porque se-aja de escrever, eu nam intendo. O certo é, que a regra da-pronuncia, ensina o contrario. Daqui pasando ao B, digo, que esta nam se deve conservar, senam naqueles nomes, que especialmente a-tem na pronuncia, como obstaculo, obstante &c. mas naqueles, que oje se-pronunciam sem ela,[Pg 17] parece-me escrupulo demaziado. Sobre o C, acha-se alguma diversidade entre os mesmos Portuguezes, em que lugares deve entrar quando tem cedilha, ç. Comumente antes das-terminasoens em ão o-escrevem, e mais em outras partes: sobre o que nam á regra alguma mais, que o uzo. Nisto alguns sam tam escrupulozos, que se encontram escrito com s, Sapato, fazem um orrivel espalhafato. Outros desterram o dito c, e em seu lugar escrevem dois ss. Mas para falar a verdade, e examinar as coizas sem paixam, tudo isto sam iluzoens. Nenhuma diferensa na pronuncia se-acha entre o c, e o s: se alguem contrareia isto, que me-fasa a merce de mo-provar: porque o meu ouvido, que é bastantemente advertido, nam conhece esta diversidade. Isto suposto, pór dois ss, em lugar do c, é uma solenisima ridicularia, sem mais razam, que querer distinguir-se dos-outros. Mas, nam merecem mais indulgencia, os que se-escandalizam de lerem, Sapato, Surrador &c. com s: porque na minha estimasam asim se-deve escrever. Eu verdadeiramente nam sei donde veio, que o ça, se-pronunciáse sa: mas se é permitido conjeturar em materia tam oscura, suponho que foi, por-engano de quem escrevia, que pintava mal o s: e asim com o tempo tomáram-no por-c: Porque a falar a verdade o c com cedilha sam dois cc contrapostos, e que imitam bastantemente um s, asim c c: onde continuando a pronuncia do-s por-tradisam; e achando-se escrito o dito ç; intendèram que era uma particular especie de c, e asim o-escreveram. Seja como for, o c, em tais cazos vale um s. e por-esta razam cuido, que é mais proprio, e mais natural, servir-se desta letra simplez, que do-dito c. Desta sorte averia menos confuzam na Ortografia Portugueza, se asentasem todos, a nam escrever antes de a, ou o, ou u, senam um s, e nunca o dito c. Dirmeám alguns, que tambem o c antes de e, ou i, vale um s: e que será tambem necesario desterralo, e convertelo em s. Mas eu respondo, que á mui diferente razam. porque o c, antes de e, ou i, tem o seu proprio soido, sem violencia alguma: e aindaque se-posa compensar com s, contudo neste cazo deve-se permitir alguma coiza ao uzo, que o-introduzio. Nam asim o c antes de a: pois para fazer o soido que eles querem, deve violentar-se, sem ter analogia com as linguas, de que deriva, a nosa Portugueza: e asim parece-me grande superfluidade. Este é o meu parecer: Contudo se alguem[Pg 18] ateimáse a servir-se do-dito c, nam faria disto um cazo rezervado: comtantoque confesase, que igualmente se-pode escrever com s: e que nam se-escandalizase, de quem fizese o contrario.

Desta regra, de escrever conforme a pronuncia, crejo que se-pode achar excesam no-Ch. Tem esta letra aspirada com o h, uma pronuncia em Portugal semelhante ao x. e asim dizemos Choro, Chove &c. como se estivera escrito, Xoro, Xove. Contudo algumas vezes se-deve pronunciar; como se-fose um k. o que intendo dos-nomes que vem do-Grego, e nos-quais se-ouve o k na pronuncia. vg. Architetura, Machina, Chimica &c. O Bluteau nam admite isto, nos Opusculos; e defende, que sempre o ch se-deve pronunciar quazi semelhantemente ao x. Mas ele mesmo se-contrareia no-Dicionario: pois diz, que em Portuguez se-deve escrever, Archanjo, Patriarcha &c. com ch, aindaque se-pronuncie o k: Tomára pois que me-dese a diversa razam, porque em outros nomes oriundos da-mesma Grecia, se-deva escrever com qui v.g. Monarquia &c. O certo é, que em ambas as partes a razam é a mesma. Antes parece-me, que com maior razam se-deve fugir o qui: porque em Portuguez despois do-q, sempre se-pronuncia o u, desorteque o q por-si só nam une com as vogais, sem se-pronunciar o u. E como seria erro pronuncialo, em Monarchia, Chimica &c. daqui vem que também é erro, escrevelo. A quem nam agradar esta minha opiniam, de escrever estes nomes por-ch, sou de parecer, que adóte o k dos-Gregos: pois é melhor chamar de fóra, uma letra Estrangeira, doque escrever o q, que em Portugal geralmente tem diferente pronuncia: o que nam sucede no-ch, que ja em muitas disoens está recebido em Portugal, com privilegios de k.

E nam obsta, que a maior parte dos-Ortografos Portuguezes digam, que o k é superfluo no-Portuguez: nam é o mesmo dizelo, que provalo: aqui nam á meio, ou se-deve admitir o ch com privilegios de k; ou adotar o k, em seu lugar. Sei que podem argumentar com Aquele, Aquilo &c. em que parece nam se-ouve o u: mas isto provèm da-pronuncia, que o-toca levemente; porque em todas as palavras Portuguezas o q faz pronunciar o u: Quando, Quanto &c. E principalmente avendo-se de introduzir, em disoens novas, ou Gregas, deve sempre observar-se o uzo mais comum. Duarte Nunes poem sempre c antes de t, como em Docto, Doctrina &c. Desta afetasam zomzombam[Pg 19] os omens de melhor juizo; e cuido que com razam: pois se aos nosos ouvidos é insoportavel, quem fala asim, porque á-de ser toleravel, quem o-escreve? Bluteau admite o tal estilo alguma vez, para evitar o equivoco; v.g. Compacto, e Compato: mas eu nam vejo nisto equivoco, pois na segunda disam o Com, deve estar separado. Mas aindaque ouvese equivoco, o contexto o-tira. Outros em lugar do-c, sempre poem u, e dizem, Auto &c. tambem esta afetasam é condenavel: porque Ato, é mui boa palavra, e todos a-intendem. Em Douto &c. pode-se conceder alguma coiza ao uzo.

Costumam muitos Portuguezes dobrar os ee finais em muitas vozes, especialmente em Fée, Sée &c. e alguns dobram-nos em muitas outras palavras, inclinando-se, segundo dizem, a uma antiga pronuncia. Mas ou seja antiga, ou seja de novo inventada, deve-se fugir esta introdusam, pola mesma razam que disemos, de ser contraria à pronuncia. Concorda o Bluteau dizendo, que em algumas palavras se-supre, com um acento sobre o é. Mas eu digo, que nam sò em algumas, mas em todas se-deve escrever um só e. e quanto ao acento agudo, digo, que se-lhe-deve pór, nam para mostrar, que falta um e; mas para mostrar, que se-deve carregar a vogal; porque asim ensina a pronuncia.

Pola mesma razam da-pronuncia, se-deve desterrar das-palavras ou Portuguezas, ou aportuguezadas o Ph, em lugar de F. Muitos Portuguezes introduzem, sem advertencia, em lugar do-f, o dito ph: outros dam longuisimas regras para distinguir, quando se-deve escrever um, quando outro. mas uns e outros discorrem muito mal. O ph dos-Gregos era um p, aspirado com muita forsa, e que alguma coiza declinava para f. e nam avendo em Portugal semelhante pronuncia, é erro introduzir o dito p, quando temos cá o f, que tem o seu próprio soido. Daqui vem que aindaque Filozofia, Triumfo &c. na sua origem tivesem o ph, contudo oje que sam palavras Portuguezas, nam só adotadas polos doutos, mas de que indiferentemente se-servem todos; devem-se escrever com simplez f. Temos o exemplo nos-mesmos Latinos, que, quando adotavam algumas palavras Estrangeiras, pronunciavam-nas com a pronuncia Romana: e davam-lhe as proprias declinasoens Latinas. Talvez lhe-conservavam algumas proprias letras, em atensam de serem linguas vivas. E muitas vezes, para se-livrarem da-impropriedade, escreviam, e pronunciavam as ditas letras em Grego[Pg 20] puro: como todos os momentos encontramos nos-seus escritos, principalmente nas cartas de Cicero, e alguns outros. Esta liberdade de acomodar as palavras, ao estilo da-propria lingua, tiveram sempre todos os Povos cultos: e devem ter tambem os Portuguezes. e asim significando o ph um p aspirado, com algum soido de f; nam o-devemos uzar, vistoque nas palavras Portuguezas, nam temos tal pronuncia.

Quanto aos nomes, que ainda nam estam em uzo por-todos, mas que somente uzam, ou para melhor dizer, algumas vezes se-servem deles os literatos; deve-se praticar outra regra. Se sam nomes (falo dos-Latinos, Gregos, Ebreos &c.) de coizas pertencentes a Artes, ou Ciencias, parece-me que se-devem escrever, com as suas letras originais. Vg. se quizer-mos explicar, ou escrever os nomes pertencentes à Anatomia, que sam todos Gregos, segundo o estilo do-Portuguez; escreveremos palavras, que se-nam-intenderám: e asim é melhor, seguir a derivasam Grega. O mesmo digo, de algumas partes da-Medicina, da-Filozofia &c. Muitos destes nomes ou nam se-podem escrever de outra maneira, v.g. Pneumatologia &c. ou, aindaque se-posam escrever, nam estam geralmente recebidos, nem ainda polos mesmos eruditos: e asim nam gozam, do-privilegio Portuguez. Se sam nomes Proprios, entra a mesma regra: ou sam pouco uzados; e em tal cazo é obrigasam escrevelos, com as suas proprias letras. Onde nam condeno quem escreve, Homero, Herodoto, Herodes &c. aindaque estes trez, e outros semelhantes que estam ja muito em uzo, podem mui bem escrever-se sem h: o que ate os nosos Italianos ja fazem: Mas sempre é mais desculpavel, se em semelhantes nomes se-uzam letras da-origem. Quanto porem aos outros, que servem de diferenciar as pesoas Portuguezas, e já estam totalmente naturalizados; devem-se vestir, com o traje de Portugal. E este uzo acho praticado, em todas as Nasoens de melhor doutrina. Quazi todos os nomes da-Sagrada escritura, se-acham mudados na nosa Vulgata. Vg. nós dizemos, o Mesias: e se ouvesemos pronunciar como está no-texto Ebreo, deveria-mos dizer, Maxiaggh com pronuncia forte, e gutural no-g. o que fizeram os Latinos, para adosar a pronuncia forte, e aspera dos-Ebreos. Traduzindo os Gregos este nome, escreveram, Christos: os Latinos, Christus: de que nós tomámos a palavra, Cristo. Podia apontar mil exemplos, que deixo por-brevidade. Os Gregos quando[Pg 21] pronunciavam os nomes Latinos, faziam-no com o dialeto Grego. e por-iso nós achamos, que nas medalhas Gregas dos-Consules, e Imperadores Romanos, os nomes estam transformados. Vg. este nome, Marcus Tullius Cicero, os Gregos escreveram-no nas medalhas, Markos Tyllios Kikeron, que tem bastante diferensa do-Latino. Os Latinos, como ja disemos, davam a terminasam Latina, aos nomes Gregos: e muitas vezes deitavam-lhe fóra algumas letras. basta abrir os Dicionarios, para reconhecer esta verdade. Os nosos Italianos italianizam todos os nomes Estrangeiros, que lhe-chegam às maons, quando eles sam tais, que se-podem pronunciar à Italiana: e, seguindo a pronuncia Franceza, desterram da-escritura, os ditongos, e tritongos; pondo somente a letra que conresponde ao tal ditongo. outras Nasoens fazem o mesmo. Se pois em todos os tempos ouve esta liberdade; tambem se-deve praticar em Portugal. E asim parece-me escrupulo ridiculo, querer conservar em Ieronimo, o h, e y: e em Iozé, o ph &c. tudo isto se-deve evitar, escrevendo os nomes com as letras, com que-se pronunciam em Portugal.

Emfim a regra é geral, que todos os nomes de origem antiga &c. ou sejam Proprios, ou Apelativos, que estam naturalizados, e sam frequentemente uzurpados, ou por-todos os omens, como Ieronimo, Triumfo, &c. ou polo comum dos-doutos, como Filozofia, Teologia, Fizica, Metafizica, e mil outros; devem-se escrever como se-pronunciam. Os nomes ditos que nam sam geralmente uzados, v.g. Themistio, Theopompo &c. por-nam escandalizar os ouvintes, ou confundir os ignorantes, é melhor escrevelos com as letras originais. Os nomes, em que entra duvida se sam, ou nam uzados, podem-se escrever, com as letras da-sua derivasam; pois a duvida mostra, que nam é uzual. Isto digo dos-nomes, que sam puramente antigos, ou que se-derivam de linguas mortas, como a Latina, Grega, Ebraica, Caldaica &c. Quanto pois aos nomes de linguas vivas, principalmente das-linguas do-Norte, em que se-acham muitas consoantes seguidas &c. acho que é melhor, e às vezes preciza necesidade, escrevelos com todas as suas letras: porque sem isto, nam se-poderám distinguir e reconhecer, os Autores, as Cidades &c. e nacerá grande confuzam. Aquelas consoantes que a nós parecem superfluas, nam o-sam para eles, porque as-pronunciam, supondo-lhe vogais: onde tirando-as, nem os-intenderemos pronunciar, nem os-saberemos procurar nos-livros.

[Pg 22]

Esta doutrina que atè aqui establecemos, deve-se aplicar, a todos os outros cazos que ocorrerem, de quaisquer letras que se-nam-pronunciam: E asim nam é necesario repetila especialmente, em todas as palavras: pois qualquer por-simesmo pode aplicála. Onde, seguindo a ordem do-Alfabeto, deve-se desterrar o G. de Madalena &c. Polo contrario deve conservar-se em Significar, Magnifico &c. porque na pronuncia s’exprime.

A mesma razam persuade, que nenhum Portuguez deve servir-se do-H, senam quando tem diferente pronuncia. v.g. despois de c, como em Chave, despois de n, como em Minha &c., nunca porem quando se-diz, He, Hei &c. Desta opiniam foram alguns antigos Portuguezes, como Joam Franco Barreto na sua Ortografia; que quer se escrevam, sem h: e o P. Bento Pereira na sua Grammatica Linguæ Lusitanæ, que concede, que em algumas partes se-pode deixar. Muitos Portuguezes que atualmente vivem, e de mui boa doutrina, defendem fortemente, que se-exclua o h. e achei um, que somente o-admitia, quando distinguia uma disam da-outra. v.g. Ouve pode significar, teve, e também, está ouvindo: onde no-significado de teve, punha-lhe o h, para nam cauzar confuzam. Conheso, que o contexto mostra bem, em que sentido se-toma: e sei que no-Latim, á infinitas palavras, que tem terminasoens equivocas, cujo verdadeiro significado se-alcansa, polo contexto. E ainda no-Portuguez Amára, e Amará, se acazo nam tem acento, somente se-distinguem polo contexto. da-mesma sorte Cria verbo que significa, Tirar do-nada: cria verbo que significa, Produzir a terra: cria verbo que significa, Dar leite ás criansas: e cria, imperfeito do-verbo crer: nam se-distinguem senam polo contexto: o que tambem sucede em muitos outros. Digo somente, que nam condenaria, quem o-escrevese nestes cazos: aindaque eu pratique comumente o contrario. Fóra daqui, julgo que nam se-deve escrever, em nenhuma outra disam; porque todas se-distinguem mui bem, sem ese sinal de aspirasam. O Bluteau, que no-Dicionario diz, que em algumas partes se-podia deixar de pòr o h no-principio; em outros lugares porem defende, a introdusam do-h, querendose desculpar, com a lingua Italiana. Mas erra manifestamente no-que diz. porque nam só os omens mais doutos na lingua Italiana desterráram o h do-principio, e de muitas partes do-meio das-disoens, deixando-o somente despois de c, e g, como em Bianche, Vaghe; porque aqui é verdadeiramente aspirasam forte, e tem seu[Pg 23] particular soido: mas tambem a mesma Academia da-Crusca no-seu Vocabulario Compendiado e Correto, declara, que somente uza do-h, para evitar algum equivoco. v.g. Hanno, Verbo que quer dizer, tem; de Anno, nome que significa, o ano. Como tambem em, Ho, Hai, Ha, inflexoens do-mesmo Verbo; para as-distinguir de algumas Particulas, que tem a mesma terminasam. aindaque neste cazo nam condenam, quem deixa o h. Quando muito admitem o h, em Hui, Hoi, exclamasam de quem se-queixa, ou outro semelhante monosilabo: declarando porem, que aqui, e em quatro vozes que apontam, s’introduzio por-erro antigo dos-impresores, e nam por-alguma fundada razam. O que é muito de notar: sendoque os Toscanos aspiram fortemente todos os monosilabos, semque por-iso escrevam h. Fóra destas circunstancias, nenhum Italiano douto escreve h: onde falsamente se-serve o Bluteau do-seu exemplo.

Mas, deixando o que fazem os outros, e pasando ao que devem fazer os Portuguezes, digo, que nam devem escrever h senam, quando cauza diferente pronuncia, como em Minha, Diz-lhe &c. O é quando é Verbo, muito bem se-distingue do-e Conjunsam, pondo-lhe emsima um acento. Nem eu poso intender porque razam é Verbo, deva escrever-se com h, e era, eram &c. que sam inflexoens do-mesmo Verbo, sem ele. Também o ás, á, Verbos que significam ter, mui bem se-distinguem de às, à Particulas, com a diversidade do-acento grave. Tudo isto asim distinguem os nosos Italianos, que participam mais que ninguem da-lingua Latina, e que sam mui advertidos nestas pronuncias. Onde é erro dizer, Huma, Humilde &c. mas deve-se escrever, Uma, Umilde &c. Nem é obscura a razam: basta olhar para à pronuncia, para saber, que é erro, pòr o h. Antigamente o h era sinal de uma forte aspirasam[7]. (intendo por esta palavra aspirasam, deitar para fóra o ar que se-recebeo, para refrescar o interior, e ajudar a circulasam do-sangue: o que advirto, porque me-parece, que entre muitos Portuguezes, nam é bem certa a significasam desta palavra, aspirasam) Deste final pois somente se-serviam, para suprir as letras aspiradas dos-Gregos. Onde somente s’escrevia antes das-vogais, cuja pronuncia era bem aspirada, e gutural, como adverte Cicero[8]. e talvez antes[Pg 24] desas nam se-punha. Mas no-tempo da-pureza da-lingua Latina, nunca os omens doutos escreveram h despois de consoante: mas somente no-principio da-disam, e antes de vogal: e nam escreviam Pulcher, mas Pulcer: nam Charitas, mas Caritas &c. o que ainda oje vemos, nos-melhores manuscritos, e inscrisoens lapidares. Mas se alguma vez a-punham despois de consoante, somente o-faziam nas palavras Gregas, ou que de lá traziam origem. De que fica claro, que na lingua Portugueza, em que nam á aspirasam alguma nem forte, nem branda; nam se-deve pòr aquele sinal, que só serve de avizar o Leitor, que aquela letra deve ser aspirada. Somente do-U duvidei por-algum tempo, se admitia antes de si h: porque, a falar verdade, parece-me ser aquela letra, que em Portugal se-pronuncia, com alguma aspirasam; porque a mesma natureza da-letra o-permite. mas dezenganáram-me os meus Italianos, que, sendo tam escrupulozos observadores da-pronuncia, nam poem h antes de disam alguma, que comece por-u: falo dos-que escrevem com a ultima perfeisam. Onde nem menos os Portuguezes devem ter escrupulo, de os-escrever sem h.

Sobre as diferentes especies de II. é incrivel a bulha que alguns fazem, especialmente para determinar, quando se-deve pòr j rasgado, ao principio das-disoens. Cuido que esta grande bulha, se-pode reduzir a duas palavras. Distinguir o i vogal do-consoante, é mui necesario, para saber quando fere, ou nam fere a vogal. chamamos rasgado, ao consoante; pequeno, ao vogal; e distinguem-se pola figura. Quanto ao escrevelos ao principio, pouca dificuldade pode nacer, em quem escreve em Portuguez; vistoque rarisima palavra Portugueza comesa por-i vogal, antes de outra vogal. Onde tirando, îa Verbo, ou alguma outra rarisima, que agora nam me-ocorre; em todas as palavras Portuguezas, que comesam por-i antes de vogal, a dita letra é consoante, e deve-se escrever rasgada; ou de forma pequena, ou maiuscula, segundo a necesidade. Alguma dificuldade pode nacer, no-principio das-palavras impresas. Neste cazo nam dezaprovo, que o i de Joannes v.g. e outros semelhantes seja rasgado, para evitar alguma confuzam. Mas isto intende-se nos-nomes de fórma pequena: porque nos-de fórma grande, que é a maiuscula Romana, pouca necesidade temos de escrever i rasgado no-principio: pois com o outro, igualmente se-pronuncia bem. Quem porem em ambas as partes quizese pòr i rasgado, nam o-condenaria:[Pg 25] principalmente se comesasem por-alguma das-duas Portuguezas, que asima aponto.

A maior dificuldade consiste em determinar, quando se-poem G, quando I, antes de e, ou i, nas palavras Portuguezas. v.g. Gente escreve-se com g: Ereje uns o-escrevem com g, outros com i, Ieronimo com i: Giro escreve-se com g: E outras vezes antes do-e &c. poem-se um j consoante. Para dar razam destas variasoens, tem alguns escrito longas paginas: mas nenhuma Regra das-que li, deixa de ter suas excesoens. Dizem, que em Gente, Giro &c. a derivasam aponta o g. concedo: mas que derivasam aponta a letra, que devemos escrever em Ereje, e outros semelhantes, que nam tem analogia alguma, com as letras da-sua derivasam? O meu parecer é este: Que os doutos, sigam a derivasam Latina, especialmente no-principio; e tanto nos-Apelativos, como Proprios, que sempre comesam por-i: tirando quando despois se-segue outro i, que entam é melhor, converter o primeiro em g, como Ginja. Que no-meio, uzem mais do-g, que do-i: vistoque nisto tambem á diversidade, ainda nos-que derivam do-mesmo Latim. Mas, nam se-lembrando da-derivasam, &c. posam servir-se indiferentemente de ambas. Os ignorantes sigam o costume e a pràtica, dos-que melhor escrevem. Nem devemos admirar-nos, se em alguma letra nem todos concordem: nam sendo posivel, que convenham todos, em materia tam duvidoza e arbitraria.

Tambem sobre as terminasoens, am, e , fazem alguns longuisimas disputas, e mui superfluamente. Confesa o Bluteau na sua Proza Apologetica, que ja saîram livros inteiros, para deitar fóra o : e que outros lhe respondèram dizendo, que o til nam era letra, mas risco. O Bluteau protege a pose do-. mas declara, que o til supre a letra n: e defende constantemente, que nam se-deve tirar o til, porque a terminasam , segundo ele diz, é mais engrasada, que o am; e por-este motivo deve-se conservar: muito mais porque seria necesario tambem, desnaturalizar as palavras, Birimbao, Catimbao, Pao, &c. Mas o Bluteau nesta materia, deixou-se guiar por-alguns prejuizos. Dizer, que o til é risco, e nam letra, é o mesmo, que nam dizer nada. O certo é, que este risco faz, que eu pronuncie um n demais, que as letras que ali vejo: onde, chamem-lhe como quizerem, é um verdadeiro n. Dizer, que a terminasam am, é diferente[Pg 26] na pronuncia, de , é outro engano: pois em qualquer disam Portugueza, que se-ache a terminasam am, todos a-pronunciam como : e Portuguezes mui doutos servem-se indiferentemente de ambas: e cuido que com muita razam; se è que a segunda se-deva tolerar.

Os que contrareiam isto, nam intendem bem a materia; nem d’onde naceo, esta particular pronuncia em . Quem bem considera o ponto, reconhece facilmente, que aquele til, é um rigorozo m final: e deveria escrever-se, Falaom: porque escrevendo-se desta sorte, e pronunciando-se depresa, faz o mesmo soido, que Falaõ. Daqui naceo, aquela particular terminasam em dos-Portuguezes: porque com a presa de pronunciarem, tocam tam de pasagem o o; que nam se-ouve mais, que o m: o qual, em vez de o-pronunciarem com os beisos fechados, que é a sua propria pronuncia; pronunciam com um soido fanhozo do-nariz: que é o estilo prezente de pronunciar todo o m final, em Portugal: nam avendo aqui m, que se-pronuncie como deve ser. Alemdeque bastava alguma reflexam, para conhecer isto; acha-se manifesta razam, para o-persuadir. A plica ou til, deve significar alguma letra: de outra sorte seria superflua, e nam produziria algum efeito. Esta letra só pode ser m, ou n, e ambos finais: porque de outra sorte sería, Falamo, ou Falano: o-que nam pode ser. Onde fica claro, que Falam, é uma sincope de Falaom: e que tanto se-pode escrever um, como outro. Reconhece-se isto melhor nos-plurais. v.g. Maõ, faz maons: Varaõ, varoens: nos-quais declaradamente se-ve o m, ou n, segundo a pronuncia. E eu creio, que antigamente nestes plurais, em vez de n, punham m; e que a dificuldade de pronunciar o m junto com o s; ou o som do-nariz, que pouco a pouco se-foi introduzindo no-m, o-converteo em n nestas terminasoens: pois ainda oje escrevendo-se com um m final, a pronuncia o-faz parecer, como n. O que, como dise, é um idiotismo particular dos-Portuguezes.

E esta é a razam, porque os Estrangeiros, nam podem pronunciar bem estas dezinencias; que na verdade sam feias, e asperas terrivelmente: porque nam á quem lhe-explique, que o til de , é um m, que os Portuguezes, por-corrusam, pronunciam como um n; nam só no-fim, mas ainda no-meio das-palavras. Reconheci isto por-experiencia: pois tantoque dei esta explicasam a[Pg 27] alguns, e mostrei o vicio da-linguagem; pronunciáram melhor, que os outros. Daqui concluo, que as ditas terminasoens, , e am, podem-se uzar indiferentemente; vistoque uma é sincope da-outra: tendo introduzido o uzo, nam pronunciar na segunda, o o. Onde dise um erro Inacio Garcez Ferreira, e alguns outros, quando quizeram defender, que estas dezinencias eram diferentes no-soido: e quando ele lhe-chamou, sincopes das-Castelhanas. E nam sei, se confirma tambem o que ate aqui dise, ver, que na Provincia de Entre Doiro, e Minho, ainda oje se-pronuncîa, em muitas destas palavras, o o; pois dizem, Tabaliom, Escrivom &c.

Mas eu digo mais, e asento, que aindaque uma seja abreviatura da-outra, emportava muito à lingua Portugueza, que se-deitase fóra o til, e a terminasam , escrevendo-se tudo extensamente: e uma de duas, ou que se-escrevese Falaom; ou, abreviando, Falam. Introduzir a primeira escritura, serîa mais dificultozo; porque estes amigos nam querem reformas utis: e asim será melhor, preferir a segunda am, que ja está recebida em Portugal. Certo é, que quando os Portuguezes escrevem, a dita terminasam am, pronunciam : e tambem é certo, que muitos omens doutos servem-se da-primeira terminasam. Este modo de escrever, encostava-se mais para a pronuncia: e com ele se-evitavam confuzoens. serîa também a lingua mais facil de ler, e pronunciar, aos Estrangeiros: pois bastava advertir-lhe, que entre, o a e m, deve-se pòr um o, e pronuncialo depresa. Advertimos porem, que aindaque os Portuguezes tenham, esta pesima pronuncia na sua lingua; quando porem pronunciam a dita terminasam am, no-Latim; devem pronunciala com os beisos fechados, como em seu lugar advertiremos: poisque a lingua Latina nam está sugeita, às suas leis.

Querem alguns, que em Tempo, e outras palavras, em lugar do-m, se-ponha n, porque asim soa. Cuido, que dizem mal: porque aindaque alguns pronunciem o dito m, como n, pronunciam muito mal; pois nesta voz muito bem se-ouve o m, e em outras tambem. E aindaque em outras partes, nam seja tam sensivel o m, deve conservar-se: pois se ouvesemos de tirar todos os mm, que nam se-explicam bem, poucos mm ficariam em Portugal. Em Contigo, Consigo &c. podem tiralo. Contudo quem o-quizese tirar em todas as outras, nem por-iso o-condenaria como erro.

[Pg 28]

A terminasam an, tambem cauza duvidas, a muitos Portuguezes: e eu julgo, que nam deve ter nenhuma. Acham-se omens que asentam, que nam á tal terminasam no-Portuguez, e defendem isto, com muita forsa. Se disesem, que a terminasam an, antigamente era am, nam diriam mal: mas querer defender, que oje nam á tal terminasam, é dizer um erro. Distinguem-se oje os nomes Femininos, dos-Masculinos, com esta terminasam. Vg. Vam, e Van: Irmam, e Irman. Nem me-digam, que o til é risco, e nam letra: pois ja asima mostrei, que o til é uma letra; e que a pronuncia ensina, que á-de ser n. Por-esta razam concluo, que será necesario, pòr o dito n expreso, deitando fóra o til. Muitos Portuguezes doutos seguem esta opiniam: os quais rim-se de Duarte Nunes, que queria se-dobrasem os aa, dizendo Vaã, Menhaã.

Sobre o P, ja asima dise, que nam se deve escrever ph por-f: Agora digo, que nem menos se-pode sofrer, o que muitos fazem, pòr p, antes de t, em muitas disoens. vg. Prompto &c. Esta é uma afetasam pouco toleravel: vistoque a pronuncia Portugueza, tem ja desterrado este p. Onde nam é a mesma razam do-b, ou do-g, ou do-d, que se-conservam nas palavras, Obscuro, Significo, Adverte: porque este, ouve-se mui bem: e o p, nam se-ouve sem afetasam. E nam falta quem diga, que nas duas primeiras palavras tem ja introduzido o uzo, deixar aquelas letras na pronuncia: o que eu nam condeno: como nem menos condeno, quem as-pronuncîa. Pode ser que com o tempo, se-deixem totalmente.

Quimera por-Chimera, defende Bluteau, e alguns outros: eu julgo, que sem razam alguma; sendoque o qui, tem mui diferente pronuncia, doque a que se-ouve na palavra, Chimera. Ja asima dise, que a quem nam agrada, escrever estas palavras, por-ch, é melhor, uzar o k dos-Gregos, doque o qui; que tem em Portugal diferente pronuncia, na qual expresamente se-ouve o u.

Introduzio o uzo em Portugal, dobrar os rr, quando tem pronuncia forte: e parece-me que este uzo se-deve observar, nam fazendo cazo, do-que aconselham alguns, que um só r bastava.

Nam poso sofrer, que o Bluteau na sua Proza Gramatonomica, queira introduzir, no-principio das-palavras Portuguezas, o s antes de consoante: e escrever, Squeleto, Spasmo, Scena, Sciencia &c. Esta corresam é tam fora do-escolio, que nenhum Portuguez, que[Pg 29] nam seja Latino, saberá pronunciar aquele s, no-tal lugar: e o que souber Latim, será necesario, que pronuncie um e mui redondo. A razam disto é, porque o s Portuguez, que nam é final, é um verdadeiro sibilo ou letra sibilante, que faz ouvir a vogal ou antecedente, ou consequente. e asim, querer escrevela sem vogal, é mudar a pronuncia da-letra, e é fazer uma ridicularia, fundada unicamente em querer mostrar, que sabe a derivasam daquelas palavras. Abrasáram algumas pesoas cegamente, a opiniam do-Bluteau: mas nem por-iso dam razam, ou fazem autoridade nesta materia. Onde, antes de consoante, nunca se-deve escrever s simplez.

Deve-se com cuidado distinguir o u vogal, do-consoante v, ou v, para nam originar duvidas. O que muitos nam fazem, ainda prezados de doutos: pois vejo escrituras deles, que merecem compaixam. Isto porem nam só no-Portuguez, mas ainda no-Latim é necesario: Pois aindaque antigamente, (que os Romanos escreviam com letras maiusculas) todos os vv tinham a mesma figura: oje que, com muita razam, se-introduzio esta necesidade, devemos, no-carater pequeno, distinguir na figura estas duas letras, asimcomo as-distinguimos na pronuncia. E fazem mui bem os Alemaens, que, ainda nas letras maiusculas, distinguem o vogal, do-consoante, nos-livros impresos.

Diz Alvaro Ferreira Vera, que nenhuma disam Portugueza, deve acabar em x. Muitos porem acabam em x algumas palavras, e entre elas, Felix, Simplex &c. O que eu sei é, que a pronuncia Portugueza acaba em x, todas as palavras que acabam em s: quero dizer, que todo o s final pronunciam como x. de que nam quero outra prova mais, que cada um observe, como pronuncia o s final; e que diferensa tem do-s, que pronunciam no-meio das-disoens. O que suposto, se seja mais util, acabar em x, o que se-pronuncia como x, ou pronunciar diferentemente os ss finais; eu o-deixo considerar a V. P. Mas deixemos o s, na sua pose: observo, que nam só o s final se-pronuncîa como x, mas também o z final: o que V. P. pode ver em, Diz, Luiz, Fiz &c. E daqui cuido que naceo a facilidade, de pòr o z, em lugar de s final, naquelas vozes de que se-formam outras: como, Diz, dizes; Faz, fazes; para por-este meio fazer os plurais, somente com acrecentar es. O que eu nam condeno, mas antes aprovo, e pratîco com o exemplo, e com a razam: e cuido asim[Pg 30] se-deve fazer. Nesta letra é digno de atensam, o demaziado escrupulo de alguns, que magistralmente decidem, que o x tem diferente pronuncia do-ch, antes de e, ou i: e que é erro dizer, Xapeo; mas que se-deve pronunciar, Chapeo, carregando muito no-ch, para o-distinguir do x: e advertem, que é erro da-pronuncia da-Estremadura, pronunciar o ch, como x. Mas, sem fazer cazo da-decizam destes Senhores, julgo, que devemos continuar, na pronuncia da-Estremadura. Nam digo, que na escritura convertamos o ch, em x: deixo as coizas como se-acham: só digo, que na pronuncia, nam á diferensa entre uma, e outra letra. Em materia de pronuncia, sempre se-devem preferir, os que sam mais cultos e falam bem na Estremadura, que todos os das-outras Provincias juntas. Ora é certo, que os ditos pronunciam docemente como um x: e nem só eles, mas muitisimos de outras Provincias, tem a mesma pronuncia. Somente alguma diversidade achei nos-Beirenses, que batem mais o dito c, encostando-se à pronuncia Romana do-c. Mas seja como for, estas nam sam razoens, para persuadir um omem, a que pronuncie o dito ch, diferentemente do-x: quando a pronuncia comua está a seu favor: a qual por-iso mesmo que é mais suave, deve ser preferida à outra. E saiba V. P. que notei outra coiza, e vem aser, que os que querem pronunciar o ch, nam como x, esforsam-se desorte, que, na violencia comque pronunciam, mostram bem, que nam é esa a sua pronuncia. O dizer, que se-devem distinguir na pronuncia, nem menos persuade: porque eles mesmos admitem que s, e c, antes de e, e i, pronunciam-se da-mesma sorte: onde nam tem que se-escandalizar. E asim o dizerem eles, é erro, nam faz forsa: devemos responder-lhe, que eles sam os que erram. Advirto porem, que no-meio das-disoens introduzio o uzo, nam pronunciar o x, como no-principio; mas segundo o estilo Latino, como se fose um cs brando, tocando ligeiramente o c: v. g. em Reflexam, Conexam &c. porque asim é mais suave. mas Paixam, ainda se-conserva em toda a sua forsa; e nam sei qual outro.

O Y tem tantos apaixonados, principalmente entre os modernos Portuguezes, que quazi abuzam dele: e acham-se livros, em que sam mais os yy, que os ii: especialmente o Curvo na sua Atalaia da-Vida, e alguns outros. O Bluteau, seguindo a Bento Pereira, diz, que se-deve admetir nas palavras, para mostrar[Pg 31] a origem remota delas, principalmente do-Grego &c. Como se sem esta noticia, nam pudesemos saber Portuguez! Tomára porem que me-disese, se Meio, Cuidado, Saia &c. em que poem o tal y, tem alguma analogia com a origem. Outros dam outras razoens, que nam merecem reflexam, nem resposta: O certo é, que esta vogal antigamente valia o mesmo, que o u, ou tinha um soido mais semelhante a u, que a i. onde se a-quizer-mos tomar, no-seu antigo vigor, faremos uma voz desemelhante, à que queremos pronunciar: e se acazo deve valer um i simplez, tomára que me-disesem, por-qual razam a-poem, onde nam é necesaria. Daqui vem, que é erro escrever, Meyo, Ley, Hey, Rey &c. tudo isto se-deve escrever sem y, porque nam sam nomes Gregos, mas puros Portuguezes. Onde nam só os Portuguezes, mas os mesmos nomes Gregos, quando estam bem aportuguezados, como Idropezia, Ulizes &c. se-devem escrever sem y. Confeso, que nam pude sofrer o Bluteau, o qual, seguindo ao Pereira, quer, que a vogal i nam seja suficiente, para fazer ditongo com a, dizendo, Pai, Dai, &c. mas que seja de necesidade pòr o y, para o ditongo. Este parecer nam necesita de confutasam: pois quemquer conhece, que com ai, se-pronuncîa, da-mesma sorte que ay: onde o uzo serve de resposta; e nam temos necesidade do-y, para fazer o mesmo, que fazemos com o i.

Paso daqui ao Z, aquela letra desgrasada, que teve a infelicidade de dezagradar, à maior parte dos-escritores Portuguezes deste seculo: os quais nam só a-desprezáram, para introduzir em seu lugar o s; mas alguns deles com decreto asentáram, que se-devia desterrar do-meio das-disoens, e prover o seu lugar no-s. Estes Senhores escrevem quazi tudo com s. Achará V. P. em alguns dos-bem modernos * * * Cezar, Fazer, Quizeram, Miudeza, Reduzir, Fazenda &c. tudo escrito com s. Entre eles achei um, de mui boa fama, que em uma orasam * * escreve, Alteza, Solenizado com z: e pouco abaixo, Usurpáram, Lisonja com s. poem Riqueza, e logo Luminoso, Profusam. poem Fazem, e logo Religioso. Emfim a maior parte destes modernos doutisimos escrevem, Alteza, Luzes, e outras poucas palavras com z: e tudo o restante, em que devia entrar o z, vai com s. O Vieira, e outros, que nam admitem tantos ss, contudo em algumas disoens seguem o mesmo, e escrevem vg. Brazil, com z, e Reside, com s. Mas eu creio, que é necesaria mui pouca meditasam para conhecer,[Pg 32] que todos estes erram. Os Portuguezes tem a pronuncia do-z asperisima: que creio lhe-ficou, da-comunicasam com os Moiros, e Arabios, que abundam muito diso: e eu acho em Portugual, muitos vocabulos destas Nasoens. Onde tendo o s, e z, diferentisimas pronuncias, é erro sem desculpa, pòr o s, em lugar do-z, quando este deve ter toda a sua forsa, como no-principio, ou meio das-disoens. Dezafio todos os Portuguezes, paraque pronunciem estas palavras diferentemente, vg. Luzes, e Lizonja; Abrazado, e Plauzivel; Riqueza e Religiozo. nam averá algum que se-atreva a dizer, que nas primeiras se-ouve z, e nas segundas s: mas em ambas as partes se-ouve um z mui grande, e gordo. Sendo pois esta pronuncia particular na lingua Portugueza, acha V. P. que se-pode sofrer, desterrar todos os zz, para introduzir uma letra, que soa diferentemente? a isto chamo eu destruir, nam emendar, a boa Ortografia. Alem diso, eu acho em Portugal motivo, para dizer o contrario. ponhamos exemplo nestas duas palavras, Azeite, e Aceite; ou tambem, Razam, e Raçam. Ninguem dirá, que estas duas palavras soam da-mesma sorte: porque em tal cazo nam averia motivo, para as-distinguir na pronuncia. todos tambem conhecem, que o c, com cedilha ç, antes de vogal, pronuncia-se como s; e que por esta razam muitisimos Portuguezes indiferentemente uzam delas. Daqui pois segue-se, que se z, se-deve pronunciar como s, os ditos pares de vocabulos devem pronunciar-se da-mesma sorte. Mas sem eu perguntar isto a omens doutos, mas somente ao leigo da-cozinha de V. P. sei que me-responderá, que Razam, e Raçam, sam coizas mui diferentes: Azeite, e Aceite, nam menos: E asim nam tenho lugar de duvidar, que, pronunciando-se diferentemente, devem tambem escrever-se, com letras diferentes. Se concedem, que o z se-deve conservar, em algumas vozes, como todos concedem; que razam á, para o-nam-conservar nas outras? Se dizem, que o dito s se-deve pronunciar como z, merecem rizo quando querem pòr aquele por-este. ou deitem fóra esta letra do-alfabeto; ou escrevam-na onde deve entrar. Fazer o contrario, é destruir a pronuncia da-lingua, ou batizar de novo as letras.

Somente porei z em lugar de s, no-fim de algumas disoens, de que se-formam outras, como asima dise: porque o uzo introduzio esta pronuncia do-z, semelhante ao s. o que suspeito que provèm de uma Apocope, que se-acha nas tais palavras: e que[Pg 33] antigamente despois do-z se-punha uma vogal: como á exemplo em muitas linguas, e também na Portugueza.

Lendo eu a este intento o Bluteau nos-opusculos,[9] fiquei confirmado, que poucos omens pensam bem, ainda dos-que tem bom nome. Confesa, que muitos eram de parecer, que s’escrevese Filozofia, sem ph: e que sempre se-avia de seguir a pronuncia, pois era esta a maior excelencia do-Portuguez; no-qual as letras dobradas eram inutis. Que desta opiniam era Duarte Nules de Leam, & Joam de Barros, nas suas Ortografias; e outros muitos autores, que escrevèram da-lingua. Contudo diz, que na Academia do-Ericeira se-asentára, que nem sempre se-devia escrever como a pronuncia: Mas aqueles nomes que conhecidamente encerravam origens sem corrusam, s’escrevesem como na sua etimologia, quando as letras nam fosem como a pronuncia: e asim Coro, e nam Choro: Monarquia, e nam Monarchia: E que os zz s’evitasem muitas vezes, servindo-se do-s. Confeso a V.P. que nam pude ler isto sem rizo. Eu nunca li as obras do-Leam, ou Barros, nem me-cansei em buscalas: mas agora fico formando melhor conceito deles. Polo contrario nam sei, quais eram os votantes na dita conferencia: porem olhando para o que asentáram, formo mao conceito do-seu juizo: pois conhecendo a razam, e tendo bons autores, que os-apadrinhasem; ainda asim quizeram seguir os prejuizos e preocupasoens que mamáram, somente por-serem antigas. Isto certamente nam é emendar a Ortografia. O pior é, que o Bluteau conhecendo isto mesmo, como em algumas partes confesa, deixa-se guiar da-corrente. Asima mostrei, que Monarchia, deve-se escrever com ch, vistoque asim escrevem Archanjo os contrarios &c. e nam tem divesa razam, sem cairem em uma superfluidade. Devendo pois desterrar o ch, é melhor servir-se de k; mas nunca de q. O mais tambem ja fica advertido.

Certamente que o dizer o Bluteau, que nos-nomes se-deve observar, a Ortografia da-derivasam, como em Philosophia &c. porque de outra sorte nam se-saberám buscar nos-Dicionarios; é reflexam que merece rizo: porquanto as derivasoens, só as-procuram os doutos: e estes bem as-sabem. os ignorantes, nem asbuscam,[Pg 34] nem necesitam de buscalas, aindaque queiram falar, e escrever puramente.

Até aqui tenho feito algumas reflexoens, principalmente sobre as coizas, que se-devem deixar: agora farei outras, sobre as que se-devem acrecentar. Nam cuide V. P. que estas sam de menor momento nesta materia: antes muitas vezes delas depende o aumento, a pureza, e elegancia da-lingua. Ponho em primeiro lugar os Acentos: que creio, sam indispensavelmente necesarios, para distinguir muitas palavras. Nam podemos sem eles saber, se Amara, é preterito, ou futuro: e damesma sorte em outras muitas palavras. Tambem para distinguir os Nomes, dos-Verbos, vg. Pronuncia nome, de Pronuncîa verbo. Asimque este deve ser todo o cuidado dos-mestres: que devem advertir aos discipulos, em que partes se-devem pòr, para bater com mais, ou menos forsa as vogais, e distinguir os tempos, e as vozes: vistoque os Portuguezes nam tem letras dobradas, que antigamente serviam a outros, para mostrar as diferentes pronuncias. Porque eles com as dobradas, pronunciavam diferentemente: e os Portuguezes, tirando em pouquisimas palavras, pronunciam como se estivese uma simplez letra.

Nam ignora V.P. que as virgulas, pontos, e dois pontos, foram inventados, para distinguir melhor o discurso. Este é um dos-defeitos da-antiga escritura, que tinha poucos sinais destes: e por-iso é às vezes bem embrulhada. Muitas vezes verá V.P. um ponto, despois de cada palavra: o que faz grandisima confuzam. Outras vezes, o lugar em que punham o ponto, mostrava a diversidade da-pontuasam: quero dizer, que o polo na cabesa, ou no-corpo, ou no-pé da-letra, mostrava que era virgola, dois pontos, e ponto. E como nam temos documentos bem claros, ainda oje vareiam muito os Gramaticos no-determinar, quando era ponto, e quando virgula &c. Com efeito eu vi uma lapide antiga, na qual os pontos todos estavam em um mesmo sitio, no-corpo das-letras: o que aumentava a confuzam. Os Modernos mais advertidos inventáram estes diversos sinais, para nam nos-enganar-mos nas pauzas, e no-sentido do-discurso. Mas ainda nisto procedèram devagar: e eu vi livros impresos nos-primeiros tempos, quero dizer, nos-fins do-seculo XV. e principios do-XVI. nos-quais nam avia mais que virgulas, e todas damesma figura: o que aumentava sensivelmente o embaraso: sendo[Pg 35] necesario um grandisimo estudo, para distinguir os sentidos. E isto se-pratîca ainda oje nos-originais das-Bulas Romanas, escritos sem virgulas, nem pontos: os quais quem nam é pratico dos-estilos da-Dataria, nam pode ler; nam só polo carater Gotico, mas pola Pontuasam. Os Modernos evitáram isto, com a diferensa de figuras. Onde sendo os Acentos, os que tiram a confuzam à pronuncia, e ensinam, como se-devem distinguir as partes do-discurso; valem infinito preso, e devem praticar-se com cuidado. Nam digo, que escrupulozamente pratiquemos as trez sortes de acentos: pois nem os mesmos Romanos se-serviam muito do-circumflexo, que com o tempo perdèram. basta uzar do-agudo, que se-escreve asim (´) para bater mais as silabas: do-grave neste modo (`) para as particulas, que se-tocam menos: em algum cazo quem quizese podia pòr o circumflexo sobre o î, para dar lugar ao ponto desima. Ifto é o que basta.

Aos acentos seguem-se as linhas, que se-escrevem entre as disoens, para as-juntar, ou dividir na pronuncia. Os Ebreos tambem tinham estas linhas, e alguns Povos Europeos. Algum Portuguez a-uza. mas serîa justo que a-uzasem mais, e com regras determinadas: pois ajuda muito a pronuncia, e distingue muito as disoens, principalmente as compostas. Julgo, que se-deve uzar naquelas, que compoem duas palavras perfeitas, que costumam estar às vezes separadas. v.g. Fazemos-lhe, lhes-fazem, nos-dizem, dizem-no &c. Com isto se-mostra, quando os Pronomes unem com os Verbos, nam só no-sentido, mas na pronuncia: e finalmente, quando muitas disoens na pronuncia compoem uma. Deve-se tambem pòr entre a Particula se, quando é Pronome, e o Verbo. v.g. Se se-fizer. o primeiro se, é Conjunsam condicional: o segundo, é Pronome, e une com o Verbo. Onde a dita linha é de grande utilidade, para mostrar as palavras, que devem pronunciar-se unidas. v.g. o Nos, algumas vezes é Nominativo, Nós fazemos; e pronuncia-se separado, e com acento forte: outras vezes é Cazo, v.g. nos-fazem: o que se-distingue mui bem com a dita linha. Tambem às vezes serve, para distinguir os tempos. v.g. Amáse preterito, e Ama-se prezente, com esta linha se-distinguem: porque esta separasam de vozes mostra, que, quando chegamos ao a, deve correr a pronuncia, para apanhar o se: que é o mesmo que dizer, deve nam parar no-a, nem carregalo: no-que se-distingue o tempo. Sei, que com os acentos se-podem distinguir[Pg 36] estas coizas, digo, este ultimo cazo; e por iso digo, que ou uma, ou outra coiza se-deve praticar: aindaque eu, por-intender que sam necesarias, pratîco ambas.

Quanto ao se, nam só deve ter linha, quando se-une imediatamente ao Verbo, mas tambem quando s’interrompe com a Particula negativa. v. g. se-nam-faz, quando vale o mesmo que, nam se-faz. porque aindaque a Particula paresa que separa; contudo no-dito cazo a negasam é unida ao Verbo, e faz com ele um só corpo, e sentido: damesma sorte que entre os Latinos, a particula in unida aos Verbos. Onde a separasam, é somente quanto à vista: e as duas linhas ensinam, que se-deve pronunciar tudo, como uma só palavra. Serve às vezes a dita linha nam só para unir as palavras, que ese é o seu principal fim; mas para evitar os equivocos. E asim poem-se na Particula Por, quando significa cauza &c. para distinguila do-Verbo Pôr. tambem nas Particulas no, do, da, para as-distinguir dos-Sustantivos , e , e do-Verbo , ou dás. Em todas estas, e outras semelhantes, milita a mesma razam. nas quais porem será justo pòr acento, quando deve ser.

Em outras partes tenho visto uzar estas linhas, que nam me-parecem de tanta necesidade. v.g. Fazemos: que algum douto escreve: Faze-mos: ou tambem quando uma consoante se-converte n’outra, para evitar o concurso de muitas vogais: v.g. Fazé-la, Amá-la, que vale o mesmo que, Fazer-a, Amar-a. Mas nestas primeiras pesoas do-plural parece escuzada, porque se-intendem muito bem, e estam muito em uzo. E o mesmo julgo, dos-segundos exemplos: muito mais porque nestas em que vai La, muitas nam se-acham separadas às vezes, v.g. Quere-la &c. Mas quem nestes segundos exemplos ateimáse a praticala, nam faria erro. O que porem me-parece afetasam é, querer separar esta voz Mente, dos-nomes com que faz Adverbio: Pia-mente, Antiga-mente &c. Na pronuncia destas disoens, nam pode aver engano: e quem as-separa, intende mal as coizas.

Podem opor-me uma dificuldade, vem aser, quando se-dividem as palavras no-fim das-regras, como á-de conhecer quem copeia, se na seguinte regra deve pòr a palavra inteira, ou com a dita linha. Mas a isto respondo, que se-conhece muito bem deste modo: se as palavras se-dividem por-necesidade da-regra, poem-se no-fim duas linhas asim =: quando se-dividem na divizam[Pg 37] da-linha, basta pòr uma só linha. Primeiro exemplo asim: Fa=zia: segundo exemplo: Faz-me. Se no-fim da-regra se-acha o Fa= com duas linhas, é sinal que na imprensa, ou copia deve ser inteira a disam: se tem só uma linha, sucedendo ficar toda a disam na seguinte regra, deve ter tambem a linha: e isto é facil de praticar.

Creio que será mui justo, introduzir na lingua Portugueza, os Apostrofes: que sam umas virgulas, que se-escrevem no-alto de uma consoante antes da-vogal seguinte; para mostrar, que falta uma vogal, e que a consoante se-deve unir na pronuncia, com a vogal da-seguinte disam. Digo na proza, porque no-verso o Camoens, e outros ja os-introduzîram. Os nosos Italianos introduzîram os Apostrofes, para abreviarem as disoens: vistoque, comendo-se as ditas vogais na-pronuncia, é superfluo escrevelas: bastando ali pòr o sinal, de que deveriam estar. O mesmo fazem os Francezes: e cuido que, sem alguma censura, o-podem introduzir os Portuguezes. Onde será permetido escrever, Amor d’ Antonio: Cam d’agua &c. A razam disto é, porque ou na proza, ou no-verso nam se-faz cazo daquela primeira vogal: e asim podemo-nos dispensar de a-escrever. Em 2. lugar, porque nam se-perde com isto o sentido, nem se-faz equivoco. Em 3. porque faz a pronuncia mais doce. o que principalmente se-conhece, quando as vogais sam semelhantes: no-qual cazo pronunciar dois ee, ou dois aa, é aspero, e cansa. Asim cuido, que neste cazo, é necesario; nos-outros, mui agradavel o Apostrofe. Nem isto é tam novo em Portugal, que nam se-achem vestigios desta uniam na pronuncia: antes nam á coiza mais frequente. Considere V.P. estas palavras, Deste, Daquele, Damesma, e outras semelhantes; e verá nelas o que digo. Antigamente escrevia-se, De este, De aquela, De a mesma &c. o que facilmente alcansa quem considera, o que vale aquele d, e com que motivo se-introduzio. Mostrou a esperiencia, que, pronunciando estas particulas separadas, ficava aspera a pronuncia: e asim deitaram-nas fóra até da escritura. O que suposto, o que eu aconselho é, que pratiquem com as outras disoens, que se-unem na pronuncia, o mesmo que tem praticado com estas: e que em ambas as partes ponham o Apostrofe, para mostrar a vogal que falta; e com isto ensinar melhor a compozisam das-disoens, sabelas conhecer, e buscar. Apostarei eu, que de dezmil omens Portuguezes, a um só nam veio nunca à[Pg 38] imaginasam, que Deste &c. é composta de De, e Este. Proguntei isto a alguns, e nam me-souberam responder: e contudo serviam-se indiferentemente destes termos. Eu teria uzado mais amiudo dos-Apostrofes: mas como ainda nam estam bem introduzidos, temo que me-nam-intendam. pouco a pouco devemos acostumalos a isto.

Outra coiza tenho que repreender, na maior parte dos-Portuguezes, e vem aser, que dividem muitas disoens, que deviam estar juntas. Vg. escrevem, Ainda que, Para que, Com que, Por que, e outras conjunsoens semelhantes. Mas erram, porque aquelas palavras quando se-seguem umas a outras, devem estar unidas, e fazem uma só palavra: e até isto pode ser necesario, para fugir de equivocasoens. Se eu diser: Para que omem me-manda! Com que razam me-persuade! neste cazo o que, é Relativo. e deve estar separado. Mas quando significa o mesmo, que etsi, ut, igitur, quia, como nas quatro asima apontadas; deve estar junto: o que servirá muito, para os-distinguir ambos. Isto mesmo praticáram os Romanos. Attamen, Etenim, sam compostos de At, tamen; Et, enim. Quamobrem é composto de trez disoens, nenhuma das-quais é Adverbio: e contudo juntas fazem de muitos nomes um. E isto mesmo devem fazer os Portuguezes nestas disoens indeclinaveis: e ainda algumas vezes nas declinaveis, que se-unem com o Articulo &c. o que o uzo ensinará; e a pratica dos-omens doutos confirmará.

Tambem sobre os Plurais serîa necesario, establecer um uzo constante. O P. Bento Pereira diz, que o plural de al, é ais, e nam aes. e parece que tem razam; porque a pronuncia mostra um i, e nam um e. Mas nisto á tanta variedade, que uns escrevem ais, outros aes: e o pior é, que o mesmo escritor serve-se às vezes, d’ambas as terminasoens. Um destes é o Bluteau: que, tendo aprovado na Proza Gramatonomica a opiniam do-Pereira, contudo escreve Misaes, e outros plurais semelhantes. Mas ja adverti, que o Bluteau é inconstante na Ortografia. Mais controversos sam, os que acabam em er, como Chanceler, cujo plural querem muitos que seja Chancereis: e nisto tropesa muita gente boa. Cuido, que é mais proprio, e mais chegado à analogia, Chanceleres: e asim todos os mais. Damesma sorte Almiscar, deve fazer, Almiscares. Tambem é mui duvidozo o plural de Simplez, como tambem Feliz. Muitos escrevem o primeiro com x, em ambos os[Pg 39] numeros: o que aumenta a confuzam. Outros escrevem no-singular, Simplice: que parece afetasam vergonhoza. Ou acabe em s, ou z no-singular, o plural deve acrecentar somente um es: v.g. Simpleses, ou Simplezes. O mesmo digo, dos-que afetam dizer no-singular, Felice, e plural Felices. Digo, que no-singular deve-se dizer Feliz, ou com s, ou z; e no-plural Felizes: e asim dos-mais. as palavras Indice, e Index, ja oje se-recebem indiferentemente em Portugal. Que Brazil, fasa Brazis, está muito bem: mas que Malsim, Beleguim, fasam Malsis, Beleguis, como querem alguns; é contra a pronuncia boa, que mostra um n mui claro. E asim estes em im, devem acabar em ins, Malsins. Os outros plurais em aons, aens, e oens, é facil determinalos; advertindo as anomalias que se-acham nas tais regras, que nam sam poucas.

Mas nam pára a qui a reforma: deve-se dar um paso mais adiante, e acrecentar muita coiza, em que é defeitoza a lingua Portugueza. Consiste a primeira, em adotar algumas palavras Estrangeiras, para explicar melhor o que queremos. Nam acho em Portugal palavra, que explique a idea que formam os nosos Italianos, (e ainda os Francezes) quando proferem esta palavra, Penso: dizendo, Um omem que pensa bem: Que pensa mal &c. Dizer, Ajuizar, nam explica: porque ajuizar é uma especie de Pensar; mas nam compreende tudo quanto diz, Pensar. Nem menos serve, Considerar: porque considerar é o mesmo que Meditar, Examinar uma materia; e Pensar diz mais. Um meu amigo, para dezatar este nó, servio-se de Pensamentear: mas parece afetado. É mais proprio e natural, servir-se do-Verbo Pensar, que compreende todas as operasoens do-intendimento. Onde, diremos que um omem Pensa bem, quando se-serve de todas as qualidades da-mente ou intendimento, como deve ser.

A mesma dificuldade pode nacer em outras palavras. Aqui confundem Iuizo, e Intendimento: sendo coizas muito diferentes. porque cada nome destes distingue uma particular faculdade da-alma, esta de intender, aquela de julgar. A estas duas unem outras duas, Ingenho, e Talento: as quais nam só sam diferentes das-ditas, mas entre si. Ingenho, somente explica a facilidade que temos, para unir diferentes ideias, de um modo que eleve. Talento, significa a capacidade tanto de intender, como de julgar, e discorrer. Serîa bom, que se-distinguisem estes significados, e se-explicasem aos rapazes, para nam confundir as palavras.[Pg 40] Parece-me, que para explicar aquilo, a que os Latinos chamam, Mens, Intelligentia, e algumas vezes Intellectus, se-podia adotar em Portugal a palavra Mente, como fazem os nosos: a qual explica melhor tudo. O uzo tem introduzido, que Intendimento seja sinonimo de Mente.

A estas se-podiam ajuntar outras muitas palavras Estrangeiras, que explicam melhor o que se-quer dizer; principalmente quando se-trata de Artes e Ciencias: cujos termos é necesario uzar, mas com cautela. Nam digo, que se-devam adotar cem mil termos Latinos, que no-Portuguez sam inutis: antes condeno isto muito em bastantes Portuguezes, que enchem os seus escritos, de mil palavras Latinas sem tom nem som, somente para parecerem eruditos. Este é aquele vicio dos-pedantes ou ignorantes, a que os nosos chamam, Pedanteria. O que digo é, que nam avendo termo proprio em Portuguez, se-pode, e deve buscar fóra: e muitas vezes pode-se buscar fóra, nam tanto por-preciza necesidade, quanto para maior ornato da-lingua: aqual é justo que nam seja tam pobre, que nam tenha algumas ocazioens dois ou trez sinonimos, para explicar as mesmas coizas: outras vezes para adosar a pronuncia aspera de algumas vozes antiquadas: e fazer seja mais bela, e mais suave a lingua materna. Mas aqui é que está o juízo, em sabelos adotar sem afetasam. Porei um, ou dois exemplos. Em Portugal nam á nome proprio, para nomiar aquele criado de libré, que acompanha seu amo a pé vizinho à carruagem, ou cavalo. Os nosos Italianos explicam isto com uma palavra, Staffiere, ou Palafreniere. Porque nam uzaremos destes termos em Portugal? Chamamos aqui Letrado, ao que advoga nas cauzas: chamamos aos omens doutos, Letrados. Mas isto é uma impropriedade. Letrado, Douto, Erudito, Sabio, sam sinonimos, mas de significasam mui generica. Aos que advogam, deviam chamar Advogados: que é o seu nome proprio, ainda na lingua Latina, como diz Quintiliano, e Asconio: Advocatus, i. e. Patronus, Caussidicus. Adotáram os Portuguezes estas palavras, Berlinda, Paquebote, Estufa, Sege &c. para distinguir as diferentes sortes de carruagens de que uzam: mas podiam adotar muitas mais: avendo aqui outras carruagens, que nam tem nome proprio, que em outras partes o-tem. As artes Liberais, Ciencias &c. tratando-se em Portuguez, devem ter os seus nomes Estrangeiros, mas aportuguezados. Finalmente, se eu ouvese[Pg 41] de escrever tudo, o que me-ocorre nesta materia, faria um groso volume: e asim contento-me, de apontar estes exemplos. O que encomendo muito é, que com este pretexto, nam nos-encham a lingua de Latinismos, Francezismos, e Italianismos, como entre outros fez Inacio Garcez, nas Notas ao Camoens.

Serîa mui util, que os omens doutos introduzisem uma terminasam certa, em todos os Patronimicos de Provincias &c. no-que falta muito a lingua Portugueza. A um omem das-Provincias, chamam Algarvio, a outro Alemtejam, a outro Minhoto, Beiram &c. E ainda estes nomes nam sam geralmente, e benignamente recebidos; porque se-reputam injuria. Mas o pior é, quando pasamos aos Patronimicos de Cidades; comumente nam se-acham: mas dizem: Um omem d’Evora: Um d’Elvas &c. Neste cazo parece licito, fazer nomes novos, e dizer, Evorense, ou Eborense, Coimbrense, Portuense &c. E o mesmo dos-outros antecedentes: os quais podem terminar-se em duas maneiras: v.g. Algarviense, ou, com outra dezinencia Romana, Algarviano: Alemtejense, Alentejano: Beirense, Beirano &c. Nos-nomes de Provincias Ultramarinas, deve-se observar o mesmo. v. g. Brazileense &c. Insolense, Indiano &c.

Em todo o cazo porem, tanto na introdusam de nomes novos, como na pronuncia dos-antigos, sempre se-deve cuidar, em adosar a pronuncia, e fazela, quanto mais puder ser, facil. Nisto pois á muito que condenar em Portugal, principalmente nestes modernos eruditos; que, querendo parecer elegantes, e mui versados na sua lingua, e origens dela; dizem coizas, que é uma piedade ouvilos. V.g. Escrevem, Volumozo: sendo Voluminozo muito mais suave, e mais chegado à analogia Latina. Dizem, Exceptas: sendo mais natural Excetuadas, que vem do-Verbo Excetuar, que é mui Portuguez: quando polo contrario nam acho nela, o verbo Exceptar. Dizem, Eregia: que ofende os ouvidos com a pronuncia: sendo melhor Erezia, que é mais doce e nem por-iso menos conforme ao Latim. Dizem, Pesoa comum: que é uma verdadeira ridicularia: porque aindaque a palavra comum, signifique coiza de muitos; deve ter as suas duas terminasoens em Portuguez, asimcomo tem no-Latim, em que explica diferentemente o Neutro: e o superlativo Communissimus, tem trez mui redondas. Onde deve dizer-se, Coiza, ou pesoa comua &c. Finalmente, (deixando por-agora outras reformas destes escrupulozos)[Pg 42] nóto que escrevem Pai, Mai, ou com y, ou com i. Quanto ao primeiro concordamos: mas nam no-segundo: porque na pronuncia ouve-se um e, e n mui redondo: e asim deve escrever-se Maen, porque asim pronunciam os omens de melhor doutrina. Nem vale o dizer, que com isto se-conformam mais, com outras semelhantes palavras Portuguezas: porque, como ja dise, o uzo, fundado sobre a pronuncia mais doce, faz lei neste particular[10]. Tambem eles dizem Catam, Varram &c. e no-mesmo tempo dizem Cicero, Pollio &c. e nam Ciceram, Polliam &c. sendo a mesma razam. No-mesmo Latim, ou Italiano vemos, que uma palavra se-pronuncîa de um modo, e outra, que vem damesma origem, diferentemente. o que V. P. pode ver nos-livros de Cicero, que apontei asima, que traz exemplos de tudo: por-nam citar agora exemplos vulgares, que sam muitos. Asim asento, que, com esta regra diante dos-olhos, é que se-deve emendar e reformar a lingua.

Mas o que me-dá mais vontade de rir é, ver as cautelas que praticam, para dizerem, Porco. Uns dizem, o Gado mais asqueroso: outros dizem, Carne suina: e louvam muito isto em alguns antigos escritores. Tudo puerilidades. Porco nam é palavra obcena: dizem-na os Latinos, e os nosos Italianos diante do-Papa. Antes creio que asquerozo, traz a memoria nam só coiza suja, como o porco, mas coiza que volta o estomago. Estas delicadas orelhas pronunciam, sugidade, escremento, lesmas, ratos, persevejos, piolhos, pulgas, e outras coizas imundisimas sem dificuldade: e acham-na grande em pronunciar, Porco. Que lhe-parce a V. P. a esquipasam?

Finalmente devo advertir a V. P. que estes seus nacionais, ainda falando, pronunciam mal muitas letras no-meio; mas principalmente nos-fins das-disoens. V.g. e final, pronunciam como i: como em De-me, Pos-me &c. todo o o final, acabam em u: v.g.[Pg 43] em Tempo, Como, Buxo &c. cujos nomes quem quer pronunciar à Portugueza, deve acabar em u. todo o m final, e no-meio, como n. todo o e antes de a no-meio da-disam, pronunciam como se-fose um tritongo. v.g. Cea, Vea: que pronunciam Ceia, Veia: namobstanteque na escritura, comumente nam ponham o i. E nisto merecem rizo alguns Portuguezes, que nas suas Ortografias impresas ensinam, que na lingua Portugueza se-devem pronunciar algumas letras, aindaque nam estejam escritas: e que umas letras devem pronunciar-se por-outras; v.g. achando-se Outo Dous &c. se-deve pronunciar o u, como i. Isto, como digo, é querer confirmar os rapazes, nos-seus erros. Deveriam polo contrario dizer, que, pronunciando-se o i em Cea, se-deva escrever tambem com i, para se-conformar com a pronuncia: Muito mais porque eles escrevem Meio, Veio, Correio com i, e a mesma razam milita, nos-que apontamos, e semelhantes. Damesma sorte achando-se escrito Outo com u, deveriam ensinar aos rapazes, a conformar-se com a escritura, se intendem que é arrezoada: se porem intendem, como na verdade é, que parece aspera e dura; deviam dizer, que se-escrevèse com i; e nam enganar os rapazes na pronuncia.

E na verdade nam poso intender, por-que razam, pronunciando os omens doutos nos-seus discursos, Dois, Oito, Oitenta, Toiros, Coizas &c. devam na escritura mudalo em u; se nam é por-se-conformar com quatro velhos impertinentes, que intendem e julgam mal das-coizas. Este é o mesmo cazo de Optumus, Maxumus, Dividundo, Faciundo, e outros semelhantes dos-Latinos. Cicero, Cezar, Nepote, e outros omens cultos, nam puderam sofrer aquela pronuncia; e convertèram aquele u em i, para fazer suave a lingua: Salustio, que nos-ultimos tempos o-quiz conservar, foi criticado: e nem menos agradou Varram, que era o protetor das-antiguidades. Onde deve isto tambem ser permetido na lingua Portugueza, que filha damesma maen, tem as mesmas qualidades. Parece coiza galante, que estes omens, em vez de facilitar aos Estrangeiros, a pronuncia da-sua lingua; só busquem meios de aumentar, a aspereza dela. Certamente que o Camoens no-XVI. seculo, apurou muito a sua lingua, servindo-se da-Italiana &c. e isto devemos nós tambem fazer, emendando os erros de Camoens, nam só no-que digo; mas em outras coizas, em que ele pecou, e eu podia advertir. Concluo dizendo, que[Pg 44] na lingua Portugueza, nam só se-devem tirar as letras superfluas, onde nam se-pronunciam; mas escrever outras, que se-pronunciam, e até aqui se-deixavam. Onde, todas as vezes que se-pronuncîa o i entre e, e a; deve-se escrever. V.g. Cadeia, Ideia, Ceia, Veia &c. vistoque os Portuguezes escrevem comumente, Meia de calsar, meia duzia &c. e a razam é a mesma em ambas as partes. Por-esta mesma razam se-deve escrever em todos os Verbos, como Leia, Paseia &c. porque se os-pronunciasem como Ceo, Plebeo, Chapeo &c. neste cazo era justo que lho-tirasem: mas levando o i na-pronuncia, tambem o-deve ter na escritura. Desta sorte somente, se-poderá introduzir uma Ortografia certa, e geral, que nam necesite dar diversas razoens em todas as palavras. Repare V. P. que eles escrevem Aia, Maia &c. com i, porque o som desta vogal é claro: e porque nam faram o mesmo com outros nomes, que sam puros Portuguezes?

Acho alem disto omens, que aconselham, se-tire de Arrecadar, Arrematar &c. o arre; e se-diga, recadar, rematar. Sam deste parecer o Bluteau, e algum outro. Mas estas orelhas tam delicadas e escrupulozas, que se-ofendem com tais minucias; nam tem dificuldade, de se-servirem em todas as paginas destes termos, Com noticia; &c. o que abunda no-Bluteau: ou, como diz o Vieira, Por razam, e outras tais. Parece-me, que estas cacafonias menos sofriveis, se-deveriam evitar; deixando as outras que nada ofendem. Este metodo de reformar a Ortografia, era melhor que se-nam-impremise.

Ora deste dano de pronunciar mal o Portuguez, de que até aqui fizemos mensam; rezulta outro, de conservar no-Latim os mesmos erros. onde serîa mui util, que se-emendasem quanto pudesem. Sei, que isto tem sua dificuldade, porque os ignorantes sam muitos, e pronunciam mal: mas Roma nam se-fez em um dia. Seja V. P. um dos-primeiros a dar exemplo: persuada isto mesmo aos seus amigos: que os outros os-imitarám. Deste modo introduzirám em Portugal uma Ortografia, quanto mais poder ser, constante; o que até aqui nam tem avido: e asim será mais bela, e facil a pronuncia; e mais armoniozos os versos Portuguezes.

Isto me-parece basta advertir, sobre a Ortografia Portugueza, visto nam fazer tratado dela. muito mais, porque com estas poucas regras, se-pode responder, às outras dificuldades que[Pg 45] ocorrerám. Algumas observasoens de menor momento, podem-se ver, nas Ortografias Portuguezas: tendo a advertencia, de nam se-deixar enganar, das-regras que dam, porque comumente sam mui más. O P. Bento Pereira, que cuido foi dos-primeiros que escrevèram nesta materia, dá muito más regras; e só proprias para destruir, o que cada um sabe. O Barreto, o Leam, o Vera, tem algumas coizas boas, entre outras muito más. Na mesma clase ponho, o que diz o P. Argote, nas suas Regras Portuguezas; e algum outro. Tais autores copiaram-se fielmente uns a outros, sem examinarem a materia.

Sei que alguns, dam em razam do-que escrevem, acharem-no asim escrito, nos-antigos Portuguezes. Mas esta razam, é de caboesquadra. Porque tratando-se de linguas vivas, que nam estavam purgadas polo pasado, mas que na nosa idade, se-vam reduzindo à perfeisam; e desta, da-qual no-noso tempo, apareceo o primeiro Vocabulario; nam devemos estar, polo que diseram os Velhos: mas examinar, se á razam, para se-dizer asim. Observe V. P. que os que asim respondem, contrareiam-se na pratica: porque nam uzam daquelas palavras toscas, que ainda lemos nas leis antigas, nos-testamentos, doasoens, e outros documentos, que deixáram os Antigos. Serîa uma ignorancia manifesta, e afetasam indesculpavel, falar oje com muitas palavras, de que uzáram os antigos Portuguezes. E isto, nam por-outra razam, senam porque a lingua se-foi purgando, e os omens mais capazes intendèram, que se-devia falar de outra maneira. E se isto se-pratîca, com inteiras palavras, porque o-nam-praticaremos, com melhor pronuncia?

Alem disto, é ja coiza muito antiga, que o uzo e juizo dos-omens doutos, e de boa eleisam, decida neste particular. E como ajam muitos Portuguezes inteligentes, que escrevem polo contrario; e asinam boa razam do-que dizem; nam tem lugar nisto, uma prescrisam sem fundamento. No-tempo de Cicero, a lingua Romana tinha de idade, polo menos, uns setecentos anos; (contando somente da-fundasam de Roma: porque sabemos, que a lingua do-Latio é muito mais antiga) e contudo ele, e outros omens doutos, a-purgáram muito bem. Observe V. P. os fragmentos que temos, de Livio Andronico, Enio, Estacio Cecilio, Pacuvio &c. e as obras de Catam o velho, de Plauto; e achará, palavras dezuzadas, e mui toscas; e, em algumas obras, uma compozisam[Pg 46] languida, e sem grasa. Prosiga mais para baixo, examine as obras de Terencio, Lucrecio, Varram, Catúlo, Salustio &c. achará neles a lingua mais mudada, e palavras mais polidas. Desa finalmente à ultima fineza da-idade de oiro da-Latinidade, quero dizer, aos que melhor faláram, no-seculo de Augusto; e sempre lhe-crecerá a admirasam, porque crece a mudansa. Pacuvio, e Estacio tem tanta semelhansa com Cicero, Cezar, Cornelio Nepote, Virgilio, Oracio &c. como o dia com a noite. naqueles, tudo é inculto: e nestes, tudo é polido, palavras, fraze, e metodo. E mais todos entram na idade de oiro! O mesmo Cicero, em alguns seus tratados, adverte, quanto trabalhára neste particular, para apurar a lingua. Oracio tambem adverte, que o bom uzo, é o que emenda as linguas. Finalmente advertiram os Gramaticos, e Oradores de melhor nome, que a Ortografia, está sugeita ao costume[11]: e um douto Latino, deixou escrito nesta materia: Antiquitatem posterior consuetudo vicit[12]. E nem somente encontrará V. P. palavras mudadas, mas novas. Os Romanos nam tinham palavras para tudo: e asim foi necesario tomalas prestadas: principalmente em materias de Ciencias, e Artes: as quais adotáram como Latinas. Este é o privilegio das linguas vivas. Mas certamente nam conhece este privilegio, quem se-escandaliza, como vi alguns, de que se-recebam palavras estrangeiras em Portugal. Se os Portuguezes as-nam-tem, que mal fazem, em pedilas aos outros? Nam aprovo porem, o que muitos fazem, servir-se sem tom nem som, de vozes estrangeiras, e palavras puramente Latinas, tendo outras Portuguezas tam boas. O que observo em muitos, que prezumem de Criticos, e Poetas: especialmente no-dito Inacio Garcez Ferreira. O que digo é, que nam se-achando proprias, nam é delito, procuralas em outras linguas; ou fazelas novas: e que, quando as proprias sam asperas, se-devem adosar.

Este mesmo uzo, de purgar as linguas, melhorando na boa pronuncia, e enriquecelas com palavras novas, quando á necesidade; está geralmente introduzido. Achei livros, ainda impresos, Inglezes, Francezes, Espanhoes, e Italianos, com infinitas palavras, que ja oje nam estam em uzo, e com um estilo de fraze pouco uzada. e lembro-me agora, ter visto á anos, um livro de[Pg 47] Genealogias de Flandres, escrito polos anos de Cristo 1400., em um Francez tam embrulhado, que o-tinham imprimido, com a versam de Francez moderno a lado: sem o qual socorro, nam era facil intendelo. Os nosos antigos Poetas tem palavras, que oje se-nam-recebem. Em Dante, e Petrarca, acham-se coizas nam mui finas; e tambem em outros. Os Modernos de todas estas Nasoens, melhoráram sobre os Antigos, e serviram-se do-seu direito, para emendar a lingua. os mesmos Portuguezes o-fizeram. Finalmente isto é tam claro, que me-envergonho de o-provar. E com efeito, a estes que asim respondem, ou asim argumentam, seria mais acertado, nam-lhe-responder. É fazer-lhe muito favor mostrar, que tais argumentos tem resposta. Mas eu o-faso aqui, porque a amizade de V.P. me-obriga a obedecelo: e escrevo isto, mais para satisfazer ò seu dezejo, doque à materia.

A outra razam, que outros afinam, para se-desculparem dos-seus erros é, que umas vezes dobram as letras, para mostrarem donde se derivam: outras, para a significasam, quero dizer, os diversos tempos: E asim escrevem Escritto com dois tt, para mostrar, que vem de Scriptus: e Amasse com dois ss, para o-distinguir do-prezente Ama-se. Esta razam achará V. P. em alguns livros impresos. Mas, com todo o respeito que devo, a quem uza dela, digo, que nada vale. A maior parte das-palavras Portuguezas, tem origem Latina: o que até as criansas sabem: quizera pois que me-disesem, porque se-devem dobrar em vinte, ou trinta palavras, e nam nas mais? Alem diso se V. P. observa, muitas palavras Portuguezas, achará, que nam só tem origem, mas sam puras Latinas. V.g. Aplaudo, Aplico &c. e nestas será tambem necesario dobrar os pp, e escrever trez consoantes seguidas, como no-Latim. Será tambem necesario pòr o s, antes de Ciencia. e finalmente comesar muitas disoens, por-duas consoantes, mn, pn, sp, ps: porque tudo isto á no Latim. O c antes de t, tambem se-deve pòr, em muitas palavras, como em Benedicto, Doctor, &c. E nam sei, se, os que seguem o dito parecer, admitirám todos estes acrecimos: o que nem menos o Italiano, que se-preza de filho primogenito do-Latim, admite em tudo. Crece o argumento se observamos, que o Portuguez tem palavras Arabias, Goticas, Inglezas, Tudescas &c. o que suposto, será necesario em cadauma, pòr a sua diferensa original: ou ao menos nas Latinas, para as-nam-confundir com as outras. Finalmente[Pg 48] se a tal razam valese, nam deveria quem uza dela; pòr h, em é verbo, e outros destes: porque na sua origem nam o-tem.

Mas, deixando outras observasoens, com que podia provar, a insufisiencia das-ditas razoens; darei só uma, que prova por-todas: e esta especialmente serve, contra aqueles Portuguezes que dizem, que se-devem dobrar muitas letras, porque se-pronunciam dobradas; e expresamente se-ouvem os dois mm, em comum, e outras semelhantes. Digo, que para responder a estes, basta citar-lhe o exemplo, da-lingua Italiana. Nam vi ainda Portuguez algum (nam falo dos-que pasáram a Italia até a idade de 7 ou 8 anos: porque estes perdèram a sua lîngua, e falam o Italiano, como lingua propria) por-mais estudiozo, e diligente que fose, que aprendèse a pronuncia, principalmente Toscana, ou Romana: em que expresamente se-pronunciam as duas letras consoantes: todos as-pronunciam como una simplez. V. g. Distinguem os nosos Capello, que significa Cabelo, de Cappello, que significa Chapeo; com pronunciar dois pp, e dois ll no-2. Nenhum Portuguez o-chega a distinguir: e por-iso sam logo conhecidos, por-Estrangeiros. O mesmo digo em todas as outras dobradas: O mais que vi foi, pronunciar os dois zz, v.g. em Palazzo, Ragazzo: mas isto com muito esforso, e pola razam, de que se-pronunciam diferentemente: quero dizer, que os dois zz, pronunciam-se como ds: que, se tivesem soido igual, nam os-pronunciariam. Esta experiencia constante mostra, que é falso dizer, que os Portuguezes, na-sua pronuncia natural, e sem fazer um grande esforso, pronunciem as dobradas. Do-que se-segue, que sam inutis as tais letras. E em tal cazo entra a minha regra, que as letras inutis, se-devem desterrar, da-lingua Portugueza.

Sobre a pontuasam, tenho pouco que advertir a V. P. É claro, que a Virgula foi inventada, para denotar a interrusam que se-faz, quando se-toma a respirasam: e para dar alguma distinsam ao discurso, e impedir a equivocasam nele. Tem seu proprio lugar, quando se fazem distinsoens de Nomes, ou de outras palavras, que dependem do-mesmo Verbo, e se-unem em uma propozisam. v. g. Pedro foi soldado, capitam, coronel, e chegou a ser general. Uza-se tambem dela, antes da-Conjunsam copulativa, e adversativa. v.g. Pedro, e Paulo partîram: Nem Pedro, nem Paulo partio. Mas nam se deve uzar, quando a conjunsam[Pg 49] está entre sinonimos: v. g. Antonio tem eloquencia e facundia. Pedro tem grande animo e valor. Porem muito bem se-uza entre propozisoens, que signifiquem o mesmo; a que podemos chamar sinonimas. v.g. Cezar subjogou todo o imperio Romano, e com a serie das-suas vitorias conseguio, que os Governadores, o-reconhecesem soberano. aindaque entre estas, sendo longas, podese escrever ponto e virgula, ou dois pontos.

Utilmente se-uza da-virgula, para distinguir e fazer mais claro o discurso: o que se-faz em trez cazos. I. separando as propozisoens, regidas pola mesma pesoa, ou coiza. v.g. Umas vezes ri, outras chora. Tomou uma lansa, e lhe-atravesou o peito. II. interrompendo o sentido, com outras palavras. v. g. Deus, autor do-mundo, é pai de mizericordia; e tem providencia das-criaturas; mas quando a interrusam é comprida, é melhor pór-lhe ponto e virgula; como abaixo diremos. III. separando aquelas propozisoens, emque a segunda, é objeto da-primeira. v.g. Dezejo ver, como sucederá o negocio. Quererá Deus, que iso nam se-verifique.

Finalmente se às vezes nam se-poem virgula, pode nacer confuzam no-discurso. v. g. Cuidando na minha aflisam, e ocupado neste pensamento, confuzo saî de caza. se nam ouvése virgula, em pensamento, podia unir-se com confuzo, e cauzar nova confuzam. Mas nisto das-virgulas, é necesario ter muito cuidado, de nam ser excesivo: como fazem alguns, prezados de doutos, que em cada palavra poem virgula. o exceso, e a falta igualmente se-devem evitar.

Tambem a parentezis, é especie de virgula: e consiste neste sinal, () com o qual se-compreendem algumas palavras. Escreve-se, quando dentro de uma propozisam, se-inclue outra, separada do-sentido; ou para excesam, ou declarasam de alguma coiza. v.g. Deixo de dizer (aindaque poderia com razam) as atrocidades que cometeo. O Amor, (como achamos escrito na Sagrada escritura) é tam forte como a morte. Porem, se a interrusam é breve, bastam duas virgulas. v.g O Amor, como ja dise, é uma grande paixam.

Despois da-virgula, seguem-se os dois pontos. Estes se-poem, quando o sentido da-orasam é completo, quanto à sustancia; mas nam em quanto ao fato: quero dizer, quando o que se-escreveo, faz por si só sentido perfeito; desorteque podia-se[Pg 50] terminar com um só ponto: mas quem escreve, ainda tem alguma coiza que acrecentar, para melhor declarar a coiza, ou expremir alguma circunstancia, com a qual se-acabe de todo o periodo. v.g. Recebi o doutisimo livro que v.m. me-mandou: para me-obrigar com isto ainda mais, doque estava. Neste periodo, despois de mandou, escrevem-se dois pontos: porque o sentido, ja está completo; mas ainda á que acrecentar. E estes dois pontos se-podem replicar, em um longuisimo discurso, tantas vezes, quantas o sentido da-orasam for suficientemente completo. Mas a melhor regra que nisto se-pode observar, é esta: Se a propozisam que se-segue, nam é muito independente da-antecedente, deve-se pòr dois pontos. v. g. Estudar varias ciencias, no mesmo tempo, antes confunde, que doutrina: como tambem o comer no-mesmo tempo comeres diferentes, tanto nam engorda, que ofende. Mas se eu comesáse a segunda, por-palavras menos dependentes, deveria pòr um ponto. v. g. Estudar varias ciencias, no-mesmo dia, antes confunde, que ensina. Damesma sorte, como dizem os Medicos, mui diferentes comeres no-estomago, impedem a digestam. neste cazo ponho ponto, porque o sentido é mais separado. Porem se as propozisoens sam breves, intendo mais acertado, separalas com uma virgula. v. g. O estudar muito junto faz confusam, como tambem o comer muito.

O ponto, costuma-se pòr, no-fim do-periodo, e quando o sentido é totalmente completo. Neste particular observo, que muitos em Portugal ensinam, que despois de ponto, sempre se-poem letra grande. O que é um engano manifesto; e contra a pratica dos-que melhor escrevem: que dizem, que quando os periodos sam breves, e em certo modo dependem uns dos-outros; basta despois de ponto, pòr letra pequena: e quando isto sucede no-fim do-verso, poem-se dois pontos: vistoque o verso seguinte deve sempre comesar, por-letra grande. Onde os omens doutos advertem, que nam só se-pode escrever letra pequena, despois de ponto final; mas tambem algumas vezes, despois de dois pontos, letra grande: quando o periodo é comprido, e se-tem posto muitas vezes dois pontos: ou tambem quando se-introduz alguma pesoa que fala, ou coiza semelhante.

E aqui incidentemente advirto, que nisto de escrever letra grande, á um grande abuzo: avendo escritores que a-escrevem, em mil coizas desnecesarias: o que ofende a vista. E asim, nam[Pg 51] avendo razam forsoza, deve-se escrever letra pequena, que é mais natural. As regras que nisto dam, os omens mais advertidos, se-reduzem a estas. Poem-se letra grande. I. quando se-comesa o discurso. II. nos-nomes proprios, e sobrenomes tanto de Pesoas, como Provincias, Cidades, Ilhas, Montes, Mares, Rios, Ventos, e Animais. III. nos-nomes de dignidade, ou abstratos, como Bispado, Papado &c. ou concretos, como Papa, Rei, Abade, Conego, Senador &c. mas nam se-poem nos-de oficios inferiores, como soldado, pintor, sapateiro. IV. nos-nomes apelativos, quando se-tomam por-alguma coiza particular. v. g. O Orador Romano, por-Cicero: o Doutor Angelico, por-S. Tomaz: Religiam, pola vida Religioza &c. V. nos-nomes do-genero, ou especie, quando significam todo o genero, ou especie. v. g. A Terra é redonda.Os Rios correm para o mar. porque significando um individuo particular da-dita especie; v.g. um bocado de terra &c. basta letra pequena. VI. as coizas inanimadas tomadas como pesoas, ou polo genero. v. g. A Ira é uma grande paixam. O Amor cega os mais doutos &c. VII. os Adjetivos tomados como Sustantivos. v.g. O Amigo, é outro eu. O Forte, aumenta o animo nos-perigos. VIII. os nomes que significam multidam. v.g. Senado, Republica, Cabido, Turcos, Inglezes &c. IX. os nomes da-materia, de que principalmente se-trata. v.g. A Incarnasam, a Simonia. ou tambem os nomes das-principais partes, em que se-divide um todo. v.g. Neste cazo pecam alguns, por-Ignorancia, ou por-Malicia. Por-Ignorancia, pecam aqueles &c. X. quando no-discurso se-introduz alguma pesoa, que fala. v.g. Voltando-se entam para o ceo S. Paulo, dise, Senhor, que quereis que eu fasa? mas se o discurso que se introduz, fose mui longo, serîa mais acertado, separalo com um ponto sinal. E a palavra que se-segue, despois do-ponto interrogativo, nam deve ter letra grande; porque nam comesa um sentido novo.

Estas sam as regras, establecidas polo melhor uzo. Contudo á alguns, que ainda às vezes as-limitam, quando intendem, que nam sam necesarias. v. g. Vindo juntos dois nomes, um generico, e outro particular, como Seita Turquesca, Igreja Catolica, Senador Romano, Academia Real, Concilio Toletano, Concilio Geral, &c. deitam fóra a letra grande dos-primeiros, e somente a-conservam nos-segundos, que distinguem os primeiros. Porque ainda-que em outras ocazioens, achando-se somente a palavra, Igreja,[Pg 52] oncilio, &c. tenha letra grande; neste cazo porem, parece ser escuzada: o que eu aprovo. Outros ainda fazem mais, que, achando muitas destas ultimas palavras, que aponto, como Senador, Consul, &c. escrevem-nas com letra pequena: principalmente se está unida a algum sustantivo Proprio. v. gr. Joannes rex. Cicero consul. E isto achamos mui praticado, em antigos manuscritos; e belisimas edisoens de livros modernos, emendadas por-omens mui doutos. Onde nam se-deve condenar, se algum o-praticar em alguma conjuntura, para evitar tanta letra grande.

Outros ainda limitam, o que se-diz nos-numeros V, e IX. porque intendem, que nem sempre é necesaria, a dita letra grande. E em tal cazo, ou escrevem letra grande, só na primeira vez: ou poem uma risca por-baixo, escrevendo; o-que na imprensa convertem em letra cursiva: ou nam a-poem: Nam parecendo muito bem um papel, em que repetidas vezes se-encontram as mesmas palavras, com letra grande: o que ofende a vista.

Tornando pois aos pontos: algumas vezes o periodo inteiro, é acompanhado de admirasam, ou interrogasam: e em tal cazo o ponto se-acompanha, com o final proporcionado. A admirasam, nota-se asim, (!) v.g. Morreo, cazo admiravel! dezesperado. ou em qualquer outra parte, em que entre a admirasam, ou simplez exclamasam. A interrogasam, ou progunta, distingue-se com este final, (?) v.g. E porque nam poderei eu fazer isto? qual de vos outros mo-pode impedir? Muitas vezes sucede, que a înterrogasam é acompanhada de exclamasam. v. g. Ó que grandes consequencias, seám-de seguir de um tal fato! ou tambem: E como é posivel, que te-occorrese fazer isto? e nestes cazos, é licito pòr um, ou outro final, como melhor lhe-parecer. É porem de advertir, que quando a progunta é mui comprida, e que na longueza, perde a forsa de progunta; os omens mais doutos, nam costumam pòr-lhe no-fim, o final de interrogasam: mas se lho-poem, é no-principio, ou no-fim do-primeiro periodo, ou nam lho-poem. V.g. Julgas tu, que á omens de tam pouca considerasam, que siguam um tal estilo, nem fasam cazo da-palavra, nem procurem ileza a sua onra, nem tenham diante dos-olhos estas circunstancias: as quais se eu nam tivese executado, totalmente me-faltaria aquela benevolencia, que certamente me-mostram, os que examinam as minhas asoens =. Neste periodo, ou se-deve pòr ponto de interrogasam, despois de tu: ou, despois de circunstancias: ou, em nenhuma parte: vistoque[Pg 53] o contexto mostra bem, em que sentido se-fala.

Finalmente deve-se advertir, que á outra separasam de periodo, a que chamam Paragrafo: o qual se-comesa, quando a materia que se-trata, se-acabou; e se-pasa a outra materia. Muitas vezes se-comesa paragrafo, quando o discurso tem sido comprido, e, por-nam-fazer confuzam, é necesario varialo. o que sucede, quando sobre a mesma coiza, alego muitas razoens, e cada uma ocupa uma meia pagina. Em tal cazo, para evitar a confuzam, e dar mais gosto, e repoizo a quem le; é justo comesar paragrafo. O que porem se-deve regular, pola prudencia de quem escreve: pois tam enfadonho é, comesar paragrafo, despois de trez folhas, como despois de trez ou quatro regras. Caiem no-primeiro destes defeitos, alguns prezados de doutos: que, ouvindo dizer, que os Antigos nam uzavam das-separasoens de capitulos; sem mais outra reflexam, fazem um longuisimo discurso, sem divizam de paragrafos: em modo tal, que se-perde a respirasam lendo-os. No-segundo, caiem muitos Escolasticos, que de cada texto fazem um paragrafo. Uma, e outra coiza se-deve evitar.

Alem das-ditas pontuasoens; inventáram os escritores, principalmente modernos, outra, a que chamam, ponto e virgula. e isto para variar a pontuasam, e para evitar pòr tantas virgulas seguidas, antes dos-dois pontos, nos-periodos longos. Este ponto e virgula, é uma pauza, maior que a virgula, e menor que os dois pontos. Poem-se, quando a orasam ja faz algum sentido; mas nam o que basta para se-intender, de que se-fala: e ainda a primeira propozisam, espera pola segunda, para se-poder intender. v. g. Aindaque eu nam tenha, todo o dinheiro necesario, para a compra; farei o posivel, polo alcansar: para concluir de uma vez, este negocio. No-qual periodo, quando chegamos à palavra, compra; ja temos algum sentido: e quer dizer, que nam tem dinheiro para a compra. mas fica o sentido imperfeito, por-cauza da-palavra ainda: a qual faz que eu espere, pola seguinte propozisam até alcansar, onde faz suficiente sentido.

Daqui fica claro, que ponto e virgula tem o seu proprio lugar, despois das-prepozisoens, que comesam por-como, qual, quanto, se, aindaque &c. as quais introduzem aquela dependencia, que digo. Finalmente despois de qualquer prepozisam, em que aja palavras, que unam com as palavras seguintes. Especialmente se-poem, quando se-fala de coizas opostas: ou quando se-faz enumerasam[Pg 54] de muitas partes, e se-especificam todas. v. g. Destruia cazas, e templos; o sagrado, e profano; o seu, e o alheio, &c. Adverte-se porem, que os periodos, os quais, sendo longos, podem receber ponto e virgula; em cazo que sejam curtos, basta que tenham virgula: por-nam fazer tam enfadonha a repetisam dos-pontos e virgulas. v. g. Neste particular à duas opinioens: uma é de Cujacio; a outra seguem Joam André, e Ostiense. parecerá a muitos, que em Cujacio, basta uma virgula, o que eu nam dezaprovo: outros quererám ponto e virgula. e asim é livre a cada um, fazer o que lhe-agradar. Polo contrario, se os periodos fosem mui compridos, se-deveria pòr ponto. v. g. se eu disese: Prova-se isto com duas razoens. A primeira é, porque &c. neste cazo se a explicasam desta primeira razam, se-estendèse até metade da-folha, ou ainda mais; no-fim, deve-se pòr ponto somente: e muitas vezes pode ser necesario, comesar a segunda razam, nam só com letra grande, mas ainda em novo paragrafo. Tambem quando se-tem posto algumas vezes, ponto e virgula; costumam os omens doutos, escrever dois pontos; aindaque o sentido nam seja completo quanto ao fato: para mostrar, que se-deve fazer maior interrusam; e descansar quem le, e quem ouve.

Isto é, o que me-ocorre advertir, neste particular da-pontuasam. Devo porem declarar a V. P. que esta materia, nam é ponto matematico, que nam admite mais, ou menos: antes, polo contrario, depende muito, da-vontade de quem escreve. Porque aindaque todos convenham, na-razam das-regras; quando porem decemos aos cazos particulares, e a examinar, se neste, ou naquele cazo, deve entrar virgula, ou ponto e virgula &c. acha-se muitas vezes diversidade, ainda entre os omens doutos. Eu neste particular, propuz o que vejo praticar, aos que melhor escrevem; e que se estriba, na razam das-regras: mas nam condenarei, quem se-afastar alguma vez destas advertencias, comtantoque nam se-desvie em modo, que fasa despropozitos. Eu mesmo sou o primeiro, que as-nam-sigo escrupulozamente: antes muitas vezes, em lugar de ponto e virgula, escrevo virgula: em vez de dois pontos, ponho virgula e ponto: e quando os periodos sam curtos, nam tenho às vezes dificuldade, de escrever virgula, em lugar de ponto: ou outra semelhante mudansa. O que faso quando me-parece, que com estes sinais, fica bastantemente separado o discurso, e livre de confuzam: e porque vejo,[Pg 55] que muitos escrevem damesma sorte, e me-intenderám tambem. Esta é a principal regra, em materia de pontuasam: evitar as confuzoens, e procurar que os outros intendam, tudo quanto eu quero dizer. Devo porem dizer a V. P. que vejo muitos autores Portuguezes bem modernos, que fazem gala, de as-desprezar: e publicam obras, nas quais em uma pagina tudo sam virgulas, e apenas se-acha um ponto. Especialmente * * * e outros que V. P. bem conhece. O Conde da-Ericeira D. Francisco Xavier de Menezes tambem seguia esta doutrina: pois em algumas suas aprovasoens de livros, que tenho visto, tudo sam virgulas: desorteque ninguem o-pode ler seguidamente, porque cansa a respirasam. E se isto pode ser louvavel, eu o-deixo julgar aos dezapaixonados inteligentes.

Muitas outras miudezas, se-podiam advertir, tanto na materia de Pontuasam, como de Ortografia: mas estas ou se-acham, nas instrusoens impresas a este intento; ou, se nam se-acham, como na verdade as-nam-vemos; aprendem-se com o uzo: e quem percebe bem, as advertencias que temos dado, escreverá sem embaraso algum com perfeisam: e poderá rezolver, qualquer das-que ocorrerem. Eu nam determinei, escrever um tratado completo: mas unicamente, sugerir a V. P. o que se-acha mais bem notado, nesta materia: e o que deve ensinar um mestre, ao dicipulo, a quem explica a lingua Portugueza. Para V. P. é isto superfluo: e para os ignorantes, é ainda muito. mas eu tomo a liberdade de falar com V. P. como com um principiante, porque asim mo-tem ordenado. Somente acrecento, que isto que dise da-Pontuasam, se-deve intender, nam só no-Portuguez, mas no-Latim; e nas-mais linguas, que desta nacèram.

Concluirei esta carta lembrando a V. P., que, para facilitar este estudo à Mocidade, seria necesario, que algum omem douto, abreviáse o Dicionario do-P. Bluteau, e o-reduzise à grandeza, de um tomo em folha, ou dois em 4.o Ninguem pode olhar para a obra do-P. Bluteau, sem ficar esmurecido, pola quantitade de volumes. Este Religiozo era douto, e infatigavel: e fez à nasam Portugueza um grande serviso; compondo um Dicionario, que ela nam tinha: e quem diser mal dele neste particular, é invejozo, ou ignorante. Mas tem alguns defeitos, que serîa necesario emendar: Era mui medrozo: e nam tinha metodo. O medo, reconhece-se em cada pagina das-suas obras. Fora[Pg 56] maltratado por-alguns Portuguezes injustamente; e a cada paso se-queixa, e dá uma satisfasam. Os Prologos, tanto na primeira Obra, como no-Suplemento, sam insoportaveis: e apostarei, que se-nam-acha omem, de tanta paciencia, e tam mao gosto, que os-posa ler todos seguidamente: porque a cada momento, repete as mesmas coizas. E o pior é, que com dizer tanto, nam explica o que deve: pois querendo um leitor saber, o que ele faz no-Dicionario, e que razam dá da-obra; nam sabe por-onde á-de comesar. Com um só titulo dirigido ao leitor * * * compreendia todos, os que ele poem no-seu Prologo: e com um Prologo mui breve, dava razam de toda a obra. Os omens doutos, intendem mui bem as coizas: e sabem desculpar um autor, que escreve uma voluminoza obra: especialmente um que escreva um Dicionario, que seja o primeiro que aparece naquela lingua. Nam á pior trabalho que este: e nam á algum que menos paresa grande, a quem o-nam-provou, doque este. Desorteque chegou a dizer o douto Escaligero[13], que era pior este trabalho, que ser condenado às minas, como faziam os Romanos. Comque a estes, bastam poucas palavras: a os ignorantes, nam se-devem dar satisfasoens, ou digam bem, ou mal. Nem menos me-agrada o titulo da-obra, que é mui afetado, e cheio de superfluidades. Ja se-sabe que um Dicionario, compreende todas as palavras, com que se-explicam na dita lingua, todas as coizas imaginaveis. E o exemplo que ele traz de Furetiere, Moreri, Hofman, que enchèram o titulo, de semelhantes coizas, nam desculpa os seus erros: porque se-caza muito bem, que errem dois omens de diferentes Nasoens, na mesma materia.

Avulta tambem muito a obra, porque as explicasoens sam longas, e o carater é mui grande. O que tudo se-podia reduzir, a menor extensam: bastando um exemplo de um bom autor, e deitando fora tantos Latins, e citasoens superfluas. E asim, todo aquele grande Vocabulario, se-pode reduzir nas segundas-impresoens,[Pg 57] a trez ou quatro volumes, se lhe-tirasem o que tem de superfluo: e serîa tambem mais barato, e mais util à Republica. Mas, ainda despois de tudo iso, serîa necesario, fazer um Compendio, para uzo dos-rapazes. Que é o que os Nosos tem feito, compendiando o Vocabulario da-Crusca, quero dizer, da-lingua Toscana, (sam trez ou quatro volumes) em dois tomos de 4o. Mas neste Dicionario, se-deveria acautelar outra coiza, em que caio o P. Bluteau; que foi, nam distinguir as palavras boas, de algumas plebeias, e antigas. Ele ajuntou tudo: e ainda muitas palavras Latinas, que muitos Portuguezes modernos afetadamente aportuguezáram. E este é o maior defeito que eu acho, naquele Dicionario. porque nam ensina a falar bem Portuguez; como o da-nosa Crusca, que nam tem, senam o que é puro Toscano; e nota às vezes o que é antigo, ou poetico &c. Sei, que alguma diversidade se-acha: porque os nosos autores, que fazem texto, sam os que escrevèram, em um seculo determinado: e asim tudo o que é moderno, entre nós é barbaro. Polo contrario a lingua Portugueza, como á pouco tempo que comesou a aperfeisoar-se, nam pode excluir, tudo o que é moderno. Contudo, deveria o P. Bluteau, nam abrasar senam os autores, que faláram melhor. v. g. desde o fim do-seculo pasado para cá: ou encurtar mais o tempo. E ainda neses, que talvez nam seram iguais em tudo, escolher, o que é mais racionavel: e nam tudo o que aportuguezáram alguns destes, prezados de eruditos; que, por-forsa, querem introduzir, uma mixtura de Portuguez, com Latim. Temos o exemplo da-Academia Franceza, a qual no-seu Dicionario, nam poz as vozes plebeias, e antigas; mas as puras, e que oje falam os omens cultos. Aindaque, como diz o Senhor de Furetiere,[14] é justo, que se fasa um Dicionario à parte, das-vozes antigas, e baixas: paraque, por-meio dele, posamos intender, os antigos documentos. Isto fizeram muitos na lingua Latina, compondo somente Vocabularios da-inferior Latinidade, como Vossio, Izidoro, Spelman, Du Cange: o qual ultimo fez tambem outro, para o Grego inferior. E isto mesmo deveria ter feito Bluteau: pondo em um volume, as palavras boas; no-outro, as antigas &c. O certo é, que os Nosos no-Compendio da-Crusca, somente puzeram as puras: e advertîram as que sam poeticas, e nam tem lugar na proza. O mesmo Bluteau em certa[Pg 58] parte[15], reconhece a necesidade deste distinto livro; e deu uma ideia dele, nos-Catalogos que traz, no-Suplemento. Mas se o dito P. o-nam-fez, porque quiz compreender, tudo o que se-acha em Portuguez, ou por-outro motivo; no-Compendio porem do-dito Dicionario, nam se-deviam escrever, senam palavras puras e boas, e segundo a pronuncia mais suave. E.g. nam escrever Devaçam, porque o dise o Vieira: mostrando a analogia, que se-deve dizer Devosam: muito mais, porque asim o-pronunciam os doutos, e é mais agradavel. O mesmo digo, de Outo &c. porque escrevendo muitos omens doutos comumente, Oitenta; nam acho que tenham boa disparidade, para, no-mesmo livro, escreverem, Outo: como V. P. verá em muitos livros modernos. E asim a pronuncia melhor, sendo apadrinhada por-omens doutos, deve ser preferida. Tambem se-devia no-dito cazo, emendar a Ortografia do-Bluteau, que é variante: e establecer uma certa, e sempre a melhor. Este Compendio seria mui necesario. os que quizesem majores noticias, podiam procurálas no-Vocabulario grande. Isto é o que me-ocorre. V. P. conserve-me a sua benevolencia, e rogue a Deus por-mim nos-seus sacrificios. Deus Guarde &c.

NOTAS DE RODAPÉ:

[3] Sueton. de Cl. Rhet. C. I.

[4] Auditis oratoribus Græcis, cognitisque eorum litteris, adhibitisque doctoribus, incredibili quodam nostri homines dicendi studio flagraverunt. Cicero l. I. de Orat. num. XIV.

[5] A. Gel. l. I. c. x.

[6] O Bluteau no-Prologo do-Suplemento, falando com o leitor Pseudo-critico, confesa, que muitos omens doutos, nam dobram as letras no-Portuguez: aindaque condena, que muitos nam observem, a analogia e derivasam do-Latim, e Grego. que é a costumada cantilena dos-Velhos. Reconhece porem, que seria necesario, reformar a Ortografia Portugueza. Mas, conhecendo isto, adotou no-seu Dicionario, todas as variasoens de Ortografia dos-autores; como confesa no-Prologo do-Suplemento. O que nam tem desculpa em um omem, que estudou trinta anos, o argumento do-seu livro.

[7] S. Aug. l. I. confess. C. XVIII. Catullus Carm. 85.

[8] No livro, Orator ad. M. Brutum.

[9] Na 6. conferencia literaria aos 18 de Maio de &c. em caza do-Conde da-Ericeira.

[10] Impetratum est a consuetudine, ut peccare suavitatis caussa liceret. & pomeridianas quadrigas, quam postmeridianas, libentius dixerim: & mehercule, quam mehercules. Non scire quidem, barbarum jam videtur: nescire dulcius. Ipsum meridiem cur non medidiem? Credo, quod erat insuavius. Cicero. Orator. ad M. B. num. 47. Et infra == Consule veritatem, reprehendet: refer ad aures, probabunt. quære, cur? ita se dicent juvari. voluptati autem aurium morigerari debet oratio.

[11] Quintil. l. I.c.I. Varro de lingua L. l.6. & alii.

[12] Marius Victorinus Aff. de Ortographia.

[13]

Si quem dira manet sententia Judicis olim
Damnatum aerumnis, suppliciisque caput:
Hunc neque fabrili lassent ergastula massa,
Nec rigidas vexent fossa metalla manus.
Lexica contexat, nam cetera quid morer? omnes
Pœnarum facies hic labor unus habet. Sylvarum Carm. 39.

[14] Pref. du Dicionaire Universel.

[15] Prozas Academic. fol. 26.


[Pg 59]

CARTA SEGUNDA.
SUMARIO.

Danos que resultam da-Gramatica Latina, que comumente se-ensina. Motivos porque nas-escolas de Portugal, nam se-melhora de metodo. Nova ideia de uma Gramatica Latina facilisima, com que, em um ano, se-pode aprender fundamentalmente Gramatica &c.

Despois do-estudo da-Gramatica Vulgar, segue-se o da-Latina. e desta direi a V.P. o meu parecer, na prezente carta. Quando entrei neste Reino, e vi a quantidade de Cartapacios, e Artes, que eram necesarias, para estudar somente a Gramatica; fiquei pasmado. Falando com V. P. algumas vezes, me-lembro, que lhe-toquei este ponto: e que nam lhe dezagradáram as minhas reflexoens, sobre esta materia. Sei, que em outras partes, onde se-explica a Gramatica de Manoel Alvares, tambem lhe-acrecentam algum livrinho: mas tantos como em Portugal, nunca vi. As declinasoens dos-Nomes, e Verbos estudam, pola Gramatica Latina. a esta se-segue um Cartapacio Portuguez, de Rudimentos. despois outro, para Generos, e Preteritos, muito bem comprido. a este um de Sintaxe, bem grande. despois um livro, a que chamam Chorro: e outro, a que chamam Promtuario: polo qual se-aprendem os escolios de Nomes e Verbos. e nam sei que mais livro á. E parece-lhe a V. P. pouca materia de admirasam, quando tudo aquilo se-pode compreender, em um livrinho em 12.o e nam mui grande? Despois diso ouvi dizer, que ocupavam seis, e sete anos estudando Gramatica: e que a maior parte destes dicipulos, despois de todo ese tempo, nam era capaz de explicar por-si só, as mais facis cartas de Cicero. Confeso a V. P. que nam intendi isto, nem donde proviese o dano. Alguns sugeitos, bem inteligentes de politica, me-deram algumas razoens, que nam pareciam inverosimeis. Mas eu, sem aprovar, ou reprovar alguma[Pg 60] delas, e tambem sem me-demorar com esta materia; discorrerei sobre o merecimento da-Gramatica Latina; e sobre o modo, com que se-deve aprender.

Ora convem todos os omens de bom juizo, e que tem visto paizes Estrangeiros, e lido sobre isto alguma coiza; convem, digo, que qualquer Gramatica de uma lingua, que nam é nacional, se-deve explicar na lingua, que um omem sabe. Se V.P. quizese aprender Grego, e para este efeito lhe-desem uma Gramatica toda Grega, e um mestre que somente faláse Grego; poderia, à forsa de acenos, vir a intender alguma palavra; mas nam serîa posivel, que aprendese Grego: o mesmo sucederia, em qualquer outra lingua estrangeira. e se algum ateimase, que somente daquela sorte, se-podia aprender Grego, diriamos, que era louco. Pois suponha V.P. que estamos no-cazo. É coiza digna de admirasam, que muitos omens deste Reino, queiram aprender Francez, Tudesco, Italiano, de uma sorte, e o Latim de outra muito diferente. Aprendem aquelas linguas com um mestre, que as-fala ambas, e explica a lingua incognita, por-meio daquela que eles conhecem e falam: e com uma só Gramatica se-poem em estado, de intenderem os autores bem, e, junto com o exercicio, de falarem Francez correntemente. E tomára que me-disesem, porque nam se-deve praticar o mesmo, no-Latim: e porque razam se-aja de carregar, a memoria dos-pobres estudantes, com uma infinidade de versos Latinos, e outras coizas, que nam servem para nada neste mundo? Chega este prejuizo a tal extremo, que o P. Bento Pereira, escreveo uma Ortografia Portugueza, em Latim. Desorteque quem nam intende Latim, segundo o dito P., nam pode escrever corretamente Portuguez.

Os defensores deste metodo, nam alegam outra razam mais, que serem os versos, mais facis de se-conservarem na memoria: e que em todo o tempo, a eles se-pode recorrer, para ter prezentes as regras. Mas esta razam, é pueril, e ridicula. Primeiramente se alguma coiza valèse, deveria praticar-se com versos Portuguezes: porque só eses intendem os estudantes. E qual é o estudante que intende, os versos Latinos das-regras, principalmente sendo tam embrulhados, como os do-P. Manoel Alvares? O certo é, que proguntando eu a alguns rapazes, a explicasam deles, nenhum ma-soube dar. E eisaqui temos, que para os rapazes, nam servem os tais versos. Se pois falamos dos-omens[Pg 61] adiantados, estes sabem Latim, polo exercicio de ler, escrever, e falar: comque nam tem necesidade, de recorrer a semelhantes regras. E se querem examinar, alguma dificuldade de Gramatica, vam consultar os Criticos, que as explicam: nam as simplezes Gramaticas, que nem menos as-tocam: e talvez establecem principios, contrarios à mesma solusam.

Finalmente a Gramatica Latina para os Portuguezes, deve ser em Portuguez. E isto parece quiz dizer o P. Manoel Alvares, na advertencia que faz aos mestres, no-fim das-declinasoens dos-Verbos[16]. aindaque ele praticase o contrario, do-que aconselha: pois deveria, nam ter dado o exemplo, introduzindo uma Gramatica puramente Latina. A outra coiza que se-deve reprovar é, que obriguem os rapazes, a aprender trez sortes de regras: em verso, em proza Latina, e em proza Vulgar: como adverte bem o dito Padre. Isto, quando nam lhe-queiramos dar outro nome, é perder tempo, sem utilidade, e com prejuizo grande: sem aver outra razam, que seguir um costume envelhecido, aindaque prejudicial. Mas o que mais me-admirou neste particular, e claramente me-mostrou, quanto pode nos-Omens a preoccupasam dos-primeiros estudos, foi, ver que o Sargentomór Manoel Coelho, que parecia ser mais alumiado nestas materias, pertendendo distinguir-se do-Comum, dando aos principiantes, uma facil explicasam das-oito partes da-orasam; ainda asim caie na simplicidade, de pòr primeiro a regra em Latim para um rapaz, que ainda nam tem noticia da-dita lingua; mas que aprende os primeiros elementos. Tal é a forsa de um mao costume, que cega ainda aqueles, que querem dezembrulhar-se dele! Esta reflexam é sustancial: mas ainda á outras de maior momento. Entremos bem dentro na Gramatica.

Toda a Gramatica Latina se-reduz a explicar, a natureza, e acidentes das-oito vozes, que podem entrar na orasam ou discurso: e o modo de as-unir, e compor os periodos. E isto deve-se fazer com a maior clareza, e mais breves regras, que se puderem excogitar. O que certamente nam se-consegue com a Gramatica[Pg 62] uzual: porque nam á coiza mais confuza, nem mais cheia de excesoens, que a dita Gramatica, como todos vem.

O mundo estava mui falto de noticias, e de metodo, antes do-seculo pasado. Desde o restablecimento das-letras Umanas na Europa, direi melhor, no-Ocidente, que podemos fixar nos-principios do-seculo XV. melhor direi, desde a invensam da-Imprensa no-meio do-dito seculo; até o fim do-XVI. nam tiveram os omens tempo de cuidar, em dar metodo proprio às Letras, e Ciencias. Nam fizeram pouco aqueles primeiros doutos, em procurar manuscritos, e impremir os antigos autores, mais corretamente que pudese ser. Achamos alguns, no-fim do-XV. e no-XVI. seculo, que foram letrados à forsa de estudo, mas nam de metodo. Temos tambem alguns omens, que souberam bem Latim nese seculo, porque liam muito polos bons autores: nam porque tivesem achado a chave, de ir para diante com facilidade, e explanar as dificuldades de Gramatica, aos estudantes. Finalmente esa gloria estava rezervada, para o seculo XVII. Os pasados seguiam uns a outros, sem mais eleisam, que o costume. viam, e estudavam com os olhos, e juizo alheio. Mas no-principio do-seculo XVII. aparecèram alguns, que quizeram servir-se do-proprio: e foi-lhes facil, conhecer os erros dos-antecedentes, porque eram grandes. Asim se-abrîram os olhos ao mundo, em todo o sentido. um conhecimento facilitou outro. e eisaqui aberta a porta ao metodo. De-me V. P. omens, que queiram examinar as materias com razam; que nam inculquem um autor, porque seus mestres lho-diseram, mas porque é digno de seguir-se; que eu lhe-prometo, adiantamento nas Ciencias todas. A seu tempo discorrerei das-outras: agora continuemos com a Gramatica.

Tinha no-tempo do-Concilio de Trento o douto Julio Cezar Escaligero, comesado a examinar a Latinidade, seguindo o exemplo, e lumes do-famozo Agostinho Saturnio; o qual tinha ja notado varios erros, nos-outros Gramaticos. Escaligero, dando um paso adiante, publicou um livro, com o titulo = De Caussis Linguæ Latinæ: em que doutisimamente expoem o seu sentimento, sobre os elementos da-Gramatica: mas nam toca a construisam das-Partes. A leitura deste livro, abrio os olhos a Francisco Sanches, que era um profesor celebre de letras Umanas, na Universidade de Salamanca. Este douto empreendeu no-seguinte seculo, com o mesmo titulo, a explicasam da-construisam das-partes daorasam:[Pg 63] e com tanta felicidade, que descobrio as verdadeiras cauzas, até àquele tempo ignoradas. Este livro incontrou em Salamanca, e trouxe para Roma,[17] nos-principios do-seculo pasado, o famozo Gaspar Scioppio, Conde de Claravale, de nasam Tudesca: aquele grande omem em letras Sagradas e Profanas; e que empregou toda a sua vida, em estudos gramaticos. O livro de Sanchez fez todo o efeito, que podia esperar-se. Scioppio (que nam costumava dizer bem, daquilo que o-nam-merecia; antes, polos seus inimigos, é tachado, como censor dezumano) cedendo à evidencia das-razoens, proseguio o mesmo metodo de Sanches: ilustrou, e reformou a sua doutrina: e compoz a primeira Gramatica, que apareceo segundo os tais principios. No-mesmo tempo o famozo Gerardo Joam Vossio em Olanda, tam benemerito das-letras Umanas, e Sagradas, explicou ainda melhor o dito metodo; seguindo em tudo Sanches, e Scioppio; os quais ou copeia, ou ilustra.

Esta é, e será sempre, a Epoca famoza da-Latinidade, e Gramatica. A estes trez grandes omens, seguîram em tudo e por-tudo os melhores Gramaticos, que despois ouveram: e devem seguir, os que tem juizo para conhecer, como se deve estudar a Latinidade. Por-Fransa, Alemanha, Olanda, Italia, e outras partes se-dilatou este metodo: e alguns escrevèram belisimas Gramaticas, segundo os tais principios. A razam porque nam se-propagou mais é, porque pola maior parte os estudos da-Mocidade, sam dirigidos por-alguns Religiozos, que seguem outras opinioens. Os doutisimos Jezuitas, ensinam grande parte da-Mocidade, em varias partes da-Europa: e nam querendo apartar-se, do-seu Manoel Alvares, rejeitáram todas as novas Gramaticas. Alguns destes Religiozos, que trato familiarmente, e estimo muito pola sua doutrina, e piedade; me-diseram claramente, que bem viam, que o Alvares era confuzo, e difuzo; e que as outras eram melhores: nem se-podia negar, que os principios de Scioppio fosem claros, e certos: mas que o P. Geral nam queria, se-apartasem do-P. Alvares, por-ser Religiozo da-Companhia. Este é o motivo, porque o P. Alvares se-conservou, nas escolas dos-tais Religiozos: e esta tambem a origem da-tenacidade, comque muitos seguem, aquilo mesmo que condenam.

Os outros Religiozos, aindaque nam sejam Jezuitas, tem as[Pg 64] mesmas obrigasoens, e opinioens. A maior parte, cuida pouco niso: e vam vivendo, como seus mestres lhe-ensináram. Nam tem noticia dos-melhores autores, que á na materia: cuidam, que no-mundo nam á outra Gramatica, fóra que a do-P. Alvares. E todos estes, contentando-se de intender, um pouco de Latim bom, ou mao, nam cuidam em saber Gramatica. Os mestres Seculares, pola maior parte, sam ignorantisimos, e puros pedantes. e desta sorte de gente nunca esperou aumento, a republica Literaria. É necesario porem confesar, que fóra de Portugal, aindaque perzistam algumas destas razoens, muitisimos Religiozos, e Seculares ensinam, segundo os verdadeiros principios. Comque, considerado bem tudo isto, nam tem que se-maravilhar V. P. de que um metodo, que louvam tanto os omens doutos, tenha tido tam mao recebimento, em varias partes. Mas estas Gramaticas que tem saido, aindaque sigam os mesmos principios, nem todas se explicam com igual clareza. Eu direi o que achei nas melhores, e o como se-pode ordenar uma Gramatica, util para a Mocidade.

A Gramatica deve-se dividir, em dois volumes. No-primeiro, devem-se tratar aquelas coizas, que indispensavelmente devem estudar os principiantes. no-segundo, aquelas reflexoens, que sam mais proprias para os adiantados, e para os mestres: como sam as dificuldades de Gramatica, e as razoens daquelas regras, que parecem menos comuas. Explico agora a primeira parte. Esta primeira parte (podemos-lhe chamar pura Gramatica: porque a segunda, sam comentos sobre ela) divide-se naturalmente, em quatro partes: Etimologia, Sintaxe, Ortografia, e Prozodia. a primeira trata das-Vozes: a segunda da-Uniam delas: a terceira das-Letras: a quarta da-Quantidade das-silabas.

ETIMOLOGIA.

Na primeira parte, trata-se da-origem e diferensa das-vozes Latinas, que podem entrar na orasam, por-sua ordem. Primeiro, explica-se o Nome, e suas especies. O Nome, tem trez acidentes, que sam, Genero, Cazo, Terminasam. Os Generos, que tanta bulha fazem nas escolas, explicam-se com toda a brevidade. á regras gerais da-significasam, e particulares da-terminasam. Na primeira regra, poem-se todos os que pertencem ao Masculino. v.g. Sam do-Masculino, os nomes de Omens &c. 2. Sam do-Feminino, os nomes de Molheres, Naos &c. 3. Sam do-Neutro, os nomes de Letras, Frutas &c. Tambem as particulares, se-reduzem a trez.[Pg 65] v. g. Sam do-Masculino os nomes em O, como Sermo: em il, como Mugil &c. Acabado isto, poem-se um escolio que diga: Nomes que sam do-Masculino, por-excesam das-outras regras. v.g. Cometa, Adria, Harpago, Splen &c. O mesmo metodo se-pode praticar no-Feminino, e Neutro. E com seis regras, se-explicam todos os Generos: e se-acaba esta grande barafunda de Cartapacios. Se pois o estudante quizer saber a razam, porque alguns nomes, que pareciam de um genero, se-atribuem a outro; pode ir ver, a segunda parte da-Gramatica.

Segue-se explicar, quantos Cazos tem o Nome. e em 3.o lugar a Declinasam: mostrando quantas á: e em cada uma delas, quais sam a Latinas, quais as Gregas. Tudo isto se-pode dizer, com muita clareza e brevidade; bastando alegar um exemplo, em cada especie de terminasoens, que podem entrar em cada declinasam. Com este metodo, em uma vista de olhos, percebe o estudante os nomes, que pertencem a cada declinasam. Despois, podem-se explicar os Nomes Compostos, os Anomalos de genero, de numero, de cazo, e de declinasam. A segunda especie de Nome, é o Adjetivo. E aqui tem lugar explicar, as diversas especies de Adjetivos: Pozitivos, Comparativos &c. as suas declinasoens, e anomalîas.

O Pronome, tem seu lugar despois do-Nome: porque tambem é, uma especie de Adjetivo. Onde deve explicar-se logo, a sua diversidade: e as declinasoens dos-Simplezes, e Compostos.

O Verbo, é a mais dificultoza parte, nas Gramaticas vulgares: e por-iso pede grande atensam. Explicadas as divizoens dos-Verbos; e apontado, que á quatro Declinasoens ou Conjugasoens: segue-se logo, explicar os Preteritos. v. g. A primeira, tem no-infinito a longo antes de re: no-Preterito faz, avi: no-Supino atum: ut amo, amavi, amatum, amâre. Tiram-se os Verbos em bo, ut Cubo: em co, ut Mico &c. E isto se-observará em todas as Conjugasoens. Desta sorte conclue-se em poucas palavras, toda aquela grande arenga de Preteritos, que nam tem fim nas escolas de Portugal. Se pois o estudante nam quer aprender, toda aquela enfiada de Verbos, nam emporta: basta que aprenda um exemplo, e saiba buscar os outros: porque a pratica ensina o demais.

Seguem-se as Declinasoens dos-Verbos, a que vulgarmente chamam, Linguagens. E aqui achamos bastantes erros, nas Gramaticas comuas, e tambem confuzoens: porque mandam aprender[Pg 66] aos rapazes, coizas totalmente superfluas; e nam explicam as necesarias. Quanto ao Indicativo, concordamos com Manoel Alvares: só dizemos, que aquele Preterito plus quam perfeito, é uma arenga, que nenhum estudante intende; nem os mestres explicam. Deve-se explicar asim: Amavi, é Preterito perfeito proximo; que afirma uma coiza, simplezmente pasada: Amaveram, é Preterito perfeito remoto, que nam só se-intende de uma coiza pasada; mas que ja era pasada, antes de outra, de que eu falo como pasada. Dizemos mais, que aquele Futuro perfeito, nam o-á no mundo: pois esta voz, é o mesmo Futuro segundo, que ele poem no-Conjuntivo.

Alem dos-primeiros tempos do-Indicativo, tem o Verbo, segundo Prezente, que é Amem: segundo Imperfeito, que é Amarem: segundo Perfeito, que é Amaverim: segundo Preterito remoto, que é Amavissem: segundo Futuro, que é Amavero. Mas isto pode-se explicar em Portuguez, com diversas palavras. A estas segundas vozes, ou segundo modo, podemos chamar Conjuntivo: porque pola maior parte, une-se com outras partes. Daqui vem, que é erro, pòr nas Gramaticas: Modo Optativo, Conjuntivo, Potencial, Permisivo: porque por-este estilo, podem-se acrecentar muitos outros Modos: sendo certo, que, ajuntando-lhe novas particulas, nacem diferentes modos de se-explicar. Basta advertir ao estudante, que aquele Amem, pode-se tomar, em diversos sentidos: o que se-conhece, polo contexto da-orasam. tudo o mais é tempo perdido, e é ensinar uma falsidade: pois nam á tais modos separados: sendo que a linguagem, ou a voz sempre é a mesma. Amem, quando significa posibilidade, e quando significa permisam, nam se-distingue mais, que polo contexto. E isto bastava que brevemente se-advertise, apontando um exemplo: porque o mais ensina a lisam, e reflexam sobre os bons autores.

O terceiro Modo é o Imperativo: a que podemos chamar, por-distinsam, Prezente terceiro: Ama. Futuro terceiro: Amato.

O Infinito, é aquele; a que verdadeiramente devemos chamar, Impesoal: pois nam tem determinado numero, ou pesoa, ou tempo &c. Este tem uma voz: a que, aindaque impropriamente, podemos chamar, Prezente, e Imperfeito: que é Amare. a qual tem todas as significasoens do-Prezente, e Imperfeito primeiros. Para os outros Preteritos serve, Amavisse. Tem Futuro, que é Amaturum esse: e outro Futuro remoto, que é Amaturum[Pg 67] fuisse. Gerundios, Supinos, e Participios. Isto posto, deve-se explicar, como se-formam os tempos. E nisto se-compreende, a primeira parte das-Linguagens.

Seguem-se os Verbos Anomalos, quero dizer, os que nam tem analogia, com as quatro Conjugasoens: sam Volo, Nolo, Malo, Fero, Eo, Edo, Fio, Memini &c. Aio, Inquam, Forem. E nisto se-encerra tudo, o que se-diz do-Verbo.

Os Gramaticos fazem aqui uma barafunda de explicasoens, e divizoens, em Neutros, Comuns, Depoentes, Diminutivos, Frequentativos, Denominativos, Imitativos &c. mas tudo isto é superfluo. Todos os Verbos, tirando dois, sam Ativos, ou Pasivos: porque ou significam asám, ou paixam: e a estas especies se-reduzem os apontados. Basta advertir, o que significam estas palavras, e a que conjugasam pertencem os ditos verbos: apontando um exemplo de cada um. o que porem melhor se-faz, no-exercicio da-leitura, e tradusam.

Ao Verbo, segue-se o Participio: que aqui se-deve explicar com as suas divizoens. notando quais sam os Verbos que os-tem: quais os em que faltam: quais deles formam Comparativos, e Superlativos.

No-Adverbio, deve-se explicar e apontar, os que sam de proguntar, os que significam tempo, lugar; e outras diferentes especies deles. Despois, a Prepozisam: mostrando as que sam separaveis, e as que se-nam-separam. Como tambem advertir, que coiza acrecentam ao Nome, e Verbo, estas Prepozisoens. Sobre a Interjeisam, deve mostrar, quais sam as que significam, os diferentes afetos do-animo, para o estudante poder servir-se na ocaziam. A Conjunsam, tambem tem suas especies: que sam Conjuntiva, e Disjuntiva, Condicional, Concesiva &c. e estas todas devemos apontar: alegando exemplos em cada uma.

Despois da-Etimologia das-vozes, tem lugar explicar o Metaplasmo: que vale o mesmo que dizer, certas figuras, polas quais se-acrecentam, ou diminuem as letras das-disoens: v. g. Gnavus pro Navus &c. Noticia é esta sumamente util para intender, as diferentes vozes Latinas. E nisto se-compreende, tudo o que deve saber-se sobre a Etimologia, com a maior clareza, e brevidade imaginavel.

SINTAXE.

Despois, segue-se a Sintaxe. E a qui é maior a dificuldade:[Pg 68] porque se a Etimologia, nas Gramaticas ordinarias, é confuza; a Sintaxe delas é a mesma confuzam. é necesario variar muito do-comum, para ensinar verdadeira Sintaxe. Nam tenho tempo para provar o que digo: mas seguro a V. P. que o que escrevo, é ja provado evidentemente, polos autores que aponto, e outros que os-comentáram: e que, se a necesidade o pedise, com pouco trabalho mostraria tudo: porque tenho visto o que basta. E asim apontarei somente, as rezolusoens.

A Sintaxe ensina a unir as vozes, para fazer a orasam: e, por-meio desta, formar um bem regulado discurso. A construisam ou uniam ou é Regular, que segue as regras da-Arte: ou Figurada, que se-desvia delas, mas funda-se na autoridade dos-bons escritores. A construisam Regular funda-se na Concordancia, ou na Regencia. Chamo Concordancia, quando as partes concordam, em alguma coiza comua. v.g. o Sustantivo concorda com outro Sustantivo em cazo, que é comum a ambos. Nas Concordancias achamos alguns erros comuns, que em breve apontaremos.

Nam se-devem admetir mais concordancias, (nam falo daquela entre dois Sustantivos) que de Sustantivo com Adjetivo: Verbo com o Nome. O Adjetivo concorda com o Sustantivo em numero, e cazo, que sam comuns a ambos: nam em genero, porque o Adjetivo nam tem genero, mas somente o Sustantivo: poem-se porem o Adjetivo em uma terminasam, conrespondente ao genero do-Sustantivo. Alem disto o Adjetivo, nam concorda com o Sustantivo proprio, v.g. Petrus: mas com o Sustantivo comum, v.g. Homo: e vale o mesmo dizer: Petrus est bonus: que se disese-mos: Petrus est homo bonus: vel artifex, vel magister bonus &c. Quando nam á nome comum, recorre-se aos nomes, Res, Factum, Opus, Negotium, e outros semelhantes, que antigamente tinham, significasam mais extensa, que a que oje lhe-dam. Damesma sorte quando Ovidio dise: Nox, & Amor, & Vinum nil moderabile suadent; deve-se intender asim: non suadent factum, vel opus, vel negotium moderabile. Virgilio umas vezes dise: Præneste altum: intendendo Oppidum. outras vezes: Præneste sub ipsa: intendendo sub ipsa Civitate. podia tambem dizer: Præneste altus: intendendo Locus. Terencio dise: Eunuchum suam; intendendo Comoediam, ou Fabulam; porque Eunuchus é masculino. Deixo outros exemplos, com que se-mostra, que a concordancia sempre é com o Sustantivo comum.

[Pg 69]

Á infinitos exemplos que provam, que o Relativo concorda com o susequente expreso, ou supreso, em numero, cazo, e terminasam conrespondente ao genero: damesma sorte que outro Adjetivo. Temos exemplo bem claro em Cicero, do-expreso: Ego tibi illam Aciliam legem restituo, qua lege simul accusasti[18]: e em outra parte[19]: Sequitur enim caput, quo capite non permisit. Cezar abunda muito destes modos de falar, porque afetava clareza. Acham-se exemplos do-supreso: Populo ut placerent, quas fecisset fabulas[20]: i. e. Populo ut placerent fabulæ, quas fabulas fecisset. Do-que fica claro, que o Relativo concorda, em genero, numero, e cazo, como dizem comumente, com o seu susequente; que é o mesmo antecedente-repetido. Isto basta por-agora.

A segunda concordancia, é do-Verbo com o Nome: os quais concordam em numero, que é comum a ambos: nam em pesoa, porque esta é somente do-Verbo: mas poem-se o Verbo em uma terminasam, conrespondente à pesoa, que o Nome significa. Devem-se porem advertir algumas coizas. I. A primeira, e segunda pesoa do-Verbo, raras vezes se-construe com o Nome expreso, senam por-distinsam, ou emfaze. II. A terceira pesoa do-Verbo, construe-se tambem com um Verbo infinito. v.g. Scire tuum nihil est: pro, scientia tua. Tambem algumas vezes sem nome expreso: v.g. Aiunt, supple, homines. Tonat, sup. Deus. outras vezes com o Nominativo: Saxa pluunt. Tambem se-uza do-Nome, sem Verbo expreso: Rari quippe boni. i. e. sunt. III. No-Verbo com o Nome, tem lugar a Figura Sintesis, que parece, que discorda do-Nome expreso: mas a verdade é que concorda, com o sinonimo oculto. v. g. Pars epulis onerant mensas: onde o Verbo concorda, com o sinonimo oculto, Plurimi. Tem tambem lugar a figura Zeugma, em que o Verbo concorda, com o mais vizinho: Tu quid ego, & populus mecum desideret, audi. Tem tambem lugar a Silepsi, emque o Verbo concorda, com o mais digno: Si tu, & Tullia lux nostra valetis, ego, & suavissimus Cicero valemus.

IV. Porque o Adjetivo significa acidente, nam pode estar só sem sustantivo, que signifique a sustancia. o mesmo digo das-terminasoens do-Verbo que significa, movimento de alguma coiza:[Pg 70] e asim sempre se-subintende a dita coiza. Nam á Orasam sem Verbo, e Nome. se o Verbo é finito, o suposto é Nominativo: se é infinito, é Acuzativo. A Letra, Silaba, Voz, e Orasam, pode ser suposto do-Verbo, e do-Adjetivo. V. Do-sobredito se-inferem varias coizas. É falso, que os Nomes de numero, come tres, & decem, concordem entre si. É falso, que os Adverbios, e Conjunsoens concordem com o Indicativo, Optativo &c. deve-se dizer, que se-construe um com outro. E nisto com pouca diferensa se-comprende, tudo o que se-diz da-Sintaxe de concordar.

A Regencia, é a que mostra o seu efeito, em outra coiza que rege. Quatro sam as vozes que regem outras: Nome, Verbo, Participio, e Prepozisam. É falso, o que se-ensina comumente, que o Adverbio, Conjunsam, Interjeisam, Verbo pasivo, Participio pasivo, Gerundio, Nome adjetivo, reja, e pesa cazo: porque o cazo que se-acha com eles, é regido de uma parte supresa, pola figura Ellipsis.

A regencia ou é Gramatical, que segue as regras da-arte: ou Figurada, que se-desvia delas. E porque a regencia se-exercita nos-Cazos do-Nome, daqui vem, que toda a Sintaxe de Regencia se reduz, à explicasam deses seis Cazos. v.g. no-Nominativo aponta-se, quando entra na orasam. despois, quais sam as partes da-orasam, que se-construem com ele, ou simplez, ou dobrado. O mesmo digo de todos os outros Cazos: na explicasam dos-quais deve-se muito advertir, de mostrar quais sam as partes, que verdadeiramente os-regem: e nam enganar os estudantes, com as doutrinas das-Gramaticas vulgares. V.g. o Genitivo é cazo somente regido, por-um Sustantivo expreso, ou supreso: ou por-uma parte, que esteja em lugar de Sustantivo. É pois necesario mostrar-lhe, que se-enganam os outros, que atribuem o tal Genitivo, a outras partes da-orasam. Com este metodo, explica-se mui brevemente a Sintaxe, e mui solidamente: porque se-reduzem todas as construisoens figuradas, ao modo de falar regular: e se-descobrem os verdadeiros principios da-Regencia: postos os quais, dezaparecem todos aqueles Apendices, e Limitasoens da-Gramatica uzual: as quais nam de outra coiza nacem, senam de establecer principios falsos. Despois, explica-se a Gramatica Figurada: e se-aponta o fundamento da-Figura, e como se-pode reduzir à construisam natural. porque sem esta inteligencia, nam se-pode ir para diante na Gramatica.

[Pg 71]

ORTOGRAFIA, E PROZODIA.

As outras duas partes da-Gramatica sam mais facis, porque menos contrariadas. A noticia das-Letras, e Ortografia, é sumamente necesaria, para escrever bem, e ler correntemente nam só a moderna, mas tambem a antiga escritura: em que vareiam muito as letras. O mesmo digo da-Prozodia, ou quantidade das-silabas. Tambem nisto é necesario, uzar melhor metodo, que o da-Gramatica comua: e conheso eu muito bem, que se podem dizer, com mais clareza.

Eisaqui tem V.P. uma idea do-que sinto, sobre a Gramatica. Parece-me bastante o que dise, paraque veja V. P. quanto trabalho encurtaria uma Gramatica, concebida nestes termos: e uns principios tam claros, como os em que se-funda. Nam poso dilatar-me mais nesta materia, porque serîa compor Gramatica; e o meu argumento nam é ese. Eu sei, quem tem composto uma Gramatica, pouco diferente da-ideia que propuzemos: e tem composto outro particular escrito, com que se-aprende Gramatica mais facilmente, e em menos tempo: os quais podia publicar, para utilidade deste Reino. Dois nosos amigos lhe-pediram instantemente, que a-impremise: mas ele desculpa-se sempre com dizer, que é mais facil, conquistar um novo mundo; doque despersuadir os Velhos, da-antiga Gramatica. Cita alguns exemplos com que mostra, que a paixam obra nestes particulares mais, que o juizo: e lamenta-se muito, que se-tenham reprovado tantas coizas, sem as-lerem, nem intenderem.

O que eu poso segurar a V. P. é, que com este metodo, aprende-se em um ano mais Gramatica, doque nam sabem muitos, que a ensinam trinta anos, ou pasáram nela toda a sua vida. É erro persuadir-se, que um omem ou deva, ou posa ter prezentes todas as regras, que se-acham na Gramatica do-P.Alvares. A experiencia deveria dezenganar, os que estudáram por ela; e mostrar-lhe, que aquele estudo morre com a escola. Um estudante, despois de seis ou sete anos de Manoel Alvares, se acazo nam le os antigos Latinos, e procura intendèlos; ou nam pasa para a Filozofia, onde a necesidade o-obriga a intendèlos, e falar a tal lingua; fica toda a sua vida ignorante de Latim, com toda a sua Gramatica. Porem se acazo segue o exercicio do-Latim, de tal sorte se-familiariza com a lingua, como se fora nacional; e comesa a falar por-uzo. Aqui nam é necesario mais[Pg 72] prova, que proguntálo a eses mesmos leitores. apenas conservam umas ideias gerais, das-regras de Gramatica. Onde fica claro, que tudo aquilo é superfluo. O metodo porem que aponto, é mais facil de se-conservar na memoria, porque é natural: e chega à origem das-coizas. Mas em um e outro sistema é verdade, que preceitos sem uzo, nada valem. Onde deve o estudante, nam só aprender a Gramatica, mas exercitar esas regras no-discurso, na leitura, e na composizam: descobrindo em toda a leitura as regras, que na Gramatica lhe-insinuam: no-que deve ter igual cuidado o mestre, que o estudante. No-primeiro ano, deve ensinarlhe Gramatica: o que se-pode fazer com muita facilidade. No-segundo, traduzir os autores mais facis: como algumas Cartas de Cicero, as Fabulas de Fedro, Terencio, Cornelio Nepote. procurando que o estudante asine a regencia das-partes, e descubra neses livros, os principios que estudou: e intendendo as outras particularidades mais reconditas da-Gramatica: as quais nam sam para o primeiro ano.

Mas, para proceder nisto com utilidade, deve o mestre ordenar ao estudante, que ja vio uma vez a Sintaxe, que escreva em Portuguez, polas palavras que melhor lhe-parecer, mas sempre diferentes daquelas, que estam na regra, a razam de alguma regra; apontando um exemplo, e explicando as partes todas dese exemplo. Pode tambem o mestre tomar, um periodo de duas regras, em algum autor claro; e dalo ao rapaz, paraque o-explique em uma folha de papel: pondo nela toda a regencia gramatical, sem deixar nem menos uma virgula, por-explicar. E quando o rapaz aprezenta a sua carta, examinálo de tudo, o que nela se-contem; para ver se verdadeiramente o-intende. E isto mesmo se-pode praticar ao principio, quando traduzem os autores. Este modo de estudar, nam enfada os principiantes, visto darem-lhe tempo para considerar, o que ám-de escrever. Ao principio, deve ser em caza: quando sam adiantados, na escola. Alem diso o estudante, para escrever a sua explicasam, é necesario que leia, e intenda bem a regra: que busque no-Dicionario, o significado das-palavras: e desta sorte é que a-imprime bem na memoria. Quando o estudante for adiantado, entam é que se pode obrigar, a repetilo de memoria: mas nem sempre: pois algumas vezes é bom, dar-lhe o periodo, paraque fasa a explicasam por-papel: Com a diferensa porem, que se o periodo[Pg 73] avia ser de quatro regras, seja de seis, ou oito. Explicando isto por-escrito, é incrivel, quanto se-intende melhor: principalmente se o mestre, quanto lhe-tomar conta, fizer as proguntas necesarias; emendar os erros, e explicar tudo como deve.

Mas esta carta ja é mais comprida, doque eu queria fazé-la: porem poso segurar a V. P. que ainda me-fica muito que dizer. Contudo do-que tenho escrito, fica bem claro, o que eu intendo: e para V. P. é mais que bastante. Fico às ordens de V. P. como seu criado.

NOTAS DE RODAPÉ:

[16] Patrio sermone tantum declaranda Rudimenta, Genera, Declinationes, Anomala, Præterita, Supina: ne simul & ligata & soluta oratione præcepta memoriter recitare cogantur. Quod etiam in Syntaxi, quando ea primum explicatur, observandum est.

[17] Veja-se a sua Gramatica da-edisam de Scavenio, na Prefasam.

[18] In Ver. act. 3.

[19] 2. Agrar.

[20] Terent. in Andria.


[Pg 74]

CARTA TERCEIRA.
SUMARIO.

Abuzos que se-introduzîram em Portugal, no-ensinar a lingua Latina. Mao modo que os mestres tem, para instruir a Mocidade. Propoem-se o metodo, que se-deve observar, para saber com fundamento, e facilidade o que é pura Latinidade. Necesidade da-Geografia, Cronologia, e Istoria, para poder intender os livros Latinos. Apontam-se os autores, de que os mestres se-devem servir na Latinidade: e como devem servir-se deles; e explicálos com utilidade: e as melhores edisoens. Aponta-se o modo de cultivar a Memoria, e exercitar o Latim nas escolas.

Meu amigo e senhor, Tardei em escrever a V.P. porque tive legitimas ocupasoens. Continuando pois o fio das-minhas reflexoens, da-Gramatica paso para a Latinidade: porque me-persuado, que este mesmo caminho deve seguir o estudante, que quer ter perfeita noticia, da-lingua Latina. Esta noticia certamente nam se-consegue, com a pura Gramatica: mas com a continua lisam de bons autores, e reflexam sobre as suas melhores obras. Aliud est grammatice, aliud latine loqui: advertio ja no-seu tempo Quintiliano. e com muita razam: porque a escrupuloza sugeisam às regras da-Gramatica impede, saber falar a lingua. A Gramatica é a porta, pola qual se-entra na Latinidade: e quem pára no-vestibulo, nam pode ver as singularidades do-Palacio. Quantos omens acha V. P. que, com terem sido mestres de Gramatica muitos anos, saibam pegar na pena, e escrever uma pagina em bom Latim? responder a uma carta com facilidade? e fazer qualquer outra coiza, em que seja necesario, uzar da-lingua Latina? Eu conheso infinitos sugeitos, que pasáram a sua vida neste exercicio, e quando ám-de escrever Latim, servem-se de expresoens em tudo barbaras, e indignas do-seu exercicio. Outros, aindaque tenham eleisam de palavras, nam[Pg 75] se-despem dos-idiotismos da-sua lingua: que é o mesmo que falar Portuguez, com palavras Latinas. Uma vez que observam, aquela regencia gramatical que estudáram, parece-lhe que fazem a sua obrigasam. Os que se-querem apartar deste uzo, declinam para outro extremo viciozo, que é a afetasam: e nam buscam, senam palavras grandes e sonoras, sesquipedalia verba, com as quais atroem os ouvintes, ou leitores. E daqui entam nace, aquele estilo ridiculo, que tanto dominou nos-seculos da-ignorancia; e oje em Italia chamamos, estilo do-seculo XVI.

A estes ultimos chama o comum dos-Gramaticos, grandes Latinos. É um louvar a Deus, ver a prezunsam de uns, e a ignorancia de outros. Achei-me prezente em algumas orasoens Latinas, que se-recitáram sobre diversos asumtos; e nam podia asás admirar, a afetasam, e estilo dezigual, que reinava em toda a orasam. Despois diso, li muitas compozisoens, feitas por-eses mesmos: li muitas postilas de diversos leitores, que tinham pasado com louvor, por-aqueles bancos: e em tudo notei o mesmo defeito. E tudo isto provèm, de se-contentarem com a erudisam de quatro temas, que lhe-mandam compor: e de nam se-internarem na lisam dos-bons autores, e que escrevèram no-tempo da-mais pura Latinidade. É coiza imposivel, que um omem que tenha tomado o gosto, à verdadeira Latinidade, com facilidade o-perca. Ainda quando trata asumtos umildes, e argumentos em que è obrigado servir-se, de expresoens barbaras, v.g. na Filozofia, ou Teologia Peripatetica; ou ainda quando despreza o falar elegante; la mostra sempre, o conhecimento que posûe daquela lingua. Nos-seus escritos conhecem muito bem os omens inteligentes, o que ele podia fazer. caiem-lhe da-pena palavras proprias. um estilo facil e natural é o carater das-suas obras. Mostra a experiencia o que digo: e convem nisto os omens de alguma doutrina. Daqui vem, que os que querem fazer progreso na Latinidade, procuram logo um autor facil e elegante, como qualquer dos-que na minha ultima apontei; e desorte se-familiarizam com ele, que tomam e imitam a sua fraze, e modo de falar. Quem quer falar uma lingua, deve conversar com os omens que a-falam bem. ora os que oje falam bem Latim, sam eses quatro livros, que nos-deixou a Antiguidade: e com eles é necesario conversar tanto, que aprendamos o que se-pode aprender.

Pode tambem aver perigo, na lisam deses mesmos bons livros:[Pg 76] e pode suceder, que com bons livros, se-saiba mal Latim: Digo isto, polo que tenho observado, em grande parte deste Reino. Omens á, que lem indiferentemente, todos os livros antigos; e pola vaidade de quererem saber tudo, nam sabem nada. Formam um estilo dezigual, que nam é de seculo algum: e com grande trabalho, nam conseguem o fim que queriam. Neste defeito, nam só caiem os pouco doutos; mas chegáram a cair, omens de grande doutrina. Erasmo, que foi um omem tam douto como V.P. sabe, é censurado neste ponto. A grande lisam que tinha, dos-antigos autores, e Padres, impedio-lhe formar um estilo determinado. Contudo iso, nam sei se achará V.P. muitos no-seu Reino, que escrevam como ele. O certo é, que Erasmo nam lia os Antigos por-vaidade, mas por-necesidade dos-seus estudos: mas estes de quem eu falo, nam se-livram deste pecado. Outros, furtam indiferentemente, de todos os autores que lem; para poderem encher as suas compozisoens: servido-se imprudentemente, destes livros de Fraseologia: sem advertirem, que sempre á-de ser capa de romendos: e que os diversos mantimentos primeiro se-ám-de digirir, para se-converterem em uma sustancia, que seja uniforme e simplez.

A outra razam que á, para que se-posam enganar, é a diversidade de estilo, e merecimento deses mesmos Antigos. Quanto ao estilo, é certo que os querem ser Istoricos, faram mal em ler as Filipicas de Cicero, as Comedias de Terencio, os Epigramas de Catúlo, e outras semelhantes compozisoens: porque nam conduzem ao seu fim; aindaque sejam escritas, no-seculo da-bela Latinidade. omesino digo das-outras proporcionadamente. Podem-se ler estes autores: mas cada um deve aplicar-se ao que é insigne, na materia que ele trata. Se bem ouso dizer, que Terencio serve-se das-expresoens, no-seu proprio significado: que Cezar falou melhor, que nenhum dos-Romanos: nem por-iso ei-de logo meter Cezar, e Terencio em toda a parte. para o conhecimento da-lingua, todos me-podem servir: nam asim para o exercicio particular, que eu quero. Quanto ao merecimento é certo, que nem todos os Antigos sam iguais. antes muitos que escrevèram no-seculo de Augusto, e em tempo de Tiberio, fizeram-no com tal negligencia, que mal tem lugar, na idade de prata da-lingua Latina: e sem injuria se-podem colocar, na idade de bronze.

[Pg 77]

Esta advertencia é mais necesaria em Portugal, que em outros Reinos: porque os mestres aqui, tem pouca noticia destas coizas. Nas escolas da-Latinidade, verá V.P. traduzir livros, de merecimento mui dezigual: e pasar de um para outro sem eleisam, nem advertencia, somente para encher tempo, e completar o ano. Na 3. e 4. em que os rapazes comesam a traduzir, explicam pola menhan, as Filipicas de Cicero &c. e de tarde, a Eneide, ou Ovidio de Trist. Na 2. e 3. pola menhan, Suetonio; de tarde Oracio. Mas eu vi mais: vi um mestre que explicava aos dicipulos, as Orasoens de Cicero, Marcial, e o Thesaurus Poeticus. E que coiza boa pode sair daqui? Nam ensinam aos estudantes, qual é o merecimento de cada autor, que lhe-mandam traduzir: e como pode o estudante advinhálo? Alem diso, aquilo de explicar no-mesmo tempo, proza, e verso, e isto a principiantes, nam pode menos, que produzir monstruozidades. O pobre estudante, com a memoria cheia de tam diferentes especies, nam pode distinguir o branco, do-negro: nem chegar a conhecer bem, qual é o estilo da-proza, e qual o do-verso. Muito pior ainda é, comesar por-tais livros: porque as Filipicas, e Eneide, nam é Latim para rapazes, mas para omens feitos. por-estes livros devem acabar o estudo, e nam principiálo. Tambem o Suetonio, nam é livro proprio da-Escola, porque nam escreve com a pureza dos-outros da-idade de oiro. era melhor Livio, Nepote &c. que, alem da-pureza de lingua, sam perfeitos modelos de eloquencia. Outros mandam traduzir lisoens do-Breviario, ou Concilio de Trento: dizendo que sam necesarias, para quem á-de seguir a Igreja. E isto tambem é uma solenisima loucura. Cada lisam do-Breviario é de seu autor, e de estilo diferente. Ainda das-que se-tiram da-Escritura, se-deve dizer o mesmo: umas sam oscuras, que sam as dos-livros profeticos; outras mais claras, que sam as dos-istoricos: e o Latim delas nam é bom, porque a fraze é barbara. E querer, que um estudante traduza isto, é querer, que nam saiba Latim. Tambem o Concilio nam é próprio, para dar boa doutrina: porque se-serve de um estilo Forense proprio de Roma, que nam é Latino. Se o-fazem para intender estes livros, é superfluo explicálos. Nam á omem nenhum tam decepado, que, se intende bem Latim, nam intenda as Bulas; aindaque nunca as-tenha lido. Estar o verbo vizinho ou distante, nam muda, ou dificulta o sentido, a quem le todo[Pg 78] o periodo: e quem tem alguma pratica delas, intende-as maravilhozamente, aindaque seja mao Latino, como vi muitas vezes em Roma. O que suposto, é muito mao emprego, obrigar o estudante a traduzir Bulas, ou Constituisoens: e principalmente a traduzilas palavra por-palavra, como fazem estes mestres. O Ecleziastico, nam é necesario que traduza; basta que as-intenda. Antes é muito mal feito, obrigálos a traduzir asim: porque o tal Latim nam se-deve traduzir ad verbum, mas ad sensum. O que bastava que o mestre advertise, quando quizese dar-lhe alguma noticia diso: pois em tal cazo bastaria, que mandáse ler alguns periodos, e explicar o sentido. Isto basta: o mais é perder tempo.

Contudo iso sam poucos os que conhecem, que com isto se-perde o tempo: antes blazonam, quando procuram embrulhar os rapazes, com coizas oscuras. Achava-me eu em uma parte, em que certo M. de Filozofia, para examinar um rapaz, mandou-lhe traduzir aquelas palavras de S. Paulo ad Cor. Aemulor enim vos Dei æmulatione &c. que era o capitulo da-Ora, que estava rezando. O rapaz, que nam era mao estudante, traduzio literalmente: mas como nam fazia bom sentido, o mestre dito deu grandes rizadas, e fez escarneo do-rapaz. Eu calei-me por-prudencia: mas tive meus impetos de lhe-dizer, V.P. ri-se de um pobre rapaz, que nam é obrigado a saber, o sentido da-Escritura, nem os ebraismos, que se-acham na Vulgata: e eu apostarei, que V.P. é o primeiro que nam intende, o que nisto diz S. Paulo. Com efeito se eu apertava os negalhos, estava certo, que serîa mui mao interprete, da-dita Epistola. O certo é, que nam á maior parvoice, que mandar traduzir palavras oscuras: e que esta pedanteria se-devia desterrar de lugares, onde se-sabe falar. Alem disto, é obrigado o estudante, a compor varios periodos, a que chamam orasoens: repetir uma quantidade de regras Latinas, e Portuguezas: e se o pobre rapaz nam pode responder a tudo, em vez de lhe-aliviar o pezo, e mostrar-lhe a estrada, e animálo a proseguila; dam-lhe muita palmatoada; e obrigam-no a odiar, todo o genero de estudos. De que nace, aquela grande ignorancia, que se-observa nestes paizes.

Daqui fica claro, que com tal metodo, pouco se-pode saber de Latim. É lastima que os Profesores, nam cheguem a conhecer[Pg 79] por-uma vez, o ridiculo deste costume. Todos os primeiros estudos naturalmente dezagradam, porque sam cansados: e paraque avemos enfastiar mais os pobres rapazes? Um omem consumado nos-estudos, quando estuda uma lingua estrangeira, v.g. Grego, Ebraico, ou Caldaico, nam pode menos que enfastiar-se, daqueles primeiros elementos. Tem grande dezejo de sabèla: conhece o metodo de aprender a dita lingua: reconhece a necesidade que tem dela, para intender as Escrituras Santas: contudo iso quando se-aplica a ela, mil vezes deita fóra os mesmos livros: e nam-se-acha com rezolusam, de tornar a servir-se deles. Falo pola experiencia propria, e pola de alguns amigos, que se-aplicáram às linguas estrangeiras. E nam acha V.P. que é uma crueldade, castigar rigorozamente um rapaz, porque nam intende logo a lingua Latina? que de si mesmo é dificultoza, e ainda o-parece mais, na confuzam comque lha-explicam. Isto é o mesmo, que meter um omem, em uma caza sem luz, e dar-lhe pancadas, porque nam acerta com a porta.

V. P. está em uma Universidade, onde é facil dezenganar-se com os seus olhos. Entre no-Colegio das-Artes, corra as escolas baixas; e verá as muitas palmatoadas, que se-mandam dar aos pobres principiantes. Penetre porem com a considerasam, o interior das-escolas: examine se o mestre lhe-ensina, o que deve ensinar: se lhe-facilita o caminho, para intendèla: se nam lhe-carrega a memoria, com coizas desnecesariisimas: e achará tudo o contrario. O que suposto, todo este pezo está fóra, da-esfera de um principiante. Ora nam á lei que obrigue um omem, a fazer mais do-que pode: e que castigue os defeitos, que se-nam-podem evitar. Nam nego, que deve aver castigo: mas deve ser proporcionado. Um estudante que impede, que os outros estudem: que faz rapaziadas pezadas &c. é justo que seja castigado: e, avendo reincidencia, que seja despedido. Serîa bom, que nesa sua Universidade, se-dese um rigorozo castigo, ainda de morte, aos que injustamente acometem os Novatos; e fazem outras insolencias. A brandura comque se-tem procedido neste particular, talvez foi cauza, do-que ao despois se-fez, e ainda se-faz. Nese particular serîa eu inexoravel: porque a paz publica, que o Principe promete, aos que concorrem para tais exercicios, pede-o asim: e em outros Reinos, executam-no com todo o rigor. Falo somente do-castigo que se dá, por-cauza de nam acertar com os estudos. a[Pg 80] emulasam, a repreensam, e algum outro castigo deste genero faz mais, que os que se-praticam. É necesario ter muita paciencia com os rapazes, e ensinálos bem: nam seguindo a opiniam daquele Bispo de Vizeo D. Ricardo Rosel, que em um exame reprovou XVI. estudantes afio, porque pronunciáram Idolum, com a segunda breve. Isto só faz, quem nam conhece o que deve. Um omem pode ignorar, a quantidade de muitas silabas, e ser um grande Latino. Todos os dias se-oferecem duvidas na quantidade delas, aos omens doutos: principalmente naquelas palavras, que tem origem Grega: na qual lingua o O, e E sam de duas sortes, breves, e longos. Este rigor é censuravel. deve-se praticar outro estilo.

Acho ainda mais outro inconveniente, para saber Latim, praticado nas escolas: que é, compor muito naquela materia, que intendem mui pouco. Um pobre estudante ainda nam intende Latim, e ja lhe-dam varios temas, que sam certas orasoens vulgares, para traduzir na lingua Latina. ou dam a orasam Portugueza, com partes Latinas; ou uma sentensa Latina, para eles a-dilatarem, e provarem. Mas um e outro metodo, é um erro masicho. Que coiza boa á-de fazer um rapaz, que ainda nam sabe Latim? Dar as partes conrespondentes ao Portuguez, e obrigar o estudante, a que se-sirva delas em uma orasam longa; é o mesmo que querer, que ele siga os despropozitos do-seu mestre. Ainda quando o estudante acertáse com tudo, nam acertaria com os idiotismos, isto é, com os modos de falar, que sam proprios da-lingua Latina: e falaria Portuguez, com palavras Latinas. Pode-se permetir o dar as partes, em uma breve orasam; e isto a um rapaz que comesa: mas nam se-deve obrigar outro mais adiantado, a seguir tal metodo.

Devia o mestre ensinar ao dicipulo, compor bem uma orasam Portugueza breve, uma carta, um comprimento, ou coiza semelhante. Para isto tem o estudante, toda a facilidade posivel, porque o-faz em uma lingua que sabe; e na qual o mestre pode claramente mostrar-lhe os erros. Quando o estudante soubése fazer isto bem, entam lhe-aconselharia, que a-convertèse em Latim, deixando-lhe toda a liberdade da-compozisam. Emendados os erros de Gramatica, se os-ouvèse, emendaria os erros da-lingua: e lhe-mostraria, a diferensa que á, entre estas duas linguas: e a diversidade que aparece, entre escrever segundo as regras de[Pg 81] Gramatica, e segundo o estilo da-boa Latinidade. Mas nisto procederia com advertencia. Primeiro, nam procuraria que escrevesem, senam em estilo familiar e facil. despois, segundo o adiantamento que tivesem, pasaria aos argumentes ou asumtos mais dificultozos; os quais explicaria muito bem. Desta sorte, acompanhando a tradusam com a compozisam, facilitaria muito o estudo, e conseguiria promtamente o intento.

Deste estilo rezultariam muitas utilidades. Primeiramente, sairiam os omens da-escola, nam só sabendo a lingua Latina, mas tambem a sua. É lastima, que omens que pasáram tantos anos, nas escolas pequenas, e grandes; omens que estam oje ensinando a outros, e ocupam cargos de Letras, e Politica; nam saibam escrever uma carta! Pois isto é coiza, que sucede todos os dias. Eu me lembro, que V.P. se-queixou ja disto: e me-dise, que achava muitos Religiozos, que tinham o mesmo defeito: e reconheceo comigo, que a origem destes danos era, a que aponto. Cometem-se mil erros de Gramatica, na propria lingua, e infinitos de Ortografia. Preparam-se muitos para escrever uma carta, como para fazer um ato publico. Procuram palavras bem dezuzadas, ou estrangeiras; e verbos que nam á no mundo. E com isto compoem uma carta, sumamente afetada, e de um estilo, que é mais declamatorio, que epistolar. Estes sam os que sabem mais: e os que sabem menos, pedem a estes, que lhas-componham. E tudo isto provèm, de nam terem uzo de compor na sua lingua: e de nam terem quem lhe-ensine, qual é o estilo de Carta, qual o de Orasam: e nam aver uma alma cristan, que lhe-persuada, que a afetasam deve-se evitar, em todos os generos de eloquencia, mas muito principalmente, no-estilo familiar.

A segunda utilidade é, sobre a inteligencia da-lingua Latina. Um rapaz que de sua cabesa escreve uma carta, ou comprimento, ou oferecimento Portuguez, com palavras proprias; ja sabe, o que á-de dizer em Latim: só lhe-falta, ter as palavras Latinas, para as-colocar. A isto pois deve suprir o mestre. Suponho, que lhe-tem ja ensinado a Gramatica: e tambem a traduzir de Latim, em Portuguez, para intender os termos: e supondo estes principios, facilmente o rapaz intenderá, quais sam as palavras, de que á-de uzar: ou ao menos será facil ao mestre, mostrar-lhas. Eu no principio seguiria esta regra. Comporia diante dele em Latim, parte da-dita carta, ou toda: e lhe-daria a razam[Pg 82] do-que fazia: explicando-lhe, porque uzo daquele verbo, e nam de outro: porque uzo daquela fraze, mais doque outra. Capacitando-o, que a todas as palavras Portuguezas, nam pode conresponder uma Latina: mas é necesario uzar de perifraze, ou rodeio de palavras, para as-poder explicar. Este é o defeito que nós achamos, no-metodo de dar as partes: porque nam conrespondendo elas sempre umas a outras, por-forsa á-de sair uma embrulhada. Sabido tudo isto, darlheîa a incumbencia, de escrever a dita carta em Latim, sem lhe-mostrar, a que eu tinha composto: e pedirlheia a razam, de tudo o que tinha feito.

Alem disto, com este metodo aprende-se o que significa, escrever Latim com propriedade. Um mestre que se-contenta, com a Arte do-P.Alvares, e com a noticia do-Dicionario do-P.Bento Pereira, nam sabe distinguir entre muitos sinonimos, qual é o proprio, para o que quer explicar. Figuro um exemplo. Tenho necesidade de uzar, do-Verbo Pedir: para isto ocorrem logo mil Verbos: Postulo, Posco, Peto, Flagito, Efflagito, Oro, Rogo, Precor, Obsecro, e alguns outros. Quem sabe pouco, intende que sam rigorozos sinonimos; e nam tem dificuldade, de servir-de indiferentemente de todos: mas quem sabe mais, conhece que nem todos o-sam: porem que alguns daqueles Verbos, significam mais, ou menos. v.g. Postulo significa pedir aquilo, que se-me-deve: postulare jure. Flagito significa pedir com instancia, e injuriozamente. Efflagito pedir com grande instancia; e acrecenta sobre Flagito, alguma coiza. O mesmo dos-outros com sua proporsam. Do-que fica claro, que querendo eu explicar, que peso com instancia; direi muito mal: Vehementer postulo. cum clamore & magna instantia obsecro. basta que diga, Flagito. O mesmo digo, em diversas outras materias. Isto nam ensina o Alvares, nem o Pereira: mas isto deve ensinar o mestre, mostrando ao estudante, quais sam os vocabulos proprios, para explicar o que quer. Desta sorte acostuma-se o rapaz desde o principio, a servir-se de termos proprios, e frazes naturais à Lingua: E com isto insensivelmente toma o gosto da-boa Latinidade, e da-sua mesma lingua: e aprende as leis da-Tradusam, mui necesarias a quem á-de ler, e servir-se de autores estrangeiros.

Dirmeá V.P. que eu peso muito: e que isto nam é facil, praticálo nas escolas: porque nem todos os mestres, tem a erudisam que aponto; e nem todos os estudantes, sam capazes desa[Pg 83] doutrina: E eu respondo, que nam á coiza mais facil de se-executar. Ponha-me V. P. nas escolas outra Arte: um bom Calepino dos-modernos, reduzidos à grandeza do-Dicionario do-P. Pereira; que tudo se-remedeia. Estas duas coizas sam sumamente necesarias. A Arte comua, ensina muita coiza má: e a Prozodia, tem muito erro. Nam distingue as idades dos-vocabulos: mas com uma simplez estrelinha quer, que nós suspeitemos mal, de tudo o que dezagradou ao corretor: o qual às vezes erra, como ouvi queixar os mesmos Jezuitas. Alem diso, desterra da-Latinidade muitos nomes, que sam Latinos; e introduz outros, puramente barbaros. Nam explica a forsa das-vozes: nem mostra com exemplos, os significados proprios, e figurados de cada palavra: alem de muitas outras coizas, que se-podem notar. E asim serîa necesario, compor um Dicionario pequeno para os rapazes; ou servir-se de algum estrangeiro. v.g. o de Danet, ou ainda melhor, o que ultimamente se-compoz em Turin, por-ordem d’El-Rei de Sardanha, para uzo das-escolas: que sam dois tomos in 4o. Italiano e Latim, Latim e Italiano: e traduzir as palavras Italianas em bom Portuguez. Establecido isto, conheso eu entre os doutisimos Jezuitas, mosos de toda a erudisam, e capacidade, proprios para executarem dignamente, este emprego. Comque, tire V.P. das-escolas, os que sabem pouco; e em seu lugar ponha estoutros: prescreva-lhe o metodo apontado: fasa com que o executem sem epikeas, (como fez ultimamente o dito Duque de Saboia aos seus suditos, determinando-lhe o metodo, de ensinar Latim, e Leis &c.) e verá, com que facilidade se-reformam as escolas. Todos os estudantes, asim como sam capazes de sofrerem, aquele mao metodo, com mais razam receberám outro, que seja mais claro e facil, e seguiloám com mais boa vontade. O dano desta era consiste em quererem, que um estudante, que sabe pouco, e a quem nam ensinam a saber mais, mostre que sabe muito; e, para o-mostrar, componha muito. Eu nam peso tanto. Suponho que tem ja, um bom ano de Gramatica, e que tem pasado parte do segundo ano, traduzindo de Latim em Portuguez: onde nam me parece que peso muito, se quero que no-resto do-ano, se-empreguem em compor Latim, polo metodo que asima digo. Este tal estudante nam è noviso, mas adiantado; e pode com fruto aplicar-se a este estudo. Falando-lhe em Portuguez, e compondo polo metodo que aponto; muda-se de sistema.[Pg 84] Nas escolas comuas sabe-se pouco, quando os-obrigam a compor: v.g. na quarta, e terceira, em que comesam a traduzir de Latim, em Portuguez; nesa mesma clase, e no-mesmo tempo comesam a fazer tema. E isto nam pode produzir bom efeito. Mas neste sistema, quando se-compoem, ja o negocio está adiantado: e vai-se adiantando mais, com a dita compozisam.

Acha-se tambem outro inconveniente bem grande, nestas escolas, sobre isto da-compozisam; que é, obrigar os estudantes a fazerem, ou indireitarem versos rotos: e castigálos rigorozamente, se os-nam-fazem. desorteque ou sejam, ou nam aptos para a Poezia, todos ám-de fazer, o mesmo numero de versos. Mostra pouco intender de versos, quem pratîca isto: porque nam é facil, obrigar o entuziasmo a que venha, quando quer o mestre. Mas o que mais é para rir é, que fasam isto omens, que prezumem muito de ser Poetas, e matam gente com as suas poezias. Falando com alguns mestres neste particular, responderam-me que o-faziam, para que os estudantes tivesem alguma erudisam, dos-Poetas Latinos. Proguntei-lhe, que necesidade avia desa noticia: responderam-me: Que era necesaria, para a inteligencia da-lingua Latina. Poisque, continuei eu, quando V.V.P.P. intendesem bem Cicero, Cezar, Cornelio Nepote, Livio, Paterculo &c., e pudesem explicálos com facilidade, e escrever como eles; tinham medo de nam saber Latim; ou serîa necesario, recorrer a eses Poetas? Aqui nam souberam que responder mais, doque recorrer ao costume, das-Universidades da-Europa. Mas eu, que nam queria deixar fugir a preza, pedi-lhe, que me-provasem, que nesas Universidades, emque se-sabe ensinar, (avemos de concordar, que á algumas que seguem, o estilo de Portugal, aindaque mais moderado) explicavam os Poetas, só para intender a lingua: ou que obrigavam os estudantes, a que fizesem versos como eles. Aqui ficáram calados. E, na verdade, era dificil coiza, que quem nunca saîra de Portugal, ou nam tinha examinado com grande atensam, os estudos estrangeiros, discorrese fundadamente sobre eles.

Mas a verdade é, que nam á coiza mais contraria à boa razam, que esta pratica de fazer versos. Os omens nam tem capacidade igual; e nem todos sam capazes de tudo: antes às vezes acham-se mosos tam rudes, que dificultozamente podem intender o Latim. E como ám-de estes compor versos elegantes?[Pg 85] Asentamos, que, para a inteligencia da-lingua Latina, é loucura, obrigar a fazer versos. O mais que podem fazer, e que eu nam reprovo, é, quando o estudante sabe bem a lingua Latina, mandar-lhe traduzir, alguns dos-Poetas antigos melhores, como Lucrecio, Virgilio, Ovidio, Oracio, Catûlo, e algum outro: mas raro; porque nisto se-compreende o melhor. E isto para mostrar, as frazes particulares dos-Poetas, e tambem o bom gosto da-lingua. sendo certo que alguns destes escrevèram, com purisima Latinidade, como Virgilio nas Georgicas, e Eglogas: Oracio nas Epistolas, e Satiras: Ovidio nas Epistolas às Damas ilustres.

Quanto ao Verso, é querer perder tempo, obrigar os omens a fazèlos: e serîa melhor, empregar aquele tempo, em coiza mais util. Ouveram omens doutisimos, e os-á prezentemente, que nam sabiam fazer versos. No-tempo de Cicero avia omens, que faziam versos, com grande facilidade, e insignes na dita profisam: e contudoiso estavam mui longe, do-merecimento de Cicero. Este grande omem nam ignorava, o como se-faziam os versos: e com efeito alguns fez, cujos fragmentos ainda oje existem: mas o seu talento, e a sua maior propensam era, para a Retorica. Nam que eu julgue, que os versos de Cicero sejam maos; como muitos ignorantes, e que querem falar do-que nam intendem, se-persuadem. Os versos de Cicero, principalmente os Fenomenos de Arato, sam tam elegantes e tam belos, como os de Lucrecio: nem eu acho diversidade sensivel entre uns, e outros: e igualmente admiro ambos, principalmente olhando para a materia, sobre que compuzeram. Pois se todos admiram em Lucrecio, explicar com tanta naturalidade, coizas tam dificultozas, conservando a elegancia, e o espirito de Poeta; o mesmo louvor, e polas mesmas razoens, compete a Cicero: o qual com a frequencia de ler, e emendar Lucrecio, tinha aquistado a mesma facilidade, e estilo. Para conhecer o que nisto podia Cicero, basta lelo nas partes, em que nam é violentado, pola esterilidade da-materia. Nam sei se se-podem achar na Antiguidade, versos mais armoniozos, que os que ainda oje lemos, do-livro segundo do-seu Consulado. Este bocado somente mostra bem, na minha estimasam, o que Cicero podia. Nem obsta, que Marcial, Juvenal, Quintiliano, zombasem de um certo verso de Cicero: isto, como nota bem o doutisimo Turnebo[21], nada prova. O que nam[Pg 86] agradava a estes, agradava no-tempo de Augusto: e muitos omens grandes, (como advertio um grande critico daqueles tempos) estimavam mais os Antigos, que outros bem nomiados[22]. Se em muitas partes, Cicero nam se-asemelha a Virgilio, nem por-iso perde nada do-seu merecimento. Nem menos é semelhante Oracio nas suas Satiras, e Epistolas: nem em tudo Lucrecio; e com tudo sam famozos Poetas: e a naturalidade com que se-explicam, e acomodam o verso exametro, a tudo o que querem, é mais estimada, entre os criticos de bom gosto, doque a elevasam de Virgilio. O estilo daquele tempo pedia, grande naturalidade nas-compozisoens. E nam falta quem censure Virgilio, em ser tam elevado e artificiozo nos-versos: no-que alguma coiza se-desvia de Omero. Contudo ninguem nega, que, se na Eneide, e Georgica observou bem o decoro; e sustentou a dignidade do-argumento; nas Eglogas pecou muito, porque nam observa a simplicidade natural no-estilo pastoril: mas procura que falem os pastores, com toda a civilidade, e arrogancia de cidadoens: o que nam é verosimel. Mas, tornando a Cicero, ficaria prejudicada a Republica de tam grande talento, se, pola Poezia, deixáse a Oratoria. Conheceo aquele grande omem o seu talento: cultivou-o: e saio aquele oraculo, que entam venerou Roma, e oje admira o mundo. Esta, é uma grande lisam para os Modernos, consultar o talento; e nunca violentar a natureza. Onde neste particular, deve-se consultar, a inclinasam dos-rapazes: e avendo-a, explicar-lhe brevemente, as diferentes sortes de compozisoens metricas: nam os-ocupando senam em asumtos brevisimos: deixando-lhe toda a liberdade no-compor: mas emendando-os, e dando-lhe distintamente, a razam da-emenda.

Até aqui tenho falado a V.P. em alguns abuzos, das-escolas deste Reino, que impedem saber a lingua Latina. Agora falarei nos-requizitos, para a inteligencia da-dita lingua: a falta dos-quais,[Pg 87] nam se-deve contar, entre os menores abuzos: e tambem apontarei o modo, comque se-deve regular, o estudo do Latim; e a eleisam de livros, para o-conseguir com brevidade. Parecerá um paradoxo, se eu diser a V.P. que, ainda observando tudo quanto asima digo, nam se-pode saber Latim, (nam digo com toda a perfeisam; porque uma lingua morta, nam se-chega a saber bem: mas sabèlo no-melhor modo posivel) sem alguma noticia da-Geografia, e Cronologia, e das-Antiguidades, em que entram os Costumes, a Fabula &c. e contudo, nam á coiza mais verdadeira doque esta. Eu nam quero sair do-livro mais uzual, que nas escolas se explica, que é Quinto Curcio. Nele ocorrem todos os momentos nomes, de Gentes, de Povos, Regioens, Cidades &c. fala-se de guerras entre Nasoens e Nasoens. E que conceito á-de formar do-escritor, aquele que o-explica, se ele nam sabe, se diz bem, ou mal? porque, ignorando a Geografia, nam sabe, nem chega a compreender, em que parte do-mundo, estejam as tais Gentes, se vizinhas, ou distantes. Como á-de o leitor intender, as conquistas de Alexandre, se ele nam sabe por-onde foi, que Nasoens venceo, que dificuldades superou? Alem diso, sucede muitas vezes, que ese escritor, que o estudante le, se-enganáse nos-lugares: e isto entam é erro sobre erro, que o leitor nam poderá decifrar. Nam è isto cazo metafizico, mas engano bem comum em muitos escritores. Q. Curcio enganou-se muitas vezes, por-ignorancia da Geografia: Plinio, e alguns outros: como admiravelmente mostra o douto Jozé Escaligero, nos-Prolegomenos de Manilio. O mesmo Manilio, Virgilio, Lucano, Floro erráram algumas vezes na Geografia, e podem cauzar o mesmo erro no-juizo, de quem for ignorante dela.

Dirmeá V. P. que este conhecimento, parece ser mais necesario, para nam se-enganar na leitura dos-autores, doque para intender a lingua: para a Critica, e nam para a Latinidade. Confeso, que para a Critica, é de indispensavel necesidade: mas o que digo é, que nam pode o estudante, intender com facilidade um autor, que trata a istoria de um conquistador, sem a noticia dos-paîzes de que fala: e nem menos o-poderá intender com gosto. Polo contrario, se é informado, aindaque superficialmente, desta noticia, percebe maravilhozamente o fato: facilita-se a inteligencia do-autor: e por-este meio a da-dita lingua. Um moso, que ignora totalmente a Geografia, toma limpamente um nome de[Pg 88] Cidade, polo de um Reino, e polo de uma Pesoa: e outros destes enganos, que vam acompanhados, da-ignorancia da-lingua. Quem nam souber v.g. que Napoles, é nome de uma Cidade, e de um Reino juntamente; nam só confundirá os termos, mas tambem as coizas, que a ambas se-aplicam. E isto nam é somente dano da-Istoria, mas tambem impedimento, para a inteligencia da-lingua Latina. Acham-se alem diso muitas Cidades do-mesmo nome, em Regioens bem distantes. v. g. a antiga Geografia mostra-nos na Azia muitas, com o nome de Alexandria, de Seleucia, de Ecbatana, e bem longe umas de outras. O que quem nam sabe, persuade-se, que se-fala somente de uma: e nam intende a materia de que se-fala. E destes exemplos, de que abunda muito a Istoria antiga, se-colhe a necesidade da Geografia, ainda para a lingua. Serîa coiza ridicula, que um omem lese Q. Curcio, para intender as palavras, e nam para o sentido da-Istoria: ou que, sem a inteligencia desta, prezumise que poderia alcansar, a propriedade das-palavras. Muito mais sendo certo, que com o socorro da-Istoria, se-intendem muitas coizas, que sem ela é imposivel intender; e a inteligencia do-contexto abre a porta, para se-intenderem muitos nomes. É bem vulgar aquele lugar de Lucano,[23] em que, falando dos-Arabios, que sairam do-seu païz, diz = Umbras mirati nemorum non ire sinistras =: o que, sem Geografia, é imposivel intender. Virgilio diz lá em certa parte[24]: Gens inimica mihi Tyrrhenum navigat æquor =: Como se-pode saber sem Geografia, que coiza é aquele mar Tirreno? quem a-ignora, pode-o tomar polo mar Baltico, ou Etiopico, ou Pacifico. De que vimos a concluir, que, alem do-sentido istorico, a mesma propriedade das-palavras Latinas, nam se-alcansa em varias ocazioens, sem Geografia.

Parece-me pois, que uma breve noticia da-Geografia, deve ser o preludio, da-lisam dos-autores. A observasam das-principais Cidades, de que fala o autor, que se-á-de ler: das-viagens, que fizeram os conquistadores: os fins e limites dos-seus imperios: isto deve primeiro observar-se. Mas porque esta noticia serîa de-minuta, se a-nam-unisem com a noticia, da-Geografia de toda a terra; deve-se aprender esta noticia brevemente em um Mapamundo: ajuntando-lhe a noticia da-Esfera Armilar: das-divizoens do-Ceo,[Pg 89] e da-Terra &c. O que com grande facilidade se-pode fazer: pois, como diz um omem douto, este estudo nam pede mais, doque olhos, e alguma memoria. Na Esfera Armilar conhece-se, a dispozisam do-Ceo, respetivamente à Terra: no-Globo, a dos-Reinos: e em uma carta particular, a da-Provincia, ou Reino de que se-trata. Advertindo, que quando se-falar em alguma Cidade, deve-se notar, de quais delas se-mudáram os nomes antigos, em alguns modernos. Acham-se cartas, que apontam os antigos nomes, das-Cidades da-Grecia, e Italia: e estas sam, as que principalmente se-deverám notar, para intender os escritores antigos, que faláram destas Regioens. Sophianus descreveo bem, a antiga Grecia: e Cluverius, a antiga Italia. E isto é precizo saber, comparando os nomes daquelas antigas Cidades, com os das-modernas; e procurando nas cartas modernas, os sitios das-antigas Cidades, muitas das-quais ja nam existem. Celario publicou um belisimo Compendio da-antiga Geografia, em 2. volumes de 4.o Tambem compuzeram Introdusoens Latinas Cluverio, principalmente para a antiga; e Luitz. Quem quizese maiores noticias deveria ler, o Petrus Bertius==Theatrum Geographiæ Veteris. fol. &c. e este mesmo autor compoz: Veteris Geographiæ Tabulæ. fol. &c. Este autor, que escreveo nos-principios do-seculo pasado, é famozo. Oje á muitos modernos que escrevèram bem, em Francez, ou Italiano. Duplessis, e Buffier escrevèram bons Compendios; que temos oje nas ditas duas linguas. Jacobo Ode fez tambem um belo compendio Latino: e é mais moderno. Os Senhores Sanson, e de l’Isle compuzeram cartas Geograficas, nam só de todas as partes do-mundo, mas especialmente, das-antigas divizoens do-Imperio Grego, e Romano &c. E isto é o que deve fazer o mestre, e ensinálo quando é necesario: porque desta sorte, acostumando os rapazes a buscar na carta, que deve ter na escola, a dita Cidade; imprime-se a Geografia na memoria, como quem brinca.

Em segundo lugar entra logo a Cronologia, que nam é menos necesaria, para intender os autores, e fugir os anacronismos, ou confuzam de tempos. Nam é necesario nestes principios entrar, nas disputas que á, sobre os principios dos-Reinos &c. isto é negocio, que pede grande estudo, e doutrina, e se-rezerva para outra idade. Basta apegar-se ao calculo mais recebido e comum, que poem a vinda de Cristo no-ano 4000. da-criasam do-Mundo: a que chamam o calculo de Usserius por-ser este autor, o que o[Pg 90] explicou melhor. Aqui pois é necesario ler, em um breve compendio, a serie dos-tempos, desde o principio do-Mundo, até agora: notando os maiores sucesos, em que ano acontecèram: v.g. Diluvio de Noé, Vocasam de Abram, Saida dos-Ebreos do-Egito, Destruisam do-primeiro Templo de Jeruzalem, Vinda de Cristo, Paz da-Igreja &c. Especialmente deve notar o que emporta, para a inteligencia dos-autores, que quer explicar: e sempre que mudar de autor, deve notar, em que tempo escreveo, e de que tempo escreveo. para o que nam servem pouco, os Dicionarios Istoricos de Hofman, e Moreri &c.

Quanto aos Compendios de Istoria á tantos, que é superfluo, que eu aponte nenhum. Neste principio deve-se buscar, o mais breve. Por-iso me-parece, que o Petavio é mui longo. o Celario é bom, mas tambem nam é curto. Turselino, e alguns outros escrevem bem; mas em Latim. o Bossuet parece-me melhor para o principio; e acha-se em Italiano, ou Francez. Tambem o Valemont, no-primeiro tomo, traz uma carta Cronologica geral, que pode bastar para o intento. E como este volume está traduzido em Portuguez, parece-me, que por-ele deve ler o estudante: e o mestre pode servir-se, de quaisquer dos-apontados asima, que sam dos-melhores. Em quanto nam aparece alguma istoria Portugueza, proporcionada aos rapazes, que estudam nas escolas: aos quais basta dizer, o que é somente precizo, sem tantos rodeios: o que me dizem está atualmente fazendo, um omem douto meu conhecido.

É superfluo que eu mostre, a confuzam que nace, no juizo dos-pobres principiantes, por-falta de alguma noticia de Cronologia: e quanto podem errar, se derem credito a tudo, o que dizem os antigos escritores. Eles erráram em muitas partes, por-nam terem noticia dos-tempos: e para nós nam cairmos nos-mesmos erros, é que julgam todos os omens doutos, que sam necesarios, estes requizitos. Um omem que ouve falar em Alexandre Macedonio, e nam sabe, em que tempo ele floreceo; confundiloá com muita facilidade, com Alexandre Severo Imperador dos-Romanos. Filipe Macedonio, e Filipe Romano nam se-distinguem polo nome, mas polo diverso tempo em que florecèram. os dois Romanos tambem foram Reis de Macedonia: e a diversidade está, em que foram juntamente, Imperadores Romanos, e florecèram alguns seculos despois dos-primeiros. Esta confuzam se-aumenta,[Pg 91] quando se-fala de omens do-mesmo nome, da-mesma Nasam, e talvez do-mesmo tempo. Ouveram alguns Marcos Catoens, Marcos Antonios, Marcos Brutos, Marcos Valerios, Marcos Ciceros, Apios Claudios &c. todos Romanos, e alguns contemporaneos. E quem nam distingue isto, nam pode formar conceito das-coizas. Isto suposto, alguma tintura de Cronologia é necesaria, para intender a Istoria, e, sem a inteligencia desta, nam se-pode intender o Latim, dos-que escrevèram nesta lingua.

Para facilitar este estudo é grande segredo, ter em caza uma carta Cronologica, de que se-tem feito algumas Latinas, em duas folhas grandes de papel. Acham-se umas tiradas das-obras do-P. Petavio, Latinas: estas, com a diferensa de poucos anos antes de Cristo, uniformam-se com as de Usserius. O Delfini fez umas em Roma, segundo a Cronologia do-Usserius, em 4 folhas grandes, que eu tenho, e sam boas. Lanceloti fez outras em Pariz, segundo a Vulgata, quero dizer, segundo o Usserius: e sam otimas, principalmente despois de Cristo. O P. Pedro de S.Catarina Religiozo Bernardo, fez outras em Fransa, seguindo o Usserius: sam boas, aindaque alguma coiza extensas. O Musanzio Jezuita Italiano fez umas, em quatro folhas grandes, se me-nam-engano, porque averá anos que as-vi; em que segue a Cronologia do-Labbé Jezuita, que poem a vinda de Cristo no-ano 4053. do-Mundo: mas nam sam más. Outro Jezuita, que é o P. Cassini, acrecentou-as por-ordem de Benedito XIII. O Sanson, e Perizonio &c. compendiáram tambem taboas boas. As do-Senhor Langloit sam otimas, mas cuido que nam sam para rapazes; porque unem os trez calculos Grego, Ebraico, Samaritano: o que carrega muito a memoria. O ponto está que o estudante abráse, uma Cronologia certa: e nam mude de cartas todos os dias; mas meta umas na memoria. Toda a diversidade está, antes da-vinda de Cristo: porque despois dele todos concordam, e é rarisima a disensam. Se algum curiozo traduzise, umas destas melhores taboas, em Portuguez, para uzo da-Mocidade, emendando-as em alguma parte, e acomodando-as à necesidade do-Reino; faria grande serviso à Republica. Eu comecei á tempos este trabalho, e tinha ideiado uma carta mui facil: mas impedido com outras ocupasoens, nam pude acabála. se V. P. tiver gosto, porlheei a ultima mam. Feito isto, deve-se ler um compendio de Istoria. Neste principio basta o Valemont, que já se-acha em Portuguez: e o mestre[Pg 92] no-emtanto pode ler um compendio da-Istoria universal: v. g. o que fez o Cluverio em 4.o que é bom: e principalmente o que se-impremio em 1672. que é mais correto: E preparar-se para saber explicar, estas noticias aos dicipulos, quando falam na Cronologia. Mas disto falaremos em outra ocaziam.

Quanto pois às antiguidades Gregas, e Romanas, ou aos Uzos, e Costumes destas Nasoens; sam indispensaveis para perceber, os autores antigos. Um destes escritores nam escrevia para nós, mas para os seus: aos quais eram notorios os costumes, nam só publicos, mas tambem privados da-sua Nasam. onde aludindo aos ditos, nam se-cansa em os-explicar. Entam intendiam-no todos: mas oje nam. e é necesario para o-intender-mos, que procuremos esta noticia naqueles, que as-recolhèram. Um Istorico que na prezente era, contando as virtudes de um servo de Deus, disèse, que celebrava Misa todos os dias, tinha Extazis &c. como falava com gente, que o-intendia, nam tinha necesidade, de se-explicar. Se pudese suceder, que daqui a mil anos nam ouvese Misa, ou aquele livro caise em maons de outra Nasam, que nam tivese noticia de Misa; é certo, que nam intenderia, o que se-dizia; ainda que intendese a lingua: e serîa necesario, que primeiro intendèse, que coiza era Misa, e outros destes nomes; para dizer, que intendia bem a istoria, em que se-achavam estas expresoens.

Os antigos escritores em quazi todas as paginas, aludem aos seus costumes civis, e ecleziasticos. Falam de Flamines, Augures, Paterpatratos, Sacrificios, Apoteozes, Vestais &c. Encontram-se mil nomes pertencentes à guerra, Tribunus Militum, Tribunus Plebis, Centurio, Quinquagenarius, Decanus, Triarius, Primipilus &c. como tambem de machinas, e aparelhos belicos de muitas especies. A cada paso se-tropesa com o nome, de Consul, Proconsul, Prætor, Proprætor, Quæstor, Legatus, Edilis &c. cada emprego dos-quais tinha seu particular exercicio; sem a noticia do-qual, nam é posivel intender, a forsa da-expresam que o-significa. Quem nam sabe, que os Consules, que prezidiam aquele ano no-Senado, eram os mesmos aquem se-distribuîam as Provincias, onde se-fazia a guerra; e a quem se-entregava o governo do-exercito; nam poderá intender, como uma dignidade, que parece civil, se-introduza nas-materias militares. Quem nam sabe, que no-tempo dos-Consules, ouveram Tribunos Militares, os quais governáram a Republica[Pg 93] em lugar dos-Consules, com imperio consular; e continuáram muitos anos com suas interrusoens; intenderá, que Tribunus Militaris nam era magistrado; mas valia o mesmo, que Tribunus Militum: que conrespondia aos Coroneis dos-nosos Regimentos. Quem nam tem lido, que no-mesmo ano se-elegiam muitos Consules, e Proconsules, ou muitos Tribunos Militares, para abrangerem a todas as necesidades da-Republica; justamente se-persuadirá, que, em se-falando de Consul, discorre-se damesma e unica pesoa. Quem nam souber, que os Pretores mandavam-se para as provincias pequenas, com imperio consular; intenderá, que se-fala somente do-Pretor Urbano, ou Peregrino, que administravam a justisa em Roma. Finalmente só os ignorantes, é que podem negar esta necesidade: os doutos todos a-reconhecem.

Nós nam temos Istoricos Latinos que escrevesem, os seus costumes patrios: sam os Gregos de quem recebemos, o que oje sabemos: porque como os Gregos escreviam, para os seus Gregos, aos quais nam eram notos, os estilos Romanos; tinham cuidado de lhe-advertir, tudo o que era necesario, para a inteligencia da-Istoria. Polibio deixou-nos uma particular descrisam, da-Diciplina militar, dos-Costumes domesticos, das-Leis publicas dos-Romanos. Dionizio de Halicarnasso, dos-Sacrificios, Magistrados, e toda a politica da-Religiam, e do-Estado. Plutarco tambem nos-ensina muita coiza. Mas como nem todos sam capazes, de lerem estes autores, por-iso será bom recorrer, aos Compendios. Joam Rossino fez uma boa colesam das-Antiguidades Romanas, em Latim: que oje se-acha acrecentada por-Dempsterus. Estima-se pola brevidade, a Republica Romana do-Cantelio: mas eu intendo que é melhor o Neuport=Rituum qui olim apud Romanos &c. Quem quizer maiores noticias pode-as ler, no-Corpus Antiquitatum Romanarum do-Grevio, em 12. tomos fol. que compreende todos, os que escrevèram nesta materia: e onde pode consultar-se alguma dificuldade, que ocorrer.

Tambem é bom, ter alguma noticia das-Religioens diversas dos-Antigos: e para isto pode servir, Alexander Sardi = de Moribus, & Ritibus Gentium. 12.o ou Joannes Bohemus Aubanus de eodem 16.o ou Van-Dalen = de Oraculis Ethnicorum. 4.o o mesmo de Idolatria 4.o obra moderna: ou o Barclai = Icon Animorum; para os costumes das-Nasoens: ou o P.Pomei = Pantheon Mythicum. Nam aponto outros livros, porque sam em linguas vulgares[Pg 94] estrangeiras: aindaque estes, talvez sejam os melhores, porque expoem tudo com clareza, e brevidade. O mesmo digo da-Fabula, a que aludem todos os momentos, os Antigos. É necesario saber, esta mitologia dos-Antigos, para os-intender; e buscar autores que a-expliquem, sem a qual noticia, falarám muito, e nam saberám nada. Dos-Modernos é melhor, o Jovet = Istoria de todas as Religioens do-Mundo = 3. tomos de 4ᵒ que se-acha em Francez, ou Italiano.

Esta noticia é necesaria, senam aos rapazes, que se-divertem com outras coizas, ao menos aos mestres, que explicam os ditos autores: e, se a-nam-tiverem, por-forsa ám-de dizer muito des-propozito: e mostrarám ensinar, o que nam chegáram a intender. Ja sei, que chegando V.P. a este emportante ponto, me-proguntará, qual mestre conheso eu, que tenha toda esta erudisam: ou se me-persuado, que um rapaz, que saie das-escolas, e que nam tem no-corpo mais, que quatro anos de Filozofia, asim ou asado, quando entra a ensinar nas escolas baixas; seja capaz desta doutrina tam necesaria, para fazer bem a sua obrigasam? A isto respondo, que quanto à capacidade, ninguem lha-pode negar: pois este pezo nam é maior, que as suas forsas. Bastaria que o-obrigasem, e ensinasem a estudar isto que digo, mostrando-lhe a necesidade que á de o-intender, para poder fazer a sua obrigasam; que ele faria tudo, o que era necesario. E se acazo introduzisem, este metodo nas escolas, e o-protegese quem pode fazèlo, continuarseîa, damesma sorte que se-conserva, o metodo ordinario. Reconheso, que serîa alguma coiza dificultozo, persuadir a muitos omens mosos, que, aindaque ensinem o Latim, nam só tem pouca noticia dele, mas nem menos tem noticia, do-que é necesario, para o-saber: o que serîa facil provar-lhe, fazendo-lhe uma exata lista dos-requizitos; e proguntando-lhe, se os-posuiam. Mas emfim tudo se-vence, tratando-se com pesoas de juizo, piedade, e docilidade: e as razoens que apontamos, poderiam obrar muito, se tivesem a paciencia, de as-quererem ler, e intender.

Suponho pois que o estudante, tem alguma noticia, do-que asima apontamos, ou que polo menos a-tem o mestre, que seja capaz de lhe-explicar em poucas palavras; e apontar-lhe os livros, onde se-podem beber estas noticias: (as quais podem-se ir aprendendo no-mesmo tempo, que se-explicam os autores, explicando uma ora cada menham, alguma parte delas) Apontarei agora o modo,[Pg 95] com que se-deve regular, no-estudo da-Latinidade. Em primeiro lugar, deve somente procurar de saber, a propriedade dos-vocabulos: para o que deve buscar autores, que falasem mui naturalmente, e com estilo familiar. Para isto nam á melhores autores que Plauto, e Terencio: porque ainda-que em alguns lugares sejam, ou paresam oscuros; falam porem com estilo familiar, e com fraze naturalisima, e longe de ornamentos: que é toda a dificuldade na inteligencia da-lingua. Certamente Terencio é um autor, que nam tem preso, pola pureza da-lingua: e tambem é certo, que estes Comicos parecem mais Prozadores, que Poetas. Onde nam poso asás rir-me, quando ouso a alguns mestres responder, que Terencio nam é para rapazes, porque é oscuro. Os que asim falam, nam leram Terencio, nem sabem Latim. Proguntára-lhe eu, se é mais oscuro Terencio, que Oracio: ou se prezumem eles, que este, e Virgilio sejam mais claros, e proprios para rapazes, doque um Comico. Se bem considerasem estes, quanto é necesario para dizer, que intendem Oracio, e a Eneide; certamente julgariam diferentemente. Mas com estes omens nam falamos. O certo é, que Cicero julgou,[25] que a poezia Comica, nam se-distinguia da-Proza, senam em ser escrita como verso: mas nam na dificuldade. e tambem ninguem duvîda, que a Proza é mais facil, que qualquer Poema.

Em todo o cazo devem-se ler estes autores, com os Comentarios: e o mestre deve suprir com a explicasam; nam traduzindo muito; mas ese pouco com tal clareza, que nam fique dificuldade alguma ao rapaz. Quem nam souber explicar bem Terencio, pode contentar-se com Fedro. Este autor tratou argumentos simplezes, que sam certas fabulas, com uma disam pura e natural: e, aindaque Poeta, parece Prozador; e para principiantes é famozo. É estimada a edisam, que o douto Gronovio nos-deu, de Plauto. Sobre Terencio muitos tem escrito, mas nem todos bem. Com razam se-dise, que Farnabio, e-Minelio, afetando brevidade, deixáram mil coizas emportantes. Madame le Fevre publicou a mais bela tradusam, e notas sobre Terencio, que até o seu tempo[Pg 96] tinha aparecido: mas é em Francez, lingua que nem todos intendem: como tambem Monsieur le Fevre seu Pai, tinha ilustrado eruditamente Fedro. No-estado prezente servirmeîa da-edisam de qualquer deles, ad usum Delphini, &c. que parece ser a mais toleravel, das-modernas.

Estes primeiros autores nam se-devem ler correndo, como muitos fazem; mas devem-se ler, e reler atentisimamente. v.g. lendo Fedro deve o mestre, nam deixar de explicar coiza alguma, que seja necesaria, para intender a lingua. Onde deve notar e explicar, todas as dificuldades de Sintaxe: porque aindaque na Gramatica se-expliquem, somente lendo os autores se-intendem bem. E terá cuidado, de reduzir a construisam embarasada e figurada, ao modo de falar natural: explicando a Figura, em que se-funda. Despois, notará a propriedade das-palavras. E quando encontrar algumas, que paresam sinonimas, deve ensinar, se verdadeiramente o-sam, ou que coiza acrecentam. Em terceiro lugar deve ensinar-lhe, a pronunciar bem o Latim: que é o que comumente nam sabem em Portugal: pois ainda os mesmos mestres, pronunciam as palavras corrutamente. v. g. Em Omnis nam proferem o m: os tt finais pronunciam como dd: o m final pronunciam como n: e entre e, e a sempre pronunciam superfluamente um i. v. g. Meam, Deam &c. os ss finais como x. O que sem duvida é grande defeito da-pronuncia: deixando por-agora outros erros, que se-podem notar. Alem diso oferecendo-se-lhe algum termo, do-Latim antigo, deve ensinar, o modo antigo de pronunciar. v.g. Maxumus, Militiai &c. Estas noticias dam muita erudisam, a quem estuda o Latim: e como muitos nam fazem cazo delas, por-iso ignoram, o que é Latim, e todos os momentos encontram, dificuldades novas. Isto que digo de Fedro, deve-se intender de qualquer outro autor: Mas isto é o que muitos nam intendem: antes querem ler muito, intendendo poco; doque saber bem a lingua, com um só livro. De que vem, que a Mocidade nam aprende nada, com o seu metodo: pasam-se os anos nas escolas baixas, que se-deviam empregar, em coizas mais utis: pois na verdade quem nam reflete, como deve, no-que le, tanto emporta que leia Cicero, como os atos de Maria Parda.

O que emporta muito no-principio é, nam dar aos rapazes livros, que tenham periodos longos: mas breves, e com fraze natural. Por-esta razam alguns Italianos doutos, e despois deles os[Pg 97] Francezes, aconselham, que no-principio devem-se fugir, as istorias difuzas, os Oradores, e coizas semelhantes: especialmente os Poetas Eroicos &c. e que é melhor, tirar de Cicero, e outros autores elegantes e claros; tirar, digo, alguns paragrafos melhores: indireitar as frazes, e transpozisoens dos-Verbos: e polas na ordem natural. Sendo breves, e elegantes, podem os rapazes intendè-las, e tirar daî grande utilidade. A experiencia mostrou-me, que diziam bem: pois vendo eu, que alguns rapazes nam intendiam, os discursos compridos, e as figuras da-orasam; feita esta experiencia, intendèram tudo facilmente.

Mas isto que a estes aconselho, acha-se feito ja por-omens doutos: os quais escolhèram entre os autores, as coizas mais facis, e melhores, e reduziram-nas a capitulos diferentes: v. g. às quatro virtudes principais: para que os rapazes, nam só aprendam a lingua, mas tambem o moral das-asoens. A maior parte sam de Cicero: mas tambem se-acham de outros autores. Sam trez livrinhos pequeninos, impresos em Pariz: e tambem se imprimîram em Italia na Cidade de Pezaro, em 1740. Estes livros valem um mundo, e tem aproveitado a infinitas pesoas: e quem ajudáse com eles os seus dicipulos, conheceria a verdade do-que dizemos. E por-esta mesma razam digo, que a leitura dos-Comicos, é infinitamente util aos rapazes: v. g. a de Terencio. todos os periodos sam breves: rarisima vez se-acha transpozisam mui oscura: e os modos de falar, sam tirados do-estilo comum: motivo polo qual, sem trabalho se-intendem. Plauto tambem serîa bom: mas como tem bastantes palavras antigas, ou escritas no-antigo modo, nam é tam proprio, para principiantes. Oracio nam o-aconselho: nem outros semelhantes, que pedem maior erudisam. Em lugar de Oracio nestes principios, aconselharia Catúlo, que é nam só purisimo Latinista, mas mui natural, e com infinitas grasas. Devem-se separar, os poemas impudicos, e explicar os outros, com todo o cuidado, e diligencia.

Mas, supondo que o mestre, nam tem os ditos livros, direi o que deve fazer, despois da-leitura de Fedro, e Terencio. Deverá pois explicar em outra clase, as cartas de Cicero, a que chamam Familiares, com os comentários de Manucio, ou ad usum Delphini, que sam otimas: nam todas juntas, mas saltiadas. Onde deverá preferir, as que escreve a sua molher Terencia, e a seu liberto Tiro: como tambem as de recemendasam. Estas sam[Pg 98] as mais naturais, breves, e claras: desorteque nam enfadam o estudante: porque sam compostas naquele estilo familiar, que todos intendem. Vi nam á muito tempo uma pequena colesam, destas mais facis epistolas de Cicero, cuido que impresas em Padova; que eram otimas, para estes principios. Despois, na mesma clase pode ler, os Istoricos mais facis: como sam Caio Cezar, Cornelio Nepote, Veleio Paterculo. Estes trez escrevèram no-seculo da-mais pura Latinidade, e sam incomparaveis: principalmente os dois primeiros, que sam sumamente naturais, e claros. Mas estes autores nam se-devem ler seguidos: sim interrompidos, e tirando deles os lugares mais singulares. Se o estudante, tiver feito aproveitamento no-Terencio, e tiver ja lido alguns extratos, reduzidos à ordem natural; basta explicar-lhe estes autores, sem mudar a ordem das-palavras: paraque pouco a pouco das-coizas facis, vá intrando nas dificultozas. E terá o mestre a advertencia, de nam obrigar sempre os rapazes, a que traduzam de repente: mas em dias alternados. E comumente deve ordenar-lhe, que escrevam em caza a sua tradusam: e quando vierem à escola, fará que dem a razam, de tudo o que traduzîram. Este modo de ensinar, aproveita muito, e imprime as coizas na memoria. polo contrario o metodo comum, de dizer de cór, é falar como papagaio, e exposto a mil enganos. Onde deverá o mestre cuidar muito, em que escrevam as suas tradusoens; pois com o tempo serve isto, para ensinar a traduzir bem: que é o que muitos nam sabem.

Quando o estudante chega a este estado, pode-lhe ordenar, que componha alguma coiza: mas sempre asumtos breves: pola maior parte tirados das-obras, que traduz: o que pode fazer trez vezes na semana. Eu comecaria polas cartas: que é um modo de compor facil. Uma ou duas vezes darlheîa as partes: tendo cuidado de escrever primeiro, uma carta Portugueza pequena, e com ordem natural. Ou traduzir uma pequena de Cicero, que serîa o mais acertado: obrigando-os a que compuzesem outra semelhante, sem porem se-servir em tudo, das-mesmas palavras, e fraze. Despois, daria outra carta facil, sem partes: obrigando-o a que as-buscáse: e ensinando-lhe o modo. Em 3.o lugar daria uma carta mais elegante, sem a ordem natural: porque se acazo se-acostumam, a escrever o Latim conrespondente ao Vulgar, nunca saberám fazer outra coiza. Despois diso, pasaria a outro asumto mais dificultozo, e sempre breve. v.g. a discrisam, ou carater, de uma[Pg 99] pesoa determinada: no-que é singular Velleio Paterculo. ou obrigalosîa a referir, algum pequeno suceso: dando-lhe primeiro o Portuguez; e deixando-lhe a incumbencia, de pòr o Latim. Isto é quanto pode fazer um rapaz, no-dito tempo: e se o-chega a fazer, nam faz pouco. Com o tempo, e quando for lendo outros autores mais dificultozos, é que lhe-podem dar outros asumtos: porque o rapaz, em quanto estiver na Latinidade, deve fazer duas coizas, compor, e traduzir. Deve porem o mestre fugir, de lhe-dar pensamentos e sentensas oscuras, por-tema; porque as-nam-intendem: e neste tempo nada mais se-procura, que ensinar-lhe que coiza é, pura Latinidade. Quando o mestre ler as compozisoens, deve emendálas, e dar-lhe a razam, de tudo o que faz. Ao principio somente cuidar, na propriedade: com o tempo ensinar-lhe tambem, o que é elegancia, e particular idiotismo da-lingua Latina: mostrando-lhe como se-deve traduzir, tanto de Latim em Portuguez, como de Portuguez em Latim. Serîa bom que o mestre algumas vezes, traduzise ele mesmo, algum paso de Cicero &c. e o-propuzese ao estudante por-tema: nam lhe-deixando ver o original, senam despois de feita a compozisam: paraque asim reconhecese o moso a diversidade, entre o que tinha feito, e devia fazer. Mas isto somente se-pode fazer, nas clases altas, e quando ja o rapaz tem noticia bastante, da-Latinidade: porque desta sorte, é que se-aprende, qual é o estilo dos-bons autores.

Pode, despois dos-ditos autores, explicar os Istoricos mais dificultozos: que sam Tito Livio, Salustio, ou tambem Quinto Curcio. O qual Curcio, aindaque se-suponha ter escrito, no-reinado de Vespaziano, que era a idade de prata; ou, como diz Scioppio, o principio da-idade de bronze da-lingua Latina; contudo, é escrito com a mais pura Latinidade do-seculo de Augusto: e o estilo é belisimo. Livio é mais copiozo, e magestozo, e digno da-grandeza do-Imperio Romano. Quanto a Salustio, convem todos, que as suas frequentes Ellipsis, e o demaziado laconismo, fazem-no duro, e oscuro: mas é escritor de sumo pezo, e singular eloquencia. Nam me-parece porem, proprio para rapazes, polas muitas e mui fortes metaforas, e bastante oscuridade. Onde o meu parecer serîa, que dos-dois primeiros, se-tirasem alguns lugares escolhidos, para se-explicarem aos principiantes. Na mesma ultima clase podem-se explicar, alguns extratos das-orasoens de Cicero, principalmente das-mais facis, que sam: Pro Archia Poeta: Pro lege[Pg 100] Manilia: Pro Marcello: e as Catilinarias. Mas obrigar um rapaz, a que as-vá traduzindo seguidamente, e inteiramente, como costumam muitos, é intender mal o negocio. Nenhum omem pode ler com gosto, uma inteira orasam de Cicero, se nam é um grande Latino, e Retorico: e á orasoens de Cicero tam longas, v.g. as Verrinas, que ainda um omem douto, nam as-le, sem se-cansar. Ler uma pagina oje, e no-seguinte dia outra; é ainda pior: porque se-perde o sentido, e nam se-intende o que se-explica: de que nace o enfado, nam só nos-rapazes, mas nos-grandes. Onde o melhor é, procurar alguns pasos breves, e escolhidos: uma descrisam: um inteiro argumento: um inteiro periodo do-exordio. O mesmo digo, daqueles que explicam, o Somnium Scipionis, o livro de Senectute, Amicitia, &c. quem faz isto, nam intende o que faz. Os ditos livros nam se-podem intender, sem saber a istoria: da-antiga Filozofia: o que nam deve, nem pode um rapaz. Eu, tendo lido algumas vezes Cicero inteiramente, só o-cheguei a intender, (se é que o-intendo) quando li em Laercio, e Plutarco, a istoria das-setas dos-Filozofos. Os que introduziram o estilo comum, e que achamos no-livro a que chamam, Selecta, certamente ou nam refletîram, ou nam intendiam isto: porque dam aos rapazes, livros muito diferentes, e que só sam para omens adiantados. Salustio nam é para rapazes. Ouvîram dizer, que os livros pequenos de Cicero, eram perfeitisimos no-seu genero; e sem mais reflexam os-traduzem. Mas polo mesmo principio deviam explicar, os livros de Oratore ad Q. Fratrem: Orator ad M. Brutum: e os trez de Officiis: que sam a melhor coiza que ele fez, neste genero. Acho porem outras razoens, que se-devem atender, quando se-fala com principiantes.

Quando o rapaz traduz estes autores mais dificultozos, com a mesma ordem que se-acha neles, entam é precizo, que escreva a sua tradusam. A razam é, porque estes autores uzam de muitas transpozisoens, frazes, e figuras, as quais nem sempre se-podem traduzir literalmente: e asim querer que um rapaz, de repente ache o verbo, ou perifraze propria, é loucura: e vale o mesmo que ignorar, que coiza seja tradusam. Os mestres ao seu bofete, muitas vezes nam acham, a palavra propria, para a boa tradusam: como mostra bem o famozo Monsieur Huet, no-seu livro==de Claris Interpretibus==: em que, aponta os defeitos, em que caîram os omens grandes: E se isto sucede aos doutos; como[Pg 101] é posivel, que o-fasa derepente um principiante? O que suposto, deve o mestre dar-lhe tempo, para escrever em caza a sua tradusam: ou ao menos na escola. E despois ensinar-lhe, como se-deve traduzir bem de Latim em Portuguez: porque intendido isto bem, conhece-se como se-devem converter as mesmas frazes Portuguezas, em outras Latinas: ao que chamamos, boa Latinidade. Por-esta razam digo, que o que fez aquele livro, a que chamam, Pai Velho; que poem a tradusam de Virgilio, ou o que quer que é, palavra por-palavra; merecia ser asoitado polas ruas publicas: e tambem os mestres, que se-servem dele: e o livro, queimado em prasa publica. Nam á coiza mais prejudicial para a Mocidade, que semelhantes livros: pois mostrando ensinar a traduzir, sam a cauza, de que se-nam-saiba. O pior é, que os mestres praticam o mesmo, que diz o livro, nas suas tradusoens. Cujo metodo é tal, que ou os rapazes estejam dez, ou vinte anos nas escolas, nunca intenderám Latim: como na-verdade sucede: pois traduzindo todos Virgilio, nenhum o-intende. Achei-me em certa parte, emque um celebre mestre traduzia, o principio do-quarto livro da-Eneida: At Regina gravi jamdudum saucia curæ &c. palavra por-palavra: e tam pago de si mesmo, como se fose, o melhor interprete do-mundo. Dise eu a um-discipulo, que escrevese a tradusam do-seu mestre, e despois lha-mostráse, proguntando-lhe, se era boa aquela tradusam. Asim o fez: e o mestre, cuidando que era coiza do-dicipulo, foi o primeiro que dise, que nam prestava para nada. Pois esta, replicou o discipulo, é a que V.P. ontem dise. Envergonhado o mestre, quiz saber, quem lhe-dera o conselho, e respondeo: Que uma coiza era, compor na banca, e outra, explicar na escola. Que parvoice! esta propozisam vale o mesmo que dizer: Que na banca se-deve compor bem: e na escola explicar mal. A falar a verdade quem explica a rapazes o dito livro, ou coiza semelhante, sabe mui pouco: porque pola maior parte aquelas palavras, nam se-devem tomar no-proprio sentido, mas metaforicamente: e explicálas segundo o sentido do-Poeta. E por-este motivo torno a dizer, que os Poetas, principalmente Eroicos, nam sam para rapazes, que estudam Latim. Confeso a V.P. que ainda nam ouvi um mestre, que na escola disese: Esta palavra, nam se-pode traduzir bem: é necesario explicála asim. mas todos seguem o comum estilo, que é muito mao. Onde a minha regra geral é esta: Quando ouso um mestre, que, explicando[Pg 102] livros eloquentes, traduz asim: Petrus Pedro: Amat, ama: Joannem, a Joam: sem mais outro exame asento, que nam sabe Latim. Deve o mestre praticar outro estilo, se quer que aproveite aos estudantes: e o melhor é, o que aponto. Isto basta por-agora, sobre a tradusam.

Quando digo, que se-devem ler estes livros, nam quero dizer, que se-leiam todos: mas um, ou outro dos-que aponto; que sam os melhores, e mais proporcionados ao noso cazo. Mas tambem é certo, que, lendo-os como digo, quazi se-podem ler todos. O principal ponto está, em seguir a ordem que insinuo: porque sem ela, nacerá confuzam e impedimento, como todos os dias observamos no-metodo vulgar: sendo certo, que primeiro se-devem ler, os que faláram a lingua naturalmente, doque os que abundam muito de metaforas, e mil outros ornamentos dificultozos. Mas nem menos isto basta, se o mestre nam explicar o que deve. Onde o ponto de toda a consideram consiste, no-modo da-explicasam. Quando pois o estudante estiver adiantado, deve o mestre, alem das-coizas que asima apontei, explicar outras. v.g. a sintaxe dificultoza: a forsa das-palavras: o modo de pronunciar antigo: e notar outras coizas, que se-encontrarem. Porque os rapazes das-escolas maiores devem saber, nam só o que é Latim puro, mas tambem as outras particularidades, que constituem a elegancia. Acham-se autores, que se-servem de palavras Latinas, e contudo nam tem aquela particular grasa, a que chamam os inteligentes, boa Latinidade. Consiste esta às vezes, em uma fraze inteira: tambem em um diminutivo, ou frequentativo &c. coizas que dam infinita grasa ao estilo Latino; e frequentemente se-acham, nos-melhores autores Latinos, como Terencio, Cicero &c. Onde, este deve ser o cuidado do-mestre: mostrálas quando ocorrem: e notar a particular grasa que tem, naquele lugar. Deve tambem notar o modo, com que os bons autores comesam, ou acabam o discurso, ou os unem entre si, quando compoem uma orasam inteira. Esta uniam consiste às vezes, em uma conjunsam: às vezes, em outra particula. E este é o particular estilo da-boa Latinidade: que necesariamente se-deve ensinar aos rapazes, paraque o-executem, quando compoem. Alem disto, quando encontrar alguma expresam oscura, ou porque é fundada em uma fabula, ou coiza semelhante, deve explicála. Desta sorte se-intenderám os autores, e se-poderá tirar proveito[Pg 103] da-sua leitura. E isto é o que um mestre douto faz, com muito gosto, porque conhece a utilidade, que daqui rezulta: e só entam pode repreender com justisa os rapazes, quando da-sua parte faz tudo o que deve, para os-ensinar.

Mas antes de concluir isto, quero dizer alguma coiza, sobre as edisoens deses mesmos autores, que tambem é noticia util. Em todo o cazo devem-se procurar, as melhores edisoens destas obras, as mais corretas, e com boas notas. Todos os livros comentados ad usum Delphini, aindaque uns sejam melhores que outros, comumente, e principalmente para o noso cazo, sam bons. mas devem ser da-edisam de Pariz, ou de Olanda: porque as de Italia modernas, nam prestam para nada. Emporta muito ter o texto correto, para se-nam-enganar, neste particular. Os Olandezes sam famozos. As edisoens de Grevio, e Gronovio, e outros omens doutos, aindaque nam tenham notas, (mas quazi todas as-tem) sam corretisimas. a edisam de Cicero por-Verburgio, cum notis variorum, em Olanda é exatisima. Em Inglaterra tambem fizeram algumas boas: e a imprensa de Inglaterra, e Pariz é mais negra, que a de Olanda: e por-iso agrada mais. Isto que digo das-edisoens, se-intenda, nam só dos-Prozadores, mas dos-Poetas. O que porem encomendo muito ao estudante é, que, nestes principios, se quer saber Latim, leia poucos livros: mas eses que escolher, leia-os tantas vezes, e com tanta atensam, como se ouvesem de ser eles, o seu unico estudo. na segunda vez achará menores dificuldades: e asim nas outras. Isto basta, para ser um grande Latino. Nem aconselharei a rapaz algum, que leia os Poetas. Para saber Latim, é escuzado, e serve de impedimento: na Retorica é melhor que se-leiam: mas é melhor quando sam grandes. Porem por-nam deixar de dar metodo, na leitura dos-autores, direi brevemente o modo: e servirá, para os que se-quizerem aplicar totalmente a isto.

Digo pois, que os que quizerem aplicar-se à leitura dos-Poetas, podem fazèlo, despois de ter feito estas preparasoens: procurando somente, os mais estimados polos doutos. Para intender estes é necesario, ler algum tratado, que explique a Mitologia dos Antigos: e que nos-de uma noticia breve das-fabulas, à que eles todos os momentos aludem. Isto posto, deve-se ler Ovidio nas Metamorfozes, e Fastos, em que explica toda a Mitologia: despois as Eroidas, que sam as suas melhores obras, e as mais facis.[Pg 104] as outras podem-se rezervar para outro tempo. Despoîs, ler Virgilio todo atentisimamente: ao qual deve seguir Oracio, nas suas Odes; melhor direi, todo, porque é um autor inimitavel. Querem muitos, que com este se-leia, Gracio Falisco, Olimpio, e Nemesiano, Poetas Bucolicos: aindaque na verdade sejam muito inferiores, a Oracio. E finalmente, Estacio, e Lucano. Isto basta para ter, uma grande noticia de Poetas: principalmente lendo-se, com a devida atensam. E quem tiver bem estudado os ditos, pode, sem mais mestre, ler qualquer dos-outros, que se-oferecer: mas apontarei alguns. Quem pois quizer ler amores, veja Ovidio, de Arte amandi, Catûlo, Tibûlo, Propercio: que sam todos no-seu genero famozos. Os melhores satiricos sam, despois de Oracio, que é o mestre; Juvenal, e Persio. Marcial é um autor, que entre mil coizas insulsas, tem algumas boas. agradam mais aos omens inteligentes de Poezia, e Latinidade os Epigramas de Catûlo. Quanto a Lucrecio, e Manilio, sam juntamente Filozofos, e Poetas: e o primeiro sempre teve, e ainda conserva, muitos admiradores; e é um puro Latinista. Nisto se compreende, o melhor da-Antiguidade.

Sobre as edifoens á pouco que dizer. Todos estes autores foram comentados, para uzo do-Delfim de Fransa, por-ordem de Luiz XIV. Estas edisoens sam melhores que as antecedentes: e as concordancias que se-fizeram, de cada um destes autores, valem infinito, para a inteligencia dos-vocabulos da-lingua: pois mostram os diferentes uzos, e a forsa das-expresoens. Alem das-Delfinas, á outras edisoens anteriores, que tem seu merecimento. Por-pouco que um omem se-familiarize com os livros, e consulte os Bibliotecarios impresos, e trate os omens que sam verdadeiramente doutos; conseguirá todas as noticias necesarias, para se-regular na eleisam dos-livros, e edisoens. Mas quem quizer ler estes autores, advirto-lhe, que os-nam-leia seguidos, sim interrompidos: pois nem tudo neles é igualmente bom. Onde, devem-se colher as coizas melhores: porque esta sorte de leitura agrada: uma longa leitura enfastia, e só serve para um omem, que nam fasa outra coiza. Nam aconselho, que se-expliquem Poetas nestas escolas: mas que aja uma ou duas separadas, em que somente se-trate esta materia.

E ja che falamos de livros, necesarios para a inteligencia do-Latim, deve tambem o estudante saber, de quais se-deve servir,[Pg 105] para compor &c. Nisto á muito abuzo; porque comumente alguns aconselham livros, que nam prestam. O Cardial Adriano = de Sermone Latino; Huberto Gifanio, nas suas Observasoens, Tomaz Linacer, sam autores famozos, para ensinar o modo, de escrever bem: principalmente o ultimo. Enrique Estevam, e o Vossio, escrevèram bem sobre as palavras, que nam sam Latinas, ou que o-parecem. O Ducange fez um belo Dicionario, de Infima Latinitate: que oje se-acha mui acrecentado, polos Beneditinos de S. Mauro, e cuido que sam, alguns seis tomos de folha. O Dicionario Etimologico de Vossio, pode dar grande e fundada noticia, da-Latinidade. Nizolio, e Carlos Estevam, compoz cadaum seu Dicionario, para as vozes que se-acham em Cicero: mas o ultimo é melhor, que o primeiro. Para ter noticia de toda a Latinidade, e ver o uzo dos-vocabulos, é necesario consultar, o Tezoiro da-Lingua Latina, de Roberto Estevam. 4. tom. para os rapazes, pode servir o Calepino de Facciolati, que é mais breve. Para ver as diferensas das-palavras, é utilisimo Anzonio Popma, e o P. Vavassor Jezuita, e tambem o Borrichio. Para saber o uzo, e forsa das-Particulas da-Latinidade, é famozo o Stevvechio, e despois dele o P. Turselino, da-edisam do-Facciolati. Os mestres podem ler o Tomasio, e Schvvartio, que sam amplisimos. As Fraseologias nam as-aconselho a ninguem: mas das-melhores, é a de Manucio, que compendiou as de Terencio, e Tullio: e melhor que este, o Pareo, que acrecentou as de Plauto: e fez mais outras obras utis, para a Latinidade. Acham-se mais alguns autores, como o Schorus, Cellarius &c. que escrevèram nestas materias: mas estes que apontamos, sam os melhores. E estas noticias bastam ao principiante: as outras aprenderá com o tempo.

Tenho dito o meu parecer, sobre o modo facil de aprender, a boa Latinidade. Mas antes que acabe, direi a V.P., que para conseguir este fim, e saber compor com facilidade, conduz muito, ter a memoria cheia de muitas especies. Sem ela nada vale a aplicasam: vistoque a nosa ciencia nada mais é, que a simplez memoria, do-que temos estudado. Ninguem duvîda, que a memoria com o exercicio se-aperfeisoa, principalmente nos-rapazes: e que todo o trabalho, que nisto se-poem na mocidade, serve muito, para quem á-de seguir os estudos. Mas a dificuldade está, em saber cultivar a memoria. Quem obriga os rapazes, a aprender muito verso, e muita arenga; faz-lhe mal, cuidando fazer-lhe[Pg 106] bem. Eu comparo a memoria, cheia de semelhantes ideias, a uma livraria grande, cujos livros nam estam nas estantes, mas amontoados no-meio, e polos cantos: quem nela procura um livro determinado, nam o-encontra: mas ofrecem-se-lhe cem mil, que nada fazem ao cazo. Damesma sorte a memoria mal regulada: quando lhe-pedem uma ideia, ofrece tantas, e tam fóra do-propozito; que é o retrato da-confuzam: de que nace, que nunca se-aprendem bem, as outras Ciencias. Isto suposto, deve cuidar o mestre, em exercitar a memoria dos-principiantes, em algumas determinadas materias. Primeiro, acostumálos a dizerem em breves palavras a lisam, que ám-de explicar. Despois, explicará aos ditos, alguns pasos seletos de autores, principalmente Poetas: v.g. alguma das-fabulas de Fedro, ou Ovidio: mas curtas, e sempre agradaveis; pois só asim entram. Nestas, os rapazes devem dizer primeiro, o que contem: despois, poco a pouco ir repetindo, todas as palavras: com o tempo pode-se aumentar, o numero dos-versos. E este exercicio pode-se fazer dois, ou trez dias da-semana. Quando o rapaz tem algum exercicio; entam tem lugar, servir-se de metodo, nas coizas que decora. Onde tera cuidado de lhe-ensinar, algumas descrisoens, algumas exortasoens, ou-breves orasoens &c. mas primeiro explicar-lhas bem: pois sem iso é querer, que pronunciem como papagaios. Nisto nam devem molestar os rapazes, com pancadas: mas animálos com premios, a que decorem bem algumas coizas: remunerando ou louvando, os-que o-fazem melhor: sempre coizas utis, e que posam servir com o tempo. Mas deve cuidar muito o mestre, de nam permetir aos rapazes, a leitura destes livros de Fraseologia, antes banilos, como coiza mui prejudicial. Sam càpas de romendos, cadaum de sua cor, que nam podem fazer coiza boa. cauzam preguisa aos estudantes: e arruinam o bom gosto da-Latinidade. Devem-se escolher as descrisoens &c. nos-mesmos livros que estudam: e mandar-lhe aprender as frazes, nos-mesmos autores que traduzem. O mais é madrasaria, e ignorancia.

Tenho ainda outra reflexam que fazer: é esta, sobre o falar Latim nas escolas. Nisto á dois vicios: alguns falam sempre a sua lingua: de que vem, que saiem das-escolas, sem saber dizer, um comprimento Latino: e este é o defeito, que reina em Portugal. Outros, que pola maior parte sam Polacos, Ungaros, Alemaens, obrigam a falar sempre Latim: ainda antes de intenderem[Pg 107] bem Latim. Tambem isto é um grande defeito: pois se os que sabemos bem Latim, nam podemos falar com dezembaraso; que fará um rapaz, que ainda o-nam-sabe! Esta é a razam, por-que vemos muitos destes Estrangeiros, (e eu vi tambem molheres) que falam Latim corrente. mas que Latim? um Latim tal, que é melhor nam intendèlo. Para falar Latim depresa, servem-se de frazes barbaras, e termos vulgares: e enchem a cabesa com aquilo, em modo tal, que em nenhum tempo podem deixar, o dito estilo. Nam sei que grasa tem cansar-se, para escrever Latim bem, e cansar-se tambem, para falar Latim mal: nem menos intendo, que necesidade aja, de falar semelhante Latim. Quem á-de fazer jornadas, por-paizes Estrangeiros, se sabe bem Latim, nunca tem dificuldade em se-explicar, se acazo tem algum uzo. que o-fale mais ou menos depresa, iso nada emporta. Nem menos aprovo, aquela afetasam de alguns Portuguezes, que, querendo falar Latim com algum Estrangeiro, estam meia ora a considerar, um periodo Ciceroniano: e desprezam as vozes vulgares. Este tambem é outro defeito consideravel. Se os que falam Portuguez afetado, nam se-podem suportar; que faram os que falam com afetasam, o Latim? O Latim das-conversasoens deve ser, o mais natural de todos. o ponto está ter palavras puras: a sintaxe delas deve ser natural, e clara. V.P. nam verá afetasoens em Terencio, ou Plauto, ou Fedro, porque falavam com estilo familiar. A lingua Latina tem isto de bom, que se-caza com a elevasam, e naturalidade. Onde, devemos saber aplicar o estilo, à materia; para conseguir o fim, de falar com muita naturalidade, e nam falar mal.

Isto supposto, parece-me que deve aver nas escolas, algum exercicio de Latim: mas requerem-se algumas cautelas. Primeiro, nam se-deve falar Latim, senam na ultima escola da-Latinidade, ou da-Retorica: quando ja os rapazes, intendem bem o Latim. Em segundo lugar, nam devem falar Latim sempre, mas em dias determinados. Primeiro, podem ensinar-lhe a dizer, alguns comprimentos de uma, e outra parte: despois, pode-se introduzir algum Dialogo, sobre a materia que se-estuda: em que de uma parte, um rapaz progunte alguma coiza: da-outra, responda outro, sempre em Latim. Mas primeiro deve o mestre explicar, como isto se-deve fazer: e ser ele o primeiro, a dar exemplo. E nam deve obrigar todos, a que falem no-mesmo dia: mas comesar polos melhores: despois por-turno[Pg 108] os outros, em dias determinados: avizando-os primeiro, para que venham preparados. Desorteque cada estudante ousa falar muitas vezes, os outros: e asim vá aprendendo, para quando lhe-chegar a sua vez. Pode o mestre falar a miudo, algumas coizas Latinas, com algum dos-estudantes, que forem mais capazes, ainda fóra dos-dias asinados: tendo cuidado, de falar bem; e ensinar-lhe sempre, o como se-deve falar. Desta sorte pode ajudar muito, os estudantes: principalmente se souber excitar entre eles, a emulasam, louvando muito os que o-fazem bem, e remunerando-os. Este é o verdadeiro metodo, de ensinar a falar Latim. Comesando desta sorte, mais facilmente o falarám, nas escolas da-Filozofia: e deste modo aquistarám aquela facilidade, que é necesaria, a quem á-de seguir as letras.

Isto é o que me-ocorre dizer, sobre o estudo da-lingua Latina: poderia acrecentar muita coiza; mas estas bastam, para o que se-quer. Prouvera a Deus, que estas se-puzesem em execusam; entam me-diria V.P. se me-enganava eu no-meu conceito. Deixando para a vista outras razoens, com que podia persuadir, o que digo; insinuarei uma bem clara. Entre tantos que se-aplicam, ao estudo da-Lingua Latina, mostre-me V.P. quantos sam capazes de se-apontarem, como exemplo de boa Latinidade. Examine V.P. quantos autores tem cá, nos seus paîzes, que componham Latim, como milhares, que eu poso apontar, nos-Reinos estrangeiros; e ainda alguns em Espanha, que escrevéram asombrozamente. Se me-mostrar um ou dois, que nam ignoro que aja, asente que o-nam-trouxeram das-escolas; mas custou-lhe boas fadigas em caza: ou talvez porque saîram fóra do-Reino, e tratáram, com quem lhe-abrise os olhos, como o Bispo Ozorio &c. Quazi todos os outros falam Latim das-escolas. E tantas testemunhas, que todos os dias saiem das-escolas, provam bem, que esta ignorancia, é influencia do-mao metodo.

Disto podia eu citar muitos, e muitos exemplos, se mo-nam-impedise a modestia. * * * porque aindaque tenham doutrina, e talento, o mao metodo que bebéram na mocidade, impede o aproveitamento. Certo Religiozo douto, devendo dar conta de si, em um congreso erudito, queixando-se de lhe-nam-terem dado, certos papeis, concluia asim: Quæ ad nostram faciunt historiam monumenta omnia: sive scripta, sive transcripta, sive præscripta; sive congesta, sive digesta, sive indigesta; peto, expeto, repeto: posco exposco,[Pg 109] reposco: quæro, exquiro, requiro: flagito, efflagito: oro, peroro. Todo o corpo do-discurso era semelhante. Nam sei se se-pode fazer, coiza pior: e apostarei eu, que os seus Religiozos doutos, seram os primeiros, a condenar este Latim. O pior é, que afetando tanto, saber a forsa dos-Verbos, enganou-se em alguns. Porque o flagito, e efflagito, nam só significam, pedir com istancia, mas pedir com injuria[26], e com pouca vergonha: o que suponho, ele nam quiz dizer. Tambem o peroro, nunca ouvi, nem achei em autor Latino, que significáse pedir. tambem Orare monumenta, é fraze que nunca achei nos-Latinos. Os primeiros trez nomes significam a mesma coiza, no-noso cazo: pois ele nam pedia cazas, nem estatuas; mas coizas escritas: e asim o sive, parece mal inserido. Damesma sorte o congesta, nam se-opoem, a digesta, e indigesta; pois a cadaum destes se-pode aplicar: sendoque é generica. As outras examinará V.P. com mais vagar, que eu nam tenho. E nam somente os que se aplicam, a diferentes materias, mas aqueles mesmos, que se-empregam na Latinidade, muitas vezes nam sam iguais. v. g. Antonio Rodriguez da-Costa, Conselheiro do-Vltramar, que escrevia Latim com muita facilidade, esquecido ás vezes de simesmo, escreve algumas cartas Latinas, fóra do-estilo familiar, que paresem orasoens academicas. Mas pior que este, o Marquez Manoel Teles da-Silva, e o Conde de Vilarmaior, os quais ambos tropesam terrivelmente nesta materia, de elevasam afetada. O primeiro, na carta com que aprova, os Epigramas do-P. Reis, que comesa Cum nullum &c. uza de um estilo, que ainda nam vi coiza mais impropria: O segundo, nas cartas que escreve, a Antonio Roïz da-Costa, é afetado por-um novo modo; e inclina muito para a declamasam, demora-se muito com os lugares comuns, e nam observa, o verdadeiro estilo epistolar &c. Confeso a V.P. que lendo, e examinando Cicero, nam achei nele nem orasoens, nem cartas afetadas. Somente na idade de prata é, que comeso a ver, a afetasam, porque ja degenerava a eloquencia. De que concluo, que os que lem bem polos Antigos, e sabem imitálos, escrevem[Pg 110] com muita naturalidade, e no-mesmo tempo sublimidade. Quando porem nam se-lem os Antigos, ou, lendo-se, nam se-faz como se-deve; nam se-pode fazer coiza boa. o que, como asima dizia, nace do-mao metodo, de quem ensina.

Quando em um paîz, florecem com grande aplicasam as Artes, é coiza observavel, que saiem muitos excelentes. No-tempo de Cicero, nam só ele falava bem Latim; mas avia uma infinidade que o-falavam, com a mesma pureza, e grasa; e muitos Oradores, de grande merecimento. Se V.P. tira das-cartas de Cicero, os nomes de muitos, que lhas-escrevèram; entre elas, e as de Cicero, nam achará diferensa alguma. O bom gosto naquele tempo, era tam rafinado, que Cezar, e Atico, repreendèram alguma palavra de Cicero: e o modo de orar deste ultimo, nam agradava a Bruto, a Calvo, e Pollio, que eram omens doutisimos. Toda a magestade, e pureza da-lingua de Tito Livio, nam o-livrou, de ser censurado em Roma, por-aqueles delicados criticos. O grande Asinio Pollio achou neste escritor, certas palavras, e estilo do-paîz em que nacèra; que os omens cultos de Roma, nam lhe-queriam perdoar. tal era o delicado gosto daqueles Senadores, e Cortezoens! Os mesmos Romanos, tinham um demaziado escrupulo, neste ponto. Um Comico, que no-teatro errava uma silaba, e um acento, levava grandisimas surriadas[27]. tal era a fineza do-juizo daquela Republica!

Se damos um paso mais atraz, e entramos em Atenas, onde as Artes, e Ciencias tanto florecèram, que dali se-espalháram, polo resto da-Europa; acharemos, que nesta grande escola, até a gente plebeia, polo costume de ouvir orar, e falar bem em publico, aqueles grandes Oradores; tinha aquistado, um tam exquizito gosto da-lingua, que quando os Oradores subiam à tribuna, temiam ofender, com alguma menos boa expresam, orelhas tam delicadas. Avia muitos anos, que o Filozofo Teofrastro abitava em Atenas, e tinha feito um particularisimo estudo, de falar a sua lingua, segundo o dialeto de Atenas: comtudo iso diz a Istoria, que da-pronuncia de uma palavra, conheceo que era estrangeiro uma molher, que vendia legumes em Atenas[28]. Achamos na istoria Grega, mil outros exemplos, que confirmam, quam[Pg 111] geral era, o bom gosto da-eloquencia, entre os Gregos. Nas asembleias publicas da-Grecia, em que se-recitavam Poemas, e Istorias ao Povo; sabemos, que muitas vezes regeitáram algumas, por-nam chegarem, à fineza de outras. Dionizio o velho, Rei de Saragosa nam era mao Poeta: vistoque com uma das-suas compozisoens, alcansou o premio, nos-jogos da-Grecia, digo, nos-jogos Olimpicos: mas porque mandára primeiro duas, que nam chegavam ao merecimento, da-terceira, foi escarnecido por toda a asembleia. Deixo outros Antigos.

E, se decemos a estes ultimos seculos, e ao prezente, poso mostrar a V. P. com toda a evidencia, que em Londres, Amsterdam, Leiden, Pariz, Roma, Napoles, Padoa, Bolonha, Piza, e outras muitas partes, onde se-cultivam os bons estudos; os que neles sam instruidos, por-pouco que saibam, aquistam um particular gosto, em todo o genero: e que neses mesmos empregos de Ciencias, e Artes, á infinitos omens excelentes. Do-que manifestamente se-prova, que onde se-ensina bem, sempre á omens grandes: e que onde os-nam-á, é uma prova manifesta, do-mao metodo, de quem ensina.

Tenho dito a V. P., quanto a brevidade de uma carta permite, o que me-parece deve fazer, quem quer saber Latim. Poderia acrecentar outras coizas; mas esas sam somente necesarias, aos que querem ser insignes, nas letras umanas. Para V. P. que é tam versado nelas, o que digo, parece ainda superfluo: e para os-outros, muito mais: vistoque nam acho muitos, que queiram esta gloria, e queiram conseguila, com estes meios. Comque páro aqui: E dezejando a V. P. felicisimas festas, e boas intradas de anos; com todo o corasam me-asino &c.

NOTAS DE RODAPÉ:

[21] Adversar. l. 7. c. 19.

[22] As palavras de Furio Albino citado por-Macrobio, sam estas. Nemo debet antiquiores Poetas ea ratione viliores putare, quod eorum versus nobis scabri videntur. Ille enim stilus maxime, tunc placebat: diuque laboravit ætas secuta, ut magis huic molliori stilo acquiesceret. Itaque minime defuerunt, imperantibus etiam Vespasianis, qui Lucretium pro Virgilio, & Lucilium pro Horatio legerent. Petrus Crinitus, de Poetis Latinis.

[23] L.3. v. 248.

[24] Aeneid. I. v. 67.

[25] Itaque video visum esse nonnullis, Platonis, & Democriti locutionem, etsi absit a versu, tamen, quod incitatius feratur, & clarissimis verborum luminibus utatur, potius poema putandum, quam comicorum poetarum: apud quos, nisi quod versiculi sunt, nihil est aliud quotidiani dissimile sermonis. Cicer. de Orat. ad M.B. num.20.

[26] Expectatione promissi tui moveor, ut admoneam te, non ut flagitem: misi autem ad te quatuor admonitores, non nimis verecundos: qui metuo, ne te forte flagitent: ego autem mandavi, ut rogarent. Cicero Epist. famil. l.9. ep. 8.

Quintil.—Efflagitasti quotidiano convitio, ut libros jam emittere inciperem &c.

[27] At in his (numeris) si paullum modo offensum est, ut aut contractione brevius fieret, aut productione longius; theatra tota reclamant. Cicero l.3. de Oratore n.50.

[28] Cicero,de Claris Orator.n.46.


[Pg 112]

CARTA QUARTA.
SUMARIO.

Necesidade das-linguas Orientais, principalmente Grega, e Ebraica, para intender as letras Umanas: mas muito principalmente, para a Teologia. Modo de as-aprender. Utilidade da-lingua Franceza, e Italiana, para ser erudito com facilidade, e sem despeza.

Meu amigo e senhor, Talvez esperava V. P. que eu nesta carta, pasáse direitamente à Retorica; e comesáse a discorrer sobre aquela materia, que nos-ocupou bastante tempo; e nos-deu ocaziam, para fazer muitas, e mui utis reflexoens. Tambem esa era a minha intensam; se me-nam ocorrese outra coiza, que julgo ser igualmente necesaria: e que nam nos-ocupará, senam uma carta, e nam mui longa. Falo do-estudo das-linguas Orientais: que muitos desprezam, porque nam tem juizo, para conhecer o bom, rezolusam para o-emprender, e metodo para o-conseguir. Eu nam falarei de todas: mas das-duas mais principais, e que todos os omens doutos reputam, que sam sumamente necesarias: e como tais se-ensinam, em quazi todos os estudos, da-Europa culta: tais sam a Grega, e Ebraica.

Sam estas duas linguas em Portugal, totalmente desconhecidas, ainda nas-Universidades: o que é mui observavel: porque Universidade deve compreender, todo o genero de estudos. Os Espanhoes conhecèram muito bem, esta necesidade: e vemos que nas principais das-suas Universidades ensinam, nam só estas, mas outras Orientais. Mas em Portugal observo, que nam á noticia delas. Nese colegio das-Artes, dizem que á uma cadeira de Grego: mas como se a-nam-ouvese, porque nam tem exercicio. Os Seculares, que algumas vezes entram na aula, é para se-divertirem. Os Jezuitas mosos, sam na verdade obrigados, a frequentar por-algum tempo, a dita escola; e nos-dias santos le-se um capitulo[Pg 113] de S. Joam Crizostomo, ou coiza que o valha: mas como todos estes mosos, estam na opiniam, que aquilo para nada serve; nenhum se-aplica a ela. Despois de quatro anos de estudo, me-dise um, que nam sabia mais, que esta palavra: ό δεος. Achei outro, que sabia o Padre noso, e Ave Maria: e destes acham-se alguns: mas nenhum o sabia escrever derepente. Finalmente nam achei algum, que soubèse explicar, quatro regras de Grego, nam digo eu de algum Poeta, ou coiza dificultoza; mas nem menos do-Testamento Novo, ou algum S. Padre facil. E isto observei ainda naqueles, que tinham sido mestres de Grego: (nam por-falta de capacidade: mas de aplicasam) e fasa V. P. a experiencia, que achará, que nam minto. Os outros todos, ou sejam Regulares, ou Seculares, nam tem mais noticia do-Grego, que do-Kyrie Eleison: e do-Ebreo, só conhecem a palavra Aleluia, Amen, e alguns nomes proprios de omens, ou Cidades, que se acham na Vulgata, ainda-que transfigurados: e contentam-se com esta noticia: Antes rim-se muito, se acazo lhe-dizem, que é um estudo necesario. Mas a verdade é, que aos Teologos é indispensavelmente necesario, sabèlo; senam a todos, ao menos aos que se-internam na Teologia, e a-ensinam. Senam diga-me V. P. se nacèse uma dificuldade, sobre a inteligencia do-texto Ebreo, ou Grego, ou de algum S. Padre; como muitas vezes sucede, conversando com os Erejes, ou disputando entre os Catolicos; a quem se-á-de proguntar? será necesario escrever, a Fransa, Roma, Veneza, Napoles &c. para saber a resposta? que coiza mais vergonhoza! E que diriam aqueles Teologos, se ouvisem, que aqui nam avia, quem os-intendèse? Mas disto falaremos, em outra parte. Por-agora só digo, que asim como ao Teologo é necesario, intender Latim, para ler a Vulgata Latina; asim tambem é necesario, intender os textos Originais, de que esa Vulgata se-tirou.

Persuadem-se muitos, e alguns mo-confesáram, que só a Vulgata merece autoridade. isto é, porque nam estudáram a materia. Convem todos os Teologos de boa doutrina, que o Concilio Tridentino, quando declarou Autentica, a nosa Vulgata; só a-preferio, às outras Vulgatas Latinas: mas nam a-preferio, nem a-comparou com as Fontes, Grega, e Ebraica. De que vem, que estas conservam oje, toda a sua autoridade: e por-elas se-emendou a Vulgata, no-tempo de Sixto V., e Clemente VIII. e ainda oje[Pg 114] se-pode emendar, em varias coizas, que nela advertem os omens doutos. E por-este principio fica claro, que pode aver grande utilidade, e necesidade, em consultar as ditas Fontes.

Alem da-Escritura, temos os SS.Padres da-Igreja Grega, que escrevèram na sua lingua. O Teologo todos os instantes tem necesidade, de consultar estes Originais: porque as Versoens nem sempre sam fieis. Muito mais porque nam se-ignoram as controversias, que todos os dias nacem, nas escolas Catolicas, sobre as palavras dos-Padres, e dos-Concilios. Alem diso, o Jurista tem necesidade do-Grego, para alcansar o verdadeiro sentido, de muitas constituisoens Imperiais; que foram escritas em Grego. O Canonista o mesmo: vistoque deve procurar, as fontes da-Diciplina Ecleziastica: a qual pola maior parte, determinou-se nos-Concilios: muitos dos-quais celebráram-se no-Oriente: e ainda algum no-Ocidente, em Grego; como o Florentino no-tempo de Eugenio IV. Tambem para intender, o Decreto de Graciano, que se-funda todo, sobre a antiga Diciplina: e os mesmos PP. Gregos. O Medico tem necesidade do-Grego, para intender as obras, de Ipocrates: para ver o que dise Galeno, e Areteo de Capadocia; que, despois de Ipocrates, foi o melhor Medico dos-seus tempos: e alguns outros. É tambem necesaria ao Medico, para intender a Anatomia, e suas partes, cujos nomes sam Gregos: nam avendo Ciencia, em que se-encontrem mais nomes Gregos: como tambem para intender os nomes, de muitas infermidades. Nisto cuido que convirám sem dificuldade, os mesmos Peripateticos, se quizerem examinar o cazo. Mas eu paso adiante, e digo, que as Letras Umanas, e ainda a mesma Latinidade, nam se-pode intender bem, sem alguma noticia do-Grego. Os Romanos adotáram infinitos termos Gregos: cuja propria significasam nam se-alcansa, sem saber o Grego. As mesmas declinasoens, a dezinencia de muitos Verbos, pedem alguma erudisam Grega. mas isto só o-intende, quem se-familiariza com o Latim.

Quanto pois ao estudo do-Grego, e Ebraico, nam é ele tam embarasado, como o-pintam. Os Mestres podiam brevemente dar, alguma noticia do-Grego: nam se-cansando em explicar, todos os preceitos de Gramatica (este é o defeito de muitos Profesores). Basta ao principio saber, as declinasoens, e conjugasoens, sem falar nos-dialetos. as anomalias podem-se deixar; e basta que com o tempo se-observem, quando se-vai lendo. As outras partes da-Gramatica[Pg 115] basta velas uma vez, para as-saber procurar, quando será necesario. Despois, toma-se um autor, que tenha junto a versam Latina: e em cada voz se-deve observar, se é raiz, ou nam: e, quando duvidar, procurálo no-Dicionario. Em um mez, ou dois, pode conseguir, bastante noticia destes principios. Despois, com o socorro do-Dicionario, e da-versam, deve comesar a explicasam, de algum autor facil. Os Istoricos, e Prozadores devem ser preferidos, aos Poetas; como mais dificultozos. Um omem douto ensina, que se-deve seguir este metodo. 1.ᵒ Ler os Estratagemas de Polyeno, que sam mui claros: os Dialogos de Luciano, e principalmente os Characteres Ethici, de Teofrasto; que é elegantisimo. 2.ᵒ os dois famozos Istoricos, Xenofonte, e Erodoto: que encerram as delicadezas, e grasa, da-lingua Atica. 3.ᵒ a estes podem seguir-se Tucidides Istorico; Isocrates, e Demostenes Oradores; e Platam, Filozofo o mais eloquente, e culto da-Antiguidade. Quem chegar a intender bem estes, tenha a consolasam, que sabe bem Grego. Pode-se aprender alguma noticia, dos-costumes Gregos, nas obras de Ubbo Emmius, e Joannes Meursius, que sam os que melhor explicáram, as antiguidades Gregas. Outros querem, que se-comece polo Evangelho de S. Lucas, e Atos dos-Apostolos; ou polas fabulas de Esopo: despois Luciano, Erodoto, Xenofonte, Isocrates: e no-fim Omero, e Plutarco, e alguma coiza de Demostenes. Um, e outro destes metodos se-pode seguir: mas agrada-me mais o primeiro. O principal ponto está, que nestes principios, quando se-acham lugares dificultozos, deve-se pasar adiante: e ler os autores saltiados, por-nam enfastiar os rapazes.

Sobre os Poetas, nam me-canso em dizer muito: porque quem tem noticia da-lingua, tem ja bastante luz para ver, como se-á-de regular, na sua lisam. Concordam os omens da-profisam, que o melhor Poeta, e mais claro é, Aristofanes: mas é bastantemente obceno. Onde, quem nam souber ler tais coizas, sem perigo; deverá pasar a Omero, e Esiodo, que sam os mais facis entre os Eroicos, e que se-servem de expresoens, mais claras. Verdade é, que nestes Poetas, á uma dificuldade nam pequena, que consiste, na variedade de dialetos, e inflexoens, e mudansas de palavras, proprias-dos Poetas: mas a isto se-supre com o Dicionario, que explica distintamente, estas palavras. Aconselham os doutos, que, antes de ler Omero, leia-se o Everhardo[Pg 116] Feithio==Antiquitates Homericæ: no-qual ele descreve a istoria, dos-tempos Eroicos, de que trata Omero. Dos-Poetas Eroicos pode-se pasar, aos Bucolicos, que sam Moscho, Bion, Theocrito; para aprender o dialeto Dorico, em que escrevem: servindo-se do-pequeno Dicionario, de Schrevelius. A melhor edisam destes autores é, a de Daniel Heinsio: em que, alem das-deste, se-acham tambem as notas, de Scaligero, e Casaubon. Despois pode ler, os Poetas Tragicos: entre os quais os mais facis, e judiciozos sam, Euripides, e Sophocles: porque os outros, só os-podem intender, os que sam bem praticos da-lingua. E como suponho, que o estudante neste tempo, (isto nam se-faz nas primeiras escolas: mas quando um é ja adiantado no-Latim) terá ja noticia, das-leis da-Poezia; pode, lendo estes autores, ir descobrindo, e bebendo na sua fonte pura, as grasas da-Poezia, em todos os generos.

Uma coiza porem é necesario advertir, nam só aos dicipulos, mas tambem aos mestres, porque neste defeito caiem muitos profesores publicos: e vem aser, que nam se-cansem em mandar compor, aos pobres rapazes: porque esta lingua, que oje é morta, nam é necesario falála, basta intendèla com facilidade. Encontram-se muitos, que explicam aos rapazes, trez, ou quatro regras de Grego, e obrigam-nos a compor, paginas inteiras. Onde vem a cair no-mesmo defeito, que em outra carta ja dise, (falando da lingua Latina) de quererem, que os rapazes sejam mestres, naquela materia, na qual nam chegáram ainda aser, dicipulos. Em uma palavra: a experiencia ensina, que é absolutamente necesario, intender Grego: e que é inutil, o escrevèlo; quando um omem nam está empregado em coizas, que o-pesam.

Sobre as Gramaticas, á oje tantas, que é superfluo, que eu diga coiza alguma. Muitos sam apaixonados, pola de Clenardo, com as notas de Antesignan: porque nela se-acha com facilidade, o que só com grande trabalho se-busca, em outros livros: e tambem ensina o uzo da-Gramatica, reduzindo-a aos preceitos gerais: o que ilustra muito o intendimento. Mas oje asentam todos, que a de Lanceloto, a que chamam de Porto real, é a mais facil, e as reflexoens mais solidas. mas é em Francez, ou Italiano, e nam é para o cazo. Alem destas, á infinitas mais modernas, que sam mui boas, e Latinas. Um amigo noso compoz a Gramatica Grega, e Ebraica, cada uma em duas folhas de papel grande, com uma clareza inimitavel, para um principiante.[Pg 117] Procuro que a-imprima, para utilidade dos-Portuguezes. é sem duvida a mais facil, que tenho visto nesta materia. No-cazo que o estudante nam tenha, quem o-aconselhe, na eleisam de livros; deve sempre apegar-se a uma Gramatica, das-mais modernas, e mais breves: principalmente compostas por-alguns seculares, Inglezes, Olandezes, Alemaens, e alguns Francezes. Porque como estes nam seguem as leis, que obrigam alguns Regulares, a nam se-desviarem, dos-seus antigos metodos; procuram sempre, melhorar no-metodo, e na inteligencia: como a experiencia me-tem mostrado. E nestas letras Umanas é sem duvida, que os Seculares excedem muito, aos Regulares.

Sobre o Dicionario, parece-me que o estudante deve servir-se, do-Scapula, que costuma reduzir todos os derivados, à sua raiz. Isto ao principio cauza dificuldade, porque se-ignora, que coiza os derivados acrecentam, sobre a raiz; para os-poder separar, e procurar no-seu lugar. Mas neste cazo basta procurar, no-fim do-Lexicon, a voz como se-acha; que ali se-ensina, de que raiz vem, e aonde se-deve procurar. E desta sorte aprende um omem, o verdadeiro modo de separar os derivados das-suas raizes: e fica com a inteligencia, de uma quantidade de termos: coiza que vale infinitamente nesta lingua. Se o estudante pouco a pouco aprendèse de memoria, as raizes; facilitaria muito este estudo, e intenderia mais depresa os derivados. O ponto todo está em nam deixar totalmente este estudo, por-todo o decurso da Latinidade, e Retorica: porque aindaque sò expliquem, duas regras cada dia, no-cabo de um ano, adianta-se muito.

A Gramatica Ebraica é muito mais facil, que a Grega. Antigamente escreviam os Ebreos, sem vogais: e o verdadeiro modo de pronunciar, pasava de pais a filhos, por-tradisam: e ainda oje a Biblia, que se-conserva nas suas sinagogas ou escolas, costuma escrever-se sem vogais, como eu vi muitas vezes. Mas despoisque os Ebreos, tornáram do-cativeiro de Babilonia, e, com permisam de Artaxerxes Longimano, restablecèram, a Igreja Judaica, e todos os ritos da-sua antiga religiam: entam, segundo se-prezume, se-inventáram os ditos pontos, ou vogais. Certa coiza é, que nese tempo os Ebreos, tinham perdido a sua lingua, e só intendiam a Caldeia. Onde nas sinagogas, que entam se-introduzîram, era necesario, que um interprete explicáse em Caldeo, as palavras da-Biblia, que outro proferia e lia em Ebreo. E[Pg 118] como uma lingua morta, nam se-pode aprender, nem ensinar, sem vogais; fica claro, que os doutores, que com Esdras publicáram, uma edisam correta da-lei, os-inventáram, para poderem ensinála, aos que ignoravam a lingua. É porem provavel, que entam somente inventasem, as cinco vogais: e nam tantas, como ao despois se-uzáram. Esta noticia conservou-se, nas escolas dos-Gramaticos, ou escolas de ler: (entre os Ebreos avia escolas de Gramatica; e outras de Teologia) mas nam nas escolas de Teologia: porque os omens doutos, que ja sabiam a lingua, nam necesitavam diso. Mas despois da-ultima destruisam de Jerusalem, no-ano 70. de Cristo, tendo-se espalhado os Ebreos, por-todo o imperio Romano; e muito principalmente, despois da-dispersam que tiveram, no-tempo de Adriano; acrecentando-se todos os dias as tradisoens, foi necesario escrevèlas, para se-poderem conservar na memoria, e chegarem a todos. Isto fizeram eles, polos anos de Cristo 150.: cujo libro chamam Misná; que é um corpo de toda a doutrina dos-Ebreos, ritos, ceremonias, e religiam. A esta fizeram dois comentarios: um em Babilonia, polos anos de Cristo 300.: outro em Jeruzalem 200. anos quazi despois. E deste Comento, e da-Misnà, se-compoem os dois Talmudes, que ainda oje temos.

Isto suposto, vendo os doutores, que os pontos dos-Gramaticos eram utis, para conservar a antiga maneira de ler; adotáram os ditos pontos, e comesáram a servir-se deles, pouco mais ou menos, no-seculo quinto de Cristo. Muitos suspeitam, que se-deve isto aos doutores, da-escola de Tiberiades. Seja como for, o que sabemos de certo é, que desde ese tempo, comesáram a escrever certos sinais, debaixo, e desima das-consoantes; paraque todos os Ebreos, pronunciasem as vozes Ebraicas, segundo a antiga tradisam. De entam para cá é, que á noticia expresa, das-vogais[29]. Mas como os Ebreos sempre foram misteriozos; para ocultar o verdadeiro sentido do-texto Ebreo, inventáram tanta vogal que nam se-le, entre outras que se-lem; que esta é oje a maior dificuldade, desta lingua. Umas vezes a mesma vogal le-se: outras, nam se-lé: umas vezes converte-se em outra; e talvez nam se-converte: e isto embarasa muito os principiantes.

Intendido isto, o metodo de aprender o Ebraico é, a prender[Pg 119] a conhecer, e unir as letras, e proferir as disoens: porque a pronuncia diligente somente é necesaria, aos que querem falar, nam aos que somente a-querem intender. Deixando ao principio, aquela infinidade de excesoens, sobre a mudansa de pontos, &c. deixados os infinitos acentos, que para nada servem: basta ter noticia, das-regras gerais, para saber ler, e pronunciar facilmente. Daqui pasa-se às declinasoens dos-Nomes, e seus diversos estados. A maior dificuldade está, nos-Verbos: porque tem terminasam masculina, e feminina, o que ao principio parece imbarasado: aindaque com o tempo, ajude muito para intender, com quem, e de quem se-fala; se com omem, ou com molher. Deve pois saber distintamente, quais sam os verbos quiescentes, e defetivos. As anomalias deles podem-se deixar, porque se-aprendem com o uzo. Esta lingua nam tem sintaxe particular: e todos os idiotismos aprendem-se em meia ora. Daqui deve pasar a ler a Biblia, tendo sempre prezente um Dicionario, v.g. o Compendio Hebraico Chaldaico de Buxtorfio. É utilisimo servirse do-texto Ebreo, com a versam literal de Pagnino, correta por-Montano: porque alem-de que se-aprende, a propria significasam dos-vocabulos, tem à margem, boas notas de Gramatica, e aponta as raizes. O que ajuda muito um principiante, principalmente se a-quer buscar, no-Lexicon: e é muito necesario saber, quais sam as raizes, para ter suficiente noticia, da-lingua. Com o tempo observa-se a Sintaxe da-lingua, e os idiotismos, ou maneiras proprias de se-explicar, diferentemente das-outras linguas: o que se-reduz a poucos pontos, e se-aprende do-contexto.

Os livros que primeiro se-devem ler, sam os mais facis, como o Pentateuco, os livros dos-Juizes, e Reis, Paralipomenon. Os Profeticos, e Sapienciais podem rezervar-se, para outro tempo, por-serem mais oscuros. Mas para intender estes livros, é necesario preparar-se com a lisam, das-antiguidades Ebraicas. O Senhor de Fleury publicou um tratadinho, dos-costumes dos-Israelitas, em Francez, que tambem se-acha em Italiano: que me-parece proporcionado, para um principiante: e é escrito com grande atensam. Podem tambem servir, a Politia Judaica==de Bertramo: Respublica Hebræorum==de Sigonio, ou de Cuneo; que sam muito boas. Nam aponto livros de maior erudisam, porque nam servem, para estes principios. Se a isto que dizemos, ajuntar cada dia, a lisam de um capitulo da-Escritura, e consultar nas coizas em que[Pg 120] duvidar, a versam Grega dos-LXX.; ou as Concordancias de Conrado Kirker; poderá conseguir facilmente, bastante noticia da-lingua Ebraica. Isto digo, para um principiante: porque para os Teologos de profisam, a seu tempo direi, que mais é necesario, nesta materia. Este estudo, como tambem o da-lingua Grega, uma vez que se-intendeo, pode continuar-se em dias alternados, por-todo o tempo dos-outros estudos, sem perturbasam alguma: porque a estas linguas basta consagrar, as oras menos preciozas do-dia.

Isto é, o que muita gente nam intende, ou nam quer intender, nestes paîzes: porque quando nam tem, outra razam que dar, alegam a dificuldade da-dita lingua, e a pouca utilidade, que dela se-tira: aqual nam basta, para compensar o trabalho, que se experimenta em aprendèla. Seguro a V. P. que com grande admirasam minha, ouvi isto a alguns, de quem formára bom conceito; e que totalmente se-desvaneceo, com este discurso. Nam acho que falasem asim, alguns antigos-Portuguezes, que cuido sabiam um pouco mais, do-que estes, que agora respondem asim: antes polo contrario acho, que alguns Religiozos antigos, aplicáram-se a estas linguas com cuidado, e por-iso sam mais conhecidos, no-mundo literario, do-que estes, com quem prezentemente conversamos. Eu atribûo isto, à maior comunicasam que entam avia, com os doutos das-Nasoens estrangeiras: pois só acho vestigios de maior erudisam, quando a este Reino vinham ensinar, os Estrangeiros: ou quando os Portuguezes îam aprender, e ensinar, fóra dele. Polo contrario despoisque se-deixou, este comercio literario, vejo as coizas mui mudadas.

Nam podem ser ocultos a V. P. os nomes de alguns deles: O P. Jeronimo Oleastro, Dominicano Lisboense, que cuido se-chamáse Jeronimo da-Zambuja, compoz um comentario Ebraico ao Pentateuco, e cuido que a outros livros mais, se-nam me-engano; poisque averá anos, que vi esta obra. Acho tambem citado um certo D.Pedro, Conego Regular, e um Fr.Eitor Pinto, Jeronimiano, ambos Portuguezes, por-omens mui versados, na lingua Ebraica: ainda-que eu nam poso, formar juizo das-tais obras, porque as-nam-vi. Mas tenho motivo para suspeitar, que fosem omens doutos, vistoque aprendiam as linguas originais, para comentarem a Escritura. Tambem achei um Religiozo meu, quero dizer Observante, chamado Fr.Francisco de S.Luiz, Lisboense, posterior aos ditos; que floreceo no-tempo do-Concilio de Trento, e alguns[Pg 121] anos despois. Este tal compoz em Italia,uma Gramatica Ebreia, com o titulo = Globus Canonum & Arcanorum Linguæ Sanctæ, & Sacræ Scripturæ =: que é um livro bem voluminozo em 4.ᵒ e que dedicou ao Cardial de Medici, impreso em Roma 1586. Este tal autor, (que, segundo diz, fora no-seculo leitor de Leis em Coimbra, e Salamanca; e se-metèra Frade em Espanha) dá a intender, que compuzera o livro em Italia: declarando, que de cincoenta anos aprendèra o Ebraico, que ao despois foram as suas delicias. Onde persuade com muitas palavras, a necesidade da-dita lingua; e se-enfastia, contra os que a-regeitam. Com efeito o omem parece bem informado, da-dita lingua: aindaque caise no-defeito, dos-Gramaticos do-seu tempo; quero dizer, em fazer uma confuzisima e mui enfadonha Gramatica; na qual quiz epilogar, quanto achou em Elias Levita, e outros Rabinos: como tambem em vários autores, que o precedèram. Mas este era defeito daquele tempo, em que nam sabiam, que coiza era bom metodo. Contudo é verdade, que o dito P. fez um grande progreso, na dita lingua, em uma idade maior; naqual tambem estudou Teologia: e entre ocupasoens de predicas, e outras semelhantes, segundo diz, nunca deixou, este estudo tam util.

Esta noticia que dou do-tal autor, é porque ignoro, se V. P. tem noticia dele, visto escrever longe de Portugal. Acrecento a este, o P. Macedo, Portuguez, e da-mesma Religiam: omem de prodigioza memoria, (aindaque nam de igual juizo) segundo mostrou nas suas famozas concluzoens, que defendeo em Veneza, de que V. P. tem boa noticia: que sabia a lingua Grega, segundo me-diseram alguns dos-seus Religiozos, da-mesma Provincia.

Do-Grego tambem no-seculo 16.ᵒ avia mais noticia, que nam á oje, neste Reino. Polos tempos do-Concilio de Trento, um tal Joam Vaz, que foi mestre de Umanidades em Salamanca, sabia bem Latim, e Grego: e no-mesmo tempo Fernando Soares, (que compoz uma Gramatica Latina, para uzo do-Duque de Bragansa, impresa em Evora no-ano 1572.) era suficientemente informado, do-Grego. Ajunto a estes, o Bispo Jeronimo Ozorio, o qual nam só aprendeo fóra de Portugal Latim bem, mas teve bastante noticia do-Grego, e Ebreo: e podia nomiar alguns outros, que agora nam me-ocorrem. Doque se-segue, que naqueles tempos, os mestres Portuguezes, nam seguiam o parecer, que agora vejo[Pg 122] tam comum, deque estas linguas Orientais devam desprezar-se. Onde, com estes exemplos, podiam muitos aplicar-se, a coizas mais utis à Republica. Eu apontei algum exemplo: pode ser que ajam muitos mais, e de linguas peregrinas: porque eu nam escrevo esta istoria.

Serîa tambem justo, que o estudante com o tempo, aprendèse Francez, ou Italiano, para poder ler as maravilhozas obras, que nestas linguas se-tem composto, em todas as Ciencias; de que nam temos, tradusoens Latinas. Antigamente intendiam os doutos, que era necesario saber Latim, para saber as Ciencias: mas no-seculo pasado, e neste prezente, dezenganou-se o mundo, e se-persuadio, que as Ciencias se-podem tratar, em todas as linguas. Parece-me que com muita razam: porque a maior dificuldade das-Ciencias consiste, em serem escritas em Latim, lingua que os rapazes nam intendem bem. Onde nam só sabem mal a materia, mas o tempo que deviam empregar, em a-estudar, ocupam em perceber a lingua. Com esta advertencia, os Inglezes, Olandezes, Francezes, Alemaens &c. comesáram a tratar todas as Ciencias, em Vulgar. Esta oje é a moda. Os melhores livros acham-se escritos, em Vulgar: e qualquer omem que saiba ler, pode intender na prezente era, todas as Ciencias. Nam que isto seja totalmente, ideia nova: porque me-lembro, ter lido uma carta de Paulo Manucio, escrita a Diogo Hurtado de Mendonsa Embaixador Cezareo, dedicando-lhe os livros Filozoficos de Cicero; emque se-diz, que o maior impedimento das-Ciencias é, serem tratadas em linguas estrangeiras, digo, Latina &c. O que o dito Manucio, com toda a paixam que tinha à lingua Latina, nam dezaprova. Desorteque ja no-seculo 16.ᵒ, emque o mundo comesou a abrir os olhos, em muitas coizas, pensavam asim: o que porem somente se-executou, nestes ultimos tempos. De certo tempo a esta parte, os nosos Italianos comesáram a seguir, o método dos-Transmontanos. Comesou isto, traduzindo os livros Inglezes, e Francezes: despois, pasáram a compor originalmente. Desorteque quem oje quer ter, muitas noticias boas com facilidade, deve intender Francez, ou Italiano. Este estudo nam pede grande tempo, podendo servir-se dos-livros Latinos, que tem a tradusam literal Franceza; como sam o Terencio, e Oracio, de Madame D’Acier, e de um Jezuita &c. E estes mesmos autores Latinos, se-acham traduzidos em verso Italiano, defronte do-Latim, por-dois omens mui doutos de-Italia.[Pg 123] O Italiano é mais facil. Mas nam intenda V. P. que eu sou tam inexoravel, que queira carregar os pobres rapazes, com tanto pezo. nada aponto, que nam vise executar a muitos rapazes: e poso afirmar a V. P. que estes estudos, nam sam dificultozos em si mesmo: o mao metodo os-pinta dificultozos. Contudo nam obrigo: aponto somente a utilidade. Quando o estudante nam se-ache, com este dispozisam, pode rezerválo para tempo mais descansado. Fico às ordens de V. P. como seu criado &c.

NOTAS DE RODAPÉ:

[29] Veja-se Ludovicus Cappellus in Arcano punctuationis, contra J. Buxtorf. Filium.


[Pg 124]

CARTA QUINTA.
SUMARIO.

Discorre-se da-utilidade, e necesidade da-Retorica. Mao metodo com que se-trata em Portugal. Vicios dos-Pregadores: que sam totalmente ignorantes de Retorica. Que absolutamente deve deixar o antigo estilo, quem quer saber Retorica.

Finalmente é tempo, de pasar-mos à Retorica: para com ela completar os estudos, das-escolas baixas. Sei que V.P. tem gosto, de ouvir-me falar dos-outros: e me-faz a merce nesta sua dizer, que imprime as minhas cartas, na memoria: mas sei tambem, que de todos os estudos das-Umanidades, de nenhum tem mais empenho, que da-Retorica. Pois se bem me-lembro das-nosas conversasoens, conheci entam em V. P. um ardente dezejo, de me-ouvir falar nesta materia; e de querer instruir-se, dos-particulares estilos de Retorica, e muito principalmente dos-sermoens, de outros paîzes: porque me-dise, que nam lhe-agradava, o estilo deste Reino: o qual muitas vezes seguîra, por-necesidade. Nesta carta direi brevemente, o que me ocorre, sobre os defeitos, e tambem sobre o modo de os-evitar.

A Retorica naceo na Grecia, como todos os outros melhores estudos: e de la se-espalhou, polas mais partes da-Europa. É mais moderna, que a Gramatica: mas teve a mesma origem. Querendo os omens na Grecia, persuadir aos Povos, varias coizas; foi necesario que observasem, como eles se-persuadiam: e quais eram os meios, comque se-moviam, as paixoens do-animo. De que naceo esta arte, a que chamam Retorica: que é quazi tam antiga, como a Filozofia; quero dizer, que comesou a florecer, despois da-metade do-quarto milenario. Agradou esta erudisam aos Romanos, que se-reguláram polo mesmo metodo: e tanto se-entregáram a ela, que, se nam excedèram aos Gregos, na ciencia; sem duvida excedèram-nos na aplicasam, e exercicio: porque na[Pg 125] verdade chegáram a namorar-se, da-sua galantaria, e utilidade. Dos-Romanos a-recebèram os outros Povos, e Nasoens: entre as quais as que mostráram mais juizo, aplicáram-se a ela com cuidado, polos mesmos motivos.

E, na verdade, nam á coiza mais util, que a Retorica: mas nam á alguma, que com mais negligencia se-trate, neste Reino. Se V.P. observar, o que os mestres ensinam nas escolas, achará, que é uma embrulhada, que nenhum omem, quanto mais rapaz, pode intender. Primeiramente, ensinam a Retorica, em Latim. Erro consideravel: porque nada tem a Retorica, com o Latim: sendoque os seus preceitos compreendem, e se-exercitam em todas as linguas. Daqui nace o primeiro dano, que é, que os rapazes nam a-intendem, porque ainda nam intendem Latim: e nace tambem o primeiro engano, que é, persuadirem-se os ditos rapazes, que a Retorica só serve, para as orasoens Latinas. Asim me-respondèram muitos, nam sò rapazes, mas tambem sacerdotes. Do-que eu conclui, que saiem da-Retorica, como nela intráram: e examinando as Retoricas, que eles aprendem, fiquei tambem persuadido, serem elas tais, que nam podiam produzir, outro fruto.

E, valha a verdade, nam só os rapazes que estudam, mas nam sei se os mesmos mestres, vivem persuadidos desta razam: porque observo, que falando-lhe muito, em exemplos Latinos, nam se-servem dos-vulgares, para mostrar o artificio da-Retorica. Como se os preceitos só servisem, para compor Latim, e orasoens estudadas: ou como se nas linguas vulgares, nos-discursos familiares, nam pudesem ter lugar, os preceitos da-Arte! E com isto ficam novamente persuadidos os estudantes, que só para orasoens Latinas, serve a Retorica.

Mas por-pouco que se-examine, o que é Retorica, acharseá, que é Arte de persuadir: e por consequencia, que é a unica coiza, que se-acha, e serve no-comercio umano; e a mais necesaria para ele. Onde quem diz, que só serve para persuadir na cadeira, ou no-pulpito; conhece pouco, o que é Retorica. Confeso, que nos-pulpitos, e cadeiras faz a Retorica gala, de todos os seus ornamentos: mas nam se-limita neles: todo o lugar é teatro para a Retorica. Nam agrada um livro, se nam é escrito com arte: nam persuade um discurso, se nam é formado com metodo. finalmente uma carta, uma resposta, todo o exercicio[Pg 126] da-lingua, necesita da-diresam da-Retorica. A mesma Filozofia, serve-se utilmente da-elegancia. A Teologia tem necesidade dela; porque (como adverte um omem douto) nam pode explicar as verdades espirituais, que sam o seu objeto, senam vestindo-as de palavras sensiveis, com que as-persuada. A Lei ou Civil, ou Canonica, nam se-pode dispensar, da-Retorica. Como á-de orar um Advogado, informar o Juiz, defender o Reo; se ele nam sabe, em que lugar devem estar as provas, ou de que prova á-de servir-se, para aclarar a verdade da-sua cauza, e excitar os afetos do-Juiz? Como á-de compor uma escritura, se ele nam sabe, o metodo de a-tecer, de dilatar os argumentos, e servir-se das-suas proprias razoens?

O discurso de um omem despido de todo o artificio, nam pode menos, que ser um Cahos. Poderá ter boas razoens: excogitar provas mui fortes: mas se as-nam-sabe dispor com ordem, quem poderá intendèlo? quem se-persuadirá delas? A dispozisam das-partes, dá nova alma ao todo: convida a conhecer as proporsoens: mostra a relasam e dependencia, que umas tem das-outras: coloca na sua justa proporsam, o que de outra sorte nam se-poderia intender. Os diamantes, os rubis, e outras pedras preciozas sam belas, e servem de grande ornamento: mas segundo o lugar em que estam. Encastoadas com artificio, mostram toda a sua galantaria, e dam novo lustre à mesma prata, e oiro que as-rodeia; e ornam muito as pesoas, que as-trazem: postas porem sem ordem em um monte, ou misturadas com outras pedras, nam parecem preciozas, mas ou pedras groseiras, ou cristais. Os astros, que compoem a beleza do-Universo, nam tem em si mesmos, beleza alguma: mas a proporsam os-faz vistozos. Quem vise a Lua de perto, acharia um globo, sem diversidade alguma deste terreste: o mesmo digo, dos-outros planetas opacos. Quem examináse de vizinho o Sol, nam veria mais, que uma fogueira: o mesmo digo, dos-outros igneos. Mas todos estes vastos globos, postos na sua justa proporsam, fazem tal efeito, mostram tam extraordinaria beleza; que é um famozo argumento, para ver, a suprema mam que os-criou. O Sol posto no-centro do-Universo, segundo a ipoteze (que agora suponho) de Copernico, dá luz aos mais planetas, alma ao Mundo, vigor à terra, utilidade aos omens, e gloria ao seu criador. Se se-chegáse mais vizinho a nós, queimaria tudo: e acabava-se o Mundo. E eisaqui o efeito, da-boa proporsam e ordem.

[Pg 127]

Um omem douto advertidamente chamou à Retorica, a Perspetiva da-razam: porque na ordem inteletual faz o mesmo, que a Perspetiva, nas distancias locais. Em uma taboa liza, ideia a pintura um palacio, com imensa profundidade: e muitas vezes com tal artificio, e tam semelhante ao natural, que se-enganam os olhos. Nam sam as cores que originam, esta delicioza equivocasam; porque com uma só cor, se-consegue o mesmo intento: mas a dispozisam das-partes, o saber pór cada uma na sua justa distancia, o saber-lhe dar as sombras, com proporsam da-arte, produz este maravilhozo efeito: e faz que eu veja, reconhesa, e admire, o que de outra sorte nam poderia ver. Este mesmo é o cazo da-Retorica. Ela tem forsa tal, que me-obriga a descobrir, o que eu de outra sorte nam verîa. Os materiais podem ser simplezes, as razoens mui singelas; mas a dispozisam delas fará efeitos tais, que sem ela nam se-conseguiriam. eu verei, e intenderei, o que sem ela nam é facil intender. Ora de toda esta doutrina se-conclúe, a extensam da-Retorica: porque sendo ela a que dá alma, a todos os discursos; e novo pezo, a todas as razoens; fica claro, que tem lugar em toda a parte, em que se arrezoa e discorre.

Dirmeám, e ja mo-diseram alguns, que este discurso é dirigido, a introduzir um estilo afetado nas conversasoens; e carregar todos com o pezo, de falar por-tropos e figuras: nam proferir discurso, que nam seja segundo as regras da-arte: cuja afetasam é pior, que falar sem Retorica. Mas esta objesam é igualmente distante, da-boa razam, que do-meu intento; e é unicamente fundada, em nam saber, que coiza é Retorica. Permita-me V.P. que eu me-dilate alguma coiza, neste particular, para explicar o que digo, o que devo, e livrar a muita gente, deste prejuizo.

Os rapazes, que estudam nestes paîzes, nam sabem nada de Retorica, porque lha-nam-ensinam: Os que sam adiantados, e continuáram os estudos, sabem ainda menos; porque bebèram principios, tam contrarios à boa razam, que ficam imposibilitados, para se-emendarem. Em todo este discurso protesto, que nam falo daqueles omens, que com raro juizo, e fina critica se-dezenganáram, das-preocupasoens comuas, e seguem outra estrada: dos-quais eu conheso alguns: falo somente do-Comum, e falo fundado nas suas obras: nas quais se-reconhece a verdade, de quanto digo. Estam todos persuadidos, que a Eloquencia consiste na afetasam, e singularidade:[Pg 128] e, por-esta regra, querendo ser eloquentes, procuram de ser mui afetados nas palavras, mui singulares nas ideias, e mui fóra de-propozito nas aplicasoens. Tem V.P. mui belo exemplo nos-sermoens: que eu, para maior clareza, dividirei em varias especies.

Encomenda-se um sermam v.g. de Exequias, de um General. O meu bom Pregador mostra aqui, todo o seu ingenho, e eloquencia. Saie logo um texto da-Escritura, para tema: e á-de ser do-testamento Velho, porque á-de ser profetico. No-sermam mostra o Pregador, que estava revelado, na escritura da-Antiga igreja, que aquele General avia fazer famozas asoens: e nam só asoens in genere eroicas, mas especialmente estava revelado, que avia ganhar a batalha do-Canal, ou das-Linhas de Elvas. E isto estava profetizado, com tanta individuasam, que nam se-podia dezejar mais. Despois, vai recolhendo as outras profecias, da-vida daquele General. Mostra, que a batalha de Saul contra os Filisteos, era figura da-grande batalha, que o seu eroe ganhou. Se sucedeo, que nesta batalha algum piquete, dése principio à asám; se era em partes montuozas; nam deixa de observar, que tudo iso tinha ja sucedido a Jonatas, e ao seu escudeiro: onde vem, que até aquela circunstancia, estava profetizada. Pasa adiante, e comesa a levantar, e requintar pensamentos. Diz, que o seu eroe, era maior que Saul, nam só de corpo, mas tambem de animo: que era mais afortunado que David: mais prudente que Salamam: E se nam á logo um texto claro, com que se-prove isto, nam falta um expozitor, que diga uma palavra, da-qual o Pregador conclue manifestamente, que o texto nam se-pode intender, de outra sorte.

Daqui pasa um pouco mais para baixo. Mostra, que Alexandre Magno, em sua comparasam, era um ridiculo: que o seu eroe tinha um corasam, ao menos, como metade da-America: que fez coizas, que a ninguem vieram à imaginasam: e que somente a ele se-pode aplicar o, Siluit terra in conspectu ejus. Se tem alguma noticia de-Istoria, nam deixa de mostrar, que Julio Cezar, Paulo Emilio, Quinto Fabio, Anibal, Pirro, &c. podiam ser seus dicipulos. E outras coizas destas, que se o dito General fose vivo, e as-ouvise, nam podia deixar de envergonharse, de tal panegirico. Isto quanto ao asumto. Quanto à dispozisam: Despois de um grande exordio, e comumente improprio, divide o sermam em trez pontos: raras vezes em dois: rarisimas conclue com[Pg 129] um só discurso. Promete mostrar em cada um, que o seu eroe teve uma singularidade, a maior do-mundo: o que tudo quer tirar, da-Sagrada escritura. Pede a grasa, paraque Deus lhe-inspire, o que deve dizer, em materia de tanta importancia: e prosegue o sermam, na fórma dita.

Se pois as exequias sam de Molher, saie logo, o Mulierem fortem quis inveniet? e nam a-tendo achado o Sabio, afirma ele, que a gloria de achar esta mulher, estava rezervada à sua diligencia. E, aindaque a Senhora fose Religioza, e de animo pacifico; nam pode deixar de intrar, o fato de Judita; em que ele mostra, que a dita Senhora é Judita: a sua espada eram as diciplinas, e cilicios: Olofernes era a figura do-mundo, que ela matou, e prostrou com facilidade, &c. Mas como na escritura Antiga, á poucos exemplos de molheres eroicas, recorre logo à Nova, e la vai buscar, a Molher do-Dragam, e outras destas figuras. Finalmente, discorre das-virtudes da-dita Senhora, polo estilo das-do-General.

Nam me-negará V.P. que esta é a pratica deste Reino: porque lhe-mostrarei, muitos livros impresos, em que se-acham estes sermoens; e de omens que tiveram, e conservam grande fama. Progunto agora: acha V.P. que isto é pregar? que é saber discorrer? que é ser eloquente? Em primeiro lugar, o tema da-Escritura, e as provas tiradas dela, sam erro de toda a considerasam. Estes Pregadores nam devem ter lido, o concilio de Trento[30], que proibe, uzar das-palavras sagradas, aplicadas a coiza profana: nam devem saber, que é expresamente proibido, explicar a Escritura, senam segundo a expozisam, dos-SS.PP. da-Igreja. Concedo, que um expozitor moderno, disèse alguma propozisam, que se-pudese aplicar ao asumto: por-iso ei-de seguila? quantos destes expozitores, nam vemos todos os dias, que nam sabem o que dizem? que[Pg 130] omem prudente faz cazo, de semelhantes escritores, que nam fundam a sua expozisam, na doutrina da-Igreja? Despois diso, quem poderá defender aquelas provas, tiradas da-Escritura? Ou quer o Pregador dizer, que os fatos da-Antiga igreja, eram figura do-seu asumto; e esta é uma propozisam temeraria, por-nam lhe-dar outro nome; e contraria à comua doutrina dos-Padres, e da-Igreja: ou nam se-persuade disto; e nam se-livra da-censura, fulminada por-muitos canones, por-abuzar imprudentemente, de palavras sacrosantas. Porque eu nam acho, que semelhante aplicasam seja outra coiza mais, que aplicar com grande irreverencia, umas palavras santas, a um sentido, para que nam foram proferidas: e a um sentido indigno, profano, e falso: que é o mesmo, que condena o Concilio.

Respondem alguns, que isto quando muito prova, que a aplicasam nam é boa; por-ser de coiza sagrada, a uma profana: mas nam prova, que no-sermam nam se-observáram, os preceitos da-Oratoria. Mas esta mesma resposta mostra, que nam intendem, que coiza é Retorica. Se a Retorica é arte de persuadir, quem mais se-persuadio com provas, que nam fazem ao cazo? Que omem de juizo á-de intender, que aquele General foi grande, porque Saul o-foi tambem? que parentesco tem uma coiza, com outra? E como a obrigasam daquele panegirista seja, mostrar, e engrandecer, as virtudes do-seu eroe; todas as provas que tirar da-Escritura, nam concluem para o seu intento. Conheso, que alguma vez se-pode alegar, um paso da-Escritura, damesma sorte que se-cita um paso, da-istoria Profana: porque a istoria da-Escritura, tambem na materia de Politica ensina muito: mas neste sentido nam se-servem, os Oradores deste Reino, como é coiza notoria: porem sim, no-sentido de profecia. Se pois aquele paso, nada faz ao cazo, com que razam o-alega? Pode-se chamar Orador, um omem que se-funda em razoens, que nam conduzem, para o seu intento? Temos ja, que a este omem falta, a principal parte de Orador, que é Inventio: o saber buscar razoens proprias, para o seu intento, e que pròvem o que ele quer. Peca logo na aplicasam: e niso mesmo peca, contra a Retorica.

Suponha V.P. que da-outra parte estava outro Orador, que respondèse aos argumentos. suponha que o cazo sucedia no-Egito, aonde antigamente se-expunham os cadaveres, diante dos-juizes, para serem julgados. Um publico acuzador, referia todos os defeitos,[Pg 131] e respondia aos louvores, que nam eram fundados. Se o omem era de boa fama, dava-se a sentensa a seu favor, e enterrava-se com onra e panegirico, acompanhado de grandes louvores do-Povo: se era condenado, privava-se de sepultura, e a sua memoria ficava abominavel[31]. Que coiza julga V.P. que diria o noso Pregador, neste cazo? parece-me, que ficaria convencido de falsidade, o Orador; e envergonhada a fama do-eroe, que ele nam soubera defender.

Ora esmeuce V.P. as mais partes daquele sermam, e verá quantas faltas de Retorica, ali se-incontram. Que má dispozisam dos-argumentos! que arrastada confirmasam das-provas! Isto é supondo, que o paso que ele cita, tenha alguma semelhansa, com o que quer provar. Mas nam ve V. P. quantas coizas os Pregadores inculcam, que de nenhum modo se-seguem, do-texto? Este é o segundo ponto, que nam me-parece de pouco momento, nesta materia: e isto melhor se-conhece, quando querem esquadrinhar, as palavras dos-Profetas, ou dos-livros cientificos. Primeiramente tomam umas palavras troncadas, (que se fosem inteiras, eram contrarias ao asumto) e delas deduzem o seu pensamento. E que diz V.P. a este modo de comentar? parece-me que isto é aquilo mesmo, a que, em bom Portuguez, se-chama, impostura: porque é tirar pensamentos de um texto, que nam diz tal coiza. Despois, recorrem a um expozitor, ou S. Padre, o qual talvez guiado do-furor do-seu zelo, ou com exceso retorico, dise alguma propozisam, que, para nam ser erezia, é necesario tomála muitos furos abaixo, do-que soa: no-que concordam todos os Criticos, e Teologos. Aqui o meu Pregador, sem perder nem menos uma silaba, traduz a propozisam como se-acha: e nela Levanta uma machina de paradoxos, com que pertende provar, coizas mui verdadeiras, e sezudas. Nam cito exemplos, porque falo com V.P. que sabe mui bem, de quem eu falo. E averá quem me-negue, que isto é faltar à Retorica? averá quem se-atreva a dizer, que isto é saber elogiar? Se os argumentos sam verdadeiros, sempre sam fóra do-asumto: se o-nam-sam, nam deixam de ser imposturas: e nam sei qual destas, é pior falta de Retorica. Mas prosigamos o exame, e vejamos o que fazem, nos-outros asumtos.

[Pg 132]

Saie um sermam de asám de grasas a Deus, por-algum grande beneficio concedido; como saude, batalha &c. ou por-alguma asám má castigada, com gloria de Deus; como o roubo do-Sacramento em S.Engracia, Ato da-Fé &c. Intende V.P. que por-mudarem de asumto, mudam de metodo? nam senhor: e a pratica mostra o contrario. O argumento dos-primeiros dois sermoens deve ser, dar grasas a Deus, por-tam especial beneficio: e excitar a piedade dos-Fieis, para que o-louvem, por-este favor que fez. Este é o asumto: e a este fim deve o Pregador dirigir, todos os seus particulares argumentos. Mas iso é o que ele nam faz. O que ele cuida é, buscar algum conceito sutil, e singular, com que posa dizer alguma novidade, e mostrar o seu ingenho. Eu li um sermam do * * * que pertencia a uma destas clases: em que o Pregador, por-querer dizer uma novidade teologica, dise uma erezia: que somente o-nam-foi na sua boca, porque nam intendeo, o que dise: aindaque tivese bastantes anos, ensinado Teologia. La achou porem um S.Padre moderno, que cuido fose S. Bernardo, que lhe-deo materia ao conceito. Mas a verdade é, que o dito S. que frequentemente uza de iperboles, nam dise literalmente, o que ele supoz. Mas fose o que fose, o sermam teve mil aplauzos, e impremio-se com onra * * *. Ja se-sabe, que a saude ou batalha, á-de ser profetizada, na Escritura do-Antigo testamento, ou polo menos do-Evangelho, e com sinais mui particulares: porque segundo estes autores, nam á sermam sem tema sagrado; seja o que for. Se o tema nam calsa bem, nam falta quem o estenda: que este é o comum refugio, de todos estes senhores.

Contou-me pesoa mui verdadeira, que, achando-se em certa Cidade deste Reino, sucedèra, que a molher de um tangedor de rabeca, fazendo voto por-uma infermidade perigoza; quando se-vîra livre, quizera agradecer ao Santo, o tal beneficio, com uma festa estrondoza, e com sermam. O dito amigo conhecia o Pregador: e incontrando-se com ele, dise-lhe: Que tema toma vosè? ao que ele respondeo, Ja tenho escolhido as palavras: Surge, ascende Bethel; fac ibi altare &c. Reproguntou o meu amigo, Que conexam tem iso, com o que vosè quer dizer? ao que o Pregador respondeo seriamente: O texto é otimo: porque que Jacob era rabequista, iso provo eu logo, com dez expozitores. E com efeito o sermam, saio semelhante à promesa.

Eu mesmo asisti uma vez a um sermam, de asám de grasas,[Pg 133] porque Deus concedèra chuva, despois de uma grande esterilidade. É necesario advertir, que se-tinham feito varias procisoens, com imagens milagrozas, semque Deus ouvise, os clamores do-Povo. Na ultima, leváram um Cristo com a cruz; e sucedeo, que pouco despois choveo alguma coiza. O meu Pregador, que tinha fama de grande letrado, prometeo mostrar no-sermam, que a chuva nam podia vir, por-outro estilo. E provou isto, com a nuvem de Elias: a qual asimque a pareceo, desfez-se o ceo em tempestades. Mostrou pois, com dois expozitores modernos, que aquela nuvem, era Cristo com a cruz às costas. Faltavam algumas circunstancias, entre as quais era, a da-tempestade seguida; que ca nam tinha exemplo. Remediou o omem a isto, prometendo em pouco tempo, a tempestade. (o que podia seguramente profetizar; porque despois de uma grande elevasam de vapores, uma vez que estes comesam a mover-se, é claro, que ám-de cair) Sucedeo o cazo da-grande chuva: e o meu Pregador, alem da-fama de Orador, saio com a de Profeta; que lhe-frutou muito bem. Os que sabiam pouco, estavam pasmados, da-felicidade de ingenho do-omem: mas um dos-que estavam no-confeso, e tinha pezado bem o sermam, falou-me em diferente maneira. E destes sermoens, pudera eu citar infinitos.

Se o sermam é do-dezagravo do-Sacramento, ja se sabe, que somente pregará bem, quem mostrar, que á textos expresisimos, em que se-declara, que no-ano N. sendo Bispo N. Mordomo da-festa N. às tantas oras do-dia, avia suceder a dita coiza. Mas nam basta isto, é porem necesario, algum novo pensamento, que comumente prova tudo o contrario, do-que quer persuadir. E aqui devem intrar, todas as outras circunstancias, que apontámos. Nam se-lembra o Pregador, que o asumto sempre é o mesmo: que é, dar grasas a Deus, por-descobrir, com altisima providencia, os sacrilegos: e com iso mostrar, a sua mizericordia, mansidam, e justisa: e que este asumto sempre se-deve inculcar, variando unicamente as palavras, com mais ou menos ingenho, segundo o cabedal de quem fala. Nam adverte, que faria muito maior impresam, pintar a atrocidade daquele delito, de uma parte; e da-outra, as infinitas virtudes, que Deus quiz mostrar, naquele castigo. Nada disto lembra ao Pregador. o que emporta é, subtilizar bem. Mas o que dali se-segue é, sair o auditorio tam persuadido, da-pouca capacidade do-Pregador, como pouco persuadido, do-que ele determinára persuadir-lhe.

[Pg 134]

E que nam diz um destes amigos, quando se-lhe-encomenda um sermam de Intrada, ou Profisam de Freira! Aquele sermam nada mais é, doque um panegirico da-eleisam, e perseveransa da-Freira, e outras boas qualidades; acompanhado de uma exortasam, para perseverar na virtude. Isto é o que deve dizer o Pregador: mas isto é o que nenhum diz. O que importa é, mostrar, que esta Freira era tanto do-agrado de Deus, que mandou ao mundo um, ou muitos escritores Sagrados, para lhe-comporem a vida, muitos seculos antes de nacer. Um amigo meu teve a incumbencia, de um destes sermoens: e logo lhe-advertîram, que teria mui boa paga, se acháse na Escritura, toda a vida da-Freira. Ela era Dominicana, e mui devota do-Rozario: tinha sido Pupila alguns anos, no-dito Convento: o sermam era na oitava da-festa do-Rozario. Ele, que somente queria um bom prezente, tomou as palavras do-capitulo IV. do-Cantico: Veni de Libano sponsa mea, veni de Libano, veni: coronaberis. Mostrou, que a Freira tivera tres estados, de Pupila, Novisa e Profesa: e que a cadaum conrespondia sua vocasam, e seu veni, com que Deus a-chamava, por-boca de Salamam. Que o Libano, reprezentava o Mundo, donde Deus a-chamava para o Claustro. Coronaberis, explicava a Religiam, que é toda consagrada ao Rozario: e que no-mesmo Rozario, que é uma coroa de rozas, achava o premio da-sua eleisam, e obediencia. Acomodou novamente isto ao Rozario, dividido em misterios dolorozos, gozozos, e gloriozos; cada especie dos-quais conrespondia, aos seus trez estados: o que ele provou, com textos expresisimos. Desorteque a concluzam do-negocio foi, que todas as circunstancias da-vida da-Freira, estavam profetizadas com tanta clareza, por-Salamam; que qualquer cego reconheceria, que aquele texto somente falava, da-Senhora D. Fulana, filha de Fulano, moradora em tal parte, Freira em estoutra, &c. O que eu sei é, que toda esta metafizica frutou, cinco moedas, e um bom prezente: e que as Freiras nam cabiam na pele de contentes. E isto sucede todos os dias: e alguma vez eu o-tenho prezenciado, nestas festas.

Se o sermam é do-Ato da-Fe, comumente declinam para dois extremos: ou nam chegam a dizer, o que devem; ou dizem muito mais, do-que nam devem. O Santo Oficio justamente manda pregar, àqueles omens penitenciados, para os-alumiar na sua cegueira: e esta é uma ideia sacrosanta. Mas eu nam sei, se os tais[Pg 135] Judeos ficam persuadidos: o que sei é, que os sermoens que eu leio, nam sam proprios, para os-persuadir. Avemos asentar em primeiro lugar nisto, que estes Judeos Portuguezes, sam ignorantisimos diso mesmo, que querem profesar. Nam sabem mais, senam que o Sabado se-deve guardar: e outras noticias gerais. de lingua Ebraica nada sabem: menos de Caldaica: que sam as duas linguas, em que estam escritos, os ritos e costumes Judaicos. Isto é sem duvida: e quem ouve os procesos, conhece claramente, qual é a sua ignorancia neste ponto. Quanto à ignorancia dos-ritos Judaicos, nam é necesario alegar, testemunhas Orientais, nem ir buscar os Rabinos, Maimonides, Jacob Baal-aturim, Joseph Caro &c. basta que V. P. leia o Sigonio, Menochio, Cuneo, Reimero, Spencero, que escrevèram eruditamente, de Republica Hebræorum: ou algum dos-outros, que tratáram das-escolas, e ritos, como Selden, Godvvin &c. e ficará mui bem persuadido, que estes seus Portuguezes, nam sabem que coiza é ser Judeo: e sam Judeos, mais por-genio depravado, que por-erudisam.

Isto suposto, alguns Pregadores, como o Cranganor, para mostrarem a sua erudisam Rabinica, entram em certas materias dificultozas, e procuram noticias mui particulares, tiradas dos-que impugnáram os Rabinos; para mostrarem aos Judeos, o seu ingano. Copeiam fielmente, toda a noticia que se-lhe-oferece, na tal materia: nam sem se-inganar algumas vezes, como sucedeo ao dito Cranganor; que por-nam ter inteligencia, das-ditas linguas, nem da-istoria Judaica, nem ter nunca aberto o Talmud; servio-se algumas vezes de argumentos, que tem mui boas respostas. (devemos confesar em obzequio da-verdade, que entre os Ebreos ouveram sempre, omens mui doutos, que propuzeram tais dificuldades sobre a Escritura, que fazem suar muitos Catolicos doutisimos, para lhe-responder. onde sem exquizita erudisam, é melhor nam tocar, semelhantes materias) Finalmente à forsa de ajuntarem noticias, em lugar de um sermam, fazem um tratado Contra Judæos. O que digo, com boa paz do-dito Arcebispo, e seus apaixonados: porque nam quero diminuir-lhe a estimasam: mas somente trazelo para exemplo, do-que aponto.

O que se-segue daqui é, que com todo este trabalho, nem fazem sermam, nem podem persuadir; pois nam proporcionam as provas, ao asumto. Porque inculcar erudisam Rabinica, a omens totalmente ignorantes destas materias, é manifestamente zombar do-seu emprego, e[Pg 136] do-auditorio: e tanto vale isto, como se lhe-pregasem em Persiano, ou discorresem em diferente materia. Alem diso, á grande diversidade, entre uma disputa, e um sermam; entre uma disertasam, e uma exortasam: e perde o seu tempo e a sua fama, quem confunde estes dois nomes, e o significado deles. Ora eisaqui tem V. P. o que fazem estes, com quererem dizer muito.

Os outros, que asima apontamos, seguirem diversa estrada, nam sei se os-chame, mais condenaveis. Estes sam aqueles, que querem pregar aos Judeos, polo estilo dos-outros sermoens, com conceitos sutis, e pensamentos exquizitos. E nam é necesario muito para intender, que se os Catolicos Romanos, que estudamos aquela doutrina, que eles inculcam; os-nam-intendemos, e nos-dezagradam muito; que coiza sucederá, aos Judeos? Ouve às vezes V. P. propor um asumto, que parece ao intento: segue com o pensamento, o Pregador no-seu discurso: e quando nam se-precata, este o-dezempára, e infere uma consequencia tal, que obriga a rir. Seguro a V. P. que, tendo lido alguma coiza nesta materia, e tendo observado muito; somente neste genero achei, um sermam Portuguez, que se-pudese ler: aindaque tambem carregava no-silogismo, e intrava bem dentro na Metafizica: mas foi o que vi menos mao.

Mas, colhamos as velas, parece a V. P. que este modo de pregar é louvavel, ou toleravel? parece-lhe, que está fóra da-jurisdisam, de uma arrezoada critica? O nam proporcionar as provas ao auditorio, ou seja dizendo-lhe, o que eles nam chegam a intender; ou falando-lhe com ideias, de que ninguem se-pode persuadir; é erro da-primeira esfera. Temos outro modo de pregar, aos Ebreos idiotas, deixando de parte, toda a verdade especulativa, e servindo-se unicamente, de exemplos sensiveis: os quais, bem discorridos, produzem efeitos, que talvez se-nam-alcansam, com erudisam mui exquizita.

De todos os argumentos, que se-oferecem para persuadir, a extinsam da-Antiga igreja, deve o orador escolher, os menos embrulhados; e persuadilos, com a forsa da-sua eloquencia. Niso é que consiste a arte, em dilatar os argumentos, que nam sam reconditos. A vinda de Cristo ao mundo, é oje bem clara: e para o-ser mais, é necesario ter cuidado, em dispor os-argumentos, e fugir das-sutilezas. Nam á verdade mais notoria, que a existencia de um Deus: e é observasam dos-melhores Filozofos, e Teologos,[Pg 137] que os antigos Padres para a-provarem, nam se-serviam de sutilezas inauditas: mas contentavam-se com a prova mais trivial, que é, a existencia do-Mundo, e principalmente deste noso globo terreste. Esta unica prova, bem explicada e esmeusada, convenceo o intendimento umano muito mais, doque nam fizeram, despois do-undecimo seculo, todas as sutilezas dos-Dialeticos: e ainda oje os melhores Filozofos asentam, que só nela nam se-acham sofismas. Isto é ao que nós chamamos, saber conhecer o merecimento das-provas, e saber manejar a eloquencia. Mas os nosos Pregadores, intendem o contrario: e só cuidam em procurar ideias, que a ninguem tenham ocorrido: e por-iso nacem aqueles sermoens, de que o mundo Literario se-ri.

A outra especie de sermoens, em que com mais facilidade, se-dizem despropozitos, sam os Panegiricos de Santos. Esta especie compreende, muitas sortes de sermoens: nos-quais á infinitas coizas, que condenar. Ouvirá V. P. coizas, que cauzam orror. v.g. Devem pregar um sermam de S. Antonio: em que deviam referir, as virtudes do-Santo: ilustrálas com o artificio da-Retorica; para animar os fieis a imitálo. Mas isto, que era a obrigasam do-Panegirista, parece coiza mui trivial, aos Pregadores modernos. Julgariam que ficavam dezacreditados, se-dizesem só esta verdade. É necesario levantar machina: e fazer uma trepesa, composta de mil ridicularias. Dividem pois o sermam, nas-trez partes solitas: em cada uma das-quais prometem provar coizas, que nada tem de verosimel. v.g. Que S. Antonio nam foi omem, mas anjo: e a este seguem-se outros pontos, damesma especie. Concluem pois, que se a Fé nam estudáse cautelas, chegariam a dizer, que se equivocava com Deus. Eu tenho ouvido isto, algumas vezes: e contou-me pesoa de muita autoridade, que ouvira ele mesmo, em certa Cidade do-Reino, propor estes trez pontos: Que o Santo de que pregava, era grande omem: grande anjo: e grande Deus. e que tudo isto avia de sair, do-Evangelho. E segurou-me a dita pesoa, que, ouvindo isto, saîra da-igreja, sem querer esperar polas provas: tam escandalizado ficou!

Lembra-me ao intento, o que escreve um autor, mui acreditado em Portugal. Pregava ele de S. Antonio, com o costumado tema, Vos estis lux mundi: e querendo dizer alguma coiza singular, tirou este asumto: ==Que uma vez que S. Antonio naceo em Portugal, nam fora verdadeiro Portuguez, se nam fora luz[Pg 138] do-mundo. porque o ser luz do-mundo nos-outros omens, é só privilegio da-Grasa: nos-Portuguezes, é tambem obrigasam da-Natureza==.Pareceo-me argumento nam só singular, mas inaudito, querer fazer que os Portuguezes, fosem Apostolos por-natureza: muito mais, porque se o Pregador prováse o que prometia, tam longe estava, de fazer ao Santo um Panegirico, que lhe-preparava uma Satira: e desmentia com as suas provas, aquelas singularidades, que queria descobrir no-Santo: pois quando muito se-diria, que pregava de todos os Portuguezes. Com esta opiniam examinei as provas: as quais se-reduziam a isto. Que Cristo constituira os Portuguezes, Apostolos das-Nasoens estrangeiras: e que asim o-prometèra, a El-Rei D. Afonso I. e, como se nam ouvèse, quem negáse tal coiza, chama-lhe verdade autentica. A isto acrecenta, uma profecia de S. Tomé, (nam sei em que archivo a-achou) que os Infieis se-conquistariam na India, com as armas de Portugal: nam com as de ferro, mas com as do-escudo, que sam as Quinas: as quais Cristo, diz ele, deu aos Portuguezes, por-armas. E como S. Antonio era Portuguez, avia conquistar Infieis, como fez: e avia conquistálos com as Quinas: que nam só de Portugal, mas tambem sam as armas, da-minha Religiam.

Pareceo duro ao Pregador dizer, que os Indios se-aviam conquistar com as Quinas, e nam com as espadas: mas a isto, achou ele genuina solusam, na saida que os Ebreos fizeram, do-Egito. Pondéra, que, sendo-lhe proibidas as armas, diga a Vulgata[32]: Armati ascenderunt filii Israel de terra Aegypti==. Examina pois, que armas eram estas: e logo as-acha, no-original Ebreo, que diz: Ascenderunt filii Israel quini, & quini== A sim, diz o Pregador, saîram os Ebreos com quinas; pois esas lhe-servirám de armas, ascenderunt armati. Confirma isto, com as cinco pedras de David, das-quais afirma, que eram as cinco chagas de Cristo, tiradas da-torrente do-seu sangue, com as quais derrubou o gigante. Esta é a virtude das quinas. Por-iso S. Antonio seguio as bandeiras das-quinas, para mostrar que era Portuguez, derrubando com elas, o Filisteo da-Erezia. Até aqui o Pregador.

Esta em sustancia é a primeira prova do-dito sermam; na qual achará V. P. materia, para mil reflexoens. Deixo as istoricas, pois é bem claro, que sam mui ligeiras provas, para afirmar tal paradoxo.[Pg 139] Esta aparisam ao Rei D. Afonso: a redoma de vidro cheia de olio, que veio do-Ceo a Clodoveo: e outras destas coizas, que se-acham nas istorias, sam boas para divertir rapazes: e os Criticos as-conservam todas, no-mesmo armario, em que guardam as penas da-Fenix. Mas nam poso perdoar-lhe, a má interpretasam, e aplicasam do-texto. Este autor certamente nam leo o texto Ebreo, ou se o leo, nam o-chegou a intender: porque o texto diz uma coiza, muito diferente, doque ele supoem. É verdade, que o texto Ebreo serve-se de uma palavra,[33] que em Latim quer dizer, Quintati: como se diseramos, de cinco em cinco: mas este modo de falar nam é proprio; é translato, e deduzido do-estilo belico. Donde vem, que explicando os antigos Ebreos, a dita expresam, asentam todos que quer significar, armados. Só diversificam, para explicar particularmente, a forsa da-dita palavra. Kimchi diz asim: Cingidos de armas, na quinta costa. outros explicam: Cingidos com cinco generos de armas. Sepharadi verte: Quinque turmis ascenderunt, sub quatuor vexillis. Nam Moises cum senioribus Israel, in medio quatuor turmarum manebat. Alem diso, todos os omens mais doutos na lingua Ebreia, expondo a dita expresam, despois de porem o termo proprio e literal, que é Quintati, acrecentam, id est, Accinti, Expediti: que é o mesmo que, Armati, Parati. Desorteque com grandisima advertencia, o tradutor da-Vulgata dise, Armati. E quer dizer o Ebreo, que os Israelitas saîram armados, e em fórma de batalha; promtos para acometerem, e se-defenderem. E isto é coiza certa, entre os doutos.

O que suposto, veja V. P. que parentesco tem isto, com as quinas. Alem diso, suponhamos que verdadeiramente se-devia intender, de cinco em cinco: que tiramos daqui para o intento? poderia dizer o texto, que îam quini, & quini: mas nunca dise: ideo armati, quia quini & quini: e é pesima Logica aquela, que de duas coizas sem conexam, tira tal consequencia. Tambem é falso dizer, que os Ebreos saîram dezarmados: quando lemos o contrario: pois nam só as batalhas que deram, mas as obras que fizeram no-campo, mostram bem, que nam só armas, mas toda a sorte de instrumentos, leváram do-Egito. Ja nam falo na aplicasam da-profecia, a S. Antonio: pois se S. Tomè falou das-Indias, que tem isto que fazer, com S. Antonio, que pregou na[Pg 140] Europa? Nam falo nas pedras de David, cuja aplicasam tem tanta proporsam, como á entre um, e cinco.

Isto que unicamente disemos, basta paraque V.P. intenda, o conceito que se-deve fazer, de semelhantes sermoens: os quais nada mais sam, que um mero jogo de palavras, sem verdade, nem verosimilidade alguma: e que se-desfazem em vento, quando, se-examinam de perto. Eu parei no-primeiro ponto: avia ainda quatro que examinar: mas eses deixo eu, à sua considerasam. Ora intende V.P. que o Santo fica elogiado, com tal panegirico: que o auditorio ficará persuadido: que o Orador merece ser louvado, por-tal sermam? Sei a resposta que V.P. me-á-de dar, porque sabe dar às coizas, a sua justa estimasam: mas nem todos sam do-seu parecer. e apostarei eu, e V.P. nam mo-negará, que mais gente estuda, polo tal autor, doque pola Escritura, e SS. Padres.

O mesmo autor em outra parte, devendo pregar de S. Bartolomeo, e sucedendo isto em uma Cidade, em que se-estava para eleger, um grande Prelado, que nam tinha conexam com a festa; tomou por-tema estas palavras, de S. Lucas: Elegit duodecim ex ipsis, quos & Apostolos nominavit: e em vez de pregar de S. Bartolomeo, pregou das-obrigasoens das-eleisoens: sem dizer em todo o corpo do-sermam, uma só palavra de S. Bartolomeo. No-ultimo paragrafo, lembrou-se da-sua falta: e, para remediar o cazo, diz mui secamente, que tudo o que disera, se-devia aplicar, ao dito Santo. Porque sendo ele o sexto Apostolo, estava no meio, que é o lugar de mais autoridade: E a razam disto era, porque conrespondendo ele à 6.a pedra da-nova Jeruzalem, que era o Sardio; esta no-Racional de Aram, era a primeira: onde ficava claro, que o sexto Apostolo, devia ser o primeiro. Acha nova semelhansa entre S. Bartolomeo, e o Sardio: porque esta, segundo Plinio, é de cor de carne viva: e conseguintemente, um belo retrato de S. Bartolomeo, que ficou em carne viva, e sem pele. E tornando das-peles vivas, às eleisoens, acaba o sermam, damesma sorte que o-comesou.

Progunto agora: que outra coiza avia ele dizer, se pregáse das-eleisoens? Nam ignora V.P. que os sermoens panegiricos, pertencem ao genero demonstrativo; e quem jamais pode sofrer, que um Orador, que deve elogiar Pedro, faláse de Paulo? Julga V.P. que se-pode chamar justa digresam, nam falar uma palavra no-asumto,[Pg 141] para se-meter em materîa alheia; e que por-titulo nenhum pertencia ao Pregador? Mas examinemos ese pouco que diz, de S.Bartolomeo: eu nam acho ali coiza, que nam seja inverosimel. Aquilo de querer, que S. Bartolomeo fose criado Apostolo na 6.ᵃ eleisam, é falso; porque tal nam diz o Evangelho. O que eu acho no-Evangelho é, que Cristo, despois do-jejum de 40. dias, pasando defronte de Joam, e dizendo este: Ecce Agnus Dei: dois seus dicipulos seguîram Cristo: um deles era André, que incontrando de tarde, seu irmam Simam, o-conduzio a Cristo. No-dia seguinte Cristo chamou Filipe: e este, incontrando Natanael, convidou-o para seguir Cristo. Pouco despois, tornando Cristo de Cafarnaum, tornou a chamar Simam, e André; que provavelmente se-tinham apartado de Cristo, para exercitarem o seu oficio: e nunca mais se-apartáram dele: e no-mesmo caminho chamou Jacob, e Joam. Se pois Natanael é o mesmo que Bartolomeo, como alguns doutos modernos[34] conjeturam, com muito fundamento; em tal cazo é o 4.ᵒ eleito: ou o segundo, fazendo outra contra. Se Natanael é diferente de Bartolomeo, como diz S. Agostinho[35], e Gregorio Magno[36], neste cazo devemos confesar, que nam sabemos, quando foi chamado Bartolomeo. O certo é, que o Evangelho nam explica, circunstancia alguma da-sua vocasam, e da-sua vida, com o nome de Bartolomeo. Nem menos da-Istoria temos, como morreo Bartolomeo; avendo grande disparidade de pareceres: aindaque a mais comua é, que morrèse esfolado. O motivo que teve o Pregador foi, ver que em S.Lucas, despois das-ditas palavras, nomeia-se em 6.ᵒ lugar Bartolomeo: e asim intendeo, que foram todos eleitos, naquela ocaziam. Um bocadinho que soubèse mais de Istoria, lhe-pouparia este erro, tam censuravel em um Teologo. Mas aindaque isto asim fose; nam bastava para lhe-chamar, a 6.ᵃ eleisam, por-ser uma só: e muito menos deveria esta circunstancia, dar materia a um sermam.

A outra coiza, que o 6.ᵒ Apostolo fose mais nobre, que o primeiro, é uma ideia nova: o que só poderia intender-se, se puzese-mos os Apostolos em linha, ou dobrase-mos a linha em angulo. Despois diso seguirseîa, nam que o 6.ᵒ era mais nobre que[Pg 142] o primeiro: mas sim, que 6.ᵒ e primeiro era o mesmo. E ja em lugar de XII. que entam se-nomeiam, se-reduzem os Apostolos a XI. Tambem aquilo de querer, que S. Bartolomeo seja maior, que S. Pedro, nam sei se se-pode sofrer. Mas pior que tudo é o cazo, da-pedra Sardio. Se esta, por-ser de cor de carne, se-chama carnerina, tanta semelhansa tem com Bartolomeo, como com os mais Apostolos: porque todos eram de carne, e carne vivente. Mas o noso Pregador fundou-se na palavra, viva: que aplicada à carne, significa em Portuguez, (mas nam na lingua de Plinio) carne sem pele: e daî é que tirou o pensamento: que, como asima dizia, se-reduz, a um mero jogo de palavras. Este é o costume destes Pregadores: quando se-examinam as suas provas, com sangue frio; nada mais sam, que um mero trocadilho de palavras, sem verdade, nem ainda verosimilidade: sem a qual é certo, que ninguem se-pode persuadir. Ora eu podia citar destes exemplos, a milhares, e sem sair do-mesmo Pregador: mas é coiza enfadonha, e tambem escuzada, para quem, como V. P., tem tanta pratica destes panegiricos.

Se o panegirico é de N. Senhora, parece a estes tais, que nam á coiza, que nam seja licito dizer, em obzequio seu: Sem advertirem, que a Santisima Virgem, se-daria por-mais bem servida, sem tais sermoens, com a simplez relasam, das-suas grandes virtudes. O pior é, que á autores, que fomentam estes sermoens, com livros bem grandes compostos ao intento, a que chamam conceitos predicaveis. Os Espanhoes abundam muito disto: e ajuntam uma infinidade de paradoxos, que cuidam provar, com algumas expresoens figuradas, que se-acham nos-SS. Padres. Achei um Espanhol, chamado Bartolomeo de los Rios, que compoz um groso volume, todo tecido destas iperboles. Ele prova, que N.Senhora é meza do-Sacramento: é pam: é vinho: é Cristo em carne. finalmente diz tanta coiza insolita, que nam sei como puderam vir à imaginasam, de um omem prudente. E tudo isto tira de umas iperboles, de S. Anselmo, Bernardo, e alguns asceticos mais modernos. Estranho modo de provar! servir-se das-figuras de que uzáram os Padres, separálas do-contexto, para provar uma propozisam absoluta. Se valèse esta Logica, e Retorica, com as mesmas palavras da-Escritura, se-poderia provar muita coiza falsa, e ridicula. Nós temos em S.Joam, uma iperbole bem famoza.[37] Sunt[Pg 143] autem & alia multa, quæ fecit Jesus: quæ scribantur per singula, nec ipsum, arbitror, mundum capere posse eos, qui scribendi sunt, libros==. Quem daqui quizese provar mui seriamente, que uma livraria grande como o Mundo, nam compreenderia, todas as asoens de Cristo, serîa louco: porque todos os Padres intendem o texto, iperbolicamente: e a Escritura abunda muito, destas expresoens. O mesmo digo, das-expresoens figuradas dos-Padres. Comque, semelhantes autores sam a origem, de todos estes danos: porque os ignorantes, que nam sabem distinguir o branco do-negro, servem-se de semelhantes livros, como de oraculos.

Mas, sem buscar exemplos de longe, tornemos ao meu Pregador asima, e verá V.P. provas bem eficazes, do-que lhe digo. Pregava ele da-Asumsam da-Senhora, na igreja de N. S. da-Gloria; com o tema, Maria optimam partem elegit. Protesta em primeiro lugar, que nam lhe-agrada coiza alguma, do-que tem dito os PP. e Expozitores todos: e que quer, coiza mais fina. Os Padres o mais que diseram foi: Que Maria escolheo a maior gloria, entre todos os bemaventurados. o noso Pregador parecendolhe, que, dizendo aquilo, diziam uma bagatela; sobe de ponto, e diz: Que a comparasam de gloria a gloria, nam se-deve fazer só, entre a gloria de Maria, e a gloria de todas as outras criaturas umanas, e angelicas: senam com a gloria do-mesmo Criador delas, a quem Maria criou. A palavra optimam (continua ele) a tudo se-estende: porque sendo superlativa, poem as coizas no-supremo lugar: do-qual se-nam-exclue Deus, antes se-inclue esencialmente. Neste tam remontado sentido pertendo provar, e mostrar oje, que a gloria de Maria, comparada com a gloria do-mesmo Deus; e fazendo da-gloria de Deus, e da-gloria de Maria, duas partes; a melhor parte, é a de Maria==. Até aqui o Pregador.

Bastava a propozisam do-asumto, para provar o que digo: mas peso a V. P. um bocadinho de sofrimento, para ouvir a expozisam, e a primeira prova. Aindaque a gloria de Deus, (diz ele) é infinitamente maior, que a de Maria; a melhor parte que pode escolher uma maen é, que a gloria de seu filho seja a maior. Como Maria é maen de Deus, e Deus filho de Maria; mais se-gloreia a Senhora, de que seu filho goze, esa infinidade de gloria, doque se a gozára em si mesma. E daqui se-segue, que considerada a gloria de Deus, e a gloria de Maria, em duas partes; porque a parte de Deus é a maxima; a parte de Maria é a otima==. Posto[Pg 144] isto, prova com Seneca, Ovidio, Plutarco, e Claudiano, que os Filhos podem vencer os Pais, em beneficios, e em gloria: e que isto é, o que mais deve dezejar um Pai. De que conclue: Que se entre a gloria de Deus, e de sua maen, fora a escolha da-mesma Senhora, o que a Senhora avia escolher para si é, que seu Filho a-excedèse, e vencèse na mesma gloria; como verdadeiramente a-excede e vence==. Despois disto produz alguns Padres, que, escrevendo a diversas pesoas, dezejavam, que os Filhos deles excedesem aos proprios Pais: traz outros exemplos da-Escritura; e conclue com uma prova teologica, que diz o contrario, do-que ele quer provar. Este o sermam em breve: no-qual nam á pouco, que observar.

Primeiramente o asumto que tira é tal, que se tivese a infelicidade, de o-provar direitamente, dizia uma erezia. cauza orror somente ouvir propolo. A explicasam é pior, que o mesmo asumto. N. Senhora nam podia escolher uma coiza, emque nam entra liberdade: como é, ser a gloria de um tal filho maior, que a da maen: porque iso era necesario. Teve a Senhora liberdade para aceitar, ou nam aceitar, o ser maen de Cristo: mas nada, de liberdade, sobre a gloria. Na supozisam imposivel, que à Senhora desem a escolher, o tomar para si a gloria toda do-Filho; ou contentar-se de ter um filho, que a-tivese asim; eu nam sei o que a Senhora diria: nem pertence ao Pregador, advinhálo. É verosimel, que a Senhora nam deixaria de escolher para si, uma gloria de tanta dignidade. Mas de supozisoens imposiveis, que omem prudente tirou jamais, consequencias absolutas? Fica logo claro, que aqui nam ouveram, duas partes de gloria: entre as quais a da-Maen fose maior, que a do-Filho. E quanto a estas sutilezas metafizicas, nam provam, nem concluem coiza alguma, quando se-á-de persuadir, alguma coiza verdadeira.

Quanto à prova teologica, é ela tal, que me-envergonho saise da-boca, de quem estudou Teologia. Propoem as palavras de S. Paulo[38]: Non rapinam arbitratus est, se esse æqualem Deo: sed semetipsum exinanivit, formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus, & habitu inventus est ut homo. propter quod & Deus exaltavit illum: & dedit illi nomen, quod est supra omne nomen==. Daqui deduz, Que recebeo o Filho do-Pai, por-verdadeira e propria eleisam, o oficio e dignidade de Redemtor do-genero[Pg 145] Umano, fazendo-se juntamente omem: e com esta nova, e inefavel dignidade, recebeo um nome sobre todo o nome, que é o nome de Jezus: mais sublime e veneravel, polo que é, e polo que significa, que o mesmo nome de Deus: In nomine Jesu omne genu flectatur. Recebeo a potestade judiciaria: Pater non judicat quemquam: sed omne judicium dedit Filio. Recebeo o primeiro trono, entre as pesoas da-SS. Trindade: Dixit Dominus Domino meo, sede a dextris meis. Se pois o Padre podia tomar tudo isto para si, porque o-nam-tomou todo? por-nenhuma outra razam, senam porque era filho.... intendendo, que quando fosem de seu filho, entam eram mais suas: e que mais e melhor as-gozava nele, que em si mesmo==. Sam palavras do-Pregador. Aplica isto à Senhora, e conclue, Que por-iso elegeo a melhor parte: Maria optimam partem elegit.

Nam me-quero demorar muito neste exame, porque serîa nunca acabar: direi somente de pasagem, que o noso Pregador com todo este discurso desfaz, quanto pertendèra mostrar. Concedamos-lhe tudo de barato, e que o Filho teve maior gloria que o Pai. &c. progunto: ou daqui se-segue, que desa maior gloria do-Filho, rezultou no-Pai maior gloria, doque tinha o Filho, ou nam? Se rezultou maior gloria; ficam desmentidas todas as provas do-Pregador, com que quer mostrar, que o Filho excede ao Pai, na gloria. Se nam rezultou maior gloria; nunca se-pode dizer, que o Pai escolheo meliorem, immo & optimam partem. paraque serve pois toda aquela arenga, se nam á-de provar, o que quer? De toda esta metafizica pois, com que o Pregador enche o sermam, o que se-segue é, que se-contradiz a si mesmo.

Mas quem poderá admetir, as provas do-Pregador, tomadas literalmente, como ele as toma? Em primeiro lugar é falso, que o Pai dèse ao Filho, com propria eleisam somente sua, a grandeza de Redemtor: porque sendo a Incarnasam, obra ad extra, como lhe-chamam os Teologos, todas as trez pesoas com uma unica vontade, concorrèram para ela. E isto nam sam Teologias exquizitas: mas os primeiros elementos da-Fé. Polo contrario, o noso Pregador supoem mui distintamente, que o Pai tinha uma vontade, e o Filho outra: porque sem esta supozisam, nam corre o argumento. E semelhante supozisam, nam sei como os Qualificadores a-deixáram pasar. Em-segundo lugar é falso, que o[Pg 146] nome de Jezus seja maior, que o nome de Deus. Aquele supra omne nomen nam se-intende, compreendendo o nome de Deus. É falso, que o Pai abjudicase de si, a potestade judiciaria. É falso, que o Filho tenha o primeiro trono, entre as pesoas da-SS. Trindade. Todos aqueles textos, se-devem intender, com seu gram de sal, segundo a expozisam dos-antigos Santos, e doutrina da-Igreja. É falso finalmente, que a gloria do-Filho, que lhe-rezulta da-redemsam, seja maior que a do-Pai. Ora tudo isto era necesario, que fose verdade, paraque a paridade fose boa, e prováse, o que o Pregador queria.

Alguns me-respondèram ja, que as palavras dos-textos mostravam, o que o Pregador dizia: e que nos-sermoens nam se-deve procurar, rigor teologico. Esta é a cantilena comua, destes apaixonados por-tais sermoens. A isto ja respondi varias vezes, e nesta mesma carta. O que dalî se-segue é, que tais sermoens sam trocadilhos de palavras: e que páram na superficie, sem profundarem o sentido. Semelhantes nisto a outro sermam, que eu li, em que o autor, para provar a negrura da-Morte, trazia o texto: Lanarum nigræ nullum colorem imbibunt. como se bastáse alguma semelhansa de palavras, para provar pensamentos graves! Tambem é falso dizer, que nos-sermoens nam se-deve buscar, rigor teologico. Eu intendo por este nome, verdade teologica: e suposto isto constantemente defendo, que nenhum sermam se-deve tolerar entre Catolicos, que tenha propozisoens contrarias, à dita verdade. As ampliasoens, as iperboles, as delicadezas, podem ter lugar nas orasoens: mas devem ser de outra qualidade, que as que aponto. Eu deixei o sermam quazi no-fim, em que avia outro pensamento, bem galante: mas nam tenho tempo, para me-demorar tanto, com estas coizas. Do-que até aqui tenho dito, cuido ficará V.P. persuadido, do-que afirmo, se quizer ter o trabalho, de ajuntar as minhas reflexoens, com a leitura do-tal sermam. * * *

Esta materia de panegiricos é tam ampla, que serîa necesario um grande volume, para tocar levemente, o que lhe-pertence. Acham-se porem outros panegiricos, que rigorozamente o-sam, e eu considero divididos, em varias clases. Compreende a primeira aqueles, que tratam de varias asoens de Cristo, como Mandato, Sacramento, Resurreisam, Acensam &c. Aqui é onde os Pregadores lambicam o ingenho, para dizerem coizas mui singulares: e aqui é onde se-mostra, a quinta esencia de toda a sutileza.[Pg 147] Aquele, Cum dilexisset suos, in finem dilexit: tem-se espremido de tantas maneiras, que eu ja nam sei, que coiza boa pode botar de si: e Pregador conheso eu, que, aplicando o texto a mui diferente asumto, em lugar de pregar de Cristo, pregou de si. Nas provas porem concordam estes sermoens, com os antecedentes, com a unica diferensa de mais, ou menos. Sobre o da-Resurreisam, ja se-sabe, que os melhores Pregadores dizem suas galantarias, e nam poucas parvoices, improprias daquele lugar, e da-materia que tratam: como tambem pouco decentes, a qualquer outro lugar sezudo. Ajunto a esta, outra quinta especie de sermoens, tambem panegiricos, que sam os louvores de algumas obras pias, como Publicasam do-Jubileo, Obras de Mizericordia, Procisoens &c. Estes ja sabemos, que sem profecia nam podem pasar: porque como ja dise a V. P. muitas vezes, este é um pecado nacional destes paizes, para o qual ainda até aqui, nam ouve redemsam. Com o que asima dise dos-outros, pode-se intender o que se-deve dizer destes. o defeito é geral: e asim a resposta sempre é a mesma.

Quanto aos sermoens das-Domingas de Quaresma, e Misoens, devo confesar, que tem menos defeitos, que os outros: porem sempre conservam os esenciais. Tambem neles (de Quaresma) á sutilezas, asumtos impropriisimos, pesima dispozisam de provas, e outras coizas destas. O que verdadeiramente nam poso sofrer é, que estes seus Pregadores Portuguezes, procurem singularizar-se, com esquipaticos asumtos, nos-mesmos sermoens da-Quaresma. O Pregador da-menhan, dizem que explica o Evangelho: o de tarde, toma um asumto mais geral, que distribue em sinco Domingas, sem se-sugeitar ao Evangelho do-dia. Aqui pois move a compaixam ouvir, o que alguns excogitam, e quanto trabalham para descobrir na Escritura, um numero de cinco, que seja acomodavel, ao dito asumto. Uns, vam buscar, as cinco pedras de David: para atirar ao auditorio, uma seixada espiritual cada Dominga. Asumto improprio, e só coiza digna de um menino, que nam intende, o que é eloquencia: sendo certo, que dezemparam logo o seixo, para falarem em outra materia. Outros, vam buscar no-Cardial Ugo, que afeta ser moral, e misteriozo, algumas palavras gerais, que posam calsar às cinco Domingas. Tudo isto sam arengas: mas estes ainda sam mais toleraveis. Os que eu nam poso sofrer sam, os que, saindo fora do-numero de cinco, por-se-quererem[Pg 148] singularizar dos outros, tomam ideias mais improprias. Tal foi um Pregador de boa fama, que ouvi, o qual tomou por-asumto, explicar o Racional de Aram, ou aquele pano que trazia o Sumo Sacerdote dos-Ebreos, no-peito, em dias de funsam, com doze pedras preciozas cravadas, em que estavam esculpidos, os nomes das-doze tribus. Este titulo de sermam agradou muito, aos que tem o juizo nos-cotovelos, que sam os mais. Concorri eu tambem, para ouvir o sermam, porque cazualmente naquele dia, achava-me na dita Cidade: e como ja se-falava muito nas tais Domingas, que foram pregadas em outra parte, fui ouvir, que asumto tirava do-Racional: e como acomodava as doze pedras, com as cinco Domingas. Com efeito o meu bom Pregador, escolheo entre as pedras, as que lhe parecèram, e regeitou as outras. Galante modo de explicar, o Racional de Aram! Do-sermam nada digo, porque a coiza fala de si. Saindo eu para fora, incontrei um Religiozo da-Companhia meu amigo, e um dos-omens de melhor juizo, que eu tenho cá visto; o qual apertando-me a mam, me-dise: Amigo, o Racional é uma peste: o pobre Aram nam esperava, que o-tratasem tam mal: e concluio dizendo, que tudo aquilo era uma parvoise.

Com efeito eu nam acho, que proporsam tenha uma coiza, com outra: ou para que ei-de ir buscar um titulo, que nada tem que fazer, com o sermam. Nam sei como estes Pregadores ingenhozos, nam tem buscado, os cinco escudos das-armas de Portugal, ou as cinco quinas: em que se-podia dizer, muita coiza boa. Nam sei como nam se-tem apegado, às cinco torres de Lisboa, a de S.Giam, do-Bugio, de Belem, a Torre Velha, e o Forte da-caza da-India: daqui podiam sair muitos tiros espirituais, e se-podia dizer, muita coiza bonita. Nam sei como nam explicam, os cinco dedos da-mam, e mil outras coizas, que se-podem compreender, debaixo desta ideia de cinco.

Mas, a falar a verdade, tudo isto sam rapaziadas: e os que procuram estes asumtos, nam sabem o seu oficio, nem de que cor é, pregar. Eu intendo que o Pregador de tarde, deve tirar do-Evangelho, um asumto proprio para o auditorio. Nem me-digam, que o de menhan ja explicou o Evangelho. os que asim falam, nam sabem que coiza é Escritura. O mesmo Evangelho, pode dar infinitos asumtos. Nam é necesario, que todos se-sirvam das-mesmas palavras: podem-se escolher outras: procurar[Pg 149] os SS. Padres, e tirar um asumto proprio: para iso servem os Expozitores. Na quinta Dominga de Quaresma, todos se-servem das-palavras: Se Veritatem dico vobis &c e pregam da-Verdade em geral. Um omem que eu conheci, pregando em um Convento de Freiras, tomou as ultimas palavras: Tulerunt ergo lapides ut jacerent in eum. Jesus autem abscondit se, & exivit de templo. Daqui tirou este asumto: Que Cristo nesta asám quizera ensinar-nos, com quanta diligencia devemos fugir, de profanar os Templos. porque nam só se-escondeo Cristo: mas fugio. Com a primeira asám, evitava a profanasam com a obra, impedindo a morte: com o sair, evitava a profanasam com a intensam, fugindo da-prezensa de omens; que ainda conservavam os dezejos, de o-profanar. Acomodou isto ao intento, mostrando, quanto Deus abominava, a profanasam dos-Templos. Nam avia asumto mais proprio, ao lugar: porque nam avia lugar mais profanado com asoens, e intensoens pecaminozas. Este era um asumto novo: nam sutil, e ridiculo; mas verdadeiro, e mui proprio: E isto chama-se pregar: o mais, é falar de alto. Quem tem ingenho, e leitura, pode tirar infinitos asumtos, do-mesmo Evangelho, acomodados ao seu cazo.

Mas quando o Pregador nam quizese, servir-se do-Evangelho, pouco importaria: bastava que escolhese um Vicio, para o-condenar, em cada Dominga, digo dos-que mais reinam naquela Cidade. Porque os sermoens de Quaresma, sam rigoroza misam: e se-deve buscar, argumento proprio para isto. Quero ainda conceder, que cada um destes cinco sermoens, deva ter relasam, com os outros, e compor um corpo de doutrina: digo ainda neste cazo, que é fácil a um omem de juizo, buscar um argumento natural, e solido, que se-posa dividir em cinco partes; para explicar cada parte, em sua tarde: Sem dizer ridicularias e sutilezas; mas coizas, verdadeiras, utis, e graves: e aplicando sempre o sermam, à necesidade do-auditorio. Este é o defeito geral, da-maior parte destes Pregadores, que comumente se-servem de ideias gerais, que nam calsam bem ao auditorio; e de que nam se-tira fruto algum: pois tam ridiculo é, falando a omens doutos, querer-lhe explicar, as pesoas da-Trindade &c. como falando a pesoas ignorantes, servir-se de ideias especulativas; ou, falando às Freiras, pregar da-politica de Machiavelo, e aos Rusticos, do-Principium quo in divinis: da-Existencia definitiva e circunscritiva[Pg 150] na Eucaristia &c. como eu ja ouvi a alguns pregadores, e mestres. A isto chama-se, nam saber o decoro, quero dizer, nam saber tratar a materia, nem aplicar os argumentos aos ouvintes: coiza que condenam os Retoricos[39].

Tambem notei em certos Pregadores, alem dos-ditos, certos defeitos, que nam sam de pequena considerasam. Omens á, que aplicam os sermoens, às suas particulares intensoens; e em lugar de pregarem, do-que devem, pregam de si: E como o tema nam dá para isto, dezempáram logo o asumto, para meterem outros pensamentos mui alheios: e querendo dizer tudo, nam dizem coiza que valha. Alguns, despedem-se no-sermam, das-pesoas suas conhecidas: * * * outros, fazem satira aos Prelados, ou ao governo politico da-Cidade &c. ou, a pesoas particulares, ou aos seus mesmos ouvintes. E neste ultimo ponto, nam só caiem os ignorantes, mas pola maior parte, os de maior doutrina, e prezumsam: e por iso às vezes as provas, sam tam arrastadas, que é uma piedade ouvilos. Eu quero conceder de barato, que seja verdade o que dizem: mas nam é aquele o seu lugar: e sempre tem promto o argumento: V. P. foi chamado para pregar disto, e nam daquilo. Este nam é pequeno defeito de Retorica: pois é alienar os animos dos-ouvintes: de que se-segue, nam se-poder obter a persuazam.

Estes sam os defeitos mais gerais, mas comuns, de todos estes seus Pregadores. Dos-quais se-conclue claramente, que lhes-falta a principal parte da-Retorica, que è a Invensam: da-qual falta nacem, todos os outros defeitos, que impedem o bom gosto da-eloquencia. Criados desde a primeira mocidade, com aquele pesimo estilo, de buscar conceitos exquizitos, e dividir a orasam em tantas partes, quantos eles sam; perdem os melhores argumentos, que lhe-dariam materia, para tecer uma orasam continuada;[Pg 151] que persuadise o auditorio, e fose digna de se-ouvir. Nam reprovo as divizoens, quando sam necesarias, e a materia as-pede: reprovo sim muito, o acomodar a materia às divizoens, para fazer a costumada trepesa.

Desta falta, de nam saber buscar as provas, nace a segunda, e tam importante, da-Dispozisam. Pois nam tendo argumentos proprios, nam podem dispolos em maneira, que formem uma orasam unida: na qual o exordio, ou seja unido, ou separado, forme um perfeito corpo com o todo: e em que as partes observem, a sua justa proporsam, e tal, que umas sirvam de aclarar as outras: e conduzam para o fim, de persuadir o que se-quer. Desta mesma falta nace, a da-Locusam: sendo certo, que quem nam acha um argumento, acomodado ao que quer, mas vai buscando sutilezas; nam incontra com palavras proprias, para expremir um pensamento sezudo, e nobre: nem acha aquelas que sam necesarias, para ornar com armonia os pensamentos; desorteque fasam uma orasam armonioza, e agradavel, sem ser afetada: o que nam tem pouca dificuldade[40]. De que vem, que comumente enchem o discurso, de mil tropos e figuras, fóra do-seu lugar; que mostram, o pouco talento do-Pregador, e a ignorancia, da-sua propria lingua. Nace daqui tambem, nam saber escrever uma carta, ou formar qualquer outro discurso, que posa persuadir. Finalmente nace, o nam saber discorrer com propriedade, em materia alguma. Leia V. P. as cartas que se-acham de Frei Pedro de Sá, e Frei Lucas de Santa Catarina, e outros semelhantes: leia os seus discursos: e verá, que cartas, orasoens, sermoens &c. tudo é o mesmo. Nam se-acha mais, que equivocos, palavras sem significado, pensamentos inverosimeis, encarecimentos inauditos, em uma palavra, uma lingua nova, que serve para toda a sorte de asumtos, sem distinsam. Os ignorantes gostam muito disto, e copeiam esta sorte de papeis, com todo o cuidado, e acumulam quantos podem: mas os que verdadeiramente intendem a materia, nam podem menos que rir-se, de tais escritos; dos-quais toda a alma cristan deve fugir, como contrarios,[Pg 152] à boa eloquencia. A razam de tudo isto é a mesma: porque quem bebe aquele estilo, de sutilezas, afetasoens, e singularidades; nam sabe distinguir os estilos, proprios dos-diversos argumentos, que se-lhe-oferecem: e asim nam sabe, nem pode fazer coiza boa, nem chegar a persuadir ninguem.

É uma prova manifesta disto, a infinita distancia que eles poem, entre sermam funebres na Igreja, e orasam funebre na Academia. Nesta nam á tema: comumente nam á divizam de pontos: nam á textos da-Escritura: á menos sutilezas: e acha-se um discurso continuado, ainda-que cheio de mil impropriedades, e ridiculos encarecimentos: No-outro acha-se tudo o contrario. De que provèm esta grande mudansa? eu o-direi: De nam saber, o que é Retorica: porque os preceitos em ambas as partes, sam os mesmos. No-pulpito, poso uzar de mais asám do-corpo; e animar com a voz o discurso: na-academia recito com mais brandura. Mas o papel em ambas as partes é o mesmo: e doque se-faz na academia, podiam eles inferir, o que devem fazer no-pulpito.

Porem aqui me-parece, que ouso dizer a V. P. que ja que apontei os defeitos, aponte o modo de os-emendar. Mas isto; P. muito reverendo, nam é negocio que se-posa fazer, com tanta brevidade, pois pediria um tratado inteiro. O que tenho dito, bastava para um omem de juizo: e a lisam dos-bons autores, completaria tudo. Contudoiso, para obedecer a V. P. nam deixarei de fazer alguma reflexam, adquerida parte com a lisam dos-outros, parte com a minha propria experiencia, e reflexam: as quais V. P. aplicará, aos cazos particulares. Mas como isto pede mais tempo, quero rezerválo para outra carta: e acabo esta, com pedir a V. P., me-conserve na sua grasa. Deus guarde &c.

NOTAS DE RODAPÉ:

[30] Quia nonnulli Sacrarum scripturarum verba & sententias, ad profana quæque detorquent; ad scurrilia, scilicet, fabulosa, vana, adulationes, detractiones, superstitiones, impias & diabolicas incantationes, divinationes, sortes, libellos etiam famosos: ad tollendam bujusmodi irreverentiam, prohibet S. Synodus, ne quisquam quomodolibet verba scripturæ Sacræ ad hæc, & similia audeat usurpare: atque bujusmodi temeratores & violatores verbi Dei, juris & arbitrii pœnis per Episcopos coerceantur. Trident. Sess. I.

[31] Diodor. Sic. l. 1. sect.2.

[32] Exodi XIII. 18.

[33] חמשים

[34] Rupert. in Johann. I. = Tostat. in Matth. X. = Jansen. = Alapide Harm. in Johann. I. &c.

[35] Aug. in Johann. Homil. 7. & in Ps. 65.

[36] In Job. XXXII. 15.

[37] XXI. 25.

[38] Ad Philipp. II. 6.

[39] Est autem quid deceat oratori videndum, non in sententiis solum, sed etiam in verbis. Non enim omnis fortuna, non omnis honos, non omnis auctoritas, non omnis ætas, nec vero locus, aut tempus, aut auditor omnis, eodem aut verborum genere tractandus est, aut sententiarum: semperque in omni parte orationis, ut vitæ, quid deceat, est considerandum: quod in re de qua agitur positum est & in personis eorum, qui dicunt, & eorum, qui audiunt =. Cicer. Orat. num. 21.

[40] Atque illud primum videamus, quale sit, quod vel maxime desiderat diligentiam, ut fiat quasi structura quædam, (verborum) nec tamen fiat operose: nam esset cum infinitus, tum puerilis labor. Cicer. Orat. num. 44.


[Pg 153]

CARTA SEXTA.
SUMARIO.

Continua-se a mesma materia da-Retorica. Fazem-se algumas reflexoens, sobre o que é verdadeira Retorica, e origem dela. Que coiza sejam figuras, e como devemos uzar delas. Diversidade dos-estilos, e modo de os-praticar: e vicios dos-que os-nam-admitem, e praticam. Qual seja o metodo de persuadir. Qual o metodo dos-panegiricos, e outros sermoens. Como se-deve ensinar Retorica aos rapazes, e ainda aos mestres. Algumas reflexoens, sobre as obras do-P. Antonio Vieira.

Nam intenda V. P. que ei-de faltar à promesa: pois nam só com promtidam, mas com muito gosto executarei nesta carta, o que prometi na ultima: e direi o como se-devem intender, as coizas que dise, para emendar os defeitos, que nestes Retoricos vulgares s’incontram: e que eu apontei na carta pasada. Digo pois, que o primeiro, e mais importante ponto que deve advertir, quem quer formar, o bom gosto literario, é, fugir totalmente destas Retoricas comuas, nam só manuscritas, mas tambem impresas. Estou persuadido, que elas sam a primeira ruina dos-estudos: porque inspiram mui maos principios, e nam ensinam o que devem. Ouso louvar muito nestes paîzes, o Candidatus Rhetoricæ do-P. Pomei, o Ariadne Rhetorum do-Juglar &c. e mestres conheso eu, que nam tem mais noticia da-Retorica, que a que dá o dito livro, ou outro semelhante. Isto porem é mera iluzam: porque para nam saber nada, nam á melhores livros, que os ditos. Estes, e outros tais autores, fazem uma enumerasam das-partes da-Retorica, mui seca e descarnada. propoem mil questoens, e nam rezolvem nenhuma bem. todo o livro consiste em divizoens, e subdivizoens, que enfadam antes de s’intenderem. Mas o pior é, quando ensinam a servir-se, dos-lugares Retoricos: quando mostram os diversos modos, de ampliar[Pg 154] um argumento: dizem mil coizas inutis, e que mais facilmente s’aprendem, lendo os bons autores, que estudando as tais observasoens.

Este em carne é o defeito, em que caiem os Logicos Peripateticos, quando se-dilatam muito, sobre a fórma silogistica, e ponte dos-asnos: despois de dizerem muito, sam obrigados a reconhecer, que nada daquilo serve, para coiza alguma: e que na pratica do-argumentar, nam só sam inutis, mas até imposiveis as tais regras. Nam achei até aqui Peripatetico algum, que, devendo em algum ato publico, provar de repente alguma propozisam, que lhe-duvidasem; se-servise de tal metodo: nem menos achei omem algum, que, senam intendeo, e estudou bem a materia, que á-de tratar; servindo-se unicamente dos-lugares Retoricos, fizese coiza capaz. Chama-se perder inutilmente o seu tempo, querer ensinar todas aquelas arengas: das-quais unicamente rezulta, a desvanecida opiniam de uma ciencia, que nam tem. Os rapazes que estudáram aquilo, persuadem-se, que sam Retoricos da-primeira esfera: que podem, com a ajuda de quatro adjetivos e sinonimos, e quatro descrisoens afetadisimas, arengar de repente, em qualquer materia. Intendem, que nam á orasam, que nam observe a dispozisam, que eles lem na sua Retorica. julgam, que nam á discurso oratorio, sem todas aquelas mexerofadas. Finalmente, como nam lhe-explicam, o verdadeiro uzo da-Retorica, e artificio da-verdadeira eloquencia; persuadem-se, que só nos-discursos academicos, tem ela lugar. De que nace, que despois de perderem bem tempo nas escolas, a que chamam de Retorica, ficam totalmente ignorantes dela.

Isto suposto, é necesario desterrar uma, e admetir outra sorte de Retorica. Ja asentamos, que a Retorica deve ser em Portuguez, para os que nacèram em Portugal: porque, asim s’intendem os preceitos: e na sua mesma lingua se-mostram, os exemplos. Nam avemos de carregar os rapazes, com dois pezos: intender a lingua, e intender a Retorica: tambem nam avemos fingir os Omens, como nam sam; imaginando rapazes mui agudos, e espertos. Tudo isto é iluzam. Os rapazes sam de diversas capacidades: e muitos sam rudes. comumente aprendem Retorica, quando ainda nam intendem bem Latim. E asim, é necesario falar-lhe em Portuguez: muito mais, porque ou queiram ser Pregadores, ou Advogados, ou Istoricos &c. tudo isto se-faz cá em[Pg 155] Portuguez: e é loucura ensinar em Latim uma coiza, que pola maior parte, se á-de executar, em Vulgar. Esta é a primeira regra do-Metodo, facilitar a inteligencia. Nam tenho até aqui visto, (pode ser que aja) Retorica Portugueza impresa. Certo sugeito mostrou-me á tempos, alguns apontamentos que fizera: mas nam mereciam o nome de Retorica. tenho visto varios livros de conceitos: mas nam era coiza, que merecese ler-se. Sei porem, que atualmente se-copeia, uma Retorica Portugueza, que me-parece propria para formar, o bom gosto da-Eloquencia. Um amigo meu mui particular a-compoz, para uzo seu. pedio-me noticia, dos-melhores autores nesta materia: e deles copiou, o que conconduzia, para o seu intento. uzou comigo a amizade, de consultar-me na dispozisam dela. teve a moderasam de ouvir, e nam desprezar, as minhas reflexoens. cuido que felizmente conseguio, o seu intento: devo fazer esta justisa, à sua grande capacidade. Nam sei, se a-determina divulgar: o que se puder ser, procurarei de a-comunicar a V. P. seguro, de que nam lhe-dezagradará. Mas, tornando ao fio das-minhas reflexoens:

Ja dise ao principio, que sendo a Retorica, arte de persuadir, tinha lugar em todo o discurso, que seja proferido com este fim. Doque se-segue, que a Retorica tem tanta extensam, quanta qualquer lingua: o que muitos nam intendem, ainda dos-que lem as Retoricas. Parece paradoxo a muitos, destes enfarinhados nos-estudos, dizer-se, que n’uma carta, que é escrita com estilo simplez; n’uma Poezia, na Istoria, e n’um discurso familiar &c. deve ter lugar a Retorica. E isto provèm de intenderem, que a Retorica consiste, em figuras mui dezuzadas, tropos mui estudados &c. e asim parece-lhe, que nam se-caza uma coiza com outra. Mas por-pouco que estes tais, examinasem a materia; conheceriam, que tudo se-deve tomar, em diverso sentido.

Nam á lingua neste mundo, tam fecunda de palavras, que posa expremir, todas as ideias do-intendimento: A fecundidade que tem a mente, em formar conceitos, e a facilidade com que de uma mesma coiza, fórma infinitas ideias, é tal; que pode empobrecer, todas as linguas do-mundo. Seriam necesarias muitas palavras, para um omem poder dizer sofrivelmente, o que intende. Mas isto pediria tempo infinito, e o comercio umano se-faria insoportavel. Conhecèram os Omens muito bem isto, e cuidáram em lhe-pór o remedio. Daqui naceo a necesidade de servir-se, de algum modo[Pg 156] de expremir, que, aindaque nam diga tudo, excite diversas ideias no-intendimento, e poupe o trabalho, de proferir muitas palavras. A experiencia mostrou, que as nosas ideias tem uma certa uniam, com que mutuamente se-ajudam: proferida uma das-quais, todas as outras se-aprezentam. Isto asim posto, os Omens souberam aproveitar-se, desta experiencia; e comesáram a servir-se de um nome por-outro, para poder excitar a ideia, do-que queriam. Um nome que significava uma coiza, aplicou-se para significar outra; e se-transportou da-sua significasam propria para outra, por-cauza de certo respeito, ou relasám, ou ordem, ou nexo, que uma coiza tem com outra. A isto chamáram Tropo, palavra Grega, que significa transpozisam: e estes modos de falar, chamáram-se Figuras: as quais podem ser infinitas: mas os Retoricos as-reduzîram a pequeno numero, contando as mais uzuais: e destas se-faz memoria, nas comuas Retoricas, com diversos nomes.

Estes Tropos, Metaforas, ou Metonimias, que significam o mesmo, tem grande uzo, e sam necesarias em todas as linguas, e ornam muito: nam só porque encurtam o discurso, e fazem mais gostoza a conversasam; mas tambem porque exprimem melhor, o que se-quer dizer, doque outras palavras. Diz mais às vezes, uma só metafora, que um longo discurso: e com uma só palavra, é mais bem intendido um omem, doque com a fecundidade de infinitas. Quem ouve dizer, que Alexandre era um raio da-guerra; a ideia do-raio, que é uma coiza sensivel, exprime bem o grande poder, com que este omem sugeitava tudo: a velocidade das-suas conquistas: o eco das-suas vitorias; que atroava tudo, e ainda as mais remotas Nasoens. Este justamente é o carater de Alexandre: como ja a Escritura tinha delineado. Uma só ideia excita mil outras, ao intento. E como os Omens estam acostumados, a estas imagens sensiveis; os tropos que delas se deduzem, valem infinito. Apenas o comum dos-Omens pode intender, e julgar de outra sorte.

Sam boas, asim é: mas o uzo é que as-faz racionaveis: quero dizer, que se-devem uzar em tempo, e lugar proprio, e quando o discurso o-pede. O que nam advertindo os ignorantes, servem-se pouco sabiamente das-Figuras; e com muito estudo, falam bem mal. Nam á maior beleza em uma cara, que os olhos: mas se um rosto nacèse com mais de dois; se chegáse a ter meia duzia,[Pg 157] serîa um monstro. Deve aver figuras: mas á-de aver proporsam, eleisam, dispozisam: ou seja no-discurso familiar, ou na Istoria, ou na Cadeira. Este é o grande segredo do-falar bem: o qual como muitos, segundo adverti, nam chegam a penetrar, quando ouvem falar em Tropos, tremem de pés e cabesa: e persuadem-se, que é algum enima singularisimo, rezervado para algum ato publico, ou coiza semelhante.

Como as palavras sam as que significam, o que pasa dentro d’alma, ouve necesidade de procurar palavras, para expremir, nam só o que a alma conhece, mas tambem o que quer; ao que chamamos, afetos da-alma, ou paixoens. O Omem nem sempre se-acha, na mesma dispozisam de animo: mas esporiado de alguma coiza, saie fóra de si, e entam fala de outra maneira, mui diferente. As expresoens com que se declara isto, se-chamam Figuras; com a diferensa, que os Tropos sam figuras das-vozes: e estas que aqui digo, sam figuras do-animo. É incrivel, a diversidade destas vozes do-animo. Um omem agitado, nam só no-exterior do-rosto, mostra a sua perturbasam, mas tambem no-modo do-seu discurso. As paixoens violentas, alteram a bela armonia dos-umores: engrosam os objetos: impedem que a alma dè a devida atensam, ao que julga: no-mesmo instante a-transportam, de uma coiza para outra: sam como o mar alterado, que joga a pela com um navio. Onde, agitadas com tanta confuzam, as fibras do-cerebro, a alma, que em virtude daquela armonioza dependencia, que estableceo Deus entre ela e o corpo; deve conhecer todas as imagens, que elas lhe-prezentam; nam tem, se me-é licito explicar asim, repouzo algum. A alma agitada, imprime novo movimento nas fibras, e estas na machina: de que nacem as palavras: com as quais dando-se dezafogo à ira, que moveo a machina, se-dá tambem repouzo, à alma.

Sendo pois as nosas palavras, consequencias dos-movimentos d’alma, e conrespondendo perfeitamente, aos nosos pensamentos; é claro, que o discurso de um omem, que está sumamente agitado, deve ser dezigual. Algumas vezes parece este omem difuzo, e fórma uma exata pintura, das-coizas que sam objeto, da-sua paixam: e cuidando que o-nam-intendem bem, repete a mesma coiza, em cem diferentes maneiras. Algumas vezes interrompe o discurso, e sepára as palavras umas das-outras, dizendo de uma só vez, bastantes coizas. Muitas vezes vareia o discurso, com mil[Pg 158] proguntas, com exclamasoens, com frequentisimas digresoens. Finalmente um discurso destes vareia-se, com infinitos modos de falar: os quais modos sam tam proprios, daquelas paixoens d’onde nacem, que, ouvindo-os proferir, fica um omem formando, justa-ideia da-paixam. Estas pois sam as tanto celebres Figuras do-animo: as quais nenhuma outra coiza sam mais, que modos de falar particulares, e diferentes dos-modos de falar natural e uzual.

Estas Figuras, que sam as naturais pinturas das-paixoens, sam sumamente utis, e necesarias no-comercio umano. Um pintor famozo, (dise um grande Retorico, de quem eu aqui sigo as pizadas) que quer delinear um painel istoriado, nam só pinta as figuras, que devem intrar no-quadro; mas procura, que cada uma esteja naquele ato, que exprima, o paraque ele ali a-poem: nem só isto, mas até no-rosto lhe-pinta, aqueles acidentes, que denotam a paixam, de que sam produzidos. Explico-me melhor. Um omem agitado, e alterado com a colera, nam tem o rosto sereno; mas fica palido: abre uns olhos, que parecem cheios de fogo: carrega a vizeira: finalmente mostra no-rosto mil acidentes, que sam os carateres da-Colera. Isto pois é o que procura imitar, o pintor: e se chega a imitálo bem, só este é o bom pintor. O Retorico nam tem cores, com que imitar a natureza, como o pintor: mas tem palavras, para imitar aquelas, que profere um omem dominado da-paixam, que ele quer persuadir: e como estas paixoens tenham, diferentes carateres; é necesario que se-sirva de diferentes figuras, para as-expremir[41].

[Pg 159]

Alem disto, ninguem pode persuadir outro, sem que excite nele aquela paixam, que lhe quer persuadir: porque as paixoens sam os instrumentos; e, para me-servir de uma expresam filozofica, as machinas que abalam a alma, e a-inclinam para onde querem. Ora para excitar estas paixoens nos-outros, é necesario, que um omem se-mostre dominado, da-mesma paixam:[42] porque, suposta aquela particular dispozisam, e semelhansa dos-nosos corpos, deixamo-nos persuadir daquela paixam, que vemos nos-outros: dos-mesmos sentimentos: dos-mesmos afetos: se nam se-acha algum obstaculo, que empesa o curso da-natureza. Naturalmente inclinamos a ter compaixam, de uma pesoa, que mostra estar sumamente aflita: rimos quando nos-achamos, em um grande divertimento dos-sentidos. Polo contrario, nam choramos, nem mostramos compaixam, de uma pesoa que ri; aindaque verdadeiramente seja mizeravel. É necesario ter um animo mui nobre, para se-vestir dos-sentimentos, e necesidades dos-outros, semque lhas-exponham. Nam obram os Omens comumente asim: obram porem asim, quando recebem o movimento, do-impulso das-paixoens. Esta é a simpatia das-paixoens: (se acazo tal voz, significa coiza alguma) e daqui se-mostra bem, a necesidade das-Figuras, para efeito de persuadir.

Nam me-cansarei, em dar o numero das-Figuras, e explicar o que significam, e quando se uza delas. Disto abundam muito, as Retoricas ordinarias: aindaque sam poucas, que o-expliquem de um modo, que se-posa perceber. As Figuras sam infinitas: mas os Retoricos reduzem-nas, a umas certas regras gerais, e-mais comuas. Direi somente, que estas Figuras, sam as verdadeiras, armas[Pg 160] da-alma, com que ela faz guerra às outras almas; ou vence, ou é vencida: e produzem juntamente mil outros efeitos. Primeiramente, elas declaram aquelas verdades, que sam oscuras; e excitam nos-Omens a atensam, para as-perceber. Aquela grande repetisam, aqueles muitos sinonimos, nam sam inutis na Retorica[43]: antes sam de infinito preso: porque mostram o que se-pertende em tanta luz, e de tantas partes; que é imposivel o-ignorálo: imprimem com tanta forsa uma verdade, descobrem todas as circunstancias com tanta clareza; que é imposivel nam admetilas. Mas no-mesmo tempo estas Figuras, se sam bem naturais, e se pintam bem a origem de que nacem; movem de tal sorte a alma, que a-arrastam e conduzem, para aquele objeto, de que se-fez a imagem[44]. E como a alma nam pode ver uma verdade clara, sem a-receber; daqui nace, que por-forsa admite o objeto, e consente: e temos o omem persuadido.

Estas sam as Figuras, que sam a baze da-Eloquencia. Mas nam intenda V. P. que eu quero persuadir indiferentemente, toda a sorte de Figuras, e uzo delas: estou mui longe diso, e defendo constantemente, que só no-bom uzo delas, é que está a Eloquencia, principalmente sublime. Isto é o que eu dezejára refletisem comigo algumas pesoas, que, por-nam-advertirem este importante ponto, dam à luz partos monstruozos. Se as nosas paixoens sam mal ordenadas; se nam se-excitam quando deve ser; é coiza clara, que as Figuras só servirám, de pintar a confuzam das-nosas ideias, e a pouca eleisam do-noso juizo. Um omem que s’enfada quando nam deve; que em um discurso placido, introduz mil Figuras fortes; que progunta; que responde; que exclama; e mostra grande paixam, aindaque nam aja de persuadir, ou disputar com alguem: é um verdadeiro louco, que guiado, da-sua destemperada imaginasam, empunha a espada, para combater com um inimigo imaginario. Pois este é o retrato de muitos autores, que julgam nam serem bons escritores, se nam uzam de todas as sutilezas d’arte: Semelhantes nisto a um omem de Provincia,[Pg 161] com que eu jantei uma vez, que para mostrar que tivera boa educasam, comia as uvas com o garfo.

Outros, que devem persuadir, e tem materia para empregar, boa Retorica; só estudam palavras, que tenham cadencia armonioza, mas tam afetada, que pola maior parte degenera em verso. Fazem mil reflexoens inutilisimas: procuram falar sempre por-sentensas: cuidam em introduzir conceitos sutis, e divizoens importunas: com as quais arengas nam procuram persuadir, mas agradar, e conseguir fama de eloquentes. E estes eu os-reputo muito mais ignorantes, que os primeiros, pola sua afetasam. O certo é, que uns e outros nam intendem, nem o fim, nem os limites da-Retorica: e que em lugar de estimasam, conseguem desprezo.

As Figuras devem-se empregar, em toda a ocaziam. Temos Figuras para tudo: negocios graves, mediocres, e para a mesma conversasam familiar. Basta persuadir-se, de uma importante verdade, que é, que a Figura nam se-deve procurar, mas naturalmente aprezentar-se: porque, como tenho mostrado, sam consequencias das-paixoens. Observe V. P. um omem rustico, que nam seja totalmente estupido, ou uma molher de juizo, mas nam doutora: entre com eles em um discurso familiar, sobre alguma materia, que lhe-pertensa: dificulte-lhe conceder-lhe alguma coiza, que a eles paresa verdadeira, ou que na realidade o-seja: e observe miudamente, quantas Figuras introduzem no-discurso. E finalmente, achará mais forsa, nas suas razoens, quando sam em materia verdadeira, doque nos-discursos, de muitos Oradores de fama. Eu fiz esta experiencia muitas vezes: e sempre tirei por-fruto, da-minha meditasam, que as Figuras ám-de ser naturais: e que somente se-fala bem, quando se-fala animado, de algum verdadeiro interese, e se-deixa guiar, de uma paixam arrezoada.

V. P. observará isto, nos-seus proprios discursos, ainda naqueles, que parecem menos considerados, e que sam proferidos, quazi por-impulso da-natureza. As coleras nam sam iguais, nem as paixoens: e asim á Figuras nestes mesmos discursos. Fazem-se antitezes, por-cauza de grandes movimentos, e tambem por-ligeiras comosoens. O dezejo que um omem tem, de expremir-se, e de persuadir as coizas que diz, tem varias destas Figuras. Na conversasam mais placida, repetem-se sem reparo, os mesmos termos muitas vezes. servimo-nos de diversas expresoens, para significar[Pg 162] o mesmo. permitem os mais escrupulozos criticos, fazer alguma breve descrisam, e procurar alguma semelhansa, para explicar melhor a materia. pode-se proguntar o parecer dos-que ouvem, sobre o que se-profere; e mostrar-lhe, que é necesario refletir, sobre algumas das-circunstancias alegadas. Tudo isto pratica-se todas as oras, ou se-pode praticar, sem enfado de quem ouve, e sem incorrer na censura, de quem observa. Ora as Figuras nam sam verdes nem azuis, sam em carne estas mesmas que apontamos, e outras a estas semelhantes. E eisaqui, que nam só nas orasoens, e discursos estudados, mas em todo o discurso, tem lugar as Figuras. Em uma palavra, primeiro ouveram Figuras, doque ouvèse arte de Retorica: aqual nada mais é, doque a observasam das-naturais Figuras. E asim todo o estudo de um omem, verdadeiramente eloquente, consiste, em observar bem, a necesidade da-materia; e intrar tanto dentro nela, que posa formar um discurso natural, mas no-mesmo tempo eficaz: e em que as Figuras fujam-lhe da-boca, sem que ele vá detraz delas, para ornar o discurso. Muito necesario é, estudar a natureza: estudar o carater das-Paixoens: falar naturalmente: que só asim se-fala eloquente, e sò asim se-persuade. Este é o primeiro ponto, ou o mais importante, em materia de Retorica.

O segundo, e de nam menor consequencia, está, em saber proporcionar o estilo, ao argumento que se-trata. Consiste o estilo, em certas maneiras de s’explicar, e certas particulares expresoens, que cada omem uza: as quais comumente seguem o impeto do-fogo, que cadaum tem: nam se achando dois omens, que sejam perfeitamente iguais no-estilo, como nem menos no-temperamento. Digo pois, que o estilo se-deve regular, segundo a materia, que se-trata[45]. As expresoens magnificas e nobres, ornam as coizas, de uma certa magestade, e mostram o grande conceito que delas fórma, quem asim fala: se a materia nada tem de extraordinario, antes é sumamente vil; impropriamente se-lhe-aplicam, tais expresoens. Polo contrario, as coizas que se-podem considerar sem comosam, devem-se dizer com estilo simplez: outras[Pg 163] mais estudadamente: o que faz a variedade de estilos: que os mestres da-arte reduzem comumente, a trez. Querem dizer, que ou o discurso é sumamente nobre, ou sumamente trivial, ou mediocre: à primeira, conresponde o estilo sublime: à segunda, o estilo simplez: à terceira, o mediocre. A prudencia e inteligencia com que se-devem aplicar, estes trez generos d’eloquencia, é o principal emprego, do-Retorico.

SUBLIME.

Quando se-quer dar uma alta ideia, de alguma coiza, é necesario refletir no-mesmo tempo, em muitas circunstancias. Por-muito nobre que seja o sugeito, de que se-trata, pode ter mil imperfeisoens: onde é necesario procurar, de o-por à vista d’aquela parte, que melhor parece; para poder impremir, uma justa ideia da-sua grandeza: procurando quanto pode ser, de lhe-cobrir, ou disfarsar os defeitos, sem prejuizo da-verdade: voltando-o e revoltando-o de todas as melhores partes, para poder mostrar, até as minimas perfeisoens que tem: e tendo muito cuidado, de nam sair com alguma expresam, ou pensamento, que destrua o que se-tem fabricado. Caiem neste defeito infinitas pesoas, ainda d’aquelas, que nam sam decepadas: Oradores, Istoricos &c. mas sobre tudo os Poetas: que, por-forsa do-consoante, ou da-quantidade do-verso, dizem mil coizas ou mal ditas, ou mal aplicadas. Li um soneto de certo Espanhol, que descrevia um nariz grande: o qual, despois de ter dito muita coiza do-dito nariz, conclue desfazendo, quanto encarecèra. Porei somente os tercetos.

Erase un espolon de una galera.
Erase una piramide de Egito.
Las dose Tribus de narizes era.
Erase un narizissimo infinito.
Muchissima nariz, nariz tan fiera,
Que en la cara de Anás fuera delito.

Despois dos-quatro versos antecedentes, em que exagerava terrivelmente o tal nariz, saie com uma frioleira, que destrue tudo. Admetida de grasa, a comua opiniam do-vulgo, de que os Judeos tem narizes grandes: admetida novamente a frioleira, de que Anás, por-ser Pontifice, o-devese ter maior: é certo, que nam teria um nariz maior, que todo o corpo. Demos-lhe, que fose tam grande: que proporsam tem isto, com uma piramide, e nariz infinito? Destes exemplos acho a cada paso: de que concluo,[Pg 164] que estes nam sabem, as leis da-Retorica, nem da-Poezia.

Quanto ás expresoens, aindaque as-dezejo nobres, e com armonia sonora; devem porem uzar-se, com moderasam. Prudentemente se-comparou um discurso, no-genero sublime, com um palacio magnifico: neste á-de aver cazas para os amos, para os criados, e tambem estrevarias para os cavalos. Estas nam ám-de ser, como as anticameras, nem ornadas como os gabinetes: mas ám-de ter certa magnificencia rustica, e proporsam ao todo: ám-de ser todas as partes no-seu genero, belas, grandes, magestozas. Um palacio que tem um portam pequenino, parece coiza Mourisca, e nam de Architeto inteligente. tudo á-de ser grande, mas no-mesmo tempo proporcionado. Damesma sorte em um discurso, nem todos os pensamentos podem ser exquizitos, ou a locusam sublime: á-de aver pensamentos bons, exquizitos, e mediocres: a locusam damesma sorte, em alguns lugares sublime; v. g. nas perorasoens, e exagerasoens &c. em outras mediocre; v. g. nos-exordios, nas confirmasoens de provas &c. e em outras simplez e natural, como nas narrasoens, e outros lugares. Mas todas estas coizas ám-de ter proporsam entre si: devem ser ornadas e vestidas daquela tal grandeza, que mostre serem partes, de uma coiza grande. Asim se-compoem, um discurso perfeito.

Esta magnificencia de expresoens grandiozas, e armoniozas, convem ao estilo sublime, com a distribuisam dita, de aplicar as melhores, às coizas que merecem maior atensam. Tambem no-estilo sublime devem intrar, reflexoens judiciozas, e varias sentensas, que excitem a atensam. Nele tem seu proprio lugar, as Figuras grandes: Sendo certo, que um argumento nobre, nam se-pode tratar, sem alguma particular comosam: de que nace aquele modo de expremir-se, em que consistem as Figuras. Devem porem praticarse, segundo as observasoens asima feitas.

Esta porem é a maior dificuldade, do-estilo Sublime: e sam poucos os omens, que saibam abrasar, uma distribuisam moderada de ornamentos, no-discurso. A maior parte dos-que escrevem, sam como aquelas pesoas, que nam tem educasam de Corte. Estas, para se-mostrarem bem informadas, e de boa eleisam; carregam tanto os vestidos de oiro, e a cabesa de joias; que em lugar de parecerem bem, ofendem a vista. O pior é, que no-defeito que repreendemos, caiem tambem os que sam da-Corte, como os que sam de fóra: e é mais dificultozo emendar-se. Um omem[Pg 165] que tem má eleisam no-vestir, tem tantos censores à vista, que à forsa de critica, e de observasam, consegue a emenda. Nam asim o que escreve: sam poucos os que censurem, porque sam pouquisimos os que saibam, como se-deve censurar. Alem diso, nam á algum, que prezuma tam mal do-seu juizo, que leia por-livros, que lhe-mostrem, as suas imperfeisoens. Busca somente aqueles, que mais lhe-agradam, e sam mais uzuais: e em vez de s’emendar, confirma-se na sua má eleisam. V. P. nam achará um Pregador, que estude por-Cicero, Demostenes, M. Seneca, Quintiliano: ou leia alguns, dos-que compuzeram boas reflexoens, sobre as ditas obras: achará porem muitos, que estudam por-sermonarios, e muito maos: e estes nam podem escrever melhor, doque lem nos-tais autores.

Outros escritores, querendo-se distinguir do-Comum, nam gostam senam, de expresoens grandes: e de tal sorte se-deixam guiar, por-este furor; que nam produzem palavra, que nam seja de pé e meio; e que nam acabe d’estoiro, como uma bomba. As palavras e fraze natural, o modo de s’expremir uzual, aindaque seja o mais proprio da-materia, nada vale. desprezam tudo, o que nam é estrondozo. Nenhum destes dirá: Petrus amavit Joannem: nam senhor: mas querem perifraze: Accidit ut Petrus amore prosequeretur Joannem; ou alguma fraze mais comprida. Estes omens vem todas as coizas, por-microscopio: tudo lhe-parece gigantesco: ou, para melhor dizer, tudo transformam. A sua cabesa é como a de D. Quixote: a quem moinhos pareciam palacios; e nam avia coiza para ele, que nam fose magestoza. Daqui nace, que tudo exprimem pola mesma maneira. o discurso comesa por-Figura, e acaba em Figura. Este é o vicio comum destes paîzes; mas muito principalmente dos-Poetas, e Oradores.

Estes omens confundem o Eloquente, com o Arrogante; a Exagerasam com a Inverosimilidade: sem advertirem, que sam coizas bem diferentes. Ora este é o verdadeiro carater da-ignorancia: tanto mais dificultozo de s’ evitar, quanto é certo, que muitos omens grandes em outro genero, tem caido neste defeito. Este é o ponto que se-deve advertir, com mais circunspesam: este o defeito que se-deve fugir, com mais cautela. O que se-consegue primeiro, com alguma reflexam judicioza: segundo, com a lisam de bons autores, que falem como devem, e proporcionem o estilo, ao asumto. Nam á coiza mais ridicula, doque[Pg 166] uma grande afetasam de palavras sonoras, em coizas onde nam devem intrar[46]. Em lugar de engrandecerem quem fala, mostram a pobreza do-seu intendimento: que nam tendo cabedal, de dar palavras para tudo, pede-as emprestadas, ou furta sem advertencia, as que incontra.

Verá tambem V. P. que muitos, querendo falar elegante, acabam tudo em tom de verso: Porque nam chego a amar, nam poso padecer: e com este ar, e er; ir, e or; e consonancias semelhantes, vam enchendo o discurso, que deveriam cuidar de ornar, com bons pensamentos e conceitos. Isto é mais vulgar, doque V. P. imagina: e acha-se muita gente de bigode, que chama a isto elegancia. Eu sei que o numero oratorio, ou armonia dos-periodos, de que Cicero fala em varios lugares, é uma grande beleza, em todo o discurso, principalmente oratorio[47]: mas sei, que é muito diferente, do-que condeno. Nam á regra exata, para o numero oratorio: a orelha é a que ensina, quando o periodo é armoniozo[48]. Mas é necesario que tenha mui más orelhas, quem nam distingue, que as consonancias que apontamos, em lugar de agradarem, ofendem, e sam uma afetasam. Em Portugal sam rarisimos, os que observam o numero, ainda nos-discursos estudados. Ou afetam verso, e isto é vicio[49]: ou declinam para outro extremo, que é a languideza, e tambem isto é vicio insoportavel. A mediania é que se-busca; e quem bem intende[Pg 167] o que é numero, nas cartas, e no-discurso familiar, sem advertir o-pratica. Para isto quer-se boa orelha, acostumada a ouvir ler, e pronunciar bem. Pecam alem disto; em fazer periodos tam compridos, que nam se podem ler de um jato: o que tambem é falta de numero. A lisam dos-bons livros remedeia isto, e introduz um omem, na verdadeira estrada da-Eloquencia. Mas é necesario, lelos sem prejuizos, e com animo de aprender. O estilo Sublime tem seu proprio lugar, nas orasoens, e sermoens: na Poezia Eroica, e Tragica: e pode às vezes ter lugar, na Istoria, quando s’ introduzem a falar, algumas pesoas. As orasoens de Cicero, os poemas Epicos de Omero, e Virgilio, sam de estilo sublime.

SIMPLEZ.

Ao estilo Sublime contrapomos, o estilo Simplez ou umilde. Asim como as coizas grandes, devem explicar-se magnificamente; asim o que é umilde, deve-se dizer com estilo mui simplez, e modo d’ expremir mui natural. As expresoens do-estilo simplez sam tiradas, dos-modos mais comuns de falar a lingua: e isto nam se-pode fazer, sem perfeito conhecimento, da-dita lingua. Esta é, segundo os mestres d’arte, a grande dificuldade, do-estilo simplez. Facil coiza é a um omem, de alguma literatura; ornar o discurso com figuras: antes todos propendemos para iso: nam só porque o discurso s’ encurta; mas porque talvez nos-explicamos melhor, com uma figura, doque com muitas palavras. Polo contrario, para nos-explicarmos naturalmente e sem figura, é necesario buscar o termo proprio, que exprima o que se-quer: o qual nem sempre se-acha, ou ao menos, nam sem dificuldade: e sempre se-quer perfeita inteligencia da-lingua, para o-executar. Alem disto, as Figuras encantam o leitor, e impedem-lhe penetrar e descobrir os vicios, que se-cobrem, com tam ricos vestidos. Nam asim no-estilo simplez, o qual, como nam faz pompa de ornamentos, deixa considerar miudamente, todos os pensamentos do-escritor. Por-iso se-diz, que o estilo simplez é, o lapis Lydius do-Juizo.

Isto que digo, das-expresoens comuas e naturais, deve-se intender com proporsam. Nam quero dizer, que um omem civil fale, como a plebe; mas que fale naturalmente. A materia do-estilo umilde, nam pede elevasam de figuras &c. mas nem por-iso se-deve expremir, com aquelas toscas palavras, de que uza o povo ignorante.[Pg 168] Nam é o mesmo estilo baixo, que estilo simplez: o estilo baixo, sam modos de falar dos-ignorantes e pouco cultos: o estilo simplez, é modo de falar natural e sem ornamentos; mas com palavras proprias, e puras. Pode um pensamento, ter estilo sublime, e nam ser pensamento sublime: e pode achar-se um pensamento sublime, com estilo simplez. Explico-me. Para ser sublime o estilo, basta que eu vista um pensamento, e o-orne com figuras proprias, aindaque o pensamento nada tenha, de sublime. Polo contrario, chamamos simplezmente sublime, (com os Retoricos) àquela beleza e galantaria de um pensamento, que agrada e eleva o leitor, aindaque seja proferida, com as mais simplezes palavras. Desorteque o sublime pode-se achar, em um só pensamento, ou figura &c. Importa muito intender, e distinguir isto, para nam ser enfandonho nas conversasoens, e nas obras que pedem estilo umilde. V. P. tem um bom exemplo de estilo simplez, nas Cartas familiares de Cicero, principalmente nas que escreve aos de sua caza: nas Eglogas &c. de Virgilio: nas Fabulas de Fedro: Cartas de Plinio a algumas pesoas: e outras obras da-Antiguidade. Em Portuguez as Cartas do-P. Vieira, tirando algumas que degeneram em sermam &c. podem-se ler, para o estilo simplez. E estas sam as melhoras obras, do-dito Religiozo.

MEDIOCRE.

Do-que a V. P. tenho dito fica claro, qual é o estilo Mediocre: aquele digo, que partecipa de um e outro estilo. Tambem este estilo nam é pouco dificultozo: porque é necesario, conservar uma mediania, que nam degenere em viciozos extremos: e sam poucos aqueles, que conhecem as coizas, na sua justa proporsam, e formam aquela ideia, que merecem. Ja dise, que a materia é a que determina, qual á-de ser o estilo: e asim uma materia mediocre, pede um estilo proporcionado. A maior parte das-coizas de que falamos, sam mediocres: e daqui vem, que neste estilo de falar, deve-se empregar um omem, que quer falar bem; e conseguir fama, de omem eloquente. Um omem de juizo, que conhece as coizas como sam, fórma delas ideias justas, e verdadeiras; e as-explica com as palavras, que sam mais proprias. D’ onde vem, que o estilo mediocre compete propriamente, às Ciencias todas, à Istoria, e outras coizas d’este genero: nas-quais se-reprezentam coizas nam vis, mas mediocres; porem reprezentam-se, damesma sorte que sam, e com palavras proprias.[Pg 169] Tambem as cartas de negocios graves, ou eruditas, e aquelas de ceremonia a pesoas grandes &c. costumam ser neste estilo. É porem de advertir, que o estilo mediocre, admite todos os ornamentos d’arte: beleza de figuras, metaforas, pensamentos finos, belas discrisoens, armonia do-numero, e da-cadencia: Contudo nam tem a vivacidade, e grandeza do-sublime. Participa de um e outro, sem se-asemelhar a nenhum. tem mais forsa e abundancia que o simplez; menos elevasam que o sublime: e prosegue com paso igual, e mui brandamente. Alegam-se por-bons exemplos neste genero, as Georgicas de Virgilio: a maior parte das-cartas de Cicero a Pomponio Atico: &c. os Comentarios de Cezar &c. aindaque estes, por-nam terem ornamentos, quazi pertencem ao simplez: as vidas de Cornelio Nepote. &c.

Quem bem intende isto, fica perfeitamente instruido do-modo, com que deve aplicar-se, a diferentes materias. O estilo da-Istoria pede clareza, e brevidade. aquela, para explicar todos os acidentes da-materia: esta, paraque, sem longas frazes, que suspendem a atensam, descreva as coizas que deve, com um fio de discurso continuado, e sem ser interrompido com aqueles movimentos, que constituem o Orador[50]. Porque neste cazo nam pode conservar, uma certa inalterabilidade, e quietasam de animo, que é tam necesaria, para nam inclinar mais para uma parte, que para outra; e dizer as coizas com verdade, e sem exagerasam. Pode porem o Istorico, mostrar a sua eloquencia, no-referir as arengas, que s’ introduzem na Istoria; no-pintar as paixoens &c. mas tudo isto com advertencia, e sem perder de vista a verdade. É pois a Istoria aquela materia na qual, despois da-Oratoria, mais se mostra, a eloquencia vigoroza.

Em segundo lugar fica claro, qual deve ser o estilo Dogmatico ou Didascalico, a que por-outro nome chamamos, estilo Cientifico. Aqui nam se-trata de persuadir, omens apaixonados, excitando as armas, comque a alma se-move para esta, ou aquela parte. O primeiro postulado que se-poem, no-principio dos-Tratados modernos é, que o leitor se-dispa, de todo o genero de prejuizos,[Pg 170] e paixoens: e que examine as razoens, como merecem. Onde supondo-se um leitor docil, nam é necesario, seguir o estilo veemente[51]. Mas nisto á mais, e menos, segundo as Ciencias. A Geometria, que explica verdades claras, e que nam interesam ninguem, deve-se tratar placidisimamente, com aquelas palavras, que sam precizamente necesarias, para a explicasam dos-termos &c. A Logica, Fizica, Metafizica pedem ja um estilo mais ornado: ja se-disputa com omens, que tem suas prevensoens: as verdades nam sam tam claras: é permetido servir-se de um estilo mais nervozo. Principalmente na era prezente, em que a Filozofia, despida daquela antiga e ridicula severidade, trata-se oje em todas as linguas, e com vocabulos proprios, e se-familiariza com todos. Onde pode tratar-se em estilo familiar, por-carta, em dialogo, ou de outra maneira; emque pode ter lugar, um genero de eloquencia mais ornada. A Teologia pode ser tratada, com estilo mais elevado. Somos interesados em defender, a verdade da-religiam, contra os Ateos, e Infieîs, e Erejes. Este interese nam pode menos, que acender em nós, alguma paixam bem devida. Onde nam é maravilha, se algumas vezes nos-transportamos, falando de Teologia, e seguimos um estilo mais elevado e viril. Nam digo, que tudo se aja de tratar, em estilo oratorio, ou que se-devem defender as questoens, com ironias &c. e nam com razoens solidas: serîa isto um erro consideravel, e mui condenavel: digo somente, que ja é permetido, servir-se de alguma figura, e uzar de estilo mais elegante. Os antigos Padres uzáram deste estilo, quem mais, e quem menos. E oje todos os omens de melhor doutrina, nam desprezando a fórma da-Escola, uzam porem dela com tanta moderasam, que comumente expoem as suas sentensas, sem aquele estilo das-escolas, que até aqui reinava. O que faz que seja mais bela a Teologia: mais concludente o discurso: e poem à vista, e na sua luz todas as razoens: porque só asim as-intendem todos, e se-evitam palavras, que nada significam nas escolas. Quanto às outras Ciencias profanas, pola[Pg 171] maior parte tratam-se mais placidamente, segundo a necesidade da-materia.

Em terceiro lugar fica claro, qual é o estilo dos-Poetas. Querem os Poetas, (diz um Retorico) agradar, e elevar o animo dos-ouvintes, com coizas extraordinarias e maravilhozas: e nam podendo chegar ao fim que se-propoem, senam sustentando a sublimidade das-coizas que dizem, com o sublime das-palavras que uzam; daqui vem, que nam se-sugeitam às leis do-uzo comum; mas formam, para se-explicar, um idioma novo. Tudo neles é grande e extraordinario; imaginasam, conceito, e palavras. Daqui nace, que as figuras devem ser, as suas mimozas, Alem diso, como as verdades abstratas nam agradam, porem sim as coizas, que entram polos sentidos; fica claro, que querendo o Poeta agradar, deve procurar metaforas, com que reprezente as coizas sensiveis, e quazi palpaveis: porque asim é que imprimem, uma particular comosam. Este é o principio, que obrigou os antigos Poetas, a romperem com certas ideias, que nos-parecem chimeras. Cada Virtude, e cada Paixam na Poezia, é uma Deuza: porque a descrisam destas Deuzas tam medonhas, ou tam engrasadas, faz outra impresam no-animo, doque a simplez palavra de Virtude, ou Vicio.

Est Deus in nobis, agitante calescimus illo.

Quando uma vez s’esquenta, a imaginasam do-Poeta, nam fala como os demais omens: e asim nam é maravilha, que encha o discurso de Figuras, e ingenhe tantas fabulas e fingimentos. Isto é tam proprio dos-Poetas, que até os sagrados Poetas, para se-explicarem, servem-se de todo o genero de metaforas. Isto porem deve intender-se dos-poemas, que tem por-objeto, materia grande: os divertimentos dos-pastores, que compoem as Eglogas; as istorias que dam materia às Comedias; e mil outras poezias, que se-podem considerar com menos paixam, devem ser tratadas, por-outro estilo. A regra geral, que ao principio demos, é infalivel, e consiste nisto: A qualidade da-materia deve determinar o estilo, aindaque posa ser mais ou menos ornado: o que s’intenda tanto da-Proza, como do-Verso. Isto quanto ao estilo. quanto pois às regras do-Poema, nam é aqui, o proprio lugar, de as-explicar: porque eu nam faso tratado, mas reflexoens.

Dirmeám alguns, que estas advertencias conduzem, para fazer uma obra solida, mas nam para a-fazer bela, e ornada: que[Pg 172] é o principal emprego da-Retorica. E com efeito esta é a costumada cantilena, destes vulgares Oradores, que ignoram as belezas da-arte. Em algumas partes, temos notado este defeito: e aqui, para o-confutar melhor, faremos outra advertencia. Digo pois, que este ingano comum, fica suficientemente asima convencido: sendo certo, que nam se-requerem outras regras, para falar com elegancia, e ornato, doque as que asima démos, para falar com propriedade. A mesmisima coiza se-pode expremir, com diversos nomes, segundo o modo com que se-considera. A maior beleza e ornamento de uma compozisam, aquilo que eleva um leitor racionavel e judiciozo, (que sam os que podem fazer lei) é a exasam, e propriedade com que se-acha disposta, e executada uma-obra. Quem nam intende este ponto, é noviso na Retorica. Mas, declarando isto melhor aos principiantes:

Tem a Retorica ornamentos naturais, e artificiais: aqueles entram necesariamente em qualquer obra: estes com parcimonia. O primeiro ornamento é a verdade, ou semelhansa das-palavras com as ideias, e objeto delas. A mais medonha cobra pintada, agrada: as coizas mais ordinarias, quando sam bem explicadas, nam podem dezagradar. Deve o discurso ter primeiramente, clareza nas expresoens, para poder insinuar-se no-animo; armonia, e facil pronuncia. Estes sam os naturais. Entre os artificiais, poem-se as Figuras todas, os Tropos, as magnificas expresoens, as aluzoens, alguma ingenhoza aplicasam &c. as quais sam às vezes tambem recebidas, como a mesma verdade: e elevam a alma com o encanto oculto da-grandeza, para a qual ela tem propensam natural. Nestes é em que se-deve empregar o juizo, distribuindo-os com muita parcimonia, e boa eleisam. Nenhuma coiza orna, que nam seja racionavel: quando os ornamentos sam repetidos, ou estam muito juntos, sam importunos, e dezagradam muito: confundem a vista, e cobrem toda a beleza do-sugeito. Ja nisto falámos larguisimamente. Finalmente quando o ornamento, nam se-funda em verdade, aindaque um pouco encarecida; é uma afetasam ridicula, que mostra nacer, de um ingenho mui trivial. Os ignorantes sam, os que procuram com cuidado, estas ridicularias, para aquistar fama de doutos por-esta via, visto que a-nam-podem por-outra.

Outro defeito ainda acho, em que comumente caiem, e vem aser, encher o discurso de alegasoens importunas, de pasos Latinos,[Pg 173] de versinhos, e outras coizas que incontram. Podem as aluzoens, alegasoens &c. ter lugar, quando á necesidade de ouvir as palavras, na mesma lingua original; ou para mostrar a sinceridade, de quem as-cita; ou a elegancia, de quem as-escreveo: o que raras vezes sucede: tudo o mais é tempo perdido, e trabalho mui escuzado. Este dezejo de parecer erudito, com a repetisam de mil pasos de autores, tem alucinado infinita gente. Conheci um, que nam abria a boca, que nam repetise um verso de Marcial, de Juvenal &c. Examine V.P. este ponto, e achará, que o defeito é mais geral, doque nam parece. Conheso pouquisimos estudantes desa Universidade, falo principalmente dos-Opozitores, e dos-que tem prezunsam de literatura; cuja conversasam seja toleravel. Para dizerem, que agora é dia; sairám com um, e talvez muitos textos do-Digesto, ou Codigo &c. Nam deixam pasar coiza, que nam ornem com algum versinho moderno: e quem sabe mais disto, é mais ciente. Aquele, Erubescimus sine lege loqui, intendem-no tam nû e crû, que é uma piedade. Tambem entre os Religiozos, nam falta desta fazenda: aquele, tandem, item, a parte rei, cum hoc quod, hoc unum est; e outras destas palavras, sam mui frequentes nos-seus discursos: e tambem seus textos da-Escritura, e seus versinhos Latinos. Isto entra em todas as conversasoens, aindaque sejam de idiotas, e molheres: antes nese cazo melhor, porque se-grangeia fama sem embaraso.

Este mao modo de pensar, e discorrer, pasou ja das-conversasoens, para as compozisoens: e por-iso V. P. ve tantos discursos, ou sermoens, ou orasoens, que se-nam-podem sofrer. Tenho lido mil orasoens modernas * * * e rarisima achei, em que nam intráse Plinio o moso, claro ou oculto: mas pola maior parte entra claro: e às vezes a orasam tem mais palavras de Plinio, doque de quem a-compoz. Ouvîram dizer, que o Panegirico de Plinio, é o mais suportavel, que nos-deixou a Antiguidade; e sem mais exame, enchem tudo de Plinio. Outros pasam do-Panegirico às Cartas: um destes é o P. * * que no-elogio funebre de Julio de Melo, faz uma istoria, em que introduz muitos periodos, tirados de varias cartas de Plinio, que dizem o mesmo, que ele repete. Este modo de elogiar, é totalmente novo, e ignoto à Antiguidade: mas nem por-ser novo cuido que agradará, aos que intendem a materia. Nestes Panegiricos achará V. P. duas coizas comumente: uma, é Plinio, e algum autor semelhante: a segunda,[Pg 174] é o Sol, com as Estrelas. Mais vara menos vara, aqui vem dar todos. Serîa porem melhor, que estes autores puzesem departe, Plinio; e disesem alguma coiza de sua caza: e nam dezenquietasem as Estrelas, trazendo-as para uma coiza, para a qual nam calsam bem. Nam é este, o modo de elogiar. disto se-rim todos os omens que sabem.

Até as aprovasoens dos-livros, andam cheias destes textos, às vezes arrastadisimos, e talvez tirados da-Escritura, para provar uma frioleira. Os que nam trazem textos, introduzem razoens bem desnecesarias, e difundem-se em elogios, tam excesivamente encarecidos, que ninguem os-pode ler sem nauzea. Aindaque disesem a verdade, e bem; sempre era um grande defeito, e impropriedade. Vi á anos a vida do-Infante D. Luiz, em 4.o escrita polo Conde de Vimiozo; da-qual as aprovasoens, sem encarecimento algum, compoem metade do-volume. E nam só fazem isto nos-livros; mas em papeis avulsos, e breves. Vi uma Egloga, escrita por-um certo Felipe Jozé da-Gama, no-nacimento de um neto de Joam Alvares da-Costa; cujas aprovasoens eram maiores, que a obra. O pior é, que tinha uma aprovasam do-Conde da-Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes, que caîa na mesma simplicidade. Com efeito, este era o carater do-dito Conde: que, para mostrar que sabia muito, carregava as suas pinturas, com tantos ornamentos, e doutrina, que pareciam ridiculas. Ele era um omem erudito: mas ignorava totalmente aquilo, a que chamam modo, metodo, e criterio. comtantoque falàse muito, nam lhe-importava se dizia bem. E naverdade na dita aprovasam da-Egloga, tem coizas indignas. Deixa logo o argumento, e pasa a descobrir entre Joam Alvares da-Costa e Asinio Pollio, grande uniformidade. despois, difunde-se sobre os louvores da-Poezia. finalmente faz uma selada tal, que nam vi coiza mais confuza. Eu nam disputo agora, se a dita Egloga merece eses louvores: concedo tudo de grasa: o que digo é, que se-explicava em duas palavras: e é grande impropriedade fazer uma censura eterna istoriada, para uma brevisima Egloga. Certamente o P. Estacio de Almeida, que em materia de Poezia Latina, cuido que sabe alguma coiza mais, que o dito Conde; mostrou o seu juizo na aprovasam, contentando-se com dizer, que era digna de s’impremir. E isto deviam tambem fazer os outros: deixando de fazer Panegiricos, a coizas que nam merecem, ou que merecem[Pg 175] menos: e fazèlos de um modo, que merece mais rizo a erudisam que trazem, que a que lhe-falta. O P. D. Manoel Caietano de Souza, tambem seguia esta opiniam. Compoz o Sargentomór Manoel Coelho, uma Explicasam das-oito partes da-orasam: mas tam pequenina, que nem menos se-lhe-deve chamar livro, mas caderninho. (foi impresa em Lisboa, no-ano 1726.) Sucede que D. Manoel aprova esta obra: e aqui, tomando as coizas desde o principio, faz uma longuisima censura, e um catalogo dos-Gramaticos do-Reino &c. Tudo coizas desnecesarias! E sei eu, que, se ouvèse de impremir-se em outro Reino, se-contentariam com escrever, Imprimatur. Com esta advertencia observe V. P., as aprovasoens dos-livros, e verá, que ainda nam digo metade, do-que devia. Neste particular de aprovasoens, nam vi omem em Portugal mais moderado, que Fr. Manoel Guilherme: fugia quanto podia de mentiras e afetasoens; e claramente dizia, o seu parecer. Mas oje sucede o contrario: porque às vezes fazem-se empenhos, para determinar os censores: e estes tais, nam censuram o livro, mas agradecem a eleisam. E sei eu tambem, que quando o P. * * * impremio a sua obra * * tendo feito um Teologo, a censura difuza; foram-lhe pedir novamente, que se-dilatáse mais, e louváse a obra com maior extensam. E nam podendo livrar-se do-empenho, que era forte; acrecentou alguns sinonimos, para satisfazer às partes: o que sei da-mesma boca do-censor. Onde com estes exemplos, nam devemos admirar-nos, se incontramos os elogios tam frequentemente * * *

Mas, tornando à dita erudisam afetada, digo, que a este modo de ornar e discorrer, chamam os Retoricos, ornamentos falsos. Porque os outros, podem ter lugar no-discurso, e só se-procura a parcimonia: estes, de nenhum modo devem intrar nele. Ja gran tempo é, que os omens de juizo clamáram, contra este abuzo: principalmente porque, bem examinada a coiza, é uma solenisima impostura, e azilo de ignorancia: sendo certo, que estes tais nunca tem menos erudisam, que quando mostram ter tanta. Quem ouve aquela machina de textos, persuade-se que é um omem, de erudisam infinita: mas nada menos: e eu poso jurar de muitos, que nam abriram os livros que citam, aindaque sejam bem uzuais. Remedeiam-se com o Theatrum Vitæ Humanæ, Polyantea de Langio, e outros destes armazens, em que polo A. B. C. acham-se as materias, dispostas. De que vem, que[Pg 176] os omens inteligentes nam podem menos, que rir-se de tais compozisoens. Lembro-me, que um leitor de certa Religiam, querendo persuadir-me, que um seu amigo sabia Latim perfeitamente; dizia-me, que lia sempre por-Plutarco: e carregava muito em Plutarco. Ouvi esta muzica algum tempo; e nam podendo sofrer mais, proguntei-lhe, se Plutarco era bom Latino. Aqui o omem: Poisque, iso tem duvida? na antiguidade nam acha V. P. um Latino, como Plutarco. O que daqui se-seguio foi, ficar eu formando mui mao conceito, dele, e do-seu amigo. De um, por-dizer o que nam sabia: pois se tivese aberto Plutarco, ou acharia o texto Grego com a versam Latina; ou tendo somente a versam, acharia no-frontispicio, o nome do-tradutor. Do-outro, porque aindaque a tradusam, nam seja barbara, contudo nam é livro para se-imitar: falo da-versam de Curserio, e Xilandro, &c.

Tambem nam é pequeno defeito, a grande repetisam de sentensas, sem necesidade. Persuadem-se muitos, que, falando por-sentensas, ficam graduados como sutilisimos, e fundadisimos letrados. Lèram em Seneca Filozofo, ou Lucano, ou Tacito, ou algum semelhante, uma quantidade destas sentensas; e, sem mais exame, nem advertencia, adotam aquele estilo; e deitam mais sentensas pola boca fóra, que uma carranca de xafariz nam deita agua. Verdadeiramente é um divertimento, bem digno de se-procurar em oras ociozas, ter uma conversasam com um destes. Eu gozei esta felicidade algumas vezes: e nam me-podia satisfazer de observar, aquela circunspesam magistral, com que proferem as palavras, em tom decizivo e com toda a magistralidade, de um Padre de Concilio. Ja eu lhe-perdoára a materia: o que nam poso sofrer é, o modo com que se-explicam. Se eles tivesem observado e intendido, que aquele mesmo Seneca foi o primeiro, que comesou a perverter, o bom gosto da-Latinidade, com tam enfadonhas sentensas: com as quais perdeo entre os seus, e entre todos os que se-seguîram de alguma estimasam; aquele conceito, que poderia aquistar, se fose mais parco de ornamentos; saberiam entam, com que olhos se-devem ler, certos autores. Mas eu falo em um suposto, que me-parece falso, e vem aser; que estes tais profiram, verdadeiras sentensas: falam como se fose por-sentensas; mas nam sei se o que dizem, merece este nome. Porque a Sentensa deve, em poucas palavras, dizer muito, e dize-lo com modo singular: o que raras vezes se-acha neles.

[Pg 177]

Note tambem V. P. outro defeito de eloquencia, no-mesmo frontispicio dos-livros. Estam estes seus autores, tam preocupados polas esquipasoens, que nam se-contentam, de pór o titulo do-livro claro: mas ou inventam um estrambotico, ou acrecentam algum epiteto, que oscurece o negocio. v. g. Cristais, d’alma, fraze do-corasam: Fenix renacida: Alivio de tristes, consolasam de queixozos: e outras coizas destas, que quando eu as-leio, me-vem à memoria, o Belorofonte literario, Clypeus Mundi, e outros titulos ridiculos, que só estavam bem, na boca de D. Quixote de la Mancha. E isto nam só achará V. P. entre os Antigos, mas entre estes Modernos. Traduz um Bacharel os Epigramas do-P. Reis, em verso Portuguez, e dá-lhe este titulo: Imagens conceituozas. Ora, falemos sem paixam, intende V. P. que, lendo-se estes titulos, poderá um omem advinhar, o que contem estes livros? Eu nam tenho dificuldade em apostar, que nam: e digo mais, que este autor nam intendeo, o que quer dizer aquele titulo: pois, a falar verdade, nam á maior despropozito, que a uniam daquelas duas palavras, para explicar a dita versam. E ponho agora de parte a loucura, de traduzir em Portuguez, epigramas destes Latinos, cuja galantaria nam consiste, em um conceito nobre; mas em palavrinhas, ou equivocos, que perdem o pico, na tradusam. Mas nam pára nisto o abuzo: antes chegou a termos, de se-nam-chamarem as coizas, com os seus nomes, porem com outros muito diferentes. Vi concluzoens de Logica, que se-intitulavam: Regnum Algarbiense in quatuor vicos distinctum: Vicus primus, de Signis: secundus, de Enunciatione &c. que se-podia intender, ser uma carta geografica. Outras de Filozofia intitulavam-se: Pigmenta Philosophica. Finalmente chamavam-lhe como queriam. E isto é mui frequente, nas escolas da-Companhia: e nam faltou ja quem me-disèse, que eram titulos ingenhozos. Estes titulos, Conclusiones, Propositiones, Theses, nam prestam ja para nada: sam coizas dos-antigos, e nomes mui ordinarios. E que chama V. P. a isto, senam jurar, de nam dizer as coizas direitas, mas de falar em Persiano, ou Chinez?

E se V. P. examinar este defeito, achará, que sam poucos os autores, que nam caiam nele. Outros acrecentam epitetos afetados. v.g. Regras da-lingua Portugueza, Espelho da-lingua Latina: deixando agora muitos outros, que podia acrecentar. Contudo eu intendo, que era mais natural, e nobre dizer: Regras[Pg 178] da-Gramatica Portugueza, para introduzir os rapazes, na Gramatica Latina: ou ainda mais breve, e melhor: Introdusam para a Gramatica Latina: e falando asim, todos o-intenderiam. Que fizesem isto nos-dois ultimos seculos, paciencia: mas agora, que o mundo abrio os olhos, e todos procuram explicar-se bem; nam se-pode sofrer: e vale o mesmo que mostrar, que nam intendem em que consiste, a elegancia da-lingua, e a forsa da-eloquencia. Os seicentistas sam os que caîram, nesta ridicularia: os antigos doutos todos, a-evitàram: e se algum se-desviou dela, nam teve sequazes, e deve ser reprovado. Os titulos dos-Antigos, todos sam simplezes: Cornelius Celsus, de Re Medica: Caii Julii Cæsaris, de Bello Gallico &c. Ciceronis Orationes, Epistolæ, de Finibus bonorum &c. e outros a estes semelhantes. Estas palavras mostram bem, o de que se-trata: e aquela nobre simplicidade encanta mais, que todas as afetasoens, a quem intende, que coiza é Eloquencia. Os Modernos doutos, quando nam sam anonimos, que querem brincar; servem-se de titulos sezudos, breves, e claros: e nisto é em que oje se-cuida. Com efeito nos-titulos se-mostra, o juizo do-autor. Eles sam os que apontam a materia: e devem nam dizer mentiras, e falar em lingua, que todos intendam.

Pertencem a esta clase, os que nas Concluzoens publicas, poem por-questam principal uma coiza, que nam significa nada, e nam pertence à materia. Confeso a V. P. que quando a primeira vez, vi neste Reino estas concluzoens, fiquei pasmado: e quando vi, que a dita questam nam se-disputa, nem serve de nada, ainda me-admirei mais. Um destes imprime umas Concluzoens de Logica: dedica-as a Cristo Crucificado: (porque estes mosos tem tanta devosam, que em nenhum lugar a-podem encubrir) e poem por-questam principal: Se ficou mais gloriozo Cristo na cruz, que no-Tabor. Outro faz umas concluzoens de Materia Primeira, e poem por-questam: Utrum in Lunæ concavo degant homines? Finalmente é bem raro aquele, que poem questam principal, tirada das-concluzoens: mas ou da-dedicatoria, ou de outra coiza, que nam significa nada. E estarám às vezes semanas inteiras, lambicando o ingenho, para excogitar uma questam sutilisima, que calse bem à dedicatoria. E que chama V. P. a isto? senam dizer mentiras: servir-se de palavras que nam significam nada: improprias ao argumento: só para mostrar, que tem ingenho. Saiem eles logo dizendo, que é um costume antigo:[Pg 179] E eu respondo, que é mao costume: e que se-deve emendar. Na minha Italia poem-se as concluzoens simplezmente, sem estes rodeios. Se as concluzoens sam dedicadas a Cardiais, ou Bispos, ou outras pesoas grandes; estes vam asistir em publico, asentados defronte do-Defendente: o qual porem está na cadeira: e ali faz ao principio um comprimento Latino, à pesoa a quem dedica, breve, e claro: e procura falar em lingua, que todos intendam, e mostrar a sua doutrina sem sutilezas, nem coizas que meresam rizadas.

Nem intenda V. P. que estes defeitos que aqui aponto, sam de um ou dois autores: nam senhor, sam gerais. Leia V.P. estas obras Portuguezas modernas, principalmente orasoens Academicas, em que fazem ostentasam, de toda a erudisam e advertencia; e confirmará o que digo. * * * Entre os modernos, o Conde da-Ericeira tem muito disto, como ja disemos. Comesa as suas coizas com uns rodeios, e umas oscuridades, que sem comentos nam se-intendem. Daqui pasa a acarretar, tudo quanto leo: e comumente dezempara o asumto, para dizer o que lhe-ocorre. v.g. No-elogio Funebre de Francisco Dionizio de Almeida diz, que tomava por-empenho, descrever o elogio de Tito Pomponio Atico, que morrèra no-dito dia. Mas sem falar em Atico, mete outras noticias estrangeiras, e diz mui pouco do-defunto. Promete encarecer a perda do-defunto: mas nada disto faz. O mesmo Conde no-elogio do-Papa Inocencio XIII. declara logo, que nam seguirá os preceitos da-Retorica, mas da-Istoria: e com efeito faz um catalogo difuzisimo e insoportavel, da-gerasam do-dito Papa: e deste nam diz nada. Devendo porem saber, que a obrigasam sua era, exaltar as virtudes do-seu eroe, e nam as dos-pasados. Pois asimcomo nenhuma molher feisima merece ser louvada, porque é filha, de uma molher mui bonita: antes polo contrario, a fermozura da-maen dá ocaziam, paraque nos-admiremos da-filha: asim tambem as virtudes dos-pasados, nam servem de panegirico aos prezentes: é necesario mostrar, que estes excedem os seus maiores, nas mesmas asoens. Do-que fica claro, que o dito Conde sabia pouco, elogiar. E nam se podia esperar menos, de um omem que protesta, de nam seguir a Retorica. E quantos parentes, quero dizer, apaixonados, nam vemos deste fidalgo! Mas sem nomiar mais ninguem, provarei tudo com outra orasam, feita na morte, de D. Manoel Caietano de Souza: da-qual porem[Pg 180] nam sei quem é o autor, nem onde foi impresa; porque uma que achei em certa parte, e ainda conservo, nam tem as primeiras folhas, e comesa na folha 7. Mas seja quem for, é moderno: vistoque o Souza morreo á pouco tempo: e se V. P. a-tem lido, achará uma grande prova do-que digo.

Este omem faz uma orasam, que é um groso volume. Primeiro defeito do-panegirico. Confeso, que asisti a muitas e diferentes exequias, de Pontifices, Imperadores, Reis, Principes soberanos, Cardiais, e Senhores grandes: e nunca vi alguma, que chegáse à metade desta. Mas isto é nada. tudo o que ele diz do-tal Souza, podia-se reduzir à quarta parte, e ainda serîa longa. Consiste pois este grande volume, emque o tal Panegirista, para mostrar que era erudito, verteo nela, quanta erudisam tinha. Explicarmeei se diser, que ali se-acha o Teatro de los Dioses, e Theatrum Vitæ Humanæ, em corpo e alma. Nam diz coiza alguma, para que nam traga um bocado de antiguidade, comumente arrastada. v.g. Para dizer, que o Souza unia a piedade com a ciencia[52]; introduz a parentezis de uma pagina, em que entra Alexandre, Cezar, Cipiam &c. Para dizer, que o dito nam quizera mostrar a sua ciencia, senam em Lisboa[53]; nomeia Universidades sem tom nem som: saltando de Bolonha aos Paizes Baixos: de Pariz outra vez a Padua: de Espanha a Germania &c. e a cada paso mete fabulas, sem pés nem cabesa. E este justamente é o defeito, que eu asima condenava. Sobre o que me-lembro das-grasas, de um omem mui douto, que foi Monsenhor Sergardi: Este quando se-achava em alguma parte, em que algum destes, que tinham lido alguma fabula, ou istoria, a-queriam introduzir ou bem ou mal; dizia-lhe galantemente: Diga, meu senhor, diga tudo o que tem estudado, esta noite.

Nam falo ja em alguns erros de istoria: como dizer, Que a barca de S. Pedro navegou polo Tibre: Que por ele tambem intráram, as Troianas galés de Eneas: e outros semelhantes[54]. Um bocadinho que estudáse mais de Istoria, e Geografia, lhe-mostraria, como as coizas ou foram, ou nam foram: e lhe-ensinaria, que o lugar em que dezembarcou Eneas, nam foi o Tibre, polo qual nunca navegou. Chama aos Romanos, decendentes de Eneas, e Ascanio. como se Eneas fose o Noé dos-Lavinios,[Pg 181] Albanos, e Romanos! Mas a isto chamo eu venialidades: o que nam poso sofrer, sam outras falsidades, que diz naquele panegirico; principalmente quando quer saîr, fóra de Portugal. Neste cazo o omem transforma tudo. Um comprimento feito a D. Manoel Caietano, uma carta escrita mais cortezmente, sam autenticas provas, da-sua imensa literatura. Que pouco informado é, da-politica dos-outros Reinos, este Panegirista! e quam pouco sabe distinguir, o encarecer uma coiza, e o inventala! Pode o Retorico dilatar, e exagerar muito um argumento: mas sempre dentro dos-limites da-verosimilidade. Ora é uma parvoice manifesta dizer, Que o Souza foi a Roma, para espantar todo o orbe literario: Que em todo o mundo se-ouviam, os brados da-sua fama: Que a Europa suspensa e admirada confesou, que excedia a sua mesma fama &c.[55]: Que a Europa confesou, que a sua erudisam era maior, que todos os encarecimentos, com que o-celebravam no-mundo, as mesmas cem bocas da-Fama[56]. Isto sam mentiras mui manifestas: e a isto chama-se satirizar, e nam, elogiar. Nam pára aqui a galhofa: diz, Que nam se-sabe em Portugal, que os Reinos estrangeiros desem, nestes ultimos tempos, um omem, que se-posa comparar ao Souza[57]. Que o-nam-saiba ele, concedo: vistoque pola sua orasam, mostra saber muui pouco: mas que o-ignorem outros Portuguezes, nego redondamente. Conheso eu omens, que sabem distinguir muito bem D. Manoel Caietano, de infinitos omens, muito mais doutos que ele.

Eu creio que D. Manoel Caietano foi douto, e soube mais, doque o comum dos-Portuguezes: aindaque eu nam poso julgar por-experiencia, porque nunca o-tratei: mas polas suas obras o-discorro: mas nam sam elas tais, que ponham um omem, na primeira esfera dos-doutos. E sei eu muito bem, que a sua Expeditio Hispanica, é mui pouco estimada em muitas partes: e que nam pode obrigar, os omens mais doutos, e de uma critica purgada; a que mudasem de opiniam, sobre a vinda de Santiago: e eu sou um daqueles, que ainda nam se pode persuadir, das-suas razoens. Mas querèlo comparar, com outros grandes omens da-Europa, é mostrar, que nam intende este oficio. Que semelhansa tem o P. Souza, com Petavio, Sirmondo, Launoi, Arnaud[Pg 182] d’Andilly, Valois, Morin, Huet, Bossuet, Tomassin, Noris, Calmet, Mabillon, e outros muitos Catolicos? ou com algum dos-Erejes, como Grotio, Scaligero, Usserio, Selden, J. Gerardo Vossio, Daniel Heinsio, Dallé, Samuel Petit, Saumaise, Bochart, Lightfoot, Hottinger, Joam Gronovio, Luiz de Dieu, e outros muitos que deixo? os quais todos vivèram no-seculo pasado, e muitos deles alcansáram D. Manoel Caietano, e morrèram neste seculo? Que semelhansa, torno adizer, em vastidam de noticias, em antiguidades, linguas orientais, Teologia &c.? tanta como o dia com a noite. Estes é que foram conhecidos, em todo o mundo douto, e seram eternamente venerados. Bem mostra este Panegirista, que nam sabe que coiza é erudisam, quando fala desta sorte. Nam falo na Filozofia, pois todos sabem, que omens florecèram, no-fim do-seculo pasado, e no-prezente: dos-quais a D. Manoel Caietano, (que dizem era Peripatetico, ou aindaque o-nam-fose) á bem legoas de distancia. Em tudo se-mostra o Panegirista, pouco informado do-mundo: e, polo que vejo, cuido que era algum pobre Religiozo, que nunca saîra de Portugal; e asim vivia mui satisfeito da-sua terra: pois chega a dizer, que as Universidades de Portugal, até no-edificio, excedem muito, as dos-outros Reinos[58]. No-que mostra intender tanto de Architetura, como de erudisam. Mui diferentemente me-falou um Portuguez, que estivera em Roma, e tinha outros conhecimentos: o qual confesou limpamente, que em materia de bom gosto, valia mais uma só janela da-Sapiencia, ou Universidade Romana, ou do-Colegio Romano dos-Jezuitas, que todas as Universidades, e Colegios de Portugal: e nam era encarecida a propozisam. Este é o motivo, meu amigo e senhor, porque os Estrangeiros nam crem, em nenhum destes panegiricos: porque dizem, que os Portuguezes, namobstanteque comumente sejam invejozos, e digam mal uns dos-outros; quando porem tomam o empenho de elogiar, mentem dezencaixadamente, e tudo transformam: e até dizem mal dos-outros todos, para elogiar o seu eroe. Se louvam um Santo, nam só nam á Santo igual ao seu; mas quazi chegam a dizer mal, dos-outros todos. O mesmo faz o noso Panegirista.

Que um omem fasa uma orasam mui mal: que se-explique[Pg 183] infelizmente: que introduza na-orasam, quantas coizas leo: que ignore o estilo de elogiar, e amplificar os argumentos: que seja languido e sem grasa na compozisam: que nam saiba, manejar a sua lingua: que ignore a colocasam das-palavras, e armonia dos-periodos: como faz este Panegirista; nam serîa grande coiza: o que nam poso sofrer é, que tenha prezumsam desmedida, e que diga mal dos-outros, e d’aquilo que nam intende. O que se-faz nestas orasoens, e com especialidade o autor desta. Para dizer, que o Souza estudou em Portugal, e nam fóra dele; emprega quatro boas paginas[59], dizendo mal, dos-que vam estudar fóra de Portugal: porquanto cá em Portugal, segundo ele diz, tudo se-acha, e muito melhor, que nos-outros Reinos. Os mesmos livros: omens mais doutos: Universidades melhores, e mais florentes da-Europa: Portugal é o Reino da-Sabedoria; do-qual os Estrangeiros podiam participar com mais razam, doque os Portuguezes deles: e outras semelhantes. E que diz V. P. a esta propozisam? á coiza mais estupida! E concedem-se licensas, a semelhantes escritos! Senhor Panegirista, responderia eu, nam basta ter os livros, é necesario intendèlos: e iso é o que os praguentos dizem, que muitos cá nam sabem. Todos os Latinos nas escolas lem Cicero; e poucos o-intendem; e muito menos o-imitam. Mas, suponhamos que o-sabem alguns; Porventura, sabem-no ou ensinam-no nesas Universidades? nam senhor, que eu prezenciei tudo o contrario. Alem diso, aqui nam á exercicio de linguas, Filozofia boa, Matematicas, Teologias Pozitivas &c. Istoria, Medicina verdadeira, e outras faculdades: se me-nacer alguma duvida, a quem o-ei-de proguntar? Alem diso, esa falta de exercicio é cauza, de que se-ignorem muitos livros: pois é certo, que em Portugal, nam se-conhecem livros bons, que sam bem vulgares em outros Reinos: e o Panegirista é um deles; que por-nam conhecer os autores, diz muita falsidade, no-seu Panegirico. Despois que se-fundou a Academia da-Istoria, quantos livros nam se-conhecem, que antigamente se-ignoravam? Concedo, que se em Portugal se-introduzisem outros estudos, com o andar do-tempo fariam o mesmo, que nos-outros paîzes: mas como ainda estamos mui longe d’esa epoca, nam é maravilha, que muitos vam estudar fóra, o que cá se-nam-sabe. Prouvera a Deus, que fosem[Pg 184] muitos mais: e que estudasem bem: e viesem introduzir ese bom gosto, em Portugal.

Quanto ao que diz o Panegirista, que os Estrangeiros podiam aprender, dos-Portuguezes; tem muita razam: mas deixo a V. P. o-determinar, se á-de ser em armas, ou letras. Se ele soubèse o conceito, que aqueles tem dos-Portuguezes, ficaria mui admirado. E para nam buscar exemplos remotos, direi a V.P. que eu falei em certa Cidade, com um Religiozo, que viera instruir em Rilhafoles, os ordinandos: e me-dise, que ficára pasmado, de ver a ignorancia destes paîzes, principalmente dos-Clerigos: muitos dos-quais, nam obstante terem fama de doutos, necesitavam aprender, os primeiros rudimentos da-Fé. Este falava por-experiencia; pois estivera dois anos em Portugal: era alemdiso um omem de virtude, e mui moderado no-falar. Veja V. P. que conceito eles tem disto. Pode-se notar no-mesmo Panegirista, a incoerencia: Quando lhe-tem conta, para avultar a ciencia do-Souza; Roma é uma Cidade cheia de omens doutos: a Arcadia é uma coiza famozisima: é um congreso de Virgilios, e Oracios. Quando nam lhe-tem conta, os Estrangeiros nam sabem nada: e tudo podem aprender, dos-Portuguezes: quem intenderá tal omem! Em uma palavra, este omem cuido nam fez coiza pior, na sua vida. Todas as comparasoens que faz, sam arrastadas, e inverosimeis: as exclamasoens, que frequentemente introduz, fóra do-propozito, e do-lugar: as parentezis longuisimas, superfluas, e insoportaveis: a fraze afetada, mas sem elevasam ou nobreza; repetindo em cada regra a Ilustrisima, a um Religiozo, e a um morto. Finalmente nam sabe dar forsa, aos argumentos que traz, dilatando-os com artificio retorico.

Mas nam quero falar mais nesta materia, porque parece que faso grande cazo, de uma coiza que o-nam-merece. é fazer grande favor ao autor, criticar-lhe os defeitos, que sam infinitos. Antes devo pedir a V. P. perdam, de o-ter demorado, com semelhante orasam: o que fiz por-duas razoens: Primeira, paraque V. P. vise, a infinita distancia que poem, entre sermam funebre na igreja, e orasam funebre na academia: como se os preceitos da-Retorica fosem diferentes! Segunda, paraque vise pintados em uma só orasam, todos os defeitos que lhe-tenho apontado, reinarem nestes paîzes: pois sendo este um dos-modernos, caie em todos eles, nam dizendo o que deve; e dizendo o que nam deve.[Pg 185] Os quais sam mui consideraveis defeitos, de Retorica.

O que até aqui tenho exposto a V. P. bastantemente mostra, o que eu tinha proposto: e dá uma verdadeira ideia, do-que é Retorica, em que se-deve uzar, e como se-deve uzar. E com efeito menos ainda basta: poisque tendo V. P. grande compreensam de materias, e mais que tudo, formando juizo exato das-coizas; nam lhe-podem ser ocultas, estas que aponto; e nam pode deixar de falar, com belisima Retorica. Mas á juizos tam sepultados na materia, que nam podem considerar outras coizas, senam aquelas que uma vez vîram: nem receberám a verdade mais clara, e demonstrada, se nam é proposta com aqueles termos, e por-aquele metodo, que uma vez ouvîram. Isto me-obriga a fazer alguma reflexam, sobre as partes da-Retorica, ou sobre estas Retoricas uzuais, e principalmente sobre o estilo do-pulpito: vistoque nestes paîzes, para isto inclinam mais: e nisto é que necesitam, de melhor diresam; para os-livrar daqueles ridiculos prejuizos, de que estam cheios.

METODO DE PERSUADIR.

Manifesta loucura é persuadir-se, que é necesario saber tudo, o que dizem as Retoricas, para ser Orador[60]. Ja adverti a V. P. que estas Retoricas comuas, eram pola maior parte uma lista de nomes, e divizoens, impertinentes de se-aprenderem, e dificultozas para se-conservarem: mas tudo isto podia suceder, aindaque a materia fose boa. Porem eu nam paro aqui, mas digo, que nam só polo modo com que o-dizem, mas iso mesmo que dizem, tem pouquisima ou nenhuma utilidade; e nada conduz para o fim, de falar bem, e persuadir. E digo da-maior parte delas, o que lá dise Cicero de outra Retorica, que escrevèra Cleantes, Que para nam saber falar, nam avia coisa melhor[61]. Sam sinco as partes da-Retorica: Procurar meios de persuadir: dispolos: falálos bem: estudálos de memoria: e pronunciálos com as asoens que se-devem. A isto ajuntam, os trez meios[Pg 186] de persuadir, que sam as provas, os costumes, e as paixoens dos-ouvintes. Dizem alem diso, que qualquer discurso oratorio deve ter exordio: despois, narrar o fato: despois proválo, e responder aos motivos contrarios: finalmente perorasam, na qual se-faz um epilogo dos-motivos, e se-excita novamente, o animo dos-ouvintes. Tudo isto é verdade: mas se pararmos aqui, pouco saberemos de Retorica. Eu direi alguma coiza da-Invensam: sobre as outras, reporto-me a eses livros comuns; e só tocarei, o que me-for necesario.

Para buscar argumentos ou provas, que persuadam, o que pertende o Orador; propoem os Retoricos uma lista de nomes, aque chamam, lugares comuns: os quais ensinam, considerar o argumento de tantas partes, e voltálo de tantas maneiras, que seja facil, dizer muita coiza do-tal sugeito. Confeso, que estas considerasoens genericas, dam materia para falar muito; e em tal ou qual cazo, podem nam ser inutis: mas, seguindo o parecer dos-omens de exata critica, constantemente digo, que estes lugares nada menos ensinam, que a falar bem: suministram ideias gerais, palavras sem sustancia, narizes de cera, que se-aplicam a tudo, e nam persuadem nada em particular. Um destes que cre muito nos-Topicos, falará uma ora inteira, sem dizer coiza alguma com propozito: justamente como os Logicos da-Escola. Estes escrevem longuisimos tratados de Syllogismo, dam mil regras, para discorrer com propriedade, e sem falencia; e para provar tudo o que ocorrer. A ouvilos na cadeira, julgará um omem, que sam letrados universais: mas introduza-os V. P. em um discurso particular, e verá, que tudo aquilo é palhada: concluirám um discurso pior, doque nam fará, um oficial ignorante. Muitas vezes nam sabem nem comesálo, nem acabálo: e se lhe-metem a pena na mam, é lastima ver, como escrevem as suas razoens. O mesmo Cicero, que tam apaixonado era pola Retorica, e seus preceitos, que escreveo um livro dos-Topicos; contudo reconhece, que é necesario muito juizo, para se-servir destes lugares, em modo que nam digamos parvoices[62].

[Pg 187]

Quem pois reflete nisto, intende o conceito que se-deve fazer, de semelhantes lugares. Se nam fose permetido falar, senam naquilo que se-sabe, a maior parte destes, que fazem profisam de falar em publico, ficaria calada. Ninguem é capaz de discorrer em uma materia; se é que a-nam-tem estudado fundamentalmente: e nunca poderá deduzir, boas consequencias, se acazo nam posûe bem, os principios. Pode um Fizico estar cheio de silogismos, até os olhos; ter lido quantas ridicularias se-tem dito, sobre os apetites da-Materia; se acazo nam tem bem examinado, as experiencias: nam poderá explicar, qualquer uzual fenomeno. Pode um Teologo saber, a quinta esencia da-fórma silogistica; mas se nam sabe bem, em que textos se-fundam os Dogmas, nam será Teologo senam de nome.

Isto suposto, a primeira e importantisima regra da-Invensam é, intender bem a materia, que se-trata[63]: porque só asim facilmente se-incontram, os argumentos proporcionados ao sugeito: e tam facilmente se-incontram, que naturalmente se-aprezentam, caiem da-boca, e da-pena. Este é o grande defeito, destes Pregadores Portuguezes. Propoem-lhe uma materia, que eles ignoram: e em lugar de estudarem o que devem, formam logo ideia, do-que querem dizer; e despois procuram os textos, que fasam ao intento: e se os-nam-acham, violentamente os-arrastam: porque finalmente, seja como for, deve-se provar, o que se-propoz. Ora a Escritura nem sempre dá textos literais, para confirmar todas as chimeras, que os Pregadores propoem: e asim é necesario recorrer, a algum destes comentadores Peripateticos: muitos dos-quais adotam nos-comentarios, as sutilezas: e, se falta este, nunca falta um destes Asceticos, que provam tudo o que querem: e temos o sermam feito. Se o Pregador tivese estudado a materia, conheceria, que verdades importantes, como sam as da-religiam, nam se-podem provar com sutilezas, mas com razoens solidas: razoens solidas nam se-podem achar, para provar conceitos ridiculos: de que vem, que necesariamente um omem que[Pg 188] sabe a materia, deve desprezar estas puerilidades; e considerar todos os sermonarios, talhados por esta medida, como livros que nam se-devem ler.

Que seria do-mundo Retorico, se todos os omens um dia, abrisem os olhos! Eu seguro a V. P. que de cemmil livros, que se-acham nesta materia, pouquisimos se-poderiam conservar; e alguns deles, só por-fazer favor, aos seus autores. Pois aquilo que entam fariam todos, devem oje fazer os omens, que se-querem aproveitar a si, e aos outros. Quando eu era rapaz, e somente conhecia os autores polo sobrescrito, considerava mais felizes, e doutos aqueles omens, que posuiam mais livros, doque os que tinham menos: porque, dizia eu, aqueles gozam a lisam, de mais autores, e de mais omens insignes. Naquele tempo, Escritor, e Doutor, eram sinonimos no-meu Vocabulario. Eu era um daqueles, (que por-nosos pecados, ainda vemos oje tantos) que medîa a Ciencia a palmos: quanto mais livros, mais ciencia: e o livro maior sempre me-parecia, tezoiro mais preciozo. Mas despois que me-familiarizei, com aqueles mortos: que revolvi muitas, e grandes livrarias: que consultei omens doutisimos: que li atentamente os Criticos: e finalmente que tomei o trabalho de examinar, com os proprios olhos, o merecimento de muitas das-ditas obras: transformei-me neste particular: e formo tam diferente conceito do-mundo; que se explicáse tudo o que intendo, nam conservaria tam boa conrespondencia, com tanta gente. Ora isto que se-pode dizer, de toda a sorte de livros, aplico eu oje aos sermonarios, e outros que tratam de Retorica: e conclûo, que pouquisimos destes livros se-podem ler, e ainda eses com cuidado.

É coiza digna de observar, que nestes paîzes, a maior parte dos-que estudam, confundem o Ingenho, com o Juizo: o Juizo, com a Doutrina: esta, com o Criterio: sendo coizas na verdade bem diferentes. Pode um omem ser ingenhozo, porque pode unir diferentes ideias que elevem, ao que chamamos Ingenho; e nam ter uma oitava de Juizo: porque finalmente o Juizo é aquela faculdade da-alma, que sepára uma coiza da-outra, e conhece cadauma, como é em si. Pode este omem ter Juizo, e nam ter Doutrina, porque nam tem estudado. Pode ter alguma Doutrina, e nam ter aquela que é necesaria, para formar bom Criterio. Isto parece-me bem claro. Mas nam o-intendem asim aqueles, que[Pg 189] por-verem um, que ideiou varias chimeras, e formou algumas ideias sutis, mas ridiculas; logo o-batizam, por-omem de juizo, e grande doutor. E daqui entam nace, que as ideias daquele tal omem, sam recebidas com mais respeito, doque nam eram as respostas, em Delfos. Mas, tornando ao argumento.

Para persuadir, quer-se em primeiro lugar, boa Logica, que dè os verdadeiros ditames, para julgar bem[64]: em segundo lugar, um juizo claro, que os execute. Sem estes primeiros principios. sam superfluos todos os ditames. Da-Logica em seu lugar falaremos. Decendo pois ao particular digo, que só a verdade ou verosimilidade, é a que pode persuadir um omem; e é aquela valente arma, com que nos-acomete a razam. Ninguem deixa de se-persuadir, de uma verdade clara. Verdade é que muitos se-persuadem, da-aparencia: mas tambem é certo, que os-move a verdade, que nela imaginam. Asimque só a verdade é a que persuade, quando se-lhe-dá atensam. A forsa que os omens fazem, para divertir os olhos do-intendimento, para outra parte; é a que impede, que a verdade nam triumfe, produzindo o seu efeito, que é a persuazam. Nisto é que está o empenho do-Orador, em descobrir a verdade: mostrála em toda a sua clareza: e manifestar o erro oposto. Nisto se-distingue o verdadeiro Orador, do-Declamador. Este, contentando-se das-aparencias, veste o erro com a mascara da-verdade: o Orador porem descobre e manifesta o erro, e poem a verdade em toda a sua luz.

Orar nam é inganar, é sim introduzir no-animo, alguma verdade importante. Mas muitas vezes os Oradores, tem mais necesidade, de convencer o erro, doque establecer alguma verdade notoria. Ninguem toma o trabalho de persuadir, que Deus castiga, e premeia: isto sabem todos os ouvintes: o ponto está em mover os omens à penitencia, mostrando o grande erro, de a-deferir para a ora da-morte. Em descobrir o erro, é que deve cuidar muito o Orador. Os omens nam se-inganam nas consequencias,[Pg 190] porque comumente deduzem-nas muito bem: o em que se-inganam é, nos-principios; porque, por-falta de exame, recebem uns falsos, como se fosem verdadeiros. Deve pois o Orador, mostrar a falsidade destes principios. deve mostrar-lhe em que diseram bem, e em que faláram inganados. Desta sorte mostrando-lhe a verdade, se a materia o-pede; ou, se é notoria, descobrindo-lhe bem o erro, se-consegue o fim da-persuazam.

Mas nam basta isto, para persuadir: e sam necesarias outras circunstancias, para introduzir no-animo, a verdade. A primeira é, a atensam. Que importa, que o Sol alumeie o Mundo, se eu depropozito me-retiro em uma caza oscura; ou polo menos, nam dou atensam aos objetos, que se-me-propoem? Damesma sorte importa pouco, que a verdade seja notoria, e o erro muito bem convencido; se eu nam faso atensam para uma, nem para outra coiza. Deve pois com cuidado o Orador, excitar a atensam: e como as coizas ordinarias, nam conseguem isto, mas sim a singularidade e novidade; deve o Orador, vestir iso mesmo que diz, de uma certa novidade, que o-reprezente singular. As Figuras dam esta novidade às coizas: e por-iso elas sam, as que movem muito a atensam: dando a intender, que o objeto é novo, é grande, é singular. Certo amigo meu, descrevendo a cara de uma molher, igualmente feia, e desvanecida; soube dar tal novidade a este asumto, que é bem umilde, e esteril; que com gosto se-lia a descrisam, do-principio até o fim. Porei aqui um soneto, que fez ao dito asumto, e que tem o mesmo artificio.

Es feia: mas desorte, que orroroza
À tua vista é bela a feialdade.
Mas tens fortuna tal, que a enormidade
Te-consegue os tributos de formoza.
Cara tam feia, coiza tam pasmoza
Todos observam, e move a raridade.
Nam desperta o comum, a curzidade:
Ser rara, é que te-adûla vaidoza.
Ama-se o Belo, e cega o mesmo afeto.
O Feio, pois nam liga o pensamento,
Deixa miudamente ver o objeto.
Iso faz, que se-observe ese portento.
Quanto estás obrigada, a ese aspeto;
Se no-enorme te-dá merecimento!

[Pg 191]

O outro importante ponto, de excitar a atensam é, nam mostrar o objeto, que se-propoem, senam quando a atensam, ja nam é necesaria. Embebido o omem da-curiozidade, de saber o que se-propoem, vendo sempre coizas novas, e que prometem despois de si, outras maiores; vai seguindo com a considerasam o Orador, atéque lhe-explique, a inteira sustancia do-negocio. Asim se-conserva o ouvinte atento; e, estando atento, se-lhe-introduzem, as verdades que se-querem. Nos-Poetas de algum nome verá V. P. este artificio, bem executado: e tambem em muitos Prozadores. O mesmo Gracian no-seu Criticon, ingenha desorte a narrasam, das-figuras que introduz; que acaba o capitulo, quando se-á-de explicar, algum grande fato: e rezervando a solusam, para o seguinte, conduz o leitor, desde o principio até o fim, sempre com curiozidade de ler. Este tambem é o artificio mais comum, das-orasoens de Cicero, e de alguns Oradores modernos, que o-souberam imitar: como eruditamente adverte, um grande Retorico da-minha Religiam[65]. E nisto é que se-distingue o Orador, do-Filozofo. Ambos tem por-objeto, a Verdade: mas o Filozofo nam costuma, mover a vontade: contenta-se, de expor as razoens: porem se acazo nam acha um leitor, sem prejuizos e preocupasoens nam conclue nada. Mas o Orador move as paixoens: excita a curiozidade: mostra a verdade de tantos modos, com tanta clareza, com tanta eficacia: desfaz os prejuizos com tanto estudo; que finalmente convence o ouvinte.

O 3.o ponto importante é, saber ganhar a vontade, ou insinuar-se, no-animo dos-ouvîntes. A Verdade, diz o proverbio, é amargoza: e uma verdade nua e crua, proposta a uma pesoa, que as-nam-coze bem, é dura de digerir. Deve pois o Retorico, insinuar-se galantemente, no-animo dos-ouvintes: propondo-lhe a verdade, vestida de um tal modo, que ele a-admita, quazi sem advertir. V.P. ja sabe, que as pirolas de quinaquina, e outras tais amargozas, se-cobrem com marmelada, ou obreia branca, para se-engulirem sem dificuldade. Eu sei muito bem, que este negocio, nam está na esfera, de todos os Pregadores. Requer grande pratica do-mundo: grande-conhecimento dos-omens: do-modo com que obram, e com que se-excitam as paixoens: finalmente uma Filozofia particular, que descubra a origem de todos os movimentos[Pg 192] do-animo: lisam de bons autores: e perfeita sagacidade: qualidades todas que pouquisimos chegam a conhecer, quanto mais posuîr.

Julga-se comumente, e nam sem razam, que o conceito que os ouvintes tem, da-virtude e merecimento do-Pregador; conduz muito, para se-persuadirem. Quem vai ouvir um omem, de quem é fama comua, ser muito santo, ou muito douto; vai meio convertido, ou persuadido. Em todas as Aldeias, á-de aver um barbeiro, que julgue de sermoens: o qual é estimado, como o omem mais inteligente. Os Aldeioens talvez nam ouvem, o que diz o Pregador; mas estam atentisimos aos movimentos, que faz o barbeiro: se este aprova o discurso, o Pregador é famozo. Asim se-vive nam só nas Aldeias, mas tambem nas Cidades. Sam poucos os omens capazes, de julgarem por-si: mas vem, ouvem, e julgam, polos sentidos dos-outros. A prevensam pois com que se-ouve um omem, é aquela que, entre a maior parte dos-omens, decide do-seu merecimento: e esta tal opiniam de merecimento, é a que faz receber com agrado, os discursos: os quais, quando nam acham opozisam no-animo, produzem todo o seu efeito. E asim deve o Pregador, mostrar-se digno de o-ser: deve pregar primeiro com as obras, que só entam os seus discursos, seram bem recebidos, e os seus ouvintes ficarám persuadidos, do-que lhe-propoem. Mas devem estas virtudes ser verdadeiras, porque sem iso, nada conclûem.

Em 4.ᵒ lugar, deve cuidar muito o Orador, em nam ofender com palavras, os seus ouvintes. Os Omens nam gostam, de repreensoens publicas: e parece que com razam. Tudo se-pode persuadir, com bom modo: e facilmente concordamos no-que nos-dizem, se ouvimos as razoens, propostas com amizade, e com brandura: e propostas por-um omem, que nam faz vaidade da-Eloquencia: que nam ostenta triumfos: mas que utilmente se-serve dela, para nos-inclinar, para onde devemos.

Em quinto lugar, é necesario tambem, mostrar aos ouvintes a utilidade, daquilo que lhe-propoem: mostrar-se parcial dos-seus intereses, para os-poder trazer, para a parte contraria. Nós facilmente damos orelhas àqueles, que intendemos obram, polo noso mesmo motivo; e estam persuadidos, da-mesma paixam. Por-iso é muitas vezes necesario, nam condenar tudo quanto eles dizem: louvar alguma parte, para podermos condenar a outra, com mais[Pg 193] eficacia, e efeito. É necesario, saber dizer mal nas ocazioens, modificando a censura, com alguns elogios. Observei sempre, que um omem que nega tudo, ou concede tudo, nam conclûe nada. Devemos dar lugar à prevensam; e algumas vezes dar tempo à colera: esfogada a qual, entam é que pode ter lugar, a persuazam. Para isto requer-se doutrina, prudencia, afabilidade, e outras muitas virtudes.

Deve em 6.ᵒ lugar, saber excitar propriamente, as paixoens; e inspirar aquelas que sam proprias, para mover o Omem. Sam as paixoens as que nos-movem: e nam á coiza, que nam posa fazer um omem, se-acazo se-lhe-excitou, a paixam proporcionada. Nisto pois é que deve estudar o Orador: inspirando aquelas, que sam necesarias, para abrasar a verdade que propoem. Para isto é necesario, estudar bem as paixoens do-animo; porque, sem estas machinas, é certo, que nada obram os Omens. Isto que até aqui temos dito, abrasa todo o genero de orasoens, e sermoens: mas especialmente se-devem notar algumas coizas, para a eloquencia do-pulpito: que compreende duas sortes de orasoens, Panegiricas, e Morais.

Em primeiro lugar é uma ridicularia e impropriedade, tomar um texto da-Escritura, para fazer um panegirico Funebre. Nam é o asumto, explicar a Escritura: mas sim engrandecer, as virtudes todas daquele omem; paraque todos o-imitem: e consolar o auditorio da-sua perda, com a vista dos-monumentos, das-suas singulares prerogativas. Onde deve-se descrever a vida dele; tomando as asoens mais famozas, e deixando menudencias ridiculas, que nam dam maior ideia, da-dita pesoa. Devem-se narrar, e engrandecer as asoens: deve-se na exagerasam empregar todo o artificio da-Retorica; sem degenerar naquelas ridicularias, que todos os momentos vemos: a Istoria, o exemplo pode dar novo lustre, às mesmas virtudes. Mas sempre devemos ter diante dos-olhos, que uma coiza é orasam, em que se-persuade, a execusam da-virtude; e outra panegirico: naquela tem lugar, os textos da-Escritura; nesta de nenhuma sorte. Em uma palavra, todo o artificio que se-deve praticar, em todas as orasoens exornativas, que ou louvam, ou vituperam; consiste em narrar, e amplificar. Desorteque, para nam fazer istoria, deve nam só narrar; mas de tal sorte distribuir a narrasam, que despois de narrar um fato, ou uma serie de fatos, que pertensem ao mesmo ponto; os-amplifique:[Pg 194] e asim mostre o seu juizo, na narrasam; e a sua eloquencia, na amplificasam[66]. Como todas as orasoens do-genero demonstrativo, tenham estado de comparasam, porque nam se-disputa, an res sit, mas quanta sit: deve ser o principal artificio do-Orador, introduzir a controversia conjetural; com que manifeste, a grandeza da-asám, considerando miudamente todas as coizas, que a-podem relevar. Despois, conjeturar das-virtudes pasadas, o que ele faria nestas, ou em outras circunstancias &c. Podem tambem nestes panegiricos ter lugar, diversos outros artificios, de controversia Definitiva, Translativa, e Judicial; praticados polos antigos Retoricos: os quais conduzem muito, para este mesmo fim.

Quanto à dispozisam dos-argumentos, aconselha Cicero, que primeiro se-toquem, os bens externos, quero dizer, da-gerasam: despois, os do-corpo, e os do-animo. Quanto às asoens, que ou se-siga a ordem dos-tempos, ou se-reduzam a diversos titulos de virtudes[67]. Desta sorte narrando, e amplificando, se-poderá formar, um panegirico perfeito.

Pasando daqui aos panegiricos de Santos, em quanto se-puderem evitar temas, será mais arrezoado: mas quando ou o costume, ou o genio obrigue, a tomar algumas palavras da-Escritura; nam é necesario, esquadrinhar profecias, nem procurar de acomodalas literalmente: basta que as ditas tenham alguma analogia, com a materia de que se-trata. Pode-se seguir a sentensa da-Escritura, para comesar o sermam; sem a-introduzir novamente, no-corpo dele. Isto tenho visto fazer, a omens muito grandes: e parece-me que um tal exemplo, se-deve preferir aos outros. No-corpo da-obra, deve-se seguir o mesmo estilo, das-outras orasoens laudatorias; narrar, e amplificar. Mas como a vida dos-Santos, principalmente antigos, é ja nota a todos; para[Pg 195] evitar o fastio a estes delicados, pode escolher uma, ou duas asoens mais famozas, e delas formar o seu panegirico. E este metodo é o mais frequente, quando se-fala em Santos antigos: cujas asoens todas ou sam bem notas, ou deles somente sabemos, uma ou outra virtude, mas publica a todo o mundo: ou algum grande privilegio, concedido por-Deus ao dito omem: e este o-engrandecem, com todo o artificio da-Retorica. Mas nos-modernos, cuja vida nam é mui notoria; é melhor, seguir a ordem dos-tempos, ou virtudes, e explicar toda a vida do-Beato. O grande Orador Paulo Segneri, pregando de S.Estevam, engrandece a virtude deste Martir, com varias considerasoens. 1.ᵃ ser S.Estevam o primeiro, que dèse a vida pola Fé. 2.ᵃ tela dado por-uma fé, que entam comesava, e era ainda desconhecida. 3.ᵃ tela dado nam só sem esperansa, de receber aplauzos, mas com certeza moral, de experimentar oprobrios e derrizoens. 4.ᵃ ter dado o proprio sangue por-um, de quem nam tinha recebido, tam privilegiados favores, como recebèram os Apostolos. 5.ᵃ porque uma tal asám mereceo, comunicar a Paulo, e outros que o perseguiam, a sua mesma fé. Com este exemplo, se-podem tecer mil panegiricos: advertindo muito, que estes pontos, nam se-devem provar separadamente, como fazem neste Reino; porque este metodo destrue, a uniformidade do-sermam, e impede o exercicio oratorio: mas de um se-deve pasar a outro, de modo tal que, sem advertir o ouvinte, se-veja introduzido na considerasam, de uma nova prerogativa; com que o Pregador vai requintando, as virtudes que narra; e seguidamente o-conduz ao fim, de o-persuadir, que é grande o sugeito, de que se-trata. E nisto se-compreende tudo, o que pertence ao genero laudatorio, quero dizer, aos sermoens em que se-louva alguma pesoa, ou alguma asám de piedade.

A outra especie de sermoens, a que chamam Morais, podem em certo modo pertencer, ao genero demonstrativo: o qual nam só compreende, os que louvam alguma asám, mas os que vitupèram outras: como sam os morais, que pintam o Vicio mui feio, para mover os Omens, a que abrasem a Virtude oposta. Mas como nisto entra a persuazam, e admoestasam, que sam proprias do-genero deliberativo; podemos chamar-lhe, mixtos de ambos os generos. Mas chamem-lhe como quizerem, o mesmo artificio, que asima disemos, se-pratica nos-outros; deve praticar-se[Pg 196] nestes, com sua proporsam: quero dizer, que se-tome um asumto singular, e proprio do-que se-quer dizer; e que se-busquem argumentos, e se-dilatem demaneira, que sempre se-vá subindo; para chegar a persuadir-se, o que se-quer. Isto suposto deve o Pregador, fugir de dois extremos: um, de querer agradar muito, dizendo galantarias, e enchendo a orasam de pensamentos sutis, de aplicasoens chimericas, e outras coizas destas: outro, de nam querer agradar coiza alguma, como fazem certos misionarios, que propoem as verdades tam nuas e cruas, que infinitamente dezagradam. Contra os primeiros, ja asima dise alguma coiza, repreendendo as afetasoens, onde nam entram: sendo certo que nam entram tais coizas, em materias tam sezudas e graves. Mas porque á muita gente, que, querendo fugir do-primeiro defeito, caie no-ultimo; e para cubrir a propria ignorancia, despreza todos os ornamentos da-Retorica; é necesario mostrar a estes, o seu ingano, com o exemplo dos-omens doutos, e pios.

O Pregador Evangelico deve instruir, e mover: e nam se-insinuando, no-animo dos-ouvintes, nam conseguirá o persuadilos. Onde, diz com muita razam S. Agostinho[68], que o Orador Cristam, deve saber uzar, dos-livros dos-Etnicos; principalmente dos-Retoricos, para agradar, e persuadir: o que prova com exemplos, de muitos Padres, que fizeram o mesmo. Semelhante pensamento expoem S. Jeronimo, escrevendo a Magno Orador Romano: e S. Gregorio Nazianzeno diz mui claramente[69], que todos os seus estudos profanos tinha deixado, menos a Retorica: na qual experimentava todos os dias, infinitas utilidades; e que dela se-servîra, e servia sempre. S. Bazilio, S. Ambrozio, e outros SS. mui doutos nas letras profanas, praticáram o mesmo: e nas suas obras conhecemos nós, como podemos uzar, dos-tais autores. Onde deve o Pregador, ter sempre na memoria, aquelas palavras de S. Agostinho no-lugar citado: Volumus non solum intelligenter, sed libenter audiri. e em outra parte: Nolumus fastidiri etiam quod submisse dicamus ..... Illa quoque eloquentia generis temperati, apud eloquentem Ecclesiasticum, nec inornata relinquitur, nec indecenter ornatur. Deve alem diso o Pregador, nam só instruir, e agradar; mas principalmente mover: o que conseguirá por-meio do-genero[Pg 197] sublime, e patetico, quando se-trata de persuadir, as obras boas: porque no-saber mover é que consiste, o verdadeiro triumfo da-eloquencia. E para fazer isto, nam se-requerem, como jà dise, sutilezas, mas razoens fortes, e bem dispostas, e exageradas. &c.

Isto é obrigasam. Quanto ao meio de o-conseguir, deve, despois de bom fundamento, nas letras umanas, ter grande lisam da-Escritura, e dos-Padres que apontamos: cujas homilias ensinam, como se-deve pregar, para tirar fruto. Nam creio, que aja Pregador ou Misionario, que queira ser mais santo, mais douto, e mas zelante, da-onra de Deus; que os que apontamos, e outros semelhantes, como S. Joam Crizostomo &c. e tendo eles praticado isto, com tanto louvor; eles tambem devem ser, os nosos mestres. Especialmente se-deve ler S. Agostinho, nos-livros de Doctrina Christiana, onde explica bem a materia.

Mas porque a maior parte destes, prezados de Criticos, e Retoricos, que nam sabem a istoria Ecleziastica, nem Literaria; intenderám, que estes Padres só cuidavam na virtude, e nam sam bons para se-imitarem, na eloquencia &c. será necesario explicar-lhe em breve, quem eles eram. Bazilio Cesareense, ou Magno, de quem aqui falamos, estudou muitos anos, na mais famoza escola, que era Atenas. foi um dos-mais famozos Filozofos, Gramatico, e Retorico insignisimo. as suas homilias sam um perfeitisimo modelo de eloquencia: e o grande Photio chega a dizer, que se-podem igualar, a Demostenes. Leva a palma principalmente, nos-Panegiricos. Gregorio Nisseno seguio as pasadas, de seu irmam Bazilio. foi publico profesor de Retorica, e insigne Filozofo: e tam amante das-letras profanas, e especialmente da-Retorica, que S. Gregorio Nazianzeno, amigo comum de ambos, na carta 43. condena, este seu nimio estudo. O estilo dele é sublime, e juntamente agradavel. S. Gregorio Nazianzeno foi condicipulo, e amigo de S. Bazilio. Na eloquencia querem muitos, que exceda ao mesmo Bazilio. finalmente é tam sublime na pureza, e elegancia; que o grande Erasmo diz, que nam se-pode traduzir bem em Latim, por-cauza da-magnificencia &c. S. Ambrozio era eruditisimo em Grego, e Latim, mais doque comumente se-nam-cre. o seu estilo é concizo, e agudo, e quazi semelhante ao de Seneca; aindaque melhor. Nam era grande Retorico: mas é fluido, e proprio para convencer os erros com doutrina, piedade, e gravidade.[Pg 198] S. Jeronimo todos sabem que era um omem eloquentisimo, em Latim, e Grego &c. e mui versado nos-livros dos-Etnicos, e na Filozofia Grega, e Istoria; e sumamente veemente: Onde pode-se aprender nele, muita coiza boa. S. Agostinho aindaque nem na pureza da-lingua, nem no-estilo seja igual a Jeronimo, e outros asima; contudo na sutileza, e no-mesmo tempo na profundidade do-juizo, talvez o-excede. Certamente que aindaque fose, profesor de Retorica, nam fez grande aproveitamento; nem chegou à erudisam dos-outros. Mas dele se-pode aprender muito: principalmente nos-ditos livros de Doctrina Christiana, emque ensina que dotes se-requerem, para interpretar bem as Escrituras; e fazer as outras obrigasoens de um Ecleziastico. Asimque dele se-podem aprender, muitos ditames. S. Joam Crizostomo tambem era doutisimo. Alem da-pureza da-lingua, que parece um verdadeiro Atico, une trez coizas admiravelmente; que sam a facundia, a erudisam, e a facilidade: desorteque ninguem tratou as materias, com mais clareza, e naturalidade. Alem diso é singular nisto, que acomodou a sua doutrina, à capacidade dos-ouvintes; e por-iso agrada a todos: em modo que para pregar ao povo, as suas obras ensinam muito. Estes sam os Santos, que propomos ao estudante; e nam só porque sam santos, e mui versados nas doutrinas sagradas; mas especialmente porque o-sam nas profanas: com as quais formáram o bom gosto, e intendèram melhor as sagradas. Porque muitos nam tem, estes principios de letras umanas, aplicadas às divinas; por-iso vemos tantos Pregadores, que nam sabem abrir a boca. E porque nas mesmas letras umanas, muitos as-nam-estudáram como deviam, nem chegáram a conhecer, qual era o bom gosto, da-Eloquencia; por-iso tambem V.P. ve todos os dias omens, que nam só nam sabem, fazer um papel sofrivelmente; mas nem menos conhecer nos-outros, as delicadezas da-Oratoria. Desorteque se acazo lhe-mostram, uma orasam bem feita; nam lhe agrada: ou só vam buscar nela, as coizas menos sofriveis; palavrinhas, e coizas semelhantes: sem olharem para o todo da-orasam, para a proporsam, e dispozisam das-partes, o modo de dilatar os argumentos, de aclarar uma verdade; a verosimilidade dos-mesmos argumentos, e outras particularidades, em que consiste a eloquencia. A este modo pois de examinar, como eles fazem, chamo eu, julgar com os cotovelos: e tudo isto nace, de terem estudado mal.

[Pg 199]

Tambem outra coiza importante, deve advertir o Pregador, que sam as asoens. parece isto nada, e é uma principal parte na Oratoria. Nisto pecam bastantemente em Portugal. Vemos Pregadores, que peneiram no-pulpito, movendo os brasos e maons orizontalmente, com afetasam vergonhoza. vemos outros, que amasam, e dam estocadas com os brasos, arregasando as mangas, e fazendo mil coizas e posturas improprias. Nam pode V.P. crer, quanto isto desfigura o Orador, e esfria o animo dos-que o-ouvem. Um papel bom, quando é mal reprezentado, nam vale nada: o que todos os dias experimentamos. Bem nota é a istoria de Demostenes, o qual tendo ja dezesperado, de poder orar em publico, pola infelicidade da-sua pronuncia; um Comediante o animou, com a esperansa de reprezentar bem: e deo-lhe tais lisoens, que foi a cauza principal, do-grande nome, e aceitasam que ao despois teve.

Os Romanos, que sabiam quanto importava, reprezentar bem o seu papel, desorte se-exercitavam nisto, que tomavam lisoens dos-Comediantes; como o mesmo Cicero de si confesa. E com efeito, nam podiam tomar melhores mestres: porque os Comicos eram tam insignes nisto, que falavam somente, com as asoens. Nos-ultimos tempos da-Republica, se-introduzîram nos teatros, os Pantomimos: que era uma especie de Comediantes, que com as asoens somente explicavam, o que outro, que estava imovel no-fim do-teatro, dizia. Desorteque um falava; e o Pantomimo animava com a asám, a expresam do-outro. Tal era a diligencia, com que sabiam com a asám, acompanhar os movimentos do-animo! Isto faziam aqueles que sabiam, que coiza era Retorica: e isto deve fazer qualquer omem, que á-de orar em publico.

Os nosos Italianos sam os unicos, entre todas as Nasoens, que melhor exprimam com a asám, o que dizem: e nam só quando oram, mas tambem quando recîtam versos. Os Inglezes nam se-movem, quando recîtam: os Francezes esfogueteiam, e cantam: os Espanhoes choram: outros tem outros defeitos. Mas pola maior parte convem todos, que os Italianos, sam os mais expresivos: e um grande ingenho Francez, do-seculo pasado, chegou a dizer, que os nosos Italianos naturalmente eram, Comediantes. Porem em Portugal, á muita falta disto. Dos-Pregadores é notorio, que nam só lhe-falta a asám, mas até o tom da-voz, que nam acompanha com a asám. Confeso a V.P. que nunca pude[Pg 200] sofrer a afetasam, com que muitos pregam a Paixam, ou as Lagrimas. Estudam uma voz flebile, mas com modo tal, que em lugar de fazer chorar, provoca o rizo: muito mais se consideramos o que dizem, com a dita voz flebile. Eles circunscrevem o estilo patetico, na dita voz: e asentam que ela basta, para mover. Loucuras! O mesmo digo, quando fazem a exclamasam para o Sepulcro, nos-sermoens de Quaresma. todo o ponto está, em gritar muito: pedir mil mizericordias: e com isto se-contentam. Mas a falar a verdade, estes nam sabem o seu oficio. O estilo patetico, é a coiza mais dificultoza, da-Retorica, como confesa Cicero[70]: e nele é que consiste o triumfo, e aplauzo da-eloquencia. Nam é pequena dificuldade, ou para melhor dizer, é coiza admiravel, que as palavras que profere um omem, ajam de mover em mil ouvintes, os mesmos sentimentos, que quer o Orador: amor da-Virtude: odio do-Vicio: aborrecimento de si mesmo! Que cuida V.P. que será necesario, para conseguir isto? É necesaria doutrina admiravel: particular conhecimento das-paixoens umanas; como se-excitam, e adormecem: asoens proprias: e em uma palavra, saber uzar das-Figuras, na ultima perfeisam: e isto nam se-faz com voz flebile, nem com gritarias, mas com outras virtudes oratorias. Nam digo, que quem prega estes sermoens, esteja rindo: digo sim, que deixe aquelas afetasoens, e reconhesa em que consiste, o mover os animos: qual é a asám, qual a voz proporcionada.

Mas pior que tudo é, quando recîtam versos: rarisimo vi, que pronunciáse verso bem. Comumente vam detraz do-consoante, e fazem pauza, nam no-fim do-sentido, mas no-fim do-verso: o que é erro manifesto. Parece isto pior, quando recîtam versos Latinos, nos-quais nam á consoante: de que vem, que um carmen pronunciado por-um deles, e por-outro que o-saiba animar com a voz, e asám, parece diferente. Este defeito deve emendar o omem, que quér ser perfeito. deve exercitar-se em caza, diante de algum amigo bem informado; para ver, se expremio bem, a asám que quer. Só asim conseguirá, ser ouvido com gosto.

Mas eu quero parar, neste ponto: porque se deixo correr a pena, em lugar de reflexoens, escreverei um tratado de Retorica.[Pg 201] Reconheso que já caî, no-mesmo defeito que condeno: mas a materia é tam fecunda, e as reflexoens ocorrèram-me, com tanta promtidam, que nam pude deixar, de as-admetir. Direi porem a V. P., que lendo o que tenho escrito, acho que é suficiente, para introduzir um moso no-estudo, da-verdadeira Eloquencia. e quem se-capacitar bem destas reflexoens; e comesar a ler os bons autores, tanto Latinos, como Vulgares; e observar neles, o artificio das-orasoens; sem ler mais outra Retorica, pode sair gravisimo Orador. Esta prezunsam nam nace de mim, mas damesma qualidade dos-preceitos: os quais sam tam antigos, como os Oradores: que é o mesmo que dizer, sam os mesmos que executou Demostenes, e Eschines, e Isocrates: que nos-deixou escritos Aristoteles, Demetrio, e Longino: que praticou e ensinou com tanto louvor Cicero, M. Seneca, e Quintiliano, e outros autores antigos. As Retoricas comuas nam apontam, senam alguns nomes, que eu aqui nam quiz apontar: sem saber os quais, pode um omem ser, muito bom Retorico, se souber imitar estes treslados. Como tambem pode um omem, com exata lisam de bons livros, discorrer bem, sem saber as especies de silogismos, que apontam os Logicos.

Neste pouco que tenho proposto, cuido que cheguei, ao verdadeiro principio da-Eloquencia. Nam apontei o artificio, dos-diversos estados de controversias oratorias; porque nam era ese o meu argumento; nem tambem se-acha, nas Retoricas ordinarias: e somente se-pode aprender, nos-mesmos autores originais. O meu Religiozo que asima aponto, explica muito bem estes artificios, dando os exemplos originais: mas tambem se-demora com minucias: e como escreve em lingua estrangeira, nam é para o cazo. Outros, de que eu me-aproveitei mui bem, tambem escrevem em linguas estrangeiras, ou sam difuzisimos. Neste cazo para dizer a V. P. o meu parecer, aconselho ao estudante Portuguez, que nam tem alguma boa Retorica Portugueza; que, despois de intender bem, o que aqui lhe-aponto, tome alguma ideia, da-distribuisam da-orasam; a saber, exordio, narrasam, provas, epilogo: que leia brevemente, o nome das-figuras das-palavras, e do-animo: o que o mestre facilmente podia explicar. Posto isto, segue-se ler um autor Portuguez, no-qual posa fazer, as reflexoens necesarias. Mas aqui esta a dificuldade: e eu que nam costumo inganar ninguém, devendo dizer-lhe sinceramente o que intendo;[Pg 202] digo, que nam acho algum, que posa ser modelo.

Dos-sermoens nam tenho que dizer, sendoque ja expliquei, o que eram. As orasoens Academicas, que se-lem nos-Anonimos &c. nam merecem que se-leiam. Algum elogio da-Academia Real, que é mais toleravel, peca por-outro principio: porque é mera istoria, sem artificio algum retorico. * * * E aos que respondem, que tambem os Francezes praticam o mesmo, nos-elogios dos-seus Academicos; respondo o mesmo: que os ditos elogios sam istorias, e nam panegiricos: e asim o-julgam todos, os que tem voto na materia. Li nam á muitos dias o do-Cardial de Polignac, que teve ultimamente seus aplauzos: e achei que o autor, se ouvèse de escrever a istoria do-dito, nam se-serviria, nem de outras palavras, nem pensamentos, nem frazes. Com efeito eu julgo, que aqueles omens nam querem fazer outra coiza, que explicar em breve, a vida, e merecimentos dos-seus Academicos. Onde como eles nos-dispensem, de lhe-chamar orasam, ou panegirico; concedemos-lhe tudo o mais: mas devemos porem reconhecer, que nam sam obras no-genero Oratorio: e que nam sam para se-imitarem. Onde neste cazo deve o mestre, tomar sobre si o trabalho, de explicar tudo em Cicero: servindo-se para isto do-P. Cigne Jezuita: o qual, seguindo o metodo de um certo Inglez, faz a analize das-orasoens de Cicero. E asim nelas deve o mestre, mostrar o artificio da-Oratoria, fazendo as seguintes reflexoens. Notar primeiro a forsa das-razoens, dispostas com boa ordem, unidas naturalmente, e amplificadas com artificio. Notar a verosimilidade das-ideias: a pureza e elegancia das-palavras: a moderasam e propriedade dos-epitetos: o numero oratorio, que consiste em certa colocasam armonioza de palavras, mas que nam degenere em verso: a introdusam das-figuras, quando é necesario excitar as paixoens: as precausoens que observa, para nam dezagradar. Observando bem isto, na lisam dos-autores, bastava para conseguir, o bom gosto da-Eloquencia.

Deve porem unir-se com isto, o exercicio. Onde o mestre comporá, uma breve orasam Portugueza, segundo as regras da-arte: e mostrará nela aos dicipulos, o artificio e galantaria dela. Fazendo-se isto em Portuguez, facilmente se-aprende: e só asim podem eles, intender bem os preceitos, e executálos. Isto nam fazem em Portugal os mestres, e quazi se-envergonham, de escrever em Portuguez: sem advertirem, que a Retorica nestes paîzes,[Pg 203] mais se-exercita em Vulgar, que em Latim. Mas por-esta razam sucede, que saiem todos da-Retorica, sem saberem dela mais, que o nome. Porem, tornando ao estudante, tendo-lhe proposto um modelo, de fazer uma breve orasam; será necesario exercitálo. Isto facilmente se-faz, propondo-lhe na escola um asumto, e proguntando-lhe, o que eles diriam em tal cazo, para defender v.g. ou acuzar aquela pesoa. Certamente um rapaz com a logica natural, dirá algumas razoens, que lhe-ocorrem: pois vemos, que a nenhum rapaz faltam razoens, para se-desculpar dos-erros que faz, quando o-querem castigar. A um rapaz pode dar, a incumbencia de acuzar, e a outro de defender. Despois que ambos tem dito o seu parecer, deverá o mestre, suministrar alguma razam mais; e ordenar aos rapazes, que as-escrevam, e fasam as suas orasoens, do-melhor modo que puderem. Isto feito, deve o mestre emendar os erros, tanto de lingua, como de Retorica; dando-lhe razam, de tudo o que faz: e variando sucesivamente os asumtos. Desta sorte aprende-se mais Retorica, em uma semana; doque polo metodo vulgar, em dez anos.

Quando o estudante sabe bem, que coiza é Retorica, no-resto do-ano se-pode empregar, em compor Orasoens Latinas: ou traduzindo, as que compoz em Portuguez, o que é mais acertado ao principio: ou compondo outras novas. Para quem ja intende Latim, e sabe compor bem em Portuguez, isto é um divertimento, sem ter dificuldade alguma. Terá pois o mestre cuidado, de lhe-encomendar, que leia os trez livros de Oratore de Cicero, e Orator ad M. Brutum, como tambem o de Oratoriis Partitionibus: os quais dois ultimos sam a quinta esencia, de toda a Retorica. Encomende-lhe que se-familiarize, com as Orasoens de Cicero, para aprender os seus modos de explicar. As outras reflexoens sam iguais, em ambas as linguas, com sua proporsam: e tambem o modo de emendar os defeitos, que os estudantes cometem. Desta sorte é sem duvida que em um ano, podiam saber muito facilmente Retorica, e mui solidamente.

Quanto aos mestres, sou de parecer, que leiam atentamente, nam só os ditos livros, que apontamos de Cicero, e alguns outros, pertencentes também à Retorica; mas os de Quintiliano, em que faz belisimas reflexoens, sobre ela. Valla diz[71], que[Pg 204] ninguem pode, intender bem Quintiliano, sem primeiro saber bem Cicero: nem menos seguir perfeitamente Cicero, sem obedecer aos preceitos, de Quintiliano. O certo é, que Quintiliano é um Retorico insigne, e um grande Critico, que toda a sua vida empregou em refletir, e ensinar: e tem maravilhoza eloquencia: e dele podem tirar os mestres, as necesarias reflexoens, para comunicar a seu tempo, aos rapazes. Se o mestre quizese, mais alguma noticia particular, e ver as fontes, de toda a Retorica; devia ler os livros Retoricos de Aristoteles, que é o mestre nesta materia, e os ditos sam a sua melhor obra: nela bebèram todos. Podia servir-se da-versam Latina, se nam intendèse o Grego. A este ajunto um famozo Critico, e Retorico, que é Dionizio Longino, no-seu tratadinho de Sublimi stilo: em que faz admiraveis reflexoens, servindo-se tambem da-Versam[72]. E quem quizese mais, podia ler o Demetrio Falereo: aindaque nos-outros acha-se tudo. A estes quatro, Aristoteles, Cicero, Quintiliano, e Longino, se-reduz tudo o que á melhor na Antiguidade, sobre a Retorica. Aconselharia tambem ao mestre, que lese os panegiricos Latinos, que temos dos-Antigos, comesando em Plinio, e pasando aos outros que se intitulam, Panegyrici Veteres; que cuido sam uns quinze, compostos no-quarto, e quinto seculo: nam para os-seguir em tudo: mas para os-conferir com os antigos, ver em que diferem, e aproveitar-se deles, em alguma coiza menos má. Advertindo nestes ultimos, que o que aconselhamos nam é a lingua, que tem seus defeitos; mas algum pensamento &c. Retoricas modernas nam aconselho nenhuma, nem a dicipulos, nem a mestres: tirando o Vossio, nas suas Instituisoens Oratorias, que é famozo: o qual podiam ler uns, e outros, quando quizesem particularizar, alguma noticia. Aindaque quem le, e intende bem, o livro Orator de Cicero, nam necesita mais: mas como é breve, pode-se permetir, ler alguma coiza mais.

Aconselharia tambem, que aprendesem bem a lingua Italiana, para lerem as famozas tradusoens que se-acham, dos-Antigos Oradores Gregos, e Romanos, feitas por-omens insignes: como tambem para lerem as belisimas obras, em materia de Eloquencia; que os nosos Italianos tem produzido, e produzem todos os dias.[Pg 205] Ninguem nos-disputa a prerogativa, de que a Eloquencia sempre se-conservou, em Italia. Os Francezes, que nam cedem facilmente, no-particular de literatura, fazem-nos este elogio. E aindaque eles abundem de omens doutos, nesta faculdade; vemos que na Italia se-conservou sempre, com mais extensam, e pureza. Quem le o P. Paulo Segneri Jezuita, o Cardial Cassini Capucinho, e ainda o mesmo Monsenhor Barberini, tambem Capuchinho, e mil outros de diversas Religioens, e Seculares sem numero; parece-lhe que conversa, com o mesmo Cicero: porque formados sobre estes antigos modelos, em nada se-distinguem, dos-originais. Acrecenta-se a isto a lingua, que, despois da-Latina, é a mais bela, e armonica, para a Eloquencia. Tem mais os Modernos, outra circunstancia; vem aser, que tendo-se aplicado a diversas materias, nam só profanas, mas sagradas, de que nam á vestigio, nos-antigos Retoricos; fizeram aos nosos olhos mais familiar esta faculdade, e mais facil de se-imitar: porque dam belisimos exemplos, em tudo. Desta sorte familiarizando-se muito, com os Antigos, e Modernos; observando em que diferem, e em que sam louvados; se-pode conseguir, a verdadeira Eloquencia.

Conheso, que se eu faláse com outra pesoa, que nam fose V. P. se-escandalizaria muito, que eu nam aconselháse aqui, a leitura do-P. Vieira, do-Baram Conego Regular, do-Bispo de Martiria, do-Arcebispo de Cranganor, e de alguns outros, que nam aponto; persuadindo-se, que estes omens sam originais, de toda a estimasam. E nam sei se V.P., aindaque superior no-criterio aos outros, intende, que algum deles podia ter lugar, entre outros que louvo. Mas eu, meu amigo e senhor, nam tenho nisto parcialidade alguma; e julgo, segundo o que intendo, na minha conciencia. Verdadeiramente é coiza indigna, de todo o omem ingenuo, quanto mais de um Religiozo; desprezar autores, que o-nam-meresam, e sejam em simesmos dignos, de todo o louvor: mas nam é menos indigno, aprovar um escritor, contra aquilo que intendo. Eu ja fiz a minha solene protesta, na primeira carta, e nesta da-Retorica tambem; que nam pertendia defraudar ninguem, da-sua justa estimasam: e novamente aqui repito, que estimo infinitamente qualquer destes Religiozos: mas eu os-distingo muito das-suas obras, que nada estimo.

E comesando polo mais famozo, o P. Vieira teve mui bom[Pg 206] talento; grande facilidade para se-explicar; falou mui bem a sua lingua; e nas suas cartas é autor, que se-pode ler com gosto, e utilidade. Quanto aos sermoens, e orasoens, deixou-se arrebatar, do-estilo do-seu tempo; e talvez foi aquele que com o seu exemplo, deu materia a tanta sutileza, que sam as que destruem a Eloquencia. Nos-seus sermoens, nam achará V. P. artificio algum retorico, nem uma Eloquencia que persuada. Muitos, que gostam daquelas galantarias, lendo-o sairám divertidos: mas nenhum omem de juizo exato, sairá persuadido delas. Sam daquelas teias de aranha, bonitas para se-observarem, mas que nam prendem ninguem. Eu comparo esta sorte de sermoens, aos equivocos: que parecem bonitos, quando se-ouvem a primeira vez; mas quando se-examinam de perto, nam concluem nada. Porque finalmente se V. P. le os tais sermoens, e examina as provas e artificio delas; verá muitas coizas, que cheiram a Metafizica das-escolas: mas nam achará alguma, das-que asima aponto, como necesarias. Os exemplos que asima apontei, sam comumente tirados, dos-seus sermoens: e com eles à vista, poderá V. P. conhecer, quantas coizas eu deixei, que podia apontar. Se pois isto se-chama pregar, e pregar bem, eu o-deixo considerar, aos dezapaixonados.

O dezejo que o P. Antonio Vieira, em quazi todos os sermoens mostra, de agradar ao Publico, ainda quando às vezes o-critica; deixa bem compreender, que se-conformava muito, com o estilo corruto do-seu seculo. Tinha ingenho, imaginasam fecunda, e deixando-se conduzir, do-impeto do-seu fogo, ou talvez procurando de excitar em si, uma especie de entuziasmo; rompia nas primeiras ideias, que lhe-ocorriam; que sempre eram sutis, polo costume que tinha, de ideiar asim. Eu falo com V.P. que tem grande noticia dos-ditos sermoens, em virtude da-qual conhece, com que razam eu-digo isto: que se-faláse com outro, serîa mui facil, provar tudo quanto escrevo. Mas nam poso deixar de insinuar, que a maior prova do-que proponho, é a sua decantada obra, Clavis Prophetarum: de que nos-dá uma ideia, no-livro que intitula, Istoria do-Futuro. Neste livro acha V.P., uma chimera mui bem ideiada, e que a ninguem mais ocorreo. Promete provar primeiro, que á-de aver no-mundo, um novo Imperio: mostrar, que Imperio á-de ser: determinar, as suas grandezas e felicidades: explicar, por-que meios se-á-de introduzir: individuar, em que terra, em[Pg 207] que tempo, e em que pesoa á-de comesar este Imperio[73]: o qual á-de ser tam grande como todo o mundo, sem iperbole, nem sinedoche[74]. Prova isto, segundo diz, com uma profecia de S. Frei Gil: com o juramento d’El-Rei D. Afonso: e com outras provas deste calibre. Diz tambem, que a maior parte, á-de sair da-Escritura; na qual estam reveladas, todas estas coizas. Quanto ao Imperador, aindaque claramente o-nam-explica, dá muito bem a intender, que sairá de Portugal; porque aos Portuguezes é que propoem, estas felicidades. Alem disto em outra parte[75] declara mui bem, que este Imperador será o filho primogenito, do-Serenisimo Rei D. Pedro II. e pretende proválo com os mesmos fundamentos, com que prova o Imperio, na Istoria do-Futuro. E nas cartas que escreve, a algumas pesoas, lhe-explica, que as felicidades de Portugal, estam muito vizinhas.

Eu nam entro aqui a disputar, se estes fundamentos, (nam falo das-Escrituras, pois é loucura persuadir-se, que falam em tal materia) sejam bastantes, para afirmar tal paradoxo: é bem claro, que isto tem aparencias de comedia; e bem parece obra feita, para divertir o tempo. Mas aindaque fose verdade, que as conquistas feitas, estivesem tam distintamente profetizadas, na Sagrada escritura; e despois do-suceso se-intendesem; fica em pé a dificuldade, de tirar da-Escritura, as conquistas futuras, deste novo Imperador. E quanto aos expozitores que ele aponta, e às profecias destes modernos, em que se-funda; creio nam faremos injuria ao P. Vieira, se nos-rirmos de todas estas provas, esperando, que as-procure mais fundadas. Mas o que digo a V.P. é, que na dispozisam deste livro preambulo, se-ve o estilo do-P. Antonio Vieira: porque tudo prova com a Escritura. Ainda as coizas mais triviais, as profanas, e a mesma justisima exaltasam de D. Joam IV. ele as-quer provar aos Espanhoes, com as Escrituras. O pior é, que pola major parte, funda-se em palavrinhas da-Vulgata. E este é mui mao modo de interpretar: porque nam tendo Deus falado em Latim, mas em Ebraico, Caldaico, e alguma coiza em Grego; é necesario saber estas linguas, para alcansar, a verdadeira inteligencia do-original. Sem estas preparasoens,[Pg 208] nenhum interprete se-mete a dizer, coizas novas: mostrando a experiencia, que comumente se-inganam, e só podem dizer, sutilezas pouco sofriveis.

E eu creio que nam sam mui toleraveis, as que ele aqui escreve: observando-se suma contrariedade, na interpretasam que dá, aos seus mesmos fundamentos. Umas vezes, a decimasexta gerasam, é o Cardial Rei D. Enrique:[76] e ainda lhe-faz a merce, de nam contar a vida d’El-Rei D.Alfonso I. que cuido devia ser o primeiro, no-catalogo. Outras vezes, a decimasexta gerasam é D. Joam IV.; e D. Pedro II. é a prole atenuada[77]: e como ao dito Rei nam se-pode aplicar, a palavra atenuada; procura aplicála a seu filho, o Principe entam nacido. Eisque morre o tal Principe ainda menino: Neste cazo o noso interprete excogita a saida, de lhe-ir dar no-Ceo, a investidura do-Imperio[78]: e comesa com outra metafizica pior, que a primeira. Finalmente despois de muitas observasoens, fica desmentida a verdade, do-juramento d’El-Rei D. Alfonso: e o Imperio do-mundo, que tam claramente estava profetizado, e prometido ao tal Principe, lá vai polos ares: e nem menos á aparencia, que se-torne outra vez a restablecer: pois do-tempo em que ele escrevia até este, vam bons 80. anos; e ainda nam vemos aparencias diso. Eisaqui tem V. P. o que sam todas estas chimeras, da-Istoria do-Futuro; e das-coizas que tem parentesco, com ela.

Ora estas sutilezas do-P. Vieira, cuido que tem arruinado, muita gente: porque formando grande conceito, do-seu talento; o-imitáram tanto à letra, que nada agradou, que nam cheiráse ao mesmo estilo. Ja é coiza muito antiga, que em materia de literatura, um omem seja o treslado, para que olhem os outros do-seu tempo. Quando em uma Cidade um sugeito consegue, fama de eloquente, os outros o-imitam; e às vezes por-seculos inteiros, se-conserva o mesmo estilo[79]. Aquele Seneca a quem chamam o Filozofo, nam se-duvida, que tinha grande ingenho,[Pg 209] e doutrina: mas querendo-se singularizar; entre os antecedentes, comesou a fazer um estilo tam florido; que foi a primeira cauza, de se-perder o bom gosto da-Eloquencia, que reinára no-tempo de Augusto. Multæ in eo claræque sententiæ: (diz um Orador grande) multa etiam morum gratia legenda: sed in eloquendo corrupta pleraque: atque eo perniciosissima, quod abundant dulcibus vitiis. Vettes eum suo igenio dixisse, alieno judicio. nam si aliqua contempsisset, si parum concupisset, si non omnia sua amasset, si rerum pondera minutissimis sententiis non fregisset; consensu potius eruditorum, quam puerorum amore comprobaretur[80]. Palavras que me-parecem cortadas, para o P. Antonio Vieira: do-qual creio que se-pode dizer, que se, servindo-se do-seu ingenho, seguise outro estilo; serîa um grande omem: quando porem nam se-ocupáse com o argumento, da-Istoria do-Futuro.

E daqui compreenderá V.P. que conceito se-deve formar, daqueles muitos epitetos, com que os apaixonados o-louvam. Chamam-lhe, Mestre do-pulpito: Principe dos-Oradores: Mestre universal de todos os declamadores Evangelicos: Aguia Evangelica: e mil coizas destas. Outros lem as suas obras de joelhos, em sinal de respeito: e á omens de tam pouca considerasam, que imprimem estas noticias[81]; e nam se-envergonham de dizer, Que o mundo sem contradisam, lhe-deo a coroa, de Principe dos-Oradores. Mas este censor, que nam fez maior jornada, que de Lisboa a Madrid; nam era juiz competente, nesta matéria: nam só, porque tinha visto pouco mundo; mas porque tendo somente conversado, com os que liam o Vieira de joelhos; e nam sendo a Eloquencia, e belas Letras profisam sua, segundo mostra; tinha impedimento dirimente, para votar com acerto. Isto pois que digo destes, aplico a todos os outros. Criados com o prejuizo, de que o Vieira foi, um grande Orador; e ouvindo sempre repetir isto aos velhos, que bebèram aquela doutrina; nam é maravilha, que digam tantas coizas dele, e que o-imitem tam cegamente.

V.P. pode fazer uma experiencia, que eu ja fiz, e vem aser: quando ouvir a um destes, gabar muito o Vieira, e louválo com alguns dos-ditos epitetos; fasa-me a merce de lhe-proguntar primeiramente, emque consiste ser grande Orador: despois, que lhe-explique,[Pg 210] que qualidades oratorias sam, as que excedem no-P. Vieira. Se lhe-responder bem ao primeiro ponto, estou certo, que nam responderá ao segundo: mas a experiencia mostrará, que o primeiro nam terá resposta. Eu aindaque nam costumo ofender ninguem, e muito menos na sua cara; achando-me porem com certa pesoa, que me-dise maravilhas do-tal autor, rezolvi-me a fazer-lhe esta progunta. Leu V.M. bem as obras de Lysias, Isocrates, Iseus, Demostenes, Eschines, Teofrasto, e Cicero, e tudo o que á de bom na Antiguidade? observou miudamente as delicadezas, e singularidades daqueles; e a diferensa que se-acha entre eles, e Plinio, e alguns outros mais inferiores, como Nazario, Auzonio, Pacato &c.? leu os antigos Retoricos, Aristoteles, Cicero, Quintiliano &c. ou algum destes modernos, que deram belisimos preceitos, como Vossio, Cavalcanti, e Platina: e outros que nas suas orasoens os-executáram, como Policiano, Mureto, Vavaflor, Cuneo, Gravina, Paolino, Politi &c.? Diz, nam senhor. Pois sem tais preparasoens, conclui eu, nam entro em discurso com V. M. sobre estas materias, porque nos-nam-intenderemos. Onde vem V. P. a conhecer, que as aprovasoens destes omens, nam devem fazer forsa a ninguem, para reconhecer por-grande Orador, o P. Vieira.

Eu que tenho visto mais algum mundo: e falado com bastante gente douta: e conhecido em Roma omens, que tinham tratado, com os que ouviram o P. Vieira: nam achei nada doque ouso dizer dele. Bem sim, que foi um Religiozo estimavel, polas suas prendas, e virtudes: o que tudo pode estar, sem ser mestre dos-Oradores. Falei com muitos Religiozos da-Companhia, que tinham dele perfeita noticia; e me-faláram como de um omem, que era estimado em Portugal, mas nam em Roma. Acrecente V.P. a isto, que muitos opusculos do-Vieira, foram compostos em Italiano: e até os mesmos sermoens se-acham traduzidos nele, por-um seu apaixonado, ao menos um tomo que vi á anos: e asim pode-se julgar, com todo o conhecimento da-materia. Vejo sim, que os mesmos Jezuitas, e todos os omens doutos, reconhecem o merecimento, do-P.Paulo Segneri Jezuita, e de varios outros Oradores damesma, e de diferente Religiam; que sam reconhecidos e venerados, como Oradores da-primeira esfera: e que tanto se-distinguem dos-sermoens do-Vieira, como o dia da-noite. De que venho a concluir, que quatro Portuguezes, ou Espanhoes, que[Pg 211] dizem o contrario, nam podem fazer mudar de conceito, ao mundo inteligente.

Ainda nas suas mesmas cartas, que louvo, acho coizas que reprovar. Deste numero é a afetasam, de repetir em cada regra, o tratamento da-pesoa, com quem fala. Pois aindaque nos-discursos familiares, posa ter às vezes lugar iso; nas cartas, é enfadonho: e as pesoas, e Nasoens cultas, fogem todas dese vicio. Nem vale o-dizer, que em Latim se-costuma: porque na tal lingua, nam ofende os ouvidos; vistoque o tratamento comumente nam se-distingue, das-diversas inflexoens do-Verbo. Os nosos Italianos, que participam mais do-Latim, uzam da-palavra Ella, para evitarem aquela repetisam: e ainda esta com moderasam. E oje os que escrevem melhor, despois de darem o tratamento, uma ou duas vezes, ou em carta particular, ou prologo de livro; servem-se da-palavra Vostra, que se-refere a Alteza, Eminencia, Santidade, Excelencia &c. nam só porque esta Elipsi, nam prejudica, ao respeito que se-deve, aos Senhores grandes; mas porque sendo mais simplez e natural, é tambem mais nobre; e se-evita a ridicula afetasam de alguns modernos, chegando-se mais ao estilo, da-Antiguidade. E, valha a verdade, este periodo: Excelentisimo senhor, a excelentisima pesoa de Vosa Excelencia guarde Deus, como Portugal, e os criados de Vosa Excelencia avemos mister: com que o Vieira fecha muitas cartas, ao Marquez de Gouveia, e outras pesoas; nam se-pode ler sem nauzea: achando-se muitas vezes, em quatro regras das-suas cartas, cinco vezes Vosa Senhoria &c.

O segundo reparo caie, sobre a fetasam de muitos periodos, e cartas inteiras. O que o mesmo coletor delas nam oculta, quando diz, que muitas nam publicára, por-nam serem tanto naturais. De que eu cuido, nam se-pode produzir melhor prova, que a carta que o P. Argote publicou, nas suas Regras Portuguezas; e que é escrita ao Cardial Lancastro: a qual é composta naquele estilo, que chamamos dos-Seicentos. Basta ler o primeiro periodo: Com melhor saude que o ano pasado; e com menos vida, porque ele pasou: a segunda parte do-qual, é noticia mui digna, de se-mandar a um Cardial, porque é coiza mui recondita. O que se-segue no-segundo paragrafo, sam, Sepulturas do-segredo: resurreisoens da-confiansa: exequias no-templo do-dezingano: estatuas da-ingratidam, e coizas semelhantes, que oje tem ranso. E nam sei se[Pg 212] se-pode perdoar, a um omem douto como o P. Argote, o trazer a tal carta, para exemplo de construsam facil, e boa locusam. Conheso, que muitas vezes as cartas damesma pesoa, nam sam iguais: ou porque algumas escreveo, quando era moso, e sabia pouco; ou porque as-fez muito em presa. Conheso isto, e o-perdoo: o que reprovo é, que o coletor nam soubèse separar umas, das-outras, impremindo as melhores.

E aqui noto incidentemente, que o que fez o prologo da-colesam, que eu ignoro quem fose, dise uma falsidade, quando afirmou; Que nas linguas vulgares, tem todas as Nasoens escritores, mas nam em grande numero, deste estilo. Eu lhe-poso nomiar, somente na Italiana, nam digo duzias, mas centos: publicadas muitos e muitos anos antes, que saisem à luz, as do-Vieira: e entre estes escritores, muitos de purisima locusam, e estilo inimitavel. E o que mais é de admirar, omens que tratáram as Ciencias, mas principalmente todas as partes da-melhor Filozofia; com tal clareza, propriedade, e metodo, que envergonham os Filozofos da-Escola: os quais, empregados toda a sua vida nela, explicam-se muito mal. Na lingua Franceza, á infinitos tomos de cartas, em todas as materias; e alguns famozos. Deixo a Ingleza, e Olandeza, nas quais sei que se-tem seguido, este estilo. Onde, nam avendo coiza mais uzual, que estes escritores; mostra-se o tal coletor, mui pouco informado do-mundo.

O terceiro reparo que faso é, sobre a Ortografia, que nada me-agrada. Nelas acho mui praticado aquele estilo, que se-deve desterrar, da-lingua Portugueza; e vem aser, a duplicasam escuzada, de muitas consoantes; e mil outras, que na minha primeira carta mostrei a V. P. que nam deviam seguir, os omens doutos. Onde persuado-me, que neste particular, tam longe está de ser omem insigne, que eu o-nam-porei por-exemplar, a um principiante.

Ora eisaqui tem V. P. que as mesmas cartas do-Vieira, que eu julgo serem a sua melhor obra; aindaque tenham muita coiza boa, sejam facis, e as palavras nam sejam más; contudo, nam merecem aqueles cegos, e encarecidos louvores, que lhe-dam estes apaixonados: os quais ou estam preocupados, polas mesmas opinioens; ou julgam por-cabesa alheia; e nunca tiveram a paciencia, de examinar bem a materia. Defeito mui antigo nestes censores: que aprovam os livros comumente, sem os-lerem: e nam se-contentam[Pg 213] de aproválos, mas os-elogiam, e tam encarecidamente, que perdem toda a fé. Deixo aos omens de melhor juizo, fazer a analize das-tais obras, com mais tempo, que eu nam tenho.

Mas eu ja vejo, que me-tenho aberto muito com V.P. o que fiz, confiado na nosa amizade. Certamente nam disera tanto com outro: pois sei certamente, que quem nam tiver examinado isto, me-terá quazi por-louco. Eu sempre fugi, desta sorte de conversasoens, com pesoas que sabem pouco: porque me-ensina a experiencia, que se-perde o tempo, e o conceito. Mate-me Deus com gente, que me-intenda: e que me-nam condene, sem perceber as minhas razoens, e responder a elas. Porque aquilo de reprovar um escritor, somente porque impugna os defeitos, de que eu gosto; sem ter o sofrimento de examinar, as dificuldades que propoem; aindaque seja uzo mui comum, nam sei porem se é concludente. Emfim com V.P. nam á este perigo: porque eu sei muito bem, que ao seu talento, nada se-encobre: e que mais para exercitar o seu juizo, doque para aprender alguma coiza nova, é que tem a bondade, de me-consultar.

Mas sempre devo declarar-lhe, que o juizo que formo das-obras, do-P.Antonio Vieira; deve ser intendido, com todo o respeito devido, à sua memoria. Eu estimo muito este Religiozo, polas suas virtudes, e capacidade. Vejo nas suas cartas retratado, um animo grande: um dezinterese nobre: uma viva paixam polos aumentos do-seu Reino: e ardente dezejo de se-sacrificar por-ele: e, para nam ocultar coiza alguma, vejo a suma ingratidam dos-seus nacionais, que conrespondèram a tantas finezas, com asoens indignas: e nam só nam souberam estimar, tam grande omem, mas pozitivamente o-opremîram, e a sua familia. Estas circunstancias todas mo-pintam, mais estimavel: e se eu vivèse no seu tempo, serîa o seu maior amigo. Deve tambem o que digo intender-se, sem a minima ofeza da-Religiam da-Companhia: a qual tem produzido, tantos omens grandes neste genero; que sem dor alguma pode ouvir declarar, que um dos-seus Religiozos, nam iguala, nem chega, à gloria de muitos outros: o que provèm menos do-talento, que do-infeliz estilo daquele tempo, que nam conhecia, outro gosto de Eloquencia. Damesma sorte que Plinio Cecilio, aindaque tivese talento, e indole insigne; nam pode menos que participar, do-estilo do-seu seculo; que degenerava muito, da-magestade da-primeira Eloquencia. Unicamente devo advertir[Pg 214] isto a V. P., para justificar o meu proceder, contra aquela acuzasam, que me-podiam fazer aqueles, que, ouvindo-me falar d’eloquencia Portugueza, visem que nam citava, o P. Vieira.

O conceito que formo, dos-sermoens e orasoens do-Vieira, com mais razam se-deve aplicar, a todos os outros sermonarios; que V. P. conhece, estarem muitos furos abaixo do-Vieira. Digo pois, que o Orador, que quer avultar no-mundo literario, deve deixar todos os sermonarios Portuguezes, ou Espanhoes; e seguir a estrada que asima lhe-abrimos: que parece ser, a verdadeira estrada da-Eloquencia: e isto parece-me que basta, para regular o metodo da-Oratoria. Deve a isto ajuntar, o continuo exercicio de compor: e exercitar-se juntamente em particular, para poder falar em publico: sendo certo que o exercicio de compor, e falar conduz muito, para beber os principios, e sabèlos uzar a seu tempo, com dezembaraso. Perdoe-me V. P. a extensam desta, que desde o principio eu prevî, que serîa comprida: e conserve-me muito na sua memoria. Deus guarde etc.

NOTAS DE RODAPÉ:

[41] Sic igitur dicet, ut proponat quid dicturus fit: ut cum transegerit jam aliquid, definiat: ut se ipse revocet: ut quod dixit iteret: ut argumentum ratione concludat: ut interrogando urgeat: ut rursus quasi ad interrogata sibi ipse respondeat: ut contra, ac dicat, accipi & sentiri velit: ut addubitet quid potius aut quomodo dicat: ut dividat in partes: ut aliquid relinquat ac negligat: ut ante præmuniat: ut in eo ipso, in quo reprehendatur, culpam in adversarium conferat. Ut sæpe cum his, qui audiunt, nonnunquam etiam cum adversario quasi deliberet: ut hominum sermones moresque describat: ut muta quædam loquentia inducat: ut ab eo quod agitur avertat animos: ut sæpe in hilaritatem risumve convertat: ut ante occupet quod videat opponi: ut comparet similitudines: ut utatur exemplis: ut aliud alii tribuens dispertiat: ut interpellatorem coerceat: ut aliquid reticere se dicat: ut denuntiet, quid caveant: ut liberius quid audeat: ut irascatur etiam: ut objurget aliquando: ut deprecetur, ut supplicet: ut medeatur, ut a proposito declinet aliquantulum, ut optet, ut execretur: ut fiat iis, apud quos dicet, familiaris. Atque alias etiam dicendi quasi virtutes sequatur: brevitatem si res petet: sæpe etiam res dicendo subjiciet oculis: sæpe supra feret, quam fieri possit: significatio sæpe erit maior, quam oratio: sæpe hilaritas, sæpe vitæ, naturarumque imitatio =. Cicero. Orat. n. 40.

[42] Nec umquam is, qui audiret, incenderetur, nisi ardens ad eum perveniret oratio. Cicer. Orat. n. 38.

[43] Sic igitur dicet ille, quem expetimus, ut verset sæpe multis modis eandem, & unam rem: & hæreat in eadem, commoreturque sententia &c. Cicero.Orator.n.40.

[44] Hoc (genus dicendi) vehemens, incensum, incitatum, quo caussæ eripiuntur: quod cum rapide fertur, sustineri nullo pacto potest. Idem, ibid.n.37.

[45] Is ergo erit eloquens, qui ad id, quodcumque decebit; poterit accomodare orationem. Quod cum statuerit, tum, ut quidque erit dicendum, ita dicet; ut nec satura jejune, nec grandia minute, nec item contra: sed erit rebus ipsis par & æqualis oratio.Cicer.Orat.n.36.

[46] Quam enim indecorum est de stillicidiis cum apud unum judicem dicas, amplissimis verbis,-& locis uti communibus: de maiestate populi Romani summisse, & subtiliter? Cicer. Orat. num. 21.

[47] Omnino duo sunt quæ condiant orationem: verborum numerorumque jucunditas. In verbis inest quasi materia quædam, in numero autem expolitio. Cicer. Orat. num. 55.

[48] Sed quia rerum verborumque judicium prudentiæ est: vocum autem, & numerorum aures sunt judices: & quod illa ad intelligentiam referuntur, hæc ad voluptatem: in illis ratio invenit, in his sensus artem. = Ibidem num. 49.

[49] Nam circuitus ille, quem sæpe jam diximus, incitatior numero ipso fertur & labitur, quoad perveniat ad finem, & insistat. Perspicuum est igitur, numeris astrictam orationem esse debere, carere versibus.... Inculcamus autem per imprudentiam sæpe etiam minus usitatos, sed tamen versus: vitiosum genus, & longa animi provisione fugiendum. = Ibid. n. 56.

[50] In historia & narratur ornate, & regio sæpe aut pugna describitur: interponuntur etiam conciones & hortationes. sed in his trata quædam & fluens expetitur, non hæc contorta & acris oratio. Cicer. Orator. num. 20.

[51] Mollis est enim oratio Philosophorum & umbratilis nec sententiis, nec verbis instructa popularibus, nec juncta numeris, sed soluta liberius. Nihil iratum habet, nihil invidum, nihil atrox, nihil miserabile, nihil astutum. Casta, verecunda, virgo incorrupta quodammodo. Cicer. Orator. n. 19.

[52] Pag. 27.

[53] Pag. 46.

[54] Pag. 55.

[55] Pag. 57.

[56] Pag. 66.

[57] Pag. 53.

[58] Pag. 49.

[59] Pag. 47. 48. 49. 50. 51.

[60] Ego hanc vim intelligo esse in præceptis omnibus, non ut ea secuti oratores, eloquentiæ laudem sint adepti: sed quæ sua sponte homines eloquentes facerent, ea quosdam observasse, atque id egisse. Sic esse non eloquentiam ex artificio, sed artificium ex eloquentia natum. Cicer. l. I. de Orat. num.32.

[61] Scripsit artem Rhetoricam Cleantes, sed sic, ut siquis obmuttescere concupierit, nihil aliud legere debeat. Cicer. lib. I. de Orat. num. 7.

[62] Judicium igitur adhibebit: nec inveniet solum quid dicat, sed etiam expendet. Nihil enim est feracius ingeniis iis præsertim, quæ disciplinis exculta sunt. Sed ut segetes fœcundæ & uberes, non solum fruges, verum herbas etiam effundunt inimicissimas frugibus: sic interdum ex his locis aut levia quædam, aut caussis aliena, aut non utilia gignuntur: quorum ab oratoris judicio delectus magnus adhibebitur alioqui. Cicer. Orator. num. 15.

[63] Volo enim prius habeat orator rem, de qua dicat, dignam auribus eruditis; quam cogitet, quibus verbis quidque dicat, aut quomodo. Idem. ibid. num. 34.

[64] Esse igitur perfecte eloquentis puto, non eam solum facultatem habere, quæ sit ejus propria, fuse lateque dicendi; sed etiam vicinam ejus atque finitimam, dialecticorum scientiam assumere. Cicer. Orat. n. 32.

Et infra = Nec vero dialecticis modo sit instructus, sed habeat omnis philosophiæ notos & tractatos locos .... nihil, inquam, sine ea scientia, quam dixi, graviter, ample, copiose dici & explicari potest.

[65] Fra Gianangelo Serra, Capucinho de Faenza, na sua Retorica &c.

[66] Conficitur autem genus hoc dictionis narrandis exponendisque factis, sine ullis argumentationibus; ad animi motus leniter tractandos magis, quam ad fidem faciendam, aut confirmandam accommodate. Non enim dubia firmantur: sed quæ certa, aut pro certis posita sunt, augentur. Cicero de Partit.Orat.n.21

[67] Deinde est ad facta, veniendum: quorum collocatio est triplex: aut enim temporum servandus est ordo: aut inprimis recentissimum quodque dicendum: aut multa & varia facta in propria virtutum genera sunt dirigenda. Cicero ibidem n.23.

[68] De Doctr. Christ. lib.2. n.60.

[69] Orat. 3.

[70] Cicer. de Orat. n. 37.

[71] L. I. Antidot. in Pog.

[72] Imprimio-se este autor, Grace & Latine, cum notis Tanaquilli Fabri, Salmurii anno 1663. in 8.

[73] Istoria do-Futuro Cap. III. num. 27.

[74] Ibidem, num. 32.

[75] Sermam da-Palavra de Deus desempenhada. §. VIII.==Sermam da-Palavra do-Pregador empenhada, e defendida. §. II.

[76] Istoria do-Futuro. C. VIII. nu.122.

[77] Palavra de Deus empenhada. §.VIII. num.4.ᵒ = Sermam da-Palavra de Deus dezempenhada. §. II.

[78] Palavra do-Pregador empenhada, e defendida. §. III.

[79] Hæc vitia unus aliquis inducit, sub quo eloquentia est: ceteri imitantur, & alter alteri tradunt. Seneca Epist. 115.

[80] Quintiliano.

[81] Aprovasam do-primeiro tomo das-Cartas do-Vieira, por Alexandre Ferreira.


[Pg 215]

CARTA SETIMA.
SUMARIO.

Fala-se da-Poezia. Os Portugueses sam meros versejadores. Prejuizos dos-mestres, de nam poetarem em Vulgar. Que coiza seja ingenho bom, e mao. Especies de obras de mao ingenho, em que caîram alguns Antigos, mas principalmente os Modernos. Necesidade do-Criterio, e Retorica, em toda a sorte de Poezia. Primeiro defeito de Poezia, a inverosimilidade: exemplos. Segundo defeito, os argumentos ridiculos. Reflexoens particulares, sobre as compozisoens pequenas Portuguesas; que nam podem dar nome, a um omem: defeitos da-Nasam, provados com exemplos. Reflexoens sobre o Epigrama Latino, Elogios, inferisoens Lapidares, Eglogas, Odes, Satiras, poemas Epicos. Que os Portugueses nam conhecèram as leis, do-poema Epico: prova-se com Camoens, Chagas, Botelho de Morais. Aponta-se o metodo, com que se-devem regular os rapazes, no-estudo da-Poezia. Nova ideia de uma Arte Poetica, util para a Mocidade.

A carta que V. P. me-mandou nesta semana, deu-me particular consolasam; porque vi nela a imagem, da-sua soberana prudencia, do-seu criterio exatisimo, e da-sua inimitável ingenuidade. Mas isto é pouco: vi nela executado, tudo o que este genero pode permetir, em materia de Retorica. V. P. quiz dar-me dois contra: e mostrar-me, que as minhas reflexoens eram superfluas: pois avia um omem neste mundo, que sabia executar primorozamente, tudo aquilo. Mas diso mesmo me-rezulta, grande gloria. Ou V. P. o-fez, porque eu lho-avizei; e neste cazo, que gloria nam será a minha, de ter um dicipulo desta qualidade? ou o-fez porque asim o intendia, sem que lhe-avizáse; e fico igualmente gloriozo, vendo que as minhas reflexoens se-conformam, com as de uma pesoa, que eu estimo tanto.[Pg 216] Ponho de parte os outros comprimentos, que me-faz: porque nam quero uzurpar, o que nam mereso. O que eu escrevi, nam é meu, mas o que ensináram os omens mais insignes, nesta faculdade: de cuja lisam eu o-tirei. a estes é, que V. P. o-deve agradecer: e a mim, só a boa vontade que tenho, de o-servir.

No-fim da-sua carta, repete V. P. uma circunstancia, que ja me-pedio em outra sua: vem aser, que diga alguma coiza, da-Poezia. Eu me-lembro mui bem, da-sua petisam: a qual nam deixei por-esquecimento, mas com suma advertencia: vistoque só despois da-Retorica, se-deve tratar da-Poezia: a qual nada mais é, que uma Eloquencia mais ornada. Só me-resta uma dificuldade, quero dizer, se poderei eu dezempenhar, o que V. P. me-encomenda. Eu tenho pouca noticia de Poetas Portuguezes: ou nam tenho toda, a que é necesaria, para formar juizo exato deles. Desde que li alguns, os-desprezei quazi todos, porque me-nam-agradáram. Contudo lembrando-me, que a medida do-verso Portuguez, é a mesma do-Italiano; e que as regras em todo o mundo culto, sam as mesmas; direi alguma coiza que me-ocorre: se errar, deverá desculpar-me; lembrando-se que só o-faso, para lhe-obedecer.

Digo pois, que o estilo dos-Poetas deste seu Reino, e desta sua lingua, pouquisimo me agrada: porque é totalmente contrario, ao que fizeram os melhores modelos da-Antiguidade, e ao que ensina a boa razam. A razam disto é, porque os que se-metem a compor, nam sabem que coiza é compor: onde, quando muito sam Versificadores, mas nam Poetas. E disto nam queira V. P. melhor prova que ver, que nenhum até aqui se-rezolveo a escrever, uma boa arte Poetica Portugueza: todos se-remedeiam com esta Espanhola, que é muito má fazenda. Certo meu conhecido me-mostrou á tempos, uma manuscrita: mas nada mais era, que um compendio da-dita Espanhola; em que somente se-trata, das-medidas dos-versos, e combinasoens de consoantes: o que está mui longe de se-chamar, arte Poetica. Onde concluo, que ainda nam vi livro Portuguez, que ensináse um omem, a inventar, e julgar bem; e formar um poema como deve ser. De que nace, que os que querem poetar, o-fazem segundo a forsa da-sua imaginasam: e nam produzem coiza, digna de se-ver. Com efeito verá V. P. muitos, que quando escrevem dez versos, lhe-chamam Decima: e quando unem quatorze, chamam-lhe Soneto: e asim[Pg 217] das-mais compozisoens. Desorteque compoem antes de saberem o que devem dizer, e como o-devem dizer: e quando tem formado uma caraminhola, em trajes de Poezia, ficam mui satisfeitos; e comesam a dizer mal, de tudo o que nam intendem. Destes se acham, nam duzias, mas centos.

De nam terem profundado a materia, nacem todos os defeitos da-Poezia: de que se-acham infinitos na Espanha, e tambem em Portugal. Geralmente intendem, que o-compor bem consiste, em dizer bem sutilezas; e inventar coizas, que a ninguem ocorresem: e com esta ideia produzem partos, verdadeiramente monstruozos; e que eles mesmos, quando os-examinam sem calor, dezaprovam. Os mestres de Retorica, em cujas escolas é que se-faz algum poema, e que deviam ensinar estas coizas; sam os primeiros que se-calam, e deixam fazer, o que cadaum quer. Envergonham-se, de poetar em Portuguez: e tem por-pecado mortal, ou coiza pouco decoroza, fazelo na dita lingua. Imaginasoens, e prejuizos ridiculos! A Poezia nam é pecadora: a aplicasam é a que a-pode fazer condenavel, se nam é reta: e como iso pode suceder tanto na proza, como no-verso; daî vem, que estes que julgam asim, nunca deviam escrever em Portuguez. Em todos os tempos os omens de virtude, se aplicáram a este exercicio. Os Santos Padres mais doutos, compuzeram muita coisa em verso. S. Bazilio, S. Gregorio Nazianzeno foram grandes Poetas. O primeiro, compoz expresamente um tratado, no-qual ensinava o modo, de ler os Poetas com utilidade. O segundo, vendo que Juliano Apostata Imperador Romano, proibîra aos Cristaons, ler os Poetas Etnicos; compoz algumas poezias, imitando Omero, Pindaro, Euripides, Menandro &c. para instrusam da-mocidade Cristan. E isto nam o-fizeram em Persiano, ou Arabio; mas na sua lingua materna, que era a Grega. O mesmo fez Apolinario Bispo de Laodicea, e alguns outros. S. Inacio de Loyola, e outros modernos tambem fizeram, versos vulgares. Se damos um paso atraz, acharemos, que muitos escritores Sagrados, escrevèram em verso. O que é tam claro, que ninguém pode menos que rir-se de ver, que um Portuguez se-envergonhe de poetar na-sua lingua, fazendo-o em Latim. Como se na lingua Latina, nam se-pudesem dizer todas as loucuras, que se-dizem na Portugueza! De que vem, que, segundo o estilo das-escolas, um Portuguez é obrigado a nam saber, que coiza é Poezia. Alem disto,[Pg 218] aquilo que lhe-ensinam de Latim, nada mais é, que a medida de quatro versos; e fazer alguma breve compozisam. Desorteque em nenhuma lingua se-fazem, as reflexoens necesarias, para ser bom Poeta. Antes praticando-se na Latina, uma sorte de versos feitos à moderna, com muitas sutilezas, e conceitozinhos; este estilo se-difunde, nas compozisoens Portuguezas, com geral dano da-Poezia.

Duas sam as partes, que compoem o Poeta, Ingenho, e Juizo. Ingenho para saber inventar, e unir ideias semelhantes, e agradaveis: Juizo para as-saber aplicar, onde deve. E nestas duas partes pecam, nam só os modernos, e mediocres Poetas; mas pecáram ainda os antigos, e grandes omens; nos-quais nem tudo é igual: como mostram, aqueles, que criticáram com juizo, os Antigos. Achamos omens com muito ingenho, e com pouco juizo: porque estas duas coizas, podem-se unir muito bem: e para nam parecer falsa, a minha propozisam, permita-me V. P. que me-explique melhor. O Ingenho consiste, em saber unir ideias semelhantes, com promtidam, e grasa; para formar pinturas que agradem, e elevem a imaginasam: desorteque nam basta que sejam semelhantes; é necesario que divirtam, e arrebatem. v. g. Quando o Poeta diz, que a garganta da-sua amada, é branca como a neve: nisto nam aparece ingenho: se porem acrecenta, que é igualmente fria; nisto está o ingenho. Polo contrario o Juizo, é aquela faculdade da-alma, que peza exatamente todas as ideias: sepára umas das-outras: nam se-deixa inganar da-semelhansa: e atribûe a cada uma, o que é seu. Isto, pede uma exata meditasam, e prudencia fundada: aquilo, só pede uma memoria cheia de muitas, e diferentes ideias. E daqui vem, que vemos frequentemente, omens de imaginasam fecunda, e ingenho vivo; sem um escrupulo de juizo: antes comumente tem menos juizo, os que tem mais ingenho: motivo polo qual produzem obras, que merecem rizo. Os que nam distinguem isto, confundem Ingenho, e Juizo: e chamam omens de juizo, aos que dizem mil ridicularias, e produzem infinitas monstruozidades, e despropozitadas imaginasoens.

O verdadeiro ingenho pois, é uma semelhansa de ideias, que diverte, e eleva. Polo contrario o falso ingenho consiste, na semelhansa de algumas letras, como os Anagramas, Cronogramas &c. às vezes na semelhansa de algumas silabas, como os Ecos, e alguns consoantes insulsos: outras vezes na semelhanzas de algumas[Pg 219] palavras, como os Equivocos &c. finalmente consiste tambem, em compozisoens inteiras, que aparecem com diferentes figuras ou pinturas, como abaixo diremos.

Destas duas especies de ingenho bom, e mao, se-compoem uma terceira, que participa de ambas, a que alguns doutos chamáram Ingenho mixto: que consiste, parte na semelhansa das-ideias, e parte das-palavras. v. g. Imagina o Poeta, que o Amor tem, semelhansas de fogo: e une estas duas ideias, na sua imaginasam. Serve-se das-palavras de fogo, e chama; para explicar esta paixam do-animo: e como elas tem significasam incerta, rezulta daqui um todo, que tem parte de ingenho, e parte de aparencia: o qual é mais ou menos estimado, segundo que domina mais ou menos, um que outro: quero dizer, segundo que a semelhansa caie mais, sobre as ideias, que sobre as palavras. Na idade de oiro da-Latinidade, apenas se-acha vestigio diso, tirando em Ovidio, que tem alguma coiza: na idade de prata, Marcial cuido que foi o inventor: e nestes ultimos seculos, nam se-ve outra coiza.

Mas a verdade é, que um conceito que nam é justo, nem fundado sobre a natureza das-coizas, nam pode ser belo: porque o fundamento de todo o conceito ingenhozo, é a verdade: nem se-deve estimar algum, quando nam se-reconhesa nele, vestigio de bom juizo. E como os Antigos observáram muito isto, por-iso neles se-observa, certa maneira natural de escrever, e certa simplicidade nobre, que tanto os-faz admiraveis. Polo contrario, os que nam tem ingenho para fazerem:, que um conceito brilhe, com a sua propria luz, sem a-pedir emprestada; vem-se obrigados, procurar toda a sorte de ornamentos, e apegar-se a quaisquer agudezas boas, ou más; para com elas fazerem figura, e parecerem ingenhozos. Nas obras dos-Antigos nam distinguem o bom, nem o mao: abrasam os mesmos erros, como se fosem maravilhas: sem advertirem, que aindaque fosem nosos mestres, nam os-devemos seguir, com os olhos fechados; mas abrasar neles, o que nam repugna à boa razam.

Deste principio naceram, aquelas ridiculas compozisoens, que tanto reináram, no-seculo da-ignorancia, digo no-fim do-seculo XVI. de Cristo, e metade do-XVII. e desterradas dos-paîzes mais cultos, ainda oje se-conservam em Portugal, e nas mais Espanhas. Os omens daqueles seculos ignorantes, nam observáram[Pg 220] nos-Antigos o bom, mas o mao. Vîram, que neles se-achavam vestigios, de um mao ingenho; e ese foi o que abrasáram: de-sorteque ainda oje tem os doutos grande trabalho, em desterrar isto, da-mente dos-omens. Alguns Poetas Gregos ridiculos, autorizáram este uzo. Atribue-se a Theocrito, mas falsamente, uma especie destes poemas, a que nós podemos chamar pintados, ou figurados. Reprezenta um, o Ovo; outro, uma Machadinha; outro, um Altar &c. Isto é uma puerilidade, indigna de um Poeta tam grande, como Theocrito. Certamente para fazer semelhantes versos, deve o Poeta andar detraz, nam do-bom conceito, mas da-palavra longa, ou curta: vistoque os versos nam sam, de igual medida e grandeza. Este pesimo gosto se-restableceo, no-seculo pasado, nam só no-verso, mas tambem na Proza. Eu vi um Ecce Homo, feito de letrinhas miudas, que continham o testamento Novo. vi um retrato do-Imperador Jozé, cuja cabeleira, e vestido era feito de versos. finalmente acha-se muito disto, nos-Poetas tolos do-seculo XVI. e XVII.

O que me admira neste particular é, que o Padre Bluteau, que nacèra em um Reino, no-qual se-sabe, que coiza é Eloquencia, e bom gosto; quizese introduzir tambem isto, em Portugal. Li averá anos um papel avulso, que ele compuzera nas exequias, da-Rainha D. Maria de Saboia, molher d’El-Rei D. Pedro II. e o-intitulou Protheus doloris; em que se-continha bastante disto. Avia um epitafio piramidal, cujo artificio consistia, em ter algumas regras mais compridas que outras. Avia tambem variedade de disticos, em que se-aludia às letras todas do-A. B. C.: e muita desta ridicula fazenda. Tinha tambem uma enfiada daqueles titulos, que ele costuma pór nos-seus prologos, e que embrulham o estomago, aos leitores de perfeito juizo. Com efeito eu ja dise a V.P. que este era o estilo, do-tal Religiozo: metodo, criterio, bom gosto, nam sabia de que cor era. é o mais cansado escritor, que eu tenho visto. Na verdade era infatigavel, em algumas coizas: mas nam era autor para se-imitar: porque bebèra desorte, este estilo de Portugal; que até em Pariz quiz defender a um Cardial, que o estilo de pregar dos-Portuguezes, era excelente: o que cuido ter lido, em uma das-suas obras predicaveis. Emfim tudo isto é efeito, de mao gosto, e nenhum criterio.

Daqui tambem nacèram, as outras compozisoens mais ridiculas. Conta a Istoria, de um certo Tryphiodoro; que compoz[Pg 221] uma Ode, sobre os trabalhos de Ulizes; e dividio este poema em 24. livros, a que deo o nome das-24. letras do-Alfabeto, pola razam contraria: vistoque no-primeiro livro, faltava o A. no-segundo, o B. &c. e em nenhum se-achava a palavra, que tivese a dita letra do-titulo. Eu vi uma compozisam moderna, que seguia o mesmo metodo. Certamente nam á coiza mais ridicula, que estes Lipogramas. Serîa um belo divertimento, observar este Poeta, empenhado a revolver todos os Dicionarios; só para deitar fóra, a letra escomungada. Serîa necesario, desprezar a voz mais propria, e mais elegante; somente por-ter a desgrasa, de se-achar nela, a dita letra. Mas que coiza serîa a tal compozisam! que palavras ridiculas! que fraze inaudita! que conceitos improprios! Foi fortuna, que o tal autor teve poucos sequazes, na Antiguidade.

Dos-Enigmas de palavras, entre os Povos do-Oriente achamos muito. Era entre eles, uma principal parte da-sabedoria; saber propor, e decifrar os Enigmas. Os mesmos Reis se-divertiam, em propor uns a outros, estas advinhasoens: e às vezes nos-convites, este era o ultimo prato. Mas destes omens nam falamos, porque ignoráram, o que era bom gosto. Mas ainda entre os Gregos ouve algum, que fez algum enigma: mas foram raros, como mostra o noso Lilio Gregorio Gyraldi, nos-seus Opusculos. Os Romanos mais advertidos, fugîram disto. Sobre a outra sorte de Enigmas pintados &c. algum vestigio vemos, nos-Antigos: mas eles tinham outro diferente motivo. Em Roma era proibido, que um particular puzese a sua efigie, que era o mesmo que a sua arma, no-dinheiro corrente. Caio Cezar, que era o Provedor da-Caza da-moeda, mandou esculpir nelas, a figura de um Elefante: porque a palavra Cezar em lingua Punica, significa Elefante. Tambem entre os Gregos, principalmente Ateniezes, era proibido severamente, que os estatuarios, e artifices puzesem o seu nome, nas estatuas &c. Mas dois Architetos, tendo feito um grande palacio, esculpiram em varias partes, uma Lagartixa, e uma Ran, que eram os seus nomes. Observei eu tambem muitas vezes, na famoza estatua equestre de bronze, do-Imperador Marco Aurelio, que se-acha em Roma na prasa do-Capitolio; que as crins do-cavalo entre as orelhas, reprezentavam uma coruja: que sem duvida era o nome do-autor: que verosimelmente era Ateniez, vistoque em Atenas avia grande abundancia delas. Mas isto que os[Pg 222] Antigos fizeram, por-necesidade, alguns Modernos o-fazem, por-eleisam: e se-cansam em inventar um enigma, como em fazer alguma obra eloquente. Nam poso deixar de escrever aqui um epitafio, que cita um autor de bom juizo, que se-poz na lapide sepulcral. O morto chamava-se: Nicolao Antonio Simeoni: e querendo-lhe fazer um epitafio ingenhozo, escrevèram isto: Hic jacet Barium, Patavium, de Nunc dimittis. Barium aludia a S.Nicolao Arcebispo de Bari: Patavium a S.Antonio de Padua: e Nunc dimittis ao canto do-velho Simeam. Veja V.P. que tal era o enigma, e que tal serîa o autor! Disto ainda oje se-acha muito, entre os ignorantes: e eu tenho visto bastante, em Portugal. Intrei uma vez na caza, de certo cavalheiro Portuguez, que estava lendo um livro de Epigramas Latinos, in 4.ᵒ proguntei-lhe, que coiza lia: e respondeo-me, Que lia o melhor Epigramatista, e o melhor Enigmatico. Que o autor era um Portuguez moderno, o qual em cada Epigrama ocultára um enigma, com tanto estudo; que toda aquela menhan procurára decifrar um, sem o-conseguir. Que ja tinha alcansado, o segredo de outros: e que reconhecia, que neles avia muito ingenho. Ofereceo-se para me-emprestar o livro, e decifrar algum. Eu agradeci a atensam: e respondi-lhe, que tinha mais que fazer: e que nam queria priválo do-gosto, de se-ocupar em coizas tam ingenhozas. E a isto chama-se ingenho! e á quem publique tais livros, neste seculo!

Ponho na mesma clase os Ecos, Equivocos, Anagramas, Acrosticos, Cronogramas, Consoantes forsados, Laberintos &c. Tudo isto aindaque tivese seus vestigios, em alguns menos advertidos da-Antiguidade; resucitou, ou se-inventou, nos-seculos da-ignorancia. Eu sei que Ovidio, em uma parte das-suas Metamorfozes, quando fala da-Ninfa Eco, antes de ser mudada em puro eco, introduz algum. Mas alem de que o-pedia, a necesidade da-materia; visto ser ela o argumento, da-sua descrisam; os omens de juizo rim-se, da-sua puerilidade: sendo certo que Ovidio, caio em muitos defeitos, e escreveo com mais facilidade, que reflexam. Mas nam se-pode sofrer, que omens modernos, e que mostráram doutrina em muitas coizas, caisem nesta rapaziada, condenavel ainda em um rapaz: e que fizesem compozisoens, expresamente para mostrar, que sabiam fazer eco. Eu vi ecos, que respondiam em Latim, e outras linguas: e tive compaixam do-Poeta, que se-cansára com aquilo. Os Equivocos nam os acho na Antiguidade, separados[Pg 223] dos-Enigmas, tirando rarisimo, que em outra parte direi: sam invensam moderna. V. P. sabe muito bem, que só reináram, no-tempo da-ignorancia; e que os Espanhoes, e Portuguezes mais advertidos, fogem oje deles. Com efeito nam á coiza mais ridicula, que chamar conceito, a um ingano: e procurar aquilo, que se-devia evitar. Quando eu li algumas das-Jornadas, de Jeronimo Baîa, tive compaixam do-dito Religiozo: e asentei, que a jornada que devia fazer, era de sua caza para o Ospital. Esta sorte de Poetas sam doidos, aindaque nam furiozos. Mas nam cuide V.P. que isto está totalmente reprovado: eu ainda conheso, quem o-pratica: e quando se-lhe-oferece ocaziam, de dizer um equivocozinho, banham-se em agua de Cordova. Nam falo dos-idiotas, porque estes nam cuidam niso: mas destes chamados doutos, Frades, Seculares, Sacerdotes, Estudantes &c. entre estes acha-se muito disto: porque nam se-incontra uma alma cristan, que dezinganadamente lhe diga, que aquilo é uma parvoice.

Mas o pior é, que ja o Equivoco pasou do-Portuguez, para o Latim: e muitos que deviam saber, que coiza era Latim, nam fazem escrupulo, de introduzirem nele equivocos; compondo um Latim novo, cheio de todas estas arengas. Um autor de credito, a quem eu estimei muito, pola sua doutrina, e piedade, tambem tropesou nesta materia; compondo uma descrisam do-Ceo, por-equivocos. Esta obra, que fora prometida anos antes, com diferente titulo; teve muita gente em grande esperansa; e eu fui um deles: mas despois que a-li, confirmei-me no-conceito em que estava, de que nam é obra para este seculo; mas cento cincoenta anos antes, serîa um prodigio. Todo o artificio consiste, em ter buscado nomes de Santos, que signifiquem varios oficios da-Republica, de que se-acham carros nos-martirologios &c. e descrever uma Cidade ideial, introduzindo em seus lugares, os ditos nomes. Contudoiso esta obra teve mil adoradores, e apologistas; que mostram abrasar, a mesma opiniam. Eu porem que dezejo cooperar, para o credito deste omem, quizera que se-nam-tivese publicado: porque me-parece, que nam é digna de estar ao pè, de outras obras do-mesmo autor: e que defender o contrario, é mostrar mais paixam, que dicernimento: e deste meu parecer foram, os Estrangeiros de juizo, a quem a-mostrei. Mas o que este fez em uma só materia, fazem outros em toda a ocaziam:[Pg 224] e desculpam-se com um ou dois Estrangeiros, que sam os gavadinhos. Como se os Estrangeiros, nam fizesem tambem parvoices! ou como se naquelas Nasoens nam ouvese, quem abomináse tal metodo! Com efeito o Tezauro, mas principalmente o Juglar, de quem se-servem neste genero de equivocos, e agudezas; é insoportavel: e tem sido o que arruinou muita gente, que nam peza bem o que abrasa. Ele compoz uma certa coiza, a que chama Elogios: feitos em um Latim, que nam se-sabe de que seculo é; porque é todo cheio de sutilezas, e equivocos; e cada palavra se-deve tomar, em sentido diferente doque soa. O primeiro Elogio feito ao Verbo Eterno, comesa asim:

Amicus silentii Deus est.
Semel in tota æternitate locutus Deus,
Uno omnia dixit in Verbo.
Prima sui fecunditate facundus,
Ipsa sui conceptione fit parens;

Veja V. P. o que aqui vai! A palavra silentium é aqui tam impropria, que nam pode ser mais: porque silentium é um termo relativo, que significa estar calado, ou quieto; quem primeiro falou, ou fez rumor: e isto nam se-pode aplicar ao P. Eterno, o qual sempre fala a mesma palavra, que entam falou. Onde nam á coiza mais contraria ao silencio, que o falar do-Eterno Pai: e, seguindo a sutileza do-Juglar, deve-se dizer, que nam á quem seja, mais amigo de falar, porque nunca se-cala. A palavra semel tambem é impropria. Ela nam significa uma coiza, que sempre se-faz: mas que se-faz uma vez só: e no-noso cazo, que já é pasada: e isto nem menos se-pode aplicar, ao Padre. Tambem o nome locutus, rigorozamente falando, nam significa, quem pronuncîa uma palavra, como ele supoem; mas quem faz um discurso. Uno omnia dixit in Verbo, nam é fraze Latina, no-sentido em que ele a-toma: porque uno verbo, ou verbo dicere, de que uzam os Latinos; nam significa, pronunciar uma voz, como supoem o elogio; mas dizer poucas palavras, e explicar muito em pouco: a palavra Verbum, aqui é rigorozo equivoco. Prima sui fecunditate, nam sei o que quer dizer: porque eu nam acho, que o Padre Eterno geráse mais, que um filho: e a palavra prima é relativa. Alem diso a palavra fecunditas, nam significa, gerar uma só vez; mas muitas, e ser fertil: e nem menos isto se-aplica,[Pg 225] ao P. Eterno. O mesmo digo da-palavra facundus, que nam significa, quem pronuncia uma só palavra; mas quem é eloquente, e sabe fazer muitos e bons discursos: e tudo isto está longe do-sentido, em que o-toma Juglar. A palavra conceptio, é outro equivoco. Ela nam significa, conhecer e intender alguma coiza; mas compreender, como um vazo compreende o licor, que lhe-deitam: e neste sentido se-transfere, para explicar o modo, com que o utero das-molheres, recebe a semente; de que rezulta a gerasam. Significa tambem, excogitar: e em nenhum destes sentidos se-pode aplicar, ao P. Eterno: pois nem o Pai excogita o Filho; nem se-concebe a si, mas ao Filho. Asimque toda esta arenga se-reduz, a um trocadilho e jogo de palavras: como V. P. poderá reconhecer, se quizer ler o dito autor.

E que diriam os nosos antigos Romanos, se visem abuzar da-magestade dos-Elogios: destruir a naturalidade, e simplicidade da-lingua Latina: perverter a propriedade das-suas expresoens: somente para dizer quatro sutilezas, que nam concluem nada? Contudo iso este autor, bandido de outros Reinos, achou muitos imitadores, e idolatras neste: aos quais será mais facil persuadir, que os antigos Romanos nam souberam, escrever com elegancia; doque que o P. Juglar nam seja, um milagre de doutrina, e facundia. Mas permita-me V. P. repetir o versinho, quisque suos patimur manes: o certo é, que este estilo, com mais razam se-deve evitar no-Latim, que no-Portuguez.

Os Anagramas sam invensam nova, e tambem agradam muito, nestes paizes. Que divertimento nam é, ver um perfeito anagramatista, dezentranhar daquela palavra, mil coizas diferentes! Eles convertem o branco em negro; o dia em noite; o omem em besta. Se o tempo que aplicam, a esta rapaziada, o-aplicasem a coiza seria; podiam fazer um poema Epico bem grande. Acham-se alem disto mestres, que fomentam isto; dando premios aos rapazes, que nas escolas, ouvindo alguma palavra, descobrem nela um anagrama puro. Serîa isto nada, se se-contivese dentro das-escolas: mas o mao é, que saie para fóra, e se-introduz nos-discursos graves. Asisti uma vez a um sermam da-Conceisam, pregado polo P. * * * o qual fora muitos anos mestre, e tinha fama de grande Teologo; que provou o que dise, com anagramas, tirados do-nome da-Senhora, e de algumas palavras do-Evangelho. Creio que é necesaria mui pouca reflexam, para conhecer[Pg 226] o ridiculo, deste estilo. Os Acrosticos sam primoscomirmaons dos-Anagramas, e nacèram no-mesmo seculo. Acham-se ingenhos mariolas tam infatigaveis, que no-mesmo Soneto poem trez vezes, o mesmo nome: duas nas extremidades, e uma no-meio. Para fazer isto ja V. P. sabe, quantas palavras é necesario voltar, e revoltar. E como as palavras se-buscam, polo comprimento, &c. segue-se que se-ám-de desprezar as melhores; só para achar aquela, em que esteja aquela letra inicial, e aquele numero de silabas. E daqui fica claro, que coiza pode ser, a dita compozisam. Os Ebreos despois do-Talmud, sam os que se-aplicáram a estas ridicularias, de Anagramas &c. mas fomente para achar misterios, nas Escrituras. Porem estes modernos, procuram somente o divertimento.

Dos-Cronogramas vi algum em Portugal, mas raro. Os Tudescos sam insoportaveis nesta materia, e tambem os Ebreos modernos. Consiste pois o Cronograma, em pòr no-principio, ou fim de um livro, ou em alguma inscrisam, certas palavras; parte das-quais letras sejam maiusculas: as quais juntas declarem a era, em que foi feito o livro. Omens á, que perdem mezes, para buscar as ditas palavras. Onde, quando V. P. vir algumas destas inscrisoens, em medalhas, ou livros; nas quais entre letras miudas se-achem majusculas; nam se-canse em buscar o conceito, que nam á: busque o ano, do-milezimo corrente.

Mais vulgar é em Portugal, outra sorte de ingenho falso, a que chamam Consoantes forsados. Quando querem experimentar um omem, se tem ingenho; dam-lhe consoantes estramboticos, paraque complete os versos: e como isto seja o mesmo, que obrigar um omem, a que diga despropozitos; ja se-sabe que saiem compozisoens, indignas de se-verem. Se um omem quando quer fazer um Soneto, polos consoantes de outro, ao mesmo asumto, e sem se-incontrar no-mesmo conceito; lhe-custa: se despois que um Poeta faz, uma boa quadra de um Soneto; nam acha às vezes os consoantes proprios, para a segunda; e para explicar o que tem ideiado: considere V. P. que coiza poderá fazer, quando o-obrigam, a dizer despropozitos? O mesmo digo, quando dam os motes com finais dezuzados, e que nam tem outras vozes consoantes. Sempre me-pareceo ridiculo este estilo: e nunca pude sofrer, que vindo quatro amigos, elogiar outro em um oiteiro; lhe-ajam de dar motes, para os-tormentar. isto é recompensar[Pg 227] uma fineza com uma injuria; e querer uma satira, em lugar de louvor. Deviam dar ao Poeta, somente o asumto; e deixar-lhe a liberdade, de fazer a Decima como quizese: porque o entuziasmo deve ter, liberdade na expresam: sem a qual nam é posivel, deixar de dizer parvoises. Ou, em cazo de lhe-darem o mote, devia ser com algum final, que tivese muitas vozes consoantes da-lingua: paraque pudese contrafazer-se menos, e produzir coizas dignas. Porem sempre direi, que é efeito de um ingenho mui mao, dar consoantes estramboticos: e que todo o omem de juizo deve fugir, desta rapaziada.

Em outros Reinos, sempre se-deixa a liberdade, a quem gloza: e na minha Italia, onde sabem que coiza é Poetar; a estes glozadores, a que la chamam Improvizadores, nunca dam motes, mas só o asumto. E por-iso á alguns, e vi tambem molheres, que discorriam prodigiozamente: e cujas obras escritas, mereceriam grande louvor. Especialmente incontrei um omem, de mente tam fecunda, que polo espacio de trez oras despois de jantar, fez continuamente versos; variando eu sempre os asumtos. Versejava em oitava rima, conforme o costume dos-versejadores de Italia: e com tanta promtidam; que cheguei a suspeitar, que as-trazia estudadas: desorteque me-vi obrigado, a variar infinitamente os argumentos: mas o omem sempre era o mesmo: e o profluvio de palavras nam tinha limite. Notei especialmente duas coizas singulares: nunca errou verso, ou na quantidade, ou no-consoante: e nam uzava de palavras sem significado, de que frequentemente uzam os Poetas; mas dizia coizas bem ditas, e de sustancia. Mas este grande omem, querendo-lhe eu dar um mote, nam se-quiz sugeitar a glozálo. Nele fiz algumas reflexoens, das-que a V. P. aponto.

Vemos ainda outra coiza pior, que é, introduzir os consoantes, ou rimas, no-verso Latino. Nos-seculos da-ignorancia, ouve um Poeta destes, que reduzio a metade da-Eneida, em verso Latino rimado. Acham-se ainda alguns Imnos ecleziasticos, feitos no-undecimo, duodecimo, e seguinte seculo, com consoantes e toantes. vi alguns Portuguezes, que gostavam disto. Mas tudo é efeito de suma ignorancia; e é nam conhecer, qual é a beleza, e armonia da-lingua Latina. Ingenhos ordinarios, que nam podem chegar à galantaria, dos-antigos e bons Poetas; querem-se singularizar, com tal estilo: e por-iso se-devem desprezar.

[Pg 228]

Tambem os Laberintos de letras, sam mui mimozos em Portugal: e Poeta conhece V.P., que estimou mais um laberinto que fez, doque se fizera alguma famoza compozisam. Outros tem por-coiza grande, fazer laberintos de quartetos, dispostos em certa figura, de-sorteque se-lem por-todas as partes; e sempre conservam, a mesma consonancia. Outros fazem versos, que se-lem para diante, e paratraz: de uma parte, fazem um sentido: da-outra, outro contrario: empregam nisto tempo consideravel, nam só em fazèlo, mas em decifrálo: e chamam a isto, emprego de sublime ingenho. Que omens! O simplez nome de laberinto basta, para desprezar esta sorte de compozisoens: olhar para eles, deve confirmar este propozito. Decifrado um laberinto de letras, comumente acha-se o nome de uma pesoa, e nada mais: e onde está aqui o ingenho? Custa às vezes ao Poeta, fazer um laberinto de um quarteto, um mez; e como nam pode chegar a encobrir a compozisam, de modo que outro em um abrir de olhos, a-nam-decifre; todo o ingenho do-Poeta, que lhe-custou um mez, excede outro, com um abrir de olhos. Os outros laberintos de quartetos &c. nenhum tem conceito: porque nam podem unir-se duas coizas, poetar bem, e poetar em laberinto. E asim com muito trabalho consegue o Poeta, que os outros conhesam; que ele nam sabe fazer, versos bons.

Igualmente é estimada neste paiz, uma especie de Sonetos, em que se-repete a mesma palavra, em todos os versos: que é o mesmo que a galantaria, dos-consoantes forsados. Porque obrigado o Poeta, a introduzir a dita palavra em cada verso, nam pode ideiar livremente; nem unir um verso com outro; nem sair com alguma compozisam, que seja digna. Podia citar mil exemplos: mas nam queira V. P. nenhum melhor; que o Soneto que se-atribue ao Chagas, e comesa:

O tempo ja de si me-pede conta.

Em todos os versos entra, a palavra tempo: que é uma embrulhada terrivel: e o conceito do-fim consiste nisto:

E que se-chega o tempo de dar conta.

que é em carne o mesmo primeiro verso. E onde acha V. P. a galantaria? o mesmo digo dos-outros. E tudo isto provèm, de que tais Poetas intendem, que o-fazer um Soneto segundo as leis comuas, é coiza ridicula: e asim querem, esquipasam particular.

[Pg 229]

Se os omens considerarem, que coiza era a Poezia: se tivesem bem intendido, os principios dela: se quizesem decifrar, em que consiste a beleza e armonia, que nos-eleva, quando ouvimos um bom poema: nam podiam menos, que desprezar todas estas compozisoens; que sam indignas, até dos-proprios rapazes. Só os que nam sabem, que coiza é ingenho, se-aplicam a estas ridicularias. Dezesperando de chegar, à magestade dos-antigos compozitores; nam acháram outro meio de serem atendidos, que fazendo ridicularias. Sucedeo-lhe o mesmo, que aos Godos, com a Architetura: nam tendo sido instruidos nas boas artes,como foram os Gregos, e Romanos; e nam podendo chegar, à nobre simplicidade da-antiga Architetura: ornáram as suas fabricas, de tudo o que lhe-ofereceo, a sua mal regulada imaginasam. Desorteque os omens, que no-seculo prezente observam, os monumentos que nos-ficáram, destes barbaros; nam cesam de admirar, a pouca proporsam que se-descobre, em todas as suas fabricas: e o mao gosto que aparece, em todos os seus ornamentos. Muitos deles viviam em Roma: tinham debaixo dos-olhos, as famozas fabricas dos-Romanos: e desprezando tudo isto, produziam monstruozidades. Asim sam os autores destas Poezias: tem os bons livros: podiam neles observar, o que devem: e desprezam tudo isto, para seguirem fantasticas imaginasoens. Onde dise com galantaria, um autor moderno; que se a gloria de belo ingenho, se-conseguîra somente, com o trabalho que empregam, naquelas ridicularias; ele nam queria ser belo ingenho: pois era melhor, ser forsado da-galè, que conseguilo com tanto custo. E eu acrecento, que se estivese na minha mam, condenaria estes tais Poetas, a pasarem a sua vida fazendo Acrosticos, Anagramas, Laberintos; retirados do-comercio dos-omens; e felicitar-se com os seus inventos.

Tenho ainda outra coiza que advertir, que tambem é efeito, de mao ingenho; e sam aqueles ditos, que chamam agudos, e jogos de palavras; que se-acham frequentemente nos-Prozadores, e frequentisimamente nos-Poetas. Verá V. P. pesoas, que cuidam dizer grasas, e coizas ingenhozas; e dizem insipidas ridicularias. Outros, servem-se de uma palavra com um c, que posta com um l, significa coiza diferente: e daqui formam uma caraminhola, a que chamam ingenho; e ficam mui satisfeitos, da-sua agudeza. O pior está, em que á omens que escrevèram,[Pg 230] sobre a agudeza; e quizeram ensinar isto, aos leitores. Li á anos um livrinho pequeno, de um Espanhol, que cuido era Gracian; e se-intitulava Tratado de la Agudeςa: lembro-me que o autor no-prologo, dezejava ao livro a boa fortuna, de cair em maons, de quem o-intendèse. Polos meus pecados eu fui um, dos-que nam se-cansáram em intendèlo: porque logo intendi, que o livro nam merecia que se-lese. Querer ensinar a dizer grasas, e agudezas; é o mesmo que querer ensinar, a mudar a natureza: quem nam é proprio para estas coizas, nam as-pode aprender. As grasas, pola maior parte, tem beleza respetiva: em boca de uns, tem grasa; na dos-outros, nam: a agudeza quando nam é pura, é o mesmo. Pola maior parte, as que pasam com este nome, nam meresem este titulo: sam meros jogos de palavras, que agradam infinitamente aos ignorantes. Neste particular a verdadeira regra é esta: Se o conceito traduzido em outra lingua, conserva a mesma forsa; pode-se chamar pensamento ou agudo, ou ingenhozo, segundo as circunstancias: se a-perde, pronuncie V. P. livremente, que é uma ridicularia: e que só pode ter lugar, entre gente que gosta daquilo.

Acham-se, é verdade, nos-Antigos muitas, e mui insulsas. Aristoteles na sua Retorica aponta algumas, a que chama Paragramas. Cicero no livro 2.ᵒ de Oratore, tratando das-facecias do-Orador, indica outras muitas: e ele mesmo em varias partes das-suas obras, serve-se delas: porque este era o seu defeito, ser mui faceto: e com as suas facecias aquistava, perigozos inimigos. Mas devo dizer, em obzequio da-verdade, que as que ele aponta, quazi todas sam frioleiras, e ridicularias; que nam merecem nome, de pensamento ingenhozo: e se V. P. me-nam-cre, leia o dito livro, e achará que lhe-digo a verdade. Estas venialidades em que caîram estes grandes omens, sam recompensadas com infinitas boas qualidades, que neles vemos: e sam tambem desculpaveis, por-outro principio; que é a falta de Critica, que tiveram os Antigos. Aqueles ingenhos elevados dos-primeiros autores, nam faziam todas as reflexoens necesarias, para procederem com exasam: polo contrario, os que os-seguîram, aindaque inferiores na grandeza de ingenho, excedem no-metodo, e na critica: e souberam evitar, os defeitos dos-primeiros.

Omero é grande, é natural, tem pensamentos elevadisimos, e excede nisto a Virgilio: contudo este, que escreveo despois,[Pg 231] aindaque tenha menos natureza, mostra mais arte que Omero: pois soube evitar um defeito, que frequentemente se-acha em Omero, que é, amontoar superfluos epitetos, e às vezes insulsos: como tambem as digresoens, e coloquios insipidos, sem necesidade alguma. Cicero no-seu livro de Claris Oratoribus, em que censura, tudo o que ouve de bom na Antiguidade; traz belisimas reflexoens, sobre os defeitos de alguns Oradores: e bem procurou nas suas obras, fugir dos-tais defeitos. Contudo Quintiliano, que floreceo um seculo e meio despois, aindaque muitos furos abaixo, do-merecimento de Cicero; advertio coizas, que a Cicero tinham fugido. A verdade é, que os escritores que escrevèram, despois dos-primeiros; refletindo sobre as primeiras obras, examináram melhor, que coiza era bom ingenho; e deram regras, que os primeiros ignoravam. Quintiliano é um destes: mas sobre todos Dionizio Longino, que floreceo no-meio do-3.ᵒ seculo cristam. Este omem, que alem de Filozofo, e Retorico, era um perfeitisimo Critico; ensinou no-tratado, que nos-deixou de Sublimi stilo, como se-devia julgar nestas materias: e que coiza se-devia chamar Ingenho: e todo o mundo douto, concordou com ele. A ignorancia, que pouco despois se-introduzio no-Imperio; fez com que se-esquecesem, deste metodo de julgar: o qual se restableceo nos-fins do-seculo XVI. mas principalmente no-pasado, e no-prezente; em que as coizas se-estimam, nam polo que parecem, mas polo que sam. Mas como nem todos tem juizo, para intenderem as coizas; daqui nace, que neste mesmo seculo XVII. e ainda prezente, se-acham pesoas, que confundem as ditas coizas: e que, se acazo chegam a ler os Antigos, nam sabem advertir, o que neles se-deve imitar, ou desprezar: e por-iso chamam pensamentos ingenhozos a coizas, que estam mui longe diso: o que frequentisimamente se-incontra, neste Reino.

Um destes Poetas, observando as desprezantes maneiras de olhar, da-sua Dama; e convencido no-mesmo tempo, da-eficacia que os seus olhos tinham, para inspirar-lhe amor; os-considera como espelhos ustorios, feitos de caramelo: mas podendo ele viver, nos-maiores ardores que o-abrazavam; conclue, que a zona torrida é abitavel. Quando a sua Dama tem lido a carta, que lhe-escreveo, com sumo de limam, posta ao calor do-fogo; lhe-pede, que a-torne a ler, à luz das-chamas de amor. Quando ela chora, dezeja que um suave calor, excitado polo amor, fasa destilar[Pg 232] aquelas lagrimas, pasadas polo alambique do-seu corasam. Quando ela está auzente, acha-se alem do-oitentezimo grao de latitude; quero dizer, quarenta graos mais vizinho do-Polo, doque quando se-acha com ela. O seu amor ambiciozo é um fogo, que sobe naturalmente para sima: o seu amor afortunado, parece-se com os raios do-Sol: e o seu amor dezafortunado, asemelha-se às chamas do-inferno. Quando o amor lhe-tira o sono, é uma chama, de que nam saie fumo: e quando a prudencia o combate, é um fogo asoprado polo vento. O seu corasam é um Etna, que em vez da-oficina de Vulcano, oculta aquela de Cupido. Às vezes, o corasam do-Poeta acha-se nevado, no-peito de todas as belas: outras vezes asado, na vizinhansa dos-seus olhos. Umas vezes, afoga-se dentro das-lagrimas; e no-mesmo tempo arde, entre os brasos de amor: semelhante a estes foguetes de nova invensam, que ardem, e estoiram debaixo da-agua. Em todo este discurso vé V. P. que o Poeta supoem, que o amor é verdadeiro fogo de cozinha; e que une estas duas ideias, fogo, e amor; para delas deduzir, todos os seus conceitos; a que ele chama sutis, e ingenhozos. Isto agrada ao comum dos-omens, namobstanteque seja uma fantazia impropria, e estravagante. Porem ja eu lhe-perdoára este ingenho mixto; se uzasem dele com moderasam: o que nam poso sofrer é, que sem prudencia o-introduzam por-tudo: e nos-queiram persuadir, que é grande ingenho, chamar a uma coiza com diverso nome: e que a dita coiza é tal, como a-pintam.

Acho tambem mui radicado nestes paizes, (aindaque tambem em alguns estrangeiros) aquilo de servir-se sem reflexam, das-divindades dos-Pagaons, em toda a sorte de poemas, Sagrados, e Profanos: e cuidam muitos, que fazendo ao principio a solita protesta, de que os-nomeiam no-estilo poetico; tem feito a sua obrigasam. Pode-ser que a-tenham com a religiam: mas certamente nam a-tem, com os bons Poetas. Com grasa dise um omem douto, que toda a ciencia de muitos modernos Poetas, nam pasava, das-Metamorfozes de Ovidio. A verdade é, que os Poetas modernos, sam prodigos desta mitologia. Se louvam uma molher formoza, ocupam-se mais em descrever Elena, ou Venus; Leda, ou Europa; doque a dita beleza. Se elogiam um eroe, entra logo Mavorte, e Alcides; e pola maior parte nam saiem daquî. Mas isto é sem duvida ridicularia. Em um poema burlesco, tem[Pg 233] grasa a dita mitologia, porque só se-trata de divertir, com a aplicasam: mas em um poema serio, é fantazia condenavel. Que o-fizesem os Etnicos, tinham desculpa na sua cegueira: mas que o-fasa um Catolico, em cuja religiam nada significam, tais nomes: que introduza D. Joam de Castro, como grande amigo de Marte; e establesa boa conrespondencia, entre Belona, e Diniz de Melo; é um erro que nam se-pode perdoar a um Poeta, que pasa de 15. anos. Os que nam sabem engrandecer, as verdadeiras virtudes; é que recorrem às fabulas, para ornamento do-seu poema.

Nunca pude sofrer um Poeta, no-principio de um poema moderno, invocar as Muzas, e Apolo; para lhe-inspirarem os pensamentos: mandar Mercurio, com algum despacho de importancia: obrigar Minerva, a que tome a figura, de algum conselheiro: chamar do-Inferno Plutam, para excitar discordias, entre algumas pesoas: nam permetir tempestades, semque Venus vá pedir a Eolo, que fasa das-suas: nam consentir perda de batalha, semque o Destino atire alguma, das-suas solitas pedradas. Isto é uma afetasam, digna de compaixam. Nós temos na nosa religiam coizas, que podem suprir, a todas as ideias dos-Antigos. Temos Deus, temos Anjos, temos Santos, que nos-podem inspirar o bem: e temos Diabos, para inspirar o mal. O Poeta mostraria mais ingenho, se ele fizese os seus versos; doque pedindo a Apolo, que lhos-inspire. Um furiozo vento excitado polo Diabo, pode fazer o mesmo espalhafato, em uma armada; que Eolo, com todas as suas Furias. Para dar razam de uma batalha perdida, é mais natural e verdadeiro, recorrer à polvora, balas, e prudencia do-General; doque ao Destino, ou Fado, que sam palavras sem significado. O Diabo nam é menos prejudicial, à paz e quietasam dos-Omens, que pode ser Plutam, com Cloto, e as suas companheiras. Quem dece ao Inferno, para tirar de lá Lachesis, e outras destas Furias; nam lhe-era mais barato, tirar um diabrete, para concluir tudo aquilo? Os Gregos nam se-servîram das-divindades dos-Ebreos, ou Sirios, para explicarem as suas coizas; mas daquelas que estavam establecidas, no-seu paîz: E porque avemos nós servir-nos das-Gregas, tendo outras melhores? O que suposto, merecem rizo os Poetas, que se-ocupam com estas ridicularias: porque ou querem significar com aqueles nomes, alguma coiza; e isto é sacrificar o seu catechismo, à mitologia[Pg 234] dos-Antigos: ou nam significam coiza alguma; e novamente merecem rizo, por-falarem em coizas, que nam pode aver: e é perder a verosimilidade do-poema, servindo-se de coizas, e vozes, que ninguem pode intender. Que o Poeta em uma metafora, em uma semelhansa, ou em alguma breve aluzam, tocáse algum destes pontos; poderseîa alguma vez perdoar: mas introduzilos em todo o corpo do-poema, como faz o Camoens na Luziada, que introduz Venus, e Baco por-toda a parte, sem descrisam alguma; ou tambem o Chagas, e o comum deste Reino; isto é mostrar; que nam tem juizo ou dicernimento, na aplicasam dos-ornamentos poeticos. E é muito de admirar, que os que sabem tambem descrever Venus, e Baco; nam saibam descrever, um omem seu contemporaneo, sem recorrer à Antiguidade. Pode-se porem sofrer, que o Poeta fale com as coizas inanimadas, como com pesoas: v. g. com os Ceos, Terra, Elementos, Morte &c. e fasa outras destas figuras de Retorica: isto nam ofende nem a religiam, nem a boa razam: aquilo, ofende ambas as coizas.

Estes defeitos nos-Poetas sucedem, porque lhe-faltam os dois principais requizitos, Criterio, e Retorica. Chamo Criterio, a uma boa Logica natural, exercitada na lisam de bons autores: Retorica ja se-sabe, que é a arte de persuadir, sem a qual nam se-pode ser bom Poeta: a qual supoem Juizo, e Criterio. A simplez propozisam destes dois requizitos basta, para atarantar estes Poetas ordinarios: os quais se-rim de todo o corasam, quando ouvem dizer, que sem ter singular Retorica, nam se-pode ser bom Poeta; ou ao menos intender, o artificio da-Poezia. Estes ingenhos das-duzias, páram na superficie das-coizas. Julgam que Retorica, é falar em proza; Poezia, falar em verso. Mas os omens que intendem a arte, rim-se ainda mais, da-sua ignorancia. Cuido que facilmente persuadirei a V.P. o que digo, se lhe-puzer diante dos-olhos, que coiza é Poezia; e isto a que chamamos, arte Poetica.

A Poezia é uma viva descrisam das-coizas, que nela se-tratam: outros lhe-chamam pintura que fala, e imita o mesmo que faria a natureza, e com que agrada aos omens. O artificio da-Poezia tem por-fim, agradar: e por-iso só se-emprega em dar regras, com que posa ocupar gostozamente um ingenho. A isto consagram os Poetas, todo o seu ingenho, e juizo. Se buscam[Pg 235] argumento elevado, é para agradar, com a ideia de grandeza: se procuram imitar a verdade, é para agradar, com a galantaria da-imitasam: se nam dizem coizas contrarias às nosas inclinasoens, isto mesmo é para agradar: se propoem movimentos apaixonados, com que pintam ao vivo, diferentes afetos da-alma; tambem iso é para agradar: desorteque este é o idolo, do-artificio poetico. E como isto nam se-pode conseguir, sem saber procurar pensamentos, ou argumentos proprios, para mover as nosas paixoens: saber servir-se de palavras proprias, para pintar aquela coiza que se-quer; o que encerra as Figuras da-voz, e do-animo: Fica bem claro, que para fazer tudo, o que pede a arte, se-requer boa Retorica. Mas esta razam se-intenderá melhor, se-observarmos as diferentes especies, de Poezia.

Todo o Poema se-divide em Dramatico, e Narrativo. Compreende o Dramatico, a Comedia, Tragedia, e tudo o mais em que os que entram no-poema; reprezentam com a viva asám, tudo o que se-diz: o Narrativo compreende, todas as mais especies de poemas, em que se-faz discurso, sem asám viva. Estas sam infinitas; mas ainda se-reduzem, a duas principais especies: uma, compreende as poezias, que se-cantam: outra, aquelas que se-lem. Na primeira, entram as Odes, Imnos, e todas as especies de cantigas: na segunda, entram todas as outras compozisoens: que ainda se-dividem em trez, Doutrinais, Istoricas, e Oratorias. Nestes trez generos se-tem composto, famozisimos poemas. v.g. O poema de Lucrecio, é um tratado em que expoem, a Fizica de Epicuro: os Fenomenos de Arato, que Cicero traduzio em Latim, sam um tratado de Astronomia; o mesmo digo do-Poeta Manilio: as Georgicas de Virgilio, sam um tratado de Re rustica: os Fastos de Ovidio, sam a istoria das-antiguidades Romanas: e o poema de Lucano, é uma istoria das-guerras civis. O que suposto, quem pode negar, que um tratado de Doutrina, ou de Istoria, pede uma exata noticia de Retorica? E com efeito para escrever semelhantes tratados em verso, nam dezejam os mestres outra erudisam; senam a que é necesaria, para escrever em proza; tirando alguma expresam metrica.

Pasando ao 3.o genero, tudo o que os Oradores fazem, no-genero demonstrativo; que compreende os louvores, e vituperios, de uma determinada pesoa, ou asám; fazem tambem os Poetas.[Pg 236] Os Epitalamios sam louvores, que se-dam a uma pesoa, no-dia do-matrimonio: os Epicedios sam louvores, despois de morto: as Apoteoses sam quando se-louvam desorte, que se-finge colocárem-se, entre os Deuzes: e tudo isto é em carne, um panegirico. As Satiras sam repreensam do-vicio; e tambem pertencem ao genero demonstrativo. as mesmas cartas se-escrevèram antigamente, em verso: de que nos-deixou bons exemplos, Ovidio &c. Nam ignora V. P. que a estes trez generos se-reduzem, todas as compozisoens, nam só Latinas, mas Vulgares. Fazem-se Sonetos, Silvas, Quintilhas, Elegias &c. em louvor, e vituperio: escrevem-se Cartas em Silvas, Decimas, Tercetos, Quartetos, Romances &c. finalmente todos os discursos de proza, se-podem reduzir em verso. E asim a mesma Retorica que é necesaria, para regular os nosos discursos, na proza; o-é tambem, no-poema. Onde vem, que a Poezia, é uma Retorica mais florida: e a quem falta esta, nam pode ser bom Poeta. Como é posivel, que o Poeta exprima na Elegia, a sua paixam, desorteque mova; se ele nam sabe, a arte de mover? como pode nos-dialogos expremir, o que cadaum quer, e deve dizer; se ele nam sabe o que deve, e como o-deve dizer? Torno às Comedias, e Tragedias, e delas progunto o mesmo: Como pode o Poeta fazer, que cadaum dos-reprezentantes exprima, a paixam de que está posuido; se ele nam sabe, que coiza é paixam, nem como se-move? nam pode ser que um omem, que ignore isto, fasa uma Comedia boa. Tambem a Tragedia nam consiste somente, em inventar um argumento nobre: em saber embrulhar uma quantidade de sucesos, que cauzem maravilha, quando se dezintrigam: mas sobre tudo é necesaria a propriedade, e carater, em cada parte; para mover o animo: o que pede, particular Retorica.

Quanto ao poema Epico, é certo que compreende, todas as outras especies de poemas narrativos: e nele se-pode empregar, tudo o que á de fino na Retorica. O principal asumto dele é, um panegirico. Nele se-acham arengas famozas: algumas sam deliberativas, outras judiciais. acham-se acuzasoens &c. acha-se a istoria do-eroe. acham-se muitos conceitos de doutrina, e outra erudisam. entram nele cartas, epigramas, dialogos: e finalmente tudo o que á melhor, na Poezia. Motivo porque se-dise, que era a coiza mais dificultoza, da-arte Poetica. Onde, compreendendo todas as outras especies de Poezia, se cada uma[Pg 237] delas pede Retorica, que fará o poema Épico?

Daqui fica claro, que conceito se-deve formar, destes vulgares Poetas, que V. P. incontrará todos os dias. Eles nam sabem, que coiza é Retorica, e bom gosto em materia nenhuma; como lhe-mostrei na minha ultima carta: e asim que coiza boa podem fazer, na Poezia? Se fazem alguma coiza menos má, é porque cazualmente sucedeo; ou asim o-lèram em em algum livro, d’ onde o-roubáram: mas ignoram a razam, porque asim se-faz. E isto nam é ser Poeta, nem para la vai. E nam cuide V. P. que falo por-conjetura: mas com experiencias mui certas: e ja me-sucedeo pedir a um mestre, que explicava um paso de Virgilio a um dicipulo; que me-explicáse a mim, porque se servîra o Poeta daquelas expresoens: e nam só nam mo-explicou, mas nem menos me-intendeo. Desorteque incontrando-se todos os dias, tantos Poetas; nam á coiza mais rara, que um Poeta.

E com efeito o segredo particular da-Poezia, principalmente Eroica, nam o-pode conhecer, senam quem é bom Retorico. Consiste ele, segundo dizem os mestres da-arte, em saber propor desorte, o argumento que se-escolheo; que só aparesa, o que tem de extraordinario, e nenhum defeito: e em saber inspirar ao leitor, curiozidade de ler todo o poema: nam declarando tudo logo, mas confuzamente: fazendo nacer uma dificuldade da-outra, paraque se-esporeie o dezejo: dilatando a leitura, e enchendo a istoria, por-meio dos-Epizodios; paraque o leitor nam perca de mira, o seu principal argumento: e finalmente nam dezatando o nó da-dificuldade, senam quando tem conduzido o leitor, ao fim do-poema. Tudo isto pode V. P. observar, na Eneida de Virgilio, ou na Jeruzalem do-Tasso. Eles propoem ao principio em breve, o argumento da-sua obra; e prometem coizas grandes. Nam comesam polo principio da-vida do-eroe; mas por-uma asám famoza, que empreendeo no-meio da-sua vida: da-qual com artificio particular, fazem recuar o leitor, até os primeiros trabalhos do-seu eroe. Uma dificuldade excita outra: demaneiraque o leitor nunca se-cansa, na leitura. E que outra coiza fazem os Retoricos, quando querem excitar, a atensam dos-seus ouvintes? Ja eu dise a V. P. que ese era o principal artificio, das-Orasoens de Cicero, e ainda de muitos Oradores da-Antiguidade. donde concluo, que só um bom Retorico o-pode fazer. Alem diso os Retoricos encomendam muito, que o Orador nam[Pg 238] diga, senam coizas verosimeis: porque com falsidades manifestas, ninguem se-eleva. E isto mesmo dizem, todos os bons Poetas: antes nada mais cuidam, que representar verosimel, tudo o que propoem. Desorteque quanto mais se examina a Poezia, tanto mais claramente se-reconhece, a Retorica.

E esta é a razam; porque vemos todos os dias, que muitos, querendo ser Poetas, sam uns ridiculos: porque lhe-falta o principal fundamento; que é, saber pezar as coizas, e dar a cada uma o seu preso. observando aquilo, a que os Latinos chamam, decorum: que consiste no-introduzir cada um, a falar segundo o seu carater. Todos os defeitos apontados, sam esenciais, e frequentes: mas este ultimo da-inverosimilidade, é mais geral, doque se-nam-intende. Acham-se poucos Poetas, que nam pequem contra isto: pecam no-Drama, e pecam no-Epico: aindaque neste menos; porque sam rarisimos os que compoem, poemas Epicos. Mas em toda a outra sorte de poema Narrativo, sam mui frequentes em Portugal. Nas Comedias pouco caiem os Portuguezes, porque nam se-aplicam a elas: raras vi, fóra das-de Camoens: mas os Espanhoes caiem muito nisto. Verá V. P. um pastor, que fala com mais filozofia e prudencia, que um Cipiam Nasica, ou Catam Uticense. Acham-se relasoens, com encarecimentos tam despropozitados, que nam merecem outro nome, que uma enfiada de manifestas mentiras. Algumas vezes, um omem vulgar faz uma Decima, ou Oitava derepente: outras vezes, dá melhores conselhos, que um consumado Jurisconsulto. Finalmente em tudo se-ve pintada, a inverosimilidade. Nam digo eu só Calderon, mas o mesmo D. Antonio de Solis; que em outras coizas mostrou mais juizo, que Calderon; nesta o-perde. E finalmente todos os Espanhoes sam o mesmo: porque tropesam a cada paso na sutileza, que é impropria na boca, de semelhantes pesoas: e tambem impropria da-Comedia: que nada mais é, que uma imagem da-vida, proposta aos olhos dos-omens, para repreender as asoens ridiculas dos-mesmos.

Dos-Espanhoes o-aprendèram os Portuguezes: e comumente se-persuadem, que quem sutiliza melhor, e diz coizas menos verosimeis, é melhor Poeta. Metaforas mui fóra de propozito, encarecimentos inauditos, sam os seus mimozos. Ouvi gavar muito um Soneto do-Chagas, feito a um cavalo do-Conde de Sabugal, pola metafora da-Muzica, e comesa asim:

[Pg 239]

Galhardo bruto, teu acorde alento
Muzica é nova, com que aos olhos cantas:
Pois na armonia de cadencias tantas,
É clave o freio; é solfa o movimento.

Mas eu considerando o tal Epigrama acho, que é uma completa parvoise, desde-a primeira palavra, até a ultima. Nam acho nele, conceito algum: as palavras sam improprias: e muitas nam tem significasam certa: e nam conclue com pensamento que eleve, que é a obrigasam do-Epigrama. Nam sei como o dito Poeta nam fez outro, a um burro de Valada, ou macho de Almagro; pola metafora da-Logica, ou Geometria. Podia descobrir na seriedade destes animais, semelhansas de um omem que filozófa: no-seu paso grave, o fundado do-juizo: tambem nas suas orelhas, semelhansas de uma sesam conica: no-corpo, vestigios de um paralelogramo: no-movimento, a ideia de varias linhas: e nas unhas, uma porsam de circulo: com outras ridicularias destas. As metaforas podem ter lugar; mas nam devem ser estas, que sam arrastadisimas. Isto nam intendem os que o-louvam: mas isto deviam intender, os que prezumem ser Poetas.

O outro ponto dos-encarecimentos, é frequentisimo nestes paîzes. Nam á coiza mais comua, entre estes chamados Poetas, doque encarecimentos incriveis; e servir-se de palavras, que nam significam nada. E sem saîr do-Chagas, que parece a muitos, que é bom Poeta; considere V. P., o que ele diz neste Soneto, feito a um pé pequeno de uma Dama.

Instante de jazmin, concepto breve,
Atomo de azuzena presumido;
Pues os juzgam las ancias del sentido,
Sospecha de cristal, susto de nieve.
Nó pie, mentira sois: pues como aleve,
Ni verdad en un punto aveis cumplido.
Antes creo que escrupulo aveis sido:
Pues de ser, o nó ser, la duda os mueve.
Como, si idea sois de ojos tan claros,
Hazeis los ojos fé para creeros,
Y hazeis la vista fé para miraros?
Yo me resuelvo en fin que he de perderos.
Pues si el veros es solo imaginaros;
Siendo imaginacion, como he de veros?

[Pg 240]

Este Soneto tem tido mil aplauzos: e ja achei quem me-disese, que era onde podia chegar, o ingenho umano. Contudo iso eu defendo, que os que o-louvam, proguntados polas palavras do-Soneto; ám-de confesar, que o-nam-intendem. Primeiramente estas palavras, instante de jazmin, concepto breve, atomo presumido, sospecha de cristal, susto de nieve, ancias del sentido: sam frazes que nada significam: e nam só em Portuguez, mas em nenhuma lingua. Dezafio todos estes poetas Portuguezes, paraque me-digam, se ouvisem um omem falar em proza daquela sorte, se o-intenderiam: pois é bem claro, que o que nada significa em proza, muito menos significa no-verso. E temos, que o primeiro quarteto nada significa: porque querendo ele significar, um pé pequeno; serve-se de termos, que nam significam iso. Na segunda quadra sobe de ponto o encarecimento: e nam se-contentando de dizer, que é pequeno, e é um ponto; acrecenta, que nam á tal pé no-mundo; pois somente fica a duvida, se o-ouve, ou nam ouve. Nos-tercetos desfaz, quanto tinha dito. Primeiro asenta, que o pé se-ve: despois diz, que nam é asim, e que somente se-pode saber por-tradisam, que á tal pé: e conclue, que nam existe senam na imaginasam, e nam é posivel que se-veja. Esta é a analize do-dito Soneto. Ora diga-me V.P. polo amor de Deus, se intende o que quer dizer, este Poeta. Primeiramente, ele nam conseguio o seu fim, que era mostrar, que o pé da-sua Dama era pequeno: provou mais doque queria; e mostrou, que nam avia tal pé. Alem diso nam adverte, a inverosimilidade do-conceito. Nam consiste a beleza de uma figura, em ter um ponto por-pé; antes isto é deformidade: consiste, em ter um pé proporcionado: e nas-molheres, a sua proporsam é, que o pé seja mais pequeno. E eu intendo, que a Dama ficaria mais contente, de ter um pé grande; doque de nam ter pés, e necesitar de moletas.

Dirmeá V. P. que o Poeta deve fingir, e inventar alguma coiza, para louvar: concedo: mas nam devem ser semelhantes parvoices, que em vez de agradar, fazem nauzea. Podem-se dizer muitas coizas daquele pé: mostrar, que para o complemento da-beleza, nam á proporsam melhor, que um pé pequeno: que nisto excede ela muito, todas as mais senhoras: que a sua brancura, e delicadeza é inimitavel: que tem toda a grasa que se-pode imaginar, em semelhante parte do-corpo. Isto, quanto ao serio. Pasando ao burlesco, podem-se dizer mil outras coizas: e pode[Pg 241] o Poeta inventar, alguma coiza galante; com que adorne estes conceitos. Asim torno a dizer, que os que louvam o Soneto, sem considerarem isto, nam o-intendem.

Se V.P. examina o motivo, de todos estes encarecimentos; achará que provèm, do-que no-principio apontamos. Todo o ponto destes Poetas está, em singularizar-se, seja como for: e asim buscam argumentos esquipaticos, os quais obrigam a procurar, conceitos despropozitados. E unido a isto, que eles sabem pouco, o que quer dizer elogiar; daqui vem, que amontoam conceitos inverosimeis; e servem-se de expresoens, que nada significam: as quais ou por-forsa do-consoante, ou da-novidade, agradam aos ignorantes. Que o Poeta disèse maos conceitos; aindaque fose um grande defeito, era mais toleravel: mas que, por-querer dizer coizas peregrinas, diga parvoices, e contrariedades; e fale em uma lingua, que ninguem intende; isto sim que se-chama, grande defeito de Poezia. Conheso, que os sinonimos sam às vezes necesarios: que os epitetos dam muita galantaria, nos-poemas: mas com algumas condisoens. 1.o ám-de ser coizas, que signifiquem. 2.o distribuidos com moderasam. Mas estas duas coizas sam, as que pola maior parte ignoram, estes Poetas: e com tantoque consigam o consoante, nam reparam, em tudo o mais. Mas sobre todos, este tal Frei Antonio das-Chagas, caio nisto: quazi todas as suas obras, consistem em palavras, sem conceito, e sem significado. Os Romances sam menos maos: tambem o Saco da-Jeruzalem Celeste, aindaque cheio de aluzoens mui destemperadas, pode pasar: os Sonetos quazi todos sam peste: e o mesmo digo da-Filis, que muitos louvam, porque a-nam-intendem. Sei que se V. P. ler isto ao P. * * * me-terá por-um Cafre, que nam intende, que coiza é Poezia: mas eu nam falo sem prova: e quando ele me-souber responder, entam lhe-darei razam.

Basta que V. P. leia os titulos, de muitos Sonetos; para conhecer o que digo. Quando eu leio estas inscrisoens:==Achando na beleza de Filis, razam para deixála==aos olhos de Filis com nevoas==fineza de nam amar a Filis==fazendo merito da-ouzadia==duvidas de declarar-se==fazendo razam do-atrevimento==confuzam do-seu amor==saindo Filis de noite ao campo==: e outros asumtos semelhantes; ja sei, que as compozisoens sam parvoises: e com efeito compare V. P. os do-Chagas, com estes titulos; e veja se concordam, e se os-intende. O mesmo lhe-digo do-Pina, e outros[Pg 242] semelhantes. Persuada-se V. P. que um asumto mao, á-de produzir más obras: porque se um argumento fecundo, tratado por-um omem que sabe, às vezes nam saie bem; que fará um infecundo, principalmente tratado, por-quem nam sabe elogiar? É necesario ter muito ingenho, e juizo, para saber tratar bem, semelhantes argumentos. E porque muitos nam tem, estas duas circunstancias; por-iso nacem estas compozisoens, de que nós nos-rimos.

Mas pasemos dos-Sonetos, ao poema Epico, à famoza Filis do-dito Chagas; e verá V. P. que nada mais é, que uma enfiada de antitezes, que nada significam: e que só agradam a estes, que se divertem com consoantes Gregos, sem intenderem o que lhe-agrada. Tudo isto se-ve, no-principio do-poema: ousa V.P. a primeira Oitava.

Yo que en la flor de mis primeros años
Cantè de Amor, las dulces tiranias;
Y en los echizos de agradables daños
Menti las horas, y engañè los dias:
Aora en numerosos desengaños,
Si llanto son las consonancias mias;
De la beldad que fue de Grecia espanto,
Lloro el amor, y la tragedia canto.

Nesta oitava acham-se mil coizas galantes: dulces tiranias==agradables daños==menti las horas== e outras coizas destas, que jogam os murros. Especialmente considero, a estrutura da-Oitava. Na primeira quadra diz isto: Que ele, que no-principio da-sua idade, fizera versos amatorios, e asim pasára os dias: Esta parte pedia outra segunda, em que disèse: Que agora, dezinganado daquelas puerilidades, se-ocupava em fazer, um poema Epico, e serio. Asim comesa Virgilio a sua Eneide, e outros Poetas: mas isto é o que nam diz o noso Chagas. Parece-me, que na palavra numerosos, queira significar metricos: e iso cuido que nam significa, mas que só significa muitos: porem isto nam é nada. A parentezis==Si llanto son las consonancias mias== nam tem conexam, com o que asima dise: as consonancias, ou os versos podem ser choro, e canto; quero dizer, alegria. Mas nem menos concorda com o que abaixo diz, o que asima dise: porque nam é boa opozisam esta: Tendo até aqui feito versos amatorios; agora com muitos dezinganos, (se é que os meus versos sam choros) chóro o amor, e canto a tragedia.[Pg 243] A palavra canto na primeira quadra deve significar, nam quem canta cantigas, mas quem faz poemas: e neste sentido a-tomam todos os Poetas, e o Chagas tambem: pois o que quer dizer é isto: Que tendo feito muitos versos, na sua mocidade; agora se empregava em outros asumtos. O que suposto, opondo-lhe na segunda quadra, o choro; diz uma parvoice: pois o contrario a poezias amatorias, é cantar coizas graves. Onde contrapondo-lhe o choro; vem a tomar a palavra canto, como equivoca; que é coiza indigna de um poema Epico. Tambem aquela antiteze ultima==lloro el amor, y la tragedia canto== é uma puerilidade. Bem se-mostra que o Poeta, novamente quer introduzir por-equivoca, a palavra canto. Alem diso, se o argumento da-sua obra, é uma tragedia amatoria; separando o amor da-tragedia, diz outra parvoice. Pasemos à segunda Oitava.

Musa que cultamente amaneciste
Candida en las auroras de mi oriente;
Y al alma tantas vezes me infundiste
Tu divino furor, tu afecto ardiente:
Si dignos son de tu concepto triste,
Numeros tiernos de una voz doliente;
Mi afecto inflama, harè que en dulce rima
Cante el dolor, la consonancia gima.

Tem V. P. nesta Oitava, quazi as mesmas incoerencias. Musa candida, eu nam sei o que quer dizer. Amaneciste en las auroras de mi oriente, sam trez sinonimos viciozos: amanhecer na aurora, é uma parvoice: aurora do-oriente, é ainda maior parvoice. Aquela repetisam==Tu afecto ardiente== nam tinha lugar despois de furor: porque a Muza comunica o seu furor, ou veia; quero dizer, dirige o Poeta no-canto: mas nam comunica o seu afeto. Concepto triste, impropriamente se-aplica à Muza: a qual nam é triste: e muito menos, quando inspira Epopeia. Finge-se que a Muza seja uma Deuza, toda ocupada em alegrias; a quem o Poeta invoca, paraque lhe-conceda um espirito, digno do-Parnazo. Una voz doliente, supoem, que o Poeta está aflito: e isto é improprio em um Poeta, que nam escreve os seus tormentos, mas os alheios. Que outra coiza avia dizer Demofonte, se compuzese a sua istoria? O ultimo verso é uma antiteze ridicula, e verdadeiramente coiza de rapaz: novamente opoem aqui o Poeta o choro, ao canto; sendo coizas, que no noso cazo nam sam opostas:[Pg 244] porque canto aqui nam significa cantar. O que diz o Poeta, se-reduz a isto: Que a dor á-de cantar, e a consonancia, ou o verso á-de gemer: e quem pode ler isto sem rizo?

Finalmente eu paro aqui: porque se quizese examinar todas as Oitavas, comporia um volume. Basta que V. P. o-leia, e examine, e achará que todo o livro se-compoem disto; e de palavras que nam se-intendem; e epitetos que nam significam nada. Confeso, que ainda nam vi Poeta, que escrevendo tanto, disèse tam pouco, como o Chagas. Estas reflexoens que faso a V. P. sobre o Chagas, poso fazer em outras obras; nam só de autores das-duzias, mas ainda daqueles que se-acham joeirados, na Fenix Renacida; e em outras colesoens de poemas. Mas escolhi este autor, porque é mui conhecido, e louvado, e procurado de muitos: e asim quiz apontar um, para exemplo. O que porem digo dele, deve-se aplicar a todos os outros, que seguem o mesmo estilo. O ponto está ter bem na cabesa, as regras da-Poezia; e examinar sem paixam, as obras; que facilmente se-descobrirám, os defeitos.

Se V. P. com estes principios, toma o trabalho de examinar, muitos dos-seus Poetas, ou a maior parte deles; achará, que tropesam no-mesmo defeito do-Chagas; com a unica diferensa de mais, ou menos: e ainda muitos dos-que tem bom ingenho; porque lhe-falta o juizo, para saberem examinar as materias. A regra que eu observo neste particular, é esta: quando vejo um Poeta destes, que se-serve de expresoens, que nada significam; ou que compoem de sorte, que o-nam-intendem; asento que nam quiz ser intendido; e em tal cazo, procuro fazer-lhe a vontade, e nam o-leio. Com esta sorte de omens faso o mesmo, que com os laberintos, e enigmas &c. os quais nunca me-cansei em decifrar. eles que o-fazem, que se-divirtam com iso. Se todos asentasem neste principio, veria V. P. como se-mudava a Poezia nestes paîzes: porque seriam obrigados os Poetas, a lerem somente as suas obras: e asim, ou se-dezinganariam eles mesmos com o tempo; ou, nam inganariam os outros: e poderseîam achar Poetas, de algum merecimento: principalmente se chegasem a conhecer, quais sam os requizitos necesarios, para a Poezia. A razam destes inconvenientes é, porque se-persuadem comumente, que para ser Poeta, basta saber a medida de quatro versos: e saber ingenhar conceitos exquizitos. Quem se-funda nisto, nam[Pg 245] pode saber nada: sam necesarias muitas outras noticias. É necesario doutrina, e intender bem as materias que se-tratam. é necesaria a Filozofia, e saber conhecer bem, as asoens dos-Omens, as suas paixoens, o seu carater: para as-saber imitar, excitar, e adormecer. Aqui entra novamente a Retorica, que supoem todas aquelas coizas: entra uma pouca de istoria, para nam dizer parvoices: entra a istoria da-Fabula &c. Tudo isto se-mostra manifestamente, nos-melhores poemas que temos da-Antiguidade. Virgilio, e Oracio &c. eram omens que intendiam perfeitamente, o que tratavam: e sabiam muita coiza, que introduziam proprisimamente, nos-seus poemas; de que se-compoem, o ornamento deles. O mesmo digo, de outros Poetas modernos, e insignes. Onde, quem nam tem estes fundamentos, é versejador, mas nam Poeta: e necesariamente á-de dizer, muita parvoice.

Seguia-se despois destas reflexoens gerais, falar especialmente, nos-defeitos das-particulares: mas nem eu tenho tempo para isto, nem o-permite, a brevidade de uma carta. Onde, somente direi alguma coiza mais geral, que compreenda as compozisoens pequenas; e tambem alguma coiza do-poema Epico; vistoque o Dramatico nam tem uzo, em Portugal. Digo pois, que nestes paîzes vejo, mui radicada certa opiniam, de chamar Poeta, a quem o-nam-é: e dar estimasam a poezias, que a-nam-merecem. Uma vez que um omem faz um Soneto, com algum conceito; ou Decimas, com alguma naturalidade; acham-se logo mil admiradores, que dizem, ser famozo Poeta. V. P. terá ouvido frequentisimamente, que quando em um Oitero se-gloza um mote, com facilidade; estam promtos mil aplauzos, para o Poeta: eu o-prezenciei muitas vezes: e esta é a comua opiniam. Mas na verdade é um ingano comum, porque aquilo nam é ser Poeta, nem para lá vai. Semelhantes sortes de compozisoens, nam dam credito a ninguem: isto persuade a boa razam, e a experiencia: Quanto à experiencia, progunte V. P. (o que eu ja fiz) a um destes Glozadores, qual é o artificio da-Poezia; e verá que nam sabe de que cor é: e nam digo só destes das-duzias, mas ainda dos-que glozam felizmente: e conseguentemente nam é Poeta. A razam confirma o mesmo: porque o artificio destas obras nam é nenhum: a sua contextura é tam facil, que por-mao que seja o Poeta, sempre acerta com elas. A Decima, a Quintilha, o Madrigal, as Liras, a Silva, o Romance lirico, Quartetos puros,[Pg 246] e de pé quebrado, Tercetos &c. nada mais pedem, que a naturalidade-do-conceito, e expresam: quando muito, algum bocadinho daquele ingenho mixto; que consiste, em ter no-fim algum pensamento meigo; explicado com alguma fraze agradavel, e delicada, ou coiza semelhante. Isto nam pede talento, mas somente alguma imaginasam: a qual nam se-acha omem tam desgrasado, que a-nam-tenha. Onde, posto isto em trages de Poezia, saie uma Decima, ou coiza semelhante.

Nam digo, que um bom Poeta, nam posa fazer estas coizas tam bem; que agradem aos omens, de melhor penetrasam: sendo certo, que quem tem juizo o-mostra, ainda nas coizas pequenas; como fizeram os Antigos: o que digo é, que explicando um pensamento, polo modo que aponto, pode qualquer fazer Decimas &c. que agradem. Antes é muito de advertir, que quando estes poemas pequenos se-estudam muito, e neles querem mostrar muito estudo; cheiram a Filozofia, e perdem toda a grasa. Este defeito tenho observado, em muitos Espanhoes, e Portuguezes; que se-preparam para fazer uma Decima, a uns olhos azuis; ou a uma Dama que deixou cair, uma luva em terra; ou a um sinal que se-despegou do-rosto; e outros semelhantes asumtos; como se ouvesem de cantar a guerra dos-Romanos, com Mitridates, ou com Cartago. Isto é um defeito esencial: e é nam saber aplicar o poema, ao asumto: sendo certo, que semelhantes compozisoens só se-inventáram, para asumtos ou burlescos, ou amatorios; ou de coizas domesticas, que nam permitem estudo particular: e asim todo o merecimento de semelhantes obras consiste, n’um conceito delicado, e natural. O Poeta perde a naturalidade, todas as vezes que procura, com grande estudo, mostrar ingenho: e nunca dezagrada mais, que quando procura agradar muito: porque o conceito a-de aprezentar-se, e nam procurar-se.

Por-este motivo sam dignos de rizo certos Poetas, e Poetezas, que fazem Romances, e coizas semelhantes; com tal estudo, que nam se-intendem sem comentario. A Madre Joana de Mexico, é uma delas: tambem Gongora nos-seus Romances: e dos-modernos Eugenio Gerardo Lobo: que tem alguns, que, ainda despois de muito estudo, nam se-percebem. Finalmente isto é defeito geral dos-Espanhoes: e dos-que eu li, nam achei algum, que nam pecase nisto. Dos-Espanhoes o-recebèram os Portuguezes, e poucos[Pg 247] sam os que se-excetûam. O Chagas nos-seus Romances, tirando em certas partes, é dos-mais naturais: tambem o Camoens no-lirico. Vi tambem neste genero alguma coiza do-Conde de Tarouca, morto no-Imperio; que me-agradou pola naturalidade, e imaginasam: e algum outro, mas raro. Dos-oscuros nam cito exemplos, porque nam á coiza mais comua que isto: e neles poderá V. P. reconhecer, este defeito. O pior é, que se um omem faz uma Decima, ou coiza semelhante, como deve ser; nam agrada a esta sorte de Poetas, e chamam-lhe coiza trivial: querem ideia mais superlativa: e sempre o oscuro, inverosimel, arrastado, lhe-parece que encerra, melhor doutrina. Mas o sal do-negocio consiste, em mandar isto à sua Dama, ou a um amigo, que o-nam-intende: e ficarem lambendo os beisos, dos-aplauzos. Isto vale o mesmo, que se lhe-mandasem uma Ode de Pindaro, ou Anacreonte; porque umas e outras foram Gregas. Nam é crivel, quanta gente padece esta infermidade: que para mostrarem ou doutrina, ou ingenho; procuram nam serem intendidos, nam só nas compozisoens, mas ainda nos-discursos familiares. Achei-me em uma Prosisam de Freira, onde vi certo *** que sendo dezafiado por-uma Freira, despois de falar muito, lhe-falou nas precizoens objetivas dos-Logicos, e repetio muito verso Latino. Mas a Freira nam cedeo: porque se ele falava Latim, ela falava uma lingua, que ninguem intendia. Despois de falar muito tempo, com um profluvio de palavras incrivel; juro a V. P. que nam pude perceber, o que ela queria dizer: pois aindaque as palavras eram Portuguezas, a fraze porem era tal, que nam se-podia decifrar. Esta Freira tem muitos parentes neste mundo. Conclûo pois, que esta sorte de poemas, que pedem somente naturalidade, e alguma imaginasam; a ninguem podem dar nome, de Poeta.

O Soneto tambem pertence a esta regra: mas é certo, que pola qualidade do-verso, admite mais elevasam de expresoens, que os outros poemas nomiados. Contudo iso defendo, que o conceito deve ser natural: deve ter verdadeiro ingenho: e só na maneira de explicar-se, é que está a galantaria do-Soneto. Consiste pois a obrigasam do-Soneto, em propor na 1.ᵃ quadra o asumto: na 2.ᵃ explicálo com algum conceito: de que se-tire o argumento, para os tercetos. Os Poetas, que tem mais cabedal, expoem o asumto nos-primeiros dois versos: nos-dois segundos comesam a discorrer. Tal é o Soneto feito à morte de uma Senhora,[Pg 248] cuido que polo Bacelar, e diz asim:

Venceo a Morte, o Fabio, a Formozura.
Amarilis a bela é cinza fria.
Procura Amor fazer, que o-nam-sabia,
E esconde o cazo, nesta pedra dura &c.

Outras vezes o Poeta expoem na primeira palavra, o asumto: e desta sorte é o Soneto, que citei a V. P. em outra carta, feito a uma cara mui feia. Mas nem todos os asumtos, se-podem propor asim; e podendo, nem todos os Poetas sam capazes, de o-fazerem. Porem é grande beleza do-Soneto, que na primeira quadra diga algum conceito; que dè materia a todo o discurso da-segunda; e encadeie naturalmente com os tercetos. E sem sair do-tal Soneto, o-repitirei novamente; porque me-parece que prova, o que digo:

Es feia: mas desorte, que orroroza
À tua vista é bela a feialdade:
Mas tens fortuna tal, que a enormidade
Te-consegue, os tributos de formoza.
Cara tam feia, coisa tam pasmoza
Todos observam, e move a raridade.
Nam desperta o comum a curzidade:
Ser rara, é que te-adûla vaidoza.
Ama-se o Belo, e cega o mesmo afeto.
O Feio, pois nam liga o pensamento,
Deixa miudamente ver o objeto.
Isto faz que se observe ese portento.
Quanto estás obrigada, a ese aspeto;
Se no-enorme te-dá merecimento!

Neste Soneto, que em tudo é natural, o conceito dos-dois ultimos versos da-primeira quadra, prova-se na segunda, e se-confirma nos-tercetos: dando materia ao conceito do-fecho, que é nobre e natural, e diz mais doque soa. Mas nem todos seguem este parecer: e verá V. P. infinitos Sonetos, ainda de omens que prezumem ser Poetas, que pecam contra tudo isto. Eles tem dois extremos: ou dizem conceitos inverosimeis, e encarecimentos tam fóra do-escolio, que ninguem os-pode sofrer; ou dizem frioleiras; ou finalmente servem-se de conceitos, que nam é fácil intender: e o melhor da-galhofa está, em que ornam tudo isto com frazes, que nam se-percebem. De tudo achará V. P. exemplos,[Pg 249] sem sair do-Chagas: o qual tem Sonetos em que se-acham, estas trez coizas: inverosimilidades, oscuridades, e frialdades.

Quanto às inverosimilidades, nam queira V. P. melhor prova, que o Soneto Espanhol, feito ao pè pequeno d’aquela Senhora &c. mas ainda á outros. Faz ele alguns Sonetos, a que chama Eroicos, e entre eles algum ao Conde da-Torre, que matou de um golpe um toiro. Asumto mui mimozo dos-Portuguezes, ao qual tenho lido infinitos Sonetos, de diferentes autores. Intende V. P. que este titulo Eroico, promete um pensamento nobre e admiravel? asim devia ser; mas nada menos é: e nestes eroicos entram igualmente as sutilezas, e impropriedades. Se me-nam-dá credito, ousa o primeiro, que diz asim:

Tam grande golpe, o Conde ilustre, dèstes
Nese amante de Europa que matastes;
Que só o estrago, que ao ferir cauzastes,
Todos os Signos atroou celestes.
Tam veloz, tam bizarro acometestes;
Que, no-impulso menor com que voastes;
Ao golpe orrendo a morte anticipastes:
E por-demais a execusam fizestes.
Faltou emprego à espada, ao braso forte
Lugar: onde aparece a desmedida
Forsa, que enveja Alcides, e Mavorte.
E intendo que ambiciozo da-ferida,
Por-ser o bruto o credito da-morte,
Cauza vos-deu, para tirar-lhe a vida.

Este Soneto que V. P. aqui vè, é mui gavado: mas examinado ele bem, é parente chegado dos-outros amatorios. Na primeira quaderna se-observa a puerilidade, de chamar ao toiro, Amante de Europa; somente para dizer, que se-espantáram os mais signos celestes. Tomára que me-disèse, se se-espantou tambem o signo de Libra &c. Na 2.a quadra desfaz, o que dise na primeira: e afirma, que o Conde nam matou o toiro; mas fez somente a eroica asám, de dar em um corpo morto: e o mesmo consuma, no-primeiro terceto. O que contem o ultimo terceto, nam se-pode intender: porque que queira dizer Credito da-Morte, eu nam sei: o que sei é, que para fazer uma antiteze ridicula, de morte, e vida: compoem dois versos, que nada significam. Parece que queria dizer o Poeta, que o bruto, que era inimigo da-morte,[Pg 250] fora com gosto oferecer-se a ela. Mas isto, alemdeque desmente o que primeiro disera, que ele nam matára o boi; nam se-pode explicar, com o ultimo verso: porque dar cauza pode alguem, sem se-oferecer à morte. Em uma palavra, isto é um conceito Grego. E disto achará V. P. frequentemente, no-mesmo autor. Os seus conceitos eroicos, sam tam superlativos, que eu os-nam-intendo. Em outro Soneto a D. Joam de Castro, sobre o mesmo asumto, conclue asim:

Do-valor sorte foi: mas de tal sorte,
Que a sorte foi valor, Castro bizarro:
Sem ser azar do-bruto o dar-lhe a morte.
Antes se-ve, que com feliz desgarro
Lá no carro da-Fama está mais forte,
Que este que foi de Europa amante escravo.

O consoante ultimo parece devia ser escarro, e nam escravo: mas o conceito obriga a dizer, o contrario. Porem isto é nada: o que eu digo a V. P. é, que o que querem dizer estes dois tercetos, confeso a minha ignorancia, eu nam sei: nem até aqui achei, quem mo-explicáse. V. P. terá o trabalho de o-consultar, com aquele seu amigo, que louva tanto este autor: e notar de caminho, se, escrevendo em Tartaro, podia ser menos inteligivel. Quando estes Poetas, querem fugir da-oscuridade, declinam para outro extremo; que é, dizer coizas, que nam tem grasa alguma, a que se-chama frioleiras. E tal é o fecho de outro Soneto, ao mesmo asumto, e polo mesmo autor: que eu repetirei todo, porque se no-fim é mais claro, nam é menos galante no-principio.

Foi, o Conde bizarro, de tal sorte
A vida dese bruto prezumida;
Que o Roxo mar da-mais cruel ferida
Julgava escrito seu alento forte.
Mas só vós, raio ilustre de Mavorte,
Fizereis, com puxansa nunca ouvida,
Que por-onde sair nam pode a vida,
Soberba intrase arrebatada a morte.
Emfim caio o bruto: e parecia,
Que o tom do-golpe, que nos-vales dura,
Em todo o ar exequias lhe-fazia.
Pois foi tal desa espada a forsa dura,
Que ainda a terra parece que lhe-abria,
Com os sobejos do-golpe, a sepultura.

[Pg 251]

Este Soneto é parente do-antecedente. Esta fraze vida prezumida, nam sei o que significa: muito menos intendo, os dois ultimos versos da-primeira quadra: é tam sublime o conceito, que creio, que nem menos o seu amigo * * se-atreverá a explicálo, em boa proza. Tambem aquilo de chamar Mar roxo, ao Mar vermelho; nam se-pode perdoar a um omem, que fez, ou intentou fazer um poema Epico. A antiteze que se-acha na 2.a quadra, de Sair vida, e intrar morte, é outra inglezia. O que eu acho é, que se o toiro morreo de uma cutilada, pola mesma parte por-onde introu a morte, saio a vida no-sangue: e isto nam é puxansa nova; mas é coiza bem uzual. O ultimo terceto, tem um conceito bem ordinario, e em tudo semelhante, ao de outro famozo Soneto ao mesmo asumto, que comesa:

Foi para o raio de aso curta esfera,

e conclue asim:

Que emprego sofrerá forsa tam dura?
Abra o boi: rasgue a terra: e desta sorte
Saia em sobras da-morte, a sepultura.

Mas eu devo dizer o que intendo: acho que em ambas as partes o Poetas diseram, o que diria qualquer omem de ganhar. despois de terem engrandecido tanto o golpe, sam mui frios na concluzam. Para acompanhar com o Soneto, parece-me que tinham dois conceitos, mais exquizitos. Um era dizer, que com a forsa da-caida furára o bruto, o globo terraqueo; e fora parar, no-emisferio dos-Antipodas. O outro era concluir, que ao toque da-espada, se-anihilára o bruto: tomando esta palavra, no-sentido filozofico, que supoem uma forsa mais que umana. Cuido que isto era mais conveniente, ao estilo de Portugal. V. P. diga ao seu amigo, que fasa nota destes dois conceitos; para se-servir, nas ocazioens de toiros.

Em outra parte faz o mesmo Chagas dois Sonetos, que acabam com duas frioleiras insoportaveis. Um é feito, à morte da-Infanta D. Joana, e conclue asim:

Transposta quando menos admirada,
Anoiteceo na aurora de uma vida,
E se-eclisou de um Sol na madrugada.
Mas sendo as luzes tantas, quem duvîda,
Se era o viver de muito dezejada,
Que o morrer foi de pouco merecida.

[Pg 252]

O outro é feito, a outro cavalo do-Conde de Sabugal, que campiava bem. Este autor era tentado com tais asumtos: e creio que na cavalarisa do-dito Conde, nam deixou animal sem Soneto: finalmente fez um, que concluîa asim:

Nó pues de Febo el tiro luminoso,
Nó de Alexandro el Zefiro animado
Rapido se compita, o generoso.
Pues preferiendo a todo lo animado,
Los puso desayrados en lo ayroso,
Corridos los dexò con lo parado.

Estes dois fechos sam as majores frialdades, que eu ainda vi: nam se-podem ler sem compaixam: e isto alem de terem antitezes, e versos, que nam se-intendem.

E nam cuide V. P. que isto sucede somente no-Chagas, e outros Poetas; acha-se nos-melhores: e Camoens é um deles. Este omem, que no-Lirico tinha muita naturalidade; querendo introduzila nos Sonetos, fez a maior parte deles sem grasa alguma. Ponho neste numero os dois gavadinhos, que se-tem glozado cem-mil vezes: comesa um:

Sete anos de pastor Jacob servia:

e conclue asim:

Comesa de servir outros sete anos
Dizendo, Mais servîra, se nam fora
Para tam longo amor, tam curta a vida.

outro comesa:

Alma minha gentil que te-partiste:

e acaba:

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tam cedo de cá me-leve a ver-te,
Quam cedo de meus olhos te-levou.

Considere V. P. sem paixam, estes dois Sonetos; e observe se acha neles, o carater do-Epigrama. Eu digo que nam: porque o Epigrama deve concluir, com algum conceito que agrade, e arrebate com a novidade; e deixe intender mais, doque nam diz: e iso é o que eu nam acho, em nenhum deles. O primeiro contem uma istoria, sem artificio algum poetico: e conclue com um comprimento bem uzual. Um amante logrado, que menos podia dizer que isto: Mais servîra, se nam fora pouco todo o tempo, para empregar no-seu serviso? Contudo iso, nam obstante ser uma[Pg 253] coiza fria, eu observo outro defeito maior, que é a impropriedade. Para fazer uma antiteze, de amor longo, vida curta; serve-se de uma fraze impropria: pois amor longo, é parvoice; porque refere-se a tempo: e aqui deve-de referir a grandeza; e dizer, amor grande: no-qual cazo vai por-terra, o conceito. Do-outro Soneto digo o mesmo: todo ele se-reduz a isto = Tu que estás la no-Ceo, pede a Deus, que me-leve a ver-te depresa: e que menos se-pode dizer, a um morto amado? Este é outro fecho semelhante ao do-Borges, que fazendo um Soneto, à morte da-Infanta D. Francisca, falando com a Morte, conclûe asim:

Se nam podes ja ter igual projeto,
Pendura a fouce, e deixa de ser Morte.

Se o-disèse ao principio, e dele deduzise alguma coiza boa; serîa menos mao: mas rezerválo para o fim, é nam intender este oficio. Esta especie de conceitos, nam é necesario dizelos: estam ditos por-si, e todos os-diriam. Neste mesmo fecho do-Camoens, noto outra impropriedade. A palavra cedo no-primeiro verso, refere-se a tempo; e quer dizer, depresa e logo, sem reparar em idade, ou coiza semelhante. O que posto, compara muito mal o Camoens um cedo, com outro cedo, sendo coizas diferentes; e vale o mesmo que dizer: Asim como tu partistes na flor da-idade deste mundo, asim eu parta logo &c. a qual propozisam manifestamente se-ve, ser uma parvoise. Toda a grasa pois do-dito conceito, se-reduz à palavra cedo: que aqui é um rigorozo equivoco: coizas indignas de um Soneto. Onde conclûo, que no-Camoens nam vejo, o espirito do-Epigrama; porque a sua naturalidade talvez afetada, o-faz languido: e o Epigrama, aindaque natural, deve ter outra elevasam. E asim os que querem fazer bem Sonetos, devem evitar nam só a inverosimilidade, e oscuridade; mas tambem a frialdade.

Muitas coizas reduzidas a Decima, ou outra tal compozisam, parecem bem; que em Soneto parecem muito mal. No-estado em que está oje a Poezia; pode intrar no-Soneto, alguma coiza de ingenho mixto: porque estes costumam agradar mais. Creio porem que é melhor, fazer poucos e bem, que muitos dos-comuns. Esta sorte de poemas imperfeitos valem pouco, e nam sam capazes de darem nome, a um Poeta. Onde quando nam sam superlativos, nam se-podem sofrer. Este porem é o defeito, de muitos Portuguezes; que, fazendo Sonetos mal, ainda asim nam cesam[Pg 254] de fazèlos: faram dez e doze a uma roza, e asumtos semelhantes: outros em um Oiteiro fazem bastantes glozas, a um só mote: e se os primeiros sam maos, os ultimos sam peste. Mas, tornando ao ingenho, concluo, que em toda a sorte de poemas pequenos, deve o Poeta ter sempre diante dos-olhos; que o esencial deles é, a naturalidade, unida a um pensamento galante, exposto com delicadeza. Esta pode consistir, em um sentido oculto, que diz muito, quando parece que nam diz nada: em alguma pancada picante, coberta com um veo modesto: em uma grasa, exposta ironicamente com maneira seria: em um pensamento fino, coberto com uma palavra groseira. No-Soneto porem deve praticar-se isto, com menos meiguise, e mais elevasam. No-que reprovo o estilo de muitos, que se-servem dos-Sonetos, ou Romanses Eroicos, para coizas amatorias; nas quais nam entram bem: porque o verso endecasilabo, pede emprego mais sezudo: o Lirico é proprio para estas coizas.

O que digo do-Epigrama Portuguez, digo tambem do-Latino, porque as regras sam as mesmas: e com mais razam se-devem nele evitar, os equivocos &c. porque a lingua Latina nam sofre, semelhante estilo. Os Epigramas dos-Gregos eram naturais, aindaque com grasa: este estilo seguio Catûlo. Porem Marcial no-tempo dos-Vespazianos, principalmente de Domiciano; que era a declinasam da-eloquencia Latina; e quazi o principio da-idade de bronze, segundo os que intendem melhor; foi o que comesou a introduzir, ou rafinar as agudezas, e equivocos, nos-Epigramas: o que agradou entam, porque se-comesava na-Corte a perder, o bom gosto da-Eloquencia. Com efeito alguns dos-seus Epigramas podem pasar, em obzequio daquele tempo; e tambem do-nosso, que ainda está alguma coiza ocupado, com sutilezas: mas sam rarisimos, e apostarei que nam chegam a quinze, os bons. A maior parte porem sam frialdades, e parvoises, que os omens de juizo tem desprezado; e reconhecem estar muito abaixo, da-nobreza de Catûlo. Mureto, que imitou tambem Catûlo, que parece o mesmo autor, chama a Marcial, Bobo de Comedia: e o noso Lilio Gregorio Giraldo, a quem todos os doutos reconhecem, por-omem de juizo exatisimo nestas materias; diz deles com galantaria, que só podem agradar, aos asnos. Temos mais alguns antigos Epigr. que podem pasar. Dos-modernos acham-se alguns bonitos: mas incontrei tambem, colesoens de Epigramas modernos,[Pg 255] indignisimos; e a maior parte sam asim: e asim é necesario lelos, com muita advertencia. O ingenho mixto reina, nestas compozisoens; principalmente desde o fim do seculo XVI. a esta parte. Chamo felicidade fazer um Epigrama, que seja bom. Onde diz com grasa o douto P. Rapin, que o Epigrama se nam é excelentisimo, nada vale: e que tam dificultozo é, fazer um bom, que se-pode contentar, quem chega a fazer um, em toda a sua vida.

Esta materia dos-Epigramas, que sam rigorozas inscrisoens funebres na sua origem; aindaque ao despois se-aplicasem, a outras materias; me-conduz a falar, nos-Elogios lapidares: que sam um quid medium, entre a proza e o verso; e o Juglar lhe-chama, libera Poësis. Nesta materia tenho pouco que advertir a V. P. porque o-reduzirei a duas palavras. Nenhum omem de juizo, deve seguir o estilo, do-Tezauro, Juglar, Masenio, Labbé &c. se é uma rapaziada condenavel, introduzir na lingua vulgar equivocos, e sutilezas; e que nenhum omem douto faz; que será introduzilos na Latina, em que nós nam temos jurisdisam? Alem diso, a lingua Latina nam permite isto. os que estimam a bela Latinidade, devem escrever, como os da-idade de oiro; ou quando muito de prata; e nadamais se-deve imitar. Nos-fins da-idade de prata, é que se-comesáram a introduzir tais agudezas, por-culpa de Seneca Filozofo, e seu sobrinho Lucano: mas principalmente de Marcial, que floreceo pouco despois. Motivo porque muitos bons criticos querem, que a idade de prata acabe com Nero, no-ano 67. de Cristo: vendo quanto dali para diante, descaio a Eloquencia. Mas ainda nos-fins da-idade de prata, nam estava o cazo tam arruinado: o que alcanso, das-inscrisoens dese tempo. Do-tempo dos-Antoninos para diante, quero dizer, desde os principios do-segundo seculo de Cristo, é que totalmente se-comesou a arruinar, e intráram as sutilezas: mas pior que tudo, desde a metade do-dito seculo para baixo. Finalmente arruinou-se a lingua Latina, com o imperio Romano, no-quinto seculo: daî para diante reinou a ignorancia, até o meio do-decimoquinto seculo. Contudo atrevo-me a dizer, que nam só nos-fins do-Imperio, mas nem ainda nos-seculos da-ignorancia, se-acha muita sutileza, e equivocos; se os-comparamos com os nosos. Somente nos-fins do-decimosexto seculo, comesáram a aparecer: mas totalmente se-rafináram, nos-principios do-decimosetimo: e duráram quazi até os fins do-dito: até que[Pg 256] aparecèram omens, que reprováram este estilo, e seguiram a Antiguidade. Isto basta para mostrar, que se-deve desprezar esta novidade; que é incompativel, com a beleza das-expresoens, e magestade da-antiga Eloquencia. Os ingenhos pobres, é que vam detraz destas ridicularias, para serem estimados; visto nam o-poderem conseguir, por-outro estilo. No-tempo de Augusto, em que cozinheiros, pasteleiros, e mosos dos-moinhos, sabiam mais de Eloquencia, e bom gosto; doque a maior parte destes modernos doutores; nam se-escrevia asim: as inscrisoens eram naturais, claras, e em poucas palavras. Abra V. P. o. Grutero, Reinecio &c. e verá provado o que digo. Ainda na idade de prata, e bronze, a maior parte das-inscrisoens sam naturalisimas: o que eu observei muitas vezes, examinando os antigos monumentos, que existem em Roma; esculpidos no-quarto, e quinto seculo: como tambem uma infinidade de sepulturas particulares, dos-seculos inferiores, escritas com toda a naturalidade, e grasa. E isto deve fazer, quem quer mereser louvor: e nam seguir os pasos destes ignorantes, que fazem Latins novos.

Quanto às divizoens de regras em grandes, e pequenas; é certo, que algumas se-acham na Antiguidade; mas raras: e regularmente por-necesidade, de comesar outro capitulo &c. Comumente escreviam sem divizoens, e muito menos divizoens afetadas; como quem escreve carta. O que eu observei muitas vezes: e nam só nas antiquisimas; mas ainda nos-monumentos escritos, atè a ruina do-Imperio, e inferiormente. No-fim do-XVI. seculo, é que comesáram a introduzir, esta ridicularia. Comesou polos titulos dos-livros: pasou aos arcos triunfais &c. De entam para cá estilo lapidar significa, um Latim escrito em diferentes regras maiores, e menores, segundo a eleisam de quem escreve. Eu certamente nos-principios de livros, &c. deixaria as coizas como estam: mas nas inscrisoens lapidares, nam me serveria destas divizoens de regras à moderna: porque se aquilo nam é verso, que necesidade á, de dispolo daquela sorte? Alem diso, as inscrisoens lapidares devem ser brevisimas, e clarisimas: e asim nam é necesario divizam, porque nam á motivo, para se-confundir a gente. Isto é o que eu nam poso sofrer, nestes modernos pouco advertidos; que fazem inscrisoens eternas. Mas isto é contra o bom gosto: a Antiguidade explicava-se em duas palavras: a simplicidade, e brevidade, era toda a galantaria das-inscrisoens. Li muitas vezes, e sempre[Pg 257] com particular gosto, as inscrisoens que ainda oje vemos,nos-antigos monumentos, que existem em Roma. No-portico do-Pantheon ainda oje lemos: M. Agrippa L. F. Cos. Tertium Fecit: que quer dizer, Marco Agripa, filho de Lucio, terceira vez consul, fundou este portico. Esta é do-seculo de Augusto. Mas ainda as inferiores sam asim. Vencèra Tito Vespaziano os Judeos: demolîra Jeruzalem: concluîra uma das-mais obstinadas guerras, que tiveram os Romanos: o Senado, levantando-lhe um arco Triumfal perpetuo, nam dise uma arenga sempiterna; contentou-se de escrever estas palavras: Senatus Populusque Romanus Divo Tito, Divi Vespasiani F. Vespasiano Augusto. No-frontispicio do-templo consagrado polo Senado, ao Imperador Antonino, e sua molher; lem-se estas palavras: Divo Antonino, & D. Faustinae. S. C. No-pedestal da-coluna Antonina, le-se: M. Aurelius Imp. Armenis, Parthis, Germanisque bello maximo devictis, triumphalem hanc columnam rebus gestis insignem Imp. Antonino Pio patri suo dedicavit. E na coluna Trajana triumfal lemos ainda: Senatus P. R. Imp. Cæsari Divi Nervæ F. Nervæ Trajano Aug. Germ. Dacico Pontif. Max. Trib. Potest. XVII. Imp. VI. Cos. VI. P. P. ad declarandum quantæ altitudinis mons, & locus tantis operibus fit egestus. Deixo de citar outras, porque é coiza bem vulgar. Nestas inscrisoens ve V. P. a naturalidade, simplicidade, brevidade: sem divizoens, mas com fraze continuada. Se porem algumas vezes, eram as inscrisoens mais compridas, provinham dos-titulos dos-Imperadores, que se-costumavam escrever: ou porque nela se-nomiavam varias pesoas, cadauma com o seu titulo; que é o mesmo que diferentes inscrisoens: mas isto é raras vezes: o comum era polo contrario. Nam asim nos-modernos, que fazem inscrisoens eternas, sem nobreza, ou grasa alguma; e com divizoens importunas e afetadas. Mas quando quizesem seguir estas divizoens, pouco importaria; contantoque fugisem, dos-vicios apontados. Uma coiza porem nam poso sofrer, e vem aser, escreverem livros em estilo lapidar, com as divizoens ditas. Se eles intendem, que este estilo é tam proprio das-lapides, que nam pode aver lapide, por-outro estilo; quizera que me-disesem, porque compoem livros asim: ou é lapide, ou é livro. Nam á coiza mais ridicula que esta. Mas o que merece mais rizo é ver, que quando algum compoem um destes livros, saiem logo os censores, canonizando o dito estilo; e dizendo mal, dos que desprezam estas rapaziadas. * * * Um bocadinho[Pg 258] de melhor gosto na lingua Latina, e um bocadinho mais de reflexam, pouparia estas criticas injustas.

Pasando agora às compozisoens modernas, pouco me-fica que dizer. As mais consideraveis entre as pequenas sam, a Egloga, Elegia, Ode. A Egloga nam tem uzo em Portugal: em que nam se-aplicam a descrever, a imagem da-vida pastoril, cujo carater é a simplicidade, e moderasam: nem tambem esta compozisam, pede muito ingenho: basta ser acertado. Camoens nas suas Eglogas, introduz tanta variedade de versos, que nam se-pode ler com gosto; porque faz perder, a ideia da-Egloga. Alguma delas consta de Oitavas, Cansam, Tercetos &c. mas isto nam se-deve imitar. Pode alguma vez variar-se, a uniam das-rimas: mas na mudansa de versos, deve-se proceder com cuidado; porque é muito impropria. As outras duas compozisoens, sim se-uzam em Portugal: mas comumente debaixo de outros nomes. A Elegia, tem por-emprego, descrever sentimentos ou amores; ou expremir qualquer paixam amoroza. Donde vem, que o seu carater deve ser, o enternecido, explicado por-um modo animado; mas quanto mais pode ser natural: que é o que faz quem chora, ou ama: e aqui tem lugar, as Figuras proprias desta paixam. Cuido que para isto é mais proprio, o Romance Lirico, e a Silva; porque sam compozisoens naturais, e que se-podem animar, como cadaum quer: o Endecasilabo nam me-parece tam proprio para isto; porque as de Camoens em Tercetos, nam soam bem. Neste particular acho um notavel defeito, em alguns Poetas, que querem fazer do-Soneto Elegia: e afetando um só conceito final, mostram tanto estudo; que destruem a ideia da-Elegia. Uma paixam nam se-dezafoga, em 14. versos: pede compozisam mais comprida, e livre de afetasoens: acrecentando a-isto, que nem menos o verso os-ajuda. Mas ainda o Lirico, se se-compoem de discursos separados, como sam as Decimas; nam permite liberdade da-expresam, para dezafogar a paixam. Tambem nam aprovo os quartetos Liricos, porque mostram afetasam. Com efeito muitas que eu vi, nestes dois generos, cuido que mais moviam as Damas a rizo, que a compaixam.

A Ode é aquela compozisam, com que se-louvam as asoens dos-Deuzes, ou omens ilustres. Esta explicasam basta para mostrar, que pede um grande ingenho, imaginasam elevada, expresam nobre e correta; e toda a galantaria e vivacidade, que se-acha na arte de persuadir. Quer-se juizo, para tecer uma Ode[Pg 259] com magestade, e sem defeitos. A Antiguidade nos-propoem Oracio, como o melhor exemplo nesta materia: porque soube unir duas coizas bem dificultozas, a elevasam, com a delicadeza e dosura. Para isto na lingua Portugueza parece proprio, o Romance Eroico, a Cansam, Tercetos Eroicos, quero dizer, endecasilabos: mas o Lirico nam creio que posa satisfazer, toda a grandeza do-argumento. Sobre tudo reprovo muito, elogiar as asoens de um omem, em um Soneto: este só pode servir, para uma asám. O verso endecasilabo é sezudo, grave, e parece proprio, para estes argumentos: mas deve a compozisam ter, o comprimento necesario, de outra sorte sofóca-se: motivo porque nunca pude perdoar a Camoens; principalmente fazer compozisoens amatorias, com o titulo de Ode. Estas trez compozisoens, que aqui nomiamos, reduzem-se ao poema Narrativo Epico, de que sam partes, ou dependencias.

A Satira é parte da-Comedia, para a qual se-reduz: contudo muitos que nam fazem Comedias, divertem-se em fazer Satiras. Mas é necesario muita advertencia, nesta materia. A Satira nam deve repreender, senam o que verdadeiramente é viciozo; para instruir os Omens, do-que devem fugir: e para conseguir isto, quer-se muita delicadeza. Quem repreende o Vicio abertamente com invetivas, conclûe pouco: por-este motivo nam agrada Juvenal, que é um declamador. O melhor é, pintar com galantaria, o ridiculo do-Vicio, quazi como quem o-nam-quer mostrar. Este foi o metodo de Oracio; que por-iso agradou muito: mas nam foi ele o inventor; foi o Filozofo Socrates, que tinha uma arte particular, de descobrir as ignorancias dos-Omens, mostrando de o-nam-querer fazer. Os modernos que seguîram este metodo, conseguîram melhor que outros, o seu intento. A istoria de D.Quixote, é neste genero famoza, e galante: gostei muito de a-ler. Polo contrario, os que fazem Satiras oscurisimas, como Persio, e dos-modernos Gracian no-seu Criticon, e Barclai no-seu Euformiam &c. nam se-podem sofrer: e eu creio, que eles mesmos em varias partes, nam intendem o que dizem. Os nosos Italianos tem um gosto particular, para as Satiras; porque em duas palavras dizem muito, e com galantaria; deixando intender mais, doque nam explicam. Tenho visto algumas Latinas belisimas, e bem modernas: como tambem Comedias, no-seu genero famozas.

Isto digo da-Satira em comum: nam aconselho a ninguem, que fasa Satiras a pesoas particulares, aindaque sejam viciozas;[Pg 260] porque é contra a caridade. Em Portugal ainda nam li uma Satira bem feita, ainda das-particulares: as que vi eram afrontas e injurias, nam Satiras. Conclúo dizendo, que o verdadeiro modo, que os omens inteligentes tem achado, para compor estes pequenos poemas; é, despois destas gerais reflexoens, aprezentar-lhe os melhores exemplos na materia: e mostrar-lhe com o dedo, o artificio, e toda a galantaria. Só asim se-observa, que coiza é ingenho, e agudeza; como, e quando se-pode uzar dela.

Finalmente tendo pasado brevemente, polas compozisoens pequenas; direi alguma palavra da-Epopeia, ou poema Epico. Se ouvèse de falar nisto como devo, faria um tratado: e asim nam saindo do-meu estilo, farei somente algumas reflexoens. Este poema, como ja dise a V. P., é a coiza mais dificultoza, da-Poezia: quer tal ingenho, tal erudisam, tal juizo, que quem o-considera bem, nam se-atreve a fazèlo: muito mais se observa os defeitos, em que caîram muitos, dos-que o-tem emprendido. Asima dise a V. P. qual é o artificio deste poema, que compreende em si, todas as especies do-Narrativo: e que por-iso pede, grandisimo fundamento de Retorica, para o-poder tratar bem. Nam é esta a fruta dos-Sonetos, e Decimas, que nacem a cada canto; é coiza mais dificultoza: as regras sam tantas, e tam dificultozas, que sam poucos os que se-atrevam, e rarisimos os que nam pequem, contra algumas. Este é o motivo, porque nam produzirei muitos testemunhos, principalmente sendo o meu argumento, conter-me nos-limites de Portugal. Certamente neste Reino, é rarisimo o poema Epico. O Condestavel de Francisco Rodriguez Lobo, o Macabeo de Miguel da-Silveira, a Ulisea de Gabriel Pereira de Castro, por-confisam dos-mesmos Portuguezes de melhor doutrina, nam merecem este nome: algum outro que posa aver manuscrito, e que agora nam me-ocorre, pertence à mesma clase. Asim parece, que com razam se-dise; que a unica Epopeia que apareceo em Portugal, foi a de Camoens. Mas isto mesmo confirma o que digo, da-dificuldade do-poema Epico.

Se V. P. consulta os seus nacionais, os-achará tam preocupados polo Camoens; que mais facilmente ouvirám dizer mal, da-religiam, doque do-poema Epico de Camoens. Os que deviam fazer a critica do-dito autor, fazem o elogio. Um destes é Manoel de Faria e Sousa, que de comentador, se-converteo em panegirista: e em vez de explicar, o que o Poeta quiz dizer, nos-diz[Pg 261] o que lhe-parece: vendendo-nos as suas imaginasoens, polas ideias do-Poeta: e querendo desculpálo ainda nas coizas, em que é mais condenavel. Com efeito este comentador, mostra intender pouco, a materia que trata: ao mesmo tempo em que diz mal, de todos os melhores Poetas Estrangeiros, que certamente ele nam leo, ou nam chegou a intender; nam obstante que muitos o-louvem, como um oraculo. Inacio Garcez Ferreira, que fez as notas ao Camoens, intendeo melhor a materia. Dos-livros que ele cita, se-conhece logo, que á-de ajuizar melhor; porque se-servio dos-melhores na Poetica, tanto Francezes, como Italianos. Alem diso, escreveo em Italia, onde teve tempo de consultar, os omens mais inteligentes; sobre as dificuldades, que lhe-ocorresem. E com efeito ajuiza melhor: mas nam tam bem, que em algumas partes nam se-ingane: como serîa facil mostrar, se tivese tempo. Contudo este Portuguez sinceramente reconhece, algumas faltas sustanciais no-Camoens. O que basta para me-livrar da-calunia, dos-que me-quizesem condenar, por-meter colherada, nesta materia. Mas como eu intendo bem, a lingua Portugueza; parece-me que nam sou improprio, para julgar.

Avemos de confesar, que Camoens teve muito ingenho, imaginasam fecunda e grande: e que se-tivese estudado ou tratado, com quem ensináse bem, as coizas que devia; poderia dezempenhar o argumento da-Epopeia. Com efeito o que fez de bom, tomou dos-nosos: pois nas suas obras reconheso eu, que intendia o Italiano, e que se-aproveitou bem do-Petrarca, Boccaccio, e outros. Teve finalmente muitas qualidades de Poeta: e para aquele tempo, em que nam avia, os conhecimentos que oje á, é maravilha, que escrevèse tam bem. Mas querèlo comparar com Omero, como fazem muitos: ou querèlo colocar, sobre os das-outras Nasoens todas; com a razam, de que o seu poema o-traduzio um Francez na sua lingua; e o Paggi na nosa Italiana; iso nam deixa de ser temeridade, fundada em uma prova fóra do-cazo. Tambem um curiozo se-divertio, em traduzir o Vieira em Italiano; e contudo ninguem faz cazo de tal tradusam, e autor: e o mesmo sucede ao Camoens; que a maior parte dos-nosos bons Poetas, nam sabem que o-ouve no-mundo. Alem diso, serîa necesario provar primeiro, que estes tradutores eram Poetas, e nam Versejadores: que intendiam bem a materia; e nam se alucináram na tradusam. As versoens Espanholas nem menos[Pg 262] concluem: porque foram feitas, debaixo do-mesmo clima: Os outros Estrangeiros que o-louvam, fundam-se no-que dizem os Espanhoes, ou Portuguezes, como V. P. pode observar: e alguns que chegáram a lelo, nam dizem bem dele.

Na verdade o Camoens, entre muito boas qualidades, tem muitos defeitos, nacidos de dois pontos: o primeiro, falta de erudisam: o segundo, de juizo e dicernimento. Primeiramente, errou o titulo da-obra. Os mestres da-arte tomam o titulo, ou da-pesoa, como Odyssea, Eneide: ou do-lugar da-asám, como Iliade, que é tomado da-Cidade de Ilio primaria da-Troade. O Camoens em vez de tomar o dito titulo, de Vasco da-Gama &c. toma-o de todos os Portuguezes: buscando para isto um termo Latino, que tanto calsa aos Portuguezes navegantes, como aos que ficáram no-Reino: e o pior é, que o-toma no-plural, que nam tem exemplo, na boa Antiguidade. Errou a propozisam do-Poema: pois devendo esta conter, uma só asám principal; ele porem em vez de propor, a navegasam do-Gama, que era a sua asám; propoem todos os varoens illustres, de que se-compoem a inteira istoria de Portugal; com expresa divizam das-coizas da-Europa, Africa, e Azia: e deles expresamente promete a El-Rei D. Sebastiam, cantar as asoens eroicas: o que diz desde a Estancia ou Oitava 12.ᵃ do-primeiro Canto, para diante. Com efeito executa literalmente, o que promete: porque no-principio do-Canto III. descreve a Europa: e desde a Estancia 21. dese Canto, até o fim do-Canto IV. expoem as coizas da-Europa, e Africa até El-Rei D. Manoel. No-fim do-Canto IV. entra com o descobrimento da-India; e continua no-V. até o X. em que fala nos-Governadores da-India: e de-pasagem toca na America. Desorteque este Poeta na propozisam, inclue todas as partes da-fabula do-poema: que é um erro masicho. Isto verá V.P. nas-duas primeiras Estancias.

I.

As armas, e os varoens asinalados,
Que da-Ocidental praia Lusitana;
Por-mares nunca de antes navegados
Pasáram ainda alem da-Taprobana:
Que em perigos e guerras esforsados,
Mais doque pode a natureza umana;
Entre gente remota edificáram
Novo Reino, que tanto sublimáram:

[Pg 263]

II.

E tambem as memorias gloriozas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, e o Imperio: e as terras viciozas
D’Africa, e d’Azia andáram devastando:
E aqueles que por-obras valorozas
Se-vam da-lei da-Morte libertando;
Cantando espalharei, por-toda a parte;
Se a tanto me-ajudar o ingenho, e arte.

Tudo o que se-compreende nestas duas Estancias, é propozisam: e tudo isto ele promete cantar. Mas aindaque na propozisam de um poema se-posam acrecentar, alem da-asám, algumas coizas; estas devem ficar fóra da-fabula, e nam deve o Poeta cantálas; e somente nos-epizodios do-dito poema, é que se-toca alguma delas. v. g. O novo Reino que se-fundou entre gente remota &c. é acrecentamento, que rezulta da-asám; e somente se-canta por-epizodio. O Camoens porem inclue tudo na propozisam, e asim o-executa: desorteque considerando os que inculca, na segunda Estancia; bem se-ve que entram, nam por-acrecentamento, mas direitamente. Contudo os Reis de Portugal, de que trata no-Canto III., e IV., nada tem que fazer, com a principal asám, e entram por-epizodio. Os que por-obras valorozas se-vam da-lei da-morte libertando, que sam todos os outros Portuguezes ilustres, tanto antigos, como modernos; tambem estam fóra da-principal asám, que é a navegasam do-Gama. Com efeito o Camoens lá os-introduz por-epizodio, no-principio do-Canto VIII. mas nam obstante iso, na propozisam do-poema mete-os direitamente, com os outros. Os que foram governar a India, tambem entram por-epizodio, no-principio do-Canto X. mas sem reparar niso, ele os-propoem com os outros, no-5. e 6. verso da-2. Estancia. Asim na primeira Oitava confunde, os que foram com o Gama conquistar a India, com os que ao despois foram governála: e de uns e outros diz, que edificáram novo Reino. Este defeito é de toda a considerasam, nesta materia. Garcez os-reconhece em Camoens: mas querendo desculpar nele, o ter proposto muitos varoens, com o exemplo de Caio Valerio Flaco; é mostrar que ignora, o pouco conceito que os eruditos tem, das-obras de Flaco; nas-quais acham mil defeitos contra a arte; e nenhuma grasa, ou beleza: desorteque os seus erros, nam podem servir de desculpa, aos de Camoens.

[Pg 264]

Errou alem diso o Camoens, em nam sustentar sempre o carater, e grandeza do-seu eroe: que abaixa sensivelmente no-Canto VIII. do-meio para diante. Errou, nas enfadonhas digresoens que introduz, por-toda a parte. Errou, em acabar quazi todos os Cantos, com esclamasoens mui fóra de propozito, e muito contra o estilo da-Epopeia. Tambem errou consideravelmente, introduzindo no-seu poema, as Divindades dos-Etnicos: nam alegorizando a coizas santas, como puerilmente pertende o Faria: nam aos Planetas personalizados, como benignamente interpreta o Garcez; o qual fingio uma nova constelasam para Baco, que nam se-intende o que é: mas em sentido proprio, damesma sorte que faláram os-idolatras Romanos; pois mete Venus, e Baco imprudentemente por-toda a parte. Isto é tam claro no-seu poema, que me-admiro muito, que aja quem o-queira desculpar, nesta materia. Se nam quizer-mos dizer, que se-servio de palavras sem significado; que serîa outro erro.

Mas deixando muitos outros erros, em materia do-Epico, que se-podiam apontar; tem outros nam menos censuraveis, em todo o genero de Poezia. Muitos versos errados, por-exceso de silabas: outros por-falsidade das-rimas, que nam sam consoantes &c. muitas palavras Latinas sem necesidade alguma; vistoque em Portugal á bastantes igualmente boas. Tem alem diso outros defeitos, comuns neste Reino: entre eles a prezunsam, de dizer sempre sentensas: o que nam nega o Garcez, nega porem, que Camoens seja oscuro; e afirma, que os seus versos sam canoros. E eu confeso a V. P. que acho estes dois defeitos expresamente no-Camoens: e que reconheso, que um douto Francez, que o-censura nisto, tem muita razam. Os versos de Camoens sam languidos, e pola maior parte sem grasa. Escreve comumente muitas vogais seguidas: e como os Portuguezes costumam na pronuncia, comer as ditas vogais, umas com outras; é necesario, para nam errar o verso, tomar frequentes respirasoens, e fazer muitas pauzas no-meio do-verso: o que faz perder a armonia. A prova disto é ler o Camoens: pois a cada paso se-incontram os exemplos: que se eu quizese citar, serîa necesario fazer um livro. Mas deixando outros muitos, observe V. P. estes, no-principio do-primeiro Canto.

O quarto, e quinto Afonso, e o terceiro.
Em vós os olhos tem o Mouro frio.
[Pg 265]
Dai-me agora um som alto, e sublimado.
E costumai-vos ja a ser invocado.
Com uma coroa e cetro rutilante.
Guerra Roma tanto se-afamáram.
Onde o dia é comprido, e onde é breve.
Da-antiga tam amada sua Romana.
E outro polas onras que pertende.
Deitando paratraz medonho, e irado.
Estrangeiros na terra, lei, e Nasam.
A Natura sem lei, e sem rasam.

Quem diser que estes versos, e outros que podia apontar, sam armoniozos, e enchem bem a orelha; é necesario que tenha orelhas mui compridas. Sam poucos os versos de Camoens, que nam tenham algum defeito de disonancia. A oscuridade ninguem lha-pode negar, quando queira examinar, as suas compozisoens. Nace em primeiro lugar, de uzar de palavras Latinas aportuguezadas, sem necesidade alguma: e isto nam uma ou outra vez, o que se-podia perdoar, e podia enriquecer a lingua, multiplicando os sinonimos da-mesma palavra: mas frequentisimamente, com afetasam manifesta. Nace em segundo lugar, de introduzir palavras, e frazes, que nada significam; o que é mais frequente na Luziada: porque no-Lirico explica-se naturalmente. v.g. Estas palavras: som sublimado: furia grande, e sonoroza: esperar jugo, e vituperio: tenro gesto: Mouro frio: suprema eternidade: e outras que se-acham na-invocasam que faz, a El-Rei D. Sebastiam; sam palavras que nada significam, e cauzam confuzam em quem le. Nace tambem, de certas aluzoens forsadas, e trazidas de longe, que frequentemente uza. A 6.a e 7.a Estancia, em que comesa o comprimento ao dito Rei, é tam oscura, que nam se-pode intender sem comentario: e o mesmo podia dizer, de quazi toda a invocasam. Isto acha-se frequentemente, em todo o poema: o que unido com a negligencia do-verso, faz, como dise um omem douto, que cada Estancia seja um misterio: o que é um consideravel defeito, em um poema Epico: cuja disam deve ser, aindaque nobre, natural, clara, inteligivel. Onde quando o Garcez quer defender, a clareza de Camoens; mostra que nam está despido, de toda a paixam: e vem a cair no-mesmo defeito, que ele condena no-Faria. Estes defeitos sam mui consideraveis, neste Poeta; e mostram o pouco dicernimento que tinha, das-coizas: e[Pg 266] quem os-nam-distingue, nam intende que-coiza é Poezia. Contudo, tirando estes defeitos, nam deixa de ser um, dos-melhores Poetas Portuguezes.

Quanto ao poema de Filis, e Demofonte, obra do-Chagas, de que asima falei; é ele tal, que eu nam sei como lhe-chame. Pola figura, parece Epopeia: mas examinado dentro, nam é mais que uma istoria de amor, mui afetada. Reconheso, que o autor o-deixou imperfeito: como se-ve do-Canto VIII. que nam tem mais que 5. Estancias; e do-X. que tem 15. mas o corpo da-obra mostra mui bem, o que o Poeta queria. O titulo é este: Filis, ou Poema Tragico de Filis, e Demofonte. e nisto se-descobre, que o Chagas nam sabia, que coiza era poema Epico, nem como dele se-faziam os titulos. A asám do-poema é, a navegasam de Demofonte, que se-retirava do-sitio de Troia: e o Poeta perde logo de vista este ponto, e ocupa o poema com amores. No-primeiro e segundo Canto, em que descreve a guerra de Troia, e o seu naufragio; imita servilmente Virgilio, quazi palavra por-palavra. Somente o-nam-imita, nas comparasoens: pois sam tam frequentes e enfadonhas, as que introduz; que nam se-podem ler sem fastio. O III. Canto é uma disputa escolastica, sobre o amor; com mil conceitos improprios, e de rapaz. No-IV. em uma casada ajusta-se o cazamento: e copeia fielmente Virgilio, na cova onde se-retiráram os amantes &c. O V. Canto consiste na descrisam do-lago Averno, caza de Plutam, e outras arengas mais; em que entra um sacrificio, que nam se-sabe o que quer dizer: e finalmente Demofonte mata Ardenio. As duas descrisoens do-Palacio de Plutam, e da-jornada que este fez; sam as coizas mais ridiculas, que eu ainda vi. O Canto VI. é uma istoria tragica, dos-amores de uma pastora; que nada tem que fazer, com a asám do-poema. Mas a melhor istoria está no-Canto VII. em que o Poeta reprezenta o seu eroe mui descansado, polo espaso de dez mezes; sem que posamos saber, o que fez nese tempo. Despois, quando ele ja nam cuidava mais em Atenas, o-chama seu pai. custa-lhe a persuadir a Filis, que o deixe partir: mas finalmente parte. O VIII. Canto nam diz nada. O IX. é uma embrulhada terrível. Comesa com as saudades de Filis: esta vai consultar a Sibila Delfica, sobre os sucesos de Demofonte. Descreve a Sibila e a sua caza mui mal. Poem na boca da-Sibila um epizodio, da-Geografia de toda a terra; em que mistura umas coizas,[Pg 267] com outras, e comete alguns erros. Mostra-lhe a Sibila o seu Demofonte, adorando a Florisbe. Filis raivoza rompe o espelho magico; e sucede um espalhafato orrendo. Filis fica esa noite no-campo, (nam se-falando mais no-que sucedeo à Delfia) exclamando contra as ingratidoens de Demofonte: e mata-se com a sua propria mam. E aqui descreve puerilmente, os efeitos da-sua morte. No-Canto X. torna Demofonte para Tracia, e sabendo a morte de Filis, que se-convertèra em arvore, quer abrasála: e sucede milagre, que no-mesmo instante produzio a dita, folhas, frutos, e aromas: os ramos tangèram, e balháram as flores.

Esta em duas palavras é a serie, e analize do-poema: na qual verá V. P. que este Poeta nem menos sabia, o que significava poema Epico. Esta sua compozisam, nam tem unidade de asám: porque toda a asám se-acaba em poucos dias, com o cazamento: a viagem ultima, foi um divertimento. Nam tem fabula: porque se-ve claramente, que é uma istoria, sem enredo, nem solusam. A descrisam da-Terra que faz a Delfia, nam tem parentesco algum, com a asám. isto é uma embrulhada, que eu nam vi tal. A transformasam de Filis em arvore, e o milagre das-flores; é outra parvoice, que ali nam tinha lugar. Só faltou ao Poeta dizer, que Demofonte se-enforcára na dita arvore: e acabava a tragedia. Tambem lhe-falta a unidade de tempo &c. Quanto ao modo de dizer; em quazi todas as partes se-serve de palavras, que nada significam: as frazes sam afetadas: os conceitos sam pueris: e quando diz alguma coiza mais estudada, ve-se uma afetasam condenavel em tudo. Ignora totalmente o decoro, e carater dos-sugeitos: o que se-ve, quando introduz no-Canto III. um guerreiro como Demofonte, disputando uma questam amatoria; como faria um academico, a quem encarregasem este asumto: ou tambem quando deixa uma Rainha como Filis, uma noite inteira, no-meio de um bosque medonho, sem companhia; o que mostra, a suma inverosimilidade: alem de muitas coizas, que podia notar. Onde torno a concluir, que de poema Epico, o Chagas nam sabia nada: e que pode V. P. aconselhar ao noso * * * que nam tenha dificuldade, de emprestar o tal poema; porque se o-perder, perde pouco.

Outro Portuguez chamado Francisco Botelho de Morais, e Vasconcelos, publicou dois poemas: um intitulado El Nuevo[Pg 268] Mundo: cujo argumento é, o triumfo de Osiris, na corte de Atlantide: e este nam pude ver. O que porem vi averá anos, foi o outro poema intitulado, El Alfonso: em que com XII. Cantos descreve, a primeira conquista de Portugal, por-Afonso I. Polo que agora me-lembro, cuido que nam se-pode chamar Epopeia: mas uma simplez îstoria da-dita guerra, alterada com algumas fabulas: desorteque nam tem artificio algum, de Epopeia. Este Poeta quiz imitar em tudo, Lucano: e nam o-podendo imitar naquilo, que tem melhor; somente o-imitou, nas enfadonhas digresoens, e exclamasoens, que às vezes introduz: sendo uma destas tam grande, que ocupa um inteiro Canto. Tambem o-quiz imitar na afetasam, de mostrar-se Astronomo, e Fizico: pois nos-ultimos cantos, faz sem necesidade vários discursos escolasticos, nesta materia: a qual, polo que mostra, intendia mui pouco. As fabulas sam afetadas, e com bastantes inverosimilidades: entre estas ponho a da-Deuza que vinha polo ar, acavalo em um grande leam &c. os versos sam duros: e em todo o poema reina, uma oscuridade insofrivel: o que creio provèm tambem, de escrever em Espanhol. Nunca pude intender, por-que razam um Portuguez deixa a sua lingua, para escrever na Espanhola, que pola maior parte nam alcansa bem. Mas esta afetasam é mui vulgar, em muitos destes seus nacionais, que querem parecer eruditos. Isto é o que agora me-ocorre, sobre este Poema: o que digo, porque nam sei se V.P. tem noticia dele, por-ser impreso fóra de Portugal. Dos-outros Poetas nam digo nada: porque sendo uzuais, do-que tenho dito, pode V.P. formar conceito, das-suas obras.

Os Romances, a que os Portuguezes chamam Novelas, sam verdadeiras Epopeias em proza; e devem ser feitos damesma sorte. Contudo acham-se poucos, que meresam este titulo: pois os Portuguezes, e Espanhoes que se-acham, nada mais sam, que istorias de amor mui inverosimeis. O Telemaco de Monsieur de Salignac é uma Epopeia das-mais bem feitas, e escritas, que tem aparecido.

Do-poema Dramatico direi pouca coiza, vistoque os Portuguezes, nam se-aplicam a ele; por-se-persuadirem que o Drama, nam tem tanta grasa em Portuguez, como em Espanhol. Mas este prejuizo comum, nam tem sombra de verosimilidade. Reconheso, que toda a Poezia soa melhor, na lingua Italiana, que[Pg 269] noutra alguma: o que confesam os eruditos das-outras Nasoens, que chegáram a posuir bem, a lingua Italiana: e ainda alguns Francezes doutos: nam obstanteque outros queiram, que a Franceza seja propria, para a Poezia. (no-que, com sua licensa, intendo que dizem muito mal: porque nam á coiza mais insulsa, que o verso duodecasilabo, de que uzam comumente os Francezes, e o modo de rimar deles. no-Lirico, e algumas cantigas, sam mais toleraveis. Mas geralmente falando, a lingua Franceza é pouco propria, para a Poezia: porque nam tem nervo, nem armonia) Mas o certo é que, despois da-Italiana, as duas melhores linguas sam, a Portugueza, e Espanhola. E eu acrecento mais, que a Portugueza parece-me mais propria, para alguns generos de Poezia, doque a Espanhola: porque é sezuda e grave, e nam tem aquele falso brilhante, que muitos loucamente admiram, na Espanhola. Se tiramos as terminasoens em , ou am; e aons, e oens &c. nam sei que melhoria tenha a Espanhola, sobre a Portugueza; para dizerem, que aquela é propria para o Drama, e esta nam. Muito mais grave que a Espanhola, é a Latina; e contudo ninguem lhe-nega, o poder servir no-Drama. Onde, os que por-este principio deixam de compor Dramas, em Portuguez; vivem mui preocupados, e nunca consideráram bem a materia. Mas a razam ultima é, porque a estes modernos nam agrada, o modo de compor, a Comedia antiga: e só se deleitam, com esta moderna: (de que parece ter sido inventor, Lope de Vega) e como esta é composta de mil sutilezas, e coizas semelhantes; por-iso gostam das-Espanholas, que abundam disto. Mas como este estilo é muito mao, e se-deve praticar outra coiza diferente; daqui vem, que devem reconhecer, que a lingua Portugueza é tam capaz para o Drama, como a Espanhola.

O Drama, ou seja Tragedia, ou Comedia, nam é mais que uma instrusam, que se-dá ao Povo, em alguma materia. A Tragedia trata, de algum cazo extraordinario, sucedido a pesoa grande. Com isto se-modéra, a grande ambisam dos-Omens, ensinando-lhe a conhecer, que as condisoens desta vida estam sugeitas, a todas as infelicidades. Alguns defeitos se-tem introduzido, na-Tragedia moderna: pois devendo ela conter somente, coizas eroicas; introduzîram muitos, imitando aos Espanhoes, eroes amantes. E ainda os nosos Italianos, para agradarem ao Povo, que tem secreta inclinasam, para ouvir estes enredos amantes; o-praticam:[Pg 270] aindaque os omens inteligentes desprezem este estilo, que só é proprio da-Comedia. Nam é crivel, que arte particular se-requer na Tragedia, para ser boa. Nela se-á-de ver, um enredo bem ideiado: um argumento digno e nobre: uma elevasam de pensamentos grande: uma particular arte de excitar as paixoens, com pinturas exatas, e discursos proprios das-pesoas que falam: finalmente tudo á-de ser animado, grande, singular, sem ser afetado: O que na verdade é mui dificultozo: e ainda muitos omens grandes, em algumas destas qualidades; nam conseguîram, unilas todas.

A Comedia é uma pintura, do-que sucede na vida civil e domestica. Ela ensina mil coizas aos ouvintes, mostrando de nam-querer ensinar, mas somente divertir: porem nese mesmo divertimento, está o ensino: porque ela pinta desorte, os defeitos dos-Omens; que quem os-ve, ou ouve, nam pode menos, que envergonhar-se deles, e condenálos. Este é o segredo da-Comedia, saber imitar bem a natureza; porem em modo que o-vejamos, sem advertir-mos o artificio. Convem pois com a Tragedia, em tudo: só diversifica no-argumento. E asimcomo na Tragedia nam basta, enredar bem um suceso; mas é necesario observar, a verosimilidade; desfazer naturalmente, o nó do-argumento, observando escrupulozamente, os carateres das-pesoas; asim tambem a Comedia: na qual deve reinar em tudo a naturalidade, mas judiciozamente disposta: porque daqui rezulta, aquela particular galantaria e sal, que os omens de juizo acham, nas boas Comedias. quando entra nelas afetasam, acabou-se a grasa.

Por-este principio digo a V. P. que nunca achei Comedia Espanhola, que se-pudese sofrer. Raras vezes o Espanhol imita a natureza: reina a afetasam, e as sutilezas em tudo. O mesmo bobo, que deveria reprezentar, a figura de um louco; fala com tanta descrisam, como o omem mais eloquente, e judiciozo: as molheres todas sam doutoras: todos dizem grasas, e agudezas: e asim nam se-observa, a verosimilidade dos-carateres. Querendo afetar tanta grasa, sam os omens mais insulsos, que ainda vi. Porque a grasa deixa de o-ser, todas as vezes que aparece o artificio, e nam nace das-entranhas da-materia. A nosa Comedia Italiana é mais natural: e aindaque alguns tenham introduzido, outro estilo florido, os omens mais doutos o-tem desprezado. A nosa lingua é propria para galantaria, e dosura da-Comedia. O ingenho[Pg 271] do-Poeta prepára a materia, para fazer rir: e a galantaria da-expresam, ajuda esa mesma materia, para agradar mais: o que se-acha frequentemente, na nosa lingua. Na verdade é dom da-natureza, saber inventar materias agradaveis, e expolas em modo que agradem: mas alem deste ingenho requer-se juizo, para saber distribuir as galantarias, onde devem intrar. Parece facil, o argumento da-Comedia: contudo é dificultoza a execusam: e sendo tantos os que compoem, sam poucos os que o-fazem com felicidade. A maior parte daquelas Comedias, que em Cidades inteiras tem tido, grandes aplauzos; examinadas de perto, merecem compaixam. Os Poetas ajuntáram muitas ideias ridiculas, com que pudesem divertir os ignorantes, e adular as suas inclinasoens: e como estes sam os mais, daqui nace, que se-dam aplauzos a coizas, que os-nam-merecem. O omem de juizo vai à Comedia, com outros olhos, que nam o ignorante, e rude. Este pára na superficie do-que ouve: aquele penetra com a considerasam, a intensam do-Poeta: e quando nam acha o que deve, em vez de rir, vem-lhe vontade de chorar.

Alem do-que asima disemos, acha-se outro defeito, no-material das-obras de teatro, quero dizer, na sua reprezentasam: vem aser, quererem unir em tudo a reprezentasam, com o original. Alguns, para inspirarem orror, reprezentam nas Tragedias, a morte de um omem, e outras coizas improprias. Era melhor, que o-matasem detraz dos-bastidores, para poupar esta descortezia aos ouvintes: bastando que expuzesem, o corpo morto. Vi algumas vezes nas Comedias, intrar omens acavalo em verdadeiros cavalos: vi carros triunfais tirados por-quatro cavalos brancos; com perigo de darem quatro coices, e deitarem abaixo os bastidores; ou fazerem alguma porcaria no-teatro: vi arrebentarem bombas, e foguetes: vi dar fogo a uma Cidade, e uma Armada: e muitas coizas semelhantes. Mas isto é uma impropriedade, indigna de omens prudentes. A Comedia é imitasam do-natural, e todos sabem isto: e asim nam se-devem introduzir coizas, que desmintam o que é Comedia. Muitas vezes ve-se voar um omem, na Comedia: outras vezes um diabrete vivo dece do-teto, prezo por-uma corda: parecem-me os bonifrates do-Prezepio, que tem um arame na cabesa. Tambem aquilo de introduzir um Rei, e Rainha em uma camera, rodiados de soldados armados; ou aquilo de dar uma batalha sobre o teatro, nada tem de verosimel:[Pg 272] Porque nem o Rei, quando está falando com a Rainha, tem as guardas de corpus na mesma sala: nem uma batalha se-pode dar, em quatro palmos de terra. Um bom Poeta dará melhor ideia de uma Armada, ou batalha, com uma famoza descrisam; e poderá com ela inspirar, sentimentos mais grandes, e nobres; doque com aqueles acidentes exteriores, e improprios daquele lugar. Mas o Povo vai à Comedia, para a-ver, e nam para ouvir: e só fica satisfeito, com estas coizas. Nam asim os omens que podem julgar, do-merecimento das-obras: estes nam podem deixar, de condenar isto; e sugerir ao Poeta, que disponha melhor as suas figuras. Isto é o que agora me-ocorre. Acrecento somente, que as Comedias de Camoens nam me-agradam; aindaque uma delas parece mais sofrivel. Outras que vi modernas em Portuguez, tinham mais artificio: e na verdade eram menos más.

Tendo pois apontado a V. P. os defeitos mais comuns dos-seus Poetas; segue-se examinar, se estas reflexoens podem ser utis, e como o-podem ser aos rapazes. E quanto à utilidade, é sem duvida, que a noticia das-regras é necesaria, para intender os autores: e a dos-versos, para intender a diferente armonia das-suas obras: especialmente na lingua Latina, porque a beleza dos-versos consiste, na sua cadencia. Alem diso, a leitura dos-bons Poetas, eleva o intendimento para perceber, e ajuizar nobremente; e ajuda muito a Eloquencia: e como nam se-posam intender os Poetas, sem saber as regras; é necesario ter, alguma noticia delas.

Quanto ao modo, ja dise em outra carta a V. P. que é loucura obrigar os rapazes, a fazerem versos: e misturar os versos, com as outras compozisoens; como se fose coiza necesaria, para intender o Latim: os que fazem isto, nam intendem a materia: parece-me que o modo mais natural é este. A Poezia deve-se ensinar, em uma escola separada, em que nam se-trate outra coiza. Examinando primeiro o rapaz, se tinha ou nam genio para a Poezia; lhe-proguntaria expresamente, se a-queria seguir: e quando ele me-disèse, que sim; e eu com a experiencia vise, que tinha propensam para iso; lhe-daria uma arte Poetica Portugueza, feita por-este modo. Na primeira parte devem-se conter, as regras gerais da-Poezia, e a diversa noticia de poemas: vistoque as regras sam as mesmas, em todas as linguas: e isto istoricamente,[Pg 273] porem ornado com algum exemplo. Na segunda parte, deve-se primeiro tratar, das-diferentes compozisoens Portuguezas, e algumas particulares do-Reino: e aqui explicar, como se-fórma a Decima, Soneto &c. apontando um exemplo, em cada coiza: notando especialmente, a cadencia dos-versos, e estilo da-fraze poetica. Isto nam parece coiza de momento, aos que nam sam da-profisam: mas é de infinito preso, aos que entram em semelhante estudo, e o-profundam. Acham-se mil Poetas, que tem veia; mas porque lhe-falta a doutrina, pecam contra as leis da-arte, e nam brilham.

Neste tempo deve-se propor-lhe uma Decima, ou Soneto escrito &c. que ele nunca vise; e obrigálo a que em escrito, fasa a analize da-dita obra, se é boa, ou má; que defeitos, ou belezas encerra. Este estilo de mandar pór a lisam por-escrito, serve infinitamente, para a inteligencia das-coizas que estudam; e para a memoria: e repetido varias vezes, quando ja tem noticia das-regras, poupa infinitas explicasoens, e faz-se com toda a felicidade: e tem o rapaz tempo de considerar, e emendar.

Desta primeira parte, deve pasar à segunda, tambem em Portuguez; em que se-trate, das-particulares compozisoens Latinas, e sua versificasam. Aqui deve-se repetir o mesmo, que disemos da-lingua Portugueza. Notará especialmente, as diferentes fórmas de versos, de que se-formam as diferentes compozisoens Latinas, como a Elegia, Epigrama, Ode, Idilio &c. Despois a cadencia do-verso, tanto a simplez, que é comua a todo o poema, como as particulares: as suspensoens, elizoens &c. e as que sam proprias, de varias paixoens do-animo. Despois o estilo e fraze poetica; que é aquele particular idiotismo, de que se-servem os Poetas: que se-compoem de expresoens elevadas, com que se-vareia muito o discurso; expondo as coizas grandes, com muita nobreza; e as pequenas, com muita galantaria. Finalmente aqueles epitetos proprios, tam belos no-verso, como afetados na proza: e mil outras coizas, que sam particulares do-estilo poetico, e que constituem a sua beleza. Estas coizas a um rapaz, que lè um poema, somente para intender a Latinidade; nam sam necesarias: mas a um que quer compor, sam sumamente importantes: e sem elas fará versos, mas nam-será Poeta.

A Compozisam serîa a ultima coiza, que eu mandáse fazer aos rapazes: porque pede uma memoria, cheia de muitas especies:[Pg 274] o que nam pode ter um rapaz. Deve-se comesar, polas compozisoens Portuguezas: dando asumtos facis, e nam mandando compor, senam obras breves; para terem ocaziam, de as-emendar. E nesta ocaziam pode o mestre explicar-lhe melhor, quais sam as expresoens proprias, para expremir o que quer: e dar-lhe por-este meio, uma boa noticia da-sua lingua. Com o tempo, e observando a capacidade do-estudante, pode ir aumentando, o numero das-compozisoens: sendo sempre melhor, mandar compor uma obra boa, a um certo asumto, doque muitas más, a diferentes. Feito isto, nam é crivel, quanto se-facilita a compozisam no-Latim. Será pois esta a ultima parte da-compozisam: tendo a mesma advertencia, de comesar por-Disticos, Epigramas &c. asumtos brevisimos: pois nam enfastiam os rapazes; antes com eles se-dezembarasam muito, para as outras obras. E aqui, quando o mestre lhe-ensina, a compozisam Latina; lhe-deve ensinar tambem, o modo de pronunciar o Latim. Certo é, que a Lingua Latina, despois da-Grega, excedeo muito as modernas todas, na armonia das-suas expresoens: a qual coiza como nós nam sabemos, por-iso nam achamos nela a beleza, que achavam os Antigos. Contudo devemos procurar de imitar, a boa pronuncia: o que principalmente é necesario, no-verso. Quanto aos exemplos, devem eles ser poucos, e bons: e deve o mestre fugir de Regia Parnasi, e outros livros destes, que estragam o bom gosto da-Eloquencia, e Poezia: porque na leitura dos-melhores autores, aprende-se melhor. Asimque, nam achando isto feito, pode o mestre nos-mesmos autores mostrar os lugares, que sam necesarios: e encomendar muito aos rapazes, que os-leiam, e decorem: pois só asim se-faz algum progreso, na Poezia. Desta sorte pode ser, que ouvesem mais Poetas bons, doque nam á; entre tantos mil versejadores, que V.P. está ouvindo todos os dias.

A Poezia nam é coiza necesaria, na Republica: é faculdade arbitraria, e de divertimento. E asim nam avendo necesidade de fazer versos, ou fazèlos bem, ou nam fazèlos: por-nam se-expor às rizadas, dos-inteligentes. Se eu vise que o estudante, nam tinha inclinasam à compozisam, explicaria brevemente, as leis poeticas; que é uma erudisam separada da-compozisam, e que todos podem aprender; ao menos para intenderem as obras: e o-deixaria empregar, no-que lhe-parecèse. Desta sorte, livres os estudantes daquele cativeiro, podiam empregar-se em coizas utis, e[Pg 275] dar outro lustre à Republica. Sei, que nem todos os mestres sam capazes, de escreverem semelhante arte: mas se alguem a-fizese, e se-imprimise; podia ajudar muito a todos. Certo amigo meu, omem mui douto, me-dise um dia destes, que um seu conhecido, avia pouco tempo tinha acabado um manuscrito, polo estilo que dizemos. Eu ainda o-nam-vi: mas formo tal conceito de quem mo-dise, que julgo nam será mao: se o-puder conseguir, nam deixarei de avizar a V. P.

Finalmente com isto acabo esta carta, que ja me-parece longa: aindaque se olho para o que devia dizer, é curta. Tenho dito nela a V.P. o que me-ocorreo sobre uma materia, que averá bastantes anos que deixei: e conseguentemente nam sei se terei satisfeito, a sua expetasam, sobre a Poezia Portugueza: da-qual, como ja protestei, tenho pouca noticia. Mas V.P. que me-obriga a falar, em todas as materias; deve estar preparado, para ouvir coizas boas, mediocres, e algumas mal ditas. E asim agradesa-me somente a boa vontade, e promtidam com que obedeso, ao que me-manda. Deus Guarde &c.


[Pg 276]

CARTA OITAVA.
SUMARIO.

Trata-se da-Filozofia. Mao metodo com que se-ensina, em Portugal. Advertencia das-outras Nasoens, em procurar a Ciencia. Necesidade da-istoria Filozofica, para se-livrar de prejuizos. Ideia da-serie Filozofica. Danos, e impropriedades da-Logica vulgar. Da-se uma ideia, da-boa Logica.

Meu amigo e senhor, Dirá V. P. que eu sou mui preguisozo em responder, e conservar a conrespondencia, com os amigos: mas se-soubèse como eu tenho estado, reconheceria, que nam falto, senam com justificada cauza. Eu sou filho da-obediencia; e esta me-ocupou bastantes dias: a isto se-seguio, a minha costumada indispozisam da-cabesa, que me-impedio ler coiza alguma. Tambem me-lembrou, que tinha remetido a V. P. um proporcionado livro, com o titulo de carta; e que nam lhe-faltava que ler. Agora livre de algum modo, de um e outro impedimento; pego na pena para continuar, o noso comercio literario.

Nas duas ultimas me-pede V. P. com instancia, que me-dilate bem sobre a Logica, e que nam me-poupe, a nenhuma outra parte da-Filozofia. Eu nam sei, se poderei dignamente satisfazer, a curiozidade que V. P. mostra, nestas materias: porque finalmente á muito que dizer nelas; e muitas coizas, que nam am-de agradar: mas finalmente direi. Lembro-me, que na nosa ultima conversasam me-dise V. P. que as escolas de Filozofia deste Reino, necesitavam ainda maior reforma, que as outras: porque o mao metodo das-escolas baixas, alguma coiza se-pode emendar com o tempo: porem uma vez que o estudante comesou a provar, o ergo, e atqui, e a brincar com eles, e excogitar sofismas, e metafizicas oscuras; de tal sorte se-ocupa, com aquele negocio, que nam é posivel por-lhe remedio: de que nace, a confuzam na Medicina,[Pg 277] Teologia, e mais Ciencias. Como V.P. reconhece de antemam esta verdade, me-animo a dizer-lhe sinceramente, o meu parecer.

Eu verdadeiramente nam sei, se as escolas de Filozofia deste Reino, tem pior metodo, que as escolas baixas: sobre iso avia muito que dizer: o que sei porem é, que nestes paîzes nam se-sabe, de que cor seja isto, a que chamam boa Filozofia. Este vocabulo, ou por-ele intendamos ciencia, ou com rigor gramatico, amor da-ciencia; é vocabulo bem Grego nestes paizes. Verá V. P. que se-dá este nome, a coizas bem galantes: Universais, Sinais, Proemiais, e outras coizas destas. Os pobres rapazes pasam os seus trez e quatro anos, lendo arengas mui compridas: e saiem dali, sem saberem o que lèram, nem o com que se divertîram. Falo do-estilo das-Universidades: porque o das-outras escolas é o mesmo, quanto à materia; e ainda pouco diferente, quanto à dispozisam.

No-primeiro ano se-pasa com dois tratados, a que chamam Universiais, e Sinais; cadaum dos-quais terá quando pouco, os seus 20. cadernos, de duas folhas: e ja vi mestre, que ditou 40. cadernos, somente de Universais. No-segundo ano acabam-se os Sinais: e parte do-ano fala-se muito, em Materia Primeira, e Cauzas; ao que chamam Fizica. No-terceiro ano estudam-se Intelesoens, Noticias, Topicos, e algumas questoens de Metafizica, digo do-Ente em comum: e com estas quatro, e as duas do-primeiro ano, se-faz o Bacharel. No-quarto explica-se um tratado, a que chamam Gerasam e Corrusam: e avendo tempo, outro a que chamam de Anima in communi. Despois fazem concluzoens, nas ditas materias, ou semelhantes: que é um ato em que muitas vezes sucede, que o defendente nam tem, argumento algum. Segue-se o Licenciado, que é um exame sobre as 6. materias do-Bacharel, com mais outras que apontamos: e temos o omem graduado, Filozofo.

Se isto pode ser bom metodo; se tais materias podem formar, um bom Filozofo; eu o-deixo considerar, aos pios leitores. Progunte-lhe V. P. aqueles Universais, e Sinais, de que coiza servem, quando se acaba a Filozofia. Diga-lhe que lhe-apontem, em que parte da-Teologia sam necesarios: que dogma se-explica com tal doutrina: fasa-lhe outras proguntas destas, e verá que limpamente lhe-confesam, que tudo aquilo morre com[Pg 278] a escola. Se repetir a progunta em outras materias, concluirá o mesmo. E eisaqui tem V.P. o que significa Filozofia, nestes paîzes.

Mas isto serîa nada: o melhor da-festa está, na satisfasam com que ficam, de terem estudado tudo aquilo. Se alguem lhe-contradiz um ponto; se alguem quer tomar o trabalho de lhe-mostrar, que nada daquilo vale um figo; ou que Aristoteles nam falou naquele sentido; ou que a Filozofia se-deve tratar de outra maneira; e que asim a-tratam naqueles paîzes, que dam leis ao mundo, em materia de erudisam; e ainda em Roma, nas barbas do-Papa &c. acabou-se tudo, e vem o mundo abaixo com gritarias. A tal propozisam é uma erezia, contraria diametralmente à Escritura, e às definisoens dos-Concilios, e Padres; e ao costume da-Igreja Catolica; que canonizou as obras de Aristoteles, e tambem a doutrina dos-Arabes. Galilei, Descartes, Gazendo, Newton, e outros destes que a-nam-seguîram, cheiram a Ateistas; ou polo menos estam um palmo distantes, do-erro. Estas Filozofias só reinam, em paîzes de Erejes. Os estrangeiros que defendem isto, sam quatro bebados, que impugnam o que nam intendem, e nam intendem o que proferem. Isto, e outras coizas semelhantes, tenho eu ouvido algumas vezes.

Proguntava eu em certa ocaziam a um mestre, que me-parecia bom omem; e cujo defeito cuido que era, nam malicia, mas ignorancia: Tem V.P. lido nos-originais, a doutrina de Descartes, Galilei, Gazendo, Newton tem examinado fundamentalmente, os que explicáram melhor, a doutrina do-primeiro; como o P. Malebranche, o Baile, o Regis, o Le Grand: ou os que expuzeram a de Gazendo, como o Saguens, Maignan &c.? diz, Nam senhor. Observou, continuei, polo menos as objesoens, que o P. Genari Dominicano propoz ao Saguens, e Monsieur Arnaldo ao P. de Malebranche em outro sentido; com as respostas destes ultimos? diz, Nem menos. Muito bem: pois diga-me, intende V.P. na sua conciencia, que pode ser juiz nesta materia, sem ter examinado, as razoens de ambas as partes: e muito mais formar uma censura tam rigoroza, como é condenar a religiam, dos-que seguem esta Filozofia? Respondeo o omem: Na verdade eu nam sou informado, da-materia: mas tenho ouvido dizer muito mal dela, a outros mestres, de quem eu formo conceito. Maravilhozamente: mas diga-me, continuava eu, tem V.P. certeza, que eses[Pg 279] tais examinasem o que digo; ou, aindaque o-examinasem, que julgasem sem paixam, e fosem capazes de decidir o ponto: porque sem isto deve-me conceder, que nada provam? Diz, Eles alegavam certas palavras, de que eu inferi, que os-tinham visto. Mas, proseguia o dialogo, poderá V. P. mostrar-me, que dogma se-destrue, com esta nova doutrina? Os acidentes Eucaristicos, e todo o sistema da-Grasa. Muito bem: vistoiso temos, que as fórmas acidentais no-sentido de Aristoteles, sam de fè? diz, sem duvida. Vistoiso, ou na Escritura, ou por-tradisam nam interrompida, digo, polo consenso de todos os Padres, definisoens de Concilios, ou Igreja Romana, estará determinado isto: porque eu nam reconheso outros principios, para fundar propozisam de fé. Mas atreverseá V. P. a mostrar-me, esa declarasam? Declaro, que eu tambem sou catolico Romano, e creio que na Eucaristia está Cristo, debaixo dos-acidentes de pam, e vinho: o que digo é, que os tais acidentes nam sam fórmas, no-sentido peripatetico: e disto é que peso, esa declarasam de fé. Concluio ele dizendo: Iso nam poso eu fazer, porque nam tenho visto a materia. Bem, respondi eu, pois pesa V. P. a um dos-seus amigos, que lhe-descubra esta revelasam, ou decreto; e entam falaremos sobre o particular: porque agora tem pozitivo impedimento.

Este dialogo podia-se repetir, com mais alguns acrecimos; e executar-se com algumas pesoas, que ouso falar nestas materias, com tanta satisfasam; como se soubesem o que dizem, e intendesem a materia, de que falam. Eu tive alguns ratos de divertimento, conversando com alguns destes mestres. Eles confundem, todos os autores modernos; e sem mais exame os-acuzam, dos-mesmos erros: e com estranha dialetica os-condenam, de ignorancia. Como se um omem doutisimo, nam pudese uma vez, dizer um despropozito! Os que tem erudisam exquizita, sabem que no-mundo ouve um Descartes: e algum deles, mais raro que mosca branca, leo alguma coiza, dos-Principios, ou Meditasoens Metafizicas. E aqui é ela: sobe à cadeira, e vomita mais decizoens, contra o pobre Descartes; doque ele nam dise palavras: E sem examinar, se ele é seguido em tudo, intende que tudo o que Descartes dise, foi, e é recebido, com a mesma venerasam; e sam todos obrigados, a seguilo. Em certa jornada que eu fiz, incontrei em uma estalagem um Religiozo * * que tivera a felicidade, de ler Descartes: o qual, conhecendo que eu era Estrangeiro,[Pg 280] introu logo na materia: e todo o tempo que durou á ceia, empregou ele em provar, que, segundo os principios do-tal Filozofo, a Eucaristia estava somente, nos nosos olhos. Veja V. P. como este intendia bem, a doutrina dos-Cartezianos! Mas eu que vinha cansado do-caminho, e com fome; para abreviar a disputa concedi tudo, e meti-me na cama. Nam acho melhor modo de responder, a esta sorte de gente.

Eu certamente nam sou Carteziano, porque me-persuado, que o tal sistema em muitas coizas, é mais ingenhozo, que verdadeiro: mas confeso a V. P. que nam poso falar no-tal Filozofo, sem grandisima venerasam. Este grande omem, na Matematica foi insigne, e inventou algumas coizas, até ali ignoradas; e promoveo outras com felicidade. Em materia de Filozofia, acho que foi inventor, de um sistema novo. Isto nam parece nada, aos ignorantes: mas aos omens que intendem, qual é a dificuldade de inventar, e inventar com tanta propriedade; que ainda despois de descubertas as machinas, grande parte das-experiencias esteja da-sua parte; é sinal de um ingenho elevadisimo, e de grande criterio. Alem diso ele foi o primeiro, que abrio a porta, à reforma dos-estudos: pois aindaque Bacon de Verulamio, e Galileo Galilei, tivesem indicado o metodo, de fazer progresos na Fizica; e alguns outros os-fosem imitando; é certo porem, que Descartes foi o primeiro, que fez um sistema, ou inventou ipoteze; para explicar todos os fenomenos naturais: e por-este principio, abrio a porta aos outros, para a reforma das-Ciencias. E aindaque em tudo nam acertáse; é tambem certo, que se ele nam fose o primeiro, os outros nam teriam cuidado, de emendar os seus erros, e de adiantar os estudos, como estam oje.

Onde com todos estes principios, nam poso sofrer, que omens totalmente ignorantes da-materia; e que nam sabem de Descartes mais, que o nome; e aindaque o-leiam, nam tem olhos para o-intender: ainda asim tam indignamente o-tratem; e injuriem um omem, de quem eles nam seriam capazes, de serem amanuenses. Se estes censores tivesem lido, a istoria das-Ciencias, e do-restablecimento delas, desde o Concilio de Trento a esta parte; formariam diverso conceito destas coizas: e nam vomitariam tantos improperios, contra os modernos Filozofos: como eu vejo todos os dias, em varios autores, que podendo mostrar,[Pg 281] o seu merecimento; o-perdem todo, quando entram a falar nestas materias, com tanta seguransa, como os que as-tem bem estudado. Dizem mil falsidades, que nunca sucedèram: fingem definisoens, que nunca se-sonháram: confundem a doutrina revelada, com as opinioens da-Escola: e querem que os SS. PP. aprovasem profeticamente, a Escolastica; que se-inventou alguns seculos, despois d’eles mortos. Esta é a celebre cantilena destes mestres, principalmente deste Reino: A qual provèm, da-grande ignorancia em que se-vive, da-Istoria antiga, e moderna, e dos-estilos dos-outros paîzes: do-pouco conhecimento que tem, de livros: e finalmente de quererem ser mestres, em uma materia, em que ainda nam foram dicipulos.

Sei, que a maior parte dos-Omens, vive mui satisfeita, dos-estilos, e singularidades do-seu paîz: mas nam sei, se á quem requinte este prejuizo com tanto exceso, como os Espanhoes, e Portuguezes. Observo, que os Francezes, Inglezes, Olandezes, que nam sam dos-que tem pior opiniam, e com razam, de si; aproveitam-se com todo o cuidado, dos-excesos que lhe-levam, as outras Nasoens. Os Francezes, mandam muita gente a Roma, para se-aperfeisoarem na Architetura, Escultura, Pintura; e em tudo o que pertence, às antiguidades Romanas. Sabem que estas artes, se-conserváram sempre em Roma, com distinsam: reconhecem, que os Romanos posuem o melhor, que neste genero nos-deixou a Antiguidade; e pode fugir à barbaridade, dos-incendios de Roma: e asim mandam lá os omens mosos e inteligentes, para beberem o bom gosto, da-Antiguidade. Muitos Senhores Inglezes, Olandezes, Francezes, Alemaens, que correm o mundo, para formarem os costumes; demoram-se tempo bastante em Roma, e nas principais Cidades de Italia; para observarem escrupulozamente, todas as antiguidades Romanas: e verem com os seus olhos aquilo, de que estam cheios os livros. Eu acompanhei alguns deles, que faziam estas observasoens; e os-achei sumamente instruidos, nas antiguidades Gregas, e Romanas: e com dezejo exorbitante, de verem com os seus olhos, e aprenderem o que nam sabiam: e faziam gloria de estudar, o que ignoravam. Polo contrario vejo, que os nosos Italianos se-aproveitam bem, das-belas edisoens de livros, e outra erudisam exquizita, que se-acha nos-livros, destas nasoens Ultramontanas: e que ainda em materias de Ciencias, se-regûlam polo metodo, das-Universidades[Pg 282] de Sorbona &c. das-Academias Regias de Londres, Pariz, S. Pietroburgo, &c. por-conhecerem, que ali se-exercitam melhor; e dali saiem as melhores obras.

Isto é verdadeiramente conhecer, o merecimento de cada coiza. Mas observo tambem, que este metodo é ignorado nas Espanhas, e mui principalmente em Portugal: onde vejo desprezar, todos os estudos Estrangeiros, e com tal empenho; como se fosem maos costumes, ou coizas muito nocivas. Lembro-me a este intento, da-istoria do-Espanhol de Amsterdam. Nela viviam em uma estalagem, um Espanhol, e um Cavalheiro Florentino. Retirando-se este um dia a caza, proguntou ao Espanhol, que lhe-parecia Amsterdam: a belisima dispozisam da-Cidade no-material, e formal: a liberdade do-trato, contida dentro dos-limites do-justo: emfim ia-lhe repetindo uma por-uma, todas as singularidades de Amsterdam; e sobre cada uma lhe-proguntava, o que lhe-parecia. Mas o Espanhol, abanando a cabesa, nam respondia palavra. Até que o Florentino enfadado lhe-dise: Valha-me Deus, só vosé a-de ser singular neste mundo, nos-seus gostos; e só a um Espanhol nam á-de agradar, uma Cidade como Amsterdam, em que todos tem tanto que admirar? A isto respondeo o Espanhol mui laconico: Vaya, para pintada. Esta mesma resposta, com pouca diferensa, me-tem dado alguns, em outras materias. Quando se-vem obrigados com exemplos a reconhecer, que os Estrangeiros lhe-levam, consideravel exceso; respondem rindo, que asim é: mas que somente é, em coizas inutilisimas.

Isto suposto acho, que o melhor modo de dezinganar esta gente, e mostrar-lhe os seus prejuizos; é, por-lhe diante dos-olhos, uma breve istoria, da-materia que tratam: e persuado-me, que este é o mais necesario prolegomeno, em todas as Ciencias. Creia V. P. que com esta noticia, poupa-se muito trabalho, e muito estudo: adianta-se um omem muito, na inteligencia da-materia: e só asim fica capaz, de ouvir o que deve, e dezinganar-se por-simesmo. Asimque intendo, que por-esta istoria se-deve comesar. Nam digo, que o estudante deva saber, as opinioens de todas as setas de Filozofia; mas ao menos quando comesáram: quais foram as mais famozas: em que coiza comumente se-distinguiam: e como se-continuáram.

A Filozofia é o conhecimento das-coizas, que á neste mundo;[Pg 283] e das-nosas mesmas asoens, e modo de as-regular, para conseguir o seu fim. Em todos os Povos do-mundo, e em todos os tempos achamos omens, que mais ou menos se-aplicáram, a estas coizas. Mas o noso estudante nam é necesario, que suba tam alto: basta que conhesa, os Filozofos da-Grecia. Toda a Filozofia Grega se-dividio ao principio, em duas setas; de que nacéram. todas as outras: estas duas sam a Jonica, e Italica. A Jonica fundou Thales Milesio, um dos-sete Sabios da-Grecia; o qual, como diz Diogenes Laercio, naceo 640. anos antes de Cristo. Foi grande Astronomo, Geometra, Filozofo, e escreveo muito de Fizica. Teve varios dicipulos, que se-ensináram sucesivamente: Anaximandro, Anaximenes, Anaxagoras, Archelao, e Socrates. Este Socrates foi aquele grande omem, que encheo de admirasam a Antiguidade: e alguns dos-nosos SS. PP. se-empregáram, na sua defeza. Socrates teve muitos dicipulos, que fundáram escolas separadas. Aristipo fundou a escola Cirenaica, Phedo a Eliaca, Euclides a Megarica, Antistenes a Cinica: da-qual naceo a Estoica, que foi famoza: porque Menedemo ultimo profesor da-Cinica, foi mestre de Zenam, que fundou a Estoica. Damesma escola de Socrates tendo saido Platam, fundou a Academica. Cadauma destas escolas se-diversificava nas opinioens: o que é necesario, que o estudante advirta.

Platam foi o mais insigne discipulo, de Socrates: naceo 428. anos antes de Cristo: e foi o primeiro que compreendeo, as trez partes da-Filozofia. Na Fizica seguia os sentimentos, de Eraclito, que se-reputava o melhor Fizico: na Metafizica seguia em tudo, a Pitagoras: e no-Moral, e Politico seguia a doutrina, de Socrates; poisque somente ao Moral, este se-aplicára. A escola de Platam se-dividio em duas, Academica, e Peripatetica. A primeira continuou os dogmas de Platam: donde vem, que Platonicos, e Academicos significam a mesma coiza. Nela sucedeo a Platam, seu sobrinho Speusippo; a este Xenocrates, Polemon, Crantor, e Crates. A Crates sucedeo Archesilao dicipulo de Crantor, e tambem de outro Filozofo chamado Pyrrho: do-qual Pyrrho aprendeo, um novo metodo de filozofar; com o qual fundou a Academia Media, que durou até Carneades. Este ultimo, fazendo nela alguma reforma, instituio a Academia Nova; que durou até Antioco: que foi o ultimo dos-Academicos, e foi mestre de Marco Tullio Cicero. A Peripatetica fundou Aristoteles, dicipulo de[Pg 284] Platam. Diz Cicero, que somente se-diversificava da-Platonica, nas vozes; mas nam nos-sentimentos e opinioens. Dava Aristoteles as suas lisoens, no-Liceo: e continuou a escola nos-seus sucesores, até Diodoro; que se-conta por-ultimo Peripatetico: desorteque ja nos tempos de Cicero, esta escola se-achava mui descaida.

A outra seta de Filozofia, a que chamam Italica, foi fundada por-Pitagoras, naquela parte de Italia, a que chamáram Magna Grecia. Este Pitagoras florecia 564. anos antes de Cristo: e despois de longuisimas perigrinasoens, para aprender; se-estableceo em Crotona Cidade de-Calabria: e ensinou com grande aplauzo, a Filozofia. Esta seta foi famozisima, pola frequencia dos-ouvintes, e pola sua durasam. Dela nacèram varias: a Eleatica, que uns atribuem a Xenocrates, outros a Democrito. Anaxarcho ultimo dos-Filozofos Eleaticos, foi mestre de Pyrrho, que fundou a seta Pyrrhonica, ou Sceptica. Tambem da-Eleatica saio a Epicureia, uma das-mais celebres setas da-Antiguidade; e talvez a que durou mais: pois no-segundo seculo da-Igreja, ainda estava em flor. Estes sam os diversos ramos, da-seta Italica. Tambem um seculo despois de Cristo comesou outra, a que chamáram Ecletica, a qual teve bastantes dicipulos. O seu principal instituto era, nam jurar nos-dogmas de nenhuma seta: mas tirar de todas, o que parecia melhor. De alguns destes ainda temos as obras: o ultimo foi Damascio. Esta seta agradou muito aos Padres, dos-primeiros seculos da-Igreja; porque parecia a mais racionavel.

Estas sam as diferentes setas, da-antiga Filozofia. Destas a Academica, Estoica, Pyrrhonica, Epicureia, e Peripatetica, duráram na Grecia com pouca diferensa, até o tempo de Augusto, quero dizer, até Cristo. Nos-ultimos dois seculos da-Republica Romana achamos, que os Romanos comesáram a estudar, a Filozofia. Nam que eles fundasem setas, como os Gregos; mas iam estudar à Grecia: ou serviam-se em Roma dos-Gregos, que vinham à Italia: e seguiam quem uma, quem outra seta de Filozofia Grega. Pola maior parte eram Academicos, e Estoicos: alguns foram Epicureos: rarisimo Peripatetico. Os livros de Aristoteles, que ele deixára a Theophrasto seu discipulo, este os-deixou a Neleo: os erdeiros do-qual, para os-roubar à curiozidade d’El-Rei de Pergamo, de quem eram suditos; o qual procurava livros,[Pg 285] para a sua Biblioteca; os-enterráram: d’onde foram cazualmente tirados, polos seus decendentes; que os-vendèram a Apellico Ateniez, quazi todos comidos da-umidade. Onde, para se-copiarem, foi necesario encher, todos os vazios da-corrusam: com o que sensivelmente se-alteráram, as opinioens. Despois da-morte de Apellico, Silla Ditador Romano os-transportou de Atenas, para Roma; e se-entregáram a Tirañio, para os-emendar, e dispor em melhor ordem. E tendo-se feito muitas copias, sem as conferir com os originais; foi pior o suceso em Roma, que nam tinha sido em Atenas. Comesou entam a ser conhecido melhor, este Filozofo: e os Romanos comesáram a fazer uzo, principalmente das-suas doutrinas politicas. Entre os Filozofos Romanos singularizou-se Cicero; ouveram tambem alguns outros, de que ainda temos as obras. Até que finalmente, com a ruina do-Imperio no-Ocidente, se-arruinou tambem, a noticia das-Ciencias.

Nos-principios do-VIII. seculo de Cristo, os Principes Arabes dicipulos de Mahomet, os quais uzurpáram grande parte da-Africa, Azia, Grecia, Espanha, e Sizilia; nas invazoens que fizeram, nas Cidades da-Grecia, entre os roubos com que se-recolhèram, foram alguns dos-livros dos-seus autores. E agradando-se destes estudos, fizeram em modo, que Almanon Califfo ou Imperador Saraceno, no-ano 820. mandou pedir ao Imperador de Constantinopoli, aonde as Ciencias ainda se-conservavam; os melhores livros Gregos; os quais se-mandáram traduzir em Arabio. Nam sendo o genio dos-Arabes inclinado a Poetas, Istoricos, e Oradores; somente se-aplicáram aos Filozofos, e Matematicos: e entre eles escolhèram trez, que foram, Aristoteles, Ipocrates, e Galeno. Aplicáram-se a estas Ciencias; e principalmente à Chimica, Magia, Geometria, Algebra, e Fizica. Fundáram Universidades em Tuniz, Tripoli, Fez, Marrocos, e algumas partes da-Espanha: d’onde saîram alguns omens insignes, para aquele tempo: Entre os quais se-singularizou Averroes; o qual na Universidade de Cordova, fez o seu grande comento, sobre Aristoteles, no-meio do-seculo duodecimo.

Neste meio tempo a fama de Aristoteles, que estava tam bem establecida, entre os Arabes; comesou a divulgar-se, entre os Cristaons. A comunicasam que os Napolitanos tinham, com os Sizilianos, lhe-deu noticia dos-estudos, establecidos entre os Arabes da-Sizilia. Tambem a vizinhansa da-Fransa com a Espanha, abrio[Pg 286] a comunicasam aos estudos: e se-cre, que por-este meio pasáram a Fransa, os livros de Aristoteles; e intráram na Universidade de Pariz. Ja lá sabiam, que avia Dialetica, e a-estudavam: mas da-Fizica Aristotelica, nada sabiam. Finalmente ou para poderem disputar com os Judeos, e Maometanos, como fundadamente suspeita Monsieur de Fleury; ou por-outra razam que nam se-sabe; os Teologos recebèram benignamente Aristoteles, e pouco a pouco o-introduzîram, na Teologia. Os primeiros foram introduzindo as Dialeticas, como Abellardo, Roberto Pullo, Pedro Poitiers, e alguns outros no-duodecimo seculo. Daqui pasáram a introduzir, as doutrinas Fizicas: o que sucedeo, no-seculo decimoterceiro. Os primeiros foram Alberto Magno, Alexandre de Ales: despois Tomaz de Aquino, e alguns mais. Despois de S. Tomaz veio Escoto, que fundou escola separada: e despois deste, seu dicipulo Okam tambem Franciscano, fundador da-seta dos-Nominais. Demodoque despois do-seculo XIV. a Filozofia se-dividia em trez setas, Tomistas, Escotistas, e Okamistas: as quais com alguns mudansas duráram, atè o Concilio de Trento, celebrado no-meio do-seculo XVI.

Nam falo no-metodo de Raimundo Lullo de Maiorca, porque pola sua oscuridade, nam teve sequazes: excetuando alguns Maiorquinos, mais loucos que ele. No-ano 1565. Bernardo Telesio de Cosenza em Italia, publicou a sua Filozofia, que teve alguns sequazes. Pouco despois Jordano Bruno Dominicano, publicou muitos livros, em que, entre algumas coizas boas, dise muita estravagancia; sobre o Universo infinito, e diversos mundos. Despois deste, Tomaz Campanela, tambem Dominicano Calabrez, publicou algumas obras de Filozofia, quazi segundo os principios do-Telesio.

Neste mesmo seculo XVI. do-meio para diante, quero dizer, polos tempos do-Concilio de Trento, comesou a establecer-se o sistema Fizico-celeste, de Nicolao Copernico: que resucitando a opiniam de Filolao, e Eraclides Pontico, sobre o movimento da-terra arredor do-Sol; teve muitos sequazes, que asentáram, ser um sistema preferivel aos outros. No-fim do-seculo XVI. saio à luz o sistema de Tico Brahe, que tambem teve sequazes. Mas ninguem mais deo tanta luz à Fizica, quanta Francisco Bacon de Verulamio Chanceler mór de Inglaterra: o qual no-fim do-mesmo seculo, e principio do-seguinte, apontou o verdadeiro metodo[Pg 287] de adiantar a Fizica, em belisimas obras que a este intento nos-deixou; principalmente de Augmentis Scientiarum, e de Novo Organo. Eu considero as especulasoens deste grande omem, como a mais famoza epoca, da-verdadeira Filozofia: porque observo de entam para diante, uma total mudansa, e adiantamento sempre para o melhor. morreo polos anos 1636. de anos 66.

No-mesmo tempo de Bacon, no fim do-XVI. e principios do-XVII. floreceo o insigne Galileo Galilei Florentino; que seguindo os ditames de Bacon, uzou da-Matematica, para explicar a Fizica: e aumentou sensivelmente a Mecanica: a qual desde Archimedes até o seu tempo, quazi nada se-tinha adiantado. Ele descobrio muitas leis, do-movimento dos-corpos, tanto solidos, como fluidos; e tambem da-Gravidade, e da-Luz, e do-Som &c. desorteque pode-se dizer, que ele foi o que comesou a servir-se, da-boa Fizica. morreo em 1642. de anos 78. Comesado o seculo XVII. florecèram Descartes, e Gazendo: que dando um paso mais adiante, descobriram mais terra, e comesáram a abrir os olhos ao mundo. Ja se-sabe as disputas, que os Peripateticos tiveram, com estes novos Filozofos; e as injurias, que contra eles vomitáram. Desde o fim do-Concilio de Trento, em que os melhores Teologos tinham aberto os olhos, sobre a Teologia; e comesado a intender, que nam se-devia misturar com ela, a Peripatetica; tinha esta descaido muito: mas nam tanto, que muitos Regulares nam intendesem, que devia ser a mimoza entre as mais. De que nacia, que com todo o empenho a-defendiam: porque, a falar verdade, nam intendiam mais, nem tinham outras noticias. Mas despois que se-viram atacados, por-estes modernos Filozofos; os quais nos-principios deste seculo conspiráram todos, para abrir os olhos, ao mundo Literario; nam querendo os velhos, perder as suas conquistas, fizeram um espalhafato orrendo: e o menos que diseram foi, que se-tinha levantado uma nova perseguisam, na Igreja Catolica; com a publicasam destas Filozofias. Mas como isto eram balas de lan, e palavras sem fundamento, nem verosimilidade; nam faziam brecha. Polo contrario os Modernos despediam, constantes experiencias, que eram balas eficazes. Em modo tal que a dita Filozofia foi-se continuando, e com forsa: e só os Regulares, e nem todos, seguiam a Peripatetica.

A introdusam das-Academias Experimentais, deu novo esforso, a esta Filozofia. Despois da-morte de Cartezio no-ano 1640., e[Pg 288] a de Gazendo no-de 1655.; tinham comesado as ditas Filozofias, a aquistar credito: mas ainda com algum medo; pois nam tinham toda a necesaria protesám, que tiveram pouco despois. Nam foi senam despois que se-abrio, a Academia de Londres no-ano 1662. ou 63. e a de Pariz no-1666., que as Ciencias naturais se-continuáram, com empenho: asistindo-lhe os Reis, com o dinheiro e protesám. Dilatou-se aindamais este costume, porque o Imperador Leopoldo no-ano 1670. movido do-bom suceso das-duas Academias; fundou tambem, ou, melhor direi, protegeo uma Academia ja comesada, com o nome de Academia dos-Curiozos da-Natureza. El-Rei de Prusia em 1700. fundou tambem a sua Academia experimental. Os nosos Italianos fizeram o mesmo. O Conde de Marsilli em 1712. instituio uma em Bolonha, que tambem é famoza: em Padua e outras partes abrîram-se outras. Em 1725. a Imperatriz Catarina abrio em S.Petroburgo em Moscovia, outra famoza: deixando por-agora outras muitas, que se-abriram em diferentes partes da-Europa.

Esta dilatasam de estudos naturais chamou a si, todos os melhores Filozofos, principalmente os Seculares. Tambem alguns Regulares, nos-fins do-pasado seculo, comesáram a deixar, as sutilezas de Aristoteles. Porem neste XVIII. seculo infinitos se-tem declarado, contra o antigo estilo; e ensinam publicamente, a Filozofia moderna. Em Italia, e ainda em Roma, por-toda a Fransa, Alemanha &c. se-tem divulgado este metodo: e os mesmos Regulares, que ao principio o-tinham proibido, nam tem oje dificuldade alguma, em defendèlo. Verdade é, que algumas Religioens anda o-nam-aprováram: mas tambem é certo, que muitos leitores delas sam declaradamente, Filozofos modernos. Os doutisimos Dominicanos, e Jezuitas, que pareciam os mais empenhados, polo antigo metodo; comesáram a admetir, a nova Filozofia: nam só em Fransa, mas ainda em Italia. E eu sei de certo, que em algumas partes de Italia os Jezuitas, vendo que nas suas escolas e colegios, faltavam consideravelmente os estudantes, que concorriam a outros estudos publicos; se-vîram obrigados, a reformar o antigo metodo, e introduzir os estudos novos. Tam persuadidos estam todos oje, que o antigo metodo nam serve, para coiza alguma.

Esta, em poucas palavras, é a serie da-Filozofia: na qual se-compreende mui bem, com quam pouca razam estes mestres de[Pg 289] Portugal, condenem uma coiza; que está tam bem introduzida: e nam entre Erejes, como eles dizem, mas entre Catolicos mui pios, e doutos. E tambem se-conhece, com quam pouca razam queiram persuadir-nos, que os SS. PP. aprováram, a doutrina de Aristoteles: pois nam sendo ela, ou polo menos esta que pasa, com o nome de Aristoteles; conhecida antes do-seculo XIII. é bem claro, que os PP. nam podiam aprovar uma coiza, que nam conheciam, nem intendiam, que naceria no-mundo. Seguro a V. P. que se estes mestres, que oje exaltam tanto Aristoteles, conhecesem os PP. nam polo sobrescrito, mas por-dentro; e tivesem bem examinado as suas obras; ficariam envergonhados, da-sua grande ignorancia, e talvez temeridade: pois veriam nos-escritos dos-Padres, que nada mais encomendam, que deitar fóra das-escolas Aristoteles: evitar todos os sofismas da-Dialetica: e propor as suas razoens, com a maior clareza posivel. Aprovavam na verdade, a boa Dialetica; mas despida totalmente de arengas. E nesta paz se-continuou, até o undecimo seculo: no qual, como asima digo, introduzîram nas escolas, estas embrulhadas. Desorteque a examinar bem o negocio, Aristoteles é mui moderno, nas escolas Catolicas: e ainda nesas nam durou, senam até o Concilio de Trento: pois de entam para cá pouco a pouco se-abrîram os olhos ao mundo: e oje todos os-tem mui bem abertos.

Intendido isto muito bem, com o que se-poupam mil respostas, e embarasos a cada momento; deve o estudante pasar, para a Filozofia. Mas é necesario, que primeiro intenda, que coiza ela é; para nam se-embrulhar, com as costumadas confuzoens da-Escola. Eu suponho que a Filozofia é, Conhecer as coisas polas suas cauzas: ou conhecer, a verdadeira cauza das-coizas. Esta definisam recebem os mesmos Peripateticos, aindaque eles a-explicam, com palavras mais oscuras: mas chamem-lhe como quizerem, vem a significar o mesmo. v. g. Saber qual é a verdadeira cauza, que faz subir a agua na siringa, é Filozofia: conhecer a verdadeira cauza, porque a polvora aceza em uma mina, despedasa um grande penhasco, é Filozofia: outras coizas a esta semelhantes, em que pode intrar, a verdadeira noticia das-cauzas das-coizas, sam Filozofia.

Mas como no-conhecer as cauzas das-coizas, principalmente naturais, pode aver ingano; e muitas vezes nos-inganemos, tomando uma coiza por-outra: alem diso como nos-mesmos discursos, com que nos-querem persuadir alguma coiza, suceda frequentemente[Pg 290] ingano, cuberto com aparencia de verosimilidade; ao que chamam Sofisma, ou Paralogismo: daqui vem, que cuidáram os omens, em fugir estes inganos, e descobrir o vicio do-discurso, paraque nam caisemos nele. Isto primeiro comesou, sem arte alguma: mas cazualmente um omem descobrio um erro, outro descobrio outro, e asim os mais. Alguns dos-quais, fazendo uma colesam destas observasoens, fizeram tratados, em que se-pudese aprender, o modo de nam se-inganar. A isto chamáram Logica ou Dialectica: que é muito mais antiga que Aristoteles: mas ele foi o que a-compilou com melhor metodo, a respeito do-seu tempo: aindaque muito imperfeita, se olhamos para o noso. Quem fose o autor desta colesam, notará o estudante, quando ler a istoria da-Filozofia. Os Antigos dizem, que foi Zenam Eleates, que a-ensinou a Socrates: este a Platam: do-qual a recebeo Aristoteles. Mas esta Logica Socratica, era por-outro estilo, e convencia com proguntas. Platam era um pouco mais dogmatico. Comumente se-cre, que Speusippo, e Aristoteles, ambos dicipulos de Platam, guiados polos discursos dele, fizesem no-mesmo tempo, e cada um parasi, esta nova colesam, e acrecentasem muita coiza sua: os Estoicos com o tempo, acrecentáram muitas mais. Seja como for, o cazo é, que os Antigos reconhecèram, que para conhecer, e discorrer sem ingano, sobre as cauzas de todas as-coizas; é necesario observar algumas regras, a que quizeram chamar, Logica. Desorteque esta chamada Logica, nenhuma outra coiza é mais, que um metodo e regra, que nos-ensina a julgar bem, e discorrer acertadamente. Asimque establecido este importante ponto, fica claro, que se-deve abrasar aquela Logica, que conduz a este fim: e fugir qualquer outra, que nos-desvia dele.

Tendo percebido este ponto, nam pode aver duvida, sobre o cazo que devemos fazer, desta chamada Logica dos-Escolasticos: basta examinar, se o que se-ensina com este nome, é util, ou prejudicial, para julgar, e discorrer bem. Porque se achamos, que nam conduz; saie por-legitima consequencia, que se-deve deixar, e estudar outra coiza mais util. Ora eu creio, que sem grande trabalho se-conhece, que esta Logica vulgar, nam dá nenhuma utilidade, antes cauza suma confuzam. Os Proemiais sam a coiza mais inutil do-mundo. Com a simplez explicasam, do-que é Logica; sabe um estudante quanto basta, para intrar nela, e ser um grande Logico: toda a outra noticia util se-pode aprender,[Pg 291] em uma advertencia, a que chamam notando. Que a Logica tenha por-objeto, os atos do-intendimento, ou as coizas, ou os modos de saber; nada serve para discorrer bem: o que importa é, ter boas regras, e sabèlas uzar bem.

Aqueles Universais, e Sinais sam coizas indignas de se-lerem: o menos que neles acho, é a inutilidade: o pior é o metodo: parecem a mesma confuzam: e de talsorte embrulham a mente, de um pobre principiante, que nam é facil ao despois, intender bem coiza alguma. Em lugar de facilitarem a um rapaz, a inteligencia das-coizas; o-confundem com uma quantidade de sofismas, e sutilezas, tam fóra de propozito; que eu nam sei, como os mestres nam fazem escrupulo, de perderem tam inutilmente o tempo. Acrecento a isto, a inutilidade: pois para nenhuma parte das-Ciencias serve aquilo. O mais que se-tira dos-Sinais é saber, que as vozes servem, para declarar as ideias da-mente, e os afetos da-alma: e que mediante as vozes comunicamos aos outros, o que intendemos, e queremos. Que as vozes nam excitam nos-que ouvem, as ideias de quem as-profere, por-virtude alguma natural, que tenham para iso: mas porque asim o-determináram, os omens de uma Nasam. Sendo certo que as vozes, que em Portugal significam uma coiza, em outro Reino significam coiza diferente, ou nada significam. Esta é toda a noticia util, que se-tira dos-Sinais: e isto é coiza que se-aprende, em um quarto de ora: tudo o mais que dizem dos-Sinais, sam arengas ridiculas, que espremidas na mam, nam deitam uma gota de doutrina. V.P. que perdeo bastante tempo, com estas arengas; fasa-me a merce de me-mostrar, alguma questam util, entre tantas que no-tal tratado se-incluem: estou certo que, uzando da-sua costumada ingenuidade, me-dirá, que nam acha alguma. De que fica bem claro, que o tal tratado, é somente divertimento de omens ociozos. Nem me-faz forsa que o P. * * * me-disèse um dia, que os Sinais eram o Apex Philosophiæ: e o seu P. Colegial * * * me-disèse mui sezudamente, que os Sinais tinham seu uzo na Teologia: poisque na Trindade se-falava, em priori signo &c. nem um, nem outro sabia o que dizia, como as suas respostas mostram: e, aindaque fosem leitores de Filozofia, tinham necesidade, de a-estudar outra vez.

Quanto aos Universais da-Escola, comque se-gasta tanto tempo, nam sam melhores que os Sinais: todos sam talhados, pola[Pg 292] mesma medida. Pase V.P. ligeiramente com os olhos, por-aqueles tratados; e me-dirá, o que acha em tantos cadernos. Ali disputa-se mui largamente, se se-dá Universal a parte rei, como eles lhe-chamam: se a Unidade de precizam, e Aptidam sejam da-esencia do-Universal: e outras coizas destas, que quando eu as-considero, fico persuadido; que os que falam nisto, nam intendem iso mesmo que proferem. Que bulha nam se-faz, sobre a divizam em cinco especies! que arengas, sobre cada especie em particular! que confuzoens, sobre as precizoens! Ora eu tomára que me-disesem, o que se-tira de todo aquele negocio; e que noticia util para discorrer se-colhe, de todas aquelas confuzoens? Achei muitos, que, despois de alguns anos de Filozofia, e despois de terem defendido concluzoens publicas, e com grande aceitasam; nam sabiam, por-qual razam se-introduzîram os Universais, na Logica. O que digo dos-Universais, deve-se aplicar aos Predicamentos; que uns introduzem na Logica, outros na Metafizica: e sobre os quais se-disputa, com igual fervor.

Os omens mais advertidos entre os Peripateticos, reconhecem a verdade do-que digo, e sinceramente confesam, que se-deviam cortar, estas longuisimas disputas, que para nada servem. Peripatetico, e bem Peripatetico, era o Suares Granatense, o Barreto Portuguez &c. contudo sam do-meu parecer: e o tal Barreto acrecenta[82], que o aumento que se-deo aos Sinais, é vicio dos-Portuguezes. Mas tornando aos Universais, de que falavamos, a unica razam que eles alegam, para introduzirem esta longa arenga de Universais, e Predicamentos; é, porque as propozisoens de que se-fazem os silogismos, constam de predicados universais. Digo pois, se aquilo nam tem mais serventia, que mostrar, que um nome pode ser universal, ou particular &c. de que serve aquela arenga sempiterna, que nam conduz para iso? Certamente que, seguindo os seus mesmos principios, tudo aquilo se podia reduzir, a meia folha de papel.

Nem cuide V. P. que eu reprovo, toda a sorte de exame, das-propozisoens universais, e particulares: conheso, que iso pode ter seu uzo, e tem utilidade: mas tambem conheso, que se-deve tratar de outra maneira, como em seu lugar direi. Somente condeno muito, o que dizem os Peripateticos; porque nem[Pg 293] serve para o intento, que eles propoem; nem para outro algum: confunde as especies, e intendimento dos-rapazes: e é o mesmo a que nos chamamos, perder tempo sem interese algum, e sem saber por-qual razam. Mas prosigamos o curso, da-Logica Peripatetica.

Aos Predicamentos, e Sinais, segue-se o enfadonho tratado de Enunciatione, ou Propozisam. Aqui fazem eles infinitas disputas, tam fóra de propozito; que eu fico pasmado. Confundem a propozisam vocal com a mental, ou ato do-intendimento: ora disputam de uma, ora de outra: desorteque nam se-pode saber, o que eles querem explicar. Sendo aquele um tratado, que se-deve explicar mui claramente, para intender os seguintes; eles o-fazem com tal negligencia, e confuzam, como quem nam cuidáse neste fim. O melhor que eu acho é, que em vez de proporem as coizas, em que todos convem; disputam tudo o que propoem: e a cada propozisam acrecentam, uma longa cadeia de argumentos; e às vezes tam embrulhados, que um omem adiantado teria trabalho, em lhe-responder. E como á-de o principiante, formar conceito das-coizas, e executar os ditames que le; se ele nada acha, em que todos convenham: mas em cada propozisam acha, quem o-contradiga? Isto è o mesmo, que se um carpinteiro tomáse um aprendiz, e em lugar de lhe-ensinar, como se-á-de servir dos-instrumentos; fizese longuisimos discursos, sobre a diversidade de instrumentos de Carpinteiro: contando-lhe miudamente, que a alguns nam agradam, aqueles instrumentos: que outros escrevem, que se-deviam fabricar de outra maneira: e todo o tempo pasáse com isto.

Este é o grande defeito que eu acho, nestas Logicas: nam buscarem aquelas coizas, em que todos convem, para as-explicar aos estudantes. nam acharem um metodo de ensinar Logica, comesando por-documentos claros, que todos intendam: fugindo todo o genero de disputas, que nam servem para principiantes. Pois este devia ser, todo o seu cuidado: e quem nam pratica este metodo, nam quer ensinar Logica. Isto conhecerá V. P. melhor, olhando para as longas disputas, que eles aqui introduzem, sobre os atos verdadeiros e falsos. Nam é crivel, a confuzam com que aquilo se-trata. nam é menos admiravel, a quantidade de coizas falsas, que ali se-supoem, como se fosem demonstrasoens matematicas. Disputa-se com fervor, se o mesmo ato do-intendimento,[Pg 294] posa pasar de verdadeiro, para falso: e outras coizas destas. Isto supoem manifestamente, que o dito ato dura algum tempo, na alma; porque se nam duráse, a questam serîa de nada. Mas isto que eles supoem, é manifestamente falso. Basta olhar, para as muitas distrasoens involuntarias, que um omem tem; para conhecer, que a nosa alma está em continuo movimento de conhecimentos: e que devemos dizer, que ela nam pára em algum juizo, ou ato. Ainda quando nos-parece, que sempre cuidamos na mesma coiza, creio eu que nam perziste, o mesmo ato: mas que a alma muitas, e muitas vezes considera, a mesma coiza: que é o mesmo que dizer, com atos diferentes. A razam disto nam me-parece oscura: pois vejo a violencia, que é necesario fazer ao intendimento, para o-fixar no-mesmo objeto: pois um minuto que nos-descuidamos, ja estamos em outro objeto. E ainda quando nos-parece, que consideramos um só, v. g. um painel; é certo que fazemos muitos atos: pois nam vemos só um ponto, mas diferentes pontos, e partes do-mesmo todo: o que se-faz, com diversos atos. Nam é crivel, com quanta velocidade a alma conhece, e pasa de um objeto para outro. Fazemos todos os instantes mil asoens, que nam advertimos: e contudo é certo, que a alma as-conhece todas: mas falas com tal velocidade, que parece as-nam-conhece. Deste genero é o continuo movimento de pestanas, que nós fazemos; e a alma, por-obediencia da-qual se-faz, o-conhece: e contudo nenhum de nós adverte tal coiza. O que mostra bem, quam veloz é a nosa alma, em pasar de um conhecimento para outro. E sendo isto tam claro, os-Peripateticos, sem fazerem cazo disto, introduzem as suas longas disertasoens, fundadas sobre um suposto falso. Demos-lhe, que seja materia duvidoza; sempre é coiza ridicula, propor como coiza certa um fundamento, que tem tantas aparencias de falsidade: e ocupar o tempo com isto, devendo ensinar outras coizas.

Mas, para abreviar este exame, pase V. P. comigo, ao tratado de Priori resolutione. Na primeira parte se-disputa eternamente, sobre os termos, e diversos modos, com que significam as coizas. Isto explicado bem com clareza, e brevidade, podia servir ao estudante de alguma coiza: mas iso é o que eles nam fazem: e todo o tempo pasam em disputar, se o verbo Est pode ser termo; e outras galantarias destas. O que dizem das-Propozisoens,[Pg 295] da-sua Conversam, das-Modais, é tam embrulhado, e tam inutil; que nam sei, que pior coiza se-posa dizer. Seguro a V. P. que ja achei Peripateticos, que ingenuamente me-confesáram, que a maior parte daquelas coizas eram inutis.

Mas sem grande trabalho, cuido que mostrarei a V. P. que tudo aquilo, que nestas escolas se-disputa, se-deve totalmente pór de parte. apontarei uma unica razam, que compreende o Priori, e Posteriori, da-Logica vulgar. Examine V. P. com toda a atensam, quanto se-disputa naquelas duas partes da-Logica, e fasa-me a merce de notar mui distintamente, algumas coizas. 1.a Se o que ali se-disputa, é materia inteligivel. Cuido, que a resposta será clara, se olhar-mos para o que sucede nos-estudantes: pois é certo, que despois de muitas, e muitas explicasoens, comumente nam intendem, o que ali se-diz. Apelo, para o que cadaum experimenta em si, e para o que os mestres experimentam, nos-dicipulos. Sei polo contrario, que os meninos intendem muito bem as coizas, se lhas-explicam bem: e sabem dar razam do-seu dito. v.g. se diserem a um rapaz: Aquele ramo que ves naquela porta, é sinal que ali se-vende vinho: porque em todas as partes em que se-vende vinho, se-costuma pòr aquele sinal; porque asim determináram, os nosos antigos: estou certo, que á-de intender facilmente, o que lhe-dizem. Ora fale-lhe V. P. por-estas palavras: Aquele ramo é sinal ex instituto do-vinho: que se-constitue na razam de sinal, por-um respeito de dependencia do-ato da-vontade, que o-deputou para significar vinho: polo que se-distingue do-sinal natural, que se-constitue, por-um respeito de independencia: Despois de toda esta arenga filozofia, o tal rapaz intenderá muito menos, o que lhe-dizem, doque se lhe-falasem em Caldeo. De que vem, que ainda as coizas que se-deviam dizer, se-dizem de um modo tal, que nam se-intendem. Isto é quanto ao modo de se-explicar: pasemos à materia.

A 2.a coiza que V. P. deve notar é, a serventia que tem aquelas regras, para discorrer sem ingano, em toda a materia. Traga V. P. à memoria, tudo o que tem estudado de Priori, e Posteriori, e tenha o sofrimento de considerar; se lhe-servem, ou nam, para intender, e discorrer bem em qualquer materia: ou para provar alguma coiza, que lhe-seja necesaria; nam só nos-atos publicos quando argumenta, ou defende; mas ainda no-seu bofete, quando compoem em alguma materia: ou ainda no-discurso[Pg 296] familiar. Tenho tantas provas, da-sua candura de animo, que nam tenho receio que diga, ter experimentado utilidade. Mas eu nam quero por-agora, um juiz tam alumiado como V.P. contento-me que me-respondam os mesmos, que perdem os anos com estas arengas. Eu os-faso juizes nesta disputa: e lhe-deixo considerar, se, quando eles provam o que lhe-negam, ou discorrem familiarmente; o-fazem porque se-lembram das-regras; ou se o-fazem, porque asim se-costuma discorrer no-mundo: e a lisam que tem tido, lhe-suministra os argumentos e meios termos: e a natural penetrasam que cadaum tem, lhe-mostra, com a maior promtidam, a conexam das-partes? O que eu poso dizer neste particular é, que muitos Escolasticos, como ja apontei, me-diseram, que era inutil toda aquela machina de regras: e li alguns, damesma opiniam. O P. Arriaga no-prologo da-sua Filozofia diz claramente, que nam ditou muitas questoens da-fórma Silogistica, porque lhe-parecèram escuzadas: e que avendo vinte anos que era mestre; nunca vîra, que pesoa alguma se-servise da-ponte dos-Asnos, para argumentar, ou responder. E quanto a esta parte da-Ponte dos-asnos, achará V. P. muitos, que dizem ser inutil.

Mas eu paso adiante com o discurso, e creio, que nem menos me-mostrarám omem, que se-sirva das-Figuras, ou de alguma das-outras regras; quando quer provar alguma coiza seria. Conheso, que os que argumentam nesta materia, para mostrarem que a-tem estudado; ou os que nam querem argumentar com razoens, mas com palavrinhas, àmaneira dos-sofistas; poderám fazer algum uzo delas: o que digo é, que quando um omem quer provar, o que lhe-negam, nunca se-serve, de tais arengas. Se ele tem ingenho, e doutrina, mais de presa se-lhe-oferece o meio termo, e modo de o-dizer; doque a regra, que o-ensina. Se nam tem ingenho, estou certo que nem regras, nem figuras, nem modos, nem coiza alguma lhe-ocorrerá; com que posa discorrer fundadamente. Nunca me-sucedeo que, discorrendo comigo, me-viese à imaginasam, servir-me do-silogismo. nunca vi tratar negocio algum grave, com o meio da-Dialetica: ainda sendo as partes, pesoas de toda a penetrasam; e tendo perdido muito tempo, com a Dialetica. Isto da-Logica é o mesmo, que a Retorica: os ignorantes das-regras, se tem ingenho e alguma lisam, oram e provam melhor o que dizem, doque os Logicos[Pg 297] e Oradores da-Escola. O omem ignorante das-regras, nam perde tempo com palavrinhas, mas vai direito à razam, e busca aquelas que conduzem, ao seu intento. Ora é sem duvida, que as razoens, e nam as palavras, sam as que persuadem, e provam o que se-quer. Poderám as palavras, e modo com que se-diz, dar mais luz às razoens: mas palavras sem razoens nada provam. E esta é a razam, porque os Logicos finos discorrem pior, que os que nam sam Logicos. E esta mesma razam me-dá fundamento para dizer, que é melhor que nam se-fale, em tais regras.

Acho ainda outra razam, e cuido ser mais forte, para nam seguir este metodo do-silogismo; vem aser, que o silogismo nam serve em modo algum, de ajudar a razam, para que aumente os seus conhecimentos, e neles discorra bem. Quando se-á-de persuadir, e discorrer bem, o primeiro e principal ponto está, em descobrir as provas: o segundo, em dispolas com tal ordem, que se-conhesa clara e facilmente, a conexam e forsa delas: o terceiro, em conhecer claramente, a conexam de cada parte da-dedusam: o quarto, em tirar uma boa concluzam do-todo. Estes diferentes graos se-conhecem muito bem, em qualquer demonstrasam matematica. Uma coiza é, perceber a conexam de cada parte, ao mesmo tempo que um mestre vai explicando a demonstrasam: outra coiza diferente, conhecer a dependencia, que a concluzam tem, de todas as partes da-demonstrasam: terceira coiza muito diferente, conhecer por-simesmo clara e distintamente, uma demonstrasam: e finalmente uma quarta coiza, totalmente diferente das-trez, ter achado as provas, de que se-compoem a demonstrasam. O que suposto, o silogismo nam faz mais, que mostrar a conexam das-partes, sem ensinar a buscar as provas: onde fica claro, que nam é de grande socorro à razam. Muito mais, porque a alma pode conhecer, e conhece, muito mais facilmente por-simesmo, a conexam das-partes; doque por-nenhum silogismo. Quantos omens nam vemos todos os dias, que intendem mui bem, toda a forsa de uma razam; a falacia, e eficacia de um discurso comprido; e discorrem mui acertadamente; sem terem ouvido falar em silogismos? E nam digo somente, entre os omens de boa educasam; mas quem quizer considerar, a maior parte da Africa, e America; achará omens que discorrem tam sutilmente, como os nosos Europeos; sem saberem reduzir um argumento à[Pg 298] fórma. Achei negros vindos de la, tam maliciozos, e fingidos; que nam se-pode dizer mais. Ja eu dise a V. P. em outra parte, que me-tem feito muitas vezes mais forsa, as razoens de muitos rusticos, doque de alguns Logicos, e Oradores de profisam.

Ainda daqueles mesmos que estudam Logica, rarisimos sam que cheguem a conhecer, por-que razam trez propozisoens, combinadas de um certo modo, produzam uma conduzam justa: e que saibam com toda a individuasam, por-que razam de mais de 60. combinasoens diferentes, só umas 14. sejam boas. A maior parte destes estudantes contentam-se, com uma Dialetica tradicional: e nada mais fazem doque crer, o que lhe-dise seu mestre, que certos Modos reduzidos a certas Figuras, sam bons; outros, sam maos: sem chegarem a certificar-se, que na verdade asim é. Ora daqui saie por-legitima consequencia, que, se é verdade o que eles dizem, que o silogismo é o verdadeiro e unico instrumento da-razam, com o qual é que se-pode chegar, ao conhecimento das-coizas; antes de Aristoteles, ninguem raciocinou bem, nem teve conhecimento certo; e despois dele, entre vintemil omens nam se-achará um, que goze esa fortuna.

Mas eu creio que serîa louco, quem tiráse tal consequencia: observando-se claramente, que os Omens intendem as coizas bem, sem o dito socorro. Tomára que me-disesem, com que outra Dialetica conheceo Aristoteles, que muitos daqueles Modos eram certos, e outros falazes; senam com a penetrasam da-sua mente, que reconheceo a conveniencia que se-dava, entre umas ideias, e disconveniencia entre outras? A nosa mente tem de sua natureza a facilidade, de conhecer a conexam destas ideias, a polas em boa ordem, e tirar delas concluzoens justas; sem que para isto a-preparem, com artificio algum. Dizei a uma molher rustica, convalecente de uma grande infermidade, que asopra um nordeste agudo, e que o Ceo ameasa grande chuva: ela facilmente perceberá, que nam é tempo para sair de caza. O seu juizo une com toda a facilidade, estas diferentes ideias; Nordeste, Nuvens, Chuva, Umidade, Frio, Recaida, Perigo de morte: e isto em um abrir de olhos; sem ter necesidade daquela fórma artificial, e embarasada de quinze ou vinte silogismos. Ora é certo, que o silogismo nam suministra esta faculdade de perceber, e ordenar as ideias; nem suministra as ideias para iso: e como[Pg 299] destas duas coizas dependa tudo; fica bem claro, que nam serve para discorrer bem.

Se V. P. observa o que dizem os doidos, achará, que eles nam se-inganam nas consequencias, mas nos-principios: e por-iso discorrem mal. Unîram-se por-alguma cauza, no-intendimento de um doido, duas ideias; v. g. a que tem de si, e a que tem de um Rei: postas as quais, discorre o omem mui bem: quer Magestade: quer gentilomens, e treno de soberano &c. Estas consequencias decem mui bem, daquele principio: todo o mal está, nas ideias que ele abrasou, e unio mal. Damesma sorte os que nam sam doidos: nam consiste o ingano nas consequencias, porque a alma com toda a facilidade as-infere, e percebe a conexam delas com os meios: todo o ponto está, nos-principios, e pòr as ideias em boa ordem. Isto nam suministra a Silogistica, e asim nam me-parece que pode servir, para o que se-pertende.

A nosa mente naturalmente inclina, para admetir uma propozisam por-verdadeira, em virtude de outra admetida por-tal; ao que chamam inferir: e acha com facilidade, uma terceira ideia, que tenha conexam, com ambas as duas. Progunto agora: ou a mente buscando a ideia terceira, se-certificou da-conexam dela, com as primeiras, ou nam? Se a-procurou asim, fez um conhecimento certo: se a nam-procurou, fez um erro: mas em ambos os cazos fez tudo, sem silogismo. Se o omem nam tivese conhecido, a conveniencia da-terceira ideia, com as duas extremas; nunca pudera afirmar, a consequencia. Ora é certo, que o silogismo em nada contribue a mostrar, e fortificar, a conexam do-meio com os extremos: ele mostra somente, a uniam dos-extremos entre si, em virtude da-conexam com o meio, que ja está conhecida. Em uma palavra, aindaque eu conhesa, a quantidade, e qualidade de duas propozisoens, nam sei se sam verdadeiras: e a Silogistica somente ensina, a inferir; nam a conhecer as premisas: se uma delas for falsa, será falsa a concluzam. Asimque nam é o silogismo o que ensina, a discorrer bem: antes tudo o contrario; conhece mais facilmente o juizo, a conexam de muitas ideias, todas as vezes que estam postas em ordem natural; doque reduzindo-se às embrulhadas do-silogismo: como a experiencia todos os dias ensina.

Acrecento a isto, que sem a boa ordem das-ideias, nam se-pode dar boa ordem, aos silogismos. Ponha V. P. um juizo[Pg 300] embrulhado, com mil ideias incoerentes, e verá se pode fazer algum silogismo. Polo contrario, ponha em boa ordem, as ideias de um silogismo; e verá com que facilidade se-intendem sem silogismo, que sempre é mais embarasado. Mais facilmente se-intende a conexam de omem, e vivente, pondo as ideias nesta ordem, natural; omem, animal, vivente: doque nesta; animal, vivente, omem, animal: que é a forma do-silogismo.

Quanto aos que dizem, que o silogismo serve, para descobrir os inganos dos-sofismas, e discursos retoricos; é certo que se-inganam muito. O motivo por-que nos-inganamos nos-tais discursos é, porque ocupados da-beleza daquela metafora, ou pensamento delicado, nam examinamos a conexam das-ideias, de que se-compoem. Explique V. P. o que diz o sofista, separe umas ideias das-outras; e verá que se-acaba o sofisma, sem necesidade de silogismo: porque postas elas na sua ordem natural, intendem-se maravilhozamente, se sam, ou nam coerentes. E que outra coiza fazem os Dialeticos vulgares, quando respondem a algum sofisma? V. P. oporá um sofisma; e respondem-lhe logo: Distinguo minorem, v.g. materialiter, concedo: formaliter, nego. pede V. P. a explicasam dos-tais termos; e eles lha-dam com um discurso longo, ou curto, mas sem genero algum de silogismo. Onde parece-me que sem injuria podemos dizer, que os que defendem a necesidade do-silogismo, como de uma famoza arma contra os sofismas; ou zombam, ou nam intendem o que dizem.

Desorteque examinando bem o silogismo, ele nam dá ideias; que sam os principios dos-nosos conhecimentos: nam dá a boa ordem das-ideias, e da-percesám, porque iso faz a alma por-si só. Serve fomente de pór em certa ordem, as poucas ideias que nós temos: e o maior uzo que tem é, nas disputas dos-Escolasticos; aonde às vezes dá a vitoria. O mais informado nesta arte, confunde com eles, e convence o que nam é tanto: e ainda em tal cazo nam o-reduz ao seu partido: porque nunca se-vio, que os silogismos produzisem ese bom efeito; que aquele que fica convencido, pasáse para a opiniam do-contrario. Conhecerá que nam sabe responder: mas nam receberá tanta luz, que aja pasar para a parte do-seu adversario. Esta é a natureza do-silogismo.

Mas aindaque esta razam seja mui forte, cuido que dos-mesmos principios dos-Escolasticos, se-tira nova razam, para se-excluirem,[Pg 301] e vem aser; que as tais regras do-silogismo só servem, para estes silogismos simplezes, feitos de propozisoens que constam de dois termos, e Verbo: v. g. Todo o omem é animal = Pedro é omem = Logo Pedro é animal. Quando porem intramos nos-silogismos, compostos de varias propozisoens, e com mil termos obliquos; é loucura persuadir-se, que neles valham tais regras, tomadas no-rigor da-Logica. Incontram-se mil discursos de evidencia tal, que nenhum omem de juizo, pode duvidar da-sua verdade: vemos cada momento discursos, a que os Logicos chamam Sorites, compostos de dez, e doze propozisoens; tam claros e manifestos; que todos os-devem admetir, ainda aqueles que nunca lèram Logica: que é a maior prova da-verdade, e evidencia: e contudo nam pertencem, a Figura alguma das-ditas. Sei, que alguns destes Logicos antigos se-amofinam, para lhe-descobrir a Figura, e Modo; mas superfluamente: pois aindaque dizem muitas coizas, e apontam outras propozisoens, que expoem as ditas; e nas quais exponentes querem mostrar de alguma maneira, as regras; nam provam o que dizem, nem respondem ao que se-lhe-progunta: ficando sempre em pé a dificuldade, que o dito silogismo, do-modo que se-propoem, nam pertence a Figura alguma: e contudo é verdadeiro, e todos o-intendem com facilidade. E como nos-discursos familiares, nos-discursos oratorios, e quando se-impugnam propozisoens ou concluzoens; somente se-uze destes discursos compostos; fica claro, que em nenhuma destas partes podem ter lugar, as tais Figuras: e que nam só sam inutis, mas imposiveis.

Seguro a V. P. que tendo lido muito, visto, e ouvido muito, e asistido a disputas de toda a considerasam; nam vi ninguem, que se-servise da-dita Fórma. Nunca vi converter Ereje algum com fórma Silogistica, nem Ebreo, ou Ateista. E contudo tenho-me achado em algumas partes, com estas trez sortes de pesoas, e conversado com eles larguisimamente. Eles me-respondèram sempre com razoens ou boas, ou más; mas nunca com fórma Silogistica: e quando alguma vez sucedia, que o discurso caîa em questam de nome; logo me-advertiam, que deixase a Dialetica, e argumentáse com razoens. Nem menos falei com algum, que me-disese, ter-lhe sucedido o contrario: nem acho dogma algum, que necesite da-fórma Silogistica, para se-poder intender, ou explicar. Nam leio que Cristo, ou os Apostolos se-servisem[Pg 302] do-silogismo, para persuadir as verdades, que defendiam; e propunham: nem acho que a Igreja Romana, ou os Concilios uzasem desta fórma, para declarar alguma materia controversa: antes tudo o contrario. Vejo que os SS. PP. encomendam muito, que os Dogmas se-próvem com razoens solidas, fugindo de todas as sutilezas da-Dialetica: e que eses mesmos Padres praticam muito bem, o que encomendam. O que mostra bem, a nenhuma necesidade, ou utilidade destes termos da-Escola, na Teologia.

Alem disto acho outra nova razam, para desprezar totalmente estas doutrinas: vem aser, o enfadonho metodo que introduzem, em todo o genero de discursos. Nam á coiza mais dezagradavel e confuza, que um longo discurso Dialetico: e nam á discurso, que, reduzido ao metodo da-Escola, nam seja longuisimo. Um paragrafo de discurso familiar mui breve e claro, reduzido a silogismos, enche boa meia folha de papel. Ouvem-se cem vezes os mesmos termos: porque cada silogismo deve repetir, uma das-propozisoens do-antecedente. E tudo aquilo se-pode dizer, em breves palavras, e com muita clareza, sem nem menos introduzir um silogismo. Polo contrario, quando entra o silogismo, é necesario recorrer, a propozisoens gerais, que nam toam bem, nem provam muito: e tem mais aparencia de declamasam, que de prova filozofica, e discurso sensato.

Esta simplez propozisam: Quero-vos bem, pois vos-tenho obedecido, e nam podeis duvidar, da-sinceridade comque vos-sirvo: porque tendes experiencia constante, deque a nenhum outro o-faso: pode dar de si bastantes silogismos, se ouver quem a-dilate. v. g. Quem faz a outro, tudo o que lhe-pede; dá sinal certo, de lhe-querer bem. Eu tenho-vos feito, quanto me-tendes pedido: logo tenho-vos dado um sinal certo, deque vos-quero bem. O sinal certo do-querer bem, nam pode separar-se, do-mesmo querer bem: logo se eu vos-dou um sinal certo, deque vos-quero bem, obedecendo ao que me-ordenais; é certo, que vos-quero bem. Provo a maior. Quem faz a outro, tudo o que lhe-pede, e o outro nam pode duvidar, da-sinceridade com que lhe-obedece; dá-lhe um sinal certo, de lhe-querer bem. Eu tenho-vos feito quanto me-pedistes, e alem diso vós nam podeis duvidar, da-sinceridade do-afeto, com que vos-sirvo: logo fazendo-vos o que me-pedis, dou-vos um sinal certo, de vos-querer bem. Provo esta maior. Quem tendo uma experiencia constante,[Pg 303] deque um sugeito que conhece, a ninguem costuma servir; nam obstante iso tem outra experiencia constante, deque este mesmo sugeito o-serve a ele; recebe um sinal certo, da-sinceridade com que lhe-obedece. Vós tendo constante experiencia, deque eu nam sirvo a ninguem; nam obstante iso tendes outra experiencia constante, que eu sempre vos-sirvo, e obedeso: Logo tendo vós estas duas experiencias, recebeis um sinal certo, da-sinceridade com que vos-obedeso. Nam quero continuar mais, os silogismos da-maior: e nem menos quero continuar, as provas da-primeira menor subsumpta: o que dise basta para provar, que qualquer pequena propozisam composta, pode produzir mil silogismos. Ora é certo, que a primeira propozisam é clara, e todos a-intendem: e aquela longa enfiada de silogismos é oscura, e só a-intendem, os que sabem a fórma Silogistica: e contudo iso nam diz mais, doque dizia a primeira propozisam. Do-que se-conclue, que o dito metodo se-deve desprezar, quando nam fose por-outra razam mais, que por-ser enfadonho, e cauzar molestia sem utilidade.

Dirmeá V. P. que este meu discurso tem por-fim, condenar todo o silogismo: e desterrar do-mundo todos os livros, que se-explicam por-silogismos: e mostrar, que nam só sam inutis, mas prejudiciais: como ja me-respondeo um Dialetico. Mas a isto respondo, que nam é esa a minha intensam. Confeso, que todos os nosos discursos, se-podem reduzir em silogismos: um sermam, um discurso familiar, uma escritura que persuade, um inteiro livro, pode-se chamar, silogismo composto de infinitos termos obliquos: nas mesmas demonstrasoens matematicas, se-podem descobrir silogismos. Ainda digo mais, nam á discurso que persuada, que nam seja em vigor de um silogismo, ou claro, ou oculto. Contudo iso defendo, que de pouca ou nenhuma utilidade é o silogismo, para quem á-de discorrer bem. Nam é o mesmo intervir o silogismo em tudo, que ser a unica arma, com que se-discorre bem; desorteque quem nam tem esa noticia, seja obrigado a discorrer mal. Quando Aristoteles escreveo, as suas reflexoens sobre o silogismo; nam nos-quiz ensinar, a fazer silogismos; porque iso fazemos nós sem reflexam, nem estudo algum: quiz somente mostrar-nos, em que se-fundava, a verdade dos-nosos conhecimentos discursivos: e como procedia o intendimento, quando consentia em algum objeto. Porem nam devemos daqui inferir, que sem praticar advertidamente, tudo o que ele propoem,[Pg 304] nam posamos discorrer bem: nam senhor: a dita noticia é mais especulativa, que pratica. Abráse V. P. bons principios, e evidentes; e verá que perfeitos raciocinios fórma, sem noticia alguma da-Silogistica: explicarmeei com um exemplo. Para comer alguma coiza, e com iso sustentar-se um omem, é necesario mover uma grande quantidade de musculos, que se-movem matematicamente. Quer-se uma particular dispozisam da-lingua, para empurrar o comer para os-dentes, e despois para a goela: quer-se a saliva, para ajudar a triturasam, e o fermento no-estomago: e finalmente mil outras coizas, que agora me-nam-ocorrem. Tudo isto é tam necesario, e estas coizas estam tam unidas, que faltando uma, nam sucederia o cazo. Seria porem louco quem, ouvindo isto, nam quizese comer, sem saber primeiro tudo, quanto tem dito os Matematicos, sobre as leis do-movimento, e sobre a Mecanica: como tambem tudo o que tem dito os Anatomicos; sobre os ditos musculos, umores, fermentasoens &c. Este omem morreria de fome, no-mesmo tempo que outro, rindo-se da-sua loucura, comeria mui descansado, e com muito gosto. A razam disto é: porque sem tanta erudisam, a machina do-noso corpo está disposta em modo, que metendo o comer na boca, e querendo mastigar, (fóra dos-impedimentos) tudo aquilo se-faz, sem estudo ou reflexam alguma. Damesma sorte a machina espiritual da-nosa alma, (se me-é licito, servir-me desta expresam) recebeo tal faculdade de Deus, que conhece todas as coizas evidentes, e especialmente a conexam de umas ideias com outras, sem estudo ou artificio algum: aindaque nese mesmo ato de conhecer, pratique aquilo, que superfluamente aprenderia de outro.

Daqui fica claro, que servindo-nos do-silogismo para persuadir, nem por-iso somos obrigados, a saber estas coizas. Contudo aprovo que se aprenda, alguma noticia mais geral: o que se-pode fazer em duas palavras. Pode alem diso o silogismo ter seu uzo entre aqueles, que desde rapazes estam acostumados a ele. Quizera porem que a gente reconhecèse, que o silogismo vale dez, e nam cem, nem mil: e que nam nos-quebrasem a cabesa com o silogismo, como uma invensam singular, para conhecer a verdade, e aumentar os conhecimentos, nas Ciencias. Explico isto com outro exemplo, de que ja se-servio um grande omem, do-seculo pasado. Vemos omens de vista tam curta, que nam podem[Pg 305] ver distintamente os objetos, em alguma distancia, sem uns oculos sumamente concavos de uma, ou de ambas as partes. Mas porque eles nam vem sem eles, nem por-iso devem julgar o mesmo, dos-outros: porque á muitos, que vem maravilhozamente, sem tal socorro. Damesma sorte a alma dos-Escolasticos, nam ve sem os oculos do-silogismo: que lhe-fasa muito bom proveito, e se-sirvam deles quanto quizerem: a alma porem dos-outros omens, exercitando-se em discorrer com advertencia, pode ver a conexam das-ideias, sem aquele socorro. Sirva-se cadaum do-que quizer, e mais lhe-convier: o que importa é, que os Peripateticos nam julguem todos, pola mesma medida: e da-falta de oculos nos-outros, nam infiram, que todo o mais mundo anda às cegas.

Conheso, que algumas vezes se-pode uzar do-dito metodo, com utilidade; quando se-quer introduzir um dialogo, para evitar os discursos compridos, e oratorios. Mas em tal cazo sam necesarias varias cautelas, para ser util o dito metodo: porque se deixamos provar a cadaum o que quer; caimos no-defeito, que queria-mos evitar. Deve pois evitar-se toda a superfluidade, e tocar unicamente o ponto da-questam. Mas neste cazo, nam é tanto estimado o tal metodo, por-ser Escolastico, mas por-ser metodo de dialogo: no-qual se-propoem a dificuldade, por-uma parte, e da-outra se-lhe-dá a resposta. Temos um belo exemplo, no-Concilio geral Florentino, congregado por-Eugenio IV. Como nele se-avia tratar, da-uniam da-Igreja Grega, com a Latina; sobre alguns pontos em que diversificavam; escolhèram-se seis omens de cada parte, para examinarem a questam, e dizerem o que se-avia propor, por-uma e outra parte: e lhe-ordenáram, que, deixados os discursos compridos, seguisem um metodo breve, e dialetico. Mas quem examina nos atos do-tal Concilio, que coiza era este metodo dialetico, acha, que nada mais era, senam um dialogo sem rodeios, nem prolixidades: no-qual de uma parte, um punha a dificuldade: e da-outra, o seu opozitor respondia sim, ou nam: ou brevemente dava a razam, porque duvidava &c. Esta foi toda a Dialetica, que se-praticou na dita disputa: o que bem mostra, que muitas vezes se-chamou dialetico, o estilo de falar concizo e breve; sem aquelas Figuras que constituem, o estilo retorico: e isto é o mesmo que eu digo, ser muito util. Mas nam achará V.P. que se-fizese cazo, das-ridicularias da-Logica vulgar:[Pg 306] ou que, fazendo-se, rezultáse daî utilidade alguma: que era o que eu asima dizia.

Nem cuido que V. P. me-mostrará, que às Ciencias rezultase utilidade alguma, do-uzo do-silogismo. A falar verdade, nenhum omem douto cuidou nunca nestas ridicularias: os sofistas sim. Os seculos do-silogismo foram os mais barbaros, e ignorantes. Ele comesou cá no-Ocidente no-IX. seculo: aumentou-se com muito mais exceso no-XI. e durou até o meio do-XVI. E que coiza boa acha V.P. neses tempos? Polo contrario, desde o principio do-XVII. em que o silogismo se-comesou a deixar, e se-procurou outro metodo; o aumento é tam sensivel, que serîa loucura mostrálo: muito mais neste ultimo seculo, em que os olhos estam mais abertos. Asimque, com estes exemplos à vista, nam parecerá maravilha que eu diga, que o silogismo vale pouco, e tem servido de muito pouco: e que avendo outra ideia melhor, é loucura, demorar-se com ele. De tudo isto concluo, que a Logica que pode servir no-mundo, é mui diversa, desta chamada Logica das-escolas: a qual por-muitos principios nem menos se-deve ler. Creio que V.P. me-perdoará esta digresam, com que interrompi, o que lhe-queria dizer da-Logica; se-quizer refletir, que nam é alheia do-meu argumento: antes justifica o que abaixo lhe-direi, e me-poupa algumas repetisoens. Torno à ideia, que lhe-queria dar da-Logica.

Digo pois, que o metodo de filozofar nam se-deve seguir, porque o diz este, ou aquele autor: mas porque a razam e experiencia mostram, que se-deve abrasar. Isto é o que eu nam poso meter em cabesa, a muita gente: porque a maior parte do-mundo, nam examina os principios das-coizas; mas vam uns detraz dos-outros como carneiros; sem mais eleisam, que o costume: e antes querem errar, por-cabesa alheia, que acertar pola propria. Persuadem-se, que os velhos nam podem ensinar, coiza alguma má: e recebem os tais ditames, com a posivel venerasam. Nenhum toma o trabalho de examinar, se a opiniam é boa, ou má: uma vez que a-diseram os antigos mestres, é o que basta. De que nace, que omens de ingenho mui perspicaz, seguem doutrinas contrarias a toda a boa razam; e que eles mesmos dezaprovam, quando lhas-explicam bem. Entre tantos Peripateticos, que V.P. conhece, nam achará algum que duvidáse uma só vez, se Aristoteles na sua Logica dise bem, ou mal: como conste que[Pg 307] o-dise Aristoteles, é o que basta: nam faltará modo de explicar, a dita doutrina, ou texto. E deste principio nacem, aqueles grandes comentarios, com que amofinam a paciencia ao mundo; e fazem perder o tempo, nas escolas.

Bem claro é que um omem, que escrupulozamente comenta um autor, supoem ser verdade, quanto ele diz: pois de outra sorte, devia fazer um rigorozo exame, na materia que comenta. E eisaqui tem V.P. que estes tais, querendo ensinar aos outros a discorrer bem, eles sam os primeiros, que discorrem muito mal. Falava eu em certa ocaziam, com um mestre Peripatetico, e caindo o discurso sobre uma destas materias, me-produzio ele um texto do-Filozofo, em uma questam bem controversa. Respondi eu, que nam me importava, o que dizia o Filozofo, mas o que ele na dita conversasam me-provava. Aqui admirado o omem clama logo, V.P. nam pode negar o texto: deve explicálo. ao que eu pontualmente respondi: Quem lhe-dise a V.P. que eu nam poso negar o texto? dise-lho algum concilio Ecumenico, ou algum texto da-Escritura? Se V.P. me-citáse, alguma propozisam de Euclides; em tal cazo lha-admetiria; nam porque Euclides o-dise, mas porque a evidencia mostra, que dise bem; e todos reconhecem a verdade, das-ditas propozisoens: fóra daqui nam admito senam aquilo, que me-provam com clareza, e verdade. Onde é necesario que V.P. primeiro que tudo, me-prove trez coizas. 1. Que Aristoteles nam podia dizer uma parvoice, advertidamente. 2. que nam podia inganar-se. 3. que o que nós oje achamos nos-seus escritos, seja verdadeiramente o que ele dise: postas estas circunstancias considerarei entam, o que ei-de responder ao texto. Até aqui o discurso, que eu tive com o dito Padre. Agora acrecento, que o dito mestre, ouvindo estas minhas razoens, nam se-aquietou: mas continuou de admirar-se damesma sorte, que se nam lhe-tivesem respondido coiza alguma.

Concluo pois, que é necesario seja bem louco, quem nam conhece, quam grande impedimento seja, para discorrer bem, seguir as pizadas de um autor só, ou seja Aristoteles, ou algum moderno. A Verdade, e a Razam é uma só. Todos podemos discorrer, e intender o que nos-dizem: e quem fala em maneira que melhor o-intendam, e prova melhor o que diz, ese é que se-deve seguir, com preferencia aos outros. Se acazo nam prova o que diz, antes o que diz nam parece bem, ou á razoens para[Pg 308] se-intender, que é mao; nam se-deve fazer cazo, de tais discursos. Esta é a pedra de toque, nam só da-Logica, mas de qualquer outra Faculdade: tomar por-principios coizas tais, que as-intendam todos, os que dam alguma atensam às ditas regras: mas principalmente é necesario, na Logica. Certamente que a Logica nam foi feita, para Clerigos, ou Frades, ou pesoas de uma exquizita erudisam: deve servir a todos os que falam, e raciocinam: e nam só em discursos estudados; mas em qualquer sorte de discurso, publico ou particular; serio ou agradavel. Se ela serve, para ensinar a discorrer bem, deve dar ditames, que posam servir em toda a parte, em que se-discorre, e se-deve discorrer bem. Importa pouco, o que dise este ou aquele, da-Logica: o que importa é, facilitar os meios, para nam se-inganar: e buscar para isto um metodo, que a boa razam persuade ser util, e os omens que tem voto na materia, reconhecem com razam, e experiencia, ser o unico meio, para conseguir aquele fim. Alem diso propolo de um modo, que qualquer pesoa de juizo, se-capacite da-dita verdade. Isto suposto, farei a V.P. algumas reflexoens, sobre o metodo de dirigir o juizo. Mas devo supor, que falo com um omem, sem nenhuma preocupasam: e que nam tenha lido Logica alguma: ou, se a-tem lido, que procure esquecer-se de tudo: mas no-mesmo tempo que tenha juizo claro, para conhecer as coizas. a este omem farei, as seguintes reflexoens.

IDEIA DA LOGICA

Nós temos uma alma capaz de conhecer, todas as coizas deste mundo. Recebemos do-Criador esta alma, dotada de maior perspicacia, doque oje nam temos. O pecado de noso primeiro pai, nos-trouxe por-castigo, sermos sugeitos ao ingano: e por-pena do-mesmo pecado se-nos-limitou, a esfera da-nosa perspicacia: nam conhecemos tam bem como ele, e somos mais sugeitos, a conhecer mal. Contudo a alma é a mesma, que era ao principio: foi criada para conhecer a Verdade, e ficou-lhe sempre a propensam para ela: em modo que, quando a alma ve uma verdade clara, nam pode deixar de conhecèla, e abrasála. Nenhum omem de juizo duvîda, se é omem: nenhum duvîda, se fala, ou está calado; se está em pé, ou asentado: por-forsa á-de admetir uma destas coizas, porque sam mui claras; e uma delas á-de ser verdade. Por-iso nós pecamos, e pecando nos-desviamos da-verdade da-lei[Pg 309] divina, que é tam conforme à boa razam; porque nam damos atensam, à dita verdade: que se a-desemos, sem duvida ficariamos persuadidos, que se-devia praticar, o que ela diz. Mas a rebeldia que experimentamos, no-noso corpo, que com dificuldade se-sugeita, aos ditames d’alma; é a cauza deste mal. Ele nos-inclina sempre, para a parte contraria, com a isca de coizas agradaveis: e a alma, divertida com outras considerasoens, dificultozamente volta os olhos para a verdade: e por-iso a-nam-recebe: e por-iso peca. Esta é a origem, de todos os nosos inganos, e de todos os nosos danos. Se a alma nam fose arrastada, polos tumultos da-fantezia, que comumente a-ingana; conheceria mui bem toda a verdade: nam só aquelas que conduzem, para posuir um bem eterno; mas tambem, estas verdades indiferentes das-coizas naturais: e discorreria sem ingano, em toda a materia: mas as cauzas dos-inganos sam tam frequentes, nesta vida mortal; que nam é maravilha, se os omens ajuizam tam mal: e ajuizando asim, obrem em tudo mal.

Isto suposto, a unica medicina que se-tem achado, para ajuizar bem, é desviar as cauzas, que nos-conduzem ao ingano. Ponho de parte, o ajuizar bem para conseguir, a bemaventuransa sobrenatural: (aindaque daqui posa receber muita luz; contudo como necesita de outras coizas, e nam é ese o meu argumento; por-iso o-deixo) e falo somente do-discorrer bem, em todas as outras materias. Digo pois, que o verdadeiro segredo de ajuizar bem, é desviar as cauzas que nos-inganam, e fazem julgar mal. Para fazer isto, é necesario examinar os modos, com que a alma conhece; e meios de que se-serve, para se-explicar.

Nós nam trazemos da-barriga da-maen, conhecimento algum: todos os-adquerimos despois de nacidos. Basta olhar, para o que faz um menino; para ver a sua ignorancia, e que nace despido de todo o conhecimento. Ele aprende a sua lingua, como nós aprendemos uma lingua estrangeira: quero dizer, asimcomo nós, aprendendo uma lingua estrangeira, só formamos ideia dos-nomes que vamos aprendendo, e nam daqueles que ainda nam ouvimos: asim tambem um menino, só tem ideia das-palavras que ouve, e nenhuma das-outras, que nunca ouvio. Mas alem diso nem menos tem ideia das-coizas, que significam os tais nomes, senam das-que ve, ou ouve. Um menino nam profere, senam as palavras que[Pg 310] ouve: só intende e fala daquilo, que lhe-tem dito, ou visto. o que mostra claramente, que nam tem outros conhecimentos, senam os que entram polos sentidos. Os que defendem ideias inatas, que mostrem alguma, que nam entre polos sentidos; ou nam se-deduza das-ideias, que intráram por-eles: estou certo, que nam aparecerá alguma, a que nam posamos descobrir, esta origem.

Sam pois os sentidos, as principais portas, polas quais entram as ideias, na alma. Umas destas ideias entram, por-um só sentido: v. g. a Solididade dos-Corpos, que entra polo tato: outras entram por-dois sentidos: v. g. a figura, que pode intrar polo tato, e juntamente polos olhos. Algumas ideias originam-se em nós, com a meditasam, ou reflexam: deste genero é a vontade, percesam &c. Outras entram umas vezes por-sensasam; outras, pola reflexam: v.g. o gosto, dor, existencia, unidade, potencia, sucesam. Finalmente muitas ideias simplezes, se-originam em nós, por-meio das-cauzas privativas; tais sam as ideias que nós temos, das-qualidades dos-corpos: v.g. a ideia de negrura &c. O exame dilatado deste negocio, pertence a outro lugar: basta por-agora que o Logico conhesa, que por-todas estas vias podemos receber, ideias simplezes.

Admiravel é a virtude que a alma tem, para unir, e combinar estas diferentes ideias simplezes, que por-este modo recebe. Verdade é, que alma nace despida, de todo o conhecimento atual: mas fica mui bem recompensada, com a virtude de-que Deus a-dotou, de poder conseguir muitas, e novas ideias, com diferentes combinasoens. Unindo as ideias, que intráram polos sentidos, fórma a alma muitas outras ideias: outras vezes examinando as proprias ideias, nacem diferentes ideias na alma. Desta diferente combinasam de ideias, nacem todas as ideias compostas, que nesta vida experimentamos.

Mas aindaque sejam infinitas as ideias compostas, que a alma fórma, podem-se reduzir, a trez sortes de ideias: que sam as ideias dos-Modos, das-Sustancias, e das-Relasoens. As ideias dos modos sam aquelas ideias que nós formamos, de diversas coizas que nam existem por-si, mas sam dependencias de outras coizas. v.g. a ideia que eu tenho de um triangulo, de uma coluna, de um circulo &c. Estas ainda sam de duas maneiras: ou sam ideias de modos simplezes, ou de modos mixtos. Chamo modos simplezes, às[Pg 311] ideias dos-modos, que sam compostas, de duas ideias damesma especie: v.g. a ideia que eu tenho de doze, de cem &c. que é composta das-ideias, de muitas unidades juntas: a ideia de imensidade, que é composta, da-repetisam de diferentes ideias de distancia, repetidas sem fim: e como cada distancia se-supoem ser, uma modificasam de espacio; a dita ideia é uma ideia composta. Chamo modo mixto, uma ideia composta, de modos de diferente especie: v. g. a ideia de beleza, que é um composto de diferentes cores, e proporsoens, que dá gosto vendo-se. tambem a idea de amizade, mentira, obrigasam &c. Estas ideias une o intendimento, sem examinar se existem, ou nam: e a estas dá o nome, que lhe-parece. Os omens porem comumente, recebem estas ideias dos-outros, que lhe-explicam o significado, de muitos termos. Desorteque ou por-aplicasam, ou por-experiencia recebemos as ideias, dos-modos mixtos.

A segunda especie de ideias, sam as das-Sustancias. Nam podendo nós intender, como as ideias simplezes existam por-si só, nos-acostumamos a supor alguma coiza, que as-sustenta: ao que damos o nome, de Sustancia. Digam o que quizerem, os que falam de Sustancia, como de uma coiza, que eles intendem bem o que é; certo é, que nam tem os omens, mais clara ideia de sustancia. Onde ideia de sustancia, é ideia de uma certa coiza incognita; a qual, quando nós queremos explicar, nam sabemos dizer o que é: mas somente dizemos; que é uma coiza, que nós supomos ser a baze, daquelas ideias que vemos. E esta ignorancia é aplicavel, a qualquer sorte de ideia de sustancia. Quanto às ideias das-particulares sustancias, esas formamos nós, unindo quantas ideias podemos ter de uma coiza. v.g. unindo a ideia de cristalino, durisimo &c. formamos ideia, do-diamante. Mas alem destas, devemos unir-lhe, a ideia confuza que nós temos, de uma coiza que as-sustenta: e daquelas ideias, e desta, rezulta a ideia composta, que nós temos neste mundo, da-sustancia do-diamante. Do-que se-segue, que tam clara ideia temos nós, da-sustancia do-Corpo, como do-Espirito: pois nenhuma outra ideia temos mais, que dos-modos ou efeitos, que se-observam; unidos à dita ideia de uma coiza, que supomos sustantála: cujos efeitos tam claramente se-conhecem do-Espirito, como do-Corpo. Alem destas ideias de sustancia, formamos outra ideia composta, ou complexa de sustancia, unindo diferentes ideias de sustancias.[Pg 312] v. g. unindo diferentes ideias de naos, pesas de artilharia, marinheiros, almirante &c. fazemos a ideia complexa de armada: e damesma sorte de exercito, mundo &c. A estas damos um só nome, porque na verdade é uma só ideia.

A terceira sorte de ideias, sam as Relasoens. Estas fórma a alma, comparando uma coiza com outra: de que nacem mil denominasoens, que tem proprios nomes, e nos-conduzem a conhecer, outra coiza: e sem os tais nomes, nam conhecemos muitas relasoens. Estes nomes só se-podem dar, quando se-poem o fundamento deles. v. g. Pedro é omem: mas se ele se-caza, este contrato serve para lhe-dar o nome, de marido. Estas ideias de relasoens, sam muitas vezes mais claras, que as ideias das-coizas, que estam sugeitas às ditas relasoens; ou das-sustancias. A ideia de pai, e irmam é mais clara, que a ideia de omem: e com muita mais facilidade eu intendo, que coiza é um irmam; doque intendo, que coiza é um omem. Conhece-se mais claramente, que coiza é um amigo, doque que coiza é Deus. Porque o conhecimento de uma asám, ou de uma simplez ideia, basta muitas vezes, para me-dar o conhecimento, de uma relasam. Polo contrario, para conhecer um ser sustancial, é necesario um exato conhecimento, de uma colesam de ideias. Devemos porem advertir, que todas estas relasoens se-terminam, em ideias simplezes: aindaque nos-paresa, tudo o contrario: e os nomes que conduzem a mente, para conhecer outra coiza, alem do-sugeito da-denominasam; sempre sam relativos. Que todas as relasoens sejam compostas, de ideias simplezes, é coiza para mim certa: mas para o-provar, serîa necesario, fazer um longo discurso, sobre todas as especies de relasoens: para mostrar, donde vem a ideia de Cauza, Efeito, Lugar, Extensam, Identidade, Diversidade &c. como tambem as relasoens morais: v. g. Bem, Mal, Crime, Inocencia &c. Mas rezervo-me para explicar iso a V. P. em outra ocaziam: e agora continuo as minhas reflexoens. Esta em breve é a origem, de todas as nosas ideias.

Daqui fica claro, que das-nosas ideias umas sam simplezes, outras compostas: umas adventicias, que entram polos sentidos, e outras que a mente faz, a que chamam faticias. Destas umas sam claras, outras confuzas; umas adequadas, e outras inadequadas. Finalmente reais, e chimericas; singulares, particulares, e universais.

[Pg 313]

De todas as ideias, as que mais frequentemente faz a alma, sam as universais. Estas fórma a alma, considerando uma coiza, que tem outras semelhantes: onde considerando todas em uma masa, sem considerar diferensa alguma particular, formamos ideia universal. v. g. Temos trez sortes de triangulos: um se-chama Equilatero, outro Isosceles, e o terceiro Escaleno: cada um dos-quais tem suas particulares propriedades. Mas considerando os ditos triangulos somente, como uma figura de trez angulos, sem determinar as propriedades de cadaum, formamos uma ideia universal, que se-pode aplicar, a cada triangulo de per-si. Este modo de considerar, se-chama nas escolas precizam: palavra tirada do-verbo Præscindo, ou Præcido, que é o mesmo que cortar, separar: porque separamos os triangulos, das-suas propriedades.

Estas ideias universais tem entre os Logicos, diversos nomes. Chamam a uma, Genero: a outra, Especie, Diferensa, Proprio, Acidente. Basta intender brevemente, o significado destas vozes, para poder servir-se na ocaziam; e intender o que os Logicos, querem dizer com elas: nam considero outra utilidade, nestes cinco Predicaveis. Polo contrario, tudo quanto deles dizem os Logicos, comumente é falso: pois supoem claramente, que nós temos perfeito conhecimento, das-Esencias: o que é manifesta falsidade.

Sendo pois, que as nosas ideias, só se-podem comunicar aos outros, por-meio daqueles sinais, a que chamamos vozes; devemos fazer alguma reflexam, sobre esas mesmas vozes, ou palavras: o que pode conter, alguma coiza util. As palavras nam significam os pensamentos, por-virtude natural; mas porque asim o-determináram os Omens. A maior parte das-palavras sam gerais, quero dizer, significam ideias gerais: porque serîa imposivel, e inutil, que cada coiza particular, tivese um nome distinto: o comercio umano farseia insuportavel, e os Omens nam aumentariam os seus conhecimentos. Acostumando-se os Omens, a fazerem ideias abstratas, deram-lhe nomes, a que chamam gerais, ou universais. Á nomes para as ideias simplezes, para os-modos, e relasoens &c. e todos estes é necesario saber, como se-formam, e que coizas particulares tem. Sucede às vezes, que se-introduzam imperfeisoens nas palavras, por-cauza que as ideias que significam, sam mui complexas, e sam cauza que os nomes[Pg 314] fiquem duvidozos. Sucede tambem, que os Omens abuzem das-palavras, servindo-se de umas, a que nam dam significado certo, ou lho-dam mui oscuro &c. Devem-se remediar estes defeitos: tendo prezente a origem deles, e o modo com que se-remedeiam: o que se-observa nos-autores, que explicam isto. Isto é o que pertence, à Percesam.

Alem da-faculdade que a mente tem, de formar ideias, a cuja damos o nome de Percesam; tem mais outra faculdade, de comparar uma ideia com outra, e reconhecer a conveniencia, e disconveniencia delas: ao que chamamos Consentimento, ou Juizo. Asimque o julgar nada mais é, que certificar-se a mente, que uma coiza convem a outra, ou nam convem: e comparando ela uma ideia com outra; reconhece, e se-certifica da-conveniencia, ou disconveniencia. Se o juizo se-explica, com as vozes; chama-se Propozisam, ou Enunciasam: e em tal cazo, tanto aquilo a que convem uma coiza, como as vozes porque se-explica; chama-se sugeito da-propozisam: e o que convem, chama-se predicado.

Decendo pois à diversidade de juizos, digo, que se a mente se-certifica, da-conveniencia entre duas propozisoens, chama-se juizo afirmativo; se da-disconveniencia, chama-se negativo. Nam digo, que aja juizos negativos, no-sentido em que o-tomam os Logicos vulgares: mas chama-se afirmativo, ou negativo, segundo a coiza que afirma. Esta diversidade de propozisoens, ou juizos, alcansa-se do-sentido, nam das-palavras: as quais sendo negativas, podem ter sentido afirmativo. O que muitos nam advertindo, fazem mil disputas, e arengas sobre coizas bem claras.

Qualquer dos-nosos juizos, (o mesmo digo das-propozisoens, que sempre correspondem aos juizos) afirmativo, ou negativo, ou explica o nome; ou explica as nosas ideias; ou explica alguma outra coiza que existe: ao primeiro chamamos, juizo Nominal: ao segundo, Ideial: ao terceiro, Real. v.g. Quando eu digo: O oiro nam é pedra: este juizo é real. quando digo: A ideia que eu tenho de pedra, é diferente da-ideia, que tenho de oiro: este juizo é ideial. quando digo: Este nome Amor significa, um afeto da-alma, ou um juizo que formo, da-excelencia de uma pesoa em algum genero, e utilidade que me-pode rezultar dela: este juizo chama-se nominal. Do-conhecimento destas trez sortes de juizos,[Pg 315] depende o bom ou mao uzo, que fazem os Omens, das-suas faculdades, em qualquer materia que se-lhe-propoem. A maior parte das-disputas nace, de que nam intendemos bem, as definisoens dos-nomes: e cadaum as-toma, no-seu sentido. O mesmo digo das-definisoens, que explicam as ideias dos-outros, principalmente dos-mortos. Atribuimos aos autores que lemos, mil coizas que eles nunca diseram. Servimo-nos dos-Dicionarios, como de oraculos: sem advertir, que aqueles que os-compuzeram, podiam sofrer o mesmo ingano, procurando a verdadeira inteligencia deste nome. O mesmo sucede nas definisoens reais, tanto nas da-esencia, como de algum acidente ou modo. Persuadimo-nos, que sempre sam verdadeiras: e deste modo abrasando-as sem exame, establecemos um principio, que por-forsa nos-á-de conduzir ao ingano.

Sobre isto das-definisoens, é bem vulgar o erro dos-Logicos comuns, que dizem, que a definisam se-pode fazer por-uma ideia, ou simplez percesam, a que eles chamam, Apreensam. Isto é falso por-muitos principios: nem se-pode fazer definisam alguma, que nam seja, reconhecendo a conveniencia dela, com o seu objeto. Quando dizemos, Animal racional: (suponho agora, que esta seja a verdadeira definisam do-Omem: de que duvido muito, e com razam) ou a mente conhece a conveniencia daquela ideia, com a ideia de Omem; ou nam. Se a-conhece, define: mas em tal cazo produz um conhecimento, ou consentimento, a que chamamos Juizo: porque o expremir, ou nam expremir, com a boca o Est, nam faz ao cazo. Se a-nam-conhece, nam define; mas profere duas ideias separadas. É necesario intender, e advertir tudo isto muito bem, para nam se-inganar, com o que eles dizem.

Alem destes juizos, fórma a mente infinitos outros, damesma sorte, que disemos das-ideias. Temos juizos simplezes, compostos, singulares, e universais. A estas se-reduzem todas as sortes de juizos, ou propozisoens vocais. Conhece-se a especie a que pertence, pola qualidade do-sugeito.

Faz tambem a mente juizos verdadeiros, e falsos. E aqui é necesario o criterio, para nam se-inganar. Consiste o criterio da-verdade, na evidencia com que se-propoem uma coiza, desorteque nam deixe duvidar, de ser asim. Nisto se-inganavam manifestamente os Pirronicos; que chegáram, ou fingîram de duvidar daquilo[Pg 316] mesmo, que viam com toda a evidencia. Sobre isto da-evidencia, á diversos graos: se a propozisam é evidente sem prova, chama-se axioma: se em vigor das-provas se-faz evidente, chama-se ilasam, ou concluzam evidente. Tambem estas concluzoens evidentes, segundo as materias recebem diversos nomes: umas vezes dizemos, que tem evidencia metafizica; outras fizica; e outras moral; as quais sem muito trabalho se-intendem. Finalmente acham-se juizos duvidozos, verosimeis, e inverosimeis: cuja natureza se-intende, com a simplez explicasam, e um breve exemplo.

Estas sam as duas operasoens diferentes da-mente, Percesam, e Juizo. nem á alguma outra de diferente especie. Tudo o que a mente faz é, variar estas duas em diferentes maneiras: fazendo de muitas ideias, uma composta: e reconhecendo a conveniencia ou disconveniencia, de uma com outra: e pondo-as em ordem proporcionada, para se-conhecerem. Quando os Dialeticos dizem, que nestas trez afirmasoens.

Todo o omem é animal.
Pedro é omem.
Logo Pedro é animal.

a ultima propozisam é de diferente especie, das-primeiras; dizem uma coiza, que nam poderám nunca provar. O que eu acho é, que tanto a ultima, como as primeiras, sam juizos, com que o intendimento reconhece, a conveniencia de duas ideias. Se o estar em ultimo lugar, ou reconhecer esta, porque ja tenho reconhecido as outras, faz mudar de especie; serîa necesario admetir, outras muitas operasoens do-intendimento.

Isto suposto, a principal operasam livre da-mente, é o Raciocinio, ou Discurso. Consiste ele em que, dadas duas, ou trez, ou dez, ou vinte ideias, se a primeira convem à segunda; e esta à terceira; e esta à quarta &c. a primeira á-de convir à ultima. Desta sorte o intendimento corre da-primeira, para a segunda: desta, para a terceira &c. E ao juizo com que reconhece, a conveniencia da-primeira com a ultima; se-dá o nome, de raciocinasam, inferencia, concluzam, discurso, e alguns outros nomes: o que nam faz mudar a especie: pois na verdade é um juizo, com que eu afirmo esta coiza, porque tenho afirmado, as antecedentes. Onde pode a consequencia ser boa, e ser falsa, se uma das-premisas é falsa: e somente será verdadeira, se as[Pg 317] premisas o-forem tambem. O que importa pois é, julgar primeiro bem, e nam se-inganar nas premisas: porque só asim é, que nam se-inganará na concluzam. Para fazer isto, é necesario notar, com infinita diligencia, as cauzas e ocazioens dos-nosos erros, para os-poder evitar.

A primeira ocaziam de ingano, sam as nosas mesmas ideias. Nós percebemos mal, e contudo queremos discorrer com seguransa: os nosos sentidos sam falazes, e suministram-nos frequentes ocazioens de ingano, em materia fizica. O notar estes erros, pedia uma longa disertasam. Basta notar, que nos-inganamos nas ideias de gravidade, levidade, aspereza, gosto, cheiro, e som &c. Cuidamos que estas coizas existem nos-objetos, quando na verdade nada mais sam, que modificasoens do-noso corpo, e espirito. As ideias que recebemos polos olhos, tem mais outra razam, para serem falsas: pois segundo a diversa figura dos-olhos, de diferentes pesoas, devem reprezentar os objetos ou majores, ou menores doque sam. E asim nam nos-devemos fiar sempre delas, para julgar.

A segunda cauza, sam as ideias que formamos: em virtude das-quais mil vezes nos-inganamos. Chamo aqui ideias, àquelas supozisoens que fazemos, para explicar os efeitos da-natureza. Uma vez que nos-ocorre, uma supozisam ou sistema, que nos-parece racionavel, sem demora alguma o-abrasamos como verdadeiro; sem advertir, que muitos sistemas diferentes, podem explicar provavelmente, a mesma coiza. Outra especie de ideias que fazemos, sam as abstrasoens: seguindo as quais, muitos julgam imprudentemente. Atribuimos a diversos efeitos, diversas cauzas: sem advertir, que a mesma cauza pode produzir diferentes, e às vezes incontrados efeitos. Daqui nacem, mil inganos na Fizica, v.g. as virtudes que atribuimos, a muitos medicamentos, que nunca sonháram telas.

A terceira cauza de ingano, sam as palavras, de que nos-servimos. Intendemos, que muitos termos significam o mesmo, quando na verdade nam sam sinonimos. As vozes servem, para explicar os pensamentos: e como nem todos intendem o mesmo, nem todos vem a explicar o mesmo. Das-sustancias inviziveis, nem todos sentîram o mesmo: temos o exemplo nestas vozes, Deus, Animus, Spiritus, Angelus &c. às quais alguns antigos unîram certas ideias, e outros unîram diferentes.[Pg 318] O que intende um Deus, de figura umana: o que supoem, um Deus igneo: o que o-julga, de um corpo sutilisimo: o que o-cre espiritual: todos se-servem do-mesmo nome: o mesmo digo de outros nomes. Tambem os Omens se-diversificam, na ideia das-sustancias corporeas: uma ideia fórma o ignorante, do-Corpo: e outra mui diferente, o Filozofo. Tambem nas definisoens de Vicio, Virtude, Piedade, Santidade, Justisa, Obrigasam &c. se-diversificam muito os omens: de que a Istoria suministra, famozos exemplos. Os mesmos Dicionarios apontam vozes, a que nós oje damos um sentido; e antigamente tinham outro: v. g. Navis, Triremis &c. Onde quem nam distingue com cuidado isto, frequentemente se ingana, e discorre mal.

A quarta cauza dos-nosos inganos, sam os afetos do-animo; que produzem infinitos erros. Eles impedem-nos muitas vezes, examinar bem as materias, e por-consequencia, julgar bem. E muitas vezes fazem-nos amar, ou dezejar o duvidozo por-certo. Os que abrasáram de todo o seu corasam, uma doutrina; nam só nam se-cansam em examinar, as razoens contrarias; mas nem o-podem fazer, porque as-nam-vem. Acrecento a isto, que nem menos as-querem ver, aindaque lhas-oferesam: nem ainda outras obras indiferentes, que saiem damesma pena, in odium auctoris. Este justamente é o cazo que sucedeo neste Reino, a um Teologo meu conhecido, que tinha abrasado a Ciencia media. Introu em uma livraria, onde cazualmente abrio um livro, que tratava dos-prolegomenos da-Escritura: lidos alguns paragrafos, louvou muito a materia, e o metodo; e proguntou quem era o autor: e quando ouvio dizer, que era um Dominicano, fechou logo o livro, e nam dise mais palavra. Comque, será necesario despir-se, de todos os prejuizos; para intender as coizas bem, e poder discorrer com acerto.

Conhecidos os erros, é necesario evitalos, procurando a verdade. Para o-fazer, é precizo observar algum metodo. É pois o metodo aquela operasam do-intendimento, tam necesaria em todo o genero de Ciencias: e sem a qual nam se-pode discorrer bem. O discurso é aquele progreso, que o intendimento faz, de um conhecimento para outro: o metodo é o que prepara a materia, ao discurso. Desorteque a mente com o metodo dispoem as ideias, em boa ordem: e com o discurso reconhece a conveniencia delas. De duas sortes é o metodo. Dispomos as vezes os[Pg 319] nosos conhecimentos, de uma tal maneira, que dividimos a coiza que queremos conhecer, nas suas partes: paraque asim as-posamos conhecer todas, e consequentemente o todo. Este metodo chama-se rezolutivo, ou analitico, que vale o mesmo. Emprega-se comumente, para reconhecer a verdade de muitas questoens, e para descobrir, e adquerir conhecimentos. A outra sorte de metodo é, quando devendo ensinar uma doutrina aos outros, detal-sorte dispomos, os nosos conhecimentos; que intendendo cada um deles, venha o dicipulo a conhecer, todo o corpo da-Ciencia, que se-compoem, daquelas particulares doutrinas. Este metodo chama-se compozitivo, ou sintetico, que sam sinonimos: ou tambem metodo de doutrina, ou didatico, ou didascalico: que vale o mesmo. E deste uzam comumente os bons mestres, quando ensinam alguma materia.

Para nam nos-inganarmos no-metodo, é necesario ter diante dos-olhos, que nós ignoramos a esencia, de todas as coizas. Onde ignoramos, a esencia da-Materia, do-Corpo, das-Fórmas, do-Espirito, e das-nosas mesmas ideias: é necesario antes de tudo, pór esta advertencia. Isto suposto, fazem-se questoens indisoluveis, a que nam podemos responder: que sam as que dependem, do-conhecimento da-esencia das-coizas: e destas nam falamos. Temos alem diso questoens soluveis, que se-dividem em trez especies: I. posto um atributo, progunta-se qual é o sugeito que lhe-compete. II. posto o sugeito, progunta-se qual atributo determinado lhe-compete. III. dado o atributo e sugeito, progunta-se se um compete a outro. Trez sam as fontes donde se-tiram, as solusoens de todas as questoens: Razam, Experiencia, e o Testemunho dos-autores.

As leis do-metodo Analitico sam estas. Intender os vocabulos: determinar as questoens: separar as partes delas: fugir de todo o genero de equivocos: fugir das-oscuridades: establecer termos comuns, e claros: intender os testemunhos e autoridades, em que se-funda. Alem diso, saber os requizitos que sam necesarios, para intrar em uma questam: v.g. para a Istoria, as Antiguidades, Cronologia, Geografia &c. para a Fizica, a noticia das-melhores experiencias &c. Ler o contexto, e ver as mais coizas que apontam os outros, para nam errar no-criterio. Ter prezentes os canones, que comumente se-asinam, para distinguir as obras supostas, das-verdadeiras.

[Pg 320]

O metodo Sintetico, ou metodo de mostrar a verdade, tem estas leis. Nam admetir voz sem a-explicar: nam mudar o significado das-vozes: nam concluir sem evidencia: nam inferir senam de principios provados. Quem observa estas regras, pode ter a consolasam, que tem boa Logica.

Tendo visto o modo, com que o estudante se-deve regular, no-metodo das-Ciencias; fica claro, como se-deve conter nas disputas publicas, tanto argumentando, como respondendo. Deve pois argumentar com razoens, e nam com palavras: fugindo de sofismas, como indignos de um Filozofo, que sinceramente ama a verdade. Se quizer servir-se do-silogismo para argumentar, pode fazèlo. Digo porem, que muitas vezes sem silogismo, exporá melhor as suas razoens: servindo-se de um metodo de dialogo curto, e claro.

No-que toca a responder, se o arguente se-servir de silogismos, com boas razoens, pode seguir o mesmo metodo: se pois ele comesar com o sofisma, é melhor reduzilo fóra da-Fórma, para lhe-ensinar a argumentar. Em todo o cazo nam se-deve deixar pasar propozisam oscura, que nam se-explique. Se V.P. obriga a explicar-se um sofista, e pòr em pratos limpos, o que quer dizer nesta, ou naquela propozisam; acabou-se o sofisma. Esta nam é ideia nova, de que se-devam admirar os Dialeticos: eles o-praticam todos os dias argumentando, e respondendo. Se o que distingue uma propozisam, uza de termos incognitos; ou se o que argumenta, se-serve de semelhantes propozisoens; verá V. P. que os mais advertidos Peripateticos, sam os primeiros a dizer-lhe, que explique a propozisam, ou distinsam. Julgo pois, que o mesmo deve fazer qualquer defendente, que tem a infelicidade, de ter um Dialetico por-arguente. Ponha-se o estudante neste primeiro principio, de nam deixar pasar palavras confuzas, como fazem os Geometras; e verá que se-acabam, todas as disputas: as quais comumente versam, sobre a diversa inteligencia dos-termos; e nam tem mais forsa, que aquela que lhe-dá, a dispozisam artificial do-silogismo. Desorteque reduzido a proza corrente, o que estava armado em silogismo, nam tem forsa alguma.

Tenho dado em breve a V.P. uma ideia da-Logica, que pode ser util neste mundo, para todos os empregos. Isto necesitava ser provado, com mais extensam; mas iso excede o metodo[Pg 321] de uma carta. Do-que aponto, compreende V. P. muito bem, como se-deve dispor a Logica, para servir em todo o genero, de bom discurso. Digno é de admirasam, que aja quem intenda, que a Logica somente deve servir, para a Teologia: e que por-iso a-encham, de todos aqueles termos, que se-acham na Escolastica comua: e fasam uma Logica, que nam serve para coiza alguma. Como se os omens somente na Fizica, ou Teologia devesem discorrer bem; e nas outras coizas mal! Persuado-me, que importa igualmente discorrer bem, em todas as materias da-vida civil, que naquelas duas. A maior parte dos-Omens, nam seguem aquela profisam, mas outras diferentes, e nam menos utis à Republica; tanto nos-empregos altos, como baixos; e asim é necesario, que tenham regras, para se-regular em todos os seus empregos; quero dizer na politica publica, e privada, a que chamam vulgarmente Economia. Cuido, que a Logica que apontei a V. P. suministra meios proprios, para nam se-inganar em ideia alguma, quanto é posivel ao Omem evitar os inganos, nesta vida mortal: e que por-este principio se-deve preferir, a todas as outras. Toda a dificuldade oje consiste em determinar, qual destas modernas, (porque das-Peripateticas nenhuma se-deve ler) posa suministrar, as ideias que procuramos. Nisto direi a V. P. o meu parecer, no-qual tenho alguns companheiros: vem aser, que ainda até aqui nam tem aparecido alguma, que satisfasa inteiramente, ao que dezejamos. Tenho lido quazi todas as modernas impresas, algumas bem raras, e tambem algumas manuscritas: e achei que muitos copiáram-se fielmente. Dos-outros que podemos chamar autores, todos tem coizas boas, e deles se-pode tirar muito; mas nem tudo neles é bom: alem diso algum deles é só para omens consumados, e nam para rapazes: e sam mui difuzos. Onde para os principiantes, asento, que ainda nam apareceo, a Logica dezejada. E asim será necesario, servirse de alguma das-melhores, emendando-lhe os defeitos. Chegando eu aqui, veio vizitar-me o Senhor * * * e proguntando-lhe com confiansa de amigo, se sabia de alguma boa Logica; me respondeo, que o * * compoz ultimamente toda a Filozofia, por-um modo excelente, que ele tinha visto. Proguntei-lhe que me-explicáse, o metodo da-Logica: e despois de o-ouvir, e considerar, asento que se-uniforma muito, à minha opiniam: e pode ser que seja ainda mais claro, e mais util para os principiantes, que este que asima apontei.[Pg 322] Comque tem V. P. a Logica que dezejava: sabe V. P. mui bem, de que pezo é o juizo deste amigo. Dise-me que vencidas certas dificuldades ** faz conta impremila. Deus o-permita. Isto é o que me-ocorre por-agora dizer a V. P. pedindo ao Senhor, o-conserve por-muitos anos.

NOTAS DE RODAPÉ:

[82] In Logica, de Signis disp. I. in Prooemio.

FIM DO PRIMEIRO TOMO.


ERROS

Tendo achado que estes erros sam mais frequentes nesta edisam; por iso dou uma regra geral, para se-emendarem: os outros notam-se abaixo.

Achando-seLeia-se
engano, dezengano,enganar, dezenganar. ingano, dezingano, inganar, dezinganar.
comprimir, imprimir, oprimir, admitir, permitir, e outras vozes, que se-formam destes Infinitos: tirando algumas, que o autor excetua.compremir, impremir, opremir &c.
diminuir &c. deminuir &c.
entrar, encontrar, emportar, enformar, engenhar, engenho; e outras vozes e nomes que destes nacem. intrar, incontrar, importar, informar, ingenhar, ingenho &c.
parese, conhese &c. parece, conhece &c.

O acento que se-acha nos monosilabos, já, lá, cá, vè, lè; tambem é erro do corretor: porque o autor só o-poem em dè, dá, dás, más, pòr verbo &c. para os-distinguir das particulas, e vozes semelhantes. Como tambem em pé, pés, só, e outra rarisima.

ERROS.EMENDEM-SE.
Pagina 2. regra 3.tal-vez talvez
p. 3. r. 11. superfla superflua
p. 4. r. 5. necessario necesario
p. 5. r. 6. lisensa licensa
p. 6. r. ult. è necessario é necesario
p. 7. r. 6. pola pola pola
p. 9. r. 4. defa lingua desa lingua
r. 24. maniera maneira
p. 10. r. 1. necessario necesario
r. 28. enfina ensina
p. 11. r. 22. divido devido
p. 12. r. 4. propoziçam prepozisam
r. 33. caracter carater
p. 13. r. 11. á mam à mam
r. 18. á memoria à memoria
p. 14. r. ult. à Nasam á Nasam
p. 15. r. 10. discipulos dicipulos
p. 17. r. 26. mais mais mais
r. 31. necessario necesario
p. 20. r. 11. partencentes pertencentes
p. 24. r. 28. indo Gerundio, ou ou alguma
p. 28. r. 14. Menahaã Menhaã
r. 32. naqual na qual
p. 29. r. 16. necessario necesario
r. ult. afim asim
p. 30. r. 12. che que
r. 22. pronuneiar pronunciar
p. 31. r. 5. esposta resposta
r. 11. Ley Hey Ley, Hey
r. 17. sufficiente suficiente
r. 18. ditongo, ditongo.
p. 34. r. 13. discipulos discipulos
p. 35. r. 24. nestes nestas
p. 38. r. 9. estas estar
p. 40. r. 11. os seu os seus
p. 41. r. penul. diver-se dizer-se
p. 43. r. 3. como e como n
p. 46. r. 4. ouro oiro
p. 47. r. 29. feguidas seguidas
p. 48. r. 31. algua alguma
p. 50. r. 27. efcrevem escrevem
p. 51. r. 27. odiscurso o discurso
p. 52. r. 27. final sinal
p. 53. r. 9. repouzo repoizo
r. 34. prepozisoens prepozisam propozisoens propozisam
p. 55. r. 28. mais-linguas mais linguas
p. 56. r. 13. grosa obra voluminoza obra
r. ult. ergastual ergastula
p. 57. r. 28. plebejas plebeias
r. 29. Furetier Furetiere
p. 59. r. 24. de-donde donde
p. 60. r. 26. escrevo escreveo
p. 63. r. 7. esperar-fe esperar-se
p. 64. r. ult. tres trez
p. 68. r. 37. Coemediam Comoediam
p. 70. r. 20. explicaçam Explicasam
p. 74. r. 4. Latinidade Latinidade
p. 76. r. 27. omesmo o mesmo
p. 79. r. 31. Univerfidade Universidade
p. 83. r. 25. determinado-lhe determinando-lhe
p. 88. r. 31. Geograsia Geografia
p. 95. r. 4. melhores melhores
r. 20. distingia distinguia
Nota Democrici Democriti
p. 96. r. 37. nam das nam dar
p. 98. r. 35. se-costumam se-acostumam
p. 99. r. 1. Valeio Velleio
p. 100. r. 14. a istoria: a istoria,
p. 103. r. 1. da-fua da-sua
r. 4. enfinar ensinar
p. 104. r. 38. de livos de livros
p. 115. r. 19. os quer os que
p. 119. r. 17. utilissimo utilisimo
r. 31. o senhor o Senhor
r. 32. tratradinho tratadinho
p. 126. r. 5. sensisiveis sensiveis
r. 7. Advogago Advogado
p. 127. r. 16. tosta toda
p. 128. r. 17. à asam à asám
p. 130. r. 6. comuna comua
p. 133. r. 30. misericordía mizericordia
p. 134. r. 16. Líbano Libano
r. 24. divedido dividido
r. 25. oque o que
p. 137. r. 20. Panigirista Panegirista
p. 139. r. 10. come como
p. 140. r. 7. primeiio primeiro
p. 141. r. 18. Agostino Agostinho
p. 142. r. 3. major maior
p. 144. r. 33. arhitratus arbitratus
p. 145. r. 23. na-gloria na gloria
r. 32. Encarnasam Incarnasam
p. 146. r. 35. divedidos divididos
p. 148. r. 3. temou tomou
r. 14. as-que as que
r. 36. menham menhan
p. 149. r. 29. divedir dividir
p. 150. r. 28. divedir dividir
p. 152. r. 22. pederia pediria
p. 159. r. 15. miseravel mizeravel
p. 168. r. 25. de genere degenere
p. 170. nota Philosopborum Philosophorum
p. 174. r. 31. consuza confuza
p. 175. r. 2. Manol Manoel
p. 180. r. 32. Trojananas Troianas
p. 184. r. 18. famozifima famozisima
r. 23. frequentemeete frequentemente
p. 185. r. 5. bastaa bastava
p. 189. r. 30. deferir defirir
p. 190. r. pen. Quantos Quanto
p. 191. r. 35. cohecimento conhecimento
p. 192. r. 2. pouquifimos pouquisimos
r. 27. reprensoens repreensoens
r. 29. dizerm dizem
p. 197. r. 2. triunfo triumfo
p. 199. r. 24. salava falava
p. 200. r. ult. pená pena
p. 202. r. 16. lhechamar lhe-chamar
p. 204. r. 4. infigne insigne
p. 205. r. 33. a provar aprovar
p. 208. r. 2. comunemente comumente
p. 211. r. 4. e tratamento o tratamento
p. 214. r. 1. justicar justificar
p. 217. r. 29. ofizeram o-fizeram
p. 218. r. ult. semelhanza semelhansa
p. 219. r. 23. bem bom
p. 223. r. 21. todos todas
p. 226. r. 35. o-brigam o-obrigam
p. 232. r. 2. otantezimo oitentezimo
p. 237. r. 7. em em em
p. 239. r. 9. Epigramma Epigrama
p. 252. r. 36. algnm algum
p. 282. r. 28. mostra-lhe mostrar-lhe
p. 285. r. ult. vizinhanza vizinhansa
p. 286. r. 23. de de de
r. 35. fistema sistema

FIM