The Project Gutenberg eBook of Principios e questões de philosophia politica (Vol. 1 of 2) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Principios e questões de philosophia politica (Vol. 1 of 2) Author: António Cândido Release date: June 23, 2023 [eBook #71031] Language: Portuguese Original publication: Portugal: Imprensa da Universidade, 1878 Credits: Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PRINCIPIOS E QUESTÕES DE PHILOSOPHIA POLITICA (VOL. 1 OF 2) *** PRINCIPIOS E QUESTÕES DE PHILOSOPHIA POLITICA POR Antonio Candido Ribeiro da Costa LICENCIADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA E SOCIO EFFECTIVO DO INSTITUTO DA MESMA CIDADE I CONDIÇÕES SCIENTIFICAS DO DIREITO DE SUFFRAGIO [Illustração] COIMBRA IMPRENSA DA UNIVERSIDADE 1878 DISSERTAÇÃO INAUGURAL PARA O ACTO DE CONCLUSÕES MAGNAS NA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA AO Illustrissimo e Excellentissimo Senhor DR. JOSÉ JOAQUIM FERNANDES VAZ DIGNISSIMO LENTE CATHEDRATICO DA FACULDADE DE DIREITO NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA EM HOMENAGEM DE RESPEITO E COM PROTESTOS DA MAIOR GRATIDÃO Off. O SEU DISCIPULO, ADMIRADOR E AMIGO _Antonio Candido Ribeiro da Costa._ _Se a opinião publico não repellir, por inteiramente infructuoso, este ensaio de philosophia politica, em sequencia á presente obra outros virão a lume dentro de curto praso. Escripto rapidamente, e em meio de mil distracções a que o auctor se viu forçado por quefazeres impreteriveis, este livro não póde deixar de ter defeitos na doutrina e descuidos na exposição; os que se lhe seguirem hão de ser pensados mais attentamente e, no attinente á sua fórma, com maior propriedade redigidos._ INTRODUCÇÃO =Summario.=--Concepção da politica como sciencia experimental. Origens d’esta concepção em Turgot, Kant e Condorcet. O seculo XVIII não era o meio proprio para o desenvolvimento d’esta concepção. Razões d’isso.--A sociedade é um phenomeno natural, cognoscivel pela observação. Demonstração directa d’esta these.--É inexplicavel a evolução social pela philosophia dos _principios absolutos_. Esta philosophia na Allemanha. Divisões e subdivisões d’ella. A theologia hegeliana. Descredito geral d’essa doutrina.--A influencia dos _grandes homens_ não explica a historia. Os grandes homens não dirigem o movimento social, apenas influenceiam a sua intensidade. Idéas de Herbert Spencer sobre a theoria dos grandes homens. Critica d’essas idéas.--A _providencia_, deducção racional da idéa de Deus, não dá a explicação scientifica do universo. Doutrina da Egreja Catholica. Theodicêa de Kant. O livro de Job e as idéas do philosopho allemão. Como H. Spencer concilia a religião com a sciencia. Refutação de Spencer por E. Littré. A nossa opinião.--Se existe uma formula, a que esteja subordinada toda a sociologia. Resposta negativa.--Augusto Comte e a _lei dos tres estados_. Argumentos contra ella de Littré, Wyrouboff e Huxley.--A philosophia de Spencer. Exposição e critica d’ella. Base hypothetica do systema de Spencer, e caracter empirico da sua lei de _evolução_.--O _transformismo_ de Darwin. Esta doutrina na biologia e na sociologia. Bagehot e o seu transformismo applicado á historia. A porção de verdade que ha na hypothese transformista.--Fundo commum dos systemas criticados: a experiencia é o methodo da sociologia; esta sciencia tem a biologia por antecedente necessario.--Situação politica e social do Occidente. Pangermanismo e panslavismo. A _lei da extensão das raças_, applicada á Russia e á Allemanha. Perigos para as nações neo-latinas. A constituição scientifica da sua politica é o unico meio de os evitar. Conclusão. Á politica, utilisação definitiva de toda a sociologia, pertence, na serie hierarchica das sciencias, o logar supremo e culminante. Disciplina custosissima de organisar, porque os factos de que infere as suas leis são extremamente complexos e cambiantes, e, por isso, só a grande esforço classificaveis, as suas difficuldades sobem de ponto logo que se pensa em applicar os processos da deducção logica ás observações e analyses realisadas. E sem essa deducção claro está que seriam infructuosos os trabalhos sociologicos, porque, sem possibilidade de previsão, não ha sciencia social. Póde dizer-se moderna esta comprehensão da politica como doutrina regida por leis experimentalmente determinaveis. Segundo as indagações criticas de E. Littré[1], não vae além do seculo XVIII, sendo Turgot[2] o primeiro que traçou com um grande talento generalisador os lineamentos d’aquella concepção. A pequena distancia de tempo attingiram o mesmo resultado Kant[3] e Condorcet[4]: o insigne philosopho allemão demonstrando _a priori_ a possibilidade d’uma historia universal referida á existencia da nossa especie, e o grande escriptor francez esboçando genialmente o seu quadro dos progressos do espirito humano. Turgot e Condorcet demonstrando que ha successão natural nos periodos da humanidade e perfeita continuidade no trabalho moral das gerações, e Kant derivando esta mesma verdade, não da observação objectiva dos factos, mas da consideração metaphysica de que a nossa especie deve realisar o inteiro desenvolvimento das faculdades do espirito, impossivel nas sós forças e condições do individuo,--assentaram definitivamente no grande facto sobre que se basea toda a sciencia social: a universal solidariedade do genero humano, a existencia da sociedade como entidade sujeita, na sua evolução, a leis proprias e determinaveis. O seculo XVIII, porém, apesar da sua prodigiosa fecundidade especulativa, não era ainda o meio proprio para estas concepções fructificarem inteiramente. O espirito desenvolvia-se com espantosa celeridade; o kosmos desvelava os seus mais importantes segredos aos olhos da philosophia natural; a astronomia chegava, graças aos calculos de Newton e de Laplace e ás descobertas de Herschell, á triumphante conclusão dos principios de Galileu e de Descartes; a physica procedia com muitissima felicidade nas suas experiencias, libertando das velhas entidades metaphysicas o som, a luz, o calor; a chimica recebia de Lavoisier a palavra dos seus factos e a lei das suas combinações; Buffon traçava a historia verosimil do planeta; Lamark, secundado por Gœthe e Saint-Hilaire, punha em solo firme os fundamentos da zoologia, e preparava assim o advento da moderna theoria de Darwin, se inacceitavel como lei universal, em todo o caso mais ou menos valida como hypothese scientifica nos dominios da biologia. Por outro lado a mais larga erudição, o mais consciencioso encyclopedismo e uma ou outra tentativa de generalisação entravam de apparecer no espirito d’aquelle seculo. É sabido que Voltaire expoz e verificou as theorias physicas e mathematicas de Newton, que Montesquieu se mostrou grandemente versado nos mais intrincados problemas da botanica, da acustica e da physiologia, que Rousseau reflectiu nas suas obras moraes as ultimas conclusões da philosophia cosmologica[5]. Esta é a gloria d’aquelle seculo. N’elle assumiu a maxima intensidade o movimento destruidor, a negação scientifica, a critica social principiada no seculo XVI. Este espirito critico utilisou, para realisar o seu proposito, todos os meios de acção intellectual, desde as graças picantes de Rabelais, as duvidas scientificas de Montaigne e o empirismo politico de Machiavel, até ás ultimas convulsões dialecticas da doutrina carteziana, aos fugazes explendores do criticismo allemão e aos excessos exclusivistas do experimentalismo inglez. A lucta foi desordenada, vertiginosa, incoherente, mas indefessa. A Encyclopedia, julgada com um criterio systematico, é um monstro, é um cahos: é conjunctamente athea, deista, pantheista. O furor critico, em todos os dominios que invadiu, foi á ultima extremidade: Kant, á força de apurar as faculdades intellectuaes, negou-as; Rousseau, no proposito de apurar o que de máu existia nas relações politicas e civis da humanidade, negou primeiro a civilisação e alluiu depois os fundamentos da sociedade! Emquanto não estivesse concluida esta obra de decomposição universal, emquanto não acalmasse esta febre de que estavam possessos todos os espiritos, emquanto não desapparecessem de vez as velhas concepções da edade-media que luctavam desesperadamente, na politica e na sciencia, contra a _ideia nova_, que vinha na superficie d’aquelle grande mar imponente e revolto,--claro está que não era possivel construir calmamente, serenamente, os elementos organicos da moderna sociedade. As concepções de Turgot, de Kant, de Condorcet não podiam ser mais que uma fulgentissima aurora: allumiavam, é certo, uma ou outra das mais elevadas consciencias, mas, para a grande multidão dos que liam e dos que pensavam, não podiam deixar de passar inteiramente despercebidas. Eram hypotheses uteis, mas incomprehensiveis naquelle tempo. Por outro lado, o movimento scientifico, religioso e politico dirigia-se num sentido claramente individualista, e chegava-se, por esse modo, a altear a unidade humana em criterio absoluto de toda a philosophia social. Ora a unidade humana, elemento principalissimo da unidade social, não é a só base da sociologia. Como já dissemos, esta grave sciencia tem por verdadeiro fundamento a comprehensão dos agrupamentos humanos como corpos distinctos, naturaes e perfeitamente evolucionaveis; e tal comprehensão era impossivel emquanto as sciencias não copiassem na sua hierarchia didactica a perfeita serie dependente da phenomenologia natural, e se assentasse d’uma vez para sempre em que as forças do homem são impotentes para deduzir _a priori_, das puras condições da consciencia, todas as verdades da natureza e todos os principios da sociedade. A sciencia da natureza foi a primeira a entrar afoitamente n’aquelle caminho. As vãs entidades com que a escolastica pretendia explicar todas as relações naturaes foram desapparecendo umas após das outras, fortemente perseguidas pelo genio de Bacon, e dando logar á consideração das leis physicas e chimicas como forças immanentes ao kosmos. Parallelamente a este movimento vivificador, a philosophia social, descendo raras vezes das regiões verdadeiras mas incompletas do ideal e do especulativo, provava em cada arrojo a sua impotencia; e, a par e passo que as sciencias cosmologicas caminhavam com segurança de hypotheses verificaveis para theorias assentes, aquella philosophia, differente para cada periodo de tempo e para a indole de cada povo, ia dispondo nos espiritos o germen do scepticismo, que é o mais grave, o mais horrivel de todos os males de que póde ser accommettida a humanidade. A astronomia depois de Laplace, a chimica depois de Lavoisier, a biologia depois de Bichat, estavam constituidas, tinham principios incontestaveis, senhoreavam em plena prosperidade os seus dominios independentes, e ainda na Allemanha, onde, desde meado do seculo passado, parecia estar o mais amplo laboratorio das especulações scientificas, dois homens eminentissimos, Hegel e Schelling, intentavam deduzir racionalmente a philosophia da natureza, desprezando, para o estudo d’ella, todo o proposito de analyse, todo o processo de observação! A estas ousadas e infelizes tentativas de _crear_, philosophando, a natureza, chamou Humboldt, com muitissima razão, _les courtes saturnales d’une science purement idéale de la nature_[6]. Parodiando a phrase do illustre sabio prussiano, diremos tambem que as especulações d’aquelles e outros philosophos da mesma escola sobre os fundamentos do direito e da moral, e sobre a verdadeira significação da historia eram as _breves saturnaes d’uma sciencia puramente ideal da sociedade_. * * * * * Mas existe realmente uma sciencia social? N’outros termos, os phenomenos sociaes, no que teem de especifico, são susceptiveis de observação e de classificação? Observados e classificados que sejam, é possivel utilisar os seus resultados, deduzindo, applicando, prevendo? Entendemos que sim. O que não quer dizer que a sciencia social esteja inteiramente organisada. Não está. Sendo, como é, a mais particular e a mais difficil de todas, dista ainda enormemente da perfeição que attingiram algumas das que a precederam. O que está é _constituida_; o que conseguiu, foi delimitar os seus dominios, precisar os seus processos, conhecer a sua indole propria; o que não póde disputar-se-lhe já, é a posse d’um fundamento rigorosamente scientifico. Assim como a chimica se constituiu desde que se descobriu a affinidade e suas leis; do mesmo modo que a biologia adquiriu os fóros da sua independencia logo que se verificou a existencia d’uma vitalidade inherente aos tecidos;--a sociologia surdiu do chaos em que estava quando se liquidou o facto da transmissão hereditaria das civilisações, e se começou de tentar a explicação d’esse facto por leis mais ou menos hypotheticas, mas inspiradas da observação historica. Contra esta comprehensão da sciencia social sabemos nós que se levantam ponderosissimas objecções. A existencia do livre arbitrio e a infinita variabilidade dos actos humanos são a materia forçada d’esses argumentos. A liberdade do homem, dizem, annulla toda a previsão sociologica; se os factos sociaes não são jámais repetidos, não é possivel fazer applicação de leis d’essa ordem. Herbert Spencer, considerando devidamente n’um dos seus melhores livros aquellas objecções, responde-lhes satisfactoriamente, demonstrando em primeiro logar que, se em alguns casos, a vontade humana escapa ao calculo, á previsão, em muitos outros, em quasi todos, cedendo a motivos de consideração determinavel, póde incluir-se nas condições d’uma lei; e notando em seguida que, se a variedade dos actos humanos fosse argumento valido contra a sociologia, seriamos forçados a negar logo, por um motivo analogo, a todas as doutrinas existentes o seu caracter scientifico. «Na geologia, na biologia, na psychologia as previsões são, pela maior parte, apenas qualitativas; quando são quantitativas, são-no d’um modo vago, sem grande precisão. Apesar d’isso não hesitamos em as considerar scientificas. O mesmo devemos fazer relativamente á sciencia social. Os seus phenomenos, muito mais complexos que os das outras sciencias, são, menos que todos esses, susceptiveis de ser tractados com precisão... Mas, desde que póde haver generalisação, e sobre esta generalisação basear-se uma interpretação legitima, ha sciencia[7].» A sociologia não é, não póde vir a ser uma disciplina exacta, mas teem, mas podem ter valor provavel as deducções d’ella, e tanto basta para se lhe não poder negar o fôro de verdadeira sciencia. Todos os dias estamos nós fazendo applicação, embora muitas vezes inconsciente, de leis devidas á experiencia, e exteriorisando assim a convicção de que ha causalidade natural nos factos humanos. Nas luctas da politica, como nos phenomenos da economia social, está-se evidenciando isso a cada momento. Os esforços empregados para a realisação d’um programma; as batalhas feridas em defesa d’uma instituição; os sacrificios feitos á conservação d’um principio; as revoluções operadas em serviço d’um pensamento qualquer, traduzem a forte convicção em que está toda a gente de que, dados certos factos, se modificam as condições sociaes, e sobe ou desce o nivel intellectual e moral dos povos. «Se não ha causalidade natural nas acções dos homens reunidos em sociedade, são cousas absurdas um governo e uma religião. Podem, querendo, fazer depender os Actos do parlamento d’uma tiragem á sorte, e até prescindir d’elles: visto que as condições sociaes não seguem uma ordem determinavel, nenhum máu effeito ha a temer com isso; fica tudo no chaos[8].» A lei da offerta e da procura, a lei da divisão do trabalho, a lei dynamica do trabalho ou a formula da sua productividade, e tantas outras de que a industria e o commercio fazem frequentissima applicação, são mero producto da experiencia. E ninguem por isso deixará de as considerar inteiramente scientificas. De tudo isto infere-se que a evolução economica e politica obedece á influencia de leis naturaes cognosciveis pela observação, e não á cegueira do acaso nem ao imperio de leis mysteriosas e indeterminaveis. Para que a verdade d’aquella proposição ressaia do confronto com as theorias adversas, vamos passal-as em revista, com a exactidão precisa, mas com a rapidez demandada pela indole especial d’este capitulo. * * * * * Vigorou por muito tempo nas escolas uma theoria eminentemente especulativa, que ainda tem partidarios decididos nas mais altas regiões do saber official: a theoria que considera a sociedade, no seu desenvolvimento historico, como acção fatal de principios irresistivelmente fecundos, não em fórma mudavel, contingente e progressiva, mas com um caracter de todo o ponto imperativo e absoluto. N’este systema de idéas a sociedade é uma pura deducção da consciencia. Este pensamento recebeu na Allemanha as suas mais solemnes fórmas scientificas. A evolução d’elle, quanto á sua derivação logica, vem desde o _formalismo_ de Kant até ao _pessimismo_ de Schopenhauer. Esta ultima doutrina é o mais grave symptoma pathologico do idealismo transcendental d’alem do Rheno. Aquillo morreu, ou vae morrer. A moderna evolução philosophica da Allemanha tem, sem embargo dos seus excessos e desvarios, manifesta utilidade. A extrema _individualisação_ de Kant preparou o _objectivismo absoluto_ de Hegel e de Schelling, e estes dois philosophos, mas principalmente Hegel, são os precursores das idéas correntes sobre evolução historica, que, posto não soffram ainda coordenação systematica, dão com certeza uma forte direcção nova e util ás especulações da sociologia. Como os individuos teem caracter e temperamento proprios, as raças produzem-se com qualidades especificas que as differençam notavelmente das outras communhões sociaes. Ora uma das mais caracteristicas qualidades da raça germanica é o seu irresistivel pendor para as altas especulações metaphysicas e subtis. Nem os seus mais insignes naturalistas escapam á força d’essa lei. Sirva de exemplo o _monismo_ de Haeckel. É a influencia indiscutivel do primitivo caracter aryano nestes seus directos e legitimos representantes; é tambem, n’uma certa proporção, a consequencia natural do meio geographico d’aquelle povo. Aquelle caracter assume o _maximum_ de intensidade no labor intellectual dos seus philosophos. Citaremos um facto. O movimento, litteraria e scientificamente individualista, do espirito francez, que produziu a revolução de 89, foi parallelamente correspondido na Allemanha pela doutrina de Kant e seus discipulos; mas que differença, que enormissima differença entre as faceis demonstrações practicas e claras da philosophia franceza e a selva cerrada de deducções e raciocinios de toda a ordem, que entumecem e difficultam as especulações allemãs! Longe de nós o querermos com isto offender a memoria do insignissimo critico allemão, e muito menos ainda amesquinhar a importancia da sua patria no movimento intellectual da Europa. Não. Sabemos muito bem que, sendo a ultima a libertar-se das esterilisadoras influencias da escolastica, em pouco tempo chegou, graças aos esforços geniaes de Leibniz, de Lessing, de Wolf, de Kant e seus successores, a acompanhar e, por vezes, a exceder as nações muito anteriormente despertadas por Bruno, Bacon e Descartes. Esta theoria dos principios absolutos, logicamente pantheista nos homens mais notaveis da escola, decáe a olhos vistos. Ninguem se entende neste chaos. Sem um criterio seguro e invariavel, transferindo quasi sempre para o mundo fallaz da imaginação os principios da sciencia, os philosophos d’esta escola divergem infinitamente uns dos outros, dividem-se e subdividem-se, desacreditam-se por isso mesmo, e ficam, a final, com toda a responsabilidade da lamentavel anarchia intellectual de que tanta gente esta possessa! A fortissima dóse de scepticismo, que tem envenenado muitas consciencias, não tem outra causa.... Segundo uns, os _formalistas_, o espirito e a natureza não teem realidade, não passam de phantasmas inapreciaveis e inconsistentes; segundo outros, os _objectivistas_, a consciencia é um dos infinitos tabernaculos do absoluto, do absoluto real, de Deus, ao mesmo tempo pessoal e impessoal, perfeitissimo e progressivo! Damos isto como amostra: «_Dieu est immanent non-seulement dans l’ensemble de l’univers, mais dans chacun des êtres qui le composent. Seulement il ne se connaît pas également dans tous. Il se connaît plus dans la plante que dans le rocher, dans l’animal que dans la plante, dans l’homme que dans l’animal, dans l’homme intelligent que dans l’homme borné, dans l’homme de génie que dans l’homme intelligent, dans Socrate que dans l’homme de génie, dans Boudha que dans Socrate, dans le Christ que dans Boudha._ «_Voila la thèse fondamentale de toute notre théologie. Si c’est bien là ce qu’a voulu dire Hegel, soyons hégéliens[9]._» Sinceramente, não os comprehendemos. Mas a divergencia dos resultados é que annulla inteiramente a competencia do processo. Basta um exemplo: Dos que, seguindo Hegel, procuram nos factos da historia a confirmação das suas deducções ontologicas, uns, como Renan, vêem a humanidade ascender successivamente para a suprema perfeição, clarificando-se cada vez mais na sua consciencia o espelho em que se reflecte Deus; outros, como Schopenhauer, consideram o nihilismo, a destruição propria pela negação absoluta da vontade, como o verdadeiro ideal das almas; ha quem veja a felicidade social nas fortes organisações economicas e politicas; em sentido contrario, não falta quem sustente que a direcção do espirito humano é no caminho do mais rasgado individualismo! Disse já alguem que toda a heresia procurava na Biblia os seus argumentos de auctoridade. É certo isso, como é egualmente certo que ainda não appareceu concepção mental alguma, que não tenha obtido da historia, por aquelle modo interpretada, apoio e fundamento. São objecto das mesmas infidelidades o livro de Deus e o livro dos homens. Bem certo que as cousas apparentam sempre as côres do prisma, através do qual são vistas! * * * * * A theoria dos _grandes homens_ considerados como a principal, senão a unica causa impulsora da evolução social, tambem não resiste á critica. Este criterio de philosophia da historia, se tal designação merece, é comtudo uzualissimamente empregado não só pelo vulgo ignorante, o que não é para estranhezas, mas até pelos mais festejados escriptores, pela _élite_, aliás muito restricta, dos nossos sabios e pensadores. Basta, para nos convencermos d’isso, lançar os olhos pelos compendios adoptados nos estabelecimentos de instrucção secundaria, e por quasi todos os nossos livros sobre historia. E todavia um breve momento de reflexão seria sufficiente para annullar em quaesquer consciencias, medianamente esclarecidas, a influencia d’aquelle nefasto preconceito... A direcção do movimento social não depende dos grandes homens. Não. A historia não é, como geralmente se crê, a só lição do que foram os heroes, os sabios, os grandes reis e os grandes martyres; a historia é a consciencia do continuo desenvolvimento da humanidade por effeito de leis immanentes ao seu organismo social. Os grandes homens não são mero improviso da natureza; são, na maior parte da sua obra, verdadeiro producto de estados sociaes anteriores, e os seus talentos, para que vinguem, hão de necessariamente ser postos ao serviço do seu tempo. Crê alguem que seria hoje possivel um Gregorio VII, ou um Innocencio IV? Com outro rei que não fosse D. José, e noutras circumstancias que não fossem as de Portugal no seculo XVIII, poderia o marquez de Pombal fazer o que fez? A revolução franceza era possivel sem a precedente desorganisação moral do velho regimen politico a datar de Luiz XIV, sem o lento mas continuo effeito das descobertas scientificas e dos descobrimentos geographicos, sem a decomposição das velhas concepções a puros golpes da philosophia critica? Napoleão nas suas glorias, nas suas conquistas, nos seus erros e na sua desgraça não foi o verdadeiro reflexo da França nas suas relações com o mundo? Bismarck o que é senão a alta personificação intellectual e diplomatica do actual momento da raça germanica? Os elementos com que tem jogado, não os preparou o tempo, não os produziu a historia? Não amontoemos exemplos. Os grandes homens podem influir, e têm influido, de feito, sobre a intensidade do movimento social; mas não influem, mas não podem influir sobre a direcção d’elle. São, em parte, causa do futuro, mas são totalmente effeito do passado. Herbert Spencer reduz claramente a questão a estes poucos termos: «A origem do grande homem é natural ou sobrenatural. N’este caso, é um verdadeiro missionario de Deus, e então ahi estamos nós caídos no principio theocratico... Se a origem do grande homem é natural, importa classifical-o sem hesitação, como todos os outros phenomenos da sociedade, entre os productos dos estados anteriores d’essa mesma sociedade[10].» Sobre a genese d’esta theoria, H. Spencer produz algumas observações cheias de interesse. Não concordamos inteiramente com ellas, e vamos, por isso, modifical-as no sentido do nosso pensamento. Eil-as, em summa, as suas observações: Considera elle a theoria dos grandes homens como um legado moral e physiologico dos tempos primitivos. Reunidos em volta da sua fogueira, á noite, os selvagens celebram os acontecimentos do dia findo, e as varias peripecias da caça realisada, e ahi votam louvores ao que se mostrou mais dextro ou mais agil; se se consummou alguma expedição guerreira, a força d’uns, a coragem d’outros eis o assumpto mais versado n’aquellas suas práticas frequentes. Quando escaceiam acontecimentos importantes na propria tribu, os das mais vizinhas fornecem objecto para as narrações do costume, e, se isso não convem, recontam-se mais uma vez os successos reaes ou lendarios dos antepassados. Assim se conserva a tradição moral da tribu, e «pois que taes commemorações se referem á existencia e prosperidade da tribu, a ellas ligam os selvagens o mais vivo interesse.[11]» E não é isto privativo da vida nomada; dá-se egualmente nas primeiras raças historicas. «Os frescos dos Egypcios, as pinturas muraes dos Assyrios, representam as acções dos seus grandes homens; as inscripções, como as da pedra Moabita, não rememoram senão os factos dos reis. Só por uma inducção difficil é que se póde colher outro ensinamento d’estes documentos primitivos, pinturas, hieroglyphos e inscripções[12].» Estamos, pois, sob a pressão terrîvel d’esta herança, segundo o pensador inglez, e não é verdade que a especie humana tenha eliminado, nos seus incessantes progressos, esta tendencia, aliás muito veneravel pela sua antiguidade. Effeito de se não acceitarem as heranças a beneficio de inventario!... Muitas causas favorecem grandemente a conservação d’aquelle preconceito: a universal predilecção pelas personalidades que, sendo uma qualidade activa do homem selvagem, é ainda, nas gerações actuaes, uma qualidade dominante; os encantos, as seducções que nos prendem ás anecdotas, ás aventuras dos homens celebres; e, finalmente, a infinita facilidade de, por este meio, se adquirir uma _grande sciencia_, sem as muitas fadigas, sem as custosas lucubrações que por outro processo se exigem. Eis, muito por alto, a explicação de Spencer a respeito da origem d’aquella inclinação da nossa especie, e sobre a sua permanencia no entendimento humano. Aproveitando da theoria o que ella tem de acceitavel, diz: «É mister reconhecer que ha alguma verdade na theoria dos grandes homens. Limitada ás sociedades primitivas, cuja historia apenas se constitue dos esforços feitos pelos homens para se destruirem e subjugarem uns aos outros, podemos admittir que tal theoria se harmonisa perfeitamente com os factos, mostrando-nos o chefe da tribu na plena posse d’uma grande importancia,--posto seja muito pequena a parte attribuida áquelles que obedecem ao commando d’esse chefe... Mas o seu erro capital consiste em suppôr que o que foi verdadeiro outr’ora é sempre verdadeiro, e que relações entre governantes e governados, possiveis e uteis n’uma certa epoca, são uteis e possiveis em todo o tempo[13].» As nossas duvidas referem-se ao modo por que Spencer explica a conservação da theoria dos grandes homens, e tambem á porção de verdade que tal theoria encerra. A natureza produzindo homens com faculdades extraordinarias e distinctissimas, e a sociedade desenvolvendo-se desegualmente nas differentes camadas de que se constitue, explicam o que ha de legitimo n’aquella theoria, e dão, ao mesmo passo, a verdadeira razão por que o habito intellectual dos selvagens se tem conservado, com maior ou menor energia, na consciencia universal. A constituição politica e social dos povos, obedecendo ás leis da sua evolução, tem collocado á frente do movimento geral familias e classes com os mais amplos poderes e os mais largos privilegios. Só os Estados Unidos, pelas circumstancias muito peculiares da sua formação, estão fóra d’essa lei. Aquellas familias e aquellas classes teem necessariamente preponderado nos acontecimentos de maior vulto, em parte pela sua posição hierarchica que as habilitou a tomarem o primeiro e mais importante logar nas differentes phases da evolução; em parte porque, se ellas attingiram aquella eminencia social, foi isso devido ás suas mais felizes disposições nativas, e, como é sabido, no concurso de todas as forças prevalecem sempre as mais validas. Tem applicação aqui, restrictamente n’este ponto, a lucta pela existencia e a selecção natural da doutrina biologica de Darwin. Reduzida a estes termos, a theoria dos grandes homens é um exaggero, não é uma falsidade. É inquestionavel que as desegualdades da natureza e as desegualdades da sociedade teem permittido até agora, e continuarão a permittir o predominio de algumas individualidades nos mais importantes negocios dos povos; e, se assim é, n’esse facto natural, legitimo, constante, está a razão do culto prestado, em todos os tempos, aos esplendores da intelligencia e aos heroismos da vontade. O que a theoria tem de falso é a idéa de que os grandes homens influem na direcção geral do movimento humano, quando é apenas liquido que elles influenceiam a sua intensidade. Sem Thiers e sem Gambetta, a França appellaria das desgraças do segundo imperio para as auspiciosas experiencias da democracia; o que poderia acontecer, sem o serviço d’esses dois insignissimos patriotas, seria retardar-se por alguns annos, infamados por fugazes restaurações e por cruentas convulsões civis, o advento d’aquelle regimen politico. Sem a acção pessoal do principe de Bismarck, a Allemanha realisaria a sua unidade, para que tende visivelmente ha mais de meio seculo, do mesmo modo que, sem o genio diplomatico do principe de Gortschakoff, a Russia procuraria por todos os modos realisar o sonho panslavista, de que ha muito está possessa; sómente aconteceria, na falta dos dois famosos chancelleres, que as cousas seguiriam por outro caminho para aquelle mesmo fim, ou teriam de realisar-se mais tarde. Mas faziam-se, mas realisavam-se. * * * * * Para a maior parte dos espiritos, para quasi todos, a sociedade traduz na sua evolução um plano da providencia, e, por isso, os esforços da philosophia devem tender todos a procurar na phenomenologia humana os vestigios d’essa poderosa acção constante e sobrenatural. Bossuet julgou com este criterio a historia universal; Vico subordinou a este pensamento os seus mais importantes trabalhos; Bunsen quiz determinar, na sequencia das gerações, as linhas precisas da revelação moral, e reduzir a esse facto todas as causaes do progresso historico. É tão verdadeiro o principio fundamental d’esta theoria, como são falsas as conclusões deduzidas d’elle. Se repugna á consciencia que, sendo creações de Deus a natureza e a sociedade, elle as desampare inteiramente estranho á sua obra,--repugna-lhe egualmente que o nosso entendimento possa surprehender, nos varios factos observados, a verdadeira intenção de Deus. O que é razoavel, o que é logico é isto: elevar-se o espirito, pela analyse paciente dos factos, ás leis geraes que os dominam, systematisal-as com ordem, e á medida que se forem obtendo resultados incontestaveis e seguros, referir então á causa suprema, na hypothese de se haver acertado, as idéas que fructeou o estudo da sociedade, as verdades que se liquidaram no estudo da natureza. O grande Newton, que descobriu a lei da gravitação universal, não pronunciava o nome de Deus sem um forte sentimento de reverencia e uma commoção profundissima... Por este modo, a natureza e a sociedade dão-nos o pensamento da providencia; não é esta, definida ontologicamente, que nos dá a explicação do mundo. A providencia deduz-se _a priori_, mas determina-se _a posteriori_, como se diz na linguagem da escola. _Deus escreve direito por linhas tortas_, affirma o nosso povo. Esta phrase, profundamente conceituosa, envolve conjunctamente a crença na providencia divina e a completa ignorancia dos processos por que ella actua no universo. Como vencer esta ignorancia? Estudando despreoccupadamente o universo, e não invocando cada um, a seu puro arbitrio, a auctoridade de Deus para as comprehensões que tem e para os actos que pratíca. Explicar as cousas pelos designios sabidos da divindade, afigura-se-nos orgulhoso e risivel. Á hora a que escrevemos estas linhas, Deus é invocado como impulsor de todos os movimentos realisados em face da guerra oriental. Na Russia, manda exterminar a Turquia; na Inglaterra, manda defendel-a e sustental-a. N’uma obra franceza, publicada depois dos desastres de Sédan, o seu auctor explica o resultado da guerra franco-prussiana pelo castigo que o céu quiz inflingir á França; todos sabem que o imperador Guilherme está intimamente convencido de que os seus feitos politicos e militares são inspirados pela providencia divina. Isto não é scientifico, é ridiculo. A egreja catholica ensina que a providencia é um mysterio insondavel, e, todo o proposito de a interpretar, uma rematada loucura. É verdade definida com egual clareza na escriptura e na tradição: _Quis cognovit sensum Domini_, diz S. Paulo[14], _aut quis conciliarius ejus fuit_? Sancto Agostinho desenvolve n’uma bella imagem este pensamento de S. Paulo: _Si in alicujus opificis officinam imperitus intraverit, videt ibi multa instrumenta, quorum causas ignorat; et si multum est insipiens, superflua putat. Jam vero, si in fornacem ceciderit, aut ferramento aliquo acuto, cum id male tractat, se ipsum vulneravit, etiam perniciosa et noxia ibi existimat esse multa: quorum tamen usum, quoniam novit artifex, insipientiam ejus irridet, et verba inepta non curans, officinam suam constanter exercet_[15]. O que este esplendido luminar da egreja diz dos que referem a Deus os varios casos desgraçados da vida humana, é egualmente applicavel aos que explicam do mesmo modo os successos bem afortunados. Quantas vezes nos enganamos ante a falsa perspectiva d’uma situação, que se nos afigura má e o não é? Que de vezes a felicidade de hoje é o prefacio do infortunio de ámanhã? Commentando aquella passagem de S. Paulo, diz Liebermann: _Nos neque rerum naturas cognoscimus, neque fines, nec quid cujusque naturae conveniat, aut quibus legibus res quaelibet governari debeat, neque alia multa viarum et judiciorum Dei inscrutabilia arcana._[16] N’esta rendidissima humildade está uma philosophia sincera e profunda. Contra ella braveja baldadamente a estolida immodestia dos Prometheus da escola, que, julgando ter roubado ao céu o fogo das eternas verdades, a final só teem no espirito a fugaz phosphorescencia das proprias illusões. Este modo de considerar a providencia recebeu de Kant a mais brilhante consagração scientifica. Willm[17] resume d’este modo o pensamento do grande philosopho: «O universo, considerado como manifestação da vontade de Deus, é para nós um livro quasi sempre sellado; é-o inteiramente para todos que procuram n’elle os seus designios absolutos. É impossivel interpretar as vistas moraes da providencia pelas apparencias do mundo phenomenal. Isso valeria o mesmo que ensaiar uma interpretação doutrinal, eterno proposito de toda a theodicea especulativa. Ha outra theodicea: a que responde a todas as objecções contra a sabedoria divina, fundando-se n’uma decisão authentica e dictatorial do proprio Deus, ou então n’uma decisão da razão, pela qual a idéa de Deus, como ser moral e sabio, nos é dada necessariamente e _a priori_...» Kant viu uma interpretação d’esta ordem no livro de Job. Sapiencial ou historico, este livro é um thesouro de philosophia. Todos conhecem mais ou menos a moralissima narrativa d’elle. Job era feliz e rico; o seu lar, abençoado e puro. A mais larga e reverente consideração acompanhava a toda a parte o sou nome. A consciencia esmaltava-se-lhe justamente nas suaves perspectivas da virtude propria. Assim lhe corria a vida. Um dia, inesperadamente, a desgraça vibrou contra elle todos os seus raios. Empobreceu, a morte levou-lhe uma a uma as pessoas da familia, accommetteu-o a mais horrorosa das molestias, e tudo revestiu para o pobre do homem as sinistras côres da maldição. Foram visital-o alguns dos seus amigos, e todos procuraram explicar aquelle reviramento na fortuna de Job pela acção directa de Deus. Da hypothese passaram á these. A maior parte d’elles pronunciou-se pelo systema que considera castigos do céu todos os males do mundo; Job, pela sua parte, curvando-se humillimamente perante os decretos divinos, consagrava o systema da vontade divina absoluta n’esta profunda phrase: _Ipse enim solus est, et anima ejus quodcumque voluit, hoc fecit_[18]. Outra vez saíam-lhe dos labios estas palavras: _Dominus dedit, Dominus abstulit; sit nomen Domini benedictum_[19]. Os seus amigos, como finamente observa Kant, preoccupavam-se menos com a verdade do que com o desejo de agradar a Deus. Ao contrario de Job, não tinham sinceridade alguma. A final, Deus interveio, premiou a crença viva de Job, confirmou o seu modo de ver, indignou-se contra os hypocritas que o haviam tentado, e só lhes perdoou por mediação do varão justo e sincero, que foi restituido á felicidade que desejava e merecia. Kant deu ao pensamento de Job os fóros d’uma verdade scientifica; nós acceitamol-o tambem como um perfeito principio especulativo, e, sobre tudo, como fundamento prático da verdadeira moralidade humana. Como é claro, o nosso pensamento dista infinitamente da ingenhosa mas falsa theoria com que H. Spencer, no seu livro intitulado--_Primeiros principios_, procura conciliar a sciencia com a religião. Eis, muito resumidamente, a sua idéa[20]: Importa distinguir o _cognoscivel_, objecto das sciencias, do _incognoscivel_, objecto das religiões, não para negar o incognoscivel, mas para o restringir aos dominios em que é legitimo como facto da consciencia. A religião, phenomeno constante da historia da humanidade, é a expressão d’um facto eterno; por outro lado, a sciencia é um grande systema de factos e de leis, recrescente e progressivo com o movimento da historia. Duas cousas legitimas de que é necessario tomar conta, e que importa harmonisar devidamente. A tarefa será difficil, mas é possível. _É inadmissivel_, diz elle[21], _a hypothese da existencia de duas verdades em absoluta e perpetua opposição._ Spencer dedica a este problema de conciliação os primeiros capitulos da sua obra, fortemente encorajado pela convicção de que _da fusão de idéas antagonicas, cada uma das quaes encerra uma parte da verdade, resulta sempre um desenvolvimento superior_.[22] Parece que ha n’esta phrase de Spencer reminiscencias de Kant e de Hegel. Qual ha de ser, porém, a synthese conciliadora da religião e da sciencia? Se fôr uma verdade religiosa, a sciencia não a acceita; se fôr uma verdade scientifica, a religião repelle-a. Onde, pois, encontrar a formula harmonisadora d’essas duas potencias historicamente inimigas? Na analyse profunda das religiões e das sciencias, responde o auctor inglez. Umas e outras hão de contribuir por egual para a solução do problema. Não sustentam todas as religiões, ainda as mais diametralmente oppostas, que o mundo, com tudo que contem e tudo o que o cerca, é um mysterio? Não é este o objecto commum, o objecto irreductivel de todas ellas, desde o fetichismo até á doutrina monotheista? Por outro lado, o limite da sciencia não é sempre o _incomprehensivel_? A essencia das cousas não escapa inteiramente á observação humana? Desde a hypothese cosmogonica do universo até á theoria das sensações e das idéas, não ha mysterios a cada passo, a cada momento? E confessar-lhes a existencia não é uma necessidade logica? Devem ser respondidas affirmativamente estas perguntas, e, sendo-o, ahi vemos nós convergirem n’uma formula abstracta e geral os elementos da desejada conciliação. A religião affirma o _incognoscivel_, e faz d’elle o seu objecto; a sciencia affirma-o também, e faz d’elle o seu limite. Seja, pois, a religião a encarnação do mysterio absoluto, cuja existência a sciencia legitíma; incumba-se pela sua parte a sciencia de systematisar os factos conhecidos, e as leis d’esses factos derivadas.... Ahi fica, sem o imponente prestigio d’um sem numero de raciocinios e demonstrações, o alvitre conciliador proposto por H. Spencer. É acceitavel? Não. Em primeiro logar, esta theoria é a apresentação, sob nova fórma, das velhas idéas de Th. Reid, de D. Stewart e de Hamilton. _A relatividade do conhecimento humano_ é um dos principios fundamentaes da escola escoceza. O incognoscivel, que esta confiava á guarda do senso commum, Spencer transfere-o todo inteiro para os dominios da religião. A differença é pequena. O incognoscivel da religião tem realidade objectiva; mas quem não vê que o incognoscivel da sciencia é o incognito, uma negação, uma não-existencia? Não sendo uma determinação positiva, póde harmonisar-se com alguma cousa, póde comparar-se a alguma cousa? Não, evidentemente. Littré põe esta theoria á prova d’um dilemma esmagador. Eil-o: «Em todos os tempos a fé determinou o incognoscivel, isto é, ensinou cousas de origem e de fim. Este ensino ou ha de conservar o seu caracter, ou perdel-o. Se o conserva, como a sciencia declara indeterminavel o incognoscivel, haverá, e é isso o que ahi se vê, scisão e conflicto; a conciliação, que o sr. Spencer suppõe no seio do incognoscivel, não se realisará. Se, pelo contrario, a fé renuncia ás suas determinações, o seu ensino perde o caracter proprio, e confunde-se logo com o da sciencia; haverá, não conciliação, mas absorpção. Então a fé poderá queixar-se de lhe haverem dado uma designação vazia em vez das suas realidades, a ponto de não encontrar, n’este limite variavel que a sciencia chama o incognoscivel, um clarão do que ella crê e espera[23].» Aproveitamos contra o pensador inglez a critica de Littré, não acceitando de modo algum as idéas d’este pensador sobre materias religiosas. Para elle a religião é um facto legitimo, mas transitorio da humanidade; é o systema de educação geral, fatalmente usado na infancia da nossa especie. N’este ponto ainda o positivista francez dista mais de nós do que o philosopho inglez, o qual, como vimos, considera a religião uma inspiração eterna da consciencia. Para nós a religião é um systema de factos e de principios relativos á origem e aos destinos sobrenaturaes do homem. A realidade d’esses factos e a auctoridade d’esses principios teem uma demonstração positiva, embora não comportem uma explicação intima e completa. A existencia de J. Christo, por exemplo, a realisação das prophecias, a operação dos milagres e a manifestação de todos os outros caracteres da sua doutrina, são factos, puramente factos. Toda a discussão scientifica deve versar sobre a authenticidade d’elles. Reconhecel-os como reaes, eis a obra da sciencia; acceital-os depois como verdades na sua significação theologica, eis a obra da fé. Ora, como entre factos não ha collisão possivel, claro está que só por este modo é que podem cessar os conflictos da religião com a sciencia. Aquella rege os dominios da fé apoiada sobre factos; esta realisa a liquidação dos factos sobre que se fundamenta a fé. Isto nos pontos em que se encontram; nos outros, inteira diversidade e absoluta independencia de processos. * * * * * Se a evolução social não póde explicar-se pela theoria da providencia, pela theoria dos grandes homens e pela que a faz derivar inteiramente dos principios eternos da consciencia; se não póde ser mero producto do acaso; se a observação verificou já o facto fundamental do progresso,--a transmissão hereditaria do trabalho moral das gerações; se, n’uma palavra, está _constituida_, quaes são as suas leis, qual é a sua doutrina geral evolucionavel? Aqui está o ponto mais difficil; aqui se combatem rijamente as mais oppostas divergencias. Que, importa dizel-o desde já, dado o facto da solidariedade humana, universal e perfectivel; demonstrado que a verdadeira sciencia social assenta directamente, não só sobre as qualidades do individuo, mas tambem, e principalmente, sobre a estructura variavel dos agrupamentos humanos; considerado tudo isto devidamente, já fica indicado o novo caminho a seguir, já ficam rasgados novos horizontes ao espirito, e, emquanto não apparecer uma theoria perfeita, emquanto se não formular a lei abstracta, ineluctavel e completa, que presida á evolução humana, as menos defeituosas hypotheses, entre as que teem sido offerecidas, poderão servir de leis provisorias para trabalhos de investigação. Pela nossa parte, não conhecemos theoria alguma que nos satisfaça plenamente como formula superior de toda a evolução. Vamos dar a razão d’isto, passando em revista, ainda que muito por alto, o _positivismo_ de A. Comte, o _evolucionismo_ de Spencer, e o _transformismo_ de Darwin nas suas applicações á historia. Como é sabido, os pontos fundamentaes do systema _comteano_ são: _relatividade_ de todo o conhecimento humano, a lei dos _tres estados_, que é, segundo elle, a formula fundamental de todo o desenvolvimento historico; e a _classificação das sciencias_, baseada na generalidade decrescente e na complexidão progressiva de todos os generos de phenomenos observados. A _relatividade_ dos conhecimentos humanos deveu-a a Hume; a _lei dos tres estados_, se lhe não foi inspirada por Vico, deveu-a com certeza a Turgot; a _serie_ das sciencias, essa é que representa o grande esforço de A. Comte, e é, de certo, a sua maior gloria. Não queremos marear a universal reputação do philosopho francez com isto de darmos aos seus trabalhos alguns precedentes historicos; elle dizia muitas vezes, e os seus discipulos repetem a todo o momento que essas precedencias, essas longas preparações scientificas são uma das maiores glorias da sua doutrina, e um dos mais valiosos titulos da sua legitimidade. Reconhecendo n’essa philosophia a sua admiravel condensação de dados positivos, e votando-lhe por isso o justo louvor que merecem as grandes systematisações scientificas, declaramos já que, dos principios essenciaes d’essa philosophia, só acceitamos um: a classificação das sciencias. Sobre isto nada conhecemos tão perfeito, antes nem depois de A. Comte. As criticas de Carey e de H. Spencer não fizeram mais do que avultar-lhe o valor. Para A. Comte, a formula geral da evolução é a lei dos _tres estados_, como fica dicto. Copiamos para aqui as suas proprias palavras: «Estudando o desenvolvimento total da intelligencia humana nas suas differentes fórmas de actividade, desde os seus mais simples ensaios até aos nossos dias, parece-me que descobri uma grande lei fundamental, á qual elle está preso por uma necessidade invariavel, e que póde ser solidamente estabelecida não só sobre as provas racionaes fornecidas pelo conhecimento da nossa organisação, mas tambem sobre as verificações resultantes d’um exame profundo do passado. Consiste essa lei em que cada uma das nossas principaes concepções, cada ramo dos nossos conhecimentos passa successivamente por tres estados theoricos differentes: o estado theologico ou ficticio, o estado metaphysico ou abstracto, o estado scientifico ou positivo. N’outros termos, o espirito humano, pela sua natureza, emprega successivamente, em cada uma das suas investigações, tres methodos de philosophar, cujo caracter é essencialmente differente e até radicalmente opposto: primeiro o methodo theologico, depois o methodo metaphysico, e por ultimo o methodo positivo. D’ahi tres especies de philosophia, ou de systemas geraes de concepções sobre o conjuncto dos phenomenos, que mutuamente se excluem: a primeira é o ponto de partida necessario da intelligencia humana; a terceira, o seu estado fixo e definitivo; a segunda serve unicamente de transição[24].» O pensamento do philosopho ahi fica claramente expresso. Vamos combatel-o com armas da sua escola. Fornecem-n’as dois dos seus mais devotados discipulos, Littré e Wyrouboff. Ninguem duvidará da orthodoxia d’elles. Littré julga insufficiente a _lei dos tres estados_, e propõe-lhe uma modificação da sua lavra. O maior defeito que lhe encontra (e, realmente, ninguem o dirá pequeno) é o de não comprehender e explicar o desenvolvimento moral, industrial e esthetico da humanidade, ficando assim aquella formula apenas _com a excellente qualidade de ser relativa ás especulações em que a evolução por filiação é mais manifesta, e, por isso, a de dar uma noção positiva da marcha da historia_[25]. Tem além d’isso contra si o ser uma lei meramente empirica, a _simples expressão abstracta_ d’um facto, e, por isso, o inconveniente de não prestar á historia mais do que um fundamento provisorio, puramente hypothetico. Na opinião do seu critico, a lei dos _tres estados_ necessita racionalisada por uma lei superior que a comprehenda. Só d’esse modo é que, de _infinitamente provavel_, ella se póde tornar _absolutamente certa_. Estas phrases sabem um pouco á metaphysica, mas são de Littré[26]. A modificação de Littré consiste n’isto: O desenvolvimento do genero humano divide-se em quatro periodos, a que correspondem outros quatro, perfeitamente semelhantes, no desenvolvimento do individuo. No primeiro, a humanidade está sob o imperio preponderante das necessidades; no segundo, a moral desenvolve-se despertando as primeiras creações religiosas e civis; no terceiro, o sentimento do bello cria as construcções e os poemas; no quarto, finalmente, a razão, liberta das precedentes occupações, trabalha por si mesma e procede á inducção das verdades abstractas. D’este modo a lei dos tres estados que, segundo Littré, era a simples expressão abstracta d’um facto, fica com um fundamento racional. Qual? A necessaria relação do desenvolvimento collectivo com as phases essenciaes do desenvolvimento individual. Eis as suas palavras: «Pensando em que o desenvolvimento collectivo devia traduzir nos seus traços principaes o desenvolvimento individual, fui impressionado pela nenhuma concordancia que ha entre a analyse mental, que Augusto Comte copiou da hypothese de Gall, e a lei empirica que elle tinha descoberto em sociologia. Concebi, sob um outro ponto de vista, essa analyse mental, e, considerando-a como ponto de partida da analyse sociologica, fui levado a uma lei racional que, sem tocar na realidade da lei empirica de Augusto Comte, lhe serve de interpretação, etc.[27]» N’um livro publicado quatro annos depois das Palavras de Phil. Posit., Littré[28] reconhece que foi precedido nas suas vistas sociologicas por Saint-Simon, e dá-lhe por isso as honras da prioridade; affirmando logo em seguida que os seus estudos, feitos ulteriormente áquella publicação, em nada alteraram o seu modo de ver, e insistindo em que elle encerra os elementos essenciaes d’um tractado de sociologia. Wirouboff tambem, por sua vez, desprestigia, modificando-a, a lei de Comte. Levou-o a isso um estudo profundo sobre as civilisações do extremo Oriente[29]. Como é sabido, Comte dividiu o primeiro periodo, o periodo theologico, em tres phases successivas: a do fetichismo, a do polytheismo e a do monotheismo. Wirouboff verificou que no Oriente as cousas se não passam inteiramente assim. O movimento religioso da Indo-China, de que primitivamente se inspiraram as duas raças aryana e chineza, é n’ellas de todo o ponto divergente. Ao passo que a primeira se desenvolve regularmente _nos tres estados_, segundo a afirmação de Wyrouboff, a segunda, pelo contrario, escapa inteiramente á influencia d’essa lei, pois, tendo principiado por um culto astrolatico, tem-se afastado d’elle pouco a pouco, chegando pela influencia das doutrinas de Lao-Tseu, de Confucio, de Mencio, e das especulações boudhicas, á quasi negação de toda a divindade. «O traço saliente de todas as religiões do extremo Oriente é o _atheismo_, não o atheismo systematico que nega a existencia de Deus, mas o que raciocina sem se inquietar com a divindade[30].» Os Mongoes são a unica excepção conhecida áquelle caracter, o que póde ser plausivelmente explicado pelo contacto d’elles com os Semitas, que, em tal hypothese, lhes influiram a idéa do monotheismo arabe. De modo que a divergencia notavel, apontada por aquelle escriptor, refere-se só á raça no seu estado de pureza. Wyrouboff, depois de largas considerações sobre este assumpto, e tendo, em serviço do seu pensamento, invocado a opinião de Renan, tão combatida por Max Müller, de que o monotheismo é a religião fundamental primitiva da raça semitica, reune todas as conclusões do seu estudo n’estas palavras: «Se esta theoria é verdadeira, e eu não sei de facto algum que a contradiga, a lei dos _tres estados_, formulada por A. Comte, muda completamente de caracter: em vez de ser a expressão d’um facto geral, d’uma funcção propria a todas as collectividades humanas, abandonadas ao curso natural das cousas sociaes, torna-se o resumo da historia da raça aryana... A lei de M. Comte deixa de ser uma lei abstracta, e passa ao quadro das leis exactas mas empiricas da sociologia[31].» Em conclusão, os dois mais graduados representantes do positivismo francez não acceitam a lei dos tres estados, consoante a entendeu e formulou o chefe da escola. Littré sustenta que ella não comprehende o desenvolvimento total da humanidade, explicando apenas as concepções, em que a derivação por filiação é mais clara; e, por outro lado, sente que ella não tem o caracter d’uma lei racional, uma base permanente para as respectivas deducções. Wyrouboff considera-a como o resumo da historia da raça aryana, no que está em divergencia com o seu collaborador, e, alteando a raça a factor principal de todos os systemas intellectuaes, religiosos e philosophicos, vibra áquella lei o mais profundo golpe que lhe tem sido dado. Nós acceitamos plenamente a parte critica d’estes philosophos na questão sujeita, mas a parte organica, as modificações offerecidas em substituição á doutrina comteana, essas só as acceitamos a beneficio de inventario; e terminamos affirmando que não teem resposta plausivel estas duas objecções capitaes, que, como provou Huxley[32], não escaparam á penetração de A. Comte: o facto de muitos dos nossos conhecimentos não terem passado pelos tres estados, e a coexistência dos tres estados, constantemente realisada em todas as epochas desde os primeiros clarões da historia. Está, pois demonstrado que a fórmula geral da sociologia apresentada por Comte não satisfaz ás exigencias da logica. Seremos mais felizes com H. Spencer? * * * * * Eis, em summa, as doutrinas do grande pensador inglez: Para elle, como para A. Comte, a philosophia é logica e chronologicamente posterior ás sciencias particulares; é a comprehensão total do kosmos, é uma grande synthese erguida sobre as analyses realisadas em todas as repartições do saber humano. «A sciencia, diz elle, tem por objecto as coexistencias e as sequencias dos phenomenos; tracta de as grupar para formar generalisações simples do primeiro grau, e eleva-se depois gradualmente a generalisações mais altas e mais vastas... A philosophia é o conhecimento do mais alto grau da generalidade de todas as sciencias... Emquanto se não conhecem as verdades scientificas senão separadamente; emquanto se consideram independentes, não se póde, sem sacrificio do verdadeiro valor das palavras, chamar philosophica ainda á mais vasta de entre ellas. Mas quando, depois de as ter reduzido, uma a um simples axioma de mechanica, outra a um principio de physica molecular, outra a uma lei de acção social, se consideram todas como corollarios d’uma verdade ultima, chega-se então á especie de conhecimento que constitue a philosophia propriamente dicta.[33]» Aqui já Spencer nos dá a radicalissima differença que o separa da philosophia positiva. Esta constituiu-se como tal, na firme convicção de que não podia subordinar a um principio supremo e unico as verdades particulares de todas as sciencias. Para tentar a explicação do universo, é mister partir d’um facto, d’uma idéa primitiva, d’um elemento irreductivel. Onde encontral-o? Na consciencia, responde H. Spencer. Só a consciencia nos póde certificar da concordancia entre a representação das cousas idéas e a representação das cousas reaes. E não podemos recusar-lhe o testemunho. A phrase de Hamilton: _é necessario presumir a veracidade da consciencia, emquanto não houver prova de que ella é fallaz_, é um contrasenso. O facto de affirmar a concordancia dos dois estados, o real e o mental, é fatal, é irresistivel. Póde haver engano n’um d’esses actos desfeito posteriormente, mas isso não invalida a força auctoritaria do testemunho, e serve sómente de provar que as manifestações da consciencia mais reflexa são preferiveis ás da consciencia menos reflexa. O criterio da certeza vem por este modo a ser: a permanencia no espirito d’uma intuição de semelhança ou de differença. Conhecida a operação primitiva e incontestavel do pensamento, é necessario partir logo d’um producto do pensamento adquirido por tal meio. «Se a philosophia é o saber completamente unificado, e a unificação do conhecimento não póde effectuar-se senão pela demonstração de que alguma proposição ultima encerra e consolida todos os resultados da experiencia, é claro que esta proposição ultima, cuja compatibilidade com todas as outras necessita provada, deve representar um fragmento da consciencia, e não sómente o que constitue a validade dos actos da consciencia[34].» Posto isto, qual vem a ser esse producto, esse _fragmento_ da consciencia, na phrase de Spencer? É evidente que não póde deixar de ser universal. Deve ter toda a extensão das experiencias realisadas, deve comprehender em si todas as classes de semelhanças e de differenças de que a consciencia possa ter intuição. Esse producto da consciencia, essa lei universal é a _força_. Como a reconheceu Spencer? Por meio d’uma analyse psychologica sobre as qualidades communs e sobre as qualidades differenciaes de todas as impressões recebidas, classificaveis em dois grupos: impressões fortes e impressões fracas, constituindo na consciencia series ou correntes parallelas. O conjuncto das segundas impressões, eis o _eu_, o conjuncto das outras, eis o _não eu_. O _eu_ é a força _que se manifesta nas fórmas fracas_; o _não eu_ é a força _que se traduz pelas fórmas vivas_. Estas duas series sente-as a consciencia espontaneamente, conhece-as depois pela reflexão, e, distinguindo umas das outras, vem assim a separar o sujeito do objecto do conhecimento. Eis a base psychologica do systema de Spencer. É o sensualismo de D. Hume sob nova fórma. As manifestações secundarias, copia das manifestações vivas, são tudo o que existe na consciencia. Por este modo o homem é _unicamente_ o producto fatal do seu meio. Sentir as proprias impressões, eis todo o poder da alma, mas poder complexo, que se desdobra depois em todos os actos _hiper-organicos_. Resumindo o que fica dicto, temos que a consciencia é a origem de toda a certeza; o criterio d’essa certeza,--a permanencia das intuições de relação, unica que ella comprehende; as series ou correntes de impressões, com as suas qualidades caracteristicas,--o meio de distinguirmos o sujeito do objecto, o _eu_ do _não eu_, resultados d’uma só força, que é o principio e a causa de toda a sciencia. Os principaes elementos derivados d’esse principio são o _espaço_, o _tempo_, a _materia_ e o _movimento_; são elementos necessarios da sciencia, mas não no sentido da philosophia kantiana, porque não são dados _a priori_, mas sim puras abstracções de experiencias de forças. «A força, tal como nós a conhecemos, não póde ser considerada senão como um certo effeito _condicional_ d’uma causa _incondicionada_, como a realidade relativa que nos indica a realidade absoluta, pela qual é produzida directamente[35].» Posto isto, e demonstrada (?) a indestructibilidade da materia, a continuidade do movimento, a transformação e equivalencia de _todas_ as forças, a lei do movimento e a existencia do seu rythmo,--passa Spencer a constituir a sua formula da _evolução_. É esta, na traducção franceza de Cazelles: _L’évolution est une intégration de matière acompagnée d’une dissipation de mouvement, pendant laquelle la matière passe d’une homogénéité indéfinie, incohérente, à une hétérogénité définie,_ _cohérente, et pendant laquelle aussi le mouvement retenu subit une transformation analogue_[36]. A idéa principal d’esta formula, com applicação aos organismos vivos, tinha-a, havia muito, apresentado Baer na Allemanha. Baer escreveu: _A serie de mudanças realisadas enquanto um grão se transforma em arvore, um ovo n’um animal, é sempre a passagem d’um estado de constituição homogenea para um estado de constituição heterogenea_. Spencer, que, desde muito, tinha sido impressionado por esse facto, e queria uma lei physica applicavel a todos os phenomenos, aproveitou aquella, fel-a sua, estendendo-a a tudo quanto existe desde os seres inorganicos até aos factos mais complexos da phenomenologia social. Antes de a conhecer, o que teve logar em 1852, o pensamento de Spencer tinha outra fórma, que não significava bem as intenções scientificas d’elle[37]. Era esta: «_O progresso realisa-se quando partes semelhantes e independentes se volvem em partes dessemelhantes e dependentes, isto é, quando se individualisam_.» Tinha-lh’a inspirado Milne Edwards[38], como elle mesmo confessa, mas não o satisfazia plenamente porque era inapplicavel ás transformações inorganicas, e elle queria, a toda a força, uma formula superior e completa, a que sujeitar o universo na total complexidão dos seus phenomenos. Forneceu-lh’a Baer, e, uma vez de posse d’ella, tratou Spencer de a applicar á astronomia, á geologia, á psychologia e á sociologia. Na astronomia, serviu-lhe a hypothese de que o systema solar proveio d’uma nebulosa; na geologia, a hypothese de que a terra esteve primitivamente no estado de fusão, etc. Como o que mais nos interessa são as applicações que elle fez da sua formula á sociologia, vamos, em poucas palavras, dar uma amostra do modo por que elle realisou na historia os seus processos experimentaes. A passagam do homogeneo para o heterogeneo manifesta-se no progresso geral da humanidade, no progresso parcial de cada tribu, e no progresso de todos os productos da actividade humana, abstractos e concretos, reaes e ideaes. A sociedade, quando embryonaria, mostra-nos os homens em perfeita homogeneidade de qualidades e de funcções: todos exercem os mesmos officios, todos vivem do mesmo modo; depois apparece-nos o primeiro facto de differenciação, com o estabelecimento d’uma auctoridade qualquer, e, portanto, a divisão dos membros da tribu em governantes e governados; no proprio seio da instituição politica, assim rude e primitiva, ensaia-se logo uma nova evolução, porque o chefe, que a principio exercia a mesma profissão que os seus subditos, volvido pequeno praso, começa a distinguir-se d’elles pela differença de occupações, até que chega a não fazer outra cousa que não seja governar; em seguida a isto, a administração religiosa coordena-se com a administração politica, e concorrem na mesma pessoa o prestigio necessario a um chefe e as homenagens devidas a um Deus; depois, os dois poderes destacam-se um do outro, os governados distinguem-se em seculares e religiosos, e começam a subsistir separadamente o Estado e a Egreja; o Estado multiplica as suas instituições, a Egreja complica-se com um sem numero de serviços; pelo seu lado, os governados experimentam parallelamente a mesma lei das differenciações successivas, passando da identidade de profissão industrial para a divisão do trabalho, da insulação economica dentro dos limites nacionaes para a maxima expansão commercial, etc. O mesmo em qualquer dos productos do pensamento, que H. Spencer denomina _hiper-organicos_. A linguagem humana começou por exclamações, passou a um periodo, historicamente verificavel, em que só dispunha de nomes e verbos, e d’ahi data já uma clara differenciação progressiva, distinguindo-se os verbos em activos e passivos, os nomes em abstractos e concretos, apparecendo os verbos auxiliares, os pronomes, os artigos; depois multiplicam-se as linguas, derivadas d’um tronco commum, como entendem Bunsen e M. Müller, ou de varios troncos pertencentes a differentes raças, como querem outros; mais tarde, as linguas dividem-se em dialectos. Na palavra escripta a mesma evolução desde as pinturas muraes dos Egypcios e dos Assyrios até aos hiéroglyphos e aos symbolos, e desde esta fórma primitiva até aos ultimos aperfeiçoamentos da escriptura phonographica. Nas bellas artes a mesma fórma de progresso, desde a confusão da esculptura com a architectura e d’aquella com a pintura de que é argumento a Grecia, cujos templos ostentavam nos frisos baixos-relevos pintados, até á modernissima distincção dos varios géneros de pintura...[39] Tal é, muito em resumo, a doutrina geral de Spencer, o criterio com que elle estuda as tres grandes especies de evolução--a _inorganica_, a _organica_ e a _super-organica_, ás quaes tem dedicado a sua prodigiosa actividade e o seu talento incomparavel. Ainda não póde ser devidamente criticada a sua obra, porque está incompleta. O seu tractado de sociologia, rapidamente esboçado nos _Primeiros Principios_, ainda não veio a lume. A _Introducção á Sciencia Social_, publicada em 1873, e o primeiro volume dos _Principias de Sociologia_, publicado no anno findo e inteiramente desconhecido fóra da Inglaterra, eis tudo o que ha. Muito para que se possa admirar as eminentes faculdades do grande pensador inglez, e para se conhecer que o seu trabalho vai imprimir uma forte direcção experimental nos estudos d’aquella ordem,--mas pouco para se tentar já com segurança uma apreciação conscienciosa e completa. No entretanto, e se comprehendemos bem o que conhecemos d’aquelle escriptor, parece-nos que podemos desde já oppôr á sua philosophia difficuldades, que se nos afiguram invenciveis, e defeitos que reputamos da maior gravidade. Como é que Spencer harmonisa o seu sensualismo puro, perfeitamente inglez, com a determinação do _absoluto_, elevada á categoria d’um elemento scientifico? Não se nos afigura muito facil a resposta a esta pergunta. Aquella determinação é suggerida pelos objectos externos? Mas por quaes objectos, e de que modo?... É uma inspiração da consciencia? Não póde ser, porque, na psychologia de Spencer, a consciencia é puramente uma dupla serie de impressões, copiadas da natureza. É uma abstracção de experiencias? É inadmissivel, porque a entidade abstracta não póde ter natureza diversa das entidades concretas respectivas. A formula geral da _evolução_, deduzida d’um pequeno numero de factos, consoante o methodo proprio d’aquelle pensador, e depois applicada á universalidade da phenomenologia cosmica, emerge de todas estas provas com a força irresistivel d’uma lei scientifica? Não. Os varios grupos de factos, a que elle a estende, estão presos entre si por simples hypotheses. É meramente uma hypothese, embora muito plausivel, a cosmogonia de Laplace respectiva ao systema solar; teem o mesmo caracter as theorias cosmogonicas relativas ao nosso planeta; o principio da transformação das forças, verificado ainda ha pouco restrictamente nos dominios da physica e da chimica, não chega a ser uma hypothese muito plausivel logo que se trata das propriedades vitaes, e assume as proporções d’uma ousadia injustificavel quando tenta sujeitar a si a explicação de todos os phenomenos mentaes; a theoria biologica do transformismo está ainda distantissima de ser uma doutrina inabalavel e assente... Pois é com todos estes dados que Spencer edifica a sua philosophia! Mas, concedido que tudo isso satisfaça ás mais escrupulosas exigencias do methodo, o que vem a ser a formula de Spencer, senão uma formula empirica, a simples expressão d’um facto, sem nada que lhe imprima o caracter d’uma lei _racional_? Dado o facto das differenciações successivas, não resta saber a qual lei obedecem ellas? Resta, sim; e, emquanto isso se não fizer, toda a deducção é impossivel. «É de receiar (dizia em 1864 Ernest Laugel, apresentando á França a philosophia de Spencer), é de receiar que o philosopho se tenha illudido dando o valor d’uma lei natural ao que não passa de simples enunciado d’um facto. As cousas desenvolvem-se ao sabor de leis permanentes e eternas, mas este desenvolvimento merece a qualificação de lei? A força immanente á natureza produz n’elle necessariamente novos movimentos, mas a simples successão d’estes movimentos nada nos ensina ácerca das relações que os prendem. A evolução não produz sempre effeitos comparaveis, e ora se faz n’um sentido, ora n’outro.... Não se descobre uma lei só porque se affirma a sua existencia; é mister encontrar a sua formula. Não basta affirmar que existe uma certa relação entre a força activa dos corpos, a sua massa e a sua distancia: quero saber que relação é essa; é necessario que me demonstrem que a attracção se effectua na razão directa das massas e na inversa do quadrado das distancias. Egualmente, não basta que se diga que a ordem dos phenomenos é uma evolução regulada, sem começo nem fim: o que estamos impacientes de saber, é precisamente o que essa regra seja[40].» A philosophia de Spencer, verdadeiramente prodigiosa pelo infinito numero de factos que procura generalisar; muito do nosso tempo pela importancia que dá a todos os processos de observação scientifica; cheia de vistas novas e de considerações valiosissimas; forte na sua systematisação, e perfeitamente comprehensiva de toda a ordem de phenomenos; esta philosophia soffre, apesar d’isso, o destino de todas as doutrinas, que, procurando ser completas, se tornam sempre arbitrarias. Sacrificam ás exigencias da logica a verificação necessaria de todas as verdades. Algumas philosophias d’essa ordem valem ao menos como inventario exacto dos conhecimentos possuidos pela humanidade n’um dado momento. Está n’este caso o _monismo_ de Spencer. Outras nem para isso prestam. * * * * * Com a philosophia de H. Spencer está intimamente relacionada a doutrina de Darwin. Spencer é mais transformista do que Darwin. Este quasi se preoccupou unicamente com a _evolução_ biologica, ao passo que aquelle deu ao principio a maxima extensão, fazendo-o entrar, como vimos, na intimidade do systema sideral, na composição do globo terrestre e nos reconditos segredos em que está envolvida a genese complicadissima do pensamento. Darwin tem discipulos de tres especies. Acceitam uns a sua theoria biologica, sem procurarem applical-a a phenomenos que não sejam os da vida. Outros, considerando que a base das sociedades humanas é perfeitamente biologica, applicam-na ás questões da sociologia. Outros, como Spencer e como Haekel, estendem-na a tudo, explicam tudo por ella, inclusivamente as transformações inorganicas. É dos segundos, dos que entram na historia com aquelle principio, alteado em criterio decisivo, que vamos, por ultimo, occupar-nos. Nos dominios da biologia o _transformismo_ é uma hypothese, dissemos nós acima. Não entra propriamente no objecto d’esta _Introducção_, nem é dos muito estreitos dominios da nossa competencia, a questão no ponto de vista das sciencias naturaes; mas, apesar d’isso, e com a timidez propria de quem assim descobre a sua insufficiencia, vamos tentar a prova d’aquella affirmativa. Tracta-se da origem da vida, e da successão dos seres dotados d’ella. Muito antes de Darwin, Lamark, admittindo a geração espontanea, e partindo do apparecimento successivo dos seres vivos, verificado por Cuvier, ensinou que estes seres estavam ligados entre si pelos laços da descendencia, directa ou indirectamente; e, que, sob a influencia de varios agentes, que elle especificou, e por virtude da herança, que servia á transmissão de todas as mudanças, a força vital desenvolvia o typo por uma serie de planos adaptaveis á sua organisação, d’elle. Darwin, aperfeiçoando esta doutrina, accrescentou-lhe as duas famosas leis da _concurrencia vital_ e da _selecção natural_. A primeira affirma que a vida é uma lucta constante, uma lucta sem treguas, que se realisa universalmente, em que ha sacrificios enormes, desde a inutilisação dos germens superabundantes até á extincção completa de raças inteiras; a segunda affirma que a natureza, supremo juiz d’aquelle pleito, dá sempre a victoria ás organisações mais fortes, mais aptas para as pesadas condições da existencia. A embryogenia e a paleontologia depõem um pouco a favor d’esta doutrina: aquella, demonstrando que é d’uma cellula primordial que derivam todos os organismos vivos; esta, affirmando a successão progressiva dos vegetaes e dos animaes nos periodos paleontologicos. Se assim é, que falta para que a theoria da descendencia se eleve a um principio rigorosamente scientifico? Que difficuldade se lhe oppõe? Esta: a fixidez irreductivel do typo especifico. Diz Littré, de quem vimos resumindo a exposição da hypothese transformista: «_Jusqu’à présent, dans les bornes de la durée que nous connaissons, et avec les moyens dont nous disposons, nous n’avons pas réussi à changer un type spécifique. Les variations, quelque étendues que nous les ayons produites, l’on toujours respecté; et d’un chien nous n’avons jamais fait un loup, ni un âne d’un cheval. Tant que nous n’aurons pas vérifié, par l’expérience, une mutation dans le type spécifique, il faudra ne pas prendre la spéculation pour plus avérée qu’elle n’est_[41].» Mas não é esta a unica difficuldade da hypothese darwiniana. Como explicar, n’esta theoria, o facto da perfeita identidade de muitas das especies actuaes com outras pertencentes ás mais remotas edades? Quatrefages, referindo-se aos estudos feitos por especialistas sobre as collecções trazidas do Egypto por G. Saint-Hilaire, estudos que concluiram pela affirmação d’aquella identidade, e computando em cinco ou seis mil annos a distancia que separa esses fosseis de muitos exemplares pertencentes á fauna e á flora actual,--pergunta como é que se harmonisa _tal constancia de fórmas animaes e vegetaes com as theorias que admittem a mutabilidade das especies_; e, confessando que Lamark tem, no ponto de vista do seu systema, uma resposta, coherente e logica, a tal pergunta, affirma logo que ella é de todo o ponto irrespondivel na doutrina de Darwin. «_Il en est tout autrement de la doctrine de Darwin. Ici la variation dépend de la sélection, commandée elle-même par la lutte pour l’existence. Or, celle-ci ne s’est pas plus arrêtée sur les bords du Nil que partout ailleurs; elle a régné pendant et après l’époque glaciaire tout autant que de nos jours. La sélection n’a pas pu s’arrêter davantage. Si elle n’a rien produit, c’est qu’elle n’a exercé aucune action pendant les périodes dont il s’agit_[42].» O mesmo distincto naturalista demonstra muito claramente que as intercalações de seres vivos ou fosseis entre outros da escala biologica, tão ardentemente saudadas pelos discipulos de Darwin, estão longe de ser argumento de força incontrastavel em prol d’essa doutrina. Confirmam a _lei da continuidade_, é certo, mas confirmam-na, seja qual for o modo por que ella se explique. Servem ao transformismo de Darwin, como serviriam ao systema de Blainville, que as faria depôr em defesa da creação unica[43]. Mas apesar dos enormes trabalhos realisados pelos paleontologistas modernos, a serie animal tem ainda grandes lacunas a preencher, grandes espaços em aberto, principalmente no que respeita aos fosseis das epochas primitivas; e, sendo assim, é mister descontar, na plausibilidade da hypothese transformista, estes graves defeitos da inducção que a sustenta. Recomposta a serie animal, ainda não passaria d’uma hypothese; no estado actual da paleontologia, é uma hypothese, sim, mas das menos válidas, mas das menos seguras entre as que ahi se condecoram justamente com o titulo de scientificas. O facto de que concluimos esta apreciação attesta-o o professor Kölliker; e Huxley, que é todo darwinista, citando a objecção, não a remove, deixa-a de pé[44]. Mas, concedido que o transformismo é uma verdade positivamente adquirida para a sciencia, que alcance philosophico tem? Que nova resolução fornece ao problema dos destinos do homem? Fica dirimida para sempre a eterna questão philosophica da distincção entre o espirito e a materia? Não vemos por que modo isso se consiga; pelo contrario, os transformistas dão-nos argumento de que outra é a sua intima comprehensão. Darwin é espiritualista; são materialistas Haeckel e Büchner... O transformismo é, pois, um facto indifferente aos grandes interesses da philosophia. Como algures observa Littré, a transformação successiva não póde arrogar-se maior importancia n’aquelle sentido, do que a adquirida pela sciencia, depois de ter verificado que todos os seres, animaes e vegetaes, teem a mesma composição chimica, subsistem pela mesma funcção physiologica de assimilação e desassimilação, reproduzem-se pelos mesmos processos, teem uma embryogenia analoga. Apesar d’isto, a theoria, ultrapassando os dominios biologicos, tentou logo explicar toda a evolução historica. A concorrencia vital e a selecção natural despiram os seus habitos naturalistas e enfronharam-se na ampla _toilette_ das graves explicações sociologicas. Haeckel, por exemplo, não duvidou affirmar que a «raça germanica excede todas as outras na concorrencia do desenvolvimento civilisador... e que a disposição para receber a theoria da descendencia e a philosophia unitaria, que n’ella tem a sua base, constitue o melhor criterio para apreciar os gráus de superioridade espiritual entre os homens.[45]» Isto é serio? É scientifico este dogmatismo atrevido e irritante? N’um livro modernamente publicado pelo sr. Bagehot, _Leis scientificas do desenvolvimento das nações_, procura este escriptor dar uma solução definitiva ao problema do progresso, problema difficil que, segundo elle, deve satisfazer ás diversissimas condições em que se encontram os povos distribuidos pelos varios climas da terra, desde o estacionamento quasi absoluto em que se encontram os habitantes das ilhas Andeman e os selvagens da Terra de Fogo, até ao constante movimento progressivo das sociedades europêas. Para isso formúla e propõe as tres seguintes leis: 1.ª «Em cada estado particular do mundo, as nações mais fortes tendem a prevalecer sobre as mais fracas; e em certas particularidades determinadas, as mais fortes tendem a ser as melhores.» 2.ª «Em cada nação, considerada á parte, o typo ou typos de caracter, que, em certo logar e em certa epocha, são os mais attrahentes, tendem a predominar; e o caracter mais attrahente, salvas algumas excepções, é exactamente o que nós julgamos melhor caracter.» 3.ª «A intensidade d’esta concorrencia entre as nações e entre os caracteres, não é devida, na maior parte das condições historicas, a forças extrinsecas; mas em certas condições, como, por exemplo, as que predominam hoje na parte mais influente do mundo, a intensidade de ambas aquellas concorrencias teem augmentado por effeito de causas d’essa ordem[46].» Estas leis teem um grande fundo de verdade, e são abonadas por uma grande copia de factos. Não são novas. Cremos que ainda ninguem leu a historia, que não tenha induzido d’ella a consideração de que, na lucta constante dos povos, das classes e das raças, prevalecem sempre as mais fortes; e, como no animo de todos o movimento social é progressivo, egualmente toda a gente tem concluido a legitimidade das victorias alcançadas pelos elementos mais vigorosos e melhormente constituidos. Bagehot invoca, como principal argumento da primeira these (unica que procura demonstrar no livro citado) o progresso militar da humanidade, desde a edade de pedra até aos ultimos factos da historia contemporanea. Era talvez possivel objectar-lhe que, se a arte militar tem progredido visivelmente, ao seu lado se tem desenvolvido muitas outras condições sociaes incompativeis com o exercicio d’aquella arte; e que sendo a occupação militar predominante nos povos antigos, as outras foram-se differenciando e progredindo sobre ella, até que, desde o seculo XVI, uma só classe foi destinada a esse encargo. Mas, seja esta a causa, ou seja outra, a verdade é que, estando duas raças ou dois povos de desegualissima cultura um em frente do outro, a lucta não tarda em estabelecer-se, e a victoria pertence ao que é superior na escala da civilisação; a verdade é que, ao passo que os barbaros supportavam perfeitamente o contacto dos romanos, não obstante a cultura superior d’estes, hoje os selvagens desapparecem diante dos povos civilisados. Sirvam de exemplo os Australianos. Liquidada, porém, esta lei da concorrencia entre as classes e entre as nações, estabelecido que, no vasto theatro da sociedade humana, só vivem, só se desenvolvem os organismos bem constituidos, resta saber a qual lei obedecem estes na adquisição das qualidades vencedoras e no seu ulterior desenvolvimento. Talvez nos digam que, pela comparação das qualidades existentes nos organismos que predominaram com as que tinham os organismos vencidos, se póde tirar lição util e deduzir um ensinamento proficuo. Mas, em primeiro logar, qual das qualidades importou o triumpho? Depois, como essas qualidades não funccionam em meios perfeitamente eguaes, antes ordinariamente diversissimos, qual o criterio para estatuir as modificações necessarias? * * * * * Nenhuma das formulas offerecidas para coordenar e explicar, n’uma synthese suprema, os movimentos sociaes, satisfaz plenamente ás exigencias da logica. Não satisfaz a de A. Comte, nem a de H. Spencer, nem a de C. Darwin. Todas teem alguma verdade, e valem, por essa razão, como leis empiricas d’um certo numero de factos ou como hypotheses, mais ou menos plausiveis, no momento actual da sciencia. Mas importa não as considerar d’outra maneira. Teem todas uma base commum, que, a nosso ver, ha de resistir aos ataques dirigidos contra ellas, e ficar como resultado definitivamente obtido para a sciencia pelos esforços de todo este seculo: referimo’-nos ao methodo de observação que aquellas escolas professam mais ou menos, e a que devem as suas mais valiosas conclusões, e á comprehensão da biologia como antecedente necessario de toda a sciencia social. A direcção a seguir no estudo da politica afigura-se-nos perfeitamente determinada. Não está liquidado que a evolução social depende, em grande parte, de condições biologicas? que se transmittem hereditariamente as grandes conquistas moraes da humanidade? que o progresso é um facto natural? Não é á pura observação que se devem as leis economicas e politicas que a nossa consciencia mais firmemente acceita? Os systemas, que procuram estudar e resolver os problemas sociaes por outra fórma logica, não estão irremediavelmente desacreditados na opinião scientifica de quasi toda a gente culta? Hartmann e Schopenhauer, por exemplo, toma-os alguem a serio? Ha ainda alguem que pense em determinar _a priori_, mediante processos ontologicos, as condições estaveis da felicidade humana? Não sabe toda a gente que o methodo mixto, o que, deduzindo da consciencia o criterio supremo d’uma philosophia, vai depois buscar a consagração experimental d’elle na historia,--sacrifica irresistivelmente á sua preoccupação mental a apreciação objectiva dos factos? Das respostas devidas a todas estas perguntas resulta que é necessario, que é urgente imprimir nos estudos politicos o cunho da mais completa observação, e acabar por uma vez com o insensato proposito de _salvar_ os povos a puro esforço da imaginação, ou por meio de expedientes cheios de _habilidade_ muitas vezes, mas sempre faltos de sciencia. Uma mulher celebre disse que a politica não era, no presente estado de cousas, mais do _que a arte de subir ao poder_. A definição é, scientificamente, absurda, mas verdadeira como expressão da prática politica em quasi todos os povos. Só vivem as nações que teem direito a viver, e só teem este direito as que se collocam por iniciativa propria na corrente de idéas e de factos do seu tempo. A lucta para a existencia, tomada esta formula no seu mais amplo sentido moral, é uma verdade incontestavel. Por um astronomo, por um chimico, por um biologista, pullulam em toda a parte cem politicos. A proporção seria em sentido contrario, se, na consciencia publica, houvesse estas duas cousas: a comprehensão scientifica das difficuldades sociologicas, e dignidade moral bastante para se não assumir tão facilmente a suprema responsabilidade dos destinos populares. Hoje já ninguem duvida de que a resultante social tem por componentes as acções dos individuos, que são reguladas em grandissima parte pelas leis da vida, e que, para resolver grande numero dos problemas da politica, importa estudal-as muito, consideral-as devidamente. E não é este dos menores progressos realisados na sciencia d’este seculo. A idéa vem de longe; já M. Agrippa, no seu famoso apologo, comparava o organismo social ao organismo humano; mas a relação entre os dois organismos passou d’uma analogia, explorada pela oratoria, para uma determinação positiva, rigorosamente scientifica. A lucta para a existencia e a selecção natural, que é um facto na historia, tem uma explicação puramente biologica; a transmissão hereditaria das qualidades e tendencias, mil vezes demonstrada, é á physiologia que cumpre explical-a; a acção do meio cosmico sobre o organismo humano, que, desde Montesquieu, é o logar commum de tantissimos philosophos da historia, pertence, como these a desenvolver, á mesma sciencia. A emigração, para citarmos um exemplo bem conhecido, resulta da desproporção que se dá entre o augmento da população e a producção das subsistencias, e é impossível comprehender as condições de tal problema sem os dados fornecidos pela biologia. Sabemos de alguns escriptores que teem feito d’aquelle principio a mais antipathica applicação. Spencer reprova, com o tom mais aspero da sua palavra, a protecção dada, individualmente ou pelo Estado, aos miseraveis, aos invalidos, aos _máus_, significando por este termo os inhabeis para o trabalho, os desprovidos das fortes qualidades necessarias ao tráfego da vida; considera a caridade como uma loucura e como um grande mal, porque o beneficio feito ao miseravel, dá-lhe muitas vezes energia, fugaz, sim, mas bastante para crear uma geração, fatalmente condemnada a soffrimentos de toda a ordem; e a sua indignação vai ao ponto de affirmar que os que procedem assim, na plena ignorancia das leis da vida, contrariam criminosamente _este trabalho de eliminação natural de que a sociedade se serve para se purificar a si propria_[47]. Esta phrase, ainda que a intelligencia a justifique na sua horrivel e crua nitidez, dilacera o coração, repugna ao coração. Sobre aquelle preceito de Lycurgo, que condemnava á morte as crianças aleijadas, pesam mais de dois mil annos de reprovação geral. Se o sentimento tem direitos a entrar nos problemas sociaes, é aqui que elle os faz valer todos. Mas a causa dos desgraçados, seriamente compromettida no tribunal da moderna sciencia, não está ainda perdida. A intelligencia tem que oppôr á sentença que os fulmina, quer a decrete Spencer em nome da biologia, quer a pronuncie Malthus em nome da economia politica. Porventura a beneficencia bem entendida não póde, em grande numero de casos, rehabilitar os incapazes, dos preguiçosos fazendo diligentes, dos criminosos homens dignos, dos physicamente fracos homens válidos e talvez robustos em toda a extensão d’este termo? Se é verdadeira aquella doutrina, prova só contra os irremediavelmente incapazes. Mas, concedido, por hypothese, que estes não devem ser amparados, de qual criterio hemos de servir-nos para a qualificação das incapacidades? Em alguns casos, facilmente se distingue; mas em muitos d’elles toda a distincção é arbitraria. O arbitrario em cousas d’estas, que incomportavel horror! Outras applicações d’esta natureza teem sido produzidas. O defeito commum de todas ellas é o de não considerarem a humanidade sob o seu duplo aspecto egoista e sympathico ou altruista, como hoje se diz. Mas os erros de logica na applicação dos principios da sciencia não destroem estes. Prejudicam-os, mas não os annullam. * * * * * Para nós, os povos do Occidente, nunca se fez sentir tão vivamente a necessidade de resolvermos com inteira prudencia o problema da nossa politica. As condições actuaes da Europa obrigam-nos, sob pena de perdição inevitavel, a não preterirmos nenhum dos meios modernos com que se desenvolvem e robustecem as nações. E esses meios só a sciencia os ensina. O pangermanismo e o panslavismo são duas ameaças terriveis. A Europa salvou-se, na edade-media, luctando indefessamente contra as invasões que a ameaçavam. Não ha hoje menos necessidade de nos premunirmos, as nações de origem latina, contra a ambição desmesurada e recrescente da Allemanha e da Russia, nossas naturaes inimigas. Á hora a que escrevemos estas linhas, os slavos concentram-se em volta da Russia, claramente indicada para nucleo da sua enorme nacionalidade, e de certo não passará muito tempo sem que S. Petersburgo seja a capital de todos elles. A Prussia, essa, reuniu já sob uma só bandeira todos os povos allemães, á excepção dos que vivem sob o dominio da Austria, o qual, de certo, não será muito longo,--e tão forte tem sido a corrente dos allemães para a sua almejada unidade que até lhes não serviram de embargo as mais radicaes differenças sociaes e religiosas! A Polonia e a Turquia eram obstaculos á unidade germanica e á unidade slava; mas que podiam valer dois povos, pessimamente administrados, contra a torrente quasi invencivel de duas raças, possessas da ambição de se engrandecerem? Nada. A Polonia acabou; a Turquia está em vesperas do mesmo destino. A Europa occidental ainda ha de arrepender-se de não ter obstado ao sacrificio da Polonia, assim como ha de soffrer mais com a Russia do que soffreu com a Turquia. _Mieux vaut la morsure d’un léopard que l’étreinte d’un spectre_, disse Victor Hugo. O futuro dará razão á phrase do grande poeta. Por’ora aquelles dois colossos preoccupam-se unicamente das suas respectivas nacionalidades; mas, satisfeito esse plano, acredita alguem que está posto um limite ás suas expansões, e que a força adquirida na lucta que teem suscitado não ha de empregar-se no sentido do seu maior dominio, do seu maior engrandecimento?... Que póde servir de impedimento á extensão progressiva da raça germanica, por exemplo? A biologia demonstra que, quando uma raça não é forçada a conter-se nos limites da sua area geographica por absoluta incompatibilidade com outras condições climatericas, a sua força expansiva só póde ser reprimida pela falta de subsistencias, pela esterilidade do solo. A Prussia comprehendeu isso, graças aos esforços de Liebig, e, fazendo applicação dos melhores processos scientificos á sua industria, é hoje a nação mais adiantada na agricultura, tem uma producção muito superior ao seu consumo, e, uma vez lançada n’este caminho, não cessa de explorar com admiravel tenacidade todas as suas fontes de riqueza[48]. Egualmente, não ha obstaculos conhecidos que se opponham ao maior desenvolvimento da raça slava. A Russia é um paiz essencialmente agricola. A producção excede muitissimo o consumo, a população cresce a olhos vistos nas regiões mais ferteis, como o _Tschornosjom_, o paiz das terras negras, e a civilisação industrial, posto que incipiente, pouco a pouco vai conduzindo os slavos á via das grandes transformações sociaes. O meio geographico é excellente. A Russia é uma planicie enorme, cortada por grandes rios, apta, pela variedade dos seus climas, para todos os generos da cultura. A sua industria, logo que assuma a energia, a independencia, a forte iniciativa de que dependem os grandes emprehendimentos economicos, encontrará, na opulencia mineral do seu solo, meios de fazer a mais assombrosa concorrencia aos centros commerciaes do Occidente. «Pelas suas minas, pela sua industria apenas suspeitada ainda (dizia ha pouco Franz Schrader[49] na _République Française_), pelo seu ferro, pelos jazigos de carvão que possue e que de futuro se descobrirem, pela sua situação no meio d’esta irradiação de paizes, que, posto todos valham mais do que ella, todos d’ella dependem mais ou menos,--a Russia póde chegar a representar um papel importante no mundo moderno.» Por outro lado o communismo russo tende a desapparecer[50], o que é um claro symptoma de progresso, e, parallelamente a esse facto, a consciencia slava não perde occasião de protestar contra as imposições, demasiadamente _paternaes_, da politica do czar. Ainda ha pouco se manifestou isso por occasião do famoso processo de Vera Zassoulitch. A apreciação geral d’este processo pela imprensa europêa foi no sentido de que a Russia estava repleta de vicios e n’uma podridão miseravel. Não ha criterio mais falso. Vicios, tem-nos a Russia, e muitos, e muito enraizados. Quem ignora isso?... Agora o que é menos exacto é que aquelle povo esteja em via de esphacelamento. Não está. Não afaguemos essa illusão. A philosophia dos ultimos factos, pertinentes á vida intima d’aquella sociedade, é esta: a Russia agita-se; tanto melhor para ella, tanto peior para nós... Ora, á medida que a Russia progride assim nos augmentos physiologicos da sua raça e na riqueza moral da sua civilisação; ao passo que a Allemanha se encontra em tão propicias condições economicas, e imprime nos seus destinos a força invencivel da sciencia, o que fazem as nações do Occidente? A França ainda póde oppôr-se a futuras invasões, porque é rica, trabalhadora, tem uma industria florescente, e está resolvida a governar-se scientificamente; mas a Italia, a Hespanha e Portugal, estarão em condições felizes?... A Italia, a grande nação antiga, que ha pouco emergiu do seu tumulo de seculos, essa parece empenhada em imprimir na sua politica a nitidez d’uma concepção artistica; mas nós e os nossos visinhos não queremos por fórma alguma encravar a roda do nosso infortunio, do nosso longo infortunio, para que contribuiram, por egual, os excessos do fanatismo religioso, os exaggeros da monarchia absoluta, e o uso imprudente das nossas faculdades conquistadoras. Pois urge que nos resolvamos a romper com esta inercia que tão tristemente nos caracterisa, com o empirismo politico que nos domina, com este systema de não pensar no dia de ámanhã, com esta indifferença por tudo e por todos, que nos está envenenando lentamente, mas fatalmente. _Não ha ordem nas idéas, nem prestigio nas pessoas_, dizia-nos ha pouco um dos mais nobres caracteres que ahi se teem esmaltado na vida publica d’este paiz. Triste verdade, mas verdade innegavel! Poderemos ainda salvar-nos? Não estaremos irremediavelmente perdidos? Alexandre Herculano, nos ultimos annos da sua veneravel existencia, descria inteiramente da nossa regeneração nacional. Nós, desalentados, mas não succumbidos de todo, appellamos ainda para a sciencia. Se ella não fizer o milagre, não sabemos de onde elle venha. NOTAS DE RODAPÉ: [1] _Auguste Comte et la Philosophie Positive_, cap. 3.º, pag. 38 a 52. Esta opinião de Littré tem sido vivamente discutida, entendendo muitos escriptores que remonta bem mais além a genealogia d’aquelle pensamento. Vico, inspirado nos seus trabalhos da divisão, que, segundo Herodoto, os egypcios fizeram dos seus annaes em _edade dos deuses_, _edade dos heroes_ e _edade dos homens_, tem sido citado muitas vezes como precursor de Augusto Comte na organisação da lei _dos tres estados_. Ainda ultimamente o citou com este proposito o sr. dr. Theophilo Braga, nos seus _Traços geraes de Philosophia Positiva_, pag. 33 e segg. Stuart Mill sustenta que para a comprehensão perfeita d’aquella idéa, que é a base fundamental da sociologia, contribuiram os mais poderosos espiritos dos ultimos dois seculos. Eis o que elle diz: «Montesquieu, o proprio Machiavel, Adam Smith, todos os economistas francezes e inglezes, Bentham e os pensadores da sua escola, tinham a plena convicção de que os phenomenos sociaes obedeciam a leis invariaveis, e o seu grande trabalho, como philosophos especulativos, foi descobril-as e demonstral-as. O que se póde dizer é que estes philosophos não foram tão longe como A. Comte, descobrindo os methodos mais proprios para pôr em toda a luz aquellas leis.» (_Stuart Mill_, _Auguste Comte et le positivisme_, trad. do dr. Clemenceau, pag. 55 e 56). Esta discussão, muitissimo importante sob o ponto de vista historico, é interminavel. Todos teem razão e todos deixam de a ter. Os grandes pensamentos não se improvisam; teem sempre uma genese mais ou menos longa, mais ou menos lenta, e segundo fixamos de preferencia um ou outro dos pontos salientes da sua determinação, assim nos vae parecendo que é esta ou aquella a sua verdadeira origem. Confundimos vulgarmente o principio com a phase. N’esta ordem de idéas somos levados a crer que o melhor é datar a origem das leis scientificas, não dos que remotamente as entreviram, mas dos que, aproveitando os trabalhos precedentes e criticando-os com prudencia, projectaram sobre ellas a luz d’uma boa demonstração. Pelo que, acceitamos neste ponto a opinião de Littré exposta no texto. [2] Vamos transcrever na integra a passagem de Turgot, que lhe valeu aquella gloria: «Tous les âges sont enchaînées par une suite de causes et d’effets qui lient l’état du monde à tous ceux qui l’ont precede; les signes multipliés du langage et de l’écriture, en donnant aux hommes le moyen de s’assurer la possession de leurs idées et de les communiquer aux autres, ont formé, de toutes les connaissances particulières, un trésor commun qu’une génération transmet à l’autre, ainsi qu’un héritage toujours augmenté des découvertes de chaque siècle; et le genre humain, considéré depuis son origine, paraît aux yeux du philosophe un tout immense qui lui-même a, comme chaque individu, son enfance et ses progrès. (_Deuxième Discours sur les progrès successifs de l’esprit humain_, 1750, pag. 52, œuvres, Paris, 1808.) [3] _Idée d’une histoire universelle au point de vue de l’humanité_ (1874), trad. de Littré. Este opusculo compõe-se de nove proposições muito concisamente demonstradas. Littré (cit. pag. 53 e segg.) diz que é desconhecido em França o opusculo de Kant. Esta affirmação foi feita em 1864, e muito antes deviam ser conhecidas aquellas idéas do philosopho allemão, ao menos pela exposição que d’ellas fez J. Willm, na sua _Historia da philosophia allemã desde Kant até Hegel_, tom. 2.º, pag. 62 e segg., ed. de 1847. Vid. esta obra, e o livro de Littré, de pag. 53 a 70. [4] _Tableau des progrès de l’esprit humain._ [5] Henri Taine, _Les origines de la France contemporaine_, tom. 1.º, pag. 226 e segg. [6] Cosmos, l. 75, cit. pelo sr. L. Coelho, _Elogio de Humboldt_, pag. 506. [7] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 47, 48 e segg. [8] H. Spencer, cit. pag. 49. [9] Ernest Renan, _Les sciences de la nature et les Sciences historiques, Revue des deux mondes_, 15 octobre, de 1863. [10] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 35. [11] Cit. pag. 31. [12] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 32. [13] _Introduction à la Science Sociale_, pag. 38. [14] Rom. XI, 34. [15] Lib. 1.º _de Gen._, cap. XVI, cit. por Liebermann, _Inst. Theol._, tom. 2.º, liv. 3.º, pag. 145. [16] Cit. _Inst. Theol._, pag. 135. [17] _Histoire de la phil. allemande depuis Kant jusqu’à Hegel_, pag. 334 e segg. do vol. 1.º. [18] Job, XXIII, 13. [19] Cit. I, 13. [20] _Les Premiers principes_, trad. de M. E. Cazelles, 1.ª parte, até pag. 132. [21] Cit. pag. 20. [22] Cit. pag. 23. [23] _Cours de Phil. Posit., d’A. Comte_, préface d’un disciple, pag. XLIV. [24] _Cours de Philosophie Positive_, tom. 1.º, pag. 8 e 9. [25] _Auguste Comte et la Phil. Positive_, pag. 50. [26] _Fragments de Phil. Positive_, pag. 119. [27] _Fragments de Philosophie Positive_ (_Paroles de Phil. Posit._), pag. 119 e 120. [28] _A. Comte et la P. Posit._, pag. 50 e 51. [29] _Revue de la Phil. Posit._, tom. X e XI. [30] _Revue de la Phil. Posit._, tom. XI, pag. 33. [31] _Revue de la Phil. Posit._, tom. XI, pag. 32. [32] _Les Sciences Naturelles_, pag. 222 e 223. Huxley traslada para o seu livro o seguinte trecho de A. Comte (_P. Posit._, pag. 491, vol. 4.º): «A proprement parler, la philosophie théologique, même dans notre première enfance, individuelle ou sociale, n’a jamais pu être rigoureusement universelle, c’est-à-dire que, pour les ordres quelconques de phénomènes, _les faits les plus simples et les plus communs ont toujours été regardés comme essentiellement assujettis à des lois naturelles, au lieu d’être attribués à l’arbitraire volonté des agents surnaturelles_. L’illustre Adam Smith a, par exemple, très-heuresement remarqué dans ses essais philosophiques qu’on ne trouvait, en aucun temps ni en aucun pays, un Dieu pour la pésanteur. _Il en est ainsi, en général, même à l’égard des sujets les plus compliqués, envers tous les phénomènes assez élémentaires et assez familiers pour que la perfaite invariabilité de leurs relations effectives ait toujours dû frapper spontanément l’observateur le moins préparé._ Dans l’ordre moral et social, qu’une vaine opposition voudrait aujourd’hui systématiquement interdire à la philosophie positive, il y a eu nécessairement, en tout temps, la pensée des lois naturelles, relativement aux plus simples phénomènes de la vie journalière, comme l’exige évidemment la conduite générale de notre existence réelle, individuelle ou sociale, qui n’aurait pu jamais comporter aucune prévoyance quelconque, si tous les phénomènes humains avaient été rigoureusement attribués á des agents surnaturels, puisque dès lors la prière aurait logiquement constitué la seule ressource imaginable pour influer sur le cours habituel des actions humaines. _On doit même remarquer, à ce sujet, que c’est, au contraire, l’ébauche spontanée des premières lois naturelles propres aux actes individuels ou sociaux qui, fictivement transportée à tous les phénomènes du monde extérieur, a d’abord fourni, d’après nos explications précédentes, le vrai principe fondamental de la philosophie théologique. Ainsi, le germe élémentaire de la philosophie positive est certainement tout aussi primitif au fond que celui de la philosophie théologique elle-même, quoiqu’il n’ait pu se développer que beaucoup plus tard, etc._» Foi d’estas palavras de Comte que Huxley tirou as conclusões indicadas no texto. Huxley não se limitou a criticar a lei _comteana_; quiz tambem, por sua vez, reduzir a uma formula superior todo o desenvolvimento historico da humanidade. Como Littré, procurou relacionar as phases do desenvolvimento individual com as da evolução collectiva, e, por esta fórma, _racionalisar_ a sua theoria historica. Segundo Huxley, logo desde a infancia a intelligencia humana reflecte a natureza por dois modos: physicamente e anthropomorphicamente. Quer dizer que o homem, nas primeiras edades, tem das cousas uma comprehensão _positiva_, não se soccorre para as explicar a personificações imaginarias, considera-as como factos ultimos e contenta-se com isso; e que, ao lado d’esta condição mental, se desenvolve uma outra, que consiste em suppôr animados d’uma natureza semelhante á sua os seres humanos que o cercam. Este anthropomorphismo estende-o depois a criança a outros objectos, menos semelhantes, mas em algum ponto parecidos com ella. Mais tarde, a intelligencia do homem reconhece o conflicto apparente entre as suas duas interpretações da natureza,--a interpretação anthropomorphica e a interpretação physica; e é então que elle ou adopta inteiramente aquella interpretação, e desenvolve-se a tendencia theologica, ou acceita unicamente a segunda, e desenvolve-se n’esse caso a tendencia scientifica, ou fica n’um _meio termo_, que é o estado metaphysico. O que é verdadeiro do desenvolvimento intellectual do individuo, tambem o é, _mutatis mutandis_, do desenvolvimento da especie,--diz Huxley. E procura demonstral-o. «O fetichismo, o culto dos antepassados e dos heroes, a demonologia dos selvagens primitivos são para elles os diversos modos de significar a crença nos espiritos e a sua interpretação anthropomorphica dos insolitos acontecimentos que a acompanham. A feitiçaria, a magia, traduzem praticamente estas crenças... Nos progressos que a especie faz do estado selvagem para uma civilisação adiantada, o anthropomorphismo, desenvolvendo-se, volve-se em theologia, e o _physicismo_ em sciencia; mas estas duas tendencias desenvolvem-se _simultanea_ e não _successivamente_.» Depois, dilatam-se os dominios do physicismo, o _anthropomorphismo refugia-se na sua ultima fortaleza, o proprio homem_, e as philosophias, chegadas a um gráu superior de perfeição, é então que começam a trabalhar sobre o maior dos problemas especulativos, o problema ultimo, que póde formular-se d’este modo: _A natureza humana possue um elemento de liberdade, o livre arbitrio das suas vontades, condição essencialmente anthropomorphica; ou, em verdade, é necessario consideral-a apenas como o mais curioso e o mais complicado dos mechanismos do universo?_ Se nos não enganamos, Huxley não se logrou do seu intento de dar um fundamento psychologico á lei empirica do desenvolvimento social. Referir a tendencias psychologicas as differentes phases da evolução historica, sem precisar d’um modo rigoroso a existencia d’essas energias innatas, é deixar as difficuldades no pé em que estavam. Já se sabia antes de Huxley que os factos historicos correspondiam a _tendencias_ humanas; o que se não sabia, nem por ora se sabe, é o modo de existencia e o processo de acção d’essas tendencias. Sem a resolução d’estas difficuldades, é inevitavel o empirismo historico. Como A. Comte, Huxley não _racionalisou_ a sua theoria, a qual, mesmo no ponto de vista empirico, se nos afigura menos exacta. (V. _Les Sciences Naturelles et les problèmes qu’elles font surgir_, de pag. 224 a 231.) [33] _Les Premiers principes_, pag. 140. [34] _Les Premiers principes_, pag. 149 e 150. [35] _Les Premiers principes_, pag. 180. [36] _Les Premiers principes_, pag. 424. [37] _Premiers Principes_, Introduction du traducteur, de pag. XXXI a XLVIII. [38] Cit. pag. 359, not. [39] _Les Premiers principes_, de pag. 355 a 378. [40] E. Laugel, _Révue des deux mondes_, 15 février, 1864. [41] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IX, pag. 368. [42] _Charles Darwin et ses précurseurs français, étude sur le transformisme_, de pag. 176 a 178. [43] Cit. pag. 187. [44] _Les Sciences Naturelles et les problèmes qu’elles font surgir_, pag. 430. [45] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IX, pag. 368. [46] _Lois scientifiques du développement des nations_, W. Bagehot, pagg. 47 e 48. [47] _Introduction à la Science Sociale, Préparation par la biologie_, pag. 369 e segg. [48] André Sanson, _La loi d’extension des races, Revue de la Phil. Posit._, tom. XIII. [49] _Feuilleton de la République Française du 15 mars 1878._ [50] Wyrouboff. _Le communisme russe, Revue de la Philosophie Positive_, tom. VII. CAPITULO I =Summario.=--A questão da _extensão do suffragio_ é actual e difficil. Data da revolução franceza de 1848 a sua maior importancia prática, mas a origem d’ella, no ponto de vista moderno, vem de 1790. Summula da legislação revolucionaria de 1780 a 1793. Napoleão III e o suffragio universal. Corrupção politica do segundo imperio. Juizo de E. Olivier.--Proudhon e o regimen representativo. Argumentos de Proudhon contra elle, e contra os systemas de _legislação directa_, propostos por Considérant, Rittinghausen e Ledru-Rollin. Porque não discutimos a doutrina de Proudhon.--A metaphysica na questão do suffragio: Rousseau, Diderot, Royer-Collard e Guizot. Antimonias irreductiveis nos systemas d’estes philosophos. O suffragio é um facto, não é uma theoria. Genese historica d’esse facto desde a organisação politica de Athenas até aos nossos dias.--Assim considerado o suffragio, a que condições deve satisfazer para ser valido e legitimo. Se a instrucção resolve opportuna e efficazmente o problema. Resposta negativa. Idéas de Laboulaye, S. Mill e Littré. Opinião de Spencer sobre os effeitos moraes da educação.--A instituição do suffragio só é possivel, dadas estas duas cousas: a mais larga descentralisação administrativa, e a sensata combinação das duas fórmas do voto, directa e indirecta. Opiniões de Wirouboff, de S. Mill e de E. Naville. Valor logico e discussão critica d’estas duas objecções: a descentralisação não a improvisa a lei, fórma-a a historia,--o suffragio indirecto repugna ao genio da democracia. Conclusão. É difficil encontrar em direito publico instituição mais calorosamente questionada do que a da _extensão do suffragio_. A ninguem se permitte que não tenha sobre esta materia uma opinião assente, na beatifica supposição de que o problema que ella envolve é extremamente simples e facil. Sobre assumptos d’outra ordem, em geral, sómente julgam os homens da respectiva especialidade; mas sobre esta, ou sobre outra qualquer questão politica, ainda a mais complexa, ouvem-se em toda a parte decisões peremptorias, terminantes, dogmaticas, sempre proferidas com firmeza, desde a officina do artista até aos salões d’um parlamento. Ninguem escapa a este maldicto furor de decidir impensadamente questões sociaes, por mais intrincadas que sejam, por mais delicadas que pareçam. Os espiritos mais fortemente temperados na rigorosa educação das sciencias naturaes, esses mesmos, tão prudentes, tão conscienciosos, tão disciplinados pelo seu methodo, logo que se lhes depara uma difficuldade de sociologia não podem comsigo que lhe não dêem immediatamente uma resolução irrevogavel, definitiva! Como observa H. Spencer[51], um sabio que, para resolver o problema das manchas do sol e da constituição que elles lhe suppõem, tenha versado pacientemente todas as theorias, verificando todos os factos, discutindo todos os pontos, precavendo-se contra todos os erros,--chamado a dar a sua opinião sobre qualquer questão economica ou politica, responderá logo, sem hesitar um momento, como se isto fosse objecto de pura intuição immediata. E todavia é liquido em boa philosophia que as deducções scientificas se vão difficultando gradualmente, a par e passo que augmentam de complexidão e de variedade os factos de que se trata! É desde 1848 que data a maior importancia especulativa e prática da _extensão do suffragio_. Como é sabido, a revolução de fevereiro d’esse anno realisou na França a universalidade do suffragio. A revolução desencadeou-se aos gritos de _viva a reforma eleitoral_, e os homens que tomaram a direcção suprema d’aquelle movimento, a primeira cousa que fizeram foi dar satisfação a essa exigencia popular, que se manifestava com intensidade correspondente á forte repressão que, por muitos annos, soffrera da parte da monarchia de julho. A França tem sido, e provavelmente será ainda por muito tempo, o laboratorio das primeiras experiencias sociologicas. A sua preeminencia entre os povos de origem latina, o seu grande desenvolvimento scientifico, e, sobre tudo, o seu genio revolucionario explicam sufficientemente esse facto. A França é, essencialmente, o paiz da revolução. Antes d’aquelle movimento democratico, que foi uma brilhante negação do _doutrinarismo_ na politica, e uma vivaz reminiscencia das esquecidas idéas de Rousseau, o suffragio universal era um thema de discussões mais ou menos interessantes; depois d’aquelle facto ficou sendo a base fundamental da politica franceza, e, para todos os outros povos, uma surgente continua de aspirações e de receios. Mas a idéa vinha de longe. Em 1848 não tinha menos de 55 annos de duração. Como era natural, os revolucionarios de 1789 preoccuparam-se desde todo o principio com o modo de fazer representar o povo, cujos direitos estavam resolvidos a vingar e defender. O art. 29, da _Declaração dos direitos do homem e do cidadão_, diz: _Chaque citoyen a un droit égal de concourir à la formation de la loi, et à la nomination de ses mandataires ou de ses agents_. Cousa notavel! De tal intensidade era aquelle pensamento no espirito dos revolucionarios francezes que, no curto espaço de quatro annos, o systema eleitoral percorreu quasi todo o cyclo das combinações logicas a que elle se presta! Assim a lei de 22 de dezembro de 1789, um dos primeiros actos da Assembléa Constituinte, estabeleceu o suffragio restricto, em dois gráus, exigindo para o exercicio do direito eleitoral as multiplas qualidades de _cidadão activo_, e para a elegibilidade no segundo gráu uma forte contribuição directa e a posse de alguma propriedade territorial. Combatida por Grégoire, Péthion, Robespierre, Camille Desmoulins e outros homens de egual plana, que se insurgiram nobremente contra a aristocracia do dinheiro, consagrada n’aquelle documento, e contra a grande comprehensão da _actividade politica_, exigida para o direito do voto nas assembléas primarias,--a lei de 22 de dezembro foi depurada das suas maiores imperfeições e, depois, copiada na Constituição de 1791. Este systema serviu para a formação da Assembléa Legislativa, reunida em Versailles no 1.º de outubro d’esse anno. A Convenção, que se lhe seguiu pouco depois, já foi eleita por outra fórma, constante do decreto de 10 de agosto de 1792. Este novo systema, supprimindo a distincção dos cidadãos em _activos_ e _não activos_, acabando com o censo como base para o exercicio do voto, suavisando muito as condições da elegibilidade, estendendo ás colonias francezas o direito de suffragio, realisou um grande progresso sobre os systemas antecedentemente apresentados. Por ultimo, a Constituição de 24 de junho de 1793, redigida pela Convenção, aproveitando, sobre materia eleitoral, o que havia de mais avançado no decreto de 10 de agosto, accrescentou ao suffragio, já estatuido na sua maior extensão, a qualidade de _directo_, que desde o principio lhe tinha sido negada. A Constituição de 24 de junho consagra, pela primeira vez na historia, o suffragio universal directo. Eis o texto respectivo: _Le peuple souverain est l’universalité des citoyens français. Il nomme immédiatement ses députés..._ (artt. 7 e 8). Mas esta reforma não chegou a ser experimentada. Suspensa pelo decreto de 11 de outubro de 1793, e prejudicada pelos notaveis acontecimentos que se seguiram áquella data, a Constituição de 24 de junho não passou do papel[52]. Á revolução de 1848 coube a missão de resuscitar o pensamento da Convenção sobre o direito eleitoral. Nem ella, a revolução de fevereiro, fructeou, a bem dizer, outra cousa determinada e permanente. Permanente, sim, porque o pensamento do decreto de 5 de março de 1848, que estabeleceu o suffragio universal e directo para a eleição da Assembléa Nacional, sophismado pela lei de 31 de maio de 1850, que, exigindo para o exercicio do voto o domicilio de tres annos, excluiu da liberdade politica 3 milhões de eleitores; hypocritamente restituido por Luiz Bonaparte no plebiscito de 20 e 21 de dezembro de 1851, nas eleições e no famoso plebiscito de 1852; esmagado sob a mais forte pressão durante o imperio, sem as grandes luzes que a liberdade recebe do comicio e da imprensa; aquelle pensamento, indevidamente comprehendido e falsamente realisado, ficou comtudo sendo a base fundamental do direito publico francez. Da lei de 31 de maio disse Victor Hugo esta phrase celebre: «_Depuis que l’histoire existe, c’est la prémière fois que la loi donne rendez-vous à la guerre civile_.» Enganava-se. Atraz d’essa lei estava o demonio da astucia politica a rir-se das ingenuas affirmações conservadoras de Thiers e dos outros que a sustentavam de boa fé, porque sabia, melhor que ninguem, os _habeis_ processos de utilisar em seu proprio interesse aquelle desgraçado documento legislativo. E foi o que fez. O auctor do _golpe de Estado_ de 2 de dezembro pretextou, para justificar-se, a lei de 31 de maio, e, restabelecendo o suffragio universal, adquiriu auctoridade e força que por outro modo não teria conciliado. Depois, corrupto até á medulla, facil lhe foi contrastal-o efficazmente com aquillo que elle chamava, nos documentos officiaes, _actos protectores da liberdade dos cidadãos_! Fez escola, e a peor das escolas, este moedeiro falso do suffragio. A violencia no governo, a perseguição systematica, é um expediente brutal, mas dura pouco. A reacção não se faz esperar muito. Sirvam de exemplo a attitude revolucionaria de Portugal contra a dominação imprudente do conde de Thomar, e o que a Hespanha fez contra o governo cruel e militarista de D. Isabel de Bourbon. Mas a corrupção, a compra de consciencias, a traficancia eleitoral, o cynismo politico, são cousas mais terriveis e mais fataes. Quando um povo respira n’uma atmosphera assim viciada, ou tem contados os seus dias, ou, para salvar-se, ha de passar por provas difficillimas, por commoções violentas, que, sacudindo-o bruscamente, lhe dêem a percepção nitida do seu estado e a energia necessaria para as firmes resoluções conscientes e dignas. Póde servir de argumento a regeneração democratica da França depois do desastre de Sédan. Ninguem ainda descreveu tão perfeitamente essa phase morbida da politica como E. Olivier. A auctoridade é insuspeita, porque E. Olivier é conservador. Eis as suas palavras: _Prefiro a violencia á corrupção; tremer é menos aviltante do que vender-se. Contra a violencia resistem as nações; da corrupção, não se erguem, não se salvam nunca. Até para o poder é menos desastroso o effeito da violencia: quando o governo a emprega, sabe as contas que tem de dar na camara; quando sómente se soccorre á corrupção, acaba por se persuadir de que a camara falla em nome do paiz, esquecendo-se de que ella representa tanto a verdadeira vontade do paiz, como um thermometro indica o verdadeiro gráu de temperatura, quando o que o consulta lhe communica calor artificial pela pressão das suas mãos..._[53] * * * * * Voltemos ao suffragio universal. Esta these suppõe resolvida previamente a do systema representativo. Não queremos decretar foros de axiomatica a esta ultima, visto que lhe não teem faltado contradictores, mas só muito de passagem a consideraremos agora, em parte porque ella não soffre importantes contestações, e em parte porque a indole d’este capitulo nos obriga a attenção para outros assumptos. O systema representativo é um mal necessario. Porque o povo não póde dirigir, elle proprio, todos os negocios da administração publica, tem de delegar em alguns cidadãos da sua escolha o encargo especial do seu governe. É o que acontece em todos os paizes cultos, á excepção dos quatro cantões suissos--Uri, Unterwald, Glaris e Appenzell, que são regidos por systemas puramente democraticos, exercendo ahi o povo, em liberrimos comicios, as funcções do seu poder legislativo. A pequena extensão do seu territorio e o numero insignificante dos seus habitantes permittem-lhes o exercicio facil e commodo do _self-government_, em todo o rigor do termo. Em Unterwald, Uri e Appenzell, os cidadãos approvam ou regeitam simplesmente as propostas de lei que lhes são apresentadas; mas no cantão de Glaris, o povo tem o direito de adoptar, modificar ou rejeitar os projectos de lei, seja qual for o seu objecto. É o mais perfeito exemplar de democracia pura que conhecemos. É quasi profanação comparar-lhe o governo de Athenas, que era sómente exercido por uma pequena parte da sua população, não tendo ingerencia activa n’elle, além d’uma classe especial de cidadãos livres, os escravos que sustentavam com o seu trabalho a soberana ociosidade dos seus senhores. Vinte mil cidadãos tumultuavam na _ágora_ em plena paixão politica, mas, a puro beneficio d’estes, labutavam indefessamente quatrocentos mil homens! N’outras condições economicas aquelle regimen não teria sido possivel. O systema representativo, ou o governo do povo pelos seus delegados, foi vivamente combatido por Proudhon. Raramente se encontra uma instituição social a que elle não applicasse a sua critica profunda e destruidora. Não lhe escapou aquella fórma politica. Auctor da celebre phrase: _A republica está acima do suffragio universal_, phrase tão vivamente discutida em França desde 1850, Proudhon nega abertamente a utilidade do voto popular[54]. Affirmando o facto das continuas illusões do povo a respeito dos seus escolhidos, dos quaes apenas um entre dez procede honestamente, declara a sua absoluta descrença pelo que elle chama a intuição divinatoria da multidão. Se o cidadão tem de manifestar a sua vontade, e póde fazel-o por si, porque ha de recorrer a um intermediario? Previne as objecções que possam fazer-lhe, inspiradas na consideração da divisão do trabalho e da probabilidade de acerto n’uma corporação de representantes eleitos pelo povo, e responde-lhes por este modo: «_L’élection ni le vote, même unanimes, ne résolvent rien. Depuis soixante ans que nous les pratiquons à tous les degrès l’un et l’autre, qu’avons nous fini? Qu’avons nous seulement défini? Quelle lumière le peuple a-t-il obtenue de ses assemblées? Quelles garanties a-t-il conquises? Quand on lui ferait réitérer, dix fois l’an, son mandat, renouveler tous les mois ses officiers municipaux et ses juges, cela ajouterait-il un centime à son revenu? En serait il plus sûr, chaque soir en se couchant, d’avoir le lendemain de quoi manger, de quoi nourrir ses enfants? Pourrait-il seulement répondre qu’on ne viendra pas l’arrêter, le trainer en prison?_» Eis aqui todo o pensamento de Proudhon. Não quer a representação politica por estes dois motivos: primeiro, porque os cidadãos podem intervir directamente na sua propria administração; segundo, porque o suffragio mais extenso, a prática constitucional mais pura, o systema mais perfeito de representação são impotentes para acabar d’uma vez com as grandes privações economicas e moraes do povo. É esta segunda consideração o que mais o preoccupa, e como, no seu entender, o principio de auctoridade, transferido historicamente da familia para o Estado, contraría essencialmente o verdadeiro progresso social da humanidade, Proudhon conclue por oppôr a todos os planos de governação politica estes dois pensamentos que são capitaes em toda a sua philosophia: suppressão completa da auctoridade, que só é legitima na familia,--substituição, em toda a reforma social, da idéa de governo pela idéa de contracto. O systema de _legislação directa_, proposto e definido por Rittinghausen e Considérant, que queriam a intervenção immediata dos cidadãos na formação das leis, e a conhecida theoria de Lédru-Rollin, que sustentava tambem a intervenção legislativa do povo nas questões geraes, mas deixava os negocios particulares a cargo dos ministros e da Assembléa,--não satisfaziam ás exigencias logicas de Proudhon. Não passavam, segundo elle, de doutrinas timidas, confusas, inconsequentes. Não pertencemos ao numero dos que, expondo uma doutrina boa ou má, uma doutrina que os enthusiasma ou uma doutrina que os irrita, se limitam a dizer: «Ella ahi está; conhecel-a é acceital-a ou rejeital-a sem hesitação. Quando as cousas se apresentam d’este modo, a critica é inutil.» Isto não é calmo, nem é justo, e a critica, digna d’este nome, não póde dispensar nenhuma d’estas qualidades. Na hypothese actual, porém, forçados pela indole d’este trabalho, temos necessidade de fazer cousa como isso. Proudhon é a mais poderosa encarnação da logica em todo este seculo. D’elle disse Sainte-Beuve, _que fazia suar agua e sangue aos seus adversarios_; podemos accrescentar que o campo das suas luctas, a sciencia social, ainda tem abertos muitos dos sulcos profundos, arados pelo seu genio devastador, e que não é talvez para este seculo o pospôr, a todas as suas formidaveis interrogações criticas, a resposta que ellas exigem. Pela indole peculiar do seu caracter, é impossivel arrancar do seu systema uma ou outra idéa parcial, e analysal-a conscienciosamente, sem considerar ao mesmo tempo a traça architectonica de toda a sua obra. Na politica, querendo interpretar e corrigir João Jacques, foi anarchista; na economia politica, enfeixando no seu methodo, quasi sempre com alguma incoherencia, os processos logicos de Kant, de Hegel e de A. Comte, invocando a philosophia, servindo-se da historia, levou a sua doutrina até ao extremo socialismo egualitario, isto é, conjunctamente anti-capitalista e anti-governamental. N’estas condições, Proudhon, combatendo o suffragio universal e ainda a _legislação directa_, lançando á margem todas as theorias politicas, estava muito na logica do seu pensamento; o seu pensamento, esse é que não estava na corrente da historia, nas forças legitimas da sciencia nem na verdade das cousas. Mas nós não podemos acompanhal-o agora nos longos e enredados labyrinthos do seu raciocinio, e, tendo formulado as conclusões extremas a que elle chegou, por esse facto nos desobrigamos de tudo mais. Está fóra dos que devem ser ouvidos na discussão do suffragio universal. * * * * * Entrando no ámago da questão, encontramos logo uma selva immensa de opiniões, que, posto partam da mesma origem, e se formem pelo mesmo processo logico, divergem infinitamente umas das outras. Referimo’-nos ás que procuram inspirar-se da só natureza do homem, e, por isso, são formadas deductivamente. O suffragio, diz-se em todas essas escolas, é o exercicio do direito de _soberania_, e deve reflectir-lhe inteiramente a indole e o alcance. N’isto, pleno accordo; a divergencia começa logo que procura liquidar-se o que seja a soberania social. É a vontade geral, como querem os discipulos de Rousseau? É a egualdade de intelligencia em todos os homens, como paradoxalmente sustentava Diderot? É a razão esclarecida, como entendem os doutrinarios, tendo á sua frente Guizot e Royer-Collard?... Claro está que pomos de parte os systemas que vêem na soberania uma determinação directa da providencia. Sobre taes systemas pesam já bons dois séculos de sciencia e de critica. Redivivos nos esforços de alguns homens, teem sómente o respeito devido á boa fé, que lhes suppomos. Os que baseam a soberania na vontade, concluem, e bem, pelo suffragio universal: onde houver uma vontade, ahi deve haver o direito de manifestar-se efficazmente a respeito dos assumptos que directa ou indirectamente a interessam. Os que sustentam que é a razão o unico fundamento da soberania, bradam que deve restringir-se o suffragio sob a influencia d’aquelle criterio. Logica, perfeita logica n’uns e n’outros. Se os principios são verdadeiros, não ha mais legitimas consequencias. Mas são verdadeiros os principios? Não. São puramente arbitrarios, porque a soberania social, tomada na accepção metaphysica que elles lhe dão, é uma ficção, uma perfeita ficção. Com a soberania da vontade temos o contrasenso de se estender a soberania a cidadãos que a não querem, porque a não comprehendem; com a soberania da razão, decide uma pequena fracção da sociedade dos destinos de toda ella, sem criterio definido, com poderes illimitados. Com aquella, põem-se em equação a mais profunda inepcia e a mais subida cultura intellectual; com esta, que reduz a soberania ás meras proporções d’um mandato, ha sempre logar a perguntar-se pelo titulo d’esse contracto, pelo documento que o auctorisa. A revolução franceza de 1789 traduziu este ultimo systema: Robespierre e Danton inspiraram-se d’elle nas suas palavras e nos seus actos. A revolução de fevereiro de 1848, iniciou-se tambem com actos d’essa mesma ordem; só depois foi que caminhou no sentido do primeiro systema, até que, explorada e illudida pelos seus inimigos, commetteu as imprudencias de que lhe resultou o desprestigio e a desgraça. Os revolucionarios de 1848, que tinham na consciencia a idéa do suffragio universal, proclamavam a soberania da multidão, e faziam do numero o criterio da justiça, consultaram porventura o povo e operaram com consentimento d’elle nos primeiros e mais importantes dias d’aquelle periodo, quando se apossaram das Tulherias, e castigaram com o exilio forçado a impenitencia politica do velho rei Luiz Philippe? Não. Proudhon, que notou esta contradicção, foi até julgar provavel que, se o povo fosse consultado n’esses dias, o suffragio universal não seria pela republica. Ser soberano, segundo a etymologia do termo, é _estar de cima_, é governar, é mandar; ser soberana uma sociedade vale o mesmo que governar-se ella, mandar ella em si, dirigir ella propria os seus destinos. Porque é soberana a sociedade de hoje, e não se dizia soberana, nem se tinha por tal a sociedade de ha um seculo? Porque as sociedades anteriores á revolução franceza, fosse qual fosse a sua instituição e a fórma do seu governo, faziam da soberania o privilegio d’uma familia ou d’uma classe, e não o direito de todos os homens independentemente dos accidentes da riqueza, do nascimento ou da posição. Hão de responder-nos áquella pergunta do seguinte modo: a profunda ignorancia das massas populares, e a oppressão exercida sobre ellas pelos que lhes lucravam fartamente as trevas da intelligencia e o servilismo da vontade, eis o motivo porque só, transcorridos alguns mil annos, o povo teve consciencia d’este seu natural e inalienavel direito; mas a corrente da historia tem sido sempre no sentido da progressiva libertação da humanidade, e ahi está a confirmação experimental, irrecusavel, d’aquelle principio. Pondo de parte esta intenção calculada das classes superiores, que foi um bom expediente revolucionario, mas hoje, em philosophia da historia, não se logra de justificação alguma,--parece-nos que não teem melhor resposta para nos dar, e que nós a não podiamos, a final, desejar melhor. Aquellas palavras querem dizer: no actual momento os povos (os povos d’uma certa cultura, já se vê) entendem que lhes pertence intervir directamente na sua administração politica, e realmente interveem n’ella. Muito bem. Acceitamos esse fundamento do suffragio, e, sem o modificar na sua essencia, vamos dar-lhe esta formula, que se nos afigura mais clara: O direito de suffragio é uma instituição pratica, um facto, um phenomeno irrecusavel, que se manifesta nas sociedades modernas sob variadas fórmas e com differente extensão; é um producto da historia, desegual nos differentes povos que ella impulsiona e educa. A razão, a vontade, a educação, o meio, mil causas, emfim, produziram este estado. Acceitando-o como elle é, tratemos de estudar as melhores condições do seu mais util exercicio. N’este momento, e posto assim o problema, não nos preoccupa a maior ou menor extensão do suffragio. A resolução que meditamos dar-lhe aproveita quer elle seja universal como na França, na Suissa e nos Estados Unidos, quer elle seja restricto pelo censo, pela instrucção, ou por uma e outra cousa, como na maior parte das nações. Dado o suffragio como um facto positivo e ineluctavel, que interesse nos vem de questionarmos se elle traduz nas instituições a egual vontade de todos os homens, a sua egual intelligencia, ou a emancipação do seu espirito pelas luzes da instrucção? Qual povo consentiria hoje que lhe tirassem a liberdade politica, ou mesmo lh’a diminuissem por qualquer fórma? Nenhum. O suffragio, bom ou máu, justo ou injusto, util ou inconveniente, é um facto adquirido, é um facto consummado; assim é que é necessário consideral-o, sob pena de nos perdermos n’um dédalo de diversões phantasticas e estereis. É um perfeito resultado da evolução historica. Na antiguidade, Athenas dá-nos o primeiro exemplo d’uma democracia, não moldada pelas fórmas da democracia actual, mas como a podia produzir o espirito d’aquelle tempo. Roma, conquistando a Grecia, afogou na sua organisação unitaria o caracter liberal dos conquistados. O suffragio não apparece lá, desde a formação do imperio. Nos primeiros tempos da republica, ainda a liberdade politica tentou alguns ensaios felizes; o _forum_ teve os seus dias de gloria. Depois, á medida que a conquista dilatou os dominios d’aquelle povo, a heterogeneidade dos elementos que se lhe encorporaram foi um obstaculo cada vez maior á solidariedade convicta de todas as provincias e colonias no interesse commum da politica e, por isso, fatalmente tiveram ellas de ser regidas pela mais pesada centralisação administrativa. Aquella phrase de Galba, citada por Littré[55]: _Dignus eram a quo respublica inciperet_, ainda que elle ou os seus successores a quizessem realisar, nunca passaria d’um bom acto de consciencia, sympathico mas impossivel de effectuar-se. O christianismo teve a gloria de resolver essa difficuldade, creando um pensamento novo, e uma nova organisação pratica, cujos traços é inutil procurar na pura economia social dos romanos. «_La seule issue que le génie humain trouva dans cette difficile situation fut par le christianisme et par l’Eglise. Là le suffrage renaquit, et avec lui, les assemblées. Les conciles donnèrent des lois et un gouvernement spirituel à un monde qui s’effondrait temporellement._[56]» Depois, na edade-média, o suffragio assumiu a fórma aristocratica e com ella se conservou por longo tempo, até que a evolução economica e intellectual, começada com a introducção na Europa da sciencia grega pelos arabes, e continuada pela emancipação das communas, acabando com a servidão, foi pouco a pouco destruindo os privilegios da aristocracia, e approximando-se cada vez mais da egualação civil de todos os homens. Da egualdade civil á egualdade politica a distancia é curta. A primeira levou seculos a realisar-se; a segunda, grandemente favorecida pelo progresso das sciencias e pelos desacertos do velho regimen, de pouco tempo necessitou para romper a couraça feudal que a opprimia, e vencer as ultimas resistencias do passado. Bastou-lhe para isso o curto periodo da revolução franceza. Eis ahi como a democracia, e a instituição do suffragio, que é a sua essencialissima condição pratica, teem vindo até nós. Não são um improviso da philosophia; são um resultado da historia. Já acima dissemos que o nosso dever é acceitar o facto da liberdade politica, e procurar os meios da sua melhor e mais util manifestação. Para isso, que fazer? Instruir o povo, levar a educação civil e moral a toda a parte, fazer do estudo uma obrigação juridica, altear o mestre-escola a verdadeiro sacerdote da religião politica, etc. Eis a mais usual de todas as respostas áquella pergunta. A imprensa e a tribuna apregoam a todas as vozes aquella idéa. Os partidos liberaes fazem da instrucção obrigatoria um pomposo artigo de programma. Os miseros professores de aldêa, á mingua d’uma realidade soffrivel, dão-se aos mais doces devaneios ante a perspectiva de tão bom e tão annunciado futuro! Os homens mais graduados nas modernas escolas sociaes professam exactissimamente a mesma doutrina em relação a este problema: todos querem a instrucção para base do suffragio, todos entendem que a instrucção largamente diffundida tira á democracia popular os seus mais duros attritos. Laboulaye, que está bem em condições de personalisar a metaphysica social, Littré, que é o chefe do positivismo francez, Stuart Mill, que representa altamente a escola philosophica ingleza,--estão de pleno accordo n’este ponto. «Que vem a ser um governo fundado no suffragio universal? Imagina alguem virtudes magicas no numero, e que basta reunir, congregar homens, para desde logo os tornar infalliveis? Não tem havido democracias violentas, injustas, tyrannicas? Não ha mil exemplos de povos que se serviram do seu voto para arruinarem a liberdade, e se despedaçarem depois uns aos outros? O suffragio universal só é bom com esta condição: a de ser a maioria dos cidadãos sabia, moderada, amiga da justiça e da verdade. D’onde póde vir esta sabedoria, senão da educação? Onde se hão visto democracias razoaveis, a não ser na Hollanda, na Suissa, nos Estados Unidos, isto é, nos paizes em que a instrucção popular é olhada como o primeiro interesse e o primeiro dever do governo?[57]» Podiamos observar desde já que, se este distincto escriptor tem a peito encontrar um processo qualquer para tornar os homens infalliveis; se só quer o suffragio universal, dada a sabedoria dos povos, não é muito coherente appellando, no final dos seus argumentos, para a Hollanda, para a Suissa e para os Estados Unidos. Serão infalliveis esses povos? Serão, ao menos, sabios?... Bem sabemos que aquillo é um modo de dizer; mas, descontados os excessos do enthusiasmo, ainda nos parece pouco logica a conclusão. A unica a deduzir é esta: pois que a instrucção necessaria para a pratica sensata do suffragio universal não existe, o suffragio universal é impossivel. Em tal caso nós, ampliando ao voto restricto aquella conclusão, como era de justiça, limitar-nos-iamos a dizer: mas o suffragio mais ou menos extenso não ha forças que o arranquem aos povos; mas não se trata de estabelecer o suffragio, trata-se unicamente de regular as condições do seu exercicio; mas o que se deseja saber é, não o modo ideal de realisar a liberdade politica, mas sim o meio pratico, immediato, de fazer d’esse facto, que é legitimo porque vem na corrente da historia, uma condição válida e seria do progresso social. E esse ideal da instrucção, se é realisavel, vem tão longe!... Eis como o sr. Littré se exprime sobre este assumpto: «Sem uma educação proporcional o suffragio universal torna-se inerte, inteiramente falto de impulsão propria. A par e passo que o suffragio se vá generalisando, importa que a educação publica se vá egualmente diffundindo. São duas forças que se completam uma pela outra. Da parte dos homens de 1848 foi, sem duvida, uma grande falta a de não terem posto ao suffragio universal uma restricção: a de saber ler e escrever, por exemplo[58].» Stuart Mill pensa como os srs. Laboulaye e Littré. Como elles, sustenta a exclusão dos analphabetos, julga absurdo dar a um homem totalmente ignorante a faculdade de governar pelo seu voto os outros, e _põe no ensino universal a verdadeira base do suffragio universal_[59]. São muito conhecidas as opiniões e as palavras de Stuart Mill, e, por isso, não as transcrevemos para aqui. Não ha theoria mais seductora, mas também a não ha mais enganosa. Vamos demonstrar isto. Em primeiro logar, a instrucção de ler, escrever e contar não fructea, não póde fructear o resultado que d’ella se espera; mas, concedido por um momento que ella tem essa virtude, quem não vê que só n’um futuro remoto é que ella póde existir n’aquellas condições, e que o suffragio universal é já em algumas nações um facto positivo, uma instituição em exercicio, e, onde não existe o suffragio universal, ha a liberdade politica n’uma extensão muito proxima da universalidade? Ora não se trata das condições do estabelecimento do suffragio n’um futuro mais ou menos proximo; acceitando o facto da sua existencia, trata-se de regular convenientemente o modo pratico do seu exercicio. É para nós tão importante esta idéa, que nos não parece demasiada esta nossa insistencia em a exprimir muitas vezes. Vamos por partes. Da instrucção popular esperam-se estes dois resultados: dar conhecimento sufficiente das doutrinas que se discutem nas luctas eleitoraes, e influir, nos que recebem aquelle conhecimento, a moralidade precisa para o cumprimento dos seus deveres. Infelizmente, nenhuma d’estas duas cousas acontece. A maxima instrucção que é razoavel exigir do povo habilita-o porventura a votar, com conhecimento de causa, sobre o valor relativo dos programmas dos partidos, e a induzir dos factos de cada parcialidade politica um juizo approximado sobre o merecimento e a sinceridade das candidaturas debatidas n’uma lucta eleitoral? Se o suffragio se applica a cousa mais alta, como, por exemplo, a escolha d’uma fórma de governo, acredita alguem que o votante, só porque sabe ler e escrever, escolhe em boa consciencia esta ou aquella forma politica? A maior parte dos homens dados ao commercio, á industria, ás artes, estão, sejamos francos, perfeitamente habilitados para a formação d’aquelle juizo? Não estão, é claro. Ora, ninguem quererá que os nossos lavradores tenham a instrucção media do commercio para então lhes ser permittido o direito de votar. E se alguem chegar a taes exigencias, o que podemos affirmar é que lh’as não acceita a nossa burguezia rural. Mas a instrucção primaria dará ao menos a moralidade, o desejo do bem, a vontade firme de acertar? Não dá isso. Invocam-se em vão as conclusões da estatistica, e, com a maior impropriedade, razões fundadas n’uma supposta relação existente entre a leitura, a que podem chegar os ultimos cidadãos, e a comprehensão exacta do dever e da honra. Quantas vezes não temos ouvido dizer que a ignorancia está para o crime na relação do effeito para a causa? Pura declamação! O sabio Spencer demonstra que essa relação entre a immoralidade e a ignorancia não tem maior valia do que a relação que se verifica, usando os mesmos processos estatisticos, entre a falta de hygiene e o crime, entre o habito immoderado de bebidas alcoolicas e o crime, entre a miseria e um certo numero de crimes, e que, se d’essas verificações parciaes alguma conclusão póde tirar-se, é esta: _que existe uma relação real entre o crime e um genero de vida inferior; que este é ordinariamente consequencia d’uma inferioridade original de natureza; que a ignorancia é apenas uma das causas concomitantes do crime, mas não uma causa mais poderosa do que as outras_[60]. A confiança nas virtudes redemptoras da instrucção é, pois, muito bem intencionada, mas vã. Reminiscencia do periodo em que o doutrinarismo reinou absolutamente nas consciencias, vai-se apagando e desfazendo gradualmente a par e passo que se aperfeiçoam os processos da observação social. Podem ainda dizer-nos que não é a instrucção reduzida aos processos de ler, escrever e contar a que deve ser requerida para o exercicio do direito de suffragio, mas sim essa instrucção e mais a educação moral e politica, que póde diffundir-se largamente pelas classes mais ignorantes e mais desvalidas. Não nos seria extremamente difficil mostrar que a educação moral, dada pelo ensino, é quasi esteril. Sem citarmos a China, que, educada na boa philosophia pratica de Confucio, nos offerece o espectaculo da mais profunda degradação moral; sem notarmos o facto de que as mais horriveis guerras são as determinadas por motivos religiosos, apesar de quasi todas as religiões recommendarem a maior doçura e suavidade de sentimentos; sem nos soccorrermos a nada d’isso, não vemos nós ahi, pelos nossos proprios olhos, que, se n’este paiz ainda ha moralidade, respeito pela honra, sujeição inquebrantavel á propria palavra, é exactamente nas classes illetradas que isso se encontra com menos raridade? Se nas classes infimas apparecem crimes, que, pela maior parte, podem ser referidos á miseria como causa, nas outras classes abundam crimes inteiramente desconhecidos nas mais desgraçadas, e todavia ninguem referirá estes ultimos á falta de instrucção, á falta de educação. Os que vêem em taes meios a panacêa universal de todas as nossas enfermidades moraes deixam transparecer clarissimamente o velho preconceito da facilidade da sciencia social. O medico, o engenheiro, o jurisconsulto, estudam sempre, dedicam-se totalmente á sua especialidade, e, apesar d’isso, se teem de resolver um problema, uma questão mais importante, redobram de applicação, multiplicam os seus esforços, consideram particularmente todas as hypotheses possiveis, e só depois de tudo isto, e muitas vezes ainda com timidez, é que resolvem a difficuldade proposta; na politica entende-se geralmente que as cousas se devem passar d’outro modo, e que desde que se saiba ler e escrever, embora se não leia, embora se não estude, está-se logo habilitado para julgar sobre as infinitas questões affectas á acção dos governos. E isto na presente quadra, na febre d’este movimento scientifico que nos traz cada dia novas exigencias, novos processos, novas discussões, n’este periodo profundamente revolucionario em que ha, a todo o momento, necessidade de modificar as opiniões recebidas! Querem a instrucção necessaria ao exercicio razoavel dos direitos politicos? Só assim é que entendem que a democracia é justa? Pois então desesperem completamente da liberdade e da democracia. O povo nunca terá essa instrucção. Porque? Respondemos com Wirouboff: _porque, trabalhando com o suor do seu rosto, lhe falta o tempo preciso aos cuidados da sua educação, e não está nas posses do Estado dar esta educação ou crear aquelle tempo_[61]. Stuart Mill, no estudo d’esta questão, colloca-se n’um ponto de vista muito original e muito interessante. Vendo os homens do povo ignorantes, apathicos, esmagados sob as duras condições do seu trabalho, pensa que o melhor meio de lhes crear idéas, de os fazer adquirir a previdencia e a penetração que lhes faltam, de lhes dar, com a convicção da solidariedade humana, novos horizontes ao coração e ao espirito, é simplesmente este: lançal-os nas impetuosas discussões da politica, nos vivissimos interesses da sua administração e do seu governo, porque isso lhes desenvolve a intelligencia, a critica, as poderosas faculdades do espirito; porque isso os _torna, scientificamente, verdadeiros membros conscientes da grande communidade social_[62]. Isto é uma parcella pequenissima da verdade perdida nas nuvens azues d’um bom sonho. Stuart Mill, o poderoso e incomparavel publicista, não era, verdade seja, muito inclinado a devaneios scientificos; mas, assim como o Homero da lenda dormitava algumas vezes, áquelle grande pensador chegou tambem a sua vez de sonhar, de devaneiar. Pois um homem, embrutecido na monotonia dos seus processos de trabalho, incapaz de qualquer raciocinio alheio á sua occupação quotidiana, é arrancado aos suados misteres da sua industria, e levado, uma vez cada anno, a deitar n’uma urna um bilhete que recebeu d’um homem qualquer de quem depende, ou que elle proprio redigiu com a mais deploravel orthographia; esse homem é, de quando em quando, aliciado para uma reunião publica, em que a rhetorica banal e facil dos tribunos de genero barato assume aos seus olhos as fascinações olympicas d’um profundo mysterio; esse homem que, consultado sobre os mais graves negocios, responde como lhe dizem que responda, sem opinião propria, sem consciencia;--esse homem, só porque se move, porque pratíca o acto de votar, porque diz _sim_ ou _não_, adquire porventura algumas luzes, começa a sympathisar com os seus concidadãos, sente elevar-se, pouco que seja, o nivel da sua intelligencia? Alliviem o quadro, se quizerem; dêem a esse cidadão as faculdades de ler, de escrever, de contar muito bem; colloquem-no em posição independente de vizinhos ricos e influentes,--e digam-nos depois, em boa fé, se aquella pergunta, ainda em tal caso excepcional, póde deixar de ser respondida negativamente. Não póde. Para que a discussão politica fructeie aquellas vantagens é indispensavel que os que entram n’ella tenham os necessarios instrumentos de critica e de exame. A discussão não é jogo de desejos ou de vontades; é lucta, é combate de opiniões. Quem não tem opinião teima, aggride, póde vencer pelo numero ou pela força; mas discutir, mas receber na consciencia a scentelha de verdade que resulta sempre do encontro de dois pensamentos oppostos, isso é que não. Esta loucura de condecorar o povo com os attributos da soberania, este proposito, ingenuo ou hypocrita, de o encher de direitos que elle não comprehende, de direitos que elle não sabe exercer, de direitos que não ha vontade de tornar praticamente realisaveis,--faz-nos lembrar sempre as ironias sarcasticas dos judeus a Jesus. Vestiram ao divinissimo mestre uma tunica miseravel, offereceram-lhe um sceptro irrisorio, cingiram-lhe a fronte n’uma corôa de espinhos, e depois acclamaram-no rei, em meio das mais esqualidas visagens, ao som dos mais torpes dicterios... Jesus, porque era Deus, soffreu, resignou-se. O povo vai tambem soffrendo em silencio as consequencias da sua pesada soberania, e apenas d’ora em quando, se apertam muito com elle para lhe tirarem o que não tem, o que não póde dar, manifesta desejos de brandir contra os seus _amigos_ o instrumento do seu trabalho, que é o verdadeiro, que é o unico sceptro da sua realeza. * * * * * Temos visto que o suffragio é a unica condição pratica da democracia; que esta é um facto irrecusavel nos povos modernos, perfeitamente legitimado pela corrente da evolução historica; que, no assumpto que nos preoccupa, a questão deve versar, não sobre a justiça absoluta do direito, mas sobre o modo de o realisar nas circumstancias em que elle apparece; que, ao inverso do que pensam Laboulaye, Mill e Littré, a resolução das difficuldades não está na instrucção e educação do povo, em parte porque isso não é immediatamente realisavel, e em parte porque, ainda depois de obtida a instrucção exigivel nas actuaes condições economicas dos pequenos proprietarios e das classes operarias, ella não poderia nunca altear o geral das consciencias á comprehensão das grandes exigencias da politica; e, finalmente, dissemos já tambem que o problema é exactamente o mesmo, quer se trate do suffrario universal, quer se trate do suffragio na extensão que lhe dão as leis de quasi todos os paizes cultos. As verdadeiras condições da liberdade politica são outras. Vamos expol-as. Destruimos; é conveniente, é justo que edifiquemos agora. O suffragio, universal ou limitado pelo censo ou pela instrucção, só é possivel n’uma administração inteiramente descentralisada. É esta a formula que vamos defender; n’ella se inclue, pelo nosso modo de pensar, a resolução das maiores dificuldades que actualmente offerece a sciencia politica. É antigo este pensamento no nosso espirito; desde muito tempo nos preoccupa a idéa de que a centralisação administrativa é o maior estorvo á realisação das aspirações democraticas d’este seculo; a comparação do suffragio universal na França, onde elle sanccionou as aventuras do segundo imperio, com a mesma instituição nos Estados Unidos e na Suissa, onde tem produzido sempre magnificos resultados, serviu para radicar em nós aquella convicção. Eliminadas prudentemente todas as differenças, que podiam ser invocadas para explicar aquella desegualdade de effeitos, ficava sempre, a nosso ver, só esta: na França a administração é fortemente unitaria; nas duas florescentissimas republicas a vida local desenvolve-se regularmente, desaffrontada e independente nos termos em que o pode ser. Ultimamente tivemos a satisfação de ver que um dos mais notaveis pensadores da França contemporanea, G. Wyrouboff[63], punha ao serviço d’aquella doutrina os admiraveis recursos do seu poderoso entendimento. É sempre agradavel contemplar uma idéa, a que queremos muito, no claro esplendor d’uma grande intelligencia alheia. O principio, ou antes o facto capital da nossa theoria é este: o povo, inhabil actualmente, e ainda n’um futuro remoto, para se decidir entre doutrinas de elevada complexidão scientifica, é comtudo competente, e competente mais que ninguem, para resolver sobre as questões que o interessam immediatamente, que dizem respeito ás necessidades da sua vida local, que se accommodam, por isso, ao jogo pouco complicado das suas funcções intellectuaes. A construcção de estradas concelhias ou vicinaes, a organisação da fazenda municipal, a fundação e localisação das escolas primarias, emfim, a administração da parochia e do concelho, no que tem de essencial, são cousas de que a maior parte dos seus respectivos habitantes fórma mais facilmente juizo seguro do que os legisladores das nossas duas camaras e os membros do poder executivo. Acontece exactamente o contrario se se trata de discutir programmas politicos, de optar por uma forma de governo, ou cousa assim muito complexa e muito difficil. Se isto é assim, e parece-nos que não ha verdade de mais irresistivel clareza, deve o voto popular recaír directamente sobre as questões locaes, facillimamente apreciaveis, e só indirectamente, mediante os corpos gerentes das respectivas localidades, sobre todos os negocios em que o voto directo, á falta absoluta de conhecimentos, seja sem significação alguma. Nada nos parece tão racional e tão pratico como isto. É a applicação do principio da especialisação do saber ao exercicio do systema liberal. Chega a ser uma verdade de simples bom senso. «_Croyez-vous_, diz o sr. Wirouboff[64], _qu’un habitant de la campagne soit moins compétant qu’un conseil de ministres ou une réunion de députés pour savoir par où un chemin vicinal doit passer, dans quelle localité un marché doit être établi? Et pourtant les constitutions sont ainsi faites, qu’elles consacrent juste le contraire de ce que le plus simple bon sens indique. Nous avons vu le peuple consulté, par voie plébiscitaire, sur la valeur d’une constitution nouvelle que l’empire chancellant venait de fabriquer, et nous avons vu aussi,--chose non moins surprenante,--une Chambre voter solennellement un crédit de quinze cents francs pour le percement d’un puits dans une petite commune de Bretagne..._» Contra esta idéa levantam-se já duas objecções: a centralisação está nos costumes e na educação de quasi todos os povos, e portanto é irrealisavel por uma reforma legislativa; a traducção d’esse systema importa o suffragio em dois gráus, e tal modo de exercer a liberdade politica é injusto e inconveniente. Vamos á primeira objecção. Se estivessemos convencidos de que a descentralisação administrativa, necessaria para o razoavel exercicio do suffragio, era opposta radicalmente ás tendencias e habitos dos povos, o argumento inspirado d’esse facto seria para nós irrespondivel e terminante. Mas tal convicção não temos. Se qualidades especiaes de raça e exigencias de _meio_ geographico devem ser invocadas para explicar o systema federal na Suissa e nos Estados Unidos; se, para implantar esse regimen politico em paizes que não estão exactamente n’aquellas condições, seria necessario violentar a tradição e forçar a historia; o mesmo se não dá, o mesmo não acontece se se trata unicamente de restituir ás localidades o direito de se administrarem, não com absoluta independencia do Estado, mas com liberdade sufficiente para que os seus interesses sejam devidamente tratados, e responsabilidade proporcional ás attribuições do seu poder. Ora o nosso modo de resolver a difficuldade proposta satisfaz bem, muito bem, a estas duas considerações, attendiveis em todos os problemas d’esta ordem: realidade de preparação historica, realidade de preparação intellectual. Os povos estão sufficientemente habilitados para intervirem de modo directo na gerencia dos seus negocios concelhios, e ainda districtaes ou provinciaes, e todos estão, desde longa data, na posse mais ou menos desaffrontada, mais ou menos perfeita, d’essa intervenção. O municipio, como organismo administrativo, existiu sempre. É um producto necessario da espontaneidade social. As relações que prendem os habitantes do mesmo concelho não as creou a lei. Tambem, como entre nós se tem visto muitas vezes, a lei não póde alteral-as, e muito menos supprimil-as. A. de Tocqueville disse que o municipio parece ter saído directamente das mãos de Deus. O districto, a provincia, o _departamento_, não estão no mesmo caso, mas em compensação, teem a mais larga e a mais constante consagração historica. Nascidos da necessidade em que o poder central se viu de descomplicar a administração publica, ou originados da tendencia manifestada em alguns grupos de concelhos para se constituirem em estados independentes, ou filhos do feudalismo, que lhes imprimiu uma forte vida propria,--os districtos apparecem em toda a parte, como uma divisão natural á força de muito antiga. Tem-nos a França, a Inglaterra, a Hollanda, a Hespanha, a Austria, a Italia, etc. Nós temol-os tambem como creação do poder central desde longa data, e, com tradições de alguma autonomia, desde 1832[65]. É certo, é innegavel que a fórma politica mais apta ao completo desenvolvimento da vida local é a federação; mas não será possivel n’uma organisação politica unitaria estabelecer uma administração amplissimamente descentralisada? Precisaremos porventura de proclamar a absoluta independencia dos districtos ou das provincias, para lhes podermos suppôr o exercicio liberrimo de attribuições correspondentes ás suas naturaes necessidades?... Para que a tutela do poder central deixe de se acompanhar do forçado cortejo de oppressões e espoliações de toda a ordem; para que, affectando ás unidades administrativas o encargo do seu governo, se lhes affecte por isso mesmo a responsabilidade dos seus actos, o que é d’um grande alcance moral; para que se especialisem os trabalhos administrativos em harmonia com o mais perfeito conhecimento das respectivas necessidades, e com o maior interesse em provel-as de remedio; para tudo isto não é necessario quebrar o molde geographico e tradicional das nacionalidades; basta aproveitar devidamente as divisões que a natureza creou, e accrescentar-lhes as que, na maior parte dos estados, a historia tem produzido. O sr. Ernesto Naville, um dos mais benemeritos campeões da liberdade moderna, estudando as condições d’uma boa reforma eleitoral em França, chegou tambem á conclusão de que, _só depois de descentralisada e muito descentralizada, é que a França poderá ser livre_[66]; e utilisando as actuaes divisões d’este paiz, propõe uma solução do problema, em que a unidade politica e a liberdade local estão, a nosso ver, perfeitamente conciliadas. No seu entender, a França, actualmente dividida em departamentos, póde facilmente accommodar-se a uma divisão por provincias, constituindo provincias os departamentos mais extensos, e reunindo-se, para esse effeito, em grupos os departamentos de menor extensão. N’esta hypothese, os eleitores elegem representantes na razão de um por mil eleitores por exemplo. Os deputados de cada provincia formam, como corpo distincto, os _parlamentos provinciaes_. Os parlamentos provinciaes, no seu conjuncto, e considerados como um só corpo, formam o _parlamento francez_. Uma delegação dos parlamentos provinciaes constitue em Paris um _corpo legislativo_. Este corpo legislativo tem a seu cargo os actos necessarios ao movimento da administração, e, principalmente, a preparação dos projectos de lei que devem ser submettidos ás deliberações do parlamento francez. Os parlamentos provinciaes, como corpos distinctos, regulam e dirigem os interesses da provincia, e, como partes integrantes do parlamento francez, deliberam sobre os projectos de lei, votam-nos, acceitando-os ou rejeitando-os, ou os devolvem ao corpo legislativo para que sejam emendados. Tão simples como completo, este systema póde, feitas as precisas modificações, ser applicado a Portugal. Não rompe a unidade do paiz, e descentralisa muitissimo a administração e a politica; tem a vantagem de reduzir a uma só eleição a escolha dos representantes provinciaes e dos representantes nacionaes; acaba com o perigo, indicado por Stuart Mill, de serem os projectos de lei, quando redigidos e emendados n’uma corporação muito numerosa, prejudicados gravemente pelas influencias da palavra e pelas preoccupações da politica. O sr. Wyrouboff põe a sua theoria do suffragio universal á prova d’uma organisação politica muito parecida com a da Suissa. É esta: as communas administram-se por si mesmas; os departamentos, formados por grupos de communas, com o seu pequeno governo local de que apenas são responsaveis para com os seus eleitores, com o seu orçamento proprio, dirigem os seus negocios, regulam as condições da producção e do consumo, decretam a instrucção que julgam necessaria, superintendem nas relações das differentes egrejas; uma camara, composta de deputados eleitos pelas corporações departamentaes, occupa-se das questões que interessam a todo o paiz, resolve os conflictos entre os departamentos, etc. _Com esta organisação_, diz aquelle escriptor, _desapparecem todos os defeitos actuaes do suffragio universal, e todos os cidadãos, ainda os mais incultos e rudes, votam com perfeito conhecimento de causa_[67]. Mas o nosso fim não é apresentar aqui minuciosamente as condições práticas da descentralisação necessaria ao exercicio do suffragio; temos apenas em vista indicar o suficiente para que não pareça irrealisavel o nosso pensamento. A descentralisação é um principio traduzivel por varias formas. Sirvam de amostra essas que ahi ficam. Escolha cada nação a que mais convier aos seus habitos, á sua educação historica, ás suas condições geographicas, e realise-a se quizer corresponder seriamente ás exigencias democraticas do nosso seculo. Não nos opponham dificuldades de _raça_. Os cantões da Suissa não teem, como se sabe, a mesma procedencia ethnica. A Inglaterra e os Estados Unidos, devidamente apreciada a sua differença social, são argumento de que a descentralisação administrativa é accommodavel a povos perfeitamente deseguaes nas relações das suas respectivas classes. Floresce egualmente no condado da Inglaterra, que é o paiz da mais forte aristocracia, e na parochia da America do Norte, que é republicana e democratica. A segunda das objecções, que julgamos util prevenir, refere-se aos inconvenientes das eleições por dois gráus. Não temos pela eleição indirecta sympathias muito fortes. Conhecemos os seus inconvenientes, que se reduzem a estes: limitando o numero dos eleitores, torna facillima a intriga e a corrupção; não interessa o animo do eleitor nas cousas politicas, e a liberdade politica deixa, por esse modo, de ser a escola de si mesma; não tem vantagens sobre o systema contrario, porque o votante, na eleição directa, se não tem capacidade para resolver por si, e deseja exercer o seu direito em boa consciencia, póde ouvir o conselho das pessoas em quem confia por seu saber e probidade. Em todas estas considerações ha verdade e ha exaggeração. Está no espirito do nosso tempo e na propria indole da democracia o suffragio directo, e nós, em regra, queremol-o. Mas o suffragio directo não tem tambem inconvenientes, e muito grandes? Não é uma irrisão, um perfeito escarneo, chamar um analphabeto a decidir com o seu voto a mais intrincada questão social? Da justa combinação dos dois systemas não resultarão vantagens superiores ao emprego exclusivo de qualquer d’elles?... Baseando-se na consideração, até certo ponto justa, de que é mais facil, mais accessivel o raciocinio sobre as qualidades d’um eleitor de deputados do que sobre as condições requeridas n’estes, a eleição indirecta não póde deixar de produzir, em alguns casos, resultados bons. E é certo que os produz. Sirvam de exemplo as eleições do senado e da presidencia dos Estados Unidos. Stuart Mill, inimigo jurado da eleição em dois gráus, acceita-a comtudo como vantajosa sempre que os eleitores do segundo gráu sejam mais alguma cousa do que simples eleitores, isto é, tenham outras funcções importantes a desempenhar na administração da communa ou do districto, e cita, em seu abono, o facto d’aquellas eleições[68]. Ora nós também queremos que, seja qual fôr a fórma dada á administração publica, a assembléa destinada a deliberar sobre os altos interesses do estado, seja eleita pelos corpos collectivos das localidades. Para estes a eleição directa; para aquella, a eleição por dois gráus. _Dadas certas circumstancias_, diz o grande publicista inglez, _o systema do suffragio indirecto é o melhor de todos_[69]. A nós parece-nos que em caso algum está tão claramente indicada a sua applicação como na hypothese que temos discutido, e nas condições intellectuaes do nosso paiz. * * * * * Em conclusão: O suffragio, com a extensão que tem na maior parte das nações cultas, repugna abertamente com a organisação unitaria d’ellas; fóra da mais larga descentralisação, é impossivel como cousa seria, é prejudicial, é ridiculo. O povo, ou tem o bom senso de não votar como acontece em França muitas vezes, e como está acontecendo entre nós, e em tal caso o regimen liberal é o absolutismo mascarado,--ou exerce aquella faculdade, e então impõe-se com a sua ignorancia e com as suas illusões ás legitimas exigencias da razão social, como aconteceu durante o segundo imperio, desde 1850 até 1870. Esta antinomia é irreductivel por outra fórma que não seja a que indicamos. * * * * * Estudadas as condições, a que deve satisfazer o voto individual para que tenha significação e seriedade, resta ver o modo de utilisar convenientemente esse voto na representação politica. A transição é natural. Não basta que o voto seja convicto; é mister que seja válido. Dedicamos a este pensamento os capitulos que seguem. NOTAS DE RODAPÉ: [51] Herbert Spencer, _Introduction à la Science Sociale_, pag. 8 e segg. [52] Vid. Jules Clère, _Histoire du suffrage universel, depuis 1789 jusqu’à nos jours_, de pag. 5 a 16. [53] Le 19 Janvier, _Compte rendu aux électeurs de la 3.ᵉ circonscription_, par Emile Olivier (1868). [54] P. J. Proudhon, _Idée générale de la révolution au XIX siècle_, pag. 156 e segg. [55] E. Littré, _Du Suffrage universel en France, considéré comme une expérience sociologique_--_Revue de Phil. Posit._, tom. IV. [56] E. Littré, _Revue de la Phil. Posit._, tom. IV, pag. 37. [57] Laboulaye, _L’État et ses limites_, pagg. 202 e 203. [58] _Du Suffrage universel en France, considéré comme une expérience sociologique_--_Revue de Phil. Posit._, tom. IV, pag. 38. [59] _Le gouvernement répresentatif_, par M. J. Stuart Mill, traduit par M. Dupont White, pag. 191 e segg. [60] H. Spencer, _Introduction à la Science Sociale_, pag. 388. [61] Wirouboff, _La Politique qualitative, et la politique quantitative, Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 12. [62] _Le gouvernement répresentatif_, par M. J. Stuart Mill, traduit par M. Dupon White, pag. 189. [63] _Revue de la Phil. Posit._, de pag. 5 a pag. 23. [64] _Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 14. [65] Sr. Joaquim Thomaz Lobo d’Avila, _Estudos de Administração_, pag. 112 e segg. [66] Ernest Naville, _La réforme électorale en France_, pag. 61 e segg. [67] _Revue de la Phil. Posit._, tom. VIII, pag. 18. [68] _Le gouvernement représentatif_, pag. 220. [69] _Le gouvernement représentatif_, pag. 221. CAPITULO II =Summario.=--A representação politica deve ser proporcional. Demonstração directa d’esta these pelos principios fundamentaes de Direito Publico.--Erro dos que confundem a lei da _maioria_, applicavel ás assembléas deliberantes, com a lei da _proporcionalidade_, applicavel aos corpos eleitoraes. Este erro no nosso parlamento. As minorias, como garantes dos interesses nacionaes nas assembléas politicas. Perigos que correm os governos exclusivistas com as suas maiorias.--É insensato o argumento dos que menospresam a representação proporcional com o fundamento de que as minorias _sempre teem alguma representação_. Prova d’isso.--Em muitos casos o systema vigente, julgando servir as maiorias, sacrifica-as. Demonstração.--Consequencias immoraes do actual systema. É elle a causa das abstenções politicas: testemunhos, em relação á França, de H. Lasserre, Wyrouboff e Aubry-Vitet. Imprime ao exercicio dos direitos politicos o caracter odioso das luctas pessoaes. Sacrifica ás mediocridades os homens de valor: o exemplo dos Estados Unidos, adduzido por Stuart Mill. Força a colligações deshonrosas: testemunho de Borély.--Historia da representação politica proporcional. O estudo e a instituição d’este regimen na França, na Suissa, na Dinamarca, na Inglaterra, em alguns estados do Norte-Americano, no Brazil, na Hespanha e em Portugal. Conclusão. A representação politica deve ser proporcional. Não satisfazendo a esta condição, é uma falsidade e é um perigo. A democracia pura, o governo de todo o povo por todo o povo, é impossivel fóra de certas condições excepcionaes, como as que se dão em alguns cantões da Suissa, e, por isso, o systema representativo impõe-se como unico meio de dar á liberdade politica a realidade que ella exige no momento actual da evolução humana. Porque a maior parte dos cidadãos, occupados nos misteres da sua industria, não podem dedicar-se ao estudo e decisão das questões politicas, e tambem porque o seu numero d’elles, que é d’alguns milhões em todas as nações cultas, obsta invencivelmente a que se congreguem e deliberem em commum,--forçoso é que elles deleguem em poucos o encargo de fazer as leis, votar os impostos, e prover a tudo o mais que seja necessario ao regular andamento da administração publica. Esse acto de delegação realisa-se mediante os systemas eleitoraes. Vê-se já que a representação politica deve ser a imagem fiel da sociedade, e não uma corporação gerada pelos interesses e constituida pelos suffragios d’uma só parcialidade, por mais numerosa e importante que esta seja. D’outro modo, o systema representativo é um sophisma. Não é a reducção forçada de todos os partidos ás proporções exigidas para o governo; é a exploração brutal e monstruosa de todos os grupos politicos por um só, o qual, para se lograr da sua ambição, basta, ainda nos casos perfeitamente normaes, que tenha sobre os seus competidores a simples maioria d’um voto! Entre nós, como em quasi todos os povos, a politica assenta n’esta base falsa. Porque? Porque se applica aos corpos eleitoraes a lei da _maioria_, exactamente como se faz, nem póde deixar de fazer-se a respeito das assembléas politicas, que teem de decidir as questões affectas á sua competencia. Mas _eleger_ não é _decidir_. A urna, inintelligente e impassivel, não póde decidir da bondade e da justiça dos partidos; o seu unico fim é este: fazel-os representaveis. Todo o cidadão, que é eleitor, tem direito a ser representado. A este preceito da lei, que é uma conquista de seculos, não póde oppôr-se a urna, determinando com um absolutismo incontrastavel quaes eleitores hão de ser representados, e quaes o não hão de ser. Se o corpo eleitoral deliberasse sobre questões politicas, a sua decisão deveria ser tomada á pluralidade de votos; mas tal se não dá, mas elle vai simplesmente _reduzir-se_, escolher os seus delegados, a quem confere o direito de julgar aquellas questões, e, por isso, não é á lei da _maioria_, mas sim á lei da _proporcionalidade_ que a eleição deve satisfazer. Que diriamos nós, n’uma democracia pura, se annunciando-se uma questão qualquer, e notando-se logo divergencia de opiniões, fossem postos fóra do comicio, immediatamente, sem serem ouvidos, os cidadãos que discrepassem no seu parecer do maior numero? Não tinhamos palavras para castigar devidamente tão flagrante attentado contra os direitos politicos. Pois é isso o que ahi se faz a todo o momento, sem reparo de ninguem, sem protesto de ninguem! Como se explica o tão longo reinado d’este erro, d’esta grande confusão na consciencia humana? Por um habito intellectual muito inveterado, por uma immemorial associação de idéas. Só estas duas cousas, diz Stuart Mill[70], podem harmonisar por tanto tempo a razão humana com uma injustiça inutil. * * * * * Póde parecer que, elegendo o maior dos partidos militantes um numero de deputados proporcional á sua importancia, estes decidem sempre no parlamento as questões por maioria, e que, por isso, é de todo o ponto indifferente que os outros sejam ou não representados na proporção das suas forças: é sempre a maioria que triumpha fatalmente, inevitavelmente. Este argumento foi produzido na nossa camara electiva pelo sr. deputado Lopo Vaz de Sampaio e Mello, illustre relator da commissão eleitoral, em resposta aos srs. Luciano de Castro e Pinheiro Chagas. Eis as proprias palavras do intelligentissimo relator: «Se as leis fossem sempre discutidas e votadas directamente pelos cidadãos, seriam sempre a final decididas pela maioria d’elles; portanto é mister, para que a soberania nacional não seja uma burla, que as leis sejam sempre decididas pela maioria parlamentar _constituida pelas maiorias eleitoraes_. Segundo o nosso actual regimen, todos os deputados podem intervir na votação das leis sem quebra d’aquelle principio, porque todos são eleitos pelas maiorias eleitoraes. Ou triumphem n’este casa as opiniões do partido progressista ou as do partido regenerador, ou as d’outro qualquer partido ou deputado, triumpha sempre a opinião seguida pela maioria dos deputados representantes das maiorias eleitoraes.[71]» Ha n’estas palavras uma grande confusão de idéas. Se as leis fossem discutidas e votadas directamente pelos cidadãos, seriam a final decididas pela maioria d’elles, diz o sr. Lopo Vaz. O principio é incontestavel. Mas como quer s. ex.ª concluir d’ahi que, dada a representação politica, as leis devem ser discutidas e votadas sómente pelos representantes da maioria dos cidadãos? Porque não conclue que, dada a representação politica, as leis devem ser _discutidas_ pelos representantes de todos os eleitores, e vencidas a final á pluralidade de votos? É esta a unica consequencia logica, verdadeira, que póde deduzir-se do principio invocado. N’uma intelligencia tão elevada, tão culta, tão poderosa como a do sr. Lopo Vaz, um erro d’aquella ordem não póde resistir a dois momentos de reflexão. Os parlamentos, as assembléas politicas não teem unicamente a seu cargo votar leis; votam-nas, sim, mas antes d’isso discutem-nas. Ora é impossivel sustentar que a minoria, só porque o é, não deve discutir, não deve oppôr as suas idéas ás dos seus adversarios, e contribuir assim, pela critica conveniente, para a maior perfeição dos actos legislativos. Que de vezes triumpha na tribuna o partido menos votado na urna? A verdade e a justiça não são patrimonio exclusivo de partido algum; são a aspiração de todos os homens, e, não raras vezes, a propriedade do menor numero. Chegada a hora da votação, a maioria vence pelo seu numero, é certo; mas os vencidos d’esse modo são primeiro ouvidos, defendem o seu programma, significam o seu pensamento quanto basta para que o paiz possa julgar da sinceridade e do merecimento de todos. Nos tribunaes civis e criminaes ninguem é condemnado sem ter dicto de sua justiça; que razão ha para que se não applique este principio á suprema decisão dos negocios publicos? O povo, que vai limitar a sua liberdade pelos preceitos d’uma lei e restringir a sua propriedade pelo pagamento de impostos, tem direito a que se lhe diga porque se faz aquella lei e porque são votados estes impostos; e a maioria, havendo de cumprir esta obrigação, tornada effectiva a exigencias da minoria, terá sempre o cuidado de não propôr cousa que a sujeite ao vexame da opinião publica e a todos os consectarios do descredito geral. No nosso desgraçado regimen eleitoral difficilmente conseguem vingar as suas candidaturas os caudilhos, os proprios caudilhos da opposição; mas esses poucos, quantas vezes teem prostrado na arena da discussão, a puros golpes de raciocinio e de eloquencia, os seus adversarios muitissimo mais numerosos? Não citamos datas nem nomes, para que isto não pareça o resfolego d’uma paixão partidaria, quando é simplesmente uma verdade serena e imparcial. Se isto acontece, apesar dos defeitos do actual systema, de certo se obteriam resultados incomparavelmente melhores estando as cousas organisadas de molde a terem representação condigna todos os grupos politicos d’alguma importancia. É de observação geral e facil que, quando um ministerio qualquer tem no parlamento uma maioria muito consideravel, a quasi unanimidade de votos nas deliberações politicas, esse ministerio arrasta uma existencia torturada, esteril, quasi sempre indigna, e, sem que isso se espere, cáe d’um momento para o outro, no meio dos seus partidarios, sem se saber porque cáe, sem motivo, com um pretexto apenas. Qual é a causa d’este phenomeno, tantissimas vezes repetido? Esta, a nosso ver: o grande defeito da sua origem, o ter procurado o governo, por meios improprios, um excesso de vida em absoluta contradicção com os legitimos interesses do organismo social. Sem estimulo, sem lucta, sem necessidade de previsão e de raciocinio, em plena segurança e plena ociosidade, a camara cuida sómente dos seus interesses pessoaes; a intriga passa a ser o doce entretenimento das suas horas; não se discutindo idéas, pleiteam-se preeminencias; a voz que devia trovejar na tribuna as palavras da dignidade e os accentos da verdadeira eloquencia, murmura confidencias ou supplica favores nos gabinetes do ministerio; vão-se rompendo pouco a pouco os laços que prendem os representantes aos interesses do paiz; o governo, lisongeado pelos pretendentes, elogiado pela imprensa do seu partido, abundantemente apoiado na camara, acaba por se convencer de que tem realmente a opinião publica a seu favor; e as cousas correm assim até que um pequeno incidente, esclarecendo essa falsa situação, determina inopinadamente uma crise, de que resulta a morte moral d’esse partido, se ainda ha no paiz alguns vislumbres de moralidade civica! O actual systema não é, pois, sómente opposto ao pensamento fundamental da democracia moderna; é também nocivo á classe exploradora, ao partido mais numeroso, e castiga sempre a soffreguidão dos governos, que, por um pendor irresistivel, o levam á sua ultima extremidade. * * * * * Tem-se dito já que, variando de collegio para collegio a opinião dominante, a opinião que está em maioria n’um dos circulos está em minoria n’outro, e que, por esta fórma, sempre se consegue que sejam representados todos os partidos. Mas não póde acontecer que um partido, aliás numeroso, esteja em minoria em todos os circulos? Mas, e que se não dê isso, são representados _proporcionalmente_? Não. Sel-o-iam apenas na seguinte hypothese: os deputados eleitos todos por unanimidade, sem abstenção d’um unico eleitor, em circulos exactamente eguaes. E semelhante hypothese nunca teve realidade, não póde tel-a. N’uma memoria, apresentada á camara belga em 1871 pelo sr. Jules de Smedt, é citado o seguinte facto, claramente significativo da improporcionalidade da representação politica pelo systema vigente[72]: Nos Estados Unidos, onde, como é sabido, ha tantas circumscripções eleitoraes como deputados a eleger, verificou-se que, nas eleições de 1870, 2.000:000 de eleitores obtiveram 128 representantes, ao passo que 1.600:000 eleitores apenas conseguiram 30! Universalisado o suffragio, e todas as tendencias são para isso, se as eleições forem feitas pelo systema da maioria, uma só classe, a classe operaria, desde que tenha a consciencia da sua força, encherá o parlamento de representantes seus. Nenhuma outra classe os terá. Foi Stuart Mill quem primeiro considerou a possibilidade d’este perigo. Não o póde haver maior para a instituição da propriedade e para a ordem social. A burguezia, que tem actualmente nas suas mãos os destinos da politica, e que tão hostil se tem mostrado sempre a todo o pensamento de reforma; a burguezia conservadora e rotineira, ainda póde conjurar a tempo as tempestades que a ameaçam. Por qual meio? Por este: modificando o systema eleitoral no sentido da sua proporcionalidade, e preparando assim para o futuro um meio efficaz de contrarestar a torrente socialista, que, em vez de ser fertilisadora das condições sociaes, póde muito bem, no primeiro impeto, levar de roldão os mais legitimos, os mais sagrados interesses. O que é justo é sempre util. Infelizmente, em poucas consciencias está radicado este principio. Os que ora se contentam com que sejam representados os partidos, ainda que a representação d’estes se não faça proporcionalmente, terão então ensejo de conhecer e sentir a justiça do nosso principio. Reclamal-o-hão como uma medida de salvação os que actualmente o ironisam no bom humor do seu interesse satisfeito! Concedendo, por um momento, que não podem ter logar os gravissimos inconvenientes apontados, ainda o systema vigente é de todo o ponto contrario á verdadeira indole do regimen democratico. Os eleitores vencidos, posto que os seus correligionarios triumphem dos seus adversarios politicos n’um ou n’outro circulo, nem por isso ficam tendo no parlamento os homens da sua immediata confiança. E isto não é de pequena monta. Como é sabido, não ha perfeita identidade de idéas e de sentimentos entre eleitores de diversos collegios. No mesmo grupo ha sempre _nuances_ de opinião, que não podem deixar de ser devidamente consideradas. Não se organisam partidos como se fundem estatuas. Se, entre nós, um dado partido é vencido em todos os circulos das provincias do Norte, ficam porventura satisfeitos, compensados os habitantes d’estas, só porque aquelle partido conseguiu vencer algumas candidaturas na Beira ou no Algarve? Ninguem responderá affirmativamente. Temos figurado a hypothese das circumscripções isoladas, d’um só deputado, nas quaes ordinariamente se consegue que triumphe uma ou outra candidatura; quando, porém, a eleição se faz por escrutinio de lista em provincias ou districtos, os inconvenientes accentuam-se mais, e rarissimas vezes a minoria tem representantes. Se não houver circumscripções, se todos os cidadãos votarem em massa, e a eleição se fizer por maioria, a minoria não se logrará d’um representante, d’um unico representante! É ver o que acontece nas eleições municipaes. Defrontando-se a estas hypotheses, exclama com justissima indignação Henri Lasserre[73]: _Telle est la logique invencible du faux principe qui nous gouverne et dont on ne saurait proclamer, ni trop haut, ni trop souvent, ni sous trop de formes, la profonde iniquité_. * * * * * Nas considerações precedentes preoccupou-nos a idéa de que o systema actual servia unicamente aos interesses da maioria do paiz, e, n’esse supposto, procuramos evidenciar a sua monstruosa injustiça. Mas o systema é tão mau, é tão falso, é tão iniquo que, em muitos casos, nem sequer satisfaz áquella condição: consagra os interesses da minoria, em despeito e com sacrificio dos votos da maioria! Vamos demonstrar isto, figurando algumas hypotheses: 1.ª Supponhamos que o paiz está dividido em 100 circulos, e que o quociente eleitoral é de 5:000 votos. Em 90 d’esses circulos triumpharam os candidatos d’uma certa parcialidade por 50 votos de maioria cada um, e nos 10 restantes foram eleitos os candidatos da outra parcialidade por suffragio unanime. Admittindo que todos os eleitores foram á urna, e que votaram sómente em candidatos d’aquellas duas parcialidades, temos que--270:500 eleitores ficam representados por 10 deputados, ao passo que 229:500 teem no parlamento 90 representantes! 2.ª Acceitando as condições expostas na primeira hypothese, supponhamos que, em cada collegio, não compareceram mais de 4:500 eleitores, e que o partido mais forte, vencedor em todos elles, apenas obteve a maioria de 100 votos para cada um dos seus candidatos. Temos cada deputado eleito por 2:300 votos sobre 2:200; mas addicionando a estes 2:200 os 500 votos dos que se absteem de exercer o direito eleitoral, vem cada deputado a representar 2:300 eleitores contra 2:700, isto é, a minoria do seu circulo! Este calculo, formado sobre outro do sr. Eugenio Aubry-Vitet[74], basea-se n’um facto muito usual, que importa tomar em consideração. Referimo’-nos ás abstenções, as quaes de certo diminuirão muitissimo desde que o systema de representação proporcional, dando ingresso no parlamento aos grupos politicos, que tenham alguma importancia, deixe sem razão de ser a profunda indifferença de muitos eleitores. 3.ª É Stuart Mill quem figura esta hypothese. Suppondo que, num paiz governado pelo suffragio egual e universal, a eleição é disputada em todos os collegios e, em cada um d’elles, vencida por pequena maioria, é claro que o parlamento pouco mais representa que a metade da nação. A maioria é insignificante. Ora se, na discussão das leis, a assembléa se divide, e as leis são votadas por pequena maioria, é a minoria do paiz quem impõe leis a todo elle! Pouco menos de metade dos votantes não tem representação, porque foi vencida na urna; dos que teem representação, quasi metade vota, pelos seus delegados, contra as leis, e, por esta fórma, o poder legislativo póde vir a ser exercido unicamente por pouco mais da quarta parte dos eleitores! Póde parecer que, muito de proposito, engendramos hypotheses favoraveis ao nosso pensamento, difficeis de apparecer, violentas; mas nem aquelles casos são tão raros como á primeira vista parecem, nem, se o fossem, isso obstaria á sua força provativa. Como disse o grande publicista inglez, que deixamos citado, _nos casos extremos é que melhor se conhece o valor dos principios_. * * * * * Do actual regimen eleitoral resultam sempre as mais deploraveis consequencias moraes. Em primeiro logar, um grandissimo numero de eleitores, na impossibilidade de utilisar os seus votos, não exerce o seu direito politico, abstem-se d’isso. Resigna-se á soberania honoraria, que a lei lhe dá. É uma resignação incommoda, involuntaria, forçada, mas que fazer? Ter o trabalho inutil de deitar na urna votos, que não são considerados para cousa alguma? Isso é um brinco pueril, que repugna a muita gente seria. Aproveitar o seu voto, ligando-se a grupos bastante numerosos para vingarem uma candidatura? Nem todos teem essa flexibilidade de espinha, essa vontade tão baixamente accommodaticia e docil. A abstenção apparece assim como o unico expediente honesto. É um grandissimo mal, mas não é uma indignidade. E assim vemos nós que a lei, sempre tão fácil em estender o direito do suffragio, colloca fatalmente fóra d’elle, pelo vicio original d’este systema, um numero considerabilissimo de cidadãos probos e honestos! «Imaginemos, diz Henri Lasserre[75], que na vespera d’uma eleição geral um tyranno declarava fóra da lei, isto é, fóra do escrutinio, os cidadãos pertencentes a um dado partido, estatuindo que os votos offerecidos a elles fossem, por esse simples facto, considerados nullos, supprimidos summariamente... Havia logo um clamor geral, um horror espantoso; e, para impedir a execução de tão abominavel decreto, a tinta burgueza e o sangue popular correriam em ondas. Ora, em vez de se fazer na vespera, esta abominação consumma-se no dia seguinte á eleição, e ninguem reclama, e todos acham isso perfeitamente natural!» Nem todos. Muitos deixam de ir á urna, porque sabem que a lei não dá validade aos seus suffragios. A razão por que não correm aquellas ondas de tinta e de sangue, já a dissemos. É esta: o longo habito de julgar legitimo, normal, imperfectivel o systema vigente. Entre de vez em todas as consciencias a idéa da representação proporcional, e ver-se-ha então se as cousas se conservam assim por muito tempo. É innegavel que as abstenções crescem em toda a parte de dia para dia, e não póde justamente attribuir-se-lhes outra causa, que não seja o acervo de vicios que ha na actual fórma de eleição. Relativamente á França, é esse facto attestado por escriptores seriissimos. Wyrouboff[76] affirma que a repugnancia a votar augmenta cada vez mais, e que, se nos conselhos geraes e nos conselhos municipaes, ainda ha tal qual concorrencia de eleitores, são poucos os que votam para as eleições da Assembléa, sendo crivel que, consultada a França por um plebiscito, metade d’ella deixasse de responder. «O numero dos abstencionistas, diz Aubry-Vitet, cresce de dia para dia. Certo que muitos d’entre estes obedecem á preguiça e á indifferença; mas quantos deixam de votar, desanimados pela impossibilidade de triumphar com as suas proprias forças!» Podiamos ainda adduzir testemunhos relativos á Belgica e outros paizes, mas julgamos isto desnecessario. Entre nós é sabido como as cousas se passam. Havendo em todos os circulos parcialidades politicas oppostas, na maioria d’elles a opposição não vai á urna. N’estes, em vez de assembléas eleitoraes animadas, interessadas nos seus direitos, ha o desanimador espectaculo do desdem mais profundo e da mais glacial indifferença. Quasi sempre os cidadãos que compõem as mesas fazem descargas ficticias, para que o candidato não fique envergonhado! Ora é de saber que desde que as cousas chegam a este estado, a decadencia politica é grandissima e a regeneração social quasi impossivel. Se contra a tyrannia dos governos as nações reagem em grandes manifestações de vida,--da indifferença, da estagnação moral, quando já muito adiantada, morre-se inevitavelmente. Tem ainda contra si o actual systema o imprimir nos actos eleitoraes o caracter d’uma pugna violenta, intransigente, farta de odios e de paixões. Só quem não tem assistido a eleições é que ignora as pequenas miserias que se exhibem n’ellas. Todas as dependencias são invocadas e não ha pressão que se não exerça. A lucta é a todo o transe. Porque não ha espaço para todos nos ambitos da lei, o dilemma de viver ou morrer apresenta-se fatalmente a todos os espiritos. Os nomes dos candidatos apparecem aos eleitores sob esta dupla fórma: vestidos de luz e cheios de lama. Recontam-se anecdotas, forjam-se calumnias, o libello diffamatorio dos pretendentes avoluma progressivamente á medida que se approxima o dia fatal. A divergencia de idéas importa rompimento de relações, e o sentimento do odio estende-se a familias inteiras. Não raras vezes a violencia material, o pugilato, o assassinio até, põem nodoas de sangue n’aquelle acto, que devia ser incruento e pacifico. Não ha cidadão que saia incolume d’um prelio d’esta ordem: um perdeu o amparo e a protecção que tinha; outro é logo executado pelas suas dividas; a vingança toma conta de todos e sacrifica-os cedo ou tarde. A imprensa, essa augusta tribuna da verdade, demuda-se em pelourinho de infamias. Finda a lucta, o espaço em que ella foi ferida fica mil vezes mais repugnante do que um campo de batalha em que se dilaceraram dois exercitos: n’este alastram-se corpos mutilados, horrivelmente desformados, com as visagens medonhas em que a morte os surprehendeu; mas n’aquelle, no espaço em que se digladiaram dois partidos, ha mil reputações feridas de morte, ha muita dignidade trucidada; e, ao invez do que acontece depois d’um combate ordinario,--depois da guerra eleitoral continuam os odios, referve ainda a vindicta, e as paixões imperam com toda a força, peiores no momento da reflexão do que o eram no momento primitivo!... E note-se que suppomos a abstenção da auctoridade. Quando ella intervem, e intervem quasi sempre, a peleja é mais cruel, porque é muito mais desegual. Não se ignora a razão d’isso. A corrupção pela promessa e pela ameaça assume as maiores proporções; pelo seu lado o partido hostil ao governo não recua diante de meio algum que possa annullar as influencias contrarias. Isto entende-se com todas as parcialidades; isto acontece em todos os paizes. Em 1877 dizia á Constituinte do Estado de New-York Simon Stern, mostrando como as corrupções são inevitaveis no systema que combatemos: «A lucta de dois partidos exclusivos não fórça sómente a colligações eleitoraes em que a independencia é sacrificada, tambem suscita e importa fatalmente a corrupção. Desde que um dos partidos se soccorre a expedientes immoraes, o outro julga-se obrigado a proceder do mesmo modo. Quererieis vós obrigar uma das parcialidades combatentes a não luctar senão em condições de lealdade? Ninguem vos escutaria. Valeria isso o mesmo que aconselhar a um exercito a que marchasse com as sós armas da justiça e da verdade contra outro exercito bem provido de espingardas e de canhões.» Ora este é que é o genio das democracias? Isto é inevitavel nos regimens liberaes? Se o fosse, a democracia seria uma loucura, e a liberdade uma maldição. Mas não o é. Desde que todos os partidos possam obter uma representação proporcional, desde que seja possivel a coexistencia d’elles, o que é soffreguidão será apenas legitima actividade, e todas aquellas manifestações violentas, explicaveis pela necessidade de viver, que não obedece a lei alguma, cederão o logar ás fórmas edificantes d’uma discussão placida, serena, pacifica. A Dinamarca é muitas vezes citada como o paiz menos accessivel a corrupções eleitoraes. Porque? Porque a representação politica lá é proporcional. E isto é naturalissimo. Com este systema ha espaço para todos os partidos; no regimen opposto, para que um viva é forçoso que outros deixem de existir. Qual partido póde resignar-se a isso, sem ter primeiro assumido todas as formas de luctar? Não acabam aqui os máus resultados d’este systema. Póde ainda dizer-se em plena verdade que elle sacrifica muitas vezes os homens mais importantes, mais dignos, mais illustrados a puras mediocridades, logo que n’ellas concorram certas condições de importancia, aliás muito secundaria; e tambem que obriga os partidos mais oppostos em pensamento a colligarem-se por algum tempo, com manifesta indignidade para todos, e sem verdadeiro interesse para nenhum d’elles. O primeiro d’estes dois inconvenientes é facillimo de perceber. Desde que um candidato qualquer, recommendado pelo seu partido, se apresenta aos eleitores d’uma dada circumscripção, eleitores que o não acceitariam por bem ponderosos motivos vêem-se forçados a offerecer-lhe os seus suffragios com receio de divisão no seu grupo, e da vantagem que d’isso auferiria a parcialidade opposta. Outras vezes acontece que os chefes de partido propõem e recommendam, já muito de proposito, candidatos obscuros, sem opinião conhecida, cujo passado não possa servir de motivo ou de pretexto para fortes opposições. É Stuart Mill quem põe em relevo este grave inconveniente, citando em seu abono o exemplo dos Estados Unidos, _onde, para a eleição do presidente, nunca o partido mais forte propõe os seus homens mais validos, mais notaveis, com receio de que um d’esses homens, pelo facto de ter estado muito tempo a toda a luz da opinião, possa provocar contra si, d’uma parte do publico, objecções que o prejudiquem, e ter assim menor probabilidade de merecer todos os votos do que uma pessoa qualquer, em que o publico nunca ouviu fallar_.[77] As colligações politicas são um mal necessario na actual ordem de cousas, mas um mal grandissimo. O producto politico d’estas colligações não póde deixar de ser pouco definido, quasi incolor, inteiramente incapaz de satisfazer os diversos factores politicos que o produziram. Não ha sinceridade n’este contracto, inspirado pela necessidade do momento, e as transacções estipuladas ou se cumprem, o que é máu para o pensamento fundamental de cada um dos partidos, ou então deixam de realisar-se, o que é immoral, o que é pessimo como acto de deslealdade. Tudo isto cessará totalmente, ou, pelo menos, diminuirá d’um modo consideravel desde que seja proporcional a representação. Os homens mais importantes serão exaltados pelo suffragio, e os partidos, certos de levarem ao parlamento os cidadãos em que mais confiam, conservarão a sua independencia em relação aos outros grupos politicos, o que é perfeitamente digno. Diz Borély[78]: «O candidato, exaltado por dois ou mais partidos, limita-se ao titulo equivoco de independente; não passa da meia luz, da penumbra, ao passo que o candidato fortemente apoiado pelos seus correligionarios politicos, accentua-se, define-se, colloca-se a toda a luz da sua idéa; não é _independente_, menos ainda, catholico, democrata, liberal segundo a situação em que se encontra;--com a sua bandeira desfraldada, elle é de si mesmo, totalmente de si mesmo.» Seria um nunca findar se quizessemos expôr aqui todos os perigos e todos os inconvenientes do systema que combatemos; os que ahi ficam são mais que muito sufficientes para lhe desnudar a enorme injustiça em que elle se basêa, e fazer sentir a todos os espiritos sinceramente liberaes e honestos a urgencia de acabar com este estado de cousas que, se actualmente tem tão funestos resultados, de futuro os ha de produzir muito maiores. O systema desentranhar-se-ha sempre nos seus fructos naturaes, e cada uma das suas detestaveis consequencias capitalisar-se-ha em causal d’outras egualmente más. É a agiotagem do mal, tão terrivel nas suas operações successivas como a usura ordinaria na sua fatalidade arithmetica. Esta idéa vai conquistando os dominios da consciencia publica, e recrutando partidarios convictos e fervorosos em todas as nações e em todos os partidos. Este ultimo facto deve ser considerado como um dos mais claros signaes indicativos da sua justiça por aquelles que não quizerem ou não podérem comprehender as considerações theoricas e praticas, que ahi ficam expostas. Uma causa defendida com egual ardor por Luiz Blanc e por Henri Lasserre, por Stuart Mill e pelo marquez de Castellane, pelo que ha de mais coherente entre conservadores ou reaccionarios, e pelo que de mais puro tem apparecido no partido democratico; uma causa em que convergem opiniões de origens tão oppostas, não póde deixar de ser perfeitamente justa. Não tem o sêllo discutivel d’uma communhão partidaria; tem o pleno caracter impessoal d’uma grande verdade scientifica. * * * * * Não data de muito longe a historia da representação politica proporcional. Já vimos attribuida a prioridade d’esta idéa ao duque de Richmond[79], a Condorcet e a Saint-Just[80], mas não tivemos meios de verificar a verdade d’essas referencias. Nada se perde com isso. Se aquelles homens tivessem dado ao seu pensamento uma forma lucida e aproveitavel, as suas idéas seriam geralmente conhecidas, e todos os escriptores modernos os citariam com o merecido louvor. Porque nada d’isto se dá, é certo que esta causa lhes não deve serviços dignos de menção. A probidade historica é, felizmente, uma virtude frequentissima. A primeira exposição clara e perfeita dos principios da representação proporcional foi feita por Victor Considérant. Consta d’um folheto publicado em 1846 com este titulo: _Lettre aux membres du grand conseil de Genève_. E. Naville, a quem devemos esta indicação, affirma que _a idéa da representação proporcional está exposta n’essa carta com uma nitidez irreprehensivel_[81]. Esta carta foi determinada pelas resistencias oppostas a uma proposta inspirada por V. Considérant a Hoffmann, e por este offerecida em 1842 á Assembléa Constituinte de Genebra. As desconsiderações com que foi recebida esta proposta repetiram-se depois da publicação d’aquella carta, a despeito dos esforços d’André Alliez, secretario d’aquella Assembléa, no sentido de ser consagrada nas leis a distincção importantissima de V. Considérant entre _voto deliberativo_ e _voto representativo_[82]. Deixando para depois a narração da varia fortuna, que tem corrido na Suissa a idéa da representação proporcional, porque queremos seguir n’este esboço a ordem chronologica,--diremos já que ella entrou no espirito francez em 1850, por esforços do eminente publicista E. de Girardin, que lhe consagrou uma serie de notaveis artigos no seu jornal, a _Presse_[83]. Não sendo nosso proposito dar uma noticia bibliographica relativa a esta questão, não podemos comtudo deixar de mencionar o trabalho d’aquelle brilhante publicista, que projectou sobre o problema da representação proporcional a luz do seu grande talento e o prestigio do seu grande nome. A Dinamarca foi o primeiro paiz que ensaiou praticamente o pensamento da representação proporcional. Teve isso logar em 1855, por iniciativa do mathematico Andrae, então ministro da fazenda e presidente do conselho de ministros. Depois da reforma eleitoral, realisada n’aquelle paiz em 1849 sob as influencias do movimento revolucionario francez de 1848, o systema das maiorias, exercido n’uma grande extensão, punha em relevo os seus inconvenientes todos; _foi então que o mathematico_, diz Lytton, secretario da legação ingleza em Copenhague, respondendo ás circulares de lord Clarendon e de lord Russel,--_foi então que o mathematico descobriu um erro de arithmetica no facto de se operar uma divisão por dois onde era necessaria uma regra de proporção, e que o homem de Estado viu claramente n’esse erro uma injustiça social das mais detestaveis consequencias_. O systema do _quociente eleitoral_ (assim é designado geralmente o processo eleitoral dinamarquez) foi ensaiado em pequena escala, mas nem por isso os seus bons effeitos deixaram de manifestar-se logo. Foi tentada a experiencia para as eleições do Rigsraad, que é o corpo legislativo da Dinamarca; mas, sendo 80 os deputados a essa assembléa, só 30 eram eleitos por aquella fórma, porque 30 pertenciam aos Estados Provinciaes e 20 eram da nomeação da coroa. Apesar d’isso, diz o citado diplomata, a experiencia serviu para demonstrar que o pensamento da representação proporcional era realisavel. _Está em prática ha oito annos_ (isto era escripto em 1863) _sem difficuldade alguma, sem que cousa alguma haja obstado á sua acção. Praticou-se, logo é praticavel; realisou-se, logo é realisavel._[84] A obra do estadista dinamarquez não teve precedentes que a inspirassem. É certo que havia já os trabalhos de Victor Considérant, a proposta de Hoffmann, e os famosos artigos de Girardin; mas todos os escriptores d’esta especialidade são contestes em affirmar que tudo isso era desconhecido na Dinamarca. A lei eleitoral dinamarqueza de 1855 foi substituida pela lei de 12 de julho de 1867. Em 1871 affirmava o sr. Naville que se trabalhava activamente n’aquelle paiz para dar ao systema do quociente eleitoral a maxima extensão possivel. Ignoramos o resultado d’esses esforços. Ao nome do ministro Andrae é costume associar sempre o de Th. Hare, dividindo-se pelos dois a gloria de determinarem o grande movimento reformador que, a partir de 1860, se tem manifestado, com intensidade recrescente, na Europa, na America e na Oceania. Parece-nos que é com toda a razão que isso se faz. Aquelle, antecipando-se á opinião do seu paiz, consagrou, pela primeira vez, n’uma lei a proporcionalidade da representação politica; este, publicando a sua grande obra sobre esse assumpto, provocou as mais vivas e interessantes discussões sobre o direito eleitoral, e contribuiu poderosamente para que a Inglaterra, em 1867, pozesse á prova da experiencia o principio que elle tão notavelmente apostolara. O seu systema, a sua fórma prática de realisar a representação das maiorias não foi acceito; mas sem a forte propaganda de Th. Hare não teria sido admittido o systema do _voto incompleto_, proposto por lord Russell em 1867, nem o do _voto cumulativo_, proposto por Lowe em 1870. Acceitar o principio era o essencial; experimentar um ou outro dos processos offerecidos era cousa secundaria. A obra fundamental de Th. Hare foi publicada em 1859 com este titulo: _Treatise on the election of Representatives parliamentary and municipal._ Stuart Mill sentiu por ella todo o enthusiasmo de que era capaz o seu genio inglez, e foi até dizer, apreciando aquelle trabalho, estas notaveis palavras: «São taes e tão numerosas as vantagens d’este plano que eu, pela minha parte, considero-o como um dos mais assignalados progressos que até hoje têm sido realisados na theoria e na prática do governo representativo.» Depois da publicação d’aquella obra, muitos parlamentos começaram de preoccupar-se com a idéa da representação proporcional. O primeiro foi o da Nova-Galles do Sul em 1862. Relatado favoravelmente pela commissão incumbida de o estudar, o projecto, moldado nas idéas de Th. Hare, depois de vivamente discutido foi approvado por 24 votos contra 20; infelizmente, porém, uma mudança ministerial realisada n’essa occasião obstou a que elle fosse definitivamente convertido em lei do paiz[85]. Em 1863, o parlamento da Victoria, na Australia, admitiu á discussão uma proposta eleitoral na fórma do voto cumulativo; a proposta foi rejeitada na votação, mas as discussões foram tão vivas, tão calorosas que, provavelmente, não passará muito tempo sem que ellas produzam o seu natural resultado, o resultado que sempre fructeam as idéas justas e fecundas[86]. A reforma eleitoral foi discutida no parlamento inglez em 1867, exactamente quando ella começava a ser considerada pela Assembléa Constituinte do Estado de New-York. Foi Stuart Mill quem primeiro ergueu a sua voz na camara dos communs em defesa da reforma. Sustentou a representação pessoal pelo systema do quociente eleitoral, isto é, o pensamento de Th. Hare, ao qual o incomparavel publicista deu o prestigio da sua palavra eloquente e o credito do seu nome, venerado em todo o mundo. As palavras de Mill foram ironisadas na camara e na imprensa. O _Times_, o proprio _Times_, fez muito espirito á custa d’ellas... Na camara dos lords, onde a questão foi posta a toda a luz por lord Cairns e brilhantemente tratada por lord Russell, a discussão foi calorosa, viva, fecunda e seriissima, como costumam sel-o sempre as discussões d’aquella assembléa. O governo oppoz-se energicamente á proposta de lord Cairns, mas, apesar d’isso, ella teve a seu favor 142 votos contra 51 e na camara dos communs 273 contra 204. A data da lei, em que foi convertida aquella proposta, é de 30 de julho de 1867. A lei estatuiu que, em todos os collegios de tres representantes, a eleição se fizesse por _listas incompletas_. Logo diremos em que consiste este processo; por’ora basta-nos dizer que este processo eleitoral foi, pela primeira vez, em 1862, exposto e sustentado em Genebra por Carteret. A lei de 30 de julho de 1867 foi uma grande victoria para o principio da representação proporcional, apesar de serem materialmente pouco importantes os effeitos immediatos d’ella. Desde aquella decisão legislativa, o principio ficou tendo por si a auctoridade do primeiro parlamento do mundo. Esta a sua importancia. De resto, applicando-se a lei apenas aos collegios de tres representantes, e não havendo mais de 12 collegios n’essa condição, claro está que foi pequena, muito limitada a utilidade prática d’esse acto legislativo na Inglaterra. Mas as idéas, uma vez entradas na consciencia d’aquelle povo, não deixam de estender-se, de ampliar-se progressivamente, se a experiencia as sancciona. Com effeito, em 1870 os conselhos d’escola de Inglaterra foram eleitos pelo systema do _voto cumulativo_, e em 1872 a camara dos communs applicou aquelle processo á eleição dos conselhos da Escocia. A opinião publica, que a principio recebera com reservas a idéa da eleição proporcional, foi perdendo pouco a pouco as suas reservas, e está hoje inteiramente do lado d’ella. N’uma carta dirigida ao jornal de Genebra em 16 de janeiro de 1873 pelo veneravel presidente da associação reformista d’aquella cidade, lemos que o _Times_ em 1871, em vez das suas insulsas ironias, tinha para esta questão as seguintes palavras: _Póde discutir-se o melhor processo prático da representação proporcional, mas o principio em si, esse está já fóra de toda a discussão._ Dissemos acima que a assembléa constituinte de New-York se tinha occupado do pensamento da reforma em 1867. Para realisar esta reforma organisou-se uma sociedade, presidida por David Dudley Field, que offereceu á Constituinte um relatorio muito importante sobre a questão, junto a uma memoria notavel redigida por Simon Stern. Em 1872, a assembléa legislativa e o senado de New-York approvaram uma proposta, que applicava o _voto cumulativo_ ás eleições municipaes; mas não foi adiante, porque o governador d’aquelle Estado lhe oppoz o seu _veto_ em 30 de abril d’aquelle anno. Na America, a primeira decisão legislativa a este respeito data de 1870, e teve logar no Estado da Pennsylvania, a esforços do senador Buckalew, que, por mais d’um titulo, é benemerito d’esta causa. A 4 de março d’aquelle anno, o corpo legislativo da Pennsylvania approvou uma proposta de Buckalew para que o processo do _voto cumulativo_ fosse applicado ás eleições municipaes da cidade de Bloomsbourg; os resultados foram magnificos, e pela lei de 2 de junho d’esse anno estendeu-se aquelle processo eleitoral a todas as eleições camararias d’aquelle Estado[87]. Em 12 de dezembro de 1870, o sr. bispo de Vizeu apresentou á nossa camara electiva um projecto de lei eleitoral, em que traduzia o principio da _representação proporcional_ pelo systema dinamarquez, sensatamente modificado em alguns pontos importantes. No relatorio, que procedeu esse projecto de lei, o sr. bispo de Vizeu, depois de citar os exemplos da Inglaterra e da Dinamarca, dizia: «Guiado tambem pelos mesmos elevados principios e por tão insinuante exemplo, e convencido de que sou fiel interprete do sentimento nacional, favoravel sempre a tudo quanto tende a ampliar e a garantir as liberdades publicas, não hesitei em formular e em submetter á sancção do corpo legislativo uma proposta de lei eleitoral, que tem por fim conseguir a _representação proporcional_ na constituição da camara electiva, adoptando para esse fim o processo que melhor póde assegurar esses resultados, se não com o rigor das mais exigentes theorias, pelo menos com a maxima perfeição, a que é possivel attingir no meio das innumeras difficuldades, que embaraçam os trabalhos d’esta ordem[88].» Infelizmente, o ministerio de que fazia parte aquelle illustrado, liberal e honradissimo estadista poucos dias viveu depois da apresentação d’aquella proposta, e, por isso, nem sequer foi esta discutida no parlamento; mas a opinião publica recebeu-a muito bem, a imprensa occupou-se largamente d’ella, e, por este motivo, não foram de todo frustrados os trabalhos do veneravel prelado de Vizeu. Em 1872, o Estado de Dézaret acceitou um projecto de constituição, em que, para todas as eleições, é acceito o _voto cumulativo_. No Illinois, o povo, consultado por um plebiscito sobre a necessidade do _voto cumulativo_, respondeu affirmativamente por uma grande maioria (29:005 votos). Em Washington, o senado e a camara dos representantes deram a esta reforma a importancia que ella merece. O senador Buckalew defendeu este principio desde 1877; o senado nomeou uma commissão para o estudar, a qual lhe foi unanimemente favoravel, e, em 1870, acceitou-o. Não sabemos o que se seguiu depois[89]. O Brazil reformou em 1875 a sua legislação eleitoral, dando representação ás minorias pelo systema _das listas incompletas_. A reforma applicou este processo á eleição dos eleitores geraes do imperio, á dos deputados á Assembléa Geral, e á dos membros das Assembléas Legislativas Provinciaes. O documento legislativo que consagra este principio é o decreto n.º 2:675 de 20 de outubro de 1875. A Hespanha em 1876 applicou tambem aquelle systema ás eleições municipaes. Na sessão de 18 de fevereiro d’este anno, a nossa camara electiva ouviu uma brilhante defesa da representação proporcional no discurso pronunciado pelo sr. conselheiro J. Luciano de Castro, a proposito do projecto de reforma administrativa apresentado pelo sr. ministro do reino A. R. Sampaio, e relatado pelo sr. deputado Julio de Vilhena. N’essa occasião ninguem mais usou da palavra sobre este assumpto; mas, a proposito do _projecto de lei eleitoral_, de 9 de março d’este anno, apresentado na sessão de 18 do mesmo mez, a representação das minorias foi amplamente discutida na camara. Defenderam-na com notavel vigor os srs. deputados Sousa Lobo, Pinheiro Chagas e Luciano de Castro, e foram-lhe hostis o sr. ministro da justiça Barjona de Freitas, e o relator do projecto eleitoral, o sr. deputado Lopo Vaz. Na sessão de 18 de fevereiro, o sr. Luciano de Castro offereceu uma proposta de lei, moldada pelo projecto definitivo da associação reformista de Genebra, para a representação das minorias nas eleições municipaes. Não foi discutida. Na sessão de 22 de março aquelle notavel estadista, que, pelo seu grande talento e pela sua superior illustração, é uma das mais justas glorias do parlamento portuguez, desenvolvendo o pensamento da proposta apresentada em 18 de fevereiro, applicou-o, n’um bem elaborado projecto, á eleição dos deputados. Receiando-se de que o projecto parecesse á camara excessivamente complicado, apresentou, para essa hypothese, uma outra proposta, extremamente simples, com applicação restricta a Lisboa e Porto,--proposta moldada sobre as leis que vigoram no Brazil desde 1875, na Inglaterra desde 1867 e na Hespanha desde 1876. É a traducção do systema do voto limitado, ou das listas incompletas. Na sessão de 19 de março, ainda o sr. Luciano de Castro apresentou no parlamento uma outra proposta para o mesmo fim. Esta proposta tinha sido redigida pelo sr. José Barbosa Leão, que incumbiu aquelle deputado de a apresentar na camara. Por proposta d’elle foi publicada no _Diario das sessões da camara_, de 27 de março. * * * * * Eis a largos traços esboçada a historia d’esta idéa. É curta pelo espaço de tempo que abrange, mas importantissima pela natureza dos factos a que se refere. No momento actual, relançando os olhos pelas nações mais cultas de todo o mundo, vemos que o principio da representação proporcional domina os espiritos mais devotados aos grandes interesses da democracia. Chegou ao periodo da sua maturidade esta idéa. Podem os partidos insensatamente conservadores oppôr difficuldades á sua realisação prática, illudindo a consciencia publica com adiamentos e opportunismos; mas não podem mais nada. Os partidos mais adiantados honram-se de inscrever nos seus programmas o principio da reforma eleitoral; em toda a parte surgem associações expressamente organisadas para a melhor, para a mais forte propaganda d’essa idéa. E. Naville cita estas sete associações, notaveis e benemeritas pelos esforços empregados em favor d’esta causa: a de Genebra (1865), a de New-York (1867), a de Zurich (1868), a de Londres (1869), a de Chicago (1869), a de Neuchâtel (1869), a de Roma (1871). Não sabemos de mais, mas é crivel que outras se tenham formado desde 1873, de que é datado o documento a que nos soccorremos n’esta parte do nosso trabalho. Dos trabalhos de E. Naville, classicos n’esta materia, o ultimo, que conhecemos, é d’aquelle anno[90]. Este veneravel publicista, terminando a sua Memoria, dirigida ao jornal de Genebra, diz estas eloquentes palavras: «Temos visto com a maior commoção a nossa causa crear para si centros de actividade em Athenas e em Roma. Dos tres velhos fócos da civilisação do mundo, falta apenas Jerusalem; mas o espirito vindo de Jerusalem não é estranho á obra proseguida pelos que vêem, na introducção d’um novo elemento de justiça, a base da ordem publica, e, na suppressão de luctas, que não teem razão de ser e desenvolvem sempre paixões hostís, uma applicação directa dos principios da civilisação christã.» Quando uma expansão d’esta ordem é precedida de 12 annos de trabalho indefesso; quando, pela palavra e pela penna, isoladamente e por meio de associações, se tem feito, d’um pensamento desinteressado e nobilissimo, o destino d’uma grande parte da vida; quando a causa que se ha servido tão bem e por tanto tempo, tem um grande cunho social e humanitario; quando se dá isto, palavras como aquellas são a maior gloria d’um nome, e traduzem a maior felicidade que a consciencia humana póde alcançar. Michelet disse cousa como aquillo ao terminar a sua Historia da França: despediu-se d’ella com saudade o operario infatigavel, o espirito amantissimo dos homens e das cousas. E. Naville, ainda em pleno combate, arranca do coração aquella phrase feita de bondade e de luz. Quem tem alma para sentir aquillo, está pago de todos os sacrificios por mais custosos que sejam, porque nada ha comparavel aos intimos gosos d’uma consciencia em plena certeza de haver feito o bem! NOTAS DE RODAPÉ: [70] _Le gouvernement représentatif_, pag. 152. [71] _Diario da Camara dos srs. Deputados_, sessão de 19 de março de 1878, pag. 697. [72] _Réforme électorale de la représentation des minorités_, pag. VII. [73] _De la réforme et de l’organisation normale du suffrage universel_, pag. 53. [74] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870. [75] _De la réforme et de l’organisation du suffrage universel_, pagg. 53 e 54. [76] _Revue de la Phil. Posit._, tom. IV. [77] _Le gouvernement représentatif_, pag. 156. [78] _Représentation proporcionelle de la majorité et des minorités_, pag. 44. [79] Ph. Bourson, _Étude Politique_, pag. 77. [80] M. de Castellane, _Essai sur l’organisation du suffrage universel en France_, pag. 147. [81] _La réforme electoral en France_, pag. 37, not. [82] E. Naville, cit., pag. 82 e seg. [83] Ph. Bourson, cit. pag. 77, e E. de Girardin, _Questions de mon temps_, tom. VIII, pag. 544 e segg. [84] _Relatorio de Lytton, secretario da legação ingleza em Copenhague, dirigido ao seu governo em 1863_,--cit. por E. Naville, _La question électorale en France et en Amérique_, pag. 48 e segg. [85] _La question électorale en Europe et en Amérique_, par E. Naville, pag. 54. [86] Cit. pag. 23 e segg. [87] E. Naville, _Journal de Genève_, 22 Janvier, 1873. [88] _Diario das Camaras_, sessão de 14 de dezembro de 1870. [89] Cit. carta de E. Naville ao jornal de Genebra. [90] Cit. jornal de Genebra. CAPITULO III =Summario.=--Systemas da representação proporcional. É impossivel a sua exacta classificação. A de E. Naville, inacceitavel.--Systema da _pluralidade simples_, de E. de Girardin. É irrealisavel. Variante d’este systema devida ao sr. de Layre.--Systema eleitoral _Hare-Andrae_. Differenças entre a lei dinamarqueza e o projecto de Th. Hare; razão d’ellas. Principaes disposições da lei dinamarqueza de 1867. Variantes d’este systema por Aubry-Vitet e pelo sr. bispo de Vizeu. Principaes disposições do projecto de lei portugueza de 12 de dezembro de 1870. Objecções contra o systema Hare-Andrae; sua discussão critica.--Systema do _voto cumulativo_. Sua perfeição theorica e seus defeitos praticos. Alguns factos relativos á pratica d’este systema na Inglaterra e na America.--Systema do _voto limitado_ ou das _listas incompletas_. É arbitrario no seu fundamento; confirmação historica dos inconvenientes d’este systema previstos por Morin em 1867. Em casos normaes, um terço dos eleitores póde ser inteiramente sacrificado. Adduz-se um calculo comprovativo d’isto. Este systema no Brazil e na Hespanha. Extractos da lei brazileira e da lei hespanhola. Variante do duque d’Ayen.--Systema de _Th. Furet_. Exposição e critica. É engenhoso, mas improporcional nos seus resultados e arbitrario na sua base.--Systema do _suffragio uninominal_. Offerecido para remediar os defeitos do processo Hare-Andrae, não os remedeia, aggrava-os. Demonstração.--Indicação do systema que acceitamos por mais racional e mais pratico. Transição para o capitulo seguinte. Vamos expôr e criticar os principaes systemas offerecidos para a resolução do problema eleitoral, de que provamos a urgencia e esboçamos a historia no capitulo precedente. Seguiremos n’esta exposição critica a ordem chronologica, certos de que qualquer classificação que tentassemos fazer d’aquelles systemas seria de todo o ponto arbitraria. E. Naville dividiu todos os processos eleitoraes, subordinados á idéa da representação proporcional, em dois grupos: _systemas empiricos_, que procuram obter a representação das minorias, sem se preoccuparem com o caracter proporcional d’essa representação,--e _systemas racionaes_, que, partindo do principio da proporcionalidade, estabelecem os meios da sua realisação pratica. Incluiu no primeiro grupo os processos da _pluralidade simples_, do _voto limitado_ e o do _voto cumulativo_, e, no segundo, os processos da _representação pessoal_, da _representação proporcional_ e o do _suffragio uninominal_[91]. Esta classificação é inacceitavel. Em primeiro logar é incompleta, não comprehendendo muitos processos que não são facilmente reductiveis a algum d’aquelles dois grupos. Depois, não é verdadeira no seu fundamento, porque com os _processos empiricos_, com qualquer dos _processos empiricos_, é possivel, em alguns casos, proporcionalisar a representação politica; ao passo que, em muitos casos, os processos racionaes, se dão representação ás minorias, é certo que lh’a não dão proporcionalmente á sua importancia. O processo da pluralidade simples é, theoricamente, o mais proporcional de todos; o processo do voto cumulativo está exactamente nas mesmas condições. Por outro lado, o processo do _suffragio uninominal_, que é o de E. Naville, é inteiramente opposto ao verdadeiro espirito da proporcionalidade eleitoral, porque, em muitos casos, affecta a candidatos os votos dados a outros, que até podem ser de parcialidade contraria! Evidenciar-se-hão estes inconvenientes na sequencia d’este capitulo. Por agora basta o que fica dito. * * * * * O processo eleitoral da _pluralidade simples_, devido a E. de Girardin, é o mais antigo e o mais simples de todos. É certo que antes d’este illustre publicista ter apresentado a sua idéa, o que teve logar em 1850, Victor Considérant havia proposto, para a eleição do conselho federal da Suissa, um systema eleitoral animado das mesmas intenções; mas nem os cantões da Suissa o acceitaram, nem, apesar de engenhoso, esse systema mereceu impressionar a consciencia publica. Eis no que consiste o famoso processo de Girardin, tão vivamente discutido na França e fóra d’ella: «Nenhum eleitor,--traduzimos as palavras de Girardin,--nenhum eleitor póde escrever no seu boletim mais que um nome. Se o boletim contiver muitos nomes, será lido o primeiro e os outros considerados como não escriptos. É de 10.000:000 o numero de eleitores francezes, mas o numero dos eleitores effectivos ainda não passou de 7.500:000. A _unidade eleitoral_ será constituida por 10:000 eleitores, que, vizinhos uns dos outros ou dissiminados por todo o paiz, tenham perante a urna o mesmo pensamento. Dividindo 7.500:000 por 10:000, temos o _quociente_ de 750, numero dos representantes. «Por esta fórma o deputado será representante da França, e não mero delegado d’um _departamento_. O deputado fica livre, respectivamente ao eleitor, de toda a dependencia, de toda a pressão. Pela sua parte o eleitor não soffre as impertinencias dos candidatos; não tem que temer as ameaças, nem que resistir ás seducções que, no actual systema, o perseguem a toda a parte, o illaqueam por todos os modos.[92]» Theoricamente, nada mais perfeito, nada mais proporcional; mas na pratica são tantas as difficuldades d’este systema que podemos dizel-o de todo o ponto inexequivel. No plano de Girardin entra como elemento essencial a unidade de collegio. Ora, dada a unidade de collegio, salta logo aos olhos o seguinte inconveniente: os candidatos populares attrahem a si um considerabilissimo numero de votos, 5, 10, 20 vezes o quociente eleitoral cada um, ao passo que uma minoria pouco numerosa, distribuindo calculadamente os seus suffragios, logra-se d’um bom numero de representantes, em grande porção de casos superior aos que a maioria obtem. O problema eleitoral fica invertido. As minorias são representadas, as maiorias ficam sem representação condigna! Nas assembléas legislativas o voto d’um deputado que houvesse obtido 400:000 suffragios, por exemplo, seria annullado pelo voto do que apenas tivesse merecido 20:000 suffragios. É isto proporcional? E isto justo? Como supprir tão flagrante iniquidade? Alguem[93] se lembrou já de remediar este inconveniente, propondo que se contasse o voto do primeiro como valendo (na hypothese figurada) 20 vezes o voto do segundo; mas isto, como é claro a todas as vistas, seria inconvenientissimo. Acabaria com a egualdade dos representantes, que é uma das principaes condições praticas do regimen parlamentar, e, em muitos casos, reduzindo consideravelmente o numero de deputados, collocaria nas mãos de poucos homens todos os destinos d’uma nação. Ora d’este modo falsear-se-ia a indole propria do poder legislativo, em que se requer a mais extensa discussão das propostas, o encontro de todas as opiniões, o embate de todas as escolas,--o que só é possivel em assembléas numerosas e eguaes. Ha uma variante d’este processo, proposta pelo sr. de Layre. Consiste em applical-o, não á nação toda formando um só collegio, mas a circumscripções formadas por districtos ou departamentos, depois de fixado o numero de votos necessario para se ser eleito. Este processo é preferivel ao de Girardin, porque attenua consideravelmente o inconveniente da accumulação de suffragios nos candidatos populares. Infelizmente, attenua-o sómente, não o extingue de todo. * * * * * Segue-se o systema eleitoral Hare-Andrae. Aproveitando a idéa de Ph. Bourson[94], comprehendemos, debaixo d’uma só designação, a constituição do legislador dinamarquez e o famoso projecto eleitoral de Thomaz Hare. Por este modo satisfazemos á analogia de idéas d’estes dois pensadores, e, ao mesmo tempo, evitamos a pouco util pendencia da prioridade de invenção. Entre a lei dinamarqueza (1855) e os primeiros trabalhos do escriptor inglez (1857) medeam dois annos apenas. O ministro da Dinamarca precedeu o escriptor inglez, mas tudo leva a crer que este, ignorando inteiramente o que se passava na Dinamarca, se inspirou sómente da sua propria observação sobre os graves inconvenientes da pratica eleitoral no seu paiz. D’estas coincidencias intellectuaes ha exemplos na historia das sciencias. Copiamos de Stuart Mill a theoria geral de Th. Hare. Mais explicita do que a de Naville, e menos extensa e complicada do que a de Bourson, a exposição de Mill é sufficiente para fazer conhecer o principal machinismo d’este projecto. «Nos termos d’este plano, a unidade representativa, isto é, o numero de eleitores com direito a um representante, seria determinado pelo processo ordinario da tiragem das medias, dividindo o numero dos votantes pelo numero dos representantes a eleger: todo o candidato que obtivesse aquelle quociente eleitoral seria eleito, ainda que os votos d’esse quociente fossem apurados aqui e além, n’um grande numero de collegios eleitoraes. Os suffragios seriam, como agora, dados localmente; mas o eleitor teria a liberdade de votar por qualquer candidato, fosse qual fosse a parte do paiz em que elle se apresentasse. Por esta fórma, os eleitores que não quizessem ser representados por nenhum dos candidatos locaes, poderiam contribuir com o seu voto para a eleição da pessoa, que mais lhes agradasse, entre as que em todo o paiz se propozessem. Dar-se-ia assim realidade aos direitos eleitoraes da minoria, que, por outro modo, é virtualmente despojada d’elles. É, além d’isso, da maior importancia que, não só os que recusam o seu voto aos candidatos locaes, mas ainda os que votam n’elles e são vencidos, possam encontrar n’outra parte a representarão que não conseguiram no seu proprio districto. Por isso se imaginou obrigar os eleitores a votarem listas de votos contendo muitos nomes além do nome preferido. O voto do eleitor aproveitaria só a um candidato; mas se o candidato preferido não vingasse a sua candidatura á mingua de suffragios, o segundo inscripto seria talvez mais feliz. «O eleitor inscreveria na lista um grande numero de nomes, pela ordem da sua preferencia, para que, se os nomes primeiro inscriptos não obtivessem o quociente eleitoral ou o obtivessem independentemente do seu voto, este podesse ser empregado em favor de algum candidato, que d’elle carecesse para a sua eleição. Para obter o numero de representantes de que se constitue o parlamento, e tambem para obstar a que nomes muito populares attrahissem a si todos os suffragios, fosse qual fosse o numero de votos que um candidato obtivesse, nunca se lhe contariam mais do que os necessarios para a eleição d’elle; os outros eleitores, que houvessem votado n’elle, veriam contar os seus votos á primeira pessoa que, nas listas respectivas, necessitasse d’esses votos e podesse com elles perfazer o quociente determinado. «Para determinar quaes, de entre todos os votos obtidos por um candidato, seriam empregados na sua eleição, e quaes seriam dados a outros candidatos, teem sido propostos varios methodos, de que nos não occuparemos aqui. Naturalmente um candidato ficaria com os votos de todos os que não quizessem senão a elle por seu representante; e quanto aos outros, a tiragem á sorte seria um expediente soffrivel, á mingua de melhor. «As listas de votos seriam remettidas a uma repartição central onde os votos seriam contados, numerados, etc., e o quociente attribuido aos candidatos que podessem attingil-o, até que se completasse a camara, sendo preferidos os primeiros votos aos segundos, os segundos aos terceiros, e assim por diante. As listas e todos os elementos do calculo seriam collocados em depositos publicos, e accessiveis a todos os interessados; e se algum candidato, tendo obtido o quociente eleitoral, não houvesse sido proclamado, ser-lhe-ia permittido reivindicar o seu direito...[95]» Stuart Mill teve apenas em vista resumir a theoria de Th. Hare, mas a sua exposição serve egualmente ao systema de Andrae. As differenças entre este systema e aquelle projecto são devidas á diversidade de condições em que estavam a Dinamarca e a Inglaterra ao tempo em que eram produzidas as idéas do escriptor inglez, e experimentado o processo do ministro da Dinamarca. Demos um exemplo: O legislador dinamarquez teve o pensamento de deslocalisar inteiramente a representação nacional, sacrificando as localidades. Não o realisou em todo o paiz, porque lhe prohibiram isso as condições politicas d’elle. Applicou o seu processo aos districtos eleitoraes de Seeland, de Lalland-Falster e do Jutland, que elegiam o primeiro 7 deputados, o segundo 3 e o terceiro 7; não o applicou ao Schleswig, que, por cada um dos seus districtos, apenas mandava um deputado ao Rigsraad, nem ao ducado de Holstein, que se recusou invencivelmente a mandar representantes á assembléa nacional. Mas o pensamento d’Andrae, segundo a affirmação de Lytton, a quem o legislador dinamarquez significou todo o seu pensamento, era, se isso fosse possivel, deslocalisar totalmente a representação politica. Pelo seu lado, Th. Hare, influenciado pela religião, perfeitamente ingleza, dos usos inveterados e das velhas tradições, preoccupou-se seriamente com esta idéa: o parlamento deve ser a imagem da nação, mas as localidades devem ser devidamente consideradas na representação nacional. A lei dinamarqueza de 1855 foi modificada pela lei de 12 de julho de 1867, mas não foi alterado, n’esta ultima, o pensamento fundamental de Andrae, nem tambem as cousas se dispozeram por forma a ter esse pensamento toda a extensão legal que elle comporta. O parlamento dinamarquez (Rigsraad) ficou composto de duas camaras, a camara baixa e a camara alta, o Folketing e o Landsthing. Para aquella, a eleição faz-se por maioria; para esta foi adoptado o systema proporcional, votando directamente os maiores contribuintes do estado, e votando indirectamente os outros cidadãos[96]. O pensamento fundamental d’este systema consiste em racionalisar a representação, dando a cada idéa, a cada partido um numero de representantes proporcional ao numero dos seguidores d’essa idéa ou dos membros d’esse partido; o seu merecimento sobre o processo de Girardin é este: ao passo que, no processo de Girardin, haveria sempre uma grande perda de votos pela accumulação d’elles nos candidatos mais populares, no systema Hare-Andrae nenhum suffragio se perde, toda a força eleitoral é aproveitada. Este systema é um dos mais perfeitos que conhecemos. N’uma sociedade superior em civilisação á cultura media das sociedades actuaes, desappareceriam inteiramente as difficuldades d’elle, e, em tal caso, além de perfeito seria facillimamente exequivel. Tem-se dito contra o systema Hare-Andrae: Que elle é impraticavel, por extremamente complicado nas operações que demanda; Que, _nacionalisando_ a representação politica, pretere inteiramente os interesses locaes; Que a redacção das listas pela ordem da sua preferencia exige nos eleitores uma grande instrucção politica que elles não teem; Que não previne o meio de realisar as eleições complementares; Que é impossivel evitar a fraude no apuramento eleitoral, feito por complicadas operações successivas; Que, por esta forma de eleição, as associações religiosas, operarias, ou destinadas a outro fim qualquer ficariam com um poder excessivo, capaz de perturbar o equilibrio social, etc. Eis, em summa, as principaes objecções apresentadas contra este systema. Umas não teem razão de ser; outras teem fundamento, mas são enormemente exaggeradas. O systema Hare-Andrae é complicado. Isto é innegavel. Mas a complicação d’este systema não é d’aquellas que servem justamente á condemnação dos processos eleitoraes. Porque? Porque a complicação d’este systema se não manifesta _no exercicio das funcções do eleitor, mas sómente nas obrigações impostas aos que teem a seu cargo dirigir os actos eleitoraes_[97]. O eleitor não faz, na hypothese d’este systema, mais do que é obrigado a fazer em qualquer outro regimen eleitoral. Lança na urna o seu voto, e retira-se. A complicação começa só a partir da contagem e apuramento dos votos, operações que ficam ao cuidado d’um pequeno numero de cidadãos. Entre o dia da eleição e a proclamação dos eleitos podem mediar alguns dias; mas isso que importa? Que difficuldades traz? E, depois, não seria possivel dar a este pensamento uma forma mais simples, mais expedita? A experiencia não facilitaria progressivamente o jogo d’este machinismo burocratico? Certamente que sim. A extincção das influencias locaes é uma das difficuldades mais vezes apresentadas contra a idéa fundamental d’este systema. Á parte o exaggero com que a difficuldade tem sido proposta, não se póde dizer que ella seja totalmente destituida de fundamento. Não que nós entendamos que o deputado deve ser puramente, unicamente, representante d’uma certa zona de terra, deputado de campanario, como é costume dizer-se. O deputado é, antes de tudo, deputado da nação. Para nós, a difficuldade sujeita tem outra razão de ser. É esta: no estado de indifferentismo politico em que se encontram, se não todos, alguns povos pelo menos, os interesses locaes são o unico meio de que se póde lançar mão para entreter e agitar as forças da opinião publica. Supprimido este mobil, é de receiar que a indifferença pelas cousas publicas attinja as proporções d’uma paralysia moral. Mas o systema da _representação pessoal_ póde ser modificado no sentido das circumscripções provinciaes de 6 ou 8 deputados, e, feito isso, a representação não perde inteiramente o seu caracter local. A unidade de collegio não é, a nosso parecer, condição essencial d’este systema[98]. Aubry-Vitet esboça o plano da realisação d’este principio em circulos de 10 deputados; o sr. bispo de Vizeu applicava-o, no seu projecto de lei de 12 de dezembro de 1870, aos districtos do paiz, fazendo de cada districto um circulo eleitoral com direito a um numero de deputados correspondente á sua população, na razão de 1 deputado por cada 40:000 habitantes[99]. Feita esta modificação, ou outra semelhante, attenuam-se os inconvenientes, tantas vezes ponderados, de se obrigar cada eleitor a inscrever no seu boletim muitos nomes, e de inscrevel-os pela ordem da preferencia, que elles lhe merecem. Estes inconvenientes são graves; a objecção que se refere a elles é a mais importante de todas. Os eleitores não teem, pela maior parte, capacidade necessaria para escolherem e classificarem os seus candidatos, nem meio de harmonisarem o seu boletim com os dos seus correligionarios ou companheiros de voto. Os mais apaixonados defensores do systema Hare-Andrae dizem: a objecção só é valida na hypothese de serem ineptos os eleitores e lhes faltarem os meios de se instruirem e esclarecerem uns aos outros; ora a imprensa, as associações, as reuniões eleitoraes ahi estão para supprirem com a sua lição a ignorancia, a deficiencia intellectual dos eleitores. A resposta não é triumphante. A hypothese da ignorancia dos eleitores é verdadeira em todos os paizes. A imprensa, a tribuna, o meeting instruem sómente os que são capazes de aprender. Aprender é julgar; julgar é criticar. Que instrumentos de critica teem os operarios das fabricas e dos campos, os artistas mechanicos, os pequenos proprietarios ruraes, queremos dizer, a maior parte dos cidadãos eleitores? Nenhum. É por este lado que o systema Hare-Andrae se nos afigura mais vulneravel. Demasiadamente theorico, demanda um estado de cultura ainda distantissimo de nós. É facilmente respondivel a objecção relativa ás eleições supplementares. Para preencher qualquer vacatura bastará estatuir, além do quociente eleitoral, variavel para cada eleição, o numero de votos necessarios para ser eleito um deputado, numero que deve ser sempre inferior á media dos quocientes eleitoraes; e, depois, dada a vacatura, por qualquer das causas que costumam produzil-a, chamar os candidatos que, nos collegios a que pertenciam os deputados a substituir, obtiveram maior numero de votos. Tambem não tem muito peso o dizer-se que é difficillimo evitar a fraude nas operações do apuramento. Para a evitar seria sufficiente isto: a maior publicidade d’essas operações, e pleno direito aos eleitores de verificarem e examinarem as listas eleitoraes, que, como sensatamente observou S. Mill, podem ser mandadas para a localidade de que sahiram, e ahi examinadas pelos interessados n’isso, que são sómente os vencidos. Ao ultimo argumento produzido contra a _representação pessoal_, e que é relativo á immensa força das associações organisadas e dos partidos fortemente constituidos, responde o eminente publicista, acima citado, pelo modo mais claro e mais concludente: «Os elementos dispersos não gozam, não podem gozar das vantagens que teem sempre os corpos organisados. Como o plano do sr. Hare não muda a natureza das cousas, não póde deixar de esperar-se que os partidos se aproveitem quanto possivel da sua organisação para augmentarem a sua influencia. Mas com o systema actual estas influencias são tudo. Os elementos dispersos não valem cousa alguma. Os votantes que não pertencem a partidos politicos, grandes ou pequenos, não teem meio de utilisar os seus votos. O systema do sr. Hare dá-lhes esse meio... Se se affirma que os interesses mesquinhos e as associações para objectos insignificantes cuidariam logo da sua melhor organisação, porque hemos de suppôr que o grande interesse da intelligencia e da honra nacional seria o unico a desprezar os evidentes beneficios d’uma boa organisação?[100]» * * * * * Pelo systema do _voto cumulativo_ o eleitor dispõe d’um numero de votos egual ao numero de deputados a eleger, e póde repartir os seus votos por outros tantos candidatos, distribuil-os desegualmente, ou dal-os todos a um só. Este systema foi apresentado e defendido, na Inglaterra, por James Garth Marshall, e proposto á camara dos communs por Lowe em 1867, e, no mesmo anno, á camara alta por lord Grey. Rejeitado pelo parlamento inglez em 1867, foi, em 1870, applicado á eleição dos conselhos de escola de Londres e d’outras cidades da Gran-Bretanha. Este systema tem uma grande perfeição theorica. A proporcionalidade da eleição é mathematica desde que os partidos calculem rigorosamente os votos de que dispõem, e, portanto, o numero de candidatos a propôr. Um exemplo: Circulo de 10:000 eleitores com direito a 10 deputados. Se 1:000 eleitores derem os seus votos a um candidato, este terá 10:000 suffragios, porque, na hypothese figurada, cada eleitor dispõe de 10 votos. Os outros 9:000 eleitores não podem, por fórma alguma, conseguir mais que 9 deputados, quer votem todos nos mesmos 9 candidatos, quer se dividam para votarem, estes n’uns certos nomes, aquelles em outros. Nada mais exacto. Infelizmente, é impossivel fazer o calculo exactissimo dos votos de cada partido antes da eleição, e, desde que tal calculo se não faça, o systema póde produzir effeitos totalmente oppostos á sua intenção. A George de Peyramont[101] devemos o seguinte calculo comprovativo do que deixamos dito: Circulo de 3 deputados, elegiveis por 30:000 eleitores, dos quaes 19:000 são conservadores e 11:000 republicanos. Se os conservadores dão os seus votos a um só candidato e os republicanos os dividem entre si, obteem-se os seguintes resultados: Numero de eleitores 30:000 Suffragios dados 90:000 Quociente eleitoral, ou numero de votos necessario para o vencimento 15:000 Candidato conservador: 19:000 × 3 = 57:000 v.; el. Primeiro cand. rep. mod.: 11:000 × 3/2 = 16:500 v.; el. Segundo cand. rep. rad.: 11:000 × 3/2 = 16:500 v.; el. N’esta hypothese a minoria venceu a maioria. Hypotheses como estas seriam frequentissimas; seriam inevitaveis sempre que a maioria, presando muito um nome, e receiando-se de qualquer eventualidade, accumulasse sobre esse nome muitos votos superfluos. A hypothese inversa póde dar-se tambem. Se a minoria não for compacta, se não for animada do mesmo pensamento, se, por qualquer motivo, os cidadãos que a constituem se não entenderem, a maioria vingará todos os deputados do circulo. Em poucas palavras, o systema do _voto cumulativo_, para ter uma realisação justa, necessita duas condições raras e difficeis: que os partidos calculem com exactidão a força eleitoral de que dispõem, e que nos membros d’esses partidos reine a mais apertada obediencia e a mais stricta disciplina. Este systema está em vigor na Inglaterra e em alguns Estados do Norte-Americano, e ahi se póde ver que não são mero producto da phantasia os inconvenientes apontados. «Nas eleições dos conselhos de escola de Inglaterra, na circumscripção de Marylebone, havia 7 pessoas a eleger. Miss Garrett obteve 47:858 votos, ao passo que M. Watson foi eleito por 8:355 votos. Perto de 40:000 suffragios dos que alcançou Miss Garrett foram perdidos; a opinião que ella representava não conseguiu, na organisação do conselho, a parte proporcional á sua importancia[102].» «Nas eleições municipaes de Bloomsburg, na Pennsylvania, cujo resultado foi julgado muito satisfatorio, pensou o partido republicano que podia vingar quatro candidatos dos seis que havia a eleger, por meio d’uma _habilidade_, que consistia em apropriar-se dois candidatos democratas, a quem condecorou com as suas insignias. Enganou-se nos seus calculos, e, a final, apenas obteve dois representantes, dispondo realmente de suffragios, que, pelo menos, lhe asseguravam tres.[103]» * * * * * O systema do _voto limitado_, primitivamente offerecido para collegios de tres deputados, póde ser definido, na generalidade de que é susceptivel, por esta fórma: systema em que o eleitor inscreve na sua lista um numero de candidatos menor do que o de deputados a eleger, sendo proclamados depois os que, no apuramento, obtiverem maioria. Foi sustentado no parlamento inglez por lord John Russell e por lord Cairns, adoptado em 1867 para os collegios de tres deputados, e realisado nas eleições de 1868. Está em vigor no Brazil desde 1875 e na Hespanha desde 1876[104]. O primeiro grandissimo inconveniente d’este systema é a necessidade do arbitrario na fixação do numero de representantes a inscrever nas listas. Na hypothese de collegios de tres deputados, de todas a mais plausivel e a mais frequente, que razão ha para se suppôr em toda a parte só dois partidos em lucta, e para os imaginar na proporção de um para dois? Mas os inconvenientes praticos são muito maiores. Na maioria dos casos, o partido menos numeroso fica sem representantes; n’outros casos, a minoria substitue-se á maioria, vencendo-a pelo calculo e pela manha. Estes dois inconvenientes previstos por Morin em 1867 teem sido já evidenciados pela experiencia. Nas eleições inglesas de 1868, segundo E. Naville[105] a minoria, apesar de consideravel, não teve representantes em Birmingham e em Glasgow. Em Londres, pelo que nos diz Aubry-Vitet[106], o barão de Rothschild, que era o mais popular, o mais querido dos candidatos whigs, foi vencido porque, confiando muito nas geraes sympathias do seu chefe, os liberaes trataram de concentrar todos os seus esforços na eleição um pouco duvidosa dos outros seus candidatos. Para evidenciar que, em casos perfeitamente normaes, póde ser inteiramente sacrificado um terço dos eleitores, que é, de certo, uma minoria muito consideravel, damos o seguinte calculo, na hypothese d’um collegio de tres deputados: Numero total de votos 9:000 Quociente eleitoral 3:000 Maioria 6:000 Minoria 3:000 A maioria póde dividir-se em tres grupos de 2:000 eleitores, e votar assim: Nos candidatos A e B, 1.º grupo de 2:000 eleitores. Nos candidatos B e C, 2.º grupo de 2:000 » Nos candidatos A e C, 3.º grupo de 2:000 » Feito isto, A, B e C alcançaram 4:000 votos cada um, e o candidato da minoria não se logra da sua candidatura porque lhe é impossivel, seja qual for a combinação a que se proceda, attingir mais do que 3:000 votos! O caso da minoria supplantar a maioria dá-se logo que a maioria se divida, votando n’um numero de candidatos superior á sua influencia, e a minoria, sabendo-o, calcular rigorosamente a distribuição dos seus suffragios. Ha ainda uma variante d’este systema devida ao duque de Ayen. O duque propõe que cada collegio dê dois deputados á maioria de votos, não podendo cada eleitor votar senão em um. Na essencia, é o projecto de lord Cairns e de lord Russell. Não é proporcional nem justo, porque impossibilita a representação de partidos que não sejam, nos casos normaes, os dois mais numerosos de cada circulo. Todavia parece-nos que de todas as variedades dos systemas de _lista incompleta_, esta é a mais acceitavel. Pelo menos, não tem o inconveniente de deixar sem representação a terça parte dos eleitores, como acontecerá muitas vezes nos circulos de tres deputados. No projecto do duque de Ayen é isso impossivel. * * * * * No systema _proporcional_ de Th. Furet[107], cada circumscripção eleitoral ha de eleger pelo menos tres deputados, e cada eleitor tem de votar em tantos nomes quantos os deputados do seu collegio. Os eleitores, por si ou por aquelles a quem estão ligados em communidade de opiniões e de interesses, devem, segundo Th. Furet, fazer o seguinte raciocinio: «Chamado pela constituição do meu paiz a eleger uma fracção da representação nacional, reconheço que o homem que, de preferencia a todos os outros, goza da minha confiança e das minhas sympathias, e, por isso julgo dever escolher para meu representante, é A. E porque é possivel que não vingue a candidatura de A, declaro que, depois d’este candidato, preferiria B. Se nem A nem B fossem eleitos, o que eu desejaria em logar d’elles seria C; mas na certeza de que, se eu não tivesse a eleger senão dois representantes, as minhas preferencias recairiam em A e B.» Classificados os candidatos pela ordem do seu merito, é justo, pergunta Th. Furet, attribuir ao suffragio dado a C, que só foi incluido nas listas porque havia tres representantes a eleger, mas que o não seria se fosse de dois sómente a eleição a que se procede; é justo attribuir a esse suffragio a mesma importancia, o mesmo valor que teem os votos dados a A e B, principalmente os dados a A? Não. Se o suffragio dado a C vale 1, vale 2 o que foi dado a B, e vale 3 o que foi dado a A. E assim, por _pontos_, que não simplesmente por votos, é que devem contar-se os suffragios. Transcrevemos para aqui o exemplo com que Furet elucida o seu systema. Supponha-se a existencia d’uma circumscripção de 100:000 eleitores, tendo direito a eleger 4 representantes. Cada eleitor vota em 4 nomes graduados na inscripção. O primeiro dos nomes recebe o suffragio no valor de 4, o segundo no valor de 3, o terceiro no valor de 2, o quarto no valor de 1. Na hypothese de que a minoria esteja para a maioria na proporção de 1 para 4, esta tem direito a 3 representantes e aquella a 1. Conseguir-se-ha isso com este systema? Vejamos. A maioria dispõe de 75:000 votos, e a minoria de 25:000 votos, e os eleitores votam sem discrepancia nos candidatos dos seus partidos. Eis o que se apura: A terá 75:000 × 4 = 300:000 B » 75:000 × 3 = 225:000 C » 75:000 × 2 = 150:000 D » 75:000 × 1 = 75:000 Isto nas listas da maioria; nas da minoria eis o que liquida: _a_ terá 25:000 × 4 = 100:000 _b_ » 25:000 × 3 = 75:000, etc. A maioria tem 3 representantes; a minoria 1. Perfeita proporção. Th. Furet applica o seu processo ao caso de não ser expressa em numero redondo a relação entre os eleitos da minoria e o numero total dos eleitos, e defende-a do seguinte modo: Se, como no exemplo dado, a relação da minoria com a maioria for de 1 para 4, e, com aquelle numero de votantes, houver 5 ou 6 deputados a eleger, a minoria nem por isso lucrará mais um deputado, o que será justo, porque, estando para a maioria na relação de 1-1/4 ou 1/2 para 5 ou 6, não tem direito a dois deputados; mas se em vez de 6 forem 7 os representantes a eleger, a minoria estará para a maioria na relação de 1-3/4 para 7, e, n’esse caso, vingado o primeiro nome inscripto, ficará com relação ao ultimo, ao setimo, em condições eguaes ás da maioria, e o empate deverá por lei ser decidido pelo modo mais conveniente, tendo-se em consideração quaesquer alterações que os eleitores queiram fazer na composição da sua lista, etc. Se for de 40:000 o numero de votos da minoria, e de 60:000 os da maioria, sendo 7 o numero dos representantes a eleger, por aquelle systema obterá a minoria 3 deputados, apesar de estar para 7 na relação de 2/5, e 2/5 de 7 não serem exactamente 3. Este systema é engenhoso, mas arbitrario e improporcional. Obriga o eleitor a preferencias forçadas, que podem não estar na sua consciencia, e classifica egualmente as preferencias de todos os eleitores, quando é certo que, na grande maioria dos casos, as preferencias são diversamente graduadas por elles. Além d’isso, se a circumscripção a que pertence um dado eleitor tem de eleger 3 ou 4 deputados, claro está que cada eleitor tem o mesmo direito, que não direitos deseguaes, relativamente a _todos_ esses. Ora, liquidada esta verdade, fica sem fundamento racional o systema de Th. Furet, que, se é apreciavel como exercido mathematico, não o é muito como plano politico. * * * * * O systema do _suffragio uninominal_ foi apresentado ao parlamento inglez em 1869 por Walter Baily, exposto e desenvolvido em 1870 pelo marquez de Biencourt, e, em 1871, recommendado á França pelo veneravel presidente da Associação reformista de Genebra. D’este benemerito apostolo da representação proporcional traduzimos os principaes traços d’aquelle systema: «Forma-se o quadro dos candidatos. Cada candidato offerece e publica uma lista indicando, pela ordem da sua preferencia, os outros candidatos a quem quer transferir os suffragios superfluos ou insufficientes que elle possa obter. O eleitor depõe na urna o nome d’um só candidato. Estabelece-se o quociente eleitoral, dividindo o numero de suffragios pelo numero de deputados a eleger. Os suffragios superfluos, assim como os insufficientes, serão transferidos segundo as indicações fornecidas pelas listas que os candidatos depozeram. O resultado da operação é este: são utilisados todos os suffragios e obtem-se o numero de deputados que se quer, tendo todos, directamente ou em virtude da transferencia dos votos, um numero de suffragios egual ao quociente eleitoral. «Este systema é, na essencia, o da representação proporcional, com a differença de que o eleitor renuncia a determinar por si o emprego dos suffragios excedentes ou insufficientes[108]...» Este systema foi engendrado para remediar o gravissimo inconveniente do systema Hare-Andrae, que exige de cada eleitor a inscripção graduada de muitos candidatos; mas, se obsta a esse mal, tem em compensação tantas e tão consideraveis difficuldades que, parece-nos, se fosse o unico projecto de representação proporcional, mais valeria a continuação do actual regimen com o seu acervo de iniquidades do que a substituição d’elle pelo do _suffragio uninominal_. Em primeiro logar, os votos d’uma parcialidade politica podem ser aproveitados para vingar as candidaturas d’uma parcialidade opposta! Na impossibilidade de se prever o numero de nomes de cada lista, necessario para, em todos os casos, se operar a transferencia dos votos, é mister affixar em todas as localidades as listas completas dos candidatos de todo o paiz e dos cidadãos a que elles querem transferir os votos superfluos ou insuficientes. Feito isto, e dada a hypothese de terem pouquissimos votos os primeiros nomes inscriptos, ou a hypothese inversa, a de terem obtido um numero grandissimo de suffragios,--esses suffragios, insufficientes ou superfluos, vão accrescer aos nomes immediatamente collocados, que, em muitos casos, são os adversarios politicos dos designados antecedentemente! Esta objecção é irrespondivel, e, vingada ella, annulla quaesquer vantagens sonhadas pelos apresentantes d’este systema. E. Naville, prevendo-a, procurou desfazel-a do seguinte modo: O facto da transferencia dos suffragios para candidatos de opiniões oppostas ás dos deponentes d’esses suffragios, que n’este systema seria excepcionalissimo, é regra constante do regimen actual, visto que os votos das minorias passam hoje ao partido mais numeroso, o qual, por uma ficção da lei, representa a totalidade dos eleitores; além d’isso é vantagem para eleitores em numero pequenissimo para vencerem uma candidatura sua, o poderem accrescer com os seus votos á eleição do candidato d’outro partido que lhes agrade mais, ou de que se arreceiem menos[109]. A primeira razão é insufficiente; a segunda, impossível. São cousas diversas a ficção legal, que faz do eleito da maioria o representante de todo o circulo, e a eleição d’um candidato á custa de suffragios dados _directamente_ pelos seus adversarios politicos: mas, e que fossem analogas estas duas cousas, não seria aquillo resposta concludente, visto que o systema do _suffragio uninominal_ ficava assim equiparado aos processos vigentes no mais iniquo, no mais desastrado dos seus effeitos. A apregoada vantagem de poderem alguns eleitores, em numero muito minguado para conseguirem a eleição d’um _seu_ representante, accrescer com os seus votos a uma candidatura opposta, de que gostem mais, ou que menos lhes desagrade, não sabemos como possa dar-se, visto que a inscripção dos candidatos ha de seguir necessariamente uma ordem determinada, a alphabetica ou outra qualquer, e parece-nos que, só por acaso, recairão os suffragios em candidatos n’aquellas condições; mas, dado que tal _vantagem_ se realise, é ella tão falsa, tão contraria ao modo geral de pensar e de sentir, que, sinceramente, magoa-nos ser esposada semelhante idéa pelo intelligentissimo presidente da Associação reformista de Genebra! N’uma eleição, sensatamente disposta, não se discutem sympathias; discutem-se, pleiteam-se opiniões. Quem tem opiniões definidas, assentes, não póde associar-se á exaltação de representantes de opiniões oppostas. Isto é simples e claro. É exactamente pela falta d’esta comprehensão na maioria das consciencias, que a politica anda muito alheia d’aquella seriedade de caracter, d’aquella rigidez moral, que deve ser o esmalte da democracia, e, sem o que, ella não vale mais do que as fórmas politicas a que succedeu. Não param aqui as más consequencias d’este systema. Meditado para melhorar o processo de Th. Hare, que exige a inscripção de muitos nomes a cidadãos que, pela maior parte, ou não os conhecem, ou, se os conhecem, são incapazes de graduar a sua preferencia relativamente a elles,--o _suffragio uninominal_ vem, a final, a cair exactamente nos mesmos e, ás vezes, em peiores defeitos. N’aquelle systema o eleitor não conhece os candidatos e vota n’elles inconscientemente; n’este, egualmente os não conhece, e, apesar d’isso, vota n’elles! Apenas se lhe poupa o trabalho material de escrever uns poucos de nomes. Nada mais. Depois, é porventura consoante á indole do systema representativo a existencia de deputados de differentes categorias, uns eleitos immediatamente pelos eleitores, e outros formados a puro beneficio dos seus vizinhos de lista? O suffragio indirecto, como o estabelece este processo, consistindo na escolha d’um homem para este nomear outro, é acceitavel, ainda para aquelles a quem não repugna muito o voto em dois gráus? Não podem deixar de ser respondidas negativamente estas perguntas. A substituição dos deputados que, por qualquer motivo, deixam o seu logar na camara, quer E. Naville que se faça pela simples transferencia dos votos d’aquelles deputados para os nomes inscriptos nas listas em que elles alcançaram o quociente eleitoral. Ora, dado o caso de ter obtido poucos votos o nome immediatamente inscripto (póde não ter obtido voto algum), e de, pelo contrario, em outras listas apresentadas na mesma circumscripção, terem alcançado muitos suffragios nomes que não attingiram, apesar d’isso, o quociente estatuido,--póde acontecer que sejam proclamados cidadãos que alcançaram poucos votos, ou que não alcançaram algum, preterindo-se, para a representação d’esse circulo, os nomes que mais se aproximaram do quociente eleitoral pela sympathia pessoal que mereciam aos eleitores! Isto não é uma incoherencia d’este systema, mas sim um novo caso da sua injustiça. * * * * * O ultimo e, a nosso parecer, o melhor dos systemas offerecidos para a realisação da proporcionalidade eleitoral é--o _Projecto definitivo da Associação reformista de Genebra_. É este o que acceitamos, salvas algumas modificações. Vamos expol-o e critical-o no capitulo seguinte, que é o final d’este livro. A preferencia que justamente nos merece tal systema justifica a sua posição n’um capitulo especial. NOTAS DE RODAPÉ: [91] _La réforme électorale en France_, pagg. 76 e 92. [92] _Questions de mon temps_, tom. VIII, pag. 544 e segg. [93] Emile Boutmy, _Journal de la Décentralisation_, cit. por Naville, _La question électorale en France_, pag. 78. [94] _Système électorale_, proposé par M. Th. Hare., Brux., 1864. [95] S. Mill, _Le gouvernement répresentatif_, traduit par M. Dupont White, pagg. 160, 161 e 162. [96] Eis as disposições textuaes da lei dinamarqueza, tendentes a proporcionalisar a representação politica: * * * * * «§ 81.º A reunião eleitoral é publica. É dirigida pelo presidente do comicio, que deve especialmente recommendar aos eleitores que indiquem claramente nas suas listas os nomes e a profissão d’aquelles por quem votam. Todos os eleitores (eleitores do segundo gráu e eleitores directos) se apresentam em seguida diante do presidente, na ordem designada por este ultimo, e depois de verificada a sua identidade pelo comicio, recebe cada um do presidente uma lista contendo tantas divisões quantos membros do Landsthing ha a eleger. Quando, apesar do convite feito, não se apresentar mais ninguem a pedir listas, procede-se immediatamente á votação sem que possa haver discussão a respeito dos candidatos. «§ 82.º As eleições do Landsthing fazem-se conforme segue, segundo o systema chamado proporcional (Forholdstalsvalg). «Os eleitores procedem á votação enchendo as listas que lhes foram entregues (§ 81.º), as quaes são validas ainda que só contenham um nome. Entregam-n’as depois, na ordem determinada pelo comicio, ao presidente, que as recebe todas e as conta. O numero assim obtido é dividido pelo dos membros do Landsthing a eleger no circulo, e o quociente inteiro (Forholdstal) que d’ahi resultar--desprezam-se as fracções--é tomado para base da eleição. «Depois de mettidas e misturadas as listas n’uma urna _ad hoc_, o presidente tira-as a uma por uma, dá-lhes o numero de ordem, e lê em voz alta o nome que figurar á cabeça em cada uma d’ellas, o qual é ao mesmo tempo escripto por outros dois membros do comicio. As listas que contiverem o mesmo nome põem-se juntas, e logo que um nome tiver obtido numero de votos egual ao quociente acima mencionado, interrompe o presidente a sua leitura; procede-se depois a uma verificação, contando novamente as listas, e, feito isto, o candidato em questão é proclamado eleito. As listas que se tornaram a contar são provisoriamente postas de lado. «Continua-se depois a leitura das listas restantes, tendo o cuidado, cada vez que o nome do membro já eleito fôr o primeiro da lista, de o riscar e de considerar como primeiro o que se seguir na lista. Em o segundo candidato obtendo o numero de votos acima determinado, procede-se como já foi dito, e, terminada essa nova eleição, continua-se a leitura, riscando sempre os nomes dos candidatos já eleitos, quando estiverem á cabeça da lista, até já não haver listas. «§ 83.º Se esta maneira de proceder não der nenhum resultado, ou não deixe eleger todos os membros do circulo, examina-se quaes são os que obtiveram maior numero de votos na leitura das listas, e essa maioria é que decide das eleições que restarem a fazer; todavia, ninguem póde ser eleito se não reunir um numero de suffragios maior que metade do quociente mencionado no paragrapho precedente. No caso de divisão egual dos votos, recorre-se ás sortes. «§ 84.º Se não se conseguir assim completar as eleições, lêem-se novamente todas as listas, e d’entre os candidatos collocados em primeiro logar, que ainda não foram eleitos, tomam-se tantos quantas eleições ha a fazer. Então decide a simples maioria. «No caso de egualdade de votos, recorre-se á sorte. * * * * * «§ 87.º Tudo o que se passar na reunião eleitoral consigna-se n’um registro visado pelo presidente do comicio, e feito por um dos seus membros. Esse registro deve em particular conter apontamentos exactos a respeito do resultado da votação, numero das listas entregues, candidatos que obtiveram votos, e o numero d’elles dado a cada um, e tambem indicar se houve listas annulladas, e, n’esse caso, porque, etc. As listas são depois selladas e conservadas com o registro. «O presidente do comicio deve informar sem demora os candidatos eleitos da sua nomeação, convidando-os a declarar se acceitam. Se não desistirem nos 8 dias seguintes, entende-se que acceitaram. «O mais tardar 8 dias depois de expirar esse praso, o presidente deve entregar ao ministro competente uma copia do registro certificada por elle. Em se reunindo o Landsthing, apresenta-lhe o ministro essas copias, accrescentando as demais informações necessarias.» (Vide _Jornal do Commercio_ de janeiro de 1871 desde o n.º 5:171 até 5:180.) [97] Ph. Bourson, cit. pag. 35. [98] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870. [99] Eis as disposições d’este projecto de lei, relativas ao apuramento dos votos, em que está realisado o principio da representação pessoal: * * * * * «Art. 45.º Cada districto administrativo constitue um circulo eleitoral. «Art. 46.º Por cada circulo eleitoral será eleito um numero de deputados correspondente á sua população, na razão de um deputado por cada 40:000 habitantes, conforme o mappa annexo a esta lei. * * * * * «Art. 110.º Collocadas as listas sobre a mesa da assembléa, o presidente as irá abrindo e entregando successiva e alternadamente aos escrutinadores, para lerem em voz alta os nomes votados, que serão por ambos os secretarios escriptos por extenso, com declaração do numero dos votos que recaírem em cada nome. «Art. 111.º Em cada lista será lido e apurado sómente o nome escripto em primeiro logar. «Art. 112.º São validas as listas que contiverem menor numero de nomes que o dos deputados a eleger: se os nomes forem em numero superior, consideram-se não escriptos os ultimos excedentes ao numero dos deputados. «§ unico. Ter-se-hão egualmente como não escriptos os nomes dos individuos, que não reunirem as condições de elegibilidade requeridas por esta lei, e como taes não estiverem comprehendidos na relação publicada na folha official do governo na conformidade do disposto no § 2.º do artigo 43.º «Art. 113.º O numero total das listas do circulo eleitoral dividido pelo numero de deputados a eleger no mesmo circulo, dará o _quociente eleitoral_, isto é, o numero de votos preciso para qualquer cidadão ficar eleito deputado. «Art. 114.º Logo que algum cidadão obtenha o numero de votos que constitue o quociente eleitoral, considerar-se-ha o mesmo cidadão eleito, e o presidente o proclamará deputado ás côrtes. § unico. Antes porém da proclamação mandará o presidente verificar, por meio de contagem, o numero de listas, com que se preencheu o quociente eleitoral. «Art. 115.º Proclamado deputado qualquer cidadão, não se tornará a ler o seu nome, nem se lhe contará mais votos, ainda que o mesmo nome esteja em primeiro logar nas outras listas que se abrirem, nas quaes deverá, n’este caso, riscar-se o nome já proclamado, e ler-se sómente o nome que se lhe seguir na ordem da inscripção. «Art. 116.º Á medida que se for reunindo em outros nomes o numero de votos precisos para perfazer o quociente eleitoral, irão sendo proclamados deputados os cidadãos que obtiverem esse numero de votos, deixando egualmente de ler-se os seus nomes nas outras listas, e tomando-se em consideração sómente os nomes dos immediatos na ordem das listas, tudo como se acha disposto com relação ao primeiro proclamado, até se concluir o apuramento de todas as listas. «Art. 117.º As listas que contiverem o mesmo nome no logar de preferencia, serão reunidas em separado e postas de parte, logo que esse nome obtenha o numero de votos preciso para ser proclamado. * * * * * «Art. 132.º Se occorrer alguma vacatura na representação de algum circulo eleitoral, logo que a mesma vacatura for declarada pela camara dos deputados, mandará o governo convocar a respectiva junta geral de districto, n’um praso que não exceda a trinta dias, para que proceda ao apuramento do deputado ou deputados que forem necessarios para preencher as vacaturas. «Art. 133.º Reunida e constituida a junta geral, pela fórma por que tiver funccionado no apuramento geral, ou constituindo-se na fórma prescripta no artigo 91.º, se não for a mesma que tiver funccionado anteriormente, serão presentes as listas por que se fez o ultimo apuramento geral e complementar, se tiver havido, e pelo seu exame e leitura se verificará qual o nome ou nomes, que, depois dos já proclamados, obtiveram maior numero de votos, independentemente da ordem em que cada um dos nomes estiver inscripto nas listas; e d’entre estes serão proclamados deputados os necessarios para preencher as vacaturas occorridas. «§ unico. N’este apuramento supplementar bastará a maioria relativa, decidindo a sorte no caso de egualdade de votos.» (_Diario da Camara dos srs. deputados_, correspondente á sessão de 14 de dezembro de 1870.) [100] Stuart Mill, _Le gouvernement représentatif_, pag. 118. [101] Cit. pelo marquez de Castellane, _Essai sur l’organisation du suffrage universel en France_, pag. 154. [102] B. Naville, _La question électoral en France_, pag. 87. [103] E. Naville, _La question électorale en France_, pag. 88. [104] Transcrevemos as principaes disposições da lei brazileira, e, em seguida, as da lei hespanhola: * * * * * «§ 9.º Installada a mesa parochial, começará a chamada dos votantes, cada um dos quaes depositará na urna uma cedula fechada por todos os lados, contendo tantos nomes de cidadãos elegiveis, quantos corresponderem a dois terços dos eleitores que a parochia deve dar. «Se o numero de eleitores da parochia exceder o multiplo de tres, o votante addicionará aos dois terços um ou dois nomes, conforme fôr o excedente. * * * * * «§ 17. Para deputados á assembléa geral, ou para membros das assembléas legislativas provinciaes, cada eleitor votará em tantos nomes quantos corresponderem aos dois terços do numero total marcado para a provincia. «Se o numero marcado para deputados á assembléa geral e membros da assembléa legislativa provincial fôr superior ao multiplo de tres, o eleitor addicionará aos dois terços um ou dois nomes de cidadãos, conforme fôr o excedente.» (Art. 2.º do decreto n.º 2:675 de 20 de outubro de 1875.) * * * * * «DON AFFONSO XII, «Por la gracia de Dios Rey constitucional de España. «A todos los que la presente vieren y entendieren, sabed: que las Córtes han decretado y Nos sancionado lo seguiente: «Articulo 1.º La ley municipal de 20 de Agosto de 1870 continuará rigiendo con las reformas contenidas en las disposiciones seguientes: «Primera. Las elecciones de Ayuntamientos se ajustarán á la ley electoral de 20 de Agosto de 1870, sin otras modificaciones que las expressadas á continuacion. * * * * * «Se procurará que á cada colegio electoral corresponda elegir cuatro Concejales, ó el número que más á este se aproxime. Cada elector votará únicamente dos Concejales quando hayan de elegir-se tres en el colegio electoral; tres cuando cuatro; cuatro cuando seis, y cinco cuando siete. «Promulgada esta ley, se procederá a formar las listas electorales con arreglo á lo prevenido en los párrafos anteriores, sujetándolas en su formacion, plazos y demás requisitos y trámites á la ley electoral, segun queda dispuesto.» (_Gaceta de Madrid_, 17 de Diciembre de 1876, tom. IV, pag. 691.) [105] _La question électoral en France_, pag. 80. [106] _Revue des deux mondes_, 15 mai, 1870. [107] _Journal des Économistes_ (Avril à Juin, 1869), pag. 428 e segg. [108] E. Naville, _La question électorale en France_, pagg. 103 e 104. [109] E. Naville, _La question électoral en France_, pag. 110. CAPITULO IV =Summario.=--O _projecto definitivo da Associação reformista de Genebra_, segundo a exposição que d’elle faz Jules de Smedt. Influencia d’aquelle projecto no nosso parlamento. As propostas de lei do sr. conselheiro J. Luciano de Castro. Em que consiste, fundamentalmente, este systema eleitoral.--Modificações introduzidas pelos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. Barbosa Leão no projecto da Associação de Genebra; sua discussão critica.--Se o eleitor, no systema sujeito, póde escrever menos nomes que os da sua _lista typo_, e tambem se póde varial-os. A nossa opinião.--Hypothese de apparecer um nome repetido em algumas listas. Se é justo que lhe sejam attribuidos sómente os suffragios da lista mais votada.--Apesar das suas imperfeições, o projecto da Associação de Genebra é acceitavel. Razões d’isso. Conclusão. Não nos foi possivel obter um exemplar do relatorio em que a _Associação reformista de Genebra_ apresentou o seu definitivo projecto de representação proporcional. O conhecimento que temos d’elle veio-nos da sua exposição feita no opusculo de Jules de Smedt, anteriormente citado, no qual o publicista belga confessa que lhe introduziu algumas leves modificações (_sauf quelques légères variantes_)[110]. Este systema impressionou profundamente a Suissa e a Belgica, e, ultimamente, foi utilisado em duas propostas de lei apresentadas ao nosso parlamento pelo sr. conselheiro Luciano da Castro[111]: a primeira, com destino ás eleições municipaes, a proposito da discussão do projecto de reforma administrativa; a segunda, destinada ás eleições de deputados, na occasião em que se discutia o projecto que se converteu na ultima lei eleitoral. Eis no que consiste, fundamentalmente, o projecto definitivo da _Associação reformista de Genebra_: Antes do dia da eleição devem ser entregues ao presidente da eleição, ou a qualquer outra pessoa designada pela lei, as listas dos candidatos com um numero de nomes egual ao de representantes a eleger no circulo eleitoral. As listas devem ser apresentadas por um numero determinado de eleitores, de modo a evitar-se assim a producção de candidaturas sem intenções de seriedade. Os nomes dos candidatos são inscriptos pela ordem alphabetica, e as listas _numeradas_ depois de entregues. A votação opera-se pelo modo mais simples: o eleitor lança na urna um boletim que tenha o _numero d’ordem_ da lista que escolheu, e nomes de candidatos em numero egual ou inferior ao de deputados a eleger no seu respectivo circulo[112]. Nada mais. Segue-se o apuramento. O apuramento, em que está a mais ingenhosa innovação d’este systema, faz-se pela maneira seguinte: Trata-se de saber, primeiro que tudo, qual o quociente eleitoral. Determina-se este quociente dividindo o numero de boletins válidos pelo numero de deputados a eleger. Em seguida são contados, e reunidos em pacotes separados os boletins pertencentes a cada lista. Cada lista obtem um numero de deputados proporcional ao numero de suffragios que alcançou. Se, por exemplo, ha 6 deputados a eleger, duas listas em lucta, uma, a primeira, que obteve 8:000 votos, e outra, a segunda, 4:000, e o quociente eleitoral é de 2:000 votos, temos: a lista n.º 1, pois que obteve no numero total de seus suffragios 4 vezes o quociente eleitoral, alcança 4 deputados; a lista n.º 2, tendo obtido em suffragios o duplo do quociente, fica com 2 representantes. Se ha fracções, e é mister recorrer a ellas para eleger alguns deputados, o processo a seguir é este: a lista que obteve a maior fracção elege o primeiro dos deputados que faltam; a lista que obteve a fracção immediata á maior, elege o segundo, e assim por diante. Se duas listas tiverem fracções eguaes, o deputado será attribuido á que tiver numero inteiro maior; se tiverem o mesmo inteiro e a mesma fracção, a sorte decidirá. Sabido o numero de representantes a que tem direito cada lista, procede-se á designação individual d’elles. Faz-se entre os nomes de cada lista á maioria de votos. Não ha, n’este systema, eleições supplementares. Na falta d’um deputado é chamado o candidato que, na lista respectiva, estava inscripto immediatamente áquelle. Referimo’-nos á segunda inscripção, á que se faz depois do apuramento, em que se segue o numero dos votos obtidos por cada nome,--e não á primeira que, como dissemos, é feita segundo a ordem alphabetica. * * * * * O primeiro projecto de lei do sr. Luciano de Castro, relativo ás eleições municipaes, é inteiramente moldado sobre estas idéas. O segundo, com destino ás eleições de deputados, assim como o projecto do sr. J. B. Leão, a que acima nos referimos, separam-se do systema exposto na parte relativa ás fracções das listas. As modificações feitas n’aquelle systema referem-se á hypothese de pertencer a fracção maior a uma lista menos votada, e ao caso de alguma ou algumas das listas não terem obtido o quociente eleitoral. N’aquelle caso querem os proponentes dos referidos projectos que se attribua successivamente a essa lista e a cada uma das mais votadas o deputado que falta; que se divida a votação total de cada lista pelo numero de deputados que fica tendo junctando-se-lhe esse; e que o deputado seja definitivamente attribuido áquella em que cada deputado fique sendo eleito por maior numero de votantes. Quando, á distribuição dos deputados a eleger pelas fracções, concorrerem listas de candidatos que não tiverem alcançado o quociente eleitoral, a votação das listas que attingiram esse quociente, ha de, no pensamento d’aquellas propostas, decompor-se, indo essas listas concorrer com as outras que o não attingiram com outros tantos votos e mais um do que tem a mais votada d’estas. Se a ultima parcella for egual, decidirá a sorte. Vamos, com exemplos, pôr a toda a luz a differença entre o systema da Associação reformista de Genebra, como nol-a expõe J. Smedt, e as propostas ultimamente offerecidas ao nosso parlamento. Figure-se um circulo eleitoral de 6 deputados, elegiveis por 18:000 votantes _effectivos_. O quociente eleitoral é de 3:000 suffragios. Disputam-se na eleição tres listas de candidatos. 1.ª 3:900 2.ª 10:040 3.ª 4:060 Segundo o projecto definitivo da _Associação reformista de Genebra_ a 1.ª lista tem um deputado, a 2.ª tres deputados, e dois a 3.ª A esta pertencem dois, porque, apesar de não ser a mais votada, a sua fracção é a maior de todas. Pela proposta do sr. Luciano de Castro, assim como pelo projecto do sr. Barbosa Leão, á 3.ª pertence sómente um deputado e a 2.ª fica com quatro, _porque_, segundo o pensar de s. ex.ᵃˢ, _sempre que houver deputados a eleger pelas fracções, tem de dividir-se a votação total de cada lista pelo numero de deputados que fica tendo junctando-se-lhe o que falta, e attribuir-se este depois áquella lista em cada deputado fique eleito por maior numero de votos_. Ora as operações dão este resultado: Votos Deputados Resto 2.º quociente apurados 1.ª lista 3:900 1 900 1:950 2.ª » 10:040 3 1:040 2:510 3.ª » 4:060 1 1:060 2:030 Realizando-se inteiramente o processo da _Associação reformista de Genebra_, a 3.ª lista fica com dois deputados; admittida a modificação feita pelas propostas apresentadas ao nosso parlamento, a vantagem é para a 2.ª lista que fica com quatro. Qual dos dois processos é mais justo? Qual é mais proporcional? Vamos discutir este ponto. Attribuindo-se o deputado que falta á 2.ª lista, temos que 4:060 eleitores da 2.ª lista elegem 1,62 de deputado, emquanto que 4:060 da 3.ª lista elegem 1 deputado. Se o deputado fosse attribuido á 3.ª lista, então 4:060 eleitores da 2.ª lista davam 1,21 de deputado, ao passo que egual numero da 3.ª lista dava 2 deputados. Na hypothese figurada, o processo innovado pelo sr. Luciano de Castro é o mais justo. Mas realizar-se-ha esta justiça em todos os casos a que se applique aquelle processo? Figuremos esta nova distribuição: Votos Deputados Resto 2.º quociente apurados 1.ª lista 3:900 1 900 1:950 2.ª » 9:410 3 410 2:352 3.ª » 4:690 1 1:690 2:345 Attribuindo-se o deputado á 2.ª lista (processo do sr. L. de Castro), 4:690 eleitores d’esta lista dão 1,99 de deputado, emquanto que 4:690 eleitores da 3.ª lista elegem apenas um deputado. Se o deputado fosse attribuido (proj. primitivo) á 3.ª lista, 4:690 eleitores da 2.ª lista dariam 1,50 de deputado, emquanto que egual numero da 3.ª lista daria 2 deputados. N’esta hypothese, evidentemente, o projecto primitivo da Associação de Genebra é mais justo. Liquidado isto, eis a unica conclusão legitima a deduzir: Depende do modo por que apparecem votadas as listas a justiça d’um ou d’outro processo. Não é possivel, segundo nos parece, estatuir uma regra que proporcionalize em todos os casos a eleição dos deputados produzidos pelas fracções; e, tendo de optar por um dos dois processos, preferimos o da Associação reformista de Genebra unicamente porque é mais simples. Confessamos que esta impossibilidade de levar o principio da justiça a todas as hypotheses da eleição realizada por este systema é muito para ser considerada, e diminue bastante o merito da obra, a que por tanto tempo se consagraram os mais validos talentos da Suissa; mas não nos parece que isto seja motivo para lançar á margem este systema, que resgata com muitas virtudes aquella imperfeição. Tem ainda outras difficuldades, que hemos de apontar e apreciar pelo seu justo valor; antes d’isso, porém, devemos discutir este processo eleitoral na hypothese, que será frequentissima, de, havendo deputados a eleger pelas fracções, concorrerem á eleição listas que não tenham alcançado o quociente eleitoral. O projecto da Associação reformista de Genebra é omisso para o caso de concorrerem á attribuição de deputados a eleger pelas fracções listas de candidatos que não tenham obtido o quociente eleitoral; mas, pelo espirito geral do projecto, vê-se que a intenção dos seus auctores é que, n’esta hypothese, os deputados que faltam sejam attribuidos ás fracções simples logo que ellas sejam maiores do que as fracções junctas aos numeros inteiros. Ha perfeita paridade de razão com o modo por que é feita a attribuição dos deputados no caso acima figurado e discutido. Nas propostas de lei, apresentadas na nossa camara, estatue-se para esse caso a seguinte disposição: a votação das listas que obtiveram o quociente eleitoral decompõe-se, e vai concorrer com as que o não obtiveram com outros tantos votos e mais um do que tem a mais votada d’estas. Se for egual a ultima parcella, ha de a sorte decidir. Exemplifiquemos[113]: Circulo de 3 deputados; numero de votos validos 6:000; quociente eleitoral 2:000 votos. 1.ª lista 2:850 = 1:581 + 1:269 } 2.ª » 1:580 } A. 3.ª » 1:570 } ou 1.ª lista 3:025 = 1:541 + 1:484 } 2.ª » 1:540 } B. 3.ª » 1:435 } ou 1.ª lista 3:700 = 1:201 + 1:201 + 1:298 } 2.ª » 1:200 } C. 3.ª » 1:100 } Pelo pensamento da Associação reformista de Genebra parece-nos que no caso A pertence á 1.ª lista um deputado, e um a cada uma das outras; que no caso B cabe egualmente um deputado a cada lista; e no caso C tocam dois á 1.ª e um á 2.ª. Pelo criterio dos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. J. Barbosa Leão, no caso A não ha divergencia d’aquelle processo: cada lista fica com um deputado; no caso B a 1.ª lista fica com dois deputados, e a 2.ª com um; e no ultimo caso todos os deputados são attribuidos á 1.ª lista. Qual dos dois processos é melhor? Respectivamente a esta hypothese, entendemos que as modificações introduzidas no projecto da Associação reformista de Genebra pelo sr. Luciano de Castro são de todo o ponto acceitaveis. Não proporcionalizam em todos os casos a eleição, porque, sempre que com as listas que não obtiveram o quociente eleitoral concorrer mais que uma das que o alcançaram, ha-de haver candidatos eleitos com votação desegual; mas no caso em que uma só lista tenha attingido o quociente eleitoral, o processo de que tratamos é inteiramente proporcional nos seus resultados. N’aquella hypothese ha votação desegual, mas não verdadeira injustiça, porque as listas mais votadas, comparadas com as outras, em caso nenhum teem direito a mais deputados do que lhes são attribuidos. Isto afigura-se-nos claro. Por isso, e tambem para não arripiarmos de algarismos este nosso trabalho, não produzimos exemplos elucidativos d’aquellas affirmações. Deprehende-se do que fica dito a imperfeição d’este systema na parte relativa ás fracções das listas; a consideração d’este defeito é, porém, grandemente attenuada se se attender a que, variando de circulo para circulo a votação das listas, o processo que n’uma eleição é vantajoso para a lista d’um certo partido, n’outro collegio ser-lhe-ha provavelmente desvantajoso. No Cap. III d’este livro[114] combatemos um argumento d’esta ordem, produzido contra a representação proporcional; mas os casos são differentes, porque lá a questão era de ser ou não ser proporcional a eleição, ao passo que aqui, discutindo-se um systema que, em geral, a proporcionaliza, trata-se de saber o que é mais justo--se deixar subsistir o regimen actual com todas as suas iniquidades, se substituil-o por outro que acaba com a maior parte d’ellas, tendo apenas contra si o ficar, em algumas poucas hypotheses, dependente a sua exactidão de compensações eventuaes. Pomos a toda a luz essa differença para que nos não acoimem de incoherente. * * * * * Vamos a outros pontos. N’este systema o eleitor tem de votar a sua lista com o competente _numero de ordem_; mas deverá ser obrigado a inscrever n’ella os mesmos nomes da lista d’aquelle numero, que foi entregue antes da eleição á pessoa por lei designada para receber as participações das candidaturas propostas, ou poderá variar os nomes á sua vontade? Devem, ou não, ser acceitas listas que tiverem nomes em numero inferior aos d’aquella a que pelo seu numero de ordem se referem? No projecto da Associação reformista de Genebra, qual o apresenta J. de Smedt, assim como nas propostas do sr. Luciano de Castro, o eleitor póde escrever menos nomes; não assim no projecto eleitoral do sr. Barbosa Leão. Quanto a substituir os nomes primeiramente apresentados por outros, isso seria a subversão completa de todo o systema, porque, se tal cousa fosse permittida, ficavam sem significação alguma as _numerações ordenadas_ das listas, que são a pedra angular de todo este engenhoso edificio. Facultando-se ao eleitor votar em todos os nomes da sua _lista typo_, ou em menos, póde dar-se o seguinte gravissimo inconveniente: á sombra d’um nome muitissimo votado, serem eleitos deputados os candidatos que apenas obtiveram _pessoalmente_ a quarta ou quinta parte do quociente estatuido! Dar-se-ha isto sempre que, nas listas do mesmo numero d’ordem, um dado nome obtenha duas, tres, quatro ou cinco vezes o quociente eleitoral, tendo a maior parte dos eleitores riscado nas suas listas os outros nomes inscriptos. A estes, por muito diminuta que seja a sua votação, aproveitará sempre o maior numero de votos offerecidos ao seu camarada de lista. Isto não é justo. Para se não realizar semelhante inconveniente, deve a lei declarar nullas todas as listas que se não conformarem com a _lista typo_ do seu numero d’ordem. Mas se as listas forem todas a copia exacta da _lista typo_, e, portanto, os seus respectivos nomes alcançarem todos egual numero de votos,--como se ha de fazer a escolha dos que teem de ser proclamados? Á sorte? Pela maior edade? Substituindo-se a inscripção alphabetica pela inscripção graduada segundo a preferencia que os candidatos merecerem aos eleitores? A Associação reformista de Genebra quer que, no caso de egualdade de votos, sejam preferidos os mais velhos; no pensamento d’ella, porém, isso raras vezes terá logar, visto que, pelo seu processo, é facultativo votar em tantos nomes quantos elege o circulo ou em menos. Mas é razoavel estabelecer semelhante criterio, dada a votação forçada nos mesmos nomes? Não, evidentemente. A sorte, como regra de applicação universal, é tambem de todo o ponto insustentavel. A inscripção pela ordem da preferencia, que aos eleitores mereceram os candidatos, parece-nos que supprirá as difficuldades apontadas. Não nos occorre outro meio mais sensato. Dir-se-ha, talvez, que a sujeição aos nomes previamente apresentados importa para o eleitor a suppressão ou, pelo menos, a diminuição da sua liberdade; mas sem razão. O que isto importa é a necessidade impreterivel das boas organisações partidarias. Não traz aquelle inconveniente, fructea mil vantagens. Os povos que não estão divididos em partidos seriamente organisados não podem tirar da politica liberal os bons resultados de que ella é fecundissima quando sensatamente exercitada. Isto já tem os foros de logar commum em sciencia social. Se o eleitor está fóra dos partidos existentes, não acceitando as suas idéas nem os seus homens, e não tem em volta de si um numero de cidadãos sufficiente para poder, pelo menos, apresentar oficialmente uma lista sua,--que direito tem a queixar-se da sociedade ou da lei? Nenhum. * * * * * Sempre que o nome d’um candidato, repetido em algumas listas, em nenhuma obtenha o quociente eleitoral, esse nome não vingará, e todavia bem póde acontecer que elle seja o mais votado de todo o circulo eleitoral. N’este systema, como dito é, apenas lhe aproveitam os suffragios da lista mais votada. Será isto um gravissimo inconveniente, como á primeira vista parece? Não, a nosso pensar. Este systema é a consagração eleitoral do principio das organisações partidarias; ora se um candidato a nenhum dos partidos militantes merece a confiança necessaria para ter o seu mandato d’elles, justo é que não seja eleito. Não se trata da representação pessoal, trata-se da representação partidaria; póde discutir-se esta base, mas não póde contestar-se a perfeita coherencia do pensamento fundamental do systema com a disposição respectiva á hypothese prefigurada. * * * * * Não acceitamos algumas das mais notaveis modificações feitas no projecto da Associação de Genebra pelo sr. B. Leão; falta-nos, porém, o tempo preciso para fazermos largamente a sua critica. Se voltarmos a este assumpto diremos as razões por que não acceitamos totalmente as idéas d’este indefesso e illustrado escriptor. * * * * * Do que fica exposto concluimos que o projecto definitivo da Associação reformista de Genebra, não sendo perfeito em todas as suas partes, é comtudo acceitavel, pelo menos como experiencia a tentar. O maior defeito que lhe conhecemos é este: não ter um processo inteiramente justo para o caso de concorrerem fracções á eleição dos deputados, nos dois casos em que isso póde ter logar: disputando-se entre si as fracções dos numeros inteiros (listas que alcançaram o quociente), ou havendo listas completas em concorrencia com fracções simples. Quando uma só lista completa concorrer com as fracções simples, o resultado será, como já ponderámos, inteiramente proporcional. Se, pois, este systema não acaba de vez com todas as injustiças do actual regimen; se, em alguns casos, não póde deixar de inclinar-se para um dos partidos combatentes na arena politica,--tem comtudo excellentes qualidades, que justificam plenamente a preferencia com que o distinguimos. Não é perfeito, mas, a nosso ver, sobrepuja em excellencias a todos os processos oferecidos para a resolução do problema eleitoral. Comparal-o com o systema vigente seria uma impiedade. Em sciencia social a exactidão absoluta é uma pura miragem da consciencia; póde ser um ideal prestimoso, nunca será uma realidade pratica. O bom é o menos máu, o melhor é o menos imperfeito. É assim que responderemos aos que, em boa fé, manifestarem escrupulos de acceitar esta innovação por ella não satisfazer inteiramente ás exigencias logicas do seu espirito; aos que a impugnarem no interesse do velho systema que nos opprime, aos que se arrecearem d’ella sómente porque é uma revolução nos habitos e nas instituições vigentes, aos que a não _quizerem_,--a esses diremos, com o mais intenso desejo de sermos attendidos: Reagir contra o progresso das idéas é como querer roubar o fogo do céu: uma empresa ousada e eternamente infeliz. O pensamento da representação proporcional é justo, e contra um pensamento justo não ha vontade que valha, por mais obstinada que ella seja. A historia que o diga... NOTAS DE RODAPÉ: [110] _Réforme électorale_, pag. 21, not. [111] Eis as propostas de lei acima citadas: «Artigo 1.º No dia designado para a eleição e antes de se abrir o escrutinio, serão apresentadas ao presidente da mesa eleitoral, por dez eleitores, as listas dos candidatos aos logares de vereadores das camaras municipaes, comprehendendo tantos nomes quantos os vereadores que houver a eleger pelo respectivo concelho ou bairro. Os nomes dos candidatos serão classificados por ordem alphabetica, e as listas receberão um numero de ordem, que não poderá ser reproduzido n’outras. «Art. 2.º No acto da eleição cada eleitor depositará na urna uma lista contendo: «1.º O numero de ordem da lista que escolher; «2.º Um numero de nomes de candidatos egual ou inferior ao dos vereadores a eleger. «Art. 3.º Terminada a eleição, proceder-se-ha ao apuramento do seguinte modo: contam-se as listas validas de todo o collegio eleitoral. O numero d’estas, dividido pelo numero dos vereadores a eleger, indicará o numero de votos necessario para ser eleito um vereador (_quociente eleitoral_). Conta-se depois o numero de votos obtidos por cada lista, isto é, o numero de listas que tem a indicação do mesmo numero de ordem. As listas com o mesmo numero de ordem serão separadas para serem apuradas á parte. «§ 1.º Cada lista obterá o numero de vereadores proporcional ao numero de votos que tiver alcançado. Para se conhecer este numero divide-se o numero dos votos obtidos pelo quociente eleitoral. Se d’esta divisão resultarem fracções, e faltarem ainda vereadores para eleger, os restantes vereadores serão attribuidos ás listas pela ordem seguinte: aquella que tiver a maior fracção obterá o primeiro vereador; a que tiver a fracção maior immediata obterá o segundo vereador, e assim successivamente. «§ 2.º Se duas listas tiverem fracções eguaes, prevalecerá a que tiver o maior numero inteiro. Se duas listas tiverem o mesmo numero inteiro e a mesma fracção, a sorte designará a qual d’ellas pertence o vereador que falta a eleger. «Art. 4.º Concluido o escrutinio proclamar-se-ha: «1.º O numero de listas validas; «2.º O quociente eleitoral; «3.º O numero de votos que obteve cada lista; «4.º O numero de votos obtido pelas listas, que teem direito de eleger. «Art 5.º Para a designação individual dos vereadores serão apuradas em separado as listas que tiverem os mesmos numeros de ordem, contando-se o numero de votos obtidos por cada candidato. «§ 1.º Cada uma das listas será depois restabelecida collocando-se os candidatos, não por ordem alphabetica, mas segundo o numero de votos que obtiverem. «§ 2.º No caso de egualdade de votos serão collocados em primeiro logar os mais velhos. «§ 3.º Estas listas terão caracter official, e serão conservadas até nova eleição. «Art. 6.º No caso de ser eleito o mesmo candidato em differentes listas do mesmo ou diverso collegio eleitoral, ou no de recusa, fallecimento ou renuncia, o vereador que faltar a uma das listas será substituido pelo candidato, cujo nome se seguir ao seu.--_José Luciano de Castro._» * * * * * «Artigo 1.º Antes do dia designado para a eleição serão apresentadas ao juiz de direito da comarca em que fôr a séde do circulo eleitoral as listas dos candidatos a deputados, comprehendendo tantos nomes quantos forem os deputados a eleger. Os nomes dos candidatos serão collocados por ordem alphabetica, e as listas receberão um numero de ordem, que não poderá ser reproduzido n’outras. «As listas serão apresentadas pelos candidatos, por seus representantes, ou por quaesquer eleitores. «Art. 2.º No acto da eleição, cada eleitor depositará na urna uma lista contendo: «1.º O numero de ordem da lista, que escolher; «2.º Um numero de nomes de candidatos egual ou inferior ao dos deputados a eleger. «Art. 3.º Terminada a eleição, proceder-se-ha ao apuramento pela fórma seguinte: «Contam-se as listas validas de todo o circulo. O numero d’estas, dividido pelo dos deputados a eleger, indicará o _quociente eleitoral_, isto é, o numero de votos necessario para ser eleito um deputado. Separam-se depois as listas, que teem o mesmo numero de ordem, e contam-se os votos obtidos por cada uma das listas. «§ 1.º Cada lista obterá o numero de deputados proporcional ao numero de votos, que tiver obtido. Para se conhecer quantos deputados cabem a cada lista, divide-se o numero de votos que alcançou pelo quociente eleitoral. Se d’esta divisão resultarem fracções e faltarem ainda deputados para eleger, serão os restantes attribuidos ás listas votadas pela ordem seguinte: aquella que tiver a maior fracção obterá o primeiro deputado, a que tiver a fracção maior immediata, obterá o segundo, e assim successivamente. «§ 2.º Concorrendo duas fracções eguaes, preferirá aquella lista, cujo numero total de votos fôr maior. Se este numero fôr egual, decidirá a sorte. «§ 3.º Quando a fracção maior pertencer a uma lista menos votada, attribuir-se-ha o deputado que falta a essa lista, e a cada uma das outras mais votadas, dividindo-se a votação total de cada lista pelo numero de deputados que fica tendo, junctando-se-lhe o que falta para eleger e dando-se áquella, em que cada deputado fique eleito por maioria, maior numero de votos. No caso de empate decidirá a sorte. «§ 4.º Quando alguma ou algumas das listas não obtiverem o quociente eleitoral, a votação das listas que o obtiverem decompõe-se indo concorrer com as que o não alcançarem com tantos votos como os que tem a mais votada d’estas ultimas listas. Se a ultima fracção fôr egual decidirá a sorte. «§ 5.º Se nenhuma das listas obtiver o quociente eleitoral haverá nova eleição. «Art. 4.º Para a designação individual dos deputados, serão apuradas em separado as listas que tiverem os mesmos numeros de ordem, contando-se o numero de votos obtidos por cada candidato. «§ 1.º Cada uma das listas será depois recomposta, collocando-se os candidatos, não por ordem alphabetica, mas segundo o numero dos votos que obtiverem. «§ 2.º No caso do egualdade de votos serão collocados em primeiro logar os mais velhos. «§ 3.º Estas listas serão consideradas como officiaes, e deverão ser conservadas até nova eleição.--_José Luciano de Castro._» [112] N’este ponto o sr. Barbosa Leão separa-se da Associação reformista de Genebra e tambem do sr. conselheiro Luciano de Castro. O artigo 18 do seu projecto diz: «A lista de voto do eleitor conterá um numero de nomes egual ao numero de deputados a eleger. A lista que contiver numero maior ou menor, será considerada nulla.» [113] Este exemplo é tirado do projecto eleitoral do sr. José Barbosa Leão. [114] Pag. 111 e segg. FIM. INDICE INTRODUCÇÃO Pag. =Summario.=--Concepção da politica como sciencia experimental. Origens d’esta concepção em Turgot, Kant e Condorcet. O seculo XVIII não era o meio proprio para o desenvolvimento d’esta concepção. Razões d’isso.--A sociedade é um phenomeno natural, cognoscivel pela observação. Demonstração directa d’esta these.--É inexplicavel a evolução social pela philosophia dos _principios absolutos_. Esta philosophia na Allemanha. Divisões e subdivisões d’ella. A theologia hegeliana. Descredito geral d’essa doutrina.--A influencia dos _grandes homens_ não explica a historia. Os grandes homens não dirigem o movimento social, apenas influenceiam a sua intensidade. Idéas de Herbert Spencer sobre a theoria dos grandes homens. Critica d’essas idéas.--A _providencia_, deducção racional da idéa de Deus, não dá a explicação scientifica do universo. Doutrina da Egreja Catholica. Theodicêa de Kant. O livro de Job e as idéas do philosopho allemão. Como H. Spencer concilia a religião com a sciencia. Refutação de Spencer por E. Littré. A nossa opinião.--Se existe uma formula, a que esteja subordinada toda a sociologia. Resposta negativa.--Augusto Comte e a _lei dos tres estados_. Argumentos contra ella de Littré, Wyrouboff e Huxley.--A philosophia de Spencer. Exposição e critica d’ella. Base hypothetica do systema de Spencer, e caracter empirico da sua lei de _evolução.--O transformismo_ de Darwin. Esta doutrina na biologia e na sociologia. Bagehot e o seu transformismo applicado á historia. A porção de verdade que ha na hypothese transformista.--Fundo commum dos systemas criticados: a experiencia é o methodo da sociologia; esta sciencia tem a biologia por antecedente necessario.--Situação politica e social do Occidente. Pangermanismo e panslavismo. A _lei da extensão das raças_, applicada á Russia e á Allemanha. Perigos para as nações neo-latinas. A constituição scientifica da sua politica é o unico meio de os evitar. Conclusão 1-66 CAPITULO I =Summario.=--A questão da _extensão do suffragio_ é actual e difficil. Data da revolução franceza de 1848 a sua maior importancia prática, mas a origem d’ella, no ponto de vista moderno, vem de 1790. Summula da legislação revolucionaria de 1780 a 1793. Napoleão III e o suffragio universal. Corrupção politica do segundo imperio. Juizo de E. Olivier.--Proudhon e o regimen representativo. Argumentos de Proudhon contra elle, e contra os systemas de _legislação directa_, propostos por Considérant, Rittinghausen e Ledru-Rollin. Porque não discutimos a doutrina de Proudhon.--A metaphysica na questão do suffragio: Rousseau, Diderot, Royer-Collard e Guizot. Antimonias irreductiveis nos systemas d’estes philosophos. O suffragio é um facto, não é uma theoria. Genese historica d’esse facto desde a organisação politica de Athenas até aos nossos dias.--Assim considerado o suffragio, a que condições deve satisfazer para ser valido e legitimo. Se a instrucção resolve opportuna e efficazmente o problema. Resposta negativa. Idéas de Laboulaye, S. Mill e Littré. Opinião de Spencer sobre os effeitos moraes da educação.--A instituição do suffragio só é possivel, dadas estas duas cousas: a mais larga descentralisação administrativa, e a sensata combinação das duas fórmas do voto, directa e indirecta. Opiniões de Wirouboff, de S. Mill e de E. Naville. Valor logico e discussão critica d’estas duas objecções: a descentralisação não a improvisa a lei, fórma-a a historia,--o suffragio indirecto repugna ao genio da democracia. Conclusão 67-104 CAPITULO II =Summario.=--A representação politica deve ser proporcional. Demonstração directa d’esta these pelos principios fundamentaes de Direito Publico.--Erro dos que confundem a lei da _maioria_, applicavel ás assembléas deliberantes, com a lei da _proporcionalidade_, applicavel aos corpos eleitoraes. Este erro no nosso parlamento. As minorias, como garantes dos interesses nacionaes nas assembléas politicas. Perigos que correm os governos exclusivistas com as suas maiorias.--É insensato o argumento dos que menospresam a representação proporcional com o fundamento de que as minorias _sempre teem alguma representação_. Prova d’isso.--Em muitos casos o systema vigente, julgando servir as maiorias, sacrifica-as. Demonstração.--Consequencias immoraes do actual systema. É elle a causa das abstenções politicas: testemunhos, em relação á França, de H. Lasserre, Wyrouboff e Aubry-Vitet. Imprime ao exercicio dos direitos politicos o caracter odioso das luctas pessoaes. Sacrifica ás mediocridades os homens de valor: o exemplo dos Estados Unidos, adduzido por Stuart Mill. Força a colligações deshonrosas: testemunho de Borély.--Historia da representação politica proporcional. O estudo e a instituição d’este regimen na França, na Suissa, na Dinamarca, na Inglaterra, em alguns estados do Norte-Americano, no Brazil, na Hespanha e em Portugal. Conclusão. 105-136 CAPITULO III =Summario.=--Systemas da representação proporcional. É impossivel a sua exacta classificação. A de E. Naville, inacceitavel.--Systema da _pluralidade simples_, de E. de Girardin. É irrealisavel. Variante d’este systema devida ao sr. de Layre.--Systema eleitoral _Hare-Andrae_. Differenças entre a lei dinamarqueza e o projecto de Th. Hare; razão d’ellas. Principaes disposições da lei dinamarqueza de 1867. Variantes d’este systema por Aubry-Vitet e pelo sr. bispo de Vizeu. Principaes disposições do projecto de lei portugueza de 12 de dezembro de 1870. Objecções contra o systema Hare-Andrae; sua discussão critica.--Systema do _voto cumulativo_. Sua perfeição theorica e seus defeitos praticos. Alguns factos relativos á pratica d’este systema na Inglaterra e na America.--Systema do _voto limitado_ ou das _listas incompletas_. É arbitrario no seu fundamento; confirmação historica dos inconvenientes d’este systema previstos por Morin em 1867. Em casos normaes, um terço dos eleitores póde ser inteiramente sacrificado. Adduz-se um calculo comprovativo d’isto. Este systema no Brazil e na Hespanha. Extractos da lei brazileira e da lei hespanhola. Variante do duque d’Ayen.--Systema de _Th. Furet_. Exposição e critica. É engenhoso, mas improporcional nos seus resultados e arbitrario na sua base.--Systema do _suffragio uninominal_. Offerecido para remediar os defeitos do processo Hare-Andrae, não os remedeia, aggrava-os. Demonstração.--Indicação do systema que acceitamos por mais racional e mais pratico. Transição para o capitulo seguinte 137-168 CAPITULO IV =Summario.=--O _projecto definitivo da Associação reformista de Genebra_, segundo a exposição que d’elle faz Jules de Smedt. Influencia d’aquelle projecto no nosso parlamento. As propostas de lei do sr. conselheiro J. Luciano de Castro. Em que consiste, fundamentalmente, este systema eleitoral.--Modificações introduzidas pelos srs. conselheiro Luciano de Castro e dr. Barbosa Leão no projecto da Associação de Genebra; sua discussão critica.--Se o eleitor, no systema sujeito, póde escrever menos nomes que os da sua _lista typo_, e tambem se póde varial-os. A nossa opinião.--Hypothese de apparecer um nome repetido em algumas listas. Se é justo que lhe sejam attribuidos sómente os suffragios da lista mais votada.--Apesar das suas imperfeições, o projecto da Associação de Genebra é acceitavel. Razões d’isso. Conclusão 169-186 ERROS MAIS NOTAVEIS Pag. Linh. Erros Emendas 3 28 [1] Idée [2] Idée 14 8 fondametale fondamentale 16 26 No primeiro caso N’este caso 40 24 d’uma intenção d’uma intuição 55 5 teem tem 57 22 pensa pense 58 1 devida devidas 64 5 Vera Sanoulitch Vera Zassoulitch 78 18 paradoxamente paradoxalmente 94 14 da França na França 96 22 exercio exercicio 97 15 concelhios e districtaes concelhios, e ainda districtaes 132 3 procedeu precedeu 135 18 (1368) (1868) 154 17 Lord lord 158 14 prcvincial provincial *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PRINCIPIOS E QUESTÕES DE PHILOSOPHIA POLITICA (VOL. 1 OF 2) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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