The Project Gutenberg eBook of O sangue

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Title: O sangue

Author: Camilo Castelo Branco

Release date: April 28, 2023 [eBook #70664]

Language: Portuguese

Original publication: Portugal: Parceira Antonio Maria Pereira, 1907

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O SANGUE ***

COLLECÇÃO ECONOMICA

Volumes de in-16.º, de 240 a 320 paginas


ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES

A 100 réis o volume (pelo correio 120 réis)


Eis os titulos dos ultimos volumes publicados:

N.º 21—Forte como a morte, por Guy de Maupassant.
* N.º 22—A alma de Pedro, de J. Ohnet.
N.º 23—Camilla, de Guérin-Ginisty.
N.º 24—Trahida, de Maxime Paz.
N.º 25—Sua Magestade o Amor, por A. Belot.
N.º 26—Magdalena Férat, por Emilio Zola.
N.º 27—Os Reis no exilio, por A. Daudet.
N.º 28—Divida de odio, por Jorge Ohnet.
N.º 29—Mentiras, por Paul Bourget.
N.º 30—Marinheiro, por Pierre Loti.
N.º 31—A montanha do Diabo, por Eugenio Sue.
N.º 32—A Evangelista, por A. Daudet.
* N.º 33—Aranha Vermelha, por R. de Pont Jest.
N.ºˢ 34 e 35—Odio antigo, por Jorge Ohnet.
N.º 36—Parisienses!... romance, por H. Davenel.
N.º 37—Ao entardecer!... rom., por Iveling Ramband.
N.º 38—A confissão de Carolina, romance.
N.º 39—Um casamento no mosteiro, por Alfredo Assolland.
N.º 40—Os Parias, original de Francisco da Rocha Martins.
N.º 41—O abbade de Favières, romance, por J. Ohnet.
N.º 42—A agonia de uma alma, romance, por Ossip Fchubin.
N.º 43—Memorias d’um burro, por Madame Ségur.
N.º 44—A nihilista, por Catulle Mendés.
N.º 45—O grande Industrial, por George Ohnet.
N.º 46—Morta d’amor, por Albert Delpit.
N.º 47—João Sbogar, por Carlos Nadier.
N.º 48—Viagem sentimental, por Sterne.
N.º 49—O milhão do tio Raclot, por Emile Richebourg.
N.º 50—A confissão de um rapaz do seculo, por Musset.
N.º 51—O romance de um principe, por Pierre de Lano.
N.º 52—O castello de Lourps, por J. K. Huysmans.
N.º 53—Amor de Miss, por J. Blain.
N.º 54—A sogra, por Dubut de Laforest.
N.º 55—Colomba, por Próspero Merimée.
N.º 56—Katia, pelo Conde Leon Tolstoï.
N.º 57—Alma simples, por Dostoiewsky.
N.º 58—Duplo amor, por J. H. Rosny.
N.º 59—Contos fantasticos, por Hoffmann.
N.º 60—A princeza Maria, por Lermontoff, traducção de Alberto de Oliveira.
N.º 61—Rosa de maio, por Armand Silvestre.
N.º 62—Manon Lescaut, pelo Abbade Prevost.
N.º 63—O romance do homem amarello, (costumes chinezes), pelo General Tcheng-Ki-Tong.
N.º 64—A dama das violetas, (imitação), por F. Guimarães Fonseca.
N.ºˢ 65 e 66—Nemrod & C.ª, por J. Ohnet, traducção de Luiz Cardoso.
N.º 67—Prisma de amor, por Paul Bonhome.

Os vol. com este signal * estão esgotados mas vão ser reimpressos.


Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA


VULGARISAÇÃO DOS MELHORES LIVROS

DAS

LITTERATURAS PORTUGUESA E ESTRANGEIRAS


Romances, Contos, Viajens, Historia, etc., etc.


Volumes in-8.º de 160 a 200 paginas, em corpo 8 ou 10, excellente edição, em optimo papel.

Preço de cada volume 200 réis brochado, ou 300 réis elegantemente encadernado em percalina.

Para as provincias accresce o porte do correio, 20 réis cada vol.

Eis os titulos dos ultimos volumes publicados:


N.ºˢ 20 e 21—A Irmã da Caridade, por Emilio Castellar, traducção de L. Q. Chaves.
N.º 22—Migalhas de historia portugueza, por P. Chagas.
N.º 23—A Cruz de brilhantes, por A. Campos.
N.º 24—Contos, por Affonso Botelho.
N.º 25—Contos phantasticos, por Theophílo Braga.
N.º 26—O mysterio da estrada de Cintra, por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão.
N.º 27—O naufragio de Vicente Sodré, romance historico de Pinheiro Chagas.
N.º 28—Vida airada, por Alfredo Mesquita.
N.º 29—O Bacharel Ramires, por Candido de Figueiredo.
N.ºˢ 30 e 31—Amor á antiga, romance de Caïel.
N.º 32—As Netas do Padre Eterno, por Alberto Pimentel.
N.º 33—Contos, por Pedro Ivo.
N.º 34—O correio de Lyão, por Pierre Zaccone.
N.º 35—Vida de Lisboa, por Alberto Pimentel.
N.º 36—Historias de Frades, por Lino d’Assumpção.
N.º 37—Obras primas, por Chateaubriand.
N.º 38—O Exilado, romance historico, por Mauricia C. de Figueiredo.
N.º 39—Poema da Mocidade, por Pinheiro Chagas.
N.ºˢ 40 e 41—A vida em Lisboa, por Julio Cesar Machado.
N.ºˢ 42 e 43—Espelho de Portuguêses, por Alberto Pimentel.
N.º 44—A Fada d’Auteuil, por Ponson du Terrail, traducção de Pinheiro Chagas.
N.º 45—A volta do Chiado, por Beldemonio (Eduardo de Barros Lobo).
N.º 46—Séca e Méca, por Lino d’Assumpção.
N.º 47—Ninho de guincho, por Alberto Pimentel.
N.º 48—Vasco, por Arthur Lobo d’Avila.
N.º 49—Leituras ao serão, por Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro.
N.º 50—Luz coada por ferros, por D. Anna Augusta Placido.
N.º 51—A flôr secca, por M. Pinheiro Chagas.
N.º 52—Relampagos, por Armando Ribeiro.
N.º 53—Historias Rusticas, por Virgilio Varzea.
N.º 54—Figuras Humanas, por Alberto Pimentel.
N.º 55—Dolorosa, por Francisco Acebal, traducção de Caïel.
N.º 56—Memorias de um Fura-vidas, por Alfredo Mesquita.
N.º 57—Dramas da Côrte, por Alberto de Castro.
N.º 58—Os Mosqueteiros d’Africa, por J. da S. Mendes Leal.
N.º 59—A divorciada, por José Augusto Vieira.
N.º 60—Phototypias do Minho, por José Augusto Vieira.


OBRAS

DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO


EDIÇÃO POPULAR


LIX

O SANGUE


VOLUMES PUBLICADOS

N.º 1—Coisas espantosas.
N.º 2—As tres irmans.
N.º 3—A engeitada.
N.º 4—Doze casamentos felizes.
N.º 5—O esqueleto.
N.º 6—O bem e o mal.
N.º 7—O senhor do Paço de Ninães.
N.º 8—Anathema.
N.º 9—A mulher fatal.
N.º 10—Cavar em ruinas.
N.ºˢ 11 e 12—Correspondencia epistolar.
N.º 13—Divindade de Jesus.
N.º 14—A doida do Candal.
N.º 15—Duas horas de leitura.
N.º 16—Fanny.
N.ºˢ 17, 18 e 19—Novellas do Minho.
N.ºˢ 20 e 21—Horas de paz.
N.º 22—Agulha em palheiro.
N.º 23—O olho de vidro.
N.º 24—Annos de prosa.
N.º 25—Os brilhantes do brasileiro.
N.º 26—A bruxa do Monte-Cordova.
N.º 27—Carlota Angela.
N.º 28—Quatro horas innocentes.
N.º 29—As virtudes antigas—Um poeta portuguez ... rico!
N.º 30—A filha do Doutor Negro.
N.º 31—Estrellas propicias.
N.º 32—A filha do regicida.
N.ºˢ 33 e 34—O demonio do ouro.
N.º 35—O regicida.
N.º 36—A filha do arcediago.
N.º 37—A neta do arcediago.
N.º 38—Delictos da Mocidade.
N.º 39—Onde está a felicidade?
N.º 40—Um homem de brios.
N.º 41—Memorias de Guilherme do Amaral.
N.ºˢ 42, 43 e 44—Mysterios de Lisboa.
N.ºˢ 45 e 46—Livro negro de padre Diniz.
N.ºˢ 47 e 48—O Judeu.
N.º 49—Duas épocas da vida.
N.º 50—Estrellas funestas.
N.º 51—Lagrimas abençoadas.
N.º 52—Lucta de gigantes.
N.ºˢ 53 e 54—Memorias do carcere.
N.º 55—Mysterios de Fafe.
N.º 56—Coração, cabeça e estomago.
N.º 57—O que fazem mulheres.
N.º 58—O retrato de Ricardina.
N.º 59—O sangue.
N.º 60—O santo da montanha.


CAMILLO CASTELLO BRANCO


O SANGUE

ROMANCE

Imagem decorativa

TERCEIRA EDIÇÃO

Imagem decorativa

1907


Parceria Antonio Maria Pereira
Livraria editora e Officinas Typographica e de Encadernação
Movidas a electricidade
Rua Augusta—44 a 54
LISBOA


1907


OFFICINAS TYPOGRAPHICA E DE ENCADERNAÇÃO

Movidas a electricidade
Da Parceria Antonio Maria Pereira
Rua Augusta, 44, 46 e 48, 1.º e 2.º andar


LISBOA


[Pg 5]

INTRODUCÇÃO

—Como tu estás conservado, homem!

Exclamou, n’um d’estes dias, o meu amigo Antonio Joaquim, encarando comigo, na revolta d’uma esquina.

—Nem pés de gallinha, nem calvo, nem bigode grisalho, os dentes todos!—proseguiu elle, encruzando os braços sobre a placida cornija do abdomen.

«Nem sequer duzentos kilos de toicinho, envolucro sujo com que a natureza veste os seus filhos maiores de quarenta annos, para que o alfaiate não possa jámais embonecal-os com as graças seductoras d’um tisico sorvido pelos vampiros do amor!... És invejavel! Pois convence-te de que és velho!

—Vinte annos ha que eu me convenci, amigo Antonio. Passados mais alguns, morri. Hoje, o que vês n’este arcaboiço, é uma alma insepulta e penada que se offerece penitente e docil ás tuas injurias. Não espremas, comtudo, a esponja, meu amigo. Sabe que todas as passadas,[Pg 6] que dou, vão na vereda escabrosa do meu calvario...

—Devo prevenir-te que não venho disposto para fazer via-sacra—atalhou o meu velho amigo.—Se vaes até ao calvario, faz lá recommendações ao mau ladrão, e diz-lhe que, se florescesse em Portugal, mil oitocentos e trinta e cinco annos depois, seria visconde de Gestas, visto que elle se chamava Gestas. Diz tambem a Dimas, ao bom ladrão, que os do nosso tempo todos são bons como elle, e por isso todos se salvam. E, se quizeres questionar com algum dos apostolos, caso lá os topes, diz-lhes que, presentemente, a gente graúda, á imitação de Christo, considera os bons ladrões dignos do céo; e que, desde o facto algum tanto reparavel de ser perdoado um salteador com prejuizo de terceiro, todos os salteadores «de sobrado alto», como lhes chama a Arte de furtar, são, sobre perdoados, honrados,—o que até certo ponto é christianismo progressivo.

—Então, como te vae?—atalhei eu, cortando a insulsa calumnia apontada ao brioso peito de muitos dos meus melhores amigos.

—Vae-me bem, não vês? Tenho esta grande barriga em que está sepultado o melhor do meu eu subjectivo, e tenho gôta n’este joanete do pé direito. Tu, pelos modos, és alma penada, e eu sou alma despennada, que é peor. Tu ainda sobes ao calvario e respiras ar desafogado, em quanto eu a custo me desatasco da lama. Em summa, estou velho...

—E rico?

[Pg 7]

—Tambem.

—E feliz?

—Feliz como um cerdo amarrado com uma corrente de ouro. Tu não sabes ainda o que é a felicidade da pobreza, homem! Não soubeste ainda abrir o thesouro em que a Providencia divina te remetteu o arnez impenetravel aos golpes da desgraça...

—Não sei... Terei eu lá em casa isso?!

—Tens, ingrato, se tens!... É o trabalho.

—Ah!

—Esse ah! é alvar. O trabalho é como aquelle anjo que em fórma de pomba pairava sobre a face de Santo Adelino adormecido, para que os raios do sol não lhe acordassem os sentidos e a consciencia da dôr. O trabalho é um absintho celestial, que suavemente embriaga e entorpece as faculdades cognoscitivas atormentadoras do infeliz ocioso. O trabalho é a compensação da pobreza...

—E a riqueza que é? uma calamidade que dispensa a pomba de Santo Adelino ... não é?

—Se alguem ha ahi, até certa idade, verdadeiramente feliz por ella,—o que não creio—a riqueza é um abutre cruelissimo que principia a espicaçar o rico, assim que o espelho, e a dispesia, e as insomnias, e a indifferença das novas, e a consideração das velhas, e o commedimento dos rapazes em sua presença se conjuram para lhe dizer: «envelheces». Aqui tens o verdugo, que dá o laço ahi pelos quarenta e cinco annos, e aperta e arrocha, até aos setenta, até aos oitenta, prolongando-lhe o[Pg 8] supplicio, ao apuro de lhe fazer invocar a morte, execrar o ouro, amaldiçoar os homens e blasfemar de Deus.

—E que me dizes do pobre que, na tal idade das insomnias e dispepsias, carece de saude para o trabalho e do trabalho para o pão de seus filhos?...

—Eu te digo...

—Podes responder d’uma assentada a outra pequena duvida: se será mais infeliz o rico enfermo rodeado de filhos fartos, do que o pobre alanciado de suas dôres e dos olhos supplicativos de sua familia?

—Ahi vens tu com o estilo!... Se entras a commover-me, cessa o nosso debate que é todo philosophico e ouro puro de Droz, de Franklin e d’outros moralistas...

—Que moralisavam os desgraçados lá d’entre as cortinas adamascadas dos seus gabinetes, tapetados de alcatifas de tres pêllos... Se elles fossem os desvalidos, quem lhes ensinaria a moral da paciencia?

—Socrates, Philo, Jesus Christo, João Jacques Rousseau...

—Que sacrilega camaradagem!... Rousseau havia de ensinar os paes pobres a engeitar os filhos... Meu caro Antonio Joaquim, rico sei eu que estás; mas a tua philosophia não é a peça mais valiosa que possues. Eu não sei o que póde ensinar-me Socrates nem Philo. De Christo sei tres palavras em latim e espero que no outro mundo os anjos m’as decifrem. Beati qui lugent «felizes os que choram» disse o amigo dos pobres. Como ninguem o tinha dito, nem escripto, nem pensado, a interferencia da divindade na desprezada condição dos infelizes[Pg 9] começou na hora em que foram ditas as palavras «felizes os que choram». E quem as disse não podia ser mero homem... Em summa, se queres consolar algum engeitado da devassa fortuna, não lhe reprezes as lagrimas com o dique da philosophia; deixa-o chorar. Lá estão as estrellas que saem fóra do céo para levarem ao seu creador a relação das agonias que gemem de noite não vistas nem escutadas de alguem.

—Estás comigo...

—Mas não estou com o teu Rousseau.

—O meu Rousseau... não lhe chames meu, que eu não o tenho nem o li; citei-t’o por me parecer incrivel que o não tivesses lido, andando elle nos alforges de todos os fisicos que ungem de unguentos a lepra da humanidade. Pois tu imaginas que eu leio coisa nenhuma? Faz-me justiça, se queres que eu admire as tuas novellas sem as lêr... A proposito de novellas, lembrei-me ha dias de ti, n’um lance que me pareceu original...

—Um lance original!...—atalhei eu.—Coisa que dê um livro original!?

—Um livro? isso não sei; mas, se é verdade o que ouvi dizer de ti...

—Que ouviste dizer de mim?...

—Franqueza! Tu não te offendes, nem eu sei se é louvor, se offensa a censura: ouvi dizer que fazias dez livros originaes de uma idéa sem originalidade nenhuma. Isto é verdade?

—Parece-me que sim... Eu tenho calculado que a Providencia me concedeu dez idéas: foi prodiga comigo.[Pg 10] Estas idéas repartidas por cincoenta volumes conferem com a conta da censura. Vaes tu dar-me uma idéa original: tenho que explorar no restante da vida... Então que foi?

—Não é historia que se conte na rua. Vem jantar comigo. Tu ainda comes? Ás almas insepultas é concedido errar, em volta da lagôa estigia d’uma terrina de sôpa do «hotel Francfort»? Não ha inconveniencia em que as almas penadas assimilem alguns bocados de boi assado? Se não ha, vem, puro espirito! Jantarás comigo alguns dias; e no ultimo, ao troar a trombeta clangorosa, os teus ossos, melhormente vestidos, não irão perfurando a encontrões as carnes dos que merreram gordos e apopleticos. Vens?

—Vou. Posso desde já dizer ao meu editor que descobri a idéa numero onze? E que a descobri na transparencia da tua cabeça?

—Isso não. Se por ahi desconfiam que tenho terço de idéa, minam-me os creditos. Deixa-me fruir a reputação que me faz insuspeito á confiança de pessoas com quem tenho negocios. A besta é coisa superiormente importante, desde que S. João, o apocaliptico, viu uma corpulentissima. Todas as bestas, mais ou menos aparentadas com a do vidente de Pathmos, trazem boa sina comsigo. Pelo menos, emquanto eu tiver que vender e comprar faz-me a mercê de me não vilipendiar com a denuncia de que eu te dei uma idéa... Lembra-te dos desgostos que me iam dando as tuas VINTE HORAS DE[Pg 11] LITEIRA. Foi preciso que o teu livro esquecesse para que eu recobrasse os creditos fallidos.

—E esqueceu já o meu livro?!

—Ora!... se esqueceu!... quando eu voltei ao Porto, quinze dias depois da publicação, apenas se lembrava d’elle consternadamente a empreza editora. Vamos jantar.

O repasto do hotel Francfort foi leve.

Quem come francezmente cria alma; corpo é que não.

Aquelle magro môlho em que boiam cascas farináceas não entulha os ductos da intellectualidade. A viscera vital por excellencia não escoiceia o visinho de cima como succede nos casos em que o esôfago arfa sacudido pelo estomago repleto de fibrina. O coração agita-se docemente quando o novo chilo se está elaborando.

Respeitado nos seus altos camarins e não azoado com o estridor dos dentes e das funcções digestivas, o espirito exercita-se em pleno gôso de suas faculdades.

A alimentação franceza póde levar á dispepsia, sem duvida; porém, o que no homem ha digno da maior estima e merecedor de toda a cautela, a alma, essa asseguro eu que não tem senão um passo a dar entre a cosinha franceza e a idealisação germanica. Se os jejuns espiritavam os cenobitas de Isthria até entreverem Deus por um postigo do céo, as aguas aromaticas das caçoulas do «hotel Francfort» subtilisaram o espirito do meu amigo Antonio Joaquim a uns altos devaneamentos, que me não pareciam d’elle nem dos seus annos.

Fallava-me da nossa mocidade como quem perdêra[Pg 12] com ella muitas coisas bellas e irreparaveis. Elle, que não tinha perdido senão o direito que todo o homem tem a fazer uma dada somma de tolices! Elle que, entre o berço e o thalamo, apenas teve tempo de crescer, engrossar e depôr no regaço de sua esposa um coração cheio de casta ignorancia das coisas boas e más d’este mundo!...

Que saudades do passado eram pois as d’elle? Seriam as dos prazeres não experimentados na idade competente, e dos quaes o coração vasio lhe estava agora, no declive da vida, a pedir contas? Assim como a demasiada cautela da dieta enfraquece o estomago e o predispõe á anemia e á enfermidade, porventura, guardadas as distancias que topograficamente não são grandes, ao coração minguado de alimentos fortes virão afinal as doenças resultantes da inactividade violenta a que o forçaram preceitos ou circumstancias?

Parece-me que sim.

De qualquer das maneiras, Antonio Joaquim, discorrendo tristemente sobre a brevidade da vida, e o reflorir da alma, quando o fogo da cabeça já não derrete a neve eminente de quarenta e tantos invernos, fez-me dó e ao mesmo passo desafiou-me a chorar com elle: situação ridicula que sustentamos por espaço de meia hora.

Elle adivinhava o que perdêra; e eu sabia o que tinha perdido; elle anhelava imagens lucidas que tardiamente se lhe espelhavam na alma; e eu tocava em mortalhas que se desfaziam em cinzas.

Estas angustias eram entremeadas com alguns tragos[Pg 13] ardentes de cognac, que mais me accendia no peito rebates de saudade de um tempo em que o absinto me era doce e refrigerante como a orchata e capilé d’estes meus caducos dias emplasmados em linhaça e refrigerados com soda-wather.

As lagrimas estancaram-se. E eu, para divertir o animo da inconsolavel tristeza, perguntei ao meu amigo:

—E a idéa original que me prometteste?

—Vou dar-t’a. O prefacio foi longo, mas ajustado ao assumpto. Fallei da nossa mocidade, porque a historia principia então. Ha vinte e dois annos que eu te conheci no theatro de S. João. Lembras-te?

—Muito. Quem fez as apresentações foi um meu contemporaneo, que vinha de Coimbra comigo. Chamava-se...

—Nicoláo d’Almeida; vinha com o acto do 4.º anno.

—Ainda vive?

—Vive morto.

—Como? Vive morto?!

—Lá chegaremos... Representava-se a Degolação dos Innocentes, e era um domingo de tarde...

—Bem me lembro—atalhei eu.

—Estás certo d’aquelle pedaço de omoplata de carneiro que caiu sobre ti d’um camarote de 3.ª ordem?

—Se estou!

—Muito folgo que te lembres. O Nicoláo apanhou-a do chão n’um lenço que levantou pelas pontas, e convidou-nos a seguil-o ao camarote onde o cordeiro, tambem[Pg 14] innocente, soffrêra as consequencias da degolação. Recordas?

—Mal. Ajuda a minha memoria que se está deliciando n’essas recordações liricas.

—Fomos e vimos uma familia de varios Herodes, descarnando as costellas da victima com um ranger de dentes bastante a justificar que ainda temos que farte sangue e queixos hellenicamente ruidosos, d’aquelles que Homero cantou. No camarote estavam, á primeira luz, varios sujeitos gordos e mulheres de condigno bojo que representavam em geral e cada qual em particular um curral de carneiros assados e digeridos. As esposas e filhas e irmãs, ou o que eram d’aquelles antropófagos, tinham as mantilhas penduradas dos cabides, dando ao interior do camarote um aspecto lugubre de ágape gentilica onde as victimas sacrificadas fossem logo comidas. Um dos sacrificadores, que parecia o mais auctorisado por ter em punho a cabeça meio descascada do cordeiro, suspendeu-se no lanço de a levar aos dentes engatilhados, e, arrotando, regougou:

«Os senhores que querem?!»

Nicoláo fez uma grave mesura, estendeu o braço para dentro com o lenço pendurado e respondeu solemnemente:

—Foi d’este camarote, sem duvida, que uma das senhoras deixou cahir a parte respectiva do bôdo?

—Do bode??—perguntou o chefe dos cannibaes, forçando com um arranco interior a descida do bocado que lhe entopia os gorgomilos.

[Pg 15]

—Do bode,—tornou Nicoláo—se vossa senhoria quer que seja bode, carneiro, porco-espinho ou como é que deva chamar-se o animal comido e ex-proprietario d’esta pá.

—Foi o Felizardo que deixou cair...—disse uma creatura femeal, relançando a vista repreensiva sobre o sujeito que se chamava Felizardo.

No entanto, o nosso amigo, com ademans de quem entrega uma luva que alguma formosa senhora lhe deixou feliz e acintemente cair ao alcance da mão, acercou-se d’uma das trez senhoras esphericas, e deu ares de lh’a querer depositar no regaço, largando trez pontas do lenço.

—Ai, credo!—exclamou a velha sacudindo as mãos e encolhendo contra o tabique a parte proeminente da região umbilical, expressões que deves empregar, se escreveres a historia, por que o termo do uso commum é d’aquelles que tresandam a theatro anatomico. Lembras-te d’isto?

—Como se o estivesse vendo—confirmei eu alanciado de saudades.—Até me recordo de uma bellissima rapariga que estava n’esse camarote.

—Bem sei eu por quê... Era ella uma das formosuras que ficam impressas na alma, atravez de annos e seculos, como as virgens de Urbino ou as outras imagens menos virgens de Ticiano. Que sabes tu d’essa mulher que viste ha vinte e dois annos?

—Nada: creio que nunca mais a encontrei... decerto não. Apenas me lembro de que Nicoláo d’Almeida[Pg 16] me escreveu para a provincia, dias depois do episodio do carneiro, e me dizia que estava apaixonado pela mulher divina que comia carneiro. Não dei peso á linguagem chula da noticia, nem tornei a vêr Nicoláo d’Almeida. Alguem me disse depois que elle vivia relegado no seu solar do Alto Minho, e que não concluíra a formatura. Ha mais de quinze annos que ninguem me fallou d’elle. Agora me dizes tu que o Nicoláo vive morto... Coitado! Queria ainda vel-o n’esse estado extravagante!... Começo a crer que me dás uma idéa original...

—Lá chegaremos... O caso é que te recordas bem da menina que se escondia entre as mulheres gordas com uma andorinha entre trez peruas?

—Sim.

—Pois então ahi tens um dos personagens componentes da idéa original que te offereço.

—Quem? a tal?! Aquella familia como original podia figurar nas exposições fotograficas; mas considerada idéa não me daria para um capitulo. Pelo que vejo, a idéa offerecida com tão magnanimo desinteresse é a pá descarnada do carneiro!...

—Principia ahi pontualmente. Olha que começos teve uma tragedia obscura!... Continuemos as reminiscencias de 1845. Nicoláo, ao dar de rosto na mulher que se retraía de ser vista, quedou-se dois segundos a a contemplal-a, perdeu o engraçado atrevimento, e saíu do camarote canhestramente como se fosse corrido. Quando desciamos a platéa, disse elle: «Eu vi aquella[Pg 17] mulher em Caminha ha anno e meio; e, desde que a vi, outra imagem não pude mais vêr em meus sonhos, nem encontrei mulher que m’a fizesse esquecer. Aquella é a minha inevitavel fatalidade!»

—D’isso é que eu de todo me não recordo.

—Talvez lh’o não ouvisses. Entramos á platéa. Nicoláo nunca mais desfitou a vista do camarote da 3.ª, sem que visse a linda cabeça de Thomazia (chamava-se Thomazia) por entre os volumosos commensaes. Saimos ao vestibulo, concluida a tramoia de Herodes, e esperamos que ella descesse. Tu já tinhas saído no intervallo do 3.º acto, e por isso não assististe a um rasgo de generosidade com que pódes fechar originalmente a introducção do teu romance.

Chovia a odres. A familia carnivora esperava no pateo que estiasse a chuva cada vez mais torrencial. Nicoláo d’Almeida saíu açodado dizendo-me que o esperasse. Guiado prosperamente pelo amor, foi topar um carroção que despejava as ultimas dez pessoas da terceira familia em uma casa da rua de Santo Antonio. Offereceu ao carreteiro porção fabulosa de pintos, e conduziu á porta transversal o carroção que, debaixo das cataratas do céo, parecia a Arca Santa no trigessimo nono dia do diluvio universal. Avisinhou-se cortezmente o bacharel da familia que se aconchegava como rebanho que farisca lobo, e disse voltado a um dos trez homens gordos:

—Tomo a liberdade de offerecer a vossas senhorias um carroção que os conduza a sua casa.

[Pg 18]

—Este e o do osso...—disse uma das gordas á orelha da outra.

A menina achegou do cóllo a mantilha e baixou os olhos divinisados de pejo.

O sujeito, a quem Nicoláo se dirigira, respondeu bem-humorado:

—Não é de desagradecer o favor, porque chove que tem diabo, e nós moramos nas Cangostas.

O nosso amigo saíu debaixo do alpendre e disse ao boieiro: «Leva estes senhores á rua das Cangostas.»

E, cortejando o rancho, saíu comigo pela outra porta, murmurando: «Que mulher!»

—Bem!—exclamei eu, já temos dois não vulgares elementos para um romance ideado originalmente; a saber: a pá d’um anho e um carroção! Duas especies raras!


Antonio Joaquim proseguiu até noite alta a historia.

Devo confessar abertamente que o enredo, confiado a compositor de engenho affeito a immolar a verosimilhança para comprazer a dois ou trez leitores, dava largas a fantasias originaes. Na minha officina, por mais que a Europa se queixe, as obras hão de sair sempre fundidas das fôrmas da verdade. Não importa que o verdadeiro orce pelo fastidioso, e as maravilhas da invenção lhe ganhem no stadío da popularidade. N’um paiz de gente que lê sempre, como este em que os paes se reproduzem para ter o gosto de dar leitores á republica litteraria, ha partidos para todas as bandeiras da milicia intellectual. Eu, de mim, sem invejar a voga dos meus[Pg 19] visinhos, conto sempre com consummidores que vencem em sêde de lêr a temeraria affoiteza dos editores. Escrevo para a gente séria. O meu partido é o da gente séria. Tenho por mim todos os amigos da verdade que assignam as correspondencias das gazetas. Para estes e outros inéditos é que eu vou concertar os apontamentos que hontem escrevi, ao compasso da narrativa do meu amigo Antonio Joaquim, a quem deixo aqui estampada a minha eterna gratidão.


[Pg 21]

O SANGUE


CAPITULO I

Argumento

Fundação da rua das Cangostas, no Porto; origem dos Barros, e sua descendencia até ao seculo XIX. Diz-se quem comia o anho no theatro de S. João e outrosim quem era a menina que tolheu o espirito de Nicoláo. Dá-se noticia de Innocencio. Virtudes do negociante, e suas duvidas a respeito da liberdade. Não entende o que seja diplomacia, e representa o fervor constitucional dos seus contemporaneos. Como Gervasio José se bateu para que o não roubassem, e dá assim a razão por que se bateram muitos que foram liberaes depois. Lagrimas de creança. A razão por que os orfãosinhos não choram.

Quando os frades de S. Domingos, do Porto, no primeiro quartel do seculo XVI offerecêram terreno da sua cerca aos portuenses que quizessem edificar, muitos aceitaram a liberdade dos dominicanos, e para logo se formou a rua das Cangostas. Um dos fundadores da nova[Pg 22] rua chamava-se Pero Barrios, judeu oriundo de Castella, e official de tecidos de prata e ouro.

Os filhos de Pero, indecisos entre Moisés e Jesus, inclinaram-se á religião que mais os caucionava de sustos e desfalques no seu prosperado commercio. Seguiram pontual e ostensivamente o rito romano, guardando em secreto os preceitos d’uma religião comesinha que ainda hoje nos parece ser a predominante na Europa: a religião da absoluta indifferença por todas.

D’esta arte, a familia Barros, já aporteguezado o appellido hespanhol, fruia socegadamente os seus haveres mediante as toleraveis incommodidades de ir, cada quaresma, confessar culpas veniaes aos dominicos, de presentear o prior com algumas varas de galão de ouro para guarnecer os paramentos sacerdotaes, acudir aos jubileus, aos lausperennes, e á missa nos dias santos com fervor edificativo.

Estes trabalhos eram suaves e bons de levar comparados aos dos contumazes e boçaes hebreus, que, por amor das tabuas da lei, se deixavam levar de casa á mesa do santo officio, da mesa ao carcere, do carcere á polé, da polé ao templo de Jesus misericordioso, do templo ao tribunal civil, e d’aqui á fogueira. O filho de Jethro, por optimo legislador e subtil embaidor que haja sido, realmente não valia tanto.

Outro Pero de Barros, bisneto do primeiro morador na rua das Cangostas, reedificou a casa de seu bisavô, fazendo-lhe portas voltadas á rua, feitio que a camara do seculo XVI não consentira sem pleito aos primeiros[Pg 23] edificadores, como se depreende de um documento ainda archivado no cartorio municipal.[1]

[1] Veja o LIVRO 1 DAS CHAPAS, fl. 314. A camara queria perceber fôro das casas que tivessem portas para a rua, e embargava a obra dos esquivos ao pagamento. Os frades ganharam o pleito, fazendo levantar os embargos e isentar os proprietarios.

Aquelle Pero de Barros era já abastado em 1700. Seus filhos levantaram mão da tecelagem de ouro e deram-se ao commercio de estofos chamados de Damasco. Em 1750 os netos do segundo Pero, já muito ricos, mercadejavam em vinhos, e possuiam grandes montados no Douro que plantavam de vinhaes, animados pelo trafego mercantil que respondêra cabalmente ás previsões do ministro de D. José I.

No primeiro quartel d’este seculo, os Barros eram contados entre os maiores proprietarios do Porto, e tinham largado todo o negocio, laborando tão sómente na cultura dos seus bens de raiz.

Dizia, em 1806, João Maria de Barros, representante dos antigos e já esquecidos israelitas de Cordova, que seu pae lhe deixára em dinheiro de contado quinhentos mil cruzados em ouro, estipulando-lhe que esta reserva a transmittisse intacta aos seus descendentes, com a obrigação restricta de darem este dinheiro para a reedificação de Jerusalem, se alguma hora os hebreus dispersos se congregassem e fintassem para renovar a cidade de Salomão, consoante o promettido pelos seus[Pg 24] profetas. Este pio legado acabou na pessoa de João Maria de Barros, em razão de lhe entrarem em casa os francezes invasores em 1808, e descobrirem debaixo d’um leito de páo santo o cofre ferrado com o recheio dos quinhentos mil cruzados, os quaes a esta hora constituem, em Pariz, a opulencia de alguma duqueza, filha do soldado, que roubou a casa da rua das Cangostas, e morreu general do imperio.

De João Maria ficaram trez filhas e trez filhos. O mais velho, Gervasio José de Barros, casou em 1820 com uma parenta. Os outros ainda em 1846 estavam solteiros, e de crer é que já não casassem, porque todos eram maiores de cincoenta annos, segundo me parecêram nos instantes em que os vi no camarote do theatro de S. João.

Esta era a familia que comia o carneiro assado, em quanto os algozes de Herodes afinavam os cutellos para a degolação dos quatorze mil meninos da Judéa, horror que parecia não pungir grandemente o coração d’aquella familia mais ou menos aparentada com os pequerruchos descabeçados.

No camarote, porém, estava uma formosa menina: d’essa vamos agora esclarecer os dois leitores que ainda não adormeceram.

Um capitão de infanteria n.º 18, aquartelado em Santo Ovidio, do Porto, teve de sua mulher uma filha em 1826.

A mãe da creancinha morreu de parto, e o capitão, com a filha ainda mal lavada nos braços, fazia grandes clamores á beira do cadaver da esposa.

[Pg 25]

A residencia da morta era fronteira á casa de Gervasio José de Barros. A senhora Thomazia, mulher do negociante de vinhos, ouvindo os gritos do attribulado viuvo, atravessou a rua com suas cunhadas, e foi topar com o espectaculo tristissimo. Queriam as boas creaturas consolar o viuvo, offerecendo-se a cuidar da creação da menina, se elle não tinha pessoas de familia que o fizessem com mais direito. O official, debulhado em lagrimas, confiou a filhinha á misericordia das trez senhoras e rogou á alma de sua mulher que pedisse a Deus as cobrisse de bençãos e prosperidades.

Quando o cadaver saíu com lustroso saimento á custa dos Barros, passou a creancinha para casa das bemfeitoras, e andou de cóllo para cóllo de todos, como se fosse da familia.

Thomazia, ao oitavo dia, foi ser madrinha da menina que se chamou tambem Thomazia; Gervasio foi o padrinho, e os irmãos vestiram opas na cerimonia. Foi dia de festa na casa; mas nem todos exultavam. O capitão baptisou tambem a filha com lagrimas, e não pôde engulir bocado do farto jantar, por que via defronte a janella da alcôva onde sua mulher expirára oito dias antes.

A este tempo, Gervasio José já tinha um filho de trez annos, chamado Innocencio. Quem embalava o berço de Thomazia era o pequenino; mas importava vigiar-lhe o zelo de adormecer á força a creança, porque elle, ás vezes, dobrava-se sobre o colchãosinho da pequena, e tanto se aconchegava para a beijar, que lhe magoava o rosto com o nariz um tanto judaico. As sete[Pg 26] pessoas da familia riam muito da asáfama do seu Innocencio á volta do berço, e parece que mais estremeciam a orfanada do amor maternal á medida que o menino se lhe ia mais afeiçoando.

O capitão Joaquim Alves Pinto, pae de Thomazia, foi desligado, no seguinte anno de 1827, como suspeito constitucional. O negociante levou-o para sua casa onde o agasalhou com tal alegria, que o favorecido com a hospedagem parecia elle. Entretanto, o official chorava secretamente a dependencia, e a quebra na carreira por onde esperava grangear dote para sua filha. Joaquim Alves, procedente de uma familia pobre de Monção, sentára praça em 1806, e alcançára nas bravas luctas de então o posto d’onde repentinamente fôra desapossado.

Conjurou-se com os revolucionarios na esperança de readquirir a patente. Foi um dos que levantaram o grito da revolta, em Aveiro, na manhã do dia 16 de maio de 1828, associado aos cidadãos, e officialidade de caçadores n.º 10. No mesmo dia, insurgiu-se no Porto infanteria 6 e outros corpos de diversas armas. D’aqui até á hora em que o Belfast se fez de vela para Inglaterra carregado de generaes e doutores, o capitão, ora esperançoso ora desalentado, exercitou a actividade de quem estava jogando o seu futuro e o da filhinha. Chegado o dia 3 de julho, e escondida nas brumas do oceano a náo que levava enrolada no porão a bandeira da liberdade, Joaquim Alves queimou as faces da filha com as lagrimas da desesperação, e pediu de joelhos, á beira do[Pg 27] berço onde ella dormia, e a rodeavam as senhoras lagrimosas, que lhe amparassem a desgraçadinha que nem já tinha pae. Todos lhe asseguraram o seu amor á menina e a certeza de que não sentiria a falta de sua mãe, ao mesmo passo que o negociante de vinhos lhe insinuava na algibeira um rôlo de peças, dizendo que lh’as pagaria, quando voltasse general.

O emigrado fugiu por Galliza e seguiu a sorte dos mais affoitos e constantes, bem que a levasse melhorada emquanto lhe durou a esmola do seu compadre.

Foi crescendo a menina acariciada por egual com Innocencio que a disputava aos braços da ama. Se a extremavam d’elle os corações dos paes, as exterioridades pareciam dizer que no affecto de familia os dois meninos eram irmãos.

De longe a longe, vinham noticias do emigrado: mas pedidos de novo emprestimo nunca vieram. O capitão de si pouco dizia: todo o seu lastimar-se era de saudoso da filha e da patria, para onde pedia a Deus monção de voltar, ainda que tivesse de despir a farda sem mancha e vestir a jaqueta de operario.

Consolavam-n’o as noticias idas do Porto. Gervasio com a sua linguagem de ouro em bruto levava-lhe a mal que elle se queixasse da fortuna, quando sua filha estava mimosa como se fosse irmã de Innocencio. «Saiba vocemecê—escrevia o bonissimo homem—que Thomazia já tem dote; tanto monta que o compadre venha general como tambor. Tenho no Douro uma quinta que me dá quarenta e cinco pipas de feitoria, e que[Pg 28] já cá em casa se chama a quinta da Thomazinha. Se vocemecê precisar de dinheiro, lá lhe irá. Faça de conta que é a filha que lh’o empresta do rendimento da quinta, etc.»

Voltou o repatriado entre os 7:500 da heroica expedição. Correu á rua das Cangostas com o alvoroço de quem antevia a morte na primeira batalha e receava não ter tempo de ver a filha. A menina, linda como os anjos que alguma vez se deixam ver n’aquella idade, tinha seis annos. O capitão vinha roto, empoado, sujo, encanecido, com as barbas grisalhas até meio do peito. A pequenita Thomazia, nos braços d’elle, chorava de medo, e limpava as faces que o pae lhe humedecia de lagrimas e arranhava com os bigodes. Alegria verdadeira, n’aquelle encontro, não a tinha ninguem. O dono da casa, lembrado da invasão dos francezes, enterrava o dinheiro e entrouxava as preciosidades para fugir. O dilemma que o apertava era que, se os liberaes lhe não saqueassem a casa, lh’a saqueariam os realistas.

—Tanto me faz a mim ser roubado por uns como por outros—dizia elle com admiravel lucidez de intelligencia.—Quem tem alguma coisa que perder vae-se pondo ao fresco. Pelos modos, os liberaes do Porto são os pobres sómente; que os ricos fogem todos. Um partido de pobres não ha de ir longe. Vocemecês, se veem todos vestidos n’este gosto, que remedio teem senão vestir-se sem pagar?—argumentava elle com logica de seu uso.—E quem não tem com que pagar, por mais honrado que seja, ha de ir roubar as coisas onde ellas estiverem.[Pg 29] Nada... Estou aqui, estou no Douro. Mal por mal, antes me quero de bem com oitenta mil homens e de mal com sete mil e quinhentos...

O capitão não estava para cathequisar correligionarios: a lembrança da Belfastada tolhia-lhe as molas da eloquencia; e o coração, todo embebecido na filha, apenas lhe dava um agro-doce de lagrimas que o bom do Gervasio não podia avaliar n’aquella cojunctura de medo aggravado pelo silencio do militar.

A menina, decorrida meia hora, familiarisou-se com o temeroso aspecto do pae, e já lhe respondia breve ás perguntas carinhosas. Não obstante, quando elle se retirou, receioso de quebrantar a disciplina, Thomazia voltou-se para as senhoras Barros, e disse, com certa tristeza, que seu pae era muito feio. A madrinha reprehendeu-a amorosamente, recommendando-lhe que lhe désse muitos beijos, quando elle tornasse.

A menina obedeceu com repugnancia, respondendo friamente aos afagos do pae, que, desde o dia seguinte, ficou hospedado em casa de Gervasio.

Mais tranquillo e animado, o capitão discursou largamente ácerca das esperanças bem fundadas da victoria das pequenas forças do imperador sobre o desorganisado exercito do infante. Justificou o acerto das operações com a certeza do auxilio de Inglaterra e França, onde diplomaticamente estava vencida a causa de D. Maria, provada a sua legitimidade á posse do throno de D. João VI.

O negociante não percebeu completamente o que vinha[Pg 30] a ser a victoria da diplomacia lá fóra, e a guerra tão desegual e mal principiada cá dentro. A juizo d’elle, seria melhor que as armas vencessem primeiro, e a diplomacia depois. Para em summa o dizer, o rico da rua das Cangostas esteve por um nada a perguntar se a diplomacia era alguma rainha que promettia vir com o seu exercito bater os miguelistas de cá, depois de destroçar os de lá. Absteve-se, porém, de revelar esta ignorancia desculpavel em sua vida alheia da terminologia das sciencias de governar, quando o capitão o allumiou dizendo-lhe que a diplomacia, no caso presente, valia mais do que um bom exercito; visto que as nações europeas, convencidas dos direitos da rainha, mandariam dinheiro e tropa engrossar as forças dos liberaes, isentando os cidadãos portuenses de pagarem a quem lhes defendessem as casas, fazendas e vidas.

Sem embargo d’este jacto de luz, Gervasio José enrugou o sceptico nariz, e murmurou:

—Assim será; mas então a diplomacia que mande quanto antes para cá dinheiro e tropa.

Depois da derrota de Souto-Redondo e da desanimação da casa Carbonell, de Londres, o descorçoamento dos liberaes era tal, que aos mais alentados se figurava a urgencia da capitulação, mórmente se o gabinete de Madrid ministrasse a D. Miguel munições e gente. Gervasio José de Barros, com a alma fria de morte e as faces amarellas de terror, perguntava entre colerico e sarcastico ao seu hospede:

—Então, senhor Alves, e a diplomacia? Esse diabo[Pg 31] vem ou que faz? Ora, meus amigos, estou na tinta a respeito de diplomacias. O que eu trato é de enfardelar outra vez e arranjar salvo-conducto. Tenha paciencia o senhor Alves. A afilhada vae comigo. Cá não n’a deixo eu; que a não criei para que a apanhe alguma bomba. Eu não quero saber d’isto. O partido liberal é uma sucia de pobretes que querem arranjar-se. Fazem muito bem; mas com o que meus avós ganharam não hão de elles medrar...

O capitão appellava da desacreditada diplomacia para o generoso animo de seu compadre, instando-o a que não désse exemplo do egoismo e da fuga aos seus pares na riqueza e no dever de auxiliarem humanamente a causa de todos os opprimidos da força, da jerarchia e do dinheiro accumulado em homens que não tinham mais alma que as suas burras de ferro.

O negociante, assim que visse chorar a esposa, levava logo o canhão da japona aos olhos. Lagrima da senhora Thomazia caía no coração do marido e ungia-lh’o de caridade e amor ao proximo. Tanto pôde a linguagem do capitão e o enternecimento da sua comadre, que logo d’alli Gervasio foi levar um grande donativo ao thesouro para as despezas da guerra.

Desde este dia, o indifferentista em politica transformou-se n’um dos melhores e mais liberaes defensores do Porto, animando os irresolutos da sua plana dinheirosa a contribuirem para a salvação commum, e assalariando os seus caseiros do Douro a virem e a trazerem comsigo braços para a defeza da liberdade.

[Pg 32]

Ao avisinhar-se o dia de S. Miguel de 1832, derramou-se no Porto a noticia de um ataque realista ás trincheiras todas, e logo se espalhou a ordem do dia do general sitiante na qual litteralmente se promettia aos soldados saque livre ás casas dos malhados.

Quem o diria? Em dia de S. Miguel, Gervasio de Barros abraçou a mulher, o filho e as irmãs, com olhos enxutos, e saiu para a bateria do Fojo com uma clavina ao hombro e duas pistolas nos bolços interiores d’uma jaqueta de pelles, obrigando os dois irmãos a seguirem-n’o, com estes brados que valem bem a melhor allocução militar de Cezar ou Bonaparte:

—Rapazes! aqui é fazer das tripas coração!

D’ahi a pouco, a esposa e irmãs do bravo saiam para os hospitaes conduzindo trouxas de ligaduras, fios, camisas e lençoes.

Apoz onze horas de combate, Gervasio e seus irmãos voltaram na chusma exultante dos vencedores; mas vinham tristes com o pó da batalha empastado mais nas lagrimas que no suor. O capitão Joaquim Alves Pinto era um dos setenta e sete officiaes prisioneiros e mortos; mas entre os ultimos é que o negociante viu o pae de Thomazia, no Carvalhido.

Proromperam em clamores as senhoras, estreitando aos seios a pequena, sem lhe dizerem que o pae morrêra. A menina chorava e tremia de medo, cuidando que os soldados atacavam a casa; que todos os dias sua madrinha a mandava rezar e pedir á Virgem que as livrasse do saque. Corrido mais d’anno é que Thomazia[Pg 33] teve discernimento para entender, sem que lh’o dissessem, que seu pae não era já d’este mundo.

Poucas lagrimas verteu, e essas chorou-as por imitação, vendo molhadas as faces das suas bemfeitoras, quando ella perguntou se o pae tinha morrido.

Que são lagrimas aos sete annos? Além de que, Thomazia não sentia a falta das caricias paternaes, nem a do pão, nem a do vestido.

A madrinha fez um gesto de desgosto quando a encontrou no mesmo dia a compor a trunfa d’uma moira de farrapos.

—Coitada!—disse ella entre si!—Que seria d’ella hoje, se Deus me não guiasse a casa da mãe, quando a morte lh’a levou! Cada vez te quero mais, innocentinha!

E animou-a como se fosse mister applacar-lhe as afflictas saudades do pae.

Pobres orfãos, vós não choraes em meninos, por que a vossa vez de chorar vem depois.


[Pg 34]

CAPITULO II

Argumento

João de Pinhel quer levar o rapaz para o Pará. Amores infantis de Thomazia e Innocencio. Idéas do brazileiro ácerca do casamento predestinado para creanças. Como a menina se fez linda, e não queria saber ler. Vê-se o que faz a vaidade e o que ella promette aos sete annos. Delicias de Gervasio José nas hortas do Reimão, onde correram os dias mais felizes da geração que vai acabando. Diz se que os peraltas do Porto exercitaram o seu tirocinio de elegancia nas merendas do linguado frito. Investidas dos cavalleiros portuenses ao coração virginal de Thomazia. Congrega-se a familia para casar Innocencio com ella. Vê-se que o rapaz era namoradiço, e o pae tanto ou que velhaco, sem desfazer na sua honradez commercial, cousa invulneravel no Porto. Receia o pae que o filho atire dois couces ao apparelho. Tendencias artisticas de Innocencio para desenhar narizes, e do mais que no capitulo se disser.

Quando Innocencio, filho de Gervasio, prefez doze annos, veio a Portugal um tio seu materno, estabelecido no Pará, solteiro e rico. Quebrantado pelas enfermidades do clima, Luiz de Pinhel, que assim se chamava o opulento fazendeiro de cacau, promettia pouca vida aos quarenta annos. Algumas melhoras cobrou com os ares[Pg 35] patrios, mas a sciencia futurou-lhe peorar e morrer, se voltasse ao Pará.

Não obstante, insistiu na ida para liquidar os seus haveres contados por centenas de contos, e pediu instantemente a sua irmã Thomazia que deixasse ir com elle o sobrinho Innocencio para quem estivera trinta annos amontoando os cabedaes já agora inuteis para si.

A resistencia foi energica e indelicada; mas, ao verem que Luiz de Pinhel desistia despeitado da benevola pretenção, convieram em consistorio os paes e tios que se deixasse ir o menino; que tanto montava acrescer-lhe ao seu dote de bons cincoenta contos o triplo d’esta quantia.

—De maneira, dizia o pae, que o nosso rapaz vem a ser o homem mais rico do Porto, e juntará a fortuna que teria, se os ladrões dos francezes lhe não roubassem ao avô quinhentos mil cruzados, não fallando no juro desde 1808 até hoje, que já lá vão vinte e oito annos. Vejam vocês p’ra onde isto deitava!

O rapaz, porém, não ia de vontade para o Pará. Cada vez que a pequenina Thomazia lhe dizia: «Então tu vaes-te embora, Innocencio?» o menino debulhava-se em lagrimas e dizia entre arrancos que era a mãe que o mandava. As senhoras presenciavam consternadissimas este lance, e não podiam ter o pranto.

Um dia chamaram ellas Luiz de Pinhel para espreitar como as duas creanças se abraçavam a soluçar. O tio condoeu-se, e disse muito commovido:

—Agora, minha irmã, sou eu que peço, e ordeno, se[Pg 36] fôr preciso. Innocencio não vae. Se eu morrer, cá lhe vem dar o que fôr meu; se eu viver, irá mais tarde, quando lhe chegar vontade de vêr mundo.

E chamando a si os pequenos disse-lhes cariciativamente:

—Brincae, meninos, brincae; que eu não te levo o teu amiguinho, Thomazia. Lá virá tempo em que a ambição ou o amor vos apartem...

Thomazia sorriu-se e levando o irmão de parte, segredou-lhe:

—Não sabes, Luiz, que muitas vezes a gente tem pensado em os casar? Estes já não se apartam...

—Isso é muito possivel; e, se elles vão n’este affecto, chegados á idade, não ha mais que leval-os á egreja; que bem casados levam elles já os corações. Mas olha, Thomazia, que não ha fiar n’estas affeiçõesinhas. Eu conheço alguma cousa o mundo, e por isso andei sempre por longe d’elle, e mettido cá no meu trabalho, por não saber em que havia de gastar a vida, que bem depressa gastei... Estas creanças que brincam, em começando a olhar seriamente uma para a outra, já não acham gosto ás brincadeiras da meninice. Depois, cada qual trata de procurar cousas e affeições novas, porque o coração humano é assim. O moço não tem o coração do menino, nem o velho o coração do moço, percebes? O que eu te quero dizer é que não vás tu por engano casal-os muito cedo, sem elles saberem o que fazem nem o que querem. É muito perigoso que, na idade de saberem o que são e hão de ser até á morte, se não submettam[Pg 37] ás obrigações para que a sua razão não foi consultada. Entretanto, Deus os faça tão bom homem e digna mulher como são bons e amigos em creanças.

O paraense foi-se embora com grande jubilo de Innocencio e Thomazia. Os paes do menino tambem exultaram, ficando-lhes a certeza da herança proxima ou remota.

Principiaram as aulas de Innocencio, e minguaram as horas da folia. O pequeno applicava-se ao estudo, e ia ensinando a Thomazia o que aprendia, já com certo aprumo e vaidade de preceptor. A menina entretinha-se com mediocre prazer nas praticas do alfabeto, e ia arguindo vocação negativa para cultivar o entendimento. Era a soberana ordem das cousas, raras vezes desconcertada. Chovia-lhe a natureza dons de infantil formosura, e dava-lhe ao mesmo tempo sequidões esterilisadoras de intelligencia. Cada dia lhe abrolhava flores novas; e cada dia lhe entibiava mais a percepção. Por maneira que a menina já choramigava quando Innocencio lhe pedia contas da invencivel difficuldade de soletrar.

—Deixa lá a pequena!—exclamou a madrinha compadecida.—Eu tambem não sei ler, e graças a Deus não me tem feito falta. Uma mulher de casa não lhe chega bem o tempo para cuidar do seu arranjo. Isso de lêr é lá para as fidalgas que não sabem no que hão de gastar as horas. Aprende tu, que és homem, e deixa a menina. Se ella não tem geito, para que apertas com ella? É forte birra a tua, rapaz!

[Pg 38]

—Eu não quero que ella seja bruta!—disse Innocencio com uma authoridade e sobrecenho irrisorio, attentos os seus doze annos.

—E que tal!—clamaram as tias em quanto a menina córava, e a mãe se benzia, murmurando:

—Ora esta! querem vocês vêr! O rapaz já diz que não quer que ella seja bruta! Assim nos vae chamando brutas a todas! Então tu governas em Thomazia?—tornou a risonha senhora.—Ella é tua parente ou adrente?

Innocencio fez uma pirueta de educação mediocremente esmerada e saiu da presença da mãe aos pinotes.

Ora vejam agora como a serpente da vaidade mordeu de assalto o amor proprio da menina. Ao outro dia, pediu ao seu impertinente mestre que lhe ensinasse a lição, estudou-a, deu de si boa conta á custa de muito martelar na combinação litteral dos nomes bisillabos, e conseguiu em poucos mezes livelar-se com a sciencia do pedagogo. Fez-se o prodigio em razão de lhe ter chamado elle bruta!... Indicio de alguma coisa, a meu vêr; se boa, se ruim, o futuro, querendo Deus, nos irá assentando as bases para seguro juizo.

Na aprendizagem incompleta das primeiras letras consistiu a educação litteraria de Thomazia Alves. O padrinho entendia que as quatro operações não lhe desconvinham e a leitura de uma carta lhe podia ser util. D’aqui em deante, nem elle sabia nem lhe constava que mulheres podessem aprender coisa proveitosa.

[Pg 39]

Por encurtar fastios, sigamos de salto os annos de Thomazia até aos quinze.

Eil-a bella quanto póde imaginal-a a mais artistica e ambiciosa fantasia. Faltava, porém, alma e luz n’aquelle rosto, porque as imperfeições, embora poetas e romancistas as esqueçam, são inevitaveis. A estatua de certo tinha vida bastante para valer em tresdobro da Galathea e das notorias Venus de innocente marmore; todavia, a glacial placidez do semblante, se não fosse natural, deslustral-a-ía com umas sombras de desvanecida e concentrada na contemplação de si mesma. Não era; e que fosse, ainda assim daria muito que invejar ás poucas a quem a prodigalidade do destino concedeu peregrino rosto e adoravel alma a transluzir-lhe em olhos e sorrisos; que alteza de pensamento e profundidade de conceitos isso não vale tanto á mulher bella como quatro flôres do campo nos cabellos.

Thomazia ganhára fama, bem que os pregoeiros da sua formosura escassamente a vissem nas egrejas, nas procissões, nos camarotes da 3.ª algum domingo de tarde, e uma ou outra vez nas hortas do Reimão, onde Gervasio José costumava desde menino ir merendar sob a folhagem das parreiras. Se o apetite lhe faltava e o cirurgião lhe formulava oleo de mamona, dizia elle á familia:

—Bem sei... Vamos ao Reimão merendar uns linguados com a respectiva salada. O meu oleo de mamona é o verdasco de Basto ali tirado da pipa, e quatro azeitonas de Sevilha.

[Pg 40]

Apesar das precauções do avisado enfermo nos lanços da preguiça de estomago, Thomazia era vista dos peraltas que ainda em 1841 se não pejavam de apear de seus cavallos e carruagens á porta das tavernas do Reimão e Barros-Lima.

Se o commerciante reparasse nos seus confrades da medicina do linguado e da azeitona, podia vêr alguns d’elles caracolando os ginetes que lhe pateavam sonoramente a testada da sua casa nas Cangostas.

Elle, de certo não; mas a sua afilhada, menos mal servida de reminiscencia, reconhecia trez ou quatro dos cavalleiros que uma vez e diversas vezes tinha visto nos bucolicos festins do padrinho ou nos festins espirituaes da madrinha mui devota do Senhor-exposto de Bello-Monte e da Misericordia.

Isto, porém, não desluz nem mareia a candura de Thomazia. Era um acto de memoria e mais nada; acto, porém, que não condizia com a frouxa faculdade de reter a taboada salteada. Ha compensações; é o que é. Ora agora, que a senhora D. Thomazia de Barros (o dom começou a honorifical-a ahi por 1840, anno em que seu marido foi da camara) que a senhora D. Thomazia e suas cunhadas e marido não tinham sombra de suspeita da leviandade da menina, é bem de entender, sendo tal e tão crescente o amor que lhe davam.

Ahi por volta dos dezeseis annos da moça, a familia Barros congregou-se em sessão, cujo memento se infere de terem descido ao escriptorio de Gervasio. Se um caso desatado da historia podesse ser contado aqui, sem enfado[Pg 41] de quem lê, diriamos que Thomazinha, vendo-se só e ouvindo estrupiada de cavallo, entreabriu as portadas da varanda, e por um resquicio espreitou o cavalleiro até á revolta da rua para o largo de S. Domingos. Está averiguado que elle a viu tambem com olhos satanicos; mas ella, por sua parte, ficou illesa e quieta de coração. Quando é que a lua, nas alturas onde os poetas lhe mandam declarações de amor, se deu por offendida ou perdeu tanto como isto da sua proverbial castidade? Thomazia podia pleitear isenções com a lua n’este caso e vencel-a em muitas qualidades amaveis.

Desçamos ao escriptorio.

É proposto e não discutido o casamento de Innocencio José de Barros com a ditosa menina. Divergem ainda assim os pareceres, no tocante ao prazo da realisação. Os tios Jeronimo e Felizardo opinam que o rapaz está muito novo. As tias Sebastiana e Florencia abundam n’este parecer; mas Gervasio, bamboando trez vezes a cabeça como quem prefacía uma revelação ponderosa, diz:

—O rapaz tem dezenove annos. Vocês cuidam que o tempo de hoje é o nosso? Estão enganados. No meu tempo, antes dos vinte e cinco, homem que tolejasse com mulheres, era um asno de quem as pessoas serias não faziam cabedal. Eu tinha vinte e oito e alguns mezes, quando pensei em procurar companheira. Isto agora é outra coisa. Voltou-se o mundo. As mulheres estão desaustinadas e os mancebos, assim que lhes pinta o buço, ninguem tem mão n’elles...

[Pg 42]

—O nosso filho é bem comportado—atalhou a senhora D. Thomazia com applauso do auditorio, que se mexeu nas suas cadeiras de segovia marchetadas de botões de cobre.

—O nosso filho, repetiu com intencional surriso o orador, o nosso filho é como os outros. Eu que lh’o digo é que o sei; e agora... vão vocês saber que Innocencio... namora!

—S. Bento!—exclamou a senhora D. Thomazia, sobrelevando ás interjeições dos outros ouvintes.

—Namora, sim, senhores. Pois que cuidam? Vocês não sabem que elle é rico? não sabem que ha por ahi muita moça que pensa que ha de casar-se rica, porque tem um palmo de cara ageitada? Não sabem—proseguiu elle alteando a voz graduada pela inspiração propria e espanto dos ouvintes—não sabem que assim que ahi chegam brasileiros ricos ao Porto, são os proprios paes das raparigas casadoiras que os mostram ás filhas e as picam para que ellas andem para deante antes que as visinhas os apanhem? Não sabem...—continuou Gervasio José adivinhando o quilate rhetorico do quousque tandem de Cicero, repetido com ascendente energia.—Não sabem que meu cunhado, quando cá veio do Pará, me disse a mim que lá na America não se feiravam tão desavergonhadamente as pretas como aqui as brancas? Se não sabem,—concluiu o velho restaurando a respiração esbofada—saibam que mais de seis mulheres andam na piugada de Innocencio, e de quatro que eu conheço, não ha uma que tenha dez réis de seu,[Pg 43] assim que eu levar ao tribunal as lettras reformadas que cá tenho dos paes d’ellas.

D. Thomazia tinha-se benzido tantas vezes, quantas foram os triumfaes não sabem. Jeronimo e Felizardo bufavam, e coçavam-se como se quizessem arrancar á unha das cabeças d’elles idéas condignas da sua indignação. As tias do rapaz pareciam corridas do seu sexo e espantadas da pureza dos seus costumes.

Seguiu-se ao silencio de trez minutos esta pausada interrogação de Gervasio:

—Que me dizem agora vocês? É tempo de o casarmos ou não?

—E quanto antes—responderam tios e tias.

—E tu que dizes, Thomazia?—tornou elle voltando-se á esposa, que sobre-estivera silenciosa e cogitativa.

—Que hei de eu dizer?... Estava a pensar no que meu irmão me disse quando cá veio... Homem! e se elle não gosta da nossa afilhada? Amisade é uma coisa, amor é outra... Achas que o nosso filho, se quizesse casar com Thomazia, andaria lá com esses namoros que dizes?...

O marido surriu-se, e, por entre os beiços velhacamente franzidos, murmurou:

—Namorar não é casar... Vocês são mulheres, e não sabem nada do mundo... Eu cá me entendo... O rapaz, já lhe disse, é como os outros do seu tempo. As raparigas desafiam-n’o; elle que lhe ha de fazer?

[Pg 44]

—É não lhe dar trela!—respondeu pressurosa a senhora D. Thomazia.

—Valha-te Deus, mulher!—redarguiu o esposo, editando segunda vez o surriso sôrna e justificativo de que o homem não resalvára a sua innocencia da peste contemporanea—valha-te Deus! Um homem é um homem. A culpa não n’a tem elles; são ellas. Eu cá me entendo... Se o rapaz fosse creado com as leis e costumes de ha quarenta annos, os namoros custavam-lhe um par de trochadas boas; mas hoje em dia não ha rei nem roque logo que elles asneam. O mais prudente é um pae leval-os ás boas; se não, quando um homem mal se percata, está-lhe em casa o juiz e o escrivão com um requerimento lá de uma trocatintas que lhe tira o filho de casa e o leva para a sua. Isso está-se vendo, e medo não me falta a mim; por isso me tenho posto á espreita, e não faço bulha, que não vá o rapaz atirar dois couces ao apparelho, e por aqui me sirvo. Só aqui ha dias lhe disse: «Innocencio, tem-me lume n’esse olho: não faças cavallada. Olha que as moças que te fazem festas, o que querem é o teu dinheiro; mas vão erradas; que eu o que tenho, posso perdel-o; nemja que um filho m’o leve para onde eu não quero que vá o suor de teus avós, entendes, Innocencio?»

—E vae elle que disse?—interrompeu com alvoroço a senhora D. Thomazia.

—Nem uma nem duas; sentou-se ali áquella mesa e esteve a riscar com a penna sobre o papel uns narizes que ainda lá hão de estar. Aqui teem vocês o que se[Pg 45] passou. Agora estou resolvido a dizer-lhe que é minha vontade que elle se case com Thomazia. Se sim, bem estamos; se disser que não... veremos.

—Se elle disser que não,—obviou a esposa bem aconselhada pelas advertencias do mano Luiz—acabou-se; á força não quero casamentos.

Discutiram detidamente os dois conjuges e vieram afinal em que, por suaves modos, se consultasse a vontade do moço.

A vontade da orfã não foi discutida. Discutir o coração da pobre... para quê?!


[Pg 46]

CAPITULO III

Argumento

Discorre o author ácerca das reticencias com singular originalidade. De como as duas creaturas não se amavam. Thomazia e pilhada a escrevinhar e ingrampa o velho. Intenta elle debalde convencer o filho, chamando-lhe pedaço de asno, como se não fosse plus quam-perfeito. O que Gervasio José entende por amoricos de caquerácá, e outras coisas que do capitulo melhor se verão.

Não se amavam.

Que grande milagre não se amarem!... O uso de se verem duas pessoas entre-amadas gasta-lhes o amor. O uso de se verem as que muito se estimaram, não lh’o deixa nascer. O imprevisto, a surpresa, o dominio incerto e disputado, isto sim, é céo ou inferno, onde o amor rejubila como anjo, ou se estorce em fogo de reprobo.

Não se amavam: é onde bate o ponto.

Innocencio respondeu, rodeando rethoricamente o assumpto, que era amigo de Thomazia; mas que...

E ficou-se.

A menina, recebida a noticia que a madrinha lhe deu, disse que a sua vontade era a dos seus bemfeitores; mas que...

[Pg 47]

E nada mais.

Adiante das reticencias ponha o leitor uma coisa insignificante chamada «coração». As reticencias podiam dar a misteriosa origem de bastas agonias. Onde ninguem vê nada, estão ladeiras de muitos abismos. Ha ahi muita gente transviada na vereda que leva ao deserto sem horisontes—deserto, onde não enfolha arvore com sombra, nem borbulha fonte que reviva peitos sedentos de vida. Na historia d’essas almas que já aqui levam o letreiro fatal do poeta florentino—almas sem esperança, e, por tanto, sem amor, sem alegria, sem fé, sem Deus—na perdição d’essas, ha um quê indescriptivel, origem fatidicamente inescrutavel. Seria uma palavra? um acto de irreflexão cega? destino? impulso irresistivel da bossa? Não. Foi uma frase cortada, uma expansão sincera afogada pelo pejo, pelo respeito, pelo terror. Foram as reticencias.

Gervasio, posto que transigisse com a insanavel gangrena da geração nova, não abdicava da rigidez de sua authoridade paterna. Avisado do mas... de seu filho, saltou logo furioso a filar a peior das conjecturas, imaginando-o em arranjos de se fazer raptar judicialmente por alguma das seis oppositoras ao rapaz.

Assombrou a cara de ameaças, accendeu os olhos de coriscos, fez dos narizes respiradouro de cólera fumegante, e, esbarrando com o filho n’um corredor, expediu do peito estes gritos:

—Estás enganado, marióla! Casar, casarás tu; mas dinheiro meu não vês uma de x. Arranja mulher que[Pg 48] te dê de comer e vestir e casa; que eu... não sou de uns certos paes que mudam de genio quando os filhos desobedientes lhes levam os netos...

—Mas, meu pae—atalhou Innocencio—eu não o entendo... Quem lhe disse que eu...?

—Lérias, meu amigo! não me conte lonas! Você que respondeu a seus tios a respeito de Thomazia? Venha cá... entre aqui dentro n’este quarto da tia Sebastiana, que não quero que a pequena nos escute...

E, dizendo, tirou pelo filho para o quarto de sua irmã, que tinha saido com a outra para o Lausperenne das Almas de Santa Catharina.

No lanço, porém, de empurrar a porta, soou dentro do quarto um ai espavorido.

Era Thomazia.

—Que é isso?!—perguntou Gervasio.—Que medo tiveste, rapariga?!

—Eu estava aqui...—tartamudou a orfã, encostando-se a uma commoda, sobre a qual estava uma folha de papel e o tinteiro da sua escripta.

—Estavas a fazer o teu traslado?

—Estava... a escrevinhar...—tartamudou a candida assucena acerejando-se lindamente.

—Deixa lá vêr como estás adiantada...

—Ora...—tornou ella, oppondo uma atrapalhada resistencia ao velho, que foi direito ao papel.

Innocencio desconfiaria dos inoffensivos exercicios caligraphicos da sua discipula? Parece que sim; por que, adeantando-se á moderada curiosidade do pae, estendeu[Pg 49] o braço e subtraiu o papel por entre os dois.

Thomazia ia começar um desmaio, quando a innocencia reagiu ao insulto nervoso, recobrando-lhe a alma para sair-se bem do apêrto.

Innocencio leu alto, alternando os olhos entre ella e o pae.

Meu caro amor do meu coração, e unico bem da minha paixão...

—Ai!—exclamou o risonho velho.—A menina faz versos? ou isso não é da tua cabeça?...

Thomazia respondeu com um tregeito de modestia acompanhado de tosse de pigarro; tudo, porém, lhe realçava a graça do semblante.

O moço continuou, lendo:

Não tenho palavras com que possa explicar-vos...

E estacou. É que não continha mais a carta.

Innocencio atirou o papel ao chão, entortou os beiços com dois sorrisos sarcasticos, e murmurou:

—O pae não sabe o que é isto?... Não sabe?

—Não: pois que é isso? respondeu Gervasio.

—É uma carta de namoro.

—Que é?—bradou o velho. Tu escrevias esta carta a alguem, Thomazia?!

A menina sorriu-se e disse com imperturbavel candura:

—Escrevia, sim, senhor; mas não a mandava... Eu bem sei que me não ama a pessoa a quem eu escrevia...

—Querem vocês vêr...—atalhou Gervasio com o[Pg 50] carão allumiado de dois raios de esperteza e alegria interior—querem vocês vêr... Tu ainda não percebeste, Innocencio?

—Eu, não, senhor.

—Pois não percebeste, pedaço d’asno?... A carta era para... Diz tu, menina... Para quem era a carta?...

Thomazia olhou carinhosa para o padrinho, e balbuciou muito dengosa:

—Elle bem sabe... mas... não lhe faz conta dizer.

—Entendeste agora, rapaz?—bradou o velho victorioso e inchado de sua soberba.

—Ora, meu pae...—replicou o incredulo fazendo um momo plebeu como a frase—eu não engulo maranhões... Esta carta não era para mim...

—Pois p’ra quem havia de ser, bruto?—retorquiu o pae, batendo palmas na cabeça.

A orfã, apparentando doloroso constrangimento, pediu ao padrinho liçença para sair do quarto.

—Vae, afilhada, que eu bem sei que és uma boa menina—condescendeu o velho.—Pena é que este rapaz não tenha o coração de teu padrinho...

Thomazia saiu de rosto abatido e braços pendentes.

—Ó alma de cantaro!—apostrophou Gervasio—pois tu acharás debaixo da rosa do sol rapariga mais galante e que mais te encha as medidas?!

—Esta carta não era para mim...—tornou Innocencio, relendo a parte poetica, no dizer do velho, e a oração incompleta que parecia ser prosa.—Não tenho palavras com que possa explicar-vos—leu elle.—Pois ella[Pg 51] que me queria explicar?! Sim; que me queria explicar ella a mim?

—Queres que eu te responda, menino?... Espera, que eu já volto.

Saiu Gervasio, tirando-lhe da mão o papel. Foi entender-se com a afilhada, deteve-se alguns segundos, e tornou:

—Eu te desengano já, pateta. Thomazia estava para pôr adeante d’isto que aqui está... Que diz? Deixa-me lêr: Não tenho palavras com que possa explicar-vos... ahi vae o resto: a satisfação que recebi quando vossa mãe me disse que nos queria ligar pelos sagrados laços do... não me lembra do que ella disse... é uma coisa muito fallada nas comedias... sagrados laços do... laços do...

—Do himeneu?—acudiu-lhe o rapaz.

—É isso... É o que ella queria escrever, por que diz que se acovardava de t’o dizer de cara a cara. Percebes, homem? Que estás ahi malucando? A apostar que tens alma de não amar este serafim!! Esta creaturinha tão linda que foi creada comtigo! Rapaz! olha bem para mim! Ouve lá, que isto é a valer. Se a não quizeres para tua companheira, quero-a eu para minha filha. Percebes tu? Para ella ter que comer á farta não precisa de casar comtigo. Olha se me entendes, Innocencio. O pae d’ella sou eu. Tu anda lá por onde quizeres, que eu... cá estou. O filho podem levar-m’o; o dinheiro não... Cuidas que eu não sei a tua vida? (aqui Gervasio espirrou um riso de maganão). Tenho-me calado,[Pg 52] por que pensava que lá essas tuas raparigas eram amoricos de cáquerácá. A coisa é seria pelo modo... Deixas a minha afilhada lá por alguma farropilha que te botou o anzol? Bem asno és... Tu cá virás com a cella na barriga... Lá t’avém. Boas noites.


[Pg 53]

CAPITULO IV

Argumento

Desengano aos fariscadores de escandalos. Como póde o engenho fazer o milagre de conservar personagens honestos até ao 4.º capitulo inclusivé. De como no Porto de ha vinte annos houve homens endiabrados com senhoras, e outras coisas tristes. Por que dizem que a esperança é verde. Entra na historia a senhora Custodia da Porciuncula, e as santas manhas d’ella, que foi amada de um boticario poeta. Vê-se que a menina gostava do enviado de S. Gonçalo de Amarante, mas não lhe entende o estilo. Explica a senhora Custodia o que é o rolo a suspirar pela rola, servindo-se do texto do boticario, que por signal se chamava Gregorio. Dizem-se outras coisas que tocam o coração.

Não se alegrem os pessimistas, os corvos que crocitam onde ha sómente podridão. Cuidam que teem escandalo já no capitulo 4.º? Vem mal parados cá para os personagens das minhas novellas, os quaes só começam a derrancar-se do 5.º capitulo por deante.

Aquella cartinha de Thomazia era casta como os coloquios amorosos das virgens com as estrellas, segundo poetas dizem que ellas se palram a horas improprias e suspeitas. Eu de mim declaro que ainda não surpreendi palestras d’essa especie: o que eu tenho visto é virgens,[Pg 54] mais authenticas que as onze mil da legenda, conversando, pelo alto silencio da noite, não já com estrellas, mas com uns corpos opacos, a espaços luminosos por effeito da luz de algum fosforo.

E Thomazia não fazia isto nem aquillo; não conhecia estrella nenhuma, nem dava azeite nos gonzos da janella para a deshoras chover sobre o objecto amado o maná dos favos do coração.

A carta seria coisa, por pequenissima, mal-cabida nas grandiosas proporções d’esta historia, se eu não tivesse avesado o leitor a saber as miudezas de tudo. Vejam se tanta candura merecia a pena de duas ou trez paginas em 8.º!

Foi assim: Aquelle sujeito, que passou galhardamente, no seu estrepitoso fouveiro, Cangostas acima, quando a familia Barros estava congregada no escriptorio, era um moço bem apessoado, enlevo de olhos incautos, e D. João Tenorio quanto cabia nas forças seductoras de um portuense de 1843. Havi-os então de bico revôlto, fataes, menos scientificos que Fausto, e com mais quatro diabos no corpo que o outro. Que devastadores de corações em flôr e do mais!

Se é certo tudo o que se conta dos peraltas portuenses de ha quarenta annos até á regeneração da moral, que data ahi de 1850 para cá, somos todos pouco mais ou menos filhos d’elles, embora nos assignemos com os appellidos dos maridos de nossas mães. Isto, se é verdade, bem que não leze as leis da procreação, é deshonesto e digno de esquecimento. Esqueça-se. Viva tanto[Pg 55] esta lembrança como ha de viver o livro que leva a denuncia.

Pois o cavalleiro, freguez do Reimão, e consumidor do linguado frito das hortas do Barros Lima, era um d’aquelles açoites que traziam espavoridos no Porto os anjos do pudor, custodios das mulheres respectivas.

Cuidava eu que elle não tinha lobrigado Thomazia a espreital-o pela fisga das duas portadas. Viu-a e dardejou-lhe dos olhos fulminantes uma flecha ervada no succo da sardonica erva que faz rir o coração. Sabem o que é rir o coração? Esta pergunta não a faço aos desgraçados nem aos velhos meus contemporaneos. É ás loiras almas dos dezesete annos de Thomazia. Loiras?! por que não? Quem quizer materialisar o ideal da suprema graça ha de enlourecel-o, assemelhal-o á suprema graça real. Pois o ouro que é senão louro? Porque chamaram verde á esperança, se por verde não quizeram figurar poetas o pasto commum das almas, os ervaçaes onde ellas se vão em sasão propria renovar sangue e pellagem? Loura é que se pinta a esperança aos olhos dos que ainda resistem á espessura de umas trevas negras e frias como a leiva interior das sepulturas. Aos cegos para côres da felicidade não pergunto eu, pois, se sabem o que seja rir o coração.

Thomazia não me responderia nem poetica nem grammaticalmente; e por isso mesmo, se respondesse, não seria mais intelligivel nem correcta que um d’estes bardos tirados pela fieira allemã; sublime, porém, devia sêl-o; ou então o movimento que ella fez, levando a[Pg 56] mão ao lado esquerdo do seio, era dôr de estagnação de fluido, ou, mais sobre o claro, encalhe de sangue.

Pois não disse nada a ninguem, nem á ama que a creou, nem á velha que já tinha sido serva de seus avós.

Ora, esta velha tinha ganhado tão pela raiz a estimação das novas amas, perfumando a casa do rosmaninho da sua virtude, que era já tambem da familia. Andava por egrejas desde que alvorecia a manhã até ás dez, em jejum, com os bolços atacados de biscoitos de Valongo, importunando a côrte celestial com deprecações pela felicidade de seus amos, asseverava ella. Entre egreja e egreja mascava alguns biscoitos de envolta com dois padres-nossos, e, n’algum recanto de pateo, desentupia-se, emborcando uma cabacinha de tão generoso vinho, que S. Jeronimo, se lh’a vasassem á força nas mirradas goelas, daria com a caveira na cara de quem lhe impedisse o caminho de Roma. Ao fim da quarta missa, a tia Custodia sentia-se morrer de fraca, e ia para casa, em jejum. Algumas vezes contava as suas visões. Se as ella não teria!... Que visões não dá uma cabacinha enxuta!

Convém saber que a senhora Custodia não gostava de Innocencio. Tal desaffeição ou embirra vinha de longe e até certo ponto justificada. O rapaz, creado com mimo de filho unico, era endiabrado aos sete annos. As tias defendiam-n’o quando a mãe o ameaçava; o pae defendia-o das iras das tias; a mãe escondia-o no regaço quando o pae com fingida colera o procurava[Pg 57] onde sabia que o não encontraria. De sorte, que o traquinas zombava de todos, e nomeadamente de Custodia, victima obrigada e por excellencia da tirannia do rapaz.

Se a velha se estava remendando, com o dorso curvo e o nariz espremido e entalado nas cangalhas, Innocencio pinchava-lhe ás cavalleiras, dando-lhe de calcanhares nas ilhargas, onde ella se queixava de uma «obstrucção» de cada lado. Outras vezes, fazia-lhe por detraz pontaria ás cangalhas com a bengala do pae, e de subito lh’as fazia saltar, repuxando-lhe dolorosamente os refêgos do nariz. Custodia engulia as pragas que lhe vinham da arca do peito, visto que a mãe e tias do menino riam da brincadeira; todavia, a raiva repremida converteu-se em peçonha de odio, que o tempo não pôde inteiramente esvurmar do coração da velha.

O que ella podia ter feito era resgatar-se do verdugo, deixando a casa; mas impediam-n’a muitas razões de força, entre as quaes realçavam o affecto que ella tinha á menina, de cuja mãe fôra já ama; depois o pedido que lhe fizera o capitão Alves de se não apartar de sua filha emquanto os bemfeitores lhe dessem uma tigela de caldo; finalmente, a liberdade de ir ás suas missas, e grangear a salvação da sua alma, sem faltar aos reparos e reboques do corpo com a argamassa dos biscoitos ensopados nos haustos sorvidos da cabacinha, com que a fantasia se lhe etherisava misticamente até aos tactos substanciaes infusos. E, depois, como adicção a tantos impedimentos, a meza de Gervasio era abundantissima,[Pg 58] vinho a granel, cama bem enroupada, afóra estipendio superior aos serviços da velha, que todos se cifravam em grangear a gloria eterna de seus amos e responsar a boa saída de todos os negocios da casa.

Isto não obstante, congraçar-se com Innocencio é que não pôde mais a retrincada Custodia. Lanço de fallar mal d’elle a Thomazinha não o perdia; e, desde que as tias do pequeno lhe segredaram que talvez os dois meninos viessem a ser esposos, a velha entrou a scismar e a fazer trezenas a varios santos para que a filha de sua ama tivesse melhor fado que ser mulher de tão mal-creado tunante. Assim que Thomazinha teve idade e entendimento do que era matrimonio, a velha foi-lhe insinuando a noticia do que tinha percebido, sem todavia a desviar de querer Innocencio para marido, caso lhe não deparassem os santos da sua particular devoção outro noivo com riqueza e melhor genio que o filho de Gervasio. A menina escutava a sua criada complacentemente e denotava nenhum empenho em passar de pobre a rica, e de orfã beneficiada a filha e herdeira dos Barros das Cangostas. Póde ser que o muito amartellar-lhe da velha contra a malvadez de Innocencio, e por sobre isto uma certa aversão á dependencia, pesada sempre nas condições ingratas, predispozessem a moça ao desagrado que avultou em antipathia chegado aos quinze annos o coração.

Andava inquieta e mais fervorosa em advogar perante os seus santos a desconveniencia de tal casamento a senhora Custodia da Porciuncula, na occasião em que[Pg 59] Gervasio deliberára realisal-o, receoso dos filtros que lhe traziam o filho ebrio de amorios de má casta e peores consequencias.

Nas egrejas é que a solicita velha gastava as manhãs expondo mentalmente aos seus advogados que Innocencio era um bandalho, indigno de Thomazia; e que a filha de sua defunta ama, se elles santos quizessem, poderia arranjar marido mais capaz, e tão rico como o outro.

A confiança que a beata Custodia punha em suas rogativas era tão segura, que já de antemão a fé lhe dava a certeza de que, finda a trezena a S. Gonçalo da Sé, lhe havia de apparecer signal de ter sido ouvida.

Ao decimo quarto dia, concluida a devoção dos treze decorridos sem novidade, saía Custodia da Sé, e ao descer do Arco da Senhora de Vandoma para a Rua Chã, chegou-se d’ella um bem assombrado e galhardo moço que lhe disse:

—Muito bons dias, senhora Custodia.

—Deus lhe dê os mesmos. Quem é vossa senhoria?—cortejou e perguntou a velha, alvoroçada com o rebate de ser chegado o enviado de S. Gonçalo, seu procurador de causas matrimoniaes em ultima estancia.

—Sou, disse elle, um rapaz que muito ama a senhora D. Thomazinha, e venho confiar de vocemecê este segredo, pedindo-lhe que não duvide fazer os serviços que puder á felicidade da menina a quem adoro.

—Vossa senhoria sentiu alguma coisa no coração para vir ter-se comigo?—perguntou a risonha Custodia,[Pg 60] querendo verificar se de feito o gentil moço fôra tocado por S. Gonçalo d’Amarante.

—Senti, sim...—confirmou elle, bem que respondesse a uma idéa que não era a intencional da pergunta.

—Sentiu coisa no seu interior?—tornou ella.

—Uma paixão ardente pela menina que me não deixa dormir nem comer.

—Desde quando foi isso? lembra-se?...

—Desde que a vi no Reimão, e depois que a tornei a ver no theatro...

—Mas aqui ha coisa de duas semanas que tem vossa senhoria sentido lá dentro do seu coração?

O rapaz não achou bem escorreito o inquerito e quedou-se a olhar muito a fito nos olhos inquietos da velha, e a repetir:

—Aqui ha coisa de duas semanas?...

—Sim... pergunto eu se foi ha duas semanas que vossa senhoria formou tenção de casar com a minha menina?

—Se formei tenção...?—titubeou elle.

—Pois então?—volveu Custodia desconfiada do ar perplexo do casquilho.—Vossa senhoria o que quer, não é casar com a senhora D. Thomazinha?!

—Com toda a certeza...—acudiu o taful vergastando a perna direita com o chicotinho, e ferrando os dentes n’um sorriso de motejo.

—Está bom; mas queria eu saber cá por certas razões se vossa senhoria essa vontade que tem de casar[Pg 61] com a menina lhe veio ha coisa de treze dias para cá.

—Sim, eu... ha muito que gósto da senhora D. Thomazinha; mas... a tenção de casar... é como vocemecê diz... foi... ha quantos dias?

—Ha treze para cá.

—Justamente: ha treze para cá...

—Então posso ir agradecer ao meu S. Gonçalo...—acudiu com enthusiastico fervor a velha.—E como é a sua graça de vossa senhoria?

Proferiu o moço um nome com dois appellidos que n’aquelle tempo significavam uma familia das mais enriquecidas no commercio. Custodia esbugalhou os olhos inchados da alegria que lhe sobejava do riso, e exclamou:

—Que bonito noivo vae ter a filha da minha ama!... Não caibo na pelle!... Vossa senhoria, ainda que eu seja confiada, ha de ser tão rico ou mais que o Innocencio do senhor Gervasio das Cangostas...

—Não sei; mas por que me faz essa pergunta?

—Cá me entendo.

—Tambem eu a entendo, senhora... senhora...

—Custodia da Porciuncula, sua criada por muitos annos e bons.

—Vem a dizer a senhora Custodia que o filho do Gervasio quer casar com a senhora D. Thomazia...

—É o pae, pelos modos, que trabalha para amanhar isso; mas a pequena não assigna, é por’ora...; e, se Deus quizer, o marido d’ella ha de ser vossa senhoria, ou S. Gonçalo não tem poder nenhum...—disse Custodia[Pg 62] com a pia intenção de estimular o capricho do santo empenhado.

—Pois bem—replicou o interlocutor, anediando a rosca da luzente e calamistrada cabelleira que lhe assentava nas espaduas.—Faz-me vocemecê o favor de entregar uma carta á menina?

—Pois isso nem dado nem de graça; lá fallar-lhe, isso, não lh’o posso arranjar; mas escrever-lhe, não ha remedio, p’ra se entenderem; e eu aqui estou p’ra levar a carta.

—Aqui a tem—disse o «elegante». (Alcunhavam-se n’aquelle tempo de elegantes os sujeitos ferozes de que saíram depois mais parvuos e derrancados os modernos janotas.)

—Pois já a trazia feita?!—clamou a senhora Custodia com a sincera exultação de quem via em tudo S. Gonçalo e se via a si com a efficacia de suas recommendações.

E ao tempo que recebia a carta sentiu uma substancia mais fresca e solida do que o papel em contacto com os seus dedos.

—Isto que é?—perguntou ella, sem pôr os olhos sobre o objecto estranho.

—Faça-me o favor de receber estas tres mexicanas para rapé—disse urbanamente o moço.

—Nemja eu... não, senhor... queira servir-se de me perdoar; mas eu não ando n’isto por interesse... Tome lá, que eu não pego n’este dinheiro...

[Pg 63]

—Então, faz-me essa desfeita, senhora Custodia?!—redarguiu elle.

—Tenha paciencia...—insistiu a briosa velha. Não sou da casta de muitas criadas que eu cá sei. Isto que faço... sabe por que o faço? sabe por que eu levo a carta á menina?... É por que m’o manda quem póde... vem do céo este destino... o que eu quero é vêl-a feliz á filha da senhora que eu criei aos meus peitos, e heide olhar pela sorte d’ella em quanto viver. O que eu queria era ir d’este mundo depois de a deixar bem casada, para poder dizer lá no céo á mãesinha d’ella: «a sua filha lá ficou feliz a resar por nós ambas».

Custodia estava enxugando os olhos, em quanto o elegante chicotava a ponta da bota de verniz, e remirava a costura da pantalona até á polaina com o desvanecimento de lhe ajustar a primor o talhe.

Ditas algumas poucas palavras de despedida e convenção de se entreverem volvidos dois dias, separaram-se.

A velha ainda foi á Sé agradecer a S. Gonçalo com effusão de alma convencida do milagre. Depois, em casa, apropositado o ensejo, segredou a Thomazia os successos decorridos, e concluiu entregando-lhe a carta do sujeito que havia de passar na rua ás quatro da tarde.

Thomazia inferiu logo quem lhe escrevia, segundo os signaes que deu Custodia. Devia de ser o cavalleiro costumado na rua.

—Elle tem melenas pretas e um bigodinho retorcido?—perguntava Thomazia com alvoroço.

—Tem, sim, menina.

[Pg 64]

—E a modo de trigueiro, a olhar assim por debaixo do chapéo?

—É isso, é isso mesmo.

—E muito fino da cintura, com a mão pequenina?

—Tal e qual. Que lhe parece, minha filha? Gosta d’elle?

—Sim... eu...

—Pois ahi tem o que hade ser seu marido.

—Ora!... Quem sabe?...

—Quem sabe!—respondeu severamente Custodia, pondo um braço ao alto, e um dedo apontado.—Quem sabe?! O meu S. Gonçalo d’Amarante é que sabe, e, por intercessão do glorioso santo, Deus é que o quer.

Thomazia abriu a carta. A lettra era ingleza, garrafal e elegante de hastes, enquadrada em cercadura de flores que enramavam frecheiros Cupidos. Custodia cavalgou os oculos para se pasmar de um coração ferido em ninho de folhagem, sobre a qual duas calhandras ou passarinhos parecidos, asseteados tambem do amor, davam mostras de se estarem beijando com os amorosos bicos.

—Vejam vocês! que graça teem estes bonecos!—dizia a senhora Custodia, jogando com a cabeça e oculos para apanhar em cheio o raio visual.—E este menino tão gordo!—proseguiu ella pondo o dedo arroixado de um unheiro sobre a cara jubilosa de Cupido.—Isto não póde ser o menino Jesus, por que tem aqui uma cestinha á bandoleira. Será São Joãosinho?

—Nada, não é—corrigiu a menina.—Isto é o Amor.

[Pg 65]

—O amor?!—interrogou com absorta ignorancia a senhora Custodia da Porciuncula.—Este rapazinho assim era pêllo é o amor?...

—Foi o Innocencio que me ensinou a conhecer o retrato de Cupido. Chama-se Cupido tambem.

—Ah! isso póde ser; que eu, quando era moça, bem me lembra de ouvir cantar o boticario da minha terra umas modinhas á guitarra, onde dizia lá o verso:

Maldito seja o cupido
Que cravou no peito meu
A setra que não penetra,
Marilia no peito teu.

—Já hoje se não cantam d’estas modinhas!—continuou em tom de lastima a velha, tirando os oculos.—Agora o que se ouve por ahi é umas senhoras a dar uns guinchos que parece que estão com as dôres de parto. Pelos modos cantam á moda italiana...

—Vamos agora ver a carta?—atalhou Thomazia.

—Vá lá.

Começou a menina deletreando correntiamente o fraseado. A velha abria os olhos á proporção da bocca, por onde ella dava signaes de querer engulir a indigesta intelligencia das expressões. Thomazia ia lendo monotonamente e ladeando a vista d’uma linha para a outra á espera de topar palavra em que tomasse o fôlego e sentisse a satisfação de entender a idéa do namorado estilista. Chegou a anhelada passagem. A seguinte frase ajustou-se-lhe ao entendimento esclarecido pelo coração:[Pg 66] «Suspiro por vós como o rôlo que geme na arvore solitaria pela rolinha amada.»

—Ai!—suspirou Thomazia.—Vês o que elle diz, Custodia?

—Elle que diz?—perguntou a velha.—Má mez p’ra mim, se eu entendi pataca! Ha uns modos de dizer á moderna que parece latim! E a menina já sabe isso que ahi diz o que é que diz?

—Algumas palavras não as entendo; mas outras sim. Pois tu não entendes isto? Diz elle que suspira por mim...

—Sim, isso entendi eu; mas...

—Que suspira por mim como o rôlo...

—O rôlo?!

—Sim; o rôlo que geme pela rolinha...

—Ah! já, já, já!—exclamou a velha, batendo palmadas nas cabeças perfurantes dos joelhos.—O boticario tambem cantava esse verso á guitarra. Deixe-me vêr se me alembra... ha de alembrar...

O rôlo quer a rolinha
E a gemer chama por ella;
O pombo quer a pombinha;
Só tu me despresas, bella!

—E depois dizia—proseguiu a senhora Custodia com juvenil enthusiasmo:

Invejo a sorte do rôlo,
E do pombo a sorte invejo;
Santas leis da natureza,
Não falteis ao meu desejo.

[Pg 67]

—Ai! que tempo! que tempo!... Tivesse eu cabeça, que bem podia a esta hora ser a dona da botica!... Morria por mim o pobre do Gregorio... Sim, o Gregorio—disse ella baixando o tom da voz á feição de nota explicativa entre-parenthesis—o Gregorio era o boticario, que me botava estes versos e muitos que me hão de lembrar!... Fui tôla... na cabeça me deu... Ai! homens, homens!

Uma lagrima borbulhando no canto interno do olho direito de Custodia da Porciuncula attesta que, n’aquelle momento, se desdobram scenas tristes deante de sua alma. Respeitemos a secreta angustia que ainda póde espremer-lhe uma lagrima do coração mirradinho. Um lance desgraçado de sua vida nos basta para conjecturar que passava por ella o suão infernal de um amor desditoso. Aquella mulher, quarenta e dois annos antes, acceítára a creação de um filho estranho, tendo atirado o seu á roda dos expostos. Quantas agonias de arrependimento e saudade n’aquella lagrima!

—Vamos lá... leia o mais, menina—disse ella com vehemencia limpando os olhos, e sacudindo os braços como se quizesse afugentar as imagens mortificativas.

D. Thomazia foi lendo até final, sem encontrar frase que lhe lisongeasse a percepção. A linguagem era cada vez mais repolhuda, e entremeada de vocabulos exdruxulos e de tal compridez, que a menina partia-os a meio para arejar os bofes. Confessou ella ingenuamente que não tinha estudos para entender os dizeres do sujeito;[Pg 68] sem embargo, o coração interpretou aquelles adoraveis enigmas.

—O que elle diz é que me ama; isso lá, diz!—asseverou Thomazia.

—E que quer casar com a menina? vem isso lá?—perguntou atiladamente Custodia.—Sim; é preciso saber-se se diz que a ama para o bom fim.

—Pois não ouviste que elle escreve...

—O quê? que escreve?

—Que suspira pela rolinha amada...—observou Thomazia relendo o trecho predilecto.

—Mas isso que diz da rolinha não é cá o que eu quero saber. Deixemo-nos de rolinhas. Falla ahi em casar? Eu não ouvi...

—Casar? sim... eu, casar, não achei cá.

—Pois então, menina—decidiu severamente a velha—se não achou, não responda sem que elle diga pelo claro o que quer. Que eu—modificou a senhora Custodia—estou certa de que o mancebo quer casar; mas, pelo sim, pelo não, quero tudo em pratos limpos. Ora com isso de rôlos e rolinhas não temos feito nada. Eu já não sou d’hoje nem d’hontem. O mundo está cada vez mais diabo, Deus me perdôe. Os meliantes já não eram poucos no meu tempo... que fará agora, que a religião está na espinha! Emfim, depois de ámanhã hei de ir onde a elle, e bem sei o que lhe hei de dizer.

Parecia querer a menina advogar o texto sibillino da carta, allegando que a sua falta de sabedoria a não deixava entender os pontos onde a pessoa lhe propunha o[Pg 69] casamento. Correu d’olhos outra vez a carta a vêr se, pelo menos, encontrava a palavra himeneu, erudição que a pratica das comedias lhe havia ministrado, e depois lhe serviu, como se disse, na mentira a Gervasio. O que prova, ao mesmo tempo, que a erudição é boa e má.

Himeneu era vocabulo de que os estilistas de 1844 já se não serviam. Não estava na carta esta velharia tão necessaria a Thomazia, n’um lanço em que o seu espirito podia confundir a ignorancia e ruim suspeita de Custodia. Ficou triste a moça; mas não duvidosa das intenções honestas do seu amador, mormente, se, consoante a fé vacillante da velha, lh’o tinha suggerido S. Gonçalo—intervenção em que a menina não punha a maior confiança.

Como quer que fosse, Custodia, passados dois dias, foi em cata do programmatico noivo, e disse-lhe que fizesse outra carta que se entendesse, e pozesse claro o sentido do namoro.

O elegante não se riu interiormente da ignorancia da Thomazia, porque, bem averiguado o caso, não era redacção d’elle a carta, nem elle, dizendo verdade, se tinha avantajado á innocente da rua das Cangostas em percebel-a. O interprete de seu coração tinha sido um poeta, prosador biblico, precursor temporão d’estes teutonicos de hoje em dia, cujo progresso os distancía tanto do lirismo de 1844, que já os espalhafatos d’aquelle tempo nos parecem agora comparativamente chãos como a carta d’amores de uma costureira.

O rico mancebo que encommendava os rascunhos[Pg 70] aos seus amanuenses, sem lhes graduar o calibre intellectual das mulheres, e, pelo commum, se não déra mal com o genero farfalhudo, pediu copia sem pautar o espirito da pessoa, trasladou-a com esmerada caligraphia, convicto de que os corações amados desnecessitam entender a rethorica dos corações amantes. Advertido agora pela honesta alcaiote d’estes amores mal estreados por causa do luxo da lingua (que para tudo serve e presta, como diz Rodrigues Lobo, e até para tolos é dadivosa) foi o joven logo d’ali escrever outra carta com o estilo de casa, bom, espalmado, optimo para o effeito de que o entendessem.

Á leitura da segunda carta, Custodia batia as palmas e exclamava, abafando o esganiçado enthusiasmo:

—Agora, agora! Isso percebo eu, menina!

Thomazia tambem percebia tudo, tirante as sandices que podiam ser sómente inventariadas por pessoas de espirito culto. No mais, não faltava á declaração um ar de sincera estupidez, solapando o bestial intento de seduzir a moça.

Agora fica já conhecido o sujeito a quem a menina das Cangostas estava respondendo.


[Pg 71]

CAPITULO V

Argumento

Innocencio espreita e apanha a menina. Diz-se o que era o babeiro do amor. Cacareja elle uma risada sinistra. Como o cavallo do elegante collaborou no amor subitamente accendido no peito de Innocencio. Terrores de Thomazia. Custodia dá-lhe espirito, promettendo tolher a lingua do joven. Quem era João José da Costa Guimarães. Como ella alimpou os olhos enxutos e logrou segunda vez Gervasio. Intervem Custodia no lance solemne de se estar Innocencio roendo as unhas sem acabar de resolver-se a casar. Cita um apophtegma do boticario. É mal recebida a authoridade metrica no auditorio. Recolhe-se Gervasio e mais o filho a um armazem de geropiga, onde lhe diz o que melhor se verá adiante. Como um homem precisa ser mais entendido que o burro de Buridan.

Innocencio não enguliu, como elle dizia, o maranhão: riu-se da boa fé paternal e espantou-se da astucia da rapariga.

Por volta das quatro horas da tarde, estava elle, á porta da rua, fogueando o seu charuto, ás escondidas do pae, e resfolegando soffrego as fumaças, com a voluptuosidade de rapaz que fuma ás furtadellas. N’este comenos, passou, em upas e corcovos de fogoso ginete, o enviado de S. Gonçalo, com os olhos disfarçados no[Pg 72] parapeito da janella onde Thomazia costumava sair já nada esquiva. Innocencio retraíu-se para o escuro do pateo, e deu tento de rangerem em cima as portadas da janella. Espreitou de esconso o cavalleiro, e viu-o meio-voltado sobre o sellim, com esbelto meneio, revirar um olho á janella e surrir, correndo pelo bigode um lenço branco. O lenço branco, n’aquelle tempo, era ainda o babeiro do tenro amor, a bandeira do coração em batalha de ternos dardos.

Passou o galhardo picador, e Innocencio, pulando ao meio da rua, deu de cara com Thomazia ainda embevecida na figuração ideal do gentil rapaz, com os olhos postos no cunhal da casa onde se lhe desfizera a visão.

O filho de Gervasio cacarejou uma risada rispida e melodramatica como de actor garraio. A orfã olhou despavorida, e viu Innocencio a trincar o charuto, debaixo da aba do chapéo carregado sobre o nariz, coruscando-lhe das pupilas umas áscuas de raiva não vulgar.

Fez pé atraz a menina, e sumiu-se com o seu pejo e medo. Innocencio voltou para o pateo, acendeu outro charuto, e começou a passear freneticamente no lagêdo, scismando sem atinar com o alvitre mais adequado á sua refervente indignação.

Estranhava-se o rapaz! Poucas horas antes, a quasi certeza de que Thomazia escrevia a outro, levemente lhe agastára a vaidade; e agora, o vêl-a acudir ao reclamo do mais famigerado galã do Porto, e o cuidar que era aquelle o encuberto amor da rapariga, isto sómente lhe atanazava o peito de raladores ciumes! Comparava-se[Pg 73] com o outro em gentileza e agrados. Raivava convicto da sua inferioridade; porque o seu rival cavalgava guapamente, era bem parecido, galeava pelos figurinos, tinha uns ares soberbos de quem despreza invejosos, entrava na roda dos provincianos fidalgos, e, de mais a mais, rico.

Vejam de que paixão ruim nasceu o amor de Innocencio! Foi a inveja que lh’o esporeou! Isto não admira. Não é bem sujo e fetido o adubo em que se aquece a raiz de um assetinado lirio? De detritos podres não surdem e avoejam insectos de azas iriadas de ouro e azul?

A orfã agachou-se a tremer á beira de Custodia e disse-lhe anciada:

—O Innocencio viu-me na janella... Agora ahi vem elle acusar-me ao padrinho... Que ha de ser de mim, Custodinha?

—Não, que a menina negue—acudiu a velha destemida.—Negue, que eu vou responsal-a, e tolhel-o a elle, que hade querer fallar e não poder.

A serva de Deus recolheu-se, apanhou entre os joelhos a cara, e quedou-se orando n’aquella postura pouco reverenciosa e quasi indecente.

No entanto, a rapariga, offegante de medo, subia e descia de mansinho as escadas que levavam da agua-furtada, onde era o quarto da velha, ao segundo andar. De cada vez que voltava, ia á beira de Custodia, e segredava-lhe:

—Não ouço nada.

—Deixe-me cá...—resmuneou a creatura, que continuava[Pg 74] de bôrco os seus arranjos com os espiritos superiores.

Corrido um quarto de hora sem que Innocencio fizesse rumor, a velha alçou a cabeça, e disse com modesto aprumo:

—Está tolhido! Os meus santos não se cançam de ouvir a peccadora. Devo uma novena ao meu padre Santo Antonio.

Acabadas de proferir estas palavras, reboou desde o patamar do escriptorio a vozeira de Gervasio José, chamando Thomazia.

Estremeceu a menina; e a velha ficou por momentos descrida de ter bem tolhido a lingua de Innocencio.

—Ai! e agora?!—exclamava Thomazia.

—Vá lá, vá lá; faça-se de novas, e negue, que eu cá fico a rezar... E não se me ponha lá a choramingar... ouviu? Noivo tem a menina...

—Então, digo-lhe ao padrinho que tenho noivo?... acho que o melhor é ser verdadeira, não é, Custodia?...

—Não diga nada por ora, que em fim...

Gervasio vinha já subindo as escaleiras, quando a moça descia com a mais serena compostura de semblante, dizendo:

—Aqui vou, meu padrinho...

—A senhora não ouviu chamal-a ha pedaço?—perguntou desabridamente o velho.

—Não ouvi...

—Essa é boa! onde estava vocemecê?

—Na trapeira a dar agua aos manjaricões.

[Pg 75]

Hum...—regougou Gervasio, medindo-a com olhar carrancudo.

—O padrinho está zangado?—atalhou affavelmente Thomazia.

—Venha cá ao meu escriptorio: temos que fallar...—E accrescentou abaixando a voz:—Estou pasmado...

—De que, meu padrinho?!

Entraram no escriptorio. Thomazia viu as costas de Innocencio que estava olhando para o saguão atravez da vidraça.

—Com que então...—disse Gervasio, bamboando a cabeça—com que então...

A moça esperava o resto, serenamente encarada, com as mãos nos bolcinhos do avental.

—Afinal de contas...—proseguiu o entalado velho, saltando do exordio ao final de contas.—Que me dizes tu a isto, Thomazia?...

—A isto quê, meu padrinho?! Eu não sei por que vocemecê me está tratando assim...

—Não sabes?!—bradou Gervasio—não sabes?... Com que então... aquella carta era para o meu filho?... era para o meu filho que tu estavas escrevendo a cartinha, sim?

—Era, sim, senhor.

—Não minta!—entreveio Innocencio; rodando sobre os engonços dos calcanhares com a presteza de um manequim. Não minta! A senhora não foi, ha bocado, á janella, quando passava a cavallo o João José da Costa Guimarães?

[Pg 76]

—Quem é esse?—acudiu a menina com assombrada innocencia—eu conheço lá o Guimarães!...

—Não conhece aquelle rapaz que ia a surrir-se para cima, e a assoar-se a um lenço branco?—replicou o moço—Não sabe quem é o Costa Guimarães?!... Ora adeus!...

—Eu tinha aberto a janella—voltou Thomazia triste, mas socegada—porque... estive por traz dos vidros a ver se...—E suspendendo-se por dois segundos, continuou com mais calor.—Eu direi a meu padrinho o que estava fazendo, e a razão por que fui á janella.

—Então, diz lá...—sobreveio Gervasio.

—Hade ser só a meu padrinho...

—Vae lá p’ra cima, Innocencio—disse o pae ao rapaz.

Saiu Innocencio com os olhos abatidos e as mãos nos bolços da judia. Levava ares de tolo, e todavia doia-lhe o coração deveras. Gervasio fez um gesto de cara para deante e cabeça para traz, significando á menina que fallasse.

—Eu, padrinho, estava atraz das vidraças a ver se o Innocencio saía. Quasi sempre o vou espreitar de modo que elle o não saiba, para que não pense que eu lhe quero bem por que elle é rico. Hoje estava eu á espera que saisse; esperei, esperei muito tempo; e cuidando que elle estava á porta da rua a olhar para a Maraquinhas Gomes, abri a janella, quando ia a passar o tal homem a cavallo, que eu não sei se é Guimarães, se que diacho é. Vae n’isto, o Innocencinho foi p’ro meio da rua, e poz-se a olhar para mim muito carrancudo.[Pg 77] Eu pensava que a zanga d’elle era por eu o andar espreitando; e vae elle de que se hade lembrar? vem dizer ao padrinho que eu estava a namorar o outro. Coisa assim!...

Thomazia tirou um lencinho da algibeira, e levou-o aos olhos para que Gervasio lh’os não visse enxutos.

A cara do velho alargou-se dilatada pelo calorico da alegria; é preciso a fisica para explicar os movimentos das caras onde não ha metafisica nenhuma. Tem não sei que aspeito alvar o contentamento das almas boas. O de Gervasio José de Barros jubilava tão grandemente e tão convencido da innocencia da afilhada, que não se satisfez com menos de abraçar a orfã e exclamar:

—Ó menina, perdôa ao meu filho, que é um asno!... Anda aquelle bólas com a cabeça tão desarranjada, que se tu lhe não dás juizo com o casamento, eu qualquer hora pego d’elle e mando-o comer no Brazil o pão que o diabo amaçou. Mas o que o Innocencio quer, filha, é que tu gostes d’elle, e mal sabe o patarata que tu lhe queres tanto... Gostas do meu filho, deveras, rapariga?

—Sim... eu...; mas... elle... como é rico, e tem muito quem o queira... e eu sou pobre... por isso...

—Asneiras, menina, asneiras! Quem é rico sou eu, não é elle, entendes, Thomazia? Eu é que tenho alguma coisa, riqueza não digo, por que ha quem tenha mais; mas ganhado com mais honra, não. Ora agora, o meu filho por emquanto é tão rico como tu; e ao futuro, se me andar fóra dos eixos, póde ficar a ver o sete-estrello, entendes?... Eu já te disse que...

[Pg 78]

—Mas se elle casar com outra menina rica...—interrompeu Thomazia.

—E d’ahi?

—Não lhe faltarão senhoras do agrado do padrinho...

—Não me dês leis, menina. O que me convem sei eu... Não quero cá a menina rica... Quero-te a ti, por que te estimo como filha; quasi me nasceste nos braços; e prometti á alma de teu pae olhar tanto por ti, como se fosses irmã do meu Innocencio. São dois filhos que eu tenho. Se elle te não quizesse, Thomazia, sabes o que acontecia? pelo menos metade do que eu tenho havia de ser teu; isso lá nem a justiça nem o bersabú t’o tiravam. Se elle casar comtigo, como de feito, fica-vos tudo; não tendes partilhas que fazer, e fica-vos bastante, graças a Deus, e louvores a quem m’o deixou sem pragas de orfãos e viuvas.

Thomazia não se enterneceu até ás lagrimas; mas ficou tanto ou quanto commovida por sentimento de gratidão ao amor paternal do velho. Figurou-se-lhe ver a imagem do pae, ainda não delida totalmente da sua memoria, arguindo-lhe com severidade a perfidia com que respondia á generosa alma do seu bemfeitor. Sem intervenção do venerando fantasma de seu pae, sobrava para magoal-a a vergonha espontanea que sobreleva os malissimos instinctos.

O regosijado Gervasio José saiu ao pateo e chamou o filho, e a mulher, e as irmãs, sentindo não ser usual invocar os visinhos para quinhoarem da alegria de um[Pg 79] coração bonissimo. Innocencio foi o ultimo que desceu.

—Venham cá!—exclamou o velho com as bochechas rosadas e cheias de riso.—Anda cá tu, meu filho, que és um lorpazito como eu fui quando amava tua mãe, e como hão de ser teus filhos e netos até ao fim do mundo peronia secla seclorium. Ouve lá, menino. Olha que a Thomazia foi á janella para te ver; e tu, que trazes a cabeça lá por cascos de rôlhas, cuidaste que ella ia ver o outro. Menina, conta ahi tu como foi a coisa a este teu noivo, que está ali com um nariz de palmo a olhar p’ró chão e com a vista de esguelha! Não me estejas a olhar-me p’rá pequena com esse olhar de porco, Innocencio! Vaes mal com esse sistema... Pagar amor com ingratidão nem os cães. Menina, diz ahi tu como foi que...

Thomazinha, sem erguer o collo da pudica inclinação em que o tinha, murmurou mui constrangida:

—Já contei ao padrinho... Se elle não quer acreditar, deixal-o. O que eu faço d’aqui em deante é não tornar á janella, e acabam-se as desconfianças...

—Como as desconfianças se acabam sei eu,—emendou D. Thomazia.—O que se hade fazer ao tarde faça-se ao cedo.

—Dizes bem, mulher!—obtemperou o marido.—Hade isto ficar decidido aqui hoje.—E voltado solemnemente ao filho, continuou:—Innocencio, queres receber por tua esposa esta menina?

Deteve o rapaz a resposta, roendo a unha do dedo pollegar, e revirando de soslaio os olhos a Thomazia.

[Pg 80]

—Então?—bradou o pae—comes os dedos ou respondes?

—Ella que diga...—murmurou Innocencio, passando a roer nas unhas da outra mão.

—Afilhada!—apostrofou o velho guardando os mesmos tom e postura graves.—Queres casar com meu filho?

A menina corria a orla do avental retorcendo as franjas de retroz uma por uma com os seus alvissimos dedos.

—Responde, Thomazia!—tornou Gervasio dando aos hombros com impaciencia.

—O padrinho bem sabe a minha vontade... Eu estou por tudo... mas...

—Mas quê...—abreviou o velho desconfiado das reticencias.

—Se elle me não ama depois... O padrinho bem sabe que o Innocencinho nunca me disse se eu queria casar com elle... Tem lá outros namoros de meninas ricas... e eu sou uma pobre orfã... Se depois se arrepender...

—Que dizes áquillo, Innocencio?—tornou Gervasio.

—Eu...

—Sim, tu! pois com quem diabo fallo eu!

—Ó Gervasio!—atalhou a irmã Sebastiana—não tens precisão de fallar no porco-sujo!...

—Pois que querem vocês?—explicou o velho.—Um homem perde a paciencia! Está ali aquelle focinhudo a[Pg 81] roer os cascos, e não acaba de desembuchar o que lá tem dentro!

—Responde a teu pae, menino!—interpoz-se D. Thomazia.—Ou sim, ou não. Contra vontade não quero que te cases...

—Isso é assim!—atalhou um novo personagem n’esta poetica e fidelissima scena de familia.

Era a senhora Custodia da Porciuncula que assomava no limiar do escriptorio com as calmandulas enroscadas no pulso.

—Peço licença... Ninguem me cá chamou; os meus santos é que me trouxeram...—disse ella.

Abriram-lhe passagem com agradavel sombra as trez senhoras em quanto a menina desabafava o animo, encarando na sua confidente.

—A senhora D. Thomazia tem razão—proseguiu Custodia, inclinando profundamente a cabeça deante da consorte de Gervasio.—Casar, se o coração não puxa, é mau arranjo. Sempre me ha de lembrar o verso em que o boticario dizia:

Menina, casar sem gosto
Por fazer vontade alheia
É cair no inferno em vida,
Remar contra a maré cheia.

Innocencio careteou uma visagem de anojado do tom enfatico e talvez ridiculo com que a senhora Custodia usava citar os aforismos liricos do boticario. A velha[Pg 82] deu tento do desdem do moço, e calou-se de subito, relançando-lhe a vista azedada.

—Deixemo-nos agora lá do verso do boticario—disse o pae de Innocencio egualando-se ao filho no descaroado desamor a poetas, mormente quando se discutia uma coisa séria. Não venha cá a Custodia dar sentenças, que o negocio hade arranjar-se sem o seu voto, se Deus quizer...

—Senhor Gervasio—replicou a velha—se Deus quizer, sim; mas se Deus não quizer, não...

—Deixa fallar a mulhersinha, Gervasio,—interveio a esposa,—deixa-a fallar, que é mulher experimentada.

—Será, será; o diabo o negue...—acudiu o burguez maliciando o dito casto da mulher.

—Anjo bento!—murmurou a senhora D. Florencia—ahi vens tu outra vez com o cão tinhoso!

—Sabeis vós que mais?—redarguiu Gervasio—ide á fava! Estou a mandal-as todas p’ra riba, e fico sósinho com os pequenos... Que estás ahi a resmungar, Custodia?... Diz lá o que quizeres... Achas que a filha de teus amos vae mal casada com o meu filho?

—É consoante, senhor Gervasio. Se elles gostam um do outro, muito que bem; se não gostam, tanto faz ser rica como pobre; contentes é que elles hão de viver, quando eu fôr rainha. Não é isto nem aquillo... Estes meninos, cá segundo entendo, não estão talhados p’ra se casarem. O senhor Innocencinho não gosta da senhora D. Thomazinha.

—Quem t’o disse?!—bradou Gervasio.

[Pg 83]

—Ora, quem m’o disse! Basta vêl-o. Se elle gostasse d’ella, estava aqui agora aquella menina á espera que elle se resolva? Então já lh’o elle tinha dito, e acabavam estas caramunhas de parte a parte... Emfim, senhor Gervasio, queira perdoar o meu atrevimento, mas a minha opinião é que os deixe estar solteiros. O seu filho não lhe faltam noivas; e á menina, se Deus quizer, não lhe hão de faltar noivos. O melhor dote que ella pode ter é a sua virtude e a carinha de santa que tem.

Gervasio roçava as costas das mãos uma na outra e bufava, voltando a parte posterior de sua pessoa á sã filosofia de Custodia. As trez senhoras, convictas de que a velha era servida de favores do alto e sempre mais ou menos inspirada, attentavam religiosamente no que ella dizia. A menina desafogava-se da oppressão, respirando pelo desabafo da criada. Innocencio guardava um silencio que tanto podia considerar-se summo siso como supina toleima.

Quebrados os impetos da colera, Gervasio José abriu uma porta de entrada para um armazem de geropigas, e disse ao filho:

—Anda comigo, rapaz.

Entrados ao armazem, fechou o velho a porta, e rompeu assim de vizeira com Innocencio:

—Queres casar ou não? Gostas da rapariga ou não gostas? Diz lá o que quizeres, que eu não t’o levo a mal. Se vês que te não agrada o casamento, dil-o p’r ahi[Pg 84] á bocca cheia. Cá ás costas não quero culpas. Queres a moça ou não queres?

N’este lance, o rapaz viu trez bonitas raparigas: uma era a visinha Mariquinhas Gomes, que tocava piano; outra, era a Felismina da rua das Flores, que lhe tinha dado amendoas, na Misericordia, em quinta feira santa, ao pé da pia; a terceira era a Rosinha da Praça Nova, que lhe pisára um pé, estando elle a jogar o quino em casa da mesma menina, a mais presada das trez. Por tanto eram trez provas de ternura que lhe lancetavam o coração n’aquelle momento. Trez meninas, aliás quatro com Thomazia, que lhe embaraçavam a escolha, obrigando-o a ter mais engenho que o pensador e historico burro de Buridan.

N’esta oscillação, demorou-se o que bastou para o pae concluir assim terminantemente:

—Está visto... Não queres a rapariga... Acabou-se; não fallemos mais n’isto. Vamos embora.

—Olhe cá, meu pae...—susteve Innocencio.

—Que é?

—Eu queria dizer-lhe uma coisa...

—Então?

—Peço quinze dias de espera.

—P’ra quê? P’ra te decidires? Deixemo-nos de historias. Se o coração t’o não pede, acabou-se. Tanto faz scismar no caso como estar a dormir. Arrumou-se a pendencia. Nada perdido. Vou tratar de casar a pequena com um dos meus sobrinhos de Villa-Flor. O que eu não quero é têl-a solteira em casa; que isto de mulheres,[Pg 85] ás duas por trez, desandam, e ninguem tem mão n’ellas. Acabou-se. Vamos embora.

A determinação de Gervasio era sincera. Póde ser que um misterioso relampago, n’aquella hora, lhe aclarasse, em confuso, o porvir desditoso de tal enlace. O certo é que a vontade de unir o filho á orfã se lhe varreu de todo.


[Pg 86]

CAPITULO VI

Argumento

E vae eu disse e vae elle disse. O grande tratante que era João José da Costa Guimarães. Operações da Providencia. Custodia pragueja como uma vivandeira. Como a menina se foi consolando. Costa Guimarães fica sendo na alma de Thomazia a figuração de um sapo. Reconsiderações de Custodia, e o coração de rôla da innocente. A velha pensa em embruxar Innocencio. Reminiscencias do farmaceutico amado. Esconjuros de sal virgem e salgação de Innocencio. Como o rei de ouros saiu de corpo e pensamento com a dama do mesmo naipe. O rapaz não póde já comer os pés de bacoro, eguaria predilecta. Pede-lhe Thomazia duas melancias. Lampejo de espirito d’elle. Gritos indicativos de que um homem está perdido.

—Menina—dizia Custodia á orfã, passados dois dias—não vê os meus olhos?

—Estão vermelhos...

—É de chorar... Tanto resei, e a final... historias. Deus me perdôe, se pecco; não é o Guimarães quem a hade levar á egreja.

—Ah!—suspirou Thomazia. Então que disse elle?

—Tenho muito que lhe contar, filha do meu coração... Eu dei-lhe a carta á esquina da viella dos Gatos! Elle leu-a logo, por que eu lhe disse que a menina queria[Pg 87] resposta. Futurou-se-me que o dianho do homem cobria a cara com o papel para se rir ás escondidas! Depois, poz-se a fechar a carta e não me dizia nada.—Que heide eu dizer á menina?—disse eu; e vae elle disse: «Que lhe hade dizer? eu sei cá!» e vae eu disse:—Pois a menina não lhe diz ahi que a vá pedir já, se quer casar com ella?—E vae elle disse: «Sim, ella diz isso; mas eu...»—E vae eu disse: «Mas eu quê? então o senhor que cuida? Cuida que isto são brincadeiras?—E vae elle disse: «Ainda estou muito novo; se me casar hade ser lá p’ró diante». E vae eu... Em fim, assim que ouvi isto, parece que o coração se me despegou por aqui abaixo. Fui-me metter na egreja de S. Bento, e estive lá a chorar, que já nem via o padre. D’ali a pouco...

—Ai!—gemeu Thomazia.

—Deixe dizer o mais, e não se afflija que homens não faltam, menina. D’ali a pouco fui ouvir outra missinha aos Congregados, e quando saía para ir resar aos Clerigos vi o tal Guimarães á porta de um botequim que está nos baixos dos frades, sim dos frades que lá estavam quando havia religião, e estava elle no meio de outros a ler um papel, e os outros a dar gargalhadas.—Querem vocês ver, disse eu cá comigo, que o berzabum do patife está a mostrar a carta da minha Thomazinha? Vou espreitar... E fui muito escorcemelada com a parede, e metti-me n’uma porta, d’onde ouvia tudo. Meu dito, meu feito! Era a carta da menina...

—Ai!—espeitorou a anciada moça, pondo as mãos[Pg 88] lindas sobre o alto seio que parecia beijal-as ao levantar-se nos arquejantes éstos.—Era a minha carta?!—exclamou ainda Thomazia, levando as mãos ao rosto.

—Era, era, filha; mas não chore, que os ditos da menina, não n’a envergonham.

—E que diziam os outros?

—Olhe, quando o bregeiro lia aquillo que dizia: Dizei-me se quereis já, já unirse-vos a mim pelos sagrados laços de... de que era que a menina dizia lá?... do jubileu ou coisa assim... os outros até davam saltos a rir-se, e dizia um:—Oh! que burra!—e outro berrava: «Eu quero ver essa mulher das Cangostas; dá-me essa seresma por piedade, Guimarães!»... a chamarem-lhe seresma aquelles canalhas! Ai, menina! As lagrimas saltaram-me como punhos!...

Thomazia menos ferida no coração do que na vaidade—não já de redactora de cartas, senão de mulher que a si mesma se via digna de respeito no seu amor—chorou agora tão sincera e amargamente, quanto dois dias antes fingira lagrimas deante do padrinho. As operações da Providencia!

Custodia continuou:

—Não chore, meu anginho, não chore, que me parte de meio a meio o coração!

—E tu a dizer-me—soluçou a orfã—que os santos te tinham mandado o meu noivo... Se não fosse isso, eu não caía em lhe escrever...

—Tem razão, tem razão: mas que quer, menina? A gente engana-se. Cuidei que as minhas orações valiam[Pg 89] alguma coisa... Paciencia... Deus sabe melhor o que faz do que nós o que pedimos. Que leve a breca o homem e má peste o tolha! Tantos diabos o apanhem como bagadas me cairam por esta cara!...

A menina estava mais desabafada. De tão superficial amor, assim ultrajado, qualquer outra senhora, mais bem compleicionada, declinaria facilmente ao odio. Odio é que ella sentia ao villão que lhe expozera á zombaria o estilo da carta. Ainda ha de nascer a mulher que perdôe insulto de tal porte; que a diffamação da honra é menos affrontosa do que o escarneo de uma carta em que vae o coração. Portanto, a imagem de João José da Costa Guimarães, no espirito de Thomazia, fazia a impressão de um sapo, e mais nada.

Custodia da Porciuncula, assim que a menina se amostrou mais socegada, fallou-lhe assim:

—Ora, diga-me cá, anginho... Que lhe parece o Innocencio? Elle gostará da menina ou não?

—Eu sei cá!... por quê?

—Não que isto é uma pergunta... Está-me a parecer que o rapaz lhe quer bem, e que... bem me entende... lá como casamento não era desarranjo, acho eu. Já lhe disse que o arrenego, e tomára eu ver a menina casada com outro; mas, se elle fosse bom marido, rico é elle; e, pelo que vejo, não ha que fiar em ninguem, para a gente andar á cata d’outro. Eu cá nas minhas aquellas de santos já me não fio, Deus me perdôe... Sabe que mais, senhora D. Thomazia?... Entende-me?

[Pg 90]

—Sim; mas... tu não viste que o padrinho desde antes de hontem não me disse mais nada?

Como a innocente percebeu a velha! Muito longe de repugnar-lhe o conselho, offereceu logo razões impeditivas de realisar-se! Coração de rôla!

Era verdade. Gervasio nada mais lhe tinha dito, desde que saíra com o filho do armazem da geropiga; e Innocencio apenas se avistára com ella ás horas de jantar ou ceia. Que os olhares se encontravam rapidos como dois relampagos afusilados de polos fronteiros, isso era tambem verdade. Tanto os paes como os tios de Innocencio festejavam particularmente estes bons indicios de ainda verem coroadas as suas esperanças, por effeito de uma reciproca e espontanea rebentação de amor nas duas almas a um tempo.

A’quella consideração da orfã, obviou Custodia:

—Isso lá do padrinho não lhe dizer nada tanto faz como coisa nenhuma, filha. O caso é o rapaz; o rapaz é que é preciso prendel-o.

—Ahi vens tu com as tuas prisões e telhiços!—atalhou Thomazia.—Eu não tenho fé com essas endróminas.

—Não tem?—garganteou a velha rindo sêccamente.—A menina é muito nova...

—Então por que não prendeste aquelle malvado do Costa Guimarães?

—Por que o não prendi?

—Sim.

—Deus lá o sabe... Cá eu nas minhas orações não[Pg 91] chamo demonios, é santos, entende? e os santinhos, se me não ouviram, é por que bem sabiam a rôlha que era o tal patife. Dê graças a Deus, menina! Foi bom que isto acontecesse antes de lhe entrar o amor de raiz, por que já lá dizia o verso do boticario:

Costilia, se me não amas...

Costilia, dizia elle que era Custodia... Eu não sei...—explicou a velha, e proseguiu mudando o tom chão da nota para o declamatorio:

Costilia, se me não amas,
Diz-m’o ao cedo e não ao tarde;
O fogo apaga-se ao cedo,
Nemja quando ha muito arde.

Pois é como é, meu serafim do céu... Não nos lembre mais o demonio do homem, e vamos cá ao que serve. A menina deixe-me manobrar, e lá pela sua parte não faça nada; isto é, quando o Innocencio olhar para a senhora D. Thomazinha, olhe tambem; se elle lhe fallar, falle-lhe; se elle não fallar, não falle. E deixe-o andar; que o rapaz ha de ganhar-lhe paixão. Oh se ha de!... eu que lh’o digo...

—Mas eu não gosto d’elle...—interrompeu a moça, fazendo uma visagem de fastio.

—Ora vamos lá, vamos lá; o rapaz não é mal-ageitado; e, de mais d’isso, os homens todos são uns...[Pg 92] E a riqueza, menina?—aqui levantou de ponto a voz e arregaçou as palpebras, entumecendo os olhos de emfase—E a riqueza? A menina sabe lá quanto esta gente tem de seu?! Quando eu vim crear a sua mãesinha, ha mais de quarenta annos, ouvi muitas vezes dizer a seu avô que os antigos d’este Gervasio eram judeus que mediam ás razas ouro em pó... Lá me custa, isso é verdade, que a menina se case com homem de raça judia; mas tanto o pae como o avô de Innocencio foram baptisados, e as senhoras essas são boas christãs. O rapaz, quando era pequeno, ainda ás sextas feiras lhe fervia o sangue; mas agora, eu tenho pedido ao Senhor que o faça bom, e hade fazer. Tome tento, menina; ande-me com o lume no olho, não deixe fugir a occasião, que isto de homens, são assim—disse Custodia, fazendo no ar um gatimenho com a mão descarnada.—Casar, e quanto antes, que não vá algum d’aquelles diabos da Praça-Nova dizer ao Innocencio que a menina mandou a carta.

—É verdade!—exclamou Thomazia transida já do receio de se lhe frustar o casamento que, pouco ha, desdenhára.

—Não se assuste... O Innocencio ámanhã vae p’ró Douro ver as vinhas de mando do pae, e só volta d’aqui a oito dias. Em quanto vae e volta ninguem já se lembra de nada.

Estavam a soar as badaladas do meio dia. Custodia disse a Thomazia que a deixasse sósinha, por que assim se fazia necessario.

[Pg 93]

Foi a velha á cosinha e colheu da saleira um punhado de sal. Fechou-se na agua-furtada, e pulverisou o sal n’um caco. Depois, accendeu uns gravatos de alecrim, e esperou que batesse o meio dia n’outra torre. Ao primeiro toque, tirou uma boa pitada de sal, lançou-a á lavareda do alecrim e ciciou estas palavras debruçada sobre a vaporação da fogueirinha: Eu te salgo, Innocencio; eu te resalgo e torno a resalgar para que não possas comer, dormir, fallar, nem socegar, sem com a Thomasinha casar.

Seguiram-se mais duas pitadas de sal virgem e dois esconjuros no mesmo estilo.

Concluida a operação magica, acocorou-se a beata, sorveu duas vezes de simonte, ageitou o regaço, montou as cangalhas, e botou as cartas. Saiam-lhe dispostas as figuras do baralho tão de molde com o desejo que, á terceira vez, a sibilla ganiu um ai de puro jubilo, estremecendo sobre a tripode do capacho em que se amezendára. O rei de oiros, que era Innocencio, calhava sempre de corpo e pensamento com a dama do mesmo naipe, que era Thomazia. Por isso ella ganiu com uma expressão torva, sobre-humana e como de vocalisação infernal; pois não ha duvidar que ha o que quer que seja satanico na cartomancia, quando as mãos escarnadas e roixas das profetisas cruzam sobre o baralho aquellas bençãos e murmuram umas vozes esconjuratorias que a mim, homem d’este seculo e progressista, me já tem feito arripiar as fibras intimas e riçar os cabellos.

Entretanto, estava jantando a menina. A cadeira de[Pg 94] Innocencio defrontava com a sua. Reparou ella que o rapaz comia pouco, sem embargo de lhe estar a mãe avitualhando o prato com uns pés de sevado, iguaria dilecta do filho. Deu fé, além d’isso, de que elle lhe esguelhava a miudo os olhos, perfilando o rosto para a não encarar de fito.

—Ámanhã a estas horas onde estarás tu, meu filho?—perguntou a mãe já com tristeza da presentida saudade.

—Estou no rio Douro—respondeu altivamente Innocencio com semblante acabrunhado.

—Estás Entre-ambos-os-rios—disse Gervasio.—Não se esqueçam de lhe metter duas gallinhas no alforge. Deixa-te lá estar oito dias, e não venhas senão depois de bem desfolhadas as vinhas. Manda-me lavar os toneis, e olha se me aproveitam o sarro. Agora não te vás lá pôr a malucar; que tu não me trazes essa cabeça escorreita!...

—Deixa o menino!—atalhou a senhora D. Thomazia.

—O menino!—murmurou desdenhoso o pae—menino de vinte e dois annos!

Innocencio assoprou do fundo peito um suspiro demorado como o de borracha de vento que se esvasa vagarosamente. A menina levantou os olhos ao rosto do moço e surpresou os d’elle a fugirem do encontro.

Findo o repasto, e dadas graças a Deus, Thomazia foi chamar Custodia para vir jantar, e contou-lhe em breve o que passára na mesa. Custodia grasnou um riso protervo de brucha e disse:

[Pg 95]

—Deixe-o comigo.

Á ceia, no aspecto de Innocencio reluzia a inquietação interior. A mesma abstinencia e taciturnidade do jantar. Por mais que a mãe desvellada o desafiasse a fallar, não havia tirar-lhe frase que não fosse desconsolada e sêcca. Levantados da mesa, despediram-se todos d’elle porque Innocencio tinha de madrugar. Thomazia abeirou-se do triste moço, e deu-lhe um abraço, que elle recebeu com estranho estremecimento.

—Manda-me duas melancias da quinta, sim, Innocencio?—disse a menina compungida.

—Pois, sim...—murmurou elle, sentindo cair-lhe sobre o coração um cesto de melancias.

Custodia appareceu tambem para despedir-se, e deu ao moço uns bentinhos da Senhora do Rosario, compendiando n’um discurso apropositado as virtudes da nómina, e fechando a pia allocução com estas palavras:

—Cá ficamos todos a resar pelo menino. Não lhe hade succeder mal nenhum. As orações d’este anginho hão de guardal-o.

E, dizendo, apontava para Thomazinha, que abaixou os olhos.

Innocencio surriu-se, e disse:

—Hei de mandar-lhe as duas melancias que ella pediu.

Declaro que tenho noticia de poucos ditos com tanta graça e tão pouco desvanecimento! Hei de mandar-lhe as duas melancias que ella pediu... Isto é bom, quando a pequena inclinava o pescoço em geito de magoada![Pg 96] E para que vejam que o moço açabarcára n’aquelle só dizer todo o espirito que a natureza dera proporcionalmente á familia, basta saber-se que ninguem atinou com a dolorosa ironia do surriso e das palavras.

Ao repontar do dia, Innocencio entrava no barco-da-carreira. Soavam as trez pancadas das Ave Marias em S. Francisco. Ao mesmo tempo, Custodia, com o saioto pelos hombros, e um olho ainda tapado d’exalações nocturnas, lançava a terceira pitada de sal virgem na fogueira do alecrim, e dizia: Eu te salgo, Innocencio; eu te resalgo e torno a resalgar, para que não possas comer, dormir, fallar, nem socegar, sem com a Thomazinha casar.

E Innocencio, sentado á prôa do barco, olhava para as trapeiras da rua das Cangostas, e dizia entre si:

—Como diabo estou eu amando tanto esta Thomazia!...

Quando o coração se desentranha em gritos, assim eloquentes, está perdido um homem.


[Pg 97]

CAPITULO VII

Argumento

Descreve-se Innocencio, consoante as tradições. Como elle se carteava com a Mariquinhas e com a Rosa. Libertinagem do mancebo, desde as luvas côr de figado até ao quino do botequim da rua de Santo Antonio, e outras devassidões. O palacio de cristal e D. Ignez de Castro em 1868. Um passeio a vol d’oiseau pelo espirito e coração de Innocencio José de Barros. Explica-se a ida d’elle para o Douro. Porta-se bem, e não póde comer, rio acima. Apostrófa Thomazia, e declama quatro versos dos Ciumes do Bardo. Espanta-se o gentio do barco da carreira, e elle assobia para disfarçar. Custodia continua a salgal-o, e elle cada vez mais insipido.

Ainda não é tarde para dizer de Innocencio o que pude averiguar das tradições guardadas por muitos que o conheceram, no anno de 1843 em que vão correndo os successos d’esta exemplar historia.

Era de sua pessoa bem ageitado o filho de Gervasio José de Barros. Largo de aspaduas. Entroncado e rijo. Trigueiro, côr de bom sangue. Olhos negros, grandes e um tanto pasmados. Nariz denunciante da raça, judaico, longo, adunco e transparente. Nariz de Judas Escariotes chamava-lhe Custodia, quando elle lhe macerava os perigalhos das ventas d’ella com a bengala do pae. Mãos[Pg 98] e pés guardavam proporcional e harmonicamente um tamanho que fazia impressão. Não lhe vinha de Israel a superabundancia das extremidades: aquillo haviam-n’o ganhado seus avós na peninsula hispanica, onde as tribus dispersas e acurvadas por trabalhos rudes engrossaram os musculos e estiraram os tendões de pés e mãos. Isto não é regra. Se o fosse, a terra natal de Innocencio correria o risco de ser considerada uma conquista de hebreos.

Tenho dito da pessoa material; agora vejamol-o em espirito.

Passava por não ter nenhum na roda dos seus conhecimentos. Era taciturno e desconfiado. Sobejava-lhe instrucção para se fazer ouvir; porque notava em silencio algumas parvoiçadas alheias. Lia correntiamente, não envergonhava a ortografia; e a grammatica perdoava-lhe as offensas, por entender que elle nem a conhecia de nome.

Nem era necessario para se entender com algumas meninas. Desde os dezoito annos que se carteava ora com a Mariquinhas Gomes, ora com a Rosinha da Praça Nova. Os epistolarios d’estes amorios em flor acabaram em papelotes. Este destino foi o mesmo que rachar-se a urna onde estiveram os aromas do amor virginal de Innocencio. Vaporaram-se.

Aos vinte annos, o representante de Pero Barrios teve seis mezes de vida dissoluta. Comprava todos os domingos um par de luvas côr de figado ou côr de laranja alternadamente. Alugava cavallo ao Lopes, pedindo sempre[Pg 99] que lhe puzessem telim orlado de vermelho, e despedia a chotar, a galopar, a ferir fogo por essas ruas. E não caía. O cavallo ia-lhe entalado nos calcanhares ingentes. Era um centauro o grupo.

Vestia-se a primor da moda e consumia verniz em barda, torturando-se com heroico stoicismo. Ninguem lhe ouvia um gemido, tendo razões para gritar como seus avós com os pés untados de gordo sobre brasas vivas.

Gervasio não o encrepava d’estas demasias de luxo, bem que ignorasse as cavalhadas dominicaes. Dava-lhe mezada para ir ao Tivoli, e achava que seu filho tinha razão de querer admirar trez vezes por semana o Grilocôcho, o Fontainhas, o Fidanza e a Grata, sujeitos que resplandeciam na prosperidade do theatro nacional do Porto, chegada ao seu apogeu, para depois cair até á Ignez de Castro, representada hoje, 5 de janeiro de 1868, no Palacio de Cristal. O palacio faz avançar a gente a empurrões!

Apanhemos o assumpto, passando a voar por coisas da vida e costumes de Innocencio, assaz contraditorias do seu nome baptismal. Sobra razão para que o consideremos empestado da peçonha que afistulava a mocidade de ha vinte e cinco annos. O botequim da rua de Santo Antonio era um cardume de libertinos: quem ali entrasse a tomar um capilé, e se demorasse dez minutos, saía cinico. E Innocencio, começando a frequentar aquella caverna com o candido intento de jogar o quino, passou depois ao bilhar, e d’aqui ás mezas marmóreas[Pg 100] onde a sã moral era espostejada como cadaver combalido em amfitheatro anatomico.

Por estas razões o filho de Gervasio não tinha sentido pela orfã o affecto dulcissimo que só florece em almas castas. Affeito a vêl-a formosa todos os dias, nem sequer a comparava com outras. Passava por ella como qualquer pessoa de juizo e medianamente admirativa pelas Venus de alabastro. Lembrava-se de a conhecer e trazer ás cavalleiras quando ella tinha dois annos. Depois viu-a crescer, desabotoar flores que lhe não rescendiam algum perfume; nenhuma florecencia o assalteou de improviso; todas as primaveras da Thomazia lhe pareceram uma e mesma primavera. Esta regularidade de vida fazia implicancia ao extraordinario que requer o amor. Fôra mister ajuntar á formosura de Thomazia vicio ou virtude que sacudisse, de repellão subito, o espirito adormecido de Innocencio.

Bem viram como saltou o coração no peito do rapaz, quando o galhardo Costa Guimarães remessava o cavallo pelas Cangostas. Amor assim nascido é o descredito de uma paixão que se gosa de ser a primeira na jerarchia das nobres. A gentileza do picador rival e a fina raça do cavallo, as duas coisas, produziram a instantanea irrupção da cratéra. Belleza, innocencia, agrados e caricias honestas nunca vingariam espertar o affecto do descuidado moço, que até áquella hora se andára narcizando a remirar-se no espelho dos alfaiates, ajustando ás mãos rebeldes as luvas côr de figado.

O abalo, porém, foi perdendo força, ao mesmo passo[Pg 101] que a menina, docil á vontade de Gervasio e incapaz de reagir senhorilmente, se prestava a satisfazer a vaidade do cioso deixando-se desposar com elle.

Se a orfã conhecesse o jogo de scena da comedia humana, continuaria a fomentar as suspeitas do indifferente Innocencio, indo á janella na occasião em que as patas de cavallo denunciassem a passagem de algum façanhudo Saint-Preux, terror da moral desde a Porta Nobre até ao Poço das Patas. Então veriamos o amador um tanto velhaco de Rosinha de Barcellos apertar com o pae para que lhe désse a posse legitima e santificada da linda menina que os burguezes, notaveis na gineta e nobilitados por seus cavallos, lhe andavam disputando com sensivel vantagem.

Estamos chegados á ida de Innocencio para as quintas do paiz vinhateiro. Foi elle quem se offereceu. O pae maravilhou-se do insolito zelo vinicola do rapaz. Ora o caso tem explicação e misterio.

A explicação é que dois irmãos da Rosinha, interessados no casamento da irmã, denunciaram a Innocencio que o Costa Guimarães se gabava de ter recebido cartas de Thomazia. Cuidavam elles que este aviso impediria o ir por diante o tal ou qual affecto com que a menina da Praça Nova suspeitava inclinar o coração de Innocencio á sua bella hospeda.

Agora o misterio. Chama-se assim á mingua de o podermos destrinçar pelo claro. O inintelligivel está em que o moço não accusou a orfã ao pae, nem proferiu palavra indicativa das agonias do seu animo.

[Pg 102]

D’aqui procedeu a deliberação de ir para o Douro, apostado a distrair-se com uns ares filosoficos de pessoa sizuda que houvesse lido as doçuras e allivios que Zimmermann promette aos solitarios. Como quer que fosse, tudo que eu dissesse em honra d’este rapaz seria pouco encarecido, attentos o juizo e generosidade com que elle escondeu do pae as leviandades de Thomazia. Assim se absteve heroicamente de vingar-se d’ella e sair victorioso das suas suspeitas, assentando em honestas bases a repugnancia que lhe fazia tal casamento.

Elle ahi vae Douro acima. Ao dar do meio dia, olhou de soslaio para os alforges onde abundavam as vitualhas e disse de si para comsigo:

—Não tenho vontade de comer!... e vou em jejum!

Depois, concentrando-se em intestino mais fidalgo que o outro relacionado com os alforges, monologou, pondo os olhos nas ribas alcantiladas do Douro:

—Thomazia!... que diabo de feitiço me fizeste!...

E, pendendo a fronte, assentou a barba no seio, e meditou d’este feitio:

—Verdade é que eu nunca lhe disse que lhe tinha amor... Coitada!... ella bem sabia que eu fazia a côrte á Gomes, e nunca me mostrou má cara... Mas, se ella gostasse de mim, não m’o dizia? Dizia, sim... E talvez não dissesse, por que tem lá a sua soberba, e não queria mostrar que me queria bem por eu ser rico. Prompta a casar comigo estava ella, pois não estava?! Estava... eu bem lh’o ouvi dizer a meu pae... Mas[Pg 103] então para que escrevia ao outro?... Seria p’ra me metter ferro?... Eu sei cá!

E aqui acudindo-lhe á memoria uns versos que elle tinha decorado dos Ciumes do Bardo, exclamou em voz soturna, bracejando com impeto não destituido de harmonia mimica:

Mulher! que mixto horrendo és tu na terra,
para unir crimes taes com tantas graças?
Que nome te convém? cruel? perjura,
impia, blasfema, algoz, monstro dos monstros?

E calou-se.

Os barqueiros olhavam espantados para elle, e duas passageiras já idosas tomaram-lhe medo.

Innocencio, caindo em si do rapto, quasi se viu ridiculo, e entendeu que o disfarce era assobiar assim a modo de quem se vae divertindo monologando passagens de Castilho e relembrando no assobio trechos de Donizetti que elle conhecia dos realejos.

Como acima se disse, este caso passava ao meio dia em ponto. E á mesma hora, quando as nove badaladas caíam da torre dos Clerigos, a senhora Custodia da Porciuncula, de cocoras á beira da fogueirinha, fazia estalejar os espirros do sal virgem, e murmurava: Eu te salgo, Innocencio; eu te resalgo e torno a resalgar, para que não possas comer, dormir, fallar, nem socegar sem com a Thomazinha casar.


[Pg 104]

CAPITULO VIII

Argumento

Como Innocencio foi enguiçado. Para onde lhe deu o vinho da colheita de 1817. Palestra afflictiva com o pae, que não crê em bruxêdos. Lastimas de D. Thomazia, e horrores das tias que julgam paradoxo um jejum de tres dias. Innocencio come á tripa forra, e ama á proporção. Discurso de Gervasio conducente ao casamento. Pudor da menina e pieguices amorosas do rapazola. Resolução de afogadilho. Casam-se em S. Nicoláo, e vão passar a «lua de mel» ao Bom Jesus do Monte, em Braga. Diz-se da mula e macho que os transportam e dos passarinhos que cantam.

Ao cabo de trez dias, Innocencio derivava em um barco de pipas na corrente do Douro. Que trez dias d’aldeia! Trez dias de insomnia, de dessocego, de afflicção e fastio. Repuxava-lhe a alma para o Porto uma força irresistivel. A espora da saudade picava-lhe fibras illesas até então. Chegado ao galarim do tedio e do desespero, furou uma pipa da colheita de 1817 e bebeu com aquellas sedes ardentes de Musset, de Espronceda e de outros infelizes que fizeram adegas dos corações vasios. Mas, ah! o coração de Innocencio estava cheio do amor de Thomazia. O vinho empoçou-se-lhe no estomago e d’aqui fumegou-lhe para o cerebro uns delirios[Pg 105] que rompiam em apostrofes metricas, sacrilegamente apanhadas nos Ciumes do Bardo. Quantas vezes tenho ouvido relanços d’aquelle poema servindo a paixão declamatoria de alarves mais obstinados que Innocencio! Fazem-me lembrar onagros a pastar nos roseiraes, quando os ouço a espumar das sujas bocas aquelles versos de ouro!

Applacada a sesão, Innocencio correu-se de pejo da sua sombra. Revoltou-se contra si mesmo, exclamando:

—Oh! quanto sou asno! Que vim eu fazer ao Douro?! Não podia eu estar agora á beira de Thomazia, e livre d’estes ciumes que me...

E, dizendo, enganchou os dedos de fórma de garra, e fincou-os com força de ventoza sobre o lado esquerdo do peito, como quem diz que os ciumes lhe agadanhavam o coração.

Feito isto, chamou um gallego da vinha, entregou-lhe o alforge e a mala, desceu ao caes do Pinhão, e esperou que desatracasse barco de pipas.

Taes foram as angustias que precederam a partida e inesperado apparecimento de Innocencio no escriptorio do pae.

—Já por aqui?!—exclamou o velho.—Que novidade trazes, Innocencio?

—Nenhuma...—respondeu o moço com tristeza.—Não pude lá estar mais tempo... Estive a morrer...

—No rio? houve desastre?

—Não, senhor... Quero dizer que me vi tão afflicto, tão apoquentado, que...

[Pg 106]

—Que tiveste, rapaz?—atalhou o velho alvoroçado.—Tu estás amarello, meu filho!... Tens os olhos molhados!... Que é isso?...

—Meu pae!...—murmurou Innocencio, apanhando a cabeça com as palmas das mãos.—Eu desconfio que me fizeram feitiçaria... Não pude comer nem dormir trez dias!...

—Como assim?...—acudiu Gervasio despegando-lhe as mãos da testa—então que sentes, menino?

—Sinto-me doudo d’esta cabeça... A minha razão diz-me que não ame Thomazia, e eu não pude esquecel-a uma hora, um minuto, em quanto andei por lá...

—Então cuidas tu que isso é bruxedo?—atalhou o pae com ridentissimo carão.—Ó filho, isso não é o que tu cuidas; é um mal proprio da natureza que péga em todos. Qual feitiçaria, nem qual carapuça! Nunca os males sejam maiores... Se gostas d’ella, fazes o que deves; tambem ella morre por ti. Ainda não ha meia hora que Thomazinha me veiu aqui trazer esta carta para eu t’a mandar ámanhã dentro da minha pelo correio. Aqui a tens, olha, lê-a e verás que a mocinha estava cá como tu por lá. Esteve ahi a chorar como vides, e a dizer que tu, se a não querias, dissesses isso e não andasses a desacredital-a.

—Eu não a desacredito!—exclamou Innocencio indignado com razão.—Pois eu que disse?...

—Ora vamos lá... vamos lá... Tu disseste que o outro do cavallo andava por ahi a espinotar pela rua p’r amor d’ella, e que...

[Pg 107]

Foi interrompido Gervasio pela estrondosa descida da familia que recebêra do criado a nova de estar Innocencio no escriptorio.

A mãe e as tias penduraram-se no rapaz; e Thomazia, com os braços abertos, esperou a sua vez para o apertar ao seio.

Deixou-se estreitar, affavel e ao mesmo tempo melancolico, o ditoso, com uns tregeitos que seriam de tolo se não fossem antes umas mimalhices que a boa fortuna permitte aos seus beijamins. Innocencio fez um bico de beiços e um pendor de palpebras assim a modo de quem quer chorar as suas penas no seio de quem lh’as deu. N’este em meio, chegou Custodia, e encarando com os dois meninos abraçados e mudos, bradou, batendo as mãos:

—Está feito o milagre! ouviram-me os meus santos! Eu que disse, senhoras?—continuou ella virando-se para a mãe e tias de Innocencio—eu não disse ás minhas amas que elles se queriam como um casal de pombinhos? Ora ahi os teem a rever-se um no outro como dois serafins! benza-os Deus, que tão galantes são! Tomára eu não acabar sem ver os filhinhos d’estas duas creaturas! Vejam, vejam, como ella se faz vermelha!...

—Está bom, está bom, Custodia—disse o alegre Gervasio—vae dizer á cosinheira que ponha lá que comer na mesa, que o menino está a cair de fraco.

—Bem se te vê na cara, meu filho—confirmou a mãe.—Comeste pouco por lá?

—Ha trez dias que não come—explicou Gervasio.

[Pg 108]

—Jesus, santo nome de Jesus!—conclamaram as trez senhoras, benzendo-se.—Ha trez dias!...

—Ó meu Innocencinho!—lamuriou D. Thomazia de Barros, saltando-lhe outra vez ao pescoço.—Estiveste trez dias sem comer!?

O rapaz surriu-se tristemente e murmurou:

—Isso que tem?...

—Que tem?—voltou a velha lastimosa—que tem? Podia levar-te a bréca, meu querido filho! Trez dias sem comer!...

—É a primeira que ouço!—disse D. Florencia, com as mãos juntas sobre o promontorio da região hipogastrica.

—Trez dias!—obtemperou D. Juliana—eu não sei como elle ainda se tem de pé! Vamos p’ra cima, vamos, Innocencinho. Anda comer.

E queriam amparal-o todas para o ajudarem a subir as escaleiras.

—Não é preciso...—disse o rapaz, desviando-as.

Era um gosto de sibarita ver o amante a funccionar com o apparelho da mastigação, desobstruido já o canal onde o amor infeliz costuma empécer como salamandra em cano de chafariz.

Regalavam-se todos a cada naco de paio que rodava no trago de vinho. Não obstante, a mãe, de certo ponto em diante, pedia-lhe que não comesse tanto, que podia dar-lhe na fraqueira. O pae contraditava a esposa atirando-lhe para o prato colheradas de letria e ovos moles, bradando em tom aforistico:

[Pg 109]

—Come, que a barriga é como um sacco; emquanto couber, deita-se-lhe p’ra dentro.

Findo este repasto de Romeu, quanto era possivel ser-se na rua das Cangostas, Gervasio, que tinha bebido de meias com o filho uma garrafa de 1815, desatou a fallar com enthusiasmo e tal qual eloquencia. O discurso pozera a mira em concluir ali d’uma vez para sempre o tantas vezes mallogrado intento dos desposorios. Depressa chegou ao fito n’estes termos idíllicos e commoventes:

—Rapariga, tu gostas do meu filho, e elle quer-te deveras. P’r’amor de ti é que o Innocencio não comeu nem dormiu, nem parou, em quanto não veio para a tua companhia. É amor verdadeiro. Agora, não admitto réplicas de parte a parte. Casar, que é tempo. Casar, e acabaram-se as historias. Casar, e... tenho dito!

A menina lobrigou por debaixo da sobrancelha o repleto noivo, cujo coração se recostava regaladamente sobre o coxim do estomago; situação absurda nos termos, e todavia experimentada por todos os amantes felizes depois de um banquete em que se haja comido á portugueza, segundo as formulas de Domingos Rodrigues. Os olhos de Innocencio cheios de graça dardejavam aos de Thomazia um raio obliquo de ternura com o supplemento de um sorriso entre alvar e amoroso.

Gervasio, arrebatado pelo mutuo colloquio de olhos que todos presenciavam, levantou-se, foi ao pé da afilhada, chamou o filho, tomou as dextras de ambos, achegou-as com patriarchal gravidade, e disse:

[Pg 110]

—Meus filhos, Deus vos abençôe! Sede felizes, como eu tenho sido com vossa mãe.

As lagrimas das trez velhas realçaram a solemnidade das expressões singelissimas de Gervasio, que faziam lembrar os tempos antigos.

Os noivos olhavam para o aspeito jubiloso do velho, como querendo furtar-se á contemplação reciproca de suas pessoas. Depois, deslaçaram as mãos, e escutaram attentos um longo discurso do pae, tendente a demonstrar que os casamentos feitos ao tarde não provavam bem; sendo certo—dizia elle em mais claras frases—que os vicios trazidos do trato do mundo para o seio da familia, quando um homem se casa depois de os ter radicado na alma, estão sempre a dar rebentos e fructos máos.

Custodia foi presente ao mavioso espectaculo. Anciava-lhe o arcaboiço do peito em resfôlegos de alegria. Aquillo era obra d’ella, segundo sua fé na magia do sal virgem lançado ao lume. Se devia ao diabo, se aos santos, o rapido e feliz exito das suas obtestações, não n’o sabia ella decidir. De qualquer das maneiras, sobravam-lhe motivos de vaidade, e não lhe faltava tempo de reconciliar-se com Deus, á imitação dos feiticeiros S. Anastacio e S. Gil de Santarem, dado o caso de interferencia diabolica nos effeitos prodigiosos do sal virgem.


Tiradas licenças e dispensa de banhos, no praso de dois dias, Innocencio José de Barros e Thomazia Alves receberam as bençãos na egreja de S. Nicoláo.

[Pg 111]

Era no mez d’agosto de 1843. O calor tornava invejavel os amores das aves regorgeados nas sombras das frescas florestas. Innocencio, poeta pouco mais ou menos como todos os seus visinhos, invejou as aves dos bosques do Bom Jesus de Braga. Conhecia elle de nome a sasão das primeiras delicias conjugaes, chamada lua de mel. Consultou as inclinações bucolicas da esposa, e recebeu um alegre consenso á sua idéa. Os velhos condescenderam.

Thomazia sentada em vistosas andilhas cilhadas no largo albardão de uma mula, e Innocencio galhardamente encavalgado sobre um macho de arriaria, sairam caminho de Braga, ao repontar uma tépida manhã, festejada dos passarinhos e perfumada das madresilvas dos valles.


[Pg 112]

CAPITULO IX

Argumento

Innocencio entedia-se de judeus e arvores. Partem os noivos para Monsão. Nicoláo d’Almeida em Caminha. Os tolos de 1845 menos damninhos que os de 1868. Ciumes de Innocencio e má creação. Recordações atacantes do administrador do concelho que apertou a mão de Thomazia. Aperta e estorcega o braço da mulher. Entram arrufados no Porto, depois de terem visto na «Ponte da Pedra» o Guimarães, que se porta como quem era. Innocencio e o macho. Thomazia desabafa com Custodia. Tempestade imminente formada em casa de Rosinha, que lia o «Homem dos trez calções». De como Leonardo queria matar Innocencio, e o que o pae lhe diz a este respeito.

Ao quarto dia da lua, Innocencio, sentado na «Fonte do Sátiro», por volta do meio dia, abriu a bocca, benzeu as fauses escancaradas com o dedo polegar—costume pio e cauto da sua familia—e disse á esposa:

—Vamos nós embora ámanhã, Thomazinha? Isto já me aborree... E a ti?

—Eu...—murmurou a senhora espriguiçando-se—tanto faz... Se queres, vamos.

—Estou farto de ver arvores e judeus... e tu, Thomazinha?

[Pg 113]

—Sim, eu, tambem... Mas queres tu, Innocencinho? Vamos nós a Monção ver as minhas tias, irmãs de meu pae? Prometti de lá ir visital-as... nunca as vi... A gente que vae fazer já para casa?!

—Pois vamos lá, se queres, menina.

E, torneando o braço pelo collo mal velado da esposa, desceu com ella por sob a abobada de folhagem onde os pintasilgos e os cerezinos os rivalisavam no mimo do dialogo.

Ao quebrar da calma, desceram para Braga, e na madrugada seguinte jornadearam para Monção.

Detiveram-se alguns dias em casa das irmãs do capitão Alves, e voltaram por Caminha.

Recorde-se o leitor de ter dito Nicoláo d’Almeida ao meu amigo Antonio Joaquim, no theatro de S. João em 1845, que, dois annos antes, vira em Caminha e nunca mais podéra esquecer a formosa mulher que outra vez topára agora no camarote da 3.ª ordem.

Foi então que elle a viu, e por tal maneira se lhe areou o juizo ao vêl-a que fez azoar Innocencio.

Era, n’aquelle tempo, Nicoláo orfão, gentil, rico, fidalgo de solar conhecido, estudante do segundo anno juridico. Tinha desoito annos. Estroinava sem peias nem contradicção de parentes. Sobravam-lhe usurarios valedores nas prodigalidades. Tinha tontices galantes, sendo a menos perigosa querer finar-se de amores por alguma linda mulher que não tinha ainda topado. Isto me contava elle em Coimbra como hoje em dia um academico de dezoito annos vos conta gravemente as suas meditações[Pg 114] ácerca do influxo de Kant e Hegel na historia psicologica do espirito humano, ou os projectos com que giza salvar Portugal da divida externa, quando for chamado aos conselhos da corôa. Os tolos de 1845 eram menos damninhos.

Grávido d’este pensamento suicida, Nicoláo d’Almeida quando viu a loira Thomazia, nas praias de Caminha, ao entardecer, com os olhos enamorados do sol que se atufava nas aguas escamosas de revérberos argentinos, cuidou que era aquella a mulher predestinada. Visinhou-se d’ella com impeto de pessoa empurrada pelos fados, e remirou-a tão em cheio e de vagar como se o marido não representasse coisa nenhuma ao lado da creatura fatidica, enviada expressamente a Caminha para realisação do seu sonho.

Innocencio encarou n’elle avincando a testa ao mesmo passo que a esposa, perfilando o rosto, segredou ao marido:

—Que está a olhar p’ra mim o diabo do homem!...

Deu-lhe o braço o carrancudo esposo e foi para a estalagem, murmurando:

—Aquelle asno olhava-te como se te conhecesse ha muito.

—Eu nunca o vi...—disse ella.

—Não?...—perguntou Innocencio em tom de suspeita...

—Não.

—Quem sabe?! Tu...

—Eu... quê?

[Pg 115]

—Não te confessas...

—Ora vejam isto!—replicou entre agastada e dorida a senhora.—Sempre tens manias!... Já hontem quizeste pegar comigo, quando o administrador do concelho me apertou a mão...

—Pois elle!... Eu não gósto d’essas modernices...

—Toda a gente aperta a mão... Isso que faz?

—Não gosto: é mau costume.

—Pois tivesses-m’o dito. Para a outra vez, quando alguem me quizer apertar a mão, escondo a minha—tornou ella amuada.

—Ai! ai! ai!—replicou o marido.—Estás muito enjoada...

—Pois eu!... Tenho agora culpa de que o homem olhasse para mim...

—Não tens; mas... aquelle modo de olhar...

N’isto deu Innocencio tino de que o seguiam de perto. Olhou e viu o rapaz dos olhos espantadiços.

—Elle cá vem—disse o marido apertando o braço da mulher com convulsiva raiva.

—Olha que me magôas o braço...—gemeu ella.

—Vêl-o? ahi vem!...

—Deixa-lo vir... Olha o doido do homem que me havia de empécer agora!...

Tinham entrado na estalagem quando o secundanista retrocedeu a botar inculcas sobre a procedencia e destino da mulher que, a seu juizo, lhe era enviada como um acepipe dos festins de Lucrecia Borgia, um calix de agua[Pg 116] tufana, uma coisa que lhe caíra do céo como a tartaruga que matou Eschilo. Os rapazes teem coisas!

Não esquadrinhou nada n’aquella noite desvelada a litografar na alma o retrato da peregrina incognita.

No dia seguinte quando voltou a bordejar os áditos da estalagem, soube que os passageiros, ao luzir da aurora, tinham saído em direcção ao Porto, d’onde eram. Nicoláo d’Almeida ainda mandou pôr a cella no cavallo e vestir o lacaio no proposito de os seguir; mas quebrantado pela sobreexcitação cerebral da noite, sentiu-se desmaiar de forças, e quedou-se marasmado em casa a cogitar e a remergulhar o espirito na visão resplendente d’aquelle rosto com que Deus quizera experimentar a continencia dos seus santos.

Se os destinos humanos não estivessem prescriptos lá em cima, ou lá em baixo, ou onde quer que seja, a intervenção do fidalgo de Caminha n’esta moralissima historia acabaria aqui, ou nunca deveria ter principiado, á vista de tão chôcho e trivial remate.

Ora hão de ver que relampago fulgurava das nubelosidades do porvir e alumiava confusamente os presagios da desconcertada fantasia de Nicoláo d’Almeida!


Os esposos chegaram ao Porto arrufados, doze dias depois que tinham saído a chotarem jubilosamente pela rua de Santa Catharina acima.

Os agastamentos principiados em Caminha aggravaram-se na «Ponte da Pedra», onde Innocencio viu o João José da Costa Guimarães esturdiando com outros[Pg 117] rapazes da sua laía debaixo dos sobreiros, não já com a innocencia arcadica dos que comiam a fructa d’aquellas arvores, mas antes com o desplante de moços que tinham vindo ali arejar as cabeças aquecidas na taverna fronteira.

João José, quando divisou Thomazia, fez da cara uma comprida careta, esbugalhou os olhos, torceu o pescoço e disse aos parceiros:

—Olha! olha!

Olharam todos. Innocencio fumegante de indiscreta raiva dava de esporas no macho, que reagia a coices, por estar vesado a desougar-se n’aquella estação.

—Deixe dar duas palhas ao macho que está aqui affeito!—bradava o arrieiro.

Innocencio teimava a esporeal-o com furia, e elle a escoucear, até que de repellão se remessou a galope pela ladeira acima, cedendo a victoria ao rei da creação. Thomazia deteve-se á espera que a mula, mais ditosa, mastigasse a palha. Lá no topo da encosta fez Innocencio parar o macho, voltou-se sobre a anca e bradou:

—Então? vens ou ficas?

A senhora, para requintar em belleza, purperejára-se de pejo, por que os rapazes, até certo ponto desculpaveis, riam sem disfarce das cargas de espora que o das Cangostas barbaramente inflingira á victima indirecta do seu ciume. Além d’estes incentivos, um ou dois do grupo conheciam Thomazia e lembravam-se da carta lida na Praça-nova. Dado que a gentileza da dama se[Pg 118] fizesse respeitar e até perdoar os desatinos da grammatica, nem assim vingou abafar os frouxos de riso exemplificados pelas chalaças de Costa Guimarães que passava de estupido a torpe, quando a violencia lhe aperfeiçoava a indole.

Estão bem entendidos os amúos dos conjuges, e mal justificados os assomos do agastadiço Innocencio.

Os velhos sentiram logo a desavença das duas almas que tão amorosas tinham saído. Entrou em averiguações Gervasio. O filho nada esclareceu, porque reconhecia que não tinha bem ajuizados motivos de queixa. Mas a esposa, assim que poude estar sósinha com Custodia, prorompeu em soluçantes vozes:

—Este homem não se póde aturar! Fez-me de fel e vinagre desde Caminha até ao largo da Agua-Ardente, porque viu um homem a olhar para mim, e encontrou o tal maroto do Guimarães na «Ponte da Pedra...»

—Má raios o partam!—atalhou a benigna Custodia da Porciuncula.

—Ora vê tu que culpa tenho eu de lá estar o homem em Caminha!... Pois fez-me desesperar e arrepender mais de cem vezes de ter casado com elle!...

—Ora menina, ora menina!—acudiu-a velha—Não diga isso, que me parece doidinha! Seu homem zela-a, porque o amor é assim. E a minha linda não fazia o mesmo, se visse as outras mulheres a olhar p’ra elle?

—Que me importa?!—refutou ella.—Estou bem aviada se não hei de ir onde me vejam! Então p’ra[Pg 119] que me casei? que me faz ser rica? Por ahi as meninas pobres, quando casam com os brasileiros, apparecem logo no theatro, nos bailes da assembléa, no jardim de S. Lazaro, e em toda a parte.

—Deixe estar, que ainda não é tarde, filha! Pois ainda casou outro dia, e já se queixa?...

—Não, que elle já me disse que não queria saber de partidas nem de theatros... Pois tu não sabes? Zangou-se todo por que o administrador do concelho me apertou a mão!

—Pois esse homem apertou a mão da menina?—perguntou Custodia sobre modo espantada.

—Apertou, que é moda agora.

—Que leve o demo essa moda e mais quem a cá trouxe! Lá n’isso teve o seu homem juizo, e a menina não fez bem em consentir que lhe apertasse a mão homem nenhum.

—Ai! que me pareces tonta de velhice!—redarguiu a senhora abespinhando-se, e voltando-lhe as costas.

Custodia ficou-se a vel-a ir com tão desusada descortezia; reflectiu alguns segundos; levantou a mão direita á altura da cabeça, com o dedo indicador deu trez toques na testa, e espectorou um fundo suspiro murmurando:

—Não regula bem...

Volvidos alguns minutos, Thomazia voltou a ameigar Custodia que estava chorando a magua da desfeita. Pagou-se jovialmente a velha dos affagos da sua[Pg 120] menina, e deu-lhe bons conselhos, tendentes a revestil-a de paciencia para soffrer os ciumes do esposo.


Cabe aqui dar conta de uma tempestade que se está conglobando sobre a mal-estreada ventura d’estes esposos. Muita gente cuida que as grandes desgraças procedem de profundas causas, e não attentam que basta um sopro de odio para accender infernos. Ha infortunios surdidos de repente, como as viboras que sob-rojam por entre flores: e para maior assombro é isso quando a vida é de rosas; que, nos casamentos mal sorteados, havemos de suppor que a serpente já vem escondida na estola do sacerdote, cujas palavras soam o terrivel unidos para sempre.

A Rosinha da Praça-Nova, convicta de ser amada, porque as cartas de Innocencio lh’o asseguravam, andou muito lampeira a dizer ás suas amigas que o Barros das Cangostas casava com ella.

A noticia vulgarisou-se levada pela inveja, parelha inseparavel da fama. O pae de Rosa já recebia os emboras dos seus amigos, e esquadinhava noticias para formar um calculo aproximado da «fortuna» de Gervasio. Sessenta contos era o computo mais seguido na praça; outros faziam-lhe cem, calculando que elle tinha uma reserva de quarenta em sonante. Alguns, inventariando os haveres de Luiz de Pinhel, tio materno de Innocencio, avultavam a «fortuna» a seiscentos contos. Desfaziam outros n’este calculo, affirmando que Luiz de Pinhel tinha filhos illegitimos de differentes negras[Pg 121] suas escravas. Sem embargo, e independente de heranças, o dote do promettido noivo de Rosinha era um dos mais abalisados no Porto d’aquelle tempo.

O filho de Gervasio não se despedira de Rosa, quando saiu para o Douro. Foi caso discutido na familia da Praça-Nova, sem comtudo insinuar receios na menina. Mostrava ella a seu pae a ultima carta do namoro. O pae lia solemnemente á mulher os periodos da missiva; a mulher com visos de entendida no valor das palavras, esclarecia as passagens obscuras; e harmonicamente decidiam que o casamento era negocio feito. Negocio era a palavra chã e ajustada a todas as situações graves da vida.

Sem impedimento d’este accordo, Rosa, ao fim de trez dias, escreveu a Innocencio uma carta de queixumes, notada pelo irmão, que teimava em que a palavra apaixonada se escrevia com ch e não com x. A menina, irritada pela obstinação do mano, foi ao seu quarto, e trouxe triumphalmente uma brochura em punho, e mostrou a pag. 7 do Homem dos trez calções, de Paulo de Kock a victoria da sua orthografia.

A carta adressada a Provesende foi recambiada para o Porto, e entregue a Innocencio, quando elle se recolheu do Minho.

Emquanto Thomazia expandia a sua tristeza no confidente seio de Custodia, lia o marido a carta de Rosa.

Nunca tão amoravel e terna lhe tinha escripto a saudosa menina. As frases queixosas reviam meiguice e[Pg 122] tristesa condescendente. «Diverte-te, meu bem, mas não te esqueças da tua Rosa»—escrevia ella e proseguia: «Espero ainda ir ao sitio onde estás, meu amor encantador; e lembrar-te o tempo em que eu por ti suspirava, de ti ausente, e tão apaixonada» (Esta palavra foi a da questão, decidida pelo traductor do Homem dos trez calções).

Periodos sentimentaes, á proporção d’aquelle, pesaram por tal sorte no coração de Innocencio, que as lagrimas lhe envidraçaram a vista. Atirou-se para uma cadeira, fechou os punhos, e tapou os olhos. Sacudiu a dor, levantando-se de salto, amarfanhou a carta, e metteu-a no bolso da judia, por que ouvira o ranger das botinhas da esposa.

Thomazia não reparou n’elle. Entrou ao quarto, calçou os seus confortaveis sapatos de tapete, e saiu para ir desabafar com a velha.

Retrocedamos. Na Praça-Nova é que se acastellam as nuvens borrascosas; que as scenas das Cangostas de vulgares que são, mal quadram n’este livro em que o sublime roça pelo sobrenatural.

Quem primeiro levou a casa do senhor Joaquim José de Barcellos, pae de Rosa, a noticia do casamento de Innocencio com a orfã Thomazia, foi o sacristão de S. Nicoláo. A authoridade era indeclinavel; ainda assim, Joaquim José bufava com os dois punhos sobre o balcão, e bramia:

—Você que diz?! você que diz?!

O sacristão dizia que tinha alumiado com uma tocha[Pg 123] a cerimonia do casamento, e recebera trez pintos da mão de Gervasio.

Rosa descia á loja, n’este acto, perguntando ao pae se o correio já tinha vindo. O indiscreto progenitor encarou na filha com um surriso empeçonhado de injusta cólera, e regougou:

—Já veio. Aqui está...

E apontou para o sacristão, continuando:

—Diga você a esta menina o que me disse a mim.

O funccionario do templo encolheu-se e tergiversou compreendendo a agudeza do ferro que ia remessar ao peito da menina. Rosa estava literalmente ás aranhas, sem perceber o silencio do desconhecido sacristão nem o surriso ferocissimo do pae.

—Então que é, papá?!—perguntou ella.

—Que é? que é?—ullulou Joaquim de Barcellos.—É que o teu noivo... esse patife... esse ladrão... casou hoje com a rapariga que lá foi creada em casa.

Á palavra casou, Rosa não exalou o ai! do costume, nem o oh! menos vulgar. Primeiro estremeceu, depois abriu a boca, porque ninguem se exime da acção que exerce o espanto sobre o queixo inferior; em seguida, rodou sobre os calcanhares vagarosamente; e por fim, foi-se embora.

Os irmãos tinham assistido a esta calamidade de familia, ora lividos de espanto, ora afogueados de ira.

—E agora?—exclamou Joaquim José.—Esta vergonha!... O descredito da minha filha!...

Leonardo, o filho mais velho, o secretario da irmã, o[Pg 124] inventor do ch em paixão, tôrvo, sinistro, a passo mesurado acercou-se do pae e disse-lhe com voz de tirano rouco:

—Se o pae quizer... mata-se!

—Vae-te p’ro diabo!—respondeu o velho.—Hasde sempre ser uma cavalgadura!

—Os creditos de minha irmã...—redarguiu respeitosamente Leonardo.

—Não fosse ella tola...—retorquiu o velho.—Obrigasse-o a casar ha mais tempo! Agora é pegar-lhe com um trapo! Ora vejam vocês que risadas não darão os nossos visinhos! Aqui o Magalhães, quando souber isto, vae com uma campainha por toda a parte...

—Se fôr... quebro-lhe a cara—atalhou Leonardo, enfuriando o olhar suino e grifando as unhas.

—Cala-te ahi, lorpa!—bradou Joaquim José.—Olha que eu prendo-te nas aguas furtadas se me dás um pio a este respeito! O que se ha de fazer é mostrar-se a gente muito satisfeita; e, se eu vejo Rosa a chorar, dou-lhe duas bofetadas na cara.

—Ella não chora...—interveio o filho Roque, varão prudentissimo que estivera a malucar taciturno.

—Não? como sabes tu isso?

—Sei, porque ella não gostava d’elle nada. Se casava, era para ser rica... as outras fazem o mesmo...

—Pois sim; mas agora? Vocês verão que homem rico não n’a quer nenhum dos que souberem da tratantice do outro!... Raça de judeu, e basta!

N’este ponto, começaram a entrar dois amigos do logista,[Pg 125] com as caras de lucto. Joaquim José recebeu-os com alegre sombra, fingiu ignorar a novidade, e dissimulou indifferença tão habilmente, que vingou mallograr a secreta satisfação com que os «amigos» lhe davam o golpe.


[Pg 126]

CAPITULO X

Argumento

Desafogo de Rosa com o «Ponha aqui o seu pésinho». Encontram-se no theatro as duas familias. O que elle sentiu quando viu Rosa tentadora como o peccado. Louvores do Fayel exprimidos no chuveiro de lagrimas das velhas. Innocencio chama tola á esposa. Roque de Barcellos lancéta o coração de Innocencio e conta-lhe tudo com intenções damnadas. Gervasio acalma o filho, e diz coisas escorreitas das mulheres com o tino e siso de um Balzac. Innocencio a rir-se no camarote para «metter ferro» a Rosa. A sangoeira da tragedia que inunda de prantos a familia Barros. De como Gervasio presume que o traductor da peça é um sabio que inventou a tramoia, e decide que Fayel era da pelle do diabo. Torna Innocencio a estorcegar o braço da mulher á conta do Costa Guimarães.

A este tempo, Rosa estava tocando no piano a musica do «Ponha aqui o seu pésinho» renovada com o apparecimento do drama «Pedro Sem», joia literaria que ainda rebrilha no palco do Palacio de cristal, revesada com Ignez de Castro em quanto o progresso não abranger Manuel Mendes Enxundia. Tocava, porém, de raivosa a menina.

A mãe d’ella, que já andava moirejando no enchoval,[Pg 127] soffreu um insulto nervoso, e passou o dia a beber chá de valeriana.

O jantar correu sombrio e taciturno, deixando apenas ouvir o mascar da numerosa familia e caixeiros. Tudo estava perdido, afóra o estomago.

Magnanimo e inquebrantavel animo tinha aquella Rosa! Quem a visse na representação do «Fayel» quinze dias depois, radiosa de guapas fitas que lhe serpeavam dos opulentos cabellos por sobre os modelados hombros, cuidaria que era ella a noiva de Innocencio de Barros, e não aquell’outra senhora melancolica do camarote fronteiro.

Tinha sido Gervasio quem comprára o bilhete, ao outro dia da chegada do filho, afim de espairecer o tristonho aspecto de toda a sua familia. No camarote, estavam elle e a senhora, Thomazia e o esposo, as duas irmãs e os dois irmãos, acamados e dispostos d’esta ordem: na frente as duas Thomazias e Gervasio; na camada intermedia Jeronimo, Sebastiana e Innocencio; na terceira e ultima Felizardo e Florencia.

Trajava a noiva modestamente vestido de seda sobre o escuro. Os enfeites do cabello eram o ouro da côr d’elle. O peitilho de cambraia, afogado, só ao perto deixava ver que era menos alvo que as espaduas de jaspe lisas e brunidas. Se a tristeza realçasse sempre matizes de formosura, a esposa de Innocencio José de Barros, n’aquella noite, poderia gloriar-se de ser invejada das senhoras e lastimada dos rapazes, por conta de tal marido.

[Pg 128]

A familia do senhor Barcellos da Praça Nova entrou mais tarde no camarote.

Rosa pendurou a capa sem desfitar os olhos de Thomazia. Sentou-se, segredou, surrindo-se, aos irmãos a visinhança que tinham, e, sacudidas as crinas de fitas, travou do binoculo e encarou no brasileiro Andraens, que a comprimentou da platéa, curvando-se quanto a barriga lhe outorgou. Não ha para que fallar mais n’este brasileiro Andraens. Veiu aqui para desmentir o fanqueiro da Praça Nova, receioso de que lhe faltassem brasileiros á filha.

Innocencio viu Rosa. Palpitou-lhe o coração como saco aneurismatico. Lancetavam-lh’o saudades, saudades como ellas são e pungem quando o nunca mais vem com ellas. Nunca lhe parecéra bonita senão então a Rosinha. Uns modos acanhados de innocencia boçal que d’antes tivera a moça, transfiguraram-se em meneios graciosamente desenvoltos, sem desaire de pouco senhoris, um certo desembaraço afidalgado que Innocencio via nas damas de raça, e desejaria ver nas raparigas da sua roda. Tendencias ao sublime, não vulgares em sujeitos da sua laia.

Como estivesse inquieto, o esposo de Thomazia saiu do camarote e passeou nos corredores. O pae, assim que o pano se levantou, saiu a chamar o filho.

Entrava Innocencio no camarote, quando a personagem chamada IZAURE dizia a FAYEL:

Ah! já não amas a infeliz consorte?

[Pg 129]

N’este lanço, a loura esposa voltou o rosto e olhou intencionalmente para o marido, que tinha já os olhos cravados no camarote de Rosa.

Thomazia seguiu o suspeito lanço de vista, surriu-se, e baixou a cabeça, encostando-a á mão direita.

D’ahi a pouco as senhoras D. Florencia e Sebastiana choravam lagrimas como punhos. É que Izaure, de joelhos deante do furioso Fayel, exclamava:

Ah! prostrada a teus pés, digna-te ouvir-me.
Tem compaixão, Senhor, da afflicta esposa! etc.

Poucas scenas deixaram de ser victoriadas pelas lagrimas da familia Barros, exceptuado Gervasio; que esse, quando Fayel vociferava ameaças de morte contra a esposa, dizia:

—O homem é levadinho de todos os diabos!

Findo o primeiro acto, perguntou D. Thomazia ao marido se tinha gostado.

—Gostei...—respondeu seccamente Innocencio.

—E ouviste o que elles disseram?

—Ouvi, que estava perto.

—Cuidei que não...—disse-lhe ella ao ouvido.—A tua comedia esta noite é a Rosinha...

—És tola...—replicou brandamente o esposo.—Que me importa cá a mim a mulher!...

—E a mim importava-me menos o homem de Caminha...—voltou Thomazia.

Este breve dialogo correu sem attenção da familia,[Pg 130] que se occupava em ponderações relativas aos casos tristes do acto 1.º

Innocencio foi fumar para o vestibulo.

Roque, o irmão discreto de Rosa, visinhou-se d’elle com bom semblante, apertou-lhe a mão, e deu-lhe os emboras do seu casamento.

Innocencio tartamudeava, humilhando-se com conscienciosa vergonha á superioridade do outro que devia ser o corrido.

—Sempre fui teu amigo desde a escola—disse Roque—e hei de sêl-o até á morte.

—Tambem eu fui sempre teu.... tartamelou Innocencio, pedindo-lhe o cigarro para accender o charuto.

—Lá com o que faz a minha familia não me importo. Se estiverem de mal comtigo, deixal-os estar. Pois hei de querer-te mal porque não casaste com minha irmã Rosa? Não... Fizeste o que te pediu o coração, e...

—Foi meu pae...—atalhou Innocencio abemolando piedosamente a voz.

—Eu logo vi que foi teu pae: que tu por tua vontade não casavas com quem casaste. Isso mesmo disse eu á minha familia... Parece que adivinhava! Quando me affirmaram que casaste por namoro, gritei sempre que era mentira; ou então não sabias quem ella era...

—Ella quem?

—A senhora D. Thomazia, acho que é Thomazia a mulher.

É; mas então... dizes tu... que eu não sabia quem ella era?

[Pg 131]

—Sim, não sabias...

—Sabia muito bem. O pae d’ella era um capitão que morreu no cêrco, e a mãe uma senhora que morou sempre defronte da minha casa, e era filha de um negociante fallido com honra, depois dos francezes.

—Não digo o que tu pensas, meu amigo. A minha idéa é outra.

—Sim, tu disseste que eu não sabia quem era Thomazia—insistiu Innocencio com a voz alterada.—Que vem isso a ser?

—Já que m’o perguntas com esse fogo, sempre te vou explicar o meu pensamento. Tu és um rapaz de caracter e brios. Diz-me cá: se te avisassem de que a menina com quem querias casar andava escrevendo cartas a uns e a outros, casavas com ella?

—Não; mas...?

—E se te contassem que um dos seus namorados vinha ler as cartas d’ella na Praça Nova, no meio de uma roda de lordes de luva branca, para que elles rissem até romper pelas ilhargas, casavas com ella? Sim, pergunto eu...

—Não, já t’o disse; mas que tem isso com minha mulher?

—Que tem? essa é boa! tem tudo; porque tua mulher é que escrevia cartas ao Costa Guimarães, que tu conheces perfeitamente, não conheces?

—Sim...

—E elle, ali á esquina da Praça Nova, que o vi eu com estes dois, esteve a ler em alta voz uma carta, em[Pg 132] que ella por signal dizia tolices de palmo e meio, e eram as gargalhadas tantas que até parava a gentalha espantada. Aqui tens agora por que eu te dizia que...

—Tu juras pela vida de teu pae que não mentes, Roque?—exclamou Innocencio trespassado de dôr que só vilissimas almas ousariam motejar.

—Juro pela vida de meu pae que não minto, e que sustento o que digo deante do Costa Guimarães, e deante da tua criada Custodia que era a confidente da correspondencia.

Innocencio encostou-se á parede, livido e tremulo, com os olhos encarniçados e fitos no rosto do denunciante, jubiloso de sua vingança.

Depois, impetuosamente, saiu do seu torpor, e disse convulso:

—E que ganhaste em vir contar isso, tu?

—Não ganhei nada... nem te peço paga nenhuma. Isto veio a proposito de eu te ter sempre defendido, quando ouço dizer que tu bem sabias quem tua mulher tinha sido em solteira.

Innocencio rompeu de roldão por entre o povo apinhado no atrio e saiu, sem redarguir, ao irmão de Rosa.

Chegou a meio do largo da Batalha e retrocedeu. Entrou outra vez no camarote, quando corria já na ultima scena o acto 2.º la desfigurado. O pae tirou-o fóra pela lapella do casaco, e obrigou-o ora suave, ora asperamente a contar-lhe a conversação com Roque. Ouviu-o retraindo os assomos da ira, esteve-se a scismar[Pg 133] rematado o conto, e disse placidamente ao filho attribulado:

—Innocencio, não tomes a peito isso que póde ser mentira, e, se o não fôr, tambem não é crime que te envergonhe. Thomazia fez uma acção má em escrever ao Guimarães; mas olha que na idade d’ella essas coisas não tem aquella nenhuma. Todas namoram, todas escrevem e a gente não póde pedir-lhes contas do que fizeram antes de serem nossas mulheres. Tua mãe, quando me escreveu a mim, já tinha escripto a outro; e ha muitas senhoras honradas que escreveram a uma duzia d’elles ao mesmo tempo. Mau é terem ellas quem lhes leve as cartinhas...

—É verdade!—atalhou o filho.—E Custodia? que me diz vocemecê á desaforada da Custodia! aquella beata que ouve trez missas!...

—A Custodia, meu filho, está cá por minha conta... Agora o que te peço é que venhas para o camarote, que não te mostres d’avessas com tua mulher, que te rias para ella de modo que lá os Barcellos te vejam... Pois tu não entendes que o bregeiro do Roque o que quiz foi metter-te a garrocha e fazer-te saltar? Esta hora estão elles lá muito regalados de verem que saiste do camarote, e ámanhã vão espalhar que tu bateste na mulher... Vem, Innocencio, vem, que Thomazia está innocente. Cartas escrevem-n’as todas. Ora olha cá o que te eu digo. A Rosa não te escrevia?

—Sim, senhor.

—E a Gomes? tambem. E a Luiza Leite? tambem.[Pg 134] E a Emilia Fernandes? tambem. E as outras trapalhonas que andavam á pilha da tua fortuna? Todas te escreviam. Eu sabia a tua vida hora por hora. Olha cá o que te eu digo agora: essas raparigas, que te escreveram, ficaram deshonradas por isso?

—Não, senhor.

—E, se ellas casarem, os maridos ficam deshonrados por que tu te carteaste com ellas? Não; não ficam. Ficam ou não?

—Não, senhor.

—Então que estás tu ahi a malucar? Cuidei que tinhas outra cabeça, homem! Eu, se fosse a ti, e o Roque me viesse cá com essas trampolinices, dizia-lhe: «Ora, meu amigo de Peniche, vá dizer a sua irmã que metta a viola no saco, e que vá cavar pés de burro.» E, se lhe não dissesse isto, dava-lhe dois pares de murros á portugueza, que elle havia de ter que contar ao sarrafaçana do pae, que está levado de dez milhões de diabos por que não poude metter-me em casa a lambisgoia da filha. Arre, ladrões, vão ganhal-o!

E, dizendo, levou o filho pelo braço, recommendando-lhe que entrasse a rir-se, muito satisfeito no camarote.

E, de feito, Innocencio entrou a rir-se no camarote, com a mais infeliz cara que imaginaram Gavarni e Molière. O rir d’elle era uma dilatação lateral de bochechas, e o vertice da lingua apontado aos dentes. São tão poucos os infortunios sem um reverso ridiculo!

Perguntou-lhe Thomazia onde tinha estado.

—Andei a conversar com os amigos—respondeu[Pg 135] elle meigamente, sem desmanchar o apparelho do riso.

—Não viste o segundo acto que era tão bonito!—tornou ella.

—Ai, filho!—confirmou a mãe—sempre aqui temos chorado!...

—Eu cuidei que perdia os sentidos!—abundou D. Florencia, em quanto D. Sebastiana enxugava ainda os residuos das lagrimas estancadas nas rugas.

Corrido o pano para o terceiro acto, Innocencio sentou-se á beira de sua mulher, fallando-lhe com fervoroso interesse e geitos muito acariciativos, em coisas que era natural dizerem-se sisuda e gravemente.

Estava como admirada Thomazia. Aquelles modos causavam-lhe certa estranheza e desconfiança; porque não eram usuaes nem naturaes em seu marido. Além de quê, a senhora desejava seguir o entrecho da tragedia, e elle a cada instante, com a bocca cheia de riso, lhe cortava a attenção com algum dito de tão desengraçado espirito que propriamente Thomazia o achava parvo.

Decorreram assim dois actos.

A familia Barcellos espreitava, simulando indifferença, os movimentos do camarote. A vista de Innocencio, apurada pela raiva, tudo via de soslaio. Quanto mais o espreitavam assim elle requintava em ternura com sua mulher, chegando á demasia de lhe estar brincando com as guarnições do decote.

Na penultima scena do 5.º acto, pediu-lhe Thomazia que a deixasse ouvir a falla de Gabriella, apontando para o cadaver de Cuci.

[Pg 136]

As trez velhas, chegado o drama a este abuso da sensibilidade humana, já não choravam sómente, gemiam gemidos de tal arrancar do seio, que Thomazia mal poude ouvir os derradeiros versos de Gabriella que gritava assim pela bocca da Grata:

Sim, meus votos recebe, sombra amada;
Por teus manes ensanguentados juro
Um amor te prometto, que escarneça
De seus furores. Não, já te não temo!
A minha mesma dôr me arranca a vida.

Ora, como Fayel corresse então sobre a mulher, e a matasse com um punhal, Gervasio não teve mão de si que não murmurasse em tom indignado:

—Era da pelle do diabo o homem!

Vae, depois, Fayel mata-se tambem. São já trez os cadaveres em ruma. O terror abafa a respiração do auditorio, emquanto a razão não emerge do seu lethargo para applaudir e vozear pelos artistas. A esposa e irmãs continuam a soluçar entaladas, puxando a custo a respiração dos gorgomillos.

Gervasio reveste-se da sua dignidade critica e diz:

—Vossês são tolas! Olhem que isto é tudo uma tramoia inventada pelo sabio que fez a comedia. Levantem-se d’ahi, e vamos embora.

Innocencio deu o braço a sua mulher. As trez senhoras velhas ainda trajavam mantilha. Desceram ao pateo, e esperaram o carroção. Esta demora assanhou a ulcera[Pg 137] latente de Innocencio. Thomazia sentiu um brutal repellão que lhe torturou o braço. Olhou para o marido, e viu que elle cravára os olhos n’um homem que, d’entre a multidão, lhe estava espreitando para a consorte. Ella seguiu aquelle raio de luz sinistra e viu João José da Costa Guimarães. Córou: incendeu-lhe as faces o odio, estimulado pela vergonha.

Havia ainda muita coisa boa na alma d’aquella mulher. Córava!


[Pg 138]

CAPITULO XI

Argumento

Innocencio resiste á ceia de pescada cosida. Injurias selvagens que elle dardeja á esposa. Acode Gervasio embrulhado n’um capote de trez cabeções. Socega o truculento. Gervasio manda sair Custodia. A velha faz chorar as pedras, saudosa da sua menina. Lança-se-lhe nos braços, e sae d’elles moribunda. Expira a velhinha. O author escreve o elogio da defunta, e dirige-lhe uma allocução commovente, como consta d’este sentimental capitulo.

No transito da Batalha á rua das Cangostas, os beiços de Innocencio não se abriram. Entrou em casa carrancudo como um somnambulo. Não quiz cear, com quanto a mãe, o pae e as tias lhe asseverassem que a pescada cosida a podiam comer os anjos, de boa que estava. A esposa escassamente comeu, e foi para o seu quarto onde o marido passeiava rapido e assoprando.

—Que tens tu?—perguntou ella mais altiva que carinhosa.

—Tenho vergonha de ser seu marido!—respondeu com selvagem e concisa eloquencia o aprumado Innocencio, voltando-lhe as espaçosas costas.

A senhora ficou transida de frio e assombrada largo tempo sem poder articular a réplica.

[Pg 139]

Voltou-se rapido contra ella o marido e repetiu:

—Sim, é o que lhe digo: tenho vergonha de ser casado com a senhora!

—Por que?—murmurou ella com humildade.

—A senhora sabe-o; não me faça perguntas.

Calou-se alguns segundos e voltou com impetuosa vehemencia:

—O que a senhora quiz foi ser rica, não é assim?

—Eu...

—Sim. Não me tinha amor nenhum; mentiu-me, andou a imposturar para me illudir...

—Não digas isso, Innocencio...—redarguiu ella energicamente; mas a consciencia esfriou-lhe logo a reacção.

—Então isto é mentira? A carta que você me escrevia para o Douro não era sua?

Thomazia abaixou o rosto e chorou. Em situações analogas, mulheres sem defeza, choram. As lagrimas são supplicas n’estes lances. Se os juizes teem boa alma e a virtude da delicadeza, rasgam o processo. Se são da indole rustica do filho de Gervasio, enfurecem-se em dobro e vociferam. Para esta ralé de homens faz-se mister que a mulher, bem que culpada, relucte e rebata as accusações, simulando arrogante innocencia. Se não ganhar o pleito, perde-o sem humilhar-se.

—Responda a isto!—bradou Innocencio.—A carta era sua... ou foi por engano que m’a quiz mandar?... Sim... pergunto... póde ser que a tal cartinha fosse para o Costa Guimarães.

—Logo vi...—soluçou a senhora—logo vi que a[Pg 140] tua raiva era por estar no theatro aquelle maldito...

—E acha você que é só por isso, eim? Acha que não tenho mais nada que lhe bote na cara, a respeito do tal tratante? Faz de mim tão tolo que estou aqui assim zangado porque elle olhou para a senhora!... Ora, minha amiga, outra vida!... Sabe que mais?—e destampou a voz de subito como trovão inesperado—Sei tudo! sei tudo, ouviu? Sei tudo e sei tudo!

Aterrou-se Thomazia. Tremiam-lhe os dentes e os labios.

Os berros do homem estrondearam na casa. Gervasio saltou da cama, embrulhou-se n’um capote de trez cabeções, e veio bater á porta do quarto do filho, a tempo que elle bramia:

—Escrevia-lhe a elle você e fazia-me a côrte a mim ao mesmo tempo! Essa acção é de mulher sem honra!

—Quem é?—disse elle, suspendendo a apostrofe, e attentando a orelha á porta em que batia o pae.

—Sou eu—disse Gervasio—vem aqui fóra.

Innocencio saiu. O pae levou-o para uma saleta na extrema do segundo andar, e disse-lhe severamente:

—Portaste-te como um gallego. Estás ahi a berrar com tua mulher, depois de eu te ter pedido que não fizesses caso da intriga. Isso é feitio, rapaz? É assim que tu começas a tratar tua consorte? Que começos de vida levas! Quando isto é no primeiro mez, que será d’aqui a seis! Mal haja a hora em que esta rapariga veio para minha casa?...

Gervasio disse isto com dôr, e anciado do peito.

[Pg 141]

O filho teve compaixão do velho; pediu-lhe que se deitasse e dormisse, na certeza de que elle não tornaria a questionar com Thomazia.

O pae recolheu-se ao primeiro andar, onde já estavam as duas irmãs espavoridas perguntando á cunhada que autemgeni era aquelle na alcova de Innocencinho.

Cumpriu a promessa o irado esposo, posto que o sangue lhe engorgitasse o coração.

Deitou-se. Thomazia passou o restante da noite sentada n’um canapé, a chorar e a tremer de frio. Innocencio perguntou-lhe de madrugada o que estava a fazer ali.

—Nada... respondeu a esposa.

Elle grunhiu o que quer que fosse. Já era dia, quando Thomazia se levantou em direitura á porta no proposito de subir ás aguas-furtadas e contar a Custodia os successos. Innocencio sentou-se de golpe na cama, e bradou:

—Onde vae a senhora?

—Vou sair lá para dentro.

—Quer ir entender-se com a beata? Não vae. Deixe-se estar ahi.

Voltou-se a sentar-se, tremente de raiva, a medrosa senhora.

Ao nascer do sol, Gervasio José de Barros já andava na rua. Entrou no mosteiro de Santa Clara, deteve-se meia hora a conversar com a prelada, foi d’ali ao paço episcopal, e voltou com um papel assignado pelo bispo.

[Pg 142]

Chegou a casa esbaforido. Mandou chamar ao escriptorio Custodia da Porciuncula, e disse-lhe com semblante carregado:

—Custodia, não podes estar mais tempo em minha casa. Escuso de te dizer as razões que tenho para te despedir. Não me serves...

—Então...—exclamou Custodia, erguendo as mãos em affligidissima postura—assim se põe na rua uma velhinha de sessenta e nove annos!...

—Não vaes p’rá rua, mulher. Venho de te arranjar um encôsto no convento de Santa Clara, onde te mandarei dar todos os mezes o necessario para o teu passadio. Vaes para onde possas rezar e ouvir muitas missas á tua vontade. Cá em casa é que me não serves.

—E a minha menina!—tornou Custodia, lavada em lagrimas—a minha filhinha do meu coração... heide deixal-a!... ai! que eu morro! ai! que eu morro!

—Não faças gritarias, mulher!—atalhou Gervasio, sustando o alarido da consternada velha.—A tua menina ia por bom caminho, se tu continuasses a levar e trazer cartinhas de sujeitos que tu lá sabes...

—Eu!... seja pelas almas!—interrompeu ella.

—Está bom, está bom—concluiu o negociante—não quero plemicas! Vae lá tratar de arranjar a tua caixa, que d’aqui a uma hora has de ir para o convento; e, se não quizeres ir com a boa esmola que te dou, procura a tua vida lá por onde te fizer conta.

Custodia pediu quasi ajoelhada que a deixasse despedir da senhora D. Thomazia.

[Pg 143]

—Sim, sim, ella está lá por cima—abreviou Gervasio, fechando-lhe a porta na cara.

Subiu Custodia e encontrou n’um corredor a filha da senhora, creada aos seus peitos. Lançou-se a ella, suffocada de soluços, beijando-a e molhando-a com a torrente das lagrimas.

—Adeus, até ao dia do juizo, minha filhinha!—foram as unicas palavras que poude proferir, porque perdeu o alento nos braços da senhora.

Thomazia sentou-se no pavimento e deitou-a no regaço, bafejando-lhe as mãos regeladas. N’esta postura a encontrou o marido. Parou, e disse carrancudo:

—Que historia é esta?!

A esposa não respondeu e continuou a aquecer com a fricção das suas as mãos da criada.

Passou Innocencio adeante e chamou as tias, mandando-as conduzir Custodia para as aguas-furtadas.

Acudiram as senhoras todas, ainda ignorantes do successo; que Gervasio apenas tinha segredado a sua mulher que a tal santinha de Custodia era uma desavergonhada de mão cheia.

Thomazia disse ás senhoras que a velhinha estava fria de morte.

Pegaram n’ella e conduziram-n’a ao leito. Agitaram-n’a, chamaram-n’a, deram-lhe um pediluvio de agua espertada com mostarda, e borrifaram-lhe a cara com vinagre. Não dava signal de vida a pobre Custodia.

D. Thomazia de Barros foi ao escriptorio dizer ao marido que a velha parecia morta.

[Pg 144]

—Isso ha de ser fingido para não ir p’ró convento,—disse Gervasio—mas eu vou lá vêr...

Quando Gervasio chegou acima e se abeirou do catre de Custodia, já a velhinha tinha os olhos abertos, e circumvagava com elles espantados por toda a gente.

—Eu não te disse que era fingimento!—segredou Gervasio á esposa.—É matreira como o diabo a tal beata! Pois ha de ir...

N’este comenos, as palpebras de Custodia desceram outra vez; mas não chegaram a unir-se; porque as inferiores já tinham perdido a força vital da elevação. Estava morta: morrêra da sua fulminante agonia. Foi a saudade que lhe desfez o coração em que não tinha mais sangue que o das ultimas lagrimas choradas nos braços da sua ama. Não levou á presença de Deus culpa que a excluisse da misericordia do céu. Peccou por ignorancia e demasiada fé em S. Gonçalo e outros santos da mesma respeitabilidade. Peccou attribuindo á magia do sal virgem o exito de um casamento que se lhe figurou a felicidade da sua menina. Foi medianeira nos amores de João José emquanto acreditou que o homem trazia missão do alto quando solicitava a sua protecção. Odiou-o assim que lhe descobriu a protervia dos planos, e voltou os seus esconjuros a favor de Innocencio, por lhe parecer o melhor marido, á falta de outro eleito nos conclaves dos santos, martires, doutores e apostolos do seu conhecimento.

Descança, pois, em paz eterna na tua cova do cemiterio de S. Francisco, pobre Custodia da Porciuncula![Pg 145] Dorme até que a trombeta chame ás alvoradas do dia eterno a tua alma. E, se n’essa occasião este meu livro sobreviver, como espero, ao renovado cháos, pede ao teu anjo da guarda que junte este capitulo ao autos do teu processo, e eu terei tambem o duplo prazer de ter concorrido para a tua salvação, e de ser citado no valle de Josaphat.


[Pg 146]

CAPITULO XII

Argumento

Odio entranhado de D. Thomazia ao marido. Novas libertinagens de Innocencio. Segredos do thalamo contados com exemplar melindre e não vulgar habilidade. O virginal enthusiasmo das senhoras D. Sebastiana e Florencia. Os pagodes nocturnos do devasso. Morre Luiz de Pinhel, e Innocencio vae ao Pará. Admoestações epistolares do pae. O filho commove-se, mas Thomazia não n’o ajuda. De como a rethorica de Innocencio estava nos pés do mesmo. Vae-se o marido e ella passa soffrivelmente. Renascem as franciscanadas do Reimão e do theatro. Cyclo da prosperidade dramatica no Porto. A «Degolação dos Innocentes». Recorda-se a pá do carneiro com explicações supplementares.

Este sucesso enluctou o coração de todos. Thomazia, a esposa de Innocencio, cobrou odio entranhado ao marido: odio que superava o sentimento saudoso da morta. A Gervasio asseteavam-n’o remorsos, que o impediam de justificar a si mesmo o violento passo de despedir a pobresinha. As trez senhoras e os dois velhos lastimavam a defunta, e mais ainda o morrer-se tão atormentada e sem sacramentos. Innocencio andava a scismar e a querer divertir o animo das zargunchadas da consciencia.

[Pg 147]

Evitava-o com invencivel repugnancia a mulher, se elle parecia querer reconciliar-se. Sumia-se na alcova de Custodia, e desafogava n’um alto chôro, que a sogra não ousava increpar-lhe. Como Gervasio lhe dissesse que a velha, a não ter morrido, gosaria um descançado fim de vida no mosteiro de Santa Clara, a opprimida senhora mandou-lhe pedir pela tia Florencia que lhe désse no convento o encôsto destinado á criada.

O negociante injuriou a irmã portadora do recado, e foi, passado pouco tempo, affagar Thomazia, com promessas de lhe amaciar as rudesas do genio de seu filho: promessas que ella recebeu com desdem significativo de que preferia ser aborrecida.

E não havia congraçarem-se os esposos. Á mesa não se encontravam com olhos nem palavras. Innocencio demorava-se em casa o escasso tempo de comer; e de noite recolhia-se depois que os botequins o despediam, ou a intemperie do tempo o necessitava de abrigo. O espaçoso leito conjugal, desde a morte de Custodia, nunca mais deu o licito calôr áquellas duas almas em commum. Thomazia senhoreou-se do seu antigo catre, armando-o na alcova escura contigua á saleta do seu aposento. O marido vira-o feito, e não lh’o contrariára. Quando as irmãs lhe deram assombradas a noticia, Gervasio não impediu, não se interpoz, cuidando que a duplicidade das camas não significava coisa de vulto. As duas solteiras benziam-se, chamando «modernismo» á separação, e protestando com virginal enthusiasmo que, sendo casadas, jámais consentiriam semelhante moda.

[Pg 148]

Por parte de Innocencio a reconciliação não foi solicitada. Minguava-lhe amor para arrepender-se, e generosidade para perdoar a venial aleivosia das caricias ante-nupciaes. Assim mesmo, deante da familia esforçava-se em parecer senão amante ao menos amigo de sua esposa. Assim, porém, que a topava a sós, desviava-se, sem perceber que ella já de longe planeava o desvio. Tinha ella vida nocturna, que não era contemplativa nem ralada de solitaria tristesa. Os antigos conhecidos dos cafés blasonavam de se banquetearem em festins por noite alta com parceiras condignas, sob a presidencia bisarra e liberal de Innocencio José de Barros. Gervasio não foi dos ultimos avisados da prodiga libertinagem do filho. Repreendeu-o, sem azedume, receioso de que o filho lhe replicasse: «Deixasse-me estar solteiro». Era fraco e pouco menos de estupido, além de delinquente, Gervasio José de Barros. Delinquira insinuando a violencia no tom de auctoridade paternal e coadjuvando a deslealdade de Thomazia. Estava pagando.

E dobaram-se assim trezentos dias e noites, quasi um anno, sem que Thomazia podesse relembrar dia ou noute em que não chorasse.

Em janeiro de 1845 recebeu Gervasio a nova de ter fallecido no Pará seu cunhado Luiz de Pinhel. O informador acrescentava que o maximo da herança coubera aos filhos legitimados do rico fazendeiro; isso não impedira, porém, que o finado se lembrasse de sua irmã Thomazia, a quem deixára trinta contos de réis fortes. Pedia o noticiador habilitação e poderes para liquidar, se[Pg 149] Gervasio não quizesse antes enviar directamente procurador que agenciasse a facilima cobrança.

—Deixe-me ir, meu pae! deixe-me ir a mim!—exclamou Innocencio.—Vou eu ao Pará, se me derem a procuração. Deixem-me ir, que me fazem um grande bem. Preciso sair do Porto por algum tempo. Ha muito que eu andava para pedir a meu pae que me deixasse ir ao Pará ver o tio...

Gervasio meditou, e disse:

—Pois prepara-te e vae... Queres levar tua mulher?

—Não, senhor—respondeu prompta e seccamente.—Se eu vivesse feliz, não buscaria modos de me apartar d’ella por algum tempo.

—Pois vae sósinho, filho, vae; mas tem pena da pobre rapariga. Não a trates mal agora que te retiras. Pede-te isto um velho pae que talvez não tornes a ver...

—Qual não? acudiu Innocencio—o mais tardar d’aqui a seis mezes estou aqui. Em quanto vou e venho, cançam-se de fallar de mim os canalhas dos Barcellos que me trazem entre os dentes...

—Pois vae, filho, vae, e Deus te traga com mais juizo do que levas... Agora sempre te direi que tens andado muito mal procedido por essa cidade. Os velhos do meu tempo dizem-me que estás perdido! Ainda não ha oito dias que foste visto na «Pedra Salgada» com uma corja de bebados e ladras a suciar. Chorei, e não te disse nada. Fallo n’isto agora—continuou o velho embargado a cada palavra pelos soluços—porque se eu[Pg 150] morrer, quero que saibas e te lembres das afflicções que me causaste.

—Meu pae...—atalhou commovido Innocencio, abraçando o velho.—Se vocemecê quer, não vou.

—Vae, vae! antes por lá que por cá te deites a perder de todo. Eu cá fico a proteger a coitadita de tua mulher, que eu desgracei, pensando que a fazia feliz. Se o pae d’ella não tivesse morrido, a pobresinha da moça não estaria para ali mettida no seu quarto sempre a chorar, sem ter culpa que merecesse tal castigo.

—Se chora é porque quer—contrariou Innocencio.—Que mal lhe faço?

—Ora que mal lhe fazes!... Está bom, está bom; não questionemos, filho. Trata de te preparar, e sae no primeiro navio, que eu vou habilitar tua mãe, e arranjar-te os papeis. O que meu cunhado deixou, teu é. Vae cobral-o, e faz o que quizeres d’elle. Gasta-o em extravagancias; que tua mulher hade sempre ter o necessario para a vida. Eu não fui buscar esta menina para a fazer tua escrava. Essas contas não m’as hade pedir a alma de seus pães... isso não, que eu sou homem honrado.


Innocencio, algum tanto amollecido pelo pae a favor de Thomazia, adoçou a severidade do rosto, e foi dizer á esposa que ia ao Pará receber a parte da herança de seu tio.

Thomazia fitou-o com quanta serenidade de semblante podia melhor traduzir a nenhuma importancia da inesperada[Pg 151] noticia. Muito fez ella em não deixar transluzir o contentamento que lhe illuminou a escuridão da alma.

Innocencio reparou na placidez de sua mulher, e avincou a testa.

—Não dizes nada?!—proseguiu.

—Que queres que te diga?

—Não se te importa que eu vá... Estás morta por me vêr pelas costas...

—Não...—volveu Thomazia n’um tom que substituia a mais affirmativa resposta—se tu queres ir, que hei de eu dizer?...

Riu-se rispidamente o marido, e replicou:

—Sempre me tens um amor que nunca se viu coisa assim!

—E o teu? é um amor muito grande, não é?—redarguiu ella, retribuindo-lhe o riso ironico.

—É o que me faltava!... estar eu a apaixonar-me por ti!... Se eu fosse tolo!...

Thomazia curvou-se sobre a almofada da costura e continuou a trabalhar, com os olhos embaciados e a mão tremente.

O marido saiu, depois de bater o pé rijamente no sobrado. Era uma frase de arrebatada colera aquelle bater de pé! O vigor da cabeça não podia sair-se com tão estrondosa objurgatoria! Os pés, n’alguns individuos, são como a arte da rethorica para a eloquencia.

Á volta de nove dias, Innocencio José de Barros fez-se de véla para o Pará na barca Romeu I. Despedira-se[Pg 152] seccamente da esposa que ainda teve lagrimas ao abraçal-o, e coração com palpitações que o maravilharam. Thomazia, n’aquelle lance, presagiou que o não tornaria a vêr. Sentiu a saudade que deixam propriamente os maridos mortos ás viuvas que mortificaram.

Saudade, porém, foi aquella tão boa de levar, que, no breve termo de duas semanas, a resignada consorte, se queria odiar a imagem do marido, bastava-lhe recordar os derradeiros transes de Custodia. D’este rancor aquinhoava bastantemente o sogro; todavia, as maneiras meigas e tristes do velho com ella quebravam-n’a até o extremo de a enternecerem como filha.

Restaurado o socego de Gervasio, renasceram-lhe os antigos e aprasiveis affectos ás franciscanadas do Reimão e do theatro de tarde. A mulher já não ia de bom animo a taes delicias; mas, para divertir o espirito fatigado de seu homem, sacrificava-se ás digestões preguiçosas do anho assado e do savel de escabeche.

Thomazia recusou-se moderadamente a sair de casa no primeiro mez da ausencia do marido; mas, instada pelo sogro, condescendeu, honestando o seu apparecimento em publico no grave envoltorio da mantilha—deliberação que muito agradou á madrinha e mais senhoras.

Acertou de laurear-se então a scena portugueza, e nomeadamente o palco de S. João, com a carnificina dos meninos que ameaçavam a dinastia do rei de Jerusalem.[Pg 153] A «Degolação dos Innocentes» vista seis vezes a fio pela familia das Cangostas, á setima representação desentranhou ainda novidades, peripecias e frases que arrancavam novas lagrimas e novos raptos de admiração áquella familia.

Quando a sensibilidade, á oitava recita, estava, para assim dizer, já moida, Gervasio animou-se a intervalar o odio á truculencia de Herodes com alguma golosina. Discutiram pacificamente Gervasio e a mulher se devia ser anho ou perua a victima immolada. O cordeiro era os amores, a sensualidade gastrica do negociante, que se abonava com o exemplo do divino Mestre e dos apostolos.

Amanharam as irmãs o anho, e deram com elle, loirejando sobre almofada de açafroado arroz, no camarote de terceira ordem.

Então succederam as coisas referidas na Introducção, mas é urgente complanar uma lacuna que se deixou para esta opportunidade.

A esposa de Innocencio acceitou com bastante pejo a porção do anho que seu sogro lhe ministrou. Segredava-lhe certo instincto que a usança de merendar tão succosas vitualhas n’um camarote, implicava desaire de senhoras e risota de alguns dandis que zombeteavam dos innocentes prazeres de seus paes.

Não obstante, acceitou por condescendencia, pedindo a um irmão do sogro que cortasse da pá do cordeirinho offerecida um pequeno bocado.

O velho, como não atinasse a cortar com a faca pelas[Pg 154] fibras ligamentosas da articulação, revirou os punhos do casaco, e forcejou por desnocar a pulso um osso do outro. No acto de estalarem as cartilagens, saltou-lhe da mão a pá, e caiu por cima do parapeito do camarote á platéa.

As senhoras encolheram-se de puro envergonhadas, e Thomazinha chegou a expedir um ai. Gervasio, porém, não deu valor ao successo, e proseguiu lascando a caveira do anho, em cata dos miolos. Esta suada operação estava Gervasio victoriando, quando Antonio Joaquim, Nicoláo de Almeida e eu assomamos no limiar do camarote.


[Pg 155]

CAPITULO XIII

Argumento

A mulher fatal. Thomazia cantada nas margens do Mondego. O que Nicoláo era capaz de fazer e o que fez. O juizo do meu bom amigo Antonio Joaquim. Descreve-se o fidalgo de Caminha, e diz-se que ella o tinha de memoria pelos motivos que no capitulo se relatam. O que Thomazia fez ao outro dia. Começa o namoro como se estivesse a fazer crise. Anceia um confidente que o diabo lhe depara na pessoa de um marceneiro. Addição d’um aguadeiro á confidencia. Topicos da primeira carta. O singelo estilo que inspira um amor sincero. Ao fim de sete cartas, é dispensado o gallego e substituido por escada mais intelligente. Chore quem poder.

Era pois aquella a mulher fatal que Nicoláo d’Almeida tinha visto anno e meio antes em Caminha.

Ella alli estava, a vaga imagem que a miudo lhe alumiava os sonhos e perturbára as vigilias. Ali estava a Estella que lhe tinha sido o titulo e sagração de muitas poesias que os seus amigos liamos admirados da frugalidade com que aquelle espirito se alimentava. Este ideal da mulher foi o do meu tempo em Coimbra: o ideal de hoje em dia não me lembro de o ter visto maltrapido com as meias e capas laceradas do meu tempo. Urgia que os academicos se anafassem e lustrassem a[Pg 156] grenha como cosinheira em domingo, para que as ideas de Goettingue, entrajadas de lantejoulas, se enamorassem de rapazes tão de sua feição e peso.

Como disse, o ideal de qualquer rapaz então era a mulher. Estella todos tinham uma; porém, tão intangivel e fugidiça como a de Nicoláo de Almeida, não sei que outro poeta a endeusasse com mais arrobado lirismo.

Eil-a pois a mulher fatal!

O fidalgo de Monção, no dia seguinte, disse a Antonio Joaquim:

—Que julgas tu que sou capaz de fazer por aquella mulher?

—Asneiras superiores ao meu calculo—respondeu o meu discreto amigo.

—Arrebatal-a, e estrangulal-a, se me perseguirem e eu me vir em risco de a perder.

—Vês?—tornou Antonio—ahi está uma parvoiçada a que não chegava o arrojo da minha imaginação! Arrebatal-a e estrangulal-a!... Não és rapaz de meias medidas. Faltou-te, no programma, enterral-a. É preciso enterral-a; e depois uma sangoeira de vampiro. Vaes por noute morta ao cemiterio e sugas-lhe as arterias.

—Não podes entender-me: és bom rapaz; mas não conheço coração mais estupido que o teu!—atalhou o academico, com um surriso em que reçumava o despeito delicado.

—Não é estúpido, quanto cuidas—contradisse gravemente o meu atilado amigo.—Tem um vicio que vocês[Pg 157] alcunham de estupidez: o vicio da virtude. Condemno com quanta sinceridade posso essa cruel brincadeira que tu chamas fatalidade. Já me disseste que é casada a mulher.

—Que me faz isso a mim?!—obviou Nicoláo sem tergiversar na pròtervia da refutação.—Eu sei lá o que é ser casada a mulher onde está uma alma que me pertence?

—Então a alma da mulher de um tal Innocencio pertence-te?!

—Não zombes!

—Pois tu crês que possa sustentar-se comtigo um dialogo serio? Que distincções estás ahi talhando entre corpo e alma!... Não me atarantes com subtilezas. Agacha-te ao raso do meu entendimento. A mulher é casada ou não?

—É.

—Então, deixa-a; porque não sabes quantas desgraças evitas á mulher que amas. Deixa-a em virtude do amor que lhe tens.

Nicoláo de Almeida apertou a mão do amigo e despediu-se, concluindo:

—Não vives n’este mundo. Eu, se tivesse mulher e filhos, em vez de andar semeando moral, estava ao pé dos meus filhos e da minha mulher. Adeus.

Alludia á situação ridicula de bom esposo e pae, que era já então Antonio Joaquim.

Thomazia reconheceu no camarote o moço que a seguira e indirectamente flagellára em Caminha. Não era[Pg 158] elle tão pouco assignalado de graças impressivas que dezoito mezes podessem delir-lhe a imagem.

Pungia-lhe a pennugem do bigode, bem que já tivesse vinte e dois annos. A magresa realçava-lhe a elegancia. Era pallido, negrejavam-lhe cabellos e olhos; a pequena bocca, surrindo infantilmente, quando dizia coisas nada innocentes, entre-mostrava o esmalte da dentadura primorosa.

Mão e pé, bem que eu os tenha em conta de attributos para rir n’um homem quando se encarecem pela pequeneza, não desdiriam com as fórmas da mais fidalga constructura de dama. Não sei se D. Thomazia deu tino, em Caminha, das bonitas extremidades do seu enlevado idolatra; mas já o leitor sabe que ella distinguira o pequenino pé de João da Costa Guimarães, de ominosa recordação.

O certo é que se recordou de o ter visto, e recordou-se tambem de ser aquella uma figura que lhe passava na fantasia, quando se lembrava das primeiras contendas com seu marido. Não porque a impressão lhe entalhasse a imagem na retina dos olhos d’alma; senão que, á semelhança de todas as mulheres, Thomazia comprazia-se de recordar o primeiro causador dos seus desgostos, com a certeza de que seu marido não se enganára, considerando-o apaixonado instantaneamente d’ella. Compensações que aligeiram o pezo da cruz do ciume nos debeis hombros das esposas innocentes.

Não admira que Thomazia adormecesse de madrugada a ver nas trevas o reapparecimento do extatico moço[Pg 159] de Caminha, e a ouvir-lhe a voz insinuante e argentina, ao envez da pronuncia gosmenta de seu marido e parentes. Alvoreceu-lhe, apoz um dormir inquieto, a imagem do sonho cortado pelo raio de sol que lhe tocou nas palpebras e afugentou o somno. Levantou-se. Sentiu-se leve, nova, reflorecida ao calor da juventude, desejosa de se mirar no espelho, a cuidar que via flores, a imaginar-se solteira, desligada de juramentos que a maneatavam, a conhecer que a alma batia as azas para voar longe, a gosar-se do prazer de estar sosinha, de scismar sosinha, de não ter ninguem que soubesse traduzir-lhe nos olhos o doce alvoroço do coração.

—Tanta coisa!—diz a leitora esquecida do que sentiu, ou ignorante do que ainda hade sentir.

E o mais? e a satisfação com que ella depois se ria, com as trez velhas, da graça que teve o rapaz de levar o osso! E a delicadeza de offerecer o carroção! E a generosidade que elle teve de dar cinco cruzados novos ao carreiro!

Este ultimo heroismo foi citado com superior enthusiasmo por D. Florencia. O carreiro tinha revelado a Gervasio a sua fortuna, quando o commerciante lhe quiz pagar.

E, depois, Thomazia deu tamanha elasticidade ao caso que não teve aquella imaginosa familia outro assumpto n’aquelle dia; salvo, quando a mãe de Innocencio expedia um suspiro, e murmurava:

—Muito se riria o nosso menino, se cá estivesse! Meu pobre filho! onde estarás tu agora!...

[Pg 160]

As duas tias concentravam-se a resar para que Deus levasse o sobrinho a porto de salvamento, e a esposa quedava-se calada e pensativa a dialogar comsigo sobre o caso graciosissimo do osso.

No fim da tarde, Thomazia e a sogra, ao despegar da agulha, foram á janella. A esposa de Innocencio olhou sem intenção para a loja de um enxabellador que morava defronte, e reconheceu o rapaz de Caminha. Nicoláo de Almeida examinava, escolhia e comprava cadeiras, commodas, canapés, o que se lhe offerecia. O que elle comprava melhor, e por alto preço, era o tempo que se detinha, á espera da incerta occasião de ver Thomazia.

E ella, quando o avistou na quasi escuridade da loja, não disse nada á sogra: perfilou o rosto voltado para a velha, e poz os olhos de envez para elle.

Nicoláo quedou-se contemplativo. O marceneiro observava o enlevo, e, contente do freguez, tinha vontade de ser interrogado ácerca da sua visinha para ser prestavel com as suas informações. Já o bacharel sabia o essencial. Nada perguntava: seria enxovalhar o assumpto rebaixal-o a tal interlocutor.

No entanto, a velha saiu da janella, e a nova, retraindo-se um passo, ficou de modo que era vista, entre as duas portadas que iam fechar-se. Nicoláo esperou que ella desapparecesse detraz dos vidros e saiu.

—Careço de um confidente—disse elle de si comsigo no dia immediato.—Arrisco muito; mas, se o não tiver, posso perder tudo. É questão de vida ou morte para mim o desenlace d’isto. Dou punhados de ouro para[Pg 161] que ella saiba que eu heide matar-me na hora em que me disser que me não ama. Onde irei comprar um medianeiro?

Chegava o marceneiro ao hotel do Pexe, na Feira das Caixas, com gallegos carregados de mobilia. Nicoláo não sabia ainda para que comprára cadeiras e canapés, tremós e commodas. Mandou arrimar as alfaias no pateo do hotel. Chamou ao seu quarto o artista, pagou sem glosar a somma das parcellas, entrou em conversação com o homem, e abriu-lhe margem a contar-lhe sua vida. João Ferreira tinha duas filhas casadas com officiaes do seu officio, e a terceira estava para casar com um regente de um cartorio de escrivão de direito. O regente queria que elle dotasse a filha com uma mobilia completa de sala e dois quartos.

Lastimava-se o pae de não poder dispender-se em mais duzentos mil réis, importancia dos trastes. Nicoláo de Almeida poz-lhe a mão no hombro e disse:

—Senhor João Ferreira, a mobilia de sua filha está no pateo d’este hotel. Faço-lhe presente d’ella: mande-a buscar, que me dá n’isso muita satisfação.

—Pois vossa excellencia...—tartamudeou o artista.

—Disse. Mande-a buscar. Se não for bastante; e á vontade do seu futuro genro, augmente-a por minha conta.

O marceneiro quiz beijar-lhe a mão e abraçar-lhe os joelhos.

—Então vossa excellencia não precisava dos trastes..?—exclamou elle, fitando-o penetrantemente, como se lhe dissésse: «já entendo...»

[Pg 162]

—Não: digo-lhe, sem receio de que me denuncie, que não precisava dos moveis. Fui a sua casa para ver a senhora que móra de fronte...

—A mulher do Barros...—atalhou o artista surrindo—olhe que eu tambem o desconfiei...Não, que belleza assim!...

Nicoláo carregou sobrôlho á profanação, e João Ferreira estacou, suspeitando que se adeantára de mais.

—Vocemecê—disse o fidalgo de Caminha reanimando o interlocutor—pode fazer-me um serviço grande, sem o maior incommodo?

—O que vossa excellencia quizer e eu puder.

—Consegue que algum criado ou criada d’essa senhora lhe entregue uma carta?

Reflectiu dois segundos o pae da futura esposa do regente de cartorio, e disse:

—Está vossa excellencia servido. A carta hade entregar-lh’a o aguadeiro.

—A quem vocemecê dará esta recompensa.—E tirou um guinéo da bolça de prata.

—Isto dá p’ra dez vezes...—disse o marceneiro alargando as ridentes bochechas.

—Não, senhor: ordeno que seja a primeira gratificação de quem entregar a carta.

Estava já escripta. Fôra o dulcissimo lavor e fructo da noite desvelada. Eram dez paginas em 4.º grande. Uma biographia escripta com a sublimidade singela que todas as almas percebem, maiormente as almas amantes ou propensas ao amor.

[Pg 163]

Ao outro dia, ás dez horas da manhã, D. Thomazia (que presentimento!) como ouvisse os passos do aguadeiro, saíu ao mainel da escada para lhe encommendar que comprasse na loja do Antonio das Alminhas uma caixa de agulhas n.º 7. O gallego sacou de entre o collete e a camisa a carta embrulhada n’uma gaseta, e entregou-lh’a tregeitando com os olhos o misterio clandestino do acto.

—Que é?!—disse a senhora.

O aguadeiro sacudiu a cabeça, fechando um olho, como quem diz que não eram necessarias nem opportunas as explicações.

Thomazia, com as pernas tremulas e o coração em saltos, fechou-se no seu quarto e leu.

Topicos essenciaes da carta: A sêde d’amor que abrasava desde a primeira mocidade a alma de um rapaz para quem todas as mulheres conhecidas se figuravam o ludibrio das suas esperanças. O encontro nas ribas do mar, em Caminha. A saudade e a desesperação de a tornar a ver. As noites solitarias de Coimbra e as lagrimas com que elle pedia a Deus a segunda visão do anjo, embora o fulminasse a desgraça no restante da sua vida. A reapparição no theatro. O recrudescer do amor com o proposito inabalavel de se matar, e esperal-a no céo. As mais pungitivas paginas, porém, eram as da narrativa da sua mocidade, sem pae nem mãe aos seis annos, rico dos bens inuteis d’este mundo, e mendigo dos carinhos de uma alma que lhe ensinasse os nomes e sentimentos sagrados da familia, as ternuras da intimidade.[Pg 164] Aqui, Thomazia não teve as lagrimas. Compreendeu aquella orfandade, e chorou por seus paes, como se dias antes tivesse visto sair os dois esquifes.

O abalo fôra profundo. Amava-o. Desde que alimpou os olhos para poder ler a ultima pagina da carta, amava-o, renascia, via ali um amigo sem ver ainda o amante, não sabia nem queria entender a sua posição social, não tinha marido nem deveres: era mulher, era uma alma sósinha, a quem tanto montava alar-se para o céo como descer ao abismo.

Não fio que estas frases lhe adejassem no espirito; mas o conceito, a interpretação do seu delicioso devaneio, depois de relida a carta, cifrava n’aquillo.

Respondeu sem medo nem consultar vocabularios. Poucas linhas, e essas, por milagre do amor, quasi correctas. «Vivo muito infeliz—escrevia ella.—Não tenho alegria nenhuma, senão quando leio esta carta que me faz chorar. Não ter pae nem mãe é a maior pobreza d’este mundo. Agora é que eu sei quanto perdi, por que as suas palavras o explicam de um modo tão verdadeiro, como eu poderia dizer, se soubesse escrever. Peço-lhe que me continue a dar o prazer das suas cartas, em quanto alguma desgraça me não privar de as receber. Sou tão sua amiga como uma irmã que não tem mais ninguem. Seja meu amigo.»

Passados quinze dias, Gervasio José de Barros e um irmão com as duas irmãs foram fazer a vindima ás quintas do Pinhão. Motivou uma leve enfermidade da velha D. Thomazia, ficar no Porto o restante da familia.

[Pg 165]

N’este tempo, o aguadeiro sentira sete vezes a satisfação de trocar uma carta por outra. Entreviam-se a miudo, sem escandalo dos visinhos. A residencia de Nicoláo, durante o dia, era no segundo andar da casa do marceneiro. João Ferreira pagava exuberantemente a dadiva dos trastes, e outras que tornavam a noiva do cartorario cada dia mais rica de seducções á cobiça do seu amado.

O jantar do hospede vinha do hotel com o resguardo conveniente para não suggerir desconfianças. O marceneiro e a filha engordavam a ôlho, de feição que os seios da moça, já de seu natural entumecidos, ganhavam volume que promettia uma ubérrima creadora de filhos, e regalo de lubricos devaneios ao amor licito do regente do tabellionato.

De noite, Nicoláo de Almeida saia embuçado, e recolhia-se ao hotel de Pexe a inventariar os jubilos do dia.

Mas succedeu uma vez que o inventariante dos jubilos diurnos em vez de encaminhar-se para o hotel, ao dar da meia noite, cingiu-se com a parede da casa fronteira, esperou minutos, abriu-se subtilmente a janella do 1.º andar, içou-se sem leve rumor uma corda por uma guita, e um homem pela corda, e a corda seguiu o homem, e fechou-se a janella.

O marceneiro fechou então vagarosamente a sua porta, esfregou as mãos satisfatoriamente e disse:

—Foi muito bem!

[Pg 166]

Era o jubilo artistico de ter tecido a corda e entravado os ganchos, e disposto as travessas em boas proporções, que foi um gosto ver Nicoláo de Almeida marinhar á janella sem dar de si, nem levemente torcer-se a escada.


[Pg 167]

CAPITULO XIV

Argumento

Invocação ao anjo do pudor.

Anjo do pudor, embrulha a cabeça nas tuas azas!

Libra-te nas regiões ethéreas onde ainda existe a virtude dos passaros.

Não vás, no tribunal da justiça divina, offerecer libello contra a peccadora da rua das Cangostas.

Anjo do pudor, não te vingues n’ella das desfeitas que recebes desde Bethsabé.

Muitas sei eu que te esbofetearam, ó anjo, e praticam a villanaz hipocrisia de nos querer embair que ainda estás com ellas.

Vae dizer ao supremo juiz que ponha os olhos da sua ira nas que farçanteam no tablado do mundo cobrindo a nudez das Faustinas com a tunica pudica das Porcias.

Repara, ó doce amigo das santas—nem Cortonas, nem Egipciacas, nem Magdalenas—repara, anjo do pudor, que umas de quem tu fugiste, mais enjoado que lagrimoso, dispensam a tua fiscalisação, e cospem injurias n’outras, cujas faces, tu, uma vez por outra, ainda aqueces.

[Pg 168]

E tu consentes que ellas blasonem e digam que és tu quem lhes volta o rosto das que desamparaste.

Não refines o travor do calix a umas que deram o coração ao remorso, depois que as tuas alegrias se lhes desluziram da consciencia.

Vae, anjo do pudor, embióca-te nas tuas azas, diz ás matronas honestas do reino celestial que não contem com Thomazia; mas não vás tu fazer grandes escarcéos lá em cima, que ha de ahi estar muita alma circumspecta que te diga: «Ora vamos! não berres tanto, que estão aqui muitas senhoras a quem estás offendendo por tabella.»

E mais te digo, anjo do meu maior acatamento, que não ha de ti cá em baixo a necessidade que presumpçosamente cuidas.

A tua fugida não faz revoluções nem abala os eixos sociaes. Ninguem dá tento da tua ausencia, quando saes de uma casa com a cara velada, e ao mesmo passo entra a fortuna com a cornucopia. Os próceres do nosso esterquilinio, quando saltam das suas berlindas ao peristilo das Lesbias, não perguntam se tu estás lá dentro.

Os moralistas tambem lá vão, e dizem entre si que tu és bonito, em quanto a impudicicia, carminando a cara que tu purpurejavas com o reflexo das tuas azas, os faz acreditar que apenas és necessario ás meninas de dez annos para que não digam ás mamãs, deante de gente de fóra, que hão de casar e ter filhinhos.

Vê tu, anjo do pudor, que, d’aqui a pouco, escassamente serás invocado pelos romancistas, e contado pelos[Pg 169] dedos nas rimas dos poetas, por que acertaste de rimar com muita coisa.

Emfim, meu sensivel anjo, sê equitativo para ser justo. Atira-me abaixo do pedestal as devassas que te bigodeiam; e, depois, querella de Thomazia das Cangostas. Fiat justitia.


[Pg 170]

CAPITULO XV

Argumento

Noticias do Pará. Sequidão de Innocencio. Acommisera-se o velho da nora, que não se dá d’isso. Thomazia realça em epistolografia, fazendo suspeitar o sogro de que anda ali cachimonia de maior cunho. Opinião de Innocencio ácerca de viajar. Estuda francez, e vae ver mundo. Encontra em França a neta de uns gentis-homens da Picardia, a qual neta vae ver mundo com elle.

Passados trez mezes, sequentes ao embarque de Innocencio, vieram cartas do Pará.

O cobrador da herança noticiava que estava empossado dos trinta contos. Vituperava a memoria do tio, criminando-o da torpeza de deixar quatro mulatos assignando-se com seus apellidos, e herdeiros de mais de um milhão em moeda fraca. Vexava-se de ser coherdeiro com tal negralhada, e noticiava que ia partir para o Rio de Janeiro.

A Thomazia escrevia meia duzia de linhas, consagradas ao boletim da sua saude e ao desejo de que a consorte passasse sem novidade.

—Cá vou passando... disse ella entre si, quando Gervasio notava n’um lance de olhos á mulher a sequidão[Pg 171] das palavras do filho. Tinha o velho dó sincero da sua afilhada.

—Escreve-lhe, Thomazinha,—dizia Gervasio—escreve-lhe que eu lhe direi que isto não é carta que se mande a uma esposa! Estragaram-me aquelle rapaz os vadios do Porto, os comedores, os mariolas dos botiquins! Escreve-lhe uma cartinha amorosa, sim, minha filha?

—Pois, sim, meu pae;—disse ella mui de mimo e dolorida—mas, se elle me despresa, é peior estar eu a impaciental-o com as minhas cartas...

—Não, senhora; escreve-lhe como te digo, p’ra dizer cá com a minha carta.

Que prodigio de fantasia operou Thomazia para poder alinhar um quarto de papel inglez com umas frases assim a modo de saudosas com ares de amorinhos!

O velho leu-as, e obedeceu ao impulso de espanto, exclamando:

—Ó menina, isto não é da tua cachimonia! parece-me copiado do «Feliz Independente» que tua mãe me leu no Douro ha mais de vinte annos! Tu já leste a historia do «Feliz Independente»?!

—Não, senhor.

—Pois olha, ninguem hade dizer que este palavriado é teu! O Innocencio vae ficar banzado, quando lá vir estes ditos!

—Ora!... o pae está a mangar comigo!...

—Agora estou! Palavra! tu dizes aqui coisas que parecem dos periodicos!

Gervasio foi ler a carta á esposa. A santa senhora pagou[Pg 172] o seu tributo de lagrimas, quando a leitura chegou á seguinte passagem: Já que não tenho o teu amor nem a tua amizade, dou graças aos ceos por que me não levaram o amor de tua santa mãe e de teu santo pae. Alguma coisa me havia de dar a Divindade Celeste a quem peço que te dê saude e satisfação...

Thomazia, se tivesse capacidade para imitar estilos, poderia dar de si, no genero epistolar, coisa melhor; que o mestre era excellente e as lições, quer escriptas, quer oraes, muito amiudadas. Sem embargo, os progressos não correspondiam á frequencia do pedagogo, cuja linguagem era assim correcta que sublime. Thomazia aprendia sómente o que podem entender e saber as faculdades do coração. O estilo do coração, se algum elle tem, a meu ver, é de todos o mais desatado e avesso da boa prosodia. As suas flores são beijos quando não são lagrimas. D’estas segundas não tinha ainda Thomazia experiencia: dos outros, não affirmo nem nego. Não vi.

Mez e meio depois, vieram novas cartas de Innocencio datadas do Rio de Janeiro. A mesma friesa com a esposa, e muitos affectos ao pae, desfechando com pedir-lhe licença para ir do Rio a Inglaterra, e ver as cidades principaes da Europa, antes de recolher-se a Portugal. Allegava o sujeito uma razão que, a juizo d’elle, rebatia quaesquer obstaculos. Quem vê mundo, escrevia elle, aprende tudo quanto ha sem ler livros. As viagens dão muita experiencia dos homens.

Posto isto aforisticamente, continuava: Estou a aprender dois dedos de idioma francez: (a palavra idioma entalou[Pg 173] os gorgomilos intellectuaes de Gervasio) o francez é preciso saber-se para não fazer má figura. Logo que possa andar por lá de modo que eu me faça entender, vou vêr mundo, isto é, se vocemecê e minha mãe não se opposerem, o que não espero da sua amizade paternal e maternal.

—Estás um bom trapólas!—disse em soliloquio o bom velho.—Que irá elle fazer agora por esse mundo de Christo?! Pilhou-se c’os trinta contos, e não vem p’ra casa sem dar com elles em Pantana! Deixal-o! Cavalladas por cavalladas, antes as faça longe da minha vista.

Mostrou-lhe Thomazia a sua carta, dizendo:

—Aqui tem, padrinho; veja que modo de me escrever! Diz que tem saude e que me deseja a mesma.

—Tem paciencia, filha...—respondeu o velho consoladoramente, pondo-lhe a mão no rosto.—Elle cá virá, quando se cançar de ser máo e ingrato. Agora me pede licença para ir viajar... Olha tu que asneira!... E eu não sei o que heide responder-lhe...

—Se elle quer ir... acudiu Thomazia, e susteve o restante da idéa, receiosa de inspirar desconfiança da sua indifferença; e, tornando logo sobre si, emendou:—Se elle quer ir, é por que não tem saudades de mim... O que eu admiro é que as não tenha de seus paes, que lhe querem tanto...

—Valha-me Deus!—voltou o compadecido velho.—Olha que estás enganada; meu filho quer-te bem; mas foi de cá zangado com o diabo dos Barcellos...

[Pg 174]

—E eu tenho culpa?!

—Está feito, está feito, menina... aquillo de escreveres ao outro não foi grande coisa... Um homem, que gosta de uma mulher, não leva a bem que os outros andem a dizer que ella tambem gostou d’elles. O rapaz ficou varado, e custou-lhe a engolir o vexame. Fizeste mal, Thomazia; mas... emfim o passado passado. Agora o que se quer é paciencia, e esperar que elle venha á razão. A carta que lhe escreveste ainda agora estará a chegar-lhe á mão. Verás como elle muda de idéas logo que a receber. E o que tu hasde fazer, filha, é arrumar-lhe já com outra. O Silencio sae ámanhã para o Rio Grande do Sul e faz escala pelo Rio. Escreve-lhe hoje que eu vou já fazer o mesmo.

Novas e redobradas maravilhas de espirito! A carta de Thomazia, se não recendia saudades, ia menos mal engenhada com umas melancolias queixosas, mas logo dulcificadas por balsamos de resignação.

Gervasio gostou muito, e segunda vez espremeu os lacrimaes da esposa.

Em quanto não chega este mimo d’alma exemplar de paciencia ao Rio, vejamos as saudades que a primeira carta commove no peito do esposo. Estava elle conjugando o verbo parler, quando lhe entregaram a correspondencia da Europa. Lida a carta do pae, leu a da mulher, e releu a do pae. Entristeceu-se e compadeceu-se. Era a primeira vez que mansamente, e em tom de amorosa, Thomazia se queixava do seu desamor. Seguiram-se uns pruridos de saudade n’alma, e logo o apparecimento[Pg 175] ideal da formosura de Thomazia, com uns encantos renovados, como se aquella imagem lhe tivesse esquecido, e renascesse mais bella para lhe captivar a um tempo a alma e a razão até alli desvairadas.

Por um fio que mudou o designio de ir em cata da experiencia do mundo; mas poderam muito a retel-o no proposito feito os estudos progressivos da lingua franceza, e o anceio de aprender tudo quanto havia, sem ler livros.

Quando recebeu as segundas cartas, quarenta dias depois, tinha já enfardado para seguir no primeiro vapor inglez. Leu as novas, mas brandas queixas da esposa; sentiu-se bem com a crença de ser amado, e projectou desde logo não se demorar mais de trez mezes na sua visita ás capitaes da Europa.

Foge-nos agora o tempo sem paragem de acontecimentos que prestem á essencial narrativa. Decorridos quatro mezes, Innocencio José de Barros estava em Florença, e não estava sósinho. A creatura interessante, que o acompanhava, era no hotel conhecida por madame Barros e el signor de Barros gosava creditos de opulento hespanhol. Madame Barros era franceza, carinhosa, corrigia-lhe com infinita graça os erros de linguagem, e formava-lhe com os labios nos d’elle frases puro parisienses. Innocencio estava um homem acceitavel em qualquer sala e muito conversavel, de fóra parte a compostura pessoal, que toda se devia ao gosto delicado da franceza em materia de trajar. A civilisadora d’aquelle bruto em ruins tempos, tinha sido officiala de alfaiate, e n’outros peores, commensal de estudantes no quartier[Pg 176] latin. Mas mr. de Barros não contava isto aos seus conhecidos de Florença. No dizer e crer d’elle, Jacqueline Beaulieu de Rastignac era victima de um seductor que a raptou no chateau de seus paes, fidalgos picardos de primeira raça.

Dias depois, encontrámos Innocencio na Suissa, procurando as reliquias da casa de João Jacques Rousseau em Genebra. Quem metteria no cerebro d’aquelle homem um desejo tão significativo de craneo cultivado? Fôra a descendente dos fidalgos picardos. Jacqueline tinha ouvido discutir o filosofo nas palestras litterarias dos seus commensaes, antes da quarta garrafa de Bordeaux.

Por maneira que, n’este saltar de terra em terra, Innocencio não recebia cartas da esposa nem do pae. Umas estavam retidas em Pariz, outras em Bruxellas, outras em Milão, outras em Veneza.

Se elle houvesse recebido de seu pae uma escripta em abril de 1846, e retida em Londres, onde nunca estivera, encontraria a circumstanciada noticia do que vae contar-se no seguinte capitulo.


[Pg 177]

CAPITULO XVI

Argumento

Coisas serias. Agonias moraes misturadas com as do enjôo, por causa da dualidade entumescente identificada á corporatura interna tendente a distender as circumferencias objectivas da pessoa retró declarada. Aggrava-se a seriedade do capitulo, pelas sobreditas razões. Prova-se que o enfanticidio inculca o nobre sentimento da vergonha do mundo, e que o mundo é injusto com as mães criminosas. Dá-se um premio a quem entender Thomazia, e outro a quem explicar o reviramento espiritual de Innocencio. Narra-se o encontro d’elle com Jacqueline Beaulieu de Rastignac. Como ella era velhaca. Pavores na casa das Cangostas, onde não apparecia carta de Innocencio. Thomazia dá pulos de contente, sem embargo da duplicidade grave da sua consubstanciação, fallando delicadamente. Descortinam pesquizas a lura do amante embebido em filtros da franceza. A perfida joga-lhe duas ironias, e prega-lhe nas faces dois beijos fementidos, coisa piedosa de contar-se.

Que atormentada alma a de Thomazia!

Que peleja entre a idéa de matar-se e a de perder o homem que lhe era toda a sua vida!

Matar-se! Que fraqueza tão incongruente com a robustez da culpa!

Então o vicio não quebra e anniquilla os impulsos da[Pg 178] vergonha que atiram a mulher aos braços da morte voluntaria!?

Ha coragem para o suicidio, quando não houve força para resistir ao crime?

Theses para fôlegos grandes.

Vamos ao caso; e o leitor, se me quer honrar com a sua collaboração, moralise.

Assim que Thomazia teve razão efficaz para se considerar mãe, caiu em joelhos aos pés de Nicoláo d’Almeida supplicando-lhe que a livrasse de tão clara prova do seu crime.

Nicoláo levantou-a nos braços convulsos de meiguice, e deixou fallar o coração:

—Estás salva; foge comigo!

E ella, cobrindo o rosto com as mãos, exclamou suffocada pelo medo de ser ouvida:

—Oh! que vergonha! que perdida me vejo!... Não me digas que fuja, porque eu nunca pensei em poder dar semelhante passo. Ó Nicoláo, eu o que te peço é... não sei dizer-t’o... não posso, que me faz horror esta idéa...

—Adivinho-te—interrompeu elle com amargura—e não te posso crer?... Tu querias matar o meu filho?

Thomazia arquejava sem ousar responder.

—Pedes-me a mim que seja eu o algoz do meu filho, de um filho teu, querida da minha alma?... Cuidas que te hade pezar menos o remorso de matricida que a vergonha da fuga! Onde está o teu amor e o teu coração, filha!

[Pg 179]

—Mas se elle vier...?—atalhou ella.

—Teu marido?

—Sim.

—Não te encontrará; por que elle nunca mais ha de ver-te, nunca mais ha de sentir a tua respiração, ouviste? Isto é infernal!—disse elle com desesperada concentração—pois esta mulher ainda quer parecer pura aos olhos de tal homem!... Então que sou eu? que poder tenho na tua vida?

Thomazia punha as mãos, e clamava:

—Perdoa-me! perdoa-me! que eu... estou doida!... não sei, não sei o que hei de fazer... Olha, Nicoláo, eu queria vêr-me livre d’este apêrto... Isto não póde ser! Fugir, meu Deus? que dirão meus padrinhos, que me amavam tanto!... que dirá toda a gente...? Jesus, valei-me!... Meu amor!—proseguiu ella acarinhando-o.—Nós não precisamos de filhos para ser felizes, pois não? Que tinha que me livrasses d’esta afflicção, dando-me qualquer coisa... Eu sei que ha meios de se conseguir, se tu quizeres. Isto por ora não é nada que possa sentir dôres, pois não? Então que tem que eu possa ser tua, sem me perder de todo, sem causar esta vergonha a meus sogros que são uns santos...

—Mas...—obviou Nicoláo.—Ainda que elles te vejam assim e saibam o teu estado, não cuidam que és mãe de um neto d’elles...? Por ventura sabiam elles o divorcio occulto em que tu vivias ha mezes com teu marido?

—Não sei se o sabem; mas creio que não...

[Pg 180]

—Então?

—E elle? quando o pae lh’o mandar dizer?

Nicoláo não achou redarguição rasoavel.

—Vês?—sobreveiu Thomazia.—Vês? não tens que responder-me.

—Tenho!—acudiu elle.—Foge! que te hei de eu mais dizer, minha filha! eu, que te amo tanto, não sei, não posso valer-te de outro modo...

—Pois, sim—tornou ella mansamente contendo-lhe os transportes perigosos, no silencio da noite—pois, sim; esperemos... quando eu já não puder evitar a desgraça... quando vir que sou sem remedio descoberta e perdida, então fugirei para ti...

—Mas que importa, que lucras em esperar a desgraça extrema?!...

—Póde ser que isto não vá ao fim... que Deus escute os meus rogos... e que eu me veja livre, antes que ninguem desconfie.


Nicoláo d’Almeida saíu tão affligido quanto espantado da reluctancia de Thomazia. Não a entendia; porque não pudera ainda confrontar duas mulheres amadas, quatro, vinte mulheres sublimes, infames, castas no vicio, almas dissolutas em envolucro immaculado, esmagando a força da consciencia propria e acovardadas deante da maledicencia de uma visinha; arrojando-se affrontadoras contra a sociedade e succumbindo imbelles e pueris á condemnação de si mesmas; temendo a justiça do inferno nas venialidades e desprezando o juizo da providencia[Pg 181] nos crimes enormes; rindo no cairel do abismo e chorando se lhe empecem dissabores passageiros.

Que tinha Thomazia de tudo isto? A consciencia inconciliavel com os delictos do coração; a fraqueza do raciocinio egual á imbecilidade com que prevaricára. Não seria antes aquillo tudo uma estupidez congenial? Que hade a gente pensar de um opprobrio que se mostra e não se esconde, justamente para que o não vejam? Emfim, Thomazia era o que ella de si diz no dialogo. Explicou-se cabalmente. Fugir seria dar o testemunho da sua deshonra; mas ficar, para quê? Esperava que os signaes da maternidade se desvanecessem? Era isso. Então que era ella afinal? Mulher.


Innocencio escreveu de Plymouth á familia, annunciando a sua chegada; mandava que lhe dirigissem a primeira carta para Londres, tendo, como vimos, indicado Veneza, quando saia do Rio. E, quando o pae lhe dizia que mandasse receber em Veneza uma carta, já elle estava em Pariz, esquecido ou descuidado da que devia estar em Londres. Como aquella cabeça se refez! Trinta contos de réis e uma sêde febril de gosar deram-lhe os modos e espiritos de um rapaz creado em delicias, amante do bello, inquieto, nervoso, sempre faminto e sempre resaciado como os grandes genios!

Não tem historia o encontro e enlace com Jacqueline Beaulieu de Rastignac em Pariz. É coisa simplicissima e trivial. A neta dos gentis-homens picardos tinha uma balança na mão, e pesava dois corações: um de quem[Pg 182] quer que fosse; o outro do illustre portuguez viajante. Ora, o portuguez, como visse ouro fio e indecisas as conchas, atirou com alguns punhados de ouro á sua, e fez levantar a outra á cara do concorrente. Porém, constou ao vencedor que o rival buscava azo de o desfeitear. Innocencio conservava ainda a virtude da prudencia: saiu de Pariz para a Belgica, e d’aqui para Italia.

De feição que por lá andavam perdidas as cartas da familia, e elle d’essa perda de todo ponto resignado.

Averiguemos agora o desvio que levaram as cartas de Innocencio para a sua familia. Gervasio, desde que o filho chegou á Europa, uma tão sómente recebeu, sendo pelo menos seis, ainda assim, as que o distraido viajante lhe escreveu no espaço de trez mezes de delirante amor.

A franceza sabia que mr. de Barros era casado. Referira-lhe elle expansivamente sua vida, fazendo-se lastimar como forçado da galé de um matrimonio constrangido. Confidenciou-lhe o divorcio em que vivia sob as mesmas telhas, com a odiada consorte, dando como impracticavel o reconciliarem-se.

Entrou-se a ociosa lorette da curiosidade, até certo ponto util, de devassar a correspondencia do amante. N’este delicto, a seu ver innocente, lhe ia a ella muito: se o divorcio era sincero, cumpria-lhe reter as bridas ao fausto e ao gosto de ver terras, acommodando-se á vontade do homem para lhe não incutir suspeitas de o querer desbalisar e arruinar com o vulgarissimo desplante das suas collegas; se o divorcio eram meros arrufos de[Pg 183] passagem, urgia-lhe estar de sobre-rolda com a mercadoria do seu coração para não perder o lanço de leiloal-a a tempo. Além d’isto, convinha-lhe outro sim inferir da correspondencia a verdade das jactancias de Innocencio quanto a bens de fortuna. Cedulas, luizes e libras tinha elle a rôdo, e bem lh’os via ella; mas carecia de certificar-se da abundancia do manancial.

Gizado o plano, executou-o no primeiro ensejo.

Comprado pela franceza, o criado, portador da carta, entregou-lh’a. Na do pae ia incluida outra de cincoenta palavras para a esposa. Sem impedimento, porém, da sovinaria dos vocabulos, vinte d’elles pelo menos eram de esposo que fingia ter saudades e tal qual pesar de as não ter sentido ha mais tempo.

«Lá para o futuro—escrevia elle a Thomazia—hei de tornar a estas terras e tu has de vir tambem para vêr o que é bonito. Se não fossem as saudades que tenho de ti, andava contente por cá.»

A franceza surriu-se perversamente e disse entre si:

—Olha que divorcio!... Que lérias me tem cantado o tal sujeito!... Eu me acautelarei...

A carta a Gervasio era mais extensa, e nada explicava respeito a riqueza; todavia, como não solicitava nova remessa, nem dava explicações do capital esbanjado, sobravam provas de haver ainda bastante que dispender com certa independencia do pae.

Jacqueline queimou as cartas, e não deixou sair ao rosto denuncia de estar vigilante sobre as acções do fementido Innocencio.

[Pg 184]

As subsequentes cartas, escriptas de Italia, seguiram egual fado. Observou, porém, a franceza que as frases suaves de mr. de Barros para a esposa iam esfriando á medida que os dias e as noites discorriam, revesadas por delicias da natureza e da arte, entre os dois camaradas de viagem. Isto dava-lhe a ella uma idéa vantajosa da sua pessoa e bem fundada soberba de ir conquistando uma alma menos má.

Quem passava dias amargosissimos era Gervasio José de Barros e sua mulher.

Trez mezes sem carta do filho, nem novas indirectas da existencia d’elle!

Thomazia escondia-se da sogra por não poder acompanhal-a nas lagrimas, nem estar sinceramente ajoelhada deante do oratorio a requerer a divina protecção para seu marido.

—O meu filho morreu!—exclamava a consternada velha D. Thomazia, abraçando-se á afilhada—morreu, minha menina!... Se estivesse vivo, quando teu padrinho lhe disse que tu estavas no teu quinto mez, o meu filho vinha logo para casa!...

E voltava-se outra vez para Deus, cuidando que a nora cooperava nos seus afflictivos rogos, ao tempo que a esposa do chorado Innocencio ia esconder-se no seu quarto para beber a tragos as delicias de imaginar-se viuva e desapressada das angustias do medo e da vergonha.

Não ha ahi dizer o desafogo d’aquelle pleito da supposta viuva! Cada vez que o sogro vinha da rua, suado[Pg 185] de andar pelos consulados a solicitar de diversos paizes novas do filho morto ou vivo, Thomazia ageitava o mais amargurado rosto que podia, e, saindo ao velho, de braços estendidos e respiradouros arquejantes, perguntava-lhe que novas tinha.

Gervasio rompia em pranto desfeito, esmurraçava os pulsos um contra outro na impaciencia da sua dôr, e gemia:

—Não sei nada!... Estás sem marido, e eu sem o meu filho! Estou resolvido a ir eu mesmo em cata d’elle por esse mundo fóra!

Acudia então a esposa, tirando do peito gritos pavorosos:

—Não te deixo ir, meu Gervasio, não! Se vaes, por lá acabas tambem, marido do meu coração! Se elle vive, Deus o encaminhará; se morreu, não ha remedio, e cedo ou tarde nos virá a certeza para lhe cuidarmos da alma!...

Sobrevieram no entanto aggravantes noticias de muitos naufragios, e desastres nos caminhos de ferro, durante os trez mezes ultimos. Nada mais possivel que ser Innocencio uma das obscuras victimas contadas ás centenas, sem ter deixado signal nem documento da sua naturalidade para os competentes avisos.

Todos aceitavam, ainda assim, o caso funesto como supposição; salvo Thomazia, que o defendia como coisa certa, quando Nicoláo d’Almeida lh’o impugnava, imaginando o conflicto de apparecer-lhe o marido inesperadamente em casa.

[Pg 186]

As averiguações do ministro dos negocios estrangeiros conseguiram, depois de um mez de inculcas, bem dirigidas pelo representante portuguez em Pariz, descobrir a residencia de um chavalier de Barros em Milão. Para esta cidade enviou o ministro portuguez as necessarias perguntas, e colheu que o hespanhol chamado Barros já tinha saido com passaporte em direcção á Sardenha. Proseguiu o activo indagador na piugada do inquieto viajante, e vingou fazer chegar a Turim uma participação, informando Innocencio José de Barros do cuidado em que estavam seus paes em Portugal com a falta de suas noticias. Esta participação, recebida pela franceza, não chegou a vêl-a Innocencio, nem duas cartas de Gervasio que lhe iam inclusas, uma encontrada em Londres, outra dirigida a Pariz. Mademoiselle Jacqueline Beaulieu de Rastignac respondeu incontinente que as suas cartas se tinham desencaminhado, mas que ia immediatamente assegurar a seus paes que vivia e tinha saude. Escreveu e assignou: Innocencio José de Barros.

Espantou-se o homem quando voltou a casa, que a franceza lhe fizesse esta pergunta n’um tom de chança:

—Diz-me cá: estás bem certo de que vivias com tua mulher tão castamente como se conta de certos santos casados com certas santas?

—Isso que quer dizer?

—Quer dizer o que as palavras explicam—tornou ella modificando para melhor o modo zombeteiro.

—Torna a perguntar—volveu elle.

[Pg 187]

—Tua mulher, se hoje tivesse um filho...?

—O quê?!—atalhou Innocencio, fitando-a de frecha com os olhos coruscantes.

—O filho podia chamar-te pae?

—Não!—exclamou elle.—E por que perguntas isso?

—Ahi estás tu fóra de ti!—acudiu a franceza, tão outra e sisuda de semblante, que parecia não ter tido mais intenção que dizer uma tolice.—Quiz experimentar, se é certo o que me tens dito. Agora acredito que fallas verdade, meu Barros.

E, com dois beijos calorosos, renasceram nas faces de Innocencio as boas côres, esmaecidas n’um instante de pundonor insurgido.


[Pg 188]

CAPITULO XVII

Argumento

Apanha a franceza um murro portuguez de lei. O esmurraçador vae comprar leques, e quando volta não acha a creatura socada. Dão-lhe uma carta, em que elle aprende miudezas do fenomeno da gestação, em que o pae o considera agente de primeira ordem. Fervem-lhe os miolos, e corre a vingar-se: Adoece no Havre de febre cerebral, e está perigoso. Chegam noticias ao Porto. Scenas pateticas. Thomazia, no auge da atarantação, perde os sentidos, e dá á luz um menino de oito mezes, em resultado do susto, que costuma aperfeiçoar obstetricamente e fenomenalmente estas coisas. Dois infernos ambos elles mais peores, como dizia o negro dos dois senhores que tinha tido.

Quinze dias corridos, um viajante inglez que estadeava equipagens e librés, viu a franceza no theatro Scala de Milão, e perguntou entre dois bocejos quem era aquella creatura de olhos piscos e sobrancelha negra.

Deteve-se a resposta em quanto os informadores desvelados andaram escudrinhando nos hoteis a procedencia da ditosa que se endeusára a um raio visual do ricasso bretão.

Innocencio dera trez vezes de olhos com o binoculo[Pg 189] do inglez apontado ao seu camarote, e raciocinou que não era elle de si objecto para attenções tão pertinazes. Antes do acto 3.º convidou a franceza a sair; mas a rebelde rejeitou o convite, desculpando-se com o amor da musica. Ia cantar a Ferlotti a romanza da Favorita: Ó mio Fernando. O galã portuense trincou o beiço com desamor e raiva tal, que apertaria mais brando o dente iracundo no coração de Jacqueline.

Concluida a opera, sairam amuados e desavieram-se em casa pela primeira vez. A franceza descomediu-se em remoques e desabrimentos. Innocencio amava das entranhas aquella mulher que lh’as cancerára. Do muito amar ao injuriar por ciumes, medeia meio passo: o bater está linhas adeante. A franceza apanhou um revez de mão portuense que corresponde ao murro de um ciclope. Empinou-se a parisiense deante do homem da rua das Cangostas, e disse-lhe:

—Ámanhã pagarei as despezas que fizer n’este hotel.

Innocencio caiu em si, e logo em joelhos, exclamando:

—Tem piedade de mim, que estou doido de ciumes. Amo-te! amo-te! Ouve-me, Jacqueline! se me não ouves, mato-te e mato-me!

Esta concisão denotava tenções sinistras. A franceza teve-lhe medo, e aquietou-o. Mas não chorou, como as mulheres ultrajadas, quando perdoam. Devia de ter levado outros murros aquella dama, ou a traça da vingança estava armada.

[Pg 190]

Quando Innocencio foi para o almoço com a alma e estomago livres de peso, já a risonha e indulgente commensal tinha um misterioso annuncio da criada que a servia. Fallára-lhe de um conde de certo condado inglez, que se pronunciava com cinco ff, incompativeis com a doce lingua millaneza. E mais nada podera dizer-lhe.

Innocencio não se desabeirou n’aquelle dia da franceza. Agora a estava elle amando em tresdobro. Dizia-lhe coisas que não pareciam suas. Passava de tolo a eloquente, como se Amor e Minerva, n’aquelle dia, se revezassem a senhorear-lhe o espirito que até então andára sempre nas divindades da ralé celestial.

E ella voltava-lhe em surrisos as caricias, e dissimulava o enojo impaciente com as momices do coração magoado.

Sobre tarde, Innocencio deteve-se com o mestre de dança, e Jacqueline com a criada.

Coração, figados, baço, e tudo de Innocencio funccionava normalmente no dia seguinte.

A franceza pediu-lhe um leque de sandalo. Saiu o jubiloso amante a comprar leques de varios feitios.

Voltou com o folego apressurado. Entrou á ante-camara do seu quarto. Não viu o seu enlevo d’olhos. Procurou-a entre os cortinados do leito. Foi á sala do piano. Interrogou os criados. Ninguem lhe daria novas, se a criada do toucador da madame Barros, lhe não dissesse:

—Madame saiu, levou seus bahús, e deixou esta carta para vossa excellencia.

[Pg 191]

A carta, envolucro de outra, dizia:

Sem tempo para mais, adeus. Murros vá dal-os em sua mulher. E é tempo de ir. A carta inclusa dá-lhe uma noticia que o deve apressar a ir receber nos braços o pimpolho. Se é verdade o que me disse da sua casta união, tanto peor para o senhor. Lá se avenham.—Jacqueline B. de Rastignac.

Leu Innocencio a carta do pae, que resava assim:

«Vou-te dar uma grande alegria. Como dizes que vaes para Veneza, mando-te para lá esta carta, por via do vice-consul italiano. Saberás que tua mulher nos deu o maior cuidado, e pensámos que ella tinha grande mal interior; por que andava muito amarella e chupada da cara que parecia uma castanha sêcca. A gente perguntava-lhe o que ella tinha, e nada de novo. Queixava-se de enxaquecas, e comia como um passarinho. Depois passou-lhe aquelle fastio e pegou a comer melhor, mas andava triste como a noite, sempre a matutar e a chorar pelos cantos. Até que um dia, tua mãe veio ter comigo e disse-me:—Ó Gervasio, eu desconfio que ella não sabe o que tem; mas olha que o meu olho não mente: a rapariga traz menino na géra. Repara-lhe p’ráquelles encontros!—Tu que me dizes, mulher? Isso era uma felicidade para todos! O Innocencio se souber isso vem logo p’ra casa, não te parece?

«Vae ella, depois, foi ter-se com tua mulher, é disse-lhe a sua desconfiança. Tua esposa começou a negar, e dar as suas razões; mas tua mãe protestou que não se[Pg 192] enganava, e para o que mandou chamar o mestre da escola de cirurgia, o Sinval, que a examinou e disse que estava de cinco ou seis mezes. De cinco lhe disse eu que não podia ser, porque tu tinhas ido para o Pará ha seis. Então é de seis, disse elle; mas digam-lhe que não ande tão espartilhada.

«A gente ficou alegre como tu podes imaginar; mas ella sempre triste, que não te digo nada!! Acho que está com medo de morrer, e não ha forças que lhe dêem animo. De maneira, que cá pelas nossas contas d’aqui a quatro mezes deve apparecer o que fôr: oxalá que seja um rapazito.

«Terás tu a má condição de não vir para a tua casa antes d’esse tempo? Falta-me ver isso, meu filho!!!!! Não dês que fallar ao mundo n’este caso, que é de ficar mal para todo o sempre um homem. Logo que esta recebas, deixa-te de pagodes, e vem a toda a pressa para lhe dar animo; que ella está como uma tumba. Pede-te tua mãe que compres por lá um enxoval rico por conta d’ella; porque já sabes que os padrinhos somos nós, etc., etc.»

Quando chegou por aqui, Innocencio mal enxergava os caracteres. Zumbiam-lhe vespas na cabeça, ferroando-lhe os miolos. Lavaredas internas queimavam-n’o desde o diafrágma até aos beiços. O tremor das pernas fêl-o sentar-se de pancada n’uma voltaire, como se o derrubassem com uma catapulta jogada ao peito. Cravára no tecto os olhos betados de sangue. Nem amor nem odio[Pg 193] á franceza lhe braseava o espirito extraviado. Varrêra-se-lhe de todo da lembrança a mulher a quem, horas antes, promettêra a mão de marido, se um dia enviuvasse, e lhe ella guardasse lealdade. Não a via sequer em imagem; mas, se a visse, tangivel, laceravel e capaz de afogar-se no proprio sangue, iria espedaçal-a a dentadas: porque a infame lhe retardára apunhalar a adultera.

Apunhalal-a, sim! esta era a idéa que lhe revia sangue nos olhos e rangia nos dentes.

Levantou-se de golpe como tigre assaltado de surpreza. Correu ao quarto, chamou criados, emmalou e alugou carruagem com frequentes mudas para França.

Quando chegou a Pariz, doze dias depois, entrou na via-ferrea para o Havre, pressurando-se em ir a tempo de embarcar no «paquebot» que navegava para Portugal. Porém, quando chegou, ao fim de cinco dias de insomnias, de fraqueza á mingua de alimento, de sobre-excitação febril, e impaciencia devorante, caiu de todo quebrado e incapaz de se mover do hotel até ao navio. O medico examinou-o e saiu esperançado da cura, obstando-lhe ao intento de se fazer levar para bordo em braços.

Obedeceu o enfermo, e pediu que lhe enviassem para o pae esta breve carta: Ha poucos dias que recebi a que me escreveu para Londres, dando-me parte dos prazeres que lá tem. Não me demorei onde estava; mas cheguei tão doente ao Havre, que fico na cama. Dezoito dias mais tardar é o que poderei estar por aqui. Lá vou tambem dar um terno abraço em minha mulher. Não[Pg 194] posso mais. Seu filho muito do coração, Innocencio.

O barco havia saído quando o doente se arrepelava, exclamando:

—Eu dava dez contos por áquella carta!... Estou doido! Que asneira eu fiz! Agora foge ella á minha vingança em lendo a carta! Que inferno este!...

E, bramindo, sacudia a roupa, e saltava do leito, afugentando o enfermeiro que imaginava tel-as com um mentecapto. Venciam-n’o com força e carinhos. Levavam-n’o ao leito. Ministravam-lhe os remedios. Todavia, as febres exasperavam-se, e os simptomas do tifo não se escondiam aos olhos do medico, salvo se os da congestão cerebral se offereciam mais caracteristicos.

Sigamos a carta que lhe acerbou as angustias. Qualquer que fosse o motivo das delongas na participação do representante portuguez em Pariz, aconteceu que o ministro dos estrangeiros mandava transmittir para o Porto o aviso de viver o filho de Gervasio José de Barros, ao mesmo passo que o velho era surpreendido pela carta do filho.

Pobre pae! quando reconheceu a letra, expediu grandes gritos cortados pela suffocação da alegria e perdeu os sentidos, casquinando umas esfusiadas de riso nervoso.

As senhoras vieram assim encontral-o nos ultimos degráos, amparado nos braços do criado. Vinha entre ellas tambem Thomazia, secretamente e a um tempo abalada de prazer e de medo, cuidando que eram de agonia aquelles gritos.

[Pg 195]

Gervasio sentiu desabafar-se-lhe o alento, assim que ouviu aproximarem-se almas com quem podesse repartir do peso esmagador do seu jubilo.

—Está vivo nosso filho!—bradou elle.—Está vivo teu marido, afilhada! Aqui está uma carta! aqui está! vêde-a! Graças, meu Deus, graças!

—Graças, meu Deus!—conclamaram as trez senhoras e os trez velhos ajoelhando todos no degráo.

Thomazia, porém, permanecia quêda, empedrada, livida, esgaseando os olhos turvos. Assim se esteve n’aquelle alheamento, olhando tudo sem ver mais que a figuração do marido, por espaço bastante notavel, que todos levantaram para ella os olhos perplexos. N’este conflicto, faltavam-lhe os joelhos, entrou em convulsões, e, soltando um gemido, caiu nos braços da sogra e do padrinho, que a viam cambalear.

—Olhem o que faz a alegria!—clamou o velho.—Levem-n’a para cima, coitadinha! levem-n’a com geito, que isto passa logo... Eu vou ler a carta para vossês todos ouvirem ao pé da cama da nossa pobre filha.

—O peior é se este sobresalto lhe faz mal á creancinha!—disse D. Thomazia.

—Não hade fazer, se Deus quizer!—contrariou Gervasio, seguindo o grupo em cujo centro ia a esposa sem sentidos, amparada nos braços de todos.

Defumaram-n’a com alfazema e ungiram-lhe as fontes de vinagre. Descerrou as palpebras de sobre os espantados olhos. Viu muita gente a rir-se e a chorar de alegria, e já o sogro com a carta aberta, dizendo:

[Pg 196]

—Escuta lá, filha, escuta o que diz o teu homem. Diz pouco por que está doentinho; mas é bastante para ficarmos doidos de alegria. Ouve, menina.

Leu. Thomazia fazia ranjer o leito com as tremuras.

—Vês?—proseguiu Gervasio.—Olha como elle está contente, menina!

—Mas está doentinho!—accudiu a mãe.—Queira Deus que a doença seja leve.

—Hade ser, se Deus quizer!

—Ó manas—tornou D. Thomazia—vamos já pedir a Nosso Senhor que lhe dê saude. Vinde para o oratorio.

—Eu não posso ir...—murmurou a esposa de Innocencio, erguendo custosamente a cabeça.

—Pois não venhas, filha, não. Aqui fica teu pae a conversar comtigo emquanto nós vamos resar. Cá pediremos tambem em teu nome, Thomazinha; e mais tu podes resar d’ahi tambem, que Deus Nosso Senhor está em toda a parte onde se procura.

—Ó rapariga!—continuou Gervasio, assim que as senhoras sairam—a nós a alegria deu-nos de bota abaixo! Eu tambem perdi a tramontana; e, se lá não está o gallego, dou com a cabeça no corrimão, que a parto! Não que elle!... Ó menina, eu parece que estou areado do juizo! Pois inda torno a ver meu filho!... Que me dizes?

—Deus o queira...—murmurou Thomazia, dizendo no fundo do seu coração: «Matai-me, Senhor, matai-me, e condemnai-me ao inferno para sempre!»

[Pg 197]

—Tu estás a modo de triste, afilhada!—sobreveio o velho.—Que tens tu que estás chorando agora?

—Chorando?—disse ella apalpando os olhos—é verdade... não sei por que choro... é alegria... pois que hade ser, meu padrinho?... é alegria...

—Ah! lá isso entendo eu! Olha, queres tu ver que tambem me rebentam as lagrimas?

De feito, Gervasio chorava e alimpava os olhos ao punho da japona, dizendo entre frouxos de riso:

—Deixal-as cair, que são as ultimas... Não torno a chorar na minha vida. Venha meu filho, veja eu o meu netinho, e depois não ha mais nada p’ra mim n’este mundo. Já cá deixo gente que farte para fazer honra á minha memoria.

N’este momento, sacudiu-se em convulsas contorções D. Thomazia, e vibrou um prolongado gemido.

—Que tens, menina?!—clamou alvoroçado o sogro.

—Ai!—repetiu ella gemebunda, estendendo os braços e batendo os dentes.

Gervasio foi chamar a mulher aceleradamente gritando que Thomazinha estava muito mal. Acudiu a senhora com as cunhadas, e observou ao marido, em termos caseiros, que o sobresalto da noticia poderia antecipar a hora que não obedece sempre ao ciclo das nove luas.

Foi chamado o facultativo de maior nome em obstetetrica, ladeado de duas famigeradas comadres.

D. Thomazia diagnosticára magistralmente o incommodo, segundo concordou com o facultativo e as previstas assistentes.

[Pg 198]

Apoz trez horas de gritos alternados com desmaios, viu Gervasio sair sua mulher com um menino recemnascido nos braços.

—Nasceu de oito mezes!—dizia a radiosa velha.—Está vingado e perfeitinho!

O velho encarou na creança muito de perto; mas não ousou pôr-lhe os beiços cubiçosos, receioso de lhe magoar as carnes tenrinhas.

Ao mesmo tempo, no segundo andar da casa do marceneiro, Nicoláo d’Almeida, já informado de que se esperava Innocencio, e de que o medico e parteiras tinham sido chamados á pressa, imitava na irrequietação, no desesperar-se, nos exteriores de uma ancia insoffrida, as torturas por que tinha passado em Milão o marido de Thomazia.

As agonias eram diversas; e todavia não sabemos decidir em qual das duas almas podia caber mais um gume de ferro. O marido arfava no anceio de a matar. O amante na impossibilidade de a salvar, cuidando que ella ia morrer. Quem optaria de prompto pelo mais suave d’estes dois infernos?


[Pg 199]

CAPITULO XVIII

Argumento

Que a justiça divina raras vezes defere aos criminosos que lhe requerem a morte. Luctas horrendissimas do coração maternal com o opprobrio de mulher. Considera a sciencia que Thomazia ficou areada do juizo. Coração de pae, resgatando o delicto de mau cidadão. Dizem que está Innocencio á barra. Foge a esposa, sem poder levar o filho. Situação para muita dôr, em que a jocosidade seria profanação selvagem. Afflicções que sentiram muitos, e muitissimos hão de sentil-as em quanto a Providencia não tirar o coração ao homem ou a propensão do crime ao genero humano.

Nas intercadencias de febre sobrevinda ao parto, perguntava Thomazia quando vinha Innocencio; nos delirios, porém, palavreava desconchavos, chamando a miudo Nicoláo. Dizia D. Sebastiana a este respeito que a doentinha invocava S. Nicoláo milagroso.

Desconfiaram-n’a os medicos; não obstante, a soberana justiça mandou affastar a morte d’aquella mulher que precisava ser, alguma hora, expiação e exemplo. Mal sabem os que choram á volta de um esquife que bom despacho Deus enviou aos que morrem quando mais lhes enverdeciam esperanças. Suave passo é acabar[Pg 200] quando filhos não olham para a mão cadaverica d’onde costumavam receber o seu pão e caricias.

Levantou-se do leito aos quatorze dias Thomazia.

A sciencia medica pasmou do seu triumpho; mas confessava-se inefficaz para debellar um torpor moral e spasmo organico em que ficára a convalescente.

Se lhe levavam a creancinha, debulhava-se em lagrimas, e parecia repulsal-a, voltando o rosto. Outras vezes, pedia que lh’a déssem dos braços da ama, estreitava-lhe ao seio soffregamente o corpinho, e soluçava.

O parecer dos facultativos era que Thomazia ficára tanto ou quanto desconcertada de juizo; mas era de esperar que, mediante socego, distracção e tempo, se restaurasse.

Houve, na familia, opiniões diversas, respeito ao baptismo do menino. Uns queriam que se esperasse Innocencio, outros que se não demorasse além de oito dias dar uma alma á creancinha. Venceria Gervasio com os primeiros, se o pequenino sem alma, aos nove dias, não désse signaes de pouco vivedoiro.

Baptisou-se, pois, aos dez, sendo padrinhos os avós; (o assento baptismal dizia avós: não sejamos mais escrupulosos que o abbade na propriedade dos termos.) Chamaram-lhe Pedro, em memoria de alguns seus antepassados illustres na linhagem.

Não deram noticia do nascimento ao pae, (o assento dizia tambem que Innocencio José de Barros era pae) visto não haver tempo de chegar a Havre de Grace a nova, antes de elle se abalar para Portugal.

[Pg 201]

Estamos em julho de 1846.

Espera-se que o paquete francez aviste a barra do Porto no dia 18.

Ao anoitecer do dia 15, Thomazia recebeu da mão do aguadeiro a terceira carta de Nicoláo d’Almeida, escripta n’estes termos:

«Está tudo preparado. Já tenho no hotel a ama para o menino. Assim que ámanhã anoitecer, sae. Espero-te aqui defronte. Logo que te vir sair, sigo-te, recebo o filhinho, e tu vaes indo a meu lado até á rua dos Inglezes onde nos espera a sege. Ámanhã mesmo partimos para Caminha. De lá, se nos incommodarem, iremos para Hespanha. Onde quer que chegarmos, encontraremos a felicidade. Ainda bem que eu não desbaratei a minha juventude em falsas delicias que derrancam e envelhecem a alma. Sinto-me pae e esposo em todo o vigor de um coração novo, robustecido pelo teu amor, minha graça e formosura do céo.

«E o meu filhinho? Sabes que o vi baptisar? Olhei para elle em quanto as lagrimas me deixaram. Estive quasi a pedir á ama que me consentisse beijal-o. Que sensações me tumultuavam na alma! Aquelle sentir nascer um amor novo que me enchia o coração!...

«Deixa-me abafar a saudade; que, se não, fico a escrever-te, e são horas de te avisar.

«Não sei como te has de haver com tirar o menino, sem darem fé!... Dêem ou não, é forçoso, Thomazia! Nem mais um dia, porque me dizem que o paquete francez[Pg 202] algumas vezes se antecipa quarenta e oito horas e mais, quando, peor ainda, não acontece sair algum extraordinario do Havre.

«Eu só descançarei, quando puder abraçar os meus dois queridos amores, e pedir então a Deus que nos perdôe, se não é possivel santificar a nossa união. Espera, minha filha; que o nosso anjinho ha de pedir por nós.»

Estava Thomazia cogitando modos como, no dia seguinte á mesma hora, havia de fugir com o filho, quando se levantou um subito ruido de muitas vozes no escriptorio, onde o sogro ainda estava.

Thomazia expediu um grito e quasi perdeu o alento, cuidando que chegára o marido.

Encostada á parede, foi-se acercando da escada, e debruçou-se no corrimão. Era a tempo que Gervasio e dois amigos vinham subindo, e as trez senhoras e os outros velhos iam descendo. O velho exclamava:

—Ahi está o paquete defronte da barra. Pediu lancha para pôr em terra passageiros. Está ahi o nosso Innocencio! Vão dizel-o a Thomazia, que nós partimos já para a Foz; mas olhem lá como lh’o dizem, que não vá dar alguma coisa na pequena. Preparem a ceia.

—Mas será elle?!—atalhou a esposa.

—Pois quem hade ser?! certificou Gervasio—É elle, não póde deixar de ser elle... Até logo, nós cá vamos encontral-o ao caminho.

Entraram as trez senhoras ao quarto de Thomazia e[Pg 203] fizeram pé atraz de puro espavoridas. A esposa de Innocencio guinava de uma parede para outra com as mãos apertadas nas fontes, despedindo gritos em que se conheciam mal articuladas as palavras «meu filho!»

—Jesus, santo nome de Jesus!—clamava a sogra—Ó menina, que tens tu? Olha que vem ahi teu marido, filha!...—E, voltada ás cunhadas, continuava:—Querem as manas ver que ella endoideceu!

N’este acto, rompeu Thomazia por entre ellas e desceu ao primeiro andar a procurar o filho.

—O meu filho?—dizia ella em altos clamores—o meu filho?

—A ama saiu com elle á tardinha; mas não tarda ahi—respondeu a madrinha tremente e assombrada.

—Quero o meu filho!—rebradava Thomazia, indo bater á porta do quarto da ama.

—Menina, não está ahi a ama! já te disse que ella foi dar ao Pedrinho o ar da fresca, e volta logo. Ó Virgem Mãe de Deus! pelas chagas de vosso Filho, fazei que ella não perca o juizo!

E ajoelhára de mãos erguidas com as cunhadas a velha angustiadissima.

Em quanto ellas ciciavam fervorosas orações, Thomazia desceu as escadas como quem se precipita.

—Onde vae ella?!—gritou D. Sebastiana.

E desceram todas tão depressa, quanto a idade e a nutrição lhes consentia.

Quando chegaram ao pateo, já não entreviram Thomazia[Pg 204] na escuridade da estreita rua, e proromperam chamando-a a brados.

Ajuntaram-se os transeuntes ouvindo as lastimas, com quanto pesar podiam, por não entenderem a fundo a causa dos gritos. Queriam elles ir logo de porta em porta relatar o escandalo; mas as senhoras vexavam-se de dizer que Thomazia fugira doida pela rua fóra.

A este tempo, a mulher de Innocencio, no 2.º andar da casa do marceneiro, arquejava anciadissima nos braços de Nicoláo d’Almeida.

—O meu filho!—exclamava ella.—Vae buscar o meu filho, antes que chegue Innocencio, que póde matar-m’o!... O teu filho, Nicoláo!... Corre lá... tira-o aos braços da ama... traz-m’o, que se não vês-me aqui morrer de dôr!

Estes rogos eram desarrasoados, depois d’ella já ter dito que, no lance da fuga, o menino estava fóra de casa. Além de quê, Nicoláo acovardava-se de romper a multidão que pejava o pateo de Gervasio, e ir arrancar uma creança aos braços da ama no seio de numerosa familia. Absteve-se pois de obedecer ás supplicas de Thomazia, abafou a propria angustia e disse-lhe:

—Primeiro que tudo, sair d’aqui.

—E o meu filho?—acudiu ella.

—Trata-se da tua segurança agora. Não percamos tudo por amor da creança...

—E se elle a mata...?

—Não ha ferocidade tamanha em coração de homem nenhum... A occasião não permitte questões, Thomazia!...[Pg 205] É sair... e já pela porta do quintal que vae dar á cerca de S. Domingos.

N’isto, avisou a filha do marceneiro que ia entrando muita gente para casa de Gervasio.

—Depressa...—disse Nicoláo, tirando pelo braço a inerte mãe de Pedro.

Minutos depois, subiam as escadas da Esnoga. Ella ia soluçando, e elle apanhava as lagrimas no lenço.

Ao assomarem debaixo do paredão da Victoria, abraçaram-se em reciproco impeto, exclamando:

—O nosso filho!


[Pg 206]

CAPITULO XIX

Argumento

João Ferreira vae na piugada dos fugitivos levando a nova da viuvez a D. Thomazia. A viuva fica satisfeita ao que parece. Noite de pezames na casa das Cangostas. Revelações do commendador Batalha, negociante probo e honesto da Praça do Porto. O que elle diz de Thomazia, e o que os outros dizem d’elle e da mulher. Sucia de patifes e burros. Gervasio declara que não tem nada de seu, por temer que a nora o queira roubar. Suspendem-se-lhe as lagrimas na repreza do odio. Abraça-se á mulher, quando as visitas o deixam e desafoga a sua dôr por maneira consternadora. E do mais que consta o capitulo abaixo declarado.

Meia hora depois, João Ferreira, o devotado marceneiro, chegou esbofado ao hotel do Pexe, endireitou aos aposentos de Nicoláo d’Almeida; e como o não visse no quarto, perguntou afflicto ao criado:

—O fidalgo de Caminha?

—Chegou aqui, mandou apparelhar os cavallos e partiu.

—Para onde!

—Não sei.

—Iria para Caminha?

—Não sei.

[Pg 207]

O artista pediu ao dono do hotel que lhe alugasse cavallo para ir levar uma urgente noticia ao fidalgo; mandou recado á filha, e partiu na piugada de Nicoláo, caminho de Villa do Conde.

Ao abrir da manhã, avistou além de Casal de Pedro os dois cavalleiros, que reconheceu pela libré do lacaio. Nicoláo ouviu brados á rectaguarda. Parou, deixou avisinhar o cavalleiro que batia as pernas á espora fita, e reconheceu o marceneiro.

—Que ha?—perguntou Almeida, a distancia.

—Que ha? morreu o senhor Innocencio.

—Como?!—volveu Nicoláo, em quanto a viuva, a tremer sobre as andilhas, abafa o respirar para não perder uma sillaba das palavras de João Ferreira.

—Lembra-se vossa excellencia quando a minha filha disse que ia entrando muita gente para casa da senhora D. Thomazinha?

—Sim.

—Eram negociantes que acompanhavam o senhor Gervasio, onde vinham dois que desembarcaram e trouxeram a noticia de ter morrido na França o senhor Innocencio. Assim que vossa excellencia saiu e mais a senhora, d’ali a pouco, fecharam-se as janellas. Eu disse logo á minha companheira: «Ó mulher, aquillo é novidade! pois com este calor fecham já as janellas!»—«Que queres tu? (disse ella). Se te parece!... Fugiu-lhe a nora, elles não sabem d’ella... estão a gritar, e fecham as janellas por isso.» «Não (disse eu) ali ha coisa de maior!» Tirei-me dos meus cuidados e desci á[Pg 208] rua. Cheguei-me a uns senhores que estavam á porta do senhor Gervasio, e perguntei se havia alguma novidade.—Morreu no Havre (acho que disse isto) o Innocencio de Barros. N’isto vinha saindo um sujeito, e disse aos que estavam: «Vocês não sabem? A mulher do Innocencio fugiu esta noute. Vae lá em cima uma barafunda de gritos que nem o diabo se entende! As velhas estão todas desmaiadas; o Gervasio está n’um pasmo mortal. Desgraça d’este calibre, nunca eu vi!»—Puz-me á espreita a ver o mais que diziam uns que vinham e outros que iam, e contavam a mesma coisa. Só houve um que disse: «Se querem saber onde está a mulher de Innocencio, procurem-n’a no hotel do Pexe, que móra lá o brejeiro (vossa excellencia hade perdoar) que lhe andava por aqui a raspar a asa. Eu bem n’o disse, mas ninguem fez caso. Melhor fizera eu, se tivesse avisado o Gervasio.» «Não, que a esse respeito (disse outro d’ali, que por signal era o commendador Batalha) a esse respeito eu lhe conto: não ha muito que eu estava aqui na visinhança mettido n’um pateo á meia noute e um quarto, pouco mais ou menos, e vi botar uma escada de corda a esta janella, e subir um homem, e metter-se lá para dentro, e mais a corda.»—«E você calou-se com isso?—Veio d’alli outro.—«Calei-me, respondeu o Batalha, porque não sou o almotacé das honras alheias; cada qual que guarde a sua casa.»

Eu assim que ouvi isto, meu fidalgo, despedi por ali arriba, que não sei como não botei os fidalgos pela bocca fóra... Depois, foi um raio por essa estrada fóra catrapós,[Pg 209] que trago aqui o garrano a dar as ultimas. Aqui tem vossa excellencia o que ha. Sirvo para amigo ou não?

—É um bom, e não sei se o meu unico amigo, senhor Ferreira—disse Nicoláo, apertando-lhe a mão.

—Não ouviu dizer nada do meu filhinho?—perguntou a viuva.

—Não, minha senhora. Ninguem lá fallou no menino.

—E agora? que fazes, Nicoláo?—tornou ella, voltando-se para o pae de seu filho.

—Tudo estava salvo, se não foges... murmurou o de Caminha muito concentrado.

—Mas posso agora ir... acudiu ella.

—Segundo desatino—obstou Nicoláo.—Estás prohibida de deliberar, minha filha—proseguiu o moço em tom de suave preceito.—Senhor Ferreira, siga-nos para Villa do Conde: lá pensaremos. Não ha razões para precipitar qualquer resolução. Estás viuva, estás livre, Thomazia. O teu filho has de reclamal-o: ninguem tem mais direito do que tu a possuil-o. Agora estão as leis por ti. Socega. É uma questão de pouco tempo.

Deixal-a expandir agora a sua silenciosa alegria. Aquillo sim, que é tragar liberdade a sorvos deliciosos. Se ali não fossem duas testemunhas dos seus transportes, Thomazia pediria a Nicoláo que a deixasse desafogar em gritos de exultação bem aconchegada do seio d’elle. O filhinho é d’ella: disse-lh’o tão sobre o seguro o pae! É seu: dentro em pouco, poderá despir-lhe o lucto; e, quando elle souber proferir a palavra pae, ninguem lhe[Pg 210] dirá morreu! Que lhe faz a ella que a riqueza de Gervasio não seja para seu filho? O pae é tão rico, é tão brioso, que não ha de querer que o seu menino se appellide Barros para succeder na herança de algumas duzias de contos! Fluctuando de idéa em idéa, disputada por uma á alegria da outra, de vez em quando foge-lhe um suspiro desafogado por entre surrisos que lhe desbordam do seio.

Nicoláo, porém, vae triste: sente cair-lhe e queimar-lhe sobre o coração uma torrente de lagrimas; relucta por tirar a consciencia de sob o peso d’um cadaver. Quer elle imaginar que a sua misteriosa amargura são parvulesas de poeta, e de amador novel que ainda não tem abroquellado o peito para rebater os golpes do remorso. Quer e succumbe. Vae pois mais amargurado do que virera até ao momento em que lhe disseram: Caminha a passo; não fujas; que o marido d’essa mulher é morto; e o deshonrado pae que ficou a choral-o é um ancião.


Ai! e como o deploravel velho chorava, apertando ao seio a creancinha, n’aquella hora!

—Não tens pae nem mãe!—exclamava elle com a eloquencia nascida a subitas das ingentisssimas agonias.—Como ella te deixou, anjinho, entregue a uns velhos que não podem viver muito!...

E o commendador Batalha, que não o desamparára em todo o curso da noite, dizia-lhe:

—Deixal-a ir: nunca este menino saiba que teve tal[Pg 211] mãe! E guarde-se de que essa infame lhe entre a sua porta. Ella hoje é capaz de vir buscar o filho e chamar-se senhora da fortuna que hade ser d’elle e da que lhe cabe.

—Ella!—exclamou de salto o velho—ella pôr mão em dinheiro do meu filho e do meu neto!... Isso é mais facil eu ajuntar o valor de tudo que tenho n’esta casa, e pôr-lhe o fogo! Sou capaz de o fazer... E de mais—proseguiu Gervasio subitamente inspirado e mais energico para que todos ouvissem—não tenho nada de meu. Tudo o que ahi está é os dotes de meus irmãos e irmãs. Não tenho nada que dar a essa mulher...

—Mas que ingrata!—dizia D. Thomazia, na saleta visinha, entre soluços, á esposa do commendador Batalha—que ingrata aquella!... Trazel-a eu pobresinha, creal-a, dar-lhe o meu filho... o meu querido filho... que eu não torno a ver...—e lançava-se por terra, ferindo o rosto nas cadeiras, e escabujando nos braços das cunhadas, que mal podiam acudir aos transes alheios.

—Eu já soube esta noite lá fóra quem era o tal desaforado—dizia o commendador ao auditorio funebre, que de vez em quando intermittia no estilo elegiaco algumas diatribes politicas a José Passos e outros propugnadores da revolução de maio d’aquelle anno—bem sei quem elle era... e agora me arrepello de não ter avisado este pobre chefe de familia; que eu bem o vi subir pela escada de corda...

—Havia de ser—disse o negociante Abreu ao ouvido do negociante Leite—havia de ser quando elle se preparava[Pg 212] para subir pela escada de páo, e não de córda, para o quarto da mulher do Simão Lopes que mora trez portas abaixo do lado de lá.

—Pois era isso...—confirmou o negociante Leite—eu já de lá o vi sair de madrugada, e ás dez horas encontrei-o no escriptorio do Simão a dizer que o mundo estava desmoralisado, e que sabia de trez infames mulheres casadas que traziam nas praças e nos cafés a honra dos seus maridos ás vaias dos folhetinistas e d’outros calafrios d’esta laia.

—Pois aquillo é um tratante!... Olha, olha, como elle se explica.

—Estes malvados—proseguia o commendador Batalha, batendo murros nas proprias pernas—estes malvados que desviam do seu dever as senhoras honestas, e cavam a ruina domestica das familias, deviam ser mortos a tiro como cães damnados. E ellas então? eu, todos sabem que sou casado. Graças aos céos, topei mulher que me deixa andar com a cara descoberta...

—Aquillo é mentira—disse o negociante Abreu ao ouvido do negociante Leite.

—Ora diz-m’o a mim!—segredou o outro.—A casa d’elle ninguem sobe com escada de corda, por que a estrada para o coração da mulher é pela trapeira, ha mais de doze annos. Bem sabes que o Raimundo Braga, visinho d’ella...

—Se sei!... Deixa-m’o ouvir.

O commendador saltára do assumpto, por que um dos[Pg 213] auditores tinha escarrado, querendo chamar com tão indecente signal a attenção de Leite e d’Abreu.

—Faz o senhor Gervasio o que deve em não consentir que essa mulher perdida lhe entre em casa, nem leve o pequeno—proseguiu o commendador, solicitando com os circumvagantes olhos o apoio do auditorio.—Segure-se, e quanto antes, meu amigo. Estamos aqui todos promptos para tudo que fôr necessario. Não sei se o troca-tintas do seductor tem de seu; mas acho que pouco terá. É d’estes cavalheirotes de aldeia que colhem cem rasas de milho, e vendem quatro arvores quando vem ao Porto. Se é o que eu penso, elle hade querer comer d’ella, e não tarda por ahi a justiça a vir intimal-o para inventario.

—A mim?—atalhou Gervasio—está bem servida a justiça comigo! Já disse que não tenho nada de meu. Devo a cada um de quatro irmãos que ahi estão dez mil crusados de dote afóra os juros. As quintas do Douro estão captivas dos dotes, e mais esta casa. O vinho que por ahi está nos armazens já o vendi. Estou sem nada, logo que pagar o que devo.

—Faz muito bem!—obtemperou radiosamente o commendador—assim é que se ensinam os bigorrilhas e as... e as... adulteras.

—Não sabe o nome da mulher d’elle...—cochichou Abreu á orelha de Leite.

—É mais burro que honrado—addicionou o outro.


Esta farça funebre de pesames, cuja exactidão carecia[Pg 214] de mais espaço e relêvo, passava assim n’um lance de supremo infortunio. As lagrimas intermitentes de Gervasio tinham perdido toda a sua pungitiva uncção. Quem ali fosse para compenetrar-se do funeral espectaculo de um velho, chorando um filho morto e simultaneamente infamado, sairia rindo ou amaldiçoando quem tão vilissima tempera deu ao homem.

Quando Gervasio, ao raiar do sol, sentiu pesar-lhe a cabeça carecida de repouso e a recostou para os braços cruzados sobre o peito, os hospedes evacuaram de mansinho a sala, queixando-se todos de enxaqueca, e convidando-se para ir tomar chocolate ao botequim da rua de Santo Antonio.

Gervasio sentiu que uns braços o achegavam do seio e uma face branda lhe animava as cãs. Olhou, e viu sua mulher, que lhe dizia:

—Ó meu pobre homem, se nos deixassem chorar sósinhos...

Abraçaram-se estremecidamente. As primeiras lagrimas de desafogo foram aquellas.


[Pg 215]

CAPITULO XX

Argumento

De como a formosa viuva se embalava nas serenas aguas do Minho, e o que diziam a respeito de varias coisas os ditosissimos amantes. Requerimentos, embargos, accordãos e outros feitos das justiças d’estes reinos. Gervasio escapa-se com o neto. Nicoláo de Almeida prova de um modo vulgar e sabido que a sociedade devia chamar-se uma porcaria, se a palavra não fosse plebea e repugnante a ouvidos cerimoniosos. O commendador Batalha depois que revessou do bucho a ucharia encruada. As jornalistas pregoam as virtudes de Thomazia, com outras tolices ao mesmo respeito.

D. Thomazia, a viuva, e Nicoláo de Almeida deliciavam-se campestremente nas inspirativas margens do rio Minho.

Vestia de crepe a formosa. Era-lhe realce o escuro. Trajada de côres festivas, a alma saía-lhe ao rosto a dar reflexos de alegria aos lutos.

Nicoláo remava no batel, por baixo de um docel de salgueiros. Os remos trapeavam cadentes, de uma ourela para outra do rio. Cada vez que aproavam a terra e abicavam por entre os bosquesinhos espelhados n’agua, saíam da frescura os rouxinões esvoaçados, e iam mais[Pg 216] longe emboscar-se n’algum amieiral, onde a lua bem sabia que era esperada dos seus cantores nocturnos.

—És feliz?—perguntou-lhe Nicoláo secretamente vaidoso de abrir thesouros de felicidade para aquella mulher.

—Não...—murmurou ella surrindo-lhe meiguices de quem pede perdão do aggravo.—Falta-me o nosso filho.

—Não te basta a certeza de que elle hade vir?

—E a saudade? e o medo que m’o tirem ou o façam desapparecer?...

—Não ganhavam com isso nada.

—Mas se meu padrinho cuidar que elle é seu neto?...

—Nem assim lhe assiste o direito de t’o negar.

—Mas quem sabe se o Innocencio deixou alguma declaração...

—De que o filho não era d’elle?

—Sim...

—Mais forte rasão para que t’o não queiram, e comecem desde já um processo a provar a illegitimidade do filho adulterino. Seja como fôr, minha filha, lá tens optimo procurador no Porto. Póde ser que a esta hora o nosso anginho venha esvoaçando para nós. Teu sogro hade achar-te louvavel o procedimento, porque não pedes herança, nem sequer as tuas joias. Pedes o filho e renuncias a ter quinhão dos bens de teu marido.

—E se elles m’o não entregarem?

—Vou eu buscal-o. Entrarei á presença de Gervasio,[Pg 217] e direi: «Este menino é meu filho. Não tem d’esta casa uma tabua nem um farrapo. Gosem tranquillos os seus bens de fortuna, que esta creança, quando fôr homem, nem sequer ha de saber que sua mãe foi casada com um chamado Innocencio.»

—E tu ias dizer isso?—atalhou exultantemente a viuva.

—Com toda a certeza, se o escandalo fôr necessario.

—Não ha de ser... Elles dão-me a creancinha.


O procurador de D. Thomazia apresentou ao juiz o requerimento da sua constituinte, pedindo a entrega do filho. Deferiu o juiz. Gervasio José de Barros saiu com embargos ao despacho. Allegava o porte immoral da viuva que não podia ser boa educadora do filho. Desfiavam os artigos a historia das adulteras invasões do amante por escada de corda, consoante as referira o commendador Batalha. As testemunhas de vista eram já sobejas para justificar o crime, e pelo conseguinte a devassidão da viuva, concubinaria de Nicoláo d’Almeida. Accrescentava o libello que Innocencio José de Barros morrêra de paixão e vergonha.

Foram acceitos os embargos.

O procurador aggravou: não teve provimento.

A conjuração contra Thomazia subia das praças aos tribunaes. Os juizes da Relação, no seu accordão, ajustavam á aggravante o epitheto de «infame».

Nicoláo d’Almeida, informado do despacho da causa em segunda instancia, auctorisou o procurador a declarar[Pg 218] em nome da sua constituinte que o filho de Thomazia não era filho de Innocencio.

O agente de causas foi retido pelo pudor de sua propria pessoa. Respondeu que regeitava a procuração, e difficilmente encontraria advogado que assignasse a original e de nenhum modo desculpavel declaração.

Os amigos do fidalgo admoestaram-n’o a que não expozesse o nome de D. Thomazia, se a presava tanto como era de presumir; que semelhante requerimento sobrepujava o cumulo do despejo; que, embora o mundo a considerasse criminosa, não fosse ella dobrar a fealdade da sua culpa, revelando segredos que a livelariam hombro por hombro das mulheres derrancadas até onde já não resta sentimento de vergonha.

Caiu em si Nicoláo, e voltou o espirito para a urdidura de traça heroica e summaria. Cogitava em raptar a creança.

Decorreram quinze dias de plano, em que entrava o marceneiro, auctorisado a segurar á ama do menino uma avultada independencia.

Outros quinze dias espiou João Ferreira os passos da ama. Não a viu. As janellas de Gervasio nunca mais se abriram, e as portas meio cerradas escassamente deixavam passar as visitas frequentes, os bons amigos do negociante que lhe alvidravam alienar fraudulentamente os seus haveres e mudar de paiz.

Os mais cordatos asseguravam-lhe que o direito de Thomazia á posse do filho fôra denegado iniquamente, visto que nenhum processo a espoliára dos direitos maternos:[Pg 219] precaviam-n’o, pois, contra as novas tentativas d’ella, assim que o odio geral se desvanecesse e a lei funccionasse mais desassombrada.

Temeu o velho e abraçou o alvitre.

Deu os dotes a seus irmãos, segurados nos bens rusticos e urbanos. Liquidou as especies commerciaes, embolçou o maximo dos seus haveres em dinheiro, lavrou titulos capciosos para legalisar as vendas, e saiu furtivamente para Inglaterra com a esposa, e o seu Pedro nos braços da ama.

Raros amigos lhe souberam o destino.

Chegou a nova a Caminha, levada pelo marceneiro. Nicoláo chorou amargamente. Aquelle extremoso amor de pae entranhára-lh’o assim a Providencia para castigo. São inescrutaveis e invisiveis os caminhos por onde baixam do céo as flechas que trespassam as almas. Até succede exasperarem-se em ardor de inferno sentimentos sacratissimos! Vejam onde as chammas começaram a queimar: no coração de pae! tão sublime affecto convertido em lança penetrante!

Thomazia soffreu menos. Levantou clamores de apiedar feras, caiu sem accôrdo nos braços de Nicoláo; mas soffreu menos. Volvidos mezes, quando ella estiver esquecida do filho, Nicoláo d’Almeida, que apenas vira a creança no baptisterio, enxugará as lagrimas cada vez que vir um menino nos braços de seu pae.

Agora, leitores, deixem correr os annos. A vida vae depressa. E, nos romances, quando ella entra no trilho commum, a rapidez salva o leitor do fastio.

[Pg 220]

Em 1847 Nicoláo d’Almeida era já pae de um menino chamado Lopo. Este filho nasceu legitimo... A sã moral toma aqui ar.

Nasceu legitimo. Um sacerdote, com pouquissimo trabalho, duas frases latinas e duas portuguezas, um meneio de estola, uma benção, e de fóra os termos do ritual, duas graçolas espirituosas de sua lavra, santificou pae, mãe e filho.

Thomazia não se debulhou em lagrimas de reconhecimento. Bastava-lhe saber que era amada antes de ser esposa. O fidalgo tambem não engrandeceu o quilate do seu feito. O que elle havia dado mais valioso áquella mulher, dera-lh’o antes: a alma. O que o esposo fez de mais, foi chamar para si os tios de Thomazia, os irmãos e irmãs do bravo capitão Joaquim Alves, que eram pobres.


Um dia, em 1849, Nicoláo d’Almeida disse a Thomazia:

—O nosso filho Pedro está em Londres.

—Ah! soubeste-o?

—Disse-mo no Porto um homem que viu Gervasio de Barros em Londres.

—E que intentas fazer, meu filho?

—Que hei de eu fazer? esperar. Não questionemos a posse da creança em sacrificio ao teu nome. Quando elle poder entender-me, quando o sangue lhe agitar o coração na minha presença, então lhe direi: «sou teu pae!»

[Pg 221]

Passados instantes, tomou nos braços o pequenito Lopo, mirou-o muito de chapa, e disse, coberto de lagrimas:

—Pede a Deus que me dê o teu irmãosinho.

Thomazia cobriu o rosto com as mãos, inclinou a cabeça para o seio e soluçou, murmurando:

—Não torno a vel-o...

—Has de ver! replicou Nicoláo com vehemencia.

Em 1850, disse o fidalgo de Caminha a sua mulher:

—Faz hoje quatro annos que o teu nome no Porto era um como ferro que fazia golfar a posthêma da maledicencia d’aquelles peitos. Desejo que tu conheças de perto as cavernas onde não poude chegar a lanceta do teu nome. Ha lá dentro pus que não saiu, quando t’o cuspiram ás costas. Prepara-te. Vamos passar dois mezes ao Porto.

—Por quem és, meu filho, não vamos...—accudiu Thomazia.

—Vamos, menina. Pois não queres conhecer as delicias da rehabilitação? Sabes lá tu que prazer ensoberbece a gente, quando nos vemos de perto com os detraidores de outro tempo, e então reconhecemos quanto eramos grandes, á vista dos abjectos inimigos que tivemos?... Ir ao Porto, é coisa que eu te peço de joelhos, se fôr necessario—concluiu Nicoláo acariciando-a.

—Vamos, filho. Se me fizeram chorar, tu me consolarás.

—Quem te ha de fazer chorar? Vaes topar toda a gente á porfia de te fazer rir... E has de rir.

[Pg 222]


Era um palacio com quatro salões corridos, e doze janellas a jorrarem luz e estrondosas harmonias. As carruagens, entralhando-se á porta do palacio, despejavam commendadores relampadejantes de venéras com os braços arqueados, onde poisavam leveiras como arveolas umas mulheres que volitavam com suas azas de alvissimas gazes. As baronezas nutridas pisavam ponderosamente os tapetes do vasto peristilo do palacio, pedindo aos maridos que lhes desfizessem os refegos da saia, mas com disfarce. Um criado com borlas e galões de ouro tirava pela sineta, assim que ouvia o fremir das sedas no pateo. A meio da escada, descia então o dono da casa, um mancebo de 26 annos, pallido, de olhos negros, e surriso torvo. Inclinava-se deante das houris que iam povoar o seu paraiso, e, recurvando os braços, as conduzia até onde estava uma mulher loura, grave e linda. Então voltando-se ás senhoras, dizia com palaciano entono:

—Apresento a vossas excellencias Thomazia de Almeida, minha mulher.


E a profusão da ceia fez suppôr que Lucullo e Cresso e Apicio morreram de fome.

Um conviva, quasi afogado pela onda do champagne, e opilado de aves frias que se lhe encruavam no estomago, avençou-se com um criado para lhe ensinar a parte da casa, onde elle podesse obedecer aos impetos de um vomitorio involuntario: era o commendador Batalha.[Pg 223] Despejada a ucharia mal esmoida que lhe tomava as cavidades intestinas, sem resalva de uma em que tivera a consciencia, foi dizer a D. Thomazia que Gervasio José de Barros, como judeu que era, alienára indignamente quanto tinha, posto o intento em roubal-a.

—Mas esteja vossa excellencia certa—acrescentava elle—de que seu filho vem a herdar o melhor de oitenta contos. Se fôr preciso, eu direi a vossa excellencia com quem foram feitos os contractos fraudulentos.

D. Thomazia não respondeu. Entreviu nos grupos o marido que a procurava com os olhos, e rebatia, cerrando os labios, o impulso do riso.

Ao outro dia, a imprensa periodica, no esmero com que cinzelou o estilo das noticias, bem deixava entender que escrevia para a eternidade.

Da dona da casa, diziam que associava á fidalguia das maneiras uma tamanha gentileza e fidalgo porte que o primor das joias riquissimas era de seus enfeites o que menos resplandecia.

Que a flôr da sociedade portuense convergira, á competencia de galas, aos salões de suas excellencias; sendo tantas as «notabilidades» que não sabia o redactor estremar primazias de bellezas e ainda menos de toilettes.

Que a elegante esposa do excellentissimo Almeida surpreenderia com as suas peregrinas graças a quem a não tivesse já admirado entre as mais preclaras formosuras do Porto, onde sua excellencia tinha nascido.

Que ás cinco da manhã parecia ter começado o baile, sendo áquella hora tal o delirio e enthusiasmo, que os[Pg 224] pares invadiam as quatro salas, arrebatados na febre do cotillon.

Que a excellentissima Thomazia d’Almeida apenas dançára duas quadrilhas, concedendo a solicitada honra de parceira aos senhores barão da Sola e visconde do Tijolo, que tiveram a fortuna de ouvir sua excellencia descrever as pittorescas orlas dos rios Lima e Minho, onde a virtuosa e abastada senhora possue riquissimas quintas.

«Suas excellencias—concluia o poeta das locaes—tencionam ainda abrir segunda vez as suas esplendidas salas na estação invernosa. Parabens á nata da esbelta cidade da Virgem! que só assim, na esperança de renovados jubilos, poderemos ir mitigando as saudades da rapida noite que hontem nos proporcionou a liberalidade e finissimo gosto d’esta fidalga familia,» etc., etc.

Nicoláo de Almeida, lido o terceiro periodico, entre frouxos de riso, quedou-se triste e disse gravemente:

—Principia agora o nojo. Viste a sociedade, Thomazia? Estás contente com a rehabilitaçao?

Thomazia surriu-se, beijou as mãos do esposo, e respondeu:

—De que me serve a mim isto? Tu é que me fizeste o que sou...

—E receias que estas mulheres façam de ti o que ellas são?

—Não receio... tu me defenderás, meu amor.

—Entendes pois que esta gente não póde reabilitar ninguem?... Vamos então embora. Levemos o nosso[Pg 225] filho para as arvores do Minho, que este ar tem veneno que faz mal ás creanças. Está aqui o bafejo acre da podridão interior da illustre canalha, que ha quatro annos te levaria a pontapés das portas dos juizes, se tu viesses pedir teu filho, e o filho fosse de teu marido, e não tivesses pão que lhe dar senão o dos Barros das Cangostas.


[Pg 226]

CAPITULO ULTIMO

Argumento

Dezesete annos depois

A velhice de Gervasio José de Barros enrijou-se nos frios do norte. Sempre laborioso e commerciante, o pae de Innocencio aparou as pontoadas dos desgostos no forte peito encouraçado pelo amor com que estremecia o neto.

Pedro, educado para herdeiro de um grande patrimonio, foi aos oito annos começar a carreira dos estudos no King’s college and School. O velho, ao separar-se lagrimoso d’elle, disse aos professores:

—Meu neto é muito rico: não m’o mortifiquem. Ensinem-lhe o que é necessario saber um mancebo que tem muito de seu.

Á volta de poucos dias, sobreveio ao ancião maior agonia: morreu-lhe a esposa; matou-a, sobre a saudade do filho e a deshonra da afilhada, a nostalgia, o incessante lembrar-se do seu Porto, da sua rua das Cangostas.

Têmpera de ferro era a do viuvo! Sósinho em Londres, forçado a silencio por não ter quem o entendesse,[Pg 227] ia para o collegio espraiar tristezas com o neto, e atirava-se ás canceiras mercantis para arrancar-se ás prezas da saudade.

Revigorou; mas esteve quasi a pique de ir a terra quando os amigos portuenses lhe participaram que Thomazia, esposa de Nicoláo d’Almeida, estava no Porto, dando bailes, onde compareciam as familias mais graúdas do commercio e da aristocracia, sem excepção do commendador Batalha.

—Oh! que patifes!—exclamou Gervasio.—Oh! que corja é aquillo!

E abafou o monologo, á mingua de auditorio.

Restaurou-se, porém. A raiva umas vezes faz versos, como disse o poeta romano; outras faz saude, como Gervasio José experimentou.

Foi prateando o tempo a veneranda fronte do velho.

Em 1865 prefazia elle setenta e trez annos, e Pedro de Barros dezenove.

Completou o moço a sua educação de rico. Sobejava-lhe verniz litterario para poder em qualquer parte do mundo fingir que não ignorava os rudimentos da sabedoria humana. Jogava armas conspicuamente. Ganhára premios no florete e pistola. Nadava rapido e airoso como um tritão. Desfazia e refazia as articulações em gimnastica. Tocava harpa e piano, lira e rebeca. Carambolava com prodigiosas quantidades; estremava-se nos repiques e repercursões. Em gineta era um perfeito cavalleiro e coudel. Sabia de fundamento a anatomia dos cavallos, e nada sabia da sua.

[Pg 228]

D’esta arte sahiu do collegio para a companhia do avô.

Pediu um cavallo. O velho deu-lhe dois e carro, com lacaios e libré a capricho. Principiava a fraqueza d’aquelle provecto cérebro de Gervasio! Elle, que esbanjava assim os rolos das libras, é que a morte lhe andava perto.

Um dia, chamou Pedro de Barros ao seu quarto, e fallou-lhe d’este feitio:

—Meu filho, filho do meu sempre chorado Innocencio, é chegada a occasião de te dizer o que não sabes. Tua avó, que Deus tem, e a ama, que te criou, disseram-te que teu pae e tua mãe tinham morrido. Teu pae... certo é que morreu; tua mãe, não.

—Eu tenho mãe!?—exclamou Pedro, crescendo para o avô com transportado impeto.

—Tens e não tens, Pedro. Senta-te ahi, e escuta. Morreu tua mãe para nós, porque foi a vergonha da minha cara, e a deshonra de teu pae. O meu caro filho, como sabes, acabou no Havre; e acabou estarrecido de paixão, segundo lá mesmo me disseram no hotel onde elle expirou. Quando a febre o fazia delirar, gritava contra tua mãe, dizendo que morria sem a matar. Basta que eu te conte que, pedindo-lhe o confessor que perdoasse á mulher, elle saltou furioso da cama e não quiz confessar-se. Foi ella que matou o meu filho, foi ella, Deus o sabe!

Queres agora ver, Pedro, que alma tinha a tal féra? Olha tu. Na noite em que esperavamos teu pae, fugiu ella para a companhia de um homem. Quando cheguei[Pg 229] a casa com a noticia de elle ter morrido, achei tua santa avó, e tuas tias e tios que já lá estão em cima, a gritar como doidos cuidando que ella se tinha ido botar ao Douro.

Saí de Portugal, quando soube que essa desalmada queria tirar-te da minha companhia, a ver se á tua sombra me comia o suor de meus avós. Deixei os meus negocios arranjados de modo que não ficasse coisa a que ella deitasse as unhas. Pouco e pouco vim passando para cá a minha fortuna e hoje estou senhor de tudo que herdei e ganhei.

—E ella onde está?—atalhou Pedro—E elle!?... Onde está o infame que motivou a morte de meu pae?

—Casou com ella, vivem lá n’uma provincia chamada Minho. Deixal-os estar, que os leve o diabo. Não queremos saber onde estão.

—Oh meu avô!—interrompeu o filho de Thomazia—pois meu pae não hade ser vingado? O opprobrio d’elle não recae tambem sobre mim?

—Deixemo-nos de asneiras, rapaz. Não me comeces a tresvaliar lá com as tuas valentias. Não quero saber d’essa gente. Tua mãe, já te disse que morreu... Ora attende cá. Estou muito velhinho. As pernas já me estão a pedir sepultura. É tempo de te pôr ao corrente dos negocios. Assim que eu fechar olhos, Pedro, manda abrir o meu testamento, onde eu deixo declarado o que se hade fazer por minha alma. Eu lá digo que não tenho nada que deixar, porque receio que tua mãe ainda queira levantar-se com metade da tua herança; mas tu, meu[Pg 230] neto, ficas desde já sabendo que n’aquelle cofre de ferro tenho toda a tua fortuna. Ali estão oitenta contos de réis em dinheiro de contado. Guarda-os, toma posse do que era de teu pae, vive do rendimento d’elles que te hade chegar; não te ponhas a extravaganciar, porque podes vir a ser pobre, e muitos o chegaram a ser com mais do que tu. Se alguma vez fôres ao Porto, pede lá que te contem a historia de Pedro Sem, o mais rico negociante que meu pae conheceu, e acabou pedindo. Ora pois, Pedro... Eu bem queria deixar-te casado; mas... leve o demo tal idéa... A desgraça de teu pae fui eu que a fiz com o endiabrado casamento d’uma rapariga que tua avó foi buscar á miseria, e ali creámos como filha!... Deus lhe pedirá contas...

—Que infame mulher!—murmurou o filho de D. Thomazia.

—Deixa-a lá... que o fim não hade ser bom...

—E eu sou filho de tal monstro!—volveu Pedro batendo uma rija punhada no peito.—Eu!... filho d’essa vilissima creatura!

—Lembra-te—acudiu o ancião—que és sómente filho do meu Innocencio. Esquece-a para sempre... Lá está em cima quem n’a hade julgar. (Pedro soltou um cacarejo de riso nasal e arrepelou os cabellos).

—Que engrimanços estás ahi a fazer?—perguntou Gervasio.—És um crianço! é o que tu és!... Tens vinte annos ainda por fazer. Se Deus me der dois annos de vida, que não dá, ainda terei mão de ti; senão, vou para o outro mundo a temer que faças destemperos por[Pg 231] cá. Pedro!—bradou elle energicamente—Pedro, tu não te mettas com essa mulher! Já estou arrependido de te contar o caso...

—Não se arrependa, meu avô!... Eu tenho no coração a dignidade e os brios de meu pae.

—É o que se quer; e não me afflijas, que estou doente, e qualquer coisa me faz mal. Não te vivo muito tempo, filho... Seis mezes, quando muito...


Viveu menos do que esperava o pobre velho. Contava ainda com outra primavera, e ao visinhar-se a aurora da eternidade cuidou que se lhe iam os alentos á mingua de um caldo de gallinha. Suavissima foi a morte que lhe chegava o seio como recôsto de descanço. Uma leve inclinação de pescoço ao hombro de Pedro, e um suspiro de creança adormecida foi o trespasse do leveiro espirito a quem Deus certamente não carregará com o peso da fraudulenta pobreza.


Pedro de Barros suffragou-lhe a alma, recadou as aureas entranhas do cofre de ferro, e permaneceu em Londres por espaço de trez mezes, colhendo de Portugal e de portuguezes certas informações.


Chegou, no entanto, ás gazetas de Lisboa e Porto a[Pg 232] noticia de ter morrido em Londres Gervasio José de Barros. Um noticiador accrescentava que a «fortuna» do defunto devia ser muito grande, bem que se não désse registro nem inventario d’ella. Recuando delicadamente a coisas acontecidas vinte annos antes, reflexionava que um neto do defunto é quem poderia sobre o certo dizer quantas centenas de contos seu avô deixára.

Nicoláo d’Almeida leu a noticia a sua mulher.

Thomazia pôde ainda contrabalançar a exultante esperança de ver o filho com a tristeza de ser morto seu padrinho.

Os vinte annos intermettidos haviam-lhe dado na consciencia toques de dôr que ella escondia do marido.

—E agora?—perguntou ella.

—E agora?—pergunto eu!—respondeu Nicoláo.

—Que fazes? Vaes procural-o?

—Se o vou procurar! que lembrança!...

—Sim... eu cuidei que tu...

—Cuidaste bem, filha; porque eu vou effectivamente procural-o... vou vêl-o...

—E levas-me?

—Não, menina: vou ver se t’o conduzo aqui.

—O meu filho?

—Sim... por que não?! Pois tu não crês que o sangue opere a maravilha? Tenho-te dito que o sangue tem uma voz imperiosa, e impelle o filho para o pae irresistivelmente.

—E vaes, meu Nicoláo?

—Vou á exposição a Pariz e depois irei a Londres.

[Pg 233]

—Como hasde tu encontral-o?

—Hade ser o sangue que m’o hade mostrar.

—Ora!... eu não creio n’isso... Se o sangue valesse, não teria elle tido uma palavra para sua mãe?

—Saberia elle que tu existias?

—É verdade... não saberia...—obtemperou a esposa.

—Está portanto deliberado. Vou a Londres. Se o vir—que heide ver—aperto-o ao coração, e digo-lhe: «Atira á lama o dinheiro de Gervasio de Barros; manda-o apanhar pela parentella pobre que elle hade ter em Portugal. Vem que és filho de um homem rico; os teus appellidos são Alves Pinto por tua mãe, e Almeida por teu pae, que sou eu. Abraça-me, filho, que te bate no seio o coração de quem ha vinte annos chora por ti!»

Thomazia tambem chorava de alegria e enthusiasmo maternal.

Poucos dias passados, o fidalgo de Caminha saía para Pariz.


Em uma carta escripta desde Londres dizia Nicoláo d’Almeida a sua mulher: «Pedro saiu d’aqui ha quinze dias. Não me sabem dizer para onde. Presume-se, porém, e é natural que esteja em Pariz. Volto ámanhã para lá...»

No dia em que D. Thomazia recebeu esta carta, apeou[Pg 234] de uma carruagem em Caminha um mancebo de galhardo aspecto e ademans afidalgados. Procurou a residencia de uma familia illustre da villa. Apresentou carta de recommendação, e perguntou onde morava Nicoláo d’Almeida.

Disseram-lhe que estava em Pariz, para onde partira um mez antes, e que a familia se retirára a uma quinta das margens do Minho.

Perguntou Pedro de Barros se seria possivel saber-se a residencia de Nicoláo d’Almeida em Pariz. O cavalheiro interrogado, querendo servir o forasteiro que um amigo lhe recommendava calorosamente, encarregou-se de mandar saber á quinta a paragem de Nicoláo. Voltou o solicito informador com esclarecimentos dados por D. Thomazia: que seu marido se hospedára em Pariz no Hotel des Étrangers, rua Vivienne, 3; mas que a ultima carta recebida viera de Londres, onde Nicoláo d’Almeida apenas se demoraria algumas horas.

Pedro de Barros resistiu aos rogos da familia, que lhe pedia a honra de pernoitar em sua casa. Desandou para o Porto, e saiu na via ferrea do mesmo dia para Lisboa, afim de alcançar o paquete francez.


Nicoláo d’Almeida jantava no dia 5 de julho á mesa redonda do Hotel des Étrangers, e viu em frente de si[Pg 235] um moço de gentil compostura, ainda imberbe, conversando com inglezes e francezes correctamente as duas linguas, segundo quiz parecer ao portuguez, que não era hospede em nenhuma. Prestou-lhe attenção, e ouviu dizer que vinha de Portugal. Perguntou-lhe um italiano se era portuguez. Pedro de Barros respondeu negativamente.

—Parabens!—disse o italiano, que era tenor.

—Parabens, porque?—perguntou Barros por sobre a espadua, alisando com o guardanapo a penugem do buço.

—Porque portuguezes são canalha—explicou o tenor.—Estive no Porto um inverno, n’aquella bruta terra onde não ha lettras nem artes. Ha vinho e muitos bebedos.

—O senhor cantou no Porto em 1855?—perguntou Nicoláo d’Almeida em bom francez, intervindo na palestra dos visinhos.

—Sim, cantei.

—Recordo-me:—tornou o portuguez—cantava pessimamente e foi pateado. Quem o pateou não foram os bebedos do Porto. Estavam lá cavalheiros que, nem ainda insultados por um biltre, aviltariam um tagante.

O tenor levantou-se e disse enfaticamente:

—Uma satisfação!

—Não lh’a dou—disse placidamente Nicoláo.—Pertenço aos cavalheiros que não se medem com cantores, além de pessimos, villões.

—Eu sustento as frases d’este senhor—interpoz-se Pedro de Barros.

[Pg 236]

—E o senhor quem é?—perguntou o fidalgo de Caminha.

—Não sou tenor. Quem o senhor seja, não pergunto eu. Conheço o senhor Nicoláo d’Almeida. Um homem da sua estofa não póde chamar villão a outro.

—Quê?—atalhou Nicoláo enfiado.

—Explicações para occasião conveniente.

—Figura-se-me que o senhor é parvo dos que a prudencia manda tolerar—replicou sereno e quasi recobrado o portuguez.—Estou arrependido de me inquietar um momento com a sua pessoa.

Pedro de Barros correu os dedos pelos cabellos, surriu-se e murmurou:

—Verei se a coragem corresponde á infamia. Os assassinos da honra não costumam arriscar senão palavras. No entanto, veremos.

—Algumas vezes arriscam sujar a luva com que dão a bofetada—retorquiu Nicoláo d’Almeida.

Pedro de Barros levantou-se. Esperou que cincoenta commensaes se calassem impressionados pela postura oratoria do sujeito, e disse apontando sobre Nicoláo:

—Alli está, senhores, um infame sobre quem pesa a morte de um homem honrado, que elle matou prostituindo-lhe sua mulher. Este ferrête, que lhe atiro á testa, em occasião opportuna lh’o grudarei mais sensivelmente.

Fez-se profundo silencio.

Nicoláo levantou-se por sua vez e disse:

[Pg 237]

—Aquelle miseravel ainda não fez publico o seu nome.

—Sabel-o-ha, quando quizer—respondeu Pedro de Barros.—O meu nome não importa a estes cavalheiros. Se eu o disser, não me conhecem, nem podem por elle ajuizar da autoridade da minha opinião a respeito do senhor Nicoláo d’Almeida. Dentro de trez horas, estarei no quarto n.º 5 d’este hotel. Se eu não estiver, senhores, o infame sou eu, e não elle.

O marido de Thomazia saiu.

Meia hora depois voltava com dois portuguezes, seus contemporaneos da universidade, lisboetas da plana aristocratica.

Pouco em seguida, entrou no quarto n.º 5 Pedro de Barros com dois francezes titulares, seus conhecidos das carreiras hippicas em Londres.

No quarto, antes de avisarem Nicoláo d’Almeida, continuaram assim a conversação que traziam:

—Mas a mudança de nome—dizia um dos francezes—é uma irregularidade original nos duellos!

—Compreende a minha situação, visconde—dizia Barros.—Eu sou filho da mulher que matou meu pae com a villania do seu proceder. Este homem arrebatou de casa minha mãe, no dia em que meus avós choravam a morte do filho. Eu não posso dizer ao infame quem sou. É invencivel a vergonha que tenho de que elle o saiba. O meu proposito é vingar meu pae...

—E queres que elle morra na ignorancia de que és o vingador de teu pae?

[Pg 238]

—Não. Hei de dizer-lh’o, se a morte lhe der tempo de m’o ouvir.

—Mas eu não achava feio que te declarasses—sobreveio o outro amigo.—Era até bonito e novo! Um filho a vingar seu pae...

—Se eu o declarar, elle não se baterá comigo, porque sou filho da mulher com quem elle é casado. Engulirá as affrontas, e dirá com dissimulada covardia que não desfecha uma pistola ao peito do filho de sua mulher. E depois? que é da minha vingança?

Os amigos assentiram com repugnancia; mas condescenderam em que Pedro de Barros se chamasse Richard Grattan.

Abriu-se a sessão dos parlamentarios. Congregaram-se os quatro padrinhos. Os dois portuguezes, sabido o nome do insultador, que os francezes abonaram como pessoa de primeira distincção e riqueza, segundo entendiam de o verem no concurso de illustres inglezes, caíram logo na particularidade da sua missão. Os quatro vieram ao consenso de que o combate fosse á pistola, a vinte e seis passos. Precisaram a localidade em Abbaye de Longchamps, no Bois de Boulogne, na madrugada do dia seguinte.

Perguntava Pedro de Barros aos seus padrinhos:

—Quem escolheu as armas?

—Elles.

—Quem marcou as distancias?

—Elles.

—Então o homem é tolo!—observou Nicoláo.

[Pg 239]

—Se não fôr mestre no tiro...—-disse o visconde.

A reflexão era justa. Um ignorante da arma cederia todas as vantagens ao perito, collocando-se a tão grande distancia.


Nicoláo d’Almeida passou tranquillamente o restante da noite com os seus amigos. Ás trez da manhã escreveu uma longa carta a seu filho Lopo, incluindo outra para a mãe.

—Se eu morrer, o que não espero, remettam esta carta a meu filho—recommendou elle aos padrinhos.—Tomem nota no que vou dizer-lhes: os minhotos teem crendices e velharias que lhe estão no sangue. Tenho uma capella em uma das quintas onde está o jazigo dos meus antecessores desde 1515. Vossês, se isso fôr exequivel como creio que é, mandem para lá o meu cadaver, mesmo furado por uma bala de sir Richard Grattan.

Os lisboetas pasmavam da fria coragem do provinciano. Os quarenta e trez annos de Nicoláo d’Almeida representavam trinta e quatro com serodias verduras.

Condiziam n’elle os surrisos e desdem juvenil da morte com a frescura e flexibilidade d’aquelles elegantes meneios e delicadas formas. Os padrinhos é que em verdade representavam as pessoas arriscadas ás balas de sir Richard Grattan.

[Pg 240]

Apontou a manhã.

—São horas—disse Nicoláo.—A madrugada está linda. Se nos derem tempo, passearemos algum pouco no bosque de Bolonha, que ainda não vi. Veja-se o que fôr possivel á ultima hora.

Partiram.

Esperaram cinco minutos.

Examinaram as quatro testemunhas as pistolas inglezas. Carregaram-nas. Espacejaram as distancias. Accordaram na simultaneidade dos tiros. Deram a voz de fogo. Cruzaram-se as balas. Sir Richard Grattan caiu rodando ligeiramente sobre os calcanhares.

—Morto!—disse o visconde ao companheiro.—A bala penetrou-lhe na cabeça.

—Que tiro!—disse o conde com artistica admiração, como se a cabeça do moribundo ou do morto fosse um alvo, e mais nada.

Nicoláo d’Almeida fez uma breve mesura aos padrinhos do adversario e entrou com os seus na sege.

O facultativo da comitiva de Pedro de Barros acercou-se, examinou e disse:

—É mortal a ferida.

O prognostico era de acceitar; porque a bala batêra, bem que de revez, na sutura sagital, compreendendo, afóra perda de substancia, o pericraneo profundamente.

Pozeram-lhe uma prancheta de fios, ligaram-lhe a fronte, e transportaram-n’o ainda com pulso á carruagem.

No mesmo dia, Nicoláo d’Almeida saiu de Pariz na via-ferrea para Baionna, com direcção a Portugal, depois[Pg 241] de pedir aos seus amigos que fizessem o sacrificio de jantar no Hotel des Étrangers, e certificar aos hospedes do dia anterior que o inglez acertava tão bem com as balas como com as injurias.


Appareceu inesperado em casa Nicoláo, quando a esposa lhe estava escrevendo afflictivamente.

Um grito de alegria e logo uma torrente de lagrimas, tambem alegres, entraram de suspeitas o marido.

—Que chorar é esse? que sabias tu de mim?!—perguntou Nicoláo quasi supersticioso.

Referiu-lhe Thomazia que quinze dias antes lhe tinha mandado um sujeito de Caminha perguntar em que hotel de Pariz residia o marido; e que só, poucas horas antes, lhe tinha ido mostrar uma carta de Lisboa apresentada por um rapaz de vinte annos pouco mais ou menos, e que n’esta carta lêra ella as seguintes palavras: «Se o cavalheiro, portador d’esta carta, precisar de auxilio estranho para um acto de brioso desaffrontamento, queira ouvil-o e prestar-lh’o.»

—Que queria isto dizer, meu filho?—exclamava Thomazia.—O nosso Lopo disse-me que o homem vinha desafiar-te. O que eu tenho soffrido, Nicoláo! Estive ha momentos para ir com o Lopo em procura de ti... Graças, meu Deus! Não te succedeu mal nenhum, não?

[Pg 242]

—Bem vês que estou sadío e escorreito—disse o esposo surrindo com triste semblante mal affectado.

—Mas tu vens melancolico, e de mais a mais quando não tencionavas vir... E o nosso filho? noticias nenhumas?

—Pois ahi tens a minha tristesa, Thomazia... Não vi o filho, e quasi perdi as esperanças de o ver.

Era-lhe força relatar á mulher o desastre acontecido com o infeliz que o insultára, e provavelmente devia ser o inglez vindo a Portugal. Não podia elle rastrear os motivos do insulto nem o interesse com que a desatinada coragem do petulante inglez se pagava. Partiu logo a Caminha para averiguar do sujeito a quem o moço viera recommendado os signaes e pormenores de tal apresentação. Disseram-lhe que o rapaz exprimia custosamente a lingua portuguesa, e não proferira palavra relativa a Nicoláo d’Almeida, tirante as necessarias para lhe saber a residencia. Emburilhou-se-lhe ainda mais a trama das conjecturas, até que principiou a convencer-se de que o moço era algum paladino desorientado por vapores da idade média, ou leituras de romances de cavallarias, o qual, ouvindo contar a Gervasio de Barros a tragedia da sua familia, deliberára em honra da sua dama endireitar um tuerto, que se lhe figurava crime de vingança digna d’elle e da posteridade.

N’estas fluctuações, recebeu uma carta de um dos seus padrinhos de duello, escripta quarenta e oito horas depois que se tinham separado na estação.

Resava assim:

[Pg 243]

«Dilucidou-se o misterio. Ahi vae cousa que te deve assombrar, e me traz a mim espantado a pensar que ainda se fazem maravilhosos romances n’esta vida pratica e positiva, onde tudo parece correr com enjoativa regularidade.

«Primeiramente, saberás que sir Richard Grattan ainda não acabou; mas não tardará.

«Segundamente, saberás que os padrinhos d’elle acabam de contar aos seus amigos, e estes amigos a outros, e os outros a todo o mundo, uma coisa que não deixa de ser bonita; mas, apesar d’isso, te recommendo que não leias esta carta deante de tua senhora...»

N’este ponto Nicoláo exclamou, surrindo:

—Oh! que é isto?! Desculpa, Thomazia, que eu devo obedecer ao meu amigo.

—Pois que é? lê, filho.

—Não... Deixa-me...

Ao proferir estas palavras, com os olhos cravados na carta, e a cabeça a tremer como o papel nas mãos convulsas, arrancou um grito estridente, e bradou:

—Matei meu filho!

As palavras que elle tinha lido eram estas:

O rapaz com quem te bateste não é inglez, nem se chama Richard. É portuguez, é o filho do primeiro marido de tua senhora e chama-se Pedro de Barros...

—Matei meu filho!—bradou elle segunda vez.

[Pg 244]

Thomazia não lhe ouvira o segundo brado. Tinha caído nos braços de Lopo, trespassada de frio mortal.

—Matei meu filho!—exclamou ainda Nicoláo d’Almeida.

Avermelhára-se-lhe subitaneamente o rosto. Rutilavam-se-lhe as pupilas errantes em volta de si. Ergueram-se-lhe arriçadas as sobrancelhas, e avincou-se-lhe a fronte em profundos sulcos. Os beiços pareciam alligados entre si, como se os rebordos labiaes se unissem. Contrairam-se as maxillas uma contra outra, premindo-se de modo que davam um som asperrimo de rengir de dentes. As veias frontaes e jugulares latejavam infladas. Depois, os spasmos dos musculos da face completavam o horror da desfiguração. Ao contrair das pupillas correspondia o arfar das cartilagens nasaes.

Passava a vista spasmodica pelo filho que lhe estendia os braços, chamando-o clamorosamente, e não o via. Já a esposa, caída no pavimento, levantava um alto pranto, e elle não ouvia. Os servos rodeavam os seus infelizes amos, chorando e clamando, e Nicoláo ajuntava áquella dissonancia dos gritos o stridor rispido dos dentes.

Morrêra-lhe a razão. Era a demencia que os especialistas denominam a das paixões spasmodicas.

[Pg 245]


E, depois, em quinze dias, aquella mulher que ainda era formosa, envelheceu, á beira do marido.

Alta noite, quando sonhos horrentes lhe sacudiam o corpo adormecido, mas intangivel á mão bemfeitora da morte, erguia-se e dizia á esposa:

—Thomazia, levanta-te. São horas de sair. Vou para Londres. Vou procurar meu filho. Anda. Chama o escudeiro que me arranje as malas. Tu choras? pois que mãe és tu? queres ou não queres teu filho?

A pobre não sabia consolar. Começava a encher a mala de camisas, e esperava n’esta canceira que viesse a madrugada e o torpor do somno aquietar as impaciencias, e ás vezes os frenesis violentos do alienado.

Os medicos rodeavam o enfermo; porém, Thomazia não dizia a ninguem a origem da demencia do marido. Parecia-lhe atrocissima offensa ao desgraçado revelar que elle matára o filho.

Que supplicio o da viuva de Innocencio José de Barros! Que castigo tão desproporcionado! Se todas as alegrias da sua existencia de vinte annos valiam uma só das noutes que ella passava no quarto de Nicoláo d’Almeida!

[Pg 246]


Ao decimo dia da demencia, chegou outra carta do amigo que lhe enviára a morte na primeira.

Dizia d’este teor:

«Milagre! Pedro de Barros está salvo. Já se lhe levantaram os appósitos da ferida. A substancia perdida foi reparada. Aquillo é cabeça á prova de bala! Com um adversario assim não ha partido! Dizem os medicos que um elefante não resistiria», etc.

D. Thomazia arrancou a carta das mãos a Lopo, e correu ao quarto do marido, exclamando:

—Nicoláo, Nicoláo, não mataste o teu filho! não mataste! aqui está a carta do teu amigo... Olha, lê, lê, meu querido amor, lê, que teu filho está vivo! Ó mãe de Jesus Christo! valei a meu marido! Não lês, Nicoláo? Leio eu... olha... ouve...

Nicoláo d’Almeida ouviu com apparencia de profunda attenção, voltou as costas, entrou ao quarto de vestir, começou a reunir casacos e pantalonas, e saiu fóra com a troixa do fato, dizendo:

—O escudeiro que me dobre esta roupa. O wagon sae ás quatro horas para o Havre. Vou a Londres procurar meu filho.

Thomazia ajoelhava, caía de face contra o pavimento, e arrancava gemidos convulsos.

[Pg 247]


Dois mezes depois, em setembro de 1867, Lopo d’Almeida passeava no vasto salão, que servia de casa de espera, na quinta solarenga onde vivia-morto seu pae, e agonisante sem poder morrer sua mãe.

O mancebo, com os braços pendentes, rosto abatido, e olhos carregados de lagrimas, dizia entre si:

—Que dezenove annos os meus! Que mocidade! Que portas se me abrem para tão negra vida!... Nunca mais poderei ter hora de contentamento! Heide ver meu pae envelhecer n’aquelle tormento, e a minha pobre mãe a pedir a Deus que lhe dê vida para ainda ver a luz da razão nos olhos d’elle!...

Interrompeu-lhe o recolhimento doloroso o surgir subito de um homem desconhecido no patamar da escada que conduzia á sala.

Fitou-o e perguntou:

—Quem procura?

—Nicoláo d’Almeida.

—Não recebe senão os medicos. Sou filho d’elle. Represento meu pae n’esta casa. Quem é o senhor?

—Um homem que procura os infames quando elles se escondem, ou fingem doidos para se furtarem á responsabilidade das suas protervias.

Lopo d’Almeida mediu-o da cabeça aos pés, e respondeu:

[Pg 248]

—Não encontrou um lacaio no páteo quando entrou aqui?

—Não encontrei ninguem. Que quer dizer a pergunta?

—Que volte, e diga ao lacaio o seu nome. Depois, espere-me ahi fóra que eu vou onde meu pae não póde ir.

—O meu nome posso atiral-o á cara de quem quer que seja, sem a intervenção do lacaio. Sou Pedro de Barros.

Lopo contemplou-o por instantes silencioso, deu dois passos para elle, e disse com boa sombra:

—Seja bem vindo o senhor Pedro de Barros. Está em casa de...

Conteve-se, e tornou:

—Está em casa de sua mãe.

—Não tenho mãe. Retire a injuria.

—Retirei. Agora, senhor Pedro de Barros...—E apontou-lhe para a porta.

—O senhor me disse, ha momentos, que não duvidava ir onde seu pae não fosse.

—Antes de o conhecer. Iria bater-me com um homem chamado Richard Grattan; com Pedro de Barros, não. Eu respeito os homicidas que escondem o seu verdadeiro nome, julgando que os disfarça o medo do opprobrio. Ao homem, porém, que entra em casa de sua mãe, e diz seu nome, e revela sem cerimonia o programma de assassino, desprezo-o, e só receio que elle me tira pelas costas.

[Pg 249]


D. Thomazia tinha ouvido a voz alterada de Lopo, e chegára-se ao reposteiro interposto ás duas salas, quando o filho proferiu as palavras: Ao homem, porém, que entra em casa de sua mãe...

Escutou as restantes, julgando-se turvada de entendimento e ouvidos. Levantou o reposteiro, e saiu á sala, com a vista desvairada e os passos oscillantes.

Lopo foi recebel-a pela mão, apertou-a ao seio e disse-lhe:

—Vá para dentro, minha mãe, peço-lh’o com as mãos erguidas!

—Quem é este?!—perguntou ella—a quem dizias tu...? Não fallaste aqui agora em mãe... e não sei quê...?

Relançou Lopo os olhos a Pedro. Figurou-se-lhe ver no rosto d’elle uma feição extraordinaria de agitação interior. Cedeu a um impulso de generoso enthusiasmo, e disse á mãe:

—Aquelle é Pedro... é seu filho!

Thomazia, antes de ver o filho, viu o esposo. Não proferiu um monosillabo. Retrocedeu com desatinada velocidade. Sumiu-se nas salas interiores. Correu ao quarto de Nicoláo. Travou-lhe do braço. Tirou-lhe por elle a impetos freneticos. O louco deixava-se arrastar. Entrou com elle ao salão, a tempo que Lopo, travando do braço de Pedro que fugia, lhe bradava:

[Pg 250]

—Espere, que vae ter occasião de cravar a bala no infame que se finge doido!

N’este conflicto, acercou-se D. Thomazia com o marido. Aproximou-se de Pedro, que recuava, e disse-lhe:

—Olha, Nicoláo, olha... Aqui está teu filho!... Vêl-o vivo? Repara, meu amor. Não é este o que teve o desafio em Pariz comtigo? Não é?...

Nicoláo encarava no rosto de Pedro com penetrativa fixidez; quando, porém, Thomazia lhe espertava a gritos as reminiscencias, elle declinava para sobre ella o olhar torvo, e estremecia como assustado das suas exclamações.

No entretanto, a postura de Pedro de Barros—a fórma exterior, que a interna é indefinivel—significava a ancia de evadir-se a uma situação que lhe demudára o rancor em tortura de uma especie nunca escripta nem imaginada. Abalo de coração parece que não sentia nenhum bom. Na cabeça tumultuava-lhe um torvelinho de idéas que o desvairavam. Aquillo de chamar-se seu pae aquelle homem soava-lhe como uma zombaria, se não era antes sonho ou allucinação de ouvidos. Sentimento filial ou sequer de piedade não lhe suscitava a mãe nenhum. Por maneira, que todos os seus movimentos d’olhos e de espirito, segundo mostrava, era livrar-se do espectaculo, em que talvez elle fosse capaz de ver alguma coisa ridicula para si.

Thomazia, voltando as exclamações do marido, que saíra da sala, para o filho, ia, n’uma explosão de ternura[Pg 251] redobrada pela agonia de ver o marido impassivel, lançar os braços ao pescoço de Pedro.

Haveis de crêl-o, mães, que não sabeis dos supplicios de outras; crel-o-heis de melhor mente se já vistes repellidas as que não tiveram hora de vida apartada dos filhos.

Pedro fez pé atraz, quando a mãe lhe dizia:

—Filho da minha alma, ajuda-me a dar vida á razão de teu pae!

O retraimento de Pedro tirou lavaredas de odio aos olhos de Lopo.

Seria sublime, se não fosse triste de contar-se que o filho segundo de Nicoláo d’Almeida, no lanço de furtar-se o irmão aos braços da mãe, tomou para si o corpo d’ella, apertou-a com apaixonado amor, sentiu-a desfallecer, depôl-a sobre um canapé, abeirou-se de Pedro, e disse-lhe acceleradamente:

—Olhe que é mentira quanto ouviu: Aquella senhora não é sua mãe. Maldita seja ella, se alguma hora se lembrar sem vergonha das lagrimas que chorou. Vá... Mentimos-lhe todos. Este homem não é seu pae. Quem? elle! Aquelle santo desgraçado que endoudeceu cuidando que tinha matado um filho!... Mentiram-lhe a elle de Pariz. Fuja, fuja... se lhe parece que é uma enorme covardia o parricidio... Fuja, porque... o senhor matou meus paes... e eu não quero prival-o da expiação do remorso...

Ditas estas palavras, Pedro de Barros foi repulsado rijamente para fóra da porta. Lopo ajoelhou ao pé de[Pg 252] sua mãe, e colou-lhe o ouvido ao coração. Latejava. A justiça divina renovava-lhe o sangue para que a expiação se prolongasse a termos de se provar n’aquella mulher que as religiões, promettendo infernos além d’este mundo, foram mais inventivas que Deus.


O meu amigo Antonio Joaquim rematou assim a narrativa:

—Nicoláo d’Almeida não tem memoria nenhuma do reapparecimento do seu adversario de Pariz. D. Thomazia todos os dias lhe conta que o filho esteve ali na casa d’elles. É esperança que ainda não desamparou a pobresinha restaural-o assim. Que illusão! O marido escuta, parece reflectir accentuando com a cabeça as palavras da senhora, e passa de ouvil-a a tão glacial indifferença, que vae para uma janella rufar nas vidraças. Aqui tens o que presenciei na ultima visita que fiz ha oito dias á gehenna d’estes reprobos das alegrias do mundo.

Não te sei dizer onde pára o herdeiro de Gervasio José de Barros, se te interessa sabel-o.

Não; a mim o que mais me convinha era saber dar á tua historia um titulo.

—Eu chamava-lhe o SANGUE.

—O sangue?! qual? o da cabeça de Pedro de Barros?

[Pg 253]

—Não: o sangue, que tem ares de titulo filosofico e assim com presumpções de these. Porque hasde ter ouvido dizer que um filho conhece seu pae, e o pae seu filho, por um secreto impulso do sangue.

Em confirmação d’este preconceito, que desluz muitas cabeças illustradas, podes vir com argumentos confortativos; por exemplo: os casos de parricidio em que os filhos assassinam os paes com perfeitissimo conhecimento da pessoa filialmente assassinada; o caso vulgar das mães que estrangulam as creancinhas assim que ellas, ao sair-lhes do seio, estendem as mãosinhas para os peitos; o caso em que os filhos, repatriados ricos ao seu paiz donde saíram com o enxoval que custou vigilias e fomes aos paes, sentem-se inclinados a dar razão aos barbaros que matavam os velhos como entes inuteis e incommodos. Todos estes casos provam que o sangue é um engenhoso registro que a Providencia implantou na economia animal, para regulamento dos nossos deveres de familia. Demonstrado isto, corre-te obrigação de mostrar uma coisa, já muito sabida e notoria; e vem a ser que tu e eu e os mais da nossa especie somos os reis da creação; e que os bichos, que estremecem seus filhos e seus paes, são bichos.

—Mas, sem embargo do titulo, qual achas tu que seja a moralidade do romance?

—A moralidade é clara.

—A expiação de Thomazia, não é verdade?

—Homem, eu n’isto de expiações não tenho ainda formado perfeito juizo. Conheço muitas familias que me[Pg 254] authorisam a suppôr que a expiação é um castigo da tolice e não do vicio.

—Homem, essa! Vão lá escrever o absurdo n’um livro que tem de melhorar os costumes e os usos...

—E de certo melhoras. Todo o livro é um melhoramento na industria do papel e da tipografia.

—Mas,—tornei eu farejando a moralidade do romance—não posso eu dizer que o pae de Pedro de Barros era...?

—Era o que as nupcias demonstravam, como diz a lei romana. Era Innocencio. O sangue de Pedro vinha a ser o dinheiro de Innocencio. Lá está o axioma que diz: O dinheiro é sangue. Um filho só póde ser filho de quem é seu pae, quando não herda oitenta contos de outro que foi casado com sua mãe.

FIM


J. P. OLIVEIRA MARTINS
OBRAS COMPLETAS

I. Historia nacional:

Historia da civilisação iberica, 4.ª ed. (1897), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

Historia de Portugal, 6.ª ed. (1901), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.

O Brazil e as colonias portuguezas, 4.ª ed. (1888), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

Portugal contemporaneo, 3.ª ed. (1895), 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.

Portugal nos mares, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

Camões, os Lusiadas e a renascença em Portugal, (1891), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Navegaciones y descubrimientos de los portugueses (ed. do Ateneo de Madrid, 1892), 1 vol. (não entrou no commercio.)

A vida de Nun’alvares, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 2$000 rs. Cart. 2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.

Os filhos de d. João I, 2.ª ed., 2 vol., br. 1$400rs. Enc. 1$800 rs.

O Principe perfeito, (1895), 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas doiradas, 3$200.

II. Historia geral:

Elementos de anthropologia, 4.ª ed. (1895), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

As raças humanas e a civilisação primitiva, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800 rs.

Systema dos mythos religiosos, 2.ª ed. (1895), 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.

Quadro das instituições primitivas, 2.ª ed. (1893), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

O regime das riquezas, 2.ª ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Historia da republica romana, 2.ª ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.

O hellenismo e a civilisação christã, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000 rs.

Taboas de chronologia e geographia historica, (1884), 1 vol., br. 1$000 rs. Encadernado 1$200.

III. Varia:

A circulação fiduciaria, 2.ª ed., 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000 rs.

A reorganisação do Banco de Portugal, opusculo, (1877), br. 150 rs.

O artigo «Banco» no Diccionario Universal Portuguez, (1877), 1 vol., br. 500 rs.

Politica e economia nacional, (1885), 1 vol., br. 700 rs.

Projecto de lei de fomento rural, apresentado á camara dos deputados na sessão de 1887, 1 vol., br. 300 rs.

Elogio historico de Anselmo J. Braamcamp, ed. part. (1886), 1 vol. (esgotado).

Theophilo Braga e o Cancioneiro, opusculo, (1869), esgotado.

O Socialismo, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado)

As eleições, opusculo, (1878), br. 200 rs.

Carteira de um jornalista: I. Portugal em Africa, (1891), 1 vol., br. 400 rs.

Inglaterra de hoje, cartas de um viajante, 2.ª ed., (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Cartas peninsulares, (1895), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800 rs.


Parceria Antonio Maria Pereira—Livraria Editora
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Obras de JOSÉ QUINTINO TRAVASSOS LOPES


Nova grammatica elementar da lingua portugueza, redigida segundo as theorias modernas, e contendo quadros synopticos muito uteis, cart. 160 réis.

Compendio de arithmetica e systema metrico, 29.ª edição, contendo 29 gravuras e mais de 2.000 exercicios e problemas, reformado segundo os actuaes programmas, br. 200 réis, cart. 280 réis.

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OBRAS DE CARLOS AUGUSTO PINTO FERREIRA

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