The Project Gutenberg eBook of Felicidade pela Agricultura (Vol. I) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Felicidade pela Agricultura (Vol. I) Author: Antonio Feliciano de Castilho Release date: October 10, 2022 [eBook #69122] Language: Portuguese Original publication: Portugal: Emp. da História de Portugal, 1903 Credits: Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by Biodiversity Heritage Library.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FELICIDADE PELA AGRICULTURA (VOL. I) *** OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO --4-- Felicidade pela Agricultura [Ilustração] LIVRARIA BARATEIRA LISBOA 34-RUA DO DUQUE-36. Tel. T. 1264 OBRAS COMPLETAS DE ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO VOLUME 4.ᵒ VOLUMES PUBLICADOS: I--AMOR E MELANCOLIA. II--A CHAVE DO ENIGMA. III--CARTAS DE ECCO E NARCISO. IV--FELICIDADE PELA AGRICULTURA (1.ᵒ vol.) NO PRÉLO: V--FELICIDADE PELA AGRICULTURA (2.ᵒ vol.) OBRAS COMPLETAS DE A. F. DE CASTILHO Revistas, annotadas, e prefaciadas por um de seus filhos IV FELICIDADE PELA AGRICULTURA SEGUNDA EDIÇÃO VOLUME I [Ilustração] LISBOA EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL _Sociedade editora_ LIVRARIA MODERNA _R. Augusta 95_ TYPOGRAPHIA _45, Rotins, 47_ 1903 ADVERTENCIA DOS EDITORES Pelos bons julgadores foi sempre considerada esta _Felicidade pela Agricultura_ uma das obras mais cheias de estro e pujança, que sahiram do cerebro de Castilho. João de Andrade Corvo costumava dizer: --Em qualquer pagina que eu o abra, tem sempre este livro o condão de me entreter, e fazer-me pensar longamente. Livro que faz meditar um homem da valia de Andrade Corvo, é bom. Escreveu Castilho tudo isto aos poucos, entre outras variadas tarefas, para um periodico, que redigia em Ponta-Delgada: _O Agricultor Michaelense_. Na solidão do seu viver, então muito incerto e cheio de saudades, entre um rancho de cinco filhos pequeninos a pedirem-lhe instrucção e educação, no meio de um povo amigo predisposto para o bem, e com a visinhança do mar, que tanto influe a pensamentos sérios, acordaram no antigo ermitão do Caramulo, no ex-redactor da _Revista Universal_, os pensamentos rasgadamente humanitarios, que o desvelaram e absorveram no resto da vida. Orientou-se, sem o suspeitar, no sentido pratico do bem; e toda a sua alma de homem bom e de poeta vibrou em anhelos de felicitação publica. Esses anhelos tomaram forma litteraria, e deram a presente série de artigos, dictados desde Janeiro de 1848 até Dezembro de 1849. Via então Castilho a regeneração da Patria, d’esta Patria que elle tanto amou, consubstanciada n’uma ideia unica: o desenvolvimento da Agricultura, e da Instrucção popular. ¿Enganar-se-hia? A campanha que nos annos proximos havia de sustentar, com a penna, com a palavra, com o amor, com a ira, e com annos de existencia, começou, a bem dizer, aqui. Este opusculo marca uma epoca da vida de Castilho. Com os seus alti-baixos de forma, com a sua exuberancia opulenta, com as suas loucuras sérias tão sublimes, com o seu desalinho familiar, que por si mesmo consegue impôr-se, são estas paginas o acordado sonho de um vidente, que adianta tres seculos á sua era. As utopias do autor encapellam-se, como antecipação grandiosa e gloriosa, que lhe retrata a indole. ¿São lembranças irrealisaveis algumas para desde já? sel-o hão; mas dos devaneios e aspirações dos homens de alma tem a Humanidade lucrado sementes de muitos bens. Lançadas á terra intellectual, veem a final a germinar, e a desatar-se em flores e frutos. Deixar devanear estes grandes sonhadores, cuja região se libra a meio-caminho entre o presente e o futuro, entre o real e o ideal, entre a terra e o ceo. Escutemol-os, que para algures, não sonhado de nós outros, nos levam estas sereias do bem: Preciosas revelações auto-biographica: se nos deparam no livro a cada passo, aproveitadas já, e detidamente explicadas (quanto o podem ser) nas suas _Memorias_. Pobre e desajudado, pugnou, quanto soube e poude, em favor de uma ideia, que o alimentou e o aniquilou: a civilisação da sua terra. É um livro singular este, que se não pode ler sem respeito e commoção. O pensador transparece no poeta. O lyrico devaneador completa-se no philosopho. O patriota realça-se pelo christão. Exhala-se de cada paragrapho um vago perfume campestre, que é verdadeira delicia: a mente do escritor foge, sempre que pode, para as solidões das hortas e dos casaes; as metaphoras são tomadas quasi sempre ao viver rural; a linguagem, portugueza de lei, sabe ao bom falar dos montanheiros. Se elle tivesse refundido a obra, deixal-a-hia de certo mais perfeita; mais sincera não a podia deixar. ¿E que melhor prenda do que a sinceridade? _Ao meu amigo_ _o Ex.ᵐᵒ Snr._ José Silvestre Ribeiro _em penhor de admiração, respeito, e affecto_ _Antonio Feliciano de Castilho_. ADVERTENCIA Reuni para este livrinho algumas das minhas utopias, já publicadas em um pequeno, mas bonissimo, periodico mensal provinciano, _O Agricultor Michaelense_, a fim de que o outono, que tão cedo vem ás folhas periodicas, não destruisse com ellas os meus pensamentos de amor dos homens. A esses artigos, alguns outros, ainda que poucos, ajuntei de identica natureza. Diz-me a consciencia, que a maior parte das minhas esperanças n’estas paginas vem prematura, e que poucos d’estes bons e santos desejos, ou nenhuns, se realisarão em vida dos nossos netos. Á consciencia respondo: que, se eu tivesse de viver duzentos annos mais, ou se d’aqui a duzentos annos houvesse de renascer, de boa-mente reservaria para então o que hoje antecipo. Os intolerantes, os fanaticos de cada parcialidade politica, terão muito que abocanhar n’este pobre escrito. Pedir-lhes misericordia, ou mesmo justiça, fôra tempo perdido. Dir-lhes-hei só, que não escrevi para elles. Os homens bons e sinceros, que são os que me importam, ainda quando não concordem comigo, louvarão as minhas intenções. Se, em uma ou outra parte, eu parecer por ventura censor, em demasia acre, de coisas do meu tempo (de pessoas nunca); se d’ahi quizerem inferir mexeriqueiros, que as minhas rasões são proclamações, e os meus entranhados amores de alma, clamores e rebates sediciosos, não lhes hei-de oppôr (o que aliás fôra verdade, e que de si se apresenta), que as revoluções não são os livros quem as faz, mas sim as coisas; as obras, ou a falta de obras, dos poderosos, e não as palavras dos obscuros e inermes; que as paginas só teem força activa, quando os actos que n’ellas se tratam lh’a communicam; e que essa força activa, ainda quando nem uma lettra se escreva, e então muito mais, sempre existe e sempre actua; que, em summa, o attribuirem ao meu livro efficacia para concitar as turbas, é fazerem-me ao mesmo tempo honraria demasiada, e demasiada injuria. Não amo revoluções, nem as quero, nem creio n’ellas; tenho vivido este ultimo meio seculo, e não ignoro, de todo, o como doidejaram os precedentes; mas, ainda que para ahi me fugisse a vontade (que não foge), faltavam-me a voz e o desembaraço, indispensaveis para o papel, pelo menos extravagante, de tribuno. Se alguma coisa a tal respeito pregoei, mais foi contra as insurreições, que a favor d’ellas; mais foi gritar aos governantes, que se houvessem de collar no officio por boas obras, do que aos governados, que os derribassem; quando não, é consultar o livro a cada passo. Se descreio em algum, ou alguns, dos presuppostos artigos de fé constitucional, não é culpa minha, nem é culpa; affiro-os pela rasão pura; avalio-os pelos resultados; comparo-os cá dentro, no meu fôro, já com as obras inconsequentes, já com os versateis discursos de muitos dos estadistas, que por elles fazem obra; e digo, com toda a paz da minha philosophia humilissima, que me parece não seria mau pensarmos outra vez um pouco em taes artigos. Toda a discussão dá luz; e toda a luz é creadora. As theses politicas não são porém as minhas; as minhas, o epilogo do meu livro, a isto se reduzem: temos terra, que pode ser mais e melhor cultivada; devemos cultival-a; temos alma, que pode ser mais e melhor allumiada; devemos allumial-a; temos coração, que pode ser mais puro, mais virtuoso, e mais amante, e mais coração; devemos aproveital-o. A terra nos fará ricos; a instrucção, poderosos; a moralidade, unidos. A riqueza, o poder, a fraternidade, que são a civilisação, felizes. Quanto á Agricultura, as minhas diligencias não deixaram, talvez, de contribuir o seu poucochinho, segundo alguem crê, para este promettedor tráfego de Sociedades agricolas, que hoje vai no Reino. Quanto á Instrucção publica primaria, ajudei, e continúo a ajudar, a obra santa, com o que pude e posso; do que, dou por prova o odio e perseguições, com que os _obscurantes_ me teem honrado. Quanto á moralidade e fraternidade, esses bens, d’aquelles dois bens se hão-de filiar; mas ha-de ser tarde. Só quando deixarmos de ser politicos, principiaremos a ser bons. Do livro, como producto litterario, não ha por que falemos; foi escrito de carreira, sem traça prévia, nem plano ordenado. Nem digo bem «escrito»; foi _conversado_, como quer que as ideias vieram vindo. Refundira-o eu, se houvesse tempo, ou valesse a pena; decotaria redundancias: aproximaria pontos homogéneos, que vão separados; reduziria as doutrinas a um systema, e concatenação severa de raciocinios. Nada d’isso farei. Apraz-me conservar-lhe o seu caracter fortuito e desambicioso; só assim, é que me posso n’elle reconhecer. É uma conversação, com todos os seus altibaixos, com todas as suas duvidas e incertezas, com todas as suas quebras e digressões, com todo o desalinho de homem sincero, que antes quer ser amado, e merecel-o, do que citado e admirado, inda que o podesse. Páro já, porque estender mais as advertencias sobre coisa tão pequena, já passaria de ociosidade. I Excellencias da vida rustica SUMMARIO Os campos são mais nobres que as cidades.--O trato rural produz tudo.--A Agricultura, com os seus dois filhos, Industria e Commercio, é a expressão maxima da Munificencia Divina, e o mais claro argumento da sociabilidade do homem.--As cidades são centros para a circulação da moeda.--Só um povo agricola é deveras rico.--As honras dadas á Agricultura assentam em principios muito reaes.--A Biblia, e Homero.--Os Romanos da Republica.--O que eram as mulheres n’esse tempo.--A gratidão divinisou entre as gentes primitivas os inventores industriaes e ruraes. Refutação de um dito de Santo Agostinho.--Origem das mythologias campestres.--Os deuses rusticos eram uma decomposição da Providencia. O Christianismo destruiu aquellas risonhas crenças. O campo tomou outra especie de interesse.--Klopstock e Gessner.--As sciencias naturaes vieram substituir com vantagem a perdida idealidade dos campos.--Esboço da grandeza e poder d’estas sciencias.--Confirmar o lavrador na religiosidade hereditaria.--Excitar os ricos e poderosos, para que amem o campo e seus cultores.--Elogio moral e politico do viver campestre. A arte variadissima de obrigar a terra a produzir tudo, não é uma arte rude, pois todas as sciencias a cortejam, e a servem; não obscura, pois é a mais antiga e universal; não vil nem desprezivel, pois só depende de Deus, em quanto os homens todos dependem d’ella. As cidades, que affectam desprezar os campos, d’elles nasceram; por elles vivem e medram, que só lá teem as suas raizes. Transformam-se ellas, envelhecem, amesquinham-se, doidejam, morrem, e esquecem; em quanto elles, os campos, permanecem, riem, amam, dão, e promettem de continuo; coexistiram desde o principio, coexistirão até ao fim, com a raça humana. A charrua e o enxadão topam em toda a parte com as ruinas de templos e palacios. Essas maravilhas ephémeras da Arte pompearam um momento sobre o solo desvestido, e logo a Natureza as afogou; as recobriu outra vez com o seu sólo, com a sua vegetação, com os seus frutos, com as suas fragrancias, com a sua paz, com as suas harmonias, primitivas e ineffaveis. ¿Ouvis nas cidades grandes aquelle sussurro profundo de mil vozes, como bramir de Oceano? É o estrépito da industria, o tráfego do commercio, a ebriedade das mezas, o vozear dos espectaculos. ¿Que Fada produziu e conserva tudo isso? a Agricultura. Vêde os exercitos, esse espantoso numero de consumidores improductivos, esses celibatarios ministros da religião da morte. ¿Quem os gerou? ¿Quem os renova? ¿Quem os alimenta? O chão pacifico da lavoira. O seu pão, a sua carne, o seu vinho, os seus legumes, os seus vestidos, os seus cavallos, os seus carros, as suas bandeiras, os seus mil tambores.... tudo por lá se creou. Tudo aquillo, que vôa como remoinho devastador, que não deixa senão cinzas, sangue, e lagrimas após si, tudo aquillo nasceu e folgou pelas aldeias e casaes; relinchou pelas planicies hervosas; mugiu nas leziras encalmadas; trepou e baliu pelos cerros; ciciou loirejando pelos chãos, como espiga de alambre; vicejou em florestas; amadureceu reluzindo por entre as parras movediças dos oiteiros. ¿Que povoação, não creada por Deus, anima, cruza, devassa, todos esses mares? Esses portentos da sciencia e ousadia do homem, que affrontam com victoria ventos e ondas, já pelas montanhas vegetaram, floriram, hospedaram ninhos e musicas. As suas azas candidas, que os levam de extrema a extrema do globo, as tranças ondeantes das suas enxarcias,... foram linhares florescentes, onde as virações dos valles se embalavam. A epiderme grossa e negra, que lhes reveste o corpo, e lh’o torna, como o dos monstros marinhos, inviolavel á agua, estillou-se do pinheiro queimado em succo denegrido; gottejou de outros troncos em rezinas balsamicas; creou-se nos ossos do animal, que arrasta o carro e o arado; expremeu-se em oiro liquido do fruto luzidio da oliveira. Os braços, que os domam e os meneiam, como o cavalleiro dirige o seu corcel a todas as partes, robusteceu-os, quasi todos, o sol dos campos. ¿Que levam ellas, essas cidades sem alicerce, por quem as mais remotas se communicam, e todos os filhos de Adão não fazem mais que uma familia? ¿Que levam, que assim vão assoberbadas? Levam os frutos da cultura do septentrião, aos longinquos moradores do sul; as producções regaladas do meio-dia, ás praias severas do norte; os perfumes e sabores do oriente, até ás ultimas orlas das Hespanhas; a alegria das mezas occidentaes, aos banquetes opíparos dos Chinezes. ¡E é o trabalho de um camponez humilde, de sua mulher e de seus filhos, o que, sem sahirem do torrão que os brotou por entre as plantas e os gados, povoou todos esses mares sem limites de celleiros, dispensas, e adegas fluctuantes, e abasteceu, sem o saberem, ao seu desconhecido irmão, em paizes de que nunca ouviram o nome, recebendo de lá, em troca, o que nunca sonharam que a terra procreasse! * * * * * Difficilmente, por mais que refujâmos para longe dos campos, e para o centro do luxo, difficillimamente encontraremos com objecto, que, no todo ou em grande parte, não devesse o seu ser á industria agricola. A corporificação mesma d’este pensamento, isto, que estamos escrevendo agora, isto, que vós amanhan estareis lendo, este nosso aprazivel praticar entre desconhecidos, este daguerreotypar para os vindoiros um reflexo passageiro do espirito, ¿a quem o devemos, se não a esta Arte inexhaurivel? O papel, a penna, a banca, o prelo, as balas, a tinta de impressão, o alimento que mantém os braços, de que tudo isto se ajuda, ¿quem se não a Agricultura, o deu? ¿Quem se não ella, ou um milagre de muitos milagres, o podéra dar? A Agricultura, a velha e robusta mãe dos povos, auxiliada dos seus dois incançaveis primogenitos, Industria e Commercio, é a bemfeitora por excellencia; a compensadora unica das differenças das regiões; a expressão maxima da Divina Munificencia, e o mais claro documento da nossa social destinação. Qualquer Sciencia, qualquer Arte, supprimida, deixaria uma falta, mais ou menos para sentir; mas a falta da Agricultura desataria de repente a Sociedade, e dentro em pouco extinguiria o proprio homem. * * * * * ¡Longe de nós o insensato pensamento de negarmos ás cidades a sua importancia! A baixo das choças aldeanas, nada mais nobre que as cidades; nada, que as Leis mais devessem favorecer, depois dos campos. Os metaes preciosos, de que uma invenção profunda, e quasi inspirada, compôz, por que assim o digâmos, o sangue, que devia circular por todo o corpo social, necessitavam, como o sangue no corpo de cada individuo, deposito amplo e energico, para onde confluissem de toda a parte, e que outra vez para toda a parte os deramasse. A Cidade foi o coração do paiz agricola, e centro unitivo de sua vida. Ás cidades, as industrias, secundaria e terciaria; o manufacturar as materias; o permutar as manufacturas. Aos campos a primaria industria; o ministrar a omnimoda materia para essas duas outras. Artes e Commercio encantadores são, que modificam, metamorphoseiam, e transferem tudo sem cessar; mas só a Agricultura cria, só ella, filha primogénita da Divinidade, é, sobre a terra, Divindade. Só um povo que lhe quer, e a quer, e a serve com desenganada preferencia, só esse é rico; rico sem fausto, mas rico sem receio de empobrecer. As minas cançam e exhaurem-se; as conquistas levantam-se e fogem; as fabricas podem cahir, ao erguerem-se novas fabricas n’outras partes; a grande louca do mundo moderno, a moda, as derriba a cada passo, roçando-as, ao passar, com o seu vestido novo, ou com os seus novos enfeites; o mesmo Commercio, no seu carro triumphal de oiro, corre estrepitoso por cima de alturas resvaladias, por entre despenhos e rivaes inimigos, que ao primeiro descuido o precipitarão. Só a terra entretanto se não esgota; só n’ella se podem empregar beneficios, sem colher ingratidões; só ella pode dizer, como o seu Creador: «Pedi e recebereis»; só ella pode supprir tudo, sem poder outra alguma coisa suppril-a. Quando ella treme, sacode de sobre si, em nuvens de pó, castellos massiços, paços alterosos, armazens e feitorias de portas chapeadas, como um leão, com um frémito musculoso das jubas, afugenta os insectos, que vieram poisar sobre elle em quanto dormia; mas a Queluz e Versailles do lavrador, a sua choçasinha de palha, essa vacilla um momento, como as arvores circumstantes; assustou-se, como um passarinho entre as ramadas; mas fica em pé, e rasserena-se, vendo tudo em derredor tão arraigado, tão viçoso, tão quieto, como d’antes. * * * * * Foi a consciencia d’estas verdades obvias, e que só o excessivo crescimento do luxo era efficaz para escurecer, foi, dizemos, a consciencia d’estas verdades, a que fez com que em todos os tempos se protegesse e honrasse a Agricultura, e em alguns paizes por modo tal, que aos almiscarados passeadores das capitaes pareceria hoje fabuloso, ou ridiculo quando menos. Os dois mais antigos livros, que o mundo velho nos deixou, a _Biblia_, epopêa de Deus, e Homero, biblia dos poetas, a cada pagina nos maravilham com o que antes nos devêra servir para sizuda meditação, e algum exemplo: com a singela pintura do enlace da autoridade com o trabalho rural. Reis e Principes homericos, raios de valor nos combates, nos dias da paz cultivam, e pastoreiam: e mais de um heroe d’esses, ao expirar, dá a ultima saudade ao pensamento dos bosques da sua infancia. Os patriarchas da antiga Lei, os juizes, e os Reis do Povo hebreu (semelhantes n’aquillo aos maioraes de algumas tribus arabias, e aos regedores de alguns povos simplices da America e da Africa, ainda hoje) distribuiam a justiça, já á sombra de um carvalho, já sentados, como em throno, na méda do seu trigo á borda da eira; ou, reclinados entre os seus rebanhos, ensinavam com apólogos e parábolas campestres, as virtudes naturaes, a concordia, a rectidão, a beneficencia. Os Romanos das eras recommendaveis, os Romanos da Republica, essa gente exemplar, já expurgada da barbaria de sua origem, e ainda não pervertida pelas riquezas e luxo; equidistantes de Romulo e de Nero; revolviam com a charrua o chão da Patria, que alargavam com a espada. Da rabiça, se iam arrancar os generaes para as victorias; do Capitolio redescendiam, com alvoroço, para se irem concluir a geirasinha largada em meio. Então as matronas eram Cornelias; e as donzellas, Virginias. Então era soberbo epitaphio: «N’este sepulcro não formoso jaz uma formosa mulher. Governou sua casa; fiou lan.» Então eram guiões e estandartes magnificos umas paveias de feno no alto de uma lança. Então, emfim, podia dizer o Poeta, com verdade: não só que as selvas eram dignas de consules, se não que eram dignos os aldeãos, dos feixes e da purpura. Retraiâmos-nos lançando comtudo um olhar saudoso para aquellas edades ridentissimas, em que os nomes e feitos memorandos se não escreviam nos annaes, mas se embalsamavam de poesia para mythos. * * * * * ¿Qual foi d’essas antigas gentes, fabuladoras por philosophia, a que não divinisou, e não ergueu sobre aras, para incensos e hymnos da posteridade, os inventores, introductores, ou aperfeiçoadores, das diversas Artes prestadias, e da Arte da Agricultura sobre todas? Cybéle, Osiris, Saturno, Céres, Triptólemo, Fauno, Pales, Baccho, Pomona, Vertumno, Aristeu, Flora, eis ahi uma parte d’esse Olympo terrestre, com que as Musas por mais de dois mil annos se inspiraram, e que, se já hoje não ressôam nos cantos, nem por isso ficaram menos sacros para os corações agradecidos. «Demonios são os deuses da gentilidade»--exclamava, no seu enthusiasmo religioso, o Bispo de Híppona.--«Demonios são, cujos nomes nunca mais hão-de profanar estes meus labios.» Enganais-vos, Agostinho, se abrangeis a esses bons deuses rusticos no vosso anáthema. Desendeusae-os embora; mas, em vez do ferrete de demonios, decretae-lhes foros de grandes Homens, e grandes Mulheres, já que de Anjos não pode ser. Se procuramos, na rasão pura, o que por nenhum documento se rastreia, o por que os Romanos, apóz os Gregos, os Gregos apóz os Egypcios, e os Egypcios Deus sabe apóz quem, assim se comprouveram de povoar de numes e semi-numes indígetes os seus campos, facil se nos depára a chave do enigma. Obra foi, instinctiva e simultanea, de rusticos, e philosophos; do povo, e dos agentes da alta Politica dos Estados. O poder comprehendeu a utilidade de sanccionar culto que nobilitasse o lavrador, divinisando todos os objectos do seu trato, e a propria terra: os camponezes, por si mesmos, de motu proprio, coadjuvaram o poder n’esse mui real empenho seu, com darem largas á propria phantasia, faculdade sempre tendente para o poetico e maravilhoso. E de feito, ¿que mais natural erro (se assim nos podemos exprimir), que abusão mais para desculpas e louvor, do que imaginar o homem, ao ver-se rodeado de successivos beneficios e presentes da Natureza, que andavam ahi velando sobre elle, por toda a parte, a todas as horas, entes beneficos, poderosos e invisiveis, a quem por isso cabiam amor e agradecimento? Por não abrangerem a Providencia na universalidade, decompunham-na em mil Providencias; e n’este sentido a idolatria era ainda um culto ao Supremo Desconhecido, «IGNOTO DEO»; era o matiz brilhante e confuso, formado de vapores da terra entre ella e o Céo, como arreboes e aurora do SOL, que estava para nascer. * * * * * Além da gratidão, outra causa, se menos sublime, por ventura mais urgente, levaria os filhos das aldeias a abraçarem na alma, sem exame, aquellas crenças, logo que referidas na conversação dos velhos autorisados, ou evangelisadas pelos poetas, por esses engenhos de eleição, a quem sempre se attribuiram mysteriosas relações com outros mundos. Esta causa era, no meio da solidão, a tendencia para a sociabilidade. O viver semi-eremitico do camponez, e as suas occupações, quasi todas manuaes, deixavam-lhe alma e coração livres, vazios, carecentes, avidos de alimento. Nos desenhos do Vaticano se vê, copia de uma pedra antiga, a imagem da Agricultura representada por uma Psyche, arrimada a um sacho, e meditabunda. Então o pastor folgou de cuidar que uma deusa o acompanhava occulta, e o amava, defendendo-lhe o rebanho; que de dentro de cada arvore, ao perpassar, lhe sorria uma Nympha; que outra despejava da urna subterranea as aguas que o dessedentavam; que a aura refrigerativa das séstas era vivente, e lhe furtava beijos fugindo; que a sua flauta fôra inventada por Pan em hora de mágoas amorosas, e as suas cantigas eram repetidas com ternura pela namorada de Narciso. O semeador, lançando o grão á terra, commettia a sua subsistencia ao coração maternal de uma beldade; o pomareiro encommendava a outra, ainda mais beldade, encher-lhe os açafates e cestos para o outono; e o vinhateiro via um menino, tão gentil como o proprio Amor, e um velho tão folgasão como esse menino, andarem-lhe brincando por entre as cepas para florescerem. O dia, derramava-o dos céos o deus da musica e dos versos. Á scismadora melancolia das noites presidia, lá do carro da lua, uma virgem candida, que de manhan andára caçando pelos bosques, e de quem havia segredos... para se contarem ao ouvido das raparigas. Assim se era amado, porque se amava; e se amava, porque se era amado. Assim se ganhava animo para supportar a solidão; ou, por melhor dizer, assim a solidão se transformava em sociedade; sociedade tão numerosa, tão garrida, tão illustre, tão sensitiva, tão amavel, tão munífica, sobre tudo, qual nunca jámais a poderiam ter os saráus das maiores Côrtes, e dos maiores Reis. * * * * * Sob o astro esplendido do Christianismo tudo isso passou, como perante o sol do estio desapparecem as multicores florinhas, que borboleteavam por valles e oiteiros. O campo desenfeitiçado se consagrou por bellezas mais severas; mas a solidão reappareceu em grande parte, e quiçá mais profunda e melancolica, em derredor do camponez. É porque já se aprendêra do Historiador da Creação, que a fertilidade só nascia do trabalho, e que o trabalho era castigo da desobediencia; que a terra não era patria, se não degredo, e a vida não estado, se não caminho por valle de muitas lagrimas. Os frutos já não foram dádivas de nymphas, sim esmolas, que a troco de suor e orações se lançavam lá de cima aos necessitados, para elles as repartirem com os indigentes. As novas festas campestres, as Rogações de Maio, a procissão das Alleluias, não compensavam, para os sentidos, as sacras profanidades de outro tempo. Acudiram Musas do Cedron e do Jordão, successoras, e não herdeiras, d’aquellas nove da Castália e Aganippe, e forcejaram por enthronisar no campo das antigas divindades esvaecidas novos Genios mais formosos, ainda que menos sensuaes; verdadeiros quanto á existencia, e só quanto aos attributos fabulosos. Ás Dryades, Oréades, e Faunos, succederam na tutella das arvores, dos oiteiros, e das planicies, Anjos invocados do Empyrio pelas harpas germanicas do cantor delicioso de Abel, do cantor sublime do Messias. Mas esses Espiritos custodios das plantas e das aguas, das flores e das estrellas, em quem a imaginação creu, talvez, em quanto ressoavam os accentos d’aquellas harpas, volveram aos Ceos com Gessner e Klopstock, como os numes haviam volvido ao nada; e a solidão campestre recomeçou; ou proseguiu. O ideal da vida agricola achava-se pois abolido, e para todo sempre. A obra das Musas do Líbano caducára, como a obra das filhas do Parnaso. A arvore não era mais que um lenho verde; a fonte, agua; a terra, terra. Acode a Sciencia, para repoetisar tudo. * * * * * A Sciencia da Natureza é nos tempos modernos um gigante, animado de mil espiritos, armado de mil braços, guarnecido de mil azas, dotado de mil ouvidos e mil olhos; engolfa-se, como aguia, por ceos e ceos; colhe no vôo os cometas e os planetas, e lhes toma o pezo e a medida; distingue na atmosphera imperceptiveis e subtilissimos fluidos, e os senhoreia como a outros tantos Genios poderosos, constrangendo-os a explicarem-se, e a servil-a; estende a vista senhoril pela superficie do orbe, e impõe, como o primeiro homem, nome proprio a cada vivente sensitivo, a cada planta, a cada composto, a cada elemento da materia bruta e inerte, desde a colossal baleia, até o microscopico infusorio, desde o giganteo baobab, até o pulverulento lichen, desde os alterosos Andes, até as parcellas imponderaveis do simples mineral. Entre tantos milhões de individuos, estabelece os _reinos_, determina as _classes_, subdivide e forma _ordens_, reconhece os _generos_, caracterisa as _especies_, e descobre as mutuas relações de nexo ou afastamento. Funda preciosos inventarios de tantas riquezas, os _methodos naturaes_, e os _systemas artificiaes_. Abysma-se nas profundezas da terra, e reapparece com os documentos da historia do Mundo; medita-os, e prophetisa o que lá vai, já nos incommensuraveis seis _dias_ do Génesis, já nas eras subsequentes. Interroga a vida em todos os seus mysterios: na geração, na reproducção, na conservação, no crescimento, nas metamorphoses; aqui, lhe recebe a confissão de um segredo; além, lhe arranca outro; conjectura todos; e muitos, por ventura lh’os adivinha. Ajudada das artes, filhas suas, nutridas aos seus peitos, entretece industriosamente todos esses innumeraveis fios de luz, que de cada ponto da materia lhe ressurtiram, e por suas combinações inesperadas faz apparecer, de momento para momento, novos recursos para as mesmas artes, novas forças e vantagens para o homem. O campo, sondado pela Sciencia em cada camada do seu terreno, em cada elemento dos seus adubíos, em cada gotta do seu orvalho, em cada molécula dos seus gazes, em cada póro das suas plantas e animaes, em cada tácita relação de tudo seu com os meteóros, com a electricidade, com o frio e calor, com a luz e as trevas, com cada um dos ventos, com cada uma das quadras, com cada um dos mezes, com cada um dos dias, e horas do dia, o campo, repetimos, encerra pois mais poesia, poesia mais bella, mais fecunda, mais vivaz, mais duradoira, que as antigas. A arvore do pagão fôra nympha; e a do simples christão, simples meza de caridade. A arvore para o sabio é um microcosmo de maravilhas; é um pregão, não já mudo, de Sabedoria, de Poder, de Bondade sem limites. * * * * * ¡Felizes nós, se, interpretando uma ou outra harmonia da Natureza, podermos confirmar o camponez na sua religiosidade hereditaria! ¡Felizes, não menos, se nos ricos senhores crearmos, ou accrescentarmos, o amor dos seus campos, e o salutar affecto aos pobresinhos, que com o seu suor lh’os fertilisam! ¡se, tornando-lhes aprasivel o rusticar, e descobrindo-lhes com Zimmermann os thesoiros da solidão, contribuirmos para que alguns vão ser divindades veneradas no seu torrão, e ensinar com o seu trato polidez aos filhos das aldeias retemperando-se entre elles, e readquirindo algum pouco d’aquella innocencia velha foragida das cidades! Que vendo nos seus bosques e seáras alguma coisa mais que lenha e farinha, sintam que a Agricultura é o parentesco, a amisade, a intimidade, o trato de mutuos beneficios, entre o homem e a Terra sua mãe. Que repitam com Bentham: «A classe dos que trabalham, se é a derradeira no vocabulario dos soberbos, é no vocabulario da san Politica a primeira». Que muita vez, nos seus passeios meditativos, exclamem enternecidos, como a Baroneza de Staël: ¡«Pobre gente! ¡meio silvestres, meio civilisados! mas os que d’entre elles são virtusos, ¡oh! esses teem um genero de innocencia e bondade, que lá nos mundanos se não acha.» Ou, reclinados ao sol posto no poial da sua granja, revolvam calados aquellas palavras, com que a Biblia, na sua maravilhosa simplicidade, nos encarece o viver facil do Povo eleito no reinado de Salomão: «Comer, beber, e folgar, sem nenhuns medos, cada um á sombra do seu parreiral e da sua figueira.» ¡Oh! e as mãos do que tudo isto chegar a dizer, ¡que venturas não dispartirão tacitamente pelas agradecidas choças de tantos, que, em meio de montes de riquezas, não tinham muitas vezes um pão negro para os seus meninos! «Quem faz amar os campos--escrevia Delille--faz amar a virtude.» ¡Oh ricos, ricos! ¡Quão pouco vos custára o ser ditosos, creando nos outros alegrias para vós mesmos! ¡Quão facil vos fôra acabar com o antigo pleito, que pende entre a penuria e a opulencia! ¡Quão facil, e quão glorioso, o fazerdes (e não á vossa custa, se não até com proveito vosso) com que os filhos, como vós, de uma terra fertil não fugissem d’ella, para se irem comer pão de escravos, e estalar de saudades em sertões longinquos! Se amais o chão onde nascestes, creae e enraizae n’elle verdadeiros lavradores. Lavradores verdadeiros não são só os cidadãos mais productivos, mas tambem os mais pacificos e patrioticos. Janeiro de 1848 II Sociedades de Agricultura SUMMARIO As associações agricolas hão-de diminuir as aversões publicas, e restituir o amor do trabalho.--A Sociedade Promotora da Agricultura Michaelense mostra o que taes sociedades valem.--Vantagens que já tem dado.--O seu exemplo ha-de ser imitado, mesmo em Portugal.--A convicção da necessidade de olhar pela Agricultura é já sentida geralmente.--As regenerações politicas só serão verdadeiras tendo por base a Agricultura.--Todas as revoluções teem origem na bolsa.--Tributos devem-se exigir, proporcionando-se meios de os pagar.--Os poisios deviam repartir-se pelos soldados.--Como seria um bom Governo.--Aqui não entra «Politica» segundo hoje a entendem.--Declaração de qual é a do autor.--Como as Côrtes e o Governo podem felicitar sem custo a Nação.--Se elles o não fizerem, façam-n-o os particulares, associando se. Por um interessante periodico do Funchal, O _Madeirense_, vemos com prazer, que tambem ali se torna a olhar com amor para a terra, _a grande Mãe_, como philosophicamente lhe chamavam os Antigos. A terra é o campo neutro, no qual, ainda hoje, se podem congregar os animos, que as contendas sociaes dissociaram e lançaram a monte. Não é senão no seio da Natureza immutavel, universal, inexhaurivel, que os homens podem encontrar novamente a convivencia de ideias, e a fraternidade, a que os leva o seu instincto, tanto como a sua razão. Se o trabalho é a condição indispensavel de todos os bens, se a união é a indispensavel condição de todo o trabalho de veras fecundo, ¿quem não vê que as Associações agricolas, além do grande beneficio de tornarem a enfeixar um pouco a familia humana, hão de promover o trabalho, Anjo custodio de saude e bons costumes? O que as Associações agricolas estão dando de si nos povos representantes e coripheus da civilisação, é historia já tão publica e corrente, que ainda aquelles que a não estudam a sabem pouco mais ou menos. Mas, preterindo, como logares communs, a França e a Inglaterra, figuras obrigadas em qualquer pagina dos nossos contemporaneos, como aquell’ outras de Grecia e Roma em cada escrito dos nossos paes, préguemos á nossa gente com o exemplo, muito mais persuasivo, dos «santos de casa.» * * * * * A Sociedade Promotora da Agricultura Michaelense é a demonstração viva do que taes corpos valem, e podem, para o aperfeiçoamento dos lavradores. Nascida de hontem, se pode dizer, sem amparo algum externo, sem uma dotação larga, para converter em factos a decima parte dos seus bons desejos, constantemente a braços com as difficuldades dos tempos, ainda não apreciada nem comprehendida na propria terra, e com mais de metade das suas forças intrinzecas desaproveitadas, com um viver intermittente, reduzida a hibernar por quasi toda a bella estação, e no inverno mesmo só incompletamente concorrida de seus membros e sem ouvintes para a animarem recolhendo-lhe o fruto das discussões; n’uma palavra: não havendo tido, por si até agora mais que tres ou quatro vontades perseverantes, mas inquebrantaveis, mas inflexiveis, mas cheias de fé e amor, esta Sociedade contém já nos seus fastos algumas paginas, que a gratidão da Historia ha-de doirar, e os futuros lavradores beijar com enternecimento. O rusticissimo horror das innovações agrarias, esse ridiculo espantalho millanario de todas as ideias uteis, não se destruiu, porque não pode destruir-se; mas vai recuando para dentro dos limites de uma prudente e cautelosa espectativa; isto é: a curiosidade moderada, que não dá passo sem primeiro palpar o terreno, mas que, apenas o sente solido, adianta e assenta o pé para não retroceder, occupa já o logar do empyrismo intolerante e indomesticavel. Não se instruiu ainda o camponez; a tarefa de seculos não cabe em dias; mas fez-se-lhe entrever a sua ignorancia; é uma grande passada no caminho do Progresso. Fez-se-lhe conjecturar, por factos sensiveis, que havia, fora da sombra do seu campanario, e mesmo dentro nas cidades, amigos seus e da terra, habilitados pelo estudo para mestres e guias; que os livros não eram todos sonhos vãos de charlatães, e que de muitos d’elles sabiam raios, luminosos como os do sol, que fertilisavam a terra largamente; que não havia sacrilegio em trocar a enxada de Adão pelo instrumento só de hontem inventado, mas que multiplica as forças, as horas, os frutos, as moedas, os ocios innocentes, e os praseres. Insinuou-se a pouco e pouco, e sem rumor, nas praticas do serão da Aldeia: primeiro, a crença de que o Mundo era mais amplo que os confins da parochia ou do municipio, e muita planta boa, e muito animal prestadio opulentavam outros paizes, que, se viessem ao municipio e á parochia, lhes accrescentariam os haveres; que se podia produzir mais e melhor em frutos e materias primas, para industrias que ao longe se enxergavam; e que o pretender aperfeiçoar as raças brutas, as manadas, os rebanhos, e os animaes domesticos, não era absurdo nem impiedade, pois que a tudo isso se chegava sem mais feitiço que o entendimento que Deus nos deu. Não queremos affirmar que o poisío secular, sêcco e maninho, dos espiritos da população rustica se ache já desmoitado. Affirmâmos porém, e poderia provar-se, que da fundação da Sociedade promotora data um progresso notavel na Agricultura d’este paiz; que ha hoje ahi em exercicio muito instrumento moderno de inquestionavel prestimo; que alguma raça de animaes caminha para o aperfeiçoamento; que as plantas preciosas estrangeiras são desejadas e bemvindas; que se vai pegando a curiosidade do experimentar. N’uma palavra: um observador attento e sagaz sente nas ideias rusticas o que quer que seja de vivaz, de vegetativo, de medrançoso; semelhante ao que se percebe nas hortas, de verão, pela calada da noite, quando ao luar se está suavemente devaneando: um rumor vago e tenue pela folhagem; um cheiro suave de vitalidade, que é circular de seiva, encorpar de hásteas, desabrolhar de gomos, explicar de folhas, nascer de botões, abrir de flores, enchar e amadurecer de frutos; são os fluidos impalpaveis do dia que passou, que por ali se estão ás escuras corporificando para abundancia; d’aquelle ruído sem nome, e quasi imperceptivel, é que lá para o diante se hão-de acogular as eiras, encher os celleiros e os lagares, assoberbar-se os carros, os portos, e os navios, nutrir-se os homens e os animaes, as aldeias e as cidades. Deixae continuar em sua acção a causa impulsiva d’este movimento, que já se opera nos espiritos camponezes, e vereis as innovações cada vez menos repugnadas, a sciencia pratica avantajada de anno para anno, e com ella vir raiando um pouco tambem da sciencia especulativa, unica fonte dos progressos ulteriores e indefinidos. * * * * * Felizmente, este exemplo grande e nobre que a Sociedade Michaelense está dando a todos os dominios Portuguezes, e á metrópole mesma, é grão lançado em terreno, que nos parece achar-se já devida e sufficientemente preparado. De toda a parte onde ha Portuguezes, isto é: de toda a parte onde sobre um solo fertil negreja a penuria, saem gritos clamando pela Agricultura ausente, como pelo ultimo e unico Messias terrestre; e esses clamores, quando assim se tornam geraes, são sempre prophecia. A convicção chegou a todos os animos: a uns pelo raciocinio, aos outros pelo mero instincto; mas em todos está; em quasi todos clama; e já em muitos se agita insoffrida, para se converter em obras. Se os commodos da vida, isto é os deleites do corpo, os do coração, e os do espirito, são o alvo a que tiram de longe, e de encontrados pontos, todas as opiniões, todos os systemas, todas as parcialidades, a Agricultura para Portugal deve (e não pode deixar de ser) havida pela Politica suprema, pela Politica das Politicas; pois quando, renascida e adulta, a nossa Agricultura nos houver feito laboriosos, abastados, modestos, bons, unidos, e irmãos, então, e só então, é que as theorias de _liberdade_ deixarão de fluctuar e transformar-se ao sôpro das palavras, como as nuvens inconsistentes ao capricho dos ventos. As instituições sociaes querem todas uma base; e não ha para ellas alicerce, como é a terra a desentranhar-se em riqueza; tanto assim, que o proprio regimen absoluto, e ainda o despótico, em quanto não faltam ao Povo com pão e um pouco de recreio, permanecem, não combatidos, nem quasi murmurados; ao mesmo passo que as mais philosophicas e altisonantes constituições em terra faminta, isto é em terra pelos homens desaproveitada, são victima, muitas vezes innocente, mas sempre victima, dos irreconciliaveis odios da indigencia. * * * * * Não se ha mistér ser profundo sabedor na historia das revoluções, para reconhecer que todas ellas, proxima ou remotamente, teem na bolsa a sua origem; assim como é evidente, que em quasi toda a parte é a terra trabalhada quem enche a bolsa; ou, pelo menos, que é só ella quem, enchendo-a, pode prometter com affoiteza conserval-a cheia. Um dos mais deploraveis erros, se não o mais deploravel, é procurar acudir aos males produzidos pela miseria, extorquindo aos proprios miseraveis com uma das mãos o que depois, bem ou mal, em todo ou em parte, se derrama sobre elles. O Thesoiro publico só é abastado, ou, mais verdadeiramente, só ha Thesoiro publico, onde se não é obrigado a arrecadar para elle sangue, lagrimas, e maldições. Os tributos são uma necessidade; mas para os Governos justos e previdentes não no é menor subministrar aos governados meios de producção, com que satisfaçam aos tributos. Facilitae-me encher a minha tulha, e pedi-me embora metade d’ella para remir o desamparo dos meus visinhos. Mas se pela minha porta aberta não vedes, em toda a minha poisada terrea, nem lume, nem pão, nem assento, nem mais vestido que os andrajos que andam no corpo, não me vendais para o tributo o bercinho nú do filho, e a enxerga desconchegada da mãe; não m’os vendais que o não quer Deus; não m’os vendais, não m’os vendais, que por um tostão ou dois os havereis matado a elles e a mim, e á vossa consciencia tambem; e todos estes mortos se alevantarão á hora prescrita, para matarem a vossa causa. Se os haveres são o sangue do corpo social, e se o corpo social jaz por debilidade, ¿pensaria alguem cural-o abrindo-lhe as veias e as artérias? Em quanto houver terras devoluto, a dar cardos e urzes em logar de trigo e azeite; em quanto houver braços com ociosas armas ás costas, ou encruzados sobre o peito descarnado; em quanto não repartirdes esses braços por essas terras, e essas terras por esses braços, com um alvião, um punhado de sementes, dois ou tres cruzados para uma choça de colmo, um cathecismosinho de Agricultura, e uma boa isenção de direitos até que a abençoada plantação se desate toda em frutos; em quanto fordes tolerando que o vicio, o ruim exemplo, a indiligencia, e a ignorancia, lancem quotidianamente na voragem sempre crescente da prostituição milhares de moças, nascidas com entendimento e coração para mães de familias, e a maior parte das quaes o haveriam ido ser, se o seu hediondo celibato não fôra effeito necessario do celibato forçado de tantos homens; em quanto, pelo concurso de tamanhos desconcertos, deixardes que permaneçam estereis, despresadas, e despresiveis, as duas mais formosas e mais santamente productivas coisas do mundo, a terra, e o seio da mulher; sereis mendigos a governar mendigos, sereis loucos a vexar attribulados. Podereis chamar-vos Governo, segundo o Direito constituido, e pelas trombetas de uma parcialidade, da vossa; mas pela Natureza, mas pela philosophia, mas pelo vosso proprio senso intimo... nunca merecereis tal qualificação. * * * * * Damos por superfluo declarar que, se algum nescio, ou maligno, vir d’isso a que ahi chamam _Politica_ nas poucas linhas que deixamos escritas, não foi absolutamente nossa intenção, nem o é, nem o será nunca, descer das alturas serenas e claras do raciocinio até essas escuras e lodacentas encruzilhadas. Não processâmos nenhum homem, nenhum bando, nenhum systema; ou processâmol-os todos. Hoje (comprazemo-nos de o repetir) não commungâmos senão á Meza catholica da Philosophia. Todas as variações protestantes da egreja politica liberal nos são desconhecidas. Lançâmos ao ar e ao vento as palavras de bom conselho, com hombridade e sem odio, como todos devem; é a nossa consciencia a respirar alto. A parcialidade que fizer obra do que nós só fazemos discurso, será essa a que nós bemdiremos. Os primeiros estadistas, que arvorarem por estandarte na ponta de sua lança sem ferro a relha da charrua e o sacco da semente, serão os que nos movam, sem que nol o peçam, a irmos á urna; e á fé que não votaremos senão por elles, porque esses nos haverão feito acreditar na edade de oiro. A edade de oiro não está no passado, como a sonharam os poetas, mas no porvir, e bem proxima se o quizermos. Não ha de baixar do Ceo com deuses, mas ha-de rebentar da terra com frutos e creanças, quando os homens se encurvarem para a invocar. * * * * * Segundo os axiomas que deixamos tocados, grandes, imperiosos, e urgentissimos são os deveres, que ás autoridades executivas e legislativas incumbem, de remover obstaculos, e proporcionar meios para que a Agricultura nacional se levante e cresça, com aquella espantosa rapidez, com aquelle vigor prodigioso, que todas as coisas nobres assumiram sempre em nossa terra, quando de veras as quizemos. Legisladores e governantes, dizei «Faça-se»; de todos os cantos da Monarchia se repetirá em milhões de eccos: «Faça-se». E far-se-ha. E o Povo Portuguez reapparecerá aos olhos do mundo tão grande e magnifico nos seus trajos de lavrador, e coroado de oliveira, como outr’ora soldado e conquistador, coroado de loiros, e cicatrizes; mas com uma vantagem summa na sua nova transformação: que as conquistas e pelejas o matavam afogado em oiro e sangue; em quanto a Agricultura o haverá remoçado como o Esão da fabula, e opulentado do oiro vegetal, unico oiro que sustenta e se semeia para mais oiro. Pois se acha emfim conhecido o caminho largo e facil que nos ha-de levar á felicidade; pois que tantos desejos o devoram já em espirito, ¿por que não nos poremos desde hoje em marcha para a conseguirmos quanto antes? Se os Legisladores, se os Governantes, se as supremas Autoridades não souberem, ou não poderem, ou não ousarem, collocar se á nossa frente; se houver interesses, que se lhes representem maiores do que o interesse maximo; saibâmos e ousemos nós, nós os cidadãos, nós o Povo, nós que o podemos, progredir sem mais impulso que o nosso instincto salvador, sem mais guia que a razão demonstrada. Tambem uma columna de luz levou o Povo eleito, atravez do deserto, para a Terra da Promissão. ¿Quem nos dará força? a associação. ¿É ella possivel? facilima. ¿Como se organisará? Vamos vel-o. Agosto de 1848. III Continuação do assumpto SUMMARIO O Jornalismo deve ser prégador da fraternidade agraria, exhortador e mestre de cultura, sendo o _Diario do Governo_ quem dê o exemplo.--Como se formou a Sociedade Promotora da Agricultura Michaelense, podem outras formar-se e imital-a.--Uma Sociedade Promotora para cada cidade em que houver centro episcopal e administrativo.--Sociedades filiaes fomentadas por ambos estes poderes.--Relações mutuas entre as primeiras e as segundas.--Quadro dos resultados provaveis de tal systema.--Para a sua realisação bastam os cidadãos, sem auxilio do Governo.--Desenho geral da proposta machina de Sociedades, e descripção do seu jogo.--Indicação de meios pecuniarios para a manutenção d’estas Sociedades.--Summa conveniencia de um Ministerio dos negocios da Agricultura.--O que se tornaria Portugal, realisados todos estes alvitres.--Deseja-se que no Parlamento se alevante um homem. Antes de tudo, é necessario que a Imprensa, representante n’este caso da opinião publica, tome a si o excital-a ainda mais, o esclarecel-a sobre os meios, o alvitrar, o discutir, o convencer os incrédulos, o afervorar os tibios; emfim, que procure compenetrar-se de profunda fé, para a transmittir egualmente profunda a seus ouvintes; armar se de constancia, de pertinacia, de _fanatismo_ (se é licito dizel-o) até ver consumada a regeneração. O Jornalismo, que, podendo, deixa de ser missionario do Progresso, é alguma coisa peor que uma ociosidade: é um musgo, que devora á arvore multiforme da instrucção proficua, parte da seiva que a devia alimentar. Em vez pois das questões futeis e ephémeras, saturnaes da Imprensa, que ás almas bem nascidas já repugnam; em vez das quotidianas batalhas dadas no campo das utopias, com descargas cerradas de impropérios; dêem os jornaes, uma e muitas vezes, parte das suas columnas, como expiação (quando mais não seja), á exhortação para a fraternidade agrária, exhortação que se tornará de tanto maior pezo, quanto elles proprios, os jornaes, discordes em todos os outros pontos, se apresentarão n’este unanimes e amigos. Mais: alguma porção do espaço que por posse velha vão encher ás folhas estrangeiras, de novellas excusadas (quando não nocivas) de anecdotas ridiculas, de vanidades de toda a casta, franqueiem n-o a originaes, traducções, ou imitações, que, ensinando ao lavrador alguma novidade util, no tocante ao seu officio, lh’o ensoberbeçam aos seus proprios olhos, pela prova de que a Imprensa, os sabios, e as nações crescidas e policiadas, o não desprezam. * * * * * Dada e conservada aos espiritos, por via dos periodicos, esta saudavel e fecunda excitação, o arbitrio de se formarem Associações promotoras da Agricultura espontaneamente nasceria, se fosse possivel que a mesma Imprensa se houvesse esquecido de o suscitar, e aconselhal-o. ¿Presumimos nós demasiadamente dos nossos collegas, os escriptores publicos, quando para tal coadjuvação os convidâmos? Certo que não. O amor patrio, que todos elles professam, o egoismo que todos nós temos, a louvavel ambição de contribuir para um resgate, e depois tambem a precisão de refocillar a espaços a alma, fatigada de sobresaltos e pelejas, tudo nos afiança que a maior parte d’elles, pelo menos, acudirá ao chamamento: e primeiro que nenhum o _Diario do Governo_, pois por vinte rasões o deve, e por mil modos o pode mais que todos. * * * * * ¿Como se formou a Sociedade promotora Michaelense? Pela vontade de alguns poucos particulares amantes do seu torrão; sem prévia suggestão externa, sem mão que de cima se lhe estendesse. Nasceu por si, e de si; foi uma formação espontanea; e comtudo vingou, cresceu, e aqui a estamos já hoje citando por modelo. Logo, onde quer que haja tres ou quatro cidadãos egualmente esclarecidos e zelosos, esses poderão o que estes poderam; e tanto mais facilmente ainda o poderão esses, quanto haverão, para os guiar, a experiencia dos seus predecessores, as lições do tempo para se amestrarem, e já maior favor publico para os influir. Começadas por pequeno mas forte nucleo nos pontos do territorio mais bem situados, ou mais bem relacionados para servirem de centros, as Sociedades promotoras da Agricultura não tardarão em se encorpar e robustecer, absorvendo e assimilando em si quantos homens, quantas influencias, quantos meios de acção, se encontrarem ao seu alcance. Estas Sociedades primordiaes, conviria talvez, que fossem tantas em numero, quantas são as terras, em que ha uma capital administrativa, e uma séde episcopal, ou mesmo uma só d’estas duas poderosas entidades. Sob a presidencia de taes cabeças, eil-as ahi podendo desde logo diffundir em torno de si, por toda a parte, Sociedades filiaes. Pelo Governador Civil, cada Administração de Concelho formaria a sua. Pelo Bispo, aggregar-se-hia uma á sombra de cada campanario. Algumas, bem o antevemos, abortariam pelo desfervor, pela ignorancia, ou pela impopularidade de um ou de outro d’estes agentes subalternos; mas outras pululariam, não semeadas, no logar d’essas; e, quando mesmo ficassem na seára, aqui ou acolá, algumas rareiras, paciencia; o fruto da restante sobraria para consolar. Por este systema, as luzes se diffundiriam dos grandes focos, por uma irradiação constante, para todos os pontos; e de todos os pontos convergiriam para os grandes centros as noticias dos resultados das tentativas, para ahi serem comparados, pesados, e formulados em regras; e o clamor das precisões locaes, para se lhes dar logo, ou se lhes sollicitar de mais alto, o competente remedio. * * * * * Imaginemo-nos já chegados ao tempo, em que taes votos sejam cumpridos. ¡Que movimento nos espiritos! ¡que actividade nos homens! ¡que producção na terra! ¡que aproveitamento do tempo, das forças, e dos cabedaes! ¡que duplicação na sociabilidade! ¡que fraternisação das cidades com os campos! Desappareceram os mendigos; todos os braços acham trabalho; todo o trabalho cria pão; o Thesoiro recebe sem sacrificios, paga sem tergiversações, resgata o passado, olha para o futuro sem pavor, ouve bençãos em vez de maldições; da sua voragem vulcanica rebentou uma fonte, que nunca mais ha-de seccar; todo o Paiz ri, floreja, e canta; todas as aldeias enxameiam em creanças, como todas as charnecas em frutas e casaes; os rios e as estradas carreiam abastanças; bandeiras de todas as Nações se esvoaçam em cardume nos portos, permutando com os productos do solo as obras das suas industrias variadas, e ainda parte do seu oiro. Sim; a tamanho paraizo nos pode chegar a Agricultura, só com a mera protecção dos cidadãos; mas protecção crente, energica, regular, e inquebrantavel, sem até se necessitar de que o Governo directamente a coadjuve; basta que lhe não empeça, e lhe remova um ou outro estorvo grande e conhecido. * * * * * Desenhêmos agora em contornos as rodas d’esta machina de Sociedades, que tantos milagres ha-de perfazer, e indiquemos o seu movimento, e o seu jogo. Cada Sociedade-mãe terá sempre em vista dois objectos capitaes: infiltrar nos lavradores e operarios rusticos a possivel instrucção análoga, proporcionando-lhes, ao mesmo tempo, meios para aperfeiçoamentos; e sollicitar dos poderes supremos do Estado a promulgação de boas Leis agrarias, a revogação ou emenda das damnosas: O primeiro fim conseguil-o-hão: estabelecendo e augmentando continuamente, com discernimento e desvelo, uma bibliotheca de Agronomia, Veterinaria, Historia natural, e mais sciencias accessorias; dando ao publico, por via de catalogos impressos, uma noticia succinta de taes obras, facilitando o seu estudo a todos os interessados, quer sejam socios, quer não; discutindo nas suas sessões todos os pontos agronomicos de interesse local; recebendo, e até provocando, consultas sobre as materias duvidosas, procurando, por meio de estudo e debate, acudir-lhes com solução prompta; publicando um Jornal de Agricultura, accommodado principalmente á natureza, condições, circumstancias, interesses, illustração, e costumes, do seu Districto; por meio d’este Jornal aconselhando as sementeiras e plantações novas de vantagem bem averiguada, a importação de novos animaes uteis, ou de aperfeiçoadores das raças já existentes, bem como o uso dos instrumentos serviçaes, inventados ou aperfeiçoados; encarregando-se de mandar vir qualquer d’esses objectos para qualquer cidadão que lh’os encommende, mediante uma segurança que responda pelo reembolso; procurando ter, a par com a bibliotheca, um deposito de instrumentos e machinas, em grande ou em modelos, ou, quando menos, em estampas, e sempre franco; de algumas das machinas ou instrumentos tendo mesmo para alugar ou emprestar áquellas pessoas, que para os comprarem não possuirem meios; inserindo constantemente no seu periodico, em linguagem chan e sincera, o quadro das operações ruraes immediatas para o Districto agrario da sua residencia; renovando de anno para anno este trabalho, sempre a melhor; fazendo annualmente uma festa rural para distribuição de premios, tanto aos lavradores e creadores, como aos fabricantes de objectos de primeira necessidade, aos inventores e autores de alguma coisa util, aos mestres que mais fruto houverem produzido no ensino primario, e mesmo ao homem ou á mulher, que, por alguma excellencia moral, haja merecido um solemne testemunho de apreço e gratidão dos seus concidadãos; estabelecendo emfim, que esta festa rural caia, se fôr possivel, na estação formosa, e coincida com a principal romaria, ou festa religiosa, ou feira, do seu Districto, procurando imprimir n’este acto a maior solemnidade religiosa e civil; para o que, os Prelados e os Governadores Civis com a melhor vontade coadjuvarão. Quanto ao segundo fim, facilmente se desempenharão d’elle as Sociedades-mães, examinando, com circumspecção e madureza, por via de discussão nas suas sessões, e de publicidade no seu jornal, e em outros, os pontos carecentes de reformação legislativa ou executiva, quer em relação aos tributos e direitos, quer ás isenções, quer aos premios, quer aos tratados de commercio, quer ás communicações de terra e agua, etc. * * * * * Para quasi todas estas coisas necessitam de dinheiro as Sociedades mães; e nem é justo, nem prudente, pretender que sobre os homens zelosos que as compõem caia mais esse ónus; antes é nossa opinião, que de nenhum d’elles se deve exigir nem joia, nem mensalidade, nem quotisação. Pelo contrario: se fosse possivel, todos os que ás sessões concorressem, todos os que trabalhassem, haviam de ter direito a uma determinada remuneração, como em certas Academias Reaes e dotadas acontece. Fôra isso mais um penhor de estabilidade, mais um estimulo para acção. ¿D’onde porém ha-de vir o dinheiro? de uma loteria annual do Districto, autorisada pelo Governo, e cujos premios poderiam ser em bens de raiz, animaes, e instrumentos agrarios; premios muito mais prestadios que o dinheiro, em relação aos fins do instituto. Poderia vir mais, de doações ou heranças (que não deixaria de as haver), logo que a experiencia houvesse demonstrado a firmeza e efficacia de taes institutos. Os documentos d’esta asserção acham-se em bom numero nas historias das Misericordias, Hospitaes, Albergarias, Casas-pias, Asylos de infancia e de velhice, e mais instituições de beneficencia, tanto dentro como fóra de Portugal. Poderia vir de beneficios nos theatros, assemblêas, phylarmonicas e outras. Poderia vir, e muito provavelmente viria, de christianissimas oblatas dos Prelados. Poderia vir do producto dos alugueres de animaes para creação, e de instrumentos. Poderia vir da venda dos jornaes, cathecismos, e mais obras uteis vulgarisadas pela mesma Sociedade. Poderia vir, finalmente, de uma quinta, ou predio exemplar, propriedade que cada uma das Sociedades mães deveria ter, para as suas experiencias e demonstrações praticas, e com que, ao mesmo tempo que ensinasse mudamente aos seus visinhos, redobraria a fé e fervor nos seus consocios. Em summa: tudo quanto concorresse para abastar, acreditar, influir, radicar, e perpetuar estas Sociedades, poderosissimos focos de fecundação, tudo seria para tentar e aproveitar. Quizeramos nós ver já chegado o tempo, em que cada uma d’estas Sociedades promotoras ha-de reunir no seu gremio todas as illustrações agricolas e scientificas dos seus contornos, todos os proprietarios territoriaes e industriaes, os philanthrophos e caritativos, os ricos e os negociantes, as autoridades e as forças de todo o genero, os mundanos mesmo, e até os avarentos. Tomáramos vel-a no meio de um torrão bem seu, bem cultivado, bem jardim e bem palmito; em casas suas bem suas, bem alegres, bem hospedeiras, bem convidativas; com a sua bibliothecasinha muito franca; com o seu deposito patente de instrumentos e machinas, arsenal de guerra contra a esterilidade. Tomáramos vel-a, centro attractivo para os passeios dos domingos por entre as hortas frescas, os pomares avergados, as searas luxuriantes, e os jardins ridentissimos. Ás conferencias de tão feiticeira corporação, ¿como deixariam de concorrer até as damas e os mancebos, com mais fervor que aos Parlamentos, quasi com tanto como aos theatros? * * * * * Eis collocadas as rodas grandes, ás quaes o juizo do Governo e o do publico hão-de servir de motor e mola real. Consideremos as pequenas rodas, as que, engranzadas com estas, e recebendo d’ellas o movimento hão-de ir actuar sobre cada pequeno lavrador, sobre cada palmo de terreno. São as Sociedades filiaes. Compôr-se ha cada uma d’ellas dos grandes ou pequenos cultores, proprietarios, e mais interessados da circumvisinhança, sob a presidencia do Parocho, do Administrador do Concelho, ou qualquer dos socios, preferido á pluralidade de votos. Reunir-se-hão em dias e horas, em que a cessação, dos trabalhos ruraes lhes dê vaga para discutirem, e aos não socios occasião para assistirem á discussão, e illustrar-se. O jornal da Sociedade-mãe subministrará a estas Sociedades-filhas assaz de pontos de sólido interesse, com que se occupem. Quando porém assim não aconteça, as conveniencias locaes são em toda a parte um thema inexgotavel. N’estas pequenas reuniões se elaborarão os projectos de melhoramento, e se procurarão os meios para se elles realisarem. Os melhoramentos podem depender unicamente de boa vontade e exforços dos moradores da terra; podem depender de soccorros intellectuaes ou materiaes da Sociedade-mãe; ou podem ser taes, que só o Throno, ou só o Parlamento, lhes abra caminho. No primeiro caso, a Sociedade-filial, por si e pelos seus adherentes, tratará de os realisar; no segundo caso, recorrerá á Sociedade-mãe para que lhe acuda. No terceiro, recorrerá ainda a ella, para que requeira, apadrinhe, e faça apadrinhar o requerimento. Cada uma das Sociedades filiaes estará pois em continua correspondencia com a respectiva Sociedade mãe, com mutua e manifesta utilidade; pois se, por um lado, as innovações e progressos podem vir das nações mais peritas em Agricultura até ao casal mais embrenhado nas serras, como, pela irrigação, as aguas, hauridas das entranhas da terra, vão desde o tanque que as recebe, até ao pé da plantinha mais afastada na fazenda, por outro lado, e em compensação, todas as phases e circumstancias das culturas parciaes, nas suas ultimas ramificações, convergirão, por que assim o digâmos, para o sensorio commum do Districto, habilitando-o d’est’arte a raciocinar, com exacção e segurança, sobre as necessidades e conveniencias de todos e de cada um. * * * * * A estas propostas, pede o rigor logico ajuntemos outra, que lhes valerá de complemento natural. Esta proposta, a mais importante de todas quantas se podem fazer, é a creação de um _Ministerio dos negocios da Agricultura_. N’este Ministerio se centralisariam as luzes de todas as Sociedades-mães. N’elle, como em um espelho concavo, se reuniria, transmittido por ellas, o conhecimento preciso de todas as fracções topographicas do Paiz; e, como de um espelho convexo, d’elle se dispartiriam para os pontos mais remotos, como para os mais proximos, providencias salvadoras. O Ministro da Agricultura, lavrador elle mesmo, comporia a sua Secretaría de homens da sua confiança, de reconhecida honra, patriotas, amantes da terra, agricultores, proprietarios ruraes, ou naturalistas. Auxiliado pelas luzes de taes empregados, pelas luzes e communicações da Imprensa, e pelas representações das Sociedades-mães, elle poderia não só dar quotidianamente mil providencias importantes comprehendidas nas suas attribuições, mas ainda apresentar ao Parlamento grandes projectos para Leis salvadoras, que não tardariam a ser sanccionadas. * * * * * Resumâmos-nos, e terminemos. Portugal está pobre; não tem para pagar as dividas; não tem para se manter; e de anno para anno se deteriora a sua sorte. O presente é um martyrio: o futuro, que deve resultar da continuação de tal presente, horrorisa a imaginação. Portugal está desatado; ha insociabilidade, ha odios mutuos e acerbos, e que, herdados e transmittidos pela educação, se tornarão ainda mais implacaveis. Portugal (consequencia legitima das duas verdades precedentes) tem a sua moralidade relaxada, ou perdida. O instincto de vida lhe está aconselhando Agricultura, como riqueza, como vinculo, como civilisação. Portugal tem terras, que pedem braços e população, e tem muitos milheiros celibatarios ociosos, que folgariam de as cultivar; tem um Exercito, que o devora, tanto quanto o podia opulentar, e cuja existencia se não abona por nenhuma sincera consideração de independencia, de paz, ou de ordem publica.[1] A philosophia, que festejou a abolição total das Ordens religiosas, a despeito de tão fortes argumentos moraes e juridicos, requer, sob pena de flagrante inconsequencia logica, a secularisação d’estes conventos militares. Quem expulsou os Frades, do claustro para a fome, ¿por que não convidaria os Soldados, do quartel para a lavoira? O paralello entre os Soldados e os Frades poderia ser extenso, e conteria um grande poder de argumentação _a fortiori_; mas é obvio; qualquer por si o fará em querendo. Portugal tem, afóra o Exercito, um crescido numero de individuos e de familias, que definham, que, litteralmente falando, morrem á fome. ¿Qual d’essas familias, qual d’esses individuos, recusaria um torrão, fosse onde fosse, se todo o torrão, com a boa vontade, é meza posta? Dados á Agricultura operarios, que existem, e que lhe falecem, ella mesma pela sua energia vital intrinzeca se desenvolveria, pois vemos que assim mesmo, ao acaso e desajudada, lá começa a revolver-se para se querer alevantar. As Sociedades promotoras augmentariam e dirigiriam essa mesma energia, chegando com a sua acção, de um lado pelas Sociedades secundarias, até aos casaleiros; do outro lado, pelo seu crédito, pelas suas relações, pelo seu valimento, até ás Camaras legislativas e ao Governo. O Ministerio dos negocios da Agricultura daria unidade aos movimentos d’este vasto e bello corpo. Então o futuro estaria conquistado, as dividas mortas, os males sanados e esquecidos. Então haveria força publica, porque haveria fé; haveria em todos os corações amor da Patria, porque haveria a todos os olhos uma Patria para amar. A guerra interna seria impossivel. A guerra externa, se podesse jamais accommetter-nos, veria rebentar da terra exercitos invenciveis, porque defenderiam as suas lareiras, as suas hortas, e os seus filhos. O Thesoiro trasbordaria para todas as artes preciosas da paz, porque haveria fontes perennes e copiosas para a sua alimentação. * * * * * ¿Será isto uma utopia? ¡Utopia!... A utopia, a chymera, o absurdo, é pretender colher fruto de arvore sem raiz e carcomida de musgo; é presumir, que a um edificio arruinado se acode remendando lhe com barro, aqui e acolá, as paredes exteriormente; é cuidar, que se ressuscitará um afogado calcando-o para o fundo do lodo, e lançando-lhe penedos para cima. A utopia, a desgraça, e a miseria, é crer que as palavras, as estenographias, os algarismos, são capazes de crear coisa alguma. Creadores, abaixo de Deus, não os ha senão o campo, e o amor. O senso commum o sabe, e a Historia não sabe outra coisa. Feliz o Deputado, que entrasse pelas salas do Parlamento com um projecto de organisação agricola, egual ou semelhante a este, e, levantando o por cima da sua cabeça, exclamasse: «Por amor de vós e da vossa descendencia, salvemos a Patria, hoje que ainda é tempo. Adiemos, por consenso unanime, todas as outras questões alcunhadas maximas. Decidida esta, todas se haverão n’ella resolvido.» Setembro de 1848 NOTAS DE RODAPÉ: [1] Na _Revista Universal_, artigo 1378 do 2.ᵒ volume p ponderámos falando no orçamento do Ministerio da Guerra. IV Continuação SUMMARIO A organisação de Sociedades, já proposta, não se deve regeitar, ainda que se reconheça por defeituosa.--Deseja o autor, que todos os homens de algum poder sejam utopistas como elle.--Liga promotora dos Interesses materiaes do Paiz; seu Elogio, com uma restricção.--Um Banco para adiantar dinheiro aos lavradores fará muito beneficio, mas só quando Parlamento e Governo agricolas houverem proporcionado ao lavrador instrucção, dado protecção aos seus trabalhos, aberto caminho, sahida, e emprego aos seus productos.--Outra vez Sociedades agricolas.--Propõem-se succintamente alguns alvitres.--Os estatutos das Sociedades uteis não pagarem direitos.--A importação de coisas uteis á Agricultura, premiada.--Premios aos melhores lavradores, aos introductores de novidades agrarias, aos autores e traductores de obras agronomicas praticas.--Quintas exemplares.--Mandae mancebos a outros paizes, habilitar-se para vir ensinar Agricultura.--Escolas de Agricultura volantes.--Projecto de Lei de premios.--Ordem do Arado. A organisação que deixámos proposta é susceptivel de modificações e melhoramentos; firmemente o acreditâmos. ¿Que se segue d’ahi? ¿que se regeite, porque em vez de optima é só boa? ¿porque em vez de boa é só medíocre? Absurdo. A consequencia discreta e prudente é que, examinada, se emende; emendada, se approve; approvada, se experimente; e confirmada pela experiencia, se conserve, se radique, se abençôe, e se aproveite. ¿Não virá porém prematuro o alvitre? ¿Não estaremos cantando alvoradas a quem não está para acordar? ¡Ainda mal, que bem pode ser isso verdade! N’esse caso, desde já acceitâmos, antes que nol-o imponham, o epitheto de loucos; costumado e universal castigo de toda a vontade generosa, que primeiro mette o pé á vereda que algum dia tem de ser estrada. Oxalá, todavia, que alguns loucos sublimes, convencidos, como nós, de que já não temos salvação possivel senão pela Agricultura, e de que Portugal, como o Antheu da fabula, derrubado pelo Hercules do luxo, só da terra pode reassumir as perdidas forças, appareçam intrépidos a apostolar Agricultura; uns na Imprensa, que é a grande charrua de desbravar entendimentos; outros na tribuna, que é onde a rasão publica se concentra em Lei; outros no Governo, que é onde até sem Lei, não só ha, se não que sobram, forças para o bem; outros finalmente, e sobretudo, entre os cabeças administrativos, e os cabeças espirituaes do Povo. Para esses irmãos nossos em caridade e em patriotismo, é que vamos ainda escrever algumas poucas linhas das nossas solitarias utopias. Semeie o homem, que Deus a seu tempo fará nascer. * * * * * N’este momento lemos com a mais viva satisfação, em carta que nos chega de Lisboa, o seguinte: «Para melhorar a nossa Agricultura organisou-se agora aqui uma Sociedade, ou, por melhor dizer, Companhia, com o titulo de _Liga promotora dos Interesses materiaes do Paiz_, presidida pelo sr. Ayres de Sá Nogueira. O fim é agricola. Já celebraram duas sessões no salão grande do theatro de D. Maria II. Na ultima leu o Presidente um projecto, que reputava ancora de salvação, segundo o qual se deve crear um Banco rural em Lisboa, com o fundo de vinte milhões, em dinheiro, inscripções, apólices, tendo este Banco filiaes em todas as terras do Reino.» ¡Bemvindo seja, e vingue, e prospére abençoado nas terras de Portugal, este tutelar pensamento! Filho é elle, talvez, do que já em 13 de Fevereiro d’este anno se propunha, se acceitava, e se applaudia na Sociedade promotora da Agricultura Michaelense, e que os nossos leitores se recordarão haver lido a paginas 36 e 37 do jornal d’aquella Sociedade (Assignalamos esta circumstancia, porque, se o alvitre foi de gloria para San-Miguel, a adopção do alvitre bom não honra menos a Portugal)[2]. Sim; é esta uma providencia, que alegra, e retinge de esperanças bem verdes o solo sobre que se alevanta; é como nuvem chuvosa, que se estende sobre o terreno requeimado e empobrecido do estio; todos os rostos se riem á sua aproximação; os visinhos dão aos visinhos os parabens; todos saem alvoroçados a receber-lhe as primeiras aguas; os rebanhos, mesmo a festejam; as aves a cantam, sacudindo as azas humidas; pela superficie da vegetação corre um frémito voluptuoso. Sim; grande e grandioso é o beneficio; ¿mas será elle bastante? não: as necessidades agrarias são variadas, numerosas, digamos infinitas. Mal se acode a uma, se a todas se não acode; pelo menos a muitissimas e ás principaes. * * * * * Suppomos, imaginamos já, o oiro e a prata a choverem á porta do lavrador na vespera da sementeira, da plantação, do arroteamento; ¿e que digno uso fará o triste rustico d’esses meios de acção, d’essas forças que se lhe liberalisam, d’essa colheita, que se lhe antecipou ao trabalhar, se lhe minguam luzes de sciencia alheia, ou sua, que o dirijam? ¿vontade intima, que lhe dê impulso? ¿certeza, ou quasi certeza, de consumo ao que vai produzir? ¿Que fará emfim, se, ainda tendo tudo isto, Leis viciosas o avexarem no seu officio, lhe arrancarem os operarios e os filhos para a milicia, lhe multarem com tributos o suor, como se devêra multar a ociosidade, o luxo, e os vicios, e lhe exposerem a herdade a ser talada pela guerra civil, os bois do seu arado comidos, as ovelhas do seu adubío espingardeadas, o carro e as arvores do seu pomar convertidos em fogueiras para aquecer a tropa rôta, ou a guerrilha descalça e bandoleira que transita? N’uma palavra: ¿que aproveitará que o predio se lhe desentranhe em frutos, como uma cornucopia, se a estrada para o mercado não existe, se o rio convisinho, que deve transpôr, não tem ponte, se o que podia carrear-lhe os moios se obstruiu, e apodrece dormente pelas margens usurpadas? Eis aqui chagas velhas, asquerosas, e envenenadas, que a nossa Agricultura padece em todo o corpo, e para cujo curativo não é sufficiente balsamo um Banco rural. Se de veras queremos ser salvos, não ha remedio senão soccorrermo-nos a uma reforma e organisação franca, sincera, absoluta, cabal, completissima: Côrtes mais lavradoras que financeiras; mais lavradoras que politicas; ou antes muito _politicas_ por muito _lavradoras_; Leis agrarias, e mais Leis agrarias; e para todas as anti-agrarias suppressão e execração; um Ministerio da Agricultura fecundo, dadivoso, vigilante, e incançavel como o seu objecto; e, sobretudo, associação universal dos homens bons, dos homens intelligentes, dos homens de sciencia, dos homens de fortuna, dos homens de acção, dos homens de valimento, dos homens patriotas, dos homens de bem, dos homens homens, finalmente. Repitâmol o, ainda a risco de enfadar, e repitâmol-o, porque é Evangelho: não ha sacrificio, que, por grande, se deva recusar á terra, pois é ella só que possue o segredo, que os estadistas procuram cegamente nos livros e nos calculos. Não é no perseguir uns, no divinisar outros, e no trocar todos com perpetuo e devastador fluxo e refluxo; é no associal-os entre si, e reconcilial-os com a mãe-Terra, que está a condição facillima de todas as venturas. * * * * * As Sociedades promotoras, quaes as havemos bosquejado, seriam para o lado dos operarios rusticos pharol, bussola, thesoiro, conselho, estimulo, protecção, refugio, canal para a entrada dos gados, das sementes, dos instrumentos novos, e para a sahida e venda dos productos. Para a parte dos que governam seriam não menos pharol, não menos bussola, não menos thesoiro, não menos conselho, não menos estimulo, não menos protecção, não menos refugio, não menos segurança e felicidade; pois que a felicidade e segurança dos governantes, só da felicidade e segurança dos governados se compõe, e só d’ellas se pode compôr. Assumpto era este para interminaveis commentarios; mas estreiteza de papel, mas estreiteza ainda peor de vontade em quem nos ha-de ler (ou não ler) nos acovarda. Dizer tudo, não o podemos; tudo calar não nol-o soffre o coração. Vamos cerrar em epilogo mais algumas lembranças, que ahi fiquem já, de proposta á consideração das futuras e das presentes Sociedades agricolas, do futuro Ministerio da Agricultura, dos Deputados, e da Imprensa. * * * * * I--Se a associação é a mãe dos prodigios; se os que se associam dão, por voluntario tributo, tempo, trabalho, despezas, a um interesse publico; ¿não é repugnante contradicção que o Governo, representante natural de todos os publicos interesses, lhes carregue ainda os onus, e, a troco de uma illiberalissima sancção de seus estatutos, de uma inintelligivel licença para existirem, lhes exija nas secretarias uma avultada somma pecuniaria? ¿Não deveriam antes as associações agricolas, as industriaes, as artisticas, as litterarias, e ainda as de mera e honesta recreação, ser tão livres como são em nossas casas os convites, os bailes e os festejos? E ainda mais: ¿as uteis não mereceriam, em vez d’esta compressão á nascença, premios e louvores segundo a sua importancia? II--¿A introducção de tudo quanto pode contribuir para o aperfeiçoamento da Agricultura não deveria ser, da mesma sorte, não só isenta de direito, senão ainda premiada? III--¿Não seria sobre modo util legislar mais premios, para os que no trato da Agricultura se extremassem? ¿Quem universalisou a cultura da batata, senão o premio? ¿Não deveria semelhantemente havel-os para todos os primeiros introductores de novidades agrarias, para os autores, mesmo para os traductores, de escriptos agronomicos de uso pratico, verbi-gratia imprimirem-se-lhes gratuitamente esses escritos pela Typographia Nacional? IV--¿Não é já tempo para a creação de quintas exemplares? V--¿Não seria ajuizadissima providencia enviar mancebos, previamente habilitados, matricular-se nas escolas agrarias praticas das nações adiantadas, os quaes, depois de viajadas a França, a Allemanha, a Inglaterra, a Italia, a Suissa, se recolhessem mestres e regeneradores para entre os seus conterraneos? VI--Os lavradores, os camponezes em geral, dir-se-hia que, semelhantes ás plantas, lançam não sei que raizes no torrão nativo. A ideia de se desviarem, mesmo para perto e para pouco tempo, lhes repugna; o seu viver tem as demarcações da sua fazenda. E depois, fallecer-lhes-hiam os haveres, para se irem tão longe á escola rural; os haveres, e o animo tambem, que entretanto ahi lhes ficava a herdade sem tutella, a casa sem escora, os paes alquebrados dos annos, sem bordão nem companhia. ¿Não fôra logo uma providencia tão santa como philosophica e fecunda, fazer d’esses regressados viajantes--agrónomos, professores ambulantes de Agricultura, que se fossem de Districto em Districto, e de Provincia em Provincia, doutrinando como Apóstolos? ¿assentando hoje aqui a sua escola, á sombra da arvore rustica no alto do oiteiro, e tomando para thema da prégação os predios circumjacentes; os mais bem cultivados, assim como os mais errados e perdidos? ¿d’aqui a um mez, mais longe, em cima das médas da eira, por uma noite de luar, adubando os preceitos, no meio dos ouvintes apinhados, com episodios da sua Odyssêa por terras alheias, com apraziveis digressões, sempre bem vindas, sobre a Sabedoria e Liberalidade Divina? Como os Apóstolos antigos, estes evangelisadores do trabalho, em toda a parte assignalariam com milagres a sua passagem; as gandaras se transformariam em seáras debaixo de seus pés, em pomares e mattas por cima de suas cabeças; os baldios, em pastagens; os gados famintos, em lustrosos rebanhos e manadas; a arca mal cheia, em celleiros atulhados; a borôa sem conduto, em meza saborosa; a choça lodacenta, em casinha de sobrado e vidraças, com dois ou tres livros para o serão, um leito alvo e fôfo para a noite, e um oratorio, sempre enfeitado de flores frescas, para as acções de graças quotidianas. Tudo isto, que é infinito para a felicidade, o haveria feito o passeio de um só homem pela provincia. Quando elle houvesse passado, mandasseis muito nas boas horas o exactor dos tributos; não havia de voltar com as mãos vazias. VII--Seja-nos permittido citarmo-nos a nós mesmos, transcrevendo para este papel de consciencia o que em outro papel, tambem de consciencia, escreviamos em 17 de Abril de 1845, por occasião do relatorio do Barão Thénard sobre a admiravel Exposição da Industria franceza n’esse anno. O conselho que então davamos, ninguem dirá que fosse insensato, nem vergonhoso ou ruim de receber, nem que, recebido, podesse ser improductivo; e entretanto.... soou no deserto; não encontrou um só ecco pelo Parlamento, nem pelo Governo, nem pela Imprensa; ainda dormiam todos. Agora que já a miseria cresceu, em tres annos, mais tres seculos, repetimol-o. Pode ser que já alguem tenha acordado. ¡Oxalá!: «Reflicta-se no exemplo d’aquella grande Nação, a França, e cuide-se em o imitar. Lá a par da invenção, apparece constantemente o premio. Convidar e abrir salas aos productos da Industria, alguma coisa é, mas não basta. Para os espiritos capazes de crear, seja em que genero fôr, não ha estimulo como o do premio honorifico; e o premio honorifico, as medalhas de oiro, de prata, ou de bronze, recebendo-se como thesoiros, podem custar pouquissimo a quem as dá. Tantos não são os premiaveis n’este pequeno Reino, que hajam taes premios de montar a muito; e ¡oxalá que subissem a contos de réis! A esta verba nova de despeza do Estado corresponderia outra de receita milhares de vezes maior. Fundada no exemplo da França, dos Estados-unidos etc., parece-nos que nenhum serviço mais relevante poderia fazer a Sociedade promotora da Industria nacional, do que offerecer ao Governo, para elle apresentar ás Côrtes, um projecto de Lei de premios para os inventos e aperfeiçoamentos. A nossa proxima futura Exposição poderia sahir dez vezes máis esplendida e animadora, que a passada. ¿E não conviria até, e não seria inteiramente conforme com o espirito d’este seculo, crear uma Ordem nova especial para os benemeritos da Industria, como nos tempos guerreiros se creavam tantas para os extremados no exforço? ¿Será mais honrosa, e será sobre tudo mais util, a heroicidade militar, que o engenho creador e renovador da terra?» Assim bradavamos nós em favor de todos os generos de Industria. Hoje limitamos o requerimento á Industria mãe de todas: á Agricultura. * * * * * Homens, que o Povo escolhe e envia, e a quem paga, para lhe formulardes em Leis a sua vontade, mostrae-vos dignos de tão alta missão; decretae a ORDEM DO ARADO. Outubro de 1848. NOTAS DE RODAPÉ: [2] Pode consultar-se o _Agricultor Michaelense_, publicação mensal, orgam da Sociedade, n.ᵒ 2, de Fevereiro de 1848. Refere-se Castilho a uma proposta do seu consocio José do Canto, intitulada _Banco Rural_. NOTA DOS EDITORES V Côrtes agricolas SUMMARIO A Patria está em perigo; deve-se deixar de curandeiros. O campo e o trabalho hão-de salval-a.--Singular historia de um mancebo Inglez.--O regresso da Agricultura não é desagradavel, nem vil, nem rude; e é o unico possivel para nós.--Desenvolve-se a já tocada idéia de Côrtes de lavradores.--Prova-se, que só por este meio teremos Governo, que mereça o nome de representativo.--Quadro de um tal Parlamento. Não saiâmos da cabeceira da nossa querida e atribulada enferma. Foi poderosa, opulenta, rainha, e bella; jaz sem forças, nua, desprezada, e agonisante; só a belleza não perdeu ainda. De mais, é nossa mãe. D’ella e n’ella nos formámos e nos nutrimos; d’ella recebemos a vida, a fala, as orações da infancia, os conhecimentos, os brasões, as glorias de todo o genero; d’ella os objectos de todas nossas affeições mais intimas. O seu ser é o nosso ser; os seus infortunios são nossos; a nossa prosperidade seria a sua. Gratidão, piedade, interesse, sentimento religioso, nos obrigam a não desamparar a Patria, em quanto respira. Superior a ella, não ha senão o genero humano, como acima do genero humano só ha Deus. Mas, pela admiravel harmonia, com que a universalidade das coisas está ligada, não só a Deus e ao genero humano serve quem serve á Patria, se não que serve ainda á familia, e ao seu proprio individuo. Irmãos, não nol-o dissimulemos: a enfermidade de nossa mãe é grave; os seus males, complicados e antigos; o seu virar-se e revirar-se tão a miudo, sem poder estar de lado algum, prova desequilibrio geral nos principios vitaes. Se a queremos salvar, e salvar-nos, não ha remedio senão lançar fóra todas as beberagens, com que medicos e charlatães nol-a teem peorado de dia para dia, e recorrer a novo tratamento. ¿Mas qual? o que muitas vezes tem salvo a doentes já desenganados da medicina: os ares e os exercicios do campo. * * * * * Um mancebo Inglez, nobre, opulento, e excessivamente mimoso da fortuna, via-se chegado pelos prazeres á insensibilidade, e pelo abuso da vida ao inevitavel termo d’ella. A Natureza o abandonava; a alma se lhe anoitecêra; no coração mesmo não lhe vicejava já um só desejo, a não ser o vago instincto de existencia, que é o _ultimum moriens_. Nem a mocidade nem a fortuna tinham já forças para reanimar a sua victima. A sciencia, baldadas as derradeiras tentativas, lhe voltára as costas confusa e desconsolada. Não era um moribundo aquelle homem; era um morto. Para ser enterrado só lhe faltava o acabar de cahir. Em Paris estava; estatua entre danças; acipreste entre flores; holocausto entre fragrancias e musicas; e o seu derradeiro sol ia pôr-se. Reune os servos; despede se d’elles, que choram recebendo os copiosos effeitos da sua liberalidade. Cerra n’um cofre os papeis, algumas joias, e um retrato de mulher formosa... que se esquece de beijar; e, guardando a chave, entrega ao seu hospedeiro este deposito, com tal declaração de ultima vontade: --«Se eu não voltar dentro em um anno, arrombae este cofre; arrecadae para vós as preciosidades que n’elle achardes; o de mais, que vos seria inutil, remettei para Londres á pessoa que ahi mesmo fica designada.» Não era ainda passado o anno, e já todos, os que o haviam conhecido, consagravam saudade e algumas lagrimas... (talvez uma lagrima) ao prematuro e ignorado fim de um mancebo amavel e bom, a quem a felicidade se azedára em morte. ¡Eil-o que reapparece, como que de baixo da terra! ¡Mas quão outro!¡ reverdecido e florescente! o rosto alto; as faces risonhas; os olhos vívidos; andar ligeiro; todos os movimentos faceis e graciosos. O semblante crestado revéla que foi o sol e a Natureza quem o retemperou. Pede o seu cofre; abre-o com alvoroço; dá as joias ao seu depositario fiel; mas o retrato.... ¡beija-o com lagrimas, com alegria, com soffreguidão! ressuscitára-lhe o coração com a saude. ¿Que feiticeira, ou que magico, operou tamanho prodigio? o TRABALHO, e a NATUREZA. O pouco vigor que lhe restava, empregou-o, como quem põe a ultima peça de cobre n’um jogo de parar, na tentativa de um viver duro e sóbrio; metteu-se ás estradas, obscuro moço de cavalgaduras; sujeitou-se a todos os caprichos dos viajantes, das estações e do acaso; despejou a pé, a léguas e léguas, e muitas vezes de um só fôlego, os caminhos mais asperos, como os suaves, por soes e chuvas, por neves e ventanias; dormiu contente onde a sorte lh’o deparou: aqui sobre o feno, ou ao lume; além entre lençoes; mais longe na terra nua e humida; a fome, cosinheiro optimo, lhe temperou o pão negro e os legumes grosseiros; o costume dentro em pouco lhe tornou agradavel o remedio, a principio amargoso. O exforço, que lhe reconquistára a existencia, ficou para lh’a guardar. A historia d’aquelle mancebo podéra ser lição para Nações. O luxo e o desconcerto tambem as matam, como aos individuos. Tambem, como aos individuos, o Trabalho e a Natureza as podem ressuscitar. * * * * * De mais, a occupação agricola para um povo nem sequer é desabrida. Se tem espinhos.... verdura, flores, e frutos lh’os disfarçam. Se a sua lida é continua, a variedade a acompanha; se lhe chamam canceira, ella é saude; se pobreza, ella a fonte de todos os haveres; se obscura e humilde, ella a menos dependente; se rude, ella a mais cheia de conhecimentos praticos, a mais visinha do Creador, e, como tal, a mais fecunda em inspirações. Accrescentemos que para Portugal não ha já hoje outra occupação possivel. ¿A conquista? não. ¿Os descobrimentos? não. ¿As minas? não. ¿A industria? não. As nossas conquistas, os nossos descobrimentos, as nossas minas, a nossa industria, é o solo da Patria. É o unico mister para que ainda nos restam braços, instrumentos, forças, e liberdade. É o unico lavor, em que nenhumas invejas estrangeiras perigosas hão-de vir perturbar-nos. O Sceptro de D. Affonso Henriques, e o de D. Manuel, perderam-se; o de D. José quebrou-se. Sceptro, e não escárneo, só pode ser hoje no Throno Portuguez o de D. Sancho I, e o de D. Diniz. * * * * * Em um dos nossos precedentes artigos suscitámos a ideia de Côrtes lavradoras. Este assumpto, que desde então não cessámos ainda de considerar, cada vez se nos representa mais fundamental, e mais ponderoso para a nova e desejada reformação; e isto por muitas rasões; mas principalmente porque é por Leis novas que a Agricultura só pode ser protegida: e essas Leis, quanto mais agricola for o Parlamento que as dictar, tanto mais concretas e acertadas hão-de sahir. Quem primeiro estreou na terra virgem o arado creador, primeiro aos homens deu macio sustento em aureas messes, e em meditadas Leis costumes, Patria, Céres foi; tudo é dádiva de Céres. São palavras postas bem dignamente na bocca de uma das Musas por um dos maiores poetas do mundo, por Ovidio, que amava e praticava tambem a Agricultura, e, onde convinha, sabia elevar-se á Philosophia. * * * * * Como faremos nós, porém, para que o Parlamento se componha de verdadeiros representantes dos interesses agricolas? Excellentemente; facillimamente: associando-nos desde já, por toda a parte, para trabalharmos para as primeiras eleições _nacionaes_ em sentido _nacional_. Que as sociedades secretas enredem e machinem, no esconderijo das noites, para a candidatura dos seus politicos. Reunâmo-nos nós, ao olho do sol dos domingos, depois da Missa do dia, sobre a relva do adro de cada Parochia rural, a discutir qual é dos visinhos o que melhor cultiva a terra da Patria, o que tem mostrado mais sincero amor á lavoira, aos operarios, aos filhos, e a toda a familia; mais caridade para com os indigentes, mais desvelo para com os animaes do seu uso, mais observancia das Leis, mais actividade no grangear, mais innocencia e concerto no viver. Descobertas essas phénices (que existem, e depressa se descobrem) dêmo-nos fortemente as mãos para não commettermos a outrem os mais caros dos nossos interesses. Façâmos d’estas listas de consciencia, que possam entrar sem vergonha na urna, só então propriamente collocada na casa de Deus e da oração. E em verdade: ¡com que despejo se ousa ainda, depois de vinte e oito annos de experiencia e demonstração[3], chamar _representante_ ou _mandatario_, de Gôa ou dos Açores, o homem, de quem os Açores e Gôa não ouviram jámais falar, e que nem talvez, em carta geographica, jámais os visse! ¿Como veio o alemtejano procurador de Traz-os-montes, e o minhoto do Alemtejo, e quasi sempre o lisboeta de toda a parte, quando o triste (ou antes o alegre) tudo ignora de todo o Reino, afóra os corredores de S. Carlos, as alamedas do Passeio Publico, as galerias de S. Bento, e as arcadas do Terreiro do Paço, d’onde se sobe para as secretarias onde se requer? Eleições de facção. Eleições de dependencia. Eleições de compra, ou de compadria. Eleições sem côr, ao menos, de verosemelhança ou possibilidade. Eleições sem eleição. Eleições verdadeiramente fabricadas nas trevas, e para trevas. Comedia, que seria para rir, se não fosse para chorar, e mais van cem vezes que as dos tablados, pois que ahi, ao menos, se o actor não é a personagem que representa, apparece falando acertadamente como ella, e advogando nos termos proprios os seus interesses. ¿Fazem-no assim os representantes parlamentares? Pedi, a uma e uma, a cada Provincia, que vos mostre o rol dos beneficios, de que foi devedora ás diligencias da maior parte dos desconhecidos mandatarios em quem votou. Uma reforma para fazer, até por Lei, seria que ninguem podesse dar o seu suffragio a cidadão fora do seu districto demarcado. Então sim, que poderia existir de veras representação nacional. Os subornos seriam ainda possiveis, assim como os enganos de vontade, e as fraudes; mas do mero possivel ao certo, ao constante, ao inevitavel, vai infinita distancia; e de dois methodos viciosos (mormente onde se trata da felicidade de um Povo) é sempre ao menos vicioso que se deve dar a preferencia. * * * * * Ao Governo monarchico absoluto pôz a philosophia uma accusação peremptoria; a saber: a falsidade manifesta, e conseguintemente a nullidade, do seu fundamento unico, o _Direito Divino_. ¿Aos olhos d’essa mesma philosophia, como poderemos nós sustentar o chamado _regimen liberal_, se a sua base, tambem unica, a representação do Povo, fôr manifestamente uma chimera? ¿Ha ahi quem negue que ella o seja? ¿Onde está elle? ¿em que parcialidade? ¿e como o provaria? Confessemos, meus amigos, que todos havemos peccado até hoje um grande peccado contra a Liberdade e contra a Patria, e contra a nossa consciencia, e contra o senso commum. Confessemol-o, que será nobre, e sobre tudo será util, a confissão, pois a ella se poderá seguir a vergonha, á vergonha a emenda, e á emenda o remedio. * * * * * As sociedades eleitoraes, uma vez instituidas, poderiam estender a sua acção benefica a muito mais que á escolha e nomeação dos Legisladores. Não falamos já nas Juntas de Parochia, cujas attribuições, em ponto pequeno, são relevantes; mas as Camaras dos Municipios não são talvez de menos importancia que o Parlamento mesmo; já pela sua influencia, mais ou menos directa, na feitura dos Deputados, e na formação da Junta geral do Districto e do Conselho de Districto, isto é na acção legislativa e na administrativa, já pelas suas proprias attribuições municipaes, isto é maternaes, domesticas, e economicas. Em quanto só se procurarem campeões da Politica para Vereadores, como geralmente se costuma, os campos e as aldeias, a lavoira, e mil pequenas industrias, só terão padrastos em vez de paes. N’uma palavra: Para que o Systema representativo seja uma realidade, uma formosura, uma salvação; para que se coadune com o entendimento, com a vontade, com os multiplicadissimos interesses de todos; não é só util e necessario, é indispensavel, que os cargos electivos, de qualquer natureza que sejam, se dêem segundo as aptidões, para bem se preencherem sem respeito algum ás opiniões politicas, nem á indifferença e á incredulidade, pois muita gente ha ahi hoje, e da melhor em consciencia e em patriotismo, a quem tão longas decepções tornaram incrédula, e apparentemente indifferentista sobre os negocios publicos. Não nos explicámos bem. Ha muita gente, que, enfadada de ver a Politica substituida constantemente pela individualidade, as coisas pelas pessoas, e os principios pelas ambições, não vai enxovalhar o seu patriotismo na tauromachia das eleições, nem nas orgias dos clubs; conserva latente, e como que de reserva para melhores tempos, o seu patriotismo; mas que, chegada a hora de o mostrar por obras, o presentará inteiro, energico, productivo, desinteressado, incorruptivel, e inquebrantavel. Eis ahi, sobre tudo, os salvadores de que havemos grandemente mistér para Deputados, para Vereadôres, para Conselheiros de Districto, para membros da Junta geral de Districto, e das Juntas de Parochia, em summa, para todos os postos que forem electivos, desde a base até ao vértice da pyramide; ¡e oxalá que electivos fossem todos os cargos, havendo, por toda a parte para as eleições a confederação, que propomos, dos homens sinceros, de bem, e patrioticos! assim como ¡oxalá não houvesse um só cargo electivo em quanto a eleição fosse uma mentira e uma injuria! injuria tanto para os que diante da urna arremedam votar, lançando listas que não leram, como para aquelles sobre quem taes escolhas recaem; como para quem, no fundo de espeluncas, fabricou a seu bel praser essa expressão de uma vontade popular que não existe. Este alvitre, este conselho, esta supplica, que a philosophia, que a honra, que o santo amor da Patria dirigem a todos e a cada um de nós, só os ambiciosos vís, só os mal amigos da Patria, só os insensatos, os poderiam repellir. Maravilhosamente salutares para os governados, elles o são não menos para os governantes. O Rei, o Ministerio, que por esta estrada franca e descoberta uma vez se resolvessem a caminhar, seriam o mais popular e o mais abençoado dos Reis, e o mais duradoiro de todos os Ministerios. As revoluções não nascem de mais de tres causas: o horror instinctivo do homem para com o engano, para com a violencia, e para com a fome. O Governo representativo, assim, não seria uma burla; as consciencias fariam a sua obra sem coacção; e, por uma consequencia necessaria, Leis boas trariam por toda a parte abundancia, e com ella contentamento e bons costumes. O Povo, que não é jamais suicida, e tem um maravilhoso instincto do bem, defenderia como arca de alliança o Governo que a taes destinos o houvesse conduzido. ... _Deus nobis hæc otia fecit._ * * * * * Limitemo-nos porém ao nosso ponto primario, Côrtes agricolas, pois, conseguidas ellas, por ellas, que fazem as Leis, facilmente se conseguirão todas as outras necessarias innovações. Seja pois o incançavel empenho das sociedades eleitoraes, que desde já se devem formar, o contrabalançar, vencer, e destruir, a influencia maléfica das sociedades eleitoraes já existentes, secretas ou publicas, mas todas ellas exclusivamente _politicas_; diversas entre si, e até inimigas mutuas, mas todas comprovadamente impotentes para bemfazer. Á vista da incontestabilidade de ser a Agricultura a que só nos pode restaurar, poderia perguntar-se: ¿Não conviria votar unicamente em agricultores para Deputados? A nossa opinião é que o Parlamento deve conter de tudo; sem o que, não seria representação _nacional_; e por outra parte, a não ser assim, se acharia carecente de muitos conhecimentos necessarios. Entretanto, pela mesma rasão de dever elle ser representação _nacional_, deve compôr-se de lavradores a sua grande maioria, pois ou em exercicio, ou em propriedade, lavradora é, e lavradora deve ser, a pluralidade da nossa gente. Entretanto, como as nossas associações eleitoraes não hão-de ser as unicas a trabalhar, como as do egoismo mal entendido e incorrigivel hão-de sempre existir, e sollicitar com tanto mais força, quanto mais se sentirem contrastadas pelas nossas diligencias, prudentissimo arbitrio fôra que nos cerrassemos nós outros em esquadrão, para só votarmos em lavradores, e, quando muito, em um ou outro industrial benemerito e de esperanças. ¡Felizes, ainda assim, se os nossos eleitos constituissem a maioria, e se os exforços e machinações dos inimigos só lograssem pôr na teia parlamentar a proporcionada e necessaria mescla dos outros interesses secundarios! * * * * * Outra consideração, que muita força nos faz para instarmos pela maioria agricola no Congresso, é que, mesmo para só equilibrar os interesses da terra com todos os outros bem ou mal entendidos interesses, é indispensavel que os partidarios dos primeiros sejam muito mais numerosos que os dos segundos. A Arithmetica, com parecer de exacção absoluta, é, por via de regra, em coisas moraes, a mais erronea de todas as medidas. As decisões por votos nol-o provam a cada hora: nas assembleas _dez_ podem ser mais que _cem_, e todos os dias o são. Christovão Colombo era um só contra toda uma armada; Galileu um só contra todo o mundo: e todavia, com um só voto contra tantos, a America descobriu-se, e a Terra move-se. Não pretendemos inferir d’aqui o absurdo de que se outorgue a palma ás minorias; a nossa consequencia d’aquelle principio inquestionavel é que n’uma corporação destinada a um grande fim social, mas que por força tem de ser composta de elementos heterogeneos, alguns nullos, e não poucos hostis, se os presumptivos partidarios da boa causa são por sua natureza menos atrevidos e influentes que os seus antagonistas, só pelo excesso do numero é que poderão compensar o que em forças e importancia lhes falleça; e portanto, se ambicionâmos que triumphe a boa causa, temos de fazer pela quantidade d’elles a compensação da sua qualidade. Os filhos dos campos, qualquer jerarchia, educação, illustração, que aliás lhes supponhâmos, teem, em toda a parte, em presença dos filhos das Cidades, um não-sei-quê de pudor e timidez, que parece ser fruto indigena da solidão. Como as creanças e as mulheres, perdem elles metade das suas forças e recursos naturaes, logo que sentem que são observados. A duplice desconfiança em que estão, por uma parte, da sua rudez, por outra, da superioridade e maligno escarneo dos bem falantes, lustrosos, e regalados moradores das cidades, onde elles só entram como fornecedores e servos, quebra-lhes metade da sua energia varonil. Creados com o falar sóbrio, chão, e sem atavios, não só a eloquencia dos fazedores de phrases os deslumbra, mas até a verbosidade esteril os enleia e os sophisma; esgrimindo com arrogancia, se os não convence, muitas vezes lhes desarma o bom senso, só forte da sua força intrinzeca. Finalmente, a tatica e estrategia parlamentar, sciencia occulta que se não aprende em poucos dias, por mais predisposição que se tenha para desleal e ruim, hão-de sempre trazer o pobre aldeão sincero como vendido, romper-lhe as fileiras no fervor do combate, voltar-lhe as armas contra si, precipital-o em ciladas, converter-lhe a miudo a victoria ganha em derrota, endoidecel-o, desgostal-o, e pôl-o em fuga para o seu campo amado, que o conhece, e que é d’elle conhecido, e para entre os seus visinhos, cujos enganos elle sabe antever e illudir. É por tudo isto que, se o numero os não affoitar, elles serão sempre derrotados; e o beneficio, que á Patria poderiam fazer, se mallogrará a despeito das suas consciencias, sans como os seus ares, e das suas rasões, robustas, mas informes como os seus troncos. Estas Côrtes levariam ainda muitas outras vantagens a quantas para ahi se nos teem feito em nosso nome. As provincias, pelo trato mutuo dos seus representantes, ficar-se-hiam conhecendo; fraternisariam; aprenderiam, umas de outras, com que adiantar ou aperfeiçoar as suas culturas. Seria applicar á primeira das artes beneficios proporcionaes aos que as luzes superiores teem ultimamente recebido dos _Congressos scientificos_. Ainda mais, e ainda melhor: o Rei, que tudo deve presencear, e não pode demover-se do seu Throno, ouviria e veria d’est’arte as provincias; abrangeria com a imaginação, com o amor, e com as providencias, alguma coisa mais que o recinto confuso da sua Capital. * * * * * Pintae, meus amigos, desde já, na phantasia, o que serão taes Côrtes, se a Divina Bondade nol-as tem de outorgar: Homens fortes, sizudos, vestidos do seu linho, e modestas lans fiadas e tecidas por suas filhas e companheiras; condecorados, não com fitas, mas com os honrosos calos da charrua; não frizados pelo cabelleireiro parisiense, mas com o semblante bello de hombridade, e crestado dos soes; sem pomposos nomes herdados, mas creando cada um d’elles um, de que seus descendentes se não hão-de envergonhar. Madrugam para o grangeio da Patria, como lá costumavam fazel-o para o da fazenda; aproveitam em cheio as horas, como nos dias apressados da sementeira. As suas vozes, sem outras entoações que as da convicção e do affecto, expõem as verdades com a graça inimitavel da nudez, como na eira do seu casal deixavam espairecer sem vestidos os seus filhinhos e netos. Os seus discursos são como os seus predios: frutos, e não jardins; pão, gado, azeite, vinho, madeira de córte, em vez de flores ephémeras e estéreis. As suas argumentações não lh’as ensinou a logica das assemblêas, essa perigosa tintureira de verdades e mentiras; dos factos positivos lhes saem sem exforço as consequencias, como do grão do trigo a espiga do trigo, do caroço a arvore, e do amor dos homens a virtude. Os talentos, as boas vontades, as emprezas promettedoras, não expirarão á mingua; elles sabem que uma pouca de rega tem dado vida e fruto a muito pomar. Não mesquinharão os salarios ao trabalho, mas exigirão que o trabalho os mereça, porque ouviram ao seu Pastor ler no Evangelho, que se não deve amarrar a bocca ao animal que está suando na debulha. Não sorriem com philosophica sobranceria do que se refere ao unico principio sólido de toda a moral humana; elles presencearam sempre, assim como o carvalho da serra e a hervinha emboscada no vallado, que luz e calor não procedem senão de cima. Ao votar, não interrogam os olhos ou os acenos de ninguem; ¿perguntaram elles jamais se se devia plantar na estação propria, ou se ao rebanho sequioso se havia de dar de beber? Os motivos ruins, não os entendem; ¿que insensato dispôz nunca tojos e espinheiros na herdade amanhada para o manter? O medo das contrariedades não lhes tolhe pugnar pelo que é de sua natureza prestadio; estão affeitos a ver as intempéries das estações ameaçarem a seára, e a seára, por derradeiro, encher a tulha. Ignoram a sciencia dos financeiros, mas sabem que a diligencia e a boa-fé grangeiam cabedaes. Os pontos duvidosos, meditam n-os antes de os decidir, como antes de comprar uma courella examinavam comsigo e com os visinhos a indole do chão, as conveniencias e as desconveniencias do seu fabrico. Não armam á fama, nem trepidam diante das injurias; as phrases dos periodicos malignos, como as dos lisonjeiros, lhes resvalam pelo ouvido sem entrar; ¿ha-de-se deter a junta de bois no meio do sulco, porque zuniu o mosquito? No fim de cada sessão, retiram-se contentes do que fizeram, para meditarem, cada um a sós, com o seu entendimento e coração, o que lhes resta para fazer. O amor do genero humano é o seu ultimo pensamento antes de adormecer; a ventura da sua aldeia, da sua provincia, e da Patria, o seu sonho de toda a noite, de todas as noites, e de todos os dias. * * * * * ¡Oh! ¡meu abençoado Parlamento de lavradores! Semelhante ao enxame industrioso, vós fabricareis sem estrondo, do que ha mais bello e amavel sobre a terra: para ella o oiro liquido e medicinal do mel, para o Ceo os santos lumes dos altares. Como vós, todos nós gosaremos da doçura que houverdes preparado; só os zangãos vos odiarão. A vossa Rainha, no cimo da colmeia, feliz e abençoada, não terá inveja aos maiores Soberanos. ¡Oh! ¡podesse Ella, entre os seus innocentes e maternaes sonhos de ante-manhan, perceber, levados por algum Genio de amor, uns eccos sequer d’estes nossos votos! O seu entendimento avaliaria quanto ha de intrinzeca bondade, e de affecto aos homens, e de devoção para com Ella mesma, n’estes votos de Portuguez. A felicidade de um Povo, e a de quem o rege, são uma e indivisivel. Novembro de 1848. NOTAS DE RODAPÉ: [3] Castilho começa aqui a datar o aprendizado constitucional desde a revolução de 1820. OS EDITORES. VI O Clero, e as Mulheres SUMMARIO Na obra proposta, para todos ha tarefa: a dos escriptores é semear a palavra.--Defensa e apologia do Clero; necessidade e modo de o reformar.--Os Bispos, eleitos pelo Povo, apresentados pelo Governo, confirmados pelo Pontifice.--Um Seminario para cada Bispado, em que se ensinem, com as sciencias moraes e mysticas, os rudimentos das sciencias terrestres mais necessarias.--As Parochias providas pelos respectivos Bispos, e modo como.--Vantagens que d’ahi resultarão.--Justo panegyrico das mulheres.--Reivindicação para ellas do direito de votação.--Bens, que de um tal acto de justiça deveriam advir á sociedade. Os pensamentos do nosso coração acharam eccos; é porque o santo amor da terra e dos homens não morre nunca. O fogo existia; a nossa voz não fez mais do que assoprar de cima de uma parte d’elle a cinza que o occultava. ¿Com tão felizes auspicios, como poderiamos nós deixar de proseguir? Prosigâmos; não já a sonhar em voz alta, mas em voz alta a meditar, a propôr, a pedir. * * * * * Concordes estamos (dir-se-hia que por uma inspiração salvadora, baixada na hora da angustia sobre todos nós ao mesmo tempo) concordes estamos, e convencidos, de que só a associação das nossas forças, tão malbaratadas até agora em mutuamente se espedaçarem, e apesar d’isso ainda tão grandes, tão sufficientes para uma façanha; applicando-se com fé, com ardor, com perseverança, á Agricultura, pode não só aguentar as nossas cidades, que a lanço e lanço se desabam, mas fundal-as novas, dilatar e multiplicar as aldeias, engrinaldadas de vegetação frutifera, transformar a guerra em amor, a mendicidade em trabalho, o roubo, a venalidade, a agiotagem, a alcunhada _politica_, e a prostituição, essas outras mendicidades, muito mais torpes e odiosas, em honesta e folgada vida, em producção, em virtude, em paz, em contentamento, em gloria, em liberdade, em poderio. Fomos um grande Portugal; em nossa mão está sermos, e breve, um Portugal ainda maior, mais formoso, mais seguro, mais festejado, mais attractivo para estrangeiros, mais hospedador de suas prendas, de suas artes, de suas sciencias, de sua multiplice civilisação. Queirâmos; queirâmos de veras. Congreguemo-nos fraternalmente; os dos campos, nos campos; os da cidade, com os olhos n’elles. Lavremos e semeemos todos; uns com o ferro e o grão, outros com o oiro, outros com a doutrina, que tambem é oiro; os legisladores com as Leis; os magistrados com a protecção; e nós, nós os apóstolos descalços, a quem a Providencia recusou terra, oiro, sciencia, e autoridade, mas a quem, em compensação de tudo isso, outorgou alguma alma e muitissimo amor, nós os escritores, semeemos tambem alguma coisa no chão da Patria, a que já está impendente larga benção de regeneração: semeemos a palavra. Que nenhum de nós se acovarde por desconfiança de sua fraqueza; que nenhum sonegue o que tem por verdade, com medo de que os poderosos lh’o desprezem, os nescios lh’o impugnem, e os malignos lh’o escarneçam. Onde a boa vontade nos houver illudido, valer-nos-ha ella mesma de excusa; e, á falta de approvação, conciliar-nos-ha o tacito affecto dos homens de bem. Quanto a nós individualmente, assás havemos já provado n’estes artigos, cujo fio vamos seguindo, quanto, apesar de conhecermos melhor que ninguem a nossa incompetencia, e a confessarmos a cada hora, propomos com lisura e franqueza, o que julgamos poder salvar a nossa moribunda. Nem a lisonja, nem contemplações pusillanimes, nem medo a ruins interpretações, nem a indifferença d’aquelles mesmos por quem fazemos votos, nos demoveram ainda do nosso proposito, atrevido talvez, mas honrado de certo. Com egual abnegação, com egual soltura, com ainda maior convicção, pois nos cresce de mez para mez, continuaremos a lavrar o nosso testamento de Portuguez, estas desenfeitadas linhas, mas para nós mais amadas, que toda quanta poesia nos florejou a mocidade. * * * * * Para dois pontos convocamos agora a attenção sizuda das nossas futuras Sociedades promotoras da Agricultura, do Parlamento de lavradores, que os seus esforços nos hão-de produzir, do Ministerio da Agricultura, que esses legisladores hão-de fundar, e finalmente do proprio Throno; para o que, novamente rogamos a todos os nobres missionarios da Imprensa levem os nossos alvitres, corroborados com o seu saber, e ungidos com a sua eloquencia, até onde o humilde e longinquo da nossa voz os não deixaria penetrar. Estes dois assumptos, ambos grandes e ambos esquecidos, ambos de summa importancia, assim para o mal como para o bem, e ambos injusta e cruelmente desprezados, são: o SACERDOCIO, e as MULHERES. * * * * * É o Sacerdocio Catholico uma instituição eminentemente social, e cuja origem divina é, por isso mesmo, impossivel não reconhecer. Não renovaremos n’este logar disputações intempestivas, e já exhaustas, sobre os beneficios e as calamidades, de que em tal ou tal paiz, em tal ou tal seculo, o Clero tem sido, voluntaria ou forçada, activa ou passivamente, causador. Esses argumentos de alguns factos (ou de muitos factos) contra theses universaes e duas vezes millannarias, não podem servir para mais, que para lhes realçar a evidencia. Quanto mais os da escola _fossil_ de Voltaire, quanto mais os anachronicos citadores do _Citador_, e os mui respeitaveis _Compadres_ do _Abbé Laurent_, esperdiçarem o seu engenho para nos afeiarem em romances obscenos a vida licenciosa de um ou de outro, ou de muitos Sacerdotes; quanto mais nos affirmarem, sob sua palavra honrada, e á vista de umas estatisticas que só elles possuem, que o numero d’estes discolos é infinito; tanto mais, sem o sentirem, sem o quererem, engrandecem a força intrinzeca e divina de uma instituição, que, desde o tempo dos Apóstolos até nós, ainda não cessou de ser havida por mantenedora da arca-santa da Fé e dos costumes. Se ella fosse humana, se ella fosse sobretudo ré da millionesima parte dos crimes e horrores, que os seus adversarios (¡varões probos e honestissimos!) lhe assacam, ¿como haveria resistido a dezoito seculos? ¿a trezentas revoluções na politica, e outras tantas nas ideias? ¿aos vaivens das seitas, e das chamadas philosophias? ¿ás minas surdas do indifferentismo? ¿ao fanatismo sanguinario de alguns de seus membros, e á perfidia e á deserção de tantos outros? Neros e Sardanapálos appareceram mais de uma vez na cadeira de S. Pedro. Mãos em vão sagradas cavaram masmorras e accenderam fogueiras; seguraram os pulsos a povos, para que tirannos os agrilhoassem; afiaram os punhaes e as espadas para guerras fratricidas; e a Sciencia, filha do Ceo como a luz, em nome do Ceo a perseguiram. E entretanto, atravez d’esses arroios de sangue e lagrimas, e d’esses montes de cinzas e ruinas, o esquadrão candido dos Levitas continuava a sua peregrinação para o Ceo, abençoando, e abençoado; penitenciando se em segredo pelos maleficios de que era innocente; vertendo lagrimas e chrysma sobre as feridas de seus irmãos; semeando na terra desconsolada o amor e as esperanças. Ao notarem ignorancia e corrupção no Clero, os semi-philosophos imprevidentes votam, sem hesitar, a sua abolição. Os sabios, isto é os prudentes e amigos da humanidade, calculam caladamente: ¡o que se tornaria o rebanho, privado de pastores! ¡os costumes, sem doutrina nem censura! ¡as penas sem conforto! as prosperidades e soberbas, sem contrapezo! ¡os seis dias da terra, sem um dia do Ceo! Depois, comparam essa corrupção e essa ignorancia (desgraçadamente muito certas) com a corrupção e ignorancia ainda maiores de quasi todos os inimigos da Egreja; e, convencendo-se de que o mal não é sem cura, propõem, em vez de exterminio, que é sempre o primeiro recurso dos barbaros: contra aquella ignorancia, luz de sciencia; contra aquella dissolução, outra vez luz, disciplina, e vigilancia. Não está o remedio em fechar a residencia parochial, depois de expulso d’ella o Cura indigno, deixando muda e ás escuras a casa da oração. Não está em despejar os paços episcopaes, para morada e pagode de especuladores enriquecidos, e as cathedraes para quarteis, theatros, ou serrarias de madeira. Está, sim, em precaver por Leis sabias, como sem custo as ha-de fazer o nosso Parlamento agricola, que os Bispos e Parochos sejam sempre o que o seu nome, o seu caracter, a Lei da sua instituição, a utilidade, a necessidade, e a vontade do Povo, e a sua propria consciencia, lhes ordena que sejam. ¿Será isto exequivel? sim, sim; e tanto, e por tão faceis meios, que o que só admira e espanta é não se achar já de muito em execução, em praxe, e em costume. O primeiro ponto, o primeiro passo, a primeira condição impreterivel para esta reformação tão necessaria e tão urgente, quer a consideremos á luz do Céo, quer á dos interesses temporaes, é a boa escolha dos Bispos. * * * * * Foram os Bispos, nos seculos doirados da Egreja, e nas terras onde ella mais floresceu, eleitos, cada um pelo proprio rebanho a que havia de presidir[4]. Nada mais liberal, nada mais natural e justo, nada mais conveniente, que essa usança; nada mais digno de se ressuscitar n’uma edade, que blasona de liberrima e philosophica. A nomeação dos Prelados pelo Chefe do Estado civil, e só dependente da sancção do Pontifice, sancção em que tantas contemplações, tantos motivos extranhos ao merito real, podem influir, é, mesmo para os entendimentos mais myopes, viciosa, e mais que arriscadissima a desacerto. É esta uma verdade, que (¡ainda mal!) os factos teem repetidamente confirmado. ¡Que de vezes uma parcialidade vencedora, já para recompensar, já para predispôr serviços profanos e profanissimos, não tem enviado das catacumbas facciosas para os thronos episcopaes, ora lobos, ora apestados e leprosos, ora defuntos! ¡mãos geladas para as boas obras! ¡corações gelados para os bons desejos! ¡linguas geladas para as palavras de amor! O Céo nos defenda de citar exemplos; ¿e para quê? ¿ha ahi quem os não conheça, e os não deplore? Escolhido, ou pelos Ecclesiasticos do Bispado, e em escrutinio secretissimo, aquelle d’entre seus membros, que por virtudes, luzes, patriotismo e prudencia, notavelmente se avantaja, ou (melhor e mais liberalmente ainda) votado tambem em escrutinio secreto por todos os fieis da Diocese, assim de um como de outro sexo, n’esse devemos presumir que está a idoneidade para o grande sacerdocio, para a relevantissima magistratura do Episcopado. O juizo do Povo haverá sido o juizo de Deus. Ao Chefe temporal do Estado, liberto assim de uma responsabilidade tremenda, só resta levar com alegria a santa proposta aos pés do Throno do Vigario de Christo, para impetrar á obra terrestre a sancção suprema, e não desligar o interesse da parte, do formoso e admiravel systema da unidade catholica. Sagrados nas sédes de todas as egrejas Prelados de tão altos abonos, é logicamente indispensavel deixar-lhes as mãos livres para o seu lavor, que é infinito e complicadissimo. E quando não, consideremos, com madureza, o que é um homem collocado no centro de muitos milhares de homens, para acudir a todas as necessidades espirituaes, e a grande numero das temporaes, umas e outras imperativas, e sempre recrescentes. A Oração Dominical cifra o seu espantoso encargo. Os seus primeiros predecessores, os Apóstolos, viveram e morreram a cumpril-o. Christo mesmo não curava só as almas, se não tambem os corpos; prégava as virtudes, e ao mesmo tempo multiplicava o pão e os peixes no deserto, e o vinho nas bodas. O seu Precursor na Lei escrita, ao mesmo passo que dava os mandamentos do Sinai, e extirpava a idolatria, libertava o povo do captiveiro, desentranhava os rochedos em fontes, o céo em maná e em aves, as nuvens em luz, debellava a peste, e encaminhava os peregrinos para a Terra da promissão e da abundancia. Tudo isto, que fez Moisés, que fez Jesus, e em que os Apóstolos o imitaram, tudo isto ha-de emprehender, e ha-de conseguir até ás raias do impossivel, o Prelado que fôr digno da sua missão. ¿Mas como bastariam dois unicos braços, uma só lingua, para tanto instruir, e para tanto obrar? De nenhuma sorte. O amor, mesmo no homem, pode não ter limites; mas teem-n-os as fôrças. É por isso, que de cada Sé brotaram em de redor d’ella quantidade de Parochias, como da arvore boa se transplantam ramos para lhe continuarem e multiplicarem os frutos em muitas partes ao mesmo tempo. A voz do grande Pastor, repetida pelos seus coadjutores, fez-se ouvir até da ovelha mais desgarrada, no reconcavo dos valles, ou no cume das serras; e os beneficios das suas mãos, transmittidos por mãos fieis, poderam diffundir-se para todos os quatro ventos do céo até ao horizonte. D’esta simples consideração se deriva inquestionavelmente, que, sendo os Parochos nada menos que delegados e representantes dos Bispos, como os Bispos o são de uma Providencia paternal, e necessitando o Chefe conhecer e reconhecer, animar, e dirigir constantemente aos seus immediatos mandatarios, são elles tambem, elles sós, livres, liberrimos, independentes, os que os devem educar, preparar, eleger, conservar, suspender, ou excluir. É logo necessario, que o Governo temporal seja por Lei inhibido de prover as freguezias; direito ou costume esse, ao qual principalmente se deve imputar a odiosa ruindade, e incapacidade absoluta, de tanto e tanto Parocho, que, mais que os livros dos impios, teem em toda a parte concorrido para o descredito da Religião. O Governo só deve, quando muito, superintender, como vigia supremo do Estado, no comportamento dos Curas de almas como cidadãos, e no que o seu officio tiver de puramente secular. O de Cesar, a Cesar; o de Deus, a Deus. Nada mais orthodoxo. * * * * * Assim como ao obreiro, para se lhe poder tomar conta da obra, se hão-de primeiro dar materiaes e instrumentos, assim a cada Bispo hão-de umas Côrtes de juiso conceder, não em vans promessas escritas, mas effectivamente, com que organisar e manter um Seminario, com mestres a todos os respeitos dignissimos; de fora da Diocese, se n’ella os não ha; de fora do Reino, se os não ha no Reino. Para aqui, ¡mãos largas! ¡mãos rôtas! ¡mãos prodigas, se é licito dizel-o! que a máis nescia de todas as economias é a que nega adubío, sementes, e rega, ao solo de que pretende fruto. ¡Oh! ¡de que desperdicios não tem já sido causa a não entendida palavra _economia_! Sob os olhos do Bispo, medrarão além de toda a esperança estes viveiros de Parochos, educados na theoria e pratica da Sciencia Divina por mestres, que serão ao mesmo tempo seus exemplares. Elles ahi aprenderão, com as sciencias moraes e mysticas, o que hoje seria imprudencia, temeridade, e infamia, querer d’ellas apartar: aprenderão as sciencias, que renovam e regeneram a terra, e que, matando a perguiça e a penuria, aplanam, atravéz de uma bemaventurança passageira, o caminho para outra, que não finda; a hygiene; os rudimentos da medicina domestica, e da veterinaria; a agricultura e a physica; as noções geraes da jurisprudencia do Estado, e os deveres politicos; um pouco da economía publica, muito da caseira; os methodos mais faceis de ensino para as materias mais necessarias; em summa: habilitar-se-hão para poderem e quererem ser, em tudo, o opposto a muitos dos deploraveis Parochos dos nossos dias. Entre os Clerigos, alumnos de um mesmo Seminario, instruidos nas mesmas materias, e pelos mesmos professores, ha-de haver differenças de genios, de gostos, de talentos, de virtudes. Cada individuo tem a sua organisação; cada educação de infancia affeiçôa para o futuro um diverso homem. Differenças, como as que se notam nos individuos, existem não menos entre as povoações. O Bispo, que, durante o longo curso de estudos, haverá podido reconhecer e verificar a aptidão especial de cada um dos seus alumnos, saberá depois distribuil-os segundo o caracter e necessidades das Parochias: para a mais inerte e atrazada, o mais progressivo e emprehendedor; para a mais licenciosa, o mais modesto; para a mais indigente, o mais caritativo; para a mais aspera, o mais soffredor; o mais conciliador para a mais desavinda; o menos rustico e o mais instruido para a mais cortesan. * * * * * Imaginae (se tendes imaginação que abranja o infinito) imaginae o que virão a ser, em alguns annos, as freguezias, mormente as ruraes, presididas por taes varões. A Fé se reanimará, menos pela eloquencia das homilías, que pelos milagres da caridade. Pelos predios sorrirá a abundancia, pelas vidas a harmonia. Apertar-se-hão os laços entre os membros de cada familia, os dos visinhos com os visinhos, os dos cidadãos com os seus concidadãos. A semana deslizará, como um ramal de horas de prata, nas festas da lavoira e da industria; o domingo nas festas do Senhor, e nos folguedos innocentes, que a Religião permitte e ama, e nos quaes se prepara o casto amor que reproduz as familias, e se podem exercitar a graça e dextreza corporal, que realçam a obra-prima do Creador. Vêde ¡como á sombra fresca da parreira do presbyterio, no verão, e no inverno ao lume da sua cosinha terrea, veem contentes as creanças aprender, ora as letras, as contas, e a escrita, ora o cathecismo, ora os deveres sociaes em historias singelas e amoraveis! Ouvi ¡como dos mesmos labios, que distribuem o biscato da alma a aquelles passarinhos implumes, sai o conselho de paz, que solda, melhorada, a amisade entre os desavindos, o consolo para o coração viuvo, a correcção benevola, mais efficaz que a severidade, a esperança precursora da Providencia e aurora da esmola, aqui uma consulta sobre o praso e melhor modo de uma plantação, de um córte de madeiras, ou do encaminhar as aguas de uma rega, ali uma supplica de filho, cujo pae cahiu com uma dor ou accidente repentino, e que não sabe como lhe acuda em quanto o medico não chega! Todas as linguas fala o Parocho, excepto a da maledicencia. Para os males que não admittem remedio, ainda elle sabe e applica um balsamo: a conformidade. O presbyterio é a côrte do logar, com ser a mais pobre casa de todo elle. Todos lá vão, tributar respeito ou pedir graças. Os grandes saem d’ali maiores porque aprenderam a humildade; os ricos, mais ricos porque aprenderam a dar; os infelizes, serenados porque viram um Anjo. Governantes, este homem não fará eleições, mas fará subditos fieis, cidadãos pacificos e laboriosos. Não mentirá em favor vosso, mas tambem contra vós não mentirá. Se jamais no Sacrificio da Ara se implorou com fervor paz e concordia, d’aquella bocca se hão-de elevar quotidianamente taes orações, como perfume de incenso sem mistura. Esquecei esse monarcha de espiritos no meio do seu povo; elle vos serve com mais zelo do que vós mesmos vos servis. Em torno d’elle intercede-se cada noite pela vida de bons e maus. Em quanto elle respirar, sabei que ha no Reino um recanto, em que a indigencia mesma não amaldiçôa. Os filhos se ufanarão de haver sido por elle baptisados; os esposos, de lhe terem recebido a benção; os moribundos, de lhe exhalarem no seio a alma, por elle já desenleada de espinhos, e já de antemão coroada das açucenas do Ceo. Estes serão necessariamente os Parochos procedentes das escolas d’aquelles Bispos. Uma Lei de homens, mas de homens sãos e sizudos, haverá creado uma semelhança de paraizo.[5] * * * * * Falámos do sacerdocio de Deus; falemos do da Natureza; falemos das Mulheres. Um phenomeno moral dos mais inexplicaveis, é a dependencia, a sujeição, a especie de tutella ignominiosa da mulher em todos os paizes, em todas as edades, em todos os graus da civilisação. Nascido d’ella, creado por ella e para ella, referindo a ella quasi todos os seus trabalhos, pensamentos, e ambições, proclamando-a soberana, acatando-a quasi como uma semi-divindade terrestre, o homem não cançou ainda de tratal-a de facto como serva. O seu nome triumpha na lyra dos poetas; as suas graças, na tela dos pintores e no marmore dos estatuarios; o seu credito, na lança dos antigos paladins, na pistola e espada dos modernos duellistas; a sua apparição na sociedade é recebida com murmurio festivo e lisonjeiro, como a da aurora na espessura a que ella traz vida. Se desprende a voz, a razão parece mais bella passando pela sua bocca; a virtude perde o seu azedume; um feitiço indefinivel lhe careia todos os animos; o tumulto se apazigúa; os vicios grosseiros escondem o rosto e emmudecem até a deixarem passar. O rasto de aromas, que os seus cabellos e os seus vestidos deixam apoz si, não egualam ao vago e voluptuoso affecto, que o mais leve dos seus movimentos coou até ao fundo dos corações. Respeita-se-lhe o juiso; ama-se-lhe o espirito, a modestia, a decencia, os instinctos bons, nobres e generosos, a timidez que não exclue a heroicidade. Colhem-se-lhe as palavras benevolas, como diamantes que se enthesoiram e defendem com ciume; fazem-se os maiores sacrificios para lh’as merecer. O mais soberbo sente-se ufano no dia em que obtem a sua mão; o mais avaro daria metade dos thesoiros pelo seu primeiro suspiro, e os thesoiros todos pelo seu primeiro beijo; o mais sabio a consulta, como a melhor e menos fallivel porção de si mesmo. N’uma palavra: o mais grave dos nossos interesses, a primeira educação moral dos nossos filhos, ¿a quem é commettida? dir-se-hia que a nossa alma, ainda tenra, se nutre no seio da sua, como entre os seus braços bebemos no leite de seus peitos o seu amor. E todavia... Abri os codigos de todo o mundo, e perguntae-lhes o que é este ente, complexo de tantas maravilhas, creado para companhia do homem, mas depois do homem, como elle o fôra depois dos brutos, e os brutos depois dos entes insensitivos. Todos os codigos vos responderão: «É uma escrava.» E alguns: «É uma victima.» Os trabalhos continuos, obscuros, e inglorios, são a sua vida; e a sua morada um carcere. Aqui, a excluem dos recreios mais honestos; além, a punem com o ridiculo, se deixa respirar o seu talento; uma decencia convencional e tirannica lhe impõe silencio quasi continuo. A acção, o passo, o dito mais indifferentes, lhe são interpretados. As Universidades lhe estão fechadas; defezas as magistraturas e os tribunaes; inaccessiveis o fôro e a tribuna. Só da caridade, dos hospitaes, das escolas de infancia, e do claustro da oração, a não poderam excluir. ¡Que dizemos! não só a Asia as vende, como se vendem as flores para os regalos dos opulentos, e a Inglaterra as deixa vender nos seus mercados como animaes de carga, se não que a propria França, a patria da cortesia e do melindre, a terra em que ellas mais imperam sobre as artes, o gosto, e a sociabilidade, a França mesma, lhes impõe nas suas Leis obediencia e respeito ás vontades de um marido. Da sujeição filial, a unica reconhecida pela Natureza, lá passam para o captiveiro conjugal. O anel de um noivado é o primeiro de um grilhão muitas vezes insoffrivel, e que nenhumas forças lhes poderão quebrar. O nome do seu senhor lhes é para logo imposto em vez do paterno; é a marca, é o ferrete do dominio; marca indelevel, que sobreviverá ao possuidor, e que só um possuidor novo encobrirá, substituindo a esse nome o seu nome, e á tirannia extincta uma segunda tirannia[6]. Ainda cerceámos o desenho; ainda enfraquecemos as côres do quadro; mas não haverá coração generoso, que ao encaral-o não estremeça. * * * * * O Homem Deus redimiu as nações do predominio romano, do fatalismo, e das paixões divinisadas; sublimou, sobre tudo, os pobres e os perseguidos a grau de humanos, e de mais que humanos. A philosophia moderna restituiu a liberdade natural ao pensamento. A politica, sua filha, desatou o jugo de ferro da cerviz dos povos, e o atirou feito pedaços para o abysmo do passado. A philanthropia, ou talvez a especulação, aboliu a escravaria das povoações negras. Á infancia mesma vai chegando o que é possivel de emancipação; asylos e escolas a convidam a instruir-se; e ao açoite, que d’antes lhe desfolhava os brios em flor, succederam a affabilidade e os carinhos, tão necessarios aos pequeninos como o pão. ¿Que dizemos? até para os irracionaes pululam na Europa sociedades protectoras. ¿E a Mulher?! A Mulher, nossa mãe, nossa esposa, nossa filha, nossa irman, a Mulher, nossa ama, nossa educadora, nossa ecónoma, nossa enfermeira, a Mulher que nos civilisa, que nos adoça, nos encaminha, nos aconselha, nos acompanha e consola nos trabalhos, nos realça e requinta as alegrias, a Mulher, que não vive, que não quer, que não pode viver senão para nós, que nos soffre e nos perdoa de continuo, a Mulher que é toda amor, e a mais brilhante revelação do Céo, a Mulher...... é ainda escrava! ¡escrava em plena Europa! ¡em pleno Christianismo! ¡quasi como na Africa e na Asia sob os influxos do Korão! ¡escrava como na India, como na China, como na Tartária, como na Turquia, como na Russia, como entre os selvagens errantes, como entre os Romanos barbaros, escrava, como sempre e em toda a parte! * * * * * Já que ellas se não queixam (¡pobres victimas só feitas para soffrer!) ousemos nós defender os seus interesses apesinhados; e não contra os nossos, se não ainda em nosso beneficio. Parlamento das nossas esperanças, congresso de lavradores, atrevei-vos a uma Lei, que vos doire na Historia, e vos immortalise. Decretae, depois de seis mil annos, A ALFORRIA DA MULHER. Não são a milicia, as magistraturas, os governos das provincias, que para ellas vos pedimos; não são as cadeiras de legisladores, nem as do magisterio; n’uma palavra: não são nenhuns dos cargos, que a prepotencia lhes disputaria, e de que a Natureza as tornou isentas (não por fracas, não por inferiores em espirito, mas porque foram fadadas para mães). Dae-lhes porém o que sem injuria não poderieis recusar-lhes: reconhecei-lhes, como a seus esposos, como a seus paes, como a seus filhos, o direito de suffragio. De que poderieis vós arrecear-vos franqueando-lhes o caminho á urna? ¿Não teem ellas tanto interesse como nós, em que Leis sabias rejam, e homens sabios administrem? ¿Não zelarão ellas o bem da terra em que vivem seus consortes e a sua prole? ¿Não são ellas dotadas para avaliar os meritos, para estremarem a verdade e a impostura, de uma maravilhosa sagacidade, occulta arma defensiva com que a Natureza as premuniu contra as offensivas do nosso sexo? ¿Não vivem mais longe do tumulto da praça, que a nós outros tanta vez nos desvaira, lançando-nos em turbilhões, já de odios, já de amores insensatos e contradictorios? ¿Não teem innatamente, além do instincto da harmonia, o espirito da justiça? ¿Não foi já por isso, que nas antigas allianças entre Carthaginezes e Gallos se estabeleceu, que, onde de parte a parte recrescessem rasões de queixa, fossem arbitros, por Carthago os seus magistrados, pelas Gallias as suas mulheres? Mas--vos segredarão alguns com maligno sorriso--¿«conhecem ellas o grande jogo da Politica? ¿fazem ideia do que seja a ordem publica? ¿com quem o aprendeu a sua roca para lh’o ensinar?» Não, homens honrados, ellas não sabem a Politica; e eis ahi uma das grandes vantagens que nos levam para eleitoras; mas a ordem publica, se a não sabem, adivinhal-a-hão, que para isso, entre seus filhos e domesticos, são rainhas de pequenos reinos. Essa roca, alvo do epigramma ingrato e insolente, é o seu sceptro; e pode ser que acerca da felicidade commum da aldeia, da freguesia, e da provincia, lhes haja ella dito muito mais, nas caladas dos serões de inverno, que á maior parte dos nossos eleitores cortesãos a lampada parisiense entre os baralhos de cartas e os montes de oiro. Mas concedamos-lhes que nossas esposas, nossas mães, e nossas filhas, nunca jamais até agora pensaram sobre os negocios do Estado, como vos elles dizem. Por isso mesmo, por isso mesmo, lhes deveis restituir mais depressa o seu usurpado e imprescriptivel direito de votação; porque essa indifferença, se n’ellas existe, é mais uma calamidade, pois são as educadoras da geração que nos ha-de succeder. Concedamos ainda mais: que o precioso affecto da Liberdade é n’ellas quasi nullo. ¿De quem é a culpa? ¡D’ellas!! Não; mas de nós outros, que a poder de escravidão lh’o adormentámos. Restitui ás Mulheres o seu quinhão legitimo de Liberdade, e vereis como ella se consolida sobre fundamentos de amor mais que duplicados. ¡Que miserrima contradicção é esta: que onde para a herança da Corôa a Lei salica não governa, onde á Mulher se reconhece aptidão para o cargo supremo do Estado, se lh’a denegue para votar como cidadan em mandatarios dos communs interesses! De uma coisa podeis vós estar certos, Ó Deputados; e é: que as eleições em que ellas entrassem, por menos acertadas que a sua inexperiencia as produzisse, não dariam (porque era impossivel) mais vergonhosos resultados, que todas quantas á sua revelia havemos feito, e que, para vergonha nossa, lá ficam registadas na Historia. * * * * * ¡Oh! ¡Se o humilde Portugal estava ainda guardado para dar do fundo do seu abysmo tão altas lições, tão esplendidos exemplos á Europa e ao Mundo! ¡Uma Representação nacional genuina e insophismada! ¡um Clero sabio, virtuoso, paternal! ¡a Mulher investida na plenitude dos seus destinos sociaes!.... No dia em que a Patria cingisse por suas mãos tres corôas tão magnificas, morriamos felizes. Teriamos vivido uma eternidade de bemaventurança. Dezembro de 1848. NOTAS DE RODAPÉ: [4] _Nullus invitis dandus est Episcopus; ille omnibus prœferendus, quem cleri ac plebis consensus concorditer elegerit._--S. Gregor.--Epist. ad Nastas. [5] Os nossos respeitos ás doutrinas canonicas é conhecido e provado. A innovação que propômos e que deverá ter iniciativa no Parlamento, para se tornar effectiva necessita da censura e regular approvação da Egreja. CASTILHO. [6] Com estas reflexões não pretendemos desapprovar a subordinação das mulheres a seus maridos nos termos em que a prescrevem os nossos livros sagrados. Só não queremos que esta dependencia se converta em escravidão, que a legitima autoridade marital degenere em tirannia. Eva, diz um Padre da Egreja commentando o Genesis, não foi formada da cabeça de Adão, para que não tivesse a presumpção de o querer dominar; nem tão pouco foi formada dos pés do homem, para que por elle não fosse considerada como serva; foi-o de uma costella, a fim de que se entendesse que era destinada a ser sua companheira. CASTILHO. VII Primeiro serão do casal Propriedade territorial SUMMARIO Vantagens do escrever.--Vantagens do ler.--O autor não pode por ora dizer o que tratará n’estes seus serões d’aqui avante, mas tenciona il-os empregando na sua ideia querida da felicitação da Patria pela Agricultura; para o que, vai proseguindo nas suas utopias.--A propriedade territorial não é um direito natural, mas é um dos direitos da sociedade permanente.--No direito de possuir terra não se contem o poder deixar de cultival-a.--Apontamentos para uma Lei importantissima a este respeito.--A theoria pode-se estender dos predios rusticos aos urbanos. ¡Que bella coisa, meus amigos camponezes, não é o escrever e o ler! Uma folha de papel, que a principio não foi mais que umas hervinhas verdes, depois umas febras seccas e pardas, nos dias da sua maior gloria talvez uma camisa, e a final um trapo despresado e esquecido; uma folha de papel póde ser uma origem de delicias e venturas. Por meio d’ella, um homem desconhecido, e fechado no seu cantinho, logo que Deus lhe lança na alma um reflexo passageiro da Verdade e do Summo Bem, prende esse raio de luz celeste, liberalisa-o para toda a parte, solidifica-o, bem como de um gaz, que se não vê nem palpa, se faz no fundo das minas um diamante; lança-o assim para o thesoiro commum dos conhecimentos humanos; e, quando ninguem mais lh’o diz, diz-lhe baixinho a sua consciencia: «¡Oh! ¡Bem hajas, que déste a esmola da alma á alma! ¡Bem hajas, que as horas que podéras gastar no ocio, ou em gosos futeis, em dissipar ou em adquirir haveres, ou em me envenenar a mim, que sou a tua boa consciencia, empregaste-as em proveito dos teus semelhantes! ¡Bem hajas! ¡e bem haverás por certo! Os teus exforços não serão perdidos, nem para o Céo nem para a terra. Lá em cima, o Liberalisador de toda a verdade te coroará; e já, cá no mundo, uma especie de immortalidade e de omnipresença será a tua partilha. Sobreviver-te-has em parte a ti mesmo. O teu nome e os teus pensamentos estarão ao mesmo tempo em muitos logares, graças a esta folha de papel; e os annos, que hão-de destruir o teu corpo, deixarão a tua honrada memoria a crescer para os seculos.» Mas, se tal é a boa sorte do escritor de veras; se os seus deleites lhe descontam o trabalho e penas que o acompanham; se da sua miseria elle se consola com a lisonjeira certeza de afortunar aos outros; se no silencio do seu albergue desguarnecido ouve já a sua futura fama, e na sua enxerga de palha riem sonhos, que nunca visitaram os colxões de plumas de soberbões inuteis; a mesma folha de papel, que, a baixo de Deus e do estudo, o tornou venturoso, multiplicada pela Imprensa vai fazer por elle muitos outros venturosos. * * * * * ¡A leitura, meus amigos! ¿Sabeis vós bem o que é a leitura?! É de todas as artes a que menos custa, e a que mais rende. Ha livros, que, semelhantes a barquinhas milagrosas, incorruptiveis e innaufragaveis, nos levam, pelo Oceano das edades, a descobrir, visitar, e conhecer todo o Mundo que lá vai.... Os povos antigos revivem para nós com todos os seus usos, costumes, trajos, feições, crenças, ideias, vicios, virtudes, interesses, e relações. A Historia é a mestra da vida, e as suas lições ampliação e complemento ao nosso juizo natural. No que foi, aprendemos o que deve ser. ¡Dizem que mente ás vezes! tambem na seára ha joio, e nem por isso deixais vós de ceifar com alegria. Mas, apesar das suas mentiras, fica ainda sendo a Historia uma das mais verdadeiras coisas do mundo. Os contemporaneos de cada um dos homens notaveis, heroes ou monstros, dos tempos antigos, talvez os não vissem tão ao natural como nós cá de longe. ¿Porquê? por isso mesmo que eram vivos; cercavam-n-os um estrondo confuso, e vozes contradictorias, que para nós emmudeceram. O amor e o odio, o terror e o enthusiasmo, tingiam nas suas cores os feitos e os ditos: o espectador, muito de perto, e distrahido com os seus proprios negocios, não podia abranger a totalidade de uma scena ás vezes immensa e complicada. Não é nem ao-pé em demasia, nem em demasia longe, que os objectos se julgam com exacção. * * * * * Mas não é só a Historia, meus amigos, que nos encanta instruindo-nos. Desde a Mathematica, que péza e mede os astros, até ao officio mais humilde, não ha sciencia, arte, nem mistér, que os livros nos não ensinem divirtindo-nos. Vós, se lêdes ao serão, cultivais melhor e mais lucrativamente no dia seguinte; sabeis conservar melhor os vossos frutos administrar com mais interesse os vossos haveres. Outro tanto acontece aos vossos visinhos, ferreiro, carpinteiro, surrador, tintureiro, tecelão, etc. A povoação onde se sabe ler, e se lê, floresce mais, é mais pacifica e morigerada, mais unida e rica, mais poderosa, mais contente, mais amavel, e mais amada. Porque haveis de saber, meus amigos, que tudo quanto os homens teem descoberto e inventado para augmentar as suas forças, os seus cabedaes, a sua saude, as suas virtudes, as suas relações de amor, e o numero das horas suaves e alegres, tudo, de muitos seculos para cá, se tem ido guardando nos livros. É um patrimonio de sciencia e bondade, que vai sempre a crescer de paes a filhos, onde cada um pode tomar ás mãos cheias o que lhe convém, e para onde a cada um é licito, e até mesmo é dever muito agradavel, levar o pouco ou muito que o seu juizo lhe subministra. É um commercio mutuo de todos os tempos e de todas as almas, do qual ninguem sai lesado, e no qual mesmo dando se recebe. Quanto a mim, meus bons visinhos, estou muito satisfeito com a minha tarefa litteraria. Outros, mais capazes de vos instruir na Agricultura, teem a bondade de tomar a si esse encargo, para o qual eu mesmo vos confessei já que me não sinto habilitado. Á minha conta está procurar desenfadar-vos algum serão do domingo. ¿Que quereis? quem nasceu para pouco... Um poeta é como um d’estes passarinhos, que Deus creou para recreação do lavrador na força dos seus trabalhos. * * * * * Se eu ao menos podesse dizer-vos desde já o em que havemos de entreter-nos.... mas ¡adivinhae-o lá! ¿O passarinho, um minuto antes de abrir o bico, sabe por ventura o que vai gorgear? é a verdura, é a viração, é o sol ou a estrella do momento, que o inspira; a sua _hypocrene_ é muitas vezes a ultima gotta de orvalho, que bebeu no calix de uma flor por onde passou. Mas, assim como nos cantares do plumoso poeta dos bosques ha sempre o que quer que seja de bom e affectuoso conselho, de revelação do Céo, com o qual elle parece tratar mais de perto do que nós; assim o meu espirito, que mora todo cá dentro no coração, e por elle vale alguma coisa, só praticará comvosco, segundo espero em Deus, em algum dos seus sonhos de felicitação para o genero humano. Porque haveis de notar, boa gente, que, se o que está feito é muito, muito mais é ainda o que está para fazer. Cada geração adianta um passo; os netos sabem mais que os avós; cada anno floreja ideias, que os seguintes convertem em frutos, e outros, além, amadurecem e colhem. Nos ares andam sempre ideias de todas as edades (sem falar nas que vão cahindo mortas); umas decrépitas; outras recemnascidas, que ainda se não atrevem a voar; outras adultas e robustas; e nenhuma das que se chegam a transformar em obras, deixou de ser na origem muito extranhada, e muito havida por impossivel ou perigosa, e de padecer perseguição da parte de nescios e ruins. Ora eu, que (Deus louvado) de ruins me não temo, e a escutar nescios me não detenho, parece-me que não poderia, por em quanto, empregar melhor a minha folha de papel, e o vosso serão no casal, do que em vos relatar os meus sonhos ou devaneios solitarios sobre a salvação da Patria pela Agricultura; axioma este já hoje comprehendido por todos os que a Natureza não condemnou a viver e morrer sem comprehenderem nunca nada. E como é possivel que d’entre vós outros algum, ou muitos, vão um dia deputados áquelle bemdito Parlamento de lavradores, de que eu ha dois mezes vos falava, consentir-me-heis que, ao lume da vossa lareira, exponha aos vossos juizos, naturaes e não pervertidos, mais alguns alvitres para então. ¿Quem nos pode prohibir governarmos o mundo em sêcco o nosso poucochinho? Não só toda a gente o faz, e quasi que se não faz outra coisa, se não que a maior e talvez melhor parte das Leis, primeiro que fosse promulgada por legisladores, tinha sido inventada por homemzinhos obscuros como nós, e d’elles passada á consciencia geral. * * * * * Se alguns chamarem _politica_ e ruindade a este uso que nós fizermos do pouco ou muito entendimento, que Deus nos deu para amarmos os nossos semelhantes, não vos haveis de agastar, nem eu tornar-lhes resposta; que, por mais que thesoirem, não nos descozem o saio,--como lá diziam os nossos velhos. ¿Vêdes vós? acostumaram-se áquillo de ver em tudo _politica_, e de chamarem _politica_ a tudo; e depois, teem um medo, que se finam, até das verdades velhas, ¡quanto mais das novas! Lá se entendem; e assim é bom, para se não irem d’este mundo totalmente desentendidos. Não, meus amigos, _politica_, no sentido estreito que elles dão a esta palavra, politica do soalheiro e do mexerico, de acreditar a Pedro e desacreditar a Paulo, de velhacar Leis e receitar venenos, d’essa não fazemos nós, que nos regala andar com o nosso rosto descoberto, e dormir as nossas noites de um somno e com as portas e janellas abertas em não fazendo frio. Agora: se ás questões de philosophia social, que elles nunca leram, ou, se leram, não entenderam, ou que, se as entenderam, lhes não cahiram a elles em graça; se ao exame dos fundamentos da felicidade publica, sem referencia a tempos nem a pessoas, chamam _politica_, essa temol-a feito, e (por mais que lhes pése) havemos de fazel-a sempre, que não somos nenhuns Esaús da Liberdade, que vendessemos o nosso morgado, como por si dizia outro poeta chamado Lamartine, respondendo a um satyrico damnado da sua terra. * * * * * Mas.... para nos não parecermos com aquelle parvo do conto, que sabeis, que em logar de adiantar caminho, para chegar á feira a horas e negociar, se deteve todo o dia com o carapuço na mão diante de um pilriteiro, pedindo á sombra movediça licença para passar, eis aqui já, meus futuros Legisladores, um objecto, que assás me parece digno da vossa consideração. A propriedade sobre o terreno, claro está não ser um direito natural; mas nem por isso podemos dizer que não seja direito, e muito respeitavel. Sem elle não existiria Agricultura. Sem Agricultura, não existiria sociedade fixa e civilisada. Com a sociedade nasceu pois, assim como outros muitos direitos; confirmou-se com a posse; identificou-se com as ideias e consciencias, como com os interesses, e ficou sendo, por que assim o digamos, um direito natural relativo, e secundario. A philosophia, tanto como as Leis e a força, o deve proteger. Não é quanto a elle que vos lembro reformações, mas só quanto ao modo de regular o seu uso. * * * * * Adquiri eu uma terra por qualquer titulo legal; é minha, não ha duvida. Posso arrendal-a, posso doal-a, vendel-a, emprestal-a, edificar n’ella, cultival-a a meu sabor, etc. É corrente. ¿Mas posso eu por ventura, por ser minha, deixal-a estar improductiva? O senso commum, quanto a mim, responde instantaneamente que não. ¿E porquê? Porque haveria n’isso lesão de terceiro, que é a sociedade, para cujo beneficio extra-natureza, se não contra a natureza primitiva, se instituira e santificára este direito. O avarento poderá ainda ter as suas preciosidades em inercia, e portanto perdidas; porque em realidade o oiro e a prata, posto que fecundantes, não são natural e essencialmente productivos. ¡Mas o torrão, que Deus fez para nos trazer, nos albergar, e nos alimentar! ¡o torrão, que por si reverdece todas as primaveras, que as nuvens e o sol andam regando e aquecendo todo o anno! ¡o torrão que é parte do solo patrio! ¡o torrão ficar dando ortigas e silvas, por indolencia de um homem estupido, quando á roda d’elle muitos braços carecem de trabalho, e muitas boccas pedem pão sem o obter!! Eis ahi o que, por mais velha que seja a posse, nunca jamais poderá chegar a ser bom direito. Folgára de explanar comvosco este ponto, que é tão facil e abundante em considerações, quão momentoso para a felicidade commum; mas levar-nos hia longe. Seria pois a Lei, que eu propozesse, substancialmente isto: --O proprietario que passar um anno sem cultivar algum dos seus terrenos, pagará de multa tres vezes o valor do fruto que esse terreno, bem tratado, houvera podido produzir. --O que o deixar dois annos de poisio perdel-o-ha, para ser dividido pelos pobresinhos da freguesia, ou do concelho, que não tiverem terra. Meus amigos, se alguem lá por fora nos impugnar o alvitre, que é bom e santo, e que, adoptado, augmentaria de repente o trabalho, a riqueza dos particulares, e os recursos nacionaes; se alguem, digo, nol-o vier assoviar á porta e injuriar-nos sandiamente, pôl-o-hemos tão claro, que até esses o entendam; e ainda o accrescentaremos com algumas indicações sobre predios urbanos, que são tambem um dos usos, e podem ser um dos abusos, da terra. Janeiro de 1849 VIII Segundo serão do casal Fraternisação da cidade e campo SUMMARIO Uma boa Lei sonhada.--Os proprietarios ruraes, residentes na Cidade, são obrigados a viver algum tempo nas suas fazendas.--Delicias novas que essa obrigação lhes proporciona.--Nos campos ha um vislumbre de egualdade.--Bens que a estada dos senhores no campo trará por elles aos camponezes, e pelos camponezes a elles.--O autor sabe, por experiencia, o como nos campos a Natureza mesma nos melhora e suavisa.--Os camponezes são menos ruins e infelizes que os cidadãos; e mais felizes e melhores se hão-de tornar, quando a Lei passar de sonho a realidade.--Apontam-se alguns dos muitos melhoramentos, materiaes.--agricolas, economicos, artisticos, etc., que hão-de com o tempo brotar d’esta Lei. Sonhei eu, meus bons amigos, que se tinha a Providencia achado n’estes nossos tempos em maré de muita poesia: que já existia de veras um Parlamento de lavradores, e que as Leis, e com ellas os costumes, tinham chegado a final a grande concerto e formosura. Uma d’estas Leis bemditas vos quero eu contar; porque se algum dia (que pode ser) as nossas semeadas Sociedades de Agricultura pegarem, e, por diligencias d’ellas, tal Parlamento chegar a apparecer, lá considerareis, com o vosso vagar, se do sonho se não deveria fazer realidade. O que lhe deu péga foi aquella nossa pratica do serão ultimo, sobre a obrigação que todo o dono de terra tinha de a aproveitar. * * * * * Sonhava eu pois, que todos os proprietarios de bens rusticos, a quem não assistia alguma particular rasão muito attendivel para o contrario, eram obrigados a morar nos seus campos alguma parte do anno..... * * * * * Reverdecia a primavera, e eil-os lá sahiam das cidades, colmeias grandes, onde, entre muitos zumbidos, se fabricam favos de fel. Até ás barreiras, ainda iam murmurando contra a salutar violencia, que os bania temporariamente. Logo ali, ao desembocarem das ruas estreitas e sombrias, que nenhuma estação altéra, para a amplidão de campos e horizontes, a serenidade do ceo azul se lhes começa a filtrar dos olhos para a alma. A madre-silva de cima do cômoro lhes dá as suas rescendentes boas-vindas; e para o coração se lhes côa parte da bemaventurança que inspira aos seus filhinhos libertos o aspecto das papoilas côr de fogo, a rir na verdura sem limites; dos rebanhos, que ondeiam branquejando pelas planicies; dos moinhos, que bracejam cantando pelos oiteiros. Tudo para elles é descobrimento e maravilha: os passaros, que altercam graciosos pelos ramos; as aguas, que manam, a debuxar os arvoredos toucados de flores e sol; os cantares dos rusticos no trabalho; a choupaninha pobrissima, mas que tem ainda com que albergar hospedes; as andorinhas, que tambem vieram lá de outras terras pendurar-lhe por cima da janella unica, e ao abrigo do tecto de palha, o berço dos filhos. Atravez d’estas scenas, tão antigas e sempre novas, tão sem artificio e tão cheias de harmonias, tão casuaes e tão sabiamente variadas e contrapostas, toda aquella opulenta familia cidadan vai já invejando a boa sorte dos filhos das aldeias, para quem só parece existir a Natureza. Ao estrépito da sua carroagem saem ás portas as creanças, cuja nudez mostra carnes dignas do cinzel de um Assis Rodrigues, e que riem sempre, como os Seraphins do retábulo da freguezia; moças esbeltas, a quem o carmim da aurora corou as faces, como pomos, e que em seus trajos de lan resplandecem como dahlias soberbas em vazos pobres; e bons velhos, que entre tres e quatro gerações de descendentes seus ainda os ajudam com o conselho, e o pão que em ocio lhes comem, lh’o pagam com as vivazes historias do passado. A carroagem passa por entre essa multidão, tão afortunada quanto na terra se pode ser; passa; mas no seu vôo colheu e deixou sorrisos de benevolencia. Chegada á sua nova residencia a familia cidadan, sente-se mais á larga em quartos pequenos, d’onde se descortinam campos e montes, do que lá nos doirados e espaçosos carceres de seus salões. Tudo para todos os sentidos lhe é novo: a linguagem chan e respeitosa dos visinhos; as horas e qualidade das refeições; as danças e cantares do serão; o deitar antes que o sete-estrello vá alto; o erguer muito primeiro que o sol, e quando o passarinho vem dizer á vidraça que já é dia; o lavar e almoçar na fonte, por baixo da parreira; o sahir para toda a parte sem a pesada libré das galas; o descobrir em cada passeio um sitio incognito, e menos esperado do que para Colombo o foi o Novo Mundo. Não ha pessoa que os não saude pelos seus nomes, que não procure algum pretexto para lhes falar, que se não julgasse feliz de os poder servir. Os obsequios mais delicados lhes affluem a cada hora ás portas, trazidos por mãos, que só os seus callos accusam de grosseiras. Na cidade os visinhos não se conhecem, ou são inimigos mutuos; os do campo, quaesquer que sejam as differenças de gerarchia e fortuna, são irmãos da mesma tribu. A donzella de vestido branco não teme perder o seu _Dom_ dançando no seu jardim ao domingo com a filha do seu honrado hortelão; nem o mancebo esbelto, que sabe de cór todas as arias novas, e ambas as chronicas de cada _prima-donna_, se crê deshonrado passando na caça o dia com o soldado velho, que ainda voltou das guerras para vir morrer na freguezia de seus paes. Ao luar, nas médas da eira, ¡vel-os como correm folgando, vozeando, mergulhando na palha, e reapparecendo ao som de palmas, os imberbes herdeiros de oito e dez nomes, e os pequeninos, que, sem terem menos avós, não receberam mais nomes que os de seus paes! Se em alguma parte se encontra um vislumbre da egualdade, sonhada pelos philosophos para consolar penas, é só nos campos que essa filha de Deus se entrevê formosa, travêssa e risonha, como a Galatêa de Virgilio por entre os salgueiros. ¡D’esta convivencia, que as semanas e os mezes vão apertando cada vez mais, que vantagens não redundam para os moradores do palacio rustico, e para os camponezes! Os primeiros esquecem muito passatempo ruinoso, que julgam indispensavel; os segundos muita grosseria de trato, em que nunca haviam advertido. A casinha terrea ensinou ao solar sobriedade, e amor do trabalho; mas d’elle aprendeu o aceio, as commodidades faceis, e o gosto. O senhor deixou-se entrar da caridade, presenceando as fadigas e miserias dos seus rendeiros; o trabalhador, vendo-o bom, cessou de o temer e odiar como o seu genio mau e invisivel. As relações e valimentos na côrte attrahiram muitos favores, quando menos alguma justiça, ora para a viuva, a quem pretendiam arrancar o filho para o Exercito; ora para o lavrador, a quem contratempos desmerecidos vedaram pagar ao Fisco. As damas, quando se ausentarem, haverão deixado amigas, que repitam o seu nome sem inveja, e os seus louvores com desvanecimento; e lá para o inverno, a poisada em que tudo falta a fóra a esperança, verá muita vez acorrer-lhe lá de longe, do meio da Babylonia, a sua providencia: o fatinho conchegado para as creanças, o enxoval para a filha casadoira, o tabaco para a caixa vasia do velho, o linho para as rocas e o fiado para o tear, e a paga adiantada, para que o jantar não sejam suspiros, e a ceia lagrimas. N’uma palavra: as cidades conhecerão e amarão os campos; e os campos perdoarão e abençoarão a opulencia das cidades. Os grandes terão ido lá retemperar a saude gastada dos vicios e cuidados, e repoisar a bolsa, dos duellos, do jogo, das tirannias da moda, das violencias da vaidade e das paixões. Estas ferias, dadas a tres coisas tão damnosas, como são o gasto do corpo, a inanição da alma, e o desbarate da fazenda, pode ser que em bastantes dos que as disfrutarem venham a produzir mudanças de vida, mui sinceras, mui duradoiras, e sobre modo uteis para a pessoa e para o proximo. * * * * * Eu por mim, meus ricos pobres do campo, não duvido, se não que o creio com todas as veras d’alma: porque, ¿vedes vós? eu mesmo já tambem vivi, e annos, fora e muito longe das cidades, e sei como as estrellas conversam comnosco em nos colhendo a sós n’essas vossas solidões. Sei como deitado a um meio-dia de estio, á sombra de um dos immensos guarda-soes verdes abertos por Deus aos passarinhos, aos rebanhos, e aos homens, respiramos ares bonissimos de saude, de sabedoria e benevolencia; folheamos o canhenho do nosso passado, e sorrimos de desprezo a tanto lidar por nadas, a tanta figura anan que ali fez papel de gigante, e a tantos montes de oiro, que representaram de grãos de areia. ¿Tinha-nos irritado a malignidade de um satyrico? Passa-nos por cima da cabeça um besoiro negro, e envergonhamo-nos de lhe ter dado attenção. ¿Tinhamo-nos consternado com o mallogro de um empenho? O ciciar da seára visinha nos diz: «Tambem aqui, entre as minhas espigas, vão algumas negras e vazias; mas nem por isso me chamam pobre.» ¿Tinhamos visto nos homens o egoismo? Estamos sentindo em torno de nós a prodigalidade a palpitar, a revolver-se, a rescender, a cantar, por toda a superficie da terra. ¿Tinhamos chegado pela tristeza ao scepticismo? Por cima de nós não descortinamos senão ceo, e ceos. Erguendo nos, e afastando-nos d’ali, quando por entre as arvores, além, nos chama o fumo da nossa cosinha, saudamos ainda mais cordealmente ao visinho ou ao passageiro desconhecido; jantamos com mais apetite; e se o mendigo, enviado pela Providencia, vem n’essa hora entoar á porta o Padre Nosso, assentamol-o á nossa direita, alegramos a sua velhice com o nosso melhor vinho; e, finda a refeição, ambos damos graças ao Pae Commum, pela esmola que a um e outro acaba de fazer. ¡Oh que sim! cada folha no campo sabe mais, e aconselha melhor, para isto de contentamento interior, que todas quantas academias existem de Pekim até Lisboa, de Lisboa até aos confins da America. * * * * * --«Mas--perguntar-me-heis vós--sendo assim, ¿por que não somos nós, os do campo, inteiramente bons e bemaventurados?» ¡Inteiramente!!.... Não pode ser, que esse _inteiramente_ não cabe ao mundo; porém menos desgraçados e menos ruins que nós outros, os da cidade, crêde firmemente que o sois. Padeceis minguas, que o viandante descobre pela vossa janella sem vidraças. Sim, mas lá estão muitos palacios, onde, entre arrazes e sedas, se curtem amarguras, como entre flores se escondem viboras. Ali, sem espectadores, se representam tragedias inauditas. ¡Quantos de cima de um cofre de oiro se não levantam pallidos e blasphemando, para se irem pendurar n’um laço, algozes de si mesmos! ¡Quantos n’um coche envernizado por mão de pintor heraldico, ou montados n’um cavallo que lhes custou o preço de duas herdades, não vão lavar com o proprio sangue n’um duello a afronta, talvez chimerica, que receberam, ou, para tirarem um espinho da honra, carregar-se para toda a vida com o remorso de um homicidio! ¿Vedes vós?... E não vedes ainda nada; e nem eu vol-o quero nem devo mostrar. Mas crêde; fiae-vos em mim: Lançadas bem as contas por quem experimentou ambos os vivêres, os menos maus dos maus, e dos infelizes os menos desaventurados, sois vós. E a mais ireis, quanto mais d’estas verdades vos convencerdes; que já lá dizia, ha dois mil annos, outro poeta bem vosso amigo (como todos os de veras o são), um poeta que só para vós escreveu uma das mais admiraveis obras do mundo:--«¡Oh! ¡ditosos, ditosissimos os lavradores, se elles acabassem de entender as suas ditas!....» Já vêdes, como podeis esmolar virtudes e satisfação aos desconsolados das ruas largas e das praças espaçosas. Só por isto, já valia bem a pena de que o nosso Parlamento de amigos da terra promulgasse, muito depressa, a Lei com que eu sonhava, e com que ainda sonho. * * * * * ......Mas cavae-me bem fundo com o discurso n’esta materia, e vereis¡ quantos outros bens vos não promette! A vossa estrada e os vossos caminhos transversaes estão por fazer; o vosso rio, a obstruir-se de todo, a comer-vos os campos com areias, e as vidas com febres. Na vossa capella assovia o vento e côa a chuva; o seu calix é de estanho; o seu Missal rôto; o seu Crucifixo perdeu o doirado, e as rosas da corôa da Mãe de Deus, ainda que artificiaes, estão murchas como as das suas faces. O vosso cemiterio augmenta o horror á morte, pelo desamparo; lá os vossos parentes não teem sombra de arvore piedosa, onde a saudade sinta delicias em orar; e os cães e animaes do monte podem ir pela noite desenterral-os e comel-os. Não digais nada a ninguem; mas todas essas lastimas, que vós deplorais ha tantos annos, hão-de findar, como quer que seja, com a estada dos ricos entre vós. O solo mesmo sente que em vossas casas fallece a prata e o cobre. Ora deixae-os residir por ahi alguns mezes, e dir-me-heis, e dir-me-ha o mesmo solo, e ainda mais galhardamente que vós, se das cidades enriquecidas pela Agricultura não refluiu a final algum oiro para os campos. Os vossos filhinhos carecem de mestres; os da cidade tambem teem coração, e tambem teem filhos; vereis como vos brindam com escolas. Hoje frequentemente vos acontece desejardes n’um repente um bom conselho, que só a Sciencia pode dar, já para o vosso trato agrario, já para a vossa industria, já para o vosso commercio, já para a vossa demanda, ou para o governo da vossa vida. Esses homens da cidade teem livros; teem certas tinturas geraes, que dá o trato do mundo; teem amigos e conhecidos, a quem podem escrever e consultar. Até o amor proprio (quando não fosse já a humanidade) vol-os tornaria serviçaes. O vosso domingo só escápa do tédio pelo somno, pela conversação ociosa, que degenera em maledicencia, ou... pelos praseres grosseiros, perigosos e funestos, da taberna. As vossas dansas já a vós proprios vos cançam de monótonas, e os vossos cantares sem pensamento já faziam bocejar aos bisavós. Deixae estar: aquella gente da cidade vos trará (até por seu interesse), e vos ensinará, recreios que vos encantem. Vereis o que é um theatro. Amareis e cultivareis a musica. E Deus sabe ¡quantos talentos, que por entre vós se perdiam, se não hão-de aproveitar! ¡quantas divindades não dareis ainda ás adorações da Capital! ¡quantos brasões de verdadeiros meritos não grangeará para si o vosso logarejo! * * * * * Pensae n’isto, pensae n’isto, meus amigos; e (rebente de inveja quem rebentar, definhe quem quizer, de odio contra a ventura do Povo) trabalhae, e orae a Deus, para que venhamos a ter aquellas Côrtes que sabeis. Fevereiro de 1849. IX Terceiro serão do casal Indole campestre da Poesia SUMMARIO A Poesia nasceu nos campos, e para elles propendeu sempre.--Quem foi Ovidio.--O seu poema dos _Fastos_.--Duas amostras d’este poema.--Festa das sementeiras entre os Romanos.--Festa do deus Término. Dizia-vos eu, meus camponezes, que todos os poetas de veras eram vossos amigos; não ha nada mais certo. A Poesia nasceu nos campos, e por muito tempo só conheceu esse viver viçoso e perfumado. Veio a fazer-se dama ambiciosa de mais refinadas delicias; assentou vivenda nas cidades; fez-se muito sabia, muito altiva muito malédica, muito contradictoria; ora devota, ora impia, ora frivola, ora profunda; mas lá os seus campos nunca se lhe desluziram da lembrança. Em nenhuma parte a ouvirieis cantar combates, viagens, descobrimentos, artes, luxo, amores, ou desejos de melhor vida para alem-mundo, que lhe não fugisse um olhar de saudade para o seu paraiso de flores. A edade de oiro, que é a sua scisma contínua, posta umas vezes no passado, outras no futuro, a edade de oiro (que Deus sabe se é tão fabulosa como cuidam, a não ser em relação ao seu titulo), ¿que era ella se não a Arcádia, o viver campestre, manso e regalado? Livros dos mais antigos do mundo, os de Moisés e os de Homero, uns e outros mananciaes de Poesia, não teem pagina, que nos não espelhe uns reflexos das bemaventuranças patriarchal e heroica, que são tambem Arcadia, com leves modificações. Passaram os povos antigos, com as suas religiões e usos particulares. Nos escritos que de então sobreviveram, ¿que é o que mais nos encanta? Não são por certo as descripções dos seus usos exclusivos, ainda que para ahi se attrai fortemente a curiosidade; são, sim, os toques allusivos ao viver rural, porque emfim, ahi é que é o ponto de contacto de todas as edades, e de todas as civilisações. O campo é que é o centro de unidade da especie humana. * * * * * Se tivessemos vagar, muito nos haviamos de entreter relendo em commum, aqui no vosso casal, alguns dos mais guapos trechos dos poemas de eras mui diversas, e paizes mui remotos, por onde acabarieis de conhecer quanto o vosso trato namorou sempre aos bons engenhos. Fôra leitura para cem annos bem aproveitados. Falemos de um só autor, mas, que, pela grandeza do seu talento, vale centos. Nasceu este na Italia, em tempo do poderio Romano, vai em dezanove seculos, e quando o latim era ainda lingua viva e bizarra. Chamava-se Publio Ovidio Nasão, e era cavalleiro, ou fidalgo d’aquellas eras. Vivia na Côrte, bem relacionado com a principal Nobreza, e mui cabido no paço dos Imperadores. Tinha um engenho prodigioso para a Poesia; cultivou o com os estudos da eloquencia, com o trato dos outros poetas contemporaneos, com as sciencias, com as viagens á Grecia, que era a França d’aquelles tempos, e Athenas a sua París. Compôz uma quantidade de obras, que ainda existem quasi todas; a maior parte amorosas e voluptuarias. As mulheres eram para elle o maior bem do mundo; o segundo, as amenidades da Natureza (ninguem dirá que tivesse mau gosto o nosso Ovidio). Este homem, depois de ter gosado quanto era possivel da vida de Roma, de repente, e já ao descahir para velho, é desterrado. ¡E que desterro! ¡De Italia, para a Russia! ¡do seio das delicias, para uma povoação barbara, glacial, sempre em contingencias de guerras! Ali se vê, longe de sua mulher, de sua filha, de seus amigos, dos campos do seu nascimento, das damas, e dos applausos. A causa do seu desterro é um enigma, que tem desatinado os historiadores, e a que ainda ninguem rastreou solução provavel. Coisa de amores (ou seus ou alheios) deveu por certo de andar por ahi. O que sabemos é que, lá no desterro, lembrando-lhe com muitas saudades tudo quanto havia perdido, nada lhe doía mais no coração, que o ver-se privado do seu quintalinho nos arrabaldes de Roma, onde outr’ora a mão que tão gentis coisas escrevia se deliciava, muita vez, em podar e enxertar as suas arvores. --«¡Coitado de mim!--dizia elle--ainda que eu aqui me quizesse metter a lavrador, os bois d’esta terra não entendem latim.» Em tal e tamanho desamparo, que até á morte lhe durou, só as Musas o não desampararam. A isso devemos duas deliciosas collecções de magoadissimas Cartas em verso, á mulher, aos amigos, a Cesar mesmo, sollicitando vir morrer onde nascêra, e metade de um poema intitulado _Os Fastos_. * * * * * Eram os _Fastos_ de Ovidio uma obra em doze Livros, de que só ficaram os primeiros seis. Tinham por objecto descrever e explicar as principaes festas religiosas pagans de cada um dos doze mezes; a origem archeologica de cada uma d’ellas; e a sua coincidencia com as revoluções astronomicas. Eis aqui o como elle prepõe a totalidade do seu plano: _Festas do Lacio anno, origens suas quaes astros vão, quaes veem, dirão meus versos._ Esta obra, além de outras suas, traduzi eu; e por signal que offereci a traducção a um muito particular amigo d’elle, meu, e vosso, que é o Secretario da nossa Sociedade de Agricultura. Ha nos _Fastos_ muitas e mui bellas provas do que eu ha pouco vos dizia: do amor que o bom do Ovidio tinha á vida campestre. Amostrar-vos-hei algumas; e vá, por estreia, o final do seu mez de Janeiro. Canta assim: FESTA DAS SEMENTEIRAS Nos Annaes, onde as festas veem marcadas, festas em vão busquei das sementeiras. Vendo-me a folhear, cuidoso, assiduo, e entendendo-me o empenho,--«Em balde as buscas--rindo a Musa me diz;--«¿festas mudaveis das fixas no registro achar querias? Teem marcada estação, e o dia incerto; celebram-se no praso em que estão prenhes de sementes os chãos. Gosae do ocio á farta manjadoira, ó bois coroados; lá virá logo a activa Primavera, á cerviz repoisada impondo jugo, co’a renascente lida afadigar-vos. No abrigo do casal durma por ora a cançada charrua; a terra fria não deseja, não soffre, o ser rasgada.» Agora, que jaz finda a sementeira, lavradores, dae folga ao solo, aos braços; lustrem colonos sua aldeia em festa, dêem a seus fogos a annual fogaça. Tellus e Céres, madres das seáras já com seus mesmos grãos se propiciem, já coa’s entranhas da suina fêmea. D’entre ambas nasce o grão que nos sustenta: Céres nol-o produz; mantem-n-o a Terra. Ó consocias em dádiva tão rica, deusas, por quem a rude antiguidade se abrandou, se poliu, deixada a glande por mais nobre manjar, dae aos colonos, em premio a seu trabalho e a seus desvelos, colheita sem medida, e que os sacie. Dae augmento continuo aos germes tenros, e que a neve á nascença os não destrua. Em quanto disparzirmos as sementes, alimpae-nos o ceo com ventos brandos; mal que enterrada fôr, mandae-lhe as chuvas; e, pois são gloria vossa as pingues messes, que em vagas de oiro, ao longo d’essas veigas, rumorejam fartura, ¡eia, salvae-as do avido bico das aladas hostes! Por ora, que inda a terra o grão recata, vós, formigas poupae-o; usura grande havereis d’elle, se aguardais a aceifa. Livre de tôrpe alforra a messe vingue, e côr de alma saude o Céu lhe influa; que nem definhe pallida, nem perca por excesso de viço e nimia pompa. Joio, á vista nocivo, os chãos não brotem, nem tôrpe aveia as sementeiras mescle. Só se vejam medrar profusamente as cevadas, o trigo, e a rija escándia, a escándia, a fogos dois predestinada. Lavradores, por vós taes são meus rogos. Co’os rogos meus os vossos se misturem, por que uma e outra deusa os ratifiquem. Ferina longo tempo a humanidade só nutriu bellicosos pensamentos. Mais apreço que a relha a espada tinha, e em foros de nobreza era anteposto o corsel que peleja, ao boi que lavra. Não trabalhava a enxada; ia-se em lanças dos alviões o ferro; o ensinho em elmos. ¡Graças, deusas, a vós, a vós, ó Cesares! o Genio marcial agrilhoado já sob os pés de Roma em vão se extorce. O toiro acceite o jugo; o solo, os germes; Céres, filha da paz, co’a paz triumphe. * * * * * Ouvi-lhe agora a narração da festa, que em seu tempo se fazia no mez de Fevereiro, em honra do deus Término, ou Têrmo. Este deus não era mais nem menos que um marco, de pedra ou pau, que extremava os predios. Com rasão lhe davam aquelle culto; nada mais respeitavel, que a propriedade; nada mais judicioso, que santifical-a. FESTA DO DEUS TÉRMINO Finda a noite, alvoreça a costumada festa do deus que nos comparte os campos. Quer tôsca pedra, ó Término, te embleme, quer tronco informe pela mão de antigos enterrado no chão, sempre és deidade. Para ti donos dois, de oppostas partes, c’rôa e c’rôa te cingem; bôlo e bôlo te vem de cá, de lá; como á porfia, ahi se te engenhou ara campestre. Lá nos traz a açodada fazendeira no seu testo quebrado as áscuas vivas que apurou do borralho. O bom do velho racha a lenha miuda, ergue-a em pyramide; sua a cravar no chão ramos festivos. Agora em cascas sêccas ceva o fogo, tendo em pé ao seu lado, em quanto assopra, o filhinho abraçado a largo cesto. Tres vezes d’ali tira e lança ao fogo punhados de aurea Céres. Toma os favos, que a filha pequenina lhe apresenta pelo meio cortados. Trazem outros o vinho; tudo aqui se liba ás chammas. Alvitrajada a turba espectadora religioso silencio attenta observa. Co’o sangue quente de immolada ovelha ¡que ufano purpureja o vulto informe do commum velador, o honrado Término! e quando, em vez de ovelha, haja leitôa, não temais que se anoje. O brodio é franco aos bons visinhos, corações lavados, que o celebram com fé, que jubilosos vão tecendo um louvor a cada prato. Ouvi, ouvi seu rustico descante; é do deus do festejo o panegyrico: ¡Salve, ó Término sacro, ó tu, que extremas bairros, cidades, reinos! cada campo fôra sem ti um campo de batalha. Mantens, desambicioso, insubornavel, as herdades em paz das Leis á sombra. Se a terra Thyreátide te houvéra, não ceifaria a morte heroes seiscentos de Argos e Esparta no fatal duello; não se lêra de Othryades o nome n’um vão tropheo de mentirosas armas, que inda á Patria infeliz custou mais sangue. Capitolino Jupiter que diga que invencivel te achou, quando ao fundar-se-lhe a área do templo, ao passo que os mais numes para dar-lhe logar retrocediam, tu só, qual nol-o conta annosa fama, ousaste resistir, ficar, ter parte no templo augusto, e adorações com Jove; e inda lá, por que nada alfim te ensombre, sobre ti ao ceo livre é rôta a abobada. Nume de tão gentil perseverança, em qualquer a leveza achára venia; contradicção em ti suicidio fôra. Mantém pois sempre, ó sacra sentinella, mantém pois sempre, ó Término, teu posto. Despréza os rogos do vizinho avaro; não lhe concedas do terreno um ponto. ¡Ceder a humanos quem resiste a Jove?! ¿Vem bater-te enxadão, pulsar-te arado? proclama a vozes: «Meus confins são estes; d’além, tu; d’aquem, elle; ambos cohibo, e em cohibir aos dois aos dois protejo.» Uma estrada une Roma aos Laurentinos, reino que o Teucro prófugo buscára; lá, dos marcos o sexto em honra tua vê que lanosa victima se immola. Término, já que acceitas cultos nossos, ampara nos; sustenta o nosso Imperio. De cada povo o espaço é circumscripto; são de Roma os confins confins do globo. * * * * * ¡Quão grande, meus amigos, não era o Povo em que um Poeta podia dizer isto, sem medo de que o mundo, nem a posteridade, o desmentisse! E nós tambem, nós, os Portuguezes, já houve um tempo, em que pouco menos fomos. Ouvi como o nosso Camões o cantava: Mas em tanto que cegos, e sedentos andais do vosso sangue, ó gente insana, não faltarão christãos atrevimentos n’esta pequena Casa Lusitana. De Africa tem maritimos assentos; é na Asia mais que todas soberana; na quarta parte nova os campos ara, e, se mais mundo houvera, lá chegára. ¿Hoje...¿ que são aquella Roma, e este Portugal? Roma pereceu. Portugal, se não agonisa, enferma gravemente. Mas para Roma não ha já esperança; para nós ha ainda uma ¿Sabeis qual? Sois vós, vós mesmos, vós unicamente, ó Lavradores. Março de 1849. X Quarto serão do casal Continuação do precedente SUMMARIO Mais Ovidio.--Recommenda a Germanico o Livro IV dos Fastos, por ser Abril consagrado a Venus, a ascendente da familia _Julia_.--Nobiliario troiano dos Romanos.--Rasão por que no calendario de Romulo era Março o primeiro mez, e Abril o segundo.--Uma etymologia grega de _Abril_.--Outra etymologia latina da mesma palavra.--Abril pertence de direito a Venus, como principio de toda a attracção e reproducção das especies.--Venus tirou os homens do estado silvestre, e fez nascer a Poesia, e todas as bellas, e boas Artes.--Roma, mais que todos os povos, deve a Venus adorações.--Origem de uma festa annual dos Romanos a esta deusa. O nosso Ovidio, que já conheceis, é quem ha-de regalar-vos este Serão. Ides ouvil-o no introito do seu Livro IV dos _Fastos_, cantar-vos as origens d’este mez. Fala com o Imperador Germanico. Abril de 1849. N. B DO EDITOR--Seguia-se na 1ᵃ impressão d’esta obra um largo trecho da traducção dos _Fastos_; mas como esse fragmento pertence por sua indole a outro genero de estudos, e entraria aqui descabido até certo ponto, entendeu o editor, para não allongar demasiado o volume com um accessorio, aliás brilhante, supprimil-o, remettendo o leitor á edição especial dos _Fastos_. DIGRESSÃO SOBRE A Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel ADVERTENCIA Entre o precedente _Serão do Casal_ e o seguinte, falta o do mez de Maio. O autor estava ausente. A 21 de Fevereiro partira para Lisboa, deixando promptos os d’esse mez e dos dois immediatos, esperando regressar a tempo de não haver interrupção. Mas os negocios, que tão empenhado o levavam á Côrte, só o deixaram tornar a 24 de Maio. Eram estes negocios a approvação dos Estatutos da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel pelo Governo, e a concessão de um pouco de terreno nacional n’esta Ilha, a cerca do extincto convento da Conceição, desaproveitada, e as ruinas da contigua egreja de S. José, para a Sociedade ali edificar á sua custa uma casa para as suas escolas, sessões, exposições, concertos musicos, representações scenicas, etc.; tudo objectos de publico e manifesto interesse. Fez o autor em ambas estas diligencias tudo quanto era humanamente possivel; e, apezar da santidade e generosidade de taes requerimentos, da optima sombra que de toda a parte os cercou desde a primeira hora, das formaes e reiteradas promessas dos que mais podiam influir no despacho, o que só logrou trazer foram os Estatutos approvados (ainda assim com suas restricções desconfiadas, que uma tão desambiciosa Sociedade por ventura não merecia), e uma esperança, já então muito vaga, de se obter o terreno; o terreno, condição tão substancial para a existencia da Sociedade, como a existencia da Sociedade provadamente o é para o progresso e lustre das Artes, das Lettras, e da sociabilidade n’esta paragem. N’este livro, repositorio de sãos desejos, propostas e ousadias civilisadoras, entendeu-se não seria mal cabida uma singela memoria de taes factos, pois quando se lhe pôz por titulo _Felicidade pela Agricultura_, na palavra _agricultura_ se abrangeram implicitamente, como até agora se tem visto, e se continuará a ver até ao fim, todos os outros verdadeiros interesses inseparaveis d’ella, quer os consideremos activa, quer passivamente; e para os quaes, Deputados e Ministros amigos da terra não poderiam deixar de olhar com amor principalissimo. A mesma razão, que o autor no Prologo deu, de haver colligido n’este volume alguns dos seus artigos impressos no _Agricultor Michaelense_, lhe fez força para aqui lhes intercalar os seguintes, que, por andarem dispersos em periodicos, já hoje estavam sendo como se não existissem. O amor-proprio nada fez para o caso. O autor sabe o pouco valor de forma litteraria, que ha em tudo isto; mas crê, em sua consciencia, que deixa a seus filhos um bom exemplo, e a outros cidadãos zelosos indicações uteis. Finalmente: pela publicidade, que muitas vezes é mãe da opinião, como esta quasi sempre o vem a ser dos factos, figurou-se-lhe que poderia, perante o Parlamento e o Throno, dar assim um derradeiro impulso á pretensão pendente. _¡Di faciant!_ Não quer o autor perder este lanço de agradecer, perante os contemporaneos e vindoiros, ás pessoas que mais sollicitas se teem havido em patrocinar o requerimento: ao sr. D. Pedro da Costa de Sousa de Macedo, então dignissimo Governador Civil de Ponta-Delgada; aos srs. Redactores do _Açoriano_, e do _Correio_ d’esta mesma cidade; ao da _Revista Universal Lisbonense_, e aos de outras folhas de Portugal, nomeadamente ao do _Diario do Governo_, o sr. Vilhena Barbosa; ao sr. Mexia, benemerito Secretario da Camara electiva; aos honrados Membros da Commissão de Fazenda da mesma Camara; a um grande numero de Senhores Deputados e Dignos Pares; ao mui distincto Presidente do Tribunal do Thesoiro; ao sabio ex-Ministro da Fazenda, o sr. Franzini; ao exemplar de Governadores Civis, o sr. José Silvestre Ribeiro, etc., etc., etc. ......não é premio vil ser conhecido por um pregão do ninho seu paterno. I Carta ao Redactor da Revista Universal Lisbonense Ill.ᵐᵒ collega e amicissimo snr. Ribeiro de Sá. Lisboa 6 de Março de 1849. Se a reconhecida modestia de V. S.ᵃ se oppozesse a que estas poucas linhas fossem incluidas na sua _Revista_, ficaria eu perante o Publico insanavelmente condemnado pelo mais vil de todos os ingratos; pois desde que V. S. se encarregou de tal redacção, com geral e manifesto proveito, até hoje ainda não perdeu a minima occasião de provar a sua extremada benevolencia, a sua devoção, o seu (¿ousarei dizel-o?) fanatismo de amisade para comigo. Honrando me, como V. S. o tem feito, V. S. se tem sobretudo engrandecido a si mesmo. Exemplos de tão alta generosidade em tempos de egoismo tão profundo; linguagem tão do coração, quando a maledicencia se tornou moda, e se pavoneia como donaire; fidelidade assim para com a amisade velha, em terra onde as novas mesmo são apenas respeitadas; pagar todo o pouco louvor que se deve, ajuntando-lhe com alegria o que nunca chegará a ser merecido, mas que nem por isso deixará de produzir mui fecundos estimulos para o bem; e, para remate de singularidade, fazer tudo isto longamente, e com inalteravel constancia, a um homem desterrado pela fortuna para além-mar por anno e dia, que vale o mesmo que dizer, a um morto e enterrado sem cipreste nem epitaphio... eis aqui o que a V. S. o torna unico em merito, e unico a mim tambem em felicidade. Forcejemos por nos conservar como Deus nos fez: corações sinceros e amantes, almas impermeaveis ás invejosas malevolencias, que tão boas coisas estragam por esse mundo. O systema, que V. S. tem religiosamente seguido na nossa _Revista_, de exforçar e coroar todas as boas vontades, de animar e dirigir todos os principiantes, de restaurar brios a todos os desanimados, em summa de manter n’essa folha um honrado campo de exercicios, de emulações sem odio, e de premio para todos sem distincção, é quanto a mim o mais glorioso, o mais patriotico, e o mais eminentemente moral, de quantos systemas se podem adoptar em jornalismo. Para almas pequenas teria uma inconveniencia, que é a de semear ingratidões muito feias e ruins. Mas ¿onde estaria o merecimento do bem-fazer, se todos fossem agradecidos? Como experimentado falo: o melhor travesseiro, onde uma cabeça, que já quer ir branquejando, se pode reclinar para bons somnos, melhores sonhos, e optimas vigilias, é o bem que se fez sem esperança de retribuição, e as amarguras passageiras, que maldosamente nos deram a tragar. Continue pois V. S. no seu apostolado, baptisando, confirmando, e convertendo, principalmente a pobre gente moça e inexperiente, para a unica verdadeira religião terrestre, a illustração e a moralidade. O que havia de empregar comigo, já muito conhecedor, e muitissimo desencantado, das vaidades litterarias, dê o exclusivamente á geração nova, que, atravez de tropeços e quedas, vai caminhando para muito grandes destinos. Quanto a mim, presente de já pouco futuro, e passado que a fortuna desfloriu e quebrou antes do fruto, cá me ficarei sentado na pedra immovel do angulo da estrada, seguindo, com os meus votos de muito amor, esse bando juvenil que marcha para o futuro, por entre o qual vai por ventura mais de um que me ama, e muitissimos a quem eu amo. Dia virá, em que o actual Redactor da _Revista_, depois de os ter fielmente acompanhado e dirigido, se ha-de tambem, lá a diante, assentar como eu hoje, e seguil-os só com as saudades. É para então, meu bom amigo, que o esperam as recompensas interiores, as unicas de que ninguem nos pode defraudar. Solitario então, como eu hoje, V. S. conversará, mão por mão, e horas largas, com a sua consciencia; porque emfim, como diz um excellente Poeta, o bem que fazemos perfuma nos a alma; sempre d’elle nos lembramos o nosso poucochinho. Entretanto, meu caro e honestissimo escriptor, nem então deixará o seu distincto entendimento de pagar, de algum modo, á Patria e á Humanidade o que todos lhes devemos. Do escripto, V. S. passará a obras mais positivas: do desejar e do aconselhar, ao emprehender e ao conseguir; pois que eu mesmo, sem ter ainda inteiramente despedido a Musa, a quem devi a pouca fama que me deram; sem ter renunciado o meu logar no banquete commum dos escriptores conterraneos, já me acho, de feito, e com todas as veras, empenhado n’estas menos brilhantes, mas não menos uteis, tarefas do nosso seculo. Os meus poemas hoje são as escolas, os methodos melhorados de ensino, a instrucção e civilisação dos operarios, a esmola da doutrina ás pobres almas infantis; porque a doutrina é moeda sem a qual esses pobresinhos nunca chegariam, em tempo algum, a poder mercar felicidade para si, nem para as suas mulheres, nem para os seus filhos, se Deus lh’os der, nem para a sua Patria. Mas... este campo em que entrava agora é vasto; deixemol-o para outro dia. Eu lhe contarei, para os seus leitores e nossos amigos, o que n’este sentido já tenho feito com admiravel fortuna; e o mais, e muito mais, a que se estendem os nossos projectos, que a Providencia, segundo espero, ha-de continuar a favorecer. De V. S. etc. A. F. DE CASTILHO II Segunda carta ao mesmo Meu estimavel Amigo Lisboa, 8 de Março de 1849 Fiel ao promettido, relatarei summariamente, por não consumir espaço largo em tão util folha, o que tenho feito e projectado relativo á Instrucção na nossa formosa Ilha de S. Miguel. É aquelle, meu bom Amigo, um torrão bemdito quanto a fertilidade vegetativa, e não menos pelo que respeita a bons engenhos e mãos industriosas; mas de tão ruim estrella, e tão desamparado da ventura, que, podendo ter de tudo copiosamente, de quasi tudo carece ainda. Attribuem muitos este desconcerto ao clima, que dizem entibiar, por sua molleza, a energia do querer; outros, ao modo como a propriedade lá se acha repartida; outros teem para si que injustiça, desfavor e esquecimento da Mãe Patria é que produziram, e teem conservado, aquelle atrazo. Eu por mim não rejeito explicação alguma d’estas, e deploro que, logo sobre uma das mais ricas joias da Corôa portugueza, assim houvessem de cahir, para a marear, tres influxos tão maleficos. Quanto ao clima, que, por quente e humido, quebranta as vontades, ao mesmo passo que pucha e encorpa todo o genero de plantas, é mal que não tem remedio. A divisão da terra, e a organisação da propriedade, não nos pertence a nós reformal-as. Resta o desamparo da pobre enjeitada e desterrada no meio do Oceano. A esse respeito ha certamente muito e muitissimo, que se pode, e que por mil rasões se deve, fazer. Quando bem se adverte em que a Ilha de S. Miguel se alistou na vanguarda do Exercito libertador, que generosa offereceu haveres e sangue pelo Codigo e pela Filha de Dom Pedro, e se vê ao presente quasi toda (ou toda) opposição, é impossivel desconhecer uma força-maior, que operou tal metamorphose; porque estes Insulanos nem são maus, como alguns os pintam, nem turbulentos, nem loucos; mas teem, como todos, o instincto da vida, e o da justiça. Defenda-me Deus de fazer ao Throno a injuria de suppôr, quanto mais de acreditar, como alguns por lá dizem no accesso da sua melancolia, que, de proposito e a acinte, o Governo os tem querido conservar sempre na ignorancia e abjecção, pondo-lhes de industria magistrados maléficos ou nullos, difficultando-lhes a instrucção, expremendo-os, torcendo-os, exhaurindo-os do seu oiro, e não lhes deixando d’elle com que fazerem nenhuma das faceis obras publicas de que mais carecem. A verdade é, todavia, que, por mal informado sobre as necessidades d’aquella Provincia longinqua, e por lhe não chegarem cá os seus clamores, o Governo (posto que sem imputação) tem commettido, deixado subsistir e crescer, o mal, até o ponto de não faltar por lá, mesmo no Povo infimo e rudissimo, mesmo na classe mais alta, e nos mais distinctos entendimentos, quem sonhe com as perigosas utopias de uma independencia. Não digo bem; houve essas utopias; hoje um Governador Civil ás direitas, como sempre lá e por toda a parte os devêra ter havido, fez ver áquelle bom Povo que a Soberana, por quem se votou, não é ingrata; elle lhe promove, até onde pode, as commodidades; lança-lhes balsamo nas feridas, que flagellos continuos lhes abriram; administra justiça prompta e inteira; concilia os despeitados; acompanha-os e precede-os pelo caminho franco do progresso illustrado; é o medico de todas as dôres, o procurador de todas as minguas para que não basta a sua autoridade. Graças aos seus exforços, todas as parcialidades vão a convergir para o grande centro; todas as forças conspiram já para a luz, para o trabalho, e para a civilisação. A _Revista_ é extranha á Politica; tambem eu o sou; mas isto não é Politica; pelo menos não o é do genero, especie, e variedade, d’aquellas com que nada queremos; é um paragrapho singelo de Historia, util por mais de uma via, e que em resultados praticos pode ser fecundo. Julguei dever aproveitar-me da occasião de confial-o a um papel sincero e acreditado, não só para exemplo e incentivo, mas tambem para galardão e desafronta, pois me consta que já linguas mexeriqueiras andam por ahi no seu costumado officio de desacreditar e empecer ao que não podem imitar. O que nenhuma voz se atreveria a proferir hoje em S. Miguel contra o chefe administrativo, pois em logar de eccos só provocaria indignação ou risadas, vem, cobarde e maldosamente, espalhal o aqui, por saberem que entre as suas calumnias e a verdade está um fosso de 212 leguas de Oceano. Ora, como os córos de milhares de bençãos, de tão longe, devem aqui soar menos que as invejinhas presentes, que por todas as abertas se insinuam, e quanto mais despreziveis mais vão zumbindo, julguei dever de consciencia levantar por cima d’esse sussurro, pequeno, anonymo, e ingratissimo, um brado forte e independente. Quem affirma e sustentará que San Miguel não teve ainda cabeça administrativa mais zelosa, mais energica, mais intelligente, nem mais bemquista, nem mais promettedora em tudo e por tudo de uma era nova, que o sr. D. Pedro da Costa de Sousa de Macedo, quem o affirma e sustentará, é quem assigna, com todas as lettras de seu proprio nome, esta carta. Qualquer dos invejosos ou inimigos d’aquella Ilha, que houver dito o contrario, que levante a luva e descubra o rosto. Com esta condição, achar-me-ha na estacada prompto a dar-lhe razão do dito. Nem um, meu Amigo, nem um ha-de apparecer; afianço-lh’o eu; e se apparecer, tanto melhor; justiça e verdade não se acrisolam senão ao fogo[7]. A alguem parecerá que, para ser em materia incontroversa, e alheia, já tenho deixado correr o preambulo por fóra das medidas; mas não é assim, pois, por uma parte, a zizania que ás mãos cheias se espalha, e se rega convenientemente, ainda que de certo não será com chuvas de Danae, sempre a final damna o bom grão; e quanto a serem-me extranhos estes interesses, tambem o não são, porque defendendo o sr. Sousa de Macedo, não advogo simplesmente o interesse publico, não me limito em servir ao amigo como amigo, e, como escriptor, a um excellente engenho portuguez, se não que arrazôo pelo meu proprio credito. Sim, os nossos inimigos são communs; communs as accusações que nos fazem. Segundo elles, quando escrevem e imprimem, ambos somos miguelistas; segundo elles, quando falam, ambos somos republicanos, communistas, sansimonistas, fourieristas, e não sei que mais. Segundo elles, por fora, ambos somos flagellos da Cólera Divina. ¿E porquê? porque, lá por dentro, bem sabem elles tão bem como nós mesmos, tão bem como toda a Ilha de S. Miguel, que, se temos ambição, é só de contribuirmos cada um com todos os seus meios, e com os que o outro lhe possa proporcionar, para a maior felicidade moral e physica do maior numero; para a educação e instrucção do Povo; para a prosperidade e esplendor da terra; para o restabelecimento da harmonia entre os visinhos, e entre os mais apartados dominios do mesmo Reino. Os actos magnificos da sua, apenas encetada, carreira publica, o jornal verdadeiramente cartista de S. Miguel, _A Verdade_, os tem enthesoirado; o jornal mesmo da opposição n’aquella ilha os tem recebido com louvor; o Povo, com agradecimento; o Throno, com satisfação. Quanto a mim, homem obscuro, e quasi sem forças proprias além da boa-vontade, relevar-se-me-ha que n’um jornal, destinado a viver como livro, lance como um protesto contra calumniadores, a menção do pouco bem que desejei, e talvez consegui, fazer em terra portugueza. Não é por vangloria que me faço Homero da minha Iliada; é porque o curar do bom-nome é um dever religioso; e apresentar estimulos para que outros façam mais e melhor, um dever social; e o deixar exemplos de Patriotismo a filhos, um dever natural, o mais suave e o mais santo de todos os deveres. Entre as lastimas, que em S. Miguel fui descobrir (bem contra o que de tal Ilha me haviam pintado), as que mais me doeram foram: a grande mingua de instrucção para o Povo, aliás aptissimo para toda a especie de boa doutrina; a carencia de estimulos, que de alguma sorte neutralisassem a perguiça natural; e a pouquissima, e quasi nenhuma, convivencia dos moradores. A todos estes males me pareceu que poderia acudir uma Sociedade, se jámais se chegasse a organisar, que sinceramente posesse peito a crear escolas com bons methodos; a accender emulações entre artistas e artifices; e a pôr no possivel contacto as differentes classes. Uma Sociedade de Agricultura, que já ali existia, prestantissima para o seu grande fim, era comtudo extranha a todos estes, que a mim se me representavam como de primeira necessidade e urgencia. Coadjuvando pois os empenhos d’essa Sociedade exemplar, como redactor que tive a honra de ser, do seu periodico, e com algumas propostas, que ella se dignou de me acolher benevola[8], comecei a tratar, ao mesmo tempo, com alguns poucos amigos, de instituir outra, e mais ampla, Sociedade de Lettras e Artes. Nunca jamais a fortuna sorrira tão benigna a projectos meus. Crescemos de semana para semana, até ao ponto de em minha casa não cabermos, ser-nos forçoso irmos celebrar no theatro as nossas sessões, e passarmos hoje de quatro centos, incluindo-se n’esta conta o Prelado, o Vigario geral, o Governador Civil, o Militar, o commandante da força armada, o Administrador do Concelho, o Presidente da Camara Municipal, o Presidente e outros Juizes da Relação, o Juiz de Direito, o Delegado do Procurador Regio, em summa, tudo que a cidade de Ponta-Delgada possue de mais alto, de mais illustre, de mais instruido, e de mais patriotico, sem falar em muitas senhoras respeitabilissimas, que promptamente se fizeram inscrever para esta cruzada de civilisação. A Sociedade acha-se pois por sua parte constituida, e os seus estatutos já subiram á Real Presença para obterem approvação. Os beneficios que ella tem produzido, sendo apenas recem-nascida, se não egualam, nem ás publicas necessidades, nem aos nossos desejos, são já todavia attendiveis, e promettedores de muito maiores. A Exposição da Industria Michaelense, desde o dia de Natal do anno proximo passado até muito depois dos Reis, foi mais que um espectaculo imprevisto e maravilhoso: foi um fomento efficacissimo ao trabalho e natural habilidade dos habitantes. Quatro grandes salas continham apenas os productos, que ahi se apinharam, offerecidos á admiração de cerca de vinte mil visitadores, incluindo n’esse numero os repetentes. Em todos os generos appareceram primores, e muitos em desenho e pintura, em gravura, em escultura, em flores artificiaes, de seda, de lan, de cabello, de pennas, de cera, de conchas; bordados, obras de ourives, de galvanisador, de doirador, de ferreiro, de serralheiro, de cuteleiro, de carpinteiro, de marceneiro, entalhador e torneiro, de machinismo, de tecelagem, de fiação de linho, de algodão, e de seda; de encadernação, etc., etc., etc. A Ilha mesma ficou admirada das riquezas industriaes, que possuia sem o saber. Accenderam-se-lhe novos brios com este documento irrefragavel de suas forças; e tudo nos faz esperar, que a seguinte exposição não cederá a esta em esplendor. O que n’este momento as Ilhas Canarias estão forcejando por conseguir, já existe pois nas dos Açores, graças ao poder da associação. As escolas são outro bem, menos brilhante sim, porém ainda mais sólido que o precedente. As que no gremio da Sociedade se acham já trabalhando, são: tres de Leitura; uma de Doutrina christan; uma de Arithmetica; uma de Geometria applicada ás Artes; uma de Desenho de figura e paizagem; uma de Poetica e Declamação; uma de Hygiene; uma de Francez, para senhoras; uma de Inglez, para homens; uma de Geographia; uma de Encadernação. AULAS ABERTAS, MAS AINDA Á ESPERA DE DISCIPULOS uma de Agrimensura; uma de Desenho topographico; uma de Dança; uma de Torno; uma de Pyrotechnia. AULAS EM PROJECTO uma de Economia politica; uma de Historia; uma de Gymnastica; uma de Natação; uma de Calligraphia; uma de Musica. Das aulas em actividade, as que teem dado mais satisfatorios resultados são: as de Leitura, a de Arithmetica, a de Geometria, e a de Desenho de figura e paizagem, que, por ter sido de todas a primeira fundada, e a que abriu tão nobre exemplo, merece especial menção. É regida pelo Director do _Lyceu Açoriano_, o snr. Pedro de Alcantara Leite. Em realidade, meu bom Amigo, ha já, n’aquelle nascente complexo de estudos uteis, alguma coisa que para o nosso mesmo Portugal poderia servir de exemplo. A ordem e a boa policia das classes; o canto religioso, com que os alumnos se preparam para o trabalho, invocando a Graça Divina[9]; o amor que manifestam aos seus generosos mestres, sem prejuiso do respeito e da attenção; o contentamento com que ás lições assistem; o fruto que tiram dos methodos simplices, racionaes, e aprasiveis, que ahi se empregam; tudo isto é já muito, e não é senão um começo; pois somos de hontem, se pode dizer. O que os _Amigos das Lettras e Artes_, que já por ahi algum velhaco semsabor, por ter talvez ouvido falar de phalansterios, acoimou de _phalansterianos_, o que os _Amigos das Lettras e Artes_, digo, teem já concorrido para desenvolver o espirito de sociabilidade, nem os mais pirronicos o poderiam negar. O oitavario de Santa Cecilia[10], por elles celebrado, com poesia e musica, no theatro de S. Sebastião; as tres noites de saráu artistico, no decurso da Exposição; as proprias sessões ordinarias; são documentos incontroversos d’esta verdade. Ahi se teem visto, e se vêem, reunidos, misturados, com a mais irreprehensivel decencia, com perfeita satisfação mutua, os artifices, os artistas, os nobres, e os litteratos; o morgado, e o operario que sua e véla para sustentar os filhos; os magistrados mais consideraveis, as damas das melhores familias, e o mechanico sem nome, mas não sem virtudes. ¡Feliz commercio, em que todos lucram! os pequenos, aprendendo, no trato das pessoas educadas, as maneiras faceis, elegantes, decentes, que lhes faltavam; os grandes, educando assim indirectamente o povo, com quem é forçoso viverem, e forrando-se por consequencia, para o futuro, o dissabor de muita grossaria. Se d’estes _phanlasterios_ se pode alguem queixar, não serão senão os apologistas da taberna, e certas outras casas não menos moraes e honestas. O amor do trabalho tem recebido notavel impulso do complexo de tudo isto, e de outra causa ainda, que fará rir os nescios, mas que nenhum espirito dotado de philosophia deixará de entender: falo do _Hymno do trabalho_[11], brilhante composição musica de um dos Socios, o snr. Moraes Pereira. Este Hymno tornou se de repente o mais popular dos cantos em toda a superficie da Ilha; as vozes, os instrumentos, o assobio, o repetem de continuo pelas ruas, pelas salas, pelas officinas, na lavoira, no theatro, nas escolas, em toda a parte. Áquella constante exhortação Trabalhar, meus irmãos, que o trabalho é riqueza, é virtude, é vigor. D’entre a orchestra da serra e do malho brotam vida, cidades, amor. tem-se visto muito braço, que desfallecia com a perguiça, reforçar-se para a tarefa. O malho e a serra mesmos, como que se magnetisam. Se eu tivesse uma officina de qualquer industria, quereria que os meus obreiros cantassem, em côro e a miudo, aquelle Hymno. Se a grave Allemanha me ouvisse isto, não me negaria a rasão. Aqui tem, meu bom Amigo, o que é já hoje a incalumniavel _Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel_. ¿Os seus destinos ulteriores, quem os calculará? Avivente-a Deus, que teem de ser immensos; ¡tantos, tamanhos, e tão esperançosos são os bons engenhos, habilidades, e desejos d’aquelles nossos optimos irmãos insulanos! Para assegurar, do possivel modo, força e estabilidade a tal instituto, em terra tão necessitada, e tão propria d’elle, pareceu-me que devia a Sociedade radicar-se, e tornar-se independente de inconstancias e entibiamentos de vontades. Para isto, duas coisas eram, a meu ver, necessarias: grangear-lhe casa, e dote. De um e outro alvitre me riram a principio, como de utopia rematada. Nem por isso descoroçoei. Puz-me á capa aguardando monção, e não tardou. Hoje, nem na Sociedade nem fóra d’ella ha já quem não acredite firmemente em que de donativos e esmolas, esmolas em dinheiro, em generos, e em trabalho, havemos de levantar um dote e uma casa á Sociedade, assim como os Frades erigiram conventos, e para os conventos grangearam rendas. Os Frades pediam em nome do Ceo, eram acreditados, obtinham; nós havemos de pedir em nome da humanidade, e do Ceo tambem, e havemos de obter egualmente, porque o nosso pequeno passado é já, aos olhos de toda a gente, o fiador do nosso prestimo. A casa que meditamos, e que eu já d’aqui antevejo feita em menos de um anno, é para as nossas escolas, para o nosso theatro de declamação, para as nossas sessões, para a nossa bibliotheca, para o nosso museu, para as nossas exposições, para os nossos concertos musicos, para o nosso basar de productos industriaes, em summa: para toda a especie de bons serviços publicos. ¿Como poderia o Publico deixar de nos favorecer na edificação, até lhe pôrmos a ultima telha, o ultimo prego, e o ultimo vidro? Elle e nós havemos de acarretar, todos, pessoalmente, a pedra a areia se fôr preciso. Nós por entre elle havemos de ir de povoação em povoação, de casal em casal, sem vergonha e com alegria, a pé e de sacco ás costas, mendigando para a obra santa. Quando nós e o povo assim estamos determinados a cumprir o nosso dever ¿poderiam o Governo e o Parlamento, que são a providencia grande do Reino, deixar de nos coadjuvar? Não podiam nem podem. É por isso que, a par dos Estatutos para a Real approvação, eu já fiz subir ao Throno a petição com que, em nome e como presidente da Sociedade, supplico se nos conceda um pequeno terreno nacional, ha já annos devoluto, sobre que edifiquemos. Grande, pingue, rendosissimo que elle fosse, nol-o deveriam outorgar, pois nenhum uso se poderia jámais d’elle fazer mais proveitoso e abençoavel do que este.[12] ¡Oxalá que em muitas partes do Reino se levantassem institutos eguaes, sollicitando e obtendo eguaes ou ainda maiores concessões! Para mais facilitar a graça que sollicitamos, e ao mesmo tempo para nos adstringir mais á observancia dos nossos deveres, eis aqui uma clausula do requerimento, consignada não menos nos Estatutos: Se em algum tempo (o que Deus não permitta) a Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes deixar de existir, isto é, se algum dia deixarem de apparecer as suas obras beneficas, a sua casa e bens passarão para o usufruto do Hospital do Districto, e lá ficarão até que, ou com os mesmos individuos ou com outros, mas com os mesmos estatutos, e para os mesmos fins, a Sociedade reappareça. Meu caro e incançavel obreiro de civilisação, apadrinhe com a grande autoridade da sua philosophica e eloquente folha, esta petição, a mais justa, a mais desinteressada, a mais nobre, que em nenhum tempo se fez; não para que a despachem, que para ahi não cabem duvidas, mas para a maior brevidade do despacho. Cada dia que se perde para as obras de instrucção e moralisação é um mal, e são males infinitos que se não ressarcem. De V. S. etc. ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO. NOTAS DE RODAPÉ: [7] De feito, nem um appareceu; mas os mexericos sollapados progrediram, e por derradeiro triumpharam. Castilho. [8] Acham-se impressas no 2.ᵒ tomo do _Agricultor Michaelense_. CASTILHO [9] Este canto no fim da presente carta se pode ver. [10] Foi uma esplendida festa. A 2.ᵃ das tres peças de poesia que se acham depois d’esta carta é o Hymno de Santa Cecilia, que o autor para esse fim compoz. [11] No fim d’esta carta se publica apoz o _Hymno de Santa Cecilia_. CASTILHO. [12] Pelo Ministerio do Reino nada foi possivel conseguir-se; rasão por que, perdidas d’aquella parte as esperanças, se recorreu ao Parlamento, com a petição que ao diante se lerá. CASTILHO. II INVOCAÇÃO A DEUS ANTES DE COMEÇAR O ESTUDO Posta em musica, para uso das escolas dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel pelo Snr. Dr. João José da Silva Loureiro e 2.ᵃ vez em Lisboa pela Snr.ᵃ D. Carolina Smith Rosier Tu cujo amor em canticos celebram sem cessar o mundo dos espiritos, o Ceo, a terra, o mar, ¡Senhor, acolhe as supplicas de pobres filhos teus! ¡Illustra-nos! ¡melhora-nos! ¡ampara-nos, ó Deus! «A luz--disseste--faça-se.» E a noite em luz se fez. Dissipe egual prodigio a sombra em que nos vês. Nas trevas da ignorancia não medra o santo amor. ¡Illustra-nos! ¡amemo-nos! ¡Senhor! ¡Senhor! ¡Senhor! III HYMNO DE SANTA CECILIA NA FESTA DA SOCIEDADE DOS AMIGOS DAS LETTRAS E ARTES EM S. MIGUEL POSTO EM MUSICA PELA SNR.ᵃ D. LEONOR VIDAL DALHUNTY Musa das castas citharas de ethérea melodia, Anjo, Mulher, Cecilia, ¡salve em teu festo dia! ¡Da terra aos Ceos elevem-se nas azas das canções a ti nossos espiritos e nossos corações! Melhor que o incenso, a musica, do ideal linguagem bella, os ineffaveis jubilos á mente nos revela. Dos sentimentos plácidos, do amor, da paz, do bem, ella, invisivel mágica, ella o segredo tem. Musa christan, confirma-nos o ardor que ao bem nos guia. Auspicioso aos miseros finde o teu festo dia. IV HYMNO DA SOCIEDADE DOS AMIGOS DAS LETTRAS E ARTES. EXHORTAÇÃO AO TRABALHO COM MUSICA DO SNR. JOÃO LUIZ DE MORAES PEREIRA VOZ No regaço do luxo a opulencia os cançassos do ocio maldiz. Entre as lidas sorri a indigencia; co’o pão negro se julga feliz. CÔRO Trabalhar, meus irmãos, que o trabalho é riqueza, é virtude, é vigor. D’entre a orchestra da serra e do malho brotam vida, cidades, amor. VOZ Deus, impondo ao peccado a fadiga, té na pena sorriu paternal: só quem vence a perguiça inimiga reconquista o edén terreal CÔRO Trabalhar, meus irmãos, etc. VOZ ¿Quem dá graças aos Ceos ao sol posto? ¿Quem lh’as dá vendo a aurora raiar? É o obreiro; o suor lhe enche o rosto, mas seus dias não turva o pesar. CÔRO Trabalhar, meus irmãos, etc. VOZ O que vive na inercia aborrida não somente é de irmãos roubador; é suicida, e mais vil que o suicida; é suicida, a quem falta o valor. CÔRO Trabalhar, meus irmãos; etc. VOZ Caia opprobrio no vil ocioso, que desherda o presente e o porvir. Só á noite compete o repouso; só aos mortos o eterno dormir. CÔRO Trabalhar, meus irmãos, etc. VOZ Mar e terra, ar e ceo, tudo lida. Deus a todos poz luz e deu mãos. Lei suprema o trabalho é na vida. ¡Trabalhar, trabalhar, meus irmãos! CÔRO. Trabalhar, meus irmãos, que o trabalho é riqueza, é virtude, é vigor. D’entre a orchestra da serra e do malho brotam vida, cidades, amor. V Extracto da «Revista Universal Lisbonense» de 26 de Abril de 1849 «A hora muito adiantada tivemos noticia do Requerimento, que ao diante publicamos, dirigido á Camara dos Senhores Deputados pelo Snr. A. F. de Castilho, como Presidente da Associação dos Amigos das Letras e Artes estabelecida em S. Miguel. Sobre a importancia e grande urgencia do assumpto diz o Requerimento quanto basta para que a Camara não demore uma decisão, que será para ella um padrão de gloria, que não morre. «É para louvar o modo honroso, com que o Secretario, o snr. Mexia, apresentou este Requerimento. Oxalá que tão bom principio seja signal de breve e favoravel resolução.[13] «Em o numero proximo, e na presença de documentos e factos incontestaveis, faremos por chamar a attenção do Governo, da Camara, e do Publico, sobre materia de tão alto interesse» NOTAS DE RODAPÉ: [13] Adiante se encontra a fala do sr. Mexia. CASTILHO. VI Requerimento á Camara dos Senhores Deputados SENHORES: Existe hoje nos confins dos estados Portuguezes uma Sociedade, talvez sem exemplo, que nasceu grande, possante, auspiciosa, e, em poucos mezes de existencia, apresenta já momentosos, copiosissimos, e incontestaveis resultados para a illustração e ventura do Publico. Esta Sociedade é a dos Amigos das lettras e artes em S. Miguel, cujos Estatutos já em 3 do corrente Abril foram confirmados por S. M. F. Quando se vê, Senhores, o que uma tal organisação germinalmente contém de sciencia de moralidade, de prosperos fados para as gerações que teem de vir, e já mesmo para esta, é impossivel não a abençoar, desejando-lhe vida sem limite. Para o fim de a conseguir, ella pôz no remate dos seus Estatutos, como chave de abóbada, a declaração de que era immortal, como o sentimento de beneficencia que a produzira; e, para realisar esse nobre sonho de ambição humanitaria, determinou fundar para si, isto é: para suas escolas, bibliotheca, museu, representações scenicas, exposições, etc., uma formosa casa, e uma dotação sufficiente; com a expressa condição de que, se por algum imprevisto concurso de circumstancias, a sua benefica existencia cessasse de se manifestar, dotação e casa passariam _ipso facto_ para o usufructo do Hospital de Ponta-Delgada, o qual, a todo o tempo que a mesma Sociedade recomeçasse os seus trabalhos, ficaria obrigado a fazer-lhe de tudo fiel e promptissima restituição; providencia esta, que mereceu a approvação de S. M. F., como sem duvida obterá tambem a vossa. A Sociedade não se dissimula, Senhores, que uma casa e uma dotação assim, tanto não são empreza facil, que á primeira vista devem parecer um puro sonho de devaneadores philanthropicos. Entretanto não ha já hoje n’aquella Cidade e Ilha, quem não esteja convencido da mais que probabilidade da realisação certa de tal _desiderandum_, só pelo meio dos donativos, esmolas, e serviços gratuitos, tanto dos Socios, como de extranhos á Sociedade; ¡graças aos milagrosos frutos, que todos teem visto brotar da nossa Exposição da Industria michaelense, e das nossas incançaveis Escolas, de ler, de arithmetica e geometria applicada ás Artes, de Doutrina christan, de desenho de figura e paizagem, de francez, de inglez, de poetica e declamação, de musica, de hygiene, etc.. A perguiça, doença esporádica em toda a parte, mas ali peste geral e antiquissima, tem já singularmente diminuido com esta maravilhosa excitação dada a todas as coisas uteis pela Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes; o Hymno do trabalho canta-se já em toda a superficie da Ilha, e o seu amor vai-se filtrando do canto para as obras. ¿Como poderia pois a população deixar de contribuir gostosa com esmolas, que a final não são dadas senão a ella mesma e a seus filhos? Com esmolas de cobre se fundaram e dotaram conventos, como palacios de Monarchas, nos seculos de Fé. ¿N’esta edade de interesses materiaes, e de illustração, poderia o bom senso fazer menos em favor do nosso Instituto? A Sociedade vem pois, Senhores, á vossa respeitavel presença supplicar lhe coadjuveis a projectada edificação do seu Solar de Lettras e Artes, cedendo á mesma Sociedade a pequena cêrca do extincto convento da Conceição d’aquella Cidade, hoje palacio do Governo Civil, com a adjacente área e ruinas da egreja de S. José. A planta, que, junto com este requerimento se offerece á vossa consideração, bem claramente mostra não haver excesso no pedido, pois n’aquelle pouco terreno se teem de erigir salas, escolas, basar, officinas, e theatro, de que não ha um unico publico, n’uma Cidade de tanta importancia; devendo ficar ainda sufficiente espaço descoberto para exercicios gymnasticos, tão conducentes para a boa creação physica. O informe que o Ex.ᵐᵒ Governador Civil do Districto de Ponta-Delgada dirigiu ao Governo sobre esta pretenção, deve necessariamente concordar com o exposto, e dar a conhecer, por outra parte, ser aquelle um terreno, que se acha ha annos devoluto. Nunca propriedade nacional haverá sido mais util, nem mais louvavelmente empregada, do que esta, que em menos de um anno, a datar da concessão, estará convertida em um manancial de instrucção, de moralidade, de affecto para com um Governo, que não perde occasião de felicitar os povos. Lisboa 24 de Abril de 1849. O Presidente da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel A. F. DE CASTILHO. VII Fala do Secretario da Camara Electiva o Snr. João de Sande e Magalhães Mexia Salema na sessão de 25 de Abril de 1849 fielmente trasladada do «Diario das Côrtes» «Sr. Presidente «Desci de proposito d’esse logar da meza, para não declinar a honra, que ha pouco recebi, de ser incumbido pelo sr. Antonio Feliciano de Castilho, de apresentar a esta Camara uma representação da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes de S. Miguel, de que elle é dignissimo Presidente, em que se pede a concessão da cêrca do extincto convento da Conceição, para n’ella levantarem o edificio do seu solar de Lettras e Artes. «Ha momentos, que recebi esta representação; de um rapido lançar de olhos sobre ella, conheci a importancia e urgencia do objecto. Além da natureza d’este, a Camara sabe avaliar a consideração, que merece uma corporação scientifica, pedindo auxilio dos Eleitos do Povo; e muito mais, tendo á sua testa um nome tão conhecido, não só na Litteratura portugueza, como tambem na Litteratura europêa.» N. B--O requerimento foi mandado para a Commissão de Fazenda; de lá passados poucos dias, ao Ministerio da Fazenda, para informar; d’este ao Tribunal do Thesoiro, para o ouvir. Em todas estas tres estações se deram ao requerente as mais agradaveis esperanças. Eis ahi o que até hoje, que isto se imprime (24 de Novembro de 1849,) pode na materia historiar. A. F. DE C. VIII Excerpto da «Revista Universal Lisbonense» de 3 de Maio de 1849 _Concessão do terreno para as escolas da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel_ «O nosso promettido artigo acerca da mui patriotica Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes fica perfeitamente substituido pelo Memorial, que ao deante publicamos, feito pelo seu digno Presidente o snr. Castilho. «A brevidade que este negocio requer é inquestionavel; é mistér não deixar esfriar a fé dos poucos mas honrados Portuguezes, que ainda teem animo para se interessarem pela verdadeira fortuna da Nação. «¡Oxalá que tão repetidas instancias influam, não só nas Camaras Legislativas, mas tambem no Governo, para que se não perca o ensejo de completar um grande pensamento.» MEMORIAL Ill.ᵐᵒˢ Ex.ᵐᵒˢ Snrs. Em nome e como Presidente da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel, tive a honra de vos dirigir um requerimento, para que o Governo fosse autorisado a metter a mesma Sociedade de posse de um pequeno chão nacional, para n’elle se edificarem, á nossa custa, casas para as nossas escolas, para as nossas sessões, museu, bibliotheca, basar industrial, theatro, etc.. Esse requerimento foi pela Camara remettido á sua respectiva Commissão. O meu fim, n’este Memorial, Ill.ᵐᵒˢ e Ex.ᵐᵒˢ Snrs. é sollicitar para a decisão d’este negocio a maior urgencia. A Sociedade nasceu, e tem produzido para o Publico beneficios consideraveis, sem concurso algum da força publica, por effeito unicamente da sua boa vontade e perseverança, como se prova pelo Relatorio impresso, que eu ajuntei ao mesmo requerimento. Todavia, para que a nossa existencia continue, e o publico michaelense não seja privado dos frutos de instrucção, que já começa a colher, e mesmo para que o nosso exemplo de illustrado e desinteressado patriotismo possa vir a ser imitado n’este Reino, até hoje tão baldio para a civilisação intellectual, é indispensavel que depois de approvados, como já o estamos, pelo Governo, se nos faça a requerida concessão, prompta e incessantemente. O adiamento seria matar-nos a fé, e conseguintemente mallograr, do modo mais vergonhoso e barbaro, os bens que podêmos, queremos, e sabemos, produzir, como é demonstrado. Eu faria offensa, tanto aos vossos entendimentos, como ao vosso amor patrio, se, mesmo hypotheticamente, admittisse aqui, para a combater, a objecção da pobreza. Querer vender, para obter algum conto de réis, que nos não pode salvar, um chão, que não vendido deve produzir muita illustração, fôra uma simonia horrorosa, e deploravel, uma torpeza, de que ninguem seria capaz, ¡quanto mais um Parlamento portuguez! Outras considerações ha na petição a que alludo, e que vos foi presente, as quaes de certo vos decidirão a despachal-a, não só bem, mas immediatamente. Abstenho-me de as reproduzir, e mesmo de ajuntar outras muitas, não menos ponderosas, por não vos tomar superfluamente o tempo, que deveis a tantos outros importantissimos, ainda que não mais importantes, negocios do Estado. Lisboa, 3 de Maio de 1849 A. F. DE CASTILHO. IX Artigo do dia no «Diario do Governo» de 7 de Maio de 1849 «Lisboa, 6 de Maio. «Um pensamento elevado, patriotico, e civilisador, dotou ha poucos tempos a Ilha de S. Miguel com uma das mais uteis e illustradas instituições, que se podem organisar em honra e beneficio da civilisação_ de qualquer povo. Essa instituição, intitulada Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel_, deu começo n’esta Ilha a uma era inteiramente nova para a vida moral e physica dos seus habitantes. «Abrindo as suas portas a todas as classes, admittindo em seu seio todos os que amam e cultivam as Lettras e Artes, todos os que desejam vel-as prosperar, todos os que aspiram a iniciar-se nos seus mysterios, de repente se fez poderosa pela concorrencia de muitas intelligencias, e de muitos exforços encaminhados e excitados por uma alma energica e perseverante, que é toda enthusiasmo e devoção pelas Lettras, e que toda se abraza em verdadeiro e acrisolado amor da Patria. «Dentro em pouco esta Associação, composta de alguns centenares de pessoas, desde a mais alta nobreza, até á mais humilde profissão, incluindo as principaes Auctoridades da Ilha, e tendo á sua frente o seu instituidor e incançavel procurador, o snr. Antonio Feliciano de Castilho, abriu ao Publico aulas, de leitura, de Doutrina christan, de arithmetica, de geometria applicada ás Artes, de desenho de figura e paizagem, de poetica e declamação, de hygiene, de francez para senhoras, de inglez para homens, de geographia, de encadernação, de agrimensura, de desenho topographico, de dança, de torno, e de pyrotechnia; e projecta abrir aulas de economia politica, de historia, de gymnastica, de natação, de calligraphia, e de musica. «Algumas d’aquellas aulas, frequentadas por um numero consideravel de individuos, numero que excedeu toda a expectação, vão dando de si os melhores resultados. «Fazendo nas suas salas uma Exposição da Industria michaelense, reuniu abundantissima copia de productos, tão variados, e muitos tão excellentes, que apresentaram um quadro bem esperançoso dos progressos industriaes d’aquella Ilha[14]; quadro que em breve ali se deverá repetir; accrescentado e melhorado sem duvida pelo poderoso estimulo e nobre emulação, que o primeiro deveria produzir no animo de todos os industriaes. «D’est’arte, esta sabia Instituição vai fazendo convergir para um centro, para um fim de utilidade geral, as ideias e exforços dos moradores de S. Miguel; e, ao passo que attrai para esta obra de interesse publico, vai fazendo tolerantes os partidos; vai-lhes unindo os homens; vai adoçando os costumes, e moralisando o Povo pelas relações da intima convivencia, pelos apertados laços do interesse commum. «Mas para que o pensamento d’esta Associação se possa desenvolver como o concebeu seu illustre autor, como o expressam os Estatutos da Sociedade, já approvados pelo Governo, como o desejam todos os Socios, e com elles todos os Michaelenses, é necessario um edificio, com a capacidade e construcção proprias para as diversas escolas, para as sessões, para uma bibliotheca, para um museu, para um theatro de declamação, para uma sala de concertos musicos, para as exposições, e para um basar de productos industriaes. «Lembrou-se a Sociedade de o construir á sua custa, e para esse fim encarregou o seu Presidente, o snr. Antonio Feliciano de Castilho, de vir pedir ao Governo e ás Côrtes a pequena cerca do extincto convento da Conceição, e a adjacente área e ruinas da egreja de S. José, para ali se fundarem os estabelecimentos da Sociedade. «O requerimento já foi presente á Camara electiva, e depois remettido á Commissão competente. Uma e outra, dando a este negocio a importancia e consideração que elle merece, esperamol-o com confiança, não só o hão-de resolver favoravelmente, mas com a brevidade que reclama um objecto de tamanho interesse publico.» X Carta ao redactor da «Verdade,» semanario michaelense Snr. Redactor Permitti, que eu tome na vossa folha um pequeno espaço para um acto de gratidão; dal-o á primeira de todas as virtudes não é perdel-o. Entendimento superior, vós comprehendeis que os interesses materiaes, e intellectuaes, que a vossa folha se encarregou de promover, não são os unicos de que depende a felicidade publica. Tanto, pelo menos, como esses, contribuem para ella o desempenho dos deveres moraes, e os affectos nobres. Arrojou-me a adversidade (¡se por ventura o era!) para esta Ilha com tudo que eu mais amava. Cheio de boa fé, e com a minha illimitada benevolencia, mas sob os mais ruins auspicios, desembarquei n’ella; vinha precisado de amar, e não vi a quem; de trabalhar, e não achei em quê. A diante de mim tinha vindo a mentira preparar-me o ruim gazalhado. Anoiteceu-se-me, de todo, o coração, e esmoreci; era mais um desencantamento, depois de tantos; era a ultima folha verde das minhas esperanças, a cahir. Onde cuidára que viria renascer entre irmãos, para uns a outros nos amarmos muito, dei com a peor das solidões, que tal é sempre a que se encontra entre homens, e que falam a nossa lingua. Perdôe Deus a quem, sem nenhuma rasão para me querer mal, me calculou, urdiu, e teceu essa teia de dias perdidos e noites veladas. Por mim lhe quizera eu tambem perdoar; mas n’esses maleficios tão gratuitos havia um quinhão, e largo, para entes que eu amava mais que a mim proprio. ¡E, ainda por cima, se veio ao cabo a extranhar-me que eu não agradecesse o haver-se especulado com a nossa fome e ignomínia! e porque arranquei as azas do visco com que se me tinham querido prender, declararam-me guerra peor que de morte, que assim se pode qualificar a da calumnia. Emfim, perdôe-lhe Deus, já que em mim a natureza humana não pode tanto. Mas n’um dia de festa para o coração, como este hoje o é para mim, devo dar de mão a todas essas coisas feias e desconsoladas, ou antes, hei-de agradecer a quem, por isso mesmo que então me fez curtir tamanhas penas d’alma, concorreu (ainda que sem o querer) para dar mais realce ás delicias que hoje desfruto. São os jejuns do coração os que fazem as Paschoas do amor. Passados aquelles primeiros tempos, em que me parecia ter naufragado para aqui, como para uma praia ou erma ou inimiga, começaram de me alvorecer dias mais claros. As falsas ideias que de mim se tinham mandado a diante, foram-se desvanecendo. Conheceu-se, e reconheceu se, que eu não viera para a terra alheia para genero algum de malevolencia, quanto mais para a mais perigosa e peor de todas as guerras, a dos Guelphos e Gibellinos do seculo XIX; que, pelo contrario, toda a minha precisão era a Poesia e o Amor, corporificados no trabalho, que illustra e civilisa. Então os amigos começaram, a um e um, a apparecer-me; e (posso dizel-o, sem que m’o hajam a vaidade) tudo quanto por ahi havia de melhor em entendimento e vontade, e não era pouco, se me foi unindo em espirito e trato. Ressuscitei no meu cemiterio, e vi-o cidade. Na terra do desterro respirei a peito cheio ares de Patria. Tornei a achar no interior a alma, e n’ella a esperança, que murcha e não séca. Reaccendi a lampada da minha fé social; e tal e tanta encontrei, em torno de mim, a boa gente desejosa, como eu, das coisas do porvir, e da felicitação do mundo pelo trabalho, que, sem sabermos como, nos vimos de repente Sociedade poderosa, activa, descrente em impossiveis, e por isso mesmo capaz dos maiores milagres. Se tal Sociedade os tem feito, muito mundo o sabe já hoje. Se para o provar não bastassem as obras, os odios dos ruins o demonstrariam. Quando, para sollicitar do Governo a approvação d’esta mesma Sociedade, e do Parlamento um pouco de chão em que ella deitasse raizes, me pareceu conveniente ir eu a Lisboa, e fui, não levei unicamente saudades de mulher e filhos; S. Miguel toda era já familia minha; todos aqui nos queriamos já muito, porque emfim, chegaramos a conhecer-nos de parte a parte, desfeitas as preoccupações e aleives, que, tambem de parte a parte, se haviam arteiramente disseminado. Lá, nem o tráfego dos negocios, nem as multiplices occupações do espirito, nem o brilho de tamanha cidade, nem o affecto que expiram de si os sitios conhecidos da nossa puericia e adolescencia, nem os emboras e cortejos da Imprensa obsequiosa, nem mesmo os testemunhos tão solemnes de apreço, que á porfia me davam todos esses mancebos, esperanças e já ornamentos da Litteratura e Poesia nacional, nada me poude entibiar as saudades da minha Ilha, d’este benigno e pacifico torrão, em que eu fizera mais e melhor que nascer, pois renascêra n’elle. Mais que nenhuma outra coisa, estes tres mezes de ausencia me descobriram quanto lhe eu queria. ¡Oh! se de mim dependesse o tão facil melhoramento dos seus destinos! A voz, e a penna, essas sim que as empreguei eu incessante em lhe advogar os interesses da fortuna e do credito; em quanto, por ventura ou por desgraça, filhos seus, deslembrados do solo com quem nascimento e uso os travaram em parentesco, empregavam a occultas todos os empenhos e valimentos para lhe empecer (e Deus sabe se em parte o não conseguiam), era eu, extranho e obscuro, quem, servindo á verdade e á justiça, lhe pagava, como podia, a minha divida de gratidão. Ao regressar, os dias me pareciam não acabar nunca, e os sonhos das noites me vinham todos povoados de imnumeraveis e cordeaes abraços, de emboras, perguntas e respostas de bons amigos, de caricias domesticas, de escolas vicejantes, de salas de industria, da musica do trabalho, de toda a poesia das esperanças. Se metade d’isso, que eu vim gosando embalado pelas ondas, por baixo da immensidade do Ceo, e não me afastando de uma Patria, senão para me aproximar a outra, se a metade d’esses sonhos se realisar, S. Miguel dentro em poucos annos será visitada de toda a parte com admiração e encantamento, que para tudo, mesmo para a realisação das mais altas utopias do bem, são a sua terra, os seus haveres, e as almas dos seus moradores. Nem lisonjeio, snr. Redactor, nem cuido que o bem-querer me desvaire. As provas do futuro que antevejo, já todos as palpâmos no passado, e sobretudo no presente. Apoz dez dias levados no ocio, a sós com a minha alma, n’estas suaves cogitações, imaginae, snr. Redactor, qual não seria o meu enlevo, quando, ao aportarmos aqui, pelo sol de uma formosa tarde, que é tambem esperança, me vi de repente cercado de saudações e festejos, entre os braços de tudo que mais amo, recebido em verdadeira ovação de amisade, conduzido pelo braço de minha esposa, entre os meus filhos e os meus consocios, ao som do Hymno da Industria, ao estrépito de foguetes, por baixo de flores, e atravez do nosso bom Povo apinhado pelas ruas, até dentro de minha casa! Eis aqui, snr. Redactor, o que eu para desafogo de tantos affectos accumulados no peito, carecia de escrever. ¡Agradecer!?....¿Como hei-de eu agradecer o que apenas cabe em expressão? A benevolencia de uma grande cidade, ¿como pode retribuil-a quem, por uma parte, só possue os bons desejos, e por outra, se sente confundido e aniquilado com a grandeza mesma do obsequio? Sr. Redactor, se eu não tivesse já antes consagrado a esta generosa terra tudo quanto em mim ha de amor e querer, agora lh’o consagrára para todo sempre, e ficaria ainda empenhado. Snr. Redactor, o dia _25 de Maio de 1849_ foi o mais bello dos meus quarenta e nove annos. Egual ou superior a este, só poderá alvorecer para mim, quando eu a vir tão prospera quanto ella o merece, e o pode ser. VOSSO, etc. ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO Ponta Delgada 25 de Maio á meia noite. * * * * * N. B. Á precedente carta fizeram varias folhas de Portugal a honra de a reproduzirem, liberalisando por esta occasião ao autor testemunhos de benevolencia, que para toda a vida o empenharam em agradecimento. ¡É tão suave para um homem o sentir-se amado! ¡e amado por espiritos distinctos! ¡e amado, até ao ponto de lhe supporem mais de virtudes e meritos do que em realidade possue, e ha-de nunca possuir! Ainda a risco de ser havido por vaidoso, o autor succumbe á tentação de apresentar aqui a seus leitores, isto é, a muitos outros amígos seus, uma das mais floridas e ricas mostras de tão parcial e enternecedora benevolencia; é o preambulo que á predita carta pôz _O Pharol_, folha verdadeiramente notavel por sua litteraria elegancia, pelo fogo e independencia de seus juizos, pela sua aspiração forte e constante para o Bello. A proverbial severidade das criticas do _Pharol_ faz ainda sobre-sahir para a gratidão o preço do que se vai ler. ¡Quantas feridas e penas d’alma se não suavisam e curam com o balsamo de expressões taes! XI Artigo extrahido do numero 10 do «Pharol» periodico de Lisboa _O Senhor Antonio Feliciano de Castilho e os Michaelenses_ «Todos sabem que o sr. Castilho tem titulos valiosos á admiração e ao respeito da Patria, que elle tem sempre honrado e servido com a sua dedicação e com o seu genio. Vivos andam na memoria de todos, os nobres exforços que elle tentou, para rehabilitar as Lettras portuguezas, e trazer a formosa lingua nacional á competencia com os mais ricos, flexiveis, elegantes, e expressivos idiomas do mundo. Sabidos e decorados, se multiplicam, mais pela voz que pela imprensa os harmoniosos trechos do poeta mais sonoro, mais sabedor, mais correcto, se não o mais inspirado dos poetas nacionaes contemporaneos. «Como os grandes genios, o sr. Castilho tem purificado a sua alma pelas amargas provações da adversidade. Como todos os grandes talentos, tem visto os invejosos e mesquinhos urdirem-lhe no silencio as insidias, com que a mediocridade se desforça do talento. «A sua corôa de poeta não se tem afeminado com as complacencias de uma vida descuidosa e opulenta. Não é o poeta funccionario, com avultadas pensões para entoar cantos cortesãos e mentidos. Não é o poeta-agitador, fazendo servir as inspirações do estro á apotheóse dos corrilhos de facção. Não é o poeta-aristocrata, dedilhando a lyra por elegancia, e entoando os dithyrambos da indifferença e da sociedade. É o poeta-poeta; é o homem que canta, porque nasceu para cantar; que ama o Povo, porque o Povo é grande; que o não adula porque não espera d’elle recompensas faustosas. É o homem que respondeu ao ostracismo, com que lhe celebraram a reputação, indo contar aos Michaelenses, que o acolheram, não os queixumes amargos do ressentimento, mas as maravilhas da nova civilisação; que levantou ali um brado generoso de melhoramento physico e moral; que falou áquelle Povo dócil e industrioso a linguagem florida e eloquente da Poesia, para lhe apontar as novas sendas do Progresso; e que teve a gloria de crear mais prosélytos com os seus hymnos de paz, com as suas homilias ferventes, do que muitos estadistas com as suas portarias severamente formuladas, com os seus orçamentos capciosos e inextricaveis. «Póde-se dizer que o snr. Castilho realisa em S. Miguel o mytho de Amphion, alevantando os muros de Tebas ao som mavioso e brando da sua lyra melodiosa. «O sr. Castilho é o novo thaumaturgo do Progresso. Á sua voz a civilisação marcha impetuosa, e inaugura-se na humilde possessão de Portugal. A Industria exalta se, a Agricultura acorda. As Artes, em convivencia fraternal, auxiliam-se mutuamente. A Instrucção derrama-se gratuitamente pelas classes menos favorecidas da população. Os costumes como que se humanisam, deixadas as tristes controversias da lucta politica; e os habitantes da Ilha afortunada celebram com ineffavel júbilo e extremada sinceridade o poeta, que foge da metrópole para viver com elles, trabalhar pela commum prosperidade, illustral-os pela sua doutrina, e animal-os com o seu infatigavel exemplo. «É para satisfazer á divida de reconhecimento que o snr. Castilho contrahiu para com os bondosos michaelenses, que, ao pisar de novo aquellas praias abençoadas, elle publicou a carta que abaixo transcrevemos, modelo de devoção civica, de affectuosa eloquencia, e de simpleza de coração. ¡«Quantos tribunos ephémeros, quantos dictadores ciosos, que se dizem alevantados pelo suffragio do Povo, folgariam de poder escrever estas linhas de congratulação, com a mão na consciencia, com o assentimento voluntario de uma população inteira, que repete n’um côro numeroso o refrão do bello Hymno da Industria michaelense: Trabalhar, meus irmãos, que o trabalho, é riqueza, é virtude, é vigor. D’entre a orchestra da serra e do malho, brotam vida, cidades, amor. NOTAS DE RODAPÉ: [14] Na Secretaria do Reino deve existir a magnifica relação, que d’isso dirigiu ao Governo o sr. D. Pedro da Costa de Sousa de Macedo, então Governador Civil do Districto. N’esse papel pedia o mesmo snr. que o autorisasse o Throno a deduzir do cofre central uma pequena quantia para premios industriaes, além dos que elle do seu bolsinho particular tencionava offerecer para a seguinte Exposição. CASTILHO. FIM DO PRIMEIRO VOLUME NOTAS Retrato de Castilho Ha coincidencias notaveis; é conveniente não as desaproveitar; parecem arabescos na sobrehumana calligraphia da Providencia. O retrato com que se adorna este volume, é reproducção em photogravura, pelo talentoso artista o sr. Thomaz Bordallo Pinheiro, de um pequenino esboceto pintado por seu excellente pae, o notavel sr. Manuel Maria Bordallo Pinheiro. ¿Quem diria ao pintor, que, cincoenta e quatro annos andados, um filho, ainda então por nascer, havia de reproduzir a sua obra? O esboceto foi pintado do natural, na casa onde o artista habitava, rua da Fé, palacete á direita subindo, em alguma visita que lhe fez Castilho na demora de quasi tres mezes que passou em Lisboa (27 de Fevereiro a 15 de Maio de 1849), achando-se então de residencia na Ilha de S. Miguel. Appareceu no espolio do eximio artista, e foi offerecido a um filho de Castilho. Vê-se que estava apenas em principio; mas é, ainda assim, documento precioso, já pela semelhança, que ia bem encaminhada, já pela intenção affectuosa que motivou tal trabalho. O velho Bordallo Pinheiro foi muito admirador e amigo do Poeta, e este ufanava-se de lhe retribuir eguaes sentimentos. Pag. 12, lin. 3 e seg. =Polemicas=. Houve, com effeito, folicularios mal ensinados, que pretenderam inculcar ser Castilho um revolucionario perigoso, uma especie de demagógo subvertedor de usos antigos e arraigadas crenças; isso deu aso a guerras crueis, cuja memoria não desejamos evocar aqui, mas que muito amarguraram o sincero Poeta. Quem ler com attenção este livro, verá quanto eram infundadas taes accusações. O livro é innovador, e não desordeiro; amante, e nunca hostil. Lamenta o que vê, deseja o bem, e procura remedio aos males que nos affligem. Interpretar as utopias theoricas pelo lado demolidor, é não as entender. Pag. 27, lin. 7 e 12. =Gessner=. São tristissimas as vicissitudes da reputação dos poetas. Ha nomes, que, depois de encherem o mundo, esquecem miseravelmente á propria phalange dos homens de Lettras. Salomão Gessner, que no seu tempo foi um luminar, tanto pela belleza da forma dos seus livros, como pela sua moral, de poucos Allemães é hoje lido e conhecido a fundo. Castilho, que desde a meninice o leu, o tratou, o venerou, e até alguns dos seus idyllios traduziu, e imitou outro, conservou sempre ao virtuoso cantor suisso um verdadeiro culto. Para os que hoje entre nós ignoram quem foi Gessner, duas palavras biographicas: Nasceu em Zurich em 1730. Homem bom, quanto se pode ser, benefico, optimo marido, optimo cidadão começou por typographo; o trato intimo com as _lettras_ elevou-o ao conhecimento das _Lettras_; graças á sua applicação e perseverança, tornou-se Gessner um verdadeiro filho dilecto do Publico: já pela graça e singeleza dos seus idyllios, já pela moral pura e santa que todos elles respiram. Em toda a parte onde appareceu recebeu provas de apreço, até das testas coroadas. Falleceu em Zurich a 2 de Março de 1787. A celebre Madame de Genlis conta da seguinte maneira uma sua visita ao poeta suisso: «Tinha-me Gessner convidado para o ir ver á sua casa de campo; e eu estava curiosissima de conhecer a mulher com quem elle casára por amor, e que o soube inspirar. Imaginava-a uma especie de pastorinha encantadora, e phantasiava a habitação de Gessner como uma choupana elegante, circumdada de vergeis e flores; ali, segundo eu pensava, só se bebia leite, e se pisavam pétalas de rosas Chego, atravesso um resumido quintal, cheio de cenoiras e couves; isto, confesso, começou a perturbar seu tanto os meus devaneios bucolicos e idyllicos. Entrei na sala, e ¿que vejo? No meio de uma fumaceira densa de tabaco, avisto Gessner a fumar cachimbo, e a beber cerveja; ao lado d’elle sentava-se a mulher, com a sua grande touca, e a fazer meia. O acolhimento de ambos, a doce união d’aquellas almas, o seu affecto para com os filhinhos, a singeleza de tal quadro, tudo isso me pintou ao vivo os singelos costumes pastoris que o poeta costumava cantar. Assisti pois a um idyllio, presenceei a edade de oiro, não em poesia brilhante, mas sob o seu aspecto vulgar e desataviado.» Pag. 27, lin. 8 e 12. =Klopstock=. Klopstock (Pedro Gottlieb) autor do poema epico _Messiada_, nasceu em Quedlinburg(?) a 2 de Julho de 1724. Cursou as melhores escolas superiores da Allemanha, concluindo na Universidade de Leyde o curso theologico. Desposou uma notavel e talentosa mulher, Meta Moller, fallecida em 1758. Foi muito protegido por el-Rei Frederico V, de Dinamarca. Os merecimentos d’este poeta como linguista e estylista são muito apreciados dos entendedores. Castilho elogiava com enthusiasmo a _Messiada_. Este denominado _Pindaro_ da Allemanha falleceu a 13 de Março de 1803. Pag. 29, lin. 28 =Zimmermann=. Allude Castilho ao celebre livro _Da Solidão_, por Zimmermann; obra de pensador, evangelho para solitarios, consolação para tristes; livro bom e optimo, que é lastima se não reproduza entre nós em traducção. Castilho prezava muito esta obra, lia-a, relia-a, e fazia-a estudar aos filhos. Pag. 36, lin. 34 e seguintes até ao meio da pag. 37. Esse admiravel periodo que principia: _N’uma palavra: um observador attento_, é de eloquencia rara. Diz um critico entendedor o seguinte: Este trecho só um cego o podia escrever; ha ahi uma observação muda, uma attenção intelligente, que só o sexto sentido que possuem os cegos de talento sabia expressar. Percebe-se a contenção do ouvido do corpo, e ainda mais a do ouvido da alma. É uma esplendida manifestação de forma e de pensamento; é a linguagem do silencio das noites; é a intuição das trevas. Pag. 47, lin. 14. =Diario do Governo= Refere-se Castilho ao _Diario_ como propagandista nato de sans doutrinas. É preciso notar que até certo prazo a folha official teve entre nós uma feição litteraria, e não se limitava a simples registo impresso da chancellaria governamental. Era superintendida por um redactor, _persona grata_ ao Ministerio reinante, sujeito illustrado e habil; publicava noticias estrangeiras, artigos de litteratura, polemicas serias, etc. Por isso o nosso poeta dizia que o _Diario_ devia e podia entrar na propaganda de theorias civilisadoras, mais e melhor que outras folhas. Pag. 63, lin. 4, =Ayres de Sá=. Ayres de Sá Nogueira, irmão do celebre Bernardo de Sá, Visconde de Sá da Bandeira, e depois Marquez, e de outros não menos prestadios cidadãos, figurou em Portugal como um dos maiores fautores da Agricultura e das industrias nacionaes. Como Vereador, como Deputado, como particular, empenhou-se toda a vida nos progressos publicos. Foi uma geração notavel esta familia de homens bons, valentes, dedicados, honestos, impetuosos para o bem. Castilho, amigo particular de todos elles, apreciava-os no muito que valiam. Pag. 91, =O Clero e as mulheres=. Se jamais houve doutrina bem orthodoxa, e philosophica, e social, é esta sobre o provimento dos Bispados e das Parochias, que eu expuz e provei, mais pelo gosto de expôr e provar verdades, do que por me persuadir que por ellas se havia de fazer obra. Em tal campo suppunha eu impossivel achar adversarios; esquecia-me dos guerrilheiros. Um periodico de S. Miguel chamado _O Cartista_, pôz-me ... supponho que por impio. Um periodico de Lisboa (cuido que se chamava aquillo _A União_) disse ao publico, sêcca e esparvoadamente, em ar de quem lhe denunciava uma coisa medonha, que eu viera a S. Miguel pôr-me á frente de valentões, para pugnarmos pela eleição popular dos Bispos. Claro está que não respondi, nem pessoa alguma respondeu, á _União_ de Lisboa, nem ao _Cartista_ de S. Miguel. No Clero, consta-me que não faltaram contra mim murmurações; todavia, não chegaram á suppuração da Imprensa. Com essas devia eu contar, e contava. Se não houvesse clerigos indoutos e ruins, para honrarem com o seu odio a minha proposta, tambem esta, por falta de materia prima, teria deixado de existir. Pelo que respeita á emancipação politica das mulheres, não só nenhum homem me fez ecco, se não que todas quantas senhoras ouviram o alvitre, fizeram côro contra elle. Esta sua opposição, parecendo provar muito e muito em desabono da minha these, provou muitissimo a favor d’ella; recusam o seu quinhão de liberdade, porque a não apreciam; e não a apreciam, porque ainda a não provaram. O que muito sensatamente se pode portanto jurar contra a innovação, é que veio antes do seu tempo proprio, mil annos; quando menos, bons quinhentos. Não importa. O que é chymera, algum dia será realidade, como infinitas realidades de hoje algum dia hão-de ser chymeras. O tempo é um grande Homero, que inventa de continuo; e o Mundo um poema de metamorphoses. O que ás vezes faz com que os poetas terrestres pareçam doidos a quem os ouve, é que no meio dos primeiros cantos antecipam a leitura de algumas estancias pertencentes a cantos ulteriores. Pag. 125, lin. 20. =Assis Rodrigues= Refere-se Castilho ao bom e perito artista Francisco de Assis Rodrigues, Professor e por fim Director da Academia Real das Bellas Artes de Lisboa. Foi discipulo de seu pae, o esculptor Faustino José Rodrigues, amigo e alumno do grande Joaquim Machado de Castro. As relações entre Castilho e Assis Rodrigues começaram na infancia, e conservaram-se sempre cordeaes. Em 1836 o estatuario fez o busto do Poeta. Pag. 138, lin. 16. =Os Fastos de Ovidio=. Projectou Castilho, segundo se vê, dedicar a sua traducção dos _Fastos_ a José do Canto; mas como entre esta data e a publicação da dita versão elle lhe dedicou outras composições, não realisou o que tencionava em 1849. Obras completas de A. F. de Castilho 3--=Cartas de Ecco e Narcizo=, verso. 4-5--=Felicidade pela agricultura=, 2 vols. 6-7--=A primavera=, verso, 2 vols. 8 a 15--=Vivos e mortos=, spreciações morais, literarias e artisticas, 8 vols. 19-20--=O presbyterio da montanha=, prosa, 2 vols. 21-22--=O outomno=, verso, 2 vols. 27-28--=Novas escavações poeticas=, verso, 2 vols. 29 a 32--=Theatro=, Camões, drama e notas, 4 vols. 33--=Theatro=, Canáce, tragedia original. 34--=Theatro=, Um anjo da pela do diabo--O casamento de oiro, comedias. 35--=Theatro=, Aristodemo, tragedia. A volta inesperada, farça. 36--=Theatro=, A festa do amor filial. A filha para casar, comedias. 37-38--=Palestras religiosas e consolações=, prosa e verso, 2 vols. 39 a 45--=Casos do meu tempo=, prosa. 7 vols. 46--=Estrelas poeticas para o ano de 1853=, verso. 47 a 50--=Télas literarias=, prosa, 4 vols. 51--=Os ciumes do bardo=, As flores, e a confissão de Amelia, verso. 52-53--=Mil e um misterios=, romance dos romances, 2 vols. 54--=A noite do castelo=, poema. 55--=Tributo portuguez á memoria do Libertador=, prosa. 58 a 60--=Novas télas literarias=, prosa e verso, 3 vols. 61 a 63--=Methodo Portuguez de Leitura.= Directorio do mesmo, 3 vols. 64-65--=Castilho pintado por êle proprio.= As escolas dos asilos de Infancia desvalida, 2 vols. 66--=Felicidade pela instrução.= 67--=Ajuste de contas.= 68--=Noções rudimentares para uso das escolas=, 2 vols. 70 e 72--=Resposta aos novissimos impugnadores do Methodo portuguez=, 3 vols. 73 a 75--=Tratado de Mnemónica=, 3 vols. 76--=Ou eu ou eles=, e Tosquia de um camelo. 77 a 80--=Cartas=, 4 vols. IMP. LUCAS & C.ᵃ -- RUA DIARIO DE NOTICIAS 61 -- LISBOA *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FELICIDADE PELA AGRICULTURA (VOL. I) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.