The Project Gutenberg eBook of Lupe This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Lupe Author: conde de Affonso Celso de Assis Figueiredo Affonso Celso Release date: November 2, 2020 [eBook #63606] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK LUPE *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) LUPE TYP. ALDINA—RUA SETE DE SETEMBRO 79 _AFFONSO CELSO_ LUPE (Segunda edição corrigida e com um prefacio novo) [Illustration] PERNAMBUCO HUGO & C.—Editores 79, Rua do Imperador, 79 1895 A _URBANO DUARTE_ E _CORRÊA DE MENEZES_, Amigos nos bons e nos máos tempos. [Illustration] Dos ensaios litterarios que ultimamente tenho dado a lume, foi _Lupe_ o que suscitou mais vivas e contradictorias apreciações. Criticos houve, tão exaggeradamente benevolos, que de primorosa qualificaram a singela narrativa, chegando ao extremo de emparelhal-a com _Cinco Minutos_ de José de Alencar e _Graziella_ de Lamartine. Outros, em compensação, a acoimaram de romancete fraco e ephemero, onde a acção se arrasta enfadonhamente, com defeitos notaveis de forma e escandalosos erros de observação. E, conforme os habitos da terra, depois de malsinar o livro, atiraram-se desapiedados contra o autor, chamando-lhe vaidoso, ignorante, humilhador da patria lingua e quejandas amenidades. Em consciencia, reputo-me autorisado a repetir os versos da tragedia raciniana: _.... Je n’ai mérité_ _Ni cet excès d’honneur, ni cette indignité!_ _Lupe_ não passa de modesto episodio de viagem, despreoccupadamente contado, sem pretenção de especie alguma. Achei prazer em escrevel-o, e, simplesmente por isso, o escrevi. Publiquei-o com a inoffensiva esperança de transmittir a outros uma parte d’esse prazer. E parece que não me illudi de todo nos meus intuitos, pois duas tiragens de _Lupe_,—mil exemplares cada uma,—a despeito da epocha turbada em que se expuzeram á venda, dentro de breves dias se esgotaram. Entre os senões apontados pelos censores, confesso que varios se me afiguraram justos. Corrigi-os na presente edição e me esforçarei por não reincidir. A alguns, porém, peço venia para offerecer ligeira contestação. —Desagrada em vossas producções,—accusaram-me,—o tom intensamente pessoal que n’ellas impéra. Falais em demasia de vós mesmo. D’ahi a pécha de vaidoso que vos assacaram. Como o orador romano, podem n’este ponto bradar os profligadores: _habemus confitentem reum_. Sim; todo o meu empenho consiste exactamente em imprimir, nos meus trabalhos litterarios a mais funda feição individual possivel. Segundo o meu ideial,—falso talvez, mas sincero,—tanto maior se revela o artista quanto mais singular a sua obra, isto é, quanto mais se destaca da dos outros, affirmando nitidamente, por meio de suas peculiaridades, o _eu_ de quem a criou. Ignoro o que seja arte impessoal. Ponderou muito bem um amigo que accorreu em minha defesa: “n’um trabalho d’arte tudo trae a mão que o fez, o cerebro que o pensou, o coração que o sentio; o cunho do temperamento individual é condição essencialissima para sua vitalidade.” De facto, mesmo os objectivistas e impassiveis, sem embargo de quaesquer artificios, assignala-os e distingue-os essa propria impassibilidade ou objectivismo. Quando menos, eil-os particularisados no estylo, onde cada qual, máo grado seu, estampa o seu sello original. Até na arte photographica, que se limita á reproducção automatica das apparencias, patenteia-se a personalidade do artista na distribuição dos grupos, na selecção das posições e dos objectos photographados, em mil traços, em summa, inconscientes e caracteristicos. —Mas,—insistirão,—escolheis assumptos excessivamente intimos. Vossos escriptos são auto-biographias. A egomania vos domina. Retorquirei, recorrendo á autoridade suprema de Victor Hugo. Quanto á opção das materias, doutrinou elle, (cito de memoria) no prefacio das _Orientaes_: “Não reconheço á critica o direito de interpellar o poéta acerca da sua phantasia e de o increpar porque adoptou um assumpto de preferencia a outro, utilisou-se de tal tinta, colheu n’aquella arvore, bebeu em determinada fonte. É bôa ou má a obra? Eis o dominio da critica. Não ha em poesia bons ou máos assumptos, mas bons ou máos poetas. Tudo é assumpto. O dominio da arte abrange tudo. Não pesquizeis o motivo que me levou a eleger tal argumento. Examinai o como trabalhei, e não o sobre que e o porque.” No tocante ao pretenso abuso do pronome pessoal, apadrinhar-me-hei ainda com o grande mestre, que, no proemio das _Contemplações_, ensinou: “Ninguem tem a honra de possuir uma vida que seja exclusivamente sua. A minha vida é a vossa; a vossa vida é a minha; vós viveis o que eu vivo; o destino é um só. Tomai este espelho e mirai-vos n’elle. Queixosos ha dos escriptores que dizem—eu. Falai de nós,—bradam esses. Por Deus! Quando falo de mim, falo de vós. Como não o sentis!? Ah! quão insensato és se julgas que eu não sou tu. Este livro contem tanto a individualidade do autor como á do leitor. _Homo sum._” Não careço explicar que entre esta concepção da identidade humana e a do personalismo na arte nenhuma antinomia existe. Somos todos fundamentalmente irmãos, com faculdades equivalentes, sujeitos em perfeita igualdade á acção de inflexiveis leis physicas e moraes. Mas, dentro da orbita da unidade generica, as individuações se manifestam, as aptidões variam. Artista é o que sabe concretisar estethicamente os fructos da sua superna aptidão criadora. Assim, em que peze aos meus illustres aristarchos, persistirei em guardar completa independencia com relação a themas e a pronomes, embora sobre mim attraia esse proposito abominaveis epithetos. Tomei, de ha muito, Job como meu mentor, em meio dos successos de nosso caro Brazil. O meu estylo soffreu tambem duros reparos. Arguiram-n’o de truncado, telegraphico, desigual, inçado de orações ellipticas. Que fazer? Infelizmente, não se me depara por emquanto outro melhor. Apezar de todas as suas mazellas, consigo com esse estylo externar o meu pensamento, tornando-me entendido da maioria dos leitores. Isso me basta. Valha-me a intenção de buscar maxima clareza e concisão seguindo a regra estylistica formulada por Spencer:—poupai o tempo e a attenção de quem vos lê. N’esta quadra de palavriado torrencial, deve-se indulgencia aos que ambicionam furtar-se ao _words! words!_ do principe dinamarquez. _Iriel_, o finissimo chronista parisiense do _Jornal do Commercio_, occupando-se de _Lupe_ com inexcedivel gentileza, que me penhorou e desvaneceu, observa, entretanto, que a protogonista se exprime n’uma linguagem emphatica e declamatoria. —Ella não conversa, discursa,—diz o meu eminente confrade,—o que constitue nota discordante e desagradavel. Mas na maneira empolada de se expressar residia um dos _tics_, naturaes ou affectados, da joven mexicana. Muito de industria, mantive simelhante diapasão por parte d’ella nos dialogos relatados, para dar ideia fiel da minha heroina. Concluindo este pequeno cavaco, cumpro o dever de manifestar varios agradecimentos. Agradeço, em primeiro logar, ao publico fluminense a nimia generosidade com que tem acolhido os meus escriptos. Continuarei a trabalhar com crescente esmero e escrupulo, a fim de me mostrar digno de tamanho favor. Agradeço á imprensa as noticias publicadas sobre esses escriptos. Sou reconhecido ainda ás menos favoraveis, comtanto que haja bôa fé e polidez. Prefiro juizos severos, que emendam e estimulam, ao silencio calculado da má vontade, o qual, com offender, desanima. Agradeço finalmente ao meu bom editor e amigo, Sr. Domingos de Magalhães, o verdadeiro carinho que dispensa a meus livros, julgando-os merecedores de luxuosos requintes typographicos. As primeiras tiragens de _Lupe_, feitas em typo _mingon_ na afamada casa Leuzinger, foram um mimo. Não lhes fica somenos a actual, confiada á Typographia Aldina. E, consoante velha usança: —_Vale_, amigo leitor! Alto da Serra, (Petropolis) 1 de Agosto de 1894. A. C. [Illustration] Frisco I Muito triste a minha partida de S. Francisco da California,—Frisco,—segundo o dizer vulgar dos respectivos habitantes. Eu passara alli uma semana, no maior isolamento. Com obsequioso interesse, o consul geral do Brazil nos Estados Unidos, Salvador de Mendonça, me havia recommendado ao seu agente n’aquella cidade, Mr. J. L. M. Randolph. Dispensara-me este a inexcedivel amabilidade dos americanos, quando condescendem em se mostrar affaveis. Mas era um negociante occupadissimo, sempre ás carreiras, para quem constituia séria contrariedade o desperdicio de um minuto. Morava no _Cosmos-Club_ com varios rapazes celibatarios, quasi todos empregados no commercio. Obteve a minha admissão, como socio temporario, n’esse club, luxuosa e confortavelmente installado; offereceu-me ahi excellente jantar, regado de saborosos e variegados vinhos, fabricados sem excepção na California, inclusive o _champagne_ e o _porto_; presenteiou-me com minucioso guia illustrado da povoação; forneceu-me concisamente preciosas informações, de perspicassissimo cunho pratico, sobre tudo aquillo de que poderia precisar um viajante na minha idade e condições (eu entrara então nos 24 annos); e, abalando-me os ossos n’um formidavel _shake-hands_, concluio, ao entregar-me o seu cartão de visita, em cujo dorso se alinhavam algarismos manuscriptos, semelhando uma taboada: —Sinto não me ser dado acompanhal-o sempre, _mister Cilso_. Eis aqui os numeros telephonicos deste club, onde durmo; do escriptorio onde trabalho; do _bar_, onde bebo; do bilhar onde jogo; da egreja, onde rezo; do centro politico, onde discuto; das casas de cavalheiros e damas que frequento. Em precisando de mim, a qualquer hora do dia ou da noite, chame-me desassombradamente e accorrerei logo, cheio de prazer, para lhe prestar serviços. E _good bye, my dear, good bye_... Assim, eu visitara sosinho as curiosidades locaes, vivendo dias inteiros sem conversar com quem quer que fosse. Em 1845, S. Francisco, a antiga Yerba Buena dos mexicanos, contava 1.500 moradores; accusa o recenseamento ultimo cerca de 300.000. Valle entre morros parallelos, entremeado de outeiros, com o seu magnifico porto e as suas casas brancas, guarnecidas ordinariamente de varandas, trasbordantes de plantas tropicaes, nota-se em sua physionomia algo da do Rio de Janeiro. Mas as ruas são ali mais largas e limpas, usando commummente numeros em logar de nomes; os edificios mais altos; o typo architectonico mais extravagante; a população mais heterogenea e vivaz, talvez offerecendo ainda vestigios dos audaciosos aventureiros de que descende. Em compensação menos grandiosa do que a nossa a natureza, somenos a perspectiva, e inferior a bahia em extensão, magestade, segurança e bellezas naturaes. Entre as construcções normaes de Frisco, destacam a miude torres, cupulas, columnatas. Causa surpreza a infinidade de fios telegraphicos suspensos em póstes e nos telhados. Galgam ingremes collinas filas de _bonds_ movidos por um cabo metallico que róla occultamente dentro de apertado tubo, no meio dos trilhos, abaixo do nivel do caminho. Por meio de um apparelho em forma de pinça, o vehiculo se engata facilmente no motor. Interessante a enseada, na qual ancoram navios tripolados de gente extranha, oriunda de mysteriosas regiões asiaticas. A communicação com o pleno mar faz-se, como na capital brazileira, por estreito corredor,—porta de ouro (_Golden Gate_) chamado. Descortina-se d’esse ponto esplendido panorama,—feliz combinação de ilhas, montanhas, planicies, agglomerações caprichosas de predios, sob amplissimo horizonte assiduamente colorido de violentos e sumptuosos matizes. A originalidade de S. Francisco, porém, reside no seu quarteirão chinez. Em todos os angulos da cidade cruzam com o transeunte filhos do celeste imperio,—olhos obliquos e microscopicos, cara redonda, cutis bronzea, maçans do rosto salientes, vestuarios soltos e vistosos, chapéos de sol de côres vivas, sapatos de páo, cabeça raspada a meio, longo rabicho fluctuante ou enrolado no pescoço. Andam dois a dois, lentos e impassiveis. A sua presença dá incisivas notas exoticas à multidão banal. Mas cumpre, para devidamente aprecial-os, percorrer o bairro especial que occupam. Imaginai dilatado labyrintho de viélas sujas, esguias, tresandando olores acidos, que irritam a pituitaria, ladeiadas de edificações excentricas, coalhadas de inscripções estapafurdias e de estramboticos objectos, onde pullulam representantes da raça amarella em todos os recantos, n’um indizivel formigamento, emquanto cães e gallinhas remechem tranquillamente montes de lixo abandonados ás portas... Todavia, apresentam-se excellentes as condições sanitarias d’esse perimetro, a despeito do desaceio e da incrivel promiscuidade que n’elle dominam. Milhares de creaturas humanas alli se empilham, exercendo toda sorte de industrias e profissões. O _Globe Hotel_ acommodava em 50 aposentos acanhados mais de 1.600 chins. E são ordeiros, resignados, sobrios, pessoalmente limpos, habilissimos, refractarios a epidemias, respeitadores das autoridades, de extraordinaria aptidão para qualquer trabalho, inflexiveis na observancia de suas usanças e tradições. Vivem n’aquella circumscripção como em seu proprio paiz. Os materiaes de certas moradias,—blocos de granito finamente lavrados,—vieram inteiros da China, preparados de modo a se armarem promptamente. Restaurantes, assignalados por enormes disticos vermelhos, e innumeraveis lanternas de papel na fachada, e onde se servem inverosimeis iguarias em maravilhosa louça de porcelana; artisticos salões de chá; templos de diversas seitas, nos quaes se adoram divindades de interminaveis bigodes; casas de exquisitos jogos; theatros em que se desenrola durante mezes o entrecho da mesma peça militar; reductos clandestinos para fumadores de opio; lindas lojas de sedas e artefactos de ebano embutido; medicos que só recebem honorarios quando o cliente goza saude e os perdem se este adoece:—as mil peculiaridades caracteristicas do immenso estado mongolico, encontram-se no centro de S. Francisco, emergindo da espurcicia extrinseca, de Pacific street a Sacramento street, verdadeira incrustação de perfeito fragmento do Oriente n’um activo nucleo de civilisação norte-americana. Bastaram-me oito dias para examinar attentamente tudo isto. Satisfeita a anciedade de _touriste_, urgia-me partir para diante. Tomei passagem no _Colima_, velho vapor de uma companhia de cabotagem entre os Estados Unidos, Mexico, America Central e Panamá. Intensa melancholia, ao embarcar. Ia aventurar-me n’uma viagem, tentada por poucos brazileiros: as costas do Pacifico até ao estreito de Magalhães, tocando, além das regiões já mencionadas, no Equador, Perú, Chile e Patagonia. Eu sahira do Brazil na direcção do norte. Visitara Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará, Barbadas, S. Thomaz, antes de chegar a Nova-York. Atravessara o continente, depois de percorrer o Canadá, na grande linha ferrea que liga os dois oceanos. Regressando ao Rio de Janeiro, com escala em Montevidéo, traçaria enorme circulo em torno da America. Iniciava-se agora a phase mais penosa do trajecto. Até então vinham-me noticias constantes da familia; não raros compatriotas se me deparavam; promptos seriam, em centros que mantêm frequentes relações com o Brazil, o regresso e os soccorros, se necessarios. Mas, de ora avante, Guatemala, Honduras, Costa-Rica me apartariam absolutamente da patria, alheia em tudo a esses paizes. Era entranhar-me no desconhecido, destituido de qualquer amparo natural, sem o menor ponto de apoio affectivo, cada vez mais separado dos meus. —Que será de mim, adoecendo? Se me achar privado de recursos materiaes? Se fallecer inopinadamente?! Que de difficuldades para que os meus amigos e parentes venham a descobrir o paradeiro de meus despojos!... D’estas proprias reflexões, comtudo, provinha-me singular encanto. Acariciava-me a imaginação a possibilidade de conhecer, sob a imminencia do perigo, novos aspectos de homens e cousas. Em pé, no tombadilho do _Colima_, prestes a levantar ferro, eu contemplava um alteroso paquete, atracado, como aquelle, a uma dóca. Entrara horas antes de Yokohama. Agitava-se no interior d’elle multidão compacta,—typos de oppostas raças, semblantes e trajos disparatados. O espectaculo enleiava-me a attenção. Bateram-me, porém, no hombro. Era Mr. Randolph que tivera a gentileza de roubar alguns minutos aos seus affazeres para se despedir de mim. Com a habitual presteza, dentro em pouco, apresentou-me elle ao commandante, recommendou-me ao commissario, presidiu á collocação das minhas malas no camarote escolhido, ministrou-me dados estatisticos sobre a marcha do navio, duração do percurso, logares em que parariamos para carregar ou descarregar. Quasi ao se retirar, murmurou sorrindo: Fui informado de que terá uma agradavel companheira, graças á qual a travessia lhe parecerá curta. —Quem? —A celebre Miss Lupe Hedges que, depois de haver imperado em S. Francisco, como soberana da moda e do bom gosto, perdeu a realeza e recolhe-se, em companhia da mãe, a Acapulco, sua terra natal. Mister Hedges, o pai, um agente de cambio, antigo caixeiro viajante, vivia com inaudita opulencia. Consideravam-n’o riquissimo, posto ninguem explicasse satisfactoriamente a origem de seus cabedaes. Fulminou-o ha perto de dous mezes uma apoplexia. Deu-se-lhe balanço. Completamente insolvavel, meu caro; só legou aos herdeiros incommensuraveis dividas. Os credores tomaram quanto a familia possuia. Colossal ainda assim o prejuizo. A viuva e a filha, habituadas ao maior luxo, reduzidas inesperadamente á penuria, não se afazendo a vegetar n’uma posição modesta na terra em que sobrancearam, resolveram regressar ao patrio ninho. Mudam-se para o Mexico, donde Hedges as trouxera ha annos e onde possuem um parente empregado do governo, ao que dizem. —Que casta de gente é?... —Oh! Summamente aprazivel a moça. —Apenas isso? —Que mais deseja um rapaz que viaja?—inquirio o meu interlocutor. Trate de captar a amizade de Lupe e não se arrependerá. Aposto que entreterá com ella optimas relações. Rosna-se por ahi muita cousa,—casa de jogo mantida por Hedges e da qual a filha constituia o principal chamariz etc., etc. Mas eu não acredito. Em summa... N’isto, ouviram-se toques de sineta, seguidos de um apito surdo do vapor. Observava-se a bordo a lufa-lufa da partida immediata. Mr. Randolph, sem terminar a phrase, segurou-me a dextra, sacudindo-a vehemente. —Adeus... adeus... exclamou. Bôa viagem. Divirta-se. Confio em que levará excellentes impressões da nossa gloriosa nação. E sumiu-se de prompto, no meio das pessoas que desciam apressadamente a escada do portaló. Breve o _Colima_ desligou as amarras e desprendeu-se lento de terra, n’uma suave manobra. Já se cavava regular intervallo entre elle e o caes, quando surdio n’este, correndo esbaforido, um joven chinez. Trazia na mão um papel e fazia gestos desesperados a outro chinez que da prôa do navio lhe respondia, com acenos igualmente furiosos. O espaço intermediario augmentava a cada segundo. Então o chinez que ficava apanhou bruscamente uma pedra no chão, envolveu-a no papel e arremessou-a esforçado ao chinez que partia. Grande, porém, a distancia interposta. O projectil descreveu no ar um arco de circulo e cahio n’agua, submergindo-se. Soaram gargalhadas. No rosto amarello do arremessante transpareceu profunda magua. Poz-se a chorar. Nada mais engraçado do que um chinez chorando. Dos olhinhos sardonicos saltitavam-lhe lagrimas, na apparencia differentes das nossas, emquanto os traços se lhe amarfanhavam n’uma inconcebivel careta. Sentirão elles como nós? Serão identicas ás que nos impellem as suas paixões? Corresponderá á dissemelhança physica um contraste moral? Não revestirá o desgosto d’elles, bem como a alegria, formas e expressões caracteristicas, de accordo com as feições e vestuarios? Haverá raças d’almas,—tartaras, ethiopes, japonezas, diversas das européas e americanas?!... Um corcóvo do navio cortou-me as cogitações. Sahiamos barra fóra, atravessando _Golden-Gate_. O _Colima_ entestara com o pleno oceano. Ao primeiro embate, curveteava. Diante de nós se desdobrava até roçagar no firmamento o chamalóte verde das vagas. [Illustration] Máo exordio II De subito, soaram a meu lado estas palavras proferidas em inglez por alguem, cuja approximação o ruido da helice tornara despercebida: —Não ha, nem póde haver no mundo paizagem maritima mais arrebatadora... Voltei-me. A dois passos de mim, bonita rapariga, morena e elegantissima, trajando rigoroso lucto, fitava com um binoculo os planos longinquos da agua e do céu. Alta, nervosa, esbelta, graciosamente petulante. Mas das linhas de seu rosto algo de desconforto resumbrava. Na commissura dos labios lobrigava-se-lhe o vinco das decepções. Ao cabo de minutos, como eu não respondesse, repetiu em hespanhol, dirigindo-se directamente a mim: —Não acha, cavalheiro, ser impossivel na natureza perspectiva superior a esta?! —Perdão, repliquei. Julgo com effeito admiravel o espectaculo que presenciamos. A bahia do Rio de Janeiro, porém, excede incomparavelmente em bellezas a de S. Francisco. —Que bahia?!... indagou ella, qual se não houvesse apprehendido o nome. —A do Rio de Janeiro, capital do Brazil. —Ah!... Pertence porventura o cavalheiro a semelhante terra?... murmurou com surpreza satyrica, depois de ligeira pausa. Á minha affirmativa, a desconhecida guardou lentamente o binoculo no estojo pendente a tiracollo, e saccou do bolso uma d’essas lunetas encaixilhadas em tartaruga, que tem longo cabo perpendicular aos vidros. Limpou com o lenço devagarinho esses vidros e, em seguida, assestou-os sobre mim, mirando-me da cabeça aos pés, como se eu fôra um animal raro. Supportei imperturbavel o impertinente exame, fixando a pesquizadora sem pestanejar. Ao fim, soltando uma risada: —Pois ninguem acreditaria,—declarou,—que o cavalheiro nascesse no Brazil. Está bem certo d’isso?... —Como assim?!... —Eu suppunha que o Brazil só produzisse negros e selvagens. —Enganou-se, como vê. Em geral, ignoram a minha patria no estrangeiro, ou não tributam a devida justiça á sua civilisação. —Eu conheço perfeitamente o Brazil,—interrompeu ella. É uma zona extensissima, cheia de florestas, na qual o vomito preto dizima os indigenas, onde perdura a barbaria da escravidão e governa patriarchalmente ha 50 annos um velho rei, muito sabio e bom... —Illude-se ainda,—retorqui friamente. O Brazil é um paiz civilisado, o mais civilisado e prospero da America Latina. Ella desfechou uma grande gargalhada insolente, mostrando soberbos dentes agudos e alvissimos. —Lá, pelo menos,—terminei, a voz um tanto acre,—as mulheres costumam ser discretas e os homens sabem ser polidos. Com a arrogante luneta, novamente a desconhecida submetteu-me a demorada investigação. Curvou-se, depois, n’uma mesura ironica, exclamando: —Cavalheiro, humilde servidora de _usted_... E afastou-se, erecta e airosa, n’um passo de rainha. Fiquei só, e, sem saber porque, furioso commigo mesmo. Certo, eu acabava de conversar com a celebre Lupe, de quem fallara Mister Randolph. Ao envez do que este annunciara, não se antolhavam propicias as nossas relações. [Illustration] Spleen III Tornou-se-me insupportavel a infundada irritação contra mim proprio. Achei-me desasado e estupido. Acudiam-me, infelizmente um pouco tarde, numerosas replicas felizes que haveriam determinado no espirito da desconhecida indelevel e suave impressão. Virou-se após a hostilidade do meu máo humor para a natureza e objectos circumjacentes. —A fallar a verdade,—raciocinava eu, em soliloquio intimo,—não vale absolutamente a pena abalar-se um mortal do seu lar com o intuito de conhecer o famigerado Oceano Pacifico! Que formidavel decepção! O Pacifico é isto!... Em nada dissemelhante do Atlantico:—identicos movimentos monotonos, perfeita uniformidade de apparencias, as mesmas immundicies, igual immensidade entediadora e inutil... De que lhe serve constituir a mais avultada massa liquida do globo, ser chamado Grande Oceano, Mar Amarello, Mar do Japão, Mar de Bhering, Mar das Indias, banhar a Australia, a China, a Coréa, o Tonkin, Sião, as ilhas Sandwich, as mais antigas e legendarias plagas, recolher o tributo de um rio denominado _Amor_, estender-se entre quatro continentes, espelhar cataclysmos de centenares de cratéras, elaborar constantemente novos bancos de coral, se nem se descrimina á primeira vista de outras vulgares planicies aquaticas, não proporcionando sensações especiaes,—méra cousa chata, banal, destituida de individuação, desesperadoramente commum!... E assim tambem os homens de todos os seculos e raças!... Glorioso imbecil o tal Fernão de Magalhães, perlustrador inicial do dito Oceano. Occorria-me sob rebarbativo aspecto a chronica do ousado navegante. Com effeito, abandonar a patria; arrostar com 230 homens as furias de incognitas ondas; arcar com sedições de equipagem, provocadas pelo frio e insoffriveis rigores; largar, á guiza de punição, em praias virgens os companheiros rebeldes; vêr a sua frota reduzida a tres navios; aportar ás Philippinas, cerca de quatro mezes depois de atravessar o estreito a que legou o nome; guerrear ao lado do rei Zebú, commandando simplesmente 56 compatriotas superstites; morrer, emfim, assassinado a pedradas no archipelago malasio, emquanto apenas dezoito sobreviventes da expedição logravam volver á Hespanha, communicando ao mundo a effectividade da primeira viagem de circumnavegação, na qual despenderam tres annos e quatorze dias,—tudo isto prova unicamente até que desvairadas aventuras se póde arrojar a ambição humana!... E quão detestavel o vapor que me conduzia! Que desaceiado e ronceiro, proprio para arvorar o pavilhão de alguma potencia barbara, e indigno da bandeira estrellada que lhe tremulava á pôpa! N’uma allucinação pessimista, eu encarava o universo pelo prisma de Schopenhauer. Arrependia-me de ter embarcado; revoltava-me por haver nascido. A capricho infernal de divindade perversa attribuia a creação. Amargos protestos fervilhavam-me n’alma, sequiosa da paz imperturbavel do nada. Debatendo-me em tamanha amargura (oh! como punge, aos vinte e quatro annos, o remorso de ter offendido uma formosa mulher!) não ouvi a campainha annunciadora do _lunch_. Foi preciso que um _steward_, o qual, consoante os estylos, embolsara previamente manifestações sonantes da minha munificencia, viesse solicito inquirir se eu me sentia enjoado. E nauseas realmente me agitavam,—mas d’esse enjôo moral, peculiar aos tripolantes do “navio que Deus na Mancha ancorou”—o intraduzivel _spleen_. [Illustration] Os passageiros do Colima IV Graças á recommendação de Mister Randolph, o commandante do _Colima_ me reservara á sua direita o primeiro logar na meza das refeições. Em frente a mim, sentava-se a minha interlocutora de momentos antes. Seguia-se-lhe uma senhora de certa idade, severa e secca, trajos de viuva, cabellos negros e duros de cabocla,—a mãi da precedente. Raros os mais passageiros, que mal occupavam as poltronas fixas do refeitorio. Facto curioso a rapidez com que se estabelecem intimidades a bordo. Bastam poucas horas de convivio para que se tratem como se de muitos annos mantivessem relações todos quantos a sorte congrega n’uma excursão maritima. Sabem-se logo e insensivelmente nomes, posições sociaes, projectos, cabedaes, particularidades de cada um. Trocam-se confidencias: ligações se produzem, derivadas talvez da solidariedade inconsciente dos riscos communs. Não terminára o _lunch_ e eu já possuia informações precisas sobre os meus companheiros. Era effectivamente Lupe a gentil mexicana de fronte de mim. _Senorita_ Lupe chamavam-lhe em castelhano. O commandante dizia reverente—Miss Hedges. Do sexo feminino havia apenas, além desta: a sua progenitora, a supra-dita viuva; Miss Jackson, velha americana, de oculos e bandos, socia do club exoterico de Nova York; e D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos, hespanhola, mulher de um commerciante de Guatemala. Quarentona a ultima, gorducha, o cabello complicadamente penteiado, illuminada pelos reflexos posthumos de fenecida boniteza. Ao pé das tres matronas, avultavam intensamente a graça e a mocidade de Lupe. Representantes masculinos enumeravam-se: um judeu allemão, negociante de joias; um engenheiro hollandez, por nome Pfeiffer, empregado nas obras do canal de Panamá; dois inglezes feios e insignificantes; e o insulso annotador d’estas linhas. Em terceira classe, amontoavam-se á prôa trabalhadores para as mencionadas obras, entre os quaes muitos chinezes. Instruiram-me tambem desde cedo sobre a origem da exquisita designação—Lupe. Simples abreviatura de Guadalupe, localidade mexicana famosa por varios motivos. Encerra ella um sanctuario, que ha quatro seculos attrahe sem cessar fanaticos peregrinos. Milagrosa imagem effectuou ali, á semelhança de Lourdes, repetidas apparições, sendo a primeira, pouco depois da conquista hespanhola, a um indio recemconvertido. É Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira do Mexico. Foi no mesmo sanctuario que se tramou o movimento de independencia contra a dominação castelhana, capitaneado pelo cura Hydalgo. O estandarte da revolta arvorava a imagem da santa. Guadalupe—Hidalgo denomina-se hoje a cidade. Ao ser acclamado imperador, instituio o general Agostinho Iturbide, em 1822, a ordem nacional de Guadalupe, supprimida com o seu ephemero imperio e restabelecida, em 1864, por Maximiliano. Muito commum em mulheres mexicanas o nome baptismal Guadalupe, tal como Laffayette (pronuncia-se _Lafahitte_) nas dos Estados Unidos. A graciosa alcunha Lupe evocava, portanto, idéas de revolução, liberdade e fé. A sua sonoridade incisiva, de sabor a um tempo avelludado e acre, quadrava maravilhosamente com a estranha creatura que a usava. Parecia antes rebuscado adjectivo adrede escolhido para a qualificar e determinar. Nos labios della propria as duas syllabas de Lupe adquiriam encanto ineffavel. Proferindo-as, ella estendia a bocca em fórma de bico, como se fosse dar um beijo; e o som se exhalava voluptuoso, acariciando o ouvido, electrisando deliciosamente os nervos dos presentes, qual offego supplice de amor. Durante a collação, ora em hespanhol, ora em inglez, Lupe dirigio a palavra a todos os circumstantes, menos a mim. Scintillante e escarninha affigurou-se-me a disposição de seu espirito. Ligeiramente aggressivas as phrases que articulava. Mais de uma vez senti que me fitava de soslaio. E o seu olhar produzia a sensação de uma alfinetada subtil. Encarquilhada e macambuzia, guardava a mãi obstinada reserva. Mas, de quando em quando, a alguma mordacidade da filha, sorria silenciosamente, exhibindo eburnea dentadura. No correr do dia, não mais me encontrei com as mexicanas, recolhidas ao camarote. Á hora do jantar Lupe demorou-se. Appareceu, já iniciado o serviço, penteiada de festa, o vestido negro quasi decotado, ar cerimonioso, flores na abertura do seio. Permaneceu, como no _lunch_, calada para commigo, emquanto entabolava vivaz conversa com os mais, sem excepção. Extraordinaria, decididamente, a sua maliciosa _verve_ esfusiante. Ao nos levantarmos, disse-me bruscamente: —_Dom_ brazileiro, queira ter a galanteria de me offerecer o seu braço. Obedeci surprehendido. Subimos ao convez. Suavissima a noite; juncado o céu de constellações. O _Colima_ arfava languido sobre ondas placidas. O Pacifico justificava o seu titulo. Singrava o navio entre alas de phosphorescencias; dir-se-hia arrastar longa cauda de flóccos argenteos; e tremeluziam-lhe lanternas nas vergas altas,—avançadas atalaias de luz. Lupe embuçou a cabeça e os hombros n’uma mantilha, cujas franjas escuras lhe sublinhavam o resplendor do olhar. Reclinou-se, quasi deitada, n’uma _chaise-long_, conchegando aos pés espessa manta escosseza. Indicou-me depois, com imperativo gesto, cadeira igual ao lado d’ella. Houve pequeno silencio. —Falle-me do seu paiz, _dom_ brazileiro,—murmurou por fim. Falle-me longamente. Veja se consegue effeitos de eloquencia. Acalente-me ao som de mavioso hymno á sua terra, que parece amar tanto. [Illustration] Salve, Brazil! V Nunca, oh! minha patria, mais ardente e commovida apologia se ergueu ainda aos teus primores... Excitava-me tudo o imaginar. A noite, povoada de magicos fluidos, a suggestão romantica das vagas, a proximidade d’aquella bonita mulher, tão nova e provocante, de comprazer a qual me nascia vehementissima ambição, infiltravam-me de dulçuroso calor communicativo o pensamento e a voz. Foi longo o colloquio; de proposito o procurei demorar. Comecei repetindo o conceito externado sobre o Brazil por Amerigo Vespucci n’uma de suas cartas: _se nel mondo é alcun paradiso terrestre, senzá dubio dee esser non molto lontano da questi luoghi_. Descrevi a extensão do nosso territorio, pouco menos vasto que o do continente europeu, superior aos da China e da Russia propriamente ditas, no qual a menor circumscripção provincial—Sergipe—sobreleva a Dinamarca, a Hollanda, a Belgica, S. Salvador, onde a maior—Amazonas,—contem municipios excedentes a Portugal, Grecia, Suissa, e em cujas aguas uma só ilha,—a de Marajó,—sobrepuja as da Madeira, Heligoland e Malta reunidas, territorio parte inexplorado ainda, que, em sendo habitado como o é o belga, conterá mais gente que na actualidade a superficie inteira do orbe. Pintei a nossa incomparavel natureza, com seu aspecto nivelado e calmo, desprovida de culminancias e abysmos ameaçadores, sem cratéras activas nem vestigios siquer de apagados vulcões, a amena variedade de seus climas, a ausencia total de cataclysmos, terremotos, seccas prolongadas, innundações; o nosso systema hydrographico completo, o estupendo numero de lagos, regatos e rios navegaveis, entre os quaes o gigantesco Amazonas, soberano fluvial do mundo, com cerca de seis mil kilometros de curso, contando uma caterva de affluentes, tambem collossaes; o nosso littoral dilatadissimo, destituido de nevoeiros, cachopos ou quaesquer perigos, abrangendo dezenas de magnificos portos sempre abertos, e a bahia de Guanabara, a mais bella, ampla e segura do universo; a exuberancia indescriptivel de nosso sólo, a sua prodigiosa flóra, fecunda, ao mesmo tempo, na phrase de um viajante, em cedros sobranceiros aos do Libano, em flôres enormes, (como a Victoria-Regia, que fluctúa sobre o mencionado Amazonas, a maior até hoje conhecida, igual em dimensões a uma canoa, com folhas redondas, capaz cada qual de suster um menino)—em orchideas phantasticas, obras-primas de rendilhadas formas, matizes e olores, em plantas ornamentaes, alimenticias e medicinaes de infinitas especies, em fructas de imprevistas conformações artisticas, satisfazendo as mais requintadas exigencias do paladar, e em florestas de preciosas arvores tão densas que se lhes poderia andar firmemente por cima das cópas entrelaçadas; a nossa fauna opulenta, apresentando inestimaveis specimens, desde o jaguar, mosqueado de azeviche e fulvo, até o célere veado, as borboletas polychromas, os radiantes colibris, fragmentos animados do arco-iris, e mil outros passaros encantadores, verdadeiras joias volantes, portadores de aérias harmonias; a nossa magnificencia geologica,—jazidas incommensuraveis de ferro, cobre, crystaes, amethystas, topazios amarellos e roseos, turmalinas, marmores brancos e verdes de delicadissimos matizes, montanhas revestidas de talco e mica, fulgindo como se fossem de ouro, veios d’este metal e depositos de diamantes, profusos ao ponto de haver, conforme observação de um sabio, uma região, mais extensa do que a França, chamada Minas Geraes e cidades denominadas—Ouro Branco, Ouro Preto, Ouro Fino, Diamantina; o nosso firmamento, emfim, perpetuamente risonho, trasbordante durante o dia de gloriosa claridade, coalhado, á noite, de astros fascinadores,—relicario sublime de um cruzeiro formado de estrellas... Demonstrei que eramos a primeira nação latina do Novo Mundo, dispondo de recursos inexgotaveis, em pleno progresso commercial, industrial e agricola, fabricas surdindo activamente, fios telegraphicos e estradas de ferro annulando cada hora as distancias, a instrucção se expandindo n’uma ascenção rapida e estavel, a riqueza publica augmentando, a immigração estrangeira affluindo em escala assombrosa, o credito nacional cotado a par do dos mais prosperos estados, o governo e os proprietarios libertando os escravos remanescentes no meio de festas, elevando-os desde logo ao nivel de cidadãos, sem preconceitos de raças, aristocracias de sangue ou dinheiro, nem distinções de côr. Referi-me ás particularidades de nossa zona, aos seringaes, á baunilha, ás selvas de cacáo e café, aos peixes electricos, ás palmeiras alevantadas e iguaes como columnas de fina architectura, aos cursos d’agua doce que luctam com o oceano e penetram indomaveis por elle a dentro, ás cachoeiras rivaes do Niagara, ás grutas encantadas com decorações inimitaveis de stalactites e stalagmites, ás fontes thermaes extensamente espalhadas, á primavera perpetua da vegetação, ás lianas textis, ao cipó do caçador que fornece um liquido edulcorado e fresco, ás madeiras de construcção mais resistentes que o bronze, á terra roxa de uberdade pasmosa, á arvore do pão, aos pampas, ás mattas virgens... Recordei o juizo manifestado por excursionistas illustres sobre o Brazil:—Saint-Hilaire declarando que a Minas seria licito segregar-se do resto do mundo, pois encontraria em si propria tudo quanto pudesse necessitar; Agassiz commemorando em phrases enlevadas a sua missão scientifica ao imperio sul-americano; Darwin qualificando-o de grandioso; Humboldt presagiando que residiria n’elle o nucleo da civilisação futura; Martius pedindo que sobre o seu tumulo se collocassem folhas de palmaceas brazileiras. Enumerei os costumes singelos e bons do povo, a sua perfeita tranquillidade, espirito hospitaleiro, habitos patriarchaes, tolerancia absoluta para com quaesquer crenças e opiniões, tendencias humanitarias, ausencia de separações sociaes, facilidade de accesso aos mais altos cargos, disposições para o progresso, amor ao bello, desconhecimento de exageros patrioticos e exclusivismos bairristas, inteira segurança, independencia e liberdade, faculdades estheticas, reveladas na arte plumaria dos autochtones, em geniaes artistas incultos, como o Aleijadinho, no geral apreço da melodia, nas verdadeiras notabilidades produzidas, a despeito de influencias depressoras e falta de educação conveniente, em litteratura, pintura, esculptura e musica. Esbocei, em seguida, os episodios salientes dos nossos fastos, limpidos e serenos, quaes os de uma raça eleita de Deus: a descoberta suave da Terra da Vera Cruz; as legendas de Caramurú, Moema e Paraguassú: inglezes, francezes, hollandezes e hespanhóes disputando a posse da nova colonia; as proezas de Henrique Dias, o negro, e de Camarão, o indio, na guerra dos trinta annos; as figuras santas de Nobrega e Anchietta; a intrepidez epica dos bandeirantes e dos garimpeiros, appellidados viradores de rios e homens-diabos pelos indigenas; Amador Bueno recusando uma corôa de rei; as luctas tremendas contra os elementos para a conquista do sertão; a campanha dos Palmares, em que o chefe dos pretos revoltados, o Zumbi, Spartacus americano, prefere ao captiveiro e á ignominia da derrota despenhar-se com os seus melhores auxiliares do cume de alcantilada montanha; Alexandre de Gusmão, inventando os areostatos; Antonio José da Silva queimado pela inquisição; Tiradentes, capitaneando uma legião de inspirados poetas, que sonhavam a independencia da patria, executado como um martyr; o Rio de Janeiro capital da monarchia portugueza, acossada da Europa pelas armas napoleonicas; a emancipação politica facilmente adquirida; D. Pedro I, o fundador do imperio, expulso por haver attentado contra as liberdades publicas; a posição excepcional d’este principe, abdicando de dois diademas sobre a cabeça de dois filhos infantes, deixando o primeiro entregue aos cuidados de uma revolução victoriosa,—que acolhe maternalmente a creança como a loba latina os filhos de Rhéa Sylvia,—e indo sustentar os direitos do segundo, uma menina, com armas na mão, até implantar o regimen liberal na velha Luzitania; o reinado semi-secular de D. Pedro II, intitulado por Victor Hugo o neto de Marco Aurelio, o soberano sabio, modesto, abnegado, emulo de Numa Pompilio e de Washington, reinado durante o qual o Brazil effectuou immensos adiantamentos pacificos, impôz-se á admiração do orbe policiado como modelo digno de imitação, ao ponto de frequentemente ser escolhido arbitro supremo das contendas de pujantes nacionalidades, só emprehendeu guerras externas no intuito cavalheiresco de libertar visinhos irmãos de aviltantes tyrannias, e, no meio das convulsões politicas e sociaes de quasi todos os póvos, gozou de venturosa paz interna, comparavel á das culminações luminosas da historia, percorrendo as mais melindrosas phases do seu evolver de modo predestinadamente feliz, mostrando assim ter jus á primazia da raça latina no porvir, abrigar em seu seio as sementes dos vindouros ideiaes da humanidade, ser o prototypo superno em proximos seculos da civilisação e da gloria universaes... Muito tarde quando terminei. Só o ranger das machinas e o zunir do vento nas enxarcias quebrava o silencio que envolvera o _Colima_. Lupe ouvira attenta, interrompendo-me a trechos com breves perguntas sobre pontos que mais especialmente a interessavam. —Falta um esclarecimento,—observou, levantando-se. —Qual? —Não revelou ainda se as mulheres brazileiras são bellas. —Sim: rivalisam algumas com as mais formosas do mundo. —E sabem amar? —Não existem mães, esposas e irmans mais affectuosas e meigas. Logo apóz a descoberta, o portuguez Ramalho desposou uma brazileira indigena, filha do cacique Tibiriçá e foi felicissimo. Garibaldi casou-se em primeiras nupcias com uma brazileira, a intrepida Annita, que summamente auxiliou o heróe no começo de sua carreira. —Não é isso,—bradou, cortando-me a phrase. Pergunto se as mulheres brazileiras comprehendem o amor, se são capazes de todos os divinos desvarios da paixão... —Sim... creio que sim...—balbuciei. —Como sabe?! Não respondi immediatamente, surprehendido com interrogativa tão extranha. Ella soltou uma risada. —Bôa noite, _dom_ brazileiro,—disse, afastando-se. Basta para primeira conversação. Todos já dormem a bordo. Cumpre evitar commentarios de más linguas... De longe, acenou-me com a mão e desappareceu. Eu fiquei ainda largo tempo passeiando sózinho no tombadilho, a olhar absorto para as nuvens e as ondas, perdido em incoherente scismar. [Illustration] Filha e Mãi VI Complicado temperamento o da joven mexicana! Quem só lhe notasse os modos desenvoltos, as sahidas inconsideradas na conversação, a peraltice de certos accessorios do vestuario, a insolencia menos nativa que estudada, predicados communs, aliás, na livre educação femina dos _yankees_, tomal-a-hia naturalmente por uma loureira atrevida e pedante. Mas, a par d’isso, quanta ingenuidade e meiguice bruscamente descortinadas na penumbra de seu coração! E mostrava leitura variada em historia e bellas lettras. De subito, estancava-se-lhe ás vezes a ruidosa alegria habitual. Dir-se-hia que depuzéra então uma mascara. Invadia-lhe as feições a amargura de funda tristeza comprimida. E os seus traços doridos reverberavam purezas angelicaes. De ordinario, porém, insupportavel _enfant terrible_. A mãi, constantemente taciturna e amuada, vivia a cochilar pelos cantos, ao passo que Lupe andava ás soltas, tagarellando com marinheiros e officiaes, visitando os mais defesos angulos do navio, trazendo tudo em róda viva, atanazando todos com troças e remoques. Vi-a uma tarde na camara do commandante jogando _whist_, a fumar cigarros de Havana e a beber _punch_. Gostavam d’ella; temiam-n’a, todavia, algum tanto, e lhe tributavam a complacencia protectora, mixto de sympathia e desdem, que inspira uma interessante desclassificada. Entretanto, a mim, distinguia-me ella com especial deferencia. Sarcastica relativamente aos mais, assumia, em se approximando de mim, affavel compostura, imprimindo ás phrases que me endereçava o tom natural de amistosa camaradagem. Infelizmente, esquivava-se a colloquios semelhantes aos da primeira noite de bórdo. Procurava-me a miúdo, mas rapida, sem nunca mais consentir em sentar-se a meu lado para intima palestra. Tel-a-hia eu enfadado com o panegyrico do Brazil? Parte por desfastio nos infindaveis ocios da travessia, parte por curiosidade, no intento de, em estudando a arvore, melhor apreciar o fructo, deliberei conquistar as bôas graças de Mrs. Hedges, a mãi de Lupe. Nada facil. A velha, sob o jugo de real desgosto e victima de enjôo, resistia ás minhas amabilidades, refractaria ás mais insistentes seducções. Extorquiam-se-lhe penosamente phrases triviaes. Quanto aos seus antecedentes e aos de sua familia, baldados esforços. Comtudo, as informações de Mr. Randolph, indiscreções de Lupe e uma ou outra indicação surprehendida por acaso, elucidavam-me a pouco e pouco sobre o estado de espirito da sombria matrona. Não se resignava ella ao revez de fortuna que soffrera. Doia-lhe como inaudita injustiça a situação precaria em que se encontrava. Chegava a nutrir despeito e rancor contra o finado marido por haver este expirado inopinadamente, legando-lhe a miseria,—elle que em vida acoroçoava os habitos de fausto e desperdicio da familia, fazendo-a acreditar na solidez de seus cabedaes inextinguiveis. Fôra crudelissima á viuva a transição desabrida da opulencia para a carestia. E, demais, não lhe bruxoleiava no horizonte o minimo clarão de esperança. Nada confiava quanto ao seu futuro e ao da filha do regresso á patria. Ia soccorrer-se de um irmão, modesto empregado publico em Acapulco. E affigurava-se-lhe cruciante humilhação volver assim pobre ao seio dos seus, que repudiara, por ventura, nos dias aureos. Regressava a impetrar asylo no modesto lar donde partira talvez altaneira, e de que constituira o orgulho e o lustre! Que desforra para as rivaes necessariamente existentes! Que espesinhadora irrisão por parte dos invejosos de outr’ora!... Estes e congeneres sentimentos procellavam na alma da velha mexicana, com a violencia concentrada e a tenebrosa energia, apanagios da sua raça. Magoava-a tambem a leveza com que Lupe supportava o infortunio. Nimiamente contradictorio o coração humano! Mrs. Hedges amava a filha, mas preferia vel-a mais acabrunhada, embora depois esse acabrunhamento lhe angustiasse dobradamente o maternal affecto. Só em caso de rara abnegação, toleramos indifferentes que a outrem gére deleite áquillo mesmo que nos mortificou. O facto nos instiga, quando menos, dolorosa sorpresa, ou duvidamos da alheia sinceridade. Seria Lupe insensivel? Não comprehenderia as agruras da sua posição? Á sobremeza de um jantar em que a jovialidade caustica da moça se expandira como nunca, Mrs. Hedges não se poude conter. Rio-se, a principio, a seu geito, imitando os mais; porem, por fim, manifestou extranheza em breves exclamações reprehensivas. Lupe voltou-se para mim, e, em tom solemnemente entristecido: —Escute, dom brazileiro,—disse. Guatimozim ou Quanhtemoc, o ultimo imperador dos aztécas, anteriormente sacerdote de Vitzilopuchtli, deus dos exercitos, sustentou com grande dignidade a sua corôa e as suas desgraças. Combateu impavido os hespanhóes e morreu heroicamente. Como sabe, foi queimado vivo a fogo lento em companhia de alguns altos dignitarios de sua côrte. O soberano não deu a menor demonstração de soffrimento durante o horrivel supplicio. Um de seus companheiros, que se extorcia e uivava desesperado, objurgou a impassibilidade do monarcha. Então Guatimozim, severo e altivo, retorquio:—Julgas tu que eu estou sobre um leito de rosas?! E a moça concluio, retomando o costumado diapasão zombeteiro: —De resto, era originalmente formado o caracter de nossos antepassados, os antigos aztécas. Entregavam-se ao goso sem calculo nem previdencia. Preparavam, despidos de inquietação, a propria ruina; e, saciados, affrontavam calmos a desdita. Sabiam arrostar a morte, que desprezavam. Aprazia-lhes sobretudo expirar com apparato. Havia-os que succumbiam gabando a pericia do golpe do adversario que os prostrava. Finavam-se com graça. Era bello; não acham?! Mas, tome apontamentos, dom brazileiro, ande, que isto está sahindo superfino. Quando dou para erudita, ninguem me leva a palma. Nem mesmo a veneranda e illustre doutora, Miss Jackson, que me está fitando com olhos apocalypticos,—a nossa sacerdotisa impolluta de Isis. Perdôe, Sr. commandante, se me exprimo agora em latim. Supponho que o genero não se classifica entre os contrabandos do _Colima_ e faço a todos os cavalheiros presentes a justiça de os presumir versados no classico idioma de Nabuchodonosor. [Illustration] A socia do club exoterico VII Miss Jackson, a velha americana a cujas manias cabalisticas Lupe alludira, constituia igualmente uma curiosidade de bórdo, embora de genero diverso. Eclipsava-a o prestigio dominador de Miss Hedges. Mas era, sem duvida, digna de attenção e interesse, superiormente versada n’essa classe de conhecimentos ou desconhecimentos que se intitulam sciencias occultas. Consiste o fim de taes sciencias, conforme Miss Jackson, em estudar as relações do visivel com o invisivel, perscrutando a significação recondita do universo. Praticar com ella importava aprender algo de novo, lobrigar veredas attractivas e pouco trilhadas do raciocinio e da imaginação. Genuina fanatica de suas crendices, como as ha aos milhares nos Estados Unidos e na Inglaterra (exemplos:—o Exercito de Salvação, a Sociedade de Temperança e mil seitas biblicas e theosophas, qual mais disparatada) agitava-a a febre do proselytismo. Não perdia occasião de promover a propaganda das suas suppostas verdades. Encontrando em mim attento ouvinte, _dilettante_ que sou de todas as excentricidades, Miss Jackson abarrotava-me de occultismo nas horas deixadas disponiveis por Lupe. Tomava esta a velha americana por objectivo predilecto de gracejos e travessuras. Escondia-lhe os livros e os oculos, pedia-lhe noticias de defuntos celebres, chamava-lhe feiticeira, mandava por intermedio d’ella recados ao demonio. E Miss Jackson aturava as brincadeiras com inalteravel bom humor, levantando os hombros, sem demonstração alguma de enfado. Prolixos os seus discursos, recheados de formulas asceticas e confusas. No conjuncto, porém, apanhavam-se n’elles noções aproveitaveis. Conhecia as artes de adivinhação: chiromancia, cartomancia, astrologia, necromancia, physionognomia,—apparelhos de perfectibilidade,—sustentava,—presentemente embryonarios, mas susceptiveis de desenvolvimento infinito. D’ella ouvi pela primeira vez referencias á transmissão do pensamento á distancia (telepathia) e á levitação,—faculdade de fluctuarem no ether os mais pesados corpos, infringindo a lei newtoniana da gravitação. Mostrava-se admiradora apaixonada de duas mulheres: Madame Lenormant e Madame Blavatzky, as mentalidades culminantes da historia contemporanea,—affirmava. A primeira, celebre adivinha do fim do seculo passado e começo do actual, consultada por Marat, Saint-Just, Robespierre e Josephina Beauharnais, dos quaes predisse o destino, prophetisando as phases da revolução franceza e os cyclos da epopeia napoleonica. Presa e processada por vezes, jámais se enganou nos seus vaticinios e exerceu genuino predominio sobre não poucos representantes illustres de tres gerações. Madame Blavatzky, uma russa recentemente fallecida, tornou-se celebre pelas suas viagens á India e ao Thibet. Autora de uma volumosa obra em dous tomos _Isis Unveiled_,—na qual desvendou, segundo asseveram seus adeptos, os sublimes arcanos das religiões orientaes. Coadjuvada pelo coronel americano Henry Olcott, Madame Blavatzky fundou em Nova-York (1875) a primeira sociedade exoterica do occidente, da qual Miss Jackson fazia parte e por cuja conta viajava. Um dos escôpos primordiaes d’essa associação está em alliar o christianismo ao budhismo. De semelhante connubio provirá a posse dos supremos dogmas, a omnisciencia, o exercicio pleno da força psychica, a fraternisação universal, a explicação das leis incognitas da natureza, o desenvolvimento de faculdades latentes no homem. Sob a influencia ainda de Madame Blavatzky, installou-se em Paris outra sociedade exoterica, patrocinada pela duqueza de Pomar, viuva de lord Caithness. D’ahi, irradiou o movimento por todo o mundo occidental. Enumeram-se hoje esparsos pela terra numerosos nucleos congeneres, debaixo da direcção central dos magnos sacerdotes do Thibet. Alguns d’esses pontifices maximos da grey conhecem o segredo da livre aggremiação e desaggremiação das moleculas corporaes e são contemporaneos de Christo. A visionaria slava pretende haver escripto o seu referido livro suggestionada por elles. Nos Estados Unidos funccionam 25 sociedades exotericas, 10 na Inglaterra, 7 em Ceylão, 3 em França e varias na Russia, Allemanha, Austria e Hollanda. Contam as suas Corfú, Odessa, Cabo, St. Thomas, Australia. A de Adyar, perto de Madrasta na India, onde ellas abundam, dispôe de sumptuosa bibliotheca technica. Homens notaveis pertencem a esses gremios. Excluindo os antigos (Dante, Shakspeare, Gœthe, Miguel Angelo, Leonardo da Vinci, Bacon, passam por ter professado o exoterismo) apontam-se contemporaneamente, além de outros, o celebre physico inglez Crookes, o philosopho allemão Hartman, Gladstone, Charcot e Edison como adhesos ás praticas exotericas. Este ultimo parece dever a ellas o seu portentoso genio inventivo. Os opulentos _rajahs_ da India subsidiam largamente as ditas sociedades que manejam amplos recursos materiaes. Não se é nomeado membro d’ellas senão mediante prova de difficultosos requisitos. Dimanam da sciencia exoterica os poderes magicos dos fakirs que permanecem annos a fio enterrados até ao pescoço, deixam-se morder impunemente por animaes venenosissimos, engólem toxicos violentos, apertam de encontro ao pescoço laminas aguçadas, digerem vidro moido, atravessam illesos chammas abrasadoras e sepultam-se vivos, sahindo, ao cabo de seis mezes, de debaixo do sólo, no qual germinaram plantas por cima d’elles, bons e fortes, exactamente no estado em que foram inhumados,—factos estes de authenticidade garantida por testemunhas fidedignas. Taes actos physiologicos milagrosos são simples emanações de incognitos principios que o exoterismo se propõe elucidar. Entre as faculdades incubadas do espirito humano susceptiveis de se alargarem, destaca, conforme a doutrina de Miss Jackson, a do presentimento. O vago instincto que temos de certos acontecimentos vindouros ou occorridos em pontos longinquos, póde transformar-se n’uma funcção activa e normal, rica de proficuos resultados. Presentemente, o homem, em dadas condições, sente a previsão indistincta de alguns successos. Uma especie de voz interior o adverte de perigo imminente, da morte distante de amado ser. Partilham essa obscura intuição varios animaes: pombos que abandonam com antecedencia o telhado do predio onde vai morrer alguem, ratos que fogem da embarcação ameaçada de sossobrar. Semelhante aptidão avultará em extensão e potencia se o homem se applicar a cultival-a. A humanidade jámais deixou de acreditar na veracidade dos presagios. Formigam nas chronicas exemplos de coincidencias, apprehensões, vaticinios assombrosos. Raro o individuo que não cite um em sua vida. Grandes homens de todas as éras e raças prestaram fé a phenomenos d’essa especie. No povo mais positivo e forte da historia, o romano, os presagios influiam sobre as deliberações das assembléas e orientação do governo. Os augures preponderavam na politica. E como medravam na cidade eterna as superstições! Dias faustos e infaustos, vôos de passaros, encontros fortuitos, accidentes minimos, encerravam para os dominadores do globo sentido enigmatico que importava respeitar. Uma topada na porta de casa, ao sahir, a ruptura repentina do laço do sapato, prender-se n’um movel a roupa de quem se queria levantar, estremecimentos de palpebras, significavam para os romanos,—como modernamente treze convivas á mesa, vestir a camisa pelo avesso, entornar oleo no assoalho, accender simultaneamente tres luzes, quebrar um espelho, uivos de cão a deshóras,—significavam prenuncios aziagos de graves desprazeres, despertando austeras cogitações. E Miss Jackson empenhava-se por me convencer da base racional de tudo isso, affirmando que nos máos olhados, talismans, quebrantos, preconceitos e abusões populares, communs, em verdade, ao orbe inteiro, deparam-se ao investigador elementos efficazes para a sciencia do futuro,—essa sciencia complexa e omnipotente que proporcionará facil communicação entre os habitantes dos myriades de planetas que fervilham no céo, abolirá a morte, dominará o tempo e o espaço, approximará as creaturas do fóco infinito, remontado cada vez mais alto pelas descobertas e conquistas do esforço intellectual, e, por isso mesmo, cada vez mais engrandecido, a causa das causas,—Deus. Miss Jackson, demais, era exaltada vegetaliana, seguindo á risca as prescripções alimenticias da religião fundada por Sakya-Muni 500 annos antes de Christo e adoptada actualmente por mais de 500 milhões de almas. Abstinha-se de toda e qualquer nutrição que houvesse soffrido morte. Bastavam-lhe legumes, fructas, lacticinios, pão. Proscrevia igualmente bebidas alcoolicas. Imagine-se a verdadeira provação que curtia á bordo com similhante regimen. Enunciando argumentos, vulgarisados por Chaboseau (_Ensaio sobre a philosophia budhica, capitulo XX_)—e pelo Dr. Bonnejoy, (_O Vegetalismo_)—ella condemnava energicamente a zoophagia, prohibida pelo fundador do budhismo. O vegetal, doutrinava a sectaria, possue todas as substancias indispensaveis á manutenção da vida, não se dando isso com a carne. Só as gramineas suppririam todas as necessidades da alimentação humana. De nenhuma carne se poderá dizer o mesmo. A nossa especie pela conformação dos dentes, estomago, figado, e tubo intestinal, deve ser essencialmente frugivora, digerindo e assimilando os alimentos vegetaes muito mais natural e completamente que os animaes. A zoophagia determina ou desenvolve a trichinose, o escorbuto, a tenia, as affecções verminosas, a nephrite, emquanto o vegetalismo é remedio efficaz contra a gota, o rheumatismo, a paralysia, as molestias cutaneas, auxilia a cura rapida de feridas, obsta ás más consequencias de operações cirurgicas e extermina o vicio do alcoolismo. Accresce que a carne, pelo sangue venoso deixado nos vasos capillares, os elementos anatomicos em via de decomposição, no momento da morte, os parasitas que escapam inevitavelmente ao mais severo exame, constitue nucleo constante de perigos para a saúde humana, e que a mor parte dos animaes entregues ao consumo publico estão doentes por infecção (typho, tuberculose, etc.) e por alimentação insufficiente, defeituosa ou excessiva. Vêde que são herbivoros os quadrupedes mais fortes, mais intrepidos, mais pacientes, mais uteis:—o cavallo, o boi, o camello, o elephante. Vegetalianos os povos mais energicos, laboriosos e infatigaveis. Assim o chinez, o escossez, o irlandez, o romano da éra republicana, o spartano. Na Grecia, os athletas eximiam-se systhematicamente ao uso da carne. Ponderai que um terreno consagrado á cultura de cereaes e fructas dá subsistencia e trabalho a um numero de homens muito mais consideravel que se fôra destinado á criação de animaes. Os camponezes possuem vigor physico extraordinario e disfructam inalteravel saúde, quasi não comendo carne. Os asiaticos robustos, resistentes, adaptaveis aos mais insalubres climas, apenas se sustentam de arroz. Além d’isso, os animaes são nossos irmãos. Não nos assiste o direito de os trucidar para subsistirmos, quando poupando-os podemos viver melhor. D’essa arte o entenderam e praticaram os espiritos superiores da humanidade. Pythagoras, Socrates, Platão, Plutarcho, Seneca, os primeiros padres da Egreja, grandes santos, como Santo Agostinho e Santo Ambrosio, jámais mancharam seus labios com a carne e o sangue de um animal assassinado. Modernamente, o vegetalismo caminha a passos accelerados na conquista do mundo. Vegetalianos convencidos, sabios, artistas, poetas;—Michelet, Lamartine, Herbert Spencer, Ricardo Wagner, Elisée Reclus. É o regimen economico e intellectual por excellencia. Nas cidades inglezas e americanas de importancia encontram-se ás dezenas _restaurants_ vegetalianos, largamente frequentados. Se a sociedade inteira se convertesse ao vegetalismo, resolveria a questão social, pois a vida material tornar-se-hia baratissima, facil a todos, e desappareceriam, consequentemente, a miseria, a fome, a distincção principal entre pobres e ricos. Sim! banamos a carne. Da morte não pódem resultar vida e saúde. Deixemos de ingerir postas de cadaveres. Lucraremos com essa abstenção immensamente. A exclusiva alimentação vegetal imprime ás physionomias e á compostura dos corpos elegancia, delicadeza, agilidade e vigor. Torna fina a pelle e limpidos os olhos; apura os sentidos; flexibilisa, esclarece, e dilata a intelligencia e a memoria; predispõe para o trabalho; purifica os costumes; suavisa e eleva o caracter... Emquanto Miss Jackson me desfechava esta tirada, Lupe approximava-se sorrateiramente, e por detraz da oradora, arremedava-a com visagens e tregeitos de indiscriptivel comico. Custava-me suster o riso. —Muito bem, Miss Jackson, muito bem!—bradou por fim. Acaba de proferir uma arenga digna do ágora atheniense, revelando admiravel espirito de classe. Esqueceu-lhe entretanto, concretisar a theoria em exemplos impressionadores. E a evidencia de seus principios, oh! dama sapiente, resalta da sua propria pessôa. Examinai incredulos, as excellencias do vegetalismo e batei contrictos no peito. Contemplai este regio porte, esta cutis de lyrio, estes dentes de perola, estes cabellos magestaticos... Á semelhança de Venus surgindo de entre as espumas, foi das folhas dos pomares e das hortas, do meio das couves e alfaces, que emergio este primor... E apontava para os tristes bandós grisalhos, a bocca desdentada e escura, a face encarquilhada, o todo rachitico e feio da velha occultista. Esta, pela primeira vez, pareceu agastar-se com o gracejo, realmente um tanto pesado. Na entonação mystica dos seus momentos eloquentes, replicou: —Talvez ignore, Miss Hedges, que n’um dos antigos templos aztécas da sua patria, rutilava gravado em lettras de ouro este distico: _Vem proxima a hora em que se patenteiará o fado sombrio, grande destruidor_. Medite n’essas palavras, menina, e tambem nas do divino Shakspeare: _ha mais cousas no céo e sobre a terra do que se imagina nos sonhos da philosophia_. Oxalá jamais a abandone a disposição de rir. Mas a vida é séria, mysteriosa e grave. Cumpre attender mais ao invisivel do que ao visivel. Eis aqui a senhora e este _gentleman_. (E designou-me com o dedo secco). Nasceram em regiões separadas por milhares de leguas. Nunca presumiram que se encontrariam. Em breves dias, seguirá cada qual o seu rumo, convencidos de que jamais se hão de rever. E quem sabe se já não se conheceram em encarnações anteriores?... Póde muito bem dar-se que haja ainda cruzamento dos respectivos destinos n’este planeta ou algures, n’uma intersecção dramatica, influindo o de um decisivamente sobre o do outro. Viram talvez a luz sobre estrellas predestinadas a fatidica conjuncção. Fatal o horoscopio de cada um! Constringe-nos a tyrannia immanente do arcano. Tudo enigma no cosmos. Enigmas ambulantes nós proprios, a nos debatermos no pelago incognoscivel. Ai dos que renunciam a tentar decifrações! Suicidas moraes, condemnados a retrogradar na escala dos seres!... Indignos da parcella do eterno lume que lhes tocou! Lupe, a principio, escutou prazenteira, arregalando os olhos e abrindo a bocca n’uma admiração burlesca engraçadissima. Mas, subitamente, ficou meditativa. Disfarçou um suspiro; e foi com a voz velada de melancholia, realçada por fingido sorriso ironico, que me perguntou, quando Miss Jackson sahio: —Então, dom brazileiro, acredita porventura que as nossas sinas venham ainda a mesclar-se n’este planeta ou n’um outro?!... [Illustration] As joias do judeu VIII Encantadora manhan! O _Colima_ deslisava pelo mar compacto e liso, com a macieza de um patinador sobre camadas de gelo azul. Ermo de nuvens o espaço. Os floccos do vapor quedavam indecisos, como receiosos de partir para fluctuar sósinhos, no firmamento fulguroso e vasio. Á mais tenue aragem, se dissolviam em diaphaneidades opalinas. Passageiros e tripolantes passeiavam no tombadilho, leves e bem dispostos. Lupe balouçava-se indolente n’uma cadeira de balanço, os olhos semi-fechados, na deliciosa morbideza que insinuam calmarias no alto mar. Mas Salomon, o viajante judeu, trouxe do seu camarote pesado involucro. Abrio-o com precauções meticulosas. Era um cofre portatil, armado de complexas fechaduras. Amontoavam-se dentro pequenos estojos multicôres de velludo e setim. Collocou-os Salomon enfileirados n’um banco e os foi descerrando carinhosamente, como se guardassem sagradas reliquias. Continham as joias em que elle negociava. Talvez, mesmo a bordo, effectuasse feliz transacção. Quando menos, lisongear-lhe-hia o amor proprio estadear as suas riquezas. Ou movia-o simplesmente a volupia argentaria de mirar as faiscações do sol na pedraria rara. D’ahi a exhibição. Accorreram todos, tocados da hypnotisação que exercem sobre os transeuntes vitrinas de ourivesaria. Lupe exultava, enthusiasmada. Com suspiros de prazer e exclamações de jubilosa surpreza, examinava os preciosos artefactos, finamente burilados. —Que bonito! Que mimo! reparem n’esta cinzeladura! Calculem o valor deste brilhante!...—murmurava em extasis. O judeu sorria ufano. Esplendido na realidade o seu sortimento! E nos olhos da mexicana lucilavam fremitos de cubiça, saudades do tempo em que possuira primores iguaes, despeitos de já lhe não ser dado, em troca de miseraveis cedulas bancarias, adquirir n’um momento, para lhe sublinhar a belleza, os mais deslumbradores d’aquelles magnificos adornos... Dir-se-hia que as suas pupillas e o esmalte de seus dentes trocavam com as gemmas scintillações fraternaes. De repente, a impetuosa moça não se poude mais refreiar. Com um movimento rapidissimo, arrecadou no vestido, regaçado como uma bolsa, os escrinios expostos, e, carregando o valioso volume, desappareceu a correr. Profunda estupefacção dos assistentes! Salomon, as feições decompostas, precipitou-se atraz d’ella. —Nada receie,—gritei-lhe. Não ha onde fugir a bordo, nem se pódem dar extravios. Minutos depois Lupe voltava. Puzéra, com incrivel presteza, um antigo vestido de baile, lembrança da extincta opulencia, ordenara os cabellos em festivo penteiado, e collocara em si todos os braceletes, anneis, collares, broches e diademas do judeu. Que linda e singular estava,—princeza encantada de legendas arabicas, constellação viva, formoso ser phantastico, recamado de luz!... Circumdava-a um halo de ouro. Da cabeça aos pés resplandecia. E os rubins, esmeraldas, diamantes, amethystas, topazios, saphiras, profusamente fixados em seu corpo, desferiam incisivos relampagos azues, crystalinos, verdes, roxos, roseos, rubros, no meio dos quaes languidas as perolas soltavam claridades pallidas de luar. Idolo extranho; flôr de sonho, crivada de pyrilampos divinos! Lupe deixou que a admirassemos á vontade n’aquella apotheóse. Aprumava soberba o porte, donosa e feliz. Depois debruçou-se da amurada, bradando: —Eis-me em trajo proprio para visitar nymphas. E se me atirasse agora ao fundo d’agoa?!... Teria, ao menos, mortalha e sepulchro dignos de mim... E inclinou-se mais no parapeito, como se tencionasse realmente effectuar a ameaça. Da sua imagem, pendida sobre as ondas, brotavam reflexos fugazes e tremeluzentes de fabulosa apparição. Mas o judeu impacientissimo julgou que o gracejo se prolongava demasiado. Correu para ella, as mãos estendidas, exclamando, entre irritado e supplice: —Miss Hedges... Senorita Lupe... Senorita Lupe... A mexicana fitou-o com intraduzivel desdem. Em seguida, um a um, lentamente, restituiu-lhe os adereços, desprendendo-os de si com visivel pezar. Salomon submettia cada joia a severo exame, para verificar se nada lhe faltava. E no despojar de Lupe havia qualquer cousa de tragico,—a solemnidade triste dos irreparaveis sacrificios. O seu vestido de luxo appareceu, por fim, roto, manchado, lamentavel resto de outr’ora. Ella cahio então n’uma cadeira, escondendo o rosto nas mãos. —Envergonhada da brincadeira,—interpretou-se em roda. Só eu percebi quanto desespero alanceava a alma da pobre moça. Pela primeira vez—quem sabe?—acabava de ter, á rutilação d’aquellas joias, inacessiveis para ella, como estrellas, a visão nitida da sua miseria, a amarga consciencia da sua ruina. [Illustration] Uma intrigante IX D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos, a nedia esposa do negociante guatemalteco, em raras occasiões conversava commigo. De resto, pouco tempo lhe sobejava para outros misteres que não os de ataviar o rosto, reparando por meio de sabios artificios as deteriorações recalcitrantes da idade. Manhans inteiras, levava-as a espremer cravos e extorquir pellos da cara, untando-a depois de pomadas cheirosas ou caiando-a de pó de arroz. Merecia-lhe o cabello especial cuidado. Presumia, sem duvida, que, como a de Samsão, residia nas melenas a sua força. Alisava-as repetidas vezes ao dia, arrancando-lhes intransigentemente os fios brancos e gastava horas a confabular com grampos, espelhos e pentes, imaginando combinações ineditas de cachos, caracóes, pastinhas, topetes, das quaes aguardava irresistiveis effeitos. No mais, requebrava os olhos quando falava, tinha melifluidades beatas na voz, comprazendo-se com a narração de perfidias mansas, de crueldades hypocritas e frias. Unctuoso tudo nella; dir-se-hia que, em logar de sangue, rolava-lhe azeite nas veias. Lupe azoinava-a de epigrammas; appellidou-a madre abbadessa; achava meios de lhe desmanchar o trabalhoso penteiado, e, descobrindo que nada a agoniava como qualquer allusão á sua obesidade incipiente, a cada momento a interpellava: —Oh! D. Maria Augusta, indubitavelmente as auras marinhas dilatam os seus tecidos. Não calcula quanto já augmentou. Admira como os seus vestidos, de certo elasticos, conseguem ainda abrangel-a. Está hyperbolica, minha rica senhora, o que, aliás, multiplica os seus attractivos, pois todos elles se ampliaram. Mas, continuando assim, o seu digno marido, ao ter a gloria de revel-a, correrá o risco de não abarcar nos braços amanteticos sinão metade de sua cara metade, isto é, se Pythagoras não mente, apenas a sua quarta parte. D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos repulsava estas chacótas com um silencio sobranceiro, dardejando obliquamente sobre a moça odientos olhares. Evitava, quanto podia, a mexicana. Dirigia-lhe sómente, pela manhan, ligeira inclinação de cabeça. Mas Lupe fazia-se de desentendida, voltando á carga sempre que se lhe propiciava ensejo. Na meza, a hespanhola palestrava baixinho, muito amavel, com o commissario de bordo,—americano de pés e mãos enormes, supinamente calvo e rubicundo. Abaixando-me eu, de uma feita, para levantar o guardanapo que cahira, pareceu-me entrever o sapatão do commissario idyllicamente pousado sobre uma das rechonchudas bases da hespanhola, sua vizinha. Não liguei importancia ao incidente, preoccupado de Lupe e outros assumptos. Surprehendeu-me vivamente uma manhan o me chamar a gorda senhora para junto de si. Assumira um ar de confidencia; e foi pausada, com ademanes protectores, que assim me evangelisou: —Não se póde negar que dom Alfonso é um guapo mancebo, bem educado e seguramente de excellente familia. Desculpe se offendo a sua modestia, mas possúo experiencia da vida e aquelles dotes logo se reconhecem. Dom Alfonso me inspira sympathia. Demais, costumo fazer bem sem olhar a quem. Por isso, espontanea e desinteressada, quero lhe prestar um serviço. Vou abrir-lhe os olhos... Mais tarde me agradecerá. Cuidado com a mexicana, dom Alfonso. Aquillo é gente mais traiçoeira que Judas. Está patente que as impudencias da joven desmiolada lhe transtornaram o coração. Não negue:—basta observar os olhos compridos que lhe lança, o modo immerecido como a acolhe, o açodamento com que a procura, desdenhando os mais. E ella o comprehendeu, a patifa, e vai usando das mil artimanhas do seu repertorio para o embahir. Colher proveitos positivos da ingenuidade alheia, eis o seu programma. Cautella, dom Alfonso. Nada de compromettimentos inuteis. Não dispenda tão fina cera com tão máo defunto. Agora, se pretende simplesmente divertir-se, o caso muda de figura. Está no seu direito e é proprio da feliz idade em que se acha. Mas, então, coragem, homem! Ponha á margem timidez e escrupulos injustificados. Não queira que, em vez de dom Alfonso (um bonito nome,—o de meu rei e senhor, a quem Deus guarde) o chamem de dom José, ridiculo não raro perante as mulheres. Nada de luxos n’uma praça aberta, onde entra quem quer. Trate-a como ella o merece. Caramba! Devia haver nos paquetes uma classe á parte para certa gente, afim de que damas immaculadas, como eu e Miss Jackson, não nos vissemos forçadas á convivencia de desgraçadas d’aquelle jaez. Parece que não acredita, dom Alfonso?... Noto-lhe geitos de protesto... Pois arrisque uma experiencia facillima... Passe, depois que apagarem as luzes, pelo camarote d’ella. Encontrará a porta entre-aberta. Penetre resoluto e abençoará as minhas caridosas indicações. Não será o primeiro, nem o ultimo. A cousa data de longe. Informe-se em S. Francisco... E a castelhana deu-me familiar pancadinha no hombro, revirando as pupillas oleosas e arreganhando-se n’uma risada maligna. Menos indignação que tristeza me produziram as insinuações de D. Maria Augusta. Repugnava-me admittir Lupe como a aventureira descripta. Sem embargo, as maneiras levianas d’ella, juntas ás informações de Mr. Randolph e ás que eu acabava de ouvir, projectavam-me no espirito sombras de duvida. E essa duvida me penalisava inexplicavelmente, como cruel desillusão. Tentei a defeza de Lupe, negando sobretudo os sentimentos que a casquilha matronaça me attribuia. Mas falleciam-me elementos quanto á justificação d’aquella. Não havia ainda um mez que eu a conhecera, na promiscuidade de bordo. Onde buscar factos que rebatessem as accusações?... Nem convinha patenteiar summo calor na advocacia, sob pena de corroborar as affirmativas concernentes ao estado de meu coração. D. Maria Augusta abanava a cabeça, prazenteira, não se dignando contrariar meus argumentos tibios e confusos. D’essa data em diante entrei a notar que o commandante, o commissario, os inglezes, o proprio engenheiro hollandez, Herr Pfeiffer, tão circumspecto e assiduamente entregue a calculos e leituras scientificas, derramavam sobre Lupe e sobre mim alternativos olhares carregados de malicia, gryphados, a revezes, de equivocos sorrisos. D. Maria Augusta urdira, de certo, alguma calumniosa intriga. Como reagir, esmagar a inverdade, impedir as inoffensivas, porem irritantes manifestações dos companheiros?... E eu me affligia atrozmente, sem razão já se vê, pois nenhum aleive importava, afinal de contas, devendo, ao contrario, lisongear-me a vaidade, o imaginarem elles ligações amorosas entre um rapaz solteiro na minha situação e uma bonita viajante, de pouco austéras apparencias. Felizmente, perto estava o porto de Acapulco, onde Lupe desembarcaria. Agitavam-me de sorte estes pensamentos, que não me permittiam dormir. Onze horas bateram n’um relogio proximo, abafadas pelo ruido da helice. Iam apagar-se todas as luzes do _Colima_, á excepção das regulamentares, deixadas em determinados pontos. Insensivelmente, ergui-me do beliche e sahi descalço, pé ante pé. Urgia-me verificar a verdade das asserções da hespanhola contra Miss Hedges. Na hypothese negativa, desforçaria a innocencia. Na affirmativa... oh materia humana quanto és exigente e vil... Eu ignorava o numero exacto do camarote de Lupe. Sabia que se achava collocado no meio de um pequeno corredor, para ambos os lados do qual outros abriam, em linha. Dirigia-me cauteloso para ahi, quando ouvi passos furtivos atraz de mim. Mal restou-me tempo de me dissimular. Pesado vulto masculino enfiou pelo dito corredor, encostou-se no centro d’este a uma porta que promptamente cedeu, e sumio-se. Correram dentro um ferrolho. Approximei-me então, guiado pelo rangido. Na minha frente e nas minhas costas, frouxamente allumiadas por uma lampada do salão contiguo, estendiam-se duas séries de portas fechadas, perfeitamente iguaes. Pareceu-me, comtudo, que o vulto penetrara na de numero 19. Seria a do beliche de Lupe? Não se calcula a superexcitação que desassocegou-me o resto da noite. Desencontradas idéas fervilhavam-me dolorosamente no espirito. No almoço da manhan seguinte, Lupe apresentou-se fresca e jovial, como nunca. Esquadrinhei-lhe ancioso as feições, e, com intima alegria, averiguei que as embebia, sob a vivacidade costumeira, serena expressão virginal. Mas as exterioridades illudem. Suspeita horrivel continuava a me torturar. Subimos ao tombadilho após a refeição e trocamos banalidades sobre o tempo, a marcha do _Colima_, as nossas respectivas condições sanitarias. Abruptamente perguntei-lhe: —Qual o numero de seu camarim? A moça fitou-me admiradissima, recuando ligeiramente, como prestes a repellir uma injuria. —Que tem com isso!?... —Perdôe-me a indiscreção, Lupe. As superstições de Miss Jackson principiaram a actuar em meu animo. Quero comprar no primeiro porto um bilhete de loteria com aquelle algarismo. Trar-me-ha felicidade. —Ah! que fantasia!—murmurou rindo. Duas duzias menos dois, eis ahi. —22?!... Quem occupa então o 19! —Ao decimo-nono, fronteiro ao meu, cabe a honra de hospedar Sua Adiposidade a Senhora Dona Maria Augusta Gordó de Zorraquinos. Pequena pausa. Em seguida, com estrondosa gargalhada: —Mas para que diabo deseja assim informar-se arithmeticamente sobre o poleiro da pingue castelhana?! Ora essa! Será tambem com a intenção de alcançar a sorte grande? Ou premeditará acaso (e acertei... acertei...) fazer concurrencia ao commissario do navio?!... E, com entonação galhofeiramente reprehensiva, no fundo da qual vibrava certa magoa: —Oh! dom brazileiro! que cousa feia... que cousa feia... Nunca o supporia capaz de tanto. Leia um tratado de esthetica. Aquella posta de carne! Torne-se vegetaliano... Deixe-se d’isso, pelo amor de Deus!... Mais tarde verifiquei que Lupe dormia no mesmo camarote que sua mãi. Em frente a esse, costumava permanecer aberto, depois de todos accommodados, o da hespanhola, que esperava o seu visinho de meza,—o rubro e alentado americano! [Illustration] Noche triste. X Haviamos passado pelas ilhas Carmen e Margherita, parando no cabo de S. Lucas. Demoramo-nos um dia em Mazatlan, máo porto e regular cidade, sem nenhum caracteristico relevante. Costeamos Manzanilla. Mais 48 horas e ancorariamos em Acapulco, ponto terminal da viagem de Lupe. Esta, á medida que proseguiamos, afigurava-se-me melancholica. Na vespera da chegada, ao anoitecer, achei-a sósinha no tombadilho, recostada taciturna na _chaise-longue_. Tomei assento igual, ao lado d’ella, como em a noite da partida, e perguntei solicito qual a causa do seu desusado pesar. —Que quer, dom brazileiro?... sômos todos sujeitos a crises mais ou menos graves. Sabe a historia de Fernan Cortez, o legendario conquistador do Mexico. Alma de tão rija tempera, energia mais inflexivel difficilmente se hão de reproduzir na historia. Sublimes, epicas as suas façanhas; sobrehumanas as suas faculdades de resistencia e aggressão. Pois o proprio Cortez desanimou. Na noite fatal de 1 de Julho de 1520, expulso com os seus da capital revoltada, batido, fugindo, vendo mortos ou feridos os seus mais possantes camaradas, o heróe deixou-se cahir á beira da estrada, junto a um cypreste, que ainda hoje existe, e ahi abandonou-se á morte, duvidoso da sua estrella, renunciando ao porvir. A arvore funebre conserva o nome com que a tradicção a sagrou,—_cypreste da noite triste_, pois por _noche triste_ é conhecido aquelle episodio de nossos annaes. Quem não encontra na vida uma ou muitas _noches tristes_?... Hoje, dom brazileiro, é a minha. —Mas Cortez levantou-se, reconstituio-se, venceu... —Cortez era Cortez. E contava, demais, com um elemento decisivo de victoria. —Qual?... —Malitzin, ou Marina, a formosa india, filha do Cacique de Painallas, sem a qual talvez naufragasse o temerario emprehendimento do conquistador; Malitzin, a providencia do exercito de Cortez, a sua interprete, sentinella infatigavel, conselheira segura, embaixatriz eloquente e astuta, o principal instrumento da quéda de Montezuma; Malitzin, que Cortez amava e que adorava frenetica o estrangeiro Cortez... Houve demorado silencio. Depois, —a voz carinhosa e meiga, qual até então nunca lhe ouvira, voz ungida de lagrimas represas,—Lupe continuou: —Fique no Mexico, dom brazileiro. Desembarque amanhan em nossa companhia; consagre algum tempo ao estudo dos costumes e natureza do meu paiz. Não se arrependerá, asseguro. Não me disse que viaja para aprender?... Pois, permanecendo ali, aprenderá muito... Oh! infelizmente eu não sei descrever a minha patria como _usted_, dom brazileiro, descreveu a sua,—descripção que eu jámais esquecerei e me fez amar o Brazil a ponto de sonhar percorrel-o, á semelhança de quem perlustra scismando a região das chimeras e das maravilhas... Mas fique no Mexico e reconhecerá que a minha terra instiga tambem inspirações ao poeta, interesse ao sabio, indeleveis lembranças ao peregrino. Medrou, entre nós, em éras longinquas, estranha e magnifica civilisação. Vestigios de monumentos soberbos attestam ainda agora o seu esplendor. Sobre os palacios immensos dos velhos imperadores aztécas, desfraldavam-se largas bandeiras niveas, franjadas de ouro. Ouro, prata, pedrarias, thesouros estupendos era tudo no interior, onde dominavam pomposas etiquetas de metter inveja ás orientaes. E que arte divina no preparo das pedras ricas! Cortez apoderou-se de cinco enormes esmeraldas, cujo inaudito trabalho assombrou os artistas europeus de seu tempo. Representavam uma rosa, uma trombeta de caça, um peixe com olhos de diamante, uma campainha tendo por badalo uma perola, e uma taça, gravada de religiosos disticos. Aurea cadeia, espantosamente cinzelada, concatenava-as. A imperatriz Izabel, esposa de Carlos V, quiz possuir esse primor; e o monarcha propôz compral-o por fabuloza quantia. Mas Cortez brindou com elle sua noiva, D. Juana de Zunia, filha dos duques de Bejar. Mais tarde, levando a Argel as famosas esmeraldas, o conquistador naufragou e perdeu-as no lodo da praia. Terriveis, dom brazileiro, as divindades adoradas n’aquella civilisação. Do altar de Huitzilopochtli, deus da guerra, gottejava perenne o sangue dos holocaustos. Assignalava-se a coroação de cada soberano por sacrificios monstruosos. Sustentavam-se guerras sagradas com o intuito exclusivo de apanhar victimas. Nos alicerces dos templos, ladeiados de pyramides de craneos, punha-se uma mistura de ouro em pó, aljofres, plantas magicas e sangue humano. Quando nascia uma creança, o pai a apertava até que ella gemia de dôr, e então murmurava:—vieste ao mundo para soffrer; soffre, pois oh! meu filho!—E acreditavam na metempsychóse; marcavam a giz o caminho percorrido por um enterro, a fim de que a alma do defunto soubesse volver para se reencarnar em algum recemnascido; conjuravam os astros; liam a sorte, atravez fragmentos de crystal... Depois, viéram os hespanhóes, a _gente de razon_, a conquista, o aniquilamento dos indios. Os descendentes d’estes, porém, ainda hoje acreditam que o deus redemptor, Qualtzalcoath, dorme no fundo de uma caverna, á espera do despertar de sua raça. A monarchia aztéca soube expirar stoicamente. Rutilam, apoz ella, traços heroicos nos nossos annaes. Luctas homericas sustentamol-as contra a dominação estrangeira e as classes privilegiadas. Benemeritos da humanidade o cura Hidalgo e Morelos, iniciadores da nossa independencia. Agostinho Iturbide, outro heroe d’essa independencia, fizemol-o, em pouco mais de um anno, generalissimo, acclamamol-o dictador, cingimos-lhe a fronte do diadema imperial e o banimos e fuzilamos, como desleal á Patria. Novo imperador, imposto pela França, batida em Puebla, fuzilamol-o tambem. E foi uma epopeia de denodo e patriotismo, digna da America indomável, a campanha victoriosa de Juarez! Temos padecido, como nenhum outro povo, os horrores da olygarchia militar. O general Sant’Anna empolgou o poder seis vezes por meio de revoluções, governou vinte e tres annos quasi sempre dictatorialmente e adoptou o titulo de Alteza Serenissima. Os constantes sobresaltos e perigos em que vive a população tornaram-n’a intrepida, inaccessivel á fraqueza, idonea para inverosimeis ousadias, fanatica pela liberdade. Hospitaleira, além d’isso, doce, polida, apresentando typos de formosura esculptural. Mulheres da plebe, ajoelhadas nos templos, o busto immovel, o olhar fixo, o peito alto, dão a impressão cabalistica das esphynges egypcias. E que amorosas essas nossas mulheres, dom brazileiro!... Que destemidas, quando necessario! Maria Quintana, uma freira, combateu valorosamente na guerra da emancipação. Catalina Erazo,—a celebre _monja alferes_ que aos 19 annos fugio do convento e se disfarçou de homem, levando até aos 28 incrivel vida de aventuras, duellos e campanhas, conquistando no exercito por actos de bravura o posto que lhe motivou o apellido, merecendo do papa autorisação para usar vestuario masculino, e acabando christãmente, recolhida, ainda em plena mocidade, ao claustro d’onde se escapára,—Catalina Erazo, nasceu em Hespanha, mas educou-se e praticou no Mexico as suas façanhas lendarias. Accordes os historiadores em testemunharem a benefica influencia femenina nos fastos nacionaes. O general Prim casou-se com uma mexicana. Bazaine igualmente. Condemnado e envilecido pelos seus compatriotas, que o acoimavam de traidor, o infeliz defensor de Metz só encontrou allivio ao seu infortunio na dedicação inalteravel da valente esposa, graças á qual evadio-se da fortaleza de Sainte Marguerite, em Cannes, onde jazia encarcerado. O amor das mexicanas não o destróem o tempo e o espaço. Se confiam a alguem o coração, não o reclamam mais nunca. Demore-se em minha terra, dom brazileiro. Conhecerá ali as manifestações mais grandiosas da natureza, os volcões. Um d’elles, o Popocatepetl, arroja-se, cingido de neve, a uma excelsitude de cerca de seis mil metros. A erupção de outro, o Orizaba, durou vinte annos. De um terreno perfeitamente plano levantou-se terceiro, o Jorullo, no correr de uma só noite a mil e duzentos metros de altura, cercado de duas mil boccas que expellem fumo! N’uma só noite, ouça bem, ergueu-se n’uma planicie lisa esse formidavel volcão. Curiosissimo, não acha?! E ha sentimentos que brotam de analoga maneira em corações virgens... Oh! não siga para diante amanhã, dom brazileiro. Não parta, meu amigo. Que lhe custa sacrificar alguns dias? No Mexico descobrirá largos materiaes para seus estudos, dilatará os seus conhecimentos, retemperará a sua experiencia, enriquecerá su’alma de novas affeicções. E será abençoado, querido, feliz... _Pordioseros_ chamam-se em nossas cidades os mendigos, porque supplicam esmola, _por Dios_,—em nome de Deus. Considere em mim uma inditosa _pordiosera_, digna de dó e de todos repellida. Por piedade não parta amanhã; não me abandone; ampare-me, salve-me, soccorra-me, perdoe-me,—que eu não sei mais o que digo, nem o que sinto, nem o que vai ser de mim... E poz-se a soluçar, a face occulta nas mãos. Quedei acabrunhado diante de explosão tão inesperada. Não me occorria uma só palavra em resposta. Que significava aquillo? Algum accesso hysterico?... Simplesmente absurdo o que ella me propunha. Como interromper a minha viagem, esquecer a familia, descer e deter-me n’um obscuro porto, alheio do meu itinerario, em zona diametralmente opposta á do Brazil, e isso unicamente para satisfazer o subitaneo capricho de uma quasi desconhecida, sobre cuja reputação tantas ambiguidades pairavam?! Se eu a attendesse, quantas complicações e contrariedades não poderiam derivar d’esse passo irreflectido?!... Decorreram alguns minutos penosissimos. Lupe sempre a soluçar. Mas, vendo que eu nada dizia, levantou-se altiva, passando dedos convulsos pela fronte, como quem expelle incommoda visão. E deixou-me só, em face do eterno mysterio do firmamento e do mar. [Illustration] O berço de Lupe XI Acapulco. Semi-circular a bahia, alastrada de ilhotas de pedra. Casas abarracadas de modesta apparencia bordam as praias razas. Morros graniticos, em amphitheatro, no fundo, erriçados de mesquinha vegetação. Estreitos navios de cabotagem ancorados aqui e ali. Calor abafadiço. Silencio de inactividade e de tedio embebendo o ambiente. Ar de pobreza e de atrazo nas canôas que se acercam do _Colima_. N’um dos rochedos que emergem das agoas, no centro da enseada e em face da povoação, acocoram-se alguns homens, totalmente nús. Escondem o rosto, quando passa por perto d’elles uma canôa; e a gente d’esta prorompe então em assobios e surriadas. São vagabundos e ebrios da cidade,—soubemol-o logo,—que a autoridade local condemna áquelle original castigo: permanecerem despidos, durante horas, no pelourinho oceanico, expostos á irrisão dos bateleiros. Ai do que tentasse fugir, nadando! Pagaria carissimo a sua rebeldia contra o systhema penal acapulcano. Entraramos ao amanhecer e esperavamos a visita aduaneira e a hygienica para ir á terra. Muito pallida Lupe, mas affectando jovialidade. Ennumerava, com abundancia de gestos, aos circumstantes os edificios de Acapulco. —Eis acolá a cathedral, mais adiante o mercado, e, do lado opposto, o castello de San Diego, celebre na quadra colonial. Percebia-se que a insignificancia do seu torrão natal a humilhava um pouco. A sua reduzida bagagem amontoava-se, prompta para o transporte, junto ao portaló. Ella e a mãi promptas tambem:—enluvadas, de chapéu. Causou-me pena observar que uma das luvas da moça estava rasgada e gasta nas pontas dos dedos; e a faceira procurava attentamente dissimulal-o. Mas largo escaler se approxima, arvorando o pavilhão mexicano:— verde, contendo poderosa aguia de azas espalmadas que segura no bico uma serpente. —É da alfandega,—murmura-se. De pé, na prôa da embarcação, alguem faz acenos animados para o _Colima_. Mrs. Hedges e a filha parecem reconhecer o autor de taes acenos. Mal o escaler atracou, um individuo sóbe os degráos ás carreiras e se precipita, aos abraços e beijos, sobre as mexicanas. Era o irmão de Mrs. Hedges, o tio de Lupe, para a casa de quem ellas iam. Simples guarda-fiscal, ou cousa que o valha,—o sustentaculo unico das recem-vindas. Mas que grotesco typo o sujeito! Genuino caboclo, compridas guedelhas duras, pellos asperos esparsos pela face icterica, bocca descomedida, fortificada de dentes negros, confinando com superabundantes orelhas. Traja calças brancas aniladas e tão empastadas de gomma que sussurram quando elle se mexe, camisa frondosa de fólhos, gravata de retroz roxo fluctuante e uma ensebadissima fardeta, viuva da mór parte dos botões amarellos, deixando a descoberto as nadegas, onde a roupa se lhe enfuna em balão. Cobre-o no cocuruto do craneo diminuto bonet, emulo da jaqueta em oleosidades. Via-se que o homem, em honra ás parentas, se esmerara na _toilette_. O que, porém, enleia a attenção desde logo na sua figura é uma espada recurva e ferrugenta, que elle traz pendente da cintura. Contrasta de modo a arma esdruxula com a vestimenta do cavalheiro que ninguem o olha sem vontade de rir. E elle masca fumo, Santo Deus! N’um minuto, o soalho brunido do convez mosqueia-se de escarros escuros e fetidos, que o commissario de bordo manda limpar com ostentosa repugnancia. E Lupe, tão elegante, tão habituada aos refinamentos do luxo, tão afeita á intimidade de todas as selecções, tão educada e satyrica, vai sahir com aquillo, morar com aquillo! Coitada! D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos ri-se á socapa, contente e vingada. Miss Jackson examina o funccionario mexicano como uma raridade zoologica. O engenheiro hollandez, Herr Pfeiffer, traça-lhe disfarçadamente a lapis a caricatura no livro de notas. O judeu, os mais passageiros e os officiaes trocam a meia voz ponderações chistosas. Lupe, todavia, não trahe constrangimento. Com ares de altivo desafio, apresenta-o aos assistentes: —Meu tio, a cuja bondade devemos o não ficar ao desamparo. Elle aperta as mãos rudemente, resmungando palavras inintelligiveis e rindo muito. São horas de partir. Lupe e a mãi comprimentam, proferindo trivialidades agradecidas sobre a boa companhia que encontraram na viagem. A moça estende-me frouxamente os dedos, sem me encarar. Descem a escada. O tio pega nas malas e as suspende aos hombros, como um carregador. Mas a espada o embaraça. Enfia-se-lhe, por entre as pernas, ameaçando derribal-o. Eil-o que pára, desafivéla o cinturão, mette o chanfalho debaixo do braço e acompanha as damas, vergado ao peso dos volumes, deixando após si um rasto de cuspo. [Illustration] O adeus XII A despedida indifferente de Lupe premia-me o coração. Agitava-me imperiosa necessidade de a ver ainda, de lhe dizer algumas palavras amistosas no momento de nos separarmos seguramente para sempre. O _Colima_ só levantaria ferro á tardinha. Todos os passageiros desembarcaram. Ninguem que viaje resiste ao prazer de pisar terra firme, beber agua fresca e variar de comida, após demorada travessia maritima. Assás mofino Acapulcho! Ruas irregulares, desprovidas de calçamento, atulhadas de areia quente que tolhe e molesta os pés; raros transeuntes, caboclos na maioria; escassos recursos; predios somnolentos; atmosphera carregada de mórnas exhalações humidas; logarejo, em summa, antipathico e retrogrado, onde a gente sente-se indisposta e anciosa de se ir embora com maxima presteza. Eu gyrava a esmo, em busca da moradia de Lupe. Ignorando o nome do tio, não me era facil descobril-a. —Ah! já sei,—respondeu-me afinal um taverneiro. É a casa onde chegaram hoje duas fidalgas dos Estados Unidos. Espere que lhe vou mostrar o caminho. Levou-me a acanhada rua de bairro remoto. Em face de uma vivenda baixa, caiada de amarello, agrupavam-se garotos, olhando curiosos para o interior. Occorria dentro alguma novidade. —É alli,—ensinou o guia, apontando. Agradeci e acerquei-me da porta designada. Lupe e a mãi,—eis a novidade que desafiava o interesse dos ociosos. A moça falava, na sala que abria para a rua, a varias mulheres, entre as quaes algumas, como as pretas minas da Bahia, o collo e os braços nús, vestidas de simples camisas de renda decotadas e saias de babados, com muita roda. Quando deu commigo, fez um movimento de quem se quer esconder. Á minha entrada, esgueiraram-se as outras para um commodo contiguo, d’onde se puzeram a me espiar. —Vim dizer-lhe adeus, Lupe. Partiria cheio de remorsos se o praticasse sem a saudar. —Mil graças. Agradeço-lhe tambem, ainda uma vez, as delicadezas que me dispensou no _Colima_. As nossas conversações, dom brazileiro, foram os unicos momentos agradaveis da minha vida nos ultimos tempos. E calou-se, baixando os olhos. Quão mudada em poucas horas! Esvahira-se-lhe, por encanto, a buliçosa expressão habitual. Intenso desconforto desbordava-se do seu todo. Circumvaguei a vista pelo aposento; moveis estragados e insufficientes, aceio problematico, signaes manifestos de descuido ou penuria. Enxergava-se o pateo central descoberto, peculiar ás habitações hespanholas. Alguem tocava a bomba do poço existente no meio d’este pateo; e esse alguem, a que eu lobrigava as costas, afigurou-se-me o guarda fiscal, tio de Lupe. —Quaes seus projectos aqui?... indaguei, após alguns minutos de silencio. —Viver, como Deus fôr servido. Não tenciono ser pesada a meu tio, que generoso nos acolhe. Sei coser; toco piano; entendo de modas; trabalharei. E ha outra solução, accrescentou com indizivel melancholia. —Qual? —Estou desacclimada... O vomito negro, febre amarella do Brazil, grassa em Acapulco endemicamente, não poupando os recem-chegados... —Por quem é, Lupe, não alimente pensamentos funebres. Julgava-a mais valente. Deixe-se de semelhantes romantismos. Está moça, robusta, bella. Quem sabe o esplendoroso futuro que ainda lhe reserva a Providencia? Casará certamente com algum rapagão de bom gosto que a comprehenda e aprecie. Rever-se-ha na linda próle. Será feliz... —Não!—interrompeu ella energicamente. Eu só desposaria aquelle a quem o meu coração pertencesse... E o meu coração... o meu coração... não pertencerá a ninguem. N’isto, o tocador de bomba, terminada a tarefa, encaminhou-se para a nossa sala. Era, effectivamente, o dono da casa. Tirara a fardeta e arregaçara as mangas da camisa, em cujos folhos abatidos nodoas côr de vinho transpareciam. Mas reatara á cinta a espada, que se arrastava tlintando medonha no assoalho. Mal me viu, arremessou-se-me aos braços, n’um terno arrebatamento intempestivo. Chamou-me effusivamente—illustre amigo—e convidou-me acto continuo a tomar _pulque_ (a bebida popular mexicana, feita de uma planta denominada _pulquero_ e embriagadora, como o alcool), á saude da irman e da sobrinha. A vinda das duas, asseverava, voz em grita, cumulava-o de regosijo. E berrou para trazerem o licôr offerecido: —Ó Pancha... Ó Dolores... Ó alguem... Ó inferno!... Como não acudissem, commentou furibundo: —Caramba! Com oitocentos mil milhões de demonios!... Cambada de surdos!... Canalha!... Lá se foi elle proprio, praguejando, buscar o _pulque_. A durindana batia ás tontas nas cadeiras e portas. Provei o liquido espesso que me apresentou n’um copo de barro. Desagradaveis o cheiro e o sabor, lembrando os de queijo velho. Quanto a elle, empinou consecutivamente duas vezes o vaso transbordante, estalando a lingua. E queria á força que Lupe o acompanhasse. Confirmavam-se-me desconfianças:—o homem embebedava-se. Conheci que a minha assistencia áquella scena affligia sobremaneira a moça, que permanecia immovel, de pé. —Adeus, _senorita_. É tempo de tornar para bordo. A mexicana estendeu-me ambas as mãos, apertando as minhas com ardor. —Adeus, dom brazileiro. Chegando ao Brazil, escreva-me. Mande-me o seu endereço, bem como vistas e livros de seu paiz. Promette? —Prometto. —Adeus,—repetio (e os seus dedos tremiam, entrelaçados nos meus), adeus. Se não nos encontrarmos mais n’esta vida, o que é provavel, até á outra, segundo a predicção de Miss Jackson... [Illustration] Chfftpmnth!... XIII Sem Lupe, o _Colima_ parecia deserto. Os primeiros dias, depois de Acapulco, vivi-os inquieto e saudoso, achando insipidissima a existencia de bordo e impreenchivel o abysmo do tempo. Fôra-se a alegria, a alma, o encanto do navio, que lugubre boiava sobre o pelago do aborrecimento. Urgia-me chegar. Os companheiros mettiam á bulha a minha displicencia. D. Maria Augusta Gordó de Zorraquinos, que, em seguida á aventura do commissario, eu evitava quanto possivel, carpia com simulados suspiros: —Inconsolavel viuvo! Mas queixe-se de si proprio. Porque não seguio os meus conselhos maternaes? Porque não a trouxe comsigo?... —Oh! senhora!... —De que se espanta, casto José?... Se houvesse proposto á delambida que o acompanhasse, ella, mãi, tio, todos beijar-lhe-hiam os pés. Por essa solução andava ella morta. Não sei como não representou, para movel-o a isso, alguma scena dramatica, de alto pathetico, nas quaes é mestra... —E depois?... e as consequencias... —Qual depois, qual nada... Quando se sentisse farto, o senhor a largaria em qualquer porto,—no Panamá, por exemplo, onde, com os trabalhos da empreza, róla o ouro e ajuntou-se gente de todas as castas e de todos os paladares. Proseguiria, isto feito, tranquillamente na sua viagem. Asseguro que ella não morreria de fome nem de frio, e, no final da historia, havia de lhe ser grata... —Não se exprima assim, D. Maria Augusta. Olhe que commette cruel injustiça. Lupe é uma infeliz rapariga, leviana, concordo, porém honesta. —Não ha peior cégo do que aquelle que não quer ver,—atalhou rindo a hespanhola. Pois guarde a convicção da honestidade d’ella, e que lhe faça bom proveito... Amofinavam-me estes dicterios, tanto mais quanto não me occorriam argumentos para os refutar. Resolvi deixal-os passar desattendidamente. Miss Jackson me emprestara livros budhistas,—para me suavisar a dôr ao influxo da mais elevada philosophia concebida,—ponderara gravemente ao entregar-m’os. Engolphei-me na leitura da legenda de Sakya-Muni, o iniciador da religião da vontade, justiça e affinidade. Divertio-me o estudo dos Upadhis, do Kama-Loka, dos Skandhas, do caminho de Bodhi e do Nirvana. A imagem de Lupe se esvaeceu rapida de meu espirito, onde reconheci que deixara apenas superficial impressão. Contribuio tambem efficazmente para distrahir-me Herr Pfeiffer, o engenheiro hollandez. Occupado com a mexicana, eu desdenhara a companhia d’esse varão conspicuo,—calmo, retrahido, intelligentissimo e possuidor de solido saber. Após Acapulco, tornei-me seu camarada e pude apreciar a sua cerebração equilibrada, o seu bom senso nitido e seguro, os seus conhecimentos positivos, em contraste com as imaginações transcendentes de Miss Jackson. Era pessôa de 40 annos, barba e cabellos ruivos, oculos, um curto cachimbo inamovivel do canto da bocca. Casado, deixara a esposa e cinco filhos em Rotterdam. Não ligava inteira fé ao successo do emprehendimento de Lesseps, opinando que o canal entre o Pacifico e o Atlantico devia ser perfurado mais ao norte, em Tehuantepec. Mas no Panamá, concluia, ha immenso a ganhar e a aprender. Um dia, não me lembra por que desvio, versou a nossa palestra sobre Lupe. —Pobre louquinha!—disse Herr Pfeiffer. —Qual o seu juizo a respeito d’ella?—inquiri. —Physicamente considerando, superlativo. —E o moral? —Oh! não formúlo quanto ao moral juizo algum, por falta de dados sufficientes. Incompletos os materiaes de apreciação. Os modos, indubitavelmente, revelavam, uma _evaporada_ ou _fanada_, conforme expressão dos Estados Unidos. _A fast girl._ Mas nem sempre a forma coincide precisamente com a realidade intrinseca. Ninguem, como o senhor, póde fornecer esclarecimentos sobre aquelle gentil producto hybrido. Dá-se ali o cruzamento de uma descendente de aztéca com um _yankee_, aventureiro da California. Miss Hedges se lhe offerecia da maneira a mais clara, escandalosa, se me toléra o termo. Era mais que o _flirt_, o namoro americano, o qual comporta tamanhas concessões, era... —Perdão,—contravim. Entre mim e a _senorita_ Lupe reinou sempre a mais completa correcção. —Que significa para o senhor correcção, relativamente a uma mulher?! Póde-se ser correcto com ellas de differentes e oppostos modos. —Jamais olvidei de tributar a Miss Hedges o respeito e as deferencias que mereceria a qualquer cavalheiro uma menina, recentemente orphan, desprotegida, que viaja sósinha com sua mãi. —Devéras?! interrogou fleugmatico o hollandez, expellindo uma baforada de fumo pelo cachimbo e me olhando por cima dos óculos.—Devéras?! Ande lá... Nem um beijo?!... —Nem um beijo palavra de honra... —Basta... acredito... Pois, meu caro, juraria o contrario. Ha, n’um dialecto de minha terra, intraduzivel vocabulo que define a pessôa a quem fallece o instincto das occasiões. Toleirão, inexperto, imbecil, não possuem o mesmo sentido. A cousa é especial. Imagine um homem intelligente e habil, mas que não sabe aproveitar as emergencias preciosas que a bôa fortuna lhe depara, por descuido, incomprehensão ou paralysia da iniciativa nos momentos psychologicos. Permitta que amistosamente eu applique tal palavra ao seu caso. E Herr Pfeiffer resmungou um agglomerado barbaro de consoantes, que soou aos meus ouvidos pouco mais ou menos assim: —_Chfftpmnth!_... Suffocou-me a indignação, como se houvéra sido insultado, na impossibilidade de me desforçar. —_Chfftpmnth_ é elle!—vieram-me ganas frementes de redarguir. Mas assistiria a razão a Mister Randolpho, a D. Maria Augusta, ao hollandez nos severos julgamentos sobre Lupe? Teria eu sido méro acatador ridiculo de deteriorada candura? Estaria áquella hora a mexicana a motejar da minha ingenua simpleza, attribuindo-me injustissimamente os timidos escrupulos a incompetencias de varonilidade?! E me acudiam aos amargados labios centenares de milhões de _carambas_, a par de outras interjeições do idioma de Cervantes, ainda mais fogosas e apropriadas á hypothese, posto menos confessaveis. Pungia-me a exprobração intima com que nos penitenciamos de certas hesitações infaustas,—o secreto arrependimento (quem nunca o sentio?) de não haver praticado opportunamente uma deleitavel asneira... [Illustration] Omnia vanitas! XIV Succedem-se depressa agora os portos da America Central. S. Benito foi o ultimo do sul do Mexico. Ancoramos seguidamente em Champerico e S. José, na republica de Guatemala, avistando os vulcões d’Agoa e do Fogo. Detivemo-nos depois em Acajutla, republica de S. Salvador, e em Amapala, Honduras. Como o _Colima_ se demorasse no primeiro, a tomar carvão e carregamento de café, internamo-nos, Herr Pfeiffer e eu, n’uma diminuta estrada de ferro, até á villa de Sonzonato, proxima ao vulcão Isalco, em constante erupção. Não cessam os trovões subterraneos d’essa cratéra; e, do mar, á noite, o seu pennacho de flammas imita gigantesco pharól. Paramos ainda em obscuras enseadas de Nicaragua; atravessamos a bahia de Dulce; arribamos em Punta-Arenas, no golpho Nicoya, pittoresca localidade no littoral da Republica de Costa Rica; e, finalmente, mais de um mez após a partida de S. Francisco, chegamos ao Panamá, então em plena effervescencia das obras do canal. Esperei ahi oito dias novo paquete que me conduzisse ao Perú. As diversões originadas da visita a cada um dos referidos portos, do facto de sahirem companheiros e entrarem outros, dos mil episodios consequentes a longa navegação, alliadas á natural acção do tempo, foram insensivelmente delindo de minha memoria a imagem de Lupe. Ao tomar passagem no _Santa Rosa_, da _Pacific Steam Navigation Company_, para Calláo, já não me restava d’ella sinão esbatida lembrança. O encontro fortuito com a mexicana produzira móssa mediocre em meu animo. A sua recordação baixaria em breve á valla commum dos incidentes triviaes, ephemeramente doirados. No _Santa Rosa_, travei conhecimento com D. Nicolás Pierola, exchefe supremo do Perú. Interessou-me vivamente o convivio do celebre caudilho. O desembarque em Esmeralda, Manta e Guayaquil, no Equador; em Payta, Eten, Pacasmayo, Salaverry, Calláo, Tambos de Móra, Pisco, Challa, Mollendo, no antigo imperio dos Incas; em Arica, Pisagua, Iquique, Tocopilla, Cobija, Antofagasta, os tres primeiros então tambem pertencentes ao Perú e os restantes á Bolivia, hoje todos do Chile; em Caldera, Coquimbo e Valparaiso, no dito Chile; a excursão a Lima;—sitios curiosos, sem excepção e repletos de vestigios da guerra recemfinda entre os tres estados andinos em ultimo lugar acima designados, o desembarque n’aquelles pontos, digo, e o estudo das respectivas condições materiaes e moraes, não me propiciavam ensejo para avivar reminiscencias, solicitada ininterruptamente a attenção por novos objectivos. Sobre Lupe adensavam-se as sombras do olvido. Em Calláo, eu me passara do _Santa Rosa_ para outro paquete, o _Mendoza_, e em Valparaiso para o transatlantico _Araucania_, propriedade os tres da mesma companhia ingleza que monopolisa o trafego maritimo nas costas sul americanas do Pacifico, dividido o serviço, mui regularmente executado, em secções, a cada uma das quaes inhere esquadrilha especial de vapores de variadas formas e dimensões. Os passageiros costumam traduzir injustamente P. S. N. C., abreviação de _Pacific Steam Navigation Company_, iniciaes escriptas em cada canto a bordo, por _Picaro sin ninguna consideracion_. O _Araucania_ transportou-me ao Rio de Janeiro, tocando em Talcahuano, Coronel, Lota, Punta-Arenas da Patagonia, a cidade mais austral do globo, e Montevidéo, havendo atravessado o estreito de Magalhães. Semelha esse estreito,—em cuja entrada pelo Pacifico, o cabo Pilar, reinam sempre borrascas tremendas,—ora um rio calmo e largo, de planas margens arenosas, ora apertado desfiladeiro entre arrojadas montanhas aureoladas de neve, ora extranho labyrintho aquatico, formado por innumeros canaes, sombrios, finos e caprichosos. Os selvagens fueguinos abordam ahi os navios que passam, implorando em côro:—_galleta, tabaco!_... (pão, fumo) e mendigam roupas de inverno, por meio de uma pantomima de tremores exagerados, bradando: _mucho frio! mucho frio!_ No mais, vendem pelles de guanaco e flexas com pontas feitas de vidros de garrafas. Possuem extraordinaria aptidão para repetir, com o sotaque proprio, nitidamente, qualquer phrase de idioma estrangeiro, articulada uma só vez diante delles. Darwin, (narra Luiz Bastide) que presenciou o encontro de um fueguino com a respectiva mãi, depois de longa separação, declara que as demonstrações sympathicas de ambos revelaram-se menos affectuosas que as de um cavallo achando um velho companheiro. Dentro de poucos mezes fôra-me dado contemplar estes miseraveis fueguinos, infima expressão da humildade humana, verberados do berço ao tumulo por inclemencias terriveis, e os americanos do norte, prototypo da civilisação contemporanea, rodeados de maximo conforto e de todos os requintes do progresso industrial; vira um povo vencido, aniquilado, o seu territorio invadido, no derradeiro gráo de abatimento,—o peruano,—e outro povo, victorioso, altaneiro,—o chileno,—transbordante de confiança em si e no futuro, no apogeu da gloria militar; comparara o atrazo material de Nicaragua e Honduras com os machinismos hetorogeneos da empreza do Panamá, instrumentos aperfeiçoadissimos postos pela sciencia a serviço de commettimentos titanicos; sentira as exhalações de fogo do clima equatorial e as lufadas, glacialmente cortantes, da Patagonia; gosara das suavidades do oceano transformado em lago e padecera os rigores do mesmo oceano convulsionado pela tormenta; arremessara os olhos ás culminancias excelsas dos Andes e alongara a vista pelas razas e infindaveis pampas do Uruguay; enlevara-me ante a soberba quéda d’agoa do Niagára e confrangera-me perante a nudez esteril do deserto de Atacama, onde nunca chove; conhecera isthmos, canaes, golphos, vulcões, ilhas, rios, florestas, cataractas, o Amazonas, o Mississipi, o estuario do Prata, o Cotopaxi, o Chimborazo, o Farwest,—metropoles opulentas e ermos inhopitos; divisara baleias, vicunhas, bufalos, alpacas; praticara com budhistas, mormons, fetichistas, atheus, selvagens e chefes de estado; hombreiara com indigenas repulsivos e os archi-milionarios reis da bolsa de Nova York e Chicago; topara representantes de todas as raças, faunas e floras; observara o mais ferrenho despotismo, a caudilhagem, a anarchia, as terras dos _pronunciamentos_ e a suprema expansão das liberdades, a ordem, o funccionamento regular de nobilissimas instituições; percorrera, em summa, enorme extensão do planeta, scismando ao clarão de constellações infinitas... Qual o resultado?! Insondavel tristeza, por fim:—o homem sempre igual no fundo em toda parte, identicas paixões o agitando, desgraças equivalentes o deprimindo, a mesma fatalidade o subjugando, o mysterio inflexivel das cousas, dos seres, do porvir envolvendo tudo na proteiforme miseria universal! Foi, em ultima analyse, de allivio a sensação que experimentei ao repisar o sólo brazileiro. Bemdictas sejais—familia, patria, fé,—unicas ancoras de ouro para o pégo voraginosos do destino! [Illustration] Teria razão Miss Jackson?! XV Decorreram annos. A Providencia me beneficiara deparando-me excellente esposa e o mais tranquillo dos lares. Eu disfructava a felicidade possivel na terra, ao lado da companheira dillecta e um par de anjos em que a nossa união prolificara. Espessas camadas de acontecimentos se amontoavam sobre a lembrança das antigas viagens. A vastos intervallos, a imagem de Lupe, tremeluzia-me, vagalume indeciso, nas trevas da memoria. Se inopinadamente eu encontrasse Miss Hedges na rua, custaria talvez a reconhecel-a. Uma formosa manhã, ia eu prosaicamente n’um bonde para meu escriptorio. Sentia-me bem disposto, sadio, alegre, nas mais propicias condições corporeas e intellectuaes para trabalhar. Percorria distrahido os jornaes do dia emquanto o vehiculo caminhava. Recordo-me bem de que massudo editorial, recheiado de cifras e de citações, demonstrativo por a+b de-que o paiz se achava ás borda do classico abysmo, produziu-me saudades do leito, escancarando-me as mandibulas em bocejos escandalosos. De repente, sem que circumstancia alguma o suggerisse, saltou-me, limpida e vibrante, dos recessos profundos da reminiscencia, a visão retrospectiva da excursão no _Colima_. E Mr. Randolph, Herr Pfeiffer Miss Jackson, o judeu, Mrs. Hedges, D. Maria Augusta e Lupe,—Lupe principalmente,—ressuscitaram na minha imaginação. Ouvia-lhes a voz, figurava-me que os tocava, evocava, com precisão assombrosa, particularidades minimas das suas pessoas e vestuarios. Era como se os tivesse deixado minutos antes e novamente os devesse logo após encontrar. E agudo remorso martellou-me então a consciencia. —Não procedi bem relativamente á joven mexicana, reflecti. Prometti escrever-lhe e enviar-lhe livros e vistas do Brazil, apenas chegasse; não o fiz. Fôsse ella o que fôsse, aventureira ou infeliz menina mal educada, a verdade é que fugi ao cumprimento de um compromisso contrahido para com ella. Que ideia formará Lupe de mim?... Será occasião ainda de reparar a falta?... Dei á pobre moça razão justificada de queixa. Porque?!... Afflige singularmente a certas sensibilidades a convicção de que o paciente d’ellas causou a alguem um aggravo, embora se retirasse o aggravado para muito longe e sobre o facto volvesse immenso tracto de tempo. Sahira de casa leve e despreoccupado; entrei no escriptorio inexplicavelmente nervoso. Em cima de minha mesa, estendia-se a correspondencia,—cartas e revistas, trazidas por um paquete europeu chegado na vespera. Attrahio-me a attenção largo enveloppe, tarjado de lucto, cheio de sellos e carimbos de correios exoticos. Rasguei-o tremulo e vi quatro paginas de miúda lettra desconhecida. Corri á assignatura:—Lupe! E occorreram-me as dissertações de Miss Jackson a respeito do presentimento. Eu acabava de experimentar estranho phenomeno telepathico. Possuirá realmente a alma humana aptidões innatas de farejar em mysteriosos indicios porvindouros successos?! [Illustration] Carta de Lupe XVI A missiva datada, mezes havia, de Acapulco, peregrinara extensamente antes de vir a mim. Eis a traducção do seu teôr: “Dom brazileiro, meu sempre lembrado amigo. Não sei se será esforço baldado o dirigir-lhe eu estas linhas, pois só de incompletas indicações disponho a respeito de seu endereço. Mas não importa que a minha epistola se perca. Escrevo-a, á semelhança de quem solta machinalmente um grito de soccorro, no meio da afflicção, sem cuidar de que esse grito seja ouvido, ou se dissolva no ar. Tenho soffrido muito... muitissimo... Nunca suppuz que se podesse soffrer assim. Minha mãi morreu de desgostos. Meu tio foi fusilado, em seguida a um _pronunciamento_ que aqui houve contra a administração. A familia d’elle dispersou-se; duas filhas, minhas primas, perderam-se. Hoje vivo só. Ganho escassamente o que comer cosendo e ensinando meninas. As costuras e discipulas não raro faltam, e atravesso trances bem duros n’esta triste cidade, de tão rude gente e tão aspero clima. Horrivel a quadra do _pronunciamento_. Estive presa, como suspeita; curti fome e máos tratos; ouvi, meu amigo, injurias atrozes de soldados ébrios. Aquella Lupe do _Colima_ sumio-se. Subsiste apenas um espectro d’ella, velho, fenecido, acabado, de quem dom brazileiro sentiria dó, se o visse. O que me vale é a crença na santa religião que, mercê de Deus, me voltou vehementissima. O tempo que me sobeja do trabalho consagro-o á Egreja. Rezo de joelhos, horas e horas, o rozario nas mãos, jejúo, commungo, confesso-me quasi todos os dias, para que o Santissimo se compadeça d’esta desgraçada alma. Quantas vezes, meu amigo, me lembro de seu nome nas minhas ardentes orações! Assaltam-me, comtudo, de quando em quando, desfallecimentos crueis, verdadeiras instigações do inimigo. Recordo o meu passado de galas em S. Francisco, o meu luxo, a minha mocidade sacrificada, os meus encantos (apregoavam-n’os tanto outr’ora, que cheguei a acreditar n’elles), os meus encantos, deixe-me dizel-o, os meus encantos extinctos, os meus sonhos ludibriados, o meu coração innutilizado, o meu caracter e sentimentos desconhecidos... E então me revolto, e me desespero, e quasi enlouqueço de tanto padecer. Ah! se a sorte me proporcionasse conselhos e affecto de alguem que me comprehendesse e guiasse, quão proveitosa e feliz me correria a existencia, e com que carinhoso frenesi eu saberia adorar esse alguem! Perdoe estas expansões descabidas e ás quaes não me assiste direito para com _usted_. Tomei a penna, repito, sob a pressão de uma das taes crises. Aqui ninguem as entende nem as poderia serenar. Chamam-me doida. E não o ficarei na verdade? Como confiar na integridade da minha razão, tão ferozmente flagelada?... Vou deitar esta carta no correio, como o naufrago atira ás ondas uma garrafa contendo a noticia garatujada da sua agonia. Entretanto, uma palavra sua em resposta, dom brazileiro, me animaria e consolaria extraordinariamente. Vinda de tão longe, far-me-hia o effeito sobrehumano de voz celestial. Que é dos livros e vistas do Brazil que me prometteu? Quem sabe se m’os enviou e se extraviaram no caminho?! Acapulco é tão obscuro! Prefiro esta ultima hypothese, pois me dóe muito pensar que se tivesse esquecido de mim. Em todo caso, solicito nova remessa. Ser-lhe-ia penoso remetter-me tambem o seu retrato? Não olvide Lupe, dom brazileiro; não a olvide, supplico. Não queira que ella ao descrever o Brazil ás suas discipulas, depois de enumerar todas as bellas qualidades dos filhos d’aquella terra, qualidades de que póde dar testemunho, exclame pezarosa, por fim:—mas, desgraçadamente, caracterisa-os a mais negra ingratidão! Adeos, dom brazileiro, meu querido amigo, sempre lembrado por mim até á eternidade. Jesus misericordioso o proteja e lhe dê em felicidades o que em provações me tem dado a mim. Lembra-se de Miss Jackson?... Até um dia n’esta vida, ou em outra. Com todas as véras de meu ser, me assigno, chorando, sua humilde servidora agradecida—_Lupe Hedges_. P. S.—Responda-me; sim?!...” Respondi immediatamente, mandando as vistas e os livros pedidos. Com sincera commoção, prodigalisei-lhe expressões de sympathia e conforto e narrei-lhe a minha vida desde que nos separaramos. Não soube, porém, se a destinataria recebeu essa resposta e o envolucro que a acompanhava. Nunca mais tive a menor noticia de Lupe. A principio, aguardava ancioso os paquetes estrangeiros, buscando impaciente communicações de Acapulco. Interessavam-me quaesquer informações sobre o Mexico e exasperava-me de que tão raras se publicassem no Brazil. Mas, a pouco e pouco, imperceptivelmente, a imagem da mexicana foi regressando á penumbra da indifferença. Empolgou-a, afinal, outra vez, o sorvedoiro do olvido. [Illustration] Pobre señorita! XVII Nove annos rolaram. Copia immensa de factos, arrastou-os o tempo em sua correnteza irrepressivel. Já quasi um decennio depois da minha excursão aos Estados-Unidos.... um decennio!—o periodo da guerra de Troya, o dobro do da campanha do Paraguay! Quão diversas das de então as preoccupações actuaes! Que largo montão de sedimentos,—detritos de jubilos, decepções, projectos, experiencias, vicissitudes de toda casta,—me depositou sobre a reminiscencia d’aquella phase o fluxo constante da vida!.... Durante o prazo alludido, haviam-se-me acrescido a familia e os encargos; eu emprehendera outras viagens longinquas; supportara embates de revolução; curtira amarguras de exilio. E cada dia recúam para limbos mais indistinctos as scenas da primavera juvenil. Á medida que galgo a montanha, se relanceio para baixo saudosos olhos, mais e mais duvidosamente distinguo os contornos do sopé, no fundo de um abysmo, povoado de brumas. É a lei ineluctavel, e quiçá providencial, do existir. Sem embrago ha uma semana, no curso de trabalhos encetados, pouco tendentes a divagações imaginarias, reproduziu-se-me, repentinamente, o extranho phenomeno evocativo occorrido por occasião da carta de Lupe. Revi-a, a joven mexicana, pela segunda vez tão nitidamente como da primeira, n’uma reflorescencia magica de recordações. Mas circundaram agora a figura resurgida reverberações tumulares. Exhalou-se d’ella a emanação melancholica de algo definitivamente extincto. Gracioso phantasma, repassou-me de indizivel fluido sobrenatural. Lupe morreu! Uma voz intima m’o affirma irrecusavelmente. Tenho tanta certeza do seu fallecimento como se lhe houvesse cerrado piedoso os olhos travessos, cruzado sobre o seu peito as suas mãos fidalgas e atirado sobre o seu corpo donairoso a derradeira pá de cal. Pobre Lupe, estrella cadente que debuxou rapida linha de luz mysteriosa no horizonte da minha mocidade,—galante esphynge pousada á beira da minha remota estrada percorrida! Que eras tu? Alma corrompida ou pura? Corpo maculado, ou de virgem? Victima apenas de pernicioso meio? Flôr venenosa do mal?! Pude simplesmente apprehender que foste uma perseguida do destino. Deixa-me fixar depressa no papel os teus traços fugitivos, n’estas paginas escriptas a correr. Amanhã será tarde. Tudo passa, tudo acaba. Quanto mais as saudades que inspiras, leviana señorita?!... Eil-as, enfeixadas aqui, essas saudades, fragil tributo de um estrangeiro, que tenuemente entreviste e chamavas amigo... Coitadas! Boiam á tona do esquecimento, como petalas de rosa cahidas de célere batel sobre vagalhões de alto mar. NOTA Á pagina 77, primeira linha, onde se lê—Alexandre de Gusmão, inventando os areostatos,—leia-se,—_Bartholomeu de Gusmão_ etc. INDICE _Dedicatoria_ _3_ _Frisco_ _25_ _Máo exordio_ _45_ _Spleen_ _50_ _Os passageiros do ~Colima~_ _57_ _Salve, Brazil!_ _67_ _Filha e Mãe_ _83_ _A socia do Club Exoterico_ _93_ _As joias do judeu_ _115_ _Uma intrigante_ _123_ _Noche triste_ _139_ _O berço de Lupe_ _153_ _O adeus_ _161_ _Chfftpmnth_ _171_ _Omnia Vanitas_ _181_ _Teria razão Miss Jackson!?_ _191_ _Carta de Lupe_ _197_ _Pobre señorita_ _205_ End of Project Gutenberg's Lupe, by Afonso Celso de Assis Figueiredo *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK LUPE *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. 1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that: • You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.” • You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works. • You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. • You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™ Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate. Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org. This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.