The Project Gutenberg eBook of Os contos do tio Joaquim This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Os contos do tio Joaquim Author: Rodrigo Paganino Release date: September 27, 2020 [eBook #63317] Language: Portuguese Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS CONTOS DO TIO JOAQUIM *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Books project.) 15.º VOL. DA COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA OS CONTOS DO TIO JOAQUIM [Illustration: RODRIGO PAGANINO] COLLECÇAO ANTONIO MARIA PEREIRA RODRIGO PAGANINO OS CONTOS DO TIO JOAQUIM 3.ª EDIÇAO [Illustration] LISBOA PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA LIVRARIA EDITORA _50, 52, Rua Augusta, 52, 54_ 1900 Typographia da Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA _11, Beco dos Apostolos, 1.º_ INDICE Prefacio da 2.ª edição 5 I—O tio Joaquim 13 II—O romance de um sceptico d’aldeia 21 III—A proposito da missa do dia 37 IV—Os domingos de fóra da terra 49 V—Os retratos de familia 59 VI—O fructo prohibido 69 VII—A gallinha da minha visinha 95 VIII—O guarda do cemiterio 107 IX—Como se ganha uma demanda 133 X—O sexto mandamento 155 XI—O Thomaz dos passarinhos 173 XII—A historia do narrador 199 PREFACIO DA 2.ª EDIÇÃO Rodrigo Paganino e a critica Um livro apparece, ao fugir do anno! Quando o sol está descoberto, quando tudo se cala no campo, como se o frio gelasse os menores ruidos, quando um somno lethargico se apodera das plantas, e as esperanças, a alegria, as flôres desapparecem da terra, um mancebo atira aos destinos o seu primeiro livro, atravez dos nevoeiros de dezembro! Depois, como se fosse ainda pouco esta especie de ironia á sorte, _habent sua fata libelli_, declina a gloria de auctor sobre um pobre homem a quem conhecera em tempos, e que não tinha de litterato senão saber guiar uma junta de bois, conduzir a rabiça de um arado, ser grande menino na poda e na empa, e, para fazer um pé de lagar ou erguer uma meda de pão, dar conselhos apenas comparaveis aos do _Archivo Rural_! Tio Joaquim se chamava esse amigo, que, depois de narrar muitas historias a Rodrigo Paganino, lhe disse poucos momentos antes de morrer:—«Agora acabaram-se os contos. Lembre-se de mim quando se lembrar d’elles; é a herança que lhe deixo.» Para outro qualquer, este legado teria algum parentesco com o de Rebollo pae, que na hora extrema concedia a seu filho a certeza de lhe deixar uma boa cabeça; mas Rodrigo Paganino, para honrar a memoria do velho, entendeu que devia dos contos d’elle fazer um bom livro, e foi o que fez! Ha qualidades n’esta obra que bastam por si sós para firmar a reputação de um escriptor. Um estylo espontaneo, claro, sem arrebiques nem pretenções, mas airoso, facil, cheio de côr, de propriedade, e, o que mais é, de razão. Conhece-se apenas que é um mancebo quem escreve, pelos dotes de imaginação, pela graça das divagações, pelo tom breve das phrases; a idéa é sempre séria, prudente, exacta. Não se deixa levar de extravagancias que tendam a affectar excentricidade; é excentrico ás vezes sem se sentir, excentrico com chiste, excentrico com feição. Não planeia os effeitos, não prepara a phrase final, não hesita ante um adverbio por ser commum; concebe a acção, dispõe-a, depois deixa-se ir escrevendo, com uma rapidez, com uma veia, com uma facilidade de elaboração, que julga sentir-se a penna a conduzil-o, em vez de o sentir a conduzir a penna. E isto é o que dá a principal individualidade do livro, é este o segredo d’aquella maneira regular e serena, que só procura encantos na sua simplicidade. Faz-me lembrar os primeiros livros d’Alphonse Karr, em que elle escrevia ao publico como a um amigo desconhecido, cheio de familiaridade e de confiança. Rodrigo Paganino é d’esta familia de talentos; não procura impôr-se ao leitor; simplesmente trata de se identificar com elle. O merecimento dos _Contos do tio Joaquim_ não consiste na maior ou menor novidade da fabula, nos effeitos de surpreza mais ou menos habilmente preparados, mas na pintura dos caracteres e dos costumes. Cada um dos seus personagens é desenhado com tanta espontaneidade, que fica vivo, real, palpavel, e toma o seu logar n’esta grande familia de seres creados pela arte, mais verdadeiros do que a verdade, particulares e geraes, individuaes e humanos, corpos de carne transfigurados em estatuas. Ha escriptores para quem a rapidez de trabalho é uma condição favoravel, e com o auctor d’este livro julgo dar-se este caso; se elle escrevesse com uma pachorra de academico, faria talvez um livro indigerivel. O seu estylo é claro, preciso, e franco; e, a exceptuarmos algumas raras passagens em que apparece o auctor, cada personagem falla perfeitamente a linguagem do seu caracter. Encontrei-me com o auctor dos _Contos do tio Joaquim_, ao entrarmos na vida; fizemos aulas juntos, e juntos fizemos versos; tinhamos quinze annos então:—hoje encontramo-nos de novo, cada um de nós, como outr’ora, com o seu livro na mão, mas a differença é que do livro que levamos hoje somos nós o auctor! Isto é mau, ou, pelo menos, bom não é. Mais valia talvez ser estudante ainda. Ao vêr-se no frontespicio de uma obra o nome do que a escreveu, qual de vós cogita que foi á força de trabalho, de paciencia, de miseria supportada heroicamente, de privações e de luctas de toda a especie, que ao fim de alguns annos, ao vencer os ataques da critica e as invectivas da inveja, teve um homem o direito de escrever o seu nome na primeira pagina de um volume, esquecendo-se de que o injuriaram no seu talento, na sua vida, no seu coração, e que o seu peito serviu de alvo luminoso ás flechas atiradas de noite por uma cambada de archeiros invisiveis?! Para viver tranquillo e feliz, é melhor fechar hermeticamente a porta, e não abrir a quem bater, sobretudo se fôr a gloria. Apesar da sua mascara de anjo, não passa do esqueleto vestido de lantejoulas; namora-se uma pessoa d’ella, para se arrepender depois centos de vezes; em todo o caso, hoje que o barco vae n’agua, como dizem os maritimos, é continuar a remar! Que atraz dos _Contos do tio Joaquim_ venha outra obra, na certeza de que, digo-o sem cumprimento ao auctor, o despedir-se o anno por este livro é o sufficiente para deixar lembranças na litteratura. Dezembro de 1861. JULIO CESAR MACHADO. * * * * * Appareceu um finalmente, um livro, cujo auctor abençoei com todas as veras do meu coração. Infeliz! Morreu já. A meu vêr, desappareceu com elle um dos mais promettedores talentos de romancista popular que teem surgido entre nós. O auctor era _Rodrigo Paganino_, o livro _Os contos do tio Joaquim_. A imprensa havia recommendado pouco este livro. Tem d’esses descuidos a imprensa. Li-o por isso sem a menor prevenção favoravel. Mas era justamente um livro assim, que Reine Garde pedia; é d’este genero de litteratura que o povo precisa; é por esta fórma que se resolve a importante questão das subsistencias intellectuaes, não menos valiosa do que a que occupa as attenções dos economistas. Pouco tempo antes, discutia-se primazias entre os Lusiadas e o poema do sr. Thomaz Ribeiro; tratava-se de tirar a limpo qual dos dois seria preferivel como livro para leitura nas aulas de instrucção primaria. Todos se lembram d’essas renhidas controversias. Eu por mim nunca pude tomal-as a sério n’aquelle ponto. Achei sempre muita graça ao empenho em que via mettidos os criticos. Quem se podia convencer sériamente que qualquer d’aquelles excellentes livros fosse proprio para as intelligencias infantis dos pequenos leitores? Um com o seu sabor classico e epico e suas comparações mythologicas, o outro com o seu pronunciadissimo caracter de lyrismo e suas imagens romanticas e arrojadas, e ambos a suscitarem fundamentadas apprehensões nos mestres por um ou outro episodio que, baldados os esforços dos criticos, ninguem poderá considerar como demasiado edificantes. Ora, quando eu li o livro de Paganino, pareceu-me encontrar n’elle justamente tudo o que debalde os criticos procuravam nos outros. Aquelle sim que era um livro verdadeiramente escripto para o povo e para as creanças! livro em que a attenção se prende pela verdade, em que o gosto se educa pelo estylo, em que o sentimento se cultiva por uma moral sem liga, porque é a moral do decalogo e do evangelho; livro escripto segundo o programma estabelecido por Lamartine n’aquelle bello prefacio da _Genoveva_ e talvez mais fielmente observado ainda por o nosso romancista do que por o proprio legislador. Lembra-me bem que o li a um rancho de raparigas do campo e pude observar como ellas o comprehendiam sem custo. Não havia uma palavra que ignorassem, uma maneira de dizer que lhes causasse estranheza, as imagens faziam-as sorrir pela exactidão, como sorrimos ao vêr o retrato fiel d’uma pessoa conhecida; não eram caracteres extravagantes, paixões excepcionaes, situações inesperadas e unicas o que assim lhes absorvia a attenção; pelo contrario, era por aquelles personagens pensarem, sentirem e viverem como ellas, que tanto lhes interessava o livro. Foi uma grande perda a de Rodrigo Paganino! E, vejam, aquelle volume, escripto para se lêr no campo, como eu o li, junto á fogueira que crepita no lar, sobre a ponte rustica que atravessa o ribeiro ou no degrau da ermida que, elevando-se no topo do monte, domina a aldeia toda, passou quasi desapercebido no mundo das lettras. Não suscitou esse murmurio litterario, que acompanha certas obras felizes; murmurio em que se reune o louvor á maledicencia, a hyperbole laudatoria á calumnia escandalosa, os guindados elogios ás censuras exageradas. Foi um livro annunciado apenas, lido por poucos, comprado por menos, livro cujo auctor não tem sequer o seu retrato gravado na _Revista Contemporanea_ e que por tanto quem quer tem o direito de desconhecer. E apezar de tudo isso, aquelle livro, como disse não sei quem a respeito de não sei que obra, era alguma coisa mais do que um bom livro: era uma boa acção! Acceitem-se-me estas palavras, não a titulo de critica litteraria,—Deus me defenda de pretenções a esse genero—, mas como um tributo rendido á memoria de um escriptor infeliz a quem sou devedor de algumas horas de incomparavel prazer, que a sua leitura me proporcionou. Maio de 1861. JULIO DINIZ. * * * * * Rodrigo Paganino morreu ha pouco menos d’um anno, deixando de si, como homem, muita saudade em muitos; e, como escriptor, um livro precioso, e não somenos inedito. Morreu, passou, desappareceu d’entre amigos, levantou-se aos vinte e oito annos, como Gilbert, do banquete da vida, trocou a purpura do genio pela mortalha funebre; e a raça enorme dos papagueadores, dos chroniqueiros, dos assopradores encartados de reputações e de nomes, quando o via passar para a sua cova tartamudeou quatro palavras de _requiem_, como se a terra se tivesse defecado d’algum sandeu ou estadista. Apenas Bulhão Pato n’uma breve noticia cheia d’aquella eloquencia que nasce dos mais entranhados affectos, apenas elle espargiu sobre a sepultura d’aquelle moço algumas flôres de saudade. Isto é a verdade, verdade amarga é bem certo, porque attesta a deslealdade d’esses applausos que por ahi resoam, o immerecido d’esses triumphos que por ahi campeam, o nada d’essas glorias que por ahi balzonam, o facticio d’essas proeminencias que por ahi se decretam. Em 1861 Rodrigo Paganino publicou os seus _Contos do tio Joaquim_. O que este livro significa, que o digam com a mão na consciencia todos esses criticos, florentissimos e profundos, que entendem por ahi de litteratura. Para mim, o que elle importa, é nada menos do que a implantação, entre nós, da litteratura popular. O nosso povo, quer dizer, a porção menos cultivada e mais numerosa da sociedade, carece de livros proprios. Rodrigo Paganino sentia, comprehendia esta falta; e foi no intuito, senão de a remediar completamente, ao menos de a attenuar pela sua parte, e de chamar a egual trabalho os obreiros do futuro, que elle escreveu o seu livro. Ouçamol-o: «Entre nós, n’estes ultimos tempos sobre tudo, a litteratura tem desprezado um tanto o gosto popular. Não acontece, porém, o mesmo em França, em Allemanha, e nos demais paizes, em que, segundo nos consta, se cura d’estas coisas e se lhes attendem os resultados.» Mais abaixo continua: «Os _Contos do tio Joaquim_ pertencem ao genero das obras de Emilio Souvestre, e deveriam tomar logar, pela natureza e não pelo merito, proximo d’aquella mimosa collecção que elle intitula—_Au coin du feu_.» Este é que é o valor litterario da obra; este é que é o seu alcance philosophico. Hoje, a primeira condição de quem escreve, é ser essencialmente popular. Quando o povo não se eleva, como na Allemanha, á comprehensão do bello, é forçoso que o escriptor desça até elle, que lhe desenvolva a razão, que lhe eduque o espirito, que lhe vibre a sensibilidade. Acabaram-se os almotacés da critica; o gosto é livre como a consciencia. «Os livros para o povo, diz Lamartine na _Genoveva_, devem ser historias simples e interessantes; inspiradas dos costumes, das profissões, das amarguras, dos contentamentos do lar e da familia, e escriptas quasi na linguagem do povo; devem ser como que o espelho onde elle se veja em toda a sua simplicidade e candura; mas que em vez de reflectir as suas abominações e torpezas, reflicta com preferencia os seus bons sentimentos, os seus trabalhos, as suas dedicações e virtudes, para lhe dar o amor de si proprio, e ancia do aperfeiçoamento moral e litterario.» E acaso não são isto mesmo os _Contos do tio Joaquim_? Não se filiam n’esta escola _Os retratos de familia_, _O sexto mandamento_, _O Thomaz dos passarinhos_, e _O romance de um sceptico_? Creio que me não engano; diz-m’o o coração, pelo menos, que é quem decide, em regra, do valor d’estas obras, que são todas coração e sentimento. O livro de Paganino prima, incontestavelmente, pela sublime simplicidade do estylo, e purissima verdade de affectos. O primeiro dote era resultado da espontaneidade, da fecundidade, da força viva de imaginação, da caudal impetuosidade das idéas, do genio, emfim. O segundo refluia-lhe inteiro do coração,—do coração que lhe era manancial perenne de amarguras, depois de lhe ter sido ludibrio de desenganos crueis, das illusões dobradas, dos sorrisos desleaes e das palavras traiçoeiras, com que este mundo costuma pagar liberalmente a sinceridade do amor e das affeições mais intimas. Que Deus perdôe, como elle havia perdoado, a quem pensou que esmagar o coração de um homem valia tanto, ou talvez menos que espedaçar o mais futil brinco de creança! Relevem-me o intempestivo da digressão; eu torno ao meu logar de critico. Publicados os _Contos do tio Joaquim_, Paganino, apesar do mal que o definhava a olhos vistos, e que elle, melhor do que ninguem, comprehendia, pensou em escrever successivamente algumas obras já delineadas. Em Pedrouços começou o romance _Aos vinte e dois annos_, romance a que se prendiam muitas saudades e ungido com muitas lagrimas; escreveu _Beatriz_, pequena historia affectuosa e apaixonada; e, afóra isto, um grande numero de trabalhos de indoles diversas. Quando o futuro se lhe abria mais esplendido, quando a lição e a experiencia lhe amadureciam as prendas naturaes, quando aquelle fecundo talento devia produzir fructos mais sasonados, a morte veiu arrancal-o aos carinhos de uma familia estremecida, ao affecto de amigos que tanto o bem queriam, e á gloria certa que o esperava. Os seus escriptos inéditos lá jazem na obscuridade, em quanto por ahi pompeam radiantes tantos abortos malfadados. E os governos dos conventiculos, das commissões rendosas, das subvenções pingues, das prodigalidades ás mãos cheias, não sabem que ao lado d’esse progresso que faz machinas de vapor e telegraphos electricos, deve andar sempre, de continuo, emparelhadamente, o progresso que derrama a luz, que arrôtea os espiritos, que os educa, que os esclarece, que os distrahe, que os moralisa, e que vae desenvolver no coração muitos germens de grandiosos instinctos. Não sabem que, na vida dos povos, seis ou dez kilometros de linha ferrea não influem mais que a publicação de um bom livro. É que elles cuidam, como diz o sr. Castilho, que nada ha sério, senão o coadjuvar ou impecer o bulicio governativo. Isto disse eu por me lembrar que essas paginas de preço, escriptas por Paganino com tanto amor e tanto fogo, é provavel que, cedo ou tarde, se percam de todo, quando, dadas a lume, ganhariam mais um louro para elle, e mais uma gloria para a patria. Maio de 1864. E. A. VIDAL. * * * * * Os _Contos do tio Joaquim_, livro de alto merecimento litterario, devido ao mallogrado homem de lettras, Rodrigo Paganino, que uma terrivel e fatal doença—a tysica pulmonar—arrebatou do mundo na primavera da vida, appareceram ha mais de vinte annos, quer dizer, n’uma epocha afastada, em que ainda ninguem fallava de processos realistas para a factura de um romance. Pois apesar de não ser ainda conhecida n’esse tempo a escola realista, os _Contos do tio Joaquim_, mostram-se já seguidores dos seus preceitos pela naturalidade, singeleza e sentimento espontaneo das respectivas descripções. Rodrigo Paganino, antes e depois de concluir em S. José o seu curso de medicina, foi um escriptor pujante, floreando na imprensa como jornalista notavel e no theatro como dramaturgo distincto. Á pujança do seu talento não correspondia infelizmente o vigor do seu organismo; por isso a morte o derrubou a meio da carreira da vida, quando elle punha todo o seu empenho e boa vontade em terminar para o theatro de D. Maria uma comedia em 4 actos. Infeliz Paganino! e duplamente infeliz, porque não gosaste, como homem, o lado risonho da vida, nem podeste, como escriptor, deixar apoz ti os fructos amadurecidos do teu brilhantissimo engenho. Abril de 1885. PINHEIRO CHAGAS. * * * * * Ultimo adeus a Rodrigo Paganino (_A. Francisco Montez de Champalimaud_) _1867 Agosto, 3._—Amigo do coração:—Hontem de manhã fomos esperar, no cemiterio dos Prazeres, os restos mortaes do nosso querido e desventurado amigo Rodrigo Paganino. Fomos sete, apenas, os que nos lembrámos de cumprir a dolorosa missão: José Elias Garcia, Manuel Roussado, Ricardo Cordeiro, Carlos Barreiros, Eduardo Gomes de Barros, José d’Avellar e eu. Ninguem mais! O ceu estava alegre; o sol brilhava com o natural esplendor do estio. Parecia uma pungente ironia á tristeza que apertava os nossos corações, em presença d’aquella sepultura! É porque os jubilos são apanagio do ceu, e as lagrimas a triste condição do mundo! A morte, meu amigo, phenomeno naturalissimo, trivialissimo, mas que nos espanta sempre, quando vem ferir o homem na força da vida, e o arrebata no momento em que a sua intelligencia começava a dar luz á humanidade, a morte, n’essas circumstancias, parece-nos um impossivel. Olhando para a arvore secular que abrigou á sua sombra o viajante, que floresceu em centos de primaveras, que produziu abundantissimas colheitas de fructo, se a vêmos cair falta de seiva, dizemos: «Cumpriste a tua missão; deste-nos sombra; embellezaste-nos com as tuas flôres; saciaste-nos com os teus fructos; chegou a tua hora; caiste porque eras da terra», e saudamol-a com veneração! Mas vendo a arvore robusta, que abre com as flôres do seu primeiro abril, flôres que são prenuncio de magnificos fructos, fulminada subitamente pelo raio, enfurece-nos a protervia do raio! Assim a morte, quando vem cortar o genio em flôr, nos produz muitas vezes o desespero! Rodrigo Paganino saía apenas da adolescencia, quando caiu no tumulo. Era medico e escriptor. Restam d’elle algumas folhas volantes, perdidas por aqui e por além, e um livro (os _Contos do tio Joaquim_), livro que ha de viver ao passo que muitas composições laureadas pelo capricho de hoje, morrerão ámanhã. Todavia, isso que Paganino nos deixou, não são mais do que as primicias do muito que tinha para dar aquelle grande talento. Rapida, brilhante, e, dolorosissima foi a carreira de seus dias! Ha quatro annos, n’uma carta que escrevi para a imprensa, desenhei o quadro que apresentava a familia de Rodrigo Paganino, pouco antes d’elle expirar. O pae, as duas irmãs, modelos de raras virtudes, e a mãe, pedindo em secreto, a Deus, um logar na mesma cova do filho. Tres annos a fez esperar a Providencia; finalmente concedeu-lhe a appetecida graça. Hontem, se Paganino fosse vivo, contava trinta e dois annos. Trinta e dois annos que a mãe o déra á luz do mundo; que o beijára entre dôres e alegrias, depondo o filho no berço; o filho hontem pagava-lhe essa fineza indo repousar ao lado d’ella, no berço do eterno descanço, onde para aquelles que padeceram com resignação, e que esperaram a morte, arrependidos dos erros mundanos, brilha a aurora da bemaventurança! O padre que acompanhou do Alto de S. João para os Prazeres os restos mortaes do nosso pobre amigo e que celebrou a missa, que nós ouvimos, pelo eterno descanço do nosso finado querido, fôra companheiro de estudos de Rodrigo Paganino. Terminada a missa, conduzimos o feretro para em frente do jazigo de familia onde havia de ser soterrado. Perguntou alguem, se queriam que o caixão se abrisse. José Avellar, de todos nós o mais intimo de Paganino, disse com a expressão tocante e varonil da sua bella physionomia: quero eu vêl-o. Mas que viu?! Quatro ossos e uma caveira a que se adheria uma pouca de terra! Era quanto restava do corpo que abrigara aquelle gentil espirito! O caixão foi collocado sobre o caixão da mãe, e nós, na extrema despedida, votámos á memoria do amigo quanto lhe podiamos votar: um adeus, e uma lagrima! Concluo esta carta, meu querido amigo pela verdadeira conclusão da dôr, que são as lagrimas. Um aperto de mão; volta quanto antes d’esse ponto do Alemtejo onde estás; lembra-te do anno passado! Teu BULHÃO PATO. I O tio Joaquim Ha de haver dez annos proximamente, fui passar o inverno a uma quinta, pouco distante de Lisboa; porque, segundo diziam, corria perigo de vida, se não mudasse de ares quanto antes. O campo é sempre bello. Cada edade do anno imprime-lhe uma feição, differente embora, mas formosa sempre: e o inverno, apezar da sua fria nudez, tem attractivos, como os que nos fazem amar muitas estatuas antigas, em que a falta de roupas mais realça a magestade. A uma legua apenas, parecia-me estar muito mais afastado de Lisboa. As noticias só repercutiam alli com ecco bem tardio; o apartamento do sitio, mais augmentado ainda pela quadra do anno em que se estava, parecia cortar de todo as relações com a capital: e se a vida latente que girava n’aquellas plantas entorpecidas pelo frio, não se deixasse transparecer de quando em quando, suppôr-se-hia, que um largo sarcophago nos encerrava: tão silenciosa, tão muda, tão melancolica era aquella solidão. Os dias passavam-se facilmente; mas as horas do crepusculo, essas, é que pareciam immensas, insupportaveis. Quando a noite, começando a escurecer os campos, nos escurecia a alma com elles; quando as trevas desciam sobre a terra, e afastando diante de si alguma vida, que ainda por alli havia, nos entristeciam o coração: quando as oliveiras verdenegras, que ao longe limitavam o horisonte avultavam com as sombras, estreitando-se, e parecendo encerrar-nos n’um circulo sinistro, como deveria ser o das bruxas de Macbeth: então partia-se-nos a alma de saudades enlevada no viver folgasão e agitado, que n’esses momentos costuma offerecer a cidade. Tem-se dito, que nada ha mais triste, do que vêr cerrar-se o horisonte em mar alto á chegada da noite; mas dizem-no talvez os que não experimentaram ainda o angustiado negrume, que em similhantes momentos, no campo, nos confrange muitas vezes. Parece que tudo esmorece, e morre em redor: e n’essa hora, se no bater do pulso não encontrassemos provas da nossa existencia, chegar-nos-hiamos a convencer mesmo, de que a vida se nos esvaecia tambem, como se esvaece em tudo, que nos cerca. Mas, ainda assim, havia compensação para nós na chegada da noite. Havia, porque de ante-mão contavamos passar essas horas, não muitas, que no campo precedem o deitar, n’uma conversa singella, e innocente; mas que d’essa singelleza e innocencia tirava os encantos que lhe sentiamos. Á bocca da noite recolhiam os trabalhadores, os _maltezes_ como ali lhe chamam, do trabalho e entravam para uma d’essas cosinhas do campo, tão nossas, tão conhecidas de todos: e que não faltam em quinta alguma de certa ordem. Esperava-os um bom lume e uma boa ceia, e sobretudo esperava-os, que era o que elles mais queriam, as historias do tio Joaquim, e as suas narrações cheias de verdade e de moral. Quem era o tio Joaquim, o que fôra, que papel representava, são perguntas, que naturalmente hão de vir á bocca dos nossos leitores, se os tivermos, e a que não poderemos responder como desejâmos. Tinha apparecido depois de uma das nossas guerras civis, e tinha pedido trabalho a um dos fazendeiros mais ricos do logar. D’onde viera, se alguem lh’o perguntava podia contar com a seguinte resposta, que não poucas vezes lhe ouvimos repetir: importem-se com a sua vida e deixem-me, que nada tenho que lhes contar; baste-lhes saber o que sou hoje, e não o que fui; agrada-lhes o meu trabalho; estão contentes comigo, que teem com o resto. Sempre ouvi dizer, que homem que muito se occupa dos outros, é porque se não póde occupar de si. Todos voltavam sabendo talvez menos do que até então sabiam; mas curados da sua curiosidade indiscreta. E depois, o tio Joaquim era velho, tinha sido honrado sempre, ninguem como elle sabia guiar uma junta de bois, conduzir a rabiça d’um arado, ou fallar do tempo, olhando para as estrellas; na poda e na empa ninguem se lhe punha ao lado, e quando era necessario fazer um pé de lagar, ou erguer uma meda de pão, já era sabido que sempre o escutavam e lhe seguiam sempre os conselhos. No contar de historias não fallemos. O tio Joaquim era um livro aberto, como por ali diziam: e dava sota e az ao barbeiro do logar e ao mestre de meninos. Este, contra as leis constitucionaes do paiz, ás quaes, aqui para nós, não era muito affeiçoado, accumulava ao seu mister de educador da mocidade, além dos empregos de escrivão de juiz de paz, escanhoador, tendeiro, agiota e outros encargos nem por isso muito compativeis, uma maledicencia sem egual. Pois cuidam que se atrevia a boquejar do tio Joaquim? Nem por sombras. Verdade é tambem, que lhe não fazia elogios, mas quando se tratava d’elle mudava logo de conversa, fazendo um tregeito desapprovador. Diziam as velhas d’aquelles sitios, que eu não o sei ao certo pois nunca tratei de o averiguar, que o mestre Francisco, tal era o nome do professor, tinha tido n’outros tempos seus dares e tomares com o tio Joaquim, dos quaes tinha saido de cara a uma banda. Entretanto o silencio do mestre de meninos não influia pouco para a reputação favoravel do nosso bom velho, porque se dizia:—é tão boa pessoa, que o mestre Francisco não diz mal d’elle. Pobre tio Joaquim! Assisti-lhe aos ultimos momentos e poude fazer idéa do que era a morte do justo. Sorria ainda, e já era cadaver. A hora do passamento foi para elle tão suave como o desprender da folha secca em manhã de outono. Momentos antes de fallecer voltou-se para o meu lado, e disse-me affavel e bondoso como sempre: _agora acabaram-se os contos. Lembre-se de mim, quando se lembrar d’elles, é a herança que lhe deixo_. Levou a mão ao peito, apertou um saquinho, que trazia pendente de um cordão, e que mostrava conter uma reliquia, voltou os olhos para o céo, pareceu procurar o rumo que a alma ia seguir em breve cortando o espaço, e expirou. Foram as primeiras lagrimas, que derramei na minha vida; até então não sabia o que era morrer. Guardei a herança. Bem ou mal administrada ella ahi vae em parte, tal como a memoria a conserva; mas não como me foi doada. Havia um cunho tal de ingenuidade n’aquellas narrações, uma tal poesia e mimo de imagem, uma fluencia de dicção e uma propriedade de termos, que embora as procuremos imitar, não o conseguiremos nunca. E não supponham, entretanto, que fosse buscar a figura ou a comparação a coisas de grande altura; ás sciencias, ou á historia: que ornamentasse o periodo com flores de rethorica, ou que procurasse guindar e alambicar a phrase, como tanta gente que por ahi vemos. Nada d’isso. Mais prudente e mais feliz, pois não commettia barbaridades, o tio Joaquim não saía dos limites das intelligencias dos seus ouvintes e ia buscar aos campos, ás flores, á agricultura, á mesma casa, (quantas vezes!) os _similes_ de que se servia. Tudo era comesinho e humilde, sem ser rasteiro, e muitas vezes alcançava elle o que não conseguem muitos litteratos de polpa depois de terem trabalhado deveras—o sublime na simplicidade. Mas nem só o estylo tornava recommendaveis os seus contos: se assim fôra, não ousariamos nunca encetar similhante tarefa. A idéa moral, que d’elles se deprehendia facilmente, a simplicidade dos episodios, e as curtas dimensões, que elle lhes dava, faziam com que fossem por mais d’um respeito dignos de publicidade. Confiados n’isto mesmo tambem é que começâmos esta collecção, de que somos meros reproductores, cabendo toda a gloria se a houver, ao tio Joaquim, e o desdoiro todo áquelles, que estragando-a talvez, a vêem agora dar ao publico. Entre nós, n’estes ultimos tempos sobretudo, a litteratura tem despresado um tanto o gosto popular. Não acontece, porém, o mesmo em França, em Allemanha e nos demais paizes, em que, segundo nos consta, se cura d’estas coisas e se lhes attendem os resultados. Muitos homens de vulto, intelligencias eminentemente superiores, tem-se approximado das turbas, e as obras, que se tem publicado com este intuito, não são as que menos contribuem para a sua gloria. Dois exemplos bastarão: Lamartine e Emile Souvestre: o auctor da Genoveva e Canteiro de Saint-Point, e o auctor de _Coin du feu_ e do _Philosophe sous les toits_. Ambos tem vindo por vezes conversar, como amigos e parceiros, com as classes rudes; ambos se teem por vezes esforçado para lhes fazer comprehender as suas idéas, e, tem conseguido verem-as admittidas e bemquistas na officina do operario, e na agua furtada do infeliz. Sacrosanta missão da imprensa, como é admiravel e veneranda, quando evangelisa as turbas, dando consolação ao desgraçado e conforto ao que desanima! Como nos sentimos enlevar de respeito perante essa instituição maravilhosa, quando vemos os seus fructos sem vicio e sem defeito, alimentarem o que pede o pão do espirito, e darem refrigerio ao peregrino resequido d’este grande Saharah em que vivemos! É então, e não quando a vemos maculada pelas viltas e polemicas indecorosas, que devemos bemdizer os seus inventores, e pagar o devido tributo ao genio que similhante dadiva nos legou. Mas não é esta a melhor occasião para similhantes dissertações; perdoem-nos o divagar intempestivo, e, se nol-o permittem, iremos ligar o nosso interrompido assumpto, no ponto em que o deixámos, ha pouco. Os contos do tio Joaquim pertencem ao genero das obras de Emile Souvestre e deveriam tomar logar, pela natureza e não pelo merito, proximo d’aquella mimosa collecção que elle intitula—_Au Coin du feu_. Dir-se-hia mesmo, que inspirado por este bello livro, se não commettia um plagiato, resentia-se muito da leitura do auctor francez; porém o tio Joaquim nunca soube ler e por isso nem de longe poude cahir em tão feio peccado. Não é a primeira vez que a ignorancia se apresenta como pretexto para a originalidade de muito escriptor publico. Não é para admirar, que este nosso que se estrêa, comece no mesmo ponto, d’onde muitos, que já são veteranos, não teem podido passar. As historias que lhe ouvimos são em grande numero. Não apresentaremos n’este livro senão as que mais notaveis nos pareceram e que mais profunda impressão nos deixaram, procurando, quanto nos fôr possivel, aproximar-nos d’aquella engraçada ingenuidade, que tanto nos encantava, quando lhe ouvimos a palavra facil e singela. Não conseguiremos de certo imprimir-lhes aquelle cunho de originalidade, que o narrador lhes dava. Oxalá que possamos ao menos, fazer com que os nossos leitores passem algumas horas entretidas n’esta leitura: e que, esquecendo-se embora da pessoa que lh’as apresenta, não se esqueçam de todo do velho tio Joaquim. II O romance d’um sceptico d’aldeia De tantos contos, que ouvi ao tio Joaquim, foi o seguinte, que maior impressão me produziu. Tinha morrido nos sitios um fazendeiro, que não gosava de boa fama, e ao lembrarem-se d’elle começaram os homens do trabalho a cortar-lhe um pouco na pelle. O tio Joaquim desde que se fallára no finado, fôra gradualmente entristecendo; e pela primeira vez na sua vida caiu-lhe a colher da mão, quando ia começar a comer. Os maltezes, que estimavam devéras o velho narrador começaram a preoccupar-se com similhante tristeza, e, antes de acabar a ceia, já estavam todos em roda d’elle, a perguntar-lhe o que tinha. —A morte do Manuel Simões fez lembrar um caso, a que assisti, ha tempos, quem sabe se o Manuel padeceria tanto como o outro, que eu vi morrer. —Conta-nos isso, tio Joaquim? —Contarei, apesar de não me sentir muito para contos. Entretanto servir-lhes-ha de lição para deixarem em paz, quem já deu contas de si. Callaram-se todos e o narrador começou por estas palavras: Ha de haver dez annos a esta parte, que succedeu o caso, que lhes vou contar. Defronte da egreja estava n’esse tempo uma loja de barbeiro, afreguezada como poucas, e concorrida por toda a gente dos arredores. Era o pasmatorio do logar e o covil da maledicencia: o mestre Ignacio sabia do seu officio como poucos, e cortava nas vidas alheias, como nos cabellos e barbas dos freguezes. Tambem a loja estava sempre cheia: uns que lhe acudiam á obra, acceiada na verdade; outros, que para ali iam dar á taramella e saber o que se passava pelos sitios. Nem uns nem outros deixavam de ser servidos: os primeiros saiam com a pelle, que nem um setim; os outros levavam medida rasa de novidades e não poucas vezes acogulada de mentiras. De todos os que por ali iam, um freguez havia a quem o mestre não gostava muito de vêr na loja. Ninguem o diria, porém, ao vêr as barretadas do velho Ignacio e as mesurinhas com que o acatava. Havia de ter que vêr, que o não fizesse! Se era o sr. padre prior, o padre mais santo, que tenho conhecido e a melhor alma que Deus tem deitado a este mundo de Christo. E sabem porque o mestre não engraçava com o padre prior, e até mesmo ardia por vêl-o pelas costas? Era porque, o unico talvez dos freguezes todos, não fazia a sua perna á má lingua, nem deixava deitar-lhe muito os braços de fóra, quando estava presente. —Cala-te lá, homem, lhe dizia muitas vezes, sabes por ventura quantos annos de trabalho leva uma reputação a crear, quantos cuidados e lidas custa o ser honrado, para assim deitares essa obra toda por terra sem tir-te nem guar-te? Se fosses fazendeiro e se gastasses cabedal e vida a fazer a tua propriedade e a amanhar as terras; se todos os dias regando-as com o suor do teu rosto, e ageitando-as com o teu trabalho, conseguisses crear as arvores de um pomarsito, por bem pequeno que fosse, gostavas, que um alma damnada te deitasse fogo á casa; ou que te succedesse dar o mal nas searas e o peco no pomar? Pois olha, pomar, casa, e terras são coisas todas, que, uma vez perdidas, se podem tornar a ganhar; mas o credito e a fama, esses é que não. O mestre barbeiro, que se temia do bom pobre ficava sem saber da sua freguezia, e este então, que não era de reserva, nem homem, que gostasse de pôr as uvas em pisa a outro por muito tempo, tornava-lhe logo mudando de modo de fallar.—Ora vamos, sô mestre, não desmanche creditos dos outros, pois que não póde vêr entrar o mal por sua casa; que a fama de má lingua ninguem lh’a dá nem lh’a tira, e em quanto a obra, ninguem lh’a desfaz, por que não a tem feita. Era n’um domingo de manhã e a loja do mestre Ignacio estava a deitar por fóra. O dono da casa tinha acabado de talhar umas poucas de carapuças e encaixava-as nas cabeças para que as talhára, quando entrou o padre prior. Calou-se logo o velho e deu um ponto na bocca; porém o padre, que lhe sabia da balda, e que desconfiou da alhada, começou a fazer-lhe a cama, quasi do feitio que acabei de lhes contar, e por modos taes, que deixou o pobre do homem em lençoes de vinho. Os que por ali estavam, que não eram muito affectos ao dono da casa, e que por vezes tinham apanhado tambem a sua maquia, começaram a rir, e aos ditos, mais ajudando ainda para o deixar em tallas. Elle já dizia mal á sua vida: para mostrar que não ia muito do vivo ao pintado, já tinha assente um formidavel lanho na cara d’um pobre trabalhador, que lhe caira nas unhas, e promettia continuar quando um novo freguez, que entrou na loja o veiu tirar do aperto em que se via, pondo ao mesmo tempo uma rolha na bocca de todos. Nem mais um abriu bico. Parecia uma mó de creanças, que estando a fazer grande algaraviada em casa de escola, vêem chegar o mestre armado de palmatoria e com modos de dar a torto e a direito. Ficam logo calladinhos, que nem ratos; mas ainda bem o mestre não tem dado costas, tornam á mesma, ou ainda a peior, fazendo uma ingresia infernal. Assim foram os nossos amigos. Alguns d’elles até pareceram que viam lobo, e tanto se lhes puzeram os cabellos em pé, que o mestre teve de dar mais vezes novo fio ás navalhas, porque já não queriam cortar nem por um Christo: elle mesmo, apesar de pouco medroso, sentiu seus calafrios, quando deu de rosto com o recem-chegado. Este não era nenhuma cara de metter medo, mas tambem não mostrava ser de muitos amigos. Entre os trinta e os trinta e cinco, os cabellos já se lhe começavam a encher de brancas, e a cara de rugas. Parecia triste; e sem dar nem uma palavra esteve na loja até que lhe chegou a sua vez, barbeou-se e saiu, cumprimentando todos á saída como o tinha feito á entrada. Levou comsigo a callada. Apenas voltou para a azinhaga mais proxima começaram todos a desenferrujar a lingua, como se tivessem medo de que lhes ficasse lesa com o tempo, que estivera sem bulir. E como de razão, foi o mestre Ignacio, quem atirou primeiro a sua bola. —Excommungado d’uma figa! Cruzes demonio, e embirrou com a minha loja o maldito. —Parece que anda em peccado mortal! —Podera não, se elle desde que veio para estes sitios não foi ainda á missa. —E que olhos que deita para a gente? Pae do céo! É capaz de nos dar quebranto! —Sim, que o não deu outro dia a uma jumenta da Felicia, que desde que elle a viu não teve uma hora de saude. —Quem a Felicia? —Não a jumenta; se elle é lobishomem! —Callem-se lá, leva de má lingua, parece-me que já é de mais; estarão vocês tão limpos de consciencia, para assim poderem entrar pela terra alheia, como se fosse roupa de francezes? Era a voz do bom prior. Apenas tinha começado a ladainha, procurára logo pôr-lhe cobro, mas foi trabalho de malhar em ferro frio. Era um dize tu, direi eu, que promettia não ter fim. Todos queriam molhar a sua sopa; porém quando um carreiro velho, que era pessoa acreditada na loja, affiançou que o tal estrangeiro tinha embruxado a burra da tia Felicia e que era lobishomem, ficaram todos passados em pontos de admiração por um instante, e n’essa occasião mesmo, é que o prior poude socegar aquella algaravia. Ninguem se atreveu a retrucar. Todos tinham os seus podresitos mais ou menos, que o parocho sabia; e por isso todos metteram a viola no sacco, quando lhes foi com as mãos á cara, fallando lhes nas suas culpas. Porém o mestre Ignacio, que não era homem de se atrapalhar com qualquer coisa, quiz vêr se fazia frente ainda, e se podia continuar amolando o caso. —Mas perdôe a sua palavra honrada, sua reverendissima bem sabe que desde que veio para aqui este homem ainda nem appareceu na egreja, nem em logar de reza, ou em festas da freguezia. —O que tem o mestre com isso? Todos fallam, fallam sem saberem o que dizem, o caso é dar á lingua. Esse homem não é nenhum hereje, eu sei quem é. Se não vae á egreja, talvez que a egreja vá ter com elle. O mestre bem sabe que não é esta a primeira pessoa de quem se duvida; outros havia que nem por muito irem á egreja, passavam por christãos de lei. O padre tinha dado no vinte. O barbeiro ficou sem tugir nem mugir, porque se lembrava da fama de judeu que por aquelles sitios tivera, e que lhe ia acarretando mais de uma carga de pau; os outros, que viram as barbas do visinho a arder, foram deitando as suas de molho, esgueirando-se á formiga, apenas acabaram de fazer a barba. O remedio do parocho não produziu effeito; por que, dias depois, já tornavam á mesma: agora se tinham razão julguem-n’o lá pela historia do tal homem, que mais tarde vim a saber. O freguez com que tanto se estomagára o mestre Ignacio, tinha vindo para aquelles logares havia dez annos pelos tempos das vindimas. Alugára uma casita pequena, que fica mesmo defronte da egreja, onde está agora o Manoel Ferrador, e que tem vae por meia duzia de geiras de pertenças: para ali se mettera com mulher e filhita que trazia comsigo. Parecia gente morta, não saiam nunca, salvo a mulher, que de manhã cedo ia aos seus arranjos: e não procuravam dar-se com pessoa alguma da visinhança. E lá n’isso faziam bem, que a maior parte das vezes estas velhas onzeneiras e visinhas palradoras vão ás casas dos outros para darem fé do que lá se passa, e para depois á porta da rua, á tarde ou pela manhã, cortarem pelas vidas alheias como ferro de arado por terra mechida de fresco. O que é verdade porém, é que este seu systema, não lhe tinha creado amigos, nem levantado uma reputação de encher as medidas. Todos murmuravam d’aquelle modo de viver, e estavam de alcatêa sempre para vêr se achavam fio á meada. Tinham reparado por vezes que a pobre mulher, que parecia boa pessoa, saía quasi sempre com os olhos inchados e como quem acabava de chorar; mas por mais que se pozessem á escuta não tinham topado nunca signaes de ralhos ou resingas: antes se poderia dizer, se o dono da casa não tivesse tão má fama, que viviam como Deus com os anjos. Uma noite, alta noite, já tinham cantado os gallos, morava eu então ao pé da freguezia, ouvi tocar a Nosso Pae fóra, levantei-me e fui acompanhar o viatico. Era para casa do mesmo homem, que tinha visto, pela primeira vez, na loja do mestre Ignacio, e que estava para dar a alma a Deus. Como o caso não era para se estar com pannos mornos, o parocho tratou de começar a confissão, e nós quizemos sair do quarto, para deixar o doente mais á sua vontade, como é costume. Elle porém não o consentiu, e, fazendo-nos signal para ficar, disse-nos com modos que me não passaram ainda: —Grandes foram os meus peccados, se esta historia lhes poder aproveitar, que a oiçam todos; porque só assim servirei a alguem. Não havia que dizer, e de mais a mais o demo da curiosidade apertava comnosco. Ficámos, e na verdade disse coisas para se ouvirem. O quarto estava allumiado por uma lamparina a tremelicar e a dizer adeus. A luz, que espalhava pela casa tinha um tanto de soturna e de aterradora. Á cabeceira estava o padre, a alvejarem-lhe as roupas e cercado por um não sei que, mais do céo do que da terra; a seu lado, o moribundo, estendido na cama, e estorcendo-se na agonia. Têem visto lá para o Minho, ao pé dos castanheiros, uma videira que levou um córte na cepa, e que em vez de enleiada aos troncos da arvore, se lhe roja pelo chão, quasi a morrer, como uma cobra, que leva com uma pedra na cabeça? Pois assim me parecia aquella vista, bem triste que ella era! Mas o que me cortou o coração foi vêr a triste senhora lavada em lagrimas aos pés da cama, de joelhos, abraçada a uma creança que teria quando muito tres annos, e que, adivinhando o que ali se passava, tambem carpia, gritando quasi sem parar: —Não quero que o pae morra, não quero que o pae vá para o céo! Era uma dôr d’alma, e tanto me impressionou aquelle espectaculo, que, palavra a palavra, me lembra do que ouvi n’aquella casa. —Meu padre, dizia o moribundo com voz sumida, conheço que a minha hora chegou, e preciso partir para essa jornada tremenda, limpo de culpas e cheio de arrependimento. Grande me vae esta empreza, mas com o perdão de Deus e vosso auxilio, espero leval-a ao cabo. —Descance: a misericordia do Senhor é infinita, e se os meus soccorros lhe poderem servir, aqui estou d’alma e coração, como é meu dever, para lh’os ministrar. —Ouça-me pois, meu padre, e na historia da minha vida veja a razão da minha desgraça. —Para todo o peccado ha remedio na egreja; falle, e não se arreceie. O moribundo começou assim: —De ruim semente fraco fructo poderia sair, e meu pae, Deus lhe falle n’alma, andou n’este mundo, mais cuidando da vida em que vivia, do que da outra em que devia durar eternamente. No seu tempo, d’involta com os livros bons, havia misturadas, como o joio com o trigo, essas más obras vindas de França, e algumas mesmo d’aqui, que prégavam a falta de religião e o despreso pela Divindade. Pelo menos elle assim o acreditava, e esse effeito lhe tinham produzido. Mais tarde vim a saber que valiam muito, mas que não era para gente rude, que não as percebia, que só lhes apanhava o mau, mais facil de colher, deixando de parte o bom, que andava mais escondido. O mesmo acontece ao podador novato, que deita fóra a vara do vinho, deixando em vez d’ella as outras que devia cortar. Mas lá diz o rifão: quem não sabe é como quem não vê; e meu pae, andava tanto ás escuras, que fugia da luz da graça, como lobo do povoado. Assim me creei, e assim vivi tambem até agora, e Deus sabe quantos desgostos me tem custado esta minha triste cegueira! Pobre de mim! Não me lembrava de que o homem anda cá n’este mundo como o arado em terra de semeadura. Se o lavrador não tem mão na rabiça ou se descuida do trabalho, eil-o ahi vae corrido com os bois, como o homem com as paixões por terras e ribanceiras, enterrando-se aqui a mais não poder andar, resvalando além a não deixar rego. Assim me ensinára meu pae, com magua bastante de minha mãe, que se finava e padecia; e assim ía creando meus filhos, se o lavrador sagrado, que lá de cima nos vê, me não encaminhasse, lançando mão do arado, que ameaçava partir-se de encontro aos barrancos d’este mundo. Ainda em creança, os rapazes do sitio fugiam, quando procurava brincar com elles. Chamavam-me o _diabo pequeno_, e temiam-se de mim como do fogo. Eu em paga escarnecia-os por irem á egreja, ou dava-lhes pancada de cego quando fugiam de brincar comigo. Todavia soffria immenso por me vêr sósinho. Os entretenimentos de creança, que tanto agradam nas primeiras edades, não eram para mim, que vivia como o espargo no monte, á ventura e ao desamparo. É voz do povo: só se veja quem só se deseja, e rifão bem verdadeiro. Tambem o é que a solidão nos dá maus conselhos e causa os maus pensamentos. A planta lançada á terra sem cultura e sem cuidados, vegetando em mau torrão, crestada das geadas e dos soes, e sacudida dos ventos; se cria vigor e robustez, tambem ganha espinhos para os troncos e amargo para os fructos. Entregue só a mim, conhecia que o coração se empedernia e apertava, ficando de rija tempera, sem se dobrar á compaixão nem ao amor do proximo. Se eu era assim, a culpa não era minha de todo; mas o castigo, esse aguentei-o em cheio. Muito em creança me faltou minha mãe. E a triste consolação de a acompanhar á sepultura, de rezar por ella na egreja, de lhe derramar lagrimas e agua benta sobre a cova, foram coisas que a minha má sina me prohibiu. Entrar na egreja, eu, e provar fraquezas dobrando-me a pedir ao Senhor! Não o podia, era de vil, e não de um espirito forte e desamparado de credulidades de velhas. Ir sobre uma pouca de terra, onde alguns ossos ficavam e a carne se apodrecia, recitar orações, em que não acreditava, era loucura que não devia praticar! E assim, padre, com a morte de minha mãe perdia eu muito mais do que outros a quem semelhante desgraça succede. Esses ao menos esperam tornar a vêl-a na outra vida, e a morte sómente lhes é como separação de pouco tempo. Para mim era o apartamento eterno. Aquella cova roubava-me minha mãe para sempre. Nada ali me podia fallar e a terra ficava muda, como os céus já de ha muito o eram para mim. O que senti então, Deus o sabe, que eu nem o posso dizer nem mesmo sei o que foi. Era como a planta enfezada, que se lhe vê partir o extremo esteio, sem encontrar mão amiga que a ampare, e que desde então receia a menor aragem que a faça encurvar, ou o menor encontro que a derrube. Cresci, cresci, e a descrença continuou a crescer em mim. Semelhava-se aos animaes na dureza; a muitos na ferocidade, a todos no embrutecimento. Por estes tempos ainda se me apresentou occasião de emenda; mas regato que de principio erra o caminho, não é quando se lhe engrossa a corrente com as cheias que póde tornar ao leito; nem planta que de pequena vae torcida, póde, quando cria maior tronco, ganhar a direitura que perdeu. Uma mulher d’aquelles sitios, que vivia recatada em companhia de sua mãe e resguardada por ella, como o fructo pelas folhas, reparou em mim uma vez e tomou-se de amores por quem não a merecia. Estas coisas não se explicam. Porque ha de a violeta dar-se e florescer escondida, quando outras flôres por ahi, que menos merecem ser vistas, não se querem senão nos jardins a bom recato e bem cuidadas? Porque ha de aquelle pedaço de ferro dos relogios de sol aqui do campo voltar-se sempre para o mesmo lado; ou porque ha de a flôr das boas noites abrir-se ao pôr do sol e cerrar-se quando elle nasce? Porque ha de a mulher perder-se de amores pelo homem que vê pela primeira vez, e que muitas vezes a esquece depois? São mysterios da natureza, que ninguem póde devassar, mas que nem por isso deixam de existir. Joanna, é o nome d’essa infeliz que ahi me chora aos pés da cama, amou sem que lh’o merecesse, e o seu amor, em vez de me abrir os olhos, mais m’os cerrou ainda. Comecei a querer-lhe tambem. Como foi não o sei: mas desde esse momento todas as tardes nos procuravamos, e todas as tardes repetiamos juras de um amor eterno. Começaram a estreitar-se as nossas relações como duas plantas que uma á outra ligadas mais se apertam com o crescer. Já na aldêa se murmurava, e já se espalhavam rumores contra a pobre Joanna, que se amofinava e entristecia. Um modo facil de remediarmos tudo era o casamento; porém eu que não acreditava na santidade d’aquella ligação, não queria, nem por sombras, cair em semelhante fraqueza. Ella acreditava em mim como n’um livro aberto. Convenci-a da loucura de seus desejos, e da fé que me prestava, nasceu a descrença na fé em que se creara. A minha maldade crestou a innocencia d’aquella virgem, como o mau vento cresta a relva: e a apaixonada donzella conheceu que era mulher, e envergonhou-se de o ser. Como a flôr que perde as folhas e as bellezas quando se lhe desenvolve o fructo, tambem ella perdeu as rosas nas faces e as canduras da alma, quando conheceu que ia ser mãe: e de pejo do que soffrera, encerrou-se na sua magoa, como certos vermesinhos se involvem no casulo que lhe serve de protecção. Para ninguem podia já ser mysterio o seu estado: a pobre mãe, que via a perdição da filha, deixou-se finar de magoa. E nem uma flôr desfolhámos sobre a sua sepultura; nem uma queixa soltou a infeliz, porque dôres d’aquellas, não ha palavras que as expressem, como não ha côres que possam representar o negrume da tormenta. Nossas mães, que hoje estão no céu, quantas lagrimas não carpiriam juntas, ao attentar nos desventurados erros de seus filhos; mas por mais que sobre nós ellas cahissem, de nada poderiam servir, como nenhuma chuva póde fertilisar o terreno maninho, ou a charneca esteril. Desde então, padre, a minha vida tem sido um penar continuado, um soffrimento sem cessar. O remorso rala-me a alma: a lembrança d’aquellas santas atormenta-me de dia e de noite: a vista da mulher, que perdi, desvaira-me; e a idéa da minha filha, a filha querida da minha alma, a quem não posso dar nome perante Deus, porque não foi ainda purificada pela agua santa do baptismo dos peccados de seus paes, nem perante os homens, porque seu pae e mãe não se podem assim chamar á face de mundo, quasi que me enlouquece. E a duvida a perseguir-me como um demonio agachado em logar santo, e eu a abrir-lhe os braços como a seara ao fogo que a vae consumir, e a cerrar os olhos á fé, como a toupeira á luz do sol. A natureza com as suas grandezas todas, a flôr com o seu aroma e côres, a ave com o seu cantar, o céu com as suas estrellas, e o mar com as suas ondas de prata, tem sido harmonias perdidas, que só me fallam do acaso e que nada mais me fazem lembrar. Tenho cerrado os olhos á luz e a alma á razão. Não tenho procurado coisa alguma no passado nem esperado do futuro. Tenho sido o navio sem rumo e sem norte, que navega á tona d’agua; o viajante perdido, que não encontra fim ao caminho, nem trilho para voltar a d’onde partira. Para que viera a este mundo, quando por acaso m’o perguntava a mim mesmo, era o que não sabia dizer; e cansado de o perguntar sem resposta, mudo de pensamento como o mendigo de porta a que tem batido debalde. Tenho-me supposto feliz e tenho vivido como as feras; tenho-me julgado senhor de mim porque não tenho conhecido o Senhor de todos. Mas ha dias tudo se mudou em mim. Minha pobre filha sahira de manhã, e esteve lá por fóra mais do que o costume. Perguntei-lhe o que fizera, porque se demorára: e a sua resposta foi como a luz da madrugada rompendo em descampado para o viajante perdido. «Meu pae, me disse, quando sai, ouvi ali defronte uma musica tão linda, tão linda como ainda não ouvira em minha vida outra semelhante. Vi uma porta aberta e entrei para ouvir melhor. Era uma casa muito grande, muito grande, e onde estava muita gente de joelhos. «A musica vinha de uma janella de grades, d’onde saiam tambem vozes de senhoras; e os que ali estavam pareciam tão entretidos, que nem deram pela minha entrada. Com medo que me reprehendessem por ter entrado sem licença, perguntei a uma mulher, que me parecia boa pessoa, quem eram os donos d’aquella casa tão grande e que tão ricos deviam ser. «Admirou-se da pergunta e disse-me se lhe fallava devéras. «Devéras, minha senhora, eu não conheço ninguem d’esta terra; vim ha pouco tempo para aqui com meu pae e minha mãe, e nunca saio de casa. «Pois olhe, minha filha, esta casa é uma egreja, e seus donos são aquelles que além estão, pae e mãe dos homens e do céu. «Olhei e vi uma senhora e um homem, que me pareceram tão bons, tão tristes, que desatei a chorar. «Elle estava de braços abertos, como o papá quando me chama para o seu collo, e ella parecia-me minha mãe, mais bonita ainda, quando está ao pé da cama olhando para mim com os olhos arrasados em lagrimas, emquanto não adormeço. «Eu queria-lhes fallar, meu pae, conheço que me haviam de dizer muitas coisas boas, mas como me tem dito que não quer que converse com pessoa nenhuma de fóra, tive medo que ralhasse comigo, fui-me embora; mas com tanta pena! Por minha vontade estava ali sempre a olhar para elles até que olhassem para mim, e me fallassem tambem.» Como ella chorára, chorei eu então. Aquella voz infantil veio despertar-me a fé adormecida, como á mãe extremosa, quando a dormir, os choros do filho querido. Desde esse momento um raio de luz allumiou-me as trevas, em que vivia. A flôr, a terra, o mar e o céu, tiveram vozes que me fallavam e que eu percebia. A flôr erguendo-se para as alturas; a terra levantando ao romper do sol os vapores tenues da madrugada como rolos de incenso á Divindade; o mar erriçando o seu dorso de vagas ao signal da tormenta e coroando-se de espumas; o céu recamado de estrellas, recordavam-me a existencia de Deus, creador de tudo que me cercava, e que em tudo tinha estampado o sello de suas mãos como o artifice nas suas obras. Tambem o Senhor, que se parecia ter esquecido de mim, ao vêr-me arrependido lembrou-se de que existia: quer me chamar á sua presença, como o pastor, que ao vêr melhorias na rez contaminada, que lançou a monte, procura, pelos cuidados e disvelos, livral-a das enfermidades e males. Hoje, padre, que avisto a immensidade da morte sem receio, e a eternidade sem pavor, hoje que tenho fé no meu Deus e esperança na salvação, peço-vos, padre, a benção para o contricto, e absolvição para o peccador. —Eu te absolvo, disse o padre com voz solemne, que por muito tempo me estrugiu aos ouvidos, e o Senhor de caridade vos perdoa por minha bocca. N’este momento em lagrimas chegou-se a pobre Joanna ao leito do moribundo: e a filhinha, que a acompanhava, ficou debaixo dos jorros d’agua que corriam em fio dos olhos de seus paes. O parocho attentou n’aquella vista, e como levado por idéa do céu, disse, abençoando a creança: Eu te baptiso em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo; as lagrimas de teu pae e as de tua mãe, peccadores mas arrependidos, essas lagrimas de contricção, tão gratas a Deus, te sirvam de agua de baptismo. Vae em paz, és christã. Logo em seguida tratou de casar aquelles dois, que pela alma e pelo amor já estavam casados; e acabada a cerimonia, a alma do agonisante, que nada mais tinha que a prendesse á terra, começou a soltar-se do corpo para voar á morada eterna. Elle conheceu-o, e com voz difficultada pela agonia disse ao sacerdote: —Abri-me essa janella meu padre, vou morrer, quero adorar ainda o Creador na sua obra. Um de nós correu a satisfazer-lhe a vontade. Já era manhã, e o sol vinha apparecendo fronteiro a romper por entre labaredas de fogo; o padre estava de costas para a janella; o vulto recortava-se-lhe sobre a luz, e os seus raios pareciam formar-lhe um resplendor de santo.—E se o era! Desviou-se para o lado, e um raio de sol veio bater de chapa na face do agonisante; parecia um signal mandado por Deus em prova de perdão. Foi elle quem chamou de novo á vida o que parecia já um cadaver, e lhe deixou proferir com grande esforço estas ultimas palavras: —Illuminae minha alma com a vossa divina graça, como me allumia agora o sol, que desponta no firmamento, perdoae-me Senhor! Passados momentos, o padre rezava sobre o cadaver as rezas de defunctos, e no dia seguinte nós todos iamos com os olhos arrasados de lagrimas, conduzir á sepultura o cadaver d’aquelle a cuja morte tinhamos assistido. III A proposito da missa do dia Entre os trabalhadores da quinta, havia um chamado Antonio, bom rapaz, é verdade; mas que tinha um defeito, de que se não corrigia. Era mentiroso, como os que o são, e quando o não acreditavam, amontoava juras, qual mais tremenda ou de mais responsabilidade e respeito para um homem de bem. E era pena; porque poucos havia tão laboriosos como elle. Era conhecido pelo—gallo da madrugada—titulo bem justificado em vista do que se apressava em concorrer ao trabalho: e não poucas vezes os pobres beneficios, que o seu magro peculio lhe permittia fazer, vinham a constar, pelos outros e não por elle, muito em seu abono e boa reputação. O tio Joaquim, conselheiro honorario d’aquella republica tinha-o reprehendido muito; mas aquelle maldito sestro não o queria o Antonio perder nem a bem nem a mal. Era o seu senão, que lhe acarretava não poucos dissabores e com o que não pouco prejudicava os outros. Era n’um domingo, e depois da missa do dia, no adro da egreja estavam reunidos, em mó, os saloios d’aquelles sitios que tinham concorrido ao santo sacrificio. De fatos domingueiros, e varapaus ferrados, discorriam pelas novidades do logar, exactamente como os nossos elegantes á porta do Marrare, ou nas salas do Gremio. Diga se a verdade; as Marias e as Joannas não deixavam de influir n’aquellas reuniões, porque não poucos eram os que ali compareciam levando em mira fallar ás suas requestadas, ensaiar requebros, ou ajustar entretenimentos para as horas de sesta ou para as tardes dos dias santos. O nosso Antonio tambem não faltava á reunião, e já por mais de uma vez fizera das suas, sem consequencias de maior, pelo pouco credito que tinham n’aquelle mercado campestre as notas do nosso caramboleiro. Havia no logar uma rapariga que se podia chamar uma perfeição, e que fazia tanta differença das suas companheiras, como a rosa de musgo das rosas carrasqueiras dos vallados. Era gentil e mimosa, não tinha as côres de saude, nem aquelle acerejado do sol, ou fórmas robustas e quasi viris da raparigada do campo; mas era mais esbelta, mais pallida, mais clara e com uns olhos tão negros, tão negros, que lhe saiam da alvura do rosto, como dois diamantes negros engastados em esmalte branco. Vivia arredada e em recato, e não apparecia em arraial ou festa, senão de anno em anno e quasi por milagre. Chamavam-lhe—a fidalga,—e o nome casava tanto com a sua distincção de maneiras e garbo de porte, como o soar das ave-marias com os descampados das serras. Como já se deve suppôr, os fragatas da terra tinham pretendido as honras de arrojado; mas debalde, porque os rejeitava, e quasi todos descoroçoados tinham desistido da empreza. Digo quasi todos, porque dois ainda lhe arrastavam a aza, um, (aqui em segredo,) era attendido e bem olhado; o outro, mais feliz, nem fallar n’isso é bom, mordia-se de raiva pelos desdens que soffria, e pelo pouco em que eram tidos os seus requebros e paixões. A escolha de Emilia tinha sido acertada, porque o José da Avó era o mais guapo moço d’aquellas duas leguas em redor. Desempenado e direito como uma vara de abrunheiro, valente como um pau de carrasco, generoso e de brio, como nenhum: nem o mais pintado lhe levava as lampas em trabalho de fazenda, em jogos de pau, ou em balharicos de domingo. E cantigas! Sabia-as elle cantar, como os que as sabem; entoava uma desgarrada ou sustentava um desafio, mais afinado e a preceito do que muitos d’esses italianos em segunda mão, que os empresarios nos impõem como notabilidades cantantes. O outro pretendente não era muito cheio de não presta: mas ao pé do José da Avó ficava a perder de vista, o que não admira; porque vasados n’aquelles moldes não havia muitos no logar. Elle porém, como não queria attender á razão, damnava-se jurando pela pelle do ditoso preferido. Este era o estado da questão na manhã do tal domingo, e os dois rivaes conservavam-se a distancia respeitosa no meio de dois grupos distinctos. Tinha saido já quasi toda a gente da egreja, quando Emilia se retirou, sem que lhe faltassem commentarios, emquanto passava por meio dos grupos. —Olha a delambida! soltou d’ali uma das raparigas mais feias da terra, parece que vae com o rei na barriga, nem olha para a gente. —Era o que faltava, a fidalga! —Vae toda enlevada no seu José, tem medo que lh’o tirem do lance. N’isto o nosso Antonio, que não queria ficar atraz, tambem se intrometteu na conversa, dizendo com modos de quem estava corrente com os mysterios d’aquelle circulo: —Pois faz elle bem em perder o seu tempo, porque ainda não ha muito que vi o Miguel de conversa com ella á porta de casa, e pelos geitos que a coisa levava, não era a primeira vez que se fallavam. —Ora tu sempre tens uma lingua! —Um raio me parta se minto; tinha-me calado e feito vista grossa, mas agora ferveu-me o sangue quando a vi assim como quem queria deitar lama para a cara da gente. As palavras de Antonio não tinham caido no chão. José, desconfiado como todos, estivera de ouvido á escuta e não perdera nem syllaba. N’outra occasião voltaria de certo as costas ao maldizente, mas d’esta vez mudava o caso de figura: o ciume acreditava a voz do mentiroso e a tremer chegou-se ao pé d’elle, perguntando-lhe com voz indecisa: —Juras que é verdade o que acabas de dizer? —Se é! os diabos me levem se minto; eu por mim não queria causar-te nenhuma aquella; mas assim como assim mais tarde ou mais cedo havias de vir a sabel-o; e, verdade verdade, ella não te merece. —Basta, lhe retorquiu o pobre José, e foi-se como um raio até onde estava o supposto arrojado. Inutil é dizer que tinha sido tudo isto enredos e obra de Antonio. Soltára as primeiras palavras como por demais, sustentára o dito por capricho, mais tarde para que não suppozessem que tornára com a falla ao bucho por medroso. Do outro lado do adro uma floresta de paus se levantava no ar, e já as navalhas estavam fóra das algibeiras; os dois tinham-se travado de razões, e como palavra puxa palavra, tinham passado dos ditos a vias de facto e malhavam um no outro como se fosse um monte de milho. Ambos tinham partidarios, e por conseguinte a lucta assumiu proporções maiores; porém por muito encarniçada que fosse entre os partidos, parecia um brinco de creanças á vista d’aquella em que os dois se tinham travado. Davam como quem se despedia do mundo, e como quem desejava vêr estendido no chão o seu contrario. Ao principio arrancaram dos paus e começaram a atirar as primeiras pancadas, que quasi todas cairam em cheio; até que Miguel, depois de ter jogado umas poucas de sortes ao seu adversario, e como ambos estavam _descobertos_ e só queriam dar, dissimulando uma pancada á cabeça, lhe dirigiu o pau por meia volta no ar ás pernas. Quando lá chegou já o seu adversario o tinha procurado aparar, porém tanto em mal, e tão puxada d’alma ia a contraria, que o pau colhido no meio, não o aguentou e partiu-se; e o outro não encontrando resistencia no corpo de José, porque elle já lh’o tinha furtado, foi de encontro ás pedras do adro e partiu-se tambem. Vendo-se desarmado, Miguel não perdeu tempo: correu sobre o inimigo com uma navalha e baldeou-o logo no chão jorrando sangue por uma ferida no ventre. O assassino, apenas commettido o crime, tomou as de Villa Diogo, e a desordem começou a apaziguar-se com a chegada dos cabos da terra, que tratavam de remover o ferido e de prender os combatentes. O causador de tudo isto tinha, logo que viu tomar ao caso uma feição que lhe não suppozera, procurando socegar o motim, confessando a sua mentira, porém já era tarde, n’aquellas alturas qualquer intervenção seria inutil; teve pois de assistir arrepelando-se, dizendo mal á sua vida, áquella triste scena, e promettendo, com mil juras que não mentiria nunca mais; ajudou soluçando a levar o ferido para sua casa na maca, que tinham ido buscar, e accusando-se todo o caminho de ter sido elle, e só elle, o culpado de tudo que succedera. Nos tres dias, que succederam á catastrophe, não se fallou n’outra coisa nos serões da quinta. Conhecia-se que o tio Joaquim por vezes tinha vontade de fallar, porém tão sincero lhe parecia o arrependimento de Antonio, que sempre desistia do intento. Uma noite, porém, o nosso mentiroso, já esquecido das juras que fizera, começou, por uma coisa que nada valia, a invocar os santos todos do Paraizo em seu testemunho, e a pedir raios e coriscos para castigo se mentisse. O velho narrador d’essa vez saltou lhe no gallinheiro, dizendo com aquella placidez de espirito, que tão habitual lhe era: —Este Antonio faz-me lembrar o João da Tenda, que vivia lá em baixo ao pé das casas do mestre Raymundo e que por dez réis de mel coado fazia juras e protestos ás carradas. Em mal lhe deu o vicio, coitado! —O que lhe aconteceu, tio Joaquim? —O que foi, o que foi? —Conte, conte; ha tanto tempo que lhe não ouvimos uma historia! —Pois bem, soceguem, que lhe não faltarei hoje, e não será por culpa minha se esta lhes não agradar. O pobre do Antonio tinha pedido misericordia com um olhar de supplica: mas o velho compromettera palavra e não havia de se esquivar á promessa. —Diz lá o rifão: «quem compra e mente na bolsa o sente;» como diz tambem: «homem de boa lei tem palavra como rei», isto era quando os reis tinham palavra, se alguma vez a tiveram, que d’essas coisas não sei eu, e quando não faltavam ao que promettiam. O que é verdade é, que se o mentir prejudica a honra e o corpo, não menos prejudica a alma estar, por dá cá aquella palha a fallar no santo nome de Deus, e no dos santos, que não são pontos com que se brinque. Nenhum, dos que aqui estão, vae incommodar o patrão para coisas que não valem a pena, e muito menos por conseguinte devem ir bater á porta dos patrões mais subidos, para de mais a mais os tomarem para testemunhas e parceiros de coisas que não só não valem a pena, mas que são mentiras ainda em cima. E depois, quando se apanha fama de mentiroso, não ha quem nos acredite por mais que deitemos os bofes pela bocca fóra, e ainda mesmo que fallemos a verdade. Mau é dizer-se que o cão é damnado. —Mas se fôr para fazer bem, não se deve mentir tio Joaquim? —Para tudo ha remedio. Uns homens que perseguiam outro, perguntaram a um santo, que encontraram no caminho, se tinha visto passar o malfeitor. O bom do santo tinha-o visto, não havia muito; mas nem o queria denunciar, nem mentir tambem: já vêem que elle estava n’esse caso, e que se devia vêr a perros. —É verdade, é verdade, e que respondeu? —Que por ali não passára; e como estava com as mãos nas mangas, apontou para dentro d’uma d’ellas, por onde de certo o tal homem não podia caber. —Ora! exclamaram alguns dos circumstantes, como admirados. —Parecia santo saloio, tornou d’alli um _ratinho_, ultimamente embaçado na compra d’uma enchada. —Nada que não, respondeu lhe logo o vendedor, que o percebera á legua, não tinha alma de beirão, que lá diz o dictado: no bom beirão corpo e alma pequenos são. Talvez a questão se azedasse mais se o tio Joaquim os não interrompesse logo gritando: leva de rumor, vamos á historia do João da Tenda. Quando vim para esta terra, já vae n’um par de annos, tinha elle uma lojasita lá no largo de baixo, mesmo á esquina da estrada real. Era um pequeno modo de vida, que bem cultivado podia produzir bastante; mas como havia descuido no amanho a colheita foi infeliz. N’estas coisas de negocio a reputação de homem de palavra se não é ouro de lei vale-o bem; e d’esta riqueza o bom do João era mais pobre do que Job. Ninguem se fiava n’elle e o credito diminuia cada vez mais. Direito em contas e honrado era: porém aquelle sestro maldito de mentir por dá cá aquella palha, a mania de fazer juras e protestos, que nunca se realisavam, fazia com que lhe roessem a corda na maioria dos ajustes, sem que tivesse direito de se queixar, porque não era mais do que pagar-lhe na mesma moeda. Assim iam os tempos e o negocio corria-lhe por agua abaixo. Para maior desgraça, no sitio onde não havia senão a loja do João, veio estabelecer-se uma outra e tirar-lhe a freguezia. Era do José Fernandes, que ainda hoje lá a tem no mesmo logar, e que sabendo o valor do dictado—cara alegre ganha vontades,—tratou, emquanto o seu visinho andava de maus modos, porque os tempos iam maus tambem, de chamar freguezes, tratando-os ás mil maravilhas, e desfazendo-se em bons serviços. João tinha uma filha, a menina dos seus olhos, e uma flôr de enche-mão. Mais guapa rapariga não havia de certo por aquella meia duzia de leguas em redor; e se tivesse nascido na cidade, se lhe tivessem debastado as grossuras dos campos com a plaina das fidalguias, metteria de certo a um canto essas arrebicadas, que para ahi vem passar os verões e que parece que se estão mesmo a desfazer. É bem certo, que não ha panella sem testo, e para vasilha de tão fina loiça, é preciso que a tampa lhe não desmereça da qualidade. E assim era o arrojado de Joaquina: rapaz bem feito e espigado, forte de corpo e affeiçoado de rosto, um d’estes de quem não ha nada que deitar fóra. Como é de crêr, entendiam-se que era um regalo, e morriam um pelo outro. E que bem acertado por elles eram! Joaquina, delicada e fina como uma rosa de toucar, ou uma flôr de madre-silva: Domingos, forte como um zambujeiro e direito como um prumo. Encostados um ao outro, quando se fallavam ás furtadellas ao descair da tarde, pareciam, tanto ella se ageitava a elle, e tão erguido elle estava, contente por a ter comsigo, a haste da cruz de pedra que está defronte _dos Ouriços_, vestida com as braçadas flexiveis da hera, que lhe nasceu ao pé. Ninguem lhe invejava a felicidade; antes, pelo contrario todos gostavam de os vêr assim, pois pareciam ter nascido um para o outro. Mas sabem de certo, que não ha bem que dure sempre, e o d’elles por isso havia de acabar em pouco tempo. O pae de Domingos, Deus lhe falle na alma, era um fazendeiro abastado dos sitios, que contava para cima de vinte geiras de terra de pão, fóra umas seis courellas de trincadeira, duas hortas valentes, e um pomar de caroço de mais de trezentos pés de fructa. Por conseguinte o rapaz era um bom casamento para a rapariga, e por isso o João fazia a vista grossa. Que de mais a mais o noivo era moço de honra e incapaz de abusar. Mas não assim o tio Fernandes, que não engraçava com o tendeiro por as suas mentiras, e que nada queria com gentes, que pertencessem ao caramboleiro. Tinha sido toda a sua vida homem de palavra, as suas promessas eram mesmo um evangelho, e quem não seguisse este modo de vida nada tinha feito com elle. Domingos, como é de querer, tinha escondido do pae os seus amores com Joaquina. Uma vez por outra procurou sondal-o a tal respeito, porém, como visse que era tempo perdido, tinha desistido da empreza, e assim ia tenteando o namoro com esperanças em que ou o velho cedesse da birra, ou o outro do vicio. Foi por estes tempos que se armou uma das tantas guerras que por ahi tem havido na nossa desgraçada terra. Era preciso tropa e trataram de recrutamentos com toda a força. Domingos, foi um dos sorteados. Seu pae, rico bastante, podia com facilidade pagar a um homem para o substituir, o caso era que o quizesse, e tanto que estava resolvido a sacar uma duzia de loiras da arca, onde estavam havia um par de annos sem vêr sol nem lua. Era um domingo á noite, e o tio Fernandes recolhia-se de uma feira de gado onde fôra comprar uma junta de bois, de que precisava para a lavoira. Vinha deitando contas á sua vida, e tão entretido que nem lhe tinha custado o caminho. Ao voltar de uma azinhaga avistou de longe dois vultos, que não parecia darem pela sua vinda. Reconheceu-os logo, e percebeu tambem qual o fim com que seu filho tantas vezes lhe tinha desculpado o João da Tenda, e porque tão desgostoso andava por assentar praça. Fez os seus entes de razão, e ajustou com os seus botões, que: désse por onde désse, não se havia de fazer similhante casamento. N’essa noite houve questão até fóra de horas entre Domingos e seu pae. O rapaz confessou tudo e o velho negou-se a pagar-lhe o homem. —Ou deixar o namoro ou assentar praça, disse-lhe o tio Fernandes e Domingos preferiu a segunda condição. Mezes depois chegava á terra a noticia da morte de Domingos. Tinha-se batido como um homem, tinha sido um dos primeiros a atacar, e pagára o atrevimento com a vida. Figurem-se agora qual seria a pena de Joaquina ao saber de similhante noticia. A pobre da rapariga, depois que o seu apaixonado partira, não tivera nunca mais uma hora de consolação. Levava os dias a chorar, que era uma dôr de alma, e ia-se infesando a olhos vistos. João, o culpado de tudo, pelo seu amaldiçoado costume, sem recursos porque os freguezes lhe tinham fugido, e porque o mal de sua filha lhe levava o resto, estava que parecia outro: e n’aquella casa, onde todos viviam contentes, não havia já nem signaes de alegria. A apaixonada moça foi esmorecendo cada vez mais, os medicos não lhe achavam remedio para o mal, e qualquer que lhe receitassem não o queria ella tomar. Acabou a sua cruz, e, em poucos mezes, foi reunir-se a Domingos, n’essa outra terra onde os amantes vivem unicos eternamente, e onde os justos gosam da felicidade sem fim. Quando entrarem no cemiterio reparem para a esquerda, que hão de vêr debaixo do terceiro cypreste, a contar da porta, uma cova com duas cruzes de madeira e uma corôa de perpetuas. Ajoelhem sobre a terra benta, rapazes, e rezem ao Senhor pelo pae e pela filha, que ahi descançam juntos como o tinham estado em vida. Lembrem-se do que lhes succedeu, e reparem, que ás vezes uma mentira póde deitar a terra uma reputação por mais antiga que seja. Rapazes, quando se apanha um homem que não falle verdade, e quando se perde o credito, perde-se em pouco dinheiro e honras. Felizes ainda dos que não pagam com a vida como o pobre João da Tenda. Quando os trabalhadores saíram, chegou-se Antonio ao narrador. —Percebi tudo, tio Joaquim, prometto-lhe não mentir nunca mais nem fazer juras por coisas poucas. —Deus te oiça, tornou-lhe o velho, que és bom rapaz; e se perderes esse mau costume, poucos haverá que te levem a palma. IV Os domingos de fóra da terra Era n’um domingo de novembro. A agua tinha caido a cantaros todo o santo dia, e a chuva fôra tanta, que diziam pelos sitios: já os cães a bebem em pé. Grande parte dos trabalhadores da quinta, em que eu vivia, tinha saido depois do jantar, embrulhados uns em mantas, outros em gabões e gabinardos em direcção á quinta do tio Joaquim de Mattos, acreditado pelo bom vinho que vendia, e pelos bons piteos que lá, de quando em quando, arranjava a sr.ª Josepha, sua respeitavel sobrinha, desenxovalhada moça e uma das mulheres com menos papas na lingua d’aquelles arredores. De tempos a tempos apparecia pela adega do sr. Mattos, Deus lhe falle n’alma, pois era um honrado homem, um ensebado baralho, que cortava a monotonia de um sempiterno jogo de bola, e entretinha quando o tempo estava de peior catadura, os afreguezados frequentadores. Outras vezes tambem um ou outro especulador lisboeta arribava áquellas paragens com esperanças de armar trapaças e jogatinas, e esse então premunia-se antecipadamente com uns dados, de lizura problematica, ou com algumas cartas de egualdade controversa, que manejadas habilmente lhe serviam de traiçoeira isca para os agourentados vintens dos pobres maltezes. Mas, verdade verdade, era uma excepção da regra. O dono da casa obstava quanto podia a estes desvios: e já experimentado nas consequencias, tratava de pôr cobro a semelhantes armadilhas. O domingo, porém, a que nos referimos era um dos taes dias aziagos. Os lisboetas, as cartas e os dados tinham trabalhado muito, acompanhados, já se vê, de um numero infinito de quartilhos de vinho, que n’uma roda viva passavam do balcão para a mesa do jogo, e d’esta para o poder da tia Josepha, que já não tinha mãos a medir. Em medidas effectivamente passara ella o tempo todo; mas nem todas eguaes, porque, por amor do proximo já se entende, quando os via mais carregados alliviava-lhes a mão, e esvasiava-lhes os copos; até que por fim de contas, quasi que, em vista da exiguidade da dóse, mal se poderia reconhecer quanto tinham pedido. Mas decretos da Providencia, que sempre são de immenso alcance, disfarçados mesmo nas tibornias da tia Josepha! Se não se compadecesse tanto dos miseros bebedores, em que estado não ficariam elles, que mesmo assim, quasi sempre, ao sair, não sabiam quem era o cura da sua freguezia! Os nossos amigos trabalhadores, que não queriam passar por homens de ficar atraz em coisas d’aquellas, entraram na quinta, á volta da adega do tio Mattos, que era uma lastima vêl-os. Uns a cair, outros cheios de escalavradellas, e todos elles sem real da feria da semana. Começaram beberricando para não fazer desfeita aos lá da cidade que os tinham convidado; pouco a pouco foram chegando-se para o jogo, ao principio sómente para vêr, depois para jogar. Emfim quando não cabiam em si de contentes, porque iam de cima e tinham alguns vintens diante de si, viram n’um relance de fortuna varrer-se-lhes tudo da frente, á maneira de comoro de vallado feito de terra solta, e que uma cheia leva no enxurro. D’aqui os ralhos e as desordens; apoz as descomposturas, as vias de facto, e quem sabe, se não lhe acudissem, onde a coisa iria parar. Fazer-lhes prégações n’aquellas alturas era o mesmo que chover no molhado. O tio Joaquim, que não era de hoje nem de hontem, conheceu logo que perdia o seu tempo; deu-lhes de mão n’aquella noite, e no dia seguinte ás horas do costume contou-lhes pouco mais ou menos o que se segue: Poucas coisas ha que tanto custem, para nós, que toda a semana andâmos agarrados ao cabo da enxada ou rabiça do arado, como é entreter os domingos e dias santos, que o Senhor nos manda para descanço do corpo e recobro de forças. Depois da missa fica um por ahi além de horas, que é preciso matar sem quebra do temor de Deus, nem offensa do proximo; mas como nem todos sabem o que hão de fazer, acontece quasi sempre, que as perdem, e as perdem muito para mal. As velhas onzeneiras, que almejam pelos domingos para bisbilhotarem as vidas alheias e darem cresta ás colmêas dos outros, dizem que se deve descançar do trabalho, e passam-n’os na ociosidade, que de todos os vicios é o peior; os mal comportados destinam-n’os para as tabernas, do que conseguem, além de ficar moidos e ralados, sem poder fazer obra que se veja nos dias mais proximos, fazerem-se brutos de todo ao cabo de pouco tempo. E dizem que descançam! Qual descanço nem meio descanço! Como se o homem não fosse como a terra, e como esta precisasse estar em pouzio para melhor produzir! Muda-se a sementeira como se deve variar o trabalho, e o melhor descanço não é aquelle que consiste em não fazer nada; ou então, o que é peior ainda, em armar disturbios e levantar rixas. Tres rapazes conheci eu, não ha muitos annos, cada um dos quaes tinha o seu modo particular de entreter os dias de festa, cada um dos quaes tambem escolheu fructos correspondentes ao grão que lançára á terra. Variavam tanto nos costumes e systemas, como se apartavam nas feições, e como se vieram a differençar tambem no destino que levaram. Tinham nascido na mesma terra, e, bem moços ainda, tinham vindo procurar trabalho á mesma fazenda; porque, acostumados a viverem juntos desde pequenos, não se podiam separar nem á mão de Deus Padre. Roberto, o mais velho de todos, era feio de cara e de peior catadura. Zangava-se por dez réis de coisa nenhuma, e quando estava zangado dava por paus e por pedras. Tinha tanto de robusto, como de mau, e só respeitava, de toda a gente, os seus dois companheiros, Pedro e Anastacio. O primeiro d’estes fazia tanta differença de Roberto, como o dia da noite. Franzino e delgado, parecia que o menor sopro o deitava a terra, e lembrava mais um alfinete de toucar do que um trabalhador de enxada. Comedido e de bons termos para todos, em pouco tempo ficou sendo o ai Jesus da fazenda, onde morriam por elle. Anastacio, o ultimo em que lhes fallei, era, por assim dizer, como uma ponte entre os dois. Fazia lembrar o outono entre o verão e o inverno. Se era desembaraçado e lesto como Roberto, era bom como Pedro, estimava um e outro devéras: mas se não podia levar a bem os arremessos e maus modos de Roberto, não gostava tambem muito de tanto de não presta, de que estava cheio o outro seu companheiro. Não lh’o deitava á cara para não o envergonhar; mas muitas vezes lh’o ouvi dizer: —Não se ha de fazer nunca d’ali coisa que tenha geito, parece um Sant’Antoninho onde te porei; nasceu mais para fiar n’uma roca do que para puxar ao trabalho com substancia. Não é culpa sua, isso é verdade, mas por mais que me digam, aquillo foi erro da natureza. Em pouco tempo teve cada um uma occupação adequada ás suas posses. Pedro, que mais não podia, foi encarregado de guardar um rebanho de ovelhas e cabras, que tinha mais de duzentas cabeças; Roberto tomou conta da abegoaria e das cocheiras; Anastacio ficou de rancho na malta, entre os trabalhadores de enxada. Como é bem de vêr, o peior dos tres começou a fazer das suas: trabalhava de má vontade, embebedava-se, e tratava do gado á moda de mil demonios. O mais fraquito, bem ao contrario, começou a fazer as vontades aos patrões e a cair lhes em graça. Tanto fez, tanto fez, que o filho da casa pegou a ensinar-lhe a lêr, coisa porque elle morria havia muito tempo, e em que entretinha os domingos, passando os dias de semana, em quanto o gado pastava, a estudar as lições e a puxar por si; o Anastacio que não podia aturar a lettra de imprensa, nem, segundo dizia, tinha cabeça para aprender, começou a fazer economias para, logo que podesse, tratar de casar com uma rapariga da sua terra, com quem estava justo desde pequeno. Emquanto uns iam para as tabernas e Pedro dava lição, elle, que não queria gastar o dinheiro em extravagancias, nem atormentar a cabeça com aquellas tontices dos livros, procurou vêr se aprendia algum officio ou arte, em que se entretivesse, e em que passasse o tempo com toda a economia. —Porque não estudas tu aos domingos tambem? perguntava eu muitas vezes a Roberto. —Ora, porque não nasci para sachristão, nem para besta de carga. Enfados bastam os da obrigação, que já não são poucos, quanto mais il-os eu buscar agora por minhas mãos. Sempre ouvi dizer que era preceito guardar os domingos e festas de guarda, e que trabalhar n’estes dias era peccado. Estavam as coisas n’estas alturas, quando tive de ir á minha terra, recolher uma herançasita que houvera, e demorar-me por lá algum tempo para pôr as minhas coisas a direito; quando voltei nenhum d’elles já estava na mesma quinta. Seis annos depois em dia de festa de Corpo de Deus, fui a Lisboa vêr a procissão e visitar de caminho uns parentes, que ali tinha,—já lá estão na terra da verdade, pobre gente!—Deus os tenha á sua vista. Passava pela rua dos Bacalhoeiros quando ouvi que de uma tenda me chamavam pelo meu nome. Vejam qual não seria a minha admiração, quando dei com duas caras conhecidas, que me faziam muita festa, e que eram nem mais nem menos do que os nossos amigos Pedro e Anastacio. Nem pareciam os mesmos, nos termos e nos trajes lembravam pessoas da cidade, mas no coração eram sempre os pobres e bons trabalhadores. —Ora o tio Joaquim por estes sitios, me disseram, e sem nos conhecer! —É verdade, rapazes, quem era capaz de pensar, que havia agora de vir topar com vocês, assim tão enfeitados e garridos. Com mil demonios, se me não chamassem, não era eu que os descobria. —Mas nós não esquecemos os amigos velhos, e logo que o vimos, não quizemos passar sem o abraçar. —Bem apertado e do coração. Mas pelo que vejo a fortuna fez das suas, e lembrou-se de vossês. —É como diz; alguma felicidade tivemos. Mas não ha de ficar á porta da rua, entra e vem conversar um poucochinho comnosco, não é assim? Fiz-lhes a vontade, e pelo que me contaram vim a saber o que lhes tinha acontecido, e que foi o seguinte: Cada um d’elles tinha seguido o seu modo de vida, conforme se ageitava melhor. Pedro estudando nos livros, Anastacio trabalhando nas horas de descanso, para juntar algum dinheiro. Metteu-se-lhe na cabeça aprender um officio e a troco de alguns serviços feitos ao mestre Antunes, tanoeiro, alcançou que lhe ensinasse o seu modo de vida, em que, com a vontade que tinha, chegou a ser um bom official. Já avesava um par de vintens, quando se descobriram essas terras lá da California, onde segundo diziam os papeis, havia mais oiro em pó, do que milho em celleiro rico nos annos de fartura. Os homens de ganhar começaram a mudar de rumo e a procurar fortuna por essas terras. Desinquietaram-n’o; mas elle, despresando o ditado: «muda de terra, mudarás de fortuna» como se ia dando bem por onde estava, resolveu-se a ficar. Ora, não sei se sabem, que apesar de haver dinheiro a rôdo pela tal California, não havia de comer, nem de beber, e qualquer coisa, que por lá se precisava, era comprada a peso de oiro. Fazia frio de cair o nariz, a aguardente e o figo, era—de mais a mim, mais a mim—e os tanoeiros por conseguinte não tinham occasião de dobrar canella. Anastacio, que já sabia do officio ás direitas, deitou-se á obra, empatou em madeira os pintos que juntára, e conseguiu montar uma tanoaria em grande, que em pouco tempo se afreguezou pelos bons modos do dono e bom preço das obras. Quando o encontrei em Lisboa, acabava de casar com a promettida desposada, que trouxera da terra. A sua loja, que era uma das melhores da cidade, gosava de excellentes creditos: e o negocio corria o melhor possivel. Pedro tambem tinha caminhado e muito; mas por estrada diversa. Pouco a pouco fôra lendo cada vez melhor, e escrevendo de fórma que levava as lampas ao mestre-escola do logar; parecia um treslado a lettra do rapaz. O dono da quinta, a quem elle caira em graça pelos seus termos comedidos e vontade de saber, tirou-o d’aquelle labutar e mandou-o para uma mercearia sua em Lisboa, a servir de caixeiro. Era o que elle queria e em que melhor calhava, tanto que em pouco tempo se fez um merceeiro de enche-mão. O patrão trazia-o nas palminhas, e dizia á bocca cheia: que não tivera nunca outro, que lhe chegasse tanto ás medidas. Nem só o sr. José Esteves era d’esta opinião: a senhora sua filha, que se derretia para o rapasito, achava ao pae carradas de razão e fazia-se com terra de lhe chamar seu marido. Atrever-se a pedil-a, não era o Pedro capaz d’isso; mas o pae da rapariga, que deu na ferida, e que não era de soberbas, antes pelo contrario muito dado e maneiro, reconheceu que lhe convinha para genro um bom rapaz socegado e amigo de dar ordem á sua vida, e em poucos tempos tratou de os pôr a caminho do setimo sacramento. Tambem vivia de grande quando lhe fallei, e a loja onde estavamos era do sogro; ou d’elle, que vinha a dar na mesma coisa. Tinham acabado de me contar as suas historias, e ia-lhes perguntar, que norte tinha tomado Roberto, quando ao chegarmos á porta para vêr a gente que passava para a procissão, desembocaram de uma d’aquellas ruas uns poucos de grilhetas, que de barril ás costas, desciam lá das bandas do Castello e iam para o chafariz de Dentro. Não tive que perguntar, porque reconheci-o logo entre elles quando passaram diante da porta. Vim depois a saber por que fôra ali parar. O vinho, e as patuscadas dos domingos, tinham sido a causa d’aquella desgraça. Não deitava Nosso Senhor um dia santo a esta terra, que elle não fosse para a taberna, e que não sahisse de lá a não ser em miseravel estado. Em breve pozeram-no fóra do trabalho, porque não dava conta de si, nem se podia olhar para elle, de desmaselado que andava. Vendo-se sem trabalho, e sem ninguem o querer, ajuntou-se a uns poucos de vadios da terra, que passavam pelas peores firmas do logar. Ao principio eram comesainas e bebedices: depois como não havia dinheiro, nem gente que lhes fiasse, nem vontade de trabalhar, começaram a pregar calotes, a commetter roubos, e quem sabe se mortes tambem. Ao menos assim por lá se rosnava, e bem se diz: que n’estas coisas: «voz do povo, é voz de Deus.» Um dia a justiça, que andava com os olhos n’elles, deitou-lhes a unha. Um dos que resistiu foi Roberto, e ao fugir á prisão, feriu de morte um dos cabos, que o queriam prender. Foi condemnado ás galés por toda a vida: e a cumprir esta sentença o vi eu em Lisboa, no tal dia de festa do Corpo de Deus. Agora vocês lá rapazes, que perceberam aonde eu ia dar na minha: pensem na historia que lhes contei, e vejam de que modo deverão passar melhor os domingos e dias santos. Os bons dos maltezes não deram resposta ao narrador n’essa occasião; os resultados futuros deixaram vêr, porém, que as palavras do conto do tio Joaquim, não tinham sido deitadas ao vento. V Os retratos de familia[1] Faz para as vindimas dez annos, que eu ouvi ao tio Joaquim esta historia. Havia pouco que sahira da quinta, onde eu estava, o sr. Antonio Tavares, que passava por um dos fazendeiros mais ricos dos arredores. Amanhava para cima de sessenta geiras de terra: e só de uva mandava perto de quinhentas caixas para embarque. Era franco, alegre, e homem de boas petas; tinha pilhas de graça e parecia vender saude; emquanto a modos e linguagem, sabia o nome aos bois, e quando fallava de lavoira podia-se ouvir, discorria como um livro aberto. Todos gostavam d’elle, por não ser de contos, nem de arcas encoiradas; só cuidava da sua vida, andando lizo no negocio como poucos. Ninguem lhe acceitava signal, porque em dando a sua palavra era como se apresentasse o dinheiro contado na palma da mão. Não constava que faltasse, nem se dava fé, de quem tivesse duvida em fiar d’elle fosse o que fosse. Tinha vindo a comprar uns trigos, assistira ao carregar dos carros e sahira depois do trabalho acabado, n’uma vaca de cinco annos, esperta como um azougue e preta como um azeviche. Rira muito, contára muita coisa, e fizera bom negocio; porque lhe tinham dado o pão em conta por ser a venda redonda. O tio Joaquim, que não era dos mais falladores, nem dos que se abria muito com os extranhos, conversára com o sr. Antonio Tavares, como quem de ha muito o conhecia: apertára-lhe a mão na despedida com ares affectuosos, e seguira-o com a vista até desapparecer na volta da alameda, fazendo feitios com o pau na terra do pateo, e resmungando entre dentes palavras que não entendi. Esta excepção nos habitos do velho, aguçou-me a curiosidade, e perguntei-lhe se conhecia de ha muito o homem que d’ali saira. —Se conheço!...—respondeu-me inclinando a cabeça de alto a baixo, compassadamente, duas ou tres vezes. Havia tantas coisas n’aquella reticencia do tio Joaquim, que não pude resistir, e instei com elle para que me contasse a historia do sr. Antonio Tavares. Tanto fiz, tanto fiz, que sentou-se ao meu lado n’um poial de tijolo, carregou um cachimbo de madeira, enfeitado com virolas de latão, como os que usam os campinos do Ribatejo, petiscou, accendeu-o e começou. Mais palavra menos palavra disse o seguinte: —Vae tanta differença d’este Antonio, ao de outros tempos, como vae da noite ao dia, e tanto que se eu não presenciasse esta mudança, não podia acredital-a ainda que m’a contassem. Lá embaixo, ao pé do Joaquim Boleta, no recanto da azinhaga, morou por muito tempo o pae em companhia da mulher que veio a morrer de parto, quando este Antonio nasceu. Ali esteve, até que por causa da guerra com os francezes chamaram as baixas antigas e elle, como tinha sido soldado n’outros tempos, teve de partir deixando o rapaz entregue a uma visinha, boa mulher na verdade e que promettera tomar conta d’elle. Mas é mais facil ter um pouco d’azougue quieto em cima d’uma pedra, do que era conseguir, que o rapaz não fizesse por ahi obras de cabeça. Não deitava Deus nosso Senhor um dia a este mundo, em que se não dissesse: lá apanhou o Antonio engeitado, (assim é que lhe chamavam), uma escamoucadella na cabeça, lá o aleijaram n’uma brincadeira, lá lhe deram uma cossa quando andava aos figos. Era um rosario de coisas, que até fazia admiração como elle resistia; mas se o carrasco e o zambujeiro crescem, medram e enrijam ao desamparo por esses vallados, e não ha madeira como a d’elles para aguentar dura; não admira tambem que o rapaz enrijasse assim ao Deus dará e se fizesse um mocetão de mão cheia, esperto e guapo que era um regalo vêl-o. Emquanto a velha Thereza foi viva ainda elle trabalhou alguma coisa para a sustentar, não muito, que lá no seu dizer, o trabalho era para os cães e não para as almas christãs; mas apenas a velha fechou o olho, adeus minha vida, foi um vadiar, que não é para dizer. N’este comenos tinha um soldado, que viera da campanha passado pela terra, e entregára ao Antonio umas lembranças do pae, morto n’um ataque contra os francezes, recommendando-lhe o filho á hora da morte. Minguada herança, que ella era. A farda do soldado, meia duzia de peças, se tanto, e o retrato do pae, que um seu companheiro tinha feito n’uma hora de vagar. Muito parecido, por tal signal; era elle por uma pena, só lhe faltava fallar. Antonio chorou devéras, pouco se lembrava de seu pae; mas custou-lhe muito aquelle lance. E n’essa occasião mesmo deu mostras de boa alma que tinha, e que depois deixou vêr melhor lá para o diante, quando mudou de vida. Apesar de falto de dinheiro, não gastou comsigo nem um real da herança que recebera; uma parte empregou-a em mandar fazer um caixilho muito bonito para o retrato de seu pae, e o resto deu-o de esmolas aos pobres, pedindo-lhe que rezassem por alma do finado. Andou uns dias, que não parecia o mesmo, triste e regular no trabalho, depois tornou á antiga ou ainda peor se era possivel. Quando tinha algum vintem de seu não paravam as patuscadas, as festas e os divertimentos; depois trabalhava pouco e de má vontade até arranjar dinheiro, e, mal o conseguia, eil-o que voltava á boa vida. Mas, manda a verdade que se diga, esteve por vezes doente no hospital, viu-se em talas quando por ahi faltou o trabalho, vendeu, empenhou tudo, só não tocou, em occasião nenhuma, nem na fardeta, nem no retrato, que conservava á cabeceira da rabeca, onde dormia, como se fossem imagens do Senhor dos Passos ou orações do Justo Juiz. Uma vez, vim a sabel-o ao depois, tinha-se-lhe acabado todo o dinheiro e não havia que fazer; o jantar havia de vir; mas d’onde, é que elle ainda o não sabia. Antonio foi procurar um ferro velho do logar e propôz-lhe a venda da enxerga: era o resto dos trastes, que tinha, e estava tão velha e tão suja, que nem uma de doze valia. O ferro velho entrou, e mal deu com os olhos nas duas reliquias do pobre rapaz offereceu-se para lh’as comprar; mas inda bem o não tinha dito, já estava arrependido de o dizer, porque Antonio punha-o immediatamente no meio da rua com promessa de lhe fazer os ossos n’um feixe, se tivesse outra vez semelhante lembrança. Assim passou algum tempo com a barriga ora em lua cheia ora em quarto minguante, até que uma gente, que para aqui veio lhe fez mudar o modo de viver. Um velho tinha arrendado a quinta dos Fusis, para onde viera presistir em companhia de sua filha. Elle andava pelos seus cincoenta annos: parecia homem de bem; mas casca grossa e pouco de graças; ella, mais bonita que uma imagem e mais bem posta que uma fidalga. Quando íam no domingo á missa ou de tarde a espairecer por essas azinhagas, o velho de cabeça branca, corpo um tanto curvado, bigodes grandes, sobrancelhas espessas, parecer carregado e faces enrugadas; ella alta, esbelta, de olhos pretos e vivos, cabello castanho, faces córadas, feições alegres e cara de riso para todos, pareciam a noite e a madrugada, ou o inverno e a primavera que se combinassem para melhor parecer unidos um á outra. Os rapazes todos derretiam-se para ella, mas o pae que não tinha cara de muitos amigos, impunha-lhes respeito e conservava-os de largo; e d’ahi ella assim mesmo sempre alegre, mas toda senhora, dava tambem a entender, que não estava resolvida a acceitar a côrte a qualquer badameco. Antonio vio-a um dia e ficou perdido de cabeça; desde essa occasião começou vida nova: e o rapaz extravagante e vadio, começou a ser homem. Era tempo, tinha quasi vinte e cinco annos. Mas a vida que seguiu, foi tão differente da antiga, que não parecia o mesmo. Os dias passava-os a trabalhar, as noites a aprender a lêr, porque o mestre do logar lh’o ensinava a troco dos domingos, em que lhe trabalhava no quintal, e as horas de sesta ou de jantar passeando pela frente da casa da menina Maria, que o enfeitiçára: mas para bem, que são os melhores feitiços. E o caso é que o maganão do Antonio tinha bom gosto, por que mocetona mais perfeita não a havia n’estas tres leguas ao deredor. Ia-se desenvolvendo e medrando, que era um louvar a Deus, e não seria por sua parte, que podesse resultar má fama aos ares do logar. Bonita já ella o era, mas enfezada e doentia por amor d’aquelle mau respirar que as cidades fazem; apenas porém desatou por ahi a passear e a espairecer, entrou a córar, que nem uma pera de Santo Antonio, e a encorpar que nem uma maçã bemposta. Se ella reparava no rapaz, nem o sei eu, nem ha quem o jure, porque isto de mulheres, nem o demo as entende; mas que o não visse com maus olhos é de crêr, porque o Antonio, não tinha nada que se deitasse fóra e era um rapaz perfeito a mais não poder ser. Cá por a terra não se fallava n’outra coisa e não havia tenda nem barbeiro, onde se não désse á taramella a tal respeito. Tudo em bem, que em mal não havia rasão, nem atrevimento para tanto, por que com Antonio ninguem brincava, e todos se pellavam de medo de um certo marmelleiro ferrado, que elle trazia e que não era palito para dentes, nem vime de passar creanças. Tanto fallaram, tanto fallaram, que o caso foi aos ouvidos do pae, que já andava com a pedra no sapato por tanto rondar de porta e tanto encontrar o Antonio nas visinhanças da quinta. Um dia, que acabava de fazer a barba, dois maltezes que estavam no barbeiro, e que o não conheciam, entraram com pé de conversa a respeito do tal namoro e deram a entender, lá por meias palavras que o Antonio se fazia com terra de casar com a menina Maria. O sr. José Alves, assim se chamava o pae, não quiz ouvir mais nada; atirou com uma de trez para cima da mesa do barbeiro, e foi se como um raio a casa do Antonio. Boas tenções não tinha elle. Ia fumando, e vermelho como um pimentão, saccudia um camolete que levava, que mais parecia um bastão de tambor-mór, do que uma vara de encosto. Se encontrasse o rapaz no meio do caminho, atirava-se a elle, e não o deixava em quanto lhe encontrasse osso inteiro. Era um sabbado e quasi ao sol posto: o quarto estava escuro e Antonio, que voltára mais cedo do trabalho, tinha-se atirado para cima da cama, farto de lidar e sem poder comsigo. Apenas por uma claraboia, que havia no telhado, entrava alguma luz, e essa ia bater de chapa no retrato, que estava á cabeceira; parecia pessoa viva, e até mettia respeito olhar para elle. É de crêr que o sr. José Alves se não demorasse a bater á porta, atirou-lhe um encontrão e deitou-a dentro ás primeiras rasões. Antonio ia a agarrar no pau, que tinha ao pé de si, e saltar na visita, quando reconheceu o pae de Maria e ficou varado; este ia para fallar, quando deu com os olhos no retrato e pasmou. As lagrimas saltaram-lhe dos olhos, e, sem mais satisfações, perguntou a Antonio, apontando-lhe para o painel: —De quem é aquelle retrato? —De meu pae, respondeu o rapaz. —De Antonio, do meu velho amigo!—e em vez de se atirar á paulada ao namorado da filha, atirou-se a abraçal-o que parecia querer metter-lhe as costellas dentro. O que causára aquella mudança, já o senhor adivinha o que foi, continuou o tio Joaquim concluindo a sua narração, o sr. José Alves era o tal camarada de Antonio, que trouxera o retrato, quando o rapaz ainda era um fedelho, e a quem o pae o recommendára á hora da morte. Tinha continuado a servir depois que passára pela terra a cumprir o testamento do moribundo: e de batalha, em batalha, esquecera-se do companheiro, do filho, e da promessa. Antonio foi para casa do velho, entrou a administrar-lhe o que elle tinha e augmental-o com o trabalho e a boa vontade; o casamento que já era de gosto do sr. José Alves e a que a rapariga não dizia que não, fez-se d’alli a pouco... e lá tem vivido como Deus com os anjos até que o velho morreu, deixando a filha e o genro de posse da fortuna que o senhor sabe. No dia seguinte, áquelle em que o tio Joaquim me contára esta historia fui aos _Fusis_ procurar o sr. Antonio Tavares e receber o dinheiro dos trigos. Havia muito que não entrava n’uma quinta tão bem cultivada, nem via em fazenda alguma, n’aquelles sitios, tanta ordem, nem tão bom gosto. Os systemas mais modernos, os instrumentos mais appropriados, as descobertas de maior importancia pratica, tudo ali estava aproveitado, com uma tal arte, que bem mostrava ter sido, coisa rara entre nós, a theoria unida á experiencia com muito criterio e bom resultado. A _dos Fusis_ poderia servir de _quinta modelo_, se os fazendeiros da terra, afferrados á rutina, cuidassem de modernismos ou tratassem de innovações. Apenas soube, que eu ali chegára o sr. Antonio Tavares, mandou-me entrar para a casa de jantar, onde estava com a sua familia; Maria, que devera ter sido tão formosa, como o tio Joaquim o dissera: e duas creanças, que se tinham levantado da mesa e que brincavam ali para um canto. A casa, posto que conservasse aquelle aspecto severo, que ainda se denota n’algumas fóra de Lisboa, que fosse de ladrilho, com as paredes revestidas d’azulejo até meio, e o tecto _em osso_, com as grossas vigas de castanho do emmadeiramento á mostra, era alegre, porque recebia muita luz de tres rasgadas janellas, que deitavam sobre uma horta. A mobilia era de pau santo torneado, e n’um grande armario meio aberto via-se boa louça da India, e algumas peças d’uma baixella de prata. No logar de honra dava-se com o retrato a lapis de Antonio e com um outro mais moderno, a oleo, que devia ser do sogro: uma santa, que não sei ao certo qual era e dois quadros de fructas ornavam as paredes. Tudo reunido dava á casa de jantar um certo ar patriarchal, que infundia respeito e inspirava felicidade. Antonio depois de me pedir que me sentasse, e de me offerecer um copo de vinho da lavra, levantou-se e foi a um contador buscar o dinheiro da compra, que já estava embrulhado e prompto desde a vespera; conversámos um pouco, e quando me despedia, pediu-me que o visitasse a meudo, porque estimaria vêr-me em sua casa. —Voltarei, lhe prometti, e voltarei em breve: o tio Joaquim contou me a sua vida, e apenas o conheci, comecei a respeital o. —Bondades suas e do tio Joaquim, que é muito velho, não ha razão para o que diz. Fui rapaz, fiz o que todos fazem, emendei-me a tempo, se é que não foi tarde: se alguma virtude tive, e essa mesma bem m’a têem pago aquelles,—disse-me olhando para Maria e para os pequenos,—foi não me esquecer no meio de todas as minhas doidices, que me tinham ensinado a _Honrar pae e mãe_. VI O fructo prohibido I Adeus, Rosa! Adeus! E adeus para sempre! —Ai! para sempre, meu Estevam? —Que queres que eu faça, dize? —Sei-o eu, por ventura? Mas partir... e o mar?... É tão bravo! —Não só no mar ha bravezas, na terra corre-se risco de maior: se eu ficasse!... —O que fazias? —Ou mettia uma navalha no Januario ou dava um tiro n’estes miolos. —Jesus, homem, tentação do demonio é essa, cruzes! Parte, parte, meu Estevam, mas não te esqueças de mim. —E tu? —Eu! Sempre. —Adeus! —Não te verei ainda ámanhã?!... Antes do embarque?... —Não, o que ha de ser seja, quanto mais estiver com demoras, mais me faltará o animo. Adeus Rosa, sê feliz. —Adeus, Estevam, volta breve. —Voltar para que? Para te vêr entregue a outrem, que virás a amar, se é que o não amas agora?... Para presencear essa vida de felicidade, que é a minha desgraça, o meu tormento; para comprehender que me illudiste, quando me juraste um amor eterno! Amores eternos de mulher, como as flôres d’este nome, que duram mezes, e que os primeiros sopros do inverno derrubam!... —Deus te perdôe a injustiça que me fazes! —Para que casas? —E a maldição de meu pae?... Meu pae amaldiçoava me Estevam. —E o nosso amor! —Fica-me no coração, ha de me matar, descança. —Antes tu morresses... —Oh! Quem dera! —Não fallemos mais em semelhante coisa. Para que has de dessimular ainda? —Se eu pudesse rasgar este peito, que me opprime, se pudesse arrancar-lhe este coração que é teu, e o ha de ser sempre, se te podesse mostrar como elle padece, não duvidarias de mim. —Queres que te agradeça talvez, queres que te bemdiga não é assim, queres que estime saber, que pertences a outro, não é verdade? —Não, Estevam, quero que tenhas dó de mim, e que me esqueças! —Esquecer-te, eu! E a minha existencia de até hoje, que foi sempre tua, e a minha fé no futuro, que estava em ti, e a minha vida toda, que te pertence; queres que esqueça tudo?... Se não fôra minha mãe!... —Tua mãe! —Sim, minha mãe, pobre e santa velhinha, que não tem no mundo mais do que eu, que lhe queira e que a ampare. Minha mãe, que eu mataria se morresse; minha mãe, a unica que me tem tido amor na terra!... —A unica! Talvez... —Olha, Rosa, escusas de fingir, para quê? Não vale a pena. Ámanhã por estas horas já estarei d’aqui bem longe. Só o que te peço, como um ultimo favor, como uma esmola, é que te lembres de minha mãe, que lhe enxugues as lagrimas, que chores com ella,—não te ha de custar muito, sabes tão bem illudir!—e que depois uma e outra vez te lembres de que te amei... e muito. —Pela alma da minha te juro, ha de ser minha mãe. —Obrigado, Rosa. Adeus! —Não me queiras mal. —Não poderia, ainda que quizesse. —Não queiras, Estevam, não, que t’o não mereço, perdôa-me e... não te esqueças de mim!... Meu pae, que nos vê, foge Estevam, elle encaminha-se para este lado. —Adeus! Passava-se este dialogo no pateo da quinta de _Valle do Freixo_ no dia de S. João, ao amanhecer. Houvera um bailarico de primor, a que tinham concorrido os rapazes e as raparigas das visinhanças e com elles os paes, as mães e os tios. Era um poder de gente, que passára a noite a cantar, a dançar, a pular, a rir, a comer, a beber, a respirar alegria: a provar que os cuidados lhes não pesavam na consciencia, nem o mau humor no espirito. Fôra um dos mais brilhantes bailaricos de que havia memoria. O dono da quinta pozera uma grande meda de vides á disposição da fogueira, e uma pipa de vinho ás ordens dos concorrentes; mandára cozer varias amassaduras de pão, frigir um por ahi além de peixe; transplantára dois alfobres de alface para quatro alguidares, juntando-lhes tambem quatro cestos vindimos com a fructa do tempo, e sobre tudo a boa vontade e o contentamento a resplandecerem-lhe na physionomia, convidando todos a divertirem se. Infelizmente, porém, nem todos podiam estar alegres. N’aquella multidão buliçosa duas creaturas havia tão tristes, tão attribuladas, que cortava o coração olhar para ellas: parecia que tinham vindo assistir, não a uma festa, mas a um enterro. E na verdade, ali enterravam vinte annos de esperança e de amor: n’aquella noite se viam em despedida, e só Deus poderia saber se essa despedida seria eterna. Rosa e Estevam tinham vivido juntos desde creanças e tinham-se acostumado a amar, antes, ainda antes de saberem o que era amor. Conheceram o que era quando começaram a padecer; porque é no soffrimento que elle desabrocha, como as rosas de mais apreço nos seus berços de espinhos. Juntos balbuciaram as primeiras palavras, juntos aprenderam a lêr, juntos iam á escóla, juntos voltavam ás tardes, e juntos passavam as noites brincando no campo e discorrendo alegremente, como duas avesinhas chilrando proximas na mesma arvore. E encontra-se o que quer que seja de gorgear de passaros no palrar infantil, que borboleteia de assumpto em assumpto, soltando de quando em quando notas agudas de admiração, ou modulando trilos narrativos de tanta viveza e simplicidade. Disseram em commum as primeiras orações, e muitas vezes os surprehendia o passeante enternecido, de joelhos e mãosinhas erguidas para o céo, repetindo em côro:—«Perdoae-nos, Senhor, as nossas dividas...» dividas, de um ninho surprehendido entre as giestas, ou de uma innocente mentira a denunciar-se logo pelo rubor da candura e pelo borbulhar de duas lagrimas de arrependimento, se por ventura os interrogavam. E que lindo grupo, quando estudavam juntos a lição do mestre, ou a reza que a mãe lhes ensinára, sentadinhos no limiar da porta, um repetindo entre incertezas e duvidas; outro escutando com toda a attenção e com ares concentrados, como quem comprehendia a gravidade da sua posição de professor: mas ambos a reverem-se um no outro e a casarem torrentes de luz, que lhes chispavam d’aquelles olhos brilhantes, vivos, buliçosos, humidos de alegria e languidos de sentimento. Com o decorrer dos annos não houve remedio senão ir gradualmente rareando aquelles doces encontros. Demais, tendo morrido a mãe de Rosa, esta ficára governando a casa e em companhia de seu pae, que não era para graças. Continuaram a vêr-se, a fallar-se; mas ás furtadellas, e quasi que ás escondidas. Rosa crescera, e ao desenvolver-se tinha ganho cada vez maiores perfeições. Fizera-se mulher, mas mulher tão formosa, tão delicadamente formosa, que confortava a alma admiral-a. Não parecia do campo, nem mesmo da terra. Devem ser assim aquellas phantasticas visões, que, aljofradas por milhares de perolas do orvalho da manhã, se esboçam na atmosphera ao romper do sol por entre as nevoas da aurora. Delicada flôr, que a mais terna aragem encurvava, parecia quebrar-se no andar. Resvallava pelo chão, deixando apenas uma suave fragancia a denunciar a sua rapida passagem, e uma indefinida sensação na mente dos que a viam. Por aquellas visinhanças não havia noticia de creança tão mimosa. Era branca; mas branca como o alabastro e como os lyrios, e na suave pallidez da physionomia lia-se o sentimento d’aquella organisação franzina e nervosa. Os cabellos negros como o azeviche, assetinados e brilhantes, poder-lhe hiam servir de manto, quando os desatasse ondeando pelas costas abaixo e dobrando ainda no chão; os olhos como dois diamantes negros, sempre velados por uma doce melancholia rasgavam-se-lhe no meio de duas palpebras escurecidas pelas sobrancelhas finamente desenhadas, e orladas d’umas pestanas compridas e densas, que davam ao olhar, já de si bem triste, mais tristeza ainda amortecendo-lhe o brilho, quando raramente o illuminava. Quem attentasse n’aquelle rosto sempre sentido, sempre scismando como que n’outro mundo, sempre voltado para o céo, sentiria, se de todo não tivesse a alma cerrada á compaixão, uma lagrima de sincera piedade cair dos olhos extaticos. Rosa era uma creatura que lembrava aquelles mysterios, os enlaces dos anjos com as formosas filhas dos homens, nas primeiras eras do mundo. Estevam tambem se desenvolvera, e se formára um guapo e gentil rapaz. Nas bem proporcionadas fórmas lia-se-lhes a força; no rosto franco e expansivo, a lealdade e o valor. Não havia idéa de que nunca em sua vida tivesse abusado da força: mas não constava tambem que tivesse recuado nunca. Não procurava o perigo, mas não se temia d’elle; era dotado de verdadeira coragem, fria, reflexiva, inabalavel. Estes dotes, porém, não eram de tal natureza, que podessem captivar o pae de Rosa, homem de lettras gordas, e mais para o dinheiro do que para o sentimento. Tinha casado com a senhora Placida, depois de lhe namorar os pintos e não a physionomia. Vivera feliz a seu modo, porque tivera os commodos da vida, e não comprehendia felicidade possivel, sem dinheiro ao canto do bahú, pão na arca, vinho na adega e azeite na talha. Todo esse palavreado de amor e paixão era engrimanço, que espremido não deitava nada; nem julgava que boas razões pagassem dividas ou enchessem barriga. Um seu visinho e compadre, homem dos seus quarenta puxados, casca grossa como elle, pé de boi, mas abastado, e com fama de entender do negocio e da lavoira, tinha conversado com o sr. Feliciano Gomes, assim se chamava o pae de Rosa, a respeito d’esta, affirmando-lhe que se não dava de tomar estado se encontrasse mulher tão perfeita como a filha. Feliciano, que ha muito andava com o olho n’uma courella do compadre Januario, e que por mais d’uma vez futurára comprar-lh’a, alegrou-se com a idéa de arredondar a sua propriedade, á custa de tão pouco. Tratou pois de desvanecer algumas duvidas, que ainda esvoaçavam no espirito modesto do sr. Januario, convencendo-o de que lhe sobravam perfeições para captivar o coração mais rebelde, que por ventura palpitasse em peito de mulher. —Mas, eu sei lá, homem?... Já não estou muito rapaz... —Melhor é isso, não tem edade para loucuras. —E se a rapariga me não quizer? —Era o que faltava, compadre, deitava-lhe os braços abaixo e nunca mais lhe punha a vista em cima! —N’isso é que eu não consentia!... Pobre Rosita! —Então quem ha de mandar em minha filha se não fôr eu? Quem póde saber o que lhe convém? —Olhe, compadre, se a pequena tiver alguma inclinação... —Sem minha licença? Não faltava mais que vêr! Ensinava-a por uma vez. —Veja lá o que faz, homem, não quero que a rapariga padeça por minha causa! —Qual padecer, nem meio padecer. Estou vendo-a já saltando de contente, quando lhe disser: não sabes, o visinho Januario quer casar comtigo. Foste feliz... —Isso ha de ser. Não lhe hei de faltar com coisa nenhuma. —Pois para as mulheres é o que é preciso: dinheiro para gastarem nos trapos, e andam satisfeitas. —Parece-lhe por conseguinte que serei seu genro? —Se me parece! Já o é desde hoje, toque lá e deixe tudo por minha conta. —Lembre-se de que eu não quero ir contra a vontade d’ella... —Qual vontade, nem meia vontade, compádre Januario; o dito dito, e até ámanhã. Esta conversação foi o começo das tristes aventuras dos dois amantes, que apresentei aos meus leitores, e cuja historia, n’uma noite bem invernosa, ouvi ao tio Joaquim. Emquanto Januario ficava scismando na sua vida futura e saboreando d’ante-mão a posse da rapariga mais guapa d’aquelles sitios, Feliciano recolhia rindo-se e esfregando as mãos, o que n’elle denotava o maior signal de contentamento. Acabava de fazer um excellente negocio. Trocára a filha por uma courella de dez alqueires de semeadura: isto é, uma mulher que tinha que sustentar por uma terra que dava de comer. E o olival das _queimadas_, e a quinta da _cortiça_, e o casal do _petisco_, e as terras do _Penetra_, e a horta da _allamôa_, e tantos outros bens e haveres, que constituiam a fortuna de Januario! Claro estava que tinha tido uma tarde feliz. Rosa ficou surprehendida ao vêr entrar seu pae em casa risonho e cantarolando, coisa de que não havia memoria; e sem lhe passar pela cabeça qual era o motivo de semelhante transformação, sentiu-se alegre tambem. Havia muitos annos que seu pae lhe não mostrava physionomia tão prasenteira, nem lhe fallava com tanto agrado. De repente deu-lhe uma pancada o coração, quando Feliciano, voltando-se para ella, lhe perguntou com certos modos em que transpareciam alegria e finura mal contidas: —Que te parece o compadre Januario? —Que me ha de parecer, meu pae, dizem que é tão boa pessoa!... —Sim, sim, bem se sabe isso, boa pessoa, assim como quem diz pedaço d’asno; não é pelas bondades, que eu te pergunto. —Então meu pae?... —Não olhaste para elle nunca com os teus olhos... de vêr? —Eu não senhor. —Pois é preciso que olhes, entendes-me? disse-lhe Feliciano derrubando as sobrancelhas e deixando cair a viseira: talvez te agradem mais esses alfenins lambidos, que por ahi se andam a desfazer? Pois estás muito enganada comigo, percebes?... E ao passo que ia fallando engrossava a voz e fazia cara de arremetter. Rosa tremia como varas verdes, e, com os olhos arrasados de lagrimas, encommendava se mentalmente a todos os santos do seu calendario. Mal teve forças para balbuciar um:—sim senhor, meu pae,—e, cambaleando, foi fechar-se no seu quarto, deitando-se em cima da cama a soluçar convulsa, como quem se despedia d’este mundo. No dia seguinte, ao almoço, parecia que voltava do cemiterio, Feliciano, porém, que se não apercebia facilmente d’estas mudanças, ou que, se as conhecia, fingia bem o contrario, repetiu o interrompido assalto. —É preciso que vás pensando no casamento, estás uma mulher, ouviste? Bem quizera a pobre da rapariga não ter ouvido; mas era impossivel dessimular. —Eu, meu pae; estou assim bem, eu não quero casar!... A resposta não se fez esperar muito. Feliciano soltou uma torrente de imprecações, acompanhamento estrepitoso de uma bofetada não menos estrepitosa, que já cortava os ares ainda bem a rapariga não acabára de dizer que não queria casar. —Grandissima atrevida!... Eu te ensinarei a ter querer! Não queres casar, hein! E pensas que engulo essa!... Vossês lá que bebem ares por um marido! Mas tu o que não sabes é com quem estás mettida: eu não nasci hontem e não has de ser tu, minha seresma, que me faças o ninho atraz da orelha. Não queres casar, hein!... Ora mette-me o dedo na bocca a vêr se t’o mordo! É volta de festa, é namorico no caso, mas apanhe te eu, que verás por uma vez os meninos orphãos a cavallo. Não queres casar! Mas quero eu que te cases e é o que basta. O visinho Januario pediu-te hontem e eu resolvi que havias de ser sua mulher. E é dar graças a Deus, pela pechincha! Onde pódes ir que mais valhas? Andar para deante e cara alegre, quero que estejas contente, que mostres ao visinho, que tens gosto no casamento, e que lhe agradeces os seus affectos, senão... ponho-te fóra de casa depois de te moer esses ossos, e não quero mais que me chames teu pae. Ao passo que ia ouvindo seu pae, Rosa ia successivamente esmorecendo. Á vermelhidão, que lhe tingira o rosto ao receber a brutal bofetada, succedera-se uma pallidez citrina, que augmentára até ficar de puro alabastro. Tinham lhe rebentado as lagrimas dos olhos no primeiro momento; mas não correram. Uma constricção terrivel lhe afogou a garganta, pensou que ia suffocar-se: pulava-lhe o coração no peito, batiam-lhe as arterias na cabeça, semilhando o marulho das ondas, em torno do que mergulha rapidamente, um cinto de ferro lhe apertava a fronte, zunidos estranhos lhe baqueavam no cerebro. Cuidou que ia morrer e do intimo d’alma elevou ao Creador, uma prece de jubilo, em acção de graças. Era um desmaio apenas, um d’estes abalos, que passam pelas organisações nimiamente nervosas, como o furacão pelos arbustos, extremamente debeis. Acurvam-os até ao chão, estorcem-os na passagem; mas não os partem. Rosa quiz segurar-se á mesa, mas estonteou-se-lhe a vista, andou-lhe a cabeça á roda, desfalleceram-lhe os braços, correu lhe gelo pelas veias e deu redondamente no meio do chão. Parecia morta. Feliciano largou uma d’estas maldições capazes de espavorir toda a milicia celeste e correu á filha; estremeceu-lhe o remorso todas as fibras do coração de pae. Não havia maldade nas intenções do velho; entendia a seu modo a felicidade da filha, que estimava devéras: não se persuadiu que o golpe tivesse tão fundo alcance e trepidou ante as consequencias. Mas ao vêl-a voltar a si, recuperou a confiança e de novo tornou ao seu plano favorito. Intentou com aquelle frio calculo de quem já não cuida em amores, que a voz do coração era uma impertinente a que se não devia dar ouvidos em questões d’esta ordem, e que só o interesse devia tomar a palavra e fallar de cadeira: amaciou entretanto a voz, voltou-se menos rispido para a rapariga, e disse-lhe quasi enternecido: —É para teu bem, depois m’o agradecerás... E saiu, pensando no futuro de Rosa e na conveniencia de arredondar as suas terras com a cubiçada courella de Januario. II Pensem os que têem amado do coração, no que padecera a pobre da rapariga, ouvindo seu pae. Desappareceu de repente de ante si aquelle encantado futuro, em que se enlevára. N’um momento perdeu a esperança, a alegria, a felicidade. Quando o amor verdadeiro nos domina, só ha em nós uma idéa, um pensamento fixo, quasi uma monomania: a posse da que se ama, a existencia a dois, participando ambos das mesmas dôres, das mesmas alegrias, dos mesmos perigos, dos mesmos triumphos, das mesmas glorias. Reparte-se o coração com aquella, a quem tanto se quer, e de tal maneira se alarga e augmenta a porção que lhe entregâmos, que por fim nos apercebemos que já de todo nos não pertence. E bem longe de nos pezar, enleva-nos, nos mais intimos transportes do sentimento, essa doce expoliação do nosso ser. Se nós sômos então amor e sómente amor! O universo inteiro resume-se n’uma só creatura, e tão grande nos parece esta, que o julgâmos ainda pequeno para a albergar. Todos os affectos resumem-se n’um só, de todos os fios que nos prendem ao mundo, traçamos uma cadeia só, no remate da qual nos penduramos com a energia, com a tenacidade do affogado. No outro extremo da cadeia acaba o nosso mundo. Se um pavoroso cataclismo precipitasse o globo; se as espheras se entrechocassem e confundissem; se a creação voltasse ao cahos; se as trévas engulissem a luz; se n’um rodopiar incessante o universo, se contorcesse nos extremos paroxismos: ficasse a mulher, que amavamos, comnosco, e nem nos aperceberiamos da mudança. A luz, a ordem, a harmonia, o movimento dos ceus, o revolver dos astros, o tornear da terra, o não acabar do espaço, parecem-nos puerilidades insignificantes, comparados com o infinito do nosso amor. Só ha uma occasião, só ha uma phase da existencia, em que o homem se exalta, se eleva, se engrandece, se eguala ao Creador. É quando ama. Satanaz se fôra o demonio do amor e não o demonio do orgulho resistiria ao Omnipotente. Quando se assenhoreia de nós, o amor espalha por tudo quanto nos cerca, fulgores que nem a centelha do raio póde offuscar, harmonias que nem os córos celestiaes pódem fazer esquecer, encantos, que não os tem assim a bemaventurança. É que a mulher reside para nós em tudo: tanto na florinha, que mal se descortina entre a relva dos prados, como na montanha arrojada, que parece lacerar os seios do infinito: se queremos colher as flôres para com ellas lhe juncarmos o pizo, queremos transformar-lhe a montanha em pedestal, para sobre elle a levantarmos. Da nuvem far-lhe-hiamos um véu, das estrellas um diadema, dos ceus sem limites um azulado sendal. E depois descontentes ainda, pedimos com religioso fervor ao auctor dos mundos, que reforme a sua obra, que dilate mais a creação, que a exalte mais; porque não nos chega, quanto existe para a mulher por quem vivemos. E se é assim o homem, o que não será a mulher, toda sentimento, toda amor, toda affecto e... senão toda egoismo, toda vaidade e toda presumpção. A mulher, que, quando ama devéras, arranca o homem, das trévas descobrindo-lhe novos lumes de paixão, feições novas de sentir, delicadezas desconhecidas, mimos e enlevos, que não descortina nunca a nossa natural brutalidade. A mulher, que ou ama, como cantam os cysnes, amando e morrendo desde logo pelo amor, ou nutre em si o amor, como a arvore alimenta a parasita, vivendo só para a nutrir e definhando-se em quanto ella medra á custa de sacrificios, de abnegação, e de soffrimentos inapreciaveis; ou quando mesmo, presumida em excesso, e vaidosa sem termos, se ama a si, amando o homem, que se lhe rendeu, e bem querendo a esse rendimento, a essa homenagem, a esse culto, porque lhe desvanece a vaidade, porque é uma confissão eloquente das suas perfeições, porque finalmente é seu, e veio de si, para de novo voltar para si, como as plantas amam a agua, que elevam da terra, entregam aos ares, para que estes lh’a restituam depois em amorosas lagrimas. Rosa amava e amava sincera, piedosa, apaixonadamente. Não havia confeição alguma n’aquelle sentimento, que nascera do coração, proviera da alma, e que se fortalecera aquecido pelos éstos da natureza. Amára creança ainda, amára com força muito maior, quando a puberdade, lhe transformára o ser transfundindo-lhe nas arterias faúlhas de desejo. Quando a vida nova dos dezeseis annos lhe abalou a organisação infantil, quando o coração se tornou turgido de sangue, rico de vida e farto de estimulos creadores, quando aquella flôr do campo, chegou ao periodo, em que as petalas se tingem de mais brilhantes côres para deslumbrarem e cahirem breve, o amor de Estevam, que já a possuia transformou-se tambem, e dominou a mulher, como dominára a creança. Foi para elle, que, córando de pudor, elevou os seus pensamentos de mais arrojado affecto, quando lhe esvoaçou deante da imaginação deslumbrada essa nova perspectiva, que lhe apresentava o mundo, ao conhecer-se outra pela inspiração divina, que n’essa quadra da vida, patenteia á mulher os desconhecidos horisontes da procreação e da maternidade. O amor de creança unira-se ao amor de Estevam; e d’este delicado enlace nascera o amor—mulher. Não lhe assomava o desejo á mente, sem que esse desejo se não transformasse para ella na imagem varonil e fascinante do seu apaixonado. A sua nova existencia era de Estevam; era por Estevam: e o homem, que tal consegue da mulher, póde chamar-lhe sua, sem que o considerem presumido. Entretanto as palavras de Feliciano operaram em Rosa uma revolução cruel. Não se persuadira nunca, que o amor de filha podesse entrar em lucta com o amor de mulher: e nem por sombras se preparára para semelhante combate. Se o coração fallasse unicamente, se não se tratasse senão de resistir á colera e maus tratamentos de seu pae, a escolha não seria duvidosa. Matasse-a embora, que morreria contente, se até aos ultimos momentos a deixassem amar Estevam; mas a maldição paterna troava-lhe ainda aos ouvidos, e todas as fibras d’aquella organisação delicada extremeciam, só ao lembrar-se de que elle lhe prohibira o nome de filha. A religião, a crença, a educação, tudo lhe fallava em favor de seu pae; em favor de Estevam só o muito, que o amava, mas não era o bastante. Amaldiçoada, via os tormentos do inferno, o penar de sua alma, a espada de fogo do archanjo exterminador, a condemnação eterna, e a memoria da sua infancia, e os santos de sua devoção a sumirem-se-lhe para sempre. Não enlouqueceu, porque não teve forças para tanto; não morreu, porque a intensidade propria do soffrimento lhe deu forças para resistir, phenomeno bem vulgar nas organisações nervosas; não se matou, porque lhe affastavam tal pensamento de si, as idéas com que fôra creada: soffreu muito, por fim, pelo embotamento do soffrer, pareceu resignar-se. Triste resignação, em que amortalhára os mais puros affectos, o mais risonho futuro, a mais affagada esperança! A idéa de que se sacrificava á vontade de seu pae se não lhe deu consolação, deu lhe forças; e o persuadir-se que cumpria com o seu dever animou-a a persistir: se não ganhou o santo enthusiasmo, com que os martyres se encaminhavam para o supplicio, alcançou ao menos aquella frieza apathica, da mais entranhada abnegação. Deixou de se pertencer. Fez-se cadaver, transformou-se em instrumento da vontade de seu pae, instrumento inerte, impassivel, sem vida, sem pensamento proprio. Não tivera animo para se matar; mas definhava-se lentamente n’aquelle doloroso suicidio moral. Alguns dias depois da scena que se passára entre o pae e a filha, Estevam recolhia do trabalho cantando, e todo enlevado na sua Rosa, que julgava não vêr, havia tanto tempo. A voz melodiosa corria nas voltas do caminho e repetia-se mais affinada pelos echos de um monte proximo. Ouvira-o Rosa, que abatida, e alheia ao mundo estava mais cahida que sentada n’uma cadeira, com os olhos pregados n’uma imagem de Senhora das Dores, que tinha perto da cama; palpitou-lhe de novo o coração no peito; aquella voz abalou-a como o choque da pilha, e sem se lembrar do que fazia, cedendo ao impulso, que tantas vezes a movera, correu à porta, ao mesmo tempo em que Estevam se aproximava do limiar. Ao vêl-o porém fugiram-lhe de todo as forças e caiu-lhe desmaiada nos braços. Ao longe parecera-lhe notar na sombra o vulto ameaçador de seu pae: —Rosa da minha vida, que tens tu, que nunca te vi assim? exclamára Estevam recebendo-a nos braços, torna a ti, sou eu, é o teu Estevam! Perto d’ali corria a agua de um boeiro do muro; levantou-a em seus braços, poisou-a n’um marco, proximo do jorro, e ás mãos cheias lhe espargiu o rosto; depois ao vêl-a tornar-se á vida, curvou-se, aproximou-se mais da amante como para lhe transfundir a vida, que lhe sobrava, e tão perto lhe afflorou os labios, que dir-se-ia um rapido beijo unira por instantes as duas apaixonadas boccas. O osculo chamou á vida e á realidade a desgraçada Rosa, que desmaiara enlevada nos gostosos sonhos de uma felicidade, que lhe era defeza. —Ai, Estevam, estâmos perdidos, exclamou a misera acordando de todo, quasi nos braços do amante. —Perdidos, Rosa!... Que dizes! —Meu pae... quer que eu case com o Januario. —E tu! —Eu, Estevam!... meu pae amaldiçoa-me. Foi então, que elle ia desmaiando tambem. Cambaleou, encostou-se á parede para não vergar, e foi-lhe preciso grande força de vontade para resistir. Resistiu porém, e como se lhe arrancassem esta exclamação do fundo da alma: —Pensei, que me tinhas mais amor!... —Deus te perdoe, Estevam, por duvidares de mim. —Duvidar! queres talvez que te agradeça, que te bemdiga, porque ás primeiras palavras de teu pae, me atiras a monte, como herva ruim, ou foice partida. Eu é que tenho a culpa, não é assim? Dize, anda, eu é que tenho a culpa: e tenho, porque te queria mais do que á propria vida, porque te queria, como homem nenhum poderia querer a uma mulher. Anda, não duvides, accusa-me, Rosa, que bem o mereço. E entretanto Deus sabe, que thesouros de amor, se guardavam cá dentro, Deus sabe quanto eu te estremecia!... Pensei que não houvesse forças no mundo que nos separassem, pensei que nem Deus mesmo tivesse poder para tanto! Enganei-me. Foi bem feito.—Se tu és mulher!... E não arrebentar eu, quando me assomou este amor!—Não ter havido um raio que me partisse!... Casa, casa e sê feliz! Depois, entre soluços, soltou um _adeus_, e deitou a correr como doido, fugindo à tentação, que lhe affogueava o pensamento. Rosa ficou prostrada sobre o marco, até que a agua innundando lhe o rosto, a reanimou por um pouco; seguiu, mais por instincto do que por vontade, para casa e deitou-se, já com os primeiros symptomas de uma febre cerebral agudissima. Feliciano não soube nunca a rasão da doença de sua filha, Januario acompanhou o compadre n’algumas noites perdidas, e Rosa costumou-se a vêl-o e a agradecer-lhe o cuidado e a affeição, que lhe mostrára. Affeição rude, brutal mesmo; mas por isso tanto mais para apreciar uma ou outra delicadeza, que surdia como enfesadinho rebento de tronco cascudo e rugoso. Convalescente ainda, apparecera Rosa no bailarico, e ali encontrára Estevam, que durante a doença não se affastou nunca das proximidades da casa, empregando astucias incriveis, reccorrendo a subtilezas quasi inacreditaveis, para a vêr sem que o visse, ou para se informar, ao menos, do estado em que se achava. Os nossos leitores já assistiram ao dialogo que travaram. No dia seguinte Estevam, partia a bordo da—_Joaquina Primeira_—para a Costa d’Africa, e um mez depois Rosa casava com Januario, quasi sem perceber, que mudava d’estado. III Tinha decorrido um anno depois do encontro de Rosa com Estevam, que ultimamente relatámos. Não haviam chegado noticias d’este ultimo e corria pela terra, que morrera das febres d’Africa. Rosa nunca mais proferira o nome do seu antigo apaixonado; mas quem lhe devassasse o intimo d’alma reconheceria, que a imagem querida não lhe saira nunca do pensamento. Apparecia-lhe nas horas suaves de melancholia, quando espraiava a vista pelos descampados, descançando depois os olhos no filhinho de mez, que se lhe pendurava do seio. Depois que desapparecera, Estevam convertera-se para a imaginação apaixonada de Rosa n’uma triste visão, que saudosamente lhe sorria d’essas regiões encantadas, que a phantasia povôa de arrobados devaneios. Aquelle amor depurára-se pela ausencia, e a noiva entregando-se ao marido, cumprindo religiosamente os seus deveres de mãe e de esposa, persuadia-se que lhe seria licito, ao menos dispôr da sua alma. E, ainda que o não quizesse, esta pertencia a Estevam. A posse que lhe déra, que elle conquistára á força de disvelos, de sollicitude e de amor, era inalienavel, ganhára-a com o sacrificio da sua vida, com o holocausto da sua existencia, nos altares da dedicação. E que importava a Januario, este innocente roubo! Não poderia encontrar mulher que mais cuidasse d’elle, que mais o cercasse de carinhos, que mais se sacrificasse ao seu bem estar. Nenhuma seria capaz de dar melhor ordem á vida, de cuidar mais no arranjo da casa, de providenciar mais para que coisa alguma faltasse a seu marido. Delicadezas de sentimento, não eram para Januario; nem as comprehendia, nem se dava de semelhante coisa. O mundo, para elle, era uma serie de commodos, e o conforto da casa e da familia a felicidade suprema. Não pensára nunca em fallar ao coração de sua mulher. E andára acertadamente não procurando desferir instrumento, que atormentado por aquellas mãos rudes apenas poderia soltar gemidos; mas harmonias nunca. Onde acabava a materialidade finalisava o mundo. Idealismos, se alguem lhe fallára em tal coisa, poderia contar com descompostura certa, em paga de semelhante atrevimento. Tinha com que viver e vivia do que tinha. O grangeio das fazendas, o amanho das terras, os cuidados da agricultura, preoccupavam-lhe o dia. Á noite esperava-o uma boa ceia, uma cama de pau santo lusidia com os lençóes alvos de neve a estenderem-lhe os braços, a esposa a sorrir-lhe no limiar, sorriso encoberto por um permanente veu de tristeza, mas isso não percebia elle, e o filho a dormir tranquillo no berço com o bracinho curvado sob a cabeça, a boquinha rosada mussitando sonhos de convivencia com os anjos, seus irmãos. E o aceio a afformosear tudo, e a tranquillidade a alegrar o interior da casa, e a arca recheada ao canto, a prometter dilatados dias de descanço e de fartura. E até para lhe alimentar as rabujices da idade, (Januario já rastejava pelos cincoenta), o birrento do sogro, que sempre tinha que lhe tornar, e que contradizer em todos os trabalhos, que emprehendia seu genro. Que mais quereria pois. Rosa costumára-se tambem a esta vida de insensibilidade e sacrificio. A ideia de que fizera a felicidade de seu pae, e de seu esposo, consolára-a da grande perda, que sentira e vivia transfundindo em seu filho todas as delicadezas de sentimento e de amor, de que precisava para poder viver. Transformação, que facilmente comprehendem os que sentirem devéras, o amor de Estevam depurára-se-lhe na alma e fizera-se amor de mãe. Quantas vezes lhe parecia emballando seu filho, que estreitava nos braços a Estevam!... Então conchegava a creança mais a si; apertava-a tremulamente: e duas lagrimas de saudade, ou talvez de amor, deslisavam-lhe pelas faces. O filhinho, disperto com aquelle enlace, abria os olhos, e parecia fital-os na mãe, como traduzindo uma admirada reprehensão: ao menos assim o julgava ella, que se sentia desfallecer e se accusava então d’aquella innocente infidelidade aos seus deveres de esposa. Beijava ferverosamente o seu pequeno censor, como para o abrandar, e com aquella imagem afugentar a outra que tinha presente sempre. N’estes rapidos e quasi inapreciaveis movimentos se denunciava apenas a intensidade d’aquella violenta e concentrada paixão. Como nas pavorosas tormentas submarinas a placida superficie das aguas só n’um ligeiro tremer poderia denotar a força das horrendas luctas, que se travavam nas remotas profundezas. Uma tarde ficára absorta no seu scismar contemplativo toda embevecida n’aquellas divagações, que tantas vezes a alheavam do mundo em que vivia. Os olhos parados e fitos pareciam procurar nos affastados horisontes aquelle indefinido ponto em que os espaços se perdem de vista e que a phantasia enriquece com suas extranhas creações. Dir-se-ia a estatua do desalento poisada sobre a pedra da sepultura a remirar-se nos ceus, na sua almejada patria. A imagem de Estevam adejára-lhe na mente, e enlevada n’aquella paixão, que a não deixava, deixou approximar-se a noite sem perceber que as trévas baixavam encobrindo os campos. Já a lua desenhava com os seus pallidos clarões figuras estravagantes, que pareciam dançar por entre o arvoredo á feição do vento, e Rosa ainda estava no mesmo logar e na mesma posição. De repente soltou um grito e estendeu diante de si convulsivamente os braços, como se pretendesse affastar um phantasma atterrador. A imagem, que evocára parecêra tomar corpo, e n’um vulto que se escondia por entre as arvores cuidou reconhecer Estevam. Effectivamente apenas soltára aquelle grito o vulto correu para ella, era Estevam. —Estevam! —Rosa! —Tu aqui?! —Se eu não podia já viver longe de ti! Se morria se te não visse? —E agora? —Agora? Vi-te. Disse-te uma vez ainda: amo-te, e posso morrer! —Sabes, Estevam, que sou mulher de Januario, sabes, que tenho um filho de meu marido? —Para que m’o lembraste? Pensas que não m’o tinha dito já o coração? —Para que voltaste, então, Estevam? —Não t’o disse já? Para te vêr. —Ai! quanto me custa que voltasses! —Bem sei. Deveria ter morrido, não é assim? um homem como eu, que ninguem estima, que não tem affeições n’este mundo, que vive, como o espargo no monte, que embora procure lançar raizes na terra lh’as arrancam como o escalracho, devia morrer. Não serve de nada, não deve viver, tens razão. —E quem te diz que assim seja? Quem te diz que não ha quem te ame, quem ainda se dedique por ti, quem te não esqueça nunca. Ah! Estevam, os homens não comprehendem o coração da mulher! —Não comprehendem, não. A mulher, santa creatura, na verdade! A mulher, que mente ao marido, mente, ao amante, a mulher que se enlaça como a hera no coração do homem, cravando-lhe cada vez mais fundos os espinhos, roubando-lhe cada vez mais a vida. Não te comprehendi, Rosa, devia agradecer-te, porque pertences a outro, porque hontem dormiste ao lado d’outro, porque d’aqui a pouco vaes deitar-te no seu leito. Devia agradecer-te não é assim? Dize, anda, bem vês, que te vou comprehendendo. —Que mal te fiz para me tratares com esse desdem? —Que mal me fizeste? Nenhum! Eu é que fui um louco, eu é que errei, quando prendi a minha vida á tua, quando te entreguei a minha sorte, quando em ti puz a minha esperança. Eu é que fiz mal, quando me deitei a amar esse amor, que tantas vezes me juraste, quando depositei fé nas tuas palavras, que pareciam tão sinceras, quando pensei que havias de ser minha, porque assim m’o juráras mil vezes, eu é que mereço castigo, porque confiei na sinceridade do teu coração, porque loucamente credulo não me persuadi nunca de que fingisses tão bem, que houvesse em ti dissimulação tão grande. —Se soubesses quanto tenho padecido, não me fallavas de certo assim! —E eu! Julgas porventura, que te sumiste um momento sequer da minha ideia? Pensas que te não vi sempre diante de mim, nas tribulações da vida, nas ondas do mar, nos sertões d’Africa, nas extensões do céo... Sempre, sempre! Pensas que não me lembrava sempre, que eras d’outro, tu que só poderias ser minha! Pensas, que não me deram por doido; que me não arrojei ao mar, por mais d’uma vez, para lá ficar para sempre?... Se não fosse terem-me salvo, já hoje te não inquietava!... Pensas... —Não continues! Estamos a aggravar uma ferida que não póde sarar mais! Antes não nos vissemos! —E assim me despedes! Bem m’o dizia o coração! Falsa!... Rosa levantou a cabeça cheia de indignação; até esse momento, parecia que escutava a sua sentença de morte: quando porém Estevam assim a accusou, quando lhe pareceu, que o seu enorme sacrificio não era comprehendido, que o seu amor era tão mal julgado, a voz da consciencia, que a defendia dos aggravos de seu amante, bradou-lhe lá dentro. —Ergue te!... Elevou os olhos para o céo, como para se inspirar n’uma resolução suprema, affastou da fronte os cabellos, que a offuscavam, levantou-se com um movimento de nobre magestade, travou da mão de Estevam, que a olhava surpreso, e exclamando apenas:—Vem!—levou-o comsigo para dentro de casa. Com o sorriso a adejar-lhe sobre a physionomia, estava o filhinho de Januario deitado no berço dormindo, os braços torneados descançavam fóra da roupa abertos e como estendendo-se para a mãe. No fundo da alcova a um canto, que a luz d’uma lamparina illuminava a custo, adivinhava se o esposo que dormia: o ressonar compassado e sonoro, n’outro quarto proximo, deixava perceber, que Feliciano depois de ter largamente discutido com seu genro a conveniencia de uma nova semeadura, descançára por fim cançado de rabujar. De resto tudo estava em socego. Estevam, sem comprehender para que, deixou-se arrastar até junto do berço: ahi, Rosa correndo a vista pela casa fitou por ultimo o olhar no seu companheiro. —Ámanhã esta creança acordará, e aquelles dois velhos levantar-se-hão sorrindo para mim como sempre, cheios de confiança, e de... amisade. Como até hoje julgar-me-hão filha honrada, mãe honesta... esposa fiel!... Sacrifico-te, aqui, junto d’este berço... e d’aquelle leito, todo o meu passado, todo o meu futuro, tudo!... Aqui me tens, Estevam, vê agora se te amo. Sou tua!... E resignada, nobre, altiva, caminhou para elle, que recuára, como os martyres deveriam caminhar para a fogueira... serena, tranquilla, orgulhosa pelo seu sacrificio, illuminada pela divina aureola do amor. Estevam parecia fulminado. Foi mysterio o que se passou na sua alma; entretanto comprehendeu tudo, e soube elevar-se até ás sublimidades d’aquella mulher. Avaliou qual era a grandeza d’um semelhante amor, e sentiu-se digno d’elle. Leu de relance todas as paginas dolorosas d’aquella epopêa intima, e elevou no santuario de seu coração, purificado de quaesquer resquicios da natureza terrestre e material, um cantico divino de admiração, caiu de joelhos aos pés de Rosa e desatou a soluçar. As lagrimas queimavam-lhe as faces; mas refrigeravam-lhe a alma: quando se levantou era outro. Curvou se sobre o berço infantil, depositou um beijo no rosto do innocente, dirigiu-se para Rosa, que ainda o esperava immovel, mal lhe approximou da testa os beiços e desviando os olhos do leito, onde Januario dormia, saiu dizendo á sua antiga amante: —Adeus irmã! Foi tudo obra d’um momento. Rosa caiu sobre o berço de seu filho cobrindo-o de beijos; Estevam já ía longe. A creança soltára um vagido lastimoso, acordára ao sentir-se innundar pelas lagrimas de sua mãe, e estendendo para ella os braços, sorrira. Januario não déra signal de si. IV As feridas moraes não se semelham ás physicas. O coração rasga se com a dôr, soffre-se por muito; mas o tempo cicatrisa tudo. O correr dos annos enregela a alma, e acalma os ardores da paixão. Estevam ainda foi feliz. Rosa, essa, ninguem poude saber se se esquecera d’aquella noite. O amor de seu filho consumiu-lhe a vida toda. Nunca se lhe tingiram as faces de côr, nem o mais leve sorriso lhe entreabriu os labios: poucos a ouviram fallar, raras vezes proferia alguma palavra. Entretanto foi sempre esposa disvellada e filha extremosa; pouco tempo sobreviveu a seu marido. Aquella hora fôra a ultima em que conhecera que tinha coração; foi tambem a ultima em que se avistou com Estevam. Feliciano, na manhã seguinte a uma noite, em que mais se exaltára discutindo com seu genro sobre o melhor modo de alqueivar uma terra, foi encontrado morto na cama. Succumbira a uma congestão cerebral. A terra sobre que versára a controversia era propriamente a courella, por amor da qual contractára o casamento da filha. VII A gallinha da minha visinha... Já era o sol posto havia um quarto de hora. Tocára a largar o trabalho, e cada qual recolhera para a sua casa: uns sósinhos, pelas azinhagas fóra, se mais tresmalhados moravam; outros, em rancho, se poisavam juntos n’alguma terra proxima. André Pimenta, um dos trabalhadores mais fallados dos sitios onde este caso aconteceu, deitára a enchada ao hombro, e enfiára-lhe o cesto do jantar, de maus modos e sem dizer um _Deus os ajude_ aos companheiros, coisa para estranhar n’um homem maneiro e pratico como elle era; entestou para as bandas da casa, sem dar palavra e com cara de curtir sezões. Foi grande fallada na malta por causa d’este passo. Nunca o tinham visto tão esquerdo, nem de tão má catadura para os amigos. E d’ahi, andára todo o dia a fugir com o corpo ao trabalho, e a resmungar com os seus botões, como quem lhe roía alguma coisa lá por dentro. Ou estava doente o pobre do homem; ou lhe tinham dado quebranto. Porque até então ninguem lhe pozera o pé adiante no trabalho e ninguem o levára á parede em alegrias e cantigas. Andava sempre mais contente do que a cigarra e mais esperto do que o pardal. O que teria o André Pimenta? N’estes pontos de interrogação viera a gente toda da quinta do _Chibanta_ ao logar da Rabiça fazer o farnel para a semana, porque era n’um sabbado e tinham recebido a féria: em perguntas e conversas deitaram até defronte da casita onde elle morava e onde estava ainda, muito bem amezendado n’um poial á entrada da porta, e tão pasmado, que parecia ter-lhe um ar mau passado por cima, n’aquelle logar mesmo. —Boas noites, tio André! —Adeus, tio André, quer alguma coisa da Rabiça? Estas perguntas, com mais ou menos variantes, lhe dirigiam os pobres ganha-pães, sem que obtivessem resposta, além de um resmungar inintelligivel, que de má vontade saiu do peito de André, e que se fez ouvir sem que abrisse a bocca. Os maltezes olharam-se, encolheram os hombros, entenderam se pelos olhos: e, cada vez mais admirados, seguiram para o logar. O caso era para dar que fazer até mesmo a um escrivão! André fôra sempre um bom trabalhador e um honrado chefe de familia. Depois de andar um santo dia na sua labutação, não havia para elle maior regalo, do que vir de noitinha brincar com os pequenos ou conversar com a mulher, emquanto se lhe não apromptava a ceia e não tocava a deitar. Ao portal da casa, de verão; de inverno, sentado ao pé da chaminé n’um banco que elle arranjára em horas de sesta. N’aquella casa não se conhecera nunca cirurgião nem boticario, e não constava pela visinhança que se lá tivesse ralhado nunca. Pois a lingua d’aquella gente não perdoava, nem ao padre prior! Mas, quando tocava ao André das Furôas, (assim se chamava ao sitio onde assistia) ou á Magdalena da tia Ignacia, todos diziam á uma, que era um casal em que se não podia pôr bocca, e que viviam tão socegados, como Deus com os Anjos. Entretanto nem só os camaradas haviam extranhado André n’aquelle dia; Magdalena e os pequenos tinham ficado passados, quando o haviam visto chegar ao pé da porta, atirar com a enchada e o cesto para o meio da casa, como quem atirava com o diabo á rua e deitar-se para cima do banco, sem dizer nada nem á mulher nem aos filhos. Pela primeira vez na sua vida um mau pensamento viera torvar a serenidade d’aquella alma. André sentira a inveja, e tinha medo d’ella e de si. Admirava-se da mudança, que lhe ia lá por dentro e não tinha alma para deitar fóra aquella tentação. Não se conhecia, por differente; e não sabia como havia de tornar a ser o mesmo. Parecerá estranho a quem não conhecer a vida apathica e rotineira da gente do campo, André não pensára nunca nas differenças d’este mundo, nem nas gradações de posição. Parecia-lhe tão natural ser rico o sr. Manoel Fernandes e elle trabalhar para o sr. Manoel Fernandes e ser pobre, como deitar-se á noitinha e erguer-se de madrugada. Nunca considerára n’essas differenças, e ia trabalhando todos os dias com a enchada ou com o podão, como já seu pae trabalhára, e o pae de sua mulher, e como esperava que seus filhos trabalhassem, quando tivessem edade para isso. N’aquelle dia, porém, a horas d’almoço, ouvira uma conversa em que andára a matutar todo o dia, porque lhe fizera sensação devéras lá por dentro. Dois senhores da cidade tinham vindo visitar o sr. Manoel Fernandes e ao dar uma volta pela fazenda demoraram-se, com a curiosidade de vadios a vêr trabalhar os maltezes, que andavam n’uma cova aos montes. Admirados de vêr, n’uma hora, trafego, que os cançaria todo um mez, começaram em voz alta a fazer commentarios, e a lamentar a sorte d’aquelles homens, que suppunham infelizes. —Pobre gente, dizia um, tanto trabalho e por tão pouco dinheiro! —Então, respondia-lhe o companheiro, se elles não trabalhassem como haviamos de comer, bem vês que nem todos podiamos ser eguaes. —É verdade mas eu morria se cavasse duas horas! —Não admira, cada um para o que nasceu. E mil cousas como estas que é facil imaginar. O effeito que produziram, isto é que nem elles nem ninguem poderia imaginar. Não cairam no chão. Apanhou-as o ouvido de André a quem abriram um mundo novo. Pois havia homens, que não podiam cavar, ou que não queriam; e outros eternamente condemnados áquelle trabalho! Era coisa em que não pensára nunca, mas que lhe fervilhava agora lá por dentro, azoinando-o todo o dia. André Pimenta começava, como o anjo caído, a olhar para cima, e ao vêr outros tão altos e a si tão baixo oirou-lhe a cabeça e ficou estonteado. Era quasi noite e não cuidava em recolher. As creanças, que andavam n’uma empreitada de fazer uns castellinhos de barro ao pé da porta, e que, mal lobrigaram o pae, tinham deitado a correr a abraçar se lhes com as pernas, sacudidos por elle haviam vindo de orelha murcha, com as lagrimas nos olhos e corridos de susto para o pé das suas architecturas sentar-se amuados sem comprehenderem aquelles termos differentes das festas do costume: e mais estranhos ainda continuavam sem se atreverem a fallar com a vista pregada no pae, e com a persciencia infantil a advinhar-lhe desgraça. A mulher, essa entrava, saia, fallava, dizia mil cousas, fazia mil perguntas e sem obter resposta alguma, não sabia a que santo se apegasse para lhe fazer o milagre de lhe chamar a ternura antiga, tremia de entrar a fundo n’aquelle grande desgosto, por fim animou-se, e chegando-se a elle tocou-lhe no hombro e perguntou-lhe a medo: —Não vens cear, homem, é já tão tarde? —Não; foi a resposta secca e desabrida como badalada tangida rapida por mão inexperiente; e ficou-se. —Que tens tu, homem, nunca te vi assim? —Pois tu não sabes, que ha homens que não precisam de andar agarrados a uma enchada todo o dia para ganhar o pão de seus filhos? —Sei, homem, que se lhe ha de fazer; são cousas do mundo! —E nunca m’o disseste? —Para quê, André; valha-me a Senhora da Madre de Deus, nunca pensei que te dessem cuidado essas cousas! —Que me não dessem cuidado! Mulher de... não sei que diga! Pois eu, um homem como os mais, que nunca fiz mal a ninguem, que me tenho feito em postas para os sustentar a vocês; eu, se ámanhã me desse um estupor, ia para o hospital; por lá morria ao Deus dará, e vocês ficavam por ahi a pedir esmola! —Mas, que se lhe ha de fazer, se nascemos pobres? —É em que eu tenho andado todo o dia a matutar, porque hão de uns nascer pobres, e outros ricos; porque hei de eu não ter nada, e o sr. Manoel Fernandes, ha de ter mais de uma duzia de quintas, cada qual maior, cada qual que bastava para vivermos todos descançados: —Queres reformar o mundo? Tens inveja, André, e inveja do patrão, que nos faz tanto bem? —Quem te falla em inveja! Se eu me lembrasse de que era invejoso dava um tiro n’estes miolos. Eu não olho para as mãos do sr. Manoel Fernandes, que merece... verdade, verdade, e que é um homem ás direitas; mas eu não sou somenos e se tivesse uma d’aquellas quintas, ao menos; trabalhava, que não nasci para vadio: mas sem pensar no dia de ámanhã, sem tremer com a idéa do que lhes póde acontecer. —Por amor d’isso não te rales, homem; respondeu-lhe uma voz meio alegre, meio reprehensiva ao pé d’elle. Era o sr. Manoel Fernandes, que saindo a dar uma volta parára perto do grupo, e entrára assim na conversa, poisando a mão direita sobre o hombro de André. Este enfiou, Magdalena entrou a tremer, e os pequenos, comprehendendo que uma nova scena se ia passar, approximaram se curiosos do logar da acção. Houve um momento de silencio geral, emquanto os diversos actores se entre olhavam e reconheciam. Por fim André, com aquella giria saloia, que participa da sagacidade dos selvagens, conhecendo que a defeza era difficil, tomou a offensiva. —Ora, v. s.ª, assim a escutar o que diz cada um á sua mulher, sr. Manoel Fernandes! —Qual escutar, nem meio escutar, tornou este entre serio e risonho pois que percebera a manobra, não ouviste nunca, que, palavras leva-as o vento? Estavas para ahi a parolar alto e bom som, e não querias que ouvisse? Só se viesse pela charneca adeante com as mãos nos ouvidos. —V. s.ª tem razão, tornou Magdalena interferindo, como o poder moderador no systema constitucional, mas v. s.ª bem disse que palavras leva-as o vento, e o meu pobre homem apoquentado da sua vida, não admira, que desabafe... —Ninguem lhe diz o contrario, santinha, e d’ahi bem falla o rifão: quem escuta... —Mas o meu André não pôz bocca em v. s.ª para mal. —E que pozesse! El-rei tambem tem costas, não lhe quizera eu mal por isso, e tanto que já lhe disse, por amor da _Chibanta_ não ha de ser a duvida. —V. s.ª tambem!... observou André, como em recriminação, levou a mal, uma palavra dita sem maldade nenhuma. —Como queres que te diga que não, homem? fazes-te André! Já te disse, que está na tua mão, ser tua a _Chibanta_. —Ora!... —Não ha aqui ora, nem meia ora. Ámanhã começas a tomar conta da fazenda, e de caminho descanço eu o meu bocado. Se te avires com ella, e se te mostrares tão prompto de braço como de lingua, virá a ser tua. —V. s.ª tem vagar de rir, mas um pobre homem como eu, é que nem sempre está de feição: basta-lhe a sua vida, disse André, que não acreditava em tanta generosidade. —Queres acreditar-me ou não? Bem sabes que não tenho senão uma palavra. —V. s.ª então!... —O dito dito, e até ámanhã. O sr. Manuel Fernandes voltou costas e seguiu no seu passeio: apenas desappareceu no atalho, Magdalena e André olharam-se espavoridos e como receiosos, e por algum tempo estiveram sem dar palavra; por fim Magdalena voltou-se para o marido, para o accusar, segundo o costume das mulheres em semelhantes occasiões. —Para que havias de fallar, André? —Então nem queres ao menos, que desabafe. Anda um homem ralado de trabalho todo o dia, e nem ao menos ha de ser senhor de dizer duas palavras em sua casa! —E se elle te despede? —Não faltará onde dê cabo do corpo? —Elle parecia fallar sério! —Ainda acreditas! Bem me fio eu no que elle disse: esteve a divertir-se com a gente. Má raios... —Cala-te André, atalhou rapidamente Magdalena, cala-te, póde ainda estar por ahi, e quem sabe, talvez o homem faça o que disse. E em duvidas decorreu a noite. A peior, que desde que eram casados tinham passado. Ora a esperança lhes surria, ora o receio os amedrontava; ora acreditavam, ora descriam. Pela primeira vez nem Magdalena nem André provaram da ceia, e só as creanças, que não comprehenderam nada, comeram como do costume, e adormeceram com o mesmo descanço. De madrugada André, com cara de morte de homem, encaminhou se para a _Chibanta_. Vergavam-lhe as pernas pelo caminho; não ia contente comsigo, nem com a sua consciencia. Parecia outro. O sr. Manuel Fernandes esperava-o ao portão da quinta. Uns quês de ironia transpareciam no rosto alegre do fazendeiro. —Melhor cara traga o dia da ámanhã, homem, mofina te deu, que tão amargurado vens! Parece que não pregaste olho! —Eu bem sei que v. s.ª me vae despedir; mas não é porque eu faltasse á obrigação... —Que tens tu homem, mordeu-te bixo? —É que v. s.ª... —Bem sei o que vaes dizer, mas o que hontem te disse, está dito, hoje começas a ser meu feitor e para o deante fallaremos... André duvidou ainda e só depois do fazendeiro o ter apresentado aos trabalhadores, como seu substituto é que começou a entrar em si, parecia-lhe tudo um sonho. Em quanto lhe ia dando as instrucções necessarias, e lhe explicava por meudo o grangeio da fazenda, o sr. Manuel Fernandes sorria-se vendo que André meneava a cabeça com ares de profundo entendedor, e respondia a tudo: já entendi, deixe estar, não tem duvida. O velho lavrador não acreditava n’aquella proficiencia, e lá de si para si amolava o caso. Tanta confiança mostrava porém o novo caseiro, que, depois de acabada a vistoria, mandou o entrar para a casa principal da habitação, que accumulava as funcções de casa de jantar, escriptorio e cosinha, e disse-lhe: —Oxalá que me enganasse homem, queria-te dar uma licção e mostrar-te que nem tudo é o que parece, que para grande náu, grande tormenta e que cada qual sabe as linhas com que se cose. Se a inveja é feio peccado, não é culpa menor julgar as coisas pelas apparencias. Comecei, como tu, pobre, enriqueci por felicidade, mas sempre honradamente; ainda assim, não poucas vezes me têem lembrado, com saudade, as noites, em que, ralado com o trabalho, mas sem cuidados, atirava com o corpo para cima da enxerga, sem deitar contas á vida porque a féria no fim da semana pagava tudo. —Ó senhor Manoel Fernandes, mas a mulher e os filhos? —Tambem se accommodavam como podiam. Olha: uma cava é para o milho, outra para a vinha; quanto mais se sóbe, mais cançado se fica. Hoje tenho mais dinheiro do que então, lavro muitas geiras de chão, deito um par de moios á terra, e não dou pouco que fazer ao lagar; mas, pódes acreditár-me, tenho mais vezes falta de dinheiro, do que quando recebia um quartinho cada semana; e passo mais dias de amarguras, do que quando era um triste trabalhador. E como André meneava a cabeça, com ares de quem não acreditava muito no que elle dizia, o sr. Manuel Fernandes tornou-lhe triste: —D’aqui a tempos me dirás se tinha rasão. Não tardou que se não realisasse a prophecia. André, quanto mais entrava n’aquella vida nova, mais espinhos lhe achava. Tinha que repartir a attenção para mil lados, tinha que cuidar em muitissimas coisas differentes ao mesmo tempo. Não descansava, não dormia mesmo. Lembrava-se de noite, que podiam andar ladrões na fazenda, sentia ladrar os cães ou grasnar os patos, saltava da cama e corria para fóra, de espingarda carregada. Parecia-lhe que se esquecera de dar ordens para o dia seguinte, que não determinára trabalho, e eil-o, sem pregar olho, a espreitar a madrugada para ir acordar os trabalhadores e marcar-lhes a obrigação; era um supplicio. Depois a cultura em ponto maior, os processos da lavoura, de debulha, de vindima, de sacha, de cava, de poda e de empa, a qualidade das sementes, o tempo da sementeira e a escolha dos terrenos, o traçar da horta, e a rega das plantas, o decote das arvores e a colheita dos fructos, o cuidado do gado e da creação, o fabrico dos instrumentos de lavoura, a guarda do pão, e o meio de o conservar, reclamavam conhecimentos que lhe faltavam. Quando lhe perguntavam alguma coisa, é que via na resposta as difficuldades, que á primeira vista não encontrára. Tinha sempre medo de mandar o contrario, e não poucas vezes lhe aconteceu, quando errava, ouvir os homens da quinta rirem-se d’elle, e lá, uns com os outros, fazerem observações bem desagradaveis. André, por natureza bondoso e crente, tornára-se irascivel e desconfiado de todos. Nos seus mais intimos mesmo se fizera sentir a differença de posição; Magdalena e os pequenos tinham-se tornado exigentes, nada os contentava, tudo lhes parecia pouco, e André podia contar todos os dias com uma contenda, quasi sempre n’este theor: —D’antes não me recusavas coisa nenhuma... —Se não póde ser, mulher. —Estás sovina, para que queres o dinheiro? —Mas se o não tenho? —Pois sim, a mim não me enganas tu, ainda hontem vendeste isto ou aquillo, é porque o gastas com outras. E seria um nunca acabar referir todas as desavenças, todas as ralações do pobre homem. Nem em casa nem fóra, lhe deixavam um momento de descanço. Andava como doido. Entretanto o sr. Manoel Fernandes tinha ido á provincia; demorára se por lá algum tempo e esperava-se de um momento para o outro. André foi ter com elle ao caminho, apenas o avistou a alcance de voz, as suas primeiras palavras foram como o deitar ao chão um peso que o opprimisse, e com que não podesse mais. —Acceite a _Chibanta_, sr. Manoel Fernandes, quero a minha enchada e o meu somno descançado; a minha féria e o meu socego. O fazendeiro sorriu-se. —Pois já, homem? —E é demais. O que lá vae lá vae, aprendi devéras, estes dois mezes têem-me custado annos de vida. —Pois não tens as mesmas idéas que tinhas ha seis mezes, já te não lembras do hospital? —Tenho-me agora lembrado mais ainda, mas é do hospital dos doidos, e lá não tardaria eu se continuasse n’aquelle inferno. Guarde-a que lhe não invejo o vagar. O sr. Manoel Fernandes viu o pobre André tão amofinado, que não quiz abusar. No dia seguinte este começava no trabalho antigo e pela primeira vez, havia tanto tempo, dormia de um somno desde o deitar até ao amanhecer. Magdalena reagiu, e queixou-se ao principio, depois costumou-se outra vez: e se se lembrava com saudades dos seus antigos explendores, não tinha muito tempo para ter pena, porque o trabalho da casa preoccupava-lhe a attenção. Os pequenos esses só tiveram desgosto com a mudança. Uma enchurrada havia-lhes desmanchado o seu castellinho de terra. De novo reinou n’aquella casa o socego antigo: a alegria, que parecia ter fugido espavorida das grandezas do rendeiro da _Chibanta_, tornou a sorrir no pobre albergue do modesto trabalhador. O sr. Manoel Fernandes entretanto foi ajudando André, que, com o andar dos tempos, conseguiu comprar um quintalejo que, se não era tão grande como a _Chibanta_, correspondia ao menos ao seu saber e não lhe dava grande cuidado. Mas tinha-lhe aproveitado a licção, e quando lhe fallavam nos haveres dos outros dizia sempre: —Eu bem sei o que isso é; ninguem está contente com o que Deus lhe deu. Por isso diz o rifão: a gallinha da minha visinha... VIII O guarda do cemiterio I Era perto da noite. Voltava em companhia do tio Joaquim d’uma feira, que se fazia a duas leguas da quinta, onde estavamos. Tinhamos mettido os cavallos a passo, e depois de muito discorrer e matar tempo, a conversação, que esmorecera gradualmente, parára de todo. Não o sei ao certo, mas quero o crêr; a tristeza que tanto se sente no campo na hora em que o dia desapparece pouco a pouco, influira para nos calar; e aquella doce melancolia, que acompanha o crepusculo da tarde, e que tanto nos faz scismar e crêr, obrigára-nos a interromper as fallas, que perturbavam aquelle silencio geral. Só quem tem vivido fóra das cidades é que póde dar conta d’aquelle tempo de socego e de mudez, que determina a passagem da noite para o dia, e muito particularmente do dia para a noite. As aves, os animaes, as arvores, as plantas e até a natureza insensivel, parece que entristecem n’aquelles momentos e que suspendem a vida, o movimento e o ruido: como que permanecem por instantes n’um estado de duvida e de receio, e temem vêr desapparecer de todo essa luz, que é a sua vida, e que então se some no horisonte, tinto por amor da sua ausencia com côres de tristeza e de dó! Outras vezes, no meio da geral callada, alguns ruídos se apercebem; mas esses como a susto, como mais para significarem o esmorecer da vida do que a sua animação:—é o breve pio do mocho, é o som afastado dos chocalhos, são os timidos balidos dos rebanhos, é o ramalhar das arvores com a viração da tarde ou o murmurar longinquo e surdo das ondas do mar. São essas as horas mais talhadas para a meditação, para a saudade ou para o amor; são as horas das aspirações vagas, dos desejos indefinidos, das fantasias e das expansões; são as horas em que se eleva em nós, um que quer que é estranho e superior a tudo que nos cerca e com que de habito lidamos; em que o homem soffre e gosa, sente e crê, folga e padece; em que o desalento e a esperança se travam em lucta; em que o amor nos falla de prazer, a saudade da dôr e a imaginação do infinito; em que se vive muito e se deseja morrer; em que se sonha muito e se receia accordar; em que a virgem presente a primeira paixão, o homem o primeiro amor, a creança o primeiro momento de viver, o velho a ultima hora; em que o passado e o futuro se enlaçam, um descoroçoado e sceptico, o outro enthusiasmado e crente; em que o mundo é pequeno para a alma, e a alma acanhada para o sentimento. Em tudo isto eu pensava n’essa hora, e tão absorto ía, que nem dava pelo caminho que levava: parecera-me até que se me ía fugindo a vida, como me parecia fugir o mundo, se o som compassado das ferraduras dos cavallos sobre as pedras da calçada, me não chamasse á realidade, marcando de continuo com a regularidade d’uma pendula, a extensão do espaço e o correr do tempo. De repente, n’uma volta que fazia a estrada, os cavallos fitaram as orelhas e pararam: sobresaltado, como que acordei, procurando descortinar que causa fôra a que os assustára. Iamos passar pelo cemiterio da terra, separado da estrada por um parapeito de pouca altura, e limitado, da banda d’onde vinhamos, pela casa do guarda; do lado opposto, por uma egreja antiga, abandonada e em ruinas. Nenhum logar mais adequado, nem accessorios mais accordes podia a morte escolher. Tudo alli fallava do seu poder, tudo concorria para a sua magestosa severidade. Ruinas, desamparo e tristeza. A casa do guarda, que primeiro se offerecia á vista, ennegrecida pelo tempo, com as portas e janellas carunchosas e escavacadas, deixando devassar o interior desguarnecido e miseravel: o cemiterio sem aninho nem cultura, sem monumentos, nem flôres, nem pedras, nem ruas, nem disticos, nem retabulos; algumas cruzes toscas, por entre matagaes de ortigas, algumas arvores esgalhadas de longe a longe, umas e outras roidas pelos vermes, enfraquecidas pelos parasitas, mutiladas pela podridão: e ao longe a egreja, de tempos remotos, com as cantarias de grosso lavor lascadas ou caidas, as paredes esburacadas e musgosas, as grades ferrugentas e quebradas, as janellas sem vidros, as ogivas interrompidas, as arcadas soturnas a perderem-se na escuridão e a adivinharem-se pelos buracos da fachada, frias, nuas, sós e tristes. Apertava o coração e confrangia a alma; fazia mal aquella vista. Não havia sido entretanto nem a egreja, nem o cemiterio, nem a casa do guarda que tinham feito parar os cavallos, mas o proprio guarda, que estendido sobre um poial, deante da porta se levantou para nos cumprimentar. Parecia que a influencia sinistra d’aquellas paragens se estendera tambem áquelle homem: condizia com tudo que o cercava. Era alto e ainda novo; mas o tempo e os pesares tinham-n’o curvado e encanecido. As feições eram duras, carregadas e tristes, as faces cavadas e cheias de rugas, a pelle tostada e aspera, os cabellos mal tratados e grisalhos, as barbas compridas, em desordem e grisalhas tambem; o corpo estava coberto de farrapos, a cabeça resguardada por um velho chapeu já sem abas e os pés mettidos n’uns tamancos muito usados, que quando se levantou repercutiram por um modo estranho batendo nas pedras. Era como a personificação do desconforto ao pé das ruinas, como a desillusão da vida junto á morte. O tio Joaquim, ao dar com os olhos n’elle, resmungou por entre dentes—até os brutos o temem;—correspondeu a um—boas noites,—que nos dirigiu, metteu o cavallo a meio trote, eu imitei-o, e dentro em pouco tinhamos perdido tudo de vista. Dias depois vim a saber pelo tio Joaquim quem era o guarda do cemiterio, e qual a sua historia. II Manoel começára de pequeno n’um navio mercante, e em pouco chegára a piloto pelo seu bom porte e bravura. Era um rapaz valente como as armas, destemido como poucos, desembaraçado como ninguem a bordo e que entendia da manobra ás direitas. Não havia tempo nem mar que lhe mettessem medo: e por mais d’uma vez salvára o navio em casos apurados, pela sua presença de espirito. Sempre alegre, sempre a cantar, parecia que não havia tristezas que com elle entrassem, nem penas que se lhe pozessem diante. Tinham-lhe nascido os dentes no mar, calhára no navio, e fóra d’elle andava triste como o peixe fóra da agua; o pobre do rapaz, tambem, era engeitado, e vivia cá n’este mundo sem ninguem que lhe quizesse. Chegou lhe entretanto occasião de deitar ferro em amor e de arranjar amarra de má morte, pois quebrou no primeiro temporal e que deixou abrir-se e naufragar o barco de encontro aos baixios da vida. Manoel teria dezoito annos se tanto, quando uma tarde, indo em penitencia á egreja de Nossa Senhora da Penha a cumprir uma promessa que fizera em hora afflicta, encontrou a um canto da egreja, ajoelhada a rezar tambem, uma rapariga nova, bonita e toda coberta de luto. Seguiu-a, soube onde morava, requestou-a e ajustaram casamento, que só dependia d’uma viagem redonda ao Brazil, em que o rapaz contava apurar os vintens de que precisava para pôr a casa. E assim, entre promessas e esperanças, viveram dois annos, que tanto medeou entre o dia em que pela primeira vez se tinham visto e aquelle em que ia partir para a malventurada viagem. Foram os melhores da vida de ambos. Ái! quem tem vivido de illusões e de esperanças, sentindo um coração a afinar pelo seu no pulsar e no tremer, uma alma unir-se á sua cada vez a mais a mais até se confundir de todo; quem tem a registar esses dias em que o tempo vôa nos instantes dos colloquios para descançar, e demorar-se nos seculos que os separam; quem tem encontrado sempre na dôr e no prazer companhia e affeição, amor sempre, dedicação e sentimento, como só a mulher sabe ter, e a mulher que ama deve resignar-se para todas as provas, para todos os padecimentos, porque já antecipadamente tem gosado o maior quinhão de felicidade que a terra lhe póde dispensar. N’este viver do ceu tinha passado Manoel dois annos, e tão breves lhe tinham parecido, que na hora da despedida dava a vida inteira por um dia só mais que fosse. Mas era preciso. O navio partiu e o piloto acompanhou-o em corpo, deixando a alma em terra, e com a alma a esperança e a vida. Nos primeiros tempos esteve como doido. Por mais d’uma vez o navio correu perigo sem que elle désse por isso, sem que aquella valentia d’outros tempos accordasse nos momentos d’afflicção; parecia barco sem leme ou alma penada sem sepultura: de nada dava fé nem a coisa alguma attendia. Depois o tempo gastou as maguas, as rugas ficaram no rosto, a saudade no coração; mas o marinheiro tornou a ser o que era, menos na animação e na alegria, que d’essas só Martha podia dizer o que era feito. Teve má sina a viagem. Avarias, arribadas, empates de vendas, difficuldades de carga demoraram tres annos o _Corsario_ em vez dos seis mezes, que deviam de ser. Em Lisboa correu voz de que se perdera, e os proprios donos do barco descoroçoaram de o tornar a vêr. Nos primeiros tempos Martha, sempre que podia, chegava ao escriptorio para saber noticias, depois foi-se demorando mais até que por fim deixou de apparecer. Bem sabia que Manoel, apenas saltasse em terra, correria onde ella morava: para que havia de perder tempo, de que precisava para viver e cuidar do enxoval? Um dia soube que se perdera o _Corsario_ com toda a tripulação. Ficou por morta. Por dois mezes padeceu n’uma cama do hospital, depois melhorou pouco a pouco, até que saiu tão boa como d’antes e mais formosa ainda, porque a pallidez lhe augmentava a belleza. Perto d’ella morava um rapaz, operario diligente e de bons costumes, novo tambem, laborioso e honrado: encontraram-se um dia na escada, e cumprimentaram-se. Ella percebeu no visinho semelhanças do Manoel; chorou muito, mas pensou no operario toda a noite; de manhã, para espairecer saudades, estava na janella ainda de madrugada, e vio o quando ia para o trabalho; depois foi continuando a vêl-o, depois... as recordações de Manoel começaram a sumir-se-lhe pouco a pouco da lembrança, como o navio, em que partira, fôra desapparecendo ao longe, pouco a pouco, nas aguas do mar. III Entretanto o _Corsario_ entrava a barra, de pannos largos em tarde de primavera, como cysne nadando em lago de jardim. A marinhagem debruçava-se nas amuradas, e com os olhos namorava a terra, a que a prendia o coração. O sol baixava, e a cidade estirada por esses montes fóra recortava-se sobre o fundo azul da serra de Monsanto, onde se reflectiam, já muito obliquos, os raios do poente. Todos ou quasi todos têem visto Lisboa do mar e todos se tem enlevado em suas formosuras; mas nem todos sabem o que é vêr a terra onde se nasceu, onde se passou o melhor tempo da vida, onde estão amisades e amores, saudades e memorias, depois de mezes passados entre mar e ceu, a perderem-se e confundirem-se um no outro: e de vastos, que são, a apertarem-nos, a apertarem-nos a mais a mais o coração e a alma. Para Manoel nem cidade, nem montes, nem rio, nem sol, nem ceu, nem coisa, que n’este mundo houvesse, valiam a pena d’um olhar; uma casinha sómente, uma mulher e um amor, eram tudo, em que pensava, o que unicamente lhe prendia a attenção. Para que de mais longe podesse vêr, apenas passára as torres, subira a uma gavia e d’ali esbugalhava os olhos para terra, como quem por elles queria que a alma fosse em procura de Martha. Mal o navio deitara ferro, atirou-se a um escaler, e agarrado aos remos, porque a seu vêr ninguem os puchava com tanta ancia e tanto d’alma, voára, que não corrêra, até ao caes, onde d’um pulo saltou em terra. Mas dados que foram os primeiros passos com os restos d’aquelle impeto que vinha de dentro, Manoel estacou e ficou pregado ao chão. Tremiam-lhe as pernas, esmorecia-lhe a vista, estonteava-lhe a cabeça, e o coração, esse, batia-lhe no peito, como azas de andorinha em horas de temporal. Que seria de Martha? Morrera talvez: esquecel-o-ia, o que fôra peior; porque nem a poderia chorar. Iria encontral-a casada, perdida!... Instantes de incerteza como aquelles envelhecem tanto, como annos sem descanço. Fraquejou por um momento, cobrou animo depois, como o navio, que resiste a um furacão: e, quasi de corrida, deitou para o sitio em que a deixára n’outros tempos. Tinha-se mudado, era já um mau agouro; as recordações do passado deviam prendel-a áquella casa, se a abandonára fôra porque esquecera tambem essas recordações. Manoel sentia apertar-se-lhe o coração ao bater á porta e ao dar com a cara d’uma visinha antiga que occupava aquella habitação. Perguntou por Martha e soube o que succedêra accrescentado ainda em cima pelas coscuvilhices de senhoras visinhas. Disseram-lhe que os amores de Martha estavam mais adiantados do que o deviam ser para corresponderem ao seu bom porte d’outro tempo, e que se deixára a rua fôra porque todos ali a conheciam e todos murmuravam da sua vida; que na nova habitação podia estar mais á vontade, por isso a escolhêra; finalmente, e para encurtar razões, tantas coisas que fariam perder a paciencia, a quem a tivesse bem callejada, quanto mais a quem tinha sangue na guelra e o ciume a ferver-lhe lá por dentro. Ouviu, como se estivera sonhando, parecia-lhe tudo impossivel. Martha, a sua Martha ser-lhe infiel, era para dar em doido. Tanto lh’o affirmaram, todavia, que o quiz experimentar, e, como o condemnado que vae para a forca, seguiu para a morada nova da sua antiga amante. Era já noite, elle caminhava encostado ás paredes, e como quem receia cair. A dôr tambem embriaga, e o marinheiro, que por tantas vezes resistira ao vinho e á aguardente, fraquejára áquelle padecer; era outro homem, as palavras da velha tinham no mudado de todo. Ao voltar da esquina da rua indicada, viu de longe n’uma janella um vulto, que o coração conheceu, antes que os olhos o podessem adivinhar. Era Martha, dizia-lhe o que sentia em si e os estremecimentos do seu amor. Mas quando, esquecido de tudo, ia soltar um grito e correr para a que tanto amava, um outro vulto que parára debaixo da janella, depois de ter fallado para cima e de lhe terem respondido, entrou a porta que lhe franqueavam e que pouco depois se cerrava sobre elle. Martha desapparecera da janella e em breve aquella casa ficára sepultada nas trevas, como o pobre Manoel no desalento e desconforto. Já não tinha que duvidar, não era sonho, estava realmente accordado, os seus olhos não o enganavam; esperou entretanto, ora correndo como um perdido, ora parando como quem ia desfallecer, ora soltando palavras sem sentido, ora rugindo como uma fera, espumando como um possesso. Perto da meia noite abriu se a janella, Martha appareceu de novo, o mesmo vulto saiu e encaminhou-se para onde estava Manoel, este como fóra de si, não vendo senão sangue partiu para elle, com a faca de marinheiro aberta: ouviram-se dois gritos, um corpo baquear no chão e uma voz de mulher, que pedia soccorro. IV Momentos depois já Manoel estava prezo: tinham acudido aos gritos de Martha, e tinham-no encontrado com a faca ainda aberta defronte de um corpo caido no chão, e a golphar sangue por duas feridas profundas. Era mais do que o bastante. O depoimento da visinhança, o proprio testemunho de Martha, tudo concorreu para que o condemnassem. Levaram-lhe porém em conta o bom passado, os negociantes respeitaveis, donos do navio a attestarem o seu bom porte, uma tripulação em pezo de honrados e velhos marinheiros encanecidos pelo tempo, e crestados pelos soes da linha a dizerem: que elle tambem fôra honrado. Os jurados, santas creaturas, commoveram-se com aquelle espectaculo; o advogado do réo, rapaz de esperanças, vociferou contra as leis de sangue, e discorreu como uma bocca de ouro sobre a alienação mental e as circumstancias attenuantes; o juiz sensibilisou-se tambem, e todos enternecidos condemnaram o réu... a dez annos de grilheta. Para um homem como Manoel, similhante affronta seria peior do que a morte, se no estado em que se achava, elle a podesse apreciar. Depois que commettera o assassinato tinha ficado como louco, ou peior ainda, porque parecia idiota. Um golpe d’aquelles, uma mudança d’aquella qualidade! Quando esperava colher o fructo de uma vida trabalhosa e honrada nos braços da sua Martha, vêr-se de repente criminoso, assassino e deshonrado; toldarem-se-lhe na cerração as estrellas, que o guiavam n’esta vida, o astro do amor, e o astro da honra: eram provações de sobra para deitarem por terra castellos mais fortes, e almas ainda mais valentes. Manoel não morreu, mas fraquejou para sempre. O mesmo d’outros tempos nunca mais tornou a ser. Nunca mais o viram rir, cantar não o ouvio mais ninguem: e as rugas, que se lhe cavaram no rosto, tambem se lhe entalharam no coração. O amigo da humanidade, que inventou as prisões em commum e a grilheta, foi de certo um grande perverso. Só a um requinte de malvadez se póde attribuir um invento que envolve e reune no mesmo castigo, na mesma atmosphera de perversão, innocentes e criminosos, pois que assim comparados uns com outros se podem chamar: e que não contente com isso lhe accrescentou a grilheta, _exposição ambulante_, aperfeiçoamento da que, em tempos de barbaridade, se applicava as mais das vezes a victimas do que a réus. A influencia desmoralisadora d’aquelles dez annos não alcançou todavia o antigo piloto: quasi que nem os percebeu, tudo era para elle extranho, inexplicavel, incomprehensivel; um pesadello que durava muito, e de que esperava accordar um dia. Entrára na cadeia de vinte e um annos; saia sexagenario, eis toda a differença. Aquelles dez annos valiam-lhe por quarenta; e, mocidade, alegria, sentimento, coração, vida, enthusiasmos d’outro tempo, crenças e aspirações, tudo deixara ao sair, com a grilheta que depozera. Só não perdera um sonho atroz, que quasi todas as noites o perseguia, e que, salvo pequenas mudanças, era sempre o seguinte: Navegava a bordo do _Corsario_. De repente o Oceano transformava-se em largo mar de sangue: debruçado na amurada via-se lá em baixo a braços com um homem, que lhe ia roubar a sua Martha, innocente como os anjos, pura como a estrella da manhã, serena como o alvorecer de estio em alto mar, e que d’entre nuvens no céu lhe sorria amor. A lucta continuava encarniçada, elle fóra de si puchava pela faca; mas, por mais diligencia que fazia, só alcançava Martha, o seu contrario escorregava-se d’entre os braços escapando-se-lhe aos golpes. Depois o mar de sangue envolvia-o todo, ia já a affogar-se, e a voz de Martha eccoava-lhe aos ouvidos clamando; assassino, assassino. As ondas passavam-lhe por cima da cabeça, o marulho das aguas, o sussurro do vento casavam-se com uma voz confusa, que lhe baqueava nos miolos, dizendo-lhe: _não matarás_. Nos primeiros tempos, em que saiu, ainda teve esperanças de voltar á vida antiga; mas todos, que procurava, se affastavam d’elle com terror. Desesperado, momentos houve em que lhe passou pela cabeça vingar-se de uma sociedade, que castigava n’elle um crime mais dos outros do que seu, e seguir a estrada do mal, já que lh’a lembravam, e já que lhe tornavam todas as outras impraticaveis; mas o principio do bem e as idéas que recebera com a educação, predominaram sempre. Custára-lhe muitas noites d’insomnias e de phrenesi, horas de amargura, em que chegou a desejar a vida da cadeia, occasiões em que a ideia da morte lhe trabalhou muito na cabeça. Uma noite, pelas onze horas, vagueava pelo caes do Sodré depois d’um dia passado em inuteis pesquizas de trabalho, e em repetidas e semelhantes recusas. O céo estava carregado, o vento soprava em lufadas da barra, o rio estava revolto, as aguas negras, a escuridão negrejava em tudo. Debruçado sobre o caes, remontou-se pelo pensamento áquella tarde em que, onze annos antes, desembarcára no mesmo sitio. Como tudo tinha mudado. Que alegrias então, que tristezas hoje! A agua começou a namoral-o debaixo, o desalento a convidal-o em roda, ia a precipitar-se, um braço susteve-o, uma voz exclamou: cobarde!—Era o braço de um antigo companheiro, a voz d’um velho amigo, marinheiro como elle; mas muito mais pobre, muito mais velho, e que pedia esmola encostado ao parapeito do caes. Aquella palavra e aquelle exemplo fizeram-n’o renunciar para sempre ao suicidio. Para não ser cobarde muitas vezes em temporal desfeito se resolvera a morrer, agora, para que lh’o não chamassem, resignava-se a viver. Era maior o sacrificio, mas para o compensar estava a ideia de que podia ser util ao velho Estevam: e a companhia d’um amigo que lhe apparecia nas proximidades da sepultura. E... porque não havia de concorrer tambem? A esperança, que mesmo sem fundamento algum, ainda lhe dizia que vivesse, e o acompanhava, como sempre, nos mais atormentados lances? No dia seguinte, com o peculio que por seu trabalho juntára na cadeia, comprava um velho barco de pesca, e ambos tomavam posse da propriedade commum não contentes, mas resignados, baptisando-a—_Desgraça_,—pelo muito que ambos haviam padecido. Se o trabalho faz minorar e esquecer as maguas, nenhum modo de vida se creou melhor para o esquecimento do que a vida do pescador. A lida continua e a lucta permanente com o mar e com o vento, a vigilia, o emprego de todos os sentidos, trazem o que n’ella se emprega sempre voltado para o seu trafego e sempre estranho ao mundo com o qual só de leve trata: e d’ahi para Manoel aquelle labutar tão semelhante ao de outros tempos, aquella vida, reflexo da outra, reflexo pallido em que o rio substitue o mar, em que o barco substitue o navio, mas que nos lances e no trato, tanto lh’a recordava, era um paraiso, depois d’aquelle inferno porque passára. Estevam, que o infortunio lhe offerecera por companheiro, serviu-lhe de amigo e de auxilio durante tres annos, em que gradualmente se lhe foram esvaecendo da lembrança os desgostos e as desillusões. Se para Manoel podesse ainda haver felicidade, quasi que aquelles tres annos se poderiam dizer felizes. Desde a tarde em que saltára em terra, entre receios e esperanças, nunca mais encontrára alma onde derramasse as amarguras, que trasbordavam da sua, nunca tivera ninguem que o comprehendesse, nem que avaliasse a sua dôr. O companheiro de grilheta, que lhe haviam jungido, era um scelerado, com tantas mortes e tantos crimes, que horrorisava ouvil-o, e ainda mais vêl-o rir das maguas de amor. Ás queixas de Manoel, respondia com imprecações, e se elle insistia, dava-lhe para que o deixasse com semelhantes pieguices. Depois que o soltaram, nunca nem um só, dos que d’antes o tratavam, lhe mostrou boa feição, todos fugiam do _grilheta_, alcunha que lhe tinham posto e que lhe recordava a antiga condemnação. Porque, clamem embora os philosophos, a rehabilitação moral para o criminoso pobre é impossivel, para o rico é inutil, ninguem lhe toma contas nem do passado nem do presente: o miseravel, porém, traz a corrente presa toda a vida, todos lh’a notam, todos lhe apontam para ella, e embora elle diga: _vejam o que hoje sou_; todos lhe tornam: _vemos o que foste hontem_. Por isso aquelle companheiro, que o comprehendia, aquella solidão que o não accusava, aquelle mar e aquelle ceu, que lhe lembravam o perdão e o infinito, foram como um calmante para a sua dôr, como uma estação de descanço na sua jornada de padecer. Estação, que durou pouco e que uma borrasca desfez, n’uma tarde, em que já recolhiam da pesca, seguindo pelo Tejo acima, a procurar abrigo n’alguma d’aquellas enseadas naturaes, que o rio abre, nas proximidades de Sacavem. A _Desgraça_, apezar do vento á popa, seguia pouco, e arfava muito porque havia força de corrente, e a vasante ia com grande rapidez. Principiava a escurecer e o vento a carregar com a noite, alguns trovões ouviam-se ao longe, e um temporal rijo se apparelhava para em pouco. O barco já não dava pelo leme, e a cada momento se enchia d’agua;—ir para diante era quasi impossivel, e á primeira onda mais rija, o casco já velho, podia abrir-se de popa á prôa. Posto que não conhecessem a praia, em risco de bater n’alguma pedra, tentaram atravessar, e encalhar quanto antes, depois de esforços sobrehumanos para luctar com o temporal; mas quando aproavam para terra uma rajada mais forte lhes levou a vella, e uma onda apanhando o bote pelo costado, metteu-lhe a borda debaixo d’agua, e virou-o logo. Só os que têem vivido parte da sua vida no mar é que avaliam bem quanto custa ao marinheiro deixar as taboas, em que tem navegado, sejam ellas de bote catraio ou de navio d’alto bordo. Para Manoel e para Estevam o barco era a fortuna, a familia, o mundo inteiro, que as aguas lhes queriam roubar. Agarrados a elle, mal se via já, trabalharam quanto poderam para vêr se o salvavam; mas, baldados esforços, o que conseguiam n’um quarto de hora, perdia-lh’o n’um segundo uma onda mais valente. E as forças a faltarem-lhes, e a respiração a difficultar-se-lhes, e os braços a renderem-se-lhes. —Já de noite—não podendo mais, tiveram de o largar, e por um instincto de conservação, que nos não deixa nunca, cuidaram de se salvar nadando para terra. Não era cedo: acontecia-lhes o que succedera ao barco, e quando mais cresciam para a praia, animando-se e clamando um pelo outro, porque não se podiam vêr, mais os affastava a corrente, que seguia com uma velocidade de espantar. Estevam não luctou por muito tempo. Mais velho e mais cançado, uma onda abafou-lhe o ultimo grito, e galgou-lhe por cima da cabeça, entrando-lhe pela bocca aberta convulsivamente n’um extremo resfolegar. Manoel com o desespero de afogado, reuniu todas as forças, e n’um extremo alento enterrou um braço no lodo da praia, para que a agua o não levasse, procurando já por instincto conservar a cabeça ao cimo d’agua para gritar, e tomar a respiração. Succeder-lhe-ia em pouco o mesmo que a Estevam se da terra o não ouvissem; correram em seu soccorro com luzes e cabos, nadaram para onde se ouviam os gritos, e agarraram-no pelos cabellos, quando exhausto de forças ia mergulhar tambem. —Quasi que não respirava. A Providencia velava por elle, era a segunda vez que o salvava. De manhã quando Manoel deu accordo de si, viu-se deitado n’uma esteira perto da chaminé, onde ardia um bom fogo, e ao pé d’elle um rapazito de dez a doze annos a vigiar lhe o somno: já não sentia a fadiga da vespera, e tinha recuperado as forças com o descanço; ia para se levantar e agradecer aos que o tinham salvado, quando a creança, pondo-lhe a mão sobre o hombro lhe disse: —Não se levante, faz-lhe mal, a mãe não quer; e como elle teimasse, gritou:—mãe, accuda cá, o homem quer levantar-se, quer ir-se embora. Á voz da creança abriu-se uma porta, e uma mulher, que teria trinta annos, quando muito, e que apesar de cançada pelo trabalho, ainda era formosa, appareceu no limiar. Manoel apenas a entreviu, com o lusco-fusco da madrugada, que illuminava fracamente a casa, deu um grito, levantou-se cambaleando e enfiou pela porta meia aberta para a estrada. Ella ao reconhecel-o tambem, encostou-se ao umbral da porta para não cair no chão. Era Martha. V O céu tinha limpado de noite, o dia amanhecera sereno, e o sol aquecia bastante, apesar de ser no outono. E aquella estrada, então, que era um descampado! A meia hora de caminho, andando sabe Deus como, com a cabeça pelos ares e a rasão quasi transtornada, Manoel teve de parar, ou, para melhor dizer, de cair n’um poial, que estava á beira da estrada debaixo de uma nogueira velha. Se não estivesse já experimentado na infelicidade, o pobre homem, que pela sua má sina parecia ter nascido nas horas da desgraça, finava-se alli de todo. Mas a canceira do corpo venceu a labutação do espirito; as horas, que levára de volta com o mar, o dia que passára e este que ia correndo sem comer; aquella vista e aquelle abalo, tudo junto deitaram-no como desmaiado sobre o poial onde ficou a dormir, a pensar, ou a esmorecer, que nem elle mesmo soube nunca o modo porque fôra, até que um velho visinho e que por mais de uma vez chegára ao humbral da porta a encarar com elle, o fez tornar a si batendo-lhe no hombro e perguntando-lhe se tencionava ficar para sempre alli estendido. Manoel para aquellas bandas não sabia caminho nem carreira, e que o soubesse não tinha alma de o seguir. O velho compadeceu-se d’elle, porque pelo fato e pelo fallar, conheceu logo que era estranho ao logar; offereceu-lhe, para passar a noite, um bocado de esteira, para matar a fome um pedaço de pão e uma cabeça de sarda, e para companhia a sua pessoa e conversação. Acceitou, e seguiu o seu hospedeiro como por demais: e, sem dar fé do que fazia, comeu, deitou-se, e dormiu a noite de um somno. Só nos romances é que os heroes não dormem depois de fortes abalos; na vida vulgar, na vida de todos e de todos os dias, depois dos grandes padecimentos, vem o cançasso mesmo da dôr, e depois o somno, ás vezes mais profundo, mais descançado, do que nas occasiões triviaes. Na manhã do dia seguinte Manoel acordava tranquillo e quasi feliz. Ao cabo de tanta lucta, de tantos lances, e de tão grandes golpes, aquelle remanso, que o velho lhe offerecia, aquelle apartamento do mundo, aquelle mesquinho oasis, entre um cemiterio e um ancião que para elle se inclinava e se debruçava sobre a cova; entre dois tumulos, mas sempre oasis para o seu mundo deserto de affeições e de esperanças, era o socego, o esquecimento, quasi a felicidade, felicidade da morte, mas ainda assim agradavel para os que nada esperam da vida. Diz um aphorismo, dictado talvez pela descrença, mas provado pela experiencia, que um dia de desgraça estreita mais amisades do que annos de ventura; contaram-se a sua vida, communicaram-se as suas infelicidades, e deram-se o nome de amigos. Não eram interesseiros os protestos; e por isso, bem sinceros. Até á morte do velho, Manoel viveu na sua companhia; enterrou-o, chorou sobre a sua sepultura, herdou-lhe a pobre habitação e o descubiçado emprego, e n’essa posse estava quando em companhia do tio Joaquim o encontrei. VI Haviam decorrido dois annos depois que viera do campo, e, com toda a sinceridade o confesso, nunca mais me lembrou em Lisboa, nem o guarda do cemiterio, nem a sua historia, que o bom do tio Joaquim me referira. Tive de voltar áquelles sitios e seguindo o caminho por onde viera da feira, comecei a avivar recordações, a recontar de mim para mim aquellas horas tão felizes, tão descuidadas, tão folgazãs, que me tinham corrido por aquelles descampados, e a vêr por entre as moitas dos vallados, que a primavera perfumava de aromas e esmaltava de flôres, as saudades queridas d’aquelles encantados tempos. Ao voltar da estrada quasi no mesmo ponto, em que os cavallos se haviam detido dois annos atraz, deteve-se tambem o que eu montava; obrigando-me a abandonar aquellas regiões do idealismo pela realidade de tempo e de logar. Não conhecia os sitios, tive de me orientar, invocando reminescencias antigas, e confrontando paragens, para me certificar onde estava. A egreja, a casa do guarda, o proprio cemiterio, pareciam remoçados pelo influxo de alguma divindade bemfazeja. Inspiravam ainda tristeza aquelles logares, mas uma doce e placida melancholia succedia-se agora ao desconforto e desalento, que ao attentar n’aquellas ruinas, nos arrefeciam a alma. O musgo estendia por partes o seu luxuriante manto de verdura, contrastando com o negrejar das cantarias, e dando e ganhando esplendores com o realce. Bandos de pombos esvoaçavam em roda das escalavradas paredes, casando os arrulhos, beijando-se, perseguindo-se em revira-voltas graciosas, cortando os ares em todos os sentidos com elegantes curvas, affagando-se e brincando, espalhando sobre aquellas ruinas suaves perfumes de alegria e de amor. Perto a casa, alvejando por entre as latadas de jasmineiros e madresilvas, o velho poial limpo e rebocado sob um caramanchão de heliotropos, e até a nogueira velha parecia mais viçosa e risonha. O cemiterio, que da pequena elevação, onde parára, se avistava todo, tinha as ruas limpas e orladas de alecrim e alfazema, as lapides mais desafogadas de matto, as cruzinhas mais negras, as arvores mais cuidadas, o chão recamado de flôres. Tudo era novo para mim, mas tudo melhorára com a innovação, e despidas as rugas de uma velhice precoce ou de uma mocidade gasta e devassa, apresentava-se tudo agora com as louçanias de uma virilidade robusta, de uma existencia descançada, serena, quasi festiva. Aquelle rejuvenescer estendera-se tambem ao antigo habitante, que havia visto outr’ora sujo, maltrapilho, alquebrado, velho até; e que via agora assomar á porta tão aceiado, tão esbelto, tão remoçado, que foi preciso que me cumprimentasse e que eu o ouvisse fallar, para perceber que era o mesmo. Apeei-me e mais curioso de que uma mulher, ou do que qualquer homem dos que n’este vicio lhes levam as palmas, procurei indagar o porquê d’aquellas mudanças. Talvez pelo respeito, que todos por aquelles logares me tinham, consegui de Manoel a confissão da sua vida na parte que não conhecia, e em que se operára aquella transformação. Em resumo foi o seguinte: Tempos depois da morte do seu antecessor, Manoel acordára uma noite ao bater-lhe á porta o acompanhamento de um enterro, que, como todos sabem, costumam no campo, ser fóra de horas. Atraz do caixão vinham chorando a viuva, o filho do finado, e alguns visinhos, que os acompanhavam. E... para que hei de torturar a curiosidade dos meus leitores, se é que a despertei em alguns, a viuva era Martha e o filho, aquella creança que vigiára o somno de Manoel. Encontravam-se pela terceira vez, mas d’esta finalmente para não mais se apartarem senão no tempo consagrado ao luto. Martha contou-lhe como o Miguel não morrêra das facadas, como se tinham casado depois, e como de Lisboa tinham vindo para aquelles sitios viver na companhia de um tio do marido, dono da fazenda onde foram depositar o nosso naufrago. Viram ambos n’aquelle inesperado encontro ao pé de um cadaver, a vontade da Providencia que os reunia emfim depois de tantos azares. Esta conclusão, que nem por isso depunha muito a favor da sua logica, pois que o encontro mais naturalmente provinha da occupação de Manoel, recebeu sobejo apoio na mutua affeição, que nunca se sumira de todo e que renascia agora mais valente e duradoira. Martha justificou-se a seu modo, e uma torrente de lagrimas rematou-lhe a peroração talvez artificial, mas de grande effeito para o seu auditorio. Manoel enterneceu-se, acreditou-a, e chorou tambem. E, regada com as lagrimas de ambos, desabrochou rapida a flôr do hymeneu. Casaram, não tiveram muitos filhos, não tiveram mesmo nenhum, mas o Miguelsinho, a quem o padrasto estimava como a si proprio, foi cimento mais que bastante para aquelle templo modesto de felicidade conjugal. Quando Manoel acabava a sua historia, apparecia Martha á janella chamando-o e lançando uns punhados de milho a um rancho de gallinhas, que andavam pela estrada defronte da porta; e por uma azinhaga proxima assomava o Miguel tocando umas vaccas e umas ovelhas, que recolhiam do pasto. —É feliz!... Disse-lhe eu tão senhor de mim e com uns ares tão sentenciosos e profundos como se fizera uma grande descoberta. —Sou, graças a estes, e (levando-me á porta do cemiterio para me indicar uma cruz abraçada por uma corôa de perpetuas), graças tambem áquelle que me perdoou o meu crime. —Ainda pensa em semelhante coisa? —Se penso, quiz matal-o! Uma hora depois voltava para Lisboa, se não contricto ao menos pensativo. Aquelle espectaculo tinha-me valido por duzias de sermões. É verdade que Manoel dizia o que sabia, por experiencia propria: e a maior parte dos nossos padres, não sabem o que dizem. IX Como se ganha uma demanda Era pelos fins de novembro, ao approximar da noite. Soprava rijo o vento das bandas do sul e as nuvens acastelladas e escuras corriam como cavallo á desfilada. Principiavam a cair grossas gottas d’agua, e ao longe já rugia a tempestade. Como é vulgar no inverno, no campo, quasi que não houvera crepusculo da tarde. Apenas se escondera o sol e já a escuridão baixava sobre os campos. No sitio onde começa a acção da historia que se vae lêr, não havia noticia de povoado: era a meio de uma azinhaga, que se contorcia por entre terras cobertas de restevas, e tristes como a nudez mal vestida de farrapos. Joaquim dos Santos tinha mettido o cavallo a trote para fugir á trovoada proxima e ás trévas eminentes; emquanto debalde procurava orientar-se por meio dos olivaes. Joaquim dos Santos fôra um dos mais endiabrados rapazes d’aquelles lugares. Deitára fama de si pelas proezas que fizera, e o seu nome não era bem fallado n’aquellas visinhanças, como um dos maiores extravagantes d’este mundo. Seu pae, que tinha alguns bens e que estimava devéras os seus dois unicos filhos, Joaquim e Raymundo, tratou de lhes dar educação decente, mettendo-os no mais acreditado collegio de Lisboa. Mas, emquanto Raymundo estudava com a melhor vontade, Joaquim fazia em agua a cabeça dos professores, e peiorava de dia para dia. Não podendo aturar, o director mandou-o para casa do pae, declarando lhe, que assim como não teria duvida de ensinar de graça a Raymundo, visto o seu bom porte e applicação; por dinheiro algum d’este mundo se resolveria a supportar o irmão nem mais um dia. Foi grande tristeza em casa de José dos Santos. As esperanças todas que depuzera em seu filho mais velho desappareciam-lhe de repente. E o velho que já pensava em o mandar a Coimbra! Joaquim, pela sua parte, declarou-se em guerra aberta com a lettra redonda. Não nascera para doutor, nem se achava com sabedoria para lettradices. Queria amanhar terras e ser lavrador como seu pae. Seu irmão, que parecia um menino Jesus de freiras, que se desse a semelhantes pieguices: elle era um homem, tinha pulso para guiar a rabiça de um arado, e pernas para se segurar n’um cavallo. José dos Santos só contava um defeito, ser estremoso pelos filhos como ninguem. Concordou com a vontade do Joaquim, e metteu-o no trabalho debaixo da sua direcção. Mas, nem mesmo nos primeiros dias, o novo lavrador tomou gosto áquelle modo de vida. Aborrecia-se do trabalho e, mal que podia, furtava-lhe o corpo para ir procurar a companhia dos peiores rapazes da terra. Encontravam-no mais na taberna do que na eira, mais no jogo de bolla do que no pomar, e mais nas patuscadas do que na lavoira. Ao passo que se ia entregando a não fazer nada, iam-lhe medrando os defeitos e engordando os vicios. Tinha fama de valentão, e tão mau se havia feito, que o proprio pae se temia d’elle. Ninguem podia ter-lhe mão, não ouvia conselhos, nem fazia caso do que lhe diziam para bem. Um dia que seu irmão Raymundo se lembrou de lhe fallar a preceito para vêr se o fazia chegar á rasão; Joaquim, que não vinha em si, deu-lhe uma sova, que o deixou em lençóes de vinho. Foi tambem a ultima que seu pae lhe aturou. O bom do velho apenas viu chegar seu filho querido, o seu ai Jesus, que fôra sempre uma joia, e do qual ninguem dizia senão mil bens, em braços, e que soube quem fôra o auctor de tão grande maldade, jurou que nunca mais lhe poria os pés em casa homem de tão mau coração. Deitou luto em signal de o ter perdido e respondia a todos que lhe perguntavam porque vestia de preto:—é por meu filho Joaquim, que morreu. Este jurou que se havia de vingar de seu irmão, ao qual attribuia a má vontade do pae, e foi cada vez a peior, passando todo o santo dia na taberna ou no jogo. Entre os seus companheiros de perdição havia um, que sobre elle tinha mais poder; mesmo por ser o mais depravado. Era João Simões, capaz de lêr de cadeira na patifaria e de passar por doutor na pouca vergonha. Contribuira mais do que ninguem para estragar o rapaz e fôra quem lhe ensinára melhor o mau caminho. Joaquim, tambem, não resava por outro breviario, e o que João Simões lhe dizia—era para elle um evangelho. Andavam por aquelles tempos no lugar alguns homens a desenquietar trabalhadores para o Brazil, promettendo-lhes mundos e fundos de felicidade, quando lá estivessem, e passagem paga no navio para os que quizessem ir. João, que entrava em todos os negocios de má condição, travou conhecimento com os taes meliantes, e fez-se dentro em pouco um dos mais espertos alliciadores da companhia. Como estava corrente com tudo que se passava, pois bem sabem que a occupação do vadio é entreter-se com as vidas alheias, viéra a ser em pouco tempo o perdigueiro de melhor faro para levantar a caça. Conhecia os que tinham menos dinheiro, os que mais desejavam ganhal-o com pouco trabalho, os que tinham melhor embocadura para o vicio, e os que menos duvidavam de abandonar terra e parentes. Onde deitava a rede tirava peixe, já era sabido. Ninguem como elle acertava tão bem. Apenas José dos Santos pôz seu filho fóra de casa, logo João tencionou seduzil-o para embarcar, e sem grande difficuldade conseguiu convencel-o de que era o melhor partido que tinha a seguir. Como elle jurava nas palavras do seu mestre, acreditou em tudo quanto lhe dizia, protestando entretanto, que se fosse desgraçado grande vingança tiraria de seu irmão Raymundo, o causador de tudo, lá no seu modo de vêr. João entretendo-lhe a furia foi acompanhal-o ao embarque, encarregando-se não só de tratar de quantos negocios porventura viesse a ter; mas ainda de realisar os planos vingativos contra o irmão. Tornou-se assim depositario de todos os seus odios. João incumbindo-se d’esta vingança, trabalhava tambem por sua conta, pois jurára pela pelle de Raymundo, desde que este o tratou desabridamente, e lhe voltou costas n’um arraial. O desgosto de vêr seu filho tão mal encaminhado levou o pobre pae á cama: e Raymundo teve de deixar os estudos em meio para vir junto do velho, governar a casa e tratal-o na doença. Entrementes que estava cuidando em seu pae tomou-se de amores com uma rapariga da terra; e como era boa de caracter e boa de reputação, apesar de pobre, casou-se em breve, ganhando todos com o casamento. Elle porque alcançára uma esposa extremosa, José dos Santos porque ganhava uma enfermeira sollicita, tão desvellada e tão carinhosa como a melhor filha. Porém quando o mal é de morte triste remedio lhe podem dar o saber dos medicos, ou o cuidado dos enfermeiros. A ferida do doente era mesmo no coração, não tinha cura. Apesar da maneira porque Joaquim para com elle se houvera, estimava-o porventura mais ainda do que ao seu obediente e bom Raymundo. Caprichos do sentimento, que mais nos fazem prender a affeição, a quem menos nol-a merece; o velho, embora comsigo mesmo o negasse, dera parte maior do seu coração ao filho perdido. Muitas vezes em piedosa e apaixonada analyse se desculpava d’esta parcial fraqueza. Era a ovelha desgarrada, que cuidados maiores requeria do pastor, era a terra maninha que pedia melhor cultura, era a arvore desviada, que chamava mais attenção para lhe emendar o erro. A lembrança do filho era o tormento, e a enfermidade mais perigosa, que o definhavam. O barbeiro-sangrador do logar, e o cirurgião visinho tinham feito repetidas juntas sem atinarem com a rasão do mal. Resolveram por fim, que padecia do interior, e acertaram sem saber. José dos Santos ria-se dos entes de rasão dos dois physicos, e sujeitava-se resignado ao tratamento que lhe applicavam. Seu filho, sua nora, até o netinho de peito, todos se acercavam d’elle inquietos e suspeitosos da verdadeira causa do mal. Porém tão callado se conservára o doente, que não tinham passado de conjecturas. Á hora da morte apenas se lhes desvaneceram as duvidas, porque, conhecendo como estava, chamou-os a todos, lançou-lhes a benção, e depois erguendo os olhos ao céu, exclamou: —Compadecei-vos tambem d’elle, Senhor, tocae aquella alma perdida, com um raio da vossa divina graça... Se algum dia tornares a vêr teu irmão, meu Raymundo, dize-lhe, que lhe perdoei tudo, e, que ao despedir-me do mundo, lhe deitei, cá de tão longe mesmo, a minha benção de pae. Casa onde entra doença, não é o dinheiro que a aguenta: a molestia de José dos Santos foi a ruina d’aquella familia. Durára perto de dois annos o padecer do velho; custára muito áquella organisação robusta o desprender-se do mundo, luctára como um homem; o desgosto, porém, vencera-o por fim. Tudo estava empenhado, quando o antigo lavrador falleceu: foi mister pedir dinheiro para o enterro, e Raymundo amanheceu um dia sem pae, sem haveres, e com o filho e a esposa para sustentar. Demais a familia promettia-lhe augmentar-lhe, porque Leonor, sua mulher, estava gravida de tempo: e tanto que em poucos dias deu á luz uma filhinha, formosa como um serafim, e córada como uma rosa de primavera! Diz-se que os filhos são a riqueza do pobre. Triste ironia!—Para o que padece de necessidade a vista das creanças sem pão é tormento mil vezes maior do que a propria fome. Quantos não sacrificariam a vida de bom grado, se em paga soubessem que garantiam a existencia dos seus! Supplicio, que se não descreve, é vêr os innocentes, menos soffridos e porventura mais sinceros, não disfarçarem a fome e chorarem pedindo pão. Emquanto a desgraça o perseguia, Raymundo, sem desanimar, ia trabalhando sempre, amparado pela força de vontade e pelo sentimento do dever. Pelo contrario a fortuna, caprichosa como sempre, sorrira para Joaquim cujos negocios lá pelo Brazil iam de vento em pôpa. João Simões, que com elle se correspondia regularmente, não descançava de lhe acirrar os odios contra seu irmão, o qual para de tudo o privar, até lhe roubára a benção paterna, fazendo com que o velho á hora da morte amaldiçoasse o filho mal procedido. Como já se disse, succedera o contrario; mas o Simões, que era uma alma damnada, queria vingar-se de Raymundo, e não recuava, por conseguinte, deante de uma mentira, ou duas que fossem. Ao mesmo tempo encarecia lhe a prosperidade da casa e os grandes negocios, que José dos Santos fizera nos ultimos tempos: dizia-lhe, que seu irmão ficára disfructando uma grande fortuna, que se fingia pobre para não fazer partilhas, e que se Joaquim lhe mandasse procuração para tratar d’esse negocio, em breve lhe mostraria, se era ou não verdade, que seu irmão queria enganar toda a gente com a sua mentirosa pobreza. Conseguiu por fim o que desejava: e mal teve a procuração em seu poder, começou a perseguir o desgraçado Raymundo a quem já devia bastar o seu mal. A justiça não costuma estar em casa para receber os pobres; João Simões dispunha de dinheiro, e entendia de demandas, fazia o que queria. Taes artes teve, de taes manhas se soccorreu, que conseguiu em pouco, que passassem um mandado de penhora contra Raymundo, como cabeça de casal em nome de seu irmão: emquanto este, lembrando-se com saudades da patria ia liquidando os seus negocios, para poder regressar quanto antes. Tinha ganho algum dinheiro; mas não tinha contrahido amisades: e estava rico; mas só e triste. Mudára de vida completamente: aquelles annos tinham-no amadurecido, mas tambem o tinham cançado e gasto. Estava velho antes de tempo, precisava descançar e não ha como a terra da patria para alliviar penas de velhice e melancholias de coração. Havia bem pouco que chegára, quando nós o encontrámos, fugindo da tempestade, e orientando-se por entre campos. Eram recordações, eram saudades, que o tinham demorado, seguindo por aquellas visinhanças, parando diante d’uma arvore, descobrindo-se diante d’uma cruz, apeando-se muitas vezes para ir ajoelhar diante d’uma pedra. Tudo lhe fallava á memoria, tudo lhe fallava ao coração. Aqui passára tanto tempo espreitando seus companheiros, que o procuravam, e elle escondido; ali tivera o primeiro encontro apaixonado; mais em baixo estivera com seu pae; mais além descançava este em horas de calor, ou esperava os trabalhadores das suas fazendas, ao recolherem, para lhes perguntar noticias do trabalho. E uma pedra para junto da qual viera correndo um dia a fugir do cão do tio Fernandes, esconder-se no regaço de sua mãe, toda em sustos de principio; tão enfurecida mais tarde apenas soube que fôra elle, quem desafiára o cão! Mundo de melancholicos e piedosos phantasmas, mundo, que o alheava á realidade, que o apartava do presente, tão só, tão vasio, tão sem significação, para lhe abrir francas, patentes e compassivas as portas do passado, tudo ali se transformava para elle, e em cada cousa cuidava vêr uma feição querida, uma lembrança, uma alegria ou uma dôr. Por vezes lhe rebentaram as lagrimas dos olhos, por vezes sentiu-se suffocado, por vezes desejou, emballado pela doce harmonia da saudade, adormecer de todo no dormir, em que já descançavam seu pae e sua mãe. E, que o explique quem melhor o pensou, nas occasiões, em que o sentimento é em nós mais placido, mas tambem mais profundo; nas horas de amor duvidoso, de aspiração indefinida, de descontentamento irremediavel e infundado, parece que se levanta entre nós o desejo de outra vida, de outro mundo, de outra existencia, não sabemos qual, mas que nos parece ter já vivido, e para o qual nos persuadimos, teremos de voltar. N’essas horas de extranho e amoravel sentir, como desterrados de regiões bem diversas d’estas, desejamos vêr terminado o desterro e immediata a hora de regressar. Foi o approximar da tempestade que o distrahiu d’estas melancholicas cogitações; deitou os olhos em roda e não conheceu o sitio. Tinha-se perdido no caminho. Novas estradas, novas mudanças tinham-lhe transformado o mappa, que a memoria lhe estampára no coração, via-se a meio de olivaes e as arvores confundiam se já com as sombras da noite. Seguira, sem dar por isso, o melhor caminho, a estrada nova, e que por conseguinte não era do seu tempo. Não podia estar longe o povoado, mas a chuva cada vez apertava mais, e o cavallo já não queria andar assombrado com o fuzilar continuo dos relampagos, e atturdido com o ribombo temeroso dos trovões. Entretanto estava resolvido a seguir á ventura, certo de que em pouco tempo encontraria abrigo; quando deante de si, na quebra de uma azinhaga, lhe pareceu vêr uma sombra rasteirinha coser-se com o muro e seguir a modos de homem, que fosse agachado, como receando ser visto. —Quem vae ahi? perguntou Joaquim que costumado ás aventuras do sertão não se inquietava muito com um mau encontro. Mas a sombra seguiu mais apressada, sem dar resposta. Joaquim chegou esporas ao cavallo e correu sobre o vulto. Proximo reconheceu duas creancinhas, um rapasito de sete annos, ao mais, e uma menina de seis, que de mãos dadas e tremendo de medo ambos, ajoelharam quando o viram ao pé de si, exclamando o mais velho, e que parecia mais animoso. —Não nos faça mal, temos o pae doente e vamos levar-lhe este remedio, que lhe receitou o mestre Eusebio. (Eusebio ainda era sangrador-barbeiro approvado pelo proto-medicato, e facultativo á falta d’elles). Depois voltando-se para a irmã, que se fazia bem pequenina para se esconder atraz d’elle, disse-lhe, mudando as fraquezas em forças, e n’um tom mais seguro, como para lhe incutir valor. —Não tenhas medo, Isabel, aquelle senhor não nos ha de fazer mal, não vês que tem cara de boa pessoa! O pequeno não podia perceber que tal fosse a physionomia de Joaquim; esta amabilidade era pois um argumento _ad benevolentiam_, aprendido quasi intuitivamente, na rethorica saloia. —Não faço mal, não, pobres pequenos, com este tempo, tão mal resguardados! Isto era dito já a pé junto d’elles e detendo se com verdadeira compaixão ao attentar nos farrapitos, que mal os cobriam. —Nós cá não tem duvida: o pae é que precisa mais, está tão doente. —Ha tres dias que não come nada. —E a nossa mãe, coitadinha, ha oito dias que não dorme! —E o pae, está com uma cara! Nossa Senhora nos valha, parece um defunto. —Não digas isso, Isabel!... depois approximando-se mais de Joaquim, com quem ia já acostumando-se, e como para lhe provar que não era creança, o rapasito continuou mais de vagar; o pae está muito mal, que eu bem vi a cara que fez hontem o mestre Eusebio, mas a mãe não desconfia e a Isabel nada sabe. —É muito longe a sua casa? —Não, meu senhor, é logo alli. —Pois vamos lá, que eu tambem os acompanho. Já agora... Não temos outra noite, e d’aqui ao lugar ainda ha uma boa meia legua bem puchada. Quando lá chegasse achava tudo fechado. —Mas o senhor vae ficar muito mal accomodado, exclamou a pequena, que ainda se não affizera muito ao seu novo conhecido, a gente é tão pobre! —Não tem duvida, minha menina, em qualquer canto me arranjo, sou facil de contentar. —Oh José, eu tenho medo do homem, elle vem com a gente? perguntou ao ouvido a pequenita a seu irmão. —Tu tambem, sempre és uma medrosa!... E d’ahi não sabes que lá em casa não ha que levar! —Sim, mas olha eu sempre tenho medo. Joaquim comprehendêra pelo conchegar assustadiço da creança para seu irmão, e pelos modos importantes que este assumira, qual tinha sido o dialogo em voz baixa, e sorrindo-se disse á pequena: —Não tenha medo de mim, não sou nenhum ladrão. Mas bem pelo contrario a prevenção mais assustou a creança, que não atinando com o modo porque elle ouvira a sua conversação, exclamou apressurada, mas sem olhar para o seu interlocutor: —Eu bem sei que o senhor não é nenhum ladrão; mas... adivinha o que a gente diz! —Então minha menina, julga-me agora feiticeiro? —Deixe-a fallar, é uma creança, ainda não fez seis annos. —E o menino é um homem, não tem medo. —Eu já tenho sete annos, e d’ahi o senhor não havia de fazer mal a duas creanças, nem a meu pobre pae. Está tão doente! —Pois deixem estar que eu verei se sei d’algum remedio, que lhe faça bem. Pelas terras, por onde andei, aprende-se muita coisa e eu conheço algumas drogas que talvez aproveitem: e d’ahi eu quero pagar-lhes o agasalho, tenho com quê. —O senhor dá cura ao pae?—Que bondade seria a sua! —Não te dizia eu, Isabel. —Ora pois então vamos lá. Digam-me seu pae é muito velho? —Não senhor, tem trinta annos e mais alguma coisa, os desgostos é que o acabaram muito. —Pobre homem! —Demais a mais um tio, que anda lá por fóra quer tirar-nos tudo. E d’ahi o pae, vive tão apoquentado! —Um tio? —Sim, senhor, atalhou a pequena, um tio muito mau! Sempre tenho uma raiva ao meu tio!... —Calla-te, mana, tu não sabes que o pae diz que o tio não tem a culpa? —Então o tio anda ha muito por fóra! Como se chama? —Ora o senhor não o conhece, replicou o rapaz meio desconfiado; está muito longe. —Quem sabe, ás vezes! Diga-me sempre como elle se chama. —É o tio Joaquim. —E está?... —Lá para o Brazil. —E seu pae, chama-se? —Mas o senhor de certo não se importa com a vida da gente, respondeu o Josésito, que já não ia gostando de tanto perguntar e que receava, com aquella giria que parece acompanhar os saloios desde o berço, que lhe podesse porvir algum mal das suas respostas. —Por amor de Deus diga-me como se chama seu pae. —Assim, como assim, o senhor sempre o ha de vir a saber, chama-se Raymundo. —Então os meninos são?... E a commoção embargou-lhe a voz. —Somos, sim senhor, somos filhos de meu pae, eu chamo-me José, que era o nome de meu avô, e minha irmã é Isabel, porque nasceu no dia de Santa Isabel. —Pois eu... Mas a reflexão cortou-lhe a palavra: queria vêr; queria, antes de se declarar, que aprendessem a abençoal-o. Entretanto, agarrou-os bem para si e abraçou-os muito enternecido. —O senhor está a chorar, disse Isabel com aquella perspicacia de mulher mesmo pequena, olhe, já vou gostando mais de si! —Gosta, gosta, minha Isabelinha, que eu tambem gosto muito de ti. E tu lá, José, tambem és meu amigo? —Eu engracei comsigo logo ao principio. Aqui está a nossa casa; e batendo á porta:—mãe, mãe, aqui vem um senhor, que sabe d’um remedio para curar o pae! Abra a porta, mãe, somos nós. Effectivamente estavam á porta de Raymundo. A luz que vinha de dentro ao abrir, cegou por momentos a Joaquim, que só depois de se costumar á claridade é que pôde dar fé do interior d’aquella habitação. Era uma casa terrea, que accumulava as funcções de cosinha, sala, casa de jantar e quarto de dormir dos pequenos. A um canto uma cortina de chita muito remendada resguardava-lhes a alcova; do lado direito uma porta meia aberta dando para o escuro, d’onde saía o som angustiado e sibilante de uma respiração irregular accusava o quarto do enfermo: junto da chaminé, onde ardiam em chamma fraca e incerta alguns cavacos apanhados na estrada, via-se uma cadeira antiga de espaldar de coiro e pregaria amarella. Era o unico movel de algum valor. Uma meza de pinho, bem tosca e bem pouco segura, umas pratelleiras sobre a meza pregadas na parede, onde se viam uns pratos quasi todos rachados e alguns tachos bem velhos, tres mochos em roda da meza, uma arca carunchosa ao lado da porta de entrada, dois registros por cima da arca, uma palma e um rosario crusando-se sobre os registros, constituiam toda a mobilia, a que accrescentaremos apenas, para que a descripção seja completa, um banquinho proximo á entrada do quarto do doente e junto da arca, d’onde Leonor se levantára para abrir a porta aos recem-chegados. Sobre a arca uma lamparina allumiava os santos e dava claridade para o trabalho de Leonor, que ali, ora levantando os olhos de supplica para as imagens, ora volvendo-os cuidadosa para o quarto onde jazia o esposo, remendava um capote de Raymundo, sobre o qual de vez em quando caiam as lagrimas da desgraçada. A luz incerta do brazeiro, sobre o qual e para o escurecer mais ainda estava uma panella de folha, em duas pedras, que suppriam a fornalha; e o clarão mais terno ainda da lamparina, luctando com as sombras e perdendo-se na escuridão, tornavam a casa mais vasta, mais nua e mais triste. —O pae está descançando, não façam bulha, apressou-se em dizer aos seus dois filhos a attribulada mulher. Depois voltando-se para Joaquim:—Vossa senhoria ha de perdoar, os pequenos é que tiveram a culpa de o cá trazer, bem vê que não temos accommodações para hospedes; depois a doença de meu marido... —Olhe, mãe, segredou-lhe o José como quem queria dar a entender que não andára de leve, elle tem dinheiro para pagar á gente, e diz que traz um remedio que dá cura ao pae... —Não venho para encommodar. Estou affêito a tudo, e qualquer coisa me satisfaz, uma pouca de palha e uma manta, uma manta só, coisa nenhuma que seja; mas licença de descançar ahi sentado, e de adormecer com os braços sobre a meza e a cabeça encostada aos braços. Eu sei o que são doenças, e talvez mesmo lhe possa servir de algum prestimo. Nas terras por onde andei nem sempre havia medico á mão, nem boticario ao pé da porta. Ia-se a gente curando conforme podia, e aprendendo á sua custa... Emquanto Joaquim proseguiu no seu arrasoado, examinava sua cunhada, que pela sua parte aproveitava tambem estes proloquios para observar o hospede que seus filhos lhe traziam. Leonor era ainda uma formosa mulher, posto que o desgosto lhe tivesse gravado algumas rugas na physionomia e embranquecido alguns cabellos. Morena, olhos pretos e rasgados, nariz recto e fino, labios delgados e vermelhos, rosto oval, um d’estes typos peninsulares, mescla formosa do sarraceno trigueiro e nervoso, como as filhas do norte pallidas e lymphaticas. Era esbelta e da altura propria de mulher. Tinha sentimento na physionomia e elegancia no corpo. Mostrava o que devera ter sido, antes que as maguas a envelhecessem e os trabalhos a cançassem. A tristeza espalhava lhe pelo rosto um melancholico mas diaphano véu, atravez do qual transparecia a vermelhidão do pejo ao lembrar-se da má hospedagem, que com difficuldade podia offerecer. E quanto mais olhava para Joaquim mais ia sympathisando com a cara rude mas franca do recem-chegado. Este mostrava tambem ter muito mais edade do que tinha. Valera-lhe por dez um dos annos que passára no sertão: mas aquella belleza agreste do homem callejado no trabalho, aquella lhaneza não destituida de finura, que se adquire no trato licito, mas laborioso e muitas vezes bastante complicado, davam-lhe relevo ás feições e imprimiam-lhe um cunho particular. Trajava simplesmente e como lavrador abastado. Apesar da compostura que se notava no traje de Leonor, apesar do cuidado com que vestia e do aceio da sua roupa, a mão da miseria denunciava-se a todo o momento. Da miseria que não faz alarde de si, que se esconde, que se disfarça, que tem pejo do seu estado e receio de que a conheçam. Miseria timorata e desconfiada, a que tudo offende, porque tudo a fere; que de todos foge, porque, sem quererem mesmo, todos a escandalisam. Uns pela ostentação, outros pelo dó, pela indifferença mesmo outros. Miseria que sorri por fóra emquanto chora por dentro, que apparenta desapego emquanto treme pelas consequencias, que encontra perigos sempre diante de si, e que soffre tanto mais, quanto receia que o desabafar seja tido como uma supplica e a franqueza como um rodeio para pedir. Miseria que se roça por nós sem que a conheçamos, e que por um nobre orgulho denomina doença a fome, desleixo o máu vestuario, extravagancia a necessidade. Tal era entretanto a que se lia no modesto e envergonhado trajar de Leonor, e que Joaquim, com a perspicacia que dá tambem a infelicidade, conheceu á primeira vista. —Se não fosse a molestia do meu Raymundo, proseguiu ella, melhor agasalho lhe poderiamos offerecer; mas assim... Parece que Deus se esqueceu da gente a alguns annos a esta parte! E tudo por causa de um mano de meu marido... que elle não quer ouvir tal, e pelo contrario sempre defende o irmão, que no seu dizer não tem culpa do que faz um tal João Simões... mas o senhor não se interessa com isto. Vou vêr se lhe posso offerecer alguma cousa de cear, e perdoará a limitação. E, emquanto fallando e dando voltas, Leonor ia preparando a ceia, e espreitando sempre o quarto de seu esposo, para se certificar se este continuava a dormir; Joaquim ficára á porta, de pé, chapéu na mão e como pasmado a comparar aquella pobreza, com as informações que recebera. Leonor reparou na posição do seu hospede, e indicando-lhe a cadeira de espaldar, proxima da chaminé: —Vem molhado, e está ahi em pé, sem se chegar ao menos para o lume, sente-se: ainda assim esta cadeira é a predilecta de meu marido, era onde se sentava quasi sempre meu sogro. Joaquim já tinha conhecido a poltrona, mas quando Leonor lh’a indicou pedindo-lhe, que se sentasse, não pôde dominar uma visivel commoção. Teve duvida, quasi medo de se sentar. Parecia-lhe vêr seu pae apontando-lhe para aquella casa, para aquella miseria e expulsando-o. Affigurou-se-lhe de repente o quadro, que tantas vezes examinára. O rosto entre severo e indulgente de José dos Santos inquieto por amor do filho, que se demorava, e preparando um sermão, que levava a cabo raras vezes, porque antes de meio lhe desarmava as iras o verdadeiro affecto paternal. Leonor, que não podia acertar com a causa de semelhante hesitação, attribuiu-a a causa bem differente. —Não faça cerimonia, se meu marido estivesse aqui, elle mesmo lh’a cederia, que sempre lhe ouvi dizer, que era dever sagrado fazer bom acolhimento aos viajantes. E perdôe vossa senhoria que eu ande no meu trafego. N’este comenos, remechêra na arca, e bem vermelha de vergonha tirára um panno muito lavado, é verdade, mas cheio de remendos, e que estendera sobre a mesa; desencantára n’um armario velho, que pelo estado em que se achava e pelo pouco vulto que fazia nos esqueceu mencionar, duas brôas de milho e alguns queijos brancos salgados; escolhêra da pratelleira os pratos menos quebrados, a que juntou os talheres, que apesar de serem de chumbo, pareciam de prata pelo brilho, tão limpos estavam: e indo buscar á chaminé a panella onde fervia um caldo de couves e toucinho, convidou o seu hospede a tomar parte d’aquella ceia. Não era coisa sufficiente, bem o sabia, mas a sua pessoa havia de desculpar, pois que não esperava ninguem de fóra nem estava no auge de o receber como desejava, pois a doença do seu homem a tinha quebrado de pernas e braços. —E o que diz o facultativo da doença do seu marido? —Diz, que é uma dôr no interior, que lhe costuma a dar e que é de muito perigo se continua, que elle já é attreito a padecer do figado, que segundo parece é molestia de familia, e que lhe póde subir o mal ao bofe se não puchar abaixo com força. E será assim? —Não o creio. Deus ha de affastar o agoiro do tal barbeiro. —Elle tambem diz, que é bom dormir, e o meu Raymundo ha umas quatro horas que está descançando tão socegado, que parece mesmo uma creança. —Isso sim; o dormir é sempre um excellente remedio, restaura as forças e faz cobrar saude. D’ahi seu marido deve estar amofinado por lhe correr o negocio mal. Não me fallou ha pouco de um irmão?... —Do Joaquim, fallei, sim senhor. —Então esse Joaquim? —É, segundo a minha opinião, a causa de tudo isto. Que o Raymundo diz que não, e jura que não era capaz de fazer uma acção d’estas, se soubesse do estado a que chegámos... —Que acção, atalhou precipitadamente Joaquim? —Uma penhora, á gente, n’isto que o senhor ahi vê. Na verdade vale bem a pena de incommodar a justiça, ha de ficar bem rico, não tem duvida nenhuma! Mas ainda assim, Deus sabe a falta que nos faz tudo. Ficamos a pedir esmola. Até agora ainda tinhamos o nosso buraquinho para uma afflicção; mas de hoje em diante... —Que diz?... —A verdade. Um tal João Simões, é que tem andado acceso n’este negocio todo, porque tomou asca ao meu Raymundo desde que elle um dia, já de proposito, por saber que era o Simões que lhe desinquietava o irmão, lhe voltou costas no arraial de Nossa Senhora do Rosario. Depois, apresentou-se feito procurador do Joaquim, deu testemunhas... se o senhor soubesse, que testemunhas!... as caras mais atraiçoadas do logar, em como o pae de meu marido tinha deixado muitos bens, que o meu Raymundo estragára tudo, e depois tem andado em demandas para puchar pela legitima do amigo. Legitima!... Só se foi a benção do pae á hora da morte, porque emquanto ao mais! Nem chegou o dinheiro para o enterro, que foi preciso ir pedil o fóra. N’estas alturas do dialogo um gemido do doente chamou a attenção de Leonor que correu á alcova de seu marido e por lá se deteve. Cançada de lidar, apenas se certificou de que o marido continuava dormindo e que o gemido fôra apenas sobresalto de algum sonho angustiado, sentou-se aos pés da cama, e passando as contas de um rosario, cedeu por fim ao cançasso e adormeceu tambem. Os pequenos logo depois da ceia tinham ido aninhar-se para o seu cantinho, e havia muito que resonavam. Joaquim ficára entregue ás suas reflexões. Correram as horas, esmoreceu de todo o lume no brazido, apagou-se a lamparina, ficou a casa em trevas devassadas apenas pela luz diffusa da atmosphera, que passava pelas fendas do tecto: e elle cogitava ainda no passado e no presente, nos seus sonhos, nas suas aspirações, nos seus erros e nas suas culpas. A solidão d’aquella casa povoava-se-lhe de vultos, todos elles conhecidos, todos eloquentes: alguns severos julgadores, outros saudosos e indulgentes amigos. Uma a uma iam-lhe correndo as scenas da sua infancia, via, como em lanterna magica, recortarem-se nas trévas do aposento as figuras de quantos havia conhecido, de todos com que lidára, e superior a todas como absorvendo-as e substituindo as, a figura veneranda de seu pae, ora exprobando-lhe terrivel o quanto perseguira seu irmão; ora sorrindo-lhe amorosamente na hora derradeira e estendendo-lhe sobre a cabeça as tremulas e enrugadas mãos para o abençoar. Ao assomar da alvorada pendendo-lhe as palpebras adormecia tambem; não com o somno socegado e reparador, que se segue ás fadigas do corpo; mas com aquella modorra agitada e febril, que é o decair das grandes luctas moraes. Cabecear cortado de sobresaltos, dormir carregado de pesadellos, descanço, que nos deixa mais cançado ainda. Entre dormindo e acordando começou a ouvir o seguinte dialogo: —Como te sentes, Raymundo?... —Melhor, Leonor, muito melhor. Fez-me bem o somno d’esta noite. Já vieram? —Quem? —Os officiaes de justiça, os que hão de fazer a penhora. —Não cuides n’isso, que te amofinas, talvez não venham; talvez fosse tudo palavriado do Simões para assustar a gente. É impossivel que não olhem ao teu estado. —Qual olham, nem meio olham! Bem se conhece, que não entendes d’estas coisas. Pois tu não sabes que a justiça é cega? Taparam-lhe os olhos para que não visse a desgraça dos pobres. —Mas teu irmão! —Não sabe de nada, Leonor, diz-me o coração que não sabe de nada. O Joaquim teve sempre a cabeça levantada; mas no fundo não era mau rapaz. Se elle soubesse o que o Simões tem feito já lhe tinha tirado a procuração. —Tu tambem sempre o defendes, és a bondade em pessoa, meu pobre Raymundo, não ha para ti ninguem mau n’este mundo. —Olha, o Joaquim se não fossem as más companhias não teria feito o que fez: não gostava de se chegar para o trabalho, era o seu senão; mas não era capaz de fazer mal a ninguem, nem rapaz de mau interior. —Foi elle que matou teu pae, e que no fim de contas nos tem levado a este estado com as suas demandas. —Não digas isso, Leonor, que me affliges. Meu pae morreu, porque lhe tinha chegado a sua hora, custou-lhe muito a partida de Joaquim; mas abençoou-o á hora da morte. Lembras-te, não é assim? Se elle perdoou, porque não havemos nós de perdoar... —Obrigado, irmão! Era affogada em lagrimas a voz de Joaquim, que estava entre portas do quarto. Tinha accordado e escutado cada vez com maior attenção o dialogo, que tão de perto lhe dizia respeito. Julgou ao principio que seria sonho, conheceu depois que era realidade, e tremendo todo ergueu-se e, para melhor ouvir, approximou-se do logar d’onde partiam as vozes. A gratidão, e talvez o remorso fizeram-lhe soltar aquellas duas palavras, que cortaram o dialogo. Raymundo conheceu a voz, sem que podesse distinguir-lhe o rosto, porque o irmão estava de costas para a claridade; pareceu-lhe que invocára um phantasma, estendeu para elle os braços, exclamando: —Joaquim! E caiu desmaiado com o abalo. Joaquim precipitou-se chorando para junto da cabeceira do irmão, abraçou-o vezes infinitas e teve o indisivel jubilo de o vêr tornar a si em seus braços. —És tu, meu irmão!... Bem me dizia uma voz cá dentro, que havias de voltar. —Perdoas-me, Raymundo? —Perdoei-te sempre. Tu é que tens que me perdoar. —O que? —Não te haver já transmittido a benção do pae. Ajoelha, Joaquim. —Em nome do nosso bom pae que está nos céus, eu te abençôo, meu irmão: sê bom como elle foi, e mais feliz do que eu tenho sido. —Sel-o hemos todos, Raymundo, porque se me deixas viver comtigo, nunca mais saio da tua companhia. Escusado é dizer agora como terminou esta historia. João Simões não pôz mais pés na terra; Joaquim tinha-lhe jurado pelo corpo, e elle bem sabia que não era homem de faltar á sua palavra. Declarára que seria a sua ultima extravagancia; mas d’essa não desistia nem por Christo. O caso era encontrar o seu procurador. A doença de Raymundo desappareceu breve, e a alegria voltou áquella casa, para não a desamparar mais. Muitas noites, quando se conchegava para o pé do lume, depois de ter contado aos sobrinhitos que o não deixavam por contos, uma historia do Brazil, Joaquim voltava-se para o irmão e para Leonor e dizia-lhes sorrindo: —Sempre hão de confessar que estes endiabrados pequenos são uns grandes doutores! Como elles nos souberam ganhar a demanda!... X O sexto mandamento O padre prior, que os nossos leitores conhecem já, era um modelo de virtude e um exemplo vivo de caridade christã. Apenas começára pastoreando aquelle pequeno rebanho, não houvera cuidados nem disvellos, que lhe parecessem de mais para encaminhar nos trilhos escabrosos do bom porte e da honra as suas ovelhas de monte, que, quando se apartavam do bom do parocho, era mais por ignorancia do que por maldade. Conhecera-o elle tambem desde logo, e empenhára as forças do seu corpo e o poder da sua intelligencia em esconjurar os peores de todos os demonios, a que a natureza humana póde dar albergue; a ignorancia e a rudeza. Não abria mão d’estes piedosos exorcismos: qualquer logar, qualquer occasião lhe pareciam proprias para travar combate; e apparelhado, como sempre andava para a lucta com as armas da crença e da boa vontade, raramente deixava de contar da victoria. Não quero dizer, todavia, que o meu parocho fosse um segundo Vieira, ou outro Macedo Polygrapho. Bem pelo contrario, Deus perdoe á sua alma, e mais ainda á alma dos governos (se é que os governos tem alma), que tão pouco têem cuidado na educação do clero, o bom do padre muitas vezes, brigava com armas eguaes contra a ignorancia dos seus parochianos; e, quando vencia, era substituindo preconceito por preconceito, absurdo por absurdo. Procediam porém de tão boa origem os erros do velho, fundavam-se em tão verdadeira bondade: e tão piedosa uncção revestia os seus disparatados conceitos, que por amor da singela magestade, e boa tenção da mentira, quasi se malqueria á verdade. Era falso o arrasoado, bem o sabiam alguns: mas deliciava a alma e commovia o coração, encaminhava para o bem, posto que por transviado caminho. E o padre dizia-o tão de dentro, tão convencido, que chegava a parecer impossivel que não fosse assim. Mas não era, verdade verdade, não era; que a sciencia fugia espavorida diante das legiões barbaras, que appoiavam algumas considerações do velho. Não era, porque o pobre homem, que sem maldade nem recalcitramento, mas por simpleza e costume antigo, encommendava a missa _pro rege nostro Michaele_, resumia a sua instrucção á leitura, um tanto embaraçada, seja dito aqui particularmente, da Biblia, dos Evangelhos, do breviario e da _Nação_, cujo assignante era desde o principio. Não aprendia porém do seu periodico senão a doutrina tradiccional e monarchico-absoluta em que fôra creado. Lia o jornal para saber noticias do seu rei e do mais que ia por o mundo: e a maior parte das vezes no meio de um façanhoso artigo ou de uma ateada polemica, no ponto mesmo em que as iras do jornalista trovejavam mais crebas, e os rancores partidarios se desatavam em maiores diatribes; o jornal, como para constrastar com tão ardidas furias, escorregava brandamente das mãos do desattento leitor, e ia voejar por terra com outras folhas suas irmãs, que tendo sido verdes e esperançosas como ella, tinham caído da arvore, como ella tambem caíra das mãos do parocho, e haviam seccado no esquecimento, como, triste sorte do jornalismo diario, ella havia de seccar em breve ao abandono no chão e esquecida tambem. Ao cabo de meia hora o padre accordava admirado por ter adormecido, apanhava o jornal e recomeçava o mesmo artigo. Já se vê, pois, que não podia ser larga a instrucção colhida em fontes tão pouco variadas e demais ainda tão mal seguidas. Mas onde não chegava a cabeça alcançava o coração, e onde não accudia a intelligencia sobejava o sentimento. Não lhe tomemos conta da sua ignorancia, nem lhe malqueiramos por peccado que não era seu. A revolução social estabeleceu entre a geração, que findava, e a que ia apparecendo um largo espaço que não soube ou não poude fazer desapparecer. Uma ficou, symbolo do passado; outra caminhou, annuncio do futuro. A primeira estacionando, conservou os abusos, os erros do seu tempo; mas tambem a poesia, a fé sincera, o culto de suas tradicções, o respeito pelas suas crenças: a outra caminhou sobre ruinas, e caminha ainda, sorrindo, luctando, descrendo, esperando, progredindo sempre, conquistando por fim, mas deixando, quantas vezes, a fé pelo caminho, a esperança na estrada! Se ambos se tivessem querido comprehender, se mutuamente se tivessem desculpado ou os ardores impacientes, ou as rabujices pertinazes; se não quizessem cavar fossos e levantar trincheiras entre uma e outra; mas, bem pelo contrario, nivellar o terreno, e apagar odios, rancores e desintelligencias, não seria para nós o presente tão cheio de incertezas, de hesitações, de duvidas, de desconfortos e desalentos. O padre, esse, ia seu caminho, combatendo como sabia a falta de educação, e de conhecimento da sua grei. Além das lições de moral que espalhava a esmo, conforme se lhe offereciam as occasiões, costumava elle, sempre que podia e que o tempo o deixava, reunir os do logar, de tarde perto da egreja, para lhes fazer alguma leitura da biblia e interpretar em seguida, a seu modo e como melhor lhe parecia, o texto que lhes lêra. Por vezes assisti a estas leituras, por vezes ouvi as suas explicações, e se mais tarde as commentava tirando desagradaveis conclusões a respeito da illustração e intelligencia do velho, não deixava sempre de me sentir commovido, quando fazia parte d’aquella piedosa reunião. Sigam-me tambem os meus leitores, que, conforme sei, e segundo me recordo, vou procurar descrever-lhes, como se apresentava a scena, na ultima vez em que, pouco antes de regressar a Lisboa, assisti á prédica do ingenuo parocho. Estamos no adro da egreja: a parochia é de trezentas almas quando muito. O dia vae declinando e está proximo o sol posto. A egreja não tem o aspecto sumptuoso d’um grande templo; nem a magestade altiva de uma cathedral do seculo XIII. É de hontem apenas. Uma frontaria sem ornatos, uma torre proxima sem enfeites. É simples e pobre como o presepio do Redemptor. Sobre o adro espaçoso e plano um velho platano á esquerda braceja largos ramos envolvendo na sua sombra uma cruz musgosa, que se levanta defronte da porta da egreja e que deixa perceber em profundas cicatrizes, rudes combates com o tempo ou com a impiedade dos homens; perto do platano um pequeno regato corre por baixo do parapeito do adro e depois de passar sob uma ponte de pedra que dá serventia á estrada, vae espraiar-se ao longe n’uma pequena bahia, onde as lavadeiras do logar vem bater a roupa ao pé dos choupos e olmeiros, que se debruçam para a corrente. De um dos lados sóbe a encosta de um pequeno outeiro atapetado de vinhas e oliveiras, corôado de moinhos que desprendem as velas a favor da viração da tarde; do outro a vista divaga por meio dos pomares e terras de vinha, no meio das quaes alvejam as casinhas do logar, e se recortam no puro azul dos céos as oliveiras verdenegras. Os rumores do campo começam a esmorecer com o largar do trabalho indicando a proximidade da noite. A tarde tem corrido serena e a natureza sorri na flôr do prado, como na arvore do bosque. Sentado n’um banco de pedra mal affeiçoado pela mão de rude artista está o parocho, junto a si os evangelhos depostos e ainda abertos: as mãos pousadas sobre os joelhos, a cabeça um pouco inclinada pelos annos; o corpo alquebrado pelos trabalhos. A seus pés, sentadas no chão, em rancho, as creancinhas da terra, em roda as raparigas e as mulheres; mais ao largo, os homens fechando o circulo e encostados aos varapaus. Um pouco mais affastado do grupo, sentado n’um dos poiaes do adro, e scismando, ao que parece, está o tio Joaquim, commentador e companheiro das homilias da tarde. De quando em quando, em pontos mais subidos da exposição do pastor levanta a cabeça, fita o narrador com gesto expressivo, e com os olhos illuminados por aquelles doces clarões da sympathia e da attenção, segue o fio do discurso para descahir breve nas habituaes meditações. O padre tem acabado a leitura de um dos sagrados capitulos, e d’accordo com a intelligencia dos ouvintes explica-lhes o texto procurando comparações no campo, na lavoura, nos trabalhos que melhor conhecem, nos instrumentos com que mais de perto lidam. Todos o escutam em religioso silencio e a palavra sagrada recebe maior uncção na bocca do venerando velho. Tem apenas acabado de fallar quando no sino proximo começam a bater as melancholicas Avé-Marias. O som vae chorando, como uma saudade do dia que finda, pelas quebradas do monte e pelos arvoredos dos bosques, para voltar amortecido e triste, como recordação de felicidade. É um momento solemne. O padre ergue-se, a boa gente do campo ajoelha a seus pés. Por momentos as orações murmuram como o esvaecer do som no bronze sagrado e a oração ergue-se como um côro de harmonias dos labios dos fieis, do murmurio do regato, do ciciar da aragem, do bulir do arvoredo, do tinir dos chocalhos, dos balidos do rebanho que ao longe recolhe da pastagem para o abrigo do curral. Depois o padre abençôa seus filhos com as mãos tremulas estendidas e a fronte encanecida illuminada pelos reflexos derradeiros do sol já escondido: despedindo-se do parocho, retiram pouco a pouco os aldeões guiados, como os israelitas no deserto, pela espiral de fumo, que se ennovella sobre os tectos de suas casas, o ruido vae pouco a pouco diminuindo, recolhe o rebanho ao curral, os pastores deixam de cantar, a voz dos ultimos camponezes perde-se na volta da estrada. Mas o rio ainda murmura, o vento ainda suspira na rama das arvores, e o padre sósinho, com os olhos fitos na pallida lua, que começa a assomar no céu, não limpa uma lagrima de saudade e de esperança, que lhe escorrega pela face cavada pelos annos, envelhecida pelas maguas. Saudade da terra e dos homens, que vae deixar, esperança na vida eterna, que entrevê tranquillo, crente na misericordia do Senhor, confiado na sua infinita bondade. Hoje a boa gente do campo volta ao adro a procurar o padre, o platano e a cruz. Tudo tem desapparecido apoz o homem a planta, apoz a planta a pedra, tudo volveu ao nada d’onde veiu. Sobre o cadaver do velho caiu a pedra do cruzeiro, um arrebento do platano deu sombra á sepultura; mas a natureza proseguiu guiada pela civilisação e pelo progresso desfolhando uma saudade sobre a campa e colhendo do novo arbusto a planta sempre viçosa da arvore da liberdade. A poesia do passado tem-se perdido. Mas o homem, que ficou meditando sobre aquella lapide, disperta das suas meditações ao grito da locomotiva do caminho de ferro, ao retenir da campainha do telegrapho electrico, ao resfolegar das caldeiras da fabrica proxima, ao estrondo magestoso das novas eras, que nas azas do pensamento correm a cumprir a sua missão. N’aquella tarde fôra a historia de José o texto escolhido; e o velho descrevendo o quanto padecera o patriarcha hebreu por amor dos seus irmãos, e seus compatriotas, fallára tão de leve no sacrificio, prestado á honestidade; como, perdoem-nos a comparação, a raposa discorrera a proposito das uvas que não eram para seu dente. Muitas virtudes encontrava elle no casto José, mas a de resistir com tanto denodo á mulher de Putiphar, não foi das que mais encareceu. Nem por isso lhe parecia grande façanha. Para o bom do velho nada havia mais natural. Não assim para grande parte de seus ouvintes. Aquelle rasgo foi o que maior impressão deixou na intelligencia sensual de muitos. No serão d’essa noite não faltaram commentarios e choveram ditos, alguns dos quaes, posto que bastante grosseiros na fórma, não deixavam de ter bom sal, e grande finura no alcance. Terminada por fim a discussão foi votado por maioria, que tal caso era impossivel; ou pelo menos, se o não era, fôra um grande disparate do patriarcha hebreu. Protestou o tio Joaquim contra a decisão da assembléa, e para fundamentar o seu protesto pediu a palavra, que lhe foi concedida com o maior prazer. —Todos, quantos aqui estão, conhecem ou tem ouvido nomear o Luiz Tiburcio, que traz de renda ao Morgado dos Cachorros o Olival grande do Brejo, no alto da estrada da Carrejosa. É um homem de bem e lavrador abastado; tem hoje um bom par de vintens e uma das melhores lavouras dos sitios. Pois vae vinte annos não tinha onde cair morto, nem esperanças de mudar de sorte. Um caso bem parecido com o que hoje ouviram ao sr. padre prior foi o começo da sua fortuna. Luiz Tiburcio é do Minho. Veiu por ahi abaixo procurar vida e trabalho, quando por morte do pae e da mãe, ficou sósinho na terra, sem ter quem lhe valesse, nem casa que lhe abrisse a porta. Era pelo tempo da guerra, andava tambem a molestia, e cada um cuidava principalmente de si, ou dos seus, e não tinha vagar para saber do mal dos outros. Curtiu fomes e frios pelo caminho, não poucas vezes estendeu a mão á caridade, e não poucos dias pediu esmola a chorar, perdido de fraqueza, e sem esperanças de ter um bocado de pão. Ninguem cuidava em dar trabalho e era tal a desconfiança, que ninguem queria tomar para casa um rapaz, coberto de farrapos e com cara de padecente. Tinha uns quinze annos, pouco mais, e já começava a saber o que era mundo. Entrava na vida pela porta da desgraça e principiava a amargar a existencia sem lhe ter provado ainda as doçuras. Um dia, já sem forças, caiu á porta de uma fazenda, d’onde saíra descoroçoado de todo, porque depois de ter passado um dia sem comer, acabava de ser despedido pelo cazeiro, dizendo-lhe, que a fazenda do seu patrão não era couto de vadios. Luiz Tiburcio poude, envergonhado e saltando-lhe as lagrimas pelos olhos, andar a alameda e sair o portão que do pateo conduzia á estrada; mas, ao voltar para o caminho, sentiu-se tão quebrado, tão sem animo, que atirou comsigo para o chão, resolvido a não se levantar mais d’alli. Encommendou-se a Deus e esperou a morte resignado. O sr. José Matheus, o dono da quinta, que assim se chamava por signal, andava por fóra, quando Luiz fôra pedir trabalho a Valle de Figueiras. De certo, se tivesse visto a lazeira do rapaz o recolheria por alguns dias ao menos, e lhe mandára dar de comer, pois era homem rasgado e de bom coração; mas só tarde voltou de uma outra fazenda, onde fôra, e era já muito escuro, quando se aproximou de casa. Luiz estava estirado no caminho. José Matheus entretido com os seus pensamentos não deu por semelhante cousa e recolheu passando junto do pobre moço. Caía geada, como não havia memoria, e o frio era de estalar. De manhã cedo os primeiros, que sairam encontraram-n’o sem apresentar signal de vida e accudiram á fazenda a dar rebate. O sr. José Matheus foi o primeiro, que correu junto da pobre creança, viu-a n’aquelle mísero estado e teve dó de tão grande desgraça em tão verdes annos. Elle tambem havia provado do pão que o demonio amassou, e antes de chegar a ser independente fôra um pobre de Christo. Mandou carregar com o Luiz para uma cama, e cuidou em vêr se lhe dava vida nova. O rapaz estava enregellado e hirto, os beiços arroxados, os olhos mettidos n’umas covas negras, as mãos inteirissadas, o coração quasi sem bater. Dir-se-ia morto. Ao passo, porém, que ia aquecendo e que o esfregavam com pannos quentes e espirito de vinho tornava pouco a pouco a si: e depois de um caldo bem forte e bastante substancial parecia outro. O sr. José Matheus indagou-lhe da vida e soube que a fome e o desamparo tinham sido a causa d’aquella doença. Compadeceu-se por vêl-o orphão tão moço e sósinho no mundo: era casado havia muito tempo, e não tivera filhos nunca, engraçou com a cara do rapaz, que era de boa feição, e adoptou-o para si. Desde esse dia começou para o Luiz, a quem dentro em pouco já todos tratavam por sr. Luiz; e a quem o sr. José Matheus chamava—o meu Luizinho—uma vida de principe. Não lhe faltava nada, aprendia, estudava, trabalhava e desenvolvia-se de dia para dia. Em poucos tempos fez-se uma flôr. Parecia que medrava a olhos vistos e que cada vez ganhava maiores perfeições. Perfeito no corpo, e mais perfeito talvez na alma, não havia para elle sol nem lua que valessem o sr. Matheus, nem palavras ou acções que lhe parecessem demais para lhe agradecer o bem que lhe devia. Luiz tinha coração de pomba. Mas o demonio, que sempre as arma, e que parecia ter tomado o rapaz á sua conta, encarregou-se de entornar o caldo, e de deitar por terra aquellas felicidades todas. A esposa do sr. José Matheus, apezar dos seus quarenta puchados, era ainda mulher de primor. Desenxovalhada n’aquelle tempo, devia ter sido linda quando andasse alli pelos vinte annos. Tinha dado brado na terra, e mais de um lhe tinha arrastado a aza, sem que ella lhe desejasse as pernas quebradas. Casára-se pela rasão, porque se casa a maior parte das mulheres, para mudar de estado; e não conhecera nunca que cousa fosse amor. Extremosa pelo marido, não constava que o tivesse sido: e, segundo se rosnava pelos sitios, se tivesse pé faria pégada. Se a amisade de Matheus pelo Luizinho era verdadeira amisade de pae, a de Genoveva não se parecia em nada com o amor de mãe. Por mais de uma vez lhe havia deitado uns olhos, que queriam dizer muito, mas que no rapaz eram tempo perdido. Não por innocencia, mas porque não queria acreditar, que fossem o que lhe pareciam. Genoveva desesperava-se por não ser comprehendida, e tinha jurado que: ou Luiz se chegava á rasão, ou havia de pôr os quartos no meio da rua. Uma noite, chovia a cantaros, e o sr. José Matheus não recolhera de uma feira a que fôra comprar quatro juntas de bois. Tinha-se armado uma trovoada de arrancar pinheiros e uma ventania de levar tudo pelos ares. Genoveva estava cosendo junto á mesa de jantar e Luiz proximo d’ella lia alto um livro de romances. Era a historia dos amores derrancados de dois amantes infelizes, que depois de passarem as passas do Algarve, depois do apaixonado ter andado as sete partidas do mundo e corrido perigos de todas as castas, se reuniam por fim; mas quando iam para gosar de um dedicado affecto, o marido da heroina apparecia tanto a proposito, que matava o seductor, se o era, e fazia endoudecer a mulher com a vista do ensanguentado cadaver. Era uma historia de arripiar defunctos, e que por isso mesmo tinha tido tanta voga que chegára até Valle de Figueiras. De repente Genoveva, que seguia a leitura com verdadeiro interesse, e que por mais de uma vez sentira calafrios ao ouvir aquella enfiada de horrores, interrompeu o leitor, quando enthusiasmado lia o passo do encontro dos dois n’um casal deserto no meio das serras entre alcatêas de lobos, ao fuzilar dos relampagos, ao estallar dos trovões. —Gostas d’essa historia, Luiz? —É triste, senhora Genoveva, gosto muito. —Andas sempre triste! —Não é por ser mal agradecido ao bem que me fazem. É genio meu, não está mais na minha mão. —Volta de amores talvez? E os olhos acompanhavam a pergunta, procurando seguir o pensamento do moço, como o galgo segue a lebre por meio dos campos. —Não, minha senhora, não são amores. Tambem quem me havia de querer, orphão, sem fortuna, e só devendo o pão de cada dia á caridade de meus bemfeitores? —Não digas isso, Luiz, bem sabes que o trabalho que fazes, vale o pão que comes. Tu és bom rapaz e mereces quanto te fazem. —Não mereço, não, minha senhora, e eu bem conheço as coisas, e sei agradecer tanto favor. —Creança! E acompanhando esta palavra, que pelo modo porque fôra proferida, já queria dizer muito, Genoveva correu mão protectora pela cara do Luizito. Porque é preciso que saibam, rapazes: nós os homens muitas vezes chamamos creança a uma mulher, sem ser por mal, nem com idéa alguma; mas em a mulher chamando _creança_ a um homem, e de um certo feitio, é o mesmo que se lhe dissesse: tu ainda não percebeste, que eu gosto muito de ti, e tu és muito estupido, porque não entendes o que eu te estou dando bem a conhecer. Pela primeira vez, havia tanto tempo, desconfiou Luiz devéras do caso, e áquella caricia fez-se vermelho como um pimentão. —Então fazes-te vermelho, tens talvez vergonha de mim? Pois já não devias ter rasão para isso, tenho idade bastante; não é verdade que pareço muito velha, meu Luiz, anda, dize? E cada vez se aproximava mais d’elle a ponto de o bafejar com o seu halito inflammado; e de sorte, que se confundiam os olhos d’ella ardentes, significativos, cubiçosos, com os d’elle timidos, assustados, quasi envergonhados. —Não, senhora Genoveva, não tenho vergonha. Desculpe fazer-me córado... —Dize-me, atalhou violentamente Genoveva, cujo temperamento nervoso e sanguineo estava effervescente, querias estar como Paulo (era o heroe do romance), assim comigo n’um casal deserto... —Como estamos hoje... —Como estamos hoje, sim Luiz, e depois... Era impossivel deixar de perceber tudo. Genoveva parecia ter a cabeça perdida, tudo denotava um desejo desenfreado, e furioso. Não se riam, rapazes, se vissem uma mulher allucinada pelo amor, arrojar-se como uma leôa, feroz, enraivecida, terrivel até, comprehenderiam bem quanta foi a virtude do Luizito. Levantou-se a tremer, e cheio senão de medo, ao menos de pudôr... —Senhora Genoveva, eu não sei se comprehendi; perdoe-me se a vaidade me illude; mas, não me posso esquecer de quanto devo ao sr. José Matheus. E saiu, sem olhar para traz. No dia seguinte, de madrugada, com o seu alforge arranjadinho, ia pela estrada fóra, sem saber ainda para onde se encaminhava. Ia começar de novo a vida, mas era indispensavel. Se cedesse, seria o ingrato mais vil d’este mundo; se resistisse, a furia de Genoveva não o deixaria descançado por muito tempo. A poucos passos de distancia encontrou a José Matheus, que, tendo feito o seu negocio mais breve do que pensava, recolhia cantarolando, como quem vinha nas horas do Senhor. Luiz não esperava semelhante encontro. José Matheus já o tinha visto, e não havia remedio. Demais foi o lavrador que encetou a conversação. —Olá, Luiz, tão cedo, ha por lá alguma novidade? —Nada, não, sr. José Matheus, não ha novidade nenhuma; eu é que... —Tu é que... embatucaste? Tens alguma cousa, viste bicho?—Tu não estás em ti, desembucha. —Eu... vou-me embora. —Bom, homem, e por isso ficaste assim atarantado, bem te entendo; vae, rapaz, vae, eu sei o que são essas cousas. Quando voltas? —Eu... vou de vez. —Hein, endoideceste? —Não endoideci, não, sr. José Matheus, preciso ir-me embora, deixe-me ir embora, deixa?... E o rapaz estendia as mãos, convulso como se pedisse a salvação. —Deixo, deixo. Por onde eu te pegar, te peguem os lobos. Entendo, desenquietaram-te, apanhaste-te ensinado; mas anda que tambem me ensinaste, ingrato! —Ingrato!... Serei, sou, mas deixe-me ir embora quanto antes. José Matheus não era de hoje, nem de hontem; desconfiou do caso, e chegando-se mais para o rapaz, deitou-lhe a unha. —Por mais que me digam, accrescentou elle, tendo-o já seguro, aqui ha o que quer que seja, para tu estares assim tão apressado. Deixo-te ir, mas não sem me dizeres primeiro porque. Que demonio, parece que tens morte de homem! Vendo-se agarrado, Luiz entrou a clamar para que o deixasse, pedindo-lh’o por quantos santos havia no Paraizo. Por mais que buscasse, não lhe occorria nem meia mentira. Não admira, a falta de costume... Por fim conseguiu escorregar-se-lhe das mãos como uma enguia, e deitou a correr mais leve que um passaro. José Matheus voltou ainda o cavallo, para lh’o deitar para cima; depois, como se lhe accudisse a reflexão, exclamou: —A cheia o trouxe, a cheia o levou. Que vá por onde não faça perca!... E entestou para Valle de Figueiras, scismando no acontecido. Ainda bem Luiz lhe não tinha saido a porta, Genoveva, percebendo que era despresada, e incendida pelos lumes do desejo, caía por terra espumando como um damnado, e bracejando como um possesso. Estava com um accidente de raiva. Accudiram ao motim, que fez, e levaram-na para a cama já sem dar accordo de si, tinha-lhe subido o sangue á cabeça, estava com uma febre cerebral. Luiz, escusado é dizer, não soubera de coisa alguma. Recolhera a entrouxar o pouco fato, que havia comprado, pois deixou ficar tudo que lhe deram; e embebido nos seus pensamentos, poderiam voltar a casa debaixo para cima, que não era elle que dava por semelhante coisa. Demais morava n’um quarto no extremo opposto da casa, com porta que deitava para a estrada, e pôde sair por conseguinte, sem saber nada do que se passava no resto da habitação. Pouco depois da chegada de José Matheus appareceu o facultativo do sitio, que tinham mandado chamar a toda a pressa. Sangrou-a logo, mas já era tarde. O ataque tinha sido tão forte, que a sangria abrandou-lhe um pouco as furias e nada mais. D’ali a pouco tornava á mesma, ou a peior ainda, porque d’esta vez dizia coisas estranhas em palavras soltas. Estava tresvariada. José Matheus percebeu logo que as coisas que a mulher ia dizer, não eram para ser ouvidas por toda a gente; mandou sair os que estavam no quarto, e apenas ficou sósinho com ella, deu volta á chave e escutou-a. Soube tudo. No meio dos seus excessos, Genoveva chamava por Luiz, accusava-o de frieza, de indifferença, de ingratidão. Dizia-lhe que pensasse no seu marido, porque esse não saberia nada, e depois... haviam de ser tão felizes! E um poder de coisas que tiraram todas as cataractas dos olhos do marido. Este sentou-se n’uma cadeira, e, abatido, limpou uma lagrima. Ninguem soube nunca por quem fôra, se por Luiz, se por Genoveva. Genoveva durou tres dias. Disse o facultativo, que se lhe tinha rompido uma veia na cabeça; rompesse ou não, nos dois ultimos não deu accordo de vida. José apenas se certificou de que sua mulher não diria mais nada, recolheu-se ao seu quarto, d’onde não saiu senão para a sepultura. Não queria saber de coisa nenhuma, não dava palavra a ninguem, e se insistiam, punha todos fóra, fechando-lhes a porta na cara. Na vespera de morrer, mandou chamar um tabellião e duas testemunhas. Lá esteve com todos tres, por espaço de meia hora. No dia seguinte abria-se o testamento sobre o cadaver de José Matheus, e Luiz Tiburcio ficava sendo seu herdeiro universal. —Acabou, tio Joaquim, atalhou d’ali o João Carriço, que déra provas de impaciencia durante a narração, não tem mais nada que dizer? —Eu não, e tu? Perguntou o narrador. —Eu, perdoará a sua palavra honrada, parece me que a historia não vem ao caso do que a gente dizia; pois se o rapaz não fosse tão arisco, ficava com tudo do mesmo feitio; porque eram dois a deixar-lhe... E d’ahi não morria, nem a mulher, nem o homem. —E parecia-te bonito pagar d’esse feitio os beneficios, que tivesses recebido de José Matheus? —Olhe, tio Joaquim, lá o lê, lá o entende, mas d’aquelle mal não morreu ninguem; o José Matheus não havia de passar peior por isso. —Eu te contarei uma historia um dia, e verás se se morre ou não. Sabes que mais, João Carriço, tens ainda a cabeça muito levantada, has de assentar. —Então sim, tio Joaquim, quando fôr lá para a edade, o que não podér haver, dal-o-hei por amor de Deus. E como todos soltassem uma gargalhada, o velho suspendeu a sessão, porque percebeu, que por aquelle lado não fazia farinha. XI O Thomaz dos passarinhos Acabavam de dar dez horas; e ouvia-se ainda o som dos sinos de S. Vicente, o que mostrava que o vento estava da barra a prometter mais chuva. Em todo o santo dia não descontinuára de cair agua, e ao cerrar da noite, carregou tanto que parecia vir tudo abaixo. Em casa dormiam todos, e na malta vigiava apenas, junto da candeia quasi a apagar-se, o tio Joaquim, que estava fumando embevecido no que quer que era, que parecia preoccupal-o. Os maltezes dormiam cada um para seu canto, embrulhados em gabões, ou cobertos com as mantas em cima das esteiras. Debaixo da cinza ainda faiscavam alguns restos de vides, na chaminé, e a meio da tarimba ainda se via um baralho em desordem, como a provar que havia pouco descançava d’uma bisca de quatro. As cartas poderiam figurar com bastante rasão no gabinete d’um antiquario, e tinham direito ao asylo de Runa pelas multiplicadas cicatrizes ganhas no combate. Mas como o jogo era de boa fé, e só para matar tempo, pouco importava, que fossem mais conhecidas ainda pelas costas do que pela frente. Pela minha parte tinha ficado tambem por ali mais um bocado, e preparava-me para recolher, quando me pareceu ouvir, por entre o ruido da chuva que caía sem cessar, e do vento que não parava, o som da campainha do portão. —Não ouviu tocar á campainha, tio Joaquim? Este levantou a cabeça e como despertando, respondeu-me: —A estas horas, não póde ser, foi engano seu, já estão todos recolhidos. N’isto o cão do pateo começou a ladrar. —Tocaram, tocaram, repeti eu, e tanto que lá está o Alfageme a dar signal. Ora escute, lá tornam. E effectivamente um segundo toque se fez ouvir, mas tão brando, tanto a medo, que mal se ouvia, apesar de escutarmos ambos com toda a attenção. —É toque de desgraçado, de quem receia incommodar; pobre homem, com este tempo! Eu vou vêr, disse-me o tio Joaquim levantando-se e pondo o chapeu. D’ahi a pouco senti-o chamar o cão, que se enfurecia a ladrar cada vez com mais força, em seguida abrir o portão, e logo depois entrar na casa da malta já acompanhado. O recem vindo entrou timido e denunciando o extremo acanhamento da pobreza envergonhada. Caía-lhe a agua a fio do chapeu, que trazia derrubado para a cara, e ensopava-lhe um capote esfrangalhado, que bem a custo lhe resguardava o corpo. Ficou á porta mesmo, e como mal se atrevendo a proseguir. —Entre, patrão, bradou-lhe o tio Joaquim, não está tempo para cerimonias, se isto continua lá se vão todas as sementes com a cheia. Parece um diluvio. Largue o capote e o chapeu que traz n’uma sôpa, embrulhe-se ahi n’uma manta, e chegue-se para o lume, que eu vou deitar-lhe um punhado de vides para o espertar. E seguindo conforme disséra, separou umas poucas de vides d’um mólho, que estava perto da chaminé, quebrou-as umas poucas de vezes sobre o joelho, deitou-as no brazido, e entrou a assoprar até que pegou labareda. —Deus lhe pague, tanto incommodo, tio Joaquim, exclamou o desconhecido, seguindo á risca as indicações do hospedeiro. Este, admirado por ouvir o seu nome, attentou no recem-chegado, e como procurando avivar recordações: —Espera, eu já ouvi esta voz, mas não me lembro aonde; olha bem para mim: eu conheço-te, já vi a tua cara, isso vi. —Tão mudado estou que já se não lembra de mim, do Thomaz... —Do Thomaz da tia Annica, se lembro! Mas quem tal havia de dizer, que mudança! Pareces um velho, homem, e eu que te fazia a arrebentar de dinheiro, que pensava que estavas pôdre de rico, lá por esses Brazis! —Pôdre ia estando, ia; mas era de doenças e de fome... —Então nem tudo que se diz?... —Ora uma coisa é dizer, outra é vêr, nem o tio Joaquim faz uma idéa! —Faço, faço, basta olhar para a tua cara e para o teu fato. Mas não se trata só de dár á lingua. Que tal de barriga, nem por isso vem muito quente não é verdade? O silencio de Thomaz suppriu bem uma eloquente resposta. O tio Joaquim proseguiu: —Para grandes banquetes não haverá, mas para uma assorda ainda chega o pão; fazem-se umas migas de bacalhau, deita-se-lhe um tomate e uma cebolla, e verás depois se, comida com boa vontade, não vale o melhor petisco do mundo. —Vem quebrar-me o jejum. —Que dizes, homem? —Que salvo os meus peccados, ainda podia commungar, porque até a esta hora não entrou hoje comer na minha bocca. —Pobre Thomaz! E sem perder mais tempo em conversações, o tio Joaquim principiou a temperar as migas. Entretanto tive eu tempo para examinar bem á minha vontade o Thomaz da tia Annica. Teria uns trinta annos quando muito, o que só com muita difficuldade se percebia pela viveza do olhar. No resto da physionomia e no quebrado do corpo liam-se sessenta puchados. Não se podia dizer qual fôra a côr do rosto. Os sóes, os trabalhos e as febres, tinham-lhe retinto a cara d’um castanho esverdeado, que mais simulava medalha antiga que parecer de gente. A barba crescida, as sobrancelhas espessas, e o cabello basto e grenho eram ou arruivados pelo sol, ou embranquecidos pelos trabalhos; as rugas abriam-lhe talhos profundos na pelle, e algumas cicatrizes imprimiam-lhe extravagantes relevos. Até mesmo o branco dos olhos estava amarellecido, e os dentes, quando descerrava os beiços rôxos e gretados, pareciam prezas de javali aguçadas e ennegrecidas. O fato eram farrapos, sem fórma, nem côr possivel, restos sobrecosidos, retalhos justapostos. Não se lhe percebia camisa. Fazia horror tão grande miseria. O tio Joaquim tinha desenvolvido uma actividade pasmosa. N’um abrir e fechar d’olhos tinha migado o bacalhau e a cebola, tinha cortado o tomate, tinha posto tudo a ferver n’uma pouca d’agua, sem lhe esquecer um fio d’azeite para melhor tempero; depois, quando começava a fervura a levantar, entrou a partir o pão, e a deital-o no tacho com aquelles ares de satisfação, que deve manifestar um artista, quando tem a certeza de estar a concluir um primor d’arte. Thomaz, esse engerido com frio e extenuado de fome, não tinha forças para se mecher do banco para onde caira. No dia seguinte ouvi da bocca do tio Joaquim a historia do Thomaz da tia Annica. Thomaz nascera por aquelles sitios mais rico de preguiça do que de amor ao trabalho; parecia feito para morgado, o demonio do rapaz, não queria saber de lavoura, nem de estudo. Fugia da escola, fugia do trabalho, e ia deitar-se debaixo de uma arvore a olhar para o ceu, ou a acompanhar com a vista as nuvens irradias. Muitas vezes dizia elle quando lhe deitavam na cara o não fazer nada: —Deus entregou o espaço aos passarinhos, e lançou a semente á terra, para que se nutrisse, soltou os animaes no campo, e mandou á herva que crescesse para que se alimentassem; deu azas ás borboletas, e polvilhou as flôres para que encontrassem sustento sem se affadigarem. A mão que impelle o sol, que sacode as nuvens, que arroja a chuva, que dá vigor á planta, ramagem ao arvoredo, frescura á terra, e nutrição a todos ha de amparar-me tambem, e dar-me de comer quando me falte. E, a não ser esta preguiça invencivel, não havia que se lhe dizer: era comedido no porte e civilisado nas palavras. Não escandalisava ninguem, nem procurava descaminho; deixassem-no vaguear e estava contente. Depois de muitas tentativas descoroçoaram os paes de o fazerem tomar rumo. Deixaram-no á lei da natureza, e assim se foi creando, aprendendo pelo que via, e desenvolvendo-se com o descanço. Não era mau rapaz, nem dado a companhias. Bom de coração na verdade, mas incapaz de servir para nada. Havia muito tempo, que se não via um paz d’alma d’aquelles. Emquanto o pae foi vivo, bem ia o caso. Elle dava ordem á sua vida, e quando lhe perguntavam pelo filho respondia tristemente: deixem-me, foi erro da natureza, nasceu para mulher, não tem geito para cousa nenhuma. Um dia porém, o pae amanheceu morto na cama, e a mãe achou-se de repente com todo o peso da casa, e com um filho que não tinha prestimo que se visse. Thomaz chorou muito nos primeiros dias, e fez mil protestos de trabalhar. Assim foi de principio, mas depois... parece que se partiram os braços e tornava á mesma. Pasmava ao meio do trabalho, varria se-lhe de memoria o que estava fazendo, e deitava a correr para debaixo de uma arvore, namorar as nuvens e ouvir os passaros. —O que te prende tanto, para não fazeres nada e passares todo um dia assim a olhar para o ceu, lhe perguntou um dia um velho fazendeiro dos melhores amigos, que o pae tinha? —O tio Simões vae rir-se... —Dize sempre, anda. —Olhe, tio Simões, quando ouço os passarinhos, parece-me escutar estas palavras que o sr. padre prior disse um dia n’um sermão de festa: «Portanto vos digo, não andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem do vosso corpo, que vestireis. Não é mais a alma, que a comida: e o corpo mais que o vestido? «Olhae para as aves do ceu, que não semeam, nem segam, nem fazem provimento nos celleiros; e comtudo vosso Pae celestial as sustenta. Por ventura não sois vós muito mais do que ellas?[2]» —Mas isso não quer dizer, que se não deve trabalhar, homem, pelo menos eu assim o entendo, quer dizer que por amor do dinheiro se não devem praticar acções ruins, e que a confiança em Deus nos não deve desamparar nunca. —Ora, tio Simões, o sr. padre prior ainda disse mais: «E porque andaes vós sollicitos pelo vestido? Considerae como crescem os lirios no campo; elles não trabalham, nem fiam. «Pois se ao feno do campo que hoje é, e ámanhã é lançado ao forno, Deus veste assim; quanto mais a vós homens de pouca fé! «Não vos afflijaes pois, dizendo: que comeremos ou que beberemos, ou com que nos cobriremos? «Porque os Gentios é que se cançam por estas coisas. Por quanto vosso Pae sabe, que tendes necessidade de todas ellas. «Buscae pois primeiramente o Reino de Deus e a sua justiça: e todas estas coisas se vos accrescentarão. «E assim não andeis inquietos pelo dia de ámanhã. Porque o dia de ámanhã a si mesmo trará seu cuidado, ao dia basta a sua propria afflicção.»[3] —Como aprendeste tanta coisa? —Olhe, tio Simões, na vespera tinha assistido ao pagamento da féria, o que meu pae, que Deus haja, fazia todos os sabbados á noite, e ao vêr seguirem-se uns após outros os trabalhadores da fazenda, disse com Deus e comigo:—porque não hei de eu trabalhar? Porque não hei de ganhar tambem a minha féria? Eu tambem sou homem. —E disseste bem, Thomaz, era uma boa palavra essa. Mas depois?... —Depois, fui deitar-me resolvido a pedir tambem que fazer na segunda feira seguinte a meu pae; mas no domingo era dia de festa; fui á Egreja ouvir a missa, e fiquei para o sermão. —E... —Começou o sr. prior a dizer o que eu lhe repeti, ha pouco... —E como tu não ias de vontade para o trabalho, quadrou-te o sermão, não é assim?... —Não diga tal, tio Simões, sabe Deus se eu tinha ou não feito proposito de mudar de vida: tanto que, ao principio, fiquei sobresaltado, e como não querendo acreditar... Mas vi a cara do bom padre, dizia tanto, tinha uma tal expressão de bondade, um tal não sei quê na physionomia... Era impossivel, tio Simões, que não fosse allumiado pelo ceu. —Mas como aprendeste tudo isso? —No dia seguinte fui ter com o sr. padre prior para que me ensinasse aquellas palavras, disse-me que estavam n’um livro, e d’ahi eu... pedi-lhe que me explicasse como as havia de lêr... —E elle? —Elle ensinou me, e eu aprendi. —Então tens lido muito?... —Nada, não senhor, apenas soube de cór aquellas palavras, esqueci me logo de lêr. —Ora essa! —As aves do ceu e os lyrios dos campos não sabem lêr, e o nosso Pae celestial as sustenta e as veste. Eu tambem não preciso saber lêr. —Mas teu pae morreu, tua mãe não póde com o encargo da casa, e assim sem homem, que tome tento no arranjo, vae tudo por agua abaixo. —Que hei de eu fazer? —Homem, és capaz de fazer perder a paciencia a um santo! Que tomes a direcção do governo, que occupes o logar de teu pae. —O tio Simões póde dizer o que quizer, eu estou á conta do Senhor. E não havia tiral-o d’este dizer, por mais que fizessem, por mais que lhe prégassem. Era prégar aos peixinhos. A pobre da mãe ia dando ordem á vida, conforme podia, mas casa governada por mulher, raro toma caminho: o negocio cada vez ia de mal a peior. Thomaz, esse, parecia não dar por semelhante cousa, chegava a casa, fallava á mãe; comia do que lhe apresentavam, porque tudo lhe sabia bem, e quando a tia Annica começava em pé de conversa a querer-lhe dar conta do que se passava: —Faça o que quizer, minha mãe, eu não tenho nada com isso. E deitava a correr, se insistiam com elle, para debaixo da sua querida arvore. Um dia, quando mais embebido estava em seu scismar, ouviu perto d’elle voz de mulher, que pedia soccorro. Ergueu-se e accudiu. Era uma rapariga de uns dezoito annos, quando muito, que vinha correndo de uma vacca que a perseguia. Já quasi não podia dar passo, e a vacca ia alcançal-a, quando Thomaz erguendo-se de um pulo, e tomando um cajadito, que trazia comsigo, atirou de lado uma paulada ao focinho do animal, que cego com a dôr, mudou de carreira e seguiu aos pulos e aos mugidos pelos campos fóra. Agueda, assim se chamava a perseguida, parou, tomou a respiração, que lhe ia faltando, e, volvendo um olhar reconhecido ao seu salvador, disse lhe: —Obrigado, Thomaz! —Agradece ao Senhor, Agueda, e não a mim; a gente anda cá n’este mundo á conta de Deus. Agueda era feia e grosseira de feições como grande parte das raparigas do campo. Muito trigueira e mais queimada ainda, crivada de bexigas, os beiços grossos, o nariz achatado e largo, as orelhas grandes e mais repuchadas ainda por umas enormes arrecadas de ouro, o cabello crestado e carapinho. Tinha os olhos pretos rasgados e ramudos como quasi todas as saloias e era nova. Como de uso, trazia côres, que mais destoavam com o semblante. Umas roupinhas encarnadas, e uma saia de chita côr de rosa sobre outra de baeta verde salsa. Explicado estava pois o furor da vacca. Entretanto era por extremo vaidosa, e tão presumida como o são todas as moças feias; mal tornou a si do susto começou correndo-lhe a mão, a alisar o cabello, e quando lhe pareceu ter-se bem composto, proseguiu na encetada conversação. —Quem havia de dizer que a vacca da Angelica!... Parecia tão socegada!... —Não admira, tornou-lhe Thomaz, que já se deitára debaixo da sua arvore e parecia distrahido a olhar para o ceu. —Não admira, porquê? —Ora, tu appareceste-lhe assim, tão assanhada! —Tão assanhada! —Sim, pareces-me uma papoila vermelha, já com as sementes pretas, no meio d’um campo de verde. —Sempre tens lembranças! Thomaz não lhe respondeu. Estava entregue ás suas contemplações. —Thomaz! Thomaz! Que tens tu, estás sempre a scismar? —E tu que tens com isso? Importa-te a minha vida? —Lá isso é verdade, não me importa, mas faz-me pena, vêr-te assim, ahi a monte, sempre sósinho. —Faz te pena devéras? —Faz. —Ora dize-me, tu tens bom coração? —Nunca fiz mal a ninguem: nem o desejo. —Pois bem, um dia te direi em que scismo. E por mais que a sua companheira lhe puchasse pela lingua, não deu mais palavra. Parecia de pedra. Por fim Agueda perdeu as esperanças de fazer com que fallasse, e ao despedir-se d’elle disse-lhe: —Adeus, Thomaz, até outra occasião em que estejas de melhores humores. Olha que me não esqueço do favor, que te devo. Adeus! Ou fosse curiosidade ou interesse, ou mesmo amor proprio offendido, no dia seguinte, pelas mesmas horas, fazia a rapariga caminho pelo sitio onde na vespera se encontrára com Thomaz. Este estava no mesmo logar, e na mesma posição da vespera, parecia que não arredára pé. Agueda approximou-se-lhe, quasi sem elle dar pela sua presença. —Adeus Thomaz! —Adeus Agueda! —Ainda continuas a estar triste? —Quem te disse que eu estava triste? —Não fallas, não cantas, não te meches d’ahi! —Tambem as flôres do campo não fallam, não cantam e não se mechem. Entretanto ninguem diz que ellas são tristes. —Em que pensas tantas horas a fio, Thomaz? —Olha, Agueda, tens bom coração? —Já hontem me fizeste essa mesma pergunta, e o que hontem te respondi, te respondo hoje: —Não fiz nunca mal a ninguem, nem o desejo. —Pois um dia te direi em que eu penso. —E porque não ha de ser hoje? —Ainda não tenho confiança em ti. Repetiram-se os encontros. Todos os dias, pelas mesmas horas, Agueda se encaminhava para aquelles sitios, e quando a sombra lhe dizia que ella estava para chegar, Thomaz esperava a com a vista, fitando os olhos no atalho por onde havia de apparecer. Pouco a pouco a indifferença apathica de Thomaz foi desapparecendo. Fallava mais, e contava historias de avesinhas e de flôres a Agueda maravilhada. E havia uma tal ingenuidade, o que quer que era de boa e pura simpleza nas suas historias, nas suas exclamações, na explicação que lhe dava dos enlaces dos animaes e dos amores das plantas, que a pobre rapariga parecia levada a mundos novos, e quasi estranhava tudo que não era o fallar e a companhia de Thomaz. Um dia, eram passados tres mezes, depois do primeiro colloquio, voltou-se elle repentinamente para a sua companheira depois d’alguns momentos de abstracção, e disse-lhe: —És feia Agueda, muito feia. —Se o sentes, para que m’o havias de dizer? tornou lhe tristemente a rapariga. —Porque digo sempre o que sinto. Mas o teu coração é formoso e a tua alma é boa. —Obrigado, Thomaz. —Não me agradeças, porque fallo verdade. O teu coração é bom, e a belleza do corpo acaba, emquanto a formosura da alma se conserva. Eu gosto de ti, Agueda. —Tambem eu gosto de ti, e por isso sempre me pareceste formoso. Era uma especie de recriminação, que Thomaz não percebeu. —Eu queria casar comtigo. —Tu! —Eu, sim, porque te admiras? —Não cuidei que pensasses em casamento. —Não casam as arvores, as flôres, os animaes da terra, as avesinhas dos ares, os peixes do mar; não casam as aguas dos rios com as torrentes dos mares? —Mas... —Porque não hei de eu casar tambem? —Tu bem sabes, Thomaz, que eu nada tenho; tu tambem és pobre, como haveriamos de viver? —Não me tens perguntado tanta vez em que penso durante as horas em que estou sósinho? —Tenho. —Pois, ámanhã t’o direi; d’hoje até ámanhã pensa tu tambem, e dir-me-has depois, se queres ou não casar comigo. —E porque não dizes agora? —Agora... preciso estar só. E calou-se. Agueda já sabia que era tempo perdido teimar. Retirou-se, olhando muitas vezes para o seu extraordinario apaixonado. Este não deu por semelhantes finezas. Com os olhos fitos n’um ponto affastado, parecia embevecido em doces contemplações. No dia seguinte pelas mesmas horas dobrava Agueda o atalho, quando Thomaz, que de longe a avistou, se ergueu para a ir esperar. Extranho era aquelle procedimento, e tanto mais extranho, quanto a pobre da rapariga, á força de se querer aprimorar, mais feia parecia ainda. Thomaz, porém, nem percebeu a mudança. Ao approximar-se da arvore, pediu lhe que se sentasse ao seu lado, e com taes modos e tal delicadeza, que ella quasi o desconheceu. —Que tens, Thomaz, pareces me outro? —Tenho que te fallar muito sério. Pensaste? —Pensei. —Queres? —Quero, Thomaz, conheci que te amava. E tu? —Eu, não sei. Olha, Agueda, parece-me que nasci para casar comtigo. Tenho te visto ha muitos dias, e sempre me tens parecido boa rapariga. —Tu é que és um santo, meu Thomaz... —Não digas isso, e ouve-me. Vou contar-te o meu segredo. —Pois tu tens segredo? —Não t’o disse hontem? —Disseste, mas pensei que estavas gracejando. —Não sei gracejar. —E d’elle depende a nossa fortuna? —Depende. —Então conta, Thomaz, conta depressa. E a rapariga quizera ser toda ouvidos para satisfazer assim a curiosidade que a devorava. —Olha, Agueda, olha além para o ceu. —Olho. —Não vês nada? —Vejo uma nuvemzinha transparente e branca, que parece voejar como um véosinho de cambraia. —E nada mais? —Mais nada! —Pois eu vejo mais do que tu. —Como assim? —Ha uns poucos d’annos, que passo manhãs e tardes, deitado debaixo d’esta mesma arvore, com os olhos pregados n’aquelle mesmo sitio do ceu. —E vês? —Espera. Não ouves o chilrear dos passarinhos, que andam saltitando de ramo em ramo? —Ouço. —E não percebes o que elles dizem? —Ora essa! —Pois desde que aqui descanço, as aves fallam comigo, e eu entendo o que ellas dizem. —Thomaz! —Bem sei que desconfias de mim, Agueda, que talvez me julgaes doido, pateta, como muitos dizem. Não me admira, estou condemnado, e rio-me d’isso. —Não chamo, não, meu Thomaz; continua. —Tens espalhado os olhos por esses tapetes de verde, por essas vagas de pão, que ondulam e marejam á feição do vento como as aguas dos rios? —Se tenho! —Mas não escutaste ainda os colloquios que segredam as plantas umas ás outras, as espigas ás suas visinhas, quando o vento as encurva, e parece approximal-as tão de perto, como se fossem a beijar-se? —Valha me Deus, Thomaz, que coisas me estás perguntando! —Tenho dó de ti, Agueda! —Porquê? —Porque nem lês no céo, nem aprendes com as aves, nem escutas as plantas. Como has de ser infeliz. Tudo pois, que mais significação tem, nada quer dizer para ti. Mas descança, minha Agueda, quando casares comigo, has de saber o que eu sei. —E tu sabes? Thomaz fez-lhe signal para que se callasse por um momento, e pareceu cair em extatica contemplação com os olhos fitos no céo. Seria passado um quarto de hora, quando pareceu voltar a si, dirigiu-se a Agueda, e disse-lhe: —Ouve-me agora. Quando meus paes quizeram que eu estudasse, quando tentaram que eu aprendesse ou trabalhasse, senti em mim uma voz que me dizia: não trabalhes, não é preciso, has de ser rico, muito rico, espera, confia e descança. —E tu? —Sempre que me approximava do trabalho sempre esta voz me fallava; se eu insistia tornava se mais aspera, reprehendia-me, accusava-me de não ter fé. Por fim... não estava mais na minha mão, fugi ao trabalho, não pude resistir ás palavras, que ouvia a todo o momento. —Pobre Thomaz! —Quando comecei a abandonar a casa, para vir deitar-me para debaixo d’esta arvore, parecia-me que as flôres e as plantas se debruçavam para mim e diziam umas ás outras: é mais um irmão que chega, bemvindo seja entre nós. E eu sorria-me para as hervinhas e para as arvores e a umas e outras dizia: Eis me, queridas irmãs, que saudades eu tinha vossas, como me batia o coração com pena! Eis-me, oh irmãs, e não vos deixarei mais. Depois de pensar muito, quiz n’uma occasião da minha vida mudar o modo de viver. Um caso fez, porém, com que eu continuasse a seguir os conselhos da voz, que cá bem dentro me dizia: Descança e tem fé. —Um caso? —Sim. E Thomaz contou-lhe como entrára na egreja e o que ahi ouvira ao prior, bem como a maneira, porque instando com elle para que lhe ensinasse aquellas palavras, chegára a aprender a lêr. —E sabes lêr, Thomaz? —Soube, esqueceu-me. —Pois nem conheces as letras? —Não. —E se eu quizesse aprender? —Talvez me recordasse. —Has de recordar-te, sou eu que t’o peço, mas continua. —Embrenhado n’estes pensamentos, um dia que alargava a vista pelos campos, e que pretendia mergulhar os olhares no céo, lá bem longe, n’aquelle affastado ponto, em que tu divisaste ha pouco uma nuvemzinha, vi avultar uma figura branca, tão transparente, tão formosa porém, ai tão formosa! que arrebatava olhar para ella... Mas porque estás tão triste, borbulham-te as lagrimas nos olhos! —Lembro-me do que me disseste, Thomaz, que me achaste feia, e tenho pena de o ser. —Não penses em tal. Formosuras d’aquellas não as ha na terra, nem sei mesmo, minha Agueda, se as haverá no ceu. Entretanto eu via todas as tardes aquelle vulto illuminado no meio de resplendores de fogo, e dos raios scintillantes do sol poente. Depois ao cair da noite ia-se sumindo pouco a pouco na escuridão até que uma só estrella a substituia no ceu. Se visses que melancholica luz espalhava aquella estrella! Acreditei que o meu anjo da guarda me apparecia, e que a estrella, que de noite scintillava, mais resplandescente do que todas as outras, fôra cravada nos ceus pela mão do Senhor para me animar quando desanimasse, para me esclarecer quando as trévas envolvessem a terra. —Mas dizias, que te fallára! —Pouco a pouco comecei a comprehender, que me fazia gestos, como indicando me um ponto muito affastado dos ceus. Parecia que lá muito longe estava a felicidade, que eu almejava. Um dia ajoelhei e pedi-lhe, que me fallasse, que me dissesse o que significava aquelle gesto constante a mostrar-me a immensidão. —E respondeu-te? —Não é mais harmonioso o som do orgão, quando, depois de tocado, parece gemer saudoso na egreja, não é mais suave o canto da viração da tarde rumorejando pelo arvoredo, nem o lamentar ao longe do rouxinol em madrugadas de maio. —E disse-te... —«Pobre de ti, que procuras a felicidade na terra. Está bem longe e tão longe que nem teus olhos a alcançam nem tua mente a imagina. Queres ser rico, queres ser feliz! Louco! Não ha de ser ahi que encontrarás nem riqueza nem felicidade. Chegará um dia em que me sigas, e então verás patentes thesouros, que nem suppões, felicidades que nem as sonhas.» —Era a tua cabeça que desvairava meu Thomaz! —Não era, Agueda, não era. Levantei-me para seguir direito o caminho que me apontava; mas ao calcar as primeiras hervinhas senti entre seus gemidos, que me chamavam: ambicioso! louco! —As hervas? —Sim as hervas, voltavam-se para mim e apontando-me para os campos onde viviam censuravam-me por as deixar: para que partes? Não tens o pão que te alimenta, o sol, que te dá calor, o ar, que te nutre a respiração, não vês como vivemos contentes no mesmo logar, amando-nos umas às outras, bebendo a agua dos ares, e aquecendo-nos o sol? —E pensaste então em amar? —Pensei! Depois quando volvia para debaixo da minha arvore as avesinhas brincando umas com as outras, diziam: «Não é preciso ir longe para se ser feliz. Este pobre rapaz quer deixar-nos, e nós podiamos-lhe ensinar como se encontra a felicidade. Uma arvore nos abriga, um ninho serve de berço aos nossos amores, uma folha nos resguarda do sol, a semente que cae no chão nos sustenta, a agua, que as covasinhas conservam, nos mata a sêde. Sabemos amar e viver, amamos e sômos felizes. —Seguiste o conselho das aves? —Segui. No dia immediato a visão sorria menos melancholica, e ao perguntar-lhe se devia partir, respondeu-me: Não ouviste as hervinhas do campo e as avesinhas do bosque. Sê humilde como ellas são, contenta-te com o que as satisfaz e serás então como ellas feliz. —Mas como havemos de viver assim, meu Thomaz, não podemos habitar n’um ninho, nem n’uma leira dos campos. —Ouve-me até ao fim. Quiz amar para ser feliz, mas todas me voltavam a cara, ou me apontavam dizendo: olha o Thomaz idiota, o Thomaz dos passarinhos. Só a minha visão me sorria boa nos ceus, emquanto todos na terra se riam de mim como uns maus. Perdi as esperanças de encontrar quem me tivesse amor, e procurei amar aquella que me queria. E sempre a via, sempre lhe fallava no meu querer, e ella sempre se curvava para mim e tristemente me dizia: estamos longe, muito longe! E entretanto as aves e as plantas contavam-me os seus amores, e animavam-me tambem. Vi-te, Agueda, e ao passo, que mais a meudo me appareceste mais fui querendo á tua presença. Por fim não podia já passar sem ti e nas horas em que devias chegar, mais me palpitava o coração. —Querer-me-ias, por ventura? —Não sei. Se o amor é um sentimento, que nos prende a idéa ao ente amado, se o amor é o sacrificio da nossa vida á que se ama, se amor é ser todo d’uma só mulher, e só d’ella, eu não te amo, porque bemquero áquella imagem, e a sua lembrança corta-me os pensamentos, que te consagro. Olha, não sei como te explique o que sinto. Quando quero comprehender-me julgo-me tambem idiota, como me chamam todos. Não ha mulher para mim que te valha, mais rica ou mais formosa que fosse; mas tambem nada ha, que seja em mim superior á idéa d’aquella imagem. Quando vou levado pelo pensamento para ti, surprehendo-me a meio caminho, arrependo me de me esquecer d’ella, e fico em doce contemplação a adoral-a. Quando ella se some, appareces-me tu. Sabes?... Creio que amo a ambas, a ella com o amor do ceu, a ti com o amor da terra. Agueda suspirou e limpou uma lagrima, que lhe escorregava pelas faces. —Porque suspiras? —Tenho ciumes da tua visão; e depois, bem vês, não poderemos casar nunca. —Sabes que lá bem longe ha terras, em que as riquezas não faltam? —Sei. —Sabes que é para bem longe que o meu bom anjo me chama? —Assim m’o disseste. —Pois se tu quizeres casar comigo, irei apoz a minha querida visão, seguirei o seu gesto, e tenho por fé que ao voltar serei rico, que o esperei sempre; serei feliz, que m’o assegurou ella. —Enlouqueceste, Thomaz? —Nunca estive mais em meu juizo. —Pois queres sósinho, sem meios, sem conhecimentos ir por esse mundo de Christo, atravessar os mares, fazer uma viagem tão grande! Dizem que d’aqui ao Brazil é um por ahi além de leguas! —Sei, que importa isso! Tenho pensado muito, comigo, aqui, e com aquella boa imagem além. Não tenho palavras para dizer o que vae cá por dentro ahi a qualquer. Póde ser que eu seja idiota, mas parece-me que mais são os que me chamam por não lhes fallar, nem lhes dar satisfações da minha vida. Humildes são as plantas, mais atrevidas as aves, mais atrevidas ainda as nuvens dos ares e as estrellas dos ceus. Quanto maior é o seu atrevimento, mais longe se levam. O homem que vive cá n’este mundo extremo de todos, sem querer deixar rasto de si, nem cousa alguma que o lembre, passada a sua hora, é como a planta, lançada á terra pela mão de Deus. Nasce, medra e morre; deitam-lhe a foice e fica por terra. Assim era eu. Não tinha para quem o fosse, não queria ser rico. Espera, dizia-me a voz; está muito longe a felicidade, repetia-me a visão, e eu ia esperando sem tentar os longes. Mas quando ama, não chegam para o homem alguns torrões apenas, como para o pé de trigo: vae longe buscar com que fazer seu ninho, percorre os ares como as aves: e, emquanto a esposa o espera cuidando dos filhinhos, trabalha elle para sustentar os outros. Assim poderia eu ser; mas não bastava. Para ti, Agueda, que vaes repartir comigo a tua vida, que te vaes enlaçar comigo, como a videira se enlaça no carvalho, que vaes ser minha mulher, sabes o que isto quer dizer, minha mulher?... não basta o bago de trigo, que sustenta o pardal, nem o bichinho que nutre a cotovia. Quero ir longe, mas tão longe como vão as nuvens e não como as aves; quero correr mundo, como correm as estrellas que hoje espalham aqui a sua claridade, depois allumiam outras terras: e mais tarde, ao voltar com dinheiro para ambos, com o descanço para os que hão de ser nossos, dizer-te: —Vês? É assim que um homem sabe amar. E Thomaz transfigurára-se ao dizer estas palavras; a sua belleza varonil assumira o que quer que era extraordinario, parecia inspirado. Chispavam-lhe centelhas dos olhos, aspirava com as ventas dilatadas os aromas da tarde, soltava os cabellos bastos á feição do vento. Erguera-se emquanto fallava, a sua figura parecia mais crescida. Cercava-o uma aureola de magestade, destacava-se do fundo escuro do tronco a que estivera encostado, recortava-se sobre o azul carregado do céo, como um d’aquelles sacerdotes das florestas gaulezas, quando colhido o agarico sagrado erguiam os olhos, pediam a inspiração aos numes e rasgavam o ar com o gesto alargando os braços sobre as multidões curvadas. Agueda desconhecia-o e pasmava. —Como és formoso assim, meu Thomaz, e como eu te avaliava tão mal, exclamou a pobre rapariga cedendo ao impulso da admiração. Thomaz caiu em si, e tornou-lhe tristemente: —Todos me têem julgado como eu não merecia. A solidão tem-me feito amadurecer muito, e se não fallo, penso. Dizem que o mocho é prudente e assisado, e entretanto nem trina como o rouxinol, nem canta como a toutinegra, nem se veste de côres brilhantes como o pintasilgo. Emquanto todos dormem vigia elle, emquanto folgam e brincam á luz do sol mergulha-se no escuro e recata-se no seu souto. As horas de solidão valem mezes de viver em companhia, e os dias de abandono ensinam mais do que os annos de carinhos e meiguices. Eu, Agueda, tenho vivido sempre desamparado, só e triste. Tenho pensado muito, assim eu tivesse palavras, como tenho idéas; mas vou a fallar, não sei, e fico-me... —Apesar d’isso dizes coisas que não comprehendo. —Que queres, os fructos quando veem ao chão, ou pedram-se e fazem-se ruins; ou amadurecem mais depressa. Não tinha queda para ruim, deitaram-me por terra, amadureci. Já foste á cova das rapozas? —Deus me livre! Apparecem por lá as almas dos defuntos. O João da Josefa do tio Domingos, foi lá ter atraz de uma ovelha e viu uma aventesma surdir-lhe de um d’aquelles buracos. Pois tu já lá foste, Thomaz!?... —Fui! Tudo quanto é fóra do commum tem agrados para mim. Procurei saber o que era. Entrei, e vi uma cousa que não esperava. Do tecto da cova desciam pinhas de pedras preciosas até ao chão e formavam columnas, como as do altar-mór da egreja; mas quanto bem mais formosas! Pareciam feitas de bocadinhos de espelho. A luz que entrava pela bocca da cova e a que eu levava do archote, saltavam de columna para columna, brincavam n’aquellas laminasinhas, faziam ziguezagues, voltas, revira-voltas, como se fossem um cardume de lusilumes. E eram luzes de todas as côres, azues, vermelhas, verdes, côr de rosa; como n’aquelle fogo de vista que deitaram os homens de Lisboa. Estonteava a vista olhar, andava a cabeça á roda. —Bem dizia eu, Thomaz, era obra de feitiço, para que foste lá?—E appareceu-te algum phantasma? —Não. Perguntei uma tarde ao sr. padre prior o que eram aquellas columnas, e como estavam alli em pilha tantas pedras preciosas, sem que tomassem conta d’ellas? —E elle o que te disse? —Que o que eu julgava serem pedras preciosas era a agua da chuva e nada mais. —Ora! —Era sim. Gotta a gotta ia filtrando pela rocha e pendurando-se da pedra, como o pingo da fonte no cazal das Cortiças, que se baloiça antes de caír custando-lhe tanto a despegar-se. Mal uma não caía ainda, vinha outra abraçar-se com ella, e prendel-a mais. As que iam ao chão seccavam devagarinho e deixavam a fazer altura as terras que traziam comsigo. Debaixo foram subindo, de cima foram descendo; e quando se uniram, estava a columna prompta. Vieram novas gottas, foram baixando pela columna: e parando aqui, detendo-se além, arrendaram-lhe o feitio, e recortaram-lhe as fórmas... —Pois isso póde ser! —Póde! E este milagre é obra da solidão, do socego, e da meditação bem escondida do mundo. A agua da chuva que cae nas ruas faz-se lama, a que cae nos campos secca-a o vento, ou encaminham-na os homens para as regueiras e levadas, a que cae com força faz cheia e arrasta tudo, a que cae de manso perde-se; mas a que livre do vento, e dos homens, gotteja escondida, e escorre devagar entregue só a si, forma columnas maravilhosas, e faz-se em pedras de valor. Aqui tens como eu tenho aprendido tambem. Fujo de tudo e de todos, escondo me, penso, medito, e aprendo. Ficaram ambos silenciosos por algum tempo. Agueda não comprehendia mas advinhava; Thomaz, esse que havia muito tempo não fallára tanto, parecia seguir callado o fio do discurso conversando comsigo. Foi a rapariga, que renovou o dialogo. —Pois sempre queres partir? —Quero. É tenção feita e não mudo. Espera-me tres mezes, como eu tenho esperado annos. Ceifaram os campos ha pouco; por ahi não ha senão restevas. Callaram-se os passarinhos, acabaram-se-lhes os amores, e somem-se para outros logares. Vou partir, Agueda, de dia seguirei o meu anjo, de noite a minha estrella; e, quando a relva vestir esses prados, quando as aves cantarem de novo, vêr-me-has regressar d’essas terras, e n’esta arvore onde temos passado tantas horas de felicidade, contar-te quanto passei por amôr de ti. Debalde procurou a rapariga despersuadil-o. O caracter de Thomaz, como o de todos os espiritos concentrados, era teimoso. Pensava muito em qualquer resolução, que devesse tomar; uma vez porém que a adoptasse, havia de seguil-a por força. Poucos dias depois abandonava a aldeia. Agueda, soluçando, acompanhava-o até duas leguas fóra do logar. Longo e triste fôra relatar a perigrinação do pobre rapaz. Pedia esmola para comer, quando tinha fome; deitava-se pelo caminho, quando se sentia cançado, ou abrigava-se em qualquer pousada, onde o deixavam dormir. Ia porém seguindo na mesma direcção e para onde lhe parecia acenar a figura, que se lhe representava em suas allucinações. Houve quem, ouvindo-lhe dizer que queria ir longe tentar fortuna, o alliciasse para o Brazil. Thomaz perguntou para que lado ficava o Brazil, deram-lhe uma direcção. Errada ou verdadeira esta direcção era a mesma que trouxera sempre. Acceitou. Os que já conhecem Thomaz pódem avaliar bem que desgraçado colono havia de ser e por quantos tormentos passaria. Entretanto nem doenças, nem fomes nem maus tratos, nem trabalhos superiores ás suas forças o desanimavam. Uma coisa só o trazia apaixonado. Não via n’aquelles céos a sua estrella. Nos horisontes affogueados não descortinava a sua visão. Passaram annos e Thomaz, apezar de tanto padecer, conservava ainda recatada na alma a santidade das suas aspirações. Ha temperas d’esta ordem, que como as perolas se conservam limpidas, e puras, no meio das correntes e das tempestades. Houve quem se condoesse da sua sorte e lhe proporcionasse passagem para Portugal. Acceitou-a reconhecido; perdêra todas as esperanças de ganhar fortuna, voltava quebrado, doente, incapaz de trabalhar, mas vinha de novo para terras, onde lhe apparecia o bom anjo, e a boa estrella, onde conhecia o cantar dos passaros e o fallar das plantas, e onde tornaria a vêr a sua Agueda. —E a rapariga, perguntei ao tio Joaquim, quando rematou a sua narração, ainda está á espera d’elle? —Olha quem! D’ahi a dois mezes fugia da terra em companhia de um soldado do destacamento, o Thomaz vem achar-lhe o logar. —E já sabia d’isso, hontem á noite, quando lhe contou a sua vida? —Ainda não, vinha a caminho, quando a chuva o não deixou proseguir e nos pediu agasalho. Hoje é que deve saber a verdade toda. —O tio Joaquim não lhe disse nada? —Não tive animo para lhe dar a noticia. Pobre homem, fugiu-lhe a noiva, morreu-lhe a mãe, está só! Fôra depois do jantar que o tio Joaquim me contára esta historia, a tarde estava muito amena, e o descair do dia ganhava os doces encantos da tristeza. O que ouvira harmonisava-se com o que estava vendo: e a melancholia começou a tomar conta de mim. Propuz ao tio Joaquim um passeio até ao logar para espairecer. Saimos. Á porta do boticario estava junta quasi toda a povoação; grande novidade ia pela botica. As velhas entravam, saiam, segredavam umas com as outras, levantavam os braços ao ar e voltavam para saber e contar novas coisas. Conseguimos entrar e vêr o que tanto attrahia as attenções. O pobre Thomaz jazia banhado em sangue. Fôra encontrado cahido no fundo de uma trincheira, que andavam abrindo para o caminho de ferro, e quebrára a cabeça e os braços de encontro ás pedras que estavam em baixo. Restava-lhe pouco tempo de vida. O tio Joaquim approximou-se do moribundo, elle reconheceu-o logo e sorriu-lhe tristemente. —O que foi isso, homem? perguntou-lhe o velho narrador. —Acertei finalmente com a felicidade, não tarda; em pouco vou ser muito rico. Pensaram que já estava tresvariado. O tio Joaquim, disse-lhe que socegasse. —Bem socegado estou, acabou-se-me para sempre a lida. Agueda, tinha-se cançado de esperar, nem todos têem paciencia como eu tive... Corri á minha arvore, já a não encontrei... tinham-na derrubado... Os campos estavam cortados pela estrada, as hervas calcadas pelo pisar dos trabalhadores do caminho, as aves tinham fugido espavoridas com os tiros das minas na pedreira... Aqui, como lá bem longe, estava só de todo... De repente, poude vêr, com os olhos arrasados de lagrimas o meu anjo no mesmo logar a olhar para mim como d’antes, a chamar-me como d’antes, mas mais triste do que nunca... Caminhei direito a elle, fitando-o sempre... Faltaram me os pés... Cahi... Mas sei que me hei de levantar em breve, e d’esta vez hei de approximar-me d’elle para não mais o deixar... Até que em fim... comprehendi-o... Dizia-me que estava longe... bem longe... E estava!... Conchegou-nos a morte: a felicidade... a riqueza... debalde as procurei na terra;... mas agora... sei que as vou encontrar... no ceu. Passada meia hora o Thomaz da tia Annica, o Thomaz dos passarinhos, como por alli lhe chamavam, era cadaver. XII A historia do narrador I Por mais de um mez procurára tambem saber a historia do tio Joaquim. Havia na tristeza, em que o velho descaia tantas vezes, quando parecia mais alegre, rasão sobeja para me aguçar a curiosidade. Tentára interrogal o; mas debalde sempre. Não era porque o tio Joaquim deixasse de me estimar devéras. Conhecêra-me de pequeno e tivera-me sempre por seu companheiro constante nos passeios melancholicos, em que, apoz o seu pensamento, caminhava horas sem dar palavra. Ia com elle, calado tambem. Respeitava a grande dôr que n’essas occasiões parecia opprimil-o; e não me atrevia a perturbal-o com perguntas indiscretas, ou observações futeis. Presentia, que um padecimento grande o envelhecêra bem cedo, e receava tanto mergulhar a vista nas profundezas d’aquella magua, como trepidava sempre ao approximar-me de um precipicio. Era o desconhecimento que me sobresaltava, o que quer que era extranho, que me impunha respeito. O tio Joaquim lembrava-me um d’esses livros antigos de bruxedos e encantamentos, que fechado poder-se-ia confundir aos olhos de um observador qualquer com um ripanço de semana santa; aberto porém espavoria a imaginação povoando a com os quadros temerosos de castellos encantados, florestas magicas, sortilegios infernaes, feiticeiros, trasgos, almas penadas e cemiterios. Levava-me o desejo a folheal-o; a duvida affastava-me de lhe tocar. Aventurára perguntas timidas em varias occasiões; mas o velho, sem que empregasse na resposta a natural rudeza, com que despedia os importunos triviaes, affastava-me brandamente do ponto a que eu desejava chegar. —Quando no jardim ou no prado colhe uma flôr não cuida das profundezas onde as raizes mergulham para a alimentar; quando tira da fonte uma pouca d’agua para abrandar a sede, não indaga por que extensões corre a veia que alimenta a fonte. Não cuide em devassar segredos, que de pouco lhe podem importar; mas que uma vez sabidos lhe hão de trazer desgosto. A amendoa de muitos fructos trava, emquanto elles são dôces, aproveite-se da polpa e não queira saber do caroço. E assim, mudando rapidamente de assumpto, evitava sempre que insistisse. Entretanto iamos muitas tardes para um logar da praia, que de preferencia escolhiamos por ser mais recatado e só. Entre ambos havia como que uma communhão de tristezas. Elle pelo passado, eu pelo futuro; elle por o que já experimentára e sentira; eu porque receava experimentar e sentir tambem. Emquanto o velho passava horas silencioso e triste a rever as paginas da sua vida, a rememorar dôres, alegrias, saudades, e amores: eu que ia conhecer o mundo, eu que deixava de ser creança e não começára ainda a ser homem, scismava no futuro para que caminhava, e devaneiava conjecturas sobre essa vida nova, que ia encetar. Agradava pois a ambos a solidão, e ambos procuravamos de preferencia os sitios, onde menos nos podiam inquietar os conhecidos. A praia da nossa predilecção estendia-se desde Cabo-Ruivo e o recolhimento do Moinho. Em frente espraiava-se o Tejo pelos juncaes, que, mesmo em preamar, erguiam os cimos arrouxados sobre as aguas; detraz a costa subia quasi a prumo para os olivaes do Casal das rolas. Uma ou outra pedra ennegrecida pelo tempo, pelo quebrar das ondas, pelos limos e pelas ostras que a revestiam destacava-se na arêa da praia, ou avultava por meio dos juncos. O rio, n’aquellas alturas quasi sempre só, parecia não terminar no lado opposto; porque a outra margem se confundia com o céo. De cima, como torre de vigia de castello antigo entrava pela agua dentro o pavilhão quadrado e de tecto esguio do antigo recolhimento. Debaixo o cabo a que pela vermelhidão do terreno tinham dado o nome de Ruivo, limitava o horisonte, e tirava a vista da parte do rio mais cheia de navios e de animação. Tudo alli era silencioso, tudo infundia sentimento, tudo convidava para a meditação. Torcendo-se por entre os alcantis da ribanceira, escondendo-se umas vezes por detraz de moitas de rosas carrasquinhas e de giestas, outras caminhando entre pequenas mattas de congoças, outras descobrindo-se de todo n’um terreno escalvado e nu, um caminho de pé posto conduzia dos olivaes á praia, e estabelecia communicação entre o mundo e aquelle retiro. Avistavamos pois a grande distancia, quando alli estavamos, qualquer, que do Casal descesse para a praia, e haveria por conseguinte facilidade de mudar de conversação, sem que nos perturbassem d’imprevisto. A meio do carreiro n’uma lapa gottejava da rocha a agua mais pura das visinhanças e demorava-se n’um berço de relva e musgo verde como esmeralda, macio como velludo, e que forrava a cova, que a agua havia feito. Junto á fonte algumas pedras pulidas pelo roçar continuo dos cantaros das raparigas dos sitios, que alli vinham buscar agua, offereciam um bom poiso para descançar. Era tambem alli que mais de habito nos sentavamos. O mar deante de nós, o ceu sobre nossas cabeças, as costas dadas ao mundo, e a imaginação a perder-se no espaço. Depois, quando descaia a tarde, aquelle silencio perturbado apenas pelo surdo marulhar das aguas, aquellas côres sombrias do mar e do ceu, aquelle espectaculo do infinito, que tanto nos confrange e opprime, e a indecisão, que nos baloiça no espirito, as duvidas que se apoderam de nós, sobre o que seremos, sobre o que nos tornará felizes, a lucta com essa terrivel e mysteriosa sphinge que se chama futuro, tudo isso me levava a um estado especial que muitos talvez tenham sentido, mas que poucos poderão definir, em que desejava sem saber o que, em que soffria e agradava-me o soffrimento, em que amava e debalde queria fixar o grande amor que sentia, em que lastimava sem que podesse explicar porque, não estar assim sempre, não passar d’ahi para outro mundo, outra vida, outro que quer que fosse, para mim desconhecido, mas que me parecia fatalmente destinado para me dar a verdadeira felicidade apoz a qual voava a minha imaginação apaixonada. Estes ataques de uma nostalgia particular traduzil-os-hia eu, se traducção podessem ter, como o chorar da alma infinita dentro da sua tão limitada prisão, pelos espaços e pelos mundos infinitos d’onde veio, e onde deve ir um dia. Sei, para em duas palavras me exprimir, que soffria muito, mas que era feliz soffrendo assim. O meu velho companheiro, esse, apenas ali chegava sentava-se n’uma das pedras, carregava o cachimbo, feria lume, accendia o tabaco e entrava a fumar; depois o pau com que começára a traçar arabescos no chão parava gradualmente, os braços caiam-lhe sobre os joelhos, o cachimbo apagava-se, e os olhos cerravam-se-lhe como se tivesse adormecido. Quando, passado tempo, parecia tornar a si, tinha os olhos vermelhos, o rosto abatido, o corpo quebrado. Levantava-se com muita difficuldade e mal se podia arrastar aos primeiros passos. Depois fazia como que um grande esforço sobre si, compunha a physionomia, chamava um sorriso bastante rebelde n’essas occasiões, e tornava a ser o tio Joaquim da casa da malta e do canto da lareira. Foi n’uma dessas tardes, e na praia de Cabo Ruivo, que consegui ouvir ao velho narrador a sua historia. Andára triste todo o dia, acabára de jantar, déra conta da obrigação e convidára-me para sair em sua companhia. Não soltára meia palavra pelo caminho e mal chegára perto da fonte atirára comsigo para uma d’aquellas pedras tão desalentado, que parecia não querer mecher-se mais d’ali. Ficara a scismar, como costumava; mas não seria passado ainda um quarto de hora, ao olhar para elle vi que lhe escorregavam as lagrimas pelas faces. —Chora, tio Joaquim?... —Não repare, atalhou elle rapidamente limpando as lagrimas, como envergonhado, eu tambem não reparava. —Anda sempre triste, e assim sem desabafar, bem pelo contrario fingindo-se alegre quasi sempre; ha de padecer muito! —Muito! Mas não tem duvida. —Diz-se que as maguas contadas são alliviadas; porque me não dá parte das suas tristezas? —Para quê? Com o andar do tempo não lhe faltarão proprias; deixe as alheias. —Cuida que sou alguma creança, tio Joaquim? —Bem sei que não é, mas... —Seria a maior prova de amisade que me podesse dar. Ha tanto tempo que desejo saber a sua vida! —Como deseja ouvir as historias aos serões, não é assim? —Não. Essas servem para passar o tempo, esta outra para o conhecer bem, e para o poder consolar. —Pois seja para me conhecer, que para me consolar não, porque não póde. Hoje tambem, parece-me que rebentava, se não repetisse alto o que tem sido a minha vida. Quando conversamos comnosco, a voz faz ecco bem fundo na cabeça e no coração, repercute mais e soffre dobrado. Se não tivesse vindo comsigo parece-me que entrava a fallar só, para ahi a essas pedras e a essas aguas. Oiça-me pois, já que tanto deseja saber a minha vida. E o tio Joaquim deu começo á sua historia. II Meus paes viviam n’uma das provincias do norte, e se não eram ricos tinham com que passar menos mal. Meu irmão Filippe e eu eramos os dois unicos filhos, e o que havia chegava bem para nós. Filippe, porque era o mais velho, devia ser lavrador como meu pae; eu, por ser o segundo, estava destinado para frade. Admira-se, porque já lá vão os frades; mas se vivesse no tempo dos conventos conheceria então, que de ordinario se destinava para ordens sacras o filho segundo em quasi todas as familias. Accrescia mais que o mestre dos noviços do convento proximo, sr. João da Soledade, era muito de nossa casa, e depois de ter convencido minha mãe de que me fazia feliz mettendo-me a frade, lhe promettera tomar-me sob sua protecção. Pela minha parte, posto que ninguem me consultasse o querer, parecia me tambem que viveria contente n’aquelle socego do convento. Via os frades gordos, satisfeitos, córados e risonhos sempre. Traziam-me presentes e davam-me dôces, faziam-me festas, e contavam-me historias, não me queria pois com outra gente. Em vendo habito approximava-me logo, e minha boa mãe, que a mais não alcançava, lia n’esta inclinação pueril uma verdadeira e pronunciada vocação. Assim fui creando-me n’estas idéas, até que chegou a idade de começar a aprender. Fr. João convenceu minha mãe, de que para o meu estudo muito melhor seria viver no convento do que em casa, pois que ao passo que ia seguindo as disciplinas com maior regularidade, ia costumando-me tambem á regra conventual. Frei João era para meus paes apostolo e propheta ao mesmo tempo. O que dizia seguia-se com reflexão. Despedi-me, chorei muito e partimos. Não tinha tamanho desafogo em casa, que extranhasse muito a vida nova que encetava. A companhia dos outros noviços, aquelles costumes extranhos para mim, aquella novidade de estudos, e mesmo o bom modo, com que Fr. João me tratou sempre, conseguiram que dentro em pouco me afizesse de todo ao recolhimento claustral. Não tinha por fóra coisa alguma, que me attraisse, e a affeição de meus paes e irmão, unicas de que a porta do convento me separava, não eram de ordem tal, que me fizesse lamentar muito o haver-me apartado do mundo. N’uma das campanhas em que entrei mais tarde ouvi contar o seguinte caso a um veterano, que tinha ido na legião lusitana com os francezes fazer a guerra da Russia. Nas noites frias e claras do norte em que a luz de umas auroras particulares ás terras d’aquelle paiz resplandece nos gelos, começava a cair neve, e os pobres soldados a cairem com ella inteiriçados e hirtos. Alguns cobravam forças, erguiam-se e continuavam. Outros caiam, não tinham forças para se mecher e ficavam por uma vez. Ao tal veterano, se lhe não accodem ainda a tempo ia succedendo este mesmo facto. Dizia elle, que percebia bem que ia morrer, que cada vez se enregellava mais, e que dentro em pouco, tinha d’isso a certeza, estaria de todo gellado. Sentia porém um que quer que era agradavel n’aquelle approximar da morte, queria evital-a mas não tinha forças, e ia sentindo sumir-se-lhe a vida com aquelle prazer com que nos deixamos esvaecer após a embriaguez. A solidão, tive tempo para o observar, parece-se com os gelos do norte. Entristece-nos, mas encanta-nos com a sua tristeza, sentimos que lhe devemos fugir, e conservamo-nos entretanto, parece-nos que nos esmorece a alma e o sentimento, mas é tão dôce esse esmorecer, como a morte após um desmaio, como o adormecer da creança nos braços maternos. Antes de saber o que era a vida, começava a agradar-me a morte, e sem transicção alguma, arrefeciam-me os ardores dos dezoito annos, com os frios d’aquellas sepulturas de vivos a que chamavam cellas, claustros e conventos. Estudava, aprendia, e meditava. Meditava sem saber em quê, porquanto o mundo, que eu via pelas grades do meu quarto, e o que eu phantasiava pela leitura dos livros da bibliotheca, differençava-se tanto do mundo real, que mais tarde vim a conhecer, como aquelles sonhos de madrugada, que nos accodem quando não dormimos de todo e quando não estamos acordados ainda, se distinguem da vida commum e dos acasos de todos os dias. Passava horas e horas a formar castellos no ar, vagos, indefinidos, indeterminaveis, e evocando phantasmas de mundos que eu não conhecia, mas que adivinhava. Dentro em pouco de tal fórma me costumei á reflexão e ao apartamento, que fugia de todos nas horas que tinha livres, para ir sentar-me sósinho a sonhar e a scismar. Apontavam-me no convento como modelo de bom porte, e diziam os frades aos meus companheiros que o amor do estudo e da reflexão me traziam assim embevecido. Não lhe sei dizer, o que me preoccupava, mas não era de certo o amor do estudo, nem o desenvolver da vocação monastica, como a vaidade dos frades lhes fazia suppôr. Tão entranhado estava em mim o amor da solidão, que nas raras vezes, em que ia visitar os meus, pouco me demorava em casa. Debalde a sollicitude materna me procurava deter; em vão, meu pae mesmo, posto que pouco dado a ternuras, me dizia que era conveniente de quando em quando descançar algum tempo; trabalho perdido era o de meu irmão em convidar-me para os divertimentos dos outros rapazes; mal saia do meu convento, desejava logo recolher, e estava fóra da minha cella, como o peixe fóra d’agua. Porque dir-lhe-hei de passagem, a estima de Fr. João fizera com que eu residisse n’um quarto junto do seu, e não no dormitorio commum com os outros educandos e noviços. Oxalá tivesse eu ficado por uma vez n’aquella sepultura! Se não fossem as visitas a minha casa, talvez não tivesse experimentado na minha vida o que era amor; mas tambem não teria comprado á custa de tormentos indisiveis essas raras e amarguradas horas de sentir apaixonado. N’estas alturas da sua historia o tio Joaquim limpou o suor que lhe corria a fio da testa, curvou-se para a lapasinha proxima, tomou uma pouca d’agua nas mãos, bebeu soffregamente; renovou a respiração umas poucas de vezes com força; carregou outra vez o cachimbo, accendeu-o e passado algum tempo proseguiu na sua narração. III Estudos que mais me preocupavam tinham feito com que, havia muito, não fosse visitar os meus. Devendo em breve tomar ordens de prima tonsura, este successo, que fatalmente determinava a minha vida trouxera-me entretido, não poucos mezes. Finalmente déra o primeiro passo solemne, e por conselho de Fr. João, parti a congratular-me com meus paes, da conquista que alcançára: e a viver por algum tempo a vida de familia antes que de todo me apartasse do mundo. Parti; e com a indifferença que de mim se apoderára, desde que me haviam destinado para o convento, passei os humbraes d’aquellas portas que então já eram minhas, e que não se me poderiam cerrar mais de todo, embora quizessem. Grandes alegrias havia em minha casa. A minha chegada encareceu-as mais ainda. Meu irmão estava breve para casar e a sua escolha fôra tanto do agrado de meus paes, que os bons velhos não cabendo em si de contentes não achavam mimos que lhe parecessem bastantes para com elles cercar a esposa futura de seu filho. Margarida era o que em linguagem commum se chama um bom casamento. Filha unica devia herdar de seus paes uma fortuna consideravel. Os seus haveres juntos aos bens de minha casa formariam a primeira propriedade da provincia. Sorria a opulencia a meus paes e embevecia-os a contemplação de um futuro placido e desassombrado de cuidados. Vi Margarida, e ao vêl-a, ao trocar com ella as primeiras palavras conheci, que tinha no peito coração, e que me corria o sangue dos vinte annos nas veias tremulas e agitadas. Margarida aproximava-se tambem dos vinte annos, mas toda a candura infantil fulgurava n’aquelle rosto, que não desabrochára ainda. Não tornei, por vida minha, a encontrar olhos que mais dissessem ao coração, quando mesmo quasi sem querer fallar se volviam serenos entre um denso veu de pestanas compridas e encurvadas. Toda a sua formosura estava nos olhos, mas esses não cediam em primores a quantos hei visto em mulher ou em pinturas. Fazia vontade de chorar olhar para elles, sentia se devoção fitando-os muito. Porque não ha como a mulher para nos fallar do ceu, de Deus, das coisas sagradas. Se creaturas assim corressem mundo a resgatar almas, se para os mais apartados da religião dirigissem um olhar d’aquelles dizendo magua, enthusiasmo e amor, e depois d’ahi os volvessem ao ceu como rasgar caminho para a alma renitente, não haveria atheu que resistisse, nem coração que se não dobrasse. Vendo Margarida lembrava-me do ceu, lembrando-me do ceu, accudia-me que professára votos que me condemnavam a um perpetuo celibato. Um circulo de espinhos me apertava a imaginação: e padecia, como nem os condemnados no inferno poderiam padecer assim. Com a candura de creança Margarida reconheceu-me desde logo como seu irmão. Não houve segredo que em mim não depositasse, esperança que me não dissesse, planos de futuro sobre que me não ouvisse, queixumes de meu irmão, que comigo não lastimasse. Filippe casava porque tinha de casar, estimava Margarida como podia estimar uma irmã ou uma parenta, e nada mais. Margarida ao contrario não via, não suppunha, que podesse haver homem, que valesse o seu noivo. Amava-o com a cegueira, com o arrebatamento, com a loucura de um primeiro amor. Não imagina como padeci com essas confissões arrebatadas, que me denunciavam um mundo de felicidades, que nem sequer entrevêra. Não imagina que dôr tão funda me ia direita ao coração, quando ella animada por aquelle amor que a aquecia e transformava, olhando-me, com as suas mãos nas minhas, com o seu halito a confundir-se com o meu, transfundia-me a electricidade que irradiava, e descrevia-me o amor que lhe chammejava na alma. Deixava-a como louco e ia, quantas vezes sósinho, de noite, correr por aquelles descampados, andar muito sem saber por onde, cançar o corpo para descançar o espirito, e para depois, cedendo á fadiga, poder cerrar os olhos por algumas horas e tentar um somno mais attribulado mesmo do que fôra a propria vigilia. Envelheci muito n’aquelles dias que duraram até ao casamento de meu irmão. Via approximar-se a epocha e não acreditava, não sei que louca esperança, não sei que desvario me dizia que tal casamento se não chegava a realisar. Parecia-me um sacrilegio, que tanto amor fosse empregado em tanta indifferença, parecia-me impossivel que Deus consentisse em tal. Sacrilegio era o meu amor, sacrilegio duas vezes, por que era de padre e porque era por uma irmã. Pelo modo como o tio Joaquim narrava a sua historia conhecia eu quanto elle teria padecido, e bem conforme ao que disséra antes de começar, presentia que outros tormentos deveria haver maiores do que as minhas duvidas e incertezas sobre o futuro, do que os meus sonhos e aspirações. Chegou entretanto o dia, proseguiu o velho, e não sem que a estrada dolorosa tivesse sido para mim bem cheia de agonias e de provações. Margarida não suspeitou nunca quanto eu a amava, nem sob o gelo apparente, em que a tanto custo me sepultava, poude perceber os ardentes lumes de um amor desvairado. Occasiões houve em que rasgava o peito com as unhas até fazer sangue, em que tremia em convulsões para resistir, em que me exforçava com sobrehumano impeto para não desatar em suluços; outras em que tive de fugir para evitar a sua presença, porque já não podia luctar com o impulso que me arrojava para os seus pés a dizer-lhe quanto a amava. E tive de assistir impassivel a todos aquelles pormenores, que me fallavam da felicidade futura de ambos, tive de escutar as singellas narrações de Margarida sobre todas essas minuciosidades, que me retumbavam na cabeça com estridor horrivel, porque em todas ellas descortinava, ou pretextos para uma caricia, ou commodos para um transporte, ou logar finalmente para aquelles dôces e para mim desconhecidos mysterios do thalamo nupcial. Os primeiros clarões da alvorada no dia do casamento, encontraram-me accordado ainda. Na vespera mesmo não acreditava que podesse chegar: via raiar a manhã e cuidava estar sonhando. Pois Margarida havia de casar! Minha familia, sem comprehender nem de leve, porque não recata mais cuidadosamente a abelha os seus lavores do que eu escondera de todos e de tudo o meu insensato amor, minha familia, digo, só experimentava uma pena: não ser eu quem casasse meus irmãos, porque a minha benção, cuidavam os credulos paes, havia de forçosamente attrahir felicidades sobre os esposos. Na verdade seria o ultimo sacrificio, depois do qual poderia dizer a Christo: tambem sei o que é o Golgotha! Pareceu-me tudo um pesadello, persuadi-me que acordaria breve de tão cruel illusão. Vi, ouvi, fallei, dirigiram-me perguntas, tornei respostas, e não soube nem sei ainda o que vi, o que ouvi, o que me perguntaram e como respondi. Dizem que pessoas ha que dormindo andam e fallam, assim devia ser o estado em que estive todo o dia. Mal poude fugir á noite, corri, corri, e quando me vi bem longe, desatei a chorar como me não lembrava em minha vida de ter chorado assim. Parecia que me estallava a alma n’aquelles soluços, mas ao correr das lagrimas um grande peso saia de sobre mim. Não sei como, mas chorando sempre achei-me de repente deante das janellas do quarto de Filippe. Estavam illuminadas, fitei-as com o pavor com que daria de rosto com a entrada do inferno; vi passar dois vultos por dentro das vidraças, reconheci-os e com a razão de todo perdida atirei comigo a terra, agarrei com ambas as mãos a cabeça, e comecei a bater com a testa, como desesperado de encontro ao chão. Com a força da dôr perdi os sentidos e para alli fiquei banhado em sangue, até que os raios do sol, já bem alto, me fizeram tornar em mim. Olhei machinalmente para a janella. Estava cerrada ainda; senti nova vertigem mas d’essa vez, sem me lembrar que ia banhado em sangue deitei a correr, o mais rapido que podia, em direcção do meu convento. Disse que uma quéda no caminho me fizera o sangue que trazia, e facilmente me acreditaram. A verdade, se o dissesse, é que fôra para duvidar. Encerrei-me na minha cella, pretextei uma doença para não sair e pedi ao meu bom mestre, que me ouvisse de confissão. Contei-lhe a minha historia, tal como se passára n’esses dias e pedi-lhe que me accudisse, pois que não sabia de mim. Ouviu-me o santo velho com lagrimas nos olhos, depois: —«Deus me perdôe se errei, disse-me, e mais ainda se fiz a tua infelicidade, Joaquim, chamando-te para o serviço do Senhor. Mas era impossivel que assim não fosse. Ha homens condemnados fatalmente pela desgraça, e tu és um d’elles. Lê-se no rosto esse infeliz condão, adivinhei-t’o eu, que tambem sei o que é padecer. Para dôres como a tua, para outras bem maiores ainda, se fizeram as solidões dos claustros e o gelo d’estes vastos carneiros. Sepulta para ahi a tua alma, emquanto não te sepultam o corpo, sob essas lages que hoje calcas, e morre já que foste condemnado a não viver. Não julgues cruel esta linguagem, é a que te póde fallar um amigo, quasi um pae.—O que sômos nós outros, pobres frades, n’este mundo? Fantasmas erradios que arrastamos a mortalha em vida, arrebentos solitarios, que medrâmos entre pedras. Para nós não ha familia, não ha esposa, não ha filhos, tudo que é morre comnosco, nada deixamos n’este mundo, que se lembre de que vivemos. Mais um numero n’uma pedra, um nome no livro do registro, alguns ossos mais n’uma cova. Torna impenetravel o teu tumulo, calafata com o maior cuidado qualquer orificio por mais pequeno que seja, que dê para o exterior, e já que nada podemos ter com o mundo aparta-te d’elle de todo. Já que não pódes ser feliz esquece, já que não pódes gosar, não sintas.» Segui á risca o seu conselho. Graças á sua protecção deixaram me na minha cella, mesmo porque, segundo dizia, assim me preparava pelo estudo e pela meditação para ordens maiores. Passou um anno. Trabalhei, estudei muito e como disse Fr. João da Soledade, se não fui feliz, não senti; não me lembrei e não padeci. IV O reinado de D. Miguel approximava-se da sua terminação, e a tempestade, que se formára n’uma pequena ilha no meio do oceano, rebentára já sobre todo o paiz. Armava-se a nação em peso; guerrilhas de um e outro partido percorriam as povoações e juntavam aos horrores da guerra civil o assassinato, o roubo, o incendio, o forçamento e o sacrilegio. Bem esmorecido era o ecco, que na minha cella repercutia; mas ainda assim por elle avaliava das borrascas, que se desencadeavam fóra. Por quanto ainda que procurasse apartar-me das coisas d’este mundo, por tal fórma andavam todos preoccupados com os acontecimentos, que se iam succedendo uns após outros com rapidez incrivel, que era impossivel deixar de perceber, que havia graves casos, a attribularem a humanidade. Fallaram-me de combates, de mortes, de incendios, de devastações; mas tal eu estava, que me era tudo indifferente. Antes, porém, occasiões havia em que, confesso-lh’o, desejava que um terremoto subvertesse o mundo para que na geral destruição encontrasse vingança correspondente ao que me haviam feito padecer. Acordei das minhas meditações uma noite, ao rebate dos sinos da povoação proxima e ao dobrar sinistro e precipitado da campa do nosso convento. Ruidos desusados eccoavam por aquellas abobadas, passos de quem fugia, vozes de quem pedia soccorro, supplicas, choros, imprecações tudo se misturava e confundia. Estava para me levantar do estudo e para saber a causa de semelhante alvoroto; quando a figura magestosa de Fr. João da Soledade me appareceu á porta da cella aberta de par em par. —Ergue-te, Joaquim, disse-me, toma as tuas sandalias e o teu bordão de viajante e caminha! Aquella voz fóra d’horas, aquellas palavras solemnes produziram-me effeito não inferior ao que deverá produzir a trombeta final no Valle de Josaphat. —Que quer de mim, meu pae? —Acabaram-se os dias de paz, chegaram as horas das provações e da lucta. Os servos do Senhor são perseguidos de terra em terra como animaes ferozes em montaria. Os impios não respeitam nem as abobadas sagradas, nem os vasos da eucharistia. Mesmo com a hostia sacrosanta na mão será o padre perseguido se assim o encontrarem! A espada de Malco substitue a palavra de amor. Volta a egreja aos tempos da perseguição e do martyrio; segue-nos, Joaquim, as aguas do diluvio avançam cada vez mais. Fr. João estava profundamente impressionado. A paixão politica ateava-lhe o zelo religioso, o homem do seculo trazia para junto dos altares as suas affeições mundanas, e das crenças fazia evangelhos. Pela minha parte, quasi que o não comprehendia. A linguagem emphatica, que estava empregando, destoava muito da singelleza em que educára o meu espirito reflexivo e concentrado. Fr. João com o olhar chammejante, o gesto altivo, o rosto illuminado por um enthusiasmo mais guerreiro do que apostolico, lembrava-me um d’aquelles monges prégadores de eras affastadas, que a minha imaginação tivesse feito surgir dos livros abertos deante de mim, e que de espada na mão direita, e crucifixo na esquerda, queriam abrir o caminho da redempção com o ferro destruidor, atravez das hostes dos infieis. —Mas, meu pae, que aconteceu? —Aconteceu, que os exercitos invasores se approximam talando campos e povoações; aconteceu, que na sua marcha amaldiçoada não ha propriedade que resista, cabellos brancos que se respeitem, honra de mulher que se recate; aconteceu que aos que cedem, espoliam; aos que não cedem, assassinam; aconteceu, que fallam em levantar mão sacrilega contra as muralhas defesas a profanos d’este venerando templo. Os phariseus em motim pedem o sangue dos justos. Deixemos a habitação de paz, d’onde nos expulsa a malevolencia dos impios, e vamos, como os apostolos, de terra em terra, de monte em monte, de caverna em caverna, onde suas vozes não cheguem, onde seu braço não alcance, levantar sobre a pedra tosca e rude a cruz do sacrificio, a hostia da redempção. Vem comnosco filho, vem percorrer o teu Getsemani. Entretanto o sino grande continuava a dobrar com som soturno, os gritos da povoação disperta em sobresalto, os passos precipitados dos frades, que desamparavam, gemendo, as cellas em que haviam vivido por tanto tempo, e onde esperavam descançar para sempre, o som ameaçador e irregular de um tiroteio ao longe, davam áquella scena um caracter que impressionava profundamente. Pela minha parte, parecia-me que um novo pesadello me vinha cortar a somnolencia em que demorava havia tanto; resistia ao movimento e prostrado de animo e de corpo, preferia que me matassem n’aquelles logares a ir tentar nova sorte, n’esse mundo a que tinha tão grande horror. Fr. João, que nos momentos solemnes parecia transformar-se, approximou-se de mim, tomou-me por um braço, fez levantar-me contra minha vontade, e bradou-me com voz terrivel: —Serás tão ingrato, que desampares teus irmãos no momento do perigo? Aqueceria eu por ventura a serpente no meu seio?—Seria a prova mais cruel, porque te quero como filho; mas bem merecido castigo, por ter deposto a minha ternura n’essa vil argila. Fica-te para ahi, e fique a minha maldição comtigo. E com tanta força me abalou, que me ia lançando por terra. Firmei-me porém, e respondi-lhe: —Não, meu pae, não sou ingrato. Seguil-o-hei como a sombra segue o corpo, como a alma segue o pensamento. Era o aspecto do mundo que me espavoria; voltára tão mal ferido do combate, que não seria para extranhar que vacillasse agora antes de vestir de novo as armas. Sabe meu pae, que me não arreceio nem da morte nem das provações; mas sabe tambem quanto me custa ir fitar de novo essa gente, que tão grandes males me causou. Eis porque hesitava. Aqui me tem prompto para tudo, e creia que me não apartarei do seu lado. O velho estendeu-me os braços, e com as lagrimas nos olhos: —Sempre o acreditei assim, meu filho: abracemo-nos, que talvez seja esta a ultima vez. Agora a caminho! Vamos reunir-nos a nossos irmãos e infundir-lhes a coragem, que nos fallece. Irmão, filho; meu filho, animo. Como um rebanho de ovelhas, que ao presentir o lobo se reunem em mó, e se apertam tanto, como se umas quizessem entrar nas outras; assim os frades se apinhavam junto ás portas do convento, espavoridos, tremulos, espalhando vistas atterradas para todos os lados, e escutando os pavorosos sons d’alarme, que estrugiam os ares. Fr. João da Soledade assumira na communidade a preponderancia, que a intelligencia forte e arrojada exerce sempre n’uma corporação naturalmente timida e indecisa. A sua presença serenou por um pouco os animos. Procurando dar á voz uma entoação firme, cuidou o velho em confortar os seus companheiros n’aquelle extremo lance, com esperanças de melhor futuro; em que elle acreditava menos do que ninguem. As ultimas palavras porém, foram cobertas pelos clamores de victoria, pelos gritos de angustia e pelos tiros de espingarda, cujos sons misturados e confundidos pareciam precipitarem-se sobre nós em turbilhões e redemoinhos como o vento da tempestade. Os religiosos estremeceram, e pensaram em fugir cada um por seu lado, a voz de Fr. João mais fortalecida e mais segura, tal era o poder da vontade n’aquella alma de ferro, alentou-os por momentos; entretanto os clarões do incendio tingiam de vermelho o céo e o rasto do fogo annunciava a approximação dos guerrilhas. Em pouco avistaram-se no cimo de um monte proximo os inimigos, deante dos quaes fugiam em debandada alguns miliciannos da terra, que por momentos tinham pensado em bater-se. Um grito unisono partiu da bocca das creanças e das mulheres, ao verem approximar-se aquelles homens sem piedade, avidos de sangue e de exterminio; os frades transidos de medo entoaram, erguendo os braços aos céos em signal de entranhada angustia, o psalmo dos agonisantes. As primeiras palavras denunciaram aos guerrilheiros a nossa presença; ouvimol-os distinctamente clamar:—a elles, aos mandriões dos frades,—e apontaram as espingardas. Ao vêl-os fazer pontaria Fr. João exclamou rapido: —Por terra, prostemos-nos, irmãos, senão estamos perdidos! Os frades obedeceram immediatamente; o susto mesmo deitava-os no chão; os tiros partiram; mas as balas silvaram por cima das nossas cabeças, e uma só feriu um dos religiosos, que tinha ficado mais distante. Passada a descarga ergueram-se todos, e como bando de pombas a que atirou o caçador, deitaram a fugir em diversas direcções, caindo, erguendo-se, de rastos, gritando, gemendo, mas correndo quanto podiam. Junto ás portas do convento desamparado, só ficavamos, depois da primeira descarga dos guerrilheiros, Fr. João da Soledade e eu. V Entrados apenas na povoação, começaram os guerrilheiros a saquear e a devastar tudo. Do logar, em que estavamos, podia-se conhecer de seus movimentos pelo vaguear dos archotes, pelo soltar de gritos afflictivos, e pelas columnas de fumo, que se ennovellavam aqui e além, sobre os telhados das habitações a que lançavam fogo, quando a preza os não satisfazia. A lembrança de Margarida, que não me tinha desamparado nunca, confesso-lh’o, nem mesmo quando mais fervorosas supplicas levantava ao céo, accudiu-me ao pensamento. —Meu pae, exclamei, fujamos, antes que caiam sobre o convento e nos surprehendam aqui; sigâmos pela estrada, que vae por fóra da povoação, e vejamos se podemos, esta noite ainda, chegar a nossa casa, avisaremos depois sobre o que temos que fazer. —Vamos, filho, e o Senhor se compadeça de nós. Não era o amor á vida que me apartava d’aquelles logares. Por minha vontade ficaria sepultado sob as ruinas do convento e fizera da minha cella um sepulchro. Mas a essas horas quem sabe o que seria de Margarida! Tremia só de o pensar, e o quadro que tinha ante os olhos mais me apavorava ainda; porque d’ahi concluia dos horrores, que ella poderia ter presenciado, se é que d’elles não tivesse sido victima. Não imagina nem por sombras o que seja uma guerra civil. Por muito que lhe contem, tudo fica muito abaixo da realidade. Aquella porém era guerra de exterminio. Desencadeavam-se odios, que estavam em incubação, havia dezenas de annos. Aggrediam-se visinhos, parentes, amigos e irmãos, e aggrediam-se tanto mais cruelmente, quanto melhor sabiam, onde haviam de ferir. Não poupavam ninguem, não havia recanto que valesse, não havia esconderijo que salvasse, não havia nem idade, nem sexo, que pozessem a coberto do insulto, da affronta, da violencia, tanto mais crueis quanto partiam dos que dois dias antes comiam á mesma mesa, e bebiam no mesmo copo. Ao romper da manhã estavamos deante da casa de meu pae. Tinham-me preparado para terriveis surprezas as scenas, que presenceára pelo caminho; o que vi, porém, sobrelevou muito ao que eu esperava. Tudo em terra, tudo saqueado, tudo roubado, e os cadaveres de meu pobre pae e de minha velha mãe a meio da casa, crivados de feridas... As lagrimas suffocaram o velho narrador, que teve de descançar por momentos antes de poder proseguir. —Descance, tio Joaquim, disse-lhe já quasi arrependido da minha indiscreta curiosidade, não continue, custa-lhe tanto... Outra vez me contará o resto. —Não, para quê? Tem de ser. Não é o contar que custa, é lembrar; e raras vezes me esqueço. Isto já passa, um momento de descanço e continúo. Tinham entrado em casa, e dado rigorosa busca para encontrarem os thesouros; que, segundo era fama na terra, havia em casa. Desesperados por não acharem o que esperavam, voltaram-se contra os dois velhos, que por mais que quizessem não os podiam satisfazer; por quanto apenas havia começado a guerra tinham escondido n’outra parte o seu dinheiro. Não lhe acreditaram nos juramentos, e mataram-nos barbaramente para se vingarem das suas negativas. —E Margarida? —Havia dias que partira para uma fazenda d’ali distante em companhia de meu irmão, salvára-se da morte, e da deshonra. —Pois quê?... —A tudo se atreviam aquelles homens implacaveis. Não havia barreira que se lhe puzesse deante, nem consideração, que os demovesse, pareciam furiosos. Pela convivencia soube o que eram esses desalmados, a quem o amor da patria servia de pretexto, e o amor da rapina estimulava unicamente. —Pois o tio Joaquim?... —Fui guerrilheiro tambem. A vista dos cadaveres de meus paes operou em mim uma revolução pavorosa. Tive sêde de sangue, de destruição, de vingança. Enterrei os dois velhos sem derramar uma só lagrima. A febre do exterminio requeimava-me por dentro, cravei uma cruz sobre a cova onde ficaram, unidos como o haviam sido sempre, e jurei que não descançaria emquanto tivesse forças para uma espingarda. Fr. João, que era perseguido tambem como lobo, porque todos o conheciam, juntou-se comigo; reunimos os mais enfurecidos do logar, aggravámos as feridas dos que mais haviam padecido, e levantámos uma guerrilha das mais afamadas n’aquelles tempos, e bem conhecida pelo nome de—guerrilha do frade.— Luctámos, luctámos com encarniçamento sem egual, e parecia que as forças se nos augmentavam com a lucta. Andei n’aquella vida errante perto de um mez, sem dormir uma noite somno que aproveitasse, sem ter duas horas de descanço, sem ter um momento sequer para pensar no passado, ou no futuro. Seguiam-se os combates, as embuscadas, as fugas, os ataques, sem descontinuarem, sem interrupção alguma. Era preciso homens de ferro para aquella vida, e entretanto, de tal fórma o furor nos trazia incendidos, que ao cabo do mez parecia que mal haviamos começado. Um dia ao amanhecer, um dos nossos, que andava por fóra veiu avisar-nos de que outra guerrilha se approximava, da qual se contavam proezas inauditas. Esperámol-a e saimos-lhe a caminho, desejosos de nos medir com esses tão celebrados inimigos. Durou quatro horas o fogo, batemo-nos como desesperados de parte a parte, até que fugiram em debandada, deixando o campo juncado de cadaveres. Dos nossos a perda fôra consideravel tambem, e Fr. João agonisava com uma bala nos pulmões. Saia-lhe da bocca sangue e espuma, soluçava que fazia horror ouvil-o, e expirou-me nos braços, procurando debalde articular algumas palavras. Corremos a revistar os mortos que os contrarios haviam deixado insepultos. Entre os cadaveres reconheci meu irmão!... VI Estava castigado do que havia feito como guerrilheiro; a minha campanha estava concluida. Tinha corrido ás armas para vingar a morte de meus paes, e arrojava a espingarda homicida diante do cadaver de meu irmão. Triste periodo da minha vida, entre duas sepulturas; e sepulturas dos meus mais proximos parentes! A guerra estava a acabar. Tinha-se assignado a convenção de Evora-Monte, por toda a parte os vencidos depunham as armas, e procuravam salvar-se das represalias pela fuga, ou pelo homisio. Caminhei sem saber como, nem por onde, para fugir ao ensanguentado espectro de meu irmão, que parecia perseguir-me, trazendo apoz si as victimas de quantos haviam perecido aos nossos tiros; os meus companheiros tresmalharam-se em diversas direcções. Separámo-nos, como nos haviamos reunido, sem pena nem saudades. Apesar de termos vivido tanto tempo juntos, quasi que nem nos conheciamos. Á noite entrei na povoação. Bati a uma casa, que, semelhante a sentinella perdida, estava mais affastada das outras. Abriram-me a porta, soltaram um grito ao vêr-me: eu ia dando no chão. Reconheci Margarida. —E Filippe? Pareceu-me que assim devera ser a voz do Senhor, quando bradou ao primeiro fratricida: —Cain, que fizeste de teu irmão Abel? Não tive forças para negar, exclamei-lhe em resposta: —Morto! E desatei a soluçar, escondendo o rosto entre as mãos. Á minha vista parecia ter adivinhado tudo com essa lucidez, que dá o sentimento. Eu não podéra resistir á voz da consciencia, que parecia accusar-me pela bocca de Margarida. A desgraçada viuva caiu fulminada. Quando tornou a si tinha enlouquecido. Aquelle viver de sustos e de inquietações constantes de tal fórma lhe haviam excitado o espirito, que um golpe tão profundo assim rapido, quasi inesperado, achou-a sem forças para o aguentar. Ao menos deixava de padecer. Durou alguns mezes ainda. E tudo quanto até então eu tinha experimentado, poderia dizer se brinco de creanças comparado aos tormentos que aturei durante esses mezes. Não soube nunca onde meus paes tinham escondido os seus bens. Estavamos pobres, e Margarida, que se definhava a olhos vistos, reclamava cuidados e despezas que me obrigaram a vender quanto possuia, e a trabalhar de noite e de dia para acudir á pobre enferma. Amára Margarida com toda a vehemencia do primeiro e ultimo amor. A paixão mais energica do homem, a que o arroja ás maiores emprezas, ou o precipita até ás acções mais vis, tinha rebentado em mim com toda a força ao vêr aquella santa e boa rapariga. Aprendera com ella o que era amor, e soffrera tanto mais, quanto via que era por outro que ella experimentava sentimento egual ao meu. Agora, porém, tinha-a a meu lado sempre; mas como morta ou peor ainda, porque horrorisavam e arrefeciam mais aquelles transportes de loucura, do que os gelos e o pavor da sepultura. Ouvi-a de noite e de dia chamar por um nome que não era o meu, e cada vez que lh’o ouvia, parecia que com elle, d’aquella bocca pela qual para que desabrochasse n’algumas palavras de amor, eu déra a vida, saía uma accusação, um anathema contra mim. O nome do meu rival, de quem me não podia vingar porque estava morto, esse nome que ouvia a todos os momentos, era o de meu irmão, morto pelos meus, talvez por mim; e eu vivia para que Margarida me recordasse a todos os momentos: a mesma bala que commettera um fratricidio, enlouquecera a unica mulher que havia amado. Adivinha o resto; nem mesmo eu teria forças para continuar por muito tempo. Margarida morreu. Eu estava só, sem meios, cercado de terriveis recordações. Fugi a esse mundo de pavorosos espectros, e vim por ahi abaixo procurar no trabalho o esquecimento. Tenho trabalhado; mas não poude esquecer ainda!... VII O tio Joaquim acabára de fallar e parecia ouvil-o ainda. Tinham ficado resoando-me as suas palavras, como a pancada do sino depois de tangido, e que por muito tempo vae abalando o espaço. Já de muito anoitecera. Com a noite começára a carregar-se o céo, a encapellar-se o mar, a desencadear-se o vento. Rugia a tempestade, quando o velho concluiu. O ribombo do trovão abafou-lhe as ultimas palavras. A natureza parecera querer accrescentar um côro magestoso áquella eloquente manifestação. Lancei os olhos em roda; levantei-me, dei o braço ao narrador, e começámos a descer pela encosta com extrema difficuldade, porque já fazia muito escuro. O tio Joaquim não dava por coisa alguma, deixava conduzir-se como uma creança. Não parecia d’este mundo. Ao voltar para uma azinhaga que no fim da praia cortava para a estrada, volvi os olhos para o mar, que cada vez se embravecia mais, e vi á luz de um relampago o sitio, onde sentado havia pouco, tinha ouvido a historia do velho. Comparei aquellas duas tempestades: a que ribombava surdamente na alma do velho, e a que estalava nos ares levantando em escarceus a agua do mar, e varrendo a terra com o furioso soprar do furacão. Quanto era superior o padecimento do velho!—E entretanto d’ali a poucas horas a natureza descançava d’aquella convulsão violenta; mas o tio Joaquim continuava a padecer, suspirando pela tardia hora do repouso. Só a natureza póde descançar porque é immortal; para o homem o descanço chega, apenas, quando lhe começa a immortalidade. Finalmente o tio Joaquim tambem descançou. FIM NOTAS [1] Na manhã do dia seguinte áquelle, em que este pequeno conto apparecia publicado, recebia o auctor uma carta do sr. A. F. de Castilho, em que dizia: _amigo, pelos seus retratos de familia receba um bom abraço do seu etc., etc._ Estas poucas palavras valeram para a pessoa a quem se dirigiam, mais do que largos e empolados juizos criticos. Regista-as aqui, não por vaidade, não por desvanecimento; mas só como um testemunho da verdadeira estima e profunda gratidão, que tributa ao grande poeta. [2] S. Lucas—Cap. 6.º—V.º 25 e 26. [3] S. Matt.º Cap. 6.º V.º 28 30 31 32 33 34. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS CONTOS DO TIO JOAQUIM *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. 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