The Project Gutenberg eBook of Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

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Title: Côrte na aldeia e noites de inverno (Volume I)

Author: Francisco Rodrigues Lobo

Release date: October 14, 2011 [eBook #37757]

Language: Portuguese

Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK CÔRTE NA ALDEIA E NOITES DE INVERNO (VOLUME I) ***

Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Outubro 2011)



BIBLIOTHECA UNIVERSAL

ANTIGA E MODERNA



CORTE NA ALDEIA

E

NOITES DE INVERNO

POR

FRANCISCO RODRIGUES LOBO



VOLUME I



16.ª SERIE—NUMERO 62



LISBOA
COMPANHIA NACIONAL EDITORA

Successora de DAVID CORAZZI e JUSTINO GUEDES
40—Rua da Atalaya—52

FILIAES: Praça de D. Pedro, 127, 1.º andar, PORTO
38, rua da Quitanda. Rio de Janeiro

1890






LISBOA

typographia da companhia nacional editora

309, Rua da Rosa, 309

1890




Em quanto está o avaro em seu thesouro
Cevando os olhos, dando ao pensamento
Materia a vã cobiça de mais ouro.

Primavera, Floresta, 5.






ADVERTENCIA





A Noticia biographica de Francisco Rodrigues Lobo encontram-a os leitores á frente do volume 23.º da Bibliotheca Universal Antiga e Moderna.



CÔRTE NA ALDEIA

E

NOITES DE INVERNO






DIALOGO I


ARGUMENTO DE TODA A OBRA



Perto da cidade principal da Luzitania está uma graciosa aldeia, que com egual distancia fica situada á vista do mar oceano, fresca no verão, com muitos favores da natureza, e rica no estio e inverno com os fructos e commodidades, que ajudam a passar a vida saborosamente; porque com a vizinhança dos portos do mar por uma parte, e da outra com a communicação de uma ribeira, que enche os seus valles e outeiros de arvoredos e verdura, tem em todos os tempos do anno o que em differentes logares costuma buscar a necessidade dos homens: e por este respeito foi sempre o sitio escolhido para desvio da côrte, e voluntario desterro do trafego d'ella: dos cortezãos, que alli tinham quintas, amigos ou heranças, que costumam ser valhacouto dos excessivos gastos da cidade.

Um inverno em que a aldeia estava feita côrte com homens de tanto preço, que a podiam fazer em qualquer parte, se juntava a maior d'elles em casa d'um antigo morador d'aquelle logar, que tambem o fôra em outra edade da casa dos reis, d'onde com a mudança e experiencia dos annos, fez eleição dos montes para passar [8] n'elles os que lhe ficavam da vida, grande acerto de quem colhe este fructo maduro entre desenganos. Alli ora em conversação aprazivel, ora em moderado e quieto jogo se passava o tempo, se gosavam as noites, se sentiam menos as importunas chuvas e ventos de novembro, e se amparavam contra os frios rigorosos de janeiro.

Entre outros homens, que n'aquella companhia se achavam, eram n'ella mais costumados, em anoitecendo, um letrado que alli tinha um casal, e que já tivera honrados cargos do governo da justiça na cidade, homem prudente, concertado na vida, douto na sua profissão, e lido nas historias da humanidade: um fidalgo mancebo, inclinado ao exercicio da caça, e muito affeiçoado ás cousas da patria, em cujas historias estava bem visto: um estudante de bom engenho, que entre os seus estudos se empregava algumas vezes nos da poesia: um velho não muito rico, que tinha servido a um dos grandes da côrte, com cujo galardão se reparara n'aquelle logar, homem de boa creação, e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante. Ao senhor da casa chamavam Leonardo, e ao doutor Livio, ao fidalgo D. Julio, ao estudante Pindaro, ao velho Solino. Fóra estes havia outros de quem em seus logares se fará menção, que assim como os mais, não eram para engeitar em uma conversação de poucas porfias.

Uma noite do novembro, em a qual já o frio não dava logar a que a frescura do tempo convidasse ao sereno, estando ainda Leonardo á mesa, porém no fim das iguarias, bateram á porta Pindaro e Solino, aos quaes o velho mandou abrir com grande alvoroço e festa; porque a de o buscarem era a que mais estimava por sua. Subiram, agasalhou-os com contentamento e cortezia. Sentaram-se perto da mesa, e disse o senhor da casa:—Peza-me que não viesseis mais cedo, que me poderieis acompanhar n'este trabalho tão necessario da velhice. Mas se ainda virdes na mesa alguma cousa de vosso gosto, lançae mão d'ella, que de mistura achareis a minha boa vontade.—Eu sei (disse Pindaro) a que tendes de me fazer mercê; mas venho ceiado e tambem Solino, a quem tive por hospede, e já a conversação [9] me dobrou o gosto das iguarias.—Eram ellas tão boas (respondeu Solino) que a mim me davam graça. Porém o serdes vós tào miudo nas cortezias, me deu muita pena: e já que sois tão discreto, e tanto meu amigo, d'aqui adeante emendae-vos nas ceremonias da mesa; e adverti ao vosso moço que não acompanhe com os olhos os bôccados dos hospedes, até o estomago: porque apostarei que me contou todos os da ceia, e anda tão destro no apartar das brigas, que ainda bem não desvio um prato do outro, quando me dá xaque em ambos, e me deixa em casa branca. E não vos pareça que é isto dizer que venho faminto; que, se assim fôra, póde ser que o cumprimento do sr. Leonardo não ficára solto e livre; antes é fazer-vos lembrança que, pois daes tambem de comer, não tenhaes um moço Harpya, que descomponha o sabor dos manjares.—Bem sei (respondeu Pindaro) que ainda farto não haveis de deixar de roer. O meu moço é de uma d'estas aldeias vizinhas, ha pouco que me serve; por isso, e por ser creado de estudante, lhe devieis perdoar o erro, e a mim o remoque; porém a vossa condição não se sujeita a respeito nem a desculpas.—É tão saborosa a murmuração de Solino (disse Leonardo) que tambem na mesa se póde estimar como boa iguaria: e se a eu tivera muitas vezes, déra vida ao appetite que para as outras me falta.—Se o ella fôra (tornou Solino) em mais occasiões me valêra das em que a vós podeis desejar. Mas, não tratando de vol-a offerecer, nem de a desculpar com meu amigo; como ceiastes hoje tão tarde, e não vieram mais cedo o doutor e D. Julio?—Antes (disse o velho) me mandaram já recado, e não devem tardar. Eu o fiz com a ceia, porque os homens de serviço me não deram logar senão a esta hora: mas ouço que batem á porta e devem ser elles.

A este tempo mandou juntamente alçar a mesa, e levar a luz á escada. Subiram o doutor e D. Julio; saudaram-se com muita alegria; e sentados perto do fogo, disse o velho: Muito deveis ambos a Solino; porque vindo a esta casa com Pindaro, de quem foi convidado na ceia, e tendo a minha em estado de que se podia aproveitar de alguma cousa d'ella, vos achou menos, e perguntou a causa da tardança; signal é este de amor e da pouca razão com que o temos [10] por desobrigado de toda a affeição dos amigos.—Não é Solino tão descuidado do que lhe eu mereço (tornou D. Julio) que se esqueça de mim, e de quanto sentirei perder horas suas: e pelo interesse das da conversação do doutor o tivera em menos conta se as não desejára: e além d'isto posso affirmar que está pago da lembrança que teve, com a diligencia que fizemos pol-o trazer comnosco, que voltamos pela sua porta, e eu tirei uma pedra á janella, d'onde me disseram que ceiava com Pindaro; e cada um dos dois me fez inveja.—Ah! sr. D. Julio (respondeu elle) tão grande trovoada de cumprimentos seccos não podia deixar de lançar pedra. Eu tenho feita a conta, e sei que não posso pagar o que vos devo além d'essa honra e mercê, senão com a humildade com que a todas reconheço por vossas. Dae-vos por satisfeito de meus desejos, e de pôr aqui ponto nos cumprimentos; porque não tenho polvora mais que para a primeira salva.—Já eu me quizera metter em meio (disse o doutor) porque se vós a terdes em cortezias, não haverá quem as pague, se não fôr Pindaro, que tem uma corrente tão arrebatada, que não dá vau a nenhuma rethorica do mundo.—Agora (arguiu Leonardo) levastes tres de um tiro; não me dou por seguro n'este logar, inda que é de minha casa: porém não tendes razão contra Pindaro, que, cada vez que o ouço, me parece um livro de cavallarias. Se elle tivera encantamentos escuros, castellos roqueiros, cavalleiros namoradores, gigantes suberbos, escudeiros discretos, e donzellas vagabundas, como tem palavras sonoras, razões concertadas, trocados galantes, e periodos que levam todo o fôlego, pudéra pôr a um canto o Amadis, Palmeirim, Clarimundo, e ainda o mais pintado de todos os que n'esta materia escrevêram: e já estive em o persuadir que se mettesse em uma empreza semelhante: porém receio que se me ensoberbeça com a altiveza de seu estylo, e despreze aos amigos.—Não merecia eu, sr. Leonardo, a vós, nem ao doutor (disse Pindaro) que tomasseis meus defeitos por materia de vossa galantaria: falo como sei, e cada um se extende conforme a roupa com que se cobre. Não sou tão philosopho como o doutor, tão cortezão como vós, nem tão engraçado como Solino, nem tenho maiores penas que a gaiola; porém se abrisse as azas [11] para compôr livros, não houveram de ser de patranhas. Por isso fiae mais de meus pensamentos.—Nunca o tive de vos offender (respondeu o velho) nem me parece com razão a vossa desconfiança; nem podeis fazer tão pouca conta dos livros de cavallarias, e dos famosos auctores que os escreveram, e que mostraram n'elles a sua boa linguagem com toda a perfeição: a graça de tecer e historiar as aventuras, o decoro de tratar as pessoas, a agudeza, a galantaria das tenções, o pintar as armas, o betar as côres, o encaminhar e desencontrar os successos, o encarecer a pureza de uns amores, a pena de uns ciumes, a firmeza em uma ausencia, e outras muitas cousas que recreiam o animo, affeiçoam e apuram o entendimento. Se vós tendes por despreso compôr livros de cavallarias, eu vos desengano que pertencem mais cousas ao bom auctor d'elles, que a um dos lettrados philosophos ou juristas, com que desejaes do vos parecer; porque lhe importa saber a geographia dos reinos e provincias do mundo, para encaminhar por ellas a sua historia; ter noticia dos nomes e cousas que usam n'aquellas partes, d'onde faz naturaes os cavalleiros, saber estylo de côrte para as mesuras, gasalhados e cortezias, conforme as pessoas introduzidas, conhecer da justiça, do torneio e do sarau. a ordem, as leis e as gentilezas, entender da bastarda e da gineta, o que convém para pintar o encontro, a quéda, o acerto, o dezar, o brio ou descuido de um cavalleiro, debuxar o cavallo nas côres, concertal-o nas redeas, no pizar, no arremesso, na furia, na destreza, nas carreiras, chaças e rodeios, e sobre o conhecimento de todas as sciencias e disciplinas, tambem ha de ter alguma noticia dos nigromantes antigos para os encantamentos que servem de bordão e valhacouto aos historiadores.—Tenho por mal empregado (disse então o doutor) tanto cabedal em cousa de tão pouco interesse, e não sou de voto qee o auctor, que tiver as partes que vós dizeis que são necessarias para essa composição se occupe n'ella. De que servem livros de cavallarias fingidas? E se ha ociosos que os leiam, porque ha de haver algum que os escreva? Ou que espere algum fructo de trabalho tão vão?—Mas que certeza tão grande (tornou Leonardo) que cada um approva o que segue, sendo assim que ninguem se contenta do que [12] tem. Desejaveis agora que todos os livros, e todos os homens tratassem sómente da vossa profissão e fossem juristas e philosophos. Pois ainda que eu sou bacharel em linguagem, me atrevo a contradizer essa opinião adquirida em latim: porque para recreação, politica e bom estylo se não deve menor logar a estes, que aos vossos de trapaças e opiniões, e outros a que chamaes conselhos, que o dão ás vezes bem ruim a quem se fia de sua leitura.

—Eu era de parecer (disse D. Julio) que poupassemos esta materia para gastar a noite, pondo-a em maneira de disputa. E se a todos parece assim, cada um diga sua opinião nos livros que mais lhe contentam, e das razões que tem para os approvar; e d'este modo, ou affeiçoados, ou convencidos, saberemos os que são de maior gosto, e utilidade.—A isto (respondeu Solino) até agora estive calado contra minha natureza; porque me houve por incapaz de fazer terço ao doutor e Leonardo: mas pois o voto é que se jogue com toda a baralha, digo que é esta a melhor materia que se podia escolher para passar o tempo. E já pode ser que algum dos que aqui estão, que deseja deixar no mundo memoria de seu engenho, saiba n'esta occasião o em que o pode empregar melhor.—Pelo que a mim toca (disse o doutor) comecemos logo; e a vós, sr. D. Julio, é bem que demos a mão a troco do alvitre: e não tratando dos livros divinos, nem dos necessarios, dos de recreação nos podeis dizer quaes, e por que razões vos contentam.—A minha inclinação em materia de livros (disse elle), de todos os que estão presentes é bem conhecida: sómente poderei dar agora de novo a razão d'ella. Sou particularmente affeiçoado a livros de historia verdadeira, e mais, que ás outras, ás do Reino em que vivo, e da terra onde nasci: dos reis, e principes que teve, das mudanças que n'elle fez o tempo e a fortuna, das guerras, batalhas, e occasiões, que n'elle houve, dos homens insignes, que pelo discurso dos annos florecerão: das nobrezas e brazões que por armas, lettras, ou privança se adquiriram. O que me inclinou á escolha d'esta lição, foi que tive alguma de um homem muito douto, em o que o deve desejar de ser, e parecer o que é bem nascido; ao qual elle dizia, que o que mais convinha que soubesse era, o appellido, que [13] tinha, d'onde lhe veio; quem fôram seus passados, que armas lhe deixaram, a significação, e fundamento da figura d'ellas, como se adquiriram, ou accrescentaram. Logo os reis que reinaram na sua patria, as chronicas d'elles, os principios, as conquistas, as emprezas, e o esforço de seus naturaes; porque falando d'elles nas terras extranhas, ou na sua com extrangeiros, saiba dar verdadeira informação de suas cousas. E alcançadas estas, lhe estará bem tudo o que mais puder saber das alheias. E na verdade, nenhuma lição pode haver que mais recreie, e aproveite, que a que sei que é verdadeira, e por natural ao desejo dos homens deleitosa.—Não é essa a minha opinião (disse Solino) porque contra o gosto me assombram muito cousas passadas, e andar abrindo sepulturas de gente morta. E no que toca á verdade, certo que á conta dos enterrados se escrevem algumas vezes tão grandes mentiras, que lhes não levam vantagem os fingimentos de historias imaginadas. E havendo um homem de ler o que não é, ou o que sabe, é tão caldeado, e tão batido da forja dos auctores, que mudado traz o metal, a côr, e a natureza: estou melhor com os livros de cavallarias, e historias fingidas, que, se não são verdadeiros, não os vendem por esses: e são tão bem inventados, que levam após si os olhos, e os desejos dos que os lêem. E não estima um auctor matar mais dois mil homens com a penna, para fazer valente o seu cavalleiro, com a espada, sem estar receando os ditos das testemunhas que ficaram da batalha; que por eguaes respeitos pende cada uma para seu cabo. Pois se é caso, em que um historiador queira passar adeante como Ariosto, não matou mais gente a peste grande em Lisboa, que Rodamonte nos muros de Paris.—Essa é uma das razões, porque eu os reprovo (tornou o doutor) porque a fabula é uma cousa falsa, que podia comtudo ser verdadeira, e acontecer assim como se fingio. Porém a isto não dão logar os livros de cavallarias, com esses excessos, e outros encantamentos, fazendo casas, e torres de crystal, edificios, lagos, e columnas impossiveis, pyramides de alabastro, e casas de pedraria, cuja riqueza podia empobrecer a fortuna. E em nossos tempos, na India Oriental, sabemos que o rei Mogor andou muitos annos fabricando uma casa de esmeraldas, por [14] cujo respeito se passavam d'este Reino á nossa India as da Occidental. E emfim morreu sem a acabar; e não ha livro de cavallarias em que qualquer cavalleiro de um castello não acabe cousas maiores. E deixando isto, é graça, e galantaria, comparar historias verdadeiras com patranhas desproporcionadas, que gastam o tempo mal a quem n'ellas se occupa, quando as outras servem de exemplo para imitar, de lembrança para engrandecer, e de recreação para divertir. A quem não anima ler as historias de seus passados? A quem não move o desejo de egualar a fama que lê de suas obras? O governo da paz? A ordem da guerra? O trato dos homens? O commercio das provincias? D'onde se conserva, alcança, e sabe senão pelas historias verdadeiras? Porque n'ellas sabe cada um felizmente pelos successos alheios o que deve seguir. D'onde Marco Tullio chamou á historia mestra da vida.—Vós, sr. doutor (disse Solino) achareis isso nos vossos cartapacios: mas eu ainda estou contumaz. Primeiramente, nas historias, a que chamam verdadeiras, cada um mente segundo lhe convém, ou a quem o informou, ou favoreceu para mentir; porque se não fôrem estas tintas, é tudo tão misturado, que não ha panno sem nodoa, nem légua sem máu caminho. No livro fingido contam-se as cousas como era bem que fôssem, e não como succederam, e assim são mais aperfeiçoadas. Descreve o cavalleiro como era bem que os houvesse, as damas quão castas, os reis quão justos, os amores quão verdadeiros, os extremos quão grandes, as leis, as cortezias, o trato tão conforme com a razão. E assim não lereis livro, em o qual se não destruam soberbos, favoreçam humildes, amparem fracos, sirvam donzellas, se cumpram palavras, guardem juramentos, e satisfaçam boas obras. Vereis que as damas andam pelas estradas, sem haver quem as offenda, seguras na sua virtude propria, e há cortezia dos cavalleiros andantes. E quanto ao retrato e exemplo da vida, melhor se colhe no que um bom entendimento traçou, e seguiu com muito tempo de estudo, que no successo, que ás vezes se alcançou por mão da ventura, sem a diligencia e engenho metterem nenhum cabedal. Não digo que os livros tenham excessos desatinados, que não sejam semelhantes á verdade, nem os encantamentos tão escuros e desconformes, [15] que não tenham alguma maneira de enganar o juizo; porém os livros bem fingidos, como verdadeiros obrigam. Um curioso em Italia (segundo um auctor de credito conta) estando com sua mulher ao fogo lendo o Ariosto, prantearam a morte de Zerbino com tanto sentimento, que lhe accudiu a visinhança a saber o que era. E no que toca ao exemplo; um capitão valoroso houve em Portugal, que o não teve melhor o Imperio Romano, que com a imitação do um cavalleiro fingido, foi o maior de seus tempos, imitando as virtudes que d'elle se escreveram. Muitas donzellas guardaram extremos de firmeza, e fidelidade, costumadas a lêr outros semelhantes nos livros de cavallarias. Na malicia da India tendo um capitão nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas, que albergavam juntos, traziam entre as armas um livro de cavallarias, com que passavam o tempo. Um d'elles, que sabia menos que os mais d'aquella leitura, tinha tudo o que ouvia lêr por verdadeiro (e assim ha alguns innocentes, que cuidam que se não pode mentir em lettra redonda) os outros ajudando a sua simpleza lhe diziam que assim era. Veio occasião de um assalto, em que o bom soldado invejoso, e animado do que ouvia lêr, lhe pareceu ensaio de mostrar seu valor, e fazer uma cavallaria, de que ficasse memoria; e assim se metteu entre os contrarios com tanta furia, e os começou a ferir tão rijamente com a espada, que em pouco espaço se empenhou de sorte, que com muito trabalho, e perigo dos companheiros, e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida recolhendo-o com muita honra, e não poucas feridas. E reprehendendo-o os amigos d'aquella temeridade, respondeu: Ah! deixae-me, que não fiz a metade do que cada noite lêdes de qualquer cavalleiro do nosso livro. E elle d'alli adeante o foi muito valoroso.—Muito festejaram todos o conto, e logo proseguiu o doutor: Tão bem fingidas podem ser as historias, que mereçam mais louvor, que as verdadeiras; mas ha poucas que o sejam; que a fabula bem escripta (como diz Santo Ambrozio) ainda que não tenha força de verdade, tem uma ordem de razão, em que se podem manifestar as cousas verdadeiras. Xenofonte querendo pintar uma republica perfeita, e regimento politico, por modo de historia, fingiu [16] o governo de Cyro, rei dos Persas. D. Antonio de Guevara, em nome de um imperador romano escreveu o que elle queria dizer em Hespanha; e outros que ainda em modo mais extranho ensinaram aos homens, como Esopo nas suas fabulas, e Lucio Apuleio no seu Asno d'ouro; e todos os livros que em seu genero são bons, se podem chamar perfeitos. Resta agora que o que escreve historia seja verdadeiro; e não terá Solino de que o reprehender n'ella. O que compõe fabulas seja verosimil, e não terei eu razão de o reprovar. O que trata de sciencia, alegue razões. O que fala de artes, experiencia. E o que quer ensinar principios, mostre auctoridade. E posto que eu tenha muitas que allegar em favor da vossa opinião, sr. D. Julio, vós estaes no caso, e todos os mais, que a historia verdadeira apascenta os doutos, adelgaça os grosseiros, encaminha os moços, ensina os mancebos, recreia os velhos, anima aos baixos, sustenta aos bons, castiga aos maus, resuscita aos mortos, e a todos dá fructo a sua lição. E porque esta não seja mais comprida, diga Pindaro agora a sua opinião.

—Apostarei eu (disse Solino) que, se a Pindaro lhe armarem com poesia levantada sobre os bons conceitos, e versos, que com serem amorosos, sejam arrogantes, que o tomaram como passaro em visco.—Para isso (disse o doutor) arredar-lhe as occasiões, e vá com declaração, que não tratamos de poesia.—Essa condição (accudiu Pindaro) logo ao principio ficou declarada; que como exceptuastes livros divinos, n'esse numero devem estar os dos poetas, que mereceram este nome; e o que elles antigamente tiveram, e ainda agora lhe dão os Latinos, assim o deixa entender. E Platão quando d'elles escreve, lhes chama divinos interpretes dos deuzes, possuidos de espiritos celestes: d'onde Marco Tullio tirou os louvores, com que os trata. Origenes affirma que a poesia é uma virtude espiritual, que inspira em os poetas, e lhes enche o animo e o entendimento de uma divina força. Santo Agostinho lhes chama theologos para cantarem os louvores divinos. Diziam os philosophos antigos que, se os deuses falassem, seria em verso: trazendo exemplo do oraculo de Apollo, e das Sibyllas. Cassiodoro diz que a poesia tomou principio da divina escriptura. De maneira que por auctoridade [17] de tão grandes varões, nunca os livros de poesia podem vir em competencia com os de que até agora tratastes; que d'outro modo já estivera concluida a differença.—O que eu vejo (tornou D. Julio) que, ainda que o doutor vos cerrara a porta, que mettido de ilharga dissestes tudo o que cumpria a vosso intento por junto, o quanto para mim estaes declarado; o com o desejo de ouvir a opinião do doutor, não digo o mais que me, parece.—Ora (respondeu elle) não quero que a essa conta fique o meu voto ás escuras; e digo, não falando em poesia, que não escolho lição de historiadores verdadeiros, nem tenho por melhor a dos fingidos; porque uns servem de conservar a memoria, os outros de enganar o entendimento: e serão melhores os livros que deleitem a memoria, e a vontade, e apurem, e levantem o entendimento, como os de recreação, que com alguma enganosa novidade tratam de materias politicas, e engraçadas: de côrte, de aldeia, e de qualquer sujeito aprazivel: e ha d'estes muito bem recebidos, approvados, e proveitosos na republica, cuja variedade, e doutrina é para mim lição muito saborosa.—Não estou mal com essa opinião (disse o doutor) o quasi que vós, e eu estamos em um mesmo pensamento; senão que deixastes de declarar o que agora me fica para dizer; porque até aqui falámos do modo de compor, e escrever livros; e não das materias, que escriptas serão agradaveis. E deixando em duvida o vosso parecer para se conferir com a tenção; o meu é, que o melhor modo de escrever são os dialogos escriptos em prosa, com figuras introduzidas, que disputem, e tratem materias proveitosas, politicas, engraçadas, e cheias de galanteria: sendo a primeira figura da obra o autor d'ella; e isso que vá guiando, e introduzindo as mais, que sejam apropriadas áquellas materias, de que hão de tratar entre si. E além de ser este estilo mais claro, mais vulgar, mais excellente, inclue em si a lição de todos os outros modos de escrever, como o são os da historia verdadeira, e fingida, das artes liberaes, e mecanicas; das sciencias, e disciplinas necessarias; das profissões particulares; da razão do governo; da vida politica ou privada. E quando este modo de escrever não tivera por si mais que a auctoridade dos que n'elle escreveram, como foi Platão, Xenofonte, Tullio, e outros [18] infinitos: essa bastara para acreditar os dialogos. Além d'isto, eu tenho para mim que aquella é melhor escriptura, que com mais perfeição, e viveza imita a pratica, e conversação dos homens; porque assim como a melhor pintura é a que mais se parece com a obra da natureza, a que quer contrafazer; assim a melhor escriptura é a que retrata com mais semelhança o falar, e conversação d'entre os amigos. Nos poemas tinham os poetas antigos que o mais levantado era a tragedia pela imitação natural da pratica, com introducção de figuras, junto com a gravidade, peso, e tristeza dos successos tragicos. E porque tambem a variedade é a que mais costuma enterter, e deleitar o animo dos homens, e esta é mais certa, e mais propria nos dialogos, me parece que no gosto d'elles serão melhor recebidos.

—Pois assim é (disse D. Julio) que a principal razão porque approvaes os dialogos, é porque mais familiarmente se parecem com a pratica. Desejo saber qual é mais nobre cousa, se a pratica, se a escriptura: porque a mim me parece que á escriptura se deve o melhor logar, e que antes merecia a pratica por se parecer com ella; o que agora encontra a vossa opinião.—Nenhuma duvida ha (respondeu o doutor) que a pratica seja mais nobre, mais antiga o mais excellente; porque, além de o falar ser operação natural dos homens, e acto em que elles fazem vantagem, e differença a todos os animaes, a escriptura não é mais que uma escrava e servente das palavras, e o escrever não é outra cousa mais que supprir com um instrumento por meio da arte, e das mãos o que com a voz se não póde exprimir e alcançar com os ouvidos, ou por distancia de logar, como quem escreve aos ausentes, ou por discurso de tempo, como quem escreve para os vindouros. E porque nunca a escrava é tão nobre como a senhora a quem serve, em quanto escrava, nem o que substitue em logar d'outrem se lhe póde preferir no mesmo logar; assim nunca a escriptura póde egualar a nobreza e perfeição da pratica.—O contrario me parece a mim (replicou o fidalgo) porque nem por a pratica ser mais antiga, e primeira que a escriptura é mais perfeita; antes ella foi a perfeição da pratica: e posto que seja própria operação do homem o falar, não é n'elle menos nobre accidente o de escrever; antes me parece [19] mais digno o que elle alcançou por arte, que o que adquiriu por uso: e quasi que ousaria a dizer que é operação sua o falar, dada a respeito de haver de escrever, pois esse é o meio de se perpetuar, sustentando no entendimento dos presentes, e na lembrança dos futuros a memoria das cousas passadas. Assim que nem por a primeira razão merece a pratica melhor logar, nem a escriptura, por servente e ministra sua, é menos nobre. Porque o sol serve de mostrar as cousas creadas, que lhe são muito inferiores, e de dar luz e nutrimento a outras de menor qualidade, e nem por isso ellas se lhe podem antepôr. E quanto a substituir a escriptura em logar da voz, ella o faz por tão excellente maneira, que lhe tem muita vantagem; pois o que a voz não póde exprimir juntamente em differentes logares, e a diversas pessoas em um mesmo tempo, o faz a escriptura com grande perfeição, podendo muitas pessoas, em differentes logares, lêr em um mesmo tempo a propria cousa: pelo que me parece que, ainda que a vossa escolha fosse boa, não fundastes bem a razão d'ella.—Certo (disse Leonardo) que de ambas as partes déstes tão boas razões, que fica duvidosa a melhoria. Porém concedendo á pratica a excellencia, a acção, o modo e a graça de falar, que é uma viveza a que se não eguala outra nenhuma lembrança; a escriptura tem tantas grandezas que parece egualmente necessaria para a vida, pois ficava o mundo ás escuras sem a luz da dilação escripta; e só na tradicção dos homens se salvaria a memoria das cousas; e nas principaes dominaria a ignorancia com mero imperio. Porém, deixando isto por averiguar, pois com tanta galantaria e agudeza está tocado o que baste, quero que passemos adeante, e, por me fazerdes mercê, que me ensineis se na pratica, em voz, e na escriptura considerada tem bom logar a nossa lingua portugueza; porque ouço de má vontade a alguns naturaes que tratam mal d'ella e a condemnam por grosseira e limitada.

—Uma cousa vos confessarei eu, sr. Leonardo (disse a isto D. Julio) que os portuguezes são homens de ruim lingua, e que tambem o mostram em dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronunciação, como na gravidade e composição das palavras é lingua excellente. Mas ha alguns nescios, que não basta que a [20] falem mal, senão que se querem mostrar discretos, dizendo mal d'ella: e o que me vinga de sua ignorancia, é que elles acreditam a sua opinião; e os que falam bem desacreditam a ella e elles.—Bravamente é apaixonado o sr. D. Julio (acudiu o doutor) pelas cousas da nossa patria: e tem razão, que é divida que os nobres devem pagar com maior pontualidade á terra que os creou. E verdadeiramente que não tenho a nossa lingua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, efficaz para mover, dôce para pronunciar, breve para resolver, e accommodada ás materias mais importantes da pratica e escriptura. Para falar é engraçada com um modo senhoril: para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a musica: para prégar é substanciosa, com uma gravidade que auctorisa as razões, e as sentenças: para escrever cartas nem tem infinita copia que damne, nem brevidade esteril que a limite: para historias nem é tão florida que se derrame, nem tão secca que busque o favor das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céo da bôcca com aspereza, nem arrancar as palavras com vehemencia do gargalo. Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas as linguas o melhor: a pronunciação da latina; a origem da grega; a familiaridade da castelhana; a brandura da franceza; a elegancia da italiana. Tem mais adagios e sentenças que todas as vulgares, em fé de sua antiguidade. E se á lingua hebrea pela honestidade das palavras chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em materia descomposta quanto a nossa. E para que diga tudo, só um mal tem, e é que pelo pouco que lhe querem seus naturaes, a trazem mais remendada, que capa de pedinte.—Folguei extranhamente de vos ouvir (disse Solino) por não ficar tão covarde, como até agora estava, em ouvindo murmurar da lingua portugueza; e não ousava, ou não sabia dizer a minha opinião, a qual cuidava que me nascia do amor que lhe tenho, e que cada um tem ás suas cousas como o corvo aos filhos, e Pindaro ás suas trovas. Porém quando um homem tão bem fundado na razão como o doutor, e tão auctorisado em seu parecer sustenta esta parte, nenhuma [21] haverá já tão rija, que me tire o atrevimento.—Nem a lingua (disse Pindaro) pois não ha amizade que vos faça perder o costume.—Perdoae-me (tornou elle) que vos feri por não perder o golpe. E tornando ao que aqui se tratou para recordar o que começamos, averiguou o doutor que a melhor maneira de escrever eram os dialogos (ficando meu direito reservado nos livros de cavallarias), tocaram-se louvores da pratica e escriptura com muito engenho; declarou-se como a lingua portugueza não desmerece logar entre as melhores, para n'ella se escreverem materias levantadas, apraziveis, proveitosas e necessarias. Que falta entre vós para que d'estas noites bem gastadas, d'estas duvidas bem movidas, e d'estas razões melhor praticadas se faça um ou muitos dialogos, que sem vergonha do mundo possam apparecer nas praças d'elle á vista dos curiosos, e ainda dos murmuradores?—Tem Solino muita razão (disse D. Julio) e se assim forem os dialogos como se podem formar com a pratica de alguns que estão presentes, bem se auctorisará a opinião do doutor, posto que a minha fique de vencida com a vantagem que aqui tem a pratica das escripturas alheias. E pois se aproveitam tão bem as noites n'este logar, razão é que por meio d'elles se communiquem a quem se aproveite da doutrina e interesse d'ellas.—Se eu não dormira tão poucas horas da passada (disse o doutor) ainda houvera de proseguir adeante e responder a isso; mas com vossa licença me vou recolher e amanhã accudirei mais cedo.—Acompanhemos o doutor (disse o fidalgo), e levantando-se elle, se despediram todos com muita cortezia, deixando ao senhor da casa magoado de se acabar tão depressa a conversação; que quem sabe estimar a que é tão boa, tem sentimento das horas que d'ella perde.


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DIALOGO II


DA POLICIA E ESTYLO DAS CARTAS MISSIVAS



Ficaram os amigos tão affeiçoados á conversação d'aquella noite, que, por fazerem a do outro dia mais comprida, acudiram a ajuntar-se logo depois de se pôr o sol; porém cada um com pejo de ser o primeiro, passeavam em dois postos, o doutor com D. Julio, e Pindaro com Solino á vista da casa de Leonardo, até que elle chegou á janella; e mostrando o mesmo desejo que os quatro traziam, facilitou o receio e approvou as horas. Subiram todos, e disse o doutor:—Pareceu-me este dia tão comprido, na esperança da noite, como aos trabalhadores que devem o jornal.—E a mim (tornou Leonardo) a noite, depois que me deixastes, tão importuna como quem espera a manhã para cousa de seu gosto: e assim não é muito que vós viesseis tão cedo, e que a mim me pareça que já era tarde.—Todas as cousas que se desejam muito (tornou D. Julio) por pouco que se dilatem, tardam mais.—E as que se temem (proseguiu Solino) por muito que tardem, parece que se anticipam. D'onde um disse maravilhosamente que o que queria que a quaresma lhe parecesse breve, devesse pagamentos para a Paschoa. Emfim chegou mais cedo este prazo que todos desejamos: e se o senhor da casa dormiu pouco, eu apostarei que ha algum na companhia que se desvelou mais.—Não era occasião para descuidos, (disse o doutor) e nos mancebos era demasiada desconfiança entrar n'esta batalha desapercebidos.—Os apercebimentos (tornou o fidalgo) podem fundir muito pouco: porque como até agora é incerta a materia de que se deve tratar, serão sem fructo as diligencias.—É engano (replicou Solino) que nunca falta uma carta em que prender; como um homem tem as suas apuradas e ha cousas que se levam a rasto como corpo morto, e quando sejam bem cuidadas, nunca são mal ouvidas. E se não, digam-n'a as olheiras com que esta manhã vi a meu amigo Pindaro.—Já sei (disse Pindaro) que vêdes mal: mas contra mim ainda é peior a vossa tenção que a vista; não me pagaes bem o que vos mereço, mas é [23] na moeda que tendes.—E na que corre (tornou elle) que o rifão de agora diz que fazer e dizer mal, nunca se perde. Não vos escandaliseis; que tudo ha nos homens e nas cartas. Essa (disse então D. Julio) hei eu de partir: porque desejava muito alçar por ellas; e pois o doutor falou hontem em cartas missivas, e approvou para ellas a lingua portugueza, nos ha de declarar o que ha de ter uma carta para ser cortezã e bem escripta.—Esse cargo (tornou o doutor) convem mais ao senhor da casa: porque ainda que a carta consta de lettras, não é profissão de lettrado fazel-as cortezãs: e quem sabe tanto do estylo da côrte como Leonardo, póde dar lei para ellas.—Vós (respondeu elle) sois doutor em tudo, e meu superior em todas as materias, e como tal me podeis dar o grau de cortezão. Eu o quizera parecer na confiança, e em obedecer ao gosto d'estes amigos. Mas para eu proseguir com auctoridade é bem que vós comeceis a principiar a materia: dizendo, que nome é carta, e o seu principio, pois me daes o cargo antes de estar apercebido para elle.—Bem sei (lhe respondeu o doutor) que por me honrardes a mim tomaes tudo á vossa conta; folgarei de a dar boa do que me encommendaes.

Este nome carta é generico, e teve origem de uma cidade do mesmo nome, d'onde foi natural a rainha Dido, que, por o amor que tinha á sua patria, pôz á que edificou por nome Cartago. E porque em carta se inventou primeiramente a maneira em que se escrevia (ou fosse papel, ou outra cousa semelhante a elle) tomou d'ella o nome como de Pergamo o pergaminho. É para saber que nos primeiros tempos, quando se inventaram as lettras, escreviam os homens nas folhas das arvores: como ainda hoje nas da palmeira escrevem os gentios de algumas partes do oriente: as Sybillas n'ellas escreveram suas prophecias; e assim se chamaram a seus escriptos folhas sybillinas; e ainda na linguagem portugueza se conserva alguma cousa d'esta antiguidade, pois dizemos folhas de papel sem o papel ter folhas, mas é em lembrança das primeiras que se usaram na escriptura. Depois se escreveu em uma casca tenra de arvores, que é o entreforro da cortiça. E porque a esta chamavam livro, conservam ainda agora elles o nome, e a divisão que agora fazem os escriptores [24] de livro primeiro, segundo, e d'ahi adeante é o numero, porque então deviam contar aquellas cascas. Tambem se escreveu em o miolo de uma maneira de juncos, a que chamaram papiros: d'onde aos latinos ficou o nome para o papel. Depois se escreveu em taboas nas quaes sobre cêra, com um instrumento de ferro ou de latão, a que chamavam estylo, se assignavam as lettras; e do ferro com que se escreveram, se veiu a derivar o que agora dizemos bom ou máu, humilde ou altivo estylo de escrever, passando-se por translação a perfeição do instrumento ao concerto e policia das palavras. D'este proprio modo se usa no nome de carta, que alcança em genero a todo genero de papel escripto e ainda pintado. Os portuguezes fazemos este nome particular tomando carta missiva por a principal de todas; e assim basta dizermos carta, sem mais declaração, para se entender que é esta; porém nas especiaes d'ellas usam o nome com seus attributos. E nos instrumentos judiciaes, que testemunham antiguidade, se diz carta precatoria, dimissoria, citatoria, de liberdade e de venda, e outras muitas: e ainda as de jogar, sem terem lettras, se chamam commummente cartas. E a gente aldeã, conservando alguma cousa da antiguidade, a qualquer estampa ou pintura em papel chamam carta. Os latinos puzeram nome ás cartas missivas Epistola, do verbo grego, que quer dizer mandar: e letras, porque a carta consta d'ellas. Os italianos deram singular e plural a este nome segundo. E na nossa lingua a que chamam limitada, não faltou nenhuma d'estas differenças, antes houve maior perfeição: porque a umas chamaram cartas mandadeiras; ás que tinham menos de papel, escriptos; e ás cartas de Italia lettras, que são as de Roma, e as de cambio; porque deviam ter o mesmo principio; porque logo nos de Portugal mandavam os reis d'elle por lettras copiosas doações á sé apostolica, do que conquistavam. De maneira que o nome de carta, quanto á sua origem, é geral e commum; e entre nós particular das cartas missivas; e pois lhe descobri o nome, é necessario, sr. Leonardo, que lhe deis agora o ser.

—Parece-me (respondeu elle) que estou já no meio da minha obrigação (conforme ao dito do poeta) que quem começou, tambem tem feita a maior parte. E passando [25] do nome da carta aos exteriores d'ella, digo que ha de ter: Cortezia commum, regras direitas, lettras juntas, razões apartadas, papel limpo, dobras eguaes, chancella sutil, e sêllo claro; e com estas condições será carta de homem da côrte. E falando da cortezia (disse Solino) que entendeis n'ella?—A cortezia (lhe respondeu elle) não falando na leitura da carta, é o sobrescripto, o apartado da cruz, até á primeira regra; e do principio do papel até o começo de todas: e o final, o nome de quem escreve, abaixo da data da carta. E porque n'isto ha differentes costumes, e erros, me parece bem fazer de tudo lembrança.—Nos sobrescriptos temos pouco que tratar (tornou Solino) que depois que com a pragmatica os cercearam, não ha já prezados, magnificos, honrados, e illustrissimos, nem os senhores. Ainda (tornou Solino) ficaram alguns de rodeio que são muito para vêr, e assim o dizem elles: a cujo proposito vos hei de contar uma historia. Eu (como todos sabeis) vejo com oculos, e (conforme a opinião de alguns) com elles muito menos. Os dias atraz, sendo eu ainda innocente d'este costume, me deram uma carta de um amigo, que dizia: Para vêr o senhor Solino: aberta ella, a lettra tal, tão miuda, e embaraçada, que desmentia o sobrescripto, e por nenhuma via pude vêr o que dizia. Mas respondi n'outra lettra muito peior, e puz no sobrescripto: Para cegar o senhor Fuão; ao que elle depois me respondeu, que estava pelo costume dos presentes.—Nem todos se hão de seguir (disse o doutor) que, como escreve o philosopho Favorino, cada um deve usar de palavras presentes, e costumes antigos; e mais quando é uso é abuzão, que no primeiro, por ser tal, offenderam as leis; e no segundo o reprehendem os mesmos que o usam. Comtudo Leonardo dirá o que lhe parece.—A mim respondeu elle que a lei é boa, e a cautella escusada. Porém o sobrescripto tem mais partes de cortezia, que essa que dissestes, ainda que á primeira vista pareça cousa tão limitada. E para que comecemos em ordem; sobrescripto é uma noticia vulgar da pessoa a quem se escreve, e do logar aonde lhe mandam a carta, exprimindo-se n'elle o nome, e a dignidade, por onde é mais conhecida, e o do logar onde n'aquelle tempo assiste. N'esta regra geral ha uma limitação, e é: Que ás pessoas do grande titulo, e cargo [26] se pode calar, ou usar de outro modo differente esta segunda noticia; porque, além dos cargos declararem muitas vezes a assistencia das pessoas, parece cortezia que as que são mui conhecidas por seu titulo, e dignidade, basta essa, e o nome para serem buscadas. O primeiro modo é, como se escrevessemos a N. Vice-Rei da India, A. N. General de Portugal. O segundo como a N. Embaixador d'el-rei de Hespanha em a Côrte de Roma. E posto que estes assistam a tal tempo em villas, ou cidades particulares, não é necessaria outra leitura no sobrescripto. Não trato aqui das cartas enviadas aos reis, de seus vassalos, porque não entram n'esta regra as que vem dirigidas a seus conselhos particulares.—Bem podereis (disse o doutor) metter n'esse logar a historia de um letrado da minha profissão, que mandando uma informação á Meza do Paço, poz no sobrescripto: A El-Rei nosso Senhor nos seus Paços da Ribeira, junto de Luiz Cesar.—D'outro soldado ouvi eu contar (disse Solino) que escreveu á India: A. N. Vice-Rei da India, nos Paços de Goa, defronte de um Lanceiro torto.—Para gente tão nescia (disse Leonardo) não servem preceitos: mas em outra vejo muitas vezes sobrescriptos tão miudos, e sobejos, que pessoas muito particulares se podiam dar por afrontadas d'elles, como é: A fuão, em tal terra, em tal rua, detraz de tal parte, defronte de tal casa, e junto a N. E ás vezes é a pessoa tal, que deve ser mais conhecida por si, que pelas confrontações.—Dos sobejos (atalhou Solino) não posso eu calar um, que vi ha poucos dias, de um frade que escreveu ao seu provincial, que tinha cinco padres nossos, como conta benta, e dizia: Ao muito Reverendo Padre nosso, o nosso Padre N. nosso Padre Provincial, no Convento de nosso Padre S. N. Padre nosso.—Por isso digo (proseguiu Leonardo) que a noticia deve ser vulgar que nem afronte, nem lisongeie, nem sobeje, nem falte.—Mais provavel é (disse D. Julio) que se peque nos sobrescriptos por demazia, que por falta; porque todos dizem o nome da pessoa, e a terra para que escrevem.—Não já um (respondeu Pindaro) que escreveu: A meu filho o Licenciado em Salamanca, que Deus guarde, parecendo-lhe que bastava o grau em logar do nome. Mas que logar dareis vós aos titulos dos sobrescriptos? Que ha alguns mais compridos que as cartas que resam o nome, [27] o titulo, o senhorio, o cargo, a commenda, e ainda as pretenções da pessoa a quem se escreve.—A mim me parece (tornou Leonardo) que os titulos é cousa conveniente, e necessaria; usados porém com moderação conforme ao que tenho dito: que noticia vulgar é ser um homem conhecido por o senhorio, e cargo que tem; e assim se ha de escrever de cada um o cargo que tem. e por onde é mais conhecido. Do senhorio como: A. N. senhor de tal Villa. E estando em ella: A. N. na sua Villa N. O que tambem se usa nos logares, e quintas, em que cada um assiste. Do cargo: A fuão, do Conselho d'el-Rei, e seu Presidente da Fazenda, da Consciencia, etc. A fuão Desembargador d'el-Rei nosso senhor, e seu Ouvidor dos Aggravos, etc. Tudo isto com a brevidade necessaria: por que o sobrescripto, como disse, serve de noticia, e não já de adulação. E na carta, não se permitte no sobrescripto o que se não consente no interior; como se algum escrevesse a este Fidalgo, e lhe quizesse pôr os títulos, que elle merece, no sobrescripto; convém a saber: A D. Julio, Columna da nobreza de seus passados, e gloria das esperanças de sua patria. Ou: Ao Doutor Livio, honra e luz do Direito Civil, exemplo da philosophia, e thesouro da humildade: cousas eram estas, que d'elles se podiam dizer: porém não são no logar do sobrescripto. E passando d'elles adeante.

A segunda cortezia é no papel, da cruz até á primeira regra; que ha alguns, que lhe põem os olhos muito junto com as sobrancelhas: outros, que lhe deixam pelo meio uma estrada de coches; e pela desconformidade, que ha entre uns, e outros, veio a ser a regra entre os eguaes, que fique em branco a quarta parte do papel, que vem a ser no alto a primeira dobra; e na ilharga um espaço razoado, que dá logar á mão para ter a carta sem cobrir as lettras, e para se cortar, ou passar chancella sem as offender.—E de que nasce (perguntou Pindaro) que muitos deixam mais de meio papel em branco da ilharga, e vão a cerzir a lettra com a cortadura da tesoura?—Esse erro, e outros muitos (respondeu elle) nascem de mudarem alguns os serviços ás cousas: porque a invenção não estava mal no seu logar, se a não fizeram servir nos alheios. Em cartas de negocio, feitas a pessoas occupadas, que se fazem por capitulos, e apartadas, ou perguntas [28] sobre materias dos mesmos negocios, se deixa egual parte do papel para responder á margem em ordem a cada uma das cousas; e assim fica servindo para duas, uma mesma carta; mas estas não guardam a regra, nem a cortezia das missivas. O mesmo erro ha no que Solino primeiro apontou dos sobrescriptos: Para vêr o senhor Fuão, que nasceu de alguns papeis emmaçados, que se passavam de ministro a ministro com sómente aquelle sobrescripto sem outra carta, e sem terem mais de carta, que o irem cerrados, e sellados, deram occasião aos que usam o mesmo termo nos sobrescriptos d'ellas.

—Muitos erros ha (disse D. Julio), nascidos da mesma occasião. E posto que seja sahir um pouco fora do proposito, é tão grande bugia da virtude e da honra a vaidade, que, sómente por a seguir em as apparencias, tropeça a cada passo em desatinos. Este escreveu, Para vêr; porque N. Ministro, ou privado escreveu assim; e veste de tal panno, porque N. de maior qualidade o trazia; e o que este fez (pode ser por remediar o seu frio) faz outro á imitação, e se abraza de quentura. A Hespanha se passou o uso de vestir dos soldados de Flandres, por bizarria; e razão tinham de imitar em outras cousas aos praticos que militam em uma praça tão ennobrecida das nações da Europa; mas o que elles faziam obrigados do clima, e o sitio da terra, usavam os cortezãos por gala, levados do engano da verdade, os chapéos de aba grande contra a neve, os ferragoulos abotoados, e com descanços para o frio, as meias de escarlata debaixo de botas altas contra a humidade, as solas levantadas por detraz, para não resvalarem nos caramelos, as roupetas abertas sobre as armas; tudo isto, e outras muitas cousas, sendo inventadas pela necessidade, se passaram á galanteria. Deixo as côres de Rei, e da Infante, e a historia do Mercador com el-rei D. João o III, que lhe pediu que se quizesse vestir de um panno que tinha muito rico, o qual lhe daria de graça; que com este ardil, em el-rei o vestindo, vendeu elle a mór valia uma quantidade de peças d'aquella côr que lhe haviam entrado n'uma partida.—Não é isso sómente nas cartas, e nos arrojos, disse o doutor; que ainda passa adeante o engano. Em a côrte do imperador Carlos V, andando elle indisposto, lhe [29] mandaram os medicos comer borragens, por ser herva medicinal para a sua enfermidade; e porque os fidalgos e titulares a viam de ordinario na meza imperial sem advertirem a occasião porque se fazia, veio a valer entre elles muito, e a fazerem mil iguarias d'aquella herva, de sorte que se semeavam tantas nas terras onde a côrte assistia, que não havia agros d'outro fructo. Vão-se emfim as cousas mal, e ás vezes são nascidas de bom costume.—Assim é (disse Solino) que até oculos, que se inventaram para remediar defeitos da natureza, vi eu já trazer a alguns por galantaria.—D'essa maneira seguiu D. Julio se devia mudar para as cartas o estillo dos papeis, que o não estão por imitarem aos validos. E tornando á cortezia, que cousas tem mais de que tratar?

—A terceira, tornou elle, é o nome, e signal do que escreveu a carta, que nem ha de estar tão junto das lettras, que pareça soffrego d'ellas, nem no meio do papel como quem escolheu melhor logar, nem tão apertado, que fique ausente das regras, nem tanto na ponta do fim, que pareça que se amuou áquelle canto; mas com um meio ordinario, como é assignar-se um pouco abaixo das regras, mais inclinado á parte direita que á esquerda, que é uma certa modestia, e humildade de quem escreve.—E que dizeis, (perguntou o doutor) do acompanhamento do signal? Porque ha uns que se nomeiam servidor de vossa mercê N., outros vassallo; outros captivo, outros seu N. e ha n'isto muita variedade, e ignorancia.—Primeiramente (continuou Leonardo) servidor já se passou das cartas para os retretes: servo para os matos, e captivo para os comprimentos refinados em a pratica; creado, era termo bem creado, e seu é descortezia: e por fugir d'esta, e de alguns extremos, o mais seguro é escrever cada um o seu nome sem mais leitura.—Não sejaes tão estreito nas licenças(disse Solino) que deitaes a perder cartas que só pelos comprimentos do signal merecem fama. Um homem escrevendo a sua propria mulher, se assignou vosso servo N., e ella o fazia tal na mesma ausencia. O outro, de que contam vulgarmente, porque corria nos signaes o menor creado de vossa mercê N., escrevendo a sua mulher se assignou o menor marido vosso N., e a senhora devia de ter mais varões que a Samaritana. De uma gentil dama [30] sei eu (disse Pindaro) que escrevendo a um seu galante se assignou sua N., e elle lendo a carta, voltou para um amigo com que estava, e disse sempre temi esta nova; e perguntando-lhe o outro que era? Respondeu sua N., e é principio de verão: Outro em Coimbra, querendo-se humilhar muito aos pés de um amigo, a que escrevia, se assignou Antipoda de vossa mercê N.—Quanto mais galantes são essas historias (tornou Leonardo) tanto mais de estimar é a moderação, e bom termo de não se sahir d'aquelle limite da cortezia commum; e passando d'ella ha de ter a carta regras direitas, que ha alguns que escrevem em escadas como figuras de solfa: lettras juntas, e razões apartadas, com a distincção dos pontos, virgulas, e accentos necessarios, para fazerem perfeito sentido das razões; porque ha cortezãos, que por aformosearem a lettra, e facilitarem melhor os rasgos da penna, vão encadeando as lettras pelas cabeças, como sardinhas de Galliza; e de maneira confundem a escriptura, que não ha tirar d'ella o sentido verdadeiro de seu dono; e ha cartas bem notadas, que por mal escriptas perdem reputação; o papel seja limpo para n'elle empregar sem fastio a vista o que ha de lêr, e porque pareçam melhor as lettras bem ordenadas; a chancella sutil, porque ao abrir da carta a não offenda, que alguns a fazem parecer carta rota antes de lida: dobras eguaes, porque o concerto auctorisa as cousas, e as faz parecer melhor: o sêllo claro, assim para lustro da carta, como para guarda d'ella, pois é o cadeado que a defende dos curiosos de saber segredos alheios.—Não corrais com tanta pressa (disse D. Julio) por essas particularidades, e miudezas, que em algumas d'ellas tinha perguntas que fazer; mas contentar-me-hei com as que se me offerecerem de novo sobre a materia das armas, e tenções com que se costumam sellar as cartas; e assim estimarei que nos digaes d'isto alguma cousa.

—As armas (respondeu elle) é a insignia que cada um tem de sua nobreza, conforme ao appellido com que se nomeia, e com o sinete d'ellas sella as cartas de importancia, ou com elmo, e folhagens sobre o paquife do escudo, ou com elle em tarja, como tenção; que estas como são pensamento, e desenho particular, se abrem ás vezes em redondo, ovado, ou quadrangulo, e outras [31] figuras, sem respeitar a do escudo. Em Portugal é cousa muito antiga aos principes trazerem tenções, e emprezas com lettras, e ainda as usavam misturadas nas Armas Reaes, que posto que n'aquelle tempo não estavam tão apuradas como agora, nem eram sujeitas á arte, que d'ellas e para ellas fizeram os modernos, não lhes faltava entendimento, e galanteria. El-rei D. João o I trazia na orla das Armas uma lettra, que dizia: Por bem. E a rainha D. Filippa de Alancastre sua mulher, outra que respondia a esta em Inglez que dizia: Me contenta. O infante D. Fernando seu filho, o Santo, trazia uma capella de hera com seus cachinhos, e no meio d'ella a Cruz de Aviz, de cuja cavallaria era Mestre. O infante D. Pedro uma capella do carvalho com suas bolotas, e no meio umas balanças, e nas Armas Reaes, no banco de pinchar, em cada pé d'alto abaixo mãos, e por cima umas lettras escriptas muitas vezes, que diziam: Dizer, e entre cada palavra d'estas um ramo de carvalho com bolotas. O infante D. João, que foi mestre de S. Thiago, casado com a neta do condestavel D. Nuno Alvares Pereira, trazia uma capella de ramos de silva com cachos de amoras, com as bolsas de S. Thiago no meio, e tres conchellas em cada uma com uma lettra em Inglez, que dizia: Com muita razão. O infante D. Henrique, Mestre na Ordem de Christo, trazia as armas do Mestrado, e de antigas de Portugal, e ao redor um cinto largo de correia, que abroxava no cabo de baixo, e uma fivella que fazia volta com a correia, e em Inglez a lettra dos cavalleiros de Garrotea, que elle tambem era, e dizia: Contra si faz quem mal cuida. E uma capella de carrasco, e no banco de pinchar tres flôres de lirio em cada pé. El-rei D. Affonso o V trazia pintado um mundo com esta lettra: Conheço que não te conheci. El-rei D. João II seu filho, trazia um rodizio, com esta lettra: Setere: e na outra trazia um Pelicano ferindo o peito, e dizia a lettra: Pela lei e pela grei. A rainha D. Leonor sua mulher, trazia uma rede de pescar, a que chamam rastro. El-rei D. Manoel, uma esphera com uma Cruz. A excellente senhora, uns alforges, e nas cevadeiras pintadas as Armas de Castella com esta lettra: Memoria de mi derecho. O marquez de Valença, neto do conde D. Nuno Alvares, trazia dois guindastes, que levantavam um titulo de pedra, com [32] quatro lettras, cada uma por parte. E além d'estas ha memoria d'outras muitas, que dão testemunho do uso que d'ellas havia n'este reino.—Por certo, disse D. Julio, que estou assás contente do fructo que colhi da minha pergunta, por saber curiosidade tão notavel dos nossos principes antigos, que para a minha natural inclinação é a cousa de maior gosto, e interesse: e não fôra menor; pois falamos de Armas, e Tenções, e vós sois visto n'ella fazer que saibamos mais alguma cousa atraz d'esta materia, principalmente d'onde nasceu, e teve principio o uso dos Escudos de Armas, e das Tenções.

—Quanto á minha opinião (respondeu Leonardo) é que armas, e emprezas, ou tenções não tiveram no seu principio a differença, que agora lhes assignam os que d'ellas escrevem de lettras, e corpos sem lettras, com limitações, e regras mui apertadas. Antes me parece, que as armas eram as insignias que os reis, e imperadores davam aos seus para ser conhecida sua nobreza, conformando-se na figura d'ellas com a qualidade dos successos por onde as mereceram, ou com a antiguidade do sangue d'onde descendiam a quem as davam, e as que os mesmos reis tomavam para si em memoria de semelhantes feitos, ou derivadas por seus antecessores. Emprezas, ou tenções são as que os mesmos reis, principes, ou particulares tomam, conformando as figuras, e lettras com o desenho, e pensamento que cada um tem, para emprehender cousas altas. E d'aqui adeante entram as regras, que depois lhe aconteceram; que, por ser um discurso mui comprido, não tem logar em noite tão breve. Além d'estas ha, outras armas dos reinos, provincias, republicas, e cidades, que se devem chamar diviza, que tiveram principio ou das cousas de que são mais abundantes, ou da maneira em que fôram povoadas, ou adquiridas. E no que toca ao principio das armas, Hercules foi o primeiro que trouxe por armas a pelle do leão que matou na relva Nemea, depois da victoria que d'elle teve, e antes d'esta victoria trazia a mesma ínsignia do porco de Erimanto, que matou em Arcadia. Jazon trouxe por armas o Velocino de ouro, que conquistou. Thezeu o Minotauro. Ulysses, o Paladion, e Eneas o escudo que ganhou de Ulysses na guerra de Troia: estas eram verdadeiras armas, em memoria de valorosos feitos. E quanto ao principio das emprezas, [33] escreve Pauzanias, que Agamemnon trazia no escudo a cabeça de um leão de ouro, com uma lettra que dizia: Este é terror dos homens, e o que o traz é Agamemnon. Antioco trazia por armas outro leão. Heitor, dois leões de ouro em campo vermelho. Seleuco um touro. Alexandre, um rei de ouro em seu throno em campo azul. Alcibiades um Cupido. Lucio Papirio o Pégazo. Cezar uma aguia preta. Pompeio um leão com uma espada empunhada. Judas Macabeu um dragão vermelho em campo de prata. Attila um açor coroado. E cada um d'estes, posto que poderam tomar a figura das armas em significação de feitos celebrados, e victorias adquiridas, só quizeram dar-lhe as figuras conforme ao seu pensamento; e Cesar, ao agouro que da aguia teve. E descendo ás armas particulares dos reis, que sabemos: As do imperador é uma aguia preta de duas cabeças em campo de ouro, em memoria da de Julio Cesar, e da união do Imperio Oriental, e Occidental. Armas d'el-rei de França são tres flôres de lirio de ouro em campo azul, que fôram milagrosamente dadas a el-rei Clodoveu. Armas d'el-rei de Portugal, os cinco escudos de azul em cruz, em signal do vencimento que o primeiro rei D. Affonso teve dos cinco reis mouros no campo de Ourique, e n'elles, e com elles, os trinta dinheiros de prata, por que nosso Senhor foi vendido, em memoria da sua Paixão, e do apparecimento que o mesmo rei vio antes da batalha: por orla das armas sete castellos de ouro em campo vermelho, e por timbre, um Drago coroado. Armas d'el-rei de Inglaterra, tres Leopardos de ouro em campo vermelho: posto que d'antes tinha el-rei Arthur por armas tres corôas de ouro em campo azul. Armas d'el-rei de Hespanha, os castellos, e leões, tão conhecidos no mundo. Armas d'el-rei de Frizia, um escudo de prata, riscado de linhas vermelhas, e atravessado com uma banda azul. Armas d'el-rei de Jerusalem, uma cruz de ouro nos extremos, com cruzetas do mesmo metal, e outras pelos vãos dos angulos. Armas d'el-rei de Polonia, duas aguias de prata e um homem em cima de um cavallo, do mesmo metal. Armas d'el-rei de Irlanda, uma harpa, e uma mão que a está tocando. Armas do Preste João da India, um crucifixo negro, com dois azorragues, em campo de ouro. Deixo outros muitos, como os bastões de Aragão, as [34] cadeias de Navarra, a romã de Granada, as bandas de ouro, e vermelho de Malhorca, e outras que querer contar fôra infinito. Tem do mesmo modo as provincias suas armas. Primeiramente, as quatro partes, em que o mundo se divide: Azia, tres serpentes: Africa, um elephante: Europa, um cavallo: A America, um crocodilo: Italia tinha por armas antigamente o cavallo: Thracia, um Marte: Persia, um arco: Scythia, um raio: Armenia, um bode: Fenicia, um Hercules: Sicilia, uma cabeça armada: Albania, um cágado: Frizia, uma porca: Hespanha, um castello: Luzitania, uma cidade. As Republicas tem tambem suas armas particulares: A de Veneza, um leão com um livro nas unhas: A de Sena, uma loba: A de Genova, um S. Jorge: A de Florença, um leão com um livro de ouro. As Cidades, da mesma maneira: Athenas, a Coruja: Roma, a aguia: Lisboa, uma nau com os corvos, em memoria do corpo do glorioso Martyr S. Vicente, seu padroeiro: Coimbra, o drago, e a donzella coroada: Evora, as cabeças das vigias: O Porto, a imagem de Nossa Senhora entre duas torres: Leiria, uma torre entre dois pinheiros, e n'elles dois corvos. E assim todas as outras. Porém isto é já muito tarde, e gastámos n'esta materia mais tempo do que convinha á das cartas, em que começamos; e porque nas armas, e tenções nos não fique por saber algumas significações, e figuras de armas dos particulares senhores, e fidalgos de Portugal, que todas fôram merecidas com louvores de gloriosos feitos: deixando os animaes, significadores de fôrça, braveza, e velocidade: e os planetas de poder, antiguidade, e clareza, e outras figuras semelhantes: Banda significa postura de taboa: Escada, o engenho por onde se cometteu alguma obra de valor, ou difficultosa entrada, com risco da vida: faxa, ou barra, representa victoria da batalha singular de cavalleiro a cavalleiro, e quantas fôrem, tantos diremos que são os vencimentos com que se ganharam as armas. Parte de muro, torre, ou castello, significa ser ganhado, entrado, ou soccorrido, com esforço, e perigo da vida. Escadas, asteas, ou pedaços de lanças, denotam subida trabalhosa, ou defensão arriscada na mesma subida. Assim que a variedade dos corpos, ou forma que vêdes nas armas, todas nasceram de illustres façanhas, e valorosos feitos. E todas as das [35] empresas, e tenções, dão signal claro do animo, e pensamento de seus donos: e com umas, e outras se devem sellar as cartas, de maneira que se divizem as figuras, e lettras d'ellas, como tenho dito.—Vejo (disse Solino) que temos a carta cerrada, sellada, e com sobrescripto, sem ainda sabermos nada do principal d'ella. Não vos enfadeis (respondeu elle) que na noite de ámanhã a abriremos, e leremos muito de vagar a estes senhores, se não ficarem de agora cansados do sobrescripto.—Antes (disseram elles) que só o dia seguinte lhes parecia comprido, e vagaroso. E dando fim á conversação d'aquella noite, deram o que d'ella ficava ao repouso, que com a moderada recreação de horas bem gastadas é mais aprazivel.


DIALOGO III


DA MANEIRA DE ESCREVER, E DA DIFFERENÇA
DAS CARTAS MISSIVAS



Mui satisfeito ficou D. Julio de ouvir a Leonardo aquella noite na materia das armas; e quasi a escolhera antes, que a das cartas. Por alguns particulares, que desejava saber, quiz com mão alheia, por não parecer importuno, perguntar algumas cousas a Solino, que achou junto á sua porta; e depois de o saudar, lhe disse: Como estaes depois da noite de hontem.?—Como o dado (respondeu elle) que está de qualquer ilharga.—Deveis de ficar do azar (tornou D. Julio) pois tendes tão poucos pontos, que faltaes aos da cortezia:—Fiquei (tornou elle) tão cansado das da carta de Leonardo, que lhe tomei aborrecimento, e nem estou para vos servir, nem para o dizer, e perdoae-me.—Logo (disse o fidalgo) não quereis continuar na conversação d'esta noite.—Se a carta (lhe tornou Solino) ha de ser tão comprida como o sobrescripto, assim o imagino.—Pois a minha tenção (proseguiu elle) era pedir-vos que na materia das armas, que elle tocou, fizesseis hoje algumas perguntas á minha conta sobre alguns particulares das familias d'este reino.—Vós deveis buscar armas para me matar (disse Solino) porque das de hontem sahi eu tão escalavrado, que determinava fugir d'ella; e sei que tem [36] Leonardo tantos livros de armas, e gerações, que, se o tirar a terreiro, havemos mister todo o inverno para o ouvir.—Eu me contento (respondeu D. Julio) com saber que elle tem os livros, e assim o escuso do trabalho: porque n'elles lerei alguns feitos particulares dos Portuguezes merecedores dos brazões que seus successores possuem.—Bom seria (disse Solino) acabar as cartas antes de entrar por esses feitos, e para isso vos irei acompanhando até a casa de Leonardo, posto que tinha outra determinação.—Porque vós não falteis (respondeu D. Julio) quero ir mais cedo. E com esta pratica, e outras que occorriam, foram passeando, e entertendo o que ficava do dia, até que a sombra da noite, e uma chuva miuda os fez recolher a casa de Leonardo, onde os amigos esperavam já que elles chegassem; e com Pindaro outro estudante seu companheiro, por nome Feliciano, que, vindo-o a visitar, se aproveitou da occasião em sua companhia. Festejaram todos a Solino; e elle vendo o hospede, de novo se lhe inclinou com mais auctoridade, e disse para os outros: Tenho inveja á dita do senhor licenciado que veio ao abrir da carta, que cerrámos sem elle, e com não pequeno trabalho.—Não tivera eu por tal (respondeu o estudante) antes por grande ventura, se do passado me coubera alguma parte; e esta, que alcanço agora com o consentimento d'estes senhores por meio de meu companheiro, tenho por muito grande favor, e mercê de todos.—Essa humildade (disse Solino) está acreditando mil esperanças de vosso entendimento; e bem sei eu que o de Pindaro sabe fazer esta eleição dos amigos tambem, como em tudo o mais é discreto, e acertado: e para que entendaes o logar em que vos fico, sabei que eu sou o mais certo creado que elle tem entre os senhores presentes.

A esta cortezia respondeu Pindaro, e o estudante com as suas, até que o doutor os despartiu, e disse a Leonardo:—Bem gastado era o tempo em comprimentos tão cortezãos, e tão devidos, se o desejo, que temos de continuar a materia da noite passada, o não quizera poupar todo para ella: e assim vos peço que me façaes mercê, e a todos, de ir por deante.—Tendes razão (tornou elle) de me aliviardes mais depressa do cuidado, em que me mettestes. E tornando a traz, por me aproveitar dos vossos principios, dissestes que cousa era carta [37] na origem do seu nome, os primeiros modos de escrever, e o como entre nós se conservou; tratei do sobrescripto, da cortezia, das lettras, do signal, das dobras, e sello da carta, o que bastou para todos ficardes mais enfadados, que saudosos.

Agora, começando a entrar na leitura das regras, saibamos que cousa é carta missiva, ou mandadeira, e o para que foi inventada; que pela definição de Marco Tullio, a quem todos seguem, é uma messageira fiel, que interpreta o nosso animo aos ausentes, em que lhes manifesta o que queremos que elles saibam de nossas cousas, ou das que a elles lhes relevam. Tres generos de cartas missivas assigna o mesmo Tullio, aos quaes alguns costumam reduzir muitas especies d'ellas. O primeiro é das cartas de negocio e de cousas que tocam á vida, fazenda e estado de cada um, que é o para que as cartas primeiro foram inventadas; que, por tratarem de cousas familiares, se chamaram assim. O segundo, de cartas d'entre amigos uns aos outros, de novas e comprimentos de galantarias, que servem de recreação para o entendimento, e de allivio e consolação para a vida. O terceiro, de materias mais graves, e de peso, como são de governo da republica e de matérias divinas, de advertencias a principes e senhores e outras semelhantes. O primeiro genero se divide em cartas domesticas, civis e mercantís. O segundo em cartas de novas, de recommendação, de agradecimento, de queixumes, de desculpa e de graça. O terceiro, que é mais grave e levantado, contém cartas reaes em materias de estado, cartas publicas, invectivas, consolatorias, laudativas, persuasorias e outras, que se pagam a cada uma das que nomeei em todos os tres generos.—E onde deixaes (disse D. Julio) as cartas amatorias ou namoradas? que se na vossa edade não teem logar, parece que o mereciam n'este díscurso.—Bem sei eu (tornou Solino) quem as tomára no primeiro; mas o sr. Leonardo já não joga com essas cartas.—Não me esquecia de todo d'ellas (tornou elle), mas deixo-as para que no fim das mais sejam melhor recebidas, e para proseguir a materia quem agora as puder apurar.

—As do primeiro genero (disse o doutor) me parecem cartas muito seccas, que é materia esteril para que empregueis n'ella sem fructo o vosso entendimento.—Antes [38] (disse Leonardo) como essas foram as primeiras, e d'ellas nasceram as leis e as regras para outras, será razão que debaixo d'este genero tratemos das mais, repartindo o pouco que eu soube dizer, por os logares de cada um. E assim me parece, que como a carta que escrevemos ao amigo sobre seu negocio; ao creado sobre as cousas da casa; e o mercador ao outro sobre seus tratos e mercancia; um aviso e uma relação que lhe não podemos fazer em presença, fazendo-o por meio de uma carta, devemos usar n'ella o que na pratica costumamos que é brevidade sem enfeite, clareza sem rodeios, e propriedade sem metaphoras, nem translações.—E quando (disse o doutor) faremos breves em uma carta?—Quando (respondeu elle de tal maneira, e com tal artificio a escrevermos, que se entendam d'ella mais cousas do que tem de palavras.—E como póde ser? (tornou elle).—Por meio dos relativos e subsequentes (disse Leonardo) que, sem nomear as palavras, as repetem; e por ordem das sentenças e adagios que sem entender as cousas as declaram; e n'isto se adeantam muito as cartas da pratica familiar, que, se escrevem de cuidado, e tem mais tempo de se furtarem palavras para se subentenderem razões.—E que cousa é enfeite ou affectação? (perguntou Solino).—É, disse elle, o cuidado sobejo de enfeitar as palavras com elegancia ou por via de epithetos, ou de escolha de logar para as syllabas fazerem melhor som aos ouvidos. E em favor d'esta opinião, dizia um homem insigne d'este reino, e que teve n'elle os melhores logares da republica ecclesiastica e secular, que a carta e a mulher muito enfeitada, em certo modo eram deshonestas: e eu antes seguira este voto, que o de alguns rhetoricos, que deram á carta missiva cinco partes de oração, convém a saber: saudação, exordio, narração, petição e conclusão: e se houvessemos de seguir o seu estylo, mudariamos de todo o das cartas.—Nunca rhetoricos (disse o estudante) souberam escrever cartas, se as sugeitaram ás leis da oração. Mas parece que o sr. Leonardo dá a entender que na carta se não devem usar epithetos ou adjectivos por evitar o enfeite, e sobeja elegancia d'ella: e eu tenho que sem elles se não póde escrever.

—Os epithetos (proseguiu Leonardo) ou servem para [39] discripção e declaração das cousas ou para propriedade, ou para ornamento e enfeite d'ellas. Os primeiros são necessarios nas cartas como em tudo; os segundos menos, os terceiros escusados. Para dizer ou escrever, um homem douto, uma mulher formosa, um cavallo ligeiro, uma arvore alta, um caminho comprido, um peito forte, sào attributos necessarios para declarar o que queremos dizer; porque ha homem que não é douto, mulher que é feia, e os mais. Os de propriedade como ferro frio, relva verde, sol claro, calma ardente, areia sêcca, pedra dura, estes são pouco necessarios nas cartas: e sómente por comparação ou em adagios se devem usar n'ellas, como dizendo, é duro como pedra, ou é dar em pedra dura, ou é malhar em ferro frio. Os de elegancia e ornamento, tenho eu que se hão de degradar das cartas missivas para fóra do termo d'ellas, como agora firme soffrimento, incansavel diligencia, solicito desejo, cuidadoso receio, importuna lembrança, desusada brandura, e outros que tem juiz de seu fôro. Assim que não digo que faltem nas cartas epithetos necessarios, mas que se escusem os sobejos; nem se andem grangeando as palavras para fazerem assento em o cabo da sentença, que será ir contra a brevidade sem enfeite ou affectação.

—Parecia-me a mim (disse Solino) que a carta breve seria a de menos regras; e que não estava a cousa nos epithetos serem proprios ou necessarios. Uma carta (proseguiu elle) póde ser breve, e levar escriptas muitas paginas de papel; porque póde tratar de tantos negocios ou cousas que as occupem, mas estarão relatadas de modo que seja a leitura comprida, e a carta breve.

—O segundo ponto (perguntou Pindaro) que é clareza sem rodeio, me parece a mim que fica declarado n'essa primeira parte; pois sendo breve a carta, e não tendo enfeite nas palavras, será clara e sem rodeios.—Não estaes no caso (tornou elle), que posto que a clareza é parte da brevidade, a clareza é das razões, e a brevidade das palavras: e assim póde a carta ser breve, mas confusa; e clara sendo comprida: que muitos para dizerem cousas querem estrada coimbrã, e caminho direito; buscam rodeios e atalhos em que se perdem, confundindo o que querem dizer. Em uma minha doença escreveu um amigo, e dizia: Disseram-me que a saude [40] de vossa mercê corria perigo na inconveniencia de medicos discrepantes no remedio dos males d'essa doença. E fez estas trocas onde podia dizer: Soube que os medicos não se conformavam na cura dos vossos males, que na duvida d'elles corria risco a vossa saude. Outro me escreveu ha muitos dias: Se vossa mercê não está ausente das lembranças que suas promessas me asseguraram de haver de ter muitas d'este seu captivo. Havendo de dizer: Se vos não esquece que me promettestes de ter lembranças de mim. E porque ainda temos logar de tornar aos particulares das disposições das razões:

Passando ao terceiro ponto, que é propriedade sem metaforas, ou translações.—A propriedade (disse o doutor) era materia da noite passada, quando falastes das letras e razões em seu logar, sem barbaria, nem impropriedade no escrever: e como isto é parte do exterior da carta, já hoje não tem dia.—A propriedade que vós dizeis (accudio Leonardo) é exterior, mas muito differente a de que eu trato, e não pouco importante ao falar, e escrever, que é a propriedade das palavras na sua propria significação, sem serem emprestadas por via de translações para outros logares, que é termo que argue nobreza de linguagem; e porque fique mais declarado, sabei que dizemos em portuguez, falando propriamente dos nomes: Bando de aves, cardume de peixes, rebanho de ovelhas, fato de cabras, vara de porcos, alcatéa de lobos, tropel de cavallos, cafila de camellos, récua de cavalgaduras, manga de arcabuzeiros, , ou roda de homens; e se, trocando isto, disséramos: Um cardume de aves, ou uma alcatéa de ovelhas, ou um fato de porcos, seria impropriedade, e desconcerto. Dizemos tambem nos verbos: Chiar de aves, balar de gado, grunhir de porcos, ladrar de cães, rinchar de cavallos, bramir de leões, empolar de mares, encapelar de ondas, assoprar de ventos, etc. E se dissessemos chiar de porcos, rinchar de leões, e grunhir de cavallos, seria o mesmo erro. E porque ha metaforas e translações tão uzadas e proprias, que parecem nascidas com a mesma lingua, que como adagios andam pegadas a ella, se devem trazer (quando forem taes) nas cartas missivas, do mesmo modo que na pratica se costumam. Dizemos dos nomes: folha de espada, lume de espelho, veia de agua, braços de mar, lingua de fogo, lanço de muro, faxa de ferro, e outras semelhantes: e [41] nos verbos: lançar o cavallo, fazer á capa, quebrar a palavra, cuspir o pelouro, arripiar a carreira, e outras muitas: e além d'estas tão usadas, e naturaes, que servem de propriedade á lingua portugueza, ha outras nascidas de proverbios, ou adagios, que tem o mesmo logar, e antiguidade, como são furtar o corpo, ir vento em pôpa, nadar contra a agua, ficar em secco, repicar em salvo, tirar barro á parede, etc. E quanto a carta tiver mais d'estas, será mais breve, e cortezã; pois, como primeiro disse, por este modo se entendem da carta mais coisas, do que tem escripto de palavras.

Pelo contrario, usando, em logar d'estas, outras humildes, populares, ou innovadas, será vicio na propriedade da carta; como se nos nomes dissessemos: um feixe de cuidados, um mar de encommendas, um moio de queixumes, um golpe de razões; e nos verbos, como: enfeitar o desejo, tropeçar em cuidados, navegar em desconfiança, e outras muitas. Esta é a propriedade, de que trato, e a que me parece que se deve usar no escrever das cartas missivas; porque não soffre o estilo d'ellas o que em a pratica, ou em outro genero de escriptura não sómente se permitte, mas muitas vezes se deseja.

—Espero (disse D. Julio) que deis alguma limitação, ou declareis a linguagem, que se deve usar n'este estilo das cartas; porque encontro muitas muito mal escriptas, cujos erros, a meu ver, nascem dos homens se cançarem muito em quererem parecer singulares.—Posto que isso pertence primeiro ao fallar, que ao escrever (respondeu Leonardo) pois, como já disse, devemos escrever como praticamos; as palavras da carta hão de ser vulgares, e não já populares, nem exquisitas: vulgares de modo que todos as entendam; e ao menos, que a quem se escrevem, não sejam peregrinas: e não já populares, que sejam termos humildes, palavras baixas, que a cortezia não recebe: e que tão pouco, em logar dos adagios, e sentenças, tenham anexins. Tambem se deve fugir ao termo exquisito de palavras alatinadas, ou carreteadas de outras linguas estranhas, que sempre tem o sabor da sua origem.—Assim na linguagem, como em tudo (accudio Feliciano) ficavamos satisfeitos, se de aquelles tres generos, em que o senhor Leonardo dividio as cartas, déra alguns exemplos que nos allumiaram; porque nem as regras sem elles [42] ensinam de todo, nem se póde perder a lição de tão bom estilo. O que eu não pedira, se foram dos vinte generos de cartas, em que um rhetorico as dividio; que, por querer dar leis, e partes a cada uma, as confundio todas.—Em tudo (tornou elle) vos quizera satisfazer: porém cartas mais se hão de escrever em occasião, do que trazerem-se por exemplo; que é o porque eu lhe nào déra regra certa, nem das muitas, que ha bem escritas, se póde tirar; que esse auctor, que vós dizeis que lhe assignou vinte generos, achará fóra d'elles infinitas cartas, bem melhor escriptas, que as com que os elle quer auctorisar. Porém, com o presupposto de não dar preceitos:

As cartas do primeiro genero, familiares, domesticas, civis, e mercantis, respeitam tanto a brevidade, que não podem os rhetoricos dividil-as em partes, se não forem nas da oração; e bastava para exemplo aquella de Cicero a Cornelio, que dizia sómente:


carta de cicero a cornelio


"Alegrai-vos de eu não estar mal; pois terei o mesmo contentamento de saber que estais bem."



E muito é mais para notar uma carta de Octavio Imperador para Caio Druzo seu sobrinho, que contém bem mais coisas, e avizos que palavras, e dizia:


carta de octavio a druzo


"Pois estais no Illyrico, lembrai-vos que sois dos Cezares; que vos mandou o Senado; que sois moço; meu sobrinho; e cidadão Romano."



E estas, e outras semelhantes, nem tem regra, nem deixam de ser cartas. Mas porque não só nos ajudemos das antigas, mas tambem com as nossas façamos pestoleta; esta é breve, e domestica, que um cortezão escreveu a seu amigo, a quem em uma ausencia deixára sua casa; e dizia:

[43]
carta moderna a um amigo


"Estou tão confiado no que vos mereço, e tão seguro no que de vosso animo tenho conhecido, que me não dá cuidado a familia que deixei á vossa conta; senào o trabalho, que vos dará o sustentalla: não procuro saber d'ella mais, que novas de vossa saude; que em quanto a tiverdes, estará sem sobresalto a minha vida."



Á qual o amigo respondeu com brevidade; e dizia d'esta maneira:


resposta


"N'esta casa só vós fazeis falta; mas como sois o tudo d'ella, ainda que sobeja a minha diligencia, lhe falta tudo. No que é servir-vos, a todos satisfaço, senão o meu desejo, que é igual ás obrigações que vos tenho. Vivei seguro; e gozai saude; que, em quanto a tiver, porei por vossas coisas a vida."



—Não estão as cartas para desprezar (disse Solino) e para me assegurar se a vossa memoria é archivo d'ellas, ou se as ides fingindo de repente (ainda que isto é menos curiosidade, que tenção) hei de pedir por parte d'estes senhores que de alguma nos deis semelhantes exemplos.—Não quero (disse elle) que acrediteis tanto o meu entendimento com mostrardes desconfiança da memoria; mas a troco do louvor vos hei de obedecer nas que me lembrarem: e proseguindo nas da segunda especie d'este genero, me parece carta civil, e breve esta, que um amigo escreveu a outro, que mudava sua casa para a terra, onde elle vivia; e dizia:


carta de um amigo


"Espero com grande alvoroço que venhais para esta cidade, para que com vossa companhia viva n'ella contente, e vós desenganado de quam pouco em si tem que me possa alegrar, senão depois que vos possuir."



A quem o amigo brevemente respondeu em outra que dizia:


[44]
resposta


"Assim como o desterro em o melhor lugar é penoso, nenhum pode haver tão esteril, que, tendo a tal amigo, não seja desejado. Vós sois a quem busco, é força que me contente a parte onde vos achar; que as pedras não fazem a cidade, senão os homens: nem as commodidades da vida a sustentam, senão os amigos."



As mercantis posto que são segundo os tratos, e negocios, e acodem mais a elles, que ao bom termo dos comprimentos; não deixa de haver muitas tão bem escriptas, que podem ter logar entre as melhores; e ainda que não é d'ellas uma, que eu vi há poucos dias, a darei por ser tão breve, e era esta:


carta mercantil


"Ha nova de Cossarios no mar; e por esse respeito grande risco nas fazendas d'essa terra: porém a valia d'ellas será muito avantajada, se chegarem a este porto a salvamento; se a cubiça do interesse vence o perigo das encommendas, ponde-as em ventura; que eu a terei para mim por muito boa o vosso bom successo."



E assim não me desagradou outra, que dizia d'esta maneira:


carta mercantil


"Com os tempos contrarios á navegação foram as occasiões ao nosso trato: que, como as mercadorias não foram requestadas de extrangeiros, estão ao presente abatidas: enviae-me menos d'ellas para que, faltando, mais as procurem os mercadores da terra; e n'essa vos não descuideis de fazer emprego, mandando-me o de muito boas novas vossas."



—Não me pareceu (disse o doutor) que tirasseis tão boa doutrina de materia tão limitada; porque esse primeiro genero de cartas tinha eu que não sahia de uns termos e principios, que andam escriptos no panno da serpe, como são: Á feitura d'esta. Esta não é para mais. [45] Uma de v. m. me deram. Pela de v. m. de tantos do passado: Depois de me encommendar em v. m. E d'aqui correndo por seus capitulos de quanto a isto, e quanto a est'outro até topar no a quem Deus guarde.—Esses principios (disse Solino) estão já muito bolorentos; mas ainda para cartas de mais ponto tenho outros grangeados de algumas secretarias velhas, como impressão de Torres, de que me valho nas pressas de uma boa nota, que não são tão corriqueiros.—Não me atreverei eu sem esses (disse Leonardo) a ir por deante pelo que vos hei por notificado.—Pois assim é (disse Solino) quero obedecer, ainda que perco grande valhacouto em os descobrir; porque sabei que é comer feito para os ronceiros d'esta mecanica; e o mór trabalho d'ella é desencalhar a penna com a primeira palavra: e são quatro: Como quer que, Tanto que, Depois que, e Antes que. E sabei que não ha proposito, que saia das unhas d'estes bilhafres; e nos capitulos de quanto isto etc., se mette em logar do quanto, no que toca a tal, e no que toca a qual; que, a meu vêr, era melhor o item, que tinhamos tomado aos latinos. Mas os notadores de espada solta esgrimem já agora sem estes bordões maravilhosamente.—Bons estão os principios (disse D. Julio) porém haveis de metter a lettra em todos elles, para que nos não passem por alto.—Antes por muito rasteiros (respondeu elle) vos ficarão entre os pés. Porém tende tento, e vereis que são principios de parafuso e que se encaixam, e viram para todas as partes como grimpa.



"Como quer que os meus serviços montem ante vós tão pouco, e a vontade por minha seja de menos preço, etc.

"Como quer que o animo, com que sou vosso, me não deixa perder occasiões, em que vos sirva, etc.

"Tanto que soube que era cousa de vosso gosto deixar esta empreza, etc.

"Tanto que me vi desfavorecido de vossas lembranças, lancei mão do meu atrevimento, etc.

"Depois que me apartei de vós, não soube mais de mim, que para sentir saudades vossas, etc.

"Depois que meus males me deram logar para tomar esta penna na mão, a empreguei em procurar novas vossas, etc.

[46] "Antes que me desculpe de meus descuídos, etc.

"Antes que vos dê larga conta dos meus successos, etc."



De modo, que são como materia prima, em que moldareis tudo o que quizerdes: porém não quero ir adeante, e tomar o tempo ao sr. Leonardo; que o vejo entrar já por outras cartas missivas.—Antes (lhe disse elle) tomei folego em quanto vos ouvia falar n'essas. E tratando das do segundo genero, que são cartas de novas, a que chamam narrativas de cumprimentos, que se dividem em cartas de agradecimento, recommendação, desculpa, queixume e outras muitas, cartas de galantaria ou jocosas, como chamam os latinos: Para as narrativas nos podia servir de exemplo aquella em que o imperador Tiberio Cesar dava novas de Italia a seu irmão Germanico, que dizia:


carta de tiberio cezar a germanico


"Os templos se guardam; os deuses se servem; o senado está pacifico: a republica prospera; Roma sã; a Fortuna mansa; o anno fertil; e isto, que ha aqui em Italia, desejo que da mesma maneira gozeis em Asia."



Deixo a que Cesar escreveu a Roma, das novas de Persia, que continha só tres palavras: Cheguei: vi: venci. E a de Gneu Sylvio, escrevendo as novas da Farsalia, que dizia:


carta de gneu sylvio


"Cesar venceu: Pompeio morreu: Rufo fugiu: Catão se matou: acabou a dictadura; e perdeu-se a liberdade."



E chegando a alguma, que com menos aperto faça sua relação, me não pareceu engeitar a que Marcello escreveu ao senado romano, dando-lhe novas da rota de Fulvio, que dizia:


carta de marcello ao senado


"Bem sei que a nova, que vos mando, é de sentimento. Fulvio Proconsul com treze mil homens foi [47] desbaratado e ferido. Porém não vos cause temor este successo; que eu sou o mesmo, que, depois da batalha de Canas, mortifiquei a soberba de Hannibal, vencedor d'ella: contra elle caminho brevemente com o meu exercito para lhe fazer mais breve a alegria d'este triumpho; e em vós desejo muito o mesmo animo que levo."



—Uma carta (acudiu o doutor) me escreveu os dias atraz um amigo, de novas de Lisboa, que certo, pela brevidade, me pareceu digna d'esta lembrança, e dizia:


carta moderna


"Esta cidade está abastada, mas descontente: o mar cheio de corsarios: os portos de receios: o paço de requerentes; e elles de queixumes: para os validos tudo é pouco: aos desamparados não cabe nada: do remedio de tantos males não ha boas novas; e as minhas são que entre todos elles me falta a vossa companhia."



—Essa (disse Leonardo) se póde ajuntar por exemplo ás antigas que relatei: e por não me empregar em outras, que seria demasiado trabalho a todos ouvil-as, e a mim recital-as, peço-as de recommendação de alguma pessoa ou de algum negocio, nas quaes tem mais logar a disposição e offerecimento dos rhetoricos, encarecendo os merecimentos da pessoa ou a importancia da causa que encommendaes, facilitando-a na condição e vontade a quem a pedia; concluindo com a petição e offerecimento de vossa parte: e todas estas, e ainda um exordio de sentença, que hei por escusado, se vêem em uma carta que ha pouco que li, que um rei de Portugal antigo, escreveu ao de França, encommendando-lhe um fidalgo que ia estudar a Pariz; e dizia tirada de latim, em que estava em um livro extrangeiro:


carta de el-rei de portugal ao de frança


"Entre as virtudes e excellencias dos principes, me pareceu muito digna de louvor a de terem particular cuidado e lembrança dos vassallos benemeritos em seu serviço, para com favores e mercês os ajudarem: e por esta razão me pareceu que devia encommendar a vossa magestade D. Pedro de Almeida, que por occasião de [48] seus estudos vae a essa côrte de Paris, posto que claramente conheço que, sem recommendação minha, vae assás encommendado pela liberalidade e brandura com que vossa magestade honra e recebe os homens tão illustres como elle é. Além do que, tem elle tantas partes e entendimento, que não achará melhor terceiro, que a si mesmo. Deixo seu pae D. João de Almeida conde de Abrantes, que com suas singulares virtudes e claros feitos, adquiriu e conservou até á morte muito estreita privança e amizade com meus antecessores e commigo; de sorte que ponho em duvida se importe mais a seu filho a minha carta, se a fama e lembrança de seu pae. De qualquer modo o encommendo muito a vossa magestade. E de minhas cousas não offereço de novo nada; pois pela irmandade de meus antepassados e minha, em toda a occasião deve vossa magestade usar d'ellas, como se foram communs a ambos."



Outra achei no mesmo logar, de el-rei D. Manuel, mais breve que a passada, que era de seu antecessor, a qual elle escreveu ao mestre de Rhodes, encommendando-lhe um noviço portuguez, que ia servir a religião que será para exemplo das menos enfeitadas. O grão, mestre era o cardeal Pedro de Buzon, e dizia:


carta de el-rei d. manuel ao grã mestre de rhodes


"Ayres Gonçalves, filho de Henrique de Figueiredo, vae a tomar o habito d'essa religião: não pareceu fóra de proposito nem de humanidade, encommendal-o a V. P. assim por sua nobreza, e ser creado de minha casa, como pelos serviços e merecimentos de seus passados com os reis meus antecessores; e finalmente por seu bom esforço e virtude. Rogo a V. P. que com sua costumada brandura o favoreça de sorte que n'elle se accrescente o valor e a devoção que leva: e não porei esta obrigação no menor logar das muitas que tenho a V. P."



As cartas de agradecimento tem o campo mais largo para n'ellas se espalhar a penna, e o entendimento; pois quem mais se obriga e encarece o que recebe, escreverá com melhor termo, não sahindo dos da carta missiva: e já os antigos não desconheciam esta galanteria; [49] pois Lybanio respondendo a Demetrio, que o obrigava a que lhe pedisse, escreveu assim:


carta de lybanio a demetrio


"Não daes logar a que eu vos peça, porque me mandaes tudo. Ainda bem as arvores não dão seu fructo, quando vossos creados m'o trazem: e do que até nos agros se sente a falta, eu a não tenho. Como me haverei n'isto? que o lavrador, quando o tempo lhe nega a agua, então a pede: porém, se chove, contenta-se de vêr que favoreceu o céo suas esperanças."



O queixume por carta se deve fazer com toda a moderação que a urbanidade requere: e póde n'estas servir para exemplo e lembrança a que Olympias, mãe de Alexandre, respondeu a seu filho, a uma em que elle se assignava por filho de Jupiter, que dizia:


carta de olympias a alexandre


"Muito me alegro com a victoria que alcançastes da cidade de Tyro; e com todas vossas venturas e façanhas: porém tive por grande affronta minha vêr que vos nomeaes por filho de Jupiter na carta que d'esta nova me escrevestes. Estimarei muito, meu filho, que aquieteis n'isso o pensamento, e me não leveis a juizo ante a deusa Juno; que algum grande mal me ha de ordenar, sabendo que por lettra vossa me chamaes manceba de seu marido."



E se me não parecêra um pouco enfeitada uma carta que Angelo Policiano escreveu ao grande Lourenço de Medicis, a podéra pôr em exemplo da moderação de queixume, porque dizia:


carta de angelo policiano ao duque de florença


"O poeta é semelhante ao cysne na brancura e suavidade, em ser affeiçoado a correntes de agua e amado de Apollo. Comtudo, dizem que o cysne não canta senão quando o vento zephiro respira. Não é logo muito [50] que eu seja mudo tantos dias, sendo poeta vosso, se vós, que sois meu zephiro, n'elles me faltaes."



As cartas jocosas, ou de galantaria, tem mais campo, e liberdade para se poderem usar n'ellas alguns termos fóra das limitações das nossas regras; porque assim em se entenderem mais, como em se sujeitarem menos, ficam desobrigados das primeiras leis. que são brevidade sem enfeite: clareza sem rodeios: propriedade sem metaphoras; pois o termo da graça e galantaria, n'isso se differença do sizudo e pontual; não negando que ha algumas que não perdem a graça nem o sizo, como é uma que Lybanio escreveu a Aristoneto, que dizia:


carta de lybanio a aristoneto


"Onde vos achaes, sei que dizeis sempre mal de mim; eu pelo contrario não perco occasião de dizer louvores vossos; porém quem a ambos nos conhecer, a nenhum de nós ha de dar credito."



Das mais ha tantos e tão differentes exemplos, que seria aggravo a cada uma das outras trazer aqui algumas bem escriptas. Só direi que uma especie d'ellas é narrativa, motejando do mesmo, que contam, ou das novas que dão; que não são por esse respeito pouco engraçadas. Ha outra das de disbarates, que, parecendo que se desviam nas palavras do proposito que tomam, dão a entender, como em enygma, o pensamento de quem as escreve; e são estas graciosas com subtileza. Outra ha das de murmuração em materias leves, como satyras menores: e umas e outras tem a galanteria no pintar e descrever as pessoas e as cousas, com apodos graciosos, encarecimentos desuzados, palavras facetas, phrase humilde, accommodada sempre ao sujeito. É certo que n'isto tiveram mão particular os portuguezes, que escreveram ao gracioso, que nem os italianos na phrase burlesca, nem os hespanhoes no estylo picaresco os egualaram.

—Não vos houvera eu de consentir esse salto (disse Solino) deixando tantos exemplos em aberto, se não tivera pensamento de cobrar a demasia n'outra occasião; e assim por isso, como por ser já passada tanta [51] parte da noite, vos peço que façaes a vontade ao sr. D. Julio com essas cartas Reaes, de Estado e Governo, que as está desejando com a vida; pois a sua é nadar na altura de cousas semelhantes.—Eu vos mereço (respondeu o fidalgo) a boa opinião em que me tendes: porém egualmente me contentam todas as cousas em que fala o sr. Leonardo: e porque sempre as ultimas me ficam parecendo melhor que as primeiras, posso desejar esse terceiro genero de cartas; e se d'elle tornar ao primeiro, farão o mesmo effeito na minha satisfação.—Para responder a esse favor (tornou Leonardo) havia mister o tempo que hei de gastar nas cartas que me ficam: e assim ou uma ou outra cousa me havei por perdoada.

Não deixou o doutor ir os cumprimentos por deante, dizendo que eram em prejuizo de terceiro; e proseguindo Leonardo, disse:

—As cartas do terceiro genero, que, pelas materias importantes, e differença das pessoas, são mais graves e humildes; posto que se incluem algumas d'ellas á oratoria, aproveitando-se da elegancia e razões para persuadir, consolar, dar louvores ou reprehender; e posto que d'estas estão cheias as chronicas e annaes de todos os reinos, recitarei algumas que pareçam menos vulgares e mais breves para exemplo, como é uma que os consulares C. Fabricio e C. Emilio escreveram a el-rei Pyrrho sobre uma consideração em materia de Estado, que dizia:


carta de fabricio emilio a el-rei prrho


"Pelos aggravos que de vós temos recebido, o maior cuidado nosso é fazer-vos guerra com animo inimigo e braço esforçado: porém, para exemplo commum de fidelidade, nos pareceu conservar-vos a vida, porque com a perda d'ella nos não faltasse um contrario valoroso a quem vencer. Nicias, vosso particular, veiu ter comnosco, pedindo-nos preço certo por vos dar morte occulta; em que nós não consentimos, fazendo-lhe perder a esperança de tirar fructo da sua maldade. Juntamente assentámos dar-vos este aviso; porque, se alguma cousa acontecer, se não presuma que sahiu do nosso conselho; e não sendo o intento d'elle pelejar [52] por preço, premio ou engano, vós, á falta de cautella, percaes a vida."



Tambem me não parece indigna de lembrança uma, com que Rhodoge, mãe d'el-rei Dario, o reprehendia, e aconselhava na segunda expedição contra Alexandre; que foi a que se segue:


carta de rhodoge para elrei dario, seu filho


"Deram-me novas que ajuntaveis poderosos exercitos de todas vossas gentes e das alheias, para de novo offerecerdes batalha a Alexandre. Não sei a que effeito; pois o poder de toda a redondeza não basta para pelejar com os deuses immortaes que a elle o favorecem. Deixae esses pensamentos altivos; apartae-vos da vangloria d'elles, concedendo á grandeza de Alexandre alguma cousa; que melhor é deixar o que não podeis ter, para gosar livremente o que possuis; que, querendo dominar tudo, ficar sem nada."



Cada um dos presentes gabou estas cartas com tanto extremo, que não deixaram que com ellas acabasse Leonardo sua obrigação; porque (disse D. Julio) já pelo voto de Solino, estas são as cartas, que entram na jurisdicção de minha curiosidade, não consinto que nos exemplos seja este genero mais limitado; mórmente que d'este se tira outra doutrina mais que a das cartas, que é a variedade das historias e occasiões d'ellas.—Eu (respondeu Leonardo) ainda tinha cabedal para ir adeante, se as horas tornaram atrás; mas partirei (como dizem) a contenda pelo meio, recitando uma carta, que o grã senhor dos turcos escreveu aos amazonios; e a valorosa resposta que elles lhe mandaram: e dizia a primeira:


carta do turco aos amazonios


"Se por defensão de vossa liberdade sustentáreis guerra contra meu poder, não vos tivera tanto por inimigos, como por valorosos cidadãos, que pela patria, filhos, parentes e amigos punheis as vidas. Porém com nenhuma razão me persuado que os que deixaram [53] tantos annos governar o reino a mulheres (como tenho ouvido) recusem agora o imperio, e governo de homens valorosos."


E a esta carta responderam elles outra, que dizia:


resposta dos amazonios


"Este reino das amazonas, que, como por affronta nossa nomeaes, com o seu mesmo exemplo nos aconselha não obedecer a outrem: porque temos por infamia e torpeza que o exforço varonil seja vencido do espirito e braço feminino. Pelo que deveis julgar por invenciveis em armas, e dignos do governo e principado do mundo homens, entre os quaes até as mulheres apprenderam a reinar."



E porque com exemplos gentilicos e barbaros não dê fim á conversação d'esta noite, direi por remate uma carta que o veneravel sacerdote Beda escreveu a Carlos Martelo, rei de França, e aos mais potentados d'aquelle reino sobre a entrada dos mouros em Hespanha, que dizia:


carta do veneravel beda a carlos martelo
rei de frança


"Em quanto se move perigosa e cruel guerra na christandade, se apparelha notavel ruina de toda a Europa: porque os sarracenos, occupada a Africa e Libya, começando de Ceita, tem conquistada toda a terra de Hespanha, tirando a das Asturias e Cantabria. Africa, que o capitão Belizario cobrou aos romanos, e que cento e setenta annos obedeceu a seu imperio, juntamente com a Hespanha Betica, tem tomado os mouros, fazendo-a obedecer a seus falsos ritos, com grande ignominia e affronta do nome christão. Que cousa póde haver mais excellente, valorosa e pia, que contra estes inimigos de Deua tomar armas? Que fizeram os suevos, os allemães e os mais varões do nome christão, que com tão grandes destruições tendes perseguidos? Perto estào, e sobre vossas cabeças os sarracenos, que com soberbo jugo ameaçam a toda a redondeza [54] da terra. N'elles tendes formosissimos reinos, grossas cidades, ricos despojos; e vos esperam grandes triumphos da victoria: e principalmente incomparavel premio de gloria com Christo nosso Salvador, que para tão santa empreza com continuos brados vos está chamando."



Certo, disse o doutor, que, se pudéra dilatar a noite pelo interesse de tão proveitosa doutrina; mas porque n'esta se não ha de dar fim ao nosso exercicio, fiquem algumas perguntas, que agora escuso, para outra occasião, pois agora a não tiveram as cartas amorosas nem as de desafios.—As primeiras (replicou Leonardo) deixei por ser improprio da minha edade tratar d'ellas; as segundas, por me não embaraçar com o duello que está reprovado. Porém fica o campo livre para os mancebos. Com isto se despediram dando-se boas noites: e o estudante foi encarecendo ao companheiro o muito que o espantára vêr tanta côrte em uma aldeia; que as cousas achadas onde não se esperam, são de maior admiração, e de mais estima.



DIALOGO IV


DOS RECADOS, EMBAIXADAS E VISITAS



Amanheceu o sol tão claro e gracioso, que alguns dos amigos por se lograrem d'elle com a occasião da caça se espalharam pelos montes; mas depois de horas de vespera visitou o estudante em companhia de Pindaro ao doutor Livio, com quem passaram a tarde n'um seu jardim em boa conversação, esperando a da noite, a que elles foram os primeiros que acudiram, e se acharam em casa de Leonardo; que commummente nos lettrados se accende melhor o desejo de saber, e não n'aquelles aos quaes lhes custou menos. Sentaram-se á vista do fogo, que á conta dos hospedes estava melhor ordenado; e depois de gastarem algumas palavras de cumprimento, chegaram D. Julio e Solino a quem todos fizeram muita festa; e, reprehendidos da pequena tardança, disse Solino:—Grande [55] espaço ha que eu pudera gosar esta companhia, se me não detivera em esperar resposta de um recado, que mandei ao sr. D. Julio.—E eu (respondeu elle) se vos não encontrára, ainda não tinha entendido o vosso moço; porque de maneira embaraçou o que me mandaveis dizer, que nem por discrição pude tirar o recado: nem vos desfaçaes d'elle para os que forem de importancia, que val a peso de ouro.

A isto se começaram todos a rir, e tornou Solino:—O meu moço, sr. D. Julio, tem desculpa em ser nescio, porque é meu moço; que, se soubera mais, eu o servira a elle; mas os creados dos grandes, como vós, esses hão de ser discretos, pois são tão bons como eu: e comtudo eu vos sei dizer que ha aqui moço que no dar um recado o pudera fazer como ao que lá mandei, que não é dos peiores da sua ralé, e já entermette de lêr carta mandadeira: mas nos recados ainda agora lê por nomes, e não acerta a nenhuma cousa.—Pouca paciencia tenho (disse o doutor) a um creado que esperdiça o entendimento de seu amo: mandaes um recado concertado, discreto e cortezão: e o madraço, que o leva, muda-lhe os trastos e desentôa com uma parvoice que vos desacredita, como com os meus me tem acontecido mil vezes.—Nos vossos não é muito (disse Solino) que daes os recados guarnecidos de rhetorica com seus vivos de latim, que são mais perigosos na bôcca d'estes, que vidro em mão de menino: mas os meus, que não passam de quatro palavras em linguagem corrente, e que assim os virem do carnás e me mettam em vergonha, não é desgraça? Ora prometto que os de importancia eu mesmo os leve como aconteceu ao cortezão ausente, que levou elle proprio a carta a sua mulher: e os que houver de dar o meu moço, que sejam seus, por não andar remendando o burel da sua natureza com o trabalho da minha disciplina. D'aqui por deante bôcca faz jogo: digo, que o que o meu moço disser, elle o diz, e que me não ha de chamar por auctor das suas impertinencias.—Certo (disse Leonardo) deixando de tratar dos meus, e vossos recados, que importam menos, e de outros em que vae tão pouco, que é uma das cousas de maior consideração aos reis, principes, republicas, e aos grandes mandarem suas embaixadas, visitas e recados por homens [56] de auctoridade, discretos e bem disciplinados, em cujas razões e procedimentos consiste muitas vezes o bom successo do que pretendem. E assim os reis, principes e republicas nas materias de estado; as cidades e povos nas occasiões das côrtes; os senhores particulares nas visitas; devem sempre escolher homens, que no entendimento se avantajem dos outros, porque não sómente conseguem o fim da pretenção de quem os manda; mas o acreditam: e porque ás vezes por respeitos, privança e valia se antepõem os menos sufficientes para estes cargos, se deitam a perder negocios de uma republica, em que consiste a quietação e honra d'ella.—Pouco e pouco (disse Pindaro) se foi o sr. Leonardo á materia dos recados, que não ficam fóra de seu logar, depois de o terem as cartas missivas; e bem se póde fazer a noite bem assombrada com tão bom sujeito.—Desculpado estou (respondeu elle) com o trabalho, que na de hontem cahiu á minha conta, em fugir d'elle; mas não de approvar a vossa advertencia.

A todos os mais pareceu que seria acertado tratarem a materia de mais longe; e pediram ao doutor que, tomando-a á sua conta começasse.—Bem pudera usar (disse elle) do privilegio do sr. Leonardo, e de outros para minha escusa; porém ainda que os tinha, e qualquer dos presentes mais sufficiencia para este encargo por lhe não pôr a elles ruim fôro, me dou por obrigado. Digo que recado é nome que entre nós tem a etymologia. A significação é muito duvidosa, pelo modo em que usamos d'elle: porque, se houveramos de derivar este nome do verbo italiano recare, que é trazer; ou do verbo recapacitare que é recapacitar (d'onde elles chamam recapacitar ao recado) nunca disseramos d'elle tanto, como na nossa lingua portugueza significamos; mas se lhe buscarmos a origem do latim, virá mais ao nosso modo pela differença do messageiro ao que leva recado: que o primeiro missa gerit, faz as cousas que lhe mandam; e o segundo recautus, este é homem acautelado, que sabe o que ha de fazer no que está á sua conta; que assim convém mais com o nosso modo de falar, quando dizemos homem de recado, que quer dizer de importancia, posto a bom recado, que é seguro, e com cautella: tardar e arrecadar, que é levar ao fim o que começou: porém seja uma cousa ou outra, ou ambas, o principal [57] recado de todos é o do embaixador; e estes são de duas maneiras, ou o que o principe manda a outro por occasião successiva; ou o que de ordinario assiste em sua côrte, para conservação da benevolencia e amisade que entre elles ha: estes segundos tinham os romanos nas provincias junto á pessoa do consul, que as governava com titulo de legados, e com elles despachava os negocios de importancia. Mas aos primeiros chamavam elles oradores, por serem mui semelhantes no officio de persuadir, mover e obrigar; e ainda em nossos tempos se aproveitaram muitos d'essa arte, sendo escolhidos para o cargo de embaixadores.—Eu (disse Leonardo) tenho um cartapacio não pequeno de falas e orações de embaixadores portuguezes feitas a grandes principes, e não pouco doutas e elegantes, como foi uma que fez o bispo D. Garcia do Menezes ao papa Xisto, indo por embaixador por mandado de el-rei D. Affonso V, e por capitão de uma armada que elle mandava contra os turcos em favor da egreja no anno de mil e quatrocentos e oitenta e um: e outra, que fez o doutor Diogo Pacheco ao papa Julio, indo com o arcebispo de Braga por embaixador a lhe dar obediencia por el-rei D. Manuel no anno de mil e quinhentos e cinco: e outra, que fez o mesmo doutor ao papa Leão, indo com Tristão da Cunha embaixador a lhe dar obediencia com aquelle famoso ornamento, que ainda agora é dignamente celebrado na egreja romana assim pela grande devoção d'aquelle pio e catholico rei, no anno de mil e quinhentos e quatorze, á qual o papa respondeu em publico com uma doutissima oração de louvores do mesmo rei. E não é este costume só dos nossos embaixadores, mas de todos os extrangeiros, assim quando eram enviados a este reino, como a outros. Vindo a este por embaixador de el-rei Francisco de França a el rei D. Manuel, que estava em Almeirim, no anno de mil e quinhentos e seis, Monsieur de Lanjaca, governador de Avinhão, lhe fez uma douta oração em sua chegada: fóra outras muitas com que pudera allegar.—D'esses exemplos ha muitos (disse o doutor), e continuando com o que convém mais ao fim do nosso intento, devem ser escolhidos para este cargo de embaixador os homens das familias mais illustres do reino, dos illustres os mais discretos e cortezãos, [58] d'estes os mais animosos e liberaes, dos animosos os mais apessoados, e de todos os mais bem acostumados; e são todas estas partes tão necessarias ao embaixador, que com a falta de qualquer d'ellas ou arriscará o credito do principe, que o manda, ou o negocio de que vae a tratar por sua parte. Primeiramente ha de ser illustre por auctoridade de seu rei e de seu reino, e dos illustres d'elle, e por honra tambem do principe a que é mandado, pois ha de fazer as partes de um, e assistir á ilharga do outro. E assim n'este reino, e nos vizinhos a elle vimos cada dia entrarem embaixadores muito chegados em sangue ás casas dos reis que os enviaram, e sahirem outros da mesma qualidade; o que não só tem exemplo dos reis da Europa, mas da Persia, Japão e outras remotas partes do oriente. Depois de illustre ha de ser discreto e cortezão, porque parece que mais que todas as outras partes, lhe está requerendo o mesmo cargo aviso, entendimento, discrição e cortezia para tratar as cousas convenientes á sua embaixada, encobrindo, desculpando e persuadindo o que a seu rei convém; que esta é a differença do recadista ao embaixador: que o primeiro relata o que lhe mandam que diga: o outro dispõe, ordena e conclue o que lhe encommendam que faça: um leva o recado na lingua, outro no peito, como disse um embaixador dos romanos aos carthaginezes na guerra de Sagunto, que levava a paz, e a guerra dentro no peito; e assim não vindo elles no que os romanos pediam, declarou a guerra. Além d'isto como o embaixador é um terceiro, e conciliador da amizade de dois principes, nenhuma cousa lhe é mais importante, que o entendimento, e tambem o ser cortezão lhe importa muito, pois a sua principal assistencia é no paço, e junto á pessoa do principe, com communicação dos principaes senhores do reino; e ás vezes por esta parte sendo engraçado, e acceito áquelle a quem é mandado, acaba mais facilmente os negocios e pretenções de quem o manda. Ha de ser animoso e liberal; o primeiro, porque nas materias que tocarem á guerra, tregua e liga, ou confederação com seu principe, se não mostre por sua parte acanhado, timido nem pusillanime: antes obrigue com seu exemplo a que o respeitem e temam; e tambem porque na occasião em que se offerecer ao [59] senhor a quem assiste, acredite com o conselho e com as obras as armas de seus ascendentes e naturaes. E o segundo, porque com a magnificencia se conquistam mais vontades e animos extrangeiros, que com qualquer outra valia, por grande que seja; e posto que esta parte a todas as pessoas illustres é necessaria, e em todos os cargos de guerra e officios da paz é tão estimada, no de embaixador é muito mais proveitosa para saber o aviso, o secreto, o intento e a cautella que convém ao de sua embaixada, e para mover os ministros e validos, em cuja mão ou conselho está seu negocio. Convém além d'isto que seja o embaixador homem apessoado, que pela vista obrigue a respeito e veneração; que em outro modo o corpo pequeno em pessoas de grande logar lhes tira muita parte do que se lhes deve. E um doutor nosso de muito grande nome, e pequena estatura, mandou pôr ao pé de um retrato seu uma lettra que dizia: A presença diminue a fama.

E outro do mesmo grau, e não de maior corpo, indo d'este reino com uma embaixada a um rei assás poderoso, vendo-o elle tão pequeno, lhe perguntou motejando d'elle: "Se el-rei seu irmão tinha em seu reino outros homens mais apessoados que enviasse com semelhante cargo?" Ao que elle respondeu valendo-se do entendimento, e animo que tinha: "Que na corte d'el-rei seu senhor havia muitos homens do grande pessoa, e partes, a que encommendar aquelle cargo; mas que para sua magestade lhe pareceu que elle bastava, e por isso o mandára." Finalmente é de muita importancia ser bem acostumado, para com sua temperança, continencia, e bom termo conservar, e acreditar o bom nome, e fama de seu rei, a honra de sua patria, e da propria pessoa. E porque com alguma demazia de seus costumes não faça com que se diminua, e perca o respeito, liberdades, e exempções que tem os embaixadores, como aconteceu aos da Persia, que vieram a el-rei Amyntas de Macedonia, que foram mortos por traça de Alexandre, filho do mesmo rei, o qual, não podendo soffrer sua estranha dissolução, mandou alguns moços de bellissima figura, que em habito de damas os servissem á meza, levando escondidos punhaes com que se vingassem de qualquer deshonesto acometimento [60] dos embaixadores; que usando de sua demasiada luxuria foram mortos a punhaladas. O rei da Persia offendido de se não guardarem com os seus as leis dos embaixadores, mandou um poderoso exercito contra el-rei Amyntas; porém o general d'elle sabendo como o caso passára, se retirou sem querer dar batalha aos Macedonios. Tambem importa muito que os embaixadores sejam escolhidos de sujeito acommodado aos negocios, de que hão de tratar; que tal occasião se offerece, em que convém serem humildes; e outra, em que é melhor mostrarem-se arrogantes; tal, em que hajam de ser animosos, e arriscados; e outras brandos, e dissimulados. Francisco Dandalo, embaixador dos Venezianos ao Papa Clemente V para levantar o interdicto ao Senado, contra quem estava iroso por razão das coisas de Ferrara, esteve lançado de bruços grande espaço á meza do Summo Pontifice, com uma cadeia de ferro ao pescoço; e com tantas lagrimas, e palavras o obrigou, que alcançou d'elle o que pedia. Este por sua grande humildade foi chamado cão, e por seu valor succedeu no Ducado de Veneza. Pelo contrario Orfato Justiniano, homem de letras, e animo generoso, embaixador do mesmo Senado a el-rei Fernando de Napoles, que pelo mau animo, que contra os Venezianos tinha, não fazia d'elle a conta, e estima que seu valor merecia. Orfato lhe mostrava tão pouca inclinação, e humildade, que o rei indignado mandou fazer tão baixa a porta, por onde entrava a lhe falar, que á força lhe fizesse dobrar o pescoço: porém elle entendendo a tenção de Fernando, entrou com as costas para diante, e voltando-se direito na casa fez a mesma cortezia, que costumava. Outro dia achando-se em um banquete, que o rei mandou fazer, dando-lhe de proposito os convidados tão estreito lugar que achava sua auctoridade, deixando o que tinha se sentou sobre uma rica toga, que trazia vestida; e acabado o banquete, a deixou ficar como os outros assentos.—A mim me parece (disse Leonardo) que os attributos mais importantes ao embaixador, e que sempre n'elle devem andar annexos, são esforço, e entendimento, que são como dois eixos, em que se revolve o maior peso, e substancia, das coisas do Estado; o que se colhe dos exemplos que dissestes, e de outros muitos; porque o esforçado e entendido [61] em nada falece, nem áquillo a que seu rei o manda, nem ao que a si mesmo deve, nem á occasião de que se póde aproveitar, como aconteceu a Pompilio, embaixador a el-rei Seleuco, sobre conservar amisade com os Romanos, ou romper com elles guerra: que respondendo o Rei que se aconselharia devagar no que lhe estava melhor; e entendendo o Romano que aquella dilação se fundava em fraqueza, e cautela, com o bordão que trazia fez um circulo na terra, em que Seleuco ficou mettido, dizendo-lhe que antes que d'elle sahisse se havia de determinar na resposta de sua embaixada; e com isto obrigou ao rei a acceitar a paz que lhe requeria. E em caso differente Lucio Posthumio, embaixador aos Tarentinos, lançando-lhe por desprezo sobre as roupas muitas immundicias com grande rizada, e escarneo, o Romano lhe respondeu animosamente: Vingai-vos agora do riso á vontade, porque tendes muito que chorar quando com vosso sangue se lavarem as nodoas d'este meu vestido.—Esses casos (accudiu D. Julio) são da mera jurisdicção do esforço, e cavallaria; ainda que sejam acompanhados do entendimento, porque o valor do animo a tudo acode, e em nada perde ponto. E se não, vede a estimação que fizeram os reis catholicos do nosso prior do Crato D. Diogo Fernandes de Almeida, quando estando elles sobre Granada, e o prior sendo embaixador d'el-rei de Portugal, o ajudou a combater valorosamente tirando com muitos louvores d'aquella batalha feridas; e querendo-o el-rei desviar antes, porque não convinha ao cargo que trazia, lhe respondeu que, se o officio lh'o defendia, o sangue, e o animo o obrigava. E em que conta teria el-rei Filippe I a Frederico Badoaro, que os Venezianos lhe mandaram por embaixador a Genova, sendo elle principe de Hespanha, que estando com elles aos officios divinos no segundo logar, succedeu chamar o principe a si ao duque de Saboia; e acenando ao veneziano que lhe désse o lugar, o que elle não quiz fazer, o principe com acenos, e palavras asperas o mandou muitas vezes tirar; mas respondeu que antes havia de deixar a vida, que aquelle lugar, porque com a morte de um particular se não fazia affronta ao Senado; mas que se lhe faria muito grande, se désse o lugar, que lhe era devido, a pessoa inferior em merecimentos. E quanto [62] á dissimulação, e soffrimento só nos esforços costuma a achar confiança para metterem em cortezania o que puderam estranhar com arrogancia: como aconteceu a Giuberto Dandalo, embaixador dos Venezianos ao Papa Nicolau III, que já mais foi ouvido, nem pôde alcançar entrada do Summo Pontifice, por o enojo que tinha contra o Senado, sobre a possessão de Ancona; até que, vendo elle o pouco que importavam suas muitas diligencias, fingio um dia, sahindo com alegre semblante, haver-lhe fallado, e alcançado o fim do negocio a que vinha: e sem esperar outra coisa se partiu para Veneza; onde perguntando-lhe o Senado o que passara, respondeu: "Não achei o Papa em Roma, nem quem me soubesse dizer onde o acharia."

—Mui principaes (disse o doutor) são as partes de esforço, e entendimento no embaixador; porém tem igual necessidade de todas as outras para representar com a nobreza a pessoa do seu rei: para com a magnificencia adquirir as vontades dos ministros, e criados: para com a gravidade, e brandura ser amavel, e auctorisado: para com o conhecimento das coisas do Estado, e experiencia d'ellas acertar nas que se lhe offerecessem: e para com a gravidade, e gentileza da pessoa dar uma approvação na vista, de tudo o que se conhecer de suas obras. Mas porque não pareça que vou fora do em que comecei: A que os embaixadores não levam recados, é certo, (que ainda que os seus sejam de maior confiança) que levam por escripto muito do que hão de dizer, e do que hão de pedir, ou conceder; porém a eleição do tempo, occasiões, e palavras fica subordinada ao seu entendimento; e para isso dão os reis, e seus conselhos supremos largas instrucções, regimentos, e ordens de como se hão de haver nas coisas os embaixadores; que são mais largas, quanto são mais remotas as provincias, a que são enviados.—O officio (disse Leonardo) é de tanta importancia, que nenhum outro demanda maior cabedal de partes da natureza, e das adquiridas por experiencia: e sei-vos eu dizer que houve n'este reino famosos homens d'esta profissão, e taes, que, querendo nomear alguns, faria manifesto aggravo a outros muitos. Mas se o gran-duque de Florença, vencido da eloquencia, e partes de Hermolau Barbaro (que estava em sua corte por embaixador dos [63] Venezianos) com tantas mercês, e favores o persuadia a que ficasse em seu serviço; não faltaram outros, que sahidos d'este reino com o mesmo cargo, fizeram maior inveja a principes, a monarcas mais poderosos. E algum teve lugar nos tribunaes supremos da corte de Hespanha, que para negocios particulares de um principe d'este reino foi mandado a ella, que pela grande satisfação, que n'elles deu de sua pessoa, foi escolhido para os de uma monarquia tão dilatada. Mas não é de espantar que de um embaixador e messageiro particular se fizesse um conselheiro de estado, sendo criado da casa de um senhor, do serviço do qual, como de outro cavallo Troiano, sahiram heroes famosos, e varões insignes em todas as profissões: d'onde sahiram vice-reis, e capitães maiores para o Oriente, e soldados para capitães, e mestres de campo, que defenderam, e honraram o Norte; cavalleiros, e bailios, que sustentaram Malta; fronteiros valorosos, que se assignalaram em Africa, todos criados da mesma casa, onde se acharam sempre em grande copia espiritos, que honrem a Marte, e engrandeçam a Minerva, fazendo inveja aos mais avantajados nos exercitos, e presidios hespanhoes, e aos mais insignes nas escolas, e academias mais nomeadas da Europa.

—Tendes levantado este discurso de maneira (disse Solino) e está a materia d'elle tão altiva, que me parece que eu e Pindaro ficamos esta noite camarço, sem nenhum de nós fazer postoleta: ainda este mau jogo me fez o meu moço, que não cuidei que d'elle saltasseis a coisas tão differentes: folgara de saber se haveis de ficar n'esse tom, porque vos deixarei em termo com o dono da casa, e o senhor D. Julio; e irei buscar minha vida.—Ainda não tendes razão de vos queixar (respondeu elle) que antes por me chegar pouco, e pouco aos criados, deixei muito dos embaixadores, após os quaes se seguem logo os agentes, e procuradores, que as cidades, villas, e lugares mandam a cortes, e outras vezes a visitas, e occasiões dos principes, que não menos devem ser escolhidos para estes cargos, buscando n'elles as partes mais necessarias que são discrição, experiencia, e pessoa, quando não possam concorrer todas as mais; porque a cidade, ou villa, que manda ao principe seu procurador, ou agente, [64] n'esse mesmo faz representação de sua sufficiencia.—De um cidadão se conta (disse D. Julio) que, sendo enviado por procurador a cortes, lhe esqueceu no caminho o que a cidade lhe encommendára, e tornou a dormir a casa a perguntar a sua mulher o negocio a que ía: e fôra melhor eleição, se a mandaram a ella, pois lhe não esqueceu.—De outro ouvi eu (respondeu Solino) que jurou por vida da sua a el-rei Filippe I que se havia de cobrir sua magestade para lhe fallar em nome de uma cidade d'este reino: fóra outras impertinencias que na pratica disse, mais dignas de riso, que de credito. E um conheci eu, a que cahiram as luvas, e o chapéo da mão, começando a dar o recado de uma cidade a um principe; e levantando-as, perdeu o que queria dizer, de maneira que nunca atinou palavra.—Estes maus successos (proseguiu o doutor) testemunham o muito cuidado, com que se hão de eleger os homens para taes cargos; o que não importa menos aos titulares e fidalgos, que mandam vizitar a outros em occasiões de pazes, ou parabens, por pessoas, que saibam accommodar-se á tristeza, ou alegria que o caso requer, para credito, e boa opinão de quem os manda.—Certo (accudiu Leonardo) que não julgará bem quanto isso releva, senão o que já se envergonhou de ouvir visitas desencaminhadas, como se fez uma a um fidalgo que eu tratei particularmente, ao qual, estando enojado por morte de um seu filho, visitou da parte de um personagem um capellão bem apessoado, e disse que o senhor N. estimára muito aquella occasião para mandar visitar a sua M. e se offerecer a seu serviço. A este conto fizeram todos muita festa. E Solino, que vio lugar aos seus, accudio logo: "Não sei se virá muito a proposito; porém tambem eu hei de dizer a minha historia, em rasão da advertencia, e cuidado que deve ter quem visita em nome alheio; pois se vê que mais desattentos, que ignorancias, os erros d'estas materias. Uma senhora enojada por a morte de um seu irmão tomava as visitas em uma camilha, como as mais costumam. A esta mandou visitar outra parenta sua por uma pessoa de auctoridade; que entrando na primeira casa achou tão escura que, pegando-se ás paredes, esperou uma dona que lhe servisse de moço de cego; a qual o levou por a mão até uma porta [65] estreita, onde havia um degrau alto; e alli o soltou para passar deante; a qual não alcançou tão bem o degrau, que não désse primeiro com as queixadas na humbreira do portal; e sahido do perigo o tornou a guiar a dona da mesma maneira até junto da camilha, onde o tornou a soltar: esta pessoa, cuidando que tinha alli outra porta, por não errar o degrau por baixo, levantou o pé de maneira, que o poz nos peitos á enojada, que dando um grande grito a fez cahir de focinhos. Muitos, que estavam na casa, e tinham furtada a luz aos que de novo vinham a ella, levantaram tão grande riso, e borburinha, que desauctorisaram de todo o sentimento do nojo, e cahia cada um para sua parte sem se poder valer." Como Solino tinha graça natural no que dizia, deu muita a este conto, que foi celebrado com riso de todos.—Se assim é (disse Solino) que nesses ha tantos desatinos, e inadvertencias, não ha que espantar de criados menores, que uns são por natureza tão rusticos, que em nada acertam; outros por malicia tão depravados, que não querem saber senão o que é em favor de sua maldade.—Uma questão se offerecia agora (acudiu Pindaro) que, ainda que rasteira, é em materia proveitosa. Convem a saber se é melhor servir-se um homem de um moço simples, e nescio; ou de um malicioso ainda que seja esperto.—Eu estou melhor (tornou D. Julio) com o que me engana, que com o que me enfada; porque a confiança, que fizer do meu moço, será segundo a opinião que d'elle tenho para me poder enganar em pouco: e do nescio nem posso confiar em um recado as minhas razões, nem as minhas obras dentro em casa; que o que ignora o que ha de dizer, menos sabe o que lhe convém calar: além de que é grande desgosto andar um homem de continuo ensinando um rustico, sem proveito, que não tomará em sua vida tinta de discrição, por mais que o cozam n'ella.—A mim me parece outra coisa (disse Solino) em razão d'aquelle proverbio: Antes asno que me leve, que cavallo que me derrube.—Pelo rifão (respondeu Leonardo) entendo que quereis defender o vosso moço.—Se o não fizer bem, ficarei no seu lugar (replicou elle). Porém o moço nescio não pode desacreditar com sua parvoice o entendimento de seu amo, que não está obrigado ao tirar das escolas de Athenas. E o malicioso, [66] e esperto, nem por o ser deixa de errar peior que os outros; porque não aprende o que convém a seu amo, senão ao intento de sua maldade; e dá ás vezes por recado o que lhe parece, em lugar do que lhe mandam; e quando não, troca as palavras ou o sentido d'ellas; muda o tempo, e a acezão do recado; vai quando quer, e não ao tempo que vos releva; tira-vos o credito nas obras, se o conserva nas palavras, porque dizem que qual o amo tal o moço; mais vos desacredita com a murmuração, do que vos acredita com o recado; e quando vos lisonjeia, é quando vos rouba. O simples, se não diz o que lhe dizeis, faz o que quereis, contenta-se com o que d'elle fiais, e não trata de penetrar o que pretendeis; e muitas vezes seus erros cahem em graça como as subtilezas dos outros em damno.—Boas são essas razões (disse Feliciano) porém é dura coisa que pelo moço nescio julguem por tal a seu amo; pois é regra de direito que faz por si o que manda fazer por outrem: e se a victoria dos soldados se attribue ao capitão, os ensinos, e palavras dos moços porque se não hão de julgar por de quem os governa, e manda? e menor damno é qualquer dos outros, que o de um homem parecer nescio á conta do seu moço. E sobre tudo não se ha de pintar tão perverso o malicioso, que faça mal, diga mal, e presuma mal, e seja intelligente; que os mais d'elles cantam de quem roubam; que d'esse outro modo não é pintar criado, mas inimigo.—E não sabeis vós (accudiu o doutor) que todos os criados, ou a maior partes d'elles o são de quem os sustenta? e assim diz a sentença de Euripides, que não ha maior, nem peior inimigo que o criado: e Democrito diz que o criado é coisa tão necessaria, como amargosa: Luciano diz que os criados sempre tem malicia, e traições armadas contra seus amos.—A muitos tenho eu por inimigos (disse Feliciano) porém peior o será o nescio, que o que o não for; e não sómente sustentará inimigo em casa, mas senhor, que, como diz S. Jeronymo, não ha maior servidão que mandar a um nescio.—Eu tenho procuração em causa propria (disse Solino) para acudir pelos criados, como testemunha de muitos fieis, e verdadeiros a seus senhores: e Euripides, e os mais devem de entender, o que disseram, dos escravos, que, como lhe temos tomada a coisa mais principal, [67] e mais sua, que é a liberdade, sempre nos tem odio, e nos desejam, e procuram mal; porque a vilesa do seu animo não soffre mostrarem valor na sujeição.—Não me parece a mim essa boa razão (accudiu o doutor) porque por dito de Seneca nenhum escravo ha mais vil, que o livre, que serve por sua vontade. (Não entendo n'este conto os nobres, e honrados, que servem aos grandes por respeitos razoaveis). E dos escravos, a que fez taes ou a ventura de guerra, ou outra desgraça, temos os livros cheios de exemplos de valor, e fidelidade, em que deixaram muito atraz os proprios filhos. E se não, vêde se fez algum o que o escravo de Publio Catieno. que, deixando-o o senhor por universal herdeiro de seus bens, pela fidelidade com que o servira; elle, por se mostrar agradecido na morte, se deitou vivo na fogueira em que queimavam o corpo de seu senhor, e morreu com elle, mostrando que estimava mais tal servidão, que a vida, e as riquezas que lhe deixava. Erotes, escravo de Marco Antonio, se matou de pesar de ver a seu senhor vencido de Augusto. Euporo, escravo de Lucio Graco, que se matou sobre o seu corpo. E um escravo de Papinião, que, vendo que os inimigos entravam uma quinta, em que o senhor estava, para o matarem, trocou com elle o vestido, e metteu no dedo um seu annel de preço: e deitando-o fóra por uma porta, sahiu pela outra a receber a morte, que haviam de dar a seu senhor. E Frederico de Eveshim, escravo de Conrado Imperador, que, sabendo que vinham para o matar, o fez sahir do paço, e se deitou na sua cama, onde, cuidando os inimos que era Conrado, o mataram: o outros muitos escravos sem nome, que mereciam que o seu ficasse eterno por memoria de sua fidelidade. Nem se póde esquecer aquelle grande animo de Lazaro Cherdo, escravo, de nação Serviano, que vendo seu senhor cativo de turcos, e depois morto, desejando vingar-lhe a morte por preço de sua vida, fingindo que vinha fugido dos hungaros, entrou no campo Turquesco, e dizendo que queria fallar a Amurates, primeiro imperador d'aquelle imperio, o matou a punhaladas; d'onde não pôde fugir, mas perdeu a vida valorosamente.—D'esses escravos (replicou Solino) não trato eu, que mereciam ser senhores de seus senhores; como tambem houve criados que mereciam ser [68] servidos de a quem serviram: que tambem Diogenes foi escravo; e perguntando-lhe Xeniades, que o comprava, em que sabia servir, respondeu: que em mandar homens livres; por o que Xeniades o libertou dizendo: aqui te entrego meus filhos para que os mandes. E Epicteto, que se chamava escravo de si mesmo: e a Phedão, escravo de Cebes, ouvi dizer, que Platão dedicara um livro da immortalidade. Porém a nós não nos cahiram em sorte estes escravos, senão a gente mais barbara do mundo como é a de toda a Ethiopia: e alguma escravaria da Asia, que é da gente mais vil das provincias d'ella; que uns, e outros tratam os portuguezes com rigoroso cativeiro n'aquellas partes, vendendo-os para serviço das minas das Indias de Hespanha como condemnados á morte: e assim se podem estes chamar com razão inimigos mortaes de seus senhores.—Tambem (disse o doutor) houve já n'este reino escravos illustres de muito valor, entendimento, e sangue, conhecidos por taes, e tratados como se estiveram em liberdade, que cativaram nas nossas fronteiras de Africa, em cujas historias me eu não quero deter por me não alongar mais do intento do nosso discurso dos recadistas, que uns e outros representam a pessoa de quem os manda, no que toca ao recado que dão: o que a mim me parece que está bem provado com o costume, que os antigos tinham em mandar os seus, que não fallavam por terceira pessoa, como é o nosso uso, que dizemos diz fuão que vos beija as mãos; que vos pede isto; vos encommenda este outro; vos lembra tal coisa: antes costumavam: N. vos diz, beijo-vos as mãos, rogo-vos isto, encommendo-vos este outro, lembro-vos tal coisa, representando nas palavras a mesma pessoa que as mandava dizer; e d'esta maneira ficava arriscado nosso amigo Solino, representando pelo seu moço: pelo que a mim me parece que o melhor do recado é ser tão breve, que o possa dar sem erro quem o leva; e tão claro, que o entenda sem trabalho a quem se manda. E com isto, e com vossa licença me hei por desobrigado do que n'esta materia podia dizer.—Não pela minha parte (disse D. Julio) porque deixais de fóra um officio de mais habilidade que todos os de que falastes, em cuja profissão entra a de embaixador, agente, procurador e recadista; e ainda outros muitos, que é o do terceiro, [69] ou alcoviteiro. A isto deram todos grande risada, e disse Leonardo: O doutor calava esse officio, por ser mais vil, e reprovado, que os de mais, e se empregar em materia tão odiosa á Republica: porém sem entrar no fundo d'elle, nos poderá dizer alguma coisa da superficie.—Bem sei (respondeu o doutor) que para me metter em desconfiança levantais essa lebre; e não vos enganeis, que tanto se deve tratar de officios viciosos para fugirem d'elles, como dos de virtude para os seguirem, e desejarem; e posto que esse é tão vil, já os romanos deram leis á sua profissão, segundo escreve Pedro Crinito; as quaes estavam escriptas no templo de Venus; e Licurgo, aquelle grande legislador dos Lacedemonios, tambem lhes deu regras, e liberdades, posto que lhe está melhor o castigo com que os nossos direitos os agasalham; mas se ha officio de muito cabedal, e pouca honra, é o do alcoviteiro, porque ha alguns que os não vence Tullio no fallar, Catão no dissimular, Sallustio no persuadir, Terencio no representar, Ovidio no fingir, Lucano no encarecer, Diogenes no desprezar, Ulysses no tecer, Momo no desdenhar; e todas as artes, e sciencias do mundo tem e empregam em afeiçoarem com engano vontades innocentes. E para lhe assignarmos as partes necessarias, fôra acertado pintar o avesso do embaixador, com que só convém em ser discreto, e experimentado; porém ha de ser baixo, vil, desprezivel, avarento, chucarreiro, mentiroso, ingrato e soffredor de todos os escarneos e zombarias, porque não só é de sua profissão enganar, mas tambem obedecer a toda a ignominia, e infamia que seu exercicio merece.—Muito cruel estais contra elles (tornou D. Julio) e não tendes razão; quando vitupereis o seu officio, não vos esqueçais da grandeza das partes d'elle, pois o alcoviteiro descreve, enfeita, e encarece melhor que um escriptor: persuade, aconselha, e convence como um rhetorico: finge, disfarça, e representa com figuras, espantos, meneios, e hypocrisias nos gestos, e palavras como um commediante: pinta, veste, touca, accommoda, guarnece, doura, argenteia toucados, e vestidos, e trata os rostos, e feições melhor que um pintor; sabe mais da natureza das pessoas com que trata, que um philosopho; vende o falso por verdadeiro, como logico; conhece as enfermidades, [70] e achaques dos que lisongeia, como medico; obriga, e engana no interesse, como legista; adivinha os tempos, occasiões, e vontades melhor que um astrologo. Não ha finalmente arte liberal, nem mecanica, de que se não valha, e em que não vença a seus professores.—Ainda me parece (disse Solino) que haveis de chegar á Celestina; que posto que o officio é do genero commum de dois, accommoda-se melhor ao feminino. E pois de embaixadores descemos a criados, não é de espantar que tropecemos em tão ruim gente.—Parece-me (disse o doutor) que de aposta quereis profanar a minha auctoridade; não vos quero dar esse gosto á minha custa: e não passemos d'aqui n'esta materia: e tambem porque é mais tarde do que parece, demos lugar a que o senhor Leonardo se recolha.

Com isto se levantaram todos, e se despediram, festejando e agradecendo cada um ao outro o que dissera; que tanto se contenta o discreto da boa razão alheia, como o nescio da sua ignorancia propria.



DIALOGO V


DOS ENCARECIMENTOS



Não perdiam tempo os da conversação em se chegarem aos interesses d'ella: e era em todos tão egual o desejo, que nem a occupação de cada um os desencontrava; porque o gosto, em que se enleva o entendimento, faz menores todos os respeitos ordinarios da fazenda, e familia. Entraram á noite juntos em casa do hospede com grande alvoroço, dando cada um no caminho seu voto sobre a materia, em que se haviam de gastar aquellas horas. Porém assentados, sem o estarem ainda no que seria, disse D. Julio: Por certo, senhores, que estou tão enleado com uma coisa que vos quero dizer, que temo das razões e da edade faltar ao decoro que convém ao sujeito d'ellas; porque nos mancebos as palavras de mero louvor de uma mulher, ainda sendo mui compostas, parecem lascivas; e mais facil é de presumir um engano de affeição nos meus olhos, que de persuadir um espanto a entendimentos [71] tão levantados como os vossos. Porém seja o que fôr, e corra o meu credito o risco que ordenardes; que com todos, os que houver, me aventuro.—Que novidade é esta, senhor D. Julio (disse Solino), que sermão quereis fazer, que tomaes a graça, e nos tendes pendurados a todos no desejo de vos ouvir?—Esta manhã, (proseguiu elle) porque me pareceu de caça, e por gastar n'ella o dia, com menos cuidado do desejo da noite, me fui pôr detraz da nossa serra alongando-me para a parte do mar um grande espaço de caminho; e voltando sobre uma fonte, que nasce ao pé de uma corôa de penedos, coberta da sombra de uns altos hervados, e atoeiras, cheios de verde rama como no melhor tempo da primavera, embaraçados com umas vides silvestres que os atavam, e que ainda de todo não estavam despidas de sua folha, vi junto a ella, e coberto com elles o mais formoso rosto, que eu imagino que pode haver no mundo para satisfação de uns olhos afeiçoados: era de uma mulher em habito de peregrina, que fiada na solidão d'aquelle deserto, e por gosar dos raios do sol, que n'aquelle logar se espalhavam, com os toucados lançados sobre os ramos á vista da fonte concertava os cabellos; e eram elles taes, que não sómente faziam perder ao sol a formosura, mas cobrindo outro mais formoso, que era o seu rosto, contentavam de maneira o desejo, que não fazia muito por passar d'elles adiante. Eu sem atinar no silencio, com que era razão que me escondesse por lhe não ser pesado, fiquei tão esquecido, que, afrouxando as redeas ao cavallo, o deixei tropeçar entre os ramos, e fui sentido da formosa peregrina; que levantando os olhos, a cuja obediencia os cabellos se apartaram, qual sôa ferir o relampago d'entre as nuvens, me saltearam a vista com uma luz estranha, descobrindo juntamente aquelle thesouro de ricas pedras, que o ouro dos cabellos escondia. Os olhos eram duas estrellas de diamantes, em cujo fundo um verde escuro de esmeraldas apparecia, que communicando áquella formosa côr a claridade dos raios, que despediam, roubariam as almas de quem os olhasse; e descendo d'elles abaixo, era tudo tão cheio de perfeições, que o menor logar, em que se empregava a vista, tinha desusados extremos de formosura. A bocca [72] era um laço de todos os pensamentos amorosos; e nunca vi coisa tão pequena, em que coubessem tantas grandezas; pareceu-me um rubi partido pelo meio, que com um perfilo aleonado se dividia, e por detraz luziam como por vidraça as perolas, que até então me não descobrira o pejo, com que ficou de haver visto. A columna, que sustentava este edificio, era um pescoço de crystal jaspeado de umas veias roxas, e azues muito delgadas, que me representaram n'aquella hora a côr do céo sereno, que pela rotura de duas nuvens brancas apparece, a que fazia parecer mais formoso o circulo da sombra, com que se engastava no aspero burel da esclavina que a romeira vestia: apeei-me eu; e n'este mesmo tempo lançou ella o toucado sobre os cabellos, pondo os olhos na fonte como em espelho; mas como as suas madeixas eram mais compridas, que a toalha branca, com que as quiz encobrir, se mexericavam pelos extremos das pontas, que vinham a guarnecer de fino ouro aquelle grosseiro trajo: falei-lhe com a cortezia, a que a modestia, e gravidade do seu rosto me obrigava; e ella sem mostrar outro alvoroço de minha presença mais, que vestir de escarlata a branca neve de que parecia formado, me respondeu, perguntando se estava perto o lugar, e se era aquelle o caminho. Eu, que não perdia com os olhos um só movimento dos que os seus faziam, me pareceu tudo o que tinha visto, sombra da graça e brandura com que falou com uma voz tão fina, que penetrava o interior do coração, e tão suave, que o desfazia, e com uma modestia tão grave, que não dava logar a se pôrem n'ella os olhos direitamente, senão com um respeito armado de receios. Perguntei-lhe d'onde era, para onde ía, encarecendo-lhe o perigo em que punha sua belleza de ser offendida, fiando-a de desvios tão solitarios. Mas ella despresando todos os temores, e fazendo mais difficultosa sua jornada, pelo que d'ella lhe pendia, que pelos trances que á sua conta se me representavam, deu a entender muitas cousas, com que eu perdi o accôrdo, e ousadia de lhe perguntar outras, e lhe offerecer algumas das que costumam haver mistér os que fóra da sua patria vem experimentar os males das alheias. E além de eu estar atalhado com [73] sua vista, o estava ella tanto com minha presença, que perdi o interesse de a vêr, por o respeito de a não molestar: despedi-me magoado: estou arrependido; e cubiçoso de a tornar a vêr, de maneira que não aparto o pensamento do logar onde os meus olhos a deixaram. E porque ainda me parece que deve ser mais estranho o successo, que a traz n'aquelles vestidos, que a novidade de sua gentileza, a que se deve todo o cortezão tributo de vontades bem nascidas; peço ao senhor Leonardo que por a melhor via, que lhe parecer, saiba d'esta estrangeira, que por esta noite deve de estar na aldeia; ouvirá d'ella mesma a sua historia, e eu acreditarei com a vista o que tenho dito de sua formosura.—Bem andastes, senhor D. Julio (disse o doutor) em tomar primeiro carta de seguro para o que havieis de dizer; porque os encarecimentos d'essa peregrina são mais pinturas vossas, que gentilesas suas; porque não ha mulher nas obras da natureza tão perfeita cá na terra como a soube fingir o vosso entendimento, ou affeição: e á conta d'ella me parecia bem que assentassemos o retrato de belleza tão sobrenatural, que em materias de amor tudo o que reluz é ouro, e tudo o que assombra é sol; e só com esta desculpa salvareis louvores tão desacostumados.—A affeição do que vi não posso eu negar (tornou elle) mas á vista da peregrina dizei o que quizerdes contra minhas razões, que nas suas partes hei de achar armas com que defenda o que disse. Leonardo se offereceu então a mandar fazer a diligencia com muito cuidado: e voltando para Solino, que tinha os olhos no chão, lhe disse: Vós, callaes, quereis allegar serviços ao senhor D. Julio, porque a vossa natureza não é deixar passar esta mercadoria sem registo.—Estava agora (respondeu elle) cuidando nos livros de cavallarias, que ha poucas noites que defendi; e desejava dar um cavalleiro andante áquella peregrina; que se uma cousa d'estas apparecêra a meu amigo Pindaro, que encantamentos não rompera, e que poesias, e obras heroicas appareceram de novo no mundo, que alabastros, marfins, marmores, crystaes, topazios, jacintos, esmeraldas rodaram por esses ares! Que posto que o senhor D. Julio sahiu d'este encontro mais elegante do que se esperava; Pindaro, com sua licença, tem n'esta materia mais direito adquirido; [74] e não se houvera de contentar de descer do céo as estrellas, e o sol em similhantes louvores: mas os archanjos, cherubins, dominações e potestades haviam de ter logar n'elles.

—Não será fora de proposito (disse o doutor) divertirmo-nos agora com esta materia em desconto, e recompensa das passadas; e gastar esta noite em saber a causa, e o estilo dos encarecimentos namorados, que é pensamento que já me desvelou em outra edade.—Obrigo-me eu (disse Leonardo) que a nenhum dos presentes descontente a vossa escolha; e eu particularmente estimarei seguil-a, tomando o primeiro voto do Licenciado, que por hospede, estudioso e cortezão se lhe deve o logar.—O meu voto (tornou Feliciano) é de pouca importancia, e o logar devido a outrem; mas com toda a humildade acceitarei o que me derem: e se com a minha razão ficar corrido, barato é o saber que se compra com primeiro errar: e assim digo que os encarecimentos nascidos de amor não devem parecer estranhos (por deseguaes que sejam) a nenhum juizo affeiçoado; porque o amante para pintar a formosura de uma dama, que satisfaz a seus olhos e pensamentos, difficultosamente achará nas cousas creadas a que a compare, que lhe fique parecendo que a encarece; porque, ainda que sejam formosas as estrellas, lhe não agradam tanto como os seus olhos; e sendo o Sol tão bello, se alegra menos com a claridade de sua luz, que com vêr o rosto de quem ama; e são de menos valia para seu gosto e desejo o ouro, as perolas, rubins, esmeraldas, e saphiras, que o riso da sua bôcca e a graça da sua vista; e de não imaginar na terra um amante cousa que se eguale ao objecto da sua affeição, dá em o desvario de a comparar aos espiritos que não alcança com o entendimento, subindo com elle pelas gerarchias mais levantadas: a causa é, porque o amor faz as cousas tão formosas a seus olhos, que leva muita vantagem á natureza que creou umas, e outras; e a cubiça e opinião, que engrandeceu a muitas d'ellas: que até do gosto, como diz Plauto, nem o que tem sabor sem amor é saboroso; nem ha fel tão amargoso, que com elle não pareça suave: que não sómente com seus poderes dá perfeição ás cousas, mas tambem as converte em outra substancia.—Não estou contra a vossa razão (acudiu Leonardo) mas [75] parecem-me de forma os encarecimentos de que falaes, que todos, pouco mais ou menos, não sahem de certos limites; porque, em descendo da pedraria, os que são menos lapidarios empeçam em coral, marfim, porfido, alabastro, rosas, neve, ouro: e, quanto por meu voto, a paixão de amor não havia de guardar regra certa nas palavras, e louvores, antes encarecer sua dama com as cousas que a seu gosto e opinião sejam mais formosas; e como as affeições são tão differentes, assim o seriam os gabos, e encarecimentos.—Para louvar (replicou Feliciano) não ha tantos caminhos como para ter affeição; porque logo daes com uma estrada Coimbrã, que é tão bella como o Sol, tão clara como a Lua, tão alva como a neve, tão loura como o ouro; e d'aqui adeante.—A mim me parece bem (disse Solmo) a razão do Licenciado, que o doutor tinha geito de metter os louvores de uma dama em exemplos caseiros, chamando-lhe fresca como o seu pomar, linda como o seu jardim, clara como a sua fonte, e alta como as suas faias: e como os amantes para encarecer se não contentam com pouco, todos chegam ao que pode ser: todo o branco é crystal e diamantes; o corado rosas e rubins; o verde esmeraldas; o azul saphiras; e o amarello ouro e jacintos; e até as mães dos meninos, a que naturalmente tem excessivo amor, não lhes sabem chamar pouco: quando os tomam nos braços, logo os intitulam de meu duque, meu marquez, meu conde; nas pedras meu diamante, e nas flôres meu cravo, e minha rosa: quanto mais louvando mulheres, a quem todo o encarecimento fica curto, e envergonhado pela fôrça, com que tem captivos os sentidos, e as potencias dos que hão de falar n'ellas. E para conclusão de tudo, diga Pindaro o que sente n'este particular.—Os encarecimentos, de que usam os amantes (disse Pindaro) menos são seus, que adquiridos dos famosos poetas, que lh'os ensinaram deixando-os escriptos em suas obras: porque, como retratadores das obras excellentes da natureza, buscaram tão altivos materiaes para darem vivas côres á formosura. E não é muito que, pintando um rosto formoso da terra, lhe accommodassem côres, e attributos celestes, quando para pintarem cousas do mesmo céo usam tantas vezes de semelhanças, e encarecimentos da riqueza da terra, como o fez Ovidio na casa de Febo, com tectos [76] de lavrado marfim, e ladrilhos de ouro, com paredes de topazios, jacintos, e esmeraldas; e o mesmo fez pintando os pavões, que no céo levavam o carro da Deusa Juno, que depois accrescentou em obra e feitio Martiano Capella. E como a phrase poetica é a mais excellente, e levantada, e por tal escolhida das Sibyllas, e Oraculos para usarem d'ella, tambem fizeram os amantes a mesma eleição; entre os quaes qualquer miuda consideração de um voltar de olhos é arco, aljava, e settas de Cupido, com todas as mais allegorias, e transformações que os poetas usaram.—A verdade é (disse o doutor) que a perfeição da formosura animada se não pode devidamente encarecer com alguma semelhança, que o não seja, porque todas lhe ficam muito inferiores: o que declarou bem uma dama Florentina, que perguntando-se-lhe o que lhe parecia de uma figura de mulher de alabastro, feita por um famoso esculptor d'aquelle tempo; ella, sem responder com palavras, fez que uma creada sua formosa e bem proporcionada, despisse em si as partes, que a figura mostrava núas; e logo á vista da natural belleza perdeu a pintura, a fama, e valor que d'antes tinha. E eu vi tambem um jeroglifico da formosura, que declara engenhosamente este pensamento: a figura do qual era uma mulher com a cabeça mettida entre as nuvens, o corpo despido, mas rodeado de um resplendor, que o não deixava vêr distinctamente; na mão direita um lirio, e na outra um compasso; significando com a cabeça mettida no céo, e no resplendor, que só com as cousas d'elle se podia encarecer, fazendo impedimento á vista humana como raios derivados da belleza Divina; o lirio denotando a graça das partes naturaes, porque em côr, e pureza foi sempre symbolo da formosura; o compasso a medida, proporção, e correspondencia dos membros, em que consiste toda a perfeição d'ella. Mas Pindaro tudo quer attribuir á sua profissão: e n'esta parte não tem pouca justiça: porque sómente na licença poetica podem entrar os desvarios dos namorados, por serem muito eguaes o furor poetico, e o amoroso. Porém, já que os encarecimentos estão approvados com tão boas razões, estimara eu ouvir alguma em desculpa dos que vivem, morrem, e ressuscitam a cada passo, e que andam sem almas como cantaros, e sem coração como [77] furões, que, a meu vêr, é gente que por privilegio de amor vive exceptuada das leis da natureza.—A razão (respondeu Feliciano) é a mesma; porque quem encarece a causa egualmente exagera os effeitos: a pena de um desfavor, o termo de uma crueldade, ou esquivança é o maior tormento da morte ao que ama; e um favor e brandura, que recebe em sua affeição, é na sua estima o maior bem da vida; e quanto ao estilo de viver sem alma, e sem coração, o declarou maravilhosamente um poeta moderno, dizendo em um soneto á sua dama, da qual estava ausente, que uma parte da alma, com que vivia, lhe ficara; mas a com que imaginava, entendia, e amava, tinha sempre com ella. Nem é outra cousa os desvarios, e desattentos dos que amam, senão viver em certo modo fora de si, como pareceu a Propercio, dizendo que o que se entrega ao amor perde o juizo; e o que eu vejo que poucos em presença da cousa amada ficam com elle.—Tambem S. Jeronymo (accrescentou o doutor) escreve que o amor da formosura é um esquecimento da razão; e assim chamam os poetas ao amor, inimigo d'ella. E que maior exemplo se pode imaginar d'esta verdade e mudança dos que amam, que o de Hercules, a quem os embaixadores de Lidia acharam lançado no regaço de sua amada, mudando-lhe os anneis dos dedos, ella com a corôa real na cabeça, e o famoso Thebano com um sapato seu d'ella em logar de corôa? que menos esperado que o de Dionisio Syracuzano, que por mão, e parecer de Mirta sua amiga despachava os negocios importantes do seu reino? que mais extranho, que o de Themistocles Atheniense, famoso capitão de Grecia, que namorado de uma dama, que captivou na guerra de Epyro, usava em uma doença, que sua amada teve, dos mesmos remedios que lhe a ella faziam, tomando as purgas, e sangrias como a mesma dama, e lavando o rosto por regalo, e gentileza com o seu sangue d'ella? que menos crivel, que o de Lucio Vitelio Imperador, que namorado de uma filha de um escravo seu, a quem libertara, de tal maneira perdia o juizo, que, tendo uma esquinencia, não usava outro remedio mais que um unguento que fazia de mel com o cuspo de sua dama, imaginando que a virtude do ser seu lhe podia dar saúde untando com elle a garganta?—De maneira (disse [78] Leonardo) que amor tira os sentidos, e o juizo a quem se emprega todo em seus cuidados: e eu tinha para mim, e ouvi sempre dizer que não podia o nescio ser bom namorado; o que agora vejo que contradiz a vossa opinião, pois os que amam não tem entendimento.—Só o discreto (respondeu Feliciano) sabe ser amante, e por isso perde o juizo nas mãos de amor; que o nescio mal poderá perder n'ellas o que não tem. E falando mais ao ponto da vossa duvida, o amante pelo ser não fica nescio, mas parece-o em muitas acções dos sentidos, e entendimento; porque, transportado na imaginação do que ama, se descuida de tudo o que não é sua paixão.—Extranhamente (accudiu Solino) me contenta ouvir esta razão para desculpar commigo os maus successos de namorados, a que não sabia tão boa desculpa; que assás grande é para esquecer cousas menores quem está fora de si: porque, deixados esses exemplos de amantes, cuja grandeza de estado faz maior, e mais notavel o desatino, com que nas mãos do amor renunciaram o entendimento; de outros de menos estofa, e mais modernos sei eu descuidos, que podiam entrar em historia n'esta occasião, e por me aproveitar d'ella: Eu conheci um cortezão mui empenhado em finezas de amor, que passeava em um terreiro, onde tinha a dama em um quartão, que já aturava aquelle fadario todos os dias como em atafona; acertou n'aquelle a ser mais favorecido da senhora, que de quando em quando lhe apparecia, cevando com sua vista os desejos do namorado mancebo, que por seguir a caça se esqueceu do tempo, e das horas de comer, mettendo-se pelo certão da calma que n'aquelle tempo fazia; o cavallo, que não devia de estar tão affeiçoado a aquella estancia como á sua costumada, estancava muitas vezes do passeio, sem haver accordo nem espora que o despertasse; até que uma vez, estando o amante parado com o ponto no alvo da janella, acertou a passar um macho que levava uma rede de palha, a que o rocim se arremessou com tanta furia, que, prendendo os copos da brida nos laços da rede, se embaraçou de maneira, que levou ao quartão enamorado por todo o terreiro, onde se resentio do rapto, sem se poder valer contra os couces do macho, e risada dos rapazes. Mas não é muito padecer d'elles afrontas quem do um tão mal acostumado fia [79] sua liberdade. Outro, que ainda nas guerras de amor não era armado cavalleiro, passeava a pé á vista de seu cuidado, ora com os olhos na janella, ora com o tento na postura, e galanteria de seu bom trajo: a dama, que não trazia ainda aquella affeição em abertas, e publicadas, porque não notassem os que passavam os meneios, e esgares que o mancebo fazia, acenando-lhe se tirou do posto passando-se a uma janella mais pequena que cahia sobre uma esquina das mesmas casas: o galante mais com o tento na mudança, que no caminho, com os olhos no alto, deu com a testa um grande encontro na esquina, de que se esmechou, e atolou em um monte de cal amassada de fresco, que estava arrimado á parede, ficando até os sendaes mais caiado, que cantareira d'Alfama.—A todos pareceram os contos de Solino cheios de graça; e (disse Leonardo) sempre sahe o amor culpado n'estes ferimentos; e não tenho por grande desar todo o que succede á sua conta, que por isso o pintam cego, e são conhecidos por taes os que o servem: porém a mim me parecia que quando o amante perde o tento, e o sentido de tudo o mais, devia ficar só discreto, e avisado para sua dama, que é o objecto em que todo se emprega; que para lhe falar lhe sobejariam razões galantes, respostas obrigadas, termos de subtileza, e galanteria: e eu pela experiencia acho o contrario, que dos noivos, e dos amantes se contam as primeiras parvoices.—Não sei (disse Solino) se dirá agora Pindaro que tomaram isso os namorados dos poetas, como os encarecimentos.—Os poetas (respondeu elle) não são havidos por parvos; e quem lhes quiz fazer todo o mal lhes chamou doidos: o que poderia ser; que o arrebatarem-se, e alhearem-se de si os amantes com affeição, como os poetas com o furor divino que os excita, aprenderiam d'elles. Pelo que o vosso remoque não deu boa chaça: mórmente que esses primeiros erros são de outra geração; e nenhum parentesco tem com a parvoice. Antes é um modo de se atalhar, e suspender um homem o seu entendimento com muita razão; porque não pode dizer cousa, que pareça bem aos outros a primeira vez que fala com aquella a quem ama; que é passo, onde os mais discretos o perdem.—Parece-me que está no certo meu companheiro (disse Feliciano) que eu sei de homens, que entre [80] os outros podiam falar sem medo, terem-no muito grande a estes primeiros encontros; que certo me parece mais respeito que se deve á formosura, que falta que se possa dar em culpa ao entendimento: pois o verdadeiro é que amor o apura, e engrandece; e por este respeito os Athenienses lhe levantaram uma estatua na Academia de Palas como a sabio, e lhe dedicaram uma escola os Samios, significando que só na de amor se alcança com perfeição tudo, o que pelas do mundo variamente se aprende, e com muito discurso de annos se alcança: o aviso no falar, a discrição no escrever, a brandura no conversar, a policia no vestir, a graça no parecer, a cortezania no tratar, a liberalidade no dispender, o esforço no pelejar, a largueza no jogar, a humildade no servir, e a pontualidade no merecer. Do pensamento, e juizo dos amantes sahiram ao mundo as emprezas discretas; as chimeras escuras, as idéas levantadas, os motes avizados, os versos excellentes, os enredos subtis, as cartas galantes, as fabulas bem fingidas, os primores, os extremos, e as finezas tudo é doutrina tirada das escolas de amor. E pois n'ellas se alcança tudo, não é muito que se ache tambem um termo de falar encarecido, e levantado sobre todas as cousas vulgares que tratamos, posto que o juizo d'este acerto se não deve fazer por homens livres d'esta paixão amorosa, se pode haver algum, a quem não coubesse em sorte padecel-a: e bastava sem outros exemplos, fazer a eleição d'ella o sr. Julio, que em todas as partes de côrte e gentileza pode servir de espelho aos mais apurados.—Vós me obrigaes por tantas vias (respondeu o fidalgo) que fico desconfiado de poder pagar nem com encarecimento do que mereceis, nem com a restituição dos louvores injustos que me daes, que só são devidos ao vosso entendimento. E pois a victoria d'esta batalha ficou por elle em meu favor, quero-me aproveitar d'ella, e do cuidado que me deu o dia com me recolher a casa, e fazer mais comprido o repouso da noite.—Essa resolução (disse Leonardo) é em damno de todos: e muito mais de sentir, porque á força nos obrigaes a que consintamos n'elle: mas como em logar de preza trouxestes da caça empreza tão difficultosa, poupaes horas para cuidar n'ella á nossa custa.—Antes (respondeu elle) [81] para reformar no somno as que me desvelei na madrugada.

A isto se levantou; e os mais dando boas noites o iam seguindo, e disse para todos Solino: O senhor D. Julio vae a sonhar com aquelle thesouro encantado que lhe appareceu na fonte; e para este cuidado não quer companhia; que se a communicação dos bens de amor faz muito maior a gloria d'elles nos contentes; aos que só o estão de seu pensamento nenhuma cousa é mais agradavel, que saudosa lembrança.



DIALOGO VI


DA DIFFERENÇA DO AMOR, E DA COBIÇA



Cada um dos amigos ao outro dia fez curiosa diligencia por saber algumas novas da peregrina, que D. Julio tanto encarecera a noite passada; e não achando d'ella nenhuma noticia, tiveram a historia por fingimento. Juntaram-se ás horas acostumadas á porta de Leonardo, a tempo que tambem o fidalgo apparecia, e que o velho os vinha a esperar ao peitoril da escada com um hospede que lhe viera, que era um clerigo de edade, pessoa, e trajo auctorisado; que dos mais foi logo conhecido por ser prior de uma egreja que perto d'alli ficava: sentaram-se agasalhando-o entre si com a devida urbanidade; e depois de lhe perguntarem de sua saude; como estavam com o desejo de tirarem a terreiro a D. Julio, fizeram signal a Solino que começasse; porém Leonardo não deu logar á boa vontade que elle tinha, e se lhe adiantou na pergunta.—Bem cuidava eu, senhor D. Julio, (disse elle) que aquella formosa peregrina era encantada, e que foi traça do vosso entendimento fazer a todos cavalleiros d'essa aventura; porém a mim só a encommendastes; que pela edade pudéra já estar aposentado para tal empreza; eu a tomei por vos obedecer, e andei bem cuidadoso no seguimento d'ella, sem até agora atinar no caminho, em que vos perdestes.—Minha foi só a desgraça (respondeu elle) pois perdi comvosco, e com os mais o credito do que disse, e para meu desejo a glo ria [82] do que pudéra tornar a vêr em sua formosura.—Essa levantastes vós tanto sobre as estrellas (disse Solino) que se devia de agasalhar com ellas no céo, e enjeitar a pouzada d'esta aldeia.—Parece-me (accudiu o prior) segundo o que vos ouço, que nós podiamos mostrar o jogo; porque a occasião, que me trouxe a este logar, e leva a Lisboa, é uma estranha peregrina que hontem appareceu na nossa aldeia, de cujos successos, e formosura se podiam contar grandes extremos; que já pode ser que seja a de que falaes.

Com esta nova se mostraram os amigos mui alvoroçados, e D. Julio contente; e Leonardo respondeu ao prior:—Não imaginei que tinha tanto bem junto com o de vos ter n'esta casa; affirmo-vos que, se ella não fôra vossa, não poderieis pagar melhor a pouzada, que com tão boas novas: pelo que vos peço que as não dilateis, contando-nos mui particularmente d'essa peregrina, que tem tão obrigados os desejos dos que aqui estamos, como agora pendurados os olhos, e ouvidos do que nos haveis de dizer.—Hontem á tarde (proseguiu o prior) a tempo que já o sol se ía encobrindo com as azas da noite, andava eu continuando com a obrigação da reza à vista da egreja; veiu fazer oração á porta d'ella, e d'alli ter commigo uma mulher em habito de romeira; que se a minha vida merecera a Deus que mandasse a algum anjo falar comigo, podera imaginar que ella o seria; porque a sua belleza passava os limites do encarecimento humano, e com uma voz, que respondia bem á honestidade do seu rosto, e á humildade do seu trajo, me falou (posto que em lingua estrangeira) de modo que se deixava entender mui sem trabalho: perguntou-me se acharia gasalhado em algum hospital, ou casa de caridade d'aquella terra, em que passasse a noite, e pela manhã guia de confiança para ir ter á cidade, offerecendo que n'ella pagaria bem a quem a encaminhasse. Eu, que no merecimento de sua vista achei que era pouco tudo o que lhe podia offerecer, fiquei enleado; porém lhe disse: Senhora, esta terra é muito pequena; e para o que vós representaes, outra maior me parecera limitada. Eu, posto que sacerdote, e d'esta edade, tenho em minha casa uma irmã viuva, e sobrinhas, que vos saberão servir melhor que as naturaes [83] da aldeia; fazei-me mercê de aceitardes a pousada, qual ella é, e, á conta do que faltar ao que vós mereceis, supprirá a vontade que é muito grande. Ella me deu as graças do offerecimento com poucas palavras, mostrando que o acceitava: vim com ella a minha casa, onde foi agasalhada, e servida com grande gosto, pelo que as moças tinham de se estarem revendo nas graças da sua belleza. Depois da cêa, em que a peregrina fez pouco damno, lhe pedimos nos contasse a causa de sua peregrinação, e como sem companhia viera ter ao nosso logar: e ella mudando a côr em um suspiro, entre algumas lagrimas, e com tão discretas razões, que as não saberei eu agora referir com a perfeição propria (posto que algumas palavras eram de linguagem alheia) contou o seguinte:

Na ilha de Irlanda, e na cidade de Dublin principal de seus estados, no maior enleio, e dissensão dos principes d'ella, que com a differença, e variedade das erradas seitas de Inglaterra, a cujo rei obedecem, vinham em total ruina, e destruição d'aquella provincia, nasci de generosos paes, tão mimosa dos afagos, e enganos da fortuna em meu principio, quanto depois a senti esquiva, e deshumana em minhas desgraças. Não tiveram meus progenitores outro fructo, em que empregassem o amor paternal, (que faziam notavel excesso á qualidade de seu sangue) mais que a mim, que com esta boa sorte era invejada de todas as de minha edade, e pertendida dos mais illustres mancebos de toda Irlanda. No melhor de meus tenros annos, que a estes costuma morder sempre por varios modos a inveja venenosa da dura parca, de uma arrebatada enfermidade perdeu minha mãe a vida; e eu como ainda na minha não provara outros males, senti este primeiro com grande pena: mas como a sorte m'o ordenara para ensaio de novas desgraças, depois de me ter encetado o soffrimento; em poucos mezes depois perdi meu pae, e senhor, a quem muito amava, e fiquei mettida entre parentes cubiçosos de minha herança, e amantes fingidos, que obrigados das riquezas d'ella me procuravam por esposa. Tinha eu a todos, os que me offereciam, pouca vontade; e grande obrigação de tomar estado conveniente aos respeitos de minha nobreza. E como os favores, em que me creei, me ensinaram a ser [84] altiva (que este é um dos grandes damnos que faz a prosperidade) puz o pensamento em quem com despreso, e ingratidão castigou minha arrogancia: havia n'aquella mesma cidade um principe, mui chegado por descendencia ao sangue real de Bretanha, cheio de muitas graças da natureza; que, ainda que me era muito desegual por nascimento, tinha tão poucos bens da fortuna, que fazia eu no meu dote confiança para o pretender. Alcançou elle d'isto alguns signaes, que teve em pouco; não advertindo que a vontade de uma dama sempre põe em divida a um espirito generoso, que conhece o preço d'ellas. Succedeu pois que, tendo eu já de minha pretenção poucas esperanças, o elegeram os da ilha de Lister, Ragrim, e das mais da parte oriental de Irlanda, por capitão de uma armada de corsarios, afim de fazerem uma preza muito importante no mar Oceano: e como ás vezes o castigo dos maus intentos é a mesma fortuna, (posto que outras como cega os favorece) se perdeu esta armada com uma tormenta, na qual a maior parte da gente pereceu; e a que ficou do miseravel naufragio se salvou em uma enseada, onde foi captiva de um turco corsario, que a levou a Argel, e alli por o pouco segredo dos seus ficou o seu general conhecido por quem era; e como o sangue, d'onde descendia, junto ao cargo que levava, o faziam de mór preço para os que o captivaram, ficou impossibilitado o seu resgate, e elle sem remedio n'aquella prisão alguns annos: até que a necessidade, e apêrto d'ella me aconselharam que de novo emprehendesse o de que com seus despresos desconfiara, mandando-lhe offerecer liberalmente meu dote para resgate de sua liberdade. E elle com o desejo d'ella, e obrigado d'esta lembrança, tendo por menores grilhões os que de novo lhe punha, que os que elle trazia, aceitou a offerta, e me mandou em satisfação um escripto, em que me jurava por sua esposa. Puz eu, sem mais cautella, em execução o meu intento, perdendo a affeição ás muitas riquezas, que tinha, pela honra e contentamento, que d'aquelles desposorios esperava. Tornou livre á sua patria, e mudou de improviso a tenção que fingira para alcançar o remedio á custa do meu engano. Estranhou-lhe o mundo esta crueldade: e os meus vendo-me sem dote, e sem marido, e, o que o havia de ser, tão ingrato, [85] e na opinião de todos tão culpado, me levaram a o demandar por justiça nos tribunaes supremos, onde, depois de convencido, me foi julgado por devedor, e por esposo. Mas como a minha vontade não era que elle o fôsse contra a sua, esperei o tempo mais conveniente para a declarar. Obrigado emfim da justiça, e, depois d'ella, rendido aos conselhos dos principaes parentes que o tratavam; o dia, em que se havia de desposar comigo, cumprindo por sentença a palavra que me tinha dado, antes de lhe dar a mão, metti na sua um papel em logar da minha, que era quitação plenaria de tudo o que por elle déra, e juntamente do que elle com tanta ingratidão recusara, escolhendo para castigo de minha altiveza a humildade da religião mais apertada. Fez isto em toda a ilha grande espanto; e eu com o resto, que do meu dote ficára, aborrecendo a patria como a madrasta, determinei logo buscar em reino alheio segura morada. E porque a fama da religião portugueza, e da famosa cidade de Lisboa, onde muitas religiosas do illustre sangue de Bretanha vivem santamente em clausura, me trazia mais affeiçoado o desejo; mandei por alguns mercadores de confiança o maior cabedal do que possuia a quem até á minha chegada o detivesse; e eu como tive a certeza de este dote mais necessario estar seguro, fugindo ás affrontas, e odio de meus naturaes, me embarquei com o mais que me ficava; e com prospero vento tomei porto em Galiza, e visitei a casa, e sepultura do glorioso apostolo Santiago; d'onde caminhando por terra, livre já dos enredos de minha ventura, não pude escapar á cobiça dos criados que me acompanhavam; que esquecidos da fé que me deviam, e pouco affeiçoados da catholica que professava á sua vista com tanta firmeza, me roubaram as joias, o dinheiro que trazia, deixando-me n'estes desvios desamparada. Senti mais esta derradeira desgraça, por ser a que me tomou com a paciencia quasi rendida aos trabalhos da viagem, que venceram o descostume e fraqueza femenina; e tambem por me achar tão só na confusão d'estes caminhos: porém se pelos que parecem tão errados me quer Deus guiar ao mais seguro, eu ponho em suas mãos o soffrimento: e por elle, senhor, vos peço como a ministro seu que em tudo pareceis, que, ainda que vos dê cuidado, me mandeis [86] d'aqui em companhia de confiança, até onde d'aquellas bemaventuradas religiosas seja conhecida; que á sua vista poderei logo satisfazer a diligencia: a vós pagará o céo este trabalho, e a estas senhoras o amor com que favorecem o meu desamparo; que a maior consolação, que devem ter os perseguidos da sorte, é saber que a todo o tempo, que se acolherem a Deus, acham n'elle brandura; e que tem á sua conta pagar largamente as boas obras, que no decurso de seus trabalhos receberam.

Esta historia contou a peregrina com os olhos cheios de agua, com que orvalhava de quando em quando as rosas do seu rosto; e a nenhum dos que alli estavam faltaram lagrimas. Eu lhe disse: Senhora, se o estado que buscaes com tanto desejo, não fôra melhor que o que vos roubou a ventura, muito era para sentir a que vos offende. Porém como o caminho dos que Deus escolhe é tão differente do que seguem aquelles que lhe vão fugindo; não podeis n'este ter maior seguro, que saber que vos acompanha nos trabalhos presentes, e vos ha de dar o galardão e premio de todos: e para que eu tenha n'elles alguma parte de merecimento, me offereço ao remedio dos que ficam até tomardes logar n'essa clausura. Lisboa é terra grande; e a muita confusão da gente e trafego d'ella a faz embaraçada; e vós é razão que com a decencia e commodidade, que vossa pessoa e qualidade requer, vos deis a conhecer. Pelo que, se quizerdes descançar com estas minhas parentas, e ja criadas vossas n'esta aldeia, eu irei á cidade, e procurarei servir-vos com todo o cuidado. Isto me agradeceu a estrangeira com muito boas palavras, mostrando tambem nas côres do rosto signaes de obrigação. E hoje, antes da minha partida, me fez uma lembrança do que por sua parte havia de perguntar. No caminho me atalhou a jornada uma occasião forçosa, que me fez passar a noite tão perto de casa como vêdes, mas com o maior interesse que podia esperar: pois, além das mercês do senhor Leonardo, goso a conversação de tantos amigos e senhores, que é fim, a que se podiam dirigir outras jornadas maiores.—Já agora (disse D. Julio) não serão tão culpados meus extremos; pois nos que disse o senhor prior da peregrina ficam acreditados; e passam as suas obras tanto [87] adiante das minhas palavras, que deixa a sua egreja e familia para por a servir no que eu nem ainda me soube offerecer: e contou ao prior o como encontrara, andando á caça, a mesma estrangeira, e o que n'aquella conversação tinha passado sobre os louvores, com que elle quizera pintar sua formosura.—Nenhuns lhe podieis dar (proseguiu elle) que não ficassem os maiores encarecimentos devendo muito á verdade: e o maior espanto, que eu achei nos de sua gentileza, foi que, sendo ella tal, houvesse um homem bem nascido, que sobre obrigações tão forçosas a despresasse.—Isso (tornou D. Julio) não tenho eu por espanto; que d'esse modo se costuma vingar a sorte da naturesa, quando na perfeição de suas obras a não pode egualar: mais se me representa a mim que seria o homem nobre, e sem entendimento, como ha muitos, pois fugiu de tantos e tão poderosos attributos, como eram formosura, riqueza, magnificencia, cortezia, e humanidade, todos empregados em seu favor.—E a mim (acodiu Solino) me pareceu ingrato, mas discreto, fugindo o jugo de uma mulher que lhe ficava sendo duas vezes senhora, uma pelos poderes naturaes de sua belleza, e outra por a divida, e preço de seu resgate.—O meu voto é (disse Pindaro) mui differente; antes julgo que o que o homem aceitou por necessitado, veiu a enjeitar por cubiçoso, vendo que se dispendera com sua liberdade o dote que dourava as perfeições de sua esposa; que nunca deixara de o ser, se fôra tão rica como no principio, em que o libertou; porque a cobiça e o amor são grandes competidores.—Não me descontentam as opiniões (disse Leonardo) mas já que vos entalastes entre esses dois inimigos do socego humano, seja a questão e a materia da conversação da noite á conta d'elles. E perguntou ao doutor, qual dos dois é mais poderoso, e obriga os homens a maiores extremos?

—Se houvessemos de dar credito (respondeu o doutor) á experiencia, e tomar os successos do mundo por argumento, com poucas porfias se manifestará a verdade da vossa pergunta: mas tratando primeiro das razões, vejamos em que se parecem, e os poderes em que os antigos igualaram o amor, e a cubiça; que de ambos deixaram jeroglificos, e figuras. Pintaram pois ao amor menino, formoso, com os olhos tapados, despido, [88] com azas nos hombros, e armado de arco e settas: menino, por facil e fagueiro; formoso, porque a belleza é o objecto dos amantes; despido, porque se não póde encobrir; cego, porque não vê, nem conhece a razão; com azas nos hombros, por ligeiro, e mudavel; armado, por forte, poderoso e cruel. A cubiça pintaram-a mulher, despida, com os olhos tapados, e azas nos hombros. Despida, pela facilidade com que por seus effeitos se descobre; cega, porque não vê nenhum respeito humano em rasão do que deseja: com azas pela velocidade com que segue aquelle objecto, que debaixo da especie de proveito se lhe representa. Assim que só nas armas, e no sexo feminino achamos na pintura differença: porém se considerarmos os effeitos da cubiça, ou foi que na pintura de mulher as quizeram cifrar todas, ou que lhes faltou lugar para tantas armas; porque se amor é forte e poderoso, e vence a tudo, como disse o poeta; o mesmo confessa que a todos os extremos fórça, e obriga a sede do ouro aos humanos; se a amor como a poderoso o fingiram Deus cruel, como diz o poeta Seneca; não só a cubiça é Deus do avarento e cubiçoso, mas o mesmo ouro que deseja, como d'elles disse um doutor santo; se lhe chamam cruel pelos damnos que no mundo fizeram seus poderes, mais reinos assolados, cidades destruidas, e damnos immortaes se fizeram no mundo por cubiça, que por amor: e antes de chegar aos exemplos, com que se póde provar esta verdade, vejamos em seu nascimento que coisa seja amor humano; e o que é cubiça. A elle chamaram muitos auctores furor; e este definio maravilhosamente um doutor grego, que disse que amor era um desejo irracional, que facilmente se emprega, e com grande difficuldade se perde. E da cubiça escreve outro mais moderno, que é um appetite fóra da medida certa, que ensina a razão; que não tem modo, nem fim. É certo que cada um d'elles podia trocar com o outro esta definição, sem ficar enganado; porque o mesmo é excesso de um desejo irracional, que appetite fóra dos limites da rasão: e o mesmo ser leve em se empregar, e deixar-se com difficuldade, que não ter modo, nem fim. Mas posto que na pintura, e nascimento os podiamos igualar, os effeitos da cubiça são com mais força, e vehemencia, que os do amor; [89] porque, se faz cego o amante para perder o lume da razão, todavia não o faz vil, antes o engrandece: e o cubiçoso é cego para não vêr razão, nem honra, e para se abaixar a todas as infamias, a que se sujeita o interesse: se o pintam despido para se não poder encobrir, com mais vergonhosas mostras se pinta a cubiça: o que na mesma pintura de mulher está declarado. Se é ligeiro o amor para se empregar, com tudo busca sempre a formosura como objecto seu, e obra a que honrou a mesma natureza: e a cubiça se emprega nas mais humildes e indignas coisas da terra, como d'ellas possa tirar fructo o cubiçoso: que a Tito cheirava bem o dinheiro que cobrava das immundicias de Roma; e no que são atrevimentos e ousadias, muito atraz ficaram os amantes dos cubiçosos. Romper as entranhas da terra, e chegar á vista do inferno por tirar ouro: descer ao fundo do mar por buscar perolas, descobrir novas regiões, soffrer climas estranhos, e barbaras gentes para adquirir commercios, obras foram de cubiça, e não de amor, como tambem o foi a navegação, que na empreza do Velocinio d'ouro começou: e se amor é cruel, muito menos o parece nas obras que a cubiça, pois elle ao amante offende com suavidade amorosa, e aos estranhos com animo compassivo tanto mais nobre, quanto elle o é mais, que a cubiça, que mata no mundo mais homens em um só dia, que o amor em muitos annos. Assim que a meu ver em competencia, ella tem mais poderes, e na semelhança se parece tanto com o amor, que é elle mesmo; mas com tal differença, que elle ama a formosura humana, e a cubiça a riqueza.

—Não consinto (disse o prior) que o vosso entendimento faça tão grande aggravo ao amor, como é igualar com elle a cubiça: porque quando em poderes tenham grande semelhança, na nobresa e nascimento tem muito maior desegualdade; que posto que o amor considerado como appetite carnal seja excesso de um desejo fóra da razão; significado como affeição humana, é uma força que ajunta, ou deseja unir duas vidas em uma, a do amante e da coisa amada, e é este amor tão natural a todos, que é defeito e torpeza não saber amar, como diz S. Chrysostomo. E pelo contrario Aristoteles chamou a cubiça desejo fóra da natureza. O [90] amor nasce tão nobremente, que tem por objecto a belleza humana, e os dotes naturaes mais excellentes como são graça, juizo, parecer, e perfeição: e assim diz S. Agostinho, que amamos coisas boas, porém com amor mal intencionado. E a cubiça como é vicio do entendimento, e appetite preternatural, sempre é mal nascida, e inclinada a coisas baixas. Assim que sejam os poderes, e as pinturas quão parecidas quizerdes; são as naturezas de ambos mui differentes.—Parece-me, senhor doutor (disse Feliciano) que aquella razão ha de achar muitos votos contra o vosso, porém eu por me pegar ao melhor parado, nem quero ir contra elle, nem hei de encontrar o do senhor prior, antes ajudado da doutrina de ambos accrescentarei o meu pouco, mettendo-me entre tão boas partes pela de amor; e digo que posto que elle e a cubiça sejam semelhantes no poder, no que é amar são em tudo deseguaes, porque não se ama a coisa que pelo que é, e por amor de si propria se não ama; e menos se póde amar a que se não conhece: e assim seria erro chamar amor ao do cubiçoso, que se emprega em coisas que por si não merecem amor, e em outras, de que não tem nenhum conhecimento: amar a uma pessoa, que obriga e sujeita a nossa vontade; é ter-lhe amor por qual ella é, e por essa a desejamos unir comnosco, por natural appetite: mas empregar a affeição no dinheiro, e no ouro, que não amamos pelo que é, senão pelo que com elle se alcança, não póde ser amor. E menos o será amar o que ainda não conhecemos, como faz o cubiçoso a muitas coisas, que não vio, pelo interesse que d'ellas espera. E não tratando ainda de que o amor não se considera só no que ama, senão tambem na coisa amada; e que falta correspondencia, sendo essa insensivel: o amor todo se emprega no interesse dos sentidos; e este falta em todos elles ao cubiçoso: porque, se a sua temerosa côr o cativara, nem d'essa o deixa usar o seu cativeiro. D'onde veio dizer o poeta Horacio que o ouro para os avaros não tinha côr, porque o enterram segunda vez, pois por essa e por seu nascimento lhe podem chamar desenterrado: nem com a voz deleita os ouvidos, nem com a suavidade do cheiro recrea, nem com o tacto agrada, nem com o gosto satisfaz. Diga-o Midas, que o pediu aos Deozes por dom: e como [91] lhe ficou por mantimento, perecia na abundancia do que tanto desejara. Diga-o Pithio, o qual deu a el-rei Dario o platano e videira de ouro: o gosto, que achou na ceia que sua mulher lhe ordenára: o qual com sua demasiada cubiça não dava lugar aos seus cidadãos de se empregarem em outro trabalho mais, que em beneficiar as minas do ouro, em cuja ruina muitos d'elles miseravelmente pereciam: pelo que, vendo as matronas da cidade tanto damno, foram juntas pedir á mulher de Pithio que, compadecendo-se de tão grande mal, rogasse por ellas a seu marido, pedindo-lhe que désse aos seus melhor tratamento: e ella, a quem não faltava entendimento, nem piedade, conhecendo que era vão vencer com rogos a sua cobiça, ordenou a Pithio uma ceia esplendida em um dia de festa; na qual todas as eguarias, que lhe deu, eram formadas de ouro. Alegrou-se muito com ellas na primeira vista, e com a magnificencia do apparato, com que lhas apresentavam: porém quando pelo discurso do banquete não viu nenhuma de que podesse comer, perguntou pelas eguarias verdadeiras, confessando d'aquellas que eram fingidas. Como (respondeu então a sabia matrona) queres que te apresente outra comida, se só no cuidado da que tens deante occupas a todos teus vassallos, pois se não lavram os campos, nem se cultivam as arvores, nem se pescam os rios, nem se caçam as aves, nem se criam os animaes, pelo exercicio continuo de tirar ouro? Contenta-te tambem com o fruto d'elle por mantimento. E com este ardil emendou em alguma parte sua demasia.

Bem parece que entendia esta verdade Halaono imperador da Tartaria, que vencendo, em Baldaco, o Califa mestre da seita Mahometica, que era o mais poderoso rico, que então havia no mundo, vendo que, por se não ajudar de suas riquezas, e as não despender em soldo, não tivera resistencia contra o exercito dos Tartaros; depois de captivo o mandou metter em uma camara entre o ouro e joias preciosas, que antes tinha, sem lhe mandar dar outro mantimento, dizendo que d'aquelle comesse á sua vontade: e assim entre a grande abundancia de suas riquezas o miseravel Califa morreu de fome.

Pois se o ouro por si não póde satisfazer ao gosto, [92] nem deleitar sentido senão com o engano do que com elle alcança, como póde ser capaz de amor?

—Vós (disse Pindaro) temestes ao doutor; porém não o seguistes: e eu ajudado do vosso receio, e da sua auctoridade, me hei de valer da primeira opinião que propoz, e é que o amante e o cubiçoso não differem mais no amor, que no emprego d'elle; e para isto me fundo em uma opinião moderna, que tem por si muitas auctoridades antigas; e é que nenhuma pessoa ama mais a outra, que a si mesma, nem póde ter amor a outro, se primeiro se não amar a si; e do amor que se tem, nasce o desejar e amar as coisas a que se affeiçoa, e inclina mais a sua natureza: amo isto, porque me parece bem, e o quero unir a mim, pelo que me quero, e desejo tudo o que me agrada e satisfaz por meu respeito; e por isso chamaram ao amigo uma alma em dois corpos, e, como diz o proverbio, o amigo é outro eu; quero-lhe tudo o que para mim quero, e amo-o como a minha alma unida com a sua. E Aristoteles diz que o amigo se hade egualar no amor com o que cada um tem a si: logo tanto quer e deseja o amante o objecto da belleza, em que se emprega, como o cubiçoso o ouro, que quer para si. E quanto á objecção de que o ouro senão ama pelo que é, senão pelo que vale, e por o que com elle se compra e alcança, os vossos mesmos exemplos dirão por mim o contrario; que o cubiçoso, e avaro antes perderá a vida, que resgatal-a com o ouro, a que quer mais que a ella; e antes perece á fome, que satisfazel-a com dispender o que tem em mais estima que a fartura; que para elle é mór damno gastar, que todos os outros; como Lucilo conta de um avarento chamado Hermones, que, sonhando uma noite que gastara certa quantidade de dinheiro, foi tanta a sua paixão e dôr, que, cuidando que era verdade, se afogou. E assim diz S. Jeronymo que tanta necessidade tem o cubiçoso do que possue, como do que lhe falta, pois lhe falta animo para usar d'elle: e diz n'outro lugar que só a avareza e cubiça fez no mundo pobres, porque assás o é mais, que todos, o que tudo deseja; e possuindo mendiga, e padece como se lhe faltára. Logo certo é que o ouro ama o cubiçoso, e não já o que com elle se compra; pois o não quer para comprar, senão para o possuir. E respondendo á deleitação dos sentidos, [93] que o amor humano offerece, e na cubiça falta, ousarei a dizer que o ouro, ainda enterrado, parece melhor ao cubiçoso, que ao amante a formusura que appetece; e que é mais suave a seus ouvidos o rumor, e tinido do dinheiro, que a brandura de todos os requebros, e galanterias namoradas; e que nenhum gosto para elle é egual com o que tem de tocar, tratar, e revolver-se entre o mesmo dinheiro: o que se póde ver com grande admiração n'aquelle afamado cubiçoso o Imperador Caligula, que, depois que a muitos obrigou que o instituissem por herdeiro, aos quaes, depois de testarem, fez matar com peçonha (rindo-se de haver homem que quizesse viver mais depois de haver testado) atraz de em sua casa instituir publica mancebia de todos os vicios, de que tirava um copioso tributo, se lançava despido entre o dinheiro, que d'estas infames obras procedia; e, dando sobre elle mil voltas, tinha em menos conta todas as outras delicias, que os homens a preço do dinheiro procuravam. Certo é logo que o ouro ama, e a elle quer, e com elle se deleita o avaro e cubiçoso; que, se o desejára para o empregar em o que com elle se alcança, perdera o primeiro nome, e podera merecer o de rico, prudente, e liberal: porque o ouro, e as riquezas, como diz S. Leão Papa, não são boas de si, nem más; mas o bom ou mau uso d'ellas engrandece, ou desacredita a quem as possue: e assim não é rico o que muito tem, senão o que com o que tem se contenta: e não ha maior pobreza, que, por empregar o desejo em um baixo metal, que sem bom uso não presta, deixarem os homens o muito que com sua valia poderam adquirir.

—Todos (disse Solino) deram sua pancada a esta lebre; Leonardo, que a levantou, deixou-se ficar no covil; e eu fiquei atrás dos galgos sem dar um brado; farei muito, se agora quizer desmanchar o bemdito de todos. Comtudo a minha opinião é que quanto tendes feito na grandeza e poderes da cubiça é errado, e que se haviam de attribuir ao ouro, e não a ella. E tratando da pintura, em que a embaraçastes, e quizestes assemelhar com o amor, tenho por mui errada a declaração d'ella: e posto que seja contradizer a tão grandes entendimentos, a hei de explicar ao meu modo, que me parece que a pintaram os antigos: mulher por sua [94] fraqueza; pois é tal, que se rende a qualquer pequeno, e vil interesse; despida como desavergonhada, por quão sem respeito, nem moderação se atreve a commetter qualquer infamia; com azas por a ligeireza, com que se arremessa a qualquer preza como ave de rapina; cega por pedinte, mendiga, e importuna: e se isto não é, venho a presumir que a fingiram com o rosto de mulher, e as pennas de ave como a harpia, que na etymologia propria do seu nome manifesta o roubo e condição do cubiçoso: e assim como a harpia damna, e descompõe todos os manjares a que chega, assim a cubiça estraga e corrompe toda as virtudes: pelo que me parece que nenhum parentesco tem com amor, que na nobreza é tão desegual, e pelos louvores de sua excellencia tão conhecido. O a que se podera voltar a nossa porfia, e arguir mil historias extremadas, é a tratar dos poderes do ouro, e da valia do interesse, que já nos tempos antigos, e no prezente de agora póde tanto, que obrigou a dizer a um auctor que esta é a verdadeira edade do ouro, porque só elle senhoreia os animos dos homens. E viera isto mais ao proposito da vossa peregrina, que com elle e sua formosura não pôde vencer a um coração ingrato.—A mim me parece (respondeu Leonardo) que vós tinheis mui boa razão se a não guardareis para tão tarde: porém em a noite d'amanhã se lhe fará justiça; que n'esta é rasão que se dê ao hospede lugar conveniente para o repouso, pois ha de ir á cidade e voltar no mesmo dia.—Por não mandar em casa alheia (disse o prior) não defendo a minha parte; mas prometto, se voltar a horas que possa passar a noite tão bem como esta, de a não perder.

Então se levantaram os mais e se despediram; e o prior gastou muitas palavras em manifestar a Leonardo a inveja que tivera d'aquella companhia: ao que elle respondeu com a que a todos fazia com a vista da peregrina, que lhe ficára em casa; que posto que a boa conversação é manjar da alma, a vista de uma estranha formosura, que rouba as de todos, tem muito maior poder sobre o desejo.



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DIALOGO VII


DOS PODERES DO OURO E DO INTERESSE



No mesmo tempo, em que os amigos se juntaram para o seu costumado exercicio, se apeava o prior no pateo de Leonardo; que o desejo que lhe causara a noite do dia d'antes, o fez tornar mais cedo da cidade. Foi recebido com alegria: e depois de lhe perguntarem do bom successo de sua jornada, lhe disse Solino:—Agora vejo que roubou a ventura a empreza d'aquella peregrina ao sr. D. Julio: pois a deu a quem a deixa de vêr por nos ouvir.—Antes vereis (respondeu o prior) quão poderoso é o ouro, que até para ouvir falar n'elle deixo a propria casa, e n'ella a vista de tão extremada formosura.—Não sois vós (acudiu Leonardo) o primeiro que a deixastes por ouro, nem usaes n'esta occasião como avarento, pois que vindes com esse titulo de cobiça enriquecer a todos, e a esta casa.—Vós (respondeu elle) me individaes para me empobrecer com a mercê e cortezia que me fazeis; de maneira que sempre o meu erro é dourado para contentar os cobiçosos, quando pareça a Solino culpa deixar a vista da minha hospeda pelo interesse da vossa conversação.—Não é só elle o que vos accusa (disse D. Julio) antes eu de a vós deixardes me queixo, ainda que de a acompanhardes tinha ciumes.—Só esses faltavam (tornou Solino) para a conversação ficar de ouro e de azul; mas se d'este se batera moeda, nenhum de nós se queixára de pobre, porque a dos comprimentos é a mais corrente de todas. Porque o maior mal que o avaro faz ao ouro, é impedir-lhe a corrente com a prisão em que o encerra, podendo com elle até ás prisões fazer agradaveis e formosas, que para isso imagino que se inventaram as cadeias e grilhões de ouro, que d'elle servem para ornato, e dos outros metaes para castigo.—Não me descontenta essa razão (disse Leonardo), porque se ao ouro quando sahe da mina, antes de o pôrem em seus quilates, chamam os artifices ouro bruto, quanto com mais razão merece este nome o que o avarento tem escondido e fechado? E a este proposito me cabe contar [96] uma historia que li esta manhã; e se fôr sobejo, pelo que callei a noite passada, se póde descontar o que agora disser.

Houve em Italia, em um dos mais conhecidos logares d'ella, um honrado pae de familia, nobilissimo por geração, rico de bens procedidos da herança e nobreza antiga de seus antepassados, dotado de muitas partes, e graças da natureza, e tão liberal do que possuia, que mais parecia dispenseiro das riquezas, que carcereiro d'ellas. Teve este em sua mocidade um filho tão industrioso e experto nos negocios de mercancia, que ajuntou em poucos annos grande copia de dinheiro, o qual elle guardava com tão solicito cuidado, como costumam os que com cobiça e trabalhos o adquiriram: e era notavel espanto aos naturaes verem em um velho a largueza e liberalidade de mancebo; e em o filho a avareza e tenacidade de velho. O pae, que o via responder tão mal a suas inclinações, e que já com a edade e continuação de gastar largo, estava menos rico, muitas vezes lhe dizia e aconselhava com brandura que conservasse, com o que ganhara, a honra que tinha de seus passados; e não degenerasse d'elles, por seguir a villeza do interesse: que usasse das riquezas como nobre, e favorecesse a velhice de quem o creára, e honrasse aos pequenos irmãos que tinha; que fosse proveitoso aos amigos e parentes; benigno aos pobres e se não captivasse ao trabalho de enthesourar riquezas sem fructo. Mas como falar a um morto, e aconselhar a um avarento é cuidado vão, nenhum effeito faziam os paternos rogos em sua má natureza. Succedeu que o senado d'aquella republica por a nobreza, e pessoa do mancebo, e pela industria e sagacidade que mostrava, o elegeram em companhia de outros para ir com uma embaixada a Roma ao Summo Pontifice. Depois de sua partida, vendo o pae occasião ao que havia muito que desejava, mandou secretamente fazer chaves falsas, com que entrou na camara do filho; e abriu os cofres em que aquelle inutil thesouro estava depositado; e com a brevidade que o desejo lhe pedia, vestiu a si, a sua mulher e filhos custosamente; deu libré a seus creados; comprou ricas armações e baixellas; encheu a estrebaria de cavallos formosos; fez esmolas a muitos pobres; acudiu em occasiões a parentes e [97] amigos necessitados; dispendeu emfim aquella prata e ouro que o filho com muitas vigilias ajuntára da maneira em que elle, quando florescia em riquezas usava d'ellas. Gastado o dinheiro encheu os saccos em que antes estava, de miudos seixos e areia: e posto tudo na mesma ordem em que o filho o deixára, tornou a fechar os cofres e as casas como d'antes. Tornou depois o filho da sua embaixada: e os pequenos irmãos o foram esperar á entrada da cidade vestidos custosamente, e com o magnifico apparato de que então usavam. Vendo-se o irmão rodeado d'elles ficou confuso; e enleado lhes perguntou logo d'onde houveram tão ricos vestidos, e tão formosos cavallos. Ao que elles com uma simplicidade innocente responderam que seu pae e senhor vivia com differente largueza da que d'antes tinha; e que outros trajos e cavallos de maior preço lhe ficavam. Entrando depois em casa de seu pae, nem a ella, nem a elle conhecia, pelo differente estado em que a deixára: e como n'esta mudança se lhe não aquietava o coração, foi-se com muita pressa aonde o tinha posto. Entrou na sua camara, abriu os cofres: e vendo que os saccos estavam cheios, e da maneira que elle os deixára, se aquietou, porque não dava logar a mais vagarosa experiencia a pressa com que os companheiros o chamavam, e o senado o esperava. Depois que deu fim a aquella obrigação (que a elle não pareceu que fosse tão custosa) fechando-se devagar no seu aposento, abriu as arcas e os saccos, em que lhe parecia que estava a sua bemaventurança; e vendo o engano da areia e seixos que dentro tinham, começou a gritar com grandes lamentações e brados. A que primeiro, que todos, acudiu o generoso velho, perguntando-lhe que tinha? de que se queixava? e quem o offendera? Ai de mim (disse elle) que me roubaram as riquezas, que com tantos trabalhos, e em tão largo discurso de annos tinha grangeadas. Como é possivel que te roubaram (respondeu o pae) se eu vejo esses cofres e saccos cheios, que parece que não podiam tirar nada d'elles, nem elles levarem mais? Ai triste de mim (tornou o filho) que o de que elles estão cheios, não é do ouro e prata, com que os deixei; que não tem agora mais que pedras e areia sem proveito. A isto respondeu o generoso pae, sem no rosto fazer mudança: Ah! [98] enganado filho! que importava para ti que estes saccos estivessem cheios de ouro fino ou de areia grossa, se a tua avareza te não deixava fazer nas obras differença d'ella? Cessaram os brados, mas não já o sentimento do filho com esta resposta; que a mim me pareceu digna de ser contada entre as mais celebres do mundo.

—Eu a tenho por tal (disse o prior), e a historia por maravilhosa para o nosso intento; e andou muito bem o pae de cumprir em vida o testamento do filho; porque, como disse Pub. Mimio, nenhuma cousa o avaro faz boa, senão quando morre, porque deixa o que tem a quem possa usar d'elle.—E o mesmo (disse Feliciano) escreveu que para ninguem o avarento é bom: e para si peior que para todos; pois nem dispende, nem se aproveita: e n'este sentido me parece maravilhosa a allegoria d'aquella engenhosa fabula de Midas, que, pedindo aos deuses, como cobiçoso, que tudo o que tocasse se lhe convertesse em ouro, perecia de fome na grande abundancia do que pedira. E quando a necessidade o fez mudar a petição forçado do mal, que como bem procurára, lhe mandaram que se fosse lavar ao rio Pactolo; que fez corrente do que elle queria fazer estanque, pondo em suas douradas areias, para communicar a todos, o que Midas só para si queria ter usurpado.—Bem se representou em Midas (accrescentou Pindaro) um cobiçoso no pedir e em se não aproveitar: que por isso disse Seneca que mais facilmente se atreveria a alcançar da fortuna que désse, que de um cobiçoso que não pedisse. Mas deixemol-os a elles com seu engano, e falemos nos poderes do ouro, que é o para que Solino nos convidou a noite passada.—Como é certo (disse elle) que para o ouro todos se convidam de boa vontade, e vós, pela que tendes a este metal, parece que estivestes de ponto sobre a materia.—Não a apontei (respondeu Pindaro) por esse respeito, mas por me contentar da que escolhestes; e é desgraça minha que para os outros levantaes d'ouros, e para mim de espadas.—Eu me quero metter entre ellas (acudiu D. Julio) e se assim parecer aos mais, diga Solino todos os males do ouro, pois tem boa mão para dizer mal; o Pindaro todos os bens: e sobre o que ambos disserem ficará logar aos mais de darem suas razões.—Errastes, [99] sr. D. Julio (disse o doutor), que para Solino dizer mal no sentido que vós quereis, ha de dizer bem do ouro, e Pindaro os males.—Dou-me por vencido, respondeu elle:—E eu por obrigado (disse Pindaro) a obedecer. Todos festejaram a eleição; e ordenando que fosse o primeiro, começou d'esta maneira!

Se as causas são pelos effeitos conhecidas, e elles testemunham a excellencia ou maldade d'ellas, qual o foi de maiores males e damnos na redondeza, e metteu aos homens em mais perigosos trabalhos que o ouro, a quem com muita razão podiam todos chamar peste do mundo? E posto que os notaveis exemplos das destruições e ruinas que n'elle fez, podiam tomar mais tempo do que agora tenho para tratar d'elle; quero começar primeiro de seu nascimento, para que mostrem os seus arriscados principios os desastrados successos para que a malicia humana o descobriu. E não desprezando o que diz Plinio tão doutamente, que não contentes os homens com o que a superficie da terra produzia para sua recreação e mantimento, a formosura das arvores, a diversidade dos fructos, a belleza e cheiro das flores, a verdura das hervas, o esmalte das boninas, a abundancia dos legumes; quizeram desentranhar do centro d'ella os segredos que a benigna natureza nos escondia. Nasce o ouro nas entranhas dos montes, e nas arterias occultas dos penedos; e subindo como arvore da profunda raiz, d'onde começa, vae espalhando os ramos em desegual medida, convertendo o sol com seus poderes aquella materia disposta e propinqua, até que chega a ser ouro, e se demonstra por duvidosos signaes na face da terra; que logo d'aquella emprenhidão se mostra triste, dando por indicios da riqueza que encerra, herva descórada, delgada, subtil e sequinhosa areia, e barro leve, secco e sem proveito; e até as aguas, que por entre as veias descem, sahem cruas e com sabor pesado. Espreitando estes signaes a industria humana, entra fazendo guerra ao profundo, caminhando por debaixo dos montes sustentados em columnas da mesma terra, deixando a vista do sol e das estrellas, pondo as vidas ao risco das ruinosas machinas, que mil vezes o opprimem, que tanto a nossa sede fez cruel á benigna terra, que parece menor temeridade tirar do fundo do mar [100] perolas e aljofar, que do seu seio o inimigo ouro, que ainda então o não é mais que nas esperanças. Depois de tirado com tão custosas diligencias, sahindo como parto de venenosa vibora, rompendo as maternas entranhas, com o fogo se aparta, apura o aperfeiçoa. ficando menos apto para o serviço dos homens, na cultivação dos campos e arvoredos, e mais apparelhado para sua destruição e ruina: porque ou se lavra para ostentações e demasias da vaidade, ou se bate e cunha em moeda, cujo preço tyrannisa os poderes e graças da natureza. Tirou o ouro a valia a todas ellas, e fez em si estanque de todos os commercios do mundo, no qual, antes que elle apparecesse, se trocavam as cousas umas por outras, com uma composição e trato mais conforme e obrigado á necessidade e commodos da vida que aos roubos da cobiça, maldades da avareza e sobejidões da vaidade; e apoderou-se tanto de tudo o que na terra havia, que veiu a ser preço até da liberdade dos homens contra o direito natural, em que viviam. Foram crescendo seus atrevimentos: e se antes de sahir do centro da terra começou a matar homens, sahindo d'ella se levantou contra o céo, fazendo guerra de rosto a rosto a todas as virtudes: tirou logo a vara das mãos á justiça: e deitado em sua balança perverteu o fiel de sua egualdade. Diga-o Commodo imperador, que todos os crimes de homicidios e insultos deseguaes, remiu a preço de ouro, vendendo por elle publicamente não só a pena dos delictos, mas os proprios logares dos julgadores. Cerrou os olhos á misericordia, para não se compadecer dos affligidos: como se viu no exercito de Tito Vespaziano, que tendo cercada Jerusalem, os moradores, que opprimidos da fome se sahiam da cidade com licença sua, enguliam primeiro uma pequena moeda de ouro, para que na passagem o pudessem salvar dos inimigos; os quaes sabendo esta astucia, a dois mil, que em dois dias sahiram da cidade, partiram pelo meio para lhes tirarem do bucho a moeda, por não esperarem que com o termo commum da natureza d'ahi a pouco espaço a lançassem fóra: assim que aquella pequena quantidade de ouro, qual de finissima peçonha, lhes tirou a vida. Derribou a columna, e quebrou os braços á fortaleza, atados com as prisões de seu interesse: diga-o Ulysses [101] que por elle vendeu a Priamo o corpo de Heitor Troyano; e Aulo Posthumio, que a preço de ouro deixou a empreza da guerra de Jugurtha, e a gloria d'ella. Desterrou do mundo a fidelidade; pois por elle vendia Nicias aos romanos a vida de el-rei Pyrrho seu senhor: Demonica a cidade de Efezo a Bresso capitão francez, que de industria a afogou com peso de ouro: Tarpeia Romana, a entrada do Capitolio aos Sabinos, que do mesmo modo com o peso de ouro e dos escudos a acabaram. Depravou a piedade, e veneração que os antigos tinham aos mortos, não perdoando a suas sepulturas, como el-rei Dario, enganado com o letreiro da de Semiramis, que dizia que, se algum rei seu successor se visse em necessidade, abrisse aquella sepultura, e acharia um thesouro: elle confiado creu o letreiro, revolveu a pedra; e achou outro que dizia: Se não foras cobiçoso, não andaras desenterrando os mortos. Os romanos desenterraram os mortos de Corintho para lhes tirarem a moeda que tinham por costume metter comsigo na sepultura; para o que é mais notavel aquelle caso extranho que conta Paulo Diacono, de Rodoaldo rei de Lombardia, o qual, porque seu pae se mandára enterrar com as insignias reaes de ouro, abriu uma noite secretamente a sepultura, e, depois de roubar e despojar o cadaver paterno, lhe appareceu S. João Baptista, em cuja egreja aquelle corpo estava enterrado; e reprehendendo-o rigorosamente, lhe mandou em castigo do atrevimento que commettera, que mais não entrasse n'aquella sua egreja: e assim querendo o rei alguma vez commetter a entrada, foi pelo mesmo santo lançado fóra. O ouro sustenta e favorece a todos os peccados capitaes, a soberba com suas pompas, apparatos e vaidades. As baixellas de Midas, as grandezas de Cresso, os escravos de Claudio, o theatro de Nero, as casas de Clodio, e todos os mais excessos da vangloria d'elle nasceram. A avareza n'elle como em materia propria se conserva e accrescenta; por elle deixava Oco, riquissimo rei dos persas, de sahir de casa por não dar certas moedas de ouro ás mulheres que o sahiam a receber como era costume d'aquelle reino, como conta Plutarcho. Nero despojava por este as matronas bem vestidas, e roubava as tendas dos mercadores: e Angeloto, de quem escreve Pontano que [102] era tão avaro, que se levantava de noite a furtar a ração a seus proprios cavallos; e sendo achado pelo estribeiro ás escuras no furto, o açoutou cuidando que era dos escravos da estrebaria. A sensualidade com o ouro se cria, pois a força d'elle corrompe a pudicicia, como os antigos engenhosamente significáram na fabula de Danae, a quem Jupiter enganou convertido em chuva de ouro: d'elle nasceram os estupros de Commodo, os incestos de Caligula, as luxurias de Heliogábalo, os adulterios de Julio Cesar; pois só a perola com que conquistou a Servilia, mãe de Bruto, lhe custou seiscentos sestercios. Por ouro tem a ira feito abominaveis estragos e homicidos no mundo. Pygmalion matou a seu cunhado Sichueu por lhe roubar o thesouro que tinha. Polimnestor tirou a vida a Polidoro, de quem era tutor, por lhe roubar a herança das riquezas que esperava. As demazias e sordidezas da gula, a delicia e sobejidão dos manjares com elle se compram.—Das mezas de Cleópatra, das hortas e banquetes de Lucúlo, dos manjares e convites de Heliogábalo elle tem a culpa. A venenosa inveja n'elle, como em seu objecto natural, se emprega toda. Herifile invejosa das manilhas de ouro de Adrasto entregou á morte Amfiarau seu marido; e Julio Cesar invejoso das riquezas da Luzitania, se fez salteador das cidades d'ella. A preguiça e descuido sobre o ouro descança e se aquieta: elle fez preguiçosa e muda a lingua de Demósthenes com o preço que lhe deram por não orar: e o symbolo e jeroglifico da preguiça foi o kagado, por o vagar e peso com que se move. Que cousa com mais difficuldade e tardança se abala, que um rico? E se a diligencia cahiu em sorte á pobreza, pois a necessidade foi inventora das artes e subtilezas; o peso do ouro entorpece os sentidos empregados todos n'aquella materia: e, por conhecer esta verdade, Crates Thebano o afogou no mar para apprender a philosophia. Pitaco e Anacarso não acceitaram a Cresso o que lhes mandava: Anacreonte tornou a engeitar a Policrates o que lhe déra: e Curio recusou aos Samnitas o grande peso d'elle que lhe traziam.

Foi o ouro finalmente a ruina de todos os bens, que mereciam este nome; e um veneno mortifero para a vida humana: e se muitos a perderam indo em seus [103] alcances pelo centro da terra, e outros buscando as extranhas, em que elle se cria, por remotos climas entre irracionaes Ethiopes feneceram; não estão seguros do mesmo damno os que dentro em suas casas, e fechado em seus cofres o possúem. E fazendo pausa em seus males (que para os contar todos fôra infinito) só um bem tem o ouro, que eu não quero deixar á conta dos louvores de Solino, que é o que os Gregos declararam n'aquelle seu celebrado proverbio, que diz: O de que serve ao ouro a pedra de toque, serve o ouro ao homem; pois no toque d'elle, como em um espelho de desenganos, é conhecido: e se elle d'esta minha invectiva se houver por aggravado, vingança lhe tem dado a ventura até ao que de seus males me fica por dizer.

Todos ficaram por extremo satisfeitos de ouvir a pratica de Pindaro; e o prior a gabou de bem ordenada, e elegante; e gastaram n'isto algumas razões, tendo os olhos em Solino, que começando a falar com engraçadas mostras os obrigou a silencio, e disse:

—Posto que eu podera dizer do ouro, como a raposa de Ezopo das uvas, a que nào chegava; nem quero tomar tão humilde vingança de quem me foge, nem (como alguns costumam) dizer mal de meu proprio desejo: a empreza é facil, e só no muito, que ha para dizer d'ella, difficultosa: porém se a copia aos discretos empobrece, (como um d'elles disse) nào pode ser que a do ouro faça effeito tào desegual; pois que n'elle consiste toda a riqueza. Bem o posso invocar como poderoso, e desejar ao menos uma bôcca de ouro, de que sahiram dignamente os seus louvores; mas é tào inimigo do que lhe quero, que, por me offender a mim, fugíra d'elles. E começando do nascimento d'este desejado metal, que quanto mais queremos culpar engrandecemos: Nasce (como Pindaro disse) nas entranhas dos montes, porque até a mesma natureza nos ensinou a fazer d'elle thesouro, pondo tantos muros da terra, para o defender, para que tambem a difficuldade e rareza lhe dê maior valia. Logo sahindo da mina, onde se cria, e provado no fogo, em que se apura, começa a fazer competencia com sua formosa côr ás mais bellas obras da natureza. O mais nobre dos planetas, que é o sol, dourado nos apparece, e o seu luzente carro com raios de ouro allumia a terra: o fogo, mais nobre e poderoso [104] dos elementos, da sua côr se veste; o arco celeste, que nas tempestades da terra nos assegura, perfilado de ouro se descobre; as nuvens ao pôr do sol, da sua côr guarnecem os horisontes. As rosas brancas e encarnadas, os lirios roxos, e azues, as cecens brancas, os bem-me-queres, e as boninas com uma roza dourada no meio se guarnecem, e enfeitam para os olhos dos homens; os fructos das arvores, quando chegam á sua desejada perfeição, e as searas na fertilidade de suas espigas se tornam de ouro: e as mais formosas creaturas humanas, com as cabeças douradas, mostram sua belleza; e a esta imitação trazem os principes, e monarchas do mundo o ouro sobre a cabeça; os reis e imperadores nas corôas, os papas nas thiaras, os bispos nas mitras, e as matronas illustres nos toucados, ao pescoço, sobre o peito, e pendurado das orelhas, nos dedos, e nos braços, fazendo voluntarias prisões de sua formosura. No culto divino elle orna e aformosea os templos sagrados, as cruzes, imagens, retabulos, calices, patenas, lampadas, e castiçaes; com elle se adornam os tectos, frizos, columnas, pedestaes, e todos os ornamentos, e vestiduras da egreja. Batido em moeda é preço, e resgate das cousas de maior valia, sem que n'elle se começasse o trato, e commercio do dinheiro: pois antes que o cunhassem de ouro, o houve de prata, cobre, e latão: assim que, sem prejudicar a seus louvores o mal que usam d'elle os avarentos, lhe podiamos com razão chamar formosura do mundo; ornato, e guarnição de todas as virtudes. A humildade carregada de ouro se inclina mais, e é mais formosa, como foi a de Primislau primeiro rei de Bohemia; que no maior poder de sua riqueza, e senhorio, mandava trazer ante si as alparcas de pastor com que se creara, mandando que andassem em morgado a seus descendentes para antidoto contra a soberba da dignidade real. E deixando exemplos estrangeiros, a nossa rainha Santa Izabel, o nosso infante D. Fernando, a nossa infante D. Sancha, D. Branca, e D. Joanna, e o condestavel D. Nuno Alvares Pereira, bem douraram com sua grandeza, e poder a virtude da humildade. Com o ouro se exercita, e põe em pratica a liberalidade, que sem elle parecera virtude sem mãos; que mal as tivera Marco Antonio triumviro para aquelle excesso de magnificencia, [105] que usou com um amigo, se o não tivera: porque, mandando-lhe dar pelo seu thesoureiro vinte cinco mil escudos, parecendo ao avarento creado que aquella largueza nascia da ignorancia de seu senhor, lhe mostrou aquella quantidade de dinheiro sobre uma meza, dizendo lhe que aquillo era o que mandava dar. Mas o romano por desmentir a malicia do thesoureiro (que entendeu logo) lhe disse: Fizeste bem de me avisar; que não cuidei que dava tão pouco: pelo que sobre estes accrescenta outros vinte cinco mil; e dá-lhe cincoenta. O mesmo, e quasi pelo mesmo modo, ouvi que acontecera a um principe de Hespanha com seu pae, mandando dar a uma moça humilde trinta mil cruzados. E vindo aos nossos exemplos: bem dourou e engrandeceu a liberalidade com seus poderes o nosso primeiro rei D. Affonso Henriques, que nas terras, que conquistava, edificou mais egrejas ricas, que Paços Reaes, e casas pobres: bem o seguiram os mais de seus descendentes em differente modo. D. Pedro o justiçoso com os pobres, que até a manga do braço direito mandava fazer mais larga, e comprida, para alcançar a todos no fazer mercês, como o mesmo rei dizia. Seu filho el-rei D. João o I, foi tão liberal com os vassallos que o serviram, que deixara sem patrimonio a corôa, se el-rei D. Duarte seu filho não fizera a lei mental, com que limitou sua largueza. El-rei D. Manuel com os poderes de sua riqueza, e a magnificencia de sua condição assombrou as nações extranhas, e ao nome portuguez fez mais honrado. A castidade mais excellente, e formosa parece guarnecida de ouro, que nos humildes trajos da pobreza; e por isso foi tão louvada em Scipião, que poderoso, rico, e vencedor, quando entrando Carthago lhe offereceram captiva uma formosa dona, e bem nascida, em logar de gosar d'ella a mandou honradamente acompanhada a seu marido com o resgate, que por sua liberdade lhe offereciam. Não faltou esta excellencia em muitas donzellas do sangue real d'este reino, que, deixando riquissimos dotes da ventura, offereceram a Deus este da natureza. E se é celebrado el-rei D. Affonso o Casto em Hespanha, não desmerecia este nome o rei portuguez, que persuadido de seu valoroso animo, e errado conselho, perdeu a vida nos campos africanos. A paciencia quanto é mais louvavel [106] e excedente no poderoso rico, que no miseravel, em quem não tem execução a ira, nem a vingança. Rico e poderoso no mundo era Filippe, rei de Macedonia, que perguntando aos embaixadores athenienses o que lhe queriam, respondeu com inconsideravel liberdade um d'elles, que vêl-o sem vida; e elle voltando aos outros com muita brandura disse: Dizei aos Athenienses que mais modesto é quem soffre essas palavras, que os sabios de Athenas, de quem elles se prezam. E se contam d'el-rei D. Affonso I, rei de Napoles, que, sabendo que um creado seu dizia mal d'elle, lhe fez muitas mercês, com que elle obrigado disse depois de suas obras mil louvores; e o rei avisado d'isto disse: Folgo que esteja em minha mão dizerem bem de mim: tambem houve rei em Portugal que em muitas occasiões usou o mesmo termo, como se verá da chronica d'el-rei D. João o II, e de muitas memorias do III, não esquecendo a paciencia d'el-rei D. Diniz com seu filho, e a d'el-rei D. Pedro, sendo principe, com seu pae. A temperança medida por vasos de ouro, e ainda á vista d'elle, é mais estimada: como a de Curio, que com o ouro dos Samnitas deante não deixou a panella de couves, e nabos que cozinhava; antes respondeu aos que lh'o traziam, que não era necessario a quem com tão humildes viandas se sustentava. A sobriedade, e temperança nos nossos reis naturaes é tão louvada, que de mui poucos sabemos que bebessem vinho, e de nenhum que comesse demasiado: e tanto pareceu isto bem ás nações extrangeiras, que a imperatriz D. Leonor, filha d'el-rei D. Duarte de Portugal, e mulher de Frederico III, Imperador de Allemanha, não tendo geração, e averiguando os medicos que por a frialdade d'aquella provincia não concebia, porém que, se bebesse vinho, teriam filhos; ella não consentio no remedio: e Frederico disse que antes queria sua mulher esteril, que mal acostumada. A caridade, subida sobre columnas de ouro, se levanta sobre as estrellas; e ainda nos que sem lume da Fé a conheceram, com o poder do ouro a sustentaram: como Cimon Atheniense, poderoso, e rico, que mandava abrir as portas aos jardins e pomares, que tinha para que entrassem livremente os necessitados a colher seus fructos: mandava aos seus que, achando algum velho mal vestido trocassem com elle os seus para o melhorarem; [107] dava todos os dias banquete publico aos que mendigavam pela cidade: e aos pobres de qualidade sustentava com esmolas secretas. Não fôram n'isto os nossos reis e principes portuguezes inferiores, como o testemunham os varios hospitaes, mosteiros, casas de caridade, e santos costumes, que deixaram n'este reino, para agasalhar peregrinos, sustentar, e vestir pobres, e curar enfermos e feridos: no que fôram, entre os outros, insignes os reis D. Affonso I, D. João I, II, e III, e o insigne cardeal e devoto rei D. Henrique. Á diligencia com muita razão lhe calçáram os antigos esporas douradas, pois o duro estorvo da pobreza, como pintou Alciato, impede as azas e limita os passos á diligencia. Com ouro e com os poderes d'elle conquistaram Alexandre, e Cesar em mui limitados annos a redondeza: o nosso rei D. Diniz com os poderes d'elle accrescentou em seu reino quarenta e quatro villas com castellos, e fortalezas; izentou a Ordem de S. Thiago de Portugal; e instituio a de Christo; e fez os primeiros estudos de Coimbra. E os reis D. João, e D. Manuel descobriram, e ganharam para a Fe as terras do Oriente com tanta inveja, como espanto das nações extrangeiras. De maneira que, se os avarentos, que usam mal do ouro e das riquezas, guerream com elle contra as virtudes, nenhuma cousa ha que tanto como elle as engrandeça e alevante. E se os cubiçosos na sua conquista perdem tantas vidas, muitas mais se compram, e resgatam a preço d'elle. E deixando o balsamo de ouro, tão admiravel nas feridas, o ouro potavel, tão celebrado dos distilladores nas enfermidades; qual risco da vida, qual perigo ou necessidade d'ella, qual oppressão ou captiveiro não remio o ouro? Elle faz a formosura das cidades, a belleza dos edificios, a fortaleza dos exercitos, a bizarria dos trajos, a galanteria das côrtes: com elle se alcançam n'ellas as honras, dignidades, titulos, e privanças, e até os louvores e as mesmas graças da natureza: todos o buscam, o desejam, e o conquistam: e ainda os outros metaes se querem converter n'elle por meio de alquime; os animaes se rendem á sua formosura; pois não ha caça mais certa que a que se toca com laço de ouro, nem melhor pescaria que a que se alcança com anzol d'elle: e é tão grande a fôrça de seus poderes, que se atreveu a dizer [108] um auctor, que na maior furia de um leão, de um tigre, e de outra qualquer féra, se lhe lançarem moedas de ouro deante, amansarão com ellas sua braveza. E passando por todas as cousas da terra sua valia, podem os ricos subir ao céo por escadas de ouro, e dar-lhe com elle assalto e bataria, pondo as balas e settas d'este metal nas mãos da caridade. E de elle se subir em tanta altura nasce ficar de mim tão longe, como está de ser digno de seus louvores meu humilde talento, que, se fôra de tão illustre metal, tudo alcançara.

A todos pareceu extremada a oração de Solino, posto que alguns a esperavam menos grave, e mais engraçada: e assim lhe disse Leonardo:—Parecestes-me esta noite mais orador insigne, que murmurador galante. Folgo que, errando eu a eleição, acertasseis vós tambem os louvores.—Não vos agradeço (respondeu elle) os que me daes; por quanto d'antemão vos vingastes d'elles. Porém se quereis vêr em outrem com gravidade o que de mim esperaveis como satyra e agudeza, pois os bens e males do ouro estão encetados; diga o senhor prior agora os poderes do interesse, que no successo da sua peregrina achará largo campo para esta materia.—Essa é mui larga (disse o prior) e são passadas muitas horas da noite; e eu me não escusara com ellas, se não imaginara que todas as verdades, que cahem sobre este sujeito, hão de parecer murmuração. Porque dizer que o interesse tudo vence, e a tudo alcança, é sentença antiga, e experiencia moderna; porém, se particularisar os modos e termos, com que batalha, será ir com os dedos aos olhos de muitos. Se disser que o interesse quebrou muitos sceptros reaes, quem se defenderá d'elles? Se affirmar que torce, e derriba varas da justiça, quantas se virarão para castigar-me? Se ousar a dizer que profana as leis, e offende a immunidade das egrejas, temo que até na minha me neguem a entrada. Se contar que é carta de seguro de salteadores, couto de homicidas, torre do facinorosos, e merecimento de descuidados, quantos se levantarão contra minha verdade? Só direi em um conto breve o que de sua valia se pode presumir na necessidade; e será julgar pelas unhas o leão, e pela pisada de Hercules a medida de sua grandeza.

Um homem curioso, bem intencionado, e não mal [109] entendido, andou alguns annos na milicia do Oriente: e vindo d'elle a este reino para se despachar, trouxe entre algumas cousas de menos valia, que curiosidade, umas imagens de santos, e anjos de marfim, maravilhosamente obrados. E depois de entrar em seu requerimento, deu conta a um amigo, pratico nas cousas da côrte, do estado de seus negocios; aconselhou-o elle como convinha e buscando entre o movel, que trouxera, peça que podesse offerecer a um ministro, com quem tinha intelligencia, lhe inculcava aquelles santos de marfim, que o tinham muito affeiçoado.—Como (disse elle) não trouxestes da India algum pagode, ou idolo de ouro d'esses gentios?—Para que? lhe perguntou o pouco esperto requerente.—Ah, respondeu o amigo, que para o que vós pretendeis, e cá se costuma, Mais podem diabos de ouro, que anjos de marfim. E assim não me parece que está mal o dito vulgar do povo, que o interesse é diabo. E pois o tempo é tão curto, seja isto uma cifra do que se pode dizer de seus poderes; que são tão grandes, que a mim me tiram a liberdade de falar, contra o desejo que tenho de vos obedecer. E sendo elles taes, e o ouro o principal interesse de todos, mui bem lhe cabem com os males, que Pindaro d'elle disse, os louvores com que Solino o celebrou fazendo a differença sómente no uso d'elle. Que se Santo Agostinho lhe chamou enfermidade da soberba, fraqueza das virtudes, materia de trabalhos, perigo do possuidor, senhor insoffrivel, e escravo atraiçoado; Santo Ambrosio, laço do demonio; S. Chryzostomo, escola dos vicios, e doença da alma; e se d'elle nasceu a Cresso a soberba, a Heliogábalo e Sardanápalo a luxuria, a Nero a crueldade, a Cómmodo e Vitelio a gula: se por elle Polycrates morreu na forca, Cresso na fogueira, Crasso degolado, Heliogábalo arrastrado, e outros ricos tiveram fins semelhantes; não teve a culpa o ouro, senão a má avareza de quem o possuia, ou a cubiçosa sede do que o desejava; pois elle nos animos livres não impede o caminho das virtudes, antes lhes dá forças, lustre e grandeza: como em um Constantino Magno, que enriqueceu a egreja Romana; um Carlos IV, que comprou com elle a vida; um Emmanuel, que honrou o nome Portuguez, o dilatou a fé catholica pelo Oriente; um Lourenço de Medicis, que honrou Florença: um Leonardo [110] Lauredano, que libertou Veneza; um Carlos Brugi, que soccorreu a esterilidade de Flandres; e outros muitos, que o souberam dispender valorosamente. De maneira que n'elle está a condemnação ou justificação, a morte ou a vida de quem o possue ou deseja. Para o que eu acho extremada aquella historia, que toca Auzonio poeta em um seu epigramma. E é que um homem desesperado com uma paixão, que teve, se hia enforcar em um logar secreto, levando comsigo o baraço, em que havia de deixar a vida. Succedeu que com a força que fez, cahindo uma parte da terra n'aquelle logar, se lhe descobrio um thesouro; a cuja vista mudou logo o pensamento: e, levando o que achara, deixou em seu logar o baraço que trazia. Vindo depois o que alli o escondera, e achando-o menos, e em seu logar a tentação de sua desventura, fez, porque perdera um thesouro, o que o outro deixou de fazer porque o achara: de modo que a um deu a vida o ouro, a outro matou a avareza d'elle.—Com tão boa historia (accudiu D. Julio levantando-se) é razão que vamos satisfeitos, e deixemos ao senhor prior bem agazalhado, posto que pelo interesse de sua conversação deixara eu muitos dos que os outros desejam; porque se a opinião dos cubiçosos deu preço ao ouro e pedraria, á conversação dos sabios o não pode tirar a mesma ventura.



DIALOGO VIII


DOS MOVIMENTOS, E DECORO NO PRATICAR



Foi-se o prior da casa de Leonardo em apparecendo o dia: e n'ella em vindo a noite se ajuntaram os amigos, sentindo grandemente a falta d'aquelle que os deixara. Foi essa a primeira cousa, de que trataram: e entre outras disse Feliciano:—Por todas as razões se devia desejar a conversação de tão discreto, e douto cortezão, como é o prior, em todo o tempo, mas n'este das noites do inverno muito mais: e n'ellas encherá elle muito bem o seu logar; porque, além de saber e auctorisar o que diz com o fundamento das lettras e curiosidade que tem, é muito composto e engraçado no que fala: e por extremo me pareceu bem aquelle modo [111] de encarecer negando na materia do interesse, e o descrever com brevidade nas historias.—Quanto mais ouvirdes d'elle (lhe respondeu Leonardo) vos parecerá melhor. E sabei que, antes de trazer aquelles habitos parecia muito bem nos de côrte; e que debaixo dos compridos pode ainda dar lições d'ella a muitos de capa e espada.—Parte é o falar bem (accudiu D. Julio) que leva tudo após si: e não consiste este bem só nas razões discretas e palavras escolhidas, senão no bom modo e graça de as dizer: o que eu comparo a uma cousa escripta de boa ou ruim lettra; que a boa aformosea, e dá ser, côr, e graça ao que lêdes; e a ruim desconcerta, empeça, e afeia as razões, sendo todas umas: e não faltarão mui perto exemplos d'esta verdade.—Fujamos das comparações para a doutrina (disse Pindaro) e melhor fôra ser essa a materia, em que se gastára este serão.—Ainda vos ficaram sobejos do passado (tornou Solino) pois vos adeantaes da companhia: porém eu a quero fazer ao vosso voto, se ha de ir aos mais.—Nem a mim me descontenta (disse Leonardo) se o doutor nos abrir o caminho.—Sempre (respondeu elle) me mandaes deante como os frades menores nas procissões; quero-os tambem imitar na obediencia: porém lembro-vos que são duas materias as que tocou o sr. D. Julio, convém a saber, a graça, e composição do rosto e corpo no falar, e o concerto das palavras, e discrição das razões.—Essa divisão parece escusada (disse Leonardo) porque a graça não se aprende, nem se pode alcançar por arte, pois é mero dom da natureza—Todas as cousas d'ella (tornou o doutor) se aperfeiçoam e melhoram com a arte: e, para saberdes logo esta verdade, tomarei á minha conta o em que vos parece que ha menos que dizer; e fique á vossa a demazia.

Primeiramente no movimento, e graça do falar, chamou Marco Tullio eloquencia do corpo: e Quintiliano disse que com todas as partes d'elle se ha de ajudar a pratica. E posto que esta doutrina parece que convinha então aos oradores, como agora aos prégadores, uns e outros praticam, e em todo o tempo é necessaria: e assim pintaram alguns o jeroglifico da rhetorica com uma mão aberta, outra cerrada.—Muito contraria me parece essa lição (disse D. Julio) á policia da côrte, onde é regra que o homem ha de falar com a lingua, [112] e ter quieto o corpo e as mãos.—Eu concertarei essa regra com as minhas (replicou o doutor), que o homem no falar nem ha de parecer estatua, nem bonifrate: e logo vereis que o que quero dizer é o mesmo, em que vos quereis anticipar. O primeiro instrumento da pratica é a voz: e, para essa ser engraçada no falar, ha de ter estas propriedades, Ser clara, branda, cheia, e compassada: porque a voz escura confunde as palavras, a aspera e secca tira-lhes a suavidade; a muito delgada e feminina faz impropria a acção do que fala; a muito apressada empeça e revolve as razões, que por si podem ser muito boas: não trato das que a natureza inhabilitou para esta perfeição, como é a voz do gago, do cicioso, e do rustico grosseiro: mas na do cortezão tomara eu estes attributos; porque ha alguns que falam com a voz tão mettida por dentro, que deixam as palavras para si, e os ouvintes ás escuras, que lhes é necessario estar espreitando o que lhes querem dizer: e outros, que pronunciam com tanta aspereza, que espinham as orelhas dos que escutam; e outros, que falam tão apressadamente, que parece que levam esporas na lingua.—Entre vozes (disse Solino) tambem eu hei de soltar a minha: e no que é a voz cheia, que dizeis, quizera saber a differença; porque eu tenho que ainda é peor a muito grossa que a feminina: porque ha homem que, quando fala, mais parece tom de baixo, que espirito de voz. E egualmente aborrece vêr um homem com um rosto como uma peneira, muito versudo da barba e sobrancelhas, sahir com voz de frauta muito exprimida.—O meio (respondeu o doutor) em todas as cousas é a perfeição d'ellas: e se estaes bem lembrado, tambem deixei de fora a voz grosseira, como a quem a natureza privou da graça no falar. Depois da voz, os olhos dão muito espirito ás razões: porque, como elles são as janellas d'alma, por elles se communica vida ás palavras: e assim hão de ser claros, alegres e moviveis: porque os muito intensos, e extendidos entristecem; os muito apertados e franzidos movem a desprezo; os muito abertos, pasmados, e sahidos para fora, fazem temor; e posto que os olhos, por risonhos, nunca perdem a graça, parece que nas praticas graves, e de importancia, não hão de ser muito chocalheiros.—N'isso tendes vós muita razão (disse D. Julio) que ha homens. [113] que dão olhado ao que falam: porém não vos esqueçaes das sobrancelhas.—Tambem a acção do falar toma muito d'ellas (tornou o doutor) porque franzidas fazem carranca, e mostram que fala um homem com melancholia; baixas representam tristeza, ou vergonha; muito arqueadas significam espanto; e levantadas alegria. E não menos convém a composição da barba, que fincada nos peitos mostra desconfiança ou porfia; e posta no ar vangloria: e o pescoço, que nem se ha de ter tão levantado que faça soberba nas palavras, nem tão baixo, que pareça que não pode com a cabeça; a qual não ha de estar tão firme, que pareça que a espetaram n'elle; nem se hade quebrar para todas as partes como grimpa. Da mesma maneira a bôcca ha de ser quieta quando fala, sem estar mordendo beiços, nem torcendo-se, nem inchando com as palavras; nem com o riso se ha do mostrar tão descuidada, que as entorne pelos cantos; nem tão apertada, que offenda a boa pronunciação e graça d'ellas; no que vae mais á lingua portugueza, que a outras muitas: porque sabemos que todas as nações orientaes naturalmente opprimem a voz na garganta quando falam, como os Indianos, Persas, Assyrios, e Chaldeus: e todos os Mediterraneos referem as palavras aos padares da lingua, como fazem os Gregos, Frygios e Asiaticos: e todos os occidentaes, como os Francezes, Italianos, e Hespanhoes, mastigam as palavras entre os dentes, e as pronunciam na ponta da lingua: posto que em alguns logares, conquistados outro tempo dos Africanos, ficaram usos e palavras, que ainda obrigam a sua pronunciação; mas os que estão mais izentos d'ella são os Portuguezes, como aqui na primeira noite da nossa conversação se tocou. Além d'estas partes do rosto tem o movimento do corpo o seu logar: que pode parecer airoso, quando fala, mostrando as materias sobre que fala nos contos, historias, graças ou galanterias, não representando o que diz com meneios de comediante, nem com modestia e compostura sobeja, mas com uma boa sombra, e um termo no persuadir assocegado, no relatar mais ligeiro, no arguir esperto, no desculpar ou defender-se mui brando; nem fazer badallos dos pés quando fala assentado, bolindo sempre: nem estar com os olhos n'elles quando passeia. Sobre todos os mais [114] gestos ou acções, que tenho tocado, se ajuda a pratica do movimento das mãos, que ha de ser com um leve ar e compostura, com que o discreto favorece as palavras que diz, não falando com ambas ellas, nem chegando com alguma perto da vista dos ouvintes; e guardando estas e outras advertencias semelhantes, pode fazer um homem uma agradavel gentileza no praticar, emendando algumas faltas da natureza, ou favorecendo com o cuidado as graças, que ella lhe dotou: não tratando dos incuraveis, a que já não possam valer estes remedios; mas dos que á falta d'elles, e com o largo discurso de maus costumes se vieram a fazer incuraveis.—Parece que daes a entender, senhor doutor, (disse Pindaro) que ha mais algumas advertencias, que podem ser de importancia n'esta materia: e, para a tratar de fundamento, não é razão que fiquem de fora.—Para essas e para o mais, que tenho dito (respondeu elle), nomearei alguns vicios, que são contra o bom termo da pratica; que, reprovados n'ella, acreditarão as minhas opiniões, a que eu não posso nem quero dar nome de preceitos, posto que são fundadas em os melhores dos que d'esta materia escreveram.



O primeiro é escutar-se um homem a si proprio quando fala, por se contentar do que diz.

O segundo repetir outra vez o que tem dito, com os olhos nos ouvintes, para que lh'o gabem.

O terceiro deter-se tanto nas palavras como que as vae pezando, e compondo para as dizer.

O quarto ir-se arrimando a bordões para que lhe accudam em tanto as palavras.

O quinto ir á mão ao que quer responder, por querer falar tudo.

O sexto bracejar muito, e dar grandes risadas a seus proprios ditos.

O setimo borrifar as palavras com o humidade da bôcca, por falar com vehemencia.



—Vós (accudiu Solino) formastes aqui uns sete peccados mortaes contra a discrição, e cortezania, que não merecerá n'ella ter graça quem n'elles estiver culpado. Cada um dos presentes examine sua consciencia, porque receio que falaes de proposito contra alguem.—É [115] tão má a vossa natureza (lhe tornou o doutor) que quer perverter a minha boa tenção, e d'estes peccados contra a policia tirar outros que offendam a amisade: vale-me porém ser a vossa conhecida. E proseguindo a materia dos vicios, os tres primeiros nascem do amor proprio que cada um tem a suas cousas, a que os gregos chamaram Filaucia: os quatro seguintes, ou da ignorancia, ou do descostume e falta de doutrina cortezã. Escutar-se um homem, quando fala, é de quem bem lhe parece o que diz: e posto que o vicio é natural, tem ruim patria; que o homem, que se escuta, é lisongeiro de si mesmo, e elle se paga por si de suas palavras, vendo-se e enfeitando-se n'ellas como em espelho, conforme os proverbios antigos, que a cada um parece o seu formoso; e outro, que não ha melhor musico que cada um a si mesmo; e que a cada um contenta o seu rosto, a sua arte, e cheira bem o seu suor.—Outro (disse Solino) me parece a mim melhor que todos esses, porque os declara; e é que quem se contenta a si contenta a um grande nescio; que não pode deixar de o ser o que do seu engano se satisfaz. E não achareis discreto d'esse feitio, que não caia nos tres primeiros laços: porque são encadeados uns com outros: e em se escutando um homem a si, o vereìs ir encarecendo as palavras com as sobrancelhas, enchendo com ellas a bôcca, e pronunciando-as com muito cuidado.—D'esses disse Horacio (accudiu Pindaro) que falavam empolas; é está muito bem o nome á inchação das suas palavras. Mas o segundo vicio, que é da repetição, parece menor erro; porque o que é bem dito se pode repetir, conforme ao que disse o poeta; e só será a culpa quando o dito não fôr acertado.—Essa estimação não ha de ser feita por seu dono (respondeu Solino), nem elle pode pôr o preço a suas palavras, cuidando que fala ouro; em obras alheias, referidas por outrem, tem logar essa desculpa; e não se podem servir d'ella os que com os olhos, e com a repetição do que disseram, estão puxando por vós a que lh'as gabeis, e vos contenteis á força da sua razão; e mettem de quando em quando um entendeis-me? estaes commigo? digo bem? que vos parece? não sei se me declaro. De maneira que, para encarecerem o seu aviso, fazem dos outros nescios. E com este cahem logo no terceiro, que é deter-se muito em cada palavra, soltando-as por [116] compasso, dilatando uma da outra, porque se não peguem: e é vicio, que fará ser aborrecivel a todo o mundo a quem o tem; e até á mesma discrição fará importuna este mau uso d'ella. E mais é mui certo andar annexa esta boa parte a uma fala de doente mui molle; que tudo junto vem a ser um xarope de semsaboria, que não ha quem o leve. O quarto não entendo bem, porque não sei ao que chama bordão o doutor.—Sabei (disse elle) que os arrimos, a que se pega ou encosta o que fala, quando as palavras lhe cançam, se chamam bordões, e são de duas maneiras: uns que pertencem, ou para melhor dizer, que são impertinencias nas acções do falar; e outros nas palavras: os primeiros são mais culpaveis que os segundos, porque ha um que não sabe praticar comvosco sem vos estar desabotoando, ou alimpando o cotão, e arrancando a frisa do vestido: outro, que a cada palavra vos pega do cinto, ou travando-vos do braço vos molesta: e ainda ha alguns tão desatinados, que vos dão com a mão nos peitos a cada cousa que dizem: e outros que, se deixam de entender com quem praticam, o hão comsigo, não estando quietos com as mãos; esgravatando os dentes, ou bolindo nos narizes e falando, tirando cabellos da barba, e mordendo as unhas; e outros vicios semelhantes, que servem como uns espaços e reclamos, a que lhe acodem as palavras. Os segundos são mettidos na mesma pratica com alguns, que em cada palavra d'ella mettem um diz, assim que digo, tal e qual, sim senhor, vae vem, então, senão quando, espere vossa mercê, assim que senhor, estaes commigo; e outros muitos, fora os que vós apontastes no vicio da repetição, que são bordões da primeira classe.—Certo (disse Feliciano) que tem muita razão o doutor em dizer que este vicio e os dois, que se seguem, nascem do descostume, e falta da doutrina cortezã: porque eu alcancei ainda por condiscipulo um estudante, que na opinião dos mais não era tido por o que falava peior, que, por o grande odio, que tinha aos bordões, inventou um modo excellente para os desterrar da conversação dos amigos, com que tratava de ordinario; e foi um jogo de não menor engenho, que utilidade; e pelo exercicio d'elle se perdeu até a semente dos bordões entre aquelles amigos.—Não vos esqueçam (disse Leonardo) os termos de tão bom jogo, [117] que já pode ser que occupemos com elle uma noite, mais bem empregada, do que o remedio será necessario para os presentes, porque não são dos homens limitados, que se apegam a estes encostos: e se quereis conhecel-os, ouvi-lhes contar uma historia, e metter-vos-hão n'ella mais bordões, do que tem de palavras.—O quinto vicio (proseguiu o doutor) é incomportavel; porque ha homens tão sôfregos de falarem tudo; que atalham as palavras ao que lhes começa a responder, querendo anticipar com o seu entendimento a tenção alheia.—Esses taes (disse Solino) falam a duas mãos, porque querem que vá tudo por elles. E como me acho entre esses, por não pedir por mercê que me ouçam uma palavra, deixo o feito sem parte; e como ficam falando á reveria, desfaço as suas sentenças com uma bochecha de agua.—Esses faladores são como cigarras, que atrôam, e não deleitam (disse D. Julio) e é sentença mui approvada entre cortezãos que tres cousas não ha de haver entre elles demasiadas, sobeja parola, comprida porfia, e grande rizada; porque quem muito fala d'elle damna (como diz o rifão) e com quem aporfia não disputes; e onde ha muito riso ha pouco siso; que todos estes pertencem á conversação.—Essa terceira parte (proseguiu o doutor) é do sexto vicio, que é bracejar quando fala, e festejar com risadas seus proprios ditos o que se quer vender por discreto. E assim vereis alguns, que falam ás pancadas; e se acharem um pulpito deante, o farão em pedaços, como se a policia podéra soffrer o desassocego e inquietação da sua esgrima. As risadas, além de arguirem falta de entendimento, são mais impertinentes quando um homem festeja seus proprios ditos; que, para terem galanteria, elle, que os diz, ha de ficar sisudo; e os que o ouvem, risonhos. E assim os engraçados de nossos tempos que conhecemos, e outros, que deixaram esse nome, sabiam festejar moderadamente as graças alheias, e dissimular o riso nas suas, fazendo menos caso d'ellas.—Duas cousas (disse D. Julio) se me offerecem para vos perguntar n'essa materia: e seja a primeira, que moderação se ha de usar no riso, com que um homem festeja o conto ou graça do que falla deante d'elle?—Os homens (respondeu o doutor) não hão de ser tão sevéros que nunca riam como Catão Censorino, Anaxagoras, e Sócrates: nem como Marco Crasso, [118] que rio uma só vez na vida; pois é definição e differença do homem ser animal racional, e a sua propria paixão é ser rizivel: porém não menos se ha de guardar de ser desentoado nas risadas; que, para n'isto haver uma moderação politica, lhe buscaram os antigos muitas differenças: e deixando o riso Jonio, Megarico, Sardonio, e Synclusio, dos quaes falam tantos auctores gregos, e latinos; colhida d'elles a melhor doutrina, não ha de rir o homem com a bôcca aberta que dá grande tom ao riso, nem com os beiços apertados, como costumam os que tem cieiro n'elles; nem sómente mostrando os dentes, que a estes chamaram os latinos riso de cavalgaduras; nem com um riso molle e affeminado, como era o Jonio; mas com uma boa sombra e graça na bôcca e no ar do rosto, com que se mostre, agradecido do que escuta. E se esta resposta vos satisfaz, bem podeis continuar com a segunda pergunta.—Ainda que as minhas (tornou elle) não fôssem muito a proposito, com o interesse de vossa doutrina ficariam desculpadas, como será esta: Se na graça, que outrem conta, em que eu a não acho, sou obrigado em primor cortezão a me mostrar risonho? Obrigado é o cortezão (respondeu o doutor) a se mostrar agradavel aos com quem se pratica: e não o poderia ser quando seccasse o riso na occasião, em que outrem mette cabedal para o provocar a elle; que seria mettel-o em desconfiança.—Eu me dou por satisfeito (disse o fidalgo) e já agora podereis passar ao setimo erro; em que ha pouco que discorrer segundo me parece; que nao é mais que um descuido e desattento dos que, mostrando o fervor do animo com que falam, borrifam com humidade o que dizem, e ás vezes a quem os escuta.—Não cuido eu (disse Feliciano) que são esses os de que trata o proverbio, que falam fontes de prata.—Antes (tornou Solino) lhes chamara eu homens que falam frescos que nem uma manhã de abril deixa tao orvalhado um campo do boninas, como elles a roda dos que os estão ouvindo; e para estas immundicias houvera de ter a discrição um Almotacé da limpeza.—Desterrados pois (continuou o doutor) da conversação estes sete inimigos d'ella, parecerá um homem cortezão aos que o escutarem, falando agradavelmente nas palavras as leis que agora lhe der o senhor Leonardo: que posto que a verdadeira discrição [119] seja natural, nenhum dos dons da natureza deixa de receber beneficio da arte, da continuação e dos costumes.—Muito depressa vos quereis desobrigar (respondeu Solino) e eu ainda esperava que passasseis pela minha porta, dando algum toque na murmuração, como déstes no riso: que tambem estes preceitos são fóra das palavras.—O riso sim (lhe tornou elle), mas não o murmurar; que é culpa que não se attribue á pratica, posto que alguns digam que sem esse sal a mais discreta é pouco saborosa: e é porque ha muitas cousas, que não queremos dizer, e folgamos em extremo de as ouvir. Assim que o que murmura ordinariamente agrada a gostos alheios de gente ociosa, com risco proprio. Porém, por fazer as pazes comvosco, entrarei em contendas, de que estou desobrigado, tocando na murmuração engraçada; e para lhe dar logar, a metterei no meio de uma sentença excellente, que diz que dos animaes bravos a peior mordedura é a do praguento; e dos mansos a do lisongeiro. O praguejar é maldade, o lisongear traição, o motejar levemente galantaria: o discreto nem ha de morder, nem lamber; porém picar levemente, e com arte, é graça da conversação. Para o que, deixando auctoridades, exemplos, preceitos, e cousas infinitas, que poderão levar grande tempo: o cortezão, quando arguir para graça, ha de considerar tres cousas: o que fala, com quem, e deante de quem. O primeiro por fugir de materia em que o presente desconfie: o segundo por não motejar com quem não saiba pesar e conhecer as galantarias: o terceiro por não falar graças, de que, algum dos ouvintes se envergonhe: porque de outro modo, sendo a graça pesada, perderia o nome. Não falo do murmurar de ausentes, que em todo o modo me parece culpavel. E bem podiam servir para lei d'estas galantarias as vossas, que a todos agradam, e que, se aos ouvintes não fazem fastio, tão pouco aos offendidos causam queixume.—Lembra-me (disse Pindaro) que no quinto vicio condemnastes o querer um homem falar tudo: e não déstes regra aos que falam pouco.—Seria (respondeu o doutor) por me conformar com uma sentença, que diz: Aos que pouco falam, poucas leis lhes bastam. Além d'isto até agora não tratei dos louvores do silencio, nem da verdade d'aquelle dito: Assás sabe o que não sabe; se calar sabe. E o outro, que: O nescio calando, [120] parece-se com o discreto. Falo sómente da maneira de praticar entre os amigos, onde as palavras não tem mais que estas duas medidas, que são falar a tempo, e a proposito: a tempo, porque nem em todos se pode dizer tudo o que é bem dito.

Nas comidas se ha de fugir falar em cousas que enojem o estomago, e offendam ao gôsto, ainda que em outros logares podem dar muito. Entre enojados não dizer graças, ou contos, que desautorisem a tristeza, e provoquem a riso. Entre enfermos não contar historias, que causem temor ou desconfiança em seus males. Entre ecclesiasticos guardar-se de coisas que saibam a lascivia, e profanidade. A proposito; porque ha muitos, que se desviam do principio da pratica, de maneira que do primeiro salto vão parar a Flandres; outros, que em tudo querem metter uma historia que sabem, contar uma nova que lhes veiu, um dito que ouviram, um sonho que sonharam; e pela deleitação, que tomam de contar coisas proprias, perdem o decóro, com que hão de escutar as alheias, e o tento do que elles mesmos respondem: e tambem me a mim parece que me vou mettendo nas que não são minhas; que me fizeram passar os termos de maneira, que nem a meu amigo ficou tempo para continuar com a segunda parte d'este discurso.—Vós dizeis tudo tão bem (tornou Leonardo) que se perde pouco no que eu havia de accrescentar, quanto mais, que o que se dilata não se tira; e já ámanhã terei cuidado, ou espaço de cuidar no que hei de dizer, por não cahir no terceiro peccado de ir compondo as palavras com o vagar que enfastia.—Em casa cheia (disse Solino) de pressa se faz a cêa; e em entendimento tão rico, como o vosso, nem de cousas, nem de palavras pode haver pobreza: guarde-vos Deus de uns meus senhores, que as pedem fiadas aos livros de cavallarias, com suas sentenças de cabo de capitulo, que se se lhe atravessa um escarro de um dos ouvintes, varreu-lhes toda a prégação da memoria, e vão com a pratica em muletas até tomarem assento com muito trabalho seu, e de quem os escuta.—Hora, não o dêmos tão grande ao senhor Leonardo (disse D. Julio) que hoje o não deixemos dormir, pois ámanhã o havemos de despertar; que as duas noites passadas foram de hospede, e a conversação dos que [121] são de mais gôsto, roubam melhor o tempo; e comtudo. a parte que se tira ao repouso, sempre faz falta,

Começaram-se os outros a levantar, e o velho ainda os deteve em pé dizendo:—O senhor D. Julio em tudo tem tenção de me fazer mercês; porém esta não é das em que fico devendo mais: porque antes quizera poupar o tempo do somno para viver, que o da vida para dormir. E se é verdade que na conversação de tão bons amigos só se vive, qual posso eu ter melhor, que, fazendo estas noites mais compridas, alargar a minha edade? que sentença é antiga, que o tempo, em que dormimos, perdemos da vida: pelo que chamaram ao somno imagem da morte.



DIALOGO IX


DA PRATICA, E DISPOSIÇÃO DAS PALAVRAS



Ia crescendo o gosto d'aquelles amigos com o exercicio de tão proveitosa conversação, de tal maneira, que nenhum perdia o sentido das materias, que ficavam tocadas, para se armarem de razões, contos, e exemplos, com que cada um mostrasse aos outros sua sufficiencia. N'aquella porém da pratica vulgar ficou Leonardo muito atalhado, assim por ser cousa em que tudo pende de opiniões incertas; como porque o doutor lhe cortara a urdidura, com que havia de ir tecendo o seu discurso, desejava mudar o proposito a outra cousa, que viesse mais ao seu; mas como aquelle era o de todos, não via caminho de o desviar. Veiu pois a noite do outro dia, e com ella os companheiros mui alvoroçados; aos quaes elle festejou com a mesma alegria; e logo, depois que se assentaram, lhes disse: Se hei de falar verdade, eu estou tão carregado com o officio que de novo me déstes, que me não atrevo a dar boa conta d'elle; porque todas as que fiz para me dispôr a isso, me sahiram erradas: e me parece tão difficultoso falar de cuidado, e ordenadamente na materia em que se ha de praticar na lingua portugueza, que me hei de chamar ao engano, e o maior de todos foi darem-me espaço para temer, quando eu cuidei que o [122] tomava para me prevenir.—Em vós (disse D. Julio) é gentileza esse receio; e ainda que fôsse fingido, eu o tenho por a primeira regra de falar bem, pois ensinaes aos discretos a não falarem com sobeja confiança; e pela que eu tenho de vossa discrição, só em uma cousa achara difficuldade, que é pôrdes em regras, e preceitos, o que tendes por natural, e por costume; que servieis mais para exemplo de quem vos ouve, que para mestre dos que não podem comprehender a vossa doutrina.—Se com titulo de me fazerdes mercê (respondeu elle) quereis que desconfie, mais facil vos será isso, que a mim o acertar: mas, para que não erre no principal, digo que não posso fazer escola de falar bem, mormente entre cortezãos tão discretos, que cada um me poderá dar preceitos para o ser: mas se disser em algumas cousas a minha opinião, faço-o para com as razões dos que a contradisserem aprender a acertar.—Parece-me (disse Solino) que as melhores duas lições para os discretos são essas primeiras, receio, e humildade. E passando adiante, começae já a descobrir essa rhetorica, nova á lingua portugueza.—Por escusar (tornou elle) uma muito comprida; e dilatada em preceitos, e limites, que á força se hão-de misturar com os da latina; e por evitar a largueza da arte, e poupar a paciencia dos ouvintes para outras noites, accudirei brevemente a alguns vicios da lingua portugueza, não fugindo dos termos da latina, nem levando-os a elles por fundamento, mas fazendo-o n'estas cinco advertencias:

Falar vulgarmente, com propriedade.
Fugir da prolixidade.
Não confundir as razões com a brevidade.
Não enfeitar com curiosidade as palavras.
Não descuidar com a confiança.

—Certo (disse o doutor) que me parece essa uma rhetorica abreviada, que podia servir a todas as linguas: porque a confusão dos muitos preceitos e figuras, que lhe attribuem os mestres d'esta arte, se podem comprehender debaixo d'esses cinco muito bem achados. E pois Solino chamou aos meus vicios sete peccados contra a discrição, podia chamar a estes preceitos os cinco sentidos d'ella. E tratando do primeiro, como entendeis [123] falar vulgarmente com propriedade, que em parte me parece que o vulgar não guarda muitas vezes o respeito ao proprio? —Falar vulgarmente (respondeu Leonardo é qual os melhores falem, e todos entendam sem vocabulos estrangeiros, nem esquisitos, nem innovados, nem antigos, e desusados: senão communs, e correntes, sem respeitar origens, derivações, nem etymologias; que a linguagem mais pende do uso, que da razão: e por isso se chama lingua materna, porque nas mulheres, que menos sahem da patria, se corrompe menos o uso do falar commum, posto que ellas saibam pouco da razão de seus principios. E d'isto, e do falar com propriedade, tenho dito na pratica que tivemos sobre as cartas missivas; o que não será necessario repetir agora de novo, mas sómente dar mostra de que estes dois termos se não encontram: que se o falar proprio, é com palavras naturaes, e menos figuras da rhetorica, para ornamento d'ellas; e não usar dos tropos de allegorias, metaforas, translações, antonomazias, antifrazes, ironias, enigmas, e outras muitas; isso se usa na pratica vulgar para se tratarem livremente as palavras proprias, pois sómente algumas translações, antonomazias, e ironias se acham n'ella; e mui raramente outras figuras: e posto que n'isto me detenha mais do que determinava, me hei de embaraçar com estas três figuras. Translação é figura quando passamos as palavras de uma cousa a outra, porém com uma semelhança conveniente, como quando dizemos uma fonte de sabedoria, um pôço de lettras, um rio de ouro, um thesouro de partes, ou de graças. Esta figura se costuma usar para um de quatro effeitos, ou para evitar palavras deshonestas, ou para abreviar razões compridas, ou por accudir á pobresa da linguagem, ou por aformosear e enfeitar a pratica. No primeiro modo faz officio mui necessario, que é dar a entender, por palavras alheias, cousas que sôam mal por o seu nome proprio, como dizer: uma mulher que usa mal de sua formosura; que se vende a preço; que se entrega a Venus; que serve o seu gôsto. Um homem affeiçoado a ramos; perdido por Bacco; esquecido de si. Tambem, para abreviar razões, é de muita utilidade na pratica, como quando dizemos, ficou em secco, deitou azar, torceu a orelha, deu cinco. Os outros dois modos me parecem na pratica sobejos, [124] e culpaveis: o primeiro, porque sempre se ha de fugir n'ella o enfeite, e ornamento das palavras: e o outro, porque não faltam na lingua portugueza as necessarias para cada um declarar o que lhe convém dizer. A figura da Antonomazia se usa algumas vezes na conversação: posto que só nas pessoas, ou partes do mesmo reino será mais aceite. Entre nós, quando nomeamos o Poeta, se entenderá Luiz de Camões, o Historiador, João de Barros: o Duque, o de Bragança: o Marquez, o de Villa Real: a Cidade, a de Lisboa: a Coutada, a de Almeirim; e outras semelhantes cousas, ás quaes a grandeza deu superioridade das outras do mesmo nome. A Ironia, mais que todas, é propria na conversação, pois consiste mais na graça, riso, ou dissimulação do que fala, que nas palavras: esta se considera em duas maneiras, a primeira tirando a propriedade ás cousas; a segunda, furtando o sentido ás razões; uma é mero escarneo; a outra dissimulada subtileza. A primeira, quando do fraco dizemos que é um Hercules: do louco, que é um Catão: do miseravel, que é um Alexandre: e da mulher pouco casta, que é uma Helena. A segunda, como se disseramos: Nunca lhe cahiu a lança da mão ao que a não tomou n'ella: não lhe chegou ninguem com a espada, falando do que fugiu: nunca pediu nada, falando do que furta: paga mais do que deve, entendendo o que paga por justiça. No que pertence ás figuras me parece que basta esta lembrança. E as palavras, que se devem escusar para falar vulgarmente, não hão de ser estrangeiras, nem esquisitas, nem innovadas, nem tão antigas, que se perdesse já o uso d'ellas. Das primeiras teem muita culpa os estudantes, e lettrados, que introduziram as latinas na conversação, fazendo a linguagem de misturas.—Essa culpa (respondeu o doutor) é dos mancebos que como no praticar não teem a madureza, que só costuma a ensinar a experiencia, cuidam que se melhoram em falar escuro, e elegante, fazendo na prosa accentos de musica, ou medidas de poesia.—Muitos lettrados sei eu (disse Solino) que não são moços, e n'isso o querem parecer, que falam uma linguagem como sereia, mulher até aos peitos, e ametade peixe; e são homens, a que não escapa por nenhuma via o verbo no cabo; e sendo a nossa lingua de muito bom metal, lhe misturam tanta liga, [125] que perde muito de seus quilates.—Não tenho por grande erro (acudiu Pindaro) quando a conversação é entre doutos, usar de algumas palavras tiradas do latim, quando forem melhores que as com que nos podiamos declarar em portuguez: antes creio que, se isto se fôra introduzindo, viera a nossa lingua pouco a pouco a se apparentar com ella, e ficar tão polida, e apurada como a toscana.—E essa (tornou Leonardo) que fructo tirou do parentesco, se não foi chamarem-lhe alguns auctores bôrra da lingua latina?—O caso é (disse Solino) que vós devieis ser affeiçoado á phrase de um cirurgião de Coimbra do nosso tempo, que por ella se fez famoso, que disse á moça de um ferido, a quem curava: Traga-me um panno corpulento, para fricar os labios d'esta cicatrice. E a um rustico, que vinha esmechado, respondeu que não tinha mais lesa que a superficie da fronte; e tendo palavras com outro, lhe disse que o aniquilaria, se dissesse alguma cousa em vilipendio de sua dignidade. E certo que tenho raiva, sabendo que a lingua portugueza não é manca, nem aleijada, vêr que a façam andar em muletas latinas os que a haviam de tratar melhor.—Ha outros (proseguiu Leonardo) que nem com isso se contentam; e andam buscando palavras muito esquisitas, que por termos mui escuros significam o que querem dizer. Como um que se queixava de sua dama, que de ciosa andava inquirindo os escrutinios do seu pensamento. E outro a um barbeiro disse, que lhe rubricára a parede com a sangria.—Alguns (disse o doutor) conheci eu culpados n'esse modo impertinente de falar, que por taes eram reprovados: porém o uso das palavras innovadas não achei ainda entre os portuguezes, como os hespanhoes e italianos. Nem tenho por grande vicio aproveitar de algumas antigas, muito bem usadas em outro tempo, e desterradas, sem razão, na nossa edade.—Não faltam (respondeu Leonardo) curiosos, que por acharem pobre a lingua, ou por elles o estarem de seus vocabulos, fazem alguns ao seu modo: como um lettrado, que querendo auctorisar umas casas para certa occasião, disso: É necessario que as paredes d'este domicilio sejam alreadas, e que o fato uzivel fique retendo nas ultimas d'elle. E outro disse de um navegante, que fôra felice, se não fortuneara tanto no exito da viagem. E ao que dizeis das palavras antigas, posto que [126] em algum tempo fôssem boas, não o ficam sendo na parte em que se perdeu o uso d'ellas; pois, como já disse, esse só é o fundamento e razão das palavras: e assim, não diremos leixou, trouve, dixe, ca, sicais, acram, leidisse, e outros vocabulos de que usaram auctores gravissimos de cujos escriptos podemos aprender a perfeição da lingua portugueza. E bastou o contrario uso para n'esta parte poderem seguir os que agora escrevem, e falam bem.—Com uma só razão (accudiu Solino) condemnára eu a toda essa turba dos que no falar querem parecer singulares, e é que não falam para que os entendam melhor, senão para que pasmem d'aquella sua estranha eloquencia e galanteria. E haveis de saber que é lanço muito certo, que os que se contentáram com saber pouco do latim, falam mais alatinado, para que os ouvintes cuidem que o sabem: e assim como virdes cirurgião, ou boticario, que acabou a grammatica na quinta classe, ponde-lhe abrolho, que o não tirareis com vinte galgos á estrada do falar commum e se me esperardes estudante de philosophia em grade de freiras, vereis uma linguagem meada de logica, que vos não entendereis com o sentido d'ella. E dos que falam pela tempera velha, eu o não consentira, senão em homens de barba larga, penteada sobre os peitos, com carapuça redonda, e pelote de abas pregadas, que vos conte historias d'el-rei D. Manuel, e dos infantes em Almeirim, e de quando D. Rodrigo de Almeida tomou por compadre a Villa de Condeixa, do filho que alli lhe nasceu, em tempo do bispo D. Jorge. Porem nos vestidos justos de agora, e barbinhas turquescas tiradas pela fieira, e tintas sobre branco, palavras d'aquelle tempo parecem remendo de outra côr.


FIM DO 1.º VOLUME





INDICE




Advertencia 5
Dialogo I—Argumento de toda a obra 7
Dialogo II—Da policia e estylo das cartas missivas 22
Dialogo III—Da maneira de escrever, e da differença das cartas missivas 35
Dialogo IV—Dos recados, embaixadas e visitas 54
Dialogo V—Dos encarecimentos 70
Dialogo VI—Da differença do amor e da cobiça 81
Dialogo VII—Dos poderes do ouro e do interesse 95
Dialogo VIII—Dos movimentos e decoro no praticar 110
Dialogo IX—Da pratica e disposição das palavras 121





Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 67 os proprio filhos ... os proprios filhos
#pág. 91 totos ... todos
#pág. 118 descuido) ... descuido