The Project Gutenberg eBook of Bom senso e bom gosto : resposta à carta que o sr. Antero de Quental dirigiu ao sr. Antonio Feliciano de Castilho

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Title: Bom senso e bom gosto : resposta à carta que o sr. Antero de Quental dirigiu ao sr. Antonio Feliciano de Castilho

Author: barão de Roussado Manuel Rousaddo

Release date: January 4, 2010 [eBook #30856]
Most recently updated: January 6, 2021

Language: Portuguese

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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK BOM SENSO E BOM GOSTO : RESPOSTA À CARTA QUE O SR. ANTERO DE QUENTAL DIRIGIU AO SR. ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO ***


 

BOM-SENSO E BOM-GOSTO

RESPOSTA

Á CARTA QUE

O SR. ANTHERO DO QUENTAL

DIRIGIU AO EX.mo SR.

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

POR

MANOEL ROUSSADO

SEGUNDA EDIÇÃO AUGMENTADA

E seguida de uma carta sabre o mesmo assumpto

LISBOA
LIVRARIA DE A. M. PEREIRA
50—RUA AUGUSTA—52
1866

 

BOM-SENSO E BOM-GOSTO

RESPOSTA

Á CARTA QUE

O SR. ANTHERO DO QUENTAL

DIRIGIU AO EX.mo SR.

ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

POR

MANOEL ROUSSADO

SEGUNDA EDIÇÃO AUGMENTADA

E seguida de uma carta sabre o mesmo assumpto

LISBOA
LIVRARIA DE A. M. PEREIRA
50—RUA AUGUSTA—52
1866

 

 

LISBOA TYP. DE SOUSA NEVES, TRAVESSA DE SANTA CATHARINA, 38

(Ao Correio Geral)

{3}

 

 

 

 

Achando-se de tempo exhausta a edição da carta, que sob o titulo Bom-senso e bom-gosto, resposta ao sr. Anthero do Quental, escrevera o sr. M. Roussado, determinámos reimprimil-a, para satisfazer ao desejo e exigencias de muitos, que pretendem inteirar em collecção as peças todas deste notavel processo litterario. Ao realisar o proposito occorreu-nos que prestariamos á curiosidade do publico um agradavel serviço addicionando a esta nova edição uma interessante missiva, que de paiz extranho receberamos ha mezes sobre o assumpto sujeito, e que no voto de pessoas intelligentes a quem a mostramos foi tida por dignissima de vulgarisação, com quanto seu auctor não a destinasse de certo a ver a luz da imprensa. Como pois nem temos auctorisação sua, nem contamos obtel-a, quando a solicitassemos, porque da sua provada modestia só tinhamos a esperar uma recusa formal, ahi a damos anonyma, e não sem bastante pezar da nossa parte. Os que a lerem melhor poderão julgar se é ou não exacto o conceito que de quem a escreveu expressava não ha muito tempo em obra impressa um dos nossos escriptores de maior vulto, qualificando-o de «mancebo tão erudito como talentoso, que deve exclusivamente á mais firme e honrosa vontade, e aos seus unicos recursos o largo adiantamento litterario a que vai subindo, e que promette ás letras patrias um primoroso cultor.»

E d'aqui lhe pedimos desculpa, se nisto o offendemos.

O EDITOR.

Lisboa 11 de junho de 1866.

{4}

{5}

 

 

 

 

ILL.mo SR.

Acabo de ler as obras de v. s.ª, e, pasmado ainda com os raios luminosos que me deram de chapa nos olhos do espirito, pego na penna para expandir os efluvios da minha admiração, como quem abre uma valvula de segurança, para evitar quaesquer detonações d'esta preciosa machina, que em linguagem rasteira se chama homem, e a que v. s.ª nas suas admiraveis Odes chama—proscripto rei, mendigo escuro.

Eu aceito esta denominação, apesar de não ser trigueiro, e de ter os meus seis vintens.

Não sei se v. s.ª se escandalisa por não lhe dar excellencia, mas eu que me sinto banzado ao elevar a minha palavra até uma das mais brilhantes estrellas da constellação coimbrã, ignoro tambem por falta de uso que tratamento pertence pela Constituição do Idealismo aos que voam lá por cima, atravessando os espaços infinitos aonde não chegam as exhalaçoes mephiticas do lodaçal mundano, nem o tratado de civilidade, nem as futilidades da grammatica terrena, nem as pequices da metrificação sublunar.

Desculpe-me pois v. s.ª se o não trato como devo, acreditando nas espansões sinceras do meu eu, que se confessa humilde creado do eu de v. s.ª{6}

Ainda não tinha lido as Odes modernas, quando me chegou ás mãos a carta que v. s.ª escreveu ao sr. Antonio Feliciano de Castilho, a esse caturra intoleravel que teima na guerra desleal contra os innovadores que vem do norte, annunciando a nova aurora da independencia litteraria, em que serão quebrados os ferros que algemam a Idéa, e os seus apostolos rasgarão os horisontes luminosos sem o auxilio inutil da instrucção secundaria.

Não tinha lido as Odes que v. s.ª atirou aos ventos da publicidade, e fui logo compral-as, porque a alludida carta tinha chocado a minha alma, que para logo concebeu o feto preciosissimo do Ideal. Fui compral-as, e o proprio livreiro que m'as vendeu, tocado sem duvida pela sublimidade da poesia, e pelo levantamento do espirito que se admira no parto de v. s.ª, envergonhou-se ao dizer-me o preço do livro; voltou o rosto, tapou os olhos ao estender a mão tremente ao baixo e vilissimo cruzado.

Quanto a mim, sabe Deus o que tambem me custou aquillo!

Ah! não foi dinheiro perdido. Aquelles quatro tostões foram sementes de seara nova do meu espirito, e os beneficos resultados da semeadura milagrosa estou-os já sentindo, porque olho desdenhoso para tudo que me cerca, porque já vendi o Diccionario de Moraes que me obstruia a meza do trabalho, porque estou com vontade de trocar os nomes ás coisas, e já me doe o pescoço de olhar lá para cima onde ha montanhas de luz, e aonde o vocabulario é ad libitum de quem falla.

Não, não foi dinheiro deitado á rua esse que o livreiro me aceitou envergonhado pelas odes com que eu hei de ir remando para as praias do futuro, em cujas agoas cristalinas se levantarão calices arrendados de saphira e prata, que servirão para barcas de banhos, e como a pag. 55 v. s.ª diz:

«Com seu olhar d'amôr quem se vestiu?»

Creio que na poesia d'essas futuras Deusas dos mares as vistas purissimas do amôr hão de substituir as camisolas de baeta e as coecas de algodão.

Este arrojo da poesia innovadora faz-me lembrar uma{7} historia que eu peço licença para contar a v. s.ª Dois beberrões celebres apostaram entre si que beberia de graça meia canada aquelle que a bebesse sobre comida mais insignificante. O primeiro comeu uma azeitona e despejou o copo, o segundo cheirou uma azeitona e enxugou o sino grande.

Entre os selvagens, uns vestem-se com tres quartas de panno crú, outros com um bracelete, alguns com um simples búsio, o sr. Anthero do Quental, sublime como o homem que cheirou a azeitona, veste com um olhar a geração futura.

E não digam os homens da prosa que o vestuário será então igual para todos, porque a diversidade das toilettes imprimiu-a Deus na elegancia visual das creaturas, fazendo dos olhos outros tantos alfaiates. O olhar da virgem formosissima corresponde á thesoura do Keill, a vista ordinaria da mulher do povo será uma especie de remendão de escada.

E como v. s.ª rasga a membrana que involve o ovario da geração contemporanea, na qual germina o futuro! E o trajo da gente voltará á simplicidade primitiva; e o olhar d'amor tomará o logar da parra nos Apollos de gesso; e os defluxos abandonarão a raça humana; e as lavadeiras fugirão espavoridas em procura de gente que se vista por diverso teor.

Ha de ser a edade dos nús. A completa independencia do pensamento, que v. s.ª prega na sua preciosissima carta, não podia deixar de trazer a independencia da pelle humana. A nudez da alma, que bate as azas candidas para as regiões do infinito, não podia deixar de ser acompanhada pela nudez do corpo, que demanda os bafejos continuados das brizas; porque os tecidos são enfeites e ninharias luzidias, como os preceitos banaes da arte o são para o pensamento. As aspirações de v. s.ª hão de ser realisadas. No futuro a Idéa será livre: esta rainha esplendida, a que v. s.ª presta o devido culto, pisando as regras de uma orthographia mediocre, para a escrever com I grande, será a dominadora do universo.

Os vates abandonados a si mesmos terão a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independencia da alma. Tudo será independencia e liberdade, os versos parecerão{8} prosa, como v. s.ª faz ver em centenares de exemplos taes como o seguinte da 1.ª pagina das Odes Modernas:

«Vai, mas ignora sempre quem o leva

e o da pagina 11:

«Deus, não póde durar mais que alguns annos.

Não haverá medição para os versos, como v. s.ª, sublime adivinhador, já faz ver por exemplo no seguinte hendecassylabo:

«E como o que n'uma mina vai de bruços;

Ou n'est'outros, não menos significativos:

«Do pôr do sol astronomos do passado....
«A aurora é o sursum corda do universo....
«Este, e aquelle deixal-o em meio da rua....

As difficuldades estupidas da rima desaparecerão por uma vez; as palavras rimarão comsigo mesmas, como por exemplo na seguinte colxea a pag. 23 do precioso livro de v. s.ª:

«É porque um céo maior nos mostre, e é nosso,
Esse céo e esse espaço! é tudo nosso!

N'essa edade os Deuses serão rebaixados á condição de letreiros, como se vê da seguinte quadra a pag. 43,

«A pallida cohorte dos proscriptos
Que tem nos rostos estampada a fome;
Que em quanto o frio os roe e os consome,
Trazem no coração Deuses escriptos.

E a regeneração ha de chegar aos dominios da Astronomia. Os raios andarão com as estrellas ao cóllo, como muito bem se póde ver do seguinte verso de v. s.ª a pag. 47:

«Erguendo um filho, como um raio a estrella.»{9}

Que as leis da gravitação universal serão banidas, adivinha-se pelos seguintes versos a pag. 52:

«Entre os astros, e os astros como atheus
Já não querem mais lei que o infinito.

Os estofadores tomarão parte no systema planetario, e, o que ainda é mais, os doceis e as bambinellas ficarão por debaixo das camas, como se conhece da seguinte quadra a pag. 57:

«Oh! o noivado barbaro! o noivado
Sublime! aonde os céos, os céos ingentes,
Serão leito de amor—tendo pendentes
Os astros por docel e, cortinado!

E os cometas descerão á nossa atmosphera e girarão por ella como balões. Vid. pag. 89:

«Os cometas que ao ar andam subidos.

E assim como os olhares constituirão o vestuario, as almas serão chailes-mantas, e os peitos serão transformados em trapesio. Vid. pag. 63:

«Estendei vossas almas como mantos
Sobre a cabeça d'elles... e do peito
Fazei-lhes o degrau, onde com geito
Possam subir a ver os astros santos...

O sr. Anthero do Quental refere-se aos poetas do futuro, e muito bem fez em recommendar-lhes o geito n'esses vôos de Leotard.

E outras mil coisas hão de acontecer, como v. s.ª, que é o promettido das lettras, annuncia brilhantemente á terra e aos astros nas suas admiraveis prophecias.

V. s.ª não pôde conter a indignação quando viu a carta do sr. Antonio Feliciano de Castilho publicada conjunctamente com o Poema da Mocidade do sr. Pinheiro Chagas, carta em que o traductor de Ovidio alcunhou de nevoeiro e de inattingivel o estylo que fulge lá para as bandas do{10} norte, e que em borbotões de luz ameaça illuminar tudo. V. s.ª indignou-se e veiu lançar por terra esta chancellaria litteraria de Lisboa, aonde só se passam titulos de capacidade aos insignificantes que não progridem, nem innovam como v. s.ª

Diz v. s.ª na sua inimitavel carta: «Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idéas. Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não apparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrificio, e ás abnegações da consciencia. Ha toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrahir uma humanidade viva, sã, crente e formosa. Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens.»

Isto diz v. s.ª, e como tudo está abalado, e a humanidade em dissolução, é que v. s.ª tão acremente censura o sr. Antonio Feliciano de Castilho, por não acordar ao toque de rebate, por não metter mãos á grande obra do futuro alistando-se sob o commando dos que assentaram as suas trincheiras contra o senso commum, e deixar-se ficar na paz esteril com as suas traducções de Ovidio, com a sua Primavera, com os seus Tratados de Metrificação.

Emquanto o sr. Castilho assim se conserva inabalavel no meio das ondas revolucionarias, v. s.ª sr. Anthero, famoso Quixote da Poesia, combate pela Idéa, e derruba os moinhos de vento, que se oppõem á sua passagem.

E ha de vencer: quem tem os arrojos de v. s.ª póde muito bem chamar seu ao mundo.

Refundem-se as crenças antigas e os antigos costumes, por isso v. s.ª começou o seu poema com a particula adversativa mas

«Mas o homem, se é certo que o conduz.

É este o primeiro verso do seu thesouro de inexgotaveis riquezas. E v. s.ª não pára; a extracção da humanidade viva e formosa precisa de v. s.ª, e por isso o seu novo poema ha de naturalmente começar por ponto e virgula.

Ah! abençoados quatro tostões que o livreiro me recebeu{11} envergonhado em troca das deliciosas prophecias de v. s.ª! Com a leitura das obras do sr. Quental a humanidade ha de brevemente sentir o espirito aberto para o bello ideal, e a intelligencia fechada para as secções em que se divide a grammatica mundana.

E eu estou desconfiado de que lá em cima por onde v. s.ª anda, isto de se fallar ácerca do impalpavel consiste em uma especie de sorteio, como eu já tinha ensaiado antes de haver lido as Odes Modernas.

Tinha eu imaginado a Deus dizendo ao Universo a grande missa da creação. Precisava de um pensamento condigno do assumpto e não o achava. Deitei n'um chapéo tres palavras em tres papelinhos para ver o que sahia. As palavras eram: estola, veste, infinito, e como estas palavras precisavam de colxetes que as ligassem, deitei mais no chapéo em quatro papelinhos differentes o tempero seguinte: adoqueo.

Chocalhei tudo, tirei ao acaso papelinho por papelinho e sahiu-me:

«O que veste a estola do infinito:

Bravo! exclamei; e qual foi a minha admiração quando a pag. 39 das prophecias de v. s.ª encontro exactamente o mesmo verso!

Teria v. s.ª para o fazer usado da mesma giria que eu usei? Creio que sim, creio que a grande musa do acaso, é que é a inspiradora dos vates idealistas que fulguram em Coimbra.

«O que veste a estola do infinito (!)

Os reptis do charco immundo da vida dizem naturalmente que é asneira, mas eu estou com v. s.ª, digo que é sublime.

Vão lá tapar a bocca aos maldizentes de Lisboa, os quaes andam por ahi a gritar que deu o mal das vinhas na litteratura coimbrã, que é preciso serem enxofrados os vates idealistas e innovadores das margens do Mondego, e que ás authoridades de Lisboa cumpre estabelecer o cordão sanitario que nos preserve da invasão da epidemia!

Caminhe v. s.ª, progrida com as suas innovações desentranhando as sociedades do futuro; e deixe bradar no deserto{12} estes imbecis. Perdoe-lhes, ill.mo sr., que elles não sabem o que fazem. Ignoram que o que é grande lá em cima por onde v. s.ª anda, é pequeno cá embaixo por onde rastejam.

A linguagem transcendental que abre os horisontes immensos do futuro é extranha cá nos arruamentos de Lisboa, e por isso, quando o povo ignaro a escuta na bocca de um ou outro, exclama: coitadinho, tem aduela de menos.

Eu porém, que os admiro, peço licença para erguer-lhes aqui um monumentosinho no seguinte

               SONETO

Cabello em desalinho, hirsurto e farto,
A face macilenta, o olhar incerto,
Distingue uns vates d'estrangeiro enxerto,
Que ao mundo impingem transcendente parto.

Tremem nas lyras os bordões de esparto
Do mystico aranzel rompe o concerto;
Um diz que o sol é hostia, um mais esperto
Diz que o céo é quintal e o Deus lagarto.

Outro de ventas no ar, immovel, hirto,
Clama que o Padre Eterno é semimorto,
Aquelle aos astros chama ethereo myrtho.

Deixam com seu cantar o vulgo absorto,
Que esse grupo fatal, com magoa advirto,
Das hortas do Ideal regressa torto.

 

Por tudo e por muito mais se confessa

 

De v. s.ª

admirador permanente

MANOEL ROUSSADO

{13}

 

CARTA AO EDITOR

 

.... SR. A. M. PEREIRA

Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1866.

 

Agradeço a v.     ter-se lembrado de mim com a remessa do folheto Bom-senso e bom-gosto, accudindo d'este modo á natural impaciencia em que previu que eu ficaria por tomar conhecimento da questão.

Egual favor desejarei merecer-lhe sempre que alguma novidade como esta, e a do casamento civil, venha pôr em alvoroço a republica das lettras, republica em todo o rigor do sentido popular que damos á palavra. Eu sou, já de annos, por gosto e systema, colleccionador d'estas curiosidades litterarias. Bem o sabe v.    , que tanto me tem ajudado na minha inoffensiva paixão, pois é aos seus pacientes esforços que principalmente devo o ver a esta hora tão medrados alguns corpos de processos celebres, taes como Verdadeiro Methodo de Estudar, Camões e José Agostinho, Eu e o Clero, Ordens religiosas, Irmãs da charidade, União Iberica, Pena de morte, Biblias protestantes, etc. Por isso mesmo recommendo instantemente a v.     que não deixe de enviar-me o que fôr apparecendo, não só com referencia a qualquer dos assumptos notados, mas ainda á Vida de Jesus de Renan, ao padroado do Oriente, ao folheto do Bom-senso, e bem assim tudo o que houver agora publicado sobre a questão do casamento civil.{14}

Dizem-me que o folhetim do sr. Pinheiro Chagas em resposta aos innovadores de Coimbra, saiu avulso, e eu desejaria obter a todo o preço um exemplar.

Quanto a mim é a cousa mais substancial que até aqui se tem escripto, posto haja paginas excellentes, pelo vigor e pela eloquencia, no folheto do sr. Julio de Castilho, e rasgos de humor caustico deliciosos no do sr. Roussado. O folhetim do sr. Teixeira de Vasconcellos accende uma vela a Deus e outra ao diabo. Aos seus olhos o auctor das Odes modernas mede a mesma estatura do sr. A. F. de Castilho, e entre um e outro nome o folhetim não ousa decidir-se! As Theocracias Litterarias, essas parecem-me a composição mais pifia, mais peca, e mais sêcca que a polemica tem brotado de si.

O sr. conselheiro Castilho terminou a publicação das dez cartas sobre a eschola coimbran. São o commentario lacerante de muitos dos infinitos disparates em que enxameiam as producções do sr. Quental. Depois d'esta formidavel fustigação seguia-se a vez do sr. Theophilo Braga. Pudemos porém persuadir o sr. Castilho a gastar oleum et operam mais proveitosamente.

Eu sou um admirador sincero dos talentos poeticos do auctor da Visão dos Tempos. Intendo, porém, como toda a gente, que os seus escriptos em verso não teem a intenção, o alcance philosophico, que o poeta lhes quer attribuir, e creio que sem os apparatos de que elle os precede, sem as estheticas, as tricotomias, as asceses, as geneses, as syndereses, as relatividades e as absolutividades, os symbolismos telluricos e as expressões morphicas, o publico lh'os acceitaria e applaudiria de muito melhor grado.

Qual é o homem de mediana erudição em Portugal, que, pondo deante dos olhos, não digo já as Antiguidades do direito allemão, mas simplesmente a obra com que Michelet tornou conhecido o livro de Grimm, não seria capaz de escrever ácerca das origens a que se conveio em chamar poeticas do direito portuguez uma obra mais farta, mais instructiva, e sobretudo muito mais amena que a do sr. Theophilo Braga?

Apezar do mau estylo em que são escriptos, ha merecimento—quem o nega?—nos seus artigos de litteratura portugueza.{15} Mas, já o sr. Pinheiro Chagas o disse, esses artigos não dão um passo para além dos prologos de Garrett. Veja-se por exemplo o que versa sobre a lenda do Fausto. A idéa mãe deparou-lh'a um dito das Viagens na minha terra: a obra franceza de Maury sobre as Lendas da edade-média; o drama de Marlowe na versão franceza do filho de V. Hugo, e a versão franceza da Mystica de Goerres fizeram o resto. Quem tiver visto na sua nova edição a Histoire de la litterature du colportage de Carlos Nisard, pasma necessariamente da penuria do artiguito ácerca da literatura de cordel. Entretanto, com que facilidade e felicidade, com que graça, com que sabor não foi o assumpto indicado por Garrett á frente do jornal A Illustração! A que se reduzem pois as invenções do sr. Theophilo Braga? Quaes são os systemas, os pontos de vista novos, os factos que elle não achasse já apurados ás margens do Sena pelos seus auctores preferidos? Um: a influencia do cyclo greco-romano na poesia portugueza, que o illustre critico foi estudar a Cascaes, d'onde nol-a trouxe comprovada (a tal influencia e tambem a tradição da vinda de Ulysses) com um documento incontrastavel, um documento historico gravissimo e vetustissimo—as decimas que principiam:

«Ulysses, heroe matreiro,
Andava apanhando ninhos,
E vendia os passarinhos
Por avultado dinheiro....!!!

Voltando porém, ao folheto do Bom-senso. Que reprehende o sr. A. F. de Castilho á eschola de Coimbra? A escuridade dos conceitos e da linguagem. A este, o verdadeiro, o unico ponto da questão, com que responde o sr. Quental? Com um rol de nomes de auctores forasteiros—Quinet, Littré, Proudhon, Taine, etc.

Mas Taine, Littré, Quinet e Renan são clarissimos. Mas á summa elegancia, á perspicuidade suprema do seu estylo deveu Proudhon a diffusão das suas idéas revolucionarias, das suas doctrinas, dos seus paradoxos destruidores. Os mesmos dotes nas obras que firmaram a reputação de Michelet, o qual apenas em algum livro moderno (Sorcière, Bible de l'humanité) me parece deslizar d'essa grande virtude{16} da clareza, a que elle proprio chama a probidade das linguas, e que com muito mais razão deve ser a probidade do escriptor.

Se no idioma proprio Stuart Mill se nos affigura menos limpido que nas paginas de Dupont-White, a culpa não a imputemos a elle, mas ao nosso escasso inglez. Dos auctores allemães não fallo. Os innovadores de Coimbra leem-nos em francez como eu leio alguns, sem que por isso me declare alistado na legião dos pequenos deuses bastantemente satisfactorios, que substituiram Jehovah, o defuncto Senhor dos Exercitos. E tanto é verdade que só em francez os lêem, que o sr. Quental até os cita em francez, como se póde ver nas Odes modernas, a pag. 6.

Ora, dos escriptores tenebrosos com que a eschola de Coimbra se defende, qual é o que, fóra da circumscripção geographica do seu paiz, em França por exemplo, conseguiu fazer-se recebido, sem se subordinar ás exigencias do espirito d'aquella nação; sem se transformar, sem se accommodar ao «gosto francez?»

Ferrari enriquecera de notas explicativas a sua edição da Sciencia Nova; os principios d'este livro tinham sido expostos por Ballanche; e todavia o nome de Vico permaneceu ignorado até ao momento em que Michelet tomou a si explicar e vulgarisar as suas idéas. O estylo das obras allemãs de H. Heine é por ventura o das versões feitas a seus olhos, ou o das obras escriptas annos mais tarde em Paris?

Quanto á Symbolica de Guigniaut, sabe-se que é antes um labor de interpretação original do que a versão da obra de Creuzer. Vera, o traductor da Philosophia da natureza, viu que não bastava dar em francez as obras de Hegel. Eil-o logo a repetir explanação sobre explanação, volume sobre volume—Introducção á Logica, Commentario perpetuo, Introducção á Philosophia, O hegelianismo e a philosophia—que servissem de glossa e fossem um passaporte dos escriptos do reformador de Stuttgard... Pois nem assim creio que conseguisse melhorar em nossos dias a posição do seu auctor, o qual bem se conhecia, e como tal, diz um critico francez, se plaignait, de son vivant, de n'avoir été compris que par un seul disciple, qui même l'avait MÉCOMPRIS.—Mas, quer v. um exemplo mais vivo da difficuldade com que se fazem acceitas{17} ao resto da Europa as especulações, as caligens da philosophia germanica? A versão da Vida de Jesus de Strauss, publicada em 1839, só dezesepte annos depois teve segunda edição. E comtudo o traductor chamava-se Emilio Littré.—Apparece em 1863 a obra de Rénan, obra condemnada pelo proprio Proudhon (Du principe de l'art, 1.º volume das obras posthumas) e pelos racionalistas da Allemanha, obra cem vezes inferior, em valor scientifico, á de Strauss, e em cinco mezes exhaurem-se nove edições! O estylo fizera a reputação d'esse livro inconsistente e contradictorio, prenhe de phrases dubitativas, de allegações falsas e de risiveis conjecturas.—Mas não é tudo. Na mesma lingua, de francez para francez, se tem visto serem ás vezes necessarios estes trabalhos de tradução—o trabalho de Dumas filho vertendo na admiravel lingua dramatica do Supplicio de uma mulher a concepção absurda de E. de Girardin.—Assim é que as diffusas e obscuras theorias do fundador do positivismo, Augusto Comte, careceram de ser depuradas, resumidas e aclaradas pela elegante penna de Littré, sem o que parece que ainda hoje o não intenderiam no seu paiz.

Mas agora reparo, que tenho levado a tagarelar sem tom nem som por todo este papel. Cinjo-me já á resposta das cartas de v.    , e peço desculpa da minha enfadonha verbiagem.

Confrontando a sua correspondencia com a conta corrente que me acaba de enviar, vejo (Omitte-se o resto da carta, por versar exclusivamente sobre negocios de interesse particular e commercial).

Sempre

 

De v.

 

Amigo e obrigadissimo creado

 

 

M........

 

 

 

 

CATALOGO CHRONOLOGICO

DOS OPUSCULOS PUBLICADOS ATÉ HOJE

SOBRE A

ACTUAL QUESTÃO LITTERARIA

1—A. F. de Castilho—Carta ao editor A. M. Pereira sobre o Poema da Mocidade, impressa no fim do poema, 1 vol. broch. 600

2—Anthero do Quental—Bom senso e bom gosto, carta ao ex.mo sr. A. F. de Castilho, 3.ª edição, br. 100

3—M. Pinheiro Chagas—Bom senso e bom gosto, folhetim a proposito da carta que o sr. Anthero do Quental dirigiu ao sr. A. F. de Castilho br. 100

4—Manuel Roussado—Bom senso e bom gosto, resposta á carta que o sr. Anthero do Quental dirigiu ao ex.mo sr. A. F. de Castilho, 2.ª edição augmentada, seguida de uma carta sobre o mesmo assumpto, br. 100

5—Elmano da Cunha—Carta em resposta a outra bom senso e bom gosto dirigida por Anthero do Quental ao ex.mo sr. A. F. de Castilho o incomparavel traductor dos Fastos de Ovidio, obra em que se faz o confronto de Romulo e Jesus-Christo, offerecida ao incomparavel duque de Saldanha, br. 100

6—Julio de Castilho—O sr. Antonio Feliciano de Castilho e o sr. Anthero do Quental, 2.ª edição, br. 160

7—Theophilo Braga—As theocracias litterarias, br. 100

8—Anthero do Quental—A dignidade das lettras e as litteraturas officiaes, br. 160

9—Rui de Porto Carrero—Lisboa, Coimbra e Porto e a questão litteraria.—A carta do sr. Anthero do Quental ante os srs. Pinheiro Chagas, M. Roussado e Julio de Castilho, 2.ª edição, br. 160

10—A. Ferreira de Freitas—Os litteratos em Lisboa—poemeto illustrado por Jeronymo da Silva Motta, bacharel nas faculdades de theologia e direito, br. 240

11—Amaro Mendes Gaveta—O mau senso e o mau gosto—Carta mui respeitosa ao ex.mo sr. A. F. de Castilho em que se falla de todos e de muitas pessoas mais, com uma conversação preambular por Gaveta Mendes Amaro, br. 100

12—S. de A.—Bom senso e bom gosto—Carta de boas festas a Manuel Roussado, br. 100

13—J. D. Ramalho Ortigão—Litteratura de hoje, br. 100

14—Camillo Castello Branco—Vaidades irritadas e irritantes—opusculo ácerca de uns que se dizem offendidos em sua liberdade de consciencia litteraria, br. 200

15—Augusto Malheiro Dias—Castilho e Quental—reflexões sobre a actual questão litteraria, br. 100

16—Urbano Loureiro—Questão de palheiro; Coimbrões e lisboetas, br. 100

17—Ermita do Chiado—Garrett, Castilho, Herculano e a escola coimbrã, ou dissertação ácerca da genealogia da moderna escola, contendo um esboço rapido e pittoresco da litteratura contemporanea, br. 100

18—C. F.—A litteratura ramalhuda a proposito dos srs. Castilho e Ramalho Ortigao, br. 100

19—A. F. de Castilho e J. A. de Freitas e Oliveira—A questão litteraria—a proposito do jazigo de José Estevão, br. 60

20—José Francisco—Os coimbrões; questão em que tambem entra pelos cem réis, José Francisco, caiador da rainha do Congo; com uma dedicatoria por Diogo Bernardes, br. 100

21—José Feliciano de Castilho—A escola coimbrã.—Cartas ao redactor do Correio Mercantil, do Rio de Janeiro (este folheto contem as tres primeiras cartas; as seguintes formarão outro folheto que já está no prelo), br. 100

22—Dito—Idem, idem, idem.

23—Eduardo A. Vidal—Guelfos e gibelinos. Tentativa critica sobre a actual polemica litteraria, br. 100

24—P. W. de Brito Aranha—Bom senso e bom gosto. Humilde parecer com uma carta do ex.mo sr. A. F. de Castilho, br. 100

25—Eduardo Salgado—Litteratura de ámanhã, duas palavras ao sr. Anthero do Quental, br. 100

26—Carlos Borges—Penna e espada, duas palavras ácerca da Litteratura de hoje, de Ramalho Ortigão br. 100

27—Anonymo—Anthero do Quental, e Ramalho Ortigão, br. 100

28—Anonymo—O tyrannete Quental e Ortigão. Verso, br. 100

29—Sachristão—Analyse critica, rapida, despretenciosa, feita ao folheto intitulado Garrett, Castilho, Herculano e a escola coimbrã pelo Ermita do Chiado, br. 100

30—A. A. Teixeira de Vasconcellos—A. F. de Castilho—A. Osorio de Vasconcellos—Sobre a questão coimbrã, br. 100

31—Sombra de Cicero—Verdadeira luz derramada na questão litteraria, e supremo remate a ella, br. 100

32—Antonio Peixoto do Amaral—Litteratura de hontem, ou breves reflexões sobre a questão litteraria, br. 100

33—A. M. da Cunha Belem—Horacios e Curiacios, ou mais um ponto e virgula na actual questão liiteraria, br. 100

34—Lisboeta convertido—A aguia no ovo e nos astros, sive a escola coimbrã na sua aurora e em seu zenith, 2 folhetos (1.ª e 2.ª parte), br. 200