The Project Gutenberg eBook of A Morgadinha de Val-D'Amores/Entre a Flauta e a Viola This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Morgadinha de Val-D'Amores/Entre a Flauta e a Viola Author: Camilo Castelo Branco Release date: November 13, 2009 [eBook #30461] Most recently updated: January 5, 2021 Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A MORGADINHA DE VAL-D'AMORES/ENTRE A FLAUTA E A VIOLA *** Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) CAMILLO CASTELLO BRANCO ------ THEATRO COMICO A MORGADINHA DE VAL D'AMORES ----- ENTRE A FLAUTA E A VIOLA ------------ PORTO EM CASA DE VIUVA MORÉ--EDITORA PRAÇA DE D. PEDRO 1871 THEATRO COMICO PORTO--IMPRENSA PORTUGUEZA THEATRO COMICO DE CAMILLO CASTELLO BRANCO A MORGADINHA DE VAL D'AMORES ENTRE A FLAUTA E A VIOLA PORTO VIUVA MORÉ--EDITORA PRAÇA DE D. PEDRO 1871 ADVERTENCIA Da parte musical da primeira comedia d'este livro se encarregou o distincto maestro Francisco de Sá Noronha, quando a comedia se escreveu com destino a ser representada em Lisboa. Sendo importantissimo para o bom exito theatral o subsidio da musica n'esta composição, e sobrevindo rasões que desviaram o nosso amigo Noronha de collaborar comnosco em tamanha futilidade, não pôde por isso a comedia ser submettida á opinião das platêas. Quem a lêr agora tem de benevolamente disfarçar o seu fastio de leitura de versos, feitos ou copiados das canções populares, para se cantarem. Por via de regra, taes trovas são sempre asperas ou dissaboridas na declamação, mórmente as que formam o _Auto do nascimento do menino Jesus_, consoante elle se figura nas aldêas do Minho ainda hoje. Com referencia á farça não temos que pedir desculpa. Seria desvanecimento irrisorio recearmos nós que a ponderosa e grave critica se descesse até coisa tão pequena. * * * * * A MORGADINHA DE VAL-D'AMORES COMEDIA EM TRÊS ACTOS FIGURAS D. JOANNA COGOMINHO DE ENCERRABODES, morgada de Val-d'Amores, filha de PANTALEÃO COGOMINHO DE ENCERRABODES. FREDERICO ARTHUR DA COSTA, Escrivão da Fazenda de Santo Thyrso. COSME JORDÃO, Deputado por Guimarães. MACARIO MENDES, Boticario de Santo Thyrso. JOÃO LOPES, Lacaio e confidente da Morgada. FIGURAS DO AUTO DOS TRES REIS MAGOS. Creados, cantadeiras, camponezes, musicos e outros personagens. _Scenas da actualidade._ ACTO PRIMEIRO Ao fundo, portão de quinta com sua enorme pedra de armas e ameias lateraes. O restante do palco figura uma alameda e estrada. SCENA I FREDERICO _(só)_ _(Frederico é um homem entre 28 e 33 annos que traja quinzena e calças pretas apertadissimas em corpo de extrema magreza e aprumo. O chapéo é de fórma ingleza e alto para tornar mais aguçada a figura. A cabelleira bironniana em crespas ondulações. Bigodes encerados e picantes nas guias retezadas. A luneta d'um vidro sem aro obriga-o a caretear, abrindo a bocca de esguêlha quando fixa mais attentamente a morgada. Os seus movimentos, quando lhe fôr necessario fugir, hão de ter tal velocidade que simulem o rapido perpassar d'um duende. A agilidade da rotação do pescoço deve dar-lhe o que quer que seja de authomatico e fantasmagorico.)_ A razão diz-me que eu estou em perigo de ser moído por estes selvagens do Minho; mas o coração, este intestino onde o amor e a coragem habitam, diz-me que não vacille. A rasão argumenta-me que eu, escrivão de fazenda no concelho de S. Thyrso, não devo arrojar as minhas desenfreadas ambições até á mão da morgadinha de Val-d'Amores; mas o coração, esta republica intima que me esbraveja no peito, impelle-me para ella, mandando-me lêr n'aquelle brazão _(apontando)_ o epitaphio da fidalguia de raça, e o monumento levantado não ás tradições ineptas, mas á restauração da dignidade humana. Além d'isto, eu, homem de aspirações gigantes, eu, poeta de audaciosos raptos d'alma, eu, que junto á poesia elevada a poesia profunda, preciso de me arranjar. Sou escrivão de fazenda; mas esta posição não quadra aos meus instinctos. Ás vezes como que sinto escaldarem-se-me as arterias com sangue de principe, e me quer parecer que algum de meus avós foi mais ou menos illudido por alguma das minhas avós. Reconheço, como filho d'este seculo, que a democracia matou a nobreza mascarando-se ella de fidalga; assim é; porém, ao mesmo tempo, não sei que filtros me circulam no intimo peito, quando vejo esta morgada e lhe entrevejo na fronte o sangue azul das veias. Sobre tudo, o que mais me incita a querer-lhe com a adoração dos Paulos e dos Romeus é a precisão que tenho de me arranjar. Eu já manobrei por mares tempestuosos. Um dia consultei a minha vocação; e, como me sentisse um dos muitos desventurados que cáem n'este mundo sem vocação, fiz-me litterato. Os litteratos fazem-se a si proprios, por serem cousa que a Biblia não diz que o Creador fizesse nos sete dias de creação. Um sujeito olha para si como Deus para as trevas, e diz «_fiat lux_» faça-se o litterato; «_et lux facta est_», e o litterato fez-se. Eu prometto não dizer mais nada em latim, por que tambem não sei mais do que isto. Feito litterato, escrevi como toda a gente que quer escrever. Preparava-me para coordenar uma Historia Universal em 25 volumes com 26 de supplemento, quando se me offereceu um logar de noticiarista n'um diario de Lisboa. A minha reputação estava quasi estabelecida, quando a empreza me despediu por semsaborão, como se fosse obrigatorio ser engraçado no paiz mais desgraçado do mundo. Voltei o meu espirito para a historia universal, e cheguei até a procurar n'um Almanak onde era a Torre do Tombo com tenção de lá ir consultar os pergaminhos. N'este proposito estava eu, sentindo já os calores da gloria, quando me encarregaram de traduzir uma comedia franceza para o Gymnasio. Puz de parte a Historia Universal, e traduzi a comedia com um esmero indigno do resultado, porque ella foi pateada visto que tinha, segundo disseram os criticos, uns gallicismos que lhe corrompiam a virgindade elegante do texto. Ora eu então fiz-me critico, animado pela grande copia de sandices que se escreveram contra a minha traducção. N'este modo de vida achei vantagens extraordinarias, sendo a primeira a dispensa de saber alguma coisa. Um critico, no jardim das lettras, representa uma toupeira em jardim de flores; é temivel porque remeche e estraga tudo; levanta impólas de terra, e suja quando não desvasta a mimosa vegetação. Eu fiz destroços grandes e escalavrei muitas reputações litterarias, já por amor da arte, já por amor do estomago, esta coisa onde um homem de genio não póde crear a luz, porque isto aqui _(indicando o estomago)_ é um abysmo que só recebe a luz pela bocca. Mas a final, as obras litterarias que appareciam eram já de natureza que o arpéo da critica não lhes ferrava a unha. Entreguei-me ao genero chamado _reclame_, e comecei a chamar a attenção do paiz para toda a coisa impressa, poema ou tragedia, romance ou farça. Este officio, posto que o mais aviltante da vida d'um escriptor, é o mais lucrativo no mundo patarata, em que eu me atasquei. A consciencia pezava-me pouco, se o estomago sahia pezado de casa do emprezario do theatro ou do editor do romance. Afoguei muitos escrupulos em sopa de camarão. Mas o sangue de principe, este não sei quê que me faz cócegas nos miolos, mostrou-me a indignidade da minha missão na terra, e desde logo atirei um vôo atrevido ás regiões aquilinas da politica. Estudei trez dias as questões de fazenda em Portugal, e entendi-as tão claramente como se fossem questões da minha fazenda. Percebi que o paiz estava como eu tal e qual: foi-me facil escrever uma serie de artigos nos quaes provava que a maneira de matar o _deficit_ era... sim eu provava que a maneira de matar o _deficit_, esse cancro roedor das entranhas do meu paiz, era... sim eu provava... não me lembra agora o que provei... o certo é que me despacharam escrivão de fazenda de Santo Thyrso, provavelmente para matar o _deficit_. Eis que chego, e vejo a Morgadinha... _(Ouvem-se os tamborileiros)_ Não convem que estes barbaros me vejam parado em frente do portão da mulher amada... _(Sáe)_. SCENA II PANTALEÃO, DOIS CREADOS, E OS TAMBORILEIROS _Entram ao terreiro e páram tocando em frente da porta trez tamborileiros, um de bombo, e os outros com caixas de rufo. Pouco depois abre-se a porta, e sáe_ _PANTALEÃO__, com dois creados de lavoura, um dos quaes distribue canecas de vinho, que despeja d'um pichel vermelho, pelos tamborileiros, que se descobrem._ 1.º Tamborileiro _(o do Zabumba)_ Biba o incelentissimo morgado a mai'la snr.ª morgadinha! Os trez Biba por muitos annos, biba! Pantaleão Olé! rapazes! Com que vossês já se vão chegando ao arraial?.. 1.º Tamborileiro Ó promeiro, vamos tocar ós mordomos do Snr. San Joon, que tem festa d'arromba este anno; e ós despois la bamos pr'ó arraial com Deus. _(Ouve-se ao longe a toada das cantadeiras que cantam o S. João.)_ Pantaleão Bebam; mas não se encarraspanem como no anno passado. 2.º Tamborileiro _(rindo alvarmente)_ É berdade, fedalgo! Aquillo é que foi perua! Indas m'alembra! Pantaleão Pois vê lá se arranjas outra que te faça esquecer a do anno passado. 3.º Tamborileiro _(bebendo)_ Enton la bai á saude de Vossenhoria, a mais da snr.ª morgadinha. 1.º e 2.º Tamborileiro A mesma. Pantaleão Querem mais? bebam. 1.º Tamborileiro Non faz minga. Pantaleão Então, rapazes, adeus. Lá nos veremos na romaria. Os tres Tamborileiros Biba o fedalgo, e mai la obrigaçon. _(Sáem rufando estrondosamente: cessa o estrondo pouco depois.)_ SCENA III PANTALEÃO E OS DOIS CREADOS (QUE POUSAM AS VASILHAS) Pantaleão Ora venham cá vossês, tomem tino no que eu vou dizer, e abram-me esses olhos. Vossês tem obrigação de zelar a honra d'esta casa, por que nasceram n'ella, cá se crearam, e cá hãode morrer, se me servirem bem. Aquillo que souberem a respeito do que vou perguntar hão de dizer-m'o. Aqui quem governa sou eu, percebem? Vossês tem visto de noite alguma vez por debaixo das janellas d'esta casa o escrivão de fazenda? um homem muito magro que cá vinha d'antes? 1.º Creado Bem sei quem é o escribon das fazendas de Santo Thyrso... Olhe, fedalgo, eu jurar non juro que era elle; mas aqui atraz ha trez noutes, vinha eu de regar a cortinha das Chans, e ao sahir da carvalheira, rebentando sobre a direita, vi uma coisa a escoar-se por entre os carvalhos que parecia um abentesma... 2.º Creado Eu tambem já bi esse abentesma, salbo seja, ahi ós pois da mêa noute; mas aquillo, meu amo, non podia ser o escribon das fazendas por que Vossenhoria faça de conta que elle por este caminho alem lebaba-se assim têzo e hirtego que não bolia c'os pezes. Havéra de ser o mesmo que tu enxergaste, Antonho! Pantaleão Pois creiam vossês que não era outro senão o escrivão de fazenda. N'estes arredores não ha homem d'aquelle feitio senão elle... Sabem o que eu quero, rapazes? é que lhe dêem uma boa sova de estadulho. 1.º Creado Só se for a tiro; que non ha home que o pilhe na carreira. 2.º Creado E p'ra lh'acertar c'uma bala faz minga saber atirar ás lebres. _(Ouvem-se risadas de mulheres já perto.)_ Pantaleão Por ora, nada de tiros; o que mando é que lhe arrumem quatro bordoadas, sem lhe dizer isto nem aquillo. Vossês zupem-lhe e escamem-se, que eu com a justiça não quero testilhas; mas não lhe batam, sem o apanharem cá á volta da casa... Vamos conversar aqui p'ra carvalheira que vem ahi as raparigas da freguezia. _(Sáem pela esquerda.)_ SCENA IV _(Rancho de raparigas vestidas de saias de chita com muita roda de saias e saiotes, capotilhas encarnadas, chinela e meia branca, acompanhadas d'um tocador de rebeca e outro de violão, que lhes acompanham as cantigas. Entram pulando alegremente, e pucham por a estridula sineta do portão.)_ O rabequista Biba a snr.ª morgadinha de Val-d'Amores! Todos Biba! Biba! _(Cantam o S. João.)_ COPLAS Son Joon adromeceu Nas escadas do collejo; Deron nas frêras co'elle, Son Joon ten porbolejo. Que é aquillo, que é aquillo, que é aquillo? Son Joon a caçar um grilo. Ó meu son Joon da Ponte, Ó meu bello patusquinho, Dá-nos anno de bon pon, Dá-nos anno de bom binho. Non é nada, non é nada, non é nada, Son Joon a comer pescada. _(Abre-se o portão de par em par. Sáe a Morgadinha, trajada com luxo, mas fóra da moda. Vestido de ancas exaggeradas, cabello á Stuart, e um grosso grilhão ao peito. Segue-a um creado velho, de niza, com uma cadeira de braços á cabeça, e uma pichorra e caneca na mão.)_ SCENA V MORGADINHA, JOÃO LOPES, E AS CANTADEIRAS Vozes Biba a snr.ª morgadinha! Biba! Biba! Morgadinha _(sentando-se na cadeira)_ Adeus, raparigas. Como estás tu, Maria do Quinchoso! e tu Benta do Cazal? Olha a Marianna da Egreja como está gorda com o cazamento! Ó João Lopes, dá vinho a essa raparigada toda. Uma das moças Vossenhoria bai ao arraial? Morgadinha Podéra não! Já estou preparada, e vou assim que a tarde refrescar, que quero ver o fogo prezo. Outra E mai lo auto do Natal, que vem la os d'Arnôzo co'elle. Outra E como a fidalga está pimponaça! Parece mêmo a Madanela da porcisson de Passos! Outra Benza a Deus, que palminho de cara assim, não se topa outra no mundo. Faz agora um anno que os cassacas do Porto andabon todos enbeiçados atraz da snr.ª morgadinha no arraial; e enton aquelle goberno que está em S. Thirso esse é que andava memo azoratado! Morgadinha _(rindo)_ Qual governo?! A mesma Aquelle que lhe chamon o das fazendas, ou non sei que deanho... Morgadinha Ah!.. _(suspirando)_ Ja sei... O do violão Má rais o parton, que me mandou citar indas hontem! O rabequista Eu onde le poder ser bon heide medirle o costado de pá a pá cum fueiro... Morgadinha Ora não sejas bruto, José da Eira! Elle faz a sua obrigação; faz tu a tua que é pagar o que deves ao rei. O mesmo Ao rei! Bem me fio eu n'isso... Enton a fidalga pensa que o rei aveza uma de X do dinheiro que nós demos!! Pois non avezastes! Os governos de S. Thirso repartem uns c'os outros no fim do anno o dinheiro que don os lavradores. O outro É como diz. Morgadinha Sois uns selvagens. Deixemo'-nos de tolices. Cantem lá alguma coisa vossês. Uma das moças Quer a _Marianinha_, fedalga? Morgadinha Pois sim; cantem lá a _Marianinha_. COPLAS__ _(Tudo mulheres)_ (UMA VOZ) Ja fui canario do rei, Ja lhe fugi da gaiola. (CÔRO) Sim, sim, eu vou lá Ó Marianinha, Sim, sim, eu la vou Ó pequerruchinha. (UMA VOZ) Agora sou pintassilgo Destas meninas d'agora. (CÔRO) Sim, sim, eu vou la, etc. (UMA VOZ) Pintassilgo está no bosque, A andorinha no telhado. (CÔRO) Sim, sim, etc. (UMA VOZ) So eu não sei onde estou, Quando não estou ao teu lado, (CÔRO) Sim, sim, etc. (VOZ) A andorinha quando chove Vai metter-se á escuridon (CÔRO) Sim, sim, etc. (VOZ) E eu quando o norte é rijo Metto-me ó teu coraçon. (CÔRO) Sim, sim, etc. Todos Biba a snr.ª Morgadinha! Biba! Morgadinha Então vossês vão já para a romaria? Uma d'ellas Aindas bamos buscar as cazeiras de Vossenhoria que estão á espera de nós, e ós pois voltemos por qui. Morgadinha Pois vão, e voltem. _(Sahem cantando o S. João. A morgadinha fica pensativa e melancolica, encostando o rosto á mão, em quanto se ouve e se vai perdendo a toada da cantiga.)_ SCENA VI MORGADINHA E JOÃO LOPES Morgadinha Como estes brutos são felizes!.. E eu sempre apoquentada por causa deste coração! Ai! eu antes de saber o que era amor tambem cantava... Lembras-te, ó João Lopes? João Lopes Ora se lembro! E cantava que nem uma calhandra a fidalga! Morgadinha Olha se te lembras, João! Eu ia ás espadeladas, ás descamizadas, ás malhas, brincava, saltava... João Lopes Até dançava a cana verde, e a chula que era um gosto vêl-a!.. E quando a menina quiz que eu lhe ensinasse o jogar o páo... Morgadinha _(com alegria)_ É verdade... João Lopes E o caso é que vossellencia ahi com duas duzias de lições já me chegava com o páo. Morgadinha _(erguendo-se enthusiasmada)_ E d'aquella vez que eu me vesti de rapaz, e puz fóra da eira do Manoel Tamanqueiro, com quatro partidas de páo, mais de seis mascarados que la andavam a beliscar as minhas cazeiras! João Lopes Por signal que a menina deu uma tapona no Zé Torto, que ficou torto de todo... Ó fidalga, vossellencia hoje já não era capaz de romper ahi com um marmeleiro p'ra frente d'um homem qualquer!.. Morgadinha Estás enganado... se me chegassem a mostarda ao nariz... Mas, ai!.. _(Torna a sentar-se triste.)_ A minha alegria foi-se desde que eu soube o que era amor!.. Olha lá, João... não o vis-te hoje? não viste o meu amado Frederico? João Lopes Falle baixinho, menina. Olhe que o snr. morgado ainda ha todonada me esteve dizendo que desconfia que elle anda por aqui de noute. A fidalga acautele-o; que não vão os creados chegar-lhe ao forro da camiza... Morgadinha _(erguendo-se colerica)_ Façam isso, que os esgano! Que lhe ponham um dedo, e verão quem é a morgada de Val-d'Amores! João Lopes Não grite assim, que seu pai, se a ouve, quem as paga sou eu. A fallar a verdade, eu não desgosto do snr. Frederico; mas, em fim, esta aquella de ser escrivão, é ruim modo de vida para poder casar com a snr.ª morgadinha... Morgadinha Isso que tem!? Todos somos eguaes; e o coração, quando ama, não quer saber de contos. Uma pessoa não está lá a averiguar se o objecto amado é fidalgo ou plebeu. Tem-se visto rainhas casarem com pastores, e reis casarem com pastoras. João Lopes Cá no conselho de Santo Thirso não me consta, hade perdoar. Morgadinha Mas lá por esse mundo fóra acontece isso a cada passo. Tu é por que não lês os livros das historias. Eu te lerei casos que aconteceram... E então que tinha que eu casasse com um escrivão? João Lopes Em fim, em fim, o paisinho da fidalga foi capitão-mór, seu avô foi desembargador, e seu bisavô foi sargento mór de batalha no Roussilhon... Morgadinha Vai dizendo até chegar a Adão e Eva, vai dizendo, e eu depois te direi de quem eu e mais tu somos netos. João Lopes Isso assim é, não ha duvida; mas, diz lá o ditado, lé com lé, e cré com cré. Morgadinha Não quero saber de ditados! _(com força)_ Este amor só m'o hade arrancar do peito a morte! João Lopes _(apontando para o brazão)_ Fidalga, ponha os olhos nas armas reaes dos seus antepassados. Morgadinha Ora! não tenho mais que fazer... Cuidas que eu não sei que meu avô casou com uma creada? Mostra-me onde estão alli as armas da creada. Bem se importou elle das armas, nem do brezabu que as leve! É o que faltava... estar-me eu aqui a definhar p'ra'mor da pedra! As armas são de pedra, e eu sou de carne e osso, ouviste? João Lopes A fidalga responde a tudo, e não ha remedio senão callar-se um homem, que a trouxe nos braços desde os trez annos, e sou capaz de me metter no inferno vestido e calçado por causa da minha menina. _(Sensibilisa-se.)_ Morgadinha Sei o que tenho em ti, meu João Lopes... Vais tu ahi ao cimo do pinhal a vêr se o vês pela estrada?.. Elle disse-me que havia de passar para a romaria ás seis da tarde. Se o encontrares, diz-lhe que meu pai se está a vestir para ir tambem, e que elle póde demorar-se a conversar comigo um bocadinho. João Lopes Vou vêr se o avisto; mas, menina do meu coração, olhe que seu pai anda á espreita e traz espias... Nós temos grande desgraça pela porta... Morgadinha _(energicamente)_ Não morro de medo, já te disse. A mulher que ama não tem medo de nada! João Lopes Seja assim; mas, se lhe quebram o espinhaço a elle! Coitado do homem, é tão delgadito que, se o apanha o vento d'um páo, elle vai a terra... Morgadinha Quem lhe hade bater?! Cuidas que elle não anda armado? Que se attrevam sómente a ameaçal-o!.. João Lopes Cá vou, cá vou, não se desespere. _(Sáe.)_ SCENA VII MORGADINHA _(Senta-se quebrantada e triste)_ Ai! quem me dera casar!.. quem me dera casar com Frederico Arthur!.. _(Musica de surdina)_ Como eu gosto d'elle! Ha mais de dous annos que este meu coração padece! Não ha noite em que eu não sonhe duas vezes com a sua imagem... Quando acordo, e o não vejo, a minha vontade é chorar, chorar, chorar! Perdi a vontade de comer! Tudo me faz fastio. Os cirurgiões mandam-me tomar aguas ferreas!.. e só eu sei o que tenho! O meu mal é aqui!.. _(a mão sobre o coração)_ Oh céos! quanto eu sou desgraçada sem o meu Frederico! _(Ergue-se, e falla com muito sentimento. Musica plangente.)_ Quando eu o vi, pela primeira vez, foi na hospedaria das Caldas de Vizella, onde meu pai tratava do seu rheumatico. Estávamos a jantar quando elle entrou, e meu pai offereceu-lhe frango com ervilhas. Elle agradeceu, mas não comeu, dizendo que o seu jantar era um ôvo quente. E d'ahi a pouco, trouxeram-lhe um ôvo quente n'uma tigella; e elle comeu o ôvo, bebeu um copo d'água fresca, e disse que tinha jantado! Como eu fiquei triste e pensativa a olhar para elle, e elle para mim! Perguntei-lhe, sem o pai ouvir, se podia viver só com um ôvo, e elle respondeu que a sua alma se sustentava com a esperança de ser amado por mim... e com tres óvos por dia. Oh! que lembranças estas, que lembranças estas! _(chora)_ E vai depois, disse-lhe eu: «O snr. está assim magro porque come muito pouquinho; se gosta d'óvos coma uma duzia d'elles de cada vez»; e elle pregou-me os seus lindos olhos, e respondeu a suspirar: «Que me importa o corpo? a mim o que me importa é o coração que é grande; e, se o corpo é magro, mais depressa me reduzirei a cinzas se V. Ex.ª me desprezar.» Isto fez-me no peito mossa! fiquei presa d'este dito; senti por aqui acima uma fogueira que me pôz a cara em brazas vivas, e não lhe disse coisa de geito porque fiquei um pedaço intallada. Depois, ao despedir-mo'nos, com muita vergonha, sempre pude dizer-lhe: «amo-vos, meu bem!» Ora aqui está como começou isto. Desde então para cá apenas lhe tenho fallado umas trez duzias de vezes da janella para o caminho... Sinto-me muito acabada; e, se isto assim dura, não vou longe. Elle tambem está no osso, o meu pobre Frederico!.. Antes de começar estes amores, eu pezava cinco arrobas e seis arrateis pela medida antiga; pois aqui ha oito dias pezei-me de novo, e tinha mingado duas arrobas. Assim não podemos viver, nem eu nem elle. _(Com força, que a musica imita.)_ É preciso acabar com isto d'uma maneira ou d'outra. Se meu pai quer, quer; senão quer, quero eu. Uma mulher não póde ser escrava da sua fidalguia. Antes quero ser esposa d'um escrivão, e viver contente, que ser a morgadinha de Val-d'Amores, e estar-me aqui a pôr na espinha... _(Ouve-se rumor de vozes fóra.)_ É o meu papá!.. _(Senta-se.)_ Vem-me empatar as vazas... SCENA VIII PANTALEÃO, MACARIO, E A MORGADINHA _(Macario é um sujeito de oculos e casaca de briche, já de annos, e ar circumspecto)_ Pantaleão _(áparte ao boticario)_ Veja lá como lhe falla... Olhe que ella é finoria... _(á filha)_ Cá me vou preparar, Joaninha. Aqui te deixo o snr. Macario para não ficares sósinha. _(Sáe.)_ SCENA IX MACARIO E A MORGADINHA Macario Tenha V. Ex.ª muito boas tardes. Morgadinha _(enfastiada)_ Viva, snr. Macario, as mesmas. Macario Tem-lhe passado o fastio? Aquelle emplasto confortativo que eu lhe mandei fez-lhe bem? Morgadinha Não o puz: cheirava a pez. Macario De pez de vergonha era; fui eu mesmo que o manipulei... Então, a snr.ª morgadinha vae ao arraial? Morgadinha Vou. Macario Faz muito bem; que lá hade encontrar pessoa que muito interessa a V. Ex.ª... enganei-me... pessoa que muito se interessa em vêr V. Ex.ª queria eu dizer. Morgadinha Como é isso? não percebi. Macario Eu me vou explicar. Eu cheguei hontem de Guimarães, onde estive com o snr. deputado Cosme Jordão, um sabio que tem votado grandes fallas no parlamento... Ha de ter ouvido fallar V. Ex.ª... Morgadinha Não sei nada de parlamentos, não leio periodicos. Macario Pois, minha snr.ª, o doutor Cosme Jordão é um sujeito conhecido em todo o mundo, e lá na côrte até vae ao palacio do rei e come lá... Morgadinha Deixal-o comer, que tenho eu com isso? Macario _(áparte)_ Não faço nada! está hoje levadinha dos diabos. Morgadinha Vamos, diga lá, snr. Macario. Macario Pois este deputado vae hoje á romaria do S. João. Morgadinha Deixal-o ir; que se divirta. Então é esse o homem que me quer vêr? Macario Eu me explico. O snr. deputado Cosme diz que vira V. Ex.ª... Morgadinha Ainda bem; é signal que não é cego. E que mais? Macario E que ficou muito agradado de V. Ex.ª... Morgadinha Pois tem máo gosto e perde o tempo. Que mais? Macario V. Ex.ª, se o vir, não hade fallar assim. É ainda homem de boa edade, cheio de corpo, com uns oculos que lhe dão muito respeito á cara. Morgadinha Ora! oculos de respeito! que me importa cá a mim os oculos do homem? sabe que mais, snr. Macario? _(Põem-se a bamboar uma perna sobre a outra, e a trautear o «Pretinho que vem d'Angola».)_ Macario Finalmente, snr.ª morgadinha, como V. Ex.ª quizer; mas lembre-se de que seu pae deve á fazenda nacional uns seis contos de réis, e que o snr. doutor Cosme, casando n'esta casa, hade fazer com que seu pae não pague nada, e mesmo no futuro lhe não lancem impostos. Morgadinha Não me seque, snr. Macario. Vocemecê queria que meu pae pagasse commigo ao tal Cosme o que deve á fazenda? Pois que pague com o que é d'elle, e que me deixe com menos dote. Tenho dito, e deixemo'-nos de lerias. Metta-se lá na sua botica e não se faça casamenteiro. Vá fazer charopes. Macario _(áparte retirando-se)_ Apre com a cabra! Morgadinha Que tal está o sacripanta! SCENA X JOÃO LOPES, ESPREITANDO A MORGADINHA, E DEPOIS FREDERICO João Lopes Psiu, psiu. Morgadinha _(sobresaltada)_ Viste-o? João Lopes Elle ahi vem... Eu vou espreitar, e assim que eu tossir que fuja para a carvalheira. Frederico Anjo! milagre de bellesa, Joanna querida, não sentes n'estas mãos o vibrar da alma? Morgadinha _(muito terna)_ Como estás tu? passaste bem desd'hontem? Frederico Pergunta ao lirio do valle o que lhe pende a fronte quando o orvalho do céo lhe não esfria os queimores do sol estivo. Morgadinha Olha lá, Frederico, tenho a avisar-te, antes de mais nada, que é preciso andares prevenido... Frederico Temos sicarios? Ha aqui vampiros? A vindicta paterna tem sêde do meu sangue? Eis aqui o peito. Que m'o farpem, que m'o fendam, que m'o alanceem, que m'o lancetem. Tudo por ti, tudo por ti, ó estrella, ó loira visão dos meus sonhos! _(Rumor fóra.)_ Morgadinha Foge... esconde-te entre as arvores... _(Frederico sóme-se.)_ SCENA XI MORGADINHA, OS DOIS CAMPONIOS QUE VÃO PASSANDO, E DEPOIS FREDERICO _(Um camponio tange flautim e outro viola. Duas moças á frente batendo palmas ao compasso do canto, e saltando)_ Um camponio _(cantando)_ _Muito bem seja apparecido_ _Seja apparecido_ _N'esta funcção._ (Batendo palmas) (CÔRO) _Bate as palmas c'o seu pexinho_ _Co' seu pexinho_ _Co' seu pexão._ (Repete) _(Assim que elles passam, a Morgadinha sáe do portão, e logo Frederico do escondrijo)_ Frederico Mas dizias tu, pomba? Morgadinha Que te acautelasses dos meus creados quando vens de noute. Deves vir bem armado. Frederico Armado! para quê? Tu não sabes que o teu amor é talisman que prostra gigantes! As minhas armas são os raios de fogo que bebo de teus olhos; tenho vesuvios na alma capazes de abrazar cidades! Morgadinha Isto não é chalaça, meu amado Frederico! Peço-te que tenhas cuidado, muito cuidado. Se eu podesse estar sempre ao teu lado, não temeria ninguem... Tu verias o que é a morgada de Val-d'Amores... Mas eu não sei como isto hade ser... Bem sabes que meu pae tem a mania de fidalgo... Frederico _(interrompendo-a com exaltação)_ Fidalgo! que é fidalgo?! palavra obsoleta em 1871! Que é fidalgo? a sola velha e inutil d'um borzeguim do seculo XV! Oh! então é certo que teu pae ignora, que o baptismo de sangue da revolução franceza lavou todas as manchas da desigualdade entre homem e homem! Oh! a revolução! o segundo christianismo! Que é fidalgo? teu pae não sabe que aquelle brasão d'armas _(apontando)_ está alli como a pedra sepulcral das cinzas feudaes! Teu pae está debaixo do sol e não sente o calor da fermentação social! Ouve o estrondear da democracia reinante, e volta a face para os phantasmas dos avoengos que se somem lá em baixo no abysmo da historia! Morgadinha Não sei lá d'essas historias; o que te peço é que não te exponhas a levar alguma paulada á falsa fé. Olha que os meus creados são uns patifes, e meu pae não é boa rez, quando se arrenega. Pensa no que se hade fazer, porque elle não nos dá consentimento para nos casarmos. Frederico Heide movêl-o com a eloquencia d'um homem aquecido no sol moderno. Heide convencêl-o, enchendo-lhe o espirito de luz e o coração de ideias novas. Morgadinha Não te mettas n'essa asneira, que não fazes nada. _(Tem-se já ouvido toada de musica da chula, e depois a tosse rija de João Lopes. Frederico some-se sem ser preciso mandal-o. A morgadinha fica.)_ SCENA XII MORGADINHA _(Chega uma chulata que vae de passagem para a Romaria. Bando de raparigas que precedem, bailando; tocadores de rebeca, viola, clarinete, ferrinhos e requinta. A esturdia pára defronte da morgadinha, e continúa dançando cada rapariga com o seu parceiro.)_ COPLAS DE DESAFIO _(Em quanto o cantador deita a cantiga, tange sómente a viola. Entre os dois primeiros versos e os dois ultimos de cada quadra ha um espaço que dá logar a que toquem por alguns segundos todos os instrumentos.)_ Cantador Agora que eu vou passando, Faço aqui minha parada; Para saber da saude Da incelentissima morgada. Cantadeira Da incelentissima morgada Tambem eu quero saber, Que mais linda creatura Não na póde o mundo ter. Cantador Não na póde o mundo ter Nem terá até ao fim; Os seus olhos são d'amóras, Os seus dentes de marfim. Cantadeira Se tem dentes de marfim, O seu rosto é uma roza; E viva sua incelencia Que não na ha mais fermosa. Cantador Quero dar a despedida Á senhora Morgadinha; Que não ha por estas terras Mais bonita fidalguinha. Cantadeira Eu tamem vou espedir-me, Despedida quero dar; Adeus, senhora morgada, Sirva-se de perdoar. _(A morgadinha agradece-lhes com um aceno de lenço. O bando sáe tocando e dançando. Assim que o descante se ouve froixamente, volta Frederico.)_ SCENA XIII MORGADINHA E FREDERICO Frederico Tenho odio a estes selvagens que me roubaram horas de vida! Quando sahirão os lôrpas da face da terra? Morgadinha É verdade, Frederico! Trouxeste-me os figurinos? Frederico Eil-os chegados hoje de Lisboa. Morgadinha _(examinando-os)_ Ai! que demonio de mulheres! Pois ellas trazem estes vestidos assim incozipados nas pernas!? Frederico Oh! isto é a elegancia circassiana! é a fórma na sua diafeneidade sublime; ha aqui a poesia do fino, a mulher parece toda nervosa, é o lyrismo da plastica... Morgadinha _(rindo)_ Se eu te percebo, cebo! Boa cataplasma me parece este molho de clinas e sacarrolhas que ellas tem na cabeça. Frederico Nâo blasfemes! Ó Joanninha, veste-te assim; realça, sobredoura a tua bellesa com estes adornos que angelisam a mulher de compleição robusta, e transformam a mimosa em cousa ideal vestida de vapores. A mulher assim involta em roupagens etherias é um madrigal de setim que cahiu das lyras dos anjos. Morgadinha Pois sim, faço-te a vontade. Vou mandar comprar no Porto esta trapalhice toda... SCENA XIV OS MESMOS E PANTALEÃO _(Abre-se o portão repentinamente e apparece subito Pantaleão. Frederico ainda faz um impeto de fuga, mas contem-se, e corteja mui urbanamente o fidalgo.)_ Frederico Passava para a romaria, e, como visse S. Ex.ª _(indicando a morgadinha)_ vim depor a seus pés os meus respeitosos cumprimentos, e informar-me da saude de V. Ex.ª Pantaleão Estou bom, muito obrigado. Onde está o João Lopes? Morgadinha Foi aparelhar a burra. Pantaleão Vae tu preparar-te que são horas. Morgadinha Quer vêr como agora são as modas, papá? olhe. O snr. Frederico vae levar estes figurinos ás nossas primas de Ruivães. Pantaleão Pois faz-me o snr. muito favor se me cá não trouxer bonecos a casa. Nós cá não somos de modas. Frederico Direi a V. Ex.ª, snr. morgado, que as modas tem certa relação com o espirito das gerações e das épocas. Agora que o entendimento humano se adelgaça, o involucro material tambem se subtiliza nas raças finas... Pantaleão _(medindo-o d'alto a baixo com ironia)_ Bem se vê que o snr. escrivão é d'uma raça muito fina... pelo muito adelgaçado que está... Frederico Não me jacto de prosapia heraldica; mas, na jerarchia dos espiritos, preso-me de pertencer ao bando mais illuminado. Respeito muito o brasão; mas curvo-me diante da aristocracia do genio e do talento. Pantaleão Sim, o snr. tem muito talento, bem sei... Já te disse, Joanna, que te vás arranjar. Morgadinha Adeus, snr. Frederico, muito obrigada. _(Sáe.)_ SCENA XV PANTALEÃO E FREDERICO Frederico Creado de V. Ex.ª _(Váe a sahir; mas Pantaleão detem-o.)_ Pantaleão Faça favôr. Frederico Escuto as suas ordens. Pantaleão O snr. anda muito mal encaminhado. Minha filha é a morgada de Val-d'Amores; o snr. é o escrivão de fazenda de Santo Thirso. Estão um do outro tão longe como aquella pedra d'armas do rebôlo d'um sapateiro, entendeu? Frederico Entendi, que V. Exc.ª tem um estylo bastante chato. Entendi, posto que V. Exc.ª falle uma lingoagem assás gothica em pleno seculo XIX. Pantaleão Pois se entendeu, tire o seu atrevido pensamento de minha filha, e procure a fórma do seu pé. Não me obrigue a usar dos usos e costumes dos meus avós. Quer que lh'os diga? Frederico Heroismos dos seus ascendentes? Essas Odissêas da aldêa são hoje impraticaveis. Eu sei em que tempos vivemos, snr. morgado. Pantaleão Sabe? pois olhe que não sabe em que terra vive. O snr. veio lá de Lisboa onde qualquer bigorrilhas, que põe gravata, entende que é egual a todo o homem que põe gravata; o que o bigorrilhas não quer é sêr egual a todo o homem que não tem gravata. Frederico Ahi ha certa sublimidade de idêa, de que lhe dou os parabéns. V. Exc.ª ia quasi escrevendo d'um traço a historia philosophica da democracia moderna. Pantaleão Eu não escrevo historia nenhuma; o que eu lhe digo é que isto cá nas montanhas é outra cousa. Os morgados são morgados; os escrivães são escrivães; e os sapateiros são sapateiros. Ora, quando acontece alguem querer sahir da sua classe, primeiro avisa-se; depois quebram-se-lhe as costellas. O snr. sabia isto? Frederico Eu não sabia que estava na Cafrária. Cuidei que este concelho era um retalho do Portugal civilisado; cuidei que a luz do grande fóco radiara uma flecha de luz até ao coração de V. Ex.ª que me parece ser uma pessoa de bons costumes, e não um esquimó. Cuidei finalmente que o Evangelho e a Carta constitucional livellavam a dignidade humana... _(Ouve-se o cantar das raparigas que se avisinha.)_ Pantaleão Enganou-se comigo. Eu sou Pantaleão Cogominho de Encerrabódes, décimo oitavo senhor do morgadio de Val-d'Amores. Quem houver de casar com minha filha hade poder deixar apellidos nobres ao vigessimo senhor d'esta casa. Tenho dito, e acabou-se o cavaco. Saude e juizo. _(Volta-lhe as costas. Frederico bambôa a cabeça altivamente e retira-se.)_ SCENA XVI MORGADINHA, PANTALEÃO, E O BANDO DAS MOÇAS E TOCADORES QUE APARECERAM NA TERCEIRA SCENA _(A Morgadinha sáe sentada sobre a jumenta. Vem vestida de Amazôna. João Lopes de farda azul com vivos vermelhos, bota de orelha e prateleira, colete encarnado, e chapéo embreado, tudo á antiga e grutesco, vem trazendo a burra pela rédea. As raparigas estão cantando as seguintes)_: COPLAS (UMA VOZ) Dondes vens ó velha? Eu venho da feira. (CÔRO) Que trazes na cesta? Crá, crá, crá, Sardinha vareira, Cri, cri, cri, Por a retangueira; Cró, cró, cró, Se o galo cantou. (UMA VOZ) Se o galo cantou Deixal-o cantar. (CÔRO) Minha rica prenda Crá, crá, crá, Lá da beira mar Cri, cri, cri, Pela retangueira, Cró, cró, cró, Se o galo cantou. (UMA VOZ) D'onde vens ó velha? Eu venho d'alli. (CÔRO) Que trazes na cesta? Crá, crá, crá, Que te importa a ti, Cri, cri, cri, Pela retangueira, Cró, cró, cró, Se o galo cantou. _(Continúa o canto ao descer do panno.)_ FIM DO PRIMEIRO ACTO. ACTO SEGUNDO Vista de arraial. É noute. Festões de lampadas de papel variegado pendem dos ramalhos das arvores. Mulheres a frigir, ao lado das pipas cobertas de ramos de folhagem. Barracas com botequins. Multidão de povo a beber á volta das pipas. Sinos repicando, e estouros de foguetes. D'ambos os lados da scena, mas fóra, se canta o «S. João» com vozes alternadas. Frederico passeia por entre o povo, mirando as raparigas. Os dois já conhecidos creados de Pantaleão, com as pernas encruzadas nos varapáos, medem d'alto a baixo Frederico, e rompem a jogal-os um com outro. Frederico, por uma das suas evoluções maravilhosas de rapidez, desapparece. O povo ri-se, e elle reapparece logo, seguido por trez cabos armados. Os cabos usam bonet com debrum azul. Cessam as cantilenas, e rompe a banda musical de Santo Thyrso, estrondosa em trompões, a qual entra em scena tocando uma marcha. Os musicos uniformes, de calça branca, casaco azul com vivos amarellos, o bonet avivado da mesma côr. As figuras podem caracterisar-se caprichosamente. Em seguida, entra a Morgadinha, com o pae, Macario, Cosme Giraldes, e João Lopes. Cosme Giraldes é um sugeito gordo, aspeito serio, com os seus oculos, um todo de summa gravidade. Os circumstantes cedem o logar aos recem-chegados, que formam grupos. SCENA I TODOS OS DESCRIPTOS (GRUPO DA MORGADINHA E COSME GIRALDES) Cosme _(com gesto de orador e com grandes pausas, á Morgadinha)_ A festa animou-se com a auspiciosa chegada de V. Ex.ª O sol do empyreo e uma senhora bella, que é o sol dos corações sensiveis, onde brilham, tudo reanimam. Assaz ditoso me julgo em ser o mais feliz dos mortaes que se sentem influenciados e enthusiasmados pelos lumes encantadores de V. Ex.ª Falta, todavia, á minha completa dita a certeza de que os meus affectuosos requebros acham graça nos seus olhos. Morgadinha _(com desdem)_ Eu não lhe acho graça nenhuma. Cosme Como assim, divina ingrata? Morgadinha Já disse ao boticario o que tinha a dizer. Cosme Pois o seu coração... Morgadinha Está dado. Eu cá sou franca. Não perca tempo. Cosme Não ha duvida que ouvi dizer que V. Ex.ª, victima d'uma allucinação, aceitava a côrte d'um esgrouvinhado arcaboiço que exerce as ladras funcções de escrivão da fazenda! Heide eu, ó céos! accreditar que... Morgadinha Sim, snr., acredite, e faça favor de me não incommodar que eu vim á romaria para me divertir. _(Volta-lhe as costas.)_ Ó papá, quando se faz o Auto do Natal? _(Ouve-se a musica tocando uma marcha.)_ Pantaleão É já. Mandei vir as figuras para aqui. Vae começar. Ó amigos, desempachem o terreiro que chêga o espectaculo. _(O povo retira e apinha-se entre scenas.)_ SCENA II OS MESMOS, E AS FIGURAS ABAIXO DESCRIPTAS EM LOGAR COMPETENTE _(A musica entra a passo muito cadenciado com grandes pernadas. Chegada á bocca do palco, alinha a um lado para dar o passo aos dois primeiros personagens do auto):_ SCENA I do Auto ADONIS E MANASSÉS _(Adonis traja de principe de carnaval; Manassés veste de propheta de procissão; mas toda a fatiota é muito usada e desbotada. Adonis traz um cavaquinho.)_ Adonis _(com declamação muito boçal)_ Canta, Manassés, que eu te acompanho; para isso com esta harpa vanho. Manassés _(canta com ar inspirado, gesticulando estupidamente)_ O céo estrellado, Sereno e propicio, Será pois indicio Do sol desejado. (CÔRO DE PASTORES) _(Vozes femininas dentro)_ Quem o habitará? Quem o gozará? Manassés _(cantando)_ Vêde a paz serena d'esta noute; Nascerá a estrella de Jacó? O gado socegado adivinha; Não se bole no ninho a avesinha. (CÔRO) Quem o habitará? Quem o gozará? Adonis _(declamando, e passeando com grandes passos)_ Oh! que terno, caro Manassés, cantastes! O conceito da tua cançoneta amorosa me traz dôces lembranças. Ainda em nossos dias, veremos realisadas as porfecias? Não caibo na pelle de estifeito; da-me pancadas o coração n'este peito! _(Frederico despede um impulso de riso. Espantam-se os cicumstantes.)_ Macario O senhor está a mangar d'estes actos sérios?! Frederico Pois isto é sério! então não ha nada ridiculo n'este mundo senão o snr. boticario. Macario O senhor é muito mal criado, é um incivil, é... é... um escrivão! Morgadinha Snr. Macario, não esteja a interromper o auto. Deixe lá rir quem quer rir; chore vocemessê, se tem vontade. Pantaleão Continuem lá vocês co'isso. SCENA II do Auto VOZ D'UMA PASTORA, CANTANDO DENTRO Ó Deus do céo, e da terra, Ó vós que podeis tanto, Ouvide nossos clamores Sêde propicio, ó Deus sancto! CÔRO _(dos pastores)_ Do povo amado, Mandae o desejado. _(Os que estão no palco fazem scenas mudas de ternura muito lorpas.)_ Manassés Escuta! Não foi Ruiva, a pastora que cantou? Adonis Foi. E os pastores tambem, que nenhum dorme. SCENA III do Auto O VELHO SIMEÃO E RUIVA _(O velho vestido de pelles de carneiro. Ruiva de pastorinha, com um cordeiro branco nos braços)_ Simeão _(com os olhos no firmamento)_ Incelso, interno rei sobrano, que sobre os crebins tens assento, oubide os nossos lamentos. (CÔRO) Do povo amado, Mandae o desejado. Manassés Agora creio no mysterio occulto d'esta noite. Rebella que todos os pastores tem um só pensamento. Simeão Vinde pastores aqui todos; n'este campo contemplaremos o silencio da noute, que o auctor d'altos mysterios annuncia. Frederico _(escancarando a bocca)_ Que semsaboria! Macario e Cosme Sio! _(prolongado.)_ SCENA IV do Auto ENTRAM PASTORINHOS E PASTORINHAS Ruiva _(declamando)_ Aqui vimos, meus senhores, Adorar nós o menino: No seu sancto nascimento Com grande contentamento. (CÔRO) Se o menino é nascido, Nós o bamos précurar; Aparcei, senhor menino, Que vos queremos adorar. _(Sáem por diversos lados.)_ SCENA V do Auto UM REI TURCO E DEPOIS OUTROS FIGURÕES Rei turco _(Com uma cara horripilante, e trejeitos assustadores)_ Sou o turco rei, que é Valoroso na arrogancia; Por ser filho da fortuna E neto da extravagancia! _(Corre brandindo a espada d'um lado a outro.)_ De moiriscos reis nasci, Sou seu filho alentado, O meu braço furibundo Deixa tudo escangalhado. Co'esta espada sou capaz De entrar pelo inferno dentro E pôr tudo em mil pedaços Que eu sou um rei sanguenolento! _(Risada de Frederico.)_ Cosme Já é pertinacia de espirito-forte e atheu estar ahi o senhor a gargalhar em tão solemne passo! Frederico Solemne passo, diz o nobre deputado! chamar _solemne passo_ á prostituição da arte! Macario O snr. é que é uma prostituição! Bem disse aqui S. Ex.ª que o senhor é um atheu! um impio que zomba dos mysterios dogmaticos! Vozes _(dentro)_ Quebra-se-lhe a cabeça!--Bordoada rija!--Vamos a elle! Morgadinha _(erguendo-se colerica)_ Essa canalha que se calle! Ó João Lopes, onde está o regedor? João Lopes Saberá V. Ex.ª que o regedor tomou tamanha turca que está a cozel-a no palheiro d'um lavrador. Cosme _(com enfaze)_ Um regedor crapuloso desacredita o funccionalismo e perverte a ordem social. A auctoridade que dá o exemplo da relaxação dos costumes não póde educar as massas. É necessario que não se desvirtue e desprestigie o funccionalismo, com a embriaguez dos regedores. Parece que estamos chegados á desmoralisação do Baixo-Imperio! Macario Apoiado! Morgadinha Então os snrs. fazem favor de deixar continuar o auto? Pantaleão _(ao Rei turco)_ Ó Zé da Custodia, diz lá o que tinhas a dizer. Rei turco Se isto não leva rumor, acaba-se a pandega! Frederico Magnificamente! Está a coisa definida: isto é uma pandega, e querem os moralões que a gente se desfaça em lagrimas! Faça favor de continuar, snr. rei turco, que eu estou sério, e talvez chore. Rei turco Agora não sou eu que boto a falla, é o outro rei. Entra, ó Manel Zarôlho! _(Chamando para dentro.)_ O Manel Zarolho é o rei christão. _(Explicando.)_ SCENA VI do Auto _(Entra um Rei christão com muitos pastores e pastoras)_ Rei christão Eu trago os meus companheiros Fieis á minha nação, Para te convencer, ó turco, E para te fazer christão. Rei turco Para onde ides, romanos, Que tão alegres vos vejo? Rei christão Festejar o menino nado Que é todo o nosso desejo Rei turco Que é do passaporte? Rei christão Passaporte não trazemos, Se nos não deixas passar Para traz nós tornaremos. Rei turco Para traz não heisde tornar; Que eu vou buscar algemas, Que vos quero algemar. Pastores e pastoras _(cantando)_ Milagroso Deus menino, Esta obra vossa é; Ajudai-o a vencer O turco inimigo da fé. Rei christão Saca lá da tua espada! Rei turco _(arrancando para elle)_ Ó cão, que sova tu levas! SCENA VII do Auto OS MESMOS E UM ANJO, QUE SE METTE EM MEIO DOS DOIS REIS _Canta:_ Detem-te, barbaro turco! Cessa a tua infeliz sorte; Faz-te christão, que não tarda Que te apanhe a feia morte. CÔRO _(dos pastores)_ Faz-te christão que não tarda Que te apanhe a feia morte. Rei turco _(declama)_ Eu sou o rei Almeirante La do reino da Turquia; Nunca fui prezoneiro, So do rei da Lixandria! O Anjo _(canta)_ Detem-te barbaro turco, etc. CÔRO _(dos pastores)_ Faz-te christão que não tarda Que te apanhe a feia morte. Rei turco _(afflicto)_ Que é isto? que sinto? que tenho eu aqui? _(Com a mão sobre o estomago)_ Que tenho eu aqui? Frederico Hade ser vinho. _(A Morgadinha ri-se ás escancaras.)_ Macario _(sobremodo indignado)_ Não ha noticia de tamanho escandalo!.. 0 snr. escrivão está mostrando que é um homem de sentimentos muito herejes!.. Cosme E eu assaz me espanto que a snr.ª morgadinha applauda com a sua hilaridade estas interrupções indecentes! Rei turco _(zangado)_ Eu cá é que não estou p'ra chalaças!.. Passem por cá muito bem. Por aqui me esgueiro. Ó rapasiada, vamos embora. Manda tocar a marcha ó Antonho da Pêga. _(Sáe com os personagens do auto, atraz da Musica, que vae tocando a marcha.)_ SCENA III OS MESMOS, EXCEPTO OS PERSONAGENS DO AUTO _(Grande movimento e rapido. Macario gesticula com Jordão, e Pantaleão com a filha. Alguns camponios de varapáo fazem cêrco a Frederico. A morgadinha passa por meio d'elles, bamboando a cabeça e vibrando o chicotinho. Frederico passeia com os cabos. Os camponios retiram-se, relançando olhos ameaçadores ao escrivão.)_ Morgadinha Isto já me aborrece, papá... Pantaleão Vamos embora, menina? Morgadinha Por em quanto não: quero vêr o fôgo prezo; mas vou descançar um pouquinho a casa dos cazeiros. Pantaleão Vae, que eu vou buscar-te assim que principiar o fogo. Morgadinha Ó João Lopes, vem comigo. _(Sáem. Frederico retira-se pelo outro lado com os cabos.)_ SCENA IV MACARIO, COSME E PANTALEÃO _(Formam um grupo á parte, do povo que gira no fundo)_ Macario Ó snr. morgado, pois V. Ex.ª deixa fugir esta occasião de fazer quebrar o espinhaço ao morôto? Pantaleão A occasião boa é; mas é que eu não quero que minha filha assista, por que ella é capaz de se metter no meio da desordem. Cosme Pelo que observo, esta sua filha é uma heroina grega ou romana, snr. morgado! Ella faz lembrar a Pantasilea do Virgilio, e outras façanhudas mulheres da historia antiga! Nos tempos presentes, sou a dizer a V. Ex.ª que a mulher quer-se fragil, meiga e timorata; e por tanto permitta que eu censure a educação que deu a sua filha! Pantaleão _(docil)_ Que quer V. Ex.ª? É filha unica, ficou sem mãe muito cedo, e foi creada á laia de rapaz, a trepar ás arvores, a atirar aos passaros, e a jogar o páo; em fim, confesso que andei mal avisado. Eu então achava-lhe muita graça; hoje não lhe acho nenhuma; mas já não posso emendar a mão. É tarde; minha filha tem vinte e seis annos; hade ser difficil corrigir-se, só se o casamento fizer a mudança, e espero que faça. Cosme Se o casamento fizer a mudança! Ora essa! Pobre marido que não tem os focinhos direitos vinte e quatro horas! Eu cá por mim, snr. morgado, confesso que tive certos intentos matrimoniaes com ella; á vista, porém, das suas informações, declaro que desisto e renuncio, por que me não sinto com forças e habilidade para domesticar uma cobra-cascavel... Pantaleão _(formalisado)_ Não consinto que o snr. Cosme chame cobra a minha filha! Cosme Isto é uma comparação rethorica, litterariamente fallando. Macario É rethorica... não se offenda V. Ex.ª;... talvez ignore que a rethorica é uma sciencia que permitte, a respeito de cobras cascaveis... Pantaleão Não quero saber de rethoricas: exijo que a filha do Pantaleão Cogominho de Encerrabodes seja respeitada! _(Volta as costas, e sáe bufando.)_ SCENA V COSME E MACARIO Cosme Isto é uma familia de hotentotes! Cheiram ao sertão estes selvagens! Do que eu me escapei! Se caio nas mãos d'estes dois barbaros da edade media! Parece-me uma reliquia de ostrogodos esta gente! E vocemecê, snr. Macario, a dizer-me que esta fidalga tinha uma educação fina! Macario _Fina_, não disse: hade perdoar-me, snr. doutor Cosme; eu disse-lhe que ella era finoria; de fina p'ra finoria vae differença, phisicamente fallando. Cosme Perdão. Vocemecê disse-me que ella tivera fina educação. Macario Isso então foi rethorica... Cosme Eu não admitto rethoricas em objecto tão sério como é o casamento! Olhem que educação fina a d'este anjo! Trepa ás arvores, atira aos passaros, e joga o páo! Que predicados estes tão mimosos para augmentarem as graças virginaes d'uma menina! Não lhe falta senão vestir-se de homem, que é agora o trajar das senhoras innocentes das novellas e dos dramas. Uma menina que enfia os seus pezinhos n'umas botas de canhão, e rompe com elles por umas pantalonas dentro, fica a recender um aroma suave de amores que nem açafétida! E hade a gente persuadir-se que mora uma alma muito candida e muito pura dentro do peito que se albarda com um paletó de homem para arrotar francamente umas phrases de bomba real que nos fazem comichões nos miolos e arrepios na espinha! Arreda! olha o que me estava reservado para os quarenta e seis annos! Uma mulher assim paralisava-me as funcções do intellecto, e lá se me iam as minhas ovações parlamentares! Primeiro que tudo, sou do meu paiz, devo-me á regeneração da minha patria, sou homem publico; e um homem publico quando se casa deve fazel-o com dama que o não impeça nem apoquente. A femea natural do homem politico é a politica; a esposa, para os homens devotados aos interesses materiaes do seu circulo, significa tão sómente um supplemento vivo e util ás commodidades domesticas. Percebe vocemecê, snr. Macario? Macario Ora se percebo! A minha mulher cá para mim tambem é um supplemento ha muitos annos; e mais eu faço-a trabalhar na politica enchendo os bilhetes de votos na eleição. Diz V. Ex.ª muito bem, que nós os homens publicos não temos tempo para cuidar de mulheres... _(Reparando em Frederico)_ Ahi vem o atheu... Cosme Vou-me safando que não quero palestras com este safio. _(Sáe.)_ SCENA VI MACARIO E FREDERICO Frederico _(encarando o outro com a costumada careta)_ O douto pharmacopóla está irado contra mim por que fui causa a interromper-se o escandalo do auto... Macario Eu não me metto com o senhor... Tenha a bondade de não embarrar cá por mim. Frederico A sciencia é sempre orgulhosa. Façamos pazes e alliança, snr. Macario Mendes. Eu, com a minha sciencia das coisas espirituaes e o snr. com a sua sciencia do bazalicão e do oleo de mamona, podemos dominar este concelho, reunidas as duas forças n'uma aspiração unica. Por que me faz guerra inexoravel e crua, snr. Macario? Que lucra em impedir o meu consorcio com a Morgadinha? Por que anda o snr. servindo de alcaiote d'este alarve de Guimarães, que é o trompão grandioso das maiores asneiras civicas assopradas na charanga parlamentar? O officio do snr. Macario, n'este negocio, desacredita um pharmaceutico, que reune ao conhecimento do gamão, sciencia não vulgar da historia dos doze Pares de França, e tem orvalhado com lagrimas os fastos sanguinosos de _Roncesvalhes_. Macario Vá mangar com o diabo que o leve... Eu lhe mostrarei brevemente quem é Macario Mendes... _(Sâe.)_ SCENA VII FREDERICO, JOÃO LOPES, E CABOS _(As cantadeiras que no fim do 1.º acto acompanharam a morgada entram a cantar a moda com que se fechou o dito acto:)_ _D'onde vens, ó velha,_ _Eu venho da feira_, etc. _(N'um intervalo da 1.ª á 2.ª trova João Lopes acerca-se de Frederico com disfarce)_ João Lopes Olhe, se foge, que o snr. vae levar pancada de crear bicho. Estão-se a preparar os valentões. _(Frederico apita rijo. Apparecem de differentes sahidas 6 cabos de policia que escutam Frederico, em quanto se repete a cantilena. Finda a cantilena, ouve-se fóra o rumor da desordem, e o estalido dos varapáos. As cantadeiras fogem alvoroçadas a dar gritos.)_ SCENA VIII FREDERICO, CABOS, UM DESCONHECIDO, E CAMPONIOS Frederico _(com intimativa bellica)_ Formem em linha. Carregar armas! Um cabo Estão carregadas. Frederico Vamos ser atacados pelos desordeiros. Á voz de fogo, atirem. _(Vê-se atravessar a scena por entre o povo um Desconhecido de chapéo derrubado, o rosto coberto por um lenço, de caraça, polainas de briche nas pernas e pés, com um grosso páo de choupa. Proximos de Frederico os valentões param, com os páos cruzados nas pernas, gingando em attitude ameaçadora. Frederico, não se desvia dos cabos. De repente, rompem de fóra uns poucos varrendo o campo a pauladas.)_ Frederico Cabos de policia, sentido! Preparar armas! _(Sáe perto da bocca da scena o Desconhecido. Encosta-se ao páo observando os movimentos dos valentões, os quaes vem já avançando, já recuando, crescendo sobre Frederico.)_ Frederico _(aos cabos)_ Aperrar armas! _(Uma paulada faz saltar a clavina das mãos d'um cabo. Os outros fogem. Frederico recúa, apitando rijamente. No maior aperto, o Desconhecido salta para a beira d'elle, descobre a choupa do páo, e arremette com os aggressores. Estes, forçados pela destreza, fogem, logo que o primeiro cáe d'uma paulada. A vozeria cresce no momento em que o palco está despejado. O Desconhecido trava do braço de Frederico, e o traz á bocca da scena.)_ Frederico Quem é o valente homem a quem devo a vida?! quem é? Morgadinha _(arrancando o lenço do rosto)_ Sou eu! salvei-te, Frederico! Frederico Ó morgadinha de Val-d'Amores! Tu!.. oh! tu!.. Como és ideal e angelica! _(Ajoelhando.)_ FIM DO SEGUNDO ACTO. ACTO TERCEIRO Salão da casa de Val-d'Amores. Mobilia antiga de couro de Moscovia. Reposteiros já envelhecidos com brazões. Alguns retractos. Um piano moderno. SCENA I PANTALEÃO E MACARIO Pantaleão Como eu lhe vinha contando, amigo e snr. Macario Mendes, minha filha, desde que começou a vestir-se á moda, e a tocar piano, está muito distrahida do troca-tintas do escrivão. Não anda por janellas, não sáe de casa, e gasta alegremente o seu tempo a tocar, a cantar e a vestir-se. Isto custa-me um dinheiro callado; mas dou-o por bem empregado. Macario E quem é que ensina a snr.ª morgadinha a tocar? Pantaleão É a mulher d'um sujeito que se estabeleceu ha pouco em Santo Thirso com loja de fazendas brancas... Macario Bem sei, bem sei. Pantaleão Foram lá as primas de Ruivães que fizeram a descoberta; mas o que tem muita graça é que o homem da mestra é tão ciumento que só a deixa ir a casas onde não ha homens... Macario Que tal pezêta é ella!.. Pantaleão E para vir aqui, pôz por condição que a mulher só viria á noitinha acompanhada pelo marido que a deixa á porta, e vem por ella duas horas depois. Eu estive quasi a não aceitar tal professora por saber que o escrivão de fazenda estava muitas vezes na loja do marido; e receei que ella fosse medianeira d'alguma carta... Macario E tem rasão, snr. morgado... Veja lá!.. olhe que o mundo é um covil de marotos! Pantaleão Não ha receio; que eu tratei de me informar, e soube que o logista pôz fóra da loja o velhaco do Frederico, por desconfiar que elle lhe trazia d'ôlho a consorte. Macario Não que sem licença d'elle não ha maior desmoralisação n'este mundo! Aquillo tem mesmo idêas de Sardanapalo! Ainda bem que lhe está por um fio a ladroeira da repartição... Pantaleão Conte lá isso então. Em que termos está a bernarda? Rebenta hoje ou ámanhã? Macario Hoje. Está tudo alevantado quando fôr nove horas. Os sinos hão-de tocar a rebate nas quatro freguezias mais chegadas, e o povo cáe todo sobre Santo Thyrso, e faz cêrco para que o escrivão não possa escapulir-se; que elle é leve como uma penna, e quando a gente mal se precatar, vê-o fazer vispre, zêpe-zêpe _(expressão sibilante para imitar a rapidez da corrida.)_ Pantaleão Se elle fugir, amigo Macario, deixal-o ir. Nada de o agarrar, que não vão os meus creados escadeiral-o e eu ter de o pagar por bom. O que eu desejo é que elle não appareça mais em Santo Thirso. Lá a respeito da papellada isso é queimal-a toda; que depois o governo como não tem cadernos para a cobrança dos impostos, não o manda para cá a elle nem a outro. Macario Grande idêa é essa, snr. morgado! E o governo faz uma economia bem boa. Se a gente fosse dando cabo dos empregados, ajudava o governo a fazer economias, porque depois não havia quem quizesse servir os empregos. O sytema é um bocado violento para os empregados, mas eu não vejo outro meio de os ir acabando... Pantaleão Não acho isso humanitario! Macario Meu caro amigo e snr. morgado, eu sou homem politico ha trinta annos, leio jornaes, e tenho feito muita somma de deputados; conheço por dentro e por fóra o paiz e as suas necessidades. Fique certo d'isto; em quanto se não der fim a uma casa a que os jornaes chamam _burrocracia_, não se indireita a patria. Pantaleão Como se chama isso? Macario _Burrocracia_, que pelos modos é palavra de idioma francez, que vem a dizer empregado publico. Pantaleão Snr. Macario, vá indo cá com as minhas idêas moderadas. O melhor systema de se acabar com os escrivães de fazenda é queimar os cartorios. Eu lhe ponho uma comparação. Se eu queimar a palha que tenho, e não comprar outra, que me acontece á minha parelha de machos? Morrem de fome, não é verdade? Macario Isso é. Pantaleão Pois ahi tem: os escrivães, em se lhe queimando os papeis, não tem que roer. Macario _(duvidoso)_ Nada; a comparação dos machos não me convence, queira V. Ex.ª perdoar. _(Com energia)_ Matal-os, matal-os, é o grande _desideratum_. Pantaleão E os papeis? deixam-se ficar? Macario Os papeis queimam-se, queimam-se as casas, queimam-se os escrivães! Nada de cataplasmas emolientes; o paiz o que precisa é causticos e ventosas. Pantaleão Ora vocemecê, snr. Macario Mendes, sabe que no cartorio do tal pulha está o processo da execução que a fazenda nacional me move... Macario Por seis contos d'uma fiança dos bens dos frades, sei muito bem... Esteja descançado, que não ha de lá ficar papel em que se amortalhe um cigarro. Pantaleão Quem é o chefe da revolução? Macario Á falta d'homens por hora sou eu; mas não sei a que os commandantes das freguezias decidirão. Já ouvi rosnar que elles querem acclamar V. Ex.ª general em chefe. Pantaleão Homem, tire isso da cabeça ás freguezias. Vocemecê bem sabe que eu ando muito adoentado dos intestinos, e não posso deixar de tomar o meu banho de canôa á noute. Dinheiro, sendo preciso, algum darei para a revolução; mas entrar nella em pessoa não posso por causa d'esta molestia dos reins que me não deixa cavalgar; e vocemecê bem entende que um general em chefe a pé não tem geito, nem pode vêr de longe o inimigo, se nos fôr necessario entrar em batalha com o exercito. Dispensem-me por tanto de tamanha honra. Macario Farei as diligencias; mas receio que... SCENA II OS MESMOS E A MORGADINHA _(A morgadinha traja na ultima moda, mas exageradamente. Vestido muito curto, sem alguma roda, apanhando-se-lhe cingido ás pernas; grande laço na cintura posteriormente; sapatos de salto dourado; cabelleira com estupendos tufos encaracolados.)_ Pantaleão Vens para o piano, Joanninha? Morgadinha _(pondo luneta d'oiro)_ Sim, papá, vou estudar a minha lição de escala. _(Senta-se ao piano.)_ Macario _(á parte, benzendo-se espantado do trajar da morgada)_ Que desmoralisação! Isto é o peccado em carne e ôsso! Pantaleão Está vocemecê admirado d'estas modas, amigo Macario! Macario _(ironico)_ São bonitas... _(Grave)_ Mas não acho isto decente para a observancia dos bons costumes. Morgadinha Que quer? é moda; andam assim todas as senhoras do tom. Macario Do tom? Sem tom nem som. As minhas filhas assim não hão de vestir, se Deus quizer. Morgadinha _(voltando o rosto com aborrecimento)_ Então as suas filhas são senhoras? Macario D'aquella massa se fazem, snr.ª morgada... Morgadinha _(dedilha nervosamente nas teclas)_ Adeus, adeus. Temos historia! Pantaleão _(a meia voz)_ Não a zangue... Deixe-a lá... Tomára eu que ella se entretivesse com os vestidos... Macario A cabeça... está feito, mas as pernas a vêr-se-lhe, snr.ª morgada! Assim não se podem observar os bons costumes... _(A Morgadinha canta acompanhando a escala, e desafina quando guincha as notas das oitavas altas. Macario Mendes, offendido pela desharmonia, faz caretas.)_ Pantaleão Ainda não sabes cantar modinha nenhuma, menina? Morgadinha A mestra não quer que eu cante modinhas; aprendo a escala que é o essencial. _(Repete a escala, e quando principia a desafinar, Macario despede-se, apertando a mão a Pantaleão.)_ Pantaleão Veja lá os meus papeis, snr. Macario. SCENA III OS MESMOS E JOÃO LOPES João Lopes _(trazendo castiçaes com luzes)_ Está na sala de espera a snr.ª mestra pianista e mais o marido. Morgadinha Está! Papá, é preciso sahir, tenha paciencia. Bem sabe que ella, se vir homem aqui, não entra. Pantaleão Está bom pedaço d'asno o marido! Então elle não sabe que eu sou um homem sério! Morgadinha Que quer o papá! Já lhe tenho dito que póde entrar segura de que não ouve palavra que a offenda; ella bem o sabe; mas o marido, se souber que a mestra fallou com um homem, seja elle quem fôr, não a deixa voltar. Pantaleão Com certos individuos tem elle rasão; mas nem todos são como o devasso escrivão de fazenda, que lhe andava a fazer a côrte á mulher, e por isso foi posto de lá para fóra. Acho justo que elle se acautele dos tratantes; mas de mim... parece-me bestialidade! Emfim cá vou. _(Sáe.)_ SCENA IV MORGADINHA, JOÃO LOPES E DEPOIS FREDERICO Morgadinha Póde entrar a snr.ª D. Thomazia. João Lopes _(para dentro, levantando o reposteiro)_ Póde entrar a snr.ª D. Thomazia. _(João Lopes sáe, assim que entra a supposta mestra. Frederico vestido de mulher, o rosto coberto de véo espesso, e cachos. Chapéu antiquado de orelhas, que lhe ajudem a cobrir a cara. Vae direito ao piano. Vê-se a cabeça de Pantaleão que espreita por uma fimbria do reposteiro. João Lopes tosse.)_ Morgadinha _(alto)_ Passou bem, snr.ª D. Thomazia!.. _(Baixo)_ Não me falles que meu pae está espreitando, em quanto João Lopes tossir... _(Tocam e cantam a escala, Frederico canta em falsete a duo. Desharmonia nas vozes.)_ João Lopes O snr. morgado já está no pateo a conversar com o marido do snr. Frederico; estejam á vontade que eu vou para o postigo da escada. Quando eu tossir, vejam lá... Frederico _(levanta o véo, abraçando o velho)_ Este João Lopes é um prodigio de dedicação! é o typo genuino do antigo creado portuguez! Se eu realisar os meus sonhos, João Lopes, você ha de progredir na escala das importancias sociaes... Eu hei de arranjar-lhe a você um habito de Christo! Morgadinha Deixa-o ir, deixa-o ir... _(João Lopes sáe.)_ Frederico _(tomando-lhe as mãos calorosamente)_ E os nossos sonhos vão realisar-se, minha fada! Oh! _(contemplando-a absorto)_ que deslumbrante! que eclipse estás fazendo nos anjos do céo! Não és só uma bellesa! és um milagre! uma gloria! uma divinisação! Não ouso beijar-te as mãos... Os pés, os pés! Estes pés requerem tapetes de labios e almofadas de corações! Consente que t'os beije, houri! Morgadinha _(desviando-se)_ Não sejas tôlo! Gostas de me vêr assim? Frederico Se gosto!.. Sinto delicias que atormentam, amor que me rescalda as fibras intimas do peito! Luz, luz que me cégas, faz-te lavareda, e... devora-me! Morgadinha Vamos ao caso... Como estão os negocios? Frederico Optimos. Logo que chegarmos a Lisboa, tenho a certeza de que será consagrado nos altares o nosso amor. Poderiamos evitar a fugida, requerendo tu a tua emancipação, visto que já contas vinte e seis annos; mas, como receias que eu seja assassinado logo que requeiras ao juiz, cumpra-se a tua vontade. _(João Lopes tosse. Vão sentar-se rapidamente ao piano, tocando e cantando a escala. Depois, a Morgadinha vae espreitar, em quanto Frederico toca uma valsa voluptuosa que obriga a Morgadinha a fazer alguns passos de dança. Frederico, arrebatado do donaire gracioso d'ella, ergue-se de mãos postas fazendo tregeitos de enlevado.)_ João Lopes _(mettendo a cabeça)_ Podem conversar, que elle passou para a tulha. Frederico _(com transporte)_ És divinamente grande nas minimas bagatellas da humanidade! Se lanças o pé quebradiço e chinez em attitude dançante, sacodes e impelles brazas á minha alma. O pavimento arde debaixo dos teus pés lindissimos. Tudo que fazes mata e aviventa. Como não serás esbelta, nos salões de Lisboa, princeza dos bailes, a rodopiar vertiginosamente nas valsas, nos cotillons, nos lanceiros, na doidice sublime em que ha um espadanar de felicidade por todos os póros! Ó Joaninha, deixa-me sonhar! _(Fixa os olhos espantados no tecto da platêa. Musica surda)_ A minha vida vae ser uma etherisação de todas as potencias espirituaes. Embriagado nas taças nectáreas do céo, viverei enlevado nos arrobos da minha embriaguez... Esse rosto em que se espelham as formosuras não vistas de Angelos nem de Raphaeis, será o meu Al-korão, porque o summo artifice escreveu ahi a suprema estrophe do seu poema. Quando os teus olhos se abrirem ao diluculo da manhã, vêr-me-has de joelhos a beijar os teus cabellos; quando os fechares, cansados de serem beijados, e as sedosas palpebras se cerrarem como conchas ciosas de suas perolas, eu me quedarei a teus pés velando que os sylphos amorosos da noite não ousem perturbar o teu dormir. Oh! Joanna, Joanna! _(Ajoelha-se-lhe aos pés. João Lopes tosse com maior força. A morgadinha adverte em vão Frederico que continúa no seu arrebatamento:)_ Abre-me aqui já o sepulchro, se em alguma hora hei de sentir-me orphão dos teus carinhos... _(Pantaleão ao fundo, erguendo o reposteiro.)_ Morgadinha Ah! Frederico _(sobresaltado)_ O diabo! _(Desce o véo. Canta qualquer aria conhecida no acto de ajoelhar, e cantando, diz perceptivelmente á Morgadinha:)_ Diz a teu pai que a mestra Para melhor te ensinar, Te está cantando uma ária Das que se usa cantar No Theatro de Lisbôa: Prega-lhe a pêta, que é bôa; E se esta nos não salva, Nada nos póde salvar. SCENA V OS MESMOS E PANTALEÃO Pantaleão _(ao fundo)_ Então que é isso? Morgadinha É a minha mestra que me está ensinando uma ária das que se cantam no theatro de Lisbôa. Pantaleão Ella tem a voz tão grossa! Não parece voz feminina! Morgadinha Ella canta na voz que quer.... Então o papá já se esqueceu que o marido d'ella... Pantaleão Está bom, está bom; eu vou-me embora. Lá estive conversando com o marido da senhora, e lhe disse que não tivesse ciumes que eu sou um velho!... Aquelle seu marido parece-me um doudo!.. _(Rindo)_ Ora andem lá, andem lá. _(Sáe.)_ SCENA VI FREDERICO, MORGADINHA E JOÃO LOPES A INTERVALOS Frederico Salvei-te ou não? Tu salvaste-me com a força, na romaria; e eu aqui, salvei-te com o genio! Vês como o amor me deu espirito n'um trance difficil? Fazes maravilhas de perspicacia e finura, tu, com a magia dos teus olhos, ó formosa! _(Ouve-se toque a rebate de sinos, que sôa de diversas longitudes. Rumôr longiquo de vozes.)_ Morgadinha Que será isto!? Ó João Lopes! João Lopes _(dentro)_ Que quer, snr.ª morgadinha? Morgadinha Sabes a que tocam os sinos? é fogo? João Lopes _(dentro)_ Fogo não me parece. Acho que é bernarda. Estou cá á janella a vêr se entendo a gritaria. Morgadinha Diz que é bernarda... Frederico _(alvoroçado)_ Horrivel! oh! horrivel! Isso bole sériamente comigo, comtigo, comnosco, com o nosso futuro, Joanna! João Lopes _(dentro)_ É revolução. Morgadinha Revolução! Frederico Não ouves a fatalidade que esbraveja? Terei eu de perder-te, archanjo? Morgadinha Qual perder-me! Importa-me cá a mim a bernarda! Hei de ser tua! Não temas, Frederico, que eu sou forte!.. João Lopes _(na scena)_ Já intendi o que elles dizem... Dão morras aos papeis, e que se queime o escrivão da fazenda... E trazem musica... Ouvem?... _(Ouve-se distinctamente, mas ainda longe, o hymno da «Maria da Fonte», á mistura com os «môrra!»)_ João Lopes O snr. morgado está na torre a ouvir. Agora bom será que o snr. Frederico se escape, senão desconfio que o matem, sendo aqui pilhado... _(Frederico apanha as saias na cintura para poder fugir. A Morgadinha agarra-o.)_ Morgadinha Não te deixo sahir agora, que é perigoso. Frederico _(muito inquieto)_ Morrer aqui, seria uma morte ingloria, Joanninha! Dá-me armas que eu quero defender-me com uma bravura digna de ti! Armas! armas! um revolver de doze tiros! Quero armar-me até aos dentes, e combater, e morrer gloriosamente ao teu lado! Morgadinha Frederico, tu estás maluco!.. Olha que elles não vem cá... Não percas o juizo! Frederico _(muito á tragica, alludindo ao estrondo da gritaria)_ Não vem? Vem! Escuta! escuta! Não ouves o bramido do tigre popular? Olha... é o leão que ruge, partidos os grilhões de respeito á lei! É a Libia e a Hircania a vomitarem féras! Olha o lago sujo como se levanta em vagalhões e como elles roncam! Morgadinha Vem então esconder-te, vem esconder-te! Frederico Não! Um homem não se esconde quando olhos como os teus são testemunhas de tamanha covardia! É mister ser heroe!.. Mas eu estou vestido ignobilmente! _(Arranca os vestidos mulheris: fica de quinzena; mas conserva o chapéo e os boucles)_ Agora, armas! armas! _(A morgada ri-se apontando-lhe para a cabeça.)_ Por que ris tu, mulher forte! porque ris tu, se fazes favor?! Morgadinha Tira a cartola e os cachos, meu amor. Vozes _(que sobrelevam o estrondo dos figles)_ Morra o escrivão de fazenda! morra! _(Grande catharro de João Lopes.)_ Frederico É chegada a hora! Dá-me um abraço, querida! Um abraço! e até ao reino eterno! As nossas nupcias são no céo!.. _(Aponta para o tecto e fica como extactico; em quanto a Morgadinha vae rapidamente dentro, e sáe com dous bacamartes de bocca de sino.)_ Morgadinha Aqui tens um bacamarte; defende-te, que eu te defenderei tambem! _(Ella aperra o bacamarte.)_ SCENA VII OS MESMOS, PANTALEÃO E JOÃO LOPES Pantaleão _(estupefacto)_ Que vejo? que é isto? como entrou este homem aqui? Frederico _(atirando ao chão o bacamarte)_ Venho offerecer-me á vingança de V. Ex.ª Morgadinha Meu papá, o snr. Frederico vem pedir-lhe a minha mão de esposa! Pantaleão Das duas uma: ou o senhor foge, ou é espatifado pelo povo! Frederico Não sei fugir: sei morrer. Pantaleão Mas vá morrer a casa do diabo; não quero que o matem aqui. João Lopes V. Ex.ª tem rasão; matal-o aqui é máo: o melhor é eu ir escondêl-o no meu quarto; por que, se o povo o achasse aqui a estas horas, os creditos da menina não ficavam com muita saude. Pantaleão Pois vae escondêl-o... some-o no inferno! Morgadinha Meu pae, se Frederico fugir, fujo eu; se elle morrer, morre sua filha, sua filha unica, a sua Joanninha, a luz dos seus olhos! Meu papá _(ajoelha-lhe)_ eu já não posso deixar de ser esposa de Frederico, e juro que sou d'elle na vida e na morte! _(Ergue-se: conduz Frederico pela mão, e ajoelha com elle)_ Dê-nos a sua benção, querido papá! Pantaleão Nunca! nunca! _(Ouvem-se fora as acclamações.)_ Morgadinha _(erguendo-se soberba)_ Então, não tenho pae! tenho só marido! Se o povo o matar, ha de vêr morrer-me ao pé d'elle... mas vingada!.. _(Lança mão do bacamarte)_ Que entre o povo! Pantaleão Em que apertos me vejo! Rebenta-me o coração!.. João Lopes _(muito commovido)_ Snr. morgado!.. Olhe que perdemos a nosa menina!.. Pantaleão _(a Frederico)_ Esconda-se n'aquelle quarto, homem... Depressa. Frederico Obedeço, por que m'o ordena o pae d'este anjo. _(Sáe com João Lopes.)_ SCENA VIII PANTALEÃO E A MORGADINHA Pantaleão Perdi a cabeça!.. Estou doudo... não sei o que vinha aqui fazer!.. Ah!.. onde está a pianista, que está alli fóra o marido á espera... Morgadinha A pianista?.. Pantaleão Sim, a pianista onde está?.. _(Olha para o chão, tropeçando no vestido de mulher)_ Que é isto? _(levantando o chapéo e os caracoes)_ Que é isto?! que é isto, Joanna?.. Morgadinha _(afflicta)_ Isso? Ah! meu pae, que eu morro, se me apoquenta muito!.. Pantaleão Então a pianista era... era o escrivão?!.. Morgadinha _(soluçando)_ Era, sim, snr.! Pantaleão Que sucia de tratantadas se passam n'esta casa!.. e eu a conversar com o patife do logista que se dizia o marido d'esse velhaco!.. Morgadinha É meu espôso... perdôe-nos... Pantaleão Tu és o demonio, mulher! Morgadinha Sou uma infeliz apaixonada... O meu papá, tenha piedade! Olhe que o Frederico é muito bom môço. Se não é fidalgo hoje, póde sêl-o ámanhã. O papá bem sabe que os fidalgos agora se fazem d'um dia pr'ó outro. Pantaleão Ergue-te, ingrata, que déste cabo de teu pae! _(Rompe a musica pelo interior da casa, com grande vozeria, tocando o hymno.)_ SCENA IX JOÃO LOPES, PANTALEÃO, MORGADINHA, MACARIO _(A musica, na vanguarda, ladeia para dar passagem a Macario vestido de official de ordenanças, mas com chapéo embicado. Traz uma espada empunhada, e outra debaixo do braço, seguem-no 12 commandantes subalternos, vestidos a capricho, uns com chapéo redondo e banda e dragonas, outros de barretina e niza. Um d'estes arvora uma bandeira de varias côres.)_ Macario Viva o snr. morgado de Val-d'Amores, general em chefe das forças populares do Minho! Vozes Viva! _(Cala-se a musica.)_ Macario _(á frente dos revolucionarios com enfaze oratoria)_ Snr. morgado! As forças populares de seis freguezias que ahi estão reunidas fóra no terreiro d'esta illustrissima casa, mandaram-me a mim, á frente dos seus doze commandantes que se acham presentes, declarar a V. Ex.ª que por voto geral foi acclamado general em chefe d'esta provincia. Eu lhes fiz um eloquente discurso para os tirar d'essa ideia, allegando com o meu gráo de pharmaceutico que V. Ex.ª soffria dos intestinos e d'outros incommodos intestinaes; mas elles não me attenderam e obrigaram-me a vir offerecer a V. Ex.ª a espada de general em chefe. Aqui está por consequencia esta valente espada que matou em 1810 muita somma de francez do Junot, e que ha de nas mãos de V. Ex.ª limpar este paiz de escrivães de fazenda e outros mariolas que nos desgraçam. Receba V. Ex.ª das minhas mãos esta espada e salve com ella a patria do snr. D. Affonso Henriques! Os commandantes Viva o snr. boticario! Viva! Macario Obrigado, valentes guerreiros! _(A musica executa uma marcha muito compassada. Macario caminha a passo solemne e cadencioso com a espada offerecida segura pela lamina, levando a sua na bainha. O morgado faz signal de que quer fallar. Silencio.)_ Pantaleão _(commovido)_ Snr. Macario Mendes, e mais Senhores! Grande impressão me fizeram as vossas palavras e não pude deixar de me commover... Estou realmente commovido, e sinto-me abalado com tanta honra; mas sinto muito dizer-lhe que as minhas doenças e outras desgraças me não permittem tomar o commando das valentes forças populares que representaes. Não posso, senhores, não posso. Se a fortuna me tivesse dado um filho, essa espada estaria já nas mãos d'elle. Morgadinha _(tirando a espada da mão de Macario)_ Está nas mãos de sua filha esta espada; e, como infelizmente, sou mulher, ha de haver um homem a quem meu pae chame filho, e elle será digno d'ella! _(Chamando) _Frederico! Frederico! SCENA ULTIMA OS MESMOS E FREDERICO Frederico _(ajoelhando diante da morgadinha)_ Sim! sim! recebo de vossas mãos, Senhora, a espada que ha de decepar as infinitas cabeças da hydra financeira! _(Espanto geral.)_ Macario Como se entende esta caranguejola, snr. morgado!? Pantaleão Snr. Macario... esse homem... vae ser... vae ser... Eu desmaio! João Lopes Vae ser o marido da menina... _(a Pantaleão)_ Faça favor de não desmaiar, por quem é! Frederico _(com vehemencia e fogo)_ E o marido da morgadinha de Val-d'Amores vae conduzir-vos á victoria, briosos populares! Eu vos ensinarei a calcar tyrannos! Auxiliado por vós, intrepidos filhos do norte, levantaremos o paiz das palhas pôdres em que o prostraram os comilões. Eu fallo assim, porque cada nação, nas horas criticas, tem o seu Vigor Hugo, o seu salvador por meio da rethorica. Vamos a elles, filhos da victoria! As nossas bandeiras desenroladas aos ventos das batalhas, dirão: Riqueza e Moralidade! Em menos de quatro annos de regimen moral, e dieta aos lambões, o paiz não deverá nada, e vós não pagareis um pataco de decima. Vozes Apoiado! Frederico Cidadãos! Eu tenho estudado profundamente as doenças de Portugal e pude descobrir onde está o cancro que nos róe. Ahi vae o meu programma: O meu systema é dividir o paiz em republicas confederadas, cada republica tem seu presidente de eleição popular, quero dizer, cada conselho governa-se a si, e não quer saber do conselho visinho. Não sei se me percebem... Macario Muito bem, entendemos muito bem. Frederico Por exemplo: Santo Thyrso fica sendo uma republica, que não tem nada com a republica de Famalicão, nem com a republica de Fafe. Nós cá vivemos com o que é nosso, fazemos as nossas despezas, e não damos nem vintem aos de fóra. Vozes Apoiado! apoiado! Frederico Aqui está o meu systema que ainda não lembrou a ninguem, e que é o resultado de quinze annos de estudo. Conseguido isto, não temos a sustentar tropas, _(Apoiados)_ nem as estradas por onde andam os outros, _(Apoiados)_ nem theatros onde os outros se divertem, _(Apoiados)_ nem escrivães de fazenda. _(Apoiados)_ E declaro que me dou já por demittido do meu logar, e levanto minha voz auctorisada bradando: Guerra e morte a todos os escrivães de fazenda! _(Os populares desembainham as espadas, e bradam: «guerra de morte!»)_ E, portanto, senhores, beijo esta espada, e leio na sua lamina, os novos destinos que vão alvorecer para Portugal! Recebi-a da mão do anjo protector das nossas tremendas batalhas! E concedei, cidadãos, que essa bandeira seja arvorada nas mãos da Judith lusitana! Não mais cahirá aos pés de vencedor algum o estandarte que foi consagrado pela filha d'este honrado fidalgo! _(Frederico, tem passado a bandeira á Morgadinha, a qual se colloca de maneira que o pae fica entre ella e Frederico.)_ Bravos sycambros de Santo Thyrso! agora, á victoria, á victoria que a patria nos chama! Está inaugurada a republica confederada de Santo Thyrso! Toque o hymno! _(Os musicos executam. Frederico florea a espada com arrebatada bravura. A morgadinha agita a bandeira. Os commandantes fazem tambem seus ademanes de valentões. João Lopes sentado com os queixos entre as mãos contempla tudo aquillo. Corre o panno.)_ FIM. * * * * * ENTRE A FLAUTA E A VIOLA ENTREMEZ EM UM ACTO PERSONAGENS ANICETO DA SILVA, pae de VICTORINA. GUTERRES ARTHUR DE MIRAMAR. JOSÉ PIMENTA. UM CREADO. ACTO UNICO Salão de estalagem em Barcellos. Quartos numerados desde 1 a 12, occupando os lados, e parte do fundo. Um d'elles o n.º 10 tem sobranceira á porta uma vidraça ou bandeira. Sobre um canapé de palha está uma viola francesa. SCENA I _(Ao erguer o panno vem entrando Aniceto e Victorina precedidos de um creado com dois saccos de noute e castiçal.)_ ANICETO, VICTORINA, CREADO Aniceto Vamos a saber: temos dois quartos limpos e camas asseadas onde se passe a noute? Creado Háde haver. Aniceto Ha de haver?! Pergunto se ha. Creado Faça favor de entrar aqui para o n.º 6; e acolá defronte está o n.º 10 tambem de vago. _(Põe a bagagem dentro dos quartos.)_ Aniceto Então os outros estão occupados? Pelo que vejo reuniram-se muitos viajantes em Barcellos. Teem bom gosto! Quem está hospedado cá? Creado Nos n.os 1, 3, 5, 7 e 9 estão as snr.^as fidalgas de Lanhoso, que são seis velhas. Aniceto Que faz por aqui esse mulherío? Creado Vão para os banhos da Povoa. V. S.ª faça favor de fazer pouca bulha que ellas recommendaram-me todo o socego, que queriam dormir. Aniceto Pois que durmam. Ora que me importa cá a mim as fidalgas de Lanhoso! Creado V. S.ª toma alguma cousa? Aniceto Queres chá, Victorina? Victorina Não quero nada. Quero deitar-me, que estou moída. O meu quarto é aquelle? _(Apontando para o 10.)_ Aniceto _(indo examinar o quarto)_ Para onde deita aquella janella? Creado Para o quintal. Aniceto _(indeciso)_ Para o quintal? está bom... Vá... Vae-te deitar, menina. _(Ao creado)_ Vá você buscar outra luz. _(O creado sáe.)_ SCENA II ANICETO E VICTORINA Victorina Boas noutes, meu pae. Aniceto Boas noutes. Se fôr preciso alguma coisa, bate na porta trez palmadas. Victorina Ai! _(Gemido longo.)_ Aniceto Deixemo-nos de ais, Victorina. Juizo, juizo e juizo! _(Victorina recolhe-se. O pae fecha a porta, e tira a chave.)_ SCENA III ANICETO E O CRIADO QUE VEM COM O CASTIÇAL Aniceto Diga-me cá vossê... Creado Meu amo, que manda? Aniceto Por aqui é tudo femeas, ou tambem ha machos? Creado Machos?! Aniceto Sim, homens! Se estão homens n'estes quartos. Creado Já disse que não, meu amo. Não ha homens. Aniceto Da banda do Porto não veio passageiro nenhum? Creado Não snr. Aniceto Está bom; dê cá você a luz e vá-se embora. Ás 7 da manhã, chame-me se eu não estiver a pé, ouviu? Creado Sim snr. _(Aniceto recolhe-se, e fecha-se por dentro.)_ SCENA IV GUTERRES E O CREADO Guterres _(com um sacco de viagem)_ Olá, Gregorio! Creado Por cá, snr. Guterres! Como está V. S.ª? Guterres Bom. Ha quarto? Creado Hade haver. D'onde vem? Guterres Da Povoa. Venho no rasto d'uma mulher divina que veio n'um carro. Está cá? Creado _(rindo)_ Ora V. S.ª que ha de sempre andar atraz de mulheres! Com esta é a setima vez que o vejo n'aste fadario! E o maganão sabe-as escolher! Guterres Então viste-a, viste-a? Boa de lei, eim? Onde está ella? Creado Alli no n.º 10. Guterres Alli? Oh! que perola se esconde n'aquella feia concha! Quem dirá que o meu ideal sonhado ha trinta e seis annos está na estalagem de Barcellos! Alli! n'aquelle antro! Creado Sempre V. S.ª está um poeta d'aquella casta! Lembra-se da filha do regedor de Guilhabreu que cá esteve na festa das Cruzes ha cinco annos? Guterres Lembro. Era uma trigueirita d'olhos pretos... Creado E os versos que V. S.ª lhe botou? a gente sempre se ria... Guterres Ah! vocês riam-se dos versos? Tens tu a felicidade bestial de te rires da poesia? O talento póde contar com o couce até em Barcellos... Ora vamos... onde tenho eu quarto? Creado _(indicando-lhe um do fundo)_ Está alli o n.º 11. Guterres Bem. Podes ir. _(Entra na alcova. O creado sáe.)_ SCENA V ANICETO SAINDO COM O CASTIÇAL EM PUNHO Não posso adormecer com a idêa de que ha uma janella no quarto de Victorina. Aquelle maldito não me deixa socegar em parte nenhuma. Receio que elle me siga por que o lobriguei quando passávamos em Vallongo; e ella tambem o viu. Quem me diz a mim que o tratante nos não persegue, e anda á volta da casa? Cuidar aquelle valdevinos que se pôde com uma flauta arranjar uma rapariga com fortuna! Ha dous annos que minha filha está enfeitiçada por um trocatintas d'um estudante que conseguiu seduzir o coração d'uma menina que regeitou os melhores casamentos de Penafiel e Amarante! Afinal, não hasde vencer, sarrafaçal! Eu tolherei todos os teus calculos. Não me pilharás descuidado um instante! Mas aquella janella assusta-me. Vou fazer mudar Victorina para o meu quarto. _(Olhando para o alto da porta)_ E de mais a mais esta porta tem vidraça em cima. Se elle aqui entrar, ella póde vêl-o d'alli... Que imprudencia eu ia commettendo! _(Bate a porta)_ Victorina, Victorina! Victorina _(dentro)_ Quem é? Aniceto É teu pae. Já estás na cama? Victorina Não, snr. Aniceto Que estás a fazer? Victorina Nada. _(Dando volta á chave.)_ Aniceto Nada? Posso entrar? _(Áparte)_ Lá está ella a descer a vidraça. _(Alto)_ Posso entrar? Victorina Póde. Aniceto Estavas á janella? SCENA VI ANICETO E VICTORINA SAHINDO DA ALCOVA Victorina Ai! Aniceto Que estavas a fazer na janella? Victorina Ora o pae tem manias! Credo! que havia de eu fazer na janella! Estava a tomar a fresca. Não tinha somno, não podia dormir, estava muito afflicta, muito opprimida, muito abafada, abri a janella, ai! Aniceto Pois sim, sim, minha menina. Assim será; mas troquemos os quartos. Vae para aquelle, que eu vou para este. Dá cá o teu sacco de noute. Vamos. Leva o castiçal. Dá-me o meu sacco. Muito bem. Agora entra... Victorina _(entrando)_ Oh céos! Aniceto Sim, sim. _(Fechando a porta, e tirando a chave)_ Agora vou descançado. _(Recolhe-se.)_ SCENA VII GUTERRES _(Caminhando contemplativo com o castiçal em punho e os olhos postos no quarto d'onde sahiu Victorina. Pousa o castiçal.)_ Ella alli está, a formosa como a rolinha adormecida com o bico debaixo da aza; e eu venho aqui dar pasto ao coração;... mas que pasto tão pouco nutriente! Pobre poeta! todo o teu alimento são esperanças! Em quanto a gente prosaica se embrutece com timbaes de pombos e pasteis de camarão, tu, poeta _(batendo no peito)_ engoles timbaes de esperanças com pasteis de sonetos. Eu já sou do tempo em que um homem de genio amava com o auxilio dos sonetos, e fazia consistir toda a sua gloria de fino amante em gargarejar ternuras para um terceiro andar e recolher-se a casa com o coração a trasbordar de catarro. Hoje não. Os anjos actuaes se apparecem de noite á janella é para namorar a lua, ou vêr a cauda d'algum cometa. Desde que entrou a moda do amor ideal, os olhos d'uma senhora, que conversa com as estrellas, não descem a procurar na rua um d'estes amadores fanhosos, que só se sentem inspirados e eloquentes na occasião em que a patrulha os não deixa fallar. Eram d'uma paciencia adoravel as donzellas de ha vinte annos, quando em meu coração rebentavam as primeiras flôres!.. Que sensaborias a gente lhe disparava lá para cima, e a sancta resignação com que a gente as ouvia a ellas! A virtude d'aquelle tempo só se explica bem pela temperatura de sorvete em que os corações se conservavam de parte a parte. Isto agora é outra coisa. Um homem sente no peito o progresso material. Aqui dentro ha gaz, ha vias-ferreas, ha fio electrico, ha balões, ha petroleo, ha tudo quanto é fogo, energia, rapidez, etc. Eu cá pelo menos sinto isso tudo; conheço que remoço, que amo e que ardo. Tenho phosphoros e ácido prussico aqui dentro. _(batendo no peito)_ E esta mulher! Como eu amo esta mulher desde que a vi hontem na Povoa de Varzim! Eu, na minha qualidade de escrivão do juiz eleito, estava a escrever n'um processo, quando ella passava luminosa e radiante como uma aurora boreal. Larguei o processo como largaria um sceptro, se fosse rei. Segui-a; vi-a jantar á meza redonda do hotel portuense. Comeu apenas uma aza de borracho e meia banana. Que estomago tão fino! É que alli está um coração immenso cheio de ternura e com mais poesia que um livro de versos. Sahiram, e eu segui-os. Vi entrar o pai n'um escriptorio de viação e comprar dous bilhetes. Perguntei para onde iam os passageiros; disseram-me que para Barcellos. Pedi bilhete; mas não havia. Ó desventura! que farei? ficar? não! Ha fatalidades invenciveis, funestissimas! Esta mulher tem o meu destino nas suas mãos; disse eu comigo. Cumpre-me seguil-a. Mas que farei? Não ha bilhete. Embora. Alma de poeta, exclamei eu, não succumbas! Heroicidade na desgraça, homem de coração de bronze! Segue-a! segue-a! Fui alugar um garrano, e segui-os a galope, terra a terra, a rédea solta, receando a cada passo que o coração e o garrano me rebentassem. Aqui estou. Ó mulher, mulher quem és tu? Ave do paraizo, que estás sonhando delicias do teu Éden, lembra-te, ó Eva, que és costella do homem, e que está aqui Adão digno de ti. _(Repara na viola.)_ Uma viola franceza! _(Pega d'ella e corre-lhe as cordas.)_ Está desafinada. Oh! que saudades me tu fazes, instrumento interprete das minhas paixões infantis! Que trovas eu descantava em noites de lua cheia ao arpejar dos teus bordões que gemiam comigo! _(Pensativo)_ Quem sabe? _(vai afinando)_ Quem sabe? Se tu fizesses o milagre, ó lyra das canções apaixonadas! Vamos! é o fado que me impelle; mas não vou tocar o fado. Inspira-me, coração, umas trovas dignas do anjo que alli está dormindo. _(Avisinha-se da porta, onde presume que está Victorina, e preludía com tregeitos de vate que invoca a inspiração do céo, e canta)_: (MUSICA DA «ALTEA, MIMOSA ALTEA») Se tu soubesses, lindinha, Quanto é grande o meu amor Não dormiras descançada Quando eu morro aqui de dôr. _(Allegro)_ Acorda menina, Não durmas agora, Em quanto se fina De dôr quem te adora. Eu na Povoa descuidado Já não sentia disvelos, Eis que surges luz brilhante, E eu te sigo até Barcellos. Acorda, menina, Não durmas agora, Em quanto se fina De dôr quem te adora. SCENA VIII ANICETO E GUTERRES _(Aniceto abre a porta, e sáe de barrete de dormir e rob-de-chambre, com a luz na mão. Guterres recúa espavorido.)_ Aniceto Passasse muito bem. Guterres Viva. Aniceto Eu já vi o senhor se não me falha a memoria. Guterres Sim, senhor, já tive a honra de jantar na meza em que V. S.ª estava na Povoa. Aniceto É verdade. Pois snr., V. S.ª canta e toca muito bem; n'outra occasião muito lhe agradecerei o prazer de o ouvir; mas agora pedia-lhe o obsequio de se calar, porque tenho de seguir amanhã viagem e preciso dormir... Guterres Pois não, senhor! Eu deponho já o instrumento importuno. Aniceto Agradeço muito a sua delicadeza. Se não fosse indiscreto, perguntaria com quem tenho a honra de fallar? Guterres Sou Guterres Arthur de Miramar, para o servir. Aniceto Então é estrangeiro? Esse nome não me parece de cá. Guterres Sou portuguez nascido e baptisado na Povoa, onde exerço funcções publicas. Aniceto Ah! exerce funcções publicas? Esse emprego deve ser bem bom. Guterres Soffrivel; mas vivo mais do espirito que do funccionalismo. Sou homem de bastantes lettras. Aniceto Ah! de bastantes lettras? então é capitalista... Eu tambem trago um pouco de dinheiro em descontos... O juro por aqui como regula? Guterres O juro? está favoravel. Um amigo meu empenhou o relogio a doze por cento ao mez. V. S.ª é do Porto? Aniceto Não senhor, sou de Penafiel, onde sou bem conhecido por Aniceto da Silva. Guterres Oh! pois não, snr. Aniceto! E anda pelo Minho a divertir-se com sua ex.^ma filha? Aniceto A divertir-me não... Isso são contos largos... se V. S.ª por aqui estiver ámanhã, conversaremos. Agora boas noutes, que são horas de dormir. Guterres Tem razão, tem razão... Boas noutes. _(Aniceto fecha-se.)_ SCENA IX GUTERRES Ora ahi está a deidade, que eu eternizei nos meus versos! As esperanças de muitos poetas, quando se realisam, são pouco mais ou menos como esta. Este Aniceto, offerecendo-se aos meus devaneios d'alma, é uma imagem que eu tambem offereço como lição a todos os poetas. _(Vê-se um encapotado ao fundo, com chapéo de aba derrubada)_. Mas, a final, onde é que está a filha? Foi o velhaco do creado que me enganou! É o couce da proza que bateu no peito da poesia. Filha de Aniceto, onde quer que estejas, eu te offereço este calix d'amargura, e boas noutes. _(Vai a recolher-se ao quarto.)_ SCENA X JOSÉ PIMENTA E GUTERRES Pimenta _(rebuçado)_ Boas noutes. Guterres _(suspendendo-se)_ Boas noutes. Pimenta Quem é o senhor? Guterres Não respondo a encapotados de melodrama. Destape-se. Pimenta _(deixa cair as bandas do capote)_ Eis-me. Guterres Eis-me o que? Cada vez o conheço menos. Pimenta O senhor fallava agora aqui em filha d'Aniceto. Que ha de commum entre o senhor e a filha de Aniceto? Guterres De commum de dois? temos questão grammatical ou phisiologica? Pimenta Que tem o senhor que ver com ella? Guterres Que tenho que ver com ella? Ha muita cousa que ver: por exemplo, Barcellos, o rei dos tambores, V. S.ª etc. Falta elle que ver... Pimenta O senhor sabe que da zombaria ao rewolver não ha mais que um passo? Guterres _(sorrindo)_ O senhor figura-se-me um patusco bastante tragico. Um tyranno em Barcellos não póde ser melhor nem peor que a sua pessoa. Como se chama, posso saber? Pimenta Sou José Pimenta. Guterres Pimenta? por isso o senhor é tão cálido!... Eu sou de apellido Mira-mar. Tenho uma alma larga e fresca como o oceano. Saibamos: o senhor namora a filha d'este Aniceto? Falle franco, que tem em mim um coração de poeta e um respeitador dos direitos adquiridos. Ama a tal pequena? Pimenta Amo. Guterres Tambem eu. Pimenta Tambem o senhor? Guterres Tambem eu; mas ha uma differença entre nós, e vem a ser que ella a mim não me conhece, e provavelmente ao senhor ama-o. Pimenta Tenho provas d'isso. Guterres Tem? _(Solemne)_ O senhor sabe que esmagou n'este momento um dos mais romanticos corações que batem em peito de homem? Sabe que espezinhou as florinhas d'um amor nascente que burbulhavam na charneca d'esta alma? _(concentra-se)_ Coragem! Deixe-me saborear voluptuosamente o meu fel. E então o senhor vem aqui fallar-lhe? Sabe que ella está... Pimenta _(apontando para o quarto de Aniceto)_ Sei que está alli no N.º 10, que m'o disse o creado da hospedaria. Guterres _(apontando)_ Alli? Pimenta Alli sim. O senhor tambem o deve saber. Espere... _(reparando na vidraça sobranceira á porta.)_ Vejo um vulto de cara por detraz d'aquelles vidros.. O senhor não vê? Guterres Sim, eu vejo lá o que quer que seja. Pimenta É ella que me conheceu a voz. Quer outra prova? Guterres Não senhor, estou satisfeito. Aquella mulher é sua. Sou magnanimo até aqui! Pimenta Se me fosse possivel subir á altura da vidraça! Alli está uma mêza. O senhor guarda segredo? Não revella este arrojo d'um amante apaixonado? Guterres O senhor chama a isso arrojo? Arrojo seria o snr. Pimenta quebrar os caixilhos das vidraças e passar-se lá p'ra dentro. Póde fazêl-o que eu não digo nada. Pimenta _(attento nos vidros)_ É ella. É o anjo! Lá está o rosto amado! Guterres Vá, não perca tempo. Dê-lhe um beijo envidraçado. _(Pimenta aproxima uma banca da porta; sobe, e, ao chegar a cara aos vidros, Aniceto parte a vidraça com um murro, e põe fóra a cabeça.)_ Aniceto Ah cão! Pimenta _(saltando)_ Traição! traição! _(Ouve-se o rodar da chave. Pimenta foge.)_ SCENA XII ANICETO E GUTERRES _(O palco escuro)_ Aniceto _(correndo para Guterres)_ Ainda aqui estás, ladrão! Guterres _(accendendo um phosphoro)_ Olhe que está enganado, snr. Aniceto. Suspenda-se. Veja que eu sou o funccionario da Povoa, Guterres Arthur. _(Continúa a accender phosphoros.)_ Aniceto Mas eu vi a cara do meu algoz atraz d'aquella vidraça. Onde está o scelerado, o canalha do flautista? Guterres Elle toca flauta? São fataes os flautistas... Aniceto Transtornou a cabeça de minha filha o infame... Onde está elle? Guterres Safou-se. Os phosphoros acabam-se. Eu vou buscar uma vela ao meu quarto. _(Engana-se, e vae querer abrir o quarto de uma das fidalgas, que exclama de dentro.)_ Voz de velha Quem está ahi? Guterres Enganei-me. Voz Um homem! que desafôro! um homem! Guterres Perdão, minha senhora; não grite tanto. V. Ex.ª parece-me bastante velha pelo metal de voz, e não deve recear-se de homens. Voz Que escandalo! um homem! a empurrar a porta do quarto de uma senhora... Guterres Não se assuste. V. Ex.ª em guerra de paixões é paiz neutro. Esteja socegada. Durma. _(Engana-se novamente com a porta d'outra fidalga.)_ Voz Quem bate? quem anda aqui, mana? Guterres Cá está outra inviolavel. Não é nada, minha senhora. A mana não teve perigo. Aniceto _(sahindo com uma luz do seu quarto)_ Aqui está luz. Venha cá, snr. Miramolim. Guterres Miramar, se faz favor. Aniceto Que me diz á perseguição d'este facinora? O senhor não lhe disse que eu estava n'este quarto? Guterres Nada, eu não lhe disse coisa nenhuma. Eu bem vi que o senhor estava a espreitar pelos vidros; mas como elle disse «lá está o rosto amado» cuidei realmente que o rosto amado era o da sua pessoa. Não se afflija. O caso tem remedio. Trate a doença de sua filha pelo systema homoeopathico. _Similia similibus._ Sabe latim? _(Signal negativo)_ Quer dizer: cura-se a molestia com a mesma droga que a faz, percebe? quer dizer: a doença de sua filha é causada pelo tal sujeito, não é? _(Signal affirmativo)_ Pois _similia similibus_ arranje-lhe outro similhante. Aniceto Dois? tomára eu desfazer-me d'este. Guterres Outro marido, percebeu? Aniceto Percebi, sim, senhor; mas eu não acho que a minha filha tenha necessidade de casar com este nem com o outro. Guterres _(com enfaze e rapidez)_ Snr. Aniceto, a natureza tem direitos inauferiveis. Ha periodos fataes no fluido nervoso que repellem toda a violencia, e a não soffrem sem que a especie seja deteriorada por transtornos contrapostos ás evoluções palyngenesicas da reproducção genesiaca, resultando d'ahi que as evoluções abafadas disparam em atrophia do sensorio e outras aberrações de graves consequencias: o senhor percebe, eim? Aniceto As aberrações curam-se com uma boa bengala, snr. Miramolim. Guterres Miramar, se faz favor. Vejo que V. S.ª não entendeu. Sua filha ha de dar-lhe grandes penas e trabalhos, se não tiver em quem empregar a actividade do seu coração: percebeu agora? Aniceto Muito bem. Aconselha-me então o senhor que lhe procure marido. Guterres E quanto antes. Aniceto O senhor é solteiro? Guterres Sou, sim senhor, porque? Aniceto Quer casar com minha filha? Guterres _(com gravidade)_ A sua filha, snr. Aniceto, é uma imagem que me sorria nos meus sonhos antes de a conhecer. Eu amo-a com este coração de anjo que tenho; e, se eu já não fosse poeta, os olhos d'ella fariam de mim um Camões d'occasião. Mas a sua pergunta á queima-roupa é um choque tal de felicidade que me burrifica. Deixe-me tomar ar. Ha commoções de alegria que achatam os bofes e sacodem todas as visceras d'um homem. Aniceto Não ha tempo a perder. Quero livrar-me da perseguição d'este bandido da flauta. Se V. S.ª annue, vamos sahir immediatamente de Barcellos, e onde podermos parar em paz e socego trataremos do seu casamento com a minha Victorina. Eu vou chamar minha filha. Quero que ella o veja e ouça fallar. Guterres Não, senhor. Isto de casamento é um acto sério e solemne. Corações apanhados de surpreza não me servem. A mulher, que houver de ser minha, hei de conquistal-a palmo a palmo com as armas do sentimentalismo poetico. Logo que eu conhecer que consegui apaixonar sua filha, então a contemplarei como objecto matrimonial. Eu sobretudo, snr. Aniceto, sou poeta. Aniceto Então que é preciso? Guterres É preciso que ella me ame espiritualmente. Eu vou principiar os meus primeiros ensaios no coração de sua filha empregando os expedientes sentimentaes. Aniceto Que vae o senhor fazer n'esse caso? Guterres V. S.ª não me disse que sua filha se apaixonara pelo tal Pimenta em consequencia de elle tocar flauta? Aniceto Foi isso. Guterres Pois eu vou empregar tambem a musica. Póde ser que esta menina tenha a alma lyrica e philarmonica e que o seu coração só possa ser abalado instrumentalmente. Faz-me o snr. Aniceto o favor de recolher-se ao seu quarto, e esperar lá os phenomenos que se forem operando na sensibilidade de sua filha? Aniceto Sim senhor, eu cá vou esperar os phenomenos. _(Recolhe-se.)_ SCENA XIII GUTERRES _(só)_ _(Guterres pega da viola, preludía, aproxima-se do quarto de Victorina e canta em postura de inspirado)_ Eu na Povoa descuidado Já não sentia disvelos; Eis que surges, luz brilhante, E eu te sigo até Barcellos. Acorda, menina, Não durmas agora, Em quanto se fina De dôr quem te adora. Victorina, escuta os hymnos, Que te canta o meu amor; Escuta os versos divinos, De Guterres, trovador! Acorda menina, Não durmas agora, Em quanto se fina De dôr quem te adora. _(Escutando declama:)_ Ella não se bole. Parece-me que a ouço resonar. É a belleza que ronca nos seus sonhos innocentes. _(Reparando em José Pimenta que vem entrando)_ Temos chinfrim. SCENA XIV JOSÉ PIMENTA, GUTERRES, VICTORINA, NO QUARTO E DEPOIS NA SCENA, ANICETO MAIS TARDE, E O CREADO _(José Pimenta entra embuçado, medindo os passos á tragica. Chega ao meio da scena, arroja o chapéo, deixa cahir a capa, cruza os braços, relançando um olhar sinistro. Depois tira da algibeira interior d'uma jaqueta de pelle os canudos d'uma flauta, liga-os, dá dois passos á frente, e com a maior solemnidade toca a aria da Sombra de Nino, da Semiramis. Guterres tem passado com a viola para o outro lado, e faz menção de se defender com uma cadeira, em quanto o outro não toca. Victorina, assim que José Pimenta tem tocado a primeira parte da aria, começa aos empurrões á porta.)_ Victorina _(dentro)_ Josésinho, Josésinho, eu estou aqui. Acode-me, salva-me! Arromba esta porta! _(Aniceto rompe do quarto com os braços no ar, a tempo que Victorina faz saltar a fechadura e corre aos braços de José Pimenta, exclamando:)_ José, José, quero morrer nos teus braços. Ai! _(Desmaia nos braços d'elle.)_ Aniceto _(ao creado que tem entrado com a luz)_ Você faz favor de me ir chamar o regedor? chame-me as auctoridades todas. Ah grande facinora, cuidavas tu que em Barcellos não ha justiça que vingue um pae? Guterres Snr. Aniceto, não mande chamar as auctoridades. Nada de escandalos inuteis. Agora conheço que a chaga da sua filha só póde ser curada com o pêllo do mesmo... do mesmo José Pimenta. Não ha duvida que o coração d'esta menina está magnetisado pela musica; mas o que é certo é que a propensão d'ella não é a viola. A alma d'esta senhora inclina-se para instrumento de sopro. Não é assim, snr.ª D. Victorina? Faça favor de voltar a si para responder, e desmaie depois se quizer. _(Ella abre os olhos)_ É verdade ou não? Victorina Ai! _(Aniceto cáe prostrado n'uma cadeira á boca da scena.)_ Guterres _(a Pimenta)_ O senhor não tem habilidade senão para a flauta. Aproveite a occasião e vá com a pequena ajoelhar-se aos pés do velho. Andem para diante. _(Empurrando-os)_ Parece que nunca estiveram no theatro! Pimenta e Victorina _(ajoelhando)_ Meu pae! piedade! Aniceto _(erguendo-se de impeto)_ Oh! _(Grito rouco e prolongado; com os braços affasta tragicamente da vista o espectaculo dos dois que se ajoelharam.)_ Guterres Snr. Aniceto, deixemo-nos de attitudes. Abençôe a união d'essas creaturas. Deixe-os casar; alegre-se com a esperança de que ha de ainda vêr meia duzia de netos a tocarem flauta; e meia duzia de netas, com o genio de sua mãe, amando uma orchestra de sujeitos distinctos desde a trompa até á corneta de chaves. Vamos, volte o seu semblante misericordioso para os propagadores da sua individualidade tipica. Aniceto Levantem-se d'ahi! _(Erguem-se submissos.)_ Guterres Bem; estão os senhores absolvidos. Parabens. Ó snr. Pimenta, eu creio que algum serviço lhe fiz, provocando com esta viola o poder fascinador da sua flauta. Em recompensa, faça-me o senhor o favor de dizer se foi realmente com a aria da Sombra de Nino que enfeitiçou esta sympathica joven? Pimenta Esta aria era a senha com que os nossos corações se entendiam. Guterres Ah! sim? Eu quero tocar isso no violão; vou experimentar o effeito d'essa aria no coração de certas pessoas que costumam arrebatar-se fascinadas pela minha voz de tenor. _(Tange na viola o acompanhamento da Sombra de Nino, e canta:)_ Pobre poeta, ninguem te preza, Pobre poeta, ninguem te quer; Nem co'a viola tu conseguiste Mover o peito d'uma mulher. _(No intervalo de uma quadra á outra. A José Pimenta)_ Isto vae bem? _(Faz na viola escalas sobre os bordões.)_ Mas não importa; vença a flauta A sympathia das fracas almas; Que eu antes quero, meus bons amigos, O vosso affecto e as vossas palmas. FIM. Os direitos de representação das duas comedias que formam este volume pertencem ao auctor. Porto, 3 de Fevereiro de 1871. CAMILLO CASTELLO BRANCO. *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A MORGADINHA DE VAL-D'AMORES/ENTRE A FLAUTA E A VIOLA *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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