The Project Gutenberg eBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 04 (de 12) This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº 04 (de 12) Author: Camilo Castelo Branco Release date: April 21, 2008 [eBook #25114] Most recently updated: January 3, 2021 Language: Portuguese Credits: Produced by Pedro Saborano *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR. Nº 04 (DE 12) *** Produced by Pedro Saborano BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR POR Camillo Castello Branco PUBLICAÇÃO MENSAL N.º 4--ABRIL LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON 96, Largo dos Clerigos, 98 PORTO EUGENIO CHARDRON 4, Largo de S. Francisco, 4 BRAGA 1874 PORTO TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA 62--Rua da Cancella Velha--62 1874 BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA NOITES DE INSOMNIA SUMMARIO O cofre do capitão-mór--O jogador--Inedito do poeta Fr. Bernardo de Brito--Lisboa--Litteratura brazileira--Á «Actualidade»--A ex.^ma madrasta d'el-rei D. Luiz 1.^o calumniada--Os salões, pelo exc.^mo snr. visconde de Ouguella--O decepado--Caridade barata e elegante--Profunda reforma nos costumes da via-ferrea portugueza--Formosa e infeliz--Antonio Serrão de Castro O COFRE DO CAPITÃO-MÓR O homem, concluida a guerra do Paraguay, liquidou quinhentos contos, e retirou-se com esposa e filha para Mondim de Basto, sua patria. Passou, acaso, um dia por perto das ruinas de um casarão, reparou na pedra de armas que encimava um vasto portal de quinta, e perguntou de quem eram aquelles pardieiros. O abbade, a quem a pergunta era feita, respondeu: --São da fazenda nacional, que se está cobrando, ha trinta e dous annos, de uma divida antiga de impostos e respectivos juros e custas. --E, depois que a fazenda nacional estiver embolsada, de quem é isto? --Veremos a qual dos credores a lei dá a primazia--tornou o abbade. --Acho que os donos d'estes pardieiros eram fidalgos, porque tem armas reaes á porta--volveu o brazileiro pouco versado em heraldica. --Estas armas não são as reaes--explicou o padre--é o brazão de Pachecos e Andrades, muito illustres senhores d'este paço, que, em bons tempos, se chamou a honra de Real de Oleiros. --Cahiram em pobreza? --Sim, senhor; mas pobreza que tem uma historia interessante. Meu avô conheceu esta familia no galarim. Contava elle que o capitão-mór Pedro Pacheco estava em Lisboa, quando o marquez de Tavora, com os seus parentes, tentaram matar D. José, que era o amante da marqueza nova. Havia marqueza velha e nova, como sabe... --A fallar a verdade, não sei isso muito bem--atalhou ingenuamente o snr. José Maria Guimarães--Então como foi lá essa pouca vergonha? --Contos largos. A marqueza velha foi degolada, por não aceitar a prostituição da nora; a marqueza nova foi para um mosteiro bem regalado, em quanto o marido ia para a masmorra, e da masmorra para o cadafalso. Contos largos, amigo e snr. Guimarães. Vamos cá ao nosso caso. O capitão-mór Pedro Pacheco era muito de casa do duque de Aveiro; e, como eu disse, estava em Lisboa, quando o duque foi preso na quinta de Azeitão. Assim que o soube, fugiu, e não fez mal; porque foi procurado lá e aqui. Logo que chegou a esta casa, que era então um paço feudal, deu ordem á mulher que se preparasse e mais dous filhos menores para sahirem do reino. E, em quanto enfardelavam as bagagens, o capitão-mór mandou chamar meu avô, lavrador abastado, alferes de ordenanças, e muito seu amigo, para lhe entregar um cofre de pau preto com braçadeiras de bronze, cheio de peças. O cofre era tão leve ou tão pesado que meu avô, querendo erguel-o pelas argolas, gemeu. Lá por noite fora, pegaram os dous no cofre, transportaram-o á casa que ainda é a minha, e metteram-o n'um falso que ficava escondido pelas costas do leito de meu avô. Disse então o fidalgo ao depositario da sua riqueza que n'aquelle caixote estavam trezentos mil e tantos cruzados em dobrões e peças de ouro, e outras moedas muito antigas. Disse mais que a sua casa ficava exposta a buscas de quadrilheiros e de tropa, que era o mesmo que deixal-a franca aos assaltos dos ladrões. Por tanto, confiava de meu avô o seu dinheiro, sentindo não ter mais valiosas cousas que confiar á sua honra. --Trezentos mil cruzados!--murmurou o snr. Guimarães, esbugalhando os olhos--era bem bom d'elle! E depois? --O fidalgo foi para Hespanha, e para Inglaterra, onde tinha um seu parente embaixador, e por lá esteve alguns annos. N'este comenos, meu avô pegou de adoentar-se de molestia ethica, e escreveu ao capitão-mór, pintando-lhe o seu estado, e pedindo-lhe que viesse ou mandasse tomar conta do cofre. O fidalgo appareceu aqui uma noite com o maior resguardo, e metteu-se no seu palacio, confiando-se de um criado sómente a quem deixára a feitorisação das terras. De madrugada, mandou chamar meu avô, passaram juntos o dia, e de noite trouxeram ambos o cofre. Contava meu pai,--parece que o estou ouvindo,--que meu avô muitas vezes lhe dissera que o fidalgo não declarára onde tencionava esconder o thesouro; mas positivamente lhe dissera que o não levava para Inglaterra, já por temer ladrões, já porque não precisava gastar mais que os rendimentos da sua grande casa. Meu avô morreu d'ahi a mezes; e o capitão-mór voltou para a patria, no anno de 1777, quando D. José morreu, e o marquez de Pombal foi desterrado. --Essa não sabia eu!--atalhou com civico enleio o snr. Guimarães. --Que é que v. s.^a não sabia? --Que o grande marquez foi desterrado! Quem foram os marotos que... --São contos largos, snr. Guimarães. Vinha eu contando que o capitão-mór voltou, já viuvo, com dous filhos barbados, muito extravagantes, sem religião de casta nenhuma, criados entre hereges, destemidos, e levadinhos de todos os diabos. Ainda não ha muitos annos que morreram dous velhos do seu tempo que me contaram as malfeitorias que elles praticavam. Batiam a matar em todas as ordenanças que por ordem superior lhe tinham entrado em casa á procura do pai. Deshonestavam todas as cachopas d'estas tres leguas em roda. Em fim, amarguraram a velhice do pai, que era um santo homem, a ponto de lhe roubarem as pratas porque elle lhes não dava quanto dinheiro pediam. Finalmente, o velho morreu de repente em 1782, segundo reza o epitaphio que está na igreja de Refojos, convento que elle e seus ascendentes haviam beneficiado... --E os trezentos mil cruzados?--interrompeu o brazileiro. --Lá vou já. Assim que o pai se finou, os dous filhos abriram todas as gavetas, levantaram taboas, desladrilharam as lojas, escavaram debaixo dos toneis, escalavraram os forros, e nada toparam. Revolveram todos os papeis, a vêr se encontravam alguma indicação do dinheiro; e, com effeito, em um papelucho mettido n'uma carteira vermelha, acharam isto, que meu pai leu tambem: _Póde ser que a pobreza vos não corrija; mas a riqueza de certo vos faria tigres. Eu não morrerei com o remorso de vos deixar nas mãos o peor instrumento dos perversos, que é o ouro não adquirido com o proprio suor._ Tomaram-se de raiva, e romperam direitos a casa de meu pai, perguntando-lhe pelo dinheiro do seu. --Não ha duvida--respondeu meu pai--que n'esta casa e n'aquelle falso esteve um cofre do snr. capitão-mór; mas, alguns mezes antes de dar a alma a Deus, meu pai, que era honrado, entregou o cofre a quem lh'o dera a guardar. --E depois?--bradaram elles. --Depois, nada mais sei, senão isto que seu paisinho me repetiu muitas vezes. --Nós havemos de achar os ladrões. --Pois é procural-os--disse meu pai. Volveram a casa, e amarraram de pés e mãos o velho feitor do capitão-mór, determinados a não o desatarem sem elle denunciar a paragem do thesouro; porque o velho declarára que ninguem, senão elle, soubera da vinda do capitão-mór á patria, em quanto vegetou el-rei D. José, e o marquez de Pombal reinou. O feitor deixava-se martyrisar e morrer, ou porque realmente nada sabia, ou porque esperava que a final o deixassem. O caso é que, depois de solto, desappareceu d'estas terras, e nunca mais houve novas d'elle. Muita gente suppoz que o feitor levou os trezentos e tantos mil cruzados; mas meu pai, que o conheceu e teve em conta de muito honrado, affirmou que o dinheiro estava enterrado. Não sei; mas o desapparecimento do criado confidente do capitão-mór, a meu vêr, deixa suppôr que a estas horas, lá por esses reinos estrangeiros, vivem muito ricos os filhos do feitor. Deus sabe o que foi. --E então os dous filhos do capitão-mór ficaram pobres?--tornou o snr. Guimarães. --Pobres?! não, senhor. Quem tem sete quintas, que rendiam cinco a seis mil cruzados, que ha oitenta annos valiam dezoito mil cruzados de hoje em dia, não é pobre. O que elles fizeram foi tratar de se empobrecer. O morgado por aqui ficou, entretido com mulheres, galgos, caçadas, cavallos, feiras, jogo e valentias. O outro, que teve duas quintas de patrimonio, reduziu-as a moeda sonante, e foi para Lisboa requerer não sei que recompensas a D. Maria I, pensando que o ser seu pai amigo do duque de Aveiro, lhe dava direito a ser galardoado. Ora, se elle soubesse que a filha de D. José negou ao desventurado, ao innocente e quasi mendigo D. Martinho de Mascarenhas os bens de seu pai, duque de Aveiro, não iria allegar como cousa digna de premio o affecto do capitão-mór ao regicida suppliciado. --Conte-me lá isso por miudos...--atalhou o brazileiro que não lêra a _Historia portugueza_ do snr. Viale. --São contos largos. Vamos primeiro á historia do ultimo senhor da honra do Real de Oleiros--respondeu o abbade, e continuou: Não sei onde nem quando morreu Sebastião Pacheco de Andrade, o filho segundo do capitão-mór. Ouvi, porém, dizer que morrêra novo, pobre e deshonrado. Quanto ao morgado, sei que elle casou com a menos digna das suas concubinas, já quando não toparia menina honesta que aceitasse o fidalgo de Real de Oleiros. Christovão Pacheco, apesar da libertinagem e desperdicio, ainda gozava o que se chama decente mediania, quando sahiu d'este mundo, antes dos cincoenta annos. Teve um filho ante-nupcial da criada com quem casou. Este conheci eu mui de perto e em conflicto muito deploravel, como lhe contarei. O pai, que desprezava frades, e zombava da religião, mandara-o educar em religião e com um parente frade da ordem benedictina. O rapaz alegrou-se grandemente ao noticiarem-lhe que o pai era morto e elle herdeiro. Veio aqui, por ahi esteve dous annos socegadamente, olhando pelos bens, posto que debaixo de tutela; e, quando orçava pelos dezenove annos, tão grandes amostras dava de homem de bem que se lhe offereceu para esposa uma senhora de linhagem illustre e dotada com vinte mil cruzados. Emancipado pelo casamento, apossou-se do casal, desempenhou parte das quintas hypothecadas, e manteve bons creditos por espaço de alguns annos. Em 1832 era elle ainda muito rapaz, e já então vestia a farda de capitão de milicias. Esteve no cerco do Porto, onde consta que procedera valentemente. Porém, no fim da guerra, os bons costumes com que sahira d'esta casa por lá ficaram. O homem voltou tão diverso, tão estragado na moral, que já ninguem o via e ouvia que se não lembrasse do pai. A esposa não sei se por santa, se por peccadora, fugiu-lhe com uma criança de cinco annos para a casa d'onde viera; e elle, hypothecando os bens já deteriorados com as prodigalidades da vida militar, levantou muitos contos de reis, e estabeleceu-se em Lisboa. Desde 1836 a 1843, o seu viver na capital deu brado por _aventuras amorosas_, como lá dizem os salteadores da honra das familias. Pedro de Andrade, que assim se chamava, como seu avô, era um homem gentil, bem feito, galhardo, e muito airoso. Tinha as seducções de Satanaz feito homem. A corrupção de Lisboa era grande, e elle ainda maior; mas desgraçadamente, o maldito empestou muita menina innocente, e abriu muitos abysmos aos pés das virgens que pareciam ter postos no céo os olhos contemplativos. --Que grande maroto!--disse o brazileiro. --Em 1843, depois de uma ausencia de seis annos, appareceu aqui, de repente, Pedro de Andrade, e procurou-me a fim de me propôr a compra dos bens que ainda não estavam captivos de dividas. Eu desculpei-me com a falta de dinheiro, e outros aceitavam a proposta, se a mulher assignasse os contractos. N'este entretanto, recebi de Lisboa certa gazeta de que era assignante, onde li uma noticia que me abalou dolorosamente. E, estando em minha casa Pedro de Andrade, perguntei-lhe se tinha noticia do triste successo contado pelas gazetas.--Qual successo?--perguntou elle. «Eu lh'o leio» disse eu; e visto que estamos á minha porta, queira o snr. Guimarães entrar, que eu lhe vou lêr a gazeta, que Pedro de Andrade ouviu com inalterado semblante. * * * * * O brazileiro entrou na saleta do abbade, que tirou da estante dos seus livros a _Revista Universal Lisbonense_ de 1843; e leo, a paginas 23, o seguinte: «A POMBA E O ABUTRE «Quasi todos os papeis publicos transcreveram do _Portugal Velho_ o caso de uma donzella fugida do paço real. Levantaram sobre isto altos clamores contra ella, contra o seductor, contra a perda da proverbial gravidade do palacio portuguez. Sentimol-o o calamos.--Era assumpto melindroso; para relatar e sentenciar careciamos ainda de evidencia. Hoje suppômo-nos habilitados para ratificar e completar a narração de um successo que, devida ou indevidamente, já cahiu no dominio do publico, e não é possivel extorquir-se-lhe da memoria. «No palacio velho da Ajuda vegetam ainda umas cincoenta ou mais solitarias, que, opprimidas dos annos e das molestias, recebem da caridade da soberana o pão pelos serviços, que outr'ora prestaram ás rainhas e princezas suas ascendentes;--são os ornamentos partidos e desfigurados de um seculo, que desabou para nunca mais ser reconstruido.--Todas estas mulheres são tristes como reliquias de tempos festivos, saudosas, ou antes, saudades ellas mesmas:--a presença de todas e de cada uma, aggrava a cada uma e a todas ellas a melancolia do crepusculo da morte, que já lhes vem anoitecendo.--Todo o reboliço, todas as quotidianas transformações materiaes, moraes e politicas da visinha capital, onde já foram vivas, moças e brilhantes, ou não chegam alli, ou só chegam como uns contos vãos e longinquos, como sonhos de cousas passadas em outro planeta: ¿que tem ellas que vêr no berço que se apparelha para uma nova idade?--ellas, que já pendem para o sepulchro, a contemplar no fundo d'elle tantas cousas louçãs e vivazes, que lhes pertenciam! «Entretanto no meio d'este palacio de tristezas volteava ainda um raio de sol; um arbusto florejava purpuras no meio d'este cemiterio; uma avesinha cantava primavera entre o desconsolo d'estas ruinas; uma viração deliciosa fazia ás vezes susurrar agradavelmente estes musgos resequidos. Tudo isto era a joven Maria, lindeza de 18 annos, lindeza corporal como poucas, lindeza de espirito como ainda menos, lindeza de coração como quasi nenhuma, sobrinha e companheira de uma d'estas velhas, companheira e amiga de todas ellas. Maria, era realmente o feitiço, a Vida e o encantamento d'aquelle retiro sem porvir. Toda a casa a amava: era uma paga de divida; Maria queria-lhe muito, quasi que alli abrira os olhos, pelo menos outra nenhuma lhe lembrava; sob aquelles tectos brincára desde a idade de tres annos; entre aquellas cabeças encanecidas se fôra coroando a sua de longas tranças louras: entre o crescer de tantas rugas se desenvolveram e aperfeiçoaram as suas graças; entre o progressivo decahir de tantas prendas e esperanças como as folhas verde-pallidas que em pomar de outomno se despegam uma a uma, os seus talentos naturaes por uma desvelada educação, que a munificencia da snr.^a D. Maria I proporcionára a sua tia os meios de lh'a dar, tinham chegado ao seu maior auge. «Maria do Carmo reunia ás prendas manuaes proprias do seu sexo, um lêr e escrever primoroso, noções e gosto de litteratura, mórmente da franceza, em cuja lingua era mui versada, e musica, merecendo no piano as honras de mestra, e por corôa de elogio verdadeiro, os seus costumes eram puros e o seu coração religioso: nas orações que todas iam quotidianamente depôr aos pés do altar, as d'ella deviam rescender mais a innocente alegria que a temores ou remorsos.--A 25 de junho orava no côro com sua tia quando o relogio dos paços bateu as 6 da tarde. Levanta-se, pede licença para deixar o restante para depois, e ir entregar--que o prometteu--um debuxo de bordados a uma sua amiga fóra da casa. «Foi: correram horas, e não voltou. «Começaram e cresceram cuidados: mandou-se á busca por todas as partes: passou o serão, passou a noite, e passaram tambem dias, sem que a tornassem a vêr, nem a ouvir d'ella nova alguma. «N'essa tarde alguem se lembra de ter notado uma sege parada debaixo da arcada do paço. E um morador da casa acrescenta que, perto da noite, achando-se no caes do Sodré, vira chegar uma sege á porta de uma hospedaria, e um homem de chapéo branco apear uma menina, que lhe pareceu ella. «Devolvidos quatro mortaes dias, chega no domingo um gallego com uma carta para a consternada tia:--entrega-lh'a em mão propria, e ajunta, havel-a recebido de uma menina mui linda, que lavada em lagrimas e afogada em soluços lhe recommendára fosse leval-a correndo, e lhe trouxesse signal de ter sido recebida. O conteudo d'esta carta ninguem o soube, mas parte d'elle facilmente se póde presumir.--Ás nove horas d'essa mesma noite viram-se sahir pela portaria dous vultos rebuçados, que por mais que a porteira os interrogasse, partiram sem dar resposta. Á hora e meia da noite os mesmos dous vultos vieram bater á porta, trazendo entre si amparado e quasi em braços um terceiro, que ninguem reconheceu. Abriram uma porta, que havia muito não servia, e que dava passagem para a pousada da fugitiva, e entraram. «Pessoa do sitio por quem isto soubemos, nos acrescentou, que o estado de Maria na seguinte manhã, segundo lh'o descrevêra quem acabava de a vêr, cortava o coração. As suas tranças louras e espessas tinham desapparecido. O seu rosto pendia pallido e esmorecido. Duas fontes corriam dos seus olhos. A sua dôr via-se e era terrivel porque era muda. «As suas o occupações desde então teem sido orar e chorar: com isto leva no oratorio as horas do dia e da noite, abraçada com a imagem da consoladora dos afflictos, beijando-a nos pés, nas mãos e no rosto como filha a sua mãi--como filha prodiga, que procura, á força de se restituir toda, reconquistar o coração materno; como se coração materno se apartasse nunca. O pai aggravado perdôa, a mãi não, toda ella foi sempre amor, e o amor não sabe senão amar. «A unica pessoa, que além de sua tia, a tem visto, é o medico, alma sensivel, de quem recebe os soccorros mais assiduos e delicados. Entretanto o mal que a mina é grave. Quasi privada do alimento e do somno, os seus dias parecem ameaçados de um fim prematuro. Se a violencia mesma da sua dôr lhe não limitar em breve a duração, outro perigo pouco menos cruel que o da morte, parece ameaçal-a. O pranto continuo que afoga os seus olhos, receia-se que venha por ultimo a lh'os apagar, e que a pobresinha que, ainda ha pouco, era o raio de sol de toda a habitação, venha ainda a ser, mergulhada em trevas e sobrevivendo a si mesma, um objecto de profunda e esteril compaixão para tantas infelizes, a quem ella, pouco ha, repartia alegrias e emprestava mocidade. ¡¿E agora quem a condemnará por um erro, cuja origem e historia nos são desconhecidos?! ¿quem a apedrejará entre os braços, sob o manto e sob os olhos da rainha dos anjos, que lhe deu o seu nome, lhe chama filha sua e com a vista serena e amorosa lhe está apontando para as alturas?! ¡¡¡Que delictos e crimes (quanto mais erros)! deixariam de se lavar com tantas lagrimas!!! ¡¡¡E ha entretanto aqui um homem, talvez entre nós, talvez festejado e respeitado--um homem, que ella generosa não nomeia, não nomeará nunca--um homem, cujo rosto mais duro que o de Caím se não transformou, se não tingiu de repente na côr de sua alma para o denunciar, como sacrificador da innocencia, da virtude, da formosura, e do amor, de um amor irresistivel, inspirado por elle, e que a elle sacrificava tudo até a vida,--tudo até o porvir--tudo--tudo até a honra!!! ¡¡¡Ha ahi um homem d'estes!! ¡Ha-o sem duvida! e se as justiças o descobrissem, este homem receberia uma pena: menos affrontosa que a do ladrão assassino... Este homem não havia de ser mandado por todas as cidades e villas do reino de braço dado com o carrasco, para ser atado a cada pelourinho, escarrado no rosto por todos os homens e mulheres, e esbofeteado depois pelo seu menos infame companheiro de jornada com a mão esquerda. Não: que importa o que padece uma mulher? Não crêsse nas palavras de quem a fascinára; não fosse moça, innocente e amante; não fosse mulher. As justiças da sociedade teem mais cousas em que pensar. ¿E de mais não se vê isto todos os dias? Não são conhecidos muitos outros que tambem matam assim o tempo com estas caçadas amorosas? ¿que o confessam com vangloria e que em companhias mui luzidas são por isso admirados e invejados! Tratemos dos interesses materiaes. O restante são chimeras, são fanatismos, são miserias, indignas da attenção de legisladores, e dos homens illustrados de 1843.» Concluida a leitura, o abbade proseguiu: --Ouvida a historia, o fidalgote sacudiu a poeira das calças com um chicotinho de baleia, e disse: «São vulgarissimos esses casos em Lisboa. O que a mim me espanta é que a imprensa vista o habito de Tartuffo, e sáia ás praças a prégar contra a corrupção que ella promoveu com os seus romances, com as suas philosophias, com as suas theses de liberdade, e com a perseguição de escarneo e de fome feita aos apostolos da sincera moralidade.» Discursou largamente n'este sentido, e despediu-se, deixando-me inclinado a dar-lhe razão. * * * * * Passam-se tres dias:--continuou o abbade--era meia noite de 2 de agosto do mesmo anno de 1843. Recolhia-me á igreja de ter ministrado a extrema-unção a um moribundo, quando ouvi dous tiros a pouca distancia, e d'ahi a minutos o alarido de muitas vozes, gritando «homem morto!» Sahi ao adro, e encontrei pessoas que já vinham chamar-me para assistir aos paroxismos de Pedro de Andrade que estava mortalmente ferido á porta de sua casa. Quando cheguei, já o haviam transportado ao leito. Estava ainda vivo. Assim que me viu, acenou-me com anciedade, apertou-me convulsamente a mão, e segredou-me: «Quero confessar-me, que vou morrer.» Escutei-o por espaço de hora e meia; as phrases eram cortadas por gritos de agonia; ambas as balas lhe estavam dilacerando as entranhas do peito; e, ainda assim, aquelle demorado arrancar da vida me quiz parecer uma delonga providencial para que o grande criminoso tivesse tempo de penar e chorar suas culpas. Expirou com todos os sacramentos, pedindo-me que, em nome d'elle, pedisse perdão a seu filho e a sua mulher. O moribundo, quando me revelou o seu derradeiro delicto, rogou-me que désse publicidade ao crime e ao castigo a fim de que a sua desgraça podesse aproveitar aos centenares de delinquentes que lhe haviam dado o exemplo do vicio e da impunidade. E, por tanto, não escrupuliso em lhe dizer que o seductor da infeliz Maria do Carmo havia sido Pedro de Andrade, e que os vingadores da abandonada menina deviam ser seus parentes, posto que o assassinado os não houvesse conhecido, e lhes ouvisse apenas dizer, antes de desfecharem as clavinas, que lhe traziam saudades da prostituida senhora do paço da Ajuda. --Com effeito!--observou o snr. Guimarães--essa historia arripiou-me os cabellos!... V. s.^a ha de emprestar-me essa gazeta que eu quero copiar esse caso! Diga-me cá: e o filho d'esse desgraçado? --O filho do desgraçado, que tinha então onze annos e estava com sua mãi, póde dizer-se que ficou litteralmente pobre. Os credores e a fazenda nacional disputaram-se a posse do espolio. O rapaz, quando chegou á idade de tomar conta da honra de Real de Oleiros, convenceu-se que lhe era mister trabalhar para não morrer de fome. Os parentes de sua mãi, posto que abastados, não o protegeram, e tornaram-lhe pesada a esmola do pão e da cama. Um dia, o brioso moço sahiu com sua mãi da casa que lhe amargurava o bocado, e foi habitar um casebre nas visinhanças do escrivão, que o fizera seu amanuense, e lhe dava doze vintens por dia. V. s.^a conhece-o. É aquelle Alvaro de Andrade que tem lavrado as escripturas de compra de propriedades que o snr. Guimarães tem adquirido... --Pois é esse!... Aquelle homem humilde que me beijou as mãos quando eu lhe dei uma libra de gratificação... --É esse mesmo. --E nunca me disse de que familia era... --Não falla em familia, e parece até esquecido da sua procedencia. Que eu, a fallar verdade, uma vez, passando com elle defronte das ruinas da casa de seu pai, surprendi-o a olhar para as paredes derruidas com as lagrimas nos olhos. Perguntei-lhe por que chorava, e elle respondeu-me que chorava por sua mãi, lembrando-se que d'aquella casa sahira ella coberta de mais amargas lagrimas. --Coitado!--disse o brazileiro--hei de fazer-lhe o bem que poder. --E póde muito v. s.^a; mas faça-lh'o de modo que o não humilhe. --Eu cá sei, snr. abbade. Nós, os chamados brazileiros, sabemos todos os processos de dar esmolas aos nossos patricios de modo que elles se dispensem de nos agradecer, e até lhe deixamos o direito salvo de nos ridiculisar. A justiça inspirára este homem, que nunca fôra tão eloquente. * * * * * Pouco tempo depois, annunciou-se a venda da quinta de Real de Oleiros e suas pertenças, a requerimento dos credores. José Maria Guimarães cobriu todos os lanços. Foi-lhe adjudicada a quinta por alto preço. Os licitantes, que eram os credores, acotovelavam-se jubilosos, e diziam entre si: --_Espiguêmol-o!_ E, assim que o ramo lhe foi entregue, disseram unanimemente: --Foi _espigado_! O brazileiro pagou immediatamente ao instrumento da adjudicação, e disse, relançando a vista aos alegres credores de Pedro de Andrade: --Meus senhores, o que vale aos credores dos fidalgos, que não pagam, são estes _nossos irmãos de além-mar_, que, lá e cá, melhor fôra chamar-lhes _irmãos da misericordia_... --É parvo!--disse um poeta de Basto ao ouvido de um bacharel de Felgueiras. * * * * * Passados dias, começaram obras de reedificação no local do palacete arruinado. O proprietario, fazendo-se encontradiço com o amanuense do tabellião, disse-lhe: --Ó snr. Alvaro, vá o snr. hoje, se não tiver que fazer, á quinta de Real, que temos que conversar a respeito de certos arranjos. --Sim, senhor--disse Alvaro--quando v. s.^a quizer. --Ás 4 da tarde; e leve tinteiro e papel, que não ha lá d'isso. Á hora aprazada, entrou o bisneto do capitão-mór na extincta honra dos Pachecos e Andrades. Já lá estava o brazileiro, ás testilhas com os alveneis. Assim que chegou o escrevente do tabellião, subiu com elle por entre um matagal de bravio até ao alto de um outeirinho onde se erguia um pombal já descaliçado, mas ainda assim a porção menos esboroada das pertenças da quinta, graças á fortaleza do tecto abobadado de pedra. Havia dentro uma banca de granito, onde outrora os senhores de Real se desenfastiavam em merendas, depois das fadigas da caça na tapada defeza. Já lá estavam duas cadeiras. --Sente-se ahi, snr. Alvaro--disse José Maria Guimarães,--e vá escrevendo. --Prompto!--respondeu o escrevente, rodando a sibilante tarracha do tinteiro de chifre. --Ponha ahi os nomes dos pobres da freguezia que não tem casa de seu. Alvaro Pacheco escreveu trinta e quatro nomes; quedou-se um momento, e perguntou: --De todos os pobres que não tem casa? --Sim, de todos os pobres que não tem casa propria. --Então, falta o meu nome. Somos trinta e cinco os pobres que não temos casa. E escreveu: _Alvaro, escrevente de tabellião._ --Muito bem--volveu o brazileiro commovido--sabe o que eu quero? --V. s.^a o dirá. --É ceder metade d'esta quinta aos pobres para elles edificarem uma casa com seu quintalejo; já se vê que sou eu que pago as obras das casas; e, visto que o snr. Alvaro é um dos trinta e cinco pobres, escolha a local onde quer a sua casa feita. A escolha do local é sua; ora agora, o feitio da obra isso é cá por minha conta. --Os pobres aceitam, não escolhem--disse Alvaro. --Mau!--replicou José Maria Guimarães--Mau! ou bem que somos francos um com o outro, ou não temos nada feito. Eu cá sou assim! --Então quer v. s.^a... --Deixemo-nos de _senhorias_. Eu sou filho de um almocreve, e neto e bisneto de burriqueiros; e o snr. Alvaro Pacheco é descendente de capitães-móres a quem meus avós traziam presuntos de Melgaço nas suas recovas de machos. Deixemo-nos de _senhorias_. Vamos á questão. Onde quer a sua casa? --Aqui--disse Alvaro. --Aqui no pombal?! --Aqui, porque fica sendo casa, e ao mesmo tempo memoria de ter estado n'este sitio um homem honrado. --Ou dous--emendou o brasileiro--Dê cá um abraço, e vamos embora, que faz aqui frio. E, no decurso do caminho, proseguiu: --O snr. Alvaro ha de fazer-me o favor de se despedir do serviço do tabellião, se lhe não custar. Preciso de quem me represente n'estas obras, em quanto vou tratar de negocios a Lisboa. Eu cá lhe deixo as plantas das casas dos pobres, e o capital para o custeio das despezas. * * * * * O brazileiro voltou, passados seis mezes. Todas as casas estavam já de parede e tecto, quando voltou, excepto a do pobre chamado Alvaro. --Com que então a casa n.^o 35 ainda não tem sequer os alicerces?---perguntou o bemfeitor. --É porque o pobre n.^o 35 não precisa tanto como os outros--respondeu o feitor. --Então vou eu ser agora o fiscal das suas obras--tornou José Maria. E, ao outro dia, fez convergir os melhores operarios para a bouça do pombal, e mandou arrazar a vivenda de centenares de andorinhas que se esvoaçavam ao primeiro troar dos alviões e marretas. Alvaro e José Maria assistiam ao derrubamento do pombal, um tanto condoidos do esgazear das espavoridas habitadoras das ruinas. N'isto, um pedreiro esboroando com a alavanca um pedaço de parede, descobriu uma superficie escura, que se lhe figurou lousa. --Que diabo de obra é esta de lousa em parede de cantaria?--disse o alvenel. O brazileiro abeirou-se da parede, apalpou a supposta lousa, e observou ao pedreiro que era pau e não lousa, mandando socavar dos lados, e alimpar a superficie do que quer que fosse. --Isto é um caixote!--disse o mestre da obra--querem vossês vêr que o diabo as arma? --Arma o quê?--perguntou José Maria Guimarães. --V. s.^a nunca ouvia dizer que os fidalgos de Real esconderam um thesouro que nunca se encontrou? --Já ouvi dizer isso. Atirem a baixo toda a pedra que está dos lados, e não embarrem no caixote. Cuidado lá com isso! Snr. Alvaro, parece-me que vai assistir á resurreição do melhor defunto dos seus avós--bradou o brazileiro. --Como?!--perguntou Alvaro, que vinha entrando no recinto do pombal. --Venha vêr. Apalpe. Que é isso? --Parece-me um caixote--disse o bisneto do capitão-mór. --Não é parece; é que é. Sabe o que lá está dentro? Sabe a historia dos trezentos e tantos mil cruzados de seu bisavô? --Ouvi dizer que... --Que nunca appareceram. Apparecem hoje. Estão alli. Alvaro de Andrade que tinha encarado o infortunio de trinta annos com intemerato aspecto, descorou em frente da taboa negra que devia ter dentro uma cousa chamada, bem ou mal, a _fortuna_. A este tempo, o caixote era apeado, suspenso entre quatro robustos braços. --Oh! como pesa!--gemeu um dos pedreiros. --Podéra não!--disse o brazileiro--trezentos e tantos mil cruzados! --Os rios correm para o mar, snr. Guimarães--observou o mestre d'obras. --Que quer dizer, mestre?--perguntou o brazileiro. --Que se v. s.^a era rico, é agora riquissimo. --Obrigado pelo conceito que faz de mim, mestre...--volveu José Maria entre risonho e agastado. --Ó meu senhor, pois eu... --Suspeita-me de ladrão... --Valha-me Deus!... o que apparecer em terra de v. s.^a seu é. --E esta terra é minha? Pois não sabe que este chão é d'este pobre que se chama Alvaro? --Ó snr. Guimarães!...-exclamou o filho do ultimo senhor da honra de Real de Oleiros, e não pôde articular outra expressão. --Vamos!--acudiu o brazileiro--para onde é que vai o thesouro de seu avô, snr. Alvaro Pacheco de Andrade, snr. barão, snr. visconde, snr. conde, snr.... Quer mais? Dê as suas ordens. José Maria casquinava uma risada de elevada intelligencia, em quanto os obreiros, rodeando o caixote, se embasbacavam uns nos outros, e todos no rosto de Alvaro com a mais sincera e respeitosa estupidez. Novamente instado para que dissesse onde o caixão devia ser levado, Alvaro respondeu: --A minha mãi, que sabe o que são pobres. * * * * * E os primeiros pobres, que relativamente enriqueceram nas aldêas convisinhas, foram os descendentes dos irmãos d'aquelle feitor que muitos alcunharam de fugitivo ladrão do thesouro do capitão-mór, e que se fôra a morrer longe d'alli, e obscuramente, receoso de ser novamente martyrisado pelos filhos de seu amo. Alvaro Pacheco de Andrade, n'este anno de 1874, tem quarenta e nove annos, e é conhecido pelo fidalgo de Real de Oleiros. Aquella senhora de tez morena, com cinco formosos filhos, que brincam á volta de outra senhora de setenta annos, é a esposa de Alvaro, e filha de José Maria Guimarães. A dos cabellos brancos, que lhe alvejam na fronte como a corôa de açucenas de uma santa, é a viuva d'aquelle galhardo e infausto D. Juan, assassinado em 1843. O sacerdote ancião, que parece ser da familia, é aquelle abbade que nos leu a _Revista Universal Lisbonense_, e a quem eu devo e agradeço os commentarios ao fogoso e pungente artigo, que me parece ser do meu presado mestre e adorado amigo visconde de Castilho. O JOGADOR Hoje em dia, aquella denominação, nem é desprezivel nem affrontosa. O progresso indultou o jogador; deliu-lhe da fronte o antigo ferrete. Se eu jogar com sorte propicia, e mobilar um palacio, cujas alfaias e baixella representem os haveres e as lagrimas de muitas familias, serei o legitimo e respeitado proprietario do meu palacio. Se eu abrir os meus salões, a mais selecta sociedade virá pisar as alcatifas do meu palacio, e lisonjear a magnificencia do fino gosto que dirigiu as correntes do meu ouro. Ninguem me perguntará se herdei de avós, se ganhei de incautos a minha opulencia. Talvez que os meus convidados segredem entre si a proveniencia das minhas pompas; mas d'esses, duas vezes deshonrados, vingado estou. Deshonrados, porque entraram nas minhas salas, e deshonrados porque denegriram a honesta posse dos vinhos que me beberam. Continuando a auspiciosa hypothese: se eu fôr o jogador enriquecido, bemquisto das familias, pessoa séria, influente nas eleições bancarias, com folha corrida, insuspeito de falsificador de testamentos ou moeda, de certo me não distingo do homem de bem, laborioso, honrado e provado nas lutas da vida. Ha, todavia, entre nós uma pequena differença: eu dou bailes, e o meu honrado visinho não os dá. Mas isso depende da aristocracia da indole: elle póde descender d'algum servo de gleba, que lhe transmittiu genio caínho e o acanhamento de raça; em quanto eu obedeço a impulsos de outro sangue. As damas que se bamboavam nos coxins flaccidos das minhas othomanas com toda a certeza não calcularam quantos _micos_ infelizes dos meus parceiros representavam as copias de Raphael e os originaes de Murillo pendurados sobre as colgaduras das minhas paredes. Antes quero suppôr que ellas, no arrobo da sua admiração, meditaram que na minha cabeça havia o que quer que fosse digno da cabelleira encalamistrada de um Marialva, no reinado de D. João V. É profundo o fôsso que me separa do jogador em outras eras. Nasci quando devia nascer. Se eu viesse á luz no seculo XVI, este meu mister de jogador era synonymo de vadiagem (_Ord_, l. V, tit. 82). Nas minhas tertulias, devidas á sorte feliz da tavolagem, lograria apenas reunir jogadores. Se nascesse no seculo XVII ou XVIII, os corregedores dos Philippes, de D. João IV e Pedro II, e dos reis subsequentes, se eu désse bailes, carregavam-me com as leis sumptuarias por sobre a pêcha de vadio. Em tempo de D. João V, D. José ou D. Maria, tanto o Camões do Rocio, como o Marques Bacalhau, como o Pina Manique mandavam-me responder do Limoeiro pela procedencia dos meus lustres, dos meus sophás, dos meus jarrões, dos meus contadores marchetados, dos meus bronzes, dos meus frescos, dos meus pendulos, dos meus pavimentos de xadrez lustroso. E vestiam-me talvez uma das librés dos meus criados. Foi por isso que o facho da civilisação, passando pelas minhas salas de jogador feliz, radiou reverberos esplendidos da minha baixella, e me mostrou em meio dos meus convidados, com a fronte luzentissima das alegrias do homem de bem. Póde ser que, em outras eras tenebrosas, a felicidade no jogo fosse malsinada de fraude e roubo. Hoje não. O jogo, á luz de 1874, é um contracto bilateral, fundado no consentimento de ambas as partes. Se é forçoso que uma das partes fosse tola e desgraçada, eu de certo não fui. Está fechada a hypothese. INEDITO DO POETA FR. BERNARDO DE BRITO Escreveu o famoso cisterciense a _Sylvia de Lizardo_, e ninguem o trata de poeta quando o louva ou moteja. Chamam-lhe o _chronista_, o _classico_, o _douto_, o _mentiroso_, o _massador_, o _milagreiro_; poeta é que não; e houve até um frade da ordem d'elle, Fortunato de S. Boaventura, o author do _Punhal dos Corcundas_, que positivamente desbalisou de poeta e de author da _Sylvia de Lizardo_ o vernaculo author da _Chronica de Cistér_. Pois foi poeta, e dos bons do seu tempo, aquelle Balthazar de Brito de Andrade, que por amor do patriarcha se crismou em _Bernardo_. Teve elle o ruim sestro de desfazer na prosapia dos outros. Raro fidalgo lhe sahiu incolume do crisol em que por obrigação do officio de historiador, elle acendrava o fino ouro dos Trocozendos, dos Romarigues, dos Egas Bufas e outros condes das raças romana é goda. Nos descendentes do Espadeiro, que eram a geração dos _Coelhos_, beliscava elle, á conta do assassinio de Ignez de Castro. De si, dizia o frade, que os _Britos_, em Portugal, derivavam dos _Brutos_ de Roma. Um descendente de Egas Moniz, chamado João Soares de Alarcão, como era poeta, satyrisou a maledicencia de fr. Bernardo de Brito com este soneto: Aos profundos imperios d'el-rei Pluto Irás, Bernardo, pelo que has escripto, Pois dizes que de _Bruto_ vem teu _Brito_, Ficando tu só n'isso Brito e bruto. Tu vens d'aquelles que a pé enxuto Passaram, com Moysés, o mar do Egypto, Ou vens do que com sangue do cabrito Tantos guizados fez sem nenhum fructo. Chamastes ao teu livro _Monarchia_, Sendo _Mona_ que cria monstros varios, E tornastes de ferro a idade de ouro. Não te mettas em casos temerarios; Pasta nas hervas, bebe da agua fria, Ou na velha escudela o caldo louro. O monge de Cistér responde pelas mesmas rimas: Maçarico dos charcos de el-rei Pluto, Que taes marmanjarias has escripto, Que ao douto frei Bernardo ou Bruto ou Brito Picas com bico infame, sujo e bruto; Jámais será de Ignez o pranto enxuto, Pois a fazes mais quartos que um cabrito, Dizendo que nas mãos deu o esp'rito De Coelho matador, sagaz e astuto. Não vem da lusitana monarchia Martinho _mono_, pai de cascos varios, Sua mãi de _Aguilar_, aguia, não de ouro. Não te mettas em casos temerarios: Que louro não honra tua musa fria, Mas de uma pouca de... o caldo louro. As injurias do primeiro terceto entendem com os progenitores de João Soares de Alarcão. Martinho, se era _mono_, sobrava-lhe direito a ser da _monarchia_ lusitana; mas tambem o outro se demasiára, vituperando de _mona_ a _Monarchia_ do frade. Tratavam-se de macacões um ao outro. _Pai de cascos varios_, invectiva o poeta de Alcobaça. Pela variedade da cascaria, entende-se que capitulava de cavalgadura o adversario: saldo bem ajustado com o outro que lhe chamára _bruto_. Entra no soneto a mãi do poeta, que devia ser da familia de _Aguilares_: e era com effeito, sem ser de raça desprimorosa. Chamava-se D. Cecilia de Mendonça Aguilar e Lugo, filha de Philippe de Aguilar, mestre-sala de D. Sebastião, de D. Henrique, de D. Philippe, e tão amigo de Castella que chegou á mordomia-mór do rei intruso. Estes Aguilares e Aguiares foram sempre muito dos hespanhoes, e logo contarei um caso do mais notavel. _Martinho_, _mono_, diz frei Bernardo. Que o pai do poeta era Martinho Soares de Alarcão e Mello, 6.º senhor da casa de Torres-Vedras, não ha duvida; que fosse _mono_, não o inculcam os genealogistas. Seu filho, o poeta, foi alcaide-mór de Torres-Vedras, casou, teve nove filhos, e entre esses, o jesuita Francisco Soares de Alarcão, letrado eminente e guerreiro, que morreu queimado em uma explosão de polvora, quando guarnecia Juromenha, em tempo de D. João IV, capitaneando os noviços da companhia, cujo reitor era. Outro filho do _poeta dos cascos varios_, quando D. João IV o mandava governar Ceuta, passou-se para Philippe IV; e foi condemnado á morte[1]. Teve a mãi de João Soares um primo chamado Damião de Aguiar Ribeiro, que era corregedor em Lisboa, reinando o cardeal. Como sabem, andavam então divididas as opiniões entre D. Antonio e Philippe II, ácerca da successão do throno. Damião de Aguiar era dos mais façanhosos propugnadores por Castella. Succedeu então que um homem do serviço de D. Antonio acutilasse na Padaria um vereador que fallava soltamente no senado contra o filho de Violante Gomes. Foi preso e summariamente condemnado á forca. Á hora em que o réo era levado, soube Damião de Aguiar na rua Nova que, na Ribeira, se ajuntava povo intencionado a tirar-lhe o padecente. Mandou o corregedor parar o prestito; fez lançar uma corda de uma janella, e alli mesmo ordenou que se enforcasse o homem, para evitar semsaborias. Tão grato lhe ficou por isto o rei de Castella que o nomeou desembargador do paço, e depois chanceller-mór do reino, commendador de S. Matheus de Soure e de S. Cosme de Gondomar, commendas que rendiam 3:500 cruzados. Foi, por tanto, riquissimo, e tão bom homem que fundou o convento das Capuchinhas da Merciana. Instituiu morgadio, comprehendendo uma extensa quinta que ia desde as portas de Santo Antão pela travessa da Annunciada até á chamada calçada de _Damião de Aguiar_. Casou duas vezes; procreou-se, e fez-se representar entre nós pelos snrs. condes de Povolide, de Valladares, etc. Rebello da Silva não reza bem d'este Damião na _Historia de Portugal_. Eu não rezo bem d'elle nem por elle; confesso, todavia, que era homem expedito nisto de enforcar a gente na janella de qualquer cidadão, mediante seis varas de corda. [1] D. João Soares morreu em 1618, com 38 annos de idade. Escreveu e imprimiu em lingua castelhana: _Archimusa de varias rimas y efetos_, e _La iffanta coronada por el-rei D. Pedro, D. Ignez de Castro_, etc. Este poema não devia ser mui lisonjeiro ás tradições de Pero Coelho, avoengo do poeta. LISBOA Elucidemos a historia do viajante. O mordomo-mór que fugia era D. João de Mascarenhas, 4.º marquez de Gouvêa, e 7.º conde de Santa Cruz. Tinha 25 annos, e era casado com uma hespanhola, chamada D. Thereza de Moscoso e Aragão, filha do 7.º conde de Altamira. A senhora que fugiu com elle era D. Maria da Penha de França, tambem casada com seu primo-irmão D. Lourenço de Almada, muito moço. Tinham casado em 1722. Em junho de 1723 D. Maria da Penha de França deu á luz uma menina, que se chamou Violante. E, na noite de 11 de novembro de 1724, a esposa, abandonando marido e filha, fugiu com o marquez. Este desastre não foi precedido de ardentes galanteios e grandes resistencias do pudor vencido pela paixão. D. Maria foi de visita ao paço, onde havia sido dama, como sua mãi D. Violante Henriques o fôra da rainha D. Maria Sophia de Saboya. Viu o marquez que era galan, audaz, e sem ser milagre, fulminou-o com o relampago da formosura. Fugiram e pararam em Tuy. Não foi em Vigo como diz o viajante. Julgavam-se salvos em terra estrangeira; mas o bispo, por ordem vinda de Madrid, prendeu D. Maria n'um mosteiro; e o marquez fugiu por Hespanha dentro, e mais tarde para Inglaterra. Tanto que em Lisboa se divulgou a prisão da mulher de D. Lourenço de Almada, certo poeta escreveu um soneto gravido de maus versos e boa moral, que diz isto: D'esse claustro a sagrada penitencia Pia te esconda, oh bella criminosa, E converta-se em sombra a luz formosa Que ardeu nos sacrificios da indecencia. Tolera da prisão toda a violencia, Perdida já a nobreza generosa; Fique ainda entre a culpa indecorosa Benemerita ao menos a paciencia. Principia a morrer n'essa clausura Encobrindo um descredito infinito No antecipado horror da morte escura. Mas ah! se em ti, por ultimo conflicto, Como vai sendo de vida sepultura, Chegasse a ser cadaver o delicto! Hei de escrever um livro que ha de chamar-se o DESTERRADO. Estes desastres hão de ser esmiuçados compridamente. O _Desterrado_ do meu romance não é o marquez de Gouvêa: é outra casta de personagem. Bem sei que esfrio o interesse do futuro livro, bosquejando-o aqui em poucas linhas. Não importa. A curiosidade do leitor é mais attendivel que as conveniencias mercantis d'uma novella. Como sabem, D. Maria da Penha deixou nos braços do abandonado marido uma filhinha de onze mezes, que se chamou Violante. Esta menina, ahi pelos dezesete annos, amou seu primo D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, alcaide-mór de Villa do Conde, capitão de cavallos, e uns gentilissimos vinte e nove annos. Na casa dos Almadas, onde D. Luiz fôra creado--porque sua mãi casára em segundas nupcias com D. Luiz José de Almada--havia um D. Antão, que se apaixonára por Violante, que era sua sobrinha. A menina esquivara-se ás caricias do tio, e deixou-se arrebatar nos braços do primo D. Luiz, quando uma ordem regia o desterrou para Moncorvo, a rogos de D. Antão de Almada. Os dous fugitivos (que desterro tão semelhante, o de mãi e filha!) esconderam-se e casaram em Zamora; mas ahi mesmo os enviados do cioso tio a foram colher de sobresalto e a trouxeram a Portugal. Esteve a menina reclusa alguns annos em Marvilla, com o proposito de professar, pois que a lei lhe annullára o casamento com o primo; não obstante, porém, a saudade do desterrado primo, ao fim de onze annos, aceitou seu tio para esposo, do mesmo passo que D. Luiz era banido e desnaturalisado para sempre. Aqui fica muito pela rama o entrecho do livro para o qual se estão aprestando as peças essenciaes da vida tempestuosa de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, fallecido aos 75 annos, e terceiro avô do actual snr. visconde de Sanches de Baena[2]. De D. Violante e de seu tio D. Antão de Almada (sem embargo das amarguras da violentada esposa) nasceu D. Lourenço de Almada, que foi o 1.º conde do seu appellido em 1793. * * * * * Outra indicação do viajante que estimula a curiosidade: «A casa da rainha e dos principes são analogas á do rei. O posto de camareiro-mór da rainha vagou por morte do marquez das Minas, assassinado em 1721. Este senhor era genro do marechal de Villeroy; e seu filho, o conde do Prado, está presentemente na côrte de França.» Já d'este caso dei n'outro livro a noticia que transcrevo do citado periodico de Francisco Xavier de Oliveira: «Um corregedor guardava uma porta da igreja da casa professa dos jesuitas, quando alli se celebrava grande festividade. Sómente o rei havia de entrar por aquella porta. Chegaram aqui o marquez das Minas e o conde da Atalaya; mas o corregedor com razão lhes vedou o passo. Insistiram elles, dizendo ao ministro que as ordens recebidas não podiam entender-se com pessoas de sua esphera. Redarguiu o corregedor que as ordens ninguem exceptuavam, e por tanto, sem que o rei entrasse, não podia elle permittir que entrasse quem quer que fosse. Aquelles senhores podiam entrar por outras portas francas a toda a gente. Não obstante, pertinazmente exigiram do corregedor uma distincção que elle não podia dar-lhes sem transgredir os deveres... Os dous fidalgos, depois de o terem insultado, passaram ás ultimas. O conde da Atalaya deu com o chapéo na cara do corregedor, e o marquez das Minas traspassando-o com a espada, matou-o. Em seguida cavalgaram, e sahiram do reino. O marquez das Minas _foi perdoado e voltou ao reino_[3].» Crê o leitor que, não obstante o perdão, o marquez das Minas passaria o restante da vida sequestrado das graças do monarcha e da convivencia das pessoas de bem? Não faça juizos temerarios o leitor: o marquez das Minas recebeu o indulto, e ao mesmo tempo o bastão de general. Já vimos a justiça dos homens: agora vejamos a da Providencia. Servia no exercito portuguez um castelhano chamado D. Juan de la Cueva, que não dava _excellencia_ ao seu general, marquez das Minas, sem que este lhe désse _senhoria_. «Ora, o marquez, assassino do corregedor,--diz o cavalheiro de Oliveira--era soberbo e arrogante. Um dia, ao entardecer, sahia elle da portaria da congregação de S. Philippe Neri, a tempo que desgraçadamente _Juan de la Cueva_ ia entrando. Cortejou elle o marquez, que lhe não deu a pretendida _senhoria_, e por isso _de la Cueva_ lhe não deu _excellencia_. O general, grandemente irritado, levantou o bastão e proferiu palavras ameaçadoras. _De la Cueva_, sem lhe dizer palavra, traspassou-o com a espada. O marquez não tugiu nem mugiu: quando cahiu por terra, já ia morto. O padre, que o acompanhára até á portaria, e era confessor d'elle, apenas teve tempo de lhe apertar a mão. _D. Juan de la Cueva_ pôde escapar-se, e refugiou-se em Hespanha[4].» Na jurisprudencia divina a justiça mais seguida é a pena de Talião. [2] Veja _Apontamentos biographicos_ ácerca de D. Luiz Francisco de Assis Sanches de Baena, etc., por Innocencio Francisco da Silva, Lisboa 1869. [3] O cavalheiro de Oliveira não designa o tempo de expatriação do marquez das Minas, conde do Prado. Deviam ser dez annos, segundo a sentença manuscripta de que dá noticia o snr. Innocencio Francisco da Silva, a pag. 233 do 7.º tom. do Dicc. Bibliog. Diz assim: «Sentença da Relação de Lisboa, contra os condes do Prado e da Atalaya por matarem publicamente o corregedor do Bairro-Alto no exercicio da sua authoridade. O primeiro, tendo-se evadido, foi justiçado em estatua; o segundo condemnado a degredo por dez annos, e ambos em multas pecuniarias». Creio que ha equivoco, na transcripção da sentença. O queimado em estatua foi o conde de Atalaya, que, no dizer do cavalheiro de Oliveira, morreu furioso em Vienna, depois de ter militado no exercito do imperador de Austria. Quanto ao marquez das Minas, presume-se que lhe foi indultada a sentença, visto que o citado Oliveira diz que obteve perdão e voltou a Lisboa. [4] _Amusement_, 2.º v. pag. 147 e 148. LITTERATURA BRAZILEIRA Longo tempo se queixaram os estudiosos do descuido dos livreiros portuguezes em se fornecerem de livros brazileiros. Nomeavam-se de outiva os escriptores distinctos do imperio, e raro havia quem os tivesse nas suas livrarias. Nas bibliothecas publicas era escusado procural-os. Em compensação, sobravam n'ellas as edições raras de obras seculares que ninguem consulta. O mercado dos livros brazileiros abriu-se, ha poucos mezes, em Portugal. Devemol-o á actividade inteligente do snr. Ernesto Chardron. Foi elle quem primeiro divulgou um catalogo de variada litteratura, em que realçam os nomes de mais voga n'aquelle florentissimo paiz. Ahi se nos deparam, entre os poetas, Gonçalves de Magalhães, o correcto e sublime author da _Confederação dos tamoyos_; o lyrico e arrojado Alvares de Azevedo; o primaz dos escriptores brazileiros, e chorado Gonçalves Dias; o esperançoso devaneiador, fallecido no viço da idade, Casimiro de Abreu; Junqueira Freire que primou nos segredos da melodia e já não é d'este mundo; e o severo e cadencioso poeta de _Colombo_, tão estimado dos nossos. Entre os romancistas o fecundissimo Joaquim Manoel de Macedo, que disputa a supremacia a J. de Alencar, que tanta nomeada grangeou com o seu _Guarany_. Não lustram menos as novellas mimosissimas de Luiz Guimarães, e as arrobadas mesclas de prosa e verso de Machado de Assis. Em litteratura didascalica sobresahem os valiosos escriptos do professor, o snr. conego Fernandes Pinheiro, nomeadamente o _Resumo de historia litteraria_, que muito se avantaja a uns esbocêtos que em Portugal circulam nas escólas, e--o que é mais deploravel--nos estudos secundarios. São notabilissimos todos os livros do snr. J. M. Pereira da Silva, já na sciencia historica, já na politica, e ainda no romance, tão prosperamente estreiado na _Aspazia_. Sobre tudo, porém, os _Varões illustres do Brazil_ e a _Historia da fundação do imperio brasileiro_ são obras que denotam profundo estudo e muito engenho na boa disposição dos elementos e critica dos personagens historicos. Em varia sciencia, em livros elementares, em lexicologia, e ainda sobre motivos de religião é copioso o catalogo da livraria Chardron. Esta variedade argue a fertilidade de intelligencias que ajuntam á riqueza congenial d'aquelle solo os thesouros do espirito. E muito importa e cumpre observar que os brazileiros modernamente nos não cedem no zelo de imitar a linguagem pura dos grandes escriptores portuguezes dos seculos de ouro. Não esqueçamos, todavia, que o impulsor d'este brilhante movimento litterario no Rio de Janeiro, e por isso em todo o imperio, é o livreiro-editor Garnier, espirito emprehendedor que tanto faz luzir os talentos que divulga, quanto lucra para si a honra de os fazer conhecidos e laureados. Quem calcular o despendio grande de empresas semelhantes n'aquelle paiz, deprehenda o quanto cumpre que seja robusto e afouto o pulso que removeu as immensas difficuldades com que ha trinta annos lutavam os escriptores do Novo-mundo para se fazerem conhecidos. Coube esta gloria e este triumpho ao snr. Garnier. Falta dizer que os preços dos livros offerecidos no catalogo das casas Chardron, no Porto e em Braga, são modicos, reduzidos, e inferiores ao preço corrente das obras portuguezas de igual tomo. E, pois que estou agradavelmente recommendando livros de brazileiros, seria injustiça não graduar de passagem ao menos o merito de uma obra que recentemente sahia dos prélos portuenses. É o _Estudo sobre a colonização e emigração para o Brazil_. É seu author o snr. Augusto de Carvalho, que tão grave e prestadiamente abre carreira de escriptor, em annos ainda muito na flôr, e com o espirito já a fructear as mais sensatas considerações sobre as questões controversas inculcadas no titulo da sua obra. Á substancia do livro allia-se o primor da fórma, a propriedade do termo, a chaneza eloquente, e, a espaços, a elevação do estylo que não innubla a clareza da idéa. É o snr. Augusto de Carvalho um brazileiro que nobilita as letras da sua patria, e está grangeando um lugar entre os melhores escriptores, e, desde já, o tem distincto entre os bons pensadores e cultores de idéas proficuas. Congratulo-me com os seus conterraneos. Á ACTUALIDADE O meu nome foi banido das columnas d'aquelle jornal. Assim o rosnou o lebreu por entre os arames da mordaça. Foi realmente banido? Então, adeus, desgraçado! Que o mundo tenha tanta piedade de ti, lazaro, quanto eu me arrependo de te haver baldeado do charco da petulancia para outro peor--o do silencio. Adeusinho! coça a tua lepra com os teus folhetins; mas sume-te, escalracho! A EXC.^ma MADRASTA D'EL-REI D. LUIZ 1.º CALUMNIADA Se me arguirem de adulador da senhora condessa, madrasta d'el-rei D. Luiz I, são iniquos. Se esta ditosa dama, em vez de estar no paço das Necessidades, estivesse, a esta hora, em trances de cantora não escripturada, eu sahiria por honra do seu nome de artista contra o calumniador que lhe mareasse os applausos recebidos no theatro do Porto, ha quatorze annos. Em um numero da _Lanterna_, periodico truculento, li que a esposa do viuvo de D. Maria II havia sido pateada na rampa do theatro de S. João, em 1859. É calumnia, que vou desfazer com a imprensa contemporanea. Conceda-se-me a abstinencia de tratamentos regiamente honorificos, em quanto a nobre condessa de Edla me permitte pleitear em prol dos seus creditos de cantora. A snr.^a Elisa Hensler cantou, pela primeira vez, no theatro do Porto, na noite de 8 de outubro de 1859. O _Nacional_ do dia 10 escreve o seguinte: «_A companhia italiana estreou-se effectivamente no sabbado, e não se estreou mal. A escolha da opera foi acertada--«O Saltimbanco»; é uma bella partitura... e a prima-dona Hensler é bella, joven, e canta com mimo. A sua voz, se não é possante, é melodiosa e expressiva, tem alcance bastante para o nosso theatro. O publico ficou agradavelmente surprehendido, e deu lisongeiro acolhimento á mimosa cantora... Tanto no duetto como no rondó mostrou a snr.^a Hensler que possue dotes musicaes pouco vulgares. O sentimento com que cantou os andantes do duetto, a bravura e perfeição na execução da difficil parte do rondó, e aquelles trilos tão nitidos e puros, que ella faz em notas tão agudas no rondó, é sufficientemente para corroborar as grandes e vantajosas informações que a precederam; e o publico foi justo com os applausos e chamadas no fim da opera._» Receio que os detractores da mimosa cantora venham com artigos de suspeição ao _Nacional_, culpando-o de parcial e apaixonado, já no louvor, já na censura, em juizos theatraes. Contra esses artigos redargúo estampando a opinião do _Commercio do Porto_, o jornal mais serio do paiz: «_Abriu-se no sabbado com a opera o «Saltimbanco» de Paccini... Fizeram a sua estreia n'esta opera a primeira dama Elisa Hensler, etc. A prima dona Hensler foi applaudida e teve uma chamada no fim_.» (Commercio de 10 de outubro). E no folhetim de 15 do mesmo mez, confirma n'estes termos: «_A snr.^a Hensler é uma excellente cantora. A sua voz de soprano-agudo é de sonoro timbre; e, ainda que de pouco volume, extensa, flexivel, melodiosa e fresca. Possue, além d'estes dotes naturaes, outros não menos valiosos como cantora: conhecimento do mechanismo do canto, perfeita entoação e expressão. Revela a seu grande merito como cantatriz nos floreios, nas escalas chromaticas, e especialmente nos trinados. Na passagem da 1.^a á 2.^a cavaletta do seu rondó final faz admirar os tres longos e bellos trinados em_ sol, lá _e_ si _agudos. Na difficil cavaletta de sua cavatina do 1.º acto são muito merecidos os applausos que tem colhido. No_ larghetto e cantabile _do duetto do baritono e soprano do 3.º acto, não obstante a agudissima_ tacitora _em que está escripto, não deixa a snr.^a Hensler nada a desejar. A todas estas excellentes condições como artista e cantora reune uma presença sympathica, qualidade esta de muito valor no theatro._» Já no _Nacional_ de 13 este parecer viera corroborado com estes gabos: «_E a prima-dona Hensler? Não desmereceu em nada das primeiras impressões que nos imprimiu._ «_É sempre a cantora mimosa e correcta._» O _Commercio_ de 29 de outubro classifica maviosamente a dôce cantora com esta phrase: ... «_A prima-dona Hensler é o bijou da companhia._» Na noite de 6 de novembro cantou a snr.^a Hensler a parte de _Lucia_. O _Nacional_ diz o seguinte: «_A snr.^a Hensler na aria do 3.º acto remiu-se do fiasco do 2.º, e cantou com tal mimo e doçura que a platéa apesar de gelada rompeu então em reiterados applausos._» (Nacional de 7 de novembro). O _Commercio_, esquivando-se á ingrata e desmerecida palavra _fiasco_, escreve: «_A sr.^a Hensler foi muito applaudida no_ rondó, _e os applausos foram merecidos no_ andante, _que cantou lindamente, executando com admiravel justeza_ a cadencia _em unisono com a flauta... Na cavaletta não foi tão irreprehensivel a execução._» Está de accordo com o _Nacional_ de 8 de novembro: «_A snr.^a Hensler continua a ser applaudida no_ rondó _do 3.º acto, onde a bella cantora revela muito talento. Se a sua voz fosse tão volumosa como é suave, seria uma artista de infinito merecimento._» A 12 de novembro principiam os jornaes a gemer sobre a gaveta do snr. Laneuville, empresario que se dissolvia, com quanto fosse insoluvel. Sem embargo, a snr.^a Hensler, na confirmação dos dous citados jornaes, excedia-se no mimo do canto. Dir-se-hia que attentava em captar com as harmonias dulcissimas da sua voz o archanjo torvo da miseria que espreitava o empresario por entre as bambolinas de cartão esgarçado. Alguns amadores, que previam o desastre da empresa nas cadeiras vasias da platéa, fermentaram a occultas dous bandos que, mais ou menos ficticiamente, se apaixonassem pelas duas damas. É o que se deprehende das revelações do _Commercio_ de 5 de novembro que reza assim:... «_No pessoal da companhia não ha nada que desafie enthusiamo e dê vida animada ao theatro, apesar dos esforços que alguns poucos frequentadores do theatro, dos mais desenfadados, empenham para crear partido ás duas damas._ «_Houve já episodios curiosos; porém nem as damas, nem os seus admiradores conseguem fazer móça no indifferentismo do publico, que reconhece superioridade relativa na dama Hensler; mas não vê ainda assim motivo justificado para se enthusiasmar._» Com a sua usual discrição, omittiu o _Commercio_ os _episodios curiosos_. Bem é de vêr que o amor, ideal da arte das fusas e semifusas, não seria estranho aos sonegados episodios. A radiosa belleza da cantora sem duvida attrahia umas borboletas, que então douravam o seu polen sob as fulgurações do lustre; todavia, como a dignidade da artista se esquivasse ás intrigas de bastidor que, ás vezes, galvanisam os empresarios oxydados, a empresa falliu. Decorreram uns quinze dias angustiados para a companhia desvalida. Hermann, aquelle prestigiador cavalheiroso que morreu ha dous annos, estava então no Porto. Foi elle o generoso valedor dos artistas e ainda do empresario. A companhia, em fim de dezembro, estava dispersa, não deixando um vestigio de fragilidade no seu rasto de pobreza. Em 21 de dezembro d'aquelle anno, uma local do _Commercio_ dizia: «_O vapor Lusitania sahido hontem pelas 12 horas da manhã conduziu 118 passageiros, entre os quaes: Elisa F. Hensler_, etc.» Entrou, pois, na manhã do dia 21 em Lisboa a cantora. Devia levar na alma os lutos da natural vaidade ferida pela indifferença gelida d'uns pisa-verdes que honraram grandemente a mulher, menosprezando a artista. Dos frementes applausos, que a victoriaram quando assomou deslumbrante no palco, ao fastio com que as filas dos seus admiradores rarearam, vai a distancia que medeia entre a mulher honesta e a que permitte que lhe abram saldo de contas em que os applausos representam uma verba. Eu não sei se Hensler, a cantora, escripturada pela empresa de S. Carlos, ao encarar a princeza do Tejo, que devia vestir de negro n'aquelle dia de dezembro, sentiu pavores da sua futura sorte, em theatro de jerarchia tão elevada para suas forças. Não sei porque frontarias de palacios lhe avoejou a vista absorta nas tristezas de quem ia sósinha, forasteira, sem o genio grande que estua no peito as palpitações do triumpho. Não sei; mas, se encarou lá em cima os palacios dos dous reis--com que olhos a esposa do snr. rei D. Fernando avistará hoje o Tejo, por onde entrára n'aquella manhã pardacenta de nebrina carrancuda de agouros esquerdos! Se ella então preveria um marido rei nas Necessidades, um enteado rei na Ajuda, e toda aquella Lisboa, e todo este reino, e nós todos ás suas plantas, nós todos, os bons subditos do rei que é marido, e do rei que é enteado, e d'ella, que vale mais que todos, por que, offuscando-os com a aureola da arte, estrellada das seducções da belleza, nos revelou que os reis deslumbrados eram apenas homens! OS SALÕES CAPITULO II PLEBISCITUM Homem plebeu. _Homo plebeius._ Nos antigos romanos havia tres ordens. A ordem senatoria, equestre e plebea. A ordem plebea val o mesmo que a gente do povo. _Plebiscitum._ Termo da antiga jurisprudencia romana. Deriva-se do latim: _plebs_, plebe, e _sciscere_, que val o mesmo que _assentar_, _ordenar_, _determinar_. E assim _plebiscito_ era o decreto, ou lei posta pelo povo, sem o suffragio dos senadores, mas só ao pedir do tribuno, magistrado do povo. _Plebiscitum._ D. RAPHAEL BLUTEAU. La conscience peut être géante, cela fait Socrate et Jésus: elle peut être naine, cela fait Atrée et Judas. La conscience petite est vite reptile... Les catastrophes ont une sombre façon d'arranger les choses. VICTOR HUGO. A luz não se exprime. Não tem definição. Como a não tem o calor, o magnetismo, a electricidade, e a vida. A luz é o agente ou a acção, que nos adverte a distancia da presença dos corpos luminosos pelo intermedio da vista. Vejamos. A luz propaga-se em linha recta nos meios homogeneos. Obrigada a parar, no seu caminho, pelo encontro d'um corpo opaco--produz os phenomenos da sombra e da penumbra. No mundo moral são a sombra e a penumbra as reacções da sciencia, da arte, da civilisação e do progresso. Analysemos as penumbras. Entremos nas sombras. Desçamos ás trevas. Fóra da vida physica são as trevas a ignorancia, e esta produz o silencio. Ora, o silencio é a paz dos sepulchros. Por que não deveria eu consultar a plebe? Ha por ahi, nas ultimas camadas sociaes, perdidas, nas solidões da miseria, almas tão nobres, aspirações tão vastas, crenças tão vivas... Por que não iria eu consultar os generosos sentimentos populares? E fui. Entrei n'um tugurio qualquer.--Que lhe importa o leitor qual foi? Havia uma mesa de pinho, duas cadeiras, e um catre. Era toda a mobilia. Mas, no meio d'esta hedionda miseria, existia um homem, feito á imagem de Deus; _et creavit Deus hominem ad imaginem suam._ Era um veterano da liberdade. Desembarcára no Mindello. Tinha, na cabeceira do leito, pregada no travesseiro a insignia da Torre e Espada, ganha em Souto Redondo, em lutas titanicas, e em nome da liberdade. Não desenho o soldado, ainda hoje operario. Basta-nos ouvil-o. Li-lhe o manuscripto. Ficou pensativo, e triste. Encostou os cotovelos sobre a mesa, afagou o craneo, como se lhe tumultuassem tantas idéas lá dentro, que não podiam irromper d'aquella abobada de fogo, e depois, em voz baixa, como se receasse ser ouvido, começou assim: --Publique tudo isso. A abstenção politica é mais do que a morte: é a indifferença pelos males sociaes, é a historia d'este torpe individualismo, que nos corrompe, é a gangrena moral d'esta sociedade em dissolução, é a anasarca symptomatica da lesão organica que despedaça a nossa existencia, é o maior de todos os crimes, por que é uma tranquillidade ficticia, comprada á custa dos legados que nós iamos enthesourando para as gerações futuras. A democracia agonisa, no seculo dezenove, quando desabrochava, e se abria em flôr, na arvore, que nós todos plantamos, regada com o sangue precioso de tantos martyres, em nome dos que deviam colher e adorar no futuro, o fructo dos nossos trabalhos. O velho operario, o antigo soldado do cêrco do Porto meditou por alguns instantes, e continuou: --A historia vai esculpida em chronicas de reis, e memorias d'aulicos. A historia ha de escrevel-a um dia o povo, rasgando todas essas paginas mentirosas e lisonjeiras das décadas fabulosas, sahidas das mãos dos eunuchos d'estes harens do occidente. Esta paralysia social em que a geração presente cahiu, esta hesitação absurda e repugnante nos annaes da nossa vida actual tem uma explicação irrespondivel: o mundo espera uma crença viva para se alentar na sua marcha--para respirar, e viver. D'onde virá a fé? Habitantes d'uma peninsula á mercê de tantas invasões, raças tão diversas teem pisado este solo, que difficil, senão impossivel, será buscar-lhes a genealogia. Iberos, celtas, tyrios, phenicios, carthaginezes, numidas, berbéres, romanos, godos, alanos, suevos, mussulmanos, e varias hordas de gascões, e borgonhezes, afóra aragonezes, asturianos, e gallegos sulcaram este solo sagrado. Onde estão os lusitanos?--Onde corre esse sangue mosarabe com que a historia enche a vastidão das nossas campinas, e povôa a crista das nossas montanhas?--Nas trevas das invasões perdem-se os vestigios, e em presença dos aventureiros, que acompanhavam Henrique de Borgonha, apparece uma raça energica, robusta, e corajosa, que põe em derrota a meia lua dos sectarios do Islam, e obriga a dynastia affonsina a conceder-lhe cartas de foraes, que são os pergaminhos e armarias d'esta nobilissima raça hispanica. E o velho soldado do cêrco do Porto curvou a cabeça, e meditou. Depois disse: --Quem são, então, os duques e condes que acompanhavam o aventureiro, e bastardo real? Quem são os mercenarios, que se aformoseavam com as alcunhas ephemeras, e irrisorias dos cargos nobiliarchicos da côrte byzantina, quando estes titulos valiam, outr'ora, pela significação do mando, do poderio e da jurisdicção? Á face da nobre raça hispanica--raça que somos nós--eram elles o enxurro, e a vadiagem das côrtes em que nasceram. Nós eramos o povo, éramos a raça, éramos a tradição. Quem tomou Lisboa aos mouros? Quem levou os arabes e berbéres de vencida até ás costas do occidente? Quem povoou a patria, quando as quinas se desfraldaram em Ourique? Quem coroou D. João I, esmagando as traições de Castella? Quem promoveu a restauração de 1640, e lutou pela independencia da patria? Foi o povo. Deixemos Aljubarrota ao condestavel. Deixemos a restauração aos quarenta conjurados do palacio do conde de Almada. Que poderiam elles sem nós? O zelo, a coragem, o esforço, e o amor da patria só nos cabem a nós.--Vencemos sempre, porque eramos o povo. Batemos com os contos das nossas lanças ás portas de Ceuta, de Tanger, e d'Arzilla, e os bastiões africanos cediam aos nossos esforços. Aportamos em Calecut, Cochim, Gôa, Malaca e Ormuz--e o Oriente dobrou-se á nossa vontade. Que importa, que os cabos de guerra tenham os louros das victorias, e das conquistas? A gloria é nossa. Fomos o instrumento civilisador, o soldado que morre pela patria, o portuguez, que cahe alanceado junto do seu pendão. Para o condestavel, para Vasco da Gama, para Affonso d'Albuquerque, para D. João de Castro, para D. Francisco d'Almeida ha a chronica, ha o livro, ha as tenças, ha a narração dos feitos esforçados e valerosos, ha as recompensas da munificencia regia, e os brazões, que são a commemoração d'esses feitos, esculpidos nos portaes dos seus nobres solares. Para o homem do povo, que pelejou ao lado dos mais corajosos, que batalhou onde havia mais perigo, que abandonou mãi, mulher e filhos,--para esse, ha a valla de finados, triste, e obscura--e a chronica emmudece, porque não é para peões, e villanagem, que foi creada a historia dos reis, e a Torre do Tombo, onde se guardam, e archivam seus feitos e memorias. Para o povo ha o silencio. Quando d'elle falla a historia, alcunha-o de sedicioso, barbaro e turbulento. Para o povo ha o esquecimento. A humanidade é uma idéa abstracta, que vive para a historia, nos vaidosos triumphos dos Alexandres, dos Cesares e dos Pompeus. Quando um homem do povo cahe mutilado, pela arma homicida dos poderosos do dia, chama-se Socrates, chama-se Spartacus, chama-se Gracho, chama-se Galileu, chama-se Danton, chama-se Vergniaud, chama-se Armand Carrel, chama-se Gomes Freire, chama-se _legião_. Mas a historia atravessa estes periodos symbolicos da vida das nações sem commemorar estes nomes? Para que?--Levantou já alguem o estigma que pesa sobre Catilina? A historia divinisou Cesar, e applaudiu Cicero. Rasgaram já os crépes que envolvem o busto de Robespierre, e a fronte de Saint-Just? A França reclamou Bonaparte, e mais tarde victoriou o cossaco, que dos estepes da Russia vinha impôr leis e dynastias ao capitolio da raça latina. E nós?--Aqui o veterano fez uma pausa. Levantou a fronte como se sentira o clarim das batalhas, e continuou em voz sumida e cavernosa: --A nós deram-nos uma carta constitucional, que é como um foral--para não dizer carta d'alforria--a nós deram-nos uma mentira, escripta com o sangue do povo, no sólo sagrado da patria. E o veterano calou-se. Depois como despertado pelo ruido dos combates, como se aquella alma aspirasse a novas lutas, para sustentar os principios por que pelejára, ergueu-se do catre onde estava sentado, e rumorejou: E fallaes-nos de patria! patria aonde, e patria com quem? No Rocio em treze de março?--em Torres Vedras em 1846?--no Porto em 1851?--A patria é o sólo sagrado onde jazem as ossadas dos nossos avós. A patria é o local onde assenta o nosso lar domestico, onde vivem as nossas familias, onde está cravado o pendão dos nossos direitos. A patria é nossa por que derramamos o nosso sangue por ella. Em seguida curvou-se para mim, que estava sentado no fundo d'este triste e miseravel quarto, e disse-me em phrases breves: --Faça-me só um favor. É o unico que lhe peço. Como prologo d'esse manuscripto, publique este papel. É a meditação das minhas noites de insomnia. É o symbolo das minhas crenças. É o credo da minha religião politica. Morrerei contente. Começa por este prologo o manuscripto do desembargador. VISCONDE DE OUGUELLA. O DECEPADO Duarte de Almeida, o alferes de Affonso V, conheço-o desde a minha infancia, por m'o apresentar em verso o meu finado amigo Ignacio Pizarro. Chorei por Duarte de Almeida, como se elle fosse meu avô, quando o infeliz, na volta de Toro, onde os castelhanos lhe deceparam as mãos, se lastimava assim pela bocca do poeta do _Romanceiro portuguez_: Nem a espada, nem a lança Posso nas mãos empunhar!... Ai de mim! triste lembrança!... Nem bandeira tremolar!... Nem bordão de peregrino Póde meu corpo arrimar! Nem o meu pranto contino Tenho mãos para limpar!... Luiza! já me esqueceste?... Talvez tu ora suspires Por outro... se tal fizeste... Coração! ah! não delires... Morto já, tu me julgaste, E se agora assim me viras, D'aquelle a quem tanto amaste Talvez agora fugiras. Talvez nobre cavalleiro Póde alcançar tua mão... Queira o céo morra eu primeiro, Não saiba a tua traição. Que eu antes quero da morte Ter gelado o coração, Do que vir amor tão forte Ter em premio a ingratidão. Com estas e outras piedosas queixas ia o namorado alferes caminho do castello de Aguiar, onde vivia a castellã Luiza. O leitor já me está dizendo que sabe o entrecho do romance de Pizarro: que a donosa castellã, julgando morto o seu amado, lhe fizera cantar os responsos em sumptuosos funeraes: que o cavalleiro, a deshoras, se annunciára na barbacã do castello; e, admittido á capella, encontrou Luiza a vestir o habito de monja: que o decepado, apertando-a ao peito, lhe fez vêr que estava vivo, e que ella, allegando o voto que fizera de professar, cahiu de encontro á eça, e morreu. Termina o trovador: Seu amante desditoso, Mais desgraçado, viveu; Mas o seu fim lastimoso Nunca ninguem conheceu. Bastantes annos--e que ditosos annos!--andei enganado pelo meu amigo Pizarro. Fui tres vezes ao castello do Pontido. Creio que já disse, não me lembra aonde, que encontrei entre as urzes da matta subjacente ao castello um espigão de espora sem rosêta, e suspeitei que ella houvesse sido do infausto amador da castellã. Figurou-se-me, ao cahir da noite, vêl-a no gothico balcão, voltada para os serros fronteiros, suspirar no alaude: Adeus, serra do Mizio! Adeus, val de Villa Pouca! Adeus, castello sombrio! Minha voz ouvi já rouca! Estas impressões da primeira mocidade revivem quando a razão as impugna ao sentimento. De envolta com as minhas indagações historicas na triste sorte da princeza D. Joanna, chamada a _excellente senhora_, o vulto que mais me preoccupava era o alferes da bandeira, Duarte de Almeida, o heroe, o amante da castellã, o decepado cujo ..........fim lastimoso Nunca ninguem conheceu. Quanto ao seu fim, citava Pizarro um trecho de Duarte Nunes de Leão (_Chronica de Affonso V_) muitissimo desconsolador. Alli se diz que o bravo, depois de tamanha proeza, vivera mais pobre que d'antes. Este opprobrio nacional confirma-o modernamente o snr. Pinheiro Chagas, com estas phrases austeras: «O cavalleiro heroico sobreviveu ás suas feridas, e voltou a Portugal onde foi sempre conhecido pelo glorioso nome do _Decepado_. Mas, ó vergonha! o homem que assim tão briosamente se portára, morreu na miseria, porque nenhuma recompensa lhe foi dada, e porque nem se quer podia ganhar a vida pelo seu trabalho, logo que o haviam impossibilitado de trabalhar as suas tristes mutilações[5].» Por honra da patria e da humanidade, apresso-me a declarar que é menos exacto o que Duarte Nunes diz e o snr. Pinheiro Chagas encarece. Logo me justificarei com documentos. Pelo que respeita ao romance de Pizarro, tão sómente dous elementos de verdade historica podemos aceitar-lhe: a existencia do alferes e a do castello de Aguiar. E o certo é que ao meu intelligente amigo não corria o dever de maiores exactidões. Primeiramente direi do castello. Lá está, e já lá estava assim, pouco mais ou menos, antes da fundação da monarchia portugueza. Quem o possuia ou governava, no tempo em que D. Affonso Henriques pleiteava nos arraiaes com sua mãi e com o imperador D. Affonso, era o rico-homem D. Gonçalo de Sousa, genro de Egas Moniz, e senhor da terra de Sousa. Traslada no tom. III da _Monarchia Lusitana_ (pag. 112), fr. Antonio Brandão da _Vida de Santa Senhorinha_, codice áquelle tempo inedito, uma passagem que faz ao nosso intento[6]. Reza assim, melhorado na orthographia: _«Digo-vos que estando folgando em sua terra um principe nobre e cavalleiro d'este reino, o qual era mui privado d'el-rei D. Affonso, e havia nome D. Gonçalo de Sousa, mui poderoso, e todo conselho d'el-rei estava em elle; estando, como disse, folgando, chegaram a elle mensageiros dizendo que os inimigos lhe corriam a terra, e que lhe tinham cercado o castello d'Aguiar; o qual logo chamou suas gentes que pôde haver, e foi-se para haver de descercar o dito castello. E chegando aonde jaz o corpo d'esta santa lhe fez reverencia, e oração não lhe lembrou; e indo ainda em vista da igreja metade de um campo, esteve pegada a mula, em que ia o cavalleiro, a qual elle com esporas e pancadas não podia abalar, mas antes a mula quedava mais rija e pero se desceu d'ella e a não podia abalar; e, vendo elle isto, lembrou-lhe como passára pela igreja da santa sem lhe pedir benção, e mercê, e sem fazer oração, e por isso lhe detinha a mula; e, soffreando a mula para traz para se tornar á igreja, a mula logo tornou, e o cavalleiro fez sua oração encommendando-se á santa, e des i fez seu caminho, e com suas companhas descercou seu castello, e correu depois os inimigos, e tornou a sua casa com victoria_, etc.» O chronista Brandão, por mal informado, escreve que o castello de Aguiar da Pena se avista com as montanhas de Barroso. Estas montanhas distam seis leguas do castello, e entre ellas e o valle em que negreja a fortaleza gothica estão os cabeços da serra de Alfarella, e no horisonte mais elevado alveja villa Pouca de Aguiar. Acrescenta que o castello «é crespo de torres, baluartes e cubellos, e está fundado sobre a corôa de uma penha talhada de uma parte por natureza, que parece obra feita á mão,» etc. Póde ser que no seculo XVII, quando Brandão escrevia, permanecessem ainda as torres e baluartes. O que ha vinte annos parecia ter robustez para seculos eram quatro alterosas quadrellas de alvenaria ameiadas com seus adarves, bastiões, e janellas gothicas sem lavores. Recordo-me ter lido na _Nova historia de Malta_ de José Anastacio de Figueiredo que o castello no seculo XIII pertencia á ordem hospitalaria de S. João de Jerusalem, e cita um aviso que obriga os lavradores circumvisinhos a carregarem pedra para reparos. E não sei mais nada quanto ao solar da phantastica Luiza. Agora vamos em cata do _Decepado_, depois que voltou de Castella. Encontramol-o na sua casa acastellada no seculo XII, que teve o nome de castello de Villarigas, no couto do Banho, hoje concelho de S. Pedro do Sul. É elle o herdeiro de seu pai Pedro Lourenço de Almeida. Afóra aquelle castello, tem outro na quinta chamada da Cavallaria, honrada por el-rei D. Fernando em 1419, e onde os linhagistas enraizam o tronco dos Almeidas. Quando alli chegou, esperavam-o a esposa e dous filhos. A esposa chamava-se D. Maria de Azevedo, filha do senhor da Louzã Rodrigo Affonso Valente e de D. Leonor d'Azevedo, que herdára grandes haveres de sua tia D. Ignez Gomes de Avellar. Os filhos do _Decepado_ chamaram-se Affonso Lopes, e Ruy Lopes de Almeida. Affonso, o successor das honras e coutos de Villarigas e Cavallaria, casou com D. Leonor Vaz Castello Branco, filha de João Vaz Cardoso, aio do conde de Barcellos. O filho segundo, Ruy, foi para Castella, como veador da princeza D. Joanna, filha de D. Duarte, e mulher de Henrique IV. Esta geração de fidalgos continuou honrada e rica até á duodecima neta de Duarte de Almeida, a snr.^a D. Eugenia de Almeida de Aguilar Monroy da Gama Mello Azambuja e Menezes que em 15 de setembro de 1834 casou com o snr. Fernando Telles da Silva, marquez de Penalva, de quem teve dous filhos, Luiz, que, nascendo em 1837, morreu ha poucos annos, e D. Henriqueta de Almeida, que nasceu em 1838, e vive solteira. Do snr. Luiz Telles, que foi casado com a snr.^a D. Maria Francisca Brandão, sua prima, existe uma filha, que é já senhora. Quanto á pobreza _e miseria em que morreu_ Duarte de Almeida, o snr. Pinheiro Chagas foi illudido por Duarte Nunes e Faria e Sousa, que na verdade o authorisaram a deplorar tão sentidamente a sorte do alferes de Affonso V. Duarte de Almeida succedera a D. Duarte de Menezes no posto nobilissimo de alferes-mór da bandeira. Militando nas guerras de Africa, salvou o pendão real das presas da mourisma, quando Affonso V deu batalha na serra de Benacofuf. (Faria e Sousa, _Africa_, cap. 6, §. 7.º) E tanto o rei não foi ingrato aos serviços do seu valente alferes, que, estando em Samora, em 1475, no anno anterior ao da batalha de Toro, ainda antes do heroico feito, lhe fez mercê pelos seus grandes serviços, para elle e seus filhos, de um reguengo no concelho de Lafões, cuja carta de mercê póde lêr-se na Torre do Tombo no _Livro que serviu na chancellaria de D. Affonso V_, folha 17, e começa: _A quantos esta minha carta virem faço saber que pelos muitos serviços que Duarte de Almeida, fidalgo de minha casa, e meu alferes-mór me tem feito assim n'estes reinos de Castella como de Portugal e em Africa, onde sempre me serviu muito bem e lealmente_, etc. O rei, que tanto o apreciára e galardoára, sabido é que foi para França solicitar debalde a alliança do velhaco de Luiz XI. Voltou a Portugal, onde viveu ainda cinco tristissimos annos, forçado a divorciar-se da esposa, desestimado do filho, e desvenerado dos vassallos. Não era, pois, tempo proprio aquelle para premiar heroismos batalha, cuja perda dissimulada em victoria, enlutára o brio e o coração de Affonso V. O decepado, por sua parte, lá tragava o fel dos seus derradeiros annos na abastança dos bens que, certo, lhe não mitigavam as angustias da mutilação; mas em pobreza e miseria não consintamos sequer á poesia que nol-o figure. Se D. João II não augmentou em coutos, honras e senhorios a casa do alferes de seu pai, não o arguamos por isso, sem haver a certeza de que Duarte de Almeida sobrevivesse ao Africano. Na batalha do Toro já devia ir no inverno da vida quem vinte annos antes desfraldára o pendão real em Alcacer-Ceguer, e quem já tinha um filho, que acompanhára como veador a Castella a mãi da princeza D. Joanna por amor de quem andava accesa a guerra. Afóra isso, é de crêr que Duarte de Almeida assistisse ao desastre de Alfarrobeira em 1449, e não fosse dos menos carniceiros na mortandade do duque de Coimbra e dos seus leaes amigos. Ora, transluz da historia que D. João II odiára todos os fidalgos que, de parçaria com o duque de Bragança, malsinaram de traidor o infante D. Pedro. Ajuda estas suspeitas ser o primogenito de Duarte de Almeida casado com a filha de um que fôra aio do conde da Barcellos, antes de ser duque de Bragança. Já, porém, o successor de D. João II galardoou o neto do decepado, dando-lhe o senhorio da villa do Banho, a provedoria das caldas de Lafões, e lhe confirmou o privilegio e couto da quinta da Cavallaria. Em remate de tão derramadas provas, quero deixar bem assente que Duarte de Almeida, o meu tão chorado heroe do sentimentalismo da infancia, não morreu pobre, nem acabou na miseria do homem que, á mingua de mãos, não póde trabalhar. Por fim, não sahirei do paço senhorial da Cavallaria sem consolar o leitor pio e mais lido em cousas do céo que em nobiliarios, que n'aquella casa nasceu o bemaventurado S. frei Gil, chamado de Santarem, e que Almeida Garrett ajoujou com o dr. Fausto no poema _D. Branca_ e nas _Viagens_. Ainda hoje, n'aquella casa, perdura uma capella edificada na alcova onde nasceu o sabio feiticeiro e pactuario do demonio. Observe-se que o conde D. Pedro, no _Livro das Linhagens_, tit. 25, pag. 151, diz que Gil fôra assassinado por Pedro Soares Galinato; mas o chronista-mór João Baptista Lavanha desfaz o erro,--o que eu muito estimo para que se não desluza a substancia da bella prosa de fr. Luiz de Sousa, historiador do santo. [5] _Historia de Portugal_, tom. III, pag. 28. [6] O codice está integralmente impresso nas _Memorias resuscitadas da antiga Guimarães_, pelo padre Torquato Peixoto de Azevedo, em 1692, pag. 444-476. Sirvo-me d'esta copia, corrigindo os erros do traslado de Brandão. CARIDADE BARATA E ELEGANTE O advogado Sampaio Efrin morreu, ha cinco annos, em Lisboa, e deixou dous filhos illegitimos, que já não tinham mãi. Amára-os extremadamente. As duas crianças excruciaram-lhe a agonia; mas expirára com a certeza de que seus filhos, e herdeiros de parte de seus haveres, não balbuciariam, em horas de fome, o nome de seu pai. Mas a justiça desherdou os orphãos, e deu o espolio do advogado á sua viuva. O menino alimentou-se cinco annos da caridade de uma criada de seu pai. E, quando tinha seis, appareceu livido e pobremente vestido a pedir esmola no tribunal da Boa-Hora--alli, onde seu pai triumphára nas lides da eloquencia. A bemfeitora que, até áquelle dia lhe repartira do seu pão, quando sentia a mão da morte sobre o seio, disse á criança que fosse ao tribunal e mendigasse, lembrando-se que alli concorriam pessoas que tinham conhecido seu pai. O snr. João Bernardino da Silva Borges viu o menino andrajoso, a tiritar, com o espasmo da fome nos olhos--aquelle olhar espavorido da miseria--que parece sagrada nas criancinhas--aquelle olhar torvo, expressão de assombro do anjo a tremer sobre o cairel d'este inferno do mundo. O menino tinha uma carta na mão. O snr. Silva Borges leu a carta. Era a supplica da moribunda a favor do desvalido filho de seu amo. E conduziu a criança, onde lhe dessem a esmola do jantar e da cama. Ao outro dia, o _Jornal da Noite_, publicando uma carta commovente do protector do orphão, acompanhava a invocação á caridade de sentidas e pungentes palavras. E, no dia immediato, o mesmo jornal exultava noticiando que o orphãosinho estava amparado, no regaço da caridade abundante, nos braços de alguem que ouvira o echo das divinas palavras de Jesus: «Deixai que as criancinhas se aconcheguem de mim.» Volvidas duas semanas, á volta do menino, a caridade faz-se representar por nove senhoras illustres, quanto cabe inferir dos appellidos. Nove anjos, as nove musas da inspiração santissima, nove corações a desbordar de generosidade, dezoito mãos cheias de caricias e do superfluo da sua riqueza, para afagar, alimentar e educar um menino a quem esta setima primavera bafeja os primeiros risos de sua enfezadinha puericia. É muito! Mas estas nove damas assumem cada qual sua nomenclatura: Uma, chama-se _presidenta_; Outra, _vice-presidenta_; Quatro, são _vogaes_; Uma, é _thesoureira_; E as outras, são _secretarias_. Mas que tem isto que vêr com o orphão? O congresso das senhoras, assim qualificadas em categorias de banco, de junta de parochia, de empresa aurificia, de companhia das aguas, organisou-se d'este feitio para dar uma pensão de 300 reis diarios--o bastante--ao pequenino no collegio? Quer-me parecer dispensavel tamanho funccionalismo em operações tão singelas! São nove senhoras abastadas que se fintam, quotisando-se cada uma em 33 reis por dia, ou dez tostões por mez. É, na verdade, barato o salvar-se um menino e fazel-o homem! Seis ou oito annos do pão e estudo d'aquella creatura--que ss. exc.^as hão de enfiar com santa vaidade diante da sepultura de seu pai--não póde custar a cada uma tanto como dous dos seus vestidos medianamente guarnecidos. Então, qual vem a ser a missão das exc.^mas presidenta, vice, vogaes, thesoureira, secretarias? Leitor, que estás a impar de ternura, e tens o rosto banhado de lagrimas de consolação, saberás que as referidas nove senhoras--que tu já conheces dos lautos bailes, e das _toilettes_ esplendidas--congregaram-se agora _para promover um beneficio ao orphão no theatro de D. Maria_. Ahi está o que é. Ainda agora é que estas dadivosas senhoras vão sondar a magnanimidade publica; vão dar uns toques de elegante apparato á caridade, e ao mesmo tempo convidar-vos a pôr hombros áquella ponderosa empresa de agasalhar uma criancinha que se alimenta com um pouco de amor e algumas migalhas sacudidas das cêas opiparas. A caridade de Lisboa! A caridade do espalhafato! Aqui, no Porto, o orphão, a esta hora, estaria agasalhado, sem que a imprensa conhecesse o nome do bemfeitor. E a imprensa de Lisboa exalça encarecidamente a exuberante bizarria das senhoras que promovem nos corações alheios o sentimento da esmola. Peço licença para tambem me accender em admiração de tamanho arrojo, e perguntar, por esta occasião, aos jornalistas se, no seu cadoz de phrases, ficou alguma com que se louve aquella criada pobresinha que sustentou o menino cinco annos, e o largou do seu seio quando o coração se lhe afogou nas ultimas lagrimas. PROFUNDA REFORMA NOS COSTUMES DA VIA-FERREA PORTUGUEZA Quando Portugal emergia das trevas da meia-idade, em 1873, e a via-ferrea de Portugal era roupa de francezes, o scintillante escriptor Ramalho Ortigão enviou aos snrs. _François et Ladame_ (cumpre não aceitar a traducção de Bordalo Pinheiro--_Francisco e a mulher_) uns urbanos queixumes ácerca da bruta ladroeira que os funccionarios da via-ferrea perpretaram em parte das batatas de um sacco enviado desde o Minho ao percuciente critico. Ortigão, cujo agudo espirito argúe abstinencia de alimentação farinacea, conclue a sua epistola, modêlo de graça portugueza--que é a graça de todo o mundo--offerecendo aos directores da via-ferrea todas as futuras e porvindouras batatas, visto que ss. s.^as, cedendo-lhe algumas, soffriam tal qual desfalque. N'esse tempo, estava eu em Lisboa a vasquejar nos demorados paroxismos da anemia, resultante de dyspepsia, complicada com hepatite, e prodhromos de encephalite, e symptomas de curvatura de espinha, e esgotamento de fluido nervoso, afóra a espinhela cahida. Escrevi, n'esta concurrencia pathologica, a um amigo meu, residente no Porto, que me comprasse alli doze garrafas do mais antigo e secco vinho que se lhe deparasse em garrafeira particular. Quando conclui a carta, cuidei que expirava, por que tinha consumido em quatro idéas sem estylo o oxygeneo e acido carbonico de que podia dispôr. D'ahi a dias, o meu amigo enviou-me o titulo de recepção de doze garrafas de vinho, compradas por 12 libras, e enviadas pela «grande velocidade», cuidando elle que os ladrões não as apanhariam na carreira. Como se as doze garrafas se me figurassem outras tantas botelhas de Leyde a descarregarem electricidade sobre os meus grandes-sympathicos e regiões limitrophes, saltei da cama, e fui receber o meu vinho--a minha salvação--a Santa Apolonia. Recolhido o caixote á sege, e baixados os stores, debrucei as regiões do meu olfacto sobre as fisgas da tampa do caixão, na esperança de aspirar alguns atomos de tanino. Cheirou-me a azeite. Entendi que havia perversão na minha membrana pituitaria, uma narizite, unica molestia que me faltava. Assim que entrei em casa e o caixão se abriu, não sei bem o que vi, nem como perdi a consciencia dos dous _eus_. Sei que, volvidas horas, recobrando o espirito, e querendo recordar as causas de tão comprido lethargo, perguntei aos circumstantes, distillados em lagrimas, se eu tinha lido algum livro de Theophilo. --Não, infeliz!--respondeu-me voz sincera--não foi tamanha a desgraça que te fulminou; o que tu viste foi seis garrafas do teu vinho, que te custaram seis libras, substituidas por seis garrafas vasias que tiveram azeite. A minha primeira idéa foi gritar á d'el-rei; lembrando-me, porém, que o rei não governa, quiz chamar o cabo da rua; depois, passou-me pelo espirito recorrer á camara «baixa» e ao patriarcha. E, por fim, chorei copiosamente, e bebi dous tragos de uma das seis; e logo, á semelhança das nações oppressas, que se levantam como um só homem, tambem eu me levantei sósinho; e, clamando um rugido grande, pedi á Providencia das raças latinas que nos désse um administrador dos caminhos de ferro, nascido e baptisado n'esta terra dos Affonsos e dos Joões. Fui ouvido, e as cousas melhoraram consideravelmente. N'este anno de 1874, 2.º da Emancipação, tenho recebido reiteradas provas da melindrosa cortezia que assiste ao funccionalismo do transporte da via-ferrea portugueza. Se em 1871 não chorei mediante os prelos, hoje lamento não ser um cytharista bastante lyrico para dignamente arpejar um fado expresso do citado funccionalismo. Direi da cortezia com que alli são tratadas as minhas cousas. Tendo eu recebido em Lisboa seis garrafões de aguardente das nossas colonias, lacrados e cheios, enviei-os d'alli para o Porto cheios e lacrados. Ao cabo de onze dias de jornada, os garrafões chegaram a minha casa... inteirinhos! Se isto não é probidade, a virtude era aquillo que dizia Catão. Notei, porém, uma insignificante cousa: os garrafões chegaram deslacrados, e levavam pouco menos de metade do liquido; mas inteiros, perfeitos, sem rachadella, nem esquirola de menos. Um d'estes dias, em dous caixões de vinho da Madeira, que me eram enviados de Lisboa,--e foram retidos para despacho nas Devezas, posto que já em Lisboa houvessem pago direitos--observei ainda mais refinada cortezia; porque, apparecendo algumas garrafas quebradas, teve aquella honrada e limpa gente o cuidado de lhes trasfegar o vinho a fim de que as outras se não molhassem--de modo que chegaram enxutas. E fez mais: teve outro sim a bondade de tirar algumas garrafas para que as outras chegassem mais desafogadas da pressão das visinhas! Eu não conheço maneira mais subtil de obrigar a gente a um reconhecimento eterno, e a... acautelar o relogio. FORMOSA E INFELIZ A dita e a formosura, Dizem patranhas antigas, Que pelejaram um dia, Sendo d'antes muito amigas. Muitos hão que é phantasia; Eu que vi tempos e annos, Nenhuma cousa duvido Como ella é azo de damnos. BERNARDIM RIBEIRO. São verdadeiras as trovas do poeta das _Saudades_. Aquella Maria da Penha que o leitor viu, ainda agora, carpida n'um soneto, foi muito incensada por formosa antes da sua queda. Uns poetas a embriagaram com o perfume da lisonja, em quanto ella se manteve honesta; outros lhe depozeram alguns bagos de assafetida na ambula funeraria, quando os seus creditos eram mortos e responsados no catafalco que a sociedade levanta ás suas mesmas victimas. E já que eu trasladei o soneto, como epitaphio do seu tumulo no convento onde se finou, trasladarei tambem uns versos que lhe deram alor e azas á vaidade que a perdeu. Suspeito que o poeta d'estes cantares não fosse o fidalgo que a levou arrebatada de entre um thalamo e um berço. Os poetas, por via de regra, costumam enflorar os holocaustos sacrificados nas aras da prosa. Assim o requer o equilibrio do cosmos. Á poesia--a lyra que insinua no coração da mulher as phantasias com que mais se alinda e encarece; á prosa--as delicias d'essas bellas cousas, o dominio das aves do paraiso, que os poetas farejam, á laia de nebris que pairam a denuncial-as ao caçador sagaz. A meu vêr, em quanto o marquez de Gouvêa mandava ajaezar os cavallos para a funesta fuga, um dos muitos idolatras da formosissima Maria motejava uma quadra e derivava d'ella a glosa tão presada n'aquelles tempos: A D. MARIA DA PENHA DE FRANÇA MOTE Abre-te, _penha_ constante, serás minha sepultura; e, se os meus ais te não movem, digo-te, penha, que és dura, GLOSA _Penha_, já sei que és tão dura, porque dous soes te geraram; seus raios te despojaram das reliquias da ternura: Porém, se a corrente pura de meus olhos incessante abrandar um diamante; a meu pranto sucessivo, quebra-te, marmore vivo, abre-te, penha constante. Até nas mais duras _penhas_, lavrador o tempo sendo, as aguas, que vão correndo, fazem regos, abrem brenhas. Não receies tu que venhas a perder por menos dura; pois meu pranto o que procura é desfazer-te em piedade; e, se abrir concavidade, serás minha sepultura. Lagrimas não te enternecem antes te tornam mais dura; roubou-lhe o preço a ventura ou por minhas desmerecem. Meus ais sentidos parecem golpes, que pedras commovem; mas como faiscas chovem de ti, que farei, oh _penha_, se o teu rigor mais se empenha e se os meus ais te não movem? Teu nome a dizer se empenha quem tu és por semelhança; pois no garbo és toda _frança_, na dureza és toda _penha_: _Penha_ em que pienha tenha essa rara formosura; mas, se estatua ser procura a meu suspiro incessante, mais que o mais duro diamante, digo-te, _penha_, que és dura. ANTONIO SERRÃO DE CASTRO As indagações de Diogo Barbosa Machado, ácerca do poeta Serrão, reduzem-se a datar-lhe o nascimento. Á falta de outros subsidios, bastariam as poesias do travesso sujeito a esclarecer-lhe a vida mysteriosa aos mais atilados investigadores. O maior numero d'ellas está inedito. E o seu mais notavel poema, em tercetos, que perfazem 2:090 versos octosyllabos, chama-se _Os ratos da inquisição_. No palacio da inquisição passou elle alguns annos de sua vida, que de certo não foram os melhores. Pelos modos, era hebreu dos quatro costados; mas não adorava o bezerro, nem se abstinha dos paios do Alemtejo. Em quanto o deixaram, viveu e medrou á lei da natureza. Seguiu fervorosamente a religião do prazer, repartindo alma e versos por judias, christãs e mouras, consoante lhe sahiam a talho de fouce. Tanto afinava a lyra para cantar fidalgas como regateiras. Entre estas, houve uma vendilhona de maçãs camoezas que não foi das menos amadas e menos esquivas. Se os poetas modernos querem ajuizar do lyrismo plebeu d'este seu bisavô, aqui teem uma das cançonetas dedicadas á saloia das camoezas, e cantada pelos cytharedos d'aquelle tempo: Para a feira vai Luiza Co seu balaio á cabeça Todo enramado de louro E cheio de camoezas. Leva saia de jilezia, Tambem jubão branco leva, Que serve o jubão de branco[7] D'onde Amor atira as flechas. Sobre os dedos, pendurados Leva seus punhos de renda, Tão valentona caminha Que treme o bairro de vêl-a. Lá no meio do Rocio Levanta a voz mui serena Como se aprendera solfa: «Eu já tenho camoezas.» A voz tão divina e grave, A voz tão de prata e bella, Os galantes se alvorotam E ferve a bulha na feira. Deixam todos as boninas Só por ver esta açucena; Em um momento, cercada Se viu esta fortaleza. Os requebros que lhe dizem São balas de feras peças: Mas no muro de seu peito Acham grande resistencia. Uns apreçavam a fruta, Outros tiram da algibeira Ás mancheias os tostões, Aos alqueires as moedas. Mas Luiza, mui de espaço, Levantando a voz tão bella, De quando em quando repete: «Eu já tenho camoezas.» Hoje em dia, por acerto haverá ahi poetastro a quem pareçam, sequer toleraveis, estas linhas toadas, sem faisca de ideal, sem realismo, sem as satanisações modernas; no entanto, o coração entende-se melhor n'aquelles poetas que, em vez de se evolarem á poeira luminosa da via-lactea, andavam alli pelo Rocio amoriscados de fruteiras de camoezas. Por causa d'estes amores innocentes e frescos, não foi Antonio Serrão de Castro disputar aos ratos da inquisição a magra pitança da sua alcofa. O leitor alguma vez ha de lêr os queixumes do hebreu, repassados de tanta ironia, que a gente se admira que os graves monges de S. Domingos lhe não acendrassem o engenho no fogo. Quando o poema satyrico se escoou das grades do carcere para a assembléa dos catholicos, um poeta christão, no intuito de apressar o processo do judeu, divulgou as seguintes decimas: Judeu de mau proceder, Que, se em teus versos discorro, Logo pareces cachorro, No ladrar e no morder. Ainda espero vêr-te arder, Pois com tanta sem-razão Murmuras da inquisição; Porém, é força em teu erro, Se te tratam como perro; Que te vingues como cão. Dos ratos, d'esta maneira, Te queixas e de seus tratos; É mau queixar-te dos ratos, Estando na ratoeira. Tua allusão sorrateira Saber o engenho procura, E a rhetorica se apura N'esta allusão que formaste, Pois d'esta figura usaste, Antes de fazer figura. Nescio, depois de judeu, Quando o sambenito mamas, Triste portuguez te chamas, Sendo o mais astuto hebreu! Quem te vira posto em breu Ou partido de uma bala! Ninguem comtigo se iguala, Pois fazes, quando precito, Sendo infame o sambenito, D'esse sambenito gala. Se viveste descortez, Com repetida torpeza, Mais á lei da natureza Do que na lei de Moysés, Queixa-te só d'esta vez De ti, mas não de outro trato; Que eu sei que nunca do rato Te queixarás, asneirão, Se assim como foste cão, Poderás tornar-te gato. Os ferventes desejos d'este catholico, assim rimados, chegaram ao ergastulo do cantor dos ratos, e vibraram-lhe os nervos da espinha dorsal. Não lhe pareceu caso novo e original queimarem-no. Embridou, por tanto, a musa da galhofa, e cahiu em si. Começou de escrever poesias orthodoxas ao nascimento do Menino-Deus, aos santos e santas mais em voga, ungindo tudo de lagrimas de contrição que era uma piedade lêr-lhe os sonetos, os quaes, ainda agora, li bastantemente commovido. O certo é que o vaticinio do bardo christão foi desmentido pelo hebreu que sahiu absolto, e por ahi andou por Lisboa até aos setenta e quatro annos, rindo de tudo com resalva das conveniencias, e vivendo com as largas, que lhe davam os seus admiradores, e acamaradado com os primeiros fidalgos. Nasceu em 1610 e morreu em 1684. [7] Alvo. FIM DO 4.º NUMERO *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA, OFFERECIDAS A QUEM NÃO PÓDE DORMIR. Nº 04 (DE 12) *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. 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START: FULL LICENSE THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license. Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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