The Project Gutenberg eBook of Folhas cahidas, apanhadas na lama por um antigo juiz das almas de Campanhan

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Title: Folhas cahidas, apanhadas na lama por um antigo juiz das almas de Campanhan

Author: Camilo Castelo Branco

Release date: November 15, 2007 [eBook #23486]
Most recently updated: January 3, 2021

Language: Portuguese

Original publication: Porto: Typographia de F. G. da Fonseca Rua das Hortas N.º 152 e 153, 1854

Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
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*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK FOLHAS CAHIDAS, APANHADAS NA LAMA POR UM ANTIGO JUIZ DAS ALMAS DE CAMPANHAN ***



[1]

FOLHAS CAHIDAS,

APANHADAS NA LAMA,

POR

UM ANTIGO JUIZ DAS ALMAS DE CAMPANHAN,

E

SÓCIO ACTUAL DA ASSEMBLEA PORTUENSE,

COM EXERCICIO NO Palheiro.


OBRA DE QUATRO VINTENS,

E DE MUITA INSTRUCÇÃO,




PORTO:

TYPOGRAPHIA DE F. G. DA FONSECA,

Rua das Hortas n.º 152 e 153.


1854.

[3]

EU.

Saibam todos quantos virem

Este publico instrumento,

Que surgiu mais um poeta

Nos aloques do talento.

Não pertenço á mocidade,

Que fechou sem caridade

Da velhice a pobre tumba.

Não sei palavras d'estouro,

Nem descanto em lyra d'ouro:

Minha lyra é um zabumba.


Eu, sou eu. Juiz das Almas,

Nos bons tempos, que lá vão,

Conheci que tinha uma

Como poucas almas são...

Campanhan! terra dos saveis!

[4]
Que doçuras inefaveis

Tens nos teus prados amenos!

Ai! Maria da Cancella!...

Cada vez que fallo n'ella,

Sou Petrarcha... em fralda, ao menos!


Dai logar á catarata

D'uma lagrima que rola

Pelas faces, como orvalho

A aljofrar uma papôla,

Respeitai a desynth'ria

Desta enferma poesia,

Que resiste á Revalenta!

Braz Tisana
, esse que diga,

Em que estado anda a barriga

Da Musa, nos seus outenta!


Deixai que um velho recorde

Aureos sonhos infantis!..

Campanhan, mansão das fadas

Onde estão tuas houris?

Ledas brisas que brincaveis

Entre as pestanas dos saveis,

Lindos saveis de coral!

Onde estaes, em que paues

Murmuraes, auras tafues,

Vosso hymno angelical!

[5]

Raios palidos da lua

Alta noute, em ceo d'anil,

Já não são os que argentavam

Estes lagos de esmeril!

Nem é este o pulcro savel

Que me deu sorriso afavel

D'entre os verdes salgueiraes!

Nem aqui meu peito anceia

Os carinhos da lampreia

(E outras asneiras que taes).


Quando eu era o mago enlevo

Das fadas de Campanhan,

Apanhava a borboleta,

Que doudejava louçan.

E, por tardes d'almo estio,

Lá nas margens do meu rio

Vi delicias de encantar....

--Pyrilampos, suspirando,

Qual Camoens suspira arfando

Os estos do seu penar.


Ai! trovas da minha aldeia,

Que saudades me doeis!

Doçuras da minha vida,

Quando eu cantava os reis!

Viola d'Antonio Pinto,

[6]
Onde estás, que inda cá sinto

O gemer dos teus bordoens!

Minhas chinelas côr d'ovo,

E meu par de sócos novo,

Tão rico d'inspiraçoens!


Lá vai tudo! E minha alma

Erma, esteril, sinto aqui....

Como o lyrio enruga o calix

A fronte calva pendi!

Poeta da lyra amarga,

Vérgo ao peso desta carga

De descrença e maldição!

Lacerado em meu orgulho,

Quero o sangue, o serrabulho

Desta infame geração!


E, depois que a minha lousa

Parta d'um raio a centelha,

Hão-de ouvir ranger meus ossos

Como carruagem velha.

E a mortalha ensanguentada

Como a tunica manchada

Do Cesar de Campanhan,

Ha-de ser mostrada ao povo,

Ha-de ouvir-se um grito novo

Nas praias do Gengis-kan!

[7]

AOS BAROENS.

Amigos! sinceridade!

Não sejamos todos tolos;

Deixai vêr os vossos rôlos

De brasoens.

Ninguem disse ainda ao certo

Onde vão, donde vieram

Os baroens.


Dizem velhos alfarrabios

Que os baroens da idade d'ouro

Davam tapona de mouro,

Fanfarroens!

Nesse tempo eram
crusados
,

Hoje fogem dos
cruseiros
,

Os baroens.


Os de então na Palestina

Eram rijos e potentes;

Mas os d'hoje são valentes

Nos certoens.

Quem domina as vastas tribus

Dessas plagas africanas?

Os baroens.

[8]

Quem envia, mar em fora,

As esquadras dos
Trajanos
,

D'archejantes e ufanos

Galeoens?

Quem envia
Guerra
aos barbaros,

E lhe algema os pulsos livres?

Os baroens.


Digam lá o que disserem

Contra os
crusados
da moda,

Sois os grandes deste reino,

Meus baroens!.. sabeil-a toda!


«Carne humana!! escravaria!!!

Crime atroz!!!!» são palavroens.

Chia a imprensa? ha-de calar-se...

Sabeil-a toda, baroens!


Vossos pais quando vieram

De Figueiró para aqui,

Quem diria... vendo vil-os

Como eu chegal-os vi!..

[9]

Era assim: via-se um mono

De jaqueta de cotim,

E calças de estopa grossa

E pernas côr do carmim.


Trazia sócos ferrados,

Em que pés!.. Deus nos accuda!..

Lenço vermelho amarrado

Na cabeça ponteaguda.


Vosso avô vinha com elle,

E gemia derreado

Sob um saco de batatas

Do patrão mimo adorado.


Vossa avó, de pé descalço,

Traz canastra com toucinho,

Pão de broa corpulenta,

Borracha de verde vinho.


Inda hontem eu vi isto!..

E vossês sus patuscoens,

Devem espantar-se comigo

De serem hoje baroens!

[10]

Querem de graça um conselho?

Não fallem, que faz tristeza,

Vêr o raso da toleima

A que desceu a nobreza!


Burros ficam sempre burros,

Embora tragam selim,

Cravado de diamantes

E estofado de setim.


O brilhar dessas commendas

Não vos muda a condição.

O instincto vos arrasta

Para o covado e balcão.

[11]

HYMNO
AO HECKER SALOIO.

Senhor Fontes Pereira de Mello,

Que sois Pitt, e
pitada
tambem,

Já que tudo metteis n'um chinelo

A cantar-vos a banza aqui vem!


Senhor Fontes! Sois de Lysia

O que ninguem inda foi!

Quem dissera que tão perto

D'um Sangrado existe um heroi!


Longo tempo o cultor da batata,

Senhor Pitt, por vós suspirou.

As abob'ras meninas murcharam,

E a mesquinha cebola grelou!


Mas creaste um ministerio

D'agricultura, ó portento!

Era um gosto vêr o grêlo

Sob o imperio do Fomento!

[12]

E o repôlho, a cinôra, o coentro

Espontaneos brotavam nos montes;

E nas folhas da côve tronxuda

Viu-se escripto: «Gloria ao Sôr Fontes!»


Senhor Fontes! vosso nome

Pelas hortas se dilata!

Como o Cesar é na Fabia,

Sois salvador da batata!


Carangueijos os lusos viviam

Desterrados n'um solo infeliz!..

E, comvosco, quebrar inda esperam

Nos caminhos de ferro o nariz.


Senhor Fontes! este povo

Vossa gloria proclama,

Quando viaja enterrado

Té ao pescoço na lama.


Era triste esse tempo d'outr'ora

Em que um homem quebrava um quadril,

Nessas quinas d'estrada de pedra

Onde agora fumega um carril!


Á vista disto, Sôr Fontes,

(Á parte censuras tolas)

O paiz quer-vos na fronte

Uma restea de cebolas.

[13]

Quando o Porto vos deu quatro patos,

E de forno o arroz competente,

Quiz mostrar-vos que a gloria é um sonho,

Quando o ventre não anda contente.


E comestes, senhor Fontes,

E fizestes muito bem;

Colbert, Necker, e Pitt

Comiam patos tambem.


Quem nas polkas mostrou mais donaire?

Quem nas walsas mais quebra a cintura?

Quem melhor joga a tibia flexivel?

Quem compete comvosco em tesura?


Senhor Fontes, dous instinctos

A natura em vós relata;

A não serdes o Fomento,

Devieis ser acrobata.


Beatus venter qui te portavit,

Diz a patria na sua expansão!

Desde o Vistula ao Douro retumbam

Algazarras de rouca ovação!


Gloria, gloria ao rasgado

Fomentador immortal!

Modelo dos bons bigodes,

Permanente carnaval!

[14]

O DROPP.

Aranha de pau de pinho

Caranguejola, que és?

És o dropp; ora o dropp,

É uma cousa (diz Pop)

Sem ter cabeça nem pés.


Visto isso; temos dropp;

Ninguem tenha á barra medo.

A asneira não é tão calva;

A gente sempre se salva;


De que modo? isso é segredo,


Os praguentos já resmungam

Contra aquelle immenso trem;

Dizem que é força acabar,

Não só nas furias do mar

Mas nas do dropp tambem.

[15]

Este dropp é um segredo,

As finanças um mysterio.

Vêdes n'aquella gaiola,

Uma parva cabriola,

Imagem do ministerio?


Navegantes! acautelem-se!

Em posição desastrada

Empreguem maior cuidado

Que lhe não venha ao costado

Uma tremenda caibrada.


Aquelles paus são synistros

Como o cavallo de Troya;

Tudo aquillo é muito serio;

Tem não sei que de funereo

Dos carroçoens do Lagoia!


Tanta tabua consummida

Nessa funeraria asneira!..

Não 'stava ahi um sujeito

Com tanto dropp já feito,

Manoel José d'Oliveira?

[16]

Economia
! sarcasmo

Deste ministerio-dropp,

Que cravou no calcanhar

A espora que faz andar

As finanças a galope!


Sou de voto que se dê

Ao dropp um uso real:

--Seja a estufa, com recatos,

P'ra guardar os cinco catos

Do ministerio actual.

[17]

O SEU A SEU DONO.

A Cesar o que é de Cesar,

Aos velhos o que é dos velhos!

Quem da crytica se encarga,

Deve andar estrada larga

E não metter-se por quelhos.


Sou assim! E mais sou velho

Mas a verdade é tambem,

Custe embora a quem custar,

A verdade hei-de-a fallar

Seja em mal, ou seja em bem.


Epaminondas Tebano,

A
Concordia
e o
Nacional
,

Nem a rir disseram petas:

Eu tambem como as gazetas,

Sou da honra o pedestal.

[18]

Não consinto que se diga,

Que só lavra a corrupção

Nas entranhas dos mancebos.

Eu conheço muitos gebos

Corruptos de profissão


Quem quizer venha ao
Palheiro

Desta nossa Assemblea,

Ha-de vêr linguas farpadas

Em bocas já desdentadas

Maculando a honra alheia.


Ha-de vêr velhos devassos

Como em lubrica orgia,

Já vergados nas cernelhas,

Memorando infamias velhas

Com satanica alegria.


Ha-de vêr o extincto frade,

C'o a bochecha rubra e gorda,

Acerando o epygramma,

Nem se quer poupando a
ama
,

Que lhe faz em casa a sôrda.

[19]

Ha-de vêr o millionario

Brazileiro, com mil tretas,

A contar, com sujas cores,

As lendas dos seus amores

Com as
suas
trinta pretas.


Estes taes são os que infamam

A mocidade infeliz!

São estes em cuja tez

O oleo da estupidez

É da vergonha o verniz.


A mocidade não pode

Vencêl-os, não pode, não!

Dominam, são respeitados,

Representam vinculados

Os tempos da corrucção.


Nascidos, quando por terra

Os homens lançaram Deus;

Tem só fé no sensualismo,

E escarnecem com cynismo,

As crenças filhas dos ceus.

[20]

Gangrenado o corpo e alma,

Sem saber, e sem piedade,

São authomatos de barro,

Que resistem ao catharro

Pr'a vexar a humanidade.


Onde existe a virgem pobre,

Que de maguas vive cheia,

Lá vai ter uma mensagem

Da senil libertinagem,

Que o pudor lhe regateia.


Perguntai nesses alcouces

De miseria e compaixão,

Quantas victimas da fome

A deshonra ahi consomme,

E de quem victimas são.


Heis d'ouvir factos nojentos

Destes velhos que se arrastam

Sobre a lama das torpezas,

Das luxurias e villezas

Em que, cynicos, repastam.

[21]

Velho sou, bem alto o disse;

Mas deshonro-me de ser

Desta geração de velhos,

Em que os moços tem espelhos

Onde infamias possam ver!


Mocidade generosa!

Os teus crimes, tem nobreza;

Quando falla a consciencia,

Nem negaes a Providencia,

Nem manchaes a natureza.


Elles não; sempre atufados

Em nojentos tremedaes,

Crêem só no seu dinheiro,

No cavaco do
palheiro
,

Na barriga, e nada mais.


A Cesar o que é de Cesar,

Aos velhos o que é dos velhos!

Quem da crytica se encarga,

Deve andar estrada larga,

E não metter-se por quelhos.

[22]

CONTO MORAL.

Um
attaché
, que vivera

Em Pariz uns quatro mezes,

Voltando á patria mesquinha,

Não roubou nem palavrinha

Aos seus amigos francezes.


Quando entrou nos patrios lares,

Já não era o mesmo filho;

Sua mãe dobando estava,

E o
attaché
perguntava

Que nome tinha o sarilho?


Desceu á loja onde estava

O honrado pai ao balcão.

E mal dera ainda um passo,

Quando viu que estava um engaço

Estendido alli no chão.

[23]

Ora, o engaço tinha uns dentes,

Onde o tolo põe um pé,

Quando ao pai enthusiasmado,

Perguntou todo anafado:

Este engarilho que é?


Vai o cabo levantou-se,

Que assim era de suppor;

Vem direito ao infeliz

Quebra a ponta do nariz,

Do futuro embaixador!

MORAL.

Não venham fazer-se finos

Á patria os
attachés
,

Quem vai tolo tolo volta,

Inda que traga uma escolta

De anedoctas dos
Cafés
.

[24]

EPYSTOLA

AO EXCM.o VISCONDE DE ATHOGUIA EM DUAS VIDAS; MINISTRO DA MARINHA DOS TRES BRIGUES, E DOS NEGOCIOS ESTRANGEIROS... AO SENSO COMMUM.

Illustre paspalhão, pasmo dos orbes,

Nata da estupidez, alcool dos parvos,

De Campanhan o bardo te sauda!


Eu nunca fui sentar-me á tua porta,

Mendigando mercês; nunca os meus cantos,

Fedendo ao macassar da vil lisonja,

As nedeas ventas incensar te foram!

É livre a minha voz: creiam-me os povos!

Nobre feudo pagar aos grandes parvos

É do bardo a missão. A minha é esta.

[25]

Ha muito que eu de ti pasmado andava,

Contando á minha Antonia, e aos pequenos,

O nome que no peito escripto tinha.

Em casa do Francisco da Thomasia

Os teus discursos li, Visconde incrivel!

N'aquellas chatas caras que me ouviam,

Vi faiscas saltar de enthusiasmo.


Bebêmos-te á saude, a rego cheio!

E, no excesso do goso, os teus amigos

Não podiam lamber-se... eram uns cachos!


Tu, mais novo que o neto, ousado Gorgias,

Ha pouco trituraste os cabralistas

No rijo almofariz do craneo ôco.

Salvaste Roma, ó ganço!.. se não grasnas

Piravam-se os taes páos
[1]
e a Lusitania,

Viuva dos seus páos, ia-se á mingua!

És o Curcio das lonas, que remiste
[2]

[26]

Do jogo infame da Albion perversa

A patria dos Affonsos e Affonsinhos!

A divida fatal, chamada externa,

Saldaste-a c'o producto dessas chapas,

Em que fica chapada a crassa asneira,

Eterna viscondessa d'Athoguia!


Do
Conde de Thomar
se intitulava

O patacho fatal, terror dos povos!

Fulminaste o patacho! A Europa accesa,

Pedira-te energia audaciosa.

Passaste heroica esponja sobre o nome,

E fizeste callar a voz da Europa!


Ó Jervis! tu nem sabes quanto vales!

Que o diga Campanhan, Valbom, S. Cosme,

Onde eu pude chegar, e a minha Antonia.


A machado e eixó, de páo castanho,

Um busto construí: era o teu busto.

Teu nome eternisei, nome que teve

Um
u
, maldito
u
, que tantas febres

Na mente escandecida te abrazára!

[27]

Não sei se diga mais, palavra d'honra!

Com esta não te enfado mais, visconde.

Não desdenhes vaidoso a offerta humilde,

Que mesquinho reptil aos pés te arrasta.

Recebe dusia e meia de lampreias,

Cosinhadas por mim; são de escabeche...

A proposito, amigo, ha quanto tempo

Conservas de escabeche a intelligencia?

[1] S. exc.a mandou vender os páos, porque deu na melgueira d'uns empregados, que os regeneravam á surelfa, com grave detrimento da marinha portugueza.

[2] S. exc.a vendeu umas lonas, cujo producto fez subir os fundos em Londres, e permittiu a construcção de trinta navios de guerra, com que s. exc.a espera «sulcar as salsas ondas d'Amphitrite,» segundo a gravissima opinião do snr. J. M. Grande.

[28]

O MINISTRO E O JORNALISTA.
(Dealogo).

MINISTRO
Eu vim chamado ao leito desta patria

Matava-a a corrupção, e eu salvei-a!

Se prostrada jazia, ou talvez morta,

Qual Lazaro da campa, alevantei-a!

JORNALISTA
De certo levantou Vossa Excellencia!

Que brade embora a vil opposição...

Esquálidos vestigios de gangrena

Bem profundos deixou a corrupção.
[29]
MINISTRO
Se crê nessas doutrinas luminosas,

E quer ser prestadio a Portugal,

Acceite a empreza honrosa, augusta, e nobre,

D'expol-as, sustental-as n'um jornal.
JORNALISTA
Empreza honrosa é; della me ufano!

Irei apostolar o credo novo;

Direi ás multidoens verdades francas,

Será o meu jornal jornal do povo.
MINISTRO
Bem sei que da defeza é árdua a luta...

Odeia-me, sem causa, esta nação...

Embora! na grandeza dos serviços

Compete ao defensor môr galardão.
JORNALISTA
Bem sei quantas calumnias forja a intriga...

Já dellas foi manchado o grande Decio.

Quizeram macular Vossa Excellencia

Chamando-lhe espião, rival de
Mecio
!
[30]
MINISTRO

(Commovido, e esfregando os olhos com cebola).

Bemdito seja Deus! só elle sabe

As nobres intençoens de tal acção!

Por honra, por nobreza, e por caracter,

De certo fui, meu caro, um espião!
JORNALISTA
Não é lá grande feito de virtude;

Mas cumpre que eu me saiba haver na luta.

Convém negar o facto, ou confirmal-o?

Bem sabe que é de crêr haja disputa.
MINISTRO

(Limpando os oculos).

Eu lhe digo, senhor, a patria exige

Medidas uteis, providencias, factos.

Accusaçoens banaes, não lhes responda;

A pedra é livre em mãos desses
gaiatos
.
[31]
JORNALISTA
Pois bem! sou desse voto, ei-de julgal-as;

Accusaçoens banaes, pretr'idas, nullas;

Mas dado o caso infausto de citarem

Não sei que transacçoens com certas bullas?
MINISTRO

(Enternecido).

Responda-lhe que eu fui proscripto, errante...

E quando ao ninho caro alfim tornei,

Não só não tinha um pinto pr'a despezas,

Mas nem a livraria, em casa achei.
JORNALISTA
Pois bem, triumphará Vossa Excellencia...

Agora, se lhe apraz... sim... cada qual

Emprega neste mundo, como pode,

O seu... ou pouco ou muito cabedal...
MINISTRO
Intendo... quer dizer que não dispensa

Além do beneficio, uma pensão...

É justa, a quem trabalha a recompensa...

Quer cincoenta mil reis? pagos, serão.
[32]
Cinco mezes depois.
JORNALISTA

(Escrevendo).

Senhor ministro, eu não posso

Este jornal sustentar

Tenho esp'rado, em vão tres mezes,

Não me acabam de pagar.


Vossa Excellencia me disse,

A vinte e tres de Janeiro,

Que no Governo Civil

Recebesse o meu dinheiro,


Nem um chavo! e os assignantes

Abandonam-me o jornal,

Porque defendo um governo

Vergonha de Portugal.


Se não manda, quanto antes,

Senhor ministro, as mesadas,

Com pesar vou abraçar-me

Ás outras crenças passadas.
[33]
MINISTRO

().

Á vista disto, não ha mais fugir-lhe...

Pouco me serve... mas é pobre moço!..

Fazem-me pena quando assim os vejo...

Não ha remedio senão dar-lhe um osso.
[34]

A D. EUSEBIA DA ASSUMPÇÃO,

ALMA DE VACA.

Noitebó que esvoaçaste

No meu ceo d'alva illusão;

E na chaminé pousaste

Deste ardente coração;

Que mal te fiz, pulga d'alma,

Que mordes, sem compaixão?


Dona Eusebia, gança amada,

Que picaste a minha flor,

Tão do intimo orvalhada

Pelos prantos desta dôr,

Dona Eusebia não me piques

Esta alcachofra d'amor!

[35]

Gata brava, não me bufes

Esta luz d'aspiração;

Por quem és, tu não me atufes

Dona Eusebia d'Assumpção,

Nos abysmos insondaveis

D'assanhada ingratidão!


Tu chamaste-me pangaio,

Quando eu quiz um riso teu!

Fulminou-me um impio raio,

Minha aspiração morreu!

Ai! Natercia de chinelos,

Serei eu
pangaio?
eu!!


Tens no peito ingrata, um chato

Coração de melancia.

Tanto tempo fui teu gato,

Gato d'amor e poesia!

Dona Eusebia, alma de vaca,

Morras tu de hydropesia!

[36]

AS LITTERATAS.

Paes de familia, hybridos caturras,

Escrevo para vós! Se tendes filhas

Com sestro massador de fazer versos,

Dai-lhes p'ra baixo, como eu dou nas minhas!


Eu vejo serigaitas, mal lavadas

Do almiscar infantil de seus cueiros,

Fazerem relaçoens
c'os raios pallidos,

Da estrella matinal, do lago lympido,

Das auras ciciantes, e da aragem,

E d'outras semelhantes trampolinas,

Que vós não entendeis, nem eu, nem ellas.

[37]

Espevitam-se todas estas gaitas

Da musa melancolica das noutes.

Mal sabem onde tem a mão direita,

Não viram do nariz um palmo adiante,

E fallam de
paixoens intimas d'alma,

De crenças desbotadas, e de flores

Fanadas ao soprar da leda infancia.


Acaso comprehendeis, paes de familia,

Da nova geração destas piegas

A triste chiadeira que nos fazem?

Dai-lhes p'ra baixo como eu dou nas minhas!


Não tendes uns fundilhos nas cilouras?

Não tendes roto o calcanhar da piuga?

Não tendes uma estriga, um fuso, e roca?

Mandai-as trabalhar; dai-lhe a sciencia

Precisa para o rol da roupa suja.

Se lhe virdes romance, ou essas cousas

Chamadas folhetins, sobre a
toilette
,

(A
toilette
, meu Deus! por causa d'ellas

Perverteu-se a dicção do nosso Barros!)

Dai-lhes p'ra baixo como eu dou nas minhas!


Quem é o parvo que espozar-se queira

Com litterata alambicada e chocha?

[38]
Sentada n'um sophá, sapho saloia,

Em languida postura requebrada,

Se eu visse a minha Antonia! ai que panasio,

Que revez de careca eu lhe pregava!


Paes de familia! não achaes bem triste

Entrar um cidadão em sua casa,

Cansado de lavrar o pão da vida,

E vêr sua mulher repotreada

Na othomana gentil, lendo romances?

Pobre marido quer fallar d'uns frangos

Que baratos comprou, e a litterata

Pergunta-lhe se leu
Kossuth e os hungaros
!

O parvo franze a testa aborrecido,

Procura entre os lençoes um refrigerio;

Mas, no excesso da dôr, rasga as cilouras,

E no mundo não tem mulher ou anjo

Que lh'as saiba coser!.. ai do mesquinho!


Onze horas já são. O bom do homem

Tres vezes já pediu café com leite,

Apertam-no negocios; mas em balde

Pediu com desespero o tardo almoço.


A litterata esposa inda ressona,

Pois vira despontar a estrella d'alva

[39]
Nos rubros arreboes dos horisontes,

E, inspirada, fizera quatro quadras,

Ardentes de ideal romantecismo.


«Café com leite!» brada em vão tres vezes,

O bode expiatorio dos romances...

«Café com leite» os eccos lhe respondem,

Que a Stael d'agua doce inda ressona!


Maridos imbecis! eu vos lamento!

A culpa não foi vossa! Aos pais a imputo.


Madame Podestá dizem que ensina

Grammatica, rethorica, hidraulica,

Mecanica, gymnastica, estetica,

E chymica, e botanica, e plastica,

O arabe, o sanskrit, a geographia,

A prosodia, a syntaxe, industria e canones,

E muitas cousas mais, como th'rapeutica.


Será tudo mui bom; mas eu aposto

Que o remate de tantas luzes juntas

É capaz de fazer perfeitas tolas

As muitas que lá vão com seu Juizo!

[40]
Paes de familia! tendes filhas d'estas?

Dai-lhes p'ra baixo, como eu dou nas minhas!


Um pai eu conheci, que nunca soube

O seu nome escrever sem quatro asneiras,

E mandou ensinar francez á filha.

A filha conseguiu, passados annos,

Uma cousa fallar mui duvidosa

Que os francezes, talvez, diriam tartaro!

Mas seria francez, o caso é este:


Um dia estava o pai, e ella, e um outro

Janota almiscarado, conversando.

De improviso a menina a lingua solta

Em barbaros grasnidos que atarantam

A cabeça do velho. O «petimetre»

Responde em algarvia semelhante.

O pai, no centro delles, era um parvo

Gemendo sob o peso do ridiculo...

Mas lá vai o peor do caso infausto!

Ao dar da meia noute desse dia

Cumpria-se a promessa contratada

Na presença d'um pai, que bem podera

[41]
Embargos de terceiro inda intentar

Se fosse em portuguez organisada

A injusta petição do supplicante.


Pais de familia, vossas filhas fallam

Italiano, francez, gallego, ou turco?

Dai-lhes p'ra baixo como eu dou nas minhas.

[42]

UM JANTAR DE BAROENS.

INVOCAÇÃO.

Musa da sopa e do cosido, inspira-me!

Pandega musa, que sorris ao vate

Em môlho d'açafrão, e de tomate,

Um cego adorador... achaste em mim.

Transforma o estro meu em lombo assado,

Da minha inspiração faz um podim.


Tu filha dos baroens, musa do unto,

Nasceste na cosinha entre caçôlas;

Saudaram-te no berço alhos, cebôlas,

Do cominho tiveste uma ovação.

Depois, trajando gallas de toucinho,

Eu vi-te nas bochechas d'um barão.

[43]

Namorado de ti, fiz-te meiguices,

Por de traz d'um pirum, e tu de lá

Sorriste-me atravez da nedea pá

De vitella gentil, rica de arroz!

Ai! era!.. e nem eu sei se foi mais linda

Aquella gorda pata... que te poz!


Tu fizeste de mim novo Claudio,

Inspiraste-me fé no rodavalho.

Traguei indigestoens, arrotos d'alho,

Bernardas
na barriga supportei.

Tomei chá de marcella... e, em premio d'isto.

O teu auxilio, ó musa, não terei?!


I

Dentro e fóra illuminado

O palacio d'um barão,

Fulgurante representa

Um enorme lampião.

Jorram lympidas vidraças

[44]
Sobre as populosas praças

Ondas tremulas de luzes.

Vai lá dentro grande goso,

Nesse alcaçar radioso

Do barão dos Alcatruzes.


D'Alcatruzes é chamado,

Porque, sendo ainda moço,

Muitos baldes d'agua fresca

Dizem que tirou d'um poço.

Nenhum outro mais destreza

Revellou na ardua empreza.

De puchar acima um balde.

Um que seja tão robusto

Ha-de vir mui tarde e a custo,

Do concelho de Ramalde.


É barão; não vale a pena

Discutir-lhe os nobres feitos.

É barão dos Alcatruzes

Já tem pagos os direitos.

Inda é mais; pois além d'isto

É commendador de Christo

Com bastante indiscripção.

Mal diria Christo outr'ora,

Que seria posto agora

No peito d'um vendilhão!

[45]

E mais elle, que os tocava

Com terrivel azorrague!..

Mas os Judas vendem Christo,

Ponto é haver quem pague.

E o barão dos Alcatruzes

Neste seculo das luzes

Tambem fez de farizeu:

E, tambem, se é necessario,

Representa de Calvario,

Onde a cruz se suspendeu.


II.

N'um salão vasto, opulento,

Um banquete se vai dar;

Nos christaes reflecte o ouro,

A fulgir, a scintillar.

Os rubis, e a côr da opala

Transfiguram esta sala

Em olympicas mansoens.

Mas a alma cae por terra,

Quando vê que alli se encerra

Duzia e meia de baroens.

[46]

Da terrina a caudal sopa

Em silencio é devorada.

Só então fingiram d'homens,

Porque não disseram nada.

Mas venceu a natureza!

Um barão por sobre a mesa

Estendendo o prato, diz:

«Ó compadre! isto é qu'é bô!

Venha sopa, e acabô!

Cá de mim, torno á matriz!»


O barão de Cogumelos

Junto estando á baroneza,

Que se diz dos Sacatrapos,

Quiz fazer-lhe uma fineza.

Arrastou p'ra junto d'ella

Um pirum, e a cabidela

No prato lhe despejou.

E lhe diz: «cá isto é nosso;

Cousa que não tenha osso

É p'ró estamago, e arrimou!»


Outro diz á gorda esposa,

Que bem perto de si tem:

«Bai-lhe bebendo po'riba,

Ó mulher, come-lhe bem!»

Este pede ao seu visinho:

[47]
«Que lh'atice bem no binho

Qu'é da belha companhia.»

Diz aquelle ao seu fronteiro:

«Que lhe chegue um frango inteiro

E biba a sancta alegria!»


III.

As saudes já começam.

É um gosto agora vêl-os.

Estas caras representam

Tomates de cotovêlos.

E, a travez do escarlate

Do legitimo tomate,

Transsuda um oleo que brilha,

Cada qual tem as orelhas

Encarniçadas, vermelhas

Como as azas d'uma bilha.


Pega no copo, e exclama

O barão das Pimpinelas:

«Vito serio! um home fala

Sem preamblos nem aquellas!

Á saude e alegria

[48]
Desta bella companhia

E com toda a estifação!

P'ra que todos cá binhamos

Estifeitos como bamos

De casa do sôr barão!»


E os hurras retumbaram

Pela sala do festim.

Balthazar nos seus banquetes

Não ouviu gritar assim!

Sobre a mesa deram murros,

Saudaram com grandes urros

O barão dos Alcatruzes;

Mas alguns com magua sua,

Já cuidavam ver a lua,

Não podendo vêr as luzes.


Mas, entre elles, um existe,

Litterato em seu conceito.

A palavra pede, e reina

Um silencio de respeito.

Elle diz: «Risonhas gallas

Que refrangem n'estas salas

Repercutem, symbolisam

Acrimónias insoluveis,

Nos acrósticos voluveis

D'epopeas que eternisam.

[49]
Pandemonios exhauriveis

D'indeleveis congruencias.

Requintados se escurecem

Nos imporios das sciencias

E liberrimos se escudam

Nas façanhas que transsudam

Em fantasiosas luzes.

E, por tanto, a mais alludo,

Quando, fervido, saudo

O barão dos Alcatruzes!»


Succedeu o grito ao pasmo!

Nunca se viu cousa assim!

O orador foi abraçado

Com furor, com frenezim!

«Isto é qu'é!» dizia um,

Convertido em rubro atum,

Betarraba até não mais.

«Viva Cissro!» outro dizia,

Despejando a malvazia,

Com grasnidos infernaes.


IV.

E a pandega findou. Mas alta noute,

Disseram-nos fieis informaçoens;

[50]
Que grande movimento ouve de tripas,

E grande salto deram as torneiras

Das pipas convertidas em baroens

Ou antes dos baroens tornados pipas.

[51]

ELOGIO FUNEBRE

A uma dama, prodigio de fecundidade, que dá á luz tres romances, por semana, nos jornaes do Porto.

Atafona de romances,

És um carril a vapor!

Romantisas quanto achas,

E nos folhetins encaixas

Com satanico furor.


Cornocopia da toleima!

Nós fizemos-te algum mal?

Tu não sabes, escriptora,

Como zombam lá por fóra

Das lettras de Portugal?

[52]

Não lucrara mais a patria,

E lucráras tu tambem,

Se fiasses n'uma roca.

Com primor, a massaroca,

Que desprezas, com desdem?


Não te fôra mais airoso

Bispontar bem uns fundilhos

Para em tempo competente

Um remendo pôr decente

Nas cuecas de teus filhos?


Mal tu sabes que sciencia

Tem da meia o calcanhar!

Talvez penses que o romance

É mister de mais alcance

Que nas meias pontos dar!..


Eu por mim antes quizera

Nunca ter lido Camoens,

Nem romances d'uma tola,

Que vestir rôta a ciroula,

Ou camisa sem botoens.

[53]

Accredito seja um dia

A mulher emancipada;

Ha-de então ser regedora,

Escrivan, e contadora,

Eleitora, e deputada.


Nesse tempo, se existisses,

Tendo em vista essa pericia

Com que ostentas teu saber,

Que logar podias ter?

Eras cabo de policia.


Tenho pena, quando penso

Que serás formosa e meiga,

E encontro os teus escriptos

Nos embrulhos dos palitos

Do toucinho, e da manteiga!


Faz-me dó, pois tu bem podes

Bordar lenços de cambraia

Com bonito
petit-point
;

E, não sendo aqui ninguem,

Podes, ser tudo na Maia.

[54]

EPISTOLA

AO VISCONDE DE QUEBRANTOENS.

Instrumento do ceo, desceste ao Porto,

Corajoso mancebo, que desandas

Nos borlistas fataes sopapo ingente!


Oppresso longo tempo, ahi gemera

Nas entalas crueis d'um camarote

O misero assignante! Amargo calix

Em silencio tragava, ouvindo os passos

Do acerbo massador, impio borlista!

As notas de Rossini eram-lhe espinhos,

As fusas de Bellini eram-lhe fusos

Que o intimo das visceras lhe espetam!

E os duetos em
do Machbet

Eram-lhe cantos de raivosas górgonas!

[55]

O ferro fez-lhe vêr visoens do inferno!

A propria Jeny-Lind se cantasse,

Nesse palco, talvez, aos olhos d'elle

Não fosse mais gentil, que a
Cholera-morbus
[3]

É que a larva immortal do pesadello,

A sombra do borlista ergue-se impavida,

Synistra, nos umbraes do camarote!


Derreado e servil no corpo e alma,

Arrasta-se o borlista em cortesias,

Gagueja cumprimentos requentados,

Recebe em cada noute affrontas novas,

E, cynico, sorri, graceja sempre!


Mas cerram-se ao borlista os horisontes,

Apenas surges tu, Pedro-Eremita,

E aos povos um pregão de guerra envias!

De toda a parte bellicosa ferve

Raivosa indignação contra os
Bernardos
.
[4]

Aqui batata pôdre o povo ajunta,

Além prendem-se em páos bexigas tumidas,

E cebola grelada em grande escala

De Freixo de Numão o Porto importa.

[56]

Se no livro fatal d'altos destinos

Proscripta a extincção foi do borlista

Da borla a abolição a ti se deve,

De ti, visconde emana o nobre impulso!


Em nome dos sensiveis assignantes,

Recebe o galardão que o Porto envia

Ao caro filho seu que a patria salva

Do typho mais cruel--
typho-borlista!

[3] É uma cegonha, cousa duvidosa entre a forôa, e a giboia, que canta entre as coristas.

[4] Quem não conhece o sr. Bernardo, digno Achiles do Barriense?

[57]

IMPRESSOENS

D'UM PASSEIO, NO JARDIM DE S. LAZARO.

Que delicias não encerra

Esta bem fadada terra

N'um domingo, em mez d'Abril!

Nem eu sei se a natureza

Deu mais pompas a Veneza,

Que no mar reina gentil.


Não na ha terra mais linda

Nem sonhal-a eu pude ainda

Nos meus sonhos da manhan.

Uma só os dons lhe abate,

És só tu, patria do vate,

Donairosa Campanhan!

[58]

Mas, aqui, terra das auras,

Espontaneas brotam Lauras

Por entre sacas d'arroz.

E, quaes ferteis cogomelos,

Nascem Dantes de chinelos,

E Petrarcas d'albornoz.


Tudo vai do ceo formoso,

Que derrama ondas de goso

Nestas almas d'alfinim.

Ouem não viu anjos de saia,

Serafins d'alva cambraia

No fantastico
jardim
?


Inda, ha pouco, eu vi delicias

Invejei doces caricias,

Que lá vi... oxalá não!

Entre tantas a mais bella,

A rainha... ai! era ella...

D. Eusebia d'Assumpção!


Ella sempre!.. espectro! larva

Por quem fiz esta alma parva,

Por quem dei cavaco até!

E tão linda!.. impia cegonha,

Tão folhuda!.. era uma fronha,

Um travesseiro de pé!

[59]

E, tão tolo, eu quiz fallar-lhe

Quiz mysterios revelar-lhe

Deste amor, desta agonia;

Quiz dizer-lhe em voz terrivel,

Com rancor inconcebivel:

«Passou bem? que bello dia!»


Não me ouviu, virou-me a cara,

E eu jurei vingança avara,

E a vingança... oh! eide-a ter!

Não te rias, lagarticha,

Eide atirar-te uma bicha,

Eide vêr-te a fralda a arder.


Feito o horrivel juramento,

N'aquelle acerbo momento

Dona Eusebia me esqueceu!..

Procurei entre outras flores

Nova fé, novos amores...

Poderia achal-os eu?


Dona Eustaquia era formosa,

Tinha os dentes côr de rosa,

Meigos olhos de marfim;

Tinha o collo verde-gaio,

Lindos braços cor de paio,

Lindas mãos de marroquim.

[60]

Mas Eustaquia não podia,

Conceber-me esta poesia,

Que me escalda o coração!

Ao pé d'ella estava um grulha,

Um rival, um gêta, um pulha,

Um palerma, um pelitrão.


A pretexto de meiguices,

Vomitorio de sandices

Era o tal... que eu não direi...

O que eu fiz foi pôr-me ao largo,

Pois luctar é sempre amargo

Contra um estupido de lei.


Outra vi; julguei-a vaga;

Era Dona Saramaga,

D'olhos garços de matar.

De cabello em grande rôlo,

Sua testa era um rebôlo,

Mas rebôlo de encantar!


Esta sim: ouviu-me as fallas,

Conheceu que estava em tallas

Meu dorido coração.

Deu me affectos desvellados,

Deu-me quatro rebuçados

Com sensivel emoção!

[61]

Perguntou-me se a Geordano

Ficaria para o anno,

Ou iria p'ra Pariz.

Respondi-lhe que a cantora,

Por em quanto, era senhora

Da garganta e do nariz.


Dito isto (e não é pouco)

Retirei-me quasi louco

De paixão, que é de matar.

Mas palpita-me que um dia,

Consummida esta poesia,

Pés de burro eide apanhar!

[62]

P. S.

O auctor desta obra é uma pessoa honesta, que reconhece Deus no ceo, e o ridiculo na terra. Não crê no representante de Deus entre os homens, por que não quer ultrajar a divindade; mas confessa que o demonio tem um representante em cada freguezia, sem attribuiçoens no codigo administractivo, mas funccionario muito superior aos regedores e juizes eleitos. O auctor accredita que o diabo não é tão feio como o pintam, e reputa-o, nas suas elevadissimas intuiçoens, como um espirito que se ri desentoadamente das muito parvas evoluçoens da humanidade. O auctor ousa declarar-se commissionado provisoriamente desse espirito do sarcasmo, e não poderá d'hora em diante irrogar injuria a quem lhe chamar «alma do diabo.» Conscio da missão que lhe é delegada, o auctor intenta uma publicação semanal, que será uma pagina que o Lucifer do seculo XX receberá da mão do Lucifer do seculo XIX. A geração, que vai levantar-se sobre os tumulos da geração que se esconde na grande valla d'uma epocha, virá estudar a nossa biographia nessa obra que o auctor intenta. Quem quizer assignar para ella fará um serviço aos seus netos.

[63]

PROSPECTO.

UM BICO DE GAZ.

JORNAL SEMANAL.

Assignatura por mez: 160 réis. O jornal é distribuido aos sabbados; e assigna-se

No Porto--em todas as lojas onde se vende este folheto; Lisboa, Coimbra, Vizeu, Lamego, Vianna, e Braga.

Admittem-se correspondencias que attinjam a missão rasgadamente civilisadora deste jornal. É preciso que a luz da intelligencia humana deixe de ser alimentada por azeite de purgueira. O espirito reclama um bico de gaz. E o auctor tem a vaidade de reputar-se o Hislop do mundo espiritual.