The Project Gutenberg eBook of A Harpa do Crente This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: A Harpa do Crente Author: Alexandre Herculano Release date: September 23, 2007 [eBook #22742] Language: Portuguese Original publication: Lisboa: Na Typ. Da Sociedade Propagadora Dos Conhecimentos Uteis. Rua Direita Do Arsenal--N.º 55, 1838 Credits: Produced by Pedro Saborano. (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A HARPA DO CRENTE *** Produced by Pedro Saborano. (produced from scanned images of public domain material from Google Book Search) A HARPA DO CRENTE. TENTATIVAS POETICAS PELO AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA. * * * * * LISBOA--1838 NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS. _Rua direita do Arsenal--n.º 55._ A HARPA DO CRENTE. TENTATIVAS POETICAS PELO AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA. PRIMEIRA SERIE. LISBOA--1838 NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS. _Rua direita do Arsenal--n.º 55._ *A Semana Sancta.* A S. Ex.ª O MARQUEZ DE RESENDE. _Em testemunho de amisade e veneração_ Offerece o Auctor. A Semana Sancta. Der Gedanke Gott weckt einen furchterlichem Nachbar auf, sein Name heisst Richter. _Schiller._ I. Tibio o sol entre as nuvens do occidente Já lá se inclina ao mar. Grave e solemne Vai a hora da tarde!--O oeste passa Mudo nos troncos da lameda antiga, Que já borbulha á voz da primavera: O oeste passa mudo, e cruza a porta Ponteaguda do templo, edificado Por mãos rudes de avós, em monumento De uma herança de fé, que nos legaram, A nós seus netos, homens de alto esforço, Que nos rimos da herança, e que insultamos A cruz e o templo e a crença de outras eras: Nós, homens fortes, servos de tyrannos, Que sabemos tão bem rojar seus ferros Sem nos queixar, menospresando a Patria E a liberdade, e o combater por ella. Eu não!--eu rujo escravo; eu creio e espero No Deus das almas generosas, puras, E os despotas maldigo.--Entendimento _Bronco_, lançado em seculo fundido Na servidão de goso ataviada, Creio que Deus é Deus, e os homens livres! II. Oh sim!--rude amador de antigos sonhos, Irei pedir aos tumulos dos velhos Religioso enthusiasmo, e canto novo Hei-de tecer, que os homens do futuro Entenderão:--um canto escarnecido Pelos filhos dest' épocha mesquinha, Em que vim peregrino a vêr o mundo, E chegar a meu termo, e repousar-me Depois á sombra de um cypreste amigo. III. Passa o vento os do portico da Igreja Esculpidos umbraes: correndo as naves Sussurrou, sussurrou entre as columnas De gothico lavor: no orgam do coro Veio em fim murmurar e esvaecer-se. Mas porque sôa o vento?--Está deserto, Silencioso ainda o sacro templo: Nenhuma voz humana ainda recorda Os hymnos do Senhor. A natureza Foi a primeira em celebrar seu nome Neste dia de lucto e de saudade! Trévas da quarta feira eu vos saudo! Negras paredes, velhas testemunhas De todas essas orações de mágoa, Ou esperança, ou gratidão, ou sustos, Depositados ante vós nos dias De uma crença fervente, hoje enlutadas De mais escuro dó, eu vos saudo! A loucura da cruz não morreu toda Apoz dezoito seculos!--Quem chore Do sofrimento o Heróe existe ainda. Eu chorarei--que as lagrymas são do homem-- Pelo Amigo do povo, assassinado Por tyrannos, e hypocritas, e turbas Envilecidas, barbaras, e servas. IV. Tu, Anjo do Senhor, que accendes o estro; Que no espaço entre o abysmo e os ceus vagueas, D'onde mergulhas no oceano a vista; Tu que do trovador na mente arrojas Quanto ha nos ceus esperançoso e bello, Quanto ha no inferno tenebroso e triste, Quanto ha nos mares magestoso e vago, Hoje te invoco!--oh vem!--lança em minha alma A harmonia celeste e o fogo e o genio, Que dêm vida e vigor a um carme pio. V. A noite escura desce: o sol de todo Nos mares se afogou: a luz dos mortos, Dos brandões o clarão fulgura ao longe, No cruzeiro somente e em volta da ara: E pelas naves começou ruído De compassado andar. Fiéis acodem A visitar o Eterno, e ouvir queixumes Do vate de Sion. Em breve os monges Lamentosas canções aos ceus erguendo, Sua voz unirão á voz desse orgam, E os sons e os écchos reboaráõ no templo. Mudo o côro depois, neste recinto Dentro em bem pouco reinará silencio, O silencio dos tumulos, e as trevas Cubrirão por esta área a luz escassa Despedida das lampadas, que pendem Ante os altares, bruxuleando frouxas. Imagem da existencia!--Em quanto passam Os dias infantís, as paixões tuas, Homem, qual então és, são debeis todas: Cresceste:--ei-las torrente, em cujo dorso Sobrenadam a dor, e o pranto, e o longo Gemido do remorso, a qual lançar-se Vai, com rouco estridor, no antro da morte, Lá onde é tudo horror, silencio, noite. Da vida tua instantes florescentes Foram dous, e não mais: as cãas e rugas, Breve, rebate de teu fim te deram. Tu foste apenas som, que o ar ferindo Se esvaíu pelo espaço immensuravel. E a casa do Senhor ergueu-se!--o ferro Cortou a penedia; e o canto enorme. Polido alveja alli no espesso panno Do muro collossal, que ha visto as eras Velhas chegar, e adormecer-lhe ao lado: A faia e o sobro no caír rangeram Sob o machado: a trave affeiçoou-se; Lá na cimo pousou: restruge ao longe De martellos fragor, e eis ergue o templo, Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas. Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento, Se esváe, como da cerva a leve pista No pó se apaga ao respirar da tarde, Do seio dessa terra em que és estranho Saír fazes as moles seculares, Que por ti, morto, fallem: dás na idéa Eterna duração ás obras tuas! Tua alma é immortal, e a prova a déste! VI. Anoiteceu:--nos claustros resoando As pisadas dos monges ouço: eis entram; Eis se curvaram para o chão beijando O pavimento, a pedra: oh sim, beijai-a! Igual vos cubrirá a cinza um dia, Talvez em breve--e a mim. Consolo ao morto É a pedra do tumulo. Se-lo-ia Mais se do justo só a herança fora; Mas tambem ao malvado é dada a campa. E o criminoso dormirá quieto Entre os bons sotterrado!--Oh não! em quanto No templo ondeam silenciosas turbas, Exultarão do abysmo os moradores, Vendo o hypocrita vil, mais ímpio que elles, Que escarnece do Eterno, e a si se engana; Vendo o que julga que orações apagam Vicios e crimes, e o motejo e o riso Dado em resposta ás lagrymas do pobre; Vendo os que nunca ao infeliz soltaram De consolo palavra, ou de esperança: Sim:--malvados tambem hão-de pisar-lhes Os frios restos que separa a terra, Um punhado de terra, a qual os ossos Destes ha-de cubrir em tempo breve, Como cubriu os seus, qual vai sumindo Nos mysterios da campa a humanidade. Porém a turba esvae-se: ermam bem poucos Do templo na amplidão: só lá no fundo De affumada capella, o justo as preces Ergue pio ao Senhor, as preces puras De um coração que espera, e não mentidas De labios de impostor, que engana as turbas Com seu meneio hypocrita, calcando Na alma lodosa da blasphemia o grito. Então exultarão os bons, e o ímpio, Que passou, tremerá. Em fim, de vivos, Da voz, do respirar o som confuso Vem-se verter no sussurrar das praças, E pela galilé só ruge o vento. Em trevas não ficou silenciosas O sagrado recinto: os candieiros, No gelado ambiente ardendo a custo, Espalham debeis raios que reflectem Das pedras pela alvura; o negro mocho, Companheiro do morto, horrido pio Solta lá da cornija; pelas fendas Dos sepulchros deslisa um fumo espesso, Ondêa pela nave--esvái-se: um longo Suspiro não se ouviu!--Olhai! lá se erguem De umas espectros palidos, medonhos, A quem baço clarão da luz dos mortos Ainda custa a soffrer:--eis de outras surgem Radiosos espiritos que o premio Da virtude, nos ceus, hão recebido: Alli treme ante o pobre o rico, e o forte Ante o humilde, que nelle os olhos fita Severo:--oh que tormento! infernaes dores São doces para o máu, a par do aspecto Do bom, que mudo lhe recorda os crimes. Ai!--nem paz cabe nos mortos! Entre as campas Ainda habita o remorso. Embalde, espectro, Te curvas ante as aras que insultaste: Debalde imploras o perdão celeste. Expiraste: o perdão morreu comtigo. Infeliz para sempre, a mão levanta A essa fronte gelada; entre teus olhos De azulado fulgor ampla rajada Toca--eterno signal que no perverso Do cherubim da morte a dextra estampa: Toca-a... Deus reprovou-te; a herança tua Volveu-se em maldicção: luz de esperança Para ti apagou-se: o abysmo evoca O filho seu; despenha-te no abysmo! VII. Vaga meditação onde arrojaste Minha imaginação!--ás horas mortas De alta noite, no templo solitario, E em congresso de mortos, quando o espanto Os resguarda co'as azas acurvadas Da vista do que vive!--Alli corria Minha mente, qual vaga a mente do homem, Que em febre ardente desvairou por sonhos, Onde se ajunctam troços de existencias, Em nebuloso quadro; ou como ondea, Entre a esperança e o susto, o moribundo, A quem do passamento o véu já cinge A amarellada fronte, e a quem já pesam Sobre os olhos as palpebras, que affrouxa Do anjo da morte o resonante grito. VIII. Mas troa a voz do monge, e no meu seio O coração bateu. Eia, retumbem Pela abobada aguda os sons dos psalmos, Que em dia de afflicção ignoto vate Teceu, banhado em dôr: talvez foi elle O primeiro cantor que em varias cordas, Á sombra das palmeiras da Idumea, Soube entoar melodioso um hymno. Deus inspirava então os trovadores Do seu povo querido, e a Palestina, Rica dos meigos dons da natureza, Tinha o sceptro tambem do enthusiasmo. Virgem o genio ainda, o estro puro Louvava Deus somente, á luz da aurora, E ao esconder-se o sol entre as montanhas De Bethoron:--agora o genio é morto Para o Senhor, e os cantos dissolutos Do lodoso folguedo os ares rompem, Ou sussurram por paços de tyrannos, Assellados de putrida lisonja, Por preço vil, como o cantor que os tece. IX. _O Psalmo._ Quanto é grande o meu Deus!... Té onde chega O seu poder immenso! Elle abaixou os ceus, desceu, calcando Um nevoeiro denso. Dos cherubins nas azas radiosas Sentado elle voou: E sobre turbilhões de rijo vento O mundo rodeou. Se lança á terra o olhar, a terra treme, E os mares assustados Bramem ao longe, e os montes lançam fumo, Da sua mão tocados. Se pensou no Universo, ei-lo patente Todo perante o Eterno: Se o quiz, o firmamento os seios abre, Abre os seios o inferno. Dos olhos do Senhor, homem, se podes, Esconde-te um momento: Vê onde encontrarás logar que fique Da sua vista isento: Sobe aos ceus, transpõe mares, busca o abysmo, Lá teu Deus has-de achar; Elle te guiará, e a dextra sua Lá te ha-de sustentar: Desce á sombra da noite, e no seu manto Involver-te procura; Mas as trévas para elle não são trévas; Nem é a noite escura. No dia do furor, em vão buscáras Fugir ante o Deus forte, Quando do arco tremendo, irado, impelle Setta em que pousa a morte. Mas o que o teme dormirá tranquillo No dia extremo seu, Quando na campa se rasgar da vida Das illusões o véu. X. Callou-se o monge: sepulchral silencio Á sua voz seguiu-se: e um som soturno De orgam partiu-o; som que assemelhava O suspiro saudoso, e os ais de filha, Que chora solitaria o páe, que dorme Seu ultimo, profundo e eterno somno. Harmonias depois soltou mais doces O instrumento suave; e ergueu-se o canto, O lamentoso canto do propheta, Da patria sobre o fado. Elle, que o víra, Sentado entre ruinas, contemplando Seu avíto esplendor, seu mal presente, A quéda lhe chorou: lá na alta noite, Modulando o Nebel, via-se o vate Nos derrubados porticos, abrigo Do immundo stellio e gemedora poupa, Extasiado--e a lua scintillando Na sua calva fronte, onde pesavam Annos e annos de dor: ao venerando Nas encovadas faces fundos regos Tinham aberto as lagrymas: ao longe, Nas margens do Kedron, a rãa grasnando Quebrava a paz dos tumulos. Que tumulo Era Sion!--o vasto cemiterio Dos fortes de Israel. Mais venturosos Que seus irmãos, morreram pela patria; A patria os sepultou dentro em seu seio: Elles, em Babylonia, as mãos em ferros, Passam de escravos miseranda vida, Que Deus pesou seus crimes, e, ao pesá-los, A dextra lhe vergou. Não mais no templo A nuvem repousára, e os ceus de bronze Dos prophetas aos rogos se amostravam, O vate de Anathoth a voz soltára Entre o povo infiel, de Eloha em nome: Ameaças, promessas, tudo inutil; De ferro os corações não se dobraram. Vibrou-se a maldicção: bem como um sonho Jerusalem passou: sua grandesa Somente existe em derrocadas pedras. O vate de Anathoth, sobre seus restos, Com tal lamento se doeu da patria: Canto de morte alçou: da noite as larvas O som lhe ouviram: squallido esqueleto, Rangendo os ossos, d'entre a hera e musgos Do portico do templo erguia um pouco, Alvejando, a caveira:--era-lhe alivio Do sagrado cantor a voz suave Desferida ao luar, triste, no meio Da vasta solidão que o circumdava: O propheta gemeu: não era o estro, Ou o vivido júbilo que outrora Inspirára Moysés: o sentimento Fui sim pungente do silencio e morte, Que da patria lhe fez sobre o cadaver A elegia da noite erguer, e o pranto Derramar da esperança e da saudade. XI. _A Lamentação._ Como assim jaz e solitaria e quêda Esta cidade outrora populosa! Qual viuva ficou e tributaria A senhora das gentes. Chorou durante a noite: em pranto as faces Sosinha, entregue á dôr, nas penas suas Ninguem a consolou: os mais queridos Contrarios se volveram. As amplas ruas de Sion são ermas, E cubertas de relva: os sacerdotes Gemem: as virgens pallidas suspiram Involtas na amargura. Dos filhos de Israel nas cavas faces Está pintada a macilenta fome; Mendigos vão pedir, pedir a estranhos, Um pão de infamia eivado. O tremulo ancião, de longe, os olhos Volta a Jerusalem, della fugindo; Vê-a, suspira, cáe, e em breve expira Com seu nome nos labios. Que horror!--as proprias mães os seus filhinhos Despedaçaram: barbaras quaes tygres, Os sanguinosos membros palpitantes No ventre sepultaram. Grande Deus, nosso opprobrio olha piedoso! Cessa de Te vingar! Vê-nos escravos, Servos de servos em paiz estranho; Adoça nossos males! Acaso serás Tu sempre inflexivel? Esquecèste de todo a nação tua? O pranto dos hebreus não Te commove? És surdo a seus lamentos? XII. Doce era a voz do velho: o som do Nablo Sonoro: o ceu sereno: clara a terra Pelo brando fulgor do astro da noite: E o propheta parou: erguidos tinha Os olhos para o ceu, onde buscava Um raio de esperança e de conforto: E elle calára já, e ainda os ecchos, Entre as minas sussurrando, ao longe Iam os sons levar de seus queixumes. XIII. Chôro piedoso, o chôro consagrado Ás desditas dos seus. Honra ao propheta! Oh margens do Jordão, paiz tão lindo, Que fostes e não sois, tambem suspiro Doído vos consagro!--Assim fenecem Imperios, reinos, solidões tornados!... Não:--nenhum deste modo: o peregrino Pára em Palmyra e pensa: o braço do homem A sacudiu á terra, o fez dormissem O seu ultimo somno os filhos della-- E elle o veio dormir pouco mais longe: Mas se chega a Sion treme, enxergando Seus lacerados restos. Pelas pedras, Aqui e alli dispersas, ainda escripta Parece vêr-se uma inscripção de agouros, Bem como aquella que aterrou um ímpio Quando, no meio de ruidosa festa, Blasphemava dos ceus, e mão ignota O dia extremo lhe apontou de crimes. A maldicção do Eterno está vibrada Sobre Jerusalem!--Quanto é terrivel A vingança de Deus! O Israelita, Sem patria, e sem abrigo, vagabundo, Odio dos homens, neste mundo arrasta Uma existencia mais cruel que a morte, E que vem terminar a morte e inferno. Desgraçada nação!--aquelle solo Onde manava o mel, onde o carvalho, O cedro e a palma o verde, ou claro ou torvo, Tão grato á vista, em bosques misturavam: Onde o lyrio e a cecem nos prados tinham Crescimento espontaneo entre as roseiras, Hoje, campo de lagrymas, só cria Humilde musgo de escalvados cerros. XIV. Ide vós a Mambré:--lá, bem no meio De um valle, outrora de verdura ameno, Erguia-se um carvalho magestoso: Debaixo de seus ramos, largos dias Abrahão repousou: na primavera Vinham os moços adornar-lhe o tronco De capellas cheirosas de boninas, E corêas gentis traçar-lhe em roda. Nasceu com o orbe a planta veneravel, Viu passar gerações, julgou seu dia Final fosse o do mundo, e quando airosa Por entre as densas nuvens se elevava, Mandou o Nume aos aquilões rugíssem. Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco, Murcharam-se caíndo, e o rei dos bosques Servio do pasto aos tragadores vermes: Deus estendeu a mão:--no mesmo instante A vinha se mirrou: juncto aos ribeiros Da Palestina os platanos frondosos Não mais cresceram, como d'antes, bellos: O armento, em vez de relva, achou nos prados Somente ingratas, espinhosas urzes. No Golgotha plantada, a Cruz clamára Justiça: a seu clamor horrido espectro No Moriah sentou-se; era seu nome Assolação--e despregando um grito, Caíu com longo som de um povo a campa. Assim a herança de Judah, outrora Grata ao Senhor, existe só nos ecchos Do tempo que já foi, e que ha passado Como hora de prazer entre desditas. Minha Patria onde existe? É lá somente! Oh lembrança da Patria acabrunhada Um suspiro tambem tu me has pedido: Um suspiro arrancado aos seios d'alma Pela offuscada gloria, e pelos crimes Dos homens que ora são, e pelo opprobrio Da mais illustre das nações da terra! A minha triste Patria era tão bella, E forte, e virtuosa! e ora o guerreiro E o sabio e o homem bom acolá dormem, Acolá, nos sepulchros esquecidos, Que a seus netos infames nada contam Da antiga honra e pudor e eternos feitos. O escravo portuguez agrilhoado Carcomir-se-lhes deixa juncto ás lousas Os decepados troncos desse arbusto, Por mãos delles plantado á liberdade, E por tyrannos derrubado em breve, Quando patrias virtudes se acabaram, Como um sonho da infancia. O vil escravo Immerso em vicios, em bruteza e infamia Não erguerá os macerados olhos Para esses troncos, que destroem vermes Sobre as cinzas de heróes, e, acceso em pejo, Não surgirá jámais?--Não ha na terra Coração portuguez, que mande um brado De maldicção atroz, que vá cravar-se Na vigilia e no somno dos tyrannos, E envenenar-lhes o prazer nos braços Das prostitutas vís, e em seus banquetes De embriaguez, lançar fel e amarguras? Não!--Bem como um cadaver já corrupto, A nação se dissolve: e em seu lethargo O povo, involto na miseria, dorme. XV. Oh, talvez, como o vate, ainda algum dia Terei de erguer á Patria hymno de morte, Sobre seus mudos restos vagueando! Sobre seus restos?--Nunca! Eterno, escuta Minhas preces e lagrymas:--se em breve, Qual jaz Sion, jazer deve Ulissea: Se o anjo do exterminio ha-de riscá-la Do meio das nações, que d'entre os vivos Risque tambem meu nome, e não me deixe Na terra vaguear, orpham de Patria. XVI. Cessou da noite a grão solemnidade Consagrada á tristeza, e a memorandas Recordações:--os monges se prostraram A face unida á pedra: a mim, a todos Correm dos olhos lagrymas suaves De compuncção. Atheu, entra no templo; Não temas esse Deus, que os labios negam, E o coração confessa: a corda do arco Da vingança, em que a morte se debruça Frouxa está; Deus é bom; entra no templo. Tu para quem a morte ou vida é fórma, Fórma sómente de mais puro barro, Que nada crês, mas nada esperas, olha, Olha o conforto do christão: se o calis Da amargura a provar os ceus lhe deram, Elle se consolou: balsamo sancto Dentro no coração a fé lhe entorna "Deus piedade terá!"--Eis seu gemido: Porque a esperança lhe sussurra emtorno: "Aqui--ou lá--a Providencia é justa." Atheu, a quem o mal fizera escravo, Teu futuro qual é? Quaes são teus sonhos? No dia da afflicçâo emmudeceste Ante o espectro do mal. E a quem alçaras O gemente clamor?--Ao mar, que as ondas Não altera por ti?--Ao ar, que some Pela sua amplidão as queixas tuas? Aos rochedos alpestres, que não sentem, Nem sentir podem teu gemido inutil? Tua dôr, teu prazer existem, passam, Sem porvir, sem passado, e sem sentido. Nas angustias da vida, o teu consolo O suicidio é só, que te promette Rica messe de goso, a paz do nada!-- E ai de ti, se buscaste, em fim, repouso, No limiar da morte indo assentar-te! Alli grita uma voz no ultimo instante Do passamento: a voz atterradora Da _Consciencia_ é ella: e has-de escutá-la Mau grado teu: e tremerás em sustos, Desesperado aos ceus erguendo os olhos Irados, de travez, amortecidos-- Aos ceus, cujo caminho a Eternidade Co'a vagarosa mão te vai cerrando, Para guiar-te á solidão das dores, Onde maldigas teu primeiro alento, Onde maldigas teu extremo arranco, Onde maldigas a existencia e a morte. XVII. Calou tudo no templo: o ceu é puro: A tempestade ameaçadora dorme. No espaço immenso os astros scintillantes O Rei da creação louvam com hymnos, Não ouvidos por nós, nas profundezas Do nosso abysmo. E aos cantos do Universo, Ante milhões de estrellas, que recamam O firmamento, ajunctará seu canto Mesquinho trovador?--Que vale uma harpa Mortal, no meio da harmonia etherea, No concerto da noite? Oh, no silencio, Eu pequenino verme irei sentar-me Aos pés da Cruz, nas trévas do meu nada. Assim se apaga a lampada nocturna Ao despontar do sol o alvor primeiro: Por entre a escuridão deu claridade, Mas do dia ao nascer, que já rutila, As torrentes de luz vertendo ao longe, Da lampada o clarão sumiu-se inutil Nesse fulgido mar, que inunda a terra. _Lisboa_--1829. *NOTAS.* NOTAS. Eis o poema da minha mocidade: são os unicos versos que conservo desse tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de respirar poesia. Se hoje me dissessem: faze um poema de quinhentos versos ácerca da Semana Sancta, eu olharia ao primeiro aspecto esta proposição como um absurdo: entretanto eu mesmo ha nove annos realizei esse absurdo. Não é esta a primeira das minhas contradiccções, e espero em Deus, e na minha sincera consciencia, que não seja a ultima. Quando compuz estes versos, ainda eu possuia toda a vigorosa ignorancia da juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificencia do grande drama do christianismo, e que a minha harpa estava affinada para cantar um tal objecto. Enganava-me; a Semana Sancta do poeta não saíu semelhante á Semana Sancta da Religião. O que é esta, de feito?--Um poema representado, um drama, cuja essencia é um facto universal, o maior de todos; o que veio mudar idéas, civilisação, e destinos do genero humano inteiro. Tinha eu forças para o tractar? Não por certo; porque até hoje só houve um Klopstock; talvez só um haverá até a consummação dos seculos. Assim, eu corri as memorias do passado, e as esperanças do fucturo; chorei sobre Jerusalem, e sobre a minha patria; subi aos ceus, e desci aos infernos; saudei o sol, e as trévas da noite; em tudo, e em toda a parte busquei inspirações, menos onde as devia buscar; por que acima da minha comprehensão estava o meu objecto--a redempção, e as suas consequencias. Foi disto justamente que eu não tractei; e era disto que eu devia tractar, se o podesse ou soubesse fazer. Porque, pois, não acompanharam estes versos os outros da primeira mocidade no caminho da fogueira! Porque publíco um poema falho na mesmissima essencia da sua concepção! Porque tenho a consciencia de que ha ahi poesia; e porque não ha poeta, que, tendo essa consciencia, consinta de bom grado em deixar nas trévas o fructo das suas vigilias. [Pag. 9.] _A loucura da Cruz não morreu toda_ "Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est". _Paul. Ad Corinth. 1.--1._ [Pag. 15.] _ignoto vate_ _Teceu_ Ainda que os Psalmos se attribuam geralmente a David, ha ácerca disso muita incertesa, e o que, ao menos, parece indubitavel é que alguns lhe não pertencem, por fallarem no captiveiro de Babylonia, e trazerem allusões a épochas mais recentes. Verdade é que se chegou a crer heretica semelhante opinião; mas os Padres gregos, e com elles Sancto Hilario, e S. Jeronymo, julgam absurdo attribui-los todos a David. Esdras voltando do captiveiro foi quem reuniu estes hymnos, e nessa collecção é provavel fizesse entrar todas os poesias hebraicas deste genero lyrico e religioso. [Pag. 16.] _E ao esconder-se o sol entre as montanhas De Bethoron_ Bethoron inferior, cidade situada perto de Gadara ou Gazara e de Bethel, e todas ellas em uma serie de montanhas no extremo da Tribu de Ephraim, ao occidente de Jerusalem. Cumpre não a confundir com a outra Bethoron ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalem para o norte, no caminho de Sichem ou Naplusa. [Pag. 16.] _O Psalmo._ Commota est, et contremuit terra: fundamenta montium conturbata sunt, et commota sunt, quoniam iratus est eis. Ascendit fumus in ira ejus: et ignis à facie ejus exarsit: carbones succensi sunt ab eo. Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus ejus. Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super pennas ventorum. _Psalm. 17--v. 8--9--10--11._ Quò ibo a spiritu tuo? et quò à facie tua figiam?-- Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in infernum, ades. Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in extremis maris: Etenim illuc manus tua deducet me: et tenebit me dextera tua. Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox illuminatio mea in deliciis meis. Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut dies illuminabitur: sicut tenebrae ejus, sicut et lumen ejus. _Psalm. 138--v. 7--8--9--10--11--12._ ------- arcum suum tetendit et paravit illum. Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus effecit. _Psalm. 7--v. 13--14._ [Pag. 18.] _------ e um som soturno Do orgam partiu-o:_ O orgam é um instrumento propriissimo para acompanhar os hymnos religiosos. Os protestantes, apartando-se da communhão romana, e fazendo voltar o culto quasi á simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo severos, se adaptam tão bem ás idéas que suscitam os cantos da Igreja. O primeiro orgam, que se viu no occidente da Europa, foi o que mandou, em 758, Constantino Copronymo, imperador de Constantinopola, a Pepino, pae de Carlos-Magno. Depois o seu uso se tomou quasi exclusivo nos templos. [Pag. 18.] _Modulando o Nebel_ O _Nebel_, que os gregos traduzem por _Psalterion_ ou _Nablon_, era entre os hebreus um instrumento proprio da musica religiosa, como entre os christãos o orgam. A sua fórma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com que na Vulgata se vertesse a palavra hebraica _Nebel_, umas vezes por lyra, outras por cythara, sem ser nenhuma das duas cousas. Veja-se a Dissertação de Calmet ácerca da musica dos hebreus. [Pag. 18.] _Do immundo Stellio_ O Stellio é o lagarto da 1.ª especie, ou a salamandra de Lacepede. _Stellio_ manibus nititur et moratur in aedibus regis. _Prov. 30 v. 28_--Migale, et chamaeleon, et _stellio_, et lacerta, et talpa. _Levit. 11--v. 30._ [Pag. 19.] _Nas margens do Kedron a rãa grasnando_ A torrente de _Kedron_, que passa entre Jerusalem e o monte Olivete, ao oriente da cidade, sécca inteiramente no estio, e no hynverno as suas aguas são torvas e avermelhadas. D'ahi o seu nome, que sôa como--_torrente da tristeza_--. Alguem lhe chamou--_torrente dos cedros_, tomando a palavra hebraica _Kedron_ pelo plural grego _Kedron_. [Pag. 19.] _O vate de Anathoth_ Jeremias era natural de Anathoth cidade sacerdotal na Tribu de Benjamim.--Verba Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt in Anathoth, in terra Benjamim. _Jer. 1--1._ [Pag. 19.] _Entre o povo infiel, de Eloha em nome_ _Eloha_ ou _Elah_--Nome de Deus em hebraico, ou antes chaldaico, e palavra assás commum na Biblia. O auctor do Genesis usa do plural _Elohim_ ou _Elahim_ para significar, ora o _Deus uno_, ora os deuses dos pagãos. Consulte-se Volney, _Recherches sur l'histoire ancienne._ Cap. 17. [Pag. 19.] _Inspirára Moysés_ Allusão ao cantico depois da passagem do mar roxo. [Pag. 20.] _A Lamentação._ Quomodo sedet sola civitas plena populo!--Facta est quasi vidua Domina Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo. Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non est qui consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunt eam, et facti sunt ei inimii. Viae Sion lugent, eò quod non sint, qui veniant ad solemnitatem: omnes portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus squallidae, et ipsa oppressa amaritudine. _Threni c. 1--v. 1--2--4._ Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem: dederunt pretiosa quaeque piro cibo ad refocilandum animam. _C. 1--v. 11._ A Egypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane. _Oratio Jerem. 6._ Jacuerunt in terra foris puer, et senex. _Threni c.--v. 21._ Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt cibus earum in contritione filiae populi mei. _Thren. 4.--v. 10._ Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice opprobrium nostrum. Haereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad extraneos. Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de manu eorum. Quare in perpetuum oblivisceris noatri? derelinques nos in longitudine dierum? _Orat. Jer. v. 1--2--8--10._ [Pag. 22.] _Bem como aquella que atterrou um ímpio._ Baltasar rex facit grande convivium optimatibus suis mille; et unusquisque secundùm suam bibebat aetatem. Praecepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae asportaverat Nabuchodonosor pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus, uxores et concubinae illius. Bibebant vinum el laudabant deos suos aureos, et argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat articulos manus scribentis. Tunc facies regis commutata est, et cogitationes ejus conturbabant eum; et compages renum ejus solvebantur, et genua ejus ad se invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae digesta est: _Mane_, _Thecel_, _Phares_. Et haec est interpretatio sermonis: _Mane_: numeravit Deus regnum tuum et complevit illud. _Thecel_: appensus es in statera, et inventus es minus habens. _Phares_: divisum est regnum tuum, et datum est Medis, et Persis. _Danielis Proph. c. 5--v. 1 a 6--25 a 28._ [Pag. 23.] _Hoje, campo de lagrymas, só cria Humilde musgo de escalvados cerros._ Varios passos, cem vezes citados, de Tacito e de outros escriptores gravissimos da antiguidade, nos provam que a Judea foi um paiz feracissimo. Os viajantes modernos no-la descrevem como uma região arida e inculta. O despotismo, que ha seculos tem opprimido a Syria, e a rapacidade dos arabes; são em grande parte causa da aniquilação da agricultura na Palestina; porém a sua esterilidade não se póde attribuir, por certo, a uma causa politica. Os sectarios do Crucificado não podem deixar de vêr neste phenomeno os effeitos da maldicção de Deus sobre a terra que bebeu o sangue do _Filho do Homem_. [Pag. 23.] _Ide vós a Mambré:_ O valle de Mambré estava situado juncto de Kariath-Arbé [Hebron] na tribu de Judah, e ao Meio-dia de Jerusalem. O carvalho ou terebintho de Abrahão, que, segundo o testemunho de S. Jeronymo, ainda existia no tempo de Constantino, o tornava notavel. Ácerca desta arvore célebre existem muitas tradições entre os Judeus; e até para os christãos dos primeiros seculos era o valle de Mambré um logar de devoção e romagem. Sozomeno nos descreve o _Valle de Terebintho_ como um sitio de festivas reuniões, e foi a sua narração quem suscitou este pedaço de Poema. [Pag. 23.] _na primavera Vinham os moços adornar-lhe o tronco_ Aqui [em Mambré] ha um logar que hoje chamam Terebintho, distante de Chebron, que lhe fica ao meio-dia, 15 stadios, e de Jerusalém quasi 250.--Os habitantes deste sitio, no tempo do estio, fazem uma feira a que concorrem os vizinhos do valle, e ainda povos mais remotos, como os Palestinos, os Arabes, e os Phenicios. _Sozom. Histor. Eccles._ [Pag. 24.] _No Golgotha plantada a cruz clamára_ O monte Golgotha ou Calvario foi o logar onde crucificaram J. C.--Esta palavra significa: _Logar onde repousam os craneos dos mortos._ [Pag. 24.] _No Moriah sentou-se:_ O monte Moriah, onde estava o templo de Salomão, levantava-se no meio de Jerusalem, e ficava-lhe ao norte o monte Sion. Diz-se que neste logar estivera Abrahão para sacrificar seu filho.--_Calmet Diction._ A HARPA DO CRENTE. TENTATIVAS POETICAS PELO AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA. SEGUNDA SERIE. LISBOA--1838 NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS. _Rua direita do Arsenal--n.º 55._ *A Arrabida.* A RODRIGO DA FONSECA MAGALHÃES, ORNAMENTO DA TRIBUNA PORTUGUEZA, _Em testemunho da sincera amizade,_ Offerece o Auctor. A Arrabida. [1830.] I. Salve, oh valle do sul, saudoso e bello! Salve, oh terra de paz, deserto sancto, Onde não chega o sussurrar das turbas! Sólo sagrado a Deus, podesse o bardo Ser um dos teus, e não voltar ao mundo! II. Suspira o vento no alamo frondoso; As aves soltam matutino canto; Late o lebreu na encosta, e o mar sussurra Nos rochedos da concava bahia: Eis o ruido de ermo!--Ao longe o negro, Insondado oceano, e o ceu ceruleo Se abraçam no horizonte: immensa imagem Da eternidade e do infinito, salve! III. Oh, como surge magestosa e bella, Com viço da creação, a naturesa, No solitario valle!--E o leve insecto, E a relva, e os matos, e a fragrancia pura Das boninas da encosta estão contando Mil saudades de Deus, que os ha lançado, Com mão profusa, no regaço ameno Da solidão, onde se esconda o justo. E lá campeam no alto das montanhas Os escalvados pincaros, severos, Quaes guardadores de um logar que é sancto: Atalaias que ao longe o mundo observam, Cerrando até o mar o ultimo abrigo Da crença viva, da oração piedosa, Que se ergue a Deus de labios innocentes. Sobre esta scena o sol verte em torrentes Da manhan o clarão; a brisa esvae-se Por esses matos de alecrim florído, Embalsamando o ar de brando aroma: O rocío da noite á rosa agreste No seio derramou frescor suave, E 'inda existencia lhe dará um dia! Formoso ermo do sul, outra vez, salve! IV. Negro, esteril rochedo, que contrastas, Na mudez tua, o placido sussurro Das arvores do valle, que verdecem, Ricas d'encantos, co'a estação propicia; Suavissimo aroma, que manando Das variegadas flores, derramadas Na sinuosa encosta da montanha, Do altar da solidão subindo aos ares, És digno incenso ao Creador erguido; Livres aves, vós filhas da espessura, Que só teceis da natureza os hymnos; O que crê, o cantor, que foi lançado, Estranho ao mundo, no bulicio delle, Vem saudar-vos, sentir um goso puro, Dos homens esquecer paixões e opprobrio, E vêr, sem ver-lhe a luz prestar a crimes, O sol, e uma só vez pura saudar-lha. Comvosco eu sou maior: mais longe a mente Pelos seios dos céus se immerge livre, E se desprende de mortaes memorias Na solidão solemne, onde, incessante, Em cada pedra, em cada flor se escuta Do Sempiterno a voz, e vê-se impressa A dextra sua em multiforme quadro. V. Escalvado penedo, que repousas Lá no cimo do monte, ameaçando Ruina ás matas de alecrim e murta, Que nesta encosta ondeam, meneadas Pelo vento do sul, foste já lindo, Já te cubriram cespedes virentes; Mas o tempo voou, e nelle involta A tua formosura: as grossas chuvas, Despedidas das nuvens, se arrojaram Sobre ti, oh rochedo, arrebatando A terra e o viço, que te ornava o cimo. Eis-te nú esqueleto!--o sol queimou-te: Tua alvura passou: tão negro és hoje, Quanto de mar erguido escuras vagas. Cáveira da montanha, ossada immensa, É tua campa o ceu: sepulchro o valle Um dia te será. Quando sentires Rugir com som medonho a terra ao longe, Na expansão dos volcões, e o mar bramindo, Lançar á praia vagalhões cruzados; Tremer-te a larga base, e sacudir-te Do vasto dorso, o fundo deste valle Te váe servir de tumulo: e os carvalhos Do mundo primogenitos, e os freixos, Arrastados por ti lá da collina, Comtigo hão-de jazer.--De novo a terra Te cubrirá o dorso sinuoso: Outra vez sobre ti nascendo os lyrios, Do seu puro candor hão-de adornar-te: E tu, ora medonho, e nú, e triste, Ainda bello serás, vestido e alegre. Mais que o homem feliz!--Quando eu no valle Dos tumulos cair; quando uma pedra Os ossos me esmagar, se me fôr dada, Não mais reviverei: não mais meus olhos Verão o pôr do sol, em dia estivo, Se em turbilhões de purpura, que ondeam Pelo extremo dos céus sobre o occidente, Váe provar que um Deus ha a estranhos povos, E alem das ondas tremulo sumir-se; Nem, quando, lá do cimo das montanhas, Com torrentes de luz inunda as veigas: Nem mais verei o refulgir da lua No irrequieto mar, na paz da noite, Por horas em que véla o criminoso, A quem íntima voz rouba o socego, E em que o justo descança, ou, solitario, Ergue ao Senhor um hiymno harmonioso. VI. Hontem, sentado n'um penhasco, e perto Das aguas, então quêdas, do oceano, Eu tambem o louvei, sem ser um justo: E meditei--e a mente extasiada Deixei correr pela amplidão das ondas. Como abraço materno, era suave A aragem fresca do caír das trévas, Em quanto, involta em gloria, a clara lua Sumia em seu fulgor milhões d'estrellas. Tudo calado estava: o mar somente As harmonias da creação soltava, Em seu rugido; e o freixo do deserto Se agitava, gemendo e murmurando, Ante o sopro de oeste:--alli dos olhos O pranto me correu, sem que o sentisse, E aos pés de Deus se derramou minha alma. VII. Oh, que viesse o que não crê, comigo, Á vecejante Arrabida, de noite, E se assentasse aqui sobre estas fragas, Escutando o sussurro incerto e triste Das movediças ramas, que povoa De saudade e de amor nocturna brisa; Que visse a lua, o espaço oppresso de astros, E ouvisse o mar soando:--elle chorára, Qual eu chorei, as lagrymas do goso, E adorando o Senhor detestaria De uma sciencia van seu vão orgulho. VIII. É aqui neste valle, ao qual não chega Humana voz e o tumultuar das turbas, Onde o nada da vida sonda livre O coração, que busca ir abrigar-se No futuro, e debaixo do amplo manto Da piedade de Deus: aqui serena Vem a imagem da campa, como a imagem Da patria ao desterrado: aqui, solemne, Brada a montanha, memorando a morte. Essas penhas, que, lá no alto da encosta, Negras, despidas, dormem solitarias, Parecem imitar da sepultura O aspecto melancholico, e o repouso Tão desejado do que em Deus confia. Bem semelhante á paz, que se ha sentado Por seculos, alli, nas serranias, É o silencio do adro, onde reunem Os cyprestes e a cruz o céu e a terra. Como tu vens cercado de esperança, Para o innocente, oh placido sepulchro! Juncto das tuas bordas pavorosas O perverso recúa horrorisado: Após si volve os olhos; na existencia Deserto árido só descobre ao longe, Onde a virtude não deixou um trilho. Mas o justo chegando á meta extrema, Que separa de nós a eternidade, Transpoem-a sem temor, e em Deus exulta. O infeliz e o feliz lá dormem ambos, Tranquillamente: e o trovador mesquinho, Que peregrino vagueou na terra, Sem encontrar um coração de fogo, Que o entendesse, a patria de seus sonhos, Ignota, por lá busca; e quando as eras Vierem juncto ás cinzas collocar-lhe Tardios louros, que escondêra a inveja, Elle não erguerá a mão mirrada, Para os cingir na regelada fronte. Justiça, gloria, amor, saudade, tudo, Ao pé da sepultura, é som perdido De harpa eolia esquecida em brenha ou selva: O despertar um pae, que saborea, Entre os braços, da morte o extremo somno, Já não é dado ao filial suspiro: Em vão o amante, alli, da amada sua De rosas sobre a c'roa debruçado, Rega de amargo pranto as murchas flores E a fria pedra: a pedra é sempre fria, E para sempre as flores se murcharam, IX. Bello ermo! eu hei-de amar-te, em quanto est'alma, Aspirando o futuro além da vida, E um halito dos ceus, gemer, atada Á columna do exilio, a que se chama, Em lingua vil e mentirosa, o mundo. Eu hei-de amar-te, oh valle, como um filho Dos sonhos meus. A imagem do deserto Guarda-la-hei no coração, bem juncto Com minha fé, meu unico thesouro. Qual pomposo jardim de verme illustre, Chamado rei ou nobre, ha-de comtigo Comparar-se, oh deserto?--Aqui não cresce Em vaso de alabastro a flor captiva, Ou arvore educada, por mão do homem, Que lhe diga: és escrava: e erga um ferro, E lhe decepe os troncos. Como é livre A vaga do oceano, é livre no ermo A bonina rasteira, e o freixo altivo: Não lhes diz: nasce aqui, ou lá não cresças: Humana voz. Se baqueou o freixo, Deus o mandou; se a flor pendida murcha, É que o rocio não desceu de noite, E da vida o Senhor lhe nega a vida. Ceu livre, terra livre, e livre a mente, Paz íntima, e saudade, mas saudade Que não doe, que não mirra, e que consola São as riquezas do ermo, onde sorriem Das procellas do mundo os que o deixaram. Ahi, na branda encosta, hontem de noite, Alvejava por entre as azinheiras Do solitario a habitação tranquilla: E eu vagueei por lá: patente estava O pobre alvergue do eremita humilde, Onde jazia o filho da esperança, Sob as azas de Deus, á luz dos astros, Em leito, duro sim, não de remorsos, Oh, com quanto socego o bom do velho Dormia!--A leve aragem lhe ondeava As raras cãas na fronte, onde se lia A bella historia de passados annos. De alto choupo atravez passava um raio Da lua--astro de paz, astro que chama Os olhos para o ceu, e a Deus a mente-- E em luz pallida as faces lhe banhava: E talvez neste raio o Pae celeste Da patria eterna lhe enviava a imagem, Que o sorriso dos labios lhe fugia, Como se um sonho de ventura e gloria Na terra de antemão o consolasse. E eu comparei o solitario obscuro Ao inquieto filho das cidades; Comparei o deserto silencioso Ao perpétuo ruido que sussurra Pelos palacios do abastado e nobre, Pelos paços dos reis; e condoí-me Do cortesão suberbo, que só cura De honras, haveres, gloria, que se compram Com maldicções e perennal remorso. Gloria!--A sua qual é?--Pelas campinas, Cubertas de cadaveres, regadas De negro sangue, elle segou seus louros; Louros que vão cingir-lhe a fronte altiva, Ao som do choro da viuva, e do orpham; Ou, dos sustos senhor, em seu delirio, Os homens--seus irmãos--flagella e opprime. Lá o filho do pó se julga um nume, Porque a terra o adorou: o desgraçado Pensa, talvez, que o verme dos sepulchros Nunca se ha-de chegar, para traga-lo, Ao banquete da morte, imaginando Que uma lagem de marmore, que esconde O cadaver do grande, é mais duravel Do que esse chão sem inscripção, sem nome, Por onde o oppresso, o misero, procura O repouso, e se atira aos pés do throno Do Omnipotente, a demandar justiça Contra os fortes do mundo--os seus tyrannos. X. Oh cidade, cidade, que trasbordas De vicios, de paixões, e de amarguras! Tu lá estás, na tua pompa involta, Suberba prostituta, alardeando Os theatros, e os paços, e o ruido Das carroças dos nobres, recamadas De ouro e prata, e os praseres de uma vida Tempestuosa, e o tropear contínuo Dos férvidos ginetes, que alevantam O pó e o lodo cortesão das praças; E as gerações corruptas de teus filhos Lá se revolvem, qual montão de vermes Sobre um cadaver putrido!--Cidade, Branqueado sepulchro, que misturas A opulencia, a miseria, a dôr e o goso, Honra, infamia, pudor, e impudicicia, Ceu e inferno, que és tu?--Escarneo ou gloria Da humanidade?--O que o souber que o diga! Bem negra avulta aqui, na paz do valle, A imagem desse povo, que reflue Das moradas á rua, á praça, ao templo, Que a noite sorve, e que vomita o dia, Que ri, e chora, e folga, e geme, e morre, Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme; Absurdo mixto de baixesa extrema E de extrema ousadia; vulto enorme, Ora aos pés de um vil despota estendido, Ora surgindo, e arremessando ao nada As memorias dos seculos que foram; E depois sobre o nada adormecendo. Vê-lo, rico de opprobrio, ir assentar-se Em joelhos, nos atrios dos tyrannos, Onde, entre o lampejar de armas de servos, O servo popular adora um tigre? Esse tigre é o idolo do povo! Saudae-o; que elle o manda: abençoae-lhe O ferreo sceptro: ide folgar em roda De cadafalsos, povoados sempre De victimas illustres, cujo arranco Seja como harmonia, que adormente, Em seus terrores, o senhor das turbas. Passae depois. Se a mão da Providencia Esmigalhou a fronte á tyrannia; Se o déspota caíu, e está deitado No lodaçal da sua infamia, a turba Lá vai buscar o sceptro dos terrores, E diz--é meu--; e assenta-se na praça; E involta em roto manto, e julga e reina. Se um ímpio, então, na affogueada boca De volcão popular sacode um facho, Eis o incendio que muge, e a lava sobe, E referve, e trasborda, e se derrama Pelas ruas além: clamor retumba De anarchia impudente, e o brilho de armas Pelo escuro transluz, como um presagio De assolação; e se amontoam vagas Desse mar d'abjecção, chamado o vulgo; Desse vulgo, que ao som de infernaes hymnos, Cava fundo da Patria a sepultura, Onde, abraçando a gloria do passado E do futuro a ultima esperança, As esmaga comsigo, e ri morrendo. Tal és cidade, licenciosa ou serva! Outros louvem teus paços sumptuosos, Teu ouro, teu poder:--sentina impura Da corrupção, eu não serei teu bardo! XI. Cantor da solidão, eu me hei sentado Juncto do verde cespede do valle; E a paz de Deus do mundo me consola. Avulta aqui, e alveja, entre o arvoredo, Um pobre conventinho. Homem piedoso O alevantou ha seculos, passando, Como orvalho do ceu, por este sitio, De virtudes depois tão rico e fertil. Como um pae de seus filhos rodeado, Pelos matos do outeiro o vão cercando Os tugurios de humildes eremitas, Onde o cilicio e a compuncção apagam Da lembrança de Deus passados erros Do peccador, que reclinou a fronte Penitente no pó. O sacerdote Dos remorsos lhe ouviu as amarguras; E perdoou-lhe, e consolou-o em nome Do que espirando perdoava, o Justo Que entre os humanos não achou piedade. Religião! do misero conforto, Abrigo extremo de alma, que ha mirrado O longo agonisar de uma saudade, Da deshonra, do exilio, ou da injustiça, Tu consolas aquelle, que ouve o verbo, Que renovou o corrompido mundo, E que mil povos pouco a pouco ouviram. Nobre, plebeu, dominador, ou servo, O rico, o pobre, o valoroso, o fraco, Da desgraça no dia ajoelharam No limiar do solitario templo. Ao pé desse portal, que veste o musgo, Encontrou-os chorando o sacerdote, Que da serra descia á meia-noite, Pelo sino das preces convocado: Ahi os viu ao despontar do dia, Sob os raios do sol, ainda chorando. Passados mezes, o burel grosseiro, O leito de cortiça, e a fervorosa E contínua oração foram cerrando Nos corações dos miseros as chagas, Que o mundo sabe abrir, mas que não cura. Aqui, depois, qual halito suave Da primavera, lhes correu a vida, Até sumir-se no adro do convento, Debaixo de uma lagem tosca e humilde, Sem nome, nem palavra, que recorde O que a terra abrigou no somno extremo. Eremiterio antigo, oh se podesses Dos annos que lá vão contar a historia; Se ora, á voz do cantor, possivel fosse Transsudar desse chão, gelado e mudo, O mudo pranto, em noites dolorosas, Por naufragos do mundo derramado Sobre elle, e aos pés da cruz!... se vós podesseis, Broncas pedras, fallar, o que dirieis! Quantos nomes mimosos da ventura, Convertidos em fabula das gentes, Despertariam o eccho das montanhas, Se aos negros troncos do sobreiro antigo Mandasse o Eterno sussurrar a historia Dos que vieram desnudar-lhe o cepo, Para um leito formar, onde velassem Da magoa, ou do remorso as longas noites! Aqui veio talvez buscar asylo Um poderoso, outr'ora anjo da terra, Despenhado nas trévas do infortunio: Aqui, talvez, gemeu o amor trahido, Ou pela morte convertido em cancro De infernal desespero: aqui soaram Do arrependido os ultimos gemidos, Depois da vida derramada em gosos, Depois do goso convertido em tedio. Mas quem foram?--Na terra, onde deixaram Suas vestes mortaes, nenhum vestigio Resta dos nomes seus.--E isso que importa, Se Deus os viu; se as lagrymas dos tristes Elle contou, para as pagar com gloria? Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda, Que dos montes além conduz ao valle, Sobre o marco de pedra a cruz se eleva, Como um pharol de vida, em mar de escolhos: Ao christão infeliz acolhe no ermo, E consolando-o, diz-lhe: a patria tua É lá no ceu:--abraça-te comigo: Juncto della esses homens, que passaram Acurvados na dôr, as mãos ergueram Para o Deus, que perdoa, e que é conforto Dos que aos pés deste symbolo da esp'rança Vem derramar seu coração afflicto: É do deserto a historia a cruz e a campa; E sobre tudo o mais pousa o silencio. XII. Feliz da terra, os monges não maldigas; Do que em Deus confiou não escarneças!-- Folgando segue a trilha, que ha juncado, Para teus pés, de flores a fortuna, E sobre a morta crença, em paz descança. Que mal te faz, que goso vae roubar-te O que ensanguenta os pés nas bravas urzes, E sobre a fria pedra encosta a fronte? Que mal te faz uma oração erguida, Nas solidões, por voz sumida e frouxa, E que, subindo aos céus, só Deus escuta? Oh, não insultes lagryimas alheias, E deixa a fé ao que não tem mais nada!... E se estes versos te contristam--rasga-os. Teus menestreis te venderão seus hymnos, Nos banquetes opiparos, em quanto O negro pão repartirá comigo, Seu trovador, o pobre anachoreta, Que não te inveja as ditas, como aos bardos Do prazer dissoluto eu não invejo Essas crôas, que ás vezes cingem frontes, Onde, por baixo, se escreveu--_Infamia!_-- *A Voz.* A Voz. É tão suave ess'hora, Em que nos foge o dia, E em que suscita a lua Das ondas a ardentia; Se em alcantís marinhos Nas rochas assentado, O trovador medita, Em sonhos enleiado! O mar azul se encrespa Co' a vespertina brisa, E no casal da serra A luz já se divisa. E tudo em roda cala, Na praia sinuosa, Salvo o som do remanso, Quebrando em furna algosa. Alli folga o poeta Nos desvarios seus; E nessa paz que o cerca Bemdiz a mão de Deus. Mas despregou seu grito A alcyone gemente, E nuvem pequenina Ergueu-se no occidente; E sóbe, e cresce, e immensa, Nos ceus negra fluctua, E o vento das procellas Já varre a fraga nua. Turba-se o vasto oceano, Com horrido clamor: Do vagalhão nas ribas Expira o vão furor. E do poeta a fronte Cubriu véu de tristesa: Partiu-se á luz do raio Seu hymno á naturesa. Feia alma lhe vagava Um negro pensamento, Da alcyone ao gemido, Ao sibillar do vento. Era blasphema idéa, Que triumphava em fim: Mas voz soou ignota, Que lhe dizia assim: "Cantor, esse queixume Da nuncia das procellas, E as nuvens, que te roubam Myriadas de estrellas; E o fremito dos euros, E o estourar da vaga, Na praia, que revolve, Na rocha, onde se esmaga; Onde espalhava a brisa Sussurro harmonioso, Em quanto do ether puro Descia o sol radioso, Typo da vida do homem, É do universo a vida; Depois do afan repouso, Depois da paz a lida. Se ergueste a Deus um hymno Em dia de amargura; Se te amostraste grato Nos dias de ventura, Seu nome não maldigas, Quando se turba o mar: No Deus, que é pae, confia, Do raio ao scintilar. Elle o mandou:--a causa Disso o universo ignora-- E mudo está:--seu nume, Como o universo, adora!" * * * * * Oh sim: torva blasphemia Não manchará seu canto! Brama procella embora; Pese sobre elle o espanto; Que de su' harpa os hymnos Derramará o bardo, Aos pés de Deus, qual oleo De recendente nardo. _Leça da Palmeira 1835_ *A Victoria e a Piedade.* A Victoria e a Piedade. Eu nunca fiz soar meu canto humilde Nos paços dos senhores: Eu jámais consagrei hymno mentido Da terra aos oppressores. Mal haja o trovador que vae sentar-se Á porta do abastado, O qual com ouro paga a alhêa infamia, O cantico aviltado. O filho das canções, da gloria o bardo Não manchou o alaude; O ingenho seu ha consagrado á Patria; Seu canto é da virtude. Ingenho!--dom dos ceus, consolo ao triste Nos dias de afflicção, Qual solto vento em areal deserto, Livres teus cantos são. No despontar da vida, do infortunio Murchou-me o sopro ardente: Pela terra natal, na flor dos dias, Eu suspirei ausente. O solo do desterro, ah, quanto ingrato É para o foragido; Ennevoado o ceu; arido o prado; O rio adormecido! Eu lá chorei, na idade da esperança, Da patria a dura sorte: Esta alma encaneceu;--e antes de tempo Ergueu hymnos á morte. E que infeliz ha hi, a quem não ria Da sepultura a imagem? Alli é que se afferra o porto amigo, Depois de ardua viagem. Mas, quando o pranto me queimava as faces, O pranto da saudade, Deus escutou dos profugos as preces, Teve de nós piedade. Armas!--bradaram do desterro os filhos: Bem-disse-os o Senhor: E vencer ou morrer juncto com elles Jurou o trovador. Pelas vagas do mar correndo affoutos, Á gloria nos votámos; E, nos campos nataes, pendão invicto Os livres, nós, plantámos. Fanatismo, ignorancia, odio fraterno; De fogo céus toldados; A fome, a peste, o mar avaro, as hostes De innumeros soldados; Um futuro sem raio de esperança; Ouvir o vão lamento De infante, a vida incerta conduzido Por mão do soffrimento; Comprar com sangue o pão, com sangue o fogo Em regelado inverno; Eis contra o que, por mezes de amargura, Nos fez luctar o inferno. Mas constancia e valor tudo ha vencido: Ganhou-se eterna gloria; E dos tyrannos apesar, colhemos Os louros da victoria. Teça-se, pois, o cantico subido Aos fortes vencedores. Livres somos!--Sumiram-se qual fumo Da Patria os oppressores. Sobre essa encosta, sobranceira aos campos, De sangue ainda impuros, Onde o canhão troou, por mais de um anno, Contra invenciveis muros, Eu, tomando o alaúde, irei sentar-me; Pedir inspirações A amiga noite, o genio que me ensina Suavissimas canções. Reina em silencio a lua, o mar não brame, Os ventos nem bafejam..... Mas que ossadas são estas, que na encosta, Aqui e alli, alvejam? Esses?--São ossos vís, que não resguarda O sussurrar da gloria; Herdeiros só das maldicções das gentes, Das maldicções da historia: São os restos dos homens, que luctaram, Valentes no seu crime, Contra nós, contra a mão da Providencia, Que os maus derruba e opprime. Mas quem porá padrão que aos evos conte, Seus feitos derradeiros! Quem dirá--aqui dormem portuguezes; Aqui dormem guerreiros--? Quem virá na alta noite erguer por elles Resas de salvação? Quem ousará pedir para o vencido Um ai de compaixão? Virão, acaso, alevantar seus filhos O pranto solitario, Pelo que lhes legou de avós o nome Involto em vil sudario? Será a esposa, que lhes cubra as cinzas Com oração piedosa? Não!--nenhuma ousará dizer, chorando, Eu fui do escravo esposa. Será a amante?--Em tremedaes a pura Rosa nascer não sabe: A mais bella paixão não é de servos; Vil goso só lhes cabe. De mãe o amor tentára, unicamente, Sobre os corpos gelados, Vir chorar a esperança, em flor colhida, De seus annos cansados: Mas o espanto lh'o veda, e o rouco grito Do rude velador; Da noite os medos; de armas, já sem donos, Nas trévas o esplendor. Quem, pois, consolará gementes sombras, Que ondeam juncto a mim? Quem seu perdão da Patria implorar ousa, Seu perdão de Elohim? Eu:--o christão:--o trovador do exilio, Contrario em guerra crua, Mas que não sei cuspir o fel da affronta Sobre uma ossada nua. O misero pastor desceu dos montes, Abandonando o gado, Para as armas vestir, dos céus em nome, Por phariseus chamado. De um Deus de paz hypocritas ministros Os tristes enganaram: Foram elles, não nós, que estas caveiras Aos vermes consagraram. Maldicto sejas tu, monstro do inferno, Que do Senhor no templo, A virtude insultando, ao crime incitas, Dás do furor o exemplo! Sobre os restos da Patria, tu bem creste Folgar de nosso mal, E, sobre as cinzas de cidade illustre, Soltar riso infernal. Tu, no teu coração insipiente, Disseste--Deus não ha!-- Elle existe, malvado!--e nós vencemos: Treme.... que tempo é já. Mas esses, cujos ossos espalhados No campo da peleja Jazem, exoram a piedade nossa; Piedoso o livre seja! Eu pedirei a paz dos inimigos, Mortos como valentes, Ao Deus nosso juiz, ao que distingue Culpados de innocentes. Perdoou, expirando, o Filho do Homem Aos seus perseguidores: Perdão, tambem, ás cinzas de infelizes! Perdão--oh vencedores! Não insulteis o morto. Elle ha comprado Bem caro o esquecimento, Vencido adormecendo em morte ignobil, Sem dobre ou monumento. Que resta aos desditosos?--Somno eterno, Da Patria a maldicção, A justiça de Deus, tremenda, ignota, E a humana execração. Mas nós, saibamos esquecer os odios De guerra lamentavel; É generoso o forte, e deixa ao fraco O ser inexoravel. Oh, perdão para aquelle, a quem a morte No seio agasalhou! Elle é mudo:--pedi-lo já não póde; O da-lo a nós deixou. Da lei a espada puna o criminoso, Que vê a luz dos céus: O que legou á terra o pó da terra, Julga-lo cabe a Deus. E vós, meus companheiros, que não vistes Nossa inteira victoria, Não precisaes do trovador o canto; Vosso nome é da historia. Eu do vencido consolei a sombra; Eu perdoei por vós. Filhos da infamia os desgraçados eram; Ricos de gloria nós. _Porto--Agosto de 1833_ NOTA. Este fragmento, que segue, e que servirá para intelligencia dos precedentes versos, pertence a um livro já todo escripto no entendimento, mas de que só alguns capitulos estão trasladados ao papel. A guerra da restauração de 1832 a 1833 é o acontecimento mais espantoso e mais poetico deste Seculo. Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava comnosco o Auctor de _D. Branca_, do _Camões_, de _João Minimo_; o Sr. Lopes de Lima, e outros: mas a politica engodou todos os ingenhos, e levou-os comsigo. Os homens de bronze, os sete mil de Mindello não tiveram um cantor; e apenas eu, o mais obscuro de todos, salvei em minha humilde prosa, uma diminuta porção de tanta riquesa poetica. Oxalá que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca valia, não fique esmagado e sumido debaixo do Leviathan da politica. Todos nós temos vendido a nossa alma ao espirito immundo do Jornalismo. E o mais é que poucos conhecem uma cousa: que polilica de poetas vale, por via de regra, tanto como poesia de politicos. _Fragmento._ O combate da antevespera estava ainda vivo na minha imaginação: eu cria vêr ainda os cadaveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal reducto, em que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu clamor de enthusiasmo ao accommette-lo, o sibillar das ballas, o grito dos feridos, o som das armas caindo-lhes das mãos, o gemido doloroso e longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer. Os dentes me rangeram de cólera, e a lagryma envergonhada de soldado me escorregou pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes cairam nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadaveres dos vencidos, que ainda por ahi jaziam; porém pareceu-me que elles se alevantavam e me diziam:--Lembra-te de que tambem fomos soldados: lembra-te de que fomos vencidos!--E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de expirarem, as idéas de soldado e de vencimento, conglobadas n'uma só, como tremenda e indelevel ignominia, estampada na fronte do que ia transpor os umbraes do outro mundo. Então oreí a Deus por elles: antes de irmão de armas eu tinha sido christão; e Jesu-Christo perdoára, entre as affrontas da Cruz, aos seus assassinos. A idéa de perdão parecia me consolava da perda de tantos e tão valentes amigos. Havia nessa idéa torrentes de poesia; e eu te devi então, oh crença do Evangelho, talvez a melhor das minhas pobres canções. (_Da Minha Mocidade--Poesia e Meditação Cap...._) A HARPA DO CRENTE. TENTATIVAS POETICAS PELO AUCTOR DA VOZ DO PROPHETA. TERCEIRA SERIE. LISBOA--1838 NA TYP. DA SOCIEDADE PROPAGADORA DOS CONHECIMENTOS UTEIS. _Rua direita do Arsenal--n.º 55._ *Deus.* Deus. Nas horas do silencio--á meia-noite-- Eu louvarei o Eterno! Ouçam-me a terra, e os mares rugidores, E os abysmos do inferno. Pela amplidão dos céus meus cantos soem, E a lua prateada Pare no gyro seu, em quanto pulso Esta harpa, a Deus sagrada. Antes de tempo haver, quando o infinito Media a eternidade, E só do vacuo as solidões enchia De Deus a immensidade, Elle existiu--em sua essencia involto; E, fóra delle, o nada: No seio do Creador a vida do homem Estava ainda guardada: Ainda então do mundo os fundamentos Na mente se escondiam Do Omnipotente, e os astros fulgurantes Nos céus não se volviam. Eis o Tempo, o Universo, o Movimento Das mãos sáe do Senhor: Surge o sol, banha a terra, e desabrocha Uma primeira flor: Sobre o invisivel eixo range o globo: O vento o bosque ondêa: Retumba ao longe o mar: da vida a força A naturesa ancêa! Quem, dignamente, oh Deus, ha-de louvar-te, Ou cantar teu poder? Quem dirá de Teu braço as maravilhas, Fonte de todo o ser, No dia da creação; quando os thesouros Da neve amontoaste; Quando da terra nos mais fundos valles As aguas encerraste?! E eu onde estava, quando o Eterno os mundos, Com dextra poderosa, Fez, por lei immutavel, se librassem Na mole ponderosa? Onde existia então? No typo immenso Das gerações futuras; Na mente do meu Deus. Louvor a Elle Na terra e nas alturas! Oh, quanto é grande o Rei das tempestades, Do raio, e do trovão! Quão grande o Deus, que manda, em secco estio, Da tarde a viração! Por sua Providencia nunca, embalde, Zumbiu minimo insecto; Nem volveu o elephante, em campo esteril, Os olhos, inquieto. Não deu Elle á avezinha o grão da espiga, Que ao ceifador esquece; Do norte ao urso o sol da primavera, Que o reanima e aquece? Não deu Elle á gazella amplos desertos, Ao cervo o bosque ameno, Ao flamingo os paues, ao tigre um antro, No prado ao touro o feno! Não mandou Elle ao mundo, em lucto e trévas, Consolação e luz? Acaso, em vão, algum desventurado Curvou-se aos pés da cruz? A quem não ouve Deus? Sómente ao ímpio, No dia da afflicção, Quando pesa sobre elle, por seus crimes, Do crime a punição. Homem, ente immortal, que és tu perante A face do Senhor? És a junça do brejo, harpa quebrada Nas mãos do trovador! Olha o negro pinheiro, campeando Dos Alpes entre a neve: Quem arranca-lo de seu throno ousára, Quem destruir-lhe a seve? Ninguem! Mas ai do abeto, se o seu dia Extremo Deus mandou! Lá correu o aquilão: fundas raizes Aos ares lhe assoprou. Suberbo, sem temor, saíu na margem Do caudaloso Nilo, O corpo monstruoso ao sol voltando, Medonho crocodilo. De seus dentes em roda o susto móra: Vê-se a morte assentada Dentro em sua garganta, se descerra A boca affogueada. Qual duro arnez de intrepido guerreiro É seu dorso escamoso; Como os ultimos ais de um moribundo Seu grito lamentoso: Fumo e fogo respira quando irado:-- Porém, se Deus mandou, Qual do norte impellida a nuvem passa, Assim elle passou! Teu nome ousei cantar!--Perdoa, oh Nume; Perdoa ao teu cantor! Dignos de ti não são meus frouxos cantos; Mas são cantos de amor. Embora vís hypocritas te pintem Qual barbaro tyranno; Mentem, por dominar, com ferreo sceptro, O vulgo cego e insano. Quem os crê é um ímpio!--Arrecear-te É maldizer-te, oh Deus: É o throno dos despotas da terra Ir collocar nos céus. Eu, por mim, passarei entre os abrolhos Dos males da existencia Tranquillo, e sem terror, á sombra posto Da tua Providencia. _Plymouth--Setembro de 1831._ *A Tempestade.* A ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO. _Alma affinada pelas harpas de anjos; Rei das canções--entenderás meu hymno!_ O Auctor. A Tempestade. Sibilla o vento:--os torreões de nuvens Pesam nos densos ares: Ruge ao largo a procella, e encurva as ondas Pela extensão dos mares: A immensa vaga ao longe vem correndo, Em seu terror involta; E, d'entre as sombras, rapidas centelhas A tompestade sólta. Do sol, no occaso, um raio derradeiro, Que, apenas fulge, morre, Escapa á nuvem, que, appressada e espessa, Para apaga-lo corre. Tal nos affaga em sonhos a esperança, Ao despontar do dia, Mas, no acordar, lá vem a consciencia Dizer que ella mentia. As ondas negro-azues se conglobaram; Serras tornadas são, Contra as quaes outras serras, que se arqueam, Bater, partir-se vão. Oh tempestade!--eu te saudo! oh nume, Da naturesa açoite! Tu guias os bulcões, do mar princesa; E é teu vestido a noite! Quando no pinheiral, entre o granizo, Ao sussurrar das ramas, Vibrando sustos, pavorosa ruges, E assolação derramas, Quem porfiar comtigo, então, ousara Da gloria e poderio; Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio? Quem me dera ser tu, por balouçar-me Das nuvens nos castellos, E vêr dos ferros meus, em fim, quebrados Os rebatidos élos! Eu rodeára, então, o globo inteiro: Eu sublevára as aguas: Eu dos volcões, com raios accendêra Amortecidas fráguas: Do robusto carvalho e sobro antigo Accurvaria as frontes; Com furacões, os areaes da Lybia Converteria em montes: Pelo fulgor da lua, lá do norte No polo me assentára, E víra prolongar-se o gelo eterno, Que o tempo amontoára. Alli eu solitario, eu rei da morte, Erguêra meu clamor, E dissera: sou livre, e tenho imperio: Aqui, sou eu senhor! Quem se poderá erguer, como estas vagas, Em turbilhões incertos; E correr, e correr--troando ao longe-- Nos liquidos desertos! Mas entre membros de lodoso barro A mente presa está!.... Ergue-se em vão aos céus:--precipitada, Rapido, em baixo dá. Oh morte!--amiga morte!--é sobre as vagas, Entre escarceus erguidos, Que eu te invoco, pedindo-te feneçam Meus dias aborridos: Quebra duras prisões, que a naturesa Lançou a esta alma ardente; Que ella possa voar, por entre os orbes, Aos pés do Omnipotente: Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem Desça, e estourando a esmague; E a grossa proa, dos tufões ludibrio, Solta, sem rumo vague! Porém, não!--Dormir deixa os que me cercam O somno do existir: Deixa-os; vãos sonhadores de esperanças Nas trévas do porvir. Dôce mãe do repouso--extremo abrigo De um coração oppresso-- Que ao ligeiro prazer, á dor cançada Negas no seio accesso, Não despertes--oh não--os que abominam Teu amoroso aspeito; Febricitantes, que se abraçam, loucos, Com seu dorido leito! Tu, que ao misero ris com rir tão meigo, Calumniada morte; Tu, que entre os braços teus lhe dás azilo Contra o furor da sorte; Tu que esperas ás portas dos senhores; Do servo ao limiar; E eterna corres, peregrina, a terra, E as solidões do mar, Deixa, deixa sonhar ventura os homens; Já filhos teus nasceram: Um dia acordarão desses delirios, Que tão gratos lhes eram. E eu, que vélo na vida,--e já não sonho, Nem gloria, nem ventura; Eu, que esgotei tão cedo, até as fezes, O calis da amargura; Eu, vagabundo e pobre, e aos pés calcado De quanto ha vil no mundo, Morrer sentindo inspirações de bardo, Do coração no fundo; Sem achar sobre a terra uma harmonia De alma, que a minha entenda; Porque seguir, curvado ante a desgraça, Esta espinhosa senda? Torvo o oceano vae!--Qual dobre soa Fragor da tempestade; Psalmo de mortos, que retumba ao longe; Grito da eternidade!.... Pensamento infernal!--Fugir cobarde Ante o destino iroso? Lançar-me, involto em maldicções celestes, No abysmo tormentoso? Nunca!--Deus poz-me aqui para apurar-me Nas lagrymas da terra; Guardarei minha estancia attribulada, Com meu desejo em guerra. O fiel guardador terá seu premio, O seu repouso, em fim; E atalaiar o sol de um dia extremo Virá outro apoz mim. Herdarei o morrer!--Como é suave Benção de pae querido, Será o despertar; vêr meu cadaver, Vêr o grilhão partido. Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador: Deus lhe deixou, nas trévas da existencia, Doce amisade e amor. Tudo o mais é Sepulchro, branqueado Por embusteira mão; Tudo o mais vãos prazeres, que só trazem Remorso ao coração. Passarei minha noite a luz tão meiga, Até o amanhecer; Até que suba á patria do repouso, Onde não ha morrer. _A bordo da Juno, na Bahia da Biscaya--Março de 1853._ *O Soldado.* O Soldado. I. Veia tranquilla e pura Do meu paterno rio: Dos campos, que elle rega, Mansissimo armentio: Rocío matutino: Prados tao deleitosos: Valles, que assombram selvas De sinceiraes frondosos: Terra da minha infancia: Tecto de meus maiores: Meu breve jardimzinho: Minhas pendidas flores: Harmonioso e sancto Sino do presbyterio: Cruzeiro venerando Do humilde cemiterio, Onde os avós dormiram, E dormirão os paes; Onde eu talvez não durma, Nem rese, talvez, mais: Eu vos saúdo!--E o longo Suspiro amargurado Vos mando.--É quanto póde Mandar pobre soldado. Sobre as cavadas ondas Dos mares procellosos, Por vós já fiz soar Meus cantos dolorosos. Na proa resonante Eu me assentava mudo, E aspirava ancioso O vento frio e agudo; Porque em meu sangue ardia A febre da saudade, Febre que só minora Sopro de tempestade; Mas que se irrita, e cresce, Quando é tranquillo o mar; Quando da Patria o céu Céu puro vem lembrar, Quando, lá no occidente, A nuvem vaporosa A frouxa luz da tarde Tinge de côr de rosa; Quando, qual globo em brasa, O sol vermelho crece, E paira sobre as aguas, E em fim desapparece; Quando no mar se estende Manto de negro dó; Quando ao quebrar do vento, Noite e silencio é só; Quando sussurram meigas Ondas que a nau separa, E a rapida ardentia Em torno a sombra aclara. II. Eu já ouvi, de noite, No pinheiral fechado, Um fremito soturno Passando o vento irado: Assim o murmurio Do mar, fervendo á prôa, Com o gemer do afflicto, Sumido, accorde soa: E o scintillar das aguas Gera amargura e dôr, Qual lampada, que pende No templo do Senhor, Lá pela madrugada, Se o oleo lhe escacêa, E a espaços expirando, Affrouxa e bruxulêa. III. Bem abundante messe De pranto, e de saudade, O foragido errante Colhe na soledade! Para o que a patria perde É o universo mudo; Nada lhe ri na vida; Móra o fastio em tudo; No meio das procellas; Na calma do oceano; No sopro do galerno, Que enfuna o largo panno; E no entestar co'a terra Por abrigado esteiro; E no pousar á sombra Do tecto do estrangeiro. E essas memorias tristes Minha alma laceraram; E a senda da existencia Bem agra me tornaram: Porém nem sempre ferreo Foi meu destino escuro; Sulcou de luz um raio As trévas do futuro: Do meu paiz querido A praia ainda beijei; E o velho castanheiro No valle ainda abracei! Nesta alma regelada Surgiu ainda o goso; E um sonho lhe sorriu Fugaz, mas amoroso. Oh, foi sonho da infancia Desse momento o sonho! Paz e esperança vinham Ao coração tristonho. Mas o sonhar que monta Se passa, e não conforta? Minh'alma deu em terra, Como se fosse morta, Foi a esperança nuvem, Que o vento some á tarde. Facho de guerra acceso Em labaredas arde! Do fratricidio a luva Irmão a irmão lançára; E o grito: _ai do vencido!_ Nos montes retumbára. As armas se hão cruzado: O pó mordeu o forte: Caiu: dorme tranquillo: Deu-lhe repouso a morte. Ao menos, nestes campos Sepulchro conquistou; E o adro do estrangeiro Seus ossos não tragou. Elle herdará, ao menos, Aos seus honrado nome: Paga de curta vida Ser-lhe-ha largo renome. IV. E a balla sibillando, E o trom da artilharia, E a tuba clamorosa, Que os peitos accendia; E as ameaças torvas, E os gritos de furor, E desses, que expiravam, Som cavo de estertor; E as pragas do vencido, Do vencedor o insulto, E a palidez do morto, Nu, sanguento, insepulto, Eram um cháos de dores, Em convulsão horrivel, Sonho de accesa febre, Scena tremenda e incrivel! E suspirei:--nos olhos Me borbulhava o pranto; E a dor, que trasbordava, Pediu-me infernal canto. Oh, sim!--maldisse o instante, Em que buscar viera, Por entre as tempestades, A terra em que nascêra. Que é, em fraternas lides, Um canto de victoria? É um prazer mesquinho; É triumphar sem gloria. Maldicto era o triumpho, Que rodeava o horror, Que me tingia tudo De sanguinosa côr! Então olhei saudoso Para o sonoro mar; Da nau do vagabundo Meigo me riu o arfar. De desespero um brado Soltou, impio, o poeta. Perdão!--chegára o misero Da desventura á meta. V. Terra infame!--de servos aprisco, Mais chamar-me teu filho não sei: Desterrado, mendigo serei; De outra terra meus ossos serão! Mas a escravo, que pugna por ferros, Que herdará só maldicta memoria, Renegando da terra sem gloria, Nunca mais darei nome de irmão! Largo o mundo ahi 'stá ante o livre; Que este mundo é a patria do forte: Sobre os plainos gelados do norte, Luz do sol tambem mana do céu: Tambem lá se erguem montes, e o prado De boninas, em maio, se veste; Tambem lá se menêa um cypreste Sobre o corpo que á terra desceu! Que me importa o carvalho da encosta? Que me importa da fonte o ruido? Que me importa o saudoso gemido Da rollinha sedenta de amor? Que me importam outeiros cubertos Da verdura da vinha, no estio? Que me importa o remanso do rio, E, na calma, da selva o frescor? Que me importa o perfume dos campos, Quando passa de tarde a bafagem, Que se embebe, na sua passagem, Na fragrancia da flor do alecrim? Que me importa? Pergunta do inferno! É meu berço!--A minh'alma está lá! Que me importa?.... esta boca o dirá?! Maldicção, maldicção sobre mim! Combatamos!--O ferro se cruze, Assobie o pelouro nos ares; Estes campos convertam-se em mares, Onde o sangue se possa beber! Larga a valla!--que, apoz a peleja, Nós e elles seremos unidos! Lá, vingados, e do odio esquecidos, Paz faremos.... depois do morrer! VI. Assim, entre amarguras, Me delirava a mente!-- E o sol ía fugindo No termo do occidente. E os fortes lá jaziam Co'a face ao céu voltada; Sorria a noite aos mortos, Passando socegada. Porém, a noite delles Não era a que passava! Na eternidade a sua Corria, e não findava. Contrarios ainda ha pouco, Irmãos em fim lá eram! O seu thesouro de odio, Mordendo o pó, cederam. No limiar da morte, Assim tudo fenece! Inimisades callam, E até o amor esquece! Meus dias rodeados Foram de amor outr'ora; E nem um vão suspiro Terei, morrendo, agora: Nem o apertar da dextra Ao desprender da vida: Nem lagryma fraterna Sobre a feral jazida. Meu derradeiro alento Não colherão os meus? Por minha alma atterrada Quem pedirá a Deus? Ninguem!--Aos pés o servo Meus restos calcará; E o riso do despreso Vaidoso soltará. O sino luctuoso, Não lembrará meu fim: Preces, que o morto affagam, Não se erguerão por mim! O filho dos desertos, O lobo carniceiro Ha-de escutar alegre Meu grito derradeiro! Oh morte!--o somno teu Só é somno mais largo: Porém, na juventude, É o dormi-lo amargo. Quando na vida nasce Essa mimosa flor, Como a cecem suave, Delicioso amor: Quando a mente accendida Crê na ventura e gloria: Quando o presente é tudo, É inda nada a memoria; Deixar a cara vida, Então, é doloroso; E o moribundo á terra Lança um olhar saudoso. A taça da existencia No fundo fezes tem; Mas os primeiros tragos Doces--bem doces--vem. E eu morrerei agora, Sem abraçar os meus, Sem jubiloso um hymno Alevantar aos céus? Morrer!--E isso que importa? Final suspiro, ouvi-lo Ha-de a patria. Na terra Eu dormirei tranquillo. Dormir?--Só dorme o frio Cadaver, que não sente; A alma vôa, e se abriga Aos pés do Omnipotente. Tambem eu para o throno Accorrerei do Eterno: Crimes não são meu dote; Erros não pune o inferno. E vós entes queridos, Entes que tanto amei, Dando-vos liberdade Contente acabarei. Por mim livres chorar Vós podereis um dia, E ás cinzas do soldado Erguer memoria pia. _Porto--Julho de 1832._ *D. Pedro.* D. Pedro. Pela encosta do Libano, rugindo, O nóto furioso Passou um dia, arremessando á terra O cedro mais frondoso; Assim te sacudiu da morte o sopro Do carro da victoria, Quando, ebrio de esperanças, tu sorrias, Filho caro da gloria. Se, depois de procella em mar de escolhos, A combatida nave Vê terra e o vento abranda, o porto aferra, Com jubilo suave. Tambem tu demandaste o céu sereno, Depois de uma ardua lida: Deus te chamou:--o premio recebeste Dos meritos da vida. Que é esta? Um ermo de espinhaes cortado, D'onde foge o prazer: Para o justo ella existe além da campa: Teme o ímpio o morrer. Plante-se a acacia, o symbolo do livre, Juncto ás cinzas do forte: Elle foi rei--e combateu tyrannos-- Chorae, chorae-lhe a morte! Regada pelas lagrymas de um povo, A planta crescerá; E á sombra della a fronte do guerreiro Placida pousará. Essa fronte das ballas respeitada, Agora a traga o pó: Do valente, do bom, do nosso Amigo Restam memorias só; Mas estas, entre nós, com a saudade Perennes viverão, Em quanto, á voz de patria e liberdade, Ancear um coração. Nas orgias de Roma, a prostituta, Folga, vil oppressor: Folga com os hypocritas do Tibre; Morreu teu vencedor. Involto em maldicções, em susto, em crimes Fugiste, desgraçado: Elle, subindo ao céu, ouviu só queixas, E um choro não comprado: Encostado na borda do sepulchro, O olhar atraz volveu, As suas obras contemplou passadas, E em paz adormeceu: Os teus dias tambem serão contados, Covarde foragido; Mas será de remorso tardo e inutil Teu ultimo gemido: Do passamento o calis lhe adoçaram Uma filha, uma esposa: Quem, tigre cru, te cercará o leito, N'essa hora pavorosa? Deus, tu és bom:--e o virtuoso em breve Chamas ao goso eterno, E o ímpio deixas saciar de crimes, Para o sumir no inferno? Alma gentil, que assim nos has deixado, Entregues á alta dôr, Anjo das préces nos serás, perante O throno do Senhor: E quando, cá na terra, o poderoso As Leis aos pés calcar, Juncto do teu sepulchro irá o oppresso Seus males deplorar; Assim, no Oriente, de Alboquerque ás cinzas O desvalido indiano Mais de uma vez foi demandar vingança De um despota inhumano. Mas quem ousára á patria tua e nossa Curvar nobre cerviz? Quem roubará ao lusitano povo Um povo ser feliz? Ninguem! Por tua gloria os teus soldados Juram livres viver. Ai do tyranno que primeiro ousasse Do voto escarnecer! N'esse abraço final, que nos legaste, Legaste o genio teu: Aqui--no coração--nós o guardámos; Teu genio não morreu. Jaz em paz: essa terra, que te esconde, O monstro abominado Só pisará ao baquear sobre ella Teu ultimo soldado. Eu tambem combati:--nas patrias lides Tambem colhi um louro: O prantear o Companheiro extincto Não me será desdouro. Para o Sol do Oriente outros se voltem, Calor e luz buscando: Que eu pelo bello Sol, que jaz no occaso, Cá ficarei chorando. _Porto--Novembro de 1834._ End of Project Gutenberg's A Harpa do Crente, by Alexandre Herculano *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK A HARPA DO CRENTE *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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