The Project Gutenberg eBook of Os Bravos do Mindello This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook. Title: Os Bravos do Mindello Author: Faustino da Fonseca Release date: May 4, 2007 [eBook #21290] Language: Portuguese Original publication: Lisboa: Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso 5--Largo de Camões--6, 1906 Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Christine P. Travers and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net *** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO *** Produced by Ricardo F. Diogo, Christine P. Travers and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net [Nota do transcritor: Esta obra apresenta algumas inconsistências ortográficas.] Obras de Faustino da Fonseca _Lyra da Mocidade_ (primeiros versos) 1892. Exgotado 1 vol. _Tres mezes no Limoeiro_, 1896, 1.{a} edição com illustrações de Leal da Camara. Exgotado 1 vol. Segunda edição (popular) 1 vol. _O descobrimento do caminho maritimo para a India_ 1 vol. _A descoberta da India_ (Drama historico em 5 actos) 1898 1 vol. _O escandalo dos dramas do concurso do centenario da India_, 1898 1 vol. _Regresso ao Lar_, romance, 1896, com illustrações de Roque Gameiro (folhetim em _O Seculo_.) _A descoberta do Brasil_, 1900, com illustrações de Roque Gameiro, cartas, mappas, fac-similes de documentos. Exgotado 1 vol. _Pedro Alvares Cabral_, 1900 1 vol. _Ignez de Castro_ romance historico, 1900. 1.{a} edição com illustrações de D. Virginia da Fonseca, Augusto Pina, Bemvindo Ceia. Exgotado 4 vol. Segunda edição (popular) com illustrações de Alfredo de Moraes 2 vol. _Escravos_, romance, 1901 (folhetim em _A Folha do Povo_.) _Padeira de Aljubarrota_, romance historico, 1901, com illustrações de Bemvindo Ceia 2 vol. _As mulheres portuguêsas na Restauração de Portugal_, romance historico, 1902, com illustrações de Roque Gameiro 3 vol. _El-rei D. Miguel_ (chronica popular do absolutismo) 1905. Illustrado com retratos e monumentos 1 vol. _Os filhos de Ignez de Castro_, romance historico, em collaboração com Joaquim Leitão, 1905 1 vol. _Anedoctas de reis, principes e outras personagens portuguêsas e estrangeiras_, extrahidas, traduzidas, compiladas e prefaciadas, 1905 1 vol. _Bons ditos de reis, principes e outras personagens portuguêsas e estrangeiras_, extrahidas, traduzidas, compiladas e prefaciadas, 1906 1 vol. _Beijos por lagrimas_, romance historico. 1906 (folhetim em _A Lucta_). FAUSTINO DA FONSECA OS BRAVOS DO MINDELLO ROMANCE HISTORICO LISBOA Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso _5--Largo de Camões--6_ 1906 I Ao tiro de peça acordou João de um inquieto somno de namorado e, apoiando o cotovelo no grande leito de alta cabeceira de tarja, prestou attenção. Seria salva do castello, ou vinha navio de Lisboa confirmar as aprehensões dos sonhos agitados em que Maria se esquivava sempre ao caloroso enlace dos seus braços, e um subito quebranto o impossibilitava de perseguil-a, e um sobresalto, como que a queda do ideal, interrompia o laborioso despertar da sua estuante virilidade? Não se repetiram detonações que o tranquilisassem e, no brando rumor cantante e alegre, reconheceu o romper d'alva. Deitou pelos hombros um capote azul de cabeção, e fechos de prata, apagou a candeia de ferro cujo espelho areado reluzia e tirou a tranqueta que especava, desde a cunha ao encaixe da parede, o postigo das pesadas portas de cedro da janella de peitoril. Pelo pequeno caixilho de minguados vidros azulados percebeu a confusa luz da manhan. Então destrancou vigorosamente as portadas, retirando o grosso cilindro ao longo da cava da cantaria e, depondo-o contra o poial, puchou para si os dois pesados batentes e debruçou-se com avidez. --Muito madrugaste hoje--disse-lhe debaixo a tia Pulcheria, ajoujada á celha das lavagens, avental de barras amarellas, ainda com a rede de dormir apanhando os cabellos brancos. Deu-lhe os bons dias e viu-a, por entre os claros da parreira de Alicante, dirigir-se ao curral onde grunhia o porco alegremente, o focinho bronco farejando por cima da cancella. --Não ouviu uma peça, tia? --Ha de ser navio de Lisboa. Em passo miudinho, muito activa, a arregaçada cheia de milho, acudia ao tumulto da capoeira, onde o gallo repenicava, em desafio com os visinhos, emquanto da pocilga rompia um grunhido satisfeito, misturado ao chapinhar na agua de semeas. Rompeu no castello o toque da alvorada, o echo vibrante do clarim dando o signal do batalhão, e o terno de cornetas atacou as notas baixas, até se casarem n'um hymno ao triumphal raiar da aurora. Passavam chocalhos de machos carregados de trigo para os moinhos do Pisão. Apregoavam leite homens do monte, vindos da Ribeirinha, barba ruiva, pé descalço, vestidos de linho branco alvo de neve, a camisola presa no pescoço por botões de oiro, carapucinha preta com orelhas vermelhas, pequena como a palma da mão, posta á banda n'um elegante equilibrio, batendo o bordão com rendilhados na ponteira; rolhas de pasto no bico negro das cabaças defumadas, com pontos a cordel em fendas, por onde o leite gotejava, aos solavancos do pau posto ao hombro esquerdo. Apregoavam rapa, vergando a grandes molhos, apressados pastores, anciosos por se livrarem da carga, trazida desde noite do matto. Chiavam carros n'uma orgulhosa competencia, irritando em furiosos latidos os cães das quintas. Soaram trindades em Santa Luzia, vibrou na alegria da madrugada esse toque de sino, impregnado ao pôr do sol pela melancholia da tarde; seguiu-se-lhe o repique annunciando festa; tocaram na Sé á missa das almas. Cessou o bater da roupa no lavadoiro da pia, persignaram-se devotamente e benzeram-se de hombro a hombro a creada e a tia Pulcheria. Veiu de dentro benzendo-se tambem a tia Dorotheia, mais pesada, mais gorda, encher a talha no perenne jorro d'agua gorgolejando no tanque, onde os peixes vermelhos mostravam o amplo e fundo d'essa abundancia de agua, trasbordando para a grande pia de lavar, dando viço aos cravos, rosas, secias e perpetuas dos canteiros, á madresilva da janella, á abobora do telhado do forno, ao pé de vinha nascido de encontro á pedra do fundo, desenvolvendo-se em ramadas junto da arquinha onde se espetava a bica de ferro. Recolheu-se, para o não verem faltar á oração matinal e, assim de pé, varejava-lhe o olhar o braço d'agua que dera o nome d'Angra á sua cidade. Mas não avistava esse navio todos os dias receiado, cujo tiro alarmante vinha findar-lhe os devaneios. Saíam á pesca barcos á vela, avivando o azul n'um recorte de garça; vogavam outros em cadencia, como buzios deitando por banda as curvas pernas a fugirem no calhau. Latinos inclinados, bordejava um cahique por dobrar a ponta de Santo Antonio e entrar no porto onde soprava o vento carpinteiro, lenhador de navios, dos ilheus ao caes da Figueirinha. Illuminava o nascer do sol a humida neblina, desenrolando altas montanhas, picos azulados, sinuosidades como largas muralhas flanqueadas por torres, das que vira em registos dos logares santos, cidades, extensas bahias, arvoredos polvilhados d'oiro, reflexos da Antillia submergida, que havia de irromper das ondas quando voltasse el-rei D. Sebastião no cavallo branco; miragem da propria ilha, como a que arrastára os descobridores a aproarem ao mysterio dos horizontes sem fim, até ao desengano do gelo do Labrador e da Terra Nova, á inextricavel vegetação de sargaços d'esse mar de inferno. Tambem sentia a ancia do desconhecido, herdada dos primeiros povoadores da ilha Terceira, base das arremettidas a esse mysterioso oriente, que pretendiam tomar por occidente, dando por fim rumo a Colombo; tambem queria saber o que haveria para álem da curva do mar largo, essas terras onde tudo se decidia: a França, mãe da liberdade, regressada ao antigo regimen, invadindo a Hespanha constitucional, o que animara D. Miguel a derrubar na Villafrancada as instituições de Vinte; a Hespanha, de Cadiz, a cujo exemplo estalára a revolução de 24 de agosto de 1820, tentando agora restabelecer a inquisição; a Inglaterra, que apoiára a carta constitucional doada por D. Pedro, e decerto auxiliaria a revolução de 18 de maio contra a usurpação de D. Miguel, secundada na ilha em 22 de junho, ainda não havia um mez; o Brasil de onde vinha dinheiro; Portugal para onde iam tributos; Lisboa, de onde uma embarcação traria um primo para lhe arrebatar a mulher amada, ou viria buscal-a e levar-lha. Annullado na absorpção do mar largo e das terras aonde conduzia, surgiu-lhe de repente, a pannos largos, guinando n'uma bordada, saindo detraz do Monte Brasil, a fragata _Princesa Real_, mostrando no balanço a bateria rasa, cintada de peças negras em carretas vermelhas abocadas ás portinholas. Colheu o velame dos tres mastros, soltou a ancora, e o golpe rapido da antena, fazendo respingar a agua, foi o signal para o saltearem lanchas e escaleres. Tudo acabaria assim? Sentia-se ligado áquelle navio, dependente da sua rota, do porto de onde vinha, do ancoradouro para onde havia de largar, das cartas que trazia no forte bojo, e espicaçava-o o impeto de sair d'essa dependencia, á mercê do que vinha de fóra, elle como a terra; de reagir dentro do seu meio, do seu circulo, dos seus desejos, das suas esperanças, por fórma a terem que contar com elle. Havia de ficar áquella mesma janella, vendo-o perder-se na bruma, adivinhando, no palpitar de um lenço, a noiva perdida para sempre? Voltou-se e olhou ao longo da grande bahia do Fanal, a oeste do Monte Brasil, desde a encosta da serra de Santa Barbara, até ás recortadas negruras de S. Matheus da Calheta, aonde a espuma arrebentava. Sem uma incerteza, por entre a mancha escura dos pomares de S. Carlos e do Pico da Urze; em meio do xadrez de cerrados amarellos de trigo, verdes de milharaes, negros da ceifa; fitava o mirante da quinta onde ella o vinha esperar, o caramanchel em que passavam tardes, o casarão onde um pae lha defendia. Como que via já o pateo cheio, carros de bois carregando os grandes bahus, ha mezes atulhados de rouparia, empachando a casa de entrada; e o carroção de coiro bolorento, baloiçando-se nas grossas correias, de largas fivellas areiadas, arrastado á força da aguilhada por duas juntas, de guiseiras, levando Maria ao embarque, chocalhando ferrugentas ferragens. Ficou por muito tempo sentado no poial de pedra da janella, a fronte apoiada na mão esquerda, os dedos entre o cabello castanho anelado, anediando o ligeiro buço, os olhos pregados na quinta dos Folhadaes, pensando no que devia fazer. Ao tocarem matinas na Sé, começou a preparar-se para saír. Do quintal bateu palmas a tia Dorotheia. Estava prompto o almoço, e elle decidido a seguir Maria, se a levassem para Lisboa. Reconquistou-o ao descer da torre a sentimentalidade do lar, no cheiro do comer, no arrastado dos chinelos das tias, no tinir da louça da India, no tlintar dos talheres de prata, no ranger do trabalhado armario de madeira do Brasil, com guarnições tremidas e remates arrendados. Deu-lhes os bons dias, ellas beijaram-o e afagaram-o, e quando se sentou na cadeira de espaldar, de onde o pae e o avô presidiam á grande meza oval, de pés torneados e parafusos de prata, cujas abas se fechavam para sempre á medida que a familia se reduzia, esmoreceram-lhe os impetos, esvaíu-se-lhe a energia. Amolentara-o a educação mulherenga, creado entre rabos de saias, adormecido com pavorosos contos de lobishomens e almas do outro mundo. Pobres velhas! Morreriam de dôr se lhes faltasse. E as ambições de viajar, de seguir uma carreira, de ser alguem, iam-se no resignado aniquilamento, na tendencia para a meditação, de que o haviam adoecido os dias abafadiços e humidos. --Já saes?--perguntou Pulcheria, mirando-o atravez dos oculos de tartaruga. Dorotheia accrescentou que não era dia de lição, e o dominio das velhas impoz-se-lhe, como sempre, tomando-lhe conta de todos os passos, vigiando-lhe as saídas e entradas, fazendo-lhe scenas de lagrimas quando voltava tarde «do caminho da perdição!» Não resistia, não se insurgia, não protestava, mas nem por isso deixava de sair e entrar quando lhe parecia, embriagando-se de liberdade, sem pae que o derrancasse nas sovas que humilhavam outros da sua edade, ao recolherem fóra d'horas. --Nem que fosse dia de lição irias hoje ao padre Jeronymo. Pulcheria, magra e sêcca, nervosa, solteirona, alludia á chegada do navio de Lisboa, sublinhando com intenção. E Dorotheia, viuva, mais prompta á lagrima, supplicou-lhe: --Não te vás meter em trabalhos. --Não se fala senão de vinganças, de prisões, credo!--apoiou Pulcheria. Dorotheia, no instincto de dona de casa, abrangeu logo o lado economico das perturbações: --Tudo mais caro. Os ovos já estão a quatro por um vintem, e querem uma serrilha por uma gallinha. Os homens do monte fingem ter medo de entrar na cidade, e não passam do Desterro onde açambarcam a manteiga, os ovos e as gallinhas os revendilhões, que põem tudo pela hora da morte, desculpando-se que lhes pediram um horror de dinheiro. A cada má noticia que vem de Lisboa, os lojistas enchem-se augmentando os preços. Assim tem hoje casas e quintas essa orgulhosa caixeirada que veiu para ahi de tamancos! Já não se pagam fóros, ha que tempos não entram aqui os cestinhos de ovos que nos trazia o capitão Toledo das Doze, nem os casaes de frangos da Fonte do Bastardo. Para que não se acabe a capoeira, a mana tem deitado ovos em chôco, mas logo na noite da revolta, com os tiros dos soldados do Lobão contra os milicianos, foi-se uma ninhada inteira, dezasete ovos de gallinhas das Flores que põem duas vezes por dia! É o que se ganha com essas façanhas dos constitucionaes. --Ó tia!...--interveiu sorrindo. --Se não has-de defendel-os, não fosses todo do Juvencio!--commentou Pulcheria, mais directamente ferida pelo gôro. Dorotheia censurou, muito sentida: --Estás sempre metido na botica a lêr as gazetas, e decerto lá vaes encafuar-te a saber o que veiu de Lisboa, essa Babilonia, Sodoma e Ghomorra, a corrupta e devassa Lisboa, como préga, acceso em santas iras, fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria. --Quando o vinho do morgado lhe sobe á cabeça. Pulcheria reprimiu João n'um olhar. --Não te fica bem o que fazes, nem o que dizes. Fr. Angelico é muito de casa do senhor morgado dos Folhadaes, o nosso protector. Elles são do senhor D. Miguel. --Estão no seu direito. Dorotheia acudiu com a questão do dinheiro: --Lembra-te que elle te dá quatro patacas por mez pela escripturação dos rendeiros; e pelas festas, pelo Espirito Santo, e pelas matanças manda sempre os seus presentes em salva de prata, com sua toalha de damasco. Teu pae e teu avô foram muito d'aquella casa, e tu mesmo és tratado como amigo. E reparando na distracção d'elle: --Não comes nada? Grande coisa tens hoje! Pulcheria observou-o tambem: --Naturalmente os pedreiros livres estão falados para a chegada do navio de Lisboa. Retumbou na cosinha um penoso suspiro, como das almas penadas dos contos, e João surprehendeu a creada, a velha Maria da Assumpção do Corpo Santo, que lhos contava, movendo os seccos braços inchados de veias, os dedos ossudos em esgares de esconjuro, depois ungindo a testa encarquilhada, o nariz acavallado, os beiços pendentes, mascando a sua maneira especial de se benzer: Eu me benzo c'os tres cravos Abraçados n'uma cruz Para que possa dizer Santo nome de Jesus: A cruz desça do ceu E se deite sobre mim O Deus que n'ella padeceu Elle responda por mim. Por fim o dedo pollegar da mão direita, tornado bento pela tarefa redemptora, foi beijado devotamente, e só depois a serva se virou para o lar. Dorotheia commentou, compadecida: --Dão com ella em doida as innovações dos constitucionaes. Demora-se toda a manhan nas compras, porque vae para a Sé pôr-se de empada, a rezar, a rezar, em desaggravo ás heresias, aos desacatos. Pulcheria insistiu teimosa, devorando o sobrinho com os olhos: --É para o que servem os pedreiros livres! Elle riu n'uma explosão juvenil. --Pedreiros livres? Julga-me talvez? Tem graça! A tia confirmou: --A senhora Joaquinina do Ó vê-te sempre no falatorio da botica, e toda a gente sabe que é ali o coio dos que beijam o diabo á meia noite. --Admiro-me que uma mulher de tanta virtude, que anda sempre com o cordão de São Francisco á cinta, não diga que tambem lá vê, a jogarem o gamão, os meus mestres, o senhor conego Penedo, o senhor padre Jeronymo Emiliano d'Andrade e o senhor conego Ferraz, governador do bispado. --Esses são pedreirões dos grandes! --Pois tia, antes me quero com elles do que com fr. Angelico da Immaculada e as suas confessadas, como a senhora Joaquinina do Ó. Comera os figos lampos do quintal, as postas de moreia frita a que escolhia a pelle torriscada, o _affonso_ de lapas em que o marisco guisado e o longo musgo das conchas conservavam o acre sabôr do mar; e tomára, já levantado, o café com leite, esse delicioso café vindo directamente do Brasil, em paga das saias bordadas em que se entretinham as tias. De olhos no tecto e mãos postas, repetiam tres vezes as velhas, junto da meza «Bemdito seja Deus, que me deu de comer sem eu lh'o merecer», notando desgostosas que João se esquivava ultimamente á acção de graças, o que para Pulcheria era um signal certo de pacto com o Demonio. Despediu-se, saiu, passou ás Monicas lançando um olhar irritado ao convento, cujas grades a liberdade havia de arrancar, desceu a ingreme Myragaia, notou grande movimento no palacio do governo, mas, evitando comprometter-se para com o morgado, não entrou a perguntar novidades de Lisboa. Voltou á rua do Convento da Esperança, e passou por diante do collegio dos jesuitas, tendo em frente a farta cerca dos franciscanos, a frontaria do convento esburacada de janellinhas como um pombal, a fachada com dois grandes braços cruzando-se de punhos fechados contra a cidade--as armas de S. Francisco. Virando a esquina entrou na praça, e foi direito á botica, ao canto do Passo onde parava a procissão e se cantavam motetes. Para ir ali tinha a justificação de falar ao mestre, e trazia-a engatilhada para alguma pergunta do morgado. Esbravejava o boticario, tornando a loja em club: --Aqui não se recebem ordens do Miguel! Isto não é terra de burros nem de corcundas. Bem se quer fazer fino, mettendo-nos á cara o decreto, o capitão general, mas para cá vem de carrinho! O presidente da camara convocou uma reunião extraordinaria, a que concorreram as principaes pessoas dos tres estados, clero, nobreza e povo, e resolveram não cumprir as cartas regias por falta das formulas da carta constitucional. E a fragata ha de sair immediatamente, ou não sae mais, que se lhe ferram dois balasios, e era uma vez uma _Princesa Real_! Não iria n'aquelle navio! E respirava desafogado. Agora nada mais lhe importava. Dissipava-se-lhe o terror, mas aproveitaria a lição, e não ficaria sujeito ao risco de a ver partir sem que nada tentasse para impedil-o. Sentia-se bem, tinha vontade de correr, de saltar, como ao sair da lição de latim do conego Penedo, um alto vermelhaço, de cabello branco com laivos do passado loiro, olhos azues escarnecendo atravez dos occulos de aros d'oiro, que tratava uns discipulos por Ciceros e outros por bêstas, e na rua correspondia aos cumprimentos com a mão fechada, murmurando uma grossa obscenidade dita por entre os dentes brancos e largos, onde se arrastavam ruidosamente os érres. Como no momento de libertação em que a garrida chamava os conegos á Sé, e Penedo, bufando, contrariado, repoltreava-se na grande cadeira do côro, cabeceando, a remoer o ripanço em voz roufenha, ia João na doidice do mar que, antes de enamorado, era o seu encanto. Sentia-se tão livre de cuidados como se tornasse annos atraz, quando corria pela praia, emquanto espaireciam os conegos, pausadamante, rua da Sé acima, até ao Passeio do Alto das Covas, onde ficavam cavaqueando, pitadeando-se, ou deitavam, a desenferrujar as pernas, portões de S. Pedro em fóra, até ás quintas do Caminho do Meio, a admirarem as vinhas, n'um culto pagão mais sincero do que aquelle em que ganhavam a vida a dentro do grande templo frio e escuro. Tinha o desejo infantil de vêr, com os proprios olhos, sair o navio, para ficar com a certeza de que podia dedicar-se a resolver a sua situação para com Maria, antes que surgisse outra ameaça. Evitou o movimento do pateo da alfandega onde se accalorava a questão politica, seguiu pelo areal da Prainha, junto a destroços de naufragios, pranchões crivados pelo furo do gusano, chapas de cobre onde cracas e lapas, toda a riqueza organica das aguas, punham colonias de pequenos seres; depois abandonou o carreiro do areal batido pelo constante perpassar, onde já plantas desafiavam o beijo da resaca, e aproveitava a descida da onda para saltar de pedra em pedra. Passou o Portinho Novo e foi até aos penedos do caes da Figueirinha, onde pescadores, perna pendente, pescavam á canna, aproveitando a fundura da rocha viva. Via-se limpidamente a agua escurecida pelo monte, até aos pedregulhos do fundo, onde a isca de trapo procurava o polvo. Passavam pequenas sombras fugidias, sumia-se uma lagosta n'uma fenda, vibrava uma moreia coleante, relampejavam cardumes de sardinha, corriam laivos azues e vermelhos de peixes-reis e bodeões. Acudiam engodados, vinham em cardume á çaga de um barco que recolhia, andavam á babugem dos navios arrastada pelo mar para o recanto da angra. Á picada no anzol correspondia a saccada lesta do caniço; saltava um peixe, debatendo-se, enrolando-se na linha; estrangulava-o o pescador adentanhando a guelra; lançava-o ao cesto, onde a frescura dos mais emprestava um resto de vida ao estrebuchar da sua agonia. Mas o cação voltava para o mar degolado, com um escarro de desprezo no bico; e seguia-o o sargo, repugnado por sugar os olhos d'afogados. Subiu a Rocha até ao Relvão. Ouvia o batucar dos cutellos picando o engodo no castello de prôa dos barcos de pesca apoitados ao longe; sentia guinchar o cabrestante a bordo da fragata, alando os ferros. Abrigado do sol contra a muralha do castello de S. João Baptista, encostado ao granito, as pernas estendidas na relva, viu-a largar os pannos mal rizados, afastar-se em bordos, a montar os Ilheus, em rumo da ilha de S. Miguel, e quando ella se sumiu de todo sentiu-se como protegido pela poderosa fortaleza que a obrigára a retirar, por esse castello que fôra o symbolo da oppressão hespanhola e se tornára a unica esperança da liberdade portuguesa! II Com alegre surpreza das tias, João entrou á hora do jantar, ao meio dia em ponto; mas em breve lhes tirou toda a illusão de que não o interessassem os acontecimentos cujo echo já chegava á Pereira. Comeu á pressa, foi aperaltar-se para vêr Maria, e saiu logo, de chapeo alto de aba direita, casaca de briche nacional côr de castanha de quatro botões nas abas, collete de grande gola, alta gravata em volta ao collarinho, calça branca e botas altas de canhão amarello. Merendaria na quinta, não contassem com elle. E d'ahi a pouco estava na botica, sabendo os ultimos boatos, occultando-se da Joaquinina do Ó e de outras beatas bisbilhoteiras, que rondavam o Juvencio, embiocadas no manto negro dos pés á cabeça, saia de merino preto, o capuz envolvendo-as do taboleiro de cartão até á cintura, onde passava pregueando-se, estreitamente cingido; os braços apanhando os extremos do involucro e rebuçando-o na frente, por fórma a só ficar aberto um pequeno oculo, no extremo do canudo de cartão, que se movia como um bico de passaro, apontando-se sinistramente no faro da curiosidade, permittindo-lhes verem sem serem vistas, para irem delatar no confessionario. D'ahi a pouco caminhava pelo campo, ao longo de muros de pedra solta, evitando a poeirada, contrariando n'uma marcha de automato o seu incorrigivel acanhamento. Lembrava saudoso a infancia em que, fugindo á escola de primeiras lettras, saltava paredes á cata de ninhos, de gafanhotos, de cigarras; revolvia os restolhos á procura de grillos, que levava no lenço para casa, para os ter a cantar dentro de um copo. Puzera termo a essas esturdias a preoccupação absorvente de Maria. Ao principio, quando de tarde ia trabalhar na escripta, por ter presa a manhan pelos estudos, lamentava essa prisão, impedido de retoiçar no areal, deitar-se á agua, nadar, apanhar conchas, enxugar-se rebolando na areia quente, e ir depois, noite fechada, para a praia das mulheres, no recanto do Castellinho, vel-as metterem-se na agua aos gritinhos, compondo as saias enfunadas pelo mar. Despertára-lhe novas impressões a intimidade de Maria, e os passeios com ella sob as arvores substituiram d'ahi em diante todos os entretimentos de rapaz. Escutava-a encantado, admirava-lhe os movimentos, esquecia-se a contemplal-a e, quando retirava ao pôr do sol, voltava-se para traz a vêr se ainda a descobria. Ia já perto da quinta, mas sempre na mesma indecisão, ora desejando não chegar nunca, ora querendo precipitar o termo da anciedade que o torturava. Avistou por fim a vivenda dos Folhadaes, os altos telhados em pyramide, a fachada ennegrecida pelo tempo, as janellas com grades de convento, o escudo de armas por cima do grande portão de carro, o extenso muro torreádo por mirantes e caramanchões. Entrou pelo postigo aberto no grande portão de cedro, pesado de trancas e tranquetas, ferrolhos, corrediças e argolões, e o coração batia-lhe descompassado. Saccudiu o pó na banqueta de pedra, de onde subiam as senhoras para as andilhas, e trepou a escada exterior, que começava na parede do fundo e cortava em angulo para a da esquerda, receiando uma vertigem, sentindo fugir-lhe a luz dos olhos. Sentou-se no poial do alpendre, a descançar um momento, a dominar o tremor nervoso, e descobriu Maria ao fim da cerca, com a prima D. Josepha da Esperança e o primo Jorge. Inclinou-se, descobriu-se, ella correspondeu n'uma venia exagerada, curvando-se muito, no que foi imitada pelos primos, e depois arrancando o chapeu de palha, rustico, de grandes abas, enfeitado de espigas, papoilas e malmequeres colhidos pela quinta, imitou-o cumprimentando como um homem. Repetiram as raparigas as zumbaias, e o primo deitava-lhes as tranças para a frente, ao que, irritadas, respondiam com palmadas e beliscões. E quando a creada, de dentro da casa, o convidou a entrar, elle tornou a saudal-as, e as raparigas responderam rindo ás gargalhadas, fazendo-lhe figas. Transpoz humilhado a porta de imponentes almofadas; nunca lhe parecera tão triste o casarão onde passava horas enfadonhas, junto de um frade tresandando a vinho. Sabendo os cantos á casa ia encafuar-se no escriptorio, quando a creada lhe disse que o senhor ainda estava á meza, e o guiou á casa de jantar. --Entra, entra, pequeno--convidou em voz entaramelada o morgado--tu és como se fosses da familia, aqui como o mestre Jacintho, por parte de teu avô. Aquillo é que era um homem, o capitão Silveira! Gente de outro tempo! Hoje só ha fedelhos como tu. Ergueu pesadamente o corpanzil obeso, cambaleando nas grossas pernas a estoirarem os calções de ganga amarella, copiados de D. João VI, que usava com meia branca e sapatos de fivella de prata. Já pelos bofes da camisa, pelo collete e pela casaca, nodoas de vinho affirmavam o abuso da bebida, e a mão tremula derramou-lhe o copo, que empunhava de pé, virado para João. --Á tua, em memoria de teu avô! Bebeu e tornou a sentar-se, pesadamente, apoiando-se á borda da meza e á grande cadeira de braços, de coiro negro e pregaria amarella, em que presidia á cabeceira, na velha tradição senhorial. --Grande homem que elle era!--apoiou mestre Jacintho--sem desfazer em quem está presente. Endireitou o corpo alquebrado, illuminou-se-lhe o olhar, e o velho soldado denunciou-se no cabello á escovinha, na colleira de coiro negro que no pescoço escanzelado saia da camisola de linho de pastor, na marca das bexigas que lhe favava a cara encorreada, como passada ao lustre das mochilas. Tomou com toda a confiança um copo, bebeu e, sempre de pé, disciplinado até a escravidão, voltou-se para Martinho Vasques: --O que nós fizemos n'aquelle Russillão! Attingia a phase piegas a embriaguez do morgado, tremia-lhe o beiço inferior, descahido e inchado, tornavam-se-lhe muito pequeninos os olhos duros, de um azul frio, raiados de vermelho, e o nariz destacava-se-lhe rubro, da côr de telha do rosto apopletico, onde as sobrancelhas asperas, espessas, unindo-se carrancudas, os longos pellos das ventas e dos ouvidos, punham em occasiões normaes a marca da rudeza, da selvageria. --Se não fosse teu avô não estava eu aqui! Se não me tivesse deitado a mão quando eu caí ferido na retirada da Montanha Negra! Devo-lhe a vida a elle e a este velho! Mas a lingua emperrava-se-lhe, a sensibilidade engasgava-o de todo. Ancioso sempre de contar façanhas, no orgulho profissional, o ex-soldado do Roussillon ergueu as mãos á altura dos ouvidos, como a pedir que o escutassem, e começou n'um bom ar de velhinho, tremendo-lhe o bigode branco em escova: --Quando aquelles malditos franceses caíram sobre nós, eu, mais o meu capitão e mais vossa excellencia, senhor morgado, fomos para cima d'elles como leões, e eram cutilladas de alto a baixo, golpes de rachar de meio a meio... Ganhava-o pouco a pouco a furia de assassino profissional: passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arregaçavam-se-lhe os beiços, mostrando os dentes pôdres ainda promptos a morder; crispava-se-lhe a mão esquerda em fórma de garra, o pollegar muito desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na ameaça de premir a guela do inimigo; e na mão direita brilhava-lhe uma faca de meza, brandida com furôr, como nos assaltos á arma branca, em que, com as mãos a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ás peças, apertados uns contra os outros, sem espaço para se defenderem no recanto de uma trincheira. Tinham ás vezes que abrir-lhe a mão á força para lhe tirarem a podôa de jardineiro, a que se soldavam os dedos quando brigava com os cavadores, e renovava-se a lição do mal; ou quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem grato, generoso, humilde até á servidão. Sobresaltado frei Angelico na languidez da digestão, arrotando empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de franciscano n'um meneio feminil, adquirido em menino do côro; o que ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos ademanes de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e oleosa, a que a larga tonsura dava uma frescura de novo; e desapertando o cordão de nós, clamou na voz de canna rachada, em que outr'ora cantava de falsete, limpando o suor ao lenço de Alcobaça sujo de rapé: --Veja e aprenda, Joãosinho, como se pratíca a verdadeira egualdade, não a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda, que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o vinho de Deus, dando graças ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza representada no excellentissimo senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo do Senhor, e o povo n'esse villão, esse ninguem, esse bicho da terra, esse pó da estrada!--e apontava mestre Jacintho.--Exemplos d'estes, só na educação religiosa se encontram. E para isto não é preciso ser jacobino, nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia consagrada! Benzeu-se horrorisado e, sem transição, desceu do tom de prégador: --Mas o Joãosinho não bebeu nada. Vá lá. Um só não faz mal. Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para si. --Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terraço, que se abafa de calôr. Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito João. Talvez lhe désse o vinho o animo preciso. Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bordão de marmeleiro polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional; depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente barriga, levando no regaço o cordão e o rosario, que desapertara; João pisando respeitoso, ao de leve; e por fim o mestre Jacintho, muito curvado, rindo e falando comsigo mesmo. Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria ao longo da empêna da casa, no terraço voltado para S. Matheus. Sentou-se João sem esperar convite, por direito proprio, considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da espada do avô; e n'essa decisão já reconhecia o effeito do vinho fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima entrevista com Maria. Disciplinado como soldado, e tão firme quanto lhe era possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus superiores hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna, as mãos perto dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom velhote. Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos da quinta, e frei Angelico e João foram para o escriptorio. Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de pedra do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria, a prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira, namorado de D. Josepha da Esperança, que apparecia para a merenda. Tinha ciumes do fidalgote que levava a confiança de primo a beijar Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastidão do pomar. Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o observavam. Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam para a merenda, mas não deixava de reconhecer, por parte dos primos reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se deixando Maria entretida com elle. Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de papel, mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra incerta, incomprehensivel, e a mão tremula deixava cair borrões que impossibilitavam a continuação. Deitava-lhe areia, encanudava a folha e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá ficavam. E na atarantação de poupar meia folha de garatujas despejou-lhe por cima o proprio tinteiro, borrando o lenço, as mãos, todos os papeis do alçapão. Rendeu-se então á evidencia, reconheceu-se incapaz de escrever, e lançando-se para o hirto canapé de palhinha, tomou rascunhos de cartas e poz-se a ditar a João. Entretido com a janella, elle escrevia machinalmente, repetia distrahido, errando o ditado; e fr. Angelico, sentindo a cabeça pesada, crendo seu o engano, envergonhou-se do rapaz e deu por findo esse tão pouco proveitoso trabalho. Ia emfim desabafar! Mas o acanhamento assaltava-o de novo, e ainda pensava adiar para mais tarde essa urgente expansão. Desceu ao pateo de entrada, abriu a cancella que dava para as trazeiras da casa, onde as gallinhas debicavam montes de estrume, e os filhos do quinteiro pulavam nos picos de matto roçado para o lume; passou por entre os chiqueiros, atravessou o jardim, rodeiou o repucho, contornou os taboleiros de onde vinha o cheiro penetrante dos cravos; e ao fim das ruas de buxo, abriu outro portal, e internou-se na quinta, por debaixo da latada que em pilares de pedra a dividia ao meio, deixava dois grandes rectangulos destinados a alfobres e á horta, e continuava contra os altos muros negros de pedra solta ensombrando os passeios lateraes. Reuniam-se todas as tardes no pomar, ao fim das larangeiras, das nespereiras, por baixo das quaes nascia silvestre a hortense, e conversavam até ao escurecer. Só encontrou D. Josepha da Esperança e Jorge da Feteira sentados muito juntos, de mãos dadas, indolentemente reclinados no grande banco de pedra, com recosto de azulejos onde caçadores, de chapeo tricorne, perseguiam lebres, acompanhados de cães, quasi de pé como pessoas. A falta d'ella permittiu-lhe serenar, confirmar-se no proposito de dizer-lhe tudo, de sair por uma vez do equivoco em que vivia. N'uma aspereza que a tornava mais apetecivel, entrou Maria, saltando irrequieta, o chapeo deliciosamente deitado para os olhos, n'um simples vestido vermelho inteiro, de cintura alta, o collo a descoberto, de tres folhos na saia um tanto curta, deixando vêr o sapato branco, atado por fitas brancas, sobre a meia branca, no tornozêlo. A sua simplicidade contrastava com o requinte de secia de Josepha, a opulenta juventude trasbordando de um rico vestido verde, de cinco folhos, com capoteira de renda em bicos, sapatos de duraque preto, cabello penteado atraz em cuia, apartado ao meio na frente, grandes tufos nas fontes, um fio de perolas na testa, desvelos de toucador destinados ao primo Jorge, que por sua parte caprichava em vestir grosseiramente á D. Miguel, jaqueta de alamares, cinta, calção, botas de prateleira, bóné azul, cabello puchado para as fontes, cara rapada, porque o bigode denotava á legua constitucional. Andava pela edade de João, mas parecia mais nova. As doenças da meninice, as convulsões com que a dotára o alcoolismo paterno, as impurezas do sangue azul dos casamentos consanguineos tinham-lhe dado a fragilidade ainda transparente na pallidez, nas fundas olheiras, no descorado dos labios. Por volta dos onze reagira, ganhára forças, mercê do longo tratamento com que o pae gastára muito, na teima de assegurar emfim um herdeiro á casa, depois de tantos morgados e morgadas, cheios de pustulasinhas, mortos no berço. Eram d'elle os olhos azues, desmaiados, o cabello castanho, e a expressão de aspereza que as sobrancelhas, contrahindo-se, ás vezes denotavam. Mas na boca pairava-lhe a terna brandura com que a mãe outrora se resignava aos beijos roubados por infindaveis legiões de primos. Afogueada pela pressa com que viera, Maria falou a João, e sentaram-se todos, encruzados, na relva, a comerem maçãs e marmelos assados no forno, trespassados de assucar, que ella trouxera no regaço. Falou-se da imprevista partida do navio, dos actos do governo da ilha, dando elle noticias com simulada indifferença. Finda a merenda foram beber agua á pequena cascata do recanto da quinta onde se abrigavam a estufa de ananazes, e as largas folhas das bananeiras; amadureciam maracujás do tamanho de ovos côr de chocolate; desenrolavam-se fetos de entre as pedras negras e vermelhas, fundidas pela lava em filigranas, em lagrimas; abriam em guarda sol as largas folhas ovaes do inhame por cima da valla onde escoava o regueiro, empoçado em nodoas de agrião. Satisfeita a gulodice, que já lhe ameaçava de pontos negros os dentes miudos e mal implantados, Maria lançou-se para a rêde, que pendia indolente da ramada dos castanheiros, e juntando as mãos sob a cabeça, fez d'ellas e dos braços, a sairem nús da manga arregaçada, o travesseiro em que se reclinou indolente, cerrando os olhos, sorrindo a João. Elle puchou uma cadeira de vimes e poz-se a baloiçal-a brandamente. Ganhava-os o odôr estonteante das magnolias, o morno perfume adocicado recendente da estufa. De mãos dadas afastavam-se pouco a pouco, os primos namorados até, como de costume, desapparecerem de todo. Correspondia João ao infantil sorriso de Maria, e ha dois annos que não passavam d'ahi. Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem, até que João estremeceu á ideia de a perder. --Teve noticias do primo?--perguntou-lhe de repente, indo direito ao assumpto, sem preparação. Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede: --Sim. Está bem. Apparentou desinteresse, mas insistiu: --Sempre casam? N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse Maria: --Bem sabe que sim. Ficaria outra vez interrompida a conversação, se elle, animado pelo que crêra adivinhar, não se arriscasse mais: --E gosta? --De quê? --De casar. N'um visivel enfado murmurou: --Sei lá! Muito nervoso, repetiu: --Quero dizer se gosta de casar com elle. Tirou-se da rede que, preoccupado, João deixára parar e n'um encolher de hombros: --Se nunca o vi. Foi lançar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no gesto do pae. Ficou João um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso, offendido: --Vejo que não é minha amiga. --Porquê? --Fala-me com mau modo... --Eu? --Com frieza, com indifferença... --Para o que te havia de dar hoje! E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, n'um impeto de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil. --Isto então é mau modo? Ergueu-se elle corando, e supplicou: --Por amor de Deus não brinque commigo! --Estás amuado? --Pelo menos agora não graceje, e diga-me só: Gostava de ir para Lisboa? Abrangeu n'um olhar a casa, o campo, a vida que levava enclausurada, e respondeu: --Isso gostava. Retorquiu João em voz estrangulada: --Não se importava então de me deixar? Irritada pelo interrogatorio, Maria exclamou, sem o fitar: --Que pergunta essa! Elle approximou-se, muito commovido: --Era uma separação para sempre! para sempre! --Sim, talvez! E d'olhos no chão encarava agora as consequencias. Vendo-a impressionada, João aqueceu: --E não levava pena nenhuma? N'um repente de sinceridade, Maria accudiu ingenuamente: --De me separar de ti, sim. --Mas não tinha ainda pensado em mim!--queixou-se elle, muito sentido. --Realmente ainda não pensára. Começava a sentir-se compromettida, olhava em torno a procurar os primos. João deixara-se arrastar pela arrebatadora emoção d'esse momento tanta vez sonhado, e tanta vez crido impossivel: --É porque nunca me quiz bem! Ella via embaciarem-se-lhe os olhos, tremerem-lhe os labios. Desculpou-se para não o affligir mais: --Como querias que pensasse em ti, se isto tem sido uma coisa no ar? --Mas estão preparados para o embarque... --É certo que o pae anda com isso ha muito. Mas elle faz e diz tantas coisas sem fundamento, que eu nunca o tive por decidido. --Nem mesmo o casamento? --Não pensei a serio em coisa alguma. E n'um arremesso de creança que os mimos tornaram voluntariosa: --Mesmo isso do casamento com o primo ha de ser se me agradar. João estremeceu, desiludido: --Ah! Então ainda é possivel? --Só Deus o sabe. Mas se não sympathisar com elle, não ha forças humanas que me obriguem. --Quer dizer que ainda póde vir a agradar-se? --Quem sabe! Cria-o então possivel? É que nunca sentira por elle nenhuma affeição? E a custo João comprimiu um soluço, que não lhe passou despercebido. --Que tens tu? Bailando-lhe lagrimas nas pestanas, desabafou: --Ando como um doido! Perco as noites a pensar que não nos tornamos mais a vêr. Toda a minha vida hei de chorar esta casa... --Coitado! Faz-te falta o que o pae te dá a ganhar. Magoou-o a apreciação. Pois não presentia n'elle outro sentimento? Não interpretára nunca o verdadeiro culto que lhe votava, olhando-a absorto, como ás imagens. Pensou ainda em manter-se incomprehendido, em calar essa revelação. Vinha muito tarde! Não o comprehendera em dois annos de intimidade, não ia agora corresponder-lhe de repente. Mas revoltou-o vêr accentuada a situação de dependente. --Não ia ali por interesse--protestou.--Os seus deixaram-lhe alguma coisa. Tinha com quê. Era só por ella, para estar ao seu lado, que acceitava o sacrificio do escriptorio. Impressionou-a a paixão com que falava. Ainda em tom de gracejo, mas com a voz um tanto abafada, disse sem o fitar: --Querem ver que te deu para me namorares? Ficou olhando para a areia vermelha. E como elle permanecesse calado, insistiu, evitando-o sempre: --Não respondes? --Fica zangada commigo?--perguntou a medo. --Não. --Isso é que fica. Ella virou-se de repente, e fitou-o com franqueza: --Zangada porquê? Intimidou-o essa expressão, que não comprehendia; mas era tarde para recuar. Muito envergonhado, rendeu-se: --Pois é verdade. Maria ergueu-se n'um riso forçado: --Tu, namorado de mim? Tu, meu fedelho! Ora! Não sabes o que dizes. Ia afastar-se, mas João supplicou: --Já que me não ama, diga ao menos que me perdôa! --Tens medo? Descança, não faço queixa ao pae? --Não se ria de mim, quero-lhe muito, muito!--soluçou elle.--E quando soube que a pretendiam casar em Lisboa, chorei de desespero, porque me costumára a pensar que havia de ser minha mulher. Ella encarou-o, franzindo as sobrancelhas, como irritada pelo atrevimento do plebeu, do insignificante, irrespeitoso para com o idolo que para todos julgava ser. --Estás brincando! É lá possivel! Elle enxugou as lagrimas, conteve se: --Sinto-o agora, pelo desdem com que me trata. --É uma creancice. --Sim. Mas que me perdeu para sempre. Irritada procurou convencel-o: --Pois tu não vês que o pae nem quer que eu fale com o primo Antonio, nem com o primo Sebastião desde que se lhes metteu em cabeça pretenderem-me, porque são pobres? E que és tu ao pé d'elles, quasi tão fidalgos como nós? O que diria o pae se soubesse d'isto! --E a menina que diz? --Que digo? Não me estás ouvindo? --Se me estima. --Bem sabes que sim. --Muito? --Vê lá se me entretenho com mais alguem do que comtigo e com a prima Josepha da Esperança. --E agora, depois do que lhe disse? Animava-se momentaneamente, olhava-a transportado, n'um lampejo de esperança. Ella sorriu, bondosa, infantil: --Já me viste por ventura algum namorado? Todas as raparigas os têm, aos dois e aos tres, e eu nunca achei graça a essas tolices. São brincadeiras estupidas. Mas se gostasse de um homem, muito cá de dentro... Transfigurou-se, dominou-a uma expressão de alegria, mas conteve-se e exclamou abruptamente: --Olha, falemos de outra coisa. Comprehendeu que era preciso acabar: --Vejo que não quer saber de mim. --És doido. Então não temos sido tão amigos? --Oh! Como eu esperava ... não! --Sabes que mais? És um doido, é o que te digo! E afastou-se com mau modo. --Um momento, senhora D. Maria, esqueça esta falta de respeito, antes que me retire para nunca mais voltar. --O quê? Não estás bom de cabeça rapaz. Então é que o pae desconfia. E o que serás tu nas suas mãos, meu franganito! --Virei despedir-me com qualquer pretexto ... e nunca mais me tornará a vêr! Ia seguindo Maria, que se esquivava a novas lagrimas, procurando os primos, aninhados n'algum caramanchão. Ao descobrirem-os, disse João precipitadamente: --Obrigado pela feliz illusão em que tanto tempo me manteve, e adeus para sempre! --Vae com Deus--redarguiu ella, muito saccudida--e pede a Santa Catharina que te dê juizo. Despediu-se João cerimoniosamente de Jorge da Feteira, de D. Josepha, e retirou-se corrido. Não se atreveu a sair pela porta principal, á vista de todos. Atravessou o cannavial, passou ás terras lavradias, saíu pelo portão de ferro que abria para o cerrado, e seguiu ao longo do muro da quinta, encoberto pelas faias e caniçados. Ao passar debaixo do mirante onde a deixara, surprehendeu pedaços de conversação a seu respeito. Josepha da Esperança reprehendia a prima: --Não o devias ter deixado tomar tanta confiança, desde que não o querias. Vocês pareciam mesmo dois namorados, e sempre os tive por isso. Andastes muito mal. Indignou-se Maria: --E tu, e as outras? Vocês teem licença para tudo? E se me desse para o namorar? Que tens que vêr com isso? Olha, talvez venha a gostar do entretenimento. --Com este? --Com este ou com outro. Parece que é tudo o mesmo, á maneira como vejo variar. --Isso é commigo, prima? --É com todas. --Deu-lhe volta ao miolo! Pois veja se tem mais juizo. --Olhe, prima, não a chamei para mestra, e não me venha dar lições sem que a tome ao meu serviço. Voltou-lhe as costas e afastou-se. Josepha da Esperança ameaçou, despeitada: --O que tu merecias era que eu fosse contar tudo ao tio. --Pois experimenta, e verás que te pico os olhos com uma agulha. Ao perceber o tom das referencias, João apressava o passo, corrido, humilhado, occultando se com os silvados, para que nunca mais o vissem. III Passára João interminaveis dias de angustia, e agora apenas ia á lição de latim, ficando a estudar noite e dia para poder entrar mais depressa na universidade. Manter-se-ia em Coimbra com a pequena legitima paterna que, para se formar, conservava intacta, sustentado pelas tias, a quem auxiliava com os ganhos de escrevente. Para supprir as quatro patacas pedira ao Juvencio, e ao doutor Ferraz, que o apreciava das conversas politicas da botica, alguns trabalhos de expediente da junta provisoria, que podesse fazer de tarde e á noite. Mas a subitas abandonava o buffete, chegava á janella, e sentava-se a contemplar a quinta dos Folhadaes, evocando a derradeira visita. Resentia-se da frieza de Maria, do desdem transparente nas censuras de D. Josepha da Esperança, do olhar sobranceiro de Jorge da Feteira ao corresponder friamente ao seu cumprimento. E avaliava que tal devia ser o primo de Lisboa a quem a destinavam, por esse arrogante analphabeto, cheirando a estrebaria, orgulhoso de pegar toiros á unha á saída do curro, de picar a pé á vara larga, de farpear de dentro do caixão a meio da praça, falando com desprezo da liberdade que não comprehendia, odiando a letra redonda que nem soletrava, copiando D. Miguel por fóra e por dentro, dizendo-se, por bravata, capaz de defender de armas na mão o passado, que lhe dava direito de primasia sobre a parte intellectual da nação. Como fôra ridiculo no seu acanhamento! Porque não rompera n'um rasgo soberbo, lançando-lhes em rosto alguma dura phrase ouvida na botica, predizendo-lhes a aniquilação fatal da fidalguia, despojada do direito de explorar o povo, annulada pelo plebeu trabalhador, instruido e saudavel, ella, a casta analphabeta, indolente, corroida no sangue por heranças de miserias e de vicios? Precisava desafrontar-se, lançar-lh'o em cara, citar-lhes os artigos da Carta que confirmavam a Constituição na extincção dos privilegios, no estabelecimento da egualdade. Mas teria offendido gravemente Maria... Fôra melhor assim! Ella não podia pensar como o pae, como o primo. Tratara-o sempre como um egual e, se manifestára aquella grande estranheza, fôra decerto por ter ouvido de chofre o seu audacioso proposito, sem que uma gradual preparação a habilitasse a encarar aquelle amor como a natural consequencia da intimidade em que viviam. Maria amava-o, sem duvida; e assim que lhe importariam os preconceitos? Vibrava na revolta sentimental dos poetas que, em relampagos de genio, previam a declaração da egualdade, queixando-se de que Deus fizesse deseguaes os homens, e lhes desse, impiedoso, olhos e sentidos para escolherem o melhor, e um coração para estalar de dôr; e se fosse poeta glosaria n'um sentimento vivido, para os enviar a Maria como um formidavel protesto, os versos de Gil Vicente: «Que el amor que aqui me trajo Aunque yo fuese villano, El no lo es.» Já não havia porém villões e fidalgos; perante a lei eram todos cidadãos! Maria agora sabia tudo e, n'esses longos dias em que se não viam, tinha tempo de meditar. Julgal-o-ia no seu intimo, evocaria, talvez saudosamente, a jovialidade d'essas tardes! Que pensaria o fidalgo em não o vendo? Era forçoso ir lá dar-lhe qualquer desculpa. Não podia desapparecer como um criminoso. Precisava mesmo mostrar-lhe, e a todos, que não tinha medo. N'esse dia despedir-se-hia d'ella cerimoniosamente. Já não era dependente e, se o acolhesse, tratar-se-iam de egual para egual. Voltaria como visita, ou falar-lhe-ia da canada, e havia de inspirar-lhe confiança, fazendo-lhe vêr como as medidas liberaes, extinguindo distincções, lhe permittiam elevar-se até aspirar á sua mão. E assim caía de novo na preoccupação politica, sentindo ainda mal seguro esse estado de coisas que provocava um desdenhoso riso a Martinho Vasques, e avinhados raptos oratorios ao frade. Como sempre que o intimidavam a tranquilla segurança dos adversarios, as más noticias que por toda a parte espalhavam, decidiu ir á botica avigorar a fé na convicção enthusiastica do velho clubista. Fôra tão forte o abalo soffrido que adiou de dia para dia a visita ao Juvencio e, sem saír mais que para a aula do padre Jeronymo, continuou agarrado aos livros, vendo n'elles, no curso para que o preparavam, a sua melhor desforra. Alarmou-o uma manhã o boato trazido de fóra pela creada, quando estavam almoçando, de que se ia embora o batalhão, e voltava a ilha á obediencia do senhor D. Miguel. A junta reunia gente armada para impedir o embarque, mas todos diziam que os caçadores eram levados do demonio, e nenhum caso fariam da paisanada. Não poude encobrir o desgosto, mas não respondeu ás tias, não lhes contestou os commentarios. D'ahi a pouco saía, muito enfiado, disposto a tudo. --Que ha de novo, senhor Fulgencio? Veiu do interior da loja o boticario, um velho alto, secco, ainda robusto, só divergindo dos constitucionaes na cara rapada, olhar inquieto, ardente, bocca energicamente accentuada, expressão decidida, barretinho de clerigo tapando-lhe a calva, muito correcto n'um velho traje de gala, repassado aqui e ali, casaca de seda preta, calção e meia, chinelos em vez dos sapatos de fivela, por causa dos callos. Aproximou-se n'um ar mysterioso, occultando-se das beatas que iam vigial-o de manto, e disse-lhe baixinho: --Está reunido o conselho militar. A coisa não ha de ir assim, estejam descançados. E retirou-se, muito activo, n'um passo miudo. Seguiu-o João, angustiado. --Vieram más novas? Voltou Fulgencio a falar-lhe entre portas: --Não vieram das melhores, não. Olha, ahi tens gazetas fresquinhas, chegadas hontem, n'um navio da laranja. Vae-te entretendo, emquanto eu avio a gente _do monte_, para ficar com as mãos livres, se tivermos dança. Era domingo e, conforme o uso, viera ás compras muito povo do campo. Estava a botica cheia de cabaças, de alforges, de sacos de estopa. Em cima de mezas alinhavam-se tijelas onde Fulgencio, de espatula em punho, ia despejando boiões de unguento. Devorava João as pequenas folhas, de um palmo de largo, por palmo e terça de alto, a duas columnas, encimada pela corôa portugueza, entre _Gazeta_ e _de Lisboa_, do titulo. Vinham cheias de saudações a D. Miguel pela «exaltação ao throno dos seus maiores»; da lista dos «donativos voluntarios», extorquidos pela policia e pelos caceteiros sob a ameaça da denuncia por liberal; de congratulações officiaes pela victoria das tropas fieis contra as rebeldes. Na ultima pagina do n.{o} 184, de 4 de agosto, figurava o annuncio do retrato de D. Miguel, em ponto grande; para medalha e caixa de rapé a 40 réis a duzia, em preto, a 240 _illuminado_; para medalhas mais pequenas respectivamente a 30 e 160 réis; para anneis e alfinetes a 20 e 120 réis. Publicava a _Gazeta_ n.{o} 182, de 2 de agosto, o «Assento dos tres estados», em que se declarava D. Miguel rei absoluto, absolvendo-o de haver jurado falso com essa interpretação do juramento, que João lia assombrado: «irrito ou nullo quando cae sobre materia illicita, quando é extorquido pela violencia, quando da sua observancia resultaria necessariamente violação de direitos das pessoas e dos povos, e sobretudo a completa ruina da nação.» E os jornaes continuavam a bater a nota das felicitações a D. Miguel e ás tropas. Que significava aquillo? Não podia deprehendel-o das _Gazetas_, alheio como estava ha muitos dias ao movimento politico. Mais aliviado de freguezes, veiu Fulgencio esclarecel-o: --Sim, foi-se tudo por agua abaixo. Já o sabiamos desde o dia 5, mas a cara era a mesma, para que esses patifes dos miguelistas não se nos rissem nas barbas... --E as noticias que o doutor Antonio da Silveira foi procurar ao Porto... --Já nos deram a divisão liberal em retirada para a Galliza ... mas nós: moita, carrasco! --Pois não poderam manter-se todas essas tropas da junta do Porto? --Perdeu-os a sua ingenuidade! Tu bem sabes que nós não queremos sangue, nem alçadas, nem perseguições, nem confiscos. Paz e egualdade para todos! Eis como foram até cerca de Condeixa tres mil soldados liberaes, por assim dizer como chamariz a deserções. Mandaram-se proclamações para o campo inimigo, e ao alarme pela aproximação de uma força adversa romperam as bandas o hymno constitucional, para a arrastarem á adhesão. Contava-se vencer sem disparar um tiro, sem derramar o sangue de irmãos! --Como em Vinte!--exclamou João enthusiasmado. --Eram os principios! Mas as forças do Miguel, seis a oito mil homens, não quizeram «abraçar os irmãos d'armas», e atacaram na Cruz dos Moroiços, no momento em que todos os chefes, de major para cima, tinham ido assistir ao conselho militar em Coimbra. Foi a «acção dos capitães» e, como tal, as forças sem commando que reunisse os seus esforços, defenderam com valentia as posições occupadas, mas não limparam de inimigos o caminho de Lisboa. Depois o nosso general Refoios, receando que Povoas passasse o Mondego, ordenou a retirada para o Porto. --E ahi? --Não se poderam manter. Quando chegaram de Inglaterra os chefes emigrados já era tarde, e voltaram no mesmo vapor que os levára, emquanto a divisão retirava para a Galliza. --Que desgraça! --Ou antes, que inepcia. Essa fuga dos chefes no _Belfast_ não me passa d'aqui! E levou a mão á garganta n'um gesto nervoso. Sentiu João as lagrimas nos olhos, e fez exforços para não chorar. Assim ruia n'um momento o futuro em que tanto confiára. --Então acabou-se tudo?--exclamou em voz estrangulada. --Qual! Outros virão! Ha de estalar nova revolta, e o Miguel não levará a melhor! E agora que aprendemos á nossa custa, nada de hymnos nem de proclamações. Ha de ser á má cara! Dava grandes pernadas pela botica, olhando inquieto a praça, onde se juntava muito povo defronte da camara. Continuou para João, que ficára aturdido: --Assim o querem, assim o tenham! O exemplo do sangue veiu d'elles. Já começou a trabalhar a forca, mas os estudantes de Coimbra, longe de se intimidarem com o assassinio dos collegas condemnados pela morte dos lentes em Condeixa... Olhou João fixamente, crendo que a sua pallidez provinha da referencia ao attentado e ás execuções. --Ouve lá. Tu que te fazes tão liberal, se te coubesse em sorte executares um tyranno, um inimigo de liberdade... --Não me tremia a mão, tenha a certeza! E João ergueu-se, vibrando de enthusiasmo, na esperança de poder tomar parte na lucta contra a casta dominante cuja oppressão tanto o magoára. Parecia-lhe ha muito que o experimentavam os frequentadores da botica, e sentia-se attrahido pelo maravilhoso, pelo mysterio do subterraneo onde constava funccionar uma associação secreta. Mostrava agora uma firmeza de homem feito, sentindo-se honrado por esse convite indirecto a entrar em acção. Juvencio fitava n'elle o olhar prescrutador. --Todos serão precisos!--disse-lhe por fim--e os rapazes mais do que os velhos. São vocês que teem a lucrar com a liberdade. Eu não chegarei a gosal-a em paz. Commoveu-se n'uma saudade do periodo constitucional, das humanitarias illusões em que tinham considerado a nação livre e feliz para sempre. Mas o gesto de amargura cedeu ante a impulsão do inquebrantavel espirito de combatividade, e proseguiu: --Como te ia dizendo, a estudantada não se intimidou, e adheriu á revolução, formando o batalhão academico, que lá retirou com os emigrados. Eram um novo contratempo para João as perturbações da universidade. E na obsecação do projecto que por esses dias o absorvera, perguntou: --Então assim, talvez não possa matricular-me este anno? Sorriu da ingenuidade o boticario. --És um creançola! Pois não vês que não torna a haver paz sem que elles nos enforquem até ao ultimo, ou nós os desarmemos e ponhamos o Miguel pela barra fóra? --Não sou tão inexperiente como julga. Mas pelo que vejo na _Gazeta_, D. Miguel foi proclamado rei, e tudo são felicitações e offertas... --Isso não quer dizer nada. É a gente d'elle, só a d'elle, porque os nossos estão presos ou emigrados. Mas olha que os embaixadores cortaram todas as relações diplomaticas, em protesto contra a infamia dos juramentos falsos com que nos illudiu, com que enganou as nações estrangeiras. Puxou triunfante d'uma carta: --Aqui sabe-se tudo, quer eles queiram quer não. Os tres estados, como tu já ahi lêstes, absolvem-o a seu modo, adoptando a moral jesuitica do juramento condiccional; mas ainda o desculpam de outra fórma, dizendo que elle, ante o parlamento, não jurou com a mão nos evangelhos, mas em cima dos _Burros_ d'esse bandalho do José Agostinho de Macedo. Tu sabes as minhas opiniões, para mim tanto vale um como o outro, é tudo palavreado de frades. O crime está na má fé de bandido com que abusou da confiança attribuida á palavra de honra de qualquer homem de bem, quanto mais de um principe! João indicou-lhe o artigo da _Gazeta_. --Dizem que elle foi coagido a jurar. --Patife! Estava coacto, sim, é a desculpa d'esses homens que para vergonha nossa ainda governam cidadãos livres como rebanhos de carneiros. Na Villafrancada e na Abrilada, D. João sexto e D. Miguel declararam-se mutuamente coactos e illudidos, para justificarem as traições e as perfidias em que se digladiava a real familia. A sua «sciencia certa e o seu poder absoluto» guardam-os esses ungidos do Senhor para pôrem os gatafunhos nas medidas uteis dos seus ministros. Amarrotou a _Gazeta_ furioso, batendo com as costas da mão no artigo dos «tres estados», emquanto passeiava, declamando: --Isto que ele fez agora, deitar a mão á corôa, já o tentou por duas vezes em vida d'esse pobre diabo de D. João VI, combinado com a porca da mãe. Correu-lhe mal a coisa, teve que submetter-se na Villafrancada, e da Abrilada foi rebolindo de castigo para o extrangeiro. Da Austria, mal se viu livre do pae, escreveu ao senhor D. Pedro, reconhecendo-o e aceitando-o como herdeiro do throno portugues. Quando o grande rei liberal usou do poder para abdicar d'elle no povo, doando nos a Carta Constitucional, e para ceder a corôa á nossa joven rainha D. Maria da Gloria, sob a condição de D. Miguel casar com ella e acatar a Carta, jurou-a solemnemente, e até enviou ao irmão regente um manifesto negando a authoridade do seu nome a quem impugnasse o novo codigo da liberdade. Escreveu ao rei de Inglaterra garantindo-lhe o proposito de fazer respeitar as novas instituições, mantendo por meio d'ellas a paz em Portugal. Ao chegar a Lisboa, em triumpho, entre meio de partidarios, sem que um só liberal se lhe podesse aproximar, ratificou, em grande ceremonial, os juramentos, e ainda cumpriu, a seu modo, a Carta, assignando decretos em que a applicava. E quando pôz o exercito da sua mão, mudou a officialidade, augmentou a policia, quando se considerou absolutamente seguro, desmascarou-se, fez-se proclamar rei absoluto, inventou a questão da legitimidade, que nunca até hoje fôra apresentada, e fez trabalhar o cacete e a fôrca. --E está realmente acclamado rei em todo o reino, como diz a _Gazeta_?--perguntou João intimidado. Mediu-o Juvencio de alto a baixo, e respondeu n'um aprumo soberbo: --Mas não o está na ilha Terceira! Elle retorquiu, receioso, mostrando o jornal: --Fala-se aqui de uma expedição em que vem a nau _D. João VI_, e mais dez navios, contra a Madeira e as outras possessões revoltadas... --Bem sei. E já fizeram exercicio de desembarque diante do «seu anjo». Pois que venham cá, e verão a lição que levam! Deslumbrava-o o orgulho patriotico: --Tinha melhores dentes o Demonio do Meio-Dia, e por duas vezes lhe corremos com a sorte. O que a nossa terra fez então, póde repetil-o agora. Até os toiros dos nossos mattos se lhe deitaram na Salga, e Vadez fugiu, apezar dos seus dois mil soldados cobertos de ferro! Para se metterem cá tiveram os hespanhoes que mandar oitenta navios e dezaseis mil homens. Onde tem o Miguel gente para isso? Pois tomára eu que mandasse muita, para que, livres d'ella, o puzessem os liberaes mais rasos do que um chinelo. Ardia João na impaciencia de saber toda a verdade: --Por têr mêdo da esquadra o batalhão quer saír, como corre? --Com mêdo, dizes bem. Eis o que valem fanfarronadas de caserna! Lingua têm elles para se darem como autores de tudo, dadores da liberdade, mantenedores da independencia. Mas vê lá se alguem os viu quando entraram os francezes! Nem raça de um. Foram as guerrilhas, paisanada como eu e como tu, que lhes puzeram as uvas em pisa. E quando mataram o grande general Gomes Freire? Se foram elles proprios que o fuzilaram! Havia officiaes inglezes n'esse tempo, mas só meia duzia. A soldadesca e os agaloados eram todos de cá. Que prendas! Em Vinte sahiu tudo para a rua, que duvida, se a coisa não cheirava a esturro. Apenas vivas e palmas! Quando se conspirava contra a Constituição, ainda juraram defendel-a até á ultima gota do seu sangue. Mas assim que os franceses entraram por Hespanha, e o Miguel se levantou, puzeram-se no seguro, e trahiram todos os juramentos, choramingando que a liberdade era má porque lhes deixava os soldos em atrazo, quer dizer, porque não lhes dava em promoções e augmentos de soldo tudo o que pagava o pobre povo. Lá conheceram para que serviam ao atrelarem-se ao carro de D. João VI, que puxaram como bêstas, organisando até a relação dos nomes, e disputando aos fidalgos a honra da preferencia! --É então certo que retira? --O major José Quintino Dias apenou os navios da laranja para o levarem a Inglaterra, onde devem ir ter os emigrados. Queria embarcar hoje mesmo, 24 de agosto! Escolheu bem a data, não haja duvida, quando faz oito annos que rebentou a revolução constitucional no Porto! Considerou tristemente: --Oito annos! Como o tempo corre! E estamos peior do que ao começo. Nada porém abatia a sua fé inabalavel: --Mas havemos de restaurar a liberdade, embora só vocês gosem d'ella! João commentou ainda: --Mas caçadores cinco foi sempre um corpo liberal! --Pois é isso mesmo o que mais me doe. O bravo cinco! Um batalhão degredado para aqui pela sua firmeza, quando até o famoso dezoito de infanteria, unico que não fôra á Villafrancada, se bandeou, depois de ter recebido, n'essa hora tragica, um exemplar da constituição confiado á sua guarda, e de ter jurado morrer pela liberdade! O cinco, o bravo cinco! E reconsiderando: --Mas ouve lá, rapaz, se em geral a tropa não merece confiança, e só pensa no venha a nós, tem tido verdadeiros heroes liberaes, embora por excepção! Esses que emigraram, sem acceitarem as concessões do Miguel, são portugueses de antes quebrar que torcer! Bem viste como se portou o nosso «cinco» em vinte e dois de junho. Agora é que lhe deu para desmanchar-se ... Ainda tenho para mim que ha de reconsiderar. --Tambem creio que se não vae. Juvencio exclamou exaltado: --Lá isso é que não vae, podes ter a certeza! Ha de ficar, ao bem ou ao mal. Não é só meterem-se nas coisas. Quem as arma que as desarme. Vae por ahi uma gritaria, um desespero que é de cortar o coração. Bem se sabe o que o Miguel fará se entrar aqui. São mortes, confiscos, donzellas violentadas, creanças insultadas nos seus lindos olhos azues, a maldita côr constitucional. A elles póde não importar isso, mas nós não queremos a desgraça na nossa querida terra. Se teimarem em fugir, abandonando ao carrasco mulheres e creanças, ensinar-lhe-emos á força o seu dever! Como sempre, fôra avassallado João pela fé do velho liberal: --Sim! Sim! Diz muito bem. E no rosto lia-se-lhe uma formal decisão. Agora Juvencio approximava-se, commovido, os olhos rasos de agua: --Quando fôres pae, Joãosinho, comprehenderás a minha dôr. Tenho aqui em cima tres filhas, e já um neto, cujos cabellos loiros são o meu encanto! A minha familia é a minha religião. Tudo quanto sou, me tornei por causa d'elles! A minha alegria é o reflexo da sua alegria, a minha vida é o trasbordar da sua vida, a mesma que em mim se definha e n'elles se perpetúa. A mulher é tão velha como eu, mas ellas são novas e lindas. Queres saber o que os padres prégam do pulpito abaixo? Que é preciso matar as _malhadas_, as filhas de liberaes como as minhas, de preferencia as gravidas, porque as creanças já trazem no ventre o ferrete da malhadice! A minha filha casada está para dar-me outro neto. Calcula agora as minhas queridas filhas, e os olhos azues do meu lindo neto, pasto de soldados e de frades! Não! Não ha de ser assim! --Na nossa terra não entram esses barbaros! Mais calmo, limpando as lagrimas, aliviado pelo desabafo, Juvencio continuou: --É preciso que não entrem! Toda a esperança da liberdade portuguesa depende de nós. Se fossemos vencidos reinaria o Miguel por toda a parte. É o que agora dirão no conselho ao major Quintino. O futuro de Portugal está-se jogando, n'este instante, ali! A ilha Terceira póde defender-se, e ha-de defender-se! É tão bravia a costa do mar, que faz por si só uma muralha, e se n'ella nos vencerem, temos as do castello. A nossa terra é tão insignificante, estará dizendo Quintino, que n'um dia se corre toda em volta a pé. Pois quanto mais pequena fôr, maior o exemplo! Ha-de acabar-se a dependencia. Tornaram isto um degredo, um escoadouro de tudo quanto tem de mau. Mandam para cá o refugo dos funccionarios, o que lhes não serve de nada. Pois se o mal vem de lá, ha-de ir-lhe de cá a lição! Aqui foi o reino do Prior do Crato; aqui viveu ainda por dois annos o Portugal independente, vendido pela fidalguia ao rei de Hespanha; ha-de ser aqui o sacrario da liberdade, que depois reviverá em Portugal! Observou a praça, e ficou descontente: --Ein? Tudo na mesma. Mau signal. Já tiveram tempo de decidir qualquer coisa. Pois vamos até lá a vêr se espertam. Desappareceu no interior da loja. Estremecia João n'um fremito de independencia. Sim, resistir aos de fóra, acabar com essa escravidão, o navio cujas noticias o ameaçavam, o primo do continente a quem estava destinada a mulher amada. Queria-a para si, e havia de defendel-a com o ardor com que Juvencio pretendia bater-se pela familia. E assim como para o velho constitucional se identificavam os dois amores, tornando-se um a ampliação do outro, sendo o lar o mais sentido representante do maior, assim Maria se lhe tornava o symbolo da sua terra, ameaçada pelos de longe, dominada, como parte da sua população, pelo preconceito, pelo fanatismo. Percorria-o um fremito de bravura, manifestava-se-lhe, ao influxo da occasião, a hereditariedade guerreira; e sentia-se prompto a combater por ella e pela liberdade, já sem o triste acanhamento em que se humilhára ante a frieza do seu olhar altivo, ante o desdem de um boçal marialva. Veiu de dentro Juvencio, de chapeu alto, vendo-se-lhe o barretinho por baixo, emquanto, de costas, pretendia fechar a porta interior; trazia o capote preso nos fechos de prata, e debaixo d'elle um volume que lhe tolhia os movimentos. Voltou-se, sorriu ao encarar com João, e pediu-lhe que encostasse a porta da rua. Desembaraçou-se, poz em cima da meza uma espingarda de pederneira e o cinto de cartuchos. Fechou então a porta, metteu a grande chave n'uma gaveta, foi depois verificar a escorva, e por fim desembainhando a espada posta á cinta, mostrou a João, que assistia n'uma impassivel gravidade de homem feito, a lamina onde se lia: «Constituição ou Morte». Tivera-a muito bem escondida como uma reliquia, e nem as perseguições do maldito Stokler lh'a poderam arrancar. Cingiu o cinto da polvora, enfiou no hombro a bandoleira da espingarda e deitou por cima o capote azul, encobrindo as armas. N'uma ternura paternal poz a mão no hombro do rapaz, ao despedir-se: --Adeus, e mette-te em casa, Joãosinho. Temol-a tramada! --Em casa, eu?--protestou quasi offendido pelo conselho.--Olhe tambem para isto, senhor Juvencio. E da alta bengala de madeira preta e castão de marfim, arrancou um agudo estoque, e sacou das amplas algibeiras do casaco duas pistolas de pederneira. --Estão carregadas! Enternecera-se o velho: --Pois tambem tu, pequeno! Oh! Com rapazes assim a victoria é nossa. Muito orgulhoso, João gracejava: --Então o senhor, sósinho, é que havia de defender esta terra toda, lá por ella ser tão pequena? Eu tambem sou terceirense, tambem tenho direito ao meu pedaço! IV Saíram para a praça, repleta de gente. Não queriam voltar para as freguesias ruraes, sem saberem a decisão, os _homens do monte_, as mulheres com o cabello de risca ao meio a luzir de unto, saia pela cabeça, entufadas de saias sobre saias, os pés metidos em galochas de cedro, com pálas de coiro verde, avivadas a vermelho, luzentes de ilhós, cravejadas de pregos de aço. Nos grupos da gente da cidade graves artistas independentes, carpinteiros, ferreiros, ourives, sapateiros, marceneiros, alfaiates, trabalhando na propria casa, e para si, auxiliados pelos filhos, ou por apprendizes e officiaes, que sentavam á sua meza. Esperavam n'um grande ar de solemnidade, orgulhosos dos capotes de bom panno azul ou castanho, presos por fechos trabalhados de latão ou de prata. Commerciantes de chapeu alto, grande casaca, no rigor do trajo constitucional, ostentando bigodes, afadigavam-se por entre os grupos de artifices e camponezes, achando todo o apoio n'aquelles, e n'estes uma desconfiança hostil. Sentia nas novas leis o seu advento a burguesia liberal, e defrontava por toda a parte o fidalgo e o convento, senhores da terra, parasitas do trabalho, e queria oppor aos monopolios a liberdade commercial. Mulheres do povo, de capote berneo, n'uma explosão de escarlate; burguesas e fidalgas de manto negro, reunidas em pequenos grupos, parentas, amigas; viravam incessantes os biôcos mal saía uma pessoa da camara, e atravessava a praça illaqueada pela anciedade da decisão. A dentro dos capotes e dos mantos, por sob as pregas apparentemente uniformes, adivinhavam-se no esguio, no flexivel da cintura, no irrequieto do bico de passaro, no adejar de vôo dos largos pannos, as noivas do batalhão, as apaixonadas d'essa juventude que, no prestigio da farda, na vivacidade de lisboetas, no seu falar cantado, endoidecia as raparigas, com grave ciume dos patricios offuscados. Reconhecia-se o abandono das quarentonas sem futuro, gordanchudas, afogadas em seios já inuteis, semeadas por entre os grupos como escolhos, em torno dos quaes esvoaçavam os bandos de garças. Havia vendedeiras de capello deitado para traz, suffocadas pelo calor e pelo medo de perderem o rosario de dividas deixadas pelas tropas ao levantarem campo. Tapavam rebuços os rostos lacrimosos das namoradas e amantes dos soldados, dos officiaes e dos sargentos; mas carpiam-se, por todas as saudosas, as _mulheres da Rocha_, lenço de seda na cuia, chaile terçado, rosetas de vermelhão nas faces, labios pintados, arrepelando-se, bradando contra a saída d'esses divertidos rapazes, cujas guitarras trinavam melhor que as enfadonhas violas de arame da terra, d'esses bons fregueses, tão generosos e tão pandegos. Capitaneado pela Joaquinina do Ó, estava o rancho das beatas encoberto com o canto da rua da Sé. De atalaya á botica, destacava alviçareiras para o convento dos franciscanos; era um constante borboletear de mantos pela ladeira de São Francisco, e as que voltavam falavam ás que iam, encostando n'um tremelicar nervoso os biôcos, como antenas de formigas. Traziam medalhas com o retrato de D. Miguel, bentas pelos frades, e que elles proprios lhes tinham posto ao peito, para ostentarem victoriosamente, mal houvesse a certeza de que retiravam os caçadores. Á apparição do boticario, afadigou-se nova emissaria ladeira acima, e foi adejando o enxame atraz do velho e de João, seguindo-os por entre os grupos até junto da escada de pedra, que subia exteriormente á fachada do edificio, encimado pela torre do sino onde se tocava a recolher. Para os lados da rua do Gallo reunia-se o grupo dos mais influentes constitucionaes, que não tinham assento no conselho. Por vezes distrahia a espectativa o borborinho, gritos, risadas, vindas dos arcos da cadeia. Davam para as arcadas que sustentavam a varanda de pedra da fachada, as janellas das enxovias, onde havia cestos arvorados em canas, como apparelhos de pesca armados á compaixão. Ia a gente do monte agarrar-se ás grades, uns a comprarem pentes e grosas de botões de chifre, enfiados em agulhas de feno; outros a mirarem com olhos compassivos a nudez da prisão, a bilha de agua, o immundo boião dos dejectos, a tarimba de madeira onde se mantinha acocorado o _Marmanjão_, meditabundo, envolto em pedaços de colcha esfarrapada, offendido por essa profanadora curiosidade, elle, o santinho, como lhe chamavam os frades que o tinham de olho para carrasco; muito temente a Deus, notavel pela frequencia com que se confessava e commungava, e indigitado para a nobre missão de executor pela limpeza com que em S. Bartholomeu demolira com uma só paulada o homemzarrão de um vizinho. Regateava em voz fanhosa gaiolas de cana com melros pretos de bico amarelo, grandes cantores, o _Mujinha_, baixo, olhinhos de bisnau, pondo um traço de intrigante na cara rugosa; gatuno, fachina da cadeia e afilhado de chrisma do carcereiro que lhe levava caridosamente á porta as gaiolas, em ademanes de sacristão. Com a pronunciada queda commercial d'esse, contrastava a do seu visinho de janela, o _Zica_, muito correcto e limpo, cantarolando á moda da ilha de S. Miguel, vendendo pentes de baleia, cumprindo resignado a pena imposta por uma desforra tirada á má cara, n'uma noitada de vinho. Este era constitucional, e arvoráva sempre, provocadoramente, as guias do grande bigode, sem sequer as deitar abaixo, apesar das denuncias do santarrão pretendente a carrasco, e das intrigas do gaioleiro, durante o tempo em que a ilha acatára a usurpação. Logo na grade contigua outro miguelista, o _Roseiro_, um velhinho sem dentes, deprimido como uma fava escoada, alegrava os curiosos com inexgotaveis historias de toiradas, em que era uma auctoridade, e recebia em troca pedaços de pão de milho, e algum grande pataco com a effigie do senhor D. João VI, em premio á fidelidade e á coragem com que descrevia o «senhor D. Miguel» rejoneando toiros desembolados, e o seu confessor, fr. José da Rocha, saltando á praça e pegando á unha. Apoiado aos fortes varões que de seculos de afflictivas despedidas tinham as quinas amolgadas, como que derretidas pela ardencia em que se lhes crispavam as mãos dos desgraçados, falava com a familia e os visinhos do Raminho, um camponez alto, magro, rosto ossudo, enorme nariz, gago, dentes pôdres, grandes pés descalços espalmados, por alcunha o _Lindinho_, condemnado por morte d'homem ás Pedras Negras. Contava com esse a fradaria para ajudante de carrasco, pois a faina promettia, e só lamentava que não houvesse n'elle a necessaria uncção do _Marmanjão_, e que ambos, apesar de já afeitos, não tivessem a comprovada pericia de carrasco de officio, nem o aspecto, que só por si fazia chorar as creanças, obrigadas por lei a presencearem as execuções, de um celebre preto a quem fôra commutada em prisão perpetua a pena de morte, para fazer pernear condemnados na forca, de saco pela cabeça, ante a bandeira da misericordia. Que falta lhes fazia ali, para a restauração do governo do throno e do altar, um patriota como o _Cambaças_, que se offerecera para enforcar os liberaes; ou um preso como o _Fitas_, ladrão celebre, grande partidista de D. Miguel; que até os ladrões eram por el-rei contra a immunda canalha jacobina! Sentado de lado, contra a grade, sem encarar os ouvintes, o _Ferrabrás_, faquista, contava historias, que não provocavam gargalhadas como as do _Roseiro_. Eram de bruxas, de almas do outro mundo, e o olhar em extasis, e a barba inculta na cara descarnada, impressionavam, tornando mais horrorosas as apparições de phantasmas de incorrigiveis constitucionaes, como o illustre general Araujo, o _diabo_, assassinado pelos reaccionarios, com repiques e illuminações das freiras de S. Gonçalo, e que ao bater da ultima badalada da meia noite arrastava correntes pelo Caminho Novo, vendo-se-lhe pelas costas abertas o fogo do inferno que o consummia. Abaladas pelos medonhos pavores caiam mulheres com faniquitos, e então descia uma ordenança tinindo ferros, a prohibir os choros de uns e as berratas torreiras de outros. Puxava o carcereiro os presos para dentro, n'um ar compungido, mas severo; obediente ás ordens, mas doendo-se da sua execução; injuriando os renitentes entre abundancias de «valha-me Deus»; e só não levava o seu rigor ao ponto de fechar as janelas, porque não tinham portas, bastando á justiça o gradeamento para que não fugissem os presos, e convindo-lhe que a chuva molhasse o lagedo, afim de que ao saírem os condemnados, expiada a pena, se tornasse mais salutar o seu exemplo por irem tolhidos para o trabalho. Cumprida a ordem, ia entregar-se Benicio ao formal desempenho da sua missão de chaveiro, vigiar a porta chapeada de ferro; e sentava-se junto d'ella a untar de azeite as chaves do postigo, dos cadeados, do segredo, do alçapão por onde se despejava cal para aplacar as desordens, fechando por calculo os olhos ao negocio e os ouvidos ao falatorio, para que «os pobres de Christo», coitados, podessem fazer o seu vintem, tanta gente juntára o Senhor n'aquella praça; que elles afinal não eram maus rapazes no seu fadario, «valha-os Deus», são sortes, e até no fundo eram generosos, recompensando-lhe a caridade com que os deixava fazer pela vida. Voltavam os presos pouco a pouco ás grades, metia-se á formiga o povoleu pelas arcarias, e recomeçava a cantilena do «eu te requeiro da parte de Deus e da Virgem Maria», efficaz para desembruxar almas penadas; o pittoresco do «e vae o senhor D. Miguel ferra-lhe com o rojão mesmo no sitio»; a «Chamarrita, chamarrita, chamarrita, chama Rosa» das cantigas do baleeiro; e a giria commercial do _Mujinha_ «Ó meu rico freguez, perco n'esta gaiola metade do que dei ao homem que me foi apanhar os caniços», o chamariz com que ganhava perdendo sempre. N'aquella mesma praça, com essa mesma gente, recordava João, fôra celebrado ha dois mezes, em 22 de junho, o triumpho da liberdade e da Carta, a revolução liberal do Porto de 18 de maio. Agora, em vez da alegria d'essa manifestação, o receio de que tudo se desfizesse n'um momento. Estremeceu ao lembrar-se como então, de subito, ficára o chão regado de sangue do povo, no tumulto provocado pela malvadez de um padre, e em que a cobardia da soldadesca, disparando para intimidar, matara quatro indefesos homens. Mas tranquilisou-se observando melhor. Não se via nem padres nem soldados: não havia perigo. Fez a impaciencia de Juvencio extravasar a dos mais. Se por si só o conselho não tinha força para demover o commandante, era tempo de intervirem. Acharam-lhe razão, e do grupo separou-se logo, sem dizer palavra, Cypriano da Costa Pessoa, um negociante alquebrado pela doença e pela edade. Subiu alguns degraus da escada de pedra, amparou-se ao corrimão, e voltando-se para o povo descobriu a cabeça embranqueçida e dispoz-se a falar: «Concidadãos!» Custou a fazer silencio e, apesar de restabelecida a ordem nos grupos mais proximos, ainda da arcada dos carceres, de onde se não via o orador, vinham echos desencontrados, provocando um sussurro de protesto. «Concidadãos!» E a voz cava de Cypriano repetiu a invocação, procurando o volume preciso para se fazer ouvir até ao extremo. Que queria ali aquelle homem? Cravavam-lhe olhos esbugalhados os camponezes, pasmados de que alguem se atrevesse a levantar a voz em publico, sem ser um clerigo, sem ter que contar milagres de santos. N'um grande esforço, conseguira o orador fazer retumbar até ao canto da praça, onde costumavam juntar-se os mariólas, como um grito de alarme: «Nas actuaes circumstancias mais vale morrer com as armas na mão do que soffrer os insultos dos satélites do usurpador!» A convicção das suas palavras fez estremecer os proprios que estranhavam esse secular imitando padres, fazendo pulpito da escadaria municipal. Continuava trovejando a voz de Cypriano, modelada pela entoação dos prégadores, pois não tivera a lição civica da oratoria constitucional. N'um fremito de terror echoava aos ouvintes a ameaça, correspondente á absoluta verdade: «Não tardará o massacre de quantos liberaes elles puderem colher ás mãos!» Ante os olhos apavorados dos que se viam, d'um momento para o outro, sob a alçada do carrasco, passava o rosario de crimes absolutistas, as perseguições de Stokler ali na ilha, a prisão e deportação dos deputados ás côrtes constitucionaes, a captura em massa operada pessoalmente por D. Miguel, de aguilhada em punho, os nove estudantes enforcados no Caes do Tojo, as covas abertas em Portalegre á porta dos liberaes, a tortura de Renduffe, o envenenamento de D. João VI, o assassinio de Loulé. Iam ficar sujeitos a taes horrores se caçadores 5 abandonasse a ilha. E nas faces consternadas reappareceram as lagrimas. Mas nem Cypriano da Costa, nem os liberaes do seu grupo se mostravam desanimados. Cheios de fé, queriam luctar e appellavam para o auxilio de todos. Por essa praça, tão divertida em tardes de toiros e cavalhadas, resoava a mesma voz grave, sentida: «Para desviar este mal tão imminente, poupar a nós e a nossas familias, amigos e parentes, convém que já, já, os amantes da patria e da boa ordem vão offerecer-se ao governo, alistando-se voluntariamente para servirem debaixo das armas!» Ficou abalada a concorrencia, e a ideia emittida do alto agitou por camadas a turba, enthusiasmou os liberaes mais proximos, perturbou os mestres de officios, entonteceu as cabecinhas de capuz escarlate, revoluteiou as dos amplos capellos, e por fim saccudiu em tardas negativas os barretinhos de borla, de malha amarela e vermelha, e as carapucinhas de panno preto, em forma de tijela, talhadas em quartos como barretes de clerigo, dos camponios. Insistiu no convite: «N'esse momento, e desde já, não cuidava mais de outros negocios, nem entendia haver occasião mais conveniente de prestar melhor serviço á sua patria e a tantas familias,»--e aqui a voz vibrava vergastadas--«sob pena de serem considerados como pusilanimes e ingratos!» Só lhe restavam forças para offerecer o exemplo do seu sacrificio: «Emfim, não ha tempo a perder! Todos os que quizerem seguir tão brioso partido que me sigam a mim!» Agitando o chapeu, abrangendo a praça n'um olhar de convite, subiu com firmeza as escadas, até ao alto da varanda de pedra. Foi Juvencio o primeiro a seguil-o, agitando o chapeu alto e erguendo vivas á Carta e a D. Pedro. Responderam acclamações, agitou-se a praça inteira, e á medida que se aplacou o vozear, perceberam-se gritos, brados de afflicção. Das janelas por cima da botica, adivinhando-lhe a intenção, gritavam as filhas de Juvencio, mas elle, na embriaguez do rasgo, continuava a subir. Arrancando-se aos braços de mulheres que se estorcem, debatem-se homens enthusiasmados, olhos fitos nos voluntarios que, do alto da varanda, agradecem as palmas e saudações. E correm por fim, vencendo a resistencia das que choram desgrenhadas, indo sacrificar-se para lhes pouparem mais amargas lagrimas. São já quarenta, dos mais distinctos, os voluntarios, mal cabendo na varanda de pedra, e João encontra-se entre elles, sem ter raciocinado, sem se lembrar das velhas, do estudo, nem da ida para Coimbra, na impulsão geral, na ancia de defender a liberdade, na ambição de apparecer aos olhos de Maria como um homem, aos de Jorge e do frade como um altivo adversario, aos do morgado como um convicto de que é egual a elle, e de que vae affirmar, com risco da propria vida, o direito a erguer os olhos para as pompas do seu brazão. No impeto em que se haviam manifestado, logo outro negociante, João Antonio Bacellar, entrou á frente dos companheiros na sala do conselho e, offerecendo o serviço voluntario de todos, falou em termos taes que obrigou o governo a declarar mantidos os principios de legalidade contra a usurpação de D. Miguel. Manifestaram-se no mesmo sentido o secretario da junta Manuel Joaquim Nogueira, o tenente Lobão, o doutor Antonio da Silveira e Theotonio de Ornellas que, no enthusiasmo pela obra de 22 de junho, para que tanto concorrera, chegou a precipitar-se de espada em punho contra o juiz Calheiros, contrario ao movimento. Accede por fim a correr a sorte da ilha o commandante do batalhão, e na emoção d'essa boa nova o ajudante de ordens vem agradecer e acceitar, em nome do governo, a offerta dos terceirenses, que ficam constituindo a companhia de voluntarios reaes, sob o commando do capitão de milicianos Theotonio de Ornellas, devendo eleger entre si os outros officiaes. Então saem todos para, como em 22 de junho, irem ao castello. No desafogo do perigo afastado sauda o povo o governo e os voluntarios. O velho dr. João José da Cunha Ferraz, provisor do bispado, thesoureiro-mór da Sé, e presidente do cabido, o melhor advogado da ilha, palpita, apesar dos setenta e tantos, no delirio da juventude, e vae atirando o barrete ao ar e correspondendo aos vivas na voz tremula, emperrada pela gaguez. Arrebanham-se as beatas, corridas, pela ladeira de S. Francisco, atravancando-a, alastram pela escadaria do adro, e somem-se pelas tres grandes portas da egreja do convento, ávidas de consolarem as almas tão opprimidas, com os exercicios espirituaes dos santos frades, que não deixarão, decerto, de dar-lhes o prazer de um retumbante sermão de desabafo, de protesto ao ceu, e de algum desaggravo lithurgico á affronta feita áquella hora ao seu querido rei, essa encarnação do archanjo S. Miguel. E ali dentro, na protecção do templo, poderiam ostentar as medalhas dos retratos, em que o rosto do rei apparecia córado, n'uma vermelhidão de sangue, ostentando-o sem medo nos abundantes peitos de amas de clerigos. Seguiam triumphantes o cortejo as que choravam pelos militares, mas tanta gente corria ás adufas e acudia ás portas, que o novo bando, escarlate e negro, escoava-se pela rua de S. João, para se adiantar pela rua da Rosa, Quatro Cantos e Bôa Nova, indo esperal-o ás alturas do Relvão, aonde já a curiosidade não macularia de suspeitas o seu enthusiasmo. Assentadas no muro do campo de manobras da fortaleza, entre esse mar de relva requeimado do sol, onde a primavera semeia papoulas, borboletas e malmequeres; em face á viçosa explanada que, com as baterias e banquetas, mascara os caminhos cobertos e os fossos; deitaram para traz os capellos, offegantes da correria, n'uma exposição de lindas caras que confirmava aos militares o credito de invenciveis nas mais frequentes das suas campanhas. Transfundira-se na mais pura raça portuguesa do seculo XV o sangue flamengo que dera o typo esbelto, a frescura de tez, a transparencia do olhar ás delicadas louras; dotára-a o Brasil da exhuberancia dolente das creoulas, cabello de azeviche, dentes miudinhos, fundas olheiras; trouxera-lhe a dominação hespanhola o galante requebro da andaluza e o preto dos seus olhos seductores; e o dos hebreus fugidos déra, á sadia carnação das morenas, olhos apaixonados de judia onde esvoaça a nuvem da saudade. Amando-as olvidaram emigrados penas do exilio, e finda a guerra voltaram, a tornar definitiva a patria em que os adoptara a meiga ternura. Ouvia-se já perto o vivorio; vinha passando o cortejo por baixo das gelosias do convento de S. Gonçalo, de onde as freiras constitucionaes acenavam com lenços, gritando no falsete do côro: «Ou Constituição ou morte!», transportadas pelo fremito de liberdade, acclamando os que haviam de arrancal-as a essas grades, profanadoras da sua virgindade, asphyxiantes da sua juventude, e restituil-as á vida, ao amor a que tinham sido sequestradas. Mal as raparigas casadoiras avistaram lenços de côres de mulheres do fado voejando entre o povo, escabrearam ladeira acima, para entrarem pelo portão dos carros, seguidas a custo pelas mães e tias que as pastoreavam, lingua de fóra. Já dominavam a praça do castello, da rua que dá para as baterias, quando resoou na tropeada a ponte de pedra, por sobre o fosso. Sentiu-se ranger a ponte levadiça, nos seus engenhos de correntes e contrapesos de pedra, ao echoarem as passadas na madeira; retiniu n'uma brilhante extensão de voz um alegre brado de «ás armas»; e sob o abobadado das portas bateram as pancadas seccas das bandoleiras ao apresentar armas. Nos quarteis vibravam toques de corneta, vozes de commando: Caçadores cinco que reunia na sua parada, e avançou depois até á praça do castello. Atraz das companhias vinha de dentro, com ranchadas de filhos, outro grupo de mulheres que as lindas raparigas e as gastas rameiras olhavam com respeito e compaixão. Ficaram-se entre a egreja e o palacio as companheiras do batalhão, fieis como cães, inconscientes no perigo como os soldados, firmes como se as sujeitasse a mesma disciplina; lavadeiras das esquadras, mulheres ou amantes de soldados, seguindo como vivandeiras a tropa; lisboetas baixinhas, pescoço curto, sombras de buço, de uma viva petulancia no lenço engomado, em pontas, que usavam na cabeça, com o capote, com grave offensa dos capellos ilheus; airosas varinas, leves, saia curta, pé descalço, collete affirmando-lhe o busto e erguendo-lhe o seio, chapeu de velludo, coração de ouro e grandes argolas. Tinham atada a minguada roupa, promptas a partirem, como as escunas inglezas que por baixo das muralhas se baloiçavam nas ancoras, sem um protesto, como ao virem por mar com os seus degredados; na mesma firmeza de outras bravas mulheres, que de trouxa á cabeça acompanharam pela Galliza a divisão emigrada, e de lá seguiram com ella para as miserias de Inglaterra. Desembrulhavam os trapos ao tempo em que os navios, desimpedidos, se abarrotavam de caixas de laranja, e agora desabafavam contra «o Miguel», em gestos de regateiras, em palavradas de tarimba. Formára Theotonio d'Ornellas a companhia de voluntarios á esquerda dos caçadores, e João, que ficara entre Juvencio e o seu professor de latinidade, aprumava-se como um verdadeiro soldado. Da escadaria do palacio do governador do castello, que servira de prisão a Affonso VI, discursou o secretario do governo affirmando a deliberação de se manter a causa. Respondeu-lhe o major Quintino Dias declarando-se, elle e todo o batalhão, dispostos a «derramarem a ultima gota de sangue». Avançou a bandeira até á frente dos Reaes Voluntarios, e estes, estendendo a mão direita, juraram «guardar e fazer guardar a constituição politica da monarchia portugueza». Tocou a banda o hymno constitucional composto pelo imperador em 21, ergueram-se os vivas da praxe á Santa Religião, á Carta, e a D. Pedro, e n'essa fraternisação de povo e tropa, gente da terra e de fóra, viu João estabelecer-se a unidade do sentimento nacional na aspiração de liberdade, e sentiu-se para sempre ligado ao destino da causa, até ao triumpho da nova ideia, ou até á morte pelo ideal. Dissipara-se-lhe, como a todos, o terror de pela manhã. Tinham trepidado alguns, mas eram bem melhores do que os fugidos no _Belfast_. Havia uma consciente decisão n'aquelles dos militares que sempre tinham querido ficar, communicando-se agora aos que a fraqueza dominára por um momento. Só a aspiração liberal reunia todas as classes da nação. Estavam ali, ao abrigo das muralhas, ligando-se nos mesmos protestos, a nobreza, o clero, a burguezia, o operariado; profissionaes da guerra como os officiaes, os sargentos e os velhos soldados readmittidos; populares trazidos á força para a fileira pelo «Joaquim agarrador»; antigos voluntarios alistados em 23, ao perigar a causa liberal; os que se offereciam agora; e todos, fardados e á paisana, e os proprios que ainda não se tinham deixado arrastar, formavam uma phalange, invencivel porque era realmente a nação armada, e offereciam-se ao sacrificio no momento em que bordejava contra elles uma forte esquadra, com o bojo cheio de juizes, de carrascos e de forcas! V Já reconciliadas do arrufo, debruçaram-se as primas no mirante da quinta dos Folhadaes, devorando com os olhos o caminho da cidade. --E nunca mais cá veiu?--perguntava Josepha da Esperança. --Nunca mais. Como se tornou esse rapaz! Tão orgulhoso como se fosse fidalgo, tão brioso como nós! --É o que elles dizem, que valem tanto como os nobres, que somos todos eguaes. Que te parece, prima? --Não percebo nem quero perceber d'isso. É bom para as caturreiras de fr. Angelico e do pae. --Que elle é melhor que o primo Jorge, lá isso é que é. --Achas? --Está feito um homem. Diz coisas graves como nenhum dos nossos primos seria capaz. --Deu-lhe para tomar a serio o que não devia passar de uma brincadeira. --Mas tu não desgostavas d'elle. --Não desgostava, não. --É muito sympathico. --É um bonito rapaz, confesso. --Aquelle lindo buçosinho... E a covinha do queixo, e as das faces, quando se ri. É um amôr! --Engraças muito com elle. --Não fiques com ciumes. --Eu? Toma-o para ti, que t'o agradeço. --Isso agradecias tu. Não gosto de sobejos, mas lá por falta de mulher não deixa elle de casar. --Como tu és! E o primo? --Não lhe chega aos calcanhares. --Olha, o teu genio é que eu nunca hei de comprehender. --Então, filha, são feitios. Cada um é como Nosso Senhor o fez. Mas ao menos eu confesso a minha fraqueza, gosto muito, muito, de um bonito rapaz, e não quero meter-me a freira. E as que dizem que lhe atiram com pedras, estão pregadas nos mirantes a vigial-os... --Já lhe disse, prima, que não quero o João para namorado. --Mas para que passa agora todas as tardes aqui, de alcateia... --É que me irrita o procedimento d'elle. Dito e feito! Que nunca mais vinha, e nunca mais appareceu. --E isso dá-lhe pena? --Não. Mas exaspera-me pelo seu atrevimento. Queria vêl-o mais uma vez, descompol-o muito, dar-lhe muita bofetada, muita bofetada, puchar-lhe pelas orelhas, e depois dizer-lhe: «Põe-te fóra, fedelho, e vê lá para quem te atreves a levantar os olhos». --Pois caiste, prima, e não foi sem tempo. Já não pódes passar sem elle. --Não me diga isso, que até me mete raiva. --Essas furias já passaram por mim. --A prima é muito experiente. --Pois sou, e por isso sinto que lhe estás nas mãos, ou nunca mais pensavas nas suas palavras. Maria não lhe respondeu, e continuou a observar a estrada, na irritação em que ficára desde a saída de João. N'uma crise nervosa passára os primeiros dias fechada no quarto, sem vêr ninguem, depois fatigara-se em pertinazes passeios ao longo das varandas de pedra, para cá e para lá, olhos fitos na direcção que elle costumava trazer. Abandonada pelo pae, sem intimidade com a mãe, que passava o tempo na cozinha fazendo doces, ou em exercicios espirituaes com fr. Angelico, vira-se forçada a mandar chamar a prima Josepha, para ter com quem desabafar. E apezar do que ella lhe dizia, não cuidava amar João. Nutria contra elle, ao contrario, um sentimento de hostilidade, de revolta. Sentia uma insurreição de todo o seu ser contra essa creança que de repente, sem lh'o ter deixado suspeitar, entendera dispôr absolutamente do seu futuro, querendo-a para sua mulher. Continuava Maria amuada, ria á socapa Josepha da Esperança, quando passou o jardineiro, com um braçado de flores e a podôa na mão. --Ora tenham muito bôas tardes, minhas meninas. Então já sabem a grande novidade? Vem cá hoje o nosso homensinho. --Quem, tio Jacintho?--perguntou Josepha, para acirrar Maria. --Quem ha de ser? O senhor Joãosinho. --Ouves? Temol-o por ahi. --Que me importa!--protestou Maria, muito córada. --Vi-o hontem na cidade, já anda fardado de voluntario, e a farda fica-lhe a matar. Está uma flôr! Até se parece com o avô, o capitão Silveira, que eu vi assentar praça da mesma edade. E ha de ir longe como elle, ha de ir longe! --Não lhe disse nada?--perguntou a prima. --Não sejas inconveniente, Josepha, ou ficamos de mal. E para impedir alguma inconfidencia do velho: --Vá com Deus, tio Jacintho, e obrigada. Mas a prima ainda o deteve: --Diga-me cá, elle agora póde chegar a official? --Até a brigadeiro, que é muito capaz d'isso, e as meninas ainda o hão de vêr a cavallo a commandar batalhões e regimentos. Eu já hei de estar debaixo da terra, mas vou consolado por deixal-o bem encaminhado, que lhe quero como se fosse meu filho. Muito maldosa, Josepha virou-se para Maria: --Casarás quando elle fôr brigadeiro, muito velhote como o tio Vicente. --Quando deixarás de meter-te na minha vida, prima? --Quando tu m'a contares como bôa amiga. Começa lá, e confessa que te péllas pelo João. --Se assim fosse não fazia mysterio, não tinha de quê. Mas não é verdade, não é verdade! E sentou-se pensativa na banqueta, fronte apoiada á mão, a olhar ao longe. Retiraram-se porém subitamente, e foram ambas esconder-se no jardim, ao avistarem fr. Angelico. Enfadava-as a sua apologia da vida conventual, no interesse de obter para a ordem os dotes e os bens que, como ricas herdeiras, lhe trariam; repugnavam-lhes as pretendidas caricias paternaes em que o seu instinto de mulheres adivinhava desejos lubricos. O frade, que reparara na subita desapparição, passou rosnando ameaças por debaixo do mirante, e entrou, mesmo sem bater. Bufando, limpando o suor, afrontado da caminhada, só deu com Martinho Vasques na adega, desabotoado, sentado em cima de um barril, observando o alambique, e provando a aguardente de vinho que mandára queimar. Offereceu-lhe logo uma caneca cheia, que fr. Angelico esvasiou, limpando a bocca á manga do habito, e explodindo logo na sentença que viera preparando pelo caminho. --Malditos tempos, senhor morgado, malditos tempos! Martinho escorropichou gulosamente, e concordou: --Não sei como tanta impiedade não provocou já um tremendo castigo! Deus porém compadeceu-se de nós, e as vinhas continuam, como nos dias de fé, a dar este saboroso nectar ... Outro, fr. Angelico, outro copinho... Offereceu-lhe, na ancia de propaganda dos alcoolicos. Saboreou o frade aos goles, defendendo-se: --Senhor, preciso forças para falar. Acabando de beber, tornou a bradar em tom de sermão: --Tempo de desgraça! Tempo perverso! Mirou-o o morgado, surprehendido por essa gravidade, só usada quando havia gente de fóra. --Você tem coisa, ó Angelico! --E grave, meu senhor. --Pois desembuche. --Tenha V. Ex.{a} a bondade de subir ao escriptorio... --Homem, subir ... essa agora! E olhava apavorado a escada de mão, encostada ao alçapão que da casa de jantar dava para a adega. --Não póde abrir o bico ahi mesmo? --Trata-se de um assumpto tão grave ... tão grave... Pelo ar mysterioso, ficou Martinho desconfiado: --Se é mais dinheiro para guerrilhas acabou-se ... Quero dizer, os tempos vão maus, os rendeiros pouco pagam ... E você bem sabe que a estas horas não estou em casa para taes coisas... Indo da meza para a adega, saindo da adega para a meza, reconhecera ha muito o morgado que de tarde não fazia bons negocios, e antes de jantar fechava as gavetas do dinheiro e saía sem cinco réis, para que não lh'o extorquissem, com intimidações do inferno, para missas; para que não lh'o arrancassem, com lagrimas, antigas jovens das redondezas, invocando as complacencias de solteiras em favôr dos maridos, dos filhos, dos netos. --Não se trata de dinheiro, meu senhor, embora saiba que a sua generosa bolsa está sempre aberta para a defeza da bôa causa. E falando-lhe ao ouvido, insinuou: --Trata-se da sua honra, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro! Ergueu-se, aprumou-se o morgado, e os musculos do rosto, distendidos na bonhomia de ebrio, contrahiram-se n'uma inesperada expressão de gravidade. A normalidade da embriaguez permittia-lhe a consciencia das situações extremas, ao contrario da absoluta perda de conhecimento dos que não bebem por habito, e só excepcionalmente se transtornam. --Siga-me!--ordenou ao frade, que se humilhava hypocritamente, n'um ar compungido. Encaminhou-se para a escada de mão, segurou-se-lhe, poz o pé no primeiro degrau, mas ao querer subir cambaleou, em risco de cair. Offegante do exforço, accentuou se-lhe na fronte uma ruga, e pairou-lhe nos labios uma contracção de vergonha, de nojo de si mesmo. Ia occupar-se da sua honra a cair de bebedo! Tinha de dar a volta, e entrar pela escada principal. Então abotoou o collete, compoz a casaca, puchou os punhos, arranjou as pregas dos bofes, e apoiando-se ao marmeleiro que deixára contra as pipas, caminhou n'um ar magestoso, seguido pelo frade cabisbaixo, rastejante. Pesadamente, no mesmo aprumo, entrou no escriptorio, foi sentar-se na solida cadeira negra, de alto espaldar, encimada pelo folhado de uma concha, e agora parecia-se com os retratos dos antepassados da sala nobre, a grave cabeça apoiada nos hombros largos; a meza, as pennas de pato de que nem sabia usar, a gravidade do conjuncto dando lhe o ar de um ministro, de um desembargador. --Explique-se!--ordenou-lhe, como um juiz a um reu. De pé, nos gestos dos grandes dias, começou fr. Angelico: --Senhor, esta casa acaba de ser duplamente enxovalhada. Sentou praça de voluntario, em reforço ao infame batalhão que é a vergonha e o grilhão d'esta terra, esse rapaz que V. Ex.{a} protegeu, e que recebia em sua casa como a um filho... --O João? Já tinha reparado na sua falta. --Hão de dizer que são os nossos exemplos! --Meteram-lhe isso em cabeça, patifes! A culpa é de quem perverte a juventude, e a arrasta para os abysmos da impiedade. --Talvez V. Ex.{a} não leve a sua generosidade a ponto de perdoar-lhe, quando o vir logo entrar fardado aqui. --Aqui? --Sim senhor, a titulo de pedir desculpa de não poder continuar com a escripturação, mas para nos afrontar com o maldito uniforme constitucional, porque bem sabe quaes são as opiniões de V. Ex.{a} e minhas. --Bom é que venha, que lhe quero dizer algumas verdades, e dar-lhe puxões de orelhas, que é o que merece. --Perdôe-me V. Ex.{a} mas nem devia consentir que viesse... --Isso é commigo. E dirigindo ao frade um olhar severo: --Mas que tem que vêr isso com a minha honra, a que você se atreveu a alludir? Curvou-se mais o frade, e respondeu na voz lagrimejante dos sermões quaresmaes: --Já lá vamos, senhor morgado, já lá vamos, embora o que me pesa ... só Deus o saiba! Aproximou-se da meza, e quasi ao ouvido de Martinho: --Perdôe V. Ex.{a}, mas diz-se á bôcca pequena que o miseravel ousa levantar os olhos para a senhora D. Maria. --Para minha filha? Ergueu-se apopletico o morgado, o sangue a rebentar do cachaço rubro, abaixando a fronte, n'um gesto de investida. Zumbia-lhe nos ouvidos um turbilhão de sangue exasperado, passavam-lhe no olhar relampagos de vingança, e os labios mexiam-se-lhe convulsos. Mas tornou a sentar-se, e disse com certa compostura: --Isso póde não passar de uma brincadeira. Comtudo fez bem em me avisar. --Desculpe V. Ex.{a}--insistiu o frade--mas não se trata da infantilidade que julga. São os conselhos da botica, é a lição da liberdade! Esses infames querem afundar tudo na anarchia, e lançar mão das grandes casas fidalgas, em nome da egualdade que apregoam! Meditou o morgado, a cabeça apoiada entre as mãos, e depois disse gravemente, em phrase arrastada: --Basta, fr. Angelico. Isso póde ser um calculo d'elle, mas não alcança minha filha, nem attinge a minha honra, entenda-o bem. Podem fazer as leis que quizerem sobre egualdades. Quem é do nosso sangue não desce! Vença quem vencer, nós continuaremos a ser o que sômos, e elles o que são. Vossa reverendissima não póde comprehender isto, porque é plebeu. Mas eu sinto-o no sangue, como minha filha o deve sentir. Conteve n'um gesto o frade, que ia a falar. --Póde retirar-se. O que tenho a fazer é commigo, juiz e executor em minha casa, na minha familia e na minha raça, como chefe de linhagem que sou! E correspondendo ás subservientes reverencias de fr. Angelico: --De caminho mande-me o quinteiro, faça favôr. Saíu pouco satisfeito o franciscano, procurou o quinteiro, mandou o á presença do fidalgo; depois chegou ao portão da quinta, observou para fóra antes de o transpôr, e em seguida, muito cosido com o muro, partiu para os lados de S. Carlos, para voltar á cidade sem se encontrar com João. Notaram-lhe as manobras Maria e Josepha da Esperança, que tinham voltado ao mirante mal elle entrara. Satisfeitas, por se verem livres d'elle, continuaram a observar impacientes o caminho da cidade. Distinguiram por fim ao longe uma figurinha de militar. Era João, vestido de guarda nacional, farda curta de saragoça portugueza, com botões brancos, golla azul claro, laço azul e branco no chapéu redondo. Do ponto onde estava, o mirante sobranceiro ao pateo, em face ao alpendre da escada, ia vêl-o entrar e, talvez como antigamente, elle viesse falar-lhe, arrependido da imprudencia. Pensando assim, seguia-o Maria n'um olhar de anciedade, encobrindo-se com as trepadeiras do caniçado, para não lhe dar a confiança de mostrar que o esperava. Vinha já perto, quando notaram dentro movimento desusado. Corria o quinteiro, e meia duzia de cavadores de enxada, batendo os pés descalços na terra endurecida pelo calôr, varapaus ao hombro, falando alto. Desacorrentára o creado dois grandes cães de fila, amarelos, rabo cortado, focinho negro, fauces ameaçadoras, que de noite rondavam ganindo e uivando. Ao chegarem ao pateo, occultaram-se na cocheira homens e cães, e o quinteiro foi esconder-se por traz do postigo, como se quizesse fechal-o mal entrasse João. --Que é isto, José?--perguntou Maria, suspeitando uma violencia. --Ordens do senhor morgado--respondeu elle, rindo alvarmente--não quero saber! Mas Josepha da Esperança, muito nervosa, nem lhe dera tempo á resposta, e ao vêr João em frente do mirante, avisou-o: --Não entre, que lhe querem bater! Maria, correndo ao muro, bradou-lhe tambem: --Foge, foge! N'uma grande excitação, gritava a prima: --Aqui d'el-rei! Aqui d'el-rei! Elle recuára ao ouvir os gritos e, vendo apparecer ao postigo a cabeça lanzuda, comprehendeu que lhe faziam uma espera. Desembainhou a baioneta, aprumou-se garboso, e avançou muito pallido para a porta, que de dentro fecharam com estrondo. Sentiu então Maria que o amava, vendo-o encarnar o typo glorioso, cavalheiresco, da imaginação das raparigas, geralmente fixado nos que teem por ferramenta a espada e a lança do cavalleiro andante de outras eras. Dirigia-se-lhe com o coração nas mãos, como elle no pomar, n'um rubor de sangue, lavada em lagrimas, pondo as mãos: --João, João, não te percas por minha causa! Sem a attender, batia exasperado no portão com o punho da baioneta, bradando querer falar ao senhor Martinho Vasques. Ouvindo ladrar ameaçadores os cães de guarda, virou-se Maria para o pateo. Aos gritos de soccorro de D. Josepha, correra de dentro o jardineiro com um grosso varapau cruzado como a espingarda, a ponta á altura dos olhos, fortemente cingido ao corpo. --Querem bater no Joãosinho!--explicou-lhe ao vêl-o. Correu o veterano ao postigo, aferrolhou-o, e berrou aos caceteiros que se fossem embora. --Quem manda aqui é o fidalgo!--respingou o quinteiro, fazendo-se forte á frente do bando. Mas os camponeses, receiando as furias do velho, mantinham-se indifferentes, apoiados aos bordões, n'um riso estupido. --Deixe-me abrir a porta!--insistia o José da Quinta, querendo deitar os cães, segundo as ordens do amo. --Primeiro te racho de meio a meio!--ameaçou mestre Jacintho, encostando-se ao postigo. --Avem-te com estes!--casquinou o quinteiro, abrindo com um pontapé a porta da estrebaria. Saíram ladrando excitados _Marujo_ e _Sultão_, mas conhecendo o jardineiro, não lhe pegaram. --És peior que os cães, que os animaes não teem entendimento e não fazem mal só porque os mandam! E o velho rilhando o dente, na furia que o tornava terrivel, avançou, crendo-se em plena batalha, e fez recuar o capataz e o rancho, levando-os de roldão até ao fundo do pateo. Ahi, metido em brios, tentou defender-se o mandatario do morgado, mas caíu, lavado em sangue, com uma cacetada na cabeça. Appareceu no alpendre da escada D. Perpetua entre as creadas, attrahida pelo alarido. Chamou a filha para casa. --Vamos para dentro, Maria. Que vergonha! E como ella não a attendesse, deu a volta e foi obrigal-a a saír do mirante. --Isto é alguma tarde de toiros? Gostas de vêr no que dão as bebedeiras de teu pae? Arrastada pela mãe, envolvida no berreiro das creadas, Maria, com a cabeça perdida, não viu que mestre Jacintho abrira a porta e, dando conta a João do que se passava, aconselhara-o a ir-se embora. Depois falariam. Ao passar no pateo, para entrar em casa, afastou a cabeça para não vêr a torva lividez do ferido, os olhos vidrados, a testa gotejando, os cabellos empastados em sangue, a mulher ajoelhada ao pé, clamando que o morgado lhe metera o homem em trabalhos. Ao entrar em casa ainda poude Maria olhar para fóra, e ficou descançada vendo João já muito longe, a caminho da cidade, salvo de todo o risco. Veiu do fim da quinta Martinho Vasques a vêr como tinham sido executadas as suas ordens. Ao conhecer o procedimento do veterano, partiu exasperado em busca d'elle, depois de ter mandado chamar o barbeiro para curar o ferido. --Tu é que déste a pancada no quinteiro?--perguntou-lhe colerico, ao vêl-o deitado n'um molho de rapa, a resfolegar, muito cançado. Ergueu-se logo o velho, empertigou-se na rigidez do habito militar ante o superior, mas respondeu, orgulhoso da façanha: --Pois quem havéra de ser? Quem ha ahi com alma para tirar fumaças a pimpões? --Mas tu sabias que era ordem minha! --E que me importava isso a mim? --Então, refinadissimo tratante, comes o meu pão para me desobedeceres? --Sabe que mais, patrão, não venha tirar palha commigo. Mas o morgado, que via n'elle o culpado da vergonhosa scena em que fôra desrespeitado, e de que o rapaz saíra triumphante, irritava-se cada vez mais. --Aquella pancada é como se fosse dada em mim mesmo. O ex-soldado virou-se para elle, mediu-o de alto a baixo, e de esguelha, disse-lhe decidido, teimoso: --Se o senhor se tivesse ido metter com o menino... Arremetteu com elle Martinho Vasques. Porém a reputação do soldado, apesar da mesquinha attitude em que ia a retirar-se, sem fazer caso, dobrado ao meio, as mãos pacificamente atraz das costas, o pescoço magro saíndo da colleira negra, descarapuçado, bastou para conter n'um prudente respeito o morgado, alto, forçoso, sanguineo, armado do rijo varapau. --Esquecestes quem sou eu? --E o fidalgo não se esqueceu do que lhe deve ao avô, do que me deve a mim, para vir para aqui, vermelho como uma lagosta, impar de raiva mansa? --Se não tivesse que descer a medir-me comtigo, fazia-te engulir tudo isso com os dentes que te restam. Tremia apertando nervosamente o bordão. --Com bem passe, senhor Martinho--e o velho dizia-lhe adeus com a mão, sem se voltar.--Fale-me ámanhã em jejum. --Ó bandalho, tu chamas-me bebedo? --O patrão é que se está chamando, nanja eu. --Olha que eu mando-te fazer uma montaria como a lobo! --Pois vamos a isso. Coza-a commigo, que tenho o coirão duro, mas lá com o menino, cautela! Olhe que lhe sae do pêlo, senhor morgado. --Pois atreves-te a ameaçar-me? A mim? --Hoje em dia, meu amo, já não se póde mandar matar um homem sem se bailar n'uma forca, porque se acabaram os fidalgos e as suas patifarias. --Até a isto se pegou a sarna jacobina!--exclamou com desdem, com desgosto.--Não falavas assim se eu não te désse licença para te ires emborrachar com a choldra do castello. --Aqui, senhor morgado, aqui é que ellas se apanham de caixão á cova. Perdendo a cabeça, o morgado poz o pé atraz, empunhou o cacete, mas envergonhando-se, atirou com elle, e deixou-se cahir no banco de pedra como aniquilado. Ficou para ali vendo anoitecer, não querendo passar pelo pateo onde a quinteira se arrepelava, bradando que lhe desgraçára o marido. Tinha ainda nos ouvidos os gritos de Maria, as injuriosas referencias da esposa. Acabava de insultal-o um creado! Sentia inteiramente desfeito o poder, a autoridade de que fôra tão cioso. Todos se voltavam contra elle, todos pareciam ter razão contra a sua razão, a unica authentica, a unica verdadeira. Perdera se a obediencia, quebrara-se o respeito, e em sua casa todos queriam mandar tanto como elle. Estaria então a sociedade tão profundamente minada pelo mal, como dizia fr. Angelico, que a filha, uma fidalga, descesse até um misero plebeu, e todos se conspirassem contra elle, tomando partido pelo insignificante? E atreviam-se a falar-lhe cara a cara, a elle, morgado, senhor de terras, nas novas leis que impediam a nobreza de desafrontar a sua honra a dentro do seu solar? Invadia-o uma amarga dôr, um triste desanimo, como se a sua integridade physica fosse attingida, como se lhe tivesse quebrado a cabeça a cacetada, como se lhe mordessem os proprios cães. E n'essa hora de abandono assaltava-o o remorso de muita injustiça. Mas pouco a pouco reconquistou-o a fé absoluta na verdade das suas ideias. Reanimou-se, decidiu-se. O mal crescera, chegára a invadir-lhe a casa! Pois bem, collocar-se-ia d'ahi em diante ao lado dos que mantinham a verdade do passado, a honra incorruptivel da fidalguia, a fé religiosa intransigente! E levantou-se aprumado, disposto á lucta que a todos reclamava, e a que até ahi o subtraíra a indolencia do seu viver. VI Segundo o costume, mal se levantára, fôra logo o morgado para a casa de jantar e, com a cabeça apoiada entre as mãos, os olhos fitos nos montes de rapa, nos picos de esterco do pateo interior, onde fossavam porcos e depenicavam gallinhas, reconstituia por partes a scena da vespera, illuminando se-lhe successivamente zonas da memoria, mas sem continuidade nos acontecimentos, como se uma palavra do frade lhe ficasse menos gravada, como se um insulto do veterano se marcasse mais fundo; e depois colligiu tudo, e poz-se a ligar os factos aos antecedentes e a preparar-lhes, por sua iniciativa, a necessaria conclusão. Batiam alto na cosinha as galochas de sola de cedro da morgada, ao passar na parte do lagedo raspada pelo rachar da lenha; em sons abafados, surdos, ao calcar as crôstas de lama negra e luzente, terra da horta, caldeada ás escorrencias da amassaria. Começou a chiar a frigideira na trempe, ao fogo das achas atiçadas pelo borralho do forno, onde acabava de cozer o pão da semana. Ao cheiro da gordura e da linguiça com ovos, desabaram moscas do tecto de maceira, onde jaziam mortas gerações e gerações, o ventre inchado, avivado de cintas brancas, presas umas nas bambinelas de teias de aranha, suspensas outras pela tromba á cal do forro, que sustentava a telha, apoiando-se ás pernas de asna, firmadas por sua vez no friso onde amadureciam maçãs, e nas grandes traves em que curavam aboboras. Esbarraram algumas, desvairadas, nos vidros poeirentos, grudados aqui e ali por miolo de pão, no centro das rachas estrelladas; mas depois precipitaram-se todas na cosinha, d'onde d'ali a pouco vieram pairando por cima da pratada, quando os pés descalços da creada batiam pancadas seccas nos degraus de pedra, da cosinha para a casa de jantar. Entraram zumbindo pelas janellas as varejeiras dos chiqueiros e da esterqueira, cujas emanações azedas azotadas e amoniacaes, abafavam o cheiro da linguiça temperada a oregãos e da banha de vinha d'alhos. Distraíu-o momentaneamente a lucta com os insectos, muitos dos quaes iam morrer na fervente gordura em que boiava a fritada. Para comer em socego mandou fechar as janelas, e cessou a baforada da estrumeira, onde se enthesoiravam os despejos da casa, para riqueza das terras; mas pela do pateo da entrada, aberta para arejar, veiu o fedôr a bêsta das estrebarias que ficavam por baixo dos quartos de cama, onde pelas gretas do sobrado insinuavam ninhadas de pulgas. Coube a vez ás moscas de cavallo, tardas, pegajosas, expulsas ás rabanadas pelas alimarias que, n'um luctar irritante, continuo, escarvavam o chão calçado de pedra roliça como amendoa, boleada pelo rolar das marés, pelo limar da areia. Postos diante d'elle os torresmos frios, conservados em banha, e o pão de cabeça ainda quente, levantou-se o morgado e, tomando o cangirão de barro, de aza partida, cintado por dentro de sarro, foi-se ao barril cuidadosamente encanteirado, tirou-lhe o espicho e o vinho esguichou alourado, espumante, tornando a tapar por suas mãos, tanto cuidado lhe merecia o trato, tanta habilidade considerava necessaria para saber encher, sem deixar turvar. Atestou o grande copo de crystal floreado de meia canada, difficil de abarcar na grande mão, ergueu-o á altura dos olhos, observou o vinho contra a luz, sorriu vendo mosquitos sepultos no fundo pelo jacto, e sobrenadando em redemoinho, prova de que continuava excellente o verdelho. Esvasiou-o, excedendo a receita da sabedoria conventual «antes da sopa molha-se a bocca», «depois da sopa lava-se a bocca»; e quedou-se a admirar o vidro, seu unico luxo, a que ligava o valor estimativo dos reis testando em especial a taça «porque bebiam»; por onde só elle bebia, e bebia sempre, a não ser o vinho novo que, como entendedor, tomava por tijelinhas de barro. Subiu da cosinha, afadigada, D. Perpetua, batendo nos degraus as galochas. Volumosa pelas muitas saias de estopa e de panno da terra, como as creadas e as camponezas, trazia á cinta a bolsa de velludo preto, bordada a vidrilhos, onde tiniam grossos patacos de bronze e mólhos de chaves, pura ostentação, ante a dispensa escancarada, com a esbeiçada bexiga da gordura, onde se espetava a colher de pau. Baixa, grossa, trigueira, olhar lubrico, beiços carnudos, olheiras em papos, pelle encarquilhada nas fontes, grandes rugas atravessando a testa de lado a lado, despenteada ainda como saíra da cama, as mãos sujas, de unhas negras como olhos de fava, desinteressava-se de tudo que não fosse fazer dôces, como aprendera no convento, e entregar-se a exercicios espirituaes com fr. Angelico, a cuja intimidade se agarrara n'um desespero de abandonada. Era o symbolo da desordem que João sentia pairar n'essa casa, orgulhando-se de que a sua valia mais, porque n'ella transparecia a solida união que os elevára, emquanto a embriaguez, a preguiça, o desmazelo dissolviam aquella. Sentou-se perto da cabeceira occupada pelo marido, e os dois pareciam degredados no isolamento da grande meza deserta, onde nos grandes dias se ostentava a baixella de prata guardada no fundo da arca e se alinhavam os grandes beberrões dos primos dando-lhe cresta na adega, por dias de annos, pelas festas; onde em quinta-feira santa jantava a creadagem com os amos, celebrando a ceia dos apostolos. Faltava Maria, e a mãe perguntou á creada: --A menina? --Mandou ir o almoço ao quarto. --Estará doente? Interpoz-se o morgado: --Não sabe o que ella tem? Sei eu. É que vae saindo á senhora, herda-lhe as boas prendas, porque não tem outras que herdar. Respondeu em furia de hysterica D. Perpetua, envidraçando os olhos que só para o frade se enterneciam: --Vejo que o senhor ainda está com os destemperos de hontem. Já nem sequer o dormir lh'as coze. Não se escandalisou o morgado, acostumado a essas violencias, e continuou: --Por causa de sua filha houve hontem n'esta casa um escandalo. Não quero que se repitam, nem que ella faça o que a senhora toda a sua vida fez. --O que eu fiz? Mas o que é que eu fiz, senão caír nas bocas do mundo por causa dos atrevidos do seu jaez. Por ter sido sua victima sou culpada? E então que nome merece o senhor, que com a sua brutalidade abusou da minha innocencia? Riu Martinho estrondosamente: --A innocencia de uma menina de vinte e quatro annos, creada n'um convento de freiras, acostumada ás denguices das grades, á intimidade dos primos, sabida em poucas vergonhas de namoros. Innocente, a senhora! --Ria-se, ria-se. Mas não se riu quando o pae que Deus tem, que o conhecia por dentro e por fóra, o agarrou pelas orelhas: «Has-de casar, maroto, ou mato-te como a cão damnado, porque me enxovalhastes a filha». E o senhor tudo eram escrupulos do que se dizia, porque torna porque deixa, só por eu ser filha segunda, e andar á cata de herdeiras ricas. Quando viu sacos de cruzados não quiz saber de famas, de ditos nem mexericos. Meteu-me aqui dentro, tratou-me sempre como uma escrava, fez de mim esta desgraçada, mas plantou novas cepas para se emborrachar á vontade, e concertou este pardieiro onde chovia como na rua. E n'um gesto longo abrangeu as paredes de cantaria de onde a cal despegava, o forro do tecto embarrigado pelo peso da telha, com lôstras de amarelo sujo, escuras ao centro, esbatidas para os bordos, da agua da chuva represada pelos coiceis, nascidos nas toiças de terra entre os regos; vertida pelas telhas rachadas por garotos que varejavam á funda os altos alamos, á caça de melros. --Mente!--protestou o morgado contra a insinuação de interesseiro.--Cumpri apenas um dever de honra. Riu convulsamente D. Perpetua, tendo perdido na intimidade o respeito á importancia que elle se arrogava ante os estranhos, impressionados pelo traje de côrte, á antiga, que o marcava como homem de outros tempos, tornado respeitavel á força de velho. --A sua honra! Deixa-me rir! Quando o chamaram a Lisboa para a guerra com os franceses, o senhor, apesar da sua patente de capitão, não quiz saber de palavras bonitas, e deixou-se ficar no quartel de saude, como diz mestre Jacintho. Iam comendo e insultando-se, na rotina de trinta annos de rancor. --Como ha-de comprehender escrupulos de honra quem nunca os teve!--commentou o morgado. Insistia D. Perpetua, muito teimosa, desabafando o odio ao longo captiveiro em que a mantivera: --A sua honra, a sua embofia de fidalgo, que não o impediu de explorar como um judeu o primo Chico, pondo-o ao descimento da cruz com os seus contractos de avarento. --Se a senhora não havia de defender esse reles picador de toiros! --Que quer dizer com isso? --Bem sabe o que fez, mesmo depois de casada, sua descaradona! --Não tem senão lingua! Não lhe dar um estupôr que lh'a puzesse lesa! --Tambem tenho mãos!--explodiu elle n'uma ameaça, dando um murro na meza, mostrando o punho fechado.--Não queira tornar a conhecel-as! Sentindo reviver a offensa dos bofetões que a atiravam ao chão, replicou arripiando-se como uma gata: --Conheço-lhe as mãos, covarde, mas o primo conhece-lhe a cara. Ainda o estou a vêr, quando cá veiu, muito enfiado, por causa da quinta do Pico da Urze: «Tu ficaste-me com as terras, pois então fica-me lá tambem com esta». E traz! Emplastou-lhe os cinco dedos nas bochechas! Terminára o almoço, e ambos se ergueram de mãos postas, dando graças a Deus. Vendo ainda vinho no fundo do jarro, deitou-o Martinho no copazio, atirou-o á bocca e chamou a mulher: --Oiça as minhas ordens. Voltou-se D. Perpetua no habito de servidão adquirido n'uma vida inteira de obediencia, em que apenas havia a revolta das más palavras, que para o isolamento de ambos se tornára n'uma necessidade. Ditava o morgado, sobrancelhas contrahidas, carrancudo, como absoluto senhor: --Maria não tornará a saír do quarto sem minha ordem! --Ah! Então fica encarcerada? --Cale-se e obedeça! --Não, que me sóbe uma coisa á garganta, e rebento se não lhe digo as verdades! Quer fazer-lhe o que me fez a mim, que me fechou como a um cão, para se meter com as creadas e com as mulheres do monte, vindas de proposito pagar as rendas em vez dos homens, para levarem sua pataca amarrada na ponta do lenço! --Já acabou? Então oiça, e veja se tem a imprudencia de me desobedecer. Já sabe o que lhe custa! --Quere-a para freira? --D'aqui em deante não a deixe só, não lhe consinta cartas. Não a perca de vista, tome cautella. Eu vigiarei ambas. E confirmando a ordem n'um gesto de ameaça, saíu em passos largos, bordão em punho, caminho da adega, a visitar o alambique. Muito irritada, porque a vigilancia da filha ia alterar-lhe os habitos, entrou-lhe D. Perpetua com mau modo pelo quarto dentro: --Venho aqui esfogueteada por sua causa. Ouvi a seu pae o bom e o bonito! A menina precisa ter muito juizo. Lembre-se de quem é! Seu pae não quer que saia do quarto sem licença, e olhe que se ateima no namoro, é capaz de lhe pregar as janelas. Recebeu Maria com indifferença a reprimenda, levantou-se e encaminhou-se para a porta. --Que faz?! --Que tenho eu que se ponham a disputar á meza, e depois queiram exercitar o genio commigo? Não fiz mal nenhum, não quero ficar presa! Não quero! Não quero! --A menina está doida! E saíndo para o corredor, apezar da mãe lhe querer tomar a porta: --Vou mandar chamar a prima Josepha e o primo Jorge. Com gente de fóra hão de ter mais vergonha. --Olhe, eu é que não estou para me incommodar. Préso muito o meu socego. Vou fazer queixa a seu pae, vou pôr-lhe tudo em pratos limpos. --Pois vá, que não tenho medo do papão. Embrenhou-se na quinta, e foi para o sitio onde ouvira o que tinha alterado o seu viver. Longe de todos, repetia as suas palavras, recordava como ellas o iam transformando. Ao principio era ainda o pequeno de escola com quem brincava; o humilde dependente d'esse frade, que viam passear ao longo da janela do escriptorio, côr de papoila, dedo no ar, ditando com voz de sermão. Ao affirmar que a amava não parecia o mesmo; grave, offendido, dizendo retirar-se para sempre, decidido talvez a morrer n'essas luctas onde tantos caíam crivados de balas. Na sua imaginação de rapariga apparecia João envolto no prestigio do sacrificio, via-o galhardamente na estrada brandindo uma lamina, arrostando com as ameaças, tão differente do tempo em que córava ao fingir-se ella convencida de que fr. Angelico lhe dava puchões de orelhas. Parecia outro, mais esbelto, mais homem assim fardado; e agora lembrava com desvanecimento que elle lhe chamára bonita e dissera ter o futuro nos seus bellos olhos, a esperança de felicidade nos seus labios. Queria-a para mulher. E poderia ser? Elle não era nobre, o que diziam não ser já preciso para nada. Mas o pae, só por uma desconfiança fizera o que fizera! Não quereria ouvir falar em semelhante casamento. Que haviam de fazer? João o diria. Decidido como se mostrára, levaria tudo a bom caminho. E se casassem? Era bem differente do pae; delicado, fino! Não seria desgraçada como a mãe. Que alegria a d'elle se a escutasse. Ah! mas teria vergonha de lh'o confessar. Da sua bocca nunca o ouviria. Dar-lho ia a saber pela prima. Oh! pela prima não. Achava-o tão lindo, era capaz de roubar-lho. Mas João amava-a muito para fazer caso de outra mulher. Portanto não lho mandaria dizer por pessoa nenhuma, havia de repetir-lho ella propria. Habituar-se-ia, pouco a pouco, um bocadinho de cada vez, dando-lhe a perceber nos olhos... Pois se casassem haviam de ter segredos? Affligia-a o remorso. Porque não lhe falara assim quando elle, tão pallido, se arriscára a desabafar? Não sentaria praça, não passaria pelo desgosto de o quererem espancar, e ella não estaria agora ameaçada pelo pae e pela mãe. Sempre o estimára, é certo, mas deixara-a fria esse inesperado desabafo, tanto estava longe de pensar n'elle para marido, quando desdenhava morgados, e julgava tudo merecer. Elevara-o a deliberação, a coragem, o firme bem querer manifestado no rompimento com a situação de inferior. Agora sim! Agora comprehendia-o e queria-lhe bem. No enlevo d'essa commoção, não pensou mais nas ameaças, e apresentou-se á hora do jantar, como se nada tivesse havido. Quando D. Perpetua lhe foi participar a desobediencia da filha, ficou muito offendido o morgado, mas não se ergueu do barril, não desamparou a destillação, nem sequer deu por entendido o recado. Reconhecendo a mulher, em intima alegria, quanto o pungia essa noticia, voltou-lhe costas e foi-se. Quando ao jantar, Maria lhe tomou a benção, estremeceu Martinho Vasques. Creára-a mimosa, votára-lhe certa affeição, embora o seu genio sêcco não o deixasse transparecer. Ante o seu ar alegre, de desafio, não se atreveu a censural-a, e durante o jantar não se trocou palavra a respeito da vespera. Saíram as mulheres após as graças a Deus, e ficcou o morgado, meditando e bebendo, até á chegada de fr. Angelico. Não libaram n'esse dia. Tomando a serio o papel de dono de casa, de senhor absoluto, desfechou-lhe o morgado, á queima roupa, a ordem de fazer contas ao jardineiro, e de o pôr fóra immediatamente: --Não lhe consinta lamurias nem alcovitices. Partiu o frade, humilhado da seccura e passando pelo escriptorio para levar a pataca do mez, foi procurar mestre Jacintho ao casinhoto. Voltou á adega o morgado, encarando com mais clareza a situação. Livre do veterano, não poderia a filha corresponder-se com João, e esquecer-lhe-ia a perrice. E na primeira aberta que lhe permittissem as questões da ilha, toca para Lisboa! Tencionava o frade descarregar no velho o despeito pelo tom imperioso do fidalgo, quando o viu saír, muito escovada a antiga farda; posto á banda o boné, n'uma reminiscencia da passada elegancia; calça de linho, de pastor, de onde rompiam, pesados e bolorentos, os butes do uniforme; saco de chita debaixo do braço; cacetinho na mão. Disse-lhe n'um amargo sorriso: --Bem vê que já estava em ordem de marcha. Ao que houve, não contava com outra coisa. Olhou em torno, e como não visse o fidalgo: --Admira-me que o senhor morgado não venha pôr-se a arrotar contra mim. E n'um risinho de triumpho: --Tem mêdo cá do ginja! Pois não lhe comia nenhum bocado. Palavra que tenho pena, queria dizer-lhe duas verdades. E d'ahi, não. Aquillo não tem emenda. É falar ás paredes. Ouvia-se rir, ao longe, Maria com a prima Josepha da Esperança. --Ó aquella sim, tenho pena! Andei com ella ás cavallotas, quando me saltava nos canteiros atraz das borboletas, estragando-me as flôres, a traquinas. Abrangeu a casa e a quinta n'um olhar de saudade: --Cá fica, a pobre, para ter a sorte da mãe! Mas ella, que ri tanto, é porque não tem mêdo das parlapatices d'aquella bôa alma do pae. Faz bem rir, é uma creança! E dando uma palmada irrespeitosa no ventre de fr. Angelico: --Por mais ameaças que lhe faça, ha de o morgado ir adiante d'ella, é lei do mundo! Por mais intrigas que forge vossa reverendissima, tambem irá comer hervas pela raiz, e ella ha de cá ficar, e gostará de quem lhe der na veneta. Até eu, que não sou nenhum rato de sacristia, hei de ir á missa de costas, e ella ainda estará em edade de casar com o menino João. --Vocemecê nada mais tem que fazer aqui. Está pago e satisfeito... --Põe-me na rua? Não quer que me despeça da D. Mariquinhas? Pois é melhor para me não saltarem as lagrimas, e vossa reverendissima não se rir depois á minha custa, quando fôr á lambujem do alambique. --Avie-se, que eu tenho mais que fazer. --Pois vá-se embora, que não lhe pego. Ah! Fica de sentinella a mim! Quem tal havia de dizer! Fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria a governar esta casa! Olhe que eu nunca lhe gosei da carantonha, e agora comprehendo que vocemecê, e os outros da sucia, como os mosquitos de roda do vinho bom, andam á espreita das casas ricas, para apanharem freiras com bons dotes, e quintas onde se refocillem. Mas esta não apanham, juro-lh'o eu, porque a minha menina não é para graças. Não vae com cantigas. Aquella ha de fazer sempre o que muito bem quizer, que a isso a costumaram desde pequena. Era o nosso «Sant'antoninho, onde te porei»! Limpou uma lagrima ao canhão vermelho da jaleca, e virou-se contra o frade, que já não estava nada satisfeito: --Ha de se lhe acabar o governo aqui dentro, como já se lhe acabou lá fóra! Deu alguns passos para a porta, mas ainda se voltou para traz: --Vou para o castello. Hão de precisar lá de soldados velhos para ensinar a recruta á galuchada. Passou o postigo que o frade lhe fechou nas costas, de pancada, indo depois vigial-o para o alpendre. Voltara-se mestre Jacintho ao estoiro, e não poude represar as lagrimas vendo-se expulso d'essa casa, que considerava como a sua. Deu alguns passos, vergado ao peso do saco, penosamente apoiado ao bordão, mas tirara-lhe as pernas a sensibilidade e veiu sentar-se na banqueta, a refazer-se. Descendo para as bandas de S. Jorge, illuminava o sol as vidraças dos quarteis da fortaleza. Abrangeu o velho toda a cortina que vem da bateria de São Diogo, cintando á beira-mar o Monte Brasil, varejando a bahia do Fanal; depois os grandes pannos da muralha do Caminho Novo, o torreão e a ponte levadiça. Estava agora ali dentro João, o seu derradeiro affecto, e a velha espingarda com que fizera a campanha, e que tanto chorara ao abandonar ao quarteleiro. Tinha a proteger essa creança, a reivindicar essa arma, a punir os aggravos do morgado e do frade. Meteu-o em brios o espirito da classe. Ergueu-se, poz o saco no poial, abaixou-se-lhe, passou os cordões aos hombros e atou-os atraz das costas, á laia de mochila. Levantou-se com elle e o peso, puxando-o para traz, fez lhe perder a curvatura senil. Deu uns passos amparando-se ao bordão, mas desempenou-o o automatismo profissional. Pôl-o ao hombro á guisa de espingarda, deu a si proprio uma voz de commando: --Ordinario, marche! E a passo cadenciado avançou estrada fóra, rejuvenescido pela esperança. VII Na melancholia do entardecer, em que as trindades põem o echo de um soluço, impregnado da tristeza do esmorecer do sol, fitava João o mirante da quinta, quasi totalmente esbatido na folhagem dos pomares. Representava-se-lhe a scena da emboscada, revia-se na galharda atitude em que provocára os adversarios, baioneta em punho; fixára na retina o rosto transformado de Maria, a ardencia refulgindo-lhe no olhar; e vibrava-lhe ainda nos ouvidos a commoção dos gritos afflictivos. Amava-o! Denunciara-a a surpreza. Se estivesse contra elle, riria ao vêl-o corrido pelos cães, ou ter-se-ia retirado indignada pela sua audacia. Mas não! Manifestára-se claramente a seu favôr, e só á força deixára o torreão. Amava-o pois! Era o essencial. Sempre contára como hostil o pae. Haviam de vencer com persistencia, confiando um no outro, certos da mutua fidelidade. E, tão novos, pertencia-lhes o futuro. Como haviam de entender-se? Precisavam apoiar-se, trocar esperanças, animar-se na penosa separação. Iria pela quinta a cavallo, para vêr para dentro, onde o muro era mais baixo, e poder resistir melhor ás ciladas. Levaria pistolas nos coldres, e ai de quem se lhe atrevesse! Turbavam-o impetos de vingança, deslumbramentos de sangue, ferido pelo insulto. Como concretizar a desforra? Indicavam os preparativos que era esperado. Mas quem o denunciára? Ao lusco-fusco assoprou a creada o borralho para o corno da isca, accendeu a candeia da cozinha, e foi levar-lhe, com as bôas noites, o candieiro de latão de tres bicos, e a branda luz do azeite alagou o polido do bufete, projectada pelo reflector. Illuminado o quarto, deixou de vêr na penumbra o tenue esboço dos Folhadaes, mas quedou-se no mesmo sitio, esperando que o pontear de luzes lhe fôsse dando referencias para o reencontrar. Gritou lhe de baixo a tia Dorotheia: --Ahi vae uma visita. Descontente por irem perturbal-o, não acertava com quem fôsse, nem conhecia os passos pesados, vagarosos e tropegos, subindo para a torre. --Dá licença, camarada?--disseram da porta. Era a voz do veterano, rouca da bronchite chronica adquirida nas noites ao relento. --Vocemecê por aqui, mestre Jacintho? E mandou-o sentar, no alvoroço de noticias. --Como tem passado? Como vae a menina Mariquinhas? Acanhou-se, sob o olhar magano do velho. --Não se faça vermelho, senhor Joãosinho. E batendo palmadas nos joelhos: --Então logo a uma morgada, hein? Sim senhor, sim senhor! João sentia o sangue rebentar-lhe pela cara, mas a anciedade impelliu-o: --Conte-me que se passou depois que a mãe a levou para dentro. --Que se havia de passar? Mais era com ella! --Reprehenderam-a? --Não é para graças, não tem mêdo. --Então o morgado... --Commigo, commigo é que foi o bom e o bonito! --Coitado! Comprometter-se por minha causa. --Não me coite, que não me fui abaixo das pernas. --Na sua edade!... Ergueu-se o veterano, desvanecido pelo rasgo: --Foi-se pôr o morgado a crescer para mim, mas eu, como quem diz, fingi que não era commigo, que aquillo não tem senão lingua, mas tambem é como um lavadoiro! --Perdôe-me ter sido a causa de tal desgosto. --Espere, que elle não se foi sem resposta. E possuindo-se da paixão com que falára: --Disse-lhe tudo que me veiu á bôcca, deitei-lhe á cara a negra ingratidão com que nos pagou termos-lhe salvo a pelle, eu e seu avô; e o matreiro embuchou e ficou-se a assoprar, a roer... João pediu-lhe, compungido: --Não tome mais o meu partido, não se inquiete por mim... --A bôas horas. Hoje o intriguista do frade poz-me na rua. --O quê? Pois está despedido? --Não se assuste, menino, não hei de morrer á mingua. Aveso algumas patacas para pão de milho, e n'aquelle castello cabe muita gente. Já lá fui pôr os trapicalhos e marcar poleiro. --Tem a nossa casa, mestre Jacintho. --Bem sei, mas obrigado. Se mesmo o menino á escolheu aquella, queria que eu ficasse a rezar n'umas contas? --Vocemecê precisa de socego. --Depois, depois. Agora ninguem é de mais ali dentro, que cá por fóra os patifes são muitos. --Desarrumar-se dos seus commodos por môr das minhas creancices! --Não se afflija, que eu por mim não tenho pena nenhuma. Só me custa não ter dado uma afogação em fr. Angelico, que me tratou como a um negro. Mostrava o punho cerrado: --Mas não as perde. São favas contadas! --Socegue, deixe-o lá. Essa agitação faz-lhe mal. --Hei de escalal-o, como a um chicharro, para lhe enforcar o Miguel nas tripas. E como João sorrisse: --Ah! Sim? Pois elle chegou muito estugado á quinta antes do menino, e não se me tira da cabeça que foi armar a tratantada. --Elle? --Sim senhor. E depois vi arrebentar muito depressa pela porta fóra aquella cára de condemnado, com estes dois que a terra ha de comer. Tenho para mim que ia com ella fisgada. --Não seria simples coincidencia? --É má rez, como todo o homem que veste saias. Sucia de mandriões! --E Maria? --Não ha mal que lhe chegue. --Viu-a hoje? --O patife do frade não me deixou, e eu não teimei porque a ouvi rir a bom rir. --Pois ella estava alegre? --Eu lhe conto. A senhora D. Perpetua foi muito prognostica dar-lhe o recado do pae, que ao almoço esteve como uma bicha, ouvia-se-lhe ao longe a prégação. Mas ella o caso que fez das prohibições foi escapulir-se logo para a quinta. Rapariga de uma cana! Reparou que João entristecera. --Não se me ponha a malucar, que se ella estava de risota com a senhora D. Josepha da Esperança era decerto para não dar o braço a torcer. Depois de luctar comsigo mesmo, aventurou-se a perguntar: --Manda-me dizer alguma coisa? Riu-se muito Jacintho, meneou a cabeça, e respondeu: --Estou velho, mas não ando de capote e capello. Arrependeu-se João: --Desculpe, não foi por menos consideração. --Desculpar o quê? Tivesse falado com ella, que eu mesmo lhe perguntava se queria alguma coisa para o menino. --Como lhe hei de agradecer tanta dedicação! --É vicio velho em mim, não me caíam os parentes em deshonra. E vigiando que não fôsse ouvido: --Já n'esse particular servi de muito ao seu avôsinho. Bateu-lhe familiarmente nas costas: --Ainda assim, elle não começou tão cêdo, verdade seja dita. Desvaneceu-se o rapaz pela admiração implicita n'aquellas palavras, e animou-se a aproveitar a bôa vontade: --Preciso falar-lhe, ou escrever-lhe, comprehende bem. Tenho muito que lhe dizer, e quero saber o que ella pensa de mim. --O que ahi vae, o que ahi vae. --Aconselhe-me, mestre Jacintho. Como ha de ser? --Dê tempo ao tempo! --Hei de desamparal-a quando todos a ameaçam? --Não tenha mêdo, que aquillo é taboa que não joga. Teimosa! Que o diga eu, que muito lhe soffri em mais pequena. --Que quer dizer na sua? --Espere, espere, que ha de chegar-lhe tempo para tudo. --Esperar? Isso não. Quero entender me francamente com ella, por palavra ou por escripto. E se me quizer como eu lhe quero, como hontem me pareceu... --Casa immediatamente, não é verdade? --É claro. Recreiou-se o veterano com a resposta: --E havia de casar n'essa edade, com dezaseis annos? --Que tem que vêr a edade com o amôr? --Ora vá-se crear, menino. Isso até lhe fazia mal á saude. Córou João até ás orelhas. --Não me fique amuado, que isto é brincar. --Bem. Então falemos a serio. --Não se zangue. Que geniosinho! João fôra respirar á janella, a cabeça em fogo, e puzera-se a olhar ao longe, na direcção das raras luzes das casas de campo, em meio das quaes reconhecia a d'ella. Chegou o velho á janela, abrangendo n'um gesto a cidade e o castello: --Sabe que mais? Ponhamos as coisas a direito, que ella lhe ha de ir parar ás mãos. --Não póde ser. E d'aqui até lá ha de ficar abandonada ao pae e á mãe, sem contar commigo, sem me sentir a seu lado? --Tem razão, nanja que eu lha tire. Mas deixe acabar a desconfiança do morgado, que agora anda tudo de olho em cima d'ella... --Será assim, mas não posso esperar. --Largos dias tem cem annos. Entendeu João pôr-lhe termo aos conselhos, e proceder por sua conta. --Pois mestre Jacintho, muito obrigado pelo que por mim fez. E não o incommodarei mais por esta causa, que agora já não é como no seu tempo, que só pela altura dos trinta annos é que se julgava uma senhora em edade casar. Agora vae tudo muito mais depressa. Se até ha barcos que andam a fogo! Queixou-se amargamente o veterano: --Foi sempre assim. A mocidade não quer saber da velhice para cousa nenhuma. --Não diga isso. Sabe como o estimo. Só me refiro a estas coisas de amôr, de que mostra não perceber nada, pois quer que um namorado se cale, depois de acontecimentos como os de hontem. N'uma saudade do passado, da juventude, do amôr, do prazer, remoçou-lhe o rosto engelhado: --Isso é que percebo! Lá por me vêr agora um velhão, olhe que já passei pela sua edade, e até fui de mama! É o que lhe digo, não se me ponha a rir nas minhas barbas. No seu tempo, porém, ainda me entretinha a deitar o pião, não sabia o que fosse o bicho mulher. Mais tarde, sim; fui desempenado, bonitóte, e antes de me darem as bexigas, pellavam-se bôas moças por mim. Já vê que percebo, e tive bom mestre, olé se tive. Aproximou-se muito o veterano, e num ar de confidencia, um sorriso bonacheirão, disse-lhe baixinho: --Lições de seu avô, que foi das pontas! Elle atirava-se ás patrôas, e eu ás creadas. Uma vez... Mas arrependeu-se. --Nada. Nada. Suas tias podem desconfiar de que estou para aqui a perdel-o... --Ellas não ouvem. Conte, conte. --Uma vez que elle foi de castigo para a Graciosa ... Não digo nada, senão que muitos primos fidalgos tem por ahi, sem imaginar. --Quem? Quem? --Ora. Vão lá saber. Deliciava-se na evocação: --Só se atirava ao fino, o maroto. Deus lhe fale n'alma! Entristeceu-o a ideia da morte, mas desanuviou-se rapidamente: --O menino vae pelo mesmo caminho. Atirou-se logo a uma rica herdeira... --Oh! Não julgue que foi por isso. Continuou o velho, sem dar tento na interrupção: --Fidalga como as melhores, bonita sem senão, os olhos de todos n'aquelle palminho de cara, e o morgado crente de que nenhum a valia, a ponto de a querer levar a um primo do reino. --Fosse ella uma pobre de Christo, queria-lhe da mesma maneira, acredite-me. --Pois sim, pois sim; mas ella é o que eu disse, isso é que é a verdade. Se fôsse uma pobre sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, não lhe açulavam os cães. Tratavam logo de o encambulhar com ella ... Agora sendo o que é, não espere conseguir d'ali nada ao bem. Ha de ser á má cara, e é se fôr. --Estou resolvido a tudo. --Não digo menos d'isso. Quem sae aos seus não degenera. --Maria ha de ser minha mulher, ao bem ou ao mal! --Que a coisa começa torta, bem vejo eu. O menino já tem chorado lagrima gorda por causa d'ella. Mas não deve desanimar. A farda sempre deu sorte em coisas de mulheres. Lá por ella ser morgada, não é mais do que a imperatriz da Russia, que dava o cavaquinho pelo general Gomes Freire, com quem andámos no Russilhão. Pois eu não conheci um corneta, um rapagão como um turco, o menino bonito da rainha nossa senhora que se perdia a ouvir-lhe repetir os toques? E não vieram todos desvanecidos os soldados do dezaseis de infantaria de um destacamento em Queluz quando a Senhora D. Carlota Joaquina estava presa? Até um granadeiro, alto como uma torre, valha a verdade, trazia duas cartas de pessôa de dentro! E reparando na surpreza de João: --O menino ficou vermelho como uma malagueta. Mas olhe que é tudo verdade. Pergunte lá no castello, que lh'o hão de trocar em miudos. Concentrou-se João, e depois perguntou: --Em resumo, mestre Jacintho. Está, ou não disposto a auxiliar-me? --Com alma e vida. --Não podia esperar de si outra coisa. Muito obrigado. Agora diga-me lá, que lhe parece: devo procural-a ou escrever-lhe? --Por emquanto não se podem levar as coisas ás do cabo. O menino ainda está com os dentes com que mamou, e já quer casar. Valha-o Deus! --Lá volta aos gracejos. --Mas não torno mais. Olhe, por agora basta que lhe escreva. --Tambem me parece. --Se a sua firmeza fôr tal como diz, o tempo que levarem separados ha de fazel-os quererem-se mais um ao outro. --Juro-te que é. --Ninguem lucra mais com o seu casamento do que eu. Voltar aos meus canteiros, ao meu buraquinho, fazer de enxota cães quando lá fôr fr. Angelico ou os collegas, a vêr se pilham alguma coisa. --Como lhe hei de mandar a carta, sem a comprometter? Meditou um pouco o soldado, e respondeu: --O melhor, e o mais seguro de tudo, é falar á senhora D. Josepha. É muito capaz d'isso, porque gosta muito do menino. Até parecia uma gata assanhada quando foi da patifaria do quinteiro, que por signal lá anda com a cabeça amarrada, para não cair n'outra. --E como ha de ser para lhe falar? --Descance. Eu sei de uns atalhos, por entre as terras, que vão lá sair mesmo ao pé do canavial ao fim do pomar. --Tem a certeza de que não nos podem vêr? --Conto que não. --Pois então vamos lá amanhã mesmo, visto que não ha nada a receiar. --Amanhã? Deus te livre! Andam á espreita d'ella para ganharem o dôce. Davam-nos logo com o rasto, e o morgado mandava alevantar o muro. Nada! Nada! Deixe ao meu cuidado saber o que se passa lá dentro, e em elles andando desprevenidos, damos-lhe a saltada. João, por fim, rendeu-se á evidencia: --Pois seja assim. Mas vê lá o que promettes. --Descance, que não me esquecerei. Não tenho menos vontade n'isso, creia, para o vêr feliz, e para ajustar as minhas contas. Onde se fazem, lá se pagam. Ali aonde me desfeitearam é que quero entrar de cabeça levantada, a deitar foguetes, no dia do casamento. --Oxalá! --E com esta me vou, senhor Joãosinho. Já de pé, sacou do mólhinho de folhas de milho, das mais tenues camisas que na sóca protegem o grão tenro, leitoso; alisou-a com a navalha, acamou-lhe o picado de tabaco negro, da terra, accendeu ao candieiro o cigarro grosso e despediu-se: --Com bem passe. Ainda João tentou retel-o: --Porque não quer ficar? A casa é grande, cabemos todos. --Obrigado, menino. Ali é que é o meu poiso. Antes eu de lá nunca houvesse saído, para ver o que tenho visto. E já na escada recommendou ainda, muito baixinho, o dedo na bocca: --Deixe esquecer a coisa por estes dias, olhe que o morgado anda com a pedra no sapato. * * * * * Ao ficar só, sentou-se ao bufete e poz-se a escrever. Não se recusaria D. Josepha a pôl-os em relações. Acceitava esse alvitre do velho, mas lá deixar de vêl-a, isso é que não. Perguntava-lhe a melhor maneira de o fazerem, e se mestre Jacintho não accedesse, iria sósinho. Com espanto, sentiu perdida, ao escrever-lhe, a timidez em que só por meias palavras se lhe declarára. Enthusiasmava-se como se a tivesse diante de si, mas dirigia-se-lhe em termos que, face a face, nunca arriscaria. Era o seu primeiro amor. Sentira bem como á ameaça de um ciume, ao receiar que a entregassem a outro homem, a amisade de irmãos se transformára na paixão em que esquecera a sua inferioridade ante a riqueza e a nobreza da mulher para quem se atrevera a levantar os olhos. Mas n'estes tempos de liberdade podia aspirar a ella, erguer-se até á sua grandeza, porque d'ora ávante as posições, os cargos, a consideração publica ganhar-se-iam com o trabalho, não se obteriam só por herança. E n'uma grande ternura comparava o viver de ambos, tão semelhante; elle sem pae nem mãe, ella como se os não tivesse, isolada no ermo casarão onde pairava a sombra da tristeza. * * * * * Restituiu essa carta a Maria a tranquillidade que lhe roubára o conflicto, e quando esperava alegremente a prima, e se perdia com ella pela quinta, nas travessuras de outros tempos, chegava o pae a suspeitar que recebesse noticias d'elle. Não desconfiava, porém, de D. Josepha da Esperança, e toda a vigilancia era na porta e nos muros, receiando temeridades do veterano ou algum arrojo de João. Tendo como militares garantida a impunidade, cria-os capazes de irem lá, com algum bando de camaradas, a desforrarem-se da cilada da sua gente. Passaram-se dias, e parecia completamente esquecido o caso. Era, porém, caprichosa de mais a filha para não querer, ao menos por despeito, entender-se com João. No seu tempo já teria liquidado tudo á valentona. Hoje usava-se de astucia, e n'esse terreno reconhecia-se inhabil. Eram assumptos mais para fr. Angelico, manhoso como frade, batido em argucias de confessor habituado a lêr no intimo das almas. Deixára de apparecer, e fazia lhe falta. Offendera-o a sua sobranceria. Puzera-se nas suas tamanquinhas, e mandar chamal-o era uma satisfação. Mas antes dar o braço a torcer, que deixar fazer o ninho atraz da orelha. Só o frade seria capaz de desenredar a meada, e de trazer Maria a bom caminho. * * * * * Resfolegou triumphante fr. Angelico ao receber o recado do morgado. Dar-lhe ordens como a um feitor? Era lá coisa que lhe permittisse? Agora o passado, passado; mas faria render a reconciliação. Não voltaria da quinta sem grosso donativo a pretexto do levantamento de guerrilhas; sem algumas das peças que D. Perpetua, na intenção de salvar a alma, forrava, em demencias de usura, ás despezas da casa, e escondia no colchão. Servia-lhe de pretexto a atitude do fidalgo para acabar com a intimidade da dona da casa. Fatigava-o já a paixão senil a que ella se apegára durante vinte annos, desde que succedera na capellania da casa ao seu mestre, de quem decerto herdára a affectuosidade da morgada, a sua predilecção pelo lubrico contacto do aspero burel. Parecendo-lhe nos primeiros tempos uma antecipação do paraiso, tornára-se depois o automatismo de um habito, e liquidára por fim nas repugnancias da obrigação. Ia todos os dias a creada saber da saude de sua reverendissima e falava-lhe da afflicção da senhora, tão sequiosa das suas bemfeitorias espirituaes. Mostrava-se elle theatralmente, no seu palco, ao fundo do sanctuario onde se armazenavam as imagens sem capella propria, cujos olhos de vidro brilhavam nas meias tintas do escuro armazem. Os grandes pés descalços no lagedo, sem habito, a camisa desabotoada, empunhando disciplinas de grossa corda e nós nas pontas, simulava fr. Angelico o soffrimento de terriveis expiações. Respondia n'uma voz sumida: --Diga a sua ama a grande penitencia que estou cumprindo, a pão e agua. Que rese por este pobre peccador, para que lhe sejam perdoadas as fraquezas. Regressou um dia a creada com a nova de que reappareceria o frade chamado do senhor; e D. Perpetua não desamparou o mirante e a varanda, passeando inquieta, aconchegando ao peito o embrulhinho com que faria esquecer ao penitente as visões do inferno. Mal transpuzéra a porta da saleta, puxou-o para um canto, e meteu-lhe na mão o saquinho de sêda carmezim, onde elle pelo tacto reconhecia as peças de oiro. --Angelicosinho da minha alma, para que me deixaste, ingrato? Que mal te fez a tua Perpetua? Elle simulava um terror sagrado: --Deixa-me, filha, tenho esta alma mais negra que um tição. Já estou a arder nas penas do inferno, sinto o fogo aqui dentro. E comprimia o estomago, onde as penosas digestões de toucinho e presunto, servido em grandes postas no refeitorio, fermentavam em dolorosas azias, que afogava a bôa aguardente do fidalgo. --É assim que me pagas os sacrificios que tenho feito por ti? São desculpas como das outras vezes. Nova confessada, descarado. Ha de ser a tal Joaquinina do Ó, de quem me chegaram uns zum-zuns. Elle erguia o olhar ao tecto, n'um ar compungido: --Ai filha, que perdeste a minha rica alminha! E não ha remissão para o peccado da carne, de si mesmo mortal, aggravado ainda em cima com o disfarce de coisas de religião. Forcejava por desprender-se: --Nunca mais! Acabou-se! Perpetua agarrou-o na angustia do desamparo. Ia-se com elle o ultimo vislumbre de mocidade, o sonho em que se emancipava da trivialidade do seu viver. Era a morte aquelle rompimento! N'um desespero articulou surdamente: --Assim é que se perde a minha alma! --Tem paciencia, irmã. Procura a consolação espiritual na penitencia. Verás como é bom, que gosos celestiaes dão os cilicios e as disciplinas. Pede á Senhora da Rocha que te ajude a conformar. Tem dado vista aos cegos e movimento aos paralyticos, fará o milagre de te dar resignação. E aproveitando o desanimo em que ella se amparava ao archibanco, enfiou pelo corredor em demanda de Martinho. Lavando na aguardente o mau sabôr dos beiços de D. Perpetua, desculpou-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria com a doença, que o impedira de ir receber as ordens do seu bemfeitor. E emquanto passavam da casa de jantar á adega, sumindo-se um atraz do outro pelo alçapão, ia o frade lamentando a incredulidade dos tempos, e a audacia do governo provisorio. Assentado no tampo do barril, o dorso apoiado ás frescas aduelas das pipas cheias, emquanto lá fóra escaldava o sol, desabafava o morgado, sentindo-se sem testemunhas: --Estou muito isolado, fr. Angelico, desconfio de todos. Hoje só conto com a sua amisade sincera e desinteressada. Agarrou logo o frade a occasião, que vinha preparando: --E desinteressada, senhor Martinho Vasques! Permitta-me v. ex.{a} que accentue essa palavra, ao ser forçado a appellar mais uma vez para a sua inexgotavel caridade, para a sua nunca desmentida dedicação ao throno e ao altar! Simulava não reparar nos gestos de contrariedade do morgado: --N'estes perversos tempos retraem-se os donativos, e o nosso convento quasi não tem para a sua pobre meza. Peço, pois, uma esmolinha para os frades de São Francisco, certo de que não recorro em vão á boa e generosa alma de v. ex.{a} Tartamudeou o morgado: --Ámanhã, ámanhã... Continuava, porém, infatigavel o frade: --Tudo se prepara para nos vermos livres d'essa liberdade de má morte. Apparecerão guerrilhas no concelho da Praia, para restabelecerem os inauferiveis direitos do nosso legitimo rei, e auxiliarem o desembarque da esquadra que se espera a todo o momento. Ha muitos fieis alistados, mas faltam armas e polvora. Todos os defensores da ordem tem auxiliado a boa causa. Espera-se que v. ex.{a} não deixe de concorrer... --Ámanhã, ámanhã... --É de tamanha urgencia... --Bem sabe o costume. Só mexo em dinheiro antes do jantar. E cada vez me sinto peior para contractos, porque o desgosto de minha filha poz-me muito fraca esta pobre cabeça. --Isto não é negocio, senhor D. Martinho, ou antes, grande negocio é que elle é. Quem dá aos pobres empresta a Deus, recebendo-se no ceu o principal e os juros. Emquanto á esmola para meus irmãos em Christo. Que do auxilio aos partidarios do senhor D. Miguel tira logo v. ex.{a} o lucro, em não ter a sua casa ameaçada de confiscos... Tocado na corda sensivel, sobresaltou-se o morgado: --E elles irão de vez a terra? --Quem o póde duvidar? Em todo o Portugal governa sua magestade. Falta só este palmo de terra, por vergonha de todos nós! Dá-se a mão aos que vem pelo mar, e acaba-se com elles n'um instante. --Deus o permitta, que não posso ir descançado para Lisboa deixando-os em cima. São capazes de me darem cabo de tudo. --Haja com que comprar espingardas, polvora e bala, e nem terão tempo de dizer Jesus! Com quanto póde concorrer v. ex.{a}? --Já lhe disse que ámanhã. Venha jantar, e antes de nos sentarmos á meza... --Muito obrigado, senhor Martinho Vasques. Vou já annunciar o valioso auxilio de v. ex.{a} aos amigos da religião. --Preciso-o cá, e até o tomaria para sempre como commensal, para alivio da sua pobre meza, se lh'o consentissem os seus labores. --Que honra, senhor morgado. --E sabe porque? Preciso da sua influencia junto de minha filha. Se podesse ganhar n'ella o ascendente que tem em minha mulher... --Quizesse-o ella--respondeu o frade n'um suspiro--e eu seria o mais feliz dos homens! Continuou n'um arroubo ascetico: --Trazel-a ao bom caminho! Afastal-a d'esses herejes que lhe hão-de perder a alma! --Era isso mesmo que queria que lhe dissesse, porque eu não sou capaz de a levar ao bem, e não usarei da força senão na ultima extremidade. Faça o possivel por demovel-a, fr. Angelico. E n'uma ameaça, para o lado do pomar, onde a sabia em colloquio com a prima: --Mas ai d'ella se não obedecer! VIII --Alviçaras, senhor morgado, alviçaras! Deus amerceiou-se de nós, e deu por terminada a expiação com que quiz provar os seus servos! Olhou-o um tanto desconfiado Martinho, pela falta de fundamento de semelhantes boatos. Mas o frade confirmou, enthusiasmado: --Victoria! Victoria! E graças sejam dadas ao ceu! --É então verdade o que para ahi dizem? --Estão reunidos nos Biscoitos mil e quinhentos homens, commandados por João Moniz Côrte-Real e Joaquim d'Almeida. Esperam mais gente de outras freguesias, e vão acclamar el-rei na villa da Praia, e facilitar ali o desembarque á esquadra do senhor D. Miguel, que saíu contra a Madeira, e vem agora libertar a nossa terra! --E a tropa que marchou hontem contra elles? --Protegeu o Senhor os nossos, e deu lhes logo a victoria. Foram derrotados os dois destacamentos, e ficaram presos os infames soldados liberaes. Que vergonha para esses fanfarrões! --E que vergonha para mim, fr. Angelico--exclamou o morgado, n'um impeto guerreiro.--Devia estar ao lado d'elles, como me impõe o nome, a linhagem, o serviço do throno e do estado. Venha d'ahi, sellam-se dois cavallos, e em quatro horas estamos com elles. --Não posso, senhor Martinho Vasques; a minha missão é toda de paz! --Sei de muitos frades que se teem batido pela bôa causa. --Sempre houve meus irmãos em Christo que usassem a cruz e a espada. Eu porém sou mais destro no manejo das armas espirituaes... --Pois irei eu só. Não quero que notem a minha falta... --Lembro-lhe a sua idade, meu senhor, e as molestias que tanto o tem impossibilitado. O melhor serviço que póde prestar ao senhor D. Miguel é dar mais alguma quantia... --Tem razão, estou já muito velho para essas danças--concordou o morgado, procurando eximir-se á nova contribuição. --Será tido na devida conta o seu soccorro, e Deus reconhecerá n'elle a sua bôa vontade. --Se venceram, como diz, para que precisam elles mais dinheiro? --Sempre são mil e quinhentas bôcas a comer... --Tomem á força o que precisarem, como fizémos no Roussillon. --Não diria o mesmo V. Ex.{a} se esses valentes realistas andassem cá pelas visinhanças. --Tem razão, tem. Mas que isto se decida por uma vez. Acabe-se com a choldra, para que eu possa embarcar descansado. --Ainda persiste em ir para Lisboa? --E conto que vossa reverendissima prepare o espirito de minha filha, para que de todo esqueça esse disparatado namorico, e se disponha a desposar o primo D. Luiz de Sousa, que dará á minha casa a tão desejada successão. --Perdôe V. Ex.{a} a minha extranheza. Depois do que se tem passado ainda pensa em tão honrosa alliança? --E porque não? --Póde um dia o nobre fidalgo a quem a destina pedir contas d'essa peccaminosa aventura... --Noto a insistencia com que vossa reverendissima aggrava o alcance d'essa creancice, condemnavel, sim, mas pura creancice. Sabe por ventura alguma coisa? --Sei o bastante, senhor morgado. Elle é um perverso, um hereje, um liberal; em conclusão: um depravado capaz de tudo. --Mas minha filha é uma fidalga, e as fidalgas estão muito acima d'esses miseraveis, para que a sua intimidade se lhes torne perigosa. --Na minha qualidade de director espiritual d'esta casa, é-me permitido manifestar as indicações que faz o Creador ás creaturas servindo-se dos seus intermediarios. Assim, senhor morgado, dir lhe-ei que uma voz occulta brada em meu peito: «Quero-a para mim! Quero-a para mim!» Significa isto que está indicada a clausura como penitencia da leviandade, e como resposta aos malvados constitucionaes que se arrojaram a cubiçar os bens de V. Ex.{a} para as suas obras de Satanaz. --Se fôsse uma filha segunda já lá estava. Mas é uma morgada, não a hei de meter freira. --Não digo que professe, senhor Martinho Vasques. Aconselho apenas que a mande para o convento, como castigo pela sua imprudencia, e como resposta á seita jacobina. Se mais tarde o Senhor lhe inspirasse a vocação, ver-se-ia. A verdade é que fazendo-a passar pelo claustro, ficava quite V. Ex.{a} para com seu genro. Creio que a senhora D. Maria só foi attingida na sua bôa fama. De mais graves estragos, porém, tem ido refazer-se jovens fidalgas ao seio das virtuosas madres, e bastou isso para que seus nobres esposos se dessem por satisfeitos. Meditou um pouco o morgado, e respondeu: --Não posso deshabituar-me da ideia de que hei de vêr um neto varão, já que Deus não me deixou vingar um filho, que succedesse no meu appellido e nos meus bens. Quanto ao mais, não tenha receio. Minha filha leva um magnifico dote, e por minha morte ficará bem. O primo, que pouco possue, alem da herdade perto de Evora, e do seu grande nome, terá toda a conveniencia em não dar ouvidos ás intrigas. --E a senhora D. Maria quererá casar com elle? --Cumprirá o que lhe ordenar, como deve. --Assim é em theoria, meu senhor, mas lembro que n'estes malditos tempos nem fica incolume a propria obediencia filial. Foram por certo os conselhos d'esse perverso que a fizeram má filha, como a hão-de fazer má esposa. --Entregue-a eu ao marido, e o mais é com elle. Bem sabe a fama de leviandade que minha mulher teve, e a seriedade com que tem procedido desde casada. Feche-a, como eu faço, tire-lhe as occasiões, e será esposa exemplar como as outras. --Como a senhora D. Perpetua--exclamou fr. Angelico, pondo a mão no peito--apesar das más linguas a quem irrita o exemplo da virtude! Que até em demasia pratíca a minha senhora os seus deveres religiosos. Appelle V. Ex.{a} para a sua autoridade de marido, e faça-a limitar a frequencia ao tribunal da penitencia. Ella é insaciavel de mortificações, e receio que acabe por lhe fazer mal. Imponha-lhe parcimonia, porque o meu ministerio não é o mais proprio para a arrancar a excessos de devoção. --Não se lhe preste vossa reverendissima ás rabujices de beata. Agora todo o seu tempo será para corrigir minha filha. Sou o primeiro a sentir a sua desobediencia e a reconhecer a culpa que n'ella tenho, pelo mimo de que a rodeei. Por isso recorro ás suas luzes. Repita-lhe as confissões, meta-lhe medo com o inferno e fale-me, á meza, dos sacrilegios d'esses patifes. --Cumprirei a minha missão de pastor, chamando ao redil a desgarrada ovelha ... Mas o mais seguro de tudo é a caça aos lobos. É preciso offerecer a esta nossa terra o espectaculo do desaggravo da religião e de el-rei, encher as casamatas do castello e dar que fazer á forca! --Sim, diz bem. --Pois lembre-se V. Ex.{a} dos nossos amigos que já começaram a batida. Receioso da incerteza dos tempos, precavia-se d'essa fórma fr. Angelico, enchendo o seu pé de meia antes que o morgado abalasse para Lisboa. Deu-lhe Martinho, voltando a cara, novo saquitel de dinheiro, fechando cuidadosamente o contador e, sem mais palavras, foram para a meza. Tirou o morgado o vinho, examinaram-o, provaram-o e aguardaram o comer. Para affligir Maria, repetiu o frade ao jantar as noticias da revolta miguelista, dirigindo-se a D. Perpetua, grande partidaria de Carlota Joaquina, hostil aos liberaes pelo seu odio aos conventos. --Pois minha querida senhora D. Perpetua, vae V. Ex.{a} sentir desafogada a sua alma pela grande desafronta que na nossa terra vae haver. Teremos carne fresca, salutares espectaculos a este povo tão offendido, e estou certo que o senhor morgado não deixará de mandar pôr o seu carroção para dar ás festas o prestigio da sua presença, e á menina Mariquinhas, como é de lei, a lição do castigo dos criminosos. Muito nervosa, cravou Maria os olhos no prato, não respondeu ás solicitações directas do frade, e sempre conseguiu reprimir os impetos de o descompôr. Impacientava-a a demora d'esse jantar interminavel. Aterrada pelo perigo de vida em que se encontravam os constitucionaes, anciava vêr Josepha da Esperança que lhe devia contar a verdade. Procurava convencer-se de que eram tudo exageros do frade, encommenda do pae para a fazer abandonar João. Contava agora fr. Angelico os desacatos dos liberaes, o desabafo do povo de Lisboa em 1820, invadindo o palacio da inquisição, e despedaçando a estatua da Fé, da frontaria; e as invenções fradescas de Christos servindo de alvo, de imagens arrastadas pelos cabellos em procissões maçonicas. Assustavam esses horrores a inconsciente credulidade de Maria, e quando o frade lhe falou do milagre de Setubal, dois anjos a cavallo n'uma nuvem, com a legenda de vivas a D. Miguel, temeu viver em peccado mortal pela affeição votada a um adepto de Satanaz. Mas chocava-a a inverosimilhança de que esse pobre rapazinho, tão meigo, tão ingenuo, tão respeitador, bebesse vinho por caveiras, e escarrasse nas cruzes, como o frade ia insinuando, cada vez mais excitado pelo verdelho. Mal se levantou a mãe, ergueu-se logo, e foi para o mirante esperar a prima, deixando o frade no relato dos castigos celestes, provocados pelo peccado da liberdade, os tremores de terra, as perdas de colheitas, a febre amarela que flagellára a Hespanha por causa das suas côrtes constitucionaes. Confirmou-lhe Josepha a apparição da guerrilha, e a derrota dos dois destacamentos, mas tranquillisou-a, que aquillo não tinha importancia nenhuma. Fôra pedir-lhe João que a animasse. N'essa mesma tarde estaria a revolta acabada, porque saíra toda a tropa do castello para ir afugentar os miguelistas. --Por isso ouvi tantos toques de cornetas, que o vento estava de lá. --Passaram-me pela porta. Olha que ia bonito! Nunca vi tanta soldadesca junta, carretas com peças, officiaes a cavallo, a musica a tocar o hymno constitucional, a garotada dançando á frente, e povo como bichos atraz. Ao passar, o João abaixou-me a cabeça... --Pois elle tambem foi? E Maria abraçou-se á prima a chorar. --Elle, Josepha, uma creança, metido n'isso por minha causa. Sim, porque se não fosse dar lhe para gostar de mim, não tinha ido sentar praça, não se via agora envolvido n'essas guerras, em risco de lá ficar. --Então, filha, aquillo não vale nada. Se tu visses como elle ia contente, risonho! Parecia um passeio. Se prenderam as outras forças é porque eram só de vinte homens, e foi cada qual por seu caminho. --Mas hão de dar tiros, e se algum acerta n'elle? É capaz d'isso, que eu sou muito desgraçada, e nunca vae por diante aquillo a que quero bem. Elle é as flores da minha estima, os canarios das minhas gaiolas. Credo! Credo! --Acredita que não tem perigo. O mestre Jacintho, que lá ia sentado n'uma carreta, porque percebe muito de peças, a rir-se como um tolinho, disse ao meu creado que ao primeiro tiro fugirão como bando de estorninhos. --A minha desgraça, Josepha!--continuava Maria, inconsolavel--É como se já o visse morto! Ao que eu ouvi a fr. Angelico, elles teem tudo como feito, e já falam de enforcar os liberaes. No que se vae vêr aquelle pobrinho! --Agora vejo que te esteve a meter mêdo, o sujo. Não sei o que me contem, que não diga um dia ao tio porque vem elle aqui tanta vez, a exercicios espirituaes. Mas se o maldito continua a fazer-te chorar, olé se o desmascaro. Hypocrita! É tudo mentira, filha, acredita-me. Maria encarou-a mais esperançada. --Olha, se o visses, em vez de chorar, rias-te como eu me ri. Elle ia de mochila, capote, bornal, correias por cima de correias, espingarda ao hombro, tão carregado de coisas que nem sei como se podia mecher. Pois apezar d'isso andava tão depressa que desapparecia. Os caçadores vão desesperados por causa dos paisanos lhe terem prendido os camaradas. Olha que elles são soldados de fama! Onde chegam, vencem tudo. --Estou mais descançada por ir o mestre Jacintho, que ha de tomar conta n'elle. --Ora vê lá esse velhote, o que tem passado, as guerras em que entrou, e como ahi está são e escorreito. Teu pae mesmo por lá andou, o avô do João veiu morrer á sua cama, e quantos e quantos! Até me parece que elles inventam os perigos, para se darem ares, e que no fundo é tudo uma santa historia. --Deus te oiça, Josepha! --O que te posso dizer é que elles iam tão assustados que encaravam com todas as janelas. E que olhares, filha, parece que queimavam, tanto calor me subia á cara! Era tão bonito vêl-os marchar, os officiaes muito empertigados, a retorcerem o bigode, que se me foram os olhos n'elles. Desanuviou-a um pouco a vivacidade de Josepha: --Ainda vens a namorar um militar. --Cuidas que todas gostam de soldados, como tu? Maria acabou por sorrir, e enxugou as ultimas lagrimas. --Sabes quem é para ter dó?--continuou Josepha.--É o primo Jorge. Anda com os guerrilhas, o grande maluco. Foi-se-me mostrar, todo pimpão, com uma aguilhada de carreiro para imitar o senhor D. Miguel. No que elle se engana é que aqui os liberaes estão armados, e em Lisboa andavam com as mãos a abanar, por isso el-rei os perseguia a pampilho. O que vale é que, como anda a cavallo, e ha-de ser dos primeiros a fugir, antes que o apanhe alguma bala, põe-se a salvo. --Que malditas questões!--suspirou Maria, tornando a commover-se.--Succeda o que succeder, pelo menos uma de nós ha-de chorar, se não chorarmos ambas. --Lá d'elle vir corrido não me importa nada. Até gosto, se queres que te diga, porque o João deu-me volta ao miolo. Se isto é ser constitucional e fica feio, não sei nem quero saber, mas lá em querer acabar com os conventos teem elles carradas de razão. Para que é aquillo bom? Para fazer dôces? Pois em nossa casa fazem-se muito melhores, e não são lambidos por aquellas fufias, crédo, que até me repugnam os seus beijos repenicados. Por fim, ao despedirem-se, combinou Josepha como havia de dar-lhe noticia certa do que se passasse. Mandaria pelo creado pedir-lhe qualquer coisa, e isso seria o signal de que João estava incólume. Ficando só, entregue ao seu desgosto, poz-se Maria a contemplar as grandes serras do interior da ilha, a querer descortinar o que atraz d'ellas se estava passando. * * * * * Para além das escuras cumeadas marchava João entre as cento e cincoenta praças da columna, pensando amargamente na abominavel escravidão mental em que jazia o povo, a ponto de reunir-se em armas hostilisando os libertadores. Tinham que levar pela violencia os proprios a quem emancipavam, erguendo-os á concepção de uma patria, á realisação de um pais independente, entregando-lhes a posse dos seus destinos. Eram forçados a armarem-se de espingardas contra esses cujo soffrimento interpretavam, emancipando o individuo, o trabalho, a terra; abrangendo na mesma redempção o camponês dobrado sobre a enxada, o plebeu asphyxiado pelo preconceito do nascimento, a mulher escravisada na clausura. Reclamavam para si o logar a que lhes davam direito as faculdades intellectuaes, mas não esqueciam o cavador, o pescador, o artifice, formulando as reclamações que elles eram incapazes de conceber, analphabetos, desmoralisados por castigos corporaes, intimidados pelo inferno, esperando apenas a felicidade depois de mortos a troco da completa submissão. Por si e por esses que pretendiam elevar pelo ensino obrigatorio, pela suppressão do direito dos senhores ao producto do trabalho, expropriaram as classes privilegiadas: funccionarios monopolisadores das rendas publicas; desembargadores vendilhões da justiça; militares insaciaveis de promoção e de soldos; capitães-móres que dispensavam de soldado a troco da honra das mulheres, da virgindade das raparigas; fidalgos possuidores da terra, do exclusivo dos altos cargos, do privilegio da venda do vinho, dos moinhos, dos lagares de azeite, da agua para regas, das pescas nos rios e no mar, das coutadas que por si sós eram a ruina da agricultura; padres, frades e freiras que, como proprietarios, usufruiam todos os privilegios da nobreza e exerciam a maior industria, quasi a unica industria, a exploração da credulidade publica, pesando terrivelmente, pelas communidades ricas e pelas ordens mendicantes sobre todo o trabalho nacional. E mais uma vez a inconsciencia dos opprimidos, guiada pelos semeadores do mal, desejava-lhes a morte, e reclamava-a cantando, em córos de vozes avinhadas: Rebenta mação Remoe liberal, Livre é Portugal Da constituição. Ó Virgem da Bôa Morte, Senhora dae-lhes consumo Para que os _pedreiros_ levem A volta que leva o fumo. A fôrca em bolandas Andando apressada Da atroz _pedreirada_ Acabe as demandas. Estavam convencidos os desgraçados populares, arrancados á familia para derramarem sangue pelos seus parasitas, de que se batiam pela religião, de que, combatendo os soldados de D. Pedro, esse rei estrangeiro, liberal e pedreiro livre, que declarára guerra a Portugal, e lhe arrancára o Brasil, calcando aos pés emblemas nacionaes, obedeciam aos designios de Deus, que mandara á terra o archanjo S. Miguel, incarnado no infante, para restabelecer no seu antigo explendor a fé catholica. Tinham-o ante os olhos, resplandecente, prestigioso, n'esses retratos postos nos altares, como os de santos, ante os quaes se rezava e se diziam missas; n'essas gravuras que o mostravam pujante de juventude, na sympathia dos vinte annos, no vigor dos amplos gestos, na rijeza da musculatura, largo de hombros, amplo arcaboiço, expressão de firmeza no rosto comprido e trigueiro, lampejos de energia no olhar vivo, a figura dominadora a cavallo, chapéo de dois bicos vistoso de plumagens, esmaltado de crachás, espada em punho mandando avançar. E murmuravam na uncção de orações, as cantigas em que elle apparecia como representante do ceu: Senhora da Conceição Madrinha de D. Miguel. D. Miguel vae p'r'ó altar Com dois palmitos aos lados. É Miguel anjo de paz Que Deus tem por general. Chegára á villa da Praia, onde celebrou a acclamação de D. Miguel, lavrando o respectivo auto na camara, a grande guerrilha que já reunia cinco mil homens, mas retrocedeu ao Pico do Selleiro a esperar a columna liberal, e ahi rompeu o combate, avançando os soldados em atiradores até duzentos metros da elevação onde tomara posições. Empallideceu João ao vêr esses homens em attitude aggressiva, apontando-lhe espingardas. Jurára morrer pela liberdade, mas estremecia á ideia de ter de matar em nome d'ella. Para que a nova ideia triumphasse era preciso reduzir a um montão de mortos e de feridos aquelles homens, seus patricios, seus irmãos ante a noção da fraternidade. Era a ignorancia o seu unico crime, e por isso iam ser dizimados pelas peças, pelas espingardas dos caçadores, pela sua propria arma, que d'essa fórma ia estrear. Mas se até para o bem d'elles era preciso! E á voz de fogo, na passividade da disciplina que o tornava uma simples peça d'essa machina de morte, poz a espingarda á cara e, fechando os olhos, disparou. Atordoou-o a descarga geral, a seca detonação da fuzilaria, o sonoro estampido dos canhões e, cambaleante do coice, os olhos a arderem da explosão da carga, a face magoada pela pancada da coronha, alagado em suor frio, mais morto que vivo, sentiu-se agarrado pelo veterano que, mal pudéra, fôra reunir-se a elle. --Então, menino, isto não vale nada! Anime-se, que até parece mal. Está amarelo como um defunto! --Ah! És tu, meu amigo! Recobrando-se, explicou: --O tiro rebentou-me mesmo na cara, ia-me deitando ao chão. E segurou a espingarda pela bandoleira: --Escalda, nem sei por onde lhe hei-de pegar. --Não tiveram tempo para lhe ensinar o officio. Pois bem fiz eu em vir ser seu padrinho no baptismo de fogo, como seu avô foi para mim. Olhe, pegue-lhe por aqui, pelo delgado do fuste, agarre-a bem, não a encoste á cara, e não lhe succede mal nenhum. Emquanto lhe explicava os manejos d'arma, continuava o combate; estremecia João ao vêr caír gente do seu lado, sem que parecesse attingida, e baixava instinctivamente a cabeça ao tiroteio do inimigo. --Deixe-os lá--continuou mestre Jacintho--estenderem-se no chão para fazerem fogo deitado. Não me faça cortesias, menino, que não serve de nada, e olhe bem direito para a frente, se quer vêr o enxame de moscas azues e vermelhas que andam a zumbir por entre a gente. Fez ajoelhar João, collocou-se ao lado, e poz-se tambem a fazer fogo. --Lá vae uma para aquelle patife de desertor do Cinco, que por lá anda envergonhando a farda Pum! Prompto! Ah! Já fostes escutar a cavallaria? Ande com elles, Joãosinho, aponte aos fardados, que são quem nos faz mal, e nos mandam cada _ameixa_! A paizanada, estar ali ou não estar, é tudo o mesmo. Mire os que andam a cavallo, que são os chefes, e ferre-me com elles em terra. Aqueceu João, enthusiasmou-se, agora carregava a arma febrilmente e, tão sereno como se não o visassem as duzentas espingardas da guerrilha, apontava segundo as indicações do veterano, e disparava, de olhos bem abertos, observando se attingia o alvo. --Agora sim! Está um homem, um bravo como seu avô! Pode servir de exemplo aos mais velhos! Vejam este camarada, rapazes, vocês que andaram na guerra, mas que são galuchos á minha vista! E abraçou-o entre os applausos da sua esquadra. --Cá o deixo, já não precisa de mim. Filho de peixe sabe nadar! Temos homem para ir longe. E agora deixe-me chegar até ás peças, a vêr se me deixam apontar uma á minha vontade, que já é tempo de varrer aquella malta. Partiu, fazendo-se muito baixinho, dobrado ao meio, descendo aos regos do terreno para offerecer menos alvo, occultando-se com pedregulhos, arvores, restos de paredes derrubadas, como soldado afeito á guerra. E João continuou muito senhor de si, lembrando-se de que a illusão da fraternidade perdera o governo constitucional, e depois a revolução do Porto. Só pela violencia se dissolveriam as castas; só pelas armas se imporiam as medidas liberaes; nunca o progresso se realisaria sem sangue! Após hora e meia de fogo, flanqueou uma força liberal a posição miguelista, e a guerrilha debandou ao vêr despedaçar pela metralha o _caçador_, do Porto Judeu. --Victoria! Victoria! E o veterano voltou a abraçal-o, e pegou-lhe ao collo, como se fosse a criança que amimára, envaidecendo-se do seu recruta, recordando enternecido a bravura do seu antigo official. Respirava João amplamente, na alegria dos vivas, no orgulho do triumpho, e queria apparecer por encanto na quinta, mostrar a Maria que ficára illeso, beijal-a, chorar e rir abraçado a ella, affirmar-lhe que estava salva a causa, garantida a ventura de ambos. --Pois havemos de lá ir, que o mereceu, galucho de uma cana! Que sustos não terão pregado á pobre menina! E a essa evocação do receio dos que ficaram, lembrou-se da afflição das pobres tias, que tinham ido logo ajoelhar diante do oratorio, a pedirem por elle ás imagens da sua devoção: Santa Rita, dos impossiveis; S. José, que tinha ao lado uma palma benta em dia de Ramos, maior do que elle; o Christo de prata n'uma cruz de ébano; um coração com tampa de vidro, e dentro um menino entre flôres; um outro menino Jesus barrigudo, córado, vestido de boneca, com a bola do mundo na mão; e ainda outro n'um berço côr de rosa, com uma almofadinha bordada: menino Jesus nusinho para os beijos devotos, em que as beatas bemdiziam a sua santa virilidade. Na manhã seguinte recebeu Maria o recado de Josepha. Mandava pedir flôres. E ao ir ao jardim dal-as ao creado, soube da bôcca d'elle que os liberaes tinham vencido facilmente; que João não soffrera nem uma arranhadura, e que as flôres eram para as visinhas deitarem por cima dos soldados, que n'essa tarde entrariam triumphantes. N'uma explosão de jubilo colheu quanto havia e ao deitar para o cesto o pouco que lhe dava outubro: «rosas do Japão» vermelhas e brancas, «esporas de cavalleiro» azul escuras, cheirosas baunilhas, a vermelha «flôr do laço», a «corôa de rei» azul-claro, misturadas com ramos de alecrim, era como se das janellas tambem as atirasse para cima de João, inebriada pela sua victoria. Foi o jantar a antithese da vespera; desabafando o frade em improperios contra os liberaes que vira passar ao som de repiques, com ramos de louro nas espingardas, sob uma chuva de petalas, e Maria finava-se de rir pela parte que tivera na festa. Veiu á tarde Josepha da Esperança, e contou-lhe que o vira radiante. Dissera-lhe «até logo», e era capaz de apparecer. Foram ambas, alvoroçadas, esperal-o do lado da canada, aonde vinham dar os atalhos. * * * * * Mal debandou a força no quartel, correu João a casa, a socegar as velhas. Ao vel-o a creada, a _tia_ Maria da Assumpção, persignou se de uma maneira especial: Eu me benzo Co'o sangue de Christo Co'o o leite da Virgem Co'o a flôr da luz Para sempre amen Jesus. Foram mostrar-lhe a tia Dorotheia e a tia Pulcheria o oratorio a que ardiam velas em promessa. Proclamavam o milagre, e esperavam que elle se rendesse, caíndo de joelhos, agradecendo o dom do ceu. Mas só a ellas se mostrou grato, beijando-as, tornando-se de novo a creancinha em que não podiam adivinhar o rude soldado da vespera. Debatiam-se agora as tres velhas n'um grave caso de consciencia. Para que tinham forçado ao milagre a senhora Santa Rita dos Impossiveis? Fôra um pedido sacrilego! Vinha João mais hereje do que fôra, sem sequer agradecer aos santinhos que se amerceiaram d'elle. Salvando-o d'essa forma, talvez se tivessem perdido com elle! * * * * * O mal disfarçado riso com que Maria offendera á meza o seu despeito, encolerizára o morgado e o frade. A indifferença da vespera, a certeza com que ella n'esse dia se mostrava ao facto da victoria, aggravou a Martinho as suspeitas de que se correspondia com João. E depois da indispensavel visita ao alambique, foram emboscar-se a vigial-a. Avistaram-os ellas, e reconheceram-se alvo da sua vigilancia, mas por coisa alguma se resignava Maria a deixar de vêr o namorado. Far-lhe-ia signal para que não parasse, e defender-se-ia do pae mostrando-se extranha a essa mera coincidencia. Avistaram por fim ao longe o veterano e João, cosendo-se com as paredes dos cerrados. Ao reconhecel-os, quiz o morgado lançar-se n'um impeto, mas conteve-lhe o frade o mau genio. Esperava o momento compromettedor, em que a filha não podesse negar a leviandade e, confundida, ao vêr-se descoberta, pedisse perdão da afronta, e se entregasse a um sincero arrependimento. Cedeu não sem custo, e quando tornou a olhar por entre as faias, notou com surpreza que já tinham desapparecido. Percebendo os signaes para se afastarem, tinham os dois saltado á canada. Rente com o muro, correra João a atirar-lhe para cima, enrolado a uma pedra, o bilhete que levava para a hypothese de não poder falar-lhe, e indo ter com mestre Jacintho saíram ao Caminho de Cima, por entre quintas. Desconfiados, precipitaram-se fr. Angelico e o morgado, ao tempo que Maria devorava as quatro palavras de João. --Dê-me essa carta, senhora!--bradou o frade, que chegára primeiro. Sem responder, amarrotou o papel, e com elle fechado na mão, voltou-lhe as costas n'um olhar de desprezo, e afastou-se de braço com a prima. Deteve-a o pae, exigindo-lhe o bilhete, que Josepha já occultára no seio, e Maria respondeu que nada tinha. --Vi-lh'a eu, senhor, a carta d'esse hereje, d'esse pedreiro livre, que para deshonra de V. Ex.{a} perdeu a alma da senhora D. Maria! E fr. Angelico apoiou a denuncia agarrando-lhe a mão em que a amarrotára. Soltou-se ella violentamente, e o frade, cambaleando com a sacudidela de Maria e um indignado empurrão de Josepha, caíu contra um renque de vasos, esfarrapando-se e partindo-os. Então o pae cresceu para ella: --A menina estava esperando um homem, a quem eu repelli da minha porta. Além de me desobedecer, offendeu-me agora, resistindo a uma ordem minha. Repare bem, sou eu quem lh'o exijo! Dê-me a carta. --Não tenho carta nenhuma, senhor. Deixe-me passar. --Isso é que não. Iria escondel-a. E detendo-a: --Dê-me esse papel ao bem, ou arrepende-se! --Senhor, já lhe disse que não tenho. E se tivese não devia dal-o, nem o pae m'o devia pedir. --Ah! Não tem? É o que vamos vêr. E segurando-a, o morgado apalpou-lhe o corpete, rebuscou-lhe a algibeira da saia, apertando-lhe brutalmente os pulsos emquanto ella se debatia, e como tudo fosse inutil, atirou-a rudemente contra o muro. --A menina ha-de ficar sabendo que não se zomba d'um pae, e não se emporcalha um nome fidalgo namorando soldados. N'um choro convulso Maria bradava, caída na banqueta: --O pae bateu-me! Mas foi a ultima vez. Está enganado commigo. Não quero ter a sorte da mãe! E para Josepha da Esperança, que os dois levavam adiante de si, tratando-a de encobridora, de enredeadeira: --Não me desampares, Josepha! Conta o que vistes, e não te esqueças de que me bateram, e de que esse frade me magoou! É preciso que elle o saiba! * * * * * Tornara-se João tudo para ella! IX Bloqueado por temporaes de inverno, dias de chuva torrencial, grandes frios, installára-se fr. Angelico da Immaculada Conceição de Maria na quinta dos Folhadaes, mandando como senhor, dirigindo a casa, cujo governo D. Perpetua abandonára, para se refugiar no quarto de Maria, horrorisada por adivinhal-o catechizando creadas pelo escuro dos grandes corredores. Enclausurada voluntariamente com a filha, prohibida de sahir do quarto, comiam ali ambas depois de prévia revista do morgado ou do frade ao que recebiam, não fossem cartas escondidas. Só os dois homens pois iam á meza, e ali passavam quasi de uma á outra refeição, não se decidindo a arrostar a frieza da adega, nem o chavascal do campo. Aparada em alguidares e em celhas pingava agua do tecto, alastrado de bolôr; pelas frinchas das janellas empenadas soprava um vento cortante que os fazia tiritar sob os capotes. Desforravam-se a bebericar aguardente, quando a criada foi annunciar o senhor juiz corregedor. --Justiça em minha casa!--exclamou o morgado, pondo-se de pé. Chegou á janela e olhou para fóra. Não cessára de chover. --Com um tempo d'estes! Deve ser coisa grave. Voltou-se para o frade: --Descobriria a alçada que eu dei dinheiro para os guerrilhas? Tranquillisou-o logo fr. Angelico: --Quanto a isso descance v. ex.{a} Não invoquei o seu nome, por causa das secretas vinganças que os pedreiros livres costumam tirar de quem os guerreia. Lembre-se dos lentes de Condeixa. --Sim, sim, fez bem. Má gente. Mas se não é por isso, que querem de mim? --O mesmo que pretendem dos outros. Intimidar os partidarios do throno e do altar. E como as suas opiniões são bem conhecidas... --Mas eu nunca as manifestei, não saio de casa, não me saliento... Voltou-se para a criada: --Elle vem só? --Saberá v. ex.{a} que sim senhor. --Se eu fugisse, fr. Angelico? --Não me parece que haja razão para isso. --É exactamente por não saber o motivo que receio. --Agora! Agora!--accudiu o frade, já desanuviado.--Imaginam que está por ahi alguem escondido, e como andam á procura do João Moniz e do Joaquim d'Almeida... --Pois lembra bem, deve ser isso--concordou o morgado.--Que hei de fazer n'esse caso? --Recebel-o ás bôas, deixal-o dar busca á sua vontade, e ficaremos livres d'elle. --Pois hei de franquear-lhe minha casa? --Que remedio, se pode entrar á força. Estão de cima. É aguentar e cara alegre, emquanto não chegam melhores dias. --Vá então recebel-o em meu nome, e desculpe-me. Diga que estou doente. --Eu, senhor! Não sabe v. ex.{a} o odio que nos votam esses adeptos de Satanaz! O pobre de mim até foi na lista que elles mandaram ao nosso provincial, intimando-o a prohibir os franciscanos de defenderem a causa do throno e do altar. --Não posso ver gente de justiça, e demais a mais justiça d'esta! --Tenha paciencia, que nos havemos de vingar de tudo. Vá attendel-o v. ex.{a}, ponha-se ás bôas, trate-o o melhor que puder, para não dar logar a que exhorbite, e tenho para mim que o ha de confundir a sua respeitabilidade. Eu ficarei rogando a Deus... --Isso é que não. Ou me acompanha, ou não o recebo, e faça o que melhor lhe parecer. Olhou irritado para os campos innundados de agua: --Tivesse cá a gente de trabalho, e outro gallo lhe cantára. Mas assim, não ha com que lhe dar uma lição, que elle com certeza não vem só, nem com as mãos a abanar. E como visse retrahir-se o frade: --Ande d'ahi, já lhe disse. Apavorado, pediu fr. Angelico, de mãos postas: --Só se v. ex.{a} me promette ser conciliador. Disse o Divino Mestre, que se o inimigo nos offender na face esquerda devemos offerecer-lhe a direita. --Isso aconselharia aos frades, que aos fidalgos não!--respondeu irritado Martinho. --Pois n'esse estado de espirito, meu senhor, Deus me defenda. --O melhor é falar vossa reverendissima. Eu acompanho-o, mas permitto-lhe todas as habilidades conciliadoras, porque tambem prefiro que não me incommodem. --É Deus que o illumina, senhor morgado. Assim verá que fica tudo em bem. --Mande-o entrar para a sala dos retratos--disse o morgado á criada--peça desculpa da demora, e que já lá vamos. Estremeceu o frade de novo: --Ah! Senhor do ceu! Basta o tempo que o fizemos esperar para o esbirro já estar como uma bicha. Que carantonha que não vae fazer! Bebeu mais aguardente o fidalgo, tirou o capote, mirou-se, compoz os bofes, puchou os punhos de rendas, e lançou a fr. Angelico um olhar de desdem: --Você já não conheceu o homem de côrte. Pois fique sabendo que me vi muita vez nos regios paços de Queluz, e sei bem a etiqueta das salas. Verá como procedo, e como, sem o humilhar, por que elles estão de cima, lhe farei sentir a differença que vae de um fidalgo a um traficante de sentenças. Basta o logar onde o recebo para o envergonhar do seu baixo nascimento. E certas coisas que lhe direi ao correr do pello... --Não me perca v. ex.{a}, por amor de Deus! Deixe-me ficar no meu cantinho! --Não, que você é manhoso como os que o são e, se eu me desmanchar, meterá a sua colherada. Beba uma pinga para cobrar animo, e vamos dar-lhe uma lição mestra já que cá veiu meter o nariz. Tomou novo alento ao beber, o frade, mas ainda aconselhou: --Lembre-se v. ex.{a} que os demonios teem o poder na mão, e por algum tempo. Além da victoria do Pico do Selleiro, ainda foi por elles o temporal que destroçou a esquadra de sua magestade, depois de tomar a Madeira, quando vinha fazer o mesmo a esta desgraçada terra. Primeiro que se arme em Lisboa outra frota para vir até cá ... Não se esqueça v. ex.{a} d'isto. Agora são elles quem manda. Ao entrar na sala, empertigou-se mais o morgado em respeito ao scenario aonde ultimamente só raras vezes se mostrava, télas escurecidas pelo tempo destacando nas paredes caiadas, o cadeirado de coiro e pregaria amarela, o grande buffete carregado de finos buzios rosados, de amplas conchas de madreperola, os reposteiros vermelhos onde pompeava o seu brazão, com longes de capoeira. Saudou o juiz n'uma pirueta cortez: --Desculpe v. s.{a} a involuntaria demora. A justiça é como se entrasse em minha casa el-rei, que vossa senhoria já representou, e em nome de quem continuará um dia a exercer o mando, como é timbre de homens d'ordem. Mordeu os labios o magistrado ao tratamento e ao remoque, mas, contando com peior acolhimento, saudou por sua vez o morgado: --Está v. s.{a} em sua casa, e sou eu que tenho de escusar-me de o vir incommodar. Córou Martinho Vasques á falta de excellencia, e o frade, que o percebeu, muito animado pelo tom ordeiro do juiz, interveiu: --Permitta-me v. ex.{a}, senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro, que aponte a sua senhoria os achaques... Mas o corregedor, sem fazer caso, interrompeu-o, dirigindo um novo golpe á prosapia de fidalgo: --Não julgue, senhor Soeiro, que venho aqui por causa das tristes perturbações fomentadas pelos mal intencionados que exploram as disenções de irmãos. Calcula decerto o grave motivo que me traz por semelhante tempo... Ferido no seu orgulho, julgou conveniente o morgado dar-lhe desde logo a lição projectada, e forçando um sorriso que o tornava mais feio, respondeu: --Quem não deve, não teme, e se eu tivesse que receiar das justiças, ou não estaria á mercê d'ellas, ou a minha porta achar-se-ia guardada, com o direito de que sempre usaram em Portugal fidalgos de solar. Apontou para fóra o juiz, n'um gesto amavel: --Foi informado o tribunal de que ha aqui um quinteiro brigão, o que, para evitar algum desacato d'esse desordeiro, me forçou a vir convenientemente acompanhado, não por causa de v. s.{a}, mas por via d'elle. Trocaram um olhar fr. Angelico e o morgado. A escolta lembrava logo uma prisão. E a referencia á cilada fazia-lhe receiar que João ou o veterano o tivessem denunciado como conspirador. Triumpharam os propositos conciliadores que ditava o mêdo, e o frade adiantou-se, muito curvado: --Perdôe v. ex.{a}, senhor corregedor, não lhe ter offerecido já alguma coisa quente, uma chavena de café, uma magnifica aguardente da lavra do fidalgo, para o preservar de uma peitogueira... Sorriu muito lhano o magistrado: --Lembrou bem vossa reverendissima, e acceito de bôa vontade, com o que provo os meus amigaveis intuitos. Saíu por um momento, muito lépido, o frade a dar ordens; e o morgado, fazendo um exforço, recalcou as offensas, e submeteu-se ao receio da escolta: --Vejo que v. ex.{a} não me conhece, por attribuir á minha atitude intuitos diversos da justificadissima surpreza... --Oh! De modo algum. --E como v. ex.{a} não é da ilha, permitta-me que me apresente, fazendo-o tomar relações com os meus antepassados, que não lhe podia ter dado melhor companhia, pois não a ha mais escolhida n'esta terra, nem lá fóra é frequente a que se lhe possa comparar. --Já os estive admirando assim que entrei, e conheço-os por tradicção, como conheço a v. ex.{a} mais do que imagina. Envaideceu Martinho a homenagem do tratamento e, attribuindo-o ao effeito d'essa berrante linhagem, insistiu no proposito de desenrolar os pergaminhos. --Perde-se a minha geração na noite dos tempos, entroncando-se por muitas vezes no ramo da dynastia, mas a mais proxima representante é esta minha trisavó, que morreu em Odivellas em cheiro de santidade. Apontou um retrato de moldura oval, que tão bem ia ao rostinho envolto na toalha: --É soror Thereza de Jesus, que em formosura desbancou a madre Paula, senhora de Melres, e conhecida por isso no convento pela _Melrinha_, ao que allude o segundo quartel do meu brazão, tres melrinhos de oiro sobre purpura. Era já fidalga, filha do senhor de Villar de Corvos, representado no primeiro quartel por aquelle corvo de prata em campo azul, mas el-rei o senhor D. João V--e curvou-se como se estivesse na presença do monarcha--houve por bem, ao conceder-lhe o alvará de legitimação do filho, dar a meu bisavô o titulo de moço fidalgo da casa real, com serviço no paço. Orgulhava-se apontando outro retrato, um homemzarrão em corpo inteiro, grande cabelleira em caracoes, tricornio debaixo do braço: --É meu visavô, D. Francisco, com quem, dizem, me pareço muito. Batendo-se como um heroe, conquistou para o nosso nome um immorredoiro prestigio, merecendo pelos seus feitos d'armas, e pela particular predilecção que sempre nutriu el-rei por minha visavó, as doações com que se creou o nosso morgado. Indicou-lhe outro retrato, em meio corpo: --Este é meu pae, D. Fernando, intimo d'el-rei o senhor D. Pedro III, que o teve em alta estima. A esse prestigio de que sempre gosámos no paço, deve minha irmã, D. Mafalda, o honroso logar de dama de honor da rainha senhora D. Carlota Joaquina. Era a dama que enchia outra grande téla, em trajo de côrte, vestida a azul e vermelho, toucado de plumas, opulenta de rotundidades que a tornavam celebre nos lubricos bailados da rainha, sua rival em fama. Por sua vez, indicou o juiz um retrato: --Este, que como os meninos postos de castigo está voltado para a parede, brilha para mim atravez da tela. Conheço-o, é D. Bernardo, o amigo dedicado do grande marquez de Pombal, que veiu a esta terra cumprir a ordem de expulsão dos jesuitas. Porque não honra v. ex.{a} as nobres tradições d'este seu avô? Porque não reconhece que as nossas ideias teem raizes bem fundadas, e que já foram defendidas por bons fidalgos, como v. ex.{a} classifica os da sua geração? Respondeu gravemente Martinho Vasques: --Este infeliz foi transviado, corrompeu-o o mal do tempo, e a sua alma deve estar no purgatorio, aguardando o juizo final, feliz ainda assim por levar em seu favôr os serviços que filhos e netos teem prestado ao throno e ao altar. Os verdadeiros principios da minha familia são os religiosos; nasceu e creou-se meu visavô no convento; auxiliou meu pae a restauração religiosa da senhora rainha D. Maria, que santa gloria haja, e foi minha irmã uma das fundadoras do culto da Senhora da Rocha. Voltára o frade, á frente da creada com a bandeja de dôces, a chicara do Japão com o café, e a garrafinha dourada com aguardente, a tempo de auxiliar a defeza dos bons principios: --O timbre e lustre da linhagem, excellentissimo senhor, é D. Francisco, que em serviço d'el-rei e gloria do reino, andou no cruzeiro d'Angola defendendo para a nação os rebanhos de escravos de que os malditos estrangeiros queriam lançar mão. Perseguido um dia por um negreiro hollandez refugiou-se na costa, e com tanta felicidade que poude dar auxilio a um barco portuguez que carregava _ébano_ para o Brasil. Não queriam obedecer os malditos pretos, e elle, n'uma patriotica decisão, desembarcou com uma manga de arcabuzeiros. Não intimidaram aos ferozes selvagens os elmos, as couraças, nem as grandes armas apoiadas nas forquilhas. E quando D. Francisco, ao cravar no sólo a nossa gloriosa bandeira, viu que não se deitavam por terra, curvando-se ante o lábaro sagrado que levára á Africa a religião de Christo, mandou-lhes dar uma surriada de arcabuzes, emquanto o navio os varejava de metralha. E de toda essa multidão bravia que nutrira a louca ideia de, com settas de cana, emplumadas de pennas de gallinha, defender mulheres e filhos, não ficou um para amostra. Dos nossos apenas foi ferido esse bravo dos bravos, com uma azagaiada na nadega, que toda a vida o fez sentar de banda. Muito ancho, accrescentou o morgado: --É o feito que commemora aquella cabeça de negro, em fundo de prata, do meu brazão; e a esse alto tropheu de familia corresponde aquelle outro emblema, as mãos de ouro em vermelho, como fartando-se d'esse sangue derramado em prol da nação. Muito risonho commentou o juiz, que tomára o café e provára um calice da justamente celebrada aguardente: --Pois conheço-o tão bem, D. Martinho, que me admiro não vêr-lhe sobre as armas o distinctivo dos bastardos reaes. --V. ex.{a} confunde-me! --É um direito que só lhe contestam os primos do Alemtejo, dizendo que n'esse tempo entrava em Odivellas o sequito do rei, até ao ultimo lacaio, que todas as freiras reclamavam os mesmos prazeres que a madre Paula, que as santas monjas não recusavam a esmola das graças corporaes, e que vibrava o mosteiro em alegres risos de muitas creanças. --Sei que meus primos falam por inveja--retorquiu o morgado--mas não deixam de reconhecer a superioridade do meu ramo, tanto que requestam para seu filho a mão de minha filha. Aproveitou o juiz o ensejo: --Desculpe v. ex.{a} o meu involuntario esquecimento. Como está sua excellentissima filha? --Bem, muito obrigado a v. ex.{a} --Já que me deu o prazer de conhecer os seus antepassados, desejava ter a honra de ser apresentado á senhora D. Maria, cujos dotes de espirito tanto me elogiam. Trocaram novo olhar o morgado e o frade, e acudiu fr. Angelico ao amo: --Sua excellencia disse «bem», porque felizmente não é coisa de gravidade, mas a pobre menina não se póde levantar da cama, constipada por esta frialdade... Estranhou o juiz n'uma inflexão grave: --Parece que o contrariou o meu desejo. --De modo algum. --Não m'o recuse pois. O seu ligeiro incommodo não a impedirá de certo de vir á sala. Interveiu de novo o frade: --Trata-se de um caso de certa gravidade, que só para não assustar o senhor morgado, fingimos considerar sem importancia. --Acho conveniente--retorquiu o juiz--que se não meta onde não é chamado. Dirigia-me ao senhor Soeiro, e creio que elle, que tanto se orgulha da sua nobreza, não ignora que os fidalgos dizem timbrar em não mentir. --E não mentem, senhor!--protestou o morgado. --Mantenha então a primeira resposta, de que sua filha se encontrava de perfeita saude. Encolhera-se o frade, e Martinho Vasques dirigiu-se ao juiz, mudando de tom: --Antes de mais nada: Que significa semelhante insistencia? --Sabe-o tão bem como eu. --Sinto apenas uma certa estranheza... --Tratando de sua filha, calcula decerto ao que venho. Vá, um bom movimento! Ponha de parte os seus escrupulos e torne felizes aquelles que uma honesta inclinação destinaram um ao outro. Passou no olhar do morgado um lampejo de rancor; mordeu furioso os labios, mas conteve-se ante o receio de ser dado por cumplice dos revoltosos, e de vêr confiscados os bens. Ainda assim entendeu dar por finda a visita: --Se v. ex.{a} não tem outro assumpto a tratar... Redarguiu energicamente o magistrado: --Vejo que comprehendeu o sentido das minhas palavras. Tenho pois todo o direito a uma resposta. Fazendo esforços para se não exceder, respondeu o morgado: --Minha filha casará com o primo D. Luiz de Sousa, a quem está prometida ha muito. --É essa a sua ultima palavra? --Naturalmente. --Desejava conhecer a resposta da senhora D. Maria. --Lá vem outra vez com minha filha! Accorreu de novo fr. Angelico: --As filhas só podem ter a vontade dos paes. Tornou a pedir o juiz: --Satisfaça v. ex.{a} o meu pedido, e retirar-me-hei com a resposta da senhora D. Maria, seja qual fôr. --Senhor, a sua insistencia! --Não se exalte. Quero estabelecer a harmonia e não desejo usar de outros processos. --Ameaça-me? --Não. Lembro-lhe apenas quem sou, e o respeito que me é devido. --Pois lembre-se tambem em casa de quem está, diante d'estas nobres figuras, e reconheça que, em vez da atitude pacifica em que se disfarça, levou a sua audacia, apoiada na escolta, a ponto de me tratar como um igual quando eu sou um fidalgo, e o senhor, apezar do seu cargo não passa de um plebeu. --Assim é. Na minha familia não ha femeas que tivessem servido de cano de esgôto para a transfusão do sangue real. Não me orgulho do que envergonha gente de bem. Quanto a esses mostrengos de narizes coloridos pela aguardente, só podem interessar a Lavater, que teria muito que estudar n'aquellas physionomias. Quanto a mim nada me importam, e de grande paciencia dei provas ouvindo-lhe as historietas do brazão. E como o frade se interpozesse, querendo abrandar o morgado, que bufava, apopletico: --Entremos no assumpto que aqui me traz. Recebeu a justiça uma queixa de que jaz ha muito tempo em carcere privado e recebe maus tratos, a senhora D. Maria. A insistencia com que recusou apresentar-m'a confirma a queixa. Ora nem v. ex.{a} nem pessoa alguma póde encarcerar por seu arbitrio quem quer que seja. Martinho Vasques desabafou: --Sente-se bem, no irritante do seu falar, que por terem vencido uma escaramuça, e haver o temporal desviado a esquadra, tem o rei na barriga, e se lançam em desenfreadas vinganças. Agora trazem a anarchia ao seio da familia! Já nem respeitam a santidade do lar! --O despotismo familiar não o respeitamos, nem o consentimos. É da lei, que temos obrigação de cumprir. --Essas malditas leis constitucionaes... --Já as ordenações do reino o prohibiam, mas eram letra morta as medidas que defendiam os fracos, pois gosavam da impunidade os poderosos como v. ex.{a}. Hoje a lei é egual para todos, quer premeie quer castigue. Eu proprio, por esta mesma diligencia posso ser julgado se me exceder. São regalias que custaram muito sangue, e hão de custar ainda mais. Mas o poder despotico de maltratar, de torturar, acabou para sempre! --Se quer que o respeite--bradou o morgado--não alluda mais ás intrigas tecidas por um atrevido que fui forçado a expulsar d'esta casa. --Saiba, senhor, que a justiça não se rebaixa a intrigas. Ha uma queixa em fórma, com testemunhas, contra o seu procedimento. --Uma queixa d'esses reles soldados... --Foi apresentada por uma fidalga, sua parenta, a sr.{a} D. Victoria, digna portanto de todo o credito. --Ah! Espertezas da menina Josepha da Esperança! Essa namoradeira é outra que tal! Se eu lhe tivesse arrancado as orelhas não era ella que ia enredar-me... --Vem dos mesmos illustres avós que v. ex.{a}, essa dama que maltrata. Mas não me pertence apreciar se o seu procedimento é ou não de fidalgo. Fazia esforços fr. Angelico por conter Martinho. O juiz dirigiu-se a elle: --Queira vossa reverendissima aconselhar o seu amigo. É conveniente evitar aparatos incommodos. Não desejo chamar a minha gente para testemunhar o encarceramento da senhora D. Maria, o que redundaria n'um processo crime, com pena de cadeia. Basta-me que lhe possa falar livremente, e esquecerei tudo o que desagradavel se tem passado. Arrastando-o para um canto, tentava o frade convencer o morgado, falando-lhe em voz baixa, acaloradamente mas, não conseguindo decidil-o a apresentar Maria, ainda pretendeu abrandar o juiz: --Se é necessario o testemunho do ministro do Senhor, aqui estou eu prompto a jurar, pelo santo nome de Deus, que s. ex.{a} é incapaz de opprimir sua filha, sendo, pelo contrario, o modelo dos Paes. Já enfadado, retorquiu-lhe o corregedor: --Vá vossa reverendissima buscar a senhora D. Maria, ou obrigam-me a praticar uma violencia, em que tambem será envolvido. Desculpou-se o frade para com o fidalgo, indicando-lhe o magistrado n'um gesto: --Deus é contra o escandalo. Dirigiu-se á porta, para ir chamal-a. --Seja assim--disse Martinho Vasques--vá buscal-a, e este senhor reconhecerá a sem razão das accusações dirigidas contra mim. Depois de a vir intimidando pelo corredor, apresentou Maria fr. Angelico: --Aqui a tem, senhor. Occupada com a pacificação da ilha, a captura dos guerrilheiros, a investigação das cumplicidades, não pudera a justiça intervir mais cedo. Estava Maria ao corrente dos seus esforços. Apezar da continua vigilancia, recebia cartas que o moço de cavallariça lhe metia da cocheira por uma greta do sobrado, onde introduzia as respostas, depois de bater devagarinho para baixo. Durante mezes interminaveis ambicionára esse momento, mas agora sentia-se fraquejar ao ter de queixar-se do pae, ao quebrar, ante o novo amor, a linha de obediencia, o respeito de filha, o periodo de submissão. Compadeceu-se do velho, cujo rosto transtornado vira de soslaio, e sentia-se sem forças para realisar o que planeára no seu desespero. Mas horrorisava-a o que a mãe soffrera, captiva d'esse homem que, por se dizer seu progenitor, por um direito que era alheio ao seu consentimento, a maltratára de palavras, a magoára brutalmente, e a fechára á chave no quarto, prohibindo-lhe os passeios, os entretenimentos, a correspondencia, o convivio. No absoluto isolamento dos primeiros dias horrorisara-se ante a annulação da individualidade, a suppressão da consciencia, que era a educação preconisada pelo pae. Ao visitar d'antes a prima Josepha envergonhava-se de não saber tocar cravo, de não conhecer os livros em que ella lhe falava, e que só a furto podia devorar, porque, no entender do morgado, a leitura pervertia a mulher. Não sabia bordar como ella, nem fazer os pequeninos enfeites que por toda a casa lhe denotavam a educação e o gosto. Depois, quando o frade lhe foi aconselhar uma submissão ainda mais completa, não só nos actos externos, mas nos seus sentimentos mais intimos, revoltou-se energicamente. E saíu corrido fr. Angelico, queixando se de que o demonio, por intermedio do jacobino, se apossára inteiramente d'ella. Por fim a mãe, exasperada pelo abandono, vendo o frade senhor da casa, pastoreando o rebanho das creadas, passou a odial-o, como odiava o esposo, comprehendendo o baixo interesse que o ligára a ella, emquanto do sacco das despezas lhe podia ir dando suas peças, e tornára-se cumplice da filha, protegendo-lhe a correspondencia, avisando-a do que elles projectavam, animando-a a insurgir-se, a libertar-se d'elles. E n'esses dias enfadonhos, n'essas infindaveis noites de inverno, contava lhe insulto a insulto, offensa a offensa, grosseria a grosseria, o seu martyrio de trinta annos. Prohibira-lhe o marido as idas á egreja, sua unica distração, mandando dizer missa na capella da quinta, para lhe tirar esse pretexto de saír; impedira-a de fazer visitas; negára-a ás pessoas que a procuravam; afastára-lhe os derradeiros parentes, que ainda arrostavam com o seu mau modo para não a desampararem; offendera-a, humilhára-a em intimidades suspeitas com serviçaes, com rendeiras, e fizera d'ella aquelle trapo, envelhecera-a aos cincoenta annos, moera-a, tornára-a negra por dentro, matára-a lentamente: que sem punhal ou veneno tambem se mata! Seguia o pae já com ella o systema; nunca vira com bons olhos Josepha, e por fim expulsára-a; queria entregal-a a um homem a quem recommendaria os seus processos, e tornal-a-ia uma escrava por sua vez. Oh! Antes morrer! Esperava dia a dia a promettida intervenção da autoridade, e tinha-a antecipadamente como o momento em que passaria a pertencer a João. Como elle era differente! Como seria ditosa ao seu lado, no enthusiasmo d'esse amor juvenil, na meiguice do olhar, na delicadeza do seu trato, na suavidade das suas falas. Com que direito pois lhe prohibiam a sua parte de felicidade n'este mundo, se tivera a suprema ventura de a poder realisar? Espreitava por dentro dos ralos a chegada da justiça, adivinhando-a em todos os vultos que divisava ao longe, nos carroções que denunciava o estrepito distante, e só n'essa manhã tivera a fortuna de a vêr chegar. Tremendo, abraçada á mãe, a quem n'esses dias de dôr quizera mais que em toda uma vida de afastamento, de seccura, aguardou que a fossem buscar. Parecia-lhe de mau agouro a demora. Quando o frade a chamou, seguiu-a D. Perpetua n'um repente tão aggressivo que fr. Angelico receiou um desacato. Que triste que era o seu noivado! pensava Maria, ao encaminhar-se para a sala, crente de que a esse rompimento seguiria o consorcio. Revoltou-se o juiz ao vêr-lhe os olhos pisados de chorar, as faces pallidas, cavadas, a agitação em que tremia. Pediu-lhe que se sentasse, e perguntou-lhe se era verdade ter sido maltratada, e encontrar-se prohibida de toda a communicação. Acobardou-se ella ante o tom grave da pergunta, e levando o lenço aos olhos, rompeu a chorar, sem responder. --Não preciso melhor confirmação--disse o juiz erguendo-se, e dirigindo-se a Martinho Vasques--É o caso da lei, abuso do poder paternal. Sou pois forçado a cumprir o que se me requer, o deposito judicial em casa do mais proximo parente. --Protesto contra semelhante violencia, e juro que lavarei esta afronta com sangue!--bradou o morgado. E increpou violentamente a filha: --Basta de comedia, menina. Diga claramente se lhe fiz algum mal. --Nenhum, senhor!--respondeu ella, abandonada de toda a energia, aniquilada pela commoção que, sobre a longa espectativa, lhe esgotava a resistencia. Mas D. Perpetua, que ficára entre portas a vigiar, desconfiada, entrou bradando como louca: --Senhor juiz, minha filha tem mêdo da fera! Este perverso bateu-lhe, como me bate em mim, e a pobre ainda tem os braços cheios de nodoas negras. É verdade que a tem fechada como a um cão, e manda ameaçal-a todos os dias por esse frade, que já se atreveu a levantar a mão para ella. Por unica resposta, disse o juiz: --Tenha a bondade, minha senhora, de mandar a sua filha o necessario para que me acompanhe immediatamente. Saíu promptamente a velha, dirigindo a fr. Angelico um olhar de triumpho. Olhar injectado de sangue, labios tremulos, ergueu-se o morgado em passo mal seguro, e dirigiu-se a Maria, que instinctivamente se refugiou por traz do magistrado. Este interpoz-se, na energia da sua figurinha secca, nervosa, fronte avincada, bôcca accentuada com firmeza, olhar vivo de argumentador, o ar decidido de homem novo, habituado aos grandes lances: --Que faz, senhor? --Quero despedir-me de minha filha!--tartamudeou Martinho--Não me assiste esse direito? Replicou o corregedor com repugnancia: --Esta senhora não o evitaria, se fosse um movimento sincero. Está n'essa repulsão o seu maior castigo. Atirou-se o fidalgo, esmagado, para uma cadeira, os olhos queimados de lagrimas de desespero, fechando os punhos em crispações nervosas: --Ah! Que se eu a abraçasse, ia esta noite ceiar com Christo! Entrou D. Perpetua, já de manto, o rebuço deitado para traz, ajudou-a a vestir a saia de merino, atou-lhe o capuz á cintura e deitou-lh'o pela cabeça, emquanto ella se despedia, abraçando-a e beijando-a: --Perdôe-me o passo que vou dar, e peça a Deus que me faça feliz. --Não o serás!--exclamou o pae--porque eu te amaldiçôo! Permitta o Senhor, filha desnaturada, que caias tão baixo que ainda venhas aqui de rastos, coberta de bichos, pedir uma côdea á porta d'esta casa que deshonraste. Deus te amaldiçôe, como eu te amaldiçôo! --Vamos, minha senhora, tenha coragem!--disse o juiz, dando o braço a Maria, e encaminhando-se para a porta, sem se despedir, indignado por semelhantes palavras. --Eu vou comtigo, não fico nem mais um dia n'esta casa--murmurou-lhe ao ouvido D. Perpetua. E cobrindo-se poz-se ao lado da filha. De um salto, o fidalgo tomou a porta, e deteve-a, emquanto o juiz e Maria se afastavam. --Onde vaes? --Sigo minha filha. --Isso é que não. A ti governo eu! Has de obedecer-me cegamente, has de ficar onde eu quizer, entendes bem, onde eu quizer! Fechou a porta violentamente, e empurrou-a para dentro. De joelhos, mãos postas, ella supplicava: --Por amôr de Deus! Deixa-me acompanhal-a! --Não! Has de pagar por ella. * * * * * Já na sége, para onde se deixára arrastar atordoada, reparou Maria na falta da mãe, e pelos gritos comprehendeu o que se passava. Pediu ao juiz que a fosse buscar, mas elle desculpou-se com a lei, que não o autorizava a tanto. N'uma grande amargura, Maria exclamou sentidamente: --Então, senhor juiz, para que serve a liberdade, se ainda se pode opprimir uma mulher! X Agora viam-se, falavam-se, estavam ali juntos um do outro, no vão da janela, um degrau acima do sobrado, como n'um nicho, sentados nos poiaes de pedra, os joelhos tocando-se, as mãos dadas, tão perto os labios, que só os impedia de passarem a tarde n'um longo beijo o olhar vigilante da tia Victorina, a mãe de Josepha da Esperança, enterrada na poltrona, roca á cinta, fiando massarocas para a Francisca da Bica, grande tecedeira, que as lançava no tear em guardanapos, lençoes e colchas, a trinta reis a vara. Para impedir o escandalo de se falarem da janela abaixo, permittia-lhes, aos domingos, a dona da casa, esse curto desabafo em que pesava com a sua presidencia, impassivel, entre a commoda negra, de pés recurvos, e a porta de vidraça da escura alcova onde dormiam as raparigas. Nos outros dias, ao passar para o castello e para casa, via-a João ao postigo do grande ralo, de riscas em diagonal pintadas a verde, com remates de pinhas nos rectangulos divididos pelos columnellos, manchas rubras de cravos nos recantos, no alto gaiolas de cana onde saltitavam canarios. Dominava-os a tristeza da casa, em que pairava a viuvez de D. Victoria, entristecendo a propria filha a quem faltava a distração das tardes na quinta, para onde, mal acabava de jantar, partia sentada na burrinha, que o moço tangia, escudeirando-a. Maria, olheirenta, emmagrecida, definhada pela vida tão differente que ali levava, fechada n'uma casa pequena, acostumada como estava a passar ao ar livre o dia inteiro, queixou-se, dominada por uma inconsolavel melancholia: --João, desde que saí de casa só tenho chorado. Foi praga que me rogaram. Ha de ser a maldição do pae! Em vão pretendia elle reagir contra o desanimo que tambem o ganhára: --Não penses n'isso. Temos que passar por este tributo. A nossa felicidade fará esquecer estas horas amargas, e até teu pae se cançará da sua teima, e ha de abençoar-te e querer-te ditosa. --Oh! O pae! Não o conheces bem. Mas ainda elle me queira sempre mal, paciencia. O que mais me custa é a mãe. --Está costumada, não soffre tanto como tu. --Deu-lhe volta ao juizo a minha saída, ficou a emprehender n'aquillo, e como lhe fechassem as portas atirou-se da janella abaixo para me vir vêr. --Coitada. --Tem estado á morte, e eu receio que morra sem a tornar a vêr. Sobresaltou-se João: --Acautela-te! Póde ser um estratagema para te obrigarem a voltar a casa. --Não. Infelizmente é verdade. --E como o soubeste? --Está por ahi tudo cheio. --Sim. Eu tambem o ouvi, mas tive-o por maroteira de fr. Angelico. Encarou-o Maria aterrada: --Foi a tua funesta hostilidade á religião que te inspirou esse falso testemunho, pois o frade nunca mais voltou á quinta desde que eu vim para aqui. Elle ficou mais receioso ainda: --Pois tu defendes esse homem, que tanto mal nos fez, que denunciou a minha visita, para que me espancassem, e se atreveu a pôr-te as mãos? --Não o defendo, não; mas temo por mim e por ti essa tua inclinação contra tudo o que respeita á egreja. Ainda te póde dar de rosto. --Agora, Maria, é que tenho razão para estar triste porque já me não pareces a mesma! --Não sei porquê--retorquiu offendida. Atalhou João, para não a desgostar mais: --Mas o que ha de tua mãe? --Assim que soube que o Malaquias, o mulato, moço do sineiro da Sé, fôra encanelar-lhe a perna, mandei-o chamar, e só depois de lhe acenar com uma pataca é que aquelle recancha se decidiu a vir coxeando até cá, pois tinha ordem de não dizer nada. --Era então verdade? --Sim. Esteve mais de um mez sem se virar, abandonada de todos, e até foi despedida uma creada porque a tratava caridosamente. --Pobre senhora! --Essa veiu cá, e contou-me horrores. Vive no meu quarto, fechada como eu, arrastando-se pegada a um pausinho. E dão-lhe convulsões que fica de bôca á banda, tomada de um lado. Para ali vive como um môcho, a penar, a penar, que antes o Senhor se lembrasse d'ella, Deus me perdõe! Elle tomou uma decisão: --Pois meu amôr, em vez de a lamentarmos, o que não lhe serve de nada, tratemos de a arrancar d'essa maldita casa. Requer-se uma acção de separação, prova-se com o testemunho da creada e do mulato o carcere privado, vae lá a justiça, e... --Exactamente como a mim. Mas de que me serviu, se sou tão infeliz como d'antes ... talvez ainda mais? De que servem essas leis, de que vocês fazem tantos escarceus, se me tiraram de uma prisão para me meterem n'outra, não nos deixando casar, como desejamos, senão quando eu tiver vinte e cinco annos; se permittem que uma pobre mulher esteja encerrada, pela vontade do marido, embora um juiz ouvisse que ella não queria viver em casa? Não, a felicidade não depende da alçada das leis, nem da vontade dos homens; a felicidade está na mão de Deus, e os que, como nós, o teem offendido, não a podem esperar nem n'este mundo, nem no outro! Encarou-a João, como a lêr-lhe no olhar, e depois respondeu commovido: --Dizes bem, dizes, não depende das leis a felicidade, nem de nós proprios, mas dos que nos educaram, dos que nos formaram o espirito, e que governam sempre dentro em nós. O que os principios porque nos batemos hão-de impedir d'aqui em diante, é a sementeira do mal, o obscurecimento dos cerebros, a aniquilação das consciencias. E sobresaltado por uma desconfiança, que como um relampago o esclareceu: --Por mais que negues, anda frade n'isto! Não é assim? Accentuou-lhe a suspeita a confusão d'ella: --Dize-me tudo. Não pódes ter segredos para mim! Sou como teu marido, desde que por minha causa abandonaste teu pae. Falaste com algum religioso? Negou ella, frouxamente: --Não, não falei. --Perdôa, mas não te acredito. Veiu aqui alguma d'essas aves de mau agouro! --Como me custa ouvir-te falar assim! --Mas veiu ou não veiu algum santo ministro do Senhor? --O padre mestre, confessor de minha tia, sim. Vem cá muitas vezes esse santo homem: que eu distingo bem fr. Angelico d'elle, mas nem me falou, nem eu ouvi o que diziam. --Então é intriga tecida por elle! Tem cá entrada. Mas que admiração, se em cada rua ha um convento, se a cidade é d'elles mais que dos moradores! E aproximando-se muito, tomando-lhe as mãos, n'uma voz grave, mas baixa como um murmurio, para que não o ouvisse D. Victoria: --Ah, minha querida Maria, que te querem roubar-me! Por amor de Deus desvia-te d'elles, não lhes dês ouvidos, considera antecipadamente como envenenadas as suas palavras! Querem separar-te de mim, pretendem desforrar-se do meu triumpho. E se ainda me queres bem, como o provaste, recusa-te a ouvil-os, quer falem em nome de tua mãe, que desgraçaram, porque foram elles que a inutilisaram, pergunta-lh'o um dia, se puderes; quer te falem em nome de Deus, que trazem sempre nos labios, tendo o demonio no coração! Maria respondeu com lagrimas na voz: --Pois pódes duvidar de mim, ao passo que dei! Eu, uma morgada, esquecer-me do respeito que devo ao meu nome, por amor de ti! Eu, uma fidalga, expôr-me a commentarios vergonhosos... E não poude mais. Afogada n'um choro convulso, que disfarçava tapando a bocca com o lenço, virando para as gelosias os olhos requeimados. Então confessou-lhe tudo. A convite do padre mestre, resolvera ir D. Victoria a uma festa em S. Francisco. Quizera leval-a comsigo, e aos favores que lhe devia não se pudera recusar. Como ia de manto, ninguem a conheceria. Não tencionava confessar-lh'o, para o não desgostar. Houve missa cantada, distrahiu-se com a cantoria e com as ceremonias, que não via ha tantos annos, mas ao sermão cuidou morrer de vergonha. Bradára um frade contra os desacatos, falára de Christo crivado de tiros, calices profanados em orgias, altares escolhidos para sentinas; indicára horriveis castigos para os constitucionaes e para as mulheres que os seguissem, alvejando intencionalmente as desgraçadas que abandonavam os paes para seguirem soldados, arrastadas por baixos apetites, tratando-as a todas por furias e prostitutas, indignas de se aproximarem da mêsa da communhão. Chorára a dentro do biôco, parecendo-lhe que, como bofetadas, a escaldavam esses insultos, e que todos se voltavam para ella, como se o seu peccado fosse visivel através do manto, e a fulminassem os crentes em piedosa indignação. --Trahiram-te, meu pobre amor! Ah! que cobardes! Pois não comprehendes que tudo isso foi forjado para te intimidar! Tua prima decerto não chorou, tenho a certeza. --Até se levantou para se ir embora em meio do sermão, e já se zangou com o padre mestre pela linda festa para que nos convidára. Elle desculpou-se, coitado, que todos os sermões eram assim, que se tornava necessario combater o erro, responder com a guerra aos inimigos da fé! --Hypocrita! Mas Christo prégou uma religião de paz e de amôr, e elles querem o odio e a vingança! Christo foi o primeiro liberal, apontando a egualdade e a fraternidade. Christo prégou a pobreza e a humildade, e elles são ricos e poderosos. Acredita-me, os verdadeiros christãos somos nós! Pelo bem que lhe queria, dava-lhe João a ingenua interpretação do tempo, porque só gradualmente a poderia emancipar. Ella sentia-se desafogada com as explicações, porque tambem a chocára a grossaria, o baixo espirito interesseiro dos industriaes da fé. --Mas se vocês são assim, e eu acredito que, pelo menos tu, és como dizes, para que horrorisam os crentes com esses aggravos? --Que lucravamos com isso, tontinha! São elles que os inventam e praticam, e mostram depois as cruzes derrubadas, para incitarem contra nós esse pobre povo que queremos emancipar. Por fim Maria resignou-se. Tinha de ser d'elle. Estava escripto que para o conseguir haveria de passar todos aquelles tragos. Pois que remedio. E João confiava mais n'aquelle fatalismo, na teimosia d'ella em levar a sua ávante, que em a ter convencido das artimanhas fradescas. Parecia-lhe que mal tinham começado a falar, e já os interrompia a tosse pontual de D. Victoria. --Josepha, fecha-me aquella janela, filha. Em caíndo a tarde, começa a peitogueira ás voltas commigo. Era da praxe n'esta altura interessar-se João pela saude d'ella, não o fazendo ao principio para não cercear o tempo da entrevista, e poder demorar-se depois, um pouco mais, junto de Maria. Deixara-se sempre illudir a velha. --Aquelle peito era uma panela a ferver, a referver, á tardinha principalmente. Bastante gastára em promessas a S. Braz e Santa Margarida, advogados contra o mal da garganta, e a S. Tude, protector contra a tosse, mas cada vez se sentia peior. Trazia João engatilhado um repertorio de drogas e esvasiava as algibeiras de uma provisão de papeis e embrulhinhos. --Aquella era a receita de um xarope, invenção da tia Pulcheria, que lhe tirára uma tosse convulsa, depois de já ter sido chamado o Craca para lhe tomar medida do caixão; estas pastilhas fizera-as o senhor Juvencio de encommenda, com tudo quanto havia de melhor e mais approvado. E emquanto se prolongava o colloquio, deliciando-se D. Victoria em queixar se de todos os seus males, Maria e Josepha, como na quinta, riam enlaçadas ao fim do corredor, desafiando João. Pingavam trindades, erguia-se a velha com esforço e benzia-se unctuosamente, murmurando as ave-marias e a gloria-patri; e João, emancipado em casa, transigia ali, imitando-lhe os gestos e mexendo os labios em furtadelas de olhos para o corredor, no que Maria julgava, enternecida, vêr uma satisfação aos seus escrupulos, embora a maldosa Josepha a desiludisse, elogiando as inexgotaveis manhas do namorado. Forçava-o o lusco-fusco a despedir-se, e então seguia pelo corredor, já escuro, emquanto Josepha avançava á sala a fazer-lhes costas, entretendo a mãe, e a sua verdadeira entrevista era quando elle a beijava apaixonadamente, ao propositado ruido de abrir a porta da rua. Dissipavam-se os receios de Maria, defendendo-se inhabilmente dos beijos: --Mas como tu estás atrevido. É da farda! Olha que te fica a matar! E porque é que nunca me beijaste quando estavamos juntos? --Não sabia se gostavas de mim. --E agora sabes? --Percebe-se. --E porque não percebias então? --Nem tu mesmo o sabias. --Isso sabia. Mas que fosse tanto, não; confesso! Echoavam estrondos de catarrho. Descia elle, corrido, e ella voltava de olhos baixos, para ir ao ralo vêl-o sahir. Então D. Victoria chamava pela filha, que era o mesmo que chamar por ella: --Venha para dentro, menina, não seja janeleira, que não foi essa a sua creação. É uma maia, sempre impeirada á janela. Muito perdeu a menina em seu pae, Deus lhe fale n'alma, que a havia de sopear. Meteram-se para dentro, fechou-se a casa, e no escuro da alcova o terror reconquistou Maria. Queria desfazer-lhe Josepha a impressão das reprimendas da mãe: --Não faças caso, é genio. Sempre assim foi, mas não julgues que te quer mal. Olha que foi ella quem, a meu pedido, requereu o teu deposito e fez a queixa. --Antes o não fizesse. --Porque? Não estás contente em minha casa? Ligas importancia a rabugices? --Não é a tua casa, filha, é a minha situação que me afflige. Se soubesse que havia de estar tanto tempo á espera de edade, não saía de casa, não desgostava a mãe, não offendia o pae. --É o que dizes agora. Mas não podias aturar aquella vida. --Nem posso supportar esta! Se tivesse casado, tapava a bôca a essa má gente. Mas assim, fóra de casa, vendo João, recebendo-o, é ser esbandalhada por essas linguas perversas. E hei-de passar cinco annos assim? Oh! não posso, não posso! --Ó filha, mas se tu não casas com elle é porque não queres. Vão juntos á missa, e quando o padre estiver quasi quasi a deitar a benção digam, de mãos dadas, as palavras sacramentaes, que se recebem por marido e mulher, e o padre, que não pode parar a reza por nada d'este mundo, tem por força de deitar a benção, deita-a, está deitada, vocês casados, com toda a egreja por testemunha, e salta logo para casa d'elle. E se teu pae quizer melhor que se ponha ás bôas e faça boda de estadão. E até o João pode combinar-se com o padre, que os ha muito constitucionaes, e é dito e feito. --Uma mulher como eu não dá semelhante passo--protestou Maria--Por ter saído de casa não deixo de ser quem sou, e nunca praticarei um acto de que se possa fazer pouco. --Então queixa-te de ti. --Hei de casar com elle, espere quanto tempo esperar, que não sou das que se esquecem, nem das que se cançam. Mas ou hade ser como deve ser, ou nunca; ainda que estale de saudade. Se eu sou assim! --Mas não vejo que te resignes, te disponhas a esperar com paciencia. Afinal que queres tu? --O que quero? Nem eu sei, Josepha, nem eu sei! * * * * * Assim passaram longos dias, até que a assustaram boatos de nova esquadra. Falavam com orgulho os miguelistas do seu grande poder: vinte e um navios, com trezentas e quarenta peças e seis mil homens, entre soldados e marinheiros; uma alçada para julgar summariamente os constitucionaes, e um carrasco para os despachar com promptidão. Bem sabiam os liberaes o que succederia se fosse tomada a ilha. Figuravam-se-lhes os autos de fé do miguelismo: procissões de condemnados, descalços, entre frades, levando horas da cadeia á forca, a entoar o _miserere_ deante das capellas do percurso; depois enforcados no longo ceremonial que com cada um absorvia uma hora, aggravando a tortura moral dos que esperavam, e divertindo mais damas e frades que davam vivas a D. Miguel e á religião, acenando com lenços, applaudindo as execuções. Estremeciam de horror ao recordar a viuva de um enforcado morrendo de afflição; o pae de um rapaz, assassinado pela lei, suicidando-se de desespero; uma pobre mãe affrontada pela exposição da cabeça do filho, espetada n'um poste deante da vidraça! Era uma perseguição em massa que degradára mil e seiscentas pessoas, forçára a esconderem-se cinco mil, arrastára á emigração treze mil e setecentas, mantinha vinte mil sob a vigilancia de suspeitos, tinha a dentro dos carceres mais de vinte e seis mil pessoas de ambos os sexos, e sequestrára os bens de oitenta e duas mil familias! Longe de os acobardar, incitavam-os esses terriveis exemplos a combaterem com desespero. O conego Ferraz, sabendo bem o que o esperava se triumphassem os miguelistas, trazia comsigo um frasquinho de veneno, para não caír vivo em poder do carrasco. João procurava tranquilisar Maria, ácêrca dos resultados da lucta. Assim como se tornára a ilha, agora elevada á cathegoria de reino, o alvo do odio absolutista, tambem fôra o ponto de concentração dos liberaes, e assim já tinham para se oppôr ás forças inimigas alguns reforços de emigrados, armas e munições vindas de Inglaterra, e um general como Villa-Flôr para dirigir a defeza. Todo o littoral estava defendido, nos poucos pontos onde a costa permittia a abordagem. Uma manhã foi João precipitadamente despedir-se, porque ia para a villa da Praia com os Voluntarios da Rainha. * * * * * Enthusiasmado com a vinda da esquadra, contando como certa a victoria, tão grandes os recursos accumulados, arrancou-se o morgado do isolamento da quinta, onde cada vez bebia mais, para esquecer a offensa de Maria, para não ouvir os gritos da mulher, e montando a cavallo dirigiu-se ao convento de São Francisco. Ha muito que fr. Angelico não ia á quinta. Quando lá fôra a justiça, ao sentir o chocalhar de ferragens da traquitana, voltára-se desesperada D. Perpetua para o frade: --Se não me defendes, Angelico, eu confesso-me a meu marido e então acabou-se tudo! Não permittiam illusões o rosto congestionado, a bôca espumante, o olhar desvairado, de louca. Fôra logo despedir-se de Martinho Vasques o franciscano, pretextando o receio da denuncia do juiz e das queixas de Maria. Era bom que n'esse mesmo dia o vissem no templo, votado ao culto, para desmentir a accusação tanto de temer. E sem consentir que o morgado mandasse pôr o carroção, arregaçou o habito, deitou o capuz pela cabeça, e fugiu debaixo d'agua ás pernadas, até se abrigar n'um portal. Que lhe quereria o morgado? perguntava a si proprio, ao ir recebel-o. Dissipou-lhe porém todo o receio a attitude de Martinho, ainda na grande paixão da desfeita recebida: --Deixe-me desabafar, fr. Angelico, que ha tanto tempo não o faço. Já não ha religião, já não ha respeito filial, já não ha Deus! Mãos postas, olhos em alvo, voz de cana rachada, exclamou o frade, simulando um devoto horror: --Não blasfemes, creatura, contra o teu Creador! Curva-te á vontade do Altissimo, que a tua expiação está terminada! E mudando de tom: --Alegrar, senhor morgado, que ha grandes novas! --Por isso vim, fr. Angelico. É então certo que voltaremos aos bons tempos? --Só podiam duvidar gentes de pouca fé. --Pois eu julguei-me abandonado do céo! --Espere em Deus, que é pae da misericordia! Sempre ha de haver frades, sempre ha de haver religião! Vae em dezanove seculos! Havia de acabar assim, quando já resistiu ao proprio demonio, na pessoa de Luthero; ao anti-christo encarnado em Bonaparte? Estes pandilhas não valem nem um nem outro. --E agora? --Será forçada á obediencia paterna sua infeliz filha... --Já não tenho filha! Era essa a phrase feita que desde então tivera para todos, mas não correspondia sinceramente ao seu sentir. Queria-a em casa, como desaggravo, como affirmação do poder paternal, como homenagem á sua categoria. --Responde v. ex.{a} como quem é, mas eu procedi como devia, de que lhe peço perdão, caso não appoie os meus passos. --Que quer dizer? --Nunca abandonei a sua causa, comquanto os deveres do meu ministerio, que me impõe a cega obediencia ao poder constituido, me impedissem de ir receber as suas ordens... E aqui, já seguro de que não fôra descoberto, perguntou: --Como está a senhora D. Perpetua, depois d'aquella triste fatalidade? Pobre senhora! --Não sei nem quero saber. Nunca mais verei nem uma nem outra. Tinha porém, curiosidade de conhecer o que fizera o frade: --Ia dizendo... --Que não me dei por vencido pelos inimigos de Deus. Pratiquei n'esta egreja uma das obras de caridade, ensinando os ignorantes, castigando os que erram, e a filha desobediente ouviu n'um terrivel sermão... --Já sei. --Mas não foi só isso! Os miseraveis julgam que com garatujas n'um pedaço de papel governam tudo, e afinal somos nós quem governamos e havemos de governar sempre. O nosso reino não é d'este mundo, as nossas armas são espirituaes, e as crenças religiosas ligam-nos para sempre os cordeirinhos embora desgarrados, promptos a voltarem ao aprisco mal os ameaça o lobo da heresia. --Acabe!--pedia o morgado impaciente. --Trouxe sempre vigiada a innocencia por outro grande pastor d'almas, o nosso padre mestre, que tem feito ver a sua prima D. Victoria o peccado que commetteu. Ella, que é uma mulher de vergonha... --Uma descarada!--protestou Martinho Vasques--Fazer-me o que me fez! Mas não admira, a fama que ella sempre teve, com a casa cheia de frades... Tocado na corda sensivel, voltou fr. Angelico ao pathetico: --Calumnias, meu senhor, calumnias espalhadas pelos filhos de Satanaz. Não ha nenhum director espiritual d'essas santas senhoras que não tenha sido conspurcado na sua virtude, na sua innocente castidade. Até sei pelas suas creadas que a senhora D. Perpetua, n'aquellas terriveis convulsões em que parece possessa do inimigo, diz contra mim coisas de se abrir o chão, decerto inspiradas pelo proprio demonio, como vingança contra o varão forte que por tanto tempo lh'a defendeu das garras. E n'um suspiro, como não obtivesse resposta, voltou a D. Victoria: --Ella tem feito todo o possivel para a desgostar, e não se opporá a que lh'a tirem d'ali. Atraiçoou-se o morgado, pondo de parte a rigidez apparente: --Dava metade do que possuo para a fazer voltar a casa, sem que, pelo triumpho dos nossos, a forçassemos, por forma a fazer rebentar a castanha na bôca aos que se regosijavam com a minha vergonha. --Pois dê v. ex.{a} com que eu possa mover o ceu a nosso favor, e tentarei o milagre. Sabendo-lhe as manhas, ia Martinho Vasques prevenido de dinheiro, a vêr se, a troco de alguma esmola para o convento, lhe deixavam levar o indispensavel commensal. --Pois aqui tem para principio. E quanto mais depressa, melhor. --É agora propicia a occasião. Está o seductor seguro na Praia. Mas pretendem recolher-se ao castello, com as familias, se forem derrotados á beira-mar, e se lá a metem, então, meu senhor, é que é fazer-lhe uma cruz. Ficaria perdida a senhora D. Maria, entre semelhante malta. Da mesma sorte se os nossos desembarcarem rapidamente, como ha de permtir o ceu, tomando-a por liberal, violental-a-hão, e á prima, como é do seu dever, para exemplo das malditas mulheres que preferem as creaturas de Satanaz aos amigos da religião. Portanto, se podermos recolher desde já a filha prodiga, teremos mais socego para os ver esganar, pois virá por ahi quem saiba da póda. --Que tenciona fazer? --O que Deus me inspirar. --Mas quando, quando? --Elle o determinará em sua divina sabedoria. E como o morgado, apesar de devoto, não ficasse muito satisfeito: --Olhe, vá v. ex.{a} a pé por essa cidade, mande a besta esperal-o fóra dos portões, e a todos que lhe perguntarem por sua esposa dê-a como perdida, que poucos dias lhe restam de vida, para que a senhora D. Maria o saiba. Ensinarei o recado ao padre mestre, para dizer a D. Victoria que é um caso de consciencia encobrir por mais tempo a uma filha a agonia da mãe. Depois eu darei conta de mim. * * * * * Uma tarde, tendo ensaiado fr. Angelico um ar compungido, certo da afflicção de Maria pelas más noticias da mãe, foi a casa de D. Victoria. Mal o viu, atirou-lhe Josepha com a porta, mas o frade insistiu, percebendo que a mãe a reprehendia, ao saber quem era. Em voz de prédica, perguntou da escada se a senhora D. Maria estava em carcere privado, e se era contra a Carta Constitucional levar a uma filha noticias de sua mãe. Foram abrir-lhe, e Maria, apezar dos exforços de Josepha para a fechar na alcova, pediu por amor de Deus novas de D. Joanna. Elle, n'uma suavidade melada, ergueu os olhos, e declamou: --Deus manda perdoar as injurias, esquecer as fraquezas do proximo, e consolar os afflictos! Fiz ideia como estaria a sua alma, e arrisquei-me a este passo, que pode ser tão mal apreciado... --Diga-me a verdade!--implorou Maria, atterrada pelo exordio. --Peço-lhe que não se assuste. A senhora D. Perpetua está gravemente doente, mas ainda ha esperanças de a salvar. Maria recriminou a prima: --Ou haverá ou não! Eu bem t'o dizia, Josepha, eu bem t'o dizia. Mas ella continuava a disputal-a: --Não te deixes enredar! --E com isto não enfado mais--disse o frade, cumprimentando muito correcto, um ar de beatitude a escorrer-lhe pela face alvar--Vim só trazer esta palavra de consolação, como é dever do meu ministerio. Sua mãe não está na agonia, como para ahi espalharam, o que me forçou a vir tranquilisal-a. Eu ainda confio n'um milagre! Quiz demoral-o D. Victoria: --Então, nem sequer se senta! Faça-me um bocadinho de companhia... --Muito obrigado, minha querida senhora, mas a minha presença não agrada... --Peço-lhe perdão pelo que toca a minha filha. Se ella tivesse um pae que a castigasse... Aproveitou o frade o pretexto, e pegaram-se n'uma interminavel palestra, emquanto Josepha conseguia arrastar a prima para dentro. Mas ahi Maria respondeu-lhe frenetica: --Que mau sestro tomaram todos de me governar. Foi o pae, a mãe, depois o João, tua mãe, e agora tu! Pois eu tenho mais juizo que vocês todos, não preciso de tutôres. --Estás sendo muito enganada!--repetiu Josepha. --Deixa-me! Deixa-me! E refugiou-se na torre, a meditar, sentada n'um bahu, a cabeça apoiada nas mãos, os olhos vidrados muito abertos, as fontes latejando. Depois ergueu-se, enxugou os olhos, e foi direita á sala. --Que vaes fazer!--perguntou Josepha, interpondo-se: --O que devo! Larga-me. E arrependendo-se: --Bem sei que me queres bem, mas perdôa. Oh! Ninguem se veja como eu me vejo! No estoicismo da resolução, dirigiu-se a fr. Angelico da Immaculada: --Muito obrigada a vossa reverendissima pelas suas noticias. O meu desejo era ver a mãe... --Não esperava menos do seu coração de filha!--exclamou radiante o frade--É esse effectivamente o seu dever. --Ai, Maria, que caiste no laço!--bradou Josepha,--Estás doida? Estás doida? Mas ella, sem a attender, dizia ao frade: --Se pudesse ser... --Hei de fazer o possivel, alma santa!--respondia fr. Angelico, revirando os olhos. --O pae não ha de querer ...--continuava Maria, emquanto D. Victoria continha a filha. --Oh! Não conhece a grandeza do seu coração! Foi muito offendido, realmente, mas é pae, é pae! --Aconselhe-me então o que devo fazer. --Foi Deus que a inspirou. Faça o que disse. Venha vêr sua mãe. Eu acompanho-a, e respondo pela licença do senhor morgado. --E quando? quando? --Quanto mais depressa melhor, que a vida e a morte estão nas mãos de Deus! Josepha ainda irrompeu, avançando para o frade: --O que falta aqui é um homem para o esbofatear! Mas nada poude demover Maria, muito tremula, batendo os dentes, convulsa, á ideia de ir vêr a mãe. Ao saír, com a tia e o frade, ainda Josepha a puchou para dentro: --Ó doida! E ao João, que lhe hei de dizer? E como ella balbuciasse que ia só vêl-a, e que voltava, tapando a bôcca, abafando-se no biôco do manto para não a ouvirem soluçar, gritou-lhe do alto da escada: --Mal empregado rapaz! Tu não o mereces! XI Pelo caminho, baloiçada na traquitana que tomaram no alto das Covas, ainda lhe echoavam aos ouvidos as palavras de Josepha: «Não o merecia». E o que diria elle ao saber que destruira n'um momento o que bastante lhe custára a conseguir? Era capaz de descrer d'ella. Roubar-lh'o-ia a prima, que tanto sympathisava com elle? Mas não havia de deixar morrer a mãe á mingua. Deus não lh'o perdoaria, e para sempre esse peccado ameaçaria a sua felicidade. João, que era prudente e rasoavel, comprehendel-a-ia. E se Josepha a intrigasse? Logo aquella triste coincidencia de estar na Praia. E ao lembrar-se que elle se encontrava em perigo de vida, davam-lhe furias de saltar do carro, de fugir para junto da prima. Que cobardia a sua! Abandonal-o quando se arriscava, envolvido em tudo aquillo por causa d'ella! Dominava-a, porém, o pavoroso abandono da velha, e via-a como a creada a pintara, gaguejando, a cama por fazer, atulhada em cisco, envolvida em trapos! Desgraçada! Na sua ingenuidade parecia-lhe assim melhor para todos. Imaginava uma grande scena de reconciliação, o pae abraçando-a quando se lhe deitasse aos pés a pedir perdão, e fr. Angelico abençoando-a em nome de Deus, limpando uma lagrima. Agora não lhe parecia mau o frade, n'aquelle ar compungido. E crendo possivel pôr tudo em bem, ainda esperava falar a João na propria quinta, e talvez, quem sabe, ganhar pouco a pouco, pela submissão, a boa vontade do pae, podendo ser que viesse a casar por consentimento d'elle. Esfarrapava n'um momento a suave visão o echo dos gritos de Josepha, a lembrança das indignações de João quando soubera do desagravo de S. Francisco. Sendo impossivel contentar a todos, limitar-se-ia ao que a levava ali, vêr a mãe, tranquilisar-se a respeito do seu estado. Chegaram, e, como se já contassem com elles, ninguem appareceu. Deixou-as o frade na casa de entrada, e foi em procura do morgado. Recordou-se da cilada armada a João, dos maus tratos a que só a justiça a pudera arrancar, mas, longe de intimidar-se, sentiu que a emancipára a saída da casa paterna, dando-lhe a consciencia da propria individualidade. Alarmou-a um grito da mãe, um grito de desespero, rouco, abafado pela porta, vindo do interior. Ia accudir-lhe, mas conteve-a D. Victoria, e ella propria reconheceu então que perdera o direito de entrar como d'antes. Appareceu o frade, mostrando-se confuso, transtornado, apparentando vir offegante como de uma grande discussão. Repetiam-se os gritos de D. Perpetua e, como incommodado por elles, disse á pressa fr. Angelico: --Accusou-me de desleal o senhor morgado por a ter introduzido aqui. Diz que a senhora só póde entrar n'esta casa como filha arrependida e submissa, e até sem esperança de um perdão, que só a sua conducta poderá merecer. E Deus me perdoe ter procurado semelhantes trabalhos por minhas mãos! Teve Maria um impeto de voltar para traz, mas os gritos da mãe pregavam-a ao sobrado. Fez-se luz no seu espirito, não duvidou que o frade fôra expressamente preparar-lhe aquella situação. E n'um relance comparou a vida que levava em casa da prima, sem poder vêr João, senão vigiada. Era-lhe mais doloroso tel-o junto a si, sem poder desabafar. Ali, tratando da mãe, parecer-lhe-ia menos penosa a espera. Decidira-se em casa de Josepha, apesar das suas solicitações. Tinha por melhor esperar ali. E respondeu gravemente ao frade que sim, que ficava de vez, desde que o pae não duvidava acceital-a. Despedira-se, applaudindo-a, D. Victoria, desejosa de se vêr livre d'ella, e Maria, de olhos enxutos, cabeça erguida, caminhou após o frade em direcção ao seu quarto, aonde agora estava D. Perpetua. Então fr. Angelico, retomando o ar de dominio de outros tempos, reprehendeu-a severamente: --Lembre-se que a sua desobediencia trouxe a deshonra e a desgraça a esta casa, e que a doença de sua mãe é o justo castigo de Deus. --Representou bem o seu papel--respondeu-lhe Maria--mas não julgue que me illudiu, nem creia que se ha-de rir de mim. Abriu a porta, fechada por fóra, e tirou a chave. No leito soltava a mãe phrases incomprehensiveis. Sabia que a esperavam, e os seus berros tinham sido para que não ficasse, para que não tornasse a caír nas mãos dos seus algozes. O estado em que a viu fortaleceu Maria na consciencia do dever cumprido. Vibrava o seu corpo fragil n'uma energia de ferro. Olhava para tudo como senhora, como morgada, e revoltava-a aquelle abandono. Ia ao pae para reclamar um medico, e dar então ordem á casa. Mas D. Perpetua, temendo ficar só, chamou-a afflicta para junto de si: --Filha, não sei se tornarei a vêr-te, que elles são capazes de te fechar, ou até de te estrangularem, como já me teem querido fazer. E o seu espirito doente confundia a realidade com a allucinação: --Quero confessar-me, Maria, que estou para Deus me levar; mas ha-de ser a ti, filha, que não creio no fr. Angelico nem nos outros malditos! Sacudia-a a convulsão, entortavam-se-lhe os olhos, ficava-lhe a bocca arrepanhada ao lado, asphyxiava-a a escuma sanguinolenta, que Maria limpava compadecida. --Quero confessar-me a ti, sim, filha--voltava ella n'uma insistencia pavorosa, olhos esgazeados, a voz cortada, difficil de perceber--Tenho um grande remorso, um peccado mortal, e tu, que estás uma mulher, pódes comprehender-me e perdoar-me. Pedia-lhe que socegasse, mas ella tinha a ancia de falar: --Fui rapariga como tu, e não tive a felicidade de encontrar um rapaz como o que amas, que é o brio dos homens, ao que tem feito por ti. Ha tanto quem possa ser feliz e tanto quem nunca o poude ser! São destinos. Eu enganei-me sempre, e querendo tornar-me ditosa fui ludibriada por teu pae, e vi-me casada com elle sem amor. N'uma explosão de raiva e nojo, em arrancos como se vomitasse, contou-lhe a torpe ligação ao frade, a maneira como elle a explorára e como por fim a tratava, unindo-se ao marido contra ella. Então Maria comprehendeu o sentido das allusões de João e Josepha, certos sorrisos surprehendidos em beiços de creadas. Quando a viu mais tranquilla, aliviada pelo desabafo da sua miseria, saíu Maria, cada vez mais resoluta. Encontrou o frade no escriptorio: --Fez-me minha mãe certas revelações, creio que me comprehende... E a perturbação de fr. Angelico mostrava-lhe que sim. --Não voltará a esta casa, sob pena do pae nunca mais o deixar saír. Desculpe-se como puder. Aos seus processos, não lhe será difficil. Muito enfiado, levantou-se fr. Angelico da papeleira, e deixando a escripta como estava, compoz o habito, desejando vêr-se muito longe d'ali. Encontrou o morgado á meza, e não teve meio de esquivar-se immediatamente. Podia levantar suspeitas, que lhe seriam fataes, e resignou-se a acompanhal-o ao jantar, no supplicio de não poder comer. Repentinamente Maria entrou e dirigiu-se a Martinho Vasques: --A sua benção, pae. Tomou-lhe a mão e beijou-lh'a, sem que elle, perturbado, podesse retirar-lh'a. Sempre de pé, declarou n'uma voz sumida: --Conforme as suas palavras, procurarei merecer o seu perdão tratando da mãe. Pôz o morgado os olhos no prato, e não respondeu palavra. Muito servilmente, para captar a benevolencia d'ella, interveiu o frade: --Volta a viver como outr'ora, foram as palavras de seu pae. Tenha a bondade de sentar-se--e offereceu-lhe uma cadeira--que eu tenho de levar até ao fim a missão de que me encarreguei. Chamou a creada, mandou pôr-lhe talher, e voltou-se para Martinho, que continuava comendo, como se nada fosse com elle: --O senhor morgado perdoará, porque Deus tambem perdoou! --Com licença, pae!--disse Maria sentando-se. E emquanto redobrava o pasmo de Martinho, ella adquiria maior firmeza, mais sangue frio. Reapossava-se do seu logar, succedia á mãe como dona da casa, para depois succeder ao pae como senhora absoluta de tudo. Mal teve ensejo, ergueu-se o frade, a despedir-se. --Tenha a bondade de mandar immediatamente um bom medico, que não se póde abandonar uma creatura de Deus no estado a que chegou a mãe. Para se furtar ao cumprimento da filha, ergueu-se Martinho e agarrou-se ao franciscano: --Venha d'ahi, fr. Angelico, beber uma golada para o caminho. Sentiu-os afastar, discutindo, e então chamou as creadas, reprehendeu-as, tratando-as de desmazeladas, e levou adiante de si, tremendo de medo, para arranjarem o quarto, as que ainda ha pouco se riam da velha. No dia seguinte, depois de almoçarem sem trocar palavra, veiu o medico, que observou demoradamente D. Perpetua. Levou-o Maria á presença do pae, a quem elle expoz a situação da doente. Devia ter sido chamado mais cedo. Talvez nas Caldas da Rainha podesse obter melhoras. Ali ficaria entrevada de todo. Ouviu-o o fidalgo com má sombra, sem responder. No seu impenetravel mutismo, meditava na maneira de sahir d'aquella situação, peior que a anterior, a casa governada pela filha, o exemplo d'essa arrogancia mostrando-lhe bem o que ella faria quando João voltasse da Praia e começasse a rondar por ali. Animava-o, porém, a confiança de que triumphasse a esquadra miguelista, desfazendo o castello de cartas do minusculo reino liberal. Então recolhel-a-ia a um convento, até a levar para Lisboa, ou a casar com o primo, se ainda a podesse render pela clausura, ou a fazel-a professar. Descançava Maria no banco do pomar, onde passava as tardes com João, pensando n'elle, quando uma creada a foi chamar: --Venha vêr, menina, venha vêr que coisa tão linda. É a esquadra do senhor D. Miguel. Subiu assustada ao mirante, e viu ao largo, no pégo do mar, vinda de oeste, a infinita linha dos navios, carregados de pannos, rebocando enfiadas de grandes barcos que, n'uma bordada ao sul da Terceira, tinham ido reunir ás ilhas de baixo para o desembarque. Rindo inconscientes, as creadas comparavam a resteas d'alhos a correntêza de lanchas. Aterrava-a o grande poder, que ia talvez roubar-lhe para sempre o seu noivo, a sua ventura. No torreão, munido de oculo, contava o morgado a nau, as fragatas, as corvetas, e considerava como positivo o triumpho dos seus. Até ao pôr do sol viram-os sempre, parecendo fixos no mesmo ponto; mas ao romper da manhã, quando Maria os procurava inquieta, já não os avistou. Por volta das onze horas começaram a ouvir-se estampidos muito distantes. Estava travado o combate, mas não era contra o castello, cujas muralhas se avistavam da quinta. Só podia ser na villa da Praia, onde estava João! E n'uma desesperada angustia figurava-se-lhe o horror de carnificinas, como a do Pico do Selleiro. Ao começo da noite, encostada ao ralo, ouviu passar homens do trabalho, que vinham da cidade, falando alterados, decerto commentando as noticias da batalha. Gritavam «viva a nau encalhada», mas essa phrase nada lhe fazia comprehender. Chamou o pae um rancho, e perguntou-lhe o que se passára. Responderam n'uma attitude hostil, repetindo os vivas, e um explicou que a nau _D. João VI_ estava perdida. --Isso póde lá ser, homem de Deus--contestou Martinho--Uma nau de tres pontes, que é a flôr da nossa marinha! Insistiram, e accrescentaram: --A nau encalhou, e os realistas foram todos pescados! Afastaram se repetindo o grito de alegria «viva a nau encalhada!» --Tinham vencido! É porque Deus os protegia--pensava ella--tão poucos, tão fracos, creanças como João, e os academicos que tinham ido para a villa! E elle? Saíria a salvo? Teria ficado ferido ou morto? Logo de manhã o creado da prima appareceu com um açafate á cabeça, a pedir flôres. Era o signal da outra vez, querida Josepha! Agora sim, agora confiava no futuro. Escoltando carros de bois, cheios de _pescados_, vinha João entre camaradas, enfarruscados de polvora, espingardas enramadas de louros, cantando na musica do toque da alvorada: Ai, meu Deus, Isto é que é rir! Vêr os caipiras Da Praia a fugir. Ainda lhe parecia mentira! Quando ao desfazer-se o nevoeiro vira a bahia cheia de grandes navios ameaçadores de portinholas, onde apontavam guelas de canhões, creu tudo perdido, porque o grosso das forças liberaes estava a quatro leguas, no castello, e ali só havia quinhentos homens, e onze velhas peças montadas em ruinas de fortes, com simples soldados por commandantes! Ribombou a artilharia da esquadra, guarnecida de trezentas e quarenta bôcas de fogo, e ensurdecido pelo estrondear, cego do fumo, da terraceira projectada pelas balas, julgou tudo fulminado, vencido de vez. Mas ao subir a nuvem azulada, reappareceram os exiguos fortes liberaes, e os artilheiros, imperturbaveis, n'essa indifferença do habito que, mais do que tudo, o surprehendia, apontavam agora, e alguns tiros insignificantes, um como brinco de creanças, responderam áquella unanimidade de canhonadas. Caíu logo uma retranca á nau, e a confusão da tolda demonstrou que os de terra não tinham perdido a serenidade. No forte de S. José, o velho ilheu Manoel Caetano acompanhava os filhos, artilheiros da costa, para os ensinar a fazerem as pontarias. --Senhor governador--dissera ao sargento commandante--feche a porta e guarde a chave, porque estes mancebos são muito bisonhos, e ainda não ouviram zunir pelouros. Ao cahir um d'elles, dirigiu-se ao que lhe restava: --Desvia teu irmão que já pagou a sua divida á patria, e tratemos de o vingar! E só assim, dedicações firmes, convicções inabalaveis, poderam resistir a esse infernal canhoneio de cinco horas. Avançaram ao desembarque mil e tantos homens, o dobro dos que guarneciam meia legua de areal, e a vantagem do numero e da concentração, deu-lhes logo o alto do Facho e o forte do Espirito Santo. Mas os liberaes voluntarios correram-os á bayoneta, varejaram-os com penedos rolados á força de braços, e ao verem-os vencidos, luctando com as ondas e a braveza dos rochedos, gritavam-lhes que não fizessem mais fogo, porque os desgraçados, que tinham ordem de não dar quartel, contavam ser tratados de egual fórma, e ainda disparavam loucos de desespero. Desceram a rocha os constitucionaes, meteram-se ao mar para salval-os, e João, entre outros, com agua pelos peitos, tirava a braços os feridos, os estropiados, que a maré dentro em pouco afogaria. As victimas da tyrannia miguelista, que até ali os arrastára, olhavam pasmados esses homens que, para os salvar, arriscavam a vida, e não comprehendiam a sua fraternidade. Poz termo ao combate a chegada da columna de Villa-Flôr, voltando a tiro as lanchas do segundo desembarque, e obrigando a frota a cortar amarras e a fazer-se ao largo, podendo agora safar-se com a enchente a nau, que logo ao começo da acção tocára o fundo. Vinha João calculando o decisivo alcance da victoria, que devia despertar echo em Portugal, levar as potencias a reconhecerem o unico governo português legitimo, permittir a reunião de recursos para o desembarque no continente. Ao chegar á cidade soube que Maria voltara a casa, perdendo assim a vantagem a tanto custo conquistada, exactamente quando era a seu favor essa absoluta consolidação da ilha. Conseguira mais o trama de um frade que a natural inclinação dos dois corações; tivera mais força n'ella a intimidação do inferno que o enthusiasmo da mocidade a impellil-a para elle. Oh! quanto custaria emancipar os espiritos acorrentados ao erro, na treva da oppressão! Pedia-lhe perdão a carta d'ella por não o haver consultado, mas davam-lhe a mãe agonisante, e a pobre estava realmente mal. Tanto fazia esperar ali como em outra parte, já que não podiam casar tão cedo. Não receiasse que a opprimissem, porque o soffrimento fizera-a mulher. Tivera ensejo de conhecer a hypocrisia que dictava o procedimento dos frades, e perdera o escrupulo religioso que tanto a affligia. Concluia affirmando a sua absoluta fidelidade. Nunca fôra tanto sua como agora. Não lhe importavam, porém, as palavras. Caíra na anterior situação, estando de novo sob a alçada do frade, que continuaria a governal-a apesar dos seus ingenuos protestos. Escreveu-lhe desesperado, queixando-se da falta de confiança que denotava a sua precipitação. Andava como louco. Que havia de fazer para a arrancar novamente d'ali? Tinha a certeza de que ella, só por orgulho, se não reconhecia victima de uma perfidia, mas que devia anciar por se vêr livre da tyrannia paterna, a que tanto custára arrancal-a. Appellou para Fulgencio, mas o boticario desilludiu-o: --Agora? Era pegar-lhe com um trapo quente. Ella quebrára o deposito, recolhera a casa por _motu proprio_, já a justiça não podia ir reclamal-a, houvesse o que houvesse. Sim, que isso de tirar uma filha a um pae não era brincadeira, nem devia ser. Enternecido pelas supplicas sahiu a pedir por elle, mas voltou com más novas. --Pódes dizer-lhe adeus. Pensa n'outra, que é o menos que falta. Não tarda o velho pela barra fóra, que está na lista dos suspeitos, dos que tramam na sombra e ajudam as guerrilhas por baixo de mão. O Villa-Flor é têso, faz elle muito bem; ainda não bebeu agua das Covas, nem bebe, honra lhe seja; não se amolda, pois, aos costumes da terra, e não quer saber se o Martinho é muito ou pouco fidalgo, se vem de reis ou de lacaios. Isso é bom para nós, que na nossa insignificancia ainda caímos de cocoras diante d'esses paparrotões, só porque teem quatro avoengos, embora os renegassem como esse refinadissimo «corcunda», tornado em lacaio dos sotainas, quando o avô ajudou a expulsal-os, cumprindo as medidas de Pombal. Agora que a victoria de 11 de agosto poz isto na ordem, é preciso limpar a terra das hervas damninhas, porque, meu rapaz, ainda ha muito e muito que fazer. Ouvia-o João, transtornado, sem comprehender bem. --Quer dizer que Maria se vae embora? --Não se trata d'ella, meu rapaz. O nome do pae é que eu vi na lista dos deportados. Foi procurar emigrados, rapazes que o podiam comprehender melhor do que o velho, e cuja deliberação no combate lhe ganhara a sympathia. --Mas afinal que queres tu?--dizia um academico--A rapariga gosta de ti, não é verdade? Pois muito bem, vamos lá uma noite, tira-se para fóra, dá-se uma sova nos migueis que se fizerem finos, metel-a em tua casa, e não queiras mais saber de deposito. Em teres andado tanto tempo ao rabo da saia d'ella, e deixal-a assim levantar o vôo, bem mostras que foste educado por padres e te tornaste um maricas. Havia de ser commigo! --Ella é que não quer fugir. Que ha-de casar, e não sae d'ali. --Pois tira-se mesmo contra vontade, que quem governa somos nós, e como tu és das caras direitas que estiveram na batalha da Praia, fecha-se os olhos á rapaziada. --Preciso consultal-a primeiro... --O que tens é medo d'ella. Pois deixa-a ir para o primo, que em chegando a Lisboa não se lembra mais de ti. Aquillo é que é terra! --Não durmas sobre o caso--lembraram-lhe--olha que elles não tardam a ser corridos, que isto agora é dito e feito. Escreveu-lhe, pintando o horror d'essa separação. Estava preparado para a ir buscar, acompanhado por amigos. Não havia perigo, e no caso de força maior tinha ella completa justificação aos olhos de todos. E que importava que os censurassem, se a sua felicidade os faria esquecer tudo? Se não acceitasse é porque nunca lhe quizera bem, porque cedera apenas a um capricho. * * * * * Quando viu o pae exultando pela ordem de deportação, arrependeu-se amargamente Maria de ter voltado a casa. Só então o morgado quebrára o teimoso silencio, para se dar como disposto a tratar a mulher, mas procurando prender assim a filha á esperança de salvar a mãe. Levando Maria para Lisboa, realisaria completamente o seu velho plano. Mas comprehendia bem que João devia tentar retêl-a, e queria influir n'ella astuciosamente, já que pela força nada poderia contra os que se firmavam em duas victorias, e esmagavam os adversarios. Para estar precavido, augmentára o numero de homens de trabalho, a pretexto das vindimas, e tinha ali muitos dos guerrilhas do Pico do Selleiro, com armas á mão. Sentia ella os olhares dos guardas, mas não duvidava que, se quizesse, João a viria buscar n'um momento. Ainda a carta d'elle a exaltou por instantes, na seducção da aventura, mas repugnava-lhe o coxixar dos mantos apontando-a em mancebia; as invejosas, as rivaes voltando-lhe a cara indignadas, e mais uma vez impoz-se-lhe o orgulho. Respondeu-lhe com serenidade, meditando muito as palavras. Devia continuar como enfermeira da mãe, que adoecera por sua causa, e agora ia procurar a cura. Demais, viver com elle, sem casarem, tornava-se indigno d'ambos. Era descer, abandalhar-se aos olhos de todos, e talvez até aos d'elle proprio. Haviam de unir-se dignamente, como mereciam. De outra maneira, não. Só Deus sabia o que lhe custava separarem-se, mas, como sua mulher, havia de ser a guarda da sua honra, e não podia começar por sacrificar-lhe o bom nome. Se era differente das outras, por isso mesmo lhe devia querer mais. Concluia insistindo que, da mesma forma, ficariam separados quando elle embarcasse na expedição liberal ao continente, e ella ficasse na ilha á sua espera. Assim até era melhor, porque iriam encontrar-se em Portugal. Até lá, pois, e ou seria d'elle, ou de ninguem. E como n'essa madrugada em que a chegada do navio, que a devia levar, o decidira a declarar-se, João, depois de a ter visto embarcar desfallecida, olhos vermelhos, ao lado da cadeirinha da entrevada, foi pôr-se á janela. Viu o barco largar d'entre as escunas da laranja, que baloiçavam como berços o leve bojo, finas, veleiras, atrevidas; que fugiam debaixo de tempo, antes que o suéste as désse á costa; ou redemoinhavam como pedaços de cortiça, quando os inglezes, reconhecendo se impotentes para arcarem com a tormenta, fechavam escotilhas e emborrachavam-se na coberta, para não darem pelo naufragio. Oh! Mas d'esta vez iria após ella, como então resolvera, sentindo se homem ante o risco de a perder; iria após ella, a essas terras onde tudo se decidia, já sem a emulação de outr'óra, integrado nas mesmas aspirações dos emigrados, tendo como elles ideias a affirmar, victimas a remir. * * * * * Desde então só tem um fito a sua vida, partir como ella, e essa ideia fixa mantem-o atravez dos momentos de desanimo que tiram o caracter de decisivo ao combate da Praia; a falta de dinheiro, a intriga diplomatica, as rivalidades da familia liberal. E essa obsessão leva-o a consagrar-se como um fanatico á conquista do archipelago, com um navio adquirido por subscripção. Empolga-o a figura prestigiosa de D. Pedro, indo á ilha organisar a expedição liberal, pôr-se á frente d'ella; e n'esse imperador de trinta annos, que abdicára duas corôas, assignára duas constituições, proclamára a independencia de um imperio, fôra grão-mestre da maçonaria, e interpretára em dois hymnos a sua ingenua crença liberal; n'esse principe, hostilisado em Portugal por ter emancipado o Brasil, guerreado no Brasil por se preocupar com Portugal, via agora o desenlace do conflicto, pela garantia de ordem que dava á Europa a cathegoria do novo general dos que, desde Vinte, se batiam pela liberdade. Todos queriam partir, e os officiaes emigrados, que não cabiam nos quadros das forças, constituiram o Batalhão Sagrado, para terem a honra de fazer parte do exercito libertador, aonde aos veteranos do Rousillon, aos soldados da guerra da peninsula e da legião portuguêsa ao serviço de Napoleão, se juntavam os voluntarios de 23, os academicos, os alistados agora, os pescados á esquadra, estrangeiros vibrantes da indignação que agitava a Europa contra a oppressão portugueza, toda a juventude sangrada aos Açores para a libertação de Portugal. Ao partirem da ilha de S. Miguel, onde se concentrára a expedição, cantavam enthusiasmados o novo hymno constitucional, que D. Pedro escrevera ao vir lançar-se na lucta pela carta outhorgada, pelo throno da filha: Da rainha e da carta o pendão Já nos mares se vê tremular, Nobre esforço que a honra dirige, Vae de Lysia a desgraça acabar. D'entre a noite no carcere horrendo, Resurgidos ao dia fatal, Inda vertem heroes portuguêses No patibulo o sangue leal. Nas entranhas da escura masmorra Onde reina da morte o terror, Outros mil inda esperam constantes Igual sorte c'o mesmo valor. Mesta Lysia em gemidos implora Que as algemas lhes vamos quebrar; Já nas praias as mães lagrimosas Pelos filhos se escutam bradar. A cada quadra repetia-se o estribilho: Foge, foge, ó tyranno e não tentes Ferreo sceptro mais tempo suster; Que nas aras da patria juramos Viver livres, ou livres morrer. Como um signal de que o ceu respondia ao appello do hymno Nossos votos são carta e rainha; Nosso guia quem ambas nos deu; Defendemos a causa do mundo; É por nós a justiça do ceu. appareceu azul o sol, velado por tons de anil, pondo em tudo reflexos ceruleos, casando se ás côres da nova bandeira azul e branca, as côres do laço liberal de Vinte, o branco da espuma da onda, o puro azul do ceu de Portugal. Fez-se ao largo temerariamente, em velhos transportes comboiados por uma esquadrilha, esse punhado de homens, cerca de sete mil e quinhentos, o numero que a tradicção para sempre fixou, n'uma commovida gratidão. Realisava-se emfim o longo sonho do exilio, e, ao saltarem no Mindello, prostravam-se os expatriados, beijando o querido solo, cujas poças de sangue reflectiam as rubras tintas d'uma nova aurora. Apertando convulsos as armas fraticidas, com que eram forçados a apoiar os gritos de liberdade, os votos de egualdade e fraternisação, pediam novas forças a essa terra que ainda defenderiam cobrindo-a com o retalho do seu corpo, osculando a na crispação da ultima agonia; sentiam-se felizes ao tocarem-a, embora para morrerem n'ella, ameaçados por oitenta mil soldados, e pelo fanatismo catholico mantido por frades e jesuitas entre as populações a libertar. Na patria ensanguentada, apunhalada pelos pés das forcas, oscilavam garrotados, como pendulos sinistros, marcando á tyrannia a hora fatal. XII Observava Maria através das grades. Iam as ruas d'Evora coalhadas de soldados miguelistas, e ao convento chegavam novas da retirada de Santarem. --É o fim da guerra, descança--dizia-lhe uma freira de meia edade, amarela de cera, vislumbres de juventude no olhar vivo, que tambem observava para fóra. --De quantas batalhas o tem dito--respondeu Maria com desanimo. E lançou um olhar de desesperança á fria cella, nua, sem conforto, á cama, á arca, a essa cruz negra que era o sêllo do captiveiro. --A guerra prolongar-se-ha como os pesadêlos que me endoidecem n'este carcere. --Para que has de descoroçoar? Ouvia-a, muito abatida, sem desfitar os bandos. --O peior está passado--continuou a freira. E n'um suspiro: --És nova, tens vida para tudo. --Ha quanto tempo que m'o diz! --Desde que viestes. --Não podia ser mais feliz, encontrando tão bom coração. --Podias, se me tivesses conhecido mais cedo. Aconselhar-te-ia de outra forma, e decerto não estarias aqui. --Agora não tem remedio! Continuavam a olhar para fóra. --Admira-me não avistar o pae. --Não deve ter muita vontade de ver-te, nem suppõe que terás grande gosto em o encontrar--disse a freira com amargura. --O mal que elle me tem feito!--murmurou Maria. --Conheço muito bem o senhor meu primo! Era outro que tal o senhor meu pae, Deus lhe perdôe. Tinham mulheres e filhas por escravas, e serviam-se d'estas prisões para se desfazerem das filhas segundas, para imporem casamentos ás morgadas como nós. Infelizes tempos! Desgraçadas que somos! Fixou Maria novos grupos, e perguntou: --Se o pae continua a acompanhar D. Miguel, como desde que saiu desesperado d'aqui, deve ter vindo com elle. --Sim. Ha de estar na cidade. --Só se lhe succedeu alguma coisa... --Quanto a isso está descançada. O infante viu a guerra de longe, não é como o senhor D. Pedro, que acode ás baterias debaixo de fogo, aponta as peças como um artilheiro, e apparece no ardôr da peleja a animar os seus. --A não ser da vez que foi ao Porto para incitar o cerco... --Que por signal andou abandalhando-se em Braga, com mulheres de má nota, fazendo flostrias a cavallo para lhes agradar, emquanto que outros morriam pela sua teimosia de ter cadeias atulhadas de innocentes, e conventos cheios de desgraçadas como nós. Na preocupação da rua, Maria respondeu: --Então é porque não quer ser visto. --Sabe os sentimentos que inspira. E encarando com ella. --Não é por lhe querer bem que pensas n'elle, não é verdade? Maria titubeou: --Apesar de me pretender enterrar em vida, apesar do que fez á mãe... --Se elle tivesse vergonha nem voltava a esta terra, onde veiu deixar os ossos da desgraçada. Soube-se dos seus maus tratos, e todos lh'o levaram a mal, acredita. Olha que muitos que se dizem realistas, e o applaudem e a outros que taes, é só por medo d'essas viboras, que se vingam nos inermes, e fogem a sete pés dos que estão armados. Maria abraçou-se a ella, chorando: --Perdôe-me, D. Anna, mas como lhe hei de querer, se me tem tratado cruelmente, se torturou a desgraçadinha, se lançou João no horrôr da guerra... --Deixa-o, filha, não penses mais n'elle. É como se tivesse morrido. E pede a Deus que ainda lhe possas pagar em caridade, nos seus ultimos dias, que os ha de ter bem negros! --O mal que lhe desejo me venha a mim. --Elle não pensa mais em ti, descança. Ha que tempos não me escreve, não me força a responder-lhe n'essas cartas em que te dou a caminho da profissão, n'uma vida de penitencia. --Tem sido tão bôa para mim. --O que mais me custa, Maria, é conter-me, lançar ao papel essas mentiras, em vez de lhe dizer as duras verdades que merece! --Ninguem o convence. --E elle tirava-te logo d'aqui. --Se suspeitasse o que a tia tem sido para mim! --Não ha remedio senão dissimular, que felizmente ha de ser por pouco tempo. --Agradeço lhe a bôa intenção, D. Anna, mas já não espero ver fim a isto. --Pois não vês que a falta das cartas em que elle teimava para que professasses, não querendo que um dia viesses a casar, mostra que já não tem cabeça para nada? Sempre que os liberaes ganhavam um palmo de terreno, apertava-me elle para que te lançassem o habito. Agora não tuge nem muge. Que mais queres? --Talvez desconfie da sua amizade por mim. --Como? se só tu a conheces, e não ha muito tempo, porque ao principio fui para ti o que tinha sido para todas, retrahida, reservada! Quando me encerraram aqui, os escandalos com que enxovalham a casa de Deus, que, como tens visto, serve para as mais torpes devassidões, não me desmoralisaram como ao geral das que cá veem parar. Fizeram-me conservar á parte, sem me prestar a ditos e mexericos, sem beberetes na cella ou na grade, sem dar confiança a nenhuma. Segui sempre com sympathia os liberaes, porque bem sabia que elles libertariam as pobres enclausuradas. Mas não me manifestei aqui dentro, porque de nada servia, como as freiras constitucionaes postas a pão e agua no carcere, forçadas a penitencias vergonhosas diante d'essa communidade de descaradas, transferidas para longe dos seus. Calei-me sempre, mas trago no exercito libertador soldados armados e pagos por mim, por via de encubertos liberaes d'esta terra que fazem o mesmo, a occultas, para que não os roubem e assassinem. --Pois tem feito isso? --Tenho. Mas ai de mim se o suspeitassem! --Ah! D. Anna, que tem sido a minha verdadeira mãe! --Não quiz que soffresses o que eu soffri. E tenho o gosto de te haver salvo de vez. Sem mim, ao teu genio assomado, caías nos enganos que te armaram, professavas, e adeus para sempre. --E se elle morrer, faço-o, tia! --Está a acabar a guerra, foste feliz! --Quantas vezes o tenho acreditado, e quantas a realidade me entristeceu! Recordou a sua longa espectativa, passando por alternativas dolorosas, ora esperando João no dia seguinte, ora julgando nunca mais o vêr. Acompanhara-o em espirito, no desembarque no Mindello, e tivera a mesma desillusão que elles, ao appellarem para os manifestos, na repugnancia de derramar sangue, contando mais com a adhesão em massa do que com a dolorosa guerra civil. Exultára na recepção do Porto, a cidade em delirio, damas de azul e branco, lançando mais flores a esses queridos soldados, por entre a tempestade dos vivas aos libertadores. Mas em breve tornaram-se em lagrimas os risos, em crepes os laços bicolores, em chuva de granadas as de rosas, e em bravas vivandeiras as donzellas, que os realistas offereciam em pasto á soldadesca, como premio do assalto. Como desejaria estar entre ellas, correr animosa ás trincheiras, servir polvora e bala aos luctadores, accudir aos feridos, estar ao lado de João quando o trouxeram n'uma maca, exangue! Logo sobre as noticias da entrada triumphal viera a sangueira, a chacina dos combates, investidas ferozes contra o Porto, e a cidade em risco de invasão, laços constitucionaes deitados fóra, gente prestes a fugir pela barra, militares rapando os guerreiros bigodes. Tão pouco estavel era ainda a causa, que d'um momento para o outro se receiava a prisão, o supplicio; e os que, como João, luctavam, tinham agora a dupla certeza da morte, ou no campo, ou na forca. Que desditosa influencia a sua n'esse rapaz, arrancado ao socego da terra, ao conforto da casa, para dormir ao relento, passar a fome do cerco, tremer inquieto sob esse maldito bombardeamento, usado pelos miguelistas em requintes de tortura, em tiros descompassados, para maior sobresalto, á hora do jantar para tirar o socego da meza, em pontaria aos hospitaes para augmentar o horror. Tremia aos symptomas do cannibalismo da lucta, o prazer do pormenor em que um general communicava terem ficado os bravos officiaes do Batalhão Sagrado com as cabeças abertas de meio a meio, pelos celebres dragões de Chaves que depois se passaram para os liberaes; o auto de fé planeado pelos frades de S. Francisco, deitando fogo ao convento para queimarem o batalhão de caçadores 5, quando os soldados dormiam fatigados da batalha de Ponte Ferreira! Para a fazerem professar, no interesse do dote, na avidez de dadivas do morgado, no odio ao noivo liberal, aggravavam-lhe as freiras as más novas, dando os constitucionaes como perdidos, e mostrando o evidente castigo do ceu na morte de certos voluntarios academicos, a quem attribuiam profanações no convento de Santo Antonio do Livramento, de Angra, accusando-os, como outr'ora aos Templarios e aos Judeus, de fazerem alvo da imagem do santo no nicho da frontaria. A todos os momentos receiava a noticia de que João morrera, e um dia as freiras, qual mais havia de arreliar «a do malhado», foram dar-lhe hypocritas condolencias porque elle recolhera ao hospital, gravemente ferido n'uma d'essas teimosas sortidas que dizimavam a guarnição. Tivera-o por morto, como lhe insinuavam, negando frouxamente, mas falando-lhe das consolações que a egreja reservava a todas as dôres, insistindo em que se votasse ao divino esposo, já que tão misericordiosamente a libertára dos laços do mundo. Tomára então a tia, para com a abbadessa e as mais ferozes madres, o compromisso de a decidir, e, recolhendo se a catechisal-a, abrira-se com ella. Começára por uma reprehensão, em que o olhar brilhára apaixonado, e o rosto pallido, enrugado, se fôra animando gradualmente, até dar longes de outros tempos, da juventude impetuosa e ardente, do momento em que amára e fôra amada, em que se tornára mulher e devia ser mãe. --Que mal que fizeste em resistir! Como desperdiçaste a mocidade. Em nome d'umas formulas vasias sacrificou-te, e a elle, o teu orgulho! E se te morrer? Que recordação te fica para evocares o breve tempo que não volta mais? Insistira, ao vêl-a debulhar-se em lagrimas: --Chora, desabafa, que deves sentir um mortal remorso; chora as duas vidas que despedaçaste, e convence-te de que nunca o amaste, porque o verdadeiro amor não raciocina, porque é a suprema lei da vida, tudo se lhe amolda, e elle não! --Que hei-de fazer agora, senão professar--bradava ella, arrepelando-se. --O teu orgulho ainda! Cala-te, vaidosa, que darias mais uma pessima freira. Vive para elle, é o teu dever. --Para elle? E se morreu? --Vive para a memoria d'elle, mas nunca a dentro d'um mosteiro, porque deves lembrar o mal que d'estas casas te adveiu. --Então que hei-de fazer? --Porque não pensaste em fugir d'aqui, em ires acudir-lhe, pôr-te á sua cabeceira, tratal-o, acarinhal-o, cerrar-lhe os olhos se Deus o levar, como fazem as fortes mulheres que estão velando o leito d'outros feridos, as que não desampararam os maridos na retirada e na emigração? E como ella a olhasse como pasmada: --É que ha mulheres, e mulheres; e as mais felizes, como tu, pelo amor que lhes dedicam, são afinal as que menos o merecem! --Tenha dó de mim, não me trate d'essa fórma!--supplicava ella. Então compadecera-se D. Anna, e pedira-lhe, mudando de tom: --Não tornas mais a falar em profissão, haja o que houver? --Não, não torno. --Pois bem. Ouve-me agora serenamente. Que te disseram d'elle? Que estava ferido? Pois bem, ha-de curar-se, e eu tenho maneira de saber exactamente o seu estado, mas não dês credito senão ao que eu te disser, e cala-te com isto. Depois, n'um enthusiasmo que contrastava com a estudada placidez usual: --Que elle viva ou morra, os liberaes hão de triumphar, pois ao que se tem soffrido não é possivel vencel-os, pelo desespero com que se batem. Os conventos acabaram, e temos de saír todas d'estes logares de maldição. Mas os votos ninguem os tira, os padres não casarão as que os tiverem. E aquellas que perderem a mocidade, já nada do mundo lh'a póde restituir! Então afogaram-a as lagrimas, e revelou-se tal qual era: --Tambem me contrariaram um amor. Fugi com o meu noivo, mataram-m'o, mas tenho vivido desde então evocando as horas em que me pertenceu. E esse amor foi o meu culto aqui dentro, a minha religião, porque a outra perdi-a pouco a pouco, ao vêr da parte de dentro os ministros do Senhor e as suas esposas, os que communicam com Deus, os intermediarios da sua graça, do seu perdão! Conseguiu D. Anna saber d'elle, e pôl-os em relações. Melhorára depressa, era já alferes, e a Torre e Espada assignalara-lhe a ferida. Depois tivera-o a dois passos, na divisão do duque da Terceira que atravessou n'um relampago do Algarve a Lisboa, levando adiante de si os miguelistas, que fugiram espavoridos d'esses dois mil homens, incitando em desforra as populações a tratarem-os como lobos. E o fanatismo catholico dos soldados e das tropas apunhalou no Algarve, queimou vivos e arrastou á cauda dos cavallos os prisioneiros liberaes; martyrisou em Beja portadores de ordens; queimou dois constitucionaes forçando as irmãs a assistirem á execução; despedaçou á machadada trinta e cinco presos politicos no castello de Extremôz, incluindo uma creança de seis annos! Atravessára Telles Jordão o Tejo para fulminar os liberaes, como esmagava os presos de S. Julião da Barra, mas ao vêl-os armados, decididos, o valentão que esbofeteava os miseros encarcerados, lhes sujava a comida e os obrigava a rezar o Terço, fugiu covardemente, até que o alcançaram em Cacilhas, vingando os camaradas torturados. E fugiram de Lisboa os miguelistas que ainda na vespera, em requintes de barbaridade, tinham enforcado um liberal, para o impedirem de gosar o triumpho dos seus, já na Outra Banda; que haviam ensanguentado a cidade em barbaras repressões. Mas nem d'essa vez findára a guerra! Os miguelistas, que haviam recusado salvar a esquadra, aprisionada no Tejo pelos franceses, dando em troca a liberdade aos afflictos prisioneiros voltaram á carga e encheram de cadaveres, de ruinas, os arredores da capital. Saldanha descercára Lisboa, e D. Pedro, em homenagem, mandou collocar no pedestal da estatua de D. José o medalhão do avô, o marquez de Pombal, que os jesuitas haviam arrancado. E assim a epopeia liberal, ligada á obra de Vinte, á tentativa patriotica de 1817, mostrou se o logico desenvolvimento da obra de Pombal, que se desenvolvia, alargando a todas as ordens religiosas, fautôras do retrocesso, incitadoras dos morticinios, a extincção dos jesuitas. Arrastara-se a lucta sanguinaria, e de retirada em retirada tinham vindo parar ali as forças, ainda importantes, que os mais teimosos pretendiam levar ao campo, a uma derradeira tentativa. Olhavam Maria e D. Anna os grupos de soldados, querendo lêr-lhes no rosto as decisões d'essa hora suprema, em que as divisões de Saldanha e Terceira avançavam contra Evora para os esmagar, ou reduzir á rendição. De dentro chegavam-lhes successivas noticias, andavam já em negociações, decidira capitular o conselho de guerra, e estava assignada a paz. Ouviram ao longe o hymno constitucional, confirmando a noticia, e ao som da musica, ao ruido atroador dos vivas que se approximavam, desappareceram, cabisbaixos, os soldados de D. Miguel, e a rua ficou deserta, emquanto ao longe avançava a onda libertadora. --E João viria com esses?--exclamava Maria, em lagrimas de jubilo, abraçada á freira. Ganhára o enthusiasmo a cidade opprimida, dos carceres do convento irrompiam freiras desgrenhadas a saudarem das grades a victoria. Chamaram Maria ao parlatorio, e as duas mulheres desceram logo. Em vez de João, esperava-as o morgado. Por excepção não se embriágara, na dôr do derruir das ultimas esperanças, e parecia ebrio, cambaleando, pallido, coberto de suor frio, o olhar pasmado, as palpebres cerrando-se a meudo. Custava-lhe a encarar a luz, como se o deslumbrasse a evidencia do triumpho. Depois de saudar ligeiramente a prima, dirigiu-se á filha: --Menina, prepare-se para me acompanhar. Maria recuou attónita. Dava-se o que receiára. Tentava o pae reapossar-se d'ella. --Aonde, senhor?--perguntou afflicta. Fazendo-se forte no ultimo poder que lhe restava, retorquiu o morgado: --Não aprendeu a ser obediente? Pois ainda está em edade de se tornar bem ensinada. Obedeça-me! D. Anna falou n'uma voz grave: --Senhor, não lhe basta o mal que tem causado? Não se dá por satisfeito? Descarregou Martinho Vasques a colera que para ellas reservara, reduzido á impotencia pela convenção de Evora Monte: --Que significam essas palavras, prima? --Que felizmente já posso desabafar e dizer-lhe tudo o que sinto, sem receio de que Maria soffra por minha causa. --A prima sempre foi uma doida!--explodiu elle--Vejo que fiz mal em confiar-lhe minha filha. Mas estou a tempo de emendar o erro. E voltando-se para Maria: --Porque espera? Não ouviu o que lhe mandei? --Escusa exaltar-se, senhor--respondeu a freira--Esta menina está sob a guarda do mosteiro, e só póde saír por ordem superior. --Reclamo-a eu, seu pae, com o mesmo direito com que a entreguei. --Mas felizmente os seus já não governam, e agora já não se entregam victimas aos algozes. --Tia!--interveiu Maria--pelo amor de Deus não o offenda. Bem lhe basta o seu desgosto. --Ainda não estás pervertida, filha. Pois bem, vamos, que a dignidade do teu nome impõe-te o dever de seguires teu pae, embora vencido. --É tarde, pae! --Que significa isso! --Já me sacrifiquei bastante. Não posso mais. --Então recusas te a acompanhar-me? --O senhor já nada representa para ella. Não quiz sepultal-a viva n'uma tumba? Faça de contas que a matou, como á mãe, e retire-se. Quem procede como o senhor, perde o direito a ser tratado como pae. E vá esconder-se, para não passar pela vergonha de ter a sorte que merece. Tiniram esporas na portaria, arrastaram-se espadas, e passos d'homem subiram a escada do locutorio. Era João. Tendo ouvido as ultimas palavras, dirigiu-se respeitoso ao morgado: --Senhor, tanto reconheço os seus sagrados direitos, que peço respeitosamente a v. ex.{a} a mão de sua filha. Elle recuou um passo: --Vem zombar dos meus cabellos brancos? Levou a mão ao lado, para arrancar da espada, mas deixou pender os braços, desanimado. --Quebrei-a na esquina da rua a minha velha companheira para não a entregar aos seus. Estou desarmado. Póde insultar-me! Tinham as duas mulheres abandonado a grade e, correndo á sala das visitas, metiam-se de permeio. João respondeu commovido: --Senhor, acolhemos a todos com o perdão, abrimos os braços aos camaradas a quem a sorte das armas foi adversa, e n'esta hora solemne não ha logar para rancores. Fraternisam os filhos da mesma terra. Pois perdôe-nos tambem v. ex.{a}, e a nossa alegria lhe fará esquecer os seus desgostos. Dava as mãos a Maria, devorando-lhe com os olhos o rosto muito branco, onde as olheiras pareciam mais fundas, e a dentro d'ellas maiores os bellos olhos claros, que a melancolia enriquecera de ternura. Embevecia-se ella no tostado rosto de João, envolto na fina barba, bebendo a vida n'esse firme olhar que adquirira lampejos de energia varonil. --O vosso perdão não passa de uma caridade de phariseus!--atirára-lhe o morgado em resposta. Debalde procurava D. Anna convencel-o, emquanto João e Maria se contemplavam, anciosos por se abraçarem. Ainda ella teve coração para sentir o desespero do pae: --Fique comnosco, senhor! Na nossa ventura ha logar para si. --Não! Não!--retorquiu teimoso o velho--Já não tenho filha, já não tenho familia! O meu logar é junto do principe proscripto. Revia D. Miguel na commoção da retirada, abotoado na sobrecasaca azul, de chapéu á Napoleão; dando a mão a beijar ao povo fanatisado, com cuja ignorancia se identificava, merecendo o mesmo perdão pela inconsciencia em que viviam; alheio ás transformações do tempo, contando ainda com o milagre; victima tambem, elle o chefe dos algozes, victima da mãe quo o incitára, do anterior estado social que o educára, o tornára a sua bandeira, o seu symbolo, e agora o arrastava comsigo. João tambem lhe pediu. --Não! Não!--insistia o morgado--Somos o passado, que não transige! Tambem ha de chegar o nosso dia, e S. Miguel Archanjo ha de voltar! Adeus, filha desventurada. O meu logar é junto d'elle. Ainda correram á janella. Afastava-se aniquilado, braços pendentes, sem o bordão que lhe dava o ar magestoso, sem a espada a que se apoiava, desempenando-se; irreconciliavel como o passado que ia afogar na sombra do tumulo a sua amarga desesperança. * * * * * --Só tu me restas, João!--e Maria deitou-se-lhe ao pescoço. --Ha quanto tempo que podia ser!--queixou-se elle, ainda cioso da felicidade esperdiçada. --Não te amava tanto como agora! Sinto-o hoje, porque só sabe amar quem soffreu muito! FIM INDICE DOS CAPITULOS I 5 II 25 III 51 IV 75 V 97 VI 121 VII 141 VIII 167 IX 197 X 227 XI 255 XII 281 End of Project Gutenberg's Os Bravos do Mindello, by Faustino da Fonseca *** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OS BRAVOS DO MINDELLO *** Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed. Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. 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Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws. The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate. While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. 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