The Project Gutenberg eBook of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09

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Title: Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 09

Author: Alexandre Herculano

Release date: May 6, 2006 [eBook #18330]

Language: Portuguese

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK OPÚSCULOS POR ALEXANDRE HERCULANO - TOMO 09 ***

Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt),

Nuno Lopes (Projecto Enclave) and edited by Rita Farinha

OPUSCULOS

TOMO IX

Proprietários e editores: José hastes & C.^a—Typographia da Antiga Casa
Bertrand, Rua du Alegria, 100—Lisboa, 1909.

Opusculos

POR
A. HERCULANO

TOMO IX

LITTERATURA

TOMO I

*Antiga Casa Berfrand—JOSÉ BASTOS & C.^a—Livraria Editora*

73, Rua Garrett, 75—LISBOA

Reservados todos os direitos de propriedade. Para o Brazil, nos termos do ajuste feito entre Portugal e aquelle paiz em 9 de Setembro de 1889, mandado cumprir pelo decreto do Governo Imperial de 14 de Setembro do mesmo anno.

ADVERTENCIA

Na collecção dos tomos de opusculos de A. Herculano ainda até hoje não estava representado um dos grupos em que elle a dividiu—o de litteratura. O presente tomo vem remediar esta falta embora com a probabilidade de ficar isolado na divisão a que pertence. Os avulsos litterarios do nosso escriptor não são todos da mesma índole. Com alguns d'elles, os de caracter poetico, resolvemos coordenar um volume appenso ao grupo dos romances e lendas e que está prompto a entrar no prélo. Foi depois d'esta selecção que passámos a apurar entre os demais os adoptaveis para tomos de opusculos. Taes nos pareceu deverem ser os que constassem de historia, theses, controversias e juizos litterarios. Nestas condições a obra do escriptor era bastante para que elle tivesse calculado formar com ella dois tomos pelo menos e por certo mais, se aproveitasse interessantes cartas que no genero escrevera. Accresce que sendo a maioria d'estes artigos dos primeiros tempos da vida litteraria do auctor, elle proprio dizia tencionar acompanhá-los de um exame retrospectivo e ampliar alguns como em parte nelles indicara. É também o que se deduz do plano geral da publicação exposto na advertencia do tomo I. Mas dos trabalhos complementares conducentes a esse fim, e que o auctor de dia para dia adiava para horas de aprazivel remanso de espirito, não achámos vestigios nos papeis d'elle. Apenas nalguns dos artigos recolhidos neste tomo estavam indicadas breves correcções de linguagem, das quaes introduzimos nas cópias enviadas para o prélo as de immediata intelligencia. E ainda essas correcções, tão leves que hão-de passar despercebidas, seriam apenas preparativos de revisão, segundo o methodo adoptado pelo auctor,—meros signaes para marcar os logares e lembrar o sentido em que teriam de ser feitas as definitivas. Estes os motivos pelos quaes é provavel que tenhamos de limitar-nos ao presente tomo em materia de litteratura, sem todavia podermos assegurar que aos elementos que ficam de reserva, não venham de futuro junctar-se outros que por novas pesquisas possam apurar-se, e tornem possivel o seguimento do grupo.

Dada, porém, a abundancia de original de que dispunhamos para este tomo, conseguimos organiza-lo de modo que os elementos que encerra quasi constituem um todo homogeneo de doutrina, representando em globo, sem embargo da falta de ampliações que haviam de enriquecê-lo; como que as generalidades de um curso de litteratura moderna, prevalecendo a lição sobre litteratura patria. E não admira que assim succeda attendendo á relação íntima dos artigos escolhidos com o ideal da epocha em que foram escriptos, e que dominava o espirito do auctor. Aspirava A. Herculano a encaminhar por meio d'elles a revolução litteraria que nascera para nós com a recente mudança de instituições politicas e que, sob o ponto de vista poetico com intenso brilho fôra iniciada por Almeida Garrett, com os dois poemas D. Branca e Camões. D'ahi a feição doutrinal e harmonica que o tomo apresenta. Sabem os leitores com que riqueza e variedade de monumentos concorreu A. Herculano ao lado de tantos outros privilegiados escriptores para engrandecer a imponente phase das nossas letras que desde então se foi desenvolvendo. Juncto a esses monumentos vem, pois, occupar agora o logar que lhe compete, a propaganda com que elle os precedeu e os acompanhou, naquella esperançosa epocha de revivencia nacional.

Nas paginas que precedem os artigos vão indicadas as datas em que estes vieram a publico e as folhas de onde foram trasladados. Mas desde já convém advertir que trouxemos os dois primeiros da folha quinzenal O Repositorio Litterario, publicada durante alguns meses de 1834 a 1835 na cidade do Porto, contando o auctor vinte e quatro annos de edade. Nos dois annos anteriores havia elle arriscado a vida em mais de vinte combates do cêrco da cidade, em todos em que interviera o glorioso batalhão a que pertencia de Voluntarios da Rainha. Segundo resam formais attestados, e era proprio do altivo caracter que elle nunca desmentiu, em todos esses combates dera aos companheiros de armas exemplos de inexcedivel destemor, de arrojada bravura. Levantado o cêrco despia os trajos de soldado e quando se lhe afigurou terminada a lucta pelas armas, surgiu cheio de enthusiasmo, revelando inesperados conhecimentos e como vulto dominante do Repositorio, a pelejar no campo das idéas. Pela leitura dos dois artigos transcriptos d'essa folha, se ajuizará da originalidade e vigor com que deu começo á propaganda exposta no discorrer do tomo. O primeiro descreve o estado geral da nossa litteratura naquelle periodo de transição, visando norteá-la á luz das novas aspirações e exigencias sociaes, e nas varias fórmas em que ella tinha de manifestar-se. O segundo trata da poesia em especial, e como se o auctor já então quisesse dar medida do poderoso engenho analytico de que era dotado, ao passo que vai explanando com extraordinaria erudição e lucidez a famosa questão dos classicos e romanticos, vai tambem deduzindo e conglobando as bases de uma alta poetica de concepção propria, com o pensamento de afastar o genio nascente das aberrações de uma e outra d'aquellas seitas, e de o guiar para a fecunda desenvolução litteraria em que meditava.

A par d'estes artigos abria o novel escriptor nas columnas do Repositorio, com a descripção das escholas de ensino elementar da Prussia, a campanha em parte descripta no tomo VIII de opusculos, e que não mais abandonou, em prol da instrucção popular. Provocando o confronto da excellencia d'aquellas escholas com a obscuridade das nossas, frisava por esse meio o alcance do grave assumpto, pondo em relevo perante os homens cultos e aquelles a quem competisse dirigir os destinos da nação, o maior dos obstaculos que tinham a vencer para assegurar o bom exito das instituições liberaes. O absolutismo politico fôra derrubado pelas armas e pelas geniaes concepções legislativas, arremessadas contra elle em som de guerra. Chegava o momento de lançar novas e grandes idéas, de suggestionar os espiritos para que sobre os escombros do derrocado edificio se erguesse gradualmente o da liberdade e da civilização. Era com o profundo sentimento, a nitida visão d'esta imperiosa necessidade social, que A. Herculano se estreava como propagandista no memoravel periodico portuense.

Maio de 1907.

O coordenador.

Qual é o estado da nossa litteratura?

Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?

*REPOSITORIO LITTERARIO*

1834

Qual e o estado da nossa litteratura?

Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir?

Estas duas perguntas pedem nada menos do que a dolorosa confissão da decadencia em que se acha em Portugal a poesia e a eloquencia, e o encargo difficultoso de indicar os meios de melhoramento no ensino e no estudo d'ellas. Sem pretender que sejam as unicas, nem as melhores, exporemos a serie das nossas idéas sobre este duplicado objecto.

A convicção de uma verdade litteraria produziu nos seculos XVI e XVII um erro na Italia, que, extendendo-se á Hespanha e a Portugal, transviou da legitima direcção todos, ou quasi todos os escriptores da epocha chamada do seiscentismo. Sentiu-se que a metaphora, a mais bella de todas as figuras poeticas e oratorias, a mais repetida, a mais necessaria mesmo nos discursos communs da vida, abundava por isso nos bons escriptores classicos e modernos, que já nesse tempo illustravam a Europa: viu-se que as passagens bellas ou sublimes de Horacio, Pindaro e Virgilio, de Dante e Ariosto, deviam-lhe em grande parte a sua belleza e sublimidade, e isto era certo; inferiu-se d'ahi que a metaphora era o principal e talvez o unico meio da poesia e eloquencia, e que ella devia revestir todas as imagens e sujeitar ao seu imperio todos os generos, todos os estylos, e isto foi um erro: a vertigem metaphorica se apossou dos poetas e oradores, e, por uma consequencia natural, o fundo das idéas esqueceu e só se olhou para as fórmas: á sombra d'esta mania prosperavam os conceitos e as agudezas, chegando as letras a caír numa barbarie, que tanto mais irremediavel parecia por ser filha da civilização litteraria já exaggerada. O Zodiaco soberano, Os crystaes d'alma, A Fenix renascida e outros muitos escriptos d'esse tempo, são lamentaveis monumentos da corrupção de gosto a que chegou Portugal no principio do decimo oitavo seculo.

Porém o mal não foi sem remedio, e os membros da Arcadia fizeram volver as letras á severa singeleza das puras fórmas da Grecia. Muito ae deve a Garção, Gomes e Quita; mas ninguem tanto como Dinis mostrou a superioridade do genio e do gosto que caracterizaram a segunda metade do seculo XVIII. Dando os seus principaes cuidados á poesia chamada pindarica, genero difficil pelo audaz das figuras, pelo gigantesco das imagens, elle soube escapar aos defeitos e frioleiras do seiscentissimo que bebera na eschola, em composições nas quaes era mui facil introduzir-se o mau gosto; e ainda que Quita e Garção tentaram o mesmo genero, em nosso intender, Dinis não foi emulado. Capaz de todos os tons, no burlesco, no pastoril, no dithyrambico, nos deixou apreciaveis exemplos, e as suas dissertações sobre a poesia campestre são dictadas por um grande conhecimento da arte, ainda que não excedam em merecimento theorico as annotações de Gomes ás proprias poesias, nem os trabalhos de Freire e posteriormente de Barbosa e Fonseca sobre as poeticas de Aristoteles e Horacio.

Entretanto nenhum dos poetas e litteratos do seculo de José I olhou as letras de um ponto de vista eminente. Similhantes aos escriptores do seculo de Luiz XIV, foram muito eruditos, mas pouco philosophos, e assim o caracter das duas litteraturas é a confusão dos principios absolutos com os de convenção. Cingindo-se quasi cégamente á auctoridade dos antigos, miudeada e explanada pelos commentadores, a sua obediencia illimitada a alheias opiniões contribuiu muito para a posterior decadencia. A impertinente questão dos archaismos e neologismos veiu tomar o logar das discussões da Arcadia e essa occupação dos meios talentos e da meia instrucção, influindo sobre objectos mais importantes, viciou e acanhou toda a litteratura. Se as notas, que sobre palavras e phrases Francisco Manuel ajunctou ás suas poesias, fossem dedicadas a coisas, quão ricas messes nós colheriamos do saber d'este homem! Mas infelizmente não foi assim, e a polemica suscitada sobre o merito do immortal cantor dos Lusiadas, pelos insultos que contra elle vomitou o orgulhoso auctor do gelado Oriente, mostraram a que mesquinho estado tinha a critica chegado em Portugal. Parte dos reparos que Macedo copiou dos criticos franceses ficaram sem cabal resposta, porque os systemas estheticos mais liberaes e philosophicos que o dos antigos, e o da eschola de Boileau, eram em geral desconhecidos entre nós, e estamos persuadidos de que o juizo a respeito do tão grande quanto infeliz Camões ainda resta a fazer, apesar da abundancia de escriptos que sobre este objecto se publicaram.

Emquanto assim entre nós a critica se apoucava, um sentimento vago de desgosto pelas antigas fórmas poeticas, a influencia da philosophia na litteratura, a necessidade que sentia o genio de beber as suas inspirações num mundo de idéas mais analogas ás dos nossos tempos, e emfim, varias outras causas difficeis de enumerar, começaram a crear na Europa uma poetica nova, ou, digamos antes, a fazer abandonar os canones classicos. A Alemanha foi o foco da fermentação, e foi lá que os principios revolucionarios em litteratura começaram a tomar desde a sua origem uma consistencia, e a alcançar uma totalidade de doutrinas methodicas e consequentes, não dada, ainda hoje, ao resto das nações. Lá não havia a luctar com a gloria nacional para a introducção de novas idéas, porque os monumentos da eschola afrancesada de Opitz não honravam demasiadamente o dogmatismo intolerante do seculo de Luis XIV, impropriamente chamado classico, e Bodmer e Breitinger deram começo á revolução ousando preferir a poetica de Shakspeare e de Milton á de Racine e de Boileau; comtudo as opiniões na Alemanha teem-se desviado, em parte, d'esta direcção e as idéas de Schlegel já teem reagido na sua tendencia um tanto nova, sobre a litteratura inglesa donde tiveram origem. Na França o antigo systema, amparado pelo renome de muitas producções immortaes, disputa ainda a campanha ás innovações que entre esse povo, extremo em tudo, teem chegado a um deseafreamento barbaro e monstruoso.

Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A parte theorica da litteratura ha vinte annos que é entre nós quasi nulla: o movimento intellectual da Europa não passou a raia de um país onde todas as attenções, todos os cuidados estavam applicados ás miserias publicas e aos meios de as remover. Os poemas D. Branca e Camões appareceram um dia nas paginas da nossa historia litteraria sem precedentes que os annunciassem, um representando a poesia nacional, o romantico; outro a moderna poesia sentimental do Norte, ainda que descobrindo ás vezes o caracter meridional de seu auctor. Não é para este logar o exame dos meritos e demeritos destes dois poemas; mas o que devemos lembrar é que elles são para nós os primeiros e até agora os unicos monumentos de uma poesia mais liberal do que a de nossos maiores.

Comtudo, não existindo ainda um só livro sobre as letras consideradas de um modo mais geral e mais philosophico do que os que possuimos; sem uma só voz se-ter levantado contra a auctoridade de Aristoleles e de seus infieis commentadores, será impossivel emittir um juizo imparcial sobre escriptos de similhante natureza. Julgá-los por fórmas que o poeta não admittiu, será um absurdo, emquanto se não provar a necessidade d'essas fórmas; e isto, mesmo que ellas sejam legitimas, só pode ser resultado de um maduro exame ou de uma polemica sincera. Antes d'isso os velhos eruditos, vendo offendida a inviolabilidade de um tropel de preceitos que julgavam imprescriptiveis, só darão ao genio nascente o sorriso do desprezo; e os mancebos poetas, a quem o sentimento incerto das opiniões contemporaneas dirige por estradas que muitas vezes não conhecem, farão que as suas poesias corram brevemente parelhas com os desvarios que tem ultimamente manchado a mais bella das artes na França e na Inglaterra.

Um curso de litteratura remediaria os clamnos que devemos temer, e serviria ao mesmo tempo de dar impulso ás letras. Em Portugal ainda ha homens cheios de vasta erudição, de philosophia e de genio. Tyrannias mais ou menos longas, mais ou menos crueis, os teem conservado na obscuridade de que devem saír, agora que se não receia a instrucção, agora que os resguarda a egide da lei. Nós não desejariamos, porém, que uma tal obra fosse puramente orgão d'esta ou d'aquella eschola; d'este ou d'aquelle partido. Convem que os principios oppostos sejam examinados de boa fé e sem acrimonia: a intolerancia em idéas politicas ou religiosas é odiosa; em materias scientificas é ridicula. Se coubesse nas nossas diminutas forças um trabalho de tanta magnitude, nós começariamos por discutir qual é o objecto da poesia, e d'esta questão nos parece que já se tirariam importantes resultados, e que as duas caracteristicas—o icastico e o ideal—que distinguem as tendencias do antigo e do novo systema, surgiriam d'ella para nos servirem depois na resolução de varios problemas que se nos apresentariam na serie das nossas indagações. O exame das differentes theorias sobre o bello e o sublime, e as consequencias, objecto immediato a que nos conduziriam os primeiros raciocinios, dariam em resultado os principios necessarios e universaes de todas as poeticas, e consequentemente aquelles sobre que deveriamos emittir uma opinião absoluta e exclusiva: no resto respeitariamos as opiniões de cada povo, de cada epocha, em tudo aquillo em que ellas se não oppusessem aos principios geraes. Indagando a historia da poesia nos diversos tempos e nações, vê-la-íamos depois da queda da bella litteratura greco-latina, surgindo do norte com um sublime de melancholia e mesmo de ferocidade, proprio dos povos que a inventaram: veriamos esta poesia fundida com os restos da romana, e posteriormente com a arabe, produzir as diversas especies do romantico, d'essa poesia variada e verdadeiramente nacional, na França e nas duas peninsulas, e termo medio entre a bella symetria classica e o sublime gigantesco do septentrião: achariamos essa originalidade nascente da litteratura da meia-edade destruida quasi no resurgimento das letras, e substituida por theorias antigas, que, conservando sempre o mesmo nome, foram sendo enxertadas em idéas, em preceitos modernos: encontrariamos, finalmente, o espirito de liberdade e de nacionalidade da actual litteratura. O quadro das novas opiniões nas suas variedades todas, as vantagens ou damnos resultantes de cada uma comparada com os elementos universaes da arte, nos poria em estado de formar um corpo de doutrina que determinasse as proporções essenciaes da futura poesia portuguesa, completando ao mesmo tempo uma serie de juizos imparciaes sobre as producções das differentes eras e das differentes escholas, em relação ao seu genio particular, e á philosophia geral das letras.

Todos sabem que os antigos dividiam a eloquencia em tres generos, que muitas vezes se confundem: um destinado ao elogio ou á invectiva; outro a fazer condemnar ou a absolver, a invocar a lei a favor do innocente, a invocá-la contra o criminoso; outro, emfim, destinado a ventilar os grandes interesses das nações nos congressos ou na tribuna popular. Foi a estas três classes que elles reduziram a oratoria, divisão que ainda hoje se conserva e que, apesar da sua arbitrariedade, nós respeitaremos em nossas reflexões. Em Portugal, onde a representação nacional não existia, onde os tribunaes eram fechados ás defesas oraes e aos juizos publicos, e a arte de defender e accusar consistia geralmente em conhecer os meios de oppor entre si a nossa ora mesquinha, ora contradictoria, ora obscura legislação, e numa dialectica as mais das vezes pueril, tanto o genero deliberativo como o judiciario não tinham quasi applicação: ficava sómente a eloquencia dos panegyricos para o orador profano, e uma mistura de todos os tres generos para o orador sagrado; mas em nenhuma das duas classes temos de que nos gloriar neste seculo. Por uma parte elogios de encommenda ou feitos com miras de interesse pessoal não podiam sair da bocca do orador acompanhados das inspirações do enthusiasmo; e sem convicção e persuasão propria não se póde convencer nem persuadir os outros: por outro lado a eloquencia sagrada nunca pôde preencher inteiramente o fim da arte, uma vez que não divague do seu objecto—a moral religiosa. O fim da eloquencia é persuadir; para isto não só é necessario mover os affectos, mas tambem obrigar a razão. O usar d'este meio, nervo principal da oratoria entre as nações civilizadas, seria ridiculo perante um auditorio christão. O incrédulo não vai ouvir sermões, e o orador que empregasse uma logica severa para provar a conveniencia da moral do christianismo, a quem d'isso está de antemão convencido, obraria com tanta impropriedade, como se o missionario diante de homens de diversa crença buscasse tão sómente mover os affectos sem falar á razão.

O exemplo de dois grandes homens parece oppor-se ao que temos acabado de dizer. São elles Bourdalone e Bossuet: o primeiro empregando a severidade do raciocinio, o segundo tacteando todas as cordas do sentimento, excitando todos os terrores, todas as esperanças da imaginação, e ambos considerados como grandes modelos. Mas de que são elles modelos? É, justamente, d'essa eloquencia imperfeita, cujo vicio se contém na sua propria natureza. Com effeito, Bourdalone não preencheu, nos discursos em que se lançou no abysmo dos mysterios, o objecto da arte: esta dirige-se á vontade, pela acção; e a defesa metaphysica bem que eloquente dos dogmas christãos não requer acção alguma. Bossuet está no caso contrario: para que as suas orações tenham effeito é necessaria a fé. O homem indifferente em materias de religião, e que não possuir gosto bastante para avaliar seu merecimento, dormirá tranquillamente á leitura de qualquer d'ellas, em quanto uma philippica ou olynthia de Demosthenes fará sempre impressão em todo o homem que tiver uma patria, uma fortuna a perder. Sabemos quanto nos pódem oppor sobre estes dois oradores, e sobre a oratoria sagrada em geral; mas, não sendo possivel o entrar aqui numa questão bastante vasta que estas reflexões não comportam, lembraremos só aos leitores que nós consideramos os panegyricos e os sermões de controversia como alheios do pulpito; que Bourdalone, de todos os oradores sacros o que mais sentiu a necessidade dos raciocinios como meio da eloquencia, nos seus panegyricos fugia constantemente para a moral, o que nos faz crer que elle a considerava o objecto da sua arte como acima dissemos. Em ultimo logar transcreveremos uma cita da tentativa sobre a eloquencia do pulpito pelo abbade Maury, obra a mais acreditada entre as d'esta natureza: J'avoue, diz elle, qu'il est très-rare de pouvoir suivre cette marche didactique dans nos chaires, où les discussions morales ne sont jamais problématiques, et où la conscience, qui ne ment jamais, ne saurait contester la vérité à ses remords. O que entra justamente na ordem de nossas idéas, tanto sobre o objecto como sobre o defeito constitutivo da eloquencia sagrada.

Voltando ao nosso país, na mesma eloquencia do pulpito, a unica em Portugal cultivada, só um orador deixou pela estampa monumentos dignos de exame, se attendermos á fama popular que para seu auctor grangearam: já se vê que falamos do P. Macedo. Como orador sagrado, Macedo deveu a popularidade de que gozou a um falso brilho no fundo das idéas, e sobre tudo a essa instrucção perfunctoria que começa a invadir a capital e que é mais damnosa ás letras do que a ignorancia. Sem vislumbres da sublimidade de Bossuet, sem a uncção de Fenelon, sem a profundeza de Bourdalone, sem a nobre e evangelica simplicidade de Paiva d'Andrade, ganhou seu renome com os ouropeis de Seneca; mas tal renome, se ainda soar na posteridade, não será para as suas cinzas um bafejo consolador de gloria.

Porém não é a eloquencia sagrada que deve hoje chamar a nossa attenção: ella tem sido o luxo da religião, e nós desejamos vê-la substituida por meios mais conducentes a fazer prosperar esta. A bella e sublime moral do evangelho não precisa dos soccorros da arte de Demosthenes e Cicero; e a religião practica d'um clero virtuoso, seria a homilia mais eloquente para insinuar a moral do Crucificado.

Antes de passar avante occorreremos a um reparo que farão os leitores: o de não falarmos sobre a eloquéncia desenvolvida nas côrtes da nossa primeira epocha de liberdade, que fórma uma excepção de quanto dissemos sobre a eloquencia portuguesa do XIX.^o seculo. Tivemos para isso razões, e talvez a principal seja o quão longe nos levaria o exame de alguns discursos alli pronunciados; entretanto diremos por honra da nossa patria que então appareceram mui grandes homens, e que desejariamos ver publicar uma escolha das opiniões e relatorios então ventilados, á maneira do que se fez em França das orações dos representantes nacionaes desde o principio da revolução.

É, portanto, a educar homens que ventilem dignamente as questoes de interesse publico nas camaras legislativas, ou que defendam a innocencia e persigam o crime nos tribunaes já publicos, que o estudo e ensino d'esta parte da litteratura se deve dedicar: é assim que nós fariamos da essencia d'estes dois generos de oratoria o objecto da segunda parte de um curso litterario, tocando apenas de leve quanto é formal na arte e que sapientissimos rhetoricoes, copiando-se uns aos outros, de sobejo explicaram; mas tractando com profundeza os principios applicaveis principalmente aos generos judiciario e deliberativo em relação á nossa situação politica. Para isto seria do exame da eloquencia nos differentes tempos e logares, que nós partiriamos em nossas indagações: veriamos Demosthenes, trovejando na tribuna, armado da razão e da indignação, admiravelmente conciso e misturando com esta concisão os sublimes movimentos do patriotismo, arrastar após si a opinião das multidões; veriamos Cicero defender os seus clientes, tractar os mais importantes negocios da republica quasi sempre com uma gravidade e eloquencia estudadas: na historia da oratoria moderna achariamos a vigorosa razão de Mirabeau acompanhada de um estylo raras vezes rasteiro; achariamos nos discursos de Maury os mais bellos monumentos de uma eloquencia mascula mas tranquilla; e, finalmente, o frenesi inspirado pelo amor ás velhas fórmas do absolutismo nas orações de Montlosier: passando á da Inglaterra exporiamos o genero de Pitt, genero severo, renovado hoje por Makintosh e Burdett, a que succedeu o igualmente nervoso, porém mais cheio de artificio, de Burke, Sheridan e Caning, e o genero medio de Fox, terminando assim o exame das fontes verdadeiras da eloquencia.

Seria a d'esta ultima nação que nós proporiamos como principal modelo sem exceptuar comtudo as outras. Entre os gregos, romanos, e franceses ha muito que aproveitar; mas, se é verdade que a litteratura em parte depende de certa harmonia com as circunstancias de cada povo, nenhuma eloquencia é mais digna para nós d'estudo do que a inglesa. Nem entre os antigos, nem na republica francesa, ella estava na mesma relação com as instituições sociaes que vai a estar na nossa patria. O orador, na discussão de uma lei perante a plebe, que deve votar sobre ella ou influir na votação, como acontece no calor das revoluções, tem de usar de meios differentes dos que hade empregar para a impugnar ou defender em uma camara, cujos membros são, ou devem ser, os mais conspicuos da nação por suas luzes e virtudes. No primeiro caso os raciocinios convem sejam acompanhados dos meios formais da arte para dirigir as paixões populares; no segundo, expostos a homens que conhecem a arte tão bem como o orador, sem alcançarem o seu effeito, os artificios só attrahiriam sobre elle a suspeita de má fé: isto sem pretendemos dizer que elle discuta com a secura de um geometra as questões do publico interesse; porém os seus movimentos devem surgir sinceros de um coração intimamente commovido e de nenhum modo dar a conhecer que foram tranquillamente calculados pelos preceitos de Quintiliano.

Entre os romanos, a pequena porção de leis que havia ainda nos ultimos tempos da republica e o espirito de generalidade a que se limitavam, dava motivo a que nas causas particulares o advogado ou accusador de qualquer réo buscasse despertar a compaixão ou a sanha dos juizes, de quem muitas vezes era guia unica o senso commum e a moralidade, na falta de disposições preceptivas, e apesar da similhança dos tribunaes civis e criminaes de Roma com os nossos modernos jurados, existe entre nós e elles uma differença enorme por causa das circunstancias legaes. Hoje, entre os povos livres, ha, ou deve haver, um codigo que previne todos os casos com clareza e exacção, e o mister do orador reduz-se a provar se o seu cliente está ou não no caso da lei: então todo o pleito deverá ser uma questão de factos provados ou provaveis, e vice-versa.

D'aqui se colhe quão sobrio elle deve ser empregando os meios que lhe ministra a arte. Clareza, ordem de idéas, logica severa, eis os meios principaes da eloquencia do fôro e das camaras legislativas.

Tal é o rápido quadro do nosso modo de pensar sobre a actual litteratura portuguesa, e sobre os meios de a dirigir. As curtas reflexões que temos feito sobre a poesia e a eloquencia são as bases em que julgamos dever-se fundar um curso de litteratura, que serviria como de introducção aos estudos mais profundos do poeta e do orador. Oxalá que d'entre os nossos litteratos algum se encarregue d'esta util e importante tarefa.

POESIA

Imitação—Bello—Unidade

*REPOSITORIO LITTERARIO*

1835

POESIA

Imitação—Bello—Unidade

Je donne mon avis non comme bon, mais comme mien.

Montaigne.

Na torrente de opiniões contrarias sobre a critica litteraria, que na presente epocha combatem, morrem, ou nascem, tambem nós temos a nossa: e vem a ser parecer-nos que da falta de exame dos principios em que se fundam os differentes systemas, procedem essas questões que se teem tornado interminaveis talvez por esse unico motivo. O genio, impellido a produzir no meio de idéas vagas e controvertidas sobre as fórmas, as condições da poesia, julga que todas ellas são indifferentes e desvairado se despenha; o engenho, dominado pelos preceitos que muitos seculos por assim dizer, sanctificaram, contrafaz e apouca as suas producções temendo cair naquillo que julga monstruoso e absurdo. Tal é, geralmente, o estado da litteratura: e emquanto se não estabelecer um corpo de doutrina que, afiançando a liberdade do poeta, o circumscreva aos limites da razão, a republica das letras similhará as associações politicas no meio de uma revolução espontanea onde o despotismo extremo e a extrema licença, os terrores e as esperanças, a felicidade e a desventura, se cruzam, se arruinam e se anniquilam no meio de uma confusão espantosa.

Os que conhecem o estado actual das letras fóra de Portugal, na França, na Inglaterra, e ainda na Italia, sabem ao que alludimos. Trememos ao pronunciar as denominações de classicos e romanticos, palavras indefinidas ou definidas erradamente, que sómente teem gerado sarcasmos, insultos, miserias, e nenhuma instrucção verdadeira; e que tambem teriam produzido estragos e mortes como as dos nominaes e reaes, se estivessemos no XVI seculo. Infelizmente em nossa patria a litteratura ha já annos que adormeceu ao som dos gemidos da desgraça publica: mas agora ella deve despertar, e despertar no meio de uma transição de idéas. Esta situação é violenta, e muito mais para nós, que temos de passar de salto sobre um longo prazo de progressão intellectual para emparelharmos o nosso andamento com o do seculo. Se as opiniões estivessem determinadas, o mal ainda não seria tão grande; mas é num cháos que nos vamos mergulhar e do qual nos tiraremos talvez muito depois de outras nações. A influencia da litteratura estrangeira torna necessario este acontecimento, se aquelles a quem está encarregada esta porção do ensino publico não tractarem de estabelecer uma theoria segura que previna tanto o delirio d'uma licença absurda como a submissão abjecta que exige certo bando litterario. Sabemos as difficuldades que tal trabalho encerra; porém o amor da lilteratura vencerá todas quando ajudado do estudo e do genio.

As reflexões que ora apresentamos são fructo de uma parte de nossas meditações sobre tal objecto. Desejariamos tê-las podido coordenar todas e estabelecer melhor algumas; mas trabalhos, posto que litterarios, de differente especie, impostos por um dever, nos distrahiram do nosso desenho. Offerecemo-las aos eruditos para que tendo alguma utilidade a aproveitem e sendo damnosas acautelem d'ellas aquelles a quem podem ser nocivas. Nós nos envergonhariamos mais de ter acertado com leveza do que de ter errado pensando.

Talvez alguem as julgue em demasia abstrusas; mas, ou o bello, objecto da poesia, seja inteiramente resultado das relações das nossas faculdades intellectuaes entre si, ou das d'estas faculdades com o mundo objectivo, ou, finalmente, resida neste, é sempre a alma do homem quem o sente e goza. Para nós a sua existencia depende da nossa; e a metaphysica influirá sempre em qualquer systema que sobre tal objecto venhamos a adoptar. Tem-se dito, e mil vezes repetido, que é preciso para que a litteratura floresça afastá-la d'esta sciencia: isto equivale a dizer-se que para os ramos de uma arvore se conservarem virentes é mister decepar-lhe o tronco principal. Na poesia ha essencia e fórmas: estas devem convir áquella, ou, diremos melhor, d'ella devem partir. Sem levar o facho da philosophia ao seio das artes, sem examinar a essencia d'estas, as theorias formaes ficam sem fundamento; e é justamente o que tem acontecido. Seguiu-se quanto a nós, methodo inverso ao que devera seguir-se, e um grande mal d'ahi resultou: a fluctuação dos principios, e consequentemente dos juizos criticos. Todos sabem das controversias de Boileau e seus sectarios com Perrault, Lamotte, e ainda Fontenelle e Huet; mas o que nem todos sabem é que muitas vezes os ultimos tinham razão. E se é possivel entender uns e outros, veremos que o arruido nascia da incerteza ou da contradicção dos preceitos, o que nunca succederia se a poetica estivesse fundada em principios metaphysicos em que ambos os bandos conviessem. Mas qual era a consequencia da versatilidade das regras e das suas contradicções? O fazerem homens, aliás engenhosos, os juizos mais contradictorios sobre a mesma coisa, e haver uma falta de consciencia em todos esses juizos que salta aos olhos. A critica tomou naquella epocha um caracter mesquinho e pedante. Nem acreditemos que esse mesmo Boileau, tão gabado pelos seus franceses como homem de summo gosto e fino tacto, sobrelevasse muito outros seus contemporaneos. A falta d'esse gosto e d'esse tacto achamos nós numa carta a Brossette acêrca do Telemacho. Esta grande creação de um dos maiores genios do seculo (perdoem-nos os admiradores do inquisitorial e raivoso Bossuet) foi comparada pelo autocrata litterario da França com o romance de Theagenes e Chariclea de Heliodoro bispo de Tydea, romance obscuro escripto na decadencia do imperio romano e da antiga litteratura: bastava esta carta para sabermos o peso que deviamos dar ás decisões de Despreaux, quando nas suas poesias não encontrassemos já para isso erradas opiniões acêrca do Quinault e do Tasso.

A historia da critica em França no reinado de Luís XIV e de Luís XV, e que tambem o é com pouca differença da que vogava em Inglaterra durante o governo de Anna, se reduz a que, se um poeta ousava apartar-se das fórmas imaginadas nos antigos monumentos, e se este poeta merecia a estimação publica, os criticos se viam na necessidade ou de confessar, se não a inutilidade, ao menos a instifficiencia de seus preceitos, ou a votar ao desprezo as producções do genero moderno. A opção não era duvidosa; as regras sempre tinham razão; mas como ante o tribunal da opinião era preciso que ellas apresentassem algum titulo, ahi se corria a pedir soccorro ao homem e ao mundo, e sempre lá se achava com que contentar o povo litterario. Aquelles preceitos que factos oppostos não controvertiam ficavam amparados por grandes nomes e pelo respeito dos seculos sem dar razão da sua existencia, bem como em nossas cathedraes os conegos á sombra do culto religioso.

A justiça pede que digamos que uma grande parte dos preceitos dos antigos foram deduzidos do principio da unidade, d'esse principio que reside em nossa alma e que, emquanto existirmos sobre a terra, representa para nós o absoluto, ao qual nos faz constantemente tender a consciencia da immortalidade; mas a applicação d'este principio foi em nosso entender muitas vezes errada ou exaggerada. Metastasio refutou excellentemente a regra da restricta unidade de logar e de tempo nos poemas dramaticos, e nós veremos brevemente que nem só essa unidade carecia de fundamento: porém, a fóra das regras nascidas d'este principio, outras ha de tal maneira futeis que para as destruir basta negar-lhes a validade. Que razão daria Horacio, tirada da essencia do tirania, para uma tragedia ou comedia não ter nem mais nem menos de cinco actos? Julgamos não teria outra melhor do que uma dada engraçadamente pelo auctor do Anno de 2440 em nota a um dos seus dramas.[1]

Nós devemos em grande parte aos antigos o que sabemos: seria uma ingratidão negá-lo. Elles crearam as letras e as levaram a um ponto de esplendor admiravel; mas por as crear e aperfeiçoar não se deve concluir que acertaram em tudo ou tudo sabiam. Nós não dizemos com Mr. de Chateaubriarid que em litteratura só devemos estudar os antigos: Camões, Tasso, Klopstok não nasceram na Grecia ou em Roma, e entretanto achamos tanto que estudar nos escriptos d'elles como nos de Homero e Virgilio. O mesmo Mr. de Chateaubriand é uma prova de que o genio não é partilha exclusiva de nenhuma epocha, de nenhum povo. No renascimento das letras a admiração pelos auctores classicos não deixou ver seus defeitos e erros, e julgou-se inviolavel a antiguidade. Venia mereciam os descobridores dos preciosos manuscriptos que continham o thesouro de idéas que nos herdaram os gregos e os romanos: laboriosas indagações, largos annos de applicação davam jus aos Vallas e aos Philelfos, aos Aldos e aos Stephanos, a não verem uma só macula nos objectos caros que elles revelavam á Europa: mas que, passados dois seculos, ainda a republica litteraria se conservasse deslumbrada pelo fulgor tios tempos remotos, emquanto as sciencias começavam a fazer justiça e a dar o seu a seu dono, é o que nos parece inexplicavel ou, para melhor dizer, o que com repugnancia explicariamos.

Embora se apresentassem difficuldades insuperaveis, embora fosse preciso recorrer ás razões mais frageis, aos argumentos mais illusorios, uma vez que as regras fossem ou se cressem originaes, ou derivadas dos escriptos de Aristoteles ou de Horacio, de Cicero, de Quintiliano ou de Longino, era obrigatorio defendê-las sob pena de ser havido por ignorante ou por homem de minguado criterio. Boileau disse em uma das suas satiras que só a verdade era bella: o padre Castel profundo litterato que escreveu sobre o bello e sublime e que jurava ante os numes defender esta proposição (porque em fim era de Despreaux), sem mesmo se aproveitar da vaga distincção do verdadeiro e verosimil, que tem salvado muita coisa e muita gente, começou a applicá-la por esse mundo poetico; mas embicou logo com Virgilio. O verso Provehimur portu terraeque urbesque recedunt recalcitrava, além de outros, contra a sentença do mestre. Que fez o bom rio padre?—Zás—Uma razão digna de Fr. Gerundio: «O verso de Virgilio exprime uma idéa verdadeira, porque ha ahi uns annos descobriu-se a theoria do movimento; e voto a Apollo que a regra ha-de passar inconcussa: o verso e bello porque é verdadeiro». Se fosse possivel um padre grave ludibriar o publico, nós diriamos que elle estava escarnecendo os leitores. Desejariamos que o padre Castel nos tivesse explicado porque o verso era achado bello antes d'essa theoria e porque o continuaria a ser mesmo se ella fosse destruida. Taes são as miserias que teem resultado do modo porque durante muitos seculos foram tractadas as letras. D'estas ninharias poderiamos dar muitos exemplos; mas voltemos ao nosso objecto.

Depois de Aristoteles a poesia foi para os antigos a imitação do bello da natureza, tendo por condições a unidade e a verdade, ou a verosimilhança. É esta em nossa opinião a maneira mais simples de exprimir a philosophia da arte entre elles, ou os elementos da sua poetica, os quaes o continuaram a ser até nossos dias. É, pois, o valor dos termos imitação, bello, unidade, verdade ou verosimil, que cumpre determinar para ver se as idéas que exprimem estão em harmonia entre si, e se podem dar validade a uma poetica nellas fundada.

A imitação suppõe o bello em a natureza moral ou physica, e qualquer d'ellas existente fóra de nós. Os actos humanos serão na primeira, digamos assim, o substractum da imitação: na segunda sê-lo-hão os corpos, e o bello nos será communicado por meio das sensações: qualidade dos corpos, fórma das acções, naquelles a sua impressão será universal, nesta nunca necessaria. O europeu, o chim, o hottenlote sentirão egualmente que o Apollo de Belvedere é bello: a acção dos templarios cantando hymnos a Deus no meio das chammas, e cuja morte Mr. Rainouart pintou divinamente num só verso:

«Il n'en etait plus tems, les chants avaient cessé.»

nunca será nessariamente bella: se elle a imitou de um acto humano similhante, esse acto sendo contingente parece-nos não teria qualidade dotada de caracter necessario: se applicarmos isto a uma acção épica ou dramatica, ainda mais visivel é a falta de necessidade da sua existencia e consequentemente a dos seus caracteres formaes.

Se dissermos que o bello é relativo e resultado do nosso modo de ver, da relação particular dos objectos comnosco, da harmonia ou desharmonia dos tactos com as nossas idéas moraes, nesse caso não poderemos affirmar que os Lusiadas ou a Odyssea sejam absolutamente superiores ao Affonso ou ao Viriato Tragico. Poderemos dizer que para nós não ha sequer comparação; mas seria absurdo exigir dos outros o mesmo sentimento. Boileau julgou esquivar-se a esta difficuldade asseverando que a opinião geral devia ser a norma do nosso modo de sentir, e que a totalidade dos homens não se engana numa crença duradoura. Desejariamos que Boileau nos dissesse se era pela opinião geral que elle acharia frio o gelo e quente o fogo. Que nos importa a opinião quando se tracta de sensações? Que vale mesmo aos olhos dos homens cordatos o credito de uma opinião geral? Cremos nós hoje na arte mágica, na alchymia, ou na virtude dos Jesuitas? E foram estas crenças porventura pouco geraes e pouco duradouras? Quando concedessemos o principio, elle nos seria inutil para julgar as producções contemporaneas, e a critica não nos serviria para conservar puras as letras, nem para gozar as creações do genio moderno: a gloria ou o desprezo não encontraria já nem as cinzas do poeta. Seculos haveriam passado para reformar a opinião, quando isso mesmo fosse possivel.

Mas felizmente não é assim. Lamartine! com uma poesia celeste tu fazes adorar a religião que saudaste em teus hymnos solitarios. Monti! tu nos encheste de um terror delicioso conduzindo-nos aos umbraes do outro mundo. Schiller! quem não sentiu bater mais fortemente o coração lendo a despedida de Picolomini e Thecla? A infancia do seculo XIX já tem muitos titulos com que faça passar sua memoria enobrecida deante dos outros seculos. Elles julgarão como nós os genios que no meio das tempestades politicas consolaram o genero humano com a harmonia de seus cantos. Acêrca de Lamartine, de Monti, de Schiller, e não só d'elles, nós damos seguro da posteridade.

Tal é o bello para quem o julgar em sua modalidade necessario e absoluto: uma idéa opposta repugna e nos afflige: nós queremos que todos os tempos, todos os homens o julguem e gozem como nós, e diremos sem hesitar, o que não for de nosso sentir ou carecerá de gosto ou o terá pervertido.

É esta circumstancia da necessidade do nosso juizo sobre o bello que distingue inteiramente este do agradavel.—Do primeiro nós affirmamos a existencia, do segundo a sua relação comnosco. O quadro da morte da Clorinda na Jerusalem Libertada é bello, e que deixe os poetas aquelle que tal não o julgar. Um pomo saboroso é para nós agradavel, talvez para outrem o não seja, o que nos é indifferente. No primeiro caso julgamos; no segundo exprimimos a idéa da relação particular entre nós e o phenomeno.

A que reduzirião Burke e Delaunay a maxima parte do que escreveram sobre o assumpto se tivessem reflectido nesta differença? Poria um porventura os elementos do bello nas linhas curvas e no macio e tê-lo-ia outro dividido geographicamente como se dividem as raças humanas? Estamos persuadidos que não.

A incerteza acêrca do criterio do bello não é o unico resultado do principio da imitação: elle tambem está em contradicção com o da unidade: esta debalde se procuraria nos corpos: as partes do universo coexistem; mas individualmente, e entre individuo e individuo medeia um abysmo que rigorosamente falando nós não podemos eliminar: generos, especies, familias, causas e effeitos necessarios são fórmulas do entendimento; são como lhes chama Ancillon muletas da intelligencia. Se procurassemos a fugitiva unidade do total do Universo lá mesmo ella seria para nós a nuvem de Ixion. Com effeito, sendo impossivel á imaginação acabar a synthese dos phenomenos, ella disse quando cansou—isto é o universo—; mas teem acaso os objectos que produziram essa idéa uma ligação absoluta e una entre si?—Não: a mente faz uma abstracção similhante á que faz a historia natural deduzindo dos individuos generos, especies, familias. O Universo não é senão a repetição indefinida da individualidade.

Parece-nos, pois, que é forçoso ou abandonar a imitação do mundo physico, ou não exigir a unidade nas imitações d'este genero. Outras razões existem para provar que a mesma difficuldade apresenta a conciliação dos dois principios no mundo moral; mas nós guardamos essas reflexões mais complicadas para quando voltarmos a este assumpto, temendo ser por agora tachados de prolixos.

Do que temos dicto concluimos que o bello das imagem, o bello chamado physico não existe nos objectos porque a unidade e a necessidade da sua existencia seriam destruidas; mas sem estas duas condições o espirito não o admitte. É, pois, em nós, no mundo das idéas que o devemos buscar. Um typo independente do que nos cérca, deve existir, com o qual a faculdade de julgar possa comparar o bello de uma imagem particular. EuNão eu, eis o circulo das existencias, os dois nomenos fóra os quaes nada concebemos. Mas nós admittimos o necessario e o uno sem o encontrarmos no que nos rodeia: cumpre, pois, que elles residam em nós como fórmas da intelligencia.

É visivel que um typo é preciso para julgar o bello: sem elle as artes plasticas seriam impossiveis. As comparações entre os objectos não podem jámais estabelecer regras invariaveis de gosto, e ellas suppõem já uma comparação anterior. Quando comparamos dois objectos, um bello outro não, o unico resultado que tiramos d'ahi é ver que são desimilhantes: mas por que modo agrada um, outro repugna? É sem duvida porque um harmoniza com uma idéa, bem que indeterminada, e outro se oppõe a ella.

Será este typo resultado da experiencia? Cremos que não. Onde existe o typo da Venus de Medicis, de Laocoonte, ou de Marco Sexto? Quem se póde gabar de o ter encontrado na natureza? Elle existia na mente dos artistas: as idéas d'estas creacões foram para elles antes de ser para nós: unisonas com o seu typo, o genio as traduziu no marmore, no bronze e na tela. Dir-se-ha, em ultimo caso, que o estatuario e o pintor reuniram o bello parcial para formar o todo. Porém seria aggregado uno? Além d'isso, não é claro que para essa escolha precisavam de um guia existente na sua alma? Quem os moveu a escolher esta fronte, estes labios, este collo com preferencia a outros? Parece-nos que estas perguntas ficarão sem resposta emquanto os homens procurarem fóra de si o principio vivificante das artes.

Quanto ao verosimil e verdadeiro na imitação, nós faremos só alguns leves reparos, porque de outro modo seria preciso examinar as mudanças que se teem feito na intelligencia d'este principio para devidamente o apreciar, e este trabalho exigiria longas paginas. Aristoteles estabelece a differença entre a verosimilhança e a verdade, dizendo que a primeira pertence á poesia, a segunda á historia: que a primeira consiste nos actos consequentes de um caracter em geral, a segunda nos actos practicados por um individuo existente e determinado. D'estas expressões resulta que para a distincção do verdadeiro e do verosimil physico o critico grego não nos deixou nenhuma regra, e que no moral cessa com o verosimil a imitação: na natureza não ha senão caracteres individuaes, os geraes existem por uma idéa. Confessamos nossa rudeza; não entendemos como as paixões concebidas da maneira que as concebe o genio e applicadas a um individuo, ou supposto ou historico, sejam uma imitação. Quando quisessemos exprimir esse caracter por factos, dar-lhe uma existencia real e individua, nada mais fariamos do que destruir uma abstracção por nos servirmos da linguagem sensualista. Além d'isso, suppondo que todas as nossas idéas sejam resultado de sensações, a idéa geral e absoluta de um caracter é uma chimera dando-lhe validade necessaria e imprescritivel. Circumstancias particulares, opiniões, em fim as côres locaes viriam introduzir a confusão e a anarchia no imperio da critica. Supponhamos que os caracteres dos heroes da Hiada foram traçados, segundo a opinião de Aristoteles, pela idéa geral do valor, mas nós vemos esses heroes fugirem do inimigo que temem. Odoardo e Gildippe, na Jerusalem, cáem sob o alfange de Saladino sem terem voltado as costas, Sueno acaba sobre os cadaveres dos seus soldados no meio dos infiéis sem depor a espada, apesar de ser impossivel vencer. Quem imitou a idéa geral do valor? Foi Homero ou foi Tasso? Provavelmente Homero porque é mais antigo. Algum futuro commentador de Aristoteles no-lo explicará.

Não nos tendo este deixado a norma para julgar o verosimil physico, vejamos se Horacio occorreu a esta falta. Foi por ahi que elle começou a epistola aos Pisões. Descrevendo um monstro que imaginou, convida-os a rir do quadro que lhes apresenta—e porque? Dá o poeta a razão—vanae fingentur species,—Batteux paraphraseando accrescenta—images vagues qui n'ont point de modèle dans la nature. E assim, o que for vão, o que não tiver typo na natureza nunca será bello. Pobre Homero! Os teus cyclopes, o teu Poliphemo, os monstros de Charybdis, emfim teus lindos sonhos devem-nos arrancar uma gargalhada. Tu mesmo, crapulario Horacio, quererás com o teu Pegaso fazer-nos estourar de riso? Com effeito, onde existem as ficções dos antigos monstros da mythologia? Quem viu um homem ou um cavallo alado como o Amor e o Pegaso? Nem se diga que a crença popular lhes tinha dado a existencia: isto são palavras que soam mas sem sentido.—Cremos que existir na intelligencia não é existir no mundo real. Se a phantasia produziu estas creações ellas não foram imitadas, logo não teem modelo, logo não são bellas; porque nos persuadimos que a mais duradoura crença nunca poderá fazer que uma coisa seja o que não é.—Vemos, portanto, que para a theoria do verosimil pouco se aproveita a poetica do illustre adulador de Meçenas e de Octaviano.

Talvez Boileau nos satisfaça. Eis o que encontramos nas suas doutas poesias a este respeito:

Rien n'est beau que le vrai, le vrai seul est aimable.[2]

Le vrai peut quelque fois n'être pas vraisemblabe.[3]

Qual seria a conclusão que tirariamos d'estas duas proposições, dispondo-as em fórma de syllogismo?—Quem respeitar Despreaux não ousará fazê-lo.

Metastasio falando da imitação nos commentarios da poetica d'Aristoteles, nos explica em que consiste o verosimil que o imitador é obrigado a conservar na sua imitação: «O alvo do copista, diz elle, é que a sua cópia possa substituir o original, o do imitador é conservar a similhança possivel do objecto sem alterar a materia sujeita da imitação». Continua depois dizendo que o admiravel d'esta consiste nas difficuldades que venceu o artista: o que, em nosso entender, equivale a dizer que o bello consiste em vencer as difficuldades da imitação: lembremo-nos, porém, que por este mesmo tempo Batteux reduzia as artes a um só principio—a imitação da bella natureza; e louvemos a Deus pela unidade de doutrina de uma eschola que hoje com tanta arrogancia accusa de barbarismo e incerteza todos os principios litterarios que não se amoldam aos seus.

Tirou Metastasio da estatuaria um exemplo para nos dar a conhecer as differenças que ha entre imitação e cópia, mas, tractando-se de poesia, seria talvez bom que nesta o buscasse. Nós o faremos por elle comparando o retrato de Gabriella de Estées por Voltaire, com o de Ignez Sorel por Chapelain.—Para os nossos leitores poderem ajuizar transcreveremos ambos:

CHAPELAIN

En la plus haute part d'un visage celeste,
…un front grand et modeste
Sur qui vers chaque temple á bouillons séparés
Tombent les riches flots de ses cheveux dorés
Sous lui…
Deux yeux étincelans… sereins…
Au dessous se tait voir en chaque joue éclose
Sur un fond de lis blanc une vermeille rose
Qui de son rouge centre épandue en largeur
Vers les extremités fait palir sa rougeur.
Plus bas s'offre et s'avance une bouche enfantine,
Q'une petite fosse a chaque angle termine,
Et dont les petits bords faits d'un corail riant
Couvrent deux blancs filets…

VOLTAIRE

Telle ne brillait point au bord de l'Eurotas
La coupable beauté qui trahit Ménélas.
Moins touchante et moins belle, á Tarse on vit-paraitre
Celle qui des Romains avoit dompté le maitre

* * * * *

Elle entrait dans cette age, hélas! trop redoutable,
Qui rend des passions le joug inevitable.
Son coeur né pour aimer, mais fier et généreux,
D'aucun amant encor n'avoit reçu les voeux.
Semblable en son prinptems á la rose nouvelle
Qui renferme en naissant sa beauté naturelle,
Cache aux vents amoureux les trésors de son sein
Et s'ouvre aux doux rayons d'un jour pur et serein.

Quem duvidará que Chapelain imita uma bella mulher com a similhança possivel e que no retrato de Gabriella a imaginação nada póde affigurar-se que não seja vago e indeterminado? Quem duvidará tambem que o primeiro retrato é obra de um borrador e o segundo digno de Albano? Comtudo hoje é reputado barbaro e extravagante quem se ri das regras da velha poetica!…

Desde Batteux, Sulzer, Jaucourt e outros, as artes em geral e a poesia em particular foram definidas—a imitação do bello da natureza. Esse principio se achava nos escriptos dos antigos, mas confundido com a idéa de que do artificio da imitação tambem resultava um prazer similhante ao produzido pelo bello. Muito devemos a estes criticos; aliás, fugindo constantemente da natureza para a arte e d'esta para aquella, a velha poetica salvaria uma grande parte dos seus canones dos olhos investigadores da philosophia. Era isto misturar a noção do agradavel com a do bello. Os modernos, reduzindo a poesia á imitação d'este, cairam, em nosso entender, num erro analogo confundindo-o com o bom.

Diderot disse que no util consistia o bello—Watelet que o era tudo o que preenchia o seu fim. Mr. Lemercier dá como causa final das letras a utilidade. Mendelssohn creu-o a expressão sensivel da perfeição, e ao seu systema similha o de Mr. Laurentie ácerca do bello intellectual. Todos estes enunciados se podem reduzir ao de Mr. de Bonald—o bello absoluto é synonimo de bom. Não sabemos o que Marmontel e Laharpe opinaram, porque temos a infelicidade de não entender as suas deffinições.

Os sensualistas do seculo passado, depois de um longo rodeio, voltaram á confusão do agradavel e do bello; e os espiritualistas d'aquelle seculo e do nosso foram progressivamente tirando o bello da natureza physica e collocando-o sómente na moralidade, ou creando uma cousa chamada bello relativo que, ou não existe ou é o mesmo que o agradavel.

Mr. Laurentie escreveu um volume para mostrar aos barbaros innovadores que o bom e o bello moral eram inseparaveis: neste livro toma o pobre Kant para a sua alma, visto que, por culpa d'elle, foi enxovalhado o rico e harmonioso idioma de Paschal e Bossuet com o Eu e Não-eu. Até aqui bem vamos. Se Kant fosse vivo, como causa primeira de se commetter tão horroroso attentado, devia acabar numa fogueira: e nisto, cremos, conviria Mr. Laurentie, porque nos seus escriptos alguma pena mostra de ter visto findar as assaduras dominicanas. Mas no que não tem razão é em insultar a memoria do veneravel professor de Konigsberg, que estabeleceu antes d'elle a mesma verdade, como mostrariamos se este escripto comportasse uma exposição da doutrina d'aquelle philosopho acêrca do juizo esthetico. Não seria melhor que Mr. Laurentie, antes de decidir com um tom tão dogmatico e magistral estudasse primeiramente as opiniões que intentava impugnar? Similhante altivez não nos parece concordar com a humildade evangelica propria de um bom christão como Mr. Laurentie![4]

Insistimos na differença do bom e do bello, porque o grande nome de Mendelssohn se colloca naturalmente á frente dos que os declaram identicos. Esta idéa se encontra já na philosophia néo-platonica e talvez no Hippias maior do mesmo Platão, de cujas opiniões Mendelssohn não estava mui longe. O que Mr. de Bonald e Alletz disseram sobre este ponto funda-se inteiramente naquellas doutrinas.

Porém serão ellas verdadeiras? Nós cremos que não. A perfeição de qualquer coisa é o complemento de seus fins, e estes devem ser bons, aliás não se daria aquella. D'isto resulta sempre um interesse, quer no moral quer no physico, o que suppõe uma existencia real: porém o sentimento do bello é desinteressado e não carece de ser acompanhado do de existencia. Os jardins de Alcinoo, a ilha de Venus, não seriam mais bellos se os cressemos existentes fóra da Odyssea e dos Lusiadas. A imaginação é quem nos presta a idéa de que resulta o juizo acêrca do bello: o bom nasce de uma idéa determinada pela razão; porque, para julgar uma coisa boa e perfeita, é preciso saber para que serve, qual seu alvo, quaes suas relações: um edificio irregular, mas commodo e reparado, será bom, porque satisfaz o seu alvo objectivo: a Venus de Medicis chama-se bella, porque satisfaz, por uma idéa da imaginação, o jogo das nossas faculdades quando a comparamos com o ideal do bello humano.

Dissemos que o bello moral é sempre acompanhado do bom. Concordando nisto com as opiniões actuaes dos litteratos puros, julgamos não ser preciso prová-lo e portanto nos absteremos d'isso. O pouco que notámos basta para se ver em que consiste a differença das duas idéas no mundo da moralidade.

Cremos ter indicado, bem que mui de leve, as difficuldades e por ventura contradicções que encerra uma poetica respeitada por tantos seculos. Mas desde Aristoteles estava apontado, e por elle mesmo, o vicio da sua construcção. Applicando á Iliada os canones que tinha estabelecido e que julgou ter deduzido d'ella, achou que ás vezes elles falhavam, e viu-se obrigado a dizer que as regras se podiam pôr de parte quando o bello assim o exigisse. Não é d'este modo que nós concebemos a poesia. Seus preceitos devem ser imprescriptiveis sendo deduzidos do bello e de suas condições. De que modo o nosso criterio póde ser seguro, ter este caracter de necessidade que a consciencia requer, sendo incertos os seus meios? O jogo de arguições e replicas que constituem o capitulo 25 da sua poetica seria digno de um sophista, não do maior philosopho da antiguidade: ellas fariam luzir um estudante das nossas aulas de rhetorica em uma sabatina; mas para o estudo da litteratura parece-nos que de nada servem.

Tendo até aqui procurado derribar, cumpria edificar agora: mas não escrevendo um livro, nem possuindo para isso o cabedal necessario, apenas lançaremos os primeiros traços dos (quanto a nós) unicamente verdadeiros fundamentos de uma poetica razoavel, para estabelecer a theoria da unidade de um modo mais conforme a razão, e ao mesmo tempo mais concorde com os grandes monumentos litterarios.

A poesia é a expressão sensivel do bello por meio de uma linguagem harmoniosa.

O bello é o resultado da relação das nossas faculdades, manifestada como jogo da sua actividade reciproca.

Esta relação consistirá na comparação da idéa do objecto com uma idéa geral e indeterminada: a harmonia d'ella resultante produzirá o sentimento do bello: esta harmonia será sujectiva, residirá em nós; e a sua existencia a priori necessaria e universal.

Como composta a idéa do objecto leva comsigo a variedade; como geral o outro termo da comparação é puramente subjectivo e consequentemente uno.

A condição, pois, do bello é a concordancia da variedade da idéa particular com a unidade geral: condição que é por tanto necessaria em todos os juizos acêrca do bello.

Mas existindo essa harmonia no jogo das faculdades e requerendo-se para ella a unidade, esta será subjectivamente absoluta, e tudo o que na idéa particular do objecto não estiver em relação com ella nunca poderá ser julgado bello.

Tanto nos basta da longa e difficil theoria do bello e sublime para o nosso intento. Na sua applicação restringir-nos-hemos aos poemas narrativos, porque os outros, sobretudo os dramaticos, exigiram um mais amplo desenvolvimento que não comporta este escripto.

Dos principios que apresentámos e que em parte as antecedentes observações pediam, se colhe o sempre imprescriptivel canon da unidade, porém esta collocada mui longe d'onde os antigos a collocavam. É uma idéa geral e indeterminada que a torna necessaria: a acção não é mais do que a serie de variedades que devem, digamos assim, dar um som unisono com a idéa geral e una. Será, pois, em nosso systema o primeiro passo a dar no exame de qualquer poema o buscar qual foi essa idéa, esse deus in nobis que constrangeu o poeta a revelar-se ao mundo em cantos harmoniosos. Nós a buscaremos nos cinco mais celebres poemas da Europa—a Iliada,—a Eneida—o Orlando furioso—os Lusiadas—e a Jerusalem libertada. Se a theoria for verdadeira acharemos essa idéa: as partes que os constituem serão concordes com ella; aliás estes poemas cessarão para nós de ser considerados como absolutamente bellos, e ficaremos persuadidos de que a Europa inteira se enganou tendo-os por modelos do gosto.

Antes, porém, de tudo convem sujeitá-los a um exame cujo norte seja o que a antiga poetica exige para julgar similhantes producções. Seremos severos neste exame, mas limitar-nos-hemos ao mais importante principio—o da unidade de acção, a que nós temos a infelicidade de não dar valor algum. Com este nos contentamos, que de outro modo fariamos em vez de um artigo um volume.

Quem será nosso guia para vêr em que essa unidade consiste? Aristoteles: ninguem o refusará. Elle é o unico escriptor original sobre taes materias: os que vieram depois d'elle o copiaram, o commentaram e talvez demudaram suas idéas. Diz Dacier que todas as poeticas se reduzem á do Stagyrita, e por outra parte Mr. Lemercier nos assegura ser bastante para constituir um perfeito critico em poesia o entender bem as poeticas de Aristoteles, Horacio, Vida e Despreaux. Reunindo, pois, as opiniões de dois tão illustres litteratos parece-nos que nesse escripto do velho grego devemos buscar a norma de nossos juizos para avaliar os poetas.

Busquemos lá, com effeito, em que a unidade consiste. Achá-lo-hemos no capitulo 8. Serão, diz elle, as partes de uma acção de tal geito ligadas entre si, que tirada ou transposta uma, fique tudo destruido ou mudado.

São os episodios que na epopêa constituem essas partes da acção, rigorosamente falando. Assim o julga Dacier e a Encyclopedia: assim o cria Voltaire dizendo que os episodios similham aos membros de um corpo robusto e bem affigurado. Um episodio, pois, que sendo omittido deixa a acção inteira, inserido nella destruirá a sua unidade. Mas ficará, porventura, incompleta a acção da Iliada se lhe tirarmos o longo trecho da descripção das naus gregas e o muito mais longo do funeral de Patroclo? Cremos que não, e que portanto se, pela poetica de Aristoteles julgarmos a Iliada, d'ella desapparecerá a unidade.

Diz mais o critico grego, no começo d'este capitulo, que a identidade do heroe principal nunca estabelecerá a unidade, quando as acções forem multiplices. Ora, quem é que une a primeira metade da Eneida á segunda?—Apenas o heroe. Tudo é novo depois da sua chegada á Italia. Novas são as aventuras, novas são as personagens secundarias. É o mesmo Virgilio quem nos indica a duplicidade da acção do seu poema. A exposição da Eneida estava plenamente desenvolvida no fim do sexto livro, e assim, logo no principio do setimo, elle nos avisa que vai contar uma nova ordem de coisas[5]. Podemos, pois, affirmar affoitamente que na Eneida da falta a unidade.

Quanto aos Lusiadas nada é preciso dizer. Salta aos olhos que a historia dos doze de Inglaterra, o assassinio de D. Ignez, teem tanto com a acção do descobrimento da India como com a da Odyssea.

Todos acham bellissimo o Orlando furioso, ainda ninguem o achou uno. A distincção de poema heroico, de poema romance, de Dubois, Fontenelle, e de Mr. Lemercier nada mais é do que a impotencia absoluta de applicar a certas producções as regras da antiga poetica.

A Jerusalem libertada é o poema que mais parece ageitar-se aos preceitos classicos pelo que toca á unidade. Entretanto qual é a acção do poema? A conquista de Jerusalem: e acaso conduziria o episodio de Olindo e Sophronia para o seu exito? Certo não. Além d'isso, a acção da Jerusalem conquistada é a mesma; o poeta mudou varios episodios e ella continuou a ser a da Jerusalem libertada, apesar de Aristoteles.

Vejamos, segundo o nosso modo de julgar, se uma uma idéa geral e indeterminada póde estabelecer a unidade na serie de acções, de quadros e de descripções que constituem estes cinco poemas.

No tempo de Homero a historia grega apresentava só um grande feito, a conquista e ruina de Troia. Uma grande idéa occupava a mente do poeta e esta idéa era a gloria da Grecia. Foi, pois, á roda d'ella que Homero agglomerou as variedades que lhe diziam respeito. Onde existiam ellas? Unicamente na memoria das batalhas pelejadas juncto aos muros de Troia: mas uma parte d'essa historia era vergonhosa para os gregos. Ou admittamos qualquer das opiniões referidas por Herodoto acêrca da queda d'aquella populosa cidade, ou as narrações de Triphyodoro e do supposto Dictys, a nodoa de fraqueza, quando não de dolo, sempre parece vir manchar os gregos. Neste caso o poeta repelliu todo o odioso da historia e aproveitou ou inventou o que dava um som unisono com a idéa que o dominava: assim, na Iliada tudo a ella tende; assim, o poema começa quando a ialta de Achilles deixa fulgir o valor dos outros heroes e acaba quando a morte de Heitor devia, bem pelo contrario da verdade historica, fazer caír Troia e dar a victoria aos gregos. Da era a mais gloriosa da semi-barbara Grecia, foram os successos de poucos dias que Homero escolheu para objecto de seus cantos; mas estes dias eram os mais bellos d'aquella epocha memoranda; nelles tiveram logar os mais brilhantes feitos de guerra tão acintosa, e o poeta ainda os tornou mais admiraveis com os traços vigorosos do seu pincel divino.

Os caracteres dos heroes da Iliada são todos agigantados e o valor d'estes rude, como o podia conceber a mente de Homero; mas os valentes de Troia são sempre homens, em quanto os da Grecia são muitas vezes semi-deuses. O mesmo Heitor, que hoje (nós pelo menos) achamos a personagem mais interessante da Iliada, e que parece vir destruir a opinião de que a unidade exista neste poema por uma idea vaga da gloria patria, é uma prova do principio que estabelecemos. Para julgar Homero é preciso collocar-nos no seu tempo e no seu país. O amor paternal e conjugal por que Heitor nos interessa, não era para os antigos, sobretudo nos tempos primitivos, o mesmo que para nós. A robustez de braço e de coração era a principal virtude, e os affectos moraes estavam apenas esboçados nessas sociedades nascentes. Por isso elle devia interessar, não despedindo-se de Andromacha, porém combatendo por uma causa que reputava injusta, mas que se tinha tornado a da patria; não por suas virtudes domesticas, mas pelas virtudes publicas e por seu valor quasi egual ao de Achilles.

Foi por causa d'este que Homero desenhou tão amplamente o caracter de Heitor. Com effeito, aquelle guerreiro que viu fugir ante si Diomedes, o vencedor de um nume[6], cai vencido e morto aos pés de Achilles. Quanto este devia parecer grande entre um povo que olhava o valor e a força como o dote mais digno do homem, e qual seria a ufania e a gloria de um país cujos filhos assim sobrelevavam os numes.

Alguem crê dever notar o haver-nos Homero pintado Achilles arrastando o cadaver do seu inimigo á roda dos muros de Troia. Parece-nos tambem nascer isto de se julgar os antigos por nossas actuaes idéas. Nós vemos que para a maior parte das virtudes sociaes elles não tinham divindades particulares; comtudo havia-as para a amizade. Certo é, pois, que esta nobre paixão tinha preço e valia entre elles. Esqueçamo-nos das virtudes que devemos unicamente ao Christianismo, constituamo-nos gregos, e vejamos qual de nós não faria o mesmo no momento da vingança e da colera. Sómente aquelle desgraçado que não possuisse um amigo.

Se assim examinarmos toda a Iliada, acharemos sempre a idéa de gloria patria servindo de nó a este admiravel poema que hoje se despreza por moda, crendo-se que nisso consiste o romantismo. Já lemos numa enfiada de versos, de que não era possivel ler vinte sem bocejar, que Homero fazia dormir. Ao menos quem assim calca aos pés o velho trovador da Grecia não corre o risco de lhe acontecer o caso do soldado liliputiano que metteu a lança pelo nariz de Gulliver. Homero já não espirra. Que pensariam taes criticos poetas se lhes dissessemos que a Odyssea, quanto ás imagens e mesmo ás fórmas, tem muitissimos caracteres proprios da poesia romantica? Certamente não nos entendiam. Não é em chamar ridiculo ao que é bello, nem em destemperos que deve consistir a ingenuidade das modernas opiniões litterarias.[7] Mas passemos a Virgilio.

Foi na epocha d'este que Roma caíu em terra e que Cepias se assentou sobre a campa da patria. Todos sabem a historia dos feitos romanos e a gloria que os cerca: mas a gloria acaba onde a escravidão começa. Nesta transição appareceu Virgilio que, talvez exemplo unico, sabia mendigar as migalhas de um tyranno e nutrir idéas generosas. As recordações da republica, as memorias de um povo que já não existia reclamavam as canções do poeta. Esta idéa o agitava e ella gerou a Eneida. Porém o cortesão não podia no palacio de Augusto, nos banquetes da prostituição, ao som dos grilhões de Roma, entoar um hymno em que a lembrança da liberdade se associaria a quasi todas as imagens, a quasi todos os sentimentos. Por outro lado a grinalda dos louros romanos partia de uma caverna de salteadores: nascia de um ponto negro como o em que findava. Este podia illustrá-lo Virgilio; uma messeniana[8] e um punhal bastavam; mas elle queria gozos e repouso: Augusto ameigava-o, e o manhoso Mecenas dava-lhe os meios de satisfazer seus vergonhosos appetites. O mal denominado epicurismo que dominava na cidade eterna e que tanto contribuiu para ella deixar de o ser, o fazia olhar a vida feliz como um bem que se devia conservar mesmo á custa da moralidade. Tudo contribuiu para envilecer Virgilio, e notemos que até no seu estylo encontramos a prova disso. Aquelle lavrado, aquelle molle atque fecetum que Horacio achava em seus versos não sabemos o que tem de analogo ás palavras suaves e attractivas de um homem abjecto quando a dula o seu patrono. Porque haverá tantas similhanças entre as pessoas do tempo de Luís XIV que dava pensões aos poetas, e as do seculo de Augusto que lhes dava tambem de comer? Porque serão elles nestas duas epochas modelos de perfeição, pelo que toca ao bem obrado do estylo, sempre em proporção de seus serviços e da sua frequencia nos passos dos Reis e dos grandes da terra?

Na impossibilidade de cantar os romanos, quando dignos d'este nome, sómente restava a Virgilio um meio de satisfazer essa idéa de gloria patria, d'esse Deus que o agitava, o collocar um monumento espantoso no berço obscuro da sua nação: elle o fez, e a Eneida foi este monumento. Não tendo como Homero ao menos um pequeno cabedal de realidade, elle arrancou da phantasia todo o seu edificio, edificio o mais bem acabado que neste genero conhecemos. Porém observemos que elle desenhou os caracteres dos seus heroes mui differentes dos da Iliada. Os d'esta são rudes mas sublimes, os da Eneida são macios e cuidados, mas geralmente mesquinhos. No poema grego surgem, interessam individualmente os Aiaces, Diómedes, Ulysses, Agamemnon e tantos outros; no latino os heroes secundarios deslizam pelo poema, como as turbas de Roma deslizavam por uma existencia sem significação debaixo dos pés do Cesar. De todos os troianos, acabada a leitura da Eneida, apenas nos recordamos do filho de Anchises: Achates, Gyas, Cloantho sumiram-se como sombras. O mesmo Eneas tem um certo ar hypocrita que desagrada aos homens singellos e o colloca a seus olhos bem longe de Achilles. Foi a influencia do seculo quem fez Virgilio, nesta parte tão inferior a Homero: se o poeta tivesse vivido no tempo dos velhos romanos, nós não possuiriamos hoje a mais agradavel porção do 4.^o livro da Eneida. Dido não teria sido seduzida e abandonada, embora isto contribua, e muito, para satisfazer a idéa principal do poeta. Uma immoralidade tão vil, o ludibriar a hospitalidade e a fraqueza só podia caber a um heroe inventado na epocha dissoluta da queda da republica romana. Afóra isto nós não podemos deixar de admirar Eneas; e apesar da corrupção do seculo e da propria, Virgilio soube ainda dar um illustre fundador á sua patria. De todos os restos de Troia só d'elle precisava o poeta, assim é que só elle resplandece no meio dos seus troianos, emquanto os guerreiros da Hesperia, Turno, Pallante, Lauso, Camilla, teem muitas vezes uma côr homerica. Estes eram filhos da Italia e a Italia era o solo que viu nascer Virgilio. Quando Voltaire, acabando de ler a Eneida, achou que Turno interessava mais que Eneas, disse que apesar da falta da unidade de interesse não ousava reprehender Virgilio. Nem havia de quê: a unidade de interesse tem tanta validade como a de acção. Qualquer dos dois que interessasse principalmente, a idéa geral estava preenchida. Nos bellos dias de gloria de Roma, todos os povos do Lacio estavam fundidos no romano e as suas recordações nas d'este. Escondesse o filho de Venus o covil de Romulo com o seu escudo celeste, o fim de sua existencia estava satisfeito, e o poeta podia na serie das variedades buscar as que bem lhe parecessem para com ellas tirar um som accorde com a idéa que o dominava. Segundo nosso modo de pensar em litteratura, muitos defeitos que teem sido assacados á Eneida não existem nella. Em nenhuma coisa offendeu Virgilio os principios eternos do bello, senão quando o seculo com sua peçonha pôde mais do que o genio extraordinario do poeta. Elle não teria egual se tivesse sido livre.

A ordem das idéas exige que desprezemos a rias datas. Circumstancias ha, como o leitor verá, que nos obrigam a falar dos Lusiadas em seguimento aos dois grandes poemas da antiguidade, e a unir as reflexões acerca do Orlando ás que temos de fazer acêrca da Jerusalem. Os Lusiadas são o poema onde mais apparece a necessidade de recorrer a uma idéa independente da acção para achar a imprescriptivel unidade, e o seu titulo nos revela logo a mente de Camões. Não foi, quanto a nós, o descobrimento da India que produziu este poema: foi sim a gloria nacional. Esta idéa bella, pura, immensa, como a alma de Camões, gerou os Lusiadas. A unidade, que procurada de outro modo nào póde encontrar-se neste poema, se encontra logo encarando-o por esta maneira. Era o feito mais espantoso da historia portuguesa que servia de frontispicio á longa collecção de maravilhas que ella offerecia; foi por alli pois que rompeu a canção nacional que entoou Camões; mas todas as recordações de Portugal, mesmo as suas debeis esperanças, estão consignadas nos Lusiadas. Não é um facto que elle cantou; são mil factos, mas unidos todos por um ponto, a idéa do renome português. Camões lançou mão de nossos annaes, rasgou e maldisse suas paginas negras, e arrojou o resto á eternidade. As differentes feições moraes traçadas no seu poema teem uma individualidade que não cede, em nossa opinião, á das personagens da Iliada ou da Jerusalem, mas todas com um ideal eminente de bello ou de sublime. Poucos sentimentos houve de que o poeta não revestisse algum de seus compatricios, e se Mr. de Chateaubriand accusa Tasso de ter esquecido o mais puro de todos elles, o da maternidade, não poderia dizer o mesmo do nosso Camões, que por este lado, despindo-nos de qualquer prevenção nacional, não podemos deixar de chamar divino. Se nisto ninguem o excede, talvez ninguem o eguale em agglomerar num quadro selvas tão densas e variadas de imagens e sentimentos. Diz Mr. J.B. Say que a descripção da partida dos portugueses para o descobrimento da India é mais do que a narração de um embarque. Nós dizemos que pouco achamos neste genero que assimilhar-lhe.

Chegando a este trecho dos Luziadas, cremos estar vendo ondear na praia do Restello um tropel immenso de pessoas de todas as condições e edades; cremos descobrir no gesto, nas expressões de cada uma d'ellas, a multidão de idéas, de paixões que tal espectaculo devia excitar, e quando ellas acabam de passar deante de nossos olhos, um velho lá surge e fluem da sua bocca as palavras da sabedoria. Nós o escutamos: a vida exterior nos esquece: o ancião nos fez pensar sobre a vaidade de nossas paixões, sobre o nada de nossas esperanças; e o poeta terminando aqui e com arte summa um canto do poema, é que nos vem despertar da nossa meditação, abrindo o seguinte canto com estes versos, que exigem uma expressão vagarosa, similhante ao modo por que um homem embebido em reflexões as deixa, e começa a volver os olhos para os objectos que o rodeiam:

Estas sentenças taes o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As azas ao sereno e sooegado
Vento, e do porto amado nos partimos.

Tal é sempre um poeta livre, celebrando as memorias de uma nação illustre. Tal é Camões a quem não pôde envilecer nem a desventura, nem o ar da côrte de D. João III e de seu illudido e absoluto neto, ar ja apestado pela escravidão. Assim talvez o unico deleito dos Lusiadas seja o seu absurdo maravilhoso, que elle deveu ao século, e de que mesmo poderiamos tirar um argumento a favor da immensidade do genio de Camões, se o espaço d'este artigo já demasiado longo no-lo permittisse.

A admiração e o respeito que lhe consagramos nos fez desviar um tanto do nosso objecto: mas seja-nos isto desculpado. Só por Camões nós os portugueses seriamos grandes. Opprobrio da Europa nos tempos modernos, era debaixo da sua corôa de louro e das de antiga gloria, que já começavam a desfolhar-se quando elle a cantou, que nós nos abrigavamos para ainda entre os estranhos ousar dizer o nome de nossa patria. E esta com que retribuiu ao poeta? Nem com um amigo. O seu Antonio era filho da Asia. E em nossos dias levantou-se um verme da terra para insultar sua memoria. Deshonra eterna áquelle que pretendia despedaçar-nos nosso ultimo titulo de nobreza, nosso ultimo consolo no meio da infamia e das desditas!

Ariosto e Tasso não tinham patria, porque é não tê-la o nascer numa terra de servos. D'este modo as duas idéas que dão unidade a seus poemas são duas idéas geraes, mas estranhas como taes á Italia,—a cavallaria e as cruzadas. A segunda parece conter-se na primeira, mas considerada em si é tão geral e tão indeterminada como ella. O que é a cavallaria? É o espirito humano modificado de certo modo. O que são as cruzadas? A resposta do Christianismo á terrivel pergunta que lhe fizera o islamismo quando os sarracenos invadiram a Italia, a Hespanha e uma parte da França. Qual de nós dominará a terra? Esta era a pergunta: a resposta foi o som das armas nos plainos de Ascalon, o estrondo das portas de Jerusalem estalando aos embates dos arietes de Godofredo. Incerta como a pergunta do mahometismo foi a replica da cruz. Vagas como o seu resultado, estas invasões longinquas teem uma certa magnificencia moral, digamos assim, uma certa demasia de enthusiasmo religioso, de generosidade e de valor que esses gélidos filhos do seculo XVIII, esses compiladores e discipulos da Encyclopedia escarneceram, porque eram incapazes de sentir profundamente o bello e sublime d'esse todo historico das cruzadas. Foi, pois, a idéa geral de Ariosto uma epocha brilhante; a de Tasso, a lucta e victoria da cruz contra o crescente. As variedades relativas á primeira, eram em muitissimo maior numero do que as relativas á segunda; assim o Orlando é mais variado do que a Jerusalem. Multiforme, como a vida de um cavalleiro, a idade média se apresentou a Ariosto ora sublime, ora bella, ora ridicula nas suas variedades immensas, e se o Orlando tem muitas vezes um caracter de verdade objectiva, isso, em vez de servir de argumento a favor da imitação, unicamente prova haver-se muitas vezes quasi realizado o ideal nesses tempos heróicos das nações modernas[9]. Faltam a Tasso a miudo as côres locaes, a verdade dos costumes, porque a sua grande idéa tinha um lado extremamente moral, e nos costumes e no historico das Cruzadas havia muita cousa em desharmonia com ella. O poeta substituiu tudo isso por ficções de côres muito mais bellas, e a Jerusalem ficou sendo um canto admiravel elevado em honra do christianismo e do enthusiasmo dos baixos tempos.

Tasso respeitava as regras: a Jerusalem conquistada foi o fructo d'esse respeito. Felizmente a Libertada já era publica: aliás o poeta perseguido pelos preceitos e pelos pedantes teria destruido a sua obra prima para nos deixar um poema que ninguem hoje lê. Seria mais um mal produzido pelo fanatismo litterario; e apesar de Galileo e de Dureau Delamalle, nós folgamos que tal não acontecesse.[10]

Passámos de leve na applicação de uma parte de nossos principios aos cinco mais celebres poemas da velha e nova Europa, porque não era compativel com a brevidade o fazê-lo de outro modo; por essa razão fomos talvez obscuros. Ser-nos-ha porventura dado algum dia tractar d'esta materia, fóra de uma folha periodica: então mostraremos que esta nova theoria não é tão horrivel como agora parecerá a muitos; nem se nos levará tanto a mal a nossa impiedade litteraria, quando, mais miudamente, fizermos surgir do cháos da antiga critica suas contradicções e absurdos.

Mas, pertendendo destruir o systema da eschola classica, não somos nós romanticos? Alguem nos terá como taes: cumpre por tanto que nos expliquemos. Na verdadeira accepção do termo elle é o nosso symbolo; porém este symbolo nada tem em rigor com aquillo acêrca de que havemos falado. Tractámos das fórmas da poesia. As modernas opiniões dos verdadeiros romanticos versam sobre a sua essencia. Verdade é que a theoria do bello, que indicámos apenas, dá a razão da maior parte d'essas mesmas opiniões, cujo exame nos absteremos de encetar. Diremos sómente que somos romanticos, querendo que os portugueses voltem a uma litteratura sua, sem comtudo deixar de admirar os monumentos da grega e da romana: que amem a patria mesmo em poesia: que aproveitem os nossos tempos historicos, os quaes o Christianismo com sua doçura, e com seu enthusiasmo e o caracter generoso e valente desses homens livres do norte, que esmagaram o vil imperio de Constantino, tornaram mais bellos que os dos antigos: que desterrem de seus cantos esses numes dos gregos, agradaveis para elles, mas ridiculos para nós e as mais das vezes inharmonicos com as nossas idéas moraes: que os substituam por nossa mythologia nacional na poesia narrativa; e pela religião, pela philosophia e pela moral na lyrica. Isto queremos nós e neste sentido somos romanticos; porém naquelle que a esta palavra se tem dado impropriamente, com o fito de encobrir a falta de genio e de fazer amar a irreligião, a immoralidade e quanto ha de negro e abjecto no coração humano, nós declaramos que o não somos, nem esperamos sê-lo nunca. Nossa theoria fôra a primeira a caír por terra deante da barbaria d'esta seita miseravel que apenas entre os seus, conta um genio, e foi o que a creou: genio sem duvida immenso e insondavel, mas similhante aos abysmos dos mares tempestuosos que saudou em seus hymnos de desesperação: genio que passou pela terra como um relampago infernal, e cujo fogo mirrou os campos da poesia e os deixou aridos como o areal do deserto; genio emfim que não tem com quem comparar-se, que nunca o terá talvez, e que seus exaggerados admiradores apenas teem pretendido macaquear.

Falamos de Byron. Qual e, com effeito, a idéa dominante nos seus poemas? Nenhuma ou, o que é o mesmo, um scepticismo absoluto, a negação de todas as idéas positivas. Com um sorriso espantoso, elle escarneceu de tudo. Religião, moral, affectos humanos, mesmo a liberdade e a esperança foram seu ludibrio. A leitura dos seus poemas só produz, em geral, descoroçoamento ou antes desesperação. Byron é o Mephistopheles de Goethe lançado na vida real.—Virtude e crime, pudor e impudencia, gloria e infamia, que montam em seus cantos sinistros? Mas o homem, ser immortal, passageiro em um mundo transitorio, não nasceu para o scepticismo, para um estado violento, porque elle precisa crêr, quando mais não fosse ao menos na voz esperançosa ou ameaçadora da consciencia: infeliz, pois, d'aquelle que ao acabar de ler Byron não sente no coração um peso insupportavel: a sua alma será tão escura e tão vasia como a d'este poeta sublimemente destruidor. De sua eschola apenas restará elle; mas como um monumento espantoso dos pricipicios do genio quando desacompanhado da virtude. Dos seus imitadores diremos só que elles farão com seus dramas, poemas e canções em honra dos crimes, que a Europa, volvendo a si, amaldiçoe um dia esta litteratura, que hoje tanto applaude. Nossa prophecia se verificará, se, como cremos, o genero humano tende á perfectibilidade, e se o homem não nasceu para correr na vida um campo de lagrymas e despenhar-se pela morte nos abysmos do nada. No meio das revoluções, na epocha em que os tyrannos, enfurecidos pela perspectiva de uma queda eminente, se apressam a exgotar sobre os povos os thesouros da sua barbaridade: emquanto dura o grande combate, o combate dos seculos, os hymnos do desespero soam accordes com as dôres moraes; mas quando algum dia a Europa jazer livre e tranquilla, ninguem olhara sem compaixao ou horror os desvarios litterarios do nosso seculo. Muitos mesmo não os entenderão.

*Origens do theatro moderno—Theatro português até aos fins do seculo
XVI*

PANORAMA

1837

*Origens do theatro moderno—Theatro português até aos fins do seculo
XVI

O país onde primeiro appareceu a arte dramatica moderna foi a Inglaterra, se arte dramatica podemos chamar a espectaculos tirados de passos historicos da Biblia, sem invenção ou enredo, e só copiados litteralmente em discursos e acções. Estas primeiras tentativas theatraes, a que depois os franceses e italianos chamaram mysterios, appareceram na Grã-Bretanha durante o seculo XI. Os monges as compunham e representavam, e ainda no fim do seculo XVI elles pediam a Ricardo II embargasse os comediantes de exercerem uma profissão que julgavam ser um privilegio seu, porque ordinariamente o objecto dos dramas se tirava do velho e novo Testamento.

Pelas muitas relações que havia entre a Inglaterra e a França, parece que os mysterios ingleses não tardaram em introduzir-se neste ultimo país. A Morte de Santa Catherina, representada na abbadia de Dunstaple, em mil cento e tantos, foi no seculo seguinte posta de novo em scena no mosteiro de Sancto Albano em França, e é talvez esta a memoria mais antiga que temos da arte dramatica francesa. Depois esta continuou e cresceu, chamando se ás farças prophanas jogos ou representações, e aos dramas sacros mysterios.

A Italia começou mais tarde, com este genero de composições barbaras: mas, tendo primeiro que nenhuma outra nação seguido o gosto da litteratura grega e romana, brevemente o tomou tambem no theatro. Os dramas de Mussato compostos no principio do seculo XIV, e em latim, são Ezzelino e Achilles, imitações de Seneca, escriptas com um tão falso estylo como o do dramaturgo romano. Foi no XV seculo que appareceram na Italia os primeiros dramas vulgares: Lourenço de Medicis publicou a Representação de S. João e S. Paulo, e Angelo Policiano deu pouco depois a sua tragedia intitulada Orpheo.

Desde o seculo XIV appareceram dramas na Alemanha; mas estes nada mais eram do que imitações dos mysterios franceses, e escriptos em latim pelos monges. Em meado do seculo XV foi que verdadeiramente começou neste país o theatro nacional. Hans-Folz e Rosemblut compuseram diversas farças, que se representaram em Nuremberg e Calmar: estas farças, obra de homens rudes, são um tecido de grossarias e indecencias apenas dignas de se recitarem diante da plebe mais desfaçada. Depois de 1500 é que appareceu Hans-Sachs, a quem podemos chamar o Gil Vicente da Alemanha.

Na Hespanha, ou porque os arabes o introduzissem, ou porque os hespanhoes o inventassem, ou, emfim, porque muito cedo o imitassem dos franceses, o drama remonta aos primeiros tempos da monarchia. Só, na verdade, do principio do seculo XIV conhecemos a scena hespanhola; mas restam memorias d'ella muitissimo mais remotas, e pouco depois de 1200, dizem que appareceram dramas em Valenciano. Do seculo XV ainda existem muitas composições neste genero de litteratura.

Essas primeiras tentativas dramaticas eram forçosamente um tecido sem nexo, sem ordem, e ridiculo: os seus auctores se entregavam desenfreadamente a todos os caprichos de uma imaginação fervente, e as producções d'esse tempo são em geral monstruosas e absurdas. Rodrigo de Cotta começou a dar alguma regularidade ao drama na comedia de Calisto e Melibea; mas a licença de seus quadros e expressões mancha o merecimento d'esta peça, que depois foi algum tanto corrigida e accrescentada por Fernando de Roxas, auctor de outra comedia—Progne e Philomela. Apesar de assim emendada a obra de Cotta ainda é monstruosa. Uma serie de enredos amorosos e de crimes se encruzam e estendem ahi através de vinte e cinco actos. Entretanto a verdade dos costumes e caracteres e a verosimilhança dos episodios lhe deram celebridade; e com o titulo de Celestina ella foi muitas vezes reimpressa, traduzida em diversas linguas e até na latina pelo celebre Barthius. A reputação da Celestina fez nascer os imitadores; e novas composições, com o mesmo ou differente titulo, mas que estão longe de ter o merito da original, surgiram brevemente em Hespanha.

Por este tempo floresceram mais outros dois auctores dramaticos, o Marquez de Villena e João de la Enzina, que foi o principal modelo do nosso Gil Vicente. Os dramas do primeiro foram representados em Saragoça na côrte de D. João II, pelo meado do XV seculo; os do segundo o foram tambem, na côrte de Fernando e Isabel nos fins d'aquella mesma era.

Resurgiam então as letras gregas e romanas, e a admiração do theatro antigo despertou na Hespanha o genio da tragedia. Oliva publicou duas composições trágicas—Hécuba triste e La venganza de Agamemnon, as primeiras que neste genero se escreveram na Peninsula. Restrictas e acanhadas imitações dos gregos, ellas se podem considerar como traducções livres da Hécuba de Euripides e da Electra de Sophocles.

Em Portugal é provavel começassem as representações scenicas pelo mesmo tempo em que principiaram na Hespanha; mas nenhuns vestigios restam d'esse theatro primitivo. O que é certo é que já nos fins do seculo XIV havia em Portugal entremezes. Garcia de Rezende na chronica de D. João II, narrando as festas que se fizeram em Evora no casamento do principe D. Affonso com a infanta D. Isabel de Castella, fala, em varios capitulos, dos entremezes e representaçoens, que nessa occasião se fizeram, dando a entender pelo modo porque acêrca d'elles se exprime, que eram uma coisa bem conhecida e vulgar, e não é impossivel que ainda se nos depare algum monumento d'esse nosso primitivo theatro.

Porém, o mais antigo drama que hoje conhecemos é um de Gil Vicente, representado em 1502 na côrte de D. Manoel, e Gil Vicente é, no estado actual da nossa historia litteraria, considerado como o fundador da scena portuguesa, pela mesma razão porque o podemos ter por inventor dos rimances, ou xácaras, dos quaes os mais antigos que existem são os que elle entresachou pelos seus Autos, e o que elle dedicou á morte de el-rei D. Manoel.

Gil Vicente dividiu em quatro livros as suas composições dramaticas, incluindo no primeiro todos os autos a que chamou de devoção, por versarem em geral sobre objectos biblicos e religiosos; mas estas obras de devoção parecem as menos devotas de todas, se das outras exceptuarmos a comedia de Rubena que pertence ao segundo livro. Taes autos são na essencia o mesmo que os mysterios franceses, como elles cheios de indecencias, porém ao mesmo tempo ricos de sal e chistes. O poeta abominava cordealmente o clero, sobretudo os frades, e não desaproveitou occasião alguma de os presentear com chascos e epigrammas. Os autos das barcas, que são como continuação uns dos outros, e formam a trilogia, ou drama em tres quadros, mais antiga da Europa, constituem com Mofina Mendes e Rubena a flôr do theatro de Gil Vicente; porque talvez em nenhuma das scenas que os compõem deixa de patentear-se em subido gráu o genio da comedia. Este poeta reunia á qualidade de auctor a de actor; e com seus filhos representava os proprios dramas na côrte de D. Manoel e de D. João III. Apesar de cortesão, o poeta morreu pobre, em Evora, depois de 1550. As suas obras se imprimiram em Lisboa em 1562, e muito mutiladas em 1586. Uma nova edição completa se publicou ultimamente em Hamburgo em 1833.

Gil Vicente teve um filho do seu mesmo nome, que dizem desterrou para a
India, levado pelo ciume de este o exceder no genio dramatico. Ao moço
Gil Vicente se attribue a composição de um auto intitulado D. Luiz de
los Turcos
.

Pelo meado do seculo XVI appareceram em Portugal varios poetas que mais ou menos seguiram as pisadas do auctor de Rubena. Ao infante D. Luiz se attribue o auto de D. Duardos, que anda impresso como de Gil Vicente. Antonio Ribeiro Chiado, tão conhecido na côrte de D. João III e de D. Sebastião, pelos seus gracejos e agudezas, e pela propriedade com que remedava a voz e o gesto de todos, nos deixou dois autos assás engraçados, o da Natural Invenção e o de Gonçalo Chambão. Na Primeira parte dos Autos e Comedias Portuguezas, publicada em 1587, livro hoje bastante raro, se imprimiram sete autos de Antonio Prestes, que revelam espirito comico não inferior porventura ao de Gil Vicente, cuja escola Prestes seguiu, bem como Jorge Pinto, auctor de Rodrigo e Mengo, e Jeronymo Ribeiro Soares, auctor do Auto do Fisico, que vem naquella collecção cuja segunda parte nunca se deu á estampa. O nosso Jorge Ferreira de Vasconcellos, auctor dos dois romances da Tavola Redonda, floresceu tambem por estes tempos. Tres composições suas nos restam, Aulegrafia, Euphrosina e Ulyssipo, a que elle chamou comedias, e que, realmente, são antes dialogos do que dramas. Nellas teve por alvo Jorge Ferreira reunir os proverbios e annexins da lingua ou a philosophia popular do seu tempo, e por este lado são ellas, na verdade, dignas da maior estimação; mas se as quisermos considerar como dramas bem pequeno é o seu merito.

No reinado de D. Sebastião, o cego Balthasar Dias, poeta natural da Madeira, publicou um grande numero de autos e outras obras, humildes pelo estilo, mas com toques tão nacionaes e tão gostosos para o povo, que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas aldeãs, as officinas e as lojas dos artifices nas cidades, e em quasi todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos Autos de S. Aleixo, de S. Catherina e da Historia da Imperatriz Porcina, tudo obras d'aquelle poeta cego do seculo XVI.

Este era o theatro verdadeiramente nacional até o anno de 1600, em que floresceu Simão Machado, auctor do Cerco de Diu e da Pastora Alfêa. Muitas composições d'este genero se perderam, ou não chegaram á nossa noticia, como os Autos de Antonio Pires Gonge, de Sebastião Pires, e de António Peres, que dizem que escrevera mais de cem dramas. O auto do Fidalgo de Florença, composto por João de Escobar, no reinado de D. Sebastião, teve nesse tempo grande celebridade, e se imprimiu repetidas vezes: porém d'elle ainda não encontrámos um unico exemplar.

Emquanto assim a escola formada por Gil Vicente progredia, e, em nosso entender, se aperfeiçoava, independente de estranha influencia, poetas de grande nome trabalhavam por introduzir em nossa litteratura as fórmas do theatro grego ou romano. Francisco de Sá de Miranda escreveu duas comedias intituladas Vilhalpandos e Os Estrangeiros, as quaes se imprimiram, depois de sua morte, em 1560 a primeira, e a segunda em 1569. Nestas procurou elle seguir as pisadas de Planto e Terencio, como o confessa no prologo dos Estrangeiros, e com effeito ellas se podem comparar com as dos dois comicos latinos. Antonio Ferreira compôs quasi pelos mesmos tempos as comedias Bristo e Cioso e a tragedia D. Ignez de Castro, a segunda que appareceu na Europa conforme a todas as regras classicas, sendo a primeira a Sophonisba do poeta italiano Trissino; mas a de Castro é superior; e nós a temos por um milagre dramatico, attendendo á falta de modelos modernos e ao seculo em que foi escripta. O illustre Camões tambem nos deixou, com o titulo de autos, duas comedias—Os Amphytrioens e Filodemo, das quaes a primeira é quasi uma traducção de Plauto. Desde esta epocha o theatro português foi caindo e podemos dizer que nunca mais tornou a restaurar-se.

*Novellas de cavallaria Portuguesas*

PANORAMA

1838-1840

*Novellas de Cavallaria Portuguesas*

I

Amadis de Gaula

As idéas de honra, de valentia e de amor, que occupavam quasi exclusivamente os espiritos durante a edade média, reproduziram-se em todas as fórmas sociaes e instituições d'aquella brilhante epocha: o sentimento religioso traduzia-se em cruzadas ou em guerras de seitas: o do prazer em justas, torneios e caçadas, que eram imagem da guerra, ou em serões, onde os themas inexgotaveis dos trovadores eram ou amores ou armas: as leis apesar de terem a sua principal origem no direito canonico e depois no romano, lá abriam a liça aos combates judiciarios: as habitações eram castellos, e os adornos dos aposentos corpos de armas pendurados, lanças, e razes, onde as mãos das donzellas tinham lavrado a historia de combates. Neste predominio exclusivo de certas idéas, como escaparia a litteratura de ser dominada por ellas? Assim, depois das cantigas dos trovadores, vieram os rimances mais longos, os poemos e as novellas de cavallaria. Era esta a litteratura d'aquelles seculos, nem outra podia ser: a imaginação dos poetas e novelleiros não alcançaria espraiar-se além das fórmas da sociedade de então; porque a litteratura de todas as epochas sem exceptuar a nossa, não é mais do que um echo harmonioso, ou um reflexo resplendente das idéas capitães, que vogam em qualquer d'ellas. As aventuras, os amores, os feitos d'armas dos heroes do Boiardo eram a imagem, vista através de um prisma, dos homens do XV seculo: a ancia de liberdade descomedida, a misantropia, os crimes, a incredulidade dos monstros de Byron são o transumpto medonho e sublime d'este seculo de exaggerações e de renovação social.

O prazo durante o qual os portugueses tocaram a meta do espirito cavalleiroso, e o conservaram em toda a pureza e vigor, prolongou-se por obra de um seculo, desde os ultimos annos do reinado d'el-rei D. Fernando até o d'el-rei D. Affonso V. Antes d'esse tempo nossos avós eram demasiado rudes para conceberem e reduzirem a inteira practica a concepção immensamente bella da cavallaria; depois d'elle, eram muito cidadãos para serem cavalleiros. D. Alvaro Vaz d'Almada caindo morto na batalha de Alfarrobeira era o symbolo da cavallaria expirando nas paginas da ordenação affonsina. Nesta compilação indigesta e essencialmente contradictoria da legislação de tres seculos, não bastava o ser inserido o velho regimento de guerra português, emendado por jurisconsultos, para salvar da morte a cavallaria, que outras disposições d'esse codigo indirectamente assassinavam. Nisto como em quasi tudo o mais, das actas das côrtes portuguesas anteriores a D. João II e da ordenação affonsina, se póde extrahir toda a substancia philosophica da historia dos primeiros tres seculos da monarchia.

Se o espirito puro de cavallaria dominou tão largo periodo, os cavalleiros-modelos (permitta-se-nos a expressão) foram só os que se crearam na côrte de D. João I; e a poetica ficção dos Doze de Inglaterra pinta a epocha em que se diz succedera essa aventura. Cavalleiros andantes portugueses houve-os nos seculos anteriores; mas a cortesia, a louçainha, e a galantaria que caracterizam a verdadeira cavallaria só as amostra a nossa historia nos guerreiros indomaveis, que na batalha de Aljubarrota formavam o esquadrão brilhante chamado a Ala dos Namorados. Eram estes guerreiros que faziam aquelles votos denodados, em demanda de cuja execução muitas vezes perdiam a vida: eram estes que, discorrendo pelas terras estrangeiras, ahi deixavam perenne memoria de seus esforçados feitos.

Foi na luzida côrte do mestre de Aviz onde achou a cavallaria de toda a Europa o seu Homero em Vasco de Lobeira. Como antes d'aquella houve poetas, assim antes d'este houve romancistas; como Homero eclypsou a memoria dos cantos dos seus antecessores, assim Lobeira fez esquecer as mal tecidas invenções dos mais antigos novelleiros, e o Amadis de Gaula é a primeira e a principal novella no extensissimo catalogo dos contos de cavallaria.

Poucas memorias nos restam acêrca de Vasco de Lobeira. Sabe-se que foi natural do Porto, e armado cavalleiro por D. João I antes de começar a batalha de Aljubarrota. Viveu a maior parte da sua vida em Elvas, e morreu em 1403.

Escripto muito antes da invenção da imprensa, o Amadis correu manuscripto até o tempo de D. João V; porque os nossos antepassados nunca tiveram a curiosidade de o imprimir. Foram assim escasseando as copias d'elle, e nos ultimos tempos se havia tornado tão raro que apenas se lhe conhecia um ou dois exemplares. O conde da Ericeira, testemunha acima de toda a excepção, o viu, e o abbade Barbosa diz que o proprio original estava na livraria dos duques de Aveiro. O fatal terremoto de 1755 fez desapparecer este monumento precioso da nossa litteratura, e tudo nos incita hoje a crêr que se perdeu para sempre.

Mas, se já não existe o original, existem as versões d'elle, ainda que alteradas pelos traductores. Trasladado em hespanhol se publicou em Sevilha em 1510. Vimos esta traducção, de que ha um exemplar na bibliotheca publica da cidade do Porto; e bem sentimos não ter tomado d'ella varias notas, que de grande utilidade nos foram para o que vamos dizer. Lemos ultimamente a edição de Garciordonez de Montalvo, impressa tambem em Sevilha, em 1526, da qual nenhum bibliographo, que nós conheçamos, faz menção. Segundo o abbade Barbosa as edições do Amadis, vertido em hespanhol, se repetiram em 1539, 1576 e 1588.

Esta novella tambem appareceu em 1540, traduzida em francês e accrescentada por Nicolau de Herberay: em 1583 a publicaram os alemães na sua lingua; e Bernarda Tasso, pai do grande Tasso, a reduziu em italiano quasi por esse mesmo tempo, fazendo um poema riquissimo de versos pomposos, e… de dormideiras. Esta acceitação unanime das diversas nações é o maior elogio que se podia fazer á obra do nosso Lobeira.

O Amadis, como hoje o conhecemos, na antiga versão hespanhola, consta de quatro livros, o ultimo dos quaes foi grandemente alterado por Garciordonez, segundo elle mesmo diz: "Corrigi (são palavras do prologo) estes tres livros do Amadis, que por culpa dos máus escriptores ou compositores mui corruptos e viciados se liam, e trasladei e emmendei o livro 4.^o". Estes quatro livros, traduzidos tambem em francês, foram continuados por diversos auctores, constando hoje a obra de vinte e quatro.

Sendo impossivel dar uma idéa do Amadis de Gaula, teia immensa de aventuras, que ao modo das do Ariosto formam um labyrintho inextricavel, buscaremos ao menos dar a conhecer o tempo e o logar da acção, e o seu principal actor, com a brevidade a que nos constrangem os limites do Panorama.

A epocha escolhida pelos romancistas de cavallarias para nella collocarem os seus heroes fabulosos é indeterminada em todas as novellas. A do Amadis, ainda que bastante incerta, é menos vaga. O heroe viveu muito antes do celebre Arthur ou Artus, rei de Inglaterra: mas já quando este país e o de França eram christãos. É o que se lê no 1.^o capitulo do Amadis, e sendo assim este guerreiro floresceu no VI ou VII seculo; e como a maior parte dos romances de cavallaria, que ainda existem, versam sobre a vida dos seus imaginarios descendentes, podemos tambem para elles estabelecer, ainda que imperfeitamente, uma especie de chronologia.

O theatro em que se passam as aventuras de Amadis de Gaula, é um theatro quasi tamanho como o mundo conhecido no tempo de D. João I. O heroe e os mais cavalleiros seus contemporaneos cruzavam mares extensos, peregrinavam centenares de leguas, com a mesma rapidez e facilidade com que nós fazemos visitas dentro de Lisboa. Esta commodidade aproveitaram-na todos os novelleiros que vieram depois de Lobeira; e para as distancias que seria incrivel fazer correr em curtissimo prazo a um cavalleiro, lá estavam as magas e os encantadores, especie de espada de Alexandre, que o escriptor sempre tinha á mão para cortar todos os nós gordios que embaraçavam as narrações.

Não nos cabendo neste logar tudo o que temos de dizer acêrca do Amadis, o deixaremos para segundo artigo, continuando nos subsequentes com a historia das outras novellas de cavallaria portuguesas.

II

Amaclis de Gaula

(Continuação)

Promettemos no antedecente artigo dar uma brevissima idéa d'esta primeira novella de cavallaria: cumpri-lo-hemos aqui, tocando depois um ponto em que de proposito deixámos de falar, e vem a ser a célebre questão acêrca de saber se esta novella é obra de um auctor português, hespanhol, ou francês. Todas estas tres nações a pretendem para si; e na contenda os portugueses parece estarem peior que os seus adversarios, visto já não existir o original. Mas, ao cabo, são elles que teem razão, segundo nosso entender; e por isso não duvidámos de attribuir o Amadis a Vasco de Lobeira.

O rei Perion reinava na Gaula (França): o rei Garinter na Pequena Bretanha, hoje a provincia de França d'este nome. Levado pelo desejo de conhecer Garinter intenta Perion uma longa viagem[11]; e com efteito o encontra numa caçada; dão-se a conhecer um ao outro, e Perion é conduzido á corte do seu novo amigo. Tinha este uma filha chamada Elisena, que se namora de Perion, o qual d'ahi a pouco parte para a Gaula, deixando-a gravida. Ella para esquivar-se á infamia entrega o fructo dos seus amores á mercê das ondas, encerrado em uma caixa. Foi este Amadis. Encontrado por uma barca em que ía Gandales, cavalleiro escocês, este o salva e cria com seu filho Gandalim, depois escudeiro de Amadis. Os dois moços são levados á côrte de Languines, rei da Escocia. Aqui viu a Amadis el-rei Lisuarte, que de Dinamarca vinha reinar em Inglaterra, o qual deixou na côrte de Languines a sua filha Oriana. Foi então que começaram os amores d'esta princeza com Amadis, que são o principal objecto da novella. Amadis é reconhecido por seu pai Perion, já casado com a filha de Garinter, e cresce em poder e renome. Mil difficulclades se alevantam para elle chegar a possuir Oriana, as quaes vence com repetidos actos de generosidade e valentia. Emfim o romance acaba de um modo incompleto com os trabalhos que nos seus ultimos annos cercaram a el-rei Lisuarte.

É esta, em summa, a materia que enche o volumoso romance de Amadis, novella cheia de muitas paginas fastidiosas, mas tambem de muitas que grandemente excitam a curiosidade. O estylo em que está escripto é o de uma velha chronica do seculo XV, e notamos nelle uma grande similhança com os escriptos do pai da nossa historia, o singelo chronista de João I, Fernão Lopes, que tantas vezes se mostra mais poeta que muitos que se arrogam este titulo.

Traçado um leve esboço da novella de Amadis de Gaula, segue-se tractar a questão de saber se a devemos attribuir a um escriptor português.

Primeiro que tudo, é de notar que a tradição constante em Portugal foi sempre que o Amadis fôra composto por Lobeira. Antonio Ferreira e o dr. João de Barros, que escreveram no seculo XVI, não duvidam dá-lo por certo: o conde da Ericeira numa conta dada á academia de historia, de certa colleção de livros que andava examinando, diz que ali se achava um manuscripto do Amadis, sem que sobre isso faça admiração ou reparo; o que parece provar que naquella academia nenhuma duvida havia acêrca da existencia da novella, no original português. Mas não era só nossa esta opinião: a maior parte dos escriptores hespanhoes convem em attribuir a Lobeira o Amadis de Gaula.

Pretendem os franceses (não todos os que na materia teem escripto) que esta novella fôra traduzida em hespanhol do idioma picardo, e Herberay diz a vira nesta lingua: mas isto nada prova. Quem impedia que os franceses traduzissem o original de Lobeira? A outra objecção contra nós é ter feito o auctor os seus heroes franceses e ingleses; mas isto tambem nada prova: por que prova de mais. Os ingleses teriam ainda mais razão para pedirem a gloria d'esta obra, visto que, apesar de ser francesa a personagem principal, a maior parte dos acontecimentos põe-nos o auctor em Inglaterra, e quasi todos os cavalleiros notaveis são d'este país, á excepção de Amadis e seu irmão Galaor. O certo é que Lobeira, tendo vivido no tempo de el-rei D. Fernando I e de D. João I, tinha visto as proezas que em Portugal obraram os cavalleiros ingleses, a quem devemos os progressos que então fizemos na arte da guerra. Devia elle fazer portanto alta idéa da cavallaria d'aquella nação. Nada havia mais natural do que fazer da Inglaterra o theatro das façanhas dos seus imaginarios heroes. Como, porém, o agente principal de todos os successos devia ser o amor, naturalissimo era que o auctor buscasse um principe estrangeiro que viesse tornar brilhante a côrte inglesa, com seus amores pela dama principal, a filha de Lisuarte, que não poderia aliás corresponder á affeição de um subdito de seu pai. Eis a razão obvia porque Amadis é francês.

Alem d'estas observações ha uma principal, que ainda ninguem, que nós saibamos, se lembrou de fazer: o examinar em si a novella, para ver se das suas proprias entranhas se podia arrancar a certeza da sua origem. Se isto se tivesse feito, a questão estaria de ha muito decidida.

Citámos mui de proposito no primeiro artigo as palavras de Garciordonez, que diz emendara os tres livros de Amadis, que andavam viciados, e trasladara o quarto. Aqui o verbo trasladar, é claro que não póde significar senão traduzir, o que mostra a olhos desapaixonados que a obra não era originalmente hespanhola.

Seria francesa?—Dizemos, sem duvida alguma, que não. Perion encontrando Garinter diz-lhe que viera de mui remotas terras para o vêr. Era possivel acaso que um escriptor francês fizesse o rei da Pequena Bretanhi desconhecido do da França, e pusesse na boca d'este um tão descompassado erro geographico? Além d'isto Perion e Lisuarte reunem côrtes, nos casos difficeis e circumstancias importantes: nestas côrtes apparecem, não os barões das antigas assembleas feudaes da Inglaterra e França, mas os ricos-homens e homens-bons das côrtes portuguesas. Emfim o auctor descreve a passagem do canal de Inglaterra como uma viagem de nove dias com vento favoravel. As frequentes relações de guerra e de paz entre a Grã-Bretanha e a França permittiam porventura que ignorasse um escriptor francês a distancia de um a outro país?

Nós poderiamos accrescentar muitos outros exemplos d'esta natureza; mas cremos serem de sobejo os que apontamos, para que á nação portuguesa seja cedida a palma de ter saído da penna de um escriptor seu a mais antiga e mais celebre das novellas cavalheirescas.

III

Novellas do seculo XV

Quando escrevemos os dois primeiros artigos acêrca das novellas de cavallaria portuguesas,[12] era nossa intenção continuar sem demora a publicação do breve resumo, que encetámos d'esta parte da nossa historia litteraria, por ser aquella sobre a qual menos se tem escripto. Mas por isso mesmo era preciso fazer maiores indagações, que outros trabalhos nos não permittiam. Abrimos pois, mão do intento que hoje continuamos a pôr por obra: não porque julguemos sufficiente o que temos colligido, desde então para cá, sobre a materia; mas porque mais valem poucas noticias que absolutamente nenhumas.

Antes que passemos adiante cumpre-nos accrescentar aqui alguma coisa acêrca do Amadis, de que largamente falámos nos artigos já publicados, e vem a ser um testemunho que corta por uma vez a questão da sua originalidade. Este testemunho é o de Gomes Eannes de Azurara, historiador que os nossos leitores já conhecem[13], e que diz o seguinte no capitulo 63 da chronica do conde D. Pedro de Menezes—«e assy o livro d'Amadis, como quer que sómente este fosse feito a prazer de um homem, que se chamava Vasco Lobeira em tempo d'el-rei D. Fernando, sendo toda-las cousas do dito livro fingidas do auctor»—Este logar de um escriptor, a bem dizer coevo, deve tirar a última sombra de duvida sobre a nacionalidade do celebre Amadis de Gaula.

Assim como a côrte de D. João I foi a eschola dos mais famosos cavalleiros de Portugal, assim a epocha do seu reinado se pode considerar como a mais favoravel para as letras, que Portugal viu, até o tempo de D. Manuel. D. Duarte, o bom e infeliz D. Duarte, proporcionalmente o mais instruido dos nossos reis, não teve que ir aprender, nem virtudes, nem cavallaria, nem sciencias nas côrtes estrangeiras, porque as virtudes de que foi ornado, e os vastos conhecimentos que possuiu, adquiriu-os na de seu illustre pai. O infante D. Pedro, principe grande entre os maiores que Portugal tem gerado, se correu o mundo foi para encher de assombro os sabios com sua sciencia, os valorosos com seu valor.

O infante D. Henrique ha ahi quem não o conheça? Quem não conheça o fundador da nossa gloria maritima? Certo que não. Nome é esse que nunca esquecerá. E todavia de todos os quatro filhos de João I (contando o infante D. Fernando) é elle quem occupa o logar mais baixo na escala das virtudes, e porventura na sciencia apenas lhe caberá o terceiro depois de D. Duarte e D. Pedro.

E ainda o infante D. Fernando, esse pobre cavalleiro da cruz a quem a nação ousou negar o resgate, preferindo alguns palmos de terra cingidos de muralhas, á liberdade e á vida de um homem leal, que bem a servira, antepondo uma infamia a uma perda, talvez facil de remediar; ainda, dizemos, o bom infante sancto, o martyr resignado da patria e da fé, quão amigo e protector foi das letras e dos que as cultivavam! Fernão Lopes e Fr. João Alvarez foram feitura sua; e, provavelmente, não nos honrariamos hoje d'esses dois homens, dos quaes um deu o primeiro impulso á nossa linguagem historica, e outro á nossa linguagem oratoria, se a boa sombra de D. Fernando os não fizesse medrar. Leia-se o testamento que fez quando mancebo partiu para a Africa, e ver-se-ha quantos e quão notaveis livros possuia o infante; numa epocha em que, não existindo a typographia, muitas vezes em países então semi-barbaros, como por exemplo a Inglaterra, era necessario empenhar um castello ou um solar inteiro para obter a copia de qualquer livro. E todavia, de todos os quatro irmãos D. Fernando é o menos conhecido na nossa historia litteraria.

Os vestigios da litteratura portuguesa do periodo que decorre desde os principios do reinado de D. João I até o de D. Affonso V são innumeraveis; mas são apenas vestigios. Das artes ahi está a Batalha, e ainda apesar de conegos, S.^{ta} Maria de Guimarães, dizendo o que em Portugal foi essa era de toda a casta de glorias, a que vertendo sangue, se acolhem os corações que por ora não renegaram do nome português, hoje vilipendiado e arrastado por tabernas e monturos d'estrangeiros. Dos monumentos, porém, da nossa velha litteratura apenas restam alguns nomes, e alguns titulos ou fragmentos d'obras, consumidas por incuria propria, e por terremotos e incendios, ou roubadas por castelhanos, franceses, ingleses, e, emfim, por todos aquelles que teem querido tomar o leve trabalho de arrebatar, ou pôr em almoerla as preciosidades dos nossos cartorios, bibliothecas e museus.

Do já citado testamento do infante D. Fernando, do de Diogo Affonso Mangancha, do inventario de Vasco de Sousa, do catalogo da livraria d'el-rei D. Duarte, e de muitos outros documentos publicados e ineditos, bem como de varias passagens dos nossos chronistas, e ainda mais dos historiadores monasticos, se vê quão grande era em Portugal o tracto dos livros, numa epocha, que por ahi se chama barbara, porque era de grandes virtudes. E não se creia que esses livros eram só latinos: pelo contrario, a maior parte estava escripta nas linguas vulgares de Hespanha, principalmente na portuguesa. As obras de Cicero foram traduzidas pelo infante D. Pedro, e por sua ordem o livro do Regimento dos Principes. Só a lista das obras d'el rei D. Duarte espanta pela variedade de materias em que este rei philosopho empregou a sua penna nada rude. Marco Paulo já estava traduzido no seu tempo. O livro da côrte imperial prova que naquella epocha se tractavam em vulgar as arduas materias de theologia polemica. Levantavam-se cartas topographicas do reino, se é que os Cadernos das cidades e villas de Portugal, que existiam na livraria d'el-rei D. Duarte, não eram antes uma especie de estatistica, o que, em nosso entender, mais admiravel fôra. Então, Diogo Affonso Mangancha, Fr. Gil Lobo, os dominicanos Fr. Rodrigo e Fr. Fernando d'Arrotea, e tantos outros oradores, faziam descer do alto dos pulpitos palavras de eloquencia e de uncção, que chegavam ao fundo dos corações, como se viu nas exequias de D. João I. Estudava-se a philosophia e a historia, de que dão testemunho os livros philosophicos, e historiadores romanos e modernos da mesma livraria d'el-rei D. Duarte. Emfim o ensino da jurisprudencia, trazido de Italia por João das Regras, produziu uma multidão de jurisperitos, a quem depois Portugal deveu grande parte da legislação, excellente para aquelle tempo, que se encontra no codigo affonsino.

Que resta de tantos homens e coisas? Esse codigo, que serviu de base aos que o substituiram. Dos livros que ajunctou D. Duarte apenas sabemos da existencia do intitulado Côrte Imperial e de um fragmento do Regimento de Principes. Tudo o mais quasi com certeza se poderia talvez dizer, que, ou o tempo o consumiu, ou jaz sepultado por bibliothecas estrangeiras, como succede ás obras do mesmo monarcha.

Na sua já citada livraria existiam quatro obras que pelos titulos se vê serem novellas de cavallaria. Eram estas o Livro de Tristão, O Merlim, o Livro de Galaz, e o Livro d'Hannibal. O referido catalogo, que apenas merece o nome de rol, só declara expressamente ser em português o Livro d'Hannibal. Incrivel é quasi que o Amadis ficasse sem imitadores, e poder-se-ia conjecturar que alguma das citadas novellas fosse original portuguesa. De todas, porém, temos achado rastos nas litteraturas estrangeiras, vindo por tanto, a serem provavelmente todas ellas traducções do normando-saxonio (inglês), ou com mais probabilidade da lingua d'Oil (francesa) ou da lingua d'Oc (provençal).

Para intelligencia d'esta nossa opinião poremos aqui resumidamente uma idéa geral dos romances ou novellas de cavallaria.

Os que teem escripto acêrca d'esta materia, e nomeadamente Sismondi, dividem todos os romances em três classes ou cyclos, conhecidos pelos nomes das primeiras personagens d'essas series de novellas, que partindo da historia de cada um d'aquelles heroes, continuavam pela de seus filhos e netos, alliados, ou inimigos indefinitamente. Estas tres classes são a das novellas de Amadis, a das de Artus, ou Arthur d'Inglaterra, e a das de Carlos-Magno. Todavia parece-nos que esta classificação é imperteita. Dividiriamos antes essa multidão de romances em cinco cyclos ou classes: a de Artus, a do Sancto-Brial, a de Carlos-Magno, a de Amadis, e a dos romances a que podemos chamar greco-romanos, porque eram as vidas dos heroes antigos, que davam materia ás invenções dos novelleiros. Não esconderemos que a do Sancto-Brial está tão ligada á de Artus, que se confunde com esta; mas logo diremos porque nos parece dever-se d'ella separar.

Os romances de Artus ou da Tavola-redonda são a historia fabulizada do famoso Arthur, ultimo rei d'Inglaterra, da raça dos bretões, e que defendeu valorosamente o seu país da invasão dos anglo-saxonios. Esta serie de novellas começa no romance de Bruto, composto por micer Gasse em 1155; a ella pertence o romance de Merlin, filho de uma dama bretã e do diabo, no qual se contam as guerras de Uter e de Pandragon, o nascimento de Artus, e a instituição da Tavola-redonda, isto é, de uma especie de doze pares ingleses, que costumavam comer como eguaes em uma mesa redonda nos paços d'el-rei Artus: a historia de Tristão de Leonis tambem pertence a este cyclo, sendo Tristão um dos cavalleiros da Tavola-redonda; e estes dois romances cremos nós que eram os que existiam traduzidos na livraria de D. Duarte: no mesmo cyclo entram as novellas de Meliot de Logres, Melinus de Dinamarca, Micer Galvão, Lancelote do Lago, Vigalois, Vigamor, e Daniel de Valdeflores, e muitas outras que fôra longo enumerar.

Os romances do Sancto-Greal, Gral, ou Graal (que os nossos escriptores chamam erradamente Santo Brial) formam um cyclo bastante ligado com o antecedente, mas distincto pelo pensamento que presidiu á sua invenção. O Sancto-Greal (derivado de Sang-réal, ou Sanguis-réalis) era o vaso ou copa em que Jesu-Christo tinha comido com os seus discipulos na noite da cêa, e em que José d'Arimathea tinha, segundo a tradição dos novelleiros, recolhido o sangue derramado pelo Senhor na cruz; vinha assim esta copa imaginaria a ser o mesmo que o Sancto-Catino que os genovezes se gabaram de ter trazido da terra sancta. Este precioso vaso estava guardado, segundo os romancistas, em um templo na Hespanha, num sitio desconhecido, e só os cavalleiros escolhidos por Deus podiam atinar com elle. Para isto era necessario que se alevantassem á maior alteza, não só de feitos de armas, mas de virtudes moraes. Vê-se, portanto, que o pensamento d'estes romances era uma allegoria religiosa, um typo do alvo em que devia cada cavalleiro pôr a mira do seu procedimento para merecer tal nome, ou para ser escolhido de Deus[14]. A este cyclo pertencem o Perceval, Lohengrin, Titurel, e uma parte dos romances da Tavola-redonda, porque muitos dos cavalleiros de Artus trabalhavam por conquistar o Sancto-Greal, que, segundo escrevem alguns dos novelleiros d'esse cyclo, tinha sido levado para Inglaterra. O primeiro e principal romance do Sancto-Greal foi escripto por Christiano de Troyes no seculo XII, e existe manuscripto na bibliotheca real de Paris, na sua fórma original, que é em verso.

O cyclo dos romances de Carlos Magno começa com a chronica fabulosa do arcebispo Turpin, publicada em 1566, por Echardt, mas escripta, segundo a opinião mais seguida, no undecimo ou duodecimo seculo. Este livro passou muito tempo por historico, e as fabulas nelle contidas foram inseridas como authenticas nas chronicas de S. Dinis, recopiladas por ordem do celebre abbade Sugerio, nos fins do seculo XII:[15] mas depois das cruzadas, a obra attribuida a Turpin não serviu mais senão como de éllo de uma multidão de novellas relativas aos suppostos pares de França, ou paladinos de Carlos-Magno. O romance de Bertha, o de Ogeiro de Dacia, e de Cleomadis, o de Reinaldos de Montalvão, o dos quatro filhos d'Aymão, o de Flora e Brancaflor, o do gigante Morgante, e varios outros, de que se aproveitaram Boiardo, Ariosto, Pulci, e os mais poetas romancistas d'Italia pertencem a este cyclo.

O cyclo dos romances do Amadis começa por o d'aquelle nome, e pertencem-lhe todas as emitações que d'ellese fizeram, e das quaes, a mais notavel é o Amadis de Grecia. Florismarte d'Hircania, Galaos, Florestam, as Sergas de Esplandiam, o D. Duardos, os Palmeirins d'Oliva e d'Inglaterra, e muitissimos outros entram nesta divisão. É esta especie de novellas de cavallaria propriamente hespanhola. A maior parte d'ellas foram compostas nos idiomas da Peninsula, e muitas nem d'aqui saíram. Desgraçadamente os continuadores e emitadores de Lobeira foram, por via de regra, faltos de talento e cheios de máu gosto. D'ahi veio a graciosa justiça que d'elles fez Cervantes por mãos do cura, no seu inimitavel D. Quixote.

A ultima classe de romances de cavallaria é aquella em que as personagens e successos da historia antiga, conhecidos imperfeitamente, davam largueza á imaginação dos novelleiros, que revestiam essas personagens dos costumes, crenças e opiniões da edade-média, e affeiçoavam esses successos pelas instituições da cavallaria, enxerindo até os heroes da Grecia e de Roma, nas familias fabulosas dos Artus e de Amadis. Pertencem a este cyclo os romances d'Alexandre, descendente d'el-rei Artus, o d'Eneas, o da guerra de Troia (do qual segundo parece, tambem existia uma traducção em aragonês na livraria de D. Duarte) e outros, com os titulos dos quaes escusado é encher papel.[16] Em alguma d'estas cinco classes entram naturalmente todas as novellas de cuja existencia em Portugal, no principio do seculo XV, temos noticia. O Merlim e o Livro de Tristão indicam pelo seu simples titulo, serem, quando muito, versões dos dois romances do cyclo da Tavola-redonda, conhecidos por aquelles nomes. O livro de Galaaz com toda a probalidade não era mais que a historia de Galaad, filho de Lancelote do Lago, pertencente ao mesmo cyclo. E finalmente o livro d'Hannibal seria uma traducção de alguns dos numerosos romances do cyclo greco-romano.

Nem nos admiremos de que na livraria d'el-rei D. Duarte predominassem os romances da Tavola-redonda. Todos sabem que sua mãi, a rainha D. Philippa, era inglesa, e nada mais natural do que ella e as pessoas da sua nação, que com ella vieram a Portugal, fizessem conhecer essa classe de novellas que, mais que nenhumas, lisongeavam o amor proprio dos ingleses.

De outras obras se faz menção no indice d'aquella livraria, que vehementemente suspeitamos serem novellas de cavallaria; mas não passando esta opinião de mera suspeita, guardaremos sobre isso silencio.

Desde a epocha de D. Duarte até o principio do reinado de D. Manuel nenhum rasto temos encontrado d'este genero de litteratura. Foi em 1496 que se publicou a Estoria do muy nobre Vespasiano emperador de Roma, livro de que démos noticia a pag. 164 do 1.^o volume d'este jornal.

Esta Historia de Vespasiano, que examinámos por permissão do nosso erudito collega o sr. Vasco Pinto de Balsemão, e da qual o unico exemplar que existe pertence á bibliotheca publica da côrte, não é senão uma novella de cavallaria, pertencente ao cyclo greco-romano. Ha ahi, na verdade, alguns factos historicos, mas os costumes, e as particularidades da narração não passam de meras ficções. Que a obra seja uma traducção, não nos parece duvidoso. Na subscripção d'ella se diz que fôra ordenada «por Jacob e Josep abaramatia, que a todas aquellas cousas foram presentes». Isto indica bastantemente a origem estrangeira do livro. Se, porém, nos lembrarmos de que José de Arimathea, figura nos romances do Santo-Greal, como tendo recebido o sangue de Christo nesse celebre vaso, é naturalissimo que o novelleiro, auctor da historia de Vespasiano, se lembrasse de lhe attribuir a propria composição, tanto mais que era quasi como lei entre os romancistas dar uma origem mysteriosa, ou ao menos remota, ao fructo das suas imaginações.

Accresce, para mais fundamentar a nossa opinião, que Mr. Fauriel menciona uma historia romance da destruição de Jerusalem por Vespasiano, escripta em provençal, e que elle classifica como livro connexo com o cyclo das novellas do Santo-Greal. Este romance, que, segundo nossa lembrança, existe manuscripto na Bibliotheca Nacional de Paris, é com toda a probabilidade, o original da novella portuguesa.

Eis o que temos podido alcançar acêrca dos romances de cavallaria em Portugal, durante o seculo XV. Outros mais habeis e mais felizes terão chegado a maior profundidade com as suas indagações. Trouxemos á praça, em proveito commum, a nossa pobreza. Não eramos a mais obrigados.

No artigo subsequente falaremos dos romances de cavallaria portugueses, no seculo XVI.[17]

*Historia do Theatro Moderno Theatro Hespanhol*

PANORAMA

1839

*Historia do theatro moderno Theatro hespanhol*

I

Ha um anno a esta parte que o theatro começa a ter entre nós a importancia que ha muito tinha entre as outras nações da Europa. Acontecimentos, vulgarmente sabidos e que não veem ao nosso proposito, contribuiram para que a reforma do theatro, em todas as suas partes, que em todas d'ella carecia[18], excitasse o espirito publico: os periodicos falam já das actuaes representações, e julgam, bem ou mal, não só as novas tentativas litterarias que se teem feito, mas o modo porque são levadas á scena e executadas pelos actores: e não são, por certo, esses artigos os que se lêem com menos avidez.

No segundo numero do Panorama démos nós uma noticia do nosso theatro, precedida de alguns breves paragraphos acerca do theatro das outras nações: na conjunctura actual parece-nos que não será fóra de propósito o continuar aquelle artigo com mais alguns sobre a arte dramatica dos demais povos, cuja litteratura tem relação com a nossa, e como do theatro hespanhol veiu o português, conforme o que dissémos falando das origens d'este, será da origem e progresso do drama hespanhol, que tractaremos em primeiro logar.

Em Hespanha, como nos outros países, foi a egreja que fez nascer o drama: todavia a primeira representação, a que estrictamente se póde chamar theatral, e de que ha menção nos annaes de Hespanha, é a que se fez em 1414, na festa da coroação de Fernando o bom, rei de Aragão. Foi composta pelo marquez de Vilhena, e só sabemos que era uma peça allegorica, em que figuravam a Justiça, a Paz, a Verdade, e a Clemencia, de modo que pertencia á classe das moralidades, que tiveram voga por algum tempo, na infancia da arte dramatica hespanhola, e que depois Cervantes fez reviver. Pouco depois d'esta tentativa de Vilhena, o seu amigo, o marquez de Santilhana, homem, como elle, de grande saber e de idéas claras, reduziu a drama, com o titulo de Comedieta de Ponza, os incidentes de uma batalha naval, dada em 1435, juncto á ilha de Ponza, entre os aragoneses e genoveses, em que estes ficaram vencedores. O drama nunca foi representado nem impresso com as demais obras d'este auctor, e só se sabia da sua existencia pelas cartas do marquez, até que o sr. Martinez de-la-Rosa, o grande poeta hespanhol nosso contemporaneo, o descobriu entre os manuscriptos da bibliotheca real de Paris. Esta curiosa reliquia das primeiras tentativas do genio dramatico hespanhol é notavel pela habilidade que nella apparece, não só no modo de tractar um facto historico, mas tambem no enredo, dialogo, e versificação.

Foi pelos fins do seculo XV que em Castella se estabeleceu uma especie de theatro. Os primeiros ensaios dramaticos nesta parte da peninsula, fê-los João de la Encina, mui conhecido pelas suas poesias soltas, e cujas obras formam por si só um cancioneiro. Depois de alargar os limites das representações religiosas, compondo varios autos, onde não sómente se acham paraphrases da biblia, mas tambem invenções do poeta, formou o projecto de fazer saír o drama dos objectos religiosos, para o que compôs pequenas peças pastoraes, que denominou eclogas. Estas peças, em que elle proprio fazia os principaes papeis, se representaram primeiramente em casa do almirante de Castella, e da duqueza do Infantado. Como a denominação o indica, ellas de nada mais constavam do que de um dialogo entre dois ou mais pastores. O auctor, á imitação de Virgilio, usou a primeira vez d'esta invenção para celebrar, por via de allusões, algum acontecimento notavel, como a conclusão de pazes ou a volta de algum principe; e depois inventou uma acção curta e simples, na qual reduziu a drama as paixões das suas personagens. Estas pequenas peças, cortadas por danças, e acabando com vilhancicos ou cantigas, continham tambem alguma scena truanesca ou graciosa; de modo que nellas entravam juntamente os elementos da tragedia, comedia e opera. Teem estas primeiras tentativas bastante sal e agudeza, e ao mesmo tempo naturalidade e viveza. A primeira representação d'estas comedias pastoris fez-se em 1492, anno memoravel nos annaes de Hespanha, por ser o da conquista de Granada e do descubrimento do Mundo Novo. Foi tambem por este tempo que appareceu a famosa Celestina de Rodrigo de Cota, de que já falámos no primeiro artigo.

Os primeiros dramas regulares hespanhoes nasceram no principio do Seculo XVI, e, o que é mais notavel, fóra de Hespanha. Um certo Torres Naharro, residente em Roma, compôs alli varias comedias, que foram representadas perante Leão X.[19] Nellas a invenção é feliz, os caracteres bem traçados e o dialogo vivo, e contém algumas ousadias que neste auctor não eram de admirar, porque, apesar de ser clerigo e de viver na côrte pontificia, compôs satyras contra os ecclesiasticos, taes que Luthero não estimaria pouco ser auctor d'ellas. Naharro compôs tambem uma arte dramatica, a primeira que appareceu em castelhano: nella faz a distincção da tragedia e da comedia, e divide esta em duas especies, comedia de noticia, isto é, historica, e comedia de phantasia, isto é, de imaginação: foi tambem elle que inventou os introitos ou prólogos e que deu aos actos a denominação de jornadas, seguida depois constantemente pelos auctores hespanhoes nas divisões dos seus dramas.

As peças de Naharro, apenas appareceram em Hespanha, foram, prohibidas pela inquisição, como succedeu ás pouco mais recentes de Christovam de Castillego, secretario dos imperadores Maximiliano e Fernando.[20] Estas, quando se imprimiram as obras de Castillejo, passados annos, foram supprimidas e perderam-se de todo. Apresenta assim o theatro hespanhol o phenomeno singular de ter tido duas infancias. Havendo sido prohibidas, as primeiras tentativas de composições dramaticas regulares não acharam imitadores, e até parece que inteiramente esqueceram, porque no casamento de uma infanta de Castella, em 1548, foi uma peça de Ariosto que se representou. Entretanto alguns eruditos, como Villalobos, Oliva e outros, trabalhavam por apresentar os antigos como modelos dramaticos, traduzindo as comedias de Plauto, Terencio e Aristophanes; mas estas antigas composições casavam-se mal com o genio hespanhol, de maneira que, emquanto as producções theatraes que a Hespanha possuia, jaziam sepultadas nas livrarias dos curiosos, ou nos archivos da inquisição, o povo se entretinha com as grosseiras caturrices dos jograes truões. D'aqui nasceu que Schlegel, Bouterweek, Sismondi, e quasi todos os criticos estrangeiros, ignorando até os nomes dos primeiros escriptores dramaticos hespanhoes, não só d'elles não falam, mas põem a origem do drama castelhano no meiado do seculo XVI.

O fundador do theatro hespanhol a que verdadeiramente se póde chamar nacional e popular, foi Lopes de Rueda de Sevilha, que deixou o seu officio de bátefolha para se ajunctar a uma companhia de comicos ambulantes dos quaes foi brevemente o cabeça, ou, segunda a expressão hespanhola, o autor. Este titulo, derivado, não do latim, auctor, mas de auto, dava-se naquelle tempo ao que compunha e recitava peças; e também lhe chamavam maestro de hacer comedias. Lope de Rueda tinha ambas as castas de talento necessarias para ser um autor d'aquella épocha; ganhou por isso grande reputação, e foi unanimemente julgado grande poeta e grande actor; e tão completamente esqueceram as tentativas dramaticas feitas antes d'elle que o tiveram em conta de inventor da divisão em jornadas ou actos, e dos prologos chamados introitos, e depois loas. Durante uns poucos de annos discorreu Lope de cidade em cidade; mas por fim a sua grande reputação fez com que fosse chamado á côrte de Philipe II. Os poucos dramas, dialogos pastoris, etc., que d'elle restam, se destinguem por certa graça e viveza naturaes; e posto que sejam todos em prosa, elle os escrevia em verso com a mesma facilidade.

Ha um facto curioso, que prova a indulgencia com que os ecclesiasticos olhavam, naquelle tempo, até para os dramas profanos; facto que se lê na historia de Segovia, de Colmenares: na occasião da grande festividade da abertura da cathedral d'aquella cidade, a companhia de Lope de Rueda representou em um tablado, erecto no meio da egreja, depois de vesperas solemnes, una gostosa comedia. O proprio Lope, morrendo em Cordova no anno de 1567, foi alli enterrado com grande pompa, no côro da cathedral.

Por este tempo (1561) a côrte hespanhola, que até então tinha andado vagueando pelas capitães das differentes provincias, fez assento fixo em Madrid, circumstancia que foi favoravel para a arte dramatica, porque d'ella nasceu o haver um theatro fixo. Documentos authenticos provam que um anno depois da morte de Lope de Rueda havia theatros em Madrid. Existiam então, tanto na capital como nas provincias, varias companhias de actores, distinctas umas das outras por nomes extravagantes e burlescos, e tão numerosas, que um escriptor moderno hespanhol as distingue em oito especies differentes.

Os progressos materiaes acompanharam d'ahi ávante os litterarios e moraes. Por 1570 estabeleceram-se os dois theatros de la cruz e del principe, que ainda existem, e alguns engenhos summos começaram a trabalhar em composições dramaticas, o que até então se tinha deixado aos directores das companhias ambulantes. Cervantes, tendo chegado do seu captiveiro de Argel, foi um dos primeiros que encetaram esta carreira; mas, apesar dos seus muitos meritos como escriptor dramatico, era mais inclinado ao genero narrativo, o que não se compadecia, por certo, com o estylo proprio do drama.

Emquanto o auctor de D. Quixote escrevia em Madrid, João de la Cueva fazia representar alguns dramas no theatro de Sevilha, reduzindo a quatro o numero de actos ou jornadas, que até então eram cinco ou seis. A representação de cada noite constava da peça principal, e, além d'isso, de tres entremezes e um baile. Tambem Valencia, que nas artes e boas letras era a rival de Sevilha, deu alguns passos na carreira dramatica. Foi um poeta valenciano Christovam de Virues, que ainda reduziu o numero de actos a que se limitaram d'ahi ávante todos os escriptores dramaticos hespanhoes. Até então o drama, segundo o engraçado conceito de Lope de Vega, tinha andado com as mãos pelo chão (a quatro pés) como uma creança, porque estava na idade infantil.

A pompa scenica do theatro hespanhol tinha já feito grandes progressos. Rojas diz que no tempo de Lope de Rueda toda a vestiaria e mais aprestos de qualquer companhia dramatica se podia carregar ás costas de uma aranha, mas que no tempo de Cueva e Virues as actrizes representavam os seus papeis com vestuarios de seda e veludo, e com fios de pérolas e cadeias de ouro; que nos entremezes se cantavam tercettos e quartetos; e que até appareciam no tablado cavallos, quando assim era necessario para ser completa a illusão.

Digno é de notar-se que já no seculo XVI se acha em Hespanha travada a guerra entre os escriptores dramaticos, que pugnavam pela sua liberdade, e os criticos, que os queriam sujeitar aos preceitos d'Aristoteles. Era assim que emquanto o rhetorico Pinciano clamava que respeitassem as tres unidades, de que nenhum caso se fazia, João de la Cueva tomava despejadamente a seu cargo deffender as liberdades dramaticas no seu Exemplar Poetico. Pugnava por ellas porque eram o fructo de uma serie de seculos que tinham abolido todos os antigos costumes;—porque eram mais favoraveis aos vôos atrevidos da imaginação;—e porque, emfim, eram o mais adaptado meio de agradar ao publico. Mas, apresentando tão judiciosa opinião, estabelecia maximas para regular as composições dramaticas, taes que serão sempre approvadas pelo bom juizo e bom gosto, posto que os seus compatriotas nem d'estas mesmas fizeram caso, no seu ardor contra toda a casta de restricções litterarias.

Este desregrado fervor de imaginação era o resultado necessario das particulares circumstancias que por muitos seculos tinham concorrido para formar o caracter nacional em Hespanha. «Os hespanhoes, diz Schlegel, tiveram um quinhão glorioso na historia da idade média, quinhão muito esquecido pela ingratidão dos tempos modernos. Elles foram então como uns atalaias soltos nas fronteiras da Europa: a Peninsula era como um arraial exposto aos incessantes commettimentos dos arabes, e desamparado de alheio soccorro. Acostumado a combater ao mesmo tempo pela liberdade e pela religião, o hespanhol era afferrado a esta com o zêlo fervoroso de quem a tinha comprado á custa do mais puro sangue. Cada solemnidade do culto divino era para elle como um premio de suas acções heroicas; cada templo um monumento das façanhas dos seus antepassados. Em mais recentes epochas nunca importou aos hespanhoes examinar os actos de seus superiores, mas continuaram nas guerras de aggressão ou ambição com a mesma fidelidade e valentia que tinham mostrado nas guerras de defensão. A fama individual, e o zêlo falso da religião os cegava acêrca da justiça das causas que os moviam. Empresas sem egual, levaram-nas felizmente a cabo; e o Mundo-Novo, descuberto por elles, foi conquistado por um punhado de valorosos aventureiros: casos particulares de crueza e rapina mancharam o brilho do mais acabado heroismo, mas estas corrupções não chegaram ao amago da nação. Em parte nenhuma como em Hespanha, sobreviveu o espirito de cavallaria á sua existencia politica por tanto tempo, por isso que ainda brilhou depois de ter passado o predominio de Hespanha e de ter soffrido grande diminuição a opulencia interna do país, em virtude dos ruinosos erros de Philippe II. Propagou-se o espirito cavalleiroso até o periodo mais florente da sua litteratura, e nella estampou o seu cunho, de não duvidosa maneira. A imaginação dos hespanhoes era audaz, como as suas acções: nenhuma aventura intellectual lhe parecia perigosa. A predilecção do povo por maravilhas extravagantes já se havia mostrado nas novellas de cavallaria. Desejavam vêr tambem o maravilhoso no theatro; e quando os seus poetas, eminentes na cultura litteraria, e na situação da vida, lhes representavam esta na fórma requerida, introduziam nella uma especie de harmonia, e purificavam-na da sua grossaria real, resultando do contraste entre o objecto e a sua fórma uma fascinação irresistivel. Imaginavam os espectadores que viam certo fulgor da omnipotente grandeza da sua nação, já muito abatida, quando toda a harmonia dos mais variados metros, toda a elegancia de agudas allusões, todo aquelle esplendor de imagens e comparações que só na sua lingua se acha, se derramavam por enredos dramaticos, sempre novos, e quasi sempre grandemente engenhosos. Buscavam-se na imaginação os mais ricos thesouros de passados tempos para contentar o povo, como se realmente existissem: pode-se dizer que nos dominios de tal poesia, como nos de Carlos V, nunca se punha o sol.

Foi quando os animos mostravam similhante tendencia, que surgiu Lope de Vega, para exercitar a sua protentosa fertilidade de invenção dramatica, e facilidade metrica. D'este illustre dramaturgo falaremos no proximo artigo.

II

Lope de Vega tinha o grandissimo e principal dote para primar na carreira que seguia: era este dote o conhecer profundamente o gosto e paixões do povo para quem escrevia: porém do que nunca elle deu mostras, foi do mais importante e nobre merito de estimar a arte e cultivá-la com enthusiasmo. O effeito, segundo a vulgarissima accepção d'este vocabulo, não era só o seu principal objecto, como cumpre que seja para todo o verdadeiro escriptor dramatico, mas unico—as miras todas pô-las unicamente em bater neste alvo—e em verdade ninguem o alcançou como elle; deixando-nos assim o mais notavel exemplo de sacrificio de alta e duradoura reputação a troco de inegualavel mas temporaria popularidade. Na grande porção que nos resta das suas innumeraveis composições, o que mais admira é a inexhaurivel invenção de incidentes, a variedade de caracteres, o jogo das paixões, e o mimoso e subtil do dialogo; mas todas estas brilhantes circumstancias estão como que affogadas na espantosa exuberancia com que pullulam, em cada scena, em cada fala, e até em cada verso.

Cumpre, porém, que digamos que nem no seu país nem fóra d'elle, teve Lope de Vega modelo que imitasse, ou rival que excitasse a sua emulação. A Italia não tinha ainda passado da Mandragola de Machiavello; nem a França saído das informes imitações dos antigos: em Portugal só havia os esboços dramaticos de Gil Vicente, os dramas-novellas de Jorge Ferreira, e as imitações classicas de Sá de Miranda e Ferreira; a Alemanha não tinha saído ainda dos mysterios; e a Inglaterra, onde já apparecera o divino Shakspeare, era, excepto pelo lado politico, uma terra incognita para os escriptores hespanhoes.

Em 1621, dôze annos antes da morte de Lope da Vega, sobreveiu a do triste e devoto Philippe III, a quem succedeu um principe mancebo inclinado aos passatempos, e mui addicto ao theatro. Philippe IV gostava do tracto dos homens de letras, recebia-os na côrte, e se divertia em compor com elles essa especie de improvisos que então, andavam muito em moda na Italia: até se lhe attribuem algumas composições dramaticas que appareceram anonymas; e tal affeição tinha aos dramas nacionaes, que não consentiu que em Hespanha entrasse a opera italiana, que então era muito estimada em todas as côrtes da Europa. Estas circumstancias augmentaram nova força ao impulso já dado por Lope de Vega, e trouxeram o mais brilhante periodo do drama hespanhol. Durante a vida de Lope, grande numero de escriptores seguiram as suas pisadas: taes foram os doutores Ramon, e Mira de Mescua; os licenciados Mexia e Miguel Sanchez; o conego Tarraga, Guillen de Castro, Aguilar, Luiz Velez de Guevara, Antonio de Galarza, Gaspar d'Avila, Damian Salustrio del Poyo, e varios outros; mas todos eram meros imitadores de Lope de Vega, e muito inferiores a elle; no fim d'este dramatico reinado é que devia apparecer um rival, que lhe disputasse a primazia.

Foi este Calderon de la Barca, que, não menos conhecedor do genio e gosto do vulgo, do que o proprio Lope, unia a isso o amor pela sua arte, que ao outro faltava. Como as composições d'este grande escriptor teem a primazia entre os dramas hespanhoes verdadeiramente nacionaes; como ellas em nada são inferiores ás de Lope, em variedade, e o seu numero mais que o das de nenhum outro, se approxima do numero das d'elle; e como, por consequencia, nos dão os mais perfeitos monumentos de cada uma das differentes especies de producções dramaticas peculiarmente hespanholas; não ha meio nenhum de dar uma idéa clara das fómas e genio do theatro hespanhol na epocha do seu maior esplendor, senão caracterizando breve mas distinctamente, as varias classes das peças de Calderon. A mais corrente classificação dos dramas profanos, é para os mesmos hespanhoes, a de comedias heroicas, comedias de capa y espada e comedias de figuron. As da primeira d'estas classes tinham o mesmo logar na litteratura dramatica, que nas ficções narrativas tiveram as novellas de cavallaria que, expulsas da prosa pelo D. Quixote, se acolheram ao theatro, onde por muito tempo foram bem acceitas do publico. As da segunda classe, cujo nome vinha do vestuario que se usava na epocha em que foram escriptas, representavam os costumes hespanhoes d'esse mesmo tempo; mas, em consequencia do grande sabor de novella que esses costumes ainda conservavam, tinham um aspecto, que a homens modernos e de outras nações parece ideal. «Isto (observa Schlegel) não fóra possivel, se Calderon nos introduzisse no interior da vida domestica… Estas peças acabam, como as comedias dos antigos, por casamentos; mas quão differente é tudo o que precede a este desfecho!… traça, na verdade os seus principaes caracteres de ambos os sexos no primeiro fervor da mocidade; mas o alvo a que elles miram, e diante do qual tudo abate bandeiras, nunca em seus animos se confunde com outro qualquer desejo. A honra, o amor e o ciume, são sempre os motivos da peça, e o enredo nasce da impetuosa mas nobre lucta d'estas paixões… Nos caracteres mulheris o sentimento da honra não é menos poderoso do que nos dos homens: este sentimento rege o do amor, que tem logar a par d'elle, porém não acima d'elle. A honra das mulheres, segundo o modo de pensar que transluz nos dramas de Calderon, consiste em amar um homem de reputação sem macula, e em amá-lo com perfeita pureza. O amor requer ahi inviolavel segredo, até que uma legitima união permitia declará-lo publicamente: este segredo o salva dos effeitos da vaidade, que poderia misturar nelle gabos de favores concedidos, ou pretensões a elles, e lhe dá a apparencia de um voto, que, por isso que é mysterioso, é mais pontualmente observado. No meio d'esta moralidade dramatica, são, em verdade, admittidas manhas e dissimulações, para fins amorosos, e a ponto de parecer que recebe quebra a honra: mas, quando essas manhas vão de encontro a deveres, como, por exemplo, os da amizade, o respeito mais pundonoroso é constantemente guardado a esses deveres. O poder do ciume, sempre vivo, e revelado ás vezes de terrivel maneira; ciume não como o dos povos do oriente, de posse, ou de gozos materiaes, mas dos sentimentos suavissimos do coração, serve para ennobrecer o amor. A perplexidade, que nasce d'estes differentes motivos moraes, acaba muitas vezes em nada, e então o desfecho é grandemente comico: ás vezes, porém, a catastrophe é trágica, e a honra se converte em uma especie de destino avesso, para aquelle que com ella não póde cumprir sem anniquilar a propria felicidade, ou tornar-se para sempre criminoso. Grande numero d'estas peças não teem senão um papel burlesco, o do creado ou gracioso, que serve principalmente para parodiar os motivos sublimes das acções de seus amos, o que, por via de regra, faz com muita graça, servindo raras vezes para instrumento do enredo.»[21].

As comedias de figuron, ou de caracter, distinguem-se da classe de que tractámos no antecedente paragrapho, em o interesse da acção não ser dividido pelas personagens de um enredo variadissimo, mas concentrado em um individuo, no qual é personalizado caracteristicamente algum vicio ou absurdo.

Alguns dos dramas de Calderon, historicos ou mythologicos, não podem estrictamente ser classificados em nenhuma das tres especies antecedentes. Com a maior verdade aproveitou elle algumas epochas da antiga historia hespanhola; mas parece ter tido tamanho aferro ao genio da sua nação, que não pôde produzir facilmente o caracter das outras. A antiguidade classica era inintelligivel para elle, e por isso, o já citado Schlegel observa que a mythologia grega se converte, nas suas mãos, em uma deleitosa novella, e a historia romana em uma hiperbole magestosa. Outra classe de peças tem Calderon a que elle chama fiestas: eram estas destinadas para serem representadas na côrte em occasiões solemnes. Posto que taes peças requeressem pompa theatral, frequentes mudanças de scenario, e até musica, todavia podemos chamar-lhes operas poeticas, isto é, dramas, que pelo mero esplendor da poesia, produziam o mesmo effeito que na opera moderna produzem as vistas, a musica e a dança. Foi nestas composições que Calderon se entregou inteiramente aos vôos da sua imaginação, podendo dizer-se que nellas as personagens apenas pertencem a este mundo.

Mas é na classe dos autos sacramentales, ou dramas religiosos, que o genio e o espirito de Calderon se desenvolveram com mais força e formosura. As cerimonias religiosas dos gregos tinham gerado o theatro grego: as cerimonias do christianismo deram origem ao theatro moderno. O principio fundamental dos espectaculos dramaticos, introduzido ou sanccionado pelo clero, consistia em apresentar ante os olhos dos fiéis, em todas as festividades ecclesiasticas, e dias de commemoração de certos sanctos, a representação ao vivo da passagem do Testamento Novo ou do Catalogo dos Sanctos, que tinha connexão com essa festividade. Estas representações, que no resto da Europa se denominavam mysterios, chamaram-se em Hespanha, desde o principio, divinas comedias e autos sacramentales. Faziam-se com grande pompa, não só nas praças e nas procissões, mas tambem nos theatros publicos. Taes dramas, representados em dias solemnes, debaixo da protecção das auctoridades civis e ecclesiasticas, e em presença de todo o povo, não só davam ao auctor mais proveito, mas tambem mór gloria. Lope de Vega escreveu alguns centenares d'estas peças: mas Calderon tanta vantagem levou aos seus predecessores e contemporaneos, nisto como no mais, que lhe foi concedido um privilegio exclusivo de compor os autos que se haviam de representar na capital, monopolio de que gozou durante trinta e sete annos.

Temos sido talvez mais technicos e extensos do que cumpria sobre o espirito e execução dos dramas hespanhoes dos fins do seculo XVI e principios do XVII, porque as regras dos rhetoricos e pedantes, regras que se desfazem em pó diante de um porquê,—persuadem o vulgo da republica das letras de que qualquer drama, a não ser grego ou romano, ou não trazendo, pelo menos, pós, casaca de seda e espadim, á moda de Luís XIV, é forçosamente barbaro, rude ou absurdo. Este pensar acanhado, emquanto se não derrocar de todo, torna impossivel uma verdadeira regeneração dramatica: os portugueses devem ser em litteratura uma só nação com os hespanhoes: se quisermos ter originalidade, nacionalidade, e o que mais é, verdade, estudemos Lope, Calderon e os seus contemporaneos; não nos envergonhemos de folhear livros por onde constantemente estudam os mais illustres escriptores dramaticos da Alemanha e da Inglaterra, apesar de não poderem tirar d'elles todo o proveito, que nós por certo tiraremos. Mas voltemos ao nosso assumpto.

É digno de notar-se, que, durante o mais bello periodo do theatro hespanhol, o conselho de Castella se atrevesse a propôr como condição para se reabrirem os theatros que tinham estado fechados por causa de varios luctos da côrte, desde 1644 até 1649, que os dramas que se houvessem de representar se limitassem a objectos edificativos, sem mistura das profanidades do amor; e que, por consequencia, todos aquelles que até então se tinham representado fossem prohibidos, nomeadamente os de Lope de Vega, que tão prejudiciaes tinham sido á sã moral. Felizmente o bom gosto do monarcha, concorde com o do publico, fez com que fosse regeitada a proposta dos austeros conselheiros.

Durante a longa carreira de Calderon, appareceu Moreto, que dotado de menos força inventiva e menos fervor de imaginação, se distinguiu principalmente por aperfeiçoar melhor as comedias de figuron ou de caracter. Como exemplo, taes são os seus dramas—O lindo D. Diogo, e O marquez de Cigarral, especie de D. Quixote, endoudecido á força de ler e reler, sem descanso, os pergaminhos de sua casa, e os costados da sua arvore genealogica. Por este lado, póde-se crer que Moreto foi um dos modelos de Molière, entre cujas peças, com effeito, se encontra uma fraca imitação do marquez de Cigarral. Nesta mesma epocha viveu outro poeta dramatico, cuja fama emquanto vivo não egualou a celebridade de que goza depois de morto e que, por um acaso extraordinario foi desconhecido aos mais eminentes criticos, como Signorelli, Sismondi e Schlegel: era este um frade da Trindade, chamado Fr. Gabriel Telles, que, com o supposto nome de Tirso de Molina, pôs em scena um grande numero de dramas, que depois foram colligidos e publicados por um sobrinho seu. Menos engenhoso do que Calderon, e menos delicado, excede, todavia, os outros poetas do seu país em certa agudeza maledica. Pouco lhe importam as regras, ou a verosimilhança, com tanto que lhe venham a pello gracejos pungentes e maliciosos, usando de uma linguagem, ás vezes licenciosa, e de pensamentos que mostram tão pouco respeito ás potencias da terra como ás do céu. Nada poupa, uma vez que esse objecto lhe desagrade ou possa mover a riso. Ha só um escriptor a quem elle deva com exacção ser comparado, e com quem, com effeito, tem muitissima parecença: é este o moderno dramaturgo francês Beaumarchais. E assim como este auctor foi o verdadeiro pai de Figaro, do mesmo modo (facto certamente curioso) Fr. Gabriel foi o primeiro que pôs em scena a famosa historia de D. João e a Estatua (El combidado de Piedra) aproveitando-se da lenda inventada, segundo dizem, pelos franciscanos de Sevilha para explicarem o desapparecimento do verdadeiro D. João Tenorio, que, conforme tambem alguns querem, fôra por elles assassinado em vingança dos muitos vexames que lhes fazia.

No proximo artigo mencionaremos mais alguns dramaturgos hespanhoes d'esta epocha, e concluiremos a historia do theatro hespanhol com a noticia dos escriptores mais modernos.

III

O periodo brilhante do theatro hespanhol encerra-se na primeira metade do seculo XVII. O gosto do monarcha, da côrte e da nação, tinha lançado um grande numero de homens de letras nesta carreira, que então era a mais honrosa e lucrativa. Assim, além dos eminentes escriptores mencionados no antecedente artigo, appareceu um enxame de dramaturgos de segunda ordem, a cuja frente devemos collocar Francisco de Rojas, que tinha todos os dotes de Moreto, mas que o excedia nos defeitos. Seguiam-se a este Guillen de Castro, Ruis de Alarcon, La-Hoz, Diamante, Mendoza, Belmonte, os irmãos Figueroas (que escreviam conjunctamente, como os modernos auctores de farças francesas), Cancer, Enciso, Salazar e Candamo, os quaes, posto que nenhum creasse uma eschola sua, produziram ao menos importantes composições theatraes.

Os desastres que sobrevieram á monarchia hespanhola nos ultimos annos do reinado de Filippe IV, junctos com uns poucos de luctos publicos, que fizeram fechar por muito tempo os theatros, deram o primeiro golpe na arte dramatica hespanhola. Em 1665 a morte d'aquelle principe, que tinha sido o seu mais zeloso protector, foi o signal da queda rapida e inteira do theatro. O successor de Filippe IV, o parvo Carlos II, era ainda creança; e a rainha regente assignalou o principio da sua administração com um decreto, dictado, sem duvida, pelo seu director espiritual o jesuita Nitar, e, por certo, unico nos annaes dramaticos. Ordenava a rainha no citado decreto, que todas as representações cessassem até seu filho ter idade de se entreter com ellas. Posto que esta extravagante ordem não pudesse ser executada á risca, todavia é claro quão grande effeito devia produzir numa epocha, em que a litteratura só podia progredir debaixo do patrocinio dos grandes, e em que o theatro, só com a especial protecção do monarcha podia resistir aos repetidos ataques do conselho de Castella. Para vermos o que d'aqui resultou poremos em contraste dois factos notaveis. De um memorial, dirigido a Filippe IV em 1632, pelo actor Ortiz, se vê que havia então em Hespanha mais de quarenta companhias de comicos, e que estas companhias davam a somma de mil actores; e que se tinham edificado tantos theatros, que poucas cidades ou villas notaveis havia que não tivessem o seu. No anno, porém, de 1679, quando Carlos II casou com uma infanta de França, na festa do casamento, não foi possivel reunir mais de tres companhias para virem representar na côrte.

Neste periodo de decadencia e desprezo um unico escriptor trabalhou por amparar o vacillante theatro: Solis, o eloquente historiador da conquista do Mexico, dedicou tambem ao theatro a sua brilhante imaginação, polida agudeza, e vigoroso estilo. Deixou-nos varios dramas dignos do periodo a que sobreviveu; especialmente um d'elles que intitulou—Amor al uso, tem grandissimo merito.

Com Solis póde-se dizer que expirou o theatro verdadeiramente hespanhol. A subida ao throno de Filippe V, tendo dado valia ao gosto francês, e introduzido (ao menos na côrte) os habitos e costumes da côrte de Luís XIV, fez que os hespanhoes, depois de terem sido os mestres e precursores dramaticos dos franceses, se contentassem de se converter em humildes imitadores e copistas d'elles. É verdade que, durante o seculo XVII, algumas tentativas fizeram para restabelecer o drama nacional, Zamora, Canizares, Luzan e Jovellanos; mas estas honrosas tentativas só alcançaram transitorio applauso; e para achar uma obra original (mencionando, todavia, os sainetes de Ramon de la Cruz) cumpre chegar, no principio do seculo actual, a Moratin, o engraçado e elegante auctor do Caffé, do Barão, etc., e ao sr. Martinez de la Rosa, auctor de—A mãe no baile, e a filha em casa.

A descripção que fizemos das varias especies de composições dramaticas do tempo de Calderon, mostra que no antigo drama hespanhol a tragedia classica, posto que menos que a comedia classica, podia ter amplo e effectivo logar. Todavia, enganados, segundo parece, pela palavra comedia, que na lingua hespanhola teve sempre uma significação tão geral como a palavra alemã spiel ou a inglesa play[22], muitos criticos de nota, principalmente franceses, falaram da total falta de tragedias no theatro hespanhol, como de um phenomeno singular e inexplicavel. Tão enraizadas estavam nos animos de taes criticos as distincções classicas, com que os haviam educado, que assim o affirmavam com toda a gravidade, embora admittindo ao mesmo tempo, que «o elemento tragico predominava em grande numero das mais afamadas peças do theatro hespanhol». Mas que é este predominio senão o unico meio de destinguir a tragedia da comedia, unico que existe na essencia da natureza humana e da arte dramatica? Segundo este systema mais racional de classificação, o antigo theatro hespanhol, pela propria confissão dos criticos de que falamos é grandemente abundante na tragedia. Noticiemos agora brevemente as poucas amostras de obras dramaticas, que na Hespanha appareceram mesmo com a denominação de tragedias.

Boscan, que primeiro introduziu na Hespanha o estilo italiano de versificação, dizem que traduzira uma das tragedias d'Euripedes, traducção que se perdeu. Tambem pelos annos de 1520 Fernão Peres d'Oliva, voltando da côrte de Leão X, onde vira representar a Sophonisba de Trissino, escreveu duas imitações do theatro grego,—a Vingança d'Agamemnon, tirada da Electra de Sophocles, e a Hecuba, imitação de Euripedes. Estas tragedias, escriptas em elegante prosa, ficaram desconhecidas fóra das universidades, e até ha razão para crer que nem ahi foram representadas. Em 1570, João de Malara deu ao theatro de Sevilha varias tragedias, de objectos biblicos, como Absalão, Saul, etc; e em Madrid, que então fôra escolhida para capital do reino, um frade, chamado Jeronymo Bermudez, tomando o nome supposto de Antonio da Silva, publicou duas tragedias, que merecem fazer-se d'ellas especial menção. São ambas fundadas na celebre historia de D. Ignez de Castro. A primeira, intitulada Nise Lastimosa, é uma imitação da Castro do nosso Antonio Ferreira: a segunda, intitulada Nise Laureada, que tem por acção a vingança, que o infante D. Pedro, quando subiu ao throno, tomou dos assassinos da sua amada, e a coroação do cadaver d'Ignez, é mais original que a primeira, mas inferior a ella no enredo e desenlace. Estas duas peças, dividida cada uma d'ellas em cinco actos, entresachados de coros, são as primeiras tragedias regulares, que em verso castelhano se escreveram. Por este mesmo tempo, em Valencia, onde o primeiro theatro, edificado em 1526, era pertença de um hospital, foram representados varios dramas, ainda mais notaveis, compostos por Christovam de Virues, de quem já falámos, e por Andres Rey d'Artieda. Virues official militar, era um dos cabeças da grande eschola que, desde o seu principio se gloriara de menoscabar as restricções aristotelicas. Foi a sua primeira producção La Gran Semiramis, acção que ao mesmo tempo tractava, em Italia, Murio Manfredi. Todavia, Virues, em vez de fazer a peça em cinco actos ao modo grego, dividiu-a em tres jornadas, nas quaes metteu toda a vida de Semiramis, passando-se o primeiro acto na Bactriana, o segundo em Ninive e o terceiro em Babilonia. Compôs depois, sempre com o mesmo desprezo das unidades, as tragedias da Cruel Cassandra, Atila Furioso, Infeliz Marcella, etc. A que intitulou Elisa-Dido, e que elle annunciou como escripta conforme al arte antigua, é com effeito, a unica, em que as regras são inteiramente respeitadas. O consocio de Virues na antiga guerra contra os preceitos classicos, Juan de la Cueva, depois de traduzir o Ajax de Sophocles, publicou em Sevilha duas tragedias originaes; uma fundada em certa tradição popular, e intitulada—Los Siette Infantes de Lara, a outra tirada da historia romana e reunindo dois objectos tragicos, a morte de Virginia e a de Appio Caudio, sendo La Cueva o primeiro que pôs em scena estes successos, tantas vezes aproveitados depois. Entretanto no theatro de Madrid as tragedias de Bermudez eram substituidas pelas de Lupercio d'Argensola, as quaes Cervantes louva mais do que ellas merecem. O proprio auctor do D. Quixote escreveu então a sua Numancia, tragedia a mais classica que, porventura, tem o theatro hespanhol, porque é aquella em que mais transluz a simplicidade e pureza do drama grego, posto que o espirito cavalleiroso de Cervantes appareça quasi sempre debaixo d'essas fórmas antigas.

É claro que o espirito romantico predomina sobre o classico, até nas producções declaradamente tragicas do theatro hespanhol antigo. Todavia, quando a subida de Filippe V ao throno submetteu o gosto nacional á influencia do de Paris, não só os poetas tragicos franceses foram traduzidos em lingua castelhana, mas tambem os poetas hespanhoes fizeram varias tentativas para os imitar. No numero d'estas se devem contar a Virginia e o Ataulfo de Montiano.

Subsequentemente, durante o alumiado ministerio do marquez d'Arauda, Fernandez Moratin, Cadalso e Garcia de la Huerta renovaram essas tentativas: o primeiro escreveu Hormesinda, o segundo D. Sancho Garcia e o terceiro Rachel, mas estas obras, posto que valiosas, principalmente a ultima, não eram sufficientemente notaveis para haverem de naturalizar uma casta de dramas tão nova em Hespanha. No principio d'este seculo tentou o mesmo genero, com melhor successo, D. Nicasio Alvarez de Cienfuegos, habilmente ajudado pelo talento do celebre actor Isidoro Mayquez, de algum modo discipulo de Talma, e não indigno de seu mestre, posto que mais se approximasse da versatilidade maravilhosa do actor inglês Garrick, porque não só era feliz nos papeis tragicos, mas tambem em quaesquer outros, sem exceptuar os de truão e bobo.

Depois de Cienfuegos, que deixou um Idomeneu, um Pitaco e uma Zoraida, appareceram dois outros poetas tragicos, que cremos, vivem ainda ambos. Um d'elles, Quintana, é auctor de uma tragedia intitulada Pelayo, fundada na historia d'esse antigo campeão da causa perdida da independencia hespanhola contra os arabes triumphantes, peça, em verdade, nobre e pathetica, da qual os modernos hespanhoes, obrigados como seus avoengos a repellir o dominio estranho, costumavam repetir as passagens mais energicas, marchando para os combates. O outro, Martinez de-la-Rosa, ha pouco primeiro ministro d'Isabel II, é auctor de uma peça tambem patriotica, intitulada A Viuva de Padilla, fundada na memoravel lucta das cidades municipaes da Hespanha contra a aggressão tyrannica de Carlos V. Esta tragedia, a primeira de tal genero, que Martinez de-la-Rosa compôs, foi feita e representada em um theatro, construido para isso em Cadiz, quando os franceses tinham esta cidade cercada. O mesmo auctor compôs uma Morayma um pouco ao modo da Merope de Voltaire, e um Edipo, representado depois em Madrid, no qual, diz um dos mais entendidos criticos da litteratura hespanhola (Mr. Viardot) elle trabalhou por ser original, tractando um objecto já tractado por Sophocles, Seneca, Corneille, Voltaire, La-Motte e Dryden.

Pelo que respeita a presente estimação theatral, que se faz dos antigos dramaturgos hespanhoes no seu proprio país, devemos observar que, em quanto Lope de Vega está desterrado nas bibliothecas, e emquanto Calderon e Moreto raras vezes sobem á scena, Tirso de Molina, de quem já falámos, apparece mais frequentemente no theatro que outro qualquer antigo escriptor dramatico. Fernando VII gostava muito dos ricos gracejos do licencioso frade; e esta declarada predilecção fazia calar o genio vidrento e pundonoroso de certas auctoridades, cuja sanha podiam excitar os motejos do frade contra os grandes. A comedia de Tirso, intitulada D. Gil el de las calzas verdes era a de que el-rei mais gostava; e por isso a camara municipal de Madrid não deixava de a mandar representar nos dias de gala.

Posto que a representação dos Autos Sacramentales fosse supprimida em 1765, todavia o advento e a quaresma, e especialmente a Semana Sancta, ainda se festejavam ha poucos annos nas igrejas com taes representações; levantava-se no côro uma especie de tablado, sobre o qual se representavam os passos da paixão de Christo, e em que as numerosas personagens que successivamente figuravam na peça, se apresentavam com os vestuarios da idade-média, quaes se deviam usar na origem d'estas representações, como san-benitos, mascaras pretas, farricocos, cotas, camisolas, e, numa palavra, toda a vestiaria de uma procissão de auto da fé.

*Crenças populares portuguesas ou Superstições populares*

PANORAMA
184O

*Crenças populares portuguesas*

I

Todas as nações tanto antigas como modernas teem sido sujeitas á doença moral chamada credulidade. Dada a crença da existencia dos espiritos e da sua immortalidade, os homens vendo diariameute morrer os seus semelhantes, e sentindo em si uma consciencia que repugna a anniquilação, perceberam facilmente que o espirito não morria: a revelação não fez mais que confirmar um sentimento innato no homem. Depois a saudade dos mortos que nos foram caros, e o temor que experimentavam os criminosos de que as suas victimas ainda se pudessem vingar d'elles além do sepulchro: emfim amor e remorsos, ajudados da imaginação, povoaram este mundo de phantasmas. A Grecia, sempre poetica, formulou esta serie de factos intellectuaes em muitas expressões materiaes: sirva de exemplo a descida d'Orpheu aos inferno em busca d'Euridice, mytho formosissimo, com que os antigos gregos simbolizaram o amor como capaz de unir os espiritos que passaram com os que vivem na terra. A imaginação multiplicou e variou estas expressões de um pensamento vago e primitivo. D'ahi vieram os lemures, as strygas, e todas essas creações extravagantes, que ainda no primeiro seculo christão o severo philosopho Plinio não se atrevia inteiramente a descrer.

Entre as nações modernas a portuguesa passa por uma das mais inclinadas a muitas d'estas superstições. É uma das multiplicadas calumnias que sobre nossas cabeças lançam estrangeiros: quem d'isso se quiser desenganar leia o Diccionario infernal de Colin de Plancy, e achará que qualquer provincia da França, ainda das mais civilizadas, nos deita, como se diz vulgarmente, a barra adiante em superstições populares. Quasi o mesmo se pode dizer da nação mais allumiada da Europa—a allemã. Na Inglaterra, basta dizer que não haverá ahi perro turco, ou brahmane credulo que leve vantagem em superstição ao povo dos tres reinos unidos. As bruxas, diabos azues, vampiros, e seiscentas outras diabruras surgem, por assim dizer, debaixo dos pés dos ingleses, como nos pinhaes do Alemtejo e Estremadura se erguem, debaixo dos pés dos caminhantes, as ninhadas dos sapinhos, quando sobre o pó das estradas cai em dia de verão um aguaceiro de trovoada.

Apesar, porém, de não sermos dos povos mais abastados neste genero de riquezas (que poeticamente o são) tem havido entre nós muitas crenças populares dignas de se fazer menção d'ellas; por isso mesmo que as mais antigas são geralmente desconhecidas, e as mais modernas vão diariamente desapparecendo;—que ao menos esse bem temos tirado das nossas luctas politicas e d'este espirito do seculo, que renegou de tudo quanto nos transmittiu o passado;—tanto de umas como de outras colligiremos aqui algumas especies, que se nos não enganamos, serão lidas com interesse pelos leitores do Panorama.

Um dos mais antigos documentos que nos restam sobre as nossas superstições populares é a celebre postura da camara de Lisboa de 1385. Esta postura caracteriza essencialmente o espirito religioso da epocha de D. João I. Nella se prohibem as superstições populares, as quaes ahi se enumeram, como querendo a camara agradecer assim a Deus a victoria d'Aljubarrota, que assegurou a independencia de Portugal. Transcreveremos algumas passagens do referido estatuto, sem que tentemos explicar muitas d'essas superstições a que se allude, porque difficil fôra apresentar mais do que conjecturas. Eis o que nos parece mais notavel naquelle assento municipal.

«Os sobreditos estabelecem e ordenam, que d'aqui em diante nesta cidade, nem em seu termo nenhuma pessoa não use, nem obre de feitiços, nem de ligamento, nem de chamar os diabos, nem de descantações, nem de obra de veadeira, nem obre de carantulas, nem de geitos, nem de sonhos, nem d'encantamentos, nem lance roda, nem lance sortes, nem obre d'advinhamentos… nem outrosim ponha nem meça cinta, nem escante olhado em ninguem, nem lance agua por joeira…»

«Outrosim estabelecem que d'aqui em diante nesta cidade e em seu termo não se cantem janeiras nem maias, nem a outro nenhum mês do anno, nem se lance cal ás portas sob titulo de janeiro, nem se furtem aguas, nem se lancem sortes…»

«Porque o carpir e depenar sobre os finados é costume que descende dos gentios, e é uma espécie de idolatria, e é contra os mandamentos de Deus, ordenam e estabelecem os sobreditos que d'aqui em diante nesta cidade, nenhum homem ou mulher, não se carpa, nem depene, nem brade sobre algum finado, nem por elle, ainda que seja pae, mãi, filho ou filha, irmão ou irmã, marido ou mulher, nem por outra nenhuma pena, nem nojo, não tolhendo a qualquer que não traga seu dó, e chore se quiser…»

Muitas d'estas disposições dizem respeito a crenças que já não existem, ou são conhecidas por outras denominações. As janeiras e maias duraram até os nossos dias e ainda no Minho se chamam maias as flores da giesteira amarella, com que se adornam as janellas no primeiro de maio; alem d'isso todos os que hoje vivemos nos lembramos de ver em Lisboa os maios pequeninos passearem as ruas cubertos de flores, bem como de ouvir cantar as janeiras, o que ainda dura em muitas partes das nossas provincias.

As prohibições da camara relativamente aos prantos pelos mortos, alludem ao carpirem-se e arrepellarem-se sobre o cadaver e por elle, depois d'enterrado, certas mulheres, que d'isso viviam chamadas carpideiras ou pranteadeiras, e na falta d'estas os parentes mais proximos. Fr. Francisco Brandão diz que tal costume se acabou no tempo de D. João I; mas engana-se manifestamente, porque nos nossos chronistas se acham memorias de similhantes prantos em epochas mui posteriores, e lá diz Gil Vicente.

Prantos fazem em Lisboa
Dia de Sancta Luzia
Por elrei D. Manoel
Que se finou neste dia.

Entre as superstições antigas podem contar-se os reptos, requestas, ou desafios, em que se appellava para o juizo de Deus quando um homem accusava outro de homicidio ou traição. Este costume, geral em toda a Europa, vogou muito em Portugal no principio da monarchia, sendo até declarados nos foraes de algumas terras os casos em que o duello devia servir de prova da justiça ou injustiça da accusação ou querella. Muito cedo porém começaram os nossos reis a trabalhar, por meio de leis prudentes e saudaveis, em pôr termo a este costume barbaro. D. Dinis foi o primeiro que por lei de 1318 prohibiu houvesse reptos duas leguas em redor d'onde estivesse a côrte.—«Estabeleço e ponho por lei (diz elle) que d'aqui adiante nenhum Filho d'algo não desafie, nem mande desafiar outro, nem por si, nem por outrem, perante mim, nem nos logares onde eu fôr, nem a duas leguas aredor de mim; e aquelle que contra isto vier, morra por isso, e a desafiação não valha»—Successivas providencias se foram dando a este respeito, de modo que na ordenação affonsina apenas são permitidos os desafios no caso de traição contra a pessoa real, como se pode ver no titulo 64 do Livro 1.^o d'essa ordenação.

Como, porém, os reptos não tinham logar em todos os casos, e tal era o de caír a suspeita do crime em mulheres, as quaes não podiam ir defender ás lançadas a sua innocencia, havia outros meios de recorrer ao juizo de Deus. D'estes eram geralmente em toda a Europa, as provas da agua fria, da agua quente, e do ferro em braza. A que se usou em Portugal foi a ultima, a qual consistia no seguinte: o accusado que queria arriscar-se á prova, depois de se confessar, e de jejuar rigorosamente por alguns dias, e de receber exorcismos, bençãos e orações de um sacerdote, ou se punha a andar descalço sobre uma vara de ferro em braza, ou pegava nella e caminhava apertando-a nas mãos por certo espaço. Se o ferro caldo (como lhe chamavam) não produzia o seu natural effeito, o culpado era havido por innocente; mas se lhe queimava os pés ou as mãos impunham-lhe a pena do crime de que fôra accusado. Já se vê que era difficultosa empresa achar innocentes por meio tal; todavia algumas tradições existem que a serem verdadeiras, provariam que a providencia apiedando-se dos injustamente opprimidos, suspendera algumas vezes a favor d'elles as leis da natureza. Juncto ao sepulcro do commendador de Leça D. Garcia Martins se conservava, segundo o testamento de Jorge Cardoso, um ferro de arado, que, posto em braza, transportou para alli a mulher de um ferreiro accusada de adulterio. Fr. Bernardo de Brito e Fr. Antonio Brandão citam uma doação feita ao mosteiro de Arouca, Por D. Tareja Soares, mulher de D. Gonçalo Mendes de Souza, que sendo accusada pelo marido d'adulterio, recorreu, em sua defeza, á prova do ferro em braza, e saindo illesa, se recolheu ao convento d'Arouca, ao qual fez uma doação, onde se menciona este successo, que seria em verdade extraordinario, se não fosse mais facil e razoavel crêr na supposição do documento do que na realidade do milagre.

Esta superstição da prova por fogo parece que ainda estava muito arreigada em Portugal no fim do seculo XIV. Quando o Mestre d'Aviz matou o conde Andeiro a rainha D. Leonor, ouvindo na sua camara o ruido que soava, mandou saber o que era, e vieram dizer-lhe que tinham assassinado o conde. «A rainha quando isto ouviu, houve grão temor, porem disse: Oh sancta Maria vale me mataram em elle um bom servidor!—e sem o merecer; cá (porque) o mataram, bem sei porque. Mas eu prometto a Deus que me vá de manhã a S. Francisco, e que mande ahi fazer uma fogueira, e ahi farei taes salvas, quaes nunca mulher fez por estas cousas.» (Lopes chron. de D. João I cap II). Santos, narrando este mesmo successo, accrescenta: «Alludiu ao antigo costume de se purificarem, tomando o ferro quente, as mulheres accusadas, ou murmuradas d'adulterio. (Mon. Lusiti Liv. 23, cap. 8). E com effeito não é crivel que a rainha na sua afflicção fizesse uma figura de rhetorica, dizendo que se queria sujeitar a um costume que já não existia; muito mais que Fernão Lopes, escriptor tão vizinho d'aquelles tempos, parece reconhecer a actualidade de tão barbara usança, accrescentando que a rainha tinha mui pouca vontade de o fazer.

Não era este supersticioso costume, que durou por tantos seculos, apenas uma invenção do vulgo. Nas antigas leis d'Hespanha, conhecidas pelo nome de Fuero juzgo, é expressamente ordenada a prova da agua a ferver, e a do ferro em braza, e no foral de Baeça se particularizam os casos em que taes provas tinham logar, bem como a maneira de as fazer. Transcreve-lo-hemos aqui por ser grandemente curioso, tanto mais que em parte diz respeito á prova do desafio.

«A mulher, que sabidamente mover, sendo o movito por mau termo seja queimada, ou salve-se por ferro quente. E se alguma disser que é prenhe de algum homem, e elle a não crer, tome ferro quente, e queimando-se, não seja crida; mas se escapar livre do ferro, dê o filho ao pai, e crie-o como mandam as leis.»

«A mulher que ligar homens ou animaes, ou quaesquer outras cousas que podem ser ligadas, queimem-na, e se negar, salve-se por ferro quente; e se o ligador for homem seja açoutado e lançado fóra da terra, e se negar, salve-se por combate.»

«A mulher que der hervas peçonhentas ou for feiticeira, seja queimada, ou se salve por ferro quente.»

«A mulher que matar seu marido seja queimada, ou se livre por ferro quente. Toda a mulher que taes cousas faz, deve tomar ferro; mas não por erro da sua pessoa propria, salvo quando for approvada por má mulher, e que teve parte com cinco homens differentes. As terceiras sejam queimadas, ou, se negarem, salvem-se por ferro quente.»

«O ferro que se mandar fazer por justiça para esta experiencia, tenha um palmo de comprimento, e dous dedos de largo, e tenha quatro pés (a modo de banco) tão altos, que a pessoa que houver de fazer a salva possa metter a mão por baixo. E quando o tomarem, levem-no por distancia d'outo pés, e tornem-no a pôr em terra suavemente. Mas antes o benza o sacerdote, e depois elle e o juiz aquentem o ferro, e em quanto o ferro se aquentar, nenhum homem se chegue junto ao fogo, porque não acerte de fazer alguma feitiçaria; e a que houver de tomar o ferro primeiro se confesse mui bem, e depois seja olhada, porque não traga escondido algum feitiço. Depois lave as mãos diante de todos, e depois de limpas, tome ferro, mas antes façam todos oração, pedindo a Deus que mostre a verdade. E depois que tiver levado o ferro, o juiz lhe cubra logo a mão com cera, e sobre ella lhe ponha a estoupa ou linho, e depois atem-lha com um panno, e leve-a o juiz a sua casa, e passados tres dias vejam-lhe a mão e se for queimada, queimam-na tambem a ella.»

Vimos que a prova do fogo durou em Portugal, pelo menos até o fim do seculo XIV. Não sabemos ao certo a epoca da completa extincção d'este abuso; todavia é sabido que elle estava em esquecimento no seculo seguinte. Não assim a crença em feitiçarias que, como sabemos, durou até aos nossos dias, e ainda hoje tem bastante voga entre os espiritos mais rudes.

A primeira lei, que nos lembre fosse promulgada em Portugal contra os feiticeiros é uma de D. João I, do anno de 1403, em que se diz o seguinte: «Não seja nenhum tão ousado, que por buscar ouro ou prata, ou outro haver, lance varas, nem faça circo, nem veja em espelho ou em outras partes.» Esta lei foi confirmada no codigo affonsino, d'onde em substancia passou para os que se lhe seguiram. Vê-se por ella que a magia portuguesa d'esse tempo se reduzia a uma especie d'alchimia, ou sciencia de encontrar ouro, o que, em verdade, era bem pouco se o compararmos ao incremento prodigioso que teve a feitiçaria no seculo seguinte.

Da variedade de praticas supersticiosas que produziu este incremento, nunca encontrámos memoria mais curiosa, que o capitulo que trata d'esta materia no rarissimo livro das Constituições do arcebispado d'Evora, impressas em Lisboa no anno de 1534. Eis aqui o texto da constituição primeira do titulo 25, que se intitula—Dos feiticeiros, benzedeiros e agoureiros:

«Defendemos que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição que seja, tome de logar sagrado, ou não sagrado, pedra d'ara ou corporaes, ou parte de cada uma d'ellas, ou qualquer outra cousa sagrada; nem invoque diabolicos espiritos, em circulo, ou fora d'elle, ou em encruzilhada; nem dê a alguma pessoa a comer ou a beber qualquer cousa, para querer bem ou mal a outrem, ou outrem a elle; nem lance sortes para adivinhar, nem varas para achar haveres; nem veja em agua, ou crystal, ou em espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em espadua de carneiro; nem faça, para adivinhar, figuras ou imagens algumas de metal, nem de qualquer outra cousa; nem trabalhe de adivinhar em cabeça de homem morto, ou de qualquer outra alimaria; nem traga comsigo dente, nem baraço de enforcado, nem faça com as ditas cousas, ou cada uma d'ellas, nem com outra alguma semelhante, posto que aqui não seja nomeada, especie alguma de feitiçaria, ou para adivinhar, ou para fazer damno ou proveito a alguma pessoa ou fazenda: nem faça cousa para que uma pessoa queira bem ou mal a outrem, nem para ligar homem ou mulher, etc.»

«Outrosim defendemos que nenhuma pessoa doente passe por silva ou machieiro, ou por baixo de trovisco, ou por lameiro virgem; nem benzam com espada que matou homem, ou que passasse o Douro e Minho tres vezes; nem cortem solas em figueira baforeira; nem cortem çobro em limiar da porta; nem tenham cabeças de saudadores encastoadas em ouro, ou em prata, ou em outras cousas; nem apregoem os demoninhados; nem levem as imagens d'alguns sanctos ácerca d'agua, fingindo que as querem lançar em ella, e tomando fiadores, que se até certo tempo lhes não der agua, ou outra cousa que pedem, que lançarão a dita imagem na agua, nem revolvam penedos e os lancem na agua para haver chuva; nem lancem joeira; nem dêem a comer bollo para saberem parte de algum furto; nem tenham mendracolas em sua casa, com tenção de haverem graças, ou ganharem com ellas; nem passem agua por cabeça de cão, para conseguir algum proveito; nem digam cousa alguma do que é por vir, mostrando que lhe foi revelado por Deus, ou algum santo, ou visão, ou em sonho, ou por qualquer outra maneira; nem benzam com palavras ignotas e não entendidas, nem approvadas pela egreja, ou com cutellos de tachas pretas, ou d'outra alguma côr, nem por cintos e ourelos, ou por qualquer outro modo não honesto; nem façam camisas fiadas e tecidas em um dia, nem as vistam, nem usem de alguma arte de feitiçaria »

II

Transcrevemos os titulos das constituições do arcebispado d'Evora acêrca de feitiçarias, com preferencia a outro qualquer documento, por ser o que mais especificadamente tracta d'esta materia; as outras constituições diocesanas que vimos, promulgadas no seculo XVI, limitam-se em geral a prohibir agouros e bruxedos sem os particularizar, e sem que d'ellas se possa tirar maior luz para a historia das crenças nacionaes. Muitas d'essas antigas compilações ecclesiasticas são hoje rarissimas, nomeadamente as que primeiro se imprimiram, como uma da diocese do Porto, de que nos lembra ter visto uma copia, e que pela linguagem e o estylo nos pareceu pertencer ainda ao seculo XV.—Nas mais remotas achar-se-hiam, porventura, outras noticias; mas não as pudemos alcançar. E de passagem lembraremos aqui aos amigos das velhas coisas do velho Portugal, que não ha, porventura, mais rica mina para a historia dos costumes de nossos avós, depois das compilações das leis civis, que estas leis ecclesiasticas, que íam devassar o proceder das familias, o proceder de todas as classes, de todos os individuos, não só nas suas relações sociaes, como, por via de regra, acontece com aquellas, mas tambem nas relações domesticas, nas relações com Deus, tomando muitas vezes para si os misteres e direitos, que em boa razão só deveriam pertencer á consciencia de cada qual. Pelas antigas constituições dos bispados quasi podemos seguir a existencia de nossos antepassados do berço ao tumulo, porque a religião de um até outro cabo os acompanhava, e ella então era essencialmente positiva e pratica. A lei ecclesiastica vigiava a infancia, a puberdade, a idade viril, e a velhice; e para cada epocha da vida tinha preceitos, e para cada erro castigo. Perguntava ao celibatario se as suas noites eram solitarias, aos esposos se o seu leito era casto, ao sacerdote se o seu coração era puro; batia alta noite á porta afferrolhada das casas da devassidão, do jogo, da ebriedade, e fazia tremer o devasso jogador, o ebrio; porque não era uma lei morta, mas sim lei com a sancção de penas materiaes. Esta legislação particular que tinha por base o Evangelho, por objecto os costumes, devia primeiro que tudo conhecer exactamente estes, e ser definida e precisa nas suas disposições. É assim que ella nos conservou a historia das crenças e abusões do povo: das suas paixões, dos seus trajos, das suas festas e jogos; e até dos seus alimentos: é assim que talvez se possa dizer em rigorosa verdade, que só com as leis civis e ecclesiasticas se poderia escrever a historia intima, a historia do viver das gerações que antes de nós passaram nesta terra portuguesa, desde os primeiros seculos da monarchia. Para isto, todavia, é necessario consultar as mais remotas com dobrada curiosidade; porque o progresso da civilização trouxe o habito de generalizar as idéas, e este habito influindo na legislação, tornou a sua expressão mais geral, e por consequencia, neste sentido, muito menos histórica.[23]

Mas, voltando ao nosso assumpto, de que um pouco nos affastámos, observaremos neste logar que a lei civil que por este mesmo tempo fôra feita (Ord. Man Liv. 5.^o Tit. 33) fazia distincção, por assim dizer, da grande e pequena bruxaria; porque as feitiçarias em que se usava empregar pedra d'ara ou corporaes, ou quaesquer outras cousas sagradas, era punida com pena de morte, bem como os esconjuros e invocações de diabos, feitos em circulo ou em encruzilhada, e o dar a beber ou a comer cousas enfeitiçadas para querer mal ou bem a alguem.

Todos os outros bruxedos, porem, que naquella ordenação se acham especificados, e que são, pouco mais ou menos, os mesmos que enumeram as constituições d'Evora, tinham por pena a marca de ferro nas faces, e o degredo perpetuo para a ilha de S. Thomé. As demais superstições populares, que não pareciam depender de tracto com o demonio eram punidas com açoutes, sendo o criminoso peão, e sendo vassalo ou escudeiro, ou mulher de qualquer d'estes, com degredo de dous annos para os logares d'Africa. Estas disposições passaram quasi textualmente para o titulo 3.^o do livro 5.^o das Philippinas, conhecidas geralmente pela denominação d'Ordenações do Reino.

E cumpre aqui advertir que, se quando se reformou este codigo no principio do seculo XVII se conservaram penas tão severas contra individuos que não passavam de meros charlatães, que por taes meios viviam á custa da credulidade publica, ou que se enganavam a si proprios, imaginando terem imperio nos demonios e tracto com as potencias invisiveis, é porque ainda então se cria que similhantes sonhos eram realidades. E fomos só nós acaso os que isso acreditámos?—Não. A Europa inteira estava na mesma persuação: nessa epoca todos os governos, e legisladores, e até homens da mais alta cathegoria litteraria admittiam a possibilidade dos maleficios, dos sortilegios, e dos adivinhamentos. E tão duradora foi essa crença, que ainda no principio do seculo decimo-oitavo, quando appareceu a Magica anniquilada de Maffeu (livro, em nosso entender, muito aquém da sua reputação) se levantou uma grande discussão a similhante respeito, o que é claro signal de que para muitos homens instruidos a magia não era uma coisa inteiramente vã.

* * * * *

Uma das coisas mais notaveis acêrca da credulidade dos nossos antepassados no seculo XVII, é um alvará datado de 15 de outubro de 1654, impresso no Jornal de Coimbra e citado por J. P. Ribeiro, em que se dá licença a um soldado, que dizia ter o dom de curar com palavras, para continuar a fazer uso d'esta estupenda habilidade com a obrigação de empregar o seu prestimo em beneficio dos militares que d'elle houvessem mister.

O progresso, porém, das sciencias foi pouco a pouco destruindo estas abusões nos animos das pessoas sensatas, e os leiticeiros e bruxas, e adivinhões viram-se obrigados a refugiar-se entre a plebe ignorante das cidades, e entre a gente boa e simples dos campos. É ahi onde, ha mais de cincoenta annos, apenas restam usanças que revelam a existencia das chamadas artes diabolicas.

O conflicto entre o progresso intellectual e as antigas superstições acarretou por vezes desgostos e perseguições áquelles que trabalhavam em allumiar as nações; mas tambem deu aso a acontecimentos mui graciosos, dos quaes re'ataremos aqui um, succedido em Evora no reinado de D. José.

Um frade de certa ordem tinha sido nomeado mestre de philosophia naquella cidade. Querendo dar uma vez a seus discipulos idéa da electricidade, pôde obter emprestada uma machina electrica, com a qual fez algumas experiencias diante de varios padres graves do seu convento, que ficaram pasmados de coisa tão extraordinaria, e suppuseram lá comsigo andar nisto obra de feitiçaria. Esperaram, portanto, um dia em que o mestre de philosophia saísse fóra do convento, e mandando o prelado tocar á communidade, revestido, e de cruz alçada, seguido dos demais frades, foi ao aposento, onde estava a machina para a exorcismar. Começados os exorcismes tanta agua benta lhe deitaram que dentro em pouco ficou completamente estragada. Quando d'ahi a dias o professor quis trabalhar com ella, nunca o pôde alcançar; e os padres graves, rindo uns com os outros, escarneciam do pobre philosopho, a quem, com esconjuros, tinham inutilizado aquelle diabolico feitiço.

Concluiremos este artigo dando uma noticia do que temos alcançado acerca das feitiçarias, bruxas, e lubis-homens, na opinião do vulgo, cuja imaginação ainda dá existencia a estes sonhos ridiculos conservados nas tradições populares.

O povo faz distincção entre feiticeiras, bruxas, e lubis-homens. São as feiticeiras e bruxas, por via de regra, mulheres velhas, pobres, feias, immundas, e de genio melancholico, ou colerico. Estes motivos bastam para o vulgo as aborrecer, e para justificar a seus olhos qualquer accusação que lhes façam de feitiçaria ou bruxedo. O mister das feiticeiras é fazer maleficios a todo o genero de pessoas de qualquer idade que sejam: estas acompanham ordinariamente o diabo em todas as suas funcções neste mundo. As bruxas teem poder limitado, estando apenas auctorizadas para chupar de noite o sangue ou a substancia das creanças, matando-as pouco a pouco d'inanição, ou de repente, se chupam desarrazoadamente.

Os lubis-homens são aquelles que teem o fado ou sina, de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espoujando-se no chão em logar onde se esponjasse algum animal, e em virtude d'isso transformarem-se na figura do animal pre-espoujado. Esta pobre gente não faz mal a ninguem, e só anda cumprindo a sua sina, no que teem uma cenreira mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luxes, senão dando grandes assopros e assobios para que lh'as apaguem, de modo que seria a coisa mais facil d'este mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, accendendo luzes por todos os lados por onde elle pudesse saír do sitio em que fosse presentido. É verdade que nenhum dos que conta similhantes historias fez a experiencia.

A instituição de qualquer feiticeira ou bruxa é pela seguinte maneira. A adepta é levada alta noite pelas feiticeïras professas a um logar ermo, onde o diabo apparece transformado em bode negro. Começa a ceremonia, como é de razão, pela matricula, e a noviça escreve o termo da vencia da sua alma com o proprio sangue: então o diabo lhe entrega um novello e um pandeirinho que são os symbolos da nova dignidade que recebe, e pelo que fica habil para fazer os seus maleficios, e para se transformar no que quiser, quer sejam corpos animados, quer inanimados. Depois d'isto o demonio bodificado se assenta no seu throno cercado de candeinhas, e por baixo d'este throno passa a noviça tres vezes; acabado o que, a nova feiticeira dá um beijo na proximidade da cauda ao transformado rei do inferno.

Feita esta ceremonia as circumstantes (que são todas as feiticeiras da provincia, chamadas alli para assistir áquelle auto) tocam os seus pandeirinhos, e com dansas mysteriosas levam a nova socia a casa, onde lhe mostram os respectivos novellos de fiado, que são maiores ou menores, conforme a importancia ou estimação em que as tem o diabo.

Estes novellos diabolicos em que principalmente reside a força e poderio das feiticeiras são compostos de uma especie de linha fiada pela mão do diabo, e cuja materia prima é o pello do bode, em que o cão tinhoso costuma transformar-se. Tambem as bruxas teem por apanagio uma maçaroca preta; mas a demonologia popular não declara de que maneira, ou de que materia seja feita, bem como as dos lubis-homens, que tambem possuem este adminiculo, do qual apenas sabemos uma circumstancia, que é o ser de fio pardo.

Quando alguma d'estas importantes personagens, que tem pacto, ou fado, está para morrer, chama a pessoa que mais estima, e a esta entrega o fatal novello. Se lh'o não aceitam, não pode expirar, ainda que esteja em agonias mortaes; mas apenas essa, ou alguma das circumstantes lh'o recebe, a pobre creatura entrega logo descansadamente a sua alma a satanaz. Parece que a posse de tal herança dá um direito na secretaria d'estado infernal, para o herdeiro ser preterido no prehenchimento do logar que ficou vago.

Tem a feiticeira obrigação, cada vez que quer infeitiçar alguem, de invocar primeiramente o diabo, e de lhe pedir licença para exercer seu officio, o que prova que não só na terra ha maus systemas de legislação. A formula usada em taes casos, segundo alguns gravissimos auctores, é: Tenato, ferrata, andato, passe por baixo, o que se repete tres vezes. Acode o démo ao reclamo, e a professora de feitiços póde então ter a certeza de tirar a sua a limpo.

Se, porém, se não tracta de um feitiço de segunda ordem; mas sim d'algum que deva produzir a morte do individuo enfeitiçado, é preciso mais trabalho, e pelas leis infernaes não é licito a qualquer feiticeira tomar sobre si só tamanha responsabilidade, d'onde se póde concluir qual seja a prudencia, gravidade e consciencia do diabo, que por certo não é tão feio como o pintam. Quando, pois, alguma d'estas boas creaturas quer dar cabo de qualquer individuo, toca o seu pandeirinho e chama duas suas companheiras para d'ellas se ajudar naquella boa obra. Então as taes fazem uma figura da pessoa condemnada a morrer, e compostos certos unguentos liquidos vão com elles unctando aquelle vulto, e á proporção que o trabalho se vai adiantando, vai o enfeitiçado adoecendo, até que chega ás ultimas. Neste ponto a feiticeira mais velha tira o seu novello, põe-se a dobá-lo, e quando o doente deve morrer uma das outras corta o fio com uma tesoura, e no mesmo instante expira o enfeitiçado. Depois invocam todas tres o demonio, que vem, e solda de novo o fio que ficou cortado.

Limitamo-nos neste artigo a tractar com mais alguma individuação a mais notavel das superstições populares, o imaginario pacto com o demonio. Deixamos para outra occasião o falar de muitas outras crenças e costumes que poderiamos ajunctar a estes incompletos apontamentos, e então daremos especial noticia das mulheres de virtude, especie de contraveneno com que o povo de algum modo quis destruir os terrores que lhe causava o poderio das feiticeiras que elle proprio creara.

*A Casa de Gonsalo*

COMEDIA EM CINCO ACTOS
PARECER

Memorias do Conservatorio

1840

*A Casa de Gonsalo*

COMEDIA EM CINCO ACTOS
PARECER

A commissão encarregada de dar o seu parecer sobre a comedia intitulada—A Casa de Gonsalo—que concorreu aos premios destinados para os dramas originaes portugueses, que mais se avantajarem entre os outros no concurso aberto por este Conservatorio para o corrente anno de 1840, vem apresentar a sua opinião a este Jury, desempenhando assim o encargo que lhe coube em sorte.

A comedia sobre que versa este parecer é precedida por um prologo, ou, como seu auctor lhe chama, por um endereço aos censores.

A Commissão hesitou se devia ou não fazer algumas observações sobre a materia nelle contida: grave e importante é esta; ridicula e talvez chula a fórma porque o auctor a tractou; mas a Commissão intendeu por fim que tocando-se nesse prologo a grande questão das condições da arte, que hoje agita o mundo litterario, era da sua obrigação, entrar no exame das idéas contidas nelle. Pospondo, por tanto, os gracejos do auctor, e considerando somente as suas opiniões e proposições, até porque elle parece apresentá-las, como norma por onde os censores houvessem de guiar-se, antes de julgar o drama dirá algumas palavras sobre o mencionado prologo.

Começa o auctor esse prologo pela sua biographia litteraria referindo como tem composto um bom numero de comedias comicas, e outras lamentosas ou patheticas, de que, segundo elle diz, são muito apaixonados os alemães. Deixando de parte as noticias biographico-litterarias, importantissimas para uma nova edição da Bibliotheca Lusitana, ou do Diccionario dos homens illustres, mas que no caso presente nada montam para o Conservatorio, a Commissão apenas se faz cargo das duas circumstancias que deixa apontadas: a 1.^a de ter o auctor composto comedias lamentosas, ou como, com Voltaire, elle lhes chama, larmoyantes: 2.^a a de affirmar que d'este genero são muito apaixonados os alemães. Admira com effeito, que o auctor tão afferrado aos sãos principios dos antigos, tão desprezador dos desvarios modernos, gastasse o seu tempo com um genero dramatico bastardo, em que os antigos nem sonharam, porque só conheceram a tragedia e a comedia, vendo-se daqui que houve uma epoca em que o illustre auctor da Casa de Gonsalo sacrificou ao Moloch revolucionario: não admira menos, que um escriptor tão versado em materias litterarias ignore que o drama lamentoso nasceu em França, e que a Alemanha só conta um auctor notavel neste genero—Kotzebue—que não teve successores, e que hoje está quasi completamente esquecido naquelle país, onde exclusivamente apparecem poucas comedias, bastantes tragedias, e infindos dramas da eschola moderna que está bem longe de ser a de Diderot, ou dos dramaturgos chorões, lamentosos ou patheticos.

Continua o illustre auctor da Casa de Gonsalo dizendo que sabe que a sua comedia não hade agradar porque tem aquelle mau gôsto de composição que recommenda Aristoteles e Horacio que eram uns rançosos e d'esse ranço é Menandro, Aristophanos e Terencio etc.; fala nos freios da arte da eschola classica, unidade de acção, consistencia de caracteres; paixões e affectos naturaes, verdade de costumes, (!) estabilidade de logar, unidade de tempo; fala no Sales que tinha a habilidade de fazer velhos os rapazes que iam ouvir-lhe as licções de poetica e rhetorica (!); diz que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne, e que os modernos destruiram a unidade d'acção, de caracter, de tempo, e de logar. Do que tudo conclue o auctor que a sua comedia não hade agradar, e que por isso a apresentou sem a mandar copiar.

Se a letra em que a comedia está escripta, e a historia litteraria do illustre auctor inserida neste prologo, não revelassem, aquella a mão trémula de um velho, esta uma larga vida cheia de recordações do sapientissimo Sales, que, bem differente das magas das novellas de cavallaria, as quaes transformavam as rugas de velhice em viço de mocidade, convertia a mocidade em velhice: se a Commissão, digo, não inferisse de tudo isso que este prologo encerrava um pensamento de Sansão, classico, o qual vendo morta a sua nação quer morrer tambem levando comsigo os philisteus da nova arte, e se este pensamento não fosse generoso, ella se teria abstido de fazer observações algumas acêrca das idéas do auctor, que em um homem moço e que não tivesse essas razões d'amor ás coisas com que se creou, seriam apenas dignas de compaixão muda. A Commissão, porém, pertence infelizmente ao presente, e quando vê um campeão do passado, de quem se póde dizer como Virgilio:

Et dulces moriens reminiscitur Argos. Do caro Sales lembra-se morrendo.

não pode deixar de lhe dar o extremo vale, nem é licito que responda com um silencio que se poderia tomar pelo silencio do desprezo a quem vem lançar na estacada a luva do combate, por uma causa talvez bella, mas nestes tempos irreverentes e dissolutos, bem mal-aventurada.

Senhores! A guerra que os homens do passado fazem ás opiniões do presente é um phenomeno trivialissimo, e repetido todas as vezes, que, ou as meditações ou as inspirações do genio, ou finalmente a accumulação das idéas e das observações de muitos homens, tem produzido uma revolução, seja ella de que natureza fôr. A razão d'isto dá-se neste prologo. Quem encanecendo no estudo de qualquer ramo de sciencia nunca pôde passar além de comprehender o que os outros pensaram, intende que a isto se deve reduzir todo o poderio intellectual do genero humano. Taes individuos são por via de regra os representantes da immobilidade. Bem longe da theoria do progresso indefinido, crêem que a civilização é como a praia do mar, os homens como as ondas d'elle, que ora se aproximam ora se afastam em continuados éstos. São taes individuos que nunca se persuadiriam de que as chamadas trevas da edade média não eram mais que a chrisalida de uma civilização maior e melhor que a grega e romana, de uma civilização cuja aura vital era a grande transformação religiosa chamada o christianismo. São taes individuos para quem fôra baldada a demonstração de que no objecto de que neste logar se tracta—o drama—uma nova epoca e por consequencia uma nova fórma tinha começado com o berço das nações modernas, e de que entre o nosso theatro e o dos antigos devia haver a mesma differença que ha entre a civilização christã e a pagã, entre o christianismo e o polytheismo; emfim que nas respectivas litteraturas dramaticas devia haver uma diversidade parallela á que ha entre aparte material do theatro antigo e a do theatro moderno.

Era licito, pois, a estes homens morrerem abraçados com as poeticas e rhetoricas sobre que encaneceram; era-lhes licito desprezarem os fructos das cogitações dos modernos; era-lhes licito terem commentado as regras, na impossibilidade de fazerem dramas. Tudo isso lhes era licito menos ignorarem a historia da arte antiga, desconhecerem os principios da moderna, mentirem acêrca d'aquella, e calumniarem esta. Isto é o que tem feito os admiradores dos rhetoricos de todas as nações, isto é o que se reproduz no prologo do erudito discipulo do eruditissimo Sales.

A Commissão não entrará aqui no exame do valor relativo dos principios da eschola antiga, e da eschola moderna que tambem os tem mais profundos e por ventara mais creadores de difficuldades que os da antiga. A comparação d'esses principios seria materia de um livro, de um curso de litteratura dramatica, e nunca de um parecer que deve servir de base á discussão especial do merito de um drama. Mas a Commissão se mostraria pouco attenta á dignidade, e á honra litteraria do Conservatorio se deixasse passar como exactas affirmativas contrarias á historia do theatro e á critica, sem que rectificasse inexactidões que se lhe vem apresentar como verdades.

O auctor diz que sabe que a comedia não ha de agradar por se verem nella cumpridos os decretos de Aristoteles e de Horacio. Desejaria a Commissão que elle tivesse declarado cujo era o desagrado em que tinha a certeza d'incorrer. Se era o do publico, como tendo essa certeza concorre ás provas publicas?—Neste procedimento ha pelo menos um pleonasmo tão flagrante como ha no titulo de comedia comica que elle dá a esta. Se é o do Conservatorio, parece fazer com isso grave injúria a este.

O Conservatorio possue no seu seio homens de convicções differentes, e até certo ponto oppostas, em materias litterarias: uns pertencem, como o auctor, ás idéas antigas, outros ás opiniões modernas. Para os primeiros a execução d'essas regras é um merito; para os segundos se as suas opiniões assentam sobre uma theoria completa da arte—e a Commissão crê que sim—o desempenho d'essas regras é indifferente, porque não é nem na falta, nem na existencia d'ellas que consiste a arte. O auctor devia saber que a eschola moderna colloca quasi a par de Shakespeare e acima talvez de Calderon e Lopo da Vega, dois escriptores da arte dos preceitos—Moliere e Corneille: devia saber que ella rejeita d'esses preceitos aquelles que não teem uma sancção esthetica; aquelles que, ou o capricho, ou um exame superficial das materias litterarias, admittiu como canones imprescriptiveis; aquelles que são mui proximos parentes dos achrosticos, dos echos, e dos versos leoninos—mas devia tambem saber, que a eschola moderna nunca desprezou o dramaturgo, cujo genio, apesar d'essas peias escholasticas, se remontasse a altura da verdadeira arte, e que, por tanto os membros do Conservatorio cujas opiniões são modernas não rejeitariam o drama só porque se assujeitava ás andadeiras rethoricas da eschola antiga. Se um pensamento unico tivesse precedido á composição d'esta comedia: se o ideal de um ou muitos caracteres comicos tivessem nella revestido as fórmas da vida real, embora o drama estivesse arrebicado de cem regras e duzentos preceitos, os sectarios da nova eschola teriam dicto com os da antiga; equites romani plaudant!

O digno auctor da Casa de Gonsalo, seguindo as pisadas dos homens da sua eschola parece querer tornar solidaria a arte dos gregos e romanos com a arte do renascimento; essa arte bella, pura, e nacional dos antigos com a arte caprichosa, polvilhada, cortesã e regreira do seculo de Luis XVI. Hoje não é licito ignorar as differenças que ha d'aquella a esta: ignorar que além de outras coisas duas regras essenciaes para os modernos faltam entre os antigos as unidades de logar e de tempo, e que vice-versa entre os antigos havia no theatro os coros que os classicos modernos deixaram, bem como a musica tanto dos coros como da scena, a qual fazia que o drama fosse então o que é hoje a opera italiana, ou a vulgar, onde esta existe.

Senhores: o drama moderno nasceu dos mysterios ou representações religiosas da edade média: o caracter essencial dos mysterios era o vestir o ideal christão—e o nome o está dizendo—com as fórmas da vida real, e a vida real era então como hoje, como sempre, uma indistincta mistura de lagrimas e riso, de paixões vis e nobres, d'infamias e de grandezas. Nos mosteiros onde o drama começou, se reuniam os extremos oppostos da sociedade: o monge era a um tempo sacerdote e jogral: a ignorancia vejetava ahi ao lado da sciencia, a crapula ao lado da modestia e da virtude, o folguedo e o bom humor ao lado da penitencia, os grandes crimes ao lado da pura innocencia. Então o monge a quem a natureza fizera poeta, tendo quasi por unicos estudos a historia symbolica dos hebreus, as sublimes invenções da sua poesia, e esse evangelho tão ideal desde a primeira até a ultima pagina, não conhecendo o drama antigo, fazia, sem o saber, uma transformação na arte dramatica e começava essa eschola moderna, salva apenas na Hespanha e na Inglaterra no seculo XVII e restaurada hoje em toda a Europa com mais brilho, e aperfeiçoada pela philosophia. O caracter d'esta eschola é na essencia um contraste completo com a antiga: esta tomava o mundo real, positivo e até trivial e vestia-o de fórmas ideaes: os caracteres, as paixões, as situações procurava-as na vida quotidiana: nas expressões, na fraze é que estava a poesia, e é por isso que o poeta antigo carecia dos coros para ahi principalmente derramar as harmonias da sua alma; é por isso, que Sophócles, ou Euripides não comprehenderiam o drama em prosa; é por isso que o theatro dos antigos não separava a musica da letra, porque a tragedia não era senão uma larga elegia sobre as amarguras da existencia ordinaria; a comedia não era senão uma satyra, um escarneo contra os vicios e as ridicularias da vida commum. Pelo contrario o theatro da edade média buscava no ideal paixões, caracteres, situações. Onde achamos nós essas martyres tão suaves, tão aereas, tão amorosas de um objecto sumido nas profundezas do céu? Onde achamos esses demonios chocarreiros e perversos, cujos motejos e risadas infernaes nos fazem ao mesmo tempo rir e tremer? Onde esses corações, ao mesmo tempo tão robustos e tão delicados, dos cavalleiros do romance e do drama da edade média?—Nos mysterios e nos autos; e os mysterios e os autos são ascendentes do drama actual: as Angelas, os Myphistopheles, e os Hernanis não refusam a sua arvore genealogica.

Esta familia, nobre, porque, como as familias humanas, vai entroncar-se na edade média, teve um tempo em que caíu na abjecção: foi quando os paços a rejeitaram; quando appareceu outra, que se chamava mais illustre; outra que se dizia de mais antiga ascendencia, aparentando-se com gregos e romanos: mas a critica mostrou que isto era falso, a philosophia que, ainda sendo verdade, não era tal razão bastante para a preferencia. Esta é em resumo a historia das vicissitudes da arte.

Ha ainda duas proposições no prologo da Casa de Gonsalo as quaes a Commissão intendeu que não devia deixar passar sem fazer sobre ellas alguns reparos. Consiste a primeira em dizer que os modernos destruiram o principio do desenvolvimento logico dos caracteres, ou como o auctor e a sua eschola lhe chamam—a unidade de caracter. De todas as accusações que se podiam fazer á eschola moderna esta é a mais infundada. Condição absoluta da arte actual é essa unidade dos caracteres, e neste ponto a Commissão não recearia d'eslabelecer parallelos entre os melhores dramas classicos e os dramas de segunda ordem, escriptos debaixo da influencia dos novos principios, certa de que a vantagem ficaria sempre ou quasi sempre aos ultimos. Consiste a segunda proposição em affirmar o auctor que todas as regras acabaram com Hugo e Delavigne: nisto ha uma falsidade e um êrro de historia litteraria. Falsidade porque não é preciso ter lido senão os prologos de Victor Hugo ao Cromwel, e ao Ruy-Blas para se ver que ainda o dramaturgo mais exaggeradamente liberal da eschola moderna estabelece regras, que a Commissão não avalia aqui, mas que incontestavelmente o são, boas ou más. Accresce que, sem falar numa grande multidão d'escriptos sobre a arte dramatica publicados ha vinte annos, basta ler as revistas litterarias francesas, alemãs, e inglesas, para ver que a critica tem já assentado muitos principios incontestaveis para julgar as producções do theatro, e que se em outros ha diversidade de opiniões, não é isso de admirar numa eschola que conta apenas vinte annos como theoria, e que é obrigada a provar a justiça da sua causa com razões e ao mesmo tempo com obras, ao passo que os defensores da antiga, firmados em monumentos e glorias seculares, desobrigados, e por ventura incapazes de crear obras de arte, não tem outro trabalho senão defender e amparar seus principios, principios que apesar d'esses monumentos, d'essas glorias, d'essas defensões, e sobre tudo de sua antiguidade, não deixam muitas vezes de ser incertos e até contradictorios. Agora quanto ao êrro de historia litteraria a Commissão julga escusado dizer mais nada, senão que quem pôe em parallelo Delavigne e Hugo, como egualmente destructores da arte antiga, mostra que nem os comparou, nem os leu, e por certo nem um nem outro lhe deve ficar obrigado. Delavigne, o academico Delavigne, que treme a cada passo de pertencer ao seu seculo, não se julgaria em decente companhia vendo-se ao lado de Victor Hugo, e este, que vai por ventura mais longe do que devera, crer-se-ia sujo de todo o pó dos bacamartões pedantes dos commentadores d'Aristoteles, achando-se collocado a par do classico auctor da Princesa Aurelia, do bucolico auctor do Pariá.

Entremos no exame da comedia.

O auctor tomou por objecto nesta composição o converter em uma acção dramatica um dos antigos proverbios populares, especie de formulas com que o vulgo exprime muitas vezes idéas complexas. É este o que se applica a qualquer casa mal governada e arruinada por toda a casta de desvarios: É a casa de Gonsalo:—eis a expressão proverbial; eis o pensamento que presidiu á composição do drama. Vejamos como o auctor o tractou.

Um viuvo e uma viuva são casados em segundas nupcias: ella tem uma filha. D. Farnacia é o nome da mulher: elle chama-se Gonsalo—pobre homem que se deixa governar inteiramente por D. Farnacia prezada de fidalga, caprichosa, e gastadora. Gonsalo instigado por D. Farnacia pôs na rua seu filho Bernardo, moço tão sisudo e composto, quanto Leonor, filha de D. Farnacia, é tola, namoradeira e desassisada.

A familia compõe-se, além dos tres, Gonsalo, D. Farnacia e Leonor, de um irmão e de uma sobrinha de D. Farnacia, chamados Bonifacio e D. Dorothea; aquelle é um peralvilho, frequentador de botequins, e que não pensa senão em acceitar cartas d'amores; esta é uma presumida de sábia, que em todos os seus discursos mistura palavras e phrazes francesas, e que só lê novellas, citando a torto e a direito quantos destemperos tem lido. Um creado e uma creada desobedientes, ladrões, e desavergonhados completam aquella ninhada domestica.

Gonsalo tem um amigo, Florencio, a quem deve obrigações, e dinheiro, homem prudente e sério, que pretende tirá-lo da vida de abjecção em que vive, aconselhando-o sempre para que tome o logar de verdadeiro dono da casa, e seguindo-se d'isto o ser cordealmente odiado por D. Farnacia.

Dois alindados frequentam esta casa, ou antes torre de Babel—Constando e Carlos: o primeiro é o namorado de Leonor.

É com estas personagens, que o auctor conduz a comedia a seu fim, e a Commissão seria demasiado prolixa se quisesse historiá-la por todos os cinco actos em que elle a dividiu. Bastará dizer que á fôrça de gastos loucos, Gonsalo se acha finalmente no maior apuro, do qual o livra o expulso e maltractado Bernardo, obtendo uma provisão para administrar a casa paterna, ajudado por Florencio, que sendo o principal credor exige para seu filho a mão de Leonor, e faz casar Bernardo com Dorothea, a qual tem um avultado dote, a que por isso era requestada por Carlos, amigo de Constancio, e que juntamente com elle frequentava a casa de D. Farnacia.

Á Commissão parece que o drama é em geral bem conduzido, o dialogo excellentemente travado, a successão das scenas logica e natural, e a linguagem accommodada ao assumpto, e com poucas excepções, limpa e corrente. Estes são os meritos que julgou se davam no drama, e pelos quaes seu auctor é digno de ser louvado.

Infelizmente partes e circumstancias são estas que não bastam. Obte-las-ha para as suas composições todo aquelle que escrever fortalecido de estudo: mas só o genio dá vida ás obras d'arte. As fórmas exteriores póde-as traçar mão amestrada; vida só a infunde o alento do poeta, que se assimelha ao sôpro vivificante de Deus.

Os caracteres, as situações, e os pensamentos das personagens de qualquer comedia abrangem forçosamente toda a graça comica que nella se póde dar; e nesta não ha nem um caracter, nem uma situação, nem um pensamento verdadeiramente comico. D'isto ficarão persuadidos aquelles que se derem ao trabalho de ler o drama; a Commissão está prompta a mostrá-lo quando haja quem o conteste.

Do que fica ponderado se conclue naturalmente que este drama, falho dos meios de attrahir a attenção dos espectadores, correrá grande risco em ser posto ás provas públicas, e portanto a Commissão louvando o que ha bom nelle, isto é, o que propriamente se póde chamar a sua parte material, deixa ao Conservatorio o resolver o que mais justo e acertado fôr quanto ao destino que se lhe deve dar.

Conservatorio Dramatico, 17 de Julho de 1840.—A. Herculano, Relator.

*Elogio historico*

de

SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO

Memorias do Conservatorio

1842

*Elogio Historico*

de

SEBASTIÃO XAVIER BOTELHO

Senhores:

Honrado com o encargo de revocar hoje a memoria de um nosso illustre consocio que a morte nos roubou, não posso deixar de sinceramente lamentar que este Conservatorio quisesse que eu, intendimento humilde, va bater á porta do sepulchro para através d'elle citar uma nobre intelligencia, que repousa no seio de Deus, e dizer-lhe—Vem ouvir o processo da tua gloria, o julgamento sobre o modo porque desempenhaste a tua missão intellectual na terra.

Porque, Senhores, ou muito me engano, ou é esse o principal, diria quasi o unico mister que nos incumbe, aos que fomos escolhidos para falar neste dia e neste logar dos nossos fallecidos consocios. Em nome das letras, d'essa revelação formosa e sancta do ingenho humano, nos ajuntámos neste recinto: por ellas existimos como corporação: ellas nos fizeram irmãos e eguaes. Pelas letras as differenças voluntarias e incertas do mundo—as riquezas, o poder, os nomes d'avós, se convertem em palavras sem sentido. A democracia absoluta, sonho impossivel, talvez, de realizar na sociedade civil, torna-se entre nós uma condição d'existencia. Nas associações litterarias a vida é de certo modo immaterial, e as nossas distincções são unicamente as da superioridade do ingenho. Mas a ultima instancia onde taes preferencias se julgam é o tribunal da posteridade. Só a morte abre de par em par as portas d'este, e é ahi que definitivamente se resolve se o nome do que passou será lançado na herança dos seculos, na memoria perenne dos homens, ou se tal nome deve esquecer como esquece o som derradeiro da loisa caindo sobre a borda do sepulchro, onde foi repousar o que não pôde ou não soube conquistar a immortalidade.

É por este caracter democratico, de todas as corporações como a nossa, porque alheias inteiramente ás condições da sociedade civil, que me parece não ser nos archivos d'esse pobre mundo das vaidades, a que chamam realidade, onde hajamos de ir buscar documentos e testemunhos, que provarão muito para outro genero de renome e gloria, mas que de nenhum modo vem a ponto para as canonizações litterarias, no momento solemne em que devemos preparar o processo pelo qual a posteridade tem de julgar intelligencias ja livres d'este sudario da vida. Antepassados, haveres, grandeza, cargos, que nos importam? Outra é a nossa missão: temos de perguntar ao que traçou algumas palavras no livro eterno e immenso da arte e sciencia humana—Que foi o que fizeste?—Que era o que podias fazer? Isto é o que nos pertence, o resto á sociedade.

O nosso fallecido consocio, que passando na terra escreveu nesse livro uma das suas formosas paginas, foi o sr. Sebastião Xavier Botelho. Para se poder avaliar o merito d'esta escriptura de que preciso eu?—De lê-la.

Difficultosa é similhante leitura; porque as palavras do homem de ingenho são concisas e profundas: soletram-nas a custo os que não possuem esse dom de cima; e, sem humildade hypocrita, eu sei que pertenço a estes.

A culpa do máu desempenho será, pois, vossa, Senhores, que medistes erradamente as minhas forças pelos meus e pelos vossos desejos.

A historia intellectual e intima do sr. Botelho divide-se em dois grandes periodos: corre o primeiro desde a epoca em que concluiu os seus estudos de jurisprudencia na Universidade de Coimbra até áquella em que importantes e laboriosos cargos, que lhe foram confiados, o constrangeram a dedicar-se inteiramente ao cumprimento de suas obrigações, e a deixar os ocios litterarios da juventude: o segundo abrange o tempo que discorreu desde esta epocha até á da sua morte. O primeiro periodo foi para elle o do tracto e cultura das boas lettras: o segundo o do estudo dos homens e das coisas, da sciencia, da historia e do governo. No primeiro, o Sr. Botelho foi poeta: foi o homem do ideal: no segundo foi historiador, economista, e politico; foi o homem do mundo real. É nestes dois periodos que eu considerarei as obras da sua intelligencia, e procurarei responder á pergunta—Que serviços fez o sr. Botelho ao progresso do espirito humano?

As primeiras composições poeticas do nosso illustre consocio foram escriptas nos fins do anterior ou nos comêços do presente seculo: d'estas nenhuma viu a luz publica: as que se lhes seguiram, pertencendo pela maior parte á litteratura dramatica, tiveram o seu primeiro modo de publicação—o da scena: mas o unico penhor de duradoiras recordações e o unico fiador da perpetuidade da gloria, essa fonte de toda a sciencia e civilização modernas—a imprensa—faltou-lhes como ainda ha dez annos faltava commumente ás obras dos nossos bons ingenhos que nasciam e morriam sem a conhecerem; porque dois anjos máus a guardavam, os quaes tinham por nome—censura e ignorancia.

Por esses archivos de theatros jazem sepultados os dramas do sr. Botelho, dos quaes apenas é imperfeitissimamente conhecida a tragedia Ignez de Castro, e um pouco melhor a Zulmira, melodrama de que restam varias copias.

Zulmira é, como todos os melodramas, uma composição hybrida, monstruosa, e falsa á luz dramatica; mas considerada como um hymno aos nobres affectos do coração humano ella nos revela quanto era poetica e formosa a alma do Sr. Botelho. Poucos versos haverá da epoca em que foi escripta, a não serem os do melhor metrificador português—Bocage—nos quaes se encontre tanta suavidade, melodia e arte e ao mesmo tempo tão generosas idéas, tão affectuoso sentir, expresso muitas vezes com admiravel precizão. Não é um drama a Zulmira!—E que importa? Esther é uma elegia; Athalia uma epopea; mas elegia e epopéa sublimes de um poeta divino!

Mais bem salvas para a historia das letras foram as numerosas versões dramaticas do sr. Botelho—amparavam-nas, seus originaes, largamente conhecidos no mundo. Alem de muitas operas de Metastasio e de quatro tragedias de Racine, Berenice, Mitridates, Phedra e Bajacéto, elle transportou para a scena portuguesa quasi todos os mais afamados dramas de Voltaire, como Mahomet, Zaíra, Bruto, Marianna, Édipo e Semiramis, aos quaes accresceram muitos outros de menos celebres auctores dramaticos.

Já vedes, Senhores, quantas e quão largas vigilias o mancebo poeta consagrou ao theatro; as suas poesias volantes sabe-se que foram muitas, mas do naufragio do tempo apenas salvou a imprensa a epistola a Bocage, a qual mereceu os extremados louvores que este grande poeta dá para me servir da linguagem arcadica d'aquelles tempos, ao vate Salicio. Vate Salicio era o Sr. Botelho, que ainda então os poetas, por obrigação de seu officio, se desbaptizavam do nome christão, íam em espirito pastorear á velha Grecia, e voltavam de lá não poetas, mas pastores e vates.

Procurei, Senhores, lembrar-vos quão extensos foram os trabalhos poeticos do Sr. Botelho. Resta-me, todavia, mais difficultosa tarefa, o recordar-vos qual foi a significação litteraria d'elles—o averiguar como e quanto o nosso fallecido consocio contribuiu para os progressos da arte nesta tão poetica terra de Portugal.

Poeta elmanista, e um dos primeiros e mais distinctos sectarios d'esta eschola, que rainha da poesia, e dispensadora de gloria regeu sem partilha de imperio os dominios da arte, é no julgamento d'essa eschola brilhante que está o seu julgamento. Os juizos individuaes em historia litteraria são tão falsos como em historia social: o individuo que vai á frente da sua epoca, não é mais que a idéa predominante d'ella encarnada no homem. Julguemos a idéa, e teremos julgado o symbolo humano que a representa. Se aquelle que passou não a comprehendeu, não o chamemos tambem ao tribunal da posteridade, e deixemo-lo repousar na paz de seu esquecido sepulchro.

Mas o pensamento progressivo que agitou uma geração ou um seculo não vem só: vem com elle os pensamentos dominadores das gerações ou dos seculos antecedentes que o produziram, e vem os que elle gerou. Sem isso o processo será incompleto: errada provavelmente a sentença. Expressão de uma serie contínua e eterna de idéas, grandes porque veem de Deus, o progredir humano revela o elemento intellectual de cada uma das nossas transformações successivas em todas as formulas da vida. Esse elemento, essa idéa prolifica, busquemo-la em todos os aspectos da civilização, que em todos a havemos de encontrar. Nas instituições, e nos costumes, na sciencia, e na arte, lá está escripta—escripta pela mão do anjo do Senhor, que deixa cair sobre a terra uma lagrima de dó, quando a mão d'algum louco crê que póde apagá-la, ou a voz do insensato se ergue para a desmentir, e nella desmentir o brado do genero humano.

É na arte, á qual foi completamente dedicado o primeiro periodo da vida litteraria do Sr. Sebastião Xavier Botelho, que eu buscarei principalmente o pensamento ou facto intellectual que caracteriza e explica a sua epoca e a sua eschola, ligando esse facto com os que o precederam e com os que d'elle vieram. Oxalá que para animar-me em tractar um objecto acima de minhas forças me não desampare a vossa indulgencia!

Vós sabeis, Senhores, que durante a primeira metade do decimo sexto seculo uma grande revolução se operou e completou no Meio-Dia da Europa. As sociedades feudaes e municipaes, estas, no seu crescer, aquellas na sua declinação, deram o ultimo arranco aos pés da sociedade monarchica. Toda a vida anterior das nações do occidente desabou após ellas. Entre nós mudou tudo: socialismo, sciencia, arte, caracter religioso. Ninguem curou d'isso. A robusta e intelligente monarchia d'esse tempo atirou á espantosa actividade de nossos avós tres partes do mundo para esmagar: cevou-a em poderío, e saciou-a de gloria. Compuseram-se então todos os aspectos da sociedade a exemplo da unidade monarchica: o senhorio feudal tornou-se dependencia completa: o municipio delegação: os parlamentos letra morta. A chronica, essa fórma tão viva, tão dramatica, tão nacional da historia, cedeu o campo aos Thucydedes e Livios modernos: o platonismo christão e espiritual, fugiu, combatendo como os Parthos, ante o aristotelismo argumentador e materialista: as artes plasticas seguiram de longe os destinos de suas irmãs d'Italia, onde as illuminuras aereas e incorrectas dos missaes e horas, desappareciam deante do pincel terreno e correcto de Rafael e as cathedraes mysteriosas e symbolicas se desmoronavam ao altear do templo de S. Pedro, prostituido á luz por Miguel Angelo: todas as artes se confessaram vencidas, na sua imperfeição e rudeza sublimes, pelos monumentos da arte antiga. O proprio christianismo se fez intolerante e sanguinario, como o polytheismo romano, o perseguidor dos martyres—e a inquisição restaurou o pretório. Finalmente a poesia nacional, balbuciante ainda, retrahiu-se ante o fulgor da litteratura latina. As instituições de Roma, a Roma dos imperadores, annullaram as nossas instituições primitivas, e a poesia romana mudou o caracter da poesia moderna. A sociedade reproduzia o pensamento que guiava o seculo. Deixou de ser christã e nacional, para ser pagã e peregrina. Roma que, viva e possante, não alcançara subjugar inteiramente este cantinho da Europa, cadaver já, profanado pelos pés de muitas raças barbaras, conquistou-nos com o esplendor da sua civilização, que resurgira triumphante. Netos dos celtas, dos godos, e dos arabes, esquecemo-nos de todas as tradições d'avós para pedirmos ás cinzas de um imperio, morto e estranho, até o genio da propria lingua!

Mas essa civilização violenta, enxertada em arvore de diverso genero, devia tarde ou cedo ceder o logar a outra mais homogenea com as tradições e costumes, com as crenças e habitos dos povos modernos. O mundo antigo fôra condemnado por Deus: a sua condemnação era o evangelho. O ingenho humano pôde vestir-lhe o trajo dos vivos; mas por baixo d'este estava-lhe sobre o esqueleto mirrado o sudario dos mortos. Mais tarde ou mais cedo, repito, elle devia voltar á sua jazida.

E a reacção não tardou os annos de tres gerações. O seiscentismo foi uma reacção.

Ha ahi acaso quem duvide de que elle era uma revolta, senão contra a essencia da arte romana, de certo contra as fórmas exteriores d'essa arte? Bem sabeis, Senhores, que não é difficil prová-lo, e que entre a poesia anterior ao renascimento e a dos seiscentistas ha alguns caracteres analogos, e muitas tendencias similhantes. Não direi quaes, porque melhor o conheceis que eu—e porque preciso de approximar-me rapidamente á epocha em que viveu para honra das letras o Sr. Sebastião Xavier Botelho.

Qual foi a origem do seiscentismo? A historia litteraria diz-nos que foram Marino, Gongora, e não sei quem mais. É uma d'aquellas falsidades historicas, que nascem do curto pensar. Nunca um ou alguns homens puderam assim mudar nem a minima das fórmulas sociaes, em cujo numero a arte de certo não é a ultima. São as gerações arrastadas e agitadas por idéas que nasceram e se derramaram insensivelmente, que fazem similhantes transformações. Esses cabeças d'eschola são o verbo da idéa, são os interpretes do genero humano—e mais nada.

O seiscentismo foi uma resolução que falhou, uma tentativa de restauração da nacionalidade em litteratura, que não sendo acompanhada pela restauração social completa do modo d'existir português anterior ás influencias romanas, ficou aleijada e rachytica, e substituiu a uma arte antinacional, mas judiciosa e brilhante, outra falsa e além d'isso ridicula.

A celebre Arcadia, e a influencia que esta corporação teve nas letras foi uma nova reacção litteraria, e o dogmatismo em que se restauraram as doutrinas romanas, posto que reflexas já d'Italia e de França, foi ainda mais intolerante e absoluto que na epocha do renascimento. O seiscentismo acabou ás mãos dos arcades, que restabeleciam o predominio da arte antiga e revocavam o pensar e o estylo dos poetas do tempo de D. João III e D. Sebastião, ao passo que o Marquez de Pombal procurava restaurar a esquecida robustez da monarchia com a austeridade dos seus principios administrativos, e com a acção vigorosa do seu governo de ferro.

A monarchia do Marquez de Pombal era anachronica em politica: a restauração da arte romana era anachronica em litteratura. Ambas deviam necessariamente passar—e passar rapidas. Assim aconteceu. Além do anachronismo havia em ambas ainda outro elemento de dissolução. A fórmula politica nunca fôra tão absolutamente monarchica: a fórmula litteraria nunca fôra tão mesquinhamente romana. Nunca o motu-proprio fôra tão cabal explicação de todas as leis: nunca os nomes e exemplos de Aristoteles e de Quintiliano, de Horacio e de Virgilio, substituiram tão completamente o raciocinio na critica. Mas o Marquez de Pombal começava por discutir com a aristocracia e com a theocracia, e a Arcadia com o seiscentismo; os homens do futuro tinham portanto tambem o direito de discutir com elles. É o que tem feito e fará o nosso seculo.

A Arcadia derrubara a poesia seiscentista: cumprira com sua missão. Depois dogmatizou e morreu. Foi d'inanição. Esta sociedade, tão activa, tão belligerante, tão ruidosa nos seus começos—expirou, e nem sequer o mundo litterario deu tino d'isso. Era que a Arcadia nunca propriamente vivera, porque nunca representara uma idéa progressiva.

Foi depois d'ella que floreceu Bocage e a sua eschola, um de cujos luminares era o Sr. Sebastião Xavier Botelho. Resta-me trazer á vossa memoria o logar d'esse poeta e d'essa eschola nos annaes da arte.

Bocage vinha depois de duas restaurações classicas, ou romanas; assistira ao derradeiro clarão da segunda, e fora educado por ella. Os seus primeiros poemas são moldados pelos dos arcades, mas já nesses poemas ha mais inspiração, porque Bocage nascera e não se fizera poeta, com se haviam feito aquelles, se exceptuarmos Garção. As variedades que gradualmente appareceram no seu estylo e pensar foram mui pouco distinctas, salvo na metrificação em que escureceu completamente os arcades, e na tendencia, visivel nas suas melhores composições, para substituir a mythologia pagã pela allegoria, o que deveu talvez á influencia dos poemas descriptivos franceses, a que o materialismo e a incredulidade do seculo XVIII tinham reduzido a poesia d'aquella nação.

Mas é, Senhores, sob outro aspecto que importa considerar este homem extraordinario para avaliar a missão da sua eschola, e saber qual transformação o apparecimento d'ella veio produzir na arte.

Na litteratura dos arcades, como nas litteraturas de epocha de D. João III e da épocha d'Augusto; a poesia tinha sido essencialmente cortesã, aristocratica, altiva. Os pastores da Arcadia nunca assistiram aos mais sublimes espectaculos do universo, nunca sentiram no coração essas paixões violentas que devoram as existencias. Que sabiam elles dos campos de batalha, das sedições, dos grandes crimes e das grandes virtudes? Elles ignoravam o que são lagrimas de desterro, o que são contentamentos de tornar a ter patria. Odios, fanatismos politicos, ancia de gloria popular, ambições, miserias humanas, não existiam para elles. Os mares e os seus terrores, as solidões profundas das serranias, o ruido das torrentes, o sibilar dos ventos por gandras bravias, não imaginavam o que fosse. As procellas emfim da natureza, e as mais terriveis ainda do espirito em que parece deleitar-se o poeta d'este seculo grave e triste, porque o converteram á melancholia e ao cogitar profundo os seus destinos solemnes—tudo isso era alheio á suave existencia dos bons arcades. Sacerdotes, magistrados, e servidores do estado, o seu monte Menalo era uma sala adornada de sedas e razes; a sua lyra ou rabil uma penna muitas vezes dourada; as suas inspirações uma vasta erudição. Assim os affectos e imagens dos seus poemas vacillavam entre a frieza e trivialidade, e a exaggeração e mentira—porque para elles as paixões e a natureza estavam nos livros. Os livros foram o seu universo.

Bocage porém não era arcade. Era um homem do povo que alimentava no espirito todas as paixões violentas, e muitas vezes freneticas e desregradas do vulgo; e como o vulgo, ajunctava a feios vicios nobres e generosas virtudes. Era o trovador que improvisava os seus mais admiraveis versos no meio das multidões, á luz do sol ou dos astros da noite, nas orgias das cidades, nas festas campestres—em todos os logares, a todas as horas. Depois de Camões, Bocage foi o nosso primeiro poeta popular; como Camões, foi pobre, foi criminoso, e foi malfadado; adormeceu, como elle, muitas vezes no balouçar das vagas do oceano, e como elle orvalhou de lagrimas o pão do desterro, e veio morrer na patria sobre a enxerga da miseria. Similhante ao infermo do Evangelho passou pela terra abandonado, pobre, nú; mas como os antigos romeiros trovadores, alegrou ou commoveu os animos das classes não privilegiadas, ás quaes tres seculos tinham feito esquecer que a poesia era tambem e principalmente para ellas.

Bocage é o typo mais perfeito da sua eschola, e de feito devia sê-lo. Ella popularizou a arte, porque poetou principalmente para o povo, e emballou ao mesmo tempo com as melodias da linguagem, com o sonoro do metro, essas almas rudes mais attentas á harmonia da fórma que ao poetico do pensamento.

Feita assim a poesia plebea, duas consequencias deviam seguir-se d'esse passo gigante—a liberdade litteraria e o apparecimento do theatro. A poesia popular regeita como o povo, quando começa a pensar e deixa de querer, todas as leis que se fundam em auctoridade ou tradição e não em conveniencias; e o drama é a fórma mais completa da arte quando esta se faz burguesa. Não aconteceu todavia assim: a razão d'isso é obvia.

A revolução litteraria que a geração actual intentou e concluiu, não foi instincto: foi resultado de largas e profundas cogitações; veio com as revoluções sociaes, e explica-se pelo mesmo pensamento d'estas. Mas nem Bocage, nem os poetas que o imitavam ou seguiam suas doctrinas, se doctrinas havia nessa eschola, curavam d'averiguar theorias estheticas; porque os tempos da grave discussão ainda não eram vindos. Poetas inspirados deixavam-se ir ao som das suas inspirações, viviam numa especie d'excitamento intellectual; o estro, em que tantas vezes falam, era uma realidade, e o improviso a forma commum em que davam vulto aos seus pensamentos e affectos. Esses ingenhos ardentes respiravam numa atmosphera d'enthusiasmo, d'ebriedade poetica. Similhantes á avesinha que solta o seu gorgeio como o aprendeu da natureza e do gorgeio paterno, elles, no seu poetar espontaneo, acceitavam sem exame as regras que lhe ensinara a Arcadia. E que podiam fazer os pobres poetas peões senão curvar a cabeça ao voto dos mui eruditos e cortesãos pastores do monte Menalo?

Por isso a eschola bocagiana preparou só metade da revolução artistica: trouxe a poesia dos corrilhos e salões aristocraticos para a praça publica; mas não a fez nacional. Esta difficultosa empresa estava em grande parte guardada para um poeta tão romano em intenções e desejos, quanto português na indole do seu ingenho. Francisco Manuel foi quem acabou o que Bocage começara, completando pela nacionalidade o plebeismo da arte. Feito isto, seguia-se a revolução—e um poeta mancebo, desterrado como Francisco Manuel, rasgou a bandeira romana e hasteou a portuguesa. Os poemas—D. Branca e Camões—foram o signal da revolta. As tradições da Arcadia estavam irremissivelmente condemnadas.

Foi esse incompleto da eschola elmanista que impediu nascesse no meio d'ella um theatro original. D'este houvera sido o fundador o Sr. Sebastião Xavier Botelho, se as suas tendencias, o seu agudo ingenho, e continua applicação a similhante genero de litteratura fossem ajudados e acompanhados pelo espirito da épocha, e pelo caracter da eschola a que pertencia. Debalde com a paciencia e tenacidade de poeta, que são as maiores d'este mundo, não levantou elle mão de uma empresa que era impossivel levar a cabo, e em que tinha ficado vencido o incansavel Manuel de Figueiredo e Garção, o poeta da Arcadia. A nacionalidade não existia ainda, e nacionalidade e theatro não ha separá-los. O theatro é para as multidões, e o povo não intende senão quem lhe fala na sua linguagem e sobre as suas coisas; das suas tradições e crenças, ou das suas paixões e da sua vida actual.

Assim, com a logica do genio, o Sr. Botelho vira qual era a consequencia da revolução litteraria para que elle contribuia; conhecera que feita popular a poesia, e tirada dos aposentos de senhores e poderosos, ou do seio das academias para ser lançada no mundo—porque ella é do mundo, devia tomar a fórma mais adequada aos seus novos destinos; mas não viu, porque não podia ultrapassar as idéas do seu tempo, que a transição era incompleta. Foi por isso que se enganou nos meios, e pensou que trazendo á nossa scena as sublimes poesias liricas, epicas, e elegiacas, chamadas tragedias de Racine, e as dissertações dialogadas de philosophia incredula, chamadas tragedias de Voltaire, o theatro resurgiria; mas o theatro deixou-se ficar morto, porque não era a voz da individualidade nacional, que o revocava á vida.

Eis aqui, Senhores, a luz a que eu vejo a eschola litteraria, a que pertenceu o Sr. Botelho no primeiro periodo da sua vida intellectual, e como me parece deve ser julgado elle proprio nas obras do seu ingenho. A essa eschola cabe um honrado logar na historia do progresso humano, ao Sr. Botelho toca especialmente o ter sentido, ou antes adivinhado, que, tornada popular a poesia, devia o drama vir a ser a sua mais completa expressão. Se não logrou seus desejos, segredo foi de cima. Não quis Deus que essa mente gigante viesse ajudar-nos a evangelizar a nova religião da arte com a eloquencia da palavra, e com a mais vehemente ainda, de obras dignas da immortalidade.

Vistes, Senhores, o nosso fallecido consocio—lidando por honrar as letras portuguesas, e restaurar o theatro; viste-lo consagrando á poesia os annos proprios d'ella porque são os do imaginar; ve-lo-heis agora applicando na edade madura a meditação, a energia do seu vigoroso talento, e a experiencia alcançada no serviço da patria, a estudos positivos, ao desenvolvimento das mais graves questões sociaes. O poeta affectuoso, delicado, harmonioso, converteu esse ingenho de que a natureza tão prodigamente o dotara, á philosophia politica, e nesta nova carreira do mundo positivo, quasi posso dizer, escureceu a reputação que anteriormente adquirira no mundo da idealidade.

Foi na sua demorada rezidencia na banda oriental das nossas desprezadas colonias africanas, como governador de Moçambique e dos vastos territorios adjacentes, que o Sr. Botelho colligiu os apontamentos e noticias para a sua Memoria estatistica sobre os dominios portugueses na Africa Oriental. Juiz incompetente, nada direi, Senhores, quanto á materia do livro: escripto por um homem da capacidade do Sr. Botelho, e talvez em grande parte naquellas mesmas provincias, facil é de suppôr qual seja o seu valor intrinseco. Violentamente acommettida a obra em um dos principaes periodicos litterarios d'Inglaterra, a Revista d'Edimburgo, tal e tão cerrada de razões e provas foi a resposta do Sr. Botelho, que não houve mais replicar, não sei se com quebra do orgulho inglês. Acêrca da doutrina do livro, é esta em meu intender a mais cabal defensão.

O que porém, naquelle precioso volume chega a causar uma d'essas invejas que não deshonram, porque são nobres e honestas, é o estylo e a linguagem d'elle. Tão sua tinha feito o Sr. Botelho esta formosa lingua portuguesa, tão elegante e fluente é o seu descrever e narrar, que difficultosamente lhe levarão vantagem os nossos principaes prosadores. Ha no livro do Sr. Botelho uma circumstancia que muitos teem notado: paginas inteiras das relações dos naufragios, principalmente das que escreveu o celebre Diogo do Couto, se acham ahi reproduzidas textualmente. Estas paginas, o mais exercitado leitor do Couto não será capaz de as distinguir entre as do nosso illustre consocio, tão irmão-gemeo é o seu estylo e linguagem com os d'aquelle admiravel historiador. Ou esse apparente plagiato fosse uma prova incontestavel, que o Sr. Botelho nos quisesse dar, de que o seu talento e saber o egualavam com os nossos melhores classicos, ou fossem reminiscencias involuntarias (que não precisava elle d'alheios haveres para ser abastado) é indubitavel que tal circumstancia basta para caracterizar a alteza a que chegara como prosador aquelle de quem como poeta dissera Bocage:

O solemne idioma, o tom dos numes,
A voz que longe vai, que longe sobe,
Que sôa além do mundo, além dos tempos.

Esta importante Memoria foi coordenada e concluida no periodo que discorreu desde 1828 até 1833, em que o Sr. Botelho esteve inteiramente afastado dos negocios publicos. Precedeu pois a sua composição aos opusculos politicos do nosso fallecido consocio, por isso a mencionei primeiramente. Estes opusculos são, a Carta a S. M. I. o Duque de Bragança, impressa em Londres em 1833, e as Reflexões Politicas publicadas successivamente no seguinte anno. Escriptos com a singeleza e sincera liberdade de homem que sentia bater dentro do peito um coração português, esses opusculos são, litteralmente considerados, uma nova corôa para o Sr. Botelho pela gravidade do estylo e pelo pensar profundo que nelles transluz. Versam sobre importantes successos da época em que foram publicados. Nesse tempo de paixões violentissimas, taes escriptos pareceram talvez revelar em seu auctor demasiado apego ás coisas do passado, e ainda hoje assim parecerão a muitos. Todavia, confesso-vos, Senhores, que não vejo eu ahi senão novos motivos de venerar a memoria do nosso illustre consocio, e de admirar a sua consummada prudencia, e o seu amor de patria. É um filho extremoso que treme e desmaia vendo applicar a seu pai velho e infermo, medicina violenta, que póde salvá-lo ou arremessá-lo ao tumulo. E quem ousaria condemnar receios e hesitações de um filho, nesse arriscado momento?

A epoca de 1833 foi a unica epocha revolucionaria porque tem passado Portugal, neste seculo. Nem antes, nem depois, quadra tal epitheto aos successos politicos do nosso país; porque só então foi substituida a vida interina da sociedade por uma nova existencia. As fôrças sociaes antigas desappareceram para dar logar a novas forças; destruiram-se classes; crearam-se novos interesses, que substituiram os que se anniquilaram: os elementos politicos mudaram de situação.—Podia esta mudança fazer-se lentamente e sem convulsões dolorosas, ou cumpria que a revolução fosse rapida e energica? Nem saber, nem vontade tenho eu para o resolver. O Sr. Botelho julgou que o mais conveniente methodo era o primeiro; disse-o sinceramente, e procurou prová-lo. Eis a substancia do que nesses opusculos póde parecer menos progressivo a esses cujo espirito vai após o futuro. Mas, na verdade, nem um só dos grandes principios de reforma, que então se converteram em factos, foi combatido pelo Sr. Botelho. A questão que elle tractou era a do tempo, e era a prudencia quem movia a sua penna. As diligencias para conter o rapido desabar das velhas instituições e costumes, era dever dos homens, cuja edade grave e capacidade extraordinaria abonava d'experimentados. Inquieto e ardente é por natureza o espirito da mocidade neste seculo de grandes idéas e de grandes transformações. Aos velhos, aos que, melhor que nós mancebos, conheceram a sociedade que expirou, incumbe apontar-nos o que ella tinha respeitavel e bom, e o que ha em nossas opiniões exaggerado ou perigoso, e a nós incumbe escutá-os com respeito. Esses homens falam-nos com a mão sobre o coração, porque entre elles e o julgamento de Deus, e da posteridade medeia só a grossura de uma loisa. Elles nos admoestam encostados á borda da sepultura, e raro será que até lá a hypocrisia ou a lembrança de mesquinhos proveitos acompanhem os que viveram sem mancha uma larga vida. Solemnes e venerandas julgo eu as palavras da velhice, porque a velhice é uma especie de sacerdocio, e quando o ancião se ergue para soltar um brado de reprovação, se escutarmos esse brado, elle poderá contribuir mais para o verdadeiro progresso do que se os ultimos homens da sociedade extincta saudassem covardemente a victoria das novas idéas; se caminhando para a morte, imitassem os gladiadores de Roma, nos circenses do triumpho, que nesse momento supremo saudavam os Cezares vencedores com aquellas horriveis palavras: «Salve, Cezar! Os que vão morrer te saúdam!» Arriscar-se-ía com isso a ser despenho o nosso progresso, e ao despenho segue-se ou o perecer no abysmo, ou um doloroso retrogradar.

Considerados a esta luz, os opusculos politicos do Sr. Botelho não são mais que o complemento de dilatados trabalhos encaminhados constantemente ao aperfeiçoamento intellectual dos seus compatricios. Poeta na mocidade, bem mereceu da arte: historiador e estadista na edade grave, mais bem mereceu da patria por escriptos proprios d'essa épocha da vida. Nós que o tractámos, que o vimos no meio de nós, que com saudade nos lembramos do seu mérito, fazemos-lhe inteira justiça. Far-lha-ha tambem a posteridade—e mais completa; porque se como homem da arte e da sciencia tão honrado nome deixou entre nós, que será para o mundo, que além d'essas razões de lhe venerar as cinzas, tem a rica herança dos exemplos de virtudes domesticas, d'amor de patria, de serviços ao estado, emfim de um nobre proceder—como homem, como pai de familia, e como cidadão? Os vindouros, que não nós, porão o cimo e remate ao formoso monumento da sua glória.—Disse.

*D. Maria Telles*

DRAMA. EM CINCO ACTOS
PARECER

Memorias do conservatorio

1842

*D. Maria Telles*

DRAMA EM CINCO ACTOS
PARECER

A Secção de Litteratura encarregada por vós de dar um parecer que sirva de texto á discussão dos meritos ou demeritos do drama—D. Maria Telles—que concorreu aos premios, offerecidos por este Conservatorio para animar os nossos auctores dramaticos; vem apresentar-vos por minha intervenção as reflexões que lhe occorrem sobre a materia, e que rectificadas e ampliadas pelas dos outros membros d'esta Academia, devem produzir a final um juizo prudente e acertado que sirva não só para em especial determinar o valor litterario d'esta composição, mas para illustrar os noveis que commettem tão difficil genero de litteratura.

D. Maria Telles—é um drama historico—historico ao menos na intenção, de seu auctor.—A acção e a época escolhida pelo poeta, é bem conhecida. A historia da formosa irmã da nossa Lucrecia Borgia—de D. Leonor Telles—é uma d'aquellas biographias que encerram um só facto; mas que por esse facto são perpetuamente celebres. Não ha ninguem que ignore com que arte infernal a adultera D. Leonor sabia obter sempre a satisfação das suas paixões: entre estas houve uma que era pura, o unico pensamento sancto e suave que mora no coração d'essas hyenas com gesto humano chamadas Telles ou Borgias, as quaes felizmente raro apparecem no mundo. Este affecto era o amor materno. Devia ser vivo e profundo, se o avaliarmos pelos crimes que D. Leonor commetteu para segurar na cabeça de sua filha D. Beatriz a coroa de D. Fernando, que se cria seu pai e que talvez o seria. O Infante D. João era um obstaculo que podia oppor-se aos intentos d'aquella mulher diabolica. Como livrar se d'elle?—Convertendo-o em um grande criminoso. Foi então que para o perder lhe soprou na alma as duas paixões mais ferozes do coração humano—a ambição e o ciume—e D. Maria Telles foi assassinada pelo marido porque D. Leonor precisava do seu cadaver para calçar a estrada por onde D. Beatriz devia subir ao throno. É este assassinio o desfeixo a que nos conduz o drama: os acontecimentos que o prepararam são a tela onde se desprega o lavor da imaginação do poeta.

Os caracteres introduzidos neste drama são o de D. Maria Telles; o do Infante D. João: o de D. Lopo Dias de Sousa, filho de D. Maria e de seu primeiro marido: o de Garcia Affonso, Commendador d'Elvas; o de João Lourenço da Cunha, marido de D. Leonor Telles; o de D. Fernando I; o de D. Leonor; o de Vasco, pagem de D. Leonor, e o de Fr. Soeiro, Director espiritual, segundo parece, de D. Maria Telles. Um carcereiro, Damas, Cavalleiros, povo, constituem isso a que se chama cheios, comparsas, ou personagens mudos.

Não se póde na verdade negar ao auctor d'esta composição uma grande ousadia litteraria em ajuntar no seu quadro tantos vultos difficultosos de desenhar, e que por ventura seriam rebeldes aos pinceis de grandes mestres. Vejamos como elle resolveu o seu problema dramatico relativamente aos caracteres principaes.

D. Maria Telles era uma formosa viuva, de quem o Infante D. João se enamorou. Os affectos do Principe só acharam correspondencia quando prometteu casar com ella, e o casamento effectuou-se, porque a paixão do Infante era ardente, mas d'esse ardor um tanto brutal proprio de uma Côrte dissoluta como a de D. Fernando, e d'uma épocha em que o amor demasiadamente metaphysico nos escriptos dos trovadores, era assás grosseiro na realidade dos costumes. As probabilidades todas são que similhante consorcio foi do lado de D. Maria Telles um calculo d'ambição, e do lado do Infante um meio de satisfazer seus desejos. Isto é o que resulta da historia. Mas o auctor podia substituir este argumento historico pelo de um amor talvez mais lyrico, mas por ventura não mais dramatico. O que não devia era dar a esse amor a fórma e expressão que lhe deu. Expliquemo-nos.

D. Maria Telles não era uma donzella na primavera da vida: era uma dona entrada já naquella edade a que se póde chamar o outono da formosura. O auctor nesta parte acceitou o argumento da historia, introduzindo no seu drama o Mestre de Christo, mancebo de dezoito ou vinte annos, filho de D. Maria Telles. Forçosamente esta passara por isso o viço da mocidade. O seu amor portanto devia ser intenso, mas grave: revelar-se profundamente nos factos e muitissimo pouco em discursos. Devia ser um amor que não tarda a transformar-se em amizade; que, por assim dizer, começa a ter pudor do si mesmo, porque as illusões da juventude teem quasi todas passado. Difficil é na verdade o pintar esse affecto severo e intimo; mas se já deixou de ser um merito vencer difficuldades inuteis, ainda é restricta obrigação do poeta o conhecer as phases do coração humano, e não as desmentir jámais porque a natureza é immutavel. O auctor sentiu ao que parece confusamente a verdade d'esta observação; quis dar gravidade ao caracter de D. Maria Telles: não lhe deu senão tristeza. Tristeza tanto quando se vai desposar com o Infante como depois que elle começa a afastar-se d'ella, e a dar-lhe não equivocos signaes de desamor. Porque está ella triste até á morte, segundo a expressão de Job, quando se approxima aos altares? É por certos presagios; é por sonhos; é por certo dizer do coração; é por vergonha que tem de seu filho. Afora a ultima, nenhuma d'estas razões é verdadeira, dramaticamente, e a tristeza fica inexplicavel, porque o pudor não é melancolia. Sereno devia ser o seu contentamento; mas devia ser contentamento. Não era nessa afflicção e lucto infundados que podia revellar-se a gravidade do caracter de D. Maria Telles, quando por outra parte todas as palavras d'esta mulher affectuosa, como o auctor a quis pintar, só condizem com o amor dos vinte annos que se dilata impetuoso até aos extremos horizontes da vida. Senão nos enganamos o caracter de D. Maria Telles está falsificado em relação á historia, e o que mais é em relação á natureza.

O caracter do Infante apenas se póde dizer que existe: no primeiro apparece para dizer a D. Maria Telles que muito a ama. Das suas palavras não resulta individualidade; repete o que em similhante materia se diz desde o principio do mundo. No terceiro acto onde torna a apparecer, é ameaçado e affrontado por João Lourenço da Cunha, e fica impassivel, salvo quando este, provavelmente aborrecido de tanta tranquillidade, volta as injurias e feros contra D. Leonor que está tambem presente. É então que o Infante arranca da espada; mas el-rei acode: um dialogo se trava entre este e João Lourenço. E o Infante? Não sabemos mais d'elle, senão no V acto em que já quasi persuadido de que sua mulher é infiel, encontra as provas suppostas d'essa infidelidade. Desde este momento não é mais possivel o desenhar D. João; porque a furiosa cholera que o domina o torna necessariamente similhante a qualquer outro homem em situação analoga. A honra offendida pede sangue; é um pensamento doloroso moralmente necessario á situação que depois d'isso actua no drama, não a individualidade d'um homem. Onde está portanto o caracter do infante?

E todavia esse caracter lá tinha os seus principaes lineamentos traçados nos capitulos 98.^o e 99.^o da chronica de D. Fernando pelo grande poeta-chronista Fernão Lopes. O genio aventuroso, folgazão e ousado, do filho de D. Ignez de Castro, estudados nesses traços do grande mestre, dariam facilmente a individualidade do personagem ao auctor de—D. Maria Telles—e por certo que essa individualidade variando a monotonia dos caracteres produziria maior contraste, e por consequencia maior effeito no terrivel desfeixo do drama.

A monotonia dos caracteres dissemos nós. A monotonia na invenção é na verdade o principal defeito d'esta composição. Ha ahi quatro ou cinco vingativos, quatro ou cinco vinganças empastadas por toda ella. Vinga-se o Infante de sua mulher, de quem tambem se vinga o Commendador d'Elvas, cujo amor ella desprezara. João Lourenço quer vingar-se de D. Leonor: D. Leonor de quasi toda a gente. D'esta identidade de situações moraes forçosamente devia resultar esse capital defeito.

Os dois caracteres que nos parecem individuados são o de D. Leonor e o do D. Lopo Dias. D. Leonor é a mulher successivamente hypocrita e insolente: vil e orgulhosa; pobre de crenças moraes, rica de paixões violentas. É a D. Leonor da historia, salvo em uma ou outra scena; é o vulto principal do drama. D. Lopo é mancebo, poeta e triste como sua mãi, mas sobram-lhe para isso razões. O mesquinho está phtysico, pelo que se collige das suas palavras. Molestia é esta que tem levado muito poeta imberbe á sepultura. Feliz ainda no meio de seus males, a afflicção pulmonar que o consome é chronica e por isso lenta, por tal arte que esperando elle morrer já no primeiro acto, ainda no quinto, (cujos successos são posteriores mais d'um anno, aos do primeiro) D. Lopo vive, e ao caír o panno fica de saude, não perfeita; mas da saude que é compativel com a existencia de tuberculos pulmonares. Apesar de que a phtysica não pareça coisa excessivamente dramatica e possa ter algum perigo de ridiculo no theatro, é certo que essa vida cuja distancia da morte a victima póde quasi exactamente medir: esse caminhar para o sepulchro por uma estrada onde não ha de retroceder, e na qual não passa hora ou momento em que a campa senão contemple erguida e immovel no horizonte: esse oratorio peior que o do sentenciado, porque dura meses emquanto este dura apenas tres dias; tudo isso é tremendo e solemne, e o verdadeiro poeta poderá achar nas phases da longa e cruel agonia do phtysico situações dolorosas e terribilissimas. Alexandre Dumas as achou num dos seus melhores dramas. Seguiu-o de longe o nosso auctor, mas nem por isso deixa este caracter de ser um dos mais bem sustentados em—D. Maria Telles.—Os affectos de Lopo Dias são generosos e puros: teem certa brandura de resignação, certa saudade de quem pela esperança vive já num mundo melhor, mas que ainda pela affeição filial está preso ás tristezas da terra. Este personagem é na verdade possivel e poetico, absolutamente falando. O seu unico defeito é o commum a todos; é não representar a épocha a que o poeta que o creou quis que elle pertencesse.

Os outros caracteres do drama ou são nullos, ou reflexos mais ou menos pallidos dos que ficam avaliados. Os sentimentos de vingança que subjugam D. João Lourenço da Cunha e o Commendador d'Elvas, tornam confusos os traços de um com os do outro, apesar das diligencias que o auctor fez para lhes variar as situações; confusão esta que se augmenta com a analogia que ha entre ambos e os de D. Leonor e do Infante. Fr. Soeiro é perfeitamente nullo; e Vasco, seide de D. Leonor, é um caracter que não pode fixar-se por demasiadamente transitorio, posto que fortemente concebido. Se tivesse passado de um esboço seria talvez o mais dramatico de todos elles. Isabel emfim é a eterna confidente do theatro classico, cuja utilidade dramatica foi, é e será sempre passiva; substituição impertinente do monologo; especie de titere que se deixa mover á mercê do auctor, e que por mais que fale, se esforça ou chore, por via de regra, serve tanto para o andamento da acção como as polés em que se movem os bastidores.

Notámos acima que os personagens d'este drama não representam a época a que historicamente pertencem: é este depois do uniforme, e confuso dos caracteres o maximo defeito d'elle. Nesta parte accrescentaremos algumas considerações que não parecerão inteiramente inuteis para os cultores principiantes d'este genero de litteratura. A epocha dos reinados de D. Fernando e D. João I é incontestavelmente a mais dramatica da historia portuguesa. São-no os factos politicos e a vida civil d'esse tempo: as pessoas e as coisas. A nobreza era chegada ao apogeu da sua grandeza, porque as instituições feudaes que se haviam misturado com a nossa primitiva indole social, tinham tocado então a méta do seu predominio: quando já a sua dilatada agonia começava no resto da Europa: o povo dava signaes exteriores de que existia, e existia robusto; a monarchia exgotava a sua generosidade e os testemunhos do seu temor para com a aristocracia na vespera de dar principio ao duello de morte para que ia reptá-la, e que devia durar cem annos. Nestes dois reinados operou-se uma transformação nacional: o fim do seculo XIV foi um periodo revolucionario: revolucionario não tanto para as pessoas como para as coisas; os elementos da vida social foram então chamados a uma grande lucta, e, como acontece sempre em similhantes situações, tanto os que deviam ser vencidos como os que haviam de ficar vencedores combateram energicamente. Os grandes vultos historicos d'esse tempo—os personagens extraordinarios, diriamos quasi homericos, que então surgiram—os caracteres profundamente distinctos, e altamente poeticos, quer pela negrura, quer pela formusura moral:—todos nasceram da situação social do país: foram o resultado e o resumo d'esta, e por ella sómente se podem comprehender, avaliar e explicar. Se porém essas imagens tão aproveitaveis para a arte, forem arrancadas do quadro em cujo chão e luz appropriados a ellas, unicamente se devem contemplar, ficarão convertidas em desenhos de morte-côr, e o que mais é, perderão os seus lineamentos caracteristicos; serão abstracções; serão quando muito objectos d'estudo para a physiologia das paixões: serão representantes do genero humano em geral, mas nunca de uma geração, de uma época, e d'um país: darão materia para o drama metaphysico, para o drama como o conceberam Goethe em Ferv e Betly ou na Filha Natural, e Byron no Manfredo; porém não para o drama historico, para o drama que se incarna na realidade, para o drama que não é um poema lyrico como a Athalia ou uma amplificação brilhante como Mahomet, mas uma obra d'arte que toma por expressão a vida humana, e que é destinada para a scena.

O titulo do drama historico dado ás composições mais notaveis neste genero, que no seculo passado e no presente tem apparecido na Europa, como Goetz, Wallensteim, Hernani, e tantos outros, não foi uma phantasia ou capricho dos eminentes poetas que as produziram ou dos criticos que as julgaram. Este titulo corresponde a uma realidade: representa uma theoria litteraria verdadeira e nova substituida a outra velha e falsa. O theatro antigo por via de regra era uma abstracção: os seus personagens são vultos por assim dizer desenhados na atmosphera, e que se movem nos raios do sol; não pisam a terra; não choram nem folgam humanamente; não descendem como nós de Adão; não estão sugeitos senão a certas condições da vida real. O dramaturgo antigo creava o caracter de um tyranno, chamava-lhe Nero; de um voluptuario, chamava-lhe Sardanapalo; de uma incestuosa chamava-lhe Phedra; de um hypocrita feroz, chamava-lhe Mahomet. Podia chamar-lhes outra qualquer coisa; buscar na historia ou fóra d'ella outros quaesquer nomes. Constei sibi: eis o que exigia d'esses caracteres a philosophia da arte. Satisfeita esta condição bem pouco importava se o personagem era romano, syro, grego, ou arabe. Constet sibi.—Pouco importava se as suas dimensões eram humanas. Constet sibi. Pouco importava quaes haviam sido as crenças, as condições da vida civil, os varios aspectos emfim da sociedade e da época em que o individuo que se arrastava para o theatro tinha vivido, e que forçosamente deviam modificar-lhe de certo ou certo modo as paixões ou os affectos, o pensar intimo ou o porte exterior. Constet sibi: era o que lhe pedia a arte antiga. E na verdade não era pedir muito. A arte moderna que os ingenuos e innocentes defensores do passado accusam de licenciosa põe apenas mil vezes mais duras condições aos seus sacerdotes; porque alem da constancia dos caracteres dramaticos, exige nestes circumstancias, que só o muito estudo e um ingenho profundamente synthetico póde fazer que se liguem ás obras filhas da imaginação do poeta.

Se tão leves de soffrer foram outr'ora as condições dramaticas quanto aos caracteres, escusado parece dizer que foram nullas quanto á phisiologia intima do drama. Malbaratou-se toda a esthetica dos antigos nas fórmas materiaes e externas d'elle, na anatomia dos ossos e cartilagens. Os escriptores licenciosos do seculo presente sentiram não tanto que esta anatomia era erronea, apesar de o ser muito, quanto sentiram que era incompletissima. Posto o principio incontestavel de que o drama não é mais do que a arte vasada no molde da vida social, tiraram o corollario forçoso de que era preciso primeiro que tudo estudar esta, e exclusivamente esta. A arte não se estuda; porque a arte é o ideal, e o ideal vem de Deus; é uma inspiração: o que se estuda são as formulas materiaes em que ella se revela, os typos em que se resume; para que estes possam ser claros e definidos como meios de communicação entre o poeta e o mundo. No drama a historia é a expressão da arte, é a voz articulada do homem inspirado. Elle deve por isso saber perfundamente a historia da épocha e do povo que vai alevantar do sepulchro, para servir d'interprete entre elle e as gerações que hão de escutar as suas revelações de poeta.

Se os antigos pudessem ter adivinhado e seguido esta licenciosa theoria, os seus estudos não houveram sido apesar d'isso nem largos nem custosos. A historia era falsa como a arte. Reduzia-se a biographias soltas e incompletas; era tambem um aggregado d'abstracções; resumia-se nos factos politicos. A vida social passava desconhecida: o povo desapparecia nas sombras gigantes que derramavam em volta de si os homens eminentes. Ao passo, porém, que a arte se reconstruia, reconstruia-se a historia. Ao lado de Goethe e Schiller apparecia Herder e Muleer; ao lado d'Hugo, Guizot e Thierry. Ambas as refórmas se viram e vêem obrigadas a refutar o passado com as razões e com o exemplo. Mas o poeta é constrangido a encerrar-se na época e no país cuja historia se acha escripta por um systema racional, ou a ser ao mesmo tempo historiador e poeta, tarefa difficil debaixo da qual poucos hombros deixarão de vergar; mas que é indispensavel leve a cabo aquelle que quiser incarnar a sua obra dramatica na historia do passado, sob pena de cair no convencional e incompleto do antigo theatro, porque não basta sacudir o jugo dos preceitos pueris das poeticas para escrever o drama historico: importa redigir-lhe a formula, e esta não está em achar quatro datas, e seis nomes illustres, mas na resurreição completa da epoca escolhida para nella se delinear a concepção dramatica. Primeiro que tudo, importa que essa epoca se alevante, como Lazaro á voz ele Jesus, cheia de vigor e de vida.

É de lamentar que os nossos mancebos, esperanças da litteratura patria, prefiram ordinariamente as epocas historicas que passaram para nellas traduzirem ao mundo os fructos do seu ingenho dramatico, tendo aliás para isso a vida presente que tambem é sociedade e historia. Não seria melhor que estudassem o mundo que os rodeia, e que vestissem os filhos da sua imaginação com os trages da actualidade? Não lhes era mais facil, mais agradavel até, este estudo feito no meio dos banquetes, dos bailes, das conversações, do ruido, do presente, no qual os leva irresistivelmente a lançarem-se a superabundancia de vida, o fogo da mocidade? Muito se enganam elles, crendo que acham a historia em alguns pobres livros historicos que por ahi existem. Não: a historia não está lá! Não, vós não achastes a formula material para a vossa idealidade; o vosso drama é a visão infernal mas ridicula de Perrault; é a sombra do cocheiro que alimpava a sombra de uma carruagem com a sombra de uma escova. Na vossa obra não ha drama porque na sua forma externa não ha realidade, e a expressão é o real. Para achar este cumpre ter o estamago e os braços robustos, os orgãos do olfacto endurecidos, a paciencia de ferro, porque é preciso revolver a grande lagem que cobre o cadaver do passado; é preciso aspirar o pó do sepulchro, deslizar prega por prega o sudario apodrecido das gerações extinctas: é preciso contemplar as formosuras das sociedades que se transformaram ou pereceram mas tambem apalpares cancros que as devoraram: é preciso contemplar seus monumentos sublimes de marmore; mas tambem ler lentamente os quasi apagados e barbaros caracteres dos seus pergaminhos, e as obscuras, tediosas e incertas sentenças da sua legislação; é preciso viver com os grandes d'outr'ora em seus paços esplendidos, mas assistir tambem ás miserias e agonias dos peões, cuja desventura faria hoje recuar de horror o maior malaventurado. Tudo isto é necessario, sem contar o grande e fatal risco de perderdes neste rude trabalho o que vale mais do que elle—a imaginação e a poesia. Deixai que outros a quem alguma vocação fatal leva para este genero de estudo, o mais tedioso talvez de todos, vos reconstruam os tempos que se dissolveram em pedaços. Então podereis livremente escolher a urdidura da vossa têa, e bordá-la com os ricos matizes das vossas inspirações.

Que resulta de se escolherem para objectos de composições dramaticas successos e individuos pertencentes a uma geração e a uma sociedade cuja indole e modo de existir se ignora? Resulta cair-se no vicio do theatro antigo; fazer abstracções, e desmentir a verdadeira arte. É o que succede em—D. Maria Telles.—Ponham-se ahi em vez d'esses nomes tão conhecidos do fim do decimo quarto seculo, signaes algebricos: cortem-se todas as allusões aos acontecimentos politicos ou pessoas notaveis d'então, e o drama pertencerá á epoca e ao país que nos approuver. E porque? Porque falta ahi a individualidade portuguesa d'então: faltam o crer, os costumes, as relações sociaes d'essas eras. E sendo isto assim poder-se-ha dar a—D. Maria Telles—o titulo de um drama historico, que evidentemente quis seu auctor se lhe désse?

Julgámos ser nossa obrigação dilatar-mo-nos nestas considerações sobre duas partes importantissimas de qualquer drama—os caracteres, e a côr e verdade historica e local, porque é preciso confessar que depois da restauração do nosso theatro, é sobre estes dois pontos que a critica litteraria attenta em demasia a averiguações, sobre a correcção de lingua, tem sido assás negligente e escaça. Resta agora examinarmos com a brevidade possivel a disposição ou enredo do drama, a propriedade do seu estylo, e a pureza da sua linguagem. A traça do drama é a seguinte.

Primeiro acto.—O Infante D. João está a ponto de desposar-se com D. Maria Telles. Esta o espera no castello de Barcellos, onde a ceremonia do casamento deve celebrar-se a occultas, e alta noite, a despeito dos sagrados canones. A boa dona possuida de uma tristeza inexplicavel está acompanhada da sua confidente e ora na capella, onde se vê o tumulo do seu primeiro marido. Por Isabel manda chamar Fr. Soeiro para que venha animá-la e consolá-la, e fica sozinha. Chega seu filho D. Lopo Dias, D. Maria Telles lhe escondera o negocio do casamento, mas elle o aventara não sabemos como, nem o auctor o diz. Queixas do filho porque fica desamparado; razão tinha, attento o seu estado de phtysico. Promessas da mãi, de que toda a familia ficará junta, por que elle Lopo Dias e o Infante são os seus unicos amigos. Ainda tendes outro, lhe brada um cavalleiro de armadura negra e viseira callada que apparece á porta da capella. Dizendo e fazendo, ei-lo que entra. D. Lopo pergunta-lhe quem é: resposta; sou um defensor de vossa mãi. D. Lopo diz que lhe fica muito obrigado mas que ella não precisa de defensores. Insiste o desconhecido porque D. Leonor ha de persegui-la. Isso é a mim que toca:—acode D. Lopo. Com bom fundamento o affirmava, e por isso o cavalleiro não acertando a replicar-lhe vai-se ao tropheu d'armas que está sobre o tumulo de Alvaro Dias, pega na espada do defuncto e entrega-a ao mancebo recommendando-lhe que se mostre digno d'ella. A tão bom conselho não havia fazer reparos. D. Lopo promette dar-lhe o devido uso. Então o cavalleiro sai, não sem offerecer a D. Lopo o seu braço e espada para qualquer lanço apertado; já se sabe sem dizer quem é ou onde mora. Ido o cavalleiro, D. Maria pergunta ao filho quem seria aquelle homem, era melhor ter-lho perguntado a elle. Se o conhecesse como as suas mãos D. Lopo não responderia mais confiado: É um homem que vos ama, e que vigia sobre vós. Não diz isto porque o conheça: mas porque o sabe ab alto, a proposito do que vem uma dissertação sobre o dom d'adivinhar que teem os phtysicos. Saindo Lopo, volta Isabel com Fr. Soeiro: scena inutil.—Chega então o Infante, acompanhado do Commendador d'Elvas; colloquios amorosos. O Commendador Garcia Affonso nas visagens que faz, nos á partes que murmura mostra a raiva que lhe accende na alma o affecto dos dois conjuges, que finalizam o acto ajoelhando junto ao altar provavelmente para receberem a benção matrimonial de Fr. Soeiro.

Este acto, afora a inutilidade da scena VI, involve grave falta de probabilidade. Como pôde um cavalleiro desconhecido entrar de viseira callada e depois da meia noite na capella de um castello do seculo XIV? Como rodou a ponte levadiça para lhe dar passagem? Que fazia o madraço do alcaide; que faziam os vigias das quadrellas, roldas e sobre roldas, que assim deixavam devassar a boa fortaleza d'el-rei de Portugal? Como entrou esse homem? Eis o que o auctor não diz, nem lhe fôra facil dizê-lo. Depois, é acaso natural que D. Maria Telles nem sequer deseje conhecer quem elle é? Homem que fosse, não descansaria sem o saber, quanto mais sendo mulher! D. Lopo indaga na verdade quem elle seja; mas contenta-se com uma resposta evasiva, e consente que o incognito lhe vá buscar a espada de seu pai, e lh'a entregue com a comminação de que ha de fazer bom uso d'ella. O melhor uso que D. Lopo naquelle momento podia fazer d'esse ferro era pôr-lho aos peitos para o obrigar a erguer a viseira. Sua mãi vai celebrar um casamento occulto, e é quasi na hora prefixa para a ceremonia que elle tolera venha um desconhecido devassar a capella, sem o obrigar a descobrir-se? A theoria de que os phtysicos adivinham será muito boa e verdadeira; mas a palhologia ainda não chegou a atinar com essa circumstancia nas affecções pulmonares, e os espectadores não poderão admittir a razão com que o auctor por bocca de D. Lopo pretende desculpar a inverosimilhança de tal procedimento, isto é, que elle já tem o que quer que seja d'alma do outro mundo, e que por isso sabe que o desconhecido é pessoa de confiança. O antigo theatro só consentia milagres em casos apertadissimos. Nec Deus interrit nisi dignos vindice nodus. A licenciosa eschola moderna em nenhum admitte taes meios, quer seja para conduzir o drama, quer para desfeixo d'elle. Natureza e verdade são os seus unicos elementos.

Segundo acto.—Tem passado um anno. D. Maria Telles está em Coimbra com seu filho, e o Infante que já começa a esquecer-se de sua mulher anda na côrte. D. Lopo faz versos e carpe-se: D. Maria carpe-se e ouve-lh'os declamar. Mas como lagrimas e versos continuados são duas grandes canseiras, a pobre dama abandonada convida seu filho para irem espairecer suas maguas pelas margens do Mondego. A isto acode D. Lopo, que é melhor irem ao monte visitar a caverna do solitario.—Qual solitario? Logo o sabereis. D. Maria Telles faz suas objecções: a caverna do referido solitario ou homem dos mysterios tem má nomeada: ninguem se atreve a chegar perto d'ella: a isto acode o poeta, com dizer que todos esses medos são sandices do vulgo, e que lá por certos barruntos que elle tem, adivinha que o solitario é pessoa de porte e de bondade. Desassombrada de seus temores D. Maria está a ponto de sair eis senão quando chega o Commendador d'Elvas com uma carta do Infante. Roto o fecho da carta com o punhal de Garcia Affonso, D. Maria lê o contheudo d'ella em voz baixa. A boa da carta era fria, fria como gêlo: nem uma palavra affectuosa! Apenas lhe diz sua mercê o Infante que não pode ir a Coimbra, demorado na côrte por negocios d'alta monta. Desesperação de D. Maria que sente por isto que vai morrer. Porque? Porque D. João, marido já de um anno, e preoccupado por graves negocios, não lhe escreve uma carta de amores, e não lhe declara que negocios são esses que lhe embargam os passos. Vêr a morte diante dos olhos; ficar desesperada por tal motivo seria loucura d'uma rapariga de vinte annos, mas em uma dona de trinta e seis é uma inverosimilhança inadmissivel. Se todas as mulheres casadas de mais de um anno morressem por não serem as cartas de seus maridos ausentes adubadas de amores e requebros: a proporção das viuvas com o resto da população seria mais descommunal e espantosa do que em Inglaterra a dos que morrem de fome com os que teem que comer. Quanto ao segredo que o Infante guarda sobre os negocios que o reteem, razão tinha D. Maria Telles, porque mencioná-los sem os particularizar, era fazer nascer desejos vãos á insaciavel curiosidade feminina, e todavia não podiam ser materias d'estado esses negocios?—não podiam ser coisas que nada importassem a D. Maria? Para um desmaio ainda a carta teria substancia se a dama fosse uma rapariguinha; mas para agonias mortaes em uma dona sisuda, como lhe chama Fernão Lopes, não havia ahi motivo. Por uns longes que se enxergam em dois á partes do Commendador vê-se que foi elle quem armou esta negregada invenção da carta, e que folga com o effeito d'ella. Se o auctor do drama tivesse concedido a D. Maria Telles mais uma mealha de senso commum, Garcia Affonso não teria mostrado ser na tal invenção da carta, senão um solemnissimo mentecapto, se a sua intenção era, como elle diz num monologo, vingar-se d'ella e do Infante.

Lida a carta, D. Maria chama o filho para irem visitar o solitario, porque só nelle poderá achar consolações. Pois que tem o solitario (de quem ella ha um instante tremia de medo) com o desamor de D. João? O poeta, que fôra o movedor d'esta ida está prestes, e lá vão ambos por montes e valles em cata do mysterioso anachoreta.

Não tardam muito a encontrá-lo. É apenas o tempo necessario para a mutação da scena, cair e levantar-se o panno; não para mudança de acto, mas de quadro. O solitario está na caverna falando a sós comsigo. De seu dizer consta que havendo amado D. Maria Telles, e não podendo obtê-la por ser já casada com Alvaro Dias de Sousa, casara com sua irmã D. Leonor, que o deixou para subir ao throno. É, portanto, o eremita—João Lourenço da Cunha, que lida com suas maguas, e que depois de invocar a morte e sonhar vinganças, o que não é a mais approvada disposição moral para esse transe tremendo, cai desfallecido sobre um rochedo. É neste ponto que chegam Lopo Dias e sua mãi. lista apenas entra, diz-lhe que vem trazer-lhe consolações. Impertinencia de mulher! Quem lhe disse a ella que o anachoreta de cuja caverna ninguem ousa approximar-se, entrou na vida eremitica por desventuras e não pelo arrependimento de seus peccados? Quem lhe dá a certeza de que poderá consolá-lo, ella que não o conhece, e que não sabe provavelmente o que lhe ha de dizer? Dar-lhe consolações?! De que genero e de que modo? Que affirmou ella ao sair de casa? Que vinha pedir e não offerecer consolo. Disse uma coisa sem sentido, sem verdade, e agora diz outra. O solitario offende-se da offerta e com razão. Affirmando-se porém na recem chegada, reconhece-a, e ella reconhece-o a elle.—Explicações mutuas. João Lourenço refere então como foi elle o cavalleiro d'armas negras que lhe appareceu na capella, e explica-lhe o proceder do Infante. Este occultou na côrte o seu casamento, e a mão da Infante D. Beatriz acaba de lhe ser offerecida. Cheia d'angustia, neste logar, justa e bem fundada, D. Maria Telles pergunta: e acceitou-a?—Uma voz que sôa na bocca da caverna responde—Acceitou!—É o Commendador d'Elvas que assoma involto numa capa, já se sabe, negra. D. Maria desmaia e cai o panno.

Este desfeixo do acto é natural e dramatico, e a melhor coisa de todo elle. O Commendador vendo-a sair seguia-lhe os passos; escutou a conversação, e em seus pensamentos de vingança não consentiu que outrem desse a punhalada mortal nessa mulher de quem queria vingar-se. Aqui o efleito dramatico vem naturalmente da situação e caracter dos personagens. Quanto ás scenas anteriores parece-nos que estão abaixo de toda a critica.

Acto terceiro.—D. Leonor está só debatendo-se com os remordimentos de sua consciencia; entra o Commendador d'Elvas. Vem trazer-lhe a noticia de que fez ao Infante a proposta do casamento com D. Beatriz, e que achando-o mau de resolver lhe dera suspeitas de que sua mulher o trahira. D. Leonor relucta contra esta nova calumnia: martyrizam-na os remorsos porque viu em sonhos os castigos que lhes estavam reservados no outro mundo a elle Commendador e a ella Rainha; nesses tormentos, conforme o direito, e em vista da nossa moderna jurisprudencia dramatica, ha pontas de rochedos em braza para arrastar o miseravel Commendador. O triplicado da punição; as pontas, os rochedos e as brazas, aterram-no, mas finge-se resoluto. Não assim a rainha a quem os sonhos pavorosos não podem esquecer. Segue-se uma lucta moral em que os insultos refervem entre os dois. O Commendador sai ameaçando a rainha. Apenas esta se acha só, entra João Lourenço da Cunha: scena violenta entre os dois em que a rainha successivamente treme, humilha-se, amaldiçoa e ameaça, e em que elle fala constantemente a linguagem do odio profundo. No meio da altercação sobrevem o Infante que tendo João Lourenço por morto, crê que é a sua alma em pena. Este o ameaça tambem por querer dissolver o matrimonio contrahido com D. Maria Telles. A rainha nega o casamento: João Lourenço injuria-a de novo, e o Infante arranca da espada. A ponto já de brigarem acode el-rei aos brados de D. Leonor. João Lourenço que enfiou a ladainha dos doestos affronta tambem D. Fernando que chega a levar a mão á espada, mas que lembrando-se de quem é, manda-o como era de razão, metter na cadêa. Partindo, o antigo marido da rainha, pergunta a si mesmo, quem, preso elle, defenderá D. Maria Telles. D. Lopo Dias apparecendo no fundo responde-lhe;—Seu filho!—E cai o panno.

Este acto, tem entre todos como é evidente, a primazia no desalinhavado e absurdo do desenho, posto que não lhe falta merito ás vezes na execução das scenas. Primeiramente como é crivel que tendo Garcia Affonso sido encarregado pela Rainha de propôr ao Infante o novo casamento, e estando este na côrte, o Commendador antes de dar parte a D. Leonor do desempenho da commissão, fosse a Coimbra levar a celebre carta do acto 2.^o, o que podia fazer qualquer pagem ou correio? Em segundo logar, não estaria doido João Lourenço, tendo tomado a peito defender D. Maria Telles, em vir metter-se nas garras da rainha, só para a injuriar e aos outros seus inimigos, porque não consta do drama que viesse fazer outra coisa? Que esperava elle lhe succedesse, entrando no paço, onde todos o conheciam, para practicar aquellas gentilezas, senão ir jazer na cadêa? Depois como entrou elle sem licença até o quarto de D. Leonor? É a mesma inverosimilhança do primeiro acto. O paço real no seculo XIV era menos vedado que hoje: permittia-o a differença dos tempos; mas nem por isso era uma taberna, onde qualquer entrasse quando e como lhe approuvesse; e todavia é sobre estes argumentos que assentam os dois ultimos actos. Quanto a este abster-nos-hemos de dizer mais nada contentando-nos com observar que termina por um effeito dramatico perfeitamente analogo ao desfeixo do segundo, isto é pelo apparecimento de um personagem inesperado.

Acto quarto.—João Lourenço está na masmorra em que a propria imprudencia o lançou. Ahi se dóe e queixa de Deus, em vez de se queixar de si. No meio de suas lástimas passa uma barca pelo Téjo, e ouve-se nella uma voz que se approxima da prisão. A unica prisão em que podia estar João Lourenço era a dos paços do Castello e como de lá se ouvia uma voz no rio e esta se approximava da masmorra não será facil dizer: todavia deixemos bagatellas. Provavelmente quem cantava era D. Lopo que d'ahi a pouco entra no calaboiço, aliás, não intendemos que pudesse trazer-se a proposito tal cantiga que nada tem com o drama. D. Lopo vem livrá-lo, acompanhado do carcereiro que provavelmente para isso peitou. Isto de carcereiros comprados como meio dramatico, é coisa quasi tão velha e gasta quanto o estão os confidentes classicos. O prêso recusa a liberdade porque quer morrer. Aqui fica evidente a doidice de João Lourenço. Não podem ter passado cinco minutos desde que elle dizia: Oh Senhor Deus deixar-me-heis morrer sem ter salvado a innocente Maria?… Oh, nem uma esperança me dais?—e agora que o querem soltar responde com vehemencia; deixai-me morrer; deixai-me morrer!?—Pois se quer morrer para que estava apoquentando os céus com seus queixumes? Isto era capaz d'impacientar até o sancto dos sanctos. Em fim depois de varias ponderações do poeta phtysico o homem resolve-se a sair. D. Lopo diz-lhe que espere que vai arranjar os meios da fuga, e parte com o carcereiro. Fica só o prêso, porém não tarda companhia. Uma porta secreta se abre e D. Leonor entra, tira a chave e encaminha-se para seu primeiro marido. Vem dizer-lhe que elle ha de morrer alli mesmo: vem saciar o seu odio: João Lourenço depois de ameaças mutuas tira-lhe repentinamente a chave da porta secreta, e diz-lhe que vai salvar D. Maria Telles; a isto acode a Rainha que não lhe achará senão o cadaver. Desesperação de João Lourenço da Cunha, que supplica de joelhos, e que achando D. Leonor inabalavel, ergue-se furioso e quer matá-la com um punhal que traz escondido: é então que ella supplica; é então que elle se torna inexoravel. Aponto de a apunhalar chega D. Lopo; a esperança amortece a cholera no coração do marido da Rainha; o punhal cai-lhe das mãos. D. Leonor continua todavia a ficar de joelhos, a pedir não que lhe deixem a vida, porque esta já ella sabe que está salva; mas que a soltem: que lhe permitiam sair d'aquelle logar d'horror. Sublime hypocrisia que encubriu o animo damnado com a mascara do susto. Recusam-lho: então a cholera trasborda do peito d'essa mulher que é um abysmo de maldade. Nem a demora d'uma hora a que elles a condemnam saindo, soffre a rainha. Apenas se acha só a régia hyena corre, e lança raivosa as garras ás grades da masmorra; depois ajoelha e quer orar, mas alevanta-se logo, e sorri. Pensa um momento, e com gesto ameaçador exclama: D'aqui a uma hora serei outra vez rainha. Um pensamento atroz e medonho reluziu por certo á luz sanguinea que bruxulea nessa alma? Qual foi elle? Sabe-lo-hemos no sexto e derradeiro quadro.

Nas tres ultimas scenas d'este curtissimo acto, tão curto que talvez a representação d'elle não occupe quinze minutos a scena, revela-se um poeta. Não mencionaremos defeitos porque o que tem excellente no-los varreu da memoria: o auctor comprehendeu perfeitamente o caracter de D. Leonor: ha aqui o talento profundo de um verdadeiro escriptor dramatico. Oxalá poderamos dar de tudo e de todo o drama os mesmos testemunhos de louvor e admiração! Com magua temos feito o contrario, porque é o nosso penoso dever distribuir recta e severa justiça, e corresponder á confiança que em nós depositou esta assemblêa.

Quinto acto.—Estamos em Coimbra nos paços do Infante. Ao correr do panno D. Leonor e Garcia Affonso falam a sós. A rainha, segundo parece, saíu da prisão e chegou a Coimbra antes que João Lourenço e D. Lopo. Não 6 isto provavel mas é possivel; porque o odio entranhavel costuma ser ás vezes mais diligente que todas as affeições. A scena da prisão, uma vingança falha, uma humilhação necessaria mas cruel, espertaram toda a violencia do caracter da rainha: os remorsos desappareceram, e ella precisa de sangue. Incita por isso o Commendador para que positivamente accuse sua irmã~ de adultera: conhecera pelo terror de João Lourenço que este a amava, e é de bom-grado fratricida para começar pela vingança que mais deve doer a seu antigo marido. É este o verdadeiro retrato de D. Leonor, mas o que é falso, o que não condiz com o caracter profundamente dissimulado que lhe attribue a historia, e o auctor tão bem pintou no fim do 4.^o acto, é o injuriar gratuitamente o mesmo homem que está incitando para que seja instrumento da sua vingança. Embora ambos se conhecessem bem mutuamente: embora estas duas almas negrissimas estivessem sem máscara; mas ainda os maiores malvados não ouzam recordar uns aos outros os seus crimes, e injuriarem-se com elles senão nos extremos de cholera. Vemos que do aspecto que toma esta scena e do seu desfeixo, depende a existencia de duas ou tres scenas seguintes: a inverosimilhança porém da origem diminue-lhes grande parte do merito que possam ter. As affrontas da rainha são correspondidas por Garcia Affonso, que acceitando a infame commissão, e um bracellete que deve servir de prova á calumnia, sai praguejando e ameaçando D. Leonor, e ameaçado e praguejado por ella. Esta scena é evidentemente desarrazoada, ou antes impossivel. D. Leonor fica só, e num monologo resolve a morte do Commendador: foi para isto que se delineou a scena antecedente. Por assim dizer, o auctor fez num drama o que se diz fazia Boileau nos seus alexandrinos, sugeitou a rima do primeiro verso á do segundo. Resolvido o assassinio do seu antigo cumplice, a rainha dá um signal e apparece Vasco seu pagem. D. Leonor diz-lhe que um homem a ultrajava: responde o pagem que lhe diga seu nome e elle morrerá: esta scena está felizmente imaginada e o caracter de um official d'assassino dado ao pagem é rapida e profundamente traçado. Vasco sai e a rainha esconde-se em uma camara para d'alli ver morrer Garcia Affonso. Apenas ella se retira o Infante entra com o Commendador d'Elvas que pretende persuadi-lo da infidelidade de D. Maria Telles e que por fim o convence com a prova do bracellete, o qual, diz elle, João Lourenço perdera. Fraquissima é a prova, mas acceitemo-la, visto que o Infante a acceita. Este arranca a adaga, arromba a porta da camara de Maria Telles e arroja-se para lá furioso. Garcia Affonso fica só e tirando um frasco de veneno, declara em um monologo que envenenará o Infante logo que tenha assassinado sua mulher. Vasco entra então, e gracejando com Garcia Affonso, diz-lhe que precisa de lhe communicar um segredo, mas que antes d'isso beberá com elle um trago de vinho. O aspecto de Vasco assustou o Commendador lembrado do que passou com a rainha, e de que este pagem é o executor das suas vinganças secretas. Emquanto Vasco vai buscar o vinho, elle lança á cautella veneno em uma das taças que alli estão, e quando o pagem volta enche-a e offerece-lh'a, tomando para si outra. Ambos levam as taças á bocca, mas nenhum bebe. Garcia Affonso põe a sua sobre a mesa e pergunta ao pagem qual é o segredo; rindo atrozmente este lhe pergunta se quer sabê-lo; Garcia Affonso responde que sim, e que o diga depressa porque lhe resta pouco tempo para o revelar por estar envenenado: o pagem continua a rir e replica que é elle que o está, e que esse era o segredo. Garcia Affonso despejando a taça mostra que lhe não tocara: o pagem faz o mesmo. O Commendador então lhe diz: Pois bem! nem um nem outro morreremos.—Enganaes-vos!—torna Vasco soltando uma risada terrivel e dando-lhe uma punhalada. Garcia Affonso, amaldiçoa-se a si e ao pagem, procurando tambem feri-lo. Neste momento ouve-se dentro a voz de D. Maria Telles que implora piedade. O horror appossa-se do Commendador agonizante, os gritos de D. Maria redobram, e o Infante sai da camara com a adaga na mão tinta em sangue. Os remorsos fazem que o Commendador moribundo confesse a innocencia de D. Maria Telles. O infante furioso quer cravar-lhe a adaga, mas antes d'isso cai morto. Garcia Affonso João Lourenço chega já tarde seguido de cavalleiros e povo: o Infante desesperado pede que o matem, e João Lourenço quer cumprir-lhe os desejos, quando D. Maria Telles saindo da camara o retem e vai cair nos braços do Infante a quem perdoa morrendo. Apparece então D. Leonor, e apontando para os cadaveres da irmã e de Commendador diz para o marido—que veja como se vingou uma rainha. D. Lopo apparecendo subitamente com a espada na mão, abre uma janella e mostrando a praça atulhada de povo armado, diz-lhe:—Senhora rainha, o filho vingará tambem a morte de sua mãi, e o povo as injurias recebidas. Assim se conclue o drama.

Este acto é incontestavelmente o melhor, e o seu effeito scenico deve ser grande. Apesar das imperfeições que n'elle se pódem e com razão reprehender, o auctor procurou resgatar aqui os defeitos que pullulam nos antecedentes, como successivamente notamos em cada um d'elles.

Restam algumas observações sobre estylo e linguagem: assim completaremos o exame d'este drama visto a todas as luzes a que se deve considerar.

O estylo para dizer tudo em poucas palavras é o da moda: isto é, a maior parte das vezes falso: comparações frequentes, que a situação moral dos personagens que as fazem não comporta: certa poesia na dicção impropria do dialogo: fartura d'essas exaggerações com que embasbacam os parvos da platéa, e que os homens de juizo não podem soffrer. Ás mãos cheias estão por ahi derramadas as maldições, os anjos de azas brancas, os rochedos em braza, os infernos, os demonios, e toda a mais ferramenta dramatica, usada hoje no theatro, e que não sabemos d'onde veio, porque sendo evidente que os nossos escriptores principiantes buscam imitar os grandes dramaturgos franceses, é certo que raramente acharão lá essa linguagem ôca e falsa, que só póde servir para disfarçar a falta de affectos e pensamentos: Victor Hugo e Dumas não precisam nem usam de taes meios, e para citarmos de casa, já que temos cá o exemplo, que esses noveis vejam se nos dramas do nosso primeiro escriptor dramatico, se no Aucto de Gil Vicente ou no Alfageme ha essa linguagem de cortiça e ouropel, ha essas expressões turgidas e descommunaes que fazem arripiar o senso commum, e que offendem a verdade e a natureza. O estylo é tudo, dizia Voltaire. Não somos da sua opinião absolutamente, mas é incontestavel que uma obra litteraria excellente em todas as demais partes, se lhe falecer a propriedade do estylo nunca poderá obter para seu auctor uma reputação duradoira. Não faltam na historia litteraria de todas as nações exemplos d'esta exactissima observação.

Quanto aos erros de lingua e construcção, faceis são elles de emendar: assim o fossem os de estylo, e ainda mais os de contextura! Intoleraveis, mais que nenhuns, nos parecem o vicio constante do introduzir um i nas segundas pessoas do plural dos preteritos como fizesteis, tivesteis, etc.—por fizestes, tivestes; soffrer por padecer, sendo a significação portuguesa de soffrer a de padecer com paciencia ou constancia: o uso demasiado dos possessivos que tanto afrancezam o nosso mui illiptico idioma: a substituição escusada de preteritos simples pelos compostos do participio e dos auxiliares: tautologias indisculpaveis, como—abysmo immenso e sem fim; caverna que parece zombar e escarnecer, etc.;—gradações ás avessas, como: cheio de desesperação e pesar. A estes e outros defeitos poderia o auctor dar remedio revendo attentamente o manuscripto, que talvez o limite de tempo para o concurso lhe não deixou aperfeiçoar e pulir, e por isso intendemos dever nessa parte ser indulgente a censura do Conservatorio.

Temos feito longa e severamente a critica do drama—D. Maria Telles.—Fizemo-lo assim por muitas e mui urgentes razões. Tem soado queixas contra a fórma demasiado simples com que se costumam exarar os pareceres sobre os dramas que annualmente concorrem a premios: conselhos sinceramente dados tem-se tomado pela expressão do orgulho; imaginou-se uma aristocracia litteraria, contraria a todos os ingenhos que surgem de novo. É preciso confessar que pelo que toca ao não motivado, e á brevidade dos pareceres, sobre tudo d'aquelles que condemnam, é justa a queixa. Todas as mais são infundadas. Os factos de quatro annos ahi estão provando o contrario. Se alguma culpa se pode lançar ao Conservatorio é a nimia indulgencia; já algumas das suas sentenças favoraveis tem sido reformadas pelo supremo tribunal do publico, ao passo que ainda nenhum drama condemnado por elle toi levado por appellação ao grande jury da opinião da platea: todavia se os auctores d'esses dramas tinham a consciencia da injustiça no julgamento, para lá deviam aggravar-se. Esta é a nossa defensão completa contra as vãs accusações de parcialidade; contra os sonhos de uma imaginaria aristocracia litteraria com que a mediocridade pretende passar aos olhos de parvos e ignorantes, pelo ingenho perseguido ou menoscabado.

A Secção da Litteratura pensa por tanto, que importa ao bom nome do Conservatorio o fazer sempre miuda e inexoravelmente o exame dos dramas que concorrem aos premios, e motivar largamente as suas sentenças. Tanto os concorrentes como a nação teem direito de assim o exigirem. O tempo da censura inquisitorial, que muitas vezes só serve de capa á incapacidade, passou. É nossa obrigação restricta fundamentar as opiniões que assentamos: julgadores aqui, seremos lá fóra réos, e o commum juiz que é o publico não está adstricto a julgar por nossas palavras. Por outra parte esta miudeza e severidade de critica servirá de correcção aos auctores, para cuja emenda é inutil um parecer superficial e vazio de doutrina, ao passo que lhes habilita o amor proprio para crer que não foram elles, mas fomos nós os que errámos.

Além d'isso, a Secção da Litteratura intende que é necessario ser finalmente severa a censura do Conservatorio, para o verdadeiro progresso dramatico. Durante quatro annos este progresso tem sido unicamente em extensão: falta a profundidade. O numero dos dramas augmenta, mas o merito d'elles é o mesmo, senão é menor. A principio convinha affagar todas as tentativas: hoje é preciso afastar as não vocações dramaticas que a facilidade das recompensas tem tornado em demasia ousadas, e é preciso constranger aquelles que podem e sabem produzir fructos de verdadeiro ingenho a darem ao theatro obras que os honrem e honrem a patria.

Pelo que respeita em especial ao drama—D. Maria Telles—a Secção de Litteratura ainda pede para elle a indulgencia do Conservatorio. A leitura d'esta composição revéla a verdura d'annos e inexperiencia do seu auctor. O desconnexo e inverosimil da contextura, a ignorancia quasi absoluta dos costumes e instituições da epoca escolhida, e ainda mais a falta de conhecimento da logica das paixões e affectos, e por isso da consistencia dos caracteres estão dizendo que o mundo e a sociedade é em grande parte um mysterio para elle, mysterio que ainda mal as tempestades politicas e a vida demasiado energica do nosso seculo lhe revelarão em breve. Se o auctor quiser acceitar os conselhos prudentes que para melhorar o seu escripto lhe não recusarão, por certo, os membros d'este Conservatorio, o drama—D. Maria Telles—poderá subir á scena, não com a certeza de obter a approvação de summo juiz o—publico—mas de apparecer ante elle sem deshonra sua, e sem que nós sejamos accusados de desleixo no cumprimento dos nossos deveres. O parecer da Secção da Litteratura é portanto, que a Mesa convide o auctor do drama a dirigir-se a ella para o fim apontado. O Conservatorio resolverá o que fôr mais justo e conveniente.—Alexandre Herculano.

*D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna*

*D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna*[24]

Por grande que deva ser a gratidão que se associa ás recordações d'aquelles que nos geraram, por funda que vá a saudade inseparavel da memoria paterna, no coração do bom filho ha um affecto não menos puro, e não menos indestructivel para o homem cujo espirito allumiado pela cultura intellectual tem a consciencia de que o seu logar e os seus destinos no mundo são mais elevados e nobres que os d'esses tantos que nasceram para viverem uma vida toda material e externa, e depois morrerem sem deixar vestigio. Este affecto é uma especie de amor filial para com aquelles que nos revelaram os thesouros da sciencia; que nos regeneraram pelo baptismo das letras; que nos disseram: «caminha!» e nos apontaram para a senda do estudo e da illustração, caminho tão povoado de espinhos como de flores, e em cujo primeiro marco milliario muitos se teem assentado, não para repousarem e seguirem ávante, mas para retrocederem desalentados, quando sózinhos não sentem mão amiga apertar a sua e conduzi-los após si. Tirai á paternidade os exemplos de um proceder honesto, as inspirações da dignidade humana, a severidade para com os erros dos filhos, os cuidados da sua educação, e dizei-nos o que fica? Fica um certo instincto, ficam os laços do habito, e para impedir que tão frageis prisões se partam, fica o preceito de cima que nos ordena acatemos e amemos os que nos geraram, ainda que a elles não nos prenda senão a dadiva da existencia, esse tão contestavel beneficio. Pelo contrario aquelles que foram nossos mestres; que nos attrahiram com a persuação e com o proprio exemplo para o bom e para o bello; que nos abriram as portas da vida interior; que nos iniciaram nos contentamentos supremos que ella encerra; para esses não é preciso que a lei de agradecimentos e de amor esteja escripta por Deus: a razão e a consciencia estamparam-na no coração: cada gozo intellectual do poeta, do erudito, do sabio, lh'a recorda, e quando elles se comparam com o vulgo das intelligencias, reconhecem plenamente a justiça do sentimento de gratidão que os domina.

Estas reflexões occorreram-me ao abrir o primeiro volume das obras da senhora marqueza de Alorna, condessa de Oeinhausen e Assumar, D. Leonor d'Almeida, que actualmente se publicam e de que já dois volumes se acham nitidamente impressos. E foi para mim um prazer verdadeiro escrever estas cogitações d'um momento. Aquella mulher extraordinária, a quem só faltou outra patria, que não fosse esta pobre e esquecida terra de Portugal, para ser uma das mais brilhantes provas contra as vãs pretensões de superioridade excessiva do nosso sexo, é que eu devi incitamento e protecção litteraria, quando ainda no verdor dos annos dava os primeiros passos na estrada das letras. Apraz-me confessá-lo aqui, como outros muitos o fariam se a occasião se lhes offerecesse; porque o menor vislumbre d'engenho, a menor tentativa d'arte ou de sciencia achavam nella tal favor, que ainda os mais apoucados e timidos se alentavam; e d'isso eu proprio sou bem claro argumento. A critica da senhora marqueza de Alorna não affectava jamais o tom pedagogico e quasi insolente de certos litteratos que ás vezes nem sequer entendem o que condemnam, e que tomam a brancura das proprias cãs por titulo de sciencia, de gosto, e de tudo. A sua critica era modesta e tinha não sei o que de natural e affectuoso que se recebia com tão bom animo como os louvores, de que não se mostrava escaça quando merecidos. Uma virtude rara nos homens de letras, mais rara talvez entre as mulheres que se teem distinguido pelo seu talento e saber, é a de não alardearem escusadamente erudição, e essa virtude tinha-a a senhora marqueza em grau eminente. A sua conversação variada e instructiva era ao mesmo tempo facil e amena. E todavia dos seus contemporaneos quem conheceu tão bem, não dizemos a litteratura grega e romana, em que egualava os melhores, mas a moderna de quasi todas as nações da Europa, no que nenhum dos nossos portugueses por ventura a egualou? Como madame de Stael ella fazia voltar a attenção da mocidade para a arte de Alemanha, a qual veio dar nova seiva á arte meridional que vegetava na imitação servil das chamadas letras classicas, e ainda estas estudadas no transumpto infiel da litteratura francesa da epocha de Luís XIV. Foi por isso, e pelo seu profundo engenho, que, com sobeja razão, se lhe attribuiu o nome de Stael portuguesa.

A vida d'esta nossa celebre compatricia acha-se á frente da edição das suas obras: para lá remetto o leitor. Ahi verá como em todas as phases da sua larga e não pouco tempestuosa carreira, ella soube dar perenne testemunho do seu nobre caracter de independencia e generosidade: verá que emquanto na terra natal primeiro a tyrannia e depois a ignorancia e a inveja a perseguiam, ella ia encontrar entre estranhos a justa estimação de principes e de illustres personagens da republica das letras. Ahi verá como nascida no seculo do materialismo, vivendo largos annos no foco das idéas anti-religiosas, acostumada a ouvir todos os dias repetir essas idéas por homens de incontestavel talento, ella soube conservar pura a crença da sua infancia, e expirar no seio do christianismo. Ahi finalmente verá como as ausencias, por vezes involuntarias, da sua terra natal, não puderam fazer-lhe esquecer o amor que devemos a esta, ainda no meio das injustiças e violencias de todo o genero.

O primeiro volume das obras poeticas da senhora marqueza de Alorna contém, afóra a vida da auctora, e uma noticia biographica do conde de Oeynhausen seu marido, as poesias compostas na mocidade. Boa parte d'estas foram escriptas no mosteiro de Chellas, para onde entrou de oito annos de idade com sua mãi, occorrendo a prisão do marquez de Alorna D. João. Encerrada naquelle mosteiro passou D. Leonor d'Almeida os annos mais viçosos da juventude, tendo para alegrar as tristezas de tão longo captiveiro que excedeu desoito annos, unicamente o linitivo do estudo, e os conselhos e affagos maternos. Quisera alguem que tivesse havido mais severidade na escolha das composições d'aquella epocha, algumas das quaes desdizem do primor que noutras posteriores se encontra. Eu lamento só que senão pudesse ajunctar a cada uma a sua data. Assim, bem longe de ter sido um inconveniente essa desigualdade innegavel, houvera ella sido um meio para se avaliarem bem os rapidos progressos da joven auctora, que nas obras de tão verdes annos annunciava já o seu brilhante futuro nos rasgos frequentes de um engenho ao mesmo tempo solido, delicado e vivo.

O resto do primeiro volume e o segundo contém as poesias da senhora marqueza posteriores á sua saída do mosteiro. Na disposição d'ellas tambem não se guarda o methodo chronologico: a natureza dos poemas determina a ordem d'elles. Julgar essa grande variedade de composições não cabia nos estreitos limites d'este jornal. Os que as teem lido, e que sabem entendê-las appreciam-nas devidamente. Ellas são um illustre monumento para a historia da poesia portuguesa, um nobre testemunho da piedade filial que as trouxe á luz publica, e para em tudo esta publicação ser apreciada, a sua nitidez typographica é uma prova dos progressos que a arte de imprimir tem feito entre nós[25].

FIM DO TOMO

Índice

Advertência Qual é o estado da nossa litteratura? Qual é o trilho que ella hoje tem a seguir? Poesia: Imitação—Bello—Unidade Origens do theatro moderno—Theatro português até aos fins do seculo XVI Novellas de cavallaria portuguesas Historia do theatro moderno—Theatro hespanhol Crenças populares portuguesas ou superstições populares A Casa de Gonsalo, comedia em cinco actos:—Parecer Elogio historico de Sebastião Xavier Botelho D. Maria Telles, drama em cinco actos:—Parecer D. Leonor d'Almeida, Marqueza d'Alorna

Notas:

[1] Diz Mercier em uma annotação, que segundo nossa lembrança vem no 1.^o tomo de suas obras dramaticas, que a divisão de cinco actos é fundada em ser preciso atiçar cinco vezes as luzes do theatro em quanto dura uma recita.

[2] Epist. 9—v. 43.

[3] Art. poet. C. 3—v. 48.

[4] Talvez alguns dos nossos leitores extranhem o modo por que tractamos um escriptor accreditado e ainda vivo. Nós sabemos que a urbanidade é o principal dever de quem impugna qualquer opinião: mas confessamos que não pudemos resistir á tentação. Mr. Laurentie é um defensor do absolutismo, e muito mal tractou a causa da nossa patria no seu exame da Carta portuguesa. É uma pequena vingança litteraria que se nos deve perdoar.

[5] Major mihi rerum nascitur ordo: Majus opus moveo—7, 4 4.

[6] Iliad, 5.^o.

[7] O nosso socio o Sr. Castilho teve tambem o seu quinhom de critica na referida moxinifada romantica. Cremos piamente que elle riu tanto como teria rido o bom do Homero se fosse nosso contemporaneo.

[8] Alludimos ás Messenianas de Barthelemy e ás de Mr. Delavigne, de que talvez as primeiras deram a idéa. Das ultimas lembrámo-nos principalmente da de Waterloo.

[9] Em um curso de litteratura como nós o concebemos daria materia esta idea, aqui apenas ennunciada, a dois capitulos interessantíssimos, o da theoria do agradavel e o da poesia nacional, ou dos objectos da poesia moderna.

[10] É curioso ver as observações de Galileo acêrca da Jerusalem libertada, as quaes jaziam ineditas e foram publicadas em 1793, assim como o é ler a dissertação de Dureau Delamalle comparando as duas Jerusalens, a qual vem no fim do 1.^o tomo da Historia das Cruzadas de Mr. Michaud.

[11] Livro 1.^o, capitulo 1.^o.

[12] Publicados no vol. de 1838, e o terceiro no vol. de 1840.

[13] Opusculos, tomo V, pag. 10.

[14] Herzog-Geschichte der deutschen Nat-Litt.—pg. 99 (Jen. 1831.)

[15] Sismondi. De la litteratura du Midi—tomo I, pg. 289.

[16] Os que sobre esta materia desejarem mais ampla instrucção consultem as dissertações de Mr. Fauriel ácerca da origem da Epopeia Cavalleirosa, no 8.^o vol. da Revue des Deux-Mondes (anno se bem nos lembra, de 1832). A opinião de Mr. Fauriel, contraria á de Sismondi, põe o berço da maior e melhor parte das novellas de cavallaria na Provença; mas antes de abraçar essa opinião cumpre lêr e pesar maduramente as reflexões de Sismondi, que o põe na Normandia, a pag. 273 e seg. do 1.^o vol. da sua Historia Litteraria do Meio-dia da Europa.

[17] Não appareceu este novo artigo quer nos seguintes numeros do vol. 4.^o quer nos demais volumes, emquanto A. Herculano foi collaborador permanente do Panorama. De outros mui variados assumptos litterarios o auctor se occupou nesses volumes. A melhor conjectura sobre tal interrupção não é a de um simples esquecimento, mas a de que o auctor, certo de haver esclarecido a materia especial d'estes artigos onde mais interessava, tencionasse porventura ligar o porseguimento d'ella a certos pontos da nossa historia litteraria que demandavam vagarosa meditação.

[18] Sem exceptuar a dos espectadores, que, bem como tudo o mais, permitta-se-nos a expressão, é preciso crear de novo.

Sobre isso publicaremos brevemente um artigo que, dizendo respeito a um objecto realtivo á civilização e moral publicas, entra naturalmente no plano d'este jornal.

[19] E impressas em Napoles em 1517. Esta rara edição existe na bibliotheca publica do Porto, e pertencia segundo nossa lembrança, á livraria do Visconde Balsemão.

[20] O mesmo succedeu aos dramas portugueses contemporaneos: d'ahi provém, principalmente, a extrema raridade das primeiras edições de alguns d'elles, como de Jorge Ferreira, que só são conhecidos nas edições mutiladas.

[21] Como hoje tanta gente faz criticas dramaticas—as mais difficeis de todas—bom será que reparem nesta observação de Schlegel acêrca do gracioso, personagem especial do drama peninsular. E ainda o grande critico alemão não apontou o motivo principal d'este elemento dramatico: o gracioso faz com que o drama seja em verdade a representação da vida, onde sempre o terrivel e o lepido se cruzam e misturam inextricavelmente. Não ser o gracioso elemento necessario do enredo tem por motivo a natureza d'esse papel: o burlesco póde deixar de ser necessidade da acção; mas nunca de ser essencivel á fórma da acção: no quadro dramatico o gracioso não é desenho, é côr; é a sombra do clarão do bello e sublime. A tragedia classica, e a tragedia de Racine morreu, porque não havia ahi o contraste: a comedia de Moliere vive, e viverá para sempre, porque nella as lagrymas tolhem ás vezes o riso: na comedia antiga apparecia o drama; na tragedia apenas havia poesia.

[22] Julgamos dever notar aqui que os nossos modernos actores ainda não chamam geralmente qualquer drama, senão comedia, embora elle seja tragico. Porventura é isto uma tradição de bastidores, conservada desde o seculo XVII, em que entre nós eram tão vulgares as representações dos dramas de Lope e Calderon, como na propria Hespanha.

[23] Para prova de quanto se podem aproveitar as leis como fontes da historia, não dos reis ou dos soldados, mas do progresso das nações, deixando as leis civis de que poderiamos apontar circumstancias de extraordinaria curiosidade, limitar-nos-hemos a dizer que d'estas mesmas constituições d'Evora se deprehende o uso antiquissimo das representações nas igrejas, e de outras indecencias semelhantes que o povo julgava então ou licitas ou piedosas. «Deffendemos, diz a constituição 10 do titulo 15, a todas as pessoas ecclesiasticas e seculares, de qualquer estado e condição que sejam, que não comam nas egrejas, nem bebam, em mezas, nem sem mezas; nem cantem, nem bailem, em ellas, nem em seus adros: nem os leigos façam ajuntamentos dentro dellas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas, ou adros dellas, jogos alguns, posto que seja em vigilia de sanctos ou d'alguma festa; nem representações, ainda que sejam da paixão de nosso Senhor J. C., ou da sita resurreição ou nascença; de dia, nem de noite, sem nossa especial licença; porque dos taes autos se seguem muitos inconvenientes que muitas vezes trazem escandalo nos corações d'aquelles que não estão muito firmes na nossa sancta fé catholica, vendo as desordens e excessos que nisto se fazem.» D'esta passagem se póde concluir que o uso de fazer autos nas igrejas data pelo menos do decimo sexto seculo, sendo, além d'isso, provavel, que semelhante usança remonte a epocha muito mais remota; porque os costumes populares levam muitos annos, tanto a estabelecer-se como a destruir-se; e com effeito, ainda no fim do seculo XVII o bispo do Porto, D. Fernando Corrêa de Lacerda, fulminava censuras contra taes comedias, como se vê de uma sua ordenança que lemos, ainda mais curiosa que a antecedente constituição; mas que por brevidade não apontaremos aqui.

[24] Nasceu em 31 de Outubro de 1750. Falleceu em 11 de Outubro de 1839.

[25] Na capa d'este artigo se omittiram por esquecimento em seguida ao titulo as palavras Panorama—1844.