The Project Gutenberg EBook of Livro de Consolação, by Camilo Castelo Branco

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Livro de Consolação

Author: Camilo Castelo Branco

Release Date: December 27, 2010 [EBook #34756]

Language: Portuguese

Character set encoding: UTF-8

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK LIVRO DE CONSOLAÇÃO ***




Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)






 

Notas de transcrição:

O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1872.

Foi mantida a grafia usada na edição original de 1872, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.

 

BIBLIOTHECA—MORÉ


LIVRO DE CONSOLAÇÃO

ROMANCE

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

Não nos sirva de medo ou de desvio
Vêr como vai o mundo concertado.

D. FRANCISCO MANOEL DE MELLOA tuba de Caliope.

 

 

PORTO
VIUVA MORÉ—EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO

1872

 

{1}

 

 

 

LIVRO DE CONSOLAÇÃO

{2}

 

 

 

 

PORTO—IMPRENSA PORTUGUEZA

{3}

LIVRO

DE

CONSOLAÇÃO

ROMANCE

POR

CAMILLO CASTELLO BRANCO

 

Não nos sirva de medo ou de desvio
Vêr como vai o mundo concertado.

D. FRANCISCO MANOEL DE MELLOA tuba de Caliope.

 

 

PORTO
VIUVA MORÉ—EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO

1872

{4}
{5}

 

 

 

A SUA MAGESTADE

O SENHOR DOM PEDRO SEGUNDO

IMPERADOR DO BRAZIL

 

{6}

 

 

 

SENHOR

Eu não solicitei licença para dedicar a VOSSA MAGESTADE IMPERIAL este livro que representa um trabalho—palavra sagrada que nobilita e exalta os mais futeis lavores do espirito. Vi por esta lente de ambicioso alcance a pequenez da offerta, para que me não fallecesse a affoiteza de ir depor na livraria de VOSSA MAGESTADE as paginas estereis da historia d'umas paixões triviaes da vulgaridade, do mal.

Além de que, SENHOR, quando eu escrevia estas linhas, em frente da cadeira onde VOSSA MAGESTADE se assentou, no escriptorio do operario, esqueci-me de que é Imperador do Brazil Aquelle a quem as envio; e vejo tão sómente o sabio, o modelo de principes que, ao descerem até aos pequenos, deixam o diadema em altura onde mais subidos vão os respeitos.

Desde o momento que VOSSA MAGESTADE me honrou a obscuridade, fazendo-me sentir que vinte e dous annos de incessante lidar mereciam o galardão de alguns minutos gloriosos,{7} tambem eu cobrei alentos para chegar até á meza de estudo do douto Imperador, e esperar ahi uma hora muito feriada de leituras proveitosas para então LHE offerecer com respeitosa confiança um livro de mero desenfado, pois não tenho mais nada com que possa significar a VOSSA MAGESTADE a minha gratidão. De VOSSA MAGESTADE IMPERIAL

 

o mais reverente criado

 

Camillo Castello-Branco.

{8}
{9}

 

 

INTRODUCÇÃO

Le résultat de l'art... c'est l'adoucissement des esprits et des m½urs, c'est la civilisation même.

V. HUGO.Les voix intérieures.

Em uma tarde de agosto de 1867, passeava eu, com um amigo de aprazivel tracto, nos arrabaldes de Lisboa, e comparávamos a desamena e árida vegetação d'aquellas gándaras com os arvoredos e verdejantes valles do Minho.

Alli por perto de Odivelas me disse o meu amigo Luiz da Silva:

—Entremos por esta azinhaga que não tem sahida. Isto vae dar áquella casinha branca. Móra lá um velho a quem te vou apresentar. Mas quem sabe se o homem morreu?! Ha tres annos que o não vi...

—Tem esse sujeito—perguntei eu com a minha natural magnanimidade de immortalisador—passagens na vida dignas de chronica?{10}

—Tem, e magnificas.

—Capazes de um volume de 250 paginas em 8.º?

—Isso não sei. A biographia d'este homem é uma infelicidade vulgar, que, todavia, fez grande estrondo; mas os naufragios do coração parecem-se aos do mar: abre-se um abysmo, que sorve centenares de vidas, e d'ahi a pouco nenhum vestigio sobrenada á flor das ondas; assim succedeu na procella que sossobrou o velho que vaes vêr.

—Fez grande estrondo, disseste ahi tu! Mas eu, attento aos escandalos estrondosos do meu paiz, não me lembro d'isso...

—Não eras ainda nascido.

—Ah! eu não era ainda nascido? Isso então é caso muito antigo...

—Um pouco depois da edade-media—replicou Luiz da Silva.

E d'esta fórma gracejando por conta da nossa velhice, entestamos com uma porta estreita e baixa pertencente ao quintal da casinha branca.

O meu amigo bateu duas aldravadas na porta.

—Está aberta; levante o ferrolho quem é—disse uma voz de dentro.

—É vivo o homem!—disse Luiz, entrando.

Caminhamos por debaixo de uma parreira, cujos pilares se vestiam de festões de rozeiras vulgares e descuradas, alastrando-se por terra, e formando alcatifa de rosas murchas. Ao cabo da fresca e assombrada avenida, encontramos um caramanchel enverdecido de trepadeiras,{11} e lá dentro um ancião sentado em escabello de cortiça, afagando um gato maltez que lhe dormitava sobre os joelhos, e com pachorrento desdem entre-abriu os olhos á nossa chegada.

O velho formou com a mão direita um quebra-luz sobre os oculos verdes que pareciam coar-lhe aos olhos escassa claridade, e disse com prasenteiro semblante:

—Quem me faz a honra?...

—É Luiz da Silva e um amigo que tem a honra de ser apresentado a V. Ex.ª

Depois da apresentação, o sujeito, para quem o meu nome não era inteiramente desconhecido, disse ao meu amigo:

—Muito ha que o não vejo, snr. Silva. Seu tio general esteve aqui ha tempos, e me contou que V. Ex.ª andava a correr mundo. Conte o que viu.

—Vi o que Salomão via em tudo: vaidade.—Respondeu, sorrindo, o meu companheiro.

—Então, caro senhor meu, não só viu, mas estudou muito—volveu Venceslau Taveira, afagando o lubrico dorso do gato que, estrouvinhado pela incommoda palestra, se remechia no regaço do dono, resmuneando, e afofando o ninho para recomeçar o seu placido dormir.—Escusava de sahir de si proprio, snr. Silva, para vêr o homem qual é em toda parte—proseguiu o velho.

—E, se eu quizesse vêr um homem distincto do commum—tornou o meu amigo—bastar-me-hia ter conhecido V. Ex.ª{12}

Distincto, quer dizer, distincto na infelicidade...—acudiu Taveira.

—Na honra e na virtude—emendou Luiz da Silva.

—Agora vejo que não estudou nada... Vaidade, tudo vaidade, e... algumas lagrimas.

E, voltado contra mim, perguntou:

—O seu amigo disse que v. é da provincia. É minhoto?

—Tenho vivido no Porto—respondí.

—Lá viví tambem dois annos e tanto. Os suburbios são graciosos, quanto me podiam parecel-o atravez do fumo das batalhas. Sou um dos sete mil e quinhentos. Conservo recordações agradaveis de umas grandes arvores da quinta do Vanzeller. Verdade é que as contemplei em posição molesta. Havia-se-me cravado uma bala na perna direita, e assim estive duas horas esperando a maca. Foi n'este espaço de tempo que eu, confrangido, de dôres, admirei a serenidade das arvores, e ponderei a vantagem de ser vegetal, estranho ás côrtes de Lamego e á constituição da monarchia. E a impassibilidade das carvalheiras aparando as balas no seu arnez de cortiça! Tudo é grande e forte, excepto o homem! O homem... esse é um mixto de odios, de angustias e vaidades, segundo assevera o nosso viajante Luiz da Silva...

Proseguiu o ancião, entremeando de discretas jocosidades a deleitosa conversação, que durou duas fugitivas horas.{13}

Não se me abriu ensejo de pedir a Venceslau Taveira licença de o visitar, nem elle me offereceu a sua casa. Facil era de perceber que, se as visitas lhe eram agradaveis, a solidão lhe era mais recreativa que as visitas.

Convidou-nos para o seu chá, quando anoiteceu, e acompanhou-nos até á porta do quintal.

—Quem é este homem?—perguntei ao meu amigo.

—A historia d'este homem ha de contar-t'a meu tio general que é do tempo d'elle, e vem todos os annos da provincia de Traz-os-Montes visitar o seu companheiro de infancia. Os lances essenciaes poderei referir-t'os; mas as particularidades só meu tio Pedro as sabe.

—Que posição social tem elle? Ouvi-te dar-lhe excellencia.

—A «excellencia» poderia significar que elle não tem alguma posição social; ainda assim, dou-lhe excellencia, porque o seu appellido representa familias antiquissimas da Beira Alta; além d'isso, é do conselho de Sua Magestade, official maior de secretaria aposentado, gran-cruz da ordem de Christo, etc.


Desde Odivelas a Lisboa, me referiu Luiz da Silva as passagens capitaes da historia de Venceslau Taveira.

Alguns mezes depois, o general Pedro da Silva chegou a Lisboa, e, a rogos do sobrinho, contou-me circumstanciadamente{14} successos que elle denominava os obscuros heroismos da mais honrada e excruciada alma.

E concluiu d'esta maneira:

—Se v. quer obrigar-me, escreva estes acontecimentos; mas não os enfeite com episodios de sua casa. Se a narrativa sahir verdadeira, poderá ser util. Deve v. fazer um livro dulcificante para alguns corações amargurados. Póde até denominal-o, se quizer: LIVRO DE CONSOLAÇÃO. Dou-lhe por cada lagrima, que fizer verter, um germen de boa acção, ou se quer de um bom pensamento. Porém, se v. adulterar a tragica singeleza d'esta desgraça com as inverosimilhanças do genio francez, o seu livro ficará sendo meramente uma novella. Escuso pedir-lhe—terminou o general—que empregue tão sómente a sua phantasia nos nomes dos personagens, em razão de estar ainda vivo o principal.{15}

I

Historia infantil de todo o homem que sente....

LOPO DE SOUZAHerança de lagrimas.

Venceslau Taveira nasceu na comarca de Lamego em 1795. Como filho segundo de casa vinculada, foi destinado desde o berço a frade cruzio ou benedictino. Estudou humanidades em Coimbra, e entrou, portanto, a noviciar na casa capitular de Tibães aos quinze annos.

Findo o anno de prova, o profitente interrogado manifestou que lhe faltava genio e fé para ser frade como cumpria.

Fr. Francisco de S. Luiz, então conventual em Tibães, e, mais tarde, bispo, ministro liberal, patriarcha e cardeal, sahiu em defeza do noviço contra as violentas persuasões dos monges escandalisados da impiedade de Venceslau.

Não ter fé! Era a primeira vez que um noviço ousára dizer que não tinha fé! Que elle não tivesse virtudes,{16} vá; que muito frade se salvou sem ellas, graças ao habito que faz o monge e á contricção final que faz o santo; mas não ter fé!...

Sem impedimento d'estas e outras razões dos frades escandalisados, argumentava o sabio benedictino que era desprimor notavel para a religião o acorrentarem-lhe ao altar os seus sacerdotes; que o descredito das ordens monasticas havia sido motivado pelo vicioso proceder dos frades constrangidos; e que, finalmente, ninguem esperasse que a violencia abrisse á luz da fé corações fechados e escurecidos pela duvida.

Com tão válido protector, o noviço despiu o habito e foi para casa. Recebeu-o a mãe com amorosa indulgencia; mas o pae, affrontado da insolita rebeldia, apertou-o no duro dilemma: ser frade, ou, quando não, ir grangear sua vida onde lhe bem quadrasse.

Baldados os rogos e piedades da mãe, já ao marido para que perdoasse, já ao filho para que obedecesse vestindo o habito, Venceslau, com algumas moedas liberalisadas pela commiseração maternal, foi caminho de Lisboa onde não tinha parentes nem amigos.

Principiava o anno 1811.

O mancebo chegou a Santarem no dia em que o general Massena alli aquartellava a sua divisão. O reboliço da cidade desbordando de tropa, o espectaculo offuscante de um exercito embriagado de victorias, aquellas magestosas figuras dos generaes do imperio alvoroçaram o animo do rapaz cuja imaginação verdejava as epicas fantasmagorias dos dezesseis annos.{17}

Que farte ouvira elle em Tibães execrar Napoleão, Massena, Soult, Junot e os outros d'aquella funesta constellação. O seu entendimento queria duvidar da justiça das accusações; mas o patriotismo insinuava-lhe o dever de odiar francezes, salvante Rousseau, cujas obras elle podéra lêr clandestinamente, subtrahindo-as da gavêta defeza da livraria de Tibães, onde talvez as recadasse com prudente cautela o esclarecido fr. Francisco de S. Luiz.

Á conta pois do auctor do Contracto Social está, por desventura de sua alma, a grave responsabilidade de haver-se esquivado á tunica de S. Bento aquelle rapaz que em Santarem perguntava a outros:—Depois d'este acto de justiça quem póde negar a Massena as virtudes militares que Plutarco refere dos varões illustres de Grecia e Roma?

O leitor vae recordar a sabida passagem que, no espirito do moço enthusiasta, emparceirava o general francez com Themistocles ou Paulo Emilio.

Quando os francezes retiravam de Alemquer, certa familia de notoria fidalguia, receando insultos da plebe, acompanhou o exercito invasor com uma escolta de dois dragões. Ora um d'estes indignos guardas, ageitada a occasião, e vencido do impeto do sangue e dos conselhos do demonio, maculou mais ou menos—mas é de crêr que fosse mais—a pudicicia de uma das damas confiadas á sua vigilancia.

Eis pois um dragão indigno de aparelhar com o outro que, no jardim das Hesperides, guardava o vélo{18} de ouro, de certo com mais peso e quilates, mas com muito menos direitos á nossa consternação.

E succedeu que a dama queixosa, posto que o infando desastre houvesse sido secreto, (ave rara!) preferisse ser honrada a parecel-o. Assim pois, logo que chegou a Santarem, D. Lucrecia (ouso chrismal-a assim em honra da sua memoria bastante romana) expoz a Massena o affrontamento que lhe fizera o dragão. Ordenou para logo o general que o criminoso entrasse em conselho de guerra, e tão summario correu o processo que, no lapso de meia hora, foi o carnalissimo réo interrogado, sentenciado, confessado e espingardeado!

E como quer que alguem intercedesse em favor do comdemnado exorando menos rigorosa pena, o general respondeu: «Depois de arcabuzado, requeira».

Tal foi o caso de disciplina que obteve para as aguias de Austerlitz um acerrimo partidario.

Apresentou-se Venceslau Taveira ao marquez de Alorna, um dos generaes portuguezes que seguiram deslumbrados o metheoro da Corsega, quando as côres ardentes já se íam esmaiando ao visinhar-se do céo de Waterloo.

O marquez, illustrado e dadivoso, agasalhou o foragido noviço com tanta cortezia como caridade, sentando-o á sua mesa e provendo-o das coisas que lhe escasseavam, na crise em que a fome apalpava os portuguezes menos protegidos.

Comprazia-se o provinciano em convivencia d'alguns fidalgos, commensaes de Alorna, taes como o marquez{19} de Loulé, o conde de S. Miguel e D. Luiz de Athaide. Este ultimo foi grande parte no precoce rancor de Venceslau aos governos absolutos.

Era D. Luiz de Athaide filho do conde de Atouguia e neto do marquez de Tavora, ambos justiçados como regicidas sob o reinado de D. José I.

Um dos amigos de Venceslau, então adquiridos em casa do marquez, escrevendo, quarenta e cinco annos depois, as suas Memorias, avaliou ineptamente D. Luiz de Athaide com estas descaroadas linhas:

«... Não posso deixar de mencionar outro homem notavel que alli encontrei, e que, descendente da mais alta fidalguia da nossa terra, era um tristissimo exemplo da degradação a que póde chegar a especie humana, decahida do explendor da grandeza e mergulhada no lodaçal da miseria e despreso. Foi D. Luiz de Athaide filho e neto d'essas familias desgraçadas a quem o inexoravel grande marquez de Pombal sacrificou sobre o horroroso altar do poder absoluto e de quem até pretendeu riscar os nomes da superficie da terra... Em verdade, era digno de ser observado por quem podésse bem avaliar o que são e podem ser os destinos do animal chamado homem... Quem o via, e não sabia quem era, só o podia ter por um sordido e baixo môço de cavallariça. Na sua figura e no seu trage trazia todas as insignias das maldições humanas, e nas suas palavras não havia senão rancor e odio, e esse rancor e odio tão profundos e inveterados, quantos eram os annos desde que poude conhecer as suas{20} mizerias. A quem lhe fallasse na casa de Bragança, respondia com rugidos de leão; parecia que lhe saltavam os olhos pela cara fóra estimulados pela raiva, e só socegava depois que desafogava o coração ulcerado com imprecações horriveis. Para elle só Napoleão era o rei legitimo de Portugal; e tal era a affeição que lhe tinha que, havendo, não sei porque artes, ganhado uma grande porção de dinheiro a foi entregar a Massena assim que entrou em Portugal. Este lh'a acceitou e agradeceu, declarando-lhe ao mesmo tempo que esta lhe seria restituida em Paris, se para lá fosse...»[1]

Apezar d'esta apreciação indicativa de escriptor e espirito menos de ordinarios, e incapazes de alçarem-se até onde a desgraça ergue pelos cabellos as suas preas, D. Luiz de Athaide, no conceito de Venceslau, incutia a um tempo compaixão, respeito e assombro. Aterrava e commovia ouvil-o vociferar contra a raça de D. José I, e de repente levar as mãos aos olhos afogados em lagrimas, soluçando o nome de seu pae. Se alguem lhe lembrava que elle era proximo parente da familia real, e portanto devia cohibir-se de insultal-a no mais sensivel da honra, exasperava-se a termos de repellar-se por não poder inventar maneira de denegrir em si proprio as gotas de sangue real que lhe deshonravam as veias.

Tanto escogitou, porém, que descobriu facil processo de enxurdar quanto humanamente se podia a sua{21} progenie realenga. Foi assim. Encontrando, mezes depois, em Paris, no derradeiro escalão social, um vulto de mulher desfigurada pelo squalor do vicio, fêl-a sua esposa, com o intuito de a fazer mãe dos parentes da casa de Bragança. D'este caso tambem teve noticia José Liberato Freire de Carvalho, nas citadas Memorias.

Escreve elle: «... Mas como casou! Consta-me tambem que alli em Paris vascolejára as ultimas fezes da sociedade para encontrar uma mulher que fosse digna d'elle e que a achára. Reduzido na sua terra á infima sorte de um paria na India, quiz, no seu mesmo aviltamento, vêr se podia tambem aviltar, como elle dizia, algumas gotas de sangue que lhe circulassem no corpo, e fossem d'essas que animavam a familia real portugueza.»

Homem de tão singular e descommunal condição tinha direito a ser estudado e desenhado por quem tivesse vista d'alma que alcançasse o enorme desgraçado no fundo da sua voragem. Dos seus coevos e camaradas nenhum deu tento d'esse extraordinario martyr senão o ex-frade José Liberato, que nunca pôde desfazer-se de tres partes de máo frade com que fugiu aleijado do convento. O neto do brioso Tavora, o representante da opulenta familia, cujos bens haviam sido confiscados para a casa reinante, ou para a do valido que se pascia nas lagrimas, no sangue e no espolio dos degolados em Belem, emfim, aquella sublime e rancorosa desesperação de D. Luiz, que dava o ouro ganhado em azares do jogo para derruir o throno, e trajava andrajos para que{22} assim o vissem roubado nas ultimas mealhas de seu pae—tal homem assim maltrapido e crucificado no seu opprobio, figurou-se aos olhos de José Liberato o compendio «de todas as maldições humanas»!

Com interesse de respeitoso compungimento o via Venceslau Taveira, e o escutava nas apostrophes iracundas contra a dynastia de Bragança. Já decrepito, o solitario da charneca de Odivelas, recordava o neto dos Athouguias, e dizia que se a França houvesse tido um homem assim recaldeado em fraguas de tamanhas angustias—um tão extravagante complexo de soberba e aviltamento, de saudade maviosa e sevos odios—os mais grados litteratos o exalçariam diante do mundo, tornando-o interessante como historia, como philosophia, como moral, e até o poeta se não pejaria de ir procurar nas cavallariças de Massena esse neto de reis portuguezes, e vestil-o dos esplendores da poesia tragica, ao mesmo passo que o seu real parente, o principe D. João de Bragança, apenas vingaria ser dignamente cantado nas epopêas bordalengas de José Daniel.

Affeição de outra tempera, como de eguaes e de mancebos em alvorada de esperanças, ligou Venceslau Taveira a um official de infanteria do quartel-general de Pamplona.{23}

II

O célestes concerts de joie et de douleur!

HENRI BLAZE.Matutina.

Era um rapaz de vinte e dous annos, chamado Eduardo Pimenta, natural de Braga.

Este moço levava uma vida tanto em comêço já cortada de profundos golpes; e, por amor d'isso, como as suas dôres não podiam ser expiação de maus actos, a gente de coração queria suavisar-lh'as, linimentando-lh'as com o balsamo da amizade.

Bosquejemos a historia d'esta mal estreada existencia.

D. Antonia de Portugal, famigerada formosura n'aquelle tempo, viera de Lisboa a visitar irmãos, que tinha no Porto, alliados por casamento nas duas casas de mais gothica estirpe. Affeiçoara-se aquella dama a um alferes, sem discriminar os distantissimos pontos de partida{24} em que o Creador pozera o seu primeiro avô do avô de Eduardo Pimenta:—erro talvez devido á insufficiente leitura que a menina tinha de Moysés.

Era orphã D. Antonia; mas a tutela de um tio que por vezes exercera o então poderoso cargo de ministro de Estado, pesava-lhe mais oppressiva e inflexivel que o poder paterno. Assim pois, tão depressa raspou nos ouvidos do fidalgo o indecoroso affecto da sobrinha, que logo Eduardo Pimenta foi chamado á capital e transferido ao Brazil em serviço militar. Inquebrantavel em seu amor, D. Antonia incutiu no peito do desterrado a flamma da sua coragem, accendendo-lhe esperanças temerarias e perigosas.

Os parentes d'ella tomaram-se de espanto e ira, ao saberem que o alferes desertára do seu regimento, desembarcára em Lisboa, e ajoelhára aos pés do principe regente solicitando e impetrando licença para casar-se com D. Antonia de Portugal.

O consentimento, porém, do bondoso principe não tolheu que o alferes, acossado pela perseguição de sicarios, se evadisse da côrte, refugiando-se nos arrabaldes de Braga, d'onde em vão implorou por mediação de amigos a malograda protecção do principe.

No entanto, a pertinaz menina, cansada de reagir á pressão dos parentes, acolheu-se ao mosteiro de S. Bento da Ave Maria, no Porto, onde tinha uma tia professa; mas d'ahi ainda o braço rijo do tio ministro, mediante o chanceller das justiças, a foi arrancar, allegando que{25} a reclusa, escrevendo e recebendo cartas, gosava liberdades deshonestas que em sua casa lhe eram prohibidas.

E em verdade escrevia muitissima carta D. Antonia, e dispunha de estylo que, relativamente á época, não era menos de romantico. Se o leitor quizer, logo lhe darei occasião de apreciar a linguagem e a sensibilidade extrema d'esta senhora que pagou penosamente os dons do seu espirito.

Apartada judicialmente da indulgente freira, foi transferida para o collegio das orphãs que n'aquelle tempo foi viveiro de meninas lastimosas, mormente as pensionistas, as formosas, as amadas, as ricas, as filhas segundas—e hoje em dia está sendo—graças á santa Casa da Misericordia—um alfôbre de educação moral onde o vicio não póde coar-se senão em parcellas diminutissimas, por onde se vê que a Misericordia conseguiu estar-se em pleno osculo com sua irmã ou prima, a Castidade.

N'aquelles dias, pois, a urna dos divinos balsamos de Jesus caritativo transformára-se em gral onde os corações eram pulverisados. E d'este pó amassado com lagrimas sustentava-se a honra das familias, a dignidade das mulheres, e nutriam-se as boas esposas que depois sahiam a repartir affectos entre maridos, e primos e capellães, e tudo mais que convinha a manter honesto equilibrio entre as coisas humanas e divinas.

Pois, sem impedimento das vigilantes espias que lhe espreitavam os gemidos e os arremessos, a reclusa vingou{26} passar na roda uma imprudente carta que denunciava a residencia do alferes homiziado.

Guiados pelo destino da carta, os aguazis do corregedor, com auxilio de escolta cedida pelo general da provincia, cercaram o escondrijo do desertor, prenderam-o com affrontosas precauções, e aferrolharam-o na mais escura masmorra do castello de S. João da Foz, onde, quarenta annos antes, alguns padres da Companhia de Jesus haviam expirado de fome e frio por ordem do deshumano marquez de Pombal.

Avisada do desastre causado por sua indiscrição, D. Antonia rompeu em tamanhos desatinos que a regente, por amor á vida não votada ao martyrio, requereu que lhe tirassem d'aquella casa mansa e quieta a turbulenta fidalga, que ameaçava tortural-a com a roda de navalhas de Santa Catharina, virgem e martyr. A regente, diga-se verdade liza, parece ter tido escrupulos de mentir, e receios de não poder entrar no reino da gloria eterna com a dupla corôa da santa anavalhada. Não lhe pezem, todavia, as minhas suspeitas sobre os ossos que D. Antonia lhe ameaçou tres vezes ou mais.

O certo é que a louca de amor foi d'alli passada com guardas de esbirros para Santa Clara de Coimbra, mosteiro onde áquelle tempo se exercitavam maleficios inquisitoriaes sobre donzellas eivadas do judaismo da ternura por sugeitos incongruentes com suas pessoas e bens.

N'esta conjunctura, succedeu entrar em Portugal o invasor Junot, e com elle a vanguarda de ideias livres,{27} vestidas com as pompas da egualdade humana—santas palavras que desafogaram corações abafados ás mãos da tyrannia de paes e tutores. D. Antonia, alumiada na escuridade da sua cella por lampejos de esperança, ao saber que o general estava em Coimbra, escreveu a seguinte carta que vae textualmente copiada da que tenho e que é a original com toda a certeza. Bem póde ser que semelhante documento desquadre á urdidura d'esta narrativa; vá, não obstante, como homenagem a uma dama infelicissima, a qual, ao fechar-se em sua sepultura, abriu algumas que mais tarde se encerraram depois de cruciantes agonias, como no discurso do livro se irá vendo.

Dizia assim a carta a Junot:

«A alta consideração que por tantos titulos é devida a V. Ex.ª, imporia á minha triste situação o mais respeitoso silencio, se a vossa generosidade, Senhor, a não tivesse prevenido, assegurando aos habitantes de Portugal uma protecção que, fazendo a nossa gloria, é a mais sublime recommendação da vossa virtude e nobreza. Estes dons tão preciosos me animam e prestam valor de elevar minhas supplicas e lagrimas á respeitavel presença de V. Ex.ª O illustre guerreiro que participa da gloria do maior dos heroes que tem visto os seculos, saberá como elle unir clemencia e piedade ao valor que no campo de Marte immortalisa seu nome.

«É do fundo de um claustro que a mortal mais desgraçada ousa aspirar á honra de invocar o illustre general. É a innocencia tyrannisada e os direitos mais{28} sagrados combatidos que se refugiam no asylo de vossos pés.

«Tenho a infelicidade de pertencer a uma familia nobre e desde a minha mais tenra infancia me decidi por um militar que servia com honra em um dos regimentos do Porto. Se elle não tinha fortuna tão brilhante como minha familia, possuia todas as boas qualidades que caracterisam as almas nobres. Por um caprichoso orgulho, que não póde soffrer as virtudes puras (porque lhes ignoram o preço e os encantos) oppõe-se minha familia fortemente á minha escolha, prevenindo nossas vistas definitivas de um casamento occulto; e, conhecendo bastante a firmeza de nossos desejos, meus parentes solicitaram e obtiveram uma ordem para que o meu pretendido passasse á America. Este injusto procedimento feriu sensivelmente a minha delicadeza e reputação.

«Empreguei todo o poder que eu tinha sobre o espirito do meu esposo, obrigando-o a voltar clandestinamente a este reino, assegurando-lhe a minha mão e a minha fé. Apoz um anno de ausencia, chegou á côrte; lançou-se aos pés do throno, e foi recebido pelo virtuoso principe com a maior affabilidade; porém, o ministro de estado impediu a conclusão de tão ditosas esperanças, forçando meu esposo á cruel necessidade de se esconder dos seus perseguidores que o espiavam em toda a parte para satisfazerem o seu antigo odio e incompleta vingança. Em quanto elle se foragia no seio de sua honrada familia, eu fui por meus parentes forçada{29} a receber outro esposo. Resisti. Não pude. Abracei o ultimo partido que me restava para subtrahir-me ás suas violencias. Abandonei a casa de meus algozes e acolhi-me aos pés da cruz. Ahi mesmo a minha desgraça amparada nos confortos da religião, foi diffamada de astucia. Deu-se-me um Recolhimento de orfãs, onde até as lagrimas me eram empeçonhadas pelos conselhos brutaes das minhas directoras, que me chamavam á penitencia por ter amado um homem pobre em quem Deus influira as virtudes mais bellas e caracteristicas do seu divino creador; mas, Senhor, como n'aquelle Recolhimento os meus gritos de desesperação me dessem o triste semblante de louca, a commiseração dos meus parentes enviou-me a umas torturas novas n'este convento de Santa Clara, d'onde, banhada em lagrimas, estou escrevendo a V. Ex.ª

«Apezar dos espiões, ameaças e insultos, eu conseguira remetter ao meu consternado amigo uma procuração que devia servir ao nosso casamento, consentido pelo arcebispo de Braga. Quando, porém, os meus parentes souberam que este acto se havia praticado em uma egreja de Barcellos, instauraram processo contra o meu esposo com o proposito de o condemnarem a degredo. Exigiram de mim que eu negasse a minha assignatura na procuração, com o fim de o sentencearem como falsificador de firmas; mas eu, invocando o meu amor e a minha honra, achei pequenas e covardes as tyrannias que se augmentaram a ponto de me ser negada a mais necessaria e urgente subsistencia. As queixas de{30} meus irmãos chegaram ao throno; todavia, apesar do valimento de tão poderosos inimigos, não quiz sua alteza real que meu esposo fosse castigado sem ser convencido. A innocencia d'elle ia ser patenteada, e por tanto destruida a opposição da minha familia, quando a partida do regente para o Brazil, nos deixou outra vez expostos á furia dos nossos perseguidores. É fortissimo o partido d'elles. O snr. Br**, nomeado membro da regencia, e outros fidalgos parentes de minha mãe, me fazem tremer pela nossa sorte. O nosso triumpho está sómente reservado a um poder superior. Só um general de Napoleão, immortal como elle, poderá salvar-nos, libertar-nos e unir-nos. Este prodigio de grandeza de alma é proprio de V. Ex.ª; é uma das maiores victorias do Anjo que já está gosando a immortalidade no nome que ellas lhe deram.

«Dignae-vos, pois, Senhor, em nome de tudo que ha sagrado, ser o protector de dois amantes desgraçados, que a vossos pés imploram uma graça que lhes será a elles a suprema felicidade. Uma palavra só que vos digneis proferir a nosso favor, a iremos de joelhos agradecer, beijando-vos mil vezes a mão que nos abriu o céo; ao mesmo tempo que em nossas almas, Senhor, sereis adorado como homem a quem Deus conferiu poder de nos resurgir da morte, se tal vida não é mais digna da vossa commiseração...»

Esta carta foi vertida para francez por Vidal, ajudante do general Tiebau, coadjuvado por outro que depois se fez conhecido no mundo scientifico, chamando-se{31} Geofroi de Saint-Hilaire. Este, egual no talento e na sensibilidade, leu a carta a Junot, internecendo-a de pauzas e modulações, tendentes a mover o peito do soldado pouco affeito a commoções dramaticas.

D. Antonia de Portugal recebeu da mão de Vidal a seguinte resposta:

«Madame. A innocencia opprimida não se dirige inutilmente ao representante do Grande Napoleão, cujo poder abrange o mundo, e cuja justiça se distribue por vassalos e reis. Ordeno que se vos dê liberdade e passaporte para Lisboa. Vinde alli, e de lá ser-vos-ha facil fazer sahir dos carceres do Porto o ente que vos interessa, e que, como vós, ha sido a victima do orgulho de um ministro. Eu vos protegerei a ambos. Tenho a honra de ser vosso muito humilde e obediente servo—Junot[2]{32}
{33}

III

Ton chemin est devant toi. Marche! marche!

ED. QUINET.Ashaverus.

Em seguimento, a prelada de Santa Clara recebeu intimação militar para entregar D. Antonia de Portugal.

Os enviados á redempção da gentilissima captiva espavoriram as freiras, quando marcialmente entraram ao portico do mosteiro.

As mais avançadas em edade e virtude não ficaram estranhas ao receio de serem desbalisadas do thesouro de merecimentos que haviam amealhado á custa de muitas violencias, renunciações, cilicios e jejuns debilitantes. As menos jejuadas e mais propensas a crêr na malicia dos homens, se tivessem lido o que asseveram chronicas e o snr. A. Herculano repete no Eurico, a respeito de certas monjas em risco de serem presa lasciva dos sarracenos, é bem de crêr que pedissem á prioreza{34} que as degolasse na crypta, antes que o bafejo pestilencial dos francezes lhes mareasse a candura, obrigando-as a córar.

E, tantos visos de exactidão offerece a hypothese lisongeira, que, ao saber-se que D. Antonia era reclamada pelo general Junot, todas—que eram cento e vinte as professas—illudidas, talvez, pediram voz em grita que as deixassem soffrer por concomitancia o mesmo martyrio. Que jubilo iria no empyreo, se as famosas onze mil da legenda sahissem a receber no atrio dos seus jardins eternos subsidio que lhes enviava, d'uma assentada, Portugal—torrão bastante sáfaro para tal messe!

Não eram já, entretanto, aquelles dias os azados para tão heroicos martyrios. A prelada, exemplificando comsigo a privação do holocausto, forçou a commedirem-se as noviças, as noviças principalmente, que tinham os olhos sedentos de mortificação fitos nos algozes que as remiravam do pateo com uns olhares assaz significativos das carniceiras entranhas que os distinguiam dos frades portuguezes. Ora estes frades da comparação eram uns que frequentavam os locutorios, e suspiravam tão mysticamente quanto lhes permittia a eructação da orelheira mal esmoida.

Não pude averiguar se o agiologio das franciscanas conimbricenses commemora algumas martyres empolgadas no tempo dos francezes em que a roupa d'elles e a virtude das mulheres portuguezas era tudo o mesmo para tão desmedidos facinoras, segundo affirmam piedosas tradições. Do que tenho certeza é que D. Antonia{35} de Portugal sahiu do convento com tanta precipitação, ou tantas lagrimas a nublarem-lhe a vista, que nem sequer divisava, entre os officiaes francezes, Eduardo Pimenta, que parecia ajoelhar quebrantado pelo pezo da felicidade.

Quando Venceslau Taveira conheceu este moço, mezes depois dos acontecimentos referidos, chorava elle, e quantos viam Eduardo a braços com a desgraça que raras vezes, em episodios amorosos, se defronta com o coração humano tão inexoravelmente.

Um dia, o alferes promovido a capitão no exercito francez, foi mandado servir ás ordens de La Borde na batalha do Vimieiro, em que a estrella dos valorosos portuguezes lampejou uns clarões que davam a lembrar o cyclo heroico de que nem sequer, para tudo se perder, nos resta já agora uma briosa saudade.

D. Antonia estanceava então na Alhandra esperando que seu marido a mandasse recolher a Lisboa.

N'esta anciedade a fulminou a noticia de que o general La Borde morrera na Roliça e com elle todo o estado maior.

E, no mesmo lance em que tal nova lhe deram, uns homens, que se diziam seus valedores no immenso infortunio, quasi a forçaram a cavalgar, caminho de Coimbra, onde, áquelle tempo, iam chegando os inglezes desembarcados na Figueira.

E alli, da portaria do mosteiro de Santa Clara avisinhou-se chusma de homens, que levaram uma mulher{36} estorcendo-se a brados afflictivos. Depois, abriu-se a porta do mosteiro, e fechou-se logo que sobre o escabello foi deposta D. Antonia de Portugal, que desmaiára, se é que a morte se não amerciára d'ella.

Entretanto, nem La Borde nem o capitão Pimenta haviam morrido dos ferimentos. Alguem vira o official portuguez n'um olivedo do Tojal enfaixando um braço que sangrava. D'este encontro resultou o boato da morte, ao mesmo tempo que outros juravam de vista assistirem ao enterro do general na egreja do Carmo em Lisboa.

Como quer que fosse, os portadores da falsa noticia a D. Antonia eram confidentes dos tios d'ella, e a bala, que raspára na espadua do capitão, fôra-lhe apontada ao peito por um d'esses homens. N'aquelle tempo a fidalguia d'estes reinos ainda resfolegava por taes respiradouros o sangue brioso que se lhe emborrascava nas arterias. O timbre das armas obrigava. Os paquifes do elmo, arcando-se sobre as cabeças d'uns mouros, esculpturados com barbaridade digna das proezas, obrigavam seus donos ao preceito heraldico de guardar a honra da familia com ferocia egual ao disvelo que punham em honrar a patria nos açougues da Asia.

Enviára Eduardo Pimenta dous soldados portuguezes que levassem D. Antonia a Cintra onde se estavam redigindo os artigos da convenção. Como fosse clausula antevista d'aquelle convenio sahirem os vencidos com as honras da guerra, o official contra-pesava o infortunio{37} do desterro com o jubilo de passar com a esposa a França, onde os generaes portuguezes lhe promettiam protecção.

Os enviados de Eduardo voltaram dizendo que D. Antonia sahira da Alhandra, algumas horas antes, acompanhada por milicianos.

Alanciado por tão inesperada agonia, o official affrontou o maximo risco, perpassando pelas guerrilhas que confluiam a Lisboa. As insignias e a rapidez da carreira acirraram o patriotismo de alguns bravos que o espingardiaram e feriram mortalmente.

Uns caridosos frades cruzios que seguiam para uma quinta chamada Cadafaes, nos arrabaldes da Alhandra, transportaram o ferido. Alli, a peito com a morte, o desgraçado venceu-a, quando lhe seria redempção de maiores penas succumbir.

Apoz longo tratamento, vae-se aquelle homem só, pobre, cercado de incertezas e perigos. Ninguem sabia indicar-lhe o destino de D. Antonia. Os amigos negavam-se a acoital-o da sanha da plebe. Por sobre tantos desamparos, a pobreza antepunha-lhe uma cadeia de adversidades, por entre as quaes lhe transluzia a consoladora ideia do suicidio.

O pae de Eduardo era portuguez de marca maior, entranhas nacionaes, ferventes de nacionalismo e odio ao filho amaldiçoado que se bandeára com jacobinos.

Quando, pois, Eduardo, disfarçado em almocreve, lhe appareceu á beira do leito onde o velho se esperguiçava nos regalos de quem dormiu somno de justo, repulsou-o{38} com vociferações dignas dos paes romanos que sentenciavam os filhos á morte, e mais dignas ainda do proverbial amor patrio dos bracharenses.

—Fóra d'ahi, herege!—exclamou o ancião, estirando os braços á cara do filho.—Pegaste em armas contra a nação de Affonso Henriques—proseguiu o honrado portuguez com ira azedada pelas reminiscencias historicas—tu! jacobino! ousaste desembainhar a espada contra a tua patria! contra a patria de Affonso Henriques, que venceu cinco reis mouros, com auxilio de Jesus Christo, que lhe fallou no campo de Ourique! Vae-te da minha presença, maldito, em nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo! Não me tornes a pôr o pé em casa, sem te limpares com uma confissão geral, impio, atheu!

Aturdido pela apostrophe e coberto de lagrimas, Eduardo ajoelhou, referindo os infortunios que o levaram por necessidade e gratidão a servir o seu libertador. Com o soccorro da mãe compadecida, conseguiu commover o velho até ao extremo de prometter-lhe não o denunciar á justiça, com a clausula de que iria sumir-se nas Alturas de Barroso em casa de parentes.

Foi; mas poucos dias permaneceu na soledade agra de uma serrania onde o desejo de morrer o debruçava sobre os despenhadeiros, implorando á sua desgraça a coragem do suicidio. A coragem! Porque não hei de, acostado a moralistas de grande tomo, chamar-lhe antes cobardia? É porque ha mister enorme coração quem dentro d'elle se abre um tumulo. É porque vae esforçada{39} valentia n'isto de um infeliz se aniquilar com a certeza de que em vez de lagrimas, lhe pesará sobre a memoria a censura dos felizes, o horror dos espiritualistas catholicos, e a nota da demencia—suprema injuria a essas pobres almas que a divina justiça não mandaria ás penas eternas sem lhes descontar os terribilissimos paroxismos, aquelle tormentoso debaterem-se nas prezas da desgraça, aquelle relanço d'olhos ao céo e o grito d'alma n'esta dilacerante pergunta: «Quando te pedí eu a vida, ó Creador?»

Eduardo desceu um dia das Alturas de Barroso e entrou no Porto demudado e vestido por maneira que o não poderiam suspeitar. Acercou-se do páteo de um irmão de D. Antonia de Portugal, e conversou com os palafreneiros, occasionando perguntar novas da fidalga. Disseram-lhe que ella estava em um convento de Coimbra, onde a encerraram depois que o marido acabára na batalha de Vimieiro.

Dias depois, n'aquelle anno de 1809, o marechal Soult entrou no Porto. O capitão vestiu a farda e apresentou-se ao general.{40}
{41}

IV

Il est plus glorieux de tomber généreuse,
D'embrasser en partant ceux qui nous font souffrir,
De fluir sans remords, comme une femme heureuse.

MAD. GIRARDIN.Poésies.

Prescinde o leitor que lhe historiem os sabidos desastres do exercito francez até ao dia em que Massena, o abatido «anjo da victoria», entrou em Coimbra.

Eduardo Pimenta correu á portaria do convento, e perguntou por D. Antonia de Portugal, a quem desde o Porto enviára cartas repetidas que nunca ella recebeu das religiosas, testemunhas impassiveis do lucto da supposta viuva e dos trances de agonia tão demorada.

Quando o official perguntou por sua mulher, a porteira, tremente de pavor, disse que a snr.ª D. Antonia estava moribunda. Lançou-se Eduardo contra a porta, com supplicantes lagrimas, já a repellões de raiva, bradando que lh'a abrissem. As freiras terrorisadas capitularam em avisar a reclusa de que seu marido a procurava.

Estava D. Antonia, senão moribunda, prostrada nos ultimos esvahimentos de pthysica. Disseram-lhe que a{42} buscava seu marido, e ella cuidou que ouvia uma voz a dizer-lh'o, como tantissimas vezes a ouvira nos seus delirios, antes que as ultimas golfadas de sangue a privassem do prazer de delirar. Mas, como aquella voz se repetisse por bocca de algumas religiosas que mais caritativas lhe velavam a enfermidade, Antonia sentou-se de golpe no leito, e circumvagou pelas faces de tantas mulheres os olhos torvos, não de lagrimas, senão do véo da morte.

Entendeu-as, convenceu-se, acreditou, porque a Virgem celestial lhe tinha segredado que seu marido não era morto. As madres, com quanto crendeiras em raptos e visões asceticas, julgaram-n'a delirante quando a viram ajoelhar com muita fadiga, e contemplar a imagem da Senhora das Dores, á qual dizia com anciosas intercadencias: «Fez-se o milagre, Mãe Santisssima! Eu bem vi que os vossos labios se moveram hontem, quando eu me arrastei até junto de vós. Elle vive!... mas eu... vou morrer... morro n'este instante, ó consoladora dos afflictos, se me não daes algumas horas de vida em troca de tantas dôres, e de morte tão custosa nos meus annos, com tanto amor e esperanças a morrerem comigo! Outro milagre, Senhora! Deixai-me vêl-o... vêr o meu esposo!..»

E orou uma prece inaudivel, com sorriso de esperança a embellecer-lhe as lagrimas. Depois, lançou-se do leito aos braços d'uma religiosa, exclamando:

—Não morro... não quero morrer assim! A Virgem Santissima quer que eu expire abençoando todos{43} os algozes, e beijando todos os instrumentos das minhas torturas... Chamem as pessoas que mais me despedaçaram... Eu quero chorar nas mãos onde houver signaes de sangue do meu coração... Vistam-me... amparem-me... E, se eu morrer agora, levem-me assim morta onde estiver Eduardo, ouviram?

Balbuciadas poucas mais palavras inintelligiveis, D. Antonia inclinou a face ao seio de uma noviça, e immudeceu, ressumando da fronte e das palpebras um suor frio.

—Estará morta?!—perguntavam-se as freiras quando nos dormitorios do convento reboava grande alvoroço de passos e gritos.

Os sacrilegos e algum tanto romanescos officiaes francezes, que tinham acompanhado o seu camarada ao mosteiro, não lhes soffrendo o animo a demora da reclusa e a impaciencia do esposo, intimaram arrogantemente a porteira a franquear a porta. Como ella se negasse, esconjurando os depravados hereges, e sacudindo o hyssope da agua benta contra as paredes, uns francezes espadaúdos pozeram hombros contra as portadas em quanto outros escavacavam a roda a cutiladas, ou esgarçavam á ponta de sabre o crivo dos palratorios. Desacatos tamanhos e tanto para lastima eram crime vulgar e habitual em taes sujeitos, vezados desde 1792 a profanarem conventos e a matarem freiras, principalmente as velhas.

Passadas de sensato horror, as religiosas abriram a porta. Eduardo foi quem primeiro transpoz o limiar{44} d'aquelle pombal de aves do empyreo, que apenas tinham de mulheres o receio de serem tratadas menos ao espiritual do que se usa com as jerarchias celicolas. Era, ao mesmo tempo, mavioso e compungente vêr como aquellas abelhas da divina ambrosia volteavam e zumbiam, ao darem tento dos zangãos francezes! Se, por mofina sorte, colmeia tão do céo, favos amellados com essencia de quantas flores perfumam cenobios de noviças, se—diga-se ao claro—aquellas raparigas cahissem nos colmilhos de tamanhos canibaes, com que vergonha nacional e minha não contaria eu aqui o escandalo!

Ainda bem que o decoro d'esta minha terra, n'aquillo como no restante, ha sempre uma providencia que o salva illeso.

As freiras, pelo menos, salvaram-se d'aquelle inferno que lhes andou a chammejar por perto dos véos e dos escapularios; todavia, o alarido e corrimaças que ellas faziam no claustro, accusariam de incontinentes os gallos, (aqui a palavra gallos não é contingencia de capoeira) se ellas mesmas não confessassem depois ao bispo e ás familias que os camaradas de Eduardo Pimenta haviam procedido mais castamente do que era de esperar de atheus, sem lei, nem rei, nem roque.

E disseram verdade.

Vem aqui a ponto sahir com uma defeza, embora serôdia, do exercito francez, no tocante a ominosos attentados contra mosteiros portuguezes, segundo consta d'uns poemas calumniosos que ahi correram, quanto javardos{45} correm por lameiraes, e ainda sujam as bibliothecas de alguns collectores de sordicias. Exceptuado o dragão que embaciou o cristallino pudor da menina de Alemquer, não me chegou noticia authentica de outro aggravo feito por parte da França á honra das nossas patricias. É regalo—não é?—poder a gente escrever isto, e, por isto mesmo, asseverar que na construcção das gerações sequentes a 1808 não ha gallicismo notavel que eu saiba. Não obstante, dizem praguentos que as joldas invasoras dos mosteiros arrebanhavam baixellas, pinturas, joias d'arte, e pospunham com desdem joias da natureza, as esposas do cordeiro. Aqui ha acinte menoscabador da belleza das nossas freiras, sendo certo que n'aquelle tempo as havia peregrinas, primorosas, dignas patricias d'aquella Marianna Alcoforado, conventual em Beja, que tão celebrada formosura e espirito deixou na Europa em cartas ainda hoje relidas com dó, admiração, e somnolencia.

Á imitação d'esta deviam ser as cento e vinte que esvoaçavam dos dormitorios para a claustra e da claustra para a cêrca, do mesmo passo que Eduardo e os seus honestos amigos seguiam a porteira em direitura á cella de D. Antonia de Portugal.

Quando o marido da desmaiada senhora assomou á porta, as freiras conclamaram tão rijo grito que a enferma retranziu-se espavorindo os olhos.

N'este lance, os braços, que a sustinham, eram já os d'elle, cujos labios, crispando estremecidos de angustia, balbuciaram:{46}

—Esposa da minha alma!... Mataram-te... Fui eu quem te matou!... Oh! falla-me, querida filha!... Não me conheces, Antonia?...

Quando esta e outras exclamações iam avocando a razão da pavida agonizante, a prioreza chamou fóra da cella as freiras testemunhas do trance doloroso, e observou-lhes:

—Não assistam a essa diabrura! Venham comigo ao côro pedir ao divino esposo que despene d'esta vida a alma da peccadora, que veiu dar escandalo n'esta casa.

—Assim é, nossa madre!—obtemperou a escrivã, offerecendo uma vez de simonte á madre boticaria, e olhando de esconso contra um official que lhe careteava enviezando o beiço de baixo até cobrir a ponta do queixo.

O verso e o reverso das coisas d'este planeta, leitor philosopho!

Dentro da cella, agonias que as lagrimas afogavam no silencio; cá fóra, a irrisão, a farça, a jogralidade que a critica descobre á beira das grandes dôres, á beira até das sepulturas!

Mas ao pé da sepultura de Antonia de Portugal, no templo de S. Salvador de Coimbra, se não havia preces nem olhos lagrimosos, tambem não passava o motejo sacrilego. Ahi moravam o silencio, a soledade, e a mudez do esquecimento que deve ser nas almas idas e saudosas d'esta vida um chorar sem consolação no seio da eterna gloria.

Estava pois resalva das borrascas a luctadora vencida{47} e ao mesmo tempo victoriosa; que morrer assim é triumphar.

A presença inesperada do esposo, que ella considerava morto, foi o osculo santo do anjo que desde muito lhe condensava a treva para que um lampejo final lhe abrisse o dia da perpetua luz. Aquella immensa alegria reviveu-lhe o coração, galvanisou-lhe as potencias da alma entorpecidas, restituiu-lhe por momentos a plena vitalidade; todavia, aniquilou-lhe o corpo subitamente arrefecido nos braços de Eduardo.

Do mosteiro de Santa Clara sahiu o cadaver sobraçado por aquelle homem que relançava á volta de si o olhar sôffrego da posse da esposa morta. Quando elle, vagarosamente, passava no longo dormitorio, ouviu o murmurio das freiras que rezavam psalmos no côro. A desgraça faz prodigios de fé, desvarios de crença que seriam galardoados com milagres, se os actos da omnipotencia divina se pautassem pela regra do nosso entendimento. Eduardo, accêso em ardente fé, escutava o soturno rumor das vozes, e orava em espirito com os olhos fitos nos do cadaver ainda não fechados. O infeliz pedia a resurreição d'aquella mulher, dobrando os joelhos, e inclinando a face sobre os seus labios alvacentos, como se esperasse sentir-lhe o halito dos pulmões revividos.

Instaram os officiaes, que o acompanhavam, para que lhes confiasse o cadaver; mas, não conseguindo desabraçal-o da morta, ajudaram-o a transportal-a ao quartel de um d'elles, que se incumbiu do enterro.{48}

Ao descahir da noite em que D. Antonia foi sepultada, soaram os clarins a reunir. Massena ordenára um movimento sobre Condeixa depois de se deter em Coimbra tres dias que malograram todos os seus planos. Eduardo Pimenta, que servia no quartel-general de Pamplona, recusou acompanhar o exercito.

Os seus amigos propriamente lhe deram voz de preso, em nome do principe de Esling, e o levaram á força de ao pé do cadaver já amortalhado. Commovidos pelas supplicas, concederam-lhe que muitas vezes retrocedesse a beijal-a no rosto, já quando a passavam para o esquife.

Fechada a sepultura, e feito o silencio do esquecimento á volta d'ella, ninguem diria que vida assim dilacerada podésse acabar por maneira tão singela!

Morrer! Que suave desfecho, se o desfazer-se a vida a desfibrações lentas não custasse tanto! E, se Deus dispensasse as torturas do corpo aos que em si já sentem o ingente supplicio da alma, a sua divina justiça nos deixaria melhormente comprehender os liames que prendem a terra ao céo, a creatura ao Creador, o espirito do homem perecivel á insuflação do grande espirito immortal...

Não sejamos mais especulativos do que foram os indifferentes que viram passar o esquife de Antonia, ao mesmo tempo que Eduardo marchava sobre Condeixa.

Ahi fica esboçada a biographia do official que Venceslau Taveira encontrou em Santarem.

Ai! se elle então morresse! Que tragico vulto na legenda{49} dos amores desgraçados! quantos anjos tristes, nascidos em almas de poetas, iriam deplorativos esfolhar uma rosa de cada primavera na sepultura d'aquelles vinte e quatro annos! Quem cuidára então que os dons celestiaes da alma d'este homem se esvasiavam todos em lagrimas, e no fundo d'esse peito germinavam os embriões de vicios que resvalariam á derradeira infamia!{50}
{51}

V

                Ah Senhor,
Amor sejais vós de nós
E não haja amor com dor.

GIL VICENTE.Farças.

No coração juvenil e compassivo do fidalgo beirão a historia d'estes amores deixou a melancolia piedosa propria de animos que ainda não padeceram.

Cuidam que a dôr experimentada afina o sentimento, e abrolha as flores perfumadas da compaixão quando lhe orvalham lagrimas alheias? Não é absolutamente verdade. Os muitos infelizes são por via de regra os menos sensiveis. Os desgraçados são egoistas. Não sabem, não podem, não querem consolar, porque se julgam credores das consolações dos outros.

Ao principiar da vida, a ignorancia do mal pende á condolencia e amiseração dos que choram. O homem que então nos contrasta a nossa alegria com lagrimas, e os hymnos de graças á Providencia com blasphemias,{52} assombra-nos. Das muitas flores e luz que nos abrilhantam e aromatisam a vida, formamos o reverso espantoso da escureza e avidez do desditoso que nos dá a entrever o mal, nem sequer sonhado nas nossas noites serenas. Então é o compadecerem-se de infantil dó umas almas predestinadas a revezes, abaladas por vaticinios lugubres do seu destino.

Não ha pois fiar-se a gente n'aquella compaixão da heroina de Virgilio que, recordando os seus, se pungia dos alheios males.

São peitos impenetraveis os cicatrisados de muitos golpes. O que ahi está dentro é a sciencia da vida com a terrivel certeza de que o mal é necessario e fatalissimo. Esta sciencia que nos vem por morgadio herdado, obra, não sabemos se divina, se diabolica da serpente do paraiso, dá-nos ares de philosofantes selvaticos, inflexos e frios. As lagrimas com que intentam amollecer-nos são como outras que já choramos sem mais utilidade que vingarmos affogar n'ellas o germen da confiança nos homens, e—quantas vezes!—da fé em Deus. E, se esta sublime palavra, e inenarravel sentimento, DEUS, chega a desluzir-se nos lances em que o invocamos, os affligidos cessem de confiar em nós. Devorem-se, salvem-se pelo despejo ou pelo suicidio, que a religião não lhes alvitra melhores recursos que a philosophia: tanto monta Jesus como Platão. Nem nós podemos encarecer a efficacia dos balsamos que nos coaram ao coração apenas um torpor, a paralysia das faculdades amantes da vida, ignorando-lhe as condições{53} durissimas, o terrivel desdem com que adormecemos debaixo da mancenilha, sem recear-lhe as exhalações homicidas.

Venceslau solicitou a estima de Eduardo, e affeiçoou-se-lhe com estremecida amisade. No fervor do seu affecto, parecia ser elle a providencial indemnisação á desventura do moço repulso dos braços do pae para os braços da esposa moribunda. Raras horas se apartava d'elle, velando-lhe as do repouso, e privando-se da convivencia dos alegres mancebos que se espantavam de tamanha devoção e tão desusado sacrificio a um desgraçado vulgar.

Por março de 1811 retirou o exercito francez de Santarem, perseguido por Wellington. Eduardo, ao entrar em Pombal, abraçou Venceslau, e disse-lhe tranquillamente:

—Vamos ter batalha decisiva. Heide morrer n'ella. Separa-te desde já de mim, que não quero vêr lagrimas, nem ouvir palavras piedosas em meio dos gritos dos agonisantes.

Pouco depois, escaramuraçaram as avançadas dos dois exercitos. Ao primeiro recontro, Eduardo Pimenta, arrancando do pôsto muito distante dos piquetes, embrenhou-se pela selva das bayonetas que retiniam dentro da cerrada bruma da polvorada. Em breve lanço, o impetuoso official cahiu cortado do ferro inimigo, e, quando a nuvem se rarefez, viu á sua beira Venceslau, descolchetando-lhe a farda para examinar-lhe as feridas.{54}

Eduardo, cerrando os dentes, abafava o grito da dôr; faltava-lhe, porém, vigor para repugnar ao curativo.

Um cirurgião francez disse a Venceslau que nenhum dos ferimentos era mortal. O ferido então abriu um riso de raiva á desgraça de sentir-se viver, e murmurou:

—Não sou um desgraçado vulgar...

E, rodeando a vista pelos moribundos roixos dos paroxismos, accrescentou:

—Eram talvez felizes esses que ahi morrem. Um d'elles fallou em sua mãe, e o outro pediu a Deus que lhe amparasse os filhos... Vês, Taveira? A providencia deixa morrer esses, e quer que eu viva, e que por nenhuma d'estas feridas eu possa arrancar a alma da sua cruz.


Não é tão raro morrer quem ardentemente o deseja?

Sei de homens desesperados que se offereceram em alvo, no ponto onde a metralha das pelejas varria as victimas a rôdo. Sei d'outros que procuraram a morte nos focos mais ardentes da peste. Vi uns que romperam contra as lavaredas das casas incendiadas simulando caridade heroica no proposito do suicidio. Vi alguns que se entregaram cegamente á medicina. E não morreram!

A morte praz-se em destillar ás gotas a peçonha do seu calix na garganta onde fervem e affogam soluços,{55} se as lagrimas da saudade derivam sobre o suor gélido da agonia. Foi a morte creada á porta do paraizo, quando a nossa archi-avó comeu o pomo. Creada como castigo, o seu officio é matar, dilacerando; unhar com a ponta da garra um por um os liames da vida, distendel-os devagar, descansando a intervallos, para que a seiva da esperança os reforce, e depois a angustia lateje n'elles em redobro. Como castigo, missão que o Creador lhe deu, a morte seria indigna do seu officio, se nos decepasse de um golpe. As trevas subitas, a paragem do coração, um dormir suave, um esquecermo-nos de tudo—morrer no instante em que tudo bom d'este mundo nos sorria esmaltado de todas as estrellas—seria supplicio condigno do affrontamento que Eva e o logrado marido fizeram ao Creador?

Não. Á morte urgia-lhe, em cumprimento do seu encargo, maior dominio sobre as potencias espirituaes que ella (convence-te, ó razão!) não mata, mas tortura.

Ahi está um coração de pae a arquejar em soluços de moribundo. Ha tres dias que se debate nas ultimas vascas. No decurso d'esses tres dias, ha visto muitas vezes os filhos que o chamam, que lhe affastam dos olhos os cabellos humidos, que lhe enxugam nas faces lividas umas lagrimas onde vae diluida a derradeira claridade das pupilas baças. Pois tres dias não bastam á maceração do holocausto e ás dilicias do sacrificador que sahiu do paraiso com o peccado!? Não. Aquelle homem está assim penando, ha de assim penar mais tres, mais seis,{56} mais nove dias, porque expia pelo corpo vibrante de nevrozes, e pela alma que se revolve em suas lagrimas.

Meu Deus, meu Deus, que triste, que procelloso, que vilipendio vos seria o mundo, se a minha alma só podésse entender vossa força nas dôres, nos medos, na morte, na viuvez, na orphandade, nos ricos sem caridade, nos pobrinhos sem enxerga!

Afaça-se, leitor, obsequiosamente a este meu velho sestro de vagamundear á volta dos assumptos, vestindo as nudezas da ideia com umas roupagens variegadas. É pensão da velhice, e talvez desejo perdoavel de fazer pensar as pessoas que abrem uma novella justamente para não pensarem.{57}

VI

Aperta-lhe a sorte ingrata
O laço em que os pés lhe enreda.

THOMAZ RIBEIRO.A Delfina do Mal.

Eduardo Pimenta, levado em braços a casa d'um aldeão que não estremava entre jacobino e portuguez, pensou que seria alli miseravelmente esfaqueado logo que os patriotas lhe descobrissem a paragem.

Não se esquivou Venceslau ao perigo de ser sacrificado ao amigo que primeiro o captivára com as dôres da alma, e agora com as da enfermidade. Ambos se haviam despojado das fardas suspeitas e vestido á moda dos camponezes, inculcando-se guerrilheiros fieis ao throno e altar.

Como lhes minguassem recursos, mandou o beirão a sua mãe um portador com carta bem commovente á piedade. Respondeu-lhe a mãe que era fallecido o pae, e accudisse elle a receber o ultimo suspiro d'ella que o já sentia na garganta.{58}

Sahiram os dois amigos dos arrabaldes de Pombal, e acantoaram-se na casa dos Taveiras, onde corriam maior perigo, porque o corregedor de Lamego perseguia os jacobinos, não com alçada morosa, mas com a justiça summaria dos sicarios.

Além d'isto, bem que D. Antonia de Portugal, por sua parte, houvesse dado a vida ao odio dos parentes, estes cavalheiros não eram da casta dos máos corações que se contentam com a vingança de fazerem cahir uma campa sobre a victima dilacerada. Duas campas é que elles queriam para que a sua posteridade podésse apontar para ellas, quando outros aventureiros ousassem pôr olhos no rosto defeso das mulheres de raça.

No rasto do plebeu de Braga farejavam espertos assassinos, protegidos pela justiça. Os sustos rodeavam já a casa senhorial dos Taveiras, atterrando a mãe de Venceslau a ponto de bastarem poucos dias de afflicção a dar-lhe o descanço eterno.

Como filho segundo, pequena legitima cobrou Venceslau. O morgado, receoso de compartir no perigo dos dous perseguidos, antecipou ao irmão o valor do patrimonio, aconselhando-lhe a emigração.

Entraram os dous expatriados por Hespanha em 1813. Da Corunha passaram a Falmouth em companhia do cruzio D. José Liberato Freire de Carvalho, que depois em Londres aproveitou a habilidade de Taveira, contractando-o para fazer traducções no periodico intitulado O Investigador.

Do seu patrimonio, e ganhos nas lettras, repartia{59} o moço com o seu amigo, adoçando-lhe delicadamente o agro da dependencia, com a clausula de que eram emprestados os recursos que lhe offerecia.

Seis annos assim viveram, durante os quaes Eduardo não despiu o lucto de sua viuvez, nem desfitou os olhos scismadores de uma estrella por onde lhe transluzia o que quer que fosse, vago e impalpavel, semelhante a uma alma.

N'este enlevo e lucto bastante insolito, e não vulgares em poeta seis annos viuvo, gastava o homem sua actividade, distrahindo-a das preoccupações dos outros emigrados.

Com o fim de o levantar de uns quebrantos quasi ridiculos, Venceslau invocava-lhe o animo para os deveres que lhe impunham a infelicidade dos seus conterraneos e a sua propria de desterrado. Baldados esforços. Pimenta era sempre o inconsolavel.

São pouquissimo interessantes os pormenores da vida d'estes emigrados, no correr de sete annos. A pobreza por vezes venceu o trabalho assiduo de Venceslau Taveira, esponjando-lhe o fel da penuria ás chagas da saudade da patria. A inercia do amigo, motivada pelos crepes sempre carregados da sua paixão, aggravava as difficuldades do moço laborioso.

Eduardo distanciava-se, quanto a genio, dos martyres, que têm a acta do seu martyrio nos romances, os quaes não sabe a gente se almoçam e jantam com a trivial estupidez das especies carnivoras a que a leitora ideal não desejaria pertencer, nem eu. Afóra o almoço{60} e jantar, o viuvo consternado de D. Antonia de Portugal ceava, e recozia tudo ao fogo interno que o escaldava, retemperando-lhe, ao que parecia, de fino aço as molas digestivas. Á feição d'este, ha muitos sugeitos da mesma laia que, logo abaixo de um coração abeberado em lagrimas, vos maravilham com um estomago de ógre. Raro conseguem estes infelizes amiserar ninguem com suas lastimas em verso ou prosa, porque a nediez do musculo os está sempre a desmentir de modo que o observador incauto cuida que o humor vitreo das lagrimas é ressumação oleosa do chorume que lhes sobeja. É mister, porém, não confundir as duas especies, a fim de que a alçada bruta do chylo não leze os phenomenos da psyche—expressão grega que os gregos não percebiam melhor que Venceslau quando via o seu amigo a chorar e a comer ao mesmo tempo.

Entretanto, assim que um simulacro de liberdade em Portugal, no anno 1820, amnistiou os portuguezes que tinham servido as ideias da França, o fidalgo da Beira com o sempre melancolico bracharense repatriaram-se.

Protegido por José Liberato, e outros liberaes, o intelligente moço e já notavel publicista offereceu a sua penna a Joaquim Manoel Alves Sinval que então redigia o Astro da Lusitania.

Notaveis artigos realçaram aquelle periodico e o nome do modesto escriptor, cujos serviços á liberdade ainda no berço se contentavam da gloria de lhe poetisar a infancia.{61}

No lapso d'estes successos Eduardo Pimenta, sempre ocioso e confiado á liberdade do amigo, ia cogitando em ganhar de salto posição que o habilitasse a indemnisar os favores do companheiro.

Honrado empenho! suprema e unica dignidade dos ingratos.

Este proposito, porém, não significava louvavel desejo de independencia: era antes ruim plano de se desonerar da divida de reconhecimento que o vexava. Sentimentos d'esta especie affectam exteriores de nobreza, e disparam em villania, se bem os esgaravatamos no barril do lixo humano que se chama alma, a qual se decompõe em lama, se lhe trocaes as lettras.

Começa Eduardo a enxergar os arreboes de uma estrella benigna que lhe destece boa parte das suas escuridões. É um contentamento menos máo. Recebe a noticia da morte do pae.

Este velho, portuguez de lei como viram, typo symbolico da Braga de 1820, patriota acrizolado no recontro com os francezes em Carvalho d'Este, um dos Codros que tomaram parte no assassinio do general portuguez Bernardim Freire de Andrade, tal sujeito, a não poder afogar n'agua benta a liberdade em pessoa, devia morrer apopletico, e de feito morreu, deixando 1:600 missas á sua alma, e tres solemnes maldições ao filho. Infere-se d'estes legados que a sua apoplexia não foi das mais fulminativas; foi um ramo de ar, ou estupor, como a viuva escrevia a Eduardo.{62}

Além das missas á alma e das maldições ao filho, o morto deixou bens rusticos que formavam a mais rendosa lavoira de S. João de Nogueira.

O viuvo de D. Antonia não era filho unico. Erguendo-se o melhor que pôde debaixo do pezo da maldição triple, foi a Braga fazer partilhas com o irmão clerigo, e tão intolerante se portou por causa d'um faqueiro de prata abafado pelo padre em beneficio de uma freira dos Remedios, que chegaram ás ultimas, esmurraçando-se sobre o espolio do honrado defunto, o qual tinha apanhado o faqueiro no embornal cahido do cavallo ferido de um dragão que elle ou outros tinham matado. O pae do clerigo—Deus lhe perdoe—gabava-se d'isso, e o filho, theologo casuista, não achou em Bazembáo o caso da restituição da coisa roubada a ladrão! 1:600 missas davam ensanchas para maroteiras maiores.

Regressou a Lisboa com quinze mil cruzados Eduardo Pimenta.

O dinheiro influe bastante no espirito, e no resto. Adormece e acorda melhor quem o tem. A espinha dorsal tem outra casta de aprumo. O olfacto fareja essencia de violetas em tudo. O coração tem azas. A fantasia é mais allemã. Os olhos comprehendem a fabula dos Argos e dos lynces. Os ouvidos afinam-se tão agudos que, em comparação, a lebre é surda. Cada gaita de feira sôa-nos como a tuba de Oberon.

Sobre tudo, as faculdades do amor urdem romances, tecem-os de lhama de oiro nas cabeças negras, castanhas{63} e loiras das mulheres lindas, das feias, das Philamintas, das Felizardas. Todo o pé nos intriga, toda a botinha é de Cendrillon, todo o vestido apanhado com elegante descuido é naça que nos pesca a alma em lago de aguas cristalinas. O dinheiro faz isto: quando nos sobram dentes para morder pomos, sómente prohibidos a quem não tem dentes, nem dinheiro principalmente.

Deu que scismar a Venceslau Taveira a transfiguração moral do amigo. A linguagem mais expedita, a ideia lucida, prismatica, borboleteando por assumptos que recendiam a rosas, a margaridas, a madrigaes. Emfim, Eduardo fallava muito de amor, de poesia, de coração, de mulheres, de muitas mulheres vivas, e de algumas mortas, de Fiammeta, de Fornarina, de Collona, de Leonor, de Corinna, etc., excepto de Antonia. D'aquella Antonia, que elle andára sete ou oito annos a procurar no crepusculo das tardes e no diluculo das madrugadas, d'essa, que se mirrava entre os farrapos da mortalha e as pranchas do esquife, não dizia nada.

—Que vaes fazer ao teu dinheiro, Eduardo?—perguntou-lhe o collaborador do Astro da Luzitania, rodando sobre a sua banca de trabalho duas peças que havia recebido pelo serviço de um mez.—Empregas esse capital em officio ou beneficio que te renda um passadío modesto?

—Hei-de pensar n'isso...—respondeu desattentamente o outro.—Por ora, assisto á renascença da minha alma, que esteve atrophiada nos regêlos da desgraça. Estou acordando do lethargo, a reconhecer as{64} commoções, as alegrias do viver. O cerebro ha de funccionar, quando o coração lhe radiar o seu calor. Depois pensarei. Mas antes de mais nada... Nós temos contas, Venceslau. Na emigração, tiveste a delicadeza de me dizer que me emprestavas e não davas a subsistencia. A divida principal não t'a pago, que não posso: é a gratidão insoluvel; mas o que é dinheiro quero pagal-o, não só porque devo, mas porque me sentirei melhor na tua presença quando t'o não dever.

—N'esse caso, paga. Não quero que te sintas mal na minha presença—disse Venceslau com semblante sereno e severo.

—Sabes quanto é?

—Não.

—Calcúla.

—Esse calculo pertence á tua pontualidade. É trabalho que está a cargo d'aquelle que, depois da liquidação das contas, se sentir melhor na presença do outro.

—Vejo-te muito sério!—atalhou Eduardo.—Offendi-te?!

—Foste apenas pouco delicado comigo. Eu não sou da especie dos credores que apresentam a conta copiada do livro... Quando em Londres comprava por um schilling um jantar para nós ambos, nunca lancei á tua conta seis pence. Afiz-me a repartir com o irmão; não emprestava ao homem que havia de ser rico. Nunca preví que houvesses de o ser... No meu trabalho não eras tu pequena parte...

—Eu?! que fazia eu?{65}

—Davas-me animo com a tua mesma ociosidade; redobravas-me o goso de cumprir o dever de homem, por ti e por mim. Quanto a esperar de ti retribuição em moeda corrente, não cabia semelhante conjectura no conhecimento que eu tinha da tua indole...

—Ora essa!...—interrompeu pondunorosamente Eduardo.—Então figurei de parasita aos teus olhos...

—Não: figuraste de homem engolfado por abysmos de saudade, amortalhado em luctos de viuvez eterna...—respondeu Venceslau sorrindo.—Quem havia de prever que sahirias do antro da tua dôr, ao fim de oito annos, com o rosto banhado dos resplendores d'um novo dia? Eu, que então me julguei reservado para a suprema angustia de te sepultar envolto no lençol da nossa pobre enxerga, como sonharia esses quinze mil cruzados que te auctorisam a perguntar quanto me deves? Quem diria que nas leiras e montados de teu pae succederia o filho amaldiçoado? Desandou a roda funesta, Eduardo. O teu mau anjo era a pobreza. Repelliste-o para as trevas dos indigentes. Voga affoitamente no mar da vida, que estás em maré de felicidade. Que tregeitos de impaciencia me fazes, meu amigo?.... Tem paciencia; escuta-me. Volta o rosto alegre algumas vezes para o passado. Repara nas lagrimas e angustias em que se desfizeram as tuas illusões. Olha que está uma sepultura de mulher innocente a servir de base ao monumento das tuas recordações. Abre o livro funebre da tua mocidade, e lê os preceitos da experiencia. Toda a desgraça é uma raiz, que se arreiga dolorosamente na{66} alma; porém, lá vem um dia em que a raiz abrolha flores que parecem de planta abençoada: essas flores são o escarmento, o desengano, a verdade, a sciencia da vida como ella é, vista á luz da razão.

—Mas onde vaes tu com essas praticas tão bem discursadas?!—perguntou Eduardo Pimenta, entre risonho e enfastiado.

—Vou entregal-as á tua memoria para que te sirvam de memento, quando escreveres á filha do commendador.

—A filha do commendador? Querem vêr que me entroncas na progenie de D. Juan Tenorio! Temos, pois, uma Anna, a filha do fidalgo de Burgos!...

Venceslau Taveira pôz as mãos nos hombros do viuvo de Antonia de Portugal, e disse-lhe com boa sombra e graça affectuosa:

—Não achas notavel a coincidencia do pae que é commendador e da filha que é Anna?... Dize-me agora: que motivos te justificam da reserva com um amigo de oito annos? Que tinha que eu soubesse da tua bocca esses amores? Dizias-me, ha dois mezes, que o teu coração era o Lazaro apodrecido na sua cova; e, como a ideia de Lazaro envolve a ideia de Christo, o Christo do teu coração defuncto foi o dinheiro. Não dou nada pela vida assim galvanisada por correntes electricas do metal...

Eduardo interrompeu o impertinente amigo com uma cascalhada de riso secco; Venceslau, porém, carregando o semblante, concluiu:{67}

—Nunca te esqueças de que fui eu quem te apresentou ao commendador Francisco Vaz e a sua filha D. Anna. Eu disse-lhes que tu, Eduardo Pimenta, eras homem de bem, e infeliz, sem o haver merecido.{68}
{69}

VII

Desejas conhecer o que és? repara nos outros: tal tu és.

Desejas conhecer os outros? Olha para dentro de ti, que em ti os vês.

SCHILLER.Poesias.

D. Anna Vaz, a filha do commendador de Santa Christina de Almudena—commendador, entendam, de velha estôfa, aparentado com os descendentes dos Pelagios e Ordonhos—era creança de quinze annos, quasi bella, mas, melhor do que perfeita belleza, era boa, candida, innocente, e triste das saudades de sua mãe, poetica da sagrada poesia que se curva a derramar prantos sobre a urna de umas cinzas queridas.

Venceslau conhecera em Londres um irmão d'esta menina, alferes emigrado, compleição doentia, éthico da enfermidade nostálgica, exacerbada por amor a uma senhora de Lisboa, com quem destinára casar-se, quando os franceses invadiram Portugal.{70}

Falleceu este moço nos braços de Venceslau Taveira, pedindo-lhe que, se um dia regressasse á patria, procurasse em Lisboa seu pae, e lhe pedisse que entregasse á sua promettida esposa o retrato que lhe confiava.

O portador do triste legado cumpriu a vontade do moribundo seis annos depois.

O commendador acceitou o retrato, e voltando-se para uma senhora, que estava ao lado de sua filha no canapé, disse:

—D. Julia, aqui tem o seu retrato.

Venceslau inclinou-se profundamente diante da querida do seu amigo e disse:

—Era V. Ex.ª digna da paixão de Antonio Vaz, porque, se a comparo com o retrato, noto que a semelhança foi já apagada pelas lagrimas. A formosura da mocidade foi substituida pela formosura da mágoa.

Julia, muito commovida, pediu ao portador do retrato que lhe referisse as particularidades da vida e morte de Antonio Vaz. Depois, disse ella que o seu malogrado noivo lhe contava em cartas as virtudes do seu amigo Venceslau Taveira, e os impagaveis carinhos de irmão com que elle tentava suavisar-lhe os espinhos da saudade, alentando-lhe com esperanças o animo quebrantado. Terminada a sensibilisadora reminiscencia das cartas, proferida entre soluços, D. Julia apertou a mão de Venceslau; e, levando-a aos labios, apesar do esforço d'elle, balbuciou:

—Beijo a mão que fechou os olhos do meu extremoso amigo!{71}

Pouco depois, chegou uma sege á porta do commendador, e logo depois entrou um criado a annunciar que era esperada a snr.ª D. Julia de Miranda. Venceslau, obtida licença de Francisco Vaz, deu o braço á dama, e levou-a á traquitana, reparando então que o cocheiro e lacaio vestiam libré, indicativa de familia illustre.

Voltando á sala, contou-lhe o commendador estas admiraveis coisas de D. Julia:

Era filha d'um desembargador do paço, já defuncto. Herdára trezentos mil cruzados em propriedades rusticas e urbanas. Tinha vinte e sete annos de idade, e deixára de ser formosissima desde que a paixão por Antonio Vaz a desfigurou, mostrando-lhe repetidas vezes a morte no seu espelho o semblante cadaverico. Mas contou o commendador que, sem impedimento da decadente belleza, eram muitos os pretendentes á mão de Julia, bem que no pensar do ironico sugeito, muitos haveria que a tomassem por esposa, ainda que ella não tivesse mãos, tão necessarias ás formulas sacramentaes do matrimonio.

Assim começaram as boas e logo familiares relações do escriptor com esta excellente familia. Rara noite Venceslau deixava de visitar o agradecido fidalgo, cujas ideias liberaes a morte do filho perseguido acrizolára. Fugiam as horas de alegre palestra entre os dois, em quanto D. Anna estudava as suas lições de musica, para depois, ao fim da noute, conversar em francez com o jornalista.{72}

Intencionado a divertir Eduardo das suas abstracções penosas, Venceslau apresentou o amigo, depois de prevenir os hospedeiros a favor da tristeza taciturna do homem, que parecia assombrado do raio fulminador da sua mocidade.

Acolheram Eduardo, tanto o pae como a filha, com tanta sympathia e dó que, a poucos dias andados, já o confundiam na familiar lhaneza com Venceslau Taveira. E esta bella alma alegrava-se quando o via tão bem acceito, e já tão outro do que era nas escuras melancolias, pelas quaes elle se havia feito aborrecer de quantos o tratavam.

Algumas noites concorria tambem D. Julia de Miranda, com o seu capellão; homem de avançados annos, e tão amigo da fidalga que dizia idolatramente que não era capellão, mas sim sacerdote d'aquella divindade.

Em um d'esses saráos, desconfiou Venceslau que o seu amigo, abeirando-se do piano em que Julia tocava, lhe passára uma carta. Sobresaltou-o a suspeita, como se o caso tivesse a importancia d'um delicto contra as regras da sã moral. Não espanta semelhante estranheza em homem que rossava pelos vinte e oito annos sem haver entregado carta de amores, nem sequer ter sentido a precisão de escrever uma, no intervallo de dois artigos politicos! A virgindade epistolographica é hoje, e era então mais rara que todas as outras.

Aconselhou-lhe a prudencia que, antes de interrogar o amigo sobre o caso suspeito, obtivesse e certeza, para que as advertencias assentassem na culpa incontestavel.{73} N'este em meio, chegou a Eduardo a nova da morte do pae, e por tanto a sahida temporaria do herdeiro para a provincia.

No espaço dos dois mezes de ausencia, espiou Venceslau o coração de D. Anna, e tão facilmente quanto era de esperar da candura da menina, descobriu a saudade no empenho das perguntas e desejos de vêr as cartas de Eduardo.

Além de que, D. Julia, em pratica sósinha com o jornalista, perguntou-lhe se o seu amigo alguma vez lhe tinha confidenciado sentimentos amorosos.

—Muitos e profundos, minha senhora—respondeu Venceslau, despercebido da pergunta intencional.

—A respeito de quem?

—Da sancta que ha dez annos está no céo.

—Ah! eu não perguntava isso...

—Que era então, snr.ª D. Julia?

—Já vejo que me enganei... Eu referia-me...

—Á sua amiga D. Anna Vaz? Respondo que não, minha senhora. Eduardo Pimenta nunca me revelou, depois que D. Antonia de Portugal morreu, affectos a outra senhora. Isto, porém, não é desmentil-o, se elle disse o contrario. Eduardo é tão meu amigo que me não confia tal intento, se o tiver.

—Porquê?—atalhou admirada D. Julia.—Os intentos, que um amigo esconde de outro, são os máos. Revelar um affecto nobre, honesto e natural, é prova de amisade. Aos inimigos e indifferentes é que taes segredos não se communicam. O snr. Taveira, se amasse a{74} minha amiga, duvidaria revelar tão bom sentimento a Eduardo?

—Se Eduardo me houvesse apresentado n'esta casa, eu sahiria d'ella pretextando um motivo acceitavel, e depois denunciaria a minha pusillanimidade ao meu amigo.

—Santo Deus! como V. S.ª é austero!—voltou sorrindo a rica herdeira.—Não cuidei que do estrangeiro se trouxessem regras de moral tão rigorosas!

Venceslau fitou com desgosto o semblante ironico de D. Julia. Penalisava-o o desconcerto da reflexão, impropria de tal dama, com o primoroso juizo que elle compozera da sua sensatez.

E ella, que se viu encarada com estranheza, sentiu logo beliscado o amor proprio, a fibra sensivel da vaidade de parecer moralmente perfeita.

—Não me parece—proseguiu a dama gravemente—desdourar-se um rapaz que estima uma senhora da casa onde o apresentam. Conheço muitas amigas minhas casadas e virtuosas, que encontraram affeições nobres e dignos maridos em pessoas apresentadas na casa de seus paes. Póde ser que d'outro modo se hajam casado muitas; mas eu, se fosse mãe, estimaria conhecer os noivos de minhas filhas; e, se fosse noiva, preferiria ouvir na sala de meu pae a ouvil-o da janella, para a rua, o homem que houvesse de ser meu marido.

Taveira sentiu-se enredado na dialectica de D. Julia; mas, desatado dos embaraços pouco menos de melindrosos, objectou:

—Eduardo Pimenta ha de ser sempre infeliz. A{75} enorme desgraça da sua mocidade foi repellão de vento que lhe apagou na alma toda a luz das alegrias puras. A sombra d'uma martyr não consente que outra mulher, embora seja um anjo, repouse venturosa no coração onde ella deve ter deixado a sua imagem, como Deus deixou á porta do eden o archanjo da espada de fogo.

D. Julia, maravilhada da ideia e da fórma, ia replicar, quando Venceslau proseguiu, abalando-lhe o animo ás primeiras palavras:

—V. Ex.ª amou ardentemente o meu chorado amigo Antonio Vaz. Elle morreu, e a snr.ª D. Julia, que não era sua esposa nem devia ao amor das primeiras nupcias o honrado sacrificio das segundas, guarda á memoria do homem amado a lealdade que eu respeito e que todos lhe admiram. Ficou V. Ex.ª nova, bella e rica; e d'estes tres dons que raras vezes se conciliam e tão desejados se procuram, fez V. Ex.ª realçar o merecimento do seu holocausto ao amor unico da sua vida, querendo assim que a nobre alma de Antonio Vaz se gose na bemaventurança da religiosidade com que V. Ex.ª n'este mundo se lhe devota. Se a snr.ª D. Julia me permitte o comparal-a, Eduardo Pimenta, está em ponto de maior obrigação e fineza á alma de Antonia de Portugal. O homem que levantou nos braços o cadaver da mulher lentamente assassinada por amor d'elle, não deve mais apertar n'esses braços outra, se a essa tem de render os votos e palavras com que venceu o coração da desditosa que lhe immolou mocidade, gentileza, nascimento, parentes, contentamento, futuro,{76} e até a memoria hoje em dia despresada d'esses que ainda se lembram da martyr para a execrarem.

D. Julia, enternecida pelo convulso proferir d'estas vozes, não conteve as lagrimas. Era n'este sentir grande parte o admirar, em moço tanto na flor dos annos, um respeito assim fervoroso á consagração do primeiro amor, e holocausto perpetuo e por tanta maneira penoso da alma á mulher amada, primeira e unica.

Vendo-a pezarosa e absorta, Venceslau desculpou-se da crueldade de suas tristes reminiscencias, e derivou a pratica a outros assumptos, ageitando-se-lhe bom lanço com a entrada do commendador.

D. Julia, entretanto, foi ter com a sua amiga que de proposito se affastára para dar logar ás averiguações que tanto interessavam ao seu desassocego.

—Tu vens triste?!—perguntou Anna assustada.

—Triste, não; filha... Venho peor que triste... Não vês que chorei?

—Choraste!... é verdade!... Porque?

—Que rapaz é este Venceslau! Bem m'o dizia teu mano. Chamava-lhe elle o coração de uma creança temperado pela prudencia de um velho sem manchas na sua vida de moço. É assim... é admiravel; mas Deus nos livre que todos os paes e noivos se parecessem com elle em escrupulos e severidade.

—Então que te disse a respeito do Eduardo?... que me não ama?

—Não lhe fiz semelhante pergunta, menina. Apenas me adivinhou a tenção franziu a testa, mudou de{77} aspecto, e reprovou que tu amasses um homem nas circumstancias de Eduardo, viuvo de uma martyr, devastado por essa grande e unica paixão da mocidade, incapaz de fazer feliz a mulher que lhe pedisse amor impossivel; emfim, Annica, comparou-o na sua posição com a minha, para vir a dizer, se eu bem o entendi, que não deves arrancar o coração de Eduardo á saudade da outra desgraçada que lhe expirou nos braços... Fallou-me de teu irmão, e fez-me chorar... Olha, filha, é extraordinario este homem! Eu, quando o ouvia ainda agora, sentia em mim não sei se assombro, se admiração, se profunda sympathia por elle!

—Mas então...—interrompeu a infantil menina, como se as admirações ou sympathias de Julia não diminuissem nada do seu alvoroço.—Disse elle que Eduardo não me ama?

—Tal não disse, creança...

—Pois que foi? Eu não entendi...

—Nem admira que não entendas, filha. Vê se percebes o receio de Venceslau: diz elle que o amor de Eduardo morreu com outra que elle amou, e não póde repetir-se comtigo.

Anna fitou os seus fulgurantes olhos nos de Julia, quedou-se abysmada longo tempo na sua contemplação, e, só depois de chamada pela amiga, sorriu com mais tristeza do que se chorára, e murmurou:

—Para que me escreveu elle duas cartas a dizer que me adorava como os anjos adoram a Deus?{78}

—E eu creio bem que elle te adora, minha querida Annica...

—Não digas isso... Dize-me a verdade, porque eu...

—Tu... quê, filha?

—Eu perdi a minha alegria, ando triste, não penso senão n'elle; e antes queria morrer que não o vêr mais...

—Pobre creança!... Não pensei que o amavas assim!—disse Julia beijando-a e acariciando-lhe os cabellos.—Pois filha, tem esperança... As coisas, que disse o Taveira, bem pensadas, importam pouco. Elle entende a dignidade, o amor e o dever de um modo excepcional. Os corações alheios hão de regular-se por preceitos mais faceis e humanos. Se Eduardo te merecer, e teu pae consentir, que tem que cazes com um homem que muito amou outra mulher digna d'elle? Peor seria cazares com outro que houvesse sido mau marido, e quizesse fazer vêr isso como virtude aos teus olhos... Mas... mas se...

—Mas se...—acudiu Anna impaciente da suspensão.

—Mas se teu pae impedir tal casamento? Ainda não pensaste n'isso?

—Não... É verdade... Se meu pae impedir... que hei-de eu fazer?...

—Eu sei lá, filha! Obedecer a teu pae; que outra coisa ha de fazer uma menina da tua qualidade? Eu{79} bem sei que teu pae é o fidalgo menos vaidoso que eu conheço. Tenho-o visto ser egual com todos, e admittir em sua casa pessoas de baixa extracção sem indagar a procedencia d'ellas; mas tambem é certo que, uma vez, antes de cá vir o Eduardo, me disse elle a mim que morreria feliz se te deixasse casada com um homem como Venceslau Taveira... Ah!—esta subita exclamação de D. Julia foi solemnisada com um bater de palmas significativo de valioso descobrimento nos arcanos do coração.—Queres tu vêr que eu comprehendi perfeitamente agora as repugnancias de Taveira?

—Sim? que é?

—É ciume, olha que é ciume! O Venceslau não t'o declarou; mas pensou em te cortejar. Como tem um genio exquisito, esperava occasião de manifestar-se a teu pae, antes de consultar a tua vontade. Mas eu que tal não imaginava fui fallar-lhe do teu amor ao outro, e ahi tens a razão porque elle expoz as extravagantes theorias, que eu nunca ouvi a ninguem. Pois não é outra coisa, Annica. O Venceslau ama-te, e começa a odiar o rival. Complicam-se as situações. Veremos o desfecho d'isto.

—Eu não caso com o Taveira, ainda que o papá me obrigue!—exclamou D. Anna, batendo o pé, e tregeitando uns gestos de mimo, que davam a lembrar irritações de menina por amor das bonecas.

—Pois então, creança—aconselhou Julia com o siso dos treze annos que levava de vantagem á sua confidente—tem prudencia, não te precipites. Parece-me{80} que o Taveira, se teve aspirações, como creio que teve, á tua mão, sabendo que o Eduardo te namora, é incapaz de prevalecer-se da estima de teu pae para desviar o outro d'esta casa. Entretanto, é preciso cuidado. Previne o Eduardo. Escreve-lhe, se não poderes dizer-lh'o. Que se acautele; que não conte nada; que vá grangeando a confiança de teu pae, até conseguir a intimidade que Venceslau obteve. Depois, eu te auxiliarei, intercedendo a favor de Eduardo, se houver resistencia.

Este dialogo precedeu a chegada do viuvo de D. Antonia.

Quando Venceslau Taveira, entre severo e jocoso, lhe feriu o melindre com as ironias allusivas ao legendario D. Juan e á sacrificada filha do commendador, já o mysterioso amador de D. Anna Vaz estava prevenido.

O ingrato acceitára as insinuações offensivas do caracter do seu amigo. Não duvidou serem ciumes os brios, d'outro modo inexplicaveis, do seu mentor gratuito. D'ahi a ancia de se desendividar a dinheiro, para assim se emancipar da preponderancia que o seu valedor na emigração parecia exercer-lhe na vontade, e mais que tudo no alvedrio dos seus amores.

Em meio d'isto, no animo do bracharense, transfigurado pelos quinze mil cruzados, operavam-se curiosas perplexidades que o accusam de espirito destragado talvez pela desgraça da sua juventude. Aconteceu, pois, que estando elle na sala do commendador Vaz, ao mesmo tempo que D. Julia de Miranda referia a um advogado presente o bom exito de certo pleito, d'onde acresciam{81} aos seus bens vinculos no valor de sessenta mil cruzados, ouviu perguntar o pae de D. Anna ao capellão da opulenta herdeira, em quanto orçava elle os haveres da senhora. E o padre, recolhido alguns segundos, respondeu:

—Por morte do snr. desembargador, a snr.ª D. Julia succedeu em bens avaliados pelo barato, em trezentos mil cruzados. Ora, como sua excellencia não gasta os seus rendimentos, o seu dote cresceu em sete annos dezoito a vinte mil cruzados. Ajunte-lhe V. S.ª o vinculo de Collares, e póde sem receio de errar cem moedas, computar em quinhentos mil cruzados a casa da snr.ª D. Julia.

—E que ha de ella fazer a tamanhos bens de fortuna?—perguntou o commendador.

—Comigo não os levo para a cova—respondeu a dama.—Os vinculos irão a quem tocarem; os bens livres a quem eu quizer.

Esta resposta rejubilou Francisco Vaz, esperançado que os filhos da sua Anna viessem a herdar os bens d'aquella que vestira eterno lucto d'alma por seu filho Antonio.

Mas, ao mesmo tempo, Eduardo Pimenta bascolejava no craneo uns pensamentos, que não se inculcam por originaes nem torpes; mas que merecem ser marginalmente assignalados por quem estuda a vida nos romances.

Dizia elle para dentro da sua consciencia:

—Esta mulher convinha-me. Andei muito depressa{82} na declaração á outra. Se Venceslau conseguir fechar-me uma porta, já sei a qual hei-de ir bater. Anna inquestionavelmente é uma linda flôr; mas Julia de certo é um fructo cubiçavel. Anna é um anjo de belleza; mas quinhentos mil cruzados...

—Quinhentos mil cruzados—dizia Venceslau Taveira ao commendador, como se désse complemento á phrase ou resposta á pergunta mental do amigo—não bastam para comprar um dia de pura felicidade, se o possuidor os não depõe nas mãos da Caridade, segunda mãe dos orfãos, e divindade luminosa nas almas que a desgraça entenebreceu. Quinhentos mil cruzados não vingam ajuntar mais uma hora de vida aos que se estorcem nas ancias da morte, com as mesmas contorsões dos que expiram nos muladares e nas palhas fetidas dos sótãos.

—Isso é pavoroso!—disse Eduardo Pimenta, contando com o applauso dos circumstantes.

Riu-se apenas o capellão, talvez despeitado por vêr que um profano lhe tomava a mão no seu direito de moralisar ácerca da inutilidade do dinheiro. E ninguem mais applaudiu a reclamação faceta do interruptor. Venceslau, porém, encarando-o com boa sombra, respondeu:

—Bem se vê que este meu amigo está rico!... A moral dos pobres é sempre o pavor dos que se receiam que ao apostolado da esmola se siga a tentativa do roubo...{83}

VII

Franqueza e mais franqueza. Assim é que a amisade
Póde ter duração e dar felicidade.

VISCONDE DE CASTILHO—No Avarento.

Se as sympathias de quem lê este livro começam a divorciar-se do viuvo de Antonia, apresso-me a divulgar um galhardo lance que deve restituil-o á estima das familias.

Eduardo, tres dias depois dos successos contados no anterior capitulo, procurou Venceslau, e abriu-lhe a sua alma d'este feitio:

—Volto a buscar o amigo extremoso que, depois de dez annos, me deixou vêr que tudo n'este mundo é imperfeito, sem excepção dos amigos.

Venceslau, ouvido o esperançoso exordio, depoz a penna, recostou-se á espalda da cadeira, fixou-o com attenção menos cordeal que admirada, e esperou em silencio.{84}

E o querido de D. Anna, com a firmeza e gravidade dos arrojos nobres, proseguiu:

—Houve um tempo em que tu, Venceslau, compadecido da insulação em que vias a minha pobre alma, raciocinavas amigavelmente reprovando a fraqueza menos de mulheril a que a saudade me extenuára, a ponto de inutilisar a minha aptidão para o trabalho, para o dever e para tudo que é proprio de homem. Eu escutava-te, soffreando ora as lagrimas, ora a indignação: as lagrimas, quando realmente me via inutil, a depender das tuas liberalidades; a indignação, quando se me pedia esforço incompativel com a minha amargura. Esta doença moral durou nove annos, queimando-me nas suas febres, e lacerando nas suas roscas de fogo o melhor da minha mocidade, introvertendo-me no devorar-se intimo da alma, em quanto, á volta de mim, os meus companheiros de exilio se distrahiam com o trabalho, ou se acalentavam com esperanças. Entrei na patria, chorando, em quanto os outros jubilavam, restituidos ás familias e recompensados com as posições e empregos de que se estão gosando. Quiz, porém, a Providencia que um raio de luz entrasse á noite profunda do meu coração, quando as supplicas da minha infeliz esposa alcançaram talvez da bondade divina que desviasse dos meus labios a taça da desesperação. Ao mesmo tempo que o desejo de viver renascia do seu sepulchro de nove annos, o cortejo das miserias que me confrangiam a virilidade e nobreza do meu caracter, deram-me treguas, permittindo o céo que a maldição de meu pae não chegasse{85} a esterilisar o meu patrimonio. A minha felicidade parecia recomeçar, ou antes começava para mim, quando de repente se levanta uma nuvem a negrejar no horisonte que tão claro se me prefigurava nos sonhos; mas, ao travez d'esta nuvem, transluzia-se-me uma imagem de mulher, formosa e innocente como ha doze annos eu vira outra que depois a chuva das lagrimas apagou. Esta segunda, santa e ao mesmo tempo sinistra visão, é Anna Vaz, é aquelle anjo de resgate que tu me apontaste na via dolorosa da minha paixão. Venceslau, o teu caracter é nobilissimo; é, mas o meu entendimento não sonda todos os seus arcanos. Ha delicadezas reconditas nas grandes almas; ha mysterios de abnegação que se não descortinam sem grande iniciação de virtudes que não tenho. Bem longe estava eu de suspeitar que tu amavas a filha do commendador; bem longe estavas tambem tu de me communicar esse segredo. Duas maravilhas para mim: uma, a reserva, para quem a não devias ter; outra, a renuncia para quem seria capaz de t'a acceitar. De qualquer das fórmas considerado o teu proceder, assombras-me, porque és homem, porque és bom, porque tens vinte e oito annos; todavia, se melhor pondero a tua indole, isto que em mim é assombro talvez se deva considerar incapacidade para entender o melindre da tua honradez, nas grandes e nas pequenas coisas, na politica e na moral, nos actos da consciencia e nos do coração. Não obstante, Venceslau Taveira, consente que eu te pergunte porque me não disseste que amavas D. Anna Vaz?{86}

—Porque eu não amava D. Anna Vaz—respondeu serenamente o interrogado.

—Então amaste-a depois que desconfiaste da minha dedicação?

—Nem antes nem depois.

—Amigo, abre-me a tua alma, se ainda me prezas. Não te julgues abatido da tua dignidade com semelhante revelação. Se fui teu competidor, a ignorancia me desculpa. Poderia accusar-te eu d'este dissabor, culpando-te o resguardo que tens para os mais communicativos sentimentos. Conheço o primor dos teus brios; sei que regeitarás a mulher que não teve espirito bastante para entrar ao secreto das tuas intenções. Não pódes arguil-a, meu amigo, porque ninguem te ouviu palavra indicativa de affeição superior ás affeições triviaes das salas. O commendador disse algumas vezes a D. Julia que tu deixáras o coração onde deixaste o habito de noviço. Os amigos d'elle e teus pasmavam que sahisse do mosteiro quem tão de molde nascera para as frialdades do claustro e desdens da vida social. Em meio d'estas apreciações, não era natural que a innocente Anna entendesse melhor a tua indole...

—Que desperdicio de palavras!—atalhou Venceslau Taveira, vencido da impaciencia, que elle tantas vezes subjugava a esforços de cortezia.

—Eu já sabia que principiava a cansar a tua attenção—replicou Eduardo, dissimulando a custo o dezar.—O que tenho que dizer-te é pouco mais, todavia o que mais importa. Deponho nas tuas mãos a inabalavel{87} resolução de desviar o espirito d'essa mulher que é causa innocente dos nossos primeiros desgostos, e peço á tua bondade que me absolvas da culpa, se delinqui, não te adivinhando. Se eu souber ou podér descobrir que o ausentar-me da casa do commendador te é aprazivel, mais grato me será a mim o sacrificio do que a ti. O que eu repulso com todas as forças da minha honra é a imputação de rival do meu maior amigo.

—Respondo—voltou Venceslau, retomando a penna para continuar o seu artigo.—Não amei a filha do commendador. Zelei a dignidade da familia que nos recebeu cordealmente. Demasiei-me comtigo em transcendencias de melindres, que, melhor avisado, eram pieguices. Se Anna Vaz te ama, paga-lhe com honrado amor a divida. Se tens coração e brios, se crês que esse amor é luz para durar e não relampago para deslumbrar, apagar-se e tecer-te mais espessas trevas, ama a creatura que te ama. O commendador estima-te: se lhe pedires a filha, persuado-me que lhe será agradavel conceder-t'a. Quanto a riquezas, ouço dizer que elle as não tem; mas sobeja-lhe a mediania. Nunca te conheci ambicioso. O que tens sobra-te á felicidade, se a procurares áquem da opulencia. Não sei que mais deva dizer-te sobre o ponto.

Eduardo não redarguiu. Havia o que quer que fosse adstringente e intallador na garganta do homem. Preparára-se para outro desfecho. Contava com lances irritantes que explicassem a sua ausencia da casa do commendador. A situação por tanto era a mesma, era boa,{88} mas elle queria peoral-a. Venceslau não amava D. Anna; mas elle, para acerbar o trago do seu absyntho, queria immolar-se ao amigo, recolher outra vez o coração ao seu tumulo, revestir o crepe d'uma segunda viuvez, e recomeçar o seu ir-se d'olhos no céo pelas regiões sombrias da saudade immortal.

Devia ser isto o que martellava o peito do homem, quando elle entrou no pateo d'um palacete ás Amoreiras.

Morava ahi D. Julia de Miranda. Estavam os cavallos postos á traquitana; e já na escada fremiam os vestidos da fidalga, quando elle entrou.

—Está aqui, snr. Pimenta!—exclamou Julia.—Procura-me ou vae de passagem?

—V. Exc.ª vae sahir; voltarei, quando lhe não for tão incommodo.

—Não, senhor: suba. Eu ia a compras que posso adiar, e talvez fosse jantar com a minha Annica; mas, como não sou esperada, não receio que ella se queixe. Suba. Ha muito que eu ambicionava o prazer da sua visita.

Eduardo deu-lhe o braço, e entrou pela primeira vez nas magestosas e severas salas do desembargador Miranda, que se prezava (isto vae como nota) de ter n'ellas as principaes alfaias dos marquezes de Tavora, condemnados ao supplicio por seu pae—acquisição, a das alfaias, legitimamente feita, por ter sido um brinde do marquez de Pombal ao ministro que, em particular e não por sentença, incumbíra os tres carrascos de mostrarem{89} previamente á marqueza de Tavora, D. Leonor, os supplicios reservados para o esposo, filho e parentes.

Ditas as frivolidades usuaes, Eduardo ageitou o semblante ao proposito, e por esta maneira respondeu á curiosidade de D. Julia:

—Sahi ha pouco de casa de Venceslau Taveira...

—Foi talvez—interrompeu a dama—felicital-o por ter sido eleito deputado? Eu mandei-lhe agora mesmo o meu bilhete de visita. Não sabe quanto folguei com esta prova dada ao talento e á virtude d'aquelle rapaz! Deve-o a si, á sua dedicação, e a nenhuns protectores.

—É verdade, minha senhora, Venceslau é um complexo de excellencias que ha de ir muito longe, se a distincção é carreira em Portugal. Fui lá; mas, snr.ª D. Julia, o meu espirito ia tão preoccupado d'outro assumpto que nem me occorreu dar-lhe os emboras. V. Ex.ª consente-me que eu seja rasgadamente franco nas melindrosas confidencias que lhe vou fazer?

—Oh! pois não!

—Dá-me a honra de eu a considerar minha amiga?

—E sou deveras, snr. Pimenta.

—E portanto faculta-me a liberdade de lhe fallar como se falla a... uma irmã?

—Assim é que me consideram as pessoas de quem sou sincera amiga.

—V. Ex.ª tem n'essa conta a snr.ª D. Anna Vaz.

—E muito no intimo da minha alma. Não lh'o disse ella?

—Raras vezes tenho trocado duas phrases com a{90} snr.ª D. Anna; mas facilmente conheci a intimidade que liga dois anjos. Quando voltei do desterro, era eu em Lisboa um como desamparado dos mais vulgares affectos. Ninguem me saudou, ninguem me deu o festival abraço do bem-vindo; nada me deu a conhecer que pizava chão da patria; o céo era pesado e silencioso para mim como o do exilio; todas as physionomias me eram estranhas: vi-me proscripto entre os homens que fallavam a minha lingua, sem me darem d'ella uma das doces palavras que fazem sentir a patria na alma e no coração. Repulso das caricias da familia para os braços d'uma adorada mulher, nas agonias do trespasse, como que, ao mesmo tempo, me vi viuvo e orphão. Arrastei o meu lucto, oito annos de emigrado, e, ao saltar em terra portugueza, a dôr pungia-me mais, porque não achei ninguem que me désse um peito onde encostasse o rosto coberto de lagrimas. Redobrou-se-me o tedio da vida. Invejei a paz dos mortos. Abominei-me pela cobardia de viver...

—Tendo um amigo como Venceslau Taveira!...—interrompeu D. Julia, retendo a custo as lagrimas justificadas pela toada plangente d'aquella bem discursada elegia.

—Venceslau—tornou o lastimado Pimenta—é um caracter nobilissimo; porém n'elle as operações reflexivas e frias da razão predominam as outras faculdades. Não sei se elle é capaz de grandes paixões; mas experimentei que as paixões alheias não o desvairam das linhas que pautou aos actos do seu bem ordenado{91} juizo. Venceslau consolava-me com as theorias e dictames dos pensadores de gabinete; mas eu, fóra do ambiente sereno do meu amigo, encontrava as tempestades soltas que me baldeavam a alma por quantos golphãos se abrem aos pés de quem uma vez tomou nos braços o cadaver d'uma mulher formosa e amada, e o collocou debaixo da enxada de um coveiro.

N'este lance, Eduardo, quanto dos olhos marejados cumpria inferir, tinha ante si o phantasma de Antonia, não como apparição do anjo consolador, mas sim a reprovar-lhe a invocação da sacratissima memoria para o entrecho d'uma comedia ignobil, com seus entremeios de declamação tragica.

D. Julia, d'esta feita, não pôde estancar duas lagrimas, signaes da enternecida admiração que lhe estava entrando na alma pelos desastres de tão sensivel quanto infeliz moço. E elle continuou, guardadas as pausas da arte scenica:

—Quando Venceslau me convidou a ser apresentado ao commendador Vaz, dizia-me uma voz secreta que este passo de tão simples natureza seria na minha existencia uma phase nova, o marco erguido entre dois abysmos—o que se fechou e outro que se abre.

—Porque?!—atalhou D. Julia.

—O presentimento, minha senhora; a vista dupla dos grandes desgraçados...—a sombra do anjo negro que esvoaça á volta de mim, e ás vezes me rossa no peito com a aza, como ave nocturna que bate na pedra de uma sepultura. Agora diga-me V. Ex.ª se o meu{92} presagio era chimera de visionario. Entrei na sala do commendador, e vi duas senhoras. Na face de uma desabotoavam-se em sorrisos as flores do primeiro abril do coração; na face da outra havia uns toques de dôr, a pallidez reflexa dos luctos do espirito, a formosura esculptural de estatua que se curva a chorar sobre uma urna de cinzas. Esta era V. Ex.ª; a outra, a innocencia radiando alegrias, era a snr.ª D. Anna Vaz. Eu contemplei-as ambas com o olhar profundo de quem já viu muita alegria de repente morta, e não viu ainda resurgir aurora de dia bonançoso para quem uma vez sentiu anoitecer-se-lhe tudo que lhe era claridade. Contemplei-as, e disse comigo: «Aquella que sorrí não me comprehenderia; aquella que já chorou, e tem os vestigios de lagrimas no rosto, saberia comprehendel-a eu.

D. Julia, n'esta passagem, abaixou os olhos, menos pudibundos que sensiveis á fulguração penetrante dos olhares de Eduardo. E logo, inspirado pelo mavioso gesto da dama, continuou:

—V. Exc.ª concedeu-me liberdade de irmão... recorda-se?

—Sim...

—Não me está accusando no silencio da sua alma?

—De quê?

—Nem me accusará?...

—Posso eu prever até onde irão as suas confidencias?

—Estão em principio, minha senhora... não tardo a concluil-as... Mas...—disse elle com suspensivo receio,{93} adocicando o aranzel á feição de galan timido:—No semblante de V. Exc.ª ha uma alteração que me está opprimindo...

—Isso é illusão de V. S.ª; mas não se admire, se me vê mais triste... Eu não posso ouvir friamente referencias ás desventuras que V. S.ª não ignora...

—Disse-m'as Venceslau. Bastou que elle me lembrasse o nosso companheiro de emigração, aquelle gentil espirito a quem V. Exc.ª está honrando com esses prantos, que nenhum homem, nenhum amor, nenhuma paixão fará estancar.

A este tempo, D. Julia embebia no lenço as lagrimas e abafava os soluços.

—Dôr respeitabilissima! coração fechado ao alvorejar de esperanças!—proseguiu Eduardo enfaticamente.—Como ousaria voltar eu a pôr olhos na face da martyr, sem medo de profanal-a! Quantos homens a teriam visto e amado, snr.ª D. Julia! quantos labios se teriam cerrado, afogando as temerarias revelações d'um amor vehemente! Quantos pensariam disputar á memoria de Antonio Vaz morto o coração da sua esposa promettida, do anjo comtemplativo de uma imagem entrevista no céo! Eu não! e todavia...

D. Julia fez um gesto de antôjo, que eu, na minha ignorancia de traduzir todos os gestos de senhoras, não me atrevo a certificar que fosse enfado. Era um mover-se altivo de cabeça e um alçar de olhos com um franzido de fronte—coisas que a gente vê nos palcos e{94} nas salas, sem decidir onde o movimento obedece á rubrica, ou á natureza.

Como quer que fosse, Eduardo quasi que se estupidificou e amarelleceu, principalmente quando a filha do desembargador, abrindo um sorriso acre, disse:

—Cuidei que o snr. Pimenta ia fallar-me da minha amiga Anna Vaz.

—Não se enganou, minha senhora...

—Já sei que me vae dizer que sentiu por ella o digno amor que lhe tem declarado nas suas cartas...

—Sem duvida...

—E eu lhe assevero que ella o ama com toda a candura e sinceridade dos quinze annos.

—Ignorando que me realisou o presagio dos renovados infortunios...

—Que infortunios!.. Vê tudo tão negro, senhor Eduardo!...

—Como hei-de eu dizer a V. Ex.ª que vou fugir da sua amiga, á semelhança de quem foge d'um segundo abysmo?

—Fugir!... que ingratidão!...

—E que injustiça me faz, snr.ª D. Julia! Ingrato, eu! Se uma alma invocada podésse descer do céo a depôr contra essa dolorosa iniquidade!... Eu, que nem pude ser ingrato a uma sombra!...

—Se não é ingrato, que nome darei ao homem que motivou um amor extremo, e diz que vae fugir da pobre menina que nenhum desgosto lhe deu? Quem o obriga a fugir?{95}

—A honra.

—Pois semelhante amor deshonra-o?

—Condemna-me aos olhos de Venceslau Taveira. V. Ex.ª sabe-o.

—Que sei eu? Que Taveira tem umas singulares theorias a respeito do cavalheirismo...

—Sabe mais... Sabe que Taveira amava D. Anna Vaz quando eu lhe fui, em funesta hora, apresentado.

—Não tenho a certeza de que elle a ama...

—Mas attribuiu a ciumes a má vontade com que elle me via bemquisto da amiga de V. Ex.ª

—É verdade, suspeitei ciumes; mas V. S.ª mais de perto e com melhor percepção lhe terá sondado o espirito...

—É insondavel... Disse-me que a não amava; mas tambem me não soube dizer porque eu não devia amal-a.

—E em resultado d'essa conferencia enigmatica, deixa V. S.ª de amar a minha innocente amiga!... Não sei qual dos dois é mais excentrico! Pobres mulheres! Vá lá uma alma dar-se infantilmente a um coração frio que traz o seu amor n'um prato da balança, e uns problematicos pontos de honra na outra!... Acha bonito que seja sacrificada a minha amiga á conciliação cavalheirosa de V. S.as? Ai! felizes aquellas que não amaram nunca!... e as que amaram e perderam um homem de coração, fechem os olhos para o amor como elle os fechou para a vida... Acabei de entender o fim da sua visita—continuou D. Julia com mui senhoril compostura{96} e gravidade.—Vem encarregar-me de avisar Anna Vaz que...

—Não, minha senhora—accudiu Eduardo—o infortunio é conciliavel com a delicadeza. Quando me eu lembrasse de encarregar V. Exc.ª de tal commissão, o meu logar era no pateo com os creados d'esta casa, e não n'esta sala onde V. Exc.ª me está honrando, e soffrendo com mais que extrema indulgencia. Vim, minha senhora, pedir-lhe que me diga até que ponto o que devo a Venceslau e o que devo á filha do snr. commendador Vaz podem congraçar-se sem despundonor para mim. Vim, minha senhora...

E, levantando-se de impeto melodramatico, fitou D. Julia com estranha fixidez, e ajuntou:

—Vim pedir-lhe a sua amisade...

—Tem-n'a, sincera, profunda e inalteravel.

—Não tenho...

—Não tem? outra singularidade! Porquê?!...

—Porque V. Exc.ª, prêsa sagradamente á memoria de Antonio Vaz, não póde ser verdadeiramente amiga do homem que, a não poder merecel-a, quereria ser na sua alma a imagem d'um morto bem amado.

E sahiu apertando-lhe com estremecimento a mão.

D. Julia não respondeu senão palavras balbuciantes, ou porque estivesse digerindo a substancia d'aquellas palavras abstruzas, ou porque ficasse passada do imprevisto desfecho do dialogo.

Sei mal o que foi, e sei menos ainda que scismar era{97} o seu com a face encostada á palma da mão direita, relançando a espaços a vista para um grande espelho, onde se via toda. Estaria ella perguntando á copia do aço se o original estava nos seus momentos de formosura quando o gentil moço lhe dizia coisas d'uma escandecencia original?

A gente sabe lá o que as senhoras dizem aos espelhos!...{98}
{99}

IX

A desgraça não os tomará de assalto. Bom é esperal-a, para que a alma se lhe affaça, e o supportal-a seja menos exulcerante.

LUCIANO,—Da Astrologia.

D. Julia não se ficou todo o dia scismatica, a remirar-se no espelho. Os cavallos ainda escarvavam as lagens apostos á traquitana. Sahiu, e foi, como tencionava, a casa do commendador Vaz.

—Olha que estou afflicta, Lulu!—exclamou Anna, atirando-se-lhe aos braços.

—Afflicta! que é?

—O papá, hoje depois de almoço, ficou sósinho comigo, e esteve a dizer-me que Venceslau era muito bom rapaz, muito esperto, muito fidalgo, e que ainda havia de ser um grande homem em Portugal.

—E depois? aposto que te fallou em casares com elle?

—Isso mesmo... Já viste infelicidade assim?

—Então o Venceslau pediu-te?{100}

—Eu sei cá! Talvez... Não sei... O papá nada me disse, senão isto: que eu seria a mais ditosa creatura, se casasse com elle.

—E tu, fizeste biquinho? choraste?—voltou Julia, rindo.

—Chorei muito, mas foi no meu quarto; porque o papá, vendo que eu não respondia sim nem não, esteve a olhar para mim com os olhos mal encarados, e disse-me: «dar-se-ha caso que a tua cabeça tenha lido alguma leviandade? Anna, vê lá o que fazes e o que tens feito. Com teu pae não ha segredos nem disfarces.» E, depois, disse já muito zangado: «Respondes ou não? Se a tua boa estrella te dér por marido Venceslau, agrada-te este casamento?» Eu que havia de responder, Lulu? Dize lá, tu que respondias?

—Eu sei, filha!.. essas respostas só sabe dal-as quem se vê nos apertos de taes perguntas. Respondeste que sim?

—Fiquei atemorisada... nem soube o que respondia... Respondi que fazia o que o papá quizesse... Elle então deu-me a beijar a mão e sahiu; e eu fui chorar para o meu quarto. D'ahi a pouco, voltou o papá, bateu-me á porta, eu limpei as lagrimas e escondi as cartas de Eduardo que estava a lêr. Disse-me elle então que ia dar ao Venceslau os parabens por ter sahido deputado ás côrtes; e tornou a fazer-me a mesma prégação das virtudes e talento do Taveira, dizendo que elle era deputado aos vinte e oito annos, e seria ministro de estado antes de ter quarenta. Ora que me importa a{101} mim cá isso? não me dirás? Aqui tens, Lulu, quanto eu sou desgraçada! Foi Deus que te trouxe. Tu has de valer-me, has de aconselhar-me, sim?

—Socega—respondeu Julia.—Se o teu casamento com Venceslau depende da vontade do noivo, estás tu bem.

—Sim? conta lá o que sabes!... que sabes tu, Julinha?

—Sei que Venceslau não te ama.

—Não? ai que alegria! quem t'o disse?

—O Eduardo.

—Sim? viste-o hoje?

—Esteve em minha casa.

—Esteve? que foi lá fazer? Eu não sabia que elle ia lá!

—Foi contar-me o que passára com o Taveira a teu respeito. O amigo affirmou-lhe que não teve ideia alguma de te amar, mas elle, apezar d'isso, desconfia que sim...

—Oh diacho! isso é máo?

—O que é máo?

—Se o papá lhe pergunta se elle quer casar comigo, e elle diz que sim... E depois? ai! que má sorte a minha!... Que desgraça!

—Que lamuria, Deus da minha alma!—atalhou D. Julia sorrindo ás lastimas e gesticulação da linda creança.—Não te disse eu já que Venceslau não te ama?

—Disseste, sim.{102}

—Pois se te não ama, que importa que teu pae lhe offereça uma esposa que elle não quer?

—Achas, Lulu?

—Acho; mas...

—Que é?... estás com medo que elle queira? é isso?—voltou já muito alarmada a filha do commendador alternando as ancias desabaladas com os tregeitos jubilosos.

Em quanto o volatil espirito da menina avoejava das conjecturas risonhas para as tristes, e D. Julia, presumindo-se interprete do coração humano, folgava de serenar ou alvorotar as inquietações da sua candida amiga, corria o seguinte dialogo entre o commendador e o deputado.


—A minha admiração—dizia Francisco Vaz—foi grande quando hoje li a fausta nova da sua eleição, meu caro senhor e amigo...

—Admirou a grandeza do encargo em tão pequeno vulto? Tambem eu me assombro da irreflexão do governo, que me indicou e do povo que me elegeu, quasi sem me conhecer.

—Não foi isso que me admirou, cavalheiro que sabe tão destramente embeber no arco da modestia a frecha da ironia. Innocente como a pomba, com sua malicia de serpente, seu maganão!—dizia o commendador espirrando uns sorrisos de inoffensiva perspicacia.—Sabe o que me admirou? foi a nenhuma importancia que{103} V. S.ª dava ás honras que lhe estavam eminentes. Já hontem o meu amigo sabia que era representante em côrtes e não quiz dar-me a satisfação de m'o annunciar!

—Se o ser eleito me désse gloria, V. S.ª seria o primeiro a participar do meu desvanecimento; porém, se a missão me é penoza, como hei-de eu suppôr que os meus amigos se regosijem?

—Ora vamos, ora vamos. Deixemos os Cincinnatos desprendidos da gloria ao fabulario da historia romana. Eu não consinto á natureza humana tal desapêgo, mormente se a façanha incrivel se dá em moço de vinte e oito annos, pouco abastado em bens...

—Pouco!—interrompeu Venceslau a sorrir.—Parece-me que eu já disse ao snr. commendador que vivo do meu trabalho, e que, se a doença me impedir de escrever, terei de pedir um catre ao hospital.

—Ó pavorosa imaginação! ó ingrato amigo!—acudiu o commendador, batendo-lhe no hombro com ares de affectuoso despeito.—Venceslau Taveira, se adoecer, não vae para casa do velho Francisco Vaz; não, senhor; Francisco Vaz é um desprezivel amigo; o doente irá para o hospital. Com effeito, moço! paga-me generosamente!—proseguiu severisando o aspecto.—O enfermeiro de meu filho Antonio, o caridoso anjo que adoçou o fel da agonia do exilado, o amigo que deu lagrimas e sepultura ao cadaver de meu filho, é o mesmo que diz ao velho pae do seu morto companheiro: «Eu, se adoecer, não quero o teu leito, nem os teus cuidados, nem a tua gratidão! Irei para o hospital, para que não{104} possas pagar-me parte da divida de teu filho, que me expirou nos braços.»

Venceslau abraçou o commendador com enthusiasta commoção, murmurando:

—Se o offendi, perdôe-me em nome de seu filho. Eu não suppuz que V. S.ª désse tal interpretação ás minhas palavras irreflectidas.

—Está perdoado, porque peccou involuntariamente. Bem sabia eu que não ha orgulho tamanho em homem que exercitou a caridade com tantos... Póde ser que o amigo intimo de meu filho despreze as honras de deputado, e acceite com vaidade o coração de pae que lhe offerece o pae do seu defuncto amigo.

Venceslau curvou-se e beijou a mão do commendador, o qual, exultando, e estreitando ao seio o moço, continuou;

—Quer-me parecer que ha o que quer que seja providencial na sua intimidade com o meu Antonio!... Vou fazer-lhe uma pergunta, snr. Taveira: O meu filho nunca lhe disse que tinha uma irmã?

—Muitas vezes me fallou d'ella, como se falla de uma creancinha muito formosa, e d'uma irmã acariciada como filha. Quando Antonio Vaz morreu, a snr.ª D. Anna teria, quando muito, sete annos. Recordo-me dizer-me elle, dias antes de morrer, que seria menor a sua paixão de acabar tão longe dos seus, se a irmã estivesse em edade de comprehender a angustia do pae, e podésse consolal-o com os sentimentos do coração capaz de intelligentes lagrimas. «É muito nova—dizia elle—verá{105} chorar o pae, terá alguns momentos de saudade, e irá logo depois distrahir-se com os seus brinquedos.»

—Enganou-se o meu infeliz filho—disse o commendador enxugando os olhos.—A creança tinha coração de mulher. Quando eu lhe disse «teu irmão é morto», Anna abraçou-se a mim, debulhada em chôro, exclamando:—Não morra, meu querido pae; deixe-me primeiro morrer a mim, que fico sem ninguem n'este mundo. Este grito da menina que presagiava a orphandade, deu-me forças sobre-humanas. Defendi-me da morte com a minha filha no colo. E, quando me sentia desfallecer e estalar de saudade, voltava-me para Deus, mostrava-lhe a creança, e dizia «Se me deixaes morrer, Senhor, aqui a tendes, amparae-m'a!» Foi ella quem me amparou a mim; ás suas reminiscencias estava eu sempre pedindo memorias de meu filho; ella contava-me as pueris historias que lhe ouvira; mostrava-me as bonecas e bugiarías que lhe elle dera. Se me via chorar, chorava, e folgava de me vêr chorar, dizendo que eu, depois que respirava assim da cerrada oppressão, lhe parecia mais animado. Eu cobrei alivios de muito amargurar-me. Ha saudades que esquecem delidas por esperanças. Não pude eu esquecel-as assim. Outras nunca esquecem, mas deixam de pungir: dóem, mas desafogam-se no seio d'um bom anjo que nol-as leva á alma que choramos. O meu anjo medianeiro com meu filho era Anna. Ella vinha contar-me em sobresalto que vira em sonhos o irmão a sorrir-lhe. E eu acreditava; e, se ella piedosamente me enganasse, ainda assim abençoaria{106} a sua caridade. Aqui tem, snr. Venceslau, proseguiu o commendador restaurando o folego afadigado por soluços que, a espaços, lhe embargavam a voz—aqui tem o que foi a minha filha em menina muito tenra; e hoje, que ella vae nos seus dezeseis annos, peço-lhe, snr. Taveira, que desculpe ao amor paternal, o bom conceito em que a tenho...

—Em que a temos todos os que a conhecemos.

—Alegra-me essa opinião—exclamou o velho com vehemencia—enche-me de santa vaidade, porque vem d'uma sincera alma! Não quiz Deus que meu filho Antonio participasse da minha alegria, encontrando a creança, que me deixou nos braços, a amparar nos seus a minha velhice. Como elle amaria esta irmã! como seria bem-aventurado a esta hora entre os dous santos amores que o esperavam—o de Julia, a sua amada desde a infancia, e o da irmã, que rivalisaria com a esposa no empenho de o cumularem de contentamentos! E quem sabe, snr. Venceslau Taveira, quem sabe se meu filho, tentando completar a felicidade sempre imperfeita n'esta vida, pensaria no modo de identificar em coração á sua familia o honrado companheiro de desterro, o consolador nos desalentos, o irmão na soledade da terra alheia, o confidente nas saudades cruciantes, o enfermeiro na doença, o exemplo emfim da coragem, da probidade, e do esforço caritativo, d'essa grande virtude dos ricos, e divino prodigio dos pobres...

—Oh snr. commendador!—atalhou Venceslau—a sua amisade vae tão adiante do que eu fui e sou...{107}

—Quem sabe—ajuntou Francisco Vaz, apertando convulsamente ambas as mãos do deputado—quem sabe se meu filho, para fazer seu e da sua querida familia o homem de bem, lhe diria um dia, mostrando-lhe a irmã: «Venceslau, se amas esta doce creatura, sê meu irmão; sê filho de meu pae que t'a offerece; entra no seio das nossas mais intimas alegrias; deixa-nos afazer á ideia de que não é só a gratidão, mas tambem laços de sangue que nos prendem.» Que responderia ao seu Antonio Vaz, snr. Taveira?

O interrogado, colhido de sobresalto, emmudeceu, enfiou, passou a mão pela fronte, e sentiu momentos de verdadeira angustia.

Estranhando a confusão silenciosa, o commendador não podia dilucidar o que havia aviltador ou respeitavelmente justificado n'aquella mudez, semelhante a uma resposta negativa e indelicada.

—Impressionei-o dolorosamente!—balbuciou o velho.—Receba-me como gracejo de louco ou de amigo essas palavras que o perturbaram, snr. Taveira.

Venceslau abraçou-o com impetuoso fervor, e disse:

—Faça-me justiça!...

—Completa e sincera, meu amigo. Comprehendi-o... Isso é nobre; e tudo que nos vem da honra, seja alegria ou tristeza, é sempre um sentimento que deve expandir-se nos braços do homem de bem. Sei o que é. Eu devia suspeital-o. Os moços da sua condição encontram esposas á competencia, e não o revelam porque a fatuidade desdoura, profana e deslustra o segredo,{108} que é a mais bella caução do amor sisudo e competente ao homem honesto. Se V. S.ª não guardasse tanto o seu segredo, evitava-lhe este desgosto. A mim, o lance, bem que pouco usual, não me afflige. Offereci-lhe minha filha: offereci-lhe tudo que tenho, toda a minha riqueza; dei-lhe a maxima prova de quanto o prézo: estou contente; desobriguei-me de parte da divida de meu filho—divida de amor, que não podia ser paga em outra moeda. Agora, não me esteja assim pensativo, snr. Taveira!... fallemos n'outra coisa.

—Não, senhor, fallemos d'esta—replicou Venceslau já tranquillo.—Principío por asseverar ao snr. commendador Vaz que conheço em Lisboa duas senhoras: sua filha, que amo como irmão, porque ella, bem que lhe sobejem qualidades proprias para ser estimada, é irmã do meu amigo Antonio Vaz. A outra senhora é D. Julia, que respeito e considero, porque vi tanta lagrima saudosa a encarecer-lhe as virtudes, que me afiz a vêl-a do desterro como um anjo, e na patria como senhora de quem as outras devem aprender a lealdade na viuvez. Durante o meu exilio, a minha mocidade, snr. Vaz, namorou-se do trabalho, da fortuna avára dos que lá viveram das lides do espirito. As amantes d'esta especie costumam ser tão zelosas e egoistas das nossas attenções, que nos não abrem ensejo de pensar nos affagos d'outra. Foi assim comigo a fortuna do proscripto. Ou luctar com as extremas privações, deshonrando-me nos expedientes que ellas aconselham; ou lidar sempre, ora escrevendo, ora ensinando; mas, tendo{109} sempre em vista a inutilidade do coração, debaixo d'um casaco cossado e remendado. Não amei ninguem na terra alheia; não amo ninguem na minha. Sou aqui o que fui lá fóra: um operario labutando o pão quotidiano. Escasseia-me o tempo nas obrigações urgentes; não tenho podido desbaratal-o em diversões da alma, em preoccupações deliciosas que denotam ferias de espirito e necessidades levantadas acima do positivismo da vida commum. Sou pobre, como V. S.ª sabe. Entretanto, snr. commendador, pobreza e trabalho não esterilisam o coração. O homem, fiado no seu braço robusto ou em sua intelligencia productora, está bem no caso de poder aspirar ás consolações e alentos d'uma esposa, que lhe alumie a solidão escura do seu gabinete, e lhe duplique o esforço para a lucta. Algumas vezes me entreluziu ao animo quebrantado a doce alliança da intelligencia com os prazeres do coração. Figurou-se-me vêr perpassar por diante d'esta banca, onde a aurora de cada dia me encontra, uma imagem vaga, com o sorriso da coragem nos labios, e a luz da esperança nos olhos, fixos em mim, que a contemplava como a varonil inspiração dos meus rudes trabalhos. Era o relampago do secreto fogo que não se extinguiu—era talvez o estremecer dos sentimentos abafados no recondito da alma. Bem póde ser, snr. commendador, que o fogo chammejasse, e o sentir abafado se expandisse, no momento em que V. S.ª agora mesmo me disse que eu podia ser o esposo da snr.ª D. Anna Vaz. Eu cuidaria{110} então que era ella a imagem entrevista nos meus enlevos; sentiria a subita mudança do sonho para a realisação; e, se a surpreza me cortasse as palavras de reconhecimento, o meu silencio teria a eloquencia das lagrimas. Sua filha, snr. commendador—proseguiu Venceslau apoz uma grande pausa—sua filha não me ama...

—Como?—interrompeu Francisco Vaz, erguendo-se de golpe, e batendo rijo a bengala no pavimento.—Como sabe que minha filha o não ama?

—Como sei que a não amo eu tambem. O meu coração, posto que inexperiente, adivinhal-a-hia, se lhe eu motivasse algum sentimento distincto da amisade, que lhe mereci, como amigo de seu irmão, e affectivo apreciador de seu pae. Eu não podia ser amado, porque os meus breves instantes de conversação com a snr.ª D. Anna foram sempre alheios da minima referencia ao amor, ás vagas coisas do coração com que as horas se aligeiram e saboreiam nas salas, segundo julgo da intimidade dos que são ou dos que parecem ser felizes. Praticávamos ácerca do nosso saudoso Antonio, ou dialogávamos em francez sobre assumptos que me pareciam adequados á perspicacia intellectual de tão habil menina...

—Sei isso, snr. Venceslau—sobreveiu o commendador.—Está-me V. S.ª dando ares de quem se justifica de honrado comportamento.

—Não me justifico, snr. Vaz: explico a suprema{111} quietação da minha alma em presença d'uma senhora que eu estimava como se estima uma irmã favorecida de excellentes qualidades.

—Que ainda assim V. S.ª não podia amar...

—Não vem acertada essa reflexão; consinta o snr. commendador esta rudeza. As excellentes qualidades são amaveis; mas não é dever da mulher que as tem acceitar o culto de quem lh'as reconhece; nem é judicioso a quem lh'as admira revelar-lhe a sua dedicação, além dos limites do respeito. Era, todavia, muito de esperar que a snr.ª D. Anna Vaz inspirasse um grande amor e ao mesmo tempo o sentisse pelo homem a quem o inspirasse. Isso aconteceu.

—Que é? pois minha filha ama alguem?—interrogou Francisco Vaz com aspecto iracundo.

—Ama, sim, senhor.

—Quem?

—O meu, o nosso amigo Eduardo Pimenta.

O commendador percorreu tres vezes o estreito escriptorio do deputado, enxugou o suor da calva, comprimiu a testa com ambas as mãos e murmurou:

—Deu-me um profundo golpe, snr. Taveira!... Estou a braços com a desgraça...

—Eis-ahi uma dôr que me assombra!—redarguiu o jornalista.—Que conceito, pois, fórma V. S.ª de Eduardo?

—Não sei, não sei que presagios me despedaçam o coração! Não lhe conheço vicios... ninguem o accusa, ninguem o denegriu na minha presença, tenho-o recebido{112} com affectuosa familiaridade; pois, apesar d'isso, eu não queria que tal homem casasse com minha filha. E, se eu impugno tal casamento, qual é a dignidade de Eduardo Pimenta em requestar minha filha?

—Seria indignidade grande requestal-a com a certeza de que V. S.ª recusa conceder-lh'a.

—Pois, snr. Taveira, auctoriso-o a declarar ao seu amigo que lhe nego minha filha. Não ha nada mais explicito e summario.

—E, se o meu amigo me perguntar que actos de sua vida o desconsideram na opinião do snr. commendador, que responderei?

—Responda que um pae não é obrigado a justificar a sua vontade.

—Muito bem. Eduardo não póde honestamente voltar a casa de V. S.ª

—É claro.

—Foi por tanto expulso de sua casa, snr. Vaz, o homem que eu lhe apresentei, não é assim?

—Elle é que se fez indigno da minha estima.

—Seja qual for a causa, o meu amigo foi expulso; e eu, que ainda me não vexo de o haver apresentado, expulso me considero tambem.

—O senhor!? que desconchavo!

—Póde ser que eu ignore as praticas da boa sociedade. Se ellas diversificam do modo como eu as professo, abstenho-me de as aprender. Quem apresenta, no gremio d'uma familia, pessoa que desmereceu a estimação que lhe deram, retira-se ao mesmo tempo, ou envergonhado{113} do ultrage que o seu vil amigo commetteu, ou offendido da injuria que se lhe faz, se elle é expulso immerecidamente. Não questiono sobre a justiça ou injustiça com que V. S.ª o repelle: qualquer das hypotheses me aconselha a não voltar á casa defeza a Eduardo Pimenta.

—E sacrifica-me ás indiscrições de Eduardo Pimenta, snr. Taveira? Quer-me convencer de que o procedimento d'elle é regular?

—Já disse ao meu bom amigo que me abstinha de contestar a razão dos seus aggravos; mas, se V. S.ª me força a defender-me, defendendo Eduardo, afoitamente lhe confesso que o não culpo. Amar a snr.ª D. Anna, que é amavel como formosa e como rica das graças do espirito, não é delicto, ainda mesmo que os meritos de quem a ama não possam egualal-a. A Eduardo faltam pergaminhos; nasceu na casa de lavradores; os brazões de seu pae eram os utensilios da lavoura. Prouvera a Deus que o fanatismo o deixasse viver e morrer na obscura honra dos que lidam de sol a sol, e obedecem ao preceito da incessante lida, sem blasfemar da Providencia que instituiu as desigualdades da fortuna. Amargamente pagou Eduardo Pimenta o acaso de ter nascido plebeu. D'essa enorme culpa resultou-lhe a perseguição, o carcere, o desterro e a morte da esposa que o adorava...

—Consequencias do erro...—atalhou o commendador.

—Do erro?{114}

—Sim, da culpa de cortejar uma dama illustre que não podia ser d'elle sem arrostar grandes perigos, sem desdourar seus parentes, sem se atirar a si mesma aos abysmos cavados pela desobediencia. Que fez elle amando a mulher nascida em outra esphera? matou-a; formou os elos da corrente que a levou de rôjo á sepultura. Com que direito affrontou elle as leis sociaes?

—Quaes leis?... Não sabia eu que o meu amigo tinha affrontado algum direito...

—O direito consuetudinario, a ordem de coisas, o estylo que rege os costumes. Se o amor votado por plebeu a mulher nobre causa a desgraça d'essa mulher, tal amor, com quanto os poetas o celebrem, é calamidade que faz chorar muita gente, e desata laços que nunca mais se refazem.

—Essas ideias, snr. Vaz—redarguiu Venceslau—são boas; mas permitta o céo que o genero humano vingue d'aqui a um seculo não vêr a fronteira que divide o coração plebeu do coração fidalgo. Quando esse oiro das almas sahir depurado do cadinho dos annos, as ideias de V. S.ª serão acoimadas de absurdas ou transviadas do trilho por onde a luz do christianismo nos vae alumiando. Não argumentemos sobre o ponto, porque ainda não é tempo de se abraçarem os adversarios. Antonio Vaz, o fidalgo, filho do decimo commendador de Santa Christina de Almudena pensava como eu; e, nas nossas palestras de socialismo e regeneração do homem, nunca nos lembramos que nossos bisavós haviam ganhado, com o sangue proprio e com{115} a vida de seus paes mortos em Alcacer-kibir, no Ameixial ou Montes Claros, as commendas que a liberdade nos vae tirar como mal adquiridas. A liberdade, que nós andavamos servindo, é essa que nos desbalisa e nivela com os filhos dos criados de nossos avós.

—Boa a fizeram...—resmuneou o fidalgo.

—Nada fizemos: foi o tempo. A luz, que doira e aquece as penedias dos montes, não é d'ellas, é do sol. O fructo não se enverdece e sazona a si: é o calor dos dias successivos. O instrumento obedece ao impulso; a ideia é o motor do braço. Seu filho e eu tinhamos nascido, quando a França se refundia e recaldeava ao fogo reconcentrado do lavor de seculos. Entramos na torrente; fomos levados; um é morto ao pé do berço da liberdade; o outro não foge da morte; mas nenhum de nós, tendo uma irmã, lhe poria o preceito de estudar heraldica para saber que timbre e escudo lhes cumpria descobrir nos corações dos homens que as requestassem.

—Graceja, snr. Taveira? Não escolhe a opportunidade...—increpou o commendador com sincera mágoa.

—Não gracejo com V. S.ª: é com os preconceitos. Se eu os combati com as armas, não é muito que os desattenda com a ironia. E, depois, todas as razões que V. S.ª allegar contra o casamento de sua filha serão boas, exceptuada a da incompatibilidade dos nascimentos. O snr. Vaz é illustrado. Se pertence ao passado pelos appellidos, deve-se ao edificio do futuro pela intelligencia, e á humanidade collectiva pelo coração, e de modo nenhum á raça exclusiva dos nobres pelo acaso{116} do nascimento. O pae de Antonio Vaz deve ser por força um alto espirito: de troncos verminosos não bracejam frondes com seiva de tão generoso sangue. Tal pae corre-lhe o dever de consentir que os abusos da ignorancia sejam motejados na sua presença, e que os paes, sacrificadores das filhas no infamado altar das tradições genealogicas, sejam malsinados de tyrannos.

—O seu apostolado, snr. Taveira—replicou o velho—é temporão em respeito á época; e é tardio em relação a mim. Sessenta annos não se remoçam; das raizes da educação inveterada não abrolham as flores com que em França os sans-culottes vestiam a deusa da Razão. Estou muito velho, e sou pae muito extremoso. Gósto da liberdade comedida, desde que odiei o despotismo que levou á forca meu parente Gomes Freire de Andrade. Abomino por egual o despotismo dos reis e o despotismo do povo. Repito que desejo a victoria dos programmas liberaes; mas reprovo que, em nome d'elles, me queiram a mim esbulhar da liberdade de casar minha filha com quem eu quizer. Repugna-me dal-a ao snr. Eduardo Pimenta, de quem aliás não recebi maior offensa que o intento de captar o amor de minha filha, sem consultar as minhas luminosas ou obscuras ideias ácerca de tal casamento. Contra esta resistencia não me parece que a liberdade bem entendida legisle reacções.

—Pelo contrario—obtemperou Taveira—as leis protegem os paes, submettendo os filhos menores ao seu consentimento; e eu, indigno legislador, se tal lei não existisse, propôl-a-hia. Emfim, não se enfade mais V. S.ª{117} com esta discussão esteril. Eu me encarrego, conforme á sua ordem, de avisar o meu amigo. Como elle tem pundonor, não ha motivo para que as inquietações de V. S.ª continuem. Hoje veiu elle aqui dar um testemunho da sua probidade. Suspeitou que eu amava a senhora D. Anna Vaz, porque lhe censurei indirectamente que a cortejasse. Tomou á conta de zelos a minha intervenção nos seus affectos; e offereceu-me sacrifical-os á minha felicidade, se eu alimentava alguma esperança contrariada por elle que me não soube adivinhar. Creio que o desconvenci da sua desconfiança. Ora o homem que se victimava a um amigo, de melhor vontade e com mais honrado primor se ha de immolar a um pae tão respeitado quanto estimado. Vá por tanto V. S.ª bem certo de que cessam hoje os seus sobresaltos. Eduardo não volta a sua casa...

—E o snr. Taveira?

—Já disse ao snr. commendador que devo á leal camaradagem de nove annos a observancia de um dever que implica desdouro para o meu amigo, se eu me esquivar a cumpril-o.

—Mas—volveu Francisco Vaz, depois de um longo silencio, acompanhado de gestos que significavam desgosto e perplexidade—não é possivel combinarem-se a continuação da frequencia de minha casa com a desistencia das intenções do seu amigo? Não poderá elle ser meu hospede sem ser o namoro de minha filha?

—Sei pouco do coração humano, snr. Vaz; e por isso appéllo da minha ignorancia para a experiencia que{118} lhe deram a V. S.ª os annos e a vida das salas. O entreverem-se duas pessoas que se amam e violentamente se apartam, será bom expediente para as desligar? Se os olhos do rosto se contemplam, deveremos suppor que os olhos da alma se fechem? Que responde V. S.ª?

—Que tem razão. Melhor é que não se vejam. Mas eu peço licença para visitar o snr. Taveira.

—Tamanha honra lhe pediria eu, se me não faltasse a ousadia.

—Adeus. Não lhe desbarato mais tempo. Abraço o irmão de meu filho, e deponho nas suas mãos o meu socego e a innocencia de minha filha. Defenda-nos a ambos, já que eu perdi quem devêra a esta hora velar a honra de seu velho pae e a inexperiencia de sua irmã.

Abraçaram-se estreitamente, chorando ambos.{119}

X

Venez après cela crier d'un ton de maître
Que c'est le c½ur humain qu'un auteur doit connaître!
Toujours le c½ur humain pour modèle et pour loi!
Le c½ur humain de qui? le c½ur humain de quoi?
Celui de mon voisin a sa manière d'être.
Mais, morbleu! comme lui j'ai mon c½ur humain, moi.

ALF. DE MUSSET.Namouna.

Chegada a noite d'aquelle dia, e já corrida a hora costumada das visitas, Anna Vaz perguntou a Julia:

—Que será isto? elles não vem!

—Estava a scismar n'isso tambem eu...

—Olha que ha desgraça!... Não vês o papá tão carrancudo?

—Já reparei... Vae tu até lá dentro, e não voltes á sala sem me ouvir tocar no cravo.

Anna sahiu, e Julia aproximou-se do commendador que lia, ou fingia lêr, o Astro da Lusitania.

—Que ha de novo? Está lendo o artigo do nosso deputado?—perguntou ella, curvando-se para o periodico.—Já li... Ninguem dirá que d'aquelle rapaz tão{120} sereno e moderado possam saltar essas faiscas de colera contra as ideias antigas! É um ethna escondido em moitas de flores, não acha, snr. commendador?

—É um apostolo de boa fé, um peito cheio de honra, que se offereceu ao martyrio das ideias novas. Tem a devoção dos cathecúmenos de todas as religiões. Trabalha para os que hão de vir, não é para elle. Sahiu d'uma familia illustre do velho Portugal para servir de degrau aos que hoje calçam sapatos ferrados.

—Porque não o aconselha? Diga-lhe que seja mais prudente no que escreve; que não esteja a ganhar inimigos... Quem sabe lá onde isto vae dar? Os prejuizos não se pulverisam com palavras, nem com gazetas. Eu ouço todos os dias vaticinar que este governo ha de durar pouco. Em casa do tio Gião ouvi hontem dizer que os monarchas formaram o congresso de Laybac para enfrear as demasias da liberdade, e que D. João VI não levára a mal que o governador da Ilha Terceira resistisse á proclamação do systema constitucional.

—Vejo-a muito enfronhada em politicas de seu tio desembargador Gião, minha senhora D. Julia!—observou graciosamente o commendador.

—A mim que se me dá de politicas!—retorquiu a dama.—O que eu desejo é não vêr expostas com tanto perigo as pessoas que estimamos. O Pimenta parece-me que adoptou mais sensato papel nestas tragedias. Não quer saber de nada; não se importa com gazetas nem com governos. A emigração aproveitou-lhe... É verdade, elles não virão hoje? São dez horas!{121} O Taveira talvez esteja na reunião dos deputados; mas o outro onde estará? São horas do chá...

—Se são horas, não esperemos, menina, que elles não vem.

—Ah! o snr. commendador já sabia que não vem?!

—Já. Fallaremos ámanhã, snr.ª D. Julia. Eu hei-de procural-a...—E abaixando a voz, continuou em segredo:—Eduardo Pimenta comportou-se indignamente comigo. Se lhe não dou a novidade de se estar planeando um casamento n'esta casa sem minha licença, escuso de motivar-lhe o rompimento de relações com tão inconveniente amigo. Pelo que toca a Venceslau Taveira, esse não vem porque não quer. Sinto-o devéras. É homem de honrada tempera. Lastimo que os seus amigos o não mereçam...

D. Julia, cogitando na inquietação da amiga, não prolongou as segredadas confidencias. Acercou-se disfarçadamente do cravo e dedilhou no teclado. O commendador ergueu o rosto de sobre o periodico, fitou a hospeda e disse-lhe:

—Onde está Anna?

—Vem ahi.

A menina entendeu o relance d'olhos de Julia. Detiveram-se alguns minutos silenciosos na sala. O velho continuou a ler, em quanto Julia, interrogada pelos olhares anciados de D. Anna, esperava o ensejo favoravel de apartar-se com ella e revelar-lhe as más novas.

Do mesmo passo que o commendador ouvia contrafeito as prophecias politicas de um primo conego da patriarchal,{122} que alli ia sempre, depois de ceia, digerir o bôlo copioso, psalmeando threnos em prosa de conego sobre a futura perdição dos cabidos, D. Julia referia, commentando as palavras do pae da sua amiga.

D. Anna Vaz, primeiro estupefacta, depois agitada, e por fim afogada em lagrimas, escondeu o rosto no seio de Julia para que as criadas lhe não ouvissem o soluçar. Baldaram-se as consolativas esperanças da confidente, que parecia não ter nenhumas nos seus alvitres. Pelo espirito de qualquer d'ellas não sombreou sequer o mau pensamento de recorrer da vontade paterna para o poder civil. N'aquelle tempo as paixões das donzellas, contrariadas pelos paes, raras vezes iam dizer da sua justiça no tribunal. Usavam-se então umas mordaças, que fechavam os respiraculos dos corações rebeldes ao alvedrio paternal: era o convento. O mais egregio amor de mulher, leal ao seu amador, era aquelle que de bom animo vestia o habito monacal, e depunha aos pés da cruz a corôa do noivado. Estas nupcias com o divino esposo quasi sempre se contrahiam, levando a esposa o coração repleto de odio e calor do inferno para o cenobio, onde mais tarde a benigna hypocrisia lhe segredava refrigerios e tonicos restaurantes.

N'isto cogitava D. Julia de Miranda, quando disse á sua amiga:

—Faz o que te peço, filha. Não mostres resistencia á vontade de teu pae. Finge-te resignada. Entrega ao tempo o que não podemos conseguir com irritações; que não vá teu pae fechar-te no convento, onde eu estive{123} dois annos por causa de teu irmão. Cuidei que poderia recalcitrar, porque era tratada com mimo de filha unica. Enganei-me. Fui convidada a dar um passeio até ao Campo Grande; voltamos a visitar a tia Clotilde no convento de Sant'Anna; entrei na portaria para abraçal-a; e lá fiquei infernada até que meu pae me tirou por saber que teu irmão, envolvido com os jacobinos, emigrára para Londres. Aprende de mim, filha. Dissimula quanto poderes, e confia no tempo e nos milagres da tua constancia.

—Na morte é que eu confio...—replicou Anna, apertando a mão de Julia.

—Tens febre... A tua mão escalda!—clamou a surprehendida senhora.

—Vou deitar-me... Doe-me muito a cabeça... Não posso voltar á sala... Está lá gente, e não quero que me vejam assim... Olha, se vires Eduardo, dize-lhe que me escreva, que me deixe morrer com a certeza de que elle me lamenta e ama, sim? Não te custa a trazer-me as cartas, Julia?

—Não, filha; sem tu m'o recommendares, já eu tencionava dar-te esse prazer; mas com a condição de que has de ter coragem e prudencia.

—Pois sim, pois sim: faço o que tu quizeres...

—Então, vem á sala.

—Não posso, Julia... Olha que me sinto muito doente. Hei de estar melhor ámanhã, depois de chorar muito.

O commendador, n'este lanço, mandava perguntar{124} á filha se o chá teria demora, porque o conego, eructando o mal esmoido repasto nocturno, reclamava uma bebida digestiva.

Foi Julia á sala, e disse que a sua amiga se deitára molestada da cabeça.

Francisco Vaz cravou os olhos coruscantes na hospeda e murmurou:

—Já?! tão cêdo...

—São onze horas—disse Julia.

—Não me refiro ao relogio; é á cabeça—replicou o commendador, acerando a ironia com um sorriso, que deu que scismar ao primo conego.

Depois do chá, D. Julia ainda foi á alcova de Anna. Encontrou-a a ler as cartas de Eduardo, humidas de lagrimas. Beijou-a reiterando promessas e esperanças que ella fundava no muito amor que o pae lhe tinha.

—Quem sabe?—concluiu ella, modificando a sua primeira opinião—talvez que um poucochinho de febre assuste o extremoso coração de teu pae, e, em vez de te levar á sepultura, te conduza aos braços do teu Eduardo!...

Este erotico dizer, que não revia candor d'alma capaz de edificar as virgens legendarias, foi apimentado por certo sorriso que travaria ao acre da malicia feminil, se tal conjectura coubesse em dama tão exemplar na edade em que os impulsos da innocencia não são vulgares.

O velho, á meia noite, mandou saber de sua filha. Soube que a menina estava muito afogueada, e ao mesmo{125} tempo pedia á sua criada de quarto que a cobrisse com mais cobertores, porque tiritava de frio. Ante-manhã já o inquieto pae andava no corredor contiguo ao quarto da enferma. A creada sahiu espavorida da antecamara, dizendo que a fidalga, ahi pelas tres horas, delirára na febre, e se lançára do leito a querer abrir as janellas, quando a chuva estalava nas vidraças.

—Vá dizer á menina que eu quero vêl-a—mandou o commendador já attribulado.

Abeirou-se o velho do leito, onde ella o esperava, encostando a cabeça esvahida á almofada do espaldar. Elle chamou-a cariciosamente, apalpando-lhe as faces esbrazeadas; e ella, sorrindo-lhe com meiguice de quem implora indulgencia, beijou-lhe a mão.

Poucas palavras se trocaram, e nenhuma que viesse ao ponto da causa da doença. Disse o pae que ia chamar medico. Pediu-lhe a filha com um gesto meigo que não, e accrescentou:

—Isto não é nada, papá.

Não obstante, o medico, chamado com urgencia, receitou-lhe o que quer que fosse medicinalmente gastrico, entendendo que a viscera mais nobre, o estomago, devia ser a primeira a medicar-se.

Tanto o pae como a filha repelliram a sciencia representada n'uma poção em que de certo não entrava o contra-veneno do amor. Bem sabia o commendador que os phyltros cupidineos não cedem aos revolucivos que debellam as lombrigas.

D. Julia chegou ao meio dia, encerrou-se com a{126} doente, e deu-lhe uma receita de virtudes febrifugas. O doutor, quem quer que fosse, ao avêsso do ancião de Coz, abreviava a arte para alongar a vida. Era medico de mão cheia. Leu a febril menina o bilhete de Eduardo, e para logo as rosas do rosto se desmaiaram nos alvores da assucena. O pulso quebrou, os labios purpurejaram-se, e a arida lingua lubrificou-se. Milagres que a cada passo se topam nos florilegios, por influxo de agentes d'outra procedencia. N'estes, ha therapeutica do céo; n'aquelles prodigios de natureza toda humana, entra droga das boticas de Fausto, de Hamlet, de Manfredo, e de outros heroes do luciferino bardo que cantou as «Trevas».

Contou Julia que, ás nove da manhã, escrevêra a Eduardo, pedindo-lhe conta dos casos tristes do dia anterior. O moço correu ao palacio das Amoreiras, e referiu que Venceslau o prevenira da conversação com o commendador.

Se Julia, mais sincera que condoída de sua amiga, relatasse as impressões que Eduardo lhe deixára, diria que o viu menos consternado do que era de esperar, e tão christã ou stoicamente conformado á sua desventura, que faria inveja a Epictéto ou Kempis. Seria crueza não omittir este escuro traço do caracter do seu confidente. A ferida da sua amiga queria balsamos, e não cauterio. Semelhante denuncia iria coar a peçonha da desconfiança—a tortura da morte—áquella alma flammejante de fé.

As poucas linhas do bilhete, ainda assim, continham{127} duas phrases dignas do Secretario dos Amantes. Eduardo Pimenta promettia luctar contra a desgraça, e succumbir na lucta quando não podesse sahir com a victoria. Estes dizeres cadenciosos e arredondados andavam na voga, no respigo dos ledores das novellas de madame Cottin e do abbade Prevost.

Sem embargo, Anna rejubilou-se, e decerto se levantaria reanimada aos olhos do pae, se Julia não lhe advertisse que seria bom espacejar a convalescença, já para amollecer o coração do velho, já para afastar suspeitas de correspondencia clandestina.

Este dia e o seguinte passaram atormentados para o commendador. O medico, na segunda visita, farejou da arca do peito para dentro molestia inviolavel ás pilulas. Belleza, edade, respiração suspirosa, rubor dos lagrimaes, olhos pisados, e outros symptomas de inflammação psycologica, illucidaram o diagnostico. Declarou, pois, o doutor, sem auxilio da nomenclatura greco-latina, que a doente padecia da alma, e que o debil temperamento da sua organisação ainda imperfeita muito a custo resistiria ás commoções devastadoras. Era o systema d'este medico: primeiro o apparelho digestivo; depois o espiritual, se as doentes eram novas e solteiras. O segundo prognostico havia-lhe rendido a mais selecta clinica da capital. Muitos maridos d'aquelle tempo os levára elle ás enfermas capituladas de éthicas, como os medicos de hoje em dia lhes levariam das pharmacias garrafas de oleo de figados de bacalhau ou sulphato de ferro soluvel de Lerás.{128}

Compenetrado da consulta, o commendador lembrou-se aterrado que sua mulher e seu filho haviam morrido pthysicos. A perda da filha prefigurou-se-lhe calamidade superior a quantas elle poderia fantasiar, casando-a com homem somenos de Eduardo. Penetravam-no já de antemão espinhos de remorso. A ternura encarecia-lhe o perigo; e o quebranto moral proprio da edade arguia-o de inclemencia e fereza.

Tão rapido precipitára as invectivas contra Eduardo, quanto depois, ligeiramente e a só comsigo, rebatia os proprios argumentos.

—E se ella morre!—exclamava elle, invocando agora o juizo de Julia, tendo menosprezado os judiciosos dictames de Venceslau.—Que lhe diz o seu coração, minha amiga? Ella ama-o tanto que não possa esquecel-o? As distrações serão inuteis? Se fossemos para a quinta do Riba-Tejo..., se a minha boa Julia a levasse para a sua bella vivenda de Collares, conseguiriamos restaurar aquelle coração que ainda ha pouco era tão innocente, tão meu, tão alegre?... Que me diz, D. Julia?

—Façam-se as diligencias; mas desconfiemos do resultado. É o primeiro amor. Tem a força que aniquila todas as outras. Anna amou sem reflectir; a reflexão, que vem depois do amor entranhado, não aproveita. Foi assim que eu amei seu filho, snr. commendador. Bem sabe que trances padeci, que violencias arrostei, que inuteis severidades empregou meu pae. Nem o convento, nem as ameaças de me privar do patrimonio{129} me demoveram. A ideia de morrer, em vez de me acovardar o animo, alentava-me. Que valeram tantas dôres? Morreu elle, vergando ao pezo da minha cruz, e eu sobrevivi... para me condoer de quem soffre das minhas agonias. Tenho muito dó de sua filha, meu bom amigo, muitissimo. Hoje encontro-a mais animada, porque lhe dei esperanças, como os medicos as dão a uma thysica já nas ultimas vascas; mas se ámanhã eu não podér animal-a, a febre voltará, e depois Deus sabe se no peito d'ella está o germen da terrivel doença...

—Por piedade, não me diga isso, Julia... Esse punhal toda a noite me golpeou no coração... O meu grande terror é esse: é a morte da mãe, que um dia se queixou do peito, salivou sangue, cahiu esvahida, desfigurou-se, e... vinte dias depois, expirava-me nos braços, procurando com as mãos as cabeças dos filhinhos...

O velho, afogado por crebros gemidos, calou-se, enxugando as lagrimas que lhe resvalavam aos beiços trémulos da commoção.

D. Julia balbuciou expressões de enternecido allivio, e conseguiu conduzir o commendador ao quarto da filha, insinuando-lhe que só a presença d'ella, n'aquelle momento, lhe seria consolação.

Estava já em pé a doente, quando o pae se annunciou. Tinha-lhe ouvido as vozes trementes de lagrimas. Erguera-se pressurosa, qual se os remorsos de affligir o estremecido velho a pungissem. Lançou-se-lhe nos braços, chorando, como quem se accusa de não poder vencer-se. Era condição divina a d'aquella creatura! Se,{130} tres mezes antes, a vissem ajoelhada diante do Christo sombrio da claustra, Anna Vaz seria uma santa. Se Eduardo Pimenta, o moço pallido, aureolado pela tragedia do amor que o revestira do crepe sympatico da viuvez, não fitasse n'ella os olhos tristes da meiguice que pede as consolações amantissimas d'outra alma, a creança seria ainda para seu pae o sorriso que do céo lhe enviava, em labios innocentissimos, a chorada esposa.

Tomou nas suas o velho as mãos da filha. As arterias não arfavam de mais nem a epiderme denunciava perturbações de máo agouro; mas assim mesmo, os olhos do pae já não viam nas feições de Anna o viço purpurejado da saude, o sorrir florescente dos dezeseis annos. Deu-lhe o braço, e levou-a á sala, onde o fogão aquecia o ar d'aquelle famoso janeiro de 1821.

Anna aconchegou-se da fogueira; D. Julia sentou-se defronte, e o commendador entre as duas.

A passagem do quarto para a sala ao longo dos corredores frios constipára a menina. Tossiu com pouco esforço; mas, na audição do pae, aquelle accesso dava o som aspero das crepitações pulmonares; figurou-se-lhe estar ouvindo tossir sua mulher.

Nublou-se-lhe o semblante, e revia-se-lhe nos olhos a turvação da alma.

—Anna—disse elle, tomando-lhe a mão com extremada caricia—eu quero que sejas feliz; quero até que sejas infeliz, mas que vivas. Reanima-te, filha. Dou-te licença para casares com Eduardo.

A menina beijou-lhe a mão fervorosamente, e inclinou{131} a cabeça ao braço d'elle, como se quizesse esconder a exultação que devia parecer reprehensivel ao amor de seu pae.

—Crês, minha filha, que a vida te será mais agradavel, cazando?—interrogou o velho; e, sem aguardar resposta, voltou-se para D. Julia, accrescentando:—Que pergunta, que frivola pergunta! É o mesmo que perguntar a um cego, se crê que lhe ha de ser mais agradavel vêr!... Casarás, filha; mas com uma condição que teu pae propõe: não me deixarás; o amor, que me tinhas, dá-o a teu marido; mas não me deixarás, não?

—Ó meu papá, nunca! por alma de minha mãe lhe juro que nunca o deixarei, nem amarei menos do que hoje.

—Não jures, Anna... Pede á alma de tua santa mãe que te guie; mas não a invoques para affiançar as mudanças da tua vida...

—Meu papá!—replicou a filha perturbada pela solemnidade da objecção—se me julga capaz de o amar menos, então não me diga que case. É melhor que eu...

—Que tu, filha?

—Que eu morra, com a certeza de o não ter affligido...

—Eu bem sabia que tu eras a boa creança, o adoravel coração que és... Por isso é que eu cuidava que nenhum homem te merecia... E se pensei em te dar a outro, foi porque, entre tantos com que lidei no espaço de quarenta annos, eu nunca tinha encontrado condição{132} mais nobre de homem, na flor da juventude, mas sem mocidade... Entretanto, os amigos d'este homem, que a tua innocencia não viu, devem ser dignos d'elle. Se Venceslau Taveira assevera que Eduardo Pimenta é honrado, seja teu marido Eduardo Pimenta. Agora, minha filha, não me estejas doente; paga-me esta alegria que te dou; alegra-te, vive, renova a côr sadía das tuas faces desmaiadas... Dize-me ámanhã que estás boa, e me não has-de deixar, n'esta escurecida velhice, a esperar o beneficio da morte, sósinho, entre tres sepulturas.

Ergueu-se o commendador, e passou ao seu gabinete. Escreveu, e enviou a carta a Venceslau Taveira. E, depois, apoiou o rosto sobre os braços cruzados na banca, e chorou longo tempo. Ao emergir d'este lethargo, levantou-se de golpe, e murmurou: «Meu Deus! em que se funda o presagio da desgraça de minha filha! Que ha no rosto d'aquelle homem que me está aterrando! Ha dois dias que eu o via com affecto; não lhe admirava as virtudes nem arguia os vicios; pintava-se-me um como tantos que a sociedade préza; porém, desde que o imagino tão identificado á minha vida, esposo de minha filha, que fatidico horror é este!...

E, n'este emtanto, D. Julia de Miranda, testemunhava medianamente commovida o jubilo da sua amiga. Póde ser que ella, vendo desfechar o drama d'estes amores tão depressa quanto ao avêsso de suas previsões, se arguisse de imperfeita amiga, escondendo de Julia dous traços equivocos, senão maus do caracter de Eduardo. Um—aquellas amphibologicas palavras, que lhe elle{133} dissera um dia antes, e ella recebêra com tal qual severidade. Outro—a supportavel tristeza com que Eduardo, n'aquelle mesmo dia, lhe referira a quebra de suas relações com o commendador. Se outra causa menos para louvar-se era parte na limitada satisfação de Julia, quando a noiva de Eduardo festejava a sua inesperada ventura, não é facil averiguar, em quanto o curso dos successos nos não remover a triple muralha que véda o insondavel coração das creaturas predestinadas a distincções deploraveis.

Bem que inexperta e apenas alumiada pela escassa luz matinal do seu amor, Anna Vaz reparou, entristecida, n'estas palavras enigmaticas de Julia:

—Fez-me impressão o enthusiasmo de teu papá quando fallou de Venceslau! O rapaz decerto é o complexo de boas qualidades que teu pae avalia; nós, porém, as mulheres, temos o coração nos olhos, e o juizo no coração. O nosso vêr é tão diverso do reparar da experiencia! Quem nos diz que o melhor marido seria o menos amavel á primeira vista? Eduardo tem a eloquencia sympathica e melancolica do soffrimento que lhe deixou uma paixão contrariada; Venceslau tem o ar sereno de quem nunca soffreu nem motivou dôres a ninguem. Estes dois homens são a consolação ao pé da desgraça. O coração cheio de balsamos ao lado do coração cheio de lagrimas. Um amou muito, o outro não amou nunca. Eduardo tem um passado que ha de vir aguar-lhe as alegrias do presente. Venceslau, quando amar, ha de ser todo a felicidade do momento, a primeira{134} florescencia da alma sem imagem de mulher morta ou viva que venha confrontar-se com outra...

—Mas que quer dizer isso?!—interrompeu Anna.—Tu bem sabes que eu não amo o Venceslau.

—Pois não sei, filha!... O que eu te queria dizer é que, se em vez de amar Eduardo amasses o outro, talvez o teu anjo da guarda te inspirasse melhor...

—Porquê?... Não me disseste tantas vezes que o Eduardo era sympathico e muito amavel?...

—E eu digo-te agora o contrario?

—Mas achas que o outro seria melhor...

—Melhor para a felicidade da vida intima, filha; mas o coração não calcula o que ha de vir pelo tempo além...

—Tu atterras-me Julia!—exclamou a enleada menina, fitando na impenetravel amiga os seus olhos explendidos.

—Has de ser sempre creança!... volveu a desconcertada confidente, emendando as demazias da sua imprudencia.—Estou conversando comtigo, que vaes ser senhora; e tu queres que eu não tenha vinte e oito annos, e te falle a linguagem das meninas.

—Pois sim... mas tu desconfias de Eduardo...

—Eu desconfio?

—Sim... hontem não me dizias isso...

—E hoje que te digo?

—Que eu seria mais feliz se amasse o Taveira...

—Ai! que calumnia!... Calla-te, que ahi vem teu pae.{135}

O commendador entrou. A filha contemplou-o, e disse meigamente:

—O papá chorou?

—Se chorei? sim, filha... Dá-me os parabens, que chorei. Chorar é esmagar a dôr. As lagrimas são o sangue das angustias que os padecentes podem afogar entre as mãos. Quando ellas vencem, o homem não chora; morre.

—Morrer, meu Deus!—exclamou Anna.—Ó papá, meu querido papá!... não me falle em morrer, que eu já não quero...—E susteve-se por segundos.

—Que não queres, filha?... Pobre anjo!... não ousou proferir a palavra, receiando que lh'a acceitasse... Ai! não, minha pobre Anna... Has de casar com Eduardo... Se houveres de morrer, a teu pae basta-lhe a dôr... O remorso seria um supplicio que a minha alma nunca experimentou...

Ficaram os tres largo espaço silenciosos. Librava-se no ambiente d'aquella sala o archanjo das propheticas agonias.{136}
{137}

XI

Qualquer honesta se abala,
Como sabe que é querida.

CAMÕES.Filodemo.

Observou Venceslau Taveira que o seu amigo, ouvindo lêr a complacente carta do commendador, manifestou mais que moderadamente o seu contentamento. Estranhando-lhe a quasi indifferença, perguntou-lhe se a noticia lhe era desagradavel, e se a conformidade do pae ao amor da filha despoetisava a noiva.

Respondeu Eduardo, alteando a fronte, que a injuria da despedida era muito recente, e a honra da readmissão pouco desejada.

Taveira obtemperou com a sobranceria do seu amigo. Pareceu-lhe bem aquelle pundonor: achou até natural que os brios e o coração se digladiassem dentro do nobre peito do rapaz. Isto, porém, não impediu que elle desculpasse o velho e resalvasse a menina da responsabilidade, a fim de amolentar as asperezas timbrosas de Eduardo, o qual se considerava offendido em sua justa{138} hombridade de plebeu pela propria mulher que talvez imaginasse descer os degraus de sua gerarchia para lhe dar a mão. É o que elle dizia, encaracolando o bigode e avincando a testa.

Insistiu Taveira declinando da amorosa menina as queixas do plebeu irritado. Teve que fazer. A ralé, se traja ao bizarro, e se tem nos miolos o fervilhar das aspirações, destampa em orgulhos desmesurados: faz saudades do barão feudal. Dava-se em Eduardo, ao que parecia, o sangrar da ferida antiga. O viuvo da filha dos Portugaes tinha nas cavernas da alma latibulos de rancor ás raças, aos pergaminhos, e nomeadamente aos paes que lhe não offereciam as filhas e os vinculos. De mais a mais, além d'estes pontos-de-honra, outras procellas lhe emborrascavam o animo quando elle, de subito, fez esta pergunta:

—Que dote tem ella?

—Eu sei lá!...—respondeu o outro enleado.

—Eu devia ter indagado...

—Sim, tu, e não eu, a dever ser algum. Se casas com o dote, começas pelo fim. Devias estudar o archivo do commendador, antes de pôr a sonda ao coração da filha, acho eu.

—Fallemos serios—volveu o galan dos olhos tristes e das palpebras morbidas.—Parece-te inutil isto de saber-se com quanto um homem póde contar, quando se constitue chefe de familia?

—Parece-me util; é sem duvida util mercantilismo. Mas o util nem sempre se combina com o agradavel,{139} como aconselha o poeta romano. E, n'este caso, essa averiguação, sobre ser desagradavel, é extemporanea. Já te disse: acabas por onde devias principar. Suppõe tu que farejas os contadores de Francisco Vaz, e não achas lá aroma de vintem! Que fazes? Retiras o requerimento á mão da menina, visto que a menina se não presume herdeira?

—Se retiro o requerimento? Eu não requeri nada... não a pedi...

—É verdade, não a pediste... Fui eu quem a pediu para ti, por me haveres dito que ella se suppunha amada, e não embaida por velhacaria de mercador que anda de armazem para armazem comparando e apalavrando fazenda. Entretanto, respeito a dote, não te informes comigo. Como vês, tens aberta a porta do commendador: pergunta-lh'o. E, se elle te disser que é pobre, e as lavaredas do amor se apagarem no teu peito, suicida-te.

—Que me suicide?!—bradou espantado o sugeito, que annos antes andára a metter-se nas tezouras da parca.

—Sim, homem—voltou Venceslau tregeitando no sorrir um gesto de aborrecimento, se não era de menospreço.—Mata-te por egoismo. O amor proprio de um homem de bem deve ministrar-lhe o veneno ou o punhal suicida, quando se lhe está abrindo um abysmo de... de... não me lembra a palavra...

—É pena que te não lembre...—acudiu ironicamente o outro.{140}

—Ah!... lembrou: de infamia.

—Mercês!—redarguiu Eduardo—se fosses um qualquer homem, respondia-te no campo da honra; mas ao amigo, que comprou com os seus favores o direito de me aviltar, digo: obrigado!

—Ao campo da honra vão os honrados—concluiu Venceslau, erguendo-se de golpe, e tomando o chapéo.—Tenho que fazer... Não me dá Deus horas baldias para palestras d'esta especie.

E sahiu arrebatadamente.

Eduardo seguiu, deu-lhe o braço já na rua, e disse-lhe em tom de muita brandura:

—Nunca te imaginei condição tão brava, Taveira! A tua honra tem espinhos...

—Pois não te firas, Eduardo... Temos duas estradas. Segue uma das duas por onde nunca possamos encontrar-nos.

—Ao menos permitte que hoje á noite nos encontremos em casa do commendador.

—Como te aprouver... adeus.

Venceslau foi para as côrtes, e Eduardo para casa de D. Julia de Miranda.

—Parabens!—exclamou ella, quando entrou á sala, onde era esperada pelo noivo de D. Anna Vaz.—Quem diria? Olhe que bonito e rapido desfecho teve o romance, que parecia complicar-se em tenebrosos enredos!

—É verdade, minha senhora!...

—Tambem me dou a mim os emboras pela auspiciosa{141} intervenção que tive n'estes bem-logrados amores!

—Obrigado, snr.ª D. Julia—respondeu elle glacialmente.

—Que seccura, santo Deus! que frieza a sua, snr. Eduardo! E eu a imaginal-o doido de alegria como todos os que amam anjos com o rosto e o coração da minha Annica! Ai! se ella agora o visse decerto...

—Me não amava?

—Decerto abafava de mágoa de o ter amado... Que tem? que genio é o seu? que é isso?!

—É a fatalidade—respondeu funeralmente o joven pallido.

—Não sei o que é a fatalidade... Explique-se.

—Quer V. Ex.ª que eu lhe diga o que é a fatalidade?... Ah! não queira ouvir...

—Quero... diga... Preciso entender o enigma da sua alma...

—A fatalidade é o calix intransmissivel. É a attracção do abysmo. É o resvalar por despenhadeiro onde não ha aresta de rocha em que se recravem os dedos. É o supplicio de Tantalo, a braza viva nos labios e a torrente da agua a derivar por diante da enorme agonia da sêde. É o tormento de Mezencio: o vivo enleiado ao cadaver. A fatalidade é o abutre que roía o figado immortal do acorrentado do Caucaso. É o estanque de lagrimas onde se afogam as esperanças, apenas nascidas. É o clamor incessante d'uma alma, que sóbe até o céo nas azas da fé, e desce até ao inferno{142} abatida com o pezo das suas maldições. É duvidar de Deus, quando a face bate nas lageas do templo, e o coração se confrange e arde sem aura refrigerante. A fatalidade é o holocausto forçoso da vida n'um altar onde a victima não leva sequer a compaixão dos que sabem que alli se está suicidando um homem. É a vacillação incomportavel de quem balanceia entre matar-se para esquecer e sacrificar-se para que o não deshonrem as vaias das multidões. A fatalidade, snr.ª D. Julia, é não ter eu morrido quando me atirei á bayoneta e ás balas no fragor das pelejas. A fatalidade é ter eu olhos e alma, e o torturar da vaga esperança, quando a imagem d'uma mulher predestinada me appareceu a apontar-me a voragem onde eu devia engolphar-me. A fatalidade, emfim, senhora, é tel-a eu visto; é... tel-a eu amado.

Esbofada a vulcanica declamação, D. Julia ergueu-se placidamente, soberanamente, hirta, severa, formosa de magestosos assomos, e disse:

—Se é o snr. Eduardo Pimenta quem está em casa de Julia de Miranda, amiga de Anna Vaz, peço-lhe que se esqueça de ter aqui entrado.

—Perdão, minha senhora!—balbuciou o galan, como quem não trazia mais diamantes no thesouro da memoria.—Perdão!

—Perdoei, porque... esqueci.

—Perdôa—volveu elle com alguma felicidade—perdôa, porque... matou. Eu vou ser marido de D. Anna Vaz, snr.ª D. Julia. Ha de vêl-a feliz...

—Praza a Deus... mas... duvído.{143}

—Ha de vêl-a feliz... ha de vêl-a sorrir para mim sem suspeitar que lhe sorri nos meus labios a morte... o sorrir do martyr para o cutello, a palavra indulgente do Christo para os seus verdugos. Agora, uma supplica... Segredo, minha senhora! Que ella o não saiba... Não me prive da gloria de ser eu só desgraçado. Se ella vê em mim o coração que se abraza do seu amor, deixe-a ser feliz; diga-lhe que eu a amo... prometto a V. Ex.ª que nunca a desmentirei...

—Mas... enganou-a... mentiu-lhe... para quê? objectou D. Julia, enredada nos amphiguris d'aquellas tiradas de Arlincourt.

—Não a enganei... forçou-me a fatalidade a adoral-a...

—E então?... Que incomprehensivel!... que indecifravel adoração!... Pois não me diz que adorava a minha amiga? Por que deixou de adoral-a?!

—Porque a mão do anjo negro me trouxe, desde o tumulo da primeira mulher que amei, até ao segundo calvario onde eu devia amar a segunda, mostrou-me... V. Ex.ª Eu disse tudo, senhora! Agora odeie-me; mas não me denuncie. O seu silencio ha de deixar-me agonisar lentamente; a sua denuncia... fulminar-me-ha... A minha morte é desnecessaria á sua glorificação.

Disse e sahiu.

Não era odio o mais caustico sentimento que Eduardo incutiu no animo de Julia. Tambem não era asco nem sequer desprezo. A fidalga ficára agitada, mas não febril dos estos da indignação. Viu-se escarlate no espelho,{144} e nenhuma das hypotheses explicativas da congestão sanguinea das faces lhe pareceu realmente ser pudor. Vêr-se ao espelho seria acaso; curiosidade de remirar o seu aspecto rubente de colera é que não era. Ella não sabia que estava iracunda e rubra. Fulgurou-lhe no espirito um relampago de electricidade tão offuscante que fechou os olhos. Teve pejo de si:—pudenda alma que se sentia estremecer no lapso da candura ao indecoro! Atirou-se a uma cadeira estofada, e abarcou o rosto nas mãos convulsas. Quando se levantou, as lagrimas embebiam-se no ardor das faces. Aquellas lagrimas eram as perolas que o seu bom anjo derramava sobre o seio onde os latejos do coração respondiam aos clamores da consciencia. N'este lance, enclavinhou os dedos das mãos, e comprimiu com ellas o arfar do peito. E, depois, tirando um profundo gemido, murmurou: «Se eu podesse amar um homem!»{145}

XII

       Deus organisou
O homem que vemos...

ANTONIO PRESTES.Auto da Ave-Maria.

Estavam todos melancolicos, á feição de amigos que se ajuntam em casa do dorído, na noite seguinte á do passatempo.

O commendador Vaz dirigia ao seu futuro genro palavras de contrafeita amabilidade.

Venceslau Taveira lia o diario das camaras e tirava notas. O conego das digestões morosas esperava o chá na espectativa silenciosa, ouvindo o rugir das proprias entranhas. O capellão da fidalga contemplava o conego, censurando mentalmente que as murças se déssem a sugeitos estupidos. D. Julia, no desvão da sacada, ciciava com a sua amiga um dialogo apparentemente gélido e remoto do interesse que era de presumir em tão festivo sarau.{146}

Durante o chá, animou-se aquelle palco da comedia humana. O prebendado contou os antigos faustos da patriarchal de D. João V. O commendador abriu ensejo ao capellão para que demonstrasse que D. João V, orando em Odivelas, não fôra mais util á religião dos pobres que os chantres da patriarchal gosmando psalmos na real basilica. Venceslau Taveira fez a apologia de Ferreira Borges e Manoel Fernandes Thomaz. Eduardo Pimenta descreveu a batalha da Roliça, azando ao conego breves, mas energicos protestos contra Bonaparte, e a vigesima edição de suas crenças politicas, que fundavam todas na paz e concordia entre os principes christãos e extirpação das herezias—votos sinceros, senão eloquentes, que influiam no cerebro do capellão filtros soporiferos.

Em amor ninguem fallou.

Soára meia noute: era a hora costumada de se apartarem.

Francisco Vaz, aproximando-se de Eduardo, disse-lhe a meia voz:

—Queira dizer a Venceslau que fique e V. S.ª ficará tambem alguns minutos.

D. Julia sahiu com os dois clerigos; D. Anna não voltou á sala; e o commendador fallou assim a Eduardo, na presença do deputado.

—Tive noticia de que o snr. Pimenta préza minha filha. É sua intenção esposal-a?

—Eu não podia ter outra intenção.

—Costumam alguns paes extremosos pedir aos noivos{147} de suas filhas que sejam bons, meigos e carinhosos para ellas. O amor santo dos pobres velhos desculpa-os d'este pedido banal. É respeitavel a supplica, porque Deus sabe como se cerra e estorce o coração do pae que separa de si ao fim de dezeseis annos a creança, que se fez mulher, e todavia lhe falla ainda na alma com a mesma ternura dos vagidos da infancia. Um pae vê sua filha senhora, e cuida sempre que ella lhe está sorrindo no berço. Não lhe pedirei, pois, snr. Pimenta, que ame sua esposa, porque eu a estremeço e adoro. Peço-lhe só que m'a receba como excellente creatura que ella é. Outra coisa que muito desejo me não esqueça. Queixei-me austeramente ao snr. Venceslau das intelligencias affectuosas que V. S.ª contrahiu com minha filha. Não m'o leve a mal. Um pae treme de susto e ira quando de repente sabe que lhe tentam usurpar as alegrias unicas da sua vida: é como o avarento a quem ameaçam espolial-o do cofre onde tem o sangue e a alma. Queixei-me; depois, abri os olhos, vi o mundo como elle foi sempre, vi minha filha como todas as filhas, e vi no snr. Pimenta um homem como eu fui, como são todos. Resignei-me. Algum sedimento de despeito e intolerancia sahiu nas lagrimas. Estou preparado para a renunciação, para a soledade, e para um fim de velhice mais triste do que eu imaginara entre a minha Anna e o retrato de sua mãe. Não sei qual é a tenção de V. S.ª depois de casado. Ella disse-me que não se apartava de mim; porém...{148}

—Em quanto o snr. commendador quizer acceitar a estimação sincera do marido de sua filha, eu não pensarei jámais em sahir de sua companhia.

—Agradeço!—disse o velho, estendendo-lhe a mão com vehemente transporte; e proseguiu, feita breve pausa:—O homem, que se casa, deve avançar vinte annos a dentro do futuro e prefigurar-se ahi pae de familias, rodeado de canceiras, cuidadoso e perplexo com o porvir de seus filhos. O amor opera prodigios de desinteresse, mas não faz que os bens da fortuna surjam miraculosamente. Parece-me util que V. S.ª saiba qual é o patrimonio de minha filha. Tenho uma commenda que me rende dois mil cruzados, e duas quintas que me dão outro tanto rendimento. Esta mediania tem bastado á modestia do nosso tracto. Não frequento bailes ha muitos annos, porque não posso retribuil-os. Alheei-me da sociedade faustuosa dos meus parentes, porque minha filha apenas poderia occupar dignamente o posto que lhe dá o seu nascimento; mas decerto, a equipar-se das pompas que as damas de hoje estadeam nas salas, o seu dote ser-lhe-hia muito desfalcado, e, no andar dos annos, muito custoso lhe havia de ser trajar vestidos de chita, quem os desperdiçára de sêda. Além de que, fartas vezes tenho previsto que os dois mil cruzados da commenda correm perigo de ser absorvidos pela liberdade, inimiga de tudo que é antigo, sem catar dos direitos que, sendo justos, não deviam postergar-se. Espero, porém, que os sacerdotes da liberdade, se todos forem{149} da condição do snr. Taveira, curem primeiro de desentranhar as riquezas do paiz, antes de arrebanharem as migalhas herdadas dos antigos conquistadores da Asia e Africa.

Venceslau correspondeu com um aceno de complacencia ao sorriso do commendador, que proseguiu:

—Na hypothese, portanto, de que tenho pouco e menos poderei ter d'um momento para outro, não receio melindrar o snr. Pimenta, aconselhando-lhe, já como amigo e já como pae de sua esposa, que procure empregar-se, como tantos emigrados que o não egualam em meritos de serviços e intelligencia. Se lhe não quadra a vida militar, que renunciou, ha encargos civis honrados e lucrativos. Na sua edade e com tanta capacidade, a vida ociosa deve dar-lhe tédios, fadigas sem actividade que as explique, dissabores e quebrantos que volvem aborrecida a monotonia do viver cazeiro. Eu, em quanto o vigor me ajudou, fui agricultor; depois fiz-me o mestre de meus filhos; e li quanto achei e pude entender para acreditar que Cicero, escrevendo louvores da velhice, não sophismava o desanimo frio e inerte d'este inverno sem sol, em que a luz dos olhos de minha filha me dava mais calor que as ardentes apologias do orador romano. Basta. É tarde, meus amigos. São horas de repouso. O snr. Pimenta recebe ámanhã a certidão de edade de sua noiva para os reclames. Boas noites. Minha filha não vem á sala, porque está recolhida.

—Que bello caracter de homem!—dizia Eduardo, intimamente compenetrado da honrada simpleza do commendador.—Parecia{150} um pae dos tempos patriarchaes! Começo a sentir doçuras imprevistas n'este enlace! Adquiro uma esposa adoravel, e um pae venerando! Achei o santo aconchêgo da familia que nunca tive!... Não vou ser rico; mas quantos centenares de contos daria Cressus pelas delicias domesticas no seio de tal familia?... Mas tambem não vou ser pobre...

—Decerto, não—assentiu Venceslau, reparando na subitanea passagem das tradições patriarchaes á vulgaridade moderna da riqueza.—Quanto tens de teu?

—Quatorze mil cruzados, pouco mais ou menos.

—Ouço dizer que os empregos se compram. Emprega o teu capital n'essa veniaga, ou augmenta os rendimentos do casal comprando predios rusticos. Podes viver desafogadamente com cinco ou seis mil cruzados annuaes, se continuares a parcimónia e resguardo de teu sogro. Tens a felicidade de casar com senhora não acostumada a bailes nem ás fatuidades do toucador. Só isso de per si vale um dote dos mais cubiçaveis.

—Dizes bem; mas—objectou Eduardo—bem sabes que eu não posso conformar-me aos habitos de meu sôgro, nem quero que minha mulher passe as noutes todas a ouvir discutir o tio conego com o capellão de Julia. Uma vez por outra, hei de leval-a ao baile, ao theatro, ao passeio, á convivencia das damas da sua parentella. Isto não desbarata os bens, acho eu; ao mesmo passo que aligeira os cuidados da lida domestica, e reveza umas sensações por outras, tomando-as todas apraziveis. Não te parece?{151}

—Sim... parece-me que a indole constrangida é o germen de grandes desgostos. O commendador não levará a mal que sua filha gose os prazeres que não conhece; mas, se tu visses que ella é ditosa desconhecendo-os, serias bom e discreto deixando-a na feliz ignorancia d'esses vistosos fructos das cidades arrasadas da Palestina, as quaes tinham cinzas envoltas em formosa casca...

—Ahi estás tu encarecendo perigos!—tornou Eduardo, adocicando a facecia.—O noviciado em Tibães deixou-te uns longes de frade em missão. Se te não desfradas, destampavas em Jeremias, e a esta hora alta da noute havia de ser lugubre ouvir-te por aqui a declamar: «Converte-te, Lisboa! Fazei penitencia, peraltas!»—E, voltando ao tom serio, ajuntou:—Eu, a dizer-te verdade, tenho precisão de ar, de sol, dos esmaltes da existencia, das coisas sublimes que Deus poz como matizes de oiro sobre o negro pano da vida. Caso-me para unir á minha uma alma, que me duplique o sentimento do bello. Dois corações identificados devem receber em dobro a sensação das alegrias honestas. Bem sabes que escura mocidade tive. Dôres sobre dôres. O horisonte fechado por um tumulo. A repulsão da familia e da patria. A perseguição dos poderosos. A pobreza no desterro. Beneficios de Deus recebi só um: a tua amisade, a mão que me desviava do seio o punhal suicida. Quem assim viveu até aos trinta annos tem direito a sahir d'este lethargo, e a commungar dos prazeres que não desdouram nem arruinam. Não é assim?{152}

—É.

—Dizes é por condescendencia?

—Digo.

—Mas não digas; discute.

—Boa hora para discutir, aqui, na rua dos Fanqueiros, se os prazeres desdouram e arruinam! Isso é questão philosophica de grande folego, meu amigo. Eu, por mim, em philosophia moral, conheço uma só palavra, que é o lemma d'uma eschola: Abstem-te e soffre.

—Isso não é philosophia: é uma questão de temperamento...

—E de temperatura cá para mim... Está muito frio... Adeus, até ámanhã.

Venceslau entrou na modestissima sobre-loja onde morava na calçada do Caldas; e Eduardo, recolhido aos confortos do seu gabinete no hotel-francez da rua de S. Paulo, sentou-se á banca da escrivaninha, e escreveu vinte e sete vezes a palavra Julia, inflorando as hastes do J e do l com recortes de muito ingenho. Durante esta obra-prima de caligraphia, o seu espirito desenhava na tela que lhe offerecia o demonio de Fausto, uns hediondos esboços de romance, que elle não tirou a limpo, e eu, por desventura minha, hei de restaurar no pano delido por lagrimas.

Depois, deitou-se no colchão de pennas, e adormeceu como raras vezes dormem os justos.

E ao mesmo tempo, quando a aurora já repontava do seu leito de neblinas frigidissimas, Venceslau concluia o seu artigo do Astro, friccionára as mãos gelidas,{153} deitava-se no enxergão ingrato ao longo repouso, e não podia conciliar o somno com a febre cerebral do longo trabalho.

Ah! os justos dormem bem quando... não tem que fazer.{154}
{155}

XIII

Sempre bom, sempre douto, sempre amigo
        Da honra e da virtude.

FILINTO ELYSIO.Ode.

«Se eu podesse amar um homem!»—verbo de recondito mysterio que passou nos labios de Julia, por entre umas crispações, que tanto podiam ser nervosas como sanguineas.

Estas mesmas palavras repetiu ella á sua amiga D. Anna Vaz, um mez depois de celebrado o casamento.

Vieram ellas de molde no seguinte dialogo:

—Diz o meu Eduardo que tu não amaste nunca meu mano Antonio.

—Ora essa! O teu Eduardo não tem senso commum! Em que funda elle essa calumnia?

—Diz que tem estudado o teu genio; que te não acha nos olhos, nem nas palavras a doçura e tom de mulher,—a meiguice que elle chama feminilidade. Disse{156} mais que tens uns ares varonís, e umas attitudes fortes, inflexiveis e refractarias á ternura.

Julia soltou uma cascalhada de riso, exclamando entre froixos de tosse:

—Teu marido é admiravel! Não tem graça, mas faz-me rir! Com que então tenho ares varonís! Espera talvez que eu, se os francezes voltarem a Portugal, vista a armadura da donzella de Orleans para salvar a patria! Desconfia provavelmente que eu trago na algibeira do vestido a faca de Carlota Corday! Ai, filha, dize-lhe que não! Assevera-lhe que eu dou um grito pavoroso quando vejo uma carocha...—Continuou a casquinar e a dizer:—Estas más qualidades do sexo forte em que m'as viu elle? Nos olhos sem doçura, e nas palavras... sem quê? Não te lembras?... Ah! sem tom de mulher. Olha que injustiça, ó Annica! O timbre da minha voz é feio de fino que é; e os meus olhos, na opinião da gente que me faz favor de olhar para mim, são tristes e ternos. Não sei quem foi que me chamou antilopa de olhos scismadores... Ainda hontem ao Venceslau Taveira ouvi que nos meus olhos brilhava uma congelação de lagrimas. Vê tu, meu amor, que opiniões tão oppostas!

—Ai! a proposito... Sabes o que Eduardo me disse, Lulu?

—Que o Taveira me fazia a côrte?

—Isso... como adivinhas tu, feiticeira?—perguntou D. Anna maravilhada.

—Como adivinho eu!... Isto não é feitiçaria, é raciocinio.{157} Elle que diz que eu não posso amar, é porque sabe que os meus pretendentes indefiridos são muitos. Ora, sendo Taveira o unico sugeito com quem fallo na presença de teu marido, este ha de ser por força o meu namorador rejeitado...

—Mas elle ama-te decerto?—contraveiu D. Anna Pimenta.

—Ó menina, a pergunta é seria?

—É, Lulu... Quem me déra vêr-te casada e tão feliz como eu sou!...

—És realmente feliz?...

—Porque duvídas?!

—Isto não é duvidar, minha filha... é o vivo jubilo que sinto quando me repetes todos os dias que o teu Eduardo é o ente digno de ti. Queres tu saber? Teu pae estava hontem triste e só na sala, quando eu entrei: Perguntei-lhe que tinha... e elle...

—Ah! eu te digo... O Eduardo lembrou-se de dar um baile para festejar os meus annos. O papá observou-lhe que os annos de uma pessoa querida festejavam-se em familia, e que o prazer de festas vaidosas e estrondosas era cerceado pela canceira de quem dava bailes em que os divertidos eram os de fóra. Eduardo ficou descontente; mas não respondeu. O que elle particularmente me disse não o soube o pae.

—Que foi?...

—Desculpa-me, Lulu... não t'o digo... prometti segredo...

—Desculpa-me tu a curiosidade, minha querida{158} amiga. Foi uma inadvertencia que a tua amisade me releva... Mas então não me illudi... A tristeza do teu papá tinha relação comtigo; e por isso insisti em perguntar se...

—Mas—atalhou a filha do commendador—ias contar-me a respeito do Venceslau...

—Ah! sim... O Venceslau é um rapaz que merece ser admirado. É serio e melancolico. Tem certa graça contrafeita no rir, quando se alegra por condescender. Em outro homem, cuidaria eu que a sua grave compostura e madureza intempestiva é artificio. N'elle, não. Eu sei o que é... A sua paixão é a politica; os seus namoros são os livros; a sua noiva é a Liberdade; e o seu céo ou inferno é a gloria. Homens assim não amam mulheres feminís nem mulheres varonís; podes dizer isto ao teu Eduardo. Dize-lhe mais que eu não repellí a declaração do Taveira. Ainda lhe não ouvi palavra que me assuste nem lisongeie...

—Mas se elle te dissesse que te amava?...—inquiriu com malicioso tregeito D. Anna.—Que fazias?

—Eu sei!... Forte aperto!—respondeu ridentissima D. Julia, a deplorativa Arthemisa do defuncto emigrado.

—Ah!... entrei-te no coração, Lulu!... Cuidas que me enganas?

—Enganar-te!... Quando te menti eu, filha? Perguntaste-me se me elle amava, disse-te que não. Perguntas-me se eu o amaria... Olha, minha amiga... se eu podésse amar um homem...{159}

—Ainda agora te ouvi dizer que se elle declarasse que te amava...

—Que mais ouviste?

—As reticencias... o embaraço... aquelle eu sei!

—Sim, eu sei! Provavelmente ouvia-o com senhoril delicadeza, pedia-lhe que me deixasse pensar, e depois...

—Que dizias depois?

—Se eu ainda não pensei para responder a elle, como hei de responder a ti! Que indagadora! Se não fechassem a inquisição no anno passado, e fosses varoníl como eu, vestias a tunica dos dominicos, e ias interrogar judeus e feiticeiros!

—Vou fazer-te uma prophecia—disse solemnisando o gesto de sibylla a esposa de Eduardo.

—Vá, sóbe á cadeira, já que não temos tripode, e prophetisa de lá, na certeza de que és oraculo por tal modo transparente que eu já sei o que vaes vaticinar.

—Casarás com Venceslau Taveira!—exclamou D. Anna, alongando o braço em postura esculptural.

—Era isso mesmo. Desce o braço, propheta! podes apagar a chamma divina que te alumia o futuro, e convida-me para jantar comtigo, visto que o teu homem foi jantar com o general Sepulveda, e podemos parolar toda a tarde... Olha, não gósto d'estas deserções que faz teu marido a jantares alheios. Casado ha um mez, e jantar fóra...

—Que tem isso?

—Eu não no consentia a meu marido.{160}

—Pois sim... eu tambem não gósto; mas o papá deseja que elle se empregue, e o general Sepulveda prometteu-lhe não sei quê no commissariado. Diz o Eduardo que é preciso fazer a côrte ao general. Ora agora, tu, que tens quinhentos mil cruzados, se casasses, não consentias que teu marido fizesse a côrte aos que dispõem dos empregos. Olha, casa com o Taveira, e verás que elle janta sempre em casa...

—O Taveira? olha quem!... O Taveira jantaria comigo, se a santa Liberdade o não convidasse a comer o caldo negro dos spartanos. A politica é uma amante que supplanta as esposas. Em quanto houvesse leis que fazer e costaneiras que rabiscar para vestir a Liberdade, com trapos reduzidos a papel sujo, meu marido apenas me daria a honra de me lêr os seus artigos e discursos. Venceslau ha de ser um bom esposo, se a Liberdade morrer; mas depois tambem a mulher, que o acceitasse viuvo de tamanha deusa, corria o perigo de o ir procurar aos sertões da America, onde ha tanta liberdade, sem constituição nem hymno, que toda a gente faz o que quer e traja o mais livremente que é possivel.

N'este estylo, que denota frescura, desafogo e irrisão, proseguiu D. Julia de Miranda até á chegada do commendador. A pratica, durante o jantar, correu á conta do soberbo discurso que Venceslau proferira n'aquelle dia, captando o assombro das galerias, e consolidando a reputação de primeiro orador, em tão verdes annos. Francisco Vaz, á medida que realçava os{161} talentos do deputado, vibrava de esconso á filha uns olhares expressivos de mágoa e censura, como se quizesse d'esta sorte arguil-a de ter-se esquivado a consultar o pae na escolha do marido.

—Que brilhante futuro aguarda este rapaz!—insistiu o enthusiasta, apezar da voragem que o deputado abria para sorvedoiro das commendas rendosas.—Dizia-se ha pouco no Rocio que é bem de esperar que elle seja chamado ao governo. Que admira? Quando o talento se allia á honra, que monta a falta dos cabellos brancos! Vida immaculada com profunda sciencia combinam o grande prodigio, n'estes tempos de muito vicio com muitissima ignorancia! Ó snr.ª D. Julia, que homem aquelle quando o fogo do genio e a consciencia da justiça lhe alumiam a fronte! Tenho pena que as damas portuguezas se considerem tão alheias dos negocios publicos. Se a instrucção mulheril ou a moda levassem senhoras ao parlamento, quantas não sahiriam de lá hoje, não direi convencidas pela oração, mas apaixonadas pelo orador!...

Ao gracejo do velho respondeu D. Julia:

—É bom que as senhoras não frequentem o parlamento. Pobre deputado, se as apaixonadas o assaltassem á sahida da camara, a repucharem-no cada uma de seu lado, e elle a defender-se d'essas mulheres de Pharaó, com argumentos de irreprehensivel rhetorica! O pobre rapaz havia de julgar-se novo Orpheu dilacerado pelas donzellas da Thracia.

O commendador franziu a epiderme da testa, revelando{162} assim o desgosto que lhe causavam as demasias de sal, com que a sua hospeda, desde certo tempo, polvilhava as facecias.

—As damas portuguezas—tornou o commendador sisudamente—quando admiram os bons ingenhos não os assaltam na rua; e, se os prézam, não se desprezam a si mesmas.

—Perdão, snr. commendador,—emendou D. Julia, despeitada pela censura—eu respondi gracejando, por me parecer que V. S.ª não calculava com a maior seriedade o numero das damas apaixonadadas pelo orador. Eu tenho a honra de ser uma das leitoras, que admiram Venceslau Taveira, e já n'esta casa o ouvi improvisar luminosos discursos; porém...

—Não se apaixonou...—accudiu o velho.

—Não, senhor. As mulheres portuguezas, em geral, não têm a sensibilidade erudita que se extasia e captiva de discursos politicos. Comprehende-se que um poeta leve de poz a sua lyra mulheres, como Amphião levava pedras. A poesia é musica, e a musica, não sei onde li isto, fascina cobras e outras alimarias ferozes. Mas um discurso sobre a liberdade de imprensa e a egualdade perante a lei não seria capaz de me arrebatar grandemente.

—Desconheço-a, minha amavel senhora!... replicou o commendador, alongando os beiços, e tomando na mão um prato, cujos relevos japonezes parecia examinar em quanto fallava.—Essa linguagem, adubada de chistes e epigrammas, d'onde lhe veiu? A menina,{163} d'antes, conversava em termos ingenuos, modestos e familiares: revia candura no pensar e no dizer. Hoje, porém, e n'estes dous ultimos mezes, as suas phrases têm novidade, que me desconsola. Ouço dizer que os emigrados trouxeram de França uns livros que apagam os lumes do coração e accendem os fogos fatuos do espirito... Dar-se-ha caso que a minha Juliazinha haja lido muito?

—Leio desde os quinze annos, como V. S.ª sabe—respondeu com altiva seriedade a fidalga.—Meu pae era rapaz quando o Pombal expulsou os jesuitas e abriu as barreiras aos livros francezes. Meu pae estudou então, e mandou-me ensinar a mim o que lhe pareceu bom que eu soubesse. Li muito, durante os annos que estive inclausurada em castigo de amar seu filho. Lia para distrahir-me, e arrancar das presas da desesperação a alma que eu guardava para elle. Os livros, que li então, são os livros que hoje recordo. Dos que ultimamente vieram com os emigrados não conheço nenhum que me abraze nem que me géle. Ha todavia para mim dois optimos exemplos de que os ares que os emigrados respiraram não impestam. Bem lidos e sabios da sciencia dos francezes devem ser Eduardo e Venceslau; não obstante, elles são homens de bons costumes e excellente porte.

—São...—murmurou o commendador.—Não duvido... não devo duvidar que sejam...

E, balbuciando como se as palavras resistissem á{164} repressão da vontade, levantou-se da mesa, onde se havia demorado, concluido o jantar.

N'este acto, annunciou-se Venceslau Taveira.

D. Julia deu-lhe os emboras do seu triumpho que elle recebeu com um silencioso gesto de respeitosa gratidão.

Perguntou por Eduardo; e, como lhe dissessem que jantára com Sepulveda, a quem empenhára na sua collocação, disse:

—Eu obtive o despacho de Eduardo...

—Mas ninguem lhe tinha pedido esse favor, meu amigo!—disse com jubilosa commoção o velho.

—Não, senhor. Eduardo nada me pediu; vi na secretaria o requerimento. É bem de crêr que o ministro o attendesse; mas com as delongas usuaes. Ora, como eu melhor do que ninguem podia depôr do merecimento e probidade do meu amigo, fallei ao secretario de estado, e alcancei sem esforço que o decreto seja lavrado.

—Nobilissima alma!—exclamou o commendador, abraçando-o.

D. Anna apertou-lhe tambem a mão com vehemente agrado; e, n'este lance, disse alegremente o deputado:

—Dou-lhe os parabens, snr.ª D. Anna, porque, despachado o nosso Eduardo, não terá V. Ex.ª o desgosto de jantar sem elle. O emprego é sempre uma felicidade na vida intima, quando traz a uma esposa extremosa mais duas horas de convivencia com seu marido.

—Mas tem percalços o officio...—disse D. Julia.{165}

—Qual officio, minha senhora, o de chefe do commissariado?

—Esse ou qualquer outro que involva nas alternativas da politica o socego de Eduardo.

—D'accordo, minha senhora; mas o socego é um egoismo improprio do homem que deve ao pobre paiz o obulo da sua actividade e talentos.

—A mulher, primeiro—redarguiu a dama.

—A esposa primeiro nas prerogativas do coração—obviou Venceslau—mas nos dons do espirito a humanidade, o commum de nossos concidadãos, que constituem a patria. Eduardo Pimenta deve arrotear os maninhos em que seus filhos hão de colher as messes. Aos fundadores da familia corre maior obrigação de desaffrontar os herdeiros do seu nome dos vexames do despotismo e da ignorancia d'este paiz, para que não hajam de envergonhar-se os que nasceram n'elle...

—Vês, Anna?—disse Julia intencionalmente á sua amiga.—Não é isto que eu te dizia ha pouco?

Venceslau, olhando alternadamente para as duas senhoras, disse:

—Vê-se que eu tive a honra de ser discutido por V. Ex.as...

—Foi—tornou a fidalga das Amoreiras.—Dizia Anna Vaz que V. S.ª, se fosse casado, nunca deixaria de jantar com sua esposa; e dizia eu que a sua esposa teria de succumbir rivalisando-se com os interesses da patria.

—V. Ex.as ambas tinham razão. Se eu fosse casado,{166} deixaria de jantar com minha mulher, quando as obrigações indeclinaveis de cidadão me não deixassem jantar n'outra parte. Se esse infortunio, porém, acontecesse muito repetido, e eu deixasse de jantar alguns dias successivos, minha mulher choraria amargamente quando lhe restituissem o cadaver do marido morto de fome... no altar da patria.

Riram as duas senhoras da facecia expressada com seriedade despretenciosa; mas o commendador que entreviu no dizer engraçado uma indirecta censura ao genro, murmurou:

—Democrito dizia eternas verdades, rindo.

—Não me dê foros de philosopho, meu bom amigo—volveu o deputado, atinando com o intuito do velho.—Verdade é que, se a philosophia é ou foi officio de gente mal enroupada e mal alimentada, eu, pelo que toca ao alimento, estou a ponto de professar o stoicismo dos famintos mais celebres da Grecia e Roma. São seis horas e não jantei ainda. Recebo as ordens de V. Ex.as

—Se recebe as nossas ordens—disse D. Julia—ámanhã irá jantar comnosco á sua casa das Amoreiras.

—Beijo as mãos de V. Ex.ª por tamanha honra...

—Mas se a patria o impedir?—tornou ella.

—É vão o receio, minha querida senhora. A patria por em quanto janta, e deixa jantar os seus filhos. Não se trata de lhe matar a fome; da indigestão de lautos banquetes é que eu e outros mezinheiros a queremos curar.{167}

XIV

Cuida que as namora todas.

SA DE MIRANDA.Egloga.

Desde que o desembargador do paço Paulo Henrique Henriques de Miranda fallecera, os candelabros e serpentinas nunca mais illuminaram as salas luxuosamente estofadas com as alfaias dos Tavoras. A herdeira, porque vivia magoada e era só, esquivou-se a receber as antigas relações de seu pae, e até dos proprios parentes se desonerou, não pagando visitas além das cerimoniosas. Poucas horas do dia demorava na sombria casa; e o restante d'ellas e o mais da noute eram de Anna Vaz e do commendador que ella considerava sua familia.

O capellão, padre instruido, que devia ordenação e bens de fortuna ao desembargador Paulo, muito tempo lidou com D. Julia, instando-a a casar-se, a fim de repôr aquella casa no esplendor antigo, aviventar as salas{168} desertas, dar vozes áquelles corredores funebres, e crear os netos do illustre desembargador, cujos parentes lateraes elle desadorava por immensamente brutos. «Se esta casa—dizia quasi iracundo o padre Manoel Ferreira—resvalava aos grandes abysmos de ignorancia em que jazem seus primos, receio bem, fidalga, que seu pae a maltratasse no céo, embora V. Ex.ª lá subisse virgem, e, de mais a mais, martyr das suas quimeras. Caze-se, minha senhora! caze-se!»

D. Julia galhofava com o capellão, e dizia-lhe:

—Não se afflija, padre Manoel, que eu hei de casar. Vá pensando no noivo, que eu faço o mesmo. Que seja galante, gentil, poeta... ouviu?

—Poeta!—resmuneava o clerigo com reprovativo esgar.—V. Ex.ª não sabe o que são poetas em Portugal? Aqui não ha Horacios nem Racines, nem Virgilios nem Delillos, honrados pelas musas, e coevos dos grandes reis na immortalidade. Cá, os poetas são os ebrios do café das Parras e do Nicola do Rocio. É o ex-frade corruptissimo Macedo, era o virulento Bocage, é o safadissimo histrião José Daniel, e quem mais? Poetas!... Poeta era o snr. desembargador do paço, a quem o meu amigo Francisco Manoel do Nascimento mandou lá do desterro odes puro horacianas em resposta d'outras; pois saiba, exc.ma snr.ª, que seu pae, sendo poeta que não invejava Garção, nunca admittiu ás suas salas esses poetastros, que por ahi ornejam a trocar sonetos magros pelas sopas gordas d'uns Mecenas dignos d'elles. Olhe-me o Tolentino... aquelle pedintão...{169}

—Está bom, padre Manoel!—suspendia D. Julia—não me leccione a historia dos poetas que detesta; mas escolha-me um que faça odes como Horacio, e Georgicas como o seu Virgilio: ache-m'o que eu prometto devorciar-me d'elle se me obrigar a ouvir-lhe os poemas.

O bom do padre, a rir e a tabaquear, citava alguns versos latinos, já quando a fidalga ía longe do supplicio de ouvir-lh'os.

Isto veiu ao ponto de se dizer agora que o capellão se alegrou devéras quando viu sentados á mesa grande—que estivera devoluta no lapso de nove annos,—o commendador Vaz, sua filha, o genro, e, sobre todos lhe dava prazer infinito, Venceslau Taveira, o moço em quem elle venerava virtudes sem alardo e conhecimentos ponderosos da latinidade classica.

Ao primeiro convite seguiram-se outros para banquetes em que reverberavam a baixela antiga, os cristaes da Saxonia, as louças indiaticas, a opulencia dos Henriques de Miranda, herdadas d'um celebrado avô, ministro e valido, que tão funesta e deshonestamente privára com Affonso VI.

Venceslau Taveira, constrangido pela urbanidade, concorria ás festas da sumptuosa dama.

Aos jantares lautos seguiram-se os bailes; onde a nobreza ostentava aos olhos reflexivos do deputado a incuria desleixada do seu porvir, a serodia soberba da stirpe,—o tronco secular corroido pela ignorancia, com{170} alguma folhagem nas vergonteas ressequidas pelo sol ardente dos novos tempos.

Não contribuia Venceslau com a sua parte de contentamento para os prazeres da liberal hospedeira. Se ella o buscava entre os que jogavam, dançavam ou zumbiam amoriscados á volta das colmeias, não o via. Perguntava a Eduardo se o seu amigo lhe teria sido levado de casa pela mãe patria. Ia o marido de D. Anna em demanda do philosopho, e encontrava-o na bibliotheca e mais o padre Manoel Ferreira folheando um Tibullo de 1465, commentado por Vulpus, ou quejando estafermo embalado no berço da arte typographica.

Reconduzido ás salas, Taveira esforçava-se por aquinhoar da alegria contagiosa dos outros, e, á força de fingir-se alegre, simulava um provinciano emparvecido na contemplação dos collos despeitorados, das espaduas brancas como as faces destingidas de rubente pejo, dos minuetes mais ridiculos que lascivos, da refinação assucarada dos colloquios, e do ar, nem sempre fragrante de todas aquellas vaporações de flores desbotadas e de epidermes escandecidas.

Mas a cortezia era inefficaz a violental-o. Assim que os olhos da fidalga o desfitavam, elle ahi ia á sala onde alguns magistrados anciãos satyrisavam os máos costumes da geração nova, não levando em conta que a geração arguida era a dos seus filhos, educados por elles. Venceslau tractava-os com veneração, cedia-lhes a vantagem nos debates politicos, e captivava d'esta arte a estima dos mais testudos absolutistas.{171}

Quem o seguia sempre com admiração e amisade era padre Manoel, para quem o reboliço dos bailes já seria intoleravel, se Venceslau Taveira, de vontade ou sem ella, os não frequentasse. E, ao mesmo tempo que este affecto entranhado lhe deliciava as noites mal dormidas, uma paixão inversa o inquietava. O capellão aborrecia Eduardo Pimenta, em tanto extremo que o malsinava de ignorante, de vaidoso da sua profissão de petimetre, de bonifrate sem proposito de marido, olhando para todas as damas com tregeitos e galanices de piza-verdes, cacarejando uns dizeres improprios de homem casado, e apenas perdoaveis aos que andam de amoríos com quantas levianas fazem barato das suas finezas. Esta censura não era elle homem que a calasse comsigo. Sempre que lhe cahia a talho, desembuchava as azías do animo nos ouvidos de D. Julia, que lh'as ouvia indulgente por saber que o padre derivava sempre a objurgatoria em louvor de Venceslau Taveira.

A opinião do clerigo era n'alguns pontos injusta. O genro do commendador, se não ia á bibliotheca pasmar-se nas edições quinhentistas, e antes se queria nas salas a extasiar-se na nitidez dos typos do seculo XIX—era iniquidade acoimal-o de ignorante. Estylo, fórma, geito dramatico, attitudes ao romantico, verbo e nervo como á moderna se diz, isso tinha elle, como raros do seu tempo. E a menos valiosa d'estas qualidades bastaria, nas salas, a sobrepujal-o ao seu amigo Venceslau, o misantropo, que entre as Thais e as Dydimas de Lisboa era importuno decerto com as suas, ainda bem que{172} silenciosas, austeridades de Timão atheniense. Que o chefe do commissariado andasse galanteando as damas dos bailes de D. Julia é menos verdadeiro. O capellão, a tal respeito, sabia menos que a dona da casa. Se alguem podia queixar-se era ella.

Mas não se queixava.

O silencio, nas mulheres dignas, quando a impertinencia da paixão immoral as ultraja, é virtude superior. As que medem a grandeza dos dissabores que resultam de repudiarem á vista de testemunhas as finezas d'um homem desvairado, mantêm-se honradamente affectando que o não percebem em publico, e defendendo-se em particular com o desprezo.

Pouco mais ou menos era assim que D. Julia de Miranda procedia com Eduardo Pimenta.

Devia de ser, todavia, descommunal o sentimento que esporeára o marido da formosa Anna, tres mezes depois de casado, a entremetter nas paginas de um livro, que Julia andava lendo, uma carta phraseada a sabor de lagrimas, as mais commoventes que podem sahir de peito ferido pelo primeiro amor!

O immediato pensamento que assaltou Julia foi retirar-se a uma das suas quintas no Alto Minho; mas semelhante fuga, sem causa justificativa na sociedade que a cortejava, pareceu-lhe covardia, ao mesmo tempo que o temerario galan teria motivo a lisongear-se do expediente, reputando-o vacillação.

Não fugiu. Fechou a carta, lacrou-a, enviou-a á repartição em que Eduardo era certo em determinadas{173} horas. Elle abriu, releu-a de espaço, e quando chegou ao fim, encontrou duas linhas de pulso estranho que rezavam assim: Não lerei outra; mas, se ella vier, pedirei á minha amiga D. Anna Pimenta que m'a leia.

Ao outro dia a fidalga foi jantar com o commendador: ia alegre, contentissima de seu nobre feito. Máo agouro! Mulher que, em lances analogos, crê praticar um heroismo, e d'isso se compraz em sua consciencia, ha de faltar-lhe o folego para subir muitos degráos na escada da virtude.

Eduardo assistiu melancolico ao jantar, e respondeu friamente ás caricias da esposa. O commendador olhava-o de esconso, e fitava olhos piedosos na filha assustada. Julia fingia-se despreoccupada; e, a seu pezar, mais que nunca, n'aquelle dia, se recolheu n'uma concentração desacostumada.

A noite d'este dia passou vagarosa e triste. Não obstante, as assembleias aos domingos continuaram no palacio das Amoreiras.

Eduardo Pimenta, desatinado ou precavido, fez praça de namorado a varias senhoras, que lhe não estremaram os galanteios das attenções e obsequiosas lisonjas, como era de esperar d'um cavalheiro amestrado na polidez estrangeira. Á excepção de uma ou duas, ou talvez tres, menos conscias da cortezia parisiense, e portanto portuguezas da lei antiga n'isto de amar quem as amava, as restantes senhoras, se deram suspeitas a padre Manoel Ferreira, sahiram impollutas. D. Anna, porém, affligia-se secretamente dos modos cortezãos do{174} marido, porque não via tão azougados os moços solteiros á volta das mulheres e reparava nos sorrisos que ellas entre si trocavam, ao passo que a olhavam de travez lastimando-a ou escarnecendo-a.

Neste desatino do homem preponderava o estulto despique do amor despeitado. Beliscar a vaidade de Julia, melindrar-lhe o amor proprio, irrital-a, dar-lhe a certeza de que outras mulheres mais viçosas e não menos fidalgas o não desdenhavam: tal era a manha trivial do sugeito. Julia, por sua parte, dissimulava o azedume que lhe fazia aquelle vil artificio em sua propria casa, e dizia muitas vezes á sua consciencia que todo o seu despeito era isso, e de modo nenhum o orgulho de ser comparada. Como quer que fosse, e por mais protestos que fizesse de si para comsigo, é certo que ella, relampagueando olhares severos a uma ou outra condessa, que reclinava a face languida ao hombro de Eduardo, segredava á sua amiga a baixa conta em que tinha a moralidade das suas parentas. Depois, repêza da inconsiderada confidencia, affligia-se, desmentia-se, pedia á esposa de Eduardo que não desse valor aos sustos proprios da amisade; e occultasse do marido as suspeitas que lhe ella infundia por excesso de zelo, e receio de dissabores domesticos.

Que desconchavadas incongruencias!

Estas torvações de entendimento precedem a cegueira da alma, á semelhança d'aquelles pontos escuros que se enredam e prenunciam a cegueira dos olhos. A medicina chama a estes prodromos da amorose «moscas»:{175} a linguagem do povo diz que as nevoas da vista da alma, em crise de cegar, são «peneiras».

D. Julia de Miranda, um dia, desceu a luz da razão aos arcanos da sua alma. Córou de si; retranziu-se de pejo; porque vira passar diante da dignidade abatida, a imagem soberba de Eduardo, e não podéra odial-o.

Desde esta hora, a amiga de Anna Vaz meditou na salvação da sua honra já denegrida. D'esta vez o alvitre da fuga cedeu o passo a outro mais sereno e estavel. Pensou em casar-se, pensou em amar, em transferir o seu coração a peito alheio que lh'o defendesse das injurias d'uma paixão ignominiosa. Louvavel deliberação!

Padre Manoel Ferreira viu a fidalga melancolicamente reconcentrada, e, com instancias repetidas, arrancou-lhe estas palavras que ella exclamava pela terceira vez:

—Se eu podesse amar um homem!{176}
{177}

XV

Flor la vimos primero, hermosa y pura,
Luego....

FRANCISCO DE RIOJA.Epist. moral.

—O homem que V. Ex.ª ha de amar—disse padre Manoel, inculcando-se inspirado de cima, e accentuando de pausas solemnes as syllabas da prophecia—o homem que V. Ex.ª ha de amar é o mais digno de ser amado: chama-se Venceslau Taveira.

Era a segunda vez que D. Julia ouvira e adivinhára tal presagio; uma, quando os labios de Anna se entreabriram ao interno ephta de illuminada; outra, quando o padre, carregando os dedos de rapé, e silvando chromaticamente a pitada, espiritava no cerebro a previdencia dos matrimonios acertados. E como a fidalga o escutasse silenciosa, sem levantar olhos do recosto da cadeira, onde apoiava o cotovêllo, o capellão proseguiu:

—Minha senhora, vou dar-lhe conta da missão de que V. Ex.ª me não encarregou...

—Que missão!?—perguntou ella, erguendo o rosto.{178}

—Circumvagando eu os olhos por quantos cavalheiros, ha tres mezes, frequentam esta casa—respondeu o padre compassando as vozes—e, procurando, entre tantos, um que merecesse ser o esposo da filha do snr. desembargador Paulo Henrique, encontrei-o. E porisso que ás perecedouras riquezas da fortuna cega não quiz Deus ajuntar sempre as riquezas immortaes da virtude, acontece que o homem mais digno de V. Ex.ª, seja o mais pobre que vem a esta casa.

—Bem...—atalhou D. Julia—; mas deixe-me interrompel-o com uma observação que devia anteceder o seu cuidado de me procurar marido. O snr. padre Manoel não devia escolher entre as pessoas que vem a minha casa; mas sim entre as pessoas que me tivessem dado signaes do seu amor. Venceslau Taveira é homem de quem nunca ouvi palavra mais affectuosa do que é costume dizer-se ás pessoas que se respeitam ou simplesmente se estimam. O snr. padre Manoel sabe que elle, n'esta casa, o que mais conhece é a livraria; e em quanto á volta de mim ou do meu patrimonio se dispendem as lisonjas, está o sabio a lêr os amores dos poetas latinos. Estou convencida ha muito da honradez de Venceslau. Estou até em crêr que a sua indifferença não seja orgulho do talento. Convenho na distincção que o snr. padre Manoel lhe dá; mas não são essas qualidades as que promettem um bom marido. A mulher, que se casa, aprecia a sciencia e a virtude do esposo; mas, além de tudo isso, deseja ser amada. Quem lhe disse que Venceslau me ama? foi elle?{179}

—Não, minha senhora.

—Ora ahi está!... Que quer então, padre Manoel? Que eu vá pedir-lhe o obsequio de me conceder o seu amor?

—Eu ainda não disse a V. Ex.ª a minha missão—replicou o padre.—Se dá licença...

—Diga então.

—Ha muitos dias que eu andava sondando o espirito de Venceslau a respeito de V. Ex.ª

—O espirito ou o coração?

—Deixemo-nos d'essas distincções romanescas, minha senhora! O coração é um orgão do apparelho do sangue. O espirito ou alma é o motor das nossas cogitações. Não estou fallando poetica nem rhetoricamente. Se eu quizesse dizer que procurava aneurismas ou outras irregularidades de circulação, diria que sondei o coração de Venceslau; mas, se o meu intuito era indagar actos puramente moraes, digo que lhe sondei o espirito.

—Está bom: fico sciente. Ora conte lá o que sondou.

—Sondei que elle sentia por V. Ex.ª profunda estima, e aquelle grande respeito que se deve a uma dama bella, nova, rica, e sobre tudo honradora da memoria do primeiro e unico homem que amou. Dizendo-lhe eu que não cessava de instar com V. Ex.ª para que tomasse estado, advertiu-me elle que seria difficil o meu desejo, porque a fidalga não poderia amar alguem, depois de ter amado Antonio Vaz, que Deus tem. Tornei eu, redarguindo-lhe que Antonio Vaz, ao sahir d'este{180} mundo, lhe entregára o retrato da sua adorada noiva, por ser elle—o confidente de tantas angustias e saudades—alma digna de receber as lagrimas do amigo que morria, e as de V. Ex.ª que o ficava carpindo. Logo, conclui eu, se ha homem digno de ser amado pela snr.ª D. Julia, minha senhora, é aquelle que Antonio Vaz julgou digno das suas confidencias e da mensagem do moribundo para a sua amada.

—Que disse elle?...—interrompeu a curiosa vivacidade da senhora.

—Disse que V. Ex.ª o honrava com a sua amisade, e que este sentimento era o maximo galardão que elle devia esperar da fraternal cordialidade com que aliviára algumas mágoas de Antonio Vaz.

—Isso é amor?

—Queira V. Ex.ª esperar... Passados alguns dias, chamei a pratica ao mesmo assumpto; e, quando elle menos esperava, perguntei-lhe ex-abrupto: «Se a snr.ª D. Julia escolhesse para esposo o snr. Venceslau Taveira?» Elle poz-me os olhos espantados, e tartamudeou esta resposta: «O snr. padre Manoel Ferreira tem illusões proprias de quem as não gastou em desenganos.»—Que quer isso dizer?—voltei eu bastante esperançado n'uma resposta que me servisse de itenerario n'esta peregrinação até ao arco do altar.—«Quer dizer (respondeu o modestissimo moço) que a snr.ª D. Julia de Miranda tem quinhentos mil cruzados; tem provavelmente adoradores que façam consistir toda a sua actividade em adoral-a; tem a alma preza á saudade de{181} outra que alguma vez a visita e enlucta em meio das pompas dos seus bailes. Um homem pobre—continuou elle—circumscripto aos deveres que contrahiu com a patria, sujeito a perseguições d'odios politicos, ameaçado com o desterro, e até com a morte no campo da batalha ou no patibulo, tal homem seria o involuntario algoz da felicidade d'uma senhora que o acceitasse para os gosos da vida intima, cercada por tantos perigos.» Dito isto, Venceslau foi procurado por ordem de V. Ex.ª, que o mandava chamar á sala, para o apresentar a seu tio o snr. conde de Villa-Cova. Eu segui-o, e espionei-lhe os olhos n'aquella noite. E que vi eu com interior satisfação, minha senhora? que elle andava por entre os reposteiros a contemplar V. Ex.ª, e que, ás vezes, se se affastava para a sala dos retratos, era para estar só, mergulhado em funda meditação. Eis-aqui, exc.ma snr.ª, o que ha passado. Digne-se agora dizer-me se eu tenho precisão de lh'o ouvir confessar, para saber que elle a ama?!

—Precisa—respondeu ella prompta e serenamente.

—Preciso? Perguntar-lh'o-hei.

—Não pergunte. O padre Manoel tracta isto de casamentos pelo systema antigo da Biblia. O patriarcha mandava recado á matriarcha; e, quadrando a resposta, casavam.

—O povo de Deus era assim.

—Concordo; mas a gente, de hoje em dia, não...

—Não é de Deus?—atalhou o padre.

—Estou que é; mas Deus é que não manda o seu{182} divino espirito presidir aos casamentos da freguezia dos Martyres ou de Santa Justa.

—Ah! não se me faça espirito-forte, fidalga!—exclamou sombriamente o padre.—Aquelles livros de seu pae... aquelles livros de Rousseau... a Encyclopedia... etc., etc!... Olhe que Venceslau, posto que sapientissimo e sectario da liberdade, e lido em tudo que o seculo XVIII escreveu contra Deus, entra nos templos, ajoelha, ora, e crê que a alma de sua mãe lhe radía de sua luz celestial nas escuras veredas da vida!...

—E eu então sou atheista? Não creio em Deus, porque entendo que não é bonito ir o meu capellão perguntar a um sugeito se elle me ama? Ah padre, padre! a sua intelligencia tem ás vezes uns eclipses que nem por isso o tornam comparavel ao sol...—disse ella rindo com o consenso do clerigo que tambem escancarou as mandibulas em sincera gargalhada.

E, no tocante a casamento nada mais tractaram, porque D. Anna Pimenta vinha desde a sala de espera chamando Julia acceleradamente.

—Que é, filha!!—exclamou a amiga, indo recebêl-a nos braços.

—Manda embora o capellão—disse-lhe ella ao ouvido.

O padre retirou-se antes de avisado, porque viu grande afflicção no rosto de D. Anna.

A esposa de Eduardo, trémula, offegante, e incendida de febril anciedade, disse entre soluços:

—Olha que venho afflictissima... Deixa-me respirar...{183} Depois que Eduardo sahiu, fui á escrivaninha d'elle, e achei, pela primeira vez, uma gaveta fechada. Como ando muito suspeitosa de que elle corteja a tua prima Nazareth, desconfiei que n'aquella gaveta devia estar alguma carta d'ella...

D. Julia empallideceu. Arfava-lhe o coração, com o terror de ter sido encontrada a carta que ella devolvera, com duas linhas de sua lettra; e, posto que a justificação lhe sahisse facil e digna, a sua posição em tal conflicto era má.

D. Anna desattenta ao gesto denunciativo da amiga, proseguiu:

—Procurei uma chave que servisse, e achei-a. Abri a tremer a gaveta, e vi estas tres folhas de papel, dobradas em carta, mas sem sobrescripto. Li-as, e fiquei certa de que Eduardo está ardentemente apaixonado por uma mulher quem quer que seja... Lê tu, vê se podes adivinhar a quem essa carta é escripta; mas lê depressa, que eu quero ir repôl-a na gaveta antes que Eduardo venha da repartição.

Julia, com tremente voz, leu a carta. Logo no primeiro periodo se lhe acclarou o destino, por estas palavras: Se V. Ex.ª cumprir a ameaça que me escreve—se me denunciar, fará duas victimas. Mata uma innocente, e ordena ao criminoso que se suicide: será obedecida.

—Que quererá isso dizer?!—perguntou Anna.—Quem será essa innocente e esse criminoso?... E que ameaça lhe faria a tal mulher?... Podes decifrar isso?

—Eu não, filha... Que mysterio!...—balbuciou{184} Julia. E continuou lendo, e relançando a furto os olhos em toda a extensão da lauda, buscando perturbada alguma inicial que a denunciasse.

O conteudo da longa carta era vago, declamatorio, tiradas funebres de prosa campanuda com muito lardo poetico de céos, infernos, furias, anjos precitos, archanjos da morte, calices de fel, esponjas de vinagre, golgothas, estrangulação de suicida, almas devastadas, arestas d'abysmos, e o mais que cabe nas cavernas lôbregas d'um peito romantico, onde uma vez entraram as novellas de Anna Radcliffe.

Lida a carta, Julia suspirou desafogadamente o seu sobresalto, e disse enternecida:

—E tu que fazes agora, filha?

—Que hei de eu fazer?! nada...

—Então vaes fechar a carta onde a encontraste?

—Vou...

—E não dizes nada a teu marido?

—Acho que não... porque, se lh'o digo, ha desordem grande em casa, e meu pobre pae morre de paixão. Tu não vês como elle já está soffrendo só de me vêr triste, e de o vêr a elle tão descuidado de nós?...

—Nem a teu pae dizes nada?...

—Deus me livre!... Se elle via esta carta, estalava de dôr...

—Tu és uma sancta!—exclamou D. Julia, abraçando-a arrebatadamente.

—O que eu sou é uma grande desgraçada!—emendou Anna.—Que me dizes então, Lulu?{185}

—Que queres que te diga, se o teu plano está feito? Quem a si mesma se aconselha com tanta dignidade, não tem necessidade de conselho.

—O que eu queria era que tu descobrisses quem é a mulher; e, se ella fosse tua relação, a expulsasses d'esta casa, ou me não convidasses a mim...

—Dizes-me isso tão desabridamente, filha! Não te convidar a ti!...

—Digo-t'o com amargura, mas sem desabrimento, minha amiga. Que gosto posso eu ter em vir a uma casa onde sei que ha uma mulher que me escarnece...

—Bem vês, menina, que a mulher a quem esta carta foi escripta não póde escarnecer-te... Não vês que ella despreza teu marido!

—Sim? despreza?

—Pois que diz essa carta? É um desesperado queixume contra a mulher que o repelliu. Tomáras tu, meu amor, que todas assim procedessem, quando elle as requestar...

—Tens razão, Julia! tens razão! Olha que eu nem tive socego de espirito para entender a carta... Olha, vou mais contente... Póde ser que elle a esqueça... Mas esta carta assim apaixonada, se ella vem a recebel-a, talvez que...

—O ame?

—Sim...

—Não, filha, não receies. A mulher de coração ama sem este mixtiforio de maravalhas, e a mulher de intelligencia zomba d'estes estrondos de palavras. Sabes tu{186} outra coisa? Teu marido leu maus romances, e principia a escrevel-os peores. Deixa-o sangrar a veia do genio que não vá morrer apopletico. Não faças caso d'isso... Ai! já me esquecia!... Não te vás sem uma novidade...

—Que é?

—Vou casar-me.

—Sim? com...

—Com o teu vaticinado. Adivinhaste.

—Venceslau?

—Sim.

—Não t'o disse eu?!... Mas ainda hontem estiveste comigo á noite, e nada me disseste!

—Resolução tomada hoje.

—Veiu cá elle?

—Não... Eu te contarei tudo... Vae praticar a heroica virtude de fechar a carta, que não esteja eu a privar-te da benção de tua santa mãe... Adeus, até á noite.{187}

XVI

Melius est pubere, quàm uri.
Melhor é cazar-se do que queimar-se.

S. PAULO.

Seguidamente procurou D. Julia o capellão no seu escriptorio e disse-lhe:

—Snr. padre Manoel, mande sahir a traquitana, e vá á camara dos deputados convidar o snr. Venceslau Taveira a jantar hoje comigo. Peço á sua probidade nunca desmentida que lhe não diga a conversação que tivemos.

—Que tem V. Ex.ª? o seu espirito está desasocegado!—notou o padre com a mágoa do muito que lhe doía vêl-a estranhamente agitada.

—Vá! não me pergunte nada agora... Eu me confessarei á sua boa alma, quando me sentir mais tranquilla.

—Bem sei...—murmurou o padre—bem sei...{188}

E ella, fixando-o maviosamente parecia dizer: «se sabe...»

A improvisa deliberação de Julia é lance que nos revela indole generosa, mas precipitada; alma capaz de virtudes impetuosas, mas raras vezes encaminhadas á direita vereda por onde ellas conduzem á felicidade estavel. Convém saber que ha logica de ferro, pauta rigorosa nos actos encadeados da vida estreme de romance. As phantasias energicas e destemperadas que partem aquella cadeia, conhecem mais tarde que os élos quebrados eram a parte mais solida por onde a esperança devia prender-se á realidade.

De prompto occorre á sizuda leitora d'este livro que D. Julia resolveu repentinamente casar, quando a sua amiga lhe pedia conselho—a ella, unica pessoa que sabia o segredo da paixão de seu marido. Affastal-o de repellão, fulminar-lhe as esperanças, defender-se do ultraje com a respeitabilidade de esposa, e esposa de Venceslau Taveira—o amigo e bemfeitor de Eduardo—este foi o sentimento elevado que a impulsou a decidir do seu destino, como se os destinos impendessem d'estas determinações instantaneas. Foi um relampago que lhe allumiou o futuro; mas, se o fulgor electrico abrange dilatada circumferencia, densa escuridade se tece depois aos que apalpam rochas áridas que a luz azulejára como kioskes.

De mais d'isso, o reverso da ideia irreflectida não offerece contraste que a desdoira, sendo parte n'ella a vaidade, por não dizer soberba? Dispor de antemão da{189} condescendencia de homem tal como Venceslau, era fiar talvez de mais no iman dos seus quinhentos mil cruzados, ou illudir-se muito com a já desluzida belleza dos seus vinte e nove annos, ou então enlaçar presumpçosamente essas duas prendas ás graças do espirito que, em verdade, lhe davam a primazia entre as suas contemporaneas.

Se o padre Manoel, syndico do animo do deputado, se houvesse illudido nas suas analyses; se Venceslau nos sahir mais austero philosopho que o divino Socrates—para quem Aspazia e Lais eram espectaculos dignos da admiração do universo—a vaidade de Julia será derrotada irrisoriamente aos olhos de Eduardo; e o cahir de tamanha altura, onde ella se fantasiou alçada pela honra, dará o estrondo d'um escandalo ridiculo nas salas de Lisboa.

Antes da chegada de Venceslau Taveira já a tortura da incerteza flagelava D. Julia de Miranda, a ponto de sentir-se desvigorosa de espiritos para honestamente abrir conferencia de tanto melindre.

N'este desanimo dessimulado pela viveza propria do temperamento, a encontraram o deputado e o clerigo.

No semblante de Venceslau transparecia tambem a turvação das conjecturas. Aquelle convite era o primeiro, particularissimo, e subitamente resolvido. Até aqui havia chegado a confidencia do padre, cujo contentamento extraordinario devia ter mysteriosa significação nas perplexidades do convidado.{190}

Observou o hospede que D. Julia, a só com elle, denotava acanhamento desacostumado. A conversação esfriava no trivial. A politica era chamada á pratica, por ella mesma que tantas vezes a matraqueára, pedindo ao orador que deixasse a noiva em casa a fazer leis, quando lhe désse a honra de a visitar.

Quando um criado entrou á sala a saber se a fidalga mandava servir o jantar, D. Julia deu o braço a Venceslau Taveira, e foi dizendo:

—Somos sós, e mais o capellão. Ainda bem que na pessoa de padre Manoel Ferreira está symbolisada toda a academia real das sciencias. Eu concedo que fallem latim, e convidem para a meza todos os classicos romanos da minha livraria. Sinto não ter um triclinio para offerecer a Horacio; mas sentar-se-ha no collo do padre. Cicero, se vier; irá para o collo do snr. Taveira.

—Convidaremos Corinna, para que V. Exc.ª tenha alguem no regaço, disse o deputado.

O capellão, que já os estava esperando, ouviu a fineza do politico, e acudiu logo:

—Fallam da infiel amante de Ovidio?

—Não, senhor—disse Venceslau—fallavamos da poetisa grega...

—Rival de Pindaro—ajuntou o padre—a qual cinco vezes foi premiada nos jogos olympicos...

—Primeiro discurso academico!—atalhou D. Julia.—Não lh'o disse eu, snr. Taveira? Padre Manoel, continue, que eu sirvo-o de sôpa, se o snr. Venceslau não quizer acceitar o meu logar.{191}

—Ó minha senhora, apresso-me a receber tamanha honra...—disse Taveira.

—Gosto de o vêr ahi, snr. futuro secretario de estado...—disse o capellão.—Está na cadeira do snr. desembargador do paço Paulo Henrique. Nove annos esteve empacotada; e, tirante a snr.ª D. Julia, ninguem mais occupou essa cadeira. Não ha ainda quarenta e oito horas que eu perguntei a S. Ex.ª: «quando verei alli sentado seu marido?»

D. Julia córou, e o deputado tambem; mas padre Manoel, que não córava nos banquetes sem poder explicar o pudor com a alcoolisação do seu rico sangue, continuou:

—Voltando a Corinna, se viessem fallando da celebre amada do desterrado do Ponto, citar-lhes-hia a canção do banquete em que o poeta lhe impropéra a perfidia...

—Má iguaria nos banqueteava, padre Manoel!—contraveiu D. Julia.—Antes uma canção de amor fiel, quando a censura do crime não tem auditorio a quem possa aproveitar. Eu fico pela lealdade do snr. Venceslau aos seus mais caros affectos...

—E eu serei o fiador de V. Ex.ª—acudiu o deputado—mas se eu abono a lealdade de quem ama uma saudade, V. Ex.ª fica pelo vago amor de quem namora uma esperança. A favor da snr.ª D. Julia está o passado que funda em provas incontestaveis; eu, de mim, não posso consentir que V. Ex.ª me abone, sendo coisa tão incerta o futuro.{192}

—Eu referia-me ao seu amor privativo da patria—explicou a dama.

—A patria é como aquelle pão de que o homem não póde unicamente alimentar-se, na phrase do Evangelho—retorquiu Venceslau.—Varias vezes V. Ex.ª e a snr.ª D. Anna Vaz, motejando com bondosa graça a diligente assiduidade com que tento cumprir meus deveres, me tem dado fóros de selvagem desconversavel e alheio da lei commum do amor, que tanto influe no sybarita como no estoico. O gracejo era uma lisonja, visto que eu merecia as amaveis censuras de SS. Ex.as, mas, em verdade, minha senhora, se eu me vangloriasse de ser o que as minhas amigas imaginam, tarde ou cedo as faria rir da minha enfatuada insensibilidade.

—Pois quê?!—exclamou o padre—snr. Taveira, bebo á sua saude. Nunc est bibendum. Gósto d'essa franqueza! Homo sum et nihil a me alienum, etc.

—Estamos em casa de Mecenas—disse, sorrindo, D. Julia.—Entrou Horacio, e lá está a discretear com o padre.

—O latim é de Terencio—illucidou o erudito—e quer dizer que o snr. Venceslau Taveira é homem como os outros... Como os outros, quero dizer, os raros que se lhe assemelham na virtude e na sabedoria, na modestia e na moral, na vida illibada e...

—Pelo amor de Deus—interrompeu o deputado.—Parece que me está dictando a necrología, snr. padre Ferreira! Não usurpe aos mortos essas hyperboles... Veja os meus defeitos para que eu me considere tambem{193} examinado nas imperfeições menores. Já não é pequeno aleijão moral o defeito de coração que me censuram...

—Pois que quer?—volveu D. Julia—como hei-de eu julgar a sua indifferença em meio de tantas damas formosas e espirituosas que frequentam esta casa? Nenhuma o impressionou?

—Admirei-as... e passei, sem que ellas me vissem.

—Mas admirar...

—Admirar não é amar. As estatuas do Louvre admiram-se, e não se amam. A mãe que nos affaga, ama-se e não se admira. O amor brota da alma. A admiração forma-se no entendimento. Uma coisa tem muito d'arte; a outra deve ser espontaneamente natural.

—Materia estranha é essa em que não tenho voto—disse padre Manoel, engatilhando a pitada ao nariz.

—O homem do Evangelho não é o de Terencio—assentiu Venceslau.

—Mas—voltou o clerigo—posto que o Evangelho me não ensine nem consinta que eu aprenda experimentalmente o processo do amor, sei que Jesus Christo, instituindo o Sacramento que cinge com indissoluvel nó duas almas, santificou o amor que as identifica. D'este sacratissimo amor percebo eu; não se me importa saber se vem antes ou se vem depois da admiração; se é espontaneo da alma, se a alma é estimulada por affectos de natureza menos psycologica. Ha opiniões. Grammatici certant.{194}

Venceslau sorriu, sem encarar em D. Julia, que provavelmente não entendeu a phrase nem o sorriso.

E o padre seguiu n'este dizer mesurado e solemne:

—Ha de haver trinta e seis annos que o snr. doutor Paulo Henrique era solteiro e eu estudante in minoribus, já então familiar d'esta hospedeira casa, onde me fiz gente. Bem que eu fosse filho do mordomo do fidalgo, a honra de me sentar a esta mesa já vem d'esse tempo. O joven doutor folgava de me ouvir recitar versos dos poetas cezarios, e dava-me a honra de lhe ouvir os seus magnificos hexametros. Fallavamos um dia de outros assumptos menos litterarios, mas não menos poeticos. Conversavamos de amores, mas amores honestos como a mocidade de então os tratava theorica e praticamente, eis que o snr. doutor me disse, respeito a casamento: «Olha, Ferreira, eu não ando por salas em damarias de peralvilho; abomino os insulsos requebros com que os namorados parecem noviciar antes de professarem votos tantas vezes quebrantados. Se eu encontrar mulher que me deixe viva saudade, e desejo de tornar a vêl-a, indago-lhe da vida; e se as informações m'a derem ao sabor da ideia que fórmo da esposa excellente, pergunto-lhe se me quer para marido. Se me responder que sim, a minha mulher ha de ser essa.» Pouco tempo depois, na cadeira em que está sentada a snr.ª D. Julia, estava a snr.ª D. Maria das Dores Mascarenhas, mãe de V. Ex.ª, exemplar de todas as virtudes conjugaes, tão amada na vida, quanto chorada na morte.{195} Sendo já fallecida sua Ex.ma mãe, estava V. Ex.ª, menina de nove annos, no logar onde a vejo, eu estava onde estou, e o snr. desembargador alli. Recordamos então com lagrimas a nossa pratica passada nove annos antes; e seu pae, correndo-lhe a mão pelas faces, disse: «permitta o céo que esta creança seja amada como foi sua mãe; e que as galanterias das salas e os fumos da lisonja lhe não offusquem o entendimento na escolha de marido.» Contava quinze annos esta senhora, quando Antonio Vaz, cadete de cavallaria, a cortejou. O snr. desembargador foi avisado. Soube cujo filho era o moço. Não lhe desfez na geração honrada e antiga; mas, averiguando qualidades proprias—que eram o essencial para o snr. desembargador—descobriu que Antonio Vaz, tendo amado uma filha segunda, formosa e todavia pobre, se esquivára de compromissos havidos com ella para requestar a rica herdeira, a snr.ª D. Julia. Tal foi a origem dos dissabores que lhe amarguraram os derradeiros annos, e vestiram de pesado lucto a mocidade da constante senhora, sacrificada não ao capricho, mas á moral sublime de seu pae. Prézo-me de fazer justiça á memoria do meu bemfeitor, sem apoucar nos merecimentos de Antonio Vaz. Elle era digno de tal esposa, desde o momento que ella o considerou digno de si...

—Mal cabidas reminiscencias...—murmurou D. Julia magoada.

—Tristes...—observou Venceslau—mas sempre bemquistas da alma que não as quer nem póde esquecer. Entretanto, sendo ambas as memorias veneraveis,{196} uma do pae que foi illudido, outra, a do primoroso moço que não podia mentir-me, peço á snr.ª D. Julia que respeite por egual a memoria do seu pae, que viu a infelicidade atravez das nevoas do seu affecto paternal, e a memoria do coração que se deliu nas lagrimas do primeiro amor, flagellado por quantos supplicios podia consagrar uma sepultura.

Susteve-se, compenetrado da impertinencia do logar com a funeral memoria, e disse commovido:

—Absolva-me V. Ex.ª d'esta indiscrição... Eu hei de ser sempre o homem inculto, que se deixa levar para onde a alma o leva, sem vêr quando a tristeza ou a alegria competem ás occasiões.

—A culpa não é sua—desculpou D. Julia—quem nos deu este quarto de hora escuro, foi o snr. padre Manoel Ferreira... nem eu sei para quê...

—Primeiro para commemorar—respondeu o imperturbavel capellão—o profundo juizo do pae de V. Ex.ª respectivamente a casamentos; segundo para lhe defender a memoria, em presença de sua filha, da arguição iniqua, mas involuntaria, que lhe fez o snr. Venceslau Taveira, quando ha dias me disse que o snr. desembargador tolhera a felicidade da snr.ª D. Julia. Enganaram-no, meu honrado amigo. O snr. desembargador, amando extremadamente sua filha, teve da bondade divina o dom da previsão, e anteviu que, depois de sua morte, viria guiado pela Providencia a esta casa o homem predestinado a ser esposo e pae de sua filha, esposo pelo amor e pae pela seriedade do seu porte e madureza{197} de juizo. Ora, o homem previsto e vaticinado pelo pae d'esta senhora... era Venceslau Taveira.

Não espere o leitor que se lhe dê o esboço de grandes assombros e perturbações. Se elles não se espantaram do remate do discurso, é justo que eu me contenha nos limites do mais moderado espanto. D. Julia rozou-se, abriu um sorriso pudibundo, que lhe agraciou angelicalmente os labios silenciosos; mas fitou os olhos no prato, onde depozera o talher, e só os levantou, quando Venceslau Taveira principiou fallando.

Vão vêr que nas palavras d'elle transluz amor; mas amor sem o enthusiasmo pautado e obrigado em casos d'esta natureza. É alma sincera e rija, que opéra sem o complicado apparelho nervoso com que se fabricam os extasis e os spasmos que a natureza copía dos palcos. Tem o coração subordinado ao raciocinio. Faltam-lhe ahi as fragrancias e as musicas que perfumam a palavra e lhe dão o rythmo apaixonado. Mas não é isso a esterilidade, o desapego, a aridez que imbebe as lagrimas improductivas como areal onde os orvalhos não verdejam uma hervinha. É indole corrigida pela severidade dos costumes, prevalecimento da razão sobre os sentimentos que a fantasia não desabotoou na razão propria. Venceslau orçava pelos trinta annos. N'esta edade, o amor, pela primeira vez experimentado, não abrolha em luxuosas florescencias. O arrebol do coração encontra já o meio-dia do espirito. Quasi que uma luz serena e egual neutralisa os incertos esplendores da outra. E, se ha escuridade no intimo sentir d'essa edade, a luz{198} ideal resvala pelo seio frio do gear da desgraça, e não o aquece. A condição do deputado não era bem esta; mas tambem não era optima para exuberar delicias no coração de mulher que o amasse ambiciosa das idolatrias do amor virginal. Talvez coubesse aqui averiguarmos se Julia o amava; protrahiremos a penosissima resposta: ella que responda opportunamente. Pelo emtanto, vejamos que sahida elle deu áquelle passo angustioso, de que o leitor e eu nos tirariamos tartamudeando lyrismos dignos de mais levantada historia.

—O silencio da snr.ª D. Julia convence-me de que o snr. padre Manoel Ferreira deu ás suas palavras o espirito de respeito que se deve a V. Ex.ª, e o de sinceridade que ouso pedir para mim. O que vou dizer, minha senhora, será dito sem commoção. A felicidade alvoreceu na minha vida pela primeira vez; mas, não tendo eu visto senão homens desgraçados pelo amor, a experiencia das dôres alheias faz que o raio da luz nova toque já menos ardente na minha alma, tendo de atravesar a frialdade da razão. Ouça-me V. Ex.ª: eu vi-a no exilio espelhada nas lagrimas de Antonio Vaz; vi-a ajoelhada ao pé da vala onde eu ajudei a descer o caixão; vi-a nos dias eternos de oito annos de proscripto, e procurava nos olhos do seu retrato a scintillação do pranto. Ha muito tempo, pois, que V. Ex.ª vive nas minhas meditações, na minha poesia triste;—porque tambem eu fui poeta, não para cantar amores ou saudades e ainda menos esperanças, mas para me enlevar nos espectaculos do soffrimento a que assisti. O poeta adopta{199} as imagens da sua fantazia e com ellas fórma a ideal convivencia em regiões de luz ou de trevas; eu tambem vesti de crepe uma suave e pallida imagem de mulher, unica em minhas contemplações: era V. Ex.ª Interrogando o meu coração, impunha-lhe violentamente o preceito de me enganar; amordaçava-o para que me elle não dissesse que eu poderia apagar a saudade de Antonio Vaz, e renovar no seio puro d'outro affecto um segundo amor. Além d'isto, retrahia-me o escrupulo da deslealdade ás cinzas do meu amigo: parecia-me que era ultrajar-lh'as afoitar-me a pedir para mim a felicidade que elle anhelou, e mais acerba lhe fez a desesperação que aos olhos embaciados pela morte se mostra ainda a negrejar e a sumir-se no abysmo do passado. Descendo do alto ponto d'estas considerações ao vulgar e mais positivo do juizo social, vi que muitos homens abastados, e ao mesmo tempo prendados de amaveis dons, rendiam a V. Ex.ª o preito de seus affectos, sem todavia lhe perturbarem a serenidade da sua heroica renunciação. Ao mesmo tempo, olhando em mim, com a reflexão que me esclarece os meritos alheios, via-me pobre, desvalido das qualidades que dispensam a riqueza, incapaz de pedir ao artificio os donaires e geitos que modificam a rudeza natural, peorada pela soledade do gabinete e preoccupação de estudos incompativeis com as finas graças da cortezia. Se algumas vezes, um intimo alvoroço me dizia que V. Ex.ª me honrava com estranhas distincções, eu mandava immudecer o amor proprio, e explicava a mim mesmo a{200} estima de V. Ex.ª pelo sentimento de gratidão ao confidente de Antonio Vaz—ao homem que lhe trouxera no retrato d'elle o ultimo lampejo dos olhos que a tinham contemplado. Iria mal a meu caracter franco fingir-me surprezo por este imprevisto abalo. Hoje, quando o snr. padre Manoel Ferreira me convidou a jantar com a snr.ª D. Julia, experimentei a nunca sentida impressão que produz os ineffaveis estremecimentos do susto, da vaidade, do orgulho, do jubilo das creanças—felicidade febril que eu sentia nas palpitações do coração. O amor que a tantos homens se manifesta em commoções, que augmentam de intensidade, com intercadencias de despeitos, com irritações de ciumes, com o remorso até das injustiças que se commettem—o amor, que nasce já santificado pela pureza do seu destino, esse, minha senhora, o deposíto aos pés de V. Ex.ª

D. Julia offereceu-lhe a mão tremula de poetico enthusiasmo. E d'amor? Ai! eu não sei. Venceslau ergueu-se, aproximou-a dos labios. Padre Manoel Ferreira apertou nas suas as mãos dos noivos, e disse a D. Julia:

—Eu sonhava esta felicidade desde que o pae de V. Ex.ª, na sua hora final, me balbuciou estas palavras: «Abençôe minha filha em meu nome, se ella não deshonrar a memoria de sua mãe.» Eu não ouso abençoal-a; mas curvo o joelho para lhe agradecer em nome das duas almas que a inspiraram. Snr. Venceslau, aqui tem o anjo que Deus envia aos virtuosos.{201}

XVII

Oh desenho temerario
Que tal perigo intentava!...

JORGE F. DE VASCONCELLOSMemorial.

Quando, na noite d'aquelle dia, D. Julia entrou em casa do commendador, a esposa de Eduardo estava no seu quarto; e o pae, curvado sobre a jardineira, com a face entre as mãos, meditava abstrahido. Espertado pelo fremito de sedas e rangir de passos na sala proxima, ergueu-se rapido e foi ao encontro de Julia.

—Esperava-a anciosamente para lhe dar os parabens—disse elle.—Eu quiz ir de tarde procural-a; mas minha filha asseverou-me que V. Ex.ª vinha aqui. Vai ser feliz, D. Julia; se eu me engano, são falsos todos os prognosticos que podemos tirar em materia de casamento. Eu não devia hoje fallar-lhe d'outro assumpto; mas...{202}

—Onde está a Annica?—interrompeu Julia.

—Na cama.

—Doente?

—Febril. Chorou muito...

—Porquê?

—Não sei, não m'o diz; o marido sahiu antes de jantar, e não voltou. Vá lá, vá a minha querida Julia consolar essa nova dôr que eu ignoro... Olhe que infortunio este! casados ha cinco mezes! Onde irá isto findar com taes começos!... Metti em casa o verdugo de minha filha... V. Exc.ª verá que a pobresinha vai muito cedo unir-se á mãe, que a está chamando para si...

—Que imaginação a sua, snr. commendador!... Deixe-me lá ir, que estou inquieta... mas espero que isto não passe de alguma passageira tempestade de ciumes...

—Pois sim, será; mas n'essas tempestades é que naufragam as mulheres do coração... as desgraçadas que amam, e preferem morrer martyres a viver vingadas... Vá, vá, seja o anjo amparador d'essa creança... que ninguem quiz salvar... ninguem... Eu só... eu só previ este desastre; mas succumbi ao receio de a perder...

D. Julia foi recebida sem a costumada expansão. Anna Vaz estava recostada ao espaldar do leito; e ao lado da cama a sua creada de quarto enchugava as lagrimas.

—Que tens, filha?—perguntou Julia.{203}

—Que hei de ter?... a minha sorte a cumprir...

A creada sahiu.

Anna pediu á sua amiga que fechasse a porta á chave, pegou-lhe das mãos com vibração nervosa, e disse-lhe:

—Vou contar-te tudo... has-de ouvir-me tudo sem te magoares, sim?

—Tudo, filha...—balbuciou D. Julia traspassada por dolorosa suspeita.

—Olha que meu marido... ama-te.

—Jesus!—exclamou a noiva de Venceslau affectando naturalissimo pavor.—Tu deliras, Anna!

—Não deliro, infelizmente não deliro... Eduardo ama-te... Queres saber como eu descobri esta desgraça que nunca me resvalou pelo espirito, apesar das palavras que me elle dizia de ti, e todas agora me lembram para me atormentarem?... Olha... quando elle hoje ás quatro horas chegou da repartição, perguntou-me se eu tinha sahido, porque me viu vestida como fui a tua casa. Respondi-lhe que estivera comtigo e recebera a inesperada nova do teu casamento com Venceslau. Não te posso pintar o transtorno das suas feições! Fitou-me com os olhos espavoridos, e perguntou-me em tom desabrido: «Que historia extravagante é essa?»—Isto não é historia—disse-lhe eu—é a noticia que me deu Julia. Mas ficaste assombrado! Estás pallido! Que tens? que te importa que Julia case ou que não case?—«Não me importa nada...—respondeu elle, disfarçando miseravelmente a agitação—não me importa... mas o espanto{204} é, n'este caso, bem natural!... Pois hontem ainda estive com o Taveira, e com ella... e nada me disseram...» Continuamos a conversar sobre o assumpto, sem elle poder dominar a ancia em que estava de se esconder aos meus olhos... Chamaram para a meza...; e Eduardo n'esta occasião, muito perturbado, tira o relogio, vê as horas, e diz: «não janto cá hoje... Hei de estar infallivelmente ás quatro horas em casa do Sepulveda... Desculpa-me... que não posso faltar.» E, quasi sem esperar que eu o contrariasse, sahiu com os olhos desvairados como um ebrio... e não voltou ainda. Aqui tens a minha enorme desventura... aqui me tens na angustia que nunca podia prever a minha alma preparada para as maiores provações... Até hoje, eras tu a minha consoladora... Que has de ser tu para mim de hoje em diante?

—O que fui sempre...—disse Julia com firmeza. Se as tuas suspeitas são verdadeiras, o desatino de teu marido ha de ser curado com a vergonha de me ter querido vêr na plana d'algumas infames que elle terá conhecido.

—Pois sim; mas não serei eu a victima?

—Não, minha filha; se houver alguma victima, não o serás tu...

—Então quem?

—Elle...

—Como?... Não te comprehendo...

—Será a victima do seu opprobrio... Perderá a estima de todas as pessoas de bem, e a tua...{205}

—A minha? não! não que o amo...

—Has de odial-o, quando a sociedade o abominar... Mas não antecipemos as consequencias d'essa loucura... Se ella é verdadeira, lembra-te que vou casar com o homem que teu marido mais respeita. Eduardo, se ousar erguer os olhos para mim, ha de baixal-os envergonhados. Se é uma paixão... Paixão!—repetiu ella falseando n'um sorriso a dissimulada duvida.—Paixão!... não creias que tal sentimento possa nascer n'um homem que me respeita e deve conhecer que o desprezarei... se se atrever a manifestal-o...

—E nunca t'o manifestou?...

—Porque me fazes tal pergunta?

—Mas dize, Julia, nunca t'o manifestou?

—Não...—respondeu sem turvação a interrogada, rosto a rosto.—Que lembrança a tua!

—É verdade... Lembrou-me se seria para ti a carta que eu hoje te mostrei...

—A carta?!

—Sim, Julia; e, quando fosse, o teu nobre procedimento está bem justificado n'aquella carta. Eduardo queixa-se de ter sido repellido... Que outra coisa podia esperar eu de ti? Queixar-me porque m'o não disseste, seria fazer injustiça á tua prudencia... Todo o teu empenho de boa amiga devia ser que eu ignorasse a indigna tentativa de Eduardo... Permittisse Deus que elle me não désse rivaes com menos virtude...

—Rivaes!—contradisse Julia irritadamente.—Rivaes são as que acceitam a competencia... É preciso{206} que duas mulheres amem o mesmo homem para que se chamem rivaes. Em quanto eu desprezasse as declarações de teu marido, não devias dar-me nome tão injurioso...

—Então confessas que era para ti a carta?

—Se confesso!...—tartamudeou Julia.

—Sim... tu não pódes enganar-me... Vejo-te a alma nos olhos, e a perturbação nas palavras... Tens piedade de mim, não tens? Então dize-me que meu marido te escreveu... que tu lhe respondeste como devias... e que elle te mandava depois aquella carta...

D. Julia apertou ao seio a face lagrimosa de D. Anna, balbuciando:

—É verdade... é atrozmente verdade que teu marido me escreveu... Não te peço perdão, porque não tenho de quê. Na resposta, que lhe dei em duas linhas escriptas na sua mesma carta, ameacei-o de te mostrar a segunda, se m'a elle enviasse... Lembra-te das palavras.

—Que eu não pude entender... bem me recordo... Se V. Ex.ª cumprir a ameaça que me escreve, se me denunciar, fará duas victimas. Mata uma innocente, e ordena ao criminoso que se suicide... Era isto; mas—proseguiu Anna em pranto desfeito—o meu infortunio ainda assim fica sendo enorme... Se te elle ama com tamanha paixão, e te vê casada, e perdida para sempre, onde o levará o desespêro...

—Paixão!...—repetiu Julia motejando a palavra.

—Paixão, sim... pois, se o não fosse, Eduardo teria a fraqueza de alterar-se a tal ponto? Sahiria de casa{207} como louco? Teria escripto uma carta em que tantas vezes falla no suicidio?...

—Ó filha, essa palavra em cartas de namoro não tem significação assustadora...—replicou Julia jovialmente.—Creio que não recebi uma só carta das muitas que devolvi, em que essa funebre responsabilidade me não fosse imputada; e nenhum dos muitos que me escreveram se matou...

—E como tu pódes rir, sendo tamanha a minha infelicidade, ó Julia!...

—Não exageres, creança!—animou a noiva de Venceslau Taveira com incrivel frieza de animo.—Teu marido ha de voltar para ti curado pela reflexão e melhorado pelo remorso de te haver sacrificado á mais estupida vaidade que podia desnortear o tino d'um homem intelligente.

—Mas não te magôa vêr que é necessario acabarem as nossas relações?

—Como? acabarem...—acudiu D. Julia espantada.

—Sim... acabarem... Com que alma hei de eu estar na tua presença e na de meu marido?!

—Então queres dar ao caso as proporções do escandalo?—replicou Julia altivamente.—Dirás a teu pae que Eduardo me fez a côrte? Obrigar-me-has a dizer a Venceslau que as nossas relações se romperam, porque teu marido me namorava? Permittes que a nossa sociedade me considere a infame que te amou o marido,{208} e a ti a honesta dama que me expulsou de sua casa, e não quiz manchar-se no descredito da minha?

—Jesus! onde tu vaes!—exclamou D. Anna—pois, se eu deixar de ir a tua casa, é forçoso que se publiquem estes desgostos que ninguem sabe?

—É: ha de sabêl-o teu pae, ha de sabêl-o o homem que não será meu marido... nem eu o quero... com tal condição. E, depois, tu tens força para a lucta horrivel que vaes travar com teu marido, se publicares a sua deploravel fraqueza? E não temes que teu pae, já tão quebrado de forças, morra de pena de ti, odiando o homem, que eu, tão enganada pelos teus olhos, affirmei havia de ser um excellente esposo?

—Que hei de eu então fazer, Julia? Aconselha-me...

—Fazes o que eu te pedir?

—Se podér...

—Pódes... ha de custar-te, mas pódes... Todas as victorias são difficeis, filha; mas as da paciencia, nas tuas circumstancias, são sempre seguras... Finge que tudo ignoras. Não profiras o meu nome com azedume, não dês côr suspeitosa ao que de mim disseres. Recebe-me com o mesmo amor, que cada vez t'o mereço mais extremoso. Vae a minha casa; e, na presença de teu marido, falla-me sem a minima reserva, e não procures surprehender nos olhos d'elle a intenção com que me olha. Se fizeres isto, restituo-te Eduardo com o juizo restaurado.

—Mas, se não poderes...{209}

—Se não podér, vou viajar, ou sósinha ou casada, e só voltarei a Portugal, quando me tu disseres que teu marido recuperou a honra perdida.

Anna Vaz beijou ardentemente a face da sua amiga, e exclamou:

—Espera... deixa-me levantar que eu vou comtigo para a sala... Quero que o meu pobre pae me veja sorrir... Vae dizer-lhe que me estou erguendo, e que estou boa... Inventa qualquer coisa...

Já estava na sala Venceslau Taveira recebendo os emboras do commendador, e explicando os pormenores da sua imprevista alliança. Ao tempo que D. Julia entrava, acabava de dizer o commendador ao noivo:

—Mas que é isso?! Acho-o extraordinariamente triste!... Narrou-me em termos tão gélidos uma historia para tantas alegrias!... Que não vá o meu querido amigo enganar-se com o seu coração ferido de sobresalto... Agouro não sei quê... Eu queria-o vêr mais contente... mais rapaz... mais noivo!... Os homens da sua têmpera parece-me que têm uma só familia—a patria, e uma só paixão—a das conquistas da felicidade para o genero humano...

Venceslau escutava ainda o écco das palavras do velho que se lhe repetiam na alma, quando Julia entrou, incendida no rosto da violenta crise em que as interrogações de Anna Vaz a mortificaram.

—Está febril minha filha, não está?—perguntou o commendador.{210}

—Está levantando-se... Não tem febre, e vem ahi já.

—Mas que era?...—volveu Francisco Vaz.

—O que eu lhe disse...

—Ciumes?...

—Sem fundamento... Apprehensões de quem muito ama...

—Torturas...—emendou o velho; e voltando-se para Taveira, continuou:—O tedio, o enôjo em esposos de cinco mezes, o que será aos cinco annos, snr. Taveira?

—Póde ser que seja a felicidade de ambos, a reciproca e serena confiança, quando os zêlos fundam em leviandades passageiras.

—Conhece muito as sciencias que o espirito humano creou; mas sabe pouco do coração do homem, snr. Taveira—contrariou o commendador.—A mulher que, ao quinto mez de casada, nova e bella, apaixonada e incapaz de comprehender a perfidia, se vê trahida, perdôa, se é honesta; mas o homem, capaz de arrependimento, e de ajoelhar aos pés da esposa generosa, se algum existe, não é Eduardo. Na vida d'este mal-fadado ha condão funesto...

—Ha apenas, e quando muito, uma preoccupação...—disse o deputado.—Esteve hontem comigo, e causou-me estranheza. Fallou-me em sahir de Lisboa com licença de seis mezes para uma quinta. Suspeito que a frequencia dos bailes lhe haja colorido falsamente os quadros que elle não examinou quando era moço... Espero{211} que o mentiroso prisma se lhe quebre, logo que a mão da lealdade contricta lhe desperte a consciencia...

Chegou D. Anna.

A palestra d'aquella noite foi mais trivial que nunca. Venceslau Taveira conversou nos assumptos habituaes—politica, e congresso dos reis em Verona, o juramento da constituição e a suspeita de que a rainha D. Carlota recusaria jural-a, etc.—materia duvidosamente lyrica para noivo.

Á hora do costume, o deputado sahiu, bem que o commendador Vaz lhe désse a perceber que muito desejava elle podesse encontrar-se com Eduardo n'aquella noite.

—Ámanhã o procurarei—disse Venceslau, em quanto Anna e Julia se trocavam um lance de olhos que significava a incompetencia do mediador escolhido pelo velho.—Hoje tenho ainda trabalhos de escripta e estudo que me devem levar a noite toda.—Accrescentou o deputado.

—Está a chegar o dia do repouso...—observou o commendador alludindo ao casamento, d'onde lhe resultaria a inercia dos ricos.

—O dia do repouso é o primeiro da morte—contraveiu Venceslau.—Ninguem repousa n'esta vida; e, a meu juizo, os espiritos mais trabalhados, e talvez mais infelizes, são os que se agitam em inutil actividade. A riqueza, que convida ao ocio, é pessima, quando por ella trocamos o thesouro dos bens da alma.

Eis-aqui maximas stoicas não vulgares em noivos,{212} salvo se elles são philosophos; mas a raridade d'esta especie é já grande; e algum Socrates que ainda apparece a maridar-se, é contar com elle bem castigado por Xantipas.

Na ausencia de Venceslau Taveira, contou D. Julia concisamente ao commendador o breve prefacio do seu projectado casamento; porém—rasoavelmente lh'o advertiu o velho—tão desenthusiasta expunha ella como expozera o noivo aquelle importante e solemnissimo acto.

—Eu bem sei...—dizia o commendador—que entre pessoas sisudas o casamento é passo para mui serias meditações; mas, logo que a deliberação está feita, parecia-me natural vêl-os muito alegremente fallarem do seu futuro...

D. Julia sahiu á meia noute. Ia triste, e perguntando a si mesma: «Estarei eu enganada com elle e comigo? Este sentimento de estima será bem o amor que preciso hoje mais do que nunca alimentar no ardente coração de um homem?... Com que frieza elle fallava de politica, olhando para mim hoje como hontem, como sempre, como se eu alli não fosse mais do que uma das costumadas pesssoas do seu auditorio... Mas...»

Proferia ella mentalmente aquella conjunção—aquelle mas, que daria as melhores dez paginas d'este livro, quando a traquitana, desembocando da rua da Patriarchal, atravessava o largo do Rato, em direitura ao palacio das Amoreiras.

Parou subita a sege. O bolieiro, reconhecendo a{213} pessoa que sahira á frente da parelha, bradando que parasse, obedeceu.

—Que é?—perguntou D. Julia com receio, por entre as cortinas, que afastou.

—Não se assuste, minha senhora—disse Eduardo Pimenta no mais baixo tom de voz que podia ser, abrindo mais as cortinas para ser conhecido.

—Aqui, a tal hora, o snr. Eduardo?—murmurou ella tremendo a seu grande pesar.

—Esperava-a, snr.ª D. Julia... para lhe dar os parabens do seu consorcio.

—Acho improprio o local... Venho de sua casa; era lá que eu devia merecer-lhe essa delicadeza...

—Nada de ironias, senhora!

—Ironias!? em que tom V. S.ª me está fallando! Eu não preciso de contrafazer-me com o disfarce da ironia... Que me quer o marido de Anna Vaz?

—Que me restitua a minha felicidade!... que me mate, senão póde restituir-m'a... Um reptil que nos nauzêa esmaga-se com o pé... Que mais vale o coração do homem que a fatalidade poz de joelhos diante de V. Ex.ª? esmague-me... Diga-me affoitamente, diga-me sem piedade que me despreza...

—Não o desprezo; estimo-o, quanto posso estimar o marido d'uma amiga intima—disse D. Julia sensibilisada, mas serena.

—Eu não quero ser estimado, porque estou preso com um grilhão de ferro á amiga de V. Ex.ª... Guarde a sua piedosa estima para as victimas resignadas...{214}

—Que quer então?

—Pouco... quero que V. Ex.ª me diga que no momento em que tractava o seu casamento com Venceslau Taveira não viu passar entre o seu coração e o seu futuro a imagem lagrimosa do homem que V. Exc.ª ameaçou com uma denuncia...

—Não vi a sua imagem; vi a imagem lagrimosa de sua esposa... Essa é que eu vi, e venho de vêr agora prostrada no leito, e receio vêl-a brevemente prostrada na sepultura... Snr. Eduardo, tenha compaixão d'ella e de mim!

—De V. Ex.ª!?—interrogou elle, alvoroçado pela commoção que se delatava no tremor da voz.—Compadecer-me eu de V. Ex.ª?! Quando deixei eu de adoral-a, para offendel-a?

—Não diga que me adorou, supplico-lhe que desfaça essa illusão da sua alma.

—Oh! para que está mentindo á sua consciencia, snr.ª D. Julia? Pois não viu que eu a amava quando casei? Não me impôz delicadamente em sua casa o preceito de lh'o não revelar?

—Falle baixo—acudiu Julia—que póde ouvil-o o creado. Jesus, que desventura a minha! Ó snr. Eduardo, tenha brios e valor! Deixe-me, esqueça-me!... por alma de sua mãe, e d'essa infeliz senhora que lhe morreu nos braços, em nome de ambas lhe rogo que me esqueça, que me não obrigue a fugir de Portugal!... Mal sabe quanta gratidão lhe daria a minha alma, se me attendesse, se me deixasse ser sua verdadeira amiga! Juro-lhe{215} pela memoria de meu pae que me não torna a vêr, se não domina o desatino que está cavando a sepultura de sua mulher...

—Sempre a minha mulher!... Por que me não falla do seu marido?

—Pois bem... peço-lhe em nome de meu marido que me respeite!—disse D. Julia com a maxima gravidade e decoro.—E, se não, adeus para sempre! Não sustentarei com V. S.ª uma lucta odiosa. Ha afflicções que se tornam ridiculas, se a coragem as não subjuga. Desterrar-me-hei para que o snr. Pimenta, esquecendo-me a mim, se lembre de que ha uma coisa mais preciosa que eu: é a honra, a sua propria honra. Peço-lhe que me deixe recolher. Os meus creados não estão habituados a assistirem a estes dialogos por alta noite, e eu não lhes quero dar direito a suspeitarem de mim.

—Só duas palavras, snr.ª D. Julia. Não sáia de Portugal—supplicou Eduardo com apaixonada resignação.—Juro que não perturbarei a sua tranquilidade. Fique, rogo-lhe com as mãos erguidas que fique; mas não me prohiba que eu a ame... Será um amor sem lagrimas, sem um gemido, sem que nos olhos se me veja o reflexo do fogo que me ha de ir devorando. Não me prohibe esta inoffensiva tortura, não?

—Ó snr. Eduardo...—balbuciou Julia.

—Adeus! vá!... Olhe que o mundo não encerra mais desgraçado homem! Eu hei de obrigal-a, hei de, Julia, a confessar que foi muito amada, e talvez... muito ingrata... Adeus.{216}

Eduardo desviou-se, e a sege abalou.

E D. Julia de Miranda, enxugando os olhos, de certo sinceramente chorava, porque não é de presumir que uma mulher finja lagrimas, quando ninguem a observa.

Mas chorar, ó Deus do céo, ó creador omnisciente do prodigioso coração de mulher! Chorar! porquê?

Ai! chorava por que não podia odial-o...

Leitor florído, se V. Ex.ª é menos honesto do que eu penso, de certo estima que as suas visinhas chorem por não poderem odial-o.{217}

XVIII

C'etait incompréhensible, inouï, miraculeux...

A. DUMAS.Amaury.

A criada antiga, que dormia na recamara de D. Julia, segredou ao padre Manoel Ferreira que a fidalga, durante as noites seguintes á decisão de casar-se, poucas horas descansára, e algumas vezes dava uns ais tão do amago da alma que parecia gemer em grande afflicção.

O padre comprehendeu poeticamente as insomnias, attribuindo-as ao alvoroço proprio de noiva. Bem é de entender que o sabio, nos seus livros latinos, não tinha lido casos de noites desveladas por motivos molestos, se era amor quem desafinava a harmonia das funcções empenhadas no phenemeno do somno. Não obstante o silencio dos classicos romanos a tal respeito, padre Manoel indagou da propria fidalga a causa das suas noites{218} mal dormidas. Respondeu D. Julia que a preoccupavam receios de infelicidade, resultantes d'um casamento pouco meditado e talvez incompetente, assim a Venceslau como a ella.

O capellão, atonito com tal resposta, nem de leve curou de lhe dissipar as apprehensões; antes, muito de sizo, se offereceu para desfazer o que intempestivamente fizera, espacejando com qualquer honroso subterfugio o cumprimento da promessa, até que Venceslau, cavalheiro pundonoroso, aconselhado por sua dignidade, desquitasse a noiva do compromisso.

D. Julia repugnou tal evasiva, declarando com fidalgo entono que desadorava entrar em porfia de pundonor com Venceslau. E concluiu dizendo que a sua palavra estava dada.

—E o seu coração, minha senhora?—perguntou o padre.

—O meu coração...—murmurou ella—morreu quando as pulsações cessaram no coração do primeiro e unico homem que amei.

E o capellão, fitando-a silencioso e magoado, de si para comsigo julgou que D. Julia não podia ser dada como exemplo de senhora perfeita, moralmente fallando.

E, desde esta hora, padre Manoel, sentindo sobre a consciencia o gravame de tremenda responsabilidade, andava triste, como assombrado, a cogitar e a pedir a Deus que interviesse de modo que o casamento não se realisasse.{219}

Deus não o attendeu, ou interveiu mysteriosamente. Como quer que fosse, o casamento fez-se no fim do anno 1821.

Foi muito soado o caso em Lisboa, e muito invejado o provinciano. O juro dos quinhentos mil cruzados da consorte deu-lhe direitos á consideração publica muito mais relevantes que os do talento acrisolado por altas virtudes de patriota. Haveria quem lhe emulasse a qualidade de primeiro orador e preconisado ministro; mas a de proprietario da mulher, que representava duzentos contos, seria capaz de ajuntar á inveja o respeito abjecto—mascara do odio. E, comtudo, os habitos de Venceslau Taveira mantiveram-se no mesmo grau de solicitude, trabalho e mediania. A traquitana de sua esposa ninguem lh'a viu em frente do paço das Necessidades, onde então legislava o congresso. Madrugava mais que os seus collegas abastados para poder chegar ao mesmo tempo que as carruagens d'elles. O seu trajar arguia decente mediocridade, auxiliada pelo esmero na limpeza; não era o surrado desalinho com que desculpamos os philosophos, quando nos fallece direito a mandal-os lavar a cara.

Este proceder de Venceslau recendia aromas de virtude, era abnegação que muito louvava padre Manoel Ferreira; porém D. Julia de Miranda não se admirava nem comprasia. Em conta de affectação orgulhosa foi que ella tomou a isempção do marido, julgando-se por isso menospresada na riqueza. Quanto a ser amada, confessava D. Julia que o era como seria qualquer outra{220} menina pobre que não désse tão brilhante, e tão desdenhada independencia a seu esposo.

O viver intimo de Venceslau, em verdade, destoava do que é costume serem maridos amantissimos, em quanto a corôa nupcial se não desmaia de todo.

Tinha horas de gabinete, e então folgava que Julia se detivesse a contemplal-o folheando livros, tirando notas, arquitectando discursos, e comparando a indole da nação ignorante com os luminosos codigos das nações civilisadas. Isto não é bem poetico; realmente não é.

Assim que era tempo, ia para as côrtes, e recolhia com a maxima pontualidade a jantar; mas, se os negocios do estado implicavam á exactidão do repasto domestico, o funccionario, submissso ao sacrificio, não antepunha o gozo da familia aos deveres de cidadão estipendiado para a servir. A poesia aqui tambem não é que farte para um madrigal.

As noites eram todas de sua esposa. Se ella sahia a bailes ou visitas, de bom rosto a acompanhava; mas uma por outra vez lhe disse, beijando-a e ameigando-a:

—Não passarias melhor a noite no socego da tua salêta comigo, com os teus livros, e com a doce companhia do teu fogão?

Julia algumas vezes cedia suavemente ao brando convite; Venceslau, porém, notou com secreta mágoa que ella, por volta das dez horas da noite, difficilmente resistia aos enfados do coração que se manifestam em abrimentos de bocca.

A esposa deitava-se; e o esposo ia para o seu gabinete{221} onde trabalhava até ás tres da manhã. Se ha n'isto poesia, confessemos que em casa de cada mercieiro ha inspirações para tres opopêas.

E porque não iria Anna Vaz passar as noites com a sua amiga? Por que não ía Julia esparecer saudades da juventude, se as tinha, na familiar convivencia do commendador?

É simples a resposta; mas ha que presagiar calamidades n'ella.

Marcado o dia do casamento, Venceslau convidára Eduardo a ter parte na sua festa do coração, assignando como testemunha na egreja. O commendador tambem foi como padrinho e madrinha a filha. Os restantes do pequeno cortejo eram alguns deputados anciãos e militares companheiros do exilio do noivo.

Eduardo apresentou-se na ceremonia com certa compostura grave, melancolica; porém de modo algum suspeita. Anna, docil aos preceitos de Julia, mas talvez mais submissa aos do coração, espionava involuntariamente os raios vizuaes do esposo. Escassas vezes o colheu em flagrante delicto. A noiva por sua parte parecia esconder mais do que elle o relance furtivo de olhos; todavia, se alguem lhe chamava a attenção para Eduardo, se Venceslau lhe dizia: «o Pimenta está pallido e triste», ella encarava-o com desassombro, e respondia qualquer coisa, sorrindo banalmente, como se fosse uma tola vulgar.

O banquete das nupcias foi modesto, moderadamente animado, e concorrido de velhos que nem sequer primavam{222} nas jogralidades proprias do acto, e sempre bem acolhidas, quando vem auctorisadas pelas cans; que o impudor senil tem fôro de graça lusitana, segundo parece, em festins de noivado. Os coroneis e os legisladores commensaes de Venceslau fallavam de politica e de batalhas. Venceslau foi eloquente n'estes assumptos. Padre Manoel Ferreira manteve-se em silencio meditabundo. O commendador conversou sempre com Julia. E Eduardo nunca se mostrou tão apontado em attenções carinhosas a D. Anna.

O restante da noite correu mais animada, graças ao espiritismo dos coroneis, que tinham brindado repetidas vezes á liberdade, e ungido com profuzas libações o seu athletico odio contra o despotismo. Os legisladores tambem.

Findo o saráo, Eduardo apertou a mão da esposa do seu amigo, e pôde ceciar umas palavras que ella ouviu com a audição interior da alma: «Nunca mais».

Ninguem a viu descorar; mas ella desconfiou que a vissem, porque lhe quiz parecer que o sangue se lhe congestionára no peito e que ao longo das faces lhe resvalára a sensação do frio. Imaginações, talvez. Nervos.

Ao outro dia, D. Anna Pimenta, a hora desacostumada, e menos propria de visitar noivas recentissimas, appareceu em casa de Julia. Eram onze da manhã, e já encontrou Venceslau a sahir. Aos reparos da esposa do seu amigo respondeu elle que não podia faltar ao congresso, onde se pleiteavam graves projectos de lei. A amorosa senhora não pôde sequer por delicadeza louvar{223} semelhante patriotismo. Lá no seu recondito juizo diria talvez ella, em prosa menos pedestre, que não havia lei em projecto que valesse uma formosa mulher já realisada.

Encontrou Julia no toucador, sentada, em frente do alto espelho, n'um reclinatorio de estofo cramezim, com os opulentos cabellos a serpearem sobre as rendas do penteador, e umas travessas d'oiro a desviarem-lh'os das fontes. A posição languida da noiva, um pouco antes, denotava abatimento moral, um ar reflexivo de quem se quer imaginar n'um sonho infeliz, e não póde tirar dessa forçada quimera senão tristezas.

Mas, ainda assim, quando ouviu passos e conheceu a tosse nervosa de Anna Vaz, desanuviou a face, illuminou-a d'um sorriso, e apertou nas suas as mãos da amiga.

—Tão cedo?—perguntou ella.—Tu vens febril!...

—E agitada, porque vim a pé... Venho despedir-me...

—Para onde vaes?!

—Para a quinta do Riba-Tejo. O Eduardo esta manhã, ergueu-se ás seis horas, e pediu-me carinhosamente licença para ir passar á quinta algum tempo. Eu disse-lhe logo que o acompanhava; elle mostrou-se grato á minha dedicação, e resolvemos partir ámanhã de madrugada. Agora preciso dizer-te o que penso de meu marido. Esta resolução de sahir sei eu, e tu tambem sabes, d'onde procede; mas eu não lhe disse a menor palavra{224} a tal respeito, deixando-o persuadir da minha ignorancia. Creio que elle te ama... digo-te isto sem lagrimas, porque já chorei quantas tinha... Se elle foje de ti para te esquecer, espero que a nossa tranquillidade se restabeleça. Da minha parte, seguirei até ao fim os teus dictames. Hei-de fingir sempre que tudo ignoro, por amor d'elle, de meu pae, de ti... e de mim tambem... Olha, Julia, sorri-me uma esperança... Póde ser que o nosso primeiro filho seja o anjo de reconciliação entre nós. Pareceu-me que os olhos d'elle me encaravam com extraordinaria ternura, quando ha dias lhe disse, que eu, d'aqui a quatro mezes, havia de vêl-o a acalentar nos braços a nossa creancinha... Porque não choro eu agora ao despedir-me de ti? porque te amo, Julia, apesar de saber que és mais amada que eu? Sabes porque é? Quando se tem no seio um filho, as lagrimas estancam-se, e os odios não podem empeçonhar o coração onde se está formando a alma d'um innocentinho... Deixemos passar esta borrasca... Tempo virá em que sejamos muito felizes...

—Eu? Nunca mais...—murmurou Julia.

—Porquê?...

—Não torno a ser o que era antes que á casa de teu pae entrassem estes dois homens fataes, um que escureceu a tua alegria, e o outro... que eu não...—E susteve-se, como envergonhada de si mesma.

—Que tu...—instou Anna.

—Nada, filha... não me interrogues... Olha... eu{225} amei teu irmão... amei-o quando tinha a edade e as illusões da infancia... Elle morreu... e envolveu na sua mortalha o meu coração...

—Mas... para que...—disse D. Anna hesitante.

—Para que casei, queres tu perguntar-me?...

—Sim...

—Se eu t'o disser... has de querer ajoelhar aos pés da tua amiga victimada... e eu levantar-te-hei nos meus braços para te pedir que não me faças responsavel dos teus dissabores...

—Dize... que eu não te entendi...

—Para que me casei?... para que teu marido me respeitasse casada... Para que me casei com Venceslau? Para ter por defeza da minha dignidade o homem que teu marido mais respeita...

D. Anna abraçou-a com vehemencia, bebeu-lhe as lagrimas nos beijos, e murmurou:

—É impossivel que Deus não te dê o galardão de tanta virtude... Esse grande sacrificio ha de trazer-te dias de inefavel contentamento...

—Nenhuns... ha-de trazer-me apenas—e já não é pouco—a satisfação de te ver socegada.... Vae, filha, e escreve-me sempre que possas. Se vires que elle quer voltar a Lisboa antes de me ter esquecido como se esquece uma mulher já desfeita na sepultura, avisa-me, que eu hei de mover Venceslau a ir viajar... Depois, quando eu voltar, estarei velha e tu ainda nova e bella. Os cabellos brancos não tardam. As rugas já me começam na alma... Ha uma velhice que nos passa do coração{226} para o rosto... é a saudade... é vêr o passado feliz lá ao longe, e o presentir a morte no frio que nos cerca...

—Mas, ó meu Deus!—exclamou Anna, pondo as mãos—Venceslau Taveira não te ama?

—Ama com o amor dos trinta annos, quando desde os vinte se procuram e encontram as paixões na politica, na meditação e no estudo... Não vês isto? Casei hontem; e meu marido foi hoje ás dez horas para o congresso, depois de me dizer que prevía a emancipação do Brazil em breve tempo, e que hoje mais que nunca os bons portuguezes deviam acercar-se do leito da mãe patria que ia perder a filha que lhe era o amparo da velhice. E se visses a gravidade com que elle me discursava estas coisas? Parecia um pae illustrando a ignorancia de uma filha!... Ó Anna... se eu tivesse coração... se houvesse casado com Venceslau amando-o muito, que lagrimas me não custaria este desengano!...

—Pois, sim—redarguiu Anna Vaz—convenho que Venceslau seja tudo que dizes, mas verás que nunca te ha de dar a mágoa da perfidia...

D. Julia sorriu-se com aspereza, ironia, e talvez motejo d'essa virtude da lealdade que apenas lhe lisongeava o orgulho.

—E tu verás—proseguiu aquella perfeita alma cheia de lagrimas, quando a outra sorria—verás que te ha de amar cada dia mais; e que, depois das suas occupações, virá para ti cheio de alegria, e sedento dos suaves prazeres da vida intima...{227}

—Porque o não amaste, Anna?—perguntou de salto e desapropositadamente D. Julia.

—Porque o não amei?... Se eu amava Eduardo...

—Viste-os ao mesmo tempo... ou, mais exactamente, viste primeiro Venceslau... Porque o não amaste?—insistiu a arguciosa dama.

—Se elle me tivesse amado, antes que Eduardo me escrevesse, eu de certo lhe correspondia, porque me pareceu sempre estimavel, nobre, honrado, fallando de meu irmão com as lagrimas nos olhos, e respeitando meu pae, que o presava extremamente.

—Sei isso... mas o teu coração, á vista d'elle, não sentiu os estremecimentos que lhe causou Eduardo.

—Bem sabes como foi, filha!... Eduardo, á segunda vez que foi a nossa casa, estando eu a tocar, disse-me que, se o não podia salvar com o amor, que lhe tocasse musicas bem tristes que o podessem salvar com as lagrimas... Estas palavras acharam em minha alma toda a sensibilidade d'uma rapariga innocente... Depois vieram as cartas... depois... tu sabes tudo como se passou...

—Sei...

—Mas que perguntas me fazes!... Ó Julia, se não amavas Venceslau, não devias casar. A tua dignidade não precisava que um marido a defendesse. Ha quantos annos eu te conheço pretendida e amada; e nunca te vi receosa de ninguem! Bastava o teu desprezo para rebater os mais atrevidos. O sacrificio, que fizeste da tua liberdade, para que eu te não julgue causa dos meus occultos{228} desgostos, era desnecessario. Tão confiada estava eu na tua virtude de solteira como na de casada...

—Sacrifiquei-me então inutilmente?—interrompeu Julia.

—Inutilmente não, que eu irei jurar que se eras um anjo para mim, és agora uma victima da santa amisade que me tens; mas inutilmente para a tua honra, isso sim; porque não é teu marido que te ensina os deveres; és tu que os prescreves ás tuas paixões...

—Quaes são as minhas paixões?—perguntou D. Julia por tão estranha maneira que incutiu na amiga receio de a ter offendido.

—Eu não digo que as tenhas, filha...—emendou ingenuamente D. Anna.

—Então?

—Queria eu dizer que tu dominarias as tuas paixões, se fossem más... Comprehendeste, Julia?...

A esposa do deputado, levantando-se energicamente, travou do braço da amiga, e disse:

—Vamos passear nas salas... Estou muito nervosa... A final, tudo que tenho é uma febre cerebral, uma enfermidade estupida na cabeça.


Na hypothese de que as duas senhoras vão dizer coisas frivolas, não as sigamos; e, se o leitor conjectura que ellas podem dizel-as transcendentes, não as sigamos tambem.

Sentemo-nos aqui na sala de espera, n'este grande escabello de castanho, com espaldar blazonado, e philosophemos,{229} mas façamos philosophia portugueza, chã, de soalheiro, murmuração delicada; mas, repito, portugueza. Nada de esthetica. Nada de germanismos. A gente está em 1822, quarenta annos antes da entrada do apocalypse em Portugal com todas aquellas bestas de que falla S. João.

Philosophemos então a respeito de D. Julia.

O leitor medita, reflexiona, combina, discute, compara e conclue, formando o seu juizo.

Formou? Philosophou?

Eu tambem.

Agora tenha a condescendencia de esperar que os factos correspondam á lucidez das suas previsões.{230}
{231}

XIX

A ira que entumece e arqueja e vibra no proprio coração dos grandes sabios.

HOMERO.Iliada, cant. IX.

As cartas vindas de D. Anna para Julia eram discretas e pensadas de modo que Venceslau Taveira, da sahida de Eduardo, inferia apenas que o seu amigo se desviára com plausivel prudencia dos perigos amorosos que o assediavam na alta sociedade. Esta supposição colhida de algumas phrases problematicas das cartas, que Julia não escondia, dava margem a que entre os dois esposos e padre Manoel Ferreira se conversasse sobre a desmoralisação dos costumes.

O capellão raramente perdia lanço de lamentar a filha do commendador, ferindo assim de soslaio o caracter do marido, a quem não desculpava a peralvilhice com que bandarreava nas salas, galanteando a esmo todas{232} as damas. Venceslau, motejando a severidade do padre, attribuia os geitos galãs do amigo não á ruindade das intenções, senão ao temperamento, ao genio alegre, ao instincto da sociabilidade, que era sempre excellente prenda nos cavalheiros propensos aos futeis recreios das assembleias. D. Julia escutava estas discussões, e assentia á indulgencia do marido, sem reparar que o padre lhe estudava o pensamento nas menos expressivas alterações do semblante.

Padre Manoel—digamol-o de corrida—não lia sómente livros latinos, nem estudára nas Lesbias e Lydias as versatilidades femeaes. Parece que o sabio, antes de vir á poesia romana, tinha sido poeta por sua conta, e risco, talvez, da dignidade sacerdotal. Como vivêra trinta ou quarenta annos entre fidalgas, confidenciando-as nas salas e nos confessionarios, bem é de vêr que n'aquelle espirito escrutador se formassem desconfianças ingratas ao bom juizo de D. Julia, desde que ella se lhe figurou duvidoso exemplar de perfeição. Isto, aggravado pela secreta aversão que tinha a Eduardo Pimenta, explica o tom detrahidor com que lhe desfazia nas virtudes conjugaes e o olhar de travez que dardejava á phisionomia da desprecatada fidalga.

Uma vez o padre, invectivando contra o seculo, proferiu a palavra «adulterio», como thema de certa historia contemporanea. Venceslau avincou a fronte, recurvou os dedos para as palmas das mãos, fez uma vizagem desabrida de zanga, e cortou de golpe o discurso, sobrevindo com outro assumpto.{233}

Padre Manoel ficou um tanto corrido, e D. Julia suspensa, e até certo ponto inquieta.

Assim que teve ensejo de fallar particularmente com o capellão, pediu-lhe o deputado desculpa do impeto com que o interrompera, e rogou-lhe que, na presença de sua mulher, se abstivesse de contar historias de vicios, e principalmente de adulterios; visto que, em historias d'esta natureza, a moralidade do conto era sempre equivoca, senão era ridicula, como nas comedias de Molière, e de todos os propaladores de taes desregramentos. E ajuntou:

—Se o meu amigo, contando os adulterios das diversas senhoras do seu tempo, rematasse a narração, mostrando-nos o castigo do crime, dou-lhe que não perdesse o tempo, o incutisse saudavel terror no animo das mulheres ou dos homens que não delinquiram ainda...

—Mas o castigo, snr. Venceslau, se não é patente, lá lh'o influe a invisivel mão de Deus na consciencia dos culpados...—objectou o padre.

—Convenho; mas eu não vejo o castigo, nem sequer vejo joeiradas da boa sociedade as mulheres, nem dos altos cargos da republica os homens, cujas consciencias o meu caro snr. padre Manoel Ferreira piamente imagina atormentadas. Essa especie de contos rematava mais edificantemente, se o meu amigo os concluisse d'este feitio: «a condessa de tal atraiçoou o marido, que era um homem de bem, extremoso por sua honra e sua mulher. Um dia, o marido, avisado da traição, matou a mulher, e matou o adultero.» Aqui tem um desenlace{234} tragico, talvez o unico para poder dizer-se n'uma sala sem receio de fazer rir os circumstantes. Tudo mais que não for isto é prudente e honesto que não se divulgue ás pessoas que o ignorarem. Se o conde de tal vive, ha annos, na sua quinta, só, sequestrado do mundo, chorando, dilacerando-se a golpes de vergonha, em quanto sua mulher despejadamente alardêa seus vicios em Lisboa—se era essa a historia que o snr. padre Manoel ia hoje contar a minha mulher, com que moralidade tencionava encerrar o conto? O conde foragido do mundo para se não vêr escarnecido, é a moralidade? A condessa rodeada de cortezãos nas suas salas é a moralidade?

—Não, senhor. A moralidade é que V. S.ª e outros homens honrados não levam suas esposas a casa da condessa.

—Está enganado. Eu conheci n'estas salas a condessa, e ouvi esta senhora, que é hoje minha mulher, chamar-lhe prima. É certo que Julia não irá lá mais, penso eu; mas não é menos certo que muitas damas de regular proceder lá vão.

—Lisboa está assim...—murmurou o padre transigindo.—É o baixo imperio... a libertinagem da França de Luiz XV que chegou a Portugal cem annos retardada, abordoando-se ás muletas da civilisação. As luzes são boas, quando não pegam fogo ao templo das velhas crenças. Corruptio optimi pessima, como diz Horacio. Bem-aventurados aquelles que circumscrevem á familia as regalias do repouso, e cerram as suas portas{235} á ociosidade que se desenfastia a bailar, a jogar, a cacarejar frioleiras nos salões. Cada vez me felicito mais por vêr que V. S.ª vae brandamente reduzindo sua senhora ao socego da vida intima...

—Reduzindo, não, meu amigo—corrigiu Venceslau.—Não se persuada que eu reajo aos desejos de minha mulher. N'esta casa, que é d'ella, faz-se o que sua dona quer. Julia visita quem lhe praz, e recebe quem lhe parece. Acompanho-a umas vezes por vontade, outras com repugnancia; mas vou sempre com o mesmo semblante. É certo que a vejo triste; mas attribuo a mudança á natural e providencial transformação que se vae operando no animo das mulheres da sua edade e na sua posição; além d'isto, póde ser que as saudades da sua amiga Anna Vaz tenham parte n'esta melancolia. Felizmente, Eduardo volta para Lisboa na proxima semana, e eu muito estimarei que a intimidade das duas senhoras se renove como a tiveram em solteiras.

N'este ponto, padre Manoel acudiu a esfregar o nariz, onde era costume acudir-lhe a zanga em pruridos incommodos. Venceslau não reparou n'aquella réplica toda nazal, nem o capellão entendeu fazer commentarios oraes ás suas comichões freneticas. As ideias que lhe obumbravam o espirito eram negras, inexprimiveis, e taes que elle fugia de as repetir a si mesmo, sendo que um demonio contumaz lh'as estava sempre a martelar na fragua da cabeça. Não ha ahi duvidar da esclarecida razão de padre Manoel Ferreira, que sabia latim a preceito e muitas sciencias boas e más; pois,{236} sem embargo, ás vezes via-se tão importunado de satanicas suggestões contra Eduardo, que chegava a persignar-se e a repetir mentalmente o et ne nos inducas in tentationem.

D. Anna e o marido voltaram para Lisboa; mas o affecto da esposa de Eduardo a D. Julia havia esfriado bastante. Poderemos sem grandes deslizes da verdade conjecturar que, no animo d'aquella senhora offendida pelo esposo, a amisade á outra que a fazia soffrer—bem que involuntariamente—cedeu o passo ao amor-proprio e a outros nobres sentimentos. O despeito era inevitavel, embora a sua bonissima condição lh'o demorasse. Este arrefecimento devia crescer á medida que ella deduzisse das tristezas silenciosas do marido vestigios da saudade indomavel; porque, se a saudade era prova da grande valia da mulher não esquecida, razão de mais para que Anna Vaz a considerasse perigosa; e, se o marido á custa de nobres esforços, vingasse olvidal-a, outra razão para que a esposa precavida temesse a reincidencia na aproximação.

Esta, a meu pensar, parece ser a natural interpretação das raras visitas, e essas pouquissimo expansivas, que as duas damas se trocaram.

Entretanto, D. Anna explicava as suas faltas com os cuidados da maternidade, porque já então era mãe. Venceslau achava louvavel a razão, e dizia a sua mulher que a esposa de Eduardo era uma respeitavel dama que se fazia venerar de seu marido, quando não fosse extremamente amada.{237}

Quando estas palavras foram ditas, padre Manoel Ferreira observou com os olhos esconsos que D. Julia mordia o beiço inferior. Não sei o que elle colheu d'este acto. O homem provavelmente julgava que os máos pensamentos tanto podiam pruir no nariz como nos beiços.

Aquelle anno de 1822, trabalhoso e irrequieto para os liberaes, trouxe para D. Julia horas aborrecidas de solidão e irritantes dissabores.

O deputado nunca fôra tão politico e cidadão afreimado. Quatro successos importantes lhe absorviam a maior parte das suas horas diurnas e nocturnas. Primeiro, a independencia do Brazil, d'onde elle inferia que Portugal ficava sendo uma grande cabeça sem cerebro, um gigante paraplegico, bracejando, sem pernas que o movessem. Depois, a reunião das tropas francezas nos Pyreneos, ameaçando cassar as cartas de alforria dadas pelos reis ás nações amotinadas. Em seguida as facções liberticidas conjuradas com o titulo de Junta Apostolica. Por ultimo a formal recusa da rainha D. Carlota Joaquina em jurar a constituição.

Nas fogosas luctas que então se travaram no congresso, entre gladiadores inveterados de absolutismo, e outros exaltados fautores da liberdade, Venceslau Taveira ia na vanguarda dos liberrimos. Os seus discursos poderiam ser acoimados de demagogos, se a audacia dos adversarios não lhes justificassem a iracundia. Depois que a rainha pediu licença para sahir de Portugal, visto que a lei a obrigava não jurando a constituição,{238} as duas parcialidades do congresso defrontaram-se rancorosamente, até ao extremo de se arcarem peito a peito.

Uma noite Venceslau entrou no seu escriptorio, e demorou-se largo tempo a passear agitadissimo. D. Julia, admirando a insolita demora, desceu á livraria, e viu sobre a banca da escripta um par de pistolas novas e um pacote de polvora e balla.

—Pistolas!—exclamou ella—isto que é?... Nunca te vi d'estas coisas!

—São hoje necessarias, minha filha—disse brandamente o deputado, desenrugando a fronte assim que viu a esposa alvoroçada.

—Para quê? tens inimigos?

—Tenho, e enormes: são os mil algozes symbolisados na palavra «despotismo». Hoje, mais do que nunca, me sinto obrigado a combatel-o. Preciso defender a felicidade que me déste. D'antes era eu um homem, que podia morrer, sem o pezar de ser chorado. Hoje, que a vida me é mais cara, mais me devo prevenir na defeza d'ella. Não te assustes, Julia...—proseguiu elle abraçando-a.—O despotismo ainda cá não metteu a garra; mas eu tenho collegas no congresso que nos estão atraiçoando, e já vão tomando nota dos que hão de apontar ás alçadas se o infante D. Miguel for acclamado absoluto. Eu hei de ser o primeiro, se antes d'isso me não poderem apunhalar traiçoeiramente. Contra os traidores é que os homens de bem se armam. Ámanhã espera-se estrondoso escandalo no congresso, onde vae debater-se{239} a recusação da rainha. Eu hei de votar pelo cumprimento da lei que a manda sahir de Portugal; mas suspeito que alguns atrabiliarios lhe vão entoar vivas. Se tamanha protervia couber na alma vendida dos deputados absolutistas, é preciso expulsal-os da camara; e, se reagirem, será forçoso que deixem a vida onde alardearam a deshonra.

—Mas que necessidade tens tu de te arriscares?—perguntou Julia.—És rico, pódes viver tranquillo; em qualquer parte do mundo achas a liberdade sem receios, e a independencia das alternativas da politica... Olha, Venceslau, deixa ficar Portugal aos que o exploram, e vamos viajar.

—Iremos forçados—disse Venceslau—; mas, por emquanto, não. Eu hasteei no congresso a bandeira mais odiada dos despotas. Se eu desertar d'entre os poucos que me seguem, o meu nome ficará infamado de covardia, e a tua riqueza será a alavanca de ouro com que eu arrazei o honroso edificiosinho que ha dez annos estou levantando. Não póde ser, minha querida Julia... O teu amor quer-me desviar d'um perigo onde a tua razão me deve aconselhar que esteja. Conciliaremos o amor com o dever. Quanto mais direitos eu for grangeando á gratidão da patria, por mais digno me hei de ter da tua estima...

—Mas eu—volveu D. Julia com meiguice—desejo que tu não penses mais na patria do que em mim, Venceslau. Não me disseste hontem que Eduardo, desde que era pae, te parecia mais meditativo...{240}

—Sim... disse.

—Pois então, lembra-te que és pae d'aqui a pouco tempo, e que a patria, se tu faltares aos teus filhos, não t'os ha de indemnisar do amor que perderam.

Venceslau beijou a fronte da esposa, e murmurou:

—Minha filha, quando o alento me esmorecer no cumprimento dos meus deveres, anima-me tu, dizendo-me que o sacrificio d'um pae na causa santa da liberdade é um legado precioso a seus filhos. Que elles herdem de ti os bens da fortuna, e de mim a parte que eu tiver na liberdade da patria, para que se não envergonhem de ser portuguezes.

Não era visionario desvairado pela paixão politica Venceslau Taveira.

Quadraram os disturbios das côrtes, no dia seguinte, aos seus presentimentos.

Ventilava-se afogueadamente a questão da recusa de D. Carlota na casa legislativa. Os liberaes pediam o cumprimento da lei com desabrida virulencia, provocada pelos murmurios de alguns deputados sequazes das conspirações de Queluz. Venceslau Taveira, vibrante da eloquencia da justiça, resoluto a pôr peito aos perigos que lhe ameaçavam a singular coragem em meio dos seus correligionarios abatidos pelo terror do exilio, dos carceres e dos patibulos, irrompeu em apostrophes á Junta Apostolica, á facção infame que viera arrebanhar vilissimos escravos ao gremio da representação nacional.

N'esta conjunctura, um deputado dilecto da rainha,{241} por nome Antonio José da Silva Peixoto, coadjuvado pelo foliculario José Accursio das Neves, levantaram-se e proromperam em «vivas» á rainha nossa senhora, e «morras» aos carbonarios, agitando os lenços. Os membros da sua facção, incitados pela audacia dos dois absolutistas, conclamaram a rainha absoluta, e tal houve que no tumultuar do alarido vingou avantajar-se em brados, offerecendo o nome do infante D. Miguel á espectação dos deputados para quem a desthronisação de D. João VI era a traça gizada pela rainha.

Venceslau, interrompido por aquelles brados, perdeu a serenidade do aspecto que sempre mantivera nas mais degladiadas controversias. Os seus collegas convisinhos, coevos das formidaveis tempestades de 93, e identificados ás tradições dos magestosos tribunos da carnificina, disseram que no afuzilar dos olhos e convulsão vertiginosa de Venceslau havia a colera de Mirabeau. Mas este juizo inoffensivamente plastico ficou áquem da ambiciosa comparação, quando o viram correr por entre a camara turbulenta, com duas pistolas aperradas, de encontro ao grupo onde se bradavam vivas a D. Carlota Joaquina.

Difficilmente impedido na passagem, os seus amigos deram tempo a que a facção da rainha se evadisse pela cêrca das Necessidades.

Serenado o tumulto, Venceslau, descido do impeto da ira, e corrido do acto, pediu perdão aos seus collegas; mas assim mesmo appellou da sua propria consciencia, que o accusava, para a justiça dos vindouros; e,{242} como, apezar da prostração moral, a alteza da ideia lhe não fallisse, consta do Diario das Camaras que elle dissera: «aos meus collegas, que estremeceram por me vêr pistolas engatilhadas, peço que se vão afazendo a vêr instrumentos de morte, para que não se aterrem quando, vestidos com a alva de condemnados, se defrontarem com os patibulos.»

Desde este dia, o nome de Venceslau Taveira foi inscripto na lista dos votados á morte nos conciliabulos de Queluz.

Quando o governo descobriu n'aquelle anno a celebrada conspiração da rua Formosa, entre os papeis encontrados no subterraneo da officina typographica, estava um com as bazes do projecto revolucionario.

O artigo 3.º dizia: «Assassinar aquelles entre os membros das côrtes e do ministerio que são os mais celebres defensores dos direitos nacionaes.»

O primeiro nome era Venceslau Taveira.[3]

O conflicto do congresso parecia ter sido apenas um sonho máo no espirito do deputado, quando entrou no seu escriptorio, onde Julia o esperava assustadissima. Um sorriso de paz lhe deu elle com o beijo da sua extrema ternura, e na firmeza de voz e bom concerto das ideias denotava que os transportes de uma coragem honrosa, depois de o abalarem, lhe repunham a alma descansada no reclinatorio da consciencia.{243}

—Fujamos de Portugal!—disse-lhe Julia vivamente.

—Não fujamos, minha amiga... Jantemos—disse serenamente o marido.

E, durante o jantar, perguntou padre Manoel Ferreira:

—E, se V. S.ª, cego na sua justa ira, matasse o Peixoto ou o Neves...

—Ou ambos...—ajuntou Venceslau.

—Sim, ou ambos... suppomos...

—Suppomos...

—Que acontecia?—insistiu o capellão.

—Que elles estavam a esta hora mortos—respondeu o deputado.

D. Julia fitou com certo assombro o placido rosto do marido, e disse:

—Pois tu... eras capaz de matar...

—E de morrer, minha filha.{244}
{245}

XX

É assim o viver.

ALVARES D'AZEVEDO.Obras, tom. III.

Este capitulo abrange o espaço de quatro annos.

Em 1827, D. Anna Vaz tem tres filhos. Eduardo Pimenta perdeu o emprego com grave desdouro de sua probidade politica, por ter acompanhado o brigadeiro Sepulveda ao encontro do infante D. Miguel em Santarem, quando em 1823, José de Souza Sampayo, depois visconde de Santa Martha, e o conde de Amarante, acclamaram o principe, e tentaram nomear uma regencia presidida por D. Carlota de Bourbon.

Venceslau, por affecto a D. Anna Vaz e ao commendador, quiz reintegrar o homem a quem chamava ainda amigo, desculpando-lhe a queda com os fumos da lisonja em que o haviam aturdido as familias da alta nobreza com quem elle se relacionára, já por parentesco{246} de sua mulher, já porque assim cuidava sanear o aleijão de um baixo nascimento. O generoso fidalgo beirão perdoava esta miseria ao filho do lavrador de S. João de Nogueira, cujos primeiros amores já denotavam aspirações levantadas.

Eduardo, porém, rejeitou a valiosa intercessão do amigo, declarando que não queria nada de constitucionaes nem de absolutistas; que não tinha fé nas virtudes civicas de quem quer que fosse, nem sacrificaria a sua dignidade nas aras profanadas de algum idolo. Venceslau sorriu-se áquella negação das virtudes civicas, e de si para comsigo entendeu que Eduardo era um louco, subordinado ao influxo d'algum astro funesto.

Entretanto, o viver do marido de D. Anna Vaz, na sociedade que lhe admirava o talento, a reconsideração de ideias, e os discursos ora scepticos, ora enthusiastas; que lhe admirava tambem a figura, aureolada pelo romanticismo da sua mocidade—o viver de Eduardo Pimenta em meio de espiritos arrogantes, mas ineptos, era o que as lagrimas de sua mulher davam a entender.

Eduardo tinha lido os poemas de Lord Byron. Admirava com inveja aquelle feito e refeito heroe da eterna legenda, onde á volta de um homem fatal se acatovellam dezenas de mulheres a amal-o, a chorar e a morrerem de amor. O dom João fervia-lhe nos miolos, aquecido um pouco pela temperatura calida do sangue, e bastante pelo fogo da phantasia. Isto de phantasia era coisa pouquissimo vulgar em portuguezes d'aquelle tempo, se elles não haviam corrigido lá fóra a sua compleição,{247} prevertendo a boa indole de frades com que até aquelle tempo toda a gente nascia em Portugal—indole provavelmente devida á preponderancia que exerciam os frades no phenomeno das reproducções, psycologicamente fallando.

Allucinado, pois, pelo seu modêlo poeticamente immoral, Eduardo, com quanto não immolasse illustres victimas, e já encontrasse muitas sem sacrificadores, ganhou fama de bem-quisto de senhoras titulares, e realmente era. Contaram-se n'aquelles annos casos de ciumes palacianos em que elle era o personagem menos irrisorio; arrufos conjugaes, projectados divorcios, reclusões em severos claustros, etc.; mas tudo isto eram atoardas que lhe esmaltavam a reputação.

Este genero de costumes involvia despezas grandes, a pompa no trajar, os bailes, a liberalidade no despender em natalicios, o hombrear com os ricos, e deslumbral-os em lances generosos.

Em menos, pois, de tres annos, Eduardo sem officio nem aptidão para tornar lucrativa a sua intelligencia, gastou os quinze mil cruzados do patrimonio e contrahiu dividas caucionadas pelo futuro dote de sua mulher.

Em 1827, o commendador Vaz dissera a Venceslau Taveira que os seus netos chegariam a mendigar, e sua filha, quando elle fechasse os olhos, teria de vender o leito de sua mãe.

A estima do marido de Julia por Eduardo Pimenta diminuira proporcionalmente com os creditos do seu amigo d'outro tempo. O homem austero não podia desculpar{248} o vadio que, depois de bandear-se com os fautores do absolutismo, rejeitára petulantemente o perdão e o emprego, para se andar a fazer praça escandalosa das serodias verduras de rapaz solteiro, com o enfatuamento de homem de boas aventuras. Poucas visitas se faziam reciprocamente; mas d'esta omissão dera o exemplo D. Anna Vaz.

Ainda assim, Venceslau informado pelo commendador, procurou assiduamente Eduardo, instando-o a empregar-se, a cahir em si, a cortar relações que o abysmavam, e a pensar no futuro de seus tres filhinhos, lavados pelas lagrimas da mãe.

A commoção do reprehendido parecia sincera, quando elle se prestou a servir a nação, a quebrar os encantos da sua aziaga estrella, e a restaurar em fim a honra e a felicidade da sua familia.

Amiudaram-se então as visitas de D. Anna, instigadas já pelo marido, que a movêra pela dependencia em que estavam do deputado, já pelo pae que inteiramente ignorava os despeitos da filha, e por amor d'ella e dos netos lhe aconselhava acolher-se ao valimento de Venceslau.

N'este tempo D. Julia tinha dous filhos, ambos meninos, entre tres e cinco annos. A vida domestica, bem que estrellada pelos dous anjos, parecia-lhe escura. A pouco e pouco, o marido, cada vez mais enredado na politica, lhe fôra obrigando suavemente o animo a conformar-se com os deveres de senhora de casa, e a desligar-se da intimidade dos parentes.{249}

D. Julia rica, festejada, sedenta de competir em fausto com as damas de mais voga, reagia surdamente aos affectuosos conselhos de Venceslau. Elle, porém, com habil descrição, ia cedendo ás menores exigencias, e cortando n'estas até a reduzir ao orgulho de não fazer nenhumas—orgulho onde se levedam fermentos de amarissimos resultados.

Casos politicos de importancia um apenas alterou o monotono, mas agitado, duello do liberal contra a tyrannia. Em 1824 foi convidado pelo ministro dos negocios estrangeiros, marquez de Palmella, a ser o secretario particular, o collaborador dos seus notaveis actos diplomaticos. N'aquelle anno, operou D. Miguel o movimento de 30 d'abril, que ficou na historia conhecido pela Abrilada. N'esse mesmo dia foi preso o marquez de Palmella e com elle o seu secretario, á ordem do infante, por intermedio do intendente Belforte; mas já no dia 5 de maio o ex-ministro e Venceslau eram soltos, graças ao corpo diplomatico.

Repostas as coisas no antigo estado, com a sahida do infante no dia 13, Venceslau alcançou empregar Eduardo na secretaria da guerra, abonando-lhe a lealdade, bem que o commendador o quizesse exonerar de tão perigosa fiança.

N'este em meio, o ar de renovada estima que parecia reatar os corações das duas senhoras, emborrascou-se outra vez. D. Anna Vaz valia-se de desculpas com o pae para não seguir o marido a casa de Julia; esta, sem queixar-se ao marido da ausencia da sua amiga, dizia{250} que D. Anna era muito mais affectuosa quando Eduardo carecia de emprego.

Quaesquer que fossem os juizos de Julia, havia um sinistro esculca, de carrancudo aspecto, que parecia querer-lh'os escutar no silencio da alma: era o padre Manoel Ferreira.

Este previsto sabio andava sobre brazas desde que vira o antipathico Pimenta frequentar de novo o palacio das Amoreiras, bem que nunca só, nem a horas desacostumadas, mas sempre acompanhado da esposa, ou quando Venceslau era certo em casa. Se, relançando a vista ardilosa entre Julia e Eduardo, cuidava ter colhido um gesto intencional de ruim sentido, a raiva esbravejava-lhe nos olhos, e as comichões do nariz eram taes que lh'o avermelhavam como irrupção de bertoeja. Que vira elle, afinal? Dois olhares melancolicos e timidos, duas almas silenciosas a confidenciarem-se os seus sombrios destinos.

Ah! mas que dupla vista a do padre!

No fim d'aquelle anno de 1827, uma creada velha de D. Julia despediu-se da casa que servira cincoenta e dois annos. A ama forcejou por demovel-a, interpondo a auctoridade do capellão, cuja confessada era. Baldou-se a interferencia do padre.

Sahiu a creada, deixando grandemente suspeitoso o confessor. Que motivo teria ella para deixar a casa onde já sua mãe havia nascido? Que iria ella fazer em um cazebre de Campolide, sem parentes, só, no termo da vida e tão descaroadamente apartada de Julia que se{251} lhe creára no colo? Perguntas que o padre fazia ao seu familiar demonio, que lhe andava negaceando ás cavalleiras de Eduardo.

Uma manhã, sahiu de casa, e foi a Campolide. Entrou em casa da velha, fechou a porta, deteve-se duas horas, e, quando sahiu, trazia os olhos humidos, as faces enrugadas por mais dez annos de velhice, e as pernas trementes, vagarosas e vergando ao pezo da dôr que lhe empedrára o coração.

Entrou no seu escriptorio, atirou-se para cima da cama, com a face entre as mãos, meditou largo espaço; e, afinal, abalado por subita deliberação, subiu á sala de espera, e mandou pedir á snr.ª D. Julia se fazia favor de descer á sala do archivo.

A esposa de Venceslau descorou. Desde que era casada, nunca o padre a chamára a intender em papeis do archivo. A sahida da creada, e a auctoridade do confessionario, pareciam dar-lhe horas crueis, denunciadas pela fixidez averiguadora com que fitava o capellão.

Desceu a fidalga ao archivo. O padre esperava-a com a mão na chave. Apenas ella entrou, correu a lingua da fechadura; e, mantendo-se em pé defronte da senhora, disse:

—Como eu soubesse que V. Ex.ª estava perdida...

—Perdida!...—interrompeu D. Julia.

—Não me interrompa, senhora. Como eu soubesse que V. Ex.ª estava perdida, consultei a alma de sua virtuosa mãe e de seu honrado pae, pedindo-lhes que me inspirassem. O milagre de a levantarem do seu abysmo,{252} não podiam elles fazer-m'o; porém, fechar esse abysmo aos olhos de seu marido, isso sim, isso lhes pedi com estas lagrimas que estou chorando na sua presença...

—Mas que é?... que vae dizer-me?... que calumnias?—disse precipitadamente D. Julia, gesticulando uns movimentos de cabeça e braços que arguiam mais terror que assombro.

—Não gastemos exclamações, minha senhora. Eu não sou capaz de accusal-a sem a certeza de que V. Ex.ª é criminosa. Respeito-a na queda, porque a conheci e amei na pureza dos anjos. Não sou ecco de calumnias. Sou uma das pessoas que tem o segredo da sua desgraça. As altercações são inuteis, são extemporaneas. Não percamos tempo. Responda, snr.ª D. Julia: afóra a creada, que sahiu d'esta casa, e eu que brevemente sahirei, quem sabe esta grande desgraça? Quem viu aqui entrar, a horas desencontradas de seu marido, esse ingrato e infame homem?

—Ninguem...—balbuciou D. Julia, tapando o rosto com as mãos. Depois, sacudindo a cabeça com impetuosa colera, perguntou:—A quem devo eu a desgraça? quem fez este casamento?... quem me aconselhou a victimar a minha liberdade a um homem que me fez envelhecer em contacto com o gelo da sua alma? Eu não precisava de um sabio, snr. padre Manoel, para ser feliz. Deixasse-me estar solteira, que eu era virtuosa...

—Tudo que fiz, minha senhora, V. Ex.ª m'o auctorisou... Não discutamos... A minha razão perturba-se,{253} e eu depois receio que a snr.ª D. Julia não tenha um amigo que a salve. Se a consciencia me arguir de ter eu sido o agente d'este casamento, e eu não podér combatel-a, creia que morro de dôr, de vergonha e remorso. Não me diga tal, que me obriga a ajoelhar diante de seu marido a pedir-lhe perdão de lhe haver dito que V. Ex.ª havia de ser honrada como sua mãe.

—Virgem Maria!—exclamou anciosa D. Julia.—Não faça isso... pedem-lh'o os meus filhos...

—E não lhe pediram seus filhos que fosse honesta?...—replicou severamente o capellão.—Ter dois filhos, dois anjos da guarda, dois amparadores, affectos tão grandes com que encher a sua alma... ter dois filhos... e resvalar por entre elles á voragem!...

—Olhe que me despedaça!...—murmurou ella, contorcendo-se, em postura supplicante.—Lembre-se de meu pae...

—Seu pae... matal-a-hia... Eu, por mim, choro-a... porque não pude saber isto um dia antes da sua perdição... não pude salval-a eu... a quem seu pae a entregou...

Padre Manoel arquejava, debulhado em pranto, fincando os pulsos na fronte.

—V. Ex.ª... a snr.ª D. Julia...—proseguiu elle—aquella menina que eu adorava... está ahi... polluida... por quem, meu Deus?... Onde aquelle scelerado veiu continuar as devassidões das alcovas em que achou já perdidas as mulheres... V. Ex.ª... a esposa{254} de Venceslau Taveira... amante do miseravel esposo da sua infeliz amiga D. Anna Vaz!...

D. Julia, mortalmente pallida, sentou-se, expedindo um ai gemente, um som rouco das valvulas do coração, como se o sangue lhe confluisse a torrentes. Não seria facil decidir se era remorso, se vergonha, se colera: seria tudo a um tempo.

Aproximou-se o padre, tomou-lhe a mão fria, e disse-lhe com brandura:

—Olhe que só Deus é testemunha do que eu lhe disse... Eu hei de sahir d'este mundo sem a denunciar... Reanime-se, que eu não hei de ser-lhe peor algoz que a sua propria consciencia... Eu vou sahir d'esta casa... porque a presença de seu marido, d'hoje em diante, seria para mim o maior tormento... Não posso encarar aquelle honradissimo homem... vituperado, trahido... e por quem?... Ó meu Deus—clamou elle pondo as mãos—porque não me déstes o beneficio da morte antes d'esta horrivel certeza!

D. Julia soluçava, debatendo-se, ora afogando as faces nas mãos, ora erguendo-as supplicantes.

E o padre, contemplando-a n'aquelles desesperados movimentos, disse:

—Eu cuidei que o crime endurecia mais a coragem para lhe affrontar as consequencias. Pois nunca previu o remorso? Não conhecia o homem que a chafurdou na lama das libertinas das suas sordidas proezas? Não o comparou com seu marido?{255}

Estas phrases duras e hervadas batiam tão pungentes no peito da atormentada mulher, que o padre, olhando-a já compassivo, imaginou vêr-lhe no rosto a lividez cadaverica da mãe que morrêra thysica.

Acercando-se então d'ella com brandura e lagrimas na voz, continuou:

—Snr.ª D. Julia, peço-lhe emenda de vida... Não sei que mais possa nem deva pedir-lhe. Promette-me, senhora, promette nunca mais...

Foi n'este passo interrompido o padre por um gesto afflicto de Julia.

No mesmo lanço do rez da casa do archivo, estava o páteo da casa, onde, n'aquelle instante, soavam uns passos que ella reconheceu.

Era Venceslau Taveira, que se antecipára duas horas.

D. Julia subiu celeradamente as escadas, entrou no seu quarto, compoz o semblante, e cogitava indecisa no que diria ao marido se lhe elle notasse a desfiguração.

N'este comenos, entrou elle na ante-camara, chamando-a.

Ella sahiu, e elle, ao vêl-a, disse-lhe:

—Choraste?... Então já sabes alguma coisa da pobre Anna Vaz?

—Não... que é?...

—Pois não sabes?... porque choraste, filha?

—Tristeza... dôres de peito... o presentimento da morte...{256}

—Ó filha...—disse elle acariciando-a.—Que lembrança!... Deixei-te alegre, a brincar com os filhos... Que tens tu, Julia?

—Nada...

Esta palavra deu nos labios tremulos de Julia um sonido gemente, ao mesmo tempo que as lagrimas a quatro deslisavam nos cantos da bocca.

E Venceslau mergulhava uma profunda vista d'alma no abysmo d'onde sahiam aquellas lagrimas. Tudo trevas.

—Eu suppuz que a pobre Anna Vaz te escrevêra...—tornou Venceslau, procurando desassombrar o silencio em que estiveram alguns segundos.

—Não...—disse ella, cobrando alento do insuspeito ar do marido.

—Recebi este bilhete do commendador, e sahi immediatamente das côrtes. Lê... Eu t'o leio. «Meu nobre amigo. Vae hoje um inferno n'esta casa. Romperam-se os diques da prudencia. A minha santa filha, por já não poder com o martyrio, insurgiu contra o algoz. Sei que o facho d'este incendio, que me queima o restante da vida, é o ciume; porém, a nobre menina, se eu lhe pergunto a causa nova d'esta insupportavel affronta—insupportavel em relação d'outras que soffreu com paciencia—chora, e não me responde. Rogo-lhe, meu querido Venceslau, amparador do meu chorado Antonio, que o seja tambem da malfadada irmã. Venha applacar esta feia tormenta que ameaça engulir a vida da minha infeliz Anna.»{257}

—Aqui tens a carta—proseguiu Venceslau.—Não quiz lá ir sem te avisar. Se quizesses ir tambem...

—Não posso...—disse ella no maior grau de quebranto moral.—Vae tu... depois me dirás... Vae...

E apertou-lhe a mão estremecidamente.

—Tens fogo n'esta mão... acudiu o esposo com enternecido susto.

—É febre... disse ella, fitando-o piedosamente.{258}
{259}

XXI

C'est un mort..............................
Que cette horrible fin puisse épurer son âme.

PONROY.Formes et couleurs.

Quando Venceslau entrou ao pateo do palacete do commendador, andava elle passeando no casarão rente da rua, recinto abandonado onde se viam as reliquias de equipagens, significativas de antiga e extincta opulencia.

—Nunca o encontrei aqui, meu commendador!—disse o deputado.—Está no seu museu archeologico... Estas carruagens devem ser as locomotivas que transponham a ideia velha para fóra das fronteiras, quando a mandarmos civilisar-se a Argel... Mas não lhe vejo rosto para gracejos... Que temos? onde estão os ciumosos?

—Lá em cima, e eu fugi para os não ouvir... Escute... Não ouve chorar minha filha?... Escute... olhe...

—Ouço.{260}

—Vá lá, meu amigo. Estão na salêta proxima do quarto. A sua presença ha de conter Eduardo, e evitar que a pobre menina seja enxovalhada por algum insulto de lacaio. Olhe que brados elle está dando em quanto ella chora... Que verdugo!...

Venceslau subiu á primeira sala, passou á segunda e entrou n'um longo corredor que abria na ante-camara de Eduardo. Quando chegou a meio do corredor, pareceu-lhe ouvir o nome de Julia entre os soluços de D. Anna Vaz; e, ao mesmo tempo, um estropear de passos rapidos, que lhe levavam para mais longe as vozes já indistinctas.

Hesitou se devia atravessar a ante-camara, e seguil-os no interior da casa ou retroceder; mas os gritos supplicantes da amiga de sua esposa attrahiam-no, commiserando-o.

Bosquejemos a parte da casa onde está passando o conflicto.

A saleta, em que principiou a vigorosa altercação, exacerbada muitas vezes n'aquelle dia, tem tres portas: uma que abre para o corredor onde está Venceslau; outra que diz para a alcova onde demoram os leitos dos tres meninos; e a terceira que leva á camara dos esposos. N'esta camara ha outra porta que communica para outros repartimentos, por entre os quaes ha escada para um patim, que dá sahida para o quintal ajardinado. Esta era a serventia regular de Eduardo, quando recolhia tarde, entrando pela porta do quintal que entestava com a rua dos Cavalleiros.{261}

Ao avisinhar da salêta colligiu Venceslau que Eduardo, seguido da esposa, que talvez o ia retendo em grandes clamores, sahiu do quarto, e evadiu-se pelo interior da casa, descendo ao quintal para esquivar-se ás importunas lastimas.

N'esta acertada conjectura, deliberou Venceslau seguil-os, bem que ainda, ao entrar na salêta, o contivesse o decoro de atravessar uma alcova de esposos.

Durante os breves segundos da perplexidade, reparou em papeis dispersos no pavimento. Suppoz que eram cartas occasionaes da desordem, talvez colhidas ardilosamente nas algibeiras do imprevidente marido.

Venceslau envergonhar-se-hia da sua sombra, se se curvasse a devassar alguma d'aquellas cartas; mas, sobre uma banqueta que occupava o centro da ante-camara, estava meio amarrotado um papel escripto, cujos caracteres deram logo e mais de perto na vista de Venceslau.

Era lettra de D. Julia.

Hesitou ainda em lançar mão do papel; mas a particularidade dos signaes impressos na carta por mão que a enrugasse, estimulou-o a vêr que phrases deram causa ao phrenesi de Eduardo. Tanto quanto a rapidez de tal juizo consentia, Venceslau imaginou que o pessimo marido se exasperára, talvez, por ter lido cartas de compaixão de Julia para a sua mortificada amiga.

Pegou do papel, distendeu-o, leu a primeira palavra no alto da lauda, alisou um vinco onde uma lettra parecia desfeita, releu e... vibrou-se todo no estremecer{262} dolorosissimo de homem que um subito ferro encravou pelo peito. A palavra era querido. A lettra final d'ella não era um a.

Leu a carta rapido, offegante, respirando a trancos, sopesando o arfar do peito. Dizia assim:

«Calcula a minha inquietação, meu E.! Não pude dissuadir a creada... Sahiu, regeitando todas as minhas dadivas. Foi uma desgraça que ella te visse... Devo isto ás tuas imprudencias. O que mais me assusta é o padre, que está espantado com tal sahida. Elle tem sido o confessor d'ella. Se a interrogar no confessionario, arranca-lhe o segredo. E depois?... que hei de eu fazer?!... Espero que o padre me não denuncie... mas com que olhos me ficarão espionando os passos!... Não voltes aqui em quanto eu não te avisar. Vae todas as tardes ao logar que sabes. Lá irá ter a minha carta; mas, repito, não voltes aqui sem que eu t'o diga. Prudencia, ouviste? Olha que a situação é muito seria... Tenho-te dito muitas vezes que o V. é capaz de tudo... Adeus. Cuidado com as minhas cartas...»

Venceslau, terrivelmente sereno, depoz o papel sobre a mesa, retrocedeu ao longo do corredor, e, no fim, parou, escutando passos em uma das salas. A este tempo já elle ouvia o chorar de D. Anna que tambem retrocedêra para o seu quarto. O andar, que escutava, era do pae de D. Anna que subira para as salas e estava esperando o effeito da intervenção do amigo.

Venceslau, estugando o passo surdamente, passou{263} sem rumor na alcatifa da sala de espera, desceu a escada, e sahiu á rua.

O commendador, entretanto, como não ouvisse vozes, mas sómente o arquejar da filha, murmurando: «ah! pobres creancinhas!» seguiu o corredor, e foi dar com ella apanhando do chão as cartas espalhadas.

—Que papeis são esses?—perguntou o commendador.

—Nada, meu pae... cartas...

—O Venceslau sahiu com Eduardo?

—O Venceslau!—disse ella com espanto.—Onde está elle?!

—Veiu para aqui... ha de haver cinco minutos... não o viste?

—Não, meu pae! Elle esteve aqui? aqui? n'esta salêta?—exclamou Anna.

—Esteve, sim, filha.

—E viu estas cartas?—bradou com as mãos afincadas nas fontes.

—Se viu estas cartas?... Eu sei lá, filha... O Venceslau era incapaz de ler papeis que estivessem no teu quarto... Mas, se essas cartas são o que eu entendo, que importaria que as visse?

—Jesus! Virgem Santa!—volveu D. Anna, enclavinhando os dedos, e estirando os braços supplicantes para uma imagem da Mãe de Christo.

—Mas onde está elle?—tornou o velho.—Se não sahiu pelo quintal, por onde é que foi? Eu estava na sala do meio, e não o vi passar na sala de espera...{264}

—Não? não viu?...—perguntou ella precipitando as vozes acompanhadas de gestos de pavor.

—Não, menina...

—Então é que viu as cartas... sabe tudo... sabe tudo...

—O que?—acudiu o commendador assombrado.

—Ai! quem fosse procurar Eduardo...—exclamou ella, agitando-se d'um para outro angulo da salêta—ó meu pae, salve-o, salve-o; mande procurar meu marido, que Venceslau mata-o... Estas cartas são de Julia...

—De Julia?!—bradou o velho, encostando-se tremente ao alizar da porta—De Julia? Julia é amante de teu marido?... Venceslau foi deshonrado pela mulher?... Oh! não me digas isso, filha!... Tu estás cega pela paixão do ciume... Deixa-me vêr essas cartas...

—Não queira vel-as... não queira... Mas, meu pae, olhe que o Venceslau mata Eduardo... Acuda aos seus netos...

O commendador fitou na filha os olhos chammejantes de odio, que raiára de sangue o alvor do spasmo, e murmurou:

—Se o matar... matou o mais infame dos homens... porque matou o assassino da felicidade, da honra e do futuro do seu bemfeitor...

—Mas...—insistiu Anna com as mãos postas—mas eu amo-o... eu quero que elle viva... fugirei com elle e com os meus filhos para onde o pae quizer que vamos... Deixe-me ir a mim procural-o...{265}

—Não sahirás d'esta casa... Não sei se é sangue, se lodo que te gira nas veias... Não sahirás d'esta casa, Anna!... e se teu marido aqui voltar, quem o mata... sou eu!


Simultaneamente com a prolongada lucta entre o velho inflexivel e a dilacerada alma d'aquella santa, recebia D. Julia este bilhete do marido:

«Juliazinha, era uma tormenta de ciumes que deixei abonançada. Não te dê cuidado. Depois d'estas borrascas, reponta no céo dos amantes a serena claridade. O ministro mandava um correio procurar-me, quando eu chegava a S. Roque, já de volta para casa. Tive de retroceder, e sei que tenho tarefa até á meia noite. Não esperes por mim. Janta. Se eu podér desembaraçar-me, irei; mas não poderei, porque ha reunião de deputados no ministerio dos negocios estrangeiros. Adeus, querida. Teu V.»

D'esta carta, assim placida e amoravel, transluziu-se no animo alvoroçado de Julia receio e desconfiança.

Deu-se pressa em escrever com febril agitação. Chamou um lacaio, confidente unico, e deu-lhe uma carta.

Eram cinco horas da tarde.

O lacaio foi encontrar-se com Eduardo Pimenta debaixo dos arcos das Aguas-livres.

Deu-lhe a carta, em que Julia concisamente lhe pedia que não a procurasse, mas lhe escrevesse a referir-lhe os acontecimentos domesticos d'aquelle dia. Á intimação positiva de lá não ir, nenhuma explicação ajuntava.{266} «Elle—concluia a carta—escreveu-me agora, dizendo-me que só vem á meia noite; mas eu estou muitissimo assustada. Não venhas.»

Eduardo pesou as apprehensões de Julia, e não lhes achou gravidade. O creado esperava alguma resposta vocal.

—Não digas nada á senhora—ordenou-lhe o generoso confidente—mas ás dez horas abre-me a porta da cocheira; e, depois que eu lá estiver, então irás dizer á senhora que eu entrei.

Dito isto, foi ao Hotel de França, na praça dos Romulares, saboreou os acepipes do condimentoso jantar, digeriu-os em alegre palestra com os convivas, conversou das logrativas lorettes de França, das alabastrinas mulheres de Londres, das morenas de Sevilha, das pallidas de Lisboa, e fez-se ouvir e invejar dos admiradores de seu espirito e das famosas aventuras.

Ás nove horas e meia, carregou pela quarta vez o seu cachimbo de procelana e ouro, apertou a mão dos discipulos e sahiu.

Ás dez entrou na estrebaria do palacio das Amoreiras, e enviou o recado á fidalga, quando ella estava no seu quarto contemplando os filhos adormecidos.

Por volta das onze, padre Manoel Ferreira, cujos aposentos nivelavam com o jardim, ouviu que lhe batiam mansamente na vidraça de uma janella. Collou o ouvido ás portadas interiores, e perguntou assustado quem era.{267}

—Abra a janella, padre Manoel—disse Venceslau a meia voz.

O capellão reconheceu-o, e disse que ía abrir a porta.

—A porta não... a janella...—insistiu o outro.

Cumprida a ordem, Venceslau Taveira transpoz o peitoril.

—Que é isto?! Snr. Venceslau, porque entra d'esta maneira em sua casa?!—perguntou o padre a tremer de susto.

—Abra o mais subtilmente que poder.

E apontava-lhe para a porta de communicação com o pateo onde estava a escada de serventia para o andar nobre.

—Agora—disse Venceslau, sahindo—não me siga.

—Ó snr. Taveira!... onde vae?...—balbuciou o padre.

—Sabe onde vou?!—inquiriu severamente o marido de Julia.

—Não, senhor.

—Então porque se assusta?

—Estranho isto...

—Bem. Fique!—respondeu sêccamente.

Minutos depois, D. Julia, pondo a mão nos labios de Eduardo, segredava-lhe:

—Espera... não ouviste nada?...

—Não...

—Pareceu-me ouvir uns passos abafados na sala...

Eduardo fitou o ouvido, e apesar de pallido e enfiado, murmurou:{268}

—Não é nada...

N'este lance, abriu-se a porta da salêta, como se a impellisse um repellão de vento.

Entre as hombreiras da porta estava Venceslau com uma pistola empunhada.

Julia, já de pé, soltou um grito estridulo, e fugiu para o quarto onde estivera contemplando os filhos.

Eduardo, ao levantar-se, fêl-o como de um salto de cadaver sacudido pela electricidade: tão de morto era a amarellidão do seu terror! Ergueu os braços inteiriçados. É impossivel conjecturar se o impulso d'aquelle movimento de indefinivel agonia era aggredir ou supplicar. A pederneira da pistola estalejou na cassoleta. Um dos braços de Eduardo retrahiu-se, e a mão, batendo rija no lado esquerdo do peito, parecia querer reprezar a vida no ponto onde entrára uma bala. Rodou meio giro sobre si, amparando a fronte na outra mão; e, resvalando pela espalda da cadeira onde estivera sentado, cahiu vasquejante.

Venceslau atravessou a salêta, e parou no limiar da alcôva.

Os meninos tinham acordado ao troar do tiro. Estavam sentados na cama, espavoridos, com os loiros cabellos riçados em anneis, e os olhos spasmodicos, brilhantes, fitos na mãe que os abraçava, e escondia o rosto entre elles.

—Não se aterre, senhora!—disse serenamente Venceslau.—Olhe que não morre... Essas creanças não tem pae... é preciso que tenham mãe... Se fossem meninas,{269} se d'essas creanças podessem fazer-se mulheres, seria misericordioso estrangular as futuras herdeiras da sua infamia... Viva... peça a esses dous innocentes que a defendem da morte do remorso... E, se elles algum dia lhe perguntarem pelo pae, diga-lhes que as mulheres perdidas não sabem quem é o pae de seus filhos...

O homicida atravessou a salêta, relançando um olhar inexprimivel ao cadaver.

Quando sahia, viu o padre, que difficilmente se tinha em pé, com as mãos postas para elle.

—Snr. padre Manoel—disse o marido de Julia—tenha a bondade de procurar ámanhã no Limoeiro o assassino Venceslau Taveira.{270}
{271}

XXII

Seule, elle reste assise, et son front sans couleur
Du remords qui s'approche a dejà la pâleur.

A. DE VIGNY.Poesies.

Venceslau esperou o diluculo do dia seguinte, nas lages do Caes das Columnas onde a ventania do mar, encrespando o Tejo n'aquella noite de novembro, borrifava aguaceiros glaciaes.

Mas elle, enroupado na sua febre, sentia refrigerar-se-lhe a fronte, se os pegões de vento lh'a roçavam, irriçando-lhe os cabellos.

Ás vezes, n'aquella treva exterior, relampagueava um sulco de luz. E elle, ao clarão sulphuroso do corisco, via um cadaver boiando á flor da onda, e então era um rir asperrimo do louco—a epilepsia dos beiços onde espumava o rancor; e, logo depois, chorava, se, ao lampejo alvacento d'outra fulguração, via um berço com{272} duas creanças queridas, acorrentado no esquife de uma mulher, que a voragem ora sorvia, ora regolphava aos clarões da procella.

Não meditava, não comparava, não carpia os bens da honra perdidos, nem se confrangia das punhaladas do coração. Era a agonia estupida.

Os syndicos da alma, quando se demoram a descrevel-a n'aquella impenetravel escuridão, illudem-nos. Nós não sabemos graduar o frio e o fogo d'esses infernos. Os que passaram por ahi, não sabem dizer o que viram. A fantasia dos que lá não foram, por mais calcinadas que lhe flammegem as imagens, apenas vingará dar-nos em sombra as vascas do corpo que se esfacella; as da alma, não.

Á primeira luz da manhã, Venceslau parecia ir caminho da casa onde deixára um cadaver. Não ía. Parou na travessa do Secretario da guerra, onde morava o corregedor do crime José Antonio da Silva Pedroza, seu companheiro de emigração.

Fez-se annunciar a tempo que o magistrado ainda dormia. Não o attenderam os creados que o não conheciam. Sentou-se no escabello do pateo, esperando. Mais tarde entrou um official de justiça que conheceu o grande orador, o rico fidalgo das Amoreiras. Cortejou-o reverentemente, e foi acordar o corregedor, dizendo-lhe que o conselheiro, official-maior da secretaria dos negocios estrangeiros, o esperava no pateo desde o romper da manhã.

O magistrado, erguendo-se em inquieta expectação,{273} foi recebel-o á sala, e fez pé atraz ao vêr-lhe o transtorno das feições.

—V. S.ª a estas horas aqui?... grande caso!... Ha revolta?...

—Snr. Pedroza—disse Venceslau.—Vi um homem na ante-camara de minha mulher. Matei-o. Não sei se era o crime que o levou alli, se a intenção do crime. Matei-o. Eu era amigo d'este homem, amigo de dezeseis annos, valedor nas suas miserias, consolador nas suas lagrimas. Matei-o, porque o tinha amado como os infelizes bons amam os infelizes bons e máos.

—Snr. conselheiro—disse o corregedor.—Nós fômos companheiros no desterro. V. S.ª tinha dois amigos: um era Antonio Vaz que lhe morreu nos braços; o outro era...

—Matei esse...—atalhou o homicida.

—Bem morto...—murmurou o juiz.

—A justiça me julgará.

—Está julgado; mas fuja... cá o livraremos.

—Não fujo. Dê-me V. S.ª um mandado de prisão para me eu apresentar ao carcereiro. Desde o momento que me accusei ao executor da lei, estou preso.

O corregedor abraçou-o, dando livre curso ás lagrimas.

Como não tivesse áquella hora escrivão que lavrasse o mandado, escreveu ao carcereiro, enviando-lhe o preso que deveria ser hospedado em sua casa.

N'aquelle tempo os ministros criminaes podiam ter{274} d'estes rasgos, sem receio que a imprensa lhes lembrasse a egualdade dos criminosos perante a lei.

Em quanto o preso seguia só para o Limoeiro, o corregedor mandava lavrar auto, e entregar o cadaver á viuva, ou ao coveiro da mais proxima egreja.

Quando Venceslau chegou ao pateo da cadeia, já lá estava o padre Manoel Ferreira.

O réo apertou-lhe a mão silenciosamente, e enviou ao carcereiro a carta.

Acudiu logo o funccionario a conduzil-o aos seus aposentos.

—Onde é o meu quarto?—perguntou o preso.

—É toda a minha casa, snr. conselheiro.

—Não lh'a acceito, mas muito grato lhe fico. Se me quer favorecer, dê-me um quarto, onde eu esteja sósinho.

—Ninguem virá incommodar V. S.ª sem sua ordem.

O carcereiro sahiu da confortavel salêta onde ficaram o preso e o capellão.

Assim que ficaram a sós, o padre apertou-o contra o peito que lhe rebentava em lagrimas.

Venceslau não pôde reter as suas; porém, se o padre queria abrir ensejo de conversarem sobre os successos d'aquella noite, era estorvado por um gesto afflicto.

Não obstante, o capellão pôde dizer que D. Julia tinha sahido ás duas horas da manhã com os filhos para a sua quinta da Ericeira, e que não deixára ordem nenhuma a respeito da casa.{275}

—De mim não tem ordens a receber, snr. padre Manoel—acudiu Venceslau.

—Pois de quem?

—Essa pergunta diz mal com a sua provada honra. Na casa, onde V. S.ª é capellão, deixei uns poucos de livros, que receberei, porque são os utensilios do meu pão de cada dia. Recebel-os-hei porque sou pobre; e porque a Providencia me ha de defender com elles a razão, e corroborar a honra.

—Mas os seus filhos...—balbuciou o padre.

—Silencio!—interrompeu Venceslau.—Por piedade, calle-se... e deixe-me! Que novo inferno me vem trazer aqui!... Meus filhos!... Filhos d'ella, sim, padre! filhos da mulher a quem eu deixei um cadaver, sobre o qual, ella... e elles... podem rezar suffragios por alma de... seu pae!

—Oh! por Deus!... Essa suspeita é horrenda... e injusta!...

—Basta!—bradou Venceslau.—Vá, snr. padre Manoel, que me está despedaçando...

E levou-o até á porta impellindo-o com quanta brandura cabia na delicadeza, incompativel com o arrebatamento.

O padre foi encontrar a justiça no palacio das Amoreiras. Os aguazís e visinhos devassavam a alcova de Julia, os leitos, os vestidos em desalinho nos cabides, a guarda-roupa estofada de setins e velludos, as roupas brancas das creancinhas, os sapatos da fidalga com as{276} fitas de rojo, e alli á beira de tudo isto, que respirava a felicidade conjugal, as delicias da intimidade, estava um cadaver rôxo, nú para o exame, com uma chaga escalavrada entre a quarta e quinta costella, e uns meandros de sangue denegrido a serpejarem-lhe peito abaixo até á cintura.

D'ahi a pouco parou a sege funeraria que devia conduzir a tumba a casa da viuva. Era acompanhada por seis homens de crepes, a pé, com os cirios apagados pelas rajadas do vento.

Padre Manoel perguntou ao escudeiro do commendador qual era a situação de D. Anna Vaz.

—Está fechada com os filhos e com o snr. commendador—respondeu o escudeiro.—Ouvi chorar os meninos, mas ella não na ouvi. A aia disse-me que a senhora morre.


{277}

 

 

 

 

Todos os homens assignalados por talento e encargos publicos procuraram o preso. No primeiro dia, Venceslau, sem força para reagir, recebeu-os. A visita era silenciosa, funeral, como a dos que vão desanojar um viuvo extremoso. O encarcerado apenas chorou nos braços de um homem que lhe disse: «Dou-te os parabens, porque a não mataste. A tua condemnação maior, e talvez unica, ser-te-hia haver morto a mulher, que amaste tanto.» Então, sim, chorou. O homem que disse aquellas palavras, tão penetrativas aos abysmos do coração, chorava, quando m'as repetia, quarenta e um annos depois. Era o tenente de cavallaria, que em 1868, se chamava o general Pedro da Silva, a quem devo o titulo d'este livro.

E, se bem me recordo, o general proseguiu n'este theor, referindo-se á epoca do encarceramento:{278}

«O padre Manoel Ferreira e eu eramos as unicas pessoas recebidas no quarto de Venceslau, o n.º 6 do ultimo andar, onde, n'aquelle tempo se lia ainda aberto no alisar de uma porta o nome de Bocage que alli estivera preso por atheu. O padre Manoel Ferreira, não ousava proferir o nome de Julia; mas particularmente me contou a mim que ella na madrugada do dia seguinte á grande desgraça, soffrêra uma febre cerebral, indo na sege, caminho da Ericeira. E ajuntou, nas diversas vezes que a tal respeito conversamos, que a doença de peito com successivas hemorragias, ia tão adiantada que, na opinião do medico, os tecidos pulmonares estavam dilacerados. Pedia-me então o padre que fosse eu preparando Venceslau para dispôr dos filhos, logo que ella expirasse.

«Ora eu evitava quanto podia fallar em creanças, porque o meu amigo reconcentrava-se; e, se as lagrimas o não desabafavam, a dôr prostrava-o por tal maneira que fazia recear a loucura. Os filhos do carcereiro visitavam-no. Elle acariciava-os com uns carinhos tão doces e ao mesmo tempo tão angustiados, que eu tive de pedir ao pae dos pequeninos que os prohibisse de ir ao quarto do preso.

«Venceslau era indifferente ao processo; mas a justiça, independente de solicitações, andou tão pressurosa nos seus deveres, que em meado de janeiro—mez e meio depois do delicto—o réo foi julgado e absolvido.

Á sua entrada no tribunal fez-se um rumor de compadecido assombro. Venceslau, que então contava trinta{279} e sete annos, tinha encanecido. Os sulcos da velhice, abertos pelas lagrimas, arrugavam-lhe o rosto, cujas feições pareciam estar como atrophiadas, paradas, immoveis d'aquelle sombrio marasmo da demencia estupida e morta.

«Ao sahir do carcere, entrou na carruagem do marquez de Palmella, que então era nosso ministro em Londres, e de lá providenciára em favor do seu intelligente secretario e collaborador no ministerio dos negocios estrangeiros. Por conselho dos medicos, levamol-o para a quinta do marquez, no Lumiar, onde eu passei com elle as horas vagas do serviço militar, até fevereiro do seguinte anno de 1828, em que chegou D. Miguel.

«Estavamos em uma sala triste por tarde tenebrosa de janeiro, quando chegou padre Manoel Ferreira, e me chamou de parte, para me dizer entre soluços que a infeliz D. Julia tinha morrido, pouco depois que em confissão lhe jurára pelo futuro da sua alma, e na presença da sagrada Eucharistia, que Venceslau era o pae dos seus filhinhos.

«—E onde estão os meninos?—perguntei eu ao padre.

«—Deixei-os entregues ás suas amas, e venho saber que destino devo dar-lhes.

«—O snr. padre Manoel—disse eu—tem n'este lance a uncção religiosa que requer semelhante revelação. Revista-se de animo, e diga-lh'o, porque é inevitavel avisal-o, e não póde espaçar-se a noticia.

«O padre entrou á sala onde Venceslau, ao pé do{280} fogão, parecia amolentado n'um lethargico dormir em que passava os dias e as noites, como se o cerebro, a pouco e pouco, se estivesse repassando da narcotisação da morte.

«O padre apertou-lhe a mão, espertou-o, e quedou-se longo espaço a contemplal-o, até que Venceslau lhe disse:

«—Porque chora, padre Manoel?

«—Choro por seus filhos...

«—Não venha ensopar mais fel na esponja...—murmurou Taveira.

«—Venho pedir-lhe que consinta que seus filhos o vejam. As creançinhas já não tem mãe. A snr.ª D. Julia é morta.

Venceslau ergueu-se amparado nos braços do capellão, encarou-o muito a fito, e tartamudeou:

«—Que diz? morta?...

«—Rendeu o espirito a Deus, ás duas horas da manhã, na sua quinta da Ericeira. Quando o vigario lhe ministrava a extrema-uncção, a moribunda chamou-me, e, pondo as mãos nas cabeças de seus filhos, disse-me: «Juro-lhe, na presença de Deus, onde vou dar contas da minha vida, que Venceslau é o pae d'estes dous innocentinhos, que vão ficar sem mãe.» Duas horas depois, estava no tribunal divino.

Venceslau inclinou a fronte ao peito do padre, e murmurou: «perdôa-lhe, ó justiça divina!...»{281}

XXIII

Do ferro o peito atravessado tinha
De que o sangue ainda fresco lhe manava.

GABRIEL P. DE CASTRO.Ulyssea.

Os amigos do marquez de Palmella compelliram Venceslau Taveira a sahir para Londres, quando os primeiros actos precursores do absolutismo deram rebate á emigração dos liberaes mais expostos ao odio.

Sabia-se que o fogoso deputado era, sem impedimento da sua queda, rancorosamente visto pelos realistas, que lhe sobrepunham aos delictos de liberal a sobrecarga de assassino.

A vasta parentella da viuva de Eduardo Pimenta conjurára em vingar a inconsolavel senhora, inflexivel contra o homem, que lhe matára o marido, e deixára com vida a mulher em cujo quarto o encontrára. N'esta{282} conjuração o commendador Vaz era de todo estranho. Desde a hora em que a tumba do genro entrára em casa, o velho sahira com os netos para o Riba-Tejo, deixando a filha entregue aos parentes.

Venceslau, porém, resistira ás insinuações dos amigos, até ao momento em que lhe figuraram os filhos trajando lucto por seu pae, morto no patibulo. Levaram-no, pois, á deliberação de exilar-se, entregando os meninos a padre Manoel Ferreira, depois de os haver tido comsigo um mez, na quinta do Lumiar.

E, como o padre lhe perguntasse por que via as remessas de dinheiro haviam de ser feitas para Londres, Venceslau respondeu que todos os haveres de D. Julia eram dos filhos, e elle nada receberia do patrimonio das creanças.

Expatriou-se, na vespera do dia em que era procurado á ordem de José Antonio de Oliveira Leite Barros, aquelle celebrado conde de Basto, que se mascarrou de sangue para dar uns longes de semelhança com o marquez de Pombal, injuriando-o.

A intelligencia de Venceslau Taveira, durante os quatro annos de exilio, quedou-se no torpor esteril d'onde nunca mais resurgiu. Espirito e coração haviam sido fulminados da mesma morte. O marquez de Palmella, sentando-o á sua mesa, e forçando-o a vestir-se da sua guarda roupa, venerava-o mais que n'aquelles annos em que o consultava nos casos melindrosos da sua missão diplomatica. Se ás vezes, em signal de preito{283} a um talento apagado pelas lagrimas, o convidava a pensar em perigosas conjuncturas diplomaticas, Venceslau entrava-se d'uma tristeza consternadora, e dizia:

—Perdido... tudo negro n'este pobre espirito...

E era deploravel no convencimento da sua inutilidade. Pedia a Deus que lhe apagasse a luz, que o queimava, sem lhe alumiar a razão escurecida.

Em 1832 despediu-se do marquez e alistou-se na expedição de D. Pedro IV.

Desembarcou no Mindello, vestiu a farda de simples soldado, entrou nas principaes batalhas, e de quasi todas sahiu ferido.

O governo do Porto reintegrou-o no seu antigo posto de official maior de secretaria, cujo serviço lhe era penoso, porque o cansaço, á menor applicação, lhe abastecia as trevas do entendimento.

Levantado o cêrco foi para Lisboa, e avisou o padre Manoel, de quem, a grandes intervalos, recebia cartas em nome supposto.

O filho mais velho tinha então onze annos e o outro nove. Eram ambos educados no Collegio dos Nobres, e denotavam dotes de rara capacidade.

O padre apresentou ao official maior as contas da sua administração, dando-lhe a guardar alguns contos de reis excedentes ás despezas. Venceslau rejeitou o deposito, insistindo em declinar de si a minima interferencia na herança de seus filhos.

Indagou da existencia de D. Anna Vaz. Disse-lhe{284} o padre que o commendador era fallecido; que os credores de Eduardo Pimenta haviam penhorado as duas quintas e palacete do patrimonio da viuva, e que esta se acolhêra ao convento da Encarnação, onde vivia pobremente. Quanto aos tres filhos alguns parentes se haviam encarregado de os educar.

O governo constituido mandou pagar ao conselheiro official maior os ordenados suspensos durante a emigração. Recusou-os.

Habitava um quarto andar na rua da Rosa das Partilhas, e alimentava-se d'uma taverna que occupava os baixos da casa. E, como os remanescentes do seu ordenado abastavam para vida mais desafogada, elle enviava mensalmente uma quantia ao convento da Encarnação, mediante padre Manoel Ferreira, que não era todavia o portador da esmola. O capellão do mosteiro, adestrado por conselho do outro, dava o dinheiro a D. Anna Vaz, dizendo-lhe que uma illustre dama, que a conhecêra na abastança, lhe pedia licença para a soccorrer em tão honrada quanto penosa viuvez.

Em 1834, a cholera-morbus entrou no Collegio dos Nobres. Venceslau ordenou ao padre, administrador da casa de seus filhos, que os transferisse para o seu palacio das Amoreiras. Ao mesmo tempo, o contagio feria tambem o pae. Padre Manoel achou-o no leito, quando lhe levava nova de ser fallecido um filho. Chorou, mas enguliu o segredo nas lagrimas. O enfermo disse-lhe então serenamente:{285}

—Posso morrer; os atacados n'este predio têm morrido todos. Levo saudades dos meus filhos;... mas deixo-lh'os. Nunca lhes conte a historia de sua mãe.

E o padre a ouvil-o, e a estancar nos olhos o sangue do coração!

Quando lá voltou no dia seguinte, encontrou Venceslau livre de perigo; mas como era já de dois gumes o ferro com que devia cortar-lhe os fios da vida, calou-se ainda. O segundo filho estava moribundo.

Um dia, Venceslau, já convalescente, disse ao padre que lhe levasse os filhos ao Campo Grande, que os queria vêr.

—Não m'os conduza aqui—accrescentou elle—porque ainda ha colericos n'este predio.

E o padre, cahindo em joelhos, poz as mãos, e exclamou:

—Coragem, senhor!

—Que vae dizer-me, padre Manoel?

—Que os seus filhos...

—Morreram?

—Estão no céo, pedindo a Nosso Senhor Jesus Christo que lhes dê a alma de seu pae.

Venceslau perdeu o alento.

Era a primeira vez que aquella forte alma se escondia por largo espaço nas trevas da morte.

Quando recuperou os sentidos, e apalpou a realidade medonha da sua vida, inspirou aos amigos, que o rodeavam, o receio da loucura.

Um d'aquelles amigos era o presidente de ministros{286} duque de Palmella, que o levantou nos braços, e o amparou até o assentar na sua carruagem.

Depois, o anjo da piedade beijou-lhe as palpebras. As lagrimas golpharam a torrentes; mas a luz dos olhos sahiu diluida n'ellas. Venceslau aos quarenta e dous annos estava quasi cego.

E viveu!

Vivia em 1867 n'aquella casa triste da charneca de Odivellas, para onde fôra depois que o duque de Palmella fallecêra.

E vivia então pobrissimo, porque a grande riqueza em bens livres que herdára de seus filhos, mandára entregar aos herdeiros de sua mulher; e a maior parte de seus ordenados de official-maior aposentado era repartida pelos filhos de D. Anna Vaz, já morta áquelle tempo no mosteiro da Encarnação, alanciada em todas as fibras do coração de esposa, de filha e de mãe, porque a morte apiedou-se d'ella, só depois que o opprobrio dos filhos lhe deu ao esparto da garganta o derradeiro aperto.{287}

CONCLUSÃO

CARTA DE LUIZ DA SILVA

«Ha cinco annos que meu tio te referiu a historia do conselheiro da azinhaga.

«Nos raros livros, que apparecem com o teu nome, não tenho encontrado o caso triste.

«Se a opulencia, adquirida nas lettras, te não remiu da galé de escriptor portuguez, conta a historia de Venceslau.

«Esperarias que elle morresse para melhor te inspirares no silencio do tumulo d'aquelle calcinado coração?

«Morreu. Podes afoitamente levantar-lhe o sudario da face morta, e mostral-o.

«Se lhe queres vêr a sepultura, vae á casa onde elle nasceu, ahi nos arrabaldes de Lamego.

«Morreu rico. Em 1868, succedeu na herança do irmão morgado, realista inflexivel que nunca lhe perdoára a loucura de trocar o habito de benedictino pela{288} fardeta de voluntario da Rainha no cêrco do Porto. Colhido de sobresalto pela morte, não teve tempo de desvincular os bens e dal-os ao Papa.

«Venceslau sahiu da casa, onde esperava morrer n'aquella gandra arida onde o viste.

«Levou-o o desejo de fechar os olhos onde a sua estrella funesta lh'os abrira.

«Viveu lá seis mezes.

«Legou importantes bens de raiz e oiro em barda que encontrou amuado nos velhos contadores de seus avós.

«Os seus herdeiros foram os tres filhos de D. Anna Vaz. No testamento não nomeia o nome do marido d'aquella senhora.

«Um dos filhos está em Africa cumprindo degredo por crime de morte na pessoa d'um cocheiro que apunhalou em um latibulo de jogadores de esquineta. O miseravel, apezar do secreto amparo que lhe dava Venceslau, tinha cahido até áquella paragem.

«O outro filho de Eduardo Pimenta, depois de ter sido expulso com ignominia d'um logar de confiança que o conselheiro indirectamente lhe impetrára, estava marcador de bilhar no Café-Grego.

«A menina vivia de esmolas no mosteiro onde falleceu a mãe.

«Suspeito que a herança vae cahir nas fauces do dragão que sorveu todos os personagens da tua inedita historia.

«Hontem vi o marcador de bilhar, com os bigodes{289} pintados, guiando dois alazões, que tiravam um char-à-bancs, em que íam reclinadas e retrançadas de serpejantes cabelleiras tres mulheres d'aquella especie ephemera de borboletas que tem uma segunda crisalida nos amphitheatros dos hospitaes.

«Ouvi dizer que a reclusa da Encarnação, senhora de quarenta e nove annos, é pretendida d'um major reformado.

«O outro herdeiro, que está em Moçambique, se tiver juizo, em recebendo a herança, levanta-se com o vice-reinado de Africa.

«Se estas novas achêgas podem ser argamassa para mais um capitulo do teu livro, ahi as tens.

«Não me esqueça satisfazer uma pergunta, que me fizeste em 1868.

«Padre Manoel Ferreira morreu em 1835. Os actuaes possuidores dos grandes haveres de D. Julia de Miranda contam que o padre, depois de lhes entregar a herança, andára abraçando alguns moveis d'aquella casa onde vivera cincoenta annos, e chorára muito curvado sobre a cadeira onde costumava sentar-se D. Julia. Depois pedira que lhe déssem o leito onde haviam nascido e morrido os dous meninos, e o levou comsigo, e o queimára. Os herdeiros de D. Julia riem d'esta excentricidade. Eu vi no fundo da nobre alma do padre, a significação d'aquelle aniquilamento. As lagrimas, que solemnisaram aquelle devoto sacrificio do ancião, foram as ultimas. Foi a Odivellas, beijou os olhos apagados{290} de Venceslau, voltou para os parentes que o acolheram, e finou-se. Adeus.»


Qual foi o intuito do general Pedro da Silva quando me pediu que denominasse este romance LIVRO DE CONSOLAÇÃO?

Foi, como se me dissesse:

«Raro desgraçado haverá ahi a quem se não deparem, no seu livro, infortunios que lhe despontem os espinhos de angustias menores.»

As supremas felicidades desta vida sabe a gente gradual-as: são poucas, e ficam muito áquem do desejo. Mas as escaleiras da desgraça são tantas e tão avantajadas á fantasia das mais ardentes e requeimadas almas, que não ha medil-as, nem descer a sonda ao ultimo abysmo.

Bemdito seja Deus, que nos ha dado o consolador egoismo de ouvir muito gemido, muito desesperar, muito blasphemar de infelizes á volta de nós.

 

FIM.

 

 

 

 

[1] Memorias da vida de José Liberato Freire de Carvalho. Lisboa, 1855, pag. 94 e seguintes.

[2] Esta resposta é trasladada de um volume de manuscriptos estimaveis que pertenceu ao fallecido bibliographo o desembargador Thomaz Norton. Na folha de guarda do livro escreveu o citado possuidor o seguinte: Theotonio José Maria de Queiroz, penultimo ministro da Congregação de Oliveira pertencente aos padres Congregados. Morreu de edade de 84 annos, e ainda lia e escrevia sem oculos. Norton. O collector rubricou a collecção em 1811.

[3] Veja Os Portuguezes e os factos. Londres, 1833, p. 39.






End of Project Gutenberg's Livro de Consolação, by Camilo Castelo Branco

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK LIVRO DE CONSOLAÇÃO ***

***** This file should be named 34756-h.htm or 34756-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/3/4/7/5/34756/

Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed
Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This book was
produced from scanned images of public domain material
from the Google Print project.)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.