The Project Gutenberg EBook of Mysterio do Natal, by Henrique Coelho Neto

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Title: Mysterio do Natal

Author: Henrique Coelho Neto

Release Date: December 24, 2010 [EBook #34750]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MYSTERIO DO NATAL ***




Produced by Pedro Saborano





 

 

 

 

MYSTERIO DO NATAL

 

 

 

 

DO MESMO AUCTOR

Esphynge, 1 vol. . . . . . . . . . 600
Sertão, 1 vol. . . . . . . . . . . . . 600
Agua de Juventa, 1 vol. . . . 700
A bico de penna, 1 vol. . . . 700
Romanceiro, 1 vol. . . . . . . . 500
Jardim das Oliveiras, 1 vol. . . 500
Fabulario, 1 vol. . . . . . . . . . . . 500
Miragem, romance, 1 vol. . . 600
Theatro, vol. 1.º. . . . . . . . . . . no prélo
Theatro, vol. 2.º. . . . . . . . . . . 400
Ouebranto (Theatro), vol. 4.º. . . 500
Apologos, 1 vol. . . . . . . . . . . 500

No prélo, a seguir em novas edições:

Inverno em flor. . . . . . . 1 vol.
O Rei phantasma. . . . . 1 vol.
Capital federal. . . . . . . . 1 vol.
O morto. . . . . . . . . . . . . 1 vol.
O paraiso. . . . . . . . . . . . 1 vol.
O Rajah de Pendejab. . . 2 vol.
A Conquista. . . . . . . . . . 1 vol.
A Tormenta. . . . . . . . . . 1 vol.
O Turbilhão. . . . . . . . . . 1 vol.

 

 

 

 

Fotografia de Coelho Neto

Coelho Netto

 

 

 

 

COELHO NETTO


 

MYSTERIO

DO NATAL

 

 

Logotipo Lello

 

 

PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De LELLO & IRMÃO, editores
RUA DAS CARMELITAS, 144

1911

 

 

 

 

  O "Accordo" assignado no Rio de Janeiro em 9 de Setembro de 1889, entre o Brasil e Portugal, assegurou o direito de propriedade litteraria e artistica em ambos os paizes.


  A presente edição está devidamente registada nas Bibliothecas nacionaes, de Lisboa e Rio de Janeiro.

 

 

 

 


PORTO—IMPRENSA MODERNA

  {5}


A partida

Era a hora silenciosa e triste do crepusculo.

Abrumados de ouro os montes, em duros perfis, esmaltavam de negro o horizonte abrazado. Abriam-se as primeiras estrellas. Subiam da terra, como o fumo das aras, pannos alvos de nevoa.

Pelos caminhos esbarrondados, em aspero acclive, beirando grotas espontadas de cardos, cantaro ao hombro, as tunicas arrepanhadas á cinta, desfilavam donzellas conversando e rindo. {6}

Juntas, em passo miudo, trepidando nas pedras, com um cheiro de suarda e de silvas, passavam nas trilhas ovelhas em rebanhos. Um rude e mazorro pastor seguia-as cabisbaixo. {7}

Esbatiam-se as nuvens de ouro quando José e Maria appareceram no limiar da casa promptos para a longa jornada, por valles e montanhas, em direcção á terra farta de Bethleem onde iam cumprir a lei de Augusto.

Fechada a porta ainda demoraram um instante sob a vinha, contidos pela saudade.

O homem, por fim, decidiu-se, tomou a frente, vagaroso, pensativo e logo, limpando os olhos que as lagrimas nublavam, a donzella seguiu.

Elle grisalho, alto, robusto, ainda que um tanto curvado pelo pendor constante em que vivia, sempre inclinado sobre o lenho do officio, falquejando-o, acepilhando-o, dando-lhe fórma e lustro. Ella, mean de altura, fina e fragil.

Suavemente morena, os olhos grandes e tristes eram dum limpido verde d'agua, e como dois lagos purissimos {8} num areal, ao sol; e os cabellos, escapando-se do cairel do manto, punham-lhe na fronte uma frisa de ouro.

Mal se lhe adivinhava o collo abotoado.

Os pés, alvos e pequeninos, assentavam em sandalias e toda a sua riqueza consistia em um par de braceletes de marfim que lhe cingiam graciosamente os pulsos finos.

Trilhando a estrada que ia ter á fonte e seguia direita aos campos, paravam para falar ás moças, companheiras e amigas de Maria, para corresponder á saudação dos homens, para attender ás crianças que deixavam os seixos tomando-lhes o passo, pedindo que lhes trouxessem das terras de além conchas, como as de Ascalon, que conservam no bojo o soluço das ondas.

E Maria, commovida, chorava sobre o sorriso. {9}

Os campos toldavam-se de bruma e as oliveiras de pallida folhagem faziam no recosto das collinas como estendaes de nevoa.

Ainda havia quem trabalhasse a leira na ancia do fruto. Chiava um carro de lavoura, o guieiro afalava aos bois animando-os no lance abrupto de uma rampa.

Chegando ao planalto esteril, que dominava os horizontes e onde o vento zunia, os viajantes fizeram uma parada olhando em redor o redente dos montes.

Lá ficava Nazareth no valle feliz, com o seu casario, em cubos brancos, como um pacifico rebanho adormecido.

Ao longe tudo era carregado e lugubre.

A noite chegava primeiro ás alturas.

Isolado, com a lua pairando acima do seu viso, o Thabor era como um peito {10} de gigante de onde houvesse espirrado aquella gotta de leite.

Maria ignorava o mundo. Nunca houvera passado além da fronteira da terra natal. Alongando os olhos pela vastidão que a vista alcançava, montes, varzeas, esplanados desertos tristes, sentia-se mesquinha e com medo.

Voltou-se, ainda uma vez, para olhar o tranquillo recanto em que sempre vivera em pobreza e virtude. Mas a noite baixára; raros lumes picavam a tréva. Ouvia-se vago murmurio, como escachôo d'aguas, subindo do fundo obscuro onde jazia a cidade. Sahiu-lhe do coração um suspiro maguado:

—Onde fica Bethleem? José levantou o braço e estendia o cajado na direcção da terra de David, quando uma estrella fulgurou, illuminando radiosamente o ceu profundo.

—Ali! disse o patriarcha, numa voz {11} que tremia, comprehendendo, maravilhado, que aquelle astro surgira dentro da noite como uma resposta de Deus á moça predestinada.

{12}

  {13}


O anjo

A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas e d'aguas precipitosas que se despenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chans ainda o transito era facil, sem o varejo da ventania que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhes a marcha; mas nas gargantas, entre alcantis, as lufadas, abocando á entrada, esfusiavam desabridas, uivando com a furia de alcatéas famintas em ronda céva, a fariscar redis. {14}

Todas as estrellas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumareu de vigilia em torre, a que surgira e brilhava sobre Bethleem.

Os passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho secco.

Um ramo que bolisse, o lento defluir de um fio d'agua por entre pedras levantavam ruidos temerosos.

Ás vezes José detinha-se, hesitante na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a duvida porque uma das veredas ennegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilava fulgida, como calçada a diamantes, offerecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.

Como entrassem em sinuosa e esgalgada passagem, murada de rochas anfractuosas, eriçada de agaves e echoando como o ambito de uma caverna, ouviram {15} leve, frouxo ruido como de esfrolar d'azas.

Uma aguia, talvez, que acordara em algum teso e de pé, attenta, alargando as azas, ficára em attitude hostil prompta a arremetter em defeza do ninho.

O patriarcha, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.

Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, timida e tremula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sitio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.

Os corações batiam. Nella era o pavor do desconhecido, o grande medo tragico das sombras do Scheól, que erram, á noite, pelos descampados; nelle era temor por ella.

Não falavam, de olhos muito abertos, {16} quietos, immoveis como os rochedos que os emparedavam.

De repente um clarão fulgurou. A passagem illuminou-se, as pedras scintillaram e as palmouras dos cardos ficaram como de prata. E elles viram uma grande luz á flor da terra e clareando as rochas.

Aves despertando galreavam festivamente o canto da madrugada.

Levantando o olhar viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.

A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de commoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as azas aflavam docemente no silencio. {17}

A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudára com as palavras mysteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissario que lhe {18} apparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a innocencia de Maria, em cujo seio, cemo em corolla de flor, a Graça perpassava em genese immareavel, fecundando-o como o sol fecunda a leiva, eternamente pura. {19}


Lyrios

Clareava.

Manhan opáca, envolta em bruma que algodoava a terra, fluctuando com um lento ondular, fluindo em frouxeis alvissimos como pennugem, esgarçando-se, diluindo-se em fumo tenue que se esvaía no ar silencioso.

A espaços frondes boiavam, ramarias exciduas irrompiam.

Ouvia-se o lentejo lacrimoso das folhas orvalhadas.

A terra dava-se avaramente, a trechos {20} curtos, á medida que os viajantes avançavam e o caminho percorrido, como os dias da vida, eram logo fechados em branco pelos nevoeiros.

Branco era tambem o ceu e triste, pesando sobre a terra, tão baixo que as nuvens, por vezes, envolviam os peregrinos.

Passaros piavam nas taliscas, occultos; vozes de gado, longinquas, evocativas, annunciavam casaes.

Maria tiritava.

A tunica pesava-lhe nos hombros, humida, e as faces, rorejadas, tingiam-se em duas rosas como se as flores, transidas, houvessem procurado abrigo ao calor carinhoso daquella mocidade pura.

José distrahia a companheira falando-lhe dos lugares que iam atravessando.

Todos aquelles atalhos tortuosos, {21} aquelles carreiros invios haviam sido, em tempos remotos, trilhados por patriarchas.

Ali haviam-se travado batalhas sanguentas; ali alvejara a tenda, crescera, em louro estendal, o trigo, retorcera-se a vinha, pastara o armento, correra o azeite, fundira-se o ferro, britara-se a pedra, cosera-se o barro sob as vistas de Iaveh omnipotente.

Por ali andara Elias trovejando oraculos. Judith afiára o gladio libertador nas arestas daquellas penhas.

 

Em poeira de ouro foi-se mudando a nevoa: era o sol.

Já apparecia uma nesga de azul; arvores, moutas destacavam-se: a mortalha rasgava-se para a resurreição.

Alegremente as aves, em claras vozes, cantaram a victoria da Luz. E Maria, contente, d'olhos em extase, esperava {22} o astro annunciado pela fulguração das nuvens.

Num recanto, entre mirradas arvores de troncos retorcidos, uma agua escura e quieta reluzia.

Pedras negras, cobertas de limo, escondiam-se sob ramos acenosos.

Maria, sentindo a dobrez da fadiga, os olhos pesados de somno, sentou-se tão perto d'agua que toda ella reflectiu-se na superficie espelhenta.

Viu-se sem vaidade, com a mesma innocencia com que se revê o passaro e, num momento, infantilmente, mergulhou, até o punho, as mãos ambas no paul.

Quiz José reprehendel-a, vendo-a, porém, sorrir, sorriu tambem.

Gottejando sahiram as pequeninas mãos da agua que tremia.

Olhavam os dois os circulos que se abriam quando viram duas flores subirem {23} á tona, brancas, abertas em cinco petalas, erectas em finas hastes, como se o reflexo das mãos da Immaculada se houvesse materialisado em memoria da ablução ligeira.

Eram lirios e trescalavam.

 

Virtude, brilho das almas, que importa que desças á vasa? és impermeavel como a luz, purificadora como o raio de sol.

Não perdes a limpida pureza e, se entras no Vicio, fazes desabrochar a Graça; se afundas no Crime, tiras o arrependimento.

O pantano era lobrego, coberto de folhas mortas e as mãos de Maria, só com o aflorarem, tanto o purificaram que delle nasceu o lirio sem macula, symbolo formoso e candido da innocencia. {24}

  {25}


A refeição

Suave som de frauta pastoril deu a Maria o encanto de uma egloga. Voltou a cabeça dourada e viu o rebanho que se aproximava em vagaroso passo.

Trazia-o um menino, guiando-o por entre as hervas de aroma. Um lindo menino, tão alvo que não despedia sombra, como as neves que os raios do sol atravessam; tão louro que a sua cabeça alumiava.

Vinha a frauta soando em suaves accentos e attrahidas, enlevadas na musica, {26} abelhas voavam em volta do pastorinho, que assim apascentava dois rebanhos: um pela terra verde, outro pelos ares claros.

Ergueu-se Maria e, sem dizer palavra, olhando os ubres apojados das ovelhas, deu a sentir o seu desejo.

Como devia saber aquelle leite que era a metamorphose das flores dos silvados! Como devia rescender na boca e aquecer e fartar!

Calou-se a frauta e o menino, fitando os olhos meigos no casal errante, como se de muito o conhecesse e amasse, deteve-se, e os animaes pararam.

Ficou o rebanho unido, tão junto que não fazia mais que um vello e as abelhas, zumbindo, puzeram-se a esvoaçar em torno dos lirios alvos.

José adiantou-se e, offerecendo um obulo ao menino, pediu-lhe um pouco de {27} leite. Sorrindo, o pastorinho tomou o tarro que trazia ao flanco.

{28}

Logo, entre as ovelhas, houve um movimento ancioso. Balavam todas offerecendo as tetas refertas, atropelavam-se, saltavam querendo, cada qual, ser a escolhida e o pastorinho brandamente as afastava.

Foi á primeira, ordenhou-a. O leite esguichou em fio; outra chegou, depois outra e a todas elle attendia para que nenhuma ficasse preterida.

Já a espuma fervia crescendo em flor, transbordando do vaso e as ovelhas festejavam-se contentes.

Sorrindo, aceitou Maria a offerta do zagal; bebeu a lentos goles, saboreando. E foi a vez de José.

Refeito, o patriarcha insistiu na dádiva da moeda, mas o menino negou-se a recebel-a: {29}

«Que era um pouco de leite? Qualquer pastor faria o mesmo.»

Saudou-os, e, pondo-se á frente das ovelhas, levou a frauta aos labios.

Os sons vibraram. Lento e manso o rebanho proseguiu. Foi então que Maria viu que as abelhas, tantas que occultavam os lirios, deixavam as flores voando á musica da frauta.

—Lindo pastor! Lindo rebanho! disse, enlevada, a Virgem. Mas logo, referindo-se ás abelhas que fugiam, perguntou a José: Que terão ellas buscado nas flores d'agua?

—O arôma e o néctar, explicou o patriarcha.

Chegaram-se os dois ás flores e viram, maravilhados, que estavam cheias de mel crystallino e louro como o ambar precioso e tão perfumado como se contivesse toda a essencia das flores.

Tomou José um dos lirios e deu-o a {30} Maria; a Virgem offereceu-lhe o outro. Depois, deliciados, contemplaram-se felizes.

—A frauta já não sôa, vai muito longe o pastor, disse Maria.

—Vai muito longe! repetiu José contricto, levantando os olhos para o ceu, como se procurasse nas nuvens o pastorinho louro e as ovelhinhas brancas. {31}


A nuvem

Sob a irradiação do sol a terra secca abrazava, exhalando um bafio de rescaldo.

Triste, flagellada Samária pagan!

Os deuses do Garizin, depois da destruição do templo, pareciam haver desertado o monte onde os homens subiam a retemperar a fé, de onde manava a seiva que se infiltrava nos campos e mantinha vivas todas as fontes, entre rochas humidas. {32}

Ermo o sagrado monte, esquecido o santuario antigo, as lavouras mirraram e um sol mais árdego crestou as hervas, sorveu as aguas outr'ora copiosas.

Nem as torrentes ligeiras conseguiram, fugindo, escapar á inclemencia e os leitos dos corregos, em lodo secco, estalavam, fendiam-se em gretas fundas.

Um fio d'agua rastejava nos lugares que, antigamente, rios largos alagavam.

Das fontes restavam apenas as pedras calvas sobre areias torridas onde viboras esfusiavam, entaliscando-se ao rumor de passos.

De ponto em ponto uma cisterna funda offerecia ao caminhante a sua agua salobra.

Ás vezes o terebintho forte sombreava-a ou figueiras e mimosas formavam-lhe em torno um bosque ameno.

Mas os trilhos, arenosos e pedrentos, eram apenas habitados pelo cardo que {33} esgalhava os ramos espinhosos, abertos em feridas, feios, disformes como aleijões. Não se ouvia cantar um passaro—só o gypaeto atravessava o espaço fulgurante ou grandes aguias hostis, pousadas no cabeço das penhas, devassavam os arredores buscando o que prear.

Maria offegava seguindo o esposo. A areia escaldava-lhe os pés mimosos, o sol abrazava-lhe a cabeça.

Caminhavam como atravez de chammas, sem que os olhos avistassem um colmado, a grata ramagem duma arvore.

Ó terras férteis da Galiléa! valles alfombrados e frescos de tanta belleza por onde correm numerosos ribeiros claros. Ó Galiléa!

 

Tudo era desolação na tristonha Samária e o sol do outono queimava como nos incendidos dias estivaes. {34}

Seria melhor esperarem a tarde, proseguirem com a brandura do crepusculo; mas a pressa que levavam não lhes permittia demora.

José, mais robusto e affeito a rigores, resistia; a Virgem, porém, começava a sentir-se atordoada: faltava-lhe o ar, os olhos ardiam-lhe.

—Chega-te á sombra do meu corpo, disse-lhe o patriarcha. Ella obedeceu. Mas o sol zombava da misericordia do amor e Maria continha as lagrimas, calava as dores dos delicados pés abertos em feridas, não querendo que o esposo soffresse com o seu soffrimento.

O sol subia, augmentava o calor e o animo da Virgem desfallecia quando uma nuvem cresceu acima do monte Ebal.

Era escura como os nimbus e apressava-se como impellida por um grande vento. {35}

Barulho surdo annunciava-a, igual ao ronco soturno que precede as saraivadas de verão.

A terra entenebrecia á passagem obumbrada da nuvem, que vinha direita ao caminho trilhado pelo casal.

O ruido augmentava tornando-se como o escachôo das catadupas.

Detiveram-se os dois, pallidos, tolhidos de espanto.

Subito Maria sorriu:

—São pombas, disse. Eram, effectivamente, milhares de pombas azues que, muito juntas, formavam a nuvem escura. Pairaram, ficaram adejando sobre elles, com rumoroso arrulho, e o sol quebrava-se-lhes nas azas estendidas.

José baixou os olhos, dobraram-se-lhe os joelhos e a Virgem, olhando as aves, não deu pelo gesto piedoso nem ouviu as palavras devotas com que elle, em extase, adorava-a. {36}

{37}

Então proseguiram á sombra do immenso pallio azul e fóra da nuvem viva a terra, quente e rutila, ardia e faiscava ao sol. {38}

  {39}


Ao pôr do sol

No ceu desbotavam, esbatiam-se as côres vivas, o ouro e a purpura fundiam-se em violete e, docemente, a melancolia vesperal envolvia a natureza e penetrava as almas. E Maria perguntou:

—Porque é mais triste do que a noite o breve instante do pôr do sol?

—Porque é uma agonia, respondeu José. Não é a morte que impressiona, é o morrer.

A luz que vasqueja é como o corpo que estrebucha. A noite é serena, tem a immobilidade do cadaver. {40}

Quantas sombras havia na terra? tantas quantas são os seres e as coisas que existem. O sol, porque é a vida, discrimina, dá a cada um a sua autonomia para o bem ou para o mal.

O homem tem a sua sombra, como a formiga; a cordilheira escurece uma região e o grão de areia destaca a sua mancha.

A noite condensa na mesma sombra todo o universo.

No instante da agonia a alma, como o saltador que recúa para ganhar impulso na corrida e formar o pulo, regressa na reminescencia recordando a vida, desde os dias primévos até á hora suprema.

O crepusculo, que lembra o amanhecer, sem a alegria, é um recúo á madrugada para o salto dentro da noite.

—Aquelle clarão que alveja nos montes é o luar. A lua é como uma lampada {41} que o sol deixa accesa quando parte. Como a noite é linda!

—E purificadora. O somno é um mergulho na Eternidade.

—Quando eu era pequenina, mal anoitecia, punha-me a tremer de medo e só depois de rezar conseguia adormecer.

—Porque a Fé é uma claridade que desfaz as sombras interiores. O que não crê é como o cégo que anda tacteando, sempre arriscado a perigos, bastando resvalar num talude para precipitar-se no abysmo.

A Fé é como a lampada dos templos: sempre accesa e fulgurando.

O homem de fé anda mais seguro na escuridão do que o incrédulo ao sol. O horizonte do crente é Deus.

—Porque bate com mais vigor o coração á noite?

—As aguas murmuram mais alto no silencio? não, a voz é a mesma, a calma {42} é que isola fazendo-a parecer mais forte. Quando trabalhas á sombra da vinha ouves balar o rebanho? não, entanto, á noite, soergues-te no leito á voz lamentosa duma ovelha perdida.

O coração parece pulsar com mais impeto nas horas de recolhimento.

Nas cavernas profundas as vozes reboam, o estellicidio de uma gotta faz ruido. É essa uma das vantagens da noite—estabelecer o silencio, a quietude nalma para que a consciencia faça o seu acto de contricção.

—E as estrellas? quem as accende no ceu?

—Aquelle mesmo que abre as flores na terra.

—Ninguem o vê.

—E o Pensamento, quem o vê? Enunciado é um relampago, realisado é um esplendor; a sua essencia é o genio, que gera a Ordem. O mundo é a realisação {43} do Pensamento de Deus; as obras ephemeras do mundo são a consubstanciação do pensamento humano. O homem constróe, é o artista; Deus crêa, é o Verbo.

—E eu?

—Tu és Maria, disse o patriarcha, afagando-a paternalmente.

Iterativas, afinadas vozes murmuraram nos ares concluindo o dizer do ancião:

... cheia de Graça, o Senhor é comtigo.
Bemdita és tu entre as mulheres.

Ella deteve-se assustada e interrogou o esposo, tremulo:

—Que dizeis, meu senhor? José, que nada ouvira, respondeu:

—Digo que és uma creatura de Deus, como a flor, como a estrella.

Os chacaes latiam no deserto ao doce clarão da lua. {44}

  {45}


A tentação

Numerosa estropeada de innumeros corceis atroou o silencio; tubas clangoraram e, repentinamente, como passassem entre duas alcantiladas penhas, que o luar vestia d'alvo, viram altos pylonos de basalto, sarapintados de hyerogliphos, ante os quaes esphynges monstruosas, deitadas sobre stelas negras, laivadas de sanguineo, com os bicos dos rijos peitos incrustados de rubis, cravavam no ceu os olhos mysteriosos.

Mal chegaram á entrada portentosa {46} logo uma luzente guarda de cataphractos, com petrinas de prata, montando ginetes brancos de crinas rastejantes, hasteando lanças que alumiavam, formaram {47} duas extensas alas ao longo do caminho areado de ouro, sobre o qual frescamente rociava uma serena pulverisação de aromas.

Os olhos perdiam-se na visão de uma vasta cidade mirifica, toda em marmores e pórphydos, com enormes templos, palacios que eram cidadellas, jardins de redolentes áleas, rios beirados de arvores, com as rampas em alcatifa de flores, rolando alisadas aguas sobre as quaes rebrilhava, em tremulina, o luar.

Barcos de prôas curvas, transbordando brocados, cruzavam-se com musicos sob doceis de seda.

Nos bosques que os cysnes percorriam, alvos como vivos marmores, mulheres, veladas de gaze, coroadas de rosas, repousavam na fina relva ou balouçavam-se em redouças.

Os zimborios dourados, os frontões {48} dos templos tauxiados de ouro, as escadarias largas, de zebrados degraus de cypolino, subindo a pateos de mosaico, esplendiam.

Surdo rumor agitava a cidade onde a multidão, em festa, tumultuava numa variedade de trajos multicores.

Passavam palanques sob flabellos empunhados por grandes negros vestidos de saios rubros, com franjas de prata, adagas á cinta, emplumados turbantes á cabeça.

Plaustros rodavam com crepitações levantando uma nevoa loura.

Photinas de harpas respondiam-se de um eirado a outro e, num obelisco de onix canellado, molle serpente de escamas de ouro, vibrando a lingua bifida, enroscava-se, em lentas espiras, ficando, ás vezes, pendente, a oscillar como uma grossa liana.

José olhava pasmado e Maria encolhia-se {49} timida, contemplando, deslumbrada, a cidade fulgente.

Não era a triste Sichem nem a sombria Jerichó. Que cidade seria aquella tão rica, de tanta vida, isolada na tristonha e maninha região da Samária?

Subitamente, com improvisa fulguração, abriram-se de par em par as portas do templo maior e um grave cortejo appareceu no peristylo e vagaroso, solemne, poz-se a descer a fulgida escaleira.

Vozes, ao rythmo de instrumentos lyturgicos, entoaram um cantico glorioso.

O povo prostrou-se na areia micante das alamedas bradando um nome forte.

Ceruleo clarão refulgiu celestialmente. Coalharam-se os ares de aves, armas lampejaram em meneio heroico e toda a turba templaria formou no atrium, {50} ergueu um sonoro louvor e rojou-se de bruços, com um tinir argentino de armillas e braceletes. E um homem alto, alado, com dois cornos de luz purpurea ardendo-lhe entre os cabellos crespos, surgiu no limiar de ouro estendendo amorosamente os braços a Maria extatica.

A voz com que a chamou reproduziu-se em echo no silencio mystico; o seu olhar ardia e, em torno do seu corpo atorreado, relumbrava um halo como se o emmoldurassem chammas.

—Vem! O meu amor esperava-te ancioso. És a eleita de minh'alma. Chegaste no tempo em que as rosas florescem. As vinhas crespas dão fruto, as abelhas fazem o seu mel, o trigo redoura os campos, os lagos são açucenaes extensos.

Eu puz em ordem a natureza para as nossas nupcias sagradas. Vem! {51}

A terra em que pisas nunca recolheu cadaveres. Entraste no reino da ventura eterna. Vem! E estendeu os longos {52} braços que alumiavam como caudas d'astros.

Houve um clamor ovante feito com o nome suave de Maria e outro que ribombava e os cataphractos, levantando-se, a prumo, nos estribos, cruzaram as lanças formando uma abobada de scintillações.

José olhava, mudo e receioso, acolhendo ao peito a timida donzella. Um gallo cantou em alguma herdade proxima.

Instantaneamente, com uma surda explosão, toda a cidade maravilhosa e os seres que a animavam subverteram-se.

Os ares ficaram nublados de fumo, estryges chirriaram.

De novo reappareceram os campos rasos, ermos, estereis, calados, ao luar livido.

Maria, com o coração sobresaltado, murmurou: {53}

—Que lindo sonho, meu senhor.

—Não foi sonho, Maria, tornou sombriamente o patriarcha. Vamos! Os lirios trescalam, os gallos cantam; é a madrugada que vem.

Puzeram-se a caminho.

E, pelos ares, contorcendo-se em furor, uma sombra alada fugia, enorme, monstruosa, com dois cornos que coruscavam. {54}

  {55}


O milagre das lagrimas

A estrada, a duas horas de Sichem, pelos montes, larga e suave, com acceitosas sombras de sycomoros e de amendoeiras, era toda orlada de anemonas vermelhas e de margaridas brancas e amarellas.

Os khans succediam-se sempre abrigados em hortos frondosos, com a cisterna ao lado ou perto de alguma fonte, com a alpendrada reverdecida pela vinha, debaixo da qual os mercadores, que desciam de Tyro ou do Libano ou subiam {56} de Joppé, comiam uma febra de anho regando-a com o vinho fresco de Engaddi, emquanto os dromedarios soltos iam e vinham vagarosamente ou deitados, ruminando, cerravam os olhos nostalgicos á vivida fulguração do sol.

Casas miserrimas, de muros de lodo, cobertas de palha, confundiam-se com a ramagem dos eloendros, perdiam-se nos olivaes.

Caravanas desfilavam—os homens a cavallo, com as lanças altas, o albornoz ao vento; as mulheres em jumentos ou em carros, entre fardos e alcofas, agasalhando crianças sob as pontas dos mantos.

Por vezes um canto suave rompia da turba, rufavam tamboris, kinnareths vibravam, frautas desferiam e os cavalleiros alegres faziam caracolar os ginetes, as mulheres punham-se de pé nos {57} carros olhando as muralhas que se aprumavam ao longe, fechando cidades, cujas casas, em cubos brancos, semelhavam tumulos. {58}

José evitava os pousos, fugia aos rumorosos aduares, mettendo por atalhos para evitar a chacota da gente nomade.

Justamente atravessavam uma trilha deserta quando ouviram um choro triste e deram de rosto com uma moça morena que trazia nos braços uma criança inerte.

Pós ella uma pequenita, já com abundancia de flores, ainda varejava os mattos procurando anemonas.

Vendo-os, a misera susteve o pranto e, fitando em José os olhos rasos d'agua, perguntou:

«Se ainda distava muito Endor, onde vivia Baruc, o nazir, que conhecia a virtude das hervas e realisava curas maravilhosas. Vendera as suas ovelhas e levava oito cyclos de prata e um collar de ouro comprado em Jerusalem e, se tanto não bastasse, dar-se-ia como escrava pela saude do filho.» {59}

José estendeu o braço na direcção do Levante:

—Era além, muito longe, atravez da montanha, num valle sombrio, a horas do Jordão.

Maria, commovida, quiz vêr o infante.

A mãi descobriu-lhe o rosto.

Era lindo!

Os cabellos rolavam-lhe em cachos louros, os olhos jaziam como dois mortos sob as cupulas tumbaes das palpebras, com os longos cilios repontando como a herva que viça no abandono.

A boca, de labios cerrados, livida, era como o leito secco de uma torrente que o sol exhauriu e estalou.

Não se movia e, tão rigido, tão frio estava que só a illusão do amor podia ainda emprestar-lhe vida.

A pequenita continuava a rebuscar anemonas cantando. {60}

—Ides debalde a Endor com o vosso filho, disse commiserado o patriarcha, accrescentando: Baruc póde sarar enfermos, mas só Elias resuscitava os mortos.

—Quereis dizer que elle está morto!? exclamou a mulher tremendo. Se, ainda hontem, embalei-o nos braços... Se ainda estou com os peitos cheios de leite, manando copiosamente como as ribeiras das collinas.

Ai! de mim... Bem que eu não queria cantar a cantiga tristonha! Foi o canto triste que o fez fugir dos meus braços. Ai de mim!

Adormeci-o para sempre.

E agora? quem terá piedade da minha solidão? Era elle só...

Nasceu em noite de luar, finou-se em manhan de nevoa. E hei-de o deixar na terra justamente agora quando o inverno chega! Ai! de mim... A saudade mudará {61} o leite dos meus peitos em lagrimas para os meus olhos. Pobre de mim! Coitada de mim!

E a moça deixou-se cahir á beira do caminho apertando nos braços o corpo do filho morto.

A pequenita continuava a rebuscar anemonas.

Maria inclinou-se compadecida sobre o cadaver e duas lagrimas da sua piedade rolaram na fronte gelida do defunto.

Logo abriram-se os olhos da criança. Eram azues, côr do ceu; renasceram-lhe as rosas das faces, os bracinhos inertes estenderam-se e, lindo, com o esplendor da vida, o pequeno sorria afogando a cabeça no collo materno.

O espanto emmudecera, immobilisara a moça.

{62}

Subito, ergueu-se com um grito d'alma, {63} poz-se a rasgar a tunica na pressa sofrega de amamentar o filho.

Os peitos saltaram tumidos. O pequeno abocou avidamente e a mãi, sentindo-o sugar, contente e com lagrimas, ajoelhou-se e, d'olhos no ceu, ficou como petrificada.

Maria chorava por vêl-a chorar venturosa e, como as suas lagrimas cahissem na terra, a pequenita não teve mãos para colher as flores que nasciam, brotando como acima d'agua borbulham, ás mil, as bolhas de ar. {64}

{65}


Caminhando

Maria caminhava em silencio, pensando naquella mãi que, repentinamente, passára da maior desventura á maior felicidade pelo prestigio das lagrimas misericordiosas.

—O pequenito dormia e a pobre mãi tinha-o por morto. Foi bastante que eu lhe tocasse para que logo abrisse os olhos.

—É que o despertaste, disse o patriarcha sem alludir ao prodigio que testemunhara. {66}

Elle ia notando, com discreta reserva, todas as maravilhas que se realisavam á passagem da Virgem: ribeiros que sustavam o curso offerecendo o leito enxuto para a travessia; arvores que se cobriam de flores, carregavam-se de frutos vergando generosamente os galhos; vozes que murmuravam; veios limpidos que rebentavam das pedras e, durante os curtos somnos da donzella, não lhe passavam despercebidos anjos que rondavam em torno dos bosques pisando, de leve, os caminhos avelludados.

A mais e mais se lhe firmava nalma a certeza de que as palavras que ouvira em sonho haviam sido pronunciadas por um mensageiro do ceu.

Aquella era, em verdade, a eleita da Divina Graça, a Virgem pura de Judá, da qual devia nascer o Messias das gentes. {67}

Elle acompanhava-a, não como esposo e sim como servo, adorando-a de joelhos quando a via adormecida.

Ella ignorava tudo. Sabia apenas que era mãi porque sentia no seio os movimentos do Sêr Perfeito, no qual concentrava todo o seu amor.

Já lhe crescia o collo, pesando, arredondado e turgido.

O amor preparava o alimento para Aquelle que se nutria de mysterio.

—As mãis soffrem tanto pelos filhos!... O amor das mãis é como a rosa que cresce entre espinhos. Praza aos céus que meu filho não soffra emquanto fôr pequenino.

As crianças não falam, não atinam a indicar onde lhes punge a dôr, de sorte que a gente não sabe como as ha de alliviar quando soffrem.

—As mãis adivinham.

—São tão fracas as criancinhas que {68} tudo é perigo em torno dellas. Tremo quando penso no meu pequenino filho {69} que vai nascer, tão franzino e tão pobre. Onde o agasalharemos nós?

—Entre os nossos braços, como os passaros resguardam o ninho entre os ramos.

—E o frio?

—Temos o nosso calor.

—E a fome?

—Os peitos maternos são dois celleiros sempre cheios.

—Haveis de amal-o, senhor, e ajudar-me emquanto elle carecer de nós?

—Por ti, por Elle, por todos, disse José enlevado.

Chegavam a um bosque de tamareiras, onde havia uma cisterna cercada de musgo.

Um velho cégo repousava á sombra, ouvindo cantar uma criança que brincava sentada nas folhas seccas. {70}

{71}


O cégo

O velho era de Jerichó.

Esperava naquelle retiro a passagem das caravanas que se encaminhavam a Jerusalem e sempre recolhia uma azinhavrada moeda, um punhado de tâmaras ou um esgarçado albornoz em que se enrolava, bemdizendo, com palavras humildes e agradecidas, a generosidade dos homens, recommendando-os ao deus de Abrahão, de Isaac e de Jacob e indicando-lhes os melhores e mais seguros caminhos pelos montes. {72}

José ajuntou as folhas espalhadas e fez uma alfombra onde Maria adormeceu revendo, em sonho, a sua alegre Nazareth, as moças á beira da fonte, os pastores nos cerros, á hora macia da tarde, quando as cotovias baixam e desapparecem nas searas e as aguas das levadas cantam.

Conversaram os dois velhos—José falou da sua viagem, o cégo falou da sua cegueira.

—Estava assim desde moço, um raio cegara-o no campo, sob um sycomoro. Já se habituara á treva como um prisioneiro que se houvesse acostumado ao carcere.

Um magico de Suza offerecera-se para cural-o. Pedira cem drachmas, baixara a cincoenta; faria por vinte se elle lh'as offerecesse.

Tinha ainda a sua cabana e ovelhas, vendendo-as reuniria a somma, mas, {73} pensando, resolvera deixar-se ficar na cegueira. E suspirou:

—Illude-se quem julga que, ao voltar aos antigos lugares, encontrará as coisas como deixou: as proprias pedras modificam-se e não são varias como as almas.

Quando me annunciaram a morte de meu filho, pedi que me puzessem junto do cadaver, apalpei-o, beijei-o; ouvi os passos dos que o levaram a enterrar, mas não vi o enterro.

Ouvi o estrondo da queda do cedro que cobria de sombra a minha eira e, ainda hoje, vou sentar-me no sitio em que elle avultava e sinto-me agasalhado pela ramagem que não existe e ouço a alegre voz dos passarinhos de outr'ora.

As coisas foram desapparecendo uma a uma, eu mesmo envelhecia, mas a cegueira conserva a visão do passado.

O sol parou para mim na mocidade {74} como parou sobre os muros de Jerichó á voz do batalhador.

Vejo dentro de mim tudo quanto deixei: as gentes, os animaes, as arvores, os lugares com as suas cabanas e os seus campos floridos.

Sou como a ave aprisionada, de pequenina, em uma gaiola, que não olha senão a limitada paizagem que fica em torno da sua vivenda triste. Soltai-a, esvoaçará atordoada e, se não regressar á prisão, morrerá de fome perdida nas florestas frondosas, se não cahir nas garras dos abutres.

O homem de Suza queria dar-me a liberdade. Para que? para eu morrer de saudosa tristeza sentindo o deserto em volta de mim? Não!

Vivo no passado, o meu tempo já foi.

Não caminho para a morte, espero-a, sentado no limiar da mocidade, ouvindo {75} o rumor do tempo devastador, sem vêr os desastres, sem vêr as lagrimas, sem vêr os enterros.

Perdi-me dos meus, dei em uma furna e nella vivo. Já agora estou habituado á sombra. Para que hei de sahir se, lá fóra, só me esperam ossadas? Se o proprio Deus me offerecesse a luz eu lhe pediria a morte.

Voltar atraz...! A herva cresce, o vento revolve a areia desmanchando as nossas pegadas.

O campo, que conhecemos florido, mudou-se em carrascal; a gente envelheceu ou morreu. Só ha um meio de não caminhar chorando—é seguir sempre em frente e se eu recobrasse a vista teria de retroceder e cegaria de novo com os olhos afogados em lagrimas. Aonde vos dirigis?

—A Bethleem.

—Casa do pão. É ali que deve nascer {76} o Annunciado. Casa da abundancia, celleiro do Senhor, Bethleem da fertilidade! De lá é que nos ha de vir o Messias. O campo de Booz dará o trigo que ha de fartar as almas.

—É para lá que vamos.

—Que as estrellas vos sejam propicias, como fôram a Ruth, a moça de Moab. {77}


Dentro da noite

Maria abriu os olhos quando as estrellas nasciam.

O cégo já havia partido levado pelo menino. As cigarras cantavam vesperas.

José empunhou o cajado: Maria deixou o leito agreste, e seguiram.

As ultimas chammas do sol apagavam-se no occaso e a nevoa polvilhava os ares como uma cinza.

Monstruosos penhascos, talhados a pique á beira de precipicios, avultavam temerosamente na sombra. {78}

Palmeiras debruçavam-se sobre as rampas. Toda a vegetação contorcida, com as raizes á flor da terra, agarrando-se nervosamente ás arestas dos penhascos, parecia receiar aquelles despenhadeiros de onde subia atroadoramente um escachôo soturno d'aguas constrangidas.

Escurecia. Os montes áridos da Judéa apresentavam-se hostis aos peregrinos.

Os caminhos, aos torcicollos, confundiam-se augustos, escavados em brocas, eriçados d'aspas calcareas, orlados de intonsos espinheiros que, ás vezes, como garras, detinham os viajantes pelas tunicas.

Estryges voavam, pousavam nos ramos, nos penedos com gritos lugubres.

José caminhava a passo cauteloso, sondando o piso com o cajado, detendo {79} Maria, buscando tranquillisal-a com palavras carinhosas.

Mas a treva adensava-se a mais e mais, os roçados confundiam-se com a sombra. Julgando seguir a trilha direita, o patriarcha estendia a mão e sentia a aspereza das penhas.

—É imprudencia insistirmos em proseguir em tal escuridão, disse Maria com medo. É Deus que nos retém.

José deteve-se. Parecera-lhe ter ouvido vozes, rumor de passos, estalos de ramos seccos, como se viessem outros caminheiros. Escutou attentamente.

Era o vento que agitava o folhedo e eram as aguas profundas que referviam nos algares.

Mas um clarão suave accendeu-se no fundo espesso do arvoredo. Quem seria? Encolheram-se os dois, olhos fitos na claridade, que se adiantava como a luz de um facho. {80}

{81}

Uma centelha passou na escuridão, outra gyrou nos ares, as folhas, os ramos das arvores ficaram incrustados de brazas.

Surgiram da terra, saltaram das rochas, subiram dos desfiladeiros, a espessidão estrellou-se e todas as fagulhas, unindo-se, formaram uma rutila umbella pairando sobre Maria e José como a nuvem seguiu Israel guiando-o luminosamente pelo negror das noites no deserto.

Eram pyrilampos que voavam em ordenada phalange alumiando os caminhos obscuros.

E os dois, sob o relume dos insectos, continuaram a viagem dentro dum reverbero que só ao clarear d'alva desappareceu nos ares. {82}

{83}


Presagio

O ceu, d'um azul transparente, ia-se, aos poucos, illuminando.

Os montes, em recortes rigidos, calvos, com a pedra exposta, a reluzir de humidade, ou eriçados de hispidos mattos, resaltavam em aspero, mordente relevo, com os cimos resplandecendo sob uma nevoa de ouro.

Docemente baliam placidos rebanhos.

As casas abriam-se; homens, ainda estremunhados, vinham ás portas, bocejavam {84} lançando por entre as barbas um halito brumoso.

Sentia-se a visinhança de Jerusalem pelo maior numero de casas, pela abundancia de gado nos valles verdes, recortados de veios d'aguas. Burricos trotavam com alcofas e ceirões de frutas.

Risos crystallinos annunciavam crianças; ouvia-se um estrepitante chapinhar e, á volta de um caminho, no claro remanso de uma ribeira, sob a acenosa ramagem do salgueiral, meninos nús saltavam, atiravam-se de mergulho, aos gritos alegres, flagellando a agua com ramos ou pendurando-se, a rir, dos galhos inclinados.

Nos campos, a espaços, alvejavam sepulchros; ovelhas pastavam em torno, pombos cercavam-nos em revoada arrulhante.

Por entre a palha das choças esfiava-se o fumo azul. {85}

Já os moinhos trabalhavam e junto aos immensos lagares, onde se pisava a azeitona, reluziam, em fumeiro, montes de bagaço oleoso.

Maria, que caminhara contente até aquellas paragens, á medida que avançava, sentia apertar-se-lhe o coração em presagio funesto.

Olhava anciosa os longes dos horizontes.

Tudo era calmo. A paizagem estendia-se acceitosa, cortada de muros de hortos, toda verde, bem differente dos desolados ermos que ella deixára.

Todavia a tristeza empannava-lhe os olhos, enchia-lhe o coração e já transbordava em lagrimas.

Vendo-a chorar, José perguntou com meiguice:

—Sentes-te fatigada?

—Não, meu senhor: voltaria a Nazareth sem parar, se pudesse. {86}

—E porque choras?

—Não sei. O coração aperta-se-me, um grande medo invade-me, constrange-me. Tremo e sinto-me gelar. As proprias flores causam-me horror. As anemonas parecem-me chagas que sangram. Tenho medo, um grande medo, como se fosse caminhando para a morte. Que tumulo é aquelle que apparece além, tão alto, tão negro, sob o vôo dos corvos?

José seguiu com o olhar a direcção do gesto de Maria.

—O que vês são as muralhas de Jerusalem, onde chegaremos antes do pôr do sol.

—Além das muralhas, aquelle tumulo negro, tão triste, onde agora o sol brilha.

Uma velha, trazendo um jumento pela arreata, sahiu ao caminho vagarosa. {87}

{88}

José saudou-a, a velha sorriu á Maria abençoando-a e a Virgem, escondendo a tristeza num sorriso, perguntou-lhe:

—Que tumulo é aquelle, além! tão alto, dentro dos muros da cidade? Os corvos rondam-no, deve haver mortos ali.

—É um monte, disse a mulher.

—Um monte! repetiu Maria surprehendida.

—O Golgotha. O outro é o Goreb.

—O Golgotha! suspirou a Virgem e, depois de um silencio dolorido, deixando-se cahir sobre as hervas, desatou a chorar convulsamente. A velha animou-a, teve palavras inuteis de consolo e alento. José assentou-se-lhe ao lado e, tomando-lhe as mãos frias, alisando-lhe os cabellos humidos de orvalho, perguntou-lhe:

—Que tens? Ella não poude responder. {89} Levantou-se e, resignadamente, de olhos baixos, contendo os soluços, poz-se, de novo, a caminho, em direcção á cidade branca e atorreada, ao sol. {90}

{91}


Piedade

Com um rebanho que recolhia levado por um pastor coberto de pelles, as pernas enroladas até os joelhos em vello sórdido, entraram em Jerusalem pela porta do mercado, á hora em que as buzinas romanas troavam nas torres.

José procurava distrahir Maria mostrando-lhe as grandes bellezas, a magnificencia da cidade; nomeava os edificios, alguns longinquos, esfumados nas primeiras sombras da noite.

A Virgem, porém, seguia calada, sem {92} animo de levantar os olhos, o coração cerrado em tristeza invencivel.

Gentes diversas cruzavam-se nas ruas: homens abaçanados do deserto, com o albornoz ao vento, o punho esmaltado das adagas reluzindo á cinta; phenicios cobertos de jóias, com enormes collares de contas de ouro e braceletes de marfim; gregos ágeis passando ligeiros entre a multidão, com a tunica colhida ao braço, as pernas enlaçadas em tiras de couro.

Mulheres mostravam-se ás portas das casas, encostadas languidamente aos umbraes, olhando em extase, com um sorriso nos labios côr de purpura.

A algumas viam-se-lhes os peitos pela abertura das tunicas; outras, reclinadas em leitos marchetados, cerravam mollemente as palpebras gosando o frescor dos flabellos que escravas agitavam. {93}

Errava no ar denso um cheiro forte de aromatas.

Estranhas musicas soavam e, como os albergues estavam cheios, era um babariso alegre sob as frescas latadas, por entre as quaes, em corridinha airosa, moças iam e vinham com amphoras e crateres.

O pastor falara-lhes em uma modesta estalagem em Bezetha, para o lado do forte, onde podiam encontrar agasalho seguro.

A casa era dirigida por um velho de Siloeh e tinha, fama pelo seu anho tenro e pelo seu vinho puro. Lá achariam pousada e, como ficava longe e não recebia mulheres, não seriam incommodados pelos legionarios que, á menor agitação, invadiam as casas brutalmente levando tudo a conto de lança.

Era um rancho pauperrimo, entre sebes de espinhos, onde aboletavam-se {94} mesteiraes e homens dos montes que traziam ao mercado favos de mel, resinas, balsamos e raizes.

O velho acolheu-os de boa sombra, serviu-lhes a refeição na sala lobrega que uma candeia alumiava.

Rusticos bebiam, jogavam e fóra, junto a um monte de pedras, um velho resmungava raspando, com voracidade, o fundo de uma escudella.

Era um leproso nojentamente abostellado de ulceras.

Ás chufas dos homens, que lhe atiravam cascas, bagaços de frutas, respondia aos regougos, bramindo maldições e, como prorompesse aos berros, apanhando pedras para defender-se, os homens revoltaram-se.

O hospede tranquillisou-os e, sahindo ao terreiro, poz-se a assobiar.

Enorme cão saltou da sombra rosnando, o taverneiro açulou-o contra {95} o leproso que se encolhera estarrecido.

{96}

Vendo o cão investir, Maria cahiu de joelhos, juntou as mãos frias e, tremula, d'olhos no ceu, implorou pelo infeliz.

O animal raivava, aos saltos; os homens vociferavam incitando-o. Alguns riam no ante-gosto da scena cruel, mas como o leproso, tentando correr, tropeçasse rolando na terra e ferindo o rosto no pedregulho, o cão, que o alcançara, poz-se a ganir e, sacudindo a cauda, ficou de rastos, lambendo mansamente o sangue que escorria da cicatriz do mendigo.

E Maria, extactica, não via a doce misericordia que immobilisara em espanto os hospedes do albergue. {97}


Cantico messianico

Ao romper d'alva quando, do lado do templo, as cegonhas partiam em direcção ao deserto e as pombas baixavam em nuvens sobre o mercado catando o grão que transbordava das ceiras, o patriarcha despertou Maria e, ligeiros como foragidos, deixaram a estalagem com os votos de boa jornada do hospedeiro. As buzinas romanas resoavam na serenidade.

Legionarios recolhiam cançadamente a Makéros. {98}

Pobres, que haviam pernoitado ao relento, estremunhavam sobre farrapos. {99}

Num pateo, entre muros de maceria, espontado de hervas sylvestres, mugiam bois e homens bradavam.

Corvos rondavam os ares attrahidos pelo cheiro do sangue.

Quando passaram as muralhas, sahindo no campo do oleiro, o sol brilhava nas pastagens humidas e passarinhos cruzavam o vôo cantando na alegria do sol.

Maria caminhava d'olhos altos, como enlevada. Ineffavel sorriso illuminava-lhe o rosto lindo, arrepios nervosos sacudiam-na de instante a instante.

—Lá está Bethleem! disse José estendendo o cajado na direcção dos montes ainda enfaixados em nevoa.

Maria empallideceu e, d'olhos fitos nos outeiros graciosos da terra de David, rompeu, de repente, a cantar, sobre uma antiga melodia hebraica, repetindo {100} inspiradamente as palavras que lhe sahiam d'alma:

 

«Espirito Perfeito, ancia das almas miseras, se és Tu que em mim assistes, bemdita seja a carne fragil em que te encerraste e de onde deves romper, germen da Redempção, em Flor de Misericordia.

 

Espirito Perfeito, lume que de mim fizeste a Tua lampada, que o Teu clarão espalhe-se pela terra fazendo brotar a sementeira nos campos e o Amor no coração dos homens.

 

Espirito Perfeito, fonte de copiosas aguas bemfazejas, se é do meu seio que vais jorrar, bemdita seja a Dôr que me lançou na vida, bemditas sejam as lagrimas que já por Ti hei vertido. {101}

 

Espirito Perfeito, esperança dos desanimados, se eu sou o ramo verde que Te hei de dar, bemdita seja a afflicção de minh'alma na hora atormentada em que, innocente, me julguei culpada e, pura, vi a suspeita manchar a minha virgindade.

 

Espirito Perfeito, se És a Redempção annunciada, bemdigo a Tua vinda, sem orgulho, por me haveres tomado por Teu trámite e prostro-me ante a Tua Graça e exalto a Tua Beneficencia.

 

Espirito Perfeito, Sêr dos sêres, não nado ainda, gloria a Ti e á Tua origem celestial. Virgem, dar-te-ei ao mundo. Eu sou como o olhar que se não macula por transmittir ao corpo a visão.

Por mim entras no mundo como o sol, e tudo que elle alumia, entra, pelo olhar, no cerebro. {102}

Eu sou a pupilla que communica ao Universo a Claridade Magnifica.

 

Espirito Perfeito, louvado sejas sempre pela Tua Virtude e pela Tua Excellencia. Sahes da carne mortal sem trazeres peccados: passas por ella como uma imagem que se reflecte nagua.

 

Espirito Perfeito, Graça de Israel, Esperança das Gentes, Messias... Meu coração alegra-se sentindo-Te e o meu coração é o captivo que almeja a liberdade.

Eu sou a Fraqueza humilde chamada Mulher. Sou a escrava que gera o seu Libertador, a Sombra de onde sahe a Luz, o Peccado que floresce em Perdão...»

 

José ouvia-a com os olhos rasos d'agua. {103}

As cotovias cantavam na altura luminosa.

Longe, sob a fulguração do sol, resplandeciam os muros de Bethleem, entre outeiros. {104}

{105}


O campo de Booz

Á hora cálida, abafada em que as folhas dormem e as ribeiras murmuram de leve, vagarosas, remansando-se sob as quietas sombras, e toda aza encolhe-se entre os ramos mais densos, e todo reptil encova-se na terra mais humida, deram os dois num campo de farta seara onde alumiavam foices e moças juntavam gavellas, cantando, emquanto os homens ceifavam assustando as cotovias que tinham os seus ninhos rentes do chão, na raiz do trigal. {106}

Maria, com o manto sobre a cabeça, enlevada naquella messe de ouro e na alegria ruidosa do trabalho, ouvia as vozes que se cruzavam subindo dos trigos altos, onde os seareiros desappareciam, como se fôsse o proprio campo que cantasse o louvor do sol.

Ia tão entretida que não viu José adiantar-se, direito a uma palhoça onde um velho jazia, sentado ante um monte de vergas, tecendo um alcofe e cantando.

Aligeirou os passos e alcançou o esposo justamente quando elle saudava o ancião.

—Dizei-me a quem pertence este campo tão rico e cheio de tanta alegria?

—A Obed, segundo deste nome, descendente de Booz, o semeador.

—Foi, então, nesta terra que a moabita achou agasalho junto do homem bom, que a amou?

—Sim, foi aqui. Esta é a leira de {107} Ephracta, a mais fertil entre as mais abundantes e generosas. Este campo foi o leito nupcial onde se gerou a raça robusta dos reis de Israel.

Aqui nasceu David, tronco forte, estirpe augusta de que ha de sahir a Immarcessivel Flor annunciada, cujo perfume encherá as almas de ineffavel ventura. Este é o celleiro de Iaveh. E vós, vindes de longe?

—De Nazareth, na Galiléa.

—E ides?

—A Bethleem. Urge que lá cheguemos antes do pôr do sol.

—Tendes tempo. Sentai-vos um momento, é a hora da refeição. O que tenho dá para repartir comvosco. A vossa companheira, esposa ou filha, vem fatigada; que descance um instante á sombra, gosando a sesta. Entrareis na cidade com a fresca da tarde.

Aceitaram os peregrinos o convite {108} hospitaleiro: sentaram-se e comeram do pão molhado em mel e beberam pelo mesmo tarro o leite cheiroso.

Ficaram os dois velhos conversando e Maria, encostando-se aos feixes de trigo, cobriu o rosto com o manto e adormeceu.

As moças cantavam na eira levantando medas de ouro e, sob o sol escaldante, no alto ceu azul, as cotovias voavam e os seus gritos abrandavam-se na distancia, esmoreciam perdidamente. {109}


Na estrada de Bethleem

Frio e pallido, esfumado em brumas, o crepusculo baixava na tristeza da tarde silenciosa.

No remonte dos cerros pedregosos, hirtas palmeiras immoveis pareciam gravadas, em negro, no fundo dourado do occaso. Aves esvoaçavam caladas.

Docemente, com um tremulo murmurio, fluiam pelos canaes de rega as aguas levadias, e as vozes soturnas dos bois soltos, errando, de vagar, no campo restolhado, soavam como gemidos. {110}

Os peregrinos seguiam uma vereda suave, entre debruns de anemonas.

Maria parava de instante a instante, arfando.

Amollecida, alquebrada, olhava com desanimo os outeiros ainda longinquos e suspirava, sem atrever-se a dizer ao esposo o seu cançaço.

José, porém, notou-lhe a lentidão dos passos e, amparando-a, animou-a carinhoso:

—Estamos a chegar. Lá apparecem as casas de Bethleem; as luzes brilham por entre as arvores. Mais um momento e teremos repouso em alguma estalagem.

Ella parou, ficou a olhar o ceu nublado como a implorar alento para chegar ao termo da viagem.

—É um peso que me curva, murmurou em voz sumida. Sinto-me tão fraca que não sei se poderei acompanhar-vos até as collinas de além. Toda {111} eu esmoreço. O meu desejo é deixar-me ficar no caminho, deitada nas hervas, e dormir um somno grande.

Nunca me pesou tanto o corpo, o proprio espirito pesa-me, tão carregado está de medo e de cuidados sombrios.

Que será de mim e d'Elle ao nascer em tão desabrigados lugares, longe de tudo, á friagem da noite, com este vento que retalha as carnes como um ferro mortal?

O chiar de um carro levou-lhes a attenção para o caminho deserto. Uma voz cantava na tristeza da tarde moribunda:

Hervas do campo florido,
Que aroma! Que trescalar!
Bem se vê que o seu vestido
Andou por vós a roçar.

Outeiro em flor, o teu vello,
Verde e fino, ao meu ciume
Confessa que o seu cabello
Deixou nelle o seu perfume. {112}

O carro appareceu acogulado de trigo, rinchando, ao passo moroso dos bois que traziam os cornos floridos de acacias.

José dirigiu-se ao carreiro, robusto moço, e pediu-lhe passagem para Maria, mostrando-a, prostrada e languida, entre o rosmaninho cheiroso.

O moço accedeu e os dois ajudaram a Virgem a subir, fizeram-lhe lugar macio sobre as paveias louras e os bois arrancaram.

E caminhando, José ia enlevado na esposa e o carreiro, d'aguilhada ao hombro, olhos fitos no ceu, insistia na egloga:

Hervas do campo florido,
Que aroma! Que trescalar
Bem se vê que o seu vestido
Andou por vós a roçar. {113}


Na caverna

Diante de uma trilha que se perdia no arvoredo deteve-se o carreiro e disse:

—Aqui me despeço, este é o meu rumo. A estrada em que estais, direita e facil, guia-vos a Bethleem. Seja o Senhor comvosco.

Sem esforço José tomou a Virgem nos braços, pousou-a na terra, agradecendo ao moço a gentileza de a haver recebido no seu carro. E elle, galantemente, respondeu:

—Trouxe a flor viva no trigal ceifado, {114} e, com tão geitosa resposta, despediu-se e foi-se, aguilhada ao hombro, de vagar, á frente dos bois, cantando, em voz apaixonada, os louvores do seu amor mimoso.

Os dois caminharam alguns passos, Maria amparada ao esposo, lenta, tolhida de soffrimento; mas não poude ir além da caverna e deteve-se.

O aspero interior do antro tingia-se de laivos rubros, ao tremulo flammejar d'uma fogueira junto á qual um velho pastor, as mãos estendidas ao lume, cantarolava baixinho.

Ovelhas ondulavam na sombra.

Logo á entrada, na anfractuosidade da rocha, havia uma mangedoura. Um jumento dormitava e, junto delle, ruminando, jazia deitada uma vacca com o seu novilho.

Disse José a Maria: {115}

{116}

—Firma-te a mim e vamos devagarinho. Havemos de achar aposento em alguma estalagem. Ella sorriu docemente, resignada, mas os seus olhos meigos foram para a caverna.

O patriarcha, apiedado, adiantou-se e falou ao pastor.

—Seja o Senhor comvosco!

—Seja bemvindo quem chega e assim annuncia-se ao humilde.

—Hospede na terra venho de longe e commigo, em estado que não consente esforço, trago a minha esposa, que aqui vedes. Se permittirdes que ella fique um momento comvosco emquanto procuro hospedagem, sempre o meu coração vos ha de louvar.

O velho pastor, idoso, de fartas barbas amarellecidas, longos cabellos espalhados pelos hombros, que um melóte cobria, soergueu-se e falou:

—A caverna não tem porta, ainda é mais franca que os templos. Entrai e {117} abeirai-vos do lume, que a noite começa a esfriar.

—Ella fica, eu sigo pela pousada. Maria, timida, entrou. Logo o pastor acamou as palhas, alargando um leito fofo e, vendo-a recostar-se, voltou ao seu lume e ao canto com que se entretinha.

E o patriarcha partiu.

Ainda que não conhecesse a cidade, tanta era a gente que se movia nas ruas, que não lhe foi difficil, perguntando, encaminhar-se a uma estalagem.

Logo á entrada, sob o vasto alpendre, viu altas pilhas de fardos e, em torno, estendidos em pelles, mercadores e recoveiros.

O hospede, mostrando-lhe o transbordo da casa, disse:

—São homens que se aboletam ao relento, por falta de commodos. Difficilmente encontrareis quem vos receba, porque as festas attrahiram grande mó {118} de estrangeiros e as feiras trazem das cercanias todos os lavradores. Guie-vos o Senhor. E José proseguiu.

Nas viellas e alfurjas havia turbas cantando e bailando em volta de fogueiras.

Debalde o ancião entrava nas estalagens; as proprias choupanas recebiam hospedes e, pelas collinas, entre fogos, clareavam tendas. Errou até tarde sem exito.

Já o silencio annunciava hora alta quando, quebrado de fadiga, retrocedeu pelas betesgas desertas, ao latido dos cães errantes, em rumo á caverna.

Avistou-a de longe, alumiada por um clarão de luar, e, como levantasse os olhos demandando o astro, deu com um anjo deslumbrante que, abrindo azas largas, diaphanas, feitas como de nevoa e luz, ia e vinha no espaço, rondando a noite. {119}

Entrou. O velho pastor velava diante das brazas vividas e, entre ovelhas, sobre a palha loura, a Virgem dormia serena. {120}

{121}


Natal

O esplendor é mais impenetravel que a treva e foi uma muralha fulgurante que encobriu Maria quando se realisou a prophecia do Bem.

Na hora em que os gallos cantaram a primeira vez subito clarão resplandeceu no fundo da caverna. A luz foi tanta, tão intensa que atravessou o somno em que jaziam o patriarcha e o pastor.

José soergueu-se d'impeto, firmando-se nas mãos, offuscado pela claridade vivida que irradiava em stalactites de {122} um brilho augusto, mudando em rutilos diamantes todas as pedras brutas e fazendo do aspero sólo, eriçado em pedrouços, uma área esplendida como se fosse embutida de gemmas lapidadas.

O pastor, attonito, deslumbrado, arrastava-se tacteando e a caverna, a mais e mais aclarada, parecia toda uma chamma alva como se um luar maravilhoso a enchesse magnificamente.

Os dois homens, atordoados, não falavam—estendiam as mãos e os seus dedos chammejavam como raios d'astros e da luminosidade desprendia-se um perfume, novo na terra, aroma celestial que enlevava como um encantamento.

Além da caverna a noite negrejava calada e erma de estrellas. Poude o pastor arrastar-se até o limiar e o seu corpo, esgueirando-se, refulgia como o de uma salamandra. {123}

Tremulo, chegou á entrada, respirando, a largos sorvos, o ar frio que vinha dos outeiros. Levantou o olhar e recuou espavorido.

Escada altissima, de scintillantes degraus, ligava o cimo do outeiro ao ceu aberto em radiante pórtico e anjos desciam, tantos que pareciam uma catadupa que se despenhava espumejando iriada de sol, com scintillações de pedrarias.

Não poude olhar e, rojando-se, com a face na terra, ouvia o murmurio das azas.

Não disse palavra, immovel, tolhido de assombro, sentindo a transfiguração da noite.

José conseguiu levantar-se e caminhou lentamente atravez do esplendor.

Maria appareceu-lhe entre as mansas ovelhas que, reunidas, bafejavam as palhas onde um pequenino infante, as mãosinhas na boca, os olhos {124} candidos abertos, parecia contemplar a Virgem que sobre Elle inclinava-se.

{125}

Olhou-a, fitou no tenro corpo os olhos e viu que o cercavam tres figuras de incomparavel belleza.

Uma, as mãos diaphanas cruzadas sobre o peito, os olhos baixos, concentrada, rezava. Outra, d'olhos enlevados, com uma palma verde na mão debil, sorria. A terceira, de joelhos, aquecia com o halito, envolvendo-o nos seus longos cabellos louros, o corpo recem-nado.

Por onde teriam entrado os tres seres? Que anjos seriam? Não os poude reconhecer o patriarcha, mas chegando-se á Virgem tomou-lhe a mão e beijou-a.

Ella mostrou-lhe o Filho com uma ternura tão meiga que o sorriso não poude por si só exprimil-a e lagrimas correram.

Assim deram os olhos, d'uma só vez, todos os seus thesouros: o brilho do olhar e os diamantes da meiguice, essa humildade do amor. {126}

Pouco a pouco foi-se a luz extinguindo, a sombra retomou a caverna.

As Virgens desappareceram e Maria, acolhendo o pequenino nos braços, chegou-o ao collo, aqueceu-o, afagou-o.

Foi mãi antes de ser serva. Só depois de o beijar estremecidamente ouviu as vozes que atroavam a noite:

«Gloria a Deus nas Alturas, Paz aos homens na terra de bôa vontade.»

Occorreram-lhe as palavras do anjo. Lembrou-se, então, que o Sêr nascido do seu seio era o Deus da Promessa.

Deitou-o delicadamente nas palhas e ajoelhou-se adorando-o.

José, afastado do grupo, prestava culto á Virgem e ao Infante e o ceu, pela voz dos Espiritos eleitos, saudava o Natal messianico, apregoando a vinda do Filho do Homem, portador da Piedade.

Ergueu-se o pastor, olhou o ceu e, {127} ouvindo os anjos, sahiu a correr bradando inspiradamente a Bôa Nova.

E os gallos puzeram-se a cantar annunciando a maior e a mais bella madrugada do mundo. {128}

{129}


As tres virgens

Quando o Menino adormeceu José, aproximando-se de Maria, perguntou-lhe baixinho: «Se vira as tres virgens que cercavam o Infante ungindo-o de luz?» A Immaculada respondeu no mesmo tom discreto:

—Logo que sahiu do somno, ainda antes de vêr meu filho, dei com ellas, immoveis, aclarando toda a caverna, de joelhos em torno do Recem-nascido.

Não falavam. Não sei quem são. {130}

Desappareceram de repente como as estrellas desapparecem.

—Seriam anjos? Uma serena voz, sahindo das pedras, falou no silencio:

—A primeira é toda a Crença do Homem: é a Virtude que leva a Alma á presença do Altissimo.

Antes da vinda do Messias era a nevoa indecisa que resplandecia e obumbrava-se; agora é a Luz pura e perenne, a luz viva que guia ao Paraiso atravez de todos os abrolhos, por meio dos mais árduos soffrimentos, vencendo as mais perversas tentações, sempre direita, inflexivel e segura. É a Fé.

O seu olhar não se desvia, a sua linguagem é a prece, a sua confiança é Deus. É a mais forte das tres. A segunda é uma consoladora. Parece um reflexo da primeira: É a Esperança.

Veste-se de illusões, recama-se de sonhos para distrahir a Alma, livrando-a {131} do desespero. É como o ramo verde que se inclina á borda dos abysmos. É a divina miragem que, atravez das agruras da vida, reanima o coração combalido, creando perspectivas venturosas.

Só, é uma encantadora que vive a inventar maravilhas, ligada á Fé é a precursora que desbrava o caminho para a travessia da alma.

Sem ella a miseria seria um flagello, a dôr seria intoleravel. É uma força feita de sonho. Isolada é a fantasia.

A terceira é o Amor, é a lagrima que se converte em misericordia, é a bondade omnipotente, a meiguice que salva, a resignação que remitte, a paciencia que conforta, a lan que agasalha, o linho que estanca o sangue, o lume que aquece.

É o conjuncto amoroso de todas as beneficencias—a Caridade.

São as tres irmans que acompanham o Messias. {132}

Elle tomou-as ao paganismo e converteu-as transmittindo-lhes a sua essencia.

Eram as Karites, são as Virtudes. Fôram as Graças, são as beneficiadoras.

Com ellas Jesus fará a redempção do Homem.

Para combater o mal, podendo trazer as legiões adamantinas, trouxe as humildades.

Calou-se a voz e os dois olharam-se maravilhados.

—Não ouviste falar?

—Sim, meu senhor, falaram. As ovelhas estavam de pé e olhavam, como se tambem procurassem o mysterioso, interlocutor.

Mas o Menino agitou-se no leito palhiço, estendeu os bracinhos e chorou.

Presto, Maria tomou-o ao collo, aconchegou-o cobrindo-o com o manto. {133}

—Deve ser frio, disse José.

—Fome, talvez, disse Maria, anciosa por dar o peito farto ao pequenino Filho. {134}

{135}


O primeiro leite

Á primeira sucção da boca da criança Maria estremeceu, sentindo uma dôr aguda, como se um punhal lhe houvesse atravessado o seio. Longe, porém, de fugir com o peito dolorido, inclinou o busto, dando-se toda ao sublime martyrio, com a alma a brilhar nos olhos que a dôr orvalhara de lagrimas.

Ávido, o infante sugava, cavando as bochechas e o leite, afluindo, rasgava passagens como a torrente que se despenha {136} da altura vincando a terra e arrastando o que se lhe antolha á levada.

O Divino alimentava-se do soffrimento humano e naquellas opalinas gottas de leite—sangue e agua fundidos {137} em candura—o ceu commungava na terra.

A Carne mortal nutria o Espirito Perenne, o ephemero transfundia-se no Eterno: as duas collinas alvas tocavam o Infinito, que era a boca de Jesus, de onde deviam jorrar, em caudaes, as leis santas, os sabios julgamentos, a benção e o perdão.

A Virgem sorria e o seu collo turgido ondulava de ventura, em quanto o patriarcha, ajoelhado, contemplava o grupo, aureolado pelo clarão da fogueira, cuja chamma resurgira ao sopro da brisa nocturna.

Fóra resoavam canticos; vozes, sons de harpas enchiam o espaço.

Por vezes um clarão relampejava diante da gruta á esplendida passagem rapida de um anjo.

Maria, inclinada sobre o Filho, só a elle sentia, ouvindo apenas o lento gorgulhar {138} do leite que elle sugava soffrego.

Todo o mundo ali estava nos seus braços: a terra com os seus vergeis floridos, o ceu com as suas estrellas fulgidas.

Que lhe importava a aurora se na pennugem loura que seus dedos afagavam na cabecinha do filho, ella via o esplendor maior que podem contemplar olhos de mãi!

Que lhe importavam os anjos se, no fundo luminoso das pupillas da criança, via dois pequeninos seraphins alegres?

Que lhe importava a immensa alegria universal, se o seu coração transbordava de felicidade com aquelle amor!

Levantou-se um alarido fóra, na estrada obscura. José sahiu ao limiar.

Um bando de homens corria em tropel em direcção ao abrigo agreste. Á frente delles, voando e alumiando-lhes {139} o caminho com o esplendor das azas, um anjo estendia o braço mostrando a caverna. Outros cruzavam longe, em enxames claros.

No cimo dos cerros grupos resplandeciam.

Subito uma grita atroou o silencio:

«Hosannah! Hosannah!»

O pequeno adormeceu docemente com a boca collada ao peito materno. Maria beijou-o e, inclinada, quedou em enlevo.

«Hosannah! Hosannah!»

bradavam fora. Ella sobresaltou-se e, chamando o esposo, perguntou:

—Quem clama assim, meu senhor?

—Pastores. Guia-os um anjo. Vêm adorar o Infante. E ella, cuidadosa:

—Comtanto que o não despertem... E aconchegou-o ao collo agasalhando-o junto do coração. {140}

{141}


Adoração dos pastores

Tumultuosamente os pastores chegaram á caverna e o velho, dono do rebanho, que acolhera o casal no seu tugurio, adiantou-se ao grupo e falou ao patriarcha:

—Deixai-nos vêr e adorar o Deus vivo. Já o tinha por tal e quando sahi para a noite, com os olhos offuscados, fui bradando no silencio a Bôa Nova.

Os homens que dormiam nas choças, as ovelhas que se apertavam nos apriscos, as mesmas arvores sem folhas, as {142} mesmas pedras sem vida estremeceram á minha voz pregoeira.

Eu levava na boca uma palavra que estrondava. O que eu dizia aos que me ficavam perto retumbava como o som da buzina que vai de quebrada em quebrada ou como o trovão tempestuoso que se ouve em todos os pontos: na planicie e no valle, na montanha e na furna.

De mim sahia a annunciação e, certo, a minha palavra ainda vai pelos ares viva, levando ás póvoas mais remotas a venturosa noticia.

O que eu dizia na terra anjos repetiam nos ares. Os espiritos celestiaes fizeram-se meus echos e ainda clamam batendo as azas, tangendo lyras que sôam docemente.

Não havia uma estrella e todas agora reluzem; astros nunca vistos brilham no fundo ceu.

Não havia folha em ramo e as arvores {143} estão todas cobertas e cantam festivamente passarinhos nas montas.

O outono vestiu-se com as galas da Primavera.

Só um Deus faria prodigios taes.

Deixai-nos vêr e adorar o Deus vivo.

Os pastores brandiram os cajados bradando, de novo:

«Hosannah! Hosannah!»

E, como José se afastasse dando-lhes passagem, precipitaram-se tumultuosamente e, ajoelhando-se, adoraram o Divino Infante.

Todos levavam dádivas campestres: este um anho, de vello fino, a boca rescendendo a leite; outro um casal de rolas; esse, um favo de mel, aquelle uma lan sedosa e, cada qual, offertando o seu presente, pedia, em oração intima, a graça do Menino Deus. {144}

Maria olhava receiosa aquelles homens rudes que cercavam seu Filho. Como eram muitos os mais velhos levantavam nos braços os pequenos para que vissem o Recem-nado e diziam-lhes: «Pede!»

As crianças, sorrindo, pediam pelo gado e pelas fontes: que ovelha alguma morresse, que nunca as aguas seccassem.

Um pequenito, sentado no hombro de um agigantado pegureiro, olhava pensativo e calado.

«Pede!» disse-lhe o homem.

—Se Elle fosse Deus... murmurou a criança, e uma lagrima rolou dos lindos olhos infantis. Os outros adoravam e, no silencio, ouvia-se apenas, de quando em quando, um timido balido.

Repentina, triumphante, uma voz bradou á entrada da caverna:

—Gloria a Deus Salvador! O pastorinho estremeceu no hombro do pegureiro, {145} voltou a cabeça e viu uma andrajosa mulher livida, macilenta, que estendia os braços magros procurando abrir passagem na multidão reverente.

Reconheceu-a e, desprendendo-se dos braços que o mantinham, correu ao seu encontro e, lançando-lhe os braços á cinta, disse commovido:

—Fui eu, mãi, que Lhe pedi. É Deus! Entra e adora-o. Dorme nas palhas.

Os pastores, reconhecendo a entrevada que vivia a gemer, encolhida num estrame, recuaram pasmados e ella, tremendo como se estivesse de pé sobre uma lapide de neve, perguntou ao filho que a contemplava:

—E tu, tão pobresinho! que lhe deste, meu filho?

—Uma lagrima, minha mãi... e foi tudo que lhe pude dar. {146}

{147}


Dôr

Tomando a urna, ao clarear d'alva, quando o velho pastor sahia com o rebanho, José acompanhou-o para que elle o guiasse á fonte.

Logo que os dois homens desappareceram as hervas que ourelavam a caverna cresceram prodigiosamente, emmaranhando-se em tapigo que encobriu a entrada.

A Virgem, de instante a instante, abria os olhos e, soerguendo-se, ficava em extase contemplando o Filho, {148} cujo halito débil cheirava docemente a leite.

Posto que apenas tivesse horas já ella lhe havia descoberto todos os encantos e se lh'o arrebatassem dos braços, confundindo-o com mil crianças, reconhecel-o-ia sem trabalho, tanto o tinha nos olhos e no coração gravado.

Olhava-o quando o sentiu mover-se, contorcendo-se. Num tremor de sobresalto enrijou os bracinhos, bateu as palhas com os pés rosados e rompeu num choro forte que repercutia no interior como se as pedras chorassem com elle, commovidas.

Tomou-o Maria ao collo, acalentando-o ao calor do seio. Falava-lhe com ternura, interrogava-o, chamava-o e, sem poder allivial-o, poz-se a chorar afflicta e, sobre a divina face as suas lagrimas cahiam gotta a gotta como o orvalho cahe das folhas sacudidas pelo vento. {149}

Ai! d'ella, como se julgava culpada e infeliz vendo soffrer o pequenino amor, tão novo, tão innocente, tão sem culpa e já supportando as torturas herdadas da carne.

Começava a Divindade a visitar o soffrimento: a peregrinação de Deus atravez da Agonia annunciava-se pelo primeiro choro.

Elle havia de conhecer todas as Dôres, todas as Angustias para poder julgal-as alliviando o Homem, cuja redempção trazia.

Tenro, mal pousado na vida, já estrebuchava doridamente. E começava apenas—era a iniciação.

Outros maiores tormentos formavam a phalange suppliciante, a alameda tragica da existencia, onde a alegria é como o nimbo solar que passa difficilmente por entre as frondes compactas.

Que fazer? Deu-lhe o peito. Poz-se {150} o Infante a mamar vagindo, estremecendo e ella, relanceando em torno os olhos humidos e afflictos, implorava o mysterio.

Tudo era silencio em volta, ninguem que a soccorresse. E os anjos? Já haviam regressado ao ceu.

O Infante ficara entregue ao seu piedoso voto. Deus entrava desacompanhado no mundo, ser como os demais seres, homem como os outros homens, integrando-se na Humanidade.

Só lhe valeram os carinhos de Maria: o calor do collo, o enlace amoroso dos braços, os beijos repetidos foram, pouco a pouco, alliviando-o e, de novo, adormeceu tranquillo, não mais sobre a palha loura, mas aconchegado ao seio, ninado pelas palpitações do coração materno. {151}


Receio

Fino raio de sol insinuando-se na caverna pousou na palha abrindo um aro de ouro em torno da cabeça do Infante adormecido.

Todas as aves chilreavam, garrulas moças passavam na estrada; ás vezes eram récuas de dromedarios desfilando em ruidoso atropello.

Maria prestava attenção ao rumor, receiando pelo Filho. Tomou-o muito ao seio e, quasi de rastos, aprofundou-se na sombra escondendo o seu thesouro com amorosa avareza. {152}

Tão lindo! quem o não desejaria! E se um d'aquelles homens, descobrindo-o, investisse para arrebatal-o, quem o defenderia?

Na treva ficava a coberto de todos os olhares.

No fundo da caverna lentejava tristemente uma mina e a cada gotta do estellicidio respondia um som lacrimoso.

O ar era frio e humido, as paredes luziam lutulentas e, fóra, o sol brilhava, alegre e tepido, em fitas, em nimbos de ouro, lampejando nas arestas agudas da abobada escabrosa.

Quando José reappareceu—a herva da entrada subitamente esmarriu—vendo deserta a palha, estacou, olhando espantado, com apprehensões de desgraça.

Que seria feito delles? Caminhou alguns passos. O coração batia-lhe, tremia-lhe a urna ao hombro. Maria, reconhecendo-o, falou do seu esconderijo: {153}

—Aqui, meu senhor. O patriarcha adiantou-se e, sentindo a friagem do sitio, ouvindo o triste gottejar na lage, perguntou:

—Porque buscaste tão obscura jazida onde o ar regela e a luz não chega? Lá fóra ha um calor macio e sente-se o aroma das hervas vivas, ouvem-se as vozes alegres. Aqui ha o silencio e a melancolica espessidão dos tumulos.

—Eu estava só, meu senhor e o coração, {154} dantes tão animoso, é agora tão timido que eu viveria, de boa mente, num subterraneo só para que olhos maus não fitassem meu filho nem o invejassem adoentando-o.

Não sei que voz me fala dentro do coração pedindo-me que o defenda. Ouço-a a todo instante.

Dizem-me os anjos que Elle é Deus... Não me passaram despercebidos os prodigios da noite: tudo vi, tudo ouvi, mas minh'alma ordena-me que o resguarde, que o não perca de vista, que sempre o traga acautelado, talvez porque é pequenino e fraco.

Não sei se pecco com a presumpção de defender quem é omnipotente, mas como hei de lutar contra mim?

—Mas se o ceu nos diz e prova que Elle é o Filho de Deus porque has de receiar os homens?

—É o coração que receia. {155}

—E entre o que diz o coração e o que affirmam os anjos hesitas, Maria?

—Senhor, os anjos falam pelo Ceu, o coração fala pelo meu amor. Se Deus acha-me rebelde, curvo-me ao seu castigo.

E, humildemente, ajoelhou-se ante o berço.

Jesus, abrindo os olhos claros, profundos, fitou-os nella e, como se lhe quizesse responder, sorriu. {156}

{157}


O somno

Maria mal humedeceu os labios á borda do tarro de leite de ovelha que o pastor ordenhara antes de partir. Cuidados traziam-na apprehensiva. Se o filho estremecia sobresaltava-se-lhe o coração, se o via immovel, dormindo, temia que houvesse morrido e logo, anciosamente, afagando-o, chamando-o, despertava-o.

—Deixa-o dormir, disse-lhe o patriarcha, o somno é necessario á vida, é a sombra em que a alma repousa. {158}

O espirito das crianças refugia-se no somno como o dos velhinhos—o primeiro porque d'elle sahiu e ainda o tem por ninho; o segundo porque o procura como abrigo. Não o despertes, deixa-o dormir.

—É que me parece estar morto. Não faz o mais leve movimento e, quando elle assim fica, meu coração pára retransido.

—É a serenidade. Só o somno dos maus transmitte ao corpo a convulsão do pesadello.

O somno é uma visita á morte: os innocentes fazem-na sorrindo, os peccadores fazem-na espavoridos.

Não receies que Elle passe tão cedo á Eternidade de onde veiu. Ainda que não trouxesse a missão que o fez baixar ao mundo, fosse Elle tão da terra como o filho da zagala dos montes, não o deverias tirar do repouso.

Não desenterras a semente por não {159} a veres á flor do solo, deixas que ella venha a flux e rebente, abra o renovo e cresça.

O somno é uma incubação. Porque não sonha? porque não tem impressões. O sonho é como um reflexo em que ha echo, é a reproducção confusa da vida com a repercução indistincta das vozes e dos ruidos.

Ha quem veja presagios no sonho como o nómade vê realidades na miragem.

Com que ha de sonhar quem não tem consciencia da vida? Deixa-o dormir.

É á noite que a floresta cresce e a criança é como a arvore.

O luar é manso, é uma luz silenciosa de vigilia, uma tunica diaphana sobre a treva—não desperta. As estrellas são meigas porque a noite deve ser tranquilla para que a Natureza descance. Peixa-o dormir. {160}

Conserva-te immovel e calada, não perturbes a vida mysteriosa. Demais, Elle é o Eterno. A Morte passa por Elle como a lamina de uma espada por um raio de sol. Deixa-o dormir.

Bem sei que o egoismo das mãis chega a insurgir-se contra as leis de Deus; não te insurjas tu, que O geraste. Elle precisa rever a Humanidade entrando na Vida e gozando, sahindo, talvez, pela Morte com soffrimento.

—Meu senhor! exclamou a Virgem estendendo as mãos, commovida.

—São palavras, Maria. Ai! de mim, quem sou eu para pronunciar oraculos sobre Aquelle que tem o destino da Vida na sua mão direita!

São palavras que digo. Deixa-o dormir. {161}


Palavras de Maria

Como eu agora comprehendo que se viva escravisada a um sorriso!

Quando tenho meu filho ao collo, nutrindo-se do meu sangue, que deixa a côr da purpura e veste-se de branco para não macular os labios innocentes, toda a minha vida nelle se concentra.

A Felicidade e a Desgraça sentam-se junto de mim, sinto-as no contentamento que me alvoroça e nos presagios estranhos que me occorrem. {162}

É preciso ser mãi, ter gerado para conhecer o verdadeiro amor.

A alma sahe-me do corpo e fica junto do Infante. Se me arredo um momento sinto-me logo attrahida como por uma pesada corrente que se me prende ao coração. E tanto o contemplo, tanto! que fico com elle dentro dos olhos como quem fita um objecto ao sol e depois o vê em toda parte, ainda na treva mais densa.

Dantes, quando as mãis falavam-me de seus filhos, sempre eu as achava exaggeradas nos louvores. Que diriam de mim as que agora me ouvissem!

O meu desejo era não ter na boca outras palavras senão estas: «Meu filho!» São as que o coração inspira-me, são as que me agradam ouvir.

Ellas fazem um gyro alegre como um casal de passarinhos brincando. Sahem-me dos labios, entram-me pelos ouvidos {163} cantando, circulam o meu coração e tornam á boca.

Meu filho! E não ha todo um mundo de amor dentro d'ellas? Que mais é preciso para a ventura?

Quando as suas palpebras descerram-se inclino-me e busco vêr nas suas pupillas—que são agora os meus espelhos—o que ellas contêm.

Fico tão perto que ellas só a mim reproduzem.

Do mais tenho ciume, nem quero que seus olhos tenham outros habitantes.

Quando Elle estremece, tremo. Quando Elle sorri é tão grande a minha alegria que fico num atordoamento desvairado, sem saber que faça, e choro e rio.

Ai! de mim quando Elle chora.

Não tendes notado que sou agora como uma faminta perdida que não se sacia de alimento? {164}

Não é que tenha fome, não; mas penso n'Elle e, como é preciso que Elle encontre sempre farto o peito em que se nutre, transformo-me em celleiro.

Dormir, nem sei se durmo, porque ao mais leve movimento que Elle faça surprehendo-me a mim mesma achando-me a seu lado, agasalhando-o, afagando-o, procurando readormecel-o ou acalentando-o, se chora.

Eu não era assim amorosa, meu senhor. Agora que o tenho não parece que vivo no mundo, só d'Elle me lembro. Onde Elle está ahi é que me apraz viver.

O seu berço é um oasis em immenso deserto.

Dizeis, ás vezes, que me distraio porque não vos respondo de prompto. Não é distracção, é que a alma está junto d'Elle—o corpo fica vasio como uma casa fechada cujo dono trabalha na seara. {165}

Dissestes uma vez: «As mãis adivinham.» Como conheceis o coração materno!

E ha mãis que ficam no mundo quando lhes morre o filho. Como se podem guiar na vida? Como podem caminhar sem arrimo? Como podem vêr sem luz? Como não sossobram no pranto? Eu...

—Porque choras, Maria?

—Porque sou feliz, meu senhor... {166}

  {167}


As duas mãis

Junto a uma velha figueira, que ficava a dois passos da caverna, onde a estrada, bifurcando-se, dava uma sinuosa trilha para os montes e um caminho direito para os campos, sentara-se Maria com Jesus ao collo, gozando o frescor da manhan serena e vendo os pombos revoarem, com rumoroso ruflo d'azas, passando, repassando em torno.

José descera á fonte.

Zagalejos passavam soprando frautas e o sol, accendendo as camarinhas {168} do orvalho, fazia da paizagem uma extensa scintillação.

A Virgem entretinha-se, enlevada no pequenito que acompanhava a ronda {169} aligera das aves, quando uma pallida mulher, andrajosa e descalça, os cabellos desgrenhados, os olhos fundos, a caveira estalando a pelle secca, appareceu no caminho, tão lenta e com tão alto e angustioso arquejo que foi por elle que Maria sentiu a aproximação da infeliz.

Era ainda moça, conservava na miseria um resto de emmurchecida belleza.

Os olhos negros ardiam febris como dois carvões em que faiscassem fagulhas; as rosas das faces haviam amarellecido, os labios, reseccados e lividos, estalavam em fendas como golpes.

Trazia nos braços, envolta em grosseiras faixas, uma criança que vagia.

Diante da Virgem deteve-se. Arrasaram-se-lhe os olhos d'agua e, parada, tremendo, estendeu a mão magra, a pedir. {170}

Maria encarou-a compadecida e, como não possuisse moeda, não respondeu á infeliz, alanceada de pena. E a mulher soluçou:

—Não é por mim que peço, é por elle. Tenho-o, desde hontem, ao seio, bebendo sangue—não é um peito que lhe dou, mas uma ferida. A boca do pobresinho está da côr da anemona.

Não lamentaria a dôr com que a sua fome me apunhala se o visse saciado, mas o sangue não farta e, ainda que eu lhe não recuse o que me resta de vida, sinto-o enfraquecer a mais e mais.

Já não chóra, nem abre os olhos, começa a agonisar, como a planta que o sol mirra na terra adusta.

Dai-me o bastante para que elle viva um dia, só emquanto eu viva. Que elle morra depois de mim para que eu o receba na morte. {171}

Maria fez lugar junto á figueira para a enferma e, entregando-lhe Jesus, tomou o pequenino moribundo. Poz-lhe na boca o peito turgido e logo o sentiu sugar avidamente.

A misera mulher embalava o divino Infante, apertava-O ao collo com medo de que chorasse e interrompesse a esmola que seu filho recebia.

Tão enlevada estava vendo o seu penhor mamar que nem sentiu que os seus peitos, junto aos quaes Jesus agasalhava-se, enchiam-se, apojavam-se. E toda ella refazia-se: a carne renovava-se-lhe robusta, voltava-lhe a côr ao rosto.

Satisfeita, a criança adormeceu ao collo de Maria e da boquinha entreaberta escorreu, rolou na terra uma gotta de leite, cahindo, como uma pérola, na raiz da figueira.

As duas mãis olharam-se caladas por {172} que as crianças dormiam. Trocaram-nas tomando, cada qual, a que lhe pertencia e a miseravel, agradecendo a esmola, foi-se por entre as margaridas do caminho.

Perdeu-se no meio das arvores, reappareceu no lançante do cerro.

De repente, já no cimo, envolta em luz, estacou derreando a cabeça como para olhar o ceu em pleno e subito, lançando os braços, tombou sobre os joelhos.

Dera, sem duvida, pelos peitos cheios.

Maria, para seguil-a com o olhar, levantou-se e, como se apoiasse á figueira, uma folha cahiu. Sentindo os dedos humidos mirou-os—estavam molhados de leite.

D'onde proviria? da fina haste da figueira de onde se destacara a folha.

A arvore sorvera a gotta de leite que rolara da boca do pobresinho e sempre {173} a verte mostrando-a aos incredulos, mal se lhe arranca uma folha ou se lhe golpeia um galho, como uma prova da misericordia suave. {174}

  {175}


A estrella

Ao declinar do sol, quando cessava toda a alegria rural e, quietos, em magotes brancos, os rebanhos desciam das pasturas e o canto das aves morria em estrebilhos tristes, José, á entrada da caverna, as mãos cruzadas sobre o cajado, contemplava o ceu macio, barrado de ouro no occidente, onde os outeiros pareciam arder como altas pyras sobre as quaes flammejasse um lume votivo.

Um molle, languido quebranto prostrava a natureza. {176}

As arvores espreguiçavam-se em movimentos morosos; raros passaros aligeiravam o vôo atravessando a luz vesperal.

Nas quebradas sombrias crescia a voz das aguas borbulhantes, saltando, escachoando de pedra em pedra até fluirem mansas sob as pendidas ramas que pareciam tremer de frio.

Longe, na cidade, resoava o tumulto humano.

Grossos rolos de fumo negro subiam aos ares, fundiam-se, dissipavam-se e, á medida que a noite conquistava a paizagem, apontavam pequeninas estrellas esmaltando o ceu.

A voz de Maria no fundo da caverna entoava suavemente. Era o encantamento maternal, a mimosa cantilena com que Jesus adormecia.

O patriarcha, recolhido em pensamento, olhava, e, como se voltasse para {177} o lado do oriente obscuro, viu um como fulgido alfange chammejando na treva.

Tremeu e, fitando o olhar na estranha apparição, notou que avançava no ceu vagarosamente. {178}

Era uma estrella enorme, de brilho coruscante, que parecia haver atravessasado a teia da Via Lactea, tendo della trazido um rutilo farrapo que a seguia atravez do espaço.

O astro subia em marcha grave e as demais estrellas esmoreciam á sua passagem como se se retrahissem timidas.

Pelos caminhos, pelos outeiros homens, mulheres paravam attonitos olhando o prodigio.

Alguns, atemorisados, invocavam deuses, rojando-se por terra; outros fugiam aterrados; crianças choravam espavoridas.

E quando a noite negrejou fechada, o astro, com a flammejante cauda aberta, pairou no ceu, sobre a caverna, como uma palma de luz que assignalasse o berço do Messias. {179}


Epiphania

Pastores, que faziam a vigilia no campo, contemplavam embevecidamente a estrella maravilhosa, quando ouviram cantares e rumorosa estropeada como se festiva e densa turba viesse pela encosta do cerro mais alto.

Ergueram-se estranhando a caravana e viram romper, á luz de archotes, cujo clarão tingia sanguineamente a noite, um cortejo brilhante e desusado.

Os animaes pareciam ajaezados de ouro, com recamos de pedrarias, tamanho {180} era o fulgor que irradiavam nos cabeios ardegos em que vinham.

Onagros, tangidos por negros, trotavam sacolejando fardos e tres dromedarios enxairelados caminhavam entre lanças garbosamente empunhadas por cavalleiros robustos.

Tamborinos e anafis soavam em concerto, regulando o rythmo da marcha; vozes bradavam e a turba descia assustando as ovelhas e os grandes bois que trasmalhavam mettendo-se pelos mattos.

Os cães de guarda, attentos, d'orelhas fitas, conservavam-se silenciosos como se reconhecessem os chegadiços.

Por vezes as lanças chocavam-se, tinindo, e cerrada, na claridade fulva dos archotes, a caravana aproximava-se.

Na planicie, ao rouco estrugir de uma buzina, estacou em ordem.

Ligeiramente, destros e açodados negros desfizeram grandes rolos, fincaram {181} cepos e, em pouco, tendas retesaram-se.

Os animaes, alliviados da carga, deitavam-se na herva fresca, espojavam-se contentes e, em volta das tendas, como uma sebe de guerra, os cavalleiros cravaram as lanças pelos cantos ficando os ferros luzindo como estrellas.

Os pastores, esgueirando-se na sombra, procuravam chegar ao acampamento para vêr de perto os chefes da hoste que com tanta grandeza se movia.

Um d'elles, mais ousado, foi descoberto por um grande negro que trazia ás costas, suspenso d'uma corrente, um dardo de ferro.

Sem tempo de fugir cahiu em poder do vigia que logo o conduziu á tenda mais sumptuosa, toda alfaiada de seda e purpura e nublada de aromatas.

Lampadarios de ouro illuminavam-na. A herva desapparecia sob tapetes {182} altos, escudos lampejavam e, como o negro o impellisse, viu-se o pastor na presença de tres homens ricamente paramentados, com fotas na cabeça rutilantes de gemmas.

Eram magos das terras remotas.

Um alvo, a barba negra e farta espalhada no peito scintillante de pedrarias; outro da côr amarellada dos filhos das extremas da Asia; o terceiro negro, com immensas camandulas de ouro em volta do pescoço, braceletes nos punhos, argolas nas orelhas e na fronte alta, preso por um nastro, um diamante que coruscava.

O pastor ajoelhou-se e, medroso, esperava ouvir palavras severas, quando um dos homens tranquillisadoramente perguntou:

—Se sabia em que paço, por ali perto, nascera o rei dos judeus. O rustico, sem entender a pergunta, ficou arvoado, {183} imaginando-se victima de uma zombaria. Lembrando-se, porém, dos anjos e de todos os prodigios da noite messianica, respondeu vagamente:

{184}

—Perto d'aqui nasceu—e os ceus festejaram o seu natal—um menino, filho de pobres, vindos de terras longinquas. Ainda lá está no mesmo tugurio, ao collo da mãi, que é uma linda moça, sob a guarda de um ancião veneravel. É bem perto d'aqui, na caverna do outeiro sobre o qual paira e brilha a estrella alada que appareceu no ceu.

Levantaram-se os tres homens—o pastor sahiu da tenda e, estendendo o braço na direcção do outeiro, disse:

—É ali, sob a estrella.

—Deve ser, disse o negro. E os dois outros concordaram. E, despedindo o pastor com uma bolsa de moedas de ouro, ficaram de pé, em silencio, contemplando adorativamente a estrella que resplandecia. {185}


Adoração dos magos

Ao dealbar tronaram as buzinas e a caravana moveu-se em direcção á caverna.

A grande estrella ainda luzia no ceu.

Os magos seguiam á frente nos dromedarios e, em torno delles, nitriam, caracolavam os ginetes dos cavalleiros com os seus telizes dourados, os seus caparações de purpura.

Quando a turba defrontou com a caverna todos os homens apearam e, respeitosamente, com humildade de servos, {186} deixando no limiar os papuzes marchetados, os magos penetraram zumbridos, como se fossem de rastos, levando nas mãos, devotamente, as pareas significativas.

{187}

Recebeu-os o patriarcha e, como a Virgem se levantasse, com Jesus ao collo, os tres homens prostraram-se de joelhos, descobrindo-se, depondo os turbantes, e, inclinando a cabeça, ficaram um momento em veneração silenciosa.

O primeiro falou offerecendo a myrrha.

—Homem, Filho de Deus, a arvore do deserto deu do seu tronco a resina que te offereço. O seu perfume é uma força que se oppõe á destruição da carne: eternisa o corpo como a Virtude eternisa o espirito.

O segundo inclinou-se com um escrinio cheio de ouro:

—Rei, as minas, onde rebrilham os veios rutilantes, deram a poeira que te offereço: ouro, symbolo do poder, chamma fria da terra. Tudo elle vence: a miseria e a propria Virtude. Desopprime e escravisa, redime e perverte, é o {188} bem e é o mal. Nas mãos munificas é luz que aclara e salva; nas mãos crueis é chamma que consome.

O negro falou por ultimo com uma patena de incenso:

—A arvore instilla a lagrima que rescende, lagrima que, ao lume, converte-se em fumo e evola, demandando o ceu, como homenagem da terra.

Como lagrima, é uma concentração; como aroma, é uma oblata. É o incenso com que se glorificam os deuses. É a offerenda das terras negras ao Deus que redime.

Gente, que afluira á caverna, pastores e seareiros, mesteiraes, velhos, mulheres e crianças das arribanas proximas entraram e, diante da palha humilde, toda a grandeza e toda a humildade confraternisaram e tambem o sol, como enviado do ceu, adorando o Infante da Misericordia que baixara para cumprir {189} as prophecias trazendo aos homens a religião do Amor.

E Maria, deslumbrada, sem ouvir as vozes glorificadoras, olhava, contemplava, adorava o pequenino Filho.

O sol cercou-os de esplendor e a Virgem, de pé no meio da turba, com Jesus ao collo, era o purissimo altar sobre o qual se mostrara ás gentes o Divino Perdão. {190}

{191}

INDICE
  Pag.
A partida 5
O anjo 13
Lyrios 19
A refeição 25
A nuvem 31
Ao pôr do sol 39
A tentação 45
O milagre das lagrimas 55
Caminhando 65
O cégo 71
Dentro da noite 77
Presagio 83
Piedade 91
Cantico messianico 97
O campo de Booz 105
Na estrada de Bethleem 109
Na caverna 113
Natal 121
As tres virgens 129
O primeiro leite 135
Adoração dos pastores 141
Dôr 147
Receio 151
O somno 157
Palavras de Maria 161
As duas mãis 167
A estrella 175
Epiphania 179
Adoração dos magos 185





End of Project Gutenberg's Mysterio do Natal, by Henrique Coelho Neto

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK MYSTERIO DO NATAL ***

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