The Project Gutenberg EBook of Noites de Cintra, by Alberto Pimentel

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Noites de Cintra

Author: Alberto Pimentel

Release Date: December 22, 2010 [EBook #34719]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE CINTRA ***




Produced by Pedro Saborano





 

Notas de transcrição:

O texto aqui transcrito, é uma cópia integral do livro impresso em 1908.

Foi mantida a grafia usada na edição original de 1908, tendo sido corrigidos apenas pequenos erros tipográficos que não alteram a leitura do texto, e que por isso não foram assinalados.

 

 

 

 

COLLECÇÃO ANTONIO MARIA PEREIRA—17.º Volume


NOITES DE CINTRA

 

 

 

 

Gravura de Sintra

ALBERTO PIMENTEL

NOITES

DE

CINTRA

(2.ª edição, revista pelo auctor)

 

 

1908

PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA EDITORA
Rua Augusta—44 a 54
LISBOA

 

 

 

 

COMPOSTO E IMPRESSO NA TYPOGRAPHIA

DA
Parceria ANTONIO MARIA PEREIRA
Rua Augusta—44 a 54
LISBOA

 

 

 

 

{5}

I

Eramos dez, e tinhamos combinado, por desfastio, ir a Cintra, na primavera, ouvir os rouxinoes.

Parecerá menos inverosimil este pretexto, quando se disser que todos, então reunidos em Lisboa, haviamos nascido na provincia, onde as volatas dos rouxinoes dulcificaram as nossas primeiras noites de amor, e que o mais velho de nós tinha trinta e sete annos apenas.

Ainda assim, como prova involuntaria de que o melhor da nossa vida era já então o passado, não foi approvado o projecto sem uma correcção prosaica. Sim, iriamos ouvir os rouxinoes a Cintra, visto que elles não costumavam fazer-se ouvir nas ruas de Lisboa, mas temperariamos esse devaneio romantico com as queijadas da Sapa, as laranjas do visconde da Arriaga, e o Collares do conselheiro Francisco Costa.{6}

Como o mais novo de todos era o Gonçallinho Jervis, em cujo espirito bailavam ainda pagens e castellãs n'uma chorea medieval, e em cujo coração ardiam fogos de poetico platonismo, mettemol-o á galhofa convidando-o a procurar na serra de Cintra um cabello da barba que Bernardim Ribeiro haveria arrepellado ao vêr partir a frota com a infanta D. Beatriz.

Para falar verdade, nenhum de nós tinha grande confiança na realisação de tão extravagante projecto, mas sobejou-nos motivo para o applaudir, porque durante mais de dois mezes nos forneceu alegrissimo assumpto sempre que nos juntavamos todos ou pelo menos alguns.

Deviamos partir em abril, segundo o programma primitivamente approvado em assembléa geral. Não fomos, e acreditavamos já que não iriamos, quando uma noite, no Martinho, resolvemos partir a 20 de maio.

O Vasconcellos, muito habituado a viajatas, ficou encarregado de alugar o char-à-bancs, e elle proprio me disse á puridade que tal não faria senão á ultima hora, porque duvidava que se realisasse uma excursão dependente do accordo de dez pessoas, todas ellas mais ou menos atarefadas.

Como se tratava, porém, de um divertimento, de uma partie de plaisir, como lhe chamava o Leotte, aconteceu que, á hora marcada, apenas faltou um, o Callixto, cuja falta, aliás, foi tida como de bom agouro, visto chamar-se elle Callixto.{7}

Tivemos que esperar á porta do Passeio Publico, que era o ponto de reunião, rendes-vous dizia o Leotte, que o Vasconcellos fosse alugar o char-à-bancs, sendo entretanto votada uma moção de censura a este nosso amigo pela falta de confiança que a communidade lhe inspirava. Eu, por estar na posse do segredo, abstive-me de votar. Um Catão!

Partimos. Aquillo foi como se todos atirassemos canseiras e trabalhos para traz das costas. Os palacios do Passeio Publico estremeceram nos alicerces, sacudidos por um tufão de alegria. A passarinhada fugiu das arvores precipitadamente, como se ouvisse troar uma peça de campanha. A policia não estava accordada ainda; se fosse um pouco mais tarde, deitava-nos a mão. E affirmava o Vasconcellos que tinha visto as figuras do Tejo e Douro dizerem-nos adeus de dentro do Passeio, muito rapioqueiras.

—Nunca, dizia o Leotte, nunca se fez uma partie de plaisir tão honesta. Nove homens... apenas!

—Querias mais! replicava o Vasconcellos fazendo-se desentendido. Não cabiam cá. Olha o pobre Gonçallinho, o nosso doce pagem, que teve de ir na almofada ao pé do cocheiro. Onde querias tu metter mais gente, ó Gonçallinho?!

—Que é lá? respondia elle do alto da almofada.

—Vaes a fazer versos?

—Ainda não. Mas já planeei um conto. Este ar de primavera é deliciosamente suggestivo. Vocês{8} verão que a minha ideia não é de todo má. Chamar-se-ha A primeira entrevista.

—Has de contal-a em Cintra, gritei eu.

—Pois sim, respondeu o Gonçallinho, morto, como todos os novatos, por divulgar as suas composições.

—Em Cintra, alvitrou o Vasconcellos, sempre o mais auctoritario de todos, cada um de nós ha de contar á noite uma historia. Vá feito?

—Menos eu, protestou o Athayde, que era empregado na Junta de Credito Publico. Eu só estou habituado a contar... contos de réis.

—Isso é modestia. Não péga.

—Has de contar, intimou o Leotte, aquelle caso do principe das Caldas de Vizella, que uma noite te ouvi no Gremio.

—Ah! esse era o principe Piratinino.

—Não é um conto... de réis; mas é um conto de principe. Bem, já temos dois contos, disse eu.

—E tu, propoz o Athayde, dirigindo-se a mim, tu, que andas sempre com as mãos na massa, é que has de abrir o torneio.

—Pois seja, com a condição de que onde se lê massa se leia maçada.

—Leia-se lá o que tu quizeres. Mas olhem vocês, observou o Vasconcellos, que é preciso matar de algum modo as noites de Cintra, que são tão grandes como as de Lamego. Em Cintra só devia haver dia. As noites são frias e humidas. Vocês o sentirão.{9}

—Queres então ouvir rouxinoes ao meio dia?

—Os rouxinoes são o menos...

—Pois não viemos nós para os ouvir?

—Nós viemos para gosar a liberdade que não temos habitualmente, e a alegria que principia talvez a fugir-nos. Viemos tomar um banho de oxygeneo. Elle é bem mau!

—Que vão vocês a dizer? perguntou da almofada o Gonçallinho.

—Foi o Vasconcellos que fez uma proposta para supprimirmos do nosso programma os rouxinoes.

—Não! nunca! protestou o Gonçallinho. De mais a mais tem vindo a dizer-me o cocheiro que os rouxinoes são aos centos na varzea de Collares.

—Tudo se póde conciliar, sentenciou o Vasconcellos. Ouviremos os rouxinoes e os contos. Mas vamos ao lado pratico do assumpto. Quantos dias se querem vocês demorar?

—Eu, cinco dias, o maximo.

—E eu.

—Vá lá, e é de mais.

—Oh! incomprehensivel alma portugueza! exclamei eu. Já estragamos a nossa alegria. Ainda não chegámos, e já tratamos do regresso! Se aqui fossem nove francezes...

—Ou quatro portuguezes e cinco francezas... reticenciou o Leotte, sempre propenso ao eterno thema feminino. Lembrem-se vocês da historia do nosso amigo conde, quando esteve nos Pyreneos. Ao menos lá não lhe faltavam mulheres!{10}

—É verdade! ó Leotte, tu has de contar a historia do conde. Tem graça! já t'a ouvi uma vez.

—Vamos ao lado pratico, insistiu o Vasconcellos. Almôço, a que horas?

—Ás onze.

—E jantar?

—Jantar ás seis.

—É melhor ás sete.

—Tratem vocês de fazer as noites pequenas. Olhem que são o peor que ha em Cintra.

—Jantaremos então ás sete.

—Isso é melhor. E de dia ou á noite, sentados em Collares, em Seteais ou nas cadeiras do Victor iremos contando o nosso Decameron, respirando um bom ar, e um pouco de alegria, pelo menos...

O Decameron! exclamou o Leotte. Sabem acaso vocês que os fugitivos da peste negra de Florença eram sete mulheres e tres homens? Isso comprehende-se.

—Ó diabo! cala-te lá com essa chorata pelas mulheres! replicou o Vasconcellos. Póde ser que o acaso te depare em Cintra alguma boa fortuna.

—N'este tempo! objectou, desconsolado, o Leotte. Se fosse no verão!

—O verão tambem tem seus inconvenientes. Ha mais espiões, mais fiscaes da moralidade publica. Leve o diabo tristezas. Toca a divertir, rapazes.

—Olhem lá! gritou o Gonçallinho.{11}

—Que é?

—Parece-me que já architectei outro conto.

—O que é então?

A morte do bibliophilo.

—Vejam vocês, disse o Vasconcellos, o que são os poetas portuguezes. Vae aqui um rapaz, na flôr dos annos, cheio de imaginação, em caminho de Cintra, a pensar na morte da bezerra ou do bibliophilo, que o leve!

Rimos todos. E o proprio Gonçallinho, que ouviu o reparo, desatou a rir na almofada.

Quando apeamos á porta do Victor, estavamos mais ou menos acabrunhados pela fome.

—Por S. Thiago, e aos bifes! berrou o Vasconcellos.

E o Victor, muito mesureiro, muito amavel:

—Elles hão de estar menos maus.{12}

{13}

II

O almôço foi uma devastação, uma hecatombe.

Dizia o Vasconcellos que assim era preciso, visto que só se tornava a almoçar... no outro dia.

Quando saímos do hotel eram quasi tres horas. O que se faria? Por onde se começaria? Os fumos capitosos do almôço accenderam brios quixotescos no espirito da maioria dos nove. A burro e á Pena! era o grito do Vasconcellos, reforçado por mais cinco ou seis vozes.

—Mas isso é a semsaboria de toda a gente! disse o Gonçallinho.

—Ó meu tolo! replicou com vivacidade o Vasconcellos. Querias talvez fazer versos com o estomago cheio de biffes! A burro e á Pena! insistiu.

Os burriqueiros, que nos tinham feito um verdadeiro{14} cêrco, largaram a correr para ir buscar os burros.

Emquanto esperavamos, dizia-me em tom de confidencia o Leotte:

—Já perguntei no Victor, e não ha lá hospeda nenhuma. Mas ha criadas, ao menos.

E d'ahi a pouco dizia-me o Gonçallinho, tambem em tom de confidencia, muito contemplativo, olhando para o castello da Pena e para o arvoredo da encosta:

—Como isto é bello!

A burricada á Pena foi, como sempre acontece, uma esturdia hilariante, cheia de episodios comicos. Quando o burro não caía, caía o cavalleiro; e as mais das vezes caíam ambos.

N'essa folia, que teve muito de carnavalesca, o tempo fugiu despercebido, as horas voaram. Ao fim da tarde, mergulhados n'um verdadeiro banho de aromas primaveris, estavamos nós sentados junto ao Chalet de Madame, quando o Vasconcellos alvitrou auctoritariamente:

—Agora, sim senhor. Agora é occasião propicia de darmos principio ao nosso Decameron. Tem a palavra o sr. Fulano, como se combinou.

Era eu. Pois não houve meio de resistir.

—Ora então, senhores e...

—Senhoras não ha infelizmente! exclamou o Leotte.

—Peço attenção, que eu principio.

E principiei.{15}

—O morgado de Muxagata, ou simplesmente o Muxagata, como elle era conhecido ha vinte annos no Porto, tinha solar a onze leguas de Lamego, na aldea d'aquelle nome.

Por setembro apparecia na Foz do Douro com uma coudelaria inteira, que lhe permittia variar de cavallo seis vezes por dia. Gostava d'isso, e lisonjeava-se de que as mulheres viessem á janella alarmadas pelo tinido aspero das ferraduras nos burgaus da rua Direita e de Cima-de-Villa.

Era, de resto, um typo de classe, porque nas praias de Portugal não se perdeu ainda o molde do morgado de provincia com manhas de picador e boleeiro.

Ha sempre um para amostra.

Todos os dias ia banhar os cavallos á praia dos Inglezes, que era a menos frequentada. Gastava duas horas n'esse trabalho, e elle proprio era o banheiro dos seus animaes que, á força de acicates, acabavam por investir com a onda.

O Muxagata encharcava-se dez vezes em cada manhã desde os pés até aos hombros.

Sentia-se satisfeito com essa maçada quotidiana, que sempre attraía alguns espectadores. E todo o seu orgulho consistia em saber-se nomeado como o melhor pé de estribo e a melhor mão de rédea que ginetava na Foz.

Eu vi-o pela primeira vez na rua Direita, n'um predio fronteiro á rua Bella.{16}

Morava eu ali perto. Sabia-se que vinha para aquella casa o Muxagata, e um bello dia começaram a chegar criados e cavallos. No outro dio chegaram cavallos e criados. No terceiro dia chegaram criados, cavallos, e palha.

Ao quarto dia correu voz de que chegaria o morgado.

Os criados e criadas, todos elles atexugados de bom presunto da Gralheira, fizeram o jantar para s. ex.ª

Mas s. ex.ª não chegou.

No dia seguinte fez-se novo jantar para s. ex.ª

E s. ex.ª não chegou ainda n'esse dia.

O grande Muxagata principiava a ser um mytho para muitos banhistas da rua Direita e travessas affluentes.

Chega o Muxagata! Não chega o Muxagata! Á noite, os criados, vendo que o patrão já não chegava n'esse dia, comiam o jantar que estava preparado para elle.

Passou assim uma semana.

Na segunda-feira seguinte sentiu-se ruido á porta do Muxagata. Foi muita gente ás janellas. Não era elle, mas um novo cavallo que chegava. Uma belleza de estampa, que os criados estavam admirando em circulo á porta da cocheira. Soube-se a historia do animal. Muxagata já estava no Porto, e havia comprado aquelle bello exemplar pur sang ao Côrte Real de Traz da Sé por tresentas libras.{17}

Finalmente, á noite, chegou o Muxagata com o Henrique da Perzigueda e outros amigos. Vinham a pé, todos de esporas e chicote. E antes de subir, foram á cocheira examinar os cavallos.

Vi o Muxagata. Era alto, forte, moreno: farto bigode preto, e pera. Foram jantar. O Ricardo Brown, o Côrte-Real e outros sportmen caíram logo lá. Depois do jantar, houve jogo. Sentia-se tinir dinheiro. Era o monte. Muxagata, depois das libações do jantar, gostava de fazer o seu berlote.

Aquillo devia ter acabado noite velha. No dia seguinte, ás 7 horas, já o Muxagata estava na praia dos Inglezes a dar banho aos cavallos.

Varias pessoas foram vêr. Outras deixaram-se ficar na praia do Caneiro á espera dos dois melhores espectaculos que os mirones apanhavam: o banho do fidalgo Padilha, que entrava no mar preso por uma corda, e o banho da Cacilda, filha do banheiro Leão, que nadava para o mar largo.

Foi pelo Henrique da Perzigueda, o qual eu vi morrer annos depois n'um sótão da rua de S. João Novo, que travei relações com o Muxagata.

Eu tinha os meus dezoito, e lisonjeava-me de que o Muxagata, a flôr dos sportmen da Foz, me tratasse mano a mano.

Quando elle descia a cavallo a explanada do Castello, sendo admirado no seu garbo de cavalleiro pelos hospedes do Hotel da Boa Vista, dizia-me adeus com o chicote, e eu parava muito{18} ancho, dando-me ares de entendedor, até o vêr exhibir-se no Passeio Alegre, em frente da casa acastellada dos Maias da rua das Flores, porque ahi era certo passar ás upas.

Havia sempre senhoras no balcão de pedra, que tinha um toldo listrado de branco e escarlate.

Mezes depois correu fama de que o Muxagata havia raptado uma menina de Lamego. Falava-se que os irmãos d'ella o queriam matar. Mas não morreu ninguem. Em todo o caso o Muxagata deixara o seu solar e viera estabelecer residencia no Porto, na rua das Fontainhas, com a sua bella raptada. A historia do rapto augmentára-lhe a nomeada de fidalgo extravagante. Algumas vezes vi o Muxagata a cavallo ao lado da famosa lamecense, vestida de amazona. Iam ordinariamente á Foz por Lordello do Ouro; voltavam por Miragaia.

Quando recolhiam ao cair da noite pela rua das Flores, os lojistas, sentindo o tropel dos cavallos, vinham á porta. O escandalo d'aquella mancebia publica indignava-os; não obstante, cumprimentavam risonhamente o Muxagata, que era bom freguez dos ourives e dos mercadores de pannos.

Na casa das Fontainhas havia batota todas as noites. Criados de casaca e lenço branco serviam o chá. D. Christina, a bella de Lamego, jogava como um homem entre os homens.{19}

Saltava nos valetes, e fazia cerco ás quinas.

Ella odiava os valetes, dizia. Na sua confiança nas quinas mostrava-se uma boa portuguesa de Lamego.

Vestia bem: rendas, flores e joias. As joias explicavam os cumprimentos dos ourives da rua das Flores ao Muxagata.

Usava o cabello apartado ao lado, com duas bellezas. Chamava-se bellezas aos anneis de cabello empastados sobre a fronte. Coisa tentadora, que desappareceu da circulação.

—É verdade! obtemperou o Leotte.

Prohibiram-lhe que interrompesse.

O pó de arroz, continuei eu, era ainda considerado como um deboche de toillette. D. Christina punha muito pó de arroz na face, no collo e nas mãos, especialmente nas mãos.

Tinha predilecção pela essencia de violeta. Ora os perfumes eram n'aquelle tempo outro deboche de toilette. As mulheres não cheiravam a nada ou cheiravam mal.

Podem vocês admirar-se de que uma mulher de Lamego se avantajasse dez annos ás outras portuguezas em mise-en-scène de coquettismo. D. Christina tinha pendor natural para a vida espectaculosa. Estas aberrações não são das terras; são dos temperamentos. Uma patricia dos presuntos de Lamego póde nascer tão coquette a dois passos da serra da Gralheira, quanto uma creatura{20} nascida entre os jardins de Harlem póde sair brutalmente apresuntada por fóra e por dentro.

De mais a mais o Muxagata, tendo-lhe conhecido a bossa, desenvolvera-lh'a. Educára-a como amante. O idillio de contrabando precisa ganhar em aperitivos acirrantes o que naturalmente lhe falta em tranquillidade sincera. As amantes são actrizes de um palco em que se representa a comedia do amor; as esposas são as sacerdotisas de um culto domestico, que se faz valer por si mesmo. A differença é grande. D. Christina tomava a sério o seu papel de actriz, e esforçava-se por que nos applausos do publico entendido reconhecesse o empresario a conveniencia das aptidões theatraes da artista.

Rodaram mais dois annos.

A casa da rua das Fontainhas continuava a ser o rendez-vous dos estroinas do Porto. Falava-se de perdas e lucros fabulosos na batota do Muxagata, que fazia concorrencia á do D. Marcos. Muxagata galeava ainda o mesmo luxo de cavallos, em competencia com o Ferreirinha; e a mesma pompa de fatos exoticos á porfia com o Ricardo Brown, porque ambos appareciam ás vezes de collete vermelho com botões de ouro.

Dizia-se porém que a casa de Muxagata estava empenhada. O milho, sua principal colheita, não chegava para tanto. O vinho não era muito. Legumes, hortaliças, amendoas, sumagre, eram em{21} grande quantidade, mas produziam pequenas receitas. A casa cobrava muitos fóros, n'uma e outra margem do Douro, desde Lamego até Entre-ambos-os-rios, mas andavam atrazados.

Um dia deu-se pela falta do Muxagata. Correu que tinha ido apurar rendimentos, que se ficavam por mãos de caseiros e foreiros remissos. Assim fôra, effectivamente. O Muxagata estava no seu solar ou por ahi perto. D. Christina continuava a habitar a casa da rua das Fontainhas. Não saía a pé nem a cavallo.

Pelo tempo das colheitas a minha familia ia para uma quinta no concelho de Sinfães. No fim de setembro fazia-se a feira do Escamarão, que mettia os pimpões de muitas leguas em redor: o Nascimento pae, o Tameirão, o fidalgo da Cardia, o José Ignacio de Covas, e outros.

Eu tinha que matricular-me nas aulas do Porto. Propunha-me estudar introducção aos tres reinos, da natureza, como então se dizia, com o dr. Almeida Pinto. Fui para a feira, e d'ahi devia embarcar para o Porto, em companhia do meu condiscipulo Alfredo Leão.

A feira abrira muito animada. O feminino montesinho concorrera em abundancia. De morgados havia para cima de um quarteirão. E de ourives do Porto estavam armadas sete barracas. Comia-se, bebia-se, batoteava-se á grande. As melancias tinham, como refresco, um consumo extraordinario. O regedor Antonio Pedro, emquanto os{22} cabos de policia dormiam á sombra das arvores, micava no rei.

Creio que foi o Tameirão que deu a boa nova de que o Muxagata estava na feira. Disseram-m'o. No meio da minha tristeza por ter que partir para o Porto, agradou-me a noticia. Fui procural-o.

—Que sim; que estava ali para cima a jogar.

—Mas que veiu elle cá fazer?

—Anda aos fóros. Quer dinheiro.

N'isto fui abruptamente interrompido pelo Vasconcellos:

—Meninos, apostrophou elle, olhem que a Pena já começa a pôr o seu barrete de nevoa. É a toilette de noite. Vamos indo para baixo. Depois de jantar se acabará o conto.

—Depois de jantar vamos ouvir os rouxinoes, atalhou o Gonçallinho.

—Isso é lá como quizerem. Que não esqueça o fio da historia. O Muxagata estava na feira e queria dinheiro—como eu.

—Como nós todos! gritaram uns poucos.

—A burro e ao jantar! commandou o Vasconcellos.{21}

III

—Ó filho! pelo amor de Deus! deixa os rouxinoes para ámanhã, dizia o Vasconcellos, depois de jantar, ao Gonçallinho Jervis.

—Aqui da janella não se ouve nenhum! Já estive á escuta.

—Pudera! Imaginavas então que uma tão poetica ave principiava a amar logo depois das ave-marias, como um caixeiro que fecha a loja e vae metter-se n'uma escada a gargarejar para defronte! Tem juizo, Gonçallinho. Para irmos a Collares ouvir os rouxinoes, precisavamos ter prevenido os trens. Deixa isso para ámanhã, e vamos á historia do Muxagata.

Assim foi resolvido por unanimidade... menos um. Era o Leotte, que foi á cozinha recommendar que lhe puzessem lamparina no quarto: pretexto para ver as criadas do Victor.{24}

—Vamos lá ao conto, ordenou o Vasconcellos: o Muxagata estava na feira.

—Estava effectivamente na feira, continuei, jogatinando com outros morgados e alguns lavradores ricos de Castello de Paiva e Arouca, n'uma casa humilde do Escamarão, que não as ha lá melhores.

Como o jogo nivella todas as condições, os nobres e os ricaços abancavam em familiar camaradagem, como se a uns valesse o direito do nascimento, e a outros o do ouro. As mãos de todos elles eram grandes e queimadas do sol ou do cigarro. Lembrei-me, de repente, das mãos finas e brancas de D. Christina, polvilhadas de pó de arroz. Que falta que ellas faziam ali, as mãos de Christina, para brilharem pelo contraste no meio d'aquelle enorme conflicto de manapulas de granadeiros, que ora se estendiam semeando dinheiro, ora se retraíam recolhendo-o!

E pelo meu espirito passou a idéa de que o Muxagata nem por sombras se lembrava, n'aquelle momento, das mãos patriciamente batoteiras da sua bem amada de Lamego.

Fui injusto.

Uma hora depois, Muxagata punha ponto no berlote. Levantava-se da banca, que por tal signal era de pinho, ganhando cerca de setenta libras. Varios lavradores e outros morgados haviam perdido o valor das suas juntas de bois e das suas varas de porcos. Quasi todos elles, os{25} morgados e os lavradores, estavam congestionados das repetidas commoções do jogo. Mas o sorriso triumphal dos felizes principiava a calmar-lhes as feições perturbadas. O Muxagata estava n'este caso. Irradiava-lhe na face o lampejo aureo de setenta libras.

Foi depois de acabada a jogatina que elle me deu maior attenção. Perguntou-me se me demorava na feira ou se recolhia á noite. Disse-lhe que, a meu pesar, partia duas horas depois para o Porto, por causa das matriculas.

—O que?! exclamou elle. Você vae para o Porto?!

Os seus olhos accusavam uma certa satisfação, que esta noticia lhe causára.

Respondi affirmativamente.

—Muito bem. N'esse caso ha de fazer-me um favor: levar quarenta libras á D. Christina, que, coitada! deve estar muito precisada de dinheiro. Mas, meu rapaz, pontualidade de cavalheiro: as quarenta libras serão entregues logo que você chegue ao Porto. E em tom de maior confidencia: Eu suspeito até que ella e a pequena (referia-se a uma filhinha de dois annos) não terão tido que comer.

Esta revelação causou-me triste surprêsa: caiu como um raio fulminador sobre as roseas illusões que eu nutria relativamente ao romance dos raptos.

Pois que?! pensei. É então para não ter talvez que jantar que uma mulher, bem nascida e formosa, abandona o seu farto lar paterno, perdendo{26} todo o direito á estima da familia e ao respeito da sociedade?! Os poetas d'aquelle tempo costumavam dizer:—«O teu amor e uma cabana». Mas a realidade parecia ir muito mais longe do que os poetas, porque, comquanto a casa das Fontainhas não fosse propriamente uma cabana, o que era certo, pela inesperada revelação do Muxagata, era que não havia lá que comer! E depois se eu não tivesse apparecido ali n'aquelle dia e n'aquella hora, D. Christina e a filha ver-se-iam condemnadas a soffrer por mais algum tempo ainda as suas duras privações?! E o esplendor da casa das Fontainhas, os criados de casaca e lenço branco, os cavallos do passeio até á Foz, as joias e as rendas de D. Christina era tudo isso a mascara ficticia da pobreza, o ouropel postiço da ruina, que esperava os acasos felizes da batota para ter pão na mesa e pó de arroz nas mãos?!

Eu estava assombrado por todos estes pensamentos que em tropel se precipitavam no meu espirito, e não sabia se devia rir-me da comedia do mundo, se chorar das desgraças e dos raptos alheios.

Á hora marcada, o barco rabello do Ramiro descia mansamente o Douro e abicava ao areio do Escamarão. Alfredo Leão fazia as suas despedidas. Eu recebia as quarenta libras do Muxagata, e saltava para dentro do barco. Momentos depois o lenho da espadella rangia, os remos chiavam{27} na madeira secca das cavidades que n'aquella especie de barcos substituem as forquilhas, e nós desciamos o Douro deslisando sobre a grande serenidade das aguas, que montanhas áridas e alcantiladas marginavam silenciosamente.

Impressionou-me o contraste d'essa placidez austera com a realidade turbulenta das paixões humanas.

E quando a noite começou a cair dos cerros alterosos, que rara casa branca povoava, eu tinha envelhecido moralmente vinte annos.

Chegamos ao Porto cerca da meia noite. Desembarcamos no caes da Ribeira, que nunca me pareceu mais triste do que n'essa hora. Subimos os dois a rua de S. João, entramos na rua das Flores, ambos muito solitarios, mas ao chegarmos ao largo da Feira de S. Bento encontramos dois estudantes do lyceu que, tendo andado á tuna, se dirigiam viciosamente para a batota do D. Marcos em Cima de Villa. Convidaram-nos a seguirmol-os. Eu alleguei que tinha de ir á rua das Fontainhas entregar o dinheiro a D. Christina.

Responderam-me que áquella hora já D. Christina estaria, como todas as mulheres, raptadas ou não, dormindo profundamente n'um poço de virtude.

Que embora, respondi. Iria bater á porta para lhe levar o ouro da perdição.

Pois sim, que fosse, mas que não me custava nada passar cinco minutos pela batota do D. Marcos.{28}

Fomos. Do dinheiro que eu tinha para despêsa de matriculas, livros e hospedagem, perdi quatro mil réis instantaneamente. Fiquei sobreexcitado com a perda; sedento de desforra. Tive, confesso-o, o pensamento de ir jogando todo o dinheiro que trazia até abrir brecha na banca. Queria uma vingança formidavel. Mas quando eu estava n'esta tortura, hesitante entre a febre e a honra, um braço invisivel, fosse o pulso do anjo da guarda ou o impulso da consciencia, como que me arrastou para fóra, não sem que os pés se me pegassem ao soalho.

Nunca me custou tanto ser homem de bem.

Corri á rua das Fontainhas. Surprehendeu-me vêr luz na escada e nas janellas. E dizerem os outros que D. Christina dormiria áquella hora como um poço de virtude! Bati. Um criado de casaca e lenço branco, o Miguel, veio abrir.

Que sim, que a senhora estava a pé, ceando, e que tambem lá estava o sr. Antonio Falcão, do Marco.

Embuchei. Pois a indigencia que o Muxagata me havia annunciado refestelava-se, depois da meia noite, n'uma ceia a dois, servida pelo Miguel de casaca e lenço branco?!

Pois as consequencias deploraveis do rapto, o quadro negro da fóme transmudavam-se n'essa orgia de bacchante perdularia, em que o Antonio Falcão do Marco era conviva suspeito?!

E emquanto subia as escadas envelheci moralmente outros vinte annos.{29}

A mesa da ceia resplandecia de loiças e cristaes. As joias de D. Christina não resplandeciam menos do que os cristaes e as loiças. E ella propria, na sua belleza acirrante, resplandecia mais que tudo aquillo.

Disse-lhe eu que era portador de uma encommenda para ella. Não ousei, por uns restos de pudor, dizer que a encommenda eram quarenta libras. D. Christina perguntou quem mandava a encommenda. Esta pergunta foi a minha ultima surpresa. De quem poderia ella esperar encommendas depois da meia noite? Ri-me para dentro, não obstante parecer-me que a pergunta, sendo muito melindrosa para o Muxagata, não o deixava de ser tambem o seu tanto ou quanto para mim.

Que era o morgado quem mandava... aquillo.

D. Christina não levou a sua impudencia até ao ponto de perguntar qual morgado era esse. Entendeu ou fingiu entender que seria o Muxagata.

—Como está elle? perguntou.

Eu respondi com alguma atrapalhação, que parecia troça:

—Bom. Muito obrigado.

E, do lado, o Falcão do Marco:

—Esse diabo de homem já se não lembra de nós, nem da filha! Nunca vi uma cabeça assim! Em tendo cartas e pontos não quer saber de mais nada! Pois já tinha motivos para ter juizo! Nem uma carta tem escripto á D. Christina, que estaria{30} para aqui sósinha com a pequena, se não fosse eu!

Levantei-me, puz as quarenta libras, descaradamente, á borda da mesa, sobre a toalha.

—Ah! é dinheiro! disse D. Christina cortando esquirolas de marmellada.

—São quarenta libras, respondi.

—Pois então faça-me o favor de lhe mandar dizer que ficaram entregues.

—Perdão! repliquei com certa rudeza. A sr.ª D. Christina vae escrever isso mesmo n'um bocado de papel, que eu mandarei ao morgado.

—Sim... farei isso. Mas primeiro acompanhe-nos a cear.

Agradeci, rejeitando. Então D. Christina disse ao Miguel que lhe trouxesse papel e lapis. E escreveu em lettra de collegial:

Recebi as quarenta libras.

Tua do coração

Christina.

Mais nada.

Saí, e respirei com soffreguidão a brisa fresca do Douro, que soprava do Passeio das Fontainhas. Uma tenue nebrina emplumava as arvores que ladeiam a rua. E eu, de mãos nas algibeiras, entregava-me dolorosamente, calçada acima, a esta cruel philosophia: «Onde hei de ir arranjar os quatro mil réis que perdi?!»{31}

Soube pela manhã que os outros tinham continuado a jogar, e ganharam.

Ora no decurso de dois annos succederam cousas que seriam espantosas se não fossem humanas.

D. Christina passou definitivamente do Muxagata, quando o sentiu irremediavelmente arruinado, para o Falcão do Marco, que por sua vez se arruinou tambem.

A lei de 1863 extinguiu os vinculos em Portugal, mas os ultimos exemplares da raça privilegiada dos morgados ainda hoje florecem, entre as Christinas indigenas, nas praias de Portugal, em proesas tradicionaes de batota, de femeaço e de gineta.

No inverno os mais d'elles desapparecem no fundo dos seus solares cultivando as batatas, que no verão seguinte hão de resuscital-os. O morgado nacional, depois que a phylloxera lhe comeu as vinhas, ficou reduzido ás batotas.

Mas o Muxagata foi a phylloxera de si mesmo: comeu logo de uma vez as vinhas e as batatas. Como todo o bom morgado, conservou, ainda na pobreza, o seu enthusiasmo pela equitação. E não tendo já cavallos para montar, cavalgava, ao longo dos vastos corredores no ruinoso solar de Muxagata, n'um cabo de vassoura. Um bello dia morreu, e não foi por desastre do seu ultimo cavallo... de pau.

Finis, laus Deo, perorei.{32}

O Leotte, que tinha voltado á sala e ouvido o final da historia, perguntou:

—Da D. Christina nunca mais soubeste!

Expludiu uma gargalhada geral.

—Olá! exclamei. Que novas nos trazes da tua exploração?

—Por ora... nada. Mas opportunamente farei o meu relatorio.

—Pois o mesmo não posso eu prometter a respeito da D. Christina. Nunca mais soube d'ella.

—E da filha o que foi feito? perguntou sentimentalmente o Gonçallinho.

—Tambem não sei. Se viver deve ter agora os seus dezenove annos.

—Como era o nome todo do Muxagata?

—Nunca lh'o soube. Por morgado de Muxagata era que toda a gente o tratava.{33}

IV

—Então, se não vamos ainda hoje ouvir os rouxinoes, tambem eu quero contar o meu conto, disse o Gonçallinho Jervis.

—Sim, senhor, concordou o Vasconcellos.

—Mas qual dos dois contos que nos annunciaste pelo caminho? perguntou o Athayde.

A Primeira entrevista. Tenho porém a prevenir o respeitavel publico, para evitar uma pateada, que o meu conto, ao contrario da historia do Muxagata, não aconteceu nunca. É uma phantasia que só poderia ter-se dado no paiz azul dos sonhos...

—Ditosa idade em que se pensam essas tolices! exclamou o Vasconcellos.

—Mau! protestou o Gonçallinho. Se ralhas, não conto.{34}

—Tem a palavra o poeta, que poderá sonhar á vontade sem que ninguem o interrompa.

Fez-se silencio. E o Gonçallinho, romanescamente, depois de ter mettido os dedos pelo cabello para levantar a gaforina, usou da palavra:

—Custou muito—disse, elle—a planear a primeira entrevista. Era preciso illudir a vigilancia de tanta gente, inventar tantas mentiras, saltar por cima de tantos embaraços! Mas, finalmente, o programma, laboriosamente organisado, tinha sido acceito pela credulidade das pessoas que se lhe poderiam oppôr. Ainda assim, Fanny não ficou inteiramente tranquilla. Durante os dias que medearam entre o da elaboração do programma e o da entrevista, andava desconfiada, escutava pelos corredores receosa de que falassem d'ella, parecia-lhe ouvir dizer o seu nome e cochichar depois em segredo... O olhar das pessoas de familia incommodava-a, como se todas essas boas pessoas tivessem realmente a intenção de observal-a por desconfiança, de lêr-lhe nos olhos esse audacioso plano de uma entrevista no campo.

É verdade que ao mesmo tempo que se sentia atormentada de receios, de vagos sobresaltos, pensava na delicia d'esse primeiro dia de liberdade no amor, sem testemunhas, sem disfarces, sentada com Elle á sombra das arvores, ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio, vendo doudejar no ar as borboletas de grandes azas coloridas,{35} cujo vôo independente tantas vezes ambicionára...

Mas se um obstaculo imprevisto sobreviesse! Quanto esta ideia terrivel a amargurava! A doença de uma pessoa de familia, a carruagem que podia faltar, a chuva que poderia vir n'esse dia... Como isso era horrivel! Mas Fanny lembrava-se, para tranquilisar-se, de que a fortuna ajuda os audazes e de que, como premio á sua audacia, ouviria finalmente cantar os passaros a sua canção de estio nas grandes arvores sombrias.

Toda a base do seu programma era essa velha desculpa, sempre acreditada, a doença de uma antiga companheira de collegio, que está a ares no campo, e á qual se quer dizer o ultimo adeus.

Fanny tinha effectivamente uma amiga de collegio, que estava tysica, e como as duas familias se não visitavam, o pretexto pareceu-lhe excellente, o segredo não viria a descobrir-se.

Mas se a pobre doente morresse antes do dia marcado para a entrevista? O egoismo dos felizes não conhece limites: que morresse no dia seguinte, e tudo seria pelo melhor. Morrer antes, deixar de soffrer menos alguns dias, nem por pensamentos Fanny o queria admittir. E todavia, no collegio, as duas amigas haviam sido muito dedicadas, mas o tempo passára e só de longe a longe, de anno a anno talvez, se lembravam uma da outra.

Com o coração de oratorio, como um condemnado{36} que treme de todas as sombras, que tem medo do rumor de todos os passos, Fanny esperou que esse desejado dia chegasse.

Dormiu mal, somnos curtos e agitados. Parecia-lhe ouvir assobiar o vento nas ruas, bater a chuva nas vidraças. Um temporal seria o maior de todos os contratempos: não a deixariam sair, e, se deixassem, o campo estaria encharcado, o idillio perderia muito do seu encanto, não poderiam sentar-se os dois debaixo das velhas arvores ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio.

Mas, ó felicidade! tão certo é que a fortuna protege os audazes: o dia amanhecera esplendido, o sol brilhava no céu como um rubi, e o calor do estio começava a cair como o halito ardente de uma forja.

Primeiro dia de liberdade no amor! tu és tão saboroso como a guloseima que o collegial devora em segredo na sombra de um corredor ou n'um recanto da cêrca. Tu és o fructo prohibido em que podemos finalmente saciar a nossa voracidade de Tantalos famintos.

A carruagem chegára a horas, a familia, já disposta de ante-mão, não oppuzera obstaculos. Fanny descera unicamente acompanhada de uma antiga criada, que fôra sua ama de leite, e quando entrou na carruagem nem sequer fez reparo n'esse pequenino groom de cabello louro, faces rosadas, que com os olhos postos no chão, n'uma attitude{37} reverente e humilde, se não era hypocrita, lhe abrira a portinhola do trem.

Fôra elle, o pequenino groom louro e rosado, que lhe acommodára a orla do vestido dentro do coupé e que, fechando-o cuidadosamente, esperára, sempre de olhos postos no chão, ouvir a ordem da partida.

O coração de Fanny batia como o de um canario agarrado na mão de uma creança. Ella não via, não ouvia, disse ao groom, sem fazer reparo n'elle, uma palavra. O groom saltou para a almofada com a ligeireza que só as azas podem dar, e a carruagem partiu n'um trote largo, rasgado, batido.

As arvores da estrada principiavam correndo aos lados do trem, fazendo os seus cumprimentos n'uma alacridade funambulesca. As arvores pareciam alegres, trocistas, ironicas, como se estivessem de posse d'aquelle doce segredo. Fanny, vendo-as passar rapidamente, cuidava ouvir-lhes dizer:

—Mil felicidades, excellencia...

E córava de pejo, engolfada em maviosos pensamentos, sem haver trocado com a sua velha ama uma unica palavra sequer.

Os passaros cantavam n'uma estridula folia matutina, e toda essa onda de alegria musical parecia inundar o coração feliz de Fanny, enchendo-o de canticos festivos, que resoavam como n'um ecco interior.{38}

Ao cabo de hora e meia de caminho a carruagem parára, não á porta da quinta onde a amiga de Fanny agonisava, como ella por disfarce dissera ao groom ao sair de casa, mas á porta de um velho castello desmantelado, a que se seguia um parque extenso, coberto de grandes arvores sombrias, onde os passaros cantavam em liberdade a sua canção de estio.

Era o logar da entrevista.

E Fanny, vendo parar ahi a carruagem, e apear-se o groom, sempre com a ligeireza de um genio alado, rosado e louro, com os olhos postos no chão, teve uma vaga suspeita de que esse groom, que ella só agora vira, fosse um confidente encarregado expressamente por Edmundo de desempenhar tão alta missão de confiança.

E, emquanto ella descera, o groom, n'uma attitude sempre reverente e humilde, com a mão na portinhola do trem, ajudara-lhe a desprender do estribo a orla do vestido branco e fresco, ligeiramente mosqueado de pequeninas flores de myosote, azues e microscopicas.

Uma deliciosa serenidade alegre alastrava-se por todo o parque n'uma solidão encantadora. Dir-se-ia que o fim do mundo era ali e que, dados mais alguns passos, por detraz das ultimas arvores do parque, deveria o ceu pousar na terra.

Edmundo lá estava no seu posto, fazendo sentinella á sua propria felicidade e, quando Fanny chegou, a arvore que o abrigava como que distendeu{39} os seus longos braços verdes para envolver tambem na mesma sombra o corpo de Fanny.

A velha criada afastou-se, moendo o tempo na contemplação das flores campestres e da larga cóma das arvores, ora dobrando-se, ora olhando para cima, e de vez em quando um melro velhaco—era decerto um melro—zombava da ignara situação moral d'aquella mulher desfeiteando-lhe o asseio do seu antigo chapeu de palha de Italia.

Uma ironia de melro!

Á sombra da grande arvore, que tinham escolhido, Fanny e Edmundo, enleiados pela cintura, bebiam a pequenos goles de liberdade a sua primeira taça de amor e, quando erguiam a taça aos labios, estalava-lhes na bocca um beijo demorado.

As horas passaram rapidamente, a velha criada já não tinha mais hervas que reconhecer, mais arvores que observar, e os proprios melros estavam aborrecidos de troçal-a.

Era preciso partir, o sol declinava, a tarde fugia. Mais um gole colhido nos labios, mais um beijo que se arrastava n'uma extensa melodia amorosa.

Finalmente, Fanny pôz o pé no estribo da carruagem e o groom, rosado e louro, com um olhar altivo, triumphante, abriu-lhe, de cabeça erguida, a portinhola do coupé e, quando a fechou, antes de subir para a almofada, pousou o dedo pollegar da mão direita sobre a ponta do nariz e espalmou a mão no ar, agitando os dedos.{40}

Era o Amor, disfarçado em groom, que celebrava a sua victoria como um gaiato de collegio.

C'est gentil! exclamou o Leotte.

—Bravo! mavioso Gonçallinho! conclamaram sete vozes.

E o Vasconcellos, logo reposto nas suas funcções austeras de dirigente, advertiu a assembléa de que onze horas e cinco minutos eram tempo muito conveniente para que em Cintra cada um pensasse em dormir.

—Onde estará o groom da tua ballada, ó Gonçallinho? perguntou o Leotte.

—Nos intermundios de Epicuro... respondeu o Athayde.

—Em cascos de rolhas... commentou o Vasconcellos.

—É que eu queria, concluiu o Leotte, que elle viesse accender-me a lamparina do quarto.

E, rindo, cada um de nós foi para a cama—ás onze e dez, noite velha no paraiso de Cintra, a 20 de maio.{41}

V

No dia seguinte, quando saímos do hotel depois de almoço, era quasi uma hora da tarde.

Convencemo-nos mais uma vez de que não ha nada tão bom para gastar o tempo... como não ter nada que fazer.

Fomos a Collares, em burro. Só o Leotte pediu licença para ficar. Concedida;—sob condição de que daria conta ás côrtes do uso que fizesse d'esta auctorisação legal.

—O Leotte traz grande empresa entre mãos.

—Empresa de cozinha, que póde esturrar-se facilmente.

—Saberemos depois... dizia o Vasconcellos, fustigando as orelhas do burro rebeldemente ronceiro.

A varzea de Collares estava realmente encantadora n'aquelle dia. Pairava no ar uma serenidade{42} saturada de bucolismo e de limpidez campestre, capaz de inspirar idillios á alma de um agiota. As arvores floridas perfumavam o ambiente. As aguas do rio das Maçãs dormiam como a superficie de um espelho. Passaros cantavam entre o arvoredo, mas não eram certamente rouxinoes, o que desesperou o Gonçallinho Jervis.

Fomos seguindo para o mar, na direcção do Cabo da Roca. Muitos rapazitos de Collares acompanhavam-nos, correndo, pulando adeante de nós. Iam na esperança de que quizessemos vel-os descer pela Pedra de Alvidrar, como aconteceu. A mim horrorisou-me vel-os deslisar ao longo d'esse rochedo empinado, que mergulha no mar; a cada momento me parecia que os pés ou as mãos lhes faltariam, e que, n'um abrir e fechar d'olhos, elles desappareceriam entre a espuma das ondas, que ali se despedaçam com estrondo.

Tambem fomos vêr o Fojo, esse grande funil de rocha bruta, que communica com o mar, cujo estampido sinistro exerce em nós uma estranha influencia de repulsão.

Foi bello todo esse passeio através de uma região encantadora, onde ninguem nos incommodava n'aquella occasião, e onde insensivelmente tudo haviamos esquecido de quanto nos pudesse n'este mundo dar cuidado ou desgosto.

—O tolo do Leotte perdeu isto!

—O que térá elle feito?!{43}

Soubemol-o depois, quando recolhemos ao Victor, noite fechada.

—Foi um achado! exclamou elle, mal que nos viu.

—Então?

—Isso é para depois. Durante o jantar, nem palavra, por causa dos criados, ouviram?

—Está dito.

Quando, findo o jantar, viemos para o salão do Victor, soubemos que o nosso amigo Leotte tinha descoberto no hotel uma criada originalissima.

—Uma fidalga extraviada do grande mundo! disse-nos elle.

—Como assim?!

—Chama se Maria de Alarcão, está aparentada com muitas familias nobres do paiz, e viu-se reduzida, pela pobreza que herdou de seu pae, um tal D. Alvaro, a ser criada de todas as suas primas e primos, que venham hospedar-se no Victor.

—Mas quem é então esse D. Alvaro?

—Morreu. Perguntei-lhe se sabia os nomes dos avós, e ella respondeu-me que os seus avós tinham sido gentis guerreiros.

—E ella respeita as cinzas de seus avós?

—Ella estava-me contando a sua triste historia, quando outra criada a veiu chamar, gritando: ó Rosa! ó Rosa!

—Então é Maria, e chama-se Rosa?

—Essa pergunta fiz eu a mim proprio. Mas{44} ella, de relance, percebendo a minha surprêsa, explicou que Rosa era o seu nome de guerra, e D. Maria de Alarcão o seu nome de familia.

—Eis o que tu apuraste em todo o dia!

—E já não foi pouco. Talvez que vocês tenham achado muitas criadas cujos avós fossem gentis guerreiros!...

—Para isto, exclamou o Vasconcellos, deixou este tolo de ir passear a Collares!

—Estou vendo, disse eu, que a tua Rosa é tanto Alarcão como era principe aquelle heroe, da historia que sabe o Athayde, que appareceu nas Caldas de Vizella.

—É verdade! quero ouvir a historia do Athayde, observou imperativamente o Vasconcellos. Meus senhores, está aberto o Decameron.

O Athayde fez-se algum tanto rogado, mas contou:

—Era um domingo calmoso de agosto. Todos os hospedes do Hotel do Padre, nas Caldas de Vizella, estavam sentados á sombra do parque do hotel, conversando, lendo, jogando, flirtando. Nenhum d'elles ousára ir á estação esperar o comboio. Os passarinhos, se não pudessem encontrar um doce refugio nas arvores marginaes do rio Vizella, cairiam do ceu assados e depennados. Com uma soalheira d'aquellas, não havia nada que apetecesse tanto como o descanso e a sombra.

De repente ouviu-se o silvo da locomotiva.—Lá{45} chegou o comboio!—Pois deixal-o chegar!—Quem vier, cá virá ter. Vinte minutos depois, paravam á porta do hotel duas americanas, poeirentas e escanceladas. E um sujeito de fato de flanella branca, chapeu branco, acompanhado por uma senhora da sua idade—vinte e quatro a vinte e cinco annos—, atravessou olympicamente o parque do hotel sem cumprimentar ninguem. Da segunda carruagem apearam-se duas criadas e dois criados, com pequenas malas na mão.

Este acontecimento causou certa sensação entre os hospedes do Hotel do Padre, visto não haver acontecimentos de maior polpa.

—Quem será isto? perguntava-se.

—É um principe! dizia ironicamente um janota de Guimarães.

—Um principe e uma princeza, acrescentava do lado um banqueiro portuense.

—Com os respectivos veadores e damas, observou bonacheironamente o padre José Maria, que possuia uma graça simples, quasi patriarchal, e que era um dos hospedes mais estimados no hotel.

Depois, emquanto a sombra caía das arvores, todos continuaram conversando, lendo, jogando, flirtando.

Á hora do jantar, a princeza e o principe foram vistos já sentados á cabeceira da mesa, silenciosos e graves. Os seus dois criados, de casaca, postados por detrás da cadeira do principe{46} e da princeza, conservavam-se immoveis como estatuas.

Todos os outros hospedes, que iam chegando, trocavam entre si sorrisos, olhares de intelligencia. Padre José Maria arregalou os olhos, franziu o beiço, sentou-se. As senhoras diziam segredos umas ás outras. Os homens, de vez em quando, arriscavam em voz alta uma allusão disfarçada.

Findo o jantar, o principe e a princeza levantaram-se; os seus dois criados, muito direitos, arrastaram-lhes as cadeiras. Não cumprimentaram ninguem.

Então a galhofa expludiu, os epigrammas estalaram. Padre José Maria teve pilhas de graça. Um hospede aventou a idéa de que se pedisse o registo do hotel para saber-se o nome do recem-chegado. Veio o registo. Dizia simplesmente isto: Commendador Piratinino e sua esposa.

—Pois, srs., observou padre José Maria, é mais a salsa que o peixe!

Riram todos, e novos epigrammas rebentaram n'uma grande hilaridade desenfadada.

Mas o janota de Guimarães teve uma lembrança feliz: que em tom de confidencia se dissesse aos criados do hotel que o commendador Piratinino era nada mais e nada menos que um principe disfarçado.

—E Piratinino é um bello nome para principe! observou uma senhora.{47}

—Principe... de magica, pelo menos, acrescentou alguem.

—Mas se nos perguntarem d'onde o homem é principe, que responderemos?

—Que é principe da Ribária.

—E onde ficará geographicamente a Ribária?

—Sim... isso...

—A Ribária ficará na peninsula dos Balkans, entre a Rumélia e a Bulgária, se quizerem. Nas Caldas de Vizella pode haver tudo, menos um mappa da Europa. Ninguem irá verificar; soceguem.

—Magnifico!

—Maravilhoso!

Ficou tratado que Piratinino era o principe da Ribária, e que a Ribária ficava nos Balkans. Dois minutos depois, fazia-se a revelação aos criados, pedindo-lhes a maxima reserva, para não comprometter o incognito do principe. Quatro minutos depois os criados tinham revelado o segredo ás criadas do hotel e, passada uma hora, constava em toda Vizella que no Hotel do Padre estava hospedado um principe estrangeiro muito rico. Á noite, em todos os circulos de conversação, acrescentava-se: Fabulosamente rico. E sabia-se já em toda a villa que, depois do principe, havia chegado uma carroça com bagagens, suspeitando-se que a maior parte das malas traziam joias da princeza, porque um terceiro criado as vinha guardando como o dragão de cem cabeças guardava{48} os pomos de ouro do jardim das Hespérides. Diziam alguns, com uma certeza convicta, que na Ribária havia minas de metaes preciosos, e outros, por inculcarem sciencia ou por espirito de hyperbole, acrescentavam que no principado da Ribária jámais houvera deficit.

Corria tudo ás mil maravilhas.

N'essa tarde, os principes não saíram a passeio, e d'este modo lográram inconscientemente a justa curiosidade do povo de Vizella, que se tinha agglomerado nas vizinhanças do hotel. Mas no dia seguinte pela manhã suas altezas foram tomar o seu banho á Lameira, o povo pôde vêl-os, contemplal-os, os pobres filaram-n'os, os curiosos seguiram-n'os, e o principe, voltando-se para trás, disse a um dos criados que désse esmolas aos pobres e ás creanças. O criado distribuiu para cima de dezoito vintens em cobre. Por um tris que o principe e o criado não apanharam vivas. Mas desde aquella hora, toda a gente, incluindo os hospedes que tinham inventado a blague, ficou capacitada de que Piratinino era realmente um principe.

Suas altezas saíram de tarde a passeio. Os hospedes do Hotel do Padre esforçavam-se a explicar que na Ribária a etiqueta era muito rigorosa, e que o principe não podia saudar senão os fidalgos do seu paiz. Foi preciso inventar isto, porque o povo de Vizella, que tinha visto uma vez em Guimarães el-rei D. Luiz cumprimentar{49} toda a gente, estranhava o facto. Em compensação, todos os populares cumprimentavam suas altezas, e eu pendo a acreditar que o proprio Piratinino se ia sentindo principe... cada vez mais.

A coisa constou. Vieram pobres de Guimarães, de Negrellos, de Santo Thyrso, de modo que foi preciso, no hotel, prohibir-lhes a entrada no parque. Mas elles, illudindo a ordem, penduravam-se das arvores, para serem os primeiros a lobrigar e a assaltar sua alteza o principe da Ribária. De cada vez que saía, o excelso principe tinha uma despêsa obrigada, de dezoito vintens pelo menos. E os hospedes do hotel saboreavam em segredo, n'uma risota permanente, o bom exito da sua invenção.

Um dia o criado do principe pediu informações aos criados do hotel sobre a navegabilidade do rio Vizella. Aquelle a quem a pergunta fôra feita veio, com a melhor boa fé d'este mundo, dizer aos hospedes que sua alteza ia n'aquella tarde para o rio.

—Para o rio! exclamaram os hospedes. E padre José Maria observou do lado:

—Para o Rio... de Janeiro, talvez. O principe sente-se arruinado pela mendicidade das Caldas de Vizella e seus arredores. Vai talvez restaurar a fortuna.

Mas o criado explicou: Que não. Que o principe tinha dinheiro como milho. Que ia mas era para{50} o meio do Vizella divertir-se com um barco que trouxera.

—Onde está o barco? perguntaram.

—Está dentro de uma grande mala, que veio na carroça.

Com effeito, um dos criados do principe chamou um homem, que foi ao hotel buscar a mala grande, e dirigiu-se com elle para a beira do Vizella. Pouco depois saiu o principe, todo vestido de branco, sua toilette favorita, pelo que já algumas pessoas lhe chamavam—o principe branco.

Deu-se rebate no hotel, e todos os hospedes, repartidos em diversos grupos, se encaminharam para as margens do Vizella, seguindo uns pela Lameira, outros pelo Mourisco.

O boato saíra verdadeiro. O principe estava effectivamente no meio do Vizella, pescando á linha dentro de um barco de lona, um pouco similhante áquelle, se bem que mais pequeno, em que o general Caula atravessou o Tejo n'uma experiencia feita em agosto de 1874. Na margem ficára o criado, e a mala cuja tampa estava levantada, aberta. Comprehende-se que um principe não permittisse ao criado a honra de tomar assento a seu lado dentro do mesmo barco. Já sabemos que na Ribária a etiqueta é muito rigorosa.

Toda a população de Vizella, a fluctuante e a permanente, pôde saciar seus olhos curiosos na contemplação d'esse quadro inteiramente novo ali: um principe estrangeiro pescando á linha{51} dentro de um barco de lona. Só os hospedes do Hotel do Padre se riam, porque os do Cruzeiro do Sul, que não estavam na confidencia, e os bons populares ingenuos tomavam o caso muito a serio, e contemplavam encantados o principe branco pescando.

Escusado será dizer que sua alteza não pescou coisa nenhuma. Quem pesca são os pescadores, porque teem obrigação d'isso. Os principes divertem-se, e enfadam-se.

Foi o que aconteceu a sua alteza, porque, naturalmente enfastiado, quiz abicar a terra. Mas o barco começou a rodopiar, a oscillar, e o principe, já um pouco impaciente, redobrava de esforços, de pressão.

Toda a gente sabe com que facilidade, n'estas condições, se volta um barco. Foi o que aconteceu ao do principe. Sua alteza fizera um movimento menos cauteloso, e o barco tombou. Era um vez um principe n'um charco.

Grande grita se levantou de entre os populares. Os hospedes do Hotel do Padre riam a bandeiras despregadas. Um rapazito atirou-se ao rio, para ir salvar sua alteza, que barafustava na agua. Cheirava-lhe a grande gorgeta, ao rapazito; nadava como um desesperado.

Foi-lhe facil trazer para terra o principe, e o barco. Mas o principe, que estava de fato branco, precisava mudar de toilette. A decencia reclamava-o. E emquanto o criado corria ao hotel, a pedir{52} outro fato para sua alteza, o desgraçado principe da Ribária, mettido dentro da mala, só com a cabeça de fóra, evitando olhar para qualquer parte, esperava humilhado...{53}

VI

—E eu que sei quem elle é! apostrophou o Maldonado, que era o mais silencioso de todos nós.

Achámos graça á observação, espicaçámos o Maldonado.

Elle explicou que tinha estado n'aquelle anno no Porto e que tambem lá tinha apparecido o commendador Piratinino, de fato branco, o qual seguiu d'ali para as Caldas de Vizella.

Era... disse-nos o nome, que não vem para o caso.

Mas como o Maldonado houvesse quebrado o seu silencio habitual, o Vasconcellos intimou-o a dar qualquer pequeno contingente para o nosso Decameron.

Que não; que não sabia historia nenhuma. Que não tinha geito para contar.

E a assemblea insubordinada:{54}

—Que contasse alguma coisa, senão que o levaria o diabo.

—Que de mais a mais o Maldonado não era baldo de gosto litterario: conhecia os poetas gregos, lia muito Theócrito.

—Que, finalmente, contasse alguma coisa obrigada a Theócrito.

Muito instado, cedeu.

—Pois ahi vae um caso, offerecido ao Leotte.

—Oh!

—Uma lição de moralidade para quando elle fôr avô.

—Que genero?

—Genero realista. Eu, infelizmente, não tenho a imaginação do nosso Gonçallinho. Conto o que aconteceu. E, sem mais preambulos, ahi vae.

—Eram dois velhinhos, seccos e rosados, alegres e gaiatos, muito amigos, socios na patuscada, sempre de mãos dadas, como dois banqueiros do amor, nos sindicatos do prazer.

Ambos casados, os marotos, mas azevieiros como Anacreonte. Tendo sugado na flôr do matrimonio todo o mel de uma longa lua nupcial, deitaram a correr aventuras, de braço dado, por amor da variedade, beijando, como borboletas insaciaveis, o nectario de todas as flôres que encontrassem na sua marcha triumphante.

Calados como ratos, de muito segredo e de muita ronha, iam saboreando a vida e zombando{55} da velhice, que apenas ousava nevar-lhes os cabellos, respeitando o coração e o mais.

Tiveram filhos canonicos e souberam educal-os. Conciliando os seus deveres de chefes de familia com os seus apetites de uma mocidade perpetua.

Sempre muito dissimulados, toda a gente os tinha por impeccaveis. Mas elles, a sós, um com o outro, riam-se de toda a gente. Eram solidarios: e confidentes nas suas rapaziadas inverniças, e fechavam a sete chaves o segredo das suas funcçanatas serodias.

Um tivera uma filha, que casou; o outro tivera um filho, que tambem casou. Mas a filha do primeiro não casou com o filho do segundo, por accôrdo dos dois velhos.

—Não quero o teu filho para a minha filha, disse o primeiro ao segundo, em segredo, porque receio que elle saia ao pae, e largue a fazer infidelidades como tu.

E riram os dois, dando-se pansadinhas,—eh!—eh!—como se estivessem em plena verdura da mocidade. Mas em casa, deante do genro e deante da nora, não ousavam falar em Theócrito, a não ser para reproduzir algum verso casto do bucolico grego, como por exemplo aquelle em que a pastora diz a Daphne: «O casamento não tem penas nem dôres; mas sómente alegria e danças.»

Secretamente, no fundo da sua consciencia, elles estavam de accôrdo quanto ás danças do casamento,{56} porque varias vezes se tinham visto mettidos n'ellas por causa da sua libertinagem, receosos das consequencias de alguma conquista aventurosa.

Intimamente, rezavam pela cartilha de Theócrito, não quando elle preconisava as alegrias do casamento, mas quando, por exemplo, fazia o elogio do beijo roubado a uma pastora sem a responsabilidade do matrimonio.

Cada um dos dois velhos teve um neto. Agradeceram muito á Providencia o favor de lhes dar netos do sexo masculino, porque os lisonjeava a ideia de que os netos lhes honrariam, por hereditariedade, a tradição patusca.

Á medida que os rapazes foram crescendo, mais os dois velhinhos frascarios se fecharam em maior discreção, de modo que das suas aventuras serodias não pudesse chegar noticia aos netos.

Pela primavera, quando as arvores rebentavam e os campos erveciam, sentiam-se renascer, vibrar; e sempre que o pé lhes escapava para a folia, cuidadosamente afivelavam a mascara, para não serem apanhados com a bocca na botija.

Os rapazes estavam uns homensinhos, de cara penugenta, e os dois avós concertaram entre si ir-lhes dando algum dinheiro, para que não guardassem toda a mocidade para a velhice.

—Como nós... dizia um.

—Eh! eh! respondia, rindo, o outro.

E ao cabo de alguns momentos de meditação:{57}

—Isto tem que ser por força... exclamava um.

—Isto, o que?

—Dar com a cabeça pelas paredes, e fazer tolices. Portanto, quanto mais cedo a tempestade passar, melhor. Eu bem o sei... Comecei muito tarde, é o que foi...

—E eu!... ponderava o outro.

Ora a verdade era que elles tinham começado desde o principio, que é a maneira mais logica e chronologica de começar.

Os rapazes gastavam dinheiro, que os velhos lhes davam, e como a mocidade não é mais do que a primavera da vida, elles tinham, a respeito dos avós, a vantagem de não precisarem esperar pelo calendario.

Atiravam-se.

A primavera do anno chegára, e os dois velhos, galvanisados por ella, deitaram-se a farejar conquistas por toda essa Lisboa galante.

Mas, como dois gastronomos do amor, que sempre foram, já estavam um pouco aborrecidos de bons petiscos, e o que elles agora queriam, a proposito de petiscos metaphoricos, era achar iguarias optimas.

—Achei! disse uma vez um velho ao outro.

—Aonde?

—Longe, mas bom.

—Aonde?

—Á Penha de França.

—Irra! que é longe! Mas dize lá.{58}

—Vinte e quatro annos. Formas redondas, linhas esculpturaes, frescura, belleza, mocidade. Uma alface, que a gente tem vontade de trincar, para refrescar-se.

—Já o sabes?

—Suspeito-o, pelo que vejo. Mas tenho aqui um bilhete de apresentação para nós ambos.

—Bravo! excellente! Lá iremos...

E á noite, das nove para as dez horas, os dois velhinhos passaram por entre filas de lojas illuminadas, desceram honestamente o Chiado sem olhar para as estrellas cadentes, que lhes davam encontrões, tão honestamente como se fossem á Baixa comprar bolos moles para as esposas desdentadas.

Muita gente os cumprimentava, e elles correspondiam ao cumprimento com a gravidade austera de duas pessoas idosas que fossem caminhando para um lausperenne.

Mas, lá por dentro, no que elles pensavam era no alto da Penha: uma casinha de um andar, menos mal alfaiada, com rotulas verdes no rez-de-chaussée.

E n'um passinho curto, mas rendoso, atravessaram a Baixa, passando honestamente por entre filas de lojas illuminadas, foram andando, andando, ganhando o largo do Intendente, galgando para Arroyos, sempre a rir lá por dentro—eh! eh!—até que começaram a marinhar lentamente pelo Caracol da Penha, aonde o perfume do prazer{59} lhes parecia chegar já, como o bom cheiro de uma cozinha, que se sente ao longe. Chegaram ao alto da Penha.

—É ali, disse um.

—Ha luz no rez-de-chaussée, observou o outro.

E espionaram, que não fosse alguem suspeital-os. Depois, cautelosamente, aproximaram-se das janellas de rotulas verdes. Ouviram conversar, rir. Na Penha de França, ás dez horas da noite, o vicio tem confiança na solidão: não é preciso fechar as portas das janellas.

—Espreitemos e ouçamos.

—Sim... ouçamos e espreitemos.

E após um momento de silenciosa contrariedade:

—Ha homens, e eu conheço as vozes. Depois, puxada a gola ás faces, os chapeus enterrados na cabeça, continuaram escutando.

E, de subito, caminhando para o intervallo das janellas, medrosos, desapontados, disseram, com os labios colados á orelha um do outro:

—São os nossos netos!

De repente, como se ambos obedecessem ao mesmo pensamento, deitaram a descer por ali abaixo, a descer, fazendo da fraqueza forças.

Só na rua direita de Arroyos tornaram a parar. Certificando-se de que não eram seguidos, exclamaram de novo:

—E esta! Eram os nossos netos!...{60}

Foi abraçado o chronista, que realmente nos soubera prender a attenção. O seu numeroso amigo Leotte, em agradecimento da dedicatoria, pegou no Maldonado ao collo. Uma ovação!

A breve trecho, o relogio do Victor dava meia-noite.

—Mas então, apostrophou o Gonçallinho, a gente ha de ir-se embora sem ouvir os rouxinoes?!

Vozes, ao levantar da feira:

—Amanhã!

—Amanhã!

O Gonçallinho Jervis disse-me que ia para o seu quarto escrever.

—O que vaes tu escrever, meu lyrico?

—Vou, antes que me esqueça, dar forma ao outro conto que pensei pelo caminho.

—Ah! A morte do bibliophilo? Pois vae, e ámanhã o lerás.

Ia eu para deitar-me, quando o Leotte, muito intrigado ainda com a historia de D. Maria de Alarcão, entrou no meu quarto, procurando certificar-me de que, para desenvencilhar mysterios de mulheres, tinha elle faro como ninguem. Que eu veria; que ou a rapariga tinha falado com sinceridade ou que elle era um grande tolo, do que não estava convencido.

Depois pegou a contar casos do seu tempo de Coimbra, memorias de condiscipulos e já eu tinha perdido o somno quando elle abordou a historia do seu condiscipulo Barcellos.{61}

—Quem era esse? perguntei.

Como lhe dei trella, foi um gosto ouvil-o.

Barcellos, o grande, passou quasi desconhecido fóra de Coimbra, onde se doutorou, e fóra de Salvaterra de Magos, onde nasceu.

Bohemio e improvisador como Bocage, fez a sua lenda em Coimbra, no meio de uma sociedade de rapazes em que a falta de talento era tida como rarissima falha de toque denunciada na contrastaria intellectual da Universidade. Na terra dos cegos, quem tiver um olho é rei. Mas o Barcellos galgou ao primeiro premio e ao primeiro logar através de uma basta legião de sujeitos em que os anonymos eram pequenissima excepção.

O Barcellos apenas differia de Bocage em não reproduzir pela escripta as suas composições. Falou; toda a sua vida se foi n'isso: falar. Teve improvisos felicissimos, extraordinarios, principalmente em prosa. Verba volant. Os seus discursos não foram fixados pela stenographia. Não são conhecidos no paiz. Mas aquelles que lh'os ouviram, jámais poderão esquecel-os.

De copo em punho, a graça, a verbosidade, a satyra e a anecdota emergiam da onda rubra do Bairrada como Venus do seio da vaga azul do oceano. Uma belleza! um primor!

A Universidade quiz doutoral-o. Elle respondeu que em Salvaterra de Magos um capello era a insignia mais inutil d'este mundo. Redarguiram-lhe{62} que um capello equivalia a uma cathedra. Lá isso não! elle só tinha geito para ser estudante, respondeu. Visto que deixava de ser estudante, iria para Salvaterra annullar-se. Mas a Universidade teimou em dar-lhe o annel de doutor. Elle enfiou-o no dedo, e tratou de annullar-se em Salvaterra.

Metteu-se em casa. Saía da cama para ir jantar, e ás oito horas da noite, de charuto ao canto da bocca, apparecia na botica, que o esperava com interesse. Tomava a palavra, monopolisando-a, logo que lhe lembrassem um assumpto, qualquer que fosse.

Falou-se uma noite da intelligencia dos cães. Um caçador da localidade contou, como quem lança á terra uma semente para que se reproduza, a historia de uma perdigueira, que tinha a idolatria da caça. Em passando um caçador de arma ás costas, ainda que lhe fosse desconhecido, a perdigueira seguia-o. Em ouvindo assobiar, punha-se de orelha fita, e partia. Era um estranho que a chamava? Não se lhe dava d'isso: acompanhava-o. O seu gosto, o seu enthusiasmo era a caça. O caçador disparava o primeiro tiro. Acertava? caía uma perdiz? A perdigueira pulava de contente, estava alegre e interessada para todo o dia. Falhava o tiro? A perdigueira começava a olhar desconfiada para o caçador. Falhava um segundo tiro? A perdigueira amuava, aborrecia-se. Mas se o terceiro tiro falhava, a perdigueira{63} desandava para casa, abandonando o caçador.

O grande Barcellos ouvia sorrindo, aquecendo, vibrando, como Bocage nos mais felizes raptos da improvisação. Lançado o assumpto, apanhava-o no ar, senhoreava-o, fréchava-o de glosas em que a imaginação refervia torrencial.

—Não me admiro, disséra n'essa noite o Barcellos, erguendo-se e passeando, muito peripoletico e muito jovial. Eu lhes conto o que me aconteceu em Coimbra, a proposito da intelligencia dos cães. Era no meu sexto anno. Estava-me preparando para defender theses. Uma estopada que a Universidade me metteu pela porta dentro! Recolhia uma noite para casa, na rua do Correio, paredes meias do predio onde o Mata-frades nasceu. Á esquina da Sé Velha, oiço ganir dolorosamente um canito na escuridade. Aproximo-me, curvo-me...

E, de cocoras, elle representava, como um actor consummado, a sua narrativa.

—Encontro effectivamente um cão, um pequeno cão vadio, um desherdado da fortuna, com uma perna partida. Pobre animal! Levanto-o cautelosamente, chego-me a um candeeiro, examino a fractura. Sinto na minha alma esse generoso impulso de caridade que todo o racional completo sente pelo irracional incompleto. A gente ri-se ás vezes de um homem coxo: mas sente-se abalado perante um cão que anda de perna no ar. São segredos{64} da nossa incomprehensivel natureza, que difficultam o principio theorico da fraternidade universal. Entro em casa, deponho delicadamente o canito sobre a minha cama. Vou á estante. Tiro o primeiro livro encadernado em que puz os dedos. Era um Michelet. Deixal-o ser. Tanto melhor! Um philosopho humanitario estava a calhar para uma acção meritoria. Rasgo a encadernação. Corto-a em tiras, e applico as talas á perna quebrada. Ligo-a. Ponho o cão sobre uma cadeira, cubro-o com a minha capa de estudante. Deito-me. Adormeço.

O grande Barcellos accendeu outro charuto, afastou do pescoço o seu alto collarinho engommado, e proseguiu:

—Ao cabo de vinte dias de tratamento, a fractura tinha solidificado. Tiro ao cão o apparelho cirurgico, e elle, sem lamber a mão que o havia beneficiado, rompe pela porta fóra, desce a escada, safa-se pela rua abaixo de rabo caído. A ingratidão dos cães! meditei eu. Nem um olhar, nem uma caricia, uma demonstração qualquer de agradecimento! Fosse um homem, e abraçar-me-ia. Fosse uma mulher, e beijar-me-ia. Era um cão: safou-se como quem era. Ah! meus amigos, que errado juizo este! Cerca de dez dias depois, estava eu, de papo para o ar, lendo uma d'aquellas coisas que a gente só lê em Coimbra: um doutor. Um doutor que tem escripto é a praga maior que se conhece. Sinto arranhar na porta do quarto:{65} primeira vez, segunda vez, terceira vez. É um gato! disse eu. Atirei fóra o doutor, saltei da cama, pego no meu bastão da noite e abro a porta disposto a enxotar o gato impertinente. Sabem os srs. quem era? Era o meu cão da perna partida, são como um pêro. Mas trazia outro, trazia outro cão, que tambem quebrára uma perna. Achei-lhe graça. «Com que então, disse eu voltando-me para o ingrato canito de que tão cuidadosamente havia tratado, tu pensas que isto aqui é casa de algebista? Achas mais barato do que ir ao endireita? Abriste conta corrente comigo? Mas quando pagas tu, refinadissimo tratante? Safaste-te á franceza: nem uma, nem duas! e trazes-me agora um amigalhote coxo para que eu o concerte?» E o meu cão crivava o seu vivacissimo olhar em mim, como a perguntar-me se eu entendia o sentido da sua visita. O outro, de perna no ar e focinho no chão, esperava pela consulta. «Mas no fim de contas, disse eu, tu tens ao menos uma qualidade nobre: és amigo do teu amigo. Elle quebrou uma perna, é teu parceiro na bohemia, sabes que eu concerto pernas, e vieste cá. Pois vamos lá a isso, meu ingrato de uma figa.» Tiro outro livro da estante, e ponho duas talas de papelão na fractura do canito. Deito-o sobre uma cadeira, mando-lhe dar de comer, mas emquanto espero que a servente traga umas sopas, o introductor safa-se pela escada abaixo. Não está má esta! reflexiono. Com que então isto é chegar, vêr e vencer! Mas... mas{66} pensei que talvez um sentimento de delicadeza obrigasse o meu cão a retirar-se: quereria porventura poupar-me ao sacrificio de sustentar dois hospedes. Seria ou não seria. No dia seguinte vejo-o entrar de repente. Põe-se do chão a olhar para o outro, que estava na cadeira, certifica-se de que elle tem as talas, de que está em tratamento, de que eu sou um endireita acabado e um philantropo inexgotavel. Sái. Durante oito dias ninguem o vê mais, talvez para me significar que confiava plenamente na minha cirurgia. Ao nono dia volta a visitar o amigo. Olha para elle, parece dizer-lhe com os olhos—Isso vae bem—e raspa-se. O curativo chegou a seu termo, e o meu cão nunca mais voltou. Levantei o apparelho com a mestria que dá a pratica. Lembrei-me até de abrir um consultorio para cães; mas tive receio de que a faculdade de medicina me fizesse instaurar processo, visto que eu só podia abrir consultorio para demandistas. O cão safou-se como o outro, sem um olhar, uma caricia, uma qualquer manifestação de agradecimento.

—E nunca mais os viu? perguntaram ao grande Barcellos.

—Lá vamos, respondeu elle. Fiz exame de licenciado, defendi theses, tomei capello. Dia cheio na Universidade, o do capello. Puz na cabeça uma borla doutoral, e recebi auctorisação solemne para acrescentar ao meu nome mais seis lettras. A Universidade confirmou o tratamento que a minha{67} servente me dava desde o primeiro anno. Abraços dos lentes e de toda a mais doutorança; abraços dos estudantes, abraços dos archeiros. A propria Cabra parecia dizer-me: Se eu pudesse descer, mettia-te os tampos dentro. Vou a casa para descansar do capello, emquanto n'um hotel da baixa se prepara o jantar do doutoramento. Desço até á Sé Velha, entro na rua do Correio, aproximo-me de casa e vejo á minha porta, cada um de seu lado, os dois cães que eu concertei, e que me iam dar os parabens! Aqui teem os senhores o que é a intelligencia do cão.

Tal foi—exclamava o Leotte enthusiasmado—a improvisação do grande, do immortal Barcellos n'uma noite da botica. E todas as outras noites eram assim.

—Ó homem! atalhei eu. Vae deitar-te e deixa-me dormir, que são duas horas da noite!{68}

{69}

VII

Depois de um terceiro dia passado no mais delicioso pantheismo vadio de que ha memoria, e em que o Leotte, sempre intrigado com a historia da criada, houve por bem, malgrê lui, acompanhar-nos, reunimo-nos, depois de jantar, no salão do Victor para continuarmos os nossos serões litterarios, a que, seja dito de passagem, já todos mais ou menos iamos tomando gosto.

As reluctancias que alguns, a principio, manifestavam, quando o presidente Vasconcellos e o sabio congresso os intimavam a falar, iam desapparecendo. Com mais um mez de Cintra, saía d'ali um enxame de oradores. Que desgraça, se tal acontecesse!

Durante o dia, mettemos á bulha o Leotte por causa do seu supposto achado de uma fidalga na cozinha do Victor. Elle estava um pouco azoinado{70} com a nossa troça. E, por orgulho ou convicção, promettia, protestava tirar o caso a limpo.

Já n'aquelle mesmo dia, pela manhã, apesar de se ter deitado tarde como eu, havia trocado com a rapariga algumas palavras, poucas: e ella asseverara-lhe, dizia elle, que havia falado verdade na vespera.

—A rapariga tem um certo ar de ingenuidade, que me convence! insistia elle.

—Contou-te o seu romance, como todas, exclamou o Vasconcellos. Parece que não conheces o genero! Muito tolo és!

—Conheço o genero, conheço, mas, por isso mesmo, acho que ella fala mais verdade do que todas as outras que costumam impingir-nos o seu romance. Emfim, veremos. Deixem-me vocês em paz.

Á noite, no Victor, não houve duvidas sobre quem primeiro falaria. Pois que o Gonçallinho Jervis havia escripto já o seu segundo conto, como de manhã confessára, foi-lhe concedida a palavra, e, em verdade, outra coisa não desejava elle.

Ouvimos pois, no meio do silencio regulamentar, que o Vasconcellos não deixava interromper, a narrativa que o nosso bom Gonçallinho planeara na almofada do char-á-bancs ao lado do cocheiro. O que é o poder da imaginação juvenil! Foi ao lado de um cocheiro de praça, que naturalmente cheirava a aguardente e suor, que elle{71} phantasiou essa em verdade joiasinha litteraria, por elle proprio denominada A morte do bibliophilo.

—O bibliophilo Joseph, contou, era uma alma antiga, um espirito classico, que vivia no pó dos livros e no pó das ruinas.

Todo o mundo da sua actividade intellectual, concentrada e profunda, havia passado já, mas elle resuscitava-o, nas suas cogitações luminosas, tão vivo e tão perfeito, como se a idade-média, que de preferencia amava, fosse um ramo de flôres, de que pudesse sentir ainda o perfume longinquo.

Barbaros que invadiam a Europa, cavalleiros e trovadores, castellãs e pagens, guelfos e gibelinos, cruzados que partiam para a Terra Santa, burguezes que levantavam o grito da insurreição communal contra os senhores feudaes, exercitos que se despedaçavam n'uma guerra de cem annos ergendo os pendões da França e da Inglaterra, o imperio succumbindo perante o papado no parque do castello de Canossa, para resurgir depois triumphante na batalha de Volksheim; Roma desabando na sua grandeza moribunda, ao passo que as monarchias modernas palpitavam na primeira vibração da sua vitalidade autónoma, mares tenebrosos que se estavam offerecendo á quilha das primeiras naus descobridoras, como um terreno inculto ao dente fecundador da charrua, vagas revoltas de uma grande epopêa maritima,{72} que espumavam anciosas da apparição de um Gama dominador, tudo isso rolava no seu espirito, como no sonho de uma febre permanente, passando, agitando-se, baralhando-se tumultuariamente sobre a tela historica de dez seculos de civilisação medieval.

Em torno da sua alta cadeira de braços, a que estava sempre preso como Prometheu ao rochedo, longas filas silenciosas de canções de gesta e de novellas de cavallaria, in-folios de capas de pergaminho levemente rugoso, grossos volumes de encadernação tão dura como um arnez, formavam disciplinarmente, á espera que elle, com um simples volver de olhos, os chamasse á refrega de todos os dias, lhes désse a voz de commando, o grito de alarma.

Sorriam-lhe do alto da estante, como que constituindo a ala dos namorados n'aquelle exercito de livros, os poemas carlovingeos, cheios da poesia dos combates, como na Canção de Rolando, cheios de ingenuidade heroica, como na Canção do Figueiral; os poemas da Tavola-redonda em que o espirito cavalheiresco pairava, como a borboleta na indecisão de dois nectarios, entre a lenda do rei Arthur e a tradição do Santo Graal.

Depois galopavam para elle, mal que os chamasse com os olhos, os esquadrões interminaveis dos cavalleiros andantes, fazendo flammejar no ar a espada nua, desembainhada em honra{73} de uma dama, que á noite, nas côrtes de amor, emquanto dois trovadores se digladiassem improvisando tensões, lhes havia de dar n'um sorriso, feito de rosas e perolas, o premio da victoria.

Ah! como o bibliophilo Joseph amava tão de dentro, tanto do imo peito, esse galante mundo aventuroso que divinisava a mulher a ponto de que, derrubado o altar por Cervantes, toda a realidade da belleza parecia tão pallida como o reflexo do sol agonisante resvalando nas vidraças coloridas d'uma janella gothica.

Foi por isso que bibliophilo Joseph passára toda a sua vida sendo um celibatario sem familia, longe do calor absorvente das fundas affeições domesticas, na solidão sepulcral que só os livros povoavam.

Herdára de um velho tio todas as preciosidades bibliographicas que completavam o thesouro da sua bibiotheca. Abrira, por desfastio, o primeiro livro, como um operario insciente que experimenta a medo a engrenagem de uma machina. Impellido por uma especie de dever sagrado, que lhe era imposto pela posse de um legado querido e precioso, foi voltando pagina sobre pagina, mas, a meio da leitura, como o viajante que fica encantado de encontrar um bello paiz desconhecido, sentiu-se preso pelo interesse e pela curiosidade e, chegando á ultima pagina, reconheceu que, tendo penetrado n'um palacio maravilhoso, o seu espirito exigia d'elle que não parasse no vestibulo.{74}

Foi assim que a pouco e pouco devassou os segredos do passado fechados n'esses cofres de pergaminho, n'esses velhos codices poeirentos, que lhe deram a clara noção do cyclo cavalheiresco, em que a mulher, poetisada pela imaginação, perdia toda a mundanidade vulgar, para se exalçar pelo amor que a divinisava.

Purificados no crisol da idade-média, todos os sentimentos humanos pareciam nobilitar-se de uma peregrina fidalguia, de uma lealdade heroica, de uma abnegação sobrenatural, que nenhuma outra civilisação pudera reproduzir nem copiar integralmente.

Amadiz era para elle um symbolo epico da alma antiga.

Ferido em combate, mas fortalecido pelo seguro amor que Oriana lhe inspirara, elle havia recusado a mão de Briolanja porque, n'aquelles tempos de fé imperturbavel, o coração era feito de diamante para resistir aos golpes da tentação e para no seu proprio brilho conservar inalteravelmente lucida a imagem uma vez gravada.

Bibliophilo Joseph vivia absorvido como um rei excentrico na sua vasta côrte de livros, rodeado apenas de Amadizes e Palmeirins imaginarios, com os quaes praticava longas horas, ouvindo-os e respondendo-lhes, inquirindo do passado com uma devoção fanatica.

Um criado que o servia, o velho Leão, era a unica pessoa que podia entrar no recinto sagrado{75} da bibiotheca, mas tendo comprehendido intuitivamente a paixão dominante do amo, impuzera-se o dever de não a perturbar jámais.

Leão, de origem castelhana, havia passado na mocidade pela casa dos Medina-Sidonia, e tomára desde então um gesto de grave compostura, que não perdera nunca.

Vestindo todos os dias a sua casaca, atando a sua gravata branca, para servir o sabio, como o havia feito, na mocidade, para servir os Medina-Sidonia, Leão cumpria religiosamente o seu dever de grande escudeiro de uma côrte sem cortezãos.

Não dirigia nunca a palavra a seu amo se não para responder concisamente ás perguntas que elle lhe fazia. Entrava na bibliotheca sempre em bicos de pés, quando o amo lá estava, e muitas vezes, por já ter passado a hora do jantar, pousava ao de leve sobre a vasta escrivaninha de castanho, a que o bibliophilo se sentava, uma pequena bandeja contendo uma ligeira refeição, que o amo tomaria se quizesse. Leão retirava-se silenciosamente, deixando ao bibliophilo toda a plenitude do goso de jantar no meio dos seus livros com o Bimnarder da Menina e moça e com o Danteo da Diana de Montemayor.

O mais que Leão se permittia fazer, depois de ter deixado ficar a bandeja, era espreitar pela fechadura da porta, receoso de que o amo se houvesse esquecido de estender o braço para aproximar a refeição.{76}

Leão tinha uma grande dedicação antiga por aquelle homem cheio de sciencia e de virtude, que atravessava a existencia sem se contagiar das paixões mundanas, conservando intacto um coração de ouro e um espirito de luz.

Se via o amo ingerir á pressa a refeição, tranquillisava-se, e só voltava tempo depois a espreitar pela fechadura da porta para o vêr dar um pequeno passeio hygienico, enrijecendo as pernas, em roda da bibliotheca, como se andasse passeando n'um jardim, batendo os pés deante dos canteiros, parando a observar as etiquetas latinas das plantas.

O que bibliophilo Joseph examinava era a sua collecção preciosa de rosas bibliographicas, de raras tulipas litterarias. Demorava-se olhando a lombada dos quatro in-folios da Vita Christi; tirava da estante, para acarinhal-a, a Historia do mui nobre Vespasiano; fazia uma rapida visita ao Pentateuco hebraico e ao Almanach perpetuus, que eram proximos vizinhos; folheava, envolvendo-o n'um olhar em que gorgeavam beijos paternaes, o seu querido Boosco deleytuoso, que lhe exhalava nas mãos, como um lirio aberto, todo o perfume da antiguidade quinhentista.

Leão via o bibliophilo entregue a esse bom passeio hygienico, que tanto lhe deleitava o espirito, e acabava de tranquillisar-se pela saude de seu amo, que, muitas vezes, quando não alternava com a leitura o menor exercicio muscular, tinha{77} tido, ao levantar-se da cadeira, depois de longas horas de vida sedentaria, vertigens gastricas.

Quando a noite principiava a cair, Leão entrava com o enorme candieiro de tres bicos, cuja luz uma larga pantalha de latão afrouxava. Poisava-o sobre a escrivaninha, com o leve ruido de uma mosca que passasse, e ia accender, ao fundo da bibliotheca, o fogão de sala, fortemente chapeado de ferro, para não communicar calor ás paredes.

Cá fóra, na rua, principiavam, d'ahi a pouco, a rodar as carruagens que batiam para os theatros, para as festas frivolas da noite. Umas vezes por outras passavam fanfarras, folias populares, que iam para os clubs operarios improvisados ao ar livre. Outras vezes sentia-se o estrondo de bombas de incendio, que passavam, arrastadas vertiginosamente; e os sinos da cidade, alvoroçados, ouviam-se badalar, pedindo soccorro.

Mas nunca esse movimento exterior eccoava na habitação solitaria do bibliophilo de modo a perturbar a paz do seu espirito. Parecia que ao sol posto se tinha erguido a ponte levadiça de um castello, bem defendido por um cinto negro de ameias e de fossos.

Só excepcionalmente bibliophilo Joseph fozia soar a campainha para chamar o seu velho Leão.

Comprehende-se, pois, a angustia com que o{78} dedicado escudeiro ouviria uma noite dois toques de campainha consecutivos.

Correu á bibliotheca.

Bibliophilo Joseph, quando elle entrou, forcejava por levantar-se da sua alta cadeira de braços, mas as forças traíam-n'o, as pernas dobravam-se-lhe, e o sabio, muito pallido, encostou-se, vencido pela doença, sobre o espaldar.

Leão acudiu-lhe carinhosamente, levantou-o nos braços tremulos, foi depôl-o no leito, chorando.

O bibliophilo sentiu-lhe as lagrimas, colheu-lhe docemente a mão, abriu os olhos, demorou-os fitando-o, e disse-lhe:

—Não chames ninguem, que ámanhã estarei melhor.

Toda a noite o velho Leão velou junto ao leito de seu amo, que, levemente anciado, parecia de vez em quando, com os olhos abertos, querer fixar o pensamento n'um ponto vago, que lhe fugia.

Ao romper da manhã, Leão, sentindo um movimento nervoso do doente, interrogou-o.

Bibliophilo Joseph, com a face marmorisada n'uma pallidez terrena, disse-lhe abrindo um sorriso triste:

—Queria, meu velho amigo, que me realisasses um desejo.

Leão, pendido ao leito, o peito offegante, escutava reverente.{79}

—Que me amparasses com o teu carinho até á bibliotheca.

O velho criado levantou-o nos braços, envolto nas roupas do leito, e foi sental-o, entre almofadas, na alta cadeira de respaldo.

Um cansaço extremo parecia aniquilar o bibliophilo, ao passo que Leão sentia rijos os seus braços como se fôssem de ferro.

Com doloroso esforço, bibliophilo Joseph disse ao velho escudeiro, indicando-lhe uma estante:

—Traze d'ali o D. Quichote de Miguel Cervantes. Abre-o, e lê onde entenderes melhor.

Leão correu á estante, tirou o D. Quichote de la Mancha, e, aproximando-se da cadeira do amo, caiu de joelhos, com o livro aberto.

Lentamente, a voz embargada pelos soluços, começou a ler, e emquanto elle lia, o bibliophilo, cerrados os olhos, escutava cada vez mais anciado...

Foi assim que aquella alma cristallina, para quem a idade-média tinha sido uma delicia, exhalou o derradeiro suspiro, emquanto o velho Leão, sempre de joelhos, lia o D. Quichote de Cervantes,—o epitaphio eterno da idade-média.

Os applausos foram unanimes, postoque nem todos os ouvintes gostassem sinceramente d'esta especie de contos, a que o Vasconcellos, com maior ou menor propriedade, chamava phantasticos. Elle, por exemplo, preferia a escola realista: estava mais no seu genio, aliás pouco propenso a idealisações romanescas. Mas a verdade era que,{80} afastada a questão de assumpto, o Gonçallinho Jervis lográra dar á sua narrativa uma forma litteraria, que revelava um escriptor.

Do Leotte sabia o Vasconcellos que não viriam phantasias, fabulações romanticas; que, pelo contrario, quando o Leotte falasse, seriam assumpto obrigado as mulheres. Ora no conto do Gonçallinho, segundo a expressão do Vasconcellos, nem meia mulher apparecia.{81}

VIII

Foi pois o Vasconcellos, que n'essa noite excedia o seu bom humor habitual, quem lembrou que, para contrapor ao Gonçallinho, só havia um homem entre nós, e que esse homem era o Leotte.

Estavamos n'isto, quando o Victor, dono do hotel, appareceu á porta da sala, pedindo-nos licença para entrar.

—Era negocio urgente, dizia elle.

Convidámol-o a entrar, sentar-se, e dizer.

No fim de contas, o negocio era simples.

Do proprietario do Hotel Braganza, de Lisboa, recebera elle um telegramma pedindo-lhe que na manhã seguinte tivesse promptos, pelo menos, um quarto e uma sala, contigua ao quarto, para um brazileiro e sua esposa.

Precisava portanto que um de nós, o Maldonado, mudasse de aposento, porque occupava justamente o que preenchia aquellas condições.{82}

Despachado favoravelmente o requerimento, logo. A uns alegrou—e foi d'este numero o Leotte—a chegada de novos hospedes, especialmente de uma mulher; a outros, que estavam saboreando a liberdade da solidão, contrariou a noticia. Eu pertencia a estes ultimos.

Apanhando o Victor a geito, falámos-lhe na criada fidalga, como nós diziamos. Pedimos informações.

—Ella conta sempre essa historia, acho eu, disse-nos o Victor, mas isso tem-me interessado pouco. São lá coisas dos criados uns com os outros. O que eu posso dizer é que a Rosa tem, effectivamente, algum ar de não ser tão grosseira como as outras criadas. Mas, se v. ex.as o desejam, perguntem-lhe a ella mesma por isso, quando quizerem, menos hoje, porque ella está engommando roupa. Póde ser ámanhã ou quando v. ex.as quizerem, se fazem tenção de se demorar.

Agradecemos a concessão que o Victor nos fizera, naturalmente para equilibrar a concessão que nós lhe fizemos do quarto do Maldonado.

O Leotte estava triumphante: que não se tinha enganado; que já iamos vendo que quem tinha razão era elle, porque o proprio Victor confessára que a Rosa não era tão grosseira como as outras criadas.

E alegre por esta revelação, teve ainda menos duvida do que a principio em contar uma tolice qualquer que lhe lembrasse, dizia elle.{83}

—Vou-vos dizer um caso engraçado e verdadeiro, annunciou o Leotte.

—Isso é que se quer, approvou o Vasconcellos.

—-Com mulher? perguntou o Maldonado.

—É dos autos... respondeu o Leotte. Toujours la femme.

—A historia do conde? perguntei eu.

—Não; essa fica para outra vez. É uma que me lembrou agora.

Ouvimos.

—Voltavam de uma praia, não muito distante de Lisboa, tres amigos que na melhor das intimidades tinham feito juntos a sua estação de banhos.

Vocês de certo os conhecem pessoalmente, mas a mim corre-me o dever de lhes occultar a individualidade sob a mascara do pseudonymo.

Poderia, é certo, chamar-lhes os amigos Tres estrellas, mas as estrellas sempre tiveram fama de romanticas, e o conto é seu tanto ou quanto realista. Uma coisa brigaria com a outra. Prefiro pois inventar tres nomes de guerra e charmar-lhes:

Arthur Reinaldo.

Leopoldo Ambrosio.

Jacinto Procopio.

E, declarados os nomes, a ninguem será licito duvidar dos recursos da minha imaginação.

Os nossos tres heroes pagaram a sua conta de{84} hotel, fecharam as suas malas, e dirigiram-se para a proxima estação do caminho de ferro.

Chegando ahi, encontraram na sala de espera uma senhora distinctamente elegante, vestida de preto, coberto o rosto com um espesso véu.

Todos tres arderam em curiosidade de vêr-lhe a face, e de saber quem fosse.

Mas o véu era impenetravel á perspicacia de seus olhos.

Quando chegou o comboio, offereceram-se, como bons cavalleiros andantes, para conduzir ao wagon as malas da mysteriosa dama. Simples pretexto para entrarem na mesma carruagem.

A traça vingou, vieram juntos. A dama mostrou-se amavel, espirituosa até, mas o véu, sempre pendente, continuava a occultar-lhe o rosto, que elles tanto desejavam vêr.

A distancia não era grande, e, graças á boa companhia em que vinham, ainda mais pequena lhes pareceu.

Chegaram a Santa Apolonia depois da meia noite, despediram-se da sua companheira de viagem, que lhes agradeceu a amabilidade com que a trataram, mas, como era natural, todos elles desejavam seguil-a para ficarem sabendo onde morava em Lisboa aquella mysteriosa dama, que tanto lhes dera no goto.

Pensaram comtudo que seria inconveniente seguirem-n'a todos tres ao mesmo tempo, e de commum accordo resolveram delegar n'um só esta{85} empresa, sob compromisso solemne de que narraria aos outros com a maxima exactidão tudo quanto se passasse.

Jacinto Procopio foi o escolhido para tão importante commissão de confiança.

Feito o accordo, despedidos os tres, Jacinto Procopio, investido nas suas funcções de espião galante, vê a dama aproximar-se da fila de trens que estacionavam no Largo dos Caminhos de Ferro.

E ouvindo rodar uma das carruagens, que devia ser aquella que a mysteriosa dama havia tomado, entra n'outra carruagem, ordena ao cocheiro que largue sem perda de vista aquelle trem que acabava de partir.

O cocheiro assim fez, guiado pelas lanternas da carruagem que o precedia. De vez em quando Jacinto Procopio, pondo a cabeça fóra da portinhola, espreitava; e, como visse as lanternas a brilharem como dois pharoes no trem da frente, tranquillisava-se.

Haviam chegado ao Terreiro do Paço, e o cocheiro da primeira carruagem parou de repente, fazendo signal ao do segundo trem para que passasse adeante.

Jacinto Procopio disse com os seus botões:

—É ella que não quer ser seguida. Pois tenha paciencia, porque eu não estou resolvido a fazer-lhe a vontade.

E falando para o cocheiro:{86}

—Não faças caso. Deixa-te ficar.

Houve um momento de espera. O primeiro trem continuou rodando, e o segundo tambem. Seguiram um atraz do outro ao longo do Aterro, subiram a rampa de Santos, entraram na rua de S. João da Matta.

Jacinto Procopio ia jubiloso: a caça não conseguira fugir-lhe.

E depois, ficando a saber onde a dama morava, diria a verdade aos outros ou não diria. Havia ainda de pensar n'isso. Não fosse tão tolo que, depois de tanto trabalho, désse lenha para se queimar.

O primeiro trem parou á porta de um predio na rua da Santissima Trindade; e o segundo trem parou logo apoz o primeiro.

Jacinto Procopio salta precipitadamente do estribo, quer vêr apear-se a dama, mostrar-se-lhe, para que ella reconheça aquelle dos tres que pareceria ter tido maior interesse em seguil-a.

Abre-se a portinhola da primeira carruagem e Jacinto Procopio vê descer, de mala na mão, quem? A dama que elle julgava haver seguido, e á qual queria mostrar-se? Não! Vê apear-se Leopoldo Ambrosio!

E os dois desatam a rir como possessos, quebrando hilariantemente o silencio pacato da rua da Santissima Trindade.

A dama havia tomado outro trem, se é que tomou algum.{87}

O logro fôra completo.

Tanto quanto a alacridade que lhes desconjuntava as costellas o permittiu, os dois trocaram explicações, contaram um ao outro como as coisas se haviam passado depois que se separaram no Largo dos Caminhos de Ferro.

As revelações de Leopoldo Ambrosio foram interessantissimas.

Afigurou-se-lhe que era a dama que o seguia no segundo trem. E este caso intrigava-o.

—Então é ella que me segue?! dizia elle com os seus botões.

E um fumosinho de vaidade passava no seu espirito, cegando-lhe o entendimento.

No Terreiro do Paço, como o segundo trem viesse sempre na piugada do primeiro, Leopoldo Ambrosio quiz desenganar-se, e ordenou por isso ao cocheiro que dissesse ao do segundo trem que passasse adeante.

As duas carruagens, como já contei, pararam quasi ao mesmo tempo.

E como o cocheiro do segundo trem não obedecesse ao convite que lhe fazia o do primeiro trem, Leopoldo Ambrosio mais se convenceu de que era effectivamente a dama que o seguia.

Então, todo ancho d'essa estranha aventura, em que elle parecia ser o galanteado, deixou-se conduzir ao longo do Aterro, sonhando sonhos côr de rosa na escuridão de uma noite negra.

E não fazia senão espreitar pelo oculo da carruagem{88} a vêr se a dama mysteriosa e distincta continuava a seguil-o.

O seu trem subiu a rua de S. João da Matta e chegou, finalmente, á da Santissima Trindade. Parou no numero que elle havia indicado ao cocheiro e que era o da sua residencia.

N'isto o outro trem pára logo.

—O que! exclama Leopoldo Ambrosio. Então ella pára tambem! Apea-se! Vae talvez cair-me nos braços, dizendo n'uma grande allucinação de amor: «Segui-te, porque quero ser tua!»

Tirou a mala para fóra do trem; que não fosse esquecer-lhe na anciedade febril d'essa proxima explosão de amor.

Abre-se immediatamente a porta da segunda carruagem, e Leopoldo Ambrosio vê apear-se, não a dama que elle imaginava vir seguindo-o, mas o seu amigo Jacinto Procopio, de que se havia separado momentos antes no Largo dos Caminhos de Ferro.

E quando no dia seguinte se reuniram todos tres, e os dois contaram os episodios grotescos d'aquella aventura mallograda, Arthur Reinaldo, desapontado, rogou nove mil novecentas noventa e nove pragas aos seus dois amigos, que haviam estragado todos os bellos sonhos de conquistador feliz que tinha sonhado.

O caso é authentico e garantido pelo testemunho insuspeito de tres cavalheiros tão acreditados nos seus respectivos bairros como são os srs.{89} Arthur Reinaldo, Leopoldo Ambrosio e Jacinto Procopio, tres pessoas distinctas e um só logro verdadeiro.

—Bravo!

—Bravo!

—Um dos tres eras tu...

—Pois já se deixa vêr que era.

Gargalhadas, ápartes, commentarios. A atmosphera aqueceu; o proprio orador estava vibrante, excellentemente disposto. Que contasse a historia do conde, que ainda era cedo. Que contaria, mas que precisava primeiro um copo de cognac. Veio cognac para todos.

—Pois então, meus caros, disse o Leotte, ahi vae a historia do conde.

Silencio geral.{90}

{91}

IX

Imaginem vocês que é o proprio conde que está falando.

Eu lhe conto, disse-me o conde.

E, accendendo vagarosamente o seu charuto, cruzando a perna direita sobre o fémur da esquerda, contou, com o seu habitual sorriso, levemente malicioso:

—Estava eu em Pariz, onde tinha ido mais uma vez com o pretexto de assistir ás festas de 14 de julho. Oito dias depois, como os jornaes me avisassem de que todo o Pariz—o Pariz doente e o Pariz são—havia desertado para os Pyrineus, resolvi partir tambem, para fazer alguma coisa, e para não ficar... só! Tomei o primeiro expresso, e, ao cabo de 19 horas de viagem, apeava-me na estação de Pierrefite.

Achei-me, mal puz o pé em terra, em plena vida: a grande vida dos Pyrineus no estio.{92}

Bastas massas de verdura engrinaldavam pittorescamente os rochedos, e a paisagem formosissima do valle de Argelès, contrastando com as aguas revoltas do Gave, seria capaz de me inspirar uma écloga, se eu tivesse a bossa de poeta bucolico.

Na estação havia uma espessa agglomeração de gente, um borborinho estridulo, que me fez acreditar que todos os doentes que se sobrescriptavam para Cauterets iam de perfeita saude, a começar por mim...

Os omnibus dos hoteis solicitavam-me, na razão de 2 francos e 50 centimos, por duas horas de caminho; os cocheiros das caléches disputavam-me a cabeça por dez francos. Preferi os omnibus, por nada menos de tres razões:

1.ª Eu detesto a solidão, e os omnibus, como o seu nome indica, garantiam-me duas horas de viagem alegre, em companhia da gente que mais fala no mundo: os francezes.

2.ª Eu relacionara-me no expresso com tres francezes e quatro francezas, a duas das quaes, alternadamente, e ás vezes simultaneamente, principiei a fazer um pequenino pé de alferes, como nós cá dizemos.

3.ª Esta razão é futil: era mais barato.

As minhas duas francezas saltaram para dentro de um omnibus, e eu parodiei os carneiros de Panurge, saltando para onde ellas saltaram.

Duas horas deliciosas!{93}

As francezas eram amigas de collegio: uma d'ellas, cunhada de mr. Bourgoin, um burguez rico, viajava para se divertir acompanhando a irmã casada; a outra viajava, tambem para se divertir, acompanhando a sua amiga, cunhada... do cunhado.

Apenas o burguez precisava das aguas de Cauterets por causa do rheumatismo, que é uma doença de todos os burguezes. Se não fosse isso, como elles seriam felizes, especialmente... os ricos!

Só elle, pois, tomava tudo aquillo a sério, falando-me da composição das aguas, das differentes sources de Cauterets, em que predominava o elemento alcalino.

As duas amigas, por sua vez, encareciam-me a belleza dos passeios de Cauterets, citavam-me la Promenade des Oeufs, vasta explanada onde todas as tardes toca no kiosque a musica do Casino e onde a variedade dos divertimentos—bailes infantis, jogos, tiro ao alvo—e os chalets dos vendedores põem em todo o recinto uma nota de animação movimentada, gárrula, que a enorme concorrencia da station completa; da montanha de Cambasque, ao fundo da Promenade des Oeufs, á qual se sóbe em zig-zags, para descobrir um ponto de vista encantador; do Marmelon Vert, a dois kilometros de Cauterets, o rendez-vous do sport; do Parque, sombreado de bellas arvores seculares; da Grange de la Reine Hortense, d'onde se avistam os valles de Argelès e Lourdes; e da{94} Glacière, a estreita garganta nunca visitada por um raio de sol...

Planeavam parties de plaisir, repas champêtres, que nós desdoiramos com o vocabulo plebeu de merendolas, mas que, na graça delicada da lingua franceza, principiavam a ter sabor antes da realidade.

Se fôsse em Portugal, dizia eu com os meus botões, estas duas meninas, ambas de uma mocidade estonteadora, viriam aqui esmagadas pela auctoridade dictatorial do unico homem que as acompanha; não diriam palavra ou responderiam com simples monosyllabos, muito acanhadas e muito hesitantes, ás minhas perguntas.

Mr. Bourgoin, a ser portuguez, encarregar-se-ia, algum tanto constrangido, de fazer todas as despesas da conversação, visto ter a infelicidade de haver encontrado, contra os estilos do nosso paiz, um companheiro de viagem tagarella.

Madame Bourgoin tão depressa estimulava as esperanças do marido na cura radical do seu rheumatismo, adiada de anno para anno, como se intromettia na conversação da irmã, e da outra, lembrando a belleza do Lac Bleu, espelhado de aguas limpidas, e contornado de ruinas, dando assim a entender que, superior á prosa do rheumatismo conjugal, pairava no seu espirito a poesia dos lagos...

Perguntaram-me as duas amigas se eu me demoraria muito em Cauterets.{95}

Respondi que não havia nada tão incerto para um homem de boa saude como saber quando a sua doença o abandonaria.

As duas francezas riram longo tempo, comprehendendo, com a sua fina intuição gauleza, que eu principiava a estar indeciso, no meu pé de alferes, entre uma e outra.

Se viajassemos em Portugal, era certo, certissimo, que começariam a ter ciumes, a mostrar-se reservadas, um poucochinho azedas, porque uma portugueza não comprehende facilmente que um homem possa estar ao mesmo tempo namorado de duas mulheres.

Portugal, a despeito do feliz systema que nos rege, como dizia o Garrett, é, pela tradição, um paiz absolutista... até no amor.

Uma das francezas, M.elle Suzanne, lembrou-me a conveniencia de encontrar qualquer doença ligeira que me obrigasse a demorar-me um pouco mais em Cauterets do que a saude.

M.elle Denise foi de parecer que todo o fumista deve soffrer mais ou menos da garganta.

Achei acertado o alvitre e, uma vez installado em Cauterets, comecei a tomar as aguas por minha conta e risco, escolhendo a source ao acaso. Arranjei, como o dr. Serrand pôde verificar por meio do laryngoscopo, uma congestão thermal da larynge, o que me fez convencer de que as aguas de Cauterets são excellentes, não tanto para dar saude, como para tiral-a.{96}

Na impossibilidade de continuar cultivando as aguas, comecei a cultivar o amor—o amor de Cauterets, meu amigo, que parece colorido por um pintor decorativo n'um fundo de paisagem em que as naiades e as driades emergem do seio alpestre dos Pyrineus bailando de mãos dadas em torno de nós.

Uma fascinação... em francez.

Consegui ser, dentro em quinze dias, um homem conhecido pelas mulheres, um millionario do amor... ideal.

Não chegava para as encommendas platonicas que de toda a parte me solicitavam. Palavra de honra: não chegava. Uma vez encontrei-me no Pic de Gabietou, sem eu saber como, com mademoiselle Rosine Hubert, uma loira, irmã gemea da aurora. Tomei a altura do Pico, e achei que estava só no mundo com ella. Lembrou-me então uma certa aventura de Henrique IV, no alto de uma torre, com a filha do sineiro. Tentei fazer de Henrique IV, e beijei-a. Mademoiselle Rosine Hubert partiu-me o leque na cara. Ensaiei nova tentativa. Ella ameaçou-me de se despenhar do Pico, arrastando-me comsigo. O lance pareceu-me tragico de mais para uma simples aventura de estio. Descemos; eu amparava-a, acudia-lhe quando ella, rindo, rindo sempre, hesitava na descida.

Já de longe olhei para o Pic de Gabietou, e vi n'elle o monumento informe da minha cobardia ou da minha inepcia.{97}

Mademoiselle Rosine, espanejando-se na sua alegria, parecia não conservar o menor resentimento da scena de Gabietou. Falava-me com a mesma graça amavel, sorria-me ainda com a mesma confiança que eu parecia haver-lhe inspirado antes.

Se Rosine fosse portugueza, ter-se-ia ido queixar á mamã, que contaria tudo ao papá. Haveria em Cauterets um escandalo medonho, e eu teria de adoptar um de dois extremos violentos: fugir ou casar.

Nada d'isto aconteceu. Rosine não contou a ninguem, decerto, a scena de Gabietou, em que me fez muita falta um Mephistópheles e um cofre de joias. Conhecendo que eu a desejava um pouco, procurou, como boa franceza que era, fazer que a desejasse muito. Sorria-me, attraía-me.

E eu teria talvez queimado as azas, se n'essa noite não houvesse apparecido no Casino outra franceza mais adoravel ainda que Rosine, a qual franceza devia ser d'ahi a tres mezes minha legitima mulher.

Fiz-lhe namoro durante mez e meio, até ao fim de setembro. Depois, vesti a minha casaca, puz a minha gravata branca, e fui pedil-a á mãe, que teria quarenta annos, e uma carnação sadia, que não conseguira perder, sem embargo de tomar as aguas de Cauterets todos os annos. Parece incrivel!

O conde descruzou as pernas, accendeu de novo{98} o charuto, e, batendo uma palmada com a mão esquerda sobre a perna, disse-me:

—Fui muito feliz aquelle anno em Cauterets. Imagine que de uma vez combinei com dois portuguezes, que lá estavam, com oito francezes, um allemão e uma ingleza velha, fazermos uma excursão ao Pico de Balaïtous. Partimos de madrugada. Na vespera á noite a nossa excursão annunciara-se no Casino, fizera sensação; a noticia correra todos os grupos.

Ao nascer do sol—uma manhã deliciosa dos Pyrineus—quando cheguei á porta do hotel, fiquei encantado de encontrar á janella, esperando por mim, para me verem partir, todos os meus namoros de Cauterets. Tinham madrugado sobreposse para me enviar, nas azas d'um sorriso, o seu adeus. Eu sentia-me feliz, ufano. Imagine que só n'uma das janellas estavam duas mulheres, impulsionadas pelo mesmo pensamento: o de me verem partir! Uma d'essas mulheres foi d'ahi a tres mezes minha noiva.

—E a outra? perguntei eu.

—A outra? repetiu o conde com o seu habitual sorriso levemente malicioso. A outra era minha sogra.

Todos nós conheciamos o conde, o seu genio alegre, o seu viver mundano, os seus ditos de espirito, a que muitas vezes sacrificava as conveniencias sociaes, as suas proprias conveniencias até; de modo que nos foi muito agradavel ouvir{99} mais uma vez a historia do seu casamento com o sabor picante que elle proprio lhe dava, quando, sem poupar a sogra, não punha duvida em contal-a.

O Gonçallinho Jervis, que tambem era amigo do conde, havia-se levantado, emquanto o Leotte falava, e encostára-se ao vão de uma janella olhando para fóra.

Démos por isso.

—O que estás tu ahi fazendo?

—Que bello luar! exclamou elle. Que bella noite de primavera para irmos ouvir os rouxinoes!

—Não seja piegas, atalhou o Vasconcellos. Que bella hora para a gente ir deitar-se!...{100}

{101}

X

Era certo que tinhamos ido a Cintra com o pretexto de ouvir os rouxinoes. Mas era certo tambem que nenhum de nós, com excepção do Gonçallinho Jervis, estava já n'esse periodo agudo de romanticismo, que exalta allucinadamente a imaginação.

Parariamos de boa vontade para ouvir um rouxinol, que nos houvesse surprehendido no caminho. Mas ser-nos-ia pesado qualquer incommodo que, a não ser por surpresa, isso nos pudesse custar.

O que principalmente nós quizemos gozar indo a Cintra, era a liberdade, o descanso, que não tinhamos habitualmente. O projecto de ouvir os rouxinoes lisonjeára por momentos a vaga saudade, que todos alimentavamos, dos annos felizes da vida, passados na provincia. Mas, uma vez postos a caminho, a doce liberdade, que principiamos{102} a saborear, bem depressa nos fez esquecer dos rouxinoes, que não pensamos mais em ouvir.

Só o Gonçallinho Jervis não podia tão facilmente esquecel-os como nós outros. A idade desculpava-o. Estava ainda na sezão da poesia, era uma alma em ebulição, um coração em flôr, via os rouxinoes através do prisma da lenda que tinha talvez lido em Bernardim Ribeiro, frei Luiz de Sousa e outros poetas da prosa ou do verso.

Todos nós, mais ou menos, haviamos passado por isso.

Todos nós haviamos tido uma quadra da vida em que nos impressionára o caso do rouxinol de Bernardim Ribeiro, que morre de cansaço cantando.

«Não tardou muito—diz a novella—que, estando eu assim cuidando, sobre um verde ramo que por cima da agua se estendia, se veio poisar um rouxinol; e começou a cantar tão docemente, que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir.

«E elle cada vez crescia mais em seus queixumes, que parecia que, como cansado, queria acabar, senão quando tornava, como que começava então.

«Triste da avesinha, que, estando-se assim queixando, não sei como se cahiu morta sobre aquella agua. Cahindo por entre as ramas, muitas folhas cahiram tambem com ella.»

Na idade do Gonçallinho Jervis, toda a alma é{103} pouco mais ou menos como o rouxinol da novella: esgota-se cantando.

Eu não sei se seriam rouxinoes as aves que na cêrca do convento de Bemfica provocaram a desafio os homens, chegando uma d'ellas a morrer extenuada.

«Assim nos tempos que a natureza esperta as linguas das aves, a louvar com mais harmonia o Creador, é quasi morada continua (a cêrca) das que por mais musicas são conhecidas. E é tradição, que juntando-se n'ella uns seculares de boas vozes, e começando a cantar ao som de instrumentos bem accordados, acudiram as que se tinham por senhoras do sitio, a desafiar a melodia humana, e artificial, com a sua natural. E isto com tamanha porfia, que vencidas as vozes dos homens não cansaram as pobres avesinhas de seguir as violas que ficaram supprindo por ellas; e uma se deixou levar tanto do impeto, e affecto de cantar, que veio a desfallecer, e á vista de todos cahiu em terra sem alento, como dizendo, que antes queria perder o bem da vida, que a honra de perseverar cantando.»

Deviam, effectivamente, ser rouxinoes, porque frei Luiz de Sousa se refere ás que por mais musicas são conhecidas, e o rouxinol é, no mundo alado da Europa, o cantor por excellencia.

Na idade do Gonçallinho Jervis, se uma alma responde á nossa n'um duetto de encantador lyrismo, pouco se nos dá de perder a vida comtanto{104} que possamos morrer exhalando a alma n'um cantico.

Eu proprio já havia prestado tambem o meu culto aos rouxinoes, principalmente ao de Bernardim Ribeiro. Aos dezoito annos—Deus me perdoe!—compuz um poema cuja heroina

Acabára, cantando, o captiveiro
Tal como é fama ter acontecido
Ao rouxinol de Bernardim Ribeiro!

Mas, no anno em que fômos a Cintra, já propendia a estimar mais as perdizes do que os rouxinoes, sobretudo se as perdizes eram temperadas com molho de villão.

Um bom petisco!

O Gonçallinho Jervis, felizmente para elle, amava tanto os rouxinoes como poeta que era, que até sabia a lenda mythologica d'aquella princeza que por suas desventuras fôra convertida em philomela, nome que os antigos deram ao rouxinol.

Eu tinha só uma vaga ideia d'essa lenda pagã por a haver lido na Arte da caça da altenaria, composta por Diogo Fernandes Ferreira.

«Contam as fabulas que Tereo, filho de Marte e de Bistonida, sendo rei de Thracia, casou com Progne, filha d'el-rei d'Athenas, e a trouxe para o seu reino. N'ella houve um filho lindissimo, a que chamavam Itêns, tão desejado no reino, que o dia que nasceu se festejava como festa solemne.{105} Teve a rainha Progne saudade de vêr a sua irmã Filomena: pediu ao marido licença para a ir vêr, ou fôsse elle em pessoa para a trazer, que seu pae e mãe lhe concederiam licença para a irmã vir. Tereo aprestou naus, partiu, chegou a salvamento, foi bem recebido dos sogros, rei e rainha e da cunhada Filomena, a qual, em Tereo a vendo, se incendeu de amores por sua formosura. Então com mais efficazes palavras pediu aos paes lhe dessem a licença que pretendia. Fez-se-lhe a vontade. Embarcados, vieram a salvamento, e, chegados a um porto do reino de Tereo, sahiram em terra elle e a cunhada, dizendo elle que o fazia para n'aquella floresta descansar do trabalho do mar. E sendo longe das naus e gente, não tanto como o elle estava da virtude, trabalhou por persuadir a cunhada áquelle intento que desejava; e vendo que nenhumas promessas nem palavras bastavam para ella consentir em seu desejo, acolheu-se á força e com ella, muito contra vontade da afflicta princeza, de donzella a tornou dona. Queixando-se ella a Deus e ao mundo de tão grande maldade, que havia de ser pregoeira de tamanha villeza e traição, e se havia de tomar vingança de tal aleivosia, ordenou elle outra maior maldade arrancando-lhe a lingua, e assim a levou a casa de um criado seu e vassallo, não lhe declarando o caso. Aos das naus disse que as feras a mataram, e chegando a sua casa se fizeram muitas mostras de tristeza pela morte fingida da{106} cunhada, a qual, estando em poder do vassallo de Tereo, pediu por acenos lhe dessem hollanda e seda de côres, que queria entreter-se. Trazida, em letras gregas conta á irmã o caso, e por acenos rogou a uma mulher levasse aquella toalha assim lavrada á rainha Progne, que lhe havia de ser bem pago o trabalho que n'isso tomasse. Dada a toalha á rainha, sabida a historia, dissimulou. N'aquelle tempo se faziam umas festas que de tres annos se celebravam n'aquelle reino. Disse Progne ao marido que desejava ir a ellas. Ida, foi aonde a irmã estava, a qual achou privada da lingua e falla, e assim a trouxe para sua casa em trajo demudado. Ambas determinaram a vingança do marido bem extraordinaria, e foi que tomaram Itêns, o principe filho de entre ambos, e lhe cortaram a cabeça, pés e mãos, e do corpo mandaram fazer manjares differentes. E tendo isto ordenado, pediu Progne ao marido lhe concedesse jantarem ambos, ao modo dos reis de sua terra, que era comerem sós. Foi-lhe feita a vontade. Partiu Tereo os manjares e guizados feitos do corpo do filho; depois de comer d'elles, pediu á mulher lhe mandasse vir o principe Itêns, seu filho, que elle muito amava. Então sahiu Filomena de uma camara com a cabeça, as mãos e os pés do filho, desejando ter lingua para mostrar a ira que contra elle tinha. Tereo, vendo o caso, deu com a mesa em terra, e lançou mão á espada. Ellas fugiram, Progne convertida em andorinha, e Filomena{107} em rouxinol; Itêns em avião, e Tereo em poupa.»

Esta fabula, copiada dos poetas pagãos, fazia trasbordar de poesia a alma do Gonçallinho Jervis, que julgava ouvir na voz do rouxinol toda a colera tragica da princeza Filomena, a qual princeza, convertida em ave canora, parecia vingar-se eternamente da falta que no seu tempo lhe fizera a lingua, cortada pelo cunhado.

Gonçallinho ia na esteira de Camões, que dizia nos Lusiadas:

Ao longo da agua o niveo cysne canta,
Responde-lhe do ramo philomela.

Na varzea de Collares não faltavam agua, verdura, rouxinoes. Por isso elle tanto desejava que, soltando a sua voz de cysne de frak (certamente mais melodiosa do que aquella de que os cysnes podem dispôr) lhe respondesse de um ramo a princeza atheniense, convertida em rouxinol.

Diogo Fernandes Ferreira explica a razão por que as quatro personagens da lenda foram metamorphoseadas n'aquellas aves.

«Ordenou o poeta esta fabula de vêr que o rouxinol quasi não tem lingua, e a andorinha ser vestida de preto, e no peito ter umas nodoas vermelhas, e ter o canto triste, como que conta a historia da maldade do marido, e as pennas rôxas como sangue da crueldade que teve em matar o{108} filho em vingança da irmã. E do canto do rouxinol a saudade com que viveu a vida a forçada Filomena, e do avião porque no seu canto parece que grita como menino, e na poupa pela significação da corôa da cabeça, e na formusura das pennas pintadas de que se vestem finge ser el-rei, porque a poupa, tomada na mão, tem mau cheiro, e o ninho d'ella o mesmo: em que se dá a entender que os maus feitos, ainda que sejam commettidos por reis e pessoas graves, se ha de fugir d'elles e virar-lhes o rosto, como coisa abominavel e fedorenta.»

Este processo da moralidade pelo fedor não deixa de ser convincente.

Disse isto uma vez ao Gonçallinho. E elle, muito despeitado, chamou-me barbaro.{109}

XII

No dia seguinte, quando recolhemos para jantar, soubemos pelo Leotte, que tinha ficado de atalaia, tudo o que se passára com relação á chegada dos dois novos hospedes—o brazileiro e a mulher.

Não era o nosso amigo Leotte homem que, em se tratando de uma mulher, curasse por informações. Queria vêr a brazileira: ficou.

—Já não é nova—disse-nos elle—mas considero-a ainda acirrante. Dou-lhe quarenta annos, pouco mais, e está menos mal conservada. Bonitos olhos, bons dentes, cabello magnifico. Reforçada de carnes, sem se poder dizer nutrida. Mulher capaz de satisfazer o ideal de um brazileiro, que a idade principia a tornar decadente. Disse-me a Rosa, que está de serviço á brazileira, que elles irão jantar á mesa redonda.

—Estás n'um sino, Leotte! Pois bem! Veremos isso.{110}

Quando chegamos á mesa, contamos onze talheres. A informação fornecida pela Rosa era, pois, exacta. D'ahi a pouco tempo, o brazileiro e a mulher entraram.

O Leotte descrevera com exactidão e verdade o typo da brazileira. Era, effectivamente, o que se costuma chamar—umas bellas ruinas. Não dessas ruinas brutalmente realisadas por um cataclismo, que não deixa pedra sobre pedra; mas as que o tempo lentamente costuma ir augmentando e dulcificando com um vago perfume de poesia do passado.

Nos olhos da brazileira, principalmente, brilhavam uns como lampejos de formoso occaso de outono. A noite negra da velhice, que apaga o clarão das pupillas, estava ainda longe. E sentia-se n'essa organisação de mulher, que devia ter sido ardentissima, o que quer que fôsse de rescaldo tepido e demorado de um incendio devorador.

A toilette era distincta, gentil, sem ser severa nem petulante. Denunciava um velho habito de vestir com esmero. O unico defeito que se poderia notar era um certo excesso de pó de arroz nas mãos e de anneis nos dedos.

O brazileiro principiava a resvalar pelo plano inclinado da velhice cansada. Mas havia na sua face um reflexo de bondade credula, de alma sincera, capaz de um sacrifício nobre e de um acto de generosidade fidalga.{111}

No momento de entrar na casa de jantar, percebeu-se que o contrariou achar-se com sua mulher no meio de uma sociedade de homens. Mas a breve trecho o seu sobresalto dissipou-se, reconhecendo que nenhum de nós ignorava o que era jantar em companhia de uma dama.

E a proposito da dama... Cinco minutos depois d'ella se ter sentado á mesa, começou-me a impressionar a sua physionomia, na qual me parecia encontrar feições de uma mulher que eu já vira não sabia quando nem onde.

Por mais que evocasse as minhas recordações, por mais que folheasse esse volumoso livro de biographias que cada pessoa tem archivado no espirito para o consultar de quando em quando, não me era possivel encontrar um nome que correspondesse áquella physionomia: todavia, eu iria jurar que já tinha visto algures a mulher do brasileiro, que a havia encontrado, conversado talvez, mas não sabia, não podia dizer quando isso fosse.

Seria em Lisboa? Não, decerto. Visivelmente haviam decorrido muitos annos, porque, de contrario, a minha memoria não seria tão rebelde.

Na provincia? Aonde? Eis a questão. Vel-a-ia eu no Porto? Tel-a-ia visto em Braga, onde tantas vezes fui passar as férias? No Bom Jesus do Monte, onde, no verão, abundavam os brazileiros em villegiatura? Nas Caldas das Taipas ou{112} de Vizella, que um anno por outro visitei de passagem?

Deus meu! Era certo que eu tinha visto aquella mulher, mas não podia lembrar-me onde nem quando.

Dominado por esta preoccupação, passei todo o jantar. Procurava observar a brasileira sem comtudo offender a susceptibilidade do marido. Elle não repelliu a conversação em que principalmente o Leotte o queria envolver. Disse alguma coisa da sua vida, pouco. Estava doente. Ella falou muito menos do que o marido, mas a sua voz, que conservava ainda vestigios da accentuação das provincias do norte, augmentou a minha preoccupação. Decididamente, eu já tinha ouvido falar aquella mulher.

Sem termos sido mutuamente apresentados, estabeleceu-se para o fim do jantar, graças aos esforços empregados pelo Leotte, um certo convivio de expansiva camaradagem. Leotte, rindo sempre, contou ao que tinhamos ido a Cintra: ouvir os rouxinoes.

O brazileiro e a mulher acharam muito graça a esta excentricidade collectiva.

—Ouvir os rouxinoes! exclamou elle. Na minha terra, por este tempo, os rouxinoes são aos cardumes!

O Gonçallinho Jervis sublinhou com um olhar, que me enviesou, os cardumes de rouxinoes, que tinham saído da bocca do brazileiro.{113}

Mas o Leotte aproveitou logo a occasião para perguntar:

—Então v. ex.ª é portuguez?

—Nado e creado na freguezia de Santa Maria de Bouro, concelho de Amares, comarca de Villa Verde, districto de Braga, respondeu elle.

—Ah! Por ahi, como em toda a provincia do Minho, são abundantissimos os rouxinoes.

—Que no Brazil, onde estive mais de trinta annos, tambem ha muitos passaros que cantam bem: o sabiá sica, o corrixo, que imita todos os outros passaros, o bem-te-vi, etc. Mas o que no Brazil ha de mais notavel é que muitos passaros falam.

—Falam? perguntou o Leotte.

—Eu só sabia do papagaio, observou o Vasconcellos.

—Nada, não sr., continuou o brazileiro. O bem-te-vi, por exemplo, canta dizendo o seu nome. O tico, que é do tamanho d'um pardal, anda sempre a dizer—tico, tico. E o curiangú, que se põe de noite adeante dos cavallos, costuma dizer de madrugada: João, corta pau!

—Mas os indigenas hão de dar alguma explicação a essa phrase...

—Isso agora é que eu não sei, meu caro sr. Lá que elle o diz, diz, porque eu, sendo caixeiro e andando a cobrança, ouvi muitas vezes cantar o curiangú. Punha-se á frente do meu cavallo e, quando o sentia perto, tornava a voar, e esperava-o dizendo: curiangú.{114}

—Então não diz sempre a mesma coisa?

—Não, sr. De noite diz—curiangú; e de madrugada—João, corta pau.

—É curioso! Pois nós viemos para ouvir os rouxinoes, e a verdade é que ainda os não ouvimos, com grande magua do nosso amigo Jervis, que tomou muito a sério o pretexto d'esta digressão. Mas temos passado as noites tão entretidos no hotel, que nos tem faltado tempo para irmos ouvir os rouxinoes.

—Entretidos! Aqui? perguntou ironicamente a mulher do brazileiro.

—Sim, minha senhora, respondeu o Leotte, muito agraciado do semblante. Entretidos a contar historias.

—Da carochinha? perguntou ella com o mesmo tom de ironia.

Então o Leotte explicou largamente o compromisso, que todos nós haviamos tomado, de contar uma historia ao serão para aligeirar as noites de Cintra.

Tanto o brazileiro como a mulher acharam muita graça a mais esta excentricidade.

—Pois eu, disse ella, vinha com medo ás noites de Cintra, que principalmente n'esta época do anno devem ser horrorosas de comprimento. Mas o Araujo tem passado agora peor, e o medico aconselhou-o a que viesse tomar os ares de Cintra.

—Pois se v. ex.as nos quizerem dar essa honra, acrescentou o Leotte sempre amabilissimo, poderão concorrer aos nossos serões.{115}

—Da melhor vontade. Tanto mais que o Araujo precisa muito distrair-se. V. ex.as demoram-se?

—Fazemos tenção de ir ámanhã embora, respondeu o Vasconcellos na qualidade de chefe da caravana.

—Não é sangria desatada, minha senhora, atalhou o Leotte. E de mais a mais ainda nem sequer ouvimos os rouxinoes.

O Vasconcellos, sorrindo, encolheu os hombros.

—Pois então, disse a mulher do brazileiro levantando-se da mesa, eu e meu marido faremos parte do auditorio. Não é assim, Araujo?

—Sim, filha, como tu quizeres.

O Leotte, despedindo-se:

—Os nossos saraus litterarios principiam depois das oito horas da noite, na sala de visitas.

—Até logo, disse a mulher do brazileiro saindo da sala de jantar, seguida pelo marido.

Saímos tambem, accendemos as nossas cigarrilhas e fomos dar um passeio até á Praça para fazer o chilo, como sempre dizia o Maldonado.

É claro que o assumpto do passeio, insensivelmente prolongado pela estrada de Villa Estephania, se circumscreveu ao brazileiro e á sua mulher.

Todos eram de opinião, quanto á mulher, que ella representava umas ruinas muito menos antigas que as do convento do Carmo, mas não menos pittorescas. O Leotte—já era de esperar—exagerava{116} a belleza da brazileira, como todos lhe chamavamos, e acrescentava que, quem quer que ella fosse, vinha da escóla da experiencia, da escóla pratica do mundo. Era abelha-mestra, concluia elle.

Todas as phrases que ella disséra suscitavam-nos commentarios mais ou menos maliciosos.

Notava-se a facilidade com que acceitára o nosso convite, não sem disfarçar habilmente o seu espirito mundano com a allegação de que o marido precisava distrair-se. O seu horror pela extensão das noites de Cintra revelava que ella, todavia, amava mais o mundo que o marido.

Eu insisti na minha preoccupação de a ter já visto algures. Alguns dos meus amigos, o Vasconcellos por exemplo, riram-se d'isto.

—É que ella tem a phisionomia tipica de todas as mundanas quarentonas que foram parar ás mãos de brazileiros. O que tu conheces é o genero, não é a pessoa.

—Póde ser que seja assim, comtudo eu apostaria que já a vi, não sei onde.

—Mas, lembrou o Gonçallinho, ella ouviu dizer o teu appellido sem dar o menor indicio de conhecer-te.

—Ora! isso é da tabella, tolinho! Então ella havia de mostrar ao brazileiro que conhecia alguem n'este mundo além do seu querido Araujo?

—Que tinha isso? insistiu o Jervis. Pois as mulheres, por mais honestas que sejam, estão{117} inhibidas de reconhecer um homem que era das relações da sua familia?

—O caso é outro, pateta. Uma scena de reconhecimento importaria explicações que ella teria de dar ao marido. E quem sabe se elle as acceitaria sem uma suspeita, justa ou injusta? Aqui tens o busilis. Decididamente, tu não sabes nada do mundo!

Chegou depois a vez de discutirmos o brazileiro, um bajojo, diziamos, anesthesiado pelos ultimos prazeres capitosos de uma velhice cansada. Recordamos a phrase d'elle: «Sim, filha, como tu quizeres». Mas, em todo o caso, boa pessoa, sincero pelo que respeitava á sua biographia: «Natural da freguezia de Santa Maria de Bouro, concelho de Amares, etc.»

—Hei-de saber a historia d'este casamento e d'esta mulher. O Pessanha, que é deputado por Villa Verde, ha-de conhecer o Araujo, se elle effectivamente é de Amares.

—Estás tolo! Ha lá algum deputado que conheça o circulo!

—Mas é que o Pessanha tem casa em Villa Verde.

—N'esse caso já deve dinheiro ao Araujo e dirá só o que lhe fizer conta.

—Qual historia! Se lhe deve dinheiro, diz tudo.

O Gonçallinho Jervis lembrou a phrase—cardumes de rouxinoes. Outro, não sei qual, recordou-se{118} do tico, tico. O caso do passaro—já nenhum de nós lhe atinava com o nome—que cosstuma dizer «João, corta pau», despertou grande galhofa.

—Mas é que os brazileiros, disse o Athayde, têem a mania de que todos os passaros dizem alguma coisa.

Gargalhada geral.

—É isto, insistiu elle. O Rodrigues, que vae muito á Havanesa, já uma vez me contou que ha no Brazil uma especie de rôla, que diz sempre: «Fogo pagou.»

—Pegou, é que ha de ser.

—Elle disse «Fogo pagou».

—E ha de ser assim. Julgavas então que no Brazil eram as rôlas que davam o signal de incendio!

Novas gargalhadas.

O Leotte lembrou que já passava das oito horas. Se não havia de ser elle que o lembrasse! Desandamos para o Victor, porque havia chegado o momento de começar o nosso sarau litterario—com a assistencia do brazileiro e de sua esposa.

Devia ter-se sentido em todo o hotel, quasi solitario, o ruido da nossa chegada. Installamo-nos na sala de visitas, como era costume. D'ahi a pouco, o brazileiro e a mulher entravam na sala.

Madame Araujo tinha feito toilette para o sarau, uma toilette que envergonhava, pelo esplendor{119} elegante, a nossa humilde academia de touristes. Mas um certo excesso de anneis de preço, enfiados nos dedos tambem excessivamente jaspeados de pós de arroz, prejudicava um pouco o bom gosto da toilette.

De mim para comigo dizia eu: «Já vi estas mãos e estes anneis, não sei onde!»

A mulher do brazileiro mostrava-se encantada com a surpresa de um sarau, que a nossa excentricidade, como ella disséra, lhe havia preparado.

O Araujo, muito resignado, parecia dizer com os olhos, explicando a sua presença ali: «Sim, filha, o que tu quizeres».{120}

{121}

XIII

Mettemos á bulha o Saavedra, que tinha sido até esse momento um dos mais silenciosos do grupo, para que se dignasse fazer as honras d'aquella noite, visto como a sua eloquencia devia achar-se ainda em folha, e a nossa já ia estando um pouco fatigada.

O Saavedra tinha certa graça natural, era um espirito observador, mas a sua modestia orçava ás vezes pela timidez. Felizmente pudemos convencel-o a contar uma das suas anecdotas.

—Imaginem v. ex.as, disse elle, que uma respeitavel dona de casa, uma exemplar mãe de familia, o que quer que seja de Cornelia romana, tem um marido cujo orçamento domestico é em grande parte absorvido pelas immensas publicações,{122} principalmente jornaes, de que o fazem assignante, ás vezes sem elle proprio o saber.

É sempre com uma certa contrariedade que a esposa d'esse cavalheiro vê todos os dias entrar pela porta dentro mais um novo jornal.

Ella, que para os seus Gracchos quereria amealhar todas as economias do ménage, observa ao marido que já vae sendo excessivo o numero de jornaes que recebem.

Ordinariamente elle responde:

—Que queres, filha? Pediu-me o meu amigo Fulano; não póde deixar de ser. Mas como tudo n'este mundo tem compensações, é mais um que podes mandar vender no fim do mez.

E, accendendo o seu charuto, nunca mais pensa no jornal novo que lhe mandaram, senão quando o cobrador vem receber a importancia da assignatura.

Todas as noites os jornaes d'aquelle dia são arremessados para o fundo de um quarto esconso, d'onde, de tempos a tempos, saem ás braçadas para a tenda vizinha, na rasão de 60 réis o kilo de idéas.

Pobres idéas! Descomposturas da politica, dissertações sociologicas, sueltos mordazes, versos de amor, charadas novissimas, tudo isso, que custou tantas vezes a engendrar, e que teve talvez a sua hora de celebridade, lá vae ser pesado a kilos na balança como a banha de porco, o feijão amarello e a manteiga da terra.{123}

Nenhum respeito, nenhuma consideração por essas pobres idéas! Do papel é que se trata apenas: tanto pesa, quanto vale. O papel impresso tem tambem o seu guano—coisa unica e vil que se lhe póde aproveitar, depois que o pensamento envelheceu.

A facundia do jornalista, a inspiração do poeta, a graça do folhetinista, ficam sendo, desde essa hora, um trapo para embrulho no balcão dos tendeiros.

D'ahi por diante, isto é, da mercearia por diante, é o toicinho que desbanca o artigo de fundo, é a manteiga que supplanta o folhetim. Ceci tuera cela. A gordura afoga a poesia. Nos tempos modernos o trapo é a mortalha do tropo.

Mas, como eu vinha contando, de tempos a tempos o criado da casa ia vender á tenda vizinha grandes porções de jornaes antigos.

Succedeu porém que nos ultimos tempos, tendo-se despedido o criado, o moço de padeiro, que servia a casa, recommendou outro.

—Era da sua terra, da Galliza, dizia o padeiro, e vinha para fugir ás sortes. Não estava costumado a servir; faltava-lhe experiencia. Mas era muito bom rapaz, honradissimo, filho de uns pequenos lavradores de Compostella.

Affiançava-o. Quanto a pratica de serviço, não tinha—repetia o padeiro—; mas como era esperto e tinha boa vontade de aprender, desembaraçar-se-ia depressa.{124}

Foi admittido o recommendado do padeiro.

Tipo montezinho; intellecto impenetravel, duro como o silex. Não percebendo nada, parecia porém vivamente animado do desejo de perceber tudo. Tinha sempre boas palavras, falas mansas, muito respeitosas. Mas, sem embargo, todos estes predicados não chegavam a compensar a estupidez desastrosa com que tudo fazia.

Estava inteiramente cheio o armario dos jornaes. Era preciso vendel-os, e a dona da casa, tendo de sair a visitas, recommendou á criada:

—Dize ao Domingos que vá vender os jornaes. Mas explica-lhe bem o que elle tem a fazer, para que não saia tolice.

—Sim, minha senhora; sim, minha senhora.

Mas, ou porque, logo que a senhora saiu, apparecesse á barra o namoro da criada e começasse a fazer-lhe signaes semaphoricos, ou porque ella realmente se esquecesse de que o criado era novo na casa, disse-lhe simplesmente:

—Domingos, vae vender esses jornaes.

E o Domingos, muito obediente, muito submisso para a criada:

—Sim... senhora Rosa. Vender os jornaes... Eu já vou.

Uma hora depois voltava para casa a senhora. O criado ainda não tinha chegado!

—Que é do Domingos?

—O Domingos foi vender os jornaes, minha senhora.{125}

—Ha quanto tempo?

—Ha mais de uma hora!

—Ora essa! Tu explicaste-lhe bem?...

—Expliquei, sim, minha senhora...

—Então fugiria com o dinheiro?!

—Sim... talvez fugisse.

—Mas o padeiro affiançou-o!

—Isso não tira.

—Não tira! Mas o padeiro é que tem de entregar o valor dos jornaes...

N'isto bate-se á porta da escada.

—Ahi vem elle... diz a Rosa.

Mas, tendo espreitado á porta, recúa espavorida.

—Ó minha senhora! é um policia!

—Um policia! O que quer elle?

—Eu sei lá! Deus queira que não sejam alguns trabalhos...

—Estás tola! Vae abrir.

Batem segunda vez.

A criada, antes de abrir a porta, torna a espreitar.

—Ó minha senhora!

—O que é?!

—O Domingos vem preso com um policia!

—Preso! Mas como seria isso? Vae abrir, já te disse.

A Rosa abriu a porta.

O policia perguntou se aquelle criado era d'ali.

—Que sim, senhor, e que tinha sido affiançado pelo moço de padeiro.{126}

Então o policia contou o seguinte:

—Estando de serviço na Avenida, fui avisado por algumas pessoas de que na rua de S. José andava um rapaz impingindo por 10 réis jornaes antigos. Essas pessoas, tendo caido no logro, reclamaram a intervenção da policia, porque o rapaz, muito descarado, continuava na ladroeira. O policia teve que intervir; foi á procura do rapaz. Não tardou a encontral-o, justamente na occasião em que elle estava vendendo um Diario Popular do mez anterior. Foi pois apanhado em flagrante delicto: com a bocca na botija. O policia perguntara-lhe:

—Tens fiador?

—Fiador! fiador, não tenho, sr. policia.

—Estás então preso.

—Pois então estou preso, sim, senhor.

—Quem te deu esses jornaes para vender?

—Quem me deu estes jornar para vender?!...

—Anda lá, não te faças tanso, que não ganhas nada com isso.

—Não me faço tanso, não, senhor. Quem me deu estes jornaes para vender foi a sr.ª Rosa...

N'este ponto, a criada interrompeu abruptamente a narrativa do policia, dizendo:

—Foi a senhora que mandou. Pois não foi, minha senhora?

O policia:

—Foi a senhora?

A criada:{127}

—Foi, sim, sr. policia.

Mas a dona da casa, apparecendo então no patamar da escada, disse com dignidade:

—Faça favor de continuar a dizer como isso foi.

O policia continuou:

—Quem é a sr.ª Rosa? perguntei-lhe eu.

—É a criada da patroa.

—E quem é a patroa?

—É a mulher do patrão.

—Mas como se chama? Irra!

—Chama-se... Isso é que eu não sei muito bem.

—Bom. Vamos lá a casa dos teus patrões. Quanto dinheiro apuraste tu com a venda dos jornaes?

—Quanto dinheiro apurei?

—Sim, quanto tens na palma da mão?

—Aqui, na palma da mão, tenho este.

—São setenta réis. Dá cá.

—Isso agora é que eu não dou, não, senhor, porque este dinheiro é para entregar á sr.ª Rosa.

—Dá cá o dinheiro, e anda lá p'ra diente.

Quando o policia estava n'este ponto da narrativa, subia a escada o dono da casa, que voltava da repartição.

Muito espantado de ver um policia, perguntou o que tudo aquillo significava.

Então sua esposa contou o que se passara: o marido riu, o policia riu, a criada riu. Só o Domingos,{128} com os olhos cravados no chão, não ria.

Comtudo, o policia, em razão de ter abandonado o serviço, precisava justificar o seu procedimento.

—Que tivesse o cavalheiro paciencia, mas era preciso acompanhal-o á esquadra para contar como as coisas se passaram.

—Não ha duvida nenhuma, respondeu o dono da casa, vamos lá.

O chefe da esquadra riu, todos os outros policias riram, mas, como não estava presente o sr. commissario, o chefe da esquadra disse:

—Tenha o cavalheiro a paciencia de voltar ámanhã, das 10 para as 11 horas, a fim de contar tudo ao sr. commissario.

No dia seguinte, das 10 para as 11 horas, o dono da casa, seguido pelo Domingos, foi falar com o sr. commissario da respectiva divisão, que era aliás seu conhecido.

O commissario ainda não estava; o chefe da esquadra tornou a rir, só o Domingos, com os olhos cravados no chão, não ria.

O commissario falou pelo telephone:

—Que ia fazer uma diligencia importante com o commissario geral; que não contassem com elle.

O chefe da esquadra:

—Que tornasse a ter paciencia, mas que voltasse no dia seguinte para falar com o sr. commissario.{129}

—Ora essa! Que maçada!

E á saída da esquadra, tanto o patrão como o Domingos não riam—nem um, nem outro.

Madame Araujo achou infinita graça á historia dos jornaes, e o brazileiro, por esta vez ao menos, tambem pareceu achar graça de conta propria.

O Leotte estava visivelmente picado com o triumpho que o Saavedra obtivera na presença d'essa mulher, cuja toilette denunciava um certo habito de existencia mundana, que elle queria explorar.

Foi pois elle mesmo que se offereceu para contar um episodio da sua viagem a Thomar.

—Tambem já vi Thomar, observou o brazileiro; é bonito, mas não chega aos calcanhares do Minho!

—Pois isto que vou contar, acrescentou o Leotte, aconteceu no principio de julho, ha tres annos.

—Ha seis é que eu lá estive, ponderou o brazileiro.

—Vamos a ouvir a historia, disse madame Araujo.

—Sim, filha, obedeceu o brazileiro, submisso como sempre.{130}

{131}

XIV

A festa dos taboleiros tinha reunido em Thomar muita gente de fóra. A companhia dos caminhos de ferro estabelecêra comboios directos a preços reduzidos. A pittoresca cidadesinha do Nabão, com o seu bello convento de Christo no topo, tinha um movimento extraordinario, anormal, que a vitalisava desde o castello dos templarios até á graciosa planicie da Varzea grande, habitualmente só frequentada por alguns soldados de infantaria 11.

Todas as familias gradas da localidade tratavam de engalanar os taboleiros com muitas flôres e fogaças, alguns d'elles cogulados até á altura hiperbolica de dois metros. São estes taboleiros que as raparigas mais bonitas da cidade,{132} entrajadas ao garrido, conduzem á igreja de Santa Maria, onde a fogaça é benzida por um sacerdote. D'ali seguem por entre alas de povo, que as applaude, até á igreja da Misericordia. Á noite, a cidade, que é atravessada por uma ponte, illuminava-se com balões venezianos, que se espelhavam nas aguas do rio. Havia um bazar, e toirada. Era por tal signal cavalleiro um amador, Alfredo Marreca.

Algumas familias das minhas relações haviam planeado um passeio através da Estremadura. Pretexto, a festa dos taboleiros em Thomar. Eu, que não gosto nada de viajar com o concurso de uma multidão festiva, combati o projecto, propuz um adiamento para depois da romaria. Procedeu-se á votação, e a maioria esmagou-me: tal qual como em S. Bento. Para me não demittir, submetti-me. Fomos por Santarem, onde nos demoramos dois dias. Depois seguimos para a estação de Paialvo, onde nos apeamos, e entramos em char-à-bancs que nos conduziram a Thomar. Estação e estrada abarrotavam de gente. Irritado dos nervos, o meu desejo era mandar parar o sol ou... aquella gente toda. Fomos na incerteza de obter hotel, e essa incerteza sorria-me. Mas quiz o acaso que ainda encontrassemos alojamento no Hotel Cotrim, á beira do Nabão. Tudo aquillo seria delicioso, se não estivessemos em plena romaria. Uma barafunda de todos os diabos.

Almoçamos, e saímos. Andamos aos encontrões{133} de um lado para o outro. Começamos por visitar o convento. Na varanda de pedra o conservador do monumento dissera-nos: «A rainha D. Maria II, quando visitou o conde de Thomar, gostava de vir bordar para esta janella.» Que tinha bom gosto, concordaram as senhoras.

A cidade, cortada pelo rio, muito arruada e muito varrida, estendia-se ao sopé do castello. E os forasteiros enxameavam cruzando-se em direcções oppostas. Vistos do alto, pareciam lilliputianos. Depois do castello, fomos visitar a fabrica de fiação, e as fabricas de papel do Prado e de Mariamaia. O dia estava calmosissimo: um julho abrasador. Os passaros, se não lograssem abrigar-se no secular arvoredo do Padrão, teriam morrido de calma.

Á volta das fabricas, uma das senhoras do nosso rancho sentiu-se subitamente indisposta. Pediu-se um copo de agua. E, como a estação telegraphica estava proxima, recorremos ao telegraphista.

Encontrei-o sentado ao apparelho—que não era ainda o Morse—trabalhando. Representava um homem de quarenta e cinco a quarenta e sete annos de idade: moreno e magro, estatura regular, bigode levemente grisalho. Muito grave de maneiras, e visivelmente melancolico. A sua figura impressionou-me e, digo-o francamente, sem querer encarecer o meu faro de observador, suspeitei n'aquelle homem um romance. Acreditem: suspeitei. Logo que lhe eu disse ao que ia,{134} chamou para dentro a pedir um copo de agua. Veiu trazel-o uma rapariguita de dezeseis annos, picada das bexigas, e descalça. Mas eu percebi que alguem estava espreitando pela porta entreaberta.

Arranquei o copo das mãos da rapariga, e saí com elle. A indisposição não tinha passado ainda. Uma mulher offerecera uma cadeira de pinho, em que sentaram a doente, que, muito pallida, coberta de um suor frio, bebeu um gole, e afastou o copo.

—Não teimem, disse alguem do lado.

Fui entregar o copo ao telegraphista, que gravemente me perguntou se o incommodo tinha passado.

Disse-lhe que não. E elle, levantando-se outra vez, lembrou que seria melhor trazerem a senhora para a estação telegraphica, onde sua mulher lhe poderia offerecer um leito humilde mas asseado.

Saí a dizer isto, e todos approvaram o alvitre. Conduzida em braços a doente, entramos na estação, e o telegraphista, vendo-nos chegar, chamou para dentro:

—Clementina! ó Clementina!

N'isto appareceu-nos uma creatura que não teria mais de quatro palmos de altura, vestida muito garridamente com uma saia côr de pombo e um corpete azul; sobre o corpete, cabeção de rendas brancas com fita preta e broche de oiro.{135} Cara redonda e cheia, não despicienda. Mas a cabeça, estabelecida a proporção com a altura do corpo, era excessivamente volumosa. Estava penteada á Maria Stuart, e tinha dois anneis de Cabello empastados sobre a fronte.

Apesar da seriedade do lance, todos os homens trocaram entre si um olhar de surpresa e admiração, que, reduzido a palavras, poderia dizer isto:

—Pois este monstrosinho será a mulher do telegraphista?

E, inclinado o olhar ao telegraphista, o contraste assombrava-nos cada vez mais.

Pelo meu espirito passou este raciocinio:

Casaria elle por amor? Não é possivel. Se não foi por amor, seria por interesse? Mas então como diabo é elle telegraphista e vive pobremente? Arruinar-se-ia no jogo? Oh! aqui ha romance por força...

As senhoras deitaram a doente, depois de a haverem desapertado, sobre o leito conjugal do telegraphista. Nós, os homens, ficamos na sala da estação conversando em voz baixa. O telegraphista fazia-nos, muito polidamente, as honras da casa. Estavamos encantados com elle, com a distincção das suas maneiras, com a sua gentileza em que uma intensa nota melancolica predominava.

—Que era do enfado da viagem, do comer das hospedarias, do calor do dia. Que, se o incommodo{136} não passasse, offerecia a sua criada para nos ensinar a casa do medico.

De dentro disseram-nos n'essa occasião que a doente estava melhor.

Para ser amavel, lamentei ao telegraphista que os deveres do seu cargo o obrigassem a estar ali preso n'um dia de festa em Thomar.

Elle sorriu-se e respondeu:

—Eu nem dou pela festa. Detesto isto, não saio nunca de casa, não passeio, não ando.

Instantes depois dizia-me ao ouvido um dos nossos companheiros de viagem:

—Pois, sr., tem bom gosto o homem! Prefere estar em casa a contemplar o monstrosinho das bellezas!

E eu respondia-lhe no mesmo tom discreto:

—Aqui ha romance, se ha!

O meu amigo sorriu-se e respondeu:

—O que ha por força é tolice.

Ao cabo de tres quartos de hora, a doente deu-se como restabelecida. Amparou-se ao braço de um parente seu, e recolhemos ao hotel, depois de termos agradecido ao telegraphista e a sua esposa os bons serviços que nos haviam dispensado.

Elle disse-nos o seu nome todo, offereceu-nos attenciosamente a sua casa, pobre e humilde como era.

A mulher, erguida nos bicos dos pés, dava beijos ás senhoras e apertou a mão aos homens, sacudindo-a á ingleza.{137}

—Mas que figura de mulher! diziam as senhoras. Que lá bem educada parece ser.

Depois de jantar, nós os homens saímos. As senhoras ficaram em casa. Eu, francamente o digo, convencido de que havia um romance no casamento do telegraphista, desejava conhecel-o. Á segunda ou terceira pergunta que fiz, encontrei homem que m'o contasse.

No principio da sua carreira, o telegraphista fôra para Sines. Rapaz muito bem comportado, grave e sério, toda a gente gostava delle. Ás vezes os rapazes de Sines iam a funcçanatas, bailaricos principalmente, a Santiago de Cacem. Elle ficava sempre; ás dez horas da noite recolhia a casa. Durante muito tempo não se lhe conheceu qualquer inclinação amorosa. E não era, como sabemos, porque fosse mal parecido. As raparigas de Sines não o achavam nada feio.

Passado mais de um anno, alguem disse que o telegraphista namorava a filha de um maritimo ali conhecido.

—Não é possivel! exclamavam alguns.

—Isso só por brincadeira! alvitravam outros. Mas o homem é sério.

Não era possivel, diziam uns, porque a filha do maritimo era aquella creaturinha anã que nós vimos em Thomar. Só por brincadeira, diziam outros, porque, comquanto a cara da rapariga não fosse de todo feia, o corpo não chegava para casar.{138}

Ora a verdade era que D. Clementina estava sempre á janella com o seu rosto rosado e o seu penteado Stuart expostos á brisa do mar. Mas trepava-se a uma cadeira muito alta para que o seu collo ficasse, como n'uma pessoa de estatura regular, á altura do peitoril.

Homem de poucas falas, o telegraphista não conversava com ninguem. E, de motu proprio, ninguem ousou dizer-lhe que a mulher que elle namorava tinha apenas a altura de uma boneca.

O telegraphista caiu de cama com uma pneumonia. A solidão do seu quarto de doente levou-o decerto a pensar no casamento. Restabelecido, sem revelar a ninguem a sua intenção, entrou em casa do maritimo a pedir-lhe a mão da filha.

Mostrou-se surprehendido o maritimo. Parecia-lhe impossivel aquella boa fortuna para uma filha anã. Disse-lhe que teria muito gosto em acceital-o como genro, tanto mais que sua filha, como elle acabava de dizer, estava de accordo no casamento.

E, por cautela, dispensou-se de chamar a filha á conferencia.

Tres dias depois era o telegraphista admittido na intimidade da familia. Foi então que viu pela primeira vez sua mulher tal qual ella era, sem o supplemento da cadeira alta. Um tremor de frio percorreu-lhe a espinha dorsal, mas, homem de principios honestos, presando acima de tudo a sua reputação, casou. Outro fosse elle, e teria fugido{139} de Sines n'essa mesma noite, mandando a noiva e o telegrapho ao diabo. Todas as pessoas de regular estatura o haveriam desculpado.

Sabida a historia, ficou perfeitamente explicado o melancolico recolhimento em que o telegraphista vivia, o seu desdem pela festa dos taboleiros, e o seu apêgo ao apparelho Bréguet, bem mais suave para elle que o do Hymeneu.

Na infelicidade d'este logro conjugal, uma consolação unica poderia sorrir ao pobre telegraphista: não tinha filhos, nem esperava tel-os.

—Muito bem sacado logro! exclamou o brazileiro com a despreoccupação de espirito de quem não suspeita ter caído em algum logro... mais ou menos bem sacado.

Madame Araujo commentava o caso, ria, falava, estava expansiva, o que lisonjeava sobremodo o Leotte.

Confessava que não esperava divertir-se tanto em Cintra.

—Pena tenho eu, disse ella, se isto não durar!

O Vasconcellos respondeu:

—Naturalmente vamos embora ámanhã.

—Já?! exclamou madame Araujo. Mas o Leotte deitou agua na fervura:

—Que tanto importava mais um dia como menos um dia.

Os relogios do Victor deram meia noite.

—E que tal! já meia noite! disse o brazileiro.{140}

Se você concorda, Christina, vamos tratar de recolher-nos, hein?

Ouvindo pronunciar a palavra Christina, foi como se eu proprio tivesse pronunciado eureka! como se houvesse encontrado a solução de um problema transcendente.

Despedi-me do brazileiro e da mulher, authomaticamente. Mal que elles voltaram costas, fiz signal aos outros para que me seguissem. Chegando ao meu quarto, fechei a porta, e disse-lhes cuidadosamente, como se se tratasse de um segredo de estado n'um club de conspiradores:

—Já sei quem esta mulher é!

—Quem é?

—A Christina do Muxagata, sem tirar nem pôr!

—A Christina da historia que nos contaste?!

—Acreditem, meus amigos, é a Christina do Muxagata.{141}

XV

A minha revelação causou tanta surpresa e interesse aos meus companheiros de villegiature, como a mim proprio.

Ir eu encontrar, ao cabo de tantos annos, a mesma Christina da rua das Fontainhas, a quem fôra entregar o dinheiro do Muxagata, na occasião em que ella estava ceando com o Falcão do Marco!

Que singular coincidencia a de ter eu começado por contar, nos nossos improvisados serões de Cintra, a historia do Muxagata e de ter vindo ao nosso encontro, no hotel do Victor, essa famosa Christina, que eu nunca mais tinha visto, e de que nunca mais ouvira falar!

Como, arruinando talvez o Falcão do Marco, chegára ella a desposar o brazileiro Araujo, se é que em verdade o havia desposado mais canonicamente do que ao Muxagata e ao Falcão do Marco?

O que seria feito d'aquella creancinha de dois{142} annos, que fôra o fructo do seu primeiro amor criminoso?

Mas eu não estava sonhando, por mais que o Vasconcellos quizesse capacitar-me d'isso.

Não havia duvida. Era ella, a mesma Christina da rua das Fontainhas, a bella lamecense raptada pelo Muxagata, com os dedos cheios de anneis e as mãos dealbadas de pó de arroz.

O Gonçallinho Jervis estava tão encantado com esta surpresa, que me parecia ter ciumes de que fosse eu e não elle que, por um acaso notavel, encontrasse um verdadeiro assumpto de romance.

Ah! ingenuo Gonçallinho! Esse feliz achado representava apenas que eu era mais velho do que elle. Consolação tristissima. Não ha homem vulgar que, no decurso de alguns annos, não encontre na sua memoria um ou mais romances de sensação. Esperasse o nosso Gonçallinho, vivesse mais algum tempo, e os assumptos levantar-se-lhe-iam debaixo dos pés, quando menos os procurasse.

O Leotte, apenas soube que madame Araujo era a Christina da historia do Muxagata, julgou-se um César que tinha chegado, visto e vencido.

O Athayde, o Maldonado e o Vasconcellos eram os que mais reservados se mostravam perante esta situação inesperada, que viera accidentar pittorescamente a nossa excursão a Cintra.

As suas duvidas contrariavam-me, pois que eu não podia deixar de estar plenamente convencido{143} de que madame Araujo era a Christina da rua das Fontainhas.

Procurei convencel-os, e lembrou-me um alvitre que devia acabar por deixal-os inteiramente rendidos á verdade dos factos.

—A Christina da rua das Fontainhas, tal como eu a conheci, gostava immenso de batotear. Saltava nos valetes, e fazia cêrco ás quinas. Pois bem! experimentemol-a. Adiemos por mais dois ou tres dias o nosso regresso a Lisboa. Uma d'estas noites armamos uma banca de jogo. Se fôr ella, é natural que sinta renascer em si a paixão de jogar, que a fascinava no tempo do Muxagata. Observemos se faz saltos nos valetes e cêrcos ás quinas. Se isto se der, meus amigos, não ha mais que duvidar: é ella, sem tirar nem pôr, a Christina do Muxagata.

Este alvitre agradou geralmente, e resolveu-se que ficariamos para realisar a experiencia decisiva.

Era porém preciso proceder com boa tactica, não começar logo por falar no jogo.

Assim se fez. No dia seguinte, madame Araujo, que ia readquirindo entre nós o seu velho habito de conviver com homens, estava quasi familiarisada comnosco, interessava-se pelos nossos passeios, pelos nossos paradoxos, e, sobretudo, mostrava-se deliciada pelos nossos serões, cheios de novidade para ella.

Á noite, como se realmente não tivessemos nenhuma{144} intenção reservada, principiámos por dar a palavra ao Taveira, que ainda não tinha falado. Contasse elle alguma partida do seu amigo Luiz de Lemos, com que tantas vezes nos tinha matado o bicho do ouvido.

—A historia da claque, por exemplo.

—Vocês estão fartos de ouvil-a! disse elle.

—Mas nem madame Araujo nem seu esposo a conhecem de certo.

—Luiz de Lemos! Eu nunca ouvi falar sequer d'esse nome! disse madame Araujo.

O Taveira resolveu-se a contar a historia da claque do seu amigo Luiz de Lemos, que todos nós sabiamos de cór e argumentada.

—Luiz de Lemos chegou a Braga ás cinco horas da tarde, sem ser esperado dos primos do Campo Novo.

Apeteceu-lhe aproveitar os primeiros dias de verão, alegres e quentes, e a resolução d'essa pequena jornada ao Minho foi tomada de repente, uma noite, ao sair do theatro Baquet.

Tinha chegado de Boaças dias antes, apenas com o seu fato de verão e alguma roupa branca na mala. Não contava passar do Porto. Mas, de subito, n'aquella noite, lembraram-lhe os primos Ozorios de Braga, dois pandegos, e, ao recolher do theatro, fez a mala e disse ao criado da Aguia d'ouro que o chamasse ao romper da manhã.

—V. ex.ª retira-se já para Boaças? perguntou{145} o criado, admirado de que, d'esta vez, o rega-bofes durasse tão pouco tempo.

—Não. Eu vou a Braga, visitar os primos Ozorios. Ainda hei de ir estar na Foz alguns dias. Mas por ora é cedo. Vou a Braga.

Ao romper da manhã, Luiz de Lemos foi á rua Formosa, á alquilaria do Raymundo, alugar um coupé que o levasse a Braga.

Elle tinha um grande horror instinctivo pela diligencia de Entre-Paredes em especial, e por todas as diligencias em geral. Dizia elle que a diligencia era a valla dos vivos. Uma philosophia como qualquer outra.

A manhã estava deliciosa, fresca e lucida, excellente para jornada. Almoçou na Carriça, tornou a almoçar em Villa Nova de Famalicão, e almoçaria terceira vez em Braga, se não preferisse jantar.

Os primos Ozorios do Campo Novo, encantados com a visita do morgado de Boaças, disseram-lhe que iam para a mesa.

—Vocês ainda jantam? perguntou o morgado.

—Bem vês tu que Braga é uma terra conservadora. Por cá ainda se pensa no jantar e no sr. D. Miguel.

—Pois, meus amigos, eu só almóço, mas posso almoçar tantas vezes quantas fôr preciso. É pois pela terceira vez que vou hoje almoçar.

Sentaram-se á mesa. Alegria e apetite eram de primeira ordem.{146}

—Além de jantar, o que fazem vocês por cá?

—Divertimo-nos.

—Mas como?

—Hoje, por exemplo, temos um baile.

—Um baile! Um baile em Braga é uma coisa tão absurda como uma semana santa em Marrocos. Mas onde é o baile?

—Em casa do Raio.

—Olá! Pois esse baile do Raio é um verdadeiro raio para mim.

—Por que?

—Porque não trouxe casaca.

—Ó diabo! não trouxeste casaca?! exclamou um dos Ozorios.

—Caso grave! ponderou o outro.

—Trago apenas fato de verão. Eu podia lá imaginar um baile em Braga! Que raio de lembrança!

—Mas ha de arranjar-se uma casaca.

—Sim... uma casaca sempre ha de arranjar-se.

—Se vocês arranjassem isso, teriam cortado o nó gordio.

—Ora espera! lembrou um dos Ozorios. Eu tenho duas casacas.

—Uma para usar e outra para alugar? Magnifico! Alugo-te a segunda por doze vintens.

Os Ozorios riram-se.

—Mas... chapeu? perguntou um dos dois irmãos.

—Vou em cabello.{147}

—Constipas-te.

—Irei de cadeirinha, de carroção ou em maca.

—Manda pedir o cavallo emprestado ao Longuinhos do Bom Jesus do Monte.

—Ou isso. Mas vamos a resolver o caso do chapeu.

—Está resolvido, disse o Ozorio mais velho. Eu tenho uma claque e um chapeu alto. Tu levas a claque e eu o chapeu alto.

—Para encheres de pasteis é melhor do que a claque. Tu não te perdes, maganão!

Jantaram pantagruelicamente, comendo bem e bebendo melhor.

Ás 9 horas davam os tres primos entrada nos salões do commendador Raio, que estavam deslumbrantes de bellezas bracarenses.

Luiz de Lemos valsou, polkou, namorou, com o prestigio que lhe dava a sua lenda de morgado rico de Boaças.

Mas, a meio da noite, lembrou-se de que ainda não tinha fumado.

Encontrou um dos primos.

—Ó tu! onde é que se fuma?

—Ali, respondeu o primo Frederico, indicando-lhe uma pequena sala.

—Bem. Vou fumar. Olha lá, sê prudente: não digas a ninguem que a minha casaca... é tua.

O primo riu-se.

Luiz de Lemos entrou na pequena sala, onde{148} muitos cavalheiros de Braga estavam fumando, incluindo o escrivão de fazenda.

Accendeu o seu charuto, pousou a claque sobre a mesa, conversou com os conhecidos e os desconhecidos, riu, falou de cavallos e de mulheres, mas como ouvisse annunciar uma valsa, levantou-se, pegou na claque e dispunha-se a passar ao salão de baile.

Quando elle já tinha sobraçado a claque, o escrivão de fazenda, que estava de pé, reparando na outra claque que tinha ficado sobre a mesa, dirigiu-se ao morgado de Boaças:

—V. ex.ª enganou-se...

—Enganei-me! Como?

—Essa claque não é de v. ex.ª.

O morgado olhou fito no escrivão de fazenda, voltou-lhe as costas e dirigiu-se para a porta.

O escrivão de fazenda seguiu-o, e já no corredor, abordou-o:

—Essa claque não é de v. ex.ª.

—Não é, não sr., mas que tem o cavalheiro com isso?

—Peço perdão a v. ex.ª, mas ha aqui um pequeno engano...

—Não ha engano nenhum, replicou o morgado. Acha que a claque não é minha?

—Parece-me...

—Pois tambem a casaca não é. Ora aqui tem.

E, mal humorado, tornou a voltar-lhe as costas.{149}

Encontrando o primo Frederico no salão, o morgado de Boaças desfechou-lhe com vivacidade:

—Tu és um patife!

—Porque?

—Porque não és capaz de guardar um segredo.

—Que segredo?

—O da claque.

—Mas que dizes tu?!

—E o da casaca tambem...

—Mas a quem diabo fui eu contar que te emprestei a claque e a casaca?

—A quem? Ao escrivão de fazenda! E és tolo. Porque, se não désses com a lingua nos dentes, talvez fosse eu que tivesse de pagar a contribuição sumptuaria. Uma casaca em Braga deve ser considerada como objecto de luxo.

N'isto viram aproximar-se o escrivão de fazenda, que se encaminhava a elles.

—Ahi vem o homem! galhofou o morgado. Vem talvez saber qual dos dois ha de collectar.

O escrivão de fazenda aproximou-se attenciosamente de Frederico Ozorio.

—Peço desculpa a v. ex.ª, disse elle, mas a respeito d'este cavalheiro que o trata por primo, deu-se um pequeno engano.

O morgado teve uma sacudidella nervosa:

—É forte embirração! Eu ja disse ao cavalheiro que não houve engano nenhum. Nem a casaca nem a claque são minhas.{150}

—Minhas é que são... interveio o Ozorio, querendo deitar agua na fervura.

—Perdão! insistiu o escrivão de fazenda. A casaca será de v. ex.ª, mas a claque é minha.

—Tem graça! Fui eu que a emprestei a meu primo.

—Torno a pedir perdão. O primo de v. ex.ª, ainda agora, lá dentro, trocou a sua claque com a minha, que tambem estava sobre a mesa.

Foi só então que o engano se desfez, mas, como désse muito que rir aos tres primos, toda a gente quiz saber o que era e toda a gente ficou sabendo em Braga que o morgado de Boaças tinha ido n'aquella noite ao baile do commendador Raio com uma casaca emprestada e uma claque que não era sua.

O brazileiro commentou que não havia nada mais facil de acontecer do que uma troca de chapeus. Esta observação não era, aliás, precisa para o caracterisar intellectualmente. Salomão, no seu logar, teria dito a mesma coisa.

D. Christina achou graça ao caso, mas disse, pouco amavelmente para o Taveira, que era de historias de amor que gostava mais.

E o brazileiro observou por sua vez:

—Eu do que gosto mais é de historias de almas do outro mundo. As velhas da minha terra crearam-me com essas historias.

—Pois eu contarei ao sr. Araujo, disse eu, uma historia de almas do outro mundo.{151}

O Vasconcellos interrompeu auctoritariamente:

—Agora não. Isto de historias tambem cansa. Vamos nós inventar outro divertimento?...

—Qual? perguntaram duas ou tres vozes.

—O que eu receio, disse elle, é desagradar á sr.ª D. Christina... Mas lá vai! V. ex.ª aborrecer-se-ia se nós armassemos uma mesa de jogo?

—Ora essa! exclamou o brazileiro. Um berlotesinho?! A Christina péla-se por isso, e eu não desgósto tambem.

Meia hora depois, D. Christina estava contente como o peixe dentro de agua. Batoteava de grande e á... portugueza. Saltava em todos os valetes e cercava todas as quinas.

E como os rios correm para o mar, era ella e o brazileiro que estavam com sorte.

Não havia que duvidar. A experiencia era completa, decisiva.

Ó alma batoteira do Muxagata! volta por um instante a este mundo para verificares como a tua Christina de Lamego honra a tua memoria transitando firmemente pelo caminho que tu lhe traçaste em roda de uma mesa de jogo.{152}

{153}

XVI

Todas as baterias da nossa curiosidade se assestaram contra um alvo unico: descobrir a historia do supposto casamento da Christina do Muxagata com o brazileiro Araujo.

Felizmente para nós, o bloqueio não durou muito. Foi a propria praça que se rendeu voluntariamente.

Emquanto D. Christina fazia a sua toilette para o jantar, o brazileiro contava-me no terraço do hotel, com toda a sua ingenuidade bondosa, a historia do seu casamento—revelação a que eu o conduzi mais ou menos habilmente.

Tinha vindo a Portugal havia seis annos para matar saudades da patria e visitar os parentes que viviam em Amares.

Aproveitára a occasião, e fizera algumas excursões tanto no norte do paiz como na Extremadura.{154}

Foi por essa occasião que encontrára D. Christina no Bom Jesus do Monte. Tinha ella enviuvado pela segunda vez recentemente e achava-se entregue a um profundo abatimento moral...

—Então a esposa de v. ex.ª já tinha casado duas vezes? perguntei eu.

—Já. A primeira com o morgado de Muxagata, que pela má cabeça d'elle déra cabo de tudo.

—E a segunda?

—A segunda com outro fidalgo do Marco de Canavezes, que tambem não tinha mais juizo. O amigo sabe decerto qual era a vida gastadora dos antigos morgados.

—Sei muito bem.

—Pois os dois deram cabo de tudo quanto tinham. A Christina estava reduzida ao pouco que lhe deixou o segundo marido.

—E filhos... não teve?

—Não, senhor. Como eu ia dizendo, vi-a no Bom Jesus do Monte. Gostei da senhora, soube que não tinha muitos meios, e falei-lhe em casamento. Ella, comquanto não fosse já nova, era bonita, como ainda se vê. Estava boa para mim, que não era nenhum rapazinho, e de mais a mais doente. Tudo aquillo foi obra de poucos dias. Ella lá tratou de mandar tirar os papeis.

—Quaes papeis? Os banhos?

—Para correr os banhos eram precisas as certidões dos dois casamentos e do obito dos dois maridos. Mas a Christina foi ao Porto, emquanto{155} eu fui a Amares, tambem por causa dos meus papeis, e lá os arranjou. Juntamo-nos depois em Amares, onde eu quiz casar por ser a minha terra. Como resolvesse ficar em Portugal, precisei ir liquidar ao Rio de Janeiro. A Christina, coitadinha! não me quiz deixar ir só; foi tambem. Estivemos lá dezoito mezes, liquidei, e agora por aqui ando sem mais canseira que a de tratar da minha saude. Vivi a principio em Braga, mas os medicos, por Braga ser muito fria, aconselharam-me que viesse viver para Lisboa, por causa do clima.

N'isto chamaram para o jantar.

E eu, francamente, não achei na historia do brazileiro revelação alguma que me surprehendesse—nem mesmo a dos papeis que D. Christina arranjára no Porto. Nada ha tão facil a uma mulher que vae casar com um brazileiro como poder cohonestar o seu passado com duas certidões de casamento... falsas. Quanto ao resto, eu havia architetado a historia do brazileiro. Apenas a minha imaginação tinha mettido mais alguns maridos no coração de D. Christina. Mas achei natural que ella não fosse mais verdadeira, no que contára ao marido, do que as duas certidões que o contentaram a elle.

Ter-me-ia ella reconhecido? Certamente que sim. Estava, porém, muito tranquilla na posse dos quatro documentos que attestavam o seu passado. Com elles se defenderia, sendo preciso, da{156} inconveniencia de qualquer mau encontro. Tanto se lhe daria, pois, que eu a reconhecesse como não. Ella era a viuva documentada do morgado de Muxagata e do Falcão do Marco. O papel sellado livra de muitos embaraços.

Á mesa do jantar, D. Christina, que todos os dias mudava de toilette duas e tres vezes, mandou dizer á criada Rosa que lhe trouxesse um lenço.

Veio a criada trazer n'uma bandeja o lenço de finas rendas que tinha esquecido a D. Christina.

E o Leotte, quando viu entrar a rapariga, alternou os seus olhares de guloso entre a brazileira e a criada, parecendo vacillar entre as cerejas frescas que os labios da rapariga imitavam, e o carmim que artificialmente coloria a bocca da brazileira, já um pouco fatigada... de beijar canonicamente tres maridos.

Á noite, o Vasconcellos, que desejava a desforra, e D. Christina, que amava o berlote, queriam começar logo pela jogatina.

O brazileiro, que já tinha tomado pé, sustentou que havia tempo para tudo: acrescentando que eu lhe havia promettido contar uma historia de almas do outro mundo.

—Pois que se contasse a historia, mas uma só, concordaram.

—De mais a mais a minha historia, disse eu, é de amores, para contentar a sr.ª D. Christina; e de almas do outro mundo, para contentar o sr.{157} Araujo. O peor é que talvez pareça um pouco maliciosa...

Fingi-me escrupuloso, comquanto soubesse que os ouvidos de D. Christina não estranhariam a malicia de qualquer narrativa.

—Ora adeus! respondeu o brazileiro rindo. Se fôr preciso, deite um véosinho por cima da historia, e conte sempre. Nós já não somos nenhumas creanças innocentes.

—Pois n'esse caso, ahi vae a historia:

Eu estava á janella, de manhã cedo—seis horas talvez—a comer um bello cacho de uvas brancas. Encostado ao peitoril, ia debicando bago a bago, com um certo prazer de gastronomo, que só me fazem sentir as uvas brancas e doces. Ás vezes alongava os olhos pelo horizonte, que as torres de Mafra recortavam ao longe, esfumando-se como no fundo de um quadro. Em torno de mim havia uma placidez profunda: as arvores e as pedras, companheiras unicas do casal, pareciam adormecidas ainda na frescura cristalina da manhã. A estrada de Mafra, que passava sob as janellas, estirava-se tão solitaria, que as andorinhas saltitavam no macadame, bicando o pó. O caseiro tinha saído com o filho n'uma carroça; a mulher do caseiro accendêra o lume para o almoço, como indicava o fumo que rompia da chaminé.

N'isto, sinto o tilintar longinquo de guizos na estrada. É o tenente Silverio, que vem dar o seu passeio matutino, disse eu com os meus botões.{158} Já lhe conhecia o trotar da egua, que puxava a charrette.

Nas terras pequenas sabe-se tudo: o tenente Silverio andava apaixonado pela Libania, da Murgeira, uma saloia muito animal, de seios turgidos, que pareciam despenhar-se no tanque, quando ella se curvava para lavar.

Era elle, o tenente.

Fez parar a charrette debaixo da minha janella.

—Olá! gritou. Está, na fórma do costume, comendo as suas uvas.

—Pudesse eu, respondi-lhe, e havia de comel-as todo o anno. Que bellas! Isto de mais a mais é recommendado. Contêem principios alcalinos, que são salutares. E teem um rico assucar, que é nutritivo. Na Allemanha e na Suissa comem-n'as para curar as doenças gastro-intestinaes. É bom, e faz bem.

—Diga antes que gosta muito de uvas.

—Ou isso: gósto muito.

—Visto que já saboreou o seu primeiro almoço, venha d'ahi dar um passeio.

—Aonde?

—Ora essa!

—Á Murgeira, como sempre, não é verdade?

—Como sempre... é um modo de dizer. Já lá não vou ha tres dias.

—Que ausencia! Pois irei. Deixe-me procurar o chapeu.

Tres minutos depois a charrette do tenente Silverio{159} rodava para a Murgeira pela estrada aberta entre pinheiraes. A egua, no seu trote largo, quebrava o silencio da manhã, guizalhando festivamente.

Iamos bem dispostos, dilatando os pulmões no ar fresco dos pinheiraes, em que já se sentia um gumesinho de brisa do mar, que soprava da Ericeira. Muito agradavel a manhã.

—Isto é bom e faz bem, dizia-me o tenente. São as minhas uvas.

—Perdão, as suas uvas, meu caro tenente, são outras. Vae colhel-as á Murgeira. Muito brancas não são; mas talvez sejam doces...

O tenente riu-se.

Tinhamos saído da estrada de Mafra, e iamos subindo, a passo, para a Murgeira.

Avistava-se o mar, de um azul lacteo, esbranquiçado e sereno.

Fomos subindo: a egua, de cabeça baixa, mettia o largo peito á estrada, puxando a charrette. Já conhecia o caminho, e acho que até já conhecia a Libania.

Chegámos. As creancitas choravam como se tivesse acontecido uma desgraça. Havia algum caso na Murgeira.

—Ora esta! exclamava o tenente. É a primeira vez que vejo chorar n'esta terra!

—Ainda que tarde, as lagrimas chegam sempre, observei eu.

—Isso é sentencioso. Mas eu sou curioso: quero saber o que é.{160}

O tenente apeou-se; eu apeei-me tambem. Na taverna do sitio falava-se muito. Falava-se muito, e não se chorava menos.

Soubemos então o que se tinha passado; morrera o Zé Ratinho.

—Quem era? perguntei.

Deram-nos informações. Zé Ratinho era um rapaz da Murgeira, que se fizera cocheiro dos Gatos. Andára doze annos em Lisboa, batendo, e aprendêra lá a tocar guitarra. Por esta prenda foi que elle se tornou celebre desde Lisboa até Mafra, desde Mafra até á Murgeira. Nas esperas de toiros, nas patuscadas de Friellas e nas noitadas do Dáfundo, Zé Ratinho fazia as delicias dos marialvas e das hespanholas: era um artista para a guitarra.

Fôra em Lisboa que elle ganhára queixa de peito, disseram-nos. Viera muito doente para a Murgeira, tomar ares patrios. Apesar de doente, entretinha-se á noite com a guitarra, na taverna, tocando para os outros ouvir. Os saloios da Murgeira, seus patricios, consideravam-n'o um Orpheu, um Amphion da guitarra. D'aqui o sentimento geral pela morte d'esse excellente rapaz, que deixava a perder de vista os harmonios da saloiada patusca.

Todos, rapazes e raparigas, queriam velar o seu cadaver. Tinha funeraes de principe, o Zé Ratinho.

—Acabou-se a guitarra na Murgeira! exclamou{161} um saloio, que acabava de beber dois decilitros saudosamente.

—Vão os senhores lá ver, que elle está catita! exclamou o taverneiro.

Fomos. Casa terrea, pequena, escura: cheia de gente. Quando entrámos, a chorata dos circumstantes augmentou. Depois foi-se smorzando lentamente: queriam ouvir o que diriamos.

Zé Ratinho estava deitado no caixão. Tinham-lhe vestido o seu melhor fato: calças de bombazina, jaqueta de briche, cinta de lã encarnada, botas de pelle de vacca com floreta. Sem gravata. O barrete pousado sobre o hombro direito.

Á cabeceira, um Christo e duas velas de cêra.

Pendurada n'uma trave, n'uma tristeza inconsolavel, a guitarra.

Uma rapariga, que diziam lá fóra sua namorada, havia entalado nas cordas da guitarra uma dhalia branca.

O tenente Silverio conheceu que tinha mallogrado o passeio. O luto geral abrangia a Libania, cujos olhos chorosos contrastavam com os peitos foliões, saltitantes.

Deixamos a Murgeira a prantear o seu Orpheu. O tenente foi almoçar comigo. Investindo com o linguado frito, falamos do Zé Ratinho.

—Olhe que a lembrança da flor nas cordas da guitarra não deixa de ter certa delicadeza! observei eu.{162}

—Qual historia! chalaçou o tenente. Mas que flor... uma dhalia! É um cumulo de delicadeza saloia. E, rindo, acrescentou: Deite cá mais linguado, que está melhor do que a Libania.

Decorridos tres dias, á mesma hora, passa o tenente Silverio. Encontra-me a comer outro cacho de uvas.

—Venha d'ahi.

—Aquillo ainda ha de estar lutuoso. A morte de um Orpheu pede um triduo de lagrimas.

—Ora adeus! Isso já lhes havia de passar.

—Quem sabe?

—Sei eu.

—Como sabe?

—De sciencia certa.

—N'esse caso vamos lá.

Fomos. Apeámos á porta da taverna. O tenente metteu logo por um atalho para ir ter com a Libania ao lavadoiro. Muito satiro, o tenente. Eu fiquei na taverna a dar dois dedos de cavaco ao taverneiro.

Ouvi-lhe ainda muitas historias do Zé Ratinho. Uma d'ellas, principalmente, tinha o seu quê de phantastica.

Durante a noite haviam ficado a velar o cadaver os rapazes mais afoitos da Murgeira. Ás duas horas da noite, coube a vez ao Joaquim Prado, um latagão forte como um Castello. Estava elle pensando na triste sorte do Zé Ratinho, e na orphandade irreparavel da sua guitarra,{163} quando de repente principiou a guitarra a tocar um fado muito triste e soluçado.

—Ora pelos modos, acrescentou o taverneiro, era a alma de Zé Ratinho que estava tocando guitarra pela ultima vez.

—Então o Joaquim Prado ouviu isso? Adormeceria elle, e estaria sonhando?...

—Essa é boa! Não ha homem nenhum, por mais afoito que seja, capaz de dormir ao pé de um morto. O Joaquim ouviu mesmo tocar a guitarra, bem acordado que elle estava, e só com dez réis de aguardente que tinha bebido ahi n'esse mesmo logar em que vocemecê se assentou. Poz-se em pé, logo que a guitarra começou a tocar, e não viu ninguem. O Zé Ratinho estava morto e bem morto: não se mexia.

N'isto chegava, com um certo ar dominador, o tenente Silverio.

O taverneiro commentava:

—Cá na Murgeira não é o senhor capaz de tirar da cabeça a ninguem que foi a alma do Zé Ratinho que na propria noite em que elle morreu, por volta das duas horas, esteve tocando guitarra.

—Venha d'ahi, dizia-me o tenente, vamos almoçar.

Subimos para a charrette. Já com as rédeas na mão, o tenente, muito chalaceador, perguntou-me:

—Então os saloios ouviram a alma do Zé Ratinho{164} tocar guitarra, na noite em que elle morreu?!

—Ouviram.

—Pois... quem tocava guitarra era eu.

—Você?!

—Eu, sim. A Libania estava muito triste, e eu vim de Mafra dizer-lhe coisas. Ficou mais alegre. Quando vinha embora, dei as rédeas ao impedido, e vim tocando guitarra. Mas pensei que elles não tivessem ouvido...

—Jura que isso é verdade?

O tenente olhou para mim:

—Juro.

—Então, decididamente, não era a alma do Zé Ratinho. Ainda bem! porque eu já me sentia disposto a acreditar...

—Tambem eu, se isso tivesse acontecido comigo! observou ingenuamente o brazileiro.

D. Christina, espirito forte, desatou a rir, e como já estivessem sobre a mesa dois baralhos de cartas, foi ella propria que os abriu, dizendo e abancando:

—Vamos a isto, meus senhores.{165}

XVII

Leotte arrastava discretamente a aza a D. Christina, mas enganára-se quanto á presumpção de, como César, chegar, ver e vencer.

Teve de conhecer que madame Araujo, muito experimentada no terreno que pisava, não quereria comprometter-se no pequeno theatro de acção de um hotel, onde o marido só a largava por instantes e onde nós, os oito companheiros de Leotte, eramos outros tantos olheiros, cheios de malicia e curiosidade. De mais a mais, entre esses oito havia um que lhe conhecia a vida. Era eu. E ella estava de certo empenhada em fazer-me convencer a mim proprio, como tinha convencido o brazileiro, de que era a viuva authentica e duplicada do morgado Muxagata e do Falcão do Marco.

Portanto, o Leotte, que não era tambem um{166} novato inexperiente, resolveu rallentar o galanteio, appellando para Lisboa. Por esta razão e, certamente espicaçado pela minha feliz descoberta, voltou-se de novo para a criada, não só por amor das cerejas apetitosas, como pelo desejo de ver se deslindava o misterio, que fôra o primeiro a suspeitar.

E agora é chegado o lance capital d'esta novella, que talvez pareça inverosimil como um antigo romance de Ponson, mas que é tão verdadeira, que ainda hoje póde ser testemunhada por mais de meia duzia de pessoas.

Teve sobeja razão o Leotte para nos communicar cheio de assombro que a sua descoberta, segundo as ultimas revelações da Rosa, excedia a que eu acabava de fazer.

O que iria elle contar? Coisas realmente espantosas.

Dissera-lhe a Rosa que seu pai, D. Alvaro de Alarcão, era natural da Beira Alta.

—Então a menina nasceu lá? perguntára-lhe o Leotte.

—Não, senhor. Eu nasci no Porto.

—Como foi então isso?

—Meu pai, que era morgado...

—Morgado de que?

—De Muxagata.

—De Muxagata?! Está bem certa d'isso!?

—Muito certa. Meu pai fugiu para o Porto com uma fidalga de Lamego.{167}

—E depois?

—Meu pai arruinou-se, e foi morrer ao abandono no seu solar. Minha mãe tomou amores com outro homem, que tambem era morgado, e que caiu doente com uma molestia da espinha, que o poz muito impertinente. Eu tinha apenas dois annos e, como fizesse barulho brincando, foi preciso tirarem-me de casa. Mandaram-me então para Lamego.

—Para casa da familia de sua mãe?

—Isso sim! A familia de minha mãe nunca mais lhe perdoou a sua falta. Mandaram-me para casa de uma pobre mulher, a tia Senhorinha, que era irmã de leite de minha mãe. Fui crescendo entregue aos cuidados da tia Senhorinha, que era viuva, e que vivia de fazer mandados. Era ella quem dava todas as voltas em casa do major Gouvêa, de infantaria 9, que era muito bom homem, casado com uma santa senhora. Como não tinham filhos, foram-se-me affeiçoando, e eu passava lá os dias emquanto a tia Senhorinha andava lidando na cozinha ou dando voltas por fóra.

—E sua mãe não mandava mesada nenhuma á tia Senhorinha?

—A principio mandava meia moeda por mez, mas quasi nunca escrevia. Depois o sr. major Gouvêa, quando a tia Senhorinha morreu de um grande resfriamento que a tolhêra, tomou conta de mim, mandou dizer a minha mãe que guardasse as suas migalhas de dinheiro, e minha mãe{168} nunca mais tornou a escrever, não quiz mais saber de mim.

—E o que foi feito de sua mãe?

—Não sei! O sr. major Gouvêa não queria que se falasse d'ella.

—Mas como foi que a menina veiu parar a Lisboa?

—O sr. major saiu tenente-coronel e foi collocado em Elvas. Eu vivia muito feliz, porque tanto elle como a mulher, a sr.ª D. Clara—Deus a chame lá!—me tratavam como se eu fosse sua filha. Tinham muita pena de mim, davam-me vestidos, chapeus, tudo o que elles podiam dar, e mais do que podiam dar, porque o sr. tenente-coronel apenas vivia do soldo. A sr.ª D. Clara, como era alfacinha, gostava de poder vir para Lisboa; de mais a mais, em Elvas, o sr. tenente-coronel passava mal de saude. Um general, que era amigo d'elle, arranjou-lhe a transferencia para Lisboa. Viemos todos. Mas o sr. tenente-coronel nunca mais tornou a ser o homem que era em Lamego. Soffria do coração. Anno e meio depois de estarmos em Lisboa, acamou, soffrendo cada vez mais. Morreu todo inchado, que fazia dó. N'esse dia posso dizer que morreu o meu verdadeiro pae.—E dos olhos da rapariga rebentavam lagrimas.

—Depois?

—Depois a sr. D. Clara e eu viviamos de uma pequena pensão que ella tinha. Mas a pobre senhora{169} affligiu-se tanto com a morte do marido, que pegou de fazer-se doente. Só durou mais onze mezes. Vieram então uns parentes d'ella, sobrinha e marido, tomar conta de tudo o que havia. E eu achei-me sósinha no mundo, sem ter quem me protegesse. Vi-me só, desamparada, fiz um annuncio no Diario de Noticias, arranjei uma casa, fui servir.—E os soluços embargavam-lhe a voz.

—Mas por que não tentou procurar sua mãe?

—Como! Quem sabe lá se minha mãe ainda vive! Se ella quizesse fazer caso de mim, teria deitado inculcas para me encontrar.

—Diga-me porém uma coisa... Como foi que mudou de nome?

—A primeira casa em que eu servi era na praça dos Romulares. A senhora chamava-se Maria; a menina tambem. Começaram a embirrar com o meu nome, que fazia confusão, diziam ellas. Talvez não gostassem que eu tivesse um nome igual ao seu. Um dia a senhora disse-me que era melhor chamarem-me Rosa, e desde então o meu nome tem sido sempre Rosa.

—Mas então a menina não suspeita que existam ao menos parentes de sua mãe?

—Elles não me quereriam vêr, porque ficaram de mal com minha mãe.

—Quem sabe...

—Ó meu senhor! eu nasci para ser desgraçada!{170}

—E, se fosse preciso, a menina poderia provar tudo isso que me tem contado?

—Vive na rua da Padaria a sobrinha da sr.ª D. Clara, em casa de quem eu costumo ficar por esmola, quando estou desarrumada. Ella que diga se isto é verdade ou não.

Como não podia deixar de ser, a revelação d'este dialogo causou-nos profunda surpresa. Chamamos a rapariga, que repetiu todas as declarações anteriores.

—Mas isto é um verdadeiro romance! disse eu.

—Começado por ti e acabado por mim! observou orgulhosamente o Leotte.

—Tens razão.

—O que eu não sei, disse-me o Vasconcellos, é como tu e os teus collegas em lettras teem o condão de encontrar sempre um romance em toda a parte!

—Sempre, não. Poucas vezes até o acaso poderá ter fornecido um tão completo romance. Este a mim mesmo me surprehende.

—Sim. D'este não posso eu duvidar, porque estou assistindo a elle. Mas—continuou o Vasconcellos—tenho corrido todo esse paiz, e nunca encontrei nenhum romance nem coisa que o parecesse.

—Se tu fosses escriptor terias, por hipothese, feito dez romances; d'esses dez, nove seriam inventados, e apenas um verdadeiro. Notando que{171} o mais inverosimil seria talvez o unico verdadeiro.

—A julgar por este, assim é.

O Gonçallinho Jervis estava visivelmente entregue a dois pensamentos: um, que dissimulava; outro, que manifestava com vehemencia.

O primeiro adivinhava-lh'o eu: era um intimo desgosto de não ter sido elle que surprehendesse o romance.

O segundo inspirava-lhe indignadas apostrophes contra a mãe descaroavel que abandonára a sua propria filha á miseria, talvez á deshonra.

—Ah! Gonçallinho, é d'essa triste verdade que nasceu a creação das rodas dos expostos, dos asilos, das misericordias, de todas as piedosas instituições de assistencia publica. Mas parece que tu não vives n'este mundo! Pois não lês nos jornaes, todos os dias, noticias que te ensinam que ha mães que expõem as filhas, que as matam, que as vendem!... E pensas que todas essas torpes mães serão desgraçadas! Só são castigadas as que caem nas mãos da policia. As outras viverão decerto tão felizes como D. Christina.

Mas era preciso abandonarmos philosophias, tomar alguma resolução pratica.

Duas coisas ficaram logo resolvidas:

1.ª Que se escreveria ao Callixto, que tinha ficado em Lisboa, para ir á rua da Padaria procurar a sobrinha de D. Clara Gouvêa, a fim de pessoalmente verificar se as declarações d'ella{172} coincidiam com as da Rosa. Ficariamos em Cintra esperando a resposta.

2.ª Que eu inventaria á noite uma historia qualquer que, visando ao coração das mães descaroaveis, pudesse revelar-nos o arrependimento ou o cinismo de D. Christina.

Escripta a carta ao Callixto, comecei a pensar no modo de conduzir a observação psichologica de que tinha sido incumbido.{173}

XVIII

O conto que eu architectei, para contar á noite, foi baseado, devo confessal-o francamente, n'uma noticia que havia lido em Buffon, e que para aqui vou transcrever textualmente.

Diz o sabio naturalista na sua obra monumental:

«Pendant tout le temps de l'incubation, la paone évite soigneusement le mâle, et tâche surtout de lui dérober sa marche lorsqu'elle retourne à ses ½ufs; car dans cette espèce, comme dans celle du coq et de bien d'autres, le mâle, plus ardent et moins fidèle au v½u de la Nature, est plus occupé de son plaisir particulier que de la multiplication de son espèce; et s'il peut surprendre la couveuse sur ses ½ufs, il les casse en s'approchant d'elle, et peut-être y met-il de l'intention, et cherche-t-il à se délivrer d'un obstacle qui l'empêche de jouir: quelques-uns ont cru qu'il ne les cassoit que par son empressement à les couver lui-même, ce seroit un motif bien diffèrent.»{174}

Achado o assumpto, graças ás minhas recordações de Buffon, era facil oppôr a pavôa á mulher pelo que tocava aos encargos affectuosos da maternidade.

D. Christina ia accentuando, á medida que a convivencia se estreitava, uma alegria expansiva, de que aliás se mostrava um pouco avara para comigo, desconfiada talvez de que eu não soubesse ser discreto até ao fim.

Por vontade sua, ter-se-ia começado logo a jogar. Mas nós, simulando não querer interromper o tradição das nossas noites de Cintra, oppuzemo-nos.

Contei, portanto, o meu conto.

—Era n'uma quinta da Beira Alta, uma d'essas quintas nobres do seculo passado, cheias de estatuetas e de fontes mithologicas, de largas ruas desenhadas por linhas de buxo alto eriçado; uma d'essas quintas em que havia, por força, um pombal, um lago e a matta.

Ao fundo alvejava o palacio, de amplas dimensões, com janellas de sacada, cujos ferros, muito espaçados, eram torcidos como o caduceu de Mercurio.

Aos lados da porta do edificio avultavam duas grandes cascatas, estrelladas de pequenas conchas, umas brancas, outras roseas; e de cada gomil,{175} que os Neptunos sobraçavam, descia a agua n'uma crespa meada de cristal, caindo nos tanques, onde peixes doirados nadavam.

Havia na quinta um copioso aviario, uma collecção preciosa de faisões, pavões, perús, patos, gallinhas raras do Oriente.

Eu tinha ido visitar o dono da casa, que havia sido meu condiscipulo, e que fôra feito visconde, quando, por ter casado rico, comprou aquella ultima quinta de um morgado beirão.

Tive a honra de conhecer as pessoas mais gradas da localidade, que se reuniram a jantar em casa do meu condiscipulo no primeiro domingo que lá passei.

O visconde conservava ainda o mesmo espirito que eu havia conhecido doze annos antes. Muito sarcastico, um critico implacavel de todos os ridiculos sociaes, contou-me hilariantemente a historia do seu viscondado, que elle era o primeiro a não tomar a sério.

—O governo, disse-me rindo, fez-me visconde; no Minho chamaram-me bisconde. Eu adoptei esta ultima versão, por me parecer mais gloriosa, pois que duplica a minha nobreza. Prefiro o bis.

Depois informou-me minuciosamente ácêrca de todas as pessoas, de ambos os sexos, que eu ia conhecer. Descreveu-me as toilettes, que eu havia de ver, os casacos e colletes dos morgados, os vestidos e penteados das senhoras. Biographou com incisiva satira uns e outras. Contou-me{176} o motivo por que certo fidalgo vinha a ser ao mesmo tempo tio de si mesmo, uma embrulhada genealogica, que eu já não sei agora deslindar. Historiou-me o caso de duas morgadas beatas, que tinham perdido o direito de ir á sepultura vestidas de branco, posto não fôssem obrigadas por convenção social a andar sempre vestidas de preto. Uma d'ellas viria ao jantar, e eu teria occasião de observar a sua severidade de Lucrecia perante todos os Tarquinios d'este mundo, sem embargo de ter passado pela roda dos expostos um filho seu, cujo destino ella propria ignorava.

Eu estava prevenido pelo bom-humor do visconde para todas as apresentações que me seriam feitas.

Chegou o dia do jantar, e tive então ensejo de reconhecer quanto as suas informações, apesar de mordazes, eram exactas. Vi, sentada á mesa do visconde, a melhor nobreza de sete leguas em redor. Quasi todos os convivas eram descendentes de reis godos, e, por conseguinte, aparentados. Estranhei porém, e disse-o ao visconde, que não houvesse ali nenhum primo de Viriato.

—Pois tu não te lembras de que Viriato era pastor?! observou sentenciosamente o meu condiscipulo.

O jantar foi pantagruelico. Legiões de aves passaram por deante de mim. Era de abarrotar. O visconde disse-me depois que ninguem lá saía{177} de casa para jantar de outro modo. Não valia a pena.

Findo o banquete, viemos todos sentar-nos junto das cascatas. Conversou-se principalmente de assumptos do campo. O visconde ria galhofeiramente da minha ignorancia agricola. A nobre Lucrecia, que elle me havia biographado, observou-me angelicamenle que no campo as conversações eram mais innocentes do que na sociedade destragada das cidades. Eu, que não tinha pretenções a Tarquinio, concordei.

Fiz reparo em que muitas aves, principalmente pavões, depois que os criados as chamaram ao pateo da cozinha para lhes dar de comer, pairavam, a grandes distancias, sobre os ramos das arvores.

O visconde notou o meu reparo, e esclareceu-me:

—São as pavôas que procuram desorientar os pavões.

Imaginei que elle houvesse entrado n'um assumpto escabroso de zoologia amorosa. Sorri-me. O visconde, piedosamente, observou:

—Não te rias. Estou falando serio.

—Era isso justamente o que eu receava...

—É que me não entendeste. As pavôas estão agora chocando os ovos, que com um grande sentimento de amor maternal escondem dos pavões, que lh'os costumam devorar. Por isso, receosas de que os machos as sigam, procuram desoriental-os,{178} para que não descubram o sitio em que ellas deixaram por instantes os ovos, aliás muito bem escondidos.

—É exacto, disse do lado um morgado beirão.

—Elle não sabe uma palavra, ponderou com verdade o visconde, d'esta historia natural, que nós cá praticamos.

Segui attentamente com os olhos o que o visconde denominava a manobra das pavôas. Voando de ramo em ramo, e a longos intervallos de tempo, iam desapparecendo, sumindo-se arteiramente na espessura do arvoredo.

Alguns pavões levantavam o vôo após ellas, e então as pavôas voltavam, aproximavam-se do sitio em que estavamos, demoravam-se, disfarçando o melhor que podiam a sua intenção.

—Mas isto é admiravel! exclamei eu, isto é sublime de amor maternal!

—Temos ode! gracejou o visconde. Isto é o que é. Isto são as pavôas que não querem que os pavões lhes comam os ovos. Nada mais e nada menos. Não tens visto isto por lá na sociedade das grandes cidades? Pois olha que não devem faltar pavões...

—Mas faltam as pavôas.

—Isso acontece em toda a parte, replicou o visconde, piscando-me um olho e movendo o queixo na direcção da nobre Lucrecia pudibunda.

Comprehendi o seu gesto.

N'esse momento, a fidalga descendente do rei{179} Vamba seguia com tranquilla curiosidade a manobra das pavôas, como nós todos. Não parecia envergonhada de confrontar-se moralmente com ellas. De certo lhe não passava pelo espirito a lembrança de que annos antes tinha enviado á roda de Vizeu um filho, cujo destino ignorava.

—Pudesse ella aprender com as pavôas! disse eu depois ao visconde.

—Ella, respondeu-me elle, tambem as tem em casa, mas não se dá ao trabalho de aprender coisa nenhuma.

—Pois eu aprendi.

—Que aprendeste tu?

—Aprendi a conhecer o cathecismo moral das pavôas, livro que muitas mulheres desconhecem.

—És um ingenuo! exclamou o visconde, desfechando-me na cara uma ruidosa gargalhada escarninha.

Aqui teem a minha historia.

D. Christina ouviu-a imperturbavel, serena, como se o seu coração fosse de marmore.

Em contraposição, a bondade do brazileiro revelou-se mais uma vez.

—Parece impossivel, disse elle, como ha pais que despresam os filhos, quando até as avesinhas ensinam a amal-os! No Brazil vi um passarinho chamado João de Barros, muito estimado lá porque annuncia de que lado ha de soprar o vento todo o anno, que faz com barro o ninho do feitio{180} de um forno. Se alguma ave de rapina lhe quer ir comer os filhos, e tenta enfiar a cabeça pela porta do ninho, tanto elle como a femea dão-lhe bicadas até que fuja ou morra.

N'outra occasião, nós teriamos rido certamente do passarinho que tem no Brazil o nome de um historiador portuguez.

Mas o contraste da bondade simples do brazileiro com a crueza glacial de D. Christina encheu-nos de simpathia e de estima por esse amoravel velho, que havia ligado o seu destino a uma mulher sem coração.

D. Christina, mostrando-se enfadada com os commentarios do marido, disse abruptamente, cortando-lhe a palavra:

—Vamos lá á nossa partida, que estou hoje com grande raiva aos valetes.

D'onde o Vasconcellos quiz concluir que ella, indignada com a minha historia, tivera em vista chamar-me valete.{181}

XIX

Veio a resposta do Callixto.

A sobrinha de D. Clara Gouvêa confirmou plenamente as declarações da filha do Muxagata, acrescentando-as com excellentes informações a respeito da pobre rapariga.

«Disse-me ella, escrevia o Callixto, que tem a pequena na conta de muito honesta. Sempre mostrou muito juizo. Se a não tem em casa, é porque se peja de assoldadar como criada uma rapariga fina, filha de um fidalgo; como pessoa de familia não a póde sustentar, porque tem muitos filhos, o marido ganha pouco na alfandega, e da tia Clara apenas herdou uma insignificancia. Diz ella.»

Em vista d'esta carta, conferenciamos sobre o que deviamos fazer para impôr a D. Christina o dever de olhar por sua filha. O primeiro alvitre que nos occorreu foi o de contarmos tudo ao brazileiro.{182} Mas ao cabo de alguma discussão, rejeitamos o alvitre, porque elle poderia ter um desfecho tempestuoso. Preferimos, portanto, os meios suaves e conciliatorios.

Decidiu-se que escreveriamos a D. Christina uma carta, que seria assignada por todos nós. Essa carta, secca e laconica, quasi imperativa, dizia assim:

«Ex.ma Sr.ª

V. Ex.ª vive tranquilla e feliz. Sem embargo, sua filha encontra-se n'uma situação desgraçada, tão desgraçada, que é ella propria quem, no hotel Victor, está ao serviço de v. ex.ª É a sua criada de quarto.

«Se v. ex.ª duvidar d'esta nossa informação, queira dirigir-se á rua da Padaria n.º... 2.º andar, e procurar a mulher de M. A. P., empregado na alfandega.

«Esperamos que o coração de v. ex.ª experimente, ainda que tarde, um movimento de compaixão por essa pobre creatura, que, segundo nos informam, tem sabido conservar-se digna de melhor sorte e, digamol-o com franqueza, de melhor mãe.

«Se V. Ex.ª despresar o aviso que lhe fazemos, ver-nos-hemos na necessidade violenta de o repetir a seu marido, cuja alma bondosa se revoltará decerto contra a dureza de coração de sua{183} mulher. Portanto acreditamos que v. ex.ª, sem prejuizo da sua actual posição, conseguirá encontrar meio de lhe revelar a existencia de sua filha, podendo talvez dizer-lhe que até hoje a havia procurado sem comtudo a poder encontrar.

«Não seremos nós que, n'esse caso, o desilludiremos denunciando-lhe toda a verdade na sua nudez hedionda.

«Mas se v. ex.ª, pelo contrario, entender que deve zombar do sentimento de justiça a que obedecemos, seremos obrigados a provar-lhe que o seu coração não merece a compaixão de ninguem.»

Escripta esta carta, resolvemos confial-a a Maria de Alarcão para que a entregasse a D. Christina, e partimos immediatamente de Cintra, depois de ter recommendado que, no caso de D. Christina recusar recebel-a ou lel-a, nos fosse mandado aviso para Lisboa.

Tanto D. Christina como o brazileiro se mostraram muito contrariados com a nossa ausencia, especialmente o brazileiro, que nos abraçou a cada um e offereceu a sua casa em Lisboa na rua das Praças.

Oito dias depois noticiava um jornal que o sr. commendador Araujo e sua esposa acabavam de partir para a sua bella quinta de Amares em companhia de sua interessante filha, que tinha estado a educar no estrangeiro.

No inverno d'esse anno, appareciam n'um camarote{184} de S. Carlos tres pessoas muito nossas conhecidas: o commendador Araujo, sua mulher e D. Maria de Alarcão.

O Gonçallinho Jervis rememorou algumas vezes, na presença de amigos nossos, a excentricidade que tivemos de ir a Cintra na primavera expressamente para ouvir os rouxinoes.

—E ouviram?

—Não! respondia elle.

 

FIM






End of the Project Gutenberg EBook of Noites de Cintra, by Alberto Pimentel

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE CINTRA ***

***** This file should be named 34719-h.htm or 34719-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        https://www.gutenberg.org/3/4/7/1/34719/

Produced by Pedro Saborano

Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: https://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     https://www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.